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FFLCH - USP
JÉSSICA ARACELLI ROCHA
Borges e o realismo: O Outro da Literatura Borgeana
_____________________________________________________________
SÃO PAULO
2008
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2
JÉSSICA ARACELLI ROCHA
Borges e o realismo: O Outro da Literatura Borgeana
Dissertação apresentada ao Departamento de Letras
Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo para a
obtenção do título de Mestre em Literatura Hispano-
americana.
Área de Concentração: Língua Espanhola e Literaturas
Espanhola e Hispano-americana.
Orientadora: Prof
a
Dra. Laura Janina Hosiasson.
SÃO PAULO
2008
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3
AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO PARCIAL DESTE TRABALHO, POR
QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO, PARA FINS DE ESTUDO E
PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.
4
DEDICATÓRIA
"Dize aos israelitas que me façam uma oferta.
Aceitareis essa oferenda de todo homem que a fizer de
bom coração. Eis o que aceitareis à guisa de oferta: uns
trarão ouro, prata, cobre, púrpura violeta e escarlate,
carmesim, linho fino; outros podem trazer peles de
cabra, peles de carneiro, tintas de vermelho, peles de
golfinho, madeira de acácia; outros ainda azeite para
candeeiro, aromas para o óleo da unção e para os
incensos odoríferos, pedras de ônix e outras pedras.
Far-me-ão um santuário e eu habitarei no meio deles
[...] Farão uma arca de madeira de acácia [...]” (Êxodo,
25:3)
“Há yoguis que servem a Deus com ritualismos vazios
[...]; outros porém, oferecem-lhe melhores dádivas, no
fogo de Brahman. Outros praticam renúncia, abstendo-
se do que agrada aos olhos e ouvidos; outros ainda
oferecem, de coração ardente, as suas preces e seus
hinos de louvor. Muitos há que, no fogo místico da
mortificação dos sentidos, ateado pela luz da Verdade,
abrem mão das alegrias da vida. também os que,
por meio de votos, renunciam às riquezas e vivem em
humildade, entre penitências, jejuns e macerações;
outros que pela silenciosa leitura de livros e profunda
meditação buscam conhecimento [...] Todos esses
yoguis, em virtude de seus sacrifícios peculiares,
libertam-se de todas as impurezas, no fim dos seus
exercícios e, imersos em alegria, atingem a eterna
divindade”.
(Cap.4, 25-30; Bhagavad Gita)
5
AGRADECIMENTOS
“Não, eu não hei de morrer; viverei para narrar as obras do Senhor” (Salmos 117, 17)
A Deus. Em especial ao Sr. Jesus Cristo e a Bhagavan Krishna. Ao meu querido Guru
Paramahansa Yogananda, Sri Yukteswar, Lahiri Mahasaya, Mahavatar Babaji. A meu
caro Santo Expedito, e minha querida Nossa Senhora das Graças. Aos Anjos e aos
Santos de todas as religiões, que intercederem e auxiliaram neste trabalho.
Ao CNPQ, pela concessão da bolsa de Mestrado, a qual foi imprescindível para a
formação da pesquisadora e para a obtenção dos resultados.
À Minha Orientadora, Prof. Dra. Laura Janina Hosiasson: muito paciente com os
prazos; incansável nas correções; exigente com a qualidade do trabalho; por suas
várias orientações precisas; pelas indicações de material adequado. Sem ela,
certamente, esse trabalho não teria sido o que foi.
Ao Prof. Dr. Marcos Piason Natali, que fez ótimas indicações de bibliografia, ajudou a
sanar algumas dúvidas, deu apóio às idéias, mas sobretudo, porque se dispôs ao
diálogo, prestando auxílio em dois momentos cruciais. À Prof. Dra Ana Cecília, meus
agradecimentos, porque incentivou o projeto e se empenhou em apontar caminhos.
Ao Prof. Dr. Eduardo Martins. Seus cursos de Brasileira I e III estão nos fundamentos
deste Mestrado. Agradeço ainda suas indicações de pós-IEL.
À prof. Graciella Capacci pela oportunidade de participar em seu taller literario.
Também agradeço a Prof Beatriz Colombi pelo incentivo em sua disciplina.
À minha querida mãe, Dalíria Nogueira da Rocha. Suas orações contínuas, seu amor
imenso, sua preocupação carinhosa. Pelo incentivo, mesmo quando isso significava a
distância. A meu pai, por seus presentes, que sempre chegaram na hora certa.
Minha irmã Cristiane, que junto com as Mil e Uma Noites, aos onze anos, trouxe uma
direção para minha vida. Minha irmã Cleide, que ajudou a juntar as pontinhas desta
existência para que o espiritual estivesse no mental e o mental no espiritual, sem
esquecer do descanso, do emocional e do material. Meu muito obrigada!
Meus queridos amigos da vida inteira, que suportaram as ausências e as correrias, mas
dividiram as alegrias: José Carlos, Juliano, Mário, Eliene, Lisa, Batsi, Carlucha.
Elis e Michella, minhas irmãs de apartamento. Por todo conselho e encorajamento,
enfim pelo ambiente sereno e fraterno que me proporcionaram.
Aos amigos de São Paulo, Malú, Allan, Walter e Márcio, porque os momentos de
alegria foram enorme motivação para o trabalho. Aos amigos da filosofia, Ari e
Márcia; e ao Júlio, companheiro das letras. A Olga e Rui, pela conversa animada.
Ligia, companheira infalível. Por toda a força e incentivo... Porque a vida passa, mas
há pessoas especiais que permanecem e dão valor ao que passou!
Ao meu amigo Borges, quem me ensinou que os autores são amigos, com os quais a
gente segue eternamente conversando, através de suas obras.
6
“Don Quijote:
_ Dime ¿No ves aquel caballero que hacia nosotros viene, sobre un
caballo rucio rodado, que trae puesto en la cabeza un yelmo de oro?
_ Lo que yo veo y columbro respondió Sancho no es sino un
hombre sobre un asno pardo como el mío, que trae sobre la cabeza
una palangana que relumbra”.
7
RESUMO
ROCHA, J. A. Borges e o realismo: O Outro da Literatura Borgeana. 2008. 178f.
Dissertação (Mestrado) Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade
de São Paulo, São Paulo, 2008.
Busca compreender o conto “El Otro”, de Jorge Luis Borges. Para tanto, efetua sua análise
formal; acrescida pelo exame de um corpus secundário. Uma vez que a narrativa apresenta
dois personagens autobiográficos, sendo o jovem similar e estranho à produção deste autor, é
necessário comparar tal personagem à obra borgeana de juventude, no tocante ao realismo,
engajamento, biografismo e ultraísmo. Verifica que o Borges de 1918 a 1920 não exibe tais
concepções literárias, exceto pelo ultraísmo. Na segunda etapa juvenil, entre 1921-1928,
encontra ultraísmo, biografismo e alguns pontos de contato, com elementos do realismo.
Contudo, observa a existência de realismo, engajamento, biografismo e ultraísmo no contexto
literário argentino dos anos vinte. Os três primeiros rasgos estão especialmente ligados ao
grupo boedista. No entanto, como o conto alude ao Modernismo, entende-se que não o
Realismo, mas toda a geração de vinte é contemplada na figura do personagem mais novo. Na
leitura do conto, entende que as personagens produzem um diálogo entre a obra borgeana e a
geração argentina dos anos vinte, na qual, o jovem Borges da realidade fica incluso. A matéria
sob o diálogo, tanto nas estruturas quanto na temática, consiste de uma série de
questionamentos ao realismo. Essas representações também podem ser lidas enquanto duas
atitudes fundamentais diante da arte literária. Entende-se que em “Nota sobre Walt Whitman”
uma oposição aos postulados boedistas, em especial no tocante ao biografismo. Como a
segunda etapa juvenil apresenta concepções biografistas, verifica que o ensaio de 1932
assinala uma mudança. Por isto propõe que a polêmica Boedo-Florida foi um momento
importante para a transformação ocorrida entre a obra juvenil e a obra madura. Em seu
Prólogo “Domingos F. Sarmiento: Facundo”, encontra objeções ao realismo e ao
engajamento. Nos pressupostos foi destacado que o autor começa um combate aos postulados
realistas na década de trinta. Uma vez que o prólogo é escrito em 1974, compreende-se que
através de seus ensaios, o autor está em constante diálogo com o realismo. Interpreta em “La
Postulación de la Realidad” a divisão borgeana entre dois modos de fazer literatura: o clássico
e o romântico. Com isso, entende-se que estes modos literários genéricos do ensaio possuem
um paralelo com os modos derivados das personagens e estruturas do conto analisado. Ao
mesmo tempo, percebe-se que o modo realista / romântico (expressivo) está ligado à obra
juvenil, ao passo que o modo clássico (alusivo) é associável à obra borgeana da maturidade.
Ademais, no conto “El Milagro Secreto”, encontra uma das técnicas clássicas, gerando alta
verossimilhança (efeito buscado pelas obras românticas). Igualmente esta é uma técnica
recorrente em algumas obras realistas. Assim, o uso dos detalhes circunstanciais representa
um ponto de contato entre a obra borgeana e o realismo. No entanto, conclui-se que a
utilização deste recurso ainda pode ser vista como uma crítica a esta estética.
Palavras-chave: Borges, realismo, biografismo, engajamento, mimesis, verossimilhança.
8
ABSTRACT
ROCHA, J.A. Borges and the realism: The Other of the Borgesean Literature. 2008. 178f.
– Dissertation (Master) - FFLCH - USP, São Paulo, 2008.
This dissertation tries to understand “El Otro”, a short story by Jorge Luis Borges. In order to
achieve this goal, we make an analysis of it and of a secondary group of texts. As the
narrative has two autobiographical characters, and the youngest of them seems different from
the author and his first books, it is necessary to compare this character with this author’s
youth works (essays) in relation to realism, engagement, tendency to look for relations
between literature and the author’s life (called biographism in this paper), and ultraism. The
first chapter confirms that the young Borges (1918-1920) does not present these
characteristics in his evaluation of literature, except for ultraism. In a later period of his youth
(1920-1928), there is ultraism and biographism and some relations with the realistic way of
literary construction. However, there were realism, engagement, biographism and ultraism in
the Argentine literary context of the twenties. The three first can be associated with the
writers in the Boedo group. However, the story alludes to Modernism too; so it is possible to
understand that the young character in the short story is related to the generation of Argentine
writers in the twenties. The reading of the short story shows that it produces a dialog between
the borgesean literature and the Argentine writers of the twenties, including the young Borges.
The dialog and the narrative resources reveal that realism is criticized. These two
representations can be read as two generic ways to deal with literature. So, it is possible to
state, that in “Nota sobre Walt Whitman”, there is an opposition to the way boedists dealt with
biographism. As Borges’ second youth period does not present biographism, we affirm that
this essay captures a transformation. Therefore, we can confirm that the controversy between
the groups, Florida and Boedo, may have been an important moment between Borges’ youth
books and his well known works. In his preface “Domingos F. Sarmiento: Facundo”, new
objections to realism and engagement can be found. In the first chapter it is asserted that
Borges fights realism since the thirties. Thus, if the preface was written in 1975, we can assert
that this author’s critical texts are in dialog with realism. The essay “La Postulación de la
Realidad” shows the borgesean classification of literature: the classical way and the romantic
way of writing. Thus, we verify the existing parallel between this essay and the short story
analyzed. This text shows that the romantic way has a connection with the second period of
Borges’ youth works, while the classical way is related to his mature works. Other borgesean
short story, El Milagro Secreto”, uses one of the classical techniques to generate
verisimilitude, but this is a technique commonly used by realists too. Therefore, this story
shows that there is a contact point linking the borgesean works and realism. This same
technique keeps a final objection to realism.
Key-words: Borges, realism, biographism, engagement, mimesis, verisimilitude.
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.......................................................................................................................01
1.0. UM OUTRO BORGES NO IMPÉRIO REALISTA...................................................03
1.1. BORGES E A GERAÇÃO LITERÁRIA ARGENTINA DOS ANOS VINTE................03
1.2. O JOVEM BORGES E O REALISMO, O ENGAJAMENTO, O BIOGRAFISMO,
E A METÁFORA ULTRAÍSTA, NA DÉCADA DE VINTE..........................................08
1.3. O JOVEM BORGES E A GERAÇÃO LITERÁRIA ARGENTINA DOS ANOS
VINTE................................................................................................................................24
2.0. BORGES E O REALISMO: UM CONJUNTO DE PARADOXOS
- Análise do Conto “El Otro” - ......................................................................................28
3.0. UMA FICÇÃO CONTRA O REALISMO, E A VEROSSIMILHANÇA
NESSA FICÇÃO – Análise dos Ensaios e Narrativas Complementares...................80
3.1. BORGES E O BIOGRAFISMO: NOTA SOBRE A EXISTÊNCIA DE UM
OUTRO WALT WHITMAN.............................................................................................80
3.2. UM PRÓLOGO BORGEANO: O ENSAIO LITERÁRIO E A LEITURA
CONTRA O REALISMO E O COMPROMISSO..............................................................93
3.3. DUAS REALIDADES LITERÁRIAS: O CLÁSSICO E O ROMÂNTICO.....................112
3.4. BORGES E UM PONTO DE CONTATO COM O REALISMO:
OS PORMENORES CIRCUNSTANCIAIS....................................................................137
CONCLUSÕES.....................................................................................................................153
BIBLIOGRAFIA...................................................................................................................167
1
INTRODUÇÃO
Embora o realismo formal tenha início no século XVIII, o Realismo é
indissociável do século XIX. Segundo Borges, em sua “Vindicación del 1900”, este é um
século contraditório que contem muitas doutrinas e também a refutação de todas elas: “No
hay argumento contra él, contra sus instituciones, que no haya sido formulado por alguien en
ese mismo siglo”
1
. No entanto, se o escritor nasce em 1899, vale lembrar que o mesmo
Borges é um homem do século XIX. Então, talvez este seja um dos motivos, para que seu
pensamento e sua obra sejam tão paradoxais.
Nosso principal objetivo nesta dissertação é a análise do conto, “El Otro”
(1975), em vários de seus desdobramentos e alcances. Trata-se de um texto muito citado por
sua curiosa trama. Contudo, pertencente à terceira fase do autor, a qual costuma ser a menos
visitada pela crítica, ele parecia merecer uma leitura mais aprofundada, sob um viés literário
2
.
Em primeiro, porque o tema do duplo costuma desencadear um intenso processo de
autoconhecimento para o personagem que o enfrenta - neste caso, o desdobramento de um
Borges personagem. Em segundo, porque as híbridas narrativas borgeanas assumem um tom
ensaístico, ao proporcionar uma série de idéias sobre a literatura. Por tal motivo, essas duas
questões, o duplo e a formação de idéias literárias, irão guiar esta análise. Através delas,
surgem as entradas e os limites do trabalho. O conto oferece muitas sugestões sobre a vasta
obra borgeana, as quais não poderiam ser totalmente exploradas. Cada autor é um universo, e
tentar classificar a totalidade das estrelas que o compõem, é uma tarefa sempre impossível.
Assim, com o grande auxílio das explorações anteriores, limitamo-nos a apontar as
extremidades de um conjunto possível – Borges e o realismo.
Com isso, a estrutura da dissertação visa a atender as necessidades do conto.
No primeiro capítulo, para elucidar a questão dos personagens autobiográficos faz-se
necessária uma volta às concepções literárias do autor, desde 1918 até a década de trinta.
Portanto, seu assunto é o jovem Borges. No segundo, vemos que a análise da narrativa
proporciona a discussão de uma série de questões sobre a obra borgeana. Assim, surge um
terceiro capítulo, para aprofundar a exposição das duas concepções opostas de literatura,
formuladas no conto, as quais envolvem ainda o engajamento e o biografismo (termo com o
qual nomeamos todo tipo de confusão entre um escritor e seus personagens, ou sujeito da
poesia). Por este motivo, uma aproximação a três ensaios de Borges, que lidam com estes
assuntos: todos refletem a mesma contraposição, ajudam a entender dois momentos da
2
carreira do autor (20 e 70); e permitem averiguar o desenvolvimento de suas idéias no tempo.
Duas narrativas mais ilustram um recurso comentado no último ensaio. A partir dele, é
possível perceber um interessante ponto de contato entre a obra borgeana e o realismo.
Na narrativa, encontram-se alusões que remetem ao Realismo argentino,
porém, esta questão particular se desdobra na visão de um modo literário muito mais amplo e
geral, em que o realismo é a tendência a configurar a literatura em relação com a realidade.
Portanto, o texto gera seu próprio conceito de realismo.
Particularmente, o conceito parece incidir sobre o Realismo argentino da
década de vinte e, em especial, sobre o grupo literário de Boedo. Por isso, muitas vezes,
observa-se que Borges parece combater um realismo bastante ingênuo que tenta aproximar a
verdade ficcional, pautada pela elaboração, a uma verdade expositiva sobre a realidade. Trata-
se de um grupo de escritores para o qual, o retrato fiel das condições sociais, era um meio
para sua empreitada ideológica. Dez anos depois da Revolução Russa, com as doutrinas
socialistas em pleno vigor, a revolução era o alvo, e a literatura, uma forma de conscientizar e
despertar o desejo de participação no projeto político.
Contudo, as generalizações borgeanas tentam apanhar o Realismo em uma
das eternas modalidades da Literatura – de acordo com as indicações de La Postulación de la
Realidad”. Assim, o termo se amplia muito, para referir-se também, nas palavras de Antonio
Candido, às “modalidades modernas, que se definiram no século XIX e vieram até nós [as
quais] tendem a uma fidelidade documentária que privilegia a representação objetiva do
momento presente na narrativa”
3
. Na verdade, as objeções de Borges ao Realismo são tão
amplas e pesadas, que chegam até o questionamento da mimesis.
Quanto aos “senderos”, isto é, aos caminhos trilhados, as teorias do
formalismo russo, e do estruturalismo auxiliaram a compor nosso estilo de análise, pautado
por detalhadas apreciações formais. Por outro lado, para entender o realismo, foram leituras
obrigatórias Ian Watt e Erich Auerbach. Ao final dessa dissertação, observa-se que ela
continuidade a uma linha sulamericana de leituras: o nacionalismo; a história; a memória em
Borges. No entanto, os questionamentos ao realismo nela expostos, a tornam afins aos debates
do pós-estruturalismo. De qualquer maneira, a feição deste trabalho menor, de um equilíbrio
entre a forma e a busca do contexto, leva a ter de admitir certa influência, inconfundível.
3
1.0. UM OUTRO BORGES NO IMPÉRIO REALISTA.
Em uma primeira análise, verifica-se que a narrativa contem um embate
contra postulados realistas. O conflito decorre de posturas antagônicas entre as personagens
do jovem e do mais velho este discorda do realismo, engajamento e biografismo
4
do mais
novo; mas também de suas metáforas ultraístas. Além das concepções realistas, o velho
identifica influências de várias escolas literárias no trabalho do jovem. Essas diferenças ainda
são expandidas com o auxílio das estruturas textuais, portadores de duas concepções distintas
a respeito da literatura. A partir desta constatação, efetuamos uma leitura composta de duas
hipóteses: a) no conto, a obra borgeana dialoga com uma representação da literatura argentina
dos anos vinte, na qual, o jovem Borges real fica incluso; essas duas representações, também
podem ser lidas enquanto duas atitudes fundamentais diante da arte literária; b) a matéria do
diálogo, tanto nas estruturas quanto na temática, é uma série de questionamentos ao realismo.
Em prol das hipóteses, os pressupostos pretendem demonstrar que as
questões abordadas no conto são relacionáveis ao campo literário argentino dos anos vinte.
Ademais, como os dados autobiográficos inseridos no personagem jovem parecem pretender
sua inclusão nestas críticas e debates, vamos buscar as concepções literárias do escritor, em
sua juventude, para mostrar suas diferenças e pontos de contato, com o personagem jovem de
si mesmo. Entretanto, não existe a intenção de contextualizar a narrativa, no sentido de
pretender que ela ‘surge de’ ou ‘expõe’ realidades históricas do campo cultural. Ao contrário,
o propósito é mostrar que o texto, em seu caráter lúdico e paradoxal, produz visões a respeito
da literatura de qualquer tempo, embora finja reportar-se à sua versão do que teria sido a
literatura argentina da cada de vinte. Por isso, o importante não é conseguir uma descrição
precisa do período, mas apenas evidenciar que os críticos coincidem a respeito dos debates
assinalados - que entram na caracterização do protagonista mais jovem e explicam,
parcialmente, o tipo de críticas ao realismo que o conto elabora.
1.1. BORGES E A GERAÇÃO LITERÁRIA ARGENTINA DOS ANOS VINTE.
1.1.1. Realismo, Engajamento e Biografismo na Argentina dos anos vinte.
4
Em seu artigo, “O Império Realista”, Maria Teresa Gramuglio data o apogeu
do Realismo argentino nos anos trinta, embora ele predomine, como poética e atitude, desde o
final do século XIX, até meados de 1940
5
. Segundo ela, este era um tipo de literatura que
correspondia às expectativas dos leitores da época, obtendo ampla aceitação, uma vez que “la
seducción del referente, propia de las poéticas miméticas, las torna particularmente adecuadas
para tramitar las necesidades de reconocimiento y de autoconciencia [...]”
6
. Gramuglio
considera que o momento de formação da identidade nacional, através da cultura, propiciava o
desenvolvimento do Realismo, e este, por sua vez, foi crucial para a conquista daquele
objetivo. Ainda cabe destacar a longa duração desta estética, que a mesma crítica afirma
que o realismo ressurge ao longo do século em poéticas de mistura as quais “se ocupan del
presente con una intención cognoscitiva y crítica”
7
. Na verdade, a tese do artigo é a de que o
realismo foi decisivo para a literatura argentina moderna
8
. Seu pressuposto parece ser o de
que nestes anos surge uma tradição literária nacional que será plataforma para
desenvolvimentos posteriores. Contudo, caberia perguntar: se o realismo é de fato responsável
por este legado, até que ponto haveria sido tão recorrente nesta primeira metade do século
XX, não fosse a influência do cenário político incidindo sobre o campo cultural? Em todo
caso, suas afirmações apontam para a hegemonia desta estética no começo do século vinte,
respaldada pelo projeto de representação da nacionalidade argentina e, que além disso,
consegue estender seus domínios para além das primeiras décadas.
Ainda segundo Gramuglio, no século XX, depois da Revolução Russa, o
realismo ganha novo alento com o advento da crítica marxista. É um segundo momento em
que, respaldado pela influência do velho Lukács, o realismo recupera vigor e ganha novas
nuanças
9
. Ela lembra a relação direta do crítico com o Partido Comunista; o menosprezo que
o crítico húngaro chega a conferir às vanguardas, em nome de uma valorização do paradigma
realista do século XIX, e que chegara a equiparar realismo e arte
10
. Alerta para o fato de que
grande parte dos julgamentos, realizados sobre a estética realista, na primeira metade do
século XX, vinham de alguns teóricos e críticos de esquerda, os quais, ao contrário de
observá-la em sua função artística, se ocuparam sobretudo de “sus alcances cognoscitivos y
pragmáticos, y por ende, políticos”
11
. Assim, durante o período aludido, para parte da crítica,
preconizar o realismo equivalia a atender às finalidades de um projeto político. Desse modo,
essa estética ganha um reforço ideológico que podia pressionar os escritores, através da
recepção das obras. Veremos que no corpus fica sugerida uma interferência da política no
5
projeto estético do jovem Borges personagem, o que simbolicamente lembra essa Argentina
recebendo pressões ideológicas em sua literatura.
Assim, entendemos que houve transformações no Realismo argentino. O que
a princípio era uma estética européia, uma nova escola literária aportando no continente,
torna-se a seguir uma escolha argentina em função de suas necessidades culturais; mas
converte-se em alguns momentos da primeira metade do século XX em imposição teórica,
influenciando o campo intelectual através de um setor da crítica. Uma segunda dedução
possível é a de que, dentro deste setor específico, uma mudança nos parâmetros
avaliativos, de maneira que o julgamento estético cede lugar a critérios políticos, fazendo com
que a crítica das realidades sociais ganhe um novo impulso nas representações artísticas.
Gramuglio registra dois momentos de forte polêmica com o Realismo
argentino no século XX: a disputa local entre os grupos de Florida e Boedo, em meados da
década de vinte; e os debates gerais sobre o realismo socialista, em 1956. Essa primeira série
de dados parece coadunar-se para o entendimento das concepções antagônicas formuladas em
nosso corpus. Nele, de um lado, está a idéia de que a arte possui um desenvolvimento através
da retomada e progresso da tradição (que não é uma idéia central do grupo de vanguarda
argentina, mas se assemelha às concepções da literatura borgeana). Do outro, está a idéia de
que a literatura é concebida sobretudo a partir do contexto (o que poderia evocar o realismo
de qualquer tempo, ou o Realismo argentino, mas encontra muitos pontos de contato com o
grupo de Boedo, em especial). Dessa forma, uma parte do arranjo simbólico do corpus
narrativo suscita uma aproximação à polêmica Boedo-Florida
12
.
Gramuglio revela o perfil dos grupos através dos rótulos que lhes foram
imputados no período: aos de Florida – os da arte pela arte; arte burguesa, formalista e
decadente; aos de Boedo os realistas; os socialistas; os da arte proletária
13
. Ela oferece o
panorama geral mas procura complementá-lo com algumas expressões individuais de maior
peso. Assim, ela destaca a publicação do boedista Elías Castelnuovo, em que este postula a
necessidade de que a arte esteja a serviço da revolução e sua defesa de uma estética
compreensível para as massas
14
. De acordo com Gramuglio, o essencial para este autor seria o
conhecimento da realidade; a beleza teria apenas um sentido utilitário e por este motivo
demonstrava menosprezar as inovações vanguardistas e mesmo o domínio das técnicas
literárias. Gramuglio destaca também a participação de Álvaro Yunque, outro boedista: sua
defesa de uma arte popular e sua declaração de que a beleza não define a arte
15
. Uma vez que
este artigo tem como objetivo traçar um panorama geral, ele define linhas mestras para o
6
estudo do realismo argentinos atingindo suas metas, contudo, por esta finalidade mais
abrangente, o grupo vanguardista recebe uma menor atenção.
Outra abordagem da disputa aparece no livro de Rafael Olea Franco. Apesar
da pequena seção em que se encontram, as estéticas foram bem caracterizadas. Ele entende
que o ponto central da dissensão era o próprio entendimento da arte, e em decorrência disto, o
que se pretendia renovar em sua proposta – o social ou o literário
16
. No grupo de Florida, Olea
Franco aponta o ideal de arte pela arte e o desejo de promover experimentação, independente
das eventuais dificuldades de compreensão provocadas por este tipo de composições
17
. Olea
Franco coincide com Gramuglio em que a rebeldia deste grupo era estética
18
. Explica que as
pequenas tiragens de exemplares destes escritores se devia à concepção do livro como uma
obra de arte destinada à elite do pensamento algo que a outra crítica não menciona
19
. Como
ela, Olea Franco assinala a preocupação social no trabalho dos escritores do grupo de Boedo e
identifica a proposta de uma arte engajada; que primasse pelo realismo e pela clareza em sua
escritura; lembrando ainda que estes escritores procuravam uma identificação com o leitor,
através da pertença à mesma classe social
20
. Explica também que, em contraste com as
convicções do grupo de Florida, os boedistas procuraram repassar seus exemplares a baixo
custo de modo a atingir a massa com suas idéias
21
. Fica evidente no texto do crítico espanhol,
que estes escritores desejavam ser porta-vozes das classes oprimidas. Suas explicações
confirmam as de Gramuglio, e as ampliam ao iluminar a questão ideológica, de que a clareza
e o realismo eram necessários aos boedistas, pois auxiliavam na difusão de seu pensamento.
O artigo de Alberto Giordano & Alejandro Eujanían é mais específico que
os anteriores, ao abordar a rixa dos grupos, através da análise das revistas literárias de
esquerda da época. Os autores esclarecem que ambos (os de Boedo e os da Vanguarda)
tinham empatia com o projeto da esquerda, pensando preparar a sociedade para as
transformações vindouras, mas a proposta de cada grupo visava a um tipo de transformação.
Uns queriam mudar a sociedade. Os outros, a arte literária. Assim, as revistas funcionavam
como veículos ideológicos de consolidação interna e serviam ainda para a tomada de espaços
no campo cultural
22
. Giordano & Eujanían destacam a revista Claridad, ligada aos boedistas,
a qual em princípio não se achava filiada a uma corrente partidária, e cujo rasgo marcante era
seu propósito pedagógico. Gradualmente ela vai manifestando tendências políticas e chega,
em sua última época, a apresentar uma retórica revolucionária, quando seus colaboradores
desejavam a construção de uma esquerda Latino-americana e a penetração do partido
socialista na sociedade
23
. Assim, os críticos revelam novo aspecto ligado a escritores que
participavam deste grupo: a de fins pedagógicos para a arte. De modo geral, em concordância
7
com Olea Franco e Gramuglio, a dupla de críticos revela a ideologia política e a visão de uma
função social
24
para a literatura, no grupo de Boedo.
Como Olea Franco, Giordano & Eujanián também assinalam, que para os
boedistas, a clareza seria fundamental: “existe una verdad (la de lo social, en este caso) y
puede transmitirse gracias a la transparencia del lenguaje (literário, en este caso) (grifo do
autor)”
25
. Novamente aparece a idéia de que em nome da função social, o ideal seria uma
literatura de cil acesso ao grande público. É interessante observar o dado de que a Revista
Contra, surgida em 1933, buscou definir a função do escritor, em termos de “agitar y hacer
propaganda” com o argumento de que “el arte puro o de entretenimiento podría cumplir una
función positiva sólo en una sociedad sin clases”
26
. Gramuglio e Olea Franco não assinalam
esta acentuação progressiva das estéticas rivais, expressa no pedido de uma atitude panfletária
dos escritores, e no menospreza da arte que o visa a uma transformação da sociedade.
Giordano & Eujanían detectam que nos discursos de Contra havia uma oposição entre arte
pura e arte propaganda, em que a segunda era defendida
27
. Neste ponto, é visível o
incitamento a uma arte comprometida por parte dos editores desta revista.
Outro ponto que Giordano & Eujanián abordam no conjunto da exposição é
a visão que o grupo realista possuía das relações entre o escritor e sua obra. Olea Franco
menciona o dado, mas os críticos explicam melhor o problema. Eles expõem que os escritores
boedistas preconizavam uma identificação entre a matéria de seus relatos e a condição social
dos autores, que “La continuidad entre la experiencia vivida y su representación por la
escritura garantiza la autenticidad de la literatura de izquierda”
28
. Ou seja, estes realistas
davam por mais autorizado o escritor que estivesse exposto aos mesmos problemas sociais
denunciados por intermédio de sua obra. Mas isso vai além: “Sólo el escritor que tiene una
conciencia clara del dolor humano, porque lo experimentó en su cuerpo y en su alma, puede
hacer que la literatura transmita la verdad de sus causas sociales y de sus posibles
remedios”
29
. O problema de valorizar a identificação do escritor com a matéria narrada, é que
ela rebaixa o valor da imaginação e limita o alcance da obra às vivências do escritor.
Giordano & Eujanián não exploram tanto o perfil dos periódicos ligados ao
grupo de Florida, mas eles mostram que os vanguardistas argentinos recusavam uma literatura
comprometida, ao entender que a arte não é um “vehículo”, mas um fim em si mesmo. O dado
se deixa ver no artigo dos críticos, pela resposta da Revista Martín Fierro (de Florida) a um
ataque dos boedistas: “‘una revista no es un lugar apropiado para expresar ideas políticas por
lo mismo que la literatura no tiene que ser un vehículo de la agitación ideológica’”
30
. Isto
significa que, enquanto os vanguardistas desejavam uma reforma estética; os boedistas
8
trabalhavam em prol de uma reforma social. Assim, Giordano & Eujanián observam que os
enfrentamentos não se sustentaram por muito tempo, pois não havia “presupuestos estéticos
compartidos”
31
. As concepções de arte eram tão distintas que terminaram por inviabilizar a
discussão entre os grupos. No tocante aos objetivos dos grupos e às visões de arte opostas, a
dupla de críticos coincide com Olea Franco e Gramuglio, mas avançam com dados pontuais,
ao perceber o motivo pelo qual cessam as discussões.
Em primeiro lugar, estes pressupostos auxiliam a identificar uma oposição
fundamental dentro do conto: arte pela arte vesus arte engajada. Ademais, em seu leque
próprio, abrangente e simbólico, de causas e compreensões, veremos que o conto elabora a
interpretação de uma dessas atitudes perante a literatura. Em segundo, eles auxiliam a
diferenciar o autor do personagem jovem de si mesmo - realista, engajado e biografista, que
aparece no conto. Os fundamentos lembram que o realismo foi a tendência dominante na
Argentina, nas quatro primeiras décadas do século XX, sendo questionado apenas pelos
escritores vanguardistas reunidos em torno da Revista Martin Fierro, na qual Borges
colaborava. Esse confronto se expressa na polêmica entre o grupo realista de Boedo e o grupo
vanguardista de Florida. Contudo, Beatriz Sarlo indica que ambos os grupos aspiravam a uma
literatura criollista, representativa do nacional
32
. Isto significa, que mesmo dentro da
vanguarda, entre suas páginas mais simbólicas e suas páginas mais verossímeis, o realismo
ainda tinha campo de atuação. Portanto, é compreensível que os ensaios borgeanos da década
de trinta exibam críticas à escola mais antiga. Nessa época, Borges é um jovem escritor,
deparando-se com um, já consagrado, e hegemônico, Império Realista.
1.2. O JOVEM BORGES E O REALISMO, O ENGAJAMENTO, O BIOGRAFISMO, E A
METÁFORA ULTRAÍSTA NA DÉCADA DE VINTE.
1.2.1. O Primeiro Jovem Borges
A crítica da literatura borgeana costuma falar em um “jovem Borges”
33
,
quando na verdade, mesmo em sua juventude, dois momentos bastante nítidos. O primeiro
se concentra no período de 1918 a 1921. São quatro anos, mas geram um conjunto que não é
desprezível. São muitos textos críticos, vários manifestos, traduções, prosa poética e quase
9
trinta poemas. Enquanto vive em Genebra e na Espanha, ele se mostra interessado e,
influenciado em seus primeiros poemas, pelo movimento expressionista
34
. Na Espanha adere
ao ultraísmo, escrevendo diversos manifestos para o grupo. Assim, o ‘primeiro jovem’ é um
escritor de tendências vanguardistas, que chega a participar de um texto conjunto de escritura
automática. Como costuma ocorrer nos manifestos da vanguarda, o ‘novo’ é sua palavra de
ordem nestes textos. O tom às vezes é agressivo e irônico, e no entanto, a linguagem já se
assemelha à utilizada nos ensaios maduros. Parece estar em perfeita sintonia com o
movimento europeu de renovação estética que ganha força nestes anos. Portanto, este é um
Borges para quem, a arte está ligada aos avanços estéticos; para quem a forma e as técnicas
são aspectos centrais da produção artística.
Ao que indicam seus textos críticos da época, ainda antes de seu regresso a
Buenos Aires, Borges possuía idéias formadas a respeito do realismo. Em “Réplica”, de
1920, respondendo a ataques ao grupo ultraísta, no qual participava, afirma não desejar que
sua arte seja um reflexo da realidade
35
. Parece uma formulação que visava a atender aos
propósitos daquele texto específico, isto é, responder ao artigo de um colunista que alegava
nada entender dos poemas do grupo, mas nela surge uma atitude. Com tal resposta
demonstra não se importar com uma arte de compreensão imediata. Em “Contra Crítica”, do
ano seguinte, a formulação é mais pessoal, quando ele põe empenho em demonstrar que a arte
não depende do ambiente, mas ‘deve tudo’ a seu criador. Morando na Espanha, Borges sai em
defesa de um pintor, cuja arte não tinha recebido a aprovação dos maiorquinos - um crítico
comenta, que com tão lindas paisagens no local, o pintor deveria ter sido bem sucedido em
seus quadros. Ao que Borges retruca: “Como si lo importante fuese el tema tratado y no el
ángulo de visión desde donde el artista – redimido y demiúrgico – atalaya la vida”
36
. Observa-
se que ele preconiza o tratamento artístico da idéia e não a temática.
No manifesto ultraísta de 1921, ele e os companheiros distinguem duas
estéticas: a ativa dos prismas”, na qual “el arte se redime, hace del mundo su instrumento, y
forja más allá de las cárceles espaciales y temporales su visión personal”; e a estética
“passiva dos espelhos”, na qual “el arte se transforma en una copia de la objetividad del
medio ambiente o de la historia psíquica del individuo”
37
. Ou seja, neste manifesto fica clara
sua rejeição ao romance psicológico e à estética realista. Em segundo, percebe-se nesta
época o desejo de uma estética ativa, de elaboração da realidade: ele não quer seguir a vida,
mas ao contrário, quer que a vida se encaminhe na direção dos significados que propõe.
Outro exemplo desta opção está em “Crítica del Paisaje”, de 1921, quando
Borges vai expor sua visão de que a cultura se interpõe entre o escritor e a natureza: “El
10
paisaje del campo es la retórica”
38
. Ele deixa entender que as reações ao que vê, já estão
previamente condicionadas por suas leituras anteriores. Afirma que, “La palabra paisaje es la
condecoración verbal que le otorgamos a la visualidad que nos rodea, cuando ésta nos ha
untado con cualquier barniz conocido de la literatura”
39
. Esta é a atitude do jovem que escreve
Fervor de Buenos Aires. Segundo Sarlo, mais do que cantar a cidade no tempo passado,
Borges inventa uma cidade, baseando-se em livros e tradições familiares, na qual a
imaginação e as reminiscências são primordiais
40
. Esse é o princípio de uma idéia que aparece
no conto “El Otro”, a de que a arte se alimenta em grande medida da própria arte. Lembra
ainda o labirinto intertextual das maduras narrativas borgeanas, com infinitas alusões.
Essas discussões parecem surgir também em função do expressionismo. Em
uma nota de 1920, ele percebe que, se esta vanguarda, em princípio primava por superar a
realidade ambiente, estava atravessando uma transformação, e havia autores que lhe
conferiam um caráter “dostoievskiano, utópico, místico y maximalista”
41
. Ele percebe que a
Revolução Russa começava a interferir nas propostas iniciais do grupo, gerando uma
aproximação às temáticas sociais. Contudo, ainda não se posiciona de todo, limitando-se a
registrar essa mudança. Contudo, em “Horizontes”, de outubro de 1921, ao analisar uma
antologia de textos expressionistas, Borges parece firmar uma postura talvez crucial na
definição de suas relações com o realismo. Ele se desgosta com os poemas que tentam
documentar a guerra: “Eso de concederle más importancia a los escritos que reflejan la
realidad visible y palpable […] deriva de los enciclopedistas y de las teorizaciones de Zola, y
se basa en el absurdo de suponer que un árbol o un tranvía son más reales que yo que los
comprendo”
42
. O realismo, dentro desta argumentação, fica assentado como estética alheia,
fundada pelo outro. Ademais, nota-se que os questionamentos filosóficos permitem que o
jovem Borges se resguarde dessa faceta realista, que surgia dentro de uma vanguarda. Em
contrapartida, neste texto, comparece aquele que será um rasgo marcante de sua futura
produção: “En el fondo, lo visto, lo sufrido, lo imaginado y lo soñado son igualmente reales,
es decir, existen”
43
. É o começo de um mago que sonha um homem; é o começo de objetos
dos Tlön que podem chegar à realidade de “Borges”; ou de um Borges que tanto pode ter
sonhado, lido, ou encontrado seu outro “eu”.
Quanto ao biografismo, acontece algo semelhante. Ainda em “Réplica”
(1920), afirma que ele e os companheiros não desejam uma arte autobiográfica
44
. Um passo
decisivo é dado em “Anatomia de mi ultra”, de 1921. Como é possível inferir do próprio
título, percebe-se que, de modo ‘romântico’, o escritor deseja definir bases pessoais
para seu
trabalho, dentro da proposta ultraísta, à qual se achava ligado nesta época. Retoma a divisão
11
anterior das estéticas e torna ainda mais claro seu entendimento de ambas. Na estética dos
prismas, o ambiente é instrumento do indivíduo; na estética dos espelhos, o indivíduo se
abandona ao ambiente
45
. Portanto a definição, quanto a expor suas vivências pessoais na
poesia, está pautada pelo mesmo critério que o afasta do realismo neste momento: a realidade
não pode ser mais que um ponto de partida. Assim, é compreensível que em seus poemas
desta época, ele se ponha a imaginar os aviões de guerra por sobre as catedrais e as trincheiras
– sobre as quais lera muito nos textos expressionistas, mas nunca vivenciara, ou vira de perto.
Em seu artigo, com certa audácia para um jovem escritor, ele aparece, com a proposta de que,
se os poetas pensam expor emoções advindas de sensações causadas por agentes reais, ele
desejaria tentar desse ponto em diante, uma emoção livre de causas
46
. Este último propósito
deve ser modulado, pois em textos posteriores, ele não despreza a emoção genuína como
fonte dos poemas. O importante é que assim, está aberta a possibilidade de uma poesia que
não necessita de estímulos do ambiente.
Desde a Espanha, Borges já vinha definindo seus conceitos de poesia
“verdadeira” ou “mentirosa”, e com algumas variações, ele seguirá apresentando este critério
ao longo dos artigos da década de vinte. Verdadeira é a poesia causada por uma emoção
genuína ou que contém uma “intuição verdadeira” na qual uma idéia definida que se
deseja traduzir. Mentirosa é a poesia que se deixa levar pela sonoridade e continua, quando a
idéia acabou; ou a poesia que está constituída apenas de um jogo verbal, pois não possui
qualquer sentimento ou idéia verdadeira que a sustentem
47
. Em primeiro, cabe notar que, se a
poesia pode sustentar-se sobre uma idéia, o sujeito poético pode estar personificando ou
fingindo vivenciar pensamentos alheios à semelhança do que acontece com personagens de
Dostoievski, segundo a polifonia de Bakhtin
48
. Portanto, a julgar destes textos, muito jovem,
Borges percebe que o eu-lírico tem autonomia em relação ao autor e encontra uma
interessante utilização deste lugar ficcional: explorar um gênero marcado pela emoção e
subjetividade, para a poetização de idéias e conceitos. Anos mais tarde, por este trabalho, sua
poesia seria rotulada de “fria” pela crítica. Em segundo, se a lírica borgeana já aspirava a um
desprendimento de laços obrigatórios com a realidade, nesta época, ela parece ter aberto
caminho para que o mesmo viesse a ocorrer em sua prosa
49
.
Uma vez que se afasta do realismo, é natural que Borges recuse o
engajamento. O primeiro índice desta recusa aparece no momento em que expõe as
convicções do expressionista Lothar Schreyer: “‘No hay arte ético, no hay arte político. No
existen leyes en el arte. Cada obra de arte trae consigo su ley’”
50
. Apesar de não manifestar-se
sobre estas palavras, com a citação, demonstra concordância com a postura de não fazer da
12
arte um meio para fins ideológicos. Ao contrário disso, o jovem Borges quer reverter esse tipo
de relação, fazendo do ambiente um meio para sua arte a finalidade última. Também vimos
que ele não demonstra apoio aos expressionistas que se voltam para uma poesia que registra a
guerra. O dado poderia ser problemático, porque em Ritmos Rojos, Borges faz alusões, em
grande parte dos poemas, e até mesmo no título, à guerra e à Revolução Socialista.
Carlos Meneses vê nisso um significado ambíguo. Para ele, o autor estaria se
remetendo não a Revolução Russa, mas também à Primeira Guerra Mundial. Contudo,
embora o crítico titule seu capítulo “poemas sobre tema político”, ele reluta em afirmar que
Borges estivesse apoiando a Revolução, uma vez que, a seu ver, os poemas apenas insistem
em palavras como “rojo” o “Rusia”
51
. Emir Rodríguez Monegal também não identifica um
propósito de denúncia ou vivência efetiva das conseqüências da guerra. Ao contrário, acredita
que, vivendo em uma tranqüila cidade de Genebra e depois nas lindas praias da Espanha, estes
poemas sobre a guerra podem derivar da influência de Whitman, e da leitura dos
expressionistas - para estes, realmente um tema central e mesmo uma vivência para alguns
52
.
Borges mesmo não se depara diretamente com a guerra.
Em sua juventude, Borges admirava Romain Rolland. Contudo, sobre este
autor que costumava expor suas opiniões socialistas, ele declara: “Yo, íntimamente, desconfío
de los hombres de macroscopio, órgano al cual propende Rolland en su última novela. Del
alambre de a de su prosa cuelgan unas sonoras entidades que son la Humanidad, los
Precursores, la Fuerza [...]
53
. No artigo, ele duvida da sinceridade das preocupações sociais
no romance de Rolland, pelo caráter abstrato que o escritor lhes confere. Sugere que ele
defende essas entidades coletivas - o povo, a massa - sem possuir um genuíno apreço por sua
causa. Com isso, acreditamos que a poesia de guerra, na qual Borges aposta em sua juventude,
foi predominantemente um tema literário, emprestado desses poetas que seguia de perto.
Inclusive porque, longe do documental, eles parecem buscar uma montagem de imagens os
soldados, a igreja, as baionetas, a hélice – que o leitor custa a articular em sua imaginação.
Por outro lado, o ‘primeiro jovem’ Jorge Luis Borges real foi, como o
personagem jovem de “El Otro”, um defensor das metáforas novas: em “Réplica” defende o
ultraísmo de um ataque; Em “Ultraísmo”, tem a mesma iniciativa; escreve “Manifiesto del
Ultra”; procura um perfil pessoal para seu ultraísmo em “Anatomia de mi ‘Ultra’”; em
Buenos Aires, seu primeiro texto é “Ultraísmo”; e no mesmo ano sai um segundo
“Ultraísmo”, com alguns poemas dos novos adeptos e uma introdução geral ao movimento
54
.
Portanto, Borges teve uma participação ativa na corrente e, logo que chega à Argentina, foi o
difusor da nova estética. À diferença do que diz o tradutor Nestor Ibarra, como constatado por
13
Olea Franco, o ultraísmo era parte integrante de seus três primeiros livros de poemas, e
Borges só vai abandoná-lo gradualmente, até o final da década de vinte
55
.
Torna-se visível nestes textos que quando o escritor chega a Buenos Aires,
ele está impregnado das preocupações vanguardistas com a renovação estética. Ademais,
para ele que voltava da Europa com as últimas concepções artísticas, o encontro com o
Realismo, na Argentina, deve haver produzido uma sensação de atraso no panorama local
de uma repetição do século XIX. Seus textos desta fase demonstram que nela o autor optara
por uma literatura de elaboração da realidade; que divisara a possibilidade de valer-se do eu-
lírico enquanto um lugar ficcional; e que, mediante seus raciocínios da época, ele não pensava
em associar sua literatura às causas sociais. Ou seja, se Borges localiza a figura do jovem
Borges do conto, no ano de 1918, vemos que as idéias deste personagem não podem ser
remetidas às suas concepções reais no mesmo período. Este dado reforça a possibilidade de
que, de um modo simbólico, por alusões, o autor finja reportar-se à geração literária dos anos
vinte para gerar uma reflexão mais ampla sobre a arte. Por outro lado, a menção ao ultraísmo,
e a seus poemas de Ritmos Rojos, no corpo da narrativa, fazem pensar que ele tenta incluir-se
dentro dessa representação da juventude de vinte, que ele critica no conto. No entanto, se o
‘primeiro jovem’ real está muito perto das concepções do Borges maduro, para que haja
qualquer ligação entre ele e o personagem mais novo da narrativa, o ‘segundo jovem’ Borges
revela alguns pontos de contatos com seu homônimo ficcional.
1.2.2. O Segundo Jovem Borges.
Depois da estadia na Europa, Borges chega a Buenos Aires. A partir de
então, seus textos, ensaios e poemas, visivelmente se alteram. Saem os poemas de guerra e no
lugar deles entra a poetização de Buenos Aires. Os ensaios assumem outra feição: o
criollismo. Olea Franco entende que a influência do Centenário Argentino ainda é muito
vigorosa neste período, fazendo com que Borges, à semelhança de muitos outros autores,
tenha entrado no programa de redefinição da identidade nacional: “Borges se inscribe con
plenitud en una corriente nacionalista que pretende redefinir lo criollo y refundar mitos que
los sustenten, es decir, otorgarle al criollismo una nueva funcionalidad en la Argentina de la
década del veinte”
56
. No entanto, o processo não é simples, pois como vimos, Borges chegava
da Europa ao dia com as correntes de renovação estética vanguardistas (expressionismo e
14
ultraísmo), e quando chega à Argentina ele se depara com o realismo. Antes, o tema de seus
poemas havia sido uma guerra na qual não estivera, e agora desejava a poetização do país no
qual vivia, no momento em que se abria uma corrida por novas representações do mesmo. Se
Borges precisava encontrar soluções estéticas adequadas para gerar essa representação, as
poéticas realistas já possuíam um modelo estético consolidado.
Muitas vezes este segundo Borges não se parece ao anterior, ou ao Borges
maduro
57
. Ele mostra desconsiderar recursos, dos quais se utilizaria em sua futura poética, ao
dizer que, “ni lo paródico, ni lo alegórico son valederas manifestaciones del arte [...]”
58
.
Quando em tantos ensaios posteriores ele trata de detectar os precursores, em um dos textos
da época, aparece um olhar negativo sobre esta relação - “hablar de precursores es suponer
que Dios es todavía un frangollón de almas que no acierta con la versión definitiva, desde el
comienzo...”
59
. Quando em seus ensaios da maturidade, a técnica tem a primazia nas análises,
em seu último livro de ensaios na década de vinte, ele começa a preconizar o conteúdo,
afirmando que, para o grande leitor, a cnica é invisível, e ademais, “Mala señal es que
interese mucho una técnica: si alguien se fija demasiado en nuestra voz, en nuestra manera de
articular, en nuestra elocución, no ha de interesarle lo que decimos”
60
. Ou seja, está longe do
virtuoso Borges maduro, que enfatiza o narrar, ao invés do mostrar. Portanto, este momento
contrasta com o anterior e ainda contém concepções que destoam dos ensaios e realizações
ficcionais da poética madura. No entanto, as convicções do primeiro Borges não desaparecem.
Nestes ensaios, há trechos em que são substituídas por posturas mais extremas, mas que serão
suavizadas com o tempo; como há trechos em que ambas as tendências convivem em tensão
61
.
Assim surge o que pareceria ser um “segundo”, ou um outro Borges, o qual
vamos observar a partir de seus três primeiros livros de ensaios. A diferença marcante é o
criollismo. Se na Europa, ele buscava comentar a produção contemporânea de vanguarda, na
Argentina, os textos em que analisa grandes nomes da literatura mundial, dividem espaço com
a revisão do cânone argentino, especialmente com análises da literatura criollista argentina e
uruguaia. O fato é notável até mesmo na linguagem. Ele utiliza neologismos no primeiro
livro, mas nos três livros de ensaios da época, os argentinismos são abundantes. Chega mesmo
a espanholizar os nomes de autores estrangeiros em Inquisiciones. Contudo, segundo Olea
Franco, os ensaios do jovem Borges são contraditórios neste aspecto, pois tanto preconiza a
cor local, e ela é visível em seus poemas da época, quanto admite que ela é prescindível, em
determinados textos
62
. Ademais, no segundo livro, ele se mostra aberto à tentativa de um
criollismo universal. Desta maneira, sob a capa desta proposta nacionalista, seus ensaios
assumem um caráter bastante distinto ao que possuíam seus textos publicados na Europa. No
15
entanto, não utilizaríamos o termo “contradição” para pensar de modo geral este período.
Afinal, trata-se de um autor, cuja inconstância neste momento pode ser parcialmente atribuída
à sua própria juventude, e cuja fase de tanteios pessoais, longe da respaldada experiência com
as vanguardas européias, acontece diante das questões de representação nacional - quando
sabemos que vários escritores argentinos estavam tentando encontrar soluções para a mesma.
Com isso, a palavra mais adequada para o período, a nosso ver, seria experimentação.
Ao menos quanto ao engajamento, parece haver uma continuidade entre o
primeiro e o ‘segundo jovem’ Borges. Apenas dois dados nos mostrariam um jovem
interessado em apontar os problemas de seu país. O primeiro é o de que no conto “El Otro”,
quando o jovem se diz um “poeta de seu tempo”, o narrador nos revela, à continuação, as
intenções panfletárias do mesmo. De modo semelhante, em um ensaio de Inquisiones, para
exaltar Thomas Browne, o jovem Borges assevera que “la mayor grandeza de un hombre
estriba en responder con su tiempo y en ocuparse con los afanes y lizas que son populares en
él”
63
. Vê-se que este discurso está longe de um posicionamento bem delimitado por algum
tipo de convicção política ou humanitária. Assim, o comentário parece estar relacionado ao
desejo de mostrar-se um escritor contemporâneo, como confessaria anos mais tarde
64
. O
segundo dado é uma crítica ao governo de Rosas: Se perdió el quieto desgobierno de Rosas;
los caminos de hierro fueron avalorando los campos, la mezquina y logrera agricultura
desdineró la fácil ganadería [...] Suya es la culpa de que los alambrados encarcelen la pampa,
de que el gauchaje se haya quebrantado [...]
65
. Olea Franco se debruça sobre esta passagem e
lembra que, era uma espécie de “lugar comum” para os escritores do Centenário, acusar Rosas
de ter destruído o mundo criollo
66
. De fato, na continuação desta passagem, o jovem escritor
vai citar dois conceitos ligados a essas discussões: “argentinidad” e “progreso”. Ademais, os
ensaios do período não debatem a conduta de dirigentes políticos ou problemas sociais da
Argentina.
A recusa ao engajamento, também aparece em “La tierra Cárdena”. Borges
se mostra favorável a Hudson, porque este “no sufre la política y dice de ella que no es sino
una intromisión ciudadana en la vida rural. Lo mismo me dijo Spengler anteanoche”
67
. Além
das idéias de Spengler, o motivo para negar o compromisso, dentro dessa fala, em que Borges
concorda com Hudson, é o de que ele não encaixaria bem na literatura criolla. Parece que
seria complicado colocar questões políticas na boca de um personagem do campo; até porque,
representado neste ambiente, torna-se mais difícil justificar seu envolvimento, em questões
debatidas nos ambientes urbanos. Ademais, linhas adiante, Borges examina um trecho
engajado do Martin Fierro, e opina tratar-se de uma “palinodia desdichadísima”, “puro
16
sarmientismo”
68
. Deste modo, compreende-se que o ‘segundo jovem’ segue tão avesso à
exposição de opiniões políticas dentro da obra literária, como o fora em seus anos anteriores.
na questão da metáfora, de fato, o conto parece buscar uma
ficcionalização das experiências literárias de juventude, tanto no tocante à forma das
metáforas, as ultraístas; quanto no tocante ao tema – expor emoções pessoais. Neste aspecto, a
caricatura montada na narrativa oferece correspondências com as duas fases do jovem Borges,
que o ultraísmo (forma) consta de ambas. O ‘segundo jovem’ declara em Inquisiciones sua
rejeição à metáfora tradicional - “Ya no basta decir a fuer de todos los poetas, que los espejos
se asemejan a un agua”; ao passo que não esconde sua preferência ultraísta - “hay que mostrar
un individuo que se introduce en el cristal y que persiste en su ilusorio país [...]
69
. Na
verdade, desde que chega à Buenos Aires, Borges começa gradualmente a encontrar objeções
a este tipo de metáfora, que o levam a abandoná-la ao final da década de vinte. Este fato já foi
explorado pela crítica, e por isso, vamos nos ater ao único motivo para essa transformação que
talvez esteja aludido no conto, e no qual é possível entrever seu pensamento da época sobre o
assunto. Em “Otra vez la metáfora”, ele discorda de Rémy de Gourmont, o qual alega que
quase todas as palavras são metáforas, em virtude da distância entre elas e seu sentido
etimológico. Borges protesta que as palavras comuns não podem ser metáforas, uma vez que
“no son advertidas por nadie”
70
. A nosso ver, se o enfileiramento de imagens faz com que a
certa altura o leitor perca os termos da comparação, este seria um dos motivos para deixá-las.
No que tange ao tema das metáforas, dissemos anteriormente que o
‘primeiro jovem’ queria uma idéia verdadeira ou uma emoção genuína por trás da poesia.
na Argentina, o ‘segundo jovem’ conseguia três benefícios ao seguir com este critério. O
ultraísmo, que segundo os manifestos de Borges, recebia freqüentemente novas adesões,
parecia estar se tornando uma fórmula fácil, o mero enfileiramento de imagens. Assim, o
postulado poderia limitar, de certo modo, o acesso geral e irrestrito a essa “inovação” que ele
trouxera da Europa. Ademais, o critério fazia com que o ultraísmo tivesse uma diferença em
relação ao modernismo de Leopoldo Lugones, o qual também tinha, como um de seus pilares,
a utilização da metáfora. Além disso, nestes anos, Borges tentava fórmulas para classificar,
em verdadeiro e falso, o criollismo. Assim, pedir que os poemas tivessem uma autêntica
emoção criolla era encontrar um modo de autorizar sua escritura e restar validade aos poetas
que se apoiassem na mera exposição da cor local. Seja como for, o jovem Borges passa
gradualmente a respaldar a poesia: o ‘primeiro jovem’, na emoção genuína; o segundo
também, mas chega a vindicar relações com sentimentos ou experiências pessoais no meio da
década.
17
O ensaio que apresenta esta concepção é “Profesión de fe literaria”, em El
tamaño de mi esperanza. Seus poemas recebem ataques de dois críticos, e Borges justifica
seus versos, declarando que eles tinham relação com suas memórias particulares e com sua
história familiar
71
. Em sua defesa, ele faz uma generalização e afirma que “Toda poesía es
confidencia, y las premisas de cualquier confidencia son la confianza del que escucha y la
veracidad del que habla”(grifo meu)
72
. Assim, efetua uma divisão entre dois tipos de
escritores: “El destino revelado puede ser fingido, arquetípico (novelaciones del ‘Quijote’, de
‘Martin Fierro’, [...]), o personal: autonovelaciones de Montaigne, de Tomás De Quincey, de
Walt Whitman, de cualquier lírico verdadero. Yo solicito lo último”(grifo meu)
73
. Observa-
se que o jovem Borges conta a Whitman e a si mesmo entre os poetas que nos participaram
suas vidas e sentimentos, através dos versos. Veremos que no conto aparece uma concepção
desta ordem, ligada ao personagem jovem. Concepção fugaz, porque produz um encontro
frontal com seu ensaio de 1932, “Nota sobre Walt Whitman”, em que ele se dedica a provar
que Leaves of Grass deve muito à tradição, e muito pouco ao biográfico.
Agora podemos justificar os benefícios que pouco dizíamos possuir a
classificação, poesia falsa/verdadeira. No mesmo “Profesión de Fe Literaria”, o jovem Borges
ressalta: “Que nadie se anime a escribir ‘suburbio’ sin haber caminoteado largamente por sus
veredas altas; sin haberlo deseado y padecido como a una novia; sin haber sentido sus tapias,
sus campitos, sus lunas a la vuelta de un almacén [...]”
74
. Pelas figuras criollas de que se
utiliza no trecho, é possível ver que ele está barrando o acesso a essas representações
nacionais para aqueles que, supostamente, não teriam uma experiência real do subúrbio ou o
sentimento autêntico, que ele diz possuir. De acordo com Olea Franco, “Borges refuta al
criollismo que entonces se practica, porque se ha convertido en pose más que en realidad
vivida”; ele percebe que em muitas obras, o nacionalismo consiste em “meras caretas o
máscaras del criollismo”, de modo que busca meios de distinguir o falso do verdadeiro
nacionalismo
75
. Com isso, Borges consegue gerar concepções que encarecem um criollismo
autêntico, desclassificando as obras que não o contém. Quanto ao Modernismo, segundo
Borges, as duas principais características da estética de Leopoldo Lugones, largamente
copiadas por sua geração dos anos vinte (a de Borges), eram a metáfora e a rima
76
. Desse
modo, quando neste ensaio, Borges chama a rima de “embustera”, e diz que ela gera um
“ambiente de engaño”
77
, o mesmo critério de arte genuína está sendo utilizado em desfavor do
Modernismo, com seus tantos continuadores. Assim, o biografismo parece uma solução
provisória desta segunda fase.
18
No entanto, se este parece ser um fenômeno isolado, ainda é possível
identificar alguns desdobramentos desta idéia em seu próximo livro, El Idioma de los
Argentinos. O jovem Borges costumava encarecer o nome de Quevedo em seus manifestos
ultraístas, como um antecessor ilustre desse tipo de metáforas. No entanto, no volume aludido,
ele põe reparo à obra de Quevedo, dizendo que este escritor não deveria ter utilizado
helenismos. Quevedo aludia ao mitológico rio Letes, e Borges censurava que “su actuación en
boca no helénica es de falsedad y desvirtúa lo autobiográfico, lo poético”
78
. Mais uma vez
parece ser a discussão do nacionalismo o que impulsionou este tipo de julgamento, que faz
parte destes livros juvenis. Outra questão que parece ser um desdobramento desta idéia, de
que a arte poderia ser justificada pelo autobiográfico, aparece em “Eduardo Wilde”. Trata-
se de um escritor que teve uma vida cheia de sucessos. Borges conta que Rojas tenta separar
vida e obra de Wilde entendendo que nele, a vida seria mais importante que a obra. Então o
jovem se pergunta: “¿Quién gustó jamás en la técnica de un escritor, algo que no fuese la
denunciación de la psicología de un hombre?”
79
. Ler na ficção, os rasgos psicológicos de um
escritor, é uma idéia estranha no conjunto da produção borgeana. No entanto, observa-se,
através destas citações, que o ‘segundo jovem’ Borges chegou algum dia a conceder
importância às ligações entre a vida e a obra poética de um autor.
Agora, vamos averiguar se o ‘segundo jovem’ Borges possui alguma ligação
com o realismo. Um artigo do período é bastante representativo da instabilidade em que
Borges se acha logo de sua chegada a Buenos Aires. Em La traducción de un incidente”, ele
interpreta a contenda literária entre o grupo de Gómez de la Serna e o de Cansinos-Asséns,
entendendo que eles representavam uma divisão fundamental entre duas essências literárias.
De um lado estaria De la Serna, “sumergido en la realidad [mas que] quiere desamarrarse de
ella”; e do outro, Asséns, “cuyas palabras lentes y eficaces oyen siempre la pluma” - sendo
comparados a Sancho e Dom Quixote
80
. Assim, se ambos são escritores vanguardistas e
desenvolvem, cada um, um trabalho peculiar neste sentido, no trecho citado, observa-se que a
diferença efetiva entre eles, para Borges, estaria no fato de que os escritos de Gómez de la
Serna partiriam da realidade, para alçar-se em sua elaboração. Sabemos que na Espanha,
Borges se junta ao grupo de ultraístas reunidos ao redor de Cansinos-Asséns
81
, e leva seu
utraísmo à Argentina. Curiosamente, neste artigo, Borges confere validade às duas propostas.
Uma das entradas para verificar se existiria alguma ligação entre os projetos
do “segundo Borges” e o realismo, seria o criollismo. Faremos um breve exame do tópico,
uma vez que Sarlo trabalhou a presença e a relevância deste aspecto na obra borgeana,
apresentando as soluções, através das quais este autor lida com o local. Sabemos que o
19
“‘segundo jovem’ Borges” desejava gerar representações para a nacionalidade argentina.
Declara, por exemplo, que “Nuestra realidad vital es grandiosa y nuestra realidad pensada es
mendiga”
82
. Embora no mesmo prólogo, ele afirme que se trata de um criollismo que deveria
alcançar o horizonte de suas especulações metafísicas, a declaração contrasta com suas
afirmações da primeira juventude. No tópico anterior, assinalamos que Borges censurara um
crítico, que acreditava que uma Maiorca tão bela merecia uma arte melhor de seus pintores.
Nesta declaração, de segunda fase juvenil, de modo análogo ao raciocínio do maiorquino,
Borges parece estar pensando nas possibilidades da arte em relação ao meio do qual ela surge.
Outra afirmação surpreendente no mesmo livro é a de que “De la riqueza infatigable del
mundo, sólo nos pertenecen el arrabal y la pampa”
83
. um evidente desgarramento
criollista. No entanto, a citação deixa claro que este Borges ainda não possui a maturidade do
autor de “El escritor argentino y la tradición”
84
, a quem não fazem falta os temas locais para
ser argentino. Por outro lado, se em El tamaño de mi esperanza, ele afirma que não quer abrir
mão do local, tampouco do metafísico e universal, este é um sinal de que algumas premissas
basilares de sua futura estética já estão despontando neste momento.
Estes exemplos não significam absolutamente que o jovem Borges pensasse
retratar a Argentina. Na verdade, seus ensaios indicam apenas que ele está indagando a
cultura local, em busca de seus mitos e possíveis símbolos. Observa-se que o projeto de
criação de representações nacionais, ou ao menos, a forma em que Borges o toma, é
semelhante ao projeto brasileiro ao tempo do Romantismo, em termos de idealização da
realidade. Em “La pampa y el suburbio son dioses”, declara que: “Al cabal símbolo
pampeano, cuya figuración humana es el gaucho, va añadiéndose con el tiempo el de las
orillas: símbolo a medio hacer”
85
. É possível notar que, quando se refere à pampa, ou quando
menciona o espaço do subúrbio, ele fala em “símbolos”. Para o gaucho, utiliza a palavra
“figuração”. Portanto, Borges está propondo representações que possam recobrir Buenos
Aires, mas entende-se que a questão, para ele, consistia em encontrar símbolos e visões mais
bem representativos e idealistas de seu país. Pode-se lembrar a citada avaliação de Sarlo
sobre o Fervor de Buenos Aires. Segundo ela, Borges mais idealiza um passado argentino, do
que o retrata. Outro dado a favor desta compreensão, está no próprio entendimento do autor,
sobre o referido volume, em sua Autobiografia: “o livro era essencialmente romântico,
embora fosse escrito num estilo bastante despojado e abundasse em metáforas lacônicas”
86
.
Com isso, vemos que o projeto borgeano de representação nacional, nos ensaios, ou nos
poemas da época, é idealista. Não há realismo, portanto.
20
Contudo, outras preocupações do jovem escritor revelam alguns tênues
pontos de contato, com determinadas atitudes, concernentes ao realismo.
Olea Franco afirma que, enquanto o jovem busca a expressividade, a madura
estética borgeana em geral recorre à alusão
87
. De fato, este ‘segundo jovem’ afirma que “El
arte es expresión y sólo expresión”, e “lo no expresivo es inartístico”
88
. Como veremos em
“La Postulación de la Realidad”, o escritor de todo expressivo (o romântico) é aquele que
busca uma representação plena da realidade
89
. Assim, o maduro Borges, que escreve este
ensaio se posiciona ao lado dos escritores clássicos, ao defender um método alusivo para a
criação literária. Ao contrário disso, no ensaio, “La simulación de la imagen”, o jovem Borges
preconiza o romântico, com sua expressividade.
Outro aspecto, relacionado ao anterior, reside no tipo de realidade literária
pretendido. Veremos em “La Postulación”, que os clássicos constroem realidades literárias
vagas, imprecisas; ao passo que os românticos (e os realistas dentre eles) querem exposições
precisas, para obter uma plena representação da realidade. Neste texto, o maduro Borges se
inscreve no clássico, dando a entender que se manejaria com realidades imprecisas. Ao
contrário disto, o jovem Borges afirma que “el deber de toda imagen es precisión”, ainda que
especifique, que esta não deve ser a mesma precisão encontrada nos textos de história ou no
jornalismo
90
. Portanto, em “La Postulación de la imagen”, o ‘segundo jovem’ mostra que
deseja quadros precisos, mas artísticos. Novamente estão em lados opostos o velho e o jovem.
Ainda em La Postulación”, o maduro Borges
91
coloca o recurso dos
pormenores circunstanciais entre as técnicas clássicas, elogiando-o. o jovem Borges,
exemplicando a (indesejada) postulação jornalística da realidade, lembra que, na literatura,
“Daniel Defoe parece haber sido el iniciador de esos pormenores de horario, de esas
vanidades de cartógrafo o de sereno: equivocación copiadísima”
92
. Desse modo, ele recusa a
técnica de Defoe, por menos artística e muito batida. Mais adiante pretendemos demonstrar
que o maduro Borges se utiliza deste recurso. Assim, o recurso é criticado na juventude, mas
será recuperado na maturidade, na condição de modelo eficiente. O mais importante nestes
pressupostos é que a preferência do ‘segundo jovem’ Borges pela “precisão” o aproxima da
formulação geral do realismo, na qual a realidade literária é mais detalhada e concreta.
Um último aspecto é a atenção conferida à descrição em alguns destes
ensaios. Como dito, a obra borgeana da maturidade está marcada pela alusão. Contudo,
percorrendo os ensaios juvenis deste autor, Olea Franco encontra neles uma especial devoção
ao descritivo. Cita um texto de Inquisiciones, de 1925; e dois de Discusión, de 1932
93
, nos
quais o escritor enaltece Ascasubi e critica Hernández através desta visada. Em um dos textos
21
de Discusión, Borges se queixa de que Hernández não mostre os bailes; de que não mencione
se os fatos ocorrem durante o dia ou pela noite; e de que não especifique o pêlo dos cavalos
94
.
No ensaio de Inquisiciones, ele elogia e cita “una pintura de alba” e uma “descripción de la
correría hostil de los indios”, “una túpida cerrazón en el alba” e a “figuración del cantor que
va de rancho en rancho”, em Ascasubi
95
. O crítico argentino, Carmelo Bonet, assevera que
Ascasubi é um poeta “realista por donde se le mire”, e na obra, sobre a qual Borges tece
comentários positivos, o crítico entende haver “pequeños cuadros que proyectan fielmente el
vivir campesino de entonces”
96
. Esse é o aspecto pelo qual, o jovem Borges mais se aproxima
ao realismo e ele aparece justamente quando está julgando as representações do nacional, na
literatura argentina. Com isso, os dados mostram que a busca de uma literatura criollista não
conduz Borges ao realismo, mas parece ter gerado uma tensão primária nos trabalhos juvenis.
Podemos citar brevemente três problemas que essa adoção do criollismo
provocam na obra juvenil. Borges declara que Lugones “es el ejemplo menos lastimoso del
trance por el cual hoy pasamos todos: el del criollo que intenta descriollarse para debelar este
siglo. Su dilemática tragedia es la nuestra”
97
. Assim, se como anteriormente assinalamos, esse
jovem Borges queria mostrar-se um escritor contemporâneo, neste caso o criollismo o coloca
em um dilema: como mostrar-se um escritor de seu tempo, e ser criollo, quando os ícones
desta tradição (a pampa sem cercas, o gaucho andarilho) se remetiam a um período anterior
da história argentina? Ademais, existe o problema gerado pelos temas. A pampa era o espaço
clássico das representações nativistas. Borges publica Fervor de Buenos Aires, em que poetiza
um espaço urbano, mas pode-se observar a admiração e o apreço pelo campo, em sua leitura
do criollista uruguaio Leandro Ipuche, quando ele diz que “he padecido la verguenza de mi
borrosa urbanidad en que la fibración nativa es ¡apenas! una tristeza noble ante el reproche de
las querenciosas guitarras”
98
. No entanto, esta é a leitura de um escritor por outro. O escritor
citadino que publica poemas em louvor de sua cidade, rendendo homenagens ao escritor que
tematiza a pampa, parece indicar a incerteza em sua aposta por uma representação criollista
marginal los arrabales, quando a pampa era o espaço consagrado no Martin Fierro e na
maioria da literatura gauchesca
99
. Ou seja, ele tem de resolver o problema do espaço ficcional.
Uma terceira dificuldade é a questão da experiência pessoal, que já foi mencionada no assunto
das metáforas. Borges tenta estabelecer um verdadeiro e um falso criollismo. Assim, alegar
que suas metáforas estão respaldadas em um genuíno sentimento criollo, teoricamente pode
ter sido uma saída para a questão. No entanto, essa e outras questões, que envolvem a
representação do nacional não se resolvem facilmente para ele.
22
Por isso, um último texto que parece fundamental, para entender a
transição entre os trabalhos juvenis e a obra madura. Em “La inútil discusión de Boedo y
Florida”, de 1928, Borges parece, tanto quanto em sua Autobiografia, menosprezar o assunto
desde o título
100
. Olea Franco alerta que se existem os textos que comprovam a polêmica, é
porque ela existe, e Borges tem uma participação central nesta querela
101
. No supracitado
artigo, o escritor parece querer generalizar o problema, fazendo do grupo de Boedo, emblema
da cultura popular; e do grupo de Florida, representante da arte culta. É como se fossem
meros símbolos de posições intemporais. Contudo, o viés específico e polêmico, envolvendo
dois grupos bem definidos em seu tempo, se revela quando Borges vindica o status de
literatura criollista para os escritores de Florida. Sabemos por Sarlo que, na verdade, os dois
grupos se acusavam de cosmopolitismo, porque para ambos, o criollismo era um valor”
102
.
Assim, duas questões esboçam o problemático de suas relações com o outro grupo.
A primeira é a de que, neste texto, Borges faz uma verdadeira genealogia do
que ele considera escritores representativos da literatura Argentina: Echeverría, Sarmiento,
Estanislao del Campo, José Hernández, os autores dos vários Santos Vega, Mansilla, Ramos
Mejía e Carriego. Comenta que esses escritores se acham ligados pela utilização de temas
populares, enumera então os seus próprios temas da época e acrescenta: “Esa comprobación
[de que uma unidade entre seus temas e os temas da tradição Argentina] parece
autorizarnos a decidir por Boedo [...]
103
. Na Autobiografia, de modo direto, ele declara que
deveria ter estado no grupo boedista
104
. Ou seja, em suas declarações, o que o liga à grande
tradição dos escritores argentinos são seus temas. Eles o autorizam a permanecer junto destes
nomes. No entanto, ao assumir esta tradição, seus trabalhos iriam distinguir-se do grupo de
Florida – ao qual se juntura pelas revistas, e estaria próximo do grupo rival – o de Boedo.
A segunda questão, é a de que, a despeito das estratégias, das quais Borges
lança mão para demonstrar a autenticidade de seu nacionalismo, ele não consegue isentar-se
de ataques e críticas. Se sua temática faz com que seus trabalhos se pareçam aos do outro
grupo (o boedista), “una segunda [razón] (no menos obligatoria de fácil) se interpone para
prohibírnoslo”. O tipo de cobrança é perceptível no argumento que utiliza para defender-se.
“También los escritores deben contar. [Entretanto] Ni un solo gaucho ha colaborado en
nuestra literatura ‘gauchesca’”
105
. Com este argumento, ele tenta mostrar que os escritores da
gauchesca foram homens cultos, que puderam ter contato com os ambientes simbólicos, a
pampa e o arrabal, mas não foram efetivamente nem gauchos, nem suburbanos. Percebe-se,
assim, que outros escritores o acusam de não ter uma verdadeira vivência criolla.
23
Borges faz parte, na década de vinte, do grupo de renovação estética, grupo
o qual, (possuidor de convicções semelhantes às que Borges trouxera da Europa, e das quais
ele levemente se afasta em nome de suas intenções nacionalistas), vai questionar e será
questionado pelo grupo realista. No entanto, no momento em que ele escreve este texto, ao
examinar sua posição pessoal dentro desta divisão, concluía que “‘Boedo mirado por Florida
es arte argentino’”
106
. Ou, utilizando a linguagem figurada de nossa narrativa: o outro olhado
por mim, sou eu. Borges está no grupo de Florida por suas tendências vanguardistas, mas por
seus temas, nesta época, ele entende que existe um elo entre sua escritura e o grupo realista.
Podemos comparar novamente a caracterização do personagem jovem às
características do escritor nesta fase. Nesta segunda fase, Borges se inscreve na tendência
nacionalista, causando, a nosso ver, uma tensão em certas posturas, que havia adotado na
Europa. O ultraísmo e o biografismo são, de fato, rasgos dessa etapa; mas com o realismo
existe correspondência mediante poucos elementos valoriza temática, descrição, precisão e
expressividade; ademais, não dados suficientes para associar o engajamento ao verdadeiro
jovem Borges. Seu conto da época, Hombres Pelearon”, não é realmente expressivo, porque
muita linguagem metafórica, alusões, elipses, e até a própria economia mostra que a
narrativa procurou apenas o essencial. Inclusive, não é o encontro de dois indivíduos
particulares, mas o duelo de “dos cuchillos”; portanto existe uma abstração geral dominando
esta estória. Sente-se, apenas, a presença de vários elementos descritivos e o uso de algumas
precisões
107
. Com o referido, os pressupostos continuam demonstrando que, embora a
caracterização do personagem mais novo pudesse ter obedecido a uma caricatura dessas
aproximações ao realismo em sua juventude, o personagem ainda excede os atributos da
literatura borgeana juvenil. Contudo, fizemos questão de recorrer estes textos e comparar
autor e personagem para fazer “o jogo do conto”: mostrar que mesmo cercando seu
personagem de dados autobiográficos e acrescentando convicções semelhantes às que ele
tivera em sua juventude, o protagonista é parte de um conjunto significativo. Auxilia a formar
uma série de idéias, sendo ele mesmo simbólico; mas não um retrato fiel do homem que fora.
De passo, exibe o imenso alcance e poder simbólico deste conjunto.
24
1.3. O JOVEM BORGES E A GERAÇÃO LITERÁRIA ARGENTINA DOS ANOS VINTE.
Como dito, em nossa leitura sustentamos que Borges não ficcionaliza o
jovem que fora, mas se reporta, simbolicamente, à geração literária argentina dos anos vinte.
Cabe explicar por quais motivos não dizemos que se trata apenas dos escritores realistas desta
geração. Isso ocorre por dois motivos. Primeiro, porque no conto alusões a vários
escritores ligados ao jovem protagonista. Em segundo, porque embora, em suas falas, o
personagem jovem mostre concepções realistas, o velho acusa seus poemas de terem recebido
influências do Modernismo e do Simbolismo.
No conto são mencionados: Whitman e Dostoievski, ligados ao jovem.
Algumas citações podem demonstrar que se trata de escritores que Borges tivera como
modelos em sua juventude. Ele declara que, quando jovem, pensava em Dostoievski como
“uma espécie de grande deus insondável”
108
. De Whitman, ele lembra que: “achei que
Whitman era não era não um grande poeta como também o único [...] essa sensação me
havia acometido em relação à prosa de Carlyle, que agora não suporto, e com a poesia de
Swinburne. Estas foram fases que atravessei”
109
. Contudo, ademais destes “mestres”,
aparecem no conto várias escolas ligadas ao personagem jovem, através da menção a seus
expoentes, ou principais representantes: o Romantismo, na menção a Victor Hugo, mas
também a Elías Regules; o Modernismo, na menção a Darío; o Simbolismo, na menção a
Verlaine. Essas menções poderiam aludir ao período de formação de sua poética. De Victor
Hugo, seria possível pensar em uma alusão à sua idealização “romântica” da cidade no Fervor
de Buenos Aires
110
, como anteriormente explicado. Com Darío e Verlaine, é viável supor que
o autor poderia ter desejado aludir a influências do Modernismo e do Simbolismo, que
acolhera, em seus poemas, ainda anteriores aos de Ritmos Rojos: Estivera escrevendo
sonetos em inglês e francês. Os sonetos ingleses eram uma fraca imitação de Wordsworth e os
franceses, à sua maneira chorosa, imitavam a poesia simbolista”
111
. No entanto, uma
declaração de Borges, em sua maturidade, parece esclarecer melhor as alusões do conto, ao
Modernismo e ao Simbolismo.
Em 1938, quando falece Lugones, Borges escreve um texto sobre a obra do
poeta. Em 1960, amplia o artigo e este se torna um livro. Para falar da obra do consagrado
escritor argentino, Borges volta ao Modernismo e suas origens, uma vez que “La historia de
Leopoldo Lugones es inseparable de la historia del modernismo (sic) [...]
112
. Então, o
argentino tenta rastrear os inícios do movimento e atribui a Darío o papel de principal
25
representante do mesmo: “De igual manera que el romanticismo francés cabe en el solo
nombre de Hugo, así lo que será el modernismo su nostalgia, sus excesos decorativos, su
esplendor verbal cabe en el de Darío”
113
. E ainda liga o Modernismo ao Simbolismo,
afirmando que o Modernismo recolhe a musicalidade da escola anterior. Assevera, ademais,
um influxo de Whitman e Poe, na literatura francesa, e afirma que “Darío, hombre de
Hispanoamérica, recoge este influjo a través de la escuela simbolista”
114
. Assim, no raciocínio
de Borges, o Simbolismo influencia o Modernismo (via Darío) e, este, à literatura de
Lugones, que é essencialmente Modernista. No entanto, pretendemos demonstrar, à
continuação, que, segundo o próprio autor, ele e sua geração absorvem a influência de Darío e
Verlaine via Lugones.
No capítulo, “Las ‘nuevas generaciones’ literárias”, de seu livro Leopoldo
Lugones, Borges apresenta as marcas do trabalho do velho poeta modernista nas novas
gerações. Começa surpreendentemente pela sua própria, denominando-a “geração heróica”:
“Esa generación impositiva, arrasadora y cumplidora es la mía [...] En el
recuerdo predomina el agridulce sabor de la falsedad [...] No culpo a nadie ni
siquiera ayo de entonces [...] no me arredra el temor [...] de revelar a un mundo
distraído le secret de Polichinelle’ [...] “el rasgo diferencial de esa generación
literaria fue el empleo abusivo de cierto tipo de metáfora cósmica y ciudadana [...]
también tuvimos el arrojo de ser hombres de nuestro tiempo como si la
contemporaneidad fuera un acto difícil y voluntario y no un rasgo fatal-. En el
primer momento abolimos [...] los signos de puntuación: abolición del todo
inservible [...] Opinamos también [...] que la rima es menos imprescindible de lo
que cree Leopoldo Lugones. La importancia de esa opinión fue considerable. Nos
permitió no parecer lo que éramos: involuntarios y fatales alumnos [...] del
abjurado ‘Lunario Sentimental’.
Yo afirmo que la obra de los poetas de Martín Fierro’ y ‘Proa’ toda la
obra anterior a la dispersión que nos dejó ensayar o ejecutar la obra personal está
prefigurada, absolutamente en algunas páginas del Lunario [...] Lugones exigía en
el Prólogo, riqueza de metáforas y de rimas. [...] Fuimos los herederos tardíos de un
solo perfil de Lugones. Nadie lo señaló, parece mentira. […] no demorábamos los
ojos en la luna del patio de la ventana sin el insoportable y dulce recuerdo de
alguna de las imágenes de Lugones [nos defendíamos de admitir] Con la injusticia,
con la denigración, con la burla. Hacíamos bien: teníamos el deber de ser otros.
Examine el incrédulo lector el ‘Lunario sentimental’, examine después los
‘Veinte poemas para ser leídos en el tranvía’ o mi ‘Fervor de Buenos Aires’”
115
Certamente que Borges desenvolve uma poética própria, dentro da qual
incontáveis influências. Não é isso o que interessa a esta fundamentação. O importante é notar
que Borges admite, que não somente o seu trabalho, mas sim, o seu trabalho, e o de sua
geração absorveram características do Modernismo e do Simbolismo, através de Lugones.
Uma narrativa poderia ficcionalizar um momento de indefinição e
tanteamento, na carreira de seu escritor. Contudo, como reiteramos, a poética borgeana
26
juvenil não conta de arcar com todas as características que lhe são conferidas no conto.
Certamente que a menção a Whitman, Dostoievski, Hugo, Carlyle podem ser remetidas a esse
período de leituras formativas. Contudo, quando o personagem velho alega que o livro do
jovem recebe contribuições de Darío e Verlaine, parece dentro do escopo maior que ele está
traçando no conto, de modo particular ele procura fazer um recorte simbólico de toda a
geração dos anos vinte; à qual, de acordo com ele mesmo, retoma características do
Modernismo e do Simbolismo, através de Leopoldo Lugones.
Supomos que o personagem do jovem Borges do conto pode ser entendido
enquanto uma representação da geração literária argentina dos anos vinte - na qual o mesmo
autor está incluído - seu cerne é o Realismo na prosa, mas o Modernismo vigora na poesia. As
características do ‘primeiro jovem’ Borges são opostas às apresentadas pelo jovem do conto,
exceto pelo ultraísmo. As características de sua segunda fase juvenil exibem uma
concordância parcial com o personagem, especialmente no ultraísmo e no biografismo. Assim
sustentamos que seria incorreto dizer que em “El Otro”, Borges estaria efetuando uma
ficcionalização do jovem que fora; mas parece plausível entender que Borges se inclui em um
grupo maior através destes rasgos. Na verdade, as críticas ao realismo, que o conto propõe, já
não encontrariam correspondência com seus textos de juventude. Além disso, três das quatro
características marcantes do personagem jovem (realismo, engajamento e biografismo), e os
questionamentos ao realismo, são passíveis de associação aos postulados boedistas e ao
Realismo argentino ainda que projetivamente possam representar um pólo da expressão
artística. No entanto, o personagem extrapola os contornos do grupo de Boedo e do Realismo
desta época. Em primeiro, por seu ultraísmo. Em segundo, porque no trabalho do personagem
mais novo, influências Modernistas e Simbolistas. Com isso, os escritores da vanguarda
ultraísta e aqueles que seguiam o Modernismo de Leopoldo Lugones, também entram nessa
representação. Portanto, o jovem do conto, ao qual o velho finge reportar-se, parece
simbolicamente abarcar o jovem Borges e a sua geração de vinte.
Vale a pena relembrar o caminho do jovem Borges e acompanhar um pouco
mais longe seu percurso para ver uma progressão destas discussões. Borges vem da Espanha
com suas convicções, que até por suas próprias palavras, indicam uma arte de ativa
elaboração da realidade. Chega à Argentina (1921) e se volta para o nacionalismo que
predominava no cenário literário de então. Novamente, ele segue um projeto literário comum.
Ainda não havia encontrado sua própria identidade literária, e tenta como os outros, a
27
construção de uma identidade cultural para seu país. Vimos que suas intenções, que pareciam
coerentes e bem definidas em um primeiro momento, tornam-se instáveis nesta segunda etapa
(entre 1921 e 1928)
116
. Ele começa a dar valor à temática, à expressividade e à precisão.
Chega a declarar que deveria estar no grupo realista de Boedo, por seus temas. Ou seja, ao
inscrever-se no projeta criollista, ele se aproxima de alguns postulados realistas, quando está
procurando soluções para o nacional. É apenas um tatear. Neste momento, ele participa da
polêmica Boedo-Florida (entre 1924 e meados de trinta), e segue-se, há uma nova mudança.
Em algum momento, este segundo Borges se transforma e afirma. De acordo
com Sarlo, ao encontrar sua própria literatura, o autor se separa do Modernismo de Lugones e
das poéticas do realismo: do naturalismo, do naturalismo teratológico, do realismo engajado,
do pintoresquismo, e do realismo de Arlt
117
. Além disso, para Gramuglio, o primeiro grande
momento de questionamento do Realismo no século XX, é a polêmica Boedo-Florida, o
segundo ocorre pelas colaborações de Borges em Sur, “verdadero manifiesto disperso contra
las prescripciones de la poética realista”
118
. Veremos que à semelhança do que ocorre no
conto, os ensaios de 1932, e 1975, também exibem críticas ao realismo.
Nos anos quarenta, aparece sua grande obra narrativa e seus textos
possuem seu caráter definitivo. Depois de conhecermos as teorizações do ‘primeiro’ e do
‘segundo jovem’, sua poética madura parece mais próxima às propostas do ‘primeiro jovem’,
embora saibamos que ela incorpora elementos do segundo período como o criollismo, por
exemplo. Ainda é interessante ressaltar que, segundo Olea Franco, especialmente entre 1954 e
1974, Borges efetua um processo de homogeneização de sua obra para que ela assuma
globalmente um caráter mais intemporal. Ele impede a republicação dos três primeiros livros
de ensaios; insere prólogos novos nas obras mais velhas; reescreve e faz cortes nos poemas,
eliminando sobretudo aspectos criollistas e ultraístas
119
. O mesmo Borges comenta
despectivamente sua produção entre 1921 e 1930, dizendo que “sinto apenas a mais remota
das afinidades com o trabalho destes anos”; quanto ao ultraísmo, também é nítida esta
desidentificação com sua bandeira estética da primeira juventude, quando diz que “Depois de
quase meio século, ainda me encontro lutando por redimir aquele embaraçoso período de
minha vida”
120
. Dessa forma, na projeção temporal, observa-se que duas situações
diferentes, mas paralelas: Borges se afasta das poéticas realistas para produzir sua obra e
durante um longo período efetua questionamentos a esta estética; em paralelo, Borges se
desidentifica com a produção do segundo período de sua juventude, e passa a fazer uma
reconfiguração de seus trabalhos desta época (extrai criollismo e metáforas ultraístas).
28
2.0. BORGES E O REALISMO: UM CONJUNTO DE PARADOXOS.
“Escribir un libro, un capítulo, una página, un rrafo,
que sea todo para todos los hombres, como el Apóstol (1 Corintios 9:22); que
prescinda de mis aversiones, de mis preferencias, de mis costumbres; que ni siquiera
aluda a este continuo Jorge Luis Borges; que surja en Buenos Aires como pudo haber
surgido en Oxford o en rgamo; que no se alimente de mi odio, de mi tiempo, de mi
ternura; que guarde (para mí, como para todos) un ángulo cambiante de sombra; que
corresponda de algún modo al pasado y n al secreto porvenir, que el análisis no
pueda agotar; que sea la rosa sin por qué, la platónica rosa intemporal del Viajero
querubínico de Silesius”. (Borges, J.L. Textos recobrados 1931-1955. Buenos Aires:
Emecé, 2001, p. 353). “Sería un libro en el que estarían implicados todos los
anteriores míos, un libro nuevo, pero que resumiría y sería además la conciliación de
todo lo que hasta ahora he escrito”. (Idem., p.371)
“Para ser imortal, uma obra precisa ter tantas
qualidades [...] uma qualidade é reconhecida e valorizada por determinada pessoa,
outra qualidade, por outra pessoa. Assim, no decorrer do longo curso dos séculos, em
meio a interesses que variam continuamente, obtém-se afinal a cotação da obra, à
medida que ela é apreciada ora num sentido, ora em outro, sem nunca se esgotar por
completo. O criador de uma dessas obras imortais, ou seja aquele que pretende
continuar vivo na posteridade, não pode ser uma pessoa que procura seus iguais
apenas entre os contemporâneos [...]” (Arthur Shopenhauer)
Adiantamos o argumento do conto “El Otro”
121
. Em 1972, o narrador relata
que estava em Cambridge, EUA, no ano de 1969, sentado em um banco às margens do rio
Charles; quando de repente, senta-se ao lado dele um outro Borges mais jovem, que afirma
estar em Genebra, vivendo o ano de 1918. O velho crê que ambos são Borges, enquanto o
jovem acredita somente em sua existência. Cada um tenta afirmar seu ponto de vista, até que
o velho encontre uma “prova”, de que estaria certo. Tem início um estranho diálogo.
Uma sentença do velho Borges irá guiar esta análise: Hablamos,
fatalmente, de letras”. Os protagonistas são escritores. Assim, o assunto por trás de toda a
conversa é a Literatura. De maneira que, através de suas falas, do tratamento entre eles, de
suas preferências e posicionamentos, mas também de toda a estrutura da narrativa é possível
identificar dois tipos de atitude fundamentais diante da ficção. Contudo, estes escritores são
‘Borges’, e o ponto de partida do debate é o modo, sob o qual, cada um deles, entende e
configura seu fazer literário. Por isso, o conto projeta igualmente uma reflexão sobre a
literatura borgeana, em particular.
Três metáforas representam eixos fundamentais para nossa interpretação. O
narrador expõe sua preferência pelas metáforas tradicionais com três exemplos: “La vejez de
los hombres y el ocaso, los sueños y la vida, el correr del tiempo y del agua. Essas imagens,
tanto quanto a narrativa, tratam do tempo, do espaço, e do “eu” - uma vez que o personagem-
narrador é um homem mais maduro. Acrescenta que, Le expuse esta opinión [al joven], que
expondría en un libro años después”. Em 1969, o narrador já poderia prever a aparição destes
29
tropos na publicação de “El Otro”, em 1975. Ao mesmo tempo, de modo direto, três fases da
discussão geram oposições entre as personagens: o realismo, o engajamento, e o biografismo
(além do ultraísmo) na poesia do jovem, que colidem com o insólito, a especulação
metafísica, e a idéia ou o desejo por trás do poema (na metáfora tradicional), no caso do velho
Borges. Assim se conduz um improvável diálogo, entre uma espécie de personificação da
obra borgeana, que a transforma em ícone da literatura imaginativa; ao passo que uma
caricatura da obra juvenil, aproximada à geração literária argentina dos anos vinte, em sua
corrente predominante, é convertida em uma representação do realismo. Realismo de um lado,
e literatura clássica do outro, nos oferecem, em seu vel mais abstrato, um encontro entre
duas formas primordiais de tratamento da Arte.
um trecho que especialmente delata essa divisão, mas faz com que o
texto avance para o campo da síntese. Para provar que é o jovem, o velho lembra um segredo.
Evoca a praça “Dubourg”, para aludir ao bordel onde o Borges realidade teria tido sua
primeira relação sexual
122
. O jovem o corrige - o nome correto é “Dufour”. No gesto
referencial está a chave de leitura utilizada nesta interpretação. De um lado, o realismo; do
outro, a imaginativa escritura borgeana. Os protagonistas revelam e escondem a verdade. O
nome real do logradouro é Place du Bourg de Four. Portanto, ambos fazem uma alusão
verdadeira, mas ambos a distorcem. a combinação dos nomes indica o local e o fato por
trás do comentário. Cada um dos personagens possui uma parte ‘do segredo’. Assim como
esse episódio carrega uma terceira verdade; através da ntese ou da união dos dois modos, a
narrativa projeta uma larga sombra, que há muito tempo os estudos da obra borgeana
perseguem: um terceiro modo de escritura ou leitura. Dividido entre os personagens existe a
imagem de um Borges maior.
Uma louca realidade Diante do leitor descortina-se uma louca realidade. O narrador avisa:
“No lo escribí inmediatamente porque mi primer propósito fue olvidarlo, para no perder la
razón”. O protagonista narra porque precisa de esquecimento, porque um terrível fato o faria
enlouquecer; mas apenas alguns parágrafos depois, faz questão de oferecer garantias de sua
lucidez no dia da ocorrência: “Yo había dormido bien, mi clase de la tarde anterior había
logrado, creo, interesar a los alumnos”. E, no entanto, o efeito direto desta declaração, é
perguntar-se pela sanidade deste professor. Até porque, admite lembrar de uma estranha
sensação, logo antes do ocorrido, que “según los psicólogos corresponde a los estados de
fatiga”. Portanto, nem lúcido, nem louco. Tudo que sabemos ao certo, é que, de algum modo,
nosso protagonista não se sentia completamente bem.
30
Esse jogo ternário é característico desta narrativa. Aparece por todo o conto
conformando as diferenças entre o velho, o jovem e a síntese que em algum ponto se revela.
Por outro lado, com isto, a narrativa adquire um tom ensaístico, o qual, veiculado sob a
metaficção, faz com que o texto se passeie por um terreno marginal de entre-gêneros. Através
do diálogo com o jovem, Borges contrasta dois conceitos opostos de literatura. Theodor
Adorno assinalava o caráter profundamente dialético do nero ensaístico
123
. Porém, se
um ir e vir com as idéias, lembramos que ensaio é literatura de idéias
124
. Mas também caberia
a afirmação de Monegal, de que a típica ficção borgeana é um misto de narrativa e ensaio
125
.
Autorizado a narrar e a discorrer sobre literatura, ele pode narrar ensaiando e ensaiar
narrando. Sobretudo, com essa manobra, o relato não precisa render-se ao factual. Afinal,
um mundo de idéias à espera dessa ficção.
Embora a questão da sanidade-loucura possa parecer menor, é supostamente
este rasgo, uma louca realidade, o que supostamente impede o narrador de elaborar seu relato
logo após o encontro. Para ele, na época que se seguiu ao sucesso, lembrar teria sido recair na
loucura, e esquecer, a única possibilidade de estar são. Por isso, ele não escreve em 1969, mas
sim, em 1972. Ele precisa apagar o turbilhão das sensações, precisa tentar encontrar um
sentido para a experiência. Assim, segundo a lógica do narrador, a escritura imediata, muito
próxima dos fatos e do tempo do encontro, o levaria a perder a razão. Um tal realismo seria
loucura. Ao passo que a escritura “épica”, distanciada no tempo, o ajudaria a afastar uma
realidade caótica
126
. A escritura borgeana (afinal, o narrador é “Borges”) organiza o absurdo.
Nem a completa loucura, nem a total lucidez. Até o fim, a narrativa sustenta
o ambíguo, de modo que o relato se instala e flui a partir de um estado intermediário: do
sonho do jovem ou da loucura do velho pode ter surgido esse impossível diálogo. Ramona
Lagos observou a presença de estruturas, que ela chama “oníricas”, nas narrativas borgeanas:
pesadelo, vertigem, febre, delírio, alucinação, agonia, sonho, e outros mais, servem de
plataforma ao fantástico
127
. Isto não significa que esta seja mais uma narrativa em que o
recurso é utilizado. Significa que nesta narrativa, este mecanismo poderia ter sido posto em
evidência para um meio-termo entre duas possibilidades distintas de estruturação da realidade
ficcional.
Cabe atentar para outro detalhe. O medo da loucura gera a primeira, e quase
a única ão nesta trama, a de escrever. As ações se resumem à escritura do narrador, à
aparição do outro e deste ponto em diante, a conversação predomina. Mas esta não é a
completa verdade. Se agitadas aventuras como aquelas que ocorriam aos heróis da picaresca
não estão presentes nesta estória, seria inadequado descrevê-la como um monótono jogo
31
verbal. O certo é que tudo acontece neste espaço ambíguo entre mente e realidade. Pelo
grande portal da memória do sonho ou da realidade, da loucura ou da experiência - a
narrativa abre espaço para viver e re-viver vários momentos de uma história. O velho revive o
episódio da morte do pai, as canções do tio Lafinur, a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, a
ditadura de Perón, a Guerra Fria. Através do jovem, revive ainda seu encontro com um senhor
que afirma ser ele mesmo; uma conversa com o pai; a empolgação com o socialismo; as
impressões da leitura recente de Dostoievski; as noites em que se encontra com os amigos no
Bar Crocodilo. Se “El Inmortal
128
atravessa um milênio em suas andanças, “El Otro”
recupera de modo alusivo metade do século XX. Não são ações propriamente, mas em cada
alusão está sinteticamente contido um conjunto de vivências. Assim a narrativa nos leva a
perguntar: toda lembrança é menos intensa que uma experiência real?; as experiências
mentais (sonho, loucura, leitura, temores) são sempre menos impactantes que a realidade?
Sobretudo, o relato perde ao optar por um ou outro tipo de experiência?
No prólogo a La invención de Morel, Borges defende a artificiosa narrativa
de aventuras pela coerência. Por isso, talvez se esperasse que seus enredos, como Os Três
Mosqueteiros, estivessem cheios de peripécias. Inclusive, ele condena o romance psicológico
realista, que “hace de toda vana precisión [...] un nuevo toque verosímil”
129
. Ele traz a
desordem das sensações ao mundo narrativo. Contudo, em “El Sur”, a aventura de Dahlmann,
com os peões, acontece entre a realidade da febre e a imaginária llanura
130
, o que faz com que
ela possa ter sido uma experiência mental. O mesmo se pode dizer do personagem de “La
Espera”, quando realiza uma seqüência de ações, desde sua fuga, até sua acomodação em
outra cidade. No emocionante enredo, é como se essas ações fossem sonhos ou intervalos de
um único momento vivido inúmeras vezes - o pensamento de que finalmente o apanham
131
.
Novamente uma experiência mental, mas que agora, ao contrário da anterior, se sobrepõe às
vivências efetivas da personagem. Também no conto em exame, o narrador oferece duas
possibilidades de entendimento, realidade ou virtualidade. Portanto, nem realismo interior,
nem contínuas peripécias. Este narrador problematiza suas aventuras instalando-as entre a
vivência efetiva e a vivência mental.
A precisão imprecisa Acabamos de ver que no Prólogo ao livro de Bioy, Borges ligava a
precisão à verossimilhança. A mesma relação funciona neste texto, com certo ajuste. O
narrador esboça as circunstâncias do relato. Informa o mês (“febrero”); o ano (“1969”); o
horário (“Serían las diez de la mañana”); a cidade (“Cambridge”); e a área (“al norte de
Boston”). Para maior exatidão sobre o local (“en un banco frente al río Charles”) consegue
32
ser ainda um pouco mais preciso (“a unos quinientos metros a mi derecha había un alto
edificio”). Em contrapartida alguns fatores de incerteza (“serían las diez”); (“a unos”);
(“edificio, cuyo nombre no supe nunca”). Esse detalhamento reaparece, quando faz saber que
existe um volume sobre sexualidade, atrás das duas fileiras de livros pertencentes ao outro. O
dado ajuda a caracterizá-lo como um jovem, revelando o que o preocupa. Contudo, parece
excessivo explicar que fala sobre a sexualidade dos povos balcânicos”. O mesmo vale para
o “mate de plata”, com o detalhe dos “pies de serpientes”. Tudo isso gera-se um chamativo
jogo de precisões e imprecisões.
A abertura, em que aparecem tais detalhes, mostra um ‘palco’ com poucos
elementos: um banco diante de um rio, com um edifício adjacente. É um ambiente de
claridade, afinal são dez da manhã, e de reflexão, como sugere o lugar para sentar-se diante da
água corrente. É inverno, pois a água está congelada. Essa disposição tão nítida do cenário em
que tudo acontece, coopera para a declaração de “lucidez” do narrador. Mas tão clara e com
tão poucos elementos, não deixa de converter-se em uma espécie de flash ou clarão de
memória, ou ainda, numa gélida ante-sala para a loucura e o insólito. O dado do edifício
“cuyo nombre no supe nunca” é tão vago, quanto no cervantino, “Un lugar de la Mancha de
cuyo nombre no quiero acordarme [...]” – ou melhor, é “Menard-iamente” vago. Outrossim, a
preocupação com a distância até o prédio mais próximo é algo que beira o policial. Contudo,
nem de longe seria a descrição do quarto de Fernando Seixas, em Senhora, com sua mobília,
seus perfumes e pentes; tampouco é equiparável às esgazeadas e fantasmagóricas ruas de
Comala, com seus mortos e gemidos. Essa ambientação não desmerece o sonho, nem
inviabiliza a realidade, é ambígua.
Dissemos que em La postulación de la Realidad”
132
, Borges distingue dois
modos de escritura, os quais entre outras diferenças, estão separados por dois
posicionamentos fundamentais; desejar, ou não, a representação consistente da realidade. A
isso parecem aludir o exato e o vago dos detalhes iniciais, porquanto no ensaio, ao passo que
uns (os românticos) buscam uma arquitetura ficcional precisa (detalhada), os outros (os
clássicos) se contentariam com uma realidade literária vaga; esquemática, mas suficiente.
Assim, de acordo com Borges, entre os textos ‘imprecisos’, a melhor técnica seria a iniciada
pelo realista Daniel Defoe. Mas, se o recurso é um legado do realismo inglês, Borges inclui no
uso dessa técnica, a julgar de seus exemplos, tanto escritores de literatura mais realista, o
próprio Defoe e o argentino Enrique Larreta; quanto escritores de literatura mais imaginativa,
como H. G. Wells e Rudyard Kipling. Trata-se da utilização de pormenores circunstanciais
projetivos, os quais, segundo o argentino, gerariam uma arquitetura de realidade, eficiente nos
33
moldes de um texto clássico. Em capítulo posterior, veremos que o mesmo Borges se utiliza
desta técnica
133
. Teria, portanto, algo em comum com os realistas.
Em “El Milagro secreto”, no capítulo posterior, veremos que aparecem
pormenores, que geram uma verossimilhança alta, e assim sendo um efeito ‘realista’
(romântico); mas também uma técnica clássica se encarrega de uma realidade vaga, quando
se faz necessário. A obra borgeana conhece os efeitos perseguidos nos dois modos, portanto.
No entanto, como ocorre em outras passagens desta narrativa, o recurso de Defoe é copiado,
mas também modificado. Recebe um acréscimo. Em “El Otro”, os pormenores são ao mesmo
tempo precisos e imprecisos, de modo que parecem pretender o dúbio. Obtêm certa realidade
plausível, mas igualmente introduzem a possibilidade do insólito – se o narrador não se
lembra bem das circunstâncias, isso significa que algo estranho pode ter lhe acontecido em tal
data. Ao nível do narrado, a ambigüidade espalhada por toda a malha textual recebe um novo
reforço. Por outro lado, no nível metatextual, se até esta altura, nas entrelinhas do conto,
aparecem motivos pelos quais o autor não tentaria dirigir suas estórias ao realismo, ao chamar
a atenção sobre os pormenores, ele aponta para uma técnica de produção de realidades
literárias. Mas, o que essa técnica posta em relevo nos diz tal como aparece no mencionado
ensaio; é que, na literatura, a realidade não é mais que um efeito.
A realidade sonhada O outro aparece e começa uma partida pela identidade um xadrez,
em que o jovem joga de um lado, e o velho joga dos dois. Ambos afirmam ser Borges: o
jovem crê que ele é Borges; o velho, que os dois o são. Apoiado no pressuposto de que um
mesmo homem não pode estar simultaneamente em dois tempos e lugares diferentes, o jovem
tem um grande desafio, afinal provar quem ele é, não se dissocia de provar quando e onde ele
está. Já o velho, como se intuísse no menino uma eterna essência borgeana, desde o começo o
reconhece só pela voz (mesmo sem vê-lo), deixando as perguntas para a continuação.
Ao crer que ele existe, o jovem argumenta que o encontro é apenas um
sonho, e por isso o velho saberia as mesmas coisas que ele. O vocabulário que utiliza para
defender-se é representativo dos significados que vão se construindo ao seu redor: “pruebas”,
“prueban”, “natural” e “catálogo”. Observa-se que ele quer uma solução precisa para
enquadrar a situação nos parâmetros da normalidade. Tenta uma hipótese racional, ao buscar
causas naturais para explicar o que ocorre. o velho quer provar que ambos coexistem no
mesmo espaço, e milagrosamente puderam se encontrar. Sem grandes explicações, de modo
vago, sustenta que o encontro acontece na realidade, embora saibamos que isto seria
sobrenatural.
34
O velho não resolve a questão, mas, diante das vidas do jovem, remaneja
o problema. Declara que a vida toda é um sonho; não apenas o encontro. Assim, o mais
importante não é saber onde de fato eles estão, mas se estes, e todos os locais da realidade não
seriam espaços oníricos. Faz notar ao mais novo, que “Tal vez dejemos de soñar, tal vez no.
Nuestra evidente obligación, mientras tanto, es aceptar el sueño, como hemos aceptado el
universo y haber sido engendrados y mirar con los ojos y respirar”. A partir da segunda
frase, quando todo o entorno semântico faz esperar pela expressão “aceitar a vida”, o narrador
insere a palavra “sonho”. Na primeira, morrer é deixar de sonhar, portanto um despertar.
Assim, a vida é encarada como algo extraordinário, como se isso fosse parte do caráter da
realidade.
O fenômeno vital é visto como um milagre. O velho desconstrói a
naturalidade do viver através dos pleonasmos, que neste caso, ao invés de reiterar o óbvio,
contrariamente, põem a desnudo sua excepcionalidade. Ele parece à vontade no
extraordinário, enquanto o jovem se aflige: “El miedo elemental de lo imposible y sin
embargo cierto lo amilanaba”. No entendimento do velho, é a “sua realidade” (essa situação
insólita, mas que, a seu ver, não é mais estranha do que a própria vida) o que provoca medo
no jovem. Interessante notar o paralelo. A realidade vital produz admiração no velho; o
insólito apavora o mais jovem. Mas, neste ponto, quando o jovem está sitiado pelo que parece
loucura, a ponto de crer nessa ficção que o envolve; então, o velho Borges se identifica com
ele. Sente-o como um “hijo de mi propria carne”.
Se pensamos que “o encontro” é uma representação do universo literário,
enquanto nosso jovem realista o entende na direta dependência do real; o velho, como um
escritor imaginativo, clássico
134
, não se intimida ante uma realidade extraordinária, admitindo
que dois homens podem ser o mesmo. Contudo, em sua própria fala, produz-se uma síntese:
sua literatura pode ser fantástica, porque a vida é fantástica. Então, real e estranho, dissolvem-
se um no outro. O encontro é insólito mas o velho assevera que está acontecendo na realidade.
Assim, este narrador suscita a reflexão de que estamos em um mundo, cuja totalidade das leis
naturais é desconhecida; em que todos os dias a vida é algo excepcional, mas também, um
mundo no qual, situações inexplicáveis acontecem no quotidiano, e contudo, seriam
inverossímeis, na literatura. Nesta chave, optar pelo realismo, não seria limitar-se ao
quotidiano e ter o trabalho de escamotear o excepcional? Não seria perder múltiplas
possibilidades filosóficas de entendimento, que a realidade suscita (e suas respectivas
possibilidades estéticas), por negar-se a enxergar o maravilhoso no vital? Entretanto, se o
35
velho se reconhece no jovem ao vê-lo envolto pelo fantástico, outra vez, admite que o real-
quotidiano é parte integrante de sua obra.
Assim sendo, as arquiteturas do conto revelam a possibilidade de trabalhar
com o mundo real ou com vários outros mundos pensados, sonhados ou imaginados. Sarlo
constata, que nas narrativas borgeanas, o leitor dificilmente distingue com precisão o número
de planos envolvidos: “no es posible decidir a ciencia cierta cuál es el estatuto de realidad de
lo que se está leyendo”
135
. Neste enredo, o espaço é desdobrado por espaços reais (o
biográfico, por exemplo) e artificiais (os planos de intertexto). As alusões colocam a trama em
contato com o mundo discursivo. Através do intertexto, uma leitura é porta de acesso a um
labirinto de leituras.
A idéia do sonho, através da qual o velho expõe sua concepção sobre a
vida, permite recordar La vida es sueño, de Calderón de la Barca: “Qué es la vida? Una
ilusión, una sombra, una ficción; y el mayor bien es pequeño, que toda la vida es sueño, y los
sueños, sueños son”
136
. A peça tem dois temas bem perceptíveis. A concepção de que ensinar
é fazer com que o outro repita o conhecimento do professor, o que era uma crítica à educação
da época; e o tema do sentido da vida, o qual aparece sob o influxo da contra-reforma,
evocando outro mundo como atribuidor de sentido a esta realidade. A primeira idéia pode
enriquecer a leitura de “El Otro” pensando-se que o velho tenta transmitir suas experiências
com a literatura ao escritor iniciante que ele (também) foi algum dia. Talvez não tanto como
um professor, mas como um homem mais velho que expõe os motivos pelos quais pensa de
tal ou qual maneira diante de uma determinada situação, porque agiu de tal e qual forma, de
acordo com seu modo de ser. Isto é, porque se posicionou de uma e outra maneira em relação
ao realismo. A segunda é a idéia de que este mundo pode ser ‘falso’ ou ‘provisório’ diante de
um outro mundo verdadeiro. Com ela, são igualadas a ficção e a realidade conhecida. Mas o
que interessa esteticamente neste raciocínio, é que a realidade real o teria primazia sobre o
ficcional, e portanto, seria tão válido remeter-se a outro livro, quanto o seria, referir-se à vida
corrente. Ou seja, relatar uma experiência vital não seria melhor do que (voltar a) contar uma
narrativa pré-existente. Este é um primeiro desdobramento espacial.
Também El Doble, de Dostoievski, é mencionado. O funcionário Goliádkin
gostaria de ter projeção social. No íntimo é intrigante, mas não consegue desvencilhar-se de
seu moralismo. Aparece um inescrupuloso duplo mais jovem que executa todas as ações que
precisaria ter feito para subir
137
. Sob essas lentes é como se o Borges mais novo tivesse a
ambição de ser um grande escritor, mas faltasse coragem para romper com os parâmetros da
literatura de seu tempo, até que ele conhece um “outro eu”, mais velho... "Dupin, que se
36
chamará, depois, Sherlock Holmes; que se chamará mais tarde, Padre Brown "
138
. Ou,
Goliádkin, que se chamará Borges, que se chamará... A estrutura em abismo faz que os
sentidos de um texto alcancem o outro. Ergue pontes entre os livros, gerando unidade entre os
espaços do universo ficcional.
Outro intertexto é a citação de um verso d`As constelações de Victor Hugo.
Nele, o eu-lírico de um revolucionário poeta maduro relembra seus poemas pró-monárquicos
da infância e os desautoriza. Esse elo literário geraria o sentido de que a passagem do tempo é
responsável pela aparente discrepância entre os Borges. Mas o verso, cujo poema possui tanta
correspondência com o enredo de “El Otro”, oferece uma espécie de ícone para o conto a
Hidra. Assim, se nos milímetros do Aleph estava o universo inteiro, na Hidra, que chega
através do verso de Hugo, está a ‘essência’ desta narrativa. Portanto, a Hidra é como um
Aleph. É a parte que alude ao todo, é a imagem que recupera o narrado. É ainda uma porta de
passagem ao mundo simbólico. Já comentamos o tão evidente jogo com o onírico, pelo qual a
narrativa se veste de sonho, e com isto ganha licença para fugir às regras da realidade. O
resultado é que, nesta chave, todo elemento se torna altamente simbólico e diz mais sobre as
personagens; ao passo que a hidra diz mais sobre o mundo ficcional no qual se encontram.
Se a narrativa procura ampliar seu espaço com as dimensões discursivas,
ela também avança sobre o real. Neste itinerário, ela se apropria em vários momentos da
biografia borgeana. É um recurso semelhante ao do poema “Borges y yo”, em que ele poetiza
uma cisão entre seu “eu” particular e sua figura pública de escritor sua condição biográfica.
“Tlön, Uqbar, Orbis Tertius” começa com uma conversa de Borges com Bioy Casares. Em
“El Otro” passam para a ficção não apenas nomes de amigos, mas também, episódios da vida
familiar e até antigos endereços. O mundo concreto serve, tanto quanto a tradição, como fonte
de temas (como o episódio de juventude no Bordel) e figuras (a existente cuia de prata do
avô) para a elaboração textual. Ao mesmo tempo, a ficção amplia a realidade vital com
lugares nunca visitados, com conversas que nunca tiveram lugar, com uma imagem do jovem
Borges um escritor engajado que sabemos que nunca existiu do modo como a narrativa o
postula.
As estruturas narrativas deste conto assinalam que Borges não se vale
somente da realidade do mundo, nem somente das realidades literárias. Mostra a riqueza de
operar com ambas as possibilidades e com as variações existentes entre uma e outra (como a
ficcionalização do autobiográfico). Ao mesmo tempo, a narrativa elenca precursores, mas
também deixa ao leitor a possibilidade de completar esse quadro, que por si só é tão amplo, ao
deixar de fora, menções óbvias como Dr. Jekill e Mr. Hide, de Stevenson.
37
Mas, se ambos os Borges estão fora de seu país (Cambridge e Genebra), os
dois fazem menção a seu espaço de origem. No nível das idéias literárias, simbolicamente, um
está próximo da moderna literatura de língua inglesa (Poe, Whitman), enquanto o outro está
na neutralidade indecisa de quem convive com várias escolas, que a literatura européia
produziu (Simbolismo, Modernismo, etc). Seja como for, os dois carregam sinais da tradição
argentina.
O criollo universal “Argentino”, responde o jovem, quando o velho Borges lhe dirige a
primeira pergunta para saber quem ele é. Mas ainda sem terem trocado uma palavra, o velho
sente a estranha sensação de estar diante de algo que já vira em outro tempo. O mais novo
assovia “La tapera de Elías Regules”, um poema criollo
139
. Regules é um poeta idealizador
do regional. Pertenceu ao segundo período do Romantismo uruguaio
140
, que tinha como
característica a valorização do autóctone
141
. Esse é o “estilo” da canção que assovia, fazendo
com que o narrador se recorde um “patio”, um pico elemento local
142
. a voz parecia a de
“Álvaro Melián Lafinur”, escritor e crítico nacionalista, tio paterno de Borges. As palavras do
outro o “las de la décima del principio”. De modo que as décimas da milonga,
característica da Argentina, dão o ritmo de sua fala. O arranjo lembra Evaristo Carriego, no
qual Borges seleciona motivos regionais, que deverão constar de sua futura poética
143
. Como
já comentado, não apenas para Borges, mas também para os demais escritores vanguardistas e
realistas da geração literária argentina dos anos vinte, o criollismo era um valor. Assim, o
trecho mostra que a aparição do outro, está emoldurada por uma série de elementos do
regionalismo argentino, caracterizando o jovem escritor, como um expoente do nacional em
literatura.
O mais novo não aceita a existência de outro Borges. Por isso o velho tem de
dizer algo que o faça acreditar que ele sabe quem ele é, a tal ponto, que o jovem possa
reconhecer que são o mesmo. Porém, em sua primeira tentativa, o velho não vai tentar
entendê-lo por sua voz, sua canção ou seu ‘estilo’. Ao contrário, vai julgá-lo a partir de si
mesmo. Ele ainda pode lembrar sua biblioteca de juventude. Mas, como o jovem está em
outro momento, o velho não o convence de que são o mesmo, com a memória dos livros na
estante, onde figuravam as Mil y una noches de Lane, o dicionário de Quicherat, a Germania
de Tácito, o Dom Quixote de la Mancha, as “Tablas de Sangre” de Rivera Indarte, o Sartor
Resartus de Carlyle, a biografia de Amiel. São volumes de cunho imaginativo, pois mesmo o
dicionário, o livro de história, e o apêndice contêm dados ficcionais
144
. Pertencem a diversos
38
tempos e lugares. São índices da cultura ocidental, assinalando um universalismo ímpar. Não
obstante, dentre eles há um nome da tradição local, Rivera Indarte.
Vemos que no conto, de maneira um pouco esquemática, Borges apresenta o
que hoje em dia, a crítica explica como sendo a configuração do criollismo em sua obra. O
local está contido dentro do universal, e reversamente, do universal pode saltar uma
tematização ou figuração do local. Davi Arrigucci Jr. propõe que os temas argentinos podem
ser percebidos por trás da “integração dialética”, com a qual Borges os transforma em
questões universais
145
. Na trajetória borgeana, o criollismo existe desde os primeiros livros de
poesia e ensaio, sendo uma das marcas de sua poética. Diante da percepção de elementos
criollos e cosmopolitas nesta obra (duas linhagens para uma escritura), Ricardo Piglia percebe
que “Borges acolhe elementos contrários em sua escrita sem nunca optar por um, mas
valorizando um ou outro em momentos diferentes”
146
. Então, a partir do conto e da visão de
Arrigucci, parece que a obra borgeana, não apenas “acolhe” elementos opostos, mas também
é capaz de promover sua integração.
Sarlo interpreta a argentinidade das ficções borgeanas à luz de seu conceito
sobre las orillas, que significa tanto um local concreto que Borges escolhe ficcionalizar (o
subúrbio, os bairros afastados), quanto um eixo metafórico, segundo o qual, ela apreende o
gesto da literatura borgeana em face de seu país e da cultura européia:
“Borges se afinca en un lugar menor, el lugar de la Argentina, y allí ejerce la
libertad de los menores rearmando el mapa de las literaturas mayores desde
la periferia cultural de Europa. Este derecho [de herdeiro da cultura
européia], vuelve posible cualquier elección temática, liberando a la ficción
de sus anclajes referenciales: la literatura argentina habla de la Argentina sin
tener que asumir temas argentinos”
147
.
Na verdade, essas duas prerrogativas – o direito à cultura européia como uma
herança, e a não obrigatoriedade de apresentar elementos locais na literatura – já estão
delineadas no ensaio borgeano “El Escritor Argentino y la tradición”
148
. Assim, Sarlo procura
os desdobramentos dessas idéias na ficção borgeana. Para ela, esse rasgo seria verificável
tanto na linguagem, quanto na menção a livros argentinos canônicos; mas estaria ainda na
própria liberdade de escolher elementos da tradição cultural argentina ou de culturas
estrangeiras
149
. Em “El Otro”, essas marcas fazem parte integrante da malha textual. É
possível percebê-las no espanhol argentino, quando aparece o voseo
150
: “querés”; “podés”.
Também aparecem, quando o velho se exalta contra o atraso em seu país, dizendo que “No
me sorprendería que la enseñanza del latín fuera reemplazada por la del guaraní. Borges
está vindicando que os argentinos tenham acesso a uma parte importante do patrimônio da
39
cultura universal. Igualmente, expressa sua argentinidade, através dessa visível preocupação
com a cultura em seu país. Ao mesmo tempo, o trecho revela um argumento pessoal, em favor
das referências a temas universais na ficção: preocupar-se efetivamente com seu país é não
deixar que ele fique limitado aos temas e representações regionais.
Olea Franco afirma que uma das maduras soluções borgeanas para o
criollismo consiste na imaginação poética da vida dos antepassados “que reduce la historia
nacional argentina a la historia familiar del escritor”
151
. Neste caso, um pequeno elemento
inserido no mesmo parágrafo em que trata da biblioteca universal, alusivamente resgata as
relações com o local. En casa hay un mate de plata con un pie de serpientes, que trajo del
Perú nuestro bisabuelo”. O dado é biográfico. Através do bisavô militar, recupera-se a
história nacional durante as batalhas contra o tirano Rosas. Além disso, como o parente esteve
sob o comando de Simón Bolívar, ainda evoca as lutas continentais pela libertação do
domínio espanhol
152
. Portanto, na mesma passagem em que o escritor elenca seu repertório de
leituras universais, o nacional está incrustado junto dele, pelo viés da história familiar - o que
o torna ainda mais próprio.
Em “El escritor Argentino y la tradición”
153
, o autor reprova o nacionalismo
fácil, da mera exposição da cor local, mas reafirma o direito dos argentinos a todos os temas.
Ele efetua uma argumentação engenhosa. Enquanto nos projetos de construção da identidade
nacional, a cultura de um país é associada aos elementos regionais, ele remaneja esta
associação. Converte o fato de ser argentino, em ser herdeiro da cultura européia, de modo
que “podemos manejar todos los temas europeos, manejarlos sin supersticiones”; “nuestro
patrimonio es el universo”. Contra a obrigação e a limitação do autóctone, ele oferece o
direito a um rico patrimônio de muitos séculos. Ademais, diretamente refuta a existência de
uma ligação necessária entre telurismo e literatura nacional, com sua famosa sentença de que
o Alcorão é um livro árabe por excelência, mas ninguém duvida disso pela falta de menção
aos camelos
154
. Seu pensamento é análogo ao do brasileiro Machado de Assis, quando este
propõe que uma nacionalidade instintiva assoma naturalmente ao texto, sem que seja preciso
ter essa intenção
155
.
À luz do ensaio e dos críticos, vemos que enquanto, o protagonista mais
jovem (a geração literária argentina dos anos vinte e o próprio jovem Borges) é criticado por
seu nacionalismo, como atitude superficial de mera exterioridade, o velho Borges deixa
perceber seu sentimento de pertença a seu país, de um modo mais íntimo e espontâneo, como
parte integrante de sua forma de ser e de ver o mundo. Ela aparece em sua fala corrente; em
sua preocupação com um tema que concerne à vida cultural de sua pátria; na menção a um
40
escritor não-canônico da tradição argentina, Rivera Indarte; e aparece ainda em sua história
pessoal, que está inevitavelmente associada à história da nação. Portanto, no conto, ele recusa
a obrigatoriedade do local em favor de uma expressão mais autêntica, sugerindo alguns
modos pelos quais esse rasgo ficaria expresso em sua poética. No entanto, a argentinidade
está presente em ambos os Borges.
O jovem parece voltado para o local, ao passo que o velho está ligado ao
universal, mas sabemos que a madura estética borgeana integra o local ao universal. A síntese
aparece de modo simplificado na biblioteca de Borges. Contudo, de modo mais complexo, ela
está presente desde a base estrutural do relato. Por se tratar de uma narrativa em primeira
pessoa, o narrador conta uma estória e ao mesmo tempo responde ao leitor quem ele é.
Portanto, constrói e desvenda uma identidade. Porém, ela está dada desde o título, “O
Outro”. Isso não significa que o velho tenha descoberto ser idêntico ao jovem, embora sejam
o mesmo. Mas, a própria aparição do jovem acontece quando o velho refletia a respeito do
tempo e sabemos que ele pensa ser este um fator decisivo para as diferenças que impedem o
jovem de reconhecer-se nele. Em contrapartida, essa questão já margem a pensar, se
alguém poderia tornar-se o perfeito reverso daquele fora, sem que qualquer resquício do
passado ressurgisse na fase posterior. Isto, considerando que o encontro é real. Contudo, o
encontro pode ocorrer em um sonho, então como explicar essa figura que parece invertida?
Como postula Clément Rosset, na literatura, a estrutura do duplo dispara uma situação de
auto-conhecimento para o personagem. Aquele que é o desdobramento
156
(o fantasma, o
outro) revela ao leitor aspectos da realidade do protagonista, que este desconhecia ou que
talvez desejasse ocultar
157
. Assim, o segundo Goliádkin revela que o primeiro é ambicioso e
deseja ascender socialmente. O jovem Borges revela, entre outras coisas, que dentro de seu
cosmopolitismo, o velho nunca deixa de ser o que é, um escritor argentino.
O rio circular O jovem surge depois de uma peculiar reflexão do narrador sobre o
tempo - “el o hizo que yo pensara en el tiempo. La milenaria imagen de Heráclito”. Esse
pensamento de que dia após dia o homem nunca é o mesmo parece ser o responsável por
trazer o jovem à memória do narrador, ou ainda por convocá-lo ao espaço ficcional.
dois modos pelos quais o tempo foi estruturado nesta narrativa: o
objetivo, e o subjetivo. O tempo convencional, o cronológico, está por todo o enredo:
“febrero de 1969”; “Ahora, en 1972”; “Serían las diez de la mañana”; “Estamos en 1969”;
“esta mañana”; “pasado”, “porvenir”; “hace unos treinta años”; “Anoche”; “hacia mil
novecientos cuarenta y seis”; “Cada día que pasa”; “en 1918”; “un muchacho que no había
41
cumplido veinte años”, un hombre de más de setenta”; “medio siglo”; mil novecientos
setenta y cuatro”. Todas as formas de tempo objetivo preocupam os protagonistas: as horas,
os períodos do dia, os dias, meses, anos, séculos, o passado e o futuro. De acordo com Hans
Meyerhoff, o tempo cronológico é entendido “pela teoria física em quantidades separadas,
distintas e mensuráveis que permanecem sempre separadas, díspares e não relacionadas”
158
.
Neste caso, torna-se comparável ao conceito heraclitiano aludido na narrativa, pois ambos são
fragmentados e lineares. Mas existe ainda outra faceta para o tempo exterior ao perguntar,
“No querés saber algo de mi pasado que es el porvenir que te espera?”. Quando o futuro do
jovem é o passado do velho Borges, entende-se que a sucessão também vigora no mundo
destes personagens. Assim, é possível perceber que a narrativa constrói a presença de um
tempo exterior, fragmentado, linear e sucessivo.
Convivendo com este tempo, há um outro. Os personagens insistem em
referir-se ao encontro como sendo um sonho e em suas falas o tempo é enfatizado enquanto
duração. O vocábulo sonho e suas formas verbais aparecem doze vezes na narrativa. O fato de
que “sonho” e “duração” surjam juntos, acentua a hipótese do jovem de que o encontro seja
um sonho, mas não tira a razão ao mais velho, quando este assume que a vida toda também o
seja (ver grifos):
a) “sé que fue casi atroz mientras duró” (p.7)
b) “¿Y si el sueño durara?” (p.10)
c) “Mi sueño ha durado ya setenta años” (p.10)
d) “Nuestra conversación ya había durado demasiado para ser la de un
sueño”. (p.16)
e) “La situación era harto anormal para durar mucho más tiempo” (p.17)
Já que os personagens também mencionam o tempo sob um aspecto durativo,
percebe-se a existência de uma estruturação do tempo interior na narrativa. De acordo com
Meyerhoff, as obras modernas costumam utilizar esta temporalidade durativa, com freqüência
associada ao sonho, porque essa condição permite empregá-la naturalmente
159
. Deste modo,
se a recorrência do tempo cronológico, nos fazia esperar pela realidade, o tempo interior não
deixa esquecer a idéia de que tudo possa ser uma experiência onírica. Sobretudo quando o
velho admite, logo antes de encontrar o outro que sentira fadiga antes do encontro. O cansaço
poderia ser a ponte entre o mundo onírico e o real, mas como em toda parte neste conto, nada
é definitivo.
O mais velho descreve a situação familiar e dela surge uma percepção sua,
enlaçando tempo e vida. A mãe está bem, o pai morreu, a avó que morre, e por fim a irmã que
42
se casa e tem filhos. Apresenta-se o ciclo vital, vida e morte, morte e vida. A perspectiva
sob o discurso do velho consiste essencialmente de um horizonte filosófico de nascimentos e
mortes. É como um movimento vital de ascensão e declínio, como o verão e o inverno da
existência humana. À continuação, o que poderia ser uma tentativa do personagem, de
mostrar-se um sujeito inscrito na história para comprovar sua existência, assume outra faceta
peculiar. Algo semelhante ao que ocorria ao indivíduo dentro do núcleo familiar é observado
com respeito aos grupos humanos, ao expor que houve “otra guerra, casi entre los mismos
antagonistas”; Francia no tardó en capitular [...] la cíclica batalla de Waterloo”; “otro
Rosas [...] bastante parecido a nuestro pariente”; “El '55 [...] como antes Entre Ríos”. O
parágrafo não ressalta a linearidade na história, mas gera uma inusitada visão da mesma. Dois
grupos se enfrentam na Primeira Guerra Mundial. Os bandos se desfazem e novamente dois
grupos se enfrentam na Segunda Guerra. Dois grupos opostos, um se eleva e um cai. Quando
opta por aproximar os fatos por sua semelhança, como se fossem os mesmo fatos em outro
tempo, a história parece estar sendo interpretada à luz do eterno retorno
160
. Ainda a sensação
do narrador antes da chegada do mais novo colabora para essa noção de circularidade. Trata-
se do conhecido “déjà-vu”. É algo semelhante ao sonho, porque em um instante se passa ao
mundo da lembrança, e desse mundo transitório, o “eu” estranha o ‘si’ que permanece na
realidade. Nesse ínterim, surge uma sensação de repetição que comporta a idéia de retorno.
Portanto, em contraposição às idéias heraclitianas e ao tempo exterior e fragmentado, linear e
sucessivo; a narrativa também se aproxima das teorias de Platão (o retorno)
161
, e forma uma
temporalidade interior e fluida, durativa e circular.
Esse tempo abre uma terceira possibilidade. No instante em que fala da
história dentro desse movimento repetitivo, o escritor parece inscrever uma certa evolução.
Afinal, da guerra participam quase os mesmos antagonistas”, e o segundo ditador é
“parecido”, mas não idêntico ao anterior (grifos meus). Então é como se uma grande roda
girasse a história passando sempre pelos mesmos pólos. A ambos supera e a ambos repõe,
mas sempre em um nível superior. De forma que, em meio à própria circularidade, surge a
espiral, em uma espécie de rio circular.
No exame da categoria temporal, vemos que ele aponta de um lado, para o
que é mutável e inconstante, e do outro para o que é eterno e recorrente, de modo que o tempo
fornece um novo entendimento sobre as escolhas poéticas dos protagonistas. O autor clássico
procura captar a realidade sob um olhar mais abrangente. O autor realista se dirige convicto
ao tempo convencional, recolhendo as marcas temporais e anotando ‘fielmente’ cada data. No
entanto, não se pode dizer que este seja o tempo da realidade. É apenas uma convenção
43
relacional, um marco estabelecido em relação a outros marcos humanos. Trata-se de um
tempo que não respeita os períodos do ano (as estações) ou da vida (o ciclo vital) inscritos na
natureza. Ao contrário, nele, os fatos são escravizados por igual aos ponteiros da rotina.
Levado por esse rio, o escritor interessado na seqüência dos movimentos históricos se rende à
multiplicidade sem sentido e sem ordem da paisagem. a síntese apresentada sugere que a
obra borgeana poderia encontrar em cada situação um ponto de vista original sobre os
significados essenciais - sobre o ódio, sobre a disputa, sobre a identidade - elevando a
compreensão do leitor a outro patamar. De modo que a narrativa abre novos questionamentos
ao realismo: aderir a ele não seria deixar de lado as questões imortais em prol dos problemas-
diário da civilização? Não seria ainda sacrificar um sentido eterno das coisas em favor daquilo
que é fugaz e desconexo?
Vale a pena refletir um pouco mais sobre os significados que se desprendem
dessas estruturações temporais para nossos escritores-protagonistas. Nos ensaios borgeanos, o
eterno retorno vincula-se à idéia dos arquétipos. Estes seriam modelos iniciais que tenderiam
a manifestar-se para voltar a eclodir inúmeras vezes até que todas as suas possibilidades
fossem esgotadas; conseqüentemente, não haveria novidades, uma vez que tudo dependeria de
Idéias pré-estabelecidas
162
. Estes arquétipos se referem à realidade, mas certa vez Borges
chega a cogitar “la posibilidad de una morfología (para usar la palabra de Goethe) o ciencia
de las formas fundamentales de la literatura. Alguna vez he conjeturado en estas columnas
que todas las metáforas son variantes de un reducido número de arquetipos; acaso esta
proposición es también aplicable a las fábulas”
163
. Nesta narrativa, essa morfologia parece ser
uma idéia-base.
Em primeiro, isso acontece com um recurso. No final da estória, o velho
afirma que se lembra de um artifício de Coleridge. Assim, é como se este fosse um arquétipo,
uma matriz para o recurso do qual Borges irá se utilizar, mas atualizar em sua trama. Em
Coleridge era a flor para assinalar o paraíso; em Borges o dinheiro vai indicar a realidade. Em
segundo, a ‘morfologia’ é aplicada a uma metáfora. Quando o narrador expõe sua preferência
pelas tradicionais, exemplifica com “La vejez de los hombres y el ocaso”. Ao final do conto,
vai aparecer uma metáfora que é praticamente uma variante desta, em que a cegueira é
comparada ‘a um lento entardecer de verão’. Em terceiro, acontece com um argumento. Esta
idéia de um arquétipo que se altera e evolui é ainda mais clara, quando o jovem nomeia El
Doble. uma sensação de que o argumento do russo se repete, bastante alterado, na estória
de “El Otro”.
44
Portanto, se a partir da primeira temporalidade narrativa pode-se pensar na
idéia da literatura enquanto o novo incessante - novas metáforas, novos recursos, novos
argumentos. A partir da segunda temporalidade, a literatura poderia parecer uma tormentosa
repetição da tradição as mesmas metáforas, os mesmos recursos, etc. Essa seria a tônica das
duas essências literárias em relação a inovar. Na obra borgeana, sabemos que convivem a
invenção e a descoberta. Em sua prosa poética Las uñas”, ele introduz o tema da unha que
segue crescendo no caixão do poeta morto
164
(a continuidade da vida). Ao passo que em “El
Otro”, reedita alguns dos temas mais tradicionais da literatura - a identidade, o tempo, o
duplo. Ademais dessa junção, diríamos que essa obra se alimenta da síntese entre o novo e o
antigo, pois parece operar com a idéia de que a literatura é inesgotável, em uma chave de
diferenciações e permanências
165
.
Como ocorre com o espaço, o conto também guarda idéias de
aproveitamento da categoria temporal. Novamente, a abundância de inventivos recursos
representa por si uma objeção à cópia fiel da realidade. Isso não significa que o tempo real
não seja utilizado nesta narrativa. Vimos que um jogo de precisões e imprecisões se formava
ao redor do tempo cronológico, auxiliando na composição de um efeito de realidade literária,
oscilante entre o real e o imaginário. Outro emprego diferenciado da categoria temporal,
explora a ‘qualidade’ do tempo. Quando o eterno retorno é projetado sobre a história, um
momento se torna a chave de vários outros. É como se um confronto fosse o mesmo no
passado próximo ou distante. Assim, os personagens se tornam efêmeros, mas as situações
nucleares se tornam marcantes, como efeito desta característica ‘circular’ do tempo.
A narrativa mostra ainda que é possível jogar com a direção do tempo. Na
primeira parte do parágrafo sobre a história, esta se repete, e contudo vai “para adiante” com
suas ligeiras repetições. Depois, quando o velho emite opiniões sobre seu país, é como se o
tempo caminhasse para trás. Diz “cada dia que pasa”, e percebe-se um sentido de
deslocamento. Mas, em seguida o protagonista acrescenta “más provinciano y más engreído”.
No contraste com a descrição que sugere o movimento das outras nações, percebe-se um
sentido de retrocesso em relação ao seu país. O efeito genérico no trecho é a contradição entre
movimento e conteúdo. O progresso das guerras se parece ao atraso; nelas a história avança,
mas destrói o que estava construído. A educação ‘avança’, mas as modificações, que deseja
implementar, igualmente não constituem progresso, segundo o mais velho. Tanto o eterno
retorno, quanto estas proposições se opõem ao progresso - uma típica idéia do século XIX,
segundo Borges
166
.
45
Finalmente, estamos diante de um jogo do tempo com o “eu”. Por um lado,
os protagonistas parecem ser muito diferentes. O velho chega a lamentar que assim seja,
“éramos demasiado distintos”. Contudo, desde o início sabemos que se trata de um único
homem. O Borges narrador reconhece essa unidade ao sentenciar que o “inevitable destino”
do jovem era ser ele mesmo. A projeção de duas configurações temporais acentua o problema.
Tendo em conta o rio de Heráclito, fica a idéia de uma espécie de identidade cambiante.
Entretanto, se levamos em consideração a idéia de arquétipo, associada ao retorno, surgiria o
efeito de um caráter mais ou menos fixo, que abarcaria a ambos, apesar das diferenças. Assim,
o texto problematiza a questão da identidade.
Eu, o outro - O velho diz, “usted se llama Jorge Luis Borges. Yo también soy Jorge Luis
Borges”. Ao que o jovem contesta, No, me respondió con mi propia voz [...]”. Essa é a base
do conflito sob o diálogo. Os protagonistas tentam uma identificação, que só se produz
fracionadamente, com a nacionalidade, o nome, a profissão, os livros de Borges, com o verso
de Hugo. Contudo, nenhum dos tópicos fornece prova suficiente, a qualquer dos dois da posse
exclusiva da identidade, ou da igualdade entre eles. Toda essa primeira gama de informações
não escapa ao argumento do jovem, de que um sonhador tem acesso aos pensamentos de suas
projeções oníricas. Mas em cada uma de suas falas, a narrativa nos mostra quem são. Trata-se
de dois escritores, que divergem em vários aspectos sobre o “como” fazer literatura, mas, para
os quais, o literário nunca se perde de vista. Com isso, mostrar quem eles são é dizer como
seria a escritura de cada um deles. São como escrevem, e escrevem como são. Mas se, como
disse o jovem, o ‘encontro’ é um sonho, e as partes do sonho conhecem os pensamentos de
seu sonhador, este sonho tem algo a dizer. Ele revela que “não há” um único Borges. Neste
‘sonho’ dois homens, para mostrar que não se trata de um escritor sem nuances, seja do
escritor que foi outrora, seja do que à primeira vista poderia parecer oposto à sua própria obra.
Vários Borges - Em “El Otro”, contar e mostrar estão em equilíbrio. A presença do estilo
direto é marcante; e no entanto, as reflexões do narrador lhe oferecem um exato contrapeso.
Mas sob essa articulação, o texto problematiza a estrutura dual do diálogo, ao organizar uma
tripartição dos personagens. O jovem ganha um contorno preciso, uma vez que é a ele a quem
“vemos”. No entanto, ele não é para nós, leitores, o que de fato foi o jovem Borges. Talvez na
memória, ou na loucura, ele é o ‘quadro’ que dele nos apresenta o mais velho. Desdobrando a
metáfora, é a visão que o velho tem de si no passado. Mas se o “eu” de 69 e o “eu” de 72 (o
narrador) se reconhecem como um em dois tempos, o ponto de vista pertencente ao velho
.
46
Assim, é ele quem guia a conversa, a estória traz a sua versão dos fatos narrados. Uma vez
que ele pode avaliar as discrepâncias e transmitir seus julgamentos sobre o jovem, ele se
mostra e ao mesmo tempo, o jovem nos comunica suas impressões a seu respeito (do velho).
Contudo, a existência do narrador em 1972, concede uma espécie de ponto de fuga à
narrativa, fazendo com que o velho seja, tanto quanto o jovem, apenas mais um “eu” passado
do narrador. Portanto, ele é somente uma imagem mais atual. o Borges-narrador, em
1972, está em condições de reconstruir suas memórias de juventude, mas pode ainda anexar
às suas vivências de 1969 as reflexões que lhe ocorreram, passados três anos de sua suposta
aventura. Ele nos diz que, “al recordarse, no hay persona que no se encuentre consigo
misma”. Portanto, ele é um narrador, aquele que conta sua experiência, à cata de um
significado. É o homem, que revisa os acontecimentos em busca de si. Ele olha para trás
tentando se achar em meio às mudanças.
Embora intelectualmente o leitor saiba que todos são um Borges-
ficcional, esse é o arranjo geral: três homens em um. Assim, o texto parece apontar para uma
descontinuidade na sucessão de muitas representações do mesmo Borges. Ainda lança mão de
várias lembranças dispersas, que longe de produzir um “eu” total, são a soma dos muitos
“eus” passados do narrador. Contribui para essa fragmentação, a descontinuidade das falas,
que vão passando de um tema a outro. Desse modo, o conto suscita a quebra de uma figura
total, em favor de um conjunto de momentos parciais. Outrossim, com esta estruturação, a
narrativa sinaliza que o tempo pode ser o responsável por tantas mudanças. Pode-se lembrar
que, ao ouvir o discurso social do jovem, o velho não consegue apoiar tais convicções
artísticas, acusando o tempo: “El hombre de ayer no es el hombre de hoy”. Neste caso, o
jovem vive o seu momento, como o velho vive o seu. São gerações diferentes. Portanto, se o
encontro acontece por um insólito cruzamento temporal, diferenças entre eles, porque
um antes e um depois, no percurso dessa vida, embora ainda haja outra forma de entender o
encontro.
O jovem, o velho
167
- Sabemos que o jovem surge tão logo ‘Borges’ pensa no tempo e nas
transformações que ele causa. De entrada, o mais novo está especialmente ligado ao tempo, ao
seu tempo. Ele é caracterizado como um jovem, que aparece assoviando e além disso presta
muita atenção às condições físicas do velho. No parágrafo de sua aparição, o repetido lo
que”, “lo que”, somado ao uso do imperfeito, leva à impressão de camadas superpostas de
temporalidade, como se o narrador retomasse a memória e se corrigisse, indo mais fundo
dentro dela. O outro surge como de um túnel temporal. Não se pode dizer que o jovem possui
47
um outro modo de ser, pois ainda é o mesmo homem; mas na verdade, ele traz consigo as
marcas de outro tempo. O jovem é o próprio passado que volta surja ele no sonho ou na
realidade.
O jovem surge cercado de referências ao criollismo literário. Ele é
apresentado como um expoente da literatura nacionalista; o que remete ao começo do século
XX, argentino. Contudo, o tempo dele fica ainda mais preciso, que o velho traços do
Simbolismo e do Modernismo no primeiro trabalho do iniciante. O velho também informa
que o jovem prefere as metáforas novas de seu tempo. Ou seja, ele prefere uma forma nova,
um tipo de metáforas que foi novidade na Espanha do século XX, constituindo um dos
movimentos vanguardistas. Mas se o jovem do conto está ligado ao movimento ultraísta, ele
ainda ganha maior exatidão no período temporal, pois todas estas correntes estão presentes na
Argentina dos anos vinte. Aqui estaríamos muito perto do Borges biográfico, embora haja
uma forte ficcionalização do personagem jovem (que o afasta do Borges verdadeiro),
especialmente, através de seu engajamento rasgado e de seu discurso humanitário, do qual o
narrador dá notícias: “me aclaró que su libro cantaría la fraternidad de todos los hombres. El
poeta de nuestro tiempo no puede dar la espalda a su época”. Seu discurso parece parafrasear
o que Dostoiévski declarara em uma de suas Cartas: “El hombre en la superficie de la tierra
no tiene derecho a dar la espalda y a ignorar lo que sucede en el mundo [...]”
168
. A frase evoca
o ideário da literatura humanitária ou politicamente engajada (até porque seus poemas falam
da Revolução Russa). O narrador faz questão do clichê. Ao não utilizar as próprias palavras
do jovem, sugere que este meramente assumiu uma ideologia, como se a frase fosse um
resumo das idéias às quais o outro se liga, mas que igualmente definem seu perfil artístico.
Ele é um “poeta de nuestro tiempo”, um escritor da Argentina dos anos vinte.
Ser um escritor de seu tempo, em seu caso, é mais do que estar vinculado a
um período; é estar vinculado às correntes desse período. O jovem segue aqueles que escolhe
como seus mestres da literatura (“el maestro ruso”; Darío”; “Verlaine”), segue a “moda”
literária (Modernismo, Simbolismo, criollismo) e segue o compromisso em voga em sua
época. Assim, seu pequeno trabalho não pode ser uma obra feita de escolhas pessoais. Tem
Dostoievski na conta de um “mestre”. Encarece o fato de que o velho se haja esquecido do
tema de um livro deste escritor; e acredita que ele comete uma “blasfemia” ao fazê-lo. Seu
livro de poemas elogia a Revolução Russa, de modo que ele está muito perto das concepções
ideológicas de seu tempo. Em certo ponto, simbolicamente “rompe” com a tradição ao
afirmar que não seguirá lendo Dostoievski. Portanto, entende-se que ele deseja ser original.
No entanto, de acordo com o velho, as influências são evidentes em sua escritura. Este
48
significado é reforçado, quando o jovem afirma que o russo “penetró como nadie los
laberintos del alma eslava”. Hoje, sua frase seria um chavão de manuais literários, uma
espécie de ‘comentário oficial’ sobre o escritor. Em 1918, com a publicação das primeiras
obras de psicologia no início do século XX, talvez fosse um comentário atual, de acordo com
a contemporaneidade do psicologismo nos estudos literários, mas o velho diz que essa frase
do jovem é uma “tentativa retórica” que acalma o novato. Com isso, vê-se que, desde sua
aparição, ele prima por sua identidade, impondo-se ao velho como o único Jorge Luis Borges.
Pretende ser diferente; no entanto, a identidade que deseja afirmar (a de um escritor atado aos
modismos) o levaria ao esvaziamento do próprio em favor do alheio, dos grupos e modas
literárias. De modo que, sob as lentes do velho, nos temas, o jovem abona o julgamento
comum, adotando as idéias correntes; no tocante à forma, ainda não tem uma estética própria,
e está muito influenciado pelas correntes literárias em vigor. Portanto, ele tenta ser original,
mas se parece a todos os escritores do período.
Simbolicamente, o perfil do jovem está ligado ao realismo. Em seu momento
de maior insegurança, ele traz um livro ao qual se apega. O jovem o aperta ansioso entre as
mãos, de tal forma que o velho percebe seu gesto. Perguntado sobre o conteúdo dele, o jovem
expõe sua admiração por Dostoievski, mas a narrativa especifica um dos sentidos em que o
escritor russo é idolatrado. É o mestre do desvendar da alma eslava”. Ou seja, Dostoievski
enquanto representante do realismo subjetivo. Outra passagem, mostra que, para ele, o
encontro é apenas um sonho, que deriva da realidade, onde verdadeiramente ele estaria.
Assim, o mais novo coloca o “encontro” em relação direta com a vida. Busca causas naturais
para explicar o que ocorre. Portanto, mesmo atirado ao insólito, nosso jovem escritor não
consegue pensar em outras causas que não as lógicas, em outro plano que não o real. De modo
semelhante, ele coloca a poesia em relação com o biográfico. Acredita que Whitman é
‘sincero’ e que suas experiências pessoais dão base a seus poemas. E porque ele leva em conta
a realidade; e porque quer ser diferente do velho; seu perfil combina com as conotações do
tempo objetivo (o tempo cronológico e sucessivo da realidade). A julgar de seu
comportamento, durante a narrativa, em um sentido mais amplo, este seria um escritor
realista. Afinal, como explica Arrigucci Jr.:
“A mudança é um dos fatos capitais [para o realismo], já que a mudança do
detalhe introduz o tempo [...]. É por isso que a verossimilhança não é uma
mera coerência da forma, o é uma mera coerência dos elementos trazidos
para a organização do discurso literário, ela envolve o senso da história,
porque os detalhes mudam: as coisas, os seres, as relações existem na
medida em que duram. [...] as coisas mudam, os personagens mudam, as
pessoas mudam. Esta idéia é a idéia do realismo, ou seja, o realismo literário
49
é um modo como o narrador capta a história através da mudança do detalhe,
o realismo está no tratamento do detalhe”
169
.
Em um de seus textos mais famosos, Borges dizia que “el tiempo es la
sustancia de que estoy hecho”
170
. Assim, se compreende, porque em nossos eixos de análise, o
jovem está associado ao criollismo, à realidade, mas também ao tempo objetivo, e aos
detalhes precisos. O realismo, segundo o mencionado crítico, é uma estética que se volta para
a contemplação da mudança no tempo, expressa através dos pormenores circunstanciais.
Então podemos retomar nossa fundamentação. O jovem está em 1918, quando na Argentina,
na poesia vigorava o Modernismo, influenciado pelo Simbolismo; e na prosa, o Realismo era
a estética em vigor, ao lado da valorização da cor local. Sabemos que, com o próprio Borges,
tem início na década de vinte o ultraísmo argentino. Portanto, de modo particular, todas esses
significados e movimentos artísticos, resgatam o panorama literário argentino dos anos 20. É
o período decisivo para a formação da Literatura Argentina moderna
171
. É ainda a geração de
escritores argentinos dos anos 20, na qual o mesmo Borges tem uma participação
significativa. Dessa forma, o jovem pode representar, simbolicamente, um olhar do narrador,
para com seu trabalho de juventude, e para com os trabalhos de sua mesma geração
172
.
O velho Borges é descrito como un señor de edad”, com os sinais da
passagem do tempo, com la cabeza gris”, com a memória falha (não sabe mais o nome da
praça ginebrina); e não anda sozinho, porque está cego. Ademais, está continuamente se
repetindo. Essa senilidade, se reflete no que ele acha que o jovem pensa de si: “un hombre de
más de setenta era casi un muerto”. Por esse motivo fazem pleno sentido suas afirmações ao
começo da narrativa, para garantir sua lucidez apesar da velhice. Em contrapartida, é o
professor e o contista, não o poeta do início de carreira. Ele é o apogeu, quando o que se
segue é o declínio.
De entrada, o velho é caracterizado por suas idéias filosóficas. Ele não
apenas está vivendo sua aventura, mas desde o início está fazendo reflexões. Primeiro, sobre a
passagem do tempo e as transformações que ela acarretaria à vida humana: “el río hizo que yo
pensara en el tiempo”. Depois, de um modo metafórico, na forma em que se refere ao
encontro (“si esta mañana y este encuentro son sueños [...]”), ele lança uma série de
proposições sobre a vida. Se ela seria sonho ou realidade. Se existiria um único sonhador, ou
se o real dependeria de uma percepção simultânea da humanidade. Se a morte seria o fim da
existência física, ou um despertar para novos sonhos. Se haveria um destino pesando sobre as
50
vidas humanas, ou se existiria livre-arbítrio. Ainda recusa a existência enquanto um mero
pressuposto, aceito sem questionamentos, mas sugerindo o caráter inteligente e harmônico das
funções vitais, leva o jovem a pensar, se este seria um fenômeno espontâneo e gratuito, ou se
atenderia um significado especial.
Além disso, o velho mostra preferência pelos temas metafísicos, tão
freqüentados pela obra borgeana. Pensar sobre Heráclito, diante das águas que correm, reitera
sua aproximação a esta classe de temas. Pela maneira em que comenta a história (o eterno
retorno) e a vida familiar (dentro do ciclo), ele parece voluntariamente buscar um olhar mais
intemporal sobre as situações. Mas a própria apresentação de um tópico filosófico sugere a
forma em que ele tomaria estes temas. Primeiro afirma “Solo los indivíduos existen”. Depois
duvida, “si es que alguien existe”. Ele não possui, como no caso do jovem, uma ideologia a
defender. Ao contrário, ele se opõe ao outro em vários assuntos. Na verdade, uma marca deste
personagem no conto parece ser a apresentação e a discussão das idéias, através da oposição
entre pontos de vista distintos. Mas o rasgo definitivo, surge a partir deste núcleo. Em sua
especulação, pode ser que a realidade não seja real. Pode ser que ninguém exista, quando ele e
o jovem existem, para nós. El hombre de ayer no es el hombre de hoy”, mas “al recordarse
no hay persona que no se encuentre consigo misma”. Na verdade, não são proposições
contraditórias, mas elas dependem de toda uma série de raciocínios, que desafiam o pré-
estabelecido. Assim, é uma marcante oposição ao pensamento comum, o que torna seu
pensamento paradoxal.
E se na linha do tempo, o velho está mais adiantado que o jovem; o mais
novo deveria ser o responsável por tudo o que é antigo em termos artísticos; enquanto, o velho
deveria ser o divulgador das novidades. Esta poderia ser a grande diferença entre os dois. No
entanto, em paralelo com a verdadeira obra borgeana, o velho Borges do conto não cultua “o
novo”. Seu diferencial é justamente dar continuidade à literatura anterior. Ele não oculta sua
preferência pelas metáforas tradicionais. Sua lembrança de El Doble, faz supor que nosso
narrador pode ter inspirado em Dostoivski, ao relatar sua aventura ‘pessoal’. Além disso,
vemos que ele recorre à memória feita de esquecimento. O recurso do qual ele se vale diante
do mais novo é recordar” um artifício de Coleridge. Vai copiar, mas também modificar o
recurso, utilizando algo comparável ao original. Mostra que a memória é criativa, que o
mesmo artifício torna-se ‘outro’ artifício, com as alterações. Ele se apropria da tradição ao
converter o alheio no próprio.
Em “A imortalidade”, Borges assevera que a própria memória, que lembra e
esquece, também é um recurso literário
173
. Ele aparece, por exemplo, em Historia Universal
51
de la Infamia, quando o escritor, recordando as vilezas, mas esquecendo as circunstâncias
biográficas, retoma as figuras de Billy de Kid e John Murrel, para recriá-las em sua
imaginação
174
; mas ainda admite no prólogo, que faz versões de estórias de Stevenson e
Chesterton
175
. Este tipo de retomada clássica, é uma idéia central para o panteísmo literário
borgeano, segundo Jaime Alazraki
176
. Isto é, o esquecimento (tanto quanto a lembrança),
como uma ponte pela qual a tradição se transforma em renovação, de modo que todos os
autores, revivendo nas obras uns dos outros, são convertidos em uma manifestação da própria
Literatura. Deste modo, a estética do mais velho, deduzida de seu caráter no conto, é a
reedição criativa da tradição.
Portanto, velho e jovem, ambos ‘copiam’. Entretanto, o jovem consagra os
grandes autores, mas ainda não consegue ser como um deles. Adere aos movimentos literários
de seu tempo. Quer a originalidade, imitando o que está em voga. Já o velho, “blasfema”. Tira
o pedestal dos grandes autores. Apresenta o modelo sem cerimônia e copia, mas reelabora.
Por isso, ele lança um comentário burlesco sobre o livro do jovem. Podés
alegar buenos antecedentes. El verso azul de Rubén Darío y la canción gris de Verlaine”. Ele
põe a desnudo as pedras fundamentais do trabalho do outro, fazendo trocadilho com nomes de
cores, “vermelho”, azul”, “cinza”. Além disso, chama o trabalho de Darío “verso azul”.
Poderia haver um sentido positivo, mas o arranjo faz pender para as negativas. É como se
todos os versos desse poeta tivessem tal característica. A ironia irrompe quando o título do
livro é reduzido a um mero adjetivo generalizador do trabalho do outro. Funciona como uma
espécie de “metonímia negativa” em que a parte poderia indicar o todo, mas no meio do
sarcasmo, fica sugerido que a parte - o adjetivo azul - é o todo; isto é, como se toda a obra de
Darío fosse uma reedição do que já estava em Azul. O mesmo se aplica à menção de Verlaine.
O narrador não assinala o título do poema aludido, “Canção de Outono”, com itálico ou aspas,
deixando tudo em minúsculas. À diferença do caso anterior, em que dizia “versos” para o
trabalho de Darío, aqui vai dizer “canção”. Sabe-se que a musicalidade foi uma característica
distintiva do Simbolismo. Portanto, nova redução transforma a obra simbolista em mera
ênfase na sonoridade. Neste caso, a leitura conotativa de “canção cinza”, seria a de música
triste, insípida ou antiga. O velho exerce uma crítica impiedosa destas estéticas, com sua arte
de injuriar
177
.
A ironia final é a do vocabulário buenos antecedentes” e “alegar”. O velho
quer delatar as fontes que ajudaram o iniciante. Sabe que o outro deseja escrever seu primeiro
livro, mas também sabe que tipo de idéias ele tem para levar a cabo seu projeto,
características do Modernismo e do Simbolismo. Contudo, utilizar vocabulário policial para
52
falar de poesia quando poderia ter dito ‘precursores’, é como sugerir roubo ou plágio das
obras anteriores. É sugerir que se trata de uma cópia, em que falta elaboração. A ironia é
recorrente em vários momentos ao longo do conto, sempre ao lado do velho. Aparece quando
pergunta ao jovem engajado se ele se sentia verdadeiramente irmão de todos os
mergulhadores e de todos os homens que vivem no lado par de cada rua. Está ainda quando
fala de seu país, e comenta que em tais circunstâncias, só faltaria trocar o ensino de latim pelo
ensino de guarani. Essa preocupação com a cultura argentina pode ser legítima, mas a forma
como o expressa é jocosa. A ironia é latente em suas observações. É com ela que o velho
dessacraliza os modelos do jovem.
Curiosamente, essa crítica ao trabalho do mais novo é o mesmo tipo de
crítica, que Borges exibia contra o Modernismo em seus ensaios juvenis. Ele costumava
atacar os modernistas argentinos, com o argumento de que copiavam tanto o fundador – Darío
- que em quase todos os seus versos, seria possível encontrar a palavra azul: “El rubenianismo
se ha estancado en una especie de juego de palabras que baraja las sempiternas naderías
ornamentales del cisne, las frondas, la lira [...] sin olvidarse por eso de los siete pecados
capitales y del socorridísimo adjetivo ‘azul’”
178
. Na maturidade, Borges reavalia e mostra
consideração ao trabalho de Darío e Verlaine. Ou seja, no conto, o velho está repetindo, para
o jovem, críticas que em sua juventude (real), ele endereçara ao Modernismo. É como se o
jovem tivesse de passar por isso, e construir estes afastamentos. Com isso, a narrativa sugere
que a crítica, a ironia e o humor, talvez tenham sido atitudes fundamentais para que Borges se
afastasse dos grupos literários de seu tempo de juventude. Ao criticar toda proposta em seu
entorno
179
, só restaria encontrar um caminho próprio.
Assim, enquanto o jovem detém seus raciocínios no real, o velho força a
realidade para além de seus limites. Enquanto o jovem pensa nas questões de sua época, o
velho se volta para os intemporais temas metafísicos. Enquanto o jovem acata as ideologias, o
velho tece questionamentos, chegando às raias do paradoxo. O jovem gosta de fórmulas, o
velho, de idéias. Enquanto o jovem cultua os autores consagrados, o velho mostra sua ironia.
Enquanto o outro faz questão de afirmar sua personalidade (quer ser o único Borges), o velho
assume desde o começo que o outro também possa ser ele. Igualmente, não se importa ainda
que seus recursos ou argumentos se pareçam aos que foram gerados anteriormente por outros
escritores. E se o jovem está ligado às escolas literárias de um determinado momento, o velho
Borges não aparece filiado a nenhuma estética
180
. Ele procura o acervo da tradição, com o
qual elabora versões, deturpa, altera, e faz sua peculiar utilização da memória. Ele se refere a
livros e autores de todos os tempos, mas a nenhuma escola. Como ele se burla de que o outro
53
tenha um “mestre”, deduz-se que ele possui um estilo próprio e portanto não precisa se filiar a
nenhuma corrente para produzir sua obra. Ele recusa a denúncia social e não se prende à
expressão dos sentimentos na poesia. É um contista, no modo da “mentira”, e das referências
aos livros. Todas estas características são relacionáveis tanto à obra borgeana, quanto ao
próprio Borges autor-personagem, ao qual aludem.
O uno coletivo – De um lado, o conto investia em um efeito de fragmentação, o qual
reforçava as diferenças entre os personagens, possibilitando sua associação a entidades muito
particulares e distintas entre si, como a geração literária argentina dos anos vinte e a obra
borgeana. Contudo, também existe no conto uma série de investimentos em um efeito de
unidade. Como se verá adiante, eles ajudam a construir a possibilidade de generalização
dessas associações primárias.
Em primeiro lugar, a unidade se configura a partir dos próprios recursos que
assinalam a união entre os personagens. Assim, o narrador é como uma espécie de Borges
arquetípico. O original do qual surgem outros de si. Já o velho se identifica com o narrador, e
além disso, afirma sua unidade com o jovem. Ademais, durante todo o diálogo, o velho tenta
provar ao desconfiado jovem que ambos são um. Ao longo da narrativa, o leitor se depara
com vários índices do mesmo efeito. Afinal, o jovem que responde ‘que não é Borges’, ainda
o faz com sua própria voz. Como em um pesadelo, o moço não assovia bem, porque o velho é
desentoado; e quando lhe pergunta Y usted?”, indagando da situação do velho no futuro, o
interlocutor não diz “yo”. Em sua resposta, o velho utiliza a segunda pessoa, (tú) “escribirás”.
Apesar das diferenças, o narrador sentencia que, “Su inevitable destino era ser el que soy”.
Contudo, nada é mais representativo desta unidade na desunião do que chamar o jovem “mi
alter ego”. O outro é um “outro eu”. Mas se nas narrativas, o alter ego é a personagem, cujos
pensamentos se parecem aos do autor, as declarações do mais jovem são surpreendentes. Não
lembram a madura estética borgeana, mas novamente sugerem que nela haveria algo deste
outro.
O velho profetiza o futuro do jovem: “Darás clases como tu padre y como
tantos otros de nuestra sangre”. Ele poderia ter apresentado seu ofício como um processo
evolutivo, em que cada novo membro tivesse uma posição superior no campo profissional à
dos seus ascendentes. Contudo, o trecho vem somar à idéia do retorno, do ciclo vital, e ao
tempo circular, na medida em que a ênfase não vai para a diferença em relação aos parentes,
mas para a igualdade. Seu raciocínio, é o de que o jovem fará o mesmo que o pai, e muitos
dos antepassados fizeram. Lembra que o outro é um Borges, como o velho e seus
54
antepassados o foram. Mas se um homem é dois, e ainda um representante de seu passado
familiar, fica sugerida a idéia de uma essência mais geral. Ainda é o tema borgeano de que um
homem é igual a todos os homens
181
.
Essa proposta aparece desde o início do conto. El água gris acarreaba
largos trozos de hielo”. Os pedaços de gelo metaforicamente reafirmam os efeitos do foco, já
que a fragmentação não quer dizer separação, mas apenas individualização dentro do ‘caudal’
ao qual se pertence. Toda a água é parte do rio, embora em muitos pontos ela esteja
solidificada e pareça separada do resto. Essas partes cambiantes e permanentes conformam
uma totalidade. Na lógica da narrativa, como o gelo, que é gelo e é rio; também o homem, é
uno (a parte), e é todos os homens (o todo). Sendo os protagonistas dois escritores, que
privilegiam, cada um, a realidade ou a imaginação, o conto assinala que eles são duas partes
de um todo maior, a própria Literatura.
Borges entre a biografia e a ficção - Desde a chegada do outro, começa a se avolumar um
grande número de dados autobiográficos, muitos para um conto tão curto
182
. Se
considerarmos que no Epílogo, o autor sugere ter escrito sua estória às margens do rio
Charles, na Nova Inglaterra, parece não restar dúvidas de que, a despeito de toda a intrincada
rede interna dos elementos composicionais, a narrativa joga com a realidade. No entanto, os
dados se ajustam ao movimento dos demais núcleos significativos. O texto foge ao biográfico
por meio de pequenas adulterações e inexatitudes
183
, mas sobretudo pela série de recursos,
com os quais se obtém o efeito textual de “Éramos demasiado distintos y demasiado
parecidos”; paralelo, ao efeito de ‘um homem que é igual a todos os homens’. Um autor
realista poderia ter tentado um retrato daquele que fora. Um autor clássico poderia ter
utilizado, apenas seu nome e ter construído uma figura completamente ficcional. No entanto,
o conto opta por uma terceira possibilidade, a ficcionalização de si mesmo. Em meio a tantos
dados comprováveis, o leitor não pode afirmar, sem o socorro das biografias, se ele inventa
ou relata as circunstâncias da morte da avó, se as mencionadas declarações do pai procedem
ou são forjadas. Seja como for, verifica-se que existiu um especial cuidado de seleção e
preenchimento das personagens emprestadas ao mundo real, valorizando a compreensão da
literatura, enquanto mediação.
De certa forma, este conto põe em relevo a conversão da pessoa, na
personagem. Mas o elemento da organização textual que mais fere a realidade, ainda vem dela
mesma; ou melhor, do recorte que Borges procura fazer da realidade biográfica. Ele busca a si
mesmo em dois momentos muito distintos de sua vida, provocando questionamentos. Ainda
55
que fosse possível capturar fotograficamente um indivíduo na literatura, qual seria o
verdadeiro, o homem de ontem ou o homem de hoje? Um romance que procurasse seguir
fielmente a multiplicidade de idéias, atitudes, indecisões, e papéis assumidos ao longo de uma
vida, em suas diferentes fases, não se tornaria desconexo? Outros momentos de uma mesma
vida não seriam capazes de falsear e invalidar esse retrato pela incoerência?
Como outros assuntos do conto, a questão biográfica também é um tópico
que remete à obra borgeana. Contudo, Edna Aizenberg identifica uma “estética da
impessoalidade” na obra borgeana, ao entender que nela haveria uma eliminação do subjetivo,
enquanto fonte e conteúdo dos textos, nos quais a composição se sobreporia a “desplegar su
personalidad”. Ela observa um apagamento das tendências individuais, pelo qual, la nadería
de la personalidad se convierte en un hecho tanto de lo escrito como del escritor”
184
. Essa
impessoalidade, associada a um ‘classicismo’ borgeano, tem sido bastante difundida pela
crítica. De fato, é uma característica detectável em vários de seus textos
185
. Por outro lado, a
idéia parece incompleta, pelo intenso trabalho com o qual Borges promove a figura de si
mesmo.
O uso da biografia é recorrente em sua obra, embora atenda a variados
efeitos. Poemas com fundo biográfico estão presentes, desde Fervor de Buenos Aires.
Entretanto, em Ficções, Borges começa um arrojado projeto de ficcionalização do real, e
especialmente de sua realidade isto é, do mesmo Borges. A septicemia que o faz sofrer no
final da década de trinta é atribuída, junto a vários dados pessoais, ao personagem Juan
Dahlmann, de “El Sur”. Em “Tlon, Uqbar, Orbis Tertius”, o episódio arranca depois de uma
conversa entre ‘Borges’ e seu amigo ‘Bioy’. Em “El Aleph”, o escritor apaixonado pela
perdida Beatriz, dizia “soy yo, Borges”. É um de seus jogos favoritos o ‘fingir que tais e
quais coisas me aconteceram a mim, Borges’. No poema “El Ciego”, dos anos setenta,
enunciados como "Desde mi nacimiento que fue el noventa y nueve". Igualmente muitos de
seus poemas tratam da cegueira, existindo mesmo um ensaio integralmente dedicado a este
tema
186
. De modo que, sob um mesmo nome cabem vários Borges. A figura exata do autor
pouco a pouco vai se tornando imprecisa, embaralhada em meio a uma multiplicidade de
figuras imaginárias, mas que aproveitam seus dados pessoais.
Contudo, é depois dos anos sessenta, quando o uso do biográfico, adquire
especial destaque. Segundo James Woodal, com “Borges y yo”, o argentino chega a uma
espécie de fórmula de sucesso com a ficcionalização de sua persona de autor, pois “na
manobra mais inteligente [...] de sua carreira literária, Borges havia se tornado seu duplo. O
biógrafo alerta que a bela prosa poética, em primeira pessoa, comenta em tom autobiográfico,
56
interesses que supostamente pertenceriam ao escritor (ampulhetas, mapas), mas que
certamente são falsos
187
. Mariângela Paraízo faz uma incursão diferente, mostrando como
na vida real, Borges efetuou manobras que o tornaram um personagem de si mesmo
188
. Além
disso, com sua Autobiografia e as declarações nas entrevistas, vê-se que ele elabora passagens
e temas de sua vida de um modo literário. Também Arrigucci Jr. percebe que deliberadamente
Borges construiu ao redor de si o mito do grande escritor cego
189
. O resultado é que ele
inverte um dos caminhos mais tradicionais da literatura. Não a realidade entra para a
ficção, mas a ficção avança sobre a realidade.
O Outro e Borges Um dos personagens mais famosos de Borges, Funes é o possuidor de
uma memória exata, acumulativa, disposta a abarcar o sucessivo e a multiciplicidade do
universo, de modo que “En el abarrotado mundo de Funes no había sino detalles, casi
inmediatos”; em contrapartida, o narrador assinala que ele “era casi incapaz de ideas
generales, platónicas”
190
. De modo comparável, vemos que no conto é gerada uma tensão
entre o mundo das arquetípicas estruturas da obra borgeana e o mundo das precisões, ligado à
geração de vinte; entre o clássico de uma e o realismo de outra. Em certos momentos estas
tensões eclodem em nossa narrativa.
Ao redor dos personagens gera-se um sentido de individualidade e
coletividade. Em favor do último, o Borges protagonista é um homem igual a vários homens.
São vários Borges, o de 1918, o de 1969, o de 1973. Se um homem pode ser dois ou três
homens, fica sugerido que poderia ser todos os homens, como vimos. Com esta classe de
generalizações, o conto vai apagando os rasgos particulares de seu modelo humano. Por outro
lado, um movimento de individualização. Na divisão entre velho e jovem, a narrativa
procura lembrar o quanto alguém pode ser diferente de si mesmo, nos diversos momentos de
sua vida. Os dois protagonistas são bem contornados, e inclusive discutem seus pontos de
vista, como se fossem muito diferentes um do outro. Mas no Epílogo, o autor revela seus
propósitos ao expor que sua tarefa nesta narrativa foi “conseguir que los interlocutores fueran
lo bastante distintos para ser dos y bastante parecidos para ser uno”
191
. Esse registro destaca
quanto trabalho ele teve na especial elaboração destes personagens; quanto trabalho teve
Borges, para obter ‘estes Borges’ diferentes e iguais entre si. Em paralelo, torna a narrativa
repleta de dados autobiográficos. Desse modo, tais esforços do autor parecem assumir uma
clara direção. O que eles nos mostram é que uma narrativa pode estar abarrotada com
referências biográficas; ainda assim, nas relações dos mesmos com as estruturas textuais, e
através dos efeitos, desejados ou impensados, é possível que este personagem acabe
57
escapando ao modelo real. Portanto, além dos efeitos de individualidade e coletividade
mencionados, o epílogo deixa ver que foi empregado todo um arsenal de recursos, que
indicam o quanto a personagem pode ser diferente da pessoa. Através de todos estes recursos
e efeitos capazes de transfigurar mesmo uma grande quantidade de dados verificáveis, o conto
apresenta um primeiro argumento contra o realismo: não se pode apreender um ser humano
em sua totalidade, tal qual ele é, ou tal qual ele foi através da literatura.
Na categoria temporal, coexistem duas percepções: uma subjetiva; e uma
objetiva. Os protagonistas percebem a “duração do episódio. Quando o velho comenta a
situação familiar, ela está sob a concepção do ciclo vital. Quando comenta a história, ela é
pensada a partir do eterno retorno. Assim, observa-se uma construção do tempo, em que
ademais de subjetivo e fluido, ele parece ser durativo e circular. No entanto, uma segunda
estruturação temporal. Os personagens têm em conta o tempo cronológico; uma
temporalidade análoga ao fragmentado tempo heraclitiano. O velho descreve seu passado ao
jovem, apresentando-o, sob a perspectiva da sucessão. Configura-se assim um tempo exterior
e fragmentado, linear e sucessivo.
Quanto ao espaço, novamente há duas posições - sonho ou realidade. O
velho afirma que o encontro tem uma duração maior do que comportaria um sonho. Isto leva a
crer que estão na realidade. O narrador ainda declara que, “si lo escribo los otros lo leerán
como un cuento y, con los años, lo será talvez para mí”. Neste caso, novamente se percebe (a
provocação de) que, para o narrador o que ocorreu foi real. Inclusive se refere ao episódio,
como “el hecho”. Porém, índices de que o encontro seja um sonho, pois o velho se sente
cansado e tem uma sensação de retorno anterior à ocorrência. A percepção durativa do tempo
ainda ajuda a construir esta hipótese. No entanto, apenas uma leve atmosfera onírica na
narrativa. Borges poderia ter levado o diálogo ao “stream of consciousness”, ter insistido em
deturpações imagéticas, ou ter criado ilogicidade e caos evidentes. Contudo não o faz,
deixando a questão do sonho em aberto.
Portanto, o conto está cheio de efeitos duais. Seus investimentos parecem
desejar as sendas do ambíguo, e pretender sobretudo o impossível, já que a mesma pessoa não
pode existir em dois tempos; duas cidades não podem ocupar o mesmo espaço; a realidade
deve ter existência material por si mesma ou estará na dependência de seus sonhadores; o
tempo tem que ser fragmentado ou ideal. Por toda parte surge uma tensão derivada de
elementos que não podem coexistir. Desse modo, fica clara a aposta borgeana - a dúvida.
Duvidar das certezas sobre o ser humano, sobre o tempo, sobre o espaço. Ao investir em duas
possibilidades de entender e sentir as transformações, já não se sabe mais o que é o tempo – se
58
é um sentimento interior de que as coisas passam, ou se é apenas uma convenção externa; se
ele dura e flui, ou se ele junta os segundos que se sucedem um atrás do outro. Ao apresentar
dois espaços que insolitamente se reúnem em um, e questionar mesmo a existência deste
único plano, não se sabe onde de fato estão eles. Como na Invenção de Morel, não se sabe
se eles (como também os homens reais) existem ‘em sua ilha’ ou se são meros protagonistas
no filme de um criador. Portanto, entende-se que nesta narrativa, Borges rejeita a literatura
realista com o pressuposto que mais fortemente pode afetá-la: a incerteza acerca da natureza
da realidade. Isso ocorre, porque o ponto de partida destes escritores é a certeza de que o real
é somente o que está diante de seus olhos e de que é possível representá-lo. Assim, as
principais pilastras de sustentação da realidade são implodidas, para mostrar quanta incerteza
paira sobre aquilo que os realistas tem por certo em sua escritura.
O relato da história familiar perde sua exatidão sob o movimento da natureza
e o relato da história mundial se acha submetido a uma doutrina filosófica. Como se verá
adiante, a construção do panorama histórico dos séculos XIX e XX tenta aproximar
referências a certos fatos de um período e suas supostas “repetições” em outro tempo, através
do tema da tirania recorrente. Mas essa abordagem é uma escolha do narrador. Escolhe este,
como poderia ter optado por outro aspecto. Ademais, acreditar que os fatos de uma época se
parecem aos de outrora, é nitidamente uma visão subjetiva, pois as motivações de cada tempo
são outras, os rivais, as situações são distintas. Ele ainda comenta o panorama mundial
contemporâneo, e vê-se que somente a afinidade dita suas sentenças, quando “Ahora las
cosas andan mal. Rusia está apoderándose del planeta [...] América no se resuelve a ser un
imperio”. Ao falar do país, outro ponto de vista pessoal: “Cada día que pasa nuestro país es
más provinciano”. Salienta que só faltaria substituir o ensino de latim pelo guarani. Ou seja, a
base de sua afirmação é um ponto de vista particular, em que se julga a situação do país, por
um aspecto da vida cultural. Assim, a descrição da atualidade na cena global é francamente
partidária; e na cena local, a doxa é responsável por seus comentários. É lógico que o
personagem pode emitir suas opiniões e contar suas estórias de modo subjetivo, mas um
arranjo especial para isto na narrativa. O protagonista é um escritor, e neste trecho ele diz “En
lo que se refiere a la historia [...]”. Assim, ele avisa que vai narrar a história da família,
depois a do país e a do mundo, mas, ponto por ponto, a linha do tempo é atada aos nós da
subjetividade. Surge a terceira idéia contra o realismo: a ficção não acomoda relatos fiéis da
história, mas apenas visões subjetivas da mesma.
Como em sua lógica o encontro é ‘real’, o velho sugere estar despreparado e
não ter algo impressionante para dizer neste momento. Compartilha com o leitor sua
59
observação de que “salvo en las severas páginas de la Historia los hechos memorables
prescinden de frases memorables”. Entende-se que a história tem frases bonitas, mas a vida
não é tal qual as sonoras frases utilizadas para descrevê-la. O narrador quer corrigir esse
problema, mostrando que, na vida real, “Un hombre a punto de morir quiere acordarse de un
grabado entrevisto en la infancia; los soldados que están por entrar en la batalla hablan del
barro o del sargento”.Esse pensamento lembra que, ao debruçar-se sobre um fato, os
narradores realistas, como os historiadores, têm em mente idéias muito abrangentes, grupos,
abstrações, movimentos sociais. Entretanto, se os historiadores tendem a utilizar este tipo de
descrição, o conto proporciona uma visão diferente da forma em que os fatos alcançam as
pessoas. Faz pensar que a realidade chega, fora da literatura, através das vivências individuais,
no contato com pequenas coisas, com tarefas que devem ser executadas, em diálogos com
pessoas próximas, etc. Assim, ao modelo da historiografia tradicional, ele opõe sua própria
convicção do que seria a realidade. De acordo com ela, um relato seria mais realista, quanto
mais próximo estivesse da parcela do real, que chega ao indivíduo em sua vida quotidiana; e
quanto menos estivesse tentado a dar conta de fenômenos coletivos. Em seu Prólogo ao
Facundo, ele usa uma citação de Shopenhauer, na qual o filósofo assevera, que fazer história,
é como ver desenhos nas nuvens. Desse modo, no prólogo-ensaio, a historiografia tradicional
é impugnada, por sua tentativa de esconder a presença da subjetividade e o uso do ponto de
vista em seus relatos. De sua leitura do volume de Sarmiento, entende-se o que Borges detecta
nos relatos da historiografia. Ele intuición”, “adivinación genial”, “inventiva memória”,
influências da tradição literária, e tudo isso filtrado por ódios e afetos pessoais
192
. De maneira
que aparece uma quarta idéia contra o realismo: as pontes da ficção não comportam os
pesados relatos dos movimentos sociais.
Quando os impedimentos à representação fiel não vêm do objeto que se
deseja apreender, eles surgem como algo inerente ao discurso do escritor. O narrador tenta
resumir sua conversa com o jovem, mas teme “no haber dicho otras cosas que las que suelo
decir a los periodistas”. Entrevistas costumam girar ao redor de alguns temas e questões
pertinentes à vida e ao trabalho do entrevistado, mas são quase invariavelmente os mesmos
temas, afinal o entrevistado é o mesmo e somente alguns aspectos de sua vida são
interessantes para o público - não todos. Além disso, só conta de si o que deseja que o público
saiba. Ou seja, nosso personagem-escritor narra trechos de sua própria vida a (outro de) si
mesmo, e ainda suspeita haver repetido as mesmas idéias às quais está sempre voltando.
Não acredita que tenha sido sincero, nem pensa que tenha dito coisas novas ao outro.
Desprende-se desta fala, a visão de uma literatura repleta de exercícios da subjetividade que
60
com o tempo se cristalizam, de modo que os autores passariam a repetir sempre um mesmo
repertório de idéias ou argumentos. Portanto, questiona-se a expressão da realidade, quando
formas e idéias também se convertem em hábito.
Outro problema seria o esquecimento. Para questionar a idéia do velho, de
que o encontro é real, o jovem indaga, ¿Cómo explicar que [usted] haya olvidado su
encuentro con un señor de edad que en 1918 le dijo que él también era Borges?” Afinal, se
são o mesmo, o velho o velho deveria lembrar-se deste encontro. Borges foge com uma
desculpa, mas o jovem insiste no assunto. Então, a resposta poderia ser irônica, mas na
verdade é sugestiva. O velho assegura que sua memória se parece ao esquecimento. Portanto,
se o jovem deseja lembrar perfeitamente o passado, e quer o exato nome da praça em
Genebra, o velho não. Mostra que não importância ao que se passou exatamente. Mas,
que o narrador se identifica com o velho, a dúvida, que recaíra sobre a identidade, o tempo
e o espaço, passa, com isso, a incidir sobre o próprio relato ele é a narração exata do que
aconteceu, ou apenas o que narrador preferiu ou conseguiu se lembrar? Isto não deixa de
incidir sobre a identidade, a qual o narrador procura através do ocorrido, sugerindo que
mesmo a autobiografia mais “sincera”, talvez não consiga expor a verdade a respeito de uma
vida, produzindo apenas uma lembrança inexata daquele que se foi um dia. No início, o
narrador avisa estar escrevendo algo que lhe ocorreu três anos antes. Ademais, o relato
existe porque o jovem, que o velho fora algum dia, teria esquecido o que aconteceu. Se o
jovem se lembrasse até a maturidade do que ocorrera, não haveria espanto, logo não haveria
relato. Afinal, das angústias provocadas por um inesperado acontecimento, surge essa
narrativa. Assim, a julgar do comportamento deste personagem-escritor, a realidade passaria
pelo filtro da memória, em parte recuperando-a, em parte esquecendo. Através destes fatores
de interferência na escritura, configura-se outra idéia: talvez a ficção não possa alcançar um
registro fiel, já que a própria memória do escritor é capaz de alterar os fatos.
Se o escritor tem suas tendências, o conto lembra que o leitor também tem as
suas. A situação dos protagonistas parece insolúvel. As descrições da família e da história não
convencem o jovem. O velho apresenta falhas de memória e ademais não lembranças
comuns. O diálogo fica tenso em virtude das diferenças e o narrador confessa com certo
desapontamento a dificuldade de chegar a um acordo com o jovem: Medio siglo no pasa en
vano”. Se o encontro é um sonho, este é um conflito interno, sem resolução. Se é real, o
grande obstáculo para o entendimento é o fato de pertencerem a gerações diferentes. São
tempos diferentes que implicam experiências e visões de mundo diferentes. O velho pensa de
um jeito e o jovem possui outro entendimento das coisas. Para o jovem é impossível entender
61
do que o velho está falando quanto à ‘Rússia estar tomando conta do planeta’, que a guerra
fria é algo que ainda não existe em seu tempo. Além disso, para o jovem que escreve Los
Ritmos Rojos, o socialismo é uma esperança; não faz sentido que as coisas andem mal por
causa dos russos. Do mesmo modo, para o velho, é muito difícil entender e aceitar que o
jovem queira uma literatura engajada. Em sua concepção, a arte merece os temas imortais.
Seguindo essa lógica da narrativa, a distância temporal pode impedir que o leitor de uma obra
literária reconheça e compreenda um fato histórico com o significado planejado por seu autor.
Ou ainda, concepções diversas dos fatos, ou ideologias opostas, podem fazer com o que o
leitor não entenda ou se recuse a aceitar o entendimento de uma narrativa que obedeça a uma
visão oposta à sua. Este argumento está ainda no Prólogo ao Facundo: a recepção de uma
obra pode distorcer ou recusar ‘a realidade’ pretendida pelo autor.
Neste conto, até o sequenciamento das ações encontra o seu “duplo”.
Desde o início, o velho e o jovem têm suas hipóteses para a dificuldade em que se acham.
Como dito, o jovem quer encontrar uma explicação natural; assim, arrisca que está sonhando.
Enquanto tenta dar uma coerência para um encontro insólito, o velho aceita que até mesmo a
vida pode ser fantástica. Ou seja, o jovem se debate para encontrar as razões de um fato que é
impossível segundo as regras da realidade. Ele pensa em ação e reação lógicas. Contudo, o
ilógico é tentar explicar um acontecimento fantástico que não tem explicação. Por fim,
inspirando-se na flor de Coleridge, o velho consegue encontrar uma saída, mas ela não segue
as leis da realidade. Pede ao jovem suas moedas, e retira algumas cédulas do bolso, mas esta
solução não passa de um artifício, bem explicitado, pois o narrador avisa que as notas de dólar
não têm data. Sorrateiramente ainda anota que a cédula pertence ao ano seguinte (1973). No
entanto, é essa a prova que o jovem (e o leitor com ele) tem de aceitar para concluir que um
homem pôde falar consigo mesmo, no passado ou no futuro. Na verdade, esse coringa
narrativo é sobretudo, uma prova de displicência para com a reprodução, passo a passo, do
desdobramento das ações na vida real. Segue as leis da literatura, dentro da borgeana
causalidade mágica
193
. Como na magia, em que o boneco vale pelo homem, no conto, a
moeda é um signo do mundo material. É ela que comprova seu ponto de vista, por mais falsa
que seja. Assim, o conto revela a oposição de duas causalidades: a literária, de que o velho se
utiliza; e a (suposta) causalidade vital, de que o jovem se vale. Portanto, uma última idéia é a
de que não é preciso deixar-se arrastar unicamente pelo desencadeamento natural dos fatos, na
estrutura literária. A literatura tem a seu dispor uma necessidade própria que visa atender à
verossimilhança, e não à vida.
62
Emir Rodríguez Monegal, entende que no ensaio, La Flor de
Coleridge”, Borges está discorrendo sobre quatro artifícios que são capazes de destruir o
realismo em uma narrativa: a) a inclusão de uma obra de arte dentro de outra obra de arte; b) a
contaminação da realidade pelo sonho; c) a viagem através do tempo; d) o tema do duplo
194
.
Em “El Otro” temos a menção a El Doble. O velho não pode saber se o encontro foi um
sonho, ou se tudo ocorreu na realidade neste caso, teria havido uma viagem no tempo.
Ademais, encontra um duplo de si. Desse modo, observadas as relações entre conto e ensaio, a
partir de Monegal, toda a narrativa parece ter sido projetada para um duelo ficcional entre a
obra borgeana e, seu outro, o realismo.
O compromisso com o descompromisso – O narrador conta que o jovem "Sin hacerme caso,
me aclaró que su libro cantaría la fraternidad de todos los hombres. El poeta de nuestro
tiempo no puede dar la espalda a su época”. Desse modo, vemos que o jovem se pretende um
escritor comprometido. Desde o começo sabemos de que “igreja” ele está próximo, a russa.
Seu livro de poemas é vermelho”, sua ideologia é socialista, essa é sua fé. Los Demonios, o
romance que ele carrega, espelha seu conflito com o velho neste aspecto. Piotr Stiepánovitch
é um escritor que não escreve. Faz discursos eloqüentes e está às voltas com a política e a
causa dos oprimidos, mas não consegue dedicar-se ao seu ofício. O intertexto repete o dado
encontrado na referência à segunda geração do Romantismo uruguaio, a de Regules:
escritores voltados para a política, mas com uma pequena produção
195
. Para o jovem, as
preocupações com o social fazem parte de sua literatura. Desse modo se entende, porque no
conto, ele se lembra de que o pai teria dito de alguém que “era como los gauchos, que no
quieren comprometerse, y [...] por eso predicaba en parábolas”. Assim, se o jovem quer
engajar-se abertamente, a fala do pai parece aludir a outros escritores argentinos, que
desejando transformar as pessoas através de sua literatura, estariam buscando formas menos
explícitas de fazê-lo.
Este é um ponto importante para entender que o jovem do conto não é igual
ao jovem Borges da realidade. Vimos em nossos pressupostos teóricos, que ainda vivendo na
Europa, Borges criticava a presença da política dentro dos textos literários
196
. Por outro lado,
sabe-se que na geração argentina dos anos vinte, havia o grupo de escritores boedistas, entre
os quais vigorava a idéia de que a literatura deveria servir às causas sociais. Inclusive é
interessante notar que alguns dos textos dos boedistas assumem o mesmo rasgo que Borges
lhes confere no conto. No discurso destes escritores, o compromisso no exercício literário é
assumido como uma espécie de
197
. O Borges da etapa dos anos trinta, neste aspecto, é
63
semelhante ao jovem que vivera na Europa. Mesmo escrevendo sobre Evaristo Carriego, e
tendo nele um precursor em diversos aspectos, não aceita o compromisso. Segundo Olea
Franco, se a preocupação com as desigualdades sociais levaram Carriego “a una lacrimosa
estética socialista”, Borges recusa essa direção, pois “su escritura no apela nunca a los
sentimientos de conmiseración o de solidariedad de sus lectores mediante la relación de las
miserias humanas”
198
. Ainda em 1970, em um prólogo para o Informe de Brodie, o escritor se
expõe seu parecer de forma aberta:
“não sou, nem jamais fui, o que antes se chamava um fabulista ou um
pregador de parábolas e atualmente um escritor comprometido. Não aspiro a
ser Esopo. Meus contos, como os de As Mil e Uma Noites, pretendem distrair
e comover, não persuadir. Esse propósito não quer dizer que me encerre,
segundo a imagem salomônica, em uma torre de marfim
199
.
Assim, sabemos que Borges é um autor que preconiza o prazer da leitura.
Deseja a emoção do leitor, mas não a transformação da sociedade através da apresentação de
suas chagas sociais. Neste aspecto, o velho, personagem do conto, aproxima-se do escritor
real. Não está comprometido com nenhuma causa. Logo ao início, diz que apesar de ter
perdido muitas noites de sono em virtude do encontro, “Ello no significa que su relato pueda
conmover a um tercero”. Quando o jovem apresenta suas idéias engajadas, o velho é irônico:
“le pregunté si verdaderamente se sentía hermano de todos. Por ejemplo, de todos los
empresarios de pompas fúnebres, de todos los carteros [...]”. Através da enumeração caótica,
e pela inserção de elementos ridículos, gera-se uma redução ao absurdo. Com a figura
retórica, o velho combate a ideologia do jovem, ridicularizando-a
200
. Quer mostrar que os
mencionados oprimidos são as pecinhas no jogo de escritor comprometido do outro. Como ele
não os conhece, não valem por si mesmos, mas tão somente por sua função: é a massa de
“parias e oprimidos” (os peões) que ele, o poeta, deseja representar. Quando o jovem vem
com este discurso, o velho responde que Sólo los individuos existen, si es que existe
alguien”. De modo que aparece seu primeiro argumento contra o compromisso. Sob este
ponto de vista, os escritores que se pretendem engajados não possuem uma preocupação
autêntica pelo que seriam apenas entidades abstratas a Massa, a Humanidade, o Povo, etc.
poderia haver um interesse genuíno dos escritores, em se tratando de indivíduos, aos quais
o poeta conhece, e aos quais, portanto, poderia verdadeiramente estimar.
Ao mesmo tempo, essa sentença do velho sobre os indivíduos também
suscita os problemas ontológicos e os temas metafísicos, tão caros para Borges. Sua resposta
parece sugerir novo problema no tocante ao engajamento, o de ligar a literatura a temas
64
contingentes. Uma vez mais, enquanto o jovem está voltado para um tempo determinado; o
velho está ligado a questões perenes. Na passagem da biblioteca, o velho faz com que o jovem
se lembre da literatura universal; na passagem sobre o compromisso, vai chamá-lo a temas
duradouros; como nos dois últimos parágrafos, ao narrar a biografia e a história, mostra como
ele deveria tratar esses temas; colocando-os em uma perspectiva mais ampla, e mais perene.
Ele trata da família pelo ciclo vital e aborda a história à luz dos seus retornos, isto é, trata do
particular pelo geral, e trata de fatos históricos, atando-os a outros fatos históricos, de modo a
produzir questões eternas e universais; até porque, elas poderiam igualmente recobrir os
problemas locais.
Dissemos que, em seu momento de maior nervosismo, o jovem aperta um
livro entre as mãos. Como ele, o personagem deste romance é um socialista. Em uma das
passagens deste livro, o escritor Piotr faz um acalorado discurso em favor da revolução,
mostrando-se comprometido. Quando termina, seu amigo Chatov faz duras críticas aos
revolucionários e a ele, indiretamente: “Nunca esses homens que o senhor alude amaram o
povo, nunca sofreram por ele, nunca lhe sacrificaram nada; compraziam-se simplesmente nas
próprias imaginações”. Defende que “Ninguém pode amar o que não conhece [...] Não o
senhor e eles não conhecem o povo, como não têm pela plebe senão o mais abominável
desprezo”
201
. Chatov, seguindo uma ideologia cristã, vindica um interesse genuíno pelas
pessoas enquanto indivíduos, o que dependeria, segundo ele, do contato pessoal. O velho
Borges utiliza quase o mesmo argumento, sobre a importância dos indivíduos em si, a partir
de outro ponto de vista, não-cristão.
O mesmo assunto aparece, quando o mais velho confessa que não sabe “la
cifra” dos livros que o jovem escreverá. Em espanhol, “cifra” se refere não somente à
quantidade, mas também à existência de mensagens secretas, isto é, cifradas. Na ambigüidade,
o mais velho está afirmando que não sabe o número dos livros que irá escrever, mas também,
que não sabe o significado dessas mesmas obras. Esse sentido se reforça quase ao final da
narrativa, no instante em que o jovem comenta, que nesta noite do encontro, ele deveria ir ao
bar Crocodile. No conto homônimo de Dostoievski, o protagonista Ivan Matviéitch sai a
passeio com sua mulher e é engolido por um crocodilo em uma galeria de lojas. O problema é
que continua vivo e se sente cada vez mais sábio dentro do animal, enquanto fora se discute
como tirá-lo de lá, sem matar o bicho. O conto do russo é um signo do inesperado, pois se é
inusitado ser engolido por um crocodilo em uma grande cidade, mais surpreendente é seguir
vivo dentro dele. Houve muita controvérsia ao redor do significado desta narrativa. Joseph
Frank explica que leitores comuns de Dostoievski acreditaram que ele fazia uma crítica contra
65
a implementação de uma política de exploração capitalista na Rússia - uma primeira
interpretação. Na época, foi acusado pela intelectualidade progressista da revista A Voz de ter
feito uma alegoria satírica do exílio de um de seus principais expoentes, Tchernichévski um
segundo sentido. O caso é que o escritor os desmentiu. Afirmou em seus Cadernos de
Anotação que tinha em mente criticar as doutrinas desumanas propostas pela Palavra
Russa
202
. Até aqui, o conto parece remeter ao problema da recepção textual, mas não é apenas
isto. Borges percebeu várias situações semelhantes a esta:
“[...] lo de menos son los propósitos. El ejemplo clásico es el Quijote;
Cervantes quiso parodiar los libros de caballería, y ahora los recordamos
porque acicatearon su burla. El mayor escritor comprometido de nuestra
época, Rudyard Kipling, comprendió al fin de su carrera que a un autor
puede estarle permitida la invención de una fábula, pero no la íntima
comprensión de su moraleja. Recordó el curioso caso de Swift, que se
propuso redactar un alegato contra el género humano y dejó un libro para
niños. Regresemos pues, a la secular doctrina de que el poeta es un
amanuense del Espíritu o de la Musa. La mitología moderna, menos
hermosa, opta por recurrir a la subconciencia o aun a lo subconsciente”
203
.
Este texto é um Prólogo a Facundo: civilización i barbárie, de Faustino
Sarmiento, o qual comporta denúncias explícitas ao governo de Rosas. Em seu prólogo-
ensaio, Borges valoriza o volume na condição de ensaio literário, mas procura negar-lhe o
status de testemunho de um tempo. Nele, a história é borgeanamente apresentada como algo
complexo, que se modifica a todo instante, e que não possui um movimento ou um sentido
definido. Portanto, como algo de difícil apreensão. Ademais, Borges aponta para vários
“filtros” (memória, leituras e outros mais), sugerindo que até mesmo a historiografia
tradicional não consegue dominar de todo a subjetividade do narrador. Como aparece no
trecho citado, ele ainda alerta para a interferência da leitura e do subconsciente, os quais
poderiam fazer com que o sentido, inicialmente pretendido para uma obra, pudesse ser
desvirtuado em quaisquer destes momentos. Com isso, a interessante argumentação deste
texto se volta contra o compromisso, pois, se ele mostra que seria difícil para a historiografia
registrar fielmente a realidade, sugere que esta seria uma tarefa ainda mais árdua para o
discurso literário. No Prólogo a La Rosa Profunda, Borges assevera que seria inútil ter em
mente uma moral pronta para cada conto ou poema, quando a obra conserva um caráter mais
ou menos autônomo em relação aos desejos do artista, e conseqüentemente, "El concepto de
arte comprometido es una ingenuidad, porque nadie sabe del todo lo que ejecuta
204
. Em
outras palavras, o sentido da obra literária seria incontrolável.
66
Contudo, se o engajamento fica vedado pelas críticas expostas, nossa
narrativa formula uma ligeira concessão, isenta de qualquer compromisso. Entre os livros da
biblioteca, existe algo que destoa dos demais. É o único livro escrito por um argentino.
Contém denúncias sobre um governo. Por acréscimo, o velho comenta que ele vem com uma
dedicatória de seu autor. Trata-se de Rosas y sus opositores, do jornalista Rivera Indarte, o
qual foi um dos maiores inimigos do tirano Juan Manuel de Rosas. O mencionado Las
Tablas de Sangre” é o primeiro apêndice deste libro, contendo uma extensa lista de vítimas
do regisme rosista; o segundo se chama “Es acción santa matar a Rosas”
205
. Em paralelo,
quando nosso Borges narrador rememora a história argentina no século XX, ele vai dizer que
houve outro Rosas em 1955, em uma clara alusão a Perón. É conhecida a indignação de
Borges contra o governo peronista - indignação autêntica, porque a mãe e a irmã do autor
foram presas a mando do ditador
206
. Monegal comenta largamente o antiperonismo
207
de
Borges, mostrando que críticas a Perón aparecem no conto “La fiesta del Monstruo”
208
.
Também Arrigucci Jr alerta que na obra borgeana referências “ao passado da humanidade
e à história contemporânea, a exemplo dos episódios da Segunda Guerra [...] ou das questões
específicas de ideologia e política, como a crítica direta ao peronismo que várias vezes ele
fustigou [...]”
209
. Assim os críticos percebem este aspecto na ficção borgeana.
A partir destas explanações, é possível ler, em nosso conto, uma via através
da qual, elementos que remetem ao campo político são naturalmente inseridos dentro desta
produção; é uma idéia que consta do Prólogo ao Facundo. Nele, Borges dizia que, Sarmiento,
ao tentar narrar a situação do país, o fazia a través del profundo amor y del odio justificado
[ao partido federal]”
210
. Sarmiento queria narrar epsiódios da história argentina e suas
simpatias e desavenças pessoais transpareceram no livro; não apenas de modo direto (não é a
isso que o trecho alude), mas conformam a própria visão da história que o ensaísta vai
apresentar. Portanto, nem compromisso, nem clausura. De um lado, o conto assinala que a
intenção engajada pode fracassar; de outro, lembra que a obra literária não está isenta de
captar, e revelar, em algum momento, por intermédio de suas paixões, as opiniões políticas
pessoais de seu autor.
No entanto, o conto formula uma alternativa ao ser-ou-não-ser engajado, dos
personagens. Quando o velho tenta o reconhecimento, narrando o curso dos fatos no século
XX; o jovem não poderia saber o que estava por vir. Com isto, é como se o velho desejasse
que o outro pudesse reconhecer-se em sua forma de entender a história, mais do que no
conteúdo de seu dizer. Neste trecho, formula-se uma visão capaz de integrar essas atitudes
opostas. Mas nesta narrativa metaficcional, essa visão não está oculta sob a malha do
67
hermetismo. Como na “Carta Roubada”, de Allan Poe, a dificuldade de recuperar um objeto, é
tê-lo bem diante dos olhos.
Muito perceptível, no mencionado trecho, é que o velho uma recorrência
nos fatos. Para ele, outra guerra, é (quase) a mesma guerra. Ao apontar para a repetição dos
fatos históricos, ele lança um olhar filosófico sobre a mesma, questionando se existiria (ou
não) um sentido evolutivo no desenrolar dos acontecimentos. Ele lembra que “Inglaterra y
América libraron contra un dictador alemán, que se llamaba Hitler, la cíclica batalla de
Waterloo”, aludindo à Segunda Guerra Mundial. Com o apoio de Japão e Itália, Hitler invade
vários países europeus. Inglaterra, França e Rússia encabeçam os Aliados contra as forças do
Eixo. Mas este confronto do século XX, é comparado ao do século XIX, no qual o imperador
Bonaparte realiza uma série de batalhas para expandir o território da França, tomando
diversos países. A Inglaterra reage, formando uma coligação que o vence na batalha de
Waterloo. Porém, se a história tratada como fatalidade passaria a ser poesia; desenha-se neste
ponto uma visão poética da história
211
. Em seguida, é aludido o conflito político-ideológico da
Guerra Fria; entre EUA, pró-capitalismo; e União Soviética, pró-socialismo. De modo que é
como se essas oposições fossem cíclicas.
Logo em sua primeira interpretação da história argentina, o velho retoma o
antagonismo, contando que “Buenos Aires, hacia mil novecientos cuarenta y seis, engendró
otro Rosas, bastante parecido a nuestro pariente. El cincuenta y cinco, la provincia de
Córdoba nos salvó, como antes Entre Ríos”. A narrativa nos remete ao período em que Rosas
era o Governador da Província de Buenos Aires, estendendo sua área de influência sobre as
outras províncias, com o Pacto Federal. Tornou-se um tirano, até que o General Urquiza, de
Entre Ríos, se junta com outras forças para derrotá-lo, na Batalha de Caseros. Então esta é
ainda uma visão argentina da história, pois busca sua dicotomia central civilização e barbárie.
Ele recorta o período do confronto entre unitários e federais, que ganhou relevo pela leitura de
Sarmiento, ao traduzi-lo na famosa disjuntiva. Ainda em nível local, outro confronto do
século XIX vai ser comparado a um conflito do século XX, uma vez que é possível identificar
uma alusão ao governo de Juan Perón, “no Rosas de 1946”. O presidente torna-se um ditador,
sendo derrubado por tropas que saem de Córdoba, em 1955. Ou seja, esta seria ainda uma
visão pessoal-individual da história, pois fala de fatos que especialmente atingiram a vida
particular do próprio Borges
212
.
Na integração entre os conflitos um ponto comum. Aparecem aludidos:
Rosas, Perón, Napoleão, Hitler. De modo que, ao apresentar a recorrência dos tiranos, na
verdade, o discurso do protagonista constrói o tema intemporal da tirania (como poderia ser o
68
do temor ou da identidade), o qual faz parte do século XX e de tantos outros. No plano
específico, uma visão pessoal e argentina dos fatos. No geral, uma visão poética e
filosófica da história. Mas se em nossa narrativa, um personagem está preocupado com
problemas locais e o outro o chama a temas mais universais, parece existir um momento de
síntese entre o local e o universal; quando o datado no intemporal e ainda seu reverso. Assim,
o jovem deveria reconhecer-se neste olhar ambíguo: candeeiro inflamado na história local de
seu tempo; luz de farol que revolve a história mundial em sua imensidão eterna
213
.
A verdade mentirosa “Puedo probarte que no miento”. O velho afirma que não está
mentindo, quando diz que ele e o jovem são um. No entanto, dizer a verdade, no seu caso, não
significa dizer o que corresponde à realidade, mas apenas defender um ponto de vista sobre a
questão. Portanto sua verdade, é como a verdade ficcional, ela reside na construção de uma
idéia. perto do fim da trama, o narrador admite: “no podíamos engañarnos, lo cual hace
difícil el dialogo”. Desse modo fica o subentendido de que o diálogo comporta mentiras; e de
que se ambos mentissem seria mais fácil entrar em acordo. O jovem, por sua vez, está
demasiado atado à ‘verdade’. Quando tratam da poesia de Whitman, ele traduz a verdade do
poema em termos de sinceridade ou mentira. Ou seja, ele está relacionando o ficcional com a
verdade da vida.
Assim, o velho pergunta se na leitura de El Doble e dos outros livros, o
jovem “distinguía bien los personajes [um do outro], como en el caso de Joseph Conrad”.
Alfineta o mais novo, porque sabe que ele tende a identificar o autor com seus personagens.
Conrad pertence a uma linha de escritores, cujos romances eram ambientados no mar. Ao
mesmo tempo, é um autor que foi marinheiro boa parte de sua vida. Com isso, muitos críticos
quiseram ver relatos de experiências pessoais em seus romances
214
. Então o que ele realmente
está perguntando é, se ao deparar com um caso de duplo, o jovem consegue separar os dois,
como deveria separar Conrad de seus personagens. Nesta passagem, o velho está traçando um
paralelo para o jovem: o autor de um texto em prosa é diferente do personagem de si mesmo,
ou dos personagens ligados a si por dados biográficos, como são diferentes os dois
personagens de um homem na estrutura do duplo. Mas o que é o duplo; ou melhor, o que é o
duplo, para Borges? No Livro dos seres imaginários, ele apresenta duas respostas de
escritores. Para Poe, o duplo é a consciência do herói, para Yeats, podia ser tanto o nosso
contrário - aquele que nos complementa, quanto o homem que não somos nem viremos a
ser
215
. Como visto, para Rosset, o outro é personificação de uma realidade indesejável a
respeito do “eu”, a qual se desconhece ou se procura desconhecer
216
.
69
Comparando as mencionadas teorias sobre o duplo, em busca do que é
fundamental dentro delas, percebe-se que de um lado, existe um protagonista que tem uma
imagem de si. Do outro lado, está o ‘fantasma’, alguém que o protagonista não sabe que é, ou
que realmente não é, mas o qual de alguma maneira está relacionado a si (porque é o contrário
complementar, por exemplo). Assim, é possível entender de que forma Borges relaciona uma
estrutura literária (o duplo) e a própria literatura (na relação autor-obra). De um lado está o
autor, que tem uma imagem pessoal. Do outro, sua obra, a qual pode abrigar experiências,
interesses, preocupações, desejos e todo tipo de imaginações incompatíveis com o escritor,
mas as quais, em sua disposição geral, este homem, com suas leituras e experiências,
poderia ter concebido.
Idéias similares aparecem, quando o assunto é a poesia. O mais velho
comenta que em um poema, Whitman “rememora” uma de suas noites. Sugere assim que
estes versos do norte-americano estariam constituídos de ‘memórias’, mas não se pode
esquecer que para o velho a memória é território do esquecimento criativo. A imaginação
invade os pontos em que a lembrança se torna obscura. O jovem lida de outra maneira com a
verdade poética. C que Whitman é ‘sincero’ e que, em seus poemas, ele expressa seus
sentimentos pessoais e vivências. Nos pressupostos vimos que o “segundo” jovem Borges
possui um texto, no qual julga que o norte-americano seja um poeta de emoções verdadeiras e
coloca-se ele mesmo, junto a essa classe de escritores. Vimos ainda que os boedistas achavam
que o escritor mais autorizado a expor os problemas sociais era aquele que os houvesse
vivenciado.
em “Nota sobre Walt Whitman”, o maduro Borges discute o problema das
leituras que associam o eu-lírico ao autor real. A partir do exame dos poemas de Whitman, ele
ergue um verdadeiro ataque ao biografismo. Explica que os críticos se escandalizavam ao
consultar as biografias sem dar com a estória do heróico andarilho de Leaves of Grass
217
.
Apresenta vários argumentos contra este tipo de juízo. Lembra o erro de críticos e autores
“quienes atribuyen una doctrina a experiencias vitales”, e não aos livros, de onde seriam
provenientes, a seu ver
218
. Se isso ocorre com sistemas de pensamento, quanto mais poderia
ocorrer na poesia este o alvo do ensaio. Com a idéia de que a tradição é o fator
preponderante para a composição poética, ele mostra que o volume de Whitman está
firmemente assentado neste solo, pois vários poetas anteriores já haviam se utilizado de
alguns temas e recursos, que o norte-americano desenvolve. Ademais, ressalta o acréscimo
imaginativo que transforma em mito, o que era apenas a vida de um pacato jornalista.
70
Finalmente, por todo o ensaio, ele liga o sucesso dessa obra às técnicas de Whitman, não às
suas vivências.
Tendo em conta as informações deste ensaio de 1932, e a constituição de “El
Otro”, em que a citação de El Doble, também faz pensar no resgate da tradição, e no qual o
intertexto é um recurso freqüente, poderia parecer que a arte é sonho que vem da própria arte.
Especialmente porque o velho menciona que o discutido poema de Whitman tem como
assunto “una compartida noche ante el mar”. Ora, o primeiro poema do real jovem Borges,
em Ritmos Rojos, é “Himno del Mar”. O poema cria uma experiência do eu-lírico com o mar,
sendo este mesmo o companheiro a quem se dirige nos versos. O mesmo Borges, em sua
autobiografia admite que neste poema quis “ser Walt Whitman”
219
. Assim, a alusão produz
um divertido e labiríntico jogo intertextual em que Borges atribui a Whitman, um motivo de
seus versos, quando, em realidade, é ele quem estava copiando o estilo do norte-americano no
poema de juventude. Gera-se o sentido de que a literatura abastece a literatura. Ao passo que
ao redor do jovem, conforma-se a idéia de que a literatura deve muito à vida real e às
experiências do autor.
Contudo, antes que o jovem diga que Whitman é “incapaz de mentir”, o
velho lhe adianta que “El poema gana si adivinamos que es la manifestación de un anhelo, no
la historia de un hecho”. Compreende-se que o substrato da poesia não precisa ser o
sentimento verdadeiro de um autor mediante uma vivência pessoal. Entretanto, o poema não é
um mero jogo verbal, na concepção do mais velho
220
. Os vocábulos de que se serve,
“anhelo” e “deseaba”, podem esclarecer melhor sua idéia. Segundo Freud, o sonho é
portador de um desejo. Portanto, volta a metáfora do sonho na discussão sobre a matéria da
poesia. A arte, como o sonho, seria portadora de um ‘desejo’, sob formas e figuras
associativas. Nesta passagem avança uma idéia que está sendo desenvolvida desde o começo
do conto. A vida é um sonho, mas também a literatura é um sonho. Ou seja, a narrativa
confere a ambas o mesmo estatuto. Como o sonho é autônomo, mas tem como ponto de
partida um sonhador que lhe empresta seus desejos, o mesmo se daria com a obra literária.
Não só a imaginação, nem a pura realidade.
O romântico clássico - “[…] ahora, me das una de tus monedas. Sacó tres escudos de plata
y unas piezas menores. Sin comprender me ofreció uno de los primeros. Yo le tendí uno de
esos imprudentes billetes americanos que tienen muy diverso valor y el mismo tamaño”. No
dinheiro, monedas”, “billetes”, juntam-se as oposições que a narrativa reúne. Em seu
formato, ele renova o problema do tempo e do eu. As cédulas lembram o tempo linear e
71
cronológico da metáfora do rio, como lembram a idéia da identidade cambiante que essa
temporalidade promove. Fazem pensar no sistema de Heráclito com sua realidade única. As
moedas, com seu formato circular, nos remetem ao tempo cíclico e ao eterno retorno. Evocam
o sistema platônico com o mundo real e a cópia, com a idéia de arquétipo. Durante a leitura,
vimos que se desprendem da narrativa duas concepções de literatura. uma concepção
realista, mas que ainda postula a originalidade do trabalho individual, na qual a literatura é
linear e sucessiva. Nela, as formas individuais parecem estar ligadas a um tempo e a um
espaço determinados. Não há continuidade, mas originalidade, ruptura, quebra com o passado.
Além desta, uma concepção clássica, que valoriza a retomada das obras, fazendo da arte
um trabalho coletivo. Assim, a literatura é circular, pois formas e temas voltam nas obras de
outros autores. Essa idéia central parece pensada, desde a escolha do tema do duplo. Basta
lembrar que este foi um grande tema do Romantismo, e que no entanto, nasceu no período
Clássico, com O Anfitrião de Plauto.
Como explicado, o conto projeta uma conversa entre a obra borgeana e a
geração argentina dos anos vinte. Deste modo, a partir de uma questão particular, Borges
parece ter deixado um problema geral para a Literatura - a existência de categorias
fundamentais para o trabalho literário. Viemos até o presente momento, buscando estes dois
perfis de escritores, sob os títulos de clássico e realista. Assim os nomeamos, porque,
enquanto o velho se concentrava na imaginação (e estava associado a uma realidade onírica),
o jovem se detinha nas relações com a realidade. Um segundo rasgo decisivo era o de que,
enquanto o velho recorre à tradição, o jovem procura as formas novas e a originalidade.
Em vários dos ensaios e textos críticos de Borges, a idéia da existência de
dois modos literários arquetípicos foi amplamente utilizada. Com um mesmo fundo geral, e
acréscimos ou omissões sobre uma e outra categoria, conforme o texto, Borges os chamou o
modo clássico e o modo romântico. Em “La Postulación de la Realidad”, Borges divide os
escritores nos mencionados grupos. Avisa que não está pensando nas escolas literárias
históricas, “entiendo por ellas dos arquétipos de escritor (dos procederes)”
221
. Entre várias
observações menores, utiliza dois critérios fundamentais para classificar estes escritores:
enquanto um postula uma realidade literária vaga - suficiente apenas para assentar a idéia
contida em suas imagens, o outro quer expressar a realidade; enquanto um recorre à tradição
anterior, o outro apresenta o desejo de ser original. Ou seja, em sua base, os critérios que
definem as categorias no conto e no ensaio são muito semelhantes. Pela semelhança e porque
o ensaio aprofunda a leitura do conto, com suas ressonâncias teóricas, vamos traçar alguns
paralelos entre ambos os textos.
72
Uma primeira ligação é perceptível, através das críticas à representação fiel
da realidade presentes, tanto no conto, quanto no ensaio. Também em ambos, de um lado está
um tipo de escritor que procura a originalidade em seu trabalho, enquanto do outro, um
tipo de escritor, ou um modo de escritura, que recorre às obras da tradição. No conto, há uma
série de tópicos que mostram um tipo de escritor que realizaria uma escritura voltada para a
realidade em vários aspectos; ao passo que o outro tipo de escritura buscaria soluções
imaginativas nestes aspectos. No ensaio, não o várias características, divididas por dois
tipos de atitude, no entanto uma postura fundamental, relacionável à divisão do conto: de
um lado, está a busca de expressar a realidade (o romântico); do outro, haveria um tipo de
escritor que não deseja a plena representação da realidade, mas se contenta com uma realidade
literária vaga ineficiente, enquanto cópia do real, mas eficiente para seus propósitos
literários (o clássico). Um tenta representar o real, o outro apenas o assinala. Portanto, os dois
critérios básicos são similares.
Surgem ainda outros aspectos menores de correspondência. um tópico,
em que o ensaio se detém, mas ao qual o conto alude - a cnica para gerar uma realidade
no texto literário. A narrativa mostra a técnica pelo uso de detalhes precisos e imprecisos. O
ensaio nos diz que os textos clássicos postulam uma realidade imprecisa, ao passo que os
românticos tentam obter uma realidade precisa. No ensaio, a terceira técnica clássica se
parece, em sua utilização dos pormenores, à técnica que o conto utiliza e apresenta. Outro
tópico comum reside na questão da metáfora. No conto, enquanto uma categoria de escritores
busca inovar no uso do tropo, os outros recorrem às metáforas já inscritas na tradição.
Ademais, o jovem escritor buscaria a individualização, pois desejava diferenciar-se do velho.
o velho seria um escritor que, a julgar de seu perfil, favoreceria a generalização, tanto por
seu gesto de querer identificar-se com o jovem, quanto por apresentar a si mesmo e ao
menino, em uma chave de identificação com toda a família. Isso tem paralelo com o ensaio,
na medida em que ele nos diz que a escritura clássica se destacaria por seu caráter
generalizador; supondo-se, neste caso, que a escritura romântica particularizaria os indivíduos
e as situações. Se tantos pontos de correspondência secundários entre conto e ensaio,
parece que o fundo dessa divisão genérica, realmente, deve ser similar.
Nos dois textos, de um lado está a escritura clássica - para utilizar o termo
do ensaio; do outro, há um tipo de escritura “romântica” ou “realista”, mas atente-se que:
I. No ensaio, o modo romântico
não se confunde com o Romantismo histórico. É uma
categoria muito ampla de autores, cuja escritura tem como marca a expressão da
73
realidade
222
. Sob o título de românticos estariam realistas, românticos, autores
contemporâneos de Borges. Fica dito, que toda a produção ao tempo do texto (1932), é de
predomínio romântico
223
.
II. Igualmente pode-se observar o fato de que, no conto, as configurações atreladas ao que
titulamos realista, partem de algumas alusões aos realistas argentinos de vinte, porém,
assim como as características do mais jovem excedem o Borges juvenil, excedem também
os realistas de vinte (que não utilizavam as metáforas novas do ultra, por exemplo). Como
no caso do ensaio, as configurações do conto não remetem ao Realismo histórico (nele, a
poesia não era expressão dos sentimentos do poeta - algo associado ao Romantismo). Ou
seja, o perfil realista trata de um tipo de escritura voltado para as relações com a
realidade, e uma dessas relações é a tentativa de expressar o entorno ou não caberiam as
críticas ao realismo, que o conto produz. Portanto, é um perfil geral, o qual pode remeter-
se a escritores de vários períodos. Ou seja, conto e ensaio contornam dois perfis genéricos
de escritor.
Contudo acreditamos que, embora no ensaio, Borges postule que estes sejam
dois modos intemporais de lidar com a literatura, sua classificação parece ter sido fundada a
partir da consabida ruptura no campo literário, entre a arte que tem início, desde o período
clássico até o século XVIII e, a transformação que começa neste século XVIII, fica
consolidada no XIX, e chega até o século XX (as datas variam com os críticos). dois
indícios desta relação. O primeiro critério para a divisão, no conto e no ensaio, está baseado
em uma atitude do artista, o desejo de originalidade ou não. Sabe-se que a originalidade
passa a ser um valor para a arte, a partir do Romantismo. Portanto, os românticos/realistas
podem ter ganhado fôlego, depois do Romantismo histórico. O segundo critério no conto, é a
relação constante com a realidade; no ensaio, é o desejo de obter uma representação
consistente do real. Neste caso novamente o cruze de ambos nos indicaria um período
determinado no tempo.
Recuamos um pouco à construção narrativa, para ver de que maneira estão
inscritos nela, estes dois grandes modos de tratar com a literatura. Anteriormente explicamos,
que havia um efeito de coletividade no tocante aos protagonistas. O jovem e o velho são o
mesmo; e o velho ainda buscava uma identificação entre si e seus antepassados, através da
profissão. Mas além disso, este efeito é especialmente gerado por um arranjo de identificação,
com outros escritores. Certa vez, Borges dizia que “De igual manera que el romanticismo
francés cabe en el solo nombre de Hugo, así lo que será el modernismo […] cabe en el de
74
Darío”
224
. À luz deste comentário, é possível entender melhor o que se configura no entorno
do personagem mais novo, quando é associado a Verlaine, Darío, Hugo, Regules, Dostoievski
e o ultraísmo.
Na verdade, esta é uma construção dual que reverte tanto para o significado
geral (clássico, romântico) quanto para o particular (conversa com a geração de vinte). De um
lado, o jovem está suficientemente datado, no ano de 1918, e ligado ao criollismo, como para
entendermos que as escolas aludem àquela geração literária específica: o romantismo entra
sob a escusa do regionalismo; o simbolismo entra por sua influência sobre o modernismo; a
vanguarda aparece na referência ao ultraísmo; e o realismo aparece nas concepções do jovem
seu caráter e soluções literárias que sempre tendem a copiar a realidade. Por outro lado,
estas são todas as escolas modernas. São alusões ao Romantismo, Simbolismo, Modernismo,
Vanguarda, e por fim, também ao Realismo. Já os nomes ligados à figura do velho são
aqueles que constam da biblioteca, autores de todos os tempos: Os autores das Mil e Uma
Noites, Tácito, Cervantes, Carlyle, Quicherat, Amiel, Whitman, Coleridge. Talvez o fato de
que não sejam mencionados somente autores do período que vai até o século XVIII, seja
explicável uma vez que em “Nota sobre Walt Whitman”, Borges considera clássico o trabalho
de Whitman; e ademais, é perceptível como, no ensaio, ele mesmo se coloca na defesa deste
modo
225
. Por tais motivos, guardadas as devidas distâncias entre os textos, pode-se pensar que
o jovem é um representante do modo romântico, ao passo que o velho simbolicamente
retomaria o modo clássico.
O ponto de contato é o Romantismo. O romântico, Elías Regules, aparece
ligado ao jovem; o romântico Coleridge está ligado ao velho. Ademais, segundo o narrador, o
autor que os une profundamente é justamente Victor Hugo. “Hugo nos había unido”. Trata-se
do escritor que no plano histórico é tido como o iniciador de uma divisão de águas entre a
literatura que vai até o período Clássico e a literatura que começa a existir depois do
Romantismo. Contudo, segundo Erich Auerbach, Hugo não é a transformação completa de
um modo a outro:
“como se sabe, foi precisamente o princípio da mistura de estilos aquilo que
Victor Hugo e seus amigos levantaram como grito de guerra próprio de seu
movimento; nele se manifestava de maneira mais evidente o contraste com o
tratamento clássico dos temas e com a linguagem literária clássica. Mas já na
formulação de Hugo se apresenta algo de demasiado exacerbadamente
antitético: trata-se da mistura do sublime com o grotesco. Ambos são pólos
estilísticos que não tomam em consideração o real. De fato, não tinha a
intenção de representar a realidade dada de forma compreensiva; antes
ressalta, nos temas históricos ou contemporâneos, os pólos estilísticos do
sublime e do grotesco ou também outras contradições éticas ou estéticas, e o
75
faz com tanto vigor que eles se entrechocam com violência; desta forma,
embora surjam efeitos fortes, pois a força de expressão de Hugo é poderosa
e sugestiva, são inverossímeis e, como reprodução da vida humana,
falsos”
226
(grifo nosso)
Auerbach assevera que os românticos rompem com os modelos clássicos,
porém falta-lhes ainda o pleno encontro do sério com o quotidiano o qual, a seu ver,
chegaria com o Realismo. Além dele, Ian Watt também observou uma transformação na
literatura. No entanto, com seu corpus de autores ingleses, ele postula que a mudança estaria
em processo desde o culo XVIII. Este crítico encontra a existência de um conjunto de
procedimentos formais que gera uma base de realidade para o romance, sendo esta uma
estruturação do ficcional, que era desconhecida do mundo clássico, mas que se tornou
fundamental nas obras modernas
227
. A classificação borgeana dos modos literários em “La
Postulación” está próxima da utilizada por Watt, na medida em que Borges vai realizar a
divisão tendo em vista, a conformação de uma realidade vaga ou (ou a tentativa) de uma
representação consistente do real; e especialmente no caso do clássico, ele se detém na
explicitação de algumas técnicas. Ou seja, a divisão borgeana em “La Postulación” se parece
à de Watt, na medida em que este separa os autores a partir dos recursos de construção de
realidade; mas parece a de Auerbach, uma vez que nela, o Romantismo - ou o século XVIII,
não parece ter sido considerado, como um momento de transformação decisiva para a
literatura
228
.
Assim, entre conto e ensaio, vemos que a disjuntiva que Borges estabelece,
parece estar calcada nesta grande mudança ocorrida no campo literário. Na verdade, o
argentino deseja imaginar dois perfis eternos de escritores, e nós os entendemos assim. Essas
comparações, contudo, auxiliam a esclarecer no que consistem tais perfis e especialmente
ajudam a entender melhor nossa narrativa.
A hidra-universo No conto dois recursos predominantes, que informam diretamente
sobre seu conjunto significativo, o da intertextualidade integradora em oposição ao
biografismo desintegrador. Como dito, muitas referências do autor à sua própria biografia
neste conto. No entanto deve-se atentar para a forma em que essas referências são feitas.
Auxiliadas por outros dados ficcionais, em um enredo cheio de mudanças das personagens,
poderiam recuperar episódios biográficos e atribuir-lhes um sentido comum. Contudo não é o
que ocorre, pois apenas sabemos que o jovem muda, sem que aparecem as situações que o
levaram a mudar; a família é apresentada na trama, mas significa o genérico ciclo vital; a
sexualidade do jovem é aludida, mas ela não retoma experiências significativas, revelando
76
apenas que o outro está vivendo sua juventude. Ou seja, os dados biográficos atiram o leitor a
fatos isolados de uma vida. Remetem a uma série de fragmentos que não se fusionam.
Apontam para uma individualidade, e contudo conduzem a uma desintegração. A arte voltada
para a multiplicidade da vida tende à expansão e à desintegração dos sentidos.
Por outro lado, a intertextualidade cumpre uma função coalisora. Temos um
total de dezessete autores, se aos livros citados na biblioteca somarmos os autores
dispersamente aludidos no conto. As menções de Borges a outros escritores e as citações de
suas próprias obras e idéias literárias enriquecem o texto fazendo com que se torne parte de
um imenso círculo de obras, temas e formas em que se reúne a tradição. Por dois eixos, a rede
intertextual trabalha para o texto. De um lado, cada obra que foi mencionada lhe acrescenta
significados. São ficções que aumentam a estória dessas personagens. De outro, como ocorre
na menção à Flor de Coleridge e a El Doble de Dostoievski, essas menções sugerem a
recuperação de temas e procedimentos do passado. O efeito do recurso é muito amplo. O
pequeno conto torna-se um todo em si mesmo, mas ainda um pequeno mundo, enquanto parte
do incomensurável cosmos literário. A arte voltada para si mesma une e gera múltiplos
sentidos.
Arrematando esse efeito, uma imagem que serve de amálgama a essa
construção. Na última tentativa de encontrar um modo pelo qual o jovem se reconhecesse
nele, o velho procurava algo de que o jovem não pudesse ter qualquer lembrança. Na verdade,
algo completamente novo para o outro, mas paradoxalmente tão íntimo de si, que o jovem se
identificasse com a frase sem nunca tê-la ouvido. Arrisca: “‘L'hydre-univers tordant son corps
écaillé d'astres’”
229
. O verso reboa sem que o jovem admita de todo a unidade entre os dois.
O dinheiro ainda será necessário para que ele creia no que parece ser loucura do velho Borges.
Mas o narrador percebe que o toca, pois Lo repitió en voz baja, saboreando cada
resplandeciente palabra./ -Es verdad -balbuceó. Yo no podré nunca escribir una línea como
ésa./ Hugo nos había unido”. Assim, Hugo os aproxima pela impossibilidade de repetir o seu
feito, pela impossibilidade de “ser Hugo”. Mas neste ponto, surge um símbolo para “El Otro”.
Do ponto de vista da técnica, essa hidra-universo que retorce seu corpo
escamado de estrelas oferece algo semelhante a uma junção entre as metáforas ultraístas e as
tradicionais. Na metáfora por afinidade, a hidra funciona como termo substituto de ‘universo’.
Por outro lado, ela se justapõe à metáfora, combinando-se com o termo ao qual alude, mas o
que se segue é um enfileiramento de imagens ao gosto ultraísta. Nesta linda associação, o
universo se explica pela hidra, mas a hidra, em outro plano, possui as propriedades do
universo. Nasce aí um infinito jogo de espelhos
230
.
77
Formalmente perfeita, é igualmente fascinante em seu conteúdo. Seu núcleo
é um vocábulo especialmente polissêmico: “Hidra”. Pode ser o animal marinho da realidade,
o pólipo que reúne em si o aquático, do elemento em que se move; e o astral, por seus
tentáculos de estrela. Pode ser o monstro lendário o qual, contendo o traço da realidade
enquanto serpente, é o ser mitológico das lendas pagãs. Animal sete vezes pior do que a fênix,
porque cada uma de suas sete cabeças torna a nascer tão logo é decepada, pode ser ainda o
metafórico nome da constelação, cuja estrela maior é o Coração da Hidra. Desse modo, ela
une o real e o imaginário. Reitera ademais, a metáfora do rio com seus pedaços de gelo. Mas a
hidra é maior, uma vez que o próprio conjunto, a constelação, é parte de um todo. Ela faz
pensar na grandeza do Universo, constituído de estrelas e a sua vez, um ser à parte. Faz pensar
que cada homem é uma estrela avulsa, mas também o ser completo, enquanto indissociável do
imenso corpo universal - a Humanidade.
Seus braços alcançam as duas altas colunas desta narrativa: o eu e o tempo,
estabelecendo um novo jogo de cópia e versão. O verso consta do livro As constelações.
Nesses poemas, Hugo simula responder a um marquês que reprova suas posturas
republicanas. O marquês o lembra de seus poemas infantis pró-monárquicos e o sujeito do
poema replica que “Era monárquico entonces y era niño”. justificando sua mudança com a
compaixão: “Así acaban de hundirse esos mundos antiguos/ Siempre llega el momento.
Llegan olas lejanas a través de clamores, de cadáveres, lutos [...] unos siglos empujan a las
revoluciones, cual mareas monstruosas,/ como el llanto del hombre convertido en océano”.
Como na narrativa em exame, o francês termina reafirmando a unidade entre o homem de
ontem e o homem de hoje: “[...] yo soy/ este hombre de ahora y aquel niño de entonces”
231
. O
que o poema de 1856 o diz é que o poeta foi conservador e monarquista durante a maior
parte de sua vida, não só durante a infância. A partir de 1950, começa a reviravolta, ele muda,
e do exílio até sua morte, “será o grande tribuno liberal, progressista, atento aos pobres, ao
povo, à injustiça social e defensor tempestuoso, iluminado, da República”
232
. Ou seja, o poeta
romântico termina comprometido com as questões sociais. Assim, o poema retoma a
progressão na vida de Hugo: do jovem monarquista ao velho republicano. O enredo da
narrativa borgeana representa um encontro entre o jovem realista comprometido, e o velho
escritor clássico. A partir dele, desenvolve uma reflexão sobre as essências eternas da arte: de
um lado, uma arte realista voltada para a vida; do outro, uma arte clássica, voltada para a arte.
O plano vital (de Hugo) se desdobra no literário (seu poema) e o literário (o conto borgeano)
acolhe o anterior. Sob este prisma, esta não é mais uma estrutura em abismo, mas uma
estrutura realmente abissal.
78
No conto-hidra, cada figura remete a um mundo literário próprio, quando não
a amplas idéias que por sua vez desdobram-se em um sem fim de idéias menores. Ele
representa cada todo que reúne suas partes opostas, como representa a união central dos
sujeitos: o eu e o outro. Assiste-se em cada ato à "vida" literária de Borges, enquanto, em
paralelo, desenha-se o problema geral da arte. O escritor que tenta se encontrar, apesar das
mudanças ao longo do tempo, ainda é como todos os escritores. Miniatura da narrativa
borgeana, a tentativa de reconhecimento do personagem pelo outro se torna o reconhecimento
dos paradoxos que alicerçam seu universo ficcional. Buscando descrevê-los, ele nos remete a
dois modos fundamentais da Literatura. Na cadeia de identificações gerada pelo intertexto,
esse "eu-escritor imaginário" é ao mesmo tempo um autor e todos os autores. Do que poderia
ser a máxima pessoalidade (um personagem com seu nome e seus dados) surge a máxima
generalidade.
O fim, o começo - Uma vez que o velho Borges está decidido a provar o seu ponto de vista, a
solução vem da memória criativa: recordé una fantasía de Coleridge. [...] Se me ocurrió un
artificio análogo”. Copia, mas altera. Na aludida fantasia, se alguém diz que cruza o jardim
do paraíso, e ao voltar à realidade possui uma flor... Isto significa que seu devaneio foi real.
Portanto, ‘a flor’ atesta a verdade do mundo fantástico. No conto, o desafio do Borges mais
velho é similar ao de Coleridge. A diferença é que estão em uma situação insólita e o velho
deseja provar que tudo ocorre na realidade. O dinheiro vale como um signo do mundo
material, embora diante do menino que fora no passado, esta pode ser uma realidade
fantástica. A façanha é alegórica. Por toda a narrativa Borges atravessa o campo de muitas de
suas leituras, revisa suas concepções literárias, e qual é o valor que ele escolhe para dar como
prova de sua permanência neste universo textual? O artifício. É esse o valor, a flor do jardim
da literatura que ele entrega ao jovem. É a flor do futuro que vai voltar com o mais novo ao
passado, dando provas de que ele conheceu uma outra realidade.
Uma vez que as notas estão datadas, elas podem “comprovar” que o narrador
está certo. Mas a revelação é falseada. As evidências desaparecem quando estão bem diante
dos olhos. O próprio narrador avisa que cédulas de dólar não têm data; e esta, não poderia ser
mais imaginativa: 1974. Se o narrador, que é o mais avançado na linha cronológica está em
1972, ainda que existisse uma nota de dólar datada, ela seria mais do que falsa. Contudo, seu
comentário sobre as notas é significativo: “muy diverso tamaño y el mismo valor”. Com isso
a narrativa lembra uma última questão em torno da arte literária: o texto cobra valor como
uma realidade autônoma, por seus artifícios e recursos; ou também tem valor como
79
documento de um tempo, como retrato de uma realidade que lhe pré-existe? Quando o velho
atira a moeda no rio e esta descreve um arco no espaço, seu gesto evoca as idéias de começo,
meio e fim. O tempo parece estar retomando seu curso normal. É como se a vida voltasse a
caminhar; como se o velho estivesse, simbolicamente, devolvendo o jovem a seu tempo, e
reintegrando-se ele mesmo ao curso natural dos acontecimentos. Na alegoria, a imagem
sugere que cada uma das concepções do ficcional tem de voltar ao tempo e ao espaço nos
quais foram especialmente válidas. Não podem coexistir com a mesma intensidade, e mais do
que isso, segundo a narrativa, elas devem dar passagem a novas, ou reformadas, concepções
do mundo e da literatura.
Nestas ginas finais, o jovem já não é o mesmo. No trecho sobre Whitman,
ele pensava em referências à vida do escritor. Depois da troca de moedas, ele lembra o
episódio bíblico da ressurreição de Lázaro. Neste momento o narrador se identifica com ele:
“No hemos cambiado nada, pensé. Siempre las referencias librescas”. Ou seja, no primeiro
momento em que o velho utiliza um “nós” depois da suposta prova, o traço de união que
aponta entre ele e o jovem é o de utilizar referências dos livros. Ao final, o jovem que estava
sempre do lado da “verdade”, passa a estar do seu lado, pois “mentíamos los dos”. O verbo
mostra uma unidade alcançada entre eles, embora tudo fique em aberto por causa das notas
falsas. O velho “mente” e afirma que o jovem o faz tão conscientemente quanto ele. Percebe
que o outro finge que irá ao encontro, quando sabe que não tem a menor intenção de ir. O
outro rasga a cédula “datada” e ignora o relógio mostrando desconsideração com o tempo
objetivo da vida real. Embora saibamos que o velho também nunca deixa de ser de todo
aquele que fora, a narrativa parece assinalar que o jovem entrou em um “novo tempo” e um
“novo espaço”: passará ao eterno sonho da mágica literatura borgeana. Terminada a aventura,
o jovem pode voltar ao passado para começar a ser o velho; enquanto este pode começar a
escrever o seu relato.. O fim é o começo
233
.
80
3.0. UMA FICÇÃO CONTRA O REALISMO,
E A VEROSSIMILHANÇA EM SUA FICÇÃO.
“Cuánto escribieron todavía en nuestro siglo [los escritores del siglo
XIX, que siguieron vivos en el XX] mira en general hacia el pasado: o
es historia o es recuerdo personal” BORGES, J.L. Textos recobrados
(1931-1955). Barcelona: Emecé, 2001, 165.
Os ensaios “Nota sobre Walt Whitman”; “Domingos F. Sarmiento:
Facundo”; e “La Postulación de la Realidad” o pontos de apoio para a leitura do corpus
principal. Não é nosso objetivo realizar uma detida interpretação desses textos. Seus
desenvolvimentos apresentam uma série de motivos pelos quais Borges não adere aos
postulados realistas, assinalando pontos de afastamento decisivos para sua produção. Por esta
razão, o conjunto destes ensaios auxilia a determinar as idéias literárias que permeiam a
narrativa em estudo, na medida em que revelam o pensamento de seu autor, mas também,
elucidam suas relações com a literatura argentina, no período de formação de sua poética. Ao
mesmo tempo em que sua leitura renova as perspectivas de análise utilizadas no trabalho com
o corpus principal, ela fortalece nossa hipótese de que a polêmica Boedo-Florida é um
momento decisivo na definição da obra borgeana. Assim, de um lado, pretendemos apresentar
as idéias que neles confrontam os postulados realistas, para novamente assinalar a oposição a
esta estética. Por outro lado, os contos “25 de Agosto e “El Milagro Secreto” devem tornar
visível uma ligação entre a madura obra borgeana e o mesmo realismo, que parece rejeitar.
3.1. BORGES E O BIOGRAFISMO: NOTA SOBRE A EXISTÊNCIA DE UM OUTRO
WALT WHITMAN.
O maduro Borges possui uma divisão da poesia em duas classes de autores.
“Poeta es el hombre que logra una melodiosa expresión verbal de emociones genuinas o
imaginadas”
234
. Assim, o poeta seria o escritor da confidência, alguém que expressa as
emoções que possui ou que imagina possuir. Mas haveria outro tipo de autores no gênero
lírico, pois “Es evidente que yo no pertenezco a esa estirpe, y así estoy obligado a simular
mediante laboriosos procedimientos, la melodía [...] o a referir las circunstancias que
produjeron tal o cual emoción”
235
. Assim, existiria o artífice aquele, cujo ponto de partida é
uma idéia; em auxílio da qual, ele afeta as emoções que não sente. A poesia em seu caso é
uma decisão. Nos pressupostos comentamos que um único texto, “Profesión de Fe
81
Literaria”, em que o jovem Borges Whitman como um poeta de emoções autênticas
236
.
Assim, em “Nota sobre Walt Whitman” (1932)
237
, Borges contraria sua postura juvenil,
fazendo notar que tal escritor seria um artífice.
Mais perto do literal, o texto trata de mostrar ao leitor que o principal livro
de poesias de Whitman, Leaves of Grass, não é o resultado da exposição de vivências e
sentimentos pessoais de seu autor, mas ao contrário é obra de eficiência técnica, resultante
sobretudo da retomada da tradição. No entanto, a partir deste assunto específico, o texto está
permeado por uma questão mais ampla. Assim, é possível ler no nível mais profundo deste
ensaio, em seus elementos artísticos e argumentativos, a tessitura de uma série de motivos
pelos quais a poesia se afasta da realidade do poeta, para assumir sua feição artística. Com
isso, Borges termina combatendo o biografismo.
Borges contra o Biografismo aplicado à Poesia de Whitman.
Até o Renascimento não havia grande destaque para a figura do autor, já que
na preceptiva clássica, a obra literária prescindia da originalidade. A partir do Romantismo e
com o advento das teorias científicas, a valoração dos textos começava a ser atrelada ao nome
de seu autor
1
. Com a idéia de que a literatura é expressão de sentimentos e vivências, as vidas
dos escritores ganhavam relevo. Contudo, no século XIX, esse interesse vai se traduzir, em
grande medida, em estudos da biografia, que convertiam as obras em mero reflexo das
vivências de seus autores. A crítica de Taine forças a esse tipo de abordagem, com seus
julgamentos sobre a poesia de Racine
2
. Especialmente nas primeiras décadas do culo XX,
este tipo de interpretação recebe novo impulso a partir dos estudos de Freud
3
. Jakobson
lembra que até o início deste século, a crítica apenas assinalava a beleza das formas e
encontrava os temas, discorrendo sobre as questões filosóficas ou sobre o fundo social da
obra, mas detendo-se especialmente nas anedotas sobre a vida do artista
238
. Não havia grande
número de trabalhos voltados ao estudo do significado, através da forma, e ao exame das
técnicas.
Por essa época, Borges escreve “Nota sobre Walt Whitman”. A moldura do
ensaio é uma proposição, que divide a literatura em dois tipos de realizações, os livros
1
FOUCAULT, Michel. O que é um autor? S.L.: Passagens, 1992, p.48-49.
2
TAINE, H. A. “Racine”. Em: ___. Ensayos de crítica y de historia. Madrid: Aguilar, 1953, p. 559.
3
CALDERÓN, Demetrio Estébanez. Diccionario de términos literarios. Madrid: Alianza Editorial, 2006,
p.884.
82
absolutos versus os livros parciais. Da contraposição, salta que enquanto um tipo de escritor
tenta uma obra imortal, os outros seriam aqueles, cujas obras conseguiram um impacto
limitado à sua época - portanto uma realização parcial nesta concepção. Ressaltando os
esforços de Yeats, Joyce, Pound e Eliot para conseguir uma obra perene, entende-se que o
livro absoluto é aquele que visa à larga duração que o ensaísta está valorizando. Esse
ensaio, que trata a poesia de Whitman, diz muito sobre a poesia, em geral. Seus exemplos
tecem a idéia de que o poema pode escapar ao pessoal, em suas representações. Mostra que
isto é especialmente favorecido, quando o poeta procura o genérico; quando descreve atos
fundamentais da vida humana; quando incorpora elementos de diferentes épocas à sua poesia,
ou ainda, quando recorre a símbolos, etc. Ao mesmo tempo, em sua classificação dos temas
utilizados, para tentar o livro máximo, Borges faz ver que foram utilizados temas altos e
importantes; temas triviais; temas menores; mas também temas negativos, nesta tarefa. Fica
sugerido assim, que o tema não é o fator chave na obtenção de um livro absoluto, mas
também, que a poesia, que deseja perdurar, não pode se limitar às poucas experiências de seu
criador. Ademais, ele justifica o intento de Mallarmé, de fazer uma grande obra com temas
negativos, dizendo que o francês percebeu que as artes tendem a ser como a música, na qual
“la forma es el fondo”. Assim, o ensaio confere relevo à forma e levanta a percepção de que o
poema excede as experiências próprias, através dos arranjos formais, uma vez que eles
significam mais do que o autor poderia prever. Dessa maneira, fica estabelecido um ponto de
afastamento: se Whitman se lança à tarefa de um livro total, seu volume ultrapassa a
expressão de sua realidade biográfica.
Borges ainda apresenta três citações sobre a poesia do norte-americano: a de
Abercrombie, de que o poeta “extrajo” essa poesia de suas experiências; a de Edmond Gosse,
de que este sujeito poético é literatura em “‘protoplasma’”; e a sua própria opinião, de que
Whitman, o homem de letras, é distinto de Whitman, o herói semidivino. Assim, é possível
pensar que o eu-lírico deixa o campo vital, desde a concepção do poema, pois nele, não se
apresenta o poeta tal como é, mas uma imagem do autor. Talvez não seja o que realmente fora
o poeta, mas o modo em que este se vê, ou o modo em que deseja projetar-se, em seus versos.
Sua segunda citação mostra que o sujeito poético se completa no ato de leitura, de maneira
que ele também recebe o acréscimo das reminiscências e sentimentos pessoais de seu
interlocutor. Logo de sua opinião, Borges compara o personagem Dom Quixote ao herói de
Leaves of Grass. A idéia aparecia em “El Otro”. Surge o entendimento de que o eu-lírico é
tão diferente de seu autor, quanto o romancista de seus personagens, de modo que ele poderia
ter uma personalidade muito distinta à de seu poeta, como ocorre aos heterônimos de
83
Fernando Pessoa. Poderia ainda ser uma figura gerada especialmente em relação com o tema
proposto, isto é, um eu-lírico mido para o tema da indecisão amorosa ou um eu-lírico
irascível, adequado ao tema do ódio, etc.
O ensaísta até apresenta as diferenças entre Leaves of Grass e as biografias
sobre seu autor, para mostrar a incompatibilidade nos dados. Ademais, Borges constrói duas
figuras bem nítidas, ao longo do ensaio. Enquanto Whitman é o homem que almeja o livro
absoluto; o sujeito de seus poemas é uma espécie de prisma, capaz de refletir características
de todo ser humano. O contraste se amplia ao atrelá-los, um a Cervantes e o outro ao Quixote,
de modo que Whitman seria o escritor, em sua cela; ao passo que o sujeito dessas poesias,
seria tanto quanto o Quixote, um andarilho livre e errante. Borges parece buscar um
estereótipo de erudito, ou uma imagem pessoal de erudito, asseverando que Whitman é
“casto, reservado, taciturno”. Quanto ao personagem, ele não parece o preocupado, com
um perfil exato, quanto em estabelecer uma eficiente oposição ao anterior - “efusivo y
orgiástico”. Enquanto um é o “pobre literato”, o que sugere a triste vida de um sujeito
comum; o outro é apresentado como um vagabundo despreocupado e de vida feliz. Observe-
se o paralelo em “Walt Whitman, hombre [...] leyó [...]; Walt Whitman, personaje poético
[...]”. Ele confere ao homem de letras as leituras, que ajudaram a compor a obra; e atribui ao
personagem poético as experiências e viagens, “New Orleans”, “Georgia”. Borges não tenta
negar as vivências, ele apenas as retira do autor e as transfere ao ser ficcional. Assim, à luz do
ensaio, Whitman-personagem é o tipo experimentado em muitas aventuras. Em contrapartida,
Borges faz do colega de profissão, um leitor, um homem de vivências mentais, como ele
mesmo.
O processo de gerar duas figuras surge desde sua metáfora para o livro,
quando diz que o personagem é o “salvaje” amistoso”, que o autor descreve com “ternura
feroz”. Ou seja, Borges apresenta neste “personagem poético”, o carnal, o bárbaro, uma
espécie de homem primário, capaz de estabelecer uma ponte entre si e a humanidade inteira.
Essa visada é eficiente para tornar o personagem um ser de vida agitada, diferente do perfil
comum de escritor. Assim, vida e obra são opostas, através da sugestão de que a poesia não se
faria sem o esforço da leitura e sem o domínio da técnica. Ademais, no ensaio, Leaves of
Grass é um “orbe paradisíaco”, ao passo que a vida é uma “crónica insípida”. Com isso, o
léxico “orbe” e a expressão “transición melancólica” traduzem o sentido de que a poesia
whitmaniana seria um outro mundo frente à realidade. Essa poesia é portadora de felicidade;
enquanto a vida está associada ao insípido e ao comum de cada dia. Portanto, o sujeito da
84
poesia também é distinto do poeta, ao integrar uma representação de felicidade, ou de
qualquer realidade ideal.
Ainda são comparados os heróis românticos que “prolijamente acentúan sus
diferencias”, com o eu-lírico de Whitman que “quiere parecerse a todos los hombres” (1974,
p.250). Portanto, a seu ver, o trabalho do último não é romântico, porque esse eu-lírico tende
ao universal. Ao mesmo tempo, Borges procura opor-lhe os boêmios Byron e Baudelaire,
cujas obras são usualmente relacionadas às suas experiências pessoais. Surge o humor ao
comentar que estes poetas dramatizaron, en ilustres volúmenes, sus desdichas, Whitman, su
felicidad”. Ao não dizer que os aludidos escritores registraram ou apresentaram, mas sim que
“dramatizaron” suas vivências, percebe-se a idéia de que a poesia, mesmo quando o poeta se
propõe uma expressão pessoal, pode se afastar da realidade biográfica pela ênfase, conferida
ao recorte e ao destaque dos sentimentos ou experiências, que se deseje externar. O próximo
passo é atrelar o personagem de Whitman ao Zarathustra de Nietszche, pela “felicidade” que
ambos propõe ao leitor. Isto chama a atenção para a inconsistência de traçar relações diretas
entre autor e eu-lírico, o mesmo em um poema, que em um texto de filosofia
239
. Neste caso,
compreende-se que o sujeito da poesia não apenas “dramatiza” vivências, mas à semelhança
do “eu”, utilizado no texto do filósofo, também poderia realizar a poetização de uma idéia ou
conceito, como Borges propunha em sua juventude.
“Un hecho falso puede ser esencialmente cierto”, assevera o ensaísta. Como
exemplo, ele menciona o mito de que Enrique I nunca sorriu após a morte do filho. Assim, o
texto como mentirosa a crença de que o rei tenha apresentado sempre o mesmo rosto
imóvel através dos anos, mas lhe confere verdade, enquanto um símbolo da profunda tristeza
do soberano. Sua reflexão suscita o pensamento de que a poesia não vai reproduzir a realidade
do poeta, com a mutabilidade de seus sucessivos estados emocionais. Assinala contudo, a
possibilidade de que em seu significado, ela venha a captar a essência, do que está por trás de
uma realidade. Ou seja, ele evoca o caráter simbólico do poema, contra as leituras biografistas
de Whitman. Borges ainda comenta o boato de que soldados alemães teriam torturado alguns
belgas, no começo da Guerra Mundial de 1914, mostrando que o episódio das torturas pode
ser falso, mas apontando sua efetividade, enquanto uma profecia da série de horrores, que se
seguiram na história. Assim, ele desvia a poesia de uma representação do presente, ao indicar
que ela poderia assumir um caráter revelador em relação ao futuro - não diríamos uma
previsão, mas que, talvez ela exiba uma extraordinária força significativa, junto às futuras
gerações.
85
Por outros exemplos, Borges procura uma distinção que fica clara no rodapé,
a diferença entre racionar algo e estar convicto de algo. Sua anedota sobre Nietzsche nos diz
que em 1874, ele e condena a doutrina do eterno retorno; em 1881, a postula. A explicação
sugerida é a de que, em um primeiro momento, o filósofo apenas pensa e entende o eterno
retorno; em um segundo momento, uma súbita compreensão e aceitação do que lera o
conduzem a postular essa doutrina. O alvo parece ser o epíteto de “poeta da democracia
nascente”, de modo que nela é possível entrever uma tentativa de afastar Whitman, de um
conhecimento pragmático do sistema político, e de atá-lo a uma mera exposição intelectual
ligada ao mesmo. Assim, Borges atribui ao poeta norte-americano o desejo de imaginar um
“democrata ideal”. O ideal, e não o verdadeiro democrata, como se recusasse a idéia de que o
poeta houvesse poetizado o resultado de uma experiência pragmática com o novo sistema
político. Com isso, a poesia também se afasta da exposição do que o autor realmente sente e
acredita, uma vez que poderia estar tratando, do que seria, para si, apenas uma vivência
mental.
O ensaísta primeiro afasta Whitman dos autores românticos, para depois
aproximá-lo dos clássicos. Ele indica a presença de um mesmo recurso em uma série de
textos, no livro sagrado do Gita, nos textos dos filósofos Heráclito e Plotino, e ainda no poeta
persa, Attar. Ademais, comenta que Emerson os hindus e ainda alude ao trabalho do poeta
Stefan George, fazendo-o parecer uma variação dos anteriores. Com isso, ele sugere que, para
suas largas enumerações, Whitman teria, não uma, mas diversas fontes, que o recurso
consta de toda uma série de textos anteriores. Assim, faz com que os poemas pareçam
derivados de muita leitura, e por ende, da tradição anterior. Compreende-se em paralelo que o
poema pode ser convencional, quando recupera os temas e formas clássicas da antiguidade;
ou ainda, porque ele pode cair, ou voluntariamente resgatar, os procedimentos ou lugares-
comuns, que os poetas, canônicos ou menores, de muitas gerações, julgaram adequados ao seu
exercício.
Quase ao final do ensaio, Borges procura um último modo de inserção de
Whitman no legado literário, neste ponto, através de um tema da tradição. Ele lembra o topos
da imortalidade do poeta, citando Shakespeare e Horacio como precursores. A escolha destes
poetas já reitera tratar-se de um tema fortemente convencional, uma vez que tais escritores são
fonte de temas, para inúmeras obras. Borges alega três razões pelas quais os poetas voltariam
a esse lugar comum: o orgulho, o suborno e a vingança. O orgulho sugere o pensamento de
que o poeta acredita, de antemão, que seu trabalho obterá reconhecimento, pois na verdade,
ele ‘canta sua imortalidade’, sem contudo saber se ela virá. Então, o suborno nos lembra, que
86
para alcançar essa glória, o autor supostamente terá de agradar a crítica. a vingança, faz
pensar na relação da obra com a tradição - talvez aluda ao procedimento clássico de emular.
Assim, recorda o vínculo, através do qual, uma obra ‘paga’ seu débito para com as anteriores.
O importante é que com essas razões, o ensaísta lembra que os poetas não escrevem somente
para si mesmos, mas têm em vista a recepção pelo público leitor, pela crítica e suas relações
com as obras pré-existentes. Ao mesmo tempo, mostra que a poesia pode se afastar em muito
das vivências pessoais, quando um autor visa a convencer a crítica dos méritos de sua obra.
Contudo, se Whitman segue um ‘topos’ convencional, neste ponto, seus versos não trazem um
mero registro de suas experiências. Além disso, sugere que pela técnica e pelo aproveitamento
do tema tradicional, Whitman torna-se um dos escritores que chegaram à conquista de um
livro absoluto.
Discussão I - Este é um ensaio de crítica literária, que gera teorias a respeito das relações
existentes entre escritor e obra poética. No entanto, essa teorização genérica, que parte do
caso particular da poesia de Whitman, ainda parece ir ao encontro de uma questão mais
específica: suas relações com a geração literária argentina de 20.
Esse viés se reflete em toda a armação do ensaio. É identificável desde o
título, “Nota sobre Walt Whitman”, que descortina uma dupla perspectiva. De um lado, reflete
a configuração efetiva do texto, pois ele é semelhante a um prólogo, no qual um editor ou
crítico fornece um comentário explicativo ao grande público. Por outro lado, mais que um
simples nome genérico para um artigo literário, “nota” se deixa ler enquanto uma advertência
para que se reconheça algo. Com este título começa uma ficção enunciativa para Borges.
Como em muitos de seus ensaios, ele é o erudito, que conhece textos hindus e o poeta persa
do século XII, citando uma enorme quantidade de autores por todo o texto. Ele se posiciona,
ademais, como o crítico, aquele que deseja prevenir contra eventuais percalços e corrigir o
‘senso comum’ das leituras amadoras.
Obter uma voz autorizada, através da ficção enunciativa, torna-se
importante, quando o ensaio veicula outra ficção, a de seus próprios adversários. O texto
revela que seus rivais são aqueles que executam “la sumaria identificación de Whitman,
hombre de letras, con Whitman, heroe semidivino de Leaves of Grass [...]”. Fica claro que é
uma crítica que na obra de Whitman, um relato de suas experiências pessoais, como se
nelas existissem as mesmas aventuras de seu personagem poético. O ensaísta ainda nos diz
que eles cometem o erro da “adopción del estilo y vocabulário de sus poemas [...]”. Esse
comentário torna mais exato o anterior, quando faz pensar que esses ‘imitadores de Whitman’
87
não são somente um grupo de críticos, mas possivelmente um grupo de escritores que possui
textos críticos, que eles copiam o autor estudado. Se levarmos em conta o peso que Borges
atribuía à obra de Whitman como referência para grandes poetas da literatura hispano-
americana, como Neruda e Darío
240
, seus argumentos começam a fazer sentido, pois, se estes
escritores se deixaram influenciar pelo norte-americano, autores menores podem ter
reproduzido seu estilo. Basta lembrar que no começo do século XX, grande parte da crítica
ainda estava constituída de escritores que liam e resenhavam a produção nacional e
estrangeira.
Mas a argumentação do ensaio faz uma projeção mais clara de seus
destinatários. No primeiro parágrafo está a idéia de que a literatura pode ser como a música na
qual a forma é o fundo. Ou seja, ele lança a idéia de que a forma é significativa. Então, se
entrevê um grupo que acredita ler nas obras a exposição direta das vivências do autor,
esquecida de que a forma media, preenche, altera e distorce tais experiências. A seguir,
Borges cita Mallarmé com sua famosa sentença, de que o livro é o fim de todas as coisas. Por
isso, percebe-se que talvez ‘esses rivais’ tomem a literatura enquanto um meio para fins
ideológicos, princípios humanitários ou políticos. Ainda vale lembrar que ele está evocando
um simbolista, quando é sabido que estes combateram contra o Realismo, que precedera sua
escola. Ao mesmo tempo, trata-se de um poeta que se perguntou pelos limites da
referencialidade na literatura
241
. Esse sentido se consolida, no trecho em que assevera que “un
hecho falso puede ser esencialmente cierto”. Desse modo, ele propõe ao leitor que a
linguagem não é apenas referencial, mas que também simbolicamente ou profeticamente pode
adquirir verdade. O mesmo antagonismo pode ser perceptível na própria proposição de livro
absoluto, isto é, um livro eterno voltado para o genérico e não para as realidades sociais de
um determinado tempo. Está presente ainda, quando Borges demonstra, que para empreender
um livro máximo, não faz falta um tema importante. Ao contrário, em sua argumentação, até
os temas banais e negativos podem ser considerados adequados para tal façanha. Desse modo,
o ensaísta leva a pensar que combate contra um grupo que confere grande valor à temática. O
mesmo afastamento se descortina em seu comentário quase didático de que “más importante
es compreeender que el mero vagabundo feliz que proponen los versos de Leaves of Grass
hubiera sido incapaz de escribirlos”. Novamente, o ensaio projeta a existência de um grupo
que confunde personagem e autor, e que não atenta para a técnica e imaginação, envolvidas
em uma obra poética.
A oposição a este grupo se sente sobretudo nos momentos em que o ensaísta
faz uma espécie de jogo de provocações dentro do texto. Borges faz a provocação de que
88
Whitman fue” o que estava em seus versos, como se perguntasse, se o autor real poderia ter
sido o futuro, o leitor e até o ‘sem-corpo’, ou mesmo o morto anunciado em seu poema. Ainda
uma segunda vez afirma que Whitman “fue” e sintió” tudo o que está em seus versos, para
em seguida corrigir, “no en la mera historia, en el mito”. Com tais burlas, percebe-se que
‘esse outro’ coloca a poesia na direta dependência de seu contexto. Em certo ponto, Borges
simula comiseração por esta classe de idéias, Aun más perdonable es el caso de quienes
atribuyen una doctrina a experiências vitales y no a tal biblioteca o a tal epítome”. Colocar
doutrinas na dependência de leituras é conduzi-las ao oposto das vivências. Sua sentença
funciona como uma comparação velada: se até as grandes teorias partem dos livros, quanto os
poemas não podem ter se valido da tradição? Ainda, Borges poderia ter concedido que a obra
se fez em relação com seu tempo, pensando na relação dos poemas com a democracia em
processo, mas não. Ele a leva ao terreno das vivências intelectuais. Ainda, se este é um grupo
que entende a poesia em estreita relação com a realidade, faz sentido que ele não se poupe o
trabalho de chegar ao pólo oposto com seus argumentos.
Essa é última faceta que Borges condena neste tipo de interpretação, a
imagem de um Whitman político, talvez o militante de um partido, talvez um defensor do
gênero humano, de qualquer forma, um autor ligado à experiência da democracia. Neste
ponto, o ensaio tem uma conexão com “El Otro”, no qual o jovem acredita que Whitman
vivenciou os fatos de um poema, e, ademais, apresenta idéias de um escritor comprometido.
Pensando conto e ensaio, juntos, esse grupo, que o jovem representa, no poeta norte-
americano um escritor político, cuja obra reitera a vivência.
Desse modo, explica-se o efeito geral que este texto procura criar, um
processo de desambiguação. É como se houvessem dois ‘Whitmans’, de modo que sua
proposta seria a de demonstrar qual deles, na concepção borgeana, corresponde efetivamente
à grandiosidade de Leaves of Grass. Como visto, o ensaio faz desse escritor, um literato
interessado na mais alta realização neste campo - o livro absoluto. À semelhança do trabalho
com a figura de Sarmiento em um texto posterior, Borges constrói o perfil de um escritor de
gabinete para o norte-americano. A argumentação ainda sugere que a pacata vida do escritor
teria lhe permitido tornar-se um grande leitor, e desse modo ter acesso à tradição, cujos temas
e recursos auxiliam a compor sua obra. Em contrapartida, sabemos qual é a outra leitura:
Whitman, um homem vivido. O ensaio sugere que o outro grupo vincula o norte-americano a
poetas como Byron e a Baudelaire, como se ele fosse um autor boêmio com sua vida noturna,
com suas aventuras amorosas, etc. Segundo a lógica do ensaio, os antagonistas da versão
borgeana, acreditariam que ele coloca sua vida em versos. Seria portanto, um aventureiro, um
89
autor viajante que conhece vários lugares, ou ainda um herói local que apóia as mudanças
políticas em seu país. Por isso, é possível tentar ouvir as vozes de um grupo que se encaixa
neste perfil, comparando suas afirmações com as do ensaio:
a) “A maneira de se expressar é secundária quando se escreve com o coração e não com a
pena”, diz o editorial da revista Los Pensadores
242
, ligada aos boedistas. Mediante tal classe
de afirmações, é importante que Borges vindique a técnica no julgamento das obras literárias
e que enalteça os recursos utilizados por Whitman. Não porque entenda que ela seja o mais
próprio na arte literária, mas também pelo fato de que seus poemas e ficções viriam a se
destacar neste aspecto.
b) “É imprescindível também fazer alusão ao meio, cuja influência é direta. Esse alcance ou
projeção social deve aparecer na obra [...]”
243
. Diz o boedista Emilio Soto. Dessa forma,
quando Borges encarece o livro perene e mostra que o tema não é o mais importante para uma
obra literária, ele polemiza com essa estética. Suas afirmações desvalorizam as poéticas que
conferem grande relevância à temática social. Cabe lembrar que os temas são a pedra de toque
da literatura realista e comprometida. Os grupos que adotam o realismo socialista, em geral,
não se fazem tantas exigências formais, quanto exigências temáticas. Em contrapartida, ao
preconizar a forma, Borges está fornecendo ao blico alguns critérios que viriam a favorecer
sua narrativa, e já favoreciam seus poemas e ensaios mais voltados para temas filosóficos e
intemporais – os quais seriam desprezados na chave de leitura oferecida pelo boedista.
c) Não é segredo para ninguém que a literatura tem sua política”; “A face social que essa
literatura traz não é senão seu corolário lógico”
244
. Enfatiza o mesmo Emilio Soto. Vimos
que na parte final da nota, o ensaísta se empenha em não fazer de Whitman um legítimo
expoente da democracia e retirá-lo do campo das verdadeiras convicções políticas. É possível
que ele o faça, levando em conta a certeza de que a literatura possui sua especificidade, aparte
de qualquer empreitada ideológica. Mas se no ensaio ele preconiza as técnicas, e o valor da
forma, parece estar tentando colocar-se a si, e à sua literatura, a salvo de julgamentos
baseados em critérios extraliterários. Essa atitude parece importante por dois motivos.
Primeiro, porque ele recupera um precursor ilustre para sua obra - Whitman, o qual evoca
inúmeras vezes. Além disso, como observou Yurkievich, na poesia borgeana “una
tendencia a la idealización, a la abstracción, a la irrealidad que gobierna, cada vez más, su
marcha de poeta. Produce un alejamiento creciente de la actualidad, […]”
245
. Assim, com
levar Whitman ao campo das “vivências intelectuais”, Borges também prepara seu público
90
para uma poesia mais fria, mais mental - um tipo de lírica que o argentino tinha em mente
nos anos vinte
246
, mas o qual ele viria a consolidar a partir dos anos sessenta.
d) “[Nós, os escritores] Vivamos mais perto do homem despojado de todos os hábitos
pestilentos da civilização, do homem despido, órfão e miserável. Mais perto do trabalho e da
natureza. Conhecemos o ateliê, a fábrica e o hospital; a sujeira dos cortiços, a sujeira e a fome.
Conhecemos a dor de nossos irmãos em Cristo por experiência própria”
247
salienta a
declaração da Revista Los Pensadores. Essa exigência encontraria oposição em outra
manobra borgeana. Ele afasta a obra de Whitman da idéia romântica do poeta que verte suas
tristezas pessoais em seus versos. Precisamente, ele a coloca em descrédito gerando a
sugestão de que, mesmo quando os poetas se propõem exibir seus sentimentos e vivências,
ainda incorrem em distorção pela ênfase. Borges diz que esses românticos ‘teatralizavam’
suas vivências. Ao mesmo tempo, ele salienta as relações de Whitman com a tradição, tanto
por seus temas, quanto por seus procedimentos, aproximando-o ao modo clássico de escritura.
Portanto, se um poeta de grande êxito não precisou de aventuras extraordinárias para conceber
sua poesia, então Borges consegue desqualificar a exigência de uma vida interessante, ao
passo que autoriza sua própria voz. Afinal, se não era um homem rico, tampouco havia
experimentado os problemas da classe operária, e de qualquer forma não faria uma poesia
dedicada a apontar os problemas da sociedade. Ainda com seu apreço ao modo clássico, ele
rejeita a originalidade ‘periodística’ de apontar temas sociais que despontam todos os dias. Ao
contrário disso, em seus ensaios, vai tornando a erudição um valor. Ademais, através de suas
constantes comparações entre obras e precursores, ele exalta um critério bastante produtivo
para o julgamento de sua própria obra.
No período da publicação deste ensaio (1932), Borges tinha escrito três
volumes de poesia, mas o autor ainda produziria vários outros até a década de oitenta.
Portanto, deve-se tentar entender esse momento dentro de sua produção. Estudando a lírica
borgeana, Saúl Yurkievich ressalta que nela não uma mudança radical, mas um
desenvolvimento que gradualmente foi levando ao que era mais condizente com a visão de
mundo do poeta. No entanto, ele entende que Borges passa de um tipo de atitude artística a
outra: do romantismo expressionista dos anos vinte, a um neoclassicismo de sua segunda
etapa poética. Sua primeira poesia tem uma atitude “naturalista”, é “vital, sensualista, abierta
a toda la riqueza [...] ideas y sentimientos que se experimentan en contacto directo con la
realidad”. Ao passo que a segunda atitude, “abstracta”, “en lugar de la plenitud inabarcable
que ofrece la percepción concreta, tiende a fijar los símbolos, las analogías, los arquetipos que
91
constituyen el sustentáculo del mundo sensible; no busca la sustancia sino la esencia; no lo
fugaz y accidental, sino lo eterno y homogéneo”
248
. Portanto, se a primeira poesia borgeana é
vital e aberta às impressões que o mundo provoca, na segunda há um predomínio das
abstrações que racionalizam e buscam o essencial. O crítico ainda revela que nesta segunda
fase, Borges se esquiva de expressar sua vida quotidiana, de temas como amor e erotismo;
buscando, em contrapartida, uma arte mais idealista e tornando-se um poeta intelectual, para
quem a poesia deve muito às leituras, já que “el desencadenante [dos poemas] es casi siempre
racional, consciente”
249
. Ou seja, os comentários do crítico mostram que os trabalhos poéticos
do jovem Borges estão mais próximos de sua realidade, ao passo que o velho poeta exibe uma
poesia mais mental.
Ramona Lagos, que à diferença de Yurkievich, pôde acessar a produção
borgeana entre os anos setenta e oitenta, entende que, de fato, os poemas da etapa madura nos
anos sessenta, são predominantemente racionais, contudo, “coexiste, aparentemente
secundaria y paradójica la faz del instinto, del temor elemental, de lo ‘demasiado
personal’ [...] extraño a la especulación estética que privilegia lo intelectual”
250
. Para ela, na
segunda fase de sua lírica, Borges valoriza os temas filosóficos e de cunho racional,
conferindo menor atenção à expressão da dimensão física do corpo e do contato com o
mundo; no entanto, ela detecta que tais elementos assomam à sua obra, ainda que de modo
involuntário. Outro dado interessante nesta pesquisa, é que enquanto, em geral, a crítica se
volta para os três primeiros livros de poemas dos anos vinte e para a poesia borgeana dos anos
sessenta, como se houvesse um hiato na produção deste autor, Lagos procurou estudar os
poemas desse intervalo. Assim, ela assinala que os poemas da década de vinte, apresentam
tanto elementos da dimensão física da existência, quanto elementos de proposição intelectual.
os poemas da década de trinta (o intervalo) prefiguram sua poesia dos anos sessenta,
segundo ela; e a grande diferença entre os poemas juvenis dos anos vinte e trinta, é que nos
últimos “junto a una interrogación intensa sobre mismo y el mundo, [há] un dramático
cuestionamento de su trabajo literario”
251
. Assim, Lagos indica que os anos trinta assistem a
uma profunda transformação na poesia borgeana.
Vimos em nossos pressupostos que o (segundo) jovem Borges acreditava
em Whitman enquanto um poeta, um lírico da expressão genuína dos sentimentos. Na “Nota”,
observamos que o Borges dos anos trinta revisa a poesia do norte-americano para associá-la
ao trabalho do artífice, descobrindo nele as técnicas e a retomada da tradição. Essa
transformação parece ter sido aludida de modo simbólico no conto “El Otro”, quando o jovem
entendia a poesia associada às vivências do poeta, ao passo que o velho preferia entendê-la,
92
enquanto composição de um significado através de suas figuras. Ou seja, na narrativa, Borges
sugere que para tornar-se o escritor que chegou a ser; em sua juventude, foi um passo
importante deixar de investir na poesia enquanto expressão pessoal, como o faziam os
escritores de sua geração
252
. Yurkievich atesta a existência de uma mudança na poesia
borgeana, relacionável a este aspecto de poesia vital a abstrata. Lagos assinala que houve
uma mudança, na qual a racionalização da poesia, abafou, mas não extinguiu de todo a
presença de elementos de ordem pessoal. Ainda muito interessante é o dado de que essa
mudança teria tido início nos anos trinta.
Esses dados nos levam a crer que as reflexões efetuadas na “Nota”, e em
outros ensaios recolhidos em Discusión (1932), os quais chocam com os postulados do grupo
boedista da década de vinte, foram fundamentais para essa transformação. Além da alusão no
conto, e da releitura de Whitman efetuada no presente ensaio, três motivos nos direcionam a
esta idéia:
1. O Borges da Europa não tinha concepções poéticas biografistas. Inclusive, em seu
primeiro ano de regresso à Argentina, ele chega a tecer o projeto de uma poesia sem
emoções
253
. Assim, a defesa de uma poesia ligada ao biográfico, parece ter surgido
diante das necessidades de definir um criollismo legítimo em oposição a um falso
criollismo
254
. Com isso, entendemos, que os problemas da representação do nacional
na literatura, parecem tê-lo aproximado de concepções biografistas, de que o
verdadeiro criollista é aquele que tem um sentimento e uma vivência autêntica de seu
país. Mas vimos também, que em função do socialismo, os autores de Boedo faziam
exigências semelhantes aos poetas poeta é aquele que vive e sente as necessidades
do povo.
2. Em 1928, Borges chega a declarar que, por seus temas, talvez ele devesse ter sido
incluído entre os escritores de Boedo, que os temas deste grupo eram facilmente
associáveis ao cânone das obras criollistas
255
. Ou seja, o criollismo faz com que ele se
aproxime do que eram os postulados boedistas em poesia.
3. As críticas e as discussões entre os integrantes dos grupos de Boedo e Florida ocorrem
entre a segunda metade dos anos vinte e o início dos anos trinta (entre 1924 e 1930,
sobretudo). Portanto, o livro Discusión (1932) é escrito logo depois da polêmica. E se
Borges não escreve vários artigos apresentando sua posição no período; tanto neste
ensaio, quanto em La Postulación”, é possível entrever as respostas borgeanas aos
assuntos que foram debatidos entre os grupos.
93
Por tais motivos, entendemos que durante a década de vinte, Borges assimila
a pergunta pelo nacional a seu projeto poético em desenvolvimento, mas a estética realista
dominante até a década de trinta é descartada, em favor de suas idéias anteriores (afins às do
‘primeiro Borges’) de uma arte de elaboração ativa da realidade, mediante recursos formais.
Acreditamos que este passo decisivo para seus futuros trabalhos ocorre no momento em que
ele critica essa estética, durante o período de concepção de alguns dos ensaios que integram
Discusión. Estética com a qual chegara a identificar-se por seus temas, em 1928. Tendo em
conta os estudos de Olea Franco
256
, percebe-se que em Evaristo Carriego (1930), Borges
afirma seu desejo de carregar o trabalho com o local para além da década de vinte. A nosso
ver, durante as discussões da polêmica Boedo-Florida, ele reafirma sua inclinação por uma
literatura calcada nos recursos, de cunho altamente imaginativo e ficcional. Algo que é
fundamental para sua poética da maturidade.
3.2. UM PRÓLOGO BORGEANO: O ENSAIO LITERÁRIO E A LEITURA CONTRA O
REALISMO E O COMPROMISSO.
O prólogo-ensaio “Domingo F. Sarmiento: Facundo”, de 1974
257
, foi
escolhido para análise, uma vez que esclarece algumas idéias, com as quais, Borges se
justifica diante do fato de não ter cedido às pressões para tornar-se um escritor engajado.
Ademais, suas críticas à capacidade de apreensão dos fatos históricos por um tipo de discurso
historiográfico são afins aos questionamentos que ele endereça ao realismo literário no conto
“El Otro”, de 1975. No programa deste prólogo-ensaio há três movimentos: o questionamento
de um tipo de historiografia a partir da literatura; uma revisão da escolha do símbolo para a
identidade argentina – que não será abordada nesta análise; e a problematização da efetividade
do engajamento nos textos literários.
Essas questões parecem ter sido vertidas em uma forma tríptica, com uma
fase final retomando a primeira
258
. Deste modo, percebe-se que em cada uma delas, o foco é
especialmente dirigido a uma destas matérias, as quais conformam nítidos campos de força, e
cuja íntima conexão faz com que se apóiem e sustentem mutuamente. De modo especial,
todas estão atravessados pela discussão sobre a historiografia, abordada com maior ênfase ao
princípio e ao final do texto. Na primeira etapa, um tipo de historiografia tradicional
259
é
apresentado como casual e subjetivo, enquanto o gênero ensaístico é exaltado por suas
94
dicotomias perenes. No segundo, os gauchos (escolhidos para o Martin Fierro) são
apresentados como meros pastores eqüestres despidos de qualquer patriotismo, enquanto a
escolha de Sarmiento para o personagem (Facundo Quiroga) é valorizada por sua motivação
literária. No terceiro, as ligações do volume, com o contexto, são relativizadas mediante o
poder do subconsciente no ato criativo e da imprevisibilidade da leitura, na recepção textual.
Na última parte do ensaio, uma última contraposição: a historiografia tradicional é
criticada por sua suposta imobililidade e dogmatismo, enquanto o ensaio narrativo de
Sarmiento é exaltado, por seus atributos literários e por sua perenidade.
Um procedimento, que vamos denominar pluralização, auxilia na armação
interna destes quadros. Está na forma, já que cada uma dessas etapas do ensaio explicita um
par de antagonistas. Está no conteúdo, quando Borges quer transformar o hegemônico
discurso da historiografia tradicional em uma versão e quando ele mesmo apresenta outras
versões, suas e de outros escritores, a respeito dos fatos. Aparece de modo direto, quando ele
se declara favorável à pluralidade de causas. Surge ainda no mecanismo das citações do
parágrafo inicial, quando ele realça uma série de falas, isto é, de vozes plurais que questionam
a história. É visível, ademais, no título “Facundo”
260
. O nome da personagem remete ao livro
que poderia ter sido escolhido (a outra escolha) para a representação da identidade nacional.
Em seus textos críticos, Borges efetua uma releitura do cânone e das
tradições culturais, de modo a produzir uma reconfiguração do espaço literário. Reacomoda
nomes centrais da tradição européia ao valorizar e recuperar da berlinda literária nomes
menores, como os de Evaristo Carriego ou Stevenson
261
. Percebe-se que o mesmo processo
foi aplicado aos tópicos deste ensaio, uma vez que ele opõe o jovem gênero ensaístico à
tradição secular da historiografia; opõe a moderna descoberta do subconsciente à antiqüíssima
contextualização de um livro ou de um problema; e ainda opõe o Facundo: civilización i
barbárie ao já consagrado Martin Fierro.
Contestação da Historiografia Tradicional.
“Según esta obra [a de Nordau] puede haber un
conocimiento de hechos históricos particulares, pero no
una ciencia general de la historia, con leyes que
permitan profecias o previsiones”. BORGES, J. L.
“Nordau”. Textos recobrados (1931-1955).
Barcelona: Emecé, 2001, p.274.
O ponto de partida do ensaísta é uma desconfiança a respeito da apreensão
objetiva da realidade, através dos relatos históricos, a qual vai permear todo o texto. Borges
95
evoca o pensamento de Shopenhauer: “la historia no evoluciona de manera precisa y […] los
hechos que refiere no son menos casuales que las nubes, en las que nuestra fantasía cree
percibir configuraciones de bahías o de leones. Ou seja, ele deixa claro seu desafio de
provar que a historiografia tradicional é arbitrária. Quer mostrar que seus relatos são ‘casuais’,
e não causais. Assim, é possível entender uma contestação do modelo historiográfico
tradicional, com o argumento de que talvez não haja um grupo de causas e conseqüências
necessárias a encontrar; de que talvez, não haja movimentos e destinos ‘fatais’ no percurso da
humanidade. Ou seja, ele opõe a visão de uma história informe à idéia de que seria possível
encontrar uma mecânica precisa no desenrolar dos acontecimentos históricos. Na metáfora
emprestada, ainda fica expressa a idéia, de que perceber um movimento preciso na evolução
dos fatos históricos, seria algo como encontrar desenhos nas nuvens, isto é, fruto da
criatividade humana. Assim, ele propõe uma dificuldade para uma apreensão precisa dos
fatos. Chama a atenção para a presença da subjetividade na interpretação dos acontecimentos
e com a imagem do homem que olha para as nuvens, faz pensar que a historiografia, como a
narrativa literária, também se constitui a partir de um ponto de vista.
Borges ainda deixa perceber que os destinatários de sua polêmica são “los
que perciben o declaran que la historia encierra un dibujo, evidente o secreto”. A estrutura
indireta e alusiva apresenta a historiografia tradicional como uma mistificação, ‘uma álgebra
secreta’. Antes a compara com as “nuvens”, e agora “desenho”. Ambas as figuras escarnecem
dessa abordagem, revelando o posicionamento do ensaísta. Além disso, o trecho projeta duas
concepções opostas da história: a de que ela possui uma lógica que efetivamente descreve a
realidade e a idéia borgeana de que não há tal lógica. Portanto, a historiografia tradicional não
alcançaria uma descrição efetiva do passado, mas seria apenas um olhar subjetivo para com o
mesmo.
A seguir, uma fala de Antonio e Cleópatra de Shakespeare sugere que, com
freqüência, um novo fato histórico é interpretado à luz de algo que se conhece ou que se
viveu anteriormente. Este argumento, de que “Los ojos ven lo que están habituados a ver”
262
,
constava de “El Pudor de la Historia” (de 1952). Borges faz refletir sobre o quanto é difícil
julgar efetivamente de um evento. O historiador vai ao encontro dos fatos munido de uma
pequena parcela de conhecimentos, de vivências, de um método de abordagem, de seus
esquemas mentais de interpretação. No entanto, a história pode apresentar-se, talvez não de
um modo propriamente novo, mas por intermédio de um, ou de rios fatos que excedem a
diminuta rede, com a qual contava o pesquisador. Deste modo, fica a sugestão de que nem
sempre o historiador consegue captar a ampla significação de um fato, mas tende a
96
reacomodá-lo no território do que é conhecido, convertendo por vezes, o novo no antigo.
Em “El Otro”, a mesma idéia funcionava enquanto uma objeção ao trabalho dos escritores
realistas.
Entra um terceiro argumento, agora de Joyce, com a imagem de que a
história é um pesadelo. Quando procura o pesadelo, ao invés do sonho, desprende-se o sentido
de deformação horrível do real ou mesmo de algo irreal. Ao mesmo tempo, surge o sentido de
que, no discurso da história tradicional, os fatos se transformaram em símbolos. Neste caso,
ele seria uma espécie de alegoria, e sua composição, uma interpretação da realidade. Contudo,
se na metáfora central do conto “El Otro”, a literatura é um sonho, como a vida é um sonho,
que Borges aplique a mesma metáfora à história, poderia significar a atribuição de um status
de igualdade para história e literatura. Este sentido se confirma, quando em outro texto, ele
declara que a historiografia de Spengler é um novo “género literario”
263
. Com tais
considerações, parece tentar atingir o estatuto de discurso verdadeiro, que a historiografia
tradicional carrega como uma diferença em relação à literatura, com o argumento de que
ambas as disciplinas poderiam produzir um mesmo resultado, o de reagrupar os elementos da
realidade à luz de um sentido.
Como dito, Borges investe contra a historiografia tradicional, enquanto
discurso que pretende possuir a ‘verdade’. Diante dessa tarefa, o grupo inicial de citações
ainda é importante por dois outros motivos. Em primeiro, porque o mecanismo textual de
pluralização começa a aparecer neste ponto. O chamado de várias citações, isto é, de ‘várias
vozes’, ajuda a criar a idéia de relatividade dentro do texto. As diferentes vozes lembram a
diversidade de opiniões. Sugerem que um discurso não poderia acreditar-se como o único
detentor da verdade. Além disso, a modo de oposição à historiografia tradicional, Borges
poderia ter buscado referir-se a um historiador, cujo método julgasse mais adequado.
Contudo, ele utiliza as citações de um filósofo (Shopenhauer) e de dois escritores
(Shakespeare e Joyce) na contraposição. Ou seja, esta é uma contestação do discurso da
história tradicional, a partir da literatura e da filosofia. Atacar esse discurso apontando para o
que ele tem em comum com o literário, é, em última instância, uma tentativa de destruir as
fronteiras disciplinares. Seu motivo parece ser o de que, uma vez que elas caem, é possível
reclamar uma nova autoridade para a literatura, e portanto, para o seu próprio discurso de
escritor.
Neste prólogo-ensaio, Borges explora todas as possibilidades a seu alcance
para tecer críticas à historiografia tradicional. Tendo em conta seus ‘deveres’ de prologuista,
esse debate que interessa ao ensaio poderia encontrar restrições à sua plena exposição, em
97
virtude da matéria específica do prólogo, mas Borges consegue converter a obrigação em
vantagem. Uma vez que alguns historiadores poderiam tomar por factuais e conferir um status
de verdade a trechos meramente narrativos da obra de Sarmiento, ele desenvolve um duplo
movimento em relação ao livro. Por um lado, vai elogiar seu lado ensaístico-narrativo. Por
outro, vai utilizar a própria constituição do livro de Sarmiento para tecer suas objeções ao
discurso tradicional da história. Desse modo, ele desenvolve suas idéias, sem se afastar da
obra em exame.
Segundo o jovem Lukács, os ensaios são artísticos, que trabalham com as
formas
264
. Assim, percebe-se que Borges resolve destacar justamente as características
literárias do ensaio sarmentino. Quando ele comenta os motivos pelos quais Sarmiento
escolhe seguir a narrativa da vida de Facundo Quiroga em lugar de optar pela biografia de
Rosas, vai dizer que Facundo é escolhido para la composición de su obra”, pois “precisaba
un fin trágico”. Borges tenta convencer o leitor de que essa seleção obedeceu a motivos de
ordem composicional. Na manobra do ensaio, não é exatamente a vida atroz de Facundo o que
faz com que Sarmiento o escolha. Ao contrário. Em seu comentário, sobre o fim trágico de
Quiroga, aparece a idéia de que o decisivo foi a percepção, do escritor-Sarmiento, de estar
diante de uma vida altamente convencional e passível de conversão no personagem, que
tinha em vista. É como se ele preenchesse os moldes literários buscados. Com isso, se a
historiografia tradicional é apresentada como arbitrária, Borges oferece o significado de que a
opção sarmentina de fazer do Facundo o personagem do ensaio, seria plenamente justificada e
coerente com os objetivos estéticos do livro. O ensaísta inclusive aponta uma inverdade no
ensaio de Sarmiento. De acordo com ele, os caudillos não eram necessariamente gauchos, até
porque como ele alega, o pai do verdadeiro Facundo era um espanhol, ocupando um bom
cargo
265
. Portanto, no caso do caudillo,Facundo Quiroga, ser gaucho era uma opção. No
entanto, Borges não reprova o volume por isso. Apenas o justifica. Diz que o sanjuanino teve
de juntar caudillos e gauchos para construir com eles seu conceito de barbárie; isto é,
“urgido por la tesis de su libro”, identificou-os aos caudillos. Ou seja, segundo Borges, a
verdade é afastada em nome da idéia central que norteava o ensaio-literário. Dessa forma,
surge uma critica velada à historiografia tradicional, porque ela tentaria registrar a
mutabilidade da vida, quando o ensaio é elogiado, pelo motivo de que, como a literatura, ele
construiria uma idéia central, atribuindo sentido à realidade.
Outra observação deste tipo surge, através do comentário, de que na história
tradicional, as efemérides usurpam o lugar da realidade, perceptível no fato de que “es
costumbre olvidar la significación intelectual de las fechas históricas”. Com essa menção ao
98
fácil esquecimento do sentido sob as datas, ele parece aludir a um tipo de esquematismo
atuante na historiografia tradicional. Neste ponto, o prólogo é solidário a “El Otro” pois, em
ambos os textos, surge o significado de que o esquecimento ronda o discurso tradicional da
história pois ele precisa fornecer frases memoráveis, para que nos lembremos da
importância dos fatos destacados em seus manuais. Em franco contraste, Borges declara que o
Facundo “es el personaje más memorable de nuestras letras”. Assim, ao mesmo tempo em
que o prólogo acredita a perenidade do ensaio, sugere que o esquematismo da historiografia
tradicional a relega ao esquecimento. É como se essa história apenas amontoasse os fatos; à
diferença dos romances, cuja viva construção, faz com que eles permaneçam gravados na
memória.
Quase ao final do texto, Borges volta a apresentar a história em um quadro
de congelamento. O que deveriam ser marcos de referência, para pensar o presente em relação
ao passado, e recuperar o significado de episódios supostamente importantes, converte-se em
desconfiança, através do investimento semântico em aniversarios”, “centenarios”, fechas
de nacimiento y de muerte”. É como se os historiadores pudessem encontrar um significado
arbitrário, para uma série de ocorrências, cuja importância poderia ser relativa. Assim, um
argumento de “El Pudor de la Historia” parece esclarecer o que Borges indica, quando tenta
diminuir a importância do que a história tradicional se esforçou por consagrar. No aludido
texto, ele fornece o exemplo, que parafraseamos: quando a representação dramática era um
ritual a Dioniso e foi introduzido pela primeira vez um segundo ator no palco, ninguém
poderia ter notado nesta mera inclusão algo extraordinário - o nascimento do teatro
266
. Dessa
forma, ele compõe a visão de uma história pudorosa”. Isto é, a idéia de que ela é portadora
de grandes fenômenos, que aos poucos vão se descortinando. Precisam de tempo para
revelar sua dimensão, para que vejamos o quanto foram extraordinários. De modo que os
acontecimentos que ‘vão mudar a história’, os quais são verdadeiramente dignos de nota,
passariam desapercebidos muitas vezes. Portanto, surge o sentido de que, de um lado, com
freqüência, a historiografia anota e valoriza fatos corriqueiros; de outro, ao mesmo tempo, não
teria como julgar de certos eventos marcantes, porque só ao futuro estaria reservado o
conhecimento da real importância dos mesmos.
Em contraste com o imobilismo atribuído aos relatos históricos, o próprio
livro prologado é uma narrativa excitante e de muita ação. Talvez por mais esse motivo,
Borges se mostre favorável ao ensaio-narrativo. Então, vemos que pela via estética, um gesto
de nosso ensaísta pareceria estar indicando um modo para findar com um suposto
entorpecimento na historiografia. Comentando esse imobilismo, ele lembra o caso do
99
encontro de duas avenidas, cujos nomes pertencem a dois próceres, os quais foram inimigos
durante suas vidas. Então, no ponto em que constrói essa sensação de paralisia, o ensaísta
reintroduz o movimento, em suas observações, com um gesto narrativo: o segundo inimigo
“hizo degollar al primero”. Dessa forma, sente-se a crítica de uma classe monótona de relatos
históricos, mediante o pedido de uma história mais viva e marcante; mas também a
valorização da narrativa literária pelo dinamismo, que é facilmente atingível, neste tipo de
representação.
Esse imobilismo na história, ainda parece ser reiterado pelas instituições
pátrias: “partidos”, esquinas”, “plaza”, “museu”, “cuadros”, “mármoles”, bronces”. Se
antes, o ensaísta marcava as distorções na obtenção dos dados pela historiografia tradicional,
neste momento, vai propor que esses desvios foram fixados, mas além disso, vai sugerir
que podem existir interesses por trás dessa canonização patriótica. Em seu discurso, a história
aparece como uma espécie de memória oficial do passado, que amplamente acatada, não é
mais do que uma versão, que se passa por única e à qual todos se submetem. Esse significado
de versão inconteste se expande, quando Borges diz que seu pai costumava comparar o ensino
de história ao catecismo. Sugere assim que ela se tornou um dogma algo que não está
integralmente justificado, mas é inquestionavelmente aceito; um culto a heróis que talvez não
sejam heróicos de fato, como ele pensa a respeito do gaucho. Em “El pudor de la historia”,
nos alerta que uma das tarefas dos governos, desde os tempos de Goethe e sobretudo em seu
século, era a propagação de fatos históricos
267
. Assim, ele critica a historiografia tradicional,
que muitas vezes em nome de um patriotismo belicoso (ele dava como exemplos Itália e
Alemanha), se permitiria ser um instrumento de manipulação ideológica para os governos.
Ainda no mesmo texto, Borges assinala como algo maravilhoso, o fato de que um historiador
norueguês se houvesse disposto a narrar o episódio em que seu rei é vencido
268
. Lembra, desta
maneira, que nem sempre coincide a história narrada pelos vencidos, com a história narrada
pelos vencedores. Mas também, com isso, assinala a falta de imparcialidade que pode
envolver os historiadores, quando o nacionalismo está em jogo.
Logo que entra na descrição do volume de Sarmiento, Borges declara que o
sanjuanino não pudera viajar muito e que por isso se valera de “intuición”, “adivinación
genial”, “inventiva memória”, leituras, da imaginação nas noites de insônia, e ainda, que tudo
o que dissera fora filtrado por ódios e afetos pessoais. Como dito, o ensaísta aprova
amplamente o ensaio de Sarmiento. Contudo, ele parece querer responder àqueles que
desejaram ver no livro do sanjuanino um testemunho vivo de seu tempo, um documento da
história argentina. Por isso, aponta os fatores que, a seu ver, intervieram entre o escritor e a
100
realidade, mas que igualmente se interpõem entre os historiadores e os fatos históricos: a
memória pode distorcer os dados; as leituras podem fazer com que um fato histórico, com sua
especificidade própria, seja aproximado às leituras literárias; ou mesmo que por influência
destas, a exposição assuma um viés, dramático ou eufórico que não existira no
acontecimento; finalmente, fica a idéia de que as paixões pessoais também podem interferir
na imparcialidade de seu relato.
Borges ameaça dizer o que “vio” Sarmiento, de modo que dados da
realidade objetiva são esperados pelo leitor, contudo duas novas repetições do vio”, mostram
que ele deseja assinalar a subjetividade na visão que o sanjuanino teve da história. Comenta
que, percorrendo o deserto argentino, Sarmiento deve ter tido a percepção corrente, de que
quanto maior o tempo gasto em uma viagem, maior parece ser a distância. A sugestão é a de
que Sarmiento não viu o que era de fato o território argentino, mas o que as condições de seu
tempo, a distância, a llanura, o cansaço da viagem, a morosidade dos meios de transporte,
fizeram com que ele visse. Na verdade, Borges projeta o tempo sobre o espaço e utiliza uma
repetição, que os coloca em destaque, “ya que [...] tardamos”, “ya que [...] tardaban”.
portanto uma idéia de que o outro escapa ao relato efetivo das condições do país, fazendo
grandes inferências a partir do que sentiu e do pouco que pôde observar. Ou seja, ele aponta
mais uma vez para a subjetividade que poderia interferir na visão dos historiadores.
No mesmo parágrafo surge um trecho narrativo-descritivo, gerando um
panorama de vida selvagem: “índios”, “llanura”, hacienda salvaje”, el caballo y el toro”.
Novas escolhas lexicais produzem o efeito de dificuldade e descuidos com “ciudades
polvorientas”, “hondón” para Córdoba, e “margen barrosa”, para Buenos Aires. Conforme
o programa do prólogo, Borges está assinalando uma idéia do livro, de que o continente
abandonado precisa de gente para trabalhá-lo. Contudo, a imaginativa descrição borgeana
coloca o leitor ao lado de Sarmiento, deparando-se com os elementos que ele poderia ter
encontrado neste passado distante - pequenas cidades perdidas no meio do nada ou a vida
selvagem, simbolizada por animais e índios. Ou seja, apenas os elementos mais imediatos,
que devem ter chegado aos sentidos de Sarmiento. Em “La Postulación de la Realidad” e em
“El Otro”, entende-se que a realidade não estaria ao lado de certos escritores realistas, que
como os historiadores, tentariam, com uma visada abrangente, narrar os acontecimentos, sob
um viés coletivo. À semelhança do que se configura nestes textos, este ensaio sugere que os
historiadores poderiam captar uma parcela da realidade, através das impressões que se
produzem nos pequenos contatos com ela.
101
Borges demonstra que quer dar a sua versão do que ocorrera aos gauchos,
quando eles se depararam com os ingleses em Quilmes. Utiliza a mesma operação de que se
vale “Em Otro” e em “La Postulación”, ao narrar que “los gauchos del lugar se reunieron
para ver con sencilla curiosidad a esos hombres altos, de brillante uniforme, que hablaban
un idioma desconocido”. Assim como faz nos textos anteriores, ele proporciona “a realidade”,
isto é, sua visão do que ela seria. Expõe o despreparo diante dos fatos; a reação imediata de
curiosidade; a vivência sem compreensão; a mera percepção do idioma estranho, por parte
daqueles que vivenciaram a cena. Tanto este trecho do prólogo, quanto o citado em nosso
último parágrafo, assinalam a diferença que existe para Borges entre a realidade histórica
vivida e as pomposas narrativas da historiografia tradicional; mas também lembram as
diferenças que deve haver existido entre o que o “historiador” Sarmiento viu, algumas cenas e
locais específicos, e o que ele deduziu, isto é, o geral, o processo de formação e
desenvolvimento de um país. Assim, Borges aponta para o fato de que não se pode ter um
conhecimento integral de todos os eventos. Como dito, em sua visão, é possível ter contato
com uma parcela da realidade histórica. Assim, os historiadores estariam obrigados a uma
série de inferências metonímicas. Saltando desta, para uma idéia mais abrangente, pode-se
pensar que entre outros fatores e leituras, o prólogo-ensaio guarda uma reflexão sobre o
pensamento de Shopenhauer, de que não haveria uma história integral, mas apenas fatos
particulares a serem relatados - uma vez que no livro do filósofo, esta é a continuação da
passagem citada por Borges no início deste ensaio.
O ensaio constrói o encontro de Sarmiento com um panorama desértico de
isolamento, destacando que ‘a isso’ o escritor teria chamado “civilización”. Certamente que
os conceitos são relativos e históricos. Contudo, à palavra em questão corresponde o
significado de um alto grau de desenvolvimento na vida social, política, econômica e cultural.
Com isso, Borges sinaliza a falta de correspondência entre a denominação utilizada e o que
fora esse tempo a seu ver “el tablero hispánico y la desmantelada plaza en el medio”. Ao
mostrar que os conceitos não traduzem de modo preciso o que se deseja relatar, o ensaísta
alerta que também os relatos históricos podem se afastar da realidade pelas próprias faltas da
linguagem.
Uma problematização da capacidade de apreensão dos fatos históricos
aparece na forma como são descritos os movimentos ideológicos que precederam a
Revolución de Mayo e as leituras dos próceres da Independência. Fica dito que, entre outros
fatores, tais eventos históricos foram produto das ‘seitas secretas’, que um grupo de homens
cultuava. O trecho, mesmo pleno de humor, faz pensar em que medida essas doutrinas
102
puderam influenciar no desfecho dos sucessos nacionais. Esse problema se refere à larga série
de eventos e à conjunção, em diferentes proporções, de vários fatores, culminando nos fatos
históricos, os quais, por vezes, a historiografia não poderia resgatar. De modo mais específico,
o ensaísta dique endossa a pluralidade de causas de Stuart Mill. Ela entra no texto para
desqualificar a contextualização que um crítico argentino faz para o Facundo. Contudo, sua
lembrança por si mesma é um argumento contra a verdade da historiografia tradicional.
Dentro dessa visada, qualquer que seja o ângulo, sob o qual o historiador aborde sua matéria,
sua verdade estará sempre incompleta e portanto, será sempre uma aproximação, porque não
pode abarcar todos os fatores envolvidos, e porque existem diferentes pontos de vista, sob os
quais haverá outras causas para os mesmos acontecimentos. Essa ainda parece ser a releitura
borgeana de uma observação de Carlyle, de que “la historia es una disciplina imposible,
porque no hay hecho que no sea la progênie de todos los anteriores y la causa parcial, pero
indispensable, de todos los futuros”
269
. Portanto, a dificuldade do historiador não reside
somente em ter acesso a todos os fatores determinantes dos eventos, mas também na
concatenação destes fatos – um dominó gigante cheio de encruzilhadas.
O ensaísta recorda aos leitores que “los próceres eran hombres de carne y
hueso”. Isto faz pensar que estes heróis nacionais também tinham fraquezas ou momentos de
corrupção. Declara que muitos foram inimigos, observando uma espécie de visão “sincrética”
nos relatos da historiografia argentina. Assim, Borges vai apresentá-la, como um rito, como
um costume do culto a heróis. Declara que esse culto foi capaz de juntar homens de ideologias
divergentes, com interesses bastante distintos. Provavelmente por isso, ele vindique o ensaio
literário de Sarmiento, que este tenta imaginar os lances de orgulho, desafetos, vinganças e
ambições pessoais de Facundo, de Rosas e outros personagens que o sanjuanino examina
individualmente. Fortalecendo esse raciocínio, Borges assevera que os caudillos se opuseram
à causa da América (o coletivo dos países) porque acharam que ela era um pretexto para que
Buenos Aires, uma província, ou o indivíduo Rosas, dominasse as demais. Tudo isso concorre
para a idéia de que, “Contrariamente a los devaneos de la sociologia, la nuestra es una
historia de indivíduos y no de masas”. Deste modo, a apreensão dos movimentos coletivos é
problematizada. Como sugerido em “El Otro”, é como se fosse difícil descrever o andamento
dos grupos sociais ou os movimentos coletivos, quando o móvel de seus líderes e dos mesmos
integrantes das massas é o desejo pessoal.
Neste prólogo, a alusão aos fatos do passado argentino é apresentada de duas
maneiras, ou Borges mesmo os relata, sobretudo nos parágrafos 5 e 11; ou aparecem por
intermédio da citação de passagens literárias (de Hudson, Ascasubi e Sarmiento), como ocorre
103
no momento em que discute a questão do gaucho. Entretanto, se para discutir e provar o que
de fato ocorreu no passado, os trechos literários valem tanto quanto os da historiografia, e se
sua palavra de escritor substitui a de um historiador neste assunto, então este grupo de
citações está ligado ao apagamento de limites disciplinares, entre literatura e história. Além
disso, ao utilizar vários escritores, como fonte, para discutir a posição histórica do gaucho nas
lutas nacionais, novamente o uso peculiar da citação adverte sobre a pluralidade de opiniões,
quanto aos fatos do passado. Observa-se que em diversas passagens, Borges está criticando a
historiografia tradicional na condição de única dona da verdade, e, em paralelo, vindicando
que possam existir outras formas de encarar as mesmas realidades. Assim, sua operação é
visível. Ele está tirando o discurso da história, do pedestal em que a objetividade o coloca,
para vê-lo nivelado, como ocorre nesta passagem, com as versões literárias.
Em “Nota sobre Walt Whitman”, Borges contesta a concepção do poema,
enquanto fruto direto das vivências de seu autor. Neste ensaio, aparece nova questão. A
lembrança de que o poeta Ascasubi foi um homem que participou em determinados combates;
poderia fazer com que seu leitor pensasse, que seus poemas trazem a realidade sobre os fatos
históricos em que participou. Contudo, se Ascasubi enaltece o patriotismo do gaucho em seus
versos, Borges lhe opõe a seqüência dos fatos históricos. Ademais, apresenta sua versão, a
qual seria respaldada pela de Hudson. Portanto, ele lembra que, a ficção, tanto quanto a
história, é uma versão, que pode ser submetida à relatividade a ambas podem ser opostas
ouras versões.
Contudo, antes de apresentar os argumentos que o auxiliam a demonstrar que
o gaucho não era um patriota, Borges vai chamar a visão oposta à sua com a citação de
Ascasubi. Como vimos, Borges discorda dessa interpretação. Assim, neste prólogo, a
historiografia tradicional, o gaucho, e o Martin Fierro; são opostos ao ensaio, aos patrióticos
unitários (não mencionados), e ao (livro) Facundo. Assim como Borges acredita que os
unitários são os verdadeiros heróis da história argentina e não os gauchos, mas por
determinado entendimento, eles se tornaram os ícones de seu país; assim como o Martin
Fierro se tornou o livro canônico em lugar do Facundo, quando teria sido melhor ter
canonizado o segundo, na opinião borgeana; a historiografia tradicional tornou-se a portadora
oficial da verdade, quando outras verdades são manifestadas, através dos ensaios.
No lugar do discurso da historiografia tradicional, que Borges refuta, pode-se
averiguar o que ele valoriza no ensaio sarmentino, o qual aprova: sobretudo sua permanência.
Em seus textos críticos, ‘perenidade’, ‘larga duração’, ‘imortalidade’ conformam um valor
constante em seu julgamento das obras. Ao passo que, condenava as obras datadas, no tipo de
104
escritura “sub specie temporis vel historiae”
270
. Neste texto, tão logo inicia seus
questionamentos a um modo de narrar a história, ele reitera a imortalidade do Facundo, “Sub
specie aeternitatis”. O ensaísta apresenta a principal chave de leitura do pensamento
sarmentino, sua dicotomia civilização ou barbárie, e afirma que ela poderia ser utilizada para
descrever “al entero proceso de nuestra historia”. Essa idéia é análoga a que aparece em
poemas e contos borgeanos, a de um momento que vale por uma vida inteira
271
. Neste texto, a
estrutura é estendida a um novo campo, no elogio a uma oposição que é capaz de abarcar a
história inteira. Assim, porque é mais gico que se contraponha um gênero (o da
historiografia tradicional) a outro gênero (o do ensaio literário), parece que não o ensaio de
Sarmiento é imortal, senão que Borges concede essa imortalidade ao próprio nero
ensaístico. Essa perenidade lhe é atribuída, porque nesta classe de textos, a parte é capaz de
representar o todo; porque suas disjuntivas podem permanecer válidas, através dos tempos.
Como dito, no trecho em que o ensaísta vai dizer o que Sarmiento “viu”,
primeiro o verbo “ver” aparece sugerindo a influência das distâncias e das dificuldades sobre
as conclusões do sanjuanino, mas o mesmo verbo voltava em dois usos mais. No segundo, ele
aparecia diante de dois substantivos abstratos, a miséria (presente) e a grandeza (futura). No
terceiro, ele surgia acompanhado de poucos elementos naturais, com os quais Borges supõe
que Sarmiento teria podido entrar em contato direto. Desse modo, entram em contraste as
restrições borgeanas a que Sarmiento tivesse conseguido uma descrição exata, do que ocorrera
em várias partes do país; e a amplitude que ele confere ao vislumbre literariamente articulado,
obtido a despeito desta visão tão limitada. Na montagem borgeana, o sanjuanino pôde
parcamente encontrar e descrever a realidade, mas para contraste, essa visão intuitiva foi
capaz de abarcar todo o presente e servir ainda como uma profecia de futuro. Do que se
entende que, se nem sempre os historiadores conseguem encontrar no passado uma explicação
para o presente; os ensaios, como o de Sarmiento, por seu cunho literário, com uma idéia
central simbolicamente representada, podem tornar-se proféticos. Eles explicam ou antecipam
o futuro a partir do presente. Assim, como dito, Borges ressalta todos os filtros subjetivos que
fomos mencionando, mas com toda a precariedade do julgamento, com a parcialidade e a
pessoalidade que ele aponta como fatores que afastaram o trabalho sarmentino para longe de
uma mera exposição da realidade factual, ele não critica Sarmiento. Por sua escolha do
personagem, por sua retomada da tradição, por suas metáforas, por sua narrativa dinâmica e
por sua idéia central, ele exalta o Facundo: esta ainda é a melhor história argentina, em sua
opinião.
105
Por todo o exposto, de um lado, Borges elogia o ensaio-literário de
Sarmiento; do outro, tece críticas à historiografia tradicional. Esse duplo movimento que
assinalamos, parece ter correspondência com algumas “paixões” do escritor. Borges sempre
foi um crítico, mas não um crítico desinteressado
272
. Primeiro observamos, que ele apresenta
vários argumentos contra a apreensão fiel dos fatos históricos, mas o alvo é perceptível: se os
próprios historiadores m dificuldades para apreender as realidades históricas, quanto mais o
teriam os escritores, uma vez que o gênero literário obedece às necessidades internas da
criação. É provável que ele pensasse especialmente nos escritores realistas que desejavam
retratar as realidades históricas de seu país. Em segundo, ao enaltecer o ensaio-narrativo de
Sarmiento, ele valoriza sua própria ficção. Afinal, de acordo com Monegal, esta seria um
híbrido de narrativa e ensaio
273
.
Vale lembrar que em “El Otro”, através de uma biblioteca figurativa, ‘o
velho Borges’ coloca o antigo historiador Tácito entre seus precursores. Ademais, bastaria
recordar o sabor de ficções como O Informe de Brodie” (no livro homônimo), “El Inmortal”
(El Aleph), e “La secta del Fênix” (Ficciones), para sentir a proximidade da crônica histórica
mais antiga, nas narrativas borgeanas. Sabemos que em muitas delas, são incorporadas
passagens da história argentina, ou da história de outros países. Trata-se portanto de um
escritor que pode criticar a historiografia tradicional, mas que flerta freqüentemente com a
história, em seus relatos ficcionais.
Descrédito do engajamento e da intenção
Borges começa o sétimo parágrafo alegando que “a muchos les interesan las
circunstancias en que un libro fue concebido” (grifo meu). Assim, se muitos se interessam
pelo contexto de produção de uma obra, o ensaísta sugere que ele mesmo não lhe confere um
peso absoluto na facção das mesmas. Ele apresenta a lista de um crítico argentino, com uma
série de motivações contextuais para que Sarmiento escrevesse o Facundo: Sarmiento queria
desprestigiar o governante da província de Buenos Aires; queria ajudar na causa dos
imigrantes, o que equivale a dizer que ele ganharia o apoio deste importante segmento da
população; e desejava colocar-se entre os nomes de destaque no cenário político, para o
período em que Rosas caísse. Desse modo, o livro é visto como uma plataforma política para
que o escritor pudesse chegar ao governo. Borges se opõe a essa contextualização. Declara
que ela seria apenas uma “curiosidad”. Utiliza termos despectivos para o trabalho do crítico.
106
Mas sobretudo, ele introduz o argumento da pluralidade de causas. A menção a esta doutrina
tem uma dupla ação dentro do texto. Por um lado, como mencionado, ela aponta para a
dificuldade de apreensão dos fatos históricos, fazendo pensar na história enquanto um
fenômeno complexo, no qual estariam envolvidos muitos fatores. De outro, a doutrina incide
sobre o problema da criação literária, assinalando que, se as causas determinantes de uma
obra são múltiplas, as de natureza contextual seriam apenas algumas delas.
Como assinalado, os motivos contextuais apresentados tratavam de
relacionar-se às supostas intenções políticas do escritor. O ensaísta aponta para o fato, dizendo
que o compilador desta lista “se atiene a los propósitos de Sarmiento”; mas, na opinião
borgeana, “lo de menos son los propósitos”. Para ele, a intenção não é o principal. Afirma
que as intenções não seriam suficientes para gerar nem a preciosa metáfora da esfinge, nem a
invocação liminar utilizadas por Sarmiento. A seu ver, para isso seria preciso conhecer as
técnicas e a tradição literária. Borges ainda alude às idéias de Poe, que se tornaram famosas
em “A filosofia da composição”. Com isso, lembra que a escritura está ligada ao trabalho
mental, mas propõe que a criação seja misteriosa, para mostrar que nela mais do que
operações de inteligência. Portanto, assinala que também o trabalho mental por si não
decide da criação literária. Em seguida, volta a negar que as obras resultem apenas do
contexto, já que [derivam] menos todavía [...] de circunstancias ocasionales”. Na verdade, o
escritor está diminuindo a importância de cada motivação individual e tratando de vindicar a
pluralidade de fatores na constituição da obra literária. A nenhum desses motivos elimina de
todo (intenção, trabalho mental, contexto), mas a todos relativiza, de modo que seus
argumentos possam sobressair; e de que se torne possível apresentar outros motivos, além
destes.
Nessa fase do texto um grande arranjo em formação. Uma parte dele é
visível neste ponto. No sétimo parágrafo, Borges apresenta detidamente uma série de motivos
literários para a escolha de Facundo Quiroga. Por outro lado, em seguida, mostra-se
desfavorável ao trabalho de contextualização realizado pelo crítico argentino. Assim,
comparando-se os parágrafos (sexto e sétimo) observa-se que Borges está opondo uma série
de motivos composicionais (literários) a uma série de motivos intencionais (extraliterários),
para conferir maior peso aos primeiros para demonstrar que as necessidades da composição
literária podem predominar sobre outros fatores durante a composição. Entretanto, ele ainda
vai fazer refletir sobre a recepção e sobre a criação textual, nas quais irá apontar fatores
capazes de alterar, até as necessidades de ordem literária, que os escritores tentam
conscientemente atender.
107
Depois de mencionar a relativização, que gera um campo favorável a seus
argumentos, apresenta dois outros fatores que interferem no texto literário. Recorda o caso de
Cervantes, quando os leitores, acostumados com a literatura de cavalaria, não compreenderam
a paródia. Neste caso, acontece um desvio na recepção do texto. Em seguida, Borges nomeia
três grandes escritores Cervantes, Kipling, e Swift, que tinham uma intenção definida para
seus livros e foram surpreendidos por uma leitura que divergia de suas expectativas.
Especificamente nos exemplos de Kipling e Swift, não é a paródia, ou o gênero, o fator de
interferência, ainda que no caso deles, a alteração também seja constatada durante a leitura.
Borges aponta uma causa comum para essa quebra de expectativa. Ele recorda a doutrina
clássica de uma Musa Inspiradora, para introduzi-la, mas neste texto, ele esclarece o que está
por trás dessa imagem, “la subconsciencia”. Seria esta a razão para a incontrolabilidade no
sentido das obras. As estórias foram involuntariamente transfiguradas durante o ato criativo.
Assim, o ensaísta assinala um segundo motivo para que a intenção não se concretize - a
influência do subconsciente na criação. Em 1932, o escritor Alfonso Reyes, utilizava a
menção a este fator, contra aqueles que desejavam a representação obrigatória do nacional, na
literatura:
“será tan absurdo someter a ella [a idéia nacionalista pré-concebida] una obra
por hacer, una obra en que no sólo van a trabajar la razón y la inteligencia, y
ni siquiera la conciencia sola, sino también el inmenso fondo inconsciente (el
individual y el colectivo de Jung), la sub y la superconsciencia, el ‘yo’ y el
y hasta el trágico y fantasmal ello de los últimos atisbos de Freud […]
274
Assim, o arranjo borgeno, para este sentido do texto, fica completo. O
Facundo é uma obra reconhecidamente marcada pelo posicionamento político de Sarmiento e
por suas denúncias contra o governo rosista. Deste modo, o foco do ensaio nessa fase é
apresentar: em primeiro, a questão da composição literária para diminuir o peso das intenções
de denúncia dentro das obras – os escritores também têm que atender à formulação artística de
seu trabalho; em segundo, apresentar dois fatores, um no ato criativo e outro na recepção, os
quais, se o inviabilizam, fazem com que a tentativa de uma obra engajada pareça ser uma
questão de uma sorte.
Completa-se o arranjo geral do texto. Na primeira parte, o ensaísta mostra
uma série de problemas para apreender a realidade histórica dentro da historiografia
tradicional, de modo a atingir os autores de obras literárias que acreditam que a literatura seria
capaz de algo, que mesmo para os historiadores é muito difícil. Na segunda parte, põe
obstáculos à concretização das intenções dos escritores. De certo modo, a capacidade de
108
registrar e mostrar a realidade de um contexto social e a intenção de fazê-lo seriam dois
pilares que sustentam a viabilidade da idéia de engajamento. Assim, Borges tenta derrubar
estes pilares, de forma a tornar natural e justificada a posição dos escritores que, como ele,
não procuram fazer uma literatura comprometida.
Discussão II - Nesta discussão, pretendemos reafirmar nossa idéia de que a polêmica com os
realistas da geração de vinte é importante na definição da estética borgeana, mas ainda
desejamos demonstrar que seu diálogo com o realismo (com sua peculiar idéia de realismo)
não se limita a este período. Primeiro vamos efetuar uma operação anacrônica, para que seja
possível perceber que a discussão do prólogo-ensaio de 1974, ainda reflete questões
formuladas na década de trinta.
Os boedistas não tinham exigências quanto à representação do passado
argentino na literatura. No entanto, desejavam apontar a desigualdade e os problemas sociais
em seu tempo. Lê-se em uma declaração coletiva feita pela Redação da Revista Los
Pensadores: “[os de Florida] Cantam à Revolução Francesa ou ao povo de Maio, coisas do
passado, mas livram-se de cantar a Revolução Russa ou de fazer orações fúnebres ao povo
que morreu massacrado na semana de janeiro. Protestam contra Rosas, que está morto, mas
não protestam contra os tiranos vivos”
275
. Em seu afã de denunciar as injustiças sociais, eles
acreditavam que deveriam registrar os fatos do presente. É justamente por esta questão, que a
crítica borgeana da segunda metade do século vinte (de 1974), é uma crítica que ainda entraria
em atrito com os ideais boedistas do começo de século; pois embora na segunda metade do
século vinte os adversários sejam outros (a idéia de engajamento está muito difundida na
América Latina dos anos sessenta), as convicções destes outros ainda são muito semelhantes
às dos boedistas. Assim, as objeções que Borges constrói contra a possibilidade de gerar um
registro fiel das realidades históricas, parecem ter sido construídas para atingir o elevado
número de escritores dos anos sessenta, que aderindo aos postulados socialistas, vindicavam a
denúncia social à maneira realista. Contudo, esta é uma crítica, que se houvesse sido escrita
nos anos vinte, ainda atingiria os escritores de Boedo, na medida em que o grupo estava
interessado em retratar a realidade de seu país, cumprindo com o compromisso.
Outro ataque de Los Pensadores contra os integrantes da vanguarda
encontraria eco em nosso texto de 1974. “A grandiosidade da literatura está relacionada à
grandiosidade dos ideais que sustenta. [...] Seu valor não está em sua estrutura literária, mas
no espírito que transcende além da letra morta”
276
. Tais escritores vindicavam uma arte
engajada plenamente disposta a servir a ideologia.
109
Ainda o escritor, Eduardo Mallea, do grupo de Florida, em seu ensaio “El
escritor y nuestro tiempo”, de 1935, observa que em sua época há exigências de que o
intelectual participe ativamente na sociedade. Embora ele critique tais idéias, encontra uma
posição conciliatória, que condena a sujeição a doutrinas partidárias, mas admite o
compromisso em nome de uma preocupação com a humanidade
277
. No prólogo-ensaio, vimos
qual seria a resposta borgeana em ambos os casos aos boedistas, e ao companheiro de
Florida; ao compromisso em nome de ideais políticos ou humanitários: o ato criativo escapa
ao controle do escritor, além disso, os leitores podem receber de forma diversa o significado
planejado. Portanto novamente, uma idéia que Borges expõe em 1974, para combater as
pressões para o engajamento, se houvesse sido lançada na década de vinte, teria chocado com
os postulados dos boedistas e de outros escritores que desejavam esse tipo de atitude na
literatura daquele tempo.
Mas que provas temos de que essa reflexão começa na década de vinte ou
trinta? Se verificamos as idéias dos boedistas acima mencionadas, parece plausível supor que,
embora Borges não haja escrito uma resposta direta a estes ataques, ao fazer parte do grupo de
Florida, por ocasião destas discussões, ele pode ter tido neste momento a primeira
oportunidade de sentir-se questionado a respeito destes temas - afinal os ataques do grupo
boedista se endereçavam aos escritores reunidos em torno da Revista Martin Fierro, na qual o
mesmo Borges colaborava constantemente. Nesta época, ele está preparando os ensaios que
devem constar de Discusión (1932). Além disso, segundo Monegal, em 1933, sai um número
da Revista Megafono, integralmente dedicado a tratar de Discusión, no qual as críticas tentam
mostrar que Borges é um escritor alienado da realidade argentina
278
. Portanto, surge um
segundo momento em que o escritor certamente teve de pensar nos motivos pelos quais
rejeitaria o compromisso.
Contudo, se em Discusión, ele não se pronuncia de modo explícito a respeito
do assunto, encontramos um texto de 1933, no qual ele o faz. É conhecida a polêmica que
Borges trava com o escritor Martínez Estrada, envolvendo o assunto do compromisso. Se o
debate se torna público nos anos cinqüenta, a nosso ver, ele começa em 1933, com o
comentário de Borges à publicação de Radiografia de la Pampa do mencionado autor. Na
primeira parte de sua nota, Borges recorda o surgimento do historicismo: “Algunos alemanes
intensos [...] han inventado un género literario: la interpretación patética de la historia y aun
de la geografía” e logo comenta características da historiografia de Spengler
279
. Na segunda
parte, assevera que ele percebe a influência de Spengler, no ensaio histórico-sociológico de
Martínez Estrada. Assinala que nele há denúncia social “a pura enumeración de hechos
110
reales”; e termina sugerindo que o autor estaria condenado ao esquecimento
280
. Observe-se
isto é o mesmo que ele dizia no Prólogo, a respeito da historiografia tradicional. Mais do que
isso, a nota de 1933, apresenta uma lógica análoga à que fundamenta a argumentação do
prólogo-ensaio de 1974: os escritores engajados, em seu desejo de apontar para os problemas
sociais, perseguem de tal forma o realismo, que parecem estar mais preocupados com história
(e historiografia), do que com literatura e cnicas literárias. Certamente exagero nisso,
mas a caricatura é uma forma eficiente de crítica.
Na polêmica dos anos cinqüenta, Borges faz declarações contra Perón,
incluindo o nome deste autor. Em 1956, Martínez Estrada escreve um ensaio, no qual defende
o engajamento e faz alusões a Borges. Nele, entende-se que, a seu ver, o modelo de escritor
seria Dostoievski, pois “Cinco años de hospital, me revelaron, como los diez del presídio de
Sibéria a Dostoievski, que si algo había realmente puro en la miséria [...] era el bajo pueblo
[...]”
281
. Nota-se que para ele, o realismo era um instrumento efetivo de transformação da
sociedade. Depois disto, Sábato sai em defesa de Martínez. Amostra dessa rivalidade aparece
no livro de ensaios de 1968, no qual ele taxa Borges de alienado, asseverando que “Ele não se
propõe narrar a verdade [...]
282
. É visível sua compreensão de que uma verdade a respeito
do social, a qual os escritores estariam encarregados de transmitir. Também Fernández
Retamar critica Borges em ensaio de 1971, dizendo que “A diferencia de otros importantes
escritores latinoamericanos, Borges no pretende ser un hombre de izquierda […]”
283
. Ele não
reprova apenas o posicionamento político do homem Borges. Percebe-se que ele censura a
obra borgeana, defendendo uma arte comprometida, ao dizer que “Borges es un típico escritor
colonial, representante entre nosotros de una clase ya sin fuerza, cuyo acto de escritura […] se
parece más a un acto de lectura. Borges no es un escritor europeo: no hay ningún escritor
europeo como Borges”
284
. Em seu ensaio, retrata a obra borgeana como produto da ideologia
colonialista. Portanto, o assunto do engajamento não cessa nos anos trinta, pois ao longo de
sua carreira, Borges continua recebendo críticas e, como veremos, formula respostas a esse
tema em diversas oportunidades.
Os mencionados escritores que criticaram Borges são apenas alguns entre
muitos exemplos. Monegal observa que a crítica argentina na década de cinqüenta estava
voltada para uma visão sociológica e política da literatura. Recorda ainda que Borges sofria
ataques ligados aos postulados de Sartre, de Lukács, de Merleau-Ponty
285
:
“Borges se había convertido en el centro de una controversia sobre el papel
político y cultural del escritor argentino. Muchos de sus nuevos lectores se
negaban a aceptar la posición de que la literatura debía ser dejada a literatos,
111
y la política a los políticos. Siguiendo los principios de Sartre, estaban
comenzando a exigir que los escritores se comprometieron explícitamente
con su época”
286
.
Desse modo, entende-se que em sua própria nação, o escritor sofre árduos e
constantes questionamentos sobre suas posturas. Nos anos 60, sua situação torna-se mais
complicada. Segundo a biógrafa, María Esther Vázquez, Borges está na contra-mão do
pensamento geral, pois antipatiza com os comunistas e com a figura de Fidel Castro, quando a
revolução cubana era recente; não admira Che Guevara, quando este era idolatrado pela
juventude latino-americana; e mostra-se anti-peronista, quando os argentinos aclamavam
Perón como defensor dos trabalhadores
287
. Uma vez que Borges ganha fama internacional nos
anos sessenta, ele é constantemente solicitado a dar declarações sobre suas idéias a respeito da
política. Com tais pontos de vista, ele fica mal-visto pela intelectualidade latino-americana
neste tempo. Assim, é natural que na década de setenta surja uma série de textos nos quais, ele
escreve sobre seu modo de entender a questão do engajamento: Prólogo ao Informe de Brodie
de 1970; Prólogo a La Rosa Profunda de 1975; e o Prólogo ao Facundo em 1974.
Além destes textos dos anos setenta, vimos que nosso prólogo-ensaio,
encontra um texto precursor em 1952, quando Borges escreve “El pudor de la Historia” para
Otras Inquisiones. Contudo, a nota sobre o livro de Martínez Estrada - contendo observações
compatíveis com as críticas sobre a historiografia apresentadas em ambos os textos
posteriores - remonta ao período da polêmica com os boedistas de 1933). Isso indica
novamente, que o atrito de valores nos anos trinta foi um momento que proporcionou uma
reflexão essencial para Borges. Se em seu período de Espanha, ele possuía a intenção de
separar arte e política, a discussão com os realistas de vinte lhe permite afirmar uma decisão
que o mantém a salvo das pressões para uma estética engajada, até a década de setenta. Por
outro lado, a crescente influência das questões políticas sobre o campo literário deve ter feito
com que esta reflexão inicial se transformasse em um diálogo permanente com o realismo,
dentro da obra borgeana.
112
3.3. DUAS REALIDADES LITERÁRIAS: O CLÁSSICO E O ROMÂNTICO.
“Cada literatura es una forma de concebir la realidad” (BORGES,
J. L. El tamaño de mi esperanza. Barcelona: Editorial Seix
Barral, 1994, p.101)
“La Postulación de la Realidad”, de 1932
288
tem como ponto de partida a
negação de que exista um único modo do estético a expressão intuitiva da realidade tal
como afirma Benedetto Croce. A afirmação generalizante do italiano permite que Borges
promova a discussão sobre as operações de construção textual, a pretexto de anular essa
unidade (estético igual expressivo). Assim, o programa do ensaio é o de efetuar uma divisão
em dois modos, nas formas de elaboração da realidade ficcional: o modo clássico, seria o
convencional (ligado aos temas; e recursos da tradição); e o modo romântico, o expressivo
(aquele que tenta ser original; e apresentar a realidade).
Borges avisa que estes são rótulos que ele confere aos dois modos, sem que
por isso se refira especificamente às escolas históricas. Em um texto que nos ajuda a
compreender este ensaio, ele diz que “Carlyle fue un escritor romántico, de vicios y virtudes
plebeyas; Emerson, un Caballero y un clásico
289
. Pelo exemplo vemos que ambos os
escritores são contemporâneos e marcam presença com suas obras no século XIX, mas
observa-se que a classificação borgeana os separa, através de sua particular divisão em dois
modos. Entretanto, apesar de haver alguma ligação das denominações, clássico e
romântico
290
, com os movimentos homônimos; em seus rasgos fundamentais, elas receberam
uma formulação que lhes permite recobrir um escopo genérico de obras. Dessa maneira,
podem abarcar escritores de uma ampla duração temporal e ainda, de outras disciplinas, além
da literatura. São portanto, dois arquétipos de escritor, traduzidos em duas formas de lidar
com a realidade nas obras.
Ademais dessa divisão universal, Borges exibe exemplos de três técnicas
utilizadas pelos escritores do modo clássico. Assim, a matriz deste ensaio parece estar
concentrada em um processo de desdobramentos sucessivos. Da unidade postulada por Croce,
ele vai gerar dois modos, e depois deste, três outras subdivisões, quando a última delas ainda
comportaria uma separação em dois grandes grupos de escritores afiliados à mesma técnica. A
multiplicidade mina a unidade. Outra entrada fundamental é a apresentação de uma série de
dificuldades para a mimesis, mediante um peculiar mecanismo. O texto trata de construções
literárias, no entanto, em sua estratégia argumentativa, o problema da apreensão da realidade
não será meramente atribuído ao processo de escritura; ao contrário, Borges vai pensá-lo
113
como se ele fosse algo inerente à vida humana. Em paralelo, trata de fornecer uma visão da
realidade muito ampliada, que termina por tornar quase inviável, qualquer intento de
expressá-la.
Beatriz Sarlo afirma que os ensaios borgenos estariam firmemente
assentados no paradoxo
291
. Em “La postulación de la Realidad” este ainda seria o vórtice
central da argumentação – ao menos para um escritor realista. Afinal, da realidade e da
certeza de sua representação na literatura, o ensaio conduz ao extremo oposto, em um ponto
estratégico: não há certezas sobre a vida humana, e tampouco é possível apreendê-la de modo
fiel; assim, a ficção teria direito apenas à construção de seu universo literário, ainda que os
românticos possam se esforçar para captar a realidade em suas obras. Contudo, desde sua base
formal, esse ensaio flerta com a metáfora, o que é uma das possibilidades de estruturação do
gênero ensaístico, de acordo com a mesma Sarlo
292
. Trata-se ademais de um uso artístico da
citação. Por um lado, os fragmentos citados são exemplos dos paradigmas textuais que Borges
estipula para o modo clássico, ilustrando estas técnicas. Por outro, eles se deixam ler
metaforicamente. Os trechos consistem em imagens simbólicas dos procedimentos de
escritura, utilizados pelos clássicos
293
. Deste modo, a citação, recorrente no gênero, abandona
uma condição ilustrativa, para transformar-se em uma espécie de ‘prisma’ das técnicas em
questão.
O Modo Romântico
Entende-se que o modo romântico estaria marcado (ao menos em sua base)
pela representação da realidade. Seriam textos que se recusam a expor uma realidade
artificial, meramente literária; textos que escondem e disfarçam seu caráter de construção
textual. Seriam os que pretendem fazer coincidir o real, muito amplo, com os sinais do
mesmo. Assim, pode-se deduzir que se apegam ao factual, ao sólido, ao quotidiano e a outros
sinais dessa presença. Pelo empenho nesta direção, entende-se que desejam infundir a
sensação de realidade. Com isso, um primeiro critério, muito visível na argumentação
borgeana, para justificar essa divisão em dois modos, tem em conta as relações dos textos com
a realidade. Os românticos seriam aqueles que tentam ser eficazes em sua representação da
mesma, enquanto cópia do mundo material.
Assim, se entende porque a primeira coisa que Borges nos diz a respeito dos
escritores que atuam dentro deste modo, é que desejam “incesantemente” expressar.
114
Evidentemente não completa a sentença afirmando que desejam expressar a realidade - isto
seria uma grande concessão, que o ensaísta uma série de dificuldades, no caminho dos
escritores que perseguem uma meta tão abrangente. Contudo, como a doutrina de Croce é
mencionada, compreende-se que se trata de captar a realidade, de uma maneira intuitiva, por
um conjunto de impressões, nas quais os sentimentos animam as formas. Nesta teoria, a
realidade oferece uma intuição ao artista, e a expressão da mesma é a arte. Essa seria a base
do modo romântico.
O ensaísta assinala a mediação na escritura dos clássicos, levantando em
contrapartida a idéia de uma escritura “in-mediata”, no modo romântico. Então é
compreensível que ele aponte a existência de estéticas clássicas e mediatas, para dar combate
à teoria croceana que privilegia a expressão direta da intuição do real. Portanto, na ironia
borgeana, de uma maneira romântica”, esses textos tentariam assimilar a realidade,
pretendendo ligar o visto e o descrito; o sentido e o expresso; a dinâmica de uma gama de
impressões e sua articulação em palavras.
Seriam desta forma, textos miméticos em alto grau, nos quais o leitor
deveria ter, ao menos em boa parte das passagens, o sentimento de achar-se envolvido por
uma atmosfera de ‘realidade’. Assim, a concretude seria um valor, em relação ao caráter
abstrato - que pelo predomínio das idéias, termina marcando os textos clássicos. Deduz-se que
os textos românticos, ao contrário, estariam plenos de objetos, de lugares, de fisionomias do
mundo real. Por isso, o ensaísta assinala nestes textos, a busca de realidade até o
esgotamento’, como dirá ao explicitar as construções em ambos os modos. Mas também por
isso, munidos de tal objetivo, é natural que seus relatos caiam na “ênfase” e na mentira
parcial”, segundo Borges. A ênfase vem da acumulação de elementos nestes textos. O que na
realidade, o olho apanha de um golpe, tem de sofrer a descrição, a ambientação, a
enumeração, e o sucessivo na escritura. De maneira que, condenada a este olhar pessoal que
é diferente da realidade em si mesma, a mentira parcial seria a verdade do subjetivo: as
impressões parciais são as únicas que se poderia oferecer ao leitor. Estes textos tentam um
quadro completo e preciso, mas na verdade, o ensaísta alerta que eles apenas acumulam
minúcias deste quadro. Como se verá, ele é composto a partir de experiências pessoais, das
percepções e das reações particulares dos fatos. No raciocínio borgeano, a expressão é uma
promessa, cujo resgate tentaria ser feito com os parcos recursos que a subjetividade possui.
Se a todo momento, o escritor romântico tem de lidar com a possibilidade
do desvio, do inexato, enfim do impreciso em sua recriação da realidade, esse empenho deve
necessariamente traduzir-se em cuidados especiais com o material lingüístico. Para isso,
115
chama a atenção o ensaísta. Com humor, ele postula que os clássicos têm confiança nas
palavras, ao passo que os românticos desconfiam de seus “signos”. Com isso, ele evoca a
idéia do Romantismo, de que a alma seria mais rica do que a linguagem. Mas também, em sua
versão do romântico, entende-se que estes escritores, em seu afã expressivo, teriam um
cuidado escrupuloso com as palavras, para que elas atingissem a precisão desejada em sua
representação da realidade. Por outro lado, temeriam que elas se revelassem mediadoras
infiéis entre si e o mundo.
Ao mesmo tempo, se cada elemento e cada palavra é importante neste tipo
de composição, também é compreensível que o ensaísta aponte para o caráter particularizador
da escritura romântica. Talvez este seja um modo de compensar as faltas da linguagem,
através de uma peculiar densidade semântica. Se as palavras podem falhar, é possível
descrever pormenorizadamente os objetos, as pessoas e as situações. Em oposição ao clássico,
cujos conceitos e generalizações pretendem uma validade mais universal, a escritura
romântica individualizaria os fatos, pois cada situação seria única; valorizaria os tempos, pois
cada época teria seu gesto particular; cada país e cada região, pelas circunstâncias que
proporcionam; mas também tudo isso concorreria para uma individualização do homem,
único em sua densidade psicológica, diferente dos outros na reação às obrigações, que seu
tempo e lugar lhe assinalam. Portanto, as particularidades são importantes neste modo.
Mas também, até porque procura o real, que é sempre novo e mutante, essa
escritura tende à originalidade. De maneira, que também é possível supor que as situações
novas e os novos tempos impelem os românticos aos novos temas, estórias e metáforas.
Assim, Borges nos diz, que no modo clássico, os tropos são un “bien público”, ao passo que
as metáforas românticas estariam mais próximas de seu criador. Mas se elas se destacam no
texto, e tornam-se perceptíveis na recepção, o resultado é que essa escritura conduz à
particularização do próprio escritor, ao propiciar a originalidade que o destacará entre outros,
fazendo dele um autor entre muitos. É desse modo que um “desejo de objetividade” de
apropriar-se do mundo concreto, reconduz a uma evidenciação final da subjetividade criadora,
a nosso ver.
Através da explanação do modo como os escritores lidaram com a realidade
dentro da literatura, à semelhança do que figura em “El Otro”, Borges parece buscar uma
espécie de oposição fundamental no mundo literário. Observe-se que quando toca no assunto
dos textos românticos, o ensaísta menciona referir-se à totalidade de um determinado tipo de
textos em “prosa” ou “verso”. Ou seja, ele abre essa categoria para relatos históricos,
religiosos, filosóficos, ou biográficos, entre outros – o que leva a imaginar um imenso cabedal
116
de textos. Contudo, se o ensaísta atrela essa escritura à originalidade, então seus românticos
começam a existir em grande número a partir do século XVIII, com o advento do
Romantismo histórico. Ao mesmo tempo, o ensaio nos mostra que esta é uma classe de textos
nos quais, a meta seria a estruturação de uma realidade ficcional consistente, cuja sensação, a
nosso ver, seria similar à do mundo real. Semelhante construção, segundo Ian Watt, teria
surgido de forma vigorosa no início do século XVIII
294
. Então, dentro dessa visada tão ampla,
parece que o romântico, à maneira borgeana, estaria constituído sobretudo de uma parcela das
obras modernas, já que a outra parte pertenceria ao tipo clássico. Seriam sobretudo, obras que
possuem algo comparável ao realismo formal em sua base; embora Borges procure
demonstrar que o romântico não possui técnicas especiais e esteja empenhado na expressão
do real, acompanhando as propostas de Croce.
O ensaísta ainda fornece um dado que especifica melhor a classe de textos,
que estaria precisamente buscando, sob o rótulo de escritores românticos”. como
exemplo deste tipo de trabalho “todas las páginas de prosa o verso que son profesionalmente
actuales [...]. Surgem indícios para entender este modo.
O primeiro é o de que está dando como exemplo a produção contemporânea
ao ensaio, 1932. Em artigo do mesmo ano, Borges escreve que “el realismo no ha sido nunca
tan intenso y tan minuncioso como ahora en los EUA […] Nunca: ni entre los laboriosos
naturalistas del siglo XIX […] ni entre los rusos, perpetuamente seducidos por fines
evangélicos o políticos”
295
. Ademais, na Argentina, o Realismo ainda era a corrente de maior
força no período deste ensaio.
O segundo indício é o de que são obras “profesionalmente actuales.
Observe-se que ele não diz simplesmente que se refere aos trabalhos profissionais (em lugar
dos amadores), mas com a adjetivação sugere que ele pensa em obras, ou em uma geração de
escritores contemporânea ao ensaio, que tenta chamar a atenção para o caráter moderno de sua
escritura
296
. Assim, entre os românticos, ele destaca os escritores da época de trinta, os quais
desejariam ressaltar a atualidade em suas obras. Com isso, é possível lembrar um prólogo de
1969, no qual Borges admite que, quando jovem “me impuse también esa obligación del todo
superflua. Ser moderno es ser contemporáneo, ser actual; todos fatalmente lo somos”
297
.
Ademais, em “El Otro”, o personagem do jovem-Borges desejava mostrar-se um escritor de
seu tempo, lembrando que na narrativa, o jovem seria um ‘romântico’, enquanto, o velho seria
um clássico’. Desta maneira, o ensaio estende nova ponte entre si e o conto analisado, no
qual o jovem Borges resgatava simbolicamente o Realismo da década de vinte e algumas de
suas próprias concepções de juventude. Ajuda a entender que os românticos, deste ensaio,
117
embora, em um plano universal e intemporal, sejam escritores que tentam representar
plenamente a realidade em sua literatura, em um plano específico, podem ser relacionados aos
realistas de vinte. Talvez esta questão particular tenha sido um ponto de partida para a
reflexão generalizadora do ensaio; afinal, é a reflexão de um clássico.
Cabe notar que, no ensaio, as definições do modo romântico estão eivadas
de hostilizações. Mostrando-se favorável aos clássicos, o ensaísta afirma que eles não se
deixam levar pela “petición de principio” romântica. O termo se refere ao erro de raciocínio
de “apoiar-se em uma demonstração, sobre a tese (mesma) que se pretende demonstrar”
298
.
Assim, é como se Borges considerasse que tais escritores desejassem fazer parecer
“realidade” o que consta de seus livros, através do que é somente o simulacro do real. Ele
ainda afirma, que a realidade dos textos românticos tem a natureza da “imposición”.
Desprende-se que, ela seria algo forçado, sentido como uma espécie de ‘verdade alheia’,
portanto uma versão dos fatos. Explica que “su método continuo es el énfasis, la mentira
parcial”. Praticamente insinua que carecem de outras técnicas, já que trabalhariam
continuamente da mesma forma. Além disso, essa declaração compromete a expressão
romântica com o exagero. Em paralelo, ambos os comentários tendem a discutir a
naturalidade, que estes textos supostamente tentariam manter. Assim, ao mesmo tempo em
que elabora o perfil destes escritores, o ensaísta já desfecha suas críticas. Ele nos mostra que a
principal característica dos textos românticos é expressar a realidade, mas a cada passo, na
exposição deste perfil, vai assinalando de que forma estão irremediavelmente afastados de
conseguir este objetivo.
Com isso, se a princípio, baseado em Croce, Borges concedia que os
românticos intuitivamente se aproximavam do real, ao longo do ensaio, pouco a pouco
assinala certa artificialidade nesses textos, fazendo deles uma construção literária. Fica claro
que os românticos não obtêm “a realidade”, mas apenas uma de suas possibilidades literárias:
“La realidad que los escritores clásicos proponen [...] La que procuran agotar los
románticos [...]. O mesmo verbo “esgotar” ainda mostra que seria impossível dar conta da
enorme riqueza da vida, que estes textos tentariam apreender.
Dificuldades para a apreensão do Real na literatura.
Uma vez que “La Postulación” trata da construção de realidades literárias, o
ensaísta também se dispõe a averiguar em que medida essas construções podem estar
118
relacionadas à realidade extraliterária. Como visto, segundo Borges, embora os românticos
almejem expressá-la, o resultado de seu trabalho é apenas uma simulação do real. Ademais,
essa simulação não é indispensável à literatura, já que os clássicos “prescinden” dessa
tentativa. Portanto, os clássicos também não alcançam a sensação de realidade, com as
representações correspondentes, mas à diferença dos românticos, este não é um objetivo em
seus textos. Ele avisa que a animação dos textos clássicos depende do leitor. Insiste neste
sentido, propondo que a realidade nesta classe de escritos é uma póstuma alusión”. Com
essa metáfora, ele levanta um contraste, realidade-viva; texto clássico-morto. Como veremos,
para Borges, os clássicos desenvolveriam uma relação alusiva em relação ao real ou seja,
ela é vaga e simbólica. Esta não é uma escritura metonímica, porque não visa à totalidade.
Quando muito, é projetiva, porque pode fornecer alguns rasgos essenciais, que fazem a
projeção de um espectro de certa amplitude, mas que não pretende simular o quadro
‘completo’ de uma realidade
299
. Com a alusão e artifícios, os clássicos alcançam um universo
literário vago, mas suficiente para arcar com sua ficção.
Na verdade, Borges se vale de estratégias, nos trechos em que debate a
possibilidade da apreensão da realidade. A primeira delas é a de que, de certa forma, ele
tenciona o sentido do termo “realidade” até que ele se aproxime do próprio real. O ensaio
uma idéia do que isso seria: “Los ricos hechos a cuya póstuma alusión nos convida,
importaron cargadas experiencias, percepciones, reacciones; éstas pueden inferirse de su
relato, pero no están en él”. Em sua argumentação, a realidade possui uma variedade e
multiplicidade, que escapam aos textos. Na verdade, ele efetua uma manobra de ampliação.
De modo geral, nos textos analisados, Borges torna a vida algo inapreensível, porque em sua
visão, ela estaria relacionada ao múltiplo, ao sucessivo, ao simultâneo, ao inacabado e ao que
é total no momento presente. Trata-se de uma concepção muito abrangente da realidade.
Desse modo, a única saída para representá-la seria a que consta de “El Otro”. A narrativa
promovia a idéia de que os relatos são generalizadores, enquanto o real estaria essencialmente
constituído de cada uma das experiências do indivíduo com a realidade, de cada interação do
ser humano com seu entorno. Interações essas, que diante do quadro de totalidade atribuído
por ele ao real, seriam sempre parciais. Em todo caso, este tipo de representação seria o que
de mais próximo poderia haver de uma efetiva representação da realidade nesta concepção.
Na lógica borgeana, o real não se confunde com o factual mais aparente, mas é visto como
algo extremamente complexo, que implicaria em uma ampla gama de sentimentos,
pensamentos, percepções. O texto que quisesse representá-lo deveria carregar essa descrição,
tão integral, quanto impossível.
119
É interessante notar, que no trecho supracitado, ele diferencia o vivido do
percebido e estes da reação diante dos fenômenos. Ao diferenciar estes termos, Borges lembra
que os fatos podem ser diferentes de sua interpretação e que pode haver uma reação
desproporcional diante do que efetivamente ocorreu. É como se cada ser humano possuísse
uma experiência única. Deste modo, ele começa um entendimento a respeito da percepção,
que será expandido mais adiante, mas já deixa marcada a compreensão de que reações
diversas podem estar calcadas em uma recepção diferente dos fatos. Esta seria a idéia de que o
real tem um impacto peculiar em cada indivíduo. O que impressiona um escritor pode resultar
indiferente aos olhos do outro, de modo que diante de uma mesma realidade, podem surgir
diferentes descrições ou relatos.
Ainda, para expandir sua proposta de que os textos clássicos são ineficientes
diante do real, mas eficientes junto aos leitores, ele lança a idéia de que estes textos seriam
aceitos apesar de sua imprecisão, porque a própria recepção da realidade é algo impreciso. Na
verdade, esta é uma nova estratégia discursiva empregada em favor dos clássicos. Ao invés de
concentrar-se no problema da representação efetuada pelos escritores, ele vai fazer da
dificuldade de apreensão do real, algo inerente ao ser humano, nos rios raciocínios do
quinto parágrafo.
Seu primeiro argumento é que as situações, envolvendo uma série de fatores,
são naturalmente simplificadas através de conceitos. Pode-se pensar, por exemplo, na
dificuldade do escritor quando utiliza um termo, e então, uma palavra dá conta de um
conjunto de raciocínios ou idéias menores, as quais, nem sempre, fazem parte do fato aludido
com o termo genérico
300
. Assim, o ensaísta ainda parece remeter à inexatidão dos conceitos.
No Prólogo ao Facundo, despontava o problema, ao mencionar que Sarmiento tecera seu
conceito de civilização, sobre o que, exceto pelas capitais argentinas, nada mais eram do que
pequenos vilarejos de instalações precárias, no interior das províncias. Assim, assinala a
distância entre os conceitos, cunhados dentro de uma historicidade e atendendo a situações
particulares e a realidade específica que os escritores tentam recobrir com seu uso. De modo
geral, faz pensar que uma linguagem imprecisa dificilmente poderia prestar-se a uma
representação precisa.
Borges levanta igualmente a questão do processo seletivo envolvido na
coleta de percepções e o problema do foco, que é dirigido pela atenção. Novamente a vida é o
múltiplo e a visão humana é capaz de abarcar uma parcela desse mundo total. Borges
sinaliza a insuficiência dos sentidos para perceber a realidade, conduzindo a várias reflexões:
a de que há sons que não se podem ouvir; cores e odores, talvez indiscerníveis ao ser humano,
120
mas perfeitamente presentes na vida de alguns animais; a existência uma série de ondas e
sinais que viajam no ar, conversíveis em aparelhos, mas imperceptíveis ao corpo humano.
Além disso, dentro dessa parcela do real, que os sentidos conseguem obter, ele recorda o
pouco que seria retido, depois deste processo. Aponta com isto, para a quantidade de dados
que se perdem ao redor do que foi julgado relevante, por nós, em cada situação. Se tantos
dados são perdidos durante a vivência, novamente entra em xeque a idéia da Literatura
enquanto expressão fiel da realidade.
No Prólogo ao Facundo, aparecia a idéia de que os escritores reacomodam
as novas situações aos eventos conhecidos, fazendo com que um fato ímpar pareça mera
repetição do passado. Neste ensaio, a formulação é mais ampla. O ensaísta diz que vemos e
ouvimos, não através dos olhos e ouvidos, mas através da recordação, de temores e de
previsões. Com isso, ressalta que a subjetividade não só comanda, mas distorce as impressões
recebidas. Desse modo, os intercâmbios com o real podem ser compreendidos à luz de
vivências anteriores; adulterados por nossos medos; ou ser interpretados de acordo com
nossas expectativas para o futuro. Os fatos podem ser parcialmente esquecidos e adulterados,
deixando uma vaga lembrança em seu lugar. Assim, faz refletir sobre a existência de um
processo interpretativo, guiando a própria fixação dos fatos da experiência vital. Contra a
representação fiel, é projetado o peso das expectativas e dos medos, mediante os quais cada
homem avalia sua realidade.
Ainda no Prólogo ao Facundo, Borges mencionava a interferência do
subconsciente no processo criativo e na recepção. Neste ensaio, ele pensa na atuação do
inconsciente em uma série de tarefas desenvolvidas no dia a dia, especialmente em relação a
conhecimentos que não foram aprendidos e que, no entanto, são constantemente utilizados
pelo ser humano. Lembra saberes de rias ordens: os saberes físicos para desatar um ou
subir degraus; os saberes instintivos que permitem afastar um cão ou de livrar-se do
afogamento em um rio, etc. Sua enumeração poética faz do homem um estranho em seu
próprio corpo; talvez o condutor de uma máquina, cujos recursos sequer imagina; talvez o
conduzido a re/ações que não é capaz de prever. Trata-se de um argumento contra a
possibilidade de retratar e justificar a atuação de um personagem histórico ou de um
assassino, por exemplo. Talvez o próprio indivíduo, em questão, não possa precisar o que de
fato o levou a determinadas ações.
Desde tais comentários sobre a inconsciência e o automatismo nos saberes
do corpo, o ensaísta parece conduzir a uma suspeita sobre a liberdade de ação na vida
humana. Seu raciocínio projeta uma sombra de desconfiança sobre o mundo, quando
121
apresenta esta gama de processos que, através do homem, ou apesar dele, garantem a vida e
interferem no quotidiano. A questão assoma de todo, quando ele afirma que, “Nuestro vivir es
una serie de adaptaciones, una educación del olvido”. Se a aprendizagem implica na retenção
dos conteúdos, o paradoxo propõe que, se o ser humano apresenta “conhecimentos”, que de
modo consciente não foram aprendidos, então é possível, que junto dessa carga psíquica pré-
estabelecida, haja também alguma programação prévia para a atuação do sujeito. Esse
estranhamento faz suspeitar do pleno domínio da experiência vital, uma vez que poderiam
existir pré-condições na estrutura do indivíduo e ainda nas do meio. Assim, o ensaísta coloca
em dúvida a representação fiel, uma vez que talvez nunca se possa saber de maneira segura, a
verdade de uma vida, ou a verdade de uma situação no mundo, quando não se sabe o que
existe por trás dessa mesma vida e o que de fato regula a experiência humana.
A alusão à Utopia de Moore se baseia justamente na falta de referência do
personagem para saber a distância real de uma ponte. Infere-se que a medida objetiva é uma
mera convenção. Assim, a falta de parâmetros para estabelecer o comprimento efetivo da
construção é uma imagem da falta de parâmetros, para julgar e descrever a realidade. No
entanto, o intertexto funciona com um segundo sentido. A Utopia não é um lugar, mas uma
idéia. Por isso, recebemos, também, a impressão de que a imaginação, o sonho e o desejo
ainda tornam o ser humano menos apto a enxergar o que está à sua volta, quando seus olhos
estão cheios de ideais. Esse é um argumento que especialmente vai ao encontro de estéticas
determinadas pela ideologia política.
Tanto estas críticas, quanto a idéia do ‘real’, veiculadas neste texto, auxiliam
na avaliação borgeana dos procedimentos empregados pelos escritores nos dois modos.
Percebemos um curioso paralelo entre o grupo dos românticos e os escritores que
historicamente pertenceram à escola homônima, por dois tipos diferentes de idealização. Os
escritores do Romantismo idealizavam a realidade. Na argumentação borgeana, a realidade é
convertida no real, e este se torna um objetivo inatingível (um ideal) para os escritores que
romanticamente, acreditam poder expressá-la. Em primeiro lugar, porque essa tarefa
implicaria em uma imensa quantidade de informações. Em segundo, porque a naturalidade da
experiência humana real estaria baseada nos pequenos contatos com a realidade. Desse modo,
mesmo que um texto lograsse o incrível detalhamento requerido na proposta do ensaísta, a
realidade estaria comprometida na escritura romântica por sua feição excessiva. os textos
clássicos são enaltecidos, porque desenvolvem processos análogos aos que Borges encontra
na recepção do real, simplificação em conceitos, seleção, foco (atenção). Por um mágico
122
paradoxo borgeano, os textos que buscam a vida parecem artificiais (exagerados no resultado)
e os textos baseados em artifícios parecem naturais (com sua montagem).
O Modo Clássico
O primordial nos textos clássicos é a idéia. Os temas e as figuras, em
reiterações, variações e expansões vão gradualmente construindo, matizando e enlaçando
significados ao redor de um pensamento central. O interesse neste modo vai para a
composição, destinada a tornar significativos os seus elementos. Portanto, estes relatos não
estão presos ao biográfico, ao histórico, ou ao factual. Não em vão, o ensaísta nos diz que os
clássicos “forman la extensa mayoría de la literatura mundial, y aun la menos indigna”. São
textos, que em lugar da expressão romântica, desejam essencialmente gerar sentidos. É o
encadeamento de idéias elaboradas, umas às outras, o responsável pela fatura destes textos.
Ou seja, esta não é uma escritura que busque primordialmente o mundo extradiegético, mas
ao contrário, como o labirinto, ela procura oferecer ao leitor uma série de caminhos, dispostos
ao redor de um núcleo semântico. De passagem em passagem, ela vai gerando acessos a esse
centro.
Examinando um trecho do historiador Gibbon, Borges assinala ter se
deparado com características clássicas: “el carácter mediato de esta escritura,
generalizadora y abstracta hasta lo invisible”. Assim, a escritura clássica é aquela que não
tenta parecer espontânea ou natural, ou ainda uma reprodução de fatos que ocorreram, mas em
busca da idéia, deixa observar sua condição de mediadora entre o escritor e o mundo; possui
imprecisões, recortes e reduções, que o mesmo ensaísta expõe nas três técnicas clássicas. Este
tipo de texto vai generalizar as situações, vai tornar universais os temas que aborda. Ademais,
a bem humorada hipérbole - “abstracta hasta lo invisible” - renova o sentido de texto
preocupado com o narrar e com as idéias, e que por isso relega a um segundo plano uma
ambientação concreta e detalhada.
Borges assevera, que as experiências com a realidade assomam a essa
classe de texto, quando já foram revertidas em “conceitos”. Isto é, eles operam de um modo
indireto com a realidade. Não são os fatos, mas as idéias sobre os fatos, o que irá importar.
Não interessa enumerar cada situação com suas circunstâncias, mas o agrupamento das
situações, no que é pertinente às idéias. Ademais, através do exame do trecho de Gibbon, o
ensaio fornece o acréscimo de que estes textos possuem uma linguagem simbólica. De modo
123
que o que conta não é representar uma realidade, mas o olhar do escritor, refletido nas
comparações que utiliza, nas aproximações que ele faz. Segundo Arrigucci Jr, o clássico seria
um modo de escritura ligado ao telling
301
. Entende-se, dessa maneira, porque trabalham com
uma “póstuma alusión”. A realidade chega a esses textos, depois de um processo. De
maneira que, ocupados na tarefa de sumariar o que (na vida ou na imaginação) aconteceu,
os clássicos estão voltados para o tempo pretérito. Neles, a descrição perde espaço, que o
narrar predomina.
Pode-se notar ainda, que em oposição aos românticos, que primavam por
sua personalidade e como visto, projetariam personagens individualizadas, Borges postula que
a escritura clássica apaga características individuais dos seres e dos fatos por intermédio de
generalizações. Nela, o indivíduo é aproximado ao ser humano em geral. De maneira que é
plausível que essa busca do universal se repita em outros níveis: no espaço, que embora possa
remeter a um local específico, o vai enfatizar as características e peculiaridades regionais,
como se o relato pudesse ter ocorrido em qualquer parte do mundo; no tempo, de maneira que
a época tampouco pareça importante, dando-se preferência a situações que possam ter
ocorrido em qualquer parte da história; ou ainda na feição dos temas, traduzindo-se em uma
busca por temas mais genéricos e universais - eternamente considerados objeto de reflexão
pertinente.
Como a meta é o sentido, os clássicos tratam de erguer uma realidade, que
não precisa ocultar seu caráter artificial. Por isso, o ensaísta nos diz que estes autores confiam
na linguagem e na eficácia das palavras. Não é necessário, como no caso dos românticos,
buscar a palavra precisa que melhor corresponda a uma situação, ou sentimento específico.
Para os clássicos, o investimento semântico procura fazer com que as palavras venham em
acréscimo da idéia central. Dessa forma, é compreensível que sua linguagem seja simbólica.
O real nestes textos é sobretudo o que se imagina, se infere, ou deduz; e portanto, não
corresponde ao factual. Segundo o ensaísta, a vida destes textos é um produto da imaginação
de seu leitor uma estória, várias imaginações. Dessa maneira, no modo clássico não se trata
de recriar a realidade na literatura, mas de produzir uma realidade artificial apenas suficiente,
se comparada à romântica; e, no entanto, significativa para as idéias que se tem em vista.
Borges ainda esclarece que, ao contrário do escritor romântico, o clássico se dedica tão
somente a assinalar uma realidade, “no a representarla”.
As relações entre os textos clássicos e a realidade ficam bem marcadas.
Borges faz questão de dizer de modo direto que as experiências reais “pueden inferirse de su
relato, pero no están en él”. Mas o ensaísta ainda permite ver o quanto a realidade factual
124
poderia constar de um texto clássico: o quanto se pudesse deduzi-la das conseqüências ou
conclusões a que o autor chegou sobre ela. Nos textos clássicos, onde existe a realidade, ela
foi reelaborada em função de sua idéia. Com isto, uma aposta do ensaísta fica clara: tão válida
quanto a tradição e outras fontes, nos textos clássicos, a realidade seria apenas um dos
materiais à disposição do escritor. Além disso, se declara que os românticos desejam
expressar a realidade, faz perceber que os clássicos preconizam a técnica.
A julgar das explicações a respeito de três tipos de procedimentos clássicos,
estes são textos que recorrem a mecanismos alusivos em sua construção de realidades
literárias. Na terceira técnica, alguns detalhes significativos servem para recuperar um
ambiente e os significados ligados a este. Na segunda, o leitor é levado a descobrir uma
realidade mais complexa do que aquela que lhe é descrita. Na primeira, espera-se do leitor que
imagine o que lhe é proposto, munido apenas das situações mais importantes sobre a trama
total. Ou seja, esta é uma escritura portadora de consideráveis lacunas textuais, vaga, e que
por isso solicita muito ao leitor. Com a citação Os anos de aprendizagem de Wilhelm
Meister, ele compara a ‘certeza’ de um autor clássico sobre a existência de realidade em seus
textos, à certeza do personagem sobre a origem de seus filhos, pensando na dúvida que
sempre poderia pairar sobre a paternidade, naquele tempo. O exemplo sugere o tipo de
realidade proposta por este grupo de escritores, algo em que simplesmente se acredita ou se
confia, mas que talvez não resistisse a qualquer comparação com o real.
Isto não significa que a construção da realidade seja irrelevante para os
clássicos. Não é sem motivo que o ensaísta se detém na apresentação de três técnicas bastante
complexas de formulação de realidades literárias neste modo. Se esta classe de textos é
esquemática e depende de uma interação apropriada com seu leitor para tornar-se eficaz, logo,
as técnicas, os recursos e artifícios devem ter um alto grau de participação na economia
textual. O leitor deve poder ter alguma ‘confiança’ na ilusão proporcionada, ainda que esta
realidade literária não deixe de ser imprecisa. Dessa maneira, a tradição torna-se fundamental,
enquanto um reservatório de técnicas. Mas também, como esta escritura está voltada para as
idéias, e dentre elas, sobretudo às mais perenes, então, por um novo motivo, a tradição se
instala na base desses textos.
Assim, se entende um dos motivos pelos quais, o ensaísta destaca que, na
concepção clássica, as imagens são um “bien público”. São públicas porque servem ao
coletivo dos autores. Para um melhor entendimento do que seria a metáfora clássica e as
características desta classe de textos, pode-se recorrer ao exemplo que o ensaísta aponta, no
texto de Gibbon. Ele comenta que a metáfora é imperceptível, inofensiva, e invisível. Por
125
último, declara que ela é “convencional”. Essa invisibilidade, tão destacada, é um indício da
relação entre os autores e obras no modo clássico. Mostra que nele os tropos não visam à
originalidade, mas ao incremento de um legado comum.
A menção às metáforas que ressurgem em novos textos, permite que Borges
apresente a idéia de uma unidade na literatura idéia bastante recorrente em seus ensaios,
mas que neste, ele sistematiza dentro do modo clássico
302
. Neste raciocínio, a literatura torna-
se o centro e diminui-se tanto o peso da personalidade do autor, quanto o da época. O ensaísta
ainda acrescenta que o tempo torna-se acessório para esses tropos. Com isso, valoriza a
perenidade e a ressonância que os recursos podem adquirir, através desta concepção. Assim,
Borges não diz simplesmente, que em decorrência da visão clássica, a literatura é una, mas
sim que “la literatura ‘es siempre’ una sola”. É como se ela não mudasse com o tempo, mas
fosse sempre a mesma literatura, passando através dos diferentes textos e autores.
Na anedota sobre Góngora, mostra que os estudiosos do poeta das metáforas
surpreendentes tiveram de defendê-lo, contra a acusação de inovar, de modo que teria sido
preciso encontrar matrizes na tradição para salvá-lo ‘dessa ofensa’. Através dela, o ensaísta
procura chocar e divertir com a informação de que um dia, alguém teve de defender-se da
originalidade, como se ela fosse ‘um crime’, “imputación”, “prueba documental”. O
exemplo é funcional para justificar as modernas estéticas que aderiram ao clássico, ao apontar
a inversão de valores: o que hoje choca, algum dia foi regra. Ao mesmo tempo, contrasta o
agora, em que o ensaísta percebe o predomínio do modo romântico, ao largo passado, que sua
argumentação confere aos textos clássicos, confirmando a antiguidade e a duração deste
modo.
Na verdade, o ensaio todo faz uma defesa dessa classe de textos. Ele expõe
os postulados clássicos, com um convidativo argumento a simpatizar com eles, o de que
conferem unidade à literatura. Em paralelo, mostra que esse modo de escritura, que hoje
parece esquecido, possui uma larga tradição. Além disso, aproveita para apresentar a acusação
que poderiam lhe dirigir, refutando-a antecipadamente; a de que ele se volta contra a
originalidade como um meio de obtê-la. Resolve a dificuldade, sugerindo que essa seria a
queixa de um ‘grupo’, que segue a moda do original e que por isso originalidade em toda
parte. Ou seja, transforma o argumento contra si em uma extrapolação do modo romântico.
Ainda vale lembrar sua citação de Arnold, propondo traduzir A Odisséia com palavras
bíblicas. A idéia é exótica, contudo, é um exemplo de que o clássico repercute no presente.
Em “Nota sobre Walt Whitman”, Borges não mede esforços para mostrar que o trabalho do
norte-americano pertence a esta classe de textos. Neste ensaio, aponta uma série de
126
renomados autores contemporâneos inscritos neste modo. Contudo, sua postura diante dos
modos, é visível desde o começo do ensaio. Logo ao início, ele declara que vai contestar a
tese de Croce. Nós sabemos que o motivo é apresentar a existência, a importância e a vigência
de outro modo textual, que não o romântico – o clássico.
Caberia uma maior aproximação na tentativa de perceber a quê classe de
textos, Borges se refere, com o rótulo de clássicos. A retomada da tradição e rasgos, como as
generalizações e a não-originalidade parecem apresentar o Classicismo, como fonte do título e
inspiração para pensar o modo literário. Também o caráter de realidade literária vaga faz
pensar na literatura anterior ao realismo formal. No entanto, o ensaísta assevera tratar-se da
maior parte dos textos literários em todo o mundo, citando Gibbon, Cervantes, Swift,
Voltaire, Tennyson, Morris, Moore, Kipling, Wells, Larreta e Defoe. Por sua ostensiva defesa
do clássico, ele mesmo parece estar incluído neste grupo.
Contudo, se o modo romântico está baseado na expressão da realidade, ao
passo que o clássico é aquele em que o autor se volta para a construção de uma idéia, “La
Postulación” (de 1932), ainda parece ser herdeiro de seus textos da década de vinte. No
manifesto ultraísta de 1921, ele e os companheiros distinguem duas estéticas: “a ativa dos
prismas”, na qual “el arte se redime, hace del mundo su instrumento, y forja más allá de las
cárceles espaciales y temporales su visión personal”; e a estética “passiva dos espelhos” na
qual “el arte se transforma en una copia de la objetividad del medio ambiente o de la historia
psíquica del individuo”
303
. Com o passar dos anos, cai o tom entusiasta dos manifestos e o
vocabulário vanguardista, “prismas”, mas o critério central, com o qual ele divide as duas
formas primordiais de estética, continua semelhante em sua base: literatura centrada na visão
do indivíduo/ em sua idéia; versus literatura centrada na cópia do meio/ na expressão da
realidade.
A estética passiva dos espelhos faz lembrar por exemplo, a declaração do
boedista Emilio Soto de que, “É imprescindível também fazer alusão ao meio, cuja influência
é direta. Esse alcance ou projeção social deve aparecer na obra [...]
304
. Se em 1921, ele alude
a uma “cópia da história psíquica” parece estar pensando no realismo interior; ainda a “cópia
da objetividade do meio ambiente”, evoca o Realismo argentino dos boedistas. Assim, os
genéricos títulos de clássico e romântico foram configurados para a compreensão de gerações
intemporais e universais de escritores, contudo, essa reflexão geral não deixaria de contemplar
a oposição entre a obra borgeana (que se posiciona em favor do modo clássico) e o Realismo
argentino.
127
Borges dá três exemplos de técnicas clássicas. Faço a paráfrase do citado
trecho de Dom Quixote, que ilustra a primeira. Lotário é enviado pelo marido de Camila (que
se achava ausente) para testar sua virtude. Camila é vaidosa, portanto pensa que é bela.
Lotário sabe disso e se aproveita para lutar com as mesmas armas. Diz exatamente o que ela
supõe que merece ouvir. Depois de muita simulação “lloró, rogó, ofreció, aduló, porfió y
fingió” - obtém o que deseja. O adultério não é explicitado, apenas insinuações do que
aconteceu.
O segmento elucida o funcionamento da construção de realidade no texto
clássico. O leitor não sabe o que é o real, mas ele tem suas idéias mais ou menos vagas sobre
o real, assim como Camila tinha as suas sobre si mesma. Sabendo que não existe essa clara
compreensão, o autor clássico, com vários simulacros, vai ministrar uma fantasia a qual,
diferente de uma completa representação da realidade, mesmo assim é capaz de corresponder
às expectativas do leitor. Na argumentação borgeana sobre essa primeira técnica clássica,
entende-se que este trecho não está caracterizado por uma realidade “alegórica”. Isto é, o que
sinaliza o clássico, não é a substituição da realidade factual, por um conjunto de figuras que
lhe corresponde. Sem mostrar, ele insinua. Sua marca é a conceitualização, em que as formas
significam, por um meio mais indireto. O autor concebe suas idéias e a partir delas começa a
construir esse mundo aceitável para o leitor. Representa idéias (sobre); não representa a
realidade.
A diferença deste primeiro método clássico para os outros é que a idéia vai
ser vertida em um texto, cujas pilastras são apenas alguns fatos de maior destaque. Ações
intermediárias ou desnecessárias ao conceito em andamento são suprimidas. Veja-se o
exemplo. Cervantes nem tenta narrar cada passo na sedução de Camila, os diálogos, os
olhares, as fugas e aproximações. É essencialmente clássico. O autor não se detém em
detalhes ou na apresentação de uma cena, mas faz um sumário, narrando uma série de fatos
por intermédio de umas poucas situações centrais. tudo isso por sabido. Contudo, (entre
várias) uma idéia nítida no pequeno fragmento citado: o objetivo é alcançado, porque os
meios são adequados; ou de modo negativo, a conquista não é difícil, quando se conhece a
abordagem correta. Pertence à primeira técnica clássica, porque os significados se
concretizam, apenas com as ações necessárias a traduzir a idéia em questão.
Um segundo exemplo de técnica clássica, seria o de pensar uma realidade
complexa e sem tentar formular essa realidade completamente, fornecer apenas seus efeitos
128
ou desdobramentos. Borges a entender que, enquanto no texto, uma realidade mais
simples, o escritor teria em mente algo muito mais elaborado
305
.
A ilustração vem da Morte de Arthur (1859), de Tennyson. O ensaísta se
detém na análise dessa construção, apontando três arranjos que garantem esse efeito de
realidade mais complexa. Sem esclarecer o motivo exato, ele observa o uso do advérbio
“así”. É possível supor que no trecho em questão, “assim” equivale a “desse modo”. Aqui
está a postulação clássica: a maneira como tudo aconteceu não é referida no texto; com isso, o
advérbio só faz sentir a existência de algo, além do que é relatado. O inglês não narra o
combate, apenas o assinala. O “porque”, segundo Borges, transmite os fatos de forma
episódica. De fato, no poema, essa partícula causal não fornece um motivo verdadeiro para a
situação introduzida neste verso. Na verdade, ela apenas abre espaço para que o poeta
acrescente um dado significativo à realidade mais abrangente, que está elaborando. Já o
mecanismo da oração coordenada “y la luna era llena” não é comentado. Contudo, é outro
dado que permite inferir uma realidade maior após si. A presença da lua, talvez valha pela
noite que sucede ao dia, levando a imaginar o que acontecerá depois da morte do rei Arthur.
Embora o ensaísta haja destacado estes três elementos que servem na
construção de uma realidade literária mais ampla, do que aquela que é anunciada ao leitor,
poderíamos apresentar outros elementos, menos sofisticados que os anteriores, que
contribuem para o mesmo resultado: o “ruído bélico” é um efeito da batalha que
recentemente ocorreu, mas não está descrita no poema; a “tabla” caída é uma conseqüência
vale pelo final do reinado de Arthur; a “herida profunda” é um efeito – faz deduzir a morte do
rei; o “presbitério roto” é um desdobramento um sinal de que o tempo das cruzadas está
perto do fim. Ou seja, no poema ficam registrados somente fatos laterais, que projetivamente
dão sinais da trama total – ela não é exposta, e estes sinais não tentam recuperá-la por
completo. Assim, para compreender o poema, o leitor deveria tentar imaginar a trama maior,
que carrega a idéia em andamento. Afinal é uma técnica clássica, e como vimos, trabalha
com a armação das idéias.
No entanto, não se trata aqui de um método para executar variações da
República, na qual Platão nos dava notícias de um oculto mundo primordial. Especialmente
no caso deste poema, a técnica parece consistir de algo muito mais simples. O texto de
Tennyson foi escrito quando na Inglaterra havia diversas lendas populares e narrativas
dedicadas à vida do rei Arthur. Nelas reside a trama total, da qual o poema do inglês
apresenta as conseqüências e derivações. De modo que, ao menos neste caso, não é tão difícil
adivinhar essa “realidade mais complexa”. Como o crítico Anthony Burgess alerta, Tennyson
129
era um poeta cuidadoso com a técnica e possuía idéias específicas para seus trabalhos
306
.
Assim, o verdadeiro problema para o leitor pode não ser o de detectar essa trama aludida, mas
chegar aos significados que essa ‘realidade’ literária contém.
Borges ainda fornece um segundo exemplo desta técnica, extraído do livro
de William Morris, The Life and Death of Jason (1867). Um dos remeiros de Jasão está caído
às margens de um rio. Antes que a água envolva seu corpo, uma fada pega sua lança, seu
escudo, sua espada e sua malha, e volta com suas peças ao reino das águas. Morris finge que é
impossível dizer mais sobre o ocorrido, valendo-se da desculpa, de que as testemunhas do
fato poderiam narrá-lo. Como se trata de um animal e do vento, ele consegue um subterfúgio
para não fornecer maiores explicações. O trecho também se deixa ler metaforicamente. O
escritor, que utiliza esta técnica, toma os efeitos e desdobramentos da situação que tem em
mente e volta à ficção apenas com os sinais que sejam significativos para a idéia à qual deseja
conduzir seu leitor. Há duas variações do segundo exemplo de técnica clássica, ambas
acionam a imaginação, para que o leitor produza o quadro mais amplo - que a narrativa não
fornece, e do qual ele necessita para atingir os conceitos que essa trama sintética propõe.
Segundo o ensaísta, o terceiro exemplo de técnica clássica consiste no
expediente de obter “pormenores lacónicos de larga proyección”, asseverando ser este o
mais difícil e o mais eficiente, dentre os exemplos fornecidos. A ilustração é um trecho do
romance histórico La Gloria de Don Ramiro (1908), de Enrique Larreta, no qual somos
informados que um cobiçado caldo era servido ‘en una sopera con candado para defenderlo
de la voracidad de los pajes’”. Através de uma leitura metafórica, entende-se que o escritor
não oferece acesso irrestrito à sua idéia, quando utiliza esta técnica. Assim, obter a chave para
a plena compreensão da trama, que carrega os sentidos, envolve a percepção de seus detalhes.
Na adjetivação, em torno do exemplo, é confirmada a eficiência desses pormenores:
“memorabilísimo rasgo”, “aparatoso caldo”. Ou seja, essa formulação de uma realidade
clássica está baseada em detalhes de alto poder projetivo.
Deve-se ainda atentar ao resultado da técnica, de acordo com a opinião
borgeana: “tan insinuativo de la miséria decente, [...] del caserón lleno de escaleras [...]”.
Cabem duas observações. A primeira é a de que Borges faz questão de não completar sua
sentença dizendo que esse romance histórico registra o contexto social da Espanha do século
XVII. Alega apenas que o texto é “insinuativo”, mas não que ele expressa a realidade, o que
faria dele um relato romântico. A segunda é a de que, neste trecho, ele detecta alusões: à
130
ambientação circundante, à casa grande com suas escadarias; e a uma idéia, que a passagem
constrói, a da miséria escondida, já que existe fome no castelo de um fidalgo decadente.
Borges ainda explica melhor, de que modo tais detalhes cooperariam para os
sentidos do texto. Ele nos diz que as películas de Sternberg, valem-se de um esquema
semelhante aos das obras literárias consolidadas pelo uso dos pormenores: elas estariam
“hechas también de significativos momentos”. Edgardo Cozarinski acredita que os detalhes,
que Borges observa no trabalho de Sternberg, seriam as cenas marcantes, das quais a narrativa
cinematográfica se tornaria a larga projeção
307
. O mesmo Borges parece associar a obra deste
diretor à “redução da vida inteira de um homem a duas ou três cenas”
308
. Com isso, o
mecanismo desses filmes é similar ao encontrado no terceiro exemplo de técnica clássica, na
medida em que, a idéia geral do roteiro estaria contida em algumas situações especialmente
significativas. Assim, os pormenores, além de auxiliar na composição de uma realidade,
produzem sentido.
Para precisar melhor o estudo desta técnica, é possível recorrer a outros
textos da produção borgeana em busca de suas características. Em primeiro lugar, seus
raciocínios teóricos corroboram o sentido de que se trata efetivamente de detalhes que podem
ser conotativos, isto é, que são capazes de associação e acréscimo para com as idéias
construídas no texto. Em um de seus primeiros ensaios, ele ligava essa classe de detalhes à
metáfora, entendendo que eles teriam uma maior ressonância textual do que aquela: La
metáfora es una de las tantas habilidades retóricas para conseguir énfasis. [...] Yo creo que la
invención o hallazgo de pormenores significativos la aventaja siempre en virtualidad”
309
. Eles
acionam um mundo virtual, portanto. Além disso, a própria forma como Borges nomeia os
detalhes - “significativos”; o fato de associá-los às emblemáticas cenas de Sternberg; e a
própria inclusão dos mesmos entre as técnicas clássicas; tudo isso produz o entendimento de
que os pormenores auxiliam na composição dos significados dentro das narrativas.
Estes textos igualmente informam sobre outra tarefa desempenhada por esta
classe de rasgos significativos: “Si faltan pormenores circunstanciales, todo parece irreal; si
abundan [...] recelamos de esa documentada verdad y de sus detalles fehacientes. La solución
es esta: Inventar pormenores tan verosímiles que parezcan inevitables, o tan dramáticos que el
lector los prefiera a la discusión”
310
. De acordo com a pequena nota de 1933, se faltam estes
detalhes, o texto pode se tornar inconsistente ou inverossímil. Por outro lado, em excesso,
podem fazer com que a ficção pareça falsa e caia em descrédito. Entende-se que na medida
correta, trazem a necessária consistência e produzem credulidade. Vale a pena observar um
estudo de 1932, em que ele alerta para um suposto defeito em “O Cemitério Marinho”, de
131
Paul Valéry: “Aludo a la intromisión novelesca. Los vanos pormenores circunstanciales que
cierran la composición – el puntual viento escénico, las hojas que la aceptación de lo temporal
confunde y agita, el apóstrofe destinado al oleaje, los foques picoteadores, el libro aspiran a
fundar una credibilidad que no es necesaria [no final do poema]
311
”. Na primeira passagem
aparece o termo “irreal”, fazendo pensar que os pormenores poderiam gerar o efeito de
realidade. Na segunda, entende-se que o resultado destes detalhes seria a verossimilhança
(maior ou menor), dentro da proposta de cada gênero.
Borges não fala de pormenores no modo romântico, contudo sugere que os
românticos trabalham com a acumulação de circunstâncias, para uma representação plena, a
qual (a nosso ver) visaria a um efeito de realidade. Dos clássicos, informa que sua
representação é vaga; portanto esperaríamos deles apenas uma realidade artificial. Entretanto,
neste terceiro exemplo de técnica clássica, concede que alguns romances, que utilizam este
método, sejam “exasperadamente verossímeis”. Assim sendo, o efeito das alusivas
construções clássicas iria, do vago, até o que é muito verossímil - embora, estes escritores não
tenham uma realidade consistente como meta.
Com isso, os autores associados a esta terceira subdivisão são chamativos. O
primeiro é um romance histórico de Enrique Larreta (de 1908). O segundo, são obras de um
ícone do realismo inglês: Daniel Defoe, é aquele que Borges pensava ser o inventor destes
rasgos circunstancias
312
. Ainda serve-se de humor ao mencioná-los. Assevera que o fragmento
de Larreta é um ejemplo corto” desta técnica. Acrescenta que o único método deste tipo de
escritores é essa técnica dos pormenores circunstanciais. Portanto, com a inclusão destes
autores no clássico, fica sugerido que Borges examina grandes obras do realismo inglês e um
romance histórico argentino e não encontra neles uma plena representação de realidade. Ele
poderia ter incluído essas obras no tipo romântico. Contudo, se classifica tais escritores,
dentro do modo clássico, faz entender que nestas obras haveria uma realidade vaga, derivada
de alguns elementos que projetam uma ambientação, com a cooperação do leitor. Este sentido
se reforça, quando ele coloca, lado a lado, no uso desta técnica, um autor de romances
realistas, Defoe; e um autor de romances imaginativos, Wells. Ambas as ‘realidades’ literárias
são equiparadas ao inscrevê-las sob o mesmo método de composição. Borges ainda chama a
atenção para o efeito do procedimento comum: romances (as “novelas”) de Wells são
“rigurosas”; e os (“las”) de Defoe, exasperadamente verosímiles”. Em sua argumentação é
como se fossem as duas faces de uma mesma moeda – ou recurso
313
.
O rodapé parece resguardar uma importante reflexão deste ensaio. Borges
está descrevendo esta terceira técnica clássica, traz à lembrança o autor realista, Defoe e o
132
escritor de literatura imaginativa, H. G. Wells. De imediato, desce à nota de rodapé. O que
vem à sua mente é a trama d´O homem invisível de Wells. Retomamos a imagem. Ser de todo
invisível é limitar-se a um dos lados da existência, mas continuar sofrendo seus problemas,
sem direito aos benefícios da visibilidade. Parece existir uma engenhosa reflexão metafórica
neste exemplo. O escritor de literatura mais imaginativa - do fantástico, do maravilhoso, ou da
ficção científica, sabe de antemão que irá desviar-se da realidade como ocorre ao homem
que se torna invisível. Assim, a metáfora sugere que, apesar de seu propósito imaginativo, a
ficção desta classe de escritor, na verdade, ainda teria de ver-se às voltas com o mundo real.
Sua construção pode parecer isenta de outras regras que não as da imaginação, mas, ao
contrário, todo o tempo, deveria precaver-se de imprudentes desbordamentos imaginativos, ou
seria “atropelado” pela outra realidade, pela acusação de inconsistência. Conseqüentemente
teria de buscar refúgio, aferrando-se a rigorosas regras de construção, para garantir o grau
adequado de verossimilhança em sua trama.
Em especial, a condição do escritor no gênero fantástico parece estar muito
próxima ao que Borges sublinha neste texto. O homem invisível tem que usar uma série de
disfarces, “para que no vean que es invisible” (grifo do autor). Paralelamente, o escritor (do
fantástico) que, sabe que vai cruzar os limites do que seria possível no mundo real, mas quer
seguir na ambigüidade (nem o maravilhoso e nem o realismo) deveria lançar mão de diversos
expedientes, para conservar-se dentro do que pode ter explicação; mas que por outro lado,
resiste a qualquer justificativa.
Dessa forma, a metáfora explicaria que nestes gêneros, o escritor obtém as
vantagens do mundo imaginativo, mas nem por isso pode descuidar-se da existência de um
mundo real. E (talvez) por isso, muitas vezes tem de trabalhar com a mesma técnica do
escritor realista (de Defoe e de Larreta), para obter “disfarces”, uma vez que estes permitem
uma consistência textual de que ele também necessita em seu próprio gênero. Por este motivo
a metáfora fica no rodapé. Não apenas, porque interromperia a argumentação, mas também,
porque é o momento, quando ainda se observa uma técnica do outro (inventada pelo realista
Defoe), mas já se começa a revelar seus próprios dilemas de construção textual.
Os últimos parágrafos realçam a eficácia dos artifícios, mostrando que esta
terceira técnica pode ser obtida tanto através de recursos semânticos, quanto através de
recursos sintáticos. Essas linhas finais ainda retomam a matéria geral fixada no título: “La
postulación de la realidad”. Nele, Borges adiantava que a realidade iria figurar neste ensaio de
idéias literárias, como uma postulação: um termo da filosofia cujo significado alude à
existência de uma “proposição que não sendo [nem] demonstrável, nem evidente”
314
, é
133
admitida sem contestações na base de um raciocínio. A mesma classe de desconhecimento
atua no campo das letras; pois a incerteza sobre o real concorre para que os escritores possam
projetar seus mundos ficcionais.
Deste modo, desde o título está a aposta, de que a realidade na literatura,
sendo diferente do que é no mundo concreto, será mais realista ou mais literária, mas será o
que os textos propõem que ela seja. Assim, a tentativa de representar a realidade na literatura,
também é apenas uma criação, entre várias realidades literárias possíveis - ou postuláveis. O
final reitera tudo isso: a realidade na ficção não precisa respeitar as regras do mundo; não é
natural, nem espontânea como tenta parecer; mas ao contrário, deriva da técnica, logo, do
trabalho de seu autor.
Discussão III Duas questões presentes na leitura que Daniel Balderston realiza em El
precursor velado: R. L. Stevenson en la Obra de Borges têm pontos de contato com nossa
constatação de que o realismo é uma estética, que inicialmente parece opor-se à madura obra
borgeana. Balderston identifica tanto em Borges, quanto em Stevenson o empenho por uma
visualidade que é “puramente textual”, e em conseguir cenas marcantes
315
. O que coloca a
Borges e seu precursor, muito próximos do clássico. Em “Sobre la descripción literária”, de
1942, Borges estaria censurando os escritores que tentariam oferecer um quadro de totalidade
ao leitor:
“Otro método censurable es la enumeración y definición de las partes de un
todo. Me limitaré a este ejemplo: / ‘Ofrecía sus pies en sandalias de gamuza
morada, ceñidas con una escarcha de gemas... sus brazos y su garganta
desnudos, sin una luz de royas; sus pechos, firmes, alzados; su vientre,
hundido, sin regazo, huyendo de la opulencia nacida en la cintura; las
mejillas, doradas; los ojos, de un resplandor enjuto, agrandados por el
antimonio; la boca, con el jugoso encendimiento de algunas flores; la frente,
interrumpida por una senda de amatistas que se extraviaba en su cabellera de
brillos de acero, repartida sobre los hombros en trenzas de una íntima
ondulación (Miró)’./ [Borges:] Trece o catorce términos integran la caótica
serie; el autor nos invita a concebir esos disjecta membra y a coordinarlos en
una sola imagen coherente. Esa operación mental es impracticable: nadie se
aviene a imaginar los pies del tipo X y añadirles una garganta del tipo Y y
mejillas del tipo Z...” (Apud Balderstone
316
).
Observa-se que Borges desaprova uma descrição que tenta ser precisa a
partir do detalhamento de cada parte da fisionomia de um personagem – uma descrição
romântica, a nosso ver. Então, Balderston anota a preferência de Borges por um modo
descritivo indireto, no qual a visão geral é evocada por meio de alguns detalhes marcantes;
em lugar das descrições diretas que dependem da acumulação de detalhes - descrições
134
estáticas como as de Miró, no citado exemplo
317
. Assim, Balderston encontra um paralelo
entre Borges e Stevenson, já que as descrições cinéticas do último contrastam com as estáticas
descrições do século XIX
318
. Ainda de acordo com o crítico, os procedimentos borgeanos
seriam reações contra modelos literários que adormecem o leitor na passividade, “en vez de
obter su activa participación en el proceso imaginativo”
319
. Deste modo, seu estudo
apresentaria Borges e seu precursor, como escritores clássicos. Primeiro porque ambos
estimulam a colaboração imaginativa do leitor e utilizam técnicas alusivas; mas também,
porque ajudam a entender como o seu oposto, o procedimento estático e o detalhamento
cênico, que permitiriam um leitor mais passivo, e eram comumente utilizados no século XIX.
Além disso, Balderston aponta uma diferença entre os autores: “Borges
parecía sostener que cualquier descripción literaria es ‘irrepresentable’ [...]’”
320
. Neste
sentido, nosso trabalho faz avançar essa suposição demonstrando que o argentino não apenas
parece desconfiar, mas de fato apresenta uma geral desconfiança da capacidade de
representação fiel da realidade na literatura. Portanto, uma vez mais, vemos a literatura
borgeana na contra mão das práticas realistas.
Rafael Olea Franco faz uma leitura reduzida de La Postulación de la
Realidad”, contudo, fixando-se apenas na divisão central oferecida pelo ensaio, ele vai chegar
a uma interessante compreensão da estética borgeana, que também acrescenta a este trabalho.
Olea Franco, que está voltado para as relações entre a obra borgeana juvenil e a madura, a
partir do estudo de Ronald Christ sobre a alusão em Borges, vai constatar que esta é uma
diferença crucial entre as duas fases do autor. O espanhol verifica uma mudança de valores
nos textos teóricos do argentino. O jovem Borges (o dos anos 25 a meados de 30), valoriza
Ascasubi pelo expressivo (método romântico) em sua escritura e desvaloriza José Hernández
pelo alusivo (associado ao clássico). Franco percebe que quando Borges valorizava o
expressivo, o jovem mostrava especial apreço pelas descrições de Ascasubi. O espanhol cita
como exemplos disto: um texto de Inquisiciones, de 1925; e dois de Discusión, de 1932
321
.
Nós encontramos uma passagem, de outro texto de Discusión, a qual confirma este raciocínio,
mas ao mesmo tempo deixa perceber melhor seu enlace com “La Postulación”:
“[Borges critica o Martin Fierro, porque neste livro] No intuimos los
hechos, sino al paisano Martin Fierro contándolos. De ahí que la omisión, o
atenuación del color local sea típica de Hernández. No especifica día y
noche, el pelo de los caballos [...]. No silencia la realidad, pero sólo se
refiere a ella en función del carácter del héroe [...]. Así los muchos bailes
que figuran en su relato no son nunca descritos. Ascasubi, en cambio, se
propone la intuición directa del baile [...] (negritos meus)
322
135
Em “La Poesía Gauchesca”, Borges mostra preferência pelo trabalho de
Ascasubi, que descreve os acontecimentos; ao de Hernández que narra em seus versos,
somente os dados que ajudam a construir uma idéia sobre o caráter do Martín Fierro. Como se
vê, este jovem Borges requer a expressão da realidade (romântica) em lugar do processo
alusivo (clássico) de construção da mesma. Ou seja, ao contrário do que acontece em La
Postulación”, ele estava valorizando a descrição romântica, e mostrando-se desfavorável a
uma realidade literária clássica. Chega a vindicar que Hernández maior lugar à realidade
em seu poema.
Isto significa que artigos com posturas diferentes de Borges, dentro do
mesmo livro Discusión sua postura em La Poesía Gauchesca” é diferente da exibida em
“La Postulación”. Além disso, nos artigos em que Olea Franco detecta uma defesa da
descrição, associável ao modo romântico, Borges está tratando da literatura gauchesca.
Portanto, os dados nos permitem pensar que estes textos em especial (os citados por Franco e
o citado por nós), trazem consigo valores mais antigos (que os veiculados em “La
Postulación”). Considerando o conteúdo destes textos a gauchesca, essa valorização do
expressivo, que não existia no “primeiro jovem”, parece ter vindo de encontro às necessidades
geradas pelo envolvimento do escritor com o projeto criollista. Parecem estar ligados àquele
momento, entre 1925 e 1928, quando seus ensaios estão cheios de argentinismos, e a revisão
dos autores da gauchesca é constante.
Olea Franco constata que ocorre uma transformação no pensamento de
Borges, fixada entre os anos 30 e 60: enquanto em sua primeira fase, ele elogia o cênico em
Ascasubi; na maturidade, o autor veria as descrições como interrupções no andamento da
narrativa
323
. O crítico confirma sua teoria com a citação do que Borges declara em uma
entrevista: “‘Ahora he descubierto que únicamente por la alusión se puede ofrecer una idea de
algo. Encuentro que la alusión tiene una importancia mucho mayor que la expresión’”
324
.
Com isso, Olea Franco propõe que a escritura borgeana vai gradualmente deixando a
expressão, preferência da fase juvenil, e adotando a alusão, como método predominante de
construção textual. Acredita que “la satisfacción del Borges maduro por la ausencia de
elaboradas descripciones paisagísticas en el Martín Fierro, demuestra el paulatino
desplazamiento de la expresión hacia la alusión en su propia escritura; estos conceptos poseen
las acepciones que expuse al analizar “La Postulación de la Realidad [...]”
325
. Mas, se Olea
Franco nos diz que Borges deixa de ser expressivo para ser alusivo, nos termos de La
Postulación”, isso equivale a dizer que Borges deixa de ser romântico, para contar-se no
número dos escritores clássicos.
136
Vale a pena observar o que seria o romântico, para Olea Franco. Ele diz que
“Borges posee un particular concepto de expresión, según el cual ésta se identifica con la
‘representación’ de la realidad”
326
e ainda, que expressivo é “todo recurso literario que intente
construir dentro del texto la ‘representación’ plena de un hecho”
327
. Como visto, o espanhol
segue os textos juvenis de Borges, assumindo que a descrição seja um rasgo do modo
romântico, tal como encontrado por ele em “La Postulación”. Mas, se a plena representação
da realidade e a ênfase na descrição podem figurar em qualquer tipo de texto moderno, essas
duas características estão associadas ao realismo. Não pensamos na Escola, mas no realismo
literário que, pertencendo à época moderna, exibe predomínio no século XIX, mas desde o
século XVIII, gerou uma configuração geral de realidade dentro da literatura. Portanto, a
percepção que Olea Franco possui dos modos literários exibidos em “La Postulación”,
respalda nossa idéia de que o conceito borgeano de romântico, está próximo do realismo
encontrado nas obras modernas (exceto é claro pela questão da originalidade); mas
igualmente, pode ter tido como ponto inicial de reflexão, o Realismo argentino dos anos vinte.
Christ e Olea Franco entendem que a obra borgeana madura tem uma
característica clássica central apontada no ensaio: a alusão. Neste caso, exibem concordância
com as percepções de Balderston. Assim sendo, na obra borgeana da maturidade uma
atitude definida quanto à representação Borges prefere a alusão clássica. Mas se a obra
juvenil, ao menos nos textos teóricos, exibe outra preferência, podemos nos perguntar quando
ocorre esta mudança. Para tanto, podemos pensar que há três textos de Discusión, enaltecendo
a expressão (dois citados por Olea Franco e mais um). Sabemos ainda, por Olea Franco, que
mais um texto com o mesmo tipo de concepção, em Inquisiciones, de 1925. Isto significa
que, entre Inquisiciones e Discusión, existiria, na classificação de “La Postulación”, um
Borges romântico que preconiza o expressivo na escritura. Além disso, se são três os ensaios
ligados a este modo, no livro de 1932, parece-nos que a transição de um a outro modo não
acontece em 1930, com Evaristo Carriego. Com maior precisão, pode-se averiguar que o
processo está começando em meados de 1932, com Discusión. Portanto, logo após o período
de culminância dos debates entre os grupos de Boedo e Florida (1930).
Assim, no período, entre 1925 e 1928 (os três primeiros livros de ensaios),
as teorizações borgeanas mostram que ele chegou a cultivar alguns posicionamentos que
aproximam sua obra juvenil do realismo - textos com essa faceta ainda aparecem no livro de
1932. Este pode ser um dos motivos, para que o autor construa, com muito exagero, um
jovem Borges realista no conto “El Otro”. Ao mesmo tempo, vemos que as teorizações em
“La Postulación de la Realidad” colidem, por sua defesa do modo clássico, com o Realismo
137
argentino da década de vinte, é possível supor que a citada polêmica entre os grupos literários
tenha sido um importante momento de gestação para o afastamento da expressividade e para a
afirmação dos mecanismos alusivos que seriam fundamentais na madura poética borgeana.
3.4. BORGES E UM PONTO DE CONTATO COM O REALISMO:
OS PORMENORES CIRCUNSTANCIAIS.
3.4.1. A Partir de “25 de agosto, 1983”.
Em uma entrevista, Borges dizia que o dever do escritor era conquistar
novos terrenos para a ficção. A julgar das considerações que exibe sobre o discurso da
historiografia tradicional e das considerações que tece sobre o discurso da filosofia e da
religião, no Prólogo ao Facundo, vemos que ele parece lançar-lhes a mesma sentença de
Mallarmé: c´est tout literature. Ao mesmo tempo, sua obra é conhecida pela incorporação de
temas da filosofia, da religião e da história desta, não apenas seus temas, mas também
algumas vezes o modo de narrar, o sabor da crônica histórica. Outra faceta já reconhecida pela
crítica é a metaficção. Assim, nosso corpus, parece revelar um terreno que ainda não havia
sido delimitado com precisão. Trata-se da ficcionalização de sua própria ficção. Em “El
Otro”, vimos que o autor discretamente enlaçava características de sua obra ao personagem
mais velho, ao passo que procura discretamente apresentar o realismo, como seu oposto (a
estrutura do duplo, talvez o tenha levado ao questionamento, do que poderia ser o oposto
complementar de sua ficção). Um segundo conto do livro La Memoria de Shakespeare
(1983), possui o mesmo tipo de metaficção, que remete à sua obra.
Como admite o narrador de “25 de Agosto, 1983”, a Borges agradam as
simetrias imperfeitas, de modo que esta estória parece ser uma espécie de espelho invertido
diante de “El Otro”. Por isso, surge um breve cotejo com este conto.
Novamente estão postos os temas do tempo, do sonho e do duplo; também
voltam o metaficcional e o aproveitamento de dados autobiográficos. Até mesmo alguns
elementos cênicos explicitam a relação gêmea entre as narrativas: o reconhecer a própria voz,
o banco no jardim, as paradoxais memórias do futuro, a cegueira. Como no primeiro conto, o
narrador afirma que ambos os Borges são mentirosos: que los dos mentimos”. Volta a
afirmar a relação caricaturesca entre ambos; mas também torna a confirmar que
138
semelhanças entre os dois. Uma vez mais, o velho pensa que tanto o encontro quanto a vida
são sonhos. Em “El Otro”, ele diz: “Mi sueño [vida] ya ha durado setenta años”. Em “25,
Agosto”, explica: “vós tendrás mucho que soñar [vivir]. O jovem, mais vacilante que o de
“El Otro” apenas conjetura que o encontro seja sonho; mas se dessa vez é o velho, quem
duvida da existência do outro, os contos seguem parelhos, que em ambos o reflexo é o que
acredita ser único.
A principal diferença entre os dois contos reside na estrutura. Na primeira
narrativa, o mais velho é o narrador. Nesta, a disposição do ponto de vista é contrária. O mais
jovem é o narrador, de modo que o outro é o velho. Mas ele ainda se parece muito ao da
primeira estória. Ele joga com o tempo e com a identidade, dizendo ao jovem que seu
encontro não será o único, pois “Cuando lo vuelvas a soñar, serás el que soy y serás mi
sueño”. Igualmente quando o jovem pensa em sua localização durante o encontro, o velho
imediatamente lhe tira as certezas. O espaço para ele é uma possibilidade, um ponto de vista,
ou uma especulação filosófica. No instante em que o jovem quer resolver o problema do
encontro, apontando para sua realidade, o velho mostra diferentes perspectivas para a mesma
situação - “Lo fundamental es averiguar si hay un solo hombre soñando o dos que se
sueñan”. Assim, como no primeiro encontro, o velho torna a opor sua própria palavra aos
fatos que o jovem apresenta. Isto é, volta a mostrar ao outro, que para ele, o discurso é mais
importante que a verdade do factual. A verdade de seu discurso (de sua ficção), esta é sua
única verdade.
A tópica da memória parcial é retomada. O velho antecipa ao jovem a
escritura de sua obra-prima, garantindo-lhe que nesta ocasião, ele recordará esta conversa.
“Quedará en lo profundo de tu memoria, debajo de la marea de los sueños”. Ele não afirma
que o diálogo será a origem deste novo conto, mas diz que o jovem terá dele uma vaga
lembrança durante a composição. Com isso, segue a proposta do conto anterior, ao sugerir a
idéia da escritura, como uma negociação entre o lembrar e o esquecer. Em “El Otro”, o velho
recorre ao recurso de Coleridge. Em “25 de Agosto”, além da alusão à memória, ele admite
para o jovem, que sua “supuesta obra no es otra cosa que una serie de borradores, de
borradores misceláneos”. Diretamente ele se declara um escritor de versões, versões de sua
própria escritura e da alheia.
Assim, como ocorre no primeiro conto, as falas do velho Borges
gradualmente assinalam rasgos marcantes da literatura borgeana ou ao menos, muitos dos
quais estão difundidos entre a crítica. Contudo, neste conto, essa caracterização é ainda mais
139
explícita. O velho relata ao interlocutor o grande sucesso de seu maior conto, mas contrariado,
admite que não conseguiu afastá-lo de sua produção anterior:
“Mis buenas intenciones no habían pasado de las primeras páginas; en las
otras estaban los laberintos, los cuchillos, el hombre que se cree una imagen,
el reflejo que se cree verdadero, el tigre de las noches, las batallas que
vuelven en la sangre, Juan Muraña ciego y fatal, la voz de Macedonio, la
nave hecha con las uñas de los muertos, […] Además, los falsos recuerdos, el
doble juego de los símbolos, las largas enumeraciones, el buen manejo del
prosaísmo, las simetrías imperfectas que descubren con alborozo los críticos,
las citas no siempre apócrifas”. (grifo meu)
Uma das façanhas borgeanas nesta narrativa é este desdobramento do velho
em uma figura de escritor; e ainda em seu próprio crítico. Aparecem seus consagrados temas
– o duplo, o duelo; suas figuras os labirintos, os tigres, as facas, o tema de influência anglo-
saxã; um de seus personagens mais conhecidos o compadrito; seus recursos usuais os
símbolos, as enumerações, as simetrias imperfeitas, a alusão aos precursores, o recurso à
citação, a ficcionalização da história e da biografia. Além disso, aparece um segundo rasgo
ligando o personagem mais velho à obra de seu criador. O velho confessa que publica um
grande conto, sob um pseudônimo...inutilmente. Mesmo assim, a crítica reconhece nele
características da poética borgeana; desaprovando ‘o farçante’ por plágio. Com o artifício,
reflete, ele, um personagem de ficção, sobre uma obra ficcional que não pertence a si, mas
ao Borges autor que existe fora dela. Assim, tanto quanto em “El Otro”, a figura do velho,
neste conto, nos remete à obra borgeana e a seu autor implícito.
Embora este Borges seja facilmente reconhecível, na descrição que faz de
sua própria literatura aparece uma característica não tão explorada nessa obra: el buen
manejo del prosaísmo”. Através dela, o velho leva a atentar, não apenas sobre sua prosa; mas
na ambigüidade, também a respeito da presença do comum ou do trivial dentro dela. O dado
se torna mais chamativo, uma vez que este Borges mais velho coloca, entre os livros que lhe
infundiram o desejo de alcançar uma obra-prima, Salambô de Flaubert. Mas essa ligação com
o circunstancial, aparece sob nova faceta. Em “El Otro”, surgia uma série de pormenores
precisos e imprecisos. Em “25 de Agosto”, não imprecisões na fala do narrador, mas os
pormenores são recorrentes: o “ancho” portão, o tinteiro “de bronce”, a cama “de fierro”.
Em paralelo, percebe-se que esta narrativa na qual o jovem é o narrador é
muito mais descritiva. Ainda que alusivamente, ele relata todo o seu percurso desde a rua até
o encontro, de modo que vemos “com ele”: a estação, as ruas, o portão, o jardim, o vestíbulo,
o balcão do hotel, as escadas, o pátio, a porta, o candelabro, até a cama de ferro. Ele não perde
140
mesmo um detalhe trivial neste caminho: a caneta presa ao balcão. No primeiro conto, tudo o
que havia era um banco às margens de um rio. Em “25 de Agosto”, até o velho é mais
delineado: “más viejo, enflaquecido y muy pálido, estaba yo, [con] los ojos perdidos en las
altas molduras de yeso”. Em “El Otro”, de sua aparência, sabíamos apenas que era um velho
cego, com os cabelos brancos. Também, a relação do jovem com o tempo é a mesma. Ele
atenta ao horário, observando o relógio da estação; é ainda dele o pedido para que o velho lhe
narre os sucessos do futuro. Deste modo, em ambos os contos, ‘os jovens’ estão ligados ao
tempo sucessivo da realidade quotidiana, ao passo que ‘os velhos’ vêem o passado no futuro,
e projetam a repetição sobre o tempo, como ocorre nas especulações filosóficas
328
.
Contudo, há um momento que especialmente enlaça os jovens nos dois
contos. No primeiro, o velho erra o nome da praça ao lembrar-se do episódio do bordel em
Genebra. O jovem o corrige com tal firmeza, como se assinalasse o “lá”, onde tudo ocorreu.
Seu gesto é quase referencial, quando requer o exato nome do logradouro. Em “25 de
Agosto”, a questão com a referência é ainda mais visível. O jovem diz que vai até o hotel para
tentar o suicídio e afirma: “Por eso estoy aquí (grifo meu). O problema está posto na medida
em que o “aquí do jovem, que ele utiliza duas vezes, tem primariamente um caráter
demonstrativo. Ele quer dar conta de sua localização no Hotel Las Delícias, a qual
confirmaria sua existência e sua realidade em um tempo e espaço determinados
329
. Ainda em
paralelo com a narrativa de 1975, tão logo o jovem se pronuncia a respeito de estar no hotel
conhecido, o velho contesta: Aquí? Siempre estamos aquí. Aquí te estoy soñando [...] Aquí
estoy yéndome [...]”. Ou seja, o velho se opõe ao ponto de vista referencial do jovem. No
lugar dele, pensa em uma possibilidade poética ou mais filosófica para o entendimento da
situação.
Outra coincidência, entre o jovem do primeiro e do segundo conto, é o
tratamento da causalidade. O jovem narrador de “25 de Agosto” tinha certeza que o velho
tentaria novamente suicídio, porque o tinha tentado uma vez. A seu raciocínio causal, o
velho responde taxativamente: “no veo la relación”. Assim, se o jovem pensa que um desejo
suicida é um índice de que haverá um novo intento, o outro não. Mas uma última simetria
nos jovens. O moço de “El Otro” beirava o desespero com a realidade fantástica que lhe
propunha o velho Borges; o jovem de “25 de Agosto” se assusta com o insólito. Seu fantasmal
interlocutor quer tocá-lo, mas ele admite seu pavor - “Retrocedí; temí que se confundieran las
dos”. Em contrapartida, os velhos de ambos os enredos tendem a tomar com naturalidade a
condição fantástica do encontro. Nesta narrativa, o velho vai logo dizendo que “nada es raro
en los sueños”. Mas no momento em que o octagenário começa com seus jogos paradoxais,
141
de que “La verdad es que somos dos y somos uno”, o jovem é franco: “Esa conversación me
irritaba. Así se lo dije”. O jogo irracional e especulativo, por fim o aborrece.
Por tais motivos, entende-se que o jovem narrador nos remete a Borges
obra borgeana), ainda que este seja um Borges mais realista. É um Borges, que as pessoas
custam a reconhecer como Borges. A metáfora é bem sutil. É o jovem, quem está hospedado
no hotel. No entanto, o dono, que está na recepção, depois de ter visto o velho uma única vez,
não identifica mais o jovem como Borges: el dueño no me reconoció y me tendió el
registro”. Fica o contraste entre o jovem, que não é reconhecido, embora compartilhe seus
traços marcantes com o mais famoso; e o velho, cuja escritura, mesmo sob um pseudônimo,
ainda é identificada como ‘borgeana’.
Dessa forma o título, tão preciso, desta narrativa - “25 de Agosto, 1983”,
representa o dia em que ocorre uma suposta transformação deste narrador a uma escritura
mais imprecisa. A mudança fica marcada em sua saída do hotel. O narrador diz que, para fora
destes portões, ele não voltaria à mera realidade. “Huí de la pieza. Afuera no estaba el patio,
ni las escaleras de mármol, ni la gran casa silenciosa, ni los eucaliptos, ni las estatuas, ni la
glorieta, ni las fuentes, ni el portón de la verja de la quinta en el pueblo de Adrogué”. Depois
do episódio, ele iria ao encontro da fantástica obra-prima profetizada pelo velho Borges.
“Afuera me esperaban otros sueños”.
Se “El Otro” fazia sugestões sobre a presença ‘do real’ na obra borgeana, o
cruze dos contos parece trazer uma confirmação deste aspecto. “La Postulación” dizia que a
literatura poderia ser imprecisa, porque as pessoas estão acostumadas à imprecisão em sua
vida quotidiana
330
. Assim, o tempo cronológico, “eran las once de la noche pasadas”,
amparado por alguma inexatidão, parece ser uma forma eficiente de conseguir uma sensação
realista de tempo, quando é necessário. Já vimos que, do conto de 1975, constava a mesma
inexatidão em seu “serían las diez de la mañana”. Quanto ao espaço, basta a caneta presa ao
balcão, para que o leitor imagine um ambiente comum de recepção de hotel. Alguns detalhes
sugerem a ambientação circundante. Procedimento similar é aplicado na caracterização do
personagem. É suficiente apontar como em “El Otro”, a cabeça branca, ou como em “25 de
Agosto”, o velho pálido e fraco, para que o leitor complete a figura de um velho em sua
imaginação. Um último procedimento para gerar verossimilhança é a causalidade da vida real.
Na estrutura dos contos predomina a causalidade mágica, mas para obter esse efeito de uma
lógica real, Borges põe em boca do personagem algum tipo de senso comum na previsão dos
acontecimentos. Nesta narrativa, o jovem deduzia que haveria uma segunda tentativa de
142
suicídio que houvera uma primeira. Em “El Milagro Secreto”, vamos rever os pormenores
no tempo e no espaço e este tipo de causalidade.
3.4.2. Rumo a “El Milagro Secreto”.
Ao explicar o terceiro exemplo de técnica clássica, observamos que Borges
procurava apresentá-la, como uma construção comum, tanto a autores de literatura mais
imaginativa, quanto a alguns autores de obras realistas – pertencentes ao modo clássico.
Segundo Arrigucci Jr., “esta é uma das técnicas fundamentais do Borges, que ele vai utilizar
na prosa. Pormenores lacônicos, ou seja, concisos, ditos de passagem, mas que têm uma longa
projeção, porque vão ter uma série de conseqüências”
331
. Pretendemos confirmar que Borges
utiliza esta técnica, mas ainda desejamos examinar a especial configuração que ela adquire em
sua narrativa.
Acreditamos que em “El Milagro Secreto”, do livro Artifícios, existe uma
chamativa construção, que talvez seja comum a várias narrativas borgeanas. Trata-se de um
conto altamente ficcional, mas na primeira fase da trama, o escritor precisa gerar uma base
“realista” (e não apenas consistente), para que dela salte o fantástico. Neste ponto, os
pormenores ajudam a garantir um efeito de realidade. Portanto, nossa proposta é que, nesta
narrativa, os detalhes, dentro de sua peculiar estruturação alusiva, são responsáveis por uma
verossimilhança rigorosa.
Quanto à outra faceta dos pormenores, isto é, a colaboração dos mesmos
para com os sentidos textuais, nós acreditamos que, pouco ou muito, cada um destes detalhes
serve para a conformação das idéias. Entretanto, em nossa breve aproximação ao mencionado
conto, vamos priorizar a questão do verossímil. Em compensação, esboçamos um reduzido
agrupamento das várias formas que o recurso pode assumir dentro das narrativas. Um amplo
estudo e uma classificação geral do mesmo não seriam viáveis no âmbito desta dissertação,
contudo é possível assinalar uma pequena série de exemplos, sem desviar-nos de nossos
propósitos específicos.
Os pormenores são abundantes no conto fantástico “El Milagro Secreto”
332
.
A julgar do que ocorre em “El Otro” e em “25 de Agosto, 1983”, uma das formas sob as quais
se apresentam os pormenores seria uma menção, precisa ou imprecisa, a dados temporais e
espaciais: dia; hora; períodos do dia; ou ainda, o nome de um edifício; a função do prédio; a
rua na qual ele se encontra; a distância entre ele e outro logradouro, ou acidente geográfico,
143
que pode ser conhecido ou inventado. Neste conto, “La noche del catorce de marzo de 1939,
en un departamento de la Zelterngasse de Praga”, Haromir Hladík tem um sonho profético
sobre seu fututo. O narrador aponta o dia e o período do dia. O fato datado ganha
historicidade com a menção ao ano. Ao mesmo tempo, o nome da rua confere certa
concretude à ficção, e faz com que o leitor imagine a personagem neste tempo e espaço
ficcionalmente determinados. Sua sentença de morte recebe tratamento ainda mais preciso:
“Se fijó el día veintinueve de marzo, a las nueve a.m.”. Assim, os fatos conseguem ancorar-
se, através destas pequenas informações, as quais, mesmo carecendo de qualquer realidade
efetiva, garantem uma construção literária eficiente.
Da mesma forma como a data enlaça a narrativa ao tempo histórico, certas
explicações ligam as personagens a instituições ou feitos. Sobre a profissão de Haromir
Hladík, o narrador nos diz que: “En 1928 había traducido el Sepher Yezirah para la Editorial
Barsdorf(grifo meu). A tradução de um livro em uma editora de um país distante assegura
um perfil plausível para o personagem. Ele se assenta no raciocínio de que, se há uma editora,
por extensão, o livro e seu autor tornam-se igualmente possíveis. Ainda no começo do conto,
o narrador recorda que Hladík é o “autor de la inconclusa tragedia Los Enemigos(grifo
meu). Novamente a caracterização da personagem tem seu contorno reforçado por um livro
desconhecido. Assim, o narrador não precisa acumular uma série de dados, ele só precisa
exibir um conhecimento pormenorizado de algumas poucas situações, para que o leitor julgue
existir, de sua parte, um envolvimento ou um conhecimento mais amplo dos fatos. Desta
forma, a verossimilhança é obtida quando personagem e situações são ancoradas na
plausibilidade destes pormenores.
Outros rasgos são desenvolvidos a partir de um “modo adjetivo”. Quando
Haromir é levado ao quartel alemão, o narrador nos conta que no dia 19: El mismo
diecinueve fue arrestado. Lo condujeron a un cuartel aséptico y blanco, en la ribera opuesta
del Moldau” (grifo meu). A brancura e a limpeza do quartel o percepções da personagem.
Elas fazem imaginar o ambiente à volta do preso e garantem a verossimilhança, através dos
detalhes que supostamente mais impressionariam o sentido visual em tal lugar. Esse modo
adjetivo dos pormenores também é aplicado aos objetos que asseguram a ambientação em
outros espaços do conto, por intermédio da menção ao material, do qual estes objetos estariam
feitos. Ao começo da estória de Hladík, o narrador nos antecipa que ele terá problemas,
quando nos informa que “Era el amanecer; las blindadas vanguardias del Tercer Reich
entraban en Praga”. Mais adiante, Hladík nota que sua imaginação falhara, quando o levam
para ser executado. Percebe que La realidad fue menos rica: [él y los soldados] bajaron a un
144
traspatio por una sola escalera de fierro. Nesta narrativa, o ferro e a blindagem ajudam a
construir a idéia da irracionalidade do sistema nazista, fazendo que os soldados tratem com
dureza as pessoas; em contraste, o artista Haromir se entrega à composição do poema, com
um enorme carinho, gerando cada uma de suas partes com esmerada racionalidade. A alusão
ao material dos objetos pode ser observada também em “25 de Agosto”, quando o jovem sobe
ao quarto do velho suicida e o encontra “en la angosta cama de fierro
333
. Ou ainda, em “El
Aleph”, em que narrador anota “las carteleras de fierro de la Plaza Constitución”
334
. Nestes
casos, é como se, de forma indireta, a substância garantisse a ‘existência’ do objeto ao qual
ele se acha associado. Daniel Balderston afirma que a busca da plasticidade é detectável tanto
nas narrativas de Stevenson, quanto nas de Borges
335
. Contudo, não é uma enumeração
exaustiva de objetos o que leva à visualidade nesta narrativa. São apenas pormenores que
despertam uma ambientação a seu redor, e assim cooperam para uma sensação de realidade.
Um tipo diferenciado de tais detalhes parece ser a menção aos fenômenos do
clima. Em um de seus prólogos, Borges comenta a invenção dos detalhes circunstancias, “Lo
tardio de ese descubrimiento es notable; que yo recuerde no llueve una sola vez en todo el
Quijote”
336
. Se antes de Defoe não chovia, o narrador de “El Milagro Secreto” não perde de
vista esta classe de pormenor. Lembra-se de dizer que Haromir desperta de um sonho, logo
que “Cesaron los estruendos de la lluvia [...]. Ainda no dia da execução acrescenta que “el
día se nubló”. Como o clima se transforma a cada instante, a recordação da temperatura, da
chuva ou do vento tem mais ou menos o mesmo valor que a lembrança de um cheiro ou de um
perfume particular. É como se a experiência fosse tão intensa, que mesmo depois de muito
tempo, o narrador ainda pudesse recuperar os mais ínfimos detalhes do acontecimento.
Contudo, se a personagem possui uma nítida recordação do momento, isto faz com que o
leitor tente imaginá-lo, para revivê-lo consigo. Assim, por novo motivo, os detalhes podem
representar um acréscimo na verossimilhança da trama.
Entre os vários tipos de pormenores, ainda aqueles que podem parecer
meros detalhes cênicos. Por exemplo, “el montón de leña” em que se senta Haromir à espera
das ordens dos soldados para ser alvejado. É interessante notar o sofisticado trabalho que
Borges efetua com esses simples detalhes. Sabemos que por um milagre secreto, entre o
tempo dos disparos e a efetiva morte do judeu, lhe será concedido um ano para terminar o seu
grande drama em verso. E no entanto, para que essa cena seja fantasticamente congelada,
Borges tem primeiro que gerar essa realidade. Aqui entram os detalhes circunstanciais. Eles
compõem o quadro vivo da execução para que o autor projete a imobilidade temporal sobre a
cena: “El brazo del sargento eternizaba un ademán inconcluso. En una baldosa del patio una
145
abeja proyectaba una sombra fija. El viento había cesado, como en un cuadro”. E pouco
mais adiante: “En su mejilla perduraba la gota de água; en el pátio, la sombra de la abeja, el
humo del cigarillo que había tirado […]”. É claro que a extrema atenção às circunstâncias, o
suor, e o cigarro auxiliam a compor a tensão, a dureza, e a força que emanam da repressão
nazista. Em paralelo, como dito, lembrar-se do clima, e neste caso do vento, equivale à
perfeita lembrança de um instante. a idéia de que o narrador observa uma experiência tão
intensa da personagem, que ainda conserva cada impressão deste quadro. O gesto do soldado
fornece a imagem do batalhão à frente de Haromir. A fumaça do cigarro no chão produz a
visão horizontal da cena. A abelha é um daqueles pormenores, dos quais Borges nos alerta,
que de tão “dramáticos”
337
, nenhum leitor ousaria discuti-los.
É interessante a alternância de técnica que o conto exibe. Desde o início da
narrativa, até a execução da pena de morte, o narrador precisa de um efeito de realidade
afinal é um preso do nazismo sendo levado a um quartel. Então, é utilizada a terceira técnica
clássica a dos pormenores circunstanciais. No momento em que o fantástico entra em cena,
e Haromir começa a dispor do milagroso tempo para compor seu poema, Borges alterna a
técnica que vinha utilizando. Ele passa à primeira técnica clássica, mais alusiva do que a outra
- o significado que o autor têm em mente é veiculado apenas com os principais sucessos
escolhidos entre uma extensa série de ações ou eventos. Assim, o narrador nos informa que
dentro do ano que lhe foi concedido, “Ninguna circunstancia lo importunaba [a Haromir].
Omitió, abrevió, amplificó; en algún caso optó por la versión primitiva […] Descubrió que
las arduas cacofonías que alarmaron tanto a Flaubert son meras supersticiones visuales”.
Ele assinala apenas alguns gestos que alusivamente retomam a completa composição do
poema de Hladík. Quando o personagem chega ao fim de sua tarefa, cessa a situação
excepcional. Borges volta à técnica anterior dos pormenores. A gota d´água que se move põe
termo à vida do poeta. A realidade literária segue seu curso: “murió el veintinueve de marzo,
a las nueve y dos minutos de la mañana”. O conto começa com a técnica dos detalhes, e volta
a essa técnica em seu desfecho.
Mas cabe regressar à narrativa, para atentar a um momento em que os
pensamentos do personagem parecem refletir as preocupações de seu autor. Haromir está
preso; pensa em sua morte próxima; e tenta prever como ela será. O personagem: “No se
cansaba de imaginar esas circunstancias [...] Luego reflexionó que la realidad no suele
coincidir con las previsiones; con lógica perversa infirió que prever un detalle circunstancial
es impedir que éste suceda” (grifos meus). O trecho parece metaficcional, porquanto o
personagem, que é também um escritor, tão logo pensa em uma realidade futura, põe-se a
146
imaginar os detalhes das circunstâncias vindouras. Ademais, a reflexão é ampliada com um
pouco de humor negro: “Fiel a esa débil magia, inventaba, para que no sucedieran, rasgos
atroces; naturalmente acabó por temer que esos rasgos fueran proféticos” (grifo do autor).
Neste trecho o narrador permite acessar os dois pensamentos que o autor judeu tem a esta
altura. O primeiro lembra o senso comum pessimista da vida real: aquilo que conjeturamos
para o futuro costuma não acontecer. Mas ele é um escritor, então seu segundo pensamento
parece recordar concepções do mundo literário: pode ser que esses detalhes imaginados
venham a ter “uma projeção ulterior”, para utilizar o vocabulário de Allan Poe; ou à maneira
borgeana, que eles possam acionar uma causalidade mágica, sinalizando sua futura morte. Ou
seja, as reflexões de Hladík oferecem uma comparação entre a realidade e o ficcional,
lembrando as diferenças existentes na projeção de futuro entre uma e outra.
o fim do parágrafo seguinte é explicitamente metaficcional. O narrador
explica, porque o escritor judeu não optara pela prosa: Hladík preconizaba el verso, porque
impide que los espectadores olviden la irrealidad, que es condición del arte”. E que o
argumento deste drama em verso era bom, porque “intuía la invención más apta para
disimular sus defectos y para ejercitar sus felicidades, la posibilidad de rescatar (de manera
simbólica) lo fundamental de su vida”. Ambas as propostas estão em estreita consonância
com as idéias encontradas na análise dos ensaios borgeanos, e em especial, com as de La
Postulación”. A primeira é análoga à idéia de que a literatura não pode captar fielmente a
realidade, a qual aparece em “El Otro”; mas aqui, levada ao extremo, se parece mais com as
propostas deste ensaio. De acordo com ele, a literatura teria, no modo clássico, uma realidade
artificial; mas no modo romântico, tentaria expressar a realidade, caindo dessa maneira na
distorção que vem da própria forma pela qual o ser humano assimila o seu contexto sempre
de maneira parcial, segundo a exposição borgeana. Ou seja, é a idéia de que a ficção não pode
arcar com o peso integral da realidade. A segunda idéia, no trecho citado, encontra paralelo
com os mesmos raciocínios de La Postulación”, segundo os quais, se a arte não pode ser um
espelho fiel do real, ao menos, dentro do modo clássico, a grande aposta seria a estruturação
de idéias e a produção de sentidos dentro do texto. Em especial, a passagem lembra a
proposta, de não efetuar a exposição integral de um evento ou de uma vida, para fazê-lo,
através de alguns detalhes ou cenas marcantes, que os retomem projetivamente e possam
conferir sentido a esse plano maior.
Discussão IV Para uma melhor compreensão do manejo que Borges faz dos pormenores, é
necessário entender, primeiro, a própria natureza do recurso. Para tanto, pode ajudar o artigo
147
“Realidade e Realismo (Via Marcel Proust)”, o qual exibe um notável paralelo com La
Postulación de la Realidad”. Nele, Antonio Candido discute sua hipótese de que o realismo
talvez não seja o melhor meio de veicular a realidade, isto é, para dizer algo sobre a realidade.
Ele lembra que, para muitos artistas, o realismo foi tido como o único meio para alcançar a
verdade da ficção, pensando em realismo enquanto “modalidades modernas, que se definiram
no século XIX e vieram até nós [...] que tendem a uma fidelidade documentária que privilegia
a representação objetiva do momento presente na narrativa”
338
. No artigo, o crítico se depara
com Em busca do tempo perdido, e formula essa hipótese, ao comparar o especial
transrealismo de Proust, com o naturalismo dos irmãos Goncourt.
No entendimento de Candido, os Gouncourt desejam um registro
documental da realidade. Seu alvo é apenas a representação do Salão Verdurin. Assim, eles
partem para a acumulação somatória de pormenores, tentando uma descrição do mesmo. Mas,
segundo o crítico, como estes pormenores não somente os detalhes, mas os elementos
particulares de modo geral têm um baixo nível significativo, tudo o que constroem, são
imagens do sensível. O resultado é uma visão “estática e plana” da realidade, que restrita ao
superficial, não consegue produzir plenamente a verdade convencional da ficção
339
. Já Proust,
no entender de Cândido, está mais interessado em construir uma visão sobre o mundo. Sua
própria personagem está em busca de sentido, através do tema da identidade. Por isso, o
narrador proustiano unifica os pormenores fornecendo bases para a interpretação de sua
estória. Assim, ele põe os detalhes em perspectiva, correlaciona impressões e faz analogias
que fortalecem um princípio integrador. Em lugar da descrição realista, ele preferência à
metáfora. No lugar de um olhar único, propicia uma visada de rios ângulos. Ao invés de
procurar uma realidade concreta, ele se detém no substrato - no essencial. O resultado é que
por intermédio das ligações efetuadas entre os diversos pontos no tempo, os detalhes são
agrupados, e o passado ganha sentido pela revelação de algo que é permanente
340
.
Candido salienta que “O realismo se baseia nalguns pressupostos, inclusive
o tratamento privilegiado dos pormenores, pelo seu acúmulo ou pela sua contextualização
adequada”
341
. A partir dessa observação sobre os pormenores, ele aponta dois modos
inequívocos de lidar com os mesmos: os Gouncourt somam os pormenores, enquanto Proust
seleciona os detalhes que servem para revelar um sentido. Candido não ligava o procedimento
de Proust à alusão, mas vê-se que, nos naturalistas, ele detecta a acumulação dos detalhes. Em
contrapartida, Borges descreve o romântico como escritura particularizadora, cujo método
seria a ênfase, que tenta esgotar a realidade; um modo acumulativo, portanto, ainda que ele
não mencione especificamente a acumulação de pormenores. Ao mesmo tempo, Borges
148
menciona, dentre as alusivas técnicas clássicas, a que envolveria os detalhes circunstanciais.
Contudo, diante dessas duas teorizações, é necessário um processo de desambiguação. Na
verdade, não existem somente os pormenores alusivos do modo clássico de que nos fala
Borges, mas também os pormenores acumulativos – de que nos fala Antonio Candido.
Contudo, este último procedimento, de viés romântico, obedeceria ao desejo
de uma plena representação do real, com o efeito de realidade como uma provável
conseqüência. Ao passo que o procedimento clássico, não visaria a uma representação
consistente e muito menos ao efeito de realidade. Embora Borges admita que essa técnica
poderia render uma alta verossimilhança, este o é um objetivo nesta classe de textos. Aqui
está o ponto. Em “El Milagro Secreto”, constatamos que Borges utiliza os pormenores de
modo alusivo, contudo, pela quantidade desses pormenores e pela maestria no uso do recurso,
observa-se que foram trabalhados para a obtenção de um alto grau de verossimilhança. Pode-
se dizer, que existe um recurso clássico, produzindo o efeito almejado pela escritura
romântica.
mencionamos a existência de vários textos nos quais Borges comenta o
uso dos pormenores e seu respectivo efeito, revelando que estivera atento à questão da
verossimilhança. Entretanto, como explica Jakobson, o Realismo “É uma corrente artística
que se coloca como alvo reproduzir a realidade o mais fielmente possível e que aspira ao
máximo de verossimilhança”
342
. Além disso, o próprio Borges admite que essa classe de
pormenores tenha sido inventada por um realista, Daniel Defoe. Assim sendo, por que motivo,
o Borges que dirige tantos questionamentos à reprodução mimética da realidade, terminaria
buscando um efeito, visado pelos realistas? Em “La Postulación” observa-se que as objeções a
um realismo baseado na acumulação (dos detalhes) da realidade, eram reforçadas pela idéia
de que, até na vida humana, a apreensão do real é seletiva, dependendo do foco guiado pela
atenção. Diante desta conjuntura, é possível aventar, que esse grau de verossimilhança, tenha
se mostrado eficiente em seus contos fantásticos, nos quais os fatos extraordinários têm de ser
mantidos entre a possibilidade de uma explicação racional e a desconfiança de que tenham
rompido com as leis naturais conhecidas. Contudo, por que investir justamente em uma
técnica clássica que é compartilhada pelos autores realistas? Se ele visasse à mera
verossimilhança, talvez pudesse ter se servido de outras técnicas. Mas inclusive, justamente, o
efeito de realidade é ainda maior, neste caso, porque utiliza uma técnica conhecida dos
realistas (os pormenores alusivos); e ainda mais realista, porque conta com uma técnica
“gêmea” entre os mesmos realistas (a enumeração de pormenores).
149
O caso é que ele mimetiza o procedimento, contudo uma clara ironia em
seu uso
4
. A começar pelo próprio título do livro, Ficções. Assim, ele utiliza o procedimento
realista, mas desde a portada sinaliza ao leitor, que esteja tão consciente quanto ele, da
artificialidade em sua prosa. No meio de “El Milagro Secreto”, ainda permite que o
personagem diga que ‘a irrealidade é uma condição da arte’. Ademais, ele não se rende
exatamente à realidade, pois a realidade continua sendo, para ele, uma espécie de texto entre
outros textos o dado direto, qualquer que ele seja, é elaborado no modo clássico, para ser
envolvido na engrenagem de sua idéia.
Essa verossimilhança cercada de ironia também está presente em “Pierre
Menárd, autor del Quijote”, com suas referências a catálogos sobre a obra de Menárd, suas
monografias, seus livros, sonetos e seu trabalho inconcluso. Ademais, o roteiro da nota
bibliográfica ainda aumenta a verossimilhança. Tudo isso permeado pelo tema do falso ou
verdadeiro: “catálogo falaz”, “amigos auténticos”, mi pobre autoridad”, dos altos
testimonios”. Contudo, Monegal alertava que “Pierre Menárd, autor del Quijote”, e ainda
“Ensaio analítico da obra de John Wilkins” e “Acercamiento a Almutássim” são ensaios
literários que tratam de obras inexistentes, os quais, justamente por esse motivo, revelam um
dos elementos de originalidade revolucionária na poética borgeana, pelo qual La ficción se
convertía en verdad, porque lo inventado no era el hecho de que el cuento pudo haber
ocurrido [...] sino que el cuento pudo haber preexistido a su relato”
343
. Neles, o ficcional é
verdadeiro, mas seu objeto é falso.
Na análise dos ensaios, vimos que nos anos trinta, Borges começa a
questionar o realismo. Em paralelo, por seus comentários sobre os pormenores circunstancias
nesta época, ele parece preocupado com a verossimilhança. Assim, é interessante notar como
a técnica dos pormenores alusivos atende a essas duas demandas. De um lado, o verossímil,
dentro dos esquemas clássicos, pode ter sido uma saída para a elaboração da realidade
ficcional fantástica como dito, a madura estética borgeana está baseada na alusão clássica,
segundo Olea Franco; mas ao mesmo tempo, esta não deixa de ser outra forma de crítica ao
realismo e uma nova forma ficcional.
Candido explica que “a busca da verdade na literatura (verdade
convencional da ficção) se norteia freqüentemente pelo esforço de construir uma visão
coerente e verossímil, que seja bastante geral para ir além da particularidade e bastante
concreta para não se descarnar em abstração”
344
. Portanto, coerência e verossimilhança são
4
Devemos vários desses raciocínios a uma preciosa orientação do prof. Marcos Piason Natali, concedida no
primeiro semestre de 2008.
150
dois pilares da verdade ficcional. Borges joga com isso. Ele usa o procedimento realista para
mostrar que tudo o que constrói no relato, como se fosse muito verossímil, na verdade, é
absurdo, ilógico, falso. Então, isso se converte em uma crítica final ao realismo. Pode ser tudo
muito verossímil, mas vai gerar uma verdade ficcional e não uma verdade factual. Isto
significa que um fato cercado de garantias pode ser essencialmente falso. Contudo, isto não é
novidade nem para a teoria, nem para a crítica borgeana. Segundo Arrigucci Jr, uma parte da
narrativa do século XX vai denunciar a mentira do verossímil
345
. Assim, o que desejamos
ressaltar neste trabalho é apenas o funcionamento borgeano desta engrenagem.
Ele coloca nos textos ‘a roupagem da realidade’, para mostrar, que mesmo
travestido, o texto continua a ser um texto, não corresponde ao real. Por isso, supõe-se, que
para ele, sejam importantes as formas que denunciam essa condição, tais como a ironia, o
paradoxo, a caricatura, o pastiche, a paródia. Tudo o que expõe a natureza convencional e
artificial dos textos seria útil nesta proposta. Contudo, o jogo funciona se houver
verossimilhança. O mecanismo que a proporciona, é um ponto de contato com o realismo;
mas é, ainda, uma cartada final contra o mesmo.
A partir de Yurkievich e Lagos, mostramos que os críticos detectam uma
transformação entre a primeira e a segunda poesia borgeana, localizando essa ruptura
especificamente na década de trinta. Lembrando que a polêmica entre Boedo-Florida ocorre
entre a segunda metade da década de vinte e o começo dos anos trinta, e uma vez que o ensaio
“Nota sobre Walt Whitman”, de 1932, possui uma correspondência opositiva com os
postulados dos boedistas, concluímos que esta transformação está ligada à polêmica. Depois
de ter tido um pendor para a representação realista (entre 1925 e 1928), Borges parece ter sido
levado a uma intensa reflexão sobre os valores literários durante a polêmica Boedo-Florida,
em decorrência da qual, ele deve ter reencontrado seus primeiros planos de uma literatura de
ativa elaboração da realidade. A nosso ver, esta reflexão lhe permite desviar-se das estéticas
realistas tão influentes no período. Contudo, no Prólogo “Domingos F. Sarmiento: Facundo”,
escrito quase cinqüenta anos depois, ainda encontramos críticas ligadas à representação
realista, especialmente no tocante ao engajamento. Desse modo, as críticas que parecem ter
surgido na década de trinta se estendem até a década de setenta. Por isso, entendemos que,
aquilo que foram, inicialmente, questionamentos à estética dominante no meio cultural
argentino, por sua larga duração (parcialmente atribuível ao contexto político e cultural latino-
151
americano, pensando-se especialmente nas cadas de quarenta e sessenta) termina
transformando-se em um diálogo permanente com o realismo.
À luz dos ensaios anteriores, observa-se que, na década de trinta, Borges
efetua uma divisão entre dois grandes modos de lidar com a literatura: o romântico, que
primaria pela expressão da realidade; e o clássico, que preconizaria a produção de sentido. O
primeiro possui um método acumulativo, enquanto o segundo detém um método alusivo para
a construção da realidade literária. Além da maneira como Borges efetua uma defesa do modo
clássico neste ensaio, tanto Balderston, quanto Olea Franco constatam um caráter alusivo na
madura obra borgeana, revelando o predomínio dos processos clássicos nesta estética. Por
este motivo, ela parece oposta ao realismo que tenta ser expressão da realidade e está
baseado na acumulação de detalhes circunstanciais, e ao modo romântico, no qual este tipo de
realismo estaria inserido. Contudo, a partir de Olea Franco, percebe-se, que sua poética
juvenil revela uma tendência ao expressivo. Neste caso, não apenas os realistas argentinos dos
anos vinte, mas também o jovem Borges estariam ligados ao modo romântico de escritura, do
qual o escritor parece ter se afastado, depois de Discusión.
Finalmente, no estudo de “25 de Agosto, 1983” e “El Milagro Secreto”,
percebemos que existe, no centro desta obra, um ponto de contato com o realismo. Em “La
Postulación”, Borges apresentava, dentre as técnicas clássicas, o mecanismo de utilizar
pormenores circunstanciais alusivos. Davi Arrigucci afirma que a obra borgeana utiliza esta
técnica, a qual encontramos nos mencionados contos. No entanto, o estudo dessas narrativas
mostrava que, embora estes pormenores borgeanos fossem alusivos, eram recorrentes, e além
disso estavam apoiados em circunstâncias temporais e espaciais que geravam uma alta
verossimilhança. Na primeira narrativa, em alguns pontos determinados. Na segunda, em toda
a parte que antecede a introdução do insólito. Ou seja, trata-se de um efeito desejado pelos
escritores do modo romântico, mas dispensável no modo clássico.
Contudo, percebemos que existem dois tipos de mecanismos baseados nos
pormenores: os acumulativos e os alusivos. O primeiro em especial, mas também o segundo
tipo, são ambos utilizados pelas poéticas realistas. Assim, Borges está utilizando uma técnica
realista, a qual conta com uma técnica similar no mesmo âmbito. Além disso, ele busca
conseguir um alto grau de verossimilhança, quando este é um efeito que caracteriza o
Realismo escola. Contudo, este é um aproveitamento irônico, uma vez que a obra borgeana é
conhecida pela consciência de artificialidade, que transparece de suas narrativas e títulos.
Monegal assinala três narrativas nas quais Borges discorre sobre objetos inexistentes. Assim,
essa verossimilhança alta ligada a objetos falsos, conduz ao entendimento de que estes textos
152
entram para um conjunto da ficção do culo XX, o qual, segundo Arrigucci Jr, está disposto
a denunciar a mentira do verossímil. Eles mostram que um texto coerente e plausível pode,
contudo, ser portador de uma mentira sobre a realidade factual, mesmo que seja o portador de
uma idéia verdadeira dentro de sua construção ficcional. O resultado é que esta
verossimilhança alta, por vezes encontrada na obra borgeana (sem que ela predomine), e os
detalhes alusivos que auxiliam em sua obtenção, constituem um território comum entre sua
estética e o realismo. Ao mesmo tempo, funcionam como uma espécie de front, desde o qual
ele lança um combate arrojado a essa outra estética
346
.
153
CONCLUSÕES
A leitura de “El Otro”, gera o sentido de que a literatura borgeana foi
construída dentro de uma tensão com o realismo, sendo este realismo uma parcela integrante,
embora menor desta obra. Em paralelo, ela suscita uma série de questionamentos à capacidade
de representação fiel da realidade, na literatura. Em especial, os personagens mostram atitudes
opostas face ao realismo, ao engajamento e ao biografismo. Eles simulam um diálogo entre a
obra borgeana e a geração argentina de escritores, da década de vinte. A construção remete
especialmente ao realismo do grupo boedista, embora o jovem fique incluso nesta
representação. Com isso, em um plano genérico, o texto produz o encontro de duas essências
literárias fundamentais.
O trabalho dos críticos e o exame dos três primeiros livros de ensaios de
Borges, ajudam no entendimento do conto, na medida em que afastam o autor do personagem
de si mesmo e permitem entender que a construção do personagem mais novo faz alusões, não
ao jovem que fora, mas também à geração literária argentina de vinte. Essas alusões são
um dos elementos que entram na composição das idéias que a narrativa propõe, fortalecendo a
oposição ao realismo na configuração dos sentidos.
A leitura dos três ensaios propicia uma melhor compreensão do antagonismo
entre os personagens, porque eles “dão a ver” várias idéias que sustentam estas oposições, nos
três temas escolhidos para esta averiguação, estejam elas presentes no conto ou não. Pensar o
conto à luz dos ensaios, é deparar-se com a visão de que, o realismo é uma estética ou atitude,
que deseja burlar o inerente ao exercício literário - a mediação, o artificial, as construções
simbólicas presente em suas estruturas. Seria uma espécie de exagero improdutivo, porque
persegue o simultâneo, o múltiplo e o sucessivo da complexa e inabarcável realidade. Ao
mesmo tempo, os ensaios reforçam o sentido de que a ficção borgeana estaria baseada nos
artifícios e na retomada da tradição.
Em paralelo à interpretação do conto, as relações entre esta obra e o
realismo, tornam-se uma chave de leitura, com a qual pudemos fazer um pequeno recorte, de
um dos aspectos desta produção. Observamos que Borges trazia da Europa a proposta de
conseguir uma obra assentada na técnica e de ativa elaboração da realidade. Contudo, os
ensaios da segunda fase juvenil, mostram um leve pendor para a assimilação de alguns
elementos realistas. Acreditamos que esta tendência está relacionada ao criollismo da década
de vinte. Os problemas para obter representações de seu país podem ter gerado uma
momentânea atração pelos mecanismos expressivos.
154
A crítica detecta uma transformação ocorrida na poesia borgeana entre a
década de vinte e trinta. Para nós, essa mudança está relacionada com a polêmica entre os
grupos de Boedo e Florida. Essa constatação surge, uma vez que a “Nota sobre Walt
Whitman” combate o biografismo, quando sabemos que os boedistas levavam em
consideração a contigüidade entre a vivência e a obra literária dos escritores. Ademais, em
“La Postulación” aparece uma divisão entre os escritores que primariam pela plena
representação da realidade e os escritores, que preconizando a produção de idéias,
formulariam realidades literárias mais vagas. Esse texto ainda ressalta obstáculos para a
apreensão fiel da realidade. Com o auxílio da crítica, percebe-se que a madura obra borgeana
se posiciona ao lado do método clássico de escritura, ao optar por mecanismos alusivos. Ao
mesmo tempo, os críticos e os ensaios borgeanos dos anos vinte tornam visível que o
‘segundo’ jovem chega a mostrar preferência pelo modo romântico de escritura, assumindo a
expressividade como um valor, em seus julgamentos.
Assim, os dois ensaios de Discusión, analisados, revelam posições contrárias
às estéticas realistas (no modo romântico). No entanto, fazem entender que o mesmo Borges
possuiu tendências a esse modo em sua juventude. Portanto, a polêmica com os boedistas,
pode ter sido um dos fatores que fizeram com que o autor se desvencilhasse destas
inclinações, assumindo a alusão que caracterizaria a obra madura.
O prólogo ao Facundo, da década de setenta, explora as dificuldades para
captar a realidade em um texto e para a consecução das intenções de um autor, o que
constituem barreiras para a efetividade do engajamento. Desde a década de trinta até a década
de setenta, Borges recebe questionamentos sobre sua recusa a fazer uma arte engajada. Em
paralelo, encontramos um texto da década de trinta e outro dos anos cinqüenta, com objeções
ao realismo. Na década de setenta prólogos e textos críticos, que continuam levantando
argumentos contra o realismo e o compromisso. Assim, a polêmica com os boedistas pode ter
sido uma primeira oportunidade para consolidar uma postura em relação ao assunto, de modo
que o autor resiste a várias décadas de pressões. Contudo, se desde os anos trinta até a década
de setenta, Borges continua combatendo realismo e compromisso, isto significa que sua obra,
através de seus textos de crítica e ensaio, vive em constante tensão com esta classe de idéias.
Por último, o conto “25 de Agosto, 1983” deixa a sugestão de que a obra
borgeana também é capaz de obter efeitos realistas em suas narrativas. O exame de “El
Milagro Secreto” confirma esta idéia, com a presença da técnica de pormenores
circunstanciais; uma técnica clássica, manejada para um efeito de alta verossimilhança. O
investimento em detalhes circunstanciais e a verossimilhança acentuada revelam um ponto de
155
contato, nos textos onde isto ocorre, entre a obra borgeana e o realismo, que ela critica.
Contudo, esta técnica é aplicada a textos que refletem sobre a própria condição do ficcional,
como El Milagro Secreto”, ou que estão permeados pelo falso, como “Pierre Ménard, autor
del Quijote”. Dessa forma, o pequeno vínculo com o realismo, converte-se uma crítica final a
esta estética; e especialmente, ao realismo posto a serviço do engajamento, ao assinalar que a
ficção pode ser plenamente coerente e verossímil, sem que, por isso, sua verdade tenha
correspondência com a realidade.
1
BORGES, Jorge Luis. Textos recobrados (1931-1955). Barcelona: Emecé, 2001, p.29.
2
leituras anteriores, como a da psicóloga Giovanna Bartucci e a do professor de filosofia, Juan Nuño. No
Congresso, 3
o
Celli, apresentamos um exame das mesmas. Para não alongar a dissertação, tivemos de cortá-las.
3
CANDIDO, Antonio. “Realidade e Realismo (Via Marcel Proust)”. In: ___. Recortes. São Paulo: Cia das
Letras, 1996, p.123.
4
Vamos chamar “biografismo” a atitude de entender a poesia enquanto expressão dos sentimentos do poeta; mas
também seus excessos: todo tipo valorização de uma obra em virtude das ligações que ela mantenha com seu
criador; a identificação mecânica (sem a intermediação literária) de experiências ou sentimentos do autor em
seus personagens; a atribuição excessiva de dados pessoais do autor à composição; a confusão ou a identificação
entre experiências, falas e episódios das personagens ou do eu-lírico com vivências do escritor (por ele mesmo
ou por outros). Adiante vamos notar biografismo nos boedistas que entendiam, que somente os escritores que
tivessem passado por determinadas experiências poderiam comentá-las, de um modo “veraz”, em sua literatura.
5
GRAMUGLIO, Maria Teresa.(a) El Imperio Realista. In: JITRIK, Noé. Historia critica de la literatura
argentina. Vol 6. Buenos Aires: Emecé, 2004, p.7; e ainda
GRAMUGLIO, Maria Teresa. (b) El Realismo y sus destiempos en la literatura argentina. In: JITRIK, Noé.
Historia critica de la literatura argentina. Vol 6. Buenos Aires: Emecé, 2004, p. 34.
6
GRAMUGLIO (a), op.cit., p.8.
7
GRAMUGLIO (b), op.cit., p.22.
8
GRAMUGLIO (a), op.cit., p.7.
9
GRAMUGLIO (b), op.cit., p.22.
10
Ibidem, loc. cit.
11
Ibidem, p.23.
12
Não efetuaremos relações muito pontuais entre o corpus e a crítica nesta fundamentação, guardando estas
comparações para as análises, uma vez que se o fizéssemos aqui, os textos analisados correriam o risco de
parecer uma mera ilustração do período – o que não seria exato.
13
GRAMUGLIO (b), op.cit., p. 31-32.
14
Ibidem, p.31.
15
Ibidem, p.32.
16
OLEA FRANCO, Rafael. El otro Borges, el primer Borges. México DF: FCE, 1993, p.147.
17
Ibidem, p.150, ver também a opinião dos boedistas na pag. 153.
18
Ibidem, p.152.
19
Ibidem, p.158.
20
Ibidem, pp. 148-149; e 153-154.
21
Ibidem, p. 158.
22
GIORDANO, A.; EUJANIÁN, A. Las revistas de izquierda y la función de la literatura: enseñanza y
propaganda. In: JITRIK, Noé. Historia de la literatura argentina. Buenos Aires: Emecé, 2004, p. 399.
23
Ibidem, p. 402.
24
Dizemos “função social” utilizando as palavras dos críticos, que em geral se referem à veiculação de crítica da
sociedade ou o desejo de transformação da mesma a partir da literatura. No entanto, do texto de Giordano &
Eujanián, fica sugerido que o grupo de Florida também acreditava na função social de seu trabalho. Embora
saibamos que também a literatura como um prazer também produz conhecimento, para não gerar problemas de
entendimento durante a dissertação, vamos utilizar a expressão assinalada, apenas no primeiro sentido.
156
25
GIORDANO, A.; EUJANIÁN, A. Las revistas de izquierda y la función de la literatura: enseñanza y
propaganda. In: JITRIK, Noé. Historia de la literatura argentina. BsAs: Emecé, 2004, (grifo do autor), p.407.
26
Ibidem, p.411 ambas as citações.
27
Ibidem, pp.410-411.
28
O exemplo é o de um escritor que descreve a situação de uma classe, pertencendo à mesma. Ibidem, p. 406.
29
Ibidem, p.406. Citamos o artigo, mas também conhecemos este texto por: SCHWARTZ, J. & LORENZO
ALCALÁ, M. (Org). Vanguardas Argentinas Anos Vinte. São Paulo: Iluminuras, 1992, pp.78-101.
30
GIORDANO, A.; EUJANIÁN, op.cit., p.405.
31
Ibidem, p. 402.
32
SARLO, Beatriz (a). A writer on the edge. London: Verso, 1993, p.103.
33
Atribuímos o fato à dificuldade que existia em reunir estes textos. Ao que sabemos, a primeira edição destes
textos recuperados só aconteceu em 1997.
34
Escreve quatro textos a respeito de autores expressionistas.
35
BORGES, J. L. Textos recobrados (1919-1929). Buenos Aires: Emecé, 1997, p.70.
36
Ibidem, p.80. (texto de 1921).
37
Ibidem, p.86.
38
Ibidem, p.100. (1921).
39
Ibidem, loc. cit.
40
SARLO, Beatriz, op.cit, p.50.
41
BORGES, J. L. Textos recobrados (1919-1929). Buenos Aires: Emecé, 1997, p. 52.
42
Ibidem, p.105.
43
Ibidem, p.105.
44
Ibidem, p.71.
45
Ibidem, p.95.
46
Ibidem, loc. cit.
47
BORGES, J. L. Textos recobrados (1919-1929). Buenos Aires: Emecé, 1997, p.136.
48
BAKHTIN, Michail. Problemas da poética de Dostoievski. Rio de Janeiro: Forense, 2002.
49
Lembramos que nesta época ele lê, faz traduções, escreve manifestos, e reúne textos de poesia para comentar;
em paralelo produz sobretudo poemas. Ademais, as vanguardas com as quais ele está em contato no período
produzem poesia: ultraísmo e o expressionismo (em geral Borges se debruça sobre os poemas destes escritores).
50
BORGES, J. L. Antologia expresionista (1920) Textos recobrados (1919-1929). Buenos Aires: Emecé, 1997,
p.68.
51
MENESES, Carlos. Poesía Juvenil de Jorge Luis Borges. Barcelona: Olañeta, 1978, p.39.
52
RODRÍGUEZ MONEGAL, Emir. Borges: uma poética da leitura. São Paulo: Perspectiva, 1980, p.135.
53
BORGES, J. L. Horizontes (1920) Textos recobrados (1919-1929). Buenos Aires: Emecé, 1997, p.81.
54
Ibidem, p.70 (1920), p.83 (1921), p.86 (1921), p.95 (1921), p.108 (1921), p.126 (1921).
55
O espanhol apresenta o estudo de Gloria Videla sobre a enorme operação que Borges efetua para suprimir e
aliviar as marcas ultraístas e criollistas de seus três primeiros livros de poemas. OLEA FRANCO, op.cit.,
pp.206-210.
56
Ibidem, p. 97.
57
Passamos a fazer citações em que as siglas dos volumes correspondem às seguintes edições:
I – Inquisiciones (Originalmente publicado em 1925).
Edição consultada: BORGES, J. L. Inquisiciones. Barcelona: Seix Barral, 1994.
ETMEEl Tamaño de mi Esperanza. (Originalmente publicado em 1926).
Edição consultada: BORGES, J. L. El tamaño de mi esperanza. Barcelona: Seix Barral, 1994.
EILA – El Idioma de los Argentinos. (Originalmente publicado em 1928).
Edição consultada: BORGES, J. L. El idioma de los argentinos. Barcelona: Seix Barral, 1994.
58
La conducta novelística de Cervantes, EILA, p.123.
59
Eduardo Wilde, EILA, 140.
60
Eduardo Wilde, EILA, 139.
61
Exemplo do primeiro são os momentos em que vindica a cor local, quando sabemos que com o tempo Borges
encontra uma solução para conciliar o local e o universal, sem cair no regionalismo evidente. Exemplo do
segundo são os momentos em que valoriza o procedimento clássico de retomada da tradição, e momentos em
que valida tanto o anterior, quanto a originalidade. Ver ETME, El aventura y el ordem, p.75.
62
OLEA FRANCO, op.cit., p.109.
63
Sir Thomas Browne, I, p.40.
64
BORGES, J. L. Prólogo. Luna de Enfrente. Obras Completas. Buenos Aires: Emecé, 1974, p.55.
65
Queja de todo criollo, I, p.149.
66
OLEA FRANCO, op.cit, pp. 95-96.
157
67
Segundo Borges, Hernández faz o personagem dizer: “‘Debe el gaucho tener casa/ Escuela, Iglesia,
derechos’”. La Tierra Cárdena, ETME, p.41.
68
Ibidem, p.41.
69
Después de las imágenes, I, p.32.
70
Otra vez la metáfora, EILA, p.53.
71
Borges não diz quem são os críticos: “se me abalanzaron dos o tres críticos y me asestaron sofisterías y
malquerencias de las que asombran por lo torpe”. Profesión de Fe Literaria, ETME, p.142.
72
Profesión de Fe Literaria, ETME, p.147.
73
Profesión de Fe Literaria, ETME, p.148.
74
Ibidem, p.149.
75
OLEA FRANCO, op.cit., p.109.
76
Ver nota texto no item 1.3 sobre Lugones. Ou conferir o livro Leopoldo Lugones, p.52.
77
Profesión de Fe Literaria, ETME, p.147.
78
Un soneto de Don Francisco de Quevedo, EILA, p.69.
79
Eduardo Wilde, EILA, p.138.
80
La traducción de un incidente, I, p.17.
81
Na Autobiografia ele mostra grande afeição a Cansinos e faz um comentário despectivo sobre o outro
grupo. Contudo, em Inquisiciones mostra muita simpatia por De la Serna. BORGES, J.L. Elogio da sombra
poemas/ Perfis: um ensaio autobiográfico. RJ: Globo, 1985, p.83.
82
Prólogo, ETME, p.16.
83
La pampa y el suburbio son dioses, ETME, p.30.
84
BORGES, J. L. Discusión. Obras Completas. Buenos Aires: Emecé, 1974, p.217.
85
La pampa y el suburbio son dioses, ETME, 28.
86
BORGES, J.L. Elogio da sombra poemas/ Perfis: um ensaio autobiográfico. RJ: Globo, 1985, p.87.
87
OLEA FRANCO, op.cit., p.285.
88
La simulación de la imagen. EILA, p.75.
89
Grafamos clássico e romântico, porque o autor nos previne de que, com estes conceitos, não se refere às
escolas literárias históricas. BORGES, J. L. Discusión. Obras Completas. Buenos Aires: Emecé, 1974, p. 217.
90
La simulación de la imagen. EILA, p. 79.
91
Dizemos “maduro Borges”, para o ensaio de 1932, porque ele reflete as posturas que se cristalizaram e ficaram
conhecidas em sua obra madura. Não é exatamente por questão de idade, neste caso, já que outro ensaio
publicado na mesma edição de Discusión, apresenta postura oposta – que predominava na segunda fase juvenil.
92
Fica claro, que neste ponto, está tratando de problemas aprofundados em “La Postulación de la Realidad”:
“Escribir del heroe de una novela Salió de un punto de partida y caminó cuatro mil doscientos veinticuatro
metros hacia el noroeste, es guardar una reserva casi absoluta. Escribir Salió de General Urquiza y Barcala y
caminó hasta Camargo y Humboldt es dejar en blanco esa línea para muchos lectores. Escribir Caminó sin
parar hasta que ralearon las casas, o Caminó hasta que no hubo más cielo, promete más posibilidad de
expresión” (Grifos do autor). La simulación de la imagen. EILA, pp.79-80
93
Ibidem, p.283-284.
94
BORGES, J. L. La poesía gauchesca. Discusión. Obras Completas. Buenos Aires: Emecé, 1974, p.182.
95
Ascasubi, I, p.57-59.
96
BONET, Carmelo. El Realismo Literário. Buenos Aires: Ed. Nova, 1958, p.126.
97
Queja de todo criollo, I, p.148.
98
La criolledad en Ipuche, I, p.65.
99
Sarlo comenta esta decisão. Embora o subúrbio constasse da tradição (aparece em Evaristo Carriego), esta era
uma representação lateral em relação à pampa; como o compadrito era uma alternativa à figura do gaucho.
100
BORGES, J.L. Elogio da sombra poemas/ Perfis: um ensaio autobiográfico. RJ: Globo, 1985, p.99.
101
OLEA FRANCO, op.cit., p.149.
102
SARLO(a), op.cit., p.103.
103
BORGES, J. L. Textos recobrados (1919-1929). Buenos Aires: Emecé, 1997, p.367.
104
BORGES, J.L. Elogio da sombra poemas/ Perfis: um ensaio autobiográfico. RJ: Globo, 1985, p.99.
105
BORGES, J. L. Textos recobrados (1919-1929). Buenos Aires: Emecé, 1997, p.367.
106
Ibidem, p.368.
107
Aparecem: “orillas”, “calles”, “veredas”, “cuadras”, “esquinas”, “ladrillo y barro”, “muros”, “almacén”,
“sauce”, “boliche”; ainda ano, e distância. O elemento cênico, “viento”. Hombres Pelearon, EILA, pp.133-135.
108
BORGES, J.L. Fiodor Dostoievski Los Demônios. Biblioteca Personal. Obras Completas. Barcelona:
Emecé, 1996, p.466.
109
BORGES, J.L. Elogio da sombra poemas/ Perfis: um ensaio autobiográfico. RJ: Globo, 1985, p.80.
158
110
“O livro era essencialmente romântico [...] celebrava crepúsculos, lugares solitários e esquinas
desconhecidas”. BORGES, J.L. Elogio da sombra poemas/ Perfis: um ensaio autobiográfico. Rio de Janeiro:
Globo, 1985, p. 87.
111
Ibidem, p. 80.
112
BORGES, J.L.; EDELBERG, Betina. Leopoldo Lugones. Obras Completas em Colaboración. Madrid:
Alianza Editorial, 1983, p.18.
113
Ibidem, p.22.
114
Ibidem, p.23.
115
Ibidem, pp.50-53.
116
Pensamos na data da publicação do último livro de ensaios do período, 1928.
117
Os exemplos que ela fornece: M. Gálvez; E. Castelnuevo; boedistas como Á. Yunque e L. Barletta; E.
González Tuñón; Arlt. Incluímos este último, uma vez que Sarlo está apontando os autores dos quais Borges se
diferencia e menciona Arlt, com a ressalva de que Borges provalmente não conhecia o trabalho do outro.
SARLO, Beatriz (b). Una poética de la ficción. In: JITRIK, N. Historia de la literatura argentina. Vol. 9.
BsAs: Emecé, 2004, p.21-22. Na verdade, Borges havia lido Arlt, porque o cita em La pampa y el suburbio son
dioses.
118
GRAMUGLIO (b), op.cit., p.29.
119
Por exemplo, no Fervor de Buenos Aires, dos 46 poemas originais, a partir da edição de 1943, apenas 8
poemas estão intactos. OLEA FRANCO, op.cit., pp.206-210.
120
Borges Apud FONSECA, C. O pensamento vivo de Jorge Luis Borges. SP: Martin Claret Editores, 2001,
pp.24 e 23. Ela teve acesso à Autobiografia em inglês, mais completa que a edição brasileira.
121
Não faremos a citação pontual das frases extraídas do conto. Considere-se todo elemento destacado entre
aspas e posto em itálico, como citação de “El Otro”. BORGES, J. L. El libro de Arena. Barcelona: Alianza
Editorial, 1998.
122
Conta o biógrafo, que quando o autor era jovem, seu pai o enviou a um bordel na mencionada praça.
WOODAL, James. Jorge Luis Borges: o homem no espelho do livro. RJ: Bertrand Russel, 1999, p.77.
123
ADORNO, Theodor W. El ensayo como forma. In: __. Notas de literatura. Barcelona, Ariel, 1962, p. 39.
124
Certamente que não a intercalação de trechos ensaísticos ou de comentários explícitos. Borges é um autor
conhecido por seu hermetismo. Tudo é muito alusivo e perfeitamente organizado dentro das formas. Ao mesmo
tempo, o próprio ensaio é um gênero artístico e que também comunica através do arranjo formal. Então, essa
aproximação não é óbvia. No entanto, é reconhecível quando em paralelo à trama, que poderia ser lida somente
do ponto de vista da questão da identidade, existe, do começo ao final da narrativa, uma discussão sobre a
literatura.
125
Em geral esse comentário é feito em relação aos ensaios borgeanos. Quem atentou para o hibridismo na ficção
foi: RODRÍGUEZ MONEGAL, Emir (b). Borges: una biografía literaria. México: Fondo de Cultura, 1993,
p.325.
126
SARLO, Beatriz(a). A writer on the edge. London: Verso, 1993. Sarlo apresenta essa idéia, contudo, ela
estava contida em uma palestra de Borges, na qual ele diz que o conto policial é um nero que “salva a ordem
em uma época de desordem”. BORGES, J. L. “O conto policial” Cinco visões pessoais. Brasília: UNB, 1985,
p.40.
127
LAGOS, Ramona. Jorge Luis Borges (1923-1980). Barcelona: Ed. De Mall, 1986, p.140.
128
BORGES, Jorge Luis. El Aleph. Obras Completas. Buenos Aires: Emecé, 1974, p.533.
129
BORGES, J.L. Prólogo (1940) In: CASARES, B. La invención de Morel. Buenos Aires: Booket, 2003, p.12.
130
BORGES, J. L. Ficciones. Buenos Aires: Alianza Editorial, 1998, p.216.
131
BORGES, J. L. Obras Completas. Buenos Aires: Emecé, 1974, p.608-611.
132
O clássico e romântico são dois conceitos resultantes do ensaio “La Postulación”, por isso vamos grafá-los
em itálico. Em capítulo posterior faremos uma análise detida, mas aqui, durante a análise do conto, nos
valemos de alguns dados. BORGES, J. L. Discusión (1932). Obras Completas. Buenos Aires: Emecé, 1974, pp.
217-221.
133
Em outra seção, pretendemos demonstrar a peculiar utilização do recurso em “El Milagro Secreto” (em
Ficciones) e acrescentamos alguns exemplos de outras narrativas. Ademais, tentamos apresentar algumas das
diferentes feições que, podem assumir os detalhes, não restritos a circunstâncias de tempo e espaço, como é
perceptível nesta narrativa.
134
O conto vai mostrando uma divisão entre dois tipos de tratamento da obra literária, ao quais vamos chamar:
realista, uma vez que, como ocorre neste trecho, ele pende mais para a reprodução da realidade; e clássico, ao
159
procedimento ou estrutura mais imaginativa, voltada para uma literatura mais artificial e vaga. Não pensamos
nas escolas literárias. Esses nomes servem apenas para auxiliar na identificação dos dois modos.
135
SARLO, Beatriz (b). Una poética de la ficción. In: JITRIK, Noé. Historia critica de la literatura argentina.
Vol.9 Buenos Aires: Emecé, 2004. p.24.
136
BARCA, Pedro Calderón de la. La vida es sueño. Madrid: Taurus Ediciones, 1971, p.242
137
BEZERRA, Paulo. A perenidade de Dostoievski. Cult, São Paulo, Vol 4 , p. 6-13, 2006.
138
BORGES, Jorge Luis. O conto policial. Cinco visões pessoais. Brasília: UNB, 1985, p.35.
139
A “tapera” era um ícone do criollismo para Borges, presente em Ascasubi, Estanislao del Campo, José
Hernández e Elías Regules. BORGES, J. L. Interpretación de Silva Valdés. Inquisiciones. Barcelona: Seix
Barral, 1994, p.69.
140
Segundo Franco, o jovem Borges teve no nativismo uruguaio um modelo para sua própria literatura, porque
conciliava a gauchesca tradicional e as inovações estéticas da vanguarda. OLEA FRANCO, Rafael. El otro
Borges, el primer Borges. México DF: FCE, 1993, p.99-100.
141
Ele fazia uma literatura gauchesca idealizadora do campo e dos costumes. PEDEMONTE, Hugo Emílio.
Nueva poesía uruguaya. Madrid: Ed. Cultura Hispánica, 1958, p. 60-63.
142
Borges considerava que as casas eram o mais típico em Buenos Aires, casas nas quais “Siempre campea un
patio en el costado”. BORGES, J. L. Inquisiciones. Barcelona: Seix Barral, 1994, p.89.
143
OLEA FRANCO, op.cit., p.217.
144
A Biblioteca de Borges:
Indarte: O que Borges cita é um apêndice de um livro de Indarte, o qual conteria uma lista dos mortos pelo
regime de Rosas. Contudo, pelo que diz Velloso, é possível pensar que o jornalista acrescentasse nomes que
talvez não devessem constar dessa denúncia. Segundo o crítico, este jornalista "resbalaba constantemente por
entre el barro del pasquinismo: las mentiras y tergiversaciones formaban parte habitual de sus escritos".
GARCIA VELLOSO, Enrique. La historia de la literatura argentina. Buenos Aires: Centro Editor de América
Latina, 1967, p.183.
Tácito: Em seu livro de história, Tácito narra muitas coisas de ouvir dizer, chegando no capítulo final a supor a
existência de homens monstruosos, dos quais ele próprio duvida. “O mais é fabuloso: como que os Helúsios e os
Oxiones têm o aspecto (cabeça e rosto) de homens, e os corpos e membros de feras (animais): assim deixarei de
cuidar disto, como de coisa ainda não averiguada”. TÁCITO, Cornélio. Germânia. São Paulo: Edições e
Publicações Brasil Editora, 1952, p.110 passim.
Quicherat: Neste dicionário entradas de seres mitológicos, personagens e lugares bíblicos (até Adão), de
personagens e localidades literárias. QUICHERAT, L Thesaurus poeticus linguae latinae. Paris: Hachette, 19--
.
145
ARRIGUCCI JR., Davi (a). Da fama e da infâmia: Borges no contexto literário latino-americano. In:__.
Enigma e comentário: Ensaios sobre literatura e experiência. São Paulo: Cia das Letras, 1987, p. 202.
146
PIGLIA, R. Ideología y Ficción en Borges. Punto de Vista, Bs. As, n.05, pp. 4-5, ____, 1979.
147
SARLO(a), op.cit., p.22.
148
Uma observação: o ensaio é de 1956, mas Borges pediu que fosse inserido no livro Discusión de 1932.
BORGES, J.L. Obras Completas. Buenos Aires: Emecé, 1974, pp.270-271.
149
SARLO(a), op.cit., p.22 e p.23.
150
O emprego do pronome “vos”, em lugar do “tú” hispanomericano, é característico da Argentina.
151
OLEA FRANCO, op.cit., pp.240 e 254.
152
WOODAL,
op.cit, p. 43.
153
BORGES, J.L. Discusión. Obras Completas. Buenos Aires: Emecé, 1974, pp.270-271.
154
Conhecemos leituras deste texto por vários críticos. Assim, teríamos de entrar em discussão com os mesmos
procurando comparações. Para os propósitos deste capítulo, nossa leitura deste ensaio parece suficiente, uma vez
que a exposição dessas muitas interpretações nos desviaria do foco no mesmo, que é analisar o conto “El Otro”.
155
ASSIS, Machado de. “Instinto de Nacionalidade”. Obra Completa. RJ: Nova Aguilar, 1997, p.804.
156
Na teoria de Rosset, o termo “eu desdobradoé utilizado para o “fantasma”, isto é para aquele que surge na
narrativa (a aparição), e que porém é o detentor da realidade sobre o eu; enquanto o termo duplo” é atribuído
àquele que seria o “eu” conhecido, o narrador ou o protagonista que posteriormente irá encontrar o seu outro.
ROSSET, Clément. O real e seu duplo. Trad. José Thomaz Brum. Porto Alegre: L&PM, 1998, p.78.
157
Essa teoria funciona para o conto apenas em uma das chaves em que é possível entendê-lo. Se um lugar
fantástico que reúne os protagonistas em dois tempos e lugares - como o velho pensa; não se trata de um “eu”
fendido. Jovem e velho são duas personalidades integrais. Mas se é sonho, como sugere a sensação de cansaço
anterior ao encontro, há um desdobramento de personalidade como Rosset o explica. Ibidem, pp.81 e 84.
158
MEYERHOFF, Hans. O tempo na literatura. São Paulo: McGraw do Brasil, 1976, p. 14.
160
159
“Na medida em que a literatura moderna, como a cultura moderna em geral, se tornou especialmente
consciente do tempo, escolheu com freqüência tais estados do eu [sonho, fantasia] como chave para tornar esses
aspectos do tempo [fluxo contínuo, duração e associação dinâmica] explícitos e articulados”. Ibidem, p.23.
160
O próprio Borges tem textos bastante elucidativos sobre a doutrina. Ver: BORGES, J.L. La doctrina de los
ciclos Historia de la eternidad. Obras Completas. Buenos Aires: Emecé, 1974, p. 386.
161
Identificamos neste trecho uma aproximação às idéias do filósofo Platão, quando o protagonista formula seu
relato da história através, do que parece ser, um eterno retorno. Na verdade, essa idéia do retorno já constava da
filosofia de Heráclito, mas como a narrativa também joga com a presença de “outra realidade” paralela à do
encontro, e aparecem, como se verá em seguida, concepções literárias ligadas aos arquétipos, entendemos que o
conto também evoca as idéias platônicas.
162
BORGES, J.L. El tiempo circular. Historia de la Eternidad. Obras Completas. Buenos Aires: Emecé, 1975,
p.395. A mesma idéia aparece em La doctrina de los ciclos, no mesmo livro.
163
BORGES, J.L. Dialogos del Asceta y del Rey. Textos recobrados (1931-1955). Barcelona: Emecé, 2001,
p.306. Texto de 1953 publicado originalmente no Diario La Nación.
164
BORGES, J.L. O Fazedor. São Paulo: Difel, 1984, p.12.
165
Na verdade, na tradição clássica era esta a forma de destaque no trabalho dos autores - conseguir superar
um modelo pré-existente. Contudo, ela levaria a certa repetição, porque estava baseada em um determinado
número de formas e temas, cuja fonte eram autores antigos. No entanto, Borges amplia esse processo,
considerando, como se no conto, a introdução constante das conquistas de autores mais atuais (seus
“modelos” são Coleridge e Dostoievski).
166
La Eternidad y T. S. Eliot. Textos recobrados (1931-1955). Emecé: Barcelona, 2001, p.50
167
Embora as personagens sejam o mesmo homem, para fins de análise, primeiro vamos tentar observar quais
são as diferenças entre eles, para no próximo subtítulo observar os pontos em comum e o efeito de unidade.
168
Sombras Errantes. Produced by GARCIA, Benjamín. Disponível em:
http://www.geocities.com/benjamingarcia_cl/fiodor/fiodor.html Acesso em: 25.out.2007.
169
ARRIGUCCI JR, Davi (c). Aula sobre dois Ensaios Borgeanos. São Paulo: s/ gravadora, 2007. Fita cassete.
170
BORGES, J. L. Nueva Refutación del Tiempo. Otras Inquisiciones. Obras Completas. BsAs: Emecé, 1974,
p.771
171
GRAMUGLIO, Maria Teresa(b). El realismo y sus destiempos en la literatura argentina. In: JITRIK, Noé.
Historia critica de la literatura argentina. Vol 6. Buenos Aires: Emecé, 2004. vol.9 p. 15.
172
A crítica em geral aloca a obra borgeana sobretudo nos anos quarenta. Mas na década de vinte, ele já possui 3
livros de poesia, e 3 livros de ensaio. Cronologicamente, já está ativo no período de vinte, portanto. Ademais, ele
mesmo se inscreve na “geração heróica” dos anos vinte. Não contestamos a crítica, apenas levamos em conta
outro critério. Ver: BORGES, J.L.; EDELBERG, B. Leopoldo Lugones. In:_. Obras Completas en
Colaboración. Madrid: Alianza Editorial, 1983, pp.50-53.
173
um recurso literário [...]. Talvez o mais importante seja o que não recordamos de modo preciso, talvez o
mais importante nós o recordemos de uma maneira inconsciente". BORGES, J.L. Cinco visões pessoais.
Brasília: UNB, 1985, p.20.
174
Ver BORGES, J. L. Elogio da sombra poemas/ Perfis: um ensaio autobiográfico. RJ: Globo, 1985, p.102.
175
BORGES, J.L. Prólogo (1935). Historia universal da infâmia. São Paulo: Ed. Globo, 1989, p.XXV.
176
Alazraki possui uma boa síntese dessa idéia borgeana de panteísmo, aplicado à literatura: "Es siempre posible
encontrar detrás de la invención de un autor [...] antiguas invenciones que a través de los tiempos vienen a
desembocar en esa nueva invención que resume las otras, y que a su vez se convierte en ingrediente o causa de
las que vendrán". ALAZRAKI, Jaime. La prosa narrativa de J.L.B. Madrid: Gredos, 1974, p. 94.
177
Nos referimos ao texto homônimo de Borges, em que ele faz um elogio à burla; acredita a imortalidade de
uma boa injúria; e comenta as muitas formas de operar com ela. BORGES, J.L. “Arte de Injuriar”. Historia de la
Eternidad. Obras Completas. Buenos Aires: Emecé, 1974, p.423.
178
BORGES, J. L. “Ultraísmo”. Textos recobrados (1919-1929). Buenos Aires: Emecé, 1997, p.110.
179
Na década de vinte, (ver texto da nota anterior) Borges critica o Modernismo e o Sencillismo. Começa a fazer
objeções ao criollismo, baseado em excessiva exposição da cor local. Antes do final da década, faz
questionamentos ao Ultraísmo que defendera com ardor até seu primeiro ano de Argentina. E na década de
trinta, como veremos em nossos ensaios, ele tece inúmeras críticas ao realismo.
180
Ele diz na autobiografia: “Estou arrependido desta participação em escolas literárias. Não acredito nelas
hoje”. FONSECA, Cristina. O pensamento vivo de Jorge Luis Borges. São Paulo: Martin Claret Editores,
2001, p.15.
181
Este é um tema característico da obra borgeana. RODRÍGUEZ MONEGAL, Emir (a). Borges: uma poética
da leitura. São Paulo: Perspectiva, 1980, p.86 e 89.
161
182
São biográficos, os seguintes dados: a residência e permanência na Suíça entre 1914 e abril de 1918 no “17
de Malagnou” em Genebra; a estadia nos EUA – Cambridge, Massachussetts para dar palestras; a cuia do avô; a
casa da família em “Charcas y Maipú”; a morte do pai em 1938; a declaração da avó paterna antes de sua morte;
o casamento e os filhos da irmã; o parentesco, apesar de indireto, com o ditador Juan Manuel de Rosas; as
poesias, os contos fantásticos, a docência; o livro Los Salmos rojos o Los ritmos rojos (ele mesmo não se decidiu
quanto ao título e o livro não foi publicado na época); a adoração por Dostoievski; até suas declarações repetidas
em entrevistas; o estudo do anglo-saxão; o amigo judeu de Genebra, Simón Jichlinski; o bar Crocodile neste
país; e até a cegueira gradual. Também o caso da praça em Genebra é relatado pelos biógrafos. Ver
WOODAL,
op.cit.
183
desvio nas datas. O jovem real iria ter seu primeiro poema publicado no último dia de 1919, e os
demais poemas que formariam esse volume foram publicados em 1919 e 1920, com maior freqüência nas
revistas Grecia e Ultra. Assim, a idéia do livro Ritmos Rojos surge em Maiorca (lá estiveram entre março e
dezembro de 1919). Ou seja Borges está antecipando a idéia do livro para 1918, quando ainda não havia
publicado um único poema.
WOODAL,
op.cit, p. 89. Além disso, esse amigo de Genebra não foi médico e sim, o
outro amigo, Abramowics. Também a estadia nos Eua vai até o meio de 1968. Em fevereiro de 1969, ele
estava em Buenos Aires. VÁZQUEZ. Jorge Luis Borges. Esplendor y derrota. Rio de Janeiro: Record, 1999,
p.259.
184
AIZENBERG, E. El tejedor del Aleph: Bíblia, Kabala y Judaismo en Borges. Madrid:Altalena, 1986, 85-
86.
185
RODRÍGUEZ MONEGAL(a), op.cit., p.92.
186
“El Sur” e ““Tlon, Uqbar, Orbis Tertius” estão em Ficções; “El Aleph”, em El Aleph; “El Ciego” em La Rosa
Profunda (1975); e “A Cegueira” está em Sete noites (1980).
187
Nos referimos ao grande sucesso de “Borges y Yo”.
WOODAL,
op.cit, pp.268 e 269.
188
Com as linhagens e a cegueira. PARAIZO, Mariângela de A. “Um piscar de olhos”. In: MARQUES,
Reinaldo & MACIEL, Esther (Org). Borges en diez textos. BH: Pós-lit. Curso de pós-grado en Estudos
Literarios, 1997, p.42.
189
Informação do prof. Davi Arrigucci Jr, em Conferência na FFLCH-Usp no primeiro semestre de 2006.
190
BORGES, J. L. Ficciones. Buenos Aires: Alianza Editorial, 1998, pp.132-135.
191
BORGES, J. L. El libro de Arena. Barcelona: Alianza Editorial, 1998, p.138.
192
BORGES, Jorge Luis. “Domingo F. Sarmiento. Facundo”. Prólogo con un prólogo de prólogos. In:___.
Obras Completas (1975-1988). Barcelona: Emecé, 1996, pp.125 a 129.
193
Vale lembrar que Borges postulava regras próprias para o encadeamento dos acontecimentos na literatura: a
mesma causalidade dos povos primitivos e da magia, que denominou “causalidade mágica”. Ver “El arte
narrativo y la magia” em Discusión. BORGES, Jorge Luis. Obras Completas. Buenos Aires: Emecé, 1974.
194
RODRÍGUEZ MONEGAL(b), op.cit., p.365-366.
195
Zum Felde explica que a esse grupo reunido no grêmio literário do Ateneu, desejoso de uma literatura
própria, pertenceram muitos jovens talentosos e eruditos dos quais não permanece qualquer obra significativa:
perderam-se na política e deixaram a literatura em segundo plano. ZUM FELDE, A. Crítica de la literatura
uruguaya. Montevideo: Maximino Garcia, 1921, pp. 23-29. Regules é um dos poucos a deixar um poema digno
de nota. – La Tapera. PEDEMONTE, op.cit., p.60-63.
196
Em seu texto, Borges destaca uma declaração de Lothar Schreyer contra a mistura de arte e política.
BORGES, Jorge Luis. “Antologia expresionista” (1920) Textos recobrados (1919-1929). Buenos Aires: Emecé,
1997, p.68.
197
Por exemplo, o boedista Roberto Mariani, queixa-se da Revista Martin Fierro dizendo que os escritores de seu
grupo não têm “onde gritar nosso evangélico afã de justiça humana”. Outro exemplo, é a queixa conjunta dos
boedistas, expressa em um editorial da Revista Los Pensadores, perguntando: “O que pode ser a literatura senão
um consolo para todos os aflitos, algo como a religião? Ou um meio de se libertar e de libertar?” SCHWARTZ,
J.; LORENZO ALCALÁ, M. (Org). Vanguardas Argentinas Anos Vinte. São Paulo: Iluminuras, 1992, p.84 e
p.98.
198
OLEA FRANCO, op.cit., pp. 222-224.
199
BORGES, J. L. O informe de Brodie. São Paulo: Globo, 2001, p.16.
200
Borges parece retomar no conto sua oposição à arte panfletária.“El marxismo (como el luteranismo, como la
luna, como un caballo, como un verso de Shakespeare) puede ser un estímulo para el arte, pero es absurdo
decretar que sea el único. Es absurdo que el arte sea un departamento de la política”. BORGES, J.L. Un
caudaloso manifiesto de Breton. Textos Cautivos. Obras Completas (1975-1988). Barcelona: Emecé, 1996,
p.403.
201
DOSTOIEVSKI, F. Os demônios. Rio de Janeiro: José Olympio, 1952, p.51-53.
162
202
FRANK, Joseph. Dostoievski. Os anos milagrosos (1865-1871). São Paulo: Edusp. 2003, pp.120, 496-497.
203
BORGES, J. L. Domingo F. Sarmiento. Facundo. Prólogo con un prólogo de prólogos. Obras Completas
(1975-1988). Barcelona: Emecé, 1996, p.128.
204
BORGES, J. L. La Rosa Profunda. Buenos Aires: Emecé, 1975, pp.9 e 10.
205
WILSON, James Grant (Ed.); FISKE, John (Ed.). José Rivera Indarte. Appleton's Cyclopedia of American
Biography. Six volumes, New York: D. Appleton and Company, 1887-1889. [editada por Stanley L. Klos,
1999] Disponível em: http://www.famousamericans.net/joseriveraindarte/ Acesso em: 28.Nov.2004.
206
VÁZQUEZ, op.cit., p.196.
207
Cabe lembrar que assim como Borges, na década de trinta estava contra os regimes totalitário europeus, nos
anos cinqüenta, torna-se um opositor do peronismo. RODRÍGUEZ MONEGAL(b), op.cit., pp. 351-353.
208
O conto é uma colaboração entre Borges e Bioy. Publicado em um diário uruguaio, depois sai na edição de
Nuevos Cuentos de Bustos Domeq (Borges e Bioy). É a estória de um obreiro indo a um pronunciamento
político. O clímax é o momento em que a multidão apedreja um intelectual judeu que não quer aclamar o
Monstro (Perón). RODRÍGUEZ MONEGAL(b), op.cit., p.365.
209
ARRIGUCCI JR, Davi (b). “Borges e a experiência histórica”. In: Jorge Schwartz (Org). Borges no Brasil.
São Paulo: Unesp, 2001, p.119.
210
BORGES, Jorge Luis. “Domingo F. Sarmiento. Facundo”. Prólogo con un prólogo de prólogos. Obras
Completas (1975-1988). Barcelona: Emecé, 1996, p.125.
211
A idéia é de Soergel. Apud BORGES, J.L. Una declaración final. Textos recobrados (1931-1955). Emecé:
Barcelona, 2001, p. 225.
212
A mãe e a irmã são presas. Borges é desligado de seu cargo na biblioteca nacional. VÁZQUEZ, op.cit., p.196.
213
Acreditamos que a imagem seja de Antonio Candido.
214
BURGESS, Anthony. A literatura inglesa. SP: Ática, 2003, p.189.
215
BORGES, J. L. “O Duplo”. O livro dos seres imaginários. São Paulo: Globo, 2000, p.153.
216
Nessa análise a teoria funciona em uma das chaves de leitura (a do sonho). Além disso, cabe notar que no
conto, no qual, há poucos parágrafos do início, os protagonistas já se vêem em uma situação insólita, não temos a
“realidade” destes personagens. Contudo, nos guiamos pelos casos estudados pelo filósofo, em que era
mencionada a realidade dos protagonistas, e nos quais a situação de desdobramento trazia uma revelação sobre
sua vida.
217
BORGES, J. L. Nota sobre Walt Whitman. Discusión. Obras Completas. Buenos Aires: Emecé, 1974, p.250.
218
Ibidem, p. 253.
219
BORGES, J. L. Elogio da sombra poemas/ Perfis: um ensaio autobiográfico. RJ: Globo, 1985, p.80.
220
Ver nossos Pressupostos. BORGES, J. L. Textos recobrados (1919-1929). Buenos Aires: Emecé, 1997,
p.136.
221
BORGES, J. L. Discusión (1932). Obras Completas. Buenos Aires: Emecé, 1974, p. 217.
222
Borges diz: El texto clássico se limita a registrar una realidad, no a representarla [o que faz o romântico]”
BORGES, J. L. Discusión (1932). Obras Completas. Buenos Aires: Emecé, 1974, p. 217.
223
Borges como exemplos de textos românticos: “todas las ginas de prosa o de versos que son
profesionalmente actuales [...]”. Idem, p.219.
224
BORGES, J.L.; EDELBERG, B. Leopoldo Lugones. In: Obras Completas en Colaboración. Madrid:
Alianza Editorial, 1983, p.22.
225
No ensaio que citamos a seguir e, que será analisado no terceiro capítulo, veremos que Borges se empenha em
mostrar que Whitman é um escritor clássico. Primeiro com o argumento de que a obra de Whitman é muito
distinta à dos “românticos” Byron e Baudelaire. Segundo com o argumento de que ele dá continuidade à tradição
anterior pelo tema da imortalidade do poeta e pelo procedimento da enumeração. BORGES, J. L. Nota sobe Walt
Whitman. Discusión. Obras Completas. Buenos Aires: Emecé, 1974, pp.250-251.
226
AUERBACH, Erich. Mimesis. São Paulo: Perspectiva, 2004, pp.418-419.
227
WATT, Ian. A ascensão do romance. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p.31.
228
Dizemos isto porque no ensaio de “La Postulación”, Borges coloca Daniel Defoe entre os escritores do modo
clássico isto é, na construção de realidades literárias vagas; ao invés de incluí-lo no romântico, isto é, na plena
representação da realidade. Entretanto, o estudo de Ian Watt que aborda a grande transformação na literatura, vai
dizer que Defoe está no começo do realismo moderno. Portanto, se como pensamos, a divisão borgeana está
relacionada a esta mudança, parece que, ele teria o século XIX, como um marco.
229
“A hidra universo retorcendo seu corpo escamado de estrelas.(tradução minha).
230
Em vários de seus textos sobre a metáfora, Borges gostava de examinar um tipo que lhe parecia perfeito: a
metáfora que carrega o próprio referente. Nossa leitura, neste ponto, certamente se baseia nos efeitos que o
163
escritor conferia a este recurso. Ver BORGES, J. L. A Divina Comédia. Sete noites. SP: Max Limonad, 1980,
p.25.
231
HUGO, V. Victor Hugo (1802-1885). In: PUJOL, C. (Org.) Poetas románticos franceses. Barcelona:
Planeta, 1990, pp.119-132.
232
LAPOUGE, Gilles. Victor Hugo - 200 anos de nascimento (Matéria d´ O Estadão). Disponível em:
http://br.geocities.com/edterranova/victorbi.htm. Acesso em 15.out.2007.
233
Apenas por anedota simbólica dois episódios, um literário e um factual, que podem ser associados a esta
narrativa. Quando Borges escreve um prólogo para o livro El Piloto Ciego de Giovanni Papini, ele se lembra que
um conto do italiano, lido aos dez anos, se parece a “El Otro”: “El olvido bien puede ser una forma profunda de
la memoria. Hacia 1969, compuse em Cambridge la historia fantástica El Otro”. Atónito y agradecido,
compruebo ahora que esa historia repite el argumento de “Dos imagenes en un estanque” [de Papini]. BORGES,
J.L. Biblioteca personal. Obras Completas(1975-1988). Barcelona: Emecé, 1996, p. 472-473. Em 1971, Borges
vai aos EUA para dar palestras. Na Universidade de Colúmbia, vendo o palestrante e entendendo que Borges era
um escritor o-político, um dos jovens, que teria menos de vinte anos, dirige agressões ao autor: “o estudante
acrescentou que Borges nada tinha a contribuir a qualquer discussão sobre a América Latina, porque estava
morto”. Borges se inflama e, cego, aos 72 anos, usando bengala - que golpeia contra a mesa, convida o rapaz
para um duelo. RODRÍGUEZ MONEGAL(b), op.cit., p.326.
234
BORGES, J.L. “Anotación” (1955) Textos recobrados (1931-1955). Barcelona: Emecé, 2001, p.332.
235
Idem. Também: Textos Cautivos. Obras Completas (1975-1988). Barcelona: Emecé, 1996, p.246.
236
Lembramos que o jovem classificava a poesia em falsa (sem emoção e sem idéia) ou verdadeira (com emoção
ou com uma idéia). A nota da maturidade divide a poesia verdadeira em dois tipos: a do poeta e a do artífice.
237
Como ocorria na leitura do conto, considere-se que toda citação em itálico foi extraída do texto em BORGES,
J. L. Nota sobre Walt Whitman. Discusión. Obras Completas. Buenos Aires: Emecé, 1974.
238
JAKOBSON, Roman. Do realismo em arte. In: EIKHENBAUM, B & alii. Formalistas Russos. Porto
Alegre: Ed. Globo, 119.
239
Em seu Prólogo “Domingos F Sarmiento: Facundo”, ele tenta conseguir um estatuto de igualdade para a
história e a literatura. Neste texto, em dois momentos, ele novamente se move pelos textos de várias matérias
indistintamente. No primeiro, ele se vale de um texto de filosofia para exemplificar um problema literário. No
segundo, ele mostra que o recurso utilizado por Whitman, estava presente em textos religiosos, filosóficos e
literários, anteriores. Deste modo fica o sentido de que, para Borges, religião, filosofia, história e literatura,
poderiam todas receber uma leitura literária.
240
“Walt Whitman dele se origina o que denominamos poesia civil, se origina Neruda, se originam tantas
coisas, boas ou más...” BORGES, J.L. Cinco visões pessoais. Brasília: UNB, 1985, p.32. Ainda diz que “Edgar
Allan Poe e Walt Whitman, habían influido esencialmente, por su teoría y por su obra en la literatura francesa;
Rubén Darío, Hombre de Hispanoamérica, recoge este influjo […]”. BORGES, J.L. et al. Leopoldo Lugones.
Obras Completas en Colaboración. Madrid: Alianza Editorial, 1983, p.23.
241
COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria. Belo-Horizonte: Editora UFMG, 2001, p. 138.
242
Texto da Redação da Revista Los Pensadores. “À margem” (1926). In: SCHWARTZ, J. & LORENZO
ALCALÁ, M. Vanguardas Argentinas Anos Vinte. São Paulo: Iluminuras, 1992, p.99.
243
SOTO, L. E. “Esquerda e vanguarda literária” (s/d). Ibidem, p.91.
244
SOTO, L. E. “Esquerda e vanguarda literária”, pp.90-91.
245
YURKIEVICH, Saul. Borges, poeta circular. Fundadores de la nueva poesía latinoamericana. Barcelona:
Barral Editores, 1970, p.120.
246
Como dito nos pressupostos, Borges afirma neste texto, que desejaria uma poesia, com uma emoção livre de
causas. BORGES, J.L. Anatomia de mi ultra. Textos recobrados (1919-1929). Buenos Aires: Emecé, 1997,
p.95. Publicado originalmente em janeiro de 1921.
247
Texto da Redação da Revista Los Pensadores. “À margem” (1926). In: SCHWARTZ, J. & LORENZO
ALCALÁ, M., op.cit., p.100.
248
YURKIEVICH, op.cit., p.120-121.
249
Ibidem, p.124.
250
LAGOS, Ramona. Jorge Luis Borges (1923-1980): Laberintos del espíritu, interjecciones del cuerpo.
Barcelona: Ed. De Mall, 1986, p.239.
251
Idem, p.221 e 226.
252
Como dito, o jovem simboliza a geração dos anos vinte, mas também o próprio Borges. Na narrativa,
tentamos encontrar uma sugestão, de qual seria o entendimento que fez com que a obra borgeana se afastasse
dessa idéia de literatura, presente nos autores de sua geração.
253
BORGES, J.L. Anatomia de mi ultra. Textos recobrados (1919-1929). BsAs: Emecé, 1997, p.95.
254
OLEA FRANCO, R. El otro Borges, el primer Borges. México DF: FCE, 1993, p. 109.
255
BORGES, Jorge Luis. Textos recobrados (1919-1929). Buenos Aires: Emecé, 1997, p.367.
164
256
OLEA FRANCO, Rafael. El otro Borges, el primer Borges. México DF: FCE, 1993, p.217.
SEGUNDA PARTE DO CAPÍTULO
257
Também neste texto, as citações em itálico foram extraídas de BORGES, J. L. Domingos F. Sarmiento:
Facundo. Prólogo con un prólogo de prólogos. Obras Completas (1975-1988). Barcelona: Emecé, 1996.
258
A forma é semelhante à encontrada por Beatriz Colombi em “Visión de Anáhuac”. COLOMBI, Beatriz.
“Viaje y ensayo en Visión de Anáhuac de Alfonso Reyes”. In: BEIN, R. et alii. (Eds). Homenaje a Ana María
Barrenechea. Buenos Aires: Eudeba, 1984, p.272.
259
A contestação borgeana se dirige a um tipo de historiografia que se quer expressão da verdade e que acredita
transmitir seus conteúdos da forma mais objetiva possível. Por este motivo, como ela parece estar mais próxima
da historiografia tradicional vamos conferir-lhe esta denominação.
260
Nota técnica: vamos grafar Facundo, o nome do personagem Facundo Quiroga; e com Facundo, vamos
abreviar o título completo da obra - Facundo: civilización i barbárie.
261
A partir de SARLO, Beatriz(b). “Una poética de la ficción”. In: JITRIK, Noé. Historia de la literatura
argentina. Vol. 9. Buenos Aires: Emecé, 2004, p.22.
262
BORGES, J. L. Discusión. Obras Completas. Buenos Aires: Emecé, 1974, p.754.
263
BORGES, J. L. Textos recobrados (1931-1955). Barcelona: Emecé, 2001, p.53.
264
LUKÁCS, Georg. Sobre la esencia y forma del ensayo (Carta a Leo Popper) In:__. El alma y sus formas.
Barcelona, Grijalbo, 1975, pp. 16 e 38.
265
No livro, Sarmiento nos informa que ele fora tesoureiro e prefeito.
266
BORGES, J.L. Discusión. Obras Completas. Buenos Aires: Emecé, 1974, p.754.
267
Ibidem, p.754.
268
Ibidem, p.756.
269
BORGES, J.L. Prólogo con un prólogo de prólogos. Obras Completas (1975-1988). Barcelona: Emecé,
1996, p.37
270
“El defecto más constante de las letras francesas [...] es la ansiedad cronológica de sus escritores”. Ver
BORGES, J.L. Gloria Alcorta: La prison de l´enfant. Textos recobrados (1931-1955). Barcelona: Emecé, 2001,
p.115.
271
RODRÍGUEZ MONEGAL, E (a). Borges: uma poética da leitura. SP: Perspectiva, 1980, p.86 e 89.
272
RODRÍGUEZ MONEGAL, E (b). Borges: una biografía literaria. México: FCE, 1993, p.221.
273
Ibidem, p.325.
274
REYES, Alfonso. Antologia General. Buenos Aires: Alianza Editorial, ____, p.90.
275
Redação da Revista Los Pensadores. “À margem” (1926). In: SCHWARTZ, J. & LORENZO ALCALÁ, M.,
op.cit., p.97.
276
Idem, p.99.
277
MALLEA, Eduardo. El sayal y la púrpura. Buenos Aires: Losada, 1962, pp. 17-32.
278
Monegal diz que os argumentos dessa revista repetiam os que já apresentara sobre a recepção dos trabalhos de
Borges em 1954. Então, deve-se observar a página anterior na qual figura de modo direto o conteúdo destes
ataques. RODRÍGUEZ MONEGAL(b). op.cit., p.381-382.
279
BORGES, Jorge Luis. Textos recobrados (1931-1955). Barcelona: Emecé, 2001, p.53
280
Ibidem, p.53-54. É interessante notar que Estrada tinha Sarmiento na conta de um precursor.
281
MARTÍNEZ ESTRADA, Ezequiel. Literatura y vida (1956). In: ___ Para una revisón de las letras
argentinas. Buenos Aires: Ed. Losada, 1967, pp. 142-158.
282
SÁBATO, Ernesto. Três aproximações à literatura de nosso tempo. São Paulo: Ática, 1994, p.43.
283
FERNÁNDEZ RETAMAR, R. Todo Calibán. La Habana: Editorial Letras Cubanas, 2000, p.52.
284
Ibidem, p.52.
285
MONEGAL(b), op.cit., p.381.
286
Idem, p.380.
287
VÁZQUEZ, María Esther. Jorge Luis Borges: Esplendor y derrota. RJ: Record, 1999, p.226.
TERCEIRA PARTE DO CAPÍTULO – Primeiro Subitem
288
A partir deste ponto vamos nomear o ensaio apenas “La Postulación”. Todas as citações com itálico
correspondem a esta referência. In: BORGES, J.L. Discusión. Obras Completas. BsAs: Emecé, 1974, pp.217-
221.
289
BORGES, J.L. Thomas Carlyle: De los heroes. Ralph Waldo Emerson: Hombres representativos. Prólogo con
un prólogo de prólogos. Obras Completas (1975-1988). Barcelona: Emecé, 1996, p.41.
165
290
Como avisado no capítulo 2, estes são dois conceitos que Borges está forjando neste ensaio, por isso os
grafamos em itálico.
291
SARLO, Beatriz (c). Del otro lado del horizonte, Boletín 9, Centro de Estudios de Teoría y Crítica Literaria,
Facultad de Humanidades y Artes, Universidad Nacional de Rosario, 2000, p.20.
292
Idem, p.23.
293
O trecho de Cervantes, em seu conteúdo, traz uma imagem que explica a formulação clássica e seu primeiro
tipo; a lenda de Morris, a estruturação do clássico II; o de Larreta, explica o clássico III; a paráfrase do Homem
Invisível torna-se uma metáfora dos problemas deste modo, no gênero fantástico.
294
WATT, Ian. A ascensão do romance. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p.13.
295
BORGES, Jorge Luis. Of mice and man: John Steinbeck. Textos cautivos. Obras Completas (1975-1988).
Barcelona: Emecé, 1996, p.376.
296
BORGES, J. L. Prólogo. Luna de Enfrente. Obras Completas. Buenos Aires: Emecé, 1974, p.55.
297
BORGES, J. L. Obras Completas. Buenos Aires: Emecé, 1974, p.55.
298
PETIÇÃO 1. In: Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995, p.1322.
299
Acreditamos que esse seja o procedimento. Primeiro, lembramos de Balderstone que postula que Borges à
semelhança de Stevenson, costuma fixar a fisionomia das personagens, através de alguns rasgos marcantes.
BALDERSTON, Daniel. El precursor velado: R. L. Stevenson en la obra de Borges. Buenos Aires: Editorial
Sudamericana, 1985, p.61. A nosso ver, são alguns traços que alcançam uma projeção física geral das
personagens. Além disso, no final deste ensaio, vamos ver a questão dos pormenores que poupam aos clássicos,
e ao mesmo Borges, a descrição de um ambiente.
300
Desde jovem, Borges esteve atento aos problemas da linguagem. Em 1925, em “Examen de Metáforas”, ele
mostra que as palavras são insuficientes para dar conta de traduzir o que existe: “Buscarle ausencias al idioma es
como buscar espacio en el cielo”. BORGES, J. L. Inquisiciones. Barcelona: Seix Barral, 1994, p.72. Também
em “Acerca de Unamuno, poeta”, Borges apresenta vários destes problemas. Ver p.115 no mesmo livro.
301
ARRIGUCCI JR, Davi. Aula sobre dois Ensaios Borgeanos. São Paulo: s/ gravadora, 2007. Fita cassete.
302
Aparece em BORGES, J.L. A imortalidade. Cinco visões pessoais. Brasília: UNB, 1985, p.33.
303
BORGES, J.L. Textos recobrados (1919-1929). Buenos Aires: Emecé, 1997, p.86.
304
SOTO, L.E. “Esquerda e vanguarda literária” (s/d). In: SCHWARTZ, J. & LORENZO ALCALÁ, M., op.cit.,
p. 91.
305
Mais adiante vamos analisar um dos exemplos do clássico II que metaforicamente ilustra os procedimentos
dos escritores que utilizam esta técnica. Embora Borges não o faça, para explicá-la também seria possível
retomar a metáfora no trecho de Cervantes. O escritor deste segundo modo clássico é um Lotário que à diferença
do anterior não explicita suas intenções por meio de ações conclusivas. apenas sinais do que “sente”. Ao
contrário do primeiro, este Lotário pisca, abaixa os olhos, gagueja. Mas não importa, é o suficiente para que a
dama acredite que sua beleza foi integralmente contemplada, pese à timidez de seu admirador. Ama-a tanto que
não seria capaz de explicar. De forma semelhante, o leitor percebe o que deseja este tipo de autor, apenas por
intermédio de suas senhas.
306
O crítico aponta para a moral vitoriana desse poeta como influência para o significado urdido em várias de
suas obras. BURGESS, Anthony. A literatura inglesa. SP: Ática, 2003, p.225.
307
COZARINSKI, Edgardo. Magias parciales del relato. In: ___. Borges en/y/sobre cine. Madrid: Editorial
Fundamentos, 1981, p.20.
308
BORGES, Jorge Luis. Prólogo primeira edição de 1935). Historia universal da infâmia. São Paulo: Ed.
Globo, 1989, p.XXV.
309
BORGES, Jorge Luis. El idioma de los argentinos. Barcelona: Seix Barral, 1994, p.54.
310
BORGES, J.L. Arturo Capdevilla La santa furia del padre Castañeda. Textos recobrados. Buenos Aires:
Emecé, 2001, p.40.
311
BORGES, J.L. Prólogo con un prólogo de prólogos. Obras Completas (1975-1988). Barcelona: Emecé,
1996, p.152.
312
“Daniel Defoe parece haber sido el iniciador de esos pormenores de horario, de esas vanidades de cartógrafo o
de sereno: equivocación copiadísima”. BORGES, Jorge Luis. “La simulación de la imagen”. El idioma de los
argentinos (de 1928). Barcelona: Seix Barral, 1994, p.80. Depois, em um prólogo da terceira fase, também vai
afirmar que “el hallazgo esencial de Daniel Defoe (1660-1731) fue la invención de rasgos circunstanciales, casi
ignorada por la literatura anterior. Lo tardio de ese descubrimiento es notable; que yo recuerde no llueve una sola
vez en todo el Quijote”. BORGES, J.L. Biblioteca Personal. Obras Completas (1975-1988). Barcelona: Emecé,
1996, p. 499.
313
Sobre a inclusão de Defoe no modo clássico: a julgar dessa inclusão, é possível Borges não veja, ou não tenha
querido ver, um efeito de realidade real, na obra de Defoe. Talvez ele considerasse, como Auerbach, que o
divisor de águas para o efeito geral de realidade na literatura, seja o século XIX. Nós, acreditando na validade do
trabalho de Watt, colocamos a obtenção deste efeito, e portanto o início do modo romântico, no século XVIII;
166
mas é plausível que o próprio Borges pensasse no século XIX, como dito. No próximo tópico, vamos deixar
ainda uma segunda hipótese a respeito desta inusitada inclusão.
314
POSTULADO. In: MICHAELIS. São Paulo: Cia Melhoramentos, 1998, p.1675.
315
BALDERSTON, op.cit., pp. 45 e 55.
316
Idem, pp.57-58.
317
Gabriel Miró não é um realista, mas Balderston o compara às práticas literárias do século XIX, pela
estaticidade, envolvida nesta técnica de detalhar um quadro cênico.
318
BALDERSTON, op.cit., p.58.
319
Idem, p.61.
320
Ibidem, p.58.
321
Os textos de Discusión mencionados são “El Coronel Ascasubi” e “El Martín Fierro”. OLEA FRANCO,
Rafael. El otro Borges, el primer Borges. México DF: FCE, 1993, p.283-284.
322
BORGES, J. L. La poesía gauchesca. Discusión. Obras Completas. BsAs: Emecé, 1974, p.184.
323
OLEA FRANCO, Rafael. El otro Borges, el primer Borges. México DF: FCE, 1993, p.284.
324
Apud OLEA FRANCO, Rafael. El otro Borges, el primer Borges. México DF: FCE, 1993, p.283.
325
Ibidem, p.284.
326
Ibidem, p.231.
327
Ibidem, p.283.
TERCEIRA PARTE DO CAPÍTULO – Segundo Subitem
328
Pensamos no eterno retorno, embora culturas primitivas também estejam associadas ao tempo circular.
329
Como em “El Otro”, o velho entra no assunto de provar quem é o verdadeiro Borges. Assim, o jovem
assevera: “El soñador soy yo”. Tanto é, que em seguida entram no tópico do “quem sonha a quem”, cujo fundo é
a questão “quem existe, quem não existe”, como no primeiro conto.
330
BORGES, J.L. Discusión. Obras Completas. BsAs: Emecé, 1974, p.218.
331
ARRIGUCCI JR, Davi. Aula sobre dois Ensaios Borgeanos. São Paulo: s/ gravadora, 2007. Fita cassete.
332
Todas as citações grafadas em itálico, pertencem ao conto “El Milagro Secreto” no volume: BORGES, Jorge
Luis. Ficciones. Barcelona: Alianza Editorial, 1998, pp.173-183.
333
BORGES, Jorge Luis. 25 Agosto 1983 y otros cuentos. Madrid: Ed. Siruela, 1985, p.377.
334
BORGES, Jorge Luis. Obras Completas. Buenos Aires: Emecé, 1974, p.617.
335
BALDERSTON, op.cit., p.56.
336
BORGES, J.L. Biblioteca Personal. Obras Completas (1975-1988). Barcelona: Emecé, 1996 p. 499.
337
BORGES, J.L. Arturo Capdevilla La santa furia del padre Castañeda. Textos recobrados (1931-1955).
Buenos Aires: Emecé, 2001, p.40.
338
CANDIDO, Antonio. Realidade e Realismo (Via Marcel Proust). In: ___. Recortes. São Paulo: Cia das
Letras, 1996, pp. 123-129.
339
Ibidem, pp.126-127 passim.
340
Ibidem, pp.126-128 passim.
341
Ibidem, pp.123-124.
342
JAKOBSON, Roman. “Do realismo artístico”. In: EIKHENBAUM, B & alii. Teoria da Literatura.
Formalistas Russos. Porto Alegre: Ed. Globo, 1973, p.32.
343
RODRÍGUEZ MONEGAL(b), op.cit., p.239.
344
CANDIDO, op.cit., p.123.
345
ARRIGUCCI JR, Davi. Aula sobre dois Ensaios Borgeanos. São Paulo: s/ gravadora, 2007. Fita cassete.
167
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latinoamericana. Barcelona: Barral Editores, 1970, pp.119-137.
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FFLCH - USP
JÉSSICA ARACELLI ROCHA
Borges e o realismo: O Outro da Literatura Borgeana
_____________________________________________________________
SÃO PAULO
2008
2
JÉSSICA ARACELLI ROCHA
Borges e o realismo: O Outro da Literatura Borgeana
Dissertação apresentada ao Departamento de Letras
Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo para a
obtenção do título de Mestre em Literatura Hispano-
americana.
Área de Concentração: Língua Espanhola e Literaturas
Espanhola e Hispano-americana.
Orientadora: Prof
a
Dra. Laura Janina Hosiasson.
SÃO PAULO
2008
3
AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO PARCIAL DESTE TRABALHO, POR
QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO, PARA FINS DE ESTUDO E
PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.
4
DEDICATÓRIA
"Dize aos israelitas que me façam uma oferta.
Aceitareis essa oferenda de todo homem que a fizer de
bom coração. Eis o que aceitareis à guisa de oferta: uns
trarão ouro, prata, cobre, púrpura violeta e escarlate,
carmesim, linho fino; outros podem trazer peles de
cabra, peles de carneiro, tintas de vermelho, peles de
golfinho, madeira de acácia; outros ainda azeite para
candeeiro, aromas para o óleo da unção e para os
incensos odoríferos, pedras de ônix e outras pedras.
Far-me-ão um santuário e eu habitarei no meio deles
[...] Farão uma arca de madeira de acácia [...]” (Êxodo,
25:3)
“Há yoguis que servem a Deus com ritualismos vazios
[...]; outros porém, oferecem-lhe melhores dádivas, no
fogo de Brahman. Outros praticam renúncia, abstendo-
se do que agrada aos olhos e ouvidos; outros ainda
oferecem, de coração ardente, as suas preces e seus
hinos de louvor. Muitos há que, no fogo místico da
mortificação dos sentidos, ateado pela luz da Verdade,
abrem mão das alegrias da vida. também os que,
por meio de votos, renunciam às riquezas e vivem em
humildade, entre penitências, jejuns e macerações;
outros que pela silenciosa leitura de livros e profunda
meditação buscam conhecimento [...] Todos esses
yoguis, em virtude de seus sacrifícios peculiares,
libertam-se de todas as impurezas, no fim dos seus
exercícios e, imersos em alegria, atingem a eterna
divindade”.
(Cap.4, 25-30; Bhagavad Gita)
5
AGRADECIMENTOS
“Não, eu não hei de morrer; viverei para narrar as obras do Senhor” (Salmos 117, 17)
A Deus. Em especial ao Sr. Jesus Cristo e a Bhagavan Krishna. Ao meu querido Guru
Paramahansa Yogananda, Sri Yukteswar, Lahiri Mahasaya, Mahavatar Babaji. A meu
caro Santo Expedito, e minha querida Nossa Senhora das Graças. Aos Anjos e aos
Santos de todas as religiões, que intercederem e auxiliaram neste trabalho.
Ao CNPQ, pela concessão da bolsa de Mestrado, a qual foi imprescindível para a
formação da pesquisadora e para a obtenção dos resultados.
À Minha Orientadora, Prof. Dra. Laura Janina Hosiasson: muito paciente com os
prazos; incansável nas correções; exigente com a qualidade do trabalho; por suas
várias orientações precisas; pelas indicações de material adequado. Sem ela,
certamente, esse trabalho não teria sido o que foi.
Ao Prof. Dr. Marcos Piason Natali, que fez ótimas indicações de bibliografia, ajudou a
sanar algumas dúvidas, deu apóio às idéias, mas sobretudo, porque se dispôs ao
diálogo, prestando auxílio em dois momentos cruciais. À Prof. Dra Ana Cecília, meus
agradecimentos, porque incentivou o projeto e se empenhou em apontar caminhos.
Ao Prof. Dr. Eduardo Martins. Seus cursos de Brasileira I e III estão nos fundamentos
deste Mestrado. Agradeço ainda suas indicações de pós-IEL.
À prof. Graciella Capacci pela oportunidade de participar em seu taller literario.
Também agradeço a Prof Beatriz Colombi pelo incentivo em sua disciplina.
À minha querida mãe, Dalíria Nogueira da Rocha. Suas orações contínuas, seu amor
imenso, sua preocupação carinhosa. Pelo incentivo, mesmo quando isso significava a
distância. A meu pai, por seus presentes, que sempre chegaram na hora certa.
Minha irmã Cristiane, que junto com as Mil e Uma Noites, aos onze anos, trouxe uma
direção para minha vida. Minha irmã Cleide, que ajudou a juntar as pontinhas desta
existência para que o espiritual estivesse no mental e o mental no espiritual, sem
esquecer do descanso, do emocional e do material. Meu muito obrigada!
Meus queridos amigos da vida inteira, que suportaram as ausências e as correrias, mas
dividiram as alegrias: José Carlos, Juliano, Mário, Eliene, Lisa, Batsi, Carlucha.
Elis e Michella, minhas irmãs de apartamento. Por todo conselho e encorajamento,
enfim pelo ambiente sereno e fraterno que me proporcionaram.
Aos amigos de São Paulo, Malú, Allan, Walter e Márcio, porque os momentos de
alegria foram enorme motivação para o trabalho. Aos amigos da filosofia, Ari e
Márcia; e ao Júlio, companheiro das letras. A Olga e Rui, pela conversa animada.
Ligia, companheira infalível. Por toda a força e incentivo... Porque a vida passa, mas
há pessoas especiais que permanecem e dão valor ao que passou!
Ao meu amigo Borges, quem me ensinou que os autores são amigos, com os quais a
gente segue eternamente conversando, através de suas obras.
6
“Don Quijote:
_ Dime ¿No ves aquel caballero que hacia nosotros viene, sobre un
caballo rucio rodado, que trae puesto en la cabeza un yelmo de oro?
_ Lo que yo veo y columbro respondió Sancho no es sino un
hombre sobre un asno pardo como el mío, que trae sobre la cabeza
una palangana que relumbra”.
7
RESUMO
ROCHA, J. A. Borges e o realismo: O Outro da Literatura Borgeana. 2008. 178f.
Dissertação (Mestrado) Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade
de São Paulo, São Paulo, 2008.
Busca compreender o conto “El Otro”, de Jorge Luis Borges. Para tanto, efetua sua análise
formal; acrescida pelo exame de um corpus secundário. Uma vez que a narrativa apresenta
dois personagens autobiográficos, sendo o jovem similar e estranho à produção deste autor, é
necessário comparar tal personagem à obra borgeana de juventude, no tocante ao realismo,
engajamento, biografismo e ultraísmo. Verifica que o Borges de 1918 a 1920 não exibe tais
concepções literárias, exceto pelo ultraísmo. Na segunda etapa juvenil, entre 1921-1928,
encontra ultraísmo, biografismo e alguns pontos de contato, com elementos do realismo.
Contudo, observa a existência de realismo, engajamento, biografismo e ultraísmo no contexto
literário argentino dos anos vinte. Os três primeiros rasgos estão especialmente ligados ao
grupo boedista. No entanto, como o conto alude ao Modernismo, entende-se que não o
Realismo, mas toda a geração de vinte é contemplada na figura do personagem mais novo. Na
leitura do conto, entende que as personagens produzem um diálogo entre a obra borgeana e a
geração argentina dos anos vinte, na qual, o jovem Borges da realidade fica incluso. A matéria
sob o diálogo, tanto nas estruturas quanto na temática, consiste de uma série de
questionamentos ao realismo. Essas representações também podem ser lidas enquanto duas
atitudes fundamentais diante da arte literária. Entende-se que em “Nota sobre Walt Whitman”
uma oposição aos postulados boedistas, em especial no tocante ao biografismo. Como a
segunda etapa juvenil apresenta concepções biografistas, verifica que o ensaio de 1932
assinala uma mudança. Por isto propõe que a polêmica Boedo-Florida foi um momento
importante para a transformação ocorrida entre a obra juvenil e a obra madura. Em seu
Prólogo “Domingos F. Sarmiento: Facundo”, encontra objeções ao realismo e ao
engajamento. Nos pressupostos foi destacado que o autor começa um combate aos postulados
realistas na década de trinta. Uma vez que o prólogo é escrito em 1974, compreende-se que
através de seus ensaios, o autor está em constante diálogo com o realismo. Interpreta em “La
Postulación de la Realidad” a divisão borgeana entre dois modos de fazer literatura: o clássico
e o romântico. Com isso, entende-se que estes modos literários genéricos do ensaio possuem
um paralelo com os modos derivados das personagens e estruturas do conto analisado. Ao
mesmo tempo, percebe-se que o modo realista / romântico (expressivo) está ligado à obra
juvenil, ao passo que o modo clássico (alusivo) é associável à obra borgeana da maturidade.
Ademais, no conto “El Milagro Secreto”, encontra uma das técnicas clássicas, gerando alta
verossimilhança (efeito buscado pelas obras românticas). Igualmente esta é uma técnica
recorrente em algumas obras realistas. Assim, o uso dos detalhes circunstanciais representa
um ponto de contato entre a obra borgeana e o realismo. No entanto, conclui-se que a
utilização deste recurso ainda pode ser vista como uma crítica a esta estética.
Palavras-chave: Borges, realismo, biografismo, engajamento, mimesis, verossimilhança.
8
ABSTRACT
ROCHA, J.A. Borges and the realism: The Other of the Borgesean Literature. 2008. 178f.
– Dissertation (Master) - FFLCH - USP, São Paulo, 2008.
This dissertation tries to understand “El Otro”, a short story by Jorge Luis Borges. In order to
achieve this goal, we make an analysis of it and of a secondary group of texts. As the
narrative has two autobiographical characters, and the youngest of them seems different from
the author and his first books, it is necessary to compare this character with this author’s
youth works (essays) in relation to realism, engagement, tendency to look for relations
between literature and the author’s life (called biographism in this paper), and ultraism. The
first chapter confirms that the young Borges (1918-1920) does not present these
characteristics in his evaluation of literature, except for ultraism. In a later period of his youth
(1920-1928), there is ultraism and biographism and some relations with the realistic way of
literary construction. However, there were realism, engagement, biographism and ultraism in
the Argentine literary context of the twenties. The three first can be associated with the
writers in the Boedo group. However, the story alludes to Modernism too; so it is possible to
understand that the young character in the short story is related to the generation of Argentine
writers in the twenties. The reading of the short story shows that it produces a dialog between
the borgesean literature and the Argentine writers of the twenties, including the young Borges.
The dialog and the narrative resources reveal that realism is criticized. These two
representations can be read as two generic ways to deal with literature. So, it is possible to
state, that in “Nota sobre Walt Whitman”, there is an opposition to the way boedists dealt with
biographism. As Borges’ second youth period does not present biographism, we affirm that
this essay captures a transformation. Therefore, we can confirm that the controversy between
the groups, Florida and Boedo, may have been an important moment between Borges’ youth
books and his well known works. In his preface “Domingos F. Sarmiento: Facundo”, new
objections to realism and engagement can be found. In the first chapter it is asserted that
Borges fights realism since the thirties. Thus, if the preface was written in 1975, we can assert
that this author’s critical texts are in dialog with realism. The essay “La Postulación de la
Realidad” shows the borgesean classification of literature: the classical way and the romantic
way of writing. Thus, we verify the existing parallel between this essay and the short story
analyzed. This text shows that the romantic way has a connection with the second period of
Borges’ youth works, while the classical way is related to his mature works. Other borgesean
short story, “El Milagro Secreto”, uses one of the classical techniques to generate
verisimilitude, but this is a technique commonly used by realists too. Therefore, this story
shows that there is a contact point linking the borgesean works and realism. This same
technique keeps a final objection to realism.
Key-words: Borges, realism, biographism, engagement, mimesis, verisimilitude.
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.......................................................................................................................01
1.0. UM OUTRO BORGES NO IMPÉRIO REALISTA...................................................03
1.1. BORGES E A GERAÇÃO LITERÁRIA ARGENTINA DOS ANOS VINTE................03
1.2. O JOVEM BORGES E O REALISMO, O ENGAJAMENTO, O BIOGRAFISMO,
E A METÁFORA ULTRAÍSTA, NA DÉCADA DE VINTE..........................................08
1.3. O JOVEM BORGES E A GERAÇÃO LITERÁRIA ARGENTINA DOS ANOS
VINTE................................................................................................................................24
2.0. BORGES E O REALISMO: UM CONJUNTO DE PARADOXOS
- Análise do Conto “El Otro” - ......................................................................................28
3.0. UMA FICÇÃO CONTRA O REALISMO, E A VEROSSIMILHANÇA
NESSA FICÇÃO – Análise dos Ensaios e Narrativas Complementares...................80
3.1. BORGES E O BIOGRAFISMO: NOTA SOBRE A EXISTÊNCIA DE UM
OUTRO WALT WHITMAN.............................................................................................80
3.2. UM PRÓLOGO BORGEANO: O ENSAIO LITERÁRIO E A LEITURA
CONTRA O REALISMO E O COMPROMISSO..............................................................93
3.3. DUAS REALIDADES LITERÁRIAS: O CLÁSSICO E O ROMÂNTICO.....................112
3.4. BORGES E UM PONTO DE CONTATO COM O REALISMO:
OS PORMENORES CIRCUNSTANCIAIS....................................................................137
CONCLUSÕES.....................................................................................................................153
BIBLIOGRAFIA...................................................................................................................167
1
INTRODUÇÃO
Embora o realismo formal tenha início no século XVIII, o Realismo é
indissociável do século XIX. Segundo Borges, em sua “Vindicación del 1900”, este é um
século contraditório que contem muitas doutrinas e também a refutação de todas elas: “No
hay argumento contra él, contra sus instituciones, que no haya sido formulado por alguien en
ese mismo siglo”
1
. No entanto, se o escritor nasce em 1899, vale lembrar que o mesmo
Borges é um homem do século XIX. Então, talvez este seja um dos motivos, para que seu
pensamento e sua obra sejam tão paradoxais.
Nosso principal objetivo nesta dissertação é a análise do conto, “El Otro”
(1975), em vários de seus desdobramentos e alcances. Trata-se de um texto muito citado por
sua curiosa trama. Contudo, pertencente à terceira fase do autor, a qual costuma ser a menos
visitada pela crítica, ele parecia merecer uma leitura mais aprofundada, sob um viés literário
2
.
Em primeiro, porque o tema do duplo costuma desencadear um intenso processo de
autoconhecimento para o personagem que o enfrenta - neste caso, o desdobramento de um
Borges personagem. Em segundo, porque as híbridas narrativas borgeanas assumem um tom
ensaístico, ao proporcionar uma série de idéias sobre a literatura. Por tal motivo, essas duas
questões, o duplo e a formação de idéias literárias, irão guiar esta análise. Através delas,
surgem as entradas e os limites do trabalho. O conto oferece muitas sugestões sobre a vasta
obra borgeana, as quais não poderiam ser totalmente exploradas. Cada autor é um universo, e
tentar classificar a totalidade das estrelas que o compõem, é uma tarefa sempre impossível.
Assim, com o grande auxílio das explorações anteriores, limitamo-nos a apontar as
extremidades de um conjunto possível – Borges e o realismo.
Com isso, a estrutura da dissertação visa a atender as necessidades do conto.
No primeiro capítulo, para elucidar a questão dos personagens autobiográficos faz-se
necessária uma volta às concepções literárias do autor, desde 1918 até a década de trinta.
Portanto, seu assunto é o jovem Borges. No segundo, vemos que a análise da narrativa
proporciona a discussão de uma série de questões sobre a obra borgeana. Assim, surge um
terceiro capítulo, para aprofundar a exposição das duas concepções opostas de literatura,
formuladas no conto, as quais envolvem ainda o engajamento e o biografismo (termo com o
qual nomeamos todo tipo de confusão entre um escritor e seus personagens, ou sujeito da
poesia). Por este motivo, uma aproximação a três ensaios de Borges, que lidam com estes
assuntos: todos refletem a mesma contraposição, ajudam a entender dois momentos da
2
carreira do autor (20 e 70); e permitem averiguar o desenvolvimento de suas idéias no tempo.
Duas narrativas mais ilustram um recurso comentado no último ensaio. A partir dele, é
possível perceber um interessante ponto de contato entre a obra borgeana e o realismo.
Na narrativa, encontram-se alusões que remetem ao Realismo argentino,
porém, esta questão particular se desdobra na visão de um modo literário muito mais amplo e
geral, em que o realismo é a tendência a configurar a literatura em relação com a realidade.
Portanto, o texto gera seu próprio conceito de realismo.
Particularmente, o conceito parece incidir sobre o Realismo argentino da
década de vinte e, em especial, sobre o grupo literário de Boedo. Por isso, muitas vezes,
observa-se que Borges parece combater um realismo bastante ingênuo que tenta aproximar a
verdade ficcional, pautada pela elaboração, a uma verdade expositiva sobre a realidade. Trata-
se de um grupo de escritores para o qual, o retrato fiel das condições sociais, era um meio
para sua empreitada ideológica. Dez anos depois da Revolução Russa, com as doutrinas
socialistas em pleno vigor, a revolução era o alvo, e a literatura, uma forma de conscientizar e
despertar o desejo de participação no projeto político.
Contudo, as generalizações borgeanas tentam apanhar o Realismo em uma
das eternas modalidades da Literatura – de acordo com as indicações de La Postulación de la
Realidad”. Assim, o termo se amplia muito, para referir-se também, nas palavras de Antonio
Candido, às “modalidades modernas, que se definiram no século XIX e vieram até nós [as
quais] tendem a uma fidelidade documentária que privilegia a representação objetiva do
momento presente na narrativa”
3
. Na verdade, as objeções de Borges ao Realismo são tão
amplas e pesadas, que chegam até o questionamento da mimesis.
Quanto aos “senderos”, isto é, aos caminhos trilhados, as teorias do
formalismo russo, e do estruturalismo auxiliaram a compor nosso estilo de análise, pautado
por detalhadas apreciações formais. Por outro lado, para entender o realismo, foram leituras
obrigatórias Ian Watt e Erich Auerbach. Ao final dessa dissertação, observa-se que ela
continuidade a uma linha sulamericana de leituras: o nacionalismo; a história; a memória em
Borges. No entanto, os questionamentos ao realismo nela expostos, a tornam afins aos debates
do pós-estruturalismo. De qualquer maneira, a feição deste trabalho menor, de um equilíbrio
entre a forma e a busca do contexto, leva a ter de admitir certa influência, inconfundível.
3
1.0. UM OUTRO BORGES NO IMPÉRIO REALISTA.
Em uma primeira análise, verifica-se que a narrativa contem um embate
contra postulados realistas. O conflito decorre de posturas antagônicas entre as personagens
do jovem e do mais velho este discorda do realismo, engajamento e biografismo
4
do mais
novo; mas também de suas metáforas ultraístas. Além das concepções realistas, o velho
identifica influências de várias escolas literárias no trabalho do jovem. Essas diferenças ainda
são expandidas com o auxílio das estruturas textuais, portadores de duas concepções distintas
a respeito da literatura. A partir desta constatação, efetuamos uma leitura composta de duas
hipóteses: a) no conto, a obra borgeana dialoga com uma representação da literatura argentina
dos anos vinte, na qual, o jovem Borges real fica incluso; essas duas representações, também
podem ser lidas enquanto duas atitudes fundamentais diante da arte literária; b) a matéria do
diálogo, tanto nas estruturas quanto na temática, é uma série de questionamentos ao realismo.
Em prol das hipóteses, os pressupostos pretendem demonstrar que as
questões abordadas no conto são relacionáveis ao campo literário argentino dos anos vinte.
Ademais, como os dados autobiográficos inseridos no personagem jovem parecem pretender
sua inclusão nestas críticas e debates, vamos buscar as concepções literárias do escritor, em
sua juventude, para mostrar suas diferenças e pontos de contato, com o personagem jovem de
si mesmo. Entretanto, não existe a intenção de contextualizar a narrativa, no sentido de
pretender que ela ‘surge de’ ou ‘expõe’ realidades históricas do campo cultural. Ao contrário,
o propósito é mostrar que o texto, em seu caráter lúdico e paradoxal, produz visões a respeito
da literatura de qualquer tempo, embora finja reportar-se à sua versão do que teria sido a
literatura argentina da cada de vinte. Por isso, o importante não é conseguir uma descrição
precisa do período, mas apenas evidenciar que os críticos coincidem a respeito dos debates
assinalados - que entram na caracterização do protagonista mais jovem e explicam,
parcialmente, o tipo de críticas ao realismo que o conto elabora.
1.1. BORGES E A GERAÇÃO LITERÁRIA ARGENTINA DOS ANOS VINTE.
1.1.1. Realismo, Engajamento e Biografismo na Argentina dos anos vinte.
4
Em seu artigo, “O Império Realista”, Maria Teresa Gramuglio data o apogeu
do Realismo argentino nos anos trinta, embora ele predomine, como poética e atitude, desde o
final do século XIX, até meados de 1940
5
. Segundo ela, este era um tipo de literatura que
correspondia às expectativas dos leitores da época, obtendo ampla aceitação, uma vez que “la
seducción del referente, propia de las poéticas miméticas, las torna particularmente adecuadas
para tramitar las necesidades de reconocimiento y de autoconciencia [...]”
6
. Gramuglio
considera que o momento de formação da identidade nacional, através da cultura, propiciava o
desenvolvimento do Realismo, e este, por sua vez, foi crucial para a conquista daquele
objetivo. Ainda cabe destacar a longa duração desta estética, que a mesma crítica afirma
que o realismo ressurge ao longo do século em poéticas de mistura as quais “se ocupan del
presente con una intención cognoscitiva y crítica”
7
. Na verdade, a tese do artigo é a de que o
realismo foi decisivo para a literatura argentina moderna
8
. Seu pressuposto parece ser o de
que nestes anos surge uma tradição literária nacional que será plataforma para
desenvolvimentos posteriores. Contudo, caberia perguntar: se o realismo é de fato responsável
por este legado, até que ponto haveria sido tão recorrente nesta primeira metade do século
XX, não fosse a influência do cenário político incidindo sobre o campo cultural? Em todo
caso, suas afirmações apontam para a hegemonia desta estética no começo do século vinte,
respaldada pelo projeto de representação da nacionalidade argentina e, que além disso,
consegue estender seus domínios para além das primeiras décadas.
Ainda segundo Gramuglio, no século XX, depois da Revolução Russa, o
realismo ganha novo alento com o advento da crítica marxista. É um segundo momento em
que, respaldado pela influência do velho Lukács, o realismo recupera vigor e ganha novas
nuanças
9
. Ela lembra a relação direta do crítico com o Partido Comunista; o menosprezo que
o crítico húngaro chega a conferir às vanguardas, em nome de uma valorização do paradigma
realista do século XIX, e que chegara a equiparar realismo e arte
10
. Alerta para o fato de que
grande parte dos julgamentos, realizados sobre a estética realista, na primeira metade do
século XX, vinham de alguns teóricos e críticos de esquerda, os quais, ao contrário de
observá-la em sua função artística, se ocuparam sobretudo de “sus alcances cognoscitivos y
pragmáticos, y por ende, políticos”
11
. Assim, durante o período aludido, para parte da crítica,
preconizar o realismo equivalia a atender às finalidades de um projeto político. Desse modo,
essa estética ganha um reforço ideológico que podia pressionar os escritores, através da
recepção das obras. Veremos que no corpus fica sugerida uma interferência da política no
5
projeto estético do jovem Borges personagem, o que simbolicamente lembra essa Argentina
recebendo pressões ideológicas em sua literatura.
Assim, entendemos que houve transformações no Realismo argentino. O que
a princípio era uma estética européia, uma nova escola literária aportando no continente,
torna-se a seguir uma escolha argentina em função de suas necessidades culturais; mas
converte-se em alguns momentos da primeira metade do século XX em imposição teórica,
influenciando o campo intelectual através de um setor da crítica. Uma segunda dedução
possível é a de que, dentro deste setor específico, uma mudança nos parâmetros
avaliativos, de maneira que o julgamento estético cede lugar a critérios políticos, fazendo com
que a crítica das realidades sociais ganhe um novo impulso nas representações artísticas.
Gramuglio registra dois momentos de forte polêmica com o Realismo
argentino no século XX: a disputa local entre os grupos de Florida e Boedo, em meados da
década de vinte; e os debates gerais sobre o realismo socialista, em 1956. Essa primeira série
de dados parece coadunar-se para o entendimento das concepções antagônicas formuladas em
nosso corpus. Nele, de um lado, está a idéia de que a arte possui um desenvolvimento através
da retomada e progresso da tradição (que não é uma idéia central do grupo de vanguarda
argentina, mas se assemelha às concepções da literatura borgeana). Do outro, está a idéia de
que a literatura é concebida sobretudo a partir do contexto (o que poderia evocar o realismo
de qualquer tempo, ou o Realismo argentino, mas encontra muitos pontos de contato com o
grupo de Boedo, em especial). Dessa forma, uma parte do arranjo simbólico do corpus
narrativo suscita uma aproximação à polêmica Boedo-Florida
12
.
Gramuglio revela o perfil dos grupos através dos rótulos que lhes foram
imputados no período: aos de Florida – os da arte pela arte; arte burguesa, formalista e
decadente; aos de Boedo os realistas; os socialistas; os da arte proletária
13
. Ela oferece o
panorama geral mas procura complementá-lo com algumas expressões individuais de maior
peso. Assim, ela destaca a publicação do boedista Elías Castelnuovo, em que este postula a
necessidade de que a arte esteja a serviço da revolução e sua defesa de uma estética
compreensível para as massas
14
. De acordo com Gramuglio, o essencial para este autor seria o
conhecimento da realidade; a beleza teria apenas um sentido utilitário e por este motivo
demonstrava menosprezar as inovações vanguardistas e mesmo o domínio das técnicas
literárias. Gramuglio destaca também a participação de Álvaro Yunque, outro boedista: sua
defesa de uma arte popular e sua declaração de que a beleza não define a arte
15
. Uma vez que
este artigo tem como objetivo traçar um panorama geral, ele define linhas mestras para o
6
estudo do realismo argentinos atingindo suas metas, contudo, por esta finalidade mais
abrangente, o grupo vanguardista recebe uma menor atenção.
Outra abordagem da disputa aparece no livro de Rafael Olea Franco. Apesar
da pequena seção em que se encontram, as estéticas foram bem caracterizadas. Ele entende
que o ponto central da dissensão era o próprio entendimento da arte, e em decorrência disto, o
que se pretendia renovar em sua proposta – o social ou o literário
16
. No grupo de Florida, Olea
Franco aponta o ideal de arte pela arte e o desejo de promover experimentação, independente
das eventuais dificuldades de compreensão provocadas por este tipo de composições
17
. Olea
Franco coincide com Gramuglio em que a rebeldia deste grupo era estética
18
. Explica que as
pequenas tiragens de exemplares destes escritores se devia à concepção do livro como uma
obra de arte destinada à elite do pensamento algo que a outra crítica não menciona
19
. Como
ela, Olea Franco assinala a preocupação social no trabalho dos escritores do grupo de Boedo e
identifica a proposta de uma arte engajada; que primasse pelo realismo e pela clareza em sua
escritura; lembrando ainda que estes escritores procuravam uma identificação com o leitor,
através da pertença à mesma classe social
20
. Explica também que, em contraste com as
convicções do grupo de Florida, os boedistas procuraram repassar seus exemplares a baixo
custo de modo a atingir a massa com suas idéias
21
. Fica evidente no texto do crítico espanhol,
que estes escritores desejavam ser porta-vozes das classes oprimidas. Suas explicações
confirmam as de Gramuglio, e as ampliam ao iluminar a questão ideológica, de que a clareza
e o realismo eram necessários aos boedistas, pois auxiliavam na difusão de seu pensamento.
O artigo de Alberto Giordano & Alejandro Eujanían é mais específico que
os anteriores, ao abordar a rixa dos grupos, através da análise das revistas literárias de
esquerda da época. Os autores esclarecem que ambos (os de Boedo e os da Vanguarda)
tinham empatia com o projeto da esquerda, pensando preparar a sociedade para as
transformações vindouras, mas a proposta de cada grupo visava a um tipo de transformação.
Uns queriam mudar a sociedade. Os outros, a arte literária. Assim, as revistas funcionavam
como veículos ideológicos de consolidação interna e serviam ainda para a tomada de espaços
no campo cultural
22
. Giordano & Eujanían destacam a revista Claridad, ligada aos boedistas,
a qual em princípio não se achava filiada a uma corrente partidária, e cujo rasgo marcante era
seu propósito pedagógico. Gradualmente ela vai manifestando tendências políticas e chega,
em sua última época, a apresentar uma retórica revolucionária, quando seus colaboradores
desejavam a construção de uma esquerda Latino-americana e a penetração do partido
socialista na sociedade
23
. Assim, os críticos revelam novo aspecto ligado a escritores que
participavam deste grupo: a de fins pedagógicos para a arte. De modo geral, em concordância
7
com Olea Franco e Gramuglio, a dupla de críticos revela a ideologia política e a visão de uma
função social
24
para a literatura, no grupo de Boedo.
Como Olea Franco, Giordano & Eujanián também assinalam, que para os
boedistas, a clareza seria fundamental: “existe una verdad (la de lo social, en este caso) y
puede transmitirse gracias a la transparencia del lenguaje (literário, en este caso) (grifo do
autor)”
25
. Novamente aparece a idéia de que em nome da função social, o ideal seria uma
literatura de cil acesso ao grande público. É interessante observar o dado de que a Revista
Contra, surgida em 1933, buscou definir a função do escritor, em termos de “agitar y hacer
propaganda” com o argumento de que “el arte puro o de entretenimiento podría cumplir una
función positiva sólo en una sociedad sin clases”
26
. Gramuglio e Olea Franco não assinalam
esta acentuação progressiva das estéticas rivais, expressa no pedido de uma atitude panfletária
dos escritores, e no menospreza da arte que o visa a uma transformação da sociedade.
Giordano & Eujanían detectam que nos discursos de Contra havia uma oposição entre arte
pura e arte propaganda, em que a segunda era defendida
27
. Neste ponto, é visível o
incitamento a uma arte comprometida por parte dos editores desta revista.
Outro ponto que Giordano & Eujanián abordam no conjunto da exposição é
a visão que o grupo realista possuía das relações entre o escritor e sua obra. Olea Franco
menciona o dado, mas os críticos explicam melhor o problema. Eles expõem que os escritores
boedistas preconizavam uma identificação entre a matéria de seus relatos e a condição social
dos autores, que “La continuidad entre la experiencia vivida y su representación por la
escritura garantiza la autenticidad de la literatura de izquierda”
28
. Ou seja, estes realistas
davam por mais autorizado o escritor que estivesse exposto aos mesmos problemas sociais
denunciados por intermédio de sua obra. Mas isso vai além: “Sólo el escritor que tiene una
conciencia clara del dolor humano, porque lo experimentó en su cuerpo y en su alma, puede
hacer que la literatura transmita la verdad de sus causas sociales y de sus posibles
remedios”
29
. O problema de valorizar a identificação do escritor com a matéria narrada, é que
ela rebaixa o valor da imaginação e limita o alcance da obra às vivências do escritor.
Giordano & Eujanián não exploram tanto o perfil dos periódicos ligados ao
grupo de Florida, mas eles mostram que os vanguardistas argentinos recusavam uma literatura
comprometida, ao entender que a arte não é um “vehículo”, mas um fim em si mesmo. O dado
se deixa ver no artigo dos críticos, pela resposta da Revista Martín Fierro (de Florida) a um
ataque dos boedistas: “‘una revista no es un lugar apropiado para expresar ideas políticas por
lo mismo que la literatura no tiene que ser un vehículo de la agitación ideológica’”
30
. Isto
significa que, enquanto os vanguardistas desejavam uma reforma estética; os boedistas
8
trabalhavam em prol de uma reforma social. Assim, Giordano & Eujanián observam que os
enfrentamentos não se sustentaram por muito tempo, pois não havia “presupuestos estéticos
compartidos”
31
. As concepções de arte eram tão distintas que terminaram por inviabilizar a
discussão entre os grupos. No tocante aos objetivos dos grupos e às visões de arte opostas, a
dupla de críticos coincide com Olea Franco e Gramuglio, mas avançam com dados pontuais,
ao perceber o motivo pelo qual cessam as discussões.
Em primeiro lugar, estes pressupostos auxiliam a identificar uma oposição
fundamental dentro do conto: arte pela arte vesus arte engajada. Ademais, em seu leque
próprio, abrangente e simbólico, de causas e compreensões, veremos que o conto elabora a
interpretação de uma dessas atitudes perante a literatura. Em segundo, eles auxiliam a
diferenciar o autor do personagem jovem de si mesmo - realista, engajado e biografista, que
aparece no conto. Os fundamentos lembram que o realismo foi a tendência dominante na
Argentina, nas quatro primeiras décadas do século XX, sendo questionado apenas pelos
escritores vanguardistas reunidos em torno da Revista Martin Fierro, na qual Borges
colaborava. Esse confronto se expressa na polêmica entre o grupo realista de Boedo e o grupo
vanguardista de Florida. Contudo, Beatriz Sarlo indica que ambos os grupos aspiravam a uma
literatura criollista, representativa do nacional
32
. Isto significa, que mesmo dentro da
vanguarda, entre suas páginas mais simbólicas e suas páginas mais verossímeis, o realismo
ainda tinha campo de atuação. Portanto, é compreensível que os ensaios borgeanos da década
de trinta exibam críticas à escola mais antiga. Nessa época, Borges é um jovem escritor,
deparando-se com um, já consagrado, e hegemônico, Império Realista.
1.2. O JOVEM BORGES E O REALISMO, O ENGAJAMENTO, O BIOGRAFISMO, E A
METÁFORA ULTRAÍSTA NA DÉCADA DE VINTE.
1.2.1. O Primeiro Jovem Borges
A crítica da literatura borgeana costuma falar em um “jovem Borges”
33
,
quando na verdade, mesmo em sua juventude, dois momentos bastante nítidos. O primeiro
se concentra no período de 1918 a 1921. São quatro anos, mas geram um conjunto que não é
desprezível. São muitos textos críticos, vários manifestos, traduções, prosa poética e quase
9
trinta poemas. Enquanto vive em Genebra e na Espanha, ele se mostra interessado e,
influenciado em seus primeiros poemas, pelo movimento expressionista
34
. Na Espanha adere
ao ultraísmo, escrevendo diversos manifestos para o grupo. Assim, o ‘primeiro jovem’ é um
escritor de tendências vanguardistas, que chega a participar de um texto conjunto de escritura
automática. Como costuma ocorrer nos manifestos da vanguarda, o ‘novo’ é sua palavra de
ordem nestes textos. O tom às vezes é agressivo e irônico, e no entanto, a linguagem já se
assemelha à utilizada nos ensaios maduros. Parece estar em perfeita sintonia com o
movimento europeu de renovação estética que ganha força nestes anos. Portanto, este é um
Borges para quem, a arte está ligada aos avanços estéticos; para quem a forma e as técnicas
são aspectos centrais da produção artística.
Ao que indicam seus textos críticos da época, ainda antes de seu regresso a
Buenos Aires, Borges possuía idéias formadas a respeito do realismo. Em “Réplica”, de
1920, respondendo a ataques ao grupo ultraísta, no qual participava, afirma não desejar que
sua arte seja um reflexo da realidade
35
. Parece uma formulação que visava a atender aos
propósitos daquele texto específico, isto é, responder ao artigo de um colunista que alegava
nada entender dos poemas do grupo, mas nela surge uma atitude. Com tal resposta
demonstra não se importar com uma arte de compreensão imediata. Em “Contra Crítica”, do
ano seguinte, a formulação é mais pessoal, quando ele põe empenho em demonstrar que a arte
não depende do ambiente, mas ‘deve tudo’ a seu criador. Morando na Espanha, Borges sai em
defesa de um pintor, cuja arte não tinha recebido a aprovação dos maiorquinos - um crítico
comenta, que com tão lindas paisagens no local, o pintor deveria ter sido bem sucedido em
seus quadros. Ao que Borges retruca: “Como si lo importante fuese el tema tratado y no el
ángulo de visión desde donde el artista – redimido y demiúrgico – atalaya la vida”
36
. Observa-
se que ele preconiza o tratamento artístico da idéia e não a temática.
No manifesto ultraísta de 1921, ele e os companheiros distinguem duas
estéticas: a ativa dos prismas”, na qual “el arte se redime, hace del mundo su instrumento, y
forja más allá de las cárceles espaciales y temporales su visión personal”; e a estética
“passiva dos espelhos”, na qual “el arte se transforma en una copia de la objetividad del
medio ambiente o de la historia psíquica del individuo”
37
. Ou seja, neste manifesto fica clara
sua rejeição ao romance psicológico e à estética realista. Em segundo, percebe-se nesta
época o desejo de uma estética ativa, de elaboração da realidade: ele não quer seguir a vida,
mas ao contrário, quer que a vida se encaminhe na direção dos significados que propõe.
Outro exemplo desta opção está em “Crítica del Paisaje”, de 1921, quando
Borges vai expor sua visão de que a cultura se interpõe entre o escritor e a natureza: “El
10
paisaje del campo es la retórica”
38
. Ele deixa entender que as reações ao que vê, já estão
previamente condicionadas por suas leituras anteriores. Afirma que, “La palabra paisaje es la
condecoración verbal que le otorgamos a la visualidad que nos rodea, cuando ésta nos ha
untado con cualquier barniz conocido de la literatura”
39
. Esta é a atitude do jovem que escreve
Fervor de Buenos Aires. Segundo Sarlo, mais do que cantar a cidade no tempo passado,
Borges inventa uma cidade, baseando-se em livros e tradições familiares, na qual a
imaginação e as reminiscências são primordiais
40
. Esse é o princípio de uma idéia que aparece
no conto “El Otro”, a de que a arte se alimenta em grande medida da própria arte. Lembra
ainda o labirinto intertextual das maduras narrativas borgeanas, com infinitas alusões.
Essas discussões parecem surgir também em função do expressionismo. Em
uma nota de 1920, ele percebe que, se esta vanguarda, em princípio primava por superar a
realidade ambiente, estava atravessando uma transformação, e havia autores que lhe
conferiam um caráter “dostoievskiano, utópico, místico y maximalista”
41
. Ele percebe que a
Revolução Russa começava a interferir nas propostas iniciais do grupo, gerando uma
aproximação às temáticas sociais. Contudo, ainda não se posiciona de todo, limitando-se a
registrar essa mudança. Contudo, em “Horizontes”, de outubro de 1921, ao analisar uma
antologia de textos expressionistas, Borges parece firmar uma postura talvez crucial na
definição de suas relações com o realismo. Ele se desgosta com os poemas que tentam
documentar a guerra: “Eso de concederle más importancia a los escritos que reflejan la
realidad visible y palpable […] deriva de los enciclopedistas y de las teorizaciones de Zola, y
se basa en el absurdo de suponer que un árbol o un tranvía son más reales que yo que los
comprendo”
42
. O realismo, dentro desta argumentação, fica assentado como estética alheia,
fundada pelo outro. Ademais, nota-se que os questionamentos filosóficos permitem que o
jovem Borges se resguarde dessa faceta realista, que surgia dentro de uma vanguarda. Em
contrapartida, neste texto, comparece aquele que será um rasgo marcante de sua futura
produção: “En el fondo, lo visto, lo sufrido, lo imaginado y lo soñado son igualmente reales,
es decir, existen”
43
. É o começo de um mago que sonha um homem; é o começo de objetos
dos Tlön que podem chegar à realidade de “Borges”; ou de um Borges que tanto pode ter
sonhado, lido, ou encontrado seu outro “eu”.
Quanto ao biografismo, acontece algo semelhante. Ainda em “Réplica”
(1920), afirma que ele e os companheiros não desejam uma arte autobiográfica
44
. Um passo
decisivo é dado em “Anatomia de mi ultra”, de 1921. Como é possível inferir do próprio
título, percebe-se que, de modo ‘romântico’, o escritor deseja definir bases pessoais
para seu
trabalho, dentro da proposta ultraísta, à qual se achava ligado nesta época. Retoma a divisão
11
anterior das estéticas e torna ainda mais claro seu entendimento de ambas. Na estética dos
prismas, o ambiente é instrumento do indivíduo; na estética dos espelhos, o indivíduo se
abandona ao ambiente
45
. Portanto a definição, quanto a expor suas vivências pessoais na
poesia, está pautada pelo mesmo critério que o afasta do realismo neste momento: a realidade
não pode ser mais que um ponto de partida. Assim, é compreensível que em seus poemas
desta época, ele se ponha a imaginar os aviões de guerra por sobre as catedrais e as trincheiras
– sobre as quais lera muito nos textos expressionistas, mas nunca vivenciara, ou vira de perto.
Em seu artigo, com certa audácia para um jovem escritor, ele aparece, com a proposta de que,
se os poetas pensam expor emoções advindas de sensações causadas por agentes reais, ele
desejaria tentar desse ponto em diante, uma emoção livre de causas
46
. Este último propósito
deve ser modulado, pois em textos posteriores, ele não despreza a emoção genuína como
fonte dos poemas. O importante é que assim, está aberta a possibilidade de uma poesia que
não necessita de estímulos do ambiente.
Desde a Espanha, Borges já vinha definindo seus conceitos de poesia
“verdadeira” ou “mentirosa”, e com algumas variações, ele seguirá apresentando este critério
ao longo dos artigos da década de vinte. Verdadeira é a poesia causada por uma emoção
genuína ou que contém uma “intuição verdadeira” na qual uma idéia definida que se
deseja traduzir. Mentirosa é a poesia que se deixa levar pela sonoridade e continua, quando a
idéia acabou; ou a poesia que está constituída apenas de um jogo verbal, pois não possui
qualquer sentimento ou idéia verdadeira que a sustentem
47
. Em primeiro, cabe notar que, se a
poesia pode sustentar-se sobre uma idéia, o sujeito poético pode estar personificando ou
fingindo vivenciar pensamentos alheios à semelhança do que acontece com personagens de
Dostoievski, segundo a polifonia de Bakhtin
48
. Portanto, a julgar destes textos, muito jovem,
Borges percebe que o eu-lírico tem autonomia em relação ao autor e encontra uma
interessante utilização deste lugar ficcional: explorar um gênero marcado pela emoção e
subjetividade, para a poetização de idéias e conceitos. Anos mais tarde, por este trabalho, sua
poesia seria rotulada de “fria” pela crítica. Em segundo, se a lírica borgeana já aspirava a um
desprendimento de laços obrigatórios com a realidade, nesta época, ela parece ter aberto
caminho para que o mesmo viesse a ocorrer em sua prosa
49
.
Uma vez que se afasta do realismo, é natural que Borges recuse o
engajamento. O primeiro índice desta recusa aparece no momento em que expõe as
convicções do expressionista Lothar Schreyer: “‘No hay arte ético, no hay arte político. No
existen leyes en el arte. Cada obra de arte trae consigo su ley’”
50
. Apesar de não manifestar-se
sobre estas palavras, com a citação, demonstra concordância com a postura de não fazer da
12
arte um meio para fins ideológicos. Ao contrário disso, o jovem Borges quer reverter esse tipo
de relação, fazendo do ambiente um meio para sua arte a finalidade última. Também vimos
que ele não demonstra apoio aos expressionistas que se voltam para uma poesia que registra a
guerra. O dado poderia ser problemático, porque em Ritmos Rojos, Borges faz alusões, em
grande parte dos poemas, e até mesmo no título, à guerra e à Revolução Socialista.
Carlos Meneses vê nisso um significado ambíguo. Para ele, o autor estaria se
remetendo não a Revolução Russa, mas também à Primeira Guerra Mundial. Contudo,
embora o crítico titule seu capítulo “poemas sobre tema político”, ele reluta em afirmar que
Borges estivesse apoiando a Revolução, uma vez que, a seu ver, os poemas apenas insistem
em palavras como “rojo” o “Rusia”
51
. Emir Rodríguez Monegal também não identifica um
propósito de denúncia ou vivência efetiva das conseqüências da guerra. Ao contrário, acredita
que, vivendo em uma tranqüila cidade de Genebra e depois nas lindas praias da Espanha, estes
poemas sobre a guerra podem derivar da influência de Whitman, e da leitura dos
expressionistas - para estes, realmente um tema central e mesmo uma vivência para alguns
52
.
Borges mesmo não se depara diretamente com a guerra.
Em sua juventude, Borges admirava Romain Rolland. Contudo, sobre este
autor que costumava expor suas opiniões socialistas, ele declara: “Yo, íntimamente, desconfío
de los hombres de macroscopio, órgano al cual propende Rolland en su última novela. Del
alambre de a de su prosa cuelgan unas sonoras entidades que son la Humanidad, los
Precursores, la Fuerza [...]
53
. No artigo, ele duvida da sinceridade das preocupações sociais
no romance de Rolland, pelo caráter abstrato que o escritor lhes confere. Sugere que ele
defende essas entidades coletivas - o povo, a massa - sem possuir um genuíno apreço por sua
causa. Com isso, acreditamos que a poesia de guerra, na qual Borges aposta em sua juventude,
foi predominantemente um tema literário, emprestado desses poetas que seguia de perto.
Inclusive porque, longe do documental, eles parecem buscar uma montagem de imagens os
soldados, a igreja, as baionetas, a hélice – que o leitor custa a articular em sua imaginação.
Por outro lado, o ‘primeiro jovem’ Jorge Luis Borges real foi, como o
personagem jovem de “El Otro”, um defensor das metáforas novas: em “Réplica” defende o
ultraísmo de um ataque; Em “Ultraísmo”, tem a mesma iniciativa; escreve “Manifiesto del
Ultra”; procura um perfil pessoal para seu ultraísmo em “Anatomia de mi ‘Ultra’”; em
Buenos Aires, seu primeiro texto é “Ultraísmo”; e no mesmo ano sai um segundo
“Ultraísmo”, com alguns poemas dos novos adeptos e uma introdução geral ao movimento
54
.
Portanto, Borges teve uma participação ativa na corrente e, logo que chega à Argentina, foi o
difusor da nova estética. À diferença do que diz o tradutor Nestor Ibarra, como constatado por
13
Olea Franco, o ultraísmo era parte integrante de seus três primeiros livros de poemas, e
Borges só vai abandoná-lo gradualmente, até o final da década de vinte
55
.
Torna-se visível nestes textos que quando o escritor chega a Buenos Aires,
ele está impregnado das preocupações vanguardistas com a renovação estética. Ademais,
para ele que voltava da Europa com as últimas concepções artísticas, o encontro com o
Realismo, na Argentina, deve haver produzido uma sensação de atraso no panorama local
de uma repetição do século XIX. Seus textos desta fase demonstram que nela o autor optara
por uma literatura de elaboração da realidade; que divisara a possibilidade de valer-se do eu-
lírico enquanto um lugar ficcional; e que, mediante seus raciocínios da época, ele não pensava
em associar sua literatura às causas sociais. Ou seja, se Borges localiza a figura do jovem
Borges do conto, no ano de 1918, vemos que as idéias deste personagem não podem ser
remetidas às suas concepções reais no mesmo período. Este dado reforça a possibilidade de
que, de um modo simbólico, por alusões, o autor finja reportar-se à geração literária dos anos
vinte para gerar uma reflexão mais ampla sobre a arte. Por outro lado, a menção ao ultraísmo,
e a seus poemas de Ritmos Rojos, no corpo da narrativa, fazem pensar que ele tenta incluir-se
dentro dessa representação da juventude de vinte, que ele critica no conto. No entanto, se o
‘primeiro jovem’ real está muito perto das concepções do Borges maduro, para que haja
qualquer ligação entre ele e o personagem mais novo da narrativa, o ‘segundo jovem’ Borges
revela alguns pontos de contatos com seu homônimo ficcional.
1.2.2. O Segundo Jovem Borges.
Depois da estadia na Europa, Borges chega a Buenos Aires. A partir de
então, seus textos, ensaios e poemas, visivelmente se alteram. Saem os poemas de guerra e no
lugar deles entra a poetização de Buenos Aires. Os ensaios assumem outra feição: o
criollismo. Olea Franco entende que a influência do Centenário Argentino ainda é muito
vigorosa neste período, fazendo com que Borges, à semelhança de muitos outros autores,
tenha entrado no programa de redefinição da identidade nacional: “Borges se inscribe con
plenitud en una corriente nacionalista que pretende redefinir lo criollo y refundar mitos que
los sustenten, es decir, otorgarle al criollismo una nueva funcionalidad en la Argentina de la
década del veinte”
56
. No entanto, o processo não é simples, pois como vimos, Borges chegava
da Europa ao dia com as correntes de renovação estética vanguardistas (expressionismo e
14
ultraísmo), e quando chega à Argentina ele se depara com o realismo. Antes, o tema de seus
poemas havia sido uma guerra na qual não estivera, e agora desejava a poetização do país no
qual vivia, no momento em que se abria uma corrida por novas representações do mesmo. Se
Borges precisava encontrar soluções estéticas adequadas para gerar essa representação, as
poéticas realistas já possuíam um modelo estético consolidado.
Muitas vezes este segundo Borges não se parece ao anterior, ou ao Borges
maduro
57
. Ele mostra desconsiderar recursos, dos quais se utilizaria em sua futura poética, ao
dizer que, “ni lo paródico, ni lo alegórico son valederas manifestaciones del arte [...]”
58
.
Quando em tantos ensaios posteriores ele trata de detectar os precursores, em um dos textos
da época, aparece um olhar negativo sobre esta relação - “hablar de precursores es suponer
que Dios es todavía un frangollón de almas que no acierta con la versión definitiva, desde el
comienzo...”
59
. Quando em seus ensaios da maturidade, a técnica tem a primazia nas análises,
em seu último livro de ensaios na década de vinte, ele começa a preconizar o conteúdo,
afirmando que, para o grande leitor, a cnica é invisível, e ademais, “Mala señal es que
interese mucho una técnica: si alguien se fija demasiado en nuestra voz, en nuestra manera de
articular, en nuestra elocución, no ha de interesarle lo que decimos”
60
. Ou seja, está longe do
virtuoso Borges maduro, que enfatiza o narrar, ao invés do mostrar. Portanto, este momento
contrasta com o anterior e ainda contém concepções que destoam dos ensaios e realizações
ficcionais da poética madura. No entanto, as convicções do primeiro Borges não desaparecem.
Nestes ensaios, há trechos em que são substituídas por posturas mais extremas, mas que serão
suavizadas com o tempo; como há trechos em que ambas as tendências convivem em tensão
61
.
Assim surge o que pareceria ser um “segundo”, ou um outro Borges, o qual
vamos observar a partir de seus três primeiros livros de ensaios. A diferença marcante é o
criollismo. Se na Europa, ele buscava comentar a produção contemporânea de vanguarda, na
Argentina, os textos em que analisa grandes nomes da literatura mundial, dividem espaço com
a revisão do cânone argentino, especialmente com análises da literatura criollista argentina e
uruguaia. O fato é notável até mesmo na linguagem. Ele utiliza neologismos no primeiro
livro, mas nos três livros de ensaios da época, os argentinismos são abundantes. Chega mesmo
a espanholizar os nomes de autores estrangeiros em Inquisiciones. Contudo, segundo Olea
Franco, os ensaios do jovem Borges são contraditórios neste aspecto, pois tanto preconiza a
cor local, e ela é visível em seus poemas da época, quanto admite que ela é prescindível, em
determinados textos
62
. Ademais, no segundo livro, ele se mostra aberto à tentativa de um
criollismo universal. Desta maneira, sob a capa desta proposta nacionalista, seus ensaios
assumem um caráter bastante distinto ao que possuíam seus textos publicados na Europa. No
15
entanto, não utilizaríamos o termo “contradição” para pensar de modo geral este período.
Afinal, trata-se de um autor, cuja inconstância neste momento pode ser parcialmente atribuída
à sua própria juventude, e cuja fase de tanteios pessoais, longe da respaldada experiência com
as vanguardas européias, acontece diante das questões de representação nacional - quando
sabemos que vários escritores argentinos estavam tentando encontrar soluções para a mesma.
Com isso, a palavra mais adequada para o período, a nosso ver, seria experimentação.
Ao menos quanto ao engajamento, parece haver uma continuidade entre o
primeiro e o ‘segundo jovem’ Borges. Apenas dois dados nos mostrariam um jovem
interessado em apontar os problemas de seu país. O primeiro é o de que no conto “El Otro”,
quando o jovem se diz um “poeta de seu tempo”, o narrador nos revela, à continuação, as
intenções panfletárias do mesmo. De modo semelhante, em um ensaio de Inquisiones, para
exaltar Thomas Browne, o jovem Borges assevera que “la mayor grandeza de un hombre
estriba en responder con su tiempo y en ocuparse con los afanes y lizas que son populares en
él”
63
. Vê-se que este discurso está longe de um posicionamento bem delimitado por algum
tipo de convicção política ou humanitária. Assim, o comentário parece estar relacionado ao
desejo de mostrar-se um escritor contemporâneo, como confessaria anos mais tarde
64
. O
segundo dado é uma crítica ao governo de Rosas: Se perdió el quieto desgobierno de Rosas;
los caminos de hierro fueron avalorando los campos, la mezquina y logrera agricultura
desdineró la fácil ganadería [...] Suya es la culpa de que los alambrados encarcelen la pampa,
de que el gauchaje se haya quebrantado [...]
65
. Olea Franco se debruça sobre esta passagem e
lembra que, era uma espécie de “lugar comum” para os escritores do Centenário, acusar Rosas
de ter destruído o mundo criollo
66
. De fato, na continuação desta passagem, o jovem escritor
vai citar dois conceitos ligados a essas discussões: “argentinidad” e “progreso”. Ademais, os
ensaios do período não debatem a conduta de dirigentes políticos ou problemas sociais da
Argentina.
A recusa ao engajamento, também aparece em “La tierra Cárdena”. Borges
se mostra favorável a Hudson, porque este “no sufre la política y dice de ella que no es sino
una intromisión ciudadana en la vida rural. Lo mismo me dijo Spengler anteanoche”
67
. Além
das idéias de Spengler, o motivo para negar o compromisso, dentro dessa fala, em que Borges
concorda com Hudson, é o de que ele não encaixaria bem na literatura criolla. Parece que
seria complicado colocar questões políticas na boca de um personagem do campo; até porque,
representado neste ambiente, torna-se mais difícil justificar seu envolvimento, em questões
debatidas nos ambientes urbanos. Ademais, linhas adiante, Borges examina um trecho
engajado do Martin Fierro, e opina tratar-se de uma “palinodia desdichadísima”, “puro
16
sarmientismo”
68
. Deste modo, compreende-se que o ‘segundo jovem’ segue tão avesso à
exposição de opiniões políticas dentro da obra literária, como o fora em seus anos anteriores.
na questão da metáfora, de fato, o conto parece buscar uma
ficcionalização das experiências literárias de juventude, tanto no tocante à forma das
metáforas, as ultraístas; quanto no tocante ao tema – expor emoções pessoais. Neste aspecto, a
caricatura montada na narrativa oferece correspondências com as duas fases do jovem Borges,
que o ultraísmo (forma) consta de ambas. O ‘segundo jovem’ declara em Inquisiciones sua
rejeição à metáfora tradicional - “Ya no basta decir a fuer de todos los poetas, que los espejos
se asemejan a un agua”; ao passo que não esconde sua preferência ultraísta - “hay que mostrar
un individuo que se introduce en el cristal y que persiste en su ilusorio país [...]
69
. Na
verdade, desde que chega à Buenos Aires, Borges começa gradualmente a encontrar objeções
a este tipo de metáfora, que o levam a abandoná-la ao final da década de vinte. Este fato já foi
explorado pela crítica, e por isso, vamos nos ater ao único motivo para essa transformação que
talvez esteja aludido no conto, e no qual é possível entrever seu pensamento da época sobre o
assunto. Em “Otra vez la metáfora”, ele discorda de Rémy de Gourmont, o qual alega que
quase todas as palavras são metáforas, em virtude da distância entre elas e seu sentido
etimológico. Borges protesta que as palavras comuns não podem ser metáforas, uma vez que
“no son advertidas por nadie”
70
. A nosso ver, se o enfileiramento de imagens faz com que a
certa altura o leitor perca os termos da comparação, este seria um dos motivos para deixá-las.
No que tange ao tema das metáforas, dissemos anteriormente que o
‘primeiro jovem’ queria uma idéia verdadeira ou uma emoção genuína por trás da poesia.
na Argentina, o ‘segundo jovem’ conseguia três benefícios ao seguir com este critério. O
ultraísmo, que segundo os manifestos de Borges, recebia freqüentemente novas adesões,
parecia estar se tornando uma fórmula fácil, o mero enfileiramento de imagens. Assim, o
postulado poderia limitar, de certo modo, o acesso geral e irrestrito a essa “inovação” que ele
trouxera da Europa. Ademais, o critério fazia com que o ultraísmo tivesse uma diferença em
relação ao modernismo de Leopoldo Lugones, o qual também tinha, como um de seus pilares,
a utilização da metáfora. Além disso, nestes anos, Borges tentava fórmulas para classificar,
em verdadeiro e falso, o criollismo. Assim, pedir que os poemas tivessem uma autêntica
emoção criolla era encontrar um modo de autorizar sua escritura e restar validade aos poetas
que se apoiassem na mera exposição da cor local. Seja como for, o jovem Borges passa
gradualmente a respaldar a poesia: o ‘primeiro jovem’, na emoção genuína; o segundo
também, mas chega a vindicar relações com sentimentos ou experiências pessoais no meio da
década.
17
O ensaio que apresenta esta concepção é “Profesión de fe literaria”, em El
tamaño de mi esperanza. Seus poemas recebem ataques de dois críticos, e Borges justifica
seus versos, declarando que eles tinham relação com suas memórias particulares e com sua
história familiar
71
. Em sua defesa, ele faz uma generalização e afirma que “Toda poesía es
confidencia, y las premisas de cualquier confidencia son la confianza del que escucha y la
veracidad del que habla”(grifo meu)
72
. Assim, efetua uma divisão entre dois tipos de
escritores: “El destino revelado puede ser fingido, arquetípico (novelaciones del ‘Quijote’, de
‘Martin Fierro’, [...]), o personal: autonovelaciones de Montaigne, de Tomás De Quincey, de
Walt Whitman, de cualquier lírico verdadero. Yo solicito lo último”(grifo meu)
73
. Observa-
se que o jovem Borges conta a Whitman e a si mesmo entre os poetas que nos participaram
suas vidas e sentimentos, através dos versos. Veremos que no conto aparece uma concepção
desta ordem, ligada ao personagem jovem. Concepção fugaz, porque produz um encontro
frontal com seu ensaio de 1932, “Nota sobre Walt Whitman”, em que ele se dedica a provar
que Leaves of Grass deve muito à tradição, e muito pouco ao biográfico.
Agora podemos justificar os benefícios que pouco dizíamos possuir a
classificação, poesia falsa/verdadeira. No mesmo “Profesión de Fe Literaria”, o jovem Borges
ressalta: “Que nadie se anime a escribir ‘suburbio’ sin haber caminoteado largamente por sus
veredas altas; sin haberlo deseado y padecido como a una novia; sin haber sentido sus tapias,
sus campitos, sus lunas a la vuelta de un almacén [...]”
74
. Pelas figuras criollas de que se
utiliza no trecho, é possível ver que ele está barrando o acesso a essas representações
nacionais para aqueles que, supostamente, não teriam uma experiência real do subúrbio ou o
sentimento autêntico, que ele diz possuir. De acordo com Olea Franco, “Borges refuta al
criollismo que entonces se practica, porque se ha convertido en pose más que en realidad
vivida”; ele percebe que em muitas obras, o nacionalismo consiste em “meras caretas o
máscaras del criollismo”, de modo que busca meios de distinguir o falso do verdadeiro
nacionalismo
75
. Com isso, Borges consegue gerar concepções que encarecem um criollismo
autêntico, desclassificando as obras que não o contém. Quanto ao Modernismo, segundo
Borges, as duas principais características da estética de Leopoldo Lugones, largamente
copiadas por sua geração dos anos vinte (a de Borges), eram a metáfora e a rima
76
. Desse
modo, quando neste ensaio, Borges chama a rima de “embustera”, e diz que ela gera um
“ambiente de engaño”
77
, o mesmo critério de arte genuína está sendo utilizado em desfavor do
Modernismo, com seus tantos continuadores. Assim, o biografismo parece uma solução
provisória desta segunda fase.
18
No entanto, se este parece ser um fenômeno isolado, ainda é possível
identificar alguns desdobramentos desta idéia em seu próximo livro, El Idioma de los
Argentinos. O jovem Borges costumava encarecer o nome de Quevedo em seus manifestos
ultraístas, como um antecessor ilustre desse tipo de metáforas. No entanto, no volume aludido,
ele põe reparo à obra de Quevedo, dizendo que este escritor não deveria ter utilizado
helenismos. Quevedo aludia ao mitológico rio Letes, e Borges censurava que “su actuación en
boca no helénica es de falsedad y desvirtúa lo autobiográfico, lo poético”
78
. Mais uma vez
parece ser a discussão do nacionalismo o que impulsionou este tipo de julgamento, que faz
parte destes livros juvenis. Outra questão que parece ser um desdobramento desta idéia, de
que a arte poderia ser justificada pelo autobiográfico, aparece em “Eduardo Wilde”. Trata-
se de um escritor que teve uma vida cheia de sucessos. Borges conta que Rojas tenta separar
vida e obra de Wilde entendendo que nele, a vida seria mais importante que a obra. Então o
jovem se pergunta: “¿Quién gustó jamás en la técnica de un escritor, algo que no fuese la
denunciación de la psicología de un hombre?”
79
. Ler na ficção, os rasgos psicológicos de um
escritor, é uma idéia estranha no conjunto da produção borgeana. No entanto, observa-se,
através destas citações, que o ‘segundo jovem’ Borges chegou algum dia a conceder
importância às ligações entre a vida e a obra poética de um autor.
Agora, vamos averiguar se o ‘segundo jovem’ Borges possui alguma ligação
com o realismo. Um artigo do período é bastante representativo da instabilidade em que
Borges se acha logo de sua chegada a Buenos Aires. Em La traducción de un incidente”, ele
interpreta a contenda literária entre o grupo de Gómez de la Serna e o de Cansinos-Asséns,
entendendo que eles representavam uma divisão fundamental entre duas essências literárias.
De um lado estaria De la Serna, “sumergido en la realidad [mas que] quiere desamarrarse de
ella”; e do outro, Asséns, “cuyas palabras lentes y eficaces oyen siempre la pluma” - sendo
comparados a Sancho e Dom Quixote
80
. Assim, se ambos são escritores vanguardistas e
desenvolvem, cada um, um trabalho peculiar neste sentido, no trecho citado, observa-se que a
diferença efetiva entre eles, para Borges, estaria no fato de que os escritos de Gómez de la
Serna partiriam da realidade, para alçar-se em sua elaboração. Sabemos que na Espanha,
Borges se junta ao grupo de ultraístas reunidos ao redor de Cansinos-Asséns
81
, e leva seu
utraísmo à Argentina. Curiosamente, neste artigo, Borges confere validade às duas propostas.
Uma das entradas para verificar se existiria alguma ligação entre os projetos
do “segundo Borges” e o realismo, seria o criollismo. Faremos um breve exame do tópico,
uma vez que Sarlo trabalhou a presença e a relevância deste aspecto na obra borgeana,
apresentando as soluções, através das quais este autor lida com o local. Sabemos que o
19
“‘segundo jovem’ Borges” desejava gerar representações para a nacionalidade argentina.
Declara, por exemplo, que “Nuestra realidad vital es grandiosa y nuestra realidad pensada es
mendiga”
82
. Embora no mesmo prólogo, ele afirme que se trata de um criollismo que deveria
alcançar o horizonte de suas especulações metafísicas, a declaração contrasta com suas
afirmações da primeira juventude. No tópico anterior, assinalamos que Borges censurara um
crítico, que acreditava que uma Maiorca tão bela merecia uma arte melhor de seus pintores.
Nesta declaração, de segunda fase juvenil, de modo análogo ao raciocínio do maiorquino,
Borges parece estar pensando nas possibilidades da arte em relação ao meio do qual ela surge.
Outra afirmação surpreendente no mesmo livro é a de que “De la riqueza infatigable del
mundo, sólo nos pertenecen el arrabal y la pampa”
83
. um evidente desgarramento
criollista. No entanto, a citação deixa claro que este Borges ainda não possui a maturidade do
autor de “El escritor argentino y la tradición”
84
, a quem não fazem falta os temas locais para
ser argentino. Por outro lado, se em El tamaño de mi esperanza, ele afirma que não quer abrir
mão do local, tampouco do metafísico e universal, este é um sinal de que algumas premissas
basilares de sua futura estética já estão despontando neste momento.
Estes exemplos não significam absolutamente que o jovem Borges pensasse
retratar a Argentina. Na verdade, seus ensaios indicam apenas que ele está indagando a
cultura local, em busca de seus mitos e possíveis símbolos. Observa-se que o projeto de
criação de representações nacionais, ou ao menos, a forma em que Borges o toma, é
semelhante ao projeto brasileiro ao tempo do Romantismo, em termos de idealização da
realidade. Em “La pampa y el suburbio son dioses”, declara que: “Al cabal símbolo
pampeano, cuya figuración humana es el gaucho, va añadiéndose con el tiempo el de las
orillas: símbolo a medio hacer”
85
. É possível notar que, quando se refere à pampa, ou quando
menciona o espaço do subúrbio, ele fala em “símbolos”. Para o gaucho, utiliza a palavra
“figuração”. Portanto, Borges está propondo representações que possam recobrir Buenos
Aires, mas entende-se que a questão, para ele, consistia em encontrar símbolos e visões mais
bem representativos e idealistas de seu país. Pode-se lembrar a citada avaliação de Sarlo
sobre o Fervor de Buenos Aires. Segundo ela, Borges mais idealiza um passado argentino, do
que o retrata. Outro dado a favor desta compreensão, está no próprio entendimento do autor,
sobre o referido volume, em sua Autobiografia: “o livro era essencialmente romântico,
embora fosse escrito num estilo bastante despojado e abundasse em metáforas lacônicas”
86
.
Com isso, vemos que o projeto borgeano de representação nacional, nos ensaios, ou nos
poemas da época, é idealista. Não há realismo, portanto.
20
Contudo, outras preocupações do jovem escritor revelam alguns tênues
pontos de contato, com determinadas atitudes, concernentes ao realismo.
Olea Franco afirma que, enquanto o jovem busca a expressividade, a madura
estética borgeana em geral recorre à alusão
87
. De fato, este ‘segundo jovem’ afirma que “El
arte es expresión y sólo expresión”, e “lo no expresivo es inartístico”
88
. Como veremos em
“La Postulación de la Realidad”, o escritor de todo expressivo (o romântico) é aquele que
busca uma representação plena da realidade
89
. Assim, o maduro Borges, que escreve este
ensaio se posiciona ao lado dos escritores clássicos, ao defender um método alusivo para a
criação literária. Ao contrário disso, no ensaio, “La simulación de la imagen”, o jovem Borges
preconiza o romântico, com sua expressividade.
Outro aspecto, relacionado ao anterior, reside no tipo de realidade literária
pretendido. Veremos em “La Postulación”, que os clássicos constroem realidades literárias
vagas, imprecisas; ao passo que os românticos (e os realistas dentre eles) querem exposições
precisas, para obter uma plena representação da realidade. Neste texto, o maduro Borges se
inscreve no clássico, dando a entender que se manejaria com realidades imprecisas. Ao
contrário disto, o jovem Borges afirma que “el deber de toda imagen es precisión”, ainda que
especifique, que esta não deve ser a mesma precisão encontrada nos textos de história ou no
jornalismo
90
. Portanto, em “La Postulación de la imagen”, o ‘segundo jovem’ mostra que
deseja quadros precisos, mas artísticos. Novamente estão em lados opostos o velho e o jovem.
Ainda em La Postulación”, o maduro Borges
91
coloca o recurso dos
pormenores circunstanciais entre as técnicas clássicas, elogiando-o. o jovem Borges,
exemplicando a (indesejada) postulação jornalística da realidade, lembra que, na literatura,
“Daniel Defoe parece haber sido el iniciador de esos pormenores de horario, de esas
vanidades de cartógrafo o de sereno: equivocación copiadísima”
92
. Desse modo, ele recusa a
técnica de Defoe, por menos artística e muito batida. Mais adiante pretendemos demonstrar
que o maduro Borges se utiliza deste recurso. Assim, o recurso é criticado na juventude, mas
será recuperado na maturidade, na condição de modelo eficiente. O mais importante nestes
pressupostos é que a preferência do ‘segundo jovem’ Borges pela “precisão” o aproxima da
formulação geral do realismo, na qual a realidade literária é mais detalhada e concreta.
Um último aspecto é a atenção conferida à descrição em alguns destes
ensaios. Como dito, a obra borgeana da maturidade está marcada pela alusão. Contudo,
percorrendo os ensaios juvenis deste autor, Olea Franco encontra neles uma especial devoção
ao descritivo. Cita um texto de Inquisiciones, de 1925; e dois de Discusión, de 1932
93
, nos
quais o escritor enaltece Ascasubi e critica Hernández através desta visada. Em um dos textos
21
de Discusión, Borges se queixa de que Hernández não mostre os bailes; de que não mencione
se os fatos ocorrem durante o dia ou pela noite; e de que não especifique o pêlo dos cavalos
94
.
No ensaio de Inquisiciones, ele elogia e cita “una pintura de alba” e uma “descripción de la
correría hostil de los indios”, “una túpida cerrazón en el alba” e a “figuración del cantor que
va de rancho en rancho”, em Ascasubi
95
. O crítico argentino, Carmelo Bonet, assevera que
Ascasubi é um poeta “realista por donde se le mire”, e na obra, sobre a qual Borges tece
comentários positivos, o crítico entende haver “pequeños cuadros que proyectan fielmente el
vivir campesino de entonces”
96
. Esse é o aspecto pelo qual, o jovem Borges mais se aproxima
ao realismo e ele aparece justamente quando está julgando as representações do nacional, na
literatura argentina. Com isso, os dados mostram que a busca de uma literatura criollista não
conduz Borges ao realismo, mas parece ter gerado uma tensão primária nos trabalhos juvenis.
Podemos citar brevemente três problemas que essa adoção do criollismo
provocam na obra juvenil. Borges declara que Lugones “es el ejemplo menos lastimoso del
trance por el cual hoy pasamos todos: el del criollo que intenta descriollarse para debelar este
siglo. Su dilemática tragedia es la nuestra”
97
. Assim, se como anteriormente assinalamos, esse
jovem Borges queria mostrar-se um escritor contemporâneo, neste caso o criollismo o coloca
em um dilema: como mostrar-se um escritor de seu tempo, e ser criollo, quando os ícones
desta tradição (a pampa sem cercas, o gaucho andarilho) se remetiam a um período anterior
da história argentina? Ademais, existe o problema gerado pelos temas. A pampa era o espaço
clássico das representações nativistas. Borges publica Fervor de Buenos Aires, em que poetiza
um espaço urbano, mas pode-se observar a admiração e o apreço pelo campo, em sua leitura
do criollista uruguaio Leandro Ipuche, quando ele diz que “he padecido la verguenza de mi
borrosa urbanidad en que la fibración nativa es ¡apenas! una tristeza noble ante el reproche de
las querenciosas guitarras”
98
. No entanto, esta é a leitura de um escritor por outro. O escritor
citadino que publica poemas em louvor de sua cidade, rendendo homenagens ao escritor que
tematiza a pampa, parece indicar a incerteza em sua aposta por uma representação criollista
marginal los arrabales, quando a pampa era o espaço consagrado no Martin Fierro e na
maioria da literatura gauchesca
99
. Ou seja, ele tem de resolver o problema do espaço ficcional.
Uma terceira dificuldade é a questão da experiência pessoal, que já foi mencionada no assunto
das metáforas. Borges tenta estabelecer um verdadeiro e um falso criollismo. Assim, alegar
que suas metáforas estão respaldadas em um genuíno sentimento criollo, teoricamente pode
ter sido uma saída para a questão. No entanto, essa e outras questões, que envolvem a
representação do nacional não se resolvem facilmente para ele.
22
Por isso, um último texto que parece fundamental, para entender a
transição entre os trabalhos juvenis e a obra madura. Em “La inútil discusión de Boedo y
Florida”, de 1928, Borges parece, tanto quanto em sua Autobiografia, menosprezar o assunto
desde o título
100
. Olea Franco alerta que se existem os textos que comprovam a polêmica, é
porque ela existe, e Borges tem uma participação central nesta querela
101
. No supracitado
artigo, o escritor parece querer generalizar o problema, fazendo do grupo de Boedo, emblema
da cultura popular; e do grupo de Florida, representante da arte culta. É como se fossem
meros símbolos de posições intemporais. Contudo, o viés específico e polêmico, envolvendo
dois grupos bem definidos em seu tempo, se revela quando Borges vindica o status de
literatura criollista para os escritores de Florida. Sabemos por Sarlo que, na verdade, os dois
grupos se acusavam de cosmopolitismo, porque para ambos, o criollismo era um valor”
102
.
Assim, duas questões esboçam o problemático de suas relações com o outro grupo.
A primeira é a de que, neste texto, Borges faz uma verdadeira genealogia do
que ele considera escritores representativos da literatura Argentina: Echeverría, Sarmiento,
Estanislao del Campo, José Hernández, os autores dos vários Santos Vega, Mansilla, Ramos
Mejía e Carriego. Comenta que esses escritores se acham ligados pela utilização de temas
populares, enumera então os seus próprios temas da época e acrescenta: “Esa comprobación
[de que uma unidade entre seus temas e os temas da tradição Argentina] parece
autorizarnos a decidir por Boedo [...]
103
. Na Autobiografia, de modo direto, ele declara que
deveria ter estado no grupo boedista
104
. Ou seja, em suas declarações, o que o liga à grande
tradição dos escritores argentinos são seus temas. Eles o autorizam a permanecer junto destes
nomes. No entanto, ao assumir esta tradição, seus trabalhos iriam distinguir-se do grupo de
Florida – ao qual se juntura pelas revistas, e estaria próximo do grupo rival – o de Boedo.
A segunda questão, é a de que, a despeito das estratégias, das quais Borges
lança mão para demonstrar a autenticidade de seu nacionalismo, ele não consegue isentar-se
de ataques e críticas. Se sua temática faz com que seus trabalhos se pareçam aos do outro
grupo (o boedista), “una segunda [razón] (no menos obligatoria de fácil) se interpone para
prohibírnoslo”. O tipo de cobrança é perceptível no argumento que utiliza para defender-se.
“También los escritores deben contar. [Entretanto] Ni un solo gaucho ha colaborado en
nuestra literatura ‘gauchesca’”
105
. Com este argumento, ele tenta mostrar que os escritores da
gauchesca foram homens cultos, que puderam ter contato com os ambientes simbólicos, a
pampa e o arrabal, mas não foram efetivamente nem gauchos, nem suburbanos. Percebe-se,
assim, que outros escritores o acusam de não ter uma verdadeira vivência criolla.
23
Borges faz parte, na década de vinte, do grupo de renovação estética, grupo
o qual, (possuidor de convicções semelhantes às que Borges trouxera da Europa, e das quais
ele levemente se afasta em nome de suas intenções nacionalistas), vai questionar e será
questionado pelo grupo realista. No entanto, no momento em que ele escreve este texto, ao
examinar sua posição pessoal dentro desta divisão, concluía que “‘Boedo mirado por Florida
es arte argentino’”
106
. Ou, utilizando a linguagem figurada de nossa narrativa: o outro olhado
por mim, sou eu. Borges está no grupo de Florida por suas tendências vanguardistas, mas por
seus temas, nesta época, ele entende que existe um elo entre sua escritura e o grupo realista.
Podemos comparar novamente a caracterização do personagem jovem às
características do escritor nesta fase. Nesta segunda fase, Borges se inscreve na tendência
nacionalista, causando, a nosso ver, uma tensão em certas posturas, que havia adotado na
Europa. O ultraísmo e o biografismo são, de fato, rasgos dessa etapa; mas com o realismo
existe correspondência mediante poucos elementos valoriza temática, descrição, precisão e
expressividade; ademais, não dados suficientes para associar o engajamento ao verdadeiro
jovem Borges. Seu conto da época, Hombres Pelearon”, não é realmente expressivo, porque
muita linguagem metafórica, alusões, elipses, e até a própria economia mostra que a
narrativa procurou apenas o essencial. Inclusive, não é o encontro de dois indivíduos
particulares, mas o duelo de “dos cuchillos”; portanto existe uma abstração geral dominando
esta estória. Sente-se, apenas, a presença de vários elementos descritivos e o uso de algumas
precisões
107
. Com o referido, os pressupostos continuam demonstrando que, embora a
caracterização do personagem mais novo pudesse ter obedecido a uma caricatura dessas
aproximações ao realismo em sua juventude, o personagem ainda excede os atributos da
literatura borgeana juvenil. Contudo, fizemos questão de recorrer estes textos e comparar
autor e personagem para fazer “o jogo do conto”: mostrar que mesmo cercando seu
personagem de dados autobiográficos e acrescentando convicções semelhantes às que ele
tivera em sua juventude, o protagonista é parte de um conjunto significativo. Auxilia a formar
uma série de idéias, sendo ele mesmo simbólico; mas não um retrato fiel do homem que fora.
De passo, exibe o imenso alcance e poder simbólico deste conjunto.
24
1.3. O JOVEM BORGES E A GERAÇÃO LITERÁRIA ARGENTINA DOS ANOS VINTE.
Como dito, em nossa leitura sustentamos que Borges não ficcionaliza o
jovem que fora, mas se reporta, simbolicamente, à geração literária argentina dos anos vinte.
Cabe explicar por quais motivos não dizemos que se trata apenas dos escritores realistas desta
geração. Isso ocorre por dois motivos. Primeiro, porque no conto alusões a vários
escritores ligados ao jovem protagonista. Em segundo, porque embora, em suas falas, o
personagem jovem mostre concepções realistas, o velho acusa seus poemas de terem recebido
influências do Modernismo e do Simbolismo.
No conto são mencionados: Whitman e Dostoievski, ligados ao jovem.
Algumas citações podem demonstrar que se trata de escritores que Borges tivera como
modelos em sua juventude. Ele declara que, quando jovem, pensava em Dostoievski como
“uma espécie de grande deus insondável”
108
. De Whitman, ele lembra que: “achei que
Whitman era não era não um grande poeta como também o único [...] essa sensação me
havia acometido em relação à prosa de Carlyle, que agora não suporto, e com a poesia de
Swinburne. Estas foram fases que atravessei”
109
. Contudo, ademais destes “mestres”,
aparecem no conto várias escolas ligadas ao personagem jovem, através da menção a seus
expoentes, ou principais representantes: o Romantismo, na menção a Victor Hugo, mas
também a Elías Regules; o Modernismo, na menção a Darío; o Simbolismo, na menção a
Verlaine. Essas menções poderiam aludir ao período de formação de sua poética. De Victor
Hugo, seria possível pensar em uma alusão à sua idealização “romântica” da cidade no Fervor
de Buenos Aires
110
, como anteriormente explicado. Com Darío e Verlaine, é viável supor que
o autor poderia ter desejado aludir a influências do Modernismo e do Simbolismo, que
acolhera, em seus poemas, ainda anteriores aos de Ritmos Rojos: Estivera escrevendo
sonetos em inglês e francês. Os sonetos ingleses eram uma fraca imitação de Wordsworth e os
franceses, à sua maneira chorosa, imitavam a poesia simbolista”
111
. No entanto, uma
declaração de Borges, em sua maturidade, parece esclarecer melhor as alusões do conto, ao
Modernismo e ao Simbolismo.
Em 1938, quando falece Lugones, Borges escreve um texto sobre a obra do
poeta. Em 1960, amplia o artigo e este se torna um livro. Para falar da obra do consagrado
escritor argentino, Borges volta ao Modernismo e suas origens, uma vez que “La historia de
Leopoldo Lugones es inseparable de la historia del modernismo (sic) [...]
112
. Então, o
argentino tenta rastrear os inícios do movimento e atribui a Darío o papel de principal
25
representante do mesmo: “De igual manera que el romanticismo francés cabe en el solo
nombre de Hugo, así lo que será el modernismo su nostalgia, sus excesos decorativos, su
esplendor verbal cabe en el de Darío”
113
. E ainda liga o Modernismo ao Simbolismo,
afirmando que o Modernismo recolhe a musicalidade da escola anterior. Assevera, ademais,
um influxo de Whitman e Poe, na literatura francesa, e afirma que “Darío, hombre de
Hispanoamérica, recoge este influjo a través de la escuela simbolista”
114
. Assim, no raciocínio
de Borges, o Simbolismo influencia o Modernismo (via Darío) e, este, à literatura de
Lugones, que é essencialmente Modernista. No entanto, pretendemos demonstrar, à
continuação, que, segundo o próprio autor, ele e sua geração absorvem a influência de Darío e
Verlaine via Lugones.
No capítulo, “Las ‘nuevas generaciones’ literárias”, de seu livro Leopoldo
Lugones, Borges apresenta as marcas do trabalho do velho poeta modernista nas novas
gerações. Começa surpreendentemente pela sua própria, denominando-a “geração heróica”:
“Esa generación impositiva, arrasadora y cumplidora es la mía [...] En el
recuerdo predomina el agridulce sabor de la falsedad [...] No culpo a nadie ni
siquiera ayo de entonces [...] no me arredra el temor [...] de revelar a un mundo
distraído le secret de Polichinelle’ [...] “el rasgo diferencial de esa generación
literaria fue el empleo abusivo de cierto tipo de metáfora cósmica y ciudadana [...]
también tuvimos el arrojo de ser hombres de nuestro tiempo como si la
contemporaneidad fuera un acto difícil y voluntario y no un rasgo fatal-. En el
primer momento abolimos [...] los signos de puntuación: abolición del todo
inservible [...] Opinamos también [...] que la rima es menos imprescindible de lo
que cree Leopoldo Lugones. La importancia de esa opinión fue considerable. Nos
permitió no parecer lo que éramos: involuntarios y fatales alumnos [...] del
abjurado ‘Lunario Sentimental’.
Yo afirmo que la obra de los poetas de Martín Fierro’ y ‘Proa’ toda la
obra anterior a la dispersión que nos dejó ensayar o ejecutar la obra personal está
prefigurada, absolutamente en algunas páginas del Lunario [...] Lugones exigía en
el Prólogo, riqueza de metáforas y de rimas. [...] Fuimos los herederos tardíos de un
solo perfil de Lugones. Nadie lo señaló, parece mentira. […] no demorábamos los
ojos en la luna del patio de la ventana sin el insoportable y dulce recuerdo de
alguna de las imágenes de Lugones [nos defendíamos de admitir] Con la injusticia,
con la denigración, con la burla. Hacíamos bien: teníamos el deber de ser otros.
Examine el incrédulo lector el ‘Lunario sentimental’, examine después los
‘Veinte poemas para ser leídos en el tranvía’ o mi ‘Fervor de Buenos Aires’”
115
Certamente que Borges desenvolve uma poética própria, dentro da qual
incontáveis influências. Não é isso o que interessa a esta fundamentação. O importante é notar
que Borges admite, que não somente o seu trabalho, mas sim, o seu trabalho, e o de sua
geração absorveram características do Modernismo e do Simbolismo, através de Lugones.
Uma narrativa poderia ficcionalizar um momento de indefinição e
tanteamento, na carreira de seu escritor. Contudo, como reiteramos, a poética borgeana
26
juvenil não conta de arcar com todas as características que lhe são conferidas no conto.
Certamente que a menção a Whitman, Dostoievski, Hugo, Carlyle podem ser remetidas a esse
período de leituras formativas. Contudo, quando o personagem velho alega que o livro do
jovem recebe contribuições de Darío e Verlaine, parece dentro do escopo maior que ele está
traçando no conto, de modo particular ele procura fazer um recorte simbólico de toda a
geração dos anos vinte; à qual, de acordo com ele mesmo, retoma características do
Modernismo e do Simbolismo, através de Leopoldo Lugones.
Supomos que o personagem do jovem Borges do conto pode ser entendido
enquanto uma representação da geração literária argentina dos anos vinte - na qual o mesmo
autor está incluído - seu cerne é o Realismo na prosa, mas o Modernismo vigora na poesia. As
características do ‘primeiro jovem’ Borges são opostas às apresentadas pelo jovem do conto,
exceto pelo ultraísmo. As características de sua segunda fase juvenil exibem uma
concordância parcial com o personagem, especialmente no ultraísmo e no biografismo. Assim
sustentamos que seria incorreto dizer que em “El Otro”, Borges estaria efetuando uma
ficcionalização do jovem que fora; mas parece plausível entender que Borges se inclui em um
grupo maior através destes rasgos. Na verdade, as críticas ao realismo, que o conto propõe, já
não encontrariam correspondência com seus textos de juventude. Além disso, três das quatro
características marcantes do personagem jovem (realismo, engajamento e biografismo), e os
questionamentos ao realismo, são passíveis de associação aos postulados boedistas e ao
Realismo argentino ainda que projetivamente possam representar um pólo da expressão
artística. No entanto, o personagem extrapola os contornos do grupo de Boedo e do Realismo
desta época. Em primeiro, por seu ultraísmo. Em segundo, porque no trabalho do personagem
mais novo, influências Modernistas e Simbolistas. Com isso, os escritores da vanguarda
ultraísta e aqueles que seguiam o Modernismo de Leopoldo Lugones, também entram nessa
representação. Portanto, o jovem do conto, ao qual o velho finge reportar-se, parece
simbolicamente abarcar o jovem Borges e a sua geração de vinte.
Vale a pena relembrar o caminho do jovem Borges e acompanhar um pouco
mais longe seu percurso para ver uma progressão destas discussões. Borges vem da Espanha
com suas convicções, que até por suas próprias palavras, indicam uma arte de ativa
elaboração da realidade. Chega à Argentina (1921) e se volta para o nacionalismo que
predominava no cenário literário de então. Novamente, ele segue um projeto literário comum.
Ainda não havia encontrado sua própria identidade literária, e tenta como os outros, a
27
construção de uma identidade cultural para seu país. Vimos que suas intenções, que pareciam
coerentes e bem definidas em um primeiro momento, tornam-se instáveis nesta segunda etapa
(entre 1921 e 1928)
116
. Ele começa a dar valor à temática, à expressividade e à precisão.
Chega a declarar que deveria estar no grupo realista de Boedo, por seus temas. Ou seja, ao
inscrever-se no projeta criollista, ele se aproxima de alguns postulados realistas, quando está
procurando soluções para o nacional. É apenas um tatear. Neste momento, ele participa da
polêmica Boedo-Florida (entre 1924 e meados de trinta), e segue-se, há uma nova mudança.
Em algum momento, este segundo Borges se transforma e afirma. De acordo
com Sarlo, ao encontrar sua própria literatura, o autor se separa do Modernismo de Lugones e
das poéticas do realismo: do naturalismo, do naturalismo teratológico, do realismo engajado,
do pintoresquismo, e do realismo de Arlt
117
. Além disso, para Gramuglio, o primeiro grande
momento de questionamento do Realismo no século XX, é a polêmica Boedo-Florida, o
segundo ocorre pelas colaborações de Borges em Sur, “verdadero manifiesto disperso contra
las prescripciones de la poética realista”
118
. Veremos que à semelhança do que ocorre no
conto, os ensaios de 1932, e 1975, também exibem críticas ao realismo.
Nos anos quarenta, aparece sua grande obra narrativa e seus textos
possuem seu caráter definitivo. Depois de conhecermos as teorizações do ‘primeiro’ e do
‘segundo jovem’, sua poética madura parece mais próxima às propostas do ‘primeiro jovem’,
embora saibamos que ela incorpora elementos do segundo período como o criollismo, por
exemplo. Ainda é interessante ressaltar que, segundo Olea Franco, especialmente entre 1954 e
1974, Borges efetua um processo de homogeneização de sua obra para que ela assuma
globalmente um caráter mais intemporal. Ele impede a republicação dos três primeiros livros
de ensaios; insere prólogos novos nas obras mais velhas; reescreve e faz cortes nos poemas,
eliminando sobretudo aspectos criollistas e ultraístas
119
. O mesmo Borges comenta
despectivamente sua produção entre 1921 e 1930, dizendo que “sinto apenas a mais remota
das afinidades com o trabalho destes anos”; quanto ao ultraísmo, também é nítida esta
desidentificação com sua bandeira estética da primeira juventude, quando diz que “Depois de
quase meio século, ainda me encontro lutando por redimir aquele embaraçoso período de
minha vida”
120
. Dessa forma, na projeção temporal, observa-se que duas situações
diferentes, mas paralelas: Borges se afasta das poéticas realistas para produzir sua obra e
durante um longo período efetua questionamentos a esta estética; em paralelo, Borges se
desidentifica com a produção do segundo período de sua juventude, e passa a fazer uma
reconfiguração de seus trabalhos desta época (extrai criollismo e metáforas ultraístas).
28
2.0. BORGES E O REALISMO: UM CONJUNTO DE PARADOXOS.
“Escribir un libro, un capítulo, una página, un rrafo,
que sea todo para todos los hombres, como el Apóstol (1 Corintios 9:22); que
prescinda de mis aversiones, de mis preferencias, de mis costumbres; que ni siquiera
aluda a este continuo Jorge Luis Borges; que surja en Buenos Aires como pudo haber
surgido en Oxford o en rgamo; que no se alimente de mi odio, de mi tiempo, de mi
ternura; que guarde (para mí, como para todos) un ángulo cambiante de sombra; que
corresponda de algún modo al pasado y n al secreto porvenir, que el análisis no
pueda agotar; que sea la rosa sin por qué, la platónica rosa intemporal del Viajero
querubínico de Silesius”. (Borges, J.L. Textos recobrados 1931-1955. Buenos Aires:
Emecé, 2001, p. 353). “Sería un libro en el que estarían implicados todos los
anteriores míos, un libro nuevo, pero que resumiría y sería además la conciliación de
todo lo que hasta ahora he escrito”. (Idem., p.371)
“Para ser imortal, uma obra precisa ter tantas
qualidades [...] uma qualidade é reconhecida e valorizada por determinada pessoa,
outra qualidade, por outra pessoa. Assim, no decorrer do longo curso dos séculos, em
meio a interesses que variam continuamente, obtém-se afinal a cotação da obra, à
medida que ela é apreciada ora num sentido, ora em outro, sem nunca se esgotar por
completo. O criador de uma dessas obras imortais, ou seja aquele que pretende
continuar vivo na posteridade, não pode ser uma pessoa que procura seus iguais
apenas entre os contemporâneos [...]” (Arthur Shopenhauer)
Adiantamos o argumento do conto “El Otro”
121
. Em 1972, o narrador relata
que estava em Cambridge, EUA, no ano de 1969, sentado em um banco às margens do rio
Charles; quando de repente, senta-se ao lado dele um outro Borges mais jovem, que afirma
estar em Genebra, vivendo o ano de 1918. O velho crê que ambos são Borges, enquanto o
jovem acredita somente em sua existência. Cada um tenta afirmar seu ponto de vista, até que
o velho encontre uma “prova”, de que estaria certo. Tem início um estranho diálogo.
Uma sentença do velho Borges irá guiar esta análise: Hablamos,
fatalmente, de letras”. Os protagonistas são escritores. Assim, o assunto por trás de toda a
conversa é a Literatura. De maneira que, através de suas falas, do tratamento entre eles, de
suas preferências e posicionamentos, mas também de toda a estrutura da narrativa é possível
identificar dois tipos de atitude fundamentais diante da ficção. Contudo, estes escritores são
‘Borges’, e o ponto de partida do debate é o modo, sob o qual, cada um deles, entende e
configura seu fazer literário. Por isso, o conto projeta igualmente uma reflexão sobre a
literatura borgeana, em particular.
Três metáforas representam eixos fundamentais para nossa interpretação. O
narrador expõe sua preferência pelas metáforas tradicionais com três exemplos: “La vejez de
los hombres y el ocaso, los sueños y la vida, el correr del tiempo y del agua. Essas imagens,
tanto quanto a narrativa, tratam do tempo, do espaço, e do “eu” - uma vez que o personagem-
narrador é um homem mais maduro. Acrescenta que, Le expuse esta opinión [al joven], que
expondría en un libro años después”. Em 1969, o narrador já poderia prever a aparição destes
29
tropos na publicação de “El Otro”, em 1975. Ao mesmo tempo, de modo direto, três fases da
discussão geram oposições entre as personagens: o realismo, o engajamento, e o biografismo
(além do ultraísmo) na poesia do jovem, que colidem com o insólito, a especulação
metafísica, e a idéia ou o desejo por trás do poema (na metáfora tradicional), no caso do velho
Borges. Assim se conduz um improvável diálogo, entre uma espécie de personificação da
obra borgeana, que a transforma em ícone da literatura imaginativa; ao passo que uma
caricatura da obra juvenil, aproximada à geração literária argentina dos anos vinte, em sua
corrente predominante, é convertida em uma representação do realismo. Realismo de um lado,
e literatura clássica do outro, nos oferecem, em seu vel mais abstrato, um encontro entre
duas formas primordiais de tratamento da Arte.
um trecho que especialmente delata essa divisão, mas faz com que o
texto avance para o campo da síntese. Para provar que é o jovem, o velho lembra um segredo.
Evoca a praça “Dubourg”, para aludir ao bordel onde o Borges realidade teria tido sua
primeira relação sexual
122
. O jovem o corrige - o nome correto é “Dufour”. No gesto
referencial está a chave de leitura utilizada nesta interpretação. De um lado, o realismo; do
outro, a imaginativa escritura borgeana. Os protagonistas revelam e escondem a verdade. O
nome real do logradouro é Place du Bourg de Four. Portanto, ambos fazem uma alusão
verdadeira, mas ambos a distorcem. a combinação dos nomes indica o local e o fato por
trás do comentário. Cada um dos personagens possui uma parte ‘do segredo’. Assim como
esse episódio carrega uma terceira verdade; através da ntese ou da união dos dois modos, a
narrativa projeta uma larga sombra, que há muito tempo os estudos da obra borgeana
perseguem: um terceiro modo de escritura ou leitura. Dividido entre os personagens existe a
imagem de um Borges maior.
Uma louca realidade Diante do leitor descortina-se uma louca realidade. O narrador avisa:
“No lo escribí inmediatamente porque mi primer propósito fue olvidarlo, para no perder la
razón”. O protagonista narra porque precisa de esquecimento, porque um terrível fato o faria
enlouquecer; mas apenas alguns parágrafos depois, faz questão de oferecer garantias de sua
lucidez no dia da ocorrência: “Yo había dormido bien, mi clase de la tarde anterior había
logrado, creo, interesar a los alumnos”. E, no entanto, o efeito direto desta declaração, é
perguntar-se pela sanidade deste professor. Até porque, admite lembrar de uma estranha
sensação, logo antes do ocorrido, que “según los psicólogos corresponde a los estados de
fatiga”. Portanto, nem lúcido, nem louco. Tudo que sabemos ao certo, é que, de algum modo,
nosso protagonista não se sentia completamente bem.
30
Esse jogo ternário é característico desta narrativa. Aparece por todo o conto
conformando as diferenças entre o velho, o jovem e a síntese que em algum ponto se revela.
Por outro lado, com isto, a narrativa adquire um tom ensaístico, o qual, veiculado sob a
metaficção, faz com que o texto se passeie por um terreno marginal de entre-gêneros. Através
do diálogo com o jovem, Borges contrasta dois conceitos opostos de literatura. Theodor
Adorno assinalava o caráter profundamente dialético do nero ensaístico
123
. Porém, se
um ir e vir com as idéias, lembramos que ensaio é literatura de idéias
124
. Mas também caberia
a afirmação de Monegal, de que a típica ficção borgeana é um misto de narrativa e ensaio
125
.
Autorizado a narrar e a discorrer sobre literatura, ele pode narrar ensaiando e ensaiar
narrando. Sobretudo, com essa manobra, o relato não precisa render-se ao factual. Afinal,
um mundo de idéias à espera dessa ficção.
Embora a questão da sanidade-loucura possa parecer menor, é supostamente
este rasgo, uma louca realidade, o que supostamente impede o narrador de elaborar seu relato
logo após o encontro. Para ele, na época que se seguiu ao sucesso, lembrar teria sido recair na
loucura, e esquecer, a única possibilidade de estar são. Por isso, ele não escreve em 1969, mas
sim, em 1972. Ele precisa apagar o turbilhão das sensações, precisa tentar encontrar um
sentido para a experiência. Assim, segundo a lógica do narrador, a escritura imediata, muito
próxima dos fatos e do tempo do encontro, o levaria a perder a razão. Um tal realismo seria
loucura. Ao passo que a escritura “épica”, distanciada no tempo, o ajudaria a afastar uma
realidade caótica
126
. A escritura borgeana (afinal, o narrador é “Borges”) organiza o absurdo.
Nem a completa loucura, nem a total lucidez. Até o fim, a narrativa sustenta
o ambíguo, de modo que o relato se instala e flui a partir de um estado intermediário: do
sonho do jovem ou da loucura do velho pode ter surgido esse impossível diálogo. Ramona
Lagos observou a presença de estruturas, que ela chama “oníricas”, nas narrativas borgeanas:
pesadelo, vertigem, febre, delírio, alucinação, agonia, sonho, e outros mais, servem de
plataforma ao fantástico
127
. Isto não significa que esta seja mais uma narrativa em que o
recurso é utilizado. Significa que nesta narrativa, este mecanismo poderia ter sido posto em
evidência para um meio-termo entre duas possibilidades distintas de estruturação da realidade
ficcional.
Cabe atentar para outro detalhe. O medo da loucura gera a primeira, e quase
a única ão nesta trama, a de escrever. As ações se resumem à escritura do narrador, à
aparição do outro e deste ponto em diante, a conversação predomina. Mas esta não é a
completa verdade. Se agitadas aventuras como aquelas que ocorriam aos heróis da picaresca
não estão presentes nesta estória, seria inadequado descrevê-la como um monótono jogo
31
verbal. O certo é que tudo acontece neste espaço ambíguo entre mente e realidade. Pelo
grande portal da memória do sonho ou da realidade, da loucura ou da experiência - a
narrativa abre espaço para viver e re-viver vários momentos de uma história. O velho revive o
episódio da morte do pai, as canções do tio Lafinur, a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, a
ditadura de Perón, a Guerra Fria. Através do jovem, revive ainda seu encontro com um senhor
que afirma ser ele mesmo; uma conversa com o pai; a empolgação com o socialismo; as
impressões da leitura recente de Dostoievski; as noites em que se encontra com os amigos no
Bar Crocodilo. Se “El Inmortal
128
atravessa um milênio em suas andanças, “El Otro”
recupera de modo alusivo metade do século XX. Não são ações propriamente, mas em cada
alusão está sinteticamente contido um conjunto de vivências. Assim a narrativa nos leva a
perguntar: toda lembrança é menos intensa que uma experiência real?; as experiências
mentais (sonho, loucura, leitura, temores) são sempre menos impactantes que a realidade?
Sobretudo, o relato perde ao optar por um ou outro tipo de experiência?
No prólogo a La invención de Morel, Borges defende a artificiosa narrativa
de aventuras pela coerência. Por isso, talvez se esperasse que seus enredos, como Os Três
Mosqueteiros, estivessem cheios de peripécias. Inclusive, ele condena o romance psicológico
realista, que “hace de toda vana precisión [...] un nuevo toque verosímil”
129
. Ele traz a
desordem das sensações ao mundo narrativo. Contudo, em “El Sur”, a aventura de Dahlmann,
com os peões, acontece entre a realidade da febre e a imaginária llanura
130
, o que faz com que
ela possa ter sido uma experiência mental. O mesmo se pode dizer do personagem de “La
Espera”, quando realiza uma seqüência de ações, desde sua fuga, até sua acomodação em
outra cidade. No emocionante enredo, é como se essas ações fossem sonhos ou intervalos de
um único momento vivido inúmeras vezes - o pensamento de que finalmente o apanham
131
.
Novamente uma experiência mental, mas que agora, ao contrário da anterior, se sobrepõe às
vivências efetivas da personagem. Também no conto em exame, o narrador oferece duas
possibilidades de entendimento, realidade ou virtualidade. Portanto, nem realismo interior,
nem contínuas peripécias. Este narrador problematiza suas aventuras instalando-as entre a
vivência efetiva e a vivência mental.
A precisão imprecisa Acabamos de ver que no Prólogo ao livro de Bioy, Borges ligava a
precisão à verossimilhança. A mesma relação funciona neste texto, com certo ajuste. O
narrador esboça as circunstâncias do relato. Informa o mês (“febrero”); o ano (“1969”); o
horário (“Serían las diez de la mañana”); a cidade (“Cambridge”); e a área (“al norte de
Boston”). Para maior exatidão sobre o local (“en un banco frente al río Charles”) consegue
32
ser ainda um pouco mais preciso (“a unos quinientos metros a mi derecha había un alto
edificio”). Em contrapartida alguns fatores de incerteza (“serían las diez”); (“a unos”);
(“edificio, cuyo nombre no supe nunca”). Esse detalhamento reaparece, quando faz saber que
existe um volume sobre sexualidade, atrás das duas fileiras de livros pertencentes ao outro. O
dado ajuda a caracterizá-lo como um jovem, revelando o que o preocupa. Contudo, parece
excessivo explicar que fala sobre a sexualidade dos povos balcânicos”. O mesmo vale para
o “mate de plata”, com o detalhe dos “pies de serpientes”. Tudo isso gera-se um chamativo
jogo de precisões e imprecisões.
A abertura, em que aparecem tais detalhes, mostra um ‘palco’ com poucos
elementos: um banco diante de um rio, com um edifício adjacente. É um ambiente de
claridade, afinal são dez da manhã, e de reflexão, como sugere o lugar para sentar-se diante da
água corrente. É inverno, pois a água está congelada. Essa disposição tão nítida do cenário em
que tudo acontece, coopera para a declaração de “lucidez” do narrador. Mas tão clara e com
tão poucos elementos, não deixa de converter-se em uma espécie de flash ou clarão de
memória, ou ainda, numa gélida ante-sala para a loucura e o insólito. O dado do edifício
“cuyo nombre no supe nunca” é tão vago, quanto no cervantino, “Un lugar de la Mancha de
cuyo nombre no quiero acordarme [...]” – ou melhor, é “Menard-iamente” vago. Outrossim, a
preocupação com a distância até o prédio mais próximo é algo que beira o policial. Contudo,
nem de longe seria a descrição do quarto de Fernando Seixas, em Senhora, com sua mobília,
seus perfumes e pentes; tampouco é equiparável às esgazeadas e fantasmagóricas ruas de
Comala, com seus mortos e gemidos. Essa ambientação não desmerece o sonho, nem
inviabiliza a realidade, é ambígua.
Dissemos que em La postulación de la Realidad”
132
, Borges distingue dois
modos de escritura, os quais entre outras diferenças, estão separados por dois
posicionamentos fundamentais; desejar, ou não, a representação consistente da realidade. A
isso parecem aludir o exato e o vago dos detalhes iniciais, porquanto no ensaio, ao passo que
uns (os românticos) buscam uma arquitetura ficcional precisa (detalhada), os outros (os
clássicos) se contentariam com uma realidade literária vaga; esquemática, mas suficiente.
Assim, de acordo com Borges, entre os textos ‘imprecisos’, a melhor técnica seria a iniciada
pelo realista Daniel Defoe. Mas, se o recurso é um legado do realismo inglês, Borges inclui no
uso dessa técnica, a julgar de seus exemplos, tanto escritores de literatura mais realista, o
próprio Defoe e o argentino Enrique Larreta; quanto escritores de literatura mais imaginativa,
como H. G. Wells e Rudyard Kipling. Trata-se da utilização de pormenores circunstanciais
projetivos, os quais, segundo o argentino, gerariam uma arquitetura de realidade, eficiente nos
33
moldes de um texto clássico. Em capítulo posterior, veremos que o mesmo Borges se utiliza
desta técnica
133
. Teria, portanto, algo em comum com os realistas.
Em “El Milagro secreto”, no capítulo posterior, veremos que aparecem
pormenores, que geram uma verossimilhança alta, e assim sendo um efeito ‘realista’
(romântico); mas também uma técnica clássica se encarrega de uma realidade vaga, quando
se faz necessário. A obra borgeana conhece os efeitos perseguidos nos dois modos, portanto.
No entanto, como ocorre em outras passagens desta narrativa, o recurso de Defoe é copiado,
mas também modificado. Recebe um acréscimo. Em “El Otro”, os pormenores são ao mesmo
tempo precisos e imprecisos, de modo que parecem pretender o dúbio. Obtêm certa realidade
plausível, mas igualmente introduzem a possibilidade do insólito – se o narrador não se
lembra bem das circunstâncias, isso significa que algo estranho pode ter lhe acontecido em tal
data. Ao nível do narrado, a ambigüidade espalhada por toda a malha textual recebe um novo
reforço. Por outro lado, no nível metatextual, se até esta altura, nas entrelinhas do conto,
aparecem motivos pelos quais o autor não tentaria dirigir suas estórias ao realismo, ao chamar
a atenção sobre os pormenores, ele aponta para uma técnica de produção de realidades
literárias. Mas, o que essa técnica posta em relevo nos diz tal como aparece no mencionado
ensaio; é que, na literatura, a realidade não é mais que um efeito.
A realidade sonhada O outro aparece e começa uma partida pela identidade um xadrez,
em que o jovem joga de um lado, e o velho joga dos dois. Ambos afirmam ser Borges: o
jovem crê que ele é Borges; o velho, que os dois o são. Apoiado no pressuposto de que um
mesmo homem não pode estar simultaneamente em dois tempos e lugares diferentes, o jovem
tem um grande desafio, afinal provar quem ele é, não se dissocia de provar quando e onde ele
está. Já o velho, como se intuísse no menino uma eterna essência borgeana, desde o começo o
reconhece só pela voz (mesmo sem vê-lo), deixando as perguntas para a continuação.
Ao crer que ele existe, o jovem argumenta que o encontro é apenas um
sonho, e por isso o velho saberia as mesmas coisas que ele. O vocabulário que utiliza para
defender-se é representativo dos significados que vão se construindo ao seu redor: “pruebas”,
“prueban”, “natural” e “catálogo”. Observa-se que ele quer uma solução precisa para
enquadrar a situação nos parâmetros da normalidade. Tenta uma hipótese racional, ao buscar
causas naturais para explicar o que ocorre. o velho quer provar que ambos coexistem no
mesmo espaço, e milagrosamente puderam se encontrar. Sem grandes explicações, de modo
vago, sustenta que o encontro acontece na realidade, embora saibamos que isto seria
sobrenatural.
34
O velho não resolve a questão, mas, diante das vidas do jovem, remaneja
o problema. Declara que a vida toda é um sonho; não apenas o encontro. Assim, o mais
importante não é saber onde de fato eles estão, mas se estes, e todos os locais da realidade não
seriam espaços oníricos. Faz notar ao mais novo, que “Tal vez dejemos de soñar, tal vez no.
Nuestra evidente obligación, mientras tanto, es aceptar el sueño, como hemos aceptado el
universo y haber sido engendrados y mirar con los ojos y respirar”. A partir da segunda
frase, quando todo o entorno semântico faz esperar pela expressão “aceitar a vida”, o narrador
insere a palavra “sonho”. Na primeira, morrer é deixar de sonhar, portanto um despertar.
Assim, a vida é encarada como algo extraordinário, como se isso fosse parte do caráter da
realidade.
O fenômeno vital é visto como um milagre. O velho desconstrói a
naturalidade do viver através dos pleonasmos, que neste caso, ao invés de reiterar o óbvio,
contrariamente, põem a desnudo sua excepcionalidade. Ele parece à vontade no
extraordinário, enquanto o jovem se aflige: “El miedo elemental de lo imposible y sin
embargo cierto lo amilanaba”. No entendimento do velho, é a “sua realidade” (essa situação
insólita, mas que, a seu ver, não é mais estranha do que a própria vida) o que provoca medo
no jovem. Interessante notar o paralelo. A realidade vital produz admiração no velho; o
insólito apavora o mais jovem. Mas, neste ponto, quando o jovem está sitiado pelo que parece
loucura, a ponto de crer nessa ficção que o envolve; então, o velho Borges se identifica com
ele. Sente-o como um “hijo de mi propria carne”.
Se pensamos que “o encontro” é uma representação do universo literário,
enquanto nosso jovem realista o entende na direta dependência do real; o velho, como um
escritor imaginativo, clássico
134
, não se intimida ante uma realidade extraordinária, admitindo
que dois homens podem ser o mesmo. Contudo, em sua própria fala, produz-se uma síntese:
sua literatura pode ser fantástica, porque a vida é fantástica. Então, real e estranho, dissolvem-
se um no outro. O encontro é insólito mas o velho assevera que está acontecendo na realidade.
Assim, este narrador suscita a reflexão de que estamos em um mundo, cuja totalidade das leis
naturais é desconhecida; em que todos os dias a vida é algo excepcional, mas também, um
mundo no qual, situações inexplicáveis acontecem no quotidiano, e contudo, seriam
inverossímeis, na literatura. Nesta chave, optar pelo realismo, não seria limitar-se ao
quotidiano e ter o trabalho de escamotear o excepcional? Não seria perder múltiplas
possibilidades filosóficas de entendimento, que a realidade suscita (e suas respectivas
possibilidades estéticas), por negar-se a enxergar o maravilhoso no vital? Entretanto, se o
35
velho se reconhece no jovem ao vê-lo envolto pelo fantástico, outra vez, admite que o real-
quotidiano é parte integrante de sua obra.
Assim sendo, as arquiteturas do conto revelam a possibilidade de trabalhar
com o mundo real ou com vários outros mundos pensados, sonhados ou imaginados. Sarlo
constata, que nas narrativas borgeanas, o leitor dificilmente distingue com precisão o número
de planos envolvidos: “no es posible decidir a ciencia cierta cuál es el estatuto de realidad de
lo que se está leyendo”
135
. Neste enredo, o espaço é desdobrado por espaços reais (o
biográfico, por exemplo) e artificiais (os planos de intertexto). As alusões colocam a trama em
contato com o mundo discursivo. Através do intertexto, uma leitura é porta de acesso a um
labirinto de leituras.
A idéia do sonho, através da qual o velho expõe sua concepção sobre a
vida, permite recordar La vida es sueño, de Calderón de la Barca: “Qué es la vida? Una
ilusión, una sombra, una ficción; y el mayor bien es pequeño, que toda la vida es sueño, y los
sueños, sueños son”
136
. A peça tem dois temas bem perceptíveis. A concepção de que ensinar
é fazer com que o outro repita o conhecimento do professor, o que era uma crítica à educação
da época; e o tema do sentido da vida, o qual aparece sob o influxo da contra-reforma,
evocando outro mundo como atribuidor de sentido a esta realidade. A primeira idéia pode
enriquecer a leitura de “El Otro” pensando-se que o velho tenta transmitir suas experiências
com a literatura ao escritor iniciante que ele (também) foi algum dia. Talvez não tanto como
um professor, mas como um homem mais velho que expõe os motivos pelos quais pensa de
tal ou qual maneira diante de uma determinada situação, porque agiu de tal e qual forma, de
acordo com seu modo de ser. Isto é, porque se posicionou de uma e outra maneira em relação
ao realismo. A segunda é a idéia de que este mundo pode ser ‘falso’ ou ‘provisório’ diante de
um outro mundo verdadeiro. Com ela, são igualadas a ficção e a realidade conhecida. Mas o
que interessa esteticamente neste raciocínio, é que a realidade real o teria primazia sobre o
ficcional, e portanto, seria tão válido remeter-se a outro livro, quanto o seria, referir-se à vida
corrente. Ou seja, relatar uma experiência vital não seria melhor do que (voltar a) contar uma
narrativa pré-existente. Este é um primeiro desdobramento espacial.
Também El Doble, de Dostoievski, é mencionado. O funcionário Goliádkin
gostaria de ter projeção social. No íntimo é intrigante, mas não consegue desvencilhar-se de
seu moralismo. Aparece um inescrupuloso duplo mais jovem que executa todas as ações que
precisaria ter feito para subir
137
. Sob essas lentes é como se o Borges mais novo tivesse a
ambição de ser um grande escritor, mas faltasse coragem para romper com os parâmetros da
literatura de seu tempo, até que ele conhece um “outro eu”, mais velho... "Dupin, que se
36
chamará, depois, Sherlock Holmes; que se chamará mais tarde, Padre Brown "
138
. Ou,
Goliádkin, que se chamará Borges, que se chamará... A estrutura em abismo faz que os
sentidos de um texto alcancem o outro. Ergue pontes entre os livros, gerando unidade entre os
espaços do universo ficcional.
Outro intertexto é a citação de um verso d`As constelações de Victor Hugo.
Nele, o eu-lírico de um revolucionário poeta maduro relembra seus poemas pró-monárquicos
da infância e os desautoriza. Esse elo literário geraria o sentido de que a passagem do tempo é
responsável pela aparente discrepância entre os Borges. Mas o verso, cujo poema possui tanta
correspondência com o enredo de “El Otro”, oferece uma espécie de ícone para o conto a
Hidra. Assim, se nos milímetros do Aleph estava o universo inteiro, na Hidra, que chega
através do verso de Hugo, está a ‘essência’ desta narrativa. Portanto, a Hidra é como um
Aleph. É a parte que alude ao todo, é a imagem que recupera o narrado. É ainda uma porta de
passagem ao mundo simbólico. Já comentamos o tão evidente jogo com o onírico, pelo qual a
narrativa se veste de sonho, e com isto ganha licença para fugir às regras da realidade. O
resultado é que, nesta chave, todo elemento se torna altamente simbólico e diz mais sobre as
personagens; ao passo que a hidra diz mais sobre o mundo ficcional no qual se encontram.
Se a narrativa procura ampliar seu espaço com as dimensões discursivas,
ela também avança sobre o real. Neste itinerário, ela se apropria em vários momentos da
biografia borgeana. É um recurso semelhante ao do poema “Borges y yo”, em que ele poetiza
uma cisão entre seu “eu” particular e sua figura pública de escritor sua condição biográfica.
“Tlön, Uqbar, Orbis Tertius” começa com uma conversa de Borges com Bioy Casares. Em
“El Otro” passam para a ficção não apenas nomes de amigos, mas também, episódios da vida
familiar e até antigos endereços. O mundo concreto serve, tanto quanto a tradição, como fonte
de temas (como o episódio de juventude no Bordel) e figuras (a existente cuia de prata do
avô) para a elaboração textual. Ao mesmo tempo, a ficção amplia a realidade vital com
lugares nunca visitados, com conversas que nunca tiveram lugar, com uma imagem do jovem
Borges um escritor engajado que sabemos que nunca existiu do modo como a narrativa o
postula.
As estruturas narrativas deste conto assinalam que Borges não se vale
somente da realidade do mundo, nem somente das realidades literárias. Mostra a riqueza de
operar com ambas as possibilidades e com as variações existentes entre uma e outra (como a
ficcionalização do autobiográfico). Ao mesmo tempo, a narrativa elenca precursores, mas
também deixa ao leitor a possibilidade de completar esse quadro, que por si só é tão amplo, ao
deixar de fora, menções óbvias como Dr. Jekill e Mr. Hide, de Stevenson.
37
Mas, se ambos os Borges estão fora de seu país (Cambridge e Genebra), os
dois fazem menção a seu espaço de origem. No nível das idéias literárias, simbolicamente, um
está próximo da moderna literatura de língua inglesa (Poe, Whitman), enquanto o outro está
na neutralidade indecisa de quem convive com várias escolas, que a literatura européia
produziu (Simbolismo, Modernismo, etc). Seja como for, os dois carregam sinais da tradição
argentina.
O criollo universal “Argentino”, responde o jovem, quando o velho Borges lhe dirige a
primeira pergunta para saber quem ele é. Mas ainda sem terem trocado uma palavra, o velho
sente a estranha sensação de estar diante de algo que já vira em outro tempo. O mais novo
assovia “La tapera de Elías Regules”, um poema criollo
139
. Regules é um poeta idealizador
do regional. Pertenceu ao segundo período do Romantismo uruguaio
140
, que tinha como
característica a valorização do autóctone
141
. Esse é o “estilo” da canção que assovia, fazendo
com que o narrador se recorde um “patio”, um pico elemento local
142
. a voz parecia a de
“Álvaro Melián Lafinur”, escritor e crítico nacionalista, tio paterno de Borges. As palavras do
outro o “las de la décima del principio”. De modo que as décimas da milonga,
característica da Argentina, dão o ritmo de sua fala. O arranjo lembra Evaristo Carriego, no
qual Borges seleciona motivos regionais, que deverão constar de sua futura poética
143
. Como
já comentado, não apenas para Borges, mas também para os demais escritores vanguardistas e
realistas da geração literária argentina dos anos vinte, o criollismo era um valor. Assim, o
trecho mostra que a aparição do outro, está emoldurada por uma série de elementos do
regionalismo argentino, caracterizando o jovem escritor, como um expoente do nacional em
literatura.
O mais novo não aceita a existência de outro Borges. Por isso o velho tem de
dizer algo que o faça acreditar que ele sabe quem ele é, a tal ponto, que o jovem possa
reconhecer que são o mesmo. Porém, em sua primeira tentativa, o velho não vai tentar
entendê-lo por sua voz, sua canção ou seu ‘estilo’. Ao contrário, vai julgá-lo a partir de si
mesmo. Ele ainda pode lembrar sua biblioteca de juventude. Mas, como o jovem está em
outro momento, o velho não o convence de que são o mesmo, com a memória dos livros na
estante, onde figuravam as Mil y una noches de Lane, o dicionário de Quicherat, a Germania
de Tácito, o Dom Quixote de la Mancha, as “Tablas de Sangre” de Rivera Indarte, o Sartor
Resartus de Carlyle, a biografia de Amiel. São volumes de cunho imaginativo, pois mesmo o
dicionário, o livro de história, e o apêndice contêm dados ficcionais
144
. Pertencem a diversos
38
tempos e lugares. São índices da cultura ocidental, assinalando um universalismo ímpar. Não
obstante, dentre eles há um nome da tradição local, Rivera Indarte.
Vemos que no conto, de maneira um pouco esquemática, Borges apresenta o
que hoje em dia, a crítica explica como sendo a configuração do criollismo em sua obra. O
local está contido dentro do universal, e reversamente, do universal pode saltar uma
tematização ou figuração do local. Davi Arrigucci Jr. propõe que os temas argentinos podem
ser percebidos por trás da “integração dialética”, com a qual Borges os transforma em
questões universais
145
. Na trajetória borgeana, o criollismo existe desde os primeiros livros de
poesia e ensaio, sendo uma das marcas de sua poética. Diante da percepção de elementos
criollos e cosmopolitas nesta obra (duas linhagens para uma escritura), Ricardo Piglia percebe
que “Borges acolhe elementos contrários em sua escrita sem nunca optar por um, mas
valorizando um ou outro em momentos diferentes”
146
. Então, a partir do conto e da visão de
Arrigucci, parece que a obra borgeana, não apenas “acolhe” elementos opostos, mas também
é capaz de promover sua integração.
Sarlo interpreta a argentinidade das ficções borgeanas à luz de seu conceito
sobre las orillas, que significa tanto um local concreto que Borges escolhe ficcionalizar (o
subúrbio, os bairros afastados), quanto um eixo metafórico, segundo o qual, ela apreende o
gesto da literatura borgeana em face de seu país e da cultura européia:
“Borges se afinca en un lugar menor, el lugar de la Argentina, y allí ejerce la
libertad de los menores rearmando el mapa de las literaturas mayores desde
la periferia cultural de Europa. Este derecho [de herdeiro da cultura
européia], vuelve posible cualquier elección temática, liberando a la ficción
de sus anclajes referenciales: la literatura argentina habla de la Argentina sin
tener que asumir temas argentinos”
147
.
Na verdade, essas duas prerrogativas – o direito à cultura européia como uma
herança, e a não obrigatoriedade de apresentar elementos locais na literatura – já estão
delineadas no ensaio borgeano “El Escritor Argentino y la tradición”
148
. Assim, Sarlo procura
os desdobramentos dessas idéias na ficção borgeana. Para ela, esse rasgo seria verificável
tanto na linguagem, quanto na menção a livros argentinos canônicos; mas estaria ainda na
própria liberdade de escolher elementos da tradição cultural argentina ou de culturas
estrangeiras
149
. Em “El Otro”, essas marcas fazem parte integrante da malha textual. É
possível percebê-las no espanhol argentino, quando aparece o voseo
150
: “querés”; “podés”.
Também aparecem, quando o velho se exalta contra o atraso em seu país, dizendo que “No
me sorprendería que la enseñanza del latín fuera reemplazada por la del guaraní. Borges
está vindicando que os argentinos tenham acesso a uma parte importante do patrimônio da
39
cultura universal. Igualmente, expressa sua argentinidade, através dessa visível preocupação
com a cultura em seu país. Ao mesmo tempo, o trecho revela um argumento pessoal, em favor
das referências a temas universais na ficção: preocupar-se efetivamente com seu país é não
deixar que ele fique limitado aos temas e representações regionais.
Olea Franco afirma que uma das maduras soluções borgeanas para o
criollismo consiste na imaginação poética da vida dos antepassados “que reduce la historia
nacional argentina a la historia familiar del escritor”
151
. Neste caso, um pequeno elemento
inserido no mesmo parágrafo em que trata da biblioteca universal, alusivamente resgata as
relações com o local. En casa hay un mate de plata con un pie de serpientes, que trajo del
Perú nuestro bisabuelo”. O dado é biográfico. Através do bisavô militar, recupera-se a
história nacional durante as batalhas contra o tirano Rosas. Além disso, como o parente esteve
sob o comando de Simón Bolívar, ainda evoca as lutas continentais pela libertação do
domínio espanhol
152
. Portanto, na mesma passagem em que o escritor elenca seu repertório de
leituras universais, o nacional está incrustado junto dele, pelo viés da história familiar - o que
o torna ainda mais próprio.
Em “El escritor Argentino y la tradición”
153
, o autor reprova o nacionalismo
fácil, da mera exposição da cor local, mas reafirma o direito dos argentinos a todos os temas.
Ele efetua uma argumentação engenhosa. Enquanto nos projetos de construção da identidade
nacional, a cultura de um país é associada aos elementos regionais, ele remaneja esta
associação. Converte o fato de ser argentino, em ser herdeiro da cultura européia, de modo
que “podemos manejar todos los temas europeos, manejarlos sin supersticiones”; “nuestro
patrimonio es el universo”. Contra a obrigação e a limitação do autóctone, ele oferece o
direito a um rico patrimônio de muitos séculos. Ademais, diretamente refuta a existência de
uma ligação necessária entre telurismo e literatura nacional, com sua famosa sentença de que
o Alcorão é um livro árabe por excelência, mas ninguém duvida disso pela falta de menção
aos camelos
154
. Seu pensamento é análogo ao do brasileiro Machado de Assis, quando este
propõe que uma nacionalidade instintiva assoma naturalmente ao texto, sem que seja preciso
ter essa intenção
155
.
À luz do ensaio e dos críticos, vemos que enquanto, o protagonista mais
jovem (a geração literária argentina dos anos vinte e o próprio jovem Borges) é criticado por
seu nacionalismo, como atitude superficial de mera exterioridade, o velho Borges deixa
perceber seu sentimento de pertença a seu país, de um modo mais íntimo e espontâneo, como
parte integrante de sua forma de ser e de ver o mundo. Ela aparece em sua fala corrente; em
sua preocupação com um tema que concerne à vida cultural de sua pátria; na menção a um
40
escritor não-canônico da tradição argentina, Rivera Indarte; e aparece ainda em sua história
pessoal, que está inevitavelmente associada à história da nação. Portanto, no conto, ele recusa
a obrigatoriedade do local em favor de uma expressão mais autêntica, sugerindo alguns
modos pelos quais esse rasgo ficaria expresso em sua poética. No entanto, a argentinidade
está presente em ambos os Borges.
O jovem parece voltado para o local, ao passo que o velho está ligado ao
universal, mas sabemos que a madura estética borgeana integra o local ao universal. A síntese
aparece de modo simplificado na biblioteca de Borges. Contudo, de modo mais complexo, ela
está presente desde a base estrutural do relato. Por se tratar de uma narrativa em primeira
pessoa, o narrador conta uma estória e ao mesmo tempo responde ao leitor quem ele é.
Portanto, constrói e desvenda uma identidade. Porém, ela está dada desde o título, “O
Outro”. Isso não significa que o velho tenha descoberto ser idêntico ao jovem, embora sejam
o mesmo. Mas, a própria aparição do jovem acontece quando o velho refletia a respeito do
tempo e sabemos que ele pensa ser este um fator decisivo para as diferenças que impedem o
jovem de reconhecer-se nele. Em contrapartida, essa questão já margem a pensar, se
alguém poderia tornar-se o perfeito reverso daquele fora, sem que qualquer resquício do
passado ressurgisse na fase posterior. Isto, considerando que o encontro é real. Contudo, o
encontro pode ocorrer em um sonho, então como explicar essa figura que parece invertida?
Como postula Clément Rosset, na literatura, a estrutura do duplo dispara uma situação de
auto-conhecimento para o personagem. Aquele que é o desdobramento
156
(o fantasma, o
outro) revela ao leitor aspectos da realidade do protagonista, que este desconhecia ou que
talvez desejasse ocultar
157
. Assim, o segundo Goliádkin revela que o primeiro é ambicioso e
deseja ascender socialmente. O jovem Borges revela, entre outras coisas, que dentro de seu
cosmopolitismo, o velho nunca deixa de ser o que é, um escritor argentino.
O rio circular O jovem surge depois de uma peculiar reflexão do narrador sobre o
tempo - “el o hizo que yo pensara en el tiempo. La milenaria imagen de Heráclito”. Esse
pensamento de que dia após dia o homem nunca é o mesmo parece ser o responsável por
trazer o jovem à memória do narrador, ou ainda por convocá-lo ao espaço ficcional.
dois modos pelos quais o tempo foi estruturado nesta narrativa: o
objetivo, e o subjetivo. O tempo convencional, o cronológico, está por todo o enredo:
“febrero de 1969”; “Ahora, en 1972”; “Serían las diez de la mañana”; “Estamos en 1969”;
“esta mañana”; “pasado”, “porvenir”; “hace unos treinta años”; “Anoche”; “hacia mil
novecientos cuarenta y seis”; “Cada día que pasa”; “en 1918”; “un muchacho que no había
41
cumplido veinte años”, un hombre de más de setenta”; “medio siglo”; mil novecientos
setenta y cuatro”. Todas as formas de tempo objetivo preocupam os protagonistas: as horas,
os períodos do dia, os dias, meses, anos, séculos, o passado e o futuro. De acordo com Hans
Meyerhoff, o tempo cronológico é entendido “pela teoria física em quantidades separadas,
distintas e mensuráveis que permanecem sempre separadas, díspares e não relacionadas”
158
.
Neste caso, torna-se comparável ao conceito heraclitiano aludido na narrativa, pois ambos são
fragmentados e lineares. Mas existe ainda outra faceta para o tempo exterior ao perguntar,
“No querés saber algo de mi pasado que es el porvenir que te espera?”. Quando o futuro do
jovem é o passado do velho Borges, entende-se que a sucessão também vigora no mundo
destes personagens. Assim, é possível perceber que a narrativa constrói a presença de um
tempo exterior, fragmentado, linear e sucessivo.
Convivendo com este tempo, há um outro. Os personagens insistem em
referir-se ao encontro como sendo um sonho e em suas falas o tempo é enfatizado enquanto
duração. O vocábulo sonho e suas formas verbais aparecem doze vezes na narrativa. O fato de
que “sonho” e “duração” surjam juntos, acentua a hipótese do jovem de que o encontro seja
um sonho, mas não tira a razão ao mais velho, quando este assume que a vida toda também o
seja (ver grifos):
a) “sé que fue casi atroz mientras duró” (p.7)
b) “¿Y si el sueño durara?” (p.10)
c) “Mi sueño ha durado ya setenta años” (p.10)
d) “Nuestra conversación ya había durado demasiado para ser la de un
sueño”. (p.16)
e) “La situación era harto anormal para durar mucho más tiempo” (p.17)
Já que os personagens também mencionam o tempo sob um aspecto durativo,
percebe-se a existência de uma estruturação do tempo interior na narrativa. De acordo com
Meyerhoff, as obras modernas costumam utilizar esta temporalidade durativa, com freqüência
associada ao sonho, porque essa condição permite empregá-la naturalmente
159
. Deste modo,
se a recorrência do tempo cronológico, nos fazia esperar pela realidade, o tempo interior não
deixa esquecer a idéia de que tudo possa ser uma experiência onírica. Sobretudo quando o
velho admite, logo antes de encontrar o outro que sentira fadiga antes do encontro. O cansaço
poderia ser a ponte entre o mundo onírico e o real, mas como em toda parte neste conto, nada
é definitivo.
O mais velho descreve a situação familiar e dela surge uma percepção sua,
enlaçando tempo e vida. A mãe está bem, o pai morreu, a avó que morre, e por fim a irmã que
42
se casa e tem filhos. Apresenta-se o ciclo vital, vida e morte, morte e vida. A perspectiva
sob o discurso do velho consiste essencialmente de um horizonte filosófico de nascimentos e
mortes. É como um movimento vital de ascensão e declínio, como o verão e o inverno da
existência humana. À continuação, o que poderia ser uma tentativa do personagem, de
mostrar-se um sujeito inscrito na história para comprovar sua existência, assume outra faceta
peculiar. Algo semelhante ao que ocorria ao indivíduo dentro do núcleo familiar é observado
com respeito aos grupos humanos, ao expor que houve “otra guerra, casi entre los mismos
antagonistas”; Francia no tardó en capitular [...] la cíclica batalla de Waterloo”; “otro
Rosas [...] bastante parecido a nuestro pariente”; “El '55 [...] como antes Entre Ríos”. O
parágrafo não ressalta a linearidade na história, mas gera uma inusitada visão da mesma. Dois
grupos se enfrentam na Primeira Guerra Mundial. Os bandos se desfazem e novamente dois
grupos se enfrentam na Segunda Guerra. Dois grupos opostos, um se eleva e um cai. Quando
opta por aproximar os fatos por sua semelhança, como se fossem os mesmo fatos em outro
tempo, a história parece estar sendo interpretada à luz do eterno retorno
160
. Ainda a sensação
do narrador antes da chegada do mais novo colabora para essa noção de circularidade. Trata-
se do conhecido “déjà-vu”. É algo semelhante ao sonho, porque em um instante se passa ao
mundo da lembrança, e desse mundo transitório, o “eu” estranha o ‘si’ que permanece na
realidade. Nesse ínterim, surge uma sensação de repetição que comporta a idéia de retorno.
Portanto, em contraposição às idéias heraclitianas e ao tempo exterior e fragmentado, linear e
sucessivo; a narrativa também se aproxima das teorias de Platão (o retorno)
161
, e forma uma
temporalidade interior e fluida, durativa e circular.
Esse tempo abre uma terceira possibilidade. No instante em que fala da
história dentro desse movimento repetitivo, o escritor parece inscrever uma certa evolução.
Afinal, da guerra participam quase os mesmos antagonistas”, e o segundo ditador é
“parecido”, mas não idêntico ao anterior (grifos meus). Então é como se uma grande roda
girasse a história passando sempre pelos mesmos pólos. A ambos supera e a ambos repõe,
mas sempre em um nível superior. De forma que, em meio à própria circularidade, surge a
espiral, em uma espécie de rio circular.
No exame da categoria temporal, vemos que ele aponta de um lado, para o
que é mutável e inconstante, e do outro para o que é eterno e recorrente, de modo que o tempo
fornece um novo entendimento sobre as escolhas poéticas dos protagonistas. O autor clássico
procura captar a realidade sob um olhar mais abrangente. O autor realista se dirige convicto
ao tempo convencional, recolhendo as marcas temporais e anotando ‘fielmente’ cada data. No
entanto, não se pode dizer que este seja o tempo da realidade. É apenas uma convenção
43
relacional, um marco estabelecido em relação a outros marcos humanos. Trata-se de um
tempo que não respeita os períodos do ano (as estações) ou da vida (o ciclo vital) inscritos na
natureza. Ao contrário, nele, os fatos são escravizados por igual aos ponteiros da rotina.
Levado por esse rio, o escritor interessado na seqüência dos movimentos históricos se rende à
multiplicidade sem sentido e sem ordem da paisagem. a síntese apresentada sugere que a
obra borgeana poderia encontrar em cada situação um ponto de vista original sobre os
significados essenciais - sobre o ódio, sobre a disputa, sobre a identidade - elevando a
compreensão do leitor a outro patamar. De modo que a narrativa abre novos questionamentos
ao realismo: aderir a ele não seria deixar de lado as questões imortais em prol dos problemas-
diário da civilização? Não seria ainda sacrificar um sentido eterno das coisas em favor daquilo
que é fugaz e desconexo?
Vale a pena refletir um pouco mais sobre os significados que se desprendem
dessas estruturações temporais para nossos escritores-protagonistas. Nos ensaios borgeanos, o
eterno retorno vincula-se à idéia dos arquétipos. Estes seriam modelos iniciais que tenderiam
a manifestar-se para voltar a eclodir inúmeras vezes até que todas as suas possibilidades
fossem esgotadas; conseqüentemente, não haveria novidades, uma vez que tudo dependeria de
Idéias pré-estabelecidas
162
. Estes arquétipos se referem à realidade, mas certa vez Borges
chega a cogitar “la posibilidad de una morfología (para usar la palabra de Goethe) o ciencia
de las formas fundamentales de la literatura. Alguna vez he conjeturado en estas columnas
que todas las metáforas son variantes de un reducido número de arquetipos; acaso esta
proposición es también aplicable a las fábulas”
163
. Nesta narrativa, essa morfologia parece ser
uma idéia-base.
Em primeiro, isso acontece com um recurso. No final da estória, o velho
afirma que se lembra de um artifício de Coleridge. Assim, é como se este fosse um arquétipo,
uma matriz para o recurso do qual Borges irá se utilizar, mas atualizar em sua trama. Em
Coleridge era a flor para assinalar o paraíso; em Borges o dinheiro vai indicar a realidade. Em
segundo, a ‘morfologia’ é aplicada a uma metáfora. Quando o narrador expõe sua preferência
pelas tradicionais, exemplifica com “La vejez de los hombres y el ocaso”. Ao final do conto,
vai aparecer uma metáfora que é praticamente uma variante desta, em que a cegueira é
comparada ‘a um lento entardecer de verão’. Em terceiro, acontece com um argumento. Esta
idéia de um arquétipo que se altera e evolui é ainda mais clara, quando o jovem nomeia El
Doble. uma sensação de que o argumento do russo se repete, bastante alterado, na estória
de “El Otro”.
44
Portanto, se a partir da primeira temporalidade narrativa pode-se pensar na
idéia da literatura enquanto o novo incessante - novas metáforas, novos recursos, novos
argumentos. A partir da segunda temporalidade, a literatura poderia parecer uma tormentosa
repetição da tradição as mesmas metáforas, os mesmos recursos, etc. Essa seria a tônica das
duas essências literárias em relação a inovar. Na obra borgeana, sabemos que convivem a
invenção e a descoberta. Em sua prosa poética Las uñas”, ele introduz o tema da unha que
segue crescendo no caixão do poeta morto
164
(a continuidade da vida). Ao passo que em “El
Otro”, reedita alguns dos temas mais tradicionais da literatura - a identidade, o tempo, o
duplo. Ademais dessa junção, diríamos que essa obra se alimenta da síntese entre o novo e o
antigo, pois parece operar com a idéia de que a literatura é inesgotável, em uma chave de
diferenciações e permanências
165
.
Como ocorre com o espaço, o conto também guarda idéias de
aproveitamento da categoria temporal. Novamente, a abundância de inventivos recursos
representa por si uma objeção à cópia fiel da realidade. Isso não significa que o tempo real
não seja utilizado nesta narrativa. Vimos que um jogo de precisões e imprecisões se formava
ao redor do tempo cronológico, auxiliando na composição de um efeito de realidade literária,
oscilante entre o real e o imaginário. Outro emprego diferenciado da categoria temporal,
explora a ‘qualidade’ do tempo. Quando o eterno retorno é projetado sobre a história, um
momento se torna a chave de vários outros. É como se um confronto fosse o mesmo no
passado próximo ou distante. Assim, os personagens se tornam efêmeros, mas as situações
nucleares se tornam marcantes, como efeito desta característica ‘circular’ do tempo.
A narrativa mostra ainda que é possível jogar com a direção do tempo. Na
primeira parte do parágrafo sobre a história, esta se repete, e contudo vai “para adiante” com
suas ligeiras repetições. Depois, quando o velho emite opiniões sobre seu país, é como se o
tempo caminhasse para trás. Diz “cada dia que pasa”, e percebe-se um sentido de
deslocamento. Mas, em seguida o protagonista acrescenta “más provinciano y más engreído”.
No contraste com a descrição que sugere o movimento das outras nações, percebe-se um
sentido de retrocesso em relação ao seu país. O efeito genérico no trecho é a contradição entre
movimento e conteúdo. O progresso das guerras se parece ao atraso; nelas a história avança,
mas destrói o que estava construído. A educação ‘avança’, mas as modificações, que deseja
implementar, igualmente não constituem progresso, segundo o mais velho. Tanto o eterno
retorno, quanto estas proposições se opõem ao progresso - uma típica idéia do século XIX,
segundo Borges
166
.
45
Finalmente, estamos diante de um jogo do tempo com o “eu”. Por um lado,
os protagonistas parecem ser muito diferentes. O velho chega a lamentar que assim seja,
“éramos demasiado distintos”. Contudo, desde o início sabemos que se trata de um único
homem. O Borges narrador reconhece essa unidade ao sentenciar que o “inevitable destino”
do jovem era ser ele mesmo. A projeção de duas configurações temporais acentua o problema.
Tendo em conta o rio de Heráclito, fica a idéia de uma espécie de identidade cambiante.
Entretanto, se levamos em consideração a idéia de arquétipo, associada ao retorno, surgiria o
efeito de um caráter mais ou menos fixo, que abarcaria a ambos, apesar das diferenças. Assim,
o texto problematiza a questão da identidade.
Eu, o outro - O velho diz, “usted se llama Jorge Luis Borges. Yo también soy Jorge Luis
Borges”. Ao que o jovem contesta, No, me respondió con mi propia voz [...]”. Essa é a base
do conflito sob o diálogo. Os protagonistas tentam uma identificação, que só se produz
fracionadamente, com a nacionalidade, o nome, a profissão, os livros de Borges, com o verso
de Hugo. Contudo, nenhum dos tópicos fornece prova suficiente, a qualquer dos dois da posse
exclusiva da identidade, ou da igualdade entre eles. Toda essa primeira gama de informações
não escapa ao argumento do jovem, de que um sonhador tem acesso aos pensamentos de suas
projeções oníricas. Mas em cada uma de suas falas, a narrativa nos mostra quem são. Trata-se
de dois escritores, que divergem em vários aspectos sobre o “como” fazer literatura, mas, para
os quais, o literário nunca se perde de vista. Com isso, mostrar quem eles são é dizer como
seria a escritura de cada um deles. São como escrevem, e escrevem como são. Mas se, como
disse o jovem, o ‘encontro’ é um sonho, e as partes do sonho conhecem os pensamentos de
seu sonhador, este sonho tem algo a dizer. Ele revela que “não há” um único Borges. Neste
‘sonho’ dois homens, para mostrar que não se trata de um escritor sem nuances, seja do
escritor que foi outrora, seja do que à primeira vista poderia parecer oposto à sua própria obra.
Vários Borges - Em “El Otro”, contar e mostrar estão em equilíbrio. A presença do estilo
direto é marcante; e no entanto, as reflexões do narrador lhe oferecem um exato contrapeso.
Mas sob essa articulação, o texto problematiza a estrutura dual do diálogo, ao organizar uma
tripartição dos personagens. O jovem ganha um contorno preciso, uma vez que é a ele a quem
“vemos”. No entanto, ele não é para nós, leitores, o que de fato foi o jovem Borges. Talvez na
memória, ou na loucura, ele é o ‘quadro’ que dele nos apresenta o mais velho. Desdobrando a
metáfora, é a visão que o velho tem de si no passado. Mas se o “eu” de 69 e o “eu” de 72 (o
narrador) se reconhecem como um em dois tempos, o ponto de vista pertencente ao velho
.
46
Assim, é ele quem guia a conversa, a estória traz a sua versão dos fatos narrados. Uma vez
que ele pode avaliar as discrepâncias e transmitir seus julgamentos sobre o jovem, ele se
mostra e ao mesmo tempo, o jovem nos comunica suas impressões a seu respeito (do velho).
Contudo, a existência do narrador em 1972, concede uma espécie de ponto de fuga à
narrativa, fazendo com que o velho seja, tanto quanto o jovem, apenas mais um “eu” passado
do narrador. Portanto, ele é somente uma imagem mais atual. o Borges-narrador, em
1972, está em condições de reconstruir suas memórias de juventude, mas pode ainda anexar
às suas vivências de 1969 as reflexões que lhe ocorreram, passados três anos de sua suposta
aventura. Ele nos diz que, “al recordarse, no hay persona que no se encuentre consigo
misma”. Portanto, ele é um narrador, aquele que conta sua experiência, à cata de um
significado. É o homem, que revisa os acontecimentos em busca de si. Ele olha para trás
tentando se achar em meio às mudanças.
Embora intelectualmente o leitor saiba que todos são um Borges-
ficcional, esse é o arranjo geral: três homens em um. Assim, o texto parece apontar para uma
descontinuidade na sucessão de muitas representações do mesmo Borges. Ainda lança mão de
várias lembranças dispersas, que longe de produzir um “eu” total, são a soma dos muitos
“eus” passados do narrador. Contribui para essa fragmentação, a descontinuidade das falas,
que vão passando de um tema a outro. Desse modo, o conto suscita a quebra de uma figura
total, em favor de um conjunto de momentos parciais. Outrossim, com esta estruturação, a
narrativa sinaliza que o tempo pode ser o responsável por tantas mudanças. Pode-se lembrar
que, ao ouvir o discurso social do jovem, o velho não consegue apoiar tais convicções
artísticas, acusando o tempo: “El hombre de ayer no es el hombre de hoy”. Neste caso, o
jovem vive o seu momento, como o velho vive o seu. São gerações diferentes. Portanto, se o
encontro acontece por um insólito cruzamento temporal, diferenças entre eles, porque
um antes e um depois, no percurso dessa vida, embora ainda haja outra forma de entender o
encontro.
O jovem, o velho
167
- Sabemos que o jovem surge tão logo ‘Borges’ pensa no tempo e nas
transformações que ele causa. De entrada, o mais novo está especialmente ligado ao tempo, ao
seu tempo. Ele é caracterizado como um jovem, que aparece assoviando e além disso presta
muita atenção às condições físicas do velho. No parágrafo de sua aparição, o repetido lo
que”, “lo que”, somado ao uso do imperfeito, leva à impressão de camadas superpostas de
temporalidade, como se o narrador retomasse a memória e se corrigisse, indo mais fundo
dentro dela. O outro surge como de um túnel temporal. Não se pode dizer que o jovem possui
47
um outro modo de ser, pois ainda é o mesmo homem; mas na verdade, ele traz consigo as
marcas de outro tempo. O jovem é o próprio passado que volta surja ele no sonho ou na
realidade.
O jovem surge cercado de referências ao criollismo literário. Ele é
apresentado como um expoente da literatura nacionalista; o que remete ao começo do século
XX, argentino. Contudo, o tempo dele fica ainda mais preciso, que o velho traços do
Simbolismo e do Modernismo no primeiro trabalho do iniciante. O velho também informa
que o jovem prefere as metáforas novas de seu tempo. Ou seja, ele prefere uma forma nova,
um tipo de metáforas que foi novidade na Espanha do século XX, constituindo um dos
movimentos vanguardistas. Mas se o jovem do conto está ligado ao movimento ultraísta, ele
ainda ganha maior exatidão no período temporal, pois todas estas correntes estão presentes na
Argentina dos anos vinte. Aqui estaríamos muito perto do Borges biográfico, embora haja
uma forte ficcionalização do personagem jovem (que o afasta do Borges verdadeiro),
especialmente, através de seu engajamento rasgado e de seu discurso humanitário, do qual o
narrador dá notícias: “me aclaró que su libro cantaría la fraternidad de todos los hombres. El
poeta de nuestro tiempo no puede dar la espalda a su época”. Seu discurso parece parafrasear
o que Dostoiévski declarara em uma de suas Cartas: “El hombre en la superficie de la tierra
no tiene derecho a dar la espalda y a ignorar lo que sucede en el mundo [...]”
168
. A frase evoca
o ideário da literatura humanitária ou politicamente engajada (até porque seus poemas falam
da Revolução Russa). O narrador faz questão do clichê. Ao não utilizar as próprias palavras
do jovem, sugere que este meramente assumiu uma ideologia, como se a frase fosse um
resumo das idéias às quais o outro se liga, mas que igualmente definem seu perfil artístico.
Ele é um “poeta de nuestro tiempo”, um escritor da Argentina dos anos vinte.
Ser um escritor de seu tempo, em seu caso, é mais do que estar vinculado a
um período; é estar vinculado às correntes desse período. O jovem segue aqueles que escolhe
como seus mestres da literatura (“el maestro ruso”; Darío”; “Verlaine”), segue a “moda”
literária (Modernismo, Simbolismo, criollismo) e segue o compromisso em voga em sua
época. Assim, seu pequeno trabalho não pode ser uma obra feita de escolhas pessoais. Tem
Dostoievski na conta de um “mestre”. Encarece o fato de que o velho se haja esquecido do
tema de um livro deste escritor; e acredita que ele comete uma “blasfemia” ao fazê-lo. Seu
livro de poemas elogia a Revolução Russa, de modo que ele está muito perto das concepções
ideológicas de seu tempo. Em certo ponto, simbolicamente “rompe” com a tradição ao
afirmar que não seguirá lendo Dostoievski. Portanto, entende-se que ele deseja ser original.
No entanto, de acordo com o velho, as influências são evidentes em sua escritura. Este
48
significado é reforçado, quando o jovem afirma que o russo “penetró como nadie los
laberintos del alma eslava”. Hoje, sua frase seria um chavão de manuais literários, uma
espécie de ‘comentário oficial’ sobre o escritor. Em 1918, com a publicação das primeiras
obras de psicologia no início do século XX, talvez fosse um comentário atual, de acordo com
a contemporaneidade do psicologismo nos estudos literários, mas o velho diz que essa frase
do jovem é uma “tentativa retórica” que acalma o novato. Com isso, vê-se que, desde sua
aparição, ele prima por sua identidade, impondo-se ao velho como o único Jorge Luis Borges.
Pretende ser diferente; no entanto, a identidade que deseja afirmar (a de um escritor atado aos
modismos) o levaria ao esvaziamento do próprio em favor do alheio, dos grupos e modas
literárias. De modo que, sob as lentes do velho, nos temas, o jovem abona o julgamento
comum, adotando as idéias correntes; no tocante à forma, ainda não tem uma estética própria,
e está muito influenciado pelas correntes literárias em vigor. Portanto, ele tenta ser original,
mas se parece a todos os escritores do período.
Simbolicamente, o perfil do jovem está ligado ao realismo. Em seu momento
de maior insegurança, ele traz um livro ao qual se apega. O jovem o aperta ansioso entre as
mãos, de tal forma que o velho percebe seu gesto. Perguntado sobre o conteúdo dele, o jovem
expõe sua admiração por Dostoievski, mas a narrativa especifica um dos sentidos em que o
escritor russo é idolatrado. É o mestre do desvendar da alma eslava”. Ou seja, Dostoievski
enquanto representante do realismo subjetivo. Outra passagem, mostra que, para ele, o
encontro é apenas um sonho, que deriva da realidade, onde verdadeiramente ele estaria.
Assim, o mais novo coloca o “encontro” em relação direta com a vida. Busca causas naturais
para explicar o que ocorre. Portanto, mesmo atirado ao insólito, nosso jovem escritor não
consegue pensar em outras causas que não as lógicas, em outro plano que não o real. De modo
semelhante, ele coloca a poesia em relação com o biográfico. Acredita que Whitman é
‘sincero’ e que suas experiências pessoais dão base a seus poemas. E porque ele leva em conta
a realidade; e porque quer ser diferente do velho; seu perfil combina com as conotações do
tempo objetivo (o tempo cronológico e sucessivo da realidade). A julgar de seu
comportamento, durante a narrativa, em um sentido mais amplo, este seria um escritor
realista. Afinal, como explica Arrigucci Jr.:
“A mudança é um dos fatos capitais [para o realismo], já que a mudança do
detalhe introduz o tempo [...]. É por isso que a verossimilhança não é uma
mera coerência da forma, o é uma mera coerência dos elementos trazidos
para a organização do discurso literário, ela envolve o senso da história,
porque os detalhes mudam: as coisas, os seres, as relações existem na
medida em que duram. [...] as coisas mudam, os personagens mudam, as
pessoas mudam. Esta idéia é a idéia do realismo, ou seja, o realismo literário
49
é um modo como o narrador capta a história através da mudança do detalhe,
o realismo está no tratamento do detalhe”
169
.
Em um de seus textos mais famosos, Borges dizia que “el tiempo es la
sustancia de que estoy hecho”
170
. Assim, se compreende, porque em nossos eixos de análise, o
jovem está associado ao criollismo, à realidade, mas também ao tempo objetivo, e aos
detalhes precisos. O realismo, segundo o mencionado crítico, é uma estética que se volta para
a contemplação da mudança no tempo, expressa através dos pormenores circunstanciais.
Então podemos retomar nossa fundamentação. O jovem está em 1918, quando na Argentina,
na poesia vigorava o Modernismo, influenciado pelo Simbolismo; e na prosa, o Realismo era
a estética em vigor, ao lado da valorização da cor local. Sabemos que, com o próprio Borges,
tem início na década de vinte o ultraísmo argentino. Portanto, de modo particular, todas esses
significados e movimentos artísticos, resgatam o panorama literário argentino dos anos 20. É
o período decisivo para a formação da Literatura Argentina moderna
171
. É ainda a geração de
escritores argentinos dos anos 20, na qual o mesmo Borges tem uma participação
significativa. Dessa forma, o jovem pode representar, simbolicamente, um olhar do narrador,
para com seu trabalho de juventude, e para com os trabalhos de sua mesma geração
172
.
O velho Borges é descrito como un señor de edad”, com os sinais da
passagem do tempo, com la cabeza gris”, com a memória falha (não sabe mais o nome da
praça ginebrina); e não anda sozinho, porque está cego. Ademais, está continuamente se
repetindo. Essa senilidade, se reflete no que ele acha que o jovem pensa de si: “un hombre de
más de setenta era casi un muerto”. Por esse motivo fazem pleno sentido suas afirmações ao
começo da narrativa, para garantir sua lucidez apesar da velhice. Em contrapartida, é o
professor e o contista, não o poeta do início de carreira. Ele é o apogeu, quando o que se
segue é o declínio.
De entrada, o velho é caracterizado por suas idéias filosóficas. Ele não
apenas está vivendo sua aventura, mas desde o início está fazendo reflexões. Primeiro, sobre a
passagem do tempo e as transformações que ela acarretaria à vida humana: “el río hizo que yo
pensara en el tiempo”. Depois, de um modo metafórico, na forma em que se refere ao
encontro (“si esta mañana y este encuentro son sueños [...]”), ele lança uma série de
proposições sobre a vida. Se ela seria sonho ou realidade. Se existiria um único sonhador, ou
se o real dependeria de uma percepção simultânea da humanidade. Se a morte seria o fim da
existência física, ou um despertar para novos sonhos. Se haveria um destino pesando sobre as
50
vidas humanas, ou se existiria livre-arbítrio. Ainda recusa a existência enquanto um mero
pressuposto, aceito sem questionamentos, mas sugerindo o caráter inteligente e harmônico das
funções vitais, leva o jovem a pensar, se este seria um fenômeno espontâneo e gratuito, ou se
atenderia um significado especial.
Além disso, o velho mostra preferência pelos temas metafísicos, tão
freqüentados pela obra borgeana. Pensar sobre Heráclito, diante das águas que correm, reitera
sua aproximação a esta classe de temas. Pela maneira em que comenta a história (o eterno
retorno) e a vida familiar (dentro do ciclo), ele parece voluntariamente buscar um olhar mais
intemporal sobre as situações. Mas a própria apresentação de um tópico filosófico sugere a
forma em que ele tomaria estes temas. Primeiro afirma “Solo los indivíduos existen”. Depois
duvida, “si es que alguien existe”. Ele não possui, como no caso do jovem, uma ideologia a
defender. Ao contrário, ele se opõe ao outro em vários assuntos. Na verdade, uma marca deste
personagem no conto parece ser a apresentação e a discussão das idéias, através da oposição
entre pontos de vista distintos. Mas o rasgo definitivo, surge a partir deste núcleo. Em sua
especulação, pode ser que a realidade não seja real. Pode ser que ninguém exista, quando ele e
o jovem existem, para nós. El hombre de ayer no es el hombre de hoy”, mas “al recordarse
no hay persona que no se encuentre consigo misma”. Na verdade, não são proposições
contraditórias, mas elas dependem de toda uma série de raciocínios, que desafiam o pré-
estabelecido. Assim, é uma marcante oposição ao pensamento comum, o que torna seu
pensamento paradoxal.
E se na linha do tempo, o velho está mais adiantado que o jovem; o mais
novo deveria ser o responsável por tudo o que é antigo em termos artísticos; enquanto, o velho
deveria ser o divulgador das novidades. Esta poderia ser a grande diferença entre os dois. No
entanto, em paralelo com a verdadeira obra borgeana, o velho Borges do conto não cultua “o
novo”. Seu diferencial é justamente dar continuidade à literatura anterior. Ele não oculta sua
preferência pelas metáforas tradicionais. Sua lembrança de El Doble, faz supor que nosso
narrador pode ter inspirado em Dostoivski, ao relatar sua aventura ‘pessoal’. Além disso,
vemos que ele recorre à memória feita de esquecimento. O recurso do qual ele se vale diante
do mais novo é recordar” um artifício de Coleridge. Vai copiar, mas também modificar o
recurso, utilizando algo comparável ao original. Mostra que a memória é criativa, que o
mesmo artifício torna-se ‘outro’ artifício, com as alterações. Ele se apropria da tradição ao
converter o alheio no próprio.
Em “A imortalidade”, Borges assevera que a própria memória, que lembra e
esquece, também é um recurso literário
173
. Ele aparece, por exemplo, em Historia Universal
51
de la Infamia, quando o escritor, recordando as vilezas, mas esquecendo as circunstâncias
biográficas, retoma as figuras de Billy de Kid e John Murrel, para recriá-las em sua
imaginação
174
; mas ainda admite no prólogo, que faz versões de estórias de Stevenson e
Chesterton
175
. Este tipo de retomada clássica, é uma idéia central para o panteísmo literário
borgeano, segundo Jaime Alazraki
176
. Isto é, o esquecimento (tanto quanto a lembrança),
como uma ponte pela qual a tradição se transforma em renovação, de modo que todos os
autores, revivendo nas obras uns dos outros, são convertidos em uma manifestação da própria
Literatura. Deste modo, a estética do mais velho, deduzida de seu caráter no conto, é a
reedição criativa da tradição.
Portanto, velho e jovem, ambos ‘copiam’. Entretanto, o jovem consagra os
grandes autores, mas ainda não consegue ser como um deles. Adere aos movimentos literários
de seu tempo. Quer a originalidade, imitando o que está em voga. Já o velho, “blasfema”. Tira
o pedestal dos grandes autores. Apresenta o modelo sem cerimônia e copia, mas reelabora.
Por isso, ele lança um comentário burlesco sobre o livro do jovem. Podés
alegar buenos antecedentes. El verso azul de Rubén Darío y la canción gris de Verlaine”. Ele
põe a desnudo as pedras fundamentais do trabalho do outro, fazendo trocadilho com nomes de
cores, “vermelho”, azul”, “cinza”. Além disso, chama o trabalho de Darío “verso azul”.
Poderia haver um sentido positivo, mas o arranjo faz pender para as negativas. É como se
todos os versos desse poeta tivessem tal característica. A ironia irrompe quando o título do
livro é reduzido a um mero adjetivo generalizador do trabalho do outro. Funciona como uma
espécie de “metonímia negativa” em que a parte poderia indicar o todo, mas no meio do
sarcasmo, fica sugerido que a parte - o adjetivo azul - é o todo; isto é, como se toda a obra de
Darío fosse uma reedição do que já estava em Azul. O mesmo se aplica à menção de Verlaine.
O narrador não assinala o título do poema aludido, “Canção de Outono”, com itálico ou aspas,
deixando tudo em minúsculas. À diferença do caso anterior, em que dizia “versos” para o
trabalho de Darío, aqui vai dizer “canção”. Sabe-se que a musicalidade foi uma característica
distintiva do Simbolismo. Portanto, nova redução transforma a obra simbolista em mera
ênfase na sonoridade. Neste caso, a leitura conotativa de “canção cinza”, seria a de música
triste, insípida ou antiga. O velho exerce uma crítica impiedosa destas estéticas, com sua arte
de injuriar
177
.
A ironia final é a do vocabulário buenos antecedentes” e “alegar”. O velho
quer delatar as fontes que ajudaram o iniciante. Sabe que o outro deseja escrever seu primeiro
livro, mas também sabe que tipo de idéias ele tem para levar a cabo seu projeto,
características do Modernismo e do Simbolismo. Contudo, utilizar vocabulário policial para
52
falar de poesia quando poderia ter dito ‘precursores’, é como sugerir roubo ou plágio das
obras anteriores. É sugerir que se trata de uma cópia, em que falta elaboração. A ironia é
recorrente em vários momentos ao longo do conto, sempre ao lado do velho. Aparece quando
pergunta ao jovem engajado se ele se sentia verdadeiramente irmão de todos os
mergulhadores e de todos os homens que vivem no lado par de cada rua. Está ainda quando
fala de seu país, e comenta que em tais circunstâncias, só faltaria trocar o ensino de latim pelo
ensino de guarani. Essa preocupação com a cultura argentina pode ser legítima, mas a forma
como o expressa é jocosa. A ironia é latente em suas observações. É com ela que o velho
dessacraliza os modelos do jovem.
Curiosamente, essa crítica ao trabalho do mais novo é o mesmo tipo de
crítica, que Borges exibia contra o Modernismo em seus ensaios juvenis. Ele costumava
atacar os modernistas argentinos, com o argumento de que copiavam tanto o fundador – Darío
- que em quase todos os seus versos, seria possível encontrar a palavra azul: “El rubenianismo
se ha estancado en una especie de juego de palabras que baraja las sempiternas naderías
ornamentales del cisne, las frondas, la lira [...] sin olvidarse por eso de los siete pecados
capitales y del socorridísimo adjetivo ‘azul’”
178
. Na maturidade, Borges reavalia e mostra
consideração ao trabalho de Darío e Verlaine. Ou seja, no conto, o velho está repetindo, para
o jovem, críticas que em sua juventude (real), ele endereçara ao Modernismo. É como se o
jovem tivesse de passar por isso, e construir estes afastamentos. Com isso, a narrativa sugere
que a crítica, a ironia e o humor, talvez tenham sido atitudes fundamentais para que Borges se
afastasse dos grupos literários de seu tempo de juventude. Ao criticar toda proposta em seu
entorno
179
, só restaria encontrar um caminho próprio.
Assim, enquanto o jovem detém seus raciocínios no real, o velho força a
realidade para além de seus limites. Enquanto o jovem pensa nas questões de sua época, o
velho se volta para os intemporais temas metafísicos. Enquanto o jovem acata as ideologias, o
velho tece questionamentos, chegando às raias do paradoxo. O jovem gosta de fórmulas, o
velho, de idéias. Enquanto o jovem cultua os autores consagrados, o velho mostra sua ironia.
Enquanto o outro faz questão de afirmar sua personalidade (quer ser o único Borges), o velho
assume desde o começo que o outro também possa ser ele. Igualmente, não se importa ainda
que seus recursos ou argumentos se pareçam aos que foram gerados anteriormente por outros
escritores. E se o jovem está ligado às escolas literárias de um determinado momento, o velho
Borges não aparece filiado a nenhuma estética
180
. Ele procura o acervo da tradição, com o
qual elabora versões, deturpa, altera, e faz sua peculiar utilização da memória. Ele se refere a
livros e autores de todos os tempos, mas a nenhuma escola. Como ele se burla de que o outro
53
tenha um “mestre”, deduz-se que ele possui um estilo próprio e portanto não precisa se filiar a
nenhuma corrente para produzir sua obra. Ele recusa a denúncia social e não se prende à
expressão dos sentimentos na poesia. É um contista, no modo da “mentira”, e das referências
aos livros. Todas estas características são relacionáveis tanto à obra borgeana, quanto ao
próprio Borges autor-personagem, ao qual aludem.
O uno coletivo – De um lado, o conto investia em um efeito de fragmentação, o qual
reforçava as diferenças entre os personagens, possibilitando sua associação a entidades muito
particulares e distintas entre si, como a geração literária argentina dos anos vinte e a obra
borgeana. Contudo, também existe no conto uma série de investimentos em um efeito de
unidade. Como se verá adiante, eles ajudam a construir a possibilidade de generalização
dessas associações primárias.
Em primeiro lugar, a unidade se configura a partir dos próprios recursos que
assinalam a união entre os personagens. Assim, o narrador é como uma espécie de Borges
arquetípico. O original do qual surgem outros de si. Já o velho se identifica com o narrador, e
além disso, afirma sua unidade com o jovem. Ademais, durante todo o diálogo, o velho tenta
provar ao desconfiado jovem que ambos são um. Ao longo da narrativa, o leitor se depara
com vários índices do mesmo efeito. Afinal, o jovem que responde ‘que não é Borges’, ainda
o faz com sua própria voz. Como em um pesadelo, o moço não assovia bem, porque o velho é
desentoado; e quando lhe pergunta Y usted?”, indagando da situação do velho no futuro, o
interlocutor não diz “yo”. Em sua resposta, o velho utiliza a segunda pessoa, (tú) “escribirás”.
Apesar das diferenças, o narrador sentencia que, “Su inevitable destino era ser el que soy”.
Contudo, nada é mais representativo desta unidade na desunião do que chamar o jovem “mi
alter ego”. O outro é um “outro eu”. Mas se nas narrativas, o alter ego é a personagem, cujos
pensamentos se parecem aos do autor, as declarações do mais jovem são surpreendentes. Não
lembram a madura estética borgeana, mas novamente sugerem que nela haveria algo deste
outro.
O velho profetiza o futuro do jovem: “Darás clases como tu padre y como
tantos otros de nuestra sangre”. Ele poderia ter apresentado seu ofício como um processo
evolutivo, em que cada novo membro tivesse uma posição superior no campo profissional à
dos seus ascendentes. Contudo, o trecho vem somar à idéia do retorno, do ciclo vital, e ao
tempo circular, na medida em que a ênfase não vai para a diferença em relação aos parentes,
mas para a igualdade. Seu raciocínio, é o de que o jovem fará o mesmo que o pai, e muitos
dos antepassados fizeram. Lembra que o outro é um Borges, como o velho e seus
54
antepassados o foram. Mas se um homem é dois, e ainda um representante de seu passado
familiar, fica sugerida a idéia de uma essência mais geral. Ainda é o tema borgeano de que um
homem é igual a todos os homens
181
.
Essa proposta aparece desde o início do conto. El água gris acarreaba
largos trozos de hielo”. Os pedaços de gelo metaforicamente reafirmam os efeitos do foco, já
que a fragmentação não quer dizer separação, mas apenas individualização dentro do ‘caudal’
ao qual se pertence. Toda a água é parte do rio, embora em muitos pontos ela esteja
solidificada e pareça separada do resto. Essas partes cambiantes e permanentes conformam
uma totalidade. Na lógica da narrativa, como o gelo, que é gelo e é rio; também o homem, é
uno (a parte), e é todos os homens (o todo). Sendo os protagonistas dois escritores, que
privilegiam, cada um, a realidade ou a imaginação, o conto assinala que eles são duas partes
de um todo maior, a própria Literatura.
Borges entre a biografia e a ficção - Desde a chegada do outro, começa a se avolumar um
grande número de dados autobiográficos, muitos para um conto tão curto
182
. Se
considerarmos que no Epílogo, o autor sugere ter escrito sua estória às margens do rio
Charles, na Nova Inglaterra, parece não restar dúvidas de que, a despeito de toda a intrincada
rede interna dos elementos composicionais, a narrativa joga com a realidade. No entanto, os
dados se ajustam ao movimento dos demais núcleos significativos. O texto foge ao biográfico
por meio de pequenas adulterações e inexatitudes
183
, mas sobretudo pela série de recursos,
com os quais se obtém o efeito textual de “Éramos demasiado distintos y demasiado
parecidos”; paralelo, ao efeito de ‘um homem que é igual a todos os homens’. Um autor
realista poderia ter tentado um retrato daquele que fora. Um autor clássico poderia ter
utilizado, apenas seu nome e ter construído uma figura completamente ficcional. No entanto,
o conto opta por uma terceira possibilidade, a ficcionalização de si mesmo. Em meio a tantos
dados comprováveis, o leitor não pode afirmar, sem o socorro das biografias, se ele inventa
ou relata as circunstâncias da morte da avó, se as mencionadas declarações do pai procedem
ou são forjadas. Seja como for, verifica-se que existiu um especial cuidado de seleção e
preenchimento das personagens emprestadas ao mundo real, valorizando a compreensão da
literatura, enquanto mediação.
De certa forma, este conto põe em relevo a conversão da pessoa, na
personagem. Mas o elemento da organização textual que mais fere a realidade, ainda vem dela
mesma; ou melhor, do recorte que Borges procura fazer da realidade biográfica. Ele busca a si
mesmo em dois momentos muito distintos de sua vida, provocando questionamentos. Ainda
55
que fosse possível capturar fotograficamente um indivíduo na literatura, qual seria o
verdadeiro, o homem de ontem ou o homem de hoje? Um romance que procurasse seguir
fielmente a multiplicidade de idéias, atitudes, indecisões, e papéis assumidos ao longo de uma
vida, em suas diferentes fases, não se tornaria desconexo? Outros momentos de uma mesma
vida não seriam capazes de falsear e invalidar esse retrato pela incoerência?
Como outros assuntos do conto, a questão biográfica também é um tópico
que remete à obra borgeana. Contudo, Edna Aizenberg identifica uma “estética da
impessoalidade” na obra borgeana, ao entender que nela haveria uma eliminação do subjetivo,
enquanto fonte e conteúdo dos textos, nos quais a composição se sobreporia a “desplegar su
personalidad”. Ela observa um apagamento das tendências individuais, pelo qual, la nadería
de la personalidad se convierte en un hecho tanto de lo escrito como del escritor”
184
. Essa
impessoalidade, associada a um ‘classicismo’ borgeano, tem sido bastante difundida pela
crítica. De fato, é uma característica detectável em vários de seus textos
185
. Por outro lado, a
idéia parece incompleta, pelo intenso trabalho com o qual Borges promove a figura de si
mesmo.
O uso da biografia é recorrente em sua obra, embora atenda a variados
efeitos. Poemas com fundo biográfico estão presentes, desde Fervor de Buenos Aires.
Entretanto, em Ficções, Borges começa um arrojado projeto de ficcionalização do real, e
especialmente de sua realidade isto é, do mesmo Borges. A septicemia que o faz sofrer no
final da década de trinta é atribuída, junto a vários dados pessoais, ao personagem Juan
Dahlmann, de “El Sur”. Em “Tlon, Uqbar, Orbis Tertius”, o episódio arranca depois de uma
conversa entre ‘Borges’ e seu amigo ‘Bioy’. Em “El Aleph”, o escritor apaixonado pela
perdida Beatriz, dizia “soy yo, Borges”. É um de seus jogos favoritos o ‘fingir que tais e
quais coisas me aconteceram a mim, Borges’. No poema “El Ciego”, dos anos setenta,
enunciados como "Desde mi nacimiento que fue el noventa y nueve". Igualmente muitos de
seus poemas tratam da cegueira, existindo mesmo um ensaio integralmente dedicado a este
tema
186
. De modo que, sob um mesmo nome cabem vários Borges. A figura exata do autor
pouco a pouco vai se tornando imprecisa, embaralhada em meio a uma multiplicidade de
figuras imaginárias, mas que aproveitam seus dados pessoais.
Contudo, é depois dos anos sessenta, quando o uso do biográfico, adquire
especial destaque. Segundo James Woodal, com “Borges y yo”, o argentino chega a uma
espécie de fórmula de sucesso com a ficcionalização de sua persona de autor, pois “na
manobra mais inteligente [...] de sua carreira literária, Borges havia se tornado seu duplo. O
biógrafo alerta que a bela prosa poética, em primeira pessoa, comenta em tom autobiográfico,
56
interesses que supostamente pertenceriam ao escritor (ampulhetas, mapas), mas que
certamente são falsos
187
. Mariângela Paraízo faz uma incursão diferente, mostrando como
na vida real, Borges efetuou manobras que o tornaram um personagem de si mesmo
188
. Além
disso, com sua Autobiografia e as declarações nas entrevistas, vê-se que ele elabora passagens
e temas de sua vida de um modo literário. Também Arrigucci Jr. percebe que deliberadamente
Borges construiu ao redor de si o mito do grande escritor cego
189
. O resultado é que ele
inverte um dos caminhos mais tradicionais da literatura. Não a realidade entra para a
ficção, mas a ficção avança sobre a realidade.
O Outro e Borges Um dos personagens mais famosos de Borges, Funes é o possuidor de
uma memória exata, acumulativa, disposta a abarcar o sucessivo e a multiciplicidade do
universo, de modo que “En el abarrotado mundo de Funes no había sino detalles, casi
inmediatos”; em contrapartida, o narrador assinala que ele “era casi incapaz de ideas
generales, platónicas”
190
. De modo comparável, vemos que no conto é gerada uma tensão
entre o mundo das arquetípicas estruturas da obra borgeana e o mundo das precisões, ligado à
geração de vinte; entre o clássico de uma e o realismo de outra. Em certos momentos estas
tensões eclodem em nossa narrativa.
Ao redor dos personagens gera-se um sentido de individualidade e
coletividade. Em favor do último, o Borges protagonista é um homem igual a vários homens.
São vários Borges, o de 1918, o de 1969, o de 1973. Se um homem pode ser dois ou três
homens, fica sugerido que poderia ser todos os homens, como vimos. Com esta classe de
generalizações, o conto vai apagando os rasgos particulares de seu modelo humano. Por outro
lado, um movimento de individualização. Na divisão entre velho e jovem, a narrativa
procura lembrar o quanto alguém pode ser diferente de si mesmo, nos diversos momentos de
sua vida. Os dois protagonistas são bem contornados, e inclusive discutem seus pontos de
vista, como se fossem muito diferentes um do outro. Mas no Epílogo, o autor revela seus
propósitos ao expor que sua tarefa nesta narrativa foi “conseguir que los interlocutores fueran
lo bastante distintos para ser dos y bastante parecidos para ser uno”
191
. Esse registro destaca
quanto trabalho ele teve na especial elaboração destes personagens; quanto trabalho teve
Borges, para obter ‘estes Borges’ diferentes e iguais entre si. Em paralelo, torna a narrativa
repleta de dados autobiográficos. Desse modo, tais esforços do autor parecem assumir uma
clara direção. O que eles nos mostram é que uma narrativa pode estar abarrotada com
referências biográficas; ainda assim, nas relações dos mesmos com as estruturas textuais, e
através dos efeitos, desejados ou impensados, é possível que este personagem acabe
57
escapando ao modelo real. Portanto, além dos efeitos de individualidade e coletividade
mencionados, o epílogo deixa ver que foi empregado todo um arsenal de recursos, que
indicam o quanto a personagem pode ser diferente da pessoa. Através de todos estes recursos
e efeitos capazes de transfigurar mesmo uma grande quantidade de dados verificáveis, o conto
apresenta um primeiro argumento contra o realismo: não se pode apreender um ser humano
em sua totalidade, tal qual ele é, ou tal qual ele foi através da literatura.
Na categoria temporal, coexistem duas percepções: uma subjetiva; e uma
objetiva. Os protagonistas percebem a “duração do episódio. Quando o velho comenta a
situação familiar, ela está sob a concepção do ciclo vital. Quando comenta a história, ela é
pensada a partir do eterno retorno. Assim, observa-se uma construção do tempo, em que
ademais de subjetivo e fluido, ele parece ser durativo e circular. No entanto, uma segunda
estruturação temporal. Os personagens têm em conta o tempo cronológico; uma
temporalidade análoga ao fragmentado tempo heraclitiano. O velho descreve seu passado ao
jovem, apresentando-o, sob a perspectiva da sucessão. Configura-se assim um tempo exterior
e fragmentado, linear e sucessivo.
Quanto ao espaço, novamente há duas posições - sonho ou realidade. O
velho afirma que o encontro tem uma duração maior do que comportaria um sonho. Isto leva a
crer que estão na realidade. O narrador ainda declara que, “si lo escribo los otros lo leerán
como un cuento y, con los años, lo será talvez para mí”. Neste caso, novamente se percebe (a
provocação de) que, para o narrador o que ocorreu foi real. Inclusive se refere ao episódio,
como “el hecho”. Porém, índices de que o encontro seja um sonho, pois o velho se sente
cansado e tem uma sensação de retorno anterior à ocorrência. A percepção durativa do tempo
ainda ajuda a construir esta hipótese. No entanto, apenas uma leve atmosfera onírica na
narrativa. Borges poderia ter levado o diálogo ao “stream of consciousness”, ter insistido em
deturpações imagéticas, ou ter criado ilogicidade e caos evidentes. Contudo não o faz,
deixando a questão do sonho em aberto.
Portanto, o conto está cheio de efeitos duais. Seus investimentos parecem
desejar as sendas do ambíguo, e pretender sobretudo o impossível, já que a mesma pessoa não
pode existir em dois tempos; duas cidades não podem ocupar o mesmo espaço; a realidade
deve ter existência material por si mesma ou estará na dependência de seus sonhadores; o
tempo tem que ser fragmentado ou ideal. Por toda parte surge uma tensão derivada de
elementos que não podem coexistir. Desse modo, fica clara a aposta borgeana - a dúvida.
Duvidar das certezas sobre o ser humano, sobre o tempo, sobre o espaço. Ao investir em duas
possibilidades de entender e sentir as transformações, já não se sabe mais o que é o tempo – se
58
é um sentimento interior de que as coisas passam, ou se é apenas uma convenção externa; se
ele dura e flui, ou se ele junta os segundos que se sucedem um atrás do outro. Ao apresentar
dois espaços que insolitamente se reúnem em um, e questionar mesmo a existência deste
único plano, não se sabe onde de fato estão eles. Como na Invenção de Morel, não se sabe
se eles (como também os homens reais) existem ‘em sua ilha’ ou se são meros protagonistas
no filme de um criador. Portanto, entende-se que nesta narrativa, Borges rejeita a literatura
realista com o pressuposto que mais fortemente pode afetá-la: a incerteza acerca da natureza
da realidade. Isso ocorre, porque o ponto de partida destes escritores é a certeza de que o real
é somente o que está diante de seus olhos e de que é possível representá-lo. Assim, as
principais pilastras de sustentação da realidade são implodidas, para mostrar quanta incerteza
paira sobre aquilo que os realistas tem por certo em sua escritura.
O relato da história familiar perde sua exatidão sob o movimento da natureza
e o relato da história mundial se acha submetido a uma doutrina filosófica. Como se verá
adiante, a construção do panorama histórico dos séculos XIX e XX tenta aproximar
referências a certos fatos de um período e suas supostas “repetições” em outro tempo, através
do tema da tirania recorrente. Mas essa abordagem é uma escolha do narrador. Escolhe este,
como poderia ter optado por outro aspecto. Ademais, acreditar que os fatos de uma época se
parecem aos de outrora, é nitidamente uma visão subjetiva, pois as motivações de cada tempo
são outras, os rivais, as situações são distintas. Ele ainda comenta o panorama mundial
contemporâneo, e vê-se que somente a afinidade dita suas sentenças, quando “Ahora las
cosas andan mal. Rusia está apoderándose del planeta [...] América no se resuelve a ser un
imperio”. Ao falar do país, outro ponto de vista pessoal: “Cada día que pasa nuestro país es
más provinciano”. Salienta que só faltaria substituir o ensino de latim pelo guarani. Ou seja, a
base de sua afirmação é um ponto de vista particular, em que se julga a situação do país, por
um aspecto da vida cultural. Assim, a descrição da atualidade na cena global é francamente
partidária; e na cena local, a doxa é responsável por seus comentários. É lógico que o
personagem pode emitir suas opiniões e contar suas estórias de modo subjetivo, mas um
arranjo especial para isto na narrativa. O protagonista é um escritor, e neste trecho ele diz “En
lo que se refiere a la historia [...]”. Assim, ele avisa que vai narrar a história da família,
depois a do país e a do mundo, mas, ponto por ponto, a linha do tempo é atada aos nós da
subjetividade. Surge a terceira idéia contra o realismo: a ficção não acomoda relatos fiéis da
história, mas apenas visões subjetivas da mesma.
Como em sua lógica o encontro é ‘real’, o velho sugere estar despreparado e
não ter algo impressionante para dizer neste momento. Compartilha com o leitor sua
59
observação de que “salvo en las severas páginas de la Historia los hechos memorables
prescinden de frases memorables”. Entende-se que a história tem frases bonitas, mas a vida
não é tal qual as sonoras frases utilizadas para descrevê-la. O narrador quer corrigir esse
problema, mostrando que, na vida real, “Un hombre a punto de morir quiere acordarse de un
grabado entrevisto en la infancia; los soldados que están por entrar en la batalla hablan del
barro o del sargento”.Esse pensamento lembra que, ao debruçar-se sobre um fato, os
narradores realistas, como os historiadores, têm em mente idéias muito abrangentes, grupos,
abstrações, movimentos sociais. Entretanto, se os historiadores tendem a utilizar este tipo de
descrição, o conto proporciona uma visão diferente da forma em que os fatos alcançam as
pessoas. Faz pensar que a realidade chega, fora da literatura, através das vivências individuais,
no contato com pequenas coisas, com tarefas que devem ser executadas, em diálogos com
pessoas próximas, etc. Assim, ao modelo da historiografia tradicional, ele opõe sua própria
convicção do que seria a realidade. De acordo com ela, um relato seria mais realista, quanto
mais próximo estivesse da parcela do real, que chega ao indivíduo em sua vida quotidiana; e
quanto menos estivesse tentado a dar conta de fenômenos coletivos. Em seu Prólogo ao
Facundo, ele usa uma citação de Shopenhauer, na qual o filósofo assevera, que fazer história,
é como ver desenhos nas nuvens. Desse modo, no prólogo-ensaio, a historiografia tradicional
é impugnada, por sua tentativa de esconder a presença da subjetividade e o uso do ponto de
vista em seus relatos. De sua leitura do volume de Sarmiento, entende-se o que Borges detecta
nos relatos da historiografia. Ele intuición”, “adivinación genial”, “inventiva memória”,
influências da tradição literária, e tudo isso filtrado por ódios e afetos pessoais
192
. De maneira
que aparece uma quarta idéia contra o realismo: as pontes da ficção não comportam os
pesados relatos dos movimentos sociais.
Quando os impedimentos à representação fiel não vêm do objeto que se
deseja apreender, eles surgem como algo inerente ao discurso do escritor. O narrador tenta
resumir sua conversa com o jovem, mas teme “no haber dicho otras cosas que las que suelo
decir a los periodistas”. Entrevistas costumam girar ao redor de alguns temas e questões
pertinentes à vida e ao trabalho do entrevistado, mas são quase invariavelmente os mesmos
temas, afinal o entrevistado é o mesmo e somente alguns aspectos de sua vida são
interessantes para o público - não todos. Além disso, só conta de si o que deseja que o público
saiba. Ou seja, nosso personagem-escritor narra trechos de sua própria vida a (outro de) si
mesmo, e ainda suspeita haver repetido as mesmas idéias às quais está sempre voltando.
Não acredita que tenha sido sincero, nem pensa que tenha dito coisas novas ao outro.
Desprende-se desta fala, a visão de uma literatura repleta de exercícios da subjetividade que
60
com o tempo se cristalizam, de modo que os autores passariam a repetir sempre um mesmo
repertório de idéias ou argumentos. Portanto, questiona-se a expressão da realidade, quando
formas e idéias também se convertem em hábito.
Outro problema seria o esquecimento. Para questionar a idéia do velho, de
que o encontro é real, o jovem indaga, ¿Cómo explicar que [usted] haya olvidado su
encuentro con un señor de edad que en 1918 le dijo que él también era Borges?” Afinal, se
são o mesmo, o velho o velho deveria lembrar-se deste encontro. Borges foge com uma
desculpa, mas o jovem insiste no assunto. Então, a resposta poderia ser irônica, mas na
verdade é sugestiva. O velho assegura que sua memória se parece ao esquecimento. Portanto,
se o jovem deseja lembrar perfeitamente o passado, e quer o exato nome da praça em
Genebra, o velho não. Mostra que não importância ao que se passou exatamente. Mas,
que o narrador se identifica com o velho, a dúvida, que recaíra sobre a identidade, o tempo
e o espaço, passa, com isso, a incidir sobre o próprio relato ele é a narração exata do que
aconteceu, ou apenas o que narrador preferiu ou conseguiu se lembrar? Isto não deixa de
incidir sobre a identidade, a qual o narrador procura através do ocorrido, sugerindo que
mesmo a autobiografia mais “sincera”, talvez não consiga expor a verdade a respeito de uma
vida, produzindo apenas uma lembrança inexata daquele que se foi um dia. No início, o
narrador avisa estar escrevendo algo que lhe ocorreu três anos antes. Ademais, o relato
existe porque o jovem, que o velho fora algum dia, teria esquecido o que aconteceu. Se o
jovem se lembrasse até a maturidade do que ocorrera, não haveria espanto, logo não haveria
relato. Afinal, das angústias provocadas por um inesperado acontecimento, surge essa
narrativa. Assim, a julgar do comportamento deste personagem-escritor, a realidade passaria
pelo filtro da memória, em parte recuperando-a, em parte esquecendo. Através destes fatores
de interferência na escritura, configura-se outra idéia: talvez a ficção não possa alcançar um
registro fiel, já que a própria memória do escritor é capaz de alterar os fatos.
Se o escritor tem suas tendências, o conto lembra que o leitor também tem as
suas. A situação dos protagonistas parece insolúvel. As descrições da família e da história não
convencem o jovem. O velho apresenta falhas de memória e ademais não lembranças
comuns. O diálogo fica tenso em virtude das diferenças e o narrador confessa com certo
desapontamento a dificuldade de chegar a um acordo com o jovem: Medio siglo no pasa en
vano”. Se o encontro é um sonho, este é um conflito interno, sem resolução. Se é real, o
grande obstáculo para o entendimento é o fato de pertencerem a gerações diferentes. São
tempos diferentes que implicam experiências e visões de mundo diferentes. O velho pensa de
um jeito e o jovem possui outro entendimento das coisas. Para o jovem é impossível entender
61
do que o velho está falando quanto à ‘Rússia estar tomando conta do planeta’, que a guerra
fria é algo que ainda não existe em seu tempo. Além disso, para o jovem que escreve Los
Ritmos Rojos, o socialismo é uma esperança; não faz sentido que as coisas andem mal por
causa dos russos. Do mesmo modo, para o velho, é muito difícil entender e aceitar que o
jovem queira uma literatura engajada. Em sua concepção, a arte merece os temas imortais.
Seguindo essa lógica da narrativa, a distância temporal pode impedir que o leitor de uma obra
literária reconheça e compreenda um fato histórico com o significado planejado por seu autor.
Ou ainda, concepções diversas dos fatos, ou ideologias opostas, podem fazer com o que o
leitor não entenda ou se recuse a aceitar o entendimento de uma narrativa que obedeça a uma
visão oposta à sua. Este argumento está ainda no Prólogo ao Facundo: a recepção de uma
obra pode distorcer ou recusar ‘a realidade’ pretendida pelo autor.
Neste conto, até o sequenciamento das ações encontra o seu “duplo”.
Desde o início, o velho e o jovem têm suas hipóteses para a dificuldade em que se acham.
Como dito, o jovem quer encontrar uma explicação natural; assim, arrisca que está sonhando.
Enquanto tenta dar uma coerência para um encontro insólito, o velho aceita que até mesmo a
vida pode ser fantástica. Ou seja, o jovem se debate para encontrar as razões de um fato que é
impossível segundo as regras da realidade. Ele pensa em ação e reação lógicas. Contudo, o
ilógico é tentar explicar um acontecimento fantástico que não tem explicação. Por fim,
inspirando-se na flor de Coleridge, o velho consegue encontrar uma saída, mas ela não segue
as leis da realidade. Pede ao jovem suas moedas, e retira algumas cédulas do bolso, mas esta
solução não passa de um artifício, bem explicitado, pois o narrador avisa que as notas de dólar
não têm data. Sorrateiramente ainda anota que a cédula pertence ao ano seguinte (1973). No
entanto, é essa a prova que o jovem (e o leitor com ele) tem de aceitar para concluir que um
homem pôde falar consigo mesmo, no passado ou no futuro. Na verdade, esse coringa
narrativo é sobretudo, uma prova de displicência para com a reprodução, passo a passo, do
desdobramento das ações na vida real. Segue as leis da literatura, dentro da borgeana
causalidade mágica
193
. Como na magia, em que o boneco vale pelo homem, no conto, a
moeda é um signo do mundo material. É ela que comprova seu ponto de vista, por mais falsa
que seja. Assim, o conto revela a oposição de duas causalidades: a literária, de que o velho se
utiliza; e a (suposta) causalidade vital, de que o jovem se vale. Portanto, uma última idéia é a
de que não é preciso deixar-se arrastar unicamente pelo desencadeamento natural dos fatos, na
estrutura literária. A literatura tem a seu dispor uma necessidade própria que visa atender à
verossimilhança, e não à vida.
62
Emir Rodríguez Monegal, entende que no ensaio, La Flor de
Coleridge”, Borges está discorrendo sobre quatro artifícios que são capazes de destruir o
realismo em uma narrativa: a) a inclusão de uma obra de arte dentro de outra obra de arte; b) a
contaminação da realidade pelo sonho; c) a viagem através do tempo; d) o tema do duplo
194
.
Em “El Otro” temos a menção a El Doble. O velho não pode saber se o encontro foi um
sonho, ou se tudo ocorreu na realidade neste caso, teria havido uma viagem no tempo.
Ademais, encontra um duplo de si. Desse modo, observadas as relações entre conto e ensaio, a
partir de Monegal, toda a narrativa parece ter sido projetada para um duelo ficcional entre a
obra borgeana e, seu outro, o realismo.
O compromisso com o descompromisso – O narrador conta que o jovem "Sin hacerme caso,
me aclaró que su libro cantaría la fraternidad de todos los hombres. El poeta de nuestro
tiempo no puede dar la espalda a su época”. Desse modo, vemos que o jovem se pretende um
escritor comprometido. Desde o começo sabemos de que “igreja” ele está próximo, a russa.
Seu livro de poemas é vermelho”, sua ideologia é socialista, essa é sua fé. Los Demonios, o
romance que ele carrega, espelha seu conflito com o velho neste aspecto. Piotr Stiepánovitch
é um escritor que não escreve. Faz discursos eloqüentes e está às voltas com a política e a
causa dos oprimidos, mas não consegue dedicar-se ao seu ofício. O intertexto repete o dado
encontrado na referência à segunda geração do Romantismo uruguaio, a de Regules:
escritores voltados para a política, mas com uma pequena produção
195
. Para o jovem, as
preocupações com o social fazem parte de sua literatura. Desse modo se entende, porque no
conto, ele se lembra de que o pai teria dito de alguém que “era como los gauchos, que no
quieren comprometerse, y [...] por eso predicaba en parábolas”. Assim, se o jovem quer
engajar-se abertamente, a fala do pai parece aludir a outros escritores argentinos, que
desejando transformar as pessoas através de sua literatura, estariam buscando formas menos
explícitas de fazê-lo.
Este é um ponto importante para entender que o jovem do conto não é igual
ao jovem Borges da realidade. Vimos em nossos pressupostos teóricos, que ainda vivendo na
Europa, Borges criticava a presença da política dentro dos textos literários
196
. Por outro lado,
sabe-se que na geração argentina dos anos vinte, havia o grupo de escritores boedistas, entre
os quais vigorava a idéia de que a literatura deveria servir às causas sociais. Inclusive é
interessante notar que alguns dos textos dos boedistas assumem o mesmo rasgo que Borges
lhes confere no conto. No discurso destes escritores, o compromisso no exercício literário é
assumido como uma espécie de
197
. O Borges da etapa dos anos trinta, neste aspecto, é
63
semelhante ao jovem que vivera na Europa. Mesmo escrevendo sobre Evaristo Carriego, e
tendo nele um precursor em diversos aspectos, não aceita o compromisso. Segundo Olea
Franco, se a preocupação com as desigualdades sociais levaram Carriego “a una lacrimosa
estética socialista”, Borges recusa essa direção, pois “su escritura no apela nunca a los
sentimientos de conmiseración o de solidariedad de sus lectores mediante la relación de las
miserias humanas”
198
. Ainda em 1970, em um prólogo para o Informe de Brodie, o escritor se
expõe seu parecer de forma aberta:
“não sou, nem jamais fui, o que antes se chamava um fabulista ou um
pregador de parábolas e atualmente um escritor comprometido. Não aspiro a
ser Esopo. Meus contos, como os de As Mil e Uma Noites, pretendem distrair
e comover, não persuadir. Esse propósito o quer dizer que me encerre,
segundo a imagem salomônica, em uma torre de marfim
199
.
Assim, sabemos que Borges é um autor que preconiza o prazer da leitura.
Deseja a emoção do leitor, mas não a transformação da sociedade através da apresentação de
suas chagas sociais. Neste aspecto, o velho, personagem do conto, aproxima-se do escritor
real. Não está comprometido com nenhuma causa. Logo ao início, diz que apesar de ter
perdido muitas noites de sono em virtude do encontro, “Ello no significa que su relato pueda
conmover a um tercero”. Quando o jovem apresenta suas idéias engajadas, o velho é irônico:
“le pregunté si verdaderamente se sentía hermano de todos. Por ejemplo, de todos los
empresarios de pompas fúnebres, de todos los carteros [...]”. Através da enumeração caótica,
e pela inserção de elementos ridículos, gera-se uma redução ao absurdo. Com a figura
retórica, o velho combate a ideologia do jovem, ridicularizando-a
200
. Quer mostrar que os
mencionados oprimidos são as pecinhas no jogo de escritor comprometido do outro. Como ele
não os conhece, não valem por si mesmos, mas tão somente por sua função: é a massa de
“parias e oprimidos” (os peões) que ele, o poeta, deseja representar. Quando o jovem vem
com este discurso, o velho responde que Sólo los individuos existen, si es que existe
alguien”. De modo que aparece seu primeiro argumento contra o compromisso. Sob este
ponto de vista, os escritores que se pretendem engajados não possuem uma preocupação
autêntica pelo que seriam apenas entidades abstratas a Massa, a Humanidade, o Povo, etc.
poderia haver um interesse genuíno dos escritores, em se tratando de indivíduos, aos quais
o poeta conhece, e aos quais, portanto, poderia verdadeiramente estimar.
Ao mesmo tempo, essa sentença do velho sobre os indivíduos também
suscita os problemas ontológicos e os temas metafísicos, tão caros para Borges. Sua resposta
parece sugerir novo problema no tocante ao engajamento, o de ligar a literatura a temas
64
contingentes. Uma vez mais, enquanto o jovem está voltado para um tempo determinado; o
velho está ligado a questões perenes. Na passagem da biblioteca, o velho faz com que o jovem
se lembre da literatura universal; na passagem sobre o compromisso, vai chamá-lo a temas
duradouros; como nos dois últimos parágrafos, ao narrar a biografia e a história, mostra como
ele deveria tratar esses temas; colocando-os em uma perspectiva mais ampla, e mais perene.
Ele trata da família pelo ciclo vital e aborda a história à luz dos seus retornos, isto é, trata do
particular pelo geral, e trata de fatos históricos, atando-os a outros fatos históricos, de modo a
produzir questões eternas e universais; até porque, elas poderiam igualmente recobrir os
problemas locais.
Dissemos que, em seu momento de maior nervosismo, o jovem aperta um
livro entre as mãos. Como ele, o personagem deste romance é um socialista. Em uma das
passagens deste livro, o escritor Piotr faz um acalorado discurso em favor da revolução,
mostrando-se comprometido. Quando termina, seu amigo Chatov faz duras críticas aos
revolucionários e a ele, indiretamente: “Nunca esses homens que o senhor alude amaram o
povo, nunca sofreram por ele, nunca lhe sacrificaram nada; compraziam-se simplesmente nas
próprias imaginações”. Defende que “Ninguém pode amar o que não conhece [...] Não o
senhor e eles não conhecem o povo, como não têm pela plebe senão o mais abominável
desprezo”
201
. Chatov, seguindo uma ideologia cristã, vindica um interesse genuíno pelas
pessoas enquanto indivíduos, o que dependeria, segundo ele, do contato pessoal. O velho
Borges utiliza quase o mesmo argumento, sobre a importância dos indivíduos em si, a partir
de outro ponto de vista, não-cristão.
O mesmo assunto aparece, quando o mais velho confessa que não sabe “la
cifra” dos livros que o jovem escreverá. Em espanhol, “cifra” se refere não somente à
quantidade, mas também à existência de mensagens secretas, isto é, cifradas. Na ambigüidade,
o mais velho está afirmando que não sabe o número dos livros que irá escrever, mas também,
que não sabe o significado dessas mesmas obras. Esse sentido se reforça quase ao final da
narrativa, no instante em que o jovem comenta, que nesta noite do encontro, ele deveria ir ao
bar Crocodile. No conto homônimo de Dostoievski, o protagonista Ivan Matviéitch sai a
passeio com sua mulher e é engolido por um crocodilo em uma galeria de lojas. O problema é
que continua vivo e se sente cada vez mais sábio dentro do animal, enquanto fora se discute
como tirá-lo de lá, sem matar o bicho. O conto do russo é um signo do inesperado, pois se é
inusitado ser engolido por um crocodilo em uma grande cidade, mais surpreendente é seguir
vivo dentro dele. Houve muita controvérsia ao redor do significado desta narrativa. Joseph
Frank explica que leitores comuns de Dostoievski acreditaram que ele fazia uma crítica contra
65
a implementação de uma política de exploração capitalista na Rússia - uma primeira
interpretação. Na época, foi acusado pela intelectualidade progressista da revista A Voz de ter
feito uma alegoria satírica do exílio de um de seus principais expoentes, Tchernichévski um
segundo sentido. O caso é que o escritor os desmentiu. Afirmou em seus Cadernos de
Anotação que tinha em mente criticar as doutrinas desumanas propostas pela Palavra
Russa
202
. Até aqui, o conto parece remeter ao problema da recepção textual, mas não é apenas
isto. Borges percebeu várias situações semelhantes a esta:
“[...] lo de menos son los propósitos. El ejemplo clásico es el Quijote;
Cervantes quiso parodiar los libros de caballería, y ahora los recordamos
porque acicatearon su burla. El mayor escritor comprometido de nuestra
época, Rudyard Kipling, comprendió al fin de su carrera que a un autor
puede estarle permitida la invención de una fábula, pero no la íntima
comprensión de su moraleja. Recordó el curioso caso de Swift, que se
propuso redactar un alegato contra el género humano y dejó un libro para
niños. Regresemos pues, a la secular doctrina de que el poeta es un
amanuense del Espíritu o de la Musa. La mitología moderna, menos
hermosa, opta por recurrir a la subconciencia o aun a lo subconsciente”
203
.
Este texto é um Prólogo a Facundo: civilización i barbárie, de Faustino
Sarmiento, o qual comporta denúncias explícitas ao governo de Rosas. Em seu prólogo-
ensaio, Borges valoriza o volume na condição de ensaio literário, mas procura negar-lhe o
status de testemunho de um tempo. Nele, a história é borgeanamente apresentada como algo
complexo, que se modifica a todo instante, e que não possui um movimento ou um sentido
definido. Portanto, como algo de difícil apreensão. Ademais, Borges aponta para vários
“filtros” (memória, leituras e outros mais), sugerindo que até mesmo a historiografia
tradicional não consegue dominar de todo a subjetividade do narrador. Como aparece no
trecho citado, ele ainda alerta para a interferência da leitura e do subconsciente, os quais
poderiam fazer com que o sentido, inicialmente pretendido para uma obra, pudesse ser
desvirtuado em quaisquer destes momentos. Com isso, a interessante argumentação deste
texto se volta contra o compromisso, pois, se ele mostra que seria difícil para a historiografia
registrar fielmente a realidade, sugere que esta seria uma tarefa ainda mais árdua para o
discurso literário. No Prólogo a La Rosa Profunda, Borges assevera que seria inútil ter em
mente uma moral pronta para cada conto ou poema, quando a obra conserva um caráter mais
ou menos autônomo em relação aos desejos do artista, e conseqüentemente, "El concepto de
arte comprometido es una ingenuidad, porque nadie sabe del todo lo que ejecuta
204
. Em
outras palavras, o sentido da obra literária seria incontrolável.
66
Contudo, se o engajamento fica vedado pelas críticas expostas, nossa
narrativa formula uma ligeira concessão, isenta de qualquer compromisso. Entre os livros da
biblioteca, existe algo que destoa dos demais. É o único livro escrito por um argentino.
Contém denúncias sobre um governo. Por acréscimo, o velho comenta que ele vem com uma
dedicatória de seu autor. Trata-se de Rosas y sus opositores, do jornalista Rivera Indarte, o
qual foi um dos maiores inimigos do tirano Juan Manuel de Rosas. O mencionado Las
Tablas de Sangre” é o primeiro apêndice deste libro, contendo uma extensa lista de vítimas
do regisme rosista; o segundo se chama “Es acción santa matar a Rosas”
205
. Em paralelo,
quando nosso Borges narrador rememora a história argentina no século XX, ele vai dizer que
houve outro Rosas em 1955, em uma clara alusão a Perón. É conhecida a indignação de
Borges contra o governo peronista - indignação autêntica, porque a mãe e a irmã do autor
foram presas a mando do ditador
206
. Monegal comenta largamente o antiperonismo
207
de
Borges, mostrando que críticas a Perón aparecem no conto “La fiesta del Monstruo”
208
.
Também Arrigucci Jr alerta que na obra borgeana referências “ao passado da humanidade
e à história contemporânea, a exemplo dos episódios da Segunda Guerra [...] ou das questões
específicas de ideologia e política, como a crítica direta ao peronismo que várias vezes ele
fustigou [...]”
209
. Assim os críticos percebem este aspecto na ficção borgeana.
A partir destas explanações, é possível ler, em nosso conto, uma via através
da qual, elementos que remetem ao campo político são naturalmente inseridos dentro desta
produção; é uma idéia que consta do Prólogo ao Facundo. Nele, Borges dizia que, Sarmiento,
ao tentar narrar a situação do país, o fazia a través del profundo amor y del odio justificado
[ao partido federal]”
210
. Sarmiento queria narrar epsiódios da história argentina e suas
simpatias e desavenças pessoais transpareceram no livro; não apenas de modo direto (não é a
isso que o trecho alude), mas conformam a própria visão da história que o ensaísta vai
apresentar. Portanto, nem compromisso, nem clausura. De um lado, o conto assinala que a
intenção engajada pode fracassar; de outro, lembra que a obra literária não está isenta de
captar, e revelar, em algum momento, por intermédio de suas paixões, as opiniões políticas
pessoais de seu autor.
No entanto, o conto formula uma alternativa ao ser-ou-não-ser engajado, dos
personagens. Quando o velho tenta o reconhecimento, narrando o curso dos fatos no século
XX; o jovem não poderia saber o que estava por vir. Com isto, é como se o velho desejasse
que o outro pudesse reconhecer-se em sua forma de entender a história, mais do que no
conteúdo de seu dizer. Neste trecho, formula-se uma visão capaz de integrar essas atitudes
opostas. Mas nesta narrativa metaficcional, essa visão não está oculta sob a malha do
67
hermetismo. Como na “Carta Roubada”, de Allan Poe, a dificuldade de recuperar um objeto, é
tê-lo bem diante dos olhos.
Muito perceptível, no mencionado trecho, é que o velho uma recorrência
nos fatos. Para ele, outra guerra, é (quase) a mesma guerra. Ao apontar para a repetição dos
fatos históricos, ele lança um olhar filosófico sobre a mesma, questionando se existiria (ou
não) um sentido evolutivo no desenrolar dos acontecimentos. Ele lembra que “Inglaterra y
América libraron contra un dictador alemán, que se llamaba Hitler, la cíclica batalla de
Waterloo”, aludindo à Segunda Guerra Mundial. Com o apoio de Japão e Itália, Hitler invade
vários países europeus. Inglaterra, França e Rússia encabeçam os Aliados contra as forças do
Eixo. Mas este confronto do século XX, é comparado ao do século XIX, no qual o imperador
Bonaparte realiza uma série de batalhas para expandir o território da França, tomando
diversos países. A Inglaterra reage, formando uma coligação que o vence na batalha de
Waterloo. Porém, se a história tratada como fatalidade passaria a ser poesia; desenha-se neste
ponto uma visão poética da história
211
. Em seguida, é aludido o conflito político-ideológico da
Guerra Fria; entre EUA, pró-capitalismo; e União Soviética, pró-socialismo. De modo que é
como se essas oposições fossem cíclicas.
Logo em sua primeira interpretação da história argentina, o velho retoma o
antagonismo, contando que “Buenos Aires, hacia mil novecientos cuarenta y seis, engendró
otro Rosas, bastante parecido a nuestro pariente. El cincuenta y cinco, la provincia de
Córdoba nos salvó, como antes Entre Ríos”. A narrativa nos remete ao período em que Rosas
era o Governador da Província de Buenos Aires, estendendo sua área de influência sobre as
outras províncias, com o Pacto Federal. Tornou-se um tirano, até que o General Urquiza, de
Entre Ríos, se junta com outras forças para derrotá-lo, na Batalha de Caseros. Então esta é
ainda uma visão argentina da história, pois busca sua dicotomia central civilização e barbárie.
Ele recorta o período do confronto entre unitários e federais, que ganhou relevo pela leitura de
Sarmiento, ao traduzi-lo na famosa disjuntiva. Ainda em nível local, outro confronto do
século XIX vai ser comparado a um conflito do século XX, uma vez que é possível identificar
uma alusão ao governo de Juan Perón, “no Rosas de 1946”. O presidente torna-se um ditador,
sendo derrubado por tropas que saem de Córdoba, em 1955. Ou seja, esta seria ainda uma
visão pessoal-individual da história, pois fala de fatos que especialmente atingiram a vida
particular do próprio Borges
212
.
Na integração entre os conflitos um ponto comum. Aparecem aludidos:
Rosas, Perón, Napoleão, Hitler. De modo que, ao apresentar a recorrência dos tiranos, na
verdade, o discurso do protagonista constrói o tema intemporal da tirania (como poderia ser o
68
do temor ou da identidade), o qual faz parte do século XX e de tantos outros. No plano
específico, uma visão pessoal e argentina dos fatos. No geral, uma visão poética e
filosófica da história. Mas se em nossa narrativa, um personagem está preocupado com
problemas locais e o outro o chama a temas mais universais, parece existir um momento de
síntese entre o local e o universal; quando o datado no intemporal e ainda seu reverso. Assim,
o jovem deveria reconhecer-se neste olhar ambíguo: candeeiro inflamado na história local de
seu tempo; luz de farol que revolve a história mundial em sua imensidão eterna
213
.
A verdade mentirosa “Puedo probarte que no miento”. O velho afirma que não está
mentindo, quando diz que ele e o jovem são um. No entanto, dizer a verdade, no seu caso, não
significa dizer o que corresponde à realidade, mas apenas defender um ponto de vista sobre a
questão. Portanto sua verdade, é como a verdade ficcional, ela reside na construção de uma
idéia. perto do fim da trama, o narrador admite: “no podíamos engañarnos, lo cual hace
difícil el dialogo”. Desse modo fica o subentendido de que o diálogo comporta mentiras; e de
que se ambos mentissem seria mais fácil entrar em acordo. O jovem, por sua vez, está
demasiado atado à ‘verdade’. Quando tratam da poesia de Whitman, ele traduz a verdade do
poema em termos de sinceridade ou mentira. Ou seja, ele está relacionando o ficcional com a
verdade da vida.
Assim, o velho pergunta se na leitura de El Doble e dos outros livros, o
jovem “distinguía bien los personajes [um do outro], como en el caso de Joseph Conrad”.
Alfineta o mais novo, porque sabe que ele tende a identificar o autor com seus personagens.
Conrad pertence a uma linha de escritores, cujos romances eram ambientados no mar. Ao
mesmo tempo, é um autor que foi marinheiro boa parte de sua vida. Com isso, muitos críticos
quiseram ver relatos de experiências pessoais em seus romances
214
. Então o que ele realmente
está perguntando é, se ao deparar com um caso de duplo, o jovem consegue separar os dois,
como deveria separar Conrad de seus personagens. Nesta passagem, o velho está traçando um
paralelo para o jovem: o autor de um texto em prosa é diferente do personagem de si mesmo,
ou dos personagens ligados a si por dados biográficos, como são diferentes os dois
personagens de um homem na estrutura do duplo. Mas o que é o duplo; ou melhor, o que é o
duplo, para Borges? No Livro dos seres imaginários, ele apresenta duas respostas de
escritores. Para Poe, o duplo é a consciência do herói, para Yeats, podia ser tanto o nosso
contrário - aquele que nos complementa, quanto o homem que não somos nem viremos a
ser
215
. Como visto, para Rosset, o outro é personificação de uma realidade indesejável a
respeito do “eu”, a qual se desconhece ou se procura desconhecer
216
.
69
Comparando as mencionadas teorias sobre o duplo, em busca do que é
fundamental dentro delas, percebe-se que de um lado, existe um protagonista que tem uma
imagem de si. Do outro lado, está o ‘fantasma’, alguém que o protagonista não sabe que é, ou
que realmente não é, mas o qual de alguma maneira está relacionado a si (porque é o contrário
complementar, por exemplo). Assim, é possível entender de que forma Borges relaciona uma
estrutura literária (o duplo) e a própria literatura (na relação autor-obra). De um lado está o
autor, que tem uma imagem pessoal. Do outro, sua obra, a qual pode abrigar experiências,
interesses, preocupações, desejos e todo tipo de imaginações incompatíveis com o escritor,
mas as quais, em sua disposição geral, este homem, com suas leituras e experiências,
poderia ter concebido.
Idéias similares aparecem, quando o assunto é a poesia. O mais velho
comenta que em um poema, Whitman “rememora” uma de suas noites. Sugere assim que
estes versos do norte-americano estariam constituídos de ‘memórias’, mas não se pode
esquecer que para o velho a memória é território do esquecimento criativo. A imaginação
invade os pontos em que a lembrança se torna obscura. O jovem lida de outra maneira com a
verdade poética. C que Whitman é ‘sincero’ e que, em seus poemas, ele expressa seus
sentimentos pessoais e vivências. Nos pressupostos vimos que o “segundo” jovem Borges
possui um texto, no qual julga que o norte-americano seja um poeta de emoções verdadeiras e
coloca-se ele mesmo, junto a essa classe de escritores. Vimos ainda que os boedistas achavam
que o escritor mais autorizado a expor os problemas sociais era aquele que os houvesse
vivenciado.
em “Nota sobre Walt Whitman”, o maduro Borges discute o problema das
leituras que associam o eu-lírico ao autor real. A partir do exame dos poemas de Whitman, ele
ergue um verdadeiro ataque ao biografismo. Explica que os críticos se escandalizavam ao
consultar as biografias sem dar com a estória do heróico andarilho de Leaves of Grass
217
.
Apresenta vários argumentos contra este tipo de juízo. Lembra o erro de críticos e autores
“quienes atribuyen una doctrina a experiencias vitales”, e não aos livros, de onde seriam
provenientes, a seu ver
218
. Se isso ocorre com sistemas de pensamento, quanto mais poderia
ocorrer na poesia este o alvo do ensaio. Com a idéia de que a tradição é o fator
preponderante para a composição poética, ele mostra que o volume de Whitman está
firmemente assentado neste solo, pois vários poetas anteriores já haviam se utilizado de
alguns temas e recursos, que o norte-americano desenvolve. Ademais, ressalta o acréscimo
imaginativo que transforma em mito, o que era apenas a vida de um pacato jornalista.
70
Finalmente, por todo o ensaio, ele liga o sucesso dessa obra às técnicas de Whitman, não às
suas vivências.
Tendo em conta as informações deste ensaio de 1932, e a constituição de “El
Otro”, em que a citação de El Doble, também faz pensar no resgate da tradição, e no qual o
intertexto é um recurso freqüente, poderia parecer que a arte é sonho que vem da própria arte.
Especialmente porque o velho menciona que o discutido poema de Whitman tem como
assunto “una compartida noche ante el mar”. Ora, o primeiro poema do real jovem Borges,
em Ritmos Rojos, é “Himno del Mar”. O poema cria uma experiência do eu-lírico com o mar,
sendo este mesmo o companheiro a quem se dirige nos versos. O mesmo Borges, em sua
autobiografia admite que neste poema quis “ser Walt Whitman”
219
. Assim, a alusão produz
um divertido e labiríntico jogo intertextual em que Borges atribui a Whitman, um motivo de
seus versos, quando, em realidade, é ele quem estava copiando o estilo do norte-americano no
poema de juventude. Gera-se o sentido de que a literatura abastece a literatura. Ao passo que
ao redor do jovem, conforma-se a idéia de que a literatura deve muito à vida real e às
experiências do autor.
Contudo, antes que o jovem diga que Whitman é “incapaz de mentir”, o
velho lhe adianta que “El poema gana si adivinamos que es la manifestación de un anhelo, no
la historia de un hecho”. Compreende-se que o substrato da poesia não precisa ser o
sentimento verdadeiro de um autor mediante uma vivência pessoal. Entretanto, o poema não é
um mero jogo verbal, na concepção do mais velho
220
. Os vocábulos de que se serve,
“anhelo” e “deseaba”, podem esclarecer melhor sua idéia. Segundo Freud, o sonho é
portador de um desejo. Portanto, volta a metáfora do sonho na discussão sobre a matéria da
poesia. A arte, como o sonho, seria portadora de um ‘desejo’, sob formas e figuras
associativas. Nesta passagem avança uma idéia que está sendo desenvolvida desde o começo
do conto. A vida é um sonho, mas também a literatura é um sonho. Ou seja, a narrativa
confere a ambas o mesmo estatuto. Como o sonho é autônomo, mas tem como ponto de
partida um sonhador que lhe empresta seus desejos, o mesmo se daria com a obra literária.
Não só a imaginação, nem a pura realidade.
O romântico clássico - “[…] ahora, me das una de tus monedas. Sacó tres escudos de plata
y unas piezas menores. Sin comprender me ofreció uno de los primeros. Yo le tendí uno de
esos imprudentes billetes americanos que tienen muy diverso valor y el mismo tamaño”. No
dinheiro, monedas”, “billetes”, juntam-se as oposições que a narrativa reúne. Em seu
formato, ele renova o problema do tempo e do eu. As cédulas lembram o tempo linear e
71
cronológico da metáfora do rio, como lembram a idéia da identidade cambiante que essa
temporalidade promove. Fazem pensar no sistema de Heráclito com sua realidade única. As
moedas, com seu formato circular, nos remetem ao tempo cíclico e ao eterno retorno. Evocam
o sistema platônico com o mundo real e a cópia, com a idéia de arquétipo. Durante a leitura,
vimos que se desprendem da narrativa duas concepções de literatura. uma concepção
realista, mas que ainda postula a originalidade do trabalho individual, na qual a literatura é
linear e sucessiva. Nela, as formas individuais parecem estar ligadas a um tempo e a um
espaço determinados. Não há continuidade, mas originalidade, ruptura, quebra com o passado.
Além desta, uma concepção clássica, que valoriza a retomada das obras, fazendo da arte
um trabalho coletivo. Assim, a literatura é circular, pois formas e temas voltam nas obras de
outros autores. Essa idéia central parece pensada, desde a escolha do tema do duplo. Basta
lembrar que este foi um grande tema do Romantismo, e que no entanto, nasceu no período
Clássico, com O Anfitrião de Plauto.
Como explicado, o conto projeta uma conversa entre a obra borgeana e a
geração argentina dos anos vinte. Deste modo, a partir de uma questão particular, Borges
parece ter deixado um problema geral para a Literatura - a existência de categorias
fundamentais para o trabalho literário. Viemos até o presente momento, buscando estes dois
perfis de escritores, sob os títulos de clássico e realista. Assim os nomeamos, porque,
enquanto o velho se concentrava na imaginação (e estava associado a uma realidade onírica),
o jovem se detinha nas relações com a realidade. Um segundo rasgo decisivo era o de que,
enquanto o velho recorre à tradição, o jovem procura as formas novas e a originalidade.
Em vários dos ensaios e textos críticos de Borges, a idéia da existência de
dois modos literários arquetípicos foi amplamente utilizada. Com um mesmo fundo geral, e
acréscimos ou omissões sobre uma e outra categoria, conforme o texto, Borges os chamou o
modo clássico e o modo romântico. Em “La Postulación de la Realidad”, Borges divide os
escritores nos mencionados grupos. Avisa que não está pensando nas escolas literárias
históricas, “entiendo por ellas dos arquétipos de escritor (dos procederes)”
221
. Entre várias
observações menores, utiliza dois critérios fundamentais para classificar estes escritores:
enquanto um postula uma realidade literária vaga - suficiente apenas para assentar a idéia
contida em suas imagens, o outro quer expressar a realidade; enquanto um recorre à tradição
anterior, o outro apresenta o desejo de ser original. Ou seja, em sua base, os critérios que
definem as categorias no conto e no ensaio são muito semelhantes. Pela semelhança e porque
o ensaio aprofunda a leitura do conto, com suas ressonâncias teóricas, vamos traçar alguns
paralelos entre ambos os textos.
72
Uma primeira ligação é perceptível, através das críticas à representação fiel
da realidade presentes, tanto no conto, quanto no ensaio. Também em ambos, de um lado está
um tipo de escritor que procura a originalidade em seu trabalho, enquanto do outro, um
tipo de escritor, ou um modo de escritura, que recorre às obras da tradição. No conto, há uma
série de tópicos que mostram um tipo de escritor que realizaria uma escritura voltada para a
realidade em vários aspectos; ao passo que o outro tipo de escritura buscaria soluções
imaginativas nestes aspectos. No ensaio, não o várias características, divididas por dois
tipos de atitude, no entanto uma postura fundamental, relacionável à divisão do conto: de
um lado, está a busca de expressar a realidade (o romântico); do outro, haveria um tipo de
escritor que não deseja a plena representação da realidade, mas se contenta com uma realidade
literária vaga ineficiente, enquanto cópia do real, mas eficiente para seus propósitos
literários (o clássico). Um tenta representar o real, o outro apenas o assinala. Portanto, os dois
critérios básicos são similares.
Surgem ainda outros aspectos menores de correspondência. um tópico,
em que o ensaio se detém, mas ao qual o conto alude - a cnica para gerar uma realidade
no texto literário. A narrativa mostra a técnica pelo uso de detalhes precisos e imprecisos. O
ensaio nos diz que os textos clássicos postulam uma realidade imprecisa, ao passo que os
românticos tentam obter uma realidade precisa. No ensaio, a terceira técnica clássica se
parece, em sua utilização dos pormenores, à técnica que o conto utiliza e apresenta. Outro
tópico comum reside na questão da metáfora. No conto, enquanto uma categoria de escritores
busca inovar no uso do tropo, os outros recorrem às metáforas já inscritas na tradição.
Ademais, o jovem escritor buscaria a individualização, pois desejava diferenciar-se do velho.
o velho seria um escritor que, a julgar de seu perfil, favoreceria a generalização, tanto por
seu gesto de querer identificar-se com o jovem, quanto por apresentar a si mesmo e ao
menino, em uma chave de identificação com toda a família. Isso tem paralelo com o ensaio,
na medida em que ele nos diz que a escritura clássica se destacaria por seu caráter
generalizador; supondo-se, neste caso, que a escritura romântica particularizaria os indivíduos
e as situações. Se tantos pontos de correspondência secundários entre conto e ensaio,
parece que o fundo dessa divisão genérica, realmente, deve ser similar.
Nos dois textos, de um lado está a escritura clássica - para utilizar o termo
do ensaio; do outro, há um tipo de escritura “romântica” ou “realista”, mas atente-se que:
I. No ensaio, o modo romântico
não se confunde com o Romantismo histórico. É uma
categoria muito ampla de autores, cuja escritura tem como marca a expressão da
73
realidade
222
. Sob o título de românticos estariam realistas, românticos, autores
contemporâneos de Borges. Fica dito, que toda a produção ao tempo do texto (1932), é de
predomínio romântico
223
.
II. Igualmente pode-se observar o fato de que, no conto, as configurações atreladas ao que
titulamos realista, partem de algumas alusões aos realistas argentinos de vinte, porém,
assim como as características do mais jovem excedem o Borges juvenil, excedem também
os realistas de vinte (que não utilizavam as metáforas novas do ultra, por exemplo). Como
no caso do ensaio, as configurações do conto não remetem ao Realismo histórico (nele, a
poesia não era expressão dos sentimentos do poeta - algo associado ao Romantismo). Ou
seja, o perfil realista trata de um tipo de escritura voltado para as relações com a
realidade, e uma dessas relações é a tentativa de expressar o entorno ou não caberiam as
críticas ao realismo, que o conto produz. Portanto, é um perfil geral, o qual pode remeter-
se a escritores de vários períodos. Ou seja, conto e ensaio contornam dois perfis genéricos
de escritor.
Contudo acreditamos que, embora no ensaio, Borges postule que estes sejam
dois modos intemporais de lidar com a literatura, sua classificação parece ter sido fundada a
partir da consabida ruptura no campo literário, entre a arte que tem início, desde o período
clássico até o século XVIII e, a transformação que começa neste século XVIII, fica
consolidada no XIX, e chega até o século XX (as datas variam com os críticos). dois
indícios desta relação. O primeiro critério para a divisão, no conto e no ensaio, está baseado
em uma atitude do artista, o desejo de originalidade ou não. Sabe-se que a originalidade
passa a ser um valor para a arte, a partir do Romantismo. Portanto, os românticos/realistas
podem ter ganhado fôlego, depois do Romantismo histórico. O segundo critério no conto, é a
relação constante com a realidade; no ensaio, é o desejo de obter uma representação
consistente do real. Neste caso novamente o cruze de ambos nos indicaria um período
determinado no tempo.
Recuamos um pouco à construção narrativa, para ver de que maneira estão
inscritos nela, estes dois grandes modos de tratar com a literatura. Anteriormente explicamos,
que havia um efeito de coletividade no tocante aos protagonistas. O jovem e o velho são o
mesmo; e o velho ainda buscava uma identificação entre si e seus antepassados, através da
profissão. Mas além disso, este efeito é especialmente gerado por um arranjo de identificação,
com outros escritores. Certa vez, Borges dizia que “De igual manera que el romanticismo
francés cabe en el solo nombre de Hugo, así lo que será el modernismo […] cabe en el de
74
Darío”
224
. À luz deste comentário, é possível entender melhor o que se configura no entorno
do personagem mais novo, quando é associado a Verlaine, Darío, Hugo, Regules, Dostoievski
e o ultraísmo.
Na verdade, esta é uma construção dual que reverte tanto para o significado
geral (clássico, romântico) quanto para o particular (conversa com a geração de vinte). De um
lado, o jovem está suficientemente datado, no ano de 1918, e ligado ao criollismo, como para
entendermos que as escolas aludem àquela geração literária específica: o romantismo entra
sob a escusa do regionalismo; o simbolismo entra por sua influência sobre o modernismo; a
vanguarda aparece na referência ao ultraísmo; e o realismo aparece nas concepções do jovem
seu caráter e soluções literárias que sempre tendem a copiar a realidade. Por outro lado,
estas são todas as escolas modernas. São alusões ao Romantismo, Simbolismo, Modernismo,
Vanguarda, e por fim, também ao Realismo. Já os nomes ligados à figura do velho são
aqueles que constam da biblioteca, autores de todos os tempos: Os autores das Mil e Uma
Noites, Tácito, Cervantes, Carlyle, Quicherat, Amiel, Whitman, Coleridge. Talvez o fato de
que não sejam mencionados somente autores do período que vai até o século XVIII, seja
explicável uma vez que em “Nota sobre Walt Whitman”, Borges considera clássico o trabalho
de Whitman; e ademais, é perceptível como, no ensaio, ele mesmo se coloca na defesa deste
modo
225
. Por tais motivos, guardadas as devidas distâncias entre os textos, pode-se pensar que
o jovem é um representante do modo romântico, ao passo que o velho simbolicamente
retomaria o modo clássico.
O ponto de contato é o Romantismo. O romântico, Elías Regules, aparece
ligado ao jovem; o romântico Coleridge está ligado ao velho. Ademais, segundo o narrador, o
autor que os une profundamente é justamente Victor Hugo. “Hugo nos había unido”. Trata-se
do escritor que no plano histórico é tido como o iniciador de uma divisão de águas entre a
literatura que vai até o período Clássico e a literatura que começa a existir depois do
Romantismo. Contudo, segundo Erich Auerbach, Hugo não é a transformação completa de
um modo a outro:
“como se sabe, foi precisamente o princípio da mistura de estilos aquilo que
Victor Hugo e seus amigos levantaram como grito de guerra próprio de seu
movimento; nele se manifestava de maneira mais evidente o contraste com o
tratamento clássico dos temas e com a linguagem literária clássica. Mas já na
formulação de Hugo se apresenta algo de demasiado exacerbadamente
antitético: trata-se da mistura do sublime com o grotesco. Ambos são pólos
estilísticos que não tomam em consideração o real. De fato, não tinha a
intenção de representar a realidade dada de forma compreensiva; antes
ressalta, nos temas históricos ou contemporâneos, os pólos estilísticos do
sublime e do grotesco ou também outras contradições éticas ou estéticas, e o
75
faz com tanto vigor que eles se entrechocam com violência; desta forma,
embora surjam efeitos fortes, pois a força de expressão de Hugo é poderosa
e sugestiva, são inverossímeis e, como reprodução da vida humana,
falsos”
226
(grifo nosso)
Auerbach assevera que os românticos rompem com os modelos clássicos,
porém falta-lhes ainda o pleno encontro do sério com o quotidiano o qual, a seu ver,
chegaria com o Realismo. Além dele, Ian Watt também observou uma transformação na
literatura. No entanto, com seu corpus de autores ingleses, ele postula que a mudança estaria
em processo desde o culo XVIII. Este crítico encontra a existência de um conjunto de
procedimentos formais que gera uma base de realidade para o romance, sendo esta uma
estruturação do ficcional, que era desconhecida do mundo clássico, mas que se tornou
fundamental nas obras modernas
227
. A classificação borgeana dos modos literários em “La
Postulación” está próxima da utilizada por Watt, na medida em que Borges vai realizar a
divisão tendo em vista, a conformação de uma realidade vaga ou (ou a tentativa) de uma
representação consistente do real; e especialmente no caso do clássico, ele se detém na
explicitação de algumas técnicas. Ou seja, a divisão borgeana em “La Postulación” se parece
à de Watt, na medida em que este separa os autores a partir dos recursos de construção de
realidade; mas parece a de Auerbach, uma vez que nela, o Romantismo - ou o século XVIII,
não parece ter sido considerado, como um momento de transformação decisiva para a
literatura
228
.
Assim, entre conto e ensaio, vemos que a disjuntiva que Borges estabelece,
parece estar calcada nesta grande mudança ocorrida no campo literário. Na verdade, o
argentino deseja imaginar dois perfis eternos de escritores, e nós os entendemos assim. Essas
comparações, contudo, auxiliam a esclarecer no que consistem tais perfis e especialmente
ajudam a entender melhor nossa narrativa.
A hidra-universo No conto dois recursos predominantes, que informam diretamente
sobre seu conjunto significativo, o da intertextualidade integradora em oposição ao
biografismo desintegrador. Como dito, muitas referências do autor à sua própria biografia
neste conto. No entanto deve-se atentar para a forma em que essas referências são feitas.
Auxiliadas por outros dados ficcionais, em um enredo cheio de mudanças das personagens,
poderiam recuperar episódios biográficos e atribuir-lhes um sentido comum. Contudo não é o
que ocorre, pois apenas sabemos que o jovem muda, sem que aparecem as situações que o
levaram a mudar; a família é apresentada na trama, mas significa o genérico ciclo vital; a
sexualidade do jovem é aludida, mas ela não retoma experiências significativas, revelando
76
apenas que o outro está vivendo sua juventude. Ou seja, os dados biográficos atiram o leitor a
fatos isolados de uma vida. Remetem a uma série de fragmentos que não se fusionam.
Apontam para uma individualidade, e contudo conduzem a uma desintegração. A arte voltada
para a multiplicidade da vida tende à expansão e à desintegração dos sentidos.
Por outro lado, a intertextualidade cumpre uma função coalisora. Temos um
total de dezessete autores, se aos livros citados na biblioteca somarmos os autores
dispersamente aludidos no conto. As menções de Borges a outros escritores e as citações de
suas próprias obras e idéias literárias enriquecem o texto fazendo com que se torne parte de
um imenso círculo de obras, temas e formas em que se reúne a tradição. Por dois eixos, a rede
intertextual trabalha para o texto. De um lado, cada obra que foi mencionada lhe acrescenta
significados. São ficções que aumentam a estória dessas personagens. De outro, como ocorre
na menção à Flor de Coleridge e a El Doble de Dostoievski, essas menções sugerem a
recuperação de temas e procedimentos do passado. O efeito do recurso é muito amplo. O
pequeno conto torna-se um todo em si mesmo, mas ainda um pequeno mundo, enquanto parte
do incomensurável cosmos literário. A arte voltada para si mesma une e gera múltiplos
sentidos.
Arrematando esse efeito, uma imagem que serve de amálgama a essa
construção. Na última tentativa de encontrar um modo pelo qual o jovem se reconhecesse
nele, o velho procurava algo de que o jovem não pudesse ter qualquer lembrança. Na verdade,
algo completamente novo para o outro, mas paradoxalmente tão íntimo de si, que o jovem se
identificasse com a frase sem nunca tê-la ouvido. Arrisca: “‘L'hydre-univers tordant son corps
écaillé d'astres’”
229
. O verso reboa sem que o jovem admita de todo a unidade entre os dois.
O dinheiro ainda será necessário para que ele creia no que parece ser loucura do velho Borges.
Mas o narrador percebe que o toca, pois Lo repitió en voz baja, saboreando cada
resplandeciente palabra./ -Es verdad -balbuceó. Yo no podré nunca escribir una línea como
ésa./ Hugo nos había unido”. Assim, Hugo os aproxima pela impossibilidade de repetir o seu
feito, pela impossibilidade de “ser Hugo”. Mas neste ponto, surge um símbolo para “El Otro”.
Do ponto de vista da técnica, essa hidra-universo que retorce seu corpo
escamado de estrelas oferece algo semelhante a uma junção entre as metáforas ultraístas e as
tradicionais. Na metáfora por afinidade, a hidra funciona como termo substituto de ‘universo’.
Por outro lado, ela se justapõe à metáfora, combinando-se com o termo ao qual alude, mas o
que se segue é um enfileiramento de imagens ao gosto ultraísta. Nesta linda associação, o
universo se explica pela hidra, mas a hidra, em outro plano, possui as propriedades do
universo. Nasce aí um infinito jogo de espelhos
230
.
77
Formalmente perfeita, é igualmente fascinante em seu conteúdo. Seu núcleo
é um vocábulo especialmente polissêmico: “Hidra”. Pode ser o animal marinho da realidade,
o pólipo que reúne em si o aquático, do elemento em que se move; e o astral, por seus
tentáculos de estrela. Pode ser o monstro lendário o qual, contendo o traço da realidade
enquanto serpente, é o ser mitológico das lendas pagãs. Animal sete vezes pior do que a fênix,
porque cada uma de suas sete cabeças torna a nascer tão logo é decepada, pode ser ainda o
metafórico nome da constelação, cuja estrela maior é o Coração da Hidra. Desse modo, ela
une o real e o imaginário. Reitera ademais, a metáfora do rio com seus pedaços de gelo. Mas a
hidra é maior, uma vez que o próprio conjunto, a constelação, é parte de um todo. Ela faz
pensar na grandeza do Universo, constituído de estrelas e a sua vez, um ser à parte. Faz pensar
que cada homem é uma estrela avulsa, mas também o ser completo, enquanto indissociável do
imenso corpo universal - a Humanidade.
Seus braços alcançam as duas altas colunas desta narrativa: o eu e o tempo,
estabelecendo um novo jogo de cópia e versão. O verso consta do livro As constelações.
Nesses poemas, Hugo simula responder a um marquês que reprova suas posturas
republicanas. O marquês o lembra de seus poemas infantis pró-monárquicos e o sujeito do
poema replica que “Era monárquico entonces y era niño”. justificando sua mudança com a
compaixão: “Así acaban de hundirse esos mundos antiguos/ Siempre llega el momento.
Llegan olas lejanas a través de clamores, de cadáveres, lutos [...] unos siglos empujan a las
revoluciones, cual mareas monstruosas,/ como el llanto del hombre convertido en océano”.
Como na narrativa em exame, o francês termina reafirmando a unidade entre o homem de
ontem e o homem de hoje: “[...] yo soy/ este hombre de ahora y aquel niño de entonces”
231
. O
que o poema de 1856 o diz é que o poeta foi conservador e monarquista durante a maior
parte de sua vida, não só durante a infância. A partir de 1950, começa a reviravolta, ele muda,
e do exílio até sua morte, “será o grande tribuno liberal, progressista, atento aos pobres, ao
povo, à injustiça social e defensor tempestuoso, iluminado, da República”
232
. Ou seja, o poeta
romântico termina comprometido com as questões sociais. Assim, o poema retoma a
progressão na vida de Hugo: do jovem monarquista ao velho republicano. O enredo da
narrativa borgeana representa um encontro entre o jovem realista comprometido, e o velho
escritor clássico. A partir dele, desenvolve uma reflexão sobre as essências eternas da arte: de
um lado, uma arte realista voltada para a vida; do outro, uma arte clássica, voltada para a arte.
O plano vital (de Hugo) se desdobra no literário (seu poema) e o literário (o conto borgeano)
acolhe o anterior. Sob este prisma, esta não é mais uma estrutura em abismo, mas uma
estrutura realmente abissal.
78
No conto-hidra, cada figura remete a um mundo literário próprio, quando não
a amplas idéias que por sua vez desdobram-se em um sem fim de idéias menores. Ele
representa cada todo que reúne suas partes opostas, como representa a união central dos
sujeitos: o eu e o outro. Assiste-se em cada ato à "vida" literária de Borges, enquanto, em
paralelo, desenha-se o problema geral da arte. O escritor que tenta se encontrar, apesar das
mudanças ao longo do tempo, ainda é como todos os escritores. Miniatura da narrativa
borgeana, a tentativa de reconhecimento do personagem pelo outro se torna o reconhecimento
dos paradoxos que alicerçam seu universo ficcional. Buscando descrevê-los, ele nos remete a
dois modos fundamentais da Literatura. Na cadeia de identificações gerada pelo intertexto,
esse "eu-escritor imaginário" é ao mesmo tempo um autor e todos os autores. Do que poderia
ser a máxima pessoalidade (um personagem com seu nome e seus dados) surge a máxima
generalidade.
O fim, o começo - Uma vez que o velho Borges está decidido a provar o seu ponto de vista, a
solução vem da memória criativa: recordé una fantasía de Coleridge. [...] Se me ocurrió un
artificio análogo”. Copia, mas altera. Na aludida fantasia, se alguém diz que cruza o jardim
do paraíso, e ao voltar à realidade possui uma flor... Isto significa que seu devaneio foi real.
Portanto, ‘a flor’ atesta a verdade do mundo fantástico. No conto, o desafio do Borges mais
velho é similar ao de Coleridge. A diferença é que estão em uma situação insólita e o velho
deseja provar que tudo ocorre na realidade. O dinheiro vale como um signo do mundo
material, embora diante do menino que fora no passado, esta pode ser uma realidade
fantástica. A façanha é alegórica. Por toda a narrativa Borges atravessa o campo de muitas de
suas leituras, revisa suas concepções literárias, e qual é o valor que ele escolhe para dar como
prova de sua permanência neste universo textual? O artifício. É esse o valor, a flor do jardim
da literatura que ele entrega ao jovem. É a flor do futuro que vai voltar com o mais novo ao
passado, dando provas de que ele conheceu uma outra realidade.
Uma vez que as notas estão datadas, elas podem “comprovar” que o narrador
está certo. Mas a revelação é falseada. As evidências desaparecem quando estão bem diante
dos olhos. O próprio narrador avisa que cédulas de dólar não têm data; e esta, não poderia ser
mais imaginativa: 1974. Se o narrador, que é o mais avançado na linha cronológica está em
1972, ainda que existisse uma nota de dólar datada, ela seria mais do que falsa. Contudo, seu
comentário sobre as notas é significativo: “muy diverso tamaño y el mismo valor”. Com isso
a narrativa lembra uma última questão em torno da arte literária: o texto cobra valor como
uma realidade autônoma, por seus artifícios e recursos; ou também tem valor como
79
documento de um tempo, como retrato de uma realidade que lhe pré-existe? Quando o velho
atira a moeda no rio e esta descreve um arco no espaço, seu gesto evoca as idéias de começo,
meio e fim. O tempo parece estar retomando seu curso normal. É como se a vida voltasse a
caminhar; como se o velho estivesse, simbolicamente, devolvendo o jovem a seu tempo, e
reintegrando-se ele mesmo ao curso natural dos acontecimentos. Na alegoria, a imagem
sugere que cada uma das concepções do ficcional tem de voltar ao tempo e ao espaço nos
quais foram especialmente válidas. Não podem coexistir com a mesma intensidade, e mais do
que isso, segundo a narrativa, elas devem dar passagem a novas, ou reformadas, concepções
do mundo e da literatura.
Nestas ginas finais, o jovem já não é o mesmo. No trecho sobre Whitman,
ele pensava em referências à vida do escritor. Depois da troca de moedas, ele lembra o
episódio bíblico da ressurreição de Lázaro. Neste momento o narrador se identifica com ele:
“No hemos cambiado nada, pensé. Siempre las referencias librescas”. Ou seja, no primeiro
momento em que o velho utiliza um “nós” depois da suposta prova, o traço de união que
aponta entre ele e o jovem é o de utilizar referências dos livros. Ao final, o jovem que estava
sempre do lado da “verdade”, passa a estar do seu lado, pois “mentíamos los dos”. O verbo
mostra uma unidade alcançada entre eles, embora tudo fique em aberto por causa das notas
falsas. O velho “mente” e afirma que o jovem o faz tão conscientemente quanto ele. Percebe
que o outro finge que irá ao encontro, quando sabe que não tem a menor intenção de ir. O
outro rasga a cédula “datada” e ignora o relógio mostrando desconsideração com o tempo
objetivo da vida real. Embora saibamos que o velho também nunca deixa de ser de todo
aquele que fora, a narrativa parece assinalar que o jovem entrou em um “novo tempo” e um
“novo espaço”: passará ao eterno sonho da mágica literatura borgeana. Terminada a aventura,
o jovem pode voltar ao passado para começar a ser o velho; enquanto este pode começar a
escrever o seu relato.. O fim é o começo
233
.
80
3.0. UMA FICÇÃO CONTRA O REALISMO,
E A VEROSSIMILHANÇA EM SUA FICÇÃO.
“Cuánto escribieron todavía en nuestro siglo [los escritores del siglo
XIX, que siguieron vivos en el XX] mira en general hacia el pasado: o
es historia o es recuerdo personal” BORGES, J.L. Textos recobrados
(1931-1955). Barcelona: Emecé, 2001, 165.
Os ensaios “Nota sobre Walt Whitman”; “Domingos F. Sarmiento:
Facundo”; e “La Postulación de la Realidad” o pontos de apoio para a leitura do corpus
principal. Não é nosso objetivo realizar uma detida interpretação desses textos. Seus
desenvolvimentos apresentam uma série de motivos pelos quais Borges não adere aos
postulados realistas, assinalando pontos de afastamento decisivos para sua produção. Por esta
razão, o conjunto destes ensaios auxilia a determinar as idéias literárias que permeiam a
narrativa em estudo, na medida em que revelam o pensamento de seu autor, mas também,
elucidam suas relações com a literatura argentina, no período de formação de sua poética. Ao
mesmo tempo em que sua leitura renova as perspectivas de análise utilizadas no trabalho com
o corpus principal, ela fortalece nossa hipótese de que a polêmica Boedo-Florida é um
momento decisivo na definição da obra borgeana. Assim, de um lado, pretendemos apresentar
as idéias que neles confrontam os postulados realistas, para novamente assinalar a oposição a
esta estética. Por outro lado, os contos “25 de Agosto e “El Milagro Secreto” devem tornar
visível uma ligação entre a madura obra borgeana e o mesmo realismo, que parece rejeitar.
3.1. BORGES E O BIOGRAFISMO: NOTA SOBRE A EXISTÊNCIA DE UM OUTRO
WALT WHITMAN.
O maduro Borges possui uma divisão da poesia em duas classes de autores.
“Poeta es el hombre que logra una melodiosa expresión verbal de emociones genuinas o
imaginadas”
234
. Assim, o poeta seria o escritor da confidência, alguém que expressa as
emoções que possui ou que imagina possuir. Mas haveria outro tipo de autores no gênero
lírico, pois “Es evidente que yo no pertenezco a esa estirpe, y así estoy obligado a simular
mediante laboriosos procedimientos, la melodía [...] o a referir las circunstancias que
produjeron tal o cual emoción”
235
. Assim, existiria o artífice aquele, cujo ponto de partida é
uma idéia; em auxílio da qual, ele afeta as emoções que não sente. A poesia em seu caso é
uma decisão. Nos pressupostos comentamos que um único texto, “Profesión de Fe
81
Literaria”, em que o jovem Borges Whitman como um poeta de emoções autênticas
236
.
Assim, em “Nota sobre Walt Whitman” (1932)
237
, Borges contraria sua postura juvenil,
fazendo notar que tal escritor seria um artífice.
Mais perto do literal, o texto trata de mostrar ao leitor que o principal livro
de poesias de Whitman, Leaves of Grass, não é o resultado da exposição de vivências e
sentimentos pessoais de seu autor, mas ao contrário é obra de eficiência técnica, resultante
sobretudo da retomada da tradição. No entanto, a partir deste assunto específico, o texto está
permeado por uma questão mais ampla. Assim, é possível ler no nível mais profundo deste
ensaio, em seus elementos artísticos e argumentativos, a tessitura de uma série de motivos
pelos quais a poesia se afasta da realidade do poeta, para assumir sua feição artística. Com
isso, Borges termina combatendo o biografismo.
Borges contra o Biografismo aplicado à Poesia de Whitman.
Até o Renascimento não havia grande destaque para a figura do autor, já que
na preceptiva clássica, a obra literária prescindia da originalidade. A partir do Romantismo e
com o advento das teorias científicas, a valoração dos textos começava a ser atrelada ao nome
de seu autor
1
. Com a idéia de que a literatura é expressão de sentimentos e vivências, as vidas
dos escritores ganhavam relevo. Contudo, no século XIX, esse interesse vai se traduzir, em
grande medida, em estudos da biografia, que convertiam as obras em mero reflexo das
vivências de seus autores. A crítica de Taine forças a esse tipo de abordagem, com seus
julgamentos sobre a poesia de Racine
2
. Especialmente nas primeiras décadas do culo XX,
este tipo de interpretação recebe novo impulso a partir dos estudos de Freud
3
. Jakobson
lembra que até o início deste século, a crítica apenas assinalava a beleza das formas e
encontrava os temas, discorrendo sobre as questões filosóficas ou sobre o fundo social da
obra, mas detendo-se especialmente nas anedotas sobre a vida do artista
238
. Não havia grande
número de trabalhos voltados ao estudo do significado, através da forma, e ao exame das
técnicas.
Por essa época, Borges escreve “Nota sobre Walt Whitman”. A moldura do
ensaio é uma proposição, que divide a literatura em dois tipos de realizações, os livros
1
FOUCAULT, Michel. O que é um autor? S.L.: Passagens, 1992, p.48-49.
2
TAINE, H. A. “Racine”. Em: ___. Ensayos de crítica y de historia. Madrid: Aguilar, 1953, p. 559.
3
CALDERÓN, Demetrio Estébanez. Diccionario de términos literarios. Madrid: Alianza Editorial, 2006,
p.884.
82
absolutos versus os livros parciais. Da contraposição, salta que enquanto um tipo de escritor
tenta uma obra imortal, os outros seriam aqueles, cujas obras conseguiram um impacto
limitado à sua época - portanto uma realização parcial nesta concepção. Ressaltando os
esforços de Yeats, Joyce, Pound e Eliot para conseguir uma obra perene, entende-se que o
livro absoluto é aquele que visa à larga duração que o ensaísta está valorizando. Esse
ensaio, que trata a poesia de Whitman, diz muito sobre a poesia, em geral. Seus exemplos
tecem a idéia de que o poema pode escapar ao pessoal, em suas representações. Mostra que
isto é especialmente favorecido, quando o poeta procura o genérico; quando descreve atos
fundamentais da vida humana; quando incorpora elementos de diferentes épocas à sua poesia,
ou ainda, quando recorre a símbolos, etc. Ao mesmo tempo, em sua classificação dos temas
utilizados, para tentar o livro máximo, Borges faz ver que foram utilizados temas altos e
importantes; temas triviais; temas menores; mas também temas negativos, nesta tarefa. Fica
sugerido assim, que o tema não é o fator chave na obtenção de um livro absoluto, mas
também, que a poesia, que deseja perdurar, não pode se limitar às poucas experiências de seu
criador. Ademais, ele justifica o intento de Mallarmé, de fazer uma grande obra com temas
negativos, dizendo que o francês percebeu que as artes tendem a ser como a música, na qual
“la forma es el fondo”. Assim, o ensaio confere relevo à forma e levanta a percepção de que o
poema excede as experiências próprias, através dos arranjos formais, uma vez que eles
significam mais do que o autor poderia prever. Dessa maneira, fica estabelecido um ponto de
afastamento: se Whitman se lança à tarefa de um livro total, seu volume ultrapassa a
expressão de sua realidade biográfica.
Borges ainda apresenta três citações sobre a poesia do norte-americano: a de
Abercrombie, de que o poeta “extrajo” essa poesia de suas experiências; a de Edmond Gosse,
de que este sujeito poético é literatura em “‘protoplasma’”; e a sua própria opinião, de que
Whitman, o homem de letras, é distinto de Whitman, o herói semidivino. Assim, é possível
pensar que o eu-lírico deixa o campo vital, desde a concepção do poema, pois nele, não se
apresenta o poeta tal como é, mas uma imagem do autor. Talvez não seja o que realmente fora
o poeta, mas o modo em que este se vê, ou o modo em que deseja projetar-se, em seus versos.
Sua segunda citação mostra que o sujeito poético se completa no ato de leitura, de maneira
que ele também recebe o acréscimo das reminiscências e sentimentos pessoais de seu
interlocutor. Logo de sua opinião, Borges compara o personagem Dom Quixote ao herói de
Leaves of Grass. A idéia aparecia em “El Otro”. Surge o entendimento de que o eu-lírico é
tão diferente de seu autor, quanto o romancista de seus personagens, de modo que ele poderia
ter uma personalidade muito distinta à de seu poeta, como ocorre aos heterônimos de
83
Fernando Pessoa. Poderia ainda ser uma figura gerada especialmente em relação com o tema
proposto, isto é, um eu-lírico mido para o tema da indecisão amorosa ou um eu-lírico
irascível, adequado ao tema do ódio, etc.
O ensaísta até apresenta as diferenças entre Leaves of Grass e as biografias
sobre seu autor, para mostrar a incompatibilidade nos dados. Ademais, Borges constrói duas
figuras bem nítidas, ao longo do ensaio. Enquanto Whitman é o homem que almeja o livro
absoluto; o sujeito de seus poemas é uma espécie de prisma, capaz de refletir características
de todo ser humano. O contraste se amplia ao atrelá-los, um a Cervantes e o outro ao Quixote,
de modo que Whitman seria o escritor, em sua cela; ao passo que o sujeito dessas poesias,
seria tanto quanto o Quixote, um andarilho livre e errante. Borges parece buscar um
estereótipo de erudito, ou uma imagem pessoal de erudito, asseverando que Whitman é
“casto, reservado, taciturno”. Quanto ao personagem, ele não parece o preocupado, com
um perfil exato, quanto em estabelecer uma eficiente oposição ao anterior - “efusivo y
orgiástico”. Enquanto um é o “pobre literato”, o que sugere a triste vida de um sujeito
comum; o outro é apresentado como um vagabundo despreocupado e de vida feliz. Observe-
se o paralelo em “Walt Whitman, hombre [...] leyó [...]; Walt Whitman, personaje poético
[...]”. Ele confere ao homem de letras as leituras, que ajudaram a compor a obra; e atribui ao
personagem poético as experiências e viagens, “New Orleans”, “Georgia”. Borges não tenta
negar as vivências, ele apenas as retira do autor e as transfere ao ser ficcional. Assim, à luz do
ensaio, Whitman-personagem é o tipo experimentado em muitas aventuras. Em contrapartida,
Borges faz do colega de profissão, um leitor, um homem de vivências mentais, como ele
mesmo.
O processo de gerar duas figuras surge desde sua metáfora para o livro,
quando diz que o personagem é o “salvaje” amistoso”, que o autor descreve com “ternura
feroz”. Ou seja, Borges apresenta neste “personagem poético”, o carnal, o bárbaro, uma
espécie de homem primário, capaz de estabelecer uma ponte entre si e a humanidade inteira.
Essa visada é eficiente para tornar o personagem um ser de vida agitada, diferente do perfil
comum de escritor. Assim, vida e obra são opostas, através da sugestão de que a poesia não se
faria sem o esforço da leitura e sem o domínio da técnica. Ademais, no ensaio, Leaves of
Grass é um “orbe paradisíaco”, ao passo que a vida é uma “crónica insípida”. Com isso, o
léxico “orbe” e a expressão “transición melancólica” traduzem o sentido de que a poesia
whitmaniana seria um outro mundo frente à realidade. Essa poesia é portadora de felicidade;
enquanto a vida está associada ao insípido e ao comum de cada dia. Portanto, o sujeito da
84
poesia também é distinto do poeta, ao integrar uma representação de felicidade, ou de
qualquer realidade ideal.
Ainda são comparados os heróis românticos que “prolijamente acentúan sus
diferencias”, com o eu-lírico de Whitman que “quiere parecerse a todos los hombres” (1974,
p.250). Portanto, a seu ver, o trabalho do último não é romântico, porque esse eu-lírico tende
ao universal. Ao mesmo tempo, Borges procura opor-lhe os boêmios Byron e Baudelaire,
cujas obras são usualmente relacionadas às suas experiências pessoais. Surge o humor ao
comentar que estes poetas dramatizaron, en ilustres volúmenes, sus desdichas, Whitman, su
felicidad”. Ao não dizer que os aludidos escritores registraram ou apresentaram, mas sim que
“dramatizaron” suas vivências, percebe-se a idéia de que a poesia, mesmo quando o poeta se
propõe uma expressão pessoal, pode se afastar da realidade biográfica pela ênfase, conferida
ao recorte e ao destaque dos sentimentos ou experiências, que se deseje externar. O próximo
passo é atrelar o personagem de Whitman ao Zarathustra de Nietszche, pela “felicidade” que
ambos propõe ao leitor. Isto chama a atenção para a inconsistência de traçar relações diretas
entre autor e eu-lírico, o mesmo em um poema, que em um texto de filosofia
239
. Neste caso,
compreende-se que o sujeito da poesia não apenas “dramatiza” vivências, mas à semelhança
do “eu”, utilizado no texto do filósofo, também poderia realizar a poetização de uma idéia ou
conceito, como Borges propunha em sua juventude.
“Un hecho falso puede ser esencialmente cierto”, assevera o ensaísta. Como
exemplo, ele menciona o mito de que Enrique I nunca sorriu após a morte do filho. Assim, o
texto como mentirosa a crença de que o rei tenha apresentado sempre o mesmo rosto
imóvel através dos anos, mas lhe confere verdade, enquanto um símbolo da profunda tristeza
do soberano. Sua reflexão suscita o pensamento de que a poesia não vai reproduzir a realidade
do poeta, com a mutabilidade de seus sucessivos estados emocionais. Assinala contudo, a
possibilidade de que em seu significado, ela venha a captar a essência, do que está por trás de
uma realidade. Ou seja, ele evoca o caráter simbólico do poema, contra as leituras biografistas
de Whitman. Borges ainda comenta o boato de que soldados alemães teriam torturado alguns
belgas, no começo da Guerra Mundial de 1914, mostrando que o episódio das torturas pode
ser falso, mas apontando sua efetividade, enquanto uma profecia da série de horrores, que se
seguiram na história. Assim, ele desvia a poesia de uma representação do presente, ao indicar
que ela poderia assumir um caráter revelador em relação ao futuro - não diríamos uma
previsão, mas que, talvez ela exiba uma extraordinária força significativa, junto às futuras
gerações.
85
Por outros exemplos, Borges procura uma distinção que fica clara no rodapé,
a diferença entre racionar algo e estar convicto de algo. Sua anedota sobre Nietzsche nos diz
que em 1874, ele e condena a doutrina do eterno retorno; em 1881, a postula. A explicação
sugerida é a de que, em um primeiro momento, o filósofo apenas pensa e entende o eterno
retorno; em um segundo momento, uma súbita compreensão e aceitação do que lera o
conduzem a postular essa doutrina. O alvo parece ser o epíteto de “poeta da democracia
nascente”, de modo que nela é possível entrever uma tentativa de afastar Whitman, de um
conhecimento pragmático do sistema político, e de atá-lo a uma mera exposição intelectual
ligada ao mesmo. Assim, Borges atribui ao poeta norte-americano o desejo de imaginar um
“democrata ideal”. O ideal, e não o verdadeiro democrata, como se recusasse a idéia de que o
poeta houvesse poetizado o resultado de uma experiência pragmática com o novo sistema
político. Com isso, a poesia também se afasta da exposição do que o autor realmente sente e
acredita, uma vez que poderia estar tratando, do que seria, para si, apenas uma vivência
mental.
O ensaísta primeiro afasta Whitman dos autores românticos, para depois
aproximá-lo dos clássicos. Ele indica a presença de um mesmo recurso em uma série de
textos, no livro sagrado do Gita, nos textos dos filósofos Heráclito e Plotino, e ainda no poeta
persa, Attar. Ademais, comenta que Emerson os hindus e ainda alude ao trabalho do poeta
Stefan George, fazendo-o parecer uma variação dos anteriores. Com isso, ele sugere que, para
suas largas enumerações, Whitman teria, não uma, mas diversas fontes, que o recurso
consta de toda uma série de textos anteriores. Assim, faz com que os poemas pareçam
derivados de muita leitura, e por ende, da tradição anterior. Compreende-se em paralelo que o
poema pode ser convencional, quando recupera os temas e formas clássicas da antiguidade;
ou ainda, porque ele pode cair, ou voluntariamente resgatar, os procedimentos ou lugares-
comuns, que os poetas, canônicos ou menores, de muitas gerações, julgaram adequados ao seu
exercício.
Quase ao final do ensaio, Borges procura um último modo de inserção de
Whitman no legado literário, neste ponto, através de um tema da tradição. Ele lembra o topos
da imortalidade do poeta, citando Shakespeare e Horacio como precursores. A escolha destes
poetas já reitera tratar-se de um tema fortemente convencional, uma vez que tais escritores são
fonte de temas, para inúmeras obras. Borges alega três razões pelas quais os poetas voltariam
a esse lugar comum: o orgulho, o suborno e a vingança. O orgulho sugere o pensamento de
que o poeta acredita, de antemão, que seu trabalho obterá reconhecimento, pois na verdade,
ele ‘canta sua imortalidade’, sem contudo saber se ela virá. Então, o suborno nos lembra, que
86
para alcançar essa glória, o autor supostamente terá de agradar a crítica. a vingança, faz
pensar na relação da obra com a tradição - talvez aluda ao procedimento clássico de emular.
Assim, recorda o vínculo, através do qual, uma obra ‘paga’ seu débito para com as anteriores.
O importante é que com essas razões, o ensaísta lembra que os poetas não escrevem somente
para si mesmos, mas têm em vista a recepção pelo público leitor, pela crítica e suas relações
com as obras pré-existentes. Ao mesmo tempo, mostra que a poesia pode se afastar em muito
das vivências pessoais, quando um autor visa a convencer a crítica dos méritos de sua obra.
Contudo, se Whitman segue um ‘topos’ convencional, neste ponto, seus versos não trazem um
mero registro de suas experiências. Além disso, sugere que pela técnica e pelo aproveitamento
do tema tradicional, Whitman torna-se um dos escritores que chegaram à conquista de um
livro absoluto.
Discussão I - Este é um ensaio de crítica literária, que gera teorias a respeito das relações
existentes entre escritor e obra poética. No entanto, essa teorização genérica, que parte do
caso particular da poesia de Whitman, ainda parece ir ao encontro de uma questão mais
específica: suas relações com a geração literária argentina de 20.
Esse viés se reflete em toda a armação do ensaio. É identificável desde o
título, “Nota sobre Walt Whitman”, que descortina uma dupla perspectiva. De um lado, reflete
a configuração efetiva do texto, pois ele é semelhante a um prólogo, no qual um editor ou
crítico fornece um comentário explicativo ao grande público. Por outro lado, mais que um
simples nome genérico para um artigo literário, “nota” se deixa ler enquanto uma advertência
para que se reconheça algo. Com este título começa uma ficção enunciativa para Borges.
Como em muitos de seus ensaios, ele é o erudito, que conhece textos hindus e o poeta persa
do século XII, citando uma enorme quantidade de autores por todo o texto. Ele se posiciona,
ademais, como o crítico, aquele que deseja prevenir contra eventuais percalços e corrigir o
‘senso comum’ das leituras amadoras.
Obter uma voz autorizada, através da ficção enunciativa, torna-se
importante, quando o ensaio veicula outra ficção, a de seus próprios adversários. O texto
revela que seus rivais são aqueles que executam “la sumaria identificación de Whitman,
hombre de letras, con Whitman, heroe semidivino de Leaves of Grass [...]”. Fica claro que é
uma crítica que na obra de Whitman, um relato de suas experiências pessoais, como se
nelas existissem as mesmas aventuras de seu personagem poético. O ensaísta ainda nos diz
que eles cometem o erro da “adopción del estilo y vocabulário de sus poemas [...]”. Esse
comentário torna mais exato o anterior, quando faz pensar que esses ‘imitadores de Whitman’
87
não são somente um grupo de críticos, mas possivelmente um grupo de escritores que possui
textos críticos, que eles copiam o autor estudado. Se levarmos em conta o peso que Borges
atribuía à obra de Whitman como referência para grandes poetas da literatura hispano-
americana, como Neruda e Darío
240
, seus argumentos começam a fazer sentido, pois, se estes
escritores se deixaram influenciar pelo norte-americano, autores menores podem ter
reproduzido seu estilo. Basta lembrar que no começo do século XX, grande parte da crítica
ainda estava constituída de escritores que liam e resenhavam a produção nacional e
estrangeira.
Mas a argumentação do ensaio faz uma projeção mais clara de seus
destinatários. No primeiro parágrafo está a idéia de que a literatura pode ser como a música na
qual a forma é o fundo. Ou seja, ele lança a idéia de que a forma é significativa. Então, se
entrevê um grupo que acredita ler nas obras a exposição direta das vivências do autor,
esquecida de que a forma media, preenche, altera e distorce tais experiências. A seguir,
Borges cita Mallarmé com sua famosa sentença, de que o livro é o fim de todas as coisas. Por
isso, percebe-se que talvez ‘esses rivais’ tomem a literatura enquanto um meio para fins
ideológicos, princípios humanitários ou políticos. Ainda vale lembrar que ele está evocando
um simbolista, quando é sabido que estes combateram contra o Realismo, que precedera sua
escola. Ao mesmo tempo, trata-se de um poeta que se perguntou pelos limites da
referencialidade na literatura
241
. Esse sentido se consolida, no trecho em que assevera que “un
hecho falso puede ser esencialmente cierto”. Desse modo, ele propõe ao leitor que a
linguagem não é apenas referencial, mas que também simbolicamente ou profeticamente pode
adquirir verdade. O mesmo antagonismo pode ser perceptível na própria proposição de livro
absoluto, isto é, um livro eterno voltado para o genérico e não para as realidades sociais de
um determinado tempo. Está presente ainda, quando Borges demonstra, que para empreender
um livro máximo, não faz falta um tema importante. Ao contrário, em sua argumentação, até
os temas banais e negativos podem ser considerados adequados para tal façanha. Desse modo,
o ensaísta leva a pensar que combate contra um grupo que confere grande valor à temática. O
mesmo afastamento se descortina em seu comentário quase didático de que “más importante
es compreeender que el mero vagabundo feliz que proponen los versos de Leaves of Grass
hubiera sido incapaz de escribirlos”. Novamente, o ensaio projeta a existência de um grupo
que confunde personagem e autor, e que não atenta para a técnica e imaginação, envolvidas
em uma obra poética.
A oposição a este grupo se sente sobretudo nos momentos em que o ensaísta
faz uma espécie de jogo de provocações dentro do texto. Borges faz a provocação de que
88
Whitman fue” o que estava em seus versos, como se perguntasse, se o autor real poderia ter
sido o futuro, o leitor e até o ‘sem-corpo’, ou mesmo o morto anunciado em seu poema. Ainda
uma segunda vez afirma que Whitman “fue” e sintió” tudo o que está em seus versos, para
em seguida corrigir, “no en la mera historia, en el mito”. Com tais burlas, percebe-se que
‘esse outro’ coloca a poesia na direta dependência de seu contexto. Em certo ponto, Borges
simula comiseração por esta classe de idéias, Aun más perdonable es el caso de quienes
atribuyen una doctrina a experiências vitales y no a tal biblioteca o a tal epítome”. Colocar
doutrinas na dependência de leituras é conduzi-las ao oposto das vivências. Sua sentença
funciona como uma comparação velada: se até as grandes teorias partem dos livros, quanto os
poemas não podem ter se valido da tradição? Ainda, Borges poderia ter concedido que a obra
se fez em relação com seu tempo, pensando na relação dos poemas com a democracia em
processo, mas não. Ele a leva ao terreno das vivências intelectuais. Ainda, se este é um grupo
que entende a poesia em estreita relação com a realidade, faz sentido que ele não se poupe o
trabalho de chegar ao pólo oposto com seus argumentos.
Essa é última faceta que Borges condena neste tipo de interpretação, a
imagem de um Whitman político, talvez o militante de um partido, talvez um defensor do
gênero humano, de qualquer forma, um autor ligado à experiência da democracia. Neste
ponto, o ensaio tem uma conexão com “El Otro”, no qual o jovem acredita que Whitman
vivenciou os fatos de um poema, e, ademais, apresenta idéias de um escritor comprometido.
Pensando conto e ensaio, juntos, esse grupo, que o jovem representa, no poeta norte-
americano um escritor político, cuja obra reitera a vivência.
Desse modo, explica-se o efeito geral que este texto procura criar, um
processo de desambiguação. É como se houvessem dois ‘Whitmans’, de modo que sua
proposta seria a de demonstrar qual deles, na concepção borgeana, corresponde efetivamente
à grandiosidade de Leaves of Grass. Como visto, o ensaio faz desse escritor, um literato
interessado na mais alta realização neste campo - o livro absoluto. À semelhança do trabalho
com a figura de Sarmiento em um texto posterior, Borges constrói o perfil de um escritor de
gabinete para o norte-americano. A argumentação ainda sugere que a pacata vida do escritor
teria lhe permitido tornar-se um grande leitor, e desse modo ter acesso à tradição, cujos temas
e recursos auxiliam a compor sua obra. Em contrapartida, sabemos qual é a outra leitura:
Whitman, um homem vivido. O ensaio sugere que o outro grupo vincula o norte-americano a
poetas como Byron e a Baudelaire, como se ele fosse um autor boêmio com sua vida noturna,
com suas aventuras amorosas, etc. Segundo a lógica do ensaio, os antagonistas da versão
borgeana, acreditariam que ele coloca sua vida em versos. Seria portanto, um aventureiro, um
89
autor viajante que conhece vários lugares, ou ainda um herói local que apóia as mudanças
políticas em seu país. Por isso, é possível tentar ouvir as vozes de um grupo que se encaixa
neste perfil, comparando suas afirmações com as do ensaio:
a) “A maneira de se expressar é secundária quando se escreve com o coração e não com a
pena”, diz o editorial da revista Los Pensadores
242
, ligada aos boedistas. Mediante tal classe
de afirmações, é importante que Borges vindique a técnica no julgamento das obras literárias
e que enalteça os recursos utilizados por Whitman. Não porque entenda que ela seja o mais
próprio na arte literária, mas também pelo fato de que seus poemas e ficções viriam a se
destacar neste aspecto.
b) “É imprescindível também fazer alusão ao meio, cuja influência é direta. Esse alcance ou
projeção social deve aparecer na obra [...]”
243
. Diz o boedista Emilio Soto. Dessa forma,
quando Borges encarece o livro perene e mostra que o tema não é o mais importante para uma
obra literária, ele polemiza com essa estética. Suas afirmações desvalorizam as poéticas que
conferem grande relevância à temática social. Cabe lembrar que os temas são a pedra de toque
da literatura realista e comprometida. Os grupos que adotam o realismo socialista, em geral,
não se fazem tantas exigências formais, quanto exigências temáticas. Em contrapartida, ao
preconizar a forma, Borges está fornecendo ao blico alguns critérios que viriam a favorecer
sua narrativa, e já favoreciam seus poemas e ensaios mais voltados para temas filosóficos e
intemporais – os quais seriam desprezados na chave de leitura oferecida pelo boedista.
c) Não é segredo para ninguém que a literatura tem sua política”; “A face social que essa
literatura traz não é senão seu corolário lógico”
244
. Enfatiza o mesmo Emilio Soto. Vimos
que na parte final da nota, o ensaísta se empenha em não fazer de Whitman um legítimo
expoente da democracia e retirá-lo do campo das verdadeiras convicções políticas. É possível
que ele o faça, levando em conta a certeza de que a literatura possui sua especificidade, aparte
de qualquer empreitada ideológica. Mas se no ensaio ele preconiza as técnicas, e o valor da
forma, parece estar tentando colocar-se a si, e à sua literatura, a salvo de julgamentos
baseados em critérios extraliterários. Essa atitude parece importante por dois motivos.
Primeiro, porque ele recupera um precursor ilustre para sua obra - Whitman, o qual evoca
inúmeras vezes. Além disso, como observou Yurkievich, na poesia borgeana “una
tendencia a la idealización, a la abstracción, a la irrealidad que gobierna, cada vez más, su
marcha de poeta. Produce un alejamiento creciente de la actualidad, […]”
245
. Assim, com
levar Whitman ao campo das “vivências intelectuais”, Borges também prepara seu público
90
para uma poesia mais fria, mais mental - um tipo de lírica que o argentino tinha em mente
nos anos vinte
246
, mas o qual ele viria a consolidar a partir dos anos sessenta.
d) “[Nós, os escritores] Vivamos mais perto do homem despojado de todos os hábitos
pestilentos da civilização, do homem despido, órfão e miserável. Mais perto do trabalho e da
natureza. Conhecemos o ateliê, a fábrica e o hospital; a sujeira dos cortiços, a sujeira e a fome.
Conhecemos a dor de nossos irmãos em Cristo por experiência própria”
247
salienta a
declaração da Revista Los Pensadores. Essa exigência encontraria oposição em outra
manobra borgeana. Ele afasta a obra de Whitman da idéia romântica do poeta que verte suas
tristezas pessoais em seus versos. Precisamente, ele a coloca em descrédito gerando a
sugestão de que, mesmo quando os poetas se propõem exibir seus sentimentos e vivências,
ainda incorrem em distorção pela ênfase. Borges diz que esses românticos ‘teatralizavam’
suas vivências. Ao mesmo tempo, ele salienta as relações de Whitman com a tradição, tanto
por seus temas, quanto por seus procedimentos, aproximando-o ao modo clássico de escritura.
Portanto, se um poeta de grande êxito não precisou de aventuras extraordinárias para conceber
sua poesia, então Borges consegue desqualificar a exigência de uma vida interessante, ao
passo que autoriza sua própria voz. Afinal, se não era um homem rico, tampouco havia
experimentado os problemas da classe operária, e de qualquer forma não faria uma poesia
dedicada a apontar os problemas da sociedade. Ainda com seu apreço ao modo clássico, ele
rejeita a originalidade ‘periodística’ de apontar temas sociais que despontam todos os dias. Ao
contrário disso, em seus ensaios, vai tornando a erudição um valor. Ademais, através de suas
constantes comparações entre obras e precursores, ele exalta um critério bastante produtivo
para o julgamento de sua própria obra.
No período da publicação deste ensaio (1932), Borges tinha escrito três
volumes de poesia, mas o autor ainda produziria vários outros até a década de oitenta.
Portanto, deve-se tentar entender esse momento dentro de sua produção. Estudando a lírica
borgeana, Saúl Yurkievich ressalta que nela não uma mudança radical, mas um
desenvolvimento que gradualmente foi levando ao que era mais condizente com a visão de
mundo do poeta. No entanto, ele entende que Borges passa de um tipo de atitude artística a
outra: do romantismo expressionista dos anos vinte, a um neoclassicismo de sua segunda
etapa poética. Sua primeira poesia tem uma atitude “naturalista”, é “vital, sensualista, abierta
a toda la riqueza [...] ideas y sentimientos que se experimentan en contacto directo con la
realidad”. Ao passo que a segunda atitude, “abstracta”, “en lugar de la plenitud inabarcable
que ofrece la percepción concreta, tiende a fijar los símbolos, las analogías, los arquetipos que
91
constituyen el sustentáculo del mundo sensible; no busca la sustancia sino la esencia; no lo
fugaz y accidental, sino lo eterno y homogéneo”
248
. Portanto, se a primeira poesia borgeana é
vital e aberta às impressões que o mundo provoca, na segunda há um predomínio das
abstrações que racionalizam e buscam o essencial. O crítico ainda revela que nesta segunda
fase, Borges se esquiva de expressar sua vida quotidiana, de temas como amor e erotismo;
buscando, em contrapartida, uma arte mais idealista e tornando-se um poeta intelectual, para
quem a poesia deve muito às leituras, já que “el desencadenante [dos poemas] es casi siempre
racional, consciente”
249
. Ou seja, os comentários do crítico mostram que os trabalhos poéticos
do jovem Borges estão mais próximos de sua realidade, ao passo que o velho poeta exibe uma
poesia mais mental.
Ramona Lagos, que à diferença de Yurkievich, pôde acessar a produção
borgeana entre os anos setenta e oitenta, entende que, de fato, os poemas da etapa madura nos
anos sessenta, são predominantemente racionais, contudo, “coexiste, aparentemente
secundaria y paradójica la faz del instinto, del temor elemental, de lo ‘demasiado
personal’ [...] extraño a la especulación estética que privilegia lo intelectual”
250
. Para ela, na
segunda fase de sua lírica, Borges valoriza os temas filosóficos e de cunho racional,
conferindo menor atenção à expressão da dimensão física do corpo e do contato com o
mundo; no entanto, ela detecta que tais elementos assomam à sua obra, ainda que de modo
involuntário. Outro dado interessante nesta pesquisa, é que enquanto, em geral, a crítica se
volta para os três primeiros livros de poemas dos anos vinte e para a poesia borgeana dos anos
sessenta, como se houvesse um hiato na produção deste autor, Lagos procurou estudar os
poemas desse intervalo. Assim, ela assinala que os poemas da década de vinte, apresentam
tanto elementos da dimensão física da existência, quanto elementos de proposição intelectual.
os poemas da década de trinta (o intervalo) prefiguram sua poesia dos anos sessenta,
segundo ela; e a grande diferença entre os poemas juvenis dos anos vinte e trinta, é que nos
últimos “junto a una interrogación intensa sobre mismo y el mundo, [há] un dramático
cuestionamento de su trabajo literario”
251
. Assim, Lagos indica que os anos trinta assistem a
uma profunda transformação na poesia borgeana.
Vimos em nossos pressupostos que o (segundo) jovem Borges acreditava
em Whitman enquanto um poeta, um lírico da expressão genuína dos sentimentos. Na “Nota”,
observamos que o Borges dos anos trinta revisa a poesia do norte-americano para associá-la
ao trabalho do artífice, descobrindo nele as técnicas e a retomada da tradição. Essa
transformação parece ter sido aludida de modo simbólico no conto “El Otro”, quando o jovem
entendia a poesia associada às vivências do poeta, ao passo que o velho preferia entendê-la,
92
enquanto composição de um significado através de suas figuras. Ou seja, na narrativa, Borges
sugere que para tornar-se o escritor que chegou a ser; em sua juventude, foi um passo
importante deixar de investir na poesia enquanto expressão pessoal, como o faziam os
escritores de sua geração
252
. Yurkievich atesta a existência de uma mudança na poesia
borgeana, relacionável a este aspecto de poesia vital a abstrata. Lagos assinala que houve
uma mudança, na qual a racionalização da poesia, abafou, mas não extinguiu de todo a
presença de elementos de ordem pessoal. Ainda muito interessante é o dado de que essa
mudança teria tido início nos anos trinta.
Esses dados nos levam a crer que as reflexões efetuadas na “Nota”, e em
outros ensaios recolhidos em Discusión (1932), os quais chocam com os postulados do grupo
boedista da década de vinte, foram fundamentais para essa transformação. Além da alusão no
conto, e da releitura de Whitman efetuada no presente ensaio, três motivos nos direcionam a
esta idéia:
1. O Borges da Europa não tinha concepções poéticas biografistas. Inclusive, em seu
primeiro ano de regresso à Argentina, ele chega a tecer o projeto de uma poesia sem
emoções
253
. Assim, a defesa de uma poesia ligada ao biográfico, parece ter surgido
diante das necessidades de definir um criollismo legítimo em oposição a um falso
criollismo
254
. Com isso, entendemos, que os problemas da representação do nacional
na literatura, parecem tê-lo aproximado de concepções biografistas, de que o
verdadeiro criollista é aquele que tem um sentimento e uma vivência autêntica de seu
país. Mas vimos também, que em função do socialismo, os autores de Boedo faziam
exigências semelhantes aos poetas poeta é aquele que vive e sente as necessidades
do povo.
2. Em 1928, Borges chega a declarar que, por seus temas, talvez ele devesse ter sido
incluído entre os escritores de Boedo, que os temas deste grupo eram facilmente
associáveis ao cânone das obras criollistas
255
. Ou seja, o criollismo faz com que ele se
aproxime do que eram os postulados boedistas em poesia.
3. As críticas e as discussões entre os integrantes dos grupos de Boedo e Florida ocorrem
entre a segunda metade dos anos vinte e o início dos anos trinta (entre 1924 e 1930,
sobretudo). Portanto, o livro Discusión (1932) é escrito logo depois da polêmica. E se
Borges não escreve vários artigos apresentando sua posição no período; tanto neste
ensaio, quanto em La Postulación”, é possível entrever as respostas borgeanas aos
assuntos que foram debatidos entre os grupos.
93
Por tais motivos, entendemos que durante a década de vinte, Borges assimila
a pergunta pelo nacional a seu projeto poético em desenvolvimento, mas a estética realista
dominante até a década de trinta é descartada, em favor de suas idéias anteriores (afins às do
‘primeiro Borges’) de uma arte de elaboração ativa da realidade, mediante recursos formais.
Acreditamos que este passo decisivo para seus futuros trabalhos ocorre no momento em que
ele critica essa estética, durante o período de concepção de alguns dos ensaios que integram
Discusión. Estética com a qual chegara a identificar-se por seus temas, em 1928. Tendo em
conta os estudos de Olea Franco
256
, percebe-se que em Evaristo Carriego (1930), Borges
afirma seu desejo de carregar o trabalho com o local para além da década de vinte. A nosso
ver, durante as discussões da polêmica Boedo-Florida, ele reafirma sua inclinação por uma
literatura calcada nos recursos, de cunho altamente imaginativo e ficcional. Algo que é
fundamental para sua poética da maturidade.
3.2. UM PRÓLOGO BORGEANO: O ENSAIO LITERÁRIO E A LEITURA CONTRA O
REALISMO E O COMPROMISSO.
O prólogo-ensaio “Domingo F. Sarmiento: Facundo”, de 1974
257
, foi
escolhido para análise, uma vez que esclarece algumas idéias, com as quais, Borges se
justifica diante do fato de não ter cedido às pressões para tornar-se um escritor engajado.
Ademais, suas críticas à capacidade de apreensão dos fatos históricos por um tipo de discurso
historiográfico são afins aos questionamentos que ele endereça ao realismo literário no conto
“El Otro”, de 1975. No programa deste prólogo-ensaio há três movimentos: o questionamento
de um tipo de historiografia a partir da literatura; uma revisão da escolha do símbolo para a
identidade argentina – que não será abordada nesta análise; e a problematização da efetividade
do engajamento nos textos literários.
Essas questões parecem ter sido vertidas em uma forma tríptica, com uma
fase final retomando a primeira
258
. Deste modo, percebe-se que em cada uma delas, o foco é
especialmente dirigido a uma destas matérias, as quais conformam nítidos campos de força, e
cuja íntima conexão faz com que se apóiem e sustentem mutuamente. De modo especial,
todas estão atravessados pela discussão sobre a historiografia, abordada com maior ênfase ao
princípio e ao final do texto. Na primeira etapa, um tipo de historiografia tradicional
259
é
apresentado como casual e subjetivo, enquanto o gênero ensaístico é exaltado por suas
94
dicotomias perenes. No segundo, os gauchos (escolhidos para o Martin Fierro) são
apresentados como meros pastores eqüestres despidos de qualquer patriotismo, enquanto a
escolha de Sarmiento para o personagem (Facundo Quiroga) é valorizada por sua motivação
literária. No terceiro, as ligações do volume, com o contexto, são relativizadas mediante o
poder do subconsciente no ato criativo e da imprevisibilidade da leitura, na recepção textual.
Na última parte do ensaio, uma última contraposição: a historiografia tradicional é
criticada por sua suposta imobililidade e dogmatismo, enquanto o ensaio narrativo de
Sarmiento é exaltado, por seus atributos literários e por sua perenidade.
Um procedimento, que vamos denominar pluralização, auxilia na armação
interna destes quadros. Está na forma, já que cada uma dessas etapas do ensaio explicita um
par de antagonistas. Está no conteúdo, quando Borges quer transformar o hegemônico
discurso da historiografia tradicional em uma versão e quando ele mesmo apresenta outras
versões, suas e de outros escritores, a respeito dos fatos. Aparece de modo direto, quando ele
se declara favorável à pluralidade de causas. Surge ainda no mecanismo das citações do
parágrafo inicial, quando ele realça uma série de falas, isto é, de vozes plurais que questionam
a história. É visível, ademais, no título “Facundo”
260
. O nome da personagem remete ao livro
que poderia ter sido escolhido (a outra escolha) para a representação da identidade nacional.
Em seus textos críticos, Borges efetua uma releitura do cânone e das
tradições culturais, de modo a produzir uma reconfiguração do espaço literário. Reacomoda
nomes centrais da tradição européia ao valorizar e recuperar da berlinda literária nomes
menores, como os de Evaristo Carriego ou Stevenson
261
. Percebe-se que o mesmo processo
foi aplicado aos tópicos deste ensaio, uma vez que ele opõe o jovem gênero ensaístico à
tradição secular da historiografia; opõe a moderna descoberta do subconsciente à antiqüíssima
contextualização de um livro ou de um problema; e ainda opõe o Facundo: civilización i
barbárie ao já consagrado Martin Fierro.
Contestação da Historiografia Tradicional.
“Según esta obra [a de Nordau] puede haber un
conocimiento de hechos históricos particulares, pero no
una ciencia general de la historia, con leyes que
permitan profecias o previsiones”. BORGES, J. L.
“Nordau”. Textos recobrados (1931-1955).
Barcelona: Emecé, 2001, p.274.
O ponto de partida do ensaísta é uma desconfiança a respeito da apreensão
objetiva da realidade, através dos relatos históricos, a qual vai permear todo o texto. Borges
95
evoca o pensamento de Shopenhauer: “la historia no evoluciona de manera precisa y […] los
hechos que refiere no son menos casuales que las nubes, en las que nuestra fantasía cree
percibir configuraciones de bahías o de leones. Ou seja, ele deixa claro seu desafio de
provar que a historiografia tradicional é arbitrária. Quer mostrar que seus relatos são ‘casuais’,
e não causais. Assim, é possível entender uma contestação do modelo historiográfico
tradicional, com o argumento de que talvez não haja um grupo de causas e conseqüências
necessárias a encontrar; de que talvez, não haja movimentos e destinos ‘fatais’ no percurso da
humanidade. Ou seja, ele opõe a visão de uma história informe à idéia de que seria possível
encontrar uma mecânica precisa no desenrolar dos acontecimentos históricos. Na metáfora
emprestada, ainda fica expressa a idéia, de que perceber um movimento preciso na evolução
dos fatos históricos, seria algo como encontrar desenhos nas nuvens, isto é, fruto da
criatividade humana. Assim, ele propõe uma dificuldade para uma apreensão precisa dos
fatos. Chama a atenção para a presença da subjetividade na interpretação dos acontecimentos
e com a imagem do homem que olha para as nuvens, faz pensar que a historiografia, como a
narrativa literária, também se constitui a partir de um ponto de vista.
Borges ainda deixa perceber que os destinatários de sua polêmica são “los
que perciben o declaran que la historia encierra un dibujo, evidente o secreto”. A estrutura
indireta e alusiva apresenta a historiografia tradicional como uma mistificação, ‘uma álgebra
secreta’. Antes a compara com as “nuvens”, e agora “desenho”. Ambas as figuras escarnecem
dessa abordagem, revelando o posicionamento do ensaísta. Além disso, o trecho projeta duas
concepções opostas da história: a de que ela possui uma lógica que efetivamente descreve a
realidade e a idéia borgeana de que não há tal lógica. Portanto, a historiografia tradicional não
alcançaria uma descrição efetiva do passado, mas seria apenas um olhar subjetivo para com o
mesmo.
A seguir, uma fala de Antonio e Cleópatra de Shakespeare sugere que, com
freqüência, um novo fato histórico é interpretado à luz de algo que se conhece ou que se
viveu anteriormente. Este argumento, de que “Los ojos ven lo que están habituados a ver”
262
,
constava de “El Pudor de la Historia” (de 1952). Borges faz refletir sobre o quanto é difícil
julgar efetivamente de um evento. O historiador vai ao encontro dos fatos munido de uma
pequena parcela de conhecimentos, de vivências, de um método de abordagem, de seus
esquemas mentais de interpretação. No entanto, a história pode apresentar-se, talvez não de
um modo propriamente novo, mas por intermédio de um, ou de rios fatos que excedem a
diminuta rede, com a qual contava o pesquisador. Deste modo, fica a sugestão de que nem
sempre o historiador consegue captar a ampla significação de um fato, mas tende a
96
reacomodá-lo no território do que é conhecido, convertendo por vezes, o novo no antigo.
Em “El Otro”, a mesma idéia funcionava enquanto uma objeção ao trabalho dos escritores
realistas.
Entra um terceiro argumento, agora de Joyce, com a imagem de que a
história é um pesadelo. Quando procura o pesadelo, ao invés do sonho, desprende-se o sentido
de deformação horrível do real ou mesmo de algo irreal. Ao mesmo tempo, surge o sentido de
que, no discurso da história tradicional, os fatos se transformaram em símbolos. Neste caso,
ele seria uma espécie de alegoria, e sua composição, uma interpretação da realidade. Contudo,
se na metáfora central do conto “El Otro”, a literatura é um sonho, como a vida é um sonho,
que Borges aplique a mesma metáfora à história, poderia significar a atribuição de um status
de igualdade para história e literatura. Este sentido se confirma, quando em outro texto, ele
declara que a historiografia de Spengler é um novo “género literario”
263
. Com tais
considerações, parece tentar atingir o estatuto de discurso verdadeiro, que a historiografia
tradicional carrega como uma diferença em relação à literatura, com o argumento de que
ambas as disciplinas poderiam produzir um mesmo resultado, o de reagrupar os elementos da
realidade à luz de um sentido.
Como dito, Borges investe contra a historiografia tradicional, enquanto
discurso que pretende possuir a ‘verdade’. Diante dessa tarefa, o grupo inicial de citações
ainda é importante por dois outros motivos. Em primeiro, porque o mecanismo textual de
pluralização começa a aparecer neste ponto. O chamado de várias citações, isto é, de ‘várias
vozes’, ajuda a criar a idéia de relatividade dentro do texto. As diferentes vozes lembram a
diversidade de opiniões. Sugerem que um discurso não poderia acreditar-se como o único
detentor da verdade. Além disso, a modo de oposição à historiografia tradicional, Borges
poderia ter buscado referir-se a um historiador, cujo método julgasse mais adequado.
Contudo, ele utiliza as citações de um filósofo (Shopenhauer) e de dois escritores
(Shakespeare e Joyce) na contraposição. Ou seja, esta é uma contestação do discurso da
história tradicional, a partir da literatura e da filosofia. Atacar esse discurso apontando para o
que ele tem em comum com o literário, é, em última instância, uma tentativa de destruir as
fronteiras disciplinares. Seu motivo parece ser o de que, uma vez que elas caem, é possível
reclamar uma nova autoridade para a literatura, e portanto, para o seu próprio discurso de
escritor.
Neste prólogo-ensaio, Borges explora todas as possibilidades a seu alcance
para tecer críticas à historiografia tradicional. Tendo em conta seus ‘deveres’ de prologuista,
esse debate que interessa ao ensaio poderia encontrar restrições à sua plena exposição, em
97
virtude da matéria específica do prólogo, mas Borges consegue converter a obrigação em
vantagem. Uma vez que alguns historiadores poderiam tomar por factuais e conferir um status
de verdade a trechos meramente narrativos da obra de Sarmiento, ele desenvolve um duplo
movimento em relação ao livro. Por um lado, vai elogiar seu lado ensaístico-narrativo. Por
outro, vai utilizar a própria constituição do livro de Sarmiento para tecer suas objeções ao
discurso tradicional da história. Desse modo, ele desenvolve suas idéias, sem se afastar da
obra em exame.
Segundo o jovem Lukács, os ensaios são artísticos, que trabalham com as
formas
264
. Assim, percebe-se que Borges resolve destacar justamente as características
literárias do ensaio sarmentino. Quando ele comenta os motivos pelos quais Sarmiento
escolhe seguir a narrativa da vida de Facundo Quiroga em lugar de optar pela biografia de
Rosas, vai dizer que Facundo é escolhido para la composición de su obra”, pois “precisaba
un fin trágico”. Borges tenta convencer o leitor de que essa seleção obedeceu a motivos de
ordem composicional. Na manobra do ensaio, não é exatamente a vida atroz de Facundo o que
faz com que Sarmiento o escolha. Ao contrário. Em seu comentário, sobre o fim trágico de
Quiroga, aparece a idéia de que o decisivo foi a percepção, do escritor-Sarmiento, de estar
diante de uma vida altamente convencional e passível de conversão no personagem, que
tinha em vista. É como se ele preenchesse os moldes literários buscados. Com isso, se a
historiografia tradicional é apresentada como arbitrária, Borges oferece o significado de que a
opção sarmentina de fazer do Facundo o personagem do ensaio, seria plenamente justificada e
coerente com os objetivos estéticos do livro. O ensaísta inclusive aponta uma inverdade no
ensaio de Sarmiento. De acordo com ele, os caudillos não eram necessariamente gauchos, até
porque como ele alega, o pai do verdadeiro Facundo era um espanhol, ocupando um bom
cargo
265
. Portanto, no caso do caudillo,Facundo Quiroga, ser gaucho era uma opção. No
entanto, Borges não reprova o volume por isso. Apenas o justifica. Diz que o sanjuanino teve
de juntar caudillos e gauchos para construir com eles seu conceito de barbárie; isto é,
“urgido por la tesis de su libro”, identificou-os aos caudillos. Ou seja, segundo Borges, a
verdade é afastada em nome da idéia central que norteava o ensaio-literário. Dessa forma,
surge uma critica velada à historiografia tradicional, porque ela tentaria registrar a
mutabilidade da vida, quando o ensaio é elogiado, pelo motivo de que, como a literatura, ele
construiria uma idéia central, atribuindo sentido à realidade.
Outra observação deste tipo surge, através do comentário, de que na história
tradicional, as efemérides usurpam o lugar da realidade, perceptível no fato de que “es
costumbre olvidar la significación intelectual de las fechas históricas”. Com essa menção ao
98
fácil esquecimento do sentido sob as datas, ele parece aludir a um tipo de esquematismo
atuante na historiografia tradicional. Neste ponto, o prólogo é solidário a “El Otro” pois, em
ambos os textos, surge o significado de que o esquecimento ronda o discurso tradicional da
história pois ele precisa fornecer frases memoráveis, para que nos lembremos da
importância dos fatos destacados em seus manuais. Em franco contraste, Borges declara que o
Facundo “es el personaje más memorable de nuestras letras”. Assim, ao mesmo tempo em
que o prólogo acredita a perenidade do ensaio, sugere que o esquematismo da historiografia
tradicional a relega ao esquecimento. É como se essa história apenas amontoasse os fatos; à
diferença dos romances, cuja viva construção, faz com que eles permaneçam gravados na
memória.
Quase ao final do texto, Borges volta a apresentar a história em um quadro
de congelamento. O que deveriam ser marcos de referência, para pensar o presente em relação
ao passado, e recuperar o significado de episódios supostamente importantes, converte-se em
desconfiança, através do investimento semântico em aniversarios”, “centenarios”, fechas
de nacimiento y de muerte”. É como se os historiadores pudessem encontrar um significado
arbitrário, para uma série de ocorrências, cuja importância poderia ser relativa. Assim, um
argumento de “El Pudor de la Historia” parece esclarecer o que Borges indica, quando tenta
diminuir a importância do que a história tradicional se esforçou por consagrar. No aludido
texto, ele fornece o exemplo, que parafraseamos: quando a representação dramática era um
ritual a Dioniso e foi introduzido pela primeira vez um segundo ator no palco, ninguém
poderia ter notado nesta mera inclusão algo extraordinário - o nascimento do teatro
266
. Dessa
forma, ele compõe a visão de uma história pudorosa”. Isto é, a idéia de que ela é portadora
de grandes fenômenos, que aos poucos vão se descortinando. Precisam de tempo para
revelar sua dimensão, para que vejamos o quanto foram extraordinários. De modo que os
acontecimentos que ‘vão mudar a história’, os quais são verdadeiramente dignos de nota,
passariam desapercebidos muitas vezes. Portanto, surge o sentido de que, de um lado, com
freqüência, a historiografia anota e valoriza fatos corriqueiros; de outro, ao mesmo tempo, não
teria como julgar de certos eventos marcantes, porque só ao futuro estaria reservado o
conhecimento da real importância dos mesmos.
Em contraste com o imobilismo atribuído aos relatos históricos, o próprio
livro prologado é uma narrativa excitante e de muita ação. Talvez por mais esse motivo,
Borges se mostre favorável ao ensaio-narrativo. Então, vemos que pela via estética, um gesto
de nosso ensaísta pareceria estar indicando um modo para findar com um suposto
entorpecimento na historiografia. Comentando esse imobilismo, ele lembra o caso do
99
encontro de duas avenidas, cujos nomes pertencem a dois próceres, os quais foram inimigos
durante suas vidas. Então, no ponto em que constrói essa sensação de paralisia, o ensaísta
reintroduz o movimento, em suas observações, com um gesto narrativo: o segundo inimigo
“hizo degollar al primero”. Dessa forma, sente-se a crítica de uma classe monótona de relatos
históricos, mediante o pedido de uma história mais viva e marcante; mas também a
valorização da narrativa literária pelo dinamismo, que é facilmente atingível, neste tipo de
representação.
Esse imobilismo na história, ainda parece ser reiterado pelas instituições
pátrias: “partidos”, esquinas”, “plaza”, “museu”, “cuadros”, “mármoles”, bronces”. Se
antes, o ensaísta marcava as distorções na obtenção dos dados pela historiografia tradicional,
neste momento, vai propor que esses desvios foram fixados, mas além disso, vai sugerir
que podem existir interesses por trás dessa canonização patriótica. Em seu discurso, a história
aparece como uma espécie de memória oficial do passado, que amplamente acatada, não é
mais do que uma versão, que se passa por única e à qual todos se submetem. Esse significado
de versão inconteste se expande, quando Borges diz que seu pai costumava comparar o ensino
de história ao catecismo. Sugere assim que ela se tornou um dogma algo que não está
integralmente justificado, mas é inquestionavelmente aceito; um culto a heróis que talvez não
sejam heróicos de fato, como ele pensa a respeito do gaucho. Em “El pudor de la historia”,
nos alerta que uma das tarefas dos governos, desde os tempos de Goethe e sobretudo em seu
século, era a propagação de fatos históricos
267
. Assim, ele critica a historiografia tradicional,
que muitas vezes em nome de um patriotismo belicoso (ele dava como exemplos Itália e
Alemanha), se permitiria ser um instrumento de manipulação ideológica para os governos.
Ainda no mesmo texto, Borges assinala como algo maravilhoso, o fato de que um historiador
norueguês se houvesse disposto a narrar o episódio em que seu rei é vencido
268
. Lembra, desta
maneira, que nem sempre coincide a história narrada pelos vencidos, com a história narrada
pelos vencedores. Mas também, com isso, assinala a falta de imparcialidade que pode
envolver os historiadores, quando o nacionalismo está em jogo.
Logo que entra na descrição do volume de Sarmiento, Borges declara que o
sanjuanino não pudera viajar muito e que por isso se valera de “intuición”, “adivinación
genial”, “inventiva memória”, leituras, da imaginação nas noites de insônia, e ainda, que tudo
o que dissera fora filtrado por ódios e afetos pessoais. Como dito, o ensaísta aprova
amplamente o ensaio de Sarmiento. Contudo, ele parece querer responder àqueles que
desejaram ver no livro do sanjuanino um testemunho vivo de seu tempo, um documento da
história argentina. Por isso, aponta os fatores que, a seu ver, intervieram entre o escritor e a
100
realidade, mas que igualmente se interpõem entre os historiadores e os fatos históricos: a
memória pode distorcer os dados; as leituras podem fazer com que um fato histórico, com sua
especificidade própria, seja aproximado às leituras literárias; ou mesmo que por influência
destas, a exposição assuma um viés, dramático ou eufórico que não existira no
acontecimento; finalmente, fica a idéia de que as paixões pessoais também podem interferir
na imparcialidade de seu relato.
Borges ameaça dizer o que “vio” Sarmiento, de modo que dados da
realidade objetiva são esperados pelo leitor, contudo duas novas repetições do vio”, mostram
que ele deseja assinalar a subjetividade na visão que o sanjuanino teve da história. Comenta
que, percorrendo o deserto argentino, Sarmiento deve ter tido a percepção corrente, de que
quanto maior o tempo gasto em uma viagem, maior parece ser a distância. A sugestão é a de
que Sarmiento não viu o que era de fato o território argentino, mas o que as condições de seu
tempo, a distância, a llanura, o cansaço da viagem, a morosidade dos meios de transporte,
fizeram com que ele visse. Na verdade, Borges projeta o tempo sobre o espaço e utiliza uma
repetição, que os coloca em destaque, “ya que [...] tardamos”, “ya que [...] tardaban”.
portanto uma idéia de que o outro escapa ao relato efetivo das condições do país, fazendo
grandes inferências a partir do que sentiu e do pouco que pôde observar. Ou seja, ele aponta
mais uma vez para a subjetividade que poderia interferir na visão dos historiadores.
No mesmo parágrafo surge um trecho narrativo-descritivo, gerando um
panorama de vida selvagem: “índios”, “llanura”, hacienda salvaje”, el caballo y el toro”.
Novas escolhas lexicais produzem o efeito de dificuldade e descuidos com “ciudades
polvorientas”, “hondón” para Córdoba, e “margen barrosa”, para Buenos Aires. Conforme
o programa do prólogo, Borges está assinalando uma idéia do livro, de que o continente
abandonado precisa de gente para trabalhá-lo. Contudo, a imaginativa descrição borgeana
coloca o leitor ao lado de Sarmiento, deparando-se com os elementos que ele poderia ter
encontrado neste passado distante - pequenas cidades perdidas no meio do nada ou a vida
selvagem, simbolizada por animais e índios. Ou seja, apenas os elementos mais imediatos,
que devem ter chegado aos sentidos de Sarmiento. Em “La Postulación de la Realidad” e em
“El Otro”, entende-se que a realidade não estaria ao lado de certos escritores realistas, que
como os historiadores, tentariam, com uma visada abrangente, narrar os acontecimentos, sob
um viés coletivo. À semelhança do que se configura nestes textos, este ensaio sugere que os
historiadores poderiam captar uma parcela da realidade, através das impressões que se
produzem nos pequenos contatos com ela.
101
Borges demonstra que quer dar a sua versão do que ocorrera aos gauchos,
quando eles se depararam com os ingleses em Quilmes. Utiliza a mesma operação de que se
vale “Em Otro” e em “La Postulación”, ao narrar que “los gauchos del lugar se reunieron
para ver con sencilla curiosidad a esos hombres altos, de brillante uniforme, que hablaban
un idioma desconocido”. Assim como faz nos textos anteriores, ele proporciona “a realidade”,
isto é, sua visão do que ela seria. Expõe o despreparo diante dos fatos; a reação imediata de
curiosidade; a vivência sem compreensão; a mera percepção do idioma estranho, por parte
daqueles que vivenciaram a cena. Tanto este trecho do prólogo, quanto o citado em nosso
último parágrafo, assinalam a diferença que existe para Borges entre a realidade histórica
vivida e as pomposas narrativas da historiografia tradicional; mas também lembram as
diferenças que deve haver existido entre o que o “historiador” Sarmiento viu, algumas cenas e
locais específicos, e o que ele deduziu, isto é, o geral, o processo de formação e
desenvolvimento de um país. Assim, Borges aponta para o fato de que não se pode ter um
conhecimento integral de todos os eventos. Como dito, em sua visão, é possível ter contato
com uma parcela da realidade histórica. Assim, os historiadores estariam obrigados a uma
série de inferências metonímicas. Saltando desta, para uma idéia mais abrangente, pode-se
pensar que entre outros fatores e leituras, o prólogo-ensaio guarda uma reflexão sobre o
pensamento de Shopenhauer, de que não haveria uma história integral, mas apenas fatos
particulares a serem relatados - uma vez que no livro do filósofo, esta é a continuação da
passagem citada por Borges no início deste ensaio.
O ensaio constrói o encontro de Sarmiento com um panorama desértico de
isolamento, destacando que ‘a isso’ o escritor teria chamado “civilización”. Certamente que
os conceitos são relativos e históricos. Contudo, à palavra em questão corresponde o
significado de um alto grau de desenvolvimento na vida social, política, econômica e cultural.
Com isso, Borges sinaliza a falta de correspondência entre a denominação utilizada e o que
fora esse tempo a seu ver “el tablero hispánico y la desmantelada plaza en el medio”. Ao
mostrar que os conceitos não traduzem de modo preciso o que se deseja relatar, o ensaísta
alerta que também os relatos históricos podem se afastar da realidade pelas próprias faltas da
linguagem.
Uma problematização da capacidade de apreensão dos fatos históricos
aparece na forma como são descritos os movimentos ideológicos que precederam a
Revolución de Mayo e as leituras dos próceres da Independência. Fica dito que, entre outros
fatores, tais eventos históricos foram produto das ‘seitas secretas’, que um grupo de homens
cultuava. O trecho, mesmo pleno de humor, faz pensar em que medida essas doutrinas
102
puderam influenciar no desfecho dos sucessos nacionais. Esse problema se refere à larga série
de eventos e à conjunção, em diferentes proporções, de vários fatores, culminando nos fatos
históricos, os quais, por vezes, a historiografia não poderia resgatar. De modo mais específico,
o ensaísta dique endossa a pluralidade de causas de Stuart Mill. Ela entra no texto para
desqualificar a contextualização que um crítico argentino faz para o Facundo. Contudo, sua
lembrança por si mesma é um argumento contra a verdade da historiografia tradicional.
Dentro dessa visada, qualquer que seja o ângulo, sob o qual o historiador aborde sua matéria,
sua verdade estará sempre incompleta e portanto, será sempre uma aproximação, porque não
pode abarcar todos os fatores envolvidos, e porque existem diferentes pontos de vista, sob os
quais haverá outras causas para os mesmos acontecimentos. Essa ainda parece ser a releitura
borgeana de uma observação de Carlyle, de que “la historia es una disciplina imposible,
porque no hay hecho que no sea la progênie de todos los anteriores y la causa parcial, pero
indispensable, de todos los futuros”
269
. Portanto, a dificuldade do historiador não reside
somente em ter acesso a todos os fatores determinantes dos eventos, mas também na
concatenação destes fatos – um dominó gigante cheio de encruzilhadas.
O ensaísta recorda aos leitores que “los próceres eran hombres de carne y
hueso”. Isto faz pensar que estes heróis nacionais também tinham fraquezas ou momentos de
corrupção. Declara que muitos foram inimigos, observando uma espécie de visão “sincrética”
nos relatos da historiografia argentina. Assim, Borges vai apresentá-la, como um rito, como
um costume do culto a heróis. Declara que esse culto foi capaz de juntar homens de ideologias
divergentes, com interesses bastante distintos. Provavelmente por isso, ele vindique o ensaio
literário de Sarmiento, que este tenta imaginar os lances de orgulho, desafetos, vinganças e
ambições pessoais de Facundo, de Rosas e outros personagens que o sanjuanino examina
individualmente. Fortalecendo esse raciocínio, Borges assevera que os caudillos se opuseram
à causa da América (o coletivo dos países) porque acharam que ela era um pretexto para que
Buenos Aires, uma província, ou o indivíduo Rosas, dominasse as demais. Tudo isso concorre
para a idéia de que, “Contrariamente a los devaneos de la sociologia, la nuestra es una
historia de indivíduos y no de masas”. Deste modo, a apreensão dos movimentos coletivos é
problematizada. Como sugerido em “El Otro”, é como se fosse difícil descrever o andamento
dos grupos sociais ou os movimentos coletivos, quando o móvel de seus líderes e dos mesmos
integrantes das massas é o desejo pessoal.
Neste prólogo, a alusão aos fatos do passado argentino é apresentada de duas
maneiras, ou Borges mesmo os relata, sobretudo nos parágrafos 5 e 11; ou aparecem por
intermédio da citação de passagens literárias (de Hudson, Ascasubi e Sarmiento), como ocorre
103
no momento em que discute a questão do gaucho. Entretanto, se para discutir e provar o que
de fato ocorreu no passado, os trechos literários valem tanto quanto os da historiografia, e se
sua palavra de escritor substitui a de um historiador neste assunto, então este grupo de
citações está ligado ao apagamento de limites disciplinares, entre literatura e história. Além
disso, ao utilizar vários escritores, como fonte, para discutir a posição histórica do gaucho nas
lutas nacionais, novamente o uso peculiar da citação adverte sobre a pluralidade de opiniões,
quanto aos fatos do passado. Observa-se que em diversas passagens, Borges está criticando a
historiografia tradicional na condição de única dona da verdade, e, em paralelo, vindicando
que possam existir outras formas de encarar as mesmas realidades. Assim, sua operação é
visível. Ele está tirando o discurso da história, do pedestal em que a objetividade o coloca,
para vê-lo nivelado, como ocorre nesta passagem, com as versões literárias.
Em “Nota sobre Walt Whitman”, Borges contesta a concepção do poema,
enquanto fruto direto das vivências de seu autor. Neste ensaio, aparece nova questão. A
lembrança de que o poeta Ascasubi foi um homem que participou em determinados combates;
poderia fazer com que seu leitor pensasse, que seus poemas trazem a realidade sobre os fatos
históricos em que participou. Contudo, se Ascasubi enaltece o patriotismo do gaucho em seus
versos, Borges lhe opõe a seqüência dos fatos históricos. Ademais, apresenta sua versão, a
qual seria respaldada pela de Hudson. Portanto, ele lembra que, a ficção, tanto quanto a
história, é uma versão, que pode ser submetida à relatividade a ambas podem ser opostas
ouras versões.
Contudo, antes de apresentar os argumentos que o auxiliam a demonstrar que
o gaucho não era um patriota, Borges vai chamar a visão oposta à sua com a citação de
Ascasubi. Como vimos, Borges discorda dessa interpretação. Assim, neste prólogo, a
historiografia tradicional, o gaucho, e o Martin Fierro; são opostos ao ensaio, aos patrióticos
unitários (não mencionados), e ao (livro) Facundo. Assim como Borges acredita que os
unitários são os verdadeiros heróis da história argentina e não os gauchos, mas por
determinado entendimento, eles se tornaram os ícones de seu país; assim como o Martin
Fierro se tornou o livro canônico em lugar do Facundo, quando teria sido melhor ter
canonizado o segundo, na opinião borgeana; a historiografia tradicional tornou-se a portadora
oficial da verdade, quando outras verdades são manifestadas, através dos ensaios.
No lugar do discurso da historiografia tradicional, que Borges refuta, pode-se
averiguar o que ele valoriza no ensaio sarmentino, o qual aprova: sobretudo sua permanência.
Em seus textos críticos, ‘perenidade’, ‘larga duração’, ‘imortalidade’ conformam um valor
constante em seu julgamento das obras. Ao passo que, condenava as obras datadas, no tipo de
104
escritura “sub specie temporis vel historiae”
270
. Neste texto, tão logo inicia seus
questionamentos a um modo de narrar a história, ele reitera a imortalidade do Facundo, “Sub
specie aeternitatis”. O ensaísta apresenta a principal chave de leitura do pensamento
sarmentino, sua dicotomia civilização ou barbárie, e afirma que ela poderia ser utilizada para
descrever “al entero proceso de nuestra historia”. Essa idéia é análoga a que aparece em
poemas e contos borgeanos, a de um momento que vale por uma vida inteira
271
. Neste texto, a
estrutura é estendida a um novo campo, no elogio a uma oposição que é capaz de abarcar a
história inteira. Assim, porque é mais gico que se contraponha um gênero (o da
historiografia tradicional) a outro gênero (o do ensaio literário), parece que não o ensaio de
Sarmiento é imortal, senão que Borges concede essa imortalidade ao próprio nero
ensaístico. Essa perenidade lhe é atribuída, porque nesta classe de textos, a parte é capaz de
representar o todo; porque suas disjuntivas podem permanecer válidas, através dos tempos.
Como dito, no trecho em que o ensaísta vai dizer o que Sarmiento “viu”,
primeiro o verbo “ver” aparece sugerindo a influência das distâncias e das dificuldades sobre
as conclusões do sanjuanino, mas o mesmo verbo voltava em dois usos mais. No segundo, ele
aparecia diante de dois substantivos abstratos, a miséria (presente) e a grandeza (futura). No
terceiro, ele surgia acompanhado de poucos elementos naturais, com os quais Borges supõe
que Sarmiento teria podido entrar em contato direto. Desse modo, entram em contraste as
restrições borgeanas a que Sarmiento tivesse conseguido uma descrição exata, do que ocorrera
em várias partes do país; e a amplitude que ele confere ao vislumbre literariamente articulado,
obtido a despeito desta visão tão limitada. Na montagem borgeana, o sanjuanino pôde
parcamente encontrar e descrever a realidade, mas para contraste, essa visão intuitiva foi
capaz de abarcar todo o presente e servir ainda como uma profecia de futuro. Do que se
entende que, se nem sempre os historiadores conseguem encontrar no passado uma explicação
para o presente; os ensaios, como o de Sarmiento, por seu cunho literário, com uma idéia
central simbolicamente representada, podem tornar-se proféticos. Eles explicam ou antecipam
o futuro a partir do presente. Assim, como dito, Borges ressalta todos os filtros subjetivos que
fomos mencionando, mas com toda a precariedade do julgamento, com a parcialidade e a
pessoalidade que ele aponta como fatores que afastaram o trabalho sarmentino para longe de
uma mera exposição da realidade factual, ele não critica Sarmiento. Por sua escolha do
personagem, por sua retomada da tradição, por suas metáforas, por sua narrativa dinâmica e
por sua idéia central, ele exalta o Facundo: esta ainda é a melhor história argentina, em sua
opinião.
105
Por todo o exposto, de um lado, Borges elogia o ensaio-literário de
Sarmiento; do outro, tece críticas à historiografia tradicional. Esse duplo movimento que
assinalamos, parece ter correspondência com algumas “paixões” do escritor. Borges sempre
foi um crítico, mas não um crítico desinteressado
272
. Primeiro observamos, que ele apresenta
vários argumentos contra a apreensão fiel dos fatos históricos, mas o alvo é perceptível: se os
próprios historiadores m dificuldades para apreender as realidades históricas, quanto mais o
teriam os escritores, uma vez que o gênero literário obedece às necessidades internas da
criação. É provável que ele pensasse especialmente nos escritores realistas que desejavam
retratar as realidades históricas de seu país. Em segundo, ao enaltecer o ensaio-narrativo de
Sarmiento, ele valoriza sua própria ficção. Afinal, de acordo com Monegal, esta seria um
híbrido de narrativa e ensaio
273
.
Vale lembrar que em “El Otro”, através de uma biblioteca figurativa, ‘o
velho Borges’ coloca o antigo historiador Tácito entre seus precursores. Ademais, bastaria
recordar o sabor de ficções como O Informe de Brodie” (no livro homônimo), “El Inmortal”
(El Aleph), e “La secta del Fênix” (Ficciones), para sentir a proximidade da crônica histórica
mais antiga, nas narrativas borgeanas. Sabemos que em muitas delas, são incorporadas
passagens da história argentina, ou da história de outros países. Trata-se portanto de um
escritor que pode criticar a historiografia tradicional, mas que flerta freqüentemente com a
história, em seus relatos ficcionais.
Descrédito do engajamento e da intenção
Borges começa o sétimo parágrafo alegando que “a muchos les interesan las
circunstancias en que un libro fue concebido” (grifo meu). Assim, se muitos se interessam
pelo contexto de produção de uma obra, o ensaísta sugere que ele mesmo não lhe confere um
peso absoluto na facção das mesmas. Ele apresenta a lista de um crítico argentino, com uma
série de motivações contextuais para que Sarmiento escrevesse o Facundo: Sarmiento queria
desprestigiar o governante da província de Buenos Aires; queria ajudar na causa dos
imigrantes, o que equivale a dizer que ele ganharia o apoio deste importante segmento da
população; e desejava colocar-se entre os nomes de destaque no cenário político, para o
período em que Rosas caísse. Desse modo, o livro é visto como uma plataforma política para
que o escritor pudesse chegar ao governo. Borges se opõe a essa contextualização. Declara
que ela seria apenas uma “curiosidad”. Utiliza termos despectivos para o trabalho do crítico.
106
Mas sobretudo, ele introduz o argumento da pluralidade de causas. A menção a esta doutrina
tem uma dupla ação dentro do texto. Por um lado, como mencionado, ela aponta para a
dificuldade de apreensão dos fatos históricos, fazendo pensar na história enquanto um
fenômeno complexo, no qual estariam envolvidos muitos fatores. De outro, a doutrina incide
sobre o problema da criação literária, assinalando que, se as causas determinantes de uma
obra são múltiplas, as de natureza contextual seriam apenas algumas delas.
Como assinalado, os motivos contextuais apresentados tratavam de
relacionar-se às supostas intenções políticas do escritor. O ensaísta aponta para o fato, dizendo
que o compilador desta lista “se atiene a los propósitos de Sarmiento”; mas, na opinião
borgeana, “lo de menos son los propósitos”. Para ele, a intenção não é o principal. Afirma
que as intenções não seriam suficientes para gerar nem a preciosa metáfora da esfinge, nem a
invocação liminar utilizadas por Sarmiento. A seu ver, para isso seria preciso conhecer as
técnicas e a tradição literária. Borges ainda alude às idéias de Poe, que se tornaram famosas
em “A filosofia da composição”. Com isso, lembra que a escritura está ligada ao trabalho
mental, mas propõe que a criação seja misteriosa, para mostrar que nela mais do que
operações de inteligência. Portanto, assinala que também o trabalho mental por si não
decide da criação literária. Em seguida, volta a negar que as obras resultem apenas do
contexto, já que [derivam] menos todavía [...] de circunstancias ocasionales”. Na verdade, o
escritor está diminuindo a importância de cada motivação individual e tratando de vindicar a
pluralidade de fatores na constituição da obra literária. A nenhum desses motivos elimina de
todo (intenção, trabalho mental, contexto), mas a todos relativiza, de modo que seus
argumentos possam sobressair; e de que se torne possível apresentar outros motivos, além
destes.
Nessa fase do texto um grande arranjo em formação. Uma parte dele é
visível neste ponto. No sétimo parágrafo, Borges apresenta detidamente uma série de motivos
literários para a escolha de Facundo Quiroga. Por outro lado, em seguida, mostra-se
desfavorável ao trabalho de contextualização realizado pelo crítico argentino. Assim,
comparando-se os parágrafos (sexto e sétimo) observa-se que Borges está opondo uma série
de motivos composicionais (literários) a uma série de motivos intencionais (extraliterários),
para conferir maior peso aos primeiros para demonstrar que as necessidades da composição
literária podem predominar sobre outros fatores durante a composição. Entretanto, ele ainda
vai fazer refletir sobre a recepção e sobre a criação textual, nas quais irá apontar fatores
capazes de alterar, até as necessidades de ordem literária, que os escritores tentam
conscientemente atender.
107
Depois de mencionar a relativização, que gera um campo favorável a seus
argumentos, apresenta dois outros fatores que interferem no texto literário. Recorda o caso de
Cervantes, quando os leitores, acostumados com a literatura de cavalaria, não compreenderam
a paródia. Neste caso, acontece um desvio na recepção do texto. Em seguida, Borges nomeia
três grandes escritores Cervantes, Kipling, e Swift, que tinham uma intenção definida para
seus livros e foram surpreendidos por uma leitura que divergia de suas expectativas.
Especificamente nos exemplos de Kipling e Swift, não é a paródia, ou o gênero, o fator de
interferência, ainda que no caso deles, a alteração também seja constatada durante a leitura.
Borges aponta uma causa comum para essa quebra de expectativa. Ele recorda a doutrina
clássica de uma Musa Inspiradora, para introduzi-la, mas neste texto, ele esclarece o que está
por trás dessa imagem, “la subconsciencia”. Seria esta a razão para a incontrolabilidade no
sentido das obras. As estórias foram involuntariamente transfiguradas durante o ato criativo.
Assim, o ensaísta assinala um segundo motivo para que a intenção não se concretize - a
influência do subconsciente na criação. Em 1932, o escritor Alfonso Reyes, utilizava a
menção a este fator, contra aqueles que desejavam a representação obrigatória do nacional, na
literatura:
“será tan absurdo someter a ella [a idéia nacionalista pré-concebida] una obra
por hacer, una obra en que no sólo van a trabajar la razón y la inteligencia, y
ni siquiera la conciencia sola, sino también el inmenso fondo inconsciente (el
individual y el colectivo de Jung), la sub y la superconsciencia, el ‘yo’ y el
y hasta el trágico y fantasmal ello de los últimos atisbos de Freud […]
274
Assim, o arranjo borgeno, para este sentido do texto, fica completo. O
Facundo é uma obra reconhecidamente marcada pelo posicionamento político de Sarmiento e
por suas denúncias contra o governo rosista. Deste modo, o foco do ensaio nessa fase é
apresentar: em primeiro, a questão da composição literária para diminuir o peso das intenções
de denúncia dentro das obras – os escritores também têm que atender à formulação artística de
seu trabalho; em segundo, apresentar dois fatores, um no ato criativo e outro na recepção, os
quais, se o inviabilizam, fazem com que a tentativa de uma obra engajada pareça ser uma
questão de uma sorte.
Completa-se o arranjo geral do texto. Na primeira parte, o ensaísta mostra
uma série de problemas para apreender a realidade histórica dentro da historiografia
tradicional, de modo a atingir os autores de obras literárias que acreditam que a literatura seria
capaz de algo, que mesmo para os historiadores é muito difícil. Na segunda parte, põe
obstáculos à concretização das intenções dos escritores. De certo modo, a capacidade de
108
registrar e mostrar a realidade de um contexto social e a intenção de fazê-lo seriam dois
pilares que sustentam a viabilidade da idéia de engajamento. Assim, Borges tenta derrubar
estes pilares, de forma a tornar natural e justificada a posição dos escritores que, como ele,
não procuram fazer uma literatura comprometida.
Discussão II - Nesta discussão, pretendemos reafirmar nossa idéia de que a polêmica com os
realistas da geração de vinte é importante na definição da estética borgeana, mas ainda
desejamos demonstrar que seu diálogo com o realismo (com sua peculiar idéia de realismo)
não se limita a este período. Primeiro vamos efetuar uma operação anacrônica, para que seja
possível perceber que a discussão do prólogo-ensaio de 1974, ainda reflete questões
formuladas na década de trinta.
Os boedistas não tinham exigências quanto à representação do passado
argentino na literatura. No entanto, desejavam apontar a desigualdade e os problemas sociais
em seu tempo. Lê-se em uma declaração coletiva feita pela Redação da Revista Los
Pensadores: “[os de Florida] Cantam à Revolução Francesa ou ao povo de Maio, coisas do
passado, mas livram-se de cantar a Revolução Russa ou de fazer orações fúnebres ao povo
que morreu massacrado na semana de janeiro. Protestam contra Rosas, que está morto, mas
não protestam contra os tiranos vivos”
275
. Em seu afã de denunciar as injustiças sociais, eles
acreditavam que deveriam registrar os fatos do presente. É justamente por esta questão, que a
crítica borgeana da segunda metade do século vinte (de 1974), é uma crítica que ainda entraria
em atrito com os ideais boedistas do começo de século; pois embora na segunda metade do
século vinte os adversários sejam outros (a idéia de engajamento está muito difundida na
América Latina dos anos sessenta), as convicções destes outros ainda são muito semelhantes
às dos boedistas. Assim, as objeções que Borges constrói contra a possibilidade de gerar um
registro fiel das realidades históricas, parecem ter sido construídas para atingir o elevado
número de escritores dos anos sessenta, que aderindo aos postulados socialistas, vindicavam a
denúncia social à maneira realista. Contudo, esta é uma crítica, que se houvesse sido escrita
nos anos vinte, ainda atingiria os escritores de Boedo, na medida em que o grupo estava
interessado em retratar a realidade de seu país, cumprindo com o compromisso.
Outro ataque de Los Pensadores contra os integrantes da vanguarda
encontraria eco em nosso texto de 1974. “A grandiosidade da literatura está relacionada à
grandiosidade dos ideais que sustenta. [...] Seu valor não está em sua estrutura literária, mas
no espírito que transcende além da letra morta”
276
. Tais escritores vindicavam uma arte
engajada plenamente disposta a servir a ideologia.
109
Ainda o escritor, Eduardo Mallea, do grupo de Florida, em seu ensaio “El
escritor y nuestro tiempo”, de 1935, observa que em sua época há exigências de que o
intelectual participe ativamente na sociedade. Embora ele critique tais idéias, encontra uma
posição conciliatória, que condena a sujeição a doutrinas partidárias, mas admite o
compromisso em nome de uma preocupação com a humanidade
277
. No prólogo-ensaio, vimos
qual seria a resposta borgeana em ambos os casos aos boedistas, e ao companheiro de
Florida; ao compromisso em nome de ideais políticos ou humanitários: o ato criativo escapa
ao controle do escritor, além disso, os leitores podem receber de forma diversa o significado
planejado. Portanto novamente, uma idéia que Borges expõe em 1974, para combater as
pressões para o engajamento, se houvesse sido lançada na década de vinte, teria chocado com
os postulados dos boedistas e de outros escritores que desejavam esse tipo de atitude na
literatura daquele tempo.
Mas que provas temos de que essa reflexão começa na década de vinte ou
trinta? Se verificamos as idéias dos boedistas acima mencionadas, parece plausível supor que,
embora Borges não haja escrito uma resposta direta a estes ataques, ao fazer parte do grupo de
Florida, por ocasião destas discussões, ele pode ter tido neste momento a primeira
oportunidade de sentir-se questionado a respeito destes temas - afinal os ataques do grupo
boedista se endereçavam aos escritores reunidos em torno da Revista Martin Fierro, na qual o
mesmo Borges colaborava constantemente. Nesta época, ele está preparando os ensaios que
devem constar de Discusión (1932). Além disso, segundo Monegal, em 1933, sai um número
da Revista Megafono, integralmente dedicado a tratar de Discusión, no qual as críticas tentam
mostrar que Borges é um escritor alienado da realidade argentina
278
. Portanto, surge um
segundo momento em que o escritor certamente teve de pensar nos motivos pelos quais
rejeitaria o compromisso.
Contudo, se em Discusión, ele não se pronuncia de modo explícito a respeito
do assunto, encontramos um texto de 1933, no qual ele o faz. É conhecida a polêmica que
Borges trava com o escritor Martínez Estrada, envolvendo o assunto do compromisso. Se o
debate se torna público nos anos cinqüenta, a nosso ver, ele começa em 1933, com o
comentário de Borges à publicação de Radiografia de la Pampa do mencionado autor. Na
primeira parte de sua nota, Borges recorda o surgimento do historicismo: “Algunos alemanes
intensos [...] han inventado un género literario: la interpretación patética de la historia y aun
de la geografía” e logo comenta características da historiografia de Spengler
279
. Na segunda
parte, assevera que ele percebe a influência de Spengler, no ensaio histórico-sociológico de
Martínez Estrada. Assinala que nele há denúncia social “a pura enumeración de hechos
110
reales”; e termina sugerindo que o autor estaria condenado ao esquecimento
280
. Observe-se
isto é o mesmo que ele dizia no Prólogo, a respeito da historiografia tradicional. Mais do que
isso, a nota de 1933, apresenta uma lógica análoga à que fundamenta a argumentação do
prólogo-ensaio de 1974: os escritores engajados, em seu desejo de apontar para os problemas
sociais, perseguem de tal forma o realismo, que parecem estar mais preocupados com história
(e historiografia), do que com literatura e cnicas literárias. Certamente exagero nisso,
mas a caricatura é uma forma eficiente de crítica.
Na polêmica dos anos cinqüenta, Borges faz declarações contra Perón,
incluindo o nome deste autor. Em 1956, Martínez Estrada escreve um ensaio, no qual defende
o engajamento e faz alusões a Borges. Nele, entende-se que, a seu ver, o modelo de escritor
seria Dostoievski, pois “Cinco años de hospital, me revelaron, como los diez del presídio de
Sibéria a Dostoievski, que si algo había realmente puro en la miséria [...] era el bajo pueblo
[...]”
281
. Nota-se que para ele, o realismo era um instrumento efetivo de transformação da
sociedade. Depois disto, Sábato sai em defesa de Martínez. Amostra dessa rivalidade aparece
no livro de ensaios de 1968, no qual ele taxa Borges de alienado, asseverando que “Ele não se
propõe narrar a verdade [...]
282
. É visível sua compreensão de que uma verdade a respeito
do social, a qual os escritores estariam encarregados de transmitir. Também Fernández
Retamar critica Borges em ensaio de 1971, dizendo que “A diferencia de otros importantes
escritores latinoamericanos, Borges no pretende ser un hombre de izquierda […]”
283
. Ele não
reprova apenas o posicionamento político do homem Borges. Percebe-se que ele censura a
obra borgeana, defendendo uma arte comprometida, ao dizer que “Borges es un típico escritor
colonial, representante entre nosotros de una clase ya sin fuerza, cuyo acto de escritura […] se
parece más a un acto de lectura. Borges no es un escritor europeo: no hay ningún escritor
europeo como Borges”
284
. Em seu ensaio, retrata a obra borgeana como produto da ideologia
colonialista. Portanto, o assunto do engajamento não cessa nos anos trinta, pois ao longo de
sua carreira, Borges continua recebendo críticas e, como veremos, formula respostas a esse
tema em diversas oportunidades.
Os mencionados escritores que criticaram Borges são apenas alguns entre
muitos exemplos. Monegal observa que a crítica argentina na década de cinqüenta estava
voltada para uma visão sociológica e política da literatura. Recorda ainda que Borges sofria
ataques ligados aos postulados de Sartre, de Lukács, de Merleau-Ponty
285
:
“Borges se había convertido en el centro de una controversia sobre el papel
político y cultural del escritor argentino. Muchos de sus nuevos lectores se
negaban a aceptar la posición de que la literatura debía ser dejada a literatos,
111
y la política a los políticos. Siguiendo los principios de Sartre, estaban
comenzando a exigir que los escritores se comprometieron explícitamente
con su época”
286
.
Desse modo, entende-se que em sua própria nação, o escritor sofre árduos e
constantes questionamentos sobre suas posturas. Nos anos 60, sua situação torna-se mais
complicada. Segundo a biógrafa, María Esther Vázquez, Borges está na contra-mão do
pensamento geral, pois antipatiza com os comunistas e com a figura de Fidel Castro, quando a
revolução cubana era recente; não admira Che Guevara, quando este era idolatrado pela
juventude latino-americana; e mostra-se anti-peronista, quando os argentinos aclamavam
Perón como defensor dos trabalhadores
287
. Uma vez que Borges ganha fama internacional nos
anos sessenta, ele é constantemente solicitado a dar declarações sobre suas idéias a respeito da
política. Com tais pontos de vista, ele fica mal-visto pela intelectualidade latino-americana
neste tempo. Assim, é natural que na década de setenta surja uma série de textos nos quais, ele
escreve sobre seu modo de entender a questão do engajamento: Prólogo ao Informe de Brodie
de 1970; Prólogo a La Rosa Profunda de 1975; e o Prólogo ao Facundo em 1974.
Além destes textos dos anos setenta, vimos que nosso prólogo-ensaio,
encontra um texto precursor em 1952, quando Borges escreve “El pudor de la Historia” para
Otras Inquisiones. Contudo, a nota sobre o livro de Martínez Estrada - contendo observações
compatíveis com as críticas sobre a historiografia apresentadas em ambos os textos
posteriores - remonta ao período da polêmica com os boedistas de 1933). Isso indica
novamente, que o atrito de valores nos anos trinta foi um momento que proporcionou uma
reflexão essencial para Borges. Se em seu período de Espanha, ele possuía a intenção de
separar arte e política, a discussão com os realistas de vinte lhe permite afirmar uma decisão
que o mantém a salvo das pressões para uma estética engajada, até a década de setenta. Por
outro lado, a crescente influência das questões políticas sobre o campo literário deve ter feito
com que esta reflexão inicial se transformasse em um diálogo permanente com o realismo,
dentro da obra borgeana.
112
3.3. DUAS REALIDADES LITERÁRIAS: O CLÁSSICO E O ROMÂNTICO.
“Cada literatura es una forma de concebir la realidad” (BORGES,
J. L. El tamaño de mi esperanza. Barcelona: Editorial Seix
Barral, 1994, p.101)
“La Postulación de la Realidad”, de 1932
288
tem como ponto de partida a
negação de que exista um único modo do estético a expressão intuitiva da realidade tal
como afirma Benedetto Croce. A afirmação generalizante do italiano permite que Borges
promova a discussão sobre as operações de construção textual, a pretexto de anular essa
unidade (estético igual expressivo). Assim, o programa do ensaio é o de efetuar uma divisão
em dois modos, nas formas de elaboração da realidade ficcional: o modo clássico, seria o
convencional (ligado aos temas; e recursos da tradição); e o modo romântico, o expressivo
(aquele que tenta ser original; e apresentar a realidade).
Borges avisa que estes são rótulos que ele confere aos dois modos, sem que
por isso se refira especificamente às escolas históricas. Em um texto que nos ajuda a
compreender este ensaio, ele diz que “Carlyle fue un escritor romántico, de vicios y virtudes
plebeyas; Emerson, un Caballero y un clásico
289
. Pelo exemplo vemos que ambos os
escritores são contemporâneos e marcam presença com suas obras no século XIX, mas
observa-se que a classificação borgeana os separa, através de sua particular divisão em dois
modos. Entretanto, apesar de haver alguma ligação das denominações, clássico e
romântico
290
, com os movimentos homônimos; em seus rasgos fundamentais, elas receberam
uma formulação que lhes permite recobrir um escopo genérico de obras. Dessa maneira,
podem abarcar escritores de uma ampla duração temporal e ainda, de outras disciplinas, além
da literatura. São portanto, dois arquétipos de escritor, traduzidos em duas formas de lidar
com a realidade nas obras.
Ademais dessa divisão universal, Borges exibe exemplos de três técnicas
utilizadas pelos escritores do modo clássico. Assim, a matriz deste ensaio parece estar
concentrada em um processo de desdobramentos sucessivos. Da unidade postulada por Croce,
ele vai gerar dois modos, e depois deste, três outras subdivisões, quando a última delas ainda
comportaria uma separação em dois grandes grupos de escritores afiliados à mesma técnica. A
multiplicidade mina a unidade. Outra entrada fundamental é a apresentação de uma série de
dificuldades para a mimesis, mediante um peculiar mecanismo. O texto trata de construções
literárias, no entanto, em sua estratégia argumentativa, o problema da apreensão da realidade
não será meramente atribuído ao processo de escritura; ao contrário, Borges vai pensá-lo
113
como se ele fosse algo inerente à vida humana. Em paralelo, trata de fornecer uma visão da
realidade muito ampliada, que termina por tornar quase inviável, qualquer intento de
expressá-la.
Beatriz Sarlo afirma que os ensaios borgenos estariam firmemente
assentados no paradoxo
291
. Em “La postulación de la Realidad” este ainda seria o vórtice
central da argumentação – ao menos para um escritor realista. Afinal, da realidade e da
certeza de sua representação na literatura, o ensaio conduz ao extremo oposto, em um ponto
estratégico: não há certezas sobre a vida humana, e tampouco é possível apreendê-la de modo
fiel; assim, a ficção teria direito apenas à construção de seu universo literário, ainda que os
românticos possam se esforçar para captar a realidade em suas obras. Contudo, desde sua base
formal, esse ensaio flerta com a metáfora, o que é uma das possibilidades de estruturação do
gênero ensaístico, de acordo com a mesma Sarlo
292
. Trata-se ademais de um uso artístico da
citação. Por um lado, os fragmentos citados são exemplos dos paradigmas textuais que Borges
estipula para o modo clássico, ilustrando estas técnicas. Por outro, eles se deixam ler
metaforicamente. Os trechos consistem em imagens simbólicas dos procedimentos de
escritura, utilizados pelos clássicos
293
. Deste modo, a citação, recorrente no gênero, abandona
uma condição ilustrativa, para transformar-se em uma espécie de ‘prisma’ das técnicas em
questão.
O Modo Romântico
Entende-se que o modo romântico estaria marcado (ao menos em sua base)
pela representação da realidade. Seriam textos que se recusam a expor uma realidade
artificial, meramente literária; textos que escondem e disfarçam seu caráter de construção
textual. Seriam os que pretendem fazer coincidir o real, muito amplo, com os sinais do
mesmo. Assim, pode-se deduzir que se apegam ao factual, ao sólido, ao quotidiano e a outros
sinais dessa presença. Pelo empenho nesta direção, entende-se que desejam infundir a
sensação de realidade. Com isso, um primeiro critério, muito visível na argumentação
borgeana, para justificar essa divisão em dois modos, tem em conta as relações dos textos com
a realidade. Os românticos seriam aqueles que tentam ser eficazes em sua representação da
mesma, enquanto cópia do mundo material.
Assim, se entende porque a primeira coisa que Borges nos diz a respeito dos
escritores que atuam dentro deste modo, é que desejam “incesantemente” expressar.
114
Evidentemente não completa a sentença afirmando que desejam expressar a realidade - isto
seria uma grande concessão, que o ensaísta uma série de dificuldades, no caminho dos
escritores que perseguem uma meta tão abrangente. Contudo, como a doutrina de Croce é
mencionada, compreende-se que se trata de captar a realidade, de uma maneira intuitiva, por
um conjunto de impressões, nas quais os sentimentos animam as formas. Nesta teoria, a
realidade oferece uma intuição ao artista, e a expressão da mesma é a arte. Essa seria a base
do modo romântico.
O ensaísta assinala a mediação na escritura dos clássicos, levantando em
contrapartida a idéia de uma escritura “in-mediata”, no modo romântico. Então é
compreensível que ele aponte a existência de estéticas clássicas e mediatas, para dar combate
à teoria croceana que privilegia a expressão direta da intuição do real. Portanto, na ironia
borgeana, de uma maneira romântica”, esses textos tentariam assimilar a realidade,
pretendendo ligar o visto e o descrito; o sentido e o expresso; a dinâmica de uma gama de
impressões e sua articulação em palavras.
Seriam desta forma, textos miméticos em alto grau, nos quais o leitor
deveria ter, ao menos em boa parte das passagens, o sentimento de achar-se envolvido por
uma atmosfera de ‘realidade’. Assim, a concretude seria um valor, em relação ao caráter
abstrato - que pelo predomínio das idéias, termina marcando os textos clássicos. Deduz-se que
os textos românticos, ao contrário, estariam plenos de objetos, de lugares, de fisionomias do
mundo real. Por isso, o ensaísta assinala nestes textos, a busca de realidade até o
esgotamento’, como dirá ao explicitar as construções em ambos os modos. Mas também por
isso, munidos de tal objetivo, é natural que seus relatos caiam na “ênfase” e na mentira
parcial”, segundo Borges. A ênfase vem da acumulação de elementos nestes textos. O que na
realidade, o olho apanha de um golpe, tem de sofrer a descrição, a ambientação, a
enumeração, e o sucessivo na escritura. De maneira que, condenada a este olhar pessoal que
é diferente da realidade em si mesma, a mentira parcial seria a verdade do subjetivo: as
impressões parciais são as únicas que se poderia oferecer ao leitor. Estes textos tentam um
quadro completo e preciso, mas na verdade, o ensaísta alerta que eles apenas acumulam
minúcias deste quadro. Como se verá, ele é composto a partir de experiências pessoais, das
percepções e das reações particulares dos fatos. No raciocínio borgeano, a expressão é uma
promessa, cujo resgate tentaria ser feito com os parcos recursos que a subjetividade possui.
Se a todo momento, o escritor romântico tem de lidar com a possibilidade
do desvio, do inexato, enfim do impreciso em sua recriação da realidade, esse empenho deve
necessariamente traduzir-se em cuidados especiais com o material lingüístico. Para isso,
115
chama a atenção o ensaísta. Com humor, ele postula que os clássicos têm confiança nas
palavras, ao passo que os românticos desconfiam de seus “signos”. Com isso, ele evoca a
idéia do Romantismo, de que a alma seria mais rica do que a linguagem. Mas também, em sua
versão do romântico, entende-se que estes escritores, em seu afã expressivo, teriam um
cuidado escrupuloso com as palavras, para que elas atingissem a precisão desejada em sua
representação da realidade. Por outro lado, temeriam que elas se revelassem mediadoras
infiéis entre si e o mundo.
Ao mesmo tempo, se cada elemento e cada palavra é importante neste tipo
de composição, também é compreensível que o ensaísta aponte para o caráter particularizador
da escritura romântica. Talvez este seja um modo de compensar as faltas da linguagem,
através de uma peculiar densidade semântica. Se as palavras podem falhar, é possível
descrever pormenorizadamente os objetos, as pessoas e as situações. Em oposição ao clássico,
cujos conceitos e generalizações pretendem uma validade mais universal, a escritura
romântica individualizaria os fatos, pois cada situação seria única; valorizaria os tempos, pois
cada época teria seu gesto particular; cada país e cada região, pelas circunstâncias que
proporcionam; mas também tudo isso concorreria para uma individualização do homem,
único em sua densidade psicológica, diferente dos outros na reação às obrigações, que seu
tempo e lugar lhe assinalam. Portanto, as particularidades são importantes neste modo.
Mas também, até porque procura o real, que é sempre novo e mutante, essa
escritura tende à originalidade. De maneira, que também é possível supor que as situações
novas e os novos tempos impelem os românticos aos novos temas, estórias e metáforas.
Assim, Borges nos diz, que no modo clássico, os tropos são un “bien público”, ao passo que
as metáforas românticas estariam mais próximas de seu criador. Mas se elas se destacam no
texto, e tornam-se perceptíveis na recepção, o resultado é que essa escritura conduz à
particularização do próprio escritor, ao propiciar a originalidade que o destacará entre outros,
fazendo dele um autor entre muitos. É desse modo que um “desejo de objetividade” de
apropriar-se do mundo concreto, reconduz a uma evidenciação final da subjetividade criadora,
a nosso ver.
Através da explanação do modo como os escritores lidaram com a realidade
dentro da literatura, à semelhança do que figura em “El Otro”, Borges parece buscar uma
espécie de oposição fundamental no mundo literário. Observe-se que quando toca no assunto
dos textos românticos, o ensaísta menciona referir-se à totalidade de um determinado tipo de
textos em “prosa” ou “verso”. Ou seja, ele abre essa categoria para relatos históricos,
religiosos, filosóficos, ou biográficos, entre outros – o que leva a imaginar um imenso cabedal
116
de textos. Contudo, se o ensaísta atrela essa escritura à originalidade, então seus românticos
começam a existir em grande número a partir do século XVIII, com o advento do
Romantismo histórico. Ao mesmo tempo, o ensaio nos mostra que esta é uma classe de textos
nos quais, a meta seria a estruturação de uma realidade ficcional consistente, cuja sensação, a
nosso ver, seria similar à do mundo real. Semelhante construção, segundo Ian Watt, teria
surgido de forma vigorosa no início do século XVIII
294
. Então, dentro dessa visada tão ampla,
parece que o romântico, à maneira borgeana, estaria constituído sobretudo de uma parcela das
obras modernas, já que a outra parte pertenceria ao tipo clássico. Seriam sobretudo, obras que
possuem algo comparável ao realismo formal em sua base; embora Borges procure
demonstrar que o romântico não possui técnicas especiais e esteja empenhado na expressão
do real, acompanhando as propostas de Croce.
O ensaísta ainda fornece um dado que especifica melhor a classe de textos,
que estaria precisamente buscando, sob o rótulo de escritores românticos”. como
exemplo deste tipo de trabalho “todas las páginas de prosa o verso que son profesionalmente
actuales [...]. Surgem indícios para entender este modo.
O primeiro é o de que está dando como exemplo a produção contemporânea
ao ensaio, 1932. Em artigo do mesmo ano, Borges escreve que “el realismo no ha sido nunca
tan intenso y tan minuncioso como ahora en los EUA […] Nunca: ni entre los laboriosos
naturalistas del siglo XIX […] ni entre los rusos, perpetuamente seducidos por fines
evangélicos o políticos”
295
. Ademais, na Argentina, o Realismo ainda era a corrente de maior
força no período deste ensaio.
O segundo indício é o de que são obras “profesionalmente actuales.
Observe-se que ele não diz simplesmente que se refere aos trabalhos profissionais (em lugar
dos amadores), mas com a adjetivação sugere que ele pensa em obras, ou em uma geração de
escritores contemporânea ao ensaio, que tenta chamar a atenção para o caráter moderno de sua
escritura
296
. Assim, entre os românticos, ele destaca os escritores da época de trinta, os quais
desejariam ressaltar a atualidade em suas obras. Com isso, é possível lembrar um prólogo de
1969, no qual Borges admite que, quando jovem “me impuse también esa obligación del todo
superflua. Ser moderno es ser contemporáneo, ser actual; todos fatalmente lo somos”
297
.
Ademais, em “El Otro”, o personagem do jovem-Borges desejava mostrar-se um escritor de
seu tempo, lembrando que na narrativa, o jovem seria um ‘romântico’, enquanto, o velho seria
um clássico’. Desta maneira, o ensaio estende nova ponte entre si e o conto analisado, no
qual o jovem Borges resgatava simbolicamente o Realismo da década de vinte e algumas de
suas próprias concepções de juventude. Ajuda a entender que os românticos, deste ensaio,
117
embora, em um plano universal e intemporal, sejam escritores que tentam representar
plenamente a realidade em sua literatura, em um plano específico, podem ser relacionados aos
realistas de vinte. Talvez esta questão particular tenha sido um ponto de partida para a
reflexão generalizadora do ensaio; afinal, é a reflexão de um clássico.
Cabe notar que, no ensaio, as definições do modo romântico estão eivadas
de hostilizações. Mostrando-se favorável aos clássicos, o ensaísta afirma que eles não se
deixam levar pela “petición de principio” romântica. O termo se refere ao erro de raciocínio
de “apoiar-se em uma demonstração, sobre a tese (mesma) que se pretende demonstrar”
298
.
Assim, é como se Borges considerasse que tais escritores desejassem fazer parecer
“realidade” o que consta de seus livros, através do que é somente o simulacro do real. Ele
ainda afirma, que a realidade dos textos românticos tem a natureza da “imposición”.
Desprende-se que, ela seria algo forçado, sentido como uma espécie de ‘verdade alheia’,
portanto uma versão dos fatos. Explica que “su método continuo es el énfasis, la mentira
parcial”. Praticamente insinua que carecem de outras técnicas, já que trabalhariam
continuamente da mesma forma. Além disso, essa declaração compromete a expressão
romântica com o exagero. Em paralelo, ambos os comentários tendem a discutir a
naturalidade, que estes textos supostamente tentariam manter. Assim, ao mesmo tempo em
que elabora o perfil destes escritores, o ensaísta já desfecha suas críticas. Ele nos mostra que a
principal característica dos textos românticos é expressar a realidade, mas a cada passo, na
exposição deste perfil, vai assinalando de que forma estão irremediavelmente afastados de
conseguir este objetivo.
Com isso, se a princípio, baseado em Croce, Borges concedia que os
românticos intuitivamente se aproximavam do real, ao longo do ensaio, pouco a pouco
assinala certa artificialidade nesses textos, fazendo deles uma construção literária. Fica claro
que os românticos não obtêm “a realidade”, mas apenas uma de suas possibilidades literárias:
“La realidad que los escritores clásicos proponen [...] La que procuran agotar los
románticos [...]. O mesmo verbo “esgotar” ainda mostra que seria impossível dar conta da
enorme riqueza da vida, que estes textos tentariam apreender.
Dificuldades para a apreensão do Real na literatura.
Uma vez que “La Postulación” trata da construção de realidades literárias, o
ensaísta também se dispõe a averiguar em que medida essas construções podem estar
118
relacionadas à realidade extraliterária. Como visto, segundo Borges, embora os românticos
almejem expressá-la, o resultado de seu trabalho é apenas uma simulação do real. Ademais,
essa simulação não é indispensável à literatura, já que os clássicos “prescinden” dessa
tentativa. Portanto, os clássicos também não alcançam a sensação de realidade, com as
representações correspondentes, mas à diferença dos românticos, este não é um objetivo em
seus textos. Ele avisa que a animação dos textos clássicos depende do leitor. Insiste neste
sentido, propondo que a realidade nesta classe de escritos é uma póstuma alusión”. Com
essa metáfora, ele levanta um contraste, realidade-viva; texto clássico-morto. Como veremos,
para Borges, os clássicos desenvolveriam uma relação alusiva em relação ao real ou seja,
ela é vaga e simbólica. Esta não é uma escritura metonímica, porque não visa à totalidade.
Quando muito, é projetiva, porque pode fornecer alguns rasgos essenciais, que fazem a
projeção de um espectro de certa amplitude, mas que não pretende simular o quadro
‘completo’ de uma realidade
299
. Com a alusão e artifícios, os clássicos alcançam um universo
literário vago, mas suficiente para arcar com sua ficção.
Na verdade, Borges se vale de estratégias, nos trechos em que debate a
possibilidade da apreensão da realidade. A primeira delas é a de que, de certa forma, ele
tenciona o sentido do termo “realidade” até que ele se aproxime do próprio real. O ensaio
uma idéia do que isso seria: “Los ricos hechos a cuya póstuma alusión nos convida,
importaron cargadas experiencias, percepciones, reacciones; éstas pueden inferirse de su
relato, pero no están en él”. Em sua argumentação, a realidade possui uma variedade e
multiplicidade, que escapam aos textos. Na verdade, ele efetua uma manobra de ampliação.
De modo geral, nos textos analisados, Borges torna a vida algo inapreensível, porque em sua
visão, ela estaria relacionada ao múltiplo, ao sucessivo, ao simultâneo, ao inacabado e ao que
é total no momento presente. Trata-se de uma concepção muito abrangente da realidade.
Desse modo, a única saída para representá-la seria a que consta de “El Otro”. A narrativa
promovia a idéia de que os relatos são generalizadores, enquanto o real estaria essencialmente
constituído de cada uma das experiências do indivíduo com a realidade, de cada interação do
ser humano com seu entorno. Interações essas, que diante do quadro de totalidade atribuído
por ele ao real, seriam sempre parciais. Em todo caso, este tipo de representação seria o que
de mais próximo poderia haver de uma efetiva representação da realidade nesta concepção.
Na lógica borgeana, o real não se confunde com o factual mais aparente, mas é visto como
algo extremamente complexo, que implicaria em uma ampla gama de sentimentos,
pensamentos, percepções. O texto que quisesse representá-lo deveria carregar essa descrição,
tão integral, quanto impossível.
119
É interessante notar, que no trecho supracitado, ele diferencia o vivido do
percebido e estes da reação diante dos fenômenos. Ao diferenciar estes termos, Borges lembra
que os fatos podem ser diferentes de sua interpretação e que pode haver uma reação
desproporcional diante do que efetivamente ocorreu. É como se cada ser humano possuísse
uma experiência única. Deste modo, ele começa um entendimento a respeito da percepção,
que será expandido mais adiante, mas já deixa marcada a compreensão de que reações
diversas podem estar calcadas em uma recepção diferente dos fatos. Esta seria a idéia de que o
real tem um impacto peculiar em cada indivíduo. O que impressiona um escritor pode resultar
indiferente aos olhos do outro, de modo que diante de uma mesma realidade, podem surgir
diferentes descrições ou relatos.
Ainda, para expandir sua proposta de que os textos clássicos são ineficientes
diante do real, mas eficientes junto aos leitores, ele lança a idéia de que estes textos seriam
aceitos apesar de sua imprecisão, porque a própria recepção da realidade é algo impreciso. Na
verdade, esta é uma nova estratégia discursiva empregada em favor dos clássicos. Ao invés de
concentrar-se no problema da representação efetuada pelos escritores, ele vai fazer da
dificuldade de apreensão do real, algo inerente ao ser humano, nos rios raciocínios do
quinto parágrafo.
Seu primeiro argumento é que as situações, envolvendo uma série de fatores,
são naturalmente simplificadas através de conceitos. Pode-se pensar, por exemplo, na
dificuldade do escritor quando utiliza um termo, e então, uma palavra dá conta de um
conjunto de raciocínios ou idéias menores, as quais, nem sempre, fazem parte do fato aludido
com o termo genérico
300
. Assim, o ensaísta ainda parece remeter à inexatidão dos conceitos.
No Prólogo ao Facundo, despontava o problema, ao mencionar que Sarmiento tecera seu
conceito de civilização, sobre o que, exceto pelas capitais argentinas, nada mais eram do que
pequenos vilarejos de instalações precárias, no interior das províncias. Assim, assinala a
distância entre os conceitos, cunhados dentro de uma historicidade e atendendo a situações
particulares e a realidade específica que os escritores tentam recobrir com seu uso. De modo
geral, faz pensar que uma linguagem imprecisa dificilmente poderia prestar-se a uma
representação precisa.
Borges levanta igualmente a questão do processo seletivo envolvido na
coleta de percepções e o problema do foco, que é dirigido pela atenção. Novamente a vida é o
múltiplo e a visão humana é capaz de abarcar uma parcela desse mundo total. Borges
sinaliza a insuficiência dos sentidos para perceber a realidade, conduzindo a várias reflexões:
a de que há sons que não se podem ouvir; cores e odores, talvez indiscerníveis ao ser humano,
120
mas perfeitamente presentes na vida de alguns animais; a existência uma série de ondas e
sinais que viajam no ar, conversíveis em aparelhos, mas imperceptíveis ao corpo humano.
Além disso, dentro dessa parcela do real, que os sentidos conseguem obter, ele recorda o
pouco que seria retido, depois deste processo. Aponta com isto, para a quantidade de dados
que se perdem ao redor do que foi julgado relevante, por nós, em cada situação. Se tantos
dados são perdidos durante a vivência, novamente entra em xeque a idéia da Literatura
enquanto expressão fiel da realidade.
No Prólogo ao Facundo, aparecia a idéia de que os escritores reacomodam
as novas situações aos eventos conhecidos, fazendo com que um fato ímpar pareça mera
repetição do passado. Neste ensaio, a formulação é mais ampla. O ensaísta diz que vemos e
ouvimos, não através dos olhos e ouvidos, mas através da recordação, de temores e de
previsões. Com isso, ressalta que a subjetividade não só comanda, mas distorce as impressões
recebidas. Desse modo, os intercâmbios com o real podem ser compreendidos à luz de
vivências anteriores; adulterados por nossos medos; ou ser interpretados de acordo com
nossas expectativas para o futuro. Os fatos podem ser parcialmente esquecidos e adulterados,
deixando uma vaga lembrança em seu lugar. Assim, faz refletir sobre a existência de um
processo interpretativo, guiando a própria fixação dos fatos da experiência vital. Contra a
representação fiel, é projetado o peso das expectativas e dos medos, mediante os quais cada
homem avalia sua realidade.
Ainda no Prólogo ao Facundo, Borges mencionava a interferência do
subconsciente no processo criativo e na recepção. Neste ensaio, ele pensa na atuação do
inconsciente em uma série de tarefas desenvolvidas no dia a dia, especialmente em relação a
conhecimentos que não foram aprendidos e que, no entanto, são constantemente utilizados
pelo ser humano. Lembra saberes de rias ordens: os saberes físicos para desatar um ou
subir degraus; os saberes instintivos que permitem afastar um cão ou de livrar-se do
afogamento em um rio, etc. Sua enumeração poética faz do homem um estranho em seu
próprio corpo; talvez o condutor de uma máquina, cujos recursos sequer imagina; talvez o
conduzido a re/ações que não é capaz de prever. Trata-se de um argumento contra a
possibilidade de retratar e justificar a atuação de um personagem histórico ou de um
assassino, por exemplo. Talvez o próprio indivíduo, em questão, não possa precisar o que de
fato o levou a determinadas ações.
Desde tais comentários sobre a inconsciência e o automatismo nos saberes
do corpo, o ensaísta parece conduzir a uma suspeita sobre a liberdade de ação na vida
humana. Seu raciocínio projeta uma sombra de desconfiança sobre o mundo, quando
121
apresenta esta gama de processos que, através do homem, ou apesar dele, garantem a vida e
interferem no quotidiano. A questão assoma de todo, quando ele afirma que, “Nuestro vivir es
una serie de adaptaciones, una educación del olvido”. Se a aprendizagem implica na retenção
dos conteúdos, o paradoxo propõe que, se o ser humano apresenta “conhecimentos”, que de
modo consciente não foram aprendidos, então é possível, que junto dessa carga psíquica pré-
estabelecida, haja também alguma programação prévia para a atuação do sujeito. Esse
estranhamento faz suspeitar do pleno domínio da experiência vital, uma vez que poderiam
existir pré-condições na estrutura do indivíduo e ainda nas do meio. Assim, o ensaísta coloca
em dúvida a representação fiel, uma vez que talvez nunca se possa saber de maneira segura, a
verdade de uma vida, ou a verdade de uma situação no mundo, quando não se sabe o que
existe por trás dessa mesma vida e o que de fato regula a experiência humana.
A alusão à Utopia de Moore se baseia justamente na falta de referência do
personagem para saber a distância real de uma ponte. Infere-se que a medida objetiva é uma
mera convenção. Assim, a falta de parâmetros para estabelecer o comprimento efetivo da
construção é uma imagem da falta de parâmetros, para julgar e descrever a realidade. No
entanto, o intertexto funciona com um segundo sentido. A Utopia não é um lugar, mas uma
idéia. Por isso, recebemos, também, a impressão de que a imaginação, o sonho e o desejo
ainda tornam o ser humano menos apto a enxergar o que está à sua volta, quando seus olhos
estão cheios de ideais. Esse é um argumento que especialmente vai ao encontro de estéticas
determinadas pela ideologia política.
Tanto estas críticas, quanto a idéia do ‘real’, veiculadas neste texto, auxiliam
na avaliação borgeana dos procedimentos empregados pelos escritores nos dois modos.
Percebemos um curioso paralelo entre o grupo dos românticos e os escritores que
historicamente pertenceram à escola homônima, por dois tipos diferentes de idealização. Os
escritores do Romantismo idealizavam a realidade. Na argumentação borgeana, a realidade é
convertida no real, e este se torna um objetivo inatingível (um ideal) para os escritores que
romanticamente, acreditam poder expressá-la. Em primeiro lugar, porque essa tarefa
implicaria em uma imensa quantidade de informações. Em segundo, porque a naturalidade da
experiência humana real estaria baseada nos pequenos contatos com a realidade. Desse modo,
mesmo que um texto lograsse o incrível detalhamento requerido na proposta do ensaísta, a
realidade estaria comprometida na escritura romântica por sua feição excessiva. os textos
clássicos são enaltecidos, porque desenvolvem processos análogos aos que Borges encontra
na recepção do real, simplificação em conceitos, seleção, foco (atenção). Por um mágico
122
paradoxo borgeano, os textos que buscam a vida parecem artificiais (exagerados no resultado)
e os textos baseados em artifícios parecem naturais (com sua montagem).
O Modo Clássico
O primordial nos textos clássicos é a idéia. Os temas e as figuras, em
reiterações, variações e expansões vão gradualmente construindo, matizando e enlaçando
significados ao redor de um pensamento central. O interesse neste modo vai para a
composição, destinada a tornar significativos os seus elementos. Portanto, estes relatos não
estão presos ao biográfico, ao histórico, ou ao factual. Não em vão, o ensaísta nos diz que os
clássicos “forman la extensa mayoría de la literatura mundial, y aun la menos indigna”. São
textos, que em lugar da expressão romântica, desejam essencialmente gerar sentidos. É o
encadeamento de idéias elaboradas, umas às outras, o responsável pela fatura destes textos.
Ou seja, esta não é uma escritura que busque primordialmente o mundo extradiegético, mas
ao contrário, como o labirinto, ela procura oferecer ao leitor uma série de caminhos, dispostos
ao redor de um núcleo semântico. De passagem em passagem, ela vai gerando acessos a esse
centro.
Examinando um trecho do historiador Gibbon, Borges assinala ter se
deparado com características clássicas: “el carácter mediato de esta escritura,
generalizadora y abstracta hasta lo invisible”. Assim, a escritura clássica é aquela que não
tenta parecer espontânea ou natural, ou ainda uma reprodução de fatos que ocorreram, mas em
busca da idéia, deixa observar sua condição de mediadora entre o escritor e o mundo; possui
imprecisões, recortes e reduções, que o mesmo ensaísta expõe nas três técnicas clássicas. Este
tipo de texto vai generalizar as situações, vai tornar universais os temas que aborda. Ademais,
a bem humorada hipérbole - “abstracta hasta lo invisible” - renova o sentido de texto
preocupado com o narrar e com as idéias, e que por isso relega a um segundo plano uma
ambientação concreta e detalhada.
Borges assevera, que as experiências com a realidade assomam a essa
classe de texto, quando já foram revertidas em “conceitos”. Isto é, eles operam de um modo
indireto com a realidade. Não são os fatos, mas as idéias sobre os fatos, o que irá importar.
Não interessa enumerar cada situação com suas circunstâncias, mas o agrupamento das
situações, no que é pertinente às idéias. Ademais, através do exame do trecho de Gibbon, o
ensaio fornece o acréscimo de que estes textos possuem uma linguagem simbólica. De modo
123
que o que conta não é representar uma realidade, mas o olhar do escritor, refletido nas
comparações que utiliza, nas aproximações que ele faz. Segundo Arrigucci Jr, o clássico seria
um modo de escritura ligado ao telling
301
. Entende-se, dessa maneira, porque trabalham com
uma “póstuma alusión”. A realidade chega a esses textos, depois de um processo. De
maneira que, ocupados na tarefa de sumariar o que (na vida ou na imaginação) aconteceu,
os clássicos estão voltados para o tempo pretérito. Neles, a descrição perde espaço, que o
narrar predomina.
Pode-se notar ainda, que em oposição aos românticos, que primavam por
sua personalidade e como visto, projetariam personagens individualizadas, Borges postula que
a escritura clássica apaga características individuais dos seres e dos fatos por intermédio de
generalizações. Nela, o indivíduo é aproximado ao ser humano em geral. De maneira que é
plausível que essa busca do universal se repita em outros níveis: no espaço, que embora possa
remeter a um local específico, o vai enfatizar as características e peculiaridades regionais,
como se o relato pudesse ter ocorrido em qualquer parte do mundo; no tempo, de maneira que
a época tampouco pareça importante, dando-se preferência a situações que possam ter
ocorrido em qualquer parte da história; ou ainda na feição dos temas, traduzindo-se em uma
busca por temas mais genéricos e universais - eternamente considerados objeto de reflexão
pertinente.
Como a meta é o sentido, os clássicos tratam de erguer uma realidade, que
não precisa ocultar seu caráter artificial. Por isso, o ensaísta nos diz que estes autores confiam
na linguagem e na eficácia das palavras. Não é necessário, como no caso dos românticos,
buscar a palavra precisa que melhor corresponda a uma situação, ou sentimento específico.
Para os clássicos, o investimento semântico procura fazer com que as palavras venham em
acréscimo da idéia central. Dessa forma, é compreensível que sua linguagem seja simbólica.
O real nestes textos é sobretudo o que se imagina, se infere, ou deduz; e portanto, não
corresponde ao factual. Segundo o ensaísta, a vida destes textos é um produto da imaginação
de seu leitor uma estória, várias imaginações. Dessa maneira, no modo clássico não se trata
de recriar a realidade na literatura, mas de produzir uma realidade artificial apenas suficiente,
se comparada à romântica; e, no entanto, significativa para as idéias que se tem em vista.
Borges ainda esclarece que, ao contrário do escritor romântico, o clássico se dedica tão
somente a assinalar uma realidade, “no a representarla”.
As relações entre os textos clássicos e a realidade ficam bem marcadas.
Borges faz questão de dizer de modo direto que as experiências reais “pueden inferirse de su
relato, pero no están en él”. Mas o ensaísta ainda permite ver o quanto a realidade factual
124
poderia constar de um texto clássico: o quanto se pudesse deduzi-la das conseqüências ou
conclusões a que o autor chegou sobre ela. Nos textos clássicos, onde existe a realidade, ela
foi reelaborada em função de sua idéia. Com isto, uma aposta do ensaísta fica clara: tão válida
quanto a tradição e outras fontes, nos textos clássicos, a realidade seria apenas um dos
materiais à disposição do escritor. Além disso, se declara que os românticos desejam
expressar a realidade, faz perceber que os clássicos preconizam a técnica.
A julgar das explicações a respeito de três tipos de procedimentos clássicos,
estes são textos que recorrem a mecanismos alusivos em sua construção de realidades
literárias. Na terceira técnica, alguns detalhes significativos servem para recuperar um
ambiente e os significados ligados a este. Na segunda, o leitor é levado a descobrir uma
realidade mais complexa do que aquela que lhe é descrita. Na primeira, espera-se do leitor que
imagine o que lhe é proposto, munido apenas das situações mais importantes sobre a trama
total. Ou seja, esta é uma escritura portadora de consideráveis lacunas textuais, vaga, e que
por isso solicita muito ao leitor. Com a citação Os anos de aprendizagem de Wilhelm
Meister, ele compara a ‘certeza’ de um autor clássico sobre a existência de realidade em seus
textos, à certeza do personagem sobre a origem de seus filhos, pensando na dúvida que
sempre poderia pairar sobre a paternidade, naquele tempo. O exemplo sugere o tipo de
realidade proposta por este grupo de escritores, algo em que simplesmente se acredita ou se
confia, mas que talvez não resistisse a qualquer comparação com o real.
Isto não significa que a construção da realidade seja irrelevante para os
clássicos. Não é sem motivo que o ensaísta se detém na apresentação de três técnicas bastante
complexas de formulação de realidades literárias neste modo. Se esta classe de textos é
esquemática e depende de uma interação apropriada com seu leitor para tornar-se eficaz, logo,
as técnicas, os recursos e artifícios devem ter um alto grau de participação na economia
textual. O leitor deve poder ter alguma ‘confiança’ na ilusão proporcionada, ainda que esta
realidade literária não deixe de ser imprecisa. Dessa maneira, a tradição torna-se fundamental,
enquanto um reservatório de técnicas. Mas também, como esta escritura está voltada para as
idéias, e dentre elas, sobretudo às mais perenes, então, por um novo motivo, a tradição se
instala na base desses textos.
Assim, se entende um dos motivos pelos quais, o ensaísta destaca que, na
concepção clássica, as imagens são um “bien público”. São públicas porque servem ao
coletivo dos autores. Para um melhor entendimento do que seria a metáfora clássica e as
características desta classe de textos, pode-se recorrer ao exemplo que o ensaísta aponta, no
texto de Gibbon. Ele comenta que a metáfora é imperceptível, inofensiva, e invisível. Por
125
último, declara que ela é “convencional”. Essa invisibilidade, tão destacada, é um indício da
relação entre os autores e obras no modo clássico. Mostra que nele os tropos não visam à
originalidade, mas ao incremento de um legado comum.
A menção às metáforas que ressurgem em novos textos, permite que Borges
apresente a idéia de uma unidade na literatura idéia bastante recorrente em seus ensaios,
mas que neste, ele sistematiza dentro do modo clássico
302
. Neste raciocínio, a literatura torna-
se o centro e diminui-se tanto o peso da personalidade do autor, quanto o da época. O ensaísta
ainda acrescenta que o tempo torna-se acessório para esses tropos. Com isso, valoriza a
perenidade e a ressonância que os recursos podem adquirir, através desta concepção. Assim,
Borges não diz simplesmente, que em decorrência da visão clássica, a literatura é una, mas
sim que “la literatura ‘es siempre’ una sola”. É como se ela não mudasse com o tempo, mas
fosse sempre a mesma literatura, passando através dos diferentes textos e autores.
Na anedota sobre Góngora, mostra que os estudiosos do poeta das metáforas
surpreendentes tiveram de defendê-lo, contra a acusação de inovar, de modo que teria sido
preciso encontrar matrizes na tradição para salvá-lo ‘dessa ofensa’. Através dela, o ensaísta
procura chocar e divertir com a informação de que um dia, alguém teve de defender-se da
originalidade, como se ela fosse ‘um crime’, “imputación”, “prueba documental”. O
exemplo é funcional para justificar as modernas estéticas que aderiram ao clássico, ao apontar
a inversão de valores: o que hoje choca, algum dia foi regra. Ao mesmo tempo, contrasta o
agora, em que o ensaísta percebe o predomínio do modo romântico, ao largo passado, que sua
argumentação confere aos textos clássicos, confirmando a antiguidade e a duração deste
modo.
Na verdade, o ensaio todo faz uma defesa dessa classe de textos. Ele expõe
os postulados clássicos, com um convidativo argumento a simpatizar com eles, o de que
conferem unidade à literatura. Em paralelo, mostra que esse modo de escritura, que hoje
parece esquecido, possui uma larga tradição. Além disso, aproveita para apresentar a acusação
que poderiam lhe dirigir, refutando-a antecipadamente; a de que ele se volta contra a
originalidade como um meio de obtê-la. Resolve a dificuldade, sugerindo que essa seria a
queixa de um ‘grupo’, que segue a moda do original e que por isso originalidade em toda
parte. Ou seja, transforma o argumento contra si em uma extrapolação do modo romântico.
Ainda vale lembrar sua citação de Arnold, propondo traduzir A Odisséia com palavras
bíblicas. A idéia é exótica, contudo, é um exemplo de que o clássico repercute no presente.
Em “Nota sobre Walt Whitman”, Borges não mede esforços para mostrar que o trabalho do
norte-americano pertence a esta classe de textos. Neste ensaio, aponta uma série de
126
renomados autores contemporâneos inscritos neste modo. Contudo, sua postura diante dos
modos, é visível desde o começo do ensaio. Logo ao início, ele declara que vai contestar a
tese de Croce. Nós sabemos que o motivo é apresentar a existência, a importância e a vigência
de outro modo textual, que não o romântico – o clássico.
Caberia uma maior aproximação na tentativa de perceber a quê classe de
textos, Borges se refere, com o rótulo de clássicos. A retomada da tradição e rasgos, como as
generalizações e a não-originalidade parecem apresentar o Classicismo, como fonte do título e
inspiração para pensar o modo literário. Também o caráter de realidade literária vaga faz
pensar na literatura anterior ao realismo formal. No entanto, o ensaísta assevera tratar-se da
maior parte dos textos literários em todo o mundo, citando Gibbon, Cervantes, Swift,
Voltaire, Tennyson, Morris, Moore, Kipling, Wells, Larreta e Defoe. Por sua ostensiva defesa
do clássico, ele mesmo parece estar incluído neste grupo.
Contudo, se o modo romântico está baseado na expressão da realidade, ao
passo que o clássico é aquele em que o autor se volta para a construção de uma idéia, “La
Postulación” (de 1932), ainda parece ser herdeiro de seus textos da década de vinte. No
manifesto ultraísta de 1921, ele e os companheiros distinguem duas estéticas: “a ativa dos
prismas”, na qual “el arte se redime, hace del mundo su instrumento, y forja más allá de las
cárceles espaciales y temporales su visión personal”; e a estética “passiva dos espelhos” na
qual “el arte se transforma en una copia de la objetividad del medio ambiente o de la historia
psíquica del individuo”
303
. Com o passar dos anos, cai o tom entusiasta dos manifestos e o
vocabulário vanguardista, “prismas”, mas o critério central, com o qual ele divide as duas
formas primordiais de estética, continua semelhante em sua base: literatura centrada na visão
do indivíduo/ em sua idéia; versus literatura centrada na cópia do meio/ na expressão da
realidade.
A estética passiva dos espelhos faz lembrar por exemplo, a declaração do
boedista Emilio Soto de que, “É imprescindível também fazer alusão ao meio, cuja influência
é direta. Esse alcance ou projeção social deve aparecer na obra [...]
304
. Se em 1921, ele alude
a uma “cópia da história psíquica” parece estar pensando no realismo interior; ainda a “cópia
da objetividade do meio ambiente”, evoca o Realismo argentino dos boedistas. Assim, os
genéricos títulos de clássico e romântico foram configurados para a compreensão de gerações
intemporais e universais de escritores, contudo, essa reflexão geral não deixaria de contemplar
a oposição entre a obra borgeana (que se posiciona em favor do modo clássico) e o Realismo
argentino.
127
Borges dá três exemplos de técnicas clássicas. Faço a paráfrase do citado
trecho de Dom Quixote, que ilustra a primeira. Lotário é enviado pelo marido de Camila (que
se achava ausente) para testar sua virtude. Camila é vaidosa, portanto pensa que é bela.
Lotário sabe disso e se aproveita para lutar com as mesmas armas. Diz exatamente o que ela
supõe que merece ouvir. Depois de muita simulação “lloró, rogó, ofreció, aduló, porfió y
fingió” - obtém o que deseja. O adultério não é explicitado, apenas insinuações do que
aconteceu.
O segmento elucida o funcionamento da construção de realidade no texto
clássico. O leitor não sabe o que é o real, mas ele tem suas idéias mais ou menos vagas sobre
o real, assim como Camila tinha as suas sobre si mesma. Sabendo que não existe essa clara
compreensão, o autor clássico, com vários simulacros, vai ministrar uma fantasia a qual,
diferente de uma completa representação da realidade, mesmo assim é capaz de corresponder
às expectativas do leitor. Na argumentação borgeana sobre essa primeira técnica clássica,
entende-se que este trecho não está caracterizado por uma realidade “alegórica”. Isto é, o que
sinaliza o clássico, não é a substituição da realidade factual, por um conjunto de figuras que
lhe corresponde. Sem mostrar, ele insinua. Sua marca é a conceitualização, em que as formas
significam, por um meio mais indireto. O autor concebe suas idéias e a partir delas começa a
construir esse mundo aceitável para o leitor. Representa idéias (sobre); não representa a
realidade.
A diferença deste primeiro método clássico para os outros é que a idéia vai
ser vertida em um texto, cujas pilastras são apenas alguns fatos de maior destaque. Ações
intermediárias ou desnecessárias ao conceito em andamento são suprimidas. Veja-se o
exemplo. Cervantes nem tenta narrar cada passo na sedução de Camila, os diálogos, os
olhares, as fugas e aproximações. É essencialmente clássico. O autor não se detém em
detalhes ou na apresentação de uma cena, mas faz um sumário, narrando uma série de fatos
por intermédio de umas poucas situações centrais. tudo isso por sabido. Contudo, (entre
várias) uma idéia nítida no pequeno fragmento citado: o objetivo é alcançado, porque os
meios são adequados; ou de modo negativo, a conquista não é difícil, quando se conhece a
abordagem correta. Pertence à primeira técnica clássica, porque os significados se
concretizam, apenas com as ações necessárias a traduzir a idéia em questão.
Um segundo exemplo de técnica clássica, seria o de pensar uma realidade
complexa e sem tentar formular essa realidade completamente, fornecer apenas seus efeitos
128
ou desdobramentos. Borges a entender que, enquanto no texto, uma realidade mais
simples, o escritor teria em mente algo muito mais elaborado
305
.
A ilustração vem da Morte de Arthur (1859), de Tennyson. O ensaísta se
detém na análise dessa construção, apontando três arranjos que garantem esse efeito de
realidade mais complexa. Sem esclarecer o motivo exato, ele observa o uso do advérbio
“así”. É possível supor que no trecho em questão, “assim” equivale a “desse modo”. Aqui
está a postulação clássica: a maneira como tudo aconteceu não é referida no texto; com isso, o
advérbio só faz sentir a existência de algo, além do que é relatado. O inglês não narra o
combate, apenas o assinala. O “porque”, segundo Borges, transmite os fatos de forma
episódica. De fato, no poema, essa partícula causal não fornece um motivo verdadeiro para a
situação introduzida neste verso. Na verdade, ela apenas abre espaço para que o poeta
acrescente um dado significativo à realidade mais abrangente, que está elaborando. Já o
mecanismo da oração coordenada “y la luna era llena” não é comentado. Contudo, é outro
dado que permite inferir uma realidade maior após si. A presença da lua, talvez valha pela
noite que sucede ao dia, levando a imaginar o que acontecerá depois da morte do rei Arthur.
Embora o ensaísta haja destacado estes três elementos que servem na
construção de uma realidade literária mais ampla, do que aquela que é anunciada ao leitor,
poderíamos apresentar outros elementos, menos sofisticados que os anteriores, que
contribuem para o mesmo resultado: o “ruído bélico” é um efeito da batalha que
recentemente ocorreu, mas não está descrita no poema; a “tabla” caída é uma conseqüência
vale pelo final do reinado de Arthur; a “herida profunda” é um efeito – faz deduzir a morte do
rei; o “presbitério roto” é um desdobramento um sinal de que o tempo das cruzadas está
perto do fim. Ou seja, no poema ficam registrados somente fatos laterais, que projetivamente
dão sinais da trama total – ela não é exposta, e estes sinais não tentam recuperá-la por
completo. Assim, para compreender o poema, o leitor deveria tentar imaginar a trama maior,
que carrega a idéia em andamento. Afinal é uma técnica clássica, e como vimos, trabalha
com a armação das idéias.
No entanto, não se trata aqui de um método para executar variações da
República, na qual Platão nos dava notícias de um oculto mundo primordial. Especialmente
no caso deste poema, a técnica parece consistir de algo muito mais simples. O texto de
Tennyson foi escrito quando na Inglaterra havia diversas lendas populares e narrativas
dedicadas à vida do rei Arthur. Nelas reside a trama total, da qual o poema do inglês
apresenta as conseqüências e derivações. De modo que, ao menos neste caso, não é tão difícil
adivinhar essa “realidade mais complexa”. Como o crítico Anthony Burgess alerta, Tennyson
129
era um poeta cuidadoso com a técnica e possuía idéias específicas para seus trabalhos
306
.
Assim, o verdadeiro problema para o leitor pode não ser o de detectar essa trama aludida, mas
chegar aos significados que essa ‘realidade’ literária contém.
Borges ainda fornece um segundo exemplo desta técnica, extraído do livro
de William Morris, The Life and Death of Jason (1867). Um dos remeiros de Jasão está caído
às margens de um rio. Antes que a água envolva seu corpo, uma fada pega sua lança, seu
escudo, sua espada e sua malha, e volta com suas peças ao reino das águas. Morris finge que é
impossível dizer mais sobre o ocorrido, valendo-se da desculpa, de que as testemunhas do
fato poderiam narrá-lo. Como se trata de um animal e do vento, ele consegue um subterfúgio
para não fornecer maiores explicações. O trecho também se deixa ler metaforicamente. O
escritor, que utiliza esta técnica, toma os efeitos e desdobramentos da situação que tem em
mente e volta à ficção apenas com os sinais que sejam significativos para a idéia à qual deseja
conduzir seu leitor. Há duas variações do segundo exemplo de técnica clássica, ambas
acionam a imaginação, para que o leitor produza o quadro mais amplo - que a narrativa não
fornece, e do qual ele necessita para atingir os conceitos que essa trama sintética propõe.
Segundo o ensaísta, o terceiro exemplo de técnica clássica consiste no
expediente de obter “pormenores lacónicos de larga proyección”, asseverando ser este o
mais difícil e o mais eficiente, dentre os exemplos fornecidos. A ilustração é um trecho do
romance histórico La Gloria de Don Ramiro (1908), de Enrique Larreta, no qual somos
informados que um cobiçado caldo era servido ‘en una sopera con candado para defenderlo
de la voracidad de los pajes’”. Através de uma leitura metafórica, entende-se que o escritor
não oferece acesso irrestrito à sua idéia, quando utiliza esta técnica. Assim, obter a chave para
a plena compreensão da trama, que carrega os sentidos, envolve a percepção de seus detalhes.
Na adjetivação, em torno do exemplo, é confirmada a eficiência desses pormenores:
“memorabilísimo rasgo”, “aparatoso caldo”. Ou seja, essa formulação de uma realidade
clássica está baseada em detalhes de alto poder projetivo.
Deve-se ainda atentar ao resultado da técnica, de acordo com a opinião
borgeana: “tan insinuativo de la miséria decente, [...] del caserón lleno de escaleras [...]”.
Cabem duas observações. A primeira é a de que Borges faz questão de não completar sua
sentença dizendo que esse romance histórico registra o contexto social da Espanha do século
XVII. Alega apenas que o texto é “insinuativo”, mas não que ele expressa a realidade, o que
faria dele um relato romântico. A segunda é a de que, neste trecho, ele detecta alusões: à
130
ambientação circundante, à casa grande com suas escadarias; e a uma idéia, que a passagem
constrói, a da miséria escondida, já que existe fome no castelo de um fidalgo decadente.
Borges ainda explica melhor, de que modo tais detalhes cooperariam para os
sentidos do texto. Ele nos diz que as películas de Sternberg, valem-se de um esquema
semelhante aos das obras literárias consolidadas pelo uso dos pormenores: elas estariam
“hechas también de significativos momentos”. Edgardo Cozarinski acredita que os detalhes,
que Borges observa no trabalho de Sternberg, seriam as cenas marcantes, das quais a narrativa
cinematográfica se tornaria a larga projeção
307
. O mesmo Borges parece associar a obra deste
diretor à “redução da vida inteira de um homem a duas ou três cenas”
308
. Com isso, o
mecanismo desses filmes é similar ao encontrado no terceiro exemplo de técnica clássica, na
medida em que, a idéia geral do roteiro estaria contida em algumas situações especialmente
significativas. Assim, os pormenores, além de auxiliar na composição de uma realidade,
produzem sentido.
Para precisar melhor o estudo desta técnica, é possível recorrer a outros
textos da produção borgeana em busca de suas características. Em primeiro lugar, seus
raciocínios teóricos corroboram o sentido de que se trata efetivamente de detalhes que podem
ser conotativos, isto é, que são capazes de associação e acréscimo para com as idéias
construídas no texto. Em um de seus primeiros ensaios, ele ligava essa classe de detalhes à
metáfora, entendendo que eles teriam uma maior ressonância textual do que aquela: La
metáfora es una de las tantas habilidades retóricas para conseguir énfasis. [...] Yo creo que la
invención o hallazgo de pormenores significativos la aventaja siempre en virtualidad”
309
. Eles
acionam um mundo virtual, portanto. Além disso, a própria forma como Borges nomeia os
detalhes - “significativos”; o fato de associá-los às emblemáticas cenas de Sternberg; e a
própria inclusão dos mesmos entre as técnicas clássicas; tudo isso produz o entendimento de
que os pormenores auxiliam na composição dos significados dentro das narrativas.
Estes textos igualmente informam sobre outra tarefa desempenhada por esta
classe de rasgos significativos: “Si faltan pormenores circunstanciales, todo parece irreal; si
abundan [...] recelamos de esa documentada verdad y de sus detalles fehacientes. La solución
es esta: Inventar pormenores tan verosímiles que parezcan inevitables, o tan dramáticos que el
lector los prefiera a la discusión”
310
. De acordo com a pequena nota de 1933, se faltam estes
detalhes, o texto pode se tornar inconsistente ou inverossímil. Por outro lado, em excesso,
podem fazer com que a ficção pareça falsa e caia em descrédito. Entende-se que na medida
correta, trazem a necessária consistência e produzem credulidade. Vale a pena observar um
estudo de 1932, em que ele alerta para um suposto defeito em “O Cemitério Marinho”, de
131
Paul Valéry: “Aludo a la intromisión novelesca. Los vanos pormenores circunstanciales que
cierran la composición – el puntual viento escénico, las hojas que la aceptación de lo temporal
confunde y agita, el apóstrofe destinado al oleaje, los foques picoteadores, el libro aspiran a
fundar una credibilidad que no es necesaria [no final do poema]
311
”. Na primeira passagem
aparece o termo “irreal”, fazendo pensar que os pormenores poderiam gerar o efeito de
realidade. Na segunda, entende-se que o resultado destes detalhes seria a verossimilhança
(maior ou menor), dentro da proposta de cada gênero.
Borges não fala de pormenores no modo romântico, contudo sugere que os
românticos trabalham com a acumulação de circunstâncias, para uma representação plena, a
qual (a nosso ver) visaria a um efeito de realidade. Dos clássicos, informa que sua
representação é vaga; portanto esperaríamos deles apenas uma realidade artificial. Entretanto,
neste terceiro exemplo de técnica clássica, concede que alguns romances, que utilizam este
método, sejam “exasperadamente verossímeis”. Assim sendo, o efeito das alusivas
construções clássicas iria, do vago, até o que é muito verossímil - embora, estes escritores não
tenham uma realidade consistente como meta.
Com isso, os autores associados a esta terceira subdivisão são chamativos. O
primeiro é um romance histórico de Enrique Larreta (de 1908). O segundo, são obras de um
ícone do realismo inglês: Daniel Defoe, é aquele que Borges pensava ser o inventor destes
rasgos circunstancias
312
. Ainda serve-se de humor ao mencioná-los. Assevera que o fragmento
de Larreta é um ejemplo corto” desta técnica. Acrescenta que o único método deste tipo de
escritores é essa técnica dos pormenores circunstanciais. Portanto, com a inclusão destes
autores no clássico, fica sugerido que Borges examina grandes obras do realismo inglês e um
romance histórico argentino e não encontra neles uma plena representação de realidade. Ele
poderia ter incluído essas obras no tipo romântico. Contudo, se classifica tais escritores,
dentro do modo clássico, faz entender que nestas obras haveria uma realidade vaga, derivada
de alguns elementos que projetam uma ambientação, com a cooperação do leitor. Este sentido
se reforça, quando ele coloca, lado a lado, no uso desta técnica, um autor de romances
realistas, Defoe; e um autor de romances imaginativos, Wells. Ambas as ‘realidades’ literárias
são equiparadas ao inscrevê-las sob o mesmo método de composição. Borges ainda chama a
atenção para o efeito do procedimento comum: romances (as “novelas”) de Wells são
“rigurosas”; e os (“las”) de Defoe, exasperadamente verosímiles”. Em sua argumentação é
como se fossem as duas faces de uma mesma moeda – ou recurso
313
.
O rodapé parece resguardar uma importante reflexão deste ensaio. Borges
está descrevendo esta terceira técnica clássica, traz à lembrança o autor realista, Defoe e o
132
escritor de literatura imaginativa, H. G. Wells. De imediato, desce à nota de rodapé. O que
vem à sua mente é a trama d´O homem invisível de Wells. Retomamos a imagem. Ser de todo
invisível é limitar-se a um dos lados da existência, mas continuar sofrendo seus problemas,
sem direito aos benefícios da visibilidade. Parece existir uma engenhosa reflexão metafórica
neste exemplo. O escritor de literatura mais imaginativa - do fantástico, do maravilhoso, ou da
ficção científica, sabe de antemão que irá desviar-se da realidade como ocorre ao homem
que se torna invisível. Assim, a metáfora sugere que, apesar de seu propósito imaginativo, a
ficção desta classe de escritor, na verdade, ainda teria de ver-se às voltas com o mundo real.
Sua construção pode parecer isenta de outras regras que não as da imaginação, mas, ao
contrário, todo o tempo, deveria precaver-se de imprudentes desbordamentos imaginativos, ou
seria “atropelado” pela outra realidade, pela acusação de inconsistência. Conseqüentemente
teria de buscar refúgio, aferrando-se a rigorosas regras de construção, para garantir o grau
adequado de verossimilhança em sua trama.
Em especial, a condição do escritor no gênero fantástico parece estar muito
próxima ao que Borges sublinha neste texto. O homem invisível tem que usar uma série de
disfarces, “para que no vean que es invisible” (grifo do autor). Paralelamente, o escritor (do
fantástico) que, sabe que vai cruzar os limites do que seria possível no mundo real, mas quer
seguir na ambigüidade (nem o maravilhoso e nem o realismo) deveria lançar mão de diversos
expedientes, para conservar-se dentro do que pode ter explicação; mas que por outro lado,
resiste a qualquer justificativa.
Dessa forma, a metáfora explicaria que nestes gêneros, o escritor obtém as
vantagens do mundo imaginativo, mas nem por isso pode descuidar-se da existência de um
mundo real. E (talvez) por isso, muitas vezes tem de trabalhar com a mesma técnica do
escritor realista (de Defoe e de Larreta), para obter “disfarces”, uma vez que estes permitem
uma consistência textual de que ele também necessita em seu próprio gênero. Por este motivo
a metáfora fica no rodapé. Não apenas, porque interromperia a argumentação, mas também,
porque é o momento, quando ainda se observa uma técnica do outro (inventada pelo realista
Defoe), mas já se começa a revelar seus próprios dilemas de construção textual.
Os últimos parágrafos realçam a eficácia dos artifícios, mostrando que esta
terceira técnica pode ser obtida tanto através de recursos semânticos, quanto através de
recursos sintáticos. Essas linhas finais ainda retomam a matéria geral fixada no título: “La
postulación de la realidad”. Nele, Borges adiantava que a realidade iria figurar neste ensaio de
idéias literárias, como uma postulação: um termo da filosofia cujo significado alude à
existência de uma “proposição que não sendo [nem] demonstrável, nem evidente”
314
, é
133
admitida sem contestações na base de um raciocínio. A mesma classe de desconhecimento
atua no campo das letras; pois a incerteza sobre o real concorre para que os escritores possam
projetar seus mundos ficcionais.
Deste modo, desde o título está a aposta, de que a realidade na literatura,
sendo diferente do que é no mundo concreto, será mais realista ou mais literária, mas será o
que os textos propõem que ela seja. Assim, a tentativa de representar a realidade na literatura,
também é apenas uma criação, entre várias realidades literárias possíveis - ou postuláveis. O
final reitera tudo isso: a realidade na ficção não precisa respeitar as regras do mundo; não é
natural, nem espontânea como tenta parecer; mas ao contrário, deriva da técnica, logo, do
trabalho de seu autor.
Discussão III Duas questões presentes na leitura que Daniel Balderston realiza em El
precursor velado: R. L. Stevenson en la Obra de Borges têm pontos de contato com nossa
constatação de que o realismo é uma estética, que inicialmente parece opor-se à madura obra
borgeana. Balderston identifica tanto em Borges, quanto em Stevenson o empenho por uma
visualidade que é “puramente textual”, e em conseguir cenas marcantes
315
. O que coloca a
Borges e seu precursor, muito próximos do clássico. Em “Sobre la descripción literária”, de
1942, Borges estaria censurando os escritores que tentariam oferecer um quadro de totalidade
ao leitor:
“Otro método censurable es la enumeración y definición de las partes de un
todo. Me limitaré a este ejemplo: / ‘Ofrecía sus pies en sandalias de gamuza
morada, ceñidas con una escarcha de gemas... sus brazos y su garganta
desnudos, sin una luz de royas; sus pechos, firmes, alzados; su vientre,
hundido, sin regazo, huyendo de la opulencia nacida en la cintura; las
mejillas, doradas; los ojos, de un resplandor enjuto, agrandados por el
antimonio; la boca, con el jugoso encendimiento de algunas flores; la frente,
interrumpida por una senda de amatistas que se extraviaba en su cabellera de
brillos de acero, repartida sobre los hombros en trenzas de una íntima
ondulación (Miró)’./ [Borges:] Trece o catorce términos integran la caótica
serie; el autor nos invita a concebir esos disjecta membra y a coordinarlos en
una sola imagen coherente. Esa operación mental es impracticable: nadie se
aviene a imaginar los pies del tipo X y añadirles una garganta del tipo Y y
mejillas del tipo Z...” (Apud Balderstone
316
).
Observa-se que Borges desaprova uma descrição que tenta ser precisa a
partir do detalhamento de cada parte da fisionomia de um personagem – uma descrição
romântica, a nosso ver. Então, Balderston anota a preferência de Borges por um modo
descritivo indireto, no qual a visão geral é evocada por meio de alguns detalhes marcantes;
em lugar das descrições diretas que dependem da acumulação de detalhes - descrições
134
estáticas como as de Miró, no citado exemplo
317
. Assim, Balderston encontra um paralelo
entre Borges e Stevenson, já que as descrições cinéticas do último contrastam com as estáticas
descrições do século XIX
318
. Ainda de acordo com o crítico, os procedimentos borgeanos
seriam reações contra modelos literários que adormecem o leitor na passividade, “en vez de
obter su activa participación en el proceso imaginativo”
319
. Deste modo, seu estudo
apresentaria Borges e seu precursor, como escritores clássicos. Primeiro porque ambos
estimulam a colaboração imaginativa do leitor e utilizam técnicas alusivas; mas também,
porque ajudam a entender como o seu oposto, o procedimento estático e o detalhamento
cênico, que permitiriam um leitor mais passivo, e eram comumente utilizados no século XIX.
Além disso, Balderston aponta uma diferença entre os autores: “Borges
parecía sostener que cualquier descripción literaria es ‘irrepresentable’ [...]’”
320
. Neste
sentido, nosso trabalho faz avançar essa suposição demonstrando que o argentino não apenas
parece desconfiar, mas de fato apresenta uma geral desconfiança da capacidade de
representação fiel da realidade na literatura. Portanto, uma vez mais, vemos a literatura
borgeana na contra mão das práticas realistas.
Rafael Olea Franco faz uma leitura reduzida de La Postulación de la
Realidad”, contudo, fixando-se apenas na divisão central oferecida pelo ensaio, ele vai chegar
a uma interessante compreensão da estética borgeana, que também acrescenta a este trabalho.
Olea Franco, que está voltado para as relações entre a obra borgeana juvenil e a madura, a
partir do estudo de Ronald Christ sobre a alusão em Borges, vai constatar que esta é uma
diferença crucial entre as duas fases do autor. O espanhol verifica uma mudança de valores
nos textos teóricos do argentino. O jovem Borges (o dos anos 25 a meados de 30), valoriza
Ascasubi pelo expressivo (método romântico) em sua escritura e desvaloriza José Hernández
pelo alusivo (associado ao clássico). Franco percebe que quando Borges valorizava o
expressivo, o jovem mostrava especial apreço pelas descrições de Ascasubi. O espanhol cita
como exemplos disto: um texto de Inquisiciones, de 1925; e dois de Discusión, de 1932
321
.
Nós encontramos uma passagem, de outro texto de Discusión, a qual confirma este raciocínio,
mas ao mesmo tempo deixa perceber melhor seu enlace com “La Postulación”:
“[Borges critica o Martin Fierro, porque neste livro] No intuimos los
hechos, sino al paisano Martin Fierro contándolos. De ahí que la omisión, o
atenuación del color local sea típica de Hernández. No especifica día y
noche, el pelo de los caballos [...]. No silencia la realidad, pero sólo se
refiere a ella en función del carácter del héroe [...]. Así los muchos bailes
que figuran en su relato no son nunca descritos. Ascasubi, en cambio, se
propone la intuición directa del baile [...] (negritos meus)
322
135
Em “La Poesía Gauchesca”, Borges mostra preferência pelo trabalho de
Ascasubi, que descreve os acontecimentos; ao de Hernández que narra em seus versos,
somente os dados que ajudam a construir uma idéia sobre o caráter do Martín Fierro. Como se
vê, este jovem Borges requer a expressão da realidade (romântica) em lugar do processo
alusivo (clássico) de construção da mesma. Ou seja, ao contrário do que acontece em La
Postulación”, ele estava valorizando a descrição romântica, e mostrando-se desfavorável a
uma realidade literária clássica. Chega a vindicar que Hernández maior lugar à realidade
em seu poema.
Isto significa que artigos com posturas diferentes de Borges, dentro do
mesmo livro Discusión sua postura em La Poesía Gauchesca” é diferente da exibida em
“La Postulación”. Além disso, nos artigos em que Olea Franco detecta uma defesa da
descrição, associável ao modo romântico, Borges está tratando da literatura gauchesca.
Portanto, os dados nos permitem pensar que estes textos em especial (os citados por Franco e
o citado por nós), trazem consigo valores mais antigos (que os veiculados em “La
Postulación”). Considerando o conteúdo destes textos a gauchesca, essa valorização do
expressivo, que não existia no “primeiro jovem”, parece ter vindo de encontro às necessidades
geradas pelo envolvimento do escritor com o projeto criollista. Parecem estar ligados àquele
momento, entre 1925 e 1928, quando seus ensaios estão cheios de argentinismos, e a revisão
dos autores da gauchesca é constante.
Olea Franco constata que ocorre uma transformação no pensamento de
Borges, fixada entre os anos 30 e 60: enquanto em sua primeira fase, ele elogia o cênico em
Ascasubi; na maturidade, o autor veria as descrições como interrupções no andamento da
narrativa
323
. O crítico confirma sua teoria com a citação do que Borges declara em uma
entrevista: “‘Ahora he descubierto que únicamente por la alusión se puede ofrecer una idea de
algo. Encuentro que la alusión tiene una importancia mucho mayor que la expresión’”
324
.
Com isso, Olea Franco propõe que a escritura borgeana vai gradualmente deixando a
expressão, preferência da fase juvenil, e adotando a alusão, como método predominante de
construção textual. Acredita que “la satisfacción del Borges maduro por la ausencia de
elaboradas descripciones paisagísticas en el Martín Fierro, demuestra el paulatino
desplazamiento de la expresión hacia la alusión en su propia escritura; estos conceptos poseen
las acepciones que expuse al analizar “La Postulación de la Realidad [...]”
325
. Mas, se Olea
Franco nos diz que Borges deixa de ser expressivo para ser alusivo, nos termos de La
Postulación”, isso equivale a dizer que Borges deixa de ser romântico, para contar-se no
número dos escritores clássicos.
136
Vale a pena observar o que seria o romântico, para Olea Franco. Ele diz que
“Borges posee un particular concepto de expresión, según el cual ésta se identifica con la
‘representación’ de la realidad”
326
e ainda, que expressivo é “todo recurso literario que intente
construir dentro del texto la ‘representación’ plena de un hecho”
327
. Como visto, o espanhol
segue os textos juvenis de Borges, assumindo que a descrição seja um rasgo do modo
romântico, tal como encontrado por ele em “La Postulación”. Mas, se a plena representação
da realidade e a ênfase na descrição podem figurar em qualquer tipo de texto moderno, essas
duas características estão associadas ao realismo. Não pensamos na Escola, mas no realismo
literário que, pertencendo à época moderna, exibe predomínio no século XIX, mas desde o
século XVIII, gerou uma configuração geral de realidade dentro da literatura. Portanto, a
percepção que Olea Franco possui dos modos literários exibidos em “La Postulación”,
respalda nossa idéia de que o conceito borgeano de romântico, está próximo do realismo
encontrado nas obras modernas (exceto é claro pela questão da originalidade); mas
igualmente, pode ter tido como ponto inicial de reflexão, o Realismo argentino dos anos vinte.
Christ e Olea Franco entendem que a obra borgeana madura tem uma
característica clássica central apontada no ensaio: a alusão. Neste caso, exibem concordância
com as percepções de Balderston. Assim sendo, na obra borgeana da maturidade uma
atitude definida quanto à representação Borges prefere a alusão clássica. Mas se a obra
juvenil, ao menos nos textos teóricos, exibe outra preferência, podemos nos perguntar quando
ocorre esta mudança. Para tanto, podemos pensar que há três textos de Discusión, enaltecendo
a expressão (dois citados por Olea Franco e mais um). Sabemos ainda, por Olea Franco, que
mais um texto com o mesmo tipo de concepção, em Inquisiciones, de 1925. Isto significa
que, entre Inquisiciones e Discusión, existiria, na classificação de “La Postulación”, um
Borges romântico que preconiza o expressivo na escritura. Além disso, se são três os ensaios
ligados a este modo, no livro de 1932, parece-nos que a transição de um a outro modo não
acontece em 1930, com Evaristo Carriego. Com maior precisão, pode-se averiguar que o
processo está começando em meados de 1932, com Discusión. Portanto, logo após o período
de culminância dos debates entre os grupos de Boedo e Florida (1930).
Assim, no período, entre 1925 e 1928 (os três primeiros livros de ensaios),
as teorizações borgeanas mostram que ele chegou a cultivar alguns posicionamentos que
aproximam sua obra juvenil do realismo - textos com essa faceta ainda aparecem no livro de
1932. Este pode ser um dos motivos, para que o autor construa, com muito exagero, um
jovem Borges realista no conto “El Otro”. Ao mesmo tempo, vemos que as teorizações em
“La Postulación de la Realidad” colidem, por sua defesa do modo clássico, com o Realismo
137
argentino da década de vinte, é possível supor que a citada polêmica entre os grupos literários
tenha sido um importante momento de gestação para o afastamento da expressividade e para a
afirmação dos mecanismos alusivos que seriam fundamentais na madura poética borgeana.
3.4. BORGES E UM PONTO DE CONTATO COM O REALISMO:
OS PORMENORES CIRCUNSTANCIAIS.
3.4.1. A Partir de “25 de agosto, 1983”.
Em uma entrevista, Borges dizia que o dever do escritor era conquistar
novos terrenos para a ficção. A julgar das considerações que exibe sobre o discurso da
historiografia tradicional e das considerações que tece sobre o discurso da filosofia e da
religião, no Prólogo ao Facundo, vemos que ele parece lançar-lhes a mesma sentença de
Mallarmé: c´est tout literature. Ao mesmo tempo, sua obra é conhecida pela incorporação de
temas da filosofia, da religião e da história desta, não apenas seus temas, mas também
algumas vezes o modo de narrar, o sabor da crônica histórica. Outra faceta já reconhecida pela
crítica é a metaficção. Assim, nosso corpus, parece revelar um terreno que ainda não havia
sido delimitado com precisão. Trata-se da ficcionalização de sua própria ficção. Em “El
Otro”, vimos que o autor discretamente enlaçava características de sua obra ao personagem
mais velho, ao passo que procura discretamente apresentar o realismo, como seu oposto (a
estrutura do duplo, talvez o tenha levado ao questionamento, do que poderia ser o oposto
complementar de sua ficção). Um segundo conto do livro La Memoria de Shakespeare
(1983), possui o mesmo tipo de metaficção, que remete à sua obra.
Como admite o narrador de “25 de Agosto, 1983”, a Borges agradam as
simetrias imperfeitas, de modo que esta estória parece ser uma espécie de espelho invertido
diante de “El Otro”. Por isso, surge um breve cotejo com este conto.
Novamente estão postos os temas do tempo, do sonho e do duplo; também
voltam o metaficcional e o aproveitamento de dados autobiográficos. Até mesmo alguns
elementos cênicos explicitam a relação gêmea entre as narrativas: o reconhecer a própria voz,
o banco no jardim, as paradoxais memórias do futuro, a cegueira. Como no primeiro conto, o
narrador afirma que ambos os Borges são mentirosos: que los dos mentimos”. Volta a
afirmar a relação caricaturesca entre ambos; mas também torna a confirmar que
138
semelhanças entre os dois. Uma vez mais, o velho pensa que tanto o encontro quanto a vida
são sonhos. Em “El Otro”, ele diz: “Mi sueño [vida] ya ha durado setenta años”. Em “25,
Agosto”, explica: “vós tendrás mucho que soñar [vivir]. O jovem, mais vacilante que o de
“El Otro” apenas conjetura que o encontro seja sonho; mas se dessa vez é o velho, quem
duvida da existência do outro, os contos seguem parelhos, que em ambos o reflexo é o que
acredita ser único.
A principal diferença entre os dois contos reside na estrutura. Na primeira
narrativa, o mais velho é o narrador. Nesta, a disposição do ponto de vista é contrária. O mais
jovem é o narrador, de modo que o outro é o velho. Mas ele ainda se parece muito ao da
primeira estória. Ele joga com o tempo e com a identidade, dizendo ao jovem que seu
encontro não será o único, pois “Cuando lo vuelvas a soñar, serás el que soy y serás mi
sueño”. Igualmente quando o jovem pensa em sua localização durante o encontro, o velho
imediatamente lhe tira as certezas. O espaço para ele é uma possibilidade, um ponto de vista,
ou uma especulação filosófica. No instante em que o jovem quer resolver o problema do
encontro, apontando para sua realidade, o velho mostra diferentes perspectivas para a mesma
situação - “Lo fundamental es averiguar si hay un solo hombre soñando o dos que se
sueñan”. Assim, como no primeiro encontro, o velho torna a opor sua própria palavra aos
fatos que o jovem apresenta. Isto é, volta a mostrar ao outro, que para ele, o discurso é mais
importante que a verdade do factual. A verdade de seu discurso (de sua ficção), esta é sua
única verdade.
A tópica da memória parcial é retomada. O velho antecipa ao jovem a
escritura de sua obra-prima, garantindo-lhe que nesta ocasião, ele recordará esta conversa.
“Quedará en lo profundo de tu memoria, debajo de la marea de los sueños”. Ele não afirma
que o diálogo será a origem deste novo conto, mas diz que o jovem terá dele uma vaga
lembrança durante a composição. Com isso, segue a proposta do conto anterior, ao sugerir a
idéia da escritura, como uma negociação entre o lembrar e o esquecer. Em “El Otro”, o velho
recorre ao recurso de Coleridge. Em “25 de Agosto”, além da alusão à memória, ele admite
para o jovem, que sua “supuesta obra no es otra cosa que una serie de borradores, de
borradores misceláneos”. Diretamente ele se declara um escritor de versões, versões de sua
própria escritura e da alheia.
Assim, como ocorre no primeiro conto, as falas do velho Borges
gradualmente assinalam rasgos marcantes da literatura borgeana ou ao menos, muitos dos
quais estão difundidos entre a crítica. Contudo, neste conto, essa caracterização é ainda mais
139
explícita. O velho relata ao interlocutor o grande sucesso de seu maior conto, mas contrariado,
admite que não conseguiu afastá-lo de sua produção anterior:
“Mis buenas intenciones no habían pasado de las primeras páginas; en las
otras estaban los laberintos, los cuchillos, el hombre que se cree una imagen,
el reflejo que se cree verdadero, el tigre de las noches, las batallas que
vuelven en la sangre, Juan Muraña ciego y fatal, la voz de Macedonio, la
nave hecha con las uñas de los muertos, […] Además, los falsos recuerdos, el
doble juego de los símbolos, las largas enumeraciones, el buen manejo del
prosaísmo, las simetrías imperfectas que descubren con alborozo los críticos,
las citas no siempre apócrifas”. (grifo meu)
Uma das façanhas borgeanas nesta narrativa é este desdobramento do velho
em uma figura de escritor; e ainda em seu próprio crítico. Aparecem seus consagrados temas
– o duplo, o duelo; suas figuras os labirintos, os tigres, as facas, o tema de influência anglo-
saxã; um de seus personagens mais conhecidos o compadrito; seus recursos usuais os
símbolos, as enumerações, as simetrias imperfeitas, a alusão aos precursores, o recurso à
citação, a ficcionalização da história e da biografia. Além disso, aparece um segundo rasgo
ligando o personagem mais velho à obra de seu criador. O velho confessa que publica um
grande conto, sob um pseudônimo...inutilmente. Mesmo assim, a crítica reconhece nele
características da poética borgeana; desaprovando ‘o farçante’ por plágio. Com o artifício,
reflete, ele, um personagem de ficção, sobre uma obra ficcional que não pertence a si, mas
ao Borges autor que existe fora dela. Assim, tanto quanto em “El Otro”, a figura do velho,
neste conto, nos remete à obra borgeana e a seu autor implícito.
Embora este Borges seja facilmente reconhecível, na descrição que faz de
sua própria literatura aparece uma característica não tão explorada nessa obra: el buen
manejo del prosaísmo”. Através dela, o velho leva a atentar, não apenas sobre sua prosa; mas
na ambigüidade, também a respeito da presença do comum ou do trivial dentro dela. O dado
se torna mais chamativo, uma vez que este Borges mais velho coloca, entre os livros que lhe
infundiram o desejo de alcançar uma obra-prima, Salambô de Flaubert. Mas essa ligação com
o circunstancial, aparece sob nova faceta. Em “El Otro”, surgia uma série de pormenores
precisos e imprecisos. Em “25 de Agosto”, não imprecisões na fala do narrador, mas os
pormenores são recorrentes: o “ancho” portão, o tinteiro “de bronce”, a cama “de fierro”.
Em paralelo, percebe-se que esta narrativa na qual o jovem é o narrador é
muito mais descritiva. Ainda que alusivamente, ele relata todo o seu percurso desde a rua até
o encontro, de modo que vemos “com ele”: a estação, as ruas, o portão, o jardim, o vestíbulo,
o balcão do hotel, as escadas, o pátio, a porta, o candelabro, até a cama de ferro. Ele não perde
140
mesmo um detalhe trivial neste caminho: a caneta presa ao balcão. No primeiro conto, tudo o
que havia era um banco às margens de um rio. Em “25 de Agosto”, até o velho é mais
delineado: “más viejo, enflaquecido y muy pálido, estaba yo, [con] los ojos perdidos en las
altas molduras de yeso”. Em “El Otro”, de sua aparência, sabíamos apenas que era um velho
cego, com os cabelos brancos. Também, a relação do jovem com o tempo é a mesma. Ele
atenta ao horário, observando o relógio da estação; é ainda dele o pedido para que o velho lhe
narre os sucessos do futuro. Deste modo, em ambos os contos, ‘os jovens’ estão ligados ao
tempo sucessivo da realidade quotidiana, ao passo que ‘os velhos’ vêem o passado no futuro,
e projetam a repetição sobre o tempo, como ocorre nas especulações filosóficas
328
.
Contudo, há um momento que especialmente enlaça os jovens nos dois
contos. No primeiro, o velho erra o nome da praça ao lembrar-se do episódio do bordel em
Genebra. O jovem o corrige com tal firmeza, como se assinalasse o “lá”, onde tudo ocorreu.
Seu gesto é quase referencial, quando requer o exato nome do logradouro. Em “25 de
Agosto”, a questão com a referência é ainda mais visível. O jovem diz que vai até o hotel para
tentar o suicídio e afirma: “Por eso estoy aquí (grifo meu). O problema está posto na medida
em que o “aquí do jovem, que ele utiliza duas vezes, tem primariamente um caráter
demonstrativo. Ele quer dar conta de sua localização no Hotel Las Delícias, a qual
confirmaria sua existência e sua realidade em um tempo e espaço determinados
329
. Ainda em
paralelo com a narrativa de 1975, tão logo o jovem se pronuncia a respeito de estar no hotel
conhecido, o velho contesta: Aquí? Siempre estamos aquí. Aquí te estoy soñando [...] Aquí
estoy yéndome [...]”. Ou seja, o velho se opõe ao ponto de vista referencial do jovem. No
lugar dele, pensa em uma possibilidade poética ou mais filosófica para o entendimento da
situação.
Outra coincidência, entre o jovem do primeiro e do segundo conto, é o
tratamento da causalidade. O jovem narrador de “25 de Agosto” tinha certeza que o velho
tentaria novamente suicídio, porque o tinha tentado uma vez. A seu raciocínio causal, o
velho responde taxativamente: “no veo la relación”. Assim, se o jovem pensa que um desejo
suicida é um índice de que haverá um novo intento, o outro não. Mas uma última simetria
nos jovens. O moço de “El Otro” beirava o desespero com a realidade fantástica que lhe
propunha o velho Borges; o jovem de “25 de Agosto” se assusta com o insólito. Seu fantasmal
interlocutor quer tocá-lo, mas ele admite seu pavor - “Retrocedí; temí que se confundieran las
dos”. Em contrapartida, os velhos de ambos os enredos tendem a tomar com naturalidade a
condição fantástica do encontro. Nesta narrativa, o velho vai logo dizendo que “nada es raro
en los sueños”. Mas no momento em que o octagenário começa com seus jogos paradoxais,
141
de que “La verdad es que somos dos y somos uno”, o jovem é franco: “Esa conversación me
irritaba. Así se lo dije”. O jogo irracional e especulativo, por fim o aborrece.
Por tais motivos, entende-se que o jovem narrador nos remete a Borges
obra borgeana), ainda que este seja um Borges mais realista. É um Borges, que as pessoas
custam a reconhecer como Borges. A metáfora é bem sutil. É o jovem, quem está hospedado
no hotel. No entanto, o dono, que está na recepção, depois de ter visto o velho uma única vez,
não identifica mais o jovem como Borges: el dueño no me reconoció y me tendió el
registro”. Fica o contraste entre o jovem, que não é reconhecido, embora compartilhe seus
traços marcantes com o mais famoso; e o velho, cuja escritura, mesmo sob um pseudônimo,
ainda é identificada como ‘borgeana’.
Dessa forma o título, tão preciso, desta narrativa - “25 de Agosto, 1983”,
representa o dia em que ocorre uma suposta transformação deste narrador a uma escritura
mais imprecisa. A mudança fica marcada em sua saída do hotel. O narrador diz que, para fora
destes portões, ele não voltaria à mera realidade. “Huí de la pieza. Afuera no estaba el patio,
ni las escaleras de mármol, ni la gran casa silenciosa, ni los eucaliptos, ni las estatuas, ni la
glorieta, ni las fuentes, ni el portón de la verja de la quinta en el pueblo de Adrogué”. Depois
do episódio, ele iria ao encontro da fantástica obra-prima profetizada pelo velho Borges.
“Afuera me esperaban otros sueños”.
Se “El Otro” fazia sugestões sobre a presença ‘do real’ na obra borgeana, o
cruze dos contos parece trazer uma confirmação deste aspecto. “La Postulación” dizia que a
literatura poderia ser imprecisa, porque as pessoas estão acostumadas à imprecisão em sua
vida quotidiana
330
. Assim, o tempo cronológico, “eran las once de la noche pasadas”,
amparado por alguma inexatidão, parece ser uma forma eficiente de conseguir uma sensação
realista de tempo, quando é necessário. Já vimos que, do conto de 1975, constava a mesma
inexatidão em seu “serían las diez de la mañana”. Quanto ao espaço, basta a caneta presa ao
balcão, para que o leitor imagine um ambiente comum de recepção de hotel. Alguns detalhes
sugerem a ambientação circundante. Procedimento similar é aplicado na caracterização do
personagem. É suficiente apontar como em “El Otro”, a cabeça branca, ou como em “25 de
Agosto”, o velho pálido e fraco, para que o leitor complete a figura de um velho em sua
imaginação. Um último procedimento para gerar verossimilhança é a causalidade da vida real.
Na estrutura dos contos predomina a causalidade mágica, mas para obter esse efeito de uma
lógica real, Borges põe em boca do personagem algum tipo de senso comum na previsão dos
acontecimentos. Nesta narrativa, o jovem deduzia que haveria uma segunda tentativa de
142
suicídio que houvera uma primeira. Em “El Milagro Secreto”, vamos rever os pormenores
no tempo e no espaço e este tipo de causalidade.
3.4.2. Rumo a “El Milagro Secreto”.
Ao explicar o terceiro exemplo de técnica clássica, observamos que Borges
procurava apresentá-la, como uma construção comum, tanto a autores de literatura mais
imaginativa, quanto a alguns autores de obras realistas – pertencentes ao modo clássico.
Segundo Arrigucci Jr., “esta é uma das técnicas fundamentais do Borges, que ele vai utilizar
na prosa. Pormenores lacônicos, ou seja, concisos, ditos de passagem, mas que têm uma longa
projeção, porque vão ter uma série de conseqüências”
331
. Pretendemos confirmar que Borges
utiliza esta técnica, mas ainda desejamos examinar a especial configuração que ela adquire em
sua narrativa.
Acreditamos que em “El Milagro Secreto”, do livro Artifícios, existe uma
chamativa construção, que talvez seja comum a várias narrativas borgeanas. Trata-se de um
conto altamente ficcional, mas na primeira fase da trama, o escritor precisa gerar uma base
“realista” (e não apenas consistente), para que dela salte o fantástico. Neste ponto, os
pormenores ajudam a garantir um efeito de realidade. Portanto, nossa proposta é que, nesta
narrativa, os detalhes, dentro de sua peculiar estruturação alusiva, são responsáveis por uma
verossimilhança rigorosa.
Quanto à outra faceta dos pormenores, isto é, a colaboração dos mesmos
para com os sentidos textuais, nós acreditamos que, pouco ou muito, cada um destes detalhes
serve para a conformação das idéias. Entretanto, em nossa breve aproximação ao mencionado
conto, vamos priorizar a questão do verossímil. Em compensação, esboçamos um reduzido
agrupamento das várias formas que o recurso pode assumir dentro das narrativas. Um amplo
estudo e uma classificação geral do mesmo não seriam viáveis no âmbito desta dissertação,
contudo é possível assinalar uma pequena série de exemplos, sem desviar-nos de nossos
propósitos específicos.
Os pormenores são abundantes no conto fantástico “El Milagro Secreto”
332
.
A julgar do que ocorre em “El Otro” e em “25 de Agosto, 1983”, uma das formas sob as quais
se apresentam os pormenores seria uma menção, precisa ou imprecisa, a dados temporais e
espaciais: dia; hora; períodos do dia; ou ainda, o nome de um edifício; a função do prédio; a
rua na qual ele se encontra; a distância entre ele e outro logradouro, ou acidente geográfico,
143
que pode ser conhecido ou inventado. Neste conto, “La noche del catorce de marzo de 1939,
en un departamento de la Zelterngasse de Praga”, Haromir Hladík tem um sonho profético
sobre seu fututo. O narrador aponta o dia e o período do dia. O fato datado ganha
historicidade com a menção ao ano. Ao mesmo tempo, o nome da rua confere certa
concretude à ficção, e faz com que o leitor imagine a personagem neste tempo e espaço
ficcionalmente determinados. Sua sentença de morte recebe tratamento ainda mais preciso:
“Se fijó el día veintinueve de marzo, a las nueve a.m.”. Assim, os fatos conseguem ancorar-
se, através destas pequenas informações, as quais, mesmo carecendo de qualquer realidade
efetiva, garantem uma construção literária eficiente.
Da mesma forma como a data enlaça a narrativa ao tempo histórico, certas
explicações ligam as personagens a instituições ou feitos. Sobre a profissão de Haromir
Hladík, o narrador nos diz que: “En 1928 había traducido el Sepher Yezirah para la Editorial
Barsdorf(grifo meu). A tradução de um livro em uma editora de um país distante assegura
um perfil plausível para o personagem. Ele se assenta no raciocínio de que, se há uma editora,
por extensão, o livro e seu autor tornam-se igualmente possíveis. Ainda no começo do conto,
o narrador recorda que Hladík é o “autor de la inconclusa tragedia Los Enemigos(grifo
meu). Novamente a caracterização da personagem tem seu contorno reforçado por um livro
desconhecido. Assim, o narrador não precisa acumular uma série de dados, ele só precisa
exibir um conhecimento pormenorizado de algumas poucas situações, para que o leitor julgue
existir, de sua parte, um envolvimento ou um conhecimento mais amplo dos fatos. Desta
forma, a verossimilhança é obtida quando personagem e situações são ancoradas na
plausibilidade destes pormenores.
Outros rasgos são desenvolvidos a partir de um “modo adjetivo”. Quando
Haromir é levado ao quartel alemão, o narrador nos conta que no dia 19: El mismo
diecinueve fue arrestado. Lo condujeron a un cuartel aséptico y blanco, en la ribera opuesta
del Moldau” (grifo meu). A brancura e a limpeza do quartel o percepções da personagem.
Elas fazem imaginar o ambiente à volta do preso e garantem a verossimilhança, através dos
detalhes que supostamente mais impressionariam o sentido visual em tal lugar. Esse modo
adjetivo dos pormenores também é aplicado aos objetos que asseguram a ambientação em
outros espaços do conto, por intermédio da menção ao material, do qual estes objetos estariam
feitos. Ao começo da estória de Hladík, o narrador nos antecipa que ele terá problemas,
quando nos informa que “Era el amanecer; las blindadas vanguardias del Tercer Reich
entraban en Praga”. Mais adiante, Hladík nota que sua imaginação falhara, quando o levam
para ser executado. Percebe que La realidad fue menos rica: [él y los soldados] bajaron a un
144
traspatio por una sola escalera de fierro. Nesta narrativa, o ferro e a blindagem ajudam a
construir a idéia da irracionalidade do sistema nazista, fazendo que os soldados tratem com
dureza as pessoas; em contraste, o artista Haromir se entrega à composição do poema, com
um enorme carinho, gerando cada uma de suas partes com esmerada racionalidade. A alusão
ao material dos objetos pode ser observada também em “25 de Agosto”, quando o jovem sobe
ao quarto do velho suicida e o encontra “en la angosta cama de fierro
333
. Ou ainda, em “El
Aleph”, em que narrador anota “las carteleras de fierro de la Plaza Constitución”
334
. Nestes
casos, é como se, de forma indireta, a substância garantisse a ‘existência’ do objeto ao qual
ele se acha associado. Daniel Balderston afirma que a busca da plasticidade é detectável tanto
nas narrativas de Stevenson, quanto nas de Borges
335
. Contudo, não é uma enumeração
exaustiva de objetos o que leva à visualidade nesta narrativa. São apenas pormenores que
despertam uma ambientação a seu redor, e assim cooperam para uma sensação de realidade.
Um tipo diferenciado de tais detalhes parece ser a menção aos fenômenos do
clima. Em um de seus prólogos, Borges comenta a invenção dos detalhes circunstancias, “Lo
tardio de ese descubrimiento es notable; que yo recuerde no llueve una sola vez en todo el
Quijote”
336
. Se antes de Defoe não chovia, o narrador de “El Milagro Secreto” não perde de
vista esta classe de pormenor. Lembra-se de dizer que Haromir desperta de um sonho, logo
que “Cesaron los estruendos de la lluvia [...]. Ainda no dia da execução acrescenta que “el
día se nubló”. Como o clima se transforma a cada instante, a recordação da temperatura, da
chuva ou do vento tem mais ou menos o mesmo valor que a lembrança de um cheiro ou de um
perfume particular. É como se a experiência fosse tão intensa, que mesmo depois de muito
tempo, o narrador ainda pudesse recuperar os mais ínfimos detalhes do acontecimento.
Contudo, se a personagem possui uma nítida recordação do momento, isto faz com que o
leitor tente imaginá-lo, para revivê-lo consigo. Assim, por novo motivo, os detalhes podem
representar um acréscimo na verossimilhança da trama.
Entre os vários tipos de pormenores, ainda aqueles que podem parecer
meros detalhes cênicos. Por exemplo, “el montón de leña” em que se senta Haromir à espera
das ordens dos soldados para ser alvejado. É interessante notar o sofisticado trabalho que
Borges efetua com esses simples detalhes. Sabemos que por um milagre secreto, entre o
tempo dos disparos e a efetiva morte do judeu, lhe será concedido um ano para terminar o seu
grande drama em verso. E no entanto, para que essa cena seja fantasticamente congelada,
Borges tem primeiro que gerar essa realidade. Aqui entram os detalhes circunstanciais. Eles
compõem o quadro vivo da execução para que o autor projete a imobilidade temporal sobre a
cena: “El brazo del sargento eternizaba un ademán inconcluso. En una baldosa del patio una
145
abeja proyectaba una sombra fija. El viento había cesado, como en un cuadro”. E pouco
mais adiante: “En su mejilla perduraba la gota de água; en el pátio, la sombra de la abeja, el
humo del cigarillo que había tirado […]”. É claro que a extrema atenção às circunstâncias, o
suor, e o cigarro auxiliam a compor a tensão, a dureza, e a força que emanam da repressão
nazista. Em paralelo, como dito, lembrar-se do clima, e neste caso do vento, equivale à
perfeita lembrança de um instante. a idéia de que o narrador observa uma experiência tão
intensa da personagem, que ainda conserva cada impressão deste quadro. O gesto do soldado
fornece a imagem do batalhão à frente de Haromir. A fumaça do cigarro no chão produz a
visão horizontal da cena. A abelha é um daqueles pormenores, dos quais Borges nos alerta,
que de tão “dramáticos”
337
, nenhum leitor ousaria discuti-los.
É interessante a alternância de técnica que o conto exibe. Desde o início da
narrativa, até a execução da pena de morte, o narrador precisa de um efeito de realidade
afinal é um preso do nazismo sendo levado a um quartel. Então, é utilizada a terceira técnica
clássica a dos pormenores circunstanciais. No momento em que o fantástico entra em cena,
e Haromir começa a dispor do milagroso tempo para compor seu poema, Borges alterna a
técnica que vinha utilizando. Ele passa à primeira técnica clássica, mais alusiva do que a outra
- o significado que o autor têm em mente é veiculado apenas com os principais sucessos
escolhidos entre uma extensa série de ações ou eventos. Assim, o narrador nos informa que
dentro do ano que lhe foi concedido, “Ninguna circunstancia lo importunaba [a Haromir].
Omitió, abrevió, amplificó; en algún caso optó por la versión primitiva […] Descubrió que
las arduas cacofonías que alarmaron tanto a Flaubert son meras supersticiones visuales”.
Ele assinala apenas alguns gestos que alusivamente retomam a completa composição do
poema de Hladík. Quando o personagem chega ao fim de sua tarefa, cessa a situação
excepcional. Borges volta à técnica anterior dos pormenores. A gota d´água que se move põe
termo à vida do poeta. A realidade literária segue seu curso: “murió el veintinueve de marzo,
a las nueve y dos minutos de la mañana”. O conto começa com a técnica dos detalhes, e volta
a essa técnica em seu desfecho.
Mas cabe regressar à narrativa, para atentar a um momento em que os
pensamentos do personagem parecem refletir as preocupações de seu autor. Haromir está
preso; pensa em sua morte próxima; e tenta prever como ela será. O personagem: “No se
cansaba de imaginar esas circunstancias [...] Luego reflexionó que la realidad no suele
coincidir con las previsiones; con lógica perversa infirió que prever un detalle circunstancial
es impedir que éste suceda” (grifos meus). O trecho parece metaficcional, porquanto o
personagem, que é também um escritor, tão logo pensa em uma realidade futura, põe-se a
146
imaginar os detalhes das circunstâncias vindouras. Ademais, a reflexão é ampliada com um
pouco de humor negro: “Fiel a esa débil magia, inventaba, para que no sucedieran, rasgos
atroces; naturalmente acabó por temer que esos rasgos fueran proféticos” (grifo do autor).
Neste trecho o narrador permite acessar os dois pensamentos que o autor judeu tem a esta
altura. O primeiro lembra o senso comum pessimista da vida real: aquilo que conjeturamos
para o futuro costuma não acontecer. Mas ele é um escritor, então seu segundo pensamento
parece recordar concepções do mundo literário: pode ser que esses detalhes imaginados
venham a ter “uma projeção ulterior”, para utilizar o vocabulário de Allan Poe; ou à maneira
borgeana, que eles possam acionar uma causalidade mágica, sinalizando sua futura morte. Ou
seja, as reflexões de Hladík oferecem uma comparação entre a realidade e o ficcional,
lembrando as diferenças existentes na projeção de futuro entre uma e outra.
o fim do parágrafo seguinte é explicitamente metaficcional. O narrador
explica, porque o escritor judeu não optara pela prosa: Hladík preconizaba el verso, porque
impide que los espectadores olviden la irrealidad, que es condición del arte”. E que o
argumento deste drama em verso era bom, porque “intuía la invención más apta para
disimular sus defectos y para ejercitar sus felicidades, la posibilidad de rescatar (de manera
simbólica) lo fundamental de su vida”. Ambas as propostas estão em estreita consonância
com as idéias encontradas na análise dos ensaios borgeanos, e em especial, com as de La
Postulación”. A primeira é análoga à idéia de que a literatura não pode captar fielmente a
realidade, a qual aparece em “El Otro”; mas aqui, levada ao extremo, se parece mais com as
propostas deste ensaio. De acordo com ele, a literatura teria, no modo clássico, uma realidade
artificial; mas no modo romântico, tentaria expressar a realidade, caindo dessa maneira na
distorção que vem da própria forma pela qual o ser humano assimila o seu contexto sempre
de maneira parcial, segundo a exposição borgeana. Ou seja, é a idéia de que a ficção não pode
arcar com o peso integral da realidade. A segunda idéia, no trecho citado, encontra paralelo
com os mesmos raciocínios de La Postulación”, segundo os quais, se a arte não pode ser um
espelho fiel do real, ao menos, dentro do modo clássico, a grande aposta seria a estruturação
de idéias e a produção de sentidos dentro do texto. Em especial, a passagem lembra a
proposta, de não efetuar a exposição integral de um evento ou de uma vida, para fazê-lo,
através de alguns detalhes ou cenas marcantes, que os retomem projetivamente e possam
conferir sentido a esse plano maior.
Discussão IV Para uma melhor compreensão do manejo que Borges faz dos pormenores, é
necessário entender, primeiro, a própria natureza do recurso. Para tanto, pode ajudar o artigo
147
“Realidade e Realismo (Via Marcel Proust)”, o qual exibe um notável paralelo com La
Postulación de la Realidad”. Nele, Antonio Candido discute sua hipótese de que o realismo
talvez não seja o melhor meio de veicular a realidade, isto é, para dizer algo sobre a realidade.
Ele lembra que, para muitos artistas, o realismo foi tido como o único meio para alcançar a
verdade da ficção, pensando em realismo enquanto “modalidades modernas, que se definiram
no século XIX e vieram até nós [...] que tendem a uma fidelidade documentária que privilegia
a representação objetiva do momento presente na narrativa”
338
. No artigo, o crítico se depara
com Em busca do tempo perdido, e formula essa hipótese, ao comparar o especial
transrealismo de Proust, com o naturalismo dos irmãos Goncourt.
No entendimento de Candido, os Gouncourt desejam um registro
documental da realidade. Seu alvo é apenas a representação do Salão Verdurin. Assim, eles
partem para a acumulação somatória de pormenores, tentando uma descrição do mesmo. Mas,
segundo o crítico, como estes pormenores não somente os detalhes, mas os elementos
particulares de modo geral têm um baixo nível significativo, tudo o que constroem, são
imagens do sensível. O resultado é uma visão “estática e plana” da realidade, que restrita ao
superficial, não consegue produzir plenamente a verdade convencional da ficção
339
. Já Proust,
no entender de Cândido, está mais interessado em construir uma visão sobre o mundo. Sua
própria personagem está em busca de sentido, através do tema da identidade. Por isso, o
narrador proustiano unifica os pormenores fornecendo bases para a interpretação de sua
estória. Assim, ele põe os detalhes em perspectiva, correlaciona impressões e faz analogias
que fortalecem um princípio integrador. Em lugar da descrição realista, ele preferência à
metáfora. No lugar de um olhar único, propicia uma visada de rios ângulos. Ao invés de
procurar uma realidade concreta, ele se detém no substrato - no essencial. O resultado é que
por intermédio das ligações efetuadas entre os diversos pontos no tempo, os detalhes são
agrupados, e o passado ganha sentido pela revelação de algo que é permanente
340
.
Candido salienta que “O realismo se baseia nalguns pressupostos, inclusive
o tratamento privilegiado dos pormenores, pelo seu acúmulo ou pela sua contextualização
adequada”
341
. A partir dessa observação sobre os pormenores, ele aponta dois modos
inequívocos de lidar com os mesmos: os Gouncourt somam os pormenores, enquanto Proust
seleciona os detalhes que servem para revelar um sentido. Candido não ligava o procedimento
de Proust à alusão, mas vê-se que, nos naturalistas, ele detecta a acumulação dos detalhes. Em
contrapartida, Borges descreve o romântico como escritura particularizadora, cujo método
seria a ênfase, que tenta esgotar a realidade; um modo acumulativo, portanto, ainda que ele
não mencione especificamente a acumulação de pormenores. Ao mesmo tempo, Borges
148
menciona, dentre as alusivas técnicas clássicas, a que envolveria os detalhes circunstanciais.
Contudo, diante dessas duas teorizações, é necessário um processo de desambiguação. Na
verdade, não existem somente os pormenores alusivos do modo clássico de que nos fala
Borges, mas também os pormenores acumulativos – de que nos fala Antonio Candido.
Contudo, este último procedimento, de viés romântico, obedeceria ao desejo
de uma plena representação do real, com o efeito de realidade como uma provável
conseqüência. Ao passo que o procedimento clássico, não visaria a uma representação
consistente e muito menos ao efeito de realidade. Embora Borges admita que essa técnica
poderia render uma alta verossimilhança, este o é um objetivo nesta classe de textos. Aqui
está o ponto. Em “El Milagro Secreto”, constatamos que Borges utiliza os pormenores de
modo alusivo, contudo, pela quantidade desses pormenores e pela maestria no uso do recurso,
observa-se que foram trabalhados para a obtenção de um alto grau de verossimilhança. Pode-
se dizer, que existe um recurso clássico, produzindo o efeito almejado pela escritura
romântica.
mencionamos a existência de vários textos nos quais Borges comenta o
uso dos pormenores e seu respectivo efeito, revelando que estivera atento à questão da
verossimilhança. Entretanto, como explica Jakobson, o Realismo “É uma corrente artística
que se coloca como alvo reproduzir a realidade o mais fielmente possível e que aspira ao
máximo de verossimilhança”
342
. Além disso, o próprio Borges admite que essa classe de
pormenores tenha sido inventada por um realista, Daniel Defoe. Assim sendo, por que motivo,
o Borges que dirige tantos questionamentos à reprodução mimética da realidade, terminaria
buscando um efeito, visado pelos realistas? Em “La Postulación” observa-se que as objeções a
um realismo baseado na acumulação (dos detalhes) da realidade, eram reforçadas pela idéia
de que, até na vida humana, a apreensão do real é seletiva, dependendo do foco guiado pela
atenção. Diante desta conjuntura, é possível aventar, que esse grau de verossimilhança, tenha
se mostrado eficiente em seus contos fantásticos, nos quais os fatos extraordinários têm de ser
mantidos entre a possibilidade de uma explicação racional e a desconfiança de que tenham
rompido com as leis naturais conhecidas. Contudo, por que investir justamente em uma
técnica clássica que é compartilhada pelos autores realistas? Se ele visasse à mera
verossimilhança, talvez pudesse ter se servido de outras técnicas. Mas inclusive, justamente, o
efeito de realidade é ainda maior, neste caso, porque utiliza uma técnica conhecida dos
realistas (os pormenores alusivos); e ainda mais realista, porque conta com uma técnica
“gêmea” entre os mesmos realistas (a enumeração de pormenores).
149
O caso é que ele mimetiza o procedimento, contudo uma clara ironia em
seu uso
4
. A começar pelo próprio título do livro, Ficções. Assim, ele utiliza o procedimento
realista, mas desde a portada sinaliza ao leitor, que esteja tão consciente quanto ele, da
artificialidade em sua prosa. No meio de “El Milagro Secreto”, ainda permite que o
personagem diga que ‘a irrealidade é uma condição da arte’. Ademais, ele não se rende
exatamente à realidade, pois a realidade continua sendo, para ele, uma espécie de texto entre
outros textos o dado direto, qualquer que ele seja, é elaborado no modo clássico, para ser
envolvido na engrenagem de sua idéia.
Essa verossimilhança cercada de ironia também está presente em “Pierre
Menárd, autor del Quijote”, com suas referências a catálogos sobre a obra de Menárd, suas
monografias, seus livros, sonetos e seu trabalho inconcluso. Ademais, o roteiro da nota
bibliográfica ainda aumenta a verossimilhança. Tudo isso permeado pelo tema do falso ou
verdadeiro: “catálogo falaz”, “amigos auténticos”, mi pobre autoridad”, dos altos
testimonios”. Contudo, Monegal alertava que “Pierre Menárd, autor del Quijote”, e ainda
“Ensaio analítico da obra de John Wilkins” e “Acercamiento a Almutássim” são ensaios
literários que tratam de obras inexistentes, os quais, justamente por esse motivo, revelam um
dos elementos de originalidade revolucionária na poética borgeana, pelo qual La ficción se
convertía en verdad, porque lo inventado no era el hecho de que el cuento pudo haber
ocurrido [...] sino que el cuento pudo haber preexistido a su relato”
343
. Neles, o ficcional é
verdadeiro, mas seu objeto é falso.
Na análise dos ensaios, vimos que nos anos trinta, Borges começa a
questionar o realismo. Em paralelo, por seus comentários sobre os pormenores circunstancias
nesta época, ele parece preocupado com a verossimilhança. Assim, é interessante notar como
a técnica dos pormenores alusivos atende a essas duas demandas. De um lado, o verossímil,
dentro dos esquemas clássicos, pode ter sido uma saída para a elaboração da realidade
ficcional fantástica como dito, a madura estética borgeana está baseada na alusão clássica,
segundo Olea Franco; mas ao mesmo tempo, esta não deixa de ser outra forma de crítica ao
realismo e uma nova forma ficcional.
Candido explica que “a busca da verdade na literatura (verdade
convencional da ficção) se norteia freqüentemente pelo esforço de construir uma visão
coerente e verossímil, que seja bastante geral para ir além da particularidade e bastante
concreta para não se descarnar em abstração”
344
. Portanto, coerência e verossimilhança são
4
Devemos vários desses raciocínios a uma preciosa orientação do prof. Marcos Piason Natali, concedida no
primeiro semestre de 2008.
150
dois pilares da verdade ficcional. Borges joga com isso. Ele usa o procedimento realista para
mostrar que tudo o que constrói no relato, como se fosse muito verossímil, na verdade, é
absurdo, ilógico, falso. Então, isso se converte em uma crítica final ao realismo. Pode ser tudo
muito verossímil, mas vai gerar uma verdade ficcional e não uma verdade factual. Isto
significa que um fato cercado de garantias pode ser essencialmente falso. Contudo, isto não é
novidade nem para a teoria, nem para a crítica borgeana. Segundo Arrigucci Jr, uma parte da
narrativa do século XX vai denunciar a mentira do verossímil
345
. Assim, o que desejamos
ressaltar neste trabalho é apenas o funcionamento borgeano desta engrenagem.
Ele coloca nos textos ‘a roupagem da realidade’, para mostrar, que mesmo
travestido, o texto continua a ser um texto, não corresponde ao real. Por isso, supõe-se, que
para ele, sejam importantes as formas que denunciam essa condição, tais como a ironia, o
paradoxo, a caricatura, o pastiche, a paródia. Tudo o que expõe a natureza convencional e
artificial dos textos seria útil nesta proposta. Contudo, o jogo funciona se houver
verossimilhança. O mecanismo que a proporciona, é um ponto de contato com o realismo;
mas é, ainda, uma cartada final contra o mesmo.
A partir de Yurkievich e Lagos, mostramos que os críticos detectam uma
transformação entre a primeira e a segunda poesia borgeana, localizando essa ruptura
especificamente na década de trinta. Lembrando que a polêmica entre Boedo-Florida ocorre
entre a segunda metade da década de vinte e o começo dos anos trinta, e uma vez que o ensaio
“Nota sobre Walt Whitman”, de 1932, possui uma correspondência opositiva com os
postulados dos boedistas, concluímos que esta transformação está ligada à polêmica. Depois
de ter tido um pendor para a representação realista (entre 1925 e 1928), Borges parece ter sido
levado a uma intensa reflexão sobre os valores literários durante a polêmica Boedo-Florida,
em decorrência da qual, ele deve ter reencontrado seus primeiros planos de uma literatura de
ativa elaboração da realidade. A nosso ver, esta reflexão lhe permite desviar-se das estéticas
realistas tão influentes no período. Contudo, no Prólogo “Domingos F. Sarmiento: Facundo”,
escrito quase cinqüenta anos depois, ainda encontramos críticas ligadas à representação
realista, especialmente no tocante ao engajamento. Desse modo, as críticas que parecem ter
surgido na década de trinta se estendem até a década de setenta. Por isso, entendemos que,
aquilo que foram, inicialmente, questionamentos à estética dominante no meio cultural
argentino, por sua larga duração (parcialmente atribuível ao contexto político e cultural latino-
151
americano, pensando-se especialmente nas cadas de quarenta e sessenta) termina
transformando-se em um diálogo permanente com o realismo.
À luz dos ensaios anteriores, observa-se que, na década de trinta, Borges
efetua uma divisão entre dois grandes modos de lidar com a literatura: o romântico, que
primaria pela expressão da realidade; e o clássico, que preconizaria a produção de sentido. O
primeiro possui um método acumulativo, enquanto o segundo detém um método alusivo para
a construção da realidade literária. Além da maneira como Borges efetua uma defesa do modo
clássico neste ensaio, tanto Balderston, quanto Olea Franco constatam um caráter alusivo na
madura obra borgeana, revelando o predomínio dos processos clássicos nesta estética. Por
este motivo, ela parece oposta ao realismo que tenta ser expressão da realidade e está
baseado na acumulação de detalhes circunstanciais, e ao modo romântico, no qual este tipo de
realismo estaria inserido. Contudo, a partir de Olea Franco, percebe-se, que sua poética
juvenil revela uma tendência ao expressivo. Neste caso, não apenas os realistas argentinos dos
anos vinte, mas também o jovem Borges estariam ligados ao modo romântico de escritura, do
qual o escritor parece ter se afastado, depois de Discusión.
Finalmente, no estudo de “25 de Agosto, 1983” e “El Milagro Secreto”,
percebemos que existe, no centro desta obra, um ponto de contato com o realismo. Em “La
Postulación”, Borges apresentava, dentre as técnicas clássicas, o mecanismo de utilizar
pormenores circunstanciais alusivos. Davi Arrigucci afirma que a obra borgeana utiliza esta
técnica, a qual encontramos nos mencionados contos. No entanto, o estudo dessas narrativas
mostrava que, embora estes pormenores borgeanos fossem alusivos, eram recorrentes, e além
disso estavam apoiados em circunstâncias temporais e espaciais que geravam uma alta
verossimilhança. Na primeira narrativa, em alguns pontos determinados. Na segunda, em toda
a parte que antecede a introdução do insólito. Ou seja, trata-se de um efeito desejado pelos
escritores do modo romântico, mas dispensável no modo clássico.
Contudo, percebemos que existem dois tipos de mecanismos baseados nos
pormenores: os acumulativos e os alusivos. O primeiro em especial, mas também o segundo
tipo, são ambos utilizados pelas poéticas realistas. Assim, Borges está utilizando uma técnica
realista, a qual conta com uma técnica similar no mesmo âmbito. Além disso, ele busca
conseguir um alto grau de verossimilhança, quando este é um efeito que caracteriza o
Realismo escola. Contudo, este é um aproveitamento irônico, uma vez que a obra borgeana é
conhecida pela consciência de artificialidade, que transparece de suas narrativas e títulos.
Monegal assinala três narrativas nas quais Borges discorre sobre objetos inexistentes. Assim,
essa verossimilhança alta ligada a objetos falsos, conduz ao entendimento de que estes textos
152
entram para um conjunto da ficção do culo XX, o qual, segundo Arrigucci Jr, está disposto
a denunciar a mentira do verossímil. Eles mostram que um texto coerente e plausível pode,
contudo, ser portador de uma mentira sobre a realidade factual, mesmo que seja o portador de
uma idéia verdadeira dentro de sua construção ficcional. O resultado é que esta
verossimilhança alta, por vezes encontrada na obra borgeana (sem que ela predomine), e os
detalhes alusivos que auxiliam em sua obtenção, constituem um território comum entre sua
estética e o realismo. Ao mesmo tempo, funcionam como uma espécie de front, desde o qual
ele lança um combate arrojado a essa outra estética
346
.
153
CONCLUSÕES
A leitura de “El Otro”, gera o sentido de que a literatura borgeana foi
construída dentro de uma tensão com o realismo, sendo este realismo uma parcela integrante,
embora menor desta obra. Em paralelo, ela suscita uma série de questionamentos à capacidade
de representação fiel da realidade, na literatura. Em especial, os personagens mostram atitudes
opostas face ao realismo, ao engajamento e ao biografismo. Eles simulam um diálogo entre a
obra borgeana e a geração argentina de escritores, da década de vinte. A construção remete
especialmente ao realismo do grupo boedista, embora o jovem fique incluso nesta
representação. Com isso, em um plano genérico, o texto produz o encontro de duas essências
literárias fundamentais.
O trabalho dos críticos e o exame dos três primeiros livros de ensaios de
Borges, ajudam no entendimento do conto, na medida em que afastam o autor do personagem
de si mesmo e permitem entender que a construção do personagem mais novo faz alusões, não
ao jovem que fora, mas também à geração literária argentina de vinte. Essas alusões são
um dos elementos que entram na composição das idéias que a narrativa propõe, fortalecendo a
oposição ao realismo na configuração dos sentidos.
A leitura dos três ensaios propicia uma melhor compreensão do antagonismo
entre os personagens, porque eles “dão a ver” várias idéias que sustentam estas oposições, nos
três temas escolhidos para esta averiguação, estejam elas presentes no conto ou não. Pensar o
conto à luz dos ensaios, é deparar-se com a visão de que, o realismo é uma estética ou atitude,
que deseja burlar o inerente ao exercício literário - a mediação, o artificial, as construções
simbólicas presente em suas estruturas. Seria uma espécie de exagero improdutivo, porque
persegue o simultâneo, o múltiplo e o sucessivo da complexa e inabarcável realidade. Ao
mesmo tempo, os ensaios reforçam o sentido de que a ficção borgeana estaria baseada nos
artifícios e na retomada da tradição.
Em paralelo à interpretação do conto, as relações entre esta obra e o
realismo, tornam-se uma chave de leitura, com a qual pudemos fazer um pequeno recorte, de
um dos aspectos desta produção. Observamos que Borges trazia da Europa a proposta de
conseguir uma obra assentada na técnica e de ativa elaboração da realidade. Contudo, os
ensaios da segunda fase juvenil, mostram um leve pendor para a assimilação de alguns
elementos realistas. Acreditamos que esta tendência está relacionada ao criollismo da década
de vinte. Os problemas para obter representações de seu país podem ter gerado uma
momentânea atração pelos mecanismos expressivos.
154
A crítica detecta uma transformação ocorrida na poesia borgeana entre a
década de vinte e trinta. Para nós, essa mudança está relacionada com a polêmica entre os
grupos de Boedo e Florida. Essa constatação surge, uma vez que a “Nota sobre Walt
Whitman” combate o biografismo, quando sabemos que os boedistas levavam em
consideração a contigüidade entre a vivência e a obra literária dos escritores. Ademais, em
“La Postulación” aparece uma divisão entre os escritores que primariam pela plena
representação da realidade e os escritores, que preconizando a produção de idéias,
formulariam realidades literárias mais vagas. Esse texto ainda ressalta obstáculos para a
apreensão fiel da realidade. Com o auxílio da crítica, percebe-se que a madura obra borgeana
se posiciona ao lado do método clássico de escritura, ao optar por mecanismos alusivos. Ao
mesmo tempo, os críticos e os ensaios borgeanos dos anos vinte tornam visível que o
‘segundo’ jovem chega a mostrar preferência pelo modo romântico de escritura, assumindo a
expressividade como um valor, em seus julgamentos.
Assim, os dois ensaios de Discusión, analisados, revelam posições contrárias
às estéticas realistas (no modo romântico). No entanto, fazem entender que o mesmo Borges
possuiu tendências a esse modo em sua juventude. Portanto, a polêmica com os boedistas,
pode ter sido um dos fatores que fizeram com que o autor se desvencilhasse destas
inclinações, assumindo a alusão que caracterizaria a obra madura.
O prólogo ao Facundo, da década de setenta, explora as dificuldades para
captar a realidade em um texto e para a consecução das intenções de um autor, o que
constituem barreiras para a efetividade do engajamento. Desde a década de trinta até a década
de setenta, Borges recebe questionamentos sobre sua recusa a fazer uma arte engajada. Em
paralelo, encontramos um texto da década de trinta e outro dos anos cinqüenta, com objeções
ao realismo. Na década de setenta prólogos e textos críticos, que continuam levantando
argumentos contra o realismo e o compromisso. Assim, a polêmica com os boedistas pode ter
sido uma primeira oportunidade para consolidar uma postura em relação ao assunto, de modo
que o autor resiste a várias décadas de pressões. Contudo, se desde os anos trinta até a década
de setenta, Borges continua combatendo realismo e compromisso, isto significa que sua obra,
através de seus textos de crítica e ensaio, vive em constante tensão com esta classe de idéias.
Por último, o conto “25 de Agosto, 1983” deixa a sugestão de que a obra
borgeana também é capaz de obter efeitos realistas em suas narrativas. O exame de “El
Milagro Secreto” confirma esta idéia, com a presença da técnica de pormenores
circunstanciais; uma técnica clássica, manejada para um efeito de alta verossimilhança. O
investimento em detalhes circunstanciais e a verossimilhança acentuada revelam um ponto de
155
contato, nos textos onde isto ocorre, entre a obra borgeana e o realismo, que ela critica.
Contudo, esta técnica é aplicada a textos que refletem sobre a própria condição do ficcional,
como El Milagro Secreto”, ou que estão permeados pelo falso, como “Pierre Ménard, autor
del Quijote”. Dessa forma, o pequeno vínculo com o realismo, converte-se uma crítica final a
esta estética; e especialmente, ao realismo posto a serviço do engajamento, ao assinalar que a
ficção pode ser plenamente coerente e verossímil, sem que, por isso, sua verdade tenha
correspondência com a realidade.
1
BORGES, Jorge Luis. Textos recobrados (1931-1955). Barcelona: Emecé, 2001, p.29.
2
leituras anteriores, como a da psicóloga Giovanna Bartucci e a do professor de filosofia, Juan Nuño. No
Congresso, 3
o
Celli, apresentamos um exame das mesmas. Para não alongar a dissertação, tivemos de cortá-las.
3
CANDIDO, Antonio. “Realidade e Realismo (Via Marcel Proust)”. In: ___. Recortes. São Paulo: Cia das
Letras, 1996, p.123.
4
Vamos chamar “biografismo” a atitude de entender a poesia enquanto expressão dos sentimentos do poeta; mas
também seus excessos: todo tipo valorização de uma obra em virtude das ligações que ela mantenha com seu
criador; a identificação mecânica (sem a intermediação literária) de experiências ou sentimentos do autor em
seus personagens; a atribuição excessiva de dados pessoais do autor à composição; a confusão ou a identificação
entre experiências, falas e episódios das personagens ou do eu-lírico com vivências do escritor (por ele mesmo
ou por outros). Adiante vamos notar biografismo nos boedistas que entendiam, que somente os escritores que
tivessem passado por determinadas experiências poderiam comentá-las, de um modo “veraz”, em sua literatura.
5
GRAMUGLIO, Maria Teresa.(a) El Imperio Realista. In: JITRIK, Noé. Historia critica de la literatura
argentina. Vol 6. Buenos Aires: Emecé, 2004, p.7; e ainda
GRAMUGLIO, Maria Teresa. (b) El Realismo y sus destiempos en la literatura argentina. In: JITRIK, Noé.
Historia critica de la literatura argentina. Vol 6. Buenos Aires: Emecé, 2004, p. 34.
6
GRAMUGLIO (a), op.cit., p.8.
7
GRAMUGLIO (b), op.cit., p.22.
8
GRAMUGLIO (a), op.cit., p.7.
9
GRAMUGLIO (b), op.cit., p.22.
10
Ibidem, loc. cit.
11
Ibidem, p.23.
12
Não efetuaremos relações muito pontuais entre o corpus e a crítica nesta fundamentação, guardando estas
comparações para as análises, uma vez que se o fizéssemos aqui, os textos analisados correriam o risco de
parecer uma mera ilustração do período – o que não seria exato.
13
GRAMUGLIO (b), op.cit., p. 31-32.
14
Ibidem, p.31.
15
Ibidem, p.32.
16
OLEA FRANCO, Rafael. El otro Borges, el primer Borges. México DF: FCE, 1993, p.147.
17
Ibidem, p.150, ver também a opinião dos boedistas na pag. 153.
18
Ibidem, p.152.
19
Ibidem, p.158.
20
Ibidem, pp. 148-149; e 153-154.
21
Ibidem, p. 158.
22
GIORDANO, A.; EUJANIÁN, A. Las revistas de izquierda y la función de la literatura: enseñanza y
propaganda. In: JITRIK, Noé. Historia de la literatura argentina. Buenos Aires: Emecé, 2004, p. 399.
23
Ibidem, p. 402.
24
Dizemos “função social” utilizando as palavras dos críticos, que em geral se referem à veiculação de crítica da
sociedade ou o desejo de transformação da mesma a partir da literatura. No entanto, do texto de Giordano &
Eujanián, fica sugerido que o grupo de Florida também acreditava na função social de seu trabalho. Embora
saibamos que também a literatura como um prazer também produz conhecimento, para não gerar problemas de
entendimento durante a dissertação, vamos utilizar a expressão assinalada, apenas no primeiro sentido.
156
25
GIORDANO, A.; EUJANIÁN, A. Las revistas de izquierda y la función de la literatura: enseñanza y
propaganda. In: JITRIK, Noé. Historia de la literatura argentina. BsAs: Emecé, 2004, (grifo do autor), p.407.
26
Ibidem, p.411 ambas as citações.
27
Ibidem, pp.410-411.
28
O exemplo é o de um escritor que descreve a situação de uma classe, pertencendo à mesma. Ibidem, p. 406.
29
Ibidem, p.406. Citamos o artigo, mas também conhecemos este texto por: SCHWARTZ, J. & LORENZO
ALCALÁ, M. (Org). Vanguardas Argentinas Anos Vinte. São Paulo: Iluminuras, 1992, pp.78-101.
30
GIORDANO, A.; EUJANIÁN, op.cit., p.405.
31
Ibidem, p. 402.
32
SARLO, Beatriz (a). A writer on the edge. London: Verso, 1993, p.103.
33
Atribuímos o fato à dificuldade que existia em reunir estes textos. Ao que sabemos, a primeira edição destes
textos recuperados só aconteceu em 1997.
34
Escreve quatro textos a respeito de autores expressionistas.
35
BORGES, J. L. Textos recobrados (1919-1929). Buenos Aires: Emecé, 1997, p.70.
36
Ibidem, p.80. (texto de 1921).
37
Ibidem, p.86.
38
Ibidem, p.100. (1921).
39
Ibidem, loc. cit.
40
SARLO, Beatriz, op.cit, p.50.
41
BORGES, J. L. Textos recobrados (1919-1929). Buenos Aires: Emecé, 1997, p. 52.
42
Ibidem, p.105.
43
Ibidem, p.105.
44
Ibidem, p.71.
45
Ibidem, p.95.
46
Ibidem, loc. cit.
47
BORGES, J. L. Textos recobrados (1919-1929). Buenos Aires: Emecé, 1997, p.136.
48
BAKHTIN, Michail. Problemas da poética de Dostoievski. Rio de Janeiro: Forense, 2002.
49
Lembramos que nesta época ele lê, faz traduções, escreve manifestos, e reúne textos de poesia para comentar;
em paralelo produz sobretudo poemas. Ademais, as vanguardas com as quais ele está em contato no período
produzem poesia: ultraísmo e o expressionismo (em geral Borges se debruça sobre os poemas destes escritores).
50
BORGES, J. L. Antologia expresionista (1920) Textos recobrados (1919-1929). Buenos Aires: Emecé, 1997,
p.68.
51
MENESES, Carlos. Poesía Juvenil de Jorge Luis Borges. Barcelona: Olañeta, 1978, p.39.
52
RODRÍGUEZ MONEGAL, Emir. Borges: uma poética da leitura. São Paulo: Perspectiva, 1980, p.135.
53
BORGES, J. L. Horizontes (1920) Textos recobrados (1919-1929). Buenos Aires: Emecé, 1997, p.81.
54
Ibidem, p.70 (1920), p.83 (1921), p.86 (1921), p.95 (1921), p.108 (1921), p.126 (1921).
55
O espanhol apresenta o estudo de Gloria Videla sobre a enorme operação que Borges efetua para suprimir e
aliviar as marcas ultraístas e criollistas de seus três primeiros livros de poemas. OLEA FRANCO, op.cit.,
pp.206-210.
56
Ibidem, p. 97.
57
Passamos a fazer citações em que as siglas dos volumes correspondem às seguintes edições:
I – Inquisiciones (Originalmente publicado em 1925).
Edição consultada: BORGES, J. L. Inquisiciones. Barcelona: Seix Barral, 1994.
ETMEEl Tamaño de mi Esperanza. (Originalmente publicado em 1926).
Edição consultada: BORGES, J. L. El tamaño de mi esperanza. Barcelona: Seix Barral, 1994.
EILA – El Idioma de los Argentinos. (Originalmente publicado em 1928).
Edição consultada: BORGES, J. L. El idioma de los argentinos. Barcelona: Seix Barral, 1994.
58
La conducta novelística de Cervantes, EILA, p.123.
59
Eduardo Wilde, EILA, 140.
60
Eduardo Wilde, EILA, 139.
61
Exemplo do primeiro são os momentos em que vindica a cor local, quando sabemos que com o tempo Borges
encontra uma solução para conciliar o local e o universal, sem cair no regionalismo evidente. Exemplo do
segundo são os momentos em que valoriza o procedimento clássico de retomada da tradição, e momentos em
que valida tanto o anterior, quanto a originalidade. Ver ETME, El aventura y el ordem, p.75.
62
OLEA FRANCO, op.cit., p.109.
63
Sir Thomas Browne, I, p.40.
64
BORGES, J. L. Prólogo. Luna de Enfrente. Obras Completas. Buenos Aires: Emecé, 1974, p.55.
65
Queja de todo criollo, I, p.149.
66
OLEA FRANCO, op.cit, pp. 95-96.
157
67
Segundo Borges, Hernández faz o personagem dizer: “‘Debe el gaucho tener casa/ Escuela, Iglesia,
derechos’”. La Tierra Cárdena, ETME, p.41.
68
Ibidem, p.41.
69
Después de las imágenes, I, p.32.
70
Otra vez la metáfora, EILA, p.53.
71
Borges não diz quem são os críticos: “se me abalanzaron dos o tres críticos y me asestaron sofisterías y
malquerencias de las que asombran por lo torpe”. Profesión de Fe Literaria, ETME, p.142.
72
Profesión de Fe Literaria, ETME, p.147.
73
Profesión de Fe Literaria, ETME, p.148.
74
Ibidem, p.149.
75
OLEA FRANCO, op.cit., p.109.
76
Ver nota texto no item 1.3 sobre Lugones. Ou conferir o livro Leopoldo Lugones, p.52.
77
Profesión de Fe Literaria, ETME, p.147.
78
Un soneto de Don Francisco de Quevedo, EILA, p.69.
79
Eduardo Wilde, EILA, p.138.
80
La traducción de un incidente, I, p.17.
81
Na Autobiografia ele mostra grande afeição a Cansinos e faz um comentário despectivo sobre o outro
grupo. Contudo, em Inquisiciones mostra muita simpatia por De la Serna. BORGES, J.L. Elogio da sombra
poemas/ Perfis: um ensaio autobiográfico. RJ: Globo, 1985, p.83.
82
Prólogo, ETME, p.16.
83
La pampa y el suburbio son dioses, ETME, p.30.
84
BORGES, J. L. Discusión. Obras Completas. Buenos Aires: Emecé, 1974, p.217.
85
La pampa y el suburbio son dioses, ETME, 28.
86
BORGES, J.L. Elogio da sombra poemas/ Perfis: um ensaio autobiográfico. RJ: Globo, 1985, p.87.
87
OLEA FRANCO, op.cit., p.285.
88
La simulación de la imagen. EILA, p.75.
89
Grafamos clássico e romântico, porque o autor nos previne de que, com estes conceitos, não se refere às
escolas literárias históricas. BORGES, J. L. Discusión. Obras Completas. Buenos Aires: Emecé, 1974, p. 217.
90
La simulación de la imagen. EILA, p. 79.
91
Dizemos “maduro Borges”, para o ensaio de 1932, porque ele reflete as posturas que se cristalizaram e ficaram
conhecidas em sua obra madura. Não é exatamente por questão de idade, neste caso, já que outro ensaio
publicado na mesma edição de Discusión, apresenta postura oposta – que predominava na segunda fase juvenil.
92
Fica claro, que neste ponto, está tratando de problemas aprofundados em “La Postulación de la Realidad”:
“Escribir del heroe de una novela Salió de un punto de partida y caminó cuatro mil doscientos veinticuatro
metros hacia el noroeste, es guardar una reserva casi absoluta. Escribir Salió de General Urquiza y Barcala y
caminó hasta Camargo y Humboldt es dejar en blanco esa línea para muchos lectores. Escribir Caminó sin
parar hasta que ralearon las casas, o Caminó hasta que no hubo más cielo, promete más posibilidad de
expresión” (Grifos do autor). La simulación de la imagen. EILA, pp.79-80
93
Ibidem, p.283-284.
94
BORGES, J. L. La poesía gauchesca. Discusión. Obras Completas. Buenos Aires: Emecé, 1974, p.182.
95
Ascasubi, I, p.57-59.
96
BONET, Carmelo. El Realismo Literário. Buenos Aires: Ed. Nova, 1958, p.126.
97
Queja de todo criollo, I, p.148.
98
La criolledad en Ipuche, I, p.65.
99
Sarlo comenta esta decisão. Embora o subúrbio constasse da tradição (aparece em Evaristo Carriego), esta era
uma representação lateral em relação à pampa; como o compadrito era uma alternativa à figura do gaucho.
100
BORGES, J.L. Elogio da sombra poemas/ Perfis: um ensaio autobiográfico. RJ: Globo, 1985, p.99.
101
OLEA FRANCO, op.cit., p.149.
102
SARLO(a), op.cit., p.103.
103
BORGES, J. L. Textos recobrados (1919-1929). Buenos Aires: Emecé, 1997, p.367.
104
BORGES, J.L. Elogio da sombra poemas/ Perfis: um ensaio autobiográfico. RJ: Globo, 1985, p.99.
105
BORGES, J. L. Textos recobrados (1919-1929). Buenos Aires: Emecé, 1997, p.367.
106
Ibidem, p.368.
107
Aparecem: “orillas”, “calles”, “veredas”, “cuadras”, “esquinas”, “ladrillo y barro”, “muros”, “almacén”,
“sauce”, “boliche”; ainda ano, e distância. O elemento cênico, “viento”. Hombres Pelearon, EILA, pp.133-135.
108
BORGES, J.L. Fiodor Dostoievski Los Demônios. Biblioteca Personal. Obras Completas. Barcelona:
Emecé, 1996, p.466.
109
BORGES, J.L. Elogio da sombra poemas/ Perfis: um ensaio autobiográfico. RJ: Globo, 1985, p.80.
158
110
“O livro era essencialmente romântico [...] celebrava crepúsculos, lugares solitários e esquinas
desconhecidas”. BORGES, J.L. Elogio da sombra poemas/ Perfis: um ensaio autobiográfico. Rio de Janeiro:
Globo, 1985, p. 87.
111
Ibidem, p. 80.
112
BORGES, J.L.; EDELBERG, Betina. Leopoldo Lugones. Obras Completas em Colaboración. Madrid:
Alianza Editorial, 1983, p.18.
113
Ibidem, p.22.
114
Ibidem, p.23.
115
Ibidem, pp.50-53.
116
Pensamos na data da publicação do último livro de ensaios do período, 1928.
117
Os exemplos que ela fornece: M. Gálvez; E. Castelnuevo; boedistas como Á. Yunque e L. Barletta; E.
González Tuñón; Arlt. Incluímos este último, uma vez que Sarlo está apontando os autores dos quais Borges se
diferencia e menciona Arlt, com a ressalva de que Borges provalmente não conhecia o trabalho do outro.
SARLO, Beatriz (b). Una poética de la ficción. In: JITRIK, N. Historia de la literatura argentina. Vol. 9.
BsAs: Emecé, 2004, p.21-22. Na verdade, Borges havia lido Arlt, porque o cita em La pampa y el suburbio son
dioses.
118
GRAMUGLIO (b), op.cit., p.29.
119
Por exemplo, no Fervor de Buenos Aires, dos 46 poemas originais, a partir da edição de 1943, apenas 8
poemas estão intactos. OLEA FRANCO, op.cit., pp.206-210.
120
Borges Apud FONSECA, C. O pensamento vivo de Jorge Luis Borges. SP: Martin Claret Editores, 2001,
pp.24 e 23. Ela teve acesso à Autobiografia em inglês, mais completa que a edição brasileira.
121
Não faremos a citação pontual das frases extraídas do conto. Considere-se todo elemento destacado entre
aspas e posto em itálico, como citação de “El Otro”. BORGES, J. L. El libro de Arena. Barcelona: Alianza
Editorial, 1998.
122
Conta o biógrafo, que quando o autor era jovem, seu pai o enviou a um bordel na mencionada praça.
WOODAL, James. Jorge Luis Borges: o homem no espelho do livro. RJ: Bertrand Russel, 1999, p.77.
123
ADORNO, Theodor W. El ensayo como forma. In: __. Notas de literatura. Barcelona, Ariel, 1962, p. 39.
124
Certamente que não a intercalação de trechos ensaísticos ou de comentários explícitos. Borges é um autor
conhecido por seu hermetismo. Tudo é muito alusivo e perfeitamente organizado dentro das formas. Ao mesmo
tempo, o próprio ensaio é um gênero artístico e que também comunica através do arranjo formal. Então, essa
aproximação não é óbvia. No entanto, é reconhecível quando em paralelo à trama, que poderia ser lida somente
do ponto de vista da questão da identidade, existe, do começo ao final da narrativa, uma discussão sobre a
literatura.
125
Em geral esse comentário é feito em relação aos ensaios borgeanos. Quem atentou para o hibridismo na ficção
foi: RODRÍGUEZ MONEGAL, Emir (b). Borges: una biografía literaria. México: Fondo de Cultura, 1993,
p.325.
126
SARLO, Beatriz(a). A writer on the edge. London: Verso, 1993. Sarlo apresenta essa idéia, contudo, ela
estava contida em uma palestra de Borges, na qual ele diz que o conto policial é um nero que “salva a ordem
em uma época de desordem”. BORGES, J. L. “O conto policial” Cinco visões pessoais. Brasília: UNB, 1985,
p.40.
127
LAGOS, Ramona. Jorge Luis Borges (1923-1980). Barcelona: Ed. De Mall, 1986, p.140.
128
BORGES, Jorge Luis. El Aleph. Obras Completas. Buenos Aires: Emecé, 1974, p.533.
129
BORGES, J.L. Prólogo (1940) In: CASARES, B. La invención de Morel. Buenos Aires: Booket, 2003, p.12.
130
BORGES, J. L. Ficciones. Buenos Aires: Alianza Editorial, 1998, p.216.
131
BORGES, J. L. Obras Completas. Buenos Aires: Emecé, 1974, p.608-611.
132
O clássico e romântico são dois conceitos resultantes do ensaio “La Postulación”, por isso vamos grafá-los
em itálico. Em capítulo posterior faremos uma análise detida, mas aqui, durante a análise do conto, nos
valemos de alguns dados. BORGES, J. L. Discusión (1932). Obras Completas. Buenos Aires: Emecé, 1974, pp.
217-221.
133
Em outra seção, pretendemos demonstrar a peculiar utilização do recurso em “El Milagro Secreto” (em
Ficciones) e acrescentamos alguns exemplos de outras narrativas. Ademais, tentamos apresentar algumas das
diferentes feições que, podem assumir os detalhes, não restritos a circunstâncias de tempo e espaço, como é
perceptível nesta narrativa.
134
O conto vai mostrando uma divisão entre dois tipos de tratamento da obra literária, ao quais vamos chamar:
realista, uma vez que, como ocorre neste trecho, ele pende mais para a reprodução da realidade; e clássico, ao
159
procedimento ou estrutura mais imaginativa, voltada para uma literatura mais artificial e vaga. Não pensamos
nas escolas literárias. Esses nomes servem apenas para auxiliar na identificação dos dois modos.
135
SARLO, Beatriz (b). Una poética de la ficción. In: JITRIK, Noé. Historia critica de la literatura argentina.
Vol.9 Buenos Aires: Emecé, 2004. p.24.
136
BARCA, Pedro Calderón de la. La vida es sueño. Madrid: Taurus Ediciones, 1971, p.242
137
BEZERRA, Paulo. A perenidade de Dostoievski. Cult, São Paulo, Vol 4 , p. 6-13, 2006.
138
BORGES, Jorge Luis. O conto policial. Cinco visões pessoais. Brasília: UNB, 1985, p.35.
139
A “tapera” era um ícone do criollismo para Borges, presente em Ascasubi, Estanislao del Campo, José
Hernández e Elías Regules. BORGES, J. L. Interpretación de Silva Valdés. Inquisiciones. Barcelona: Seix
Barral, 1994, p.69.
140
Segundo Franco, o jovem Borges teve no nativismo uruguaio um modelo para sua própria literatura, porque
conciliava a gauchesca tradicional e as inovações estéticas da vanguarda. OLEA FRANCO, Rafael. El otro
Borges, el primer Borges. México DF: FCE, 1993, p.99-100.
141
Ele fazia uma literatura gauchesca idealizadora do campo e dos costumes. PEDEMONTE, Hugo Emílio.
Nueva poesía uruguaya. Madrid: Ed. Cultura Hispánica, 1958, p. 60-63.
142
Borges considerava que as casas eram o mais típico em Buenos Aires, casas nas quais “Siempre campea un
patio en el costado”. BORGES, J. L. Inquisiciones. Barcelona: Seix Barral, 1994, p.89.
143
OLEA FRANCO, op.cit., p.217.
144
A Biblioteca de Borges:
Indarte: O que Borges cita é um apêndice de um livro de Indarte, o qual conteria uma lista dos mortos pelo
regime de Rosas. Contudo, pelo que diz Velloso, é possível pensar que o jornalista acrescentasse nomes que
talvez não devessem constar dessa denúncia. Segundo o crítico, este jornalista "resbalaba constantemente por
entre el barro del pasquinismo: las mentiras y tergiversaciones formaban parte habitual de sus escritos".
GARCIA VELLOSO, Enrique. La historia de la literatura argentina. Buenos Aires: Centro Editor de América
Latina, 1967, p.183.
Tácito: Em seu livro de história, Tácito narra muitas coisas de ouvir dizer, chegando no capítulo final a supor a
existência de homens monstruosos, dos quais ele próprio duvida. “O mais é fabuloso: como que os Helúsios e os
Oxiones têm o aspecto (cabeça e rosto) de homens, e os corpos e membros de feras (animais): assim deixarei de
cuidar disto, como de coisa ainda não averiguada”. TÁCITO, Cornélio. Germânia. São Paulo: Edições e
Publicações Brasil Editora, 1952, p.110 passim.
Quicherat: Neste dicionário entradas de seres mitológicos, personagens e lugares bíblicos (até Adão), de
personagens e localidades literárias. QUICHERAT, L Thesaurus poeticus linguae latinae. Paris: Hachette, 19--
.
145
ARRIGUCCI JR., Davi (a). Da fama e da infâmia: Borges no contexto literário latino-americano. In:__.
Enigma e comentário: Ensaios sobre literatura e experiência. São Paulo: Cia das Letras, 1987, p. 202.
146
PIGLIA, R. Ideología y Ficción en Borges. Punto de Vista, Bs. As, n.05, pp. 4-5, ____, 1979.
147
SARLO(a), op.cit., p.22.
148
Uma observação: o ensaio é de 1956, mas Borges pediu que fosse inserido no livro Discusión de 1932.
BORGES, J.L. Obras Completas. Buenos Aires: Emecé, 1974, pp.270-271.
149
SARLO(a), op.cit., p.22 e p.23.
150
O emprego do pronome “vos”, em lugar do “tú” hispanomericano, é característico da Argentina.
151
OLEA FRANCO, op.cit., pp.240 e 254.
152
WOODAL,
op.cit, p. 43.
153
BORGES, J.L. Discusión. Obras Completas. Buenos Aires: Emecé, 1974, pp.270-271.
154
Conhecemos leituras deste texto por vários críticos. Assim, teríamos de entrar em discussão com os mesmos
procurando comparações. Para os propósitos deste capítulo, nossa leitura deste ensaio parece suficiente, uma vez
que a exposição dessas muitas interpretações nos desviaria do foco no mesmo, que é analisar o conto “El Otro”.
155
ASSIS, Machado de. “Instinto de Nacionalidade”. Obra Completa. RJ: Nova Aguilar, 1997, p.804.
156
Na teoria de Rosset, o termo “eu desdobradoé utilizado para o “fantasma”, isto é para aquele que surge na
narrativa (a aparição), e que porém é o detentor da realidade sobre o eu; enquanto o termo duplo” é atribuído
àquele que seria o “eu” conhecido, o narrador ou o protagonista que posteriormente irá encontrar o seu outro.
ROSSET, Clément. O real e seu duplo. Trad. José Thomaz Brum. Porto Alegre: L&PM, 1998, p.78.
157
Essa teoria funciona para o conto apenas em uma das chaves em que é possível entendê-lo. Se um lugar
fantástico que reúne os protagonistas em dois tempos e lugares - como o velho pensa; não se trata de um “eu”
fendido. Jovem e velho são duas personalidades integrais. Mas se é sonho, como sugere a sensação de cansaço
anterior ao encontro, há um desdobramento de personalidade como Rosset o explica. Ibidem, pp.81 e 84.
158
MEYERHOFF, Hans. O tempo na literatura. São Paulo: McGraw do Brasil, 1976, p. 14.
160
159
“Na medida em que a literatura moderna, como a cultura moderna em geral, se tornou especialmente
consciente do tempo, escolheu com freqüência tais estados do eu [sonho, fantasia] como chave para tornar esses
aspectos do tempo [fluxo contínuo, duração e associação dinâmica] explícitos e articulados”. Ibidem, p.23.
160
O próprio Borges tem textos bastante elucidativos sobre a doutrina. Ver: BORGES, J.L. La doctrina de los
ciclos Historia de la eternidad. Obras Completas. Buenos Aires: Emecé, 1974, p. 386.
161
Identificamos neste trecho uma aproximação às idéias do filósofo Platão, quando o protagonista formula seu
relato da história através, do que parece ser, um eterno retorno. Na verdade, essa idéia do retorno já constava da
filosofia de Heráclito, mas como a narrativa também joga com a presença de “outra realidade” paralela à do
encontro, e aparecem, como se verá em seguida, concepções literárias ligadas aos arquétipos, entendemos que o
conto também evoca as idéias platônicas.
162
BORGES, J.L. El tiempo circular. Historia de la Eternidad. Obras Completas. Buenos Aires: Emecé, 1975,
p.395. A mesma idéia aparece em La doctrina de los ciclos, no mesmo livro.
163
BORGES, J.L. Dialogos del Asceta y del Rey. Textos recobrados (1931-1955). Barcelona: Emecé, 2001,
p.306. Texto de 1953 publicado originalmente no Diario La Nación.
164
BORGES, J.L. O Fazedor. São Paulo: Difel, 1984, p.12.
165
Na verdade, na tradição clássica era esta a forma de destaque no trabalho dos autores - conseguir superar
um modelo pré-existente. Contudo, ela levaria a certa repetição, porque estava baseada em um determinado
número de formas e temas, cuja fonte eram autores antigos. No entanto, Borges amplia esse processo,
considerando, como se no conto, a introdução constante das conquistas de autores mais atuais (seus
“modelos” são Coleridge e Dostoievski).
166
La Eternidad y T. S. Eliot. Textos recobrados (1931-1955). Emecé: Barcelona, 2001, p.50
167
Embora as personagens sejam o mesmo homem, para fins de análise, primeiro vamos tentar observar quais
são as diferenças entre eles, para no próximo subtítulo observar os pontos em comum e o efeito de unidade.
168
Sombras Errantes. Produced by GARCIA, Benjamín. Disponível em:
http://www.geocities.com/benjamingarcia_cl/fiodor/fiodor.html Acesso em: 25.out.2007.
169
ARRIGUCCI JR, Davi (c). Aula sobre dois Ensaios Borgeanos. São Paulo: s/ gravadora, 2007. Fita cassete.
170
BORGES, J. L. Nueva Refutación del Tiempo. Otras Inquisiciones. Obras Completas. BsAs: Emecé, 1974,
p.771
171
GRAMUGLIO, Maria Teresa(b). El realismo y sus destiempos en la literatura argentina. In: JITRIK, Noé.
Historia critica de la literatura argentina. Vol 6. Buenos Aires: Emecé, 2004. vol.9 p. 15.
172
A crítica em geral aloca a obra borgeana sobretudo nos anos quarenta. Mas na década de vinte, ele já possui 3
livros de poesia, e 3 livros de ensaio. Cronologicamente, já está ativo no período de vinte, portanto. Ademais, ele
mesmo se inscreve na “geração heróica” dos anos vinte. Não contestamos a crítica, apenas levamos em conta
outro critério. Ver: BORGES, J.L.; EDELBERG, B. Leopoldo Lugones. In:_. Obras Completas en
Colaboración. Madrid: Alianza Editorial, 1983, pp.50-53.
173
um recurso literário [...]. Talvez o mais importante seja o que não recordamos de modo preciso, talvez o
mais importante nós o recordemos de uma maneira inconsciente". BORGES, J.L. Cinco visões pessoais.
Brasília: UNB, 1985, p.20.
174
Ver BORGES, J. L. Elogio da sombra poemas/ Perfis: um ensaio autobiográfico. RJ: Globo, 1985, p.102.
175
BORGES, J.L. Prólogo (1935). Historia universal da infâmia. São Paulo: Ed. Globo, 1989, p.XXV.
176
Alazraki possui uma boa síntese dessa idéia borgeana de panteísmo, aplicado à literatura: "Es siempre posible
encontrar detrás de la invención de un autor [...] antiguas invenciones que a través de los tiempos vienen a
desembocar en esa nueva invención que resume las otras, y que a su vez se convierte en ingrediente o causa de
las que vendrán". ALAZRAKI, Jaime. La prosa narrativa de J.L.B. Madrid: Gredos, 1974, p. 94.
177
Nos referimos ao texto homônimo de Borges, em que ele faz um elogio à burla; acredita a imortalidade de
uma boa injúria; e comenta as muitas formas de operar com ela. BORGES, J.L. “Arte de Injuriar”. Historia de la
Eternidad. Obras Completas. Buenos Aires: Emecé, 1974, p.423.
178
BORGES, J. L. “Ultraísmo”. Textos recobrados (1919-1929). Buenos Aires: Emecé, 1997, p.110.
179
Na década de vinte, (ver texto da nota anterior) Borges critica o Modernismo e o Sencillismo. Começa a fazer
objeções ao criollismo, baseado em excessiva exposição da cor local. Antes do final da década, faz
questionamentos ao Ultraísmo que defendera com ardor até seu primeiro ano de Argentina. E na década de
trinta, como veremos em nossos ensaios, ele tece inúmeras críticas ao realismo.
180
Ele diz na autobiografia: “Estou arrependido desta participação em escolas literárias. Não acredito nelas
hoje”. FONSECA, Cristina. O pensamento vivo de Jorge Luis Borges. São Paulo: Martin Claret Editores,
2001, p.15.
181
Este é um tema característico da obra borgeana. RODRÍGUEZ MONEGAL, Emir (a). Borges: uma poética
da leitura. São Paulo: Perspectiva, 1980, p.86 e 89.
161
182
São biográficos, os seguintes dados: a residência e permanência na Suíça entre 1914 e abril de 1918 no “17
de Malagnou” em Genebra; a estadia nos EUA – Cambridge, Massachussetts para dar palestras; a cuia do avô; a
casa da família em “Charcas y Maipú”; a morte do pai em 1938; a declaração da avó paterna antes de sua morte;
o casamento e os filhos da irmã; o parentesco, apesar de indireto, com o ditador Juan Manuel de Rosas; as
poesias, os contos fantásticos, a docência; o livro Los Salmos rojos o Los ritmos rojos (ele mesmo não se decidiu
quanto ao título e o livro não foi publicado na época); a adoração por Dostoievski; até suas declarações repetidas
em entrevistas; o estudo do anglo-saxão; o amigo judeu de Genebra, Simón Jichlinski; o bar Crocodile neste
país; e até a cegueira gradual. Também o caso da praça em Genebra é relatado pelos biógrafos. Ver
WOODAL,
op.cit.
183
desvio nas datas. O jovem real iria ter seu primeiro poema publicado no último dia de 1919, e os
demais poemas que formariam esse volume foram publicados em 1919 e 1920, com maior freqüência nas
revistas Grecia e Ultra. Assim, a idéia do livro Ritmos Rojos surge em Maiorca (lá estiveram entre março e
dezembro de 1919). Ou seja Borges está antecipando a idéia do livro para 1918, quando ainda não havia
publicado um único poema.
WOODAL,
op.cit, p. 89. Além disso, esse amigo de Genebra não foi médico e sim, o
outro amigo, Abramowics. Também a estadia nos Eua vai até o meio de 1968. Em fevereiro de 1969, ele
estava em Buenos Aires. VÁZQUEZ. Jorge Luis Borges. Esplendor y derrota. Rio de Janeiro: Record, 1999,
p.259.
184
AIZENBERG, E. El tejedor del Aleph: Bíblia, Kabala y Judaismo en Borges. Madrid:Altalena, 1986, 85-
86.
185
RODRÍGUEZ MONEGAL(a), op.cit., p.92.
186
“El Sur” e ““Tlon, Uqbar, Orbis Tertius” estão em Ficções; “El Aleph”, em El Aleph; “El Ciego” em La Rosa
Profunda (1975); e “A Cegueira” está em Sete noites (1980).
187
Nos referimos ao grande sucesso de “Borges y Yo”.
WOODAL,
op.cit, pp.268 e 269.
188
Com as linhagens e a cegueira. PARAIZO, Mariângela de A. “Um piscar de olhos”. In: MARQUES,
Reinaldo & MACIEL, Esther (Org). Borges en diez textos. BH: Pós-lit. Curso de pós-grado en Estudos
Literarios, 1997, p.42.
189
Informação do prof. Davi Arrigucci Jr, em Conferência na FFLCH-Usp no primeiro semestre de 2006.
190
BORGES, J. L. Ficciones. Buenos Aires: Alianza Editorial, 1998, pp.132-135.
191
BORGES, J. L. El libro de Arena. Barcelona: Alianza Editorial, 1998, p.138.
192
BORGES, Jorge Luis. “Domingo F. Sarmiento. Facundo”. Prólogo con un prólogo de prólogos. In:___.
Obras Completas (1975-1988). Barcelona: Emecé, 1996, pp.125 a 129.
193
Vale lembrar que Borges postulava regras próprias para o encadeamento dos acontecimentos na literatura: a
mesma causalidade dos povos primitivos e da magia, que denominou “causalidade mágica”. Ver “El arte
narrativo y la magia” em Discusión. BORGES, Jorge Luis. Obras Completas. Buenos Aires: Emecé, 1974.
194
RODRÍGUEZ MONEGAL(b), op.cit., p.365-366.
195
Zum Felde explica que a esse grupo reunido no grêmio literário do Ateneu, desejoso de uma literatura
própria, pertenceram muitos jovens talentosos e eruditos dos quais não permanece qualquer obra significativa:
perderam-se na política e deixaram a literatura em segundo plano. ZUM FELDE, A. Crítica de la literatura
uruguaya. Montevideo: Maximino Garcia, 1921, pp. 23-29. Regules é um dos poucos a deixar um poema digno
de nota. – La Tapera. PEDEMONTE, op.cit., p.60-63.
196
Em seu texto, Borges destaca uma declaração de Lothar Schreyer contra a mistura de arte e política.
BORGES, Jorge Luis. “Antologia expresionista” (1920) Textos recobrados (1919-1929). Buenos Aires: Emecé,
1997, p.68.
197
Por exemplo, o boedista Roberto Mariani, queixa-se da Revista Martin Fierro dizendo que os escritores de seu
grupo não têm “onde gritar nosso evangélico afã de justiça humana”. Outro exemplo, é a queixa conjunta dos
boedistas, expressa em um editorial da Revista Los Pensadores, perguntando: “O que pode ser a literatura senão
um consolo para todos os aflitos, algo como a religião? Ou um meio de se libertar e de libertar?” SCHWARTZ,
J.; LORENZO ALCALÁ, M. (Org). Vanguardas Argentinas Anos Vinte. São Paulo: Iluminuras, 1992, p.84 e
p.98.
198
OLEA FRANCO, op.cit., pp. 222-224.
199
BORGES, J. L. O informe de Brodie. São Paulo: Globo, 2001, p.16.
200
Borges parece retomar no conto sua oposição à arte panfletária.“El marxismo (como el luteranismo, como la
luna, como un caballo, como un verso de Shakespeare) puede ser un estímulo para el arte, pero es absurdo
decretar que sea el único. Es absurdo que el arte sea un departamento de la política”. BORGES, J.L. Un
caudaloso manifiesto de Breton. Textos Cautivos. Obras Completas (1975-1988). Barcelona: Emecé, 1996,
p.403.
201
DOSTOIEVSKI, F. Os demônios. Rio de Janeiro: José Olympio, 1952, p.51-53.
162
202
FRANK, Joseph. Dostoievski. Os anos milagrosos (1865-1871). São Paulo: Edusp. 2003, pp.120, 496-497.
203
BORGES, J. L. Domingo F. Sarmiento. Facundo. Prólogo con un prólogo de prólogos. Obras Completas
(1975-1988). Barcelona: Emecé, 1996, p.128.
204
BORGES, J. L. La Rosa Profunda. Buenos Aires: Emecé, 1975, pp.9 e 10.
205
WILSON, James Grant (Ed.); FISKE, John (Ed.). José Rivera Indarte. Appleton's Cyclopedia of American
Biography. Six volumes, New York: D. Appleton and Company, 1887-1889. [editada por Stanley L. Klos,
1999] Disponível em: http://www.famousamericans.net/joseriveraindarte/ Acesso em: 28.Nov.2004.
206
VÁZQUEZ, op.cit., p.196.
207
Cabe lembrar que assim como Borges, na década de trinta estava contra os regimes totalitário europeus, nos
anos cinqüenta, torna-se um opositor do peronismo. RODRÍGUEZ MONEGAL(b), op.cit., pp. 351-353.
208
O conto é uma colaboração entre Borges e Bioy. Publicado em um diário uruguaio, depois sai na edição de
Nuevos Cuentos de Bustos Domeq (Borges e Bioy). É a estória de um obreiro indo a um pronunciamento
político. O clímax é o momento em que a multidão apedreja um intelectual judeu que não quer aclamar o
Monstro (Perón). RODRÍGUEZ MONEGAL(b), op.cit., p.365.
209
ARRIGUCCI JR, Davi (b). “Borges e a experiência histórica”. In: Jorge Schwartz (Org). Borges no Brasil.
São Paulo: Unesp, 2001, p.119.
210
BORGES, Jorge Luis. “Domingo F. Sarmiento. Facundo”. Prólogo con un prólogo de prólogos. Obras
Completas (1975-1988). Barcelona: Emecé, 1996, p.125.
211
A idéia é de Soergel. Apud BORGES, J.L. Una declaración final. Textos recobrados (1931-1955). Emecé:
Barcelona, 2001, p. 225.
212
A mãe e a irmã são presas. Borges é desligado de seu cargo na biblioteca nacional. VÁZQUEZ, op.cit., p.196.
213
Acreditamos que a imagem seja de Antonio Candido.
214
BURGESS, Anthony. A literatura inglesa. SP: Ática, 2003, p.189.
215
BORGES, J. L. “O Duplo”. O livro dos seres imaginários. São Paulo: Globo, 2000, p.153.
216
Nessa análise a teoria funciona em uma das chaves de leitura (a do sonho). Além disso, cabe notar que no
conto, no qual, há poucos parágrafos do início, os protagonistas já se vêem em uma situação insólita, não temos a
“realidade” destes personagens. Contudo, nos guiamos pelos casos estudados pelo filósofo, em que era
mencionada a realidade dos protagonistas, e nos quais a situação de desdobramento trazia uma revelação sobre
sua vida.
217
BORGES, J. L. Nota sobre Walt Whitman. Discusión. Obras Completas. Buenos Aires: Emecé, 1974, p.250.
218
Ibidem, p. 253.
219
BORGES, J. L. Elogio da sombra poemas/ Perfis: um ensaio autobiográfico. RJ: Globo, 1985, p.80.
220
Ver nossos Pressupostos. BORGES, J. L. Textos recobrados (1919-1929). Buenos Aires: Emecé, 1997,
p.136.
221
BORGES, J. L. Discusión (1932). Obras Completas. Buenos Aires: Emecé, 1974, p. 217.
222
Borges diz: El texto clássico se limita a registrar una realidad, no a representarla [o que faz o romântico]”
BORGES, J. L. Discusión (1932). Obras Completas. Buenos Aires: Emecé, 1974, p. 217.
223
Borges como exemplos de textos românticos: “todas las ginas de prosa o de versos que son
profesionalmente actuales [...]”. Idem, p.219.
224
BORGES, J.L.; EDELBERG, B. Leopoldo Lugones. In: Obras Completas en Colaboración. Madrid:
Alianza Editorial, 1983, p.22.
225
No ensaio que citamos a seguir e, que será analisado no terceiro capítulo, veremos que Borges se empenha em
mostrar que Whitman é um escritor clássico. Primeiro com o argumento de que a obra de Whitman é muito
distinta à dos “românticos” Byron e Baudelaire. Segundo com o argumento de que ele dá continuidade à tradição
anterior pelo tema da imortalidade do poeta e pelo procedimento da enumeração. BORGES, J. L. Nota sobe Walt
Whitman. Discusión. Obras Completas. Buenos Aires: Emecé, 1974, pp.250-251.
226
AUERBACH, Erich. Mimesis. São Paulo: Perspectiva, 2004, pp.418-419.
227
WATT, Ian. A ascensão do romance. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p.31.
228
Dizemos isto porque no ensaio de “La Postulación”, Borges coloca Daniel Defoe entre os escritores do modo
clássico isto é, na construção de realidades literárias vagas; ao invés de incluí-lo no romântico, isto é, na plena
representação da realidade. Entretanto, o estudo de Ian Watt que aborda a grande transformação na literatura, vai
dizer que Defoe está no começo do realismo moderno. Portanto, se como pensamos, a divisão borgeana está
relacionada a esta mudança, parece que, ele teria o século XIX, como um marco.
229
“A hidra universo retorcendo seu corpo escamado de estrelas.(tradução minha).
230
Em vários de seus textos sobre a metáfora, Borges gostava de examinar um tipo que lhe parecia perfeito: a
metáfora que carrega o próprio referente. Nossa leitura, neste ponto, certamente se baseia nos efeitos que o
163
escritor conferia a este recurso. Ver BORGES, J. L. A Divina Comédia. Sete noites. SP: Max Limonad, 1980,
p.25.
231
HUGO, V. Victor Hugo (1802-1885). In: PUJOL, C. (Org.) Poetas románticos franceses. Barcelona:
Planeta, 1990, pp.119-132.
232
LAPOUGE, Gilles. Victor Hugo - 200 anos de nascimento (Matéria d´ O Estadão). Disponível em:
http://br.geocities.com/edterranova/victorbi.htm. Acesso em 15.out.2007.
233
Apenas por anedota simbólica dois episódios, um literário e um factual, que podem ser associados a esta
narrativa. Quando Borges escreve um prólogo para o livro El Piloto Ciego de Giovanni Papini, ele se lembra que
um conto do italiano, lido aos dez anos, se parece a “El Otro”: “El olvido bien puede ser una forma profunda de
la memoria. Hacia 1969, compuse em Cambridge la historia fantástica El Otro”. Atónito y agradecido,
compruebo ahora que esa historia repite el argumento de “Dos imagenes en un estanque” [de Papini]. BORGES,
J.L. Biblioteca personal. Obras Completas(1975-1988). Barcelona: Emecé, 1996, p. 472-473. Em 1971, Borges
vai aos EUA para dar palestras. Na Universidade de Colúmbia, vendo o palestrante e entendendo que Borges era
um escritor o-político, um dos jovens, que teria menos de vinte anos, dirige agressões ao autor: “o estudante
acrescentou que Borges nada tinha a contribuir a qualquer discussão sobre a América Latina, porque estava
morto”. Borges se inflama e, cego, aos 72 anos, usando bengala - que golpeia contra a mesa, convida o rapaz
para um duelo. RODRÍGUEZ MONEGAL(b), op.cit., p.326.
234
BORGES, J.L. “Anotación” (1955) Textos recobrados (1931-1955). Barcelona: Emecé, 2001, p.332.
235
Idem. Também: Textos Cautivos. Obras Completas (1975-1988). Barcelona: Emecé, 1996, p.246.
236
Lembramos que o jovem classificava a poesia em falsa (sem emoção e sem idéia) ou verdadeira (com emoção
ou com uma idéia). A nota da maturidade divide a poesia verdadeira em dois tipos: a do poeta e a do artífice.
237
Como ocorria na leitura do conto, considere-se que toda citação em itálico foi extraída do texto em BORGES,
J. L. Nota sobre Walt Whitman. Discusión. Obras Completas. Buenos Aires: Emecé, 1974.
238
JAKOBSON, Roman. Do realismo em arte. In: EIKHENBAUM, B & alii. Formalistas Russos. Porto
Alegre: Ed. Globo, 119.
239
Em seu Prólogo “Domingos F Sarmiento: Facundo”, ele tenta conseguir um estatuto de igualdade para a
história e a literatura. Neste texto, em dois momentos, ele novamente se move pelos textos de várias matérias
indistintamente. No primeiro, ele se vale de um texto de filosofia para exemplificar um problema literário. No
segundo, ele mostra que o recurso utilizado por Whitman, estava presente em textos religiosos, filosóficos e
literários, anteriores. Deste modo fica o sentido de que, para Borges, religião, filosofia, história e literatura,
poderiam todas receber uma leitura literária.
240
“Walt Whitman dele se origina o que denominamos poesia civil, se origina Neruda, se originam tantas
coisas, boas ou más...” BORGES, J.L. Cinco visões pessoais. Brasília: UNB, 1985, p.32. Ainda diz que “Edgar
Allan Poe e Walt Whitman, habían influido esencialmente, por su teoría y por su obra en la literatura francesa;
Rubén Darío, Hombre de Hispanoamérica, recoge este influjo […]”. BORGES, J.L. et al. Leopoldo Lugones.
Obras Completas en Colaboración. Madrid: Alianza Editorial, 1983, p.23.
241
COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria. Belo-Horizonte: Editora UFMG, 2001, p. 138.
242
Texto da Redação da Revista Los Pensadores. “À margem” (1926). In: SCHWARTZ, J. & LORENZO
ALCALÁ, M. Vanguardas Argentinas Anos Vinte. São Paulo: Iluminuras, 1992, p.99.
243
SOTO, L. E. “Esquerda e vanguarda literária” (s/d). Ibidem, p.91.
244
SOTO, L. E. “Esquerda e vanguarda literária”, pp.90-91.
245
YURKIEVICH, Saul. Borges, poeta circular. Fundadores de la nueva poesía latinoamericana. Barcelona:
Barral Editores, 1970, p.120.
246
Como dito nos pressupostos, Borges afirma neste texto, que desejaria uma poesia, com uma emoção livre de
causas. BORGES, J.L. Anatomia de mi ultra. Textos recobrados (1919-1929). Buenos Aires: Emecé, 1997,
p.95. Publicado originalmente em janeiro de 1921.
247
Texto da Redação da Revista Los Pensadores. “À margem” (1926). In: SCHWARTZ, J. & LORENZO
ALCALÁ, M., op.cit., p.100.
248
YURKIEVICH, op.cit., p.120-121.
249
Ibidem, p.124.
250
LAGOS, Ramona. Jorge Luis Borges (1923-1980): Laberintos del espíritu, interjecciones del cuerpo.
Barcelona: Ed. De Mall, 1986, p.239.
251
Idem, p.221 e 226.
252
Como dito, o jovem simboliza a geração dos anos vinte, mas também o próprio Borges. Na narrativa,
tentamos encontrar uma sugestão, de qual seria o entendimento que fez com que a obra borgeana se afastasse
dessa idéia de literatura, presente nos autores de sua geração.
253
BORGES, J.L. Anatomia de mi ultra. Textos recobrados (1919-1929). BsAs: Emecé, 1997, p.95.
254
OLEA FRANCO, R. El otro Borges, el primer Borges. México DF: FCE, 1993, p. 109.
255
BORGES, Jorge Luis. Textos recobrados (1919-1929). Buenos Aires: Emecé, 1997, p.367.
164
256
OLEA FRANCO, Rafael. El otro Borges, el primer Borges. México DF: FCE, 1993, p.217.
SEGUNDA PARTE DO CAPÍTULO
257
Também neste texto, as citações em itálico foram extraídas de BORGES, J. L. Domingos F. Sarmiento:
Facundo. Prólogo con un prólogo de prólogos. Obras Completas (1975-1988). Barcelona: Emecé, 1996.
258
A forma é semelhante à encontrada por Beatriz Colombi em “Visión de Anáhuac”. COLOMBI, Beatriz.
“Viaje y ensayo en Visión de Anáhuac de Alfonso Reyes”. In: BEIN, R. et alii. (Eds). Homenaje a Ana María
Barrenechea. Buenos Aires: Eudeba, 1984, p.272.
259
A contestação borgeana se dirige a um tipo de historiografia que se quer expressão da verdade e que acredita
transmitir seus conteúdos da forma mais objetiva possível. Por este motivo, como ela parece estar mais próxima
da historiografia tradicional vamos conferir-lhe esta denominação.
260
Nota técnica: vamos grafar Facundo, o nome do personagem Facundo Quiroga; e com Facundo, vamos
abreviar o título completo da obra - Facundo: civilización i barbárie.
261
A partir de SARLO, Beatriz(b). “Una poética de la ficción”. In: JITRIK, Noé. Historia de la literatura
argentina. Vol. 9. Buenos Aires: Emecé, 2004, p.22.
262
BORGES, J. L. Discusión. Obras Completas. Buenos Aires: Emecé, 1974, p.754.
263
BORGES, J. L. Textos recobrados (1931-1955). Barcelona: Emecé, 2001, p.53.
264
LUKÁCS, Georg. Sobre la esencia y forma del ensayo (Carta a Leo Popper) In:__. El alma y sus formas.
Barcelona, Grijalbo, 1975, pp. 16 e 38.
265
No livro, Sarmiento nos informa que ele fora tesoureiro e prefeito.
266
BORGES, J.L. Discusión. Obras Completas. Buenos Aires: Emecé, 1974, p.754.
267
Ibidem, p.754.
268
Ibidem, p.756.
269
BORGES, J.L. Prólogo con un prólogo de prólogos. Obras Completas (1975-1988). Barcelona: Emecé,
1996, p.37
270
“El defecto más constante de las letras francesas [...] es la ansiedad cronológica de sus escritores”. Ver
BORGES, J.L. Gloria Alcorta: La prison de l´enfant. Textos recobrados (1931-1955). Barcelona: Emecé, 2001,
p.115.
271
RODRÍGUEZ MONEGAL, E (a). Borges: uma poética da leitura. SP: Perspectiva, 1980, p.86 e 89.
272
RODRÍGUEZ MONEGAL, E (b). Borges: una biografía literaria. México: FCE, 1993, p.221.
273
Ibidem, p.325.
274
REYES, Alfonso. Antologia General. Buenos Aires: Alianza Editorial, ____, p.90.
275
Redação da Revista Los Pensadores. “À margem” (1926). In: SCHWARTZ, J. & LORENZO ALCALÁ, M.,
op.cit., p.97.
276
Idem, p.99.
277
MALLEA, Eduardo. El sayal y la púrpura. Buenos Aires: Losada, 1962, pp. 17-32.
278
Monegal diz que os argumentos dessa revista repetiam os que já apresentara sobre a recepção dos trabalhos de
Borges em 1954. Então, deve-se observar a página anterior na qual figura de modo direto o conteúdo destes
ataques. RODRÍGUEZ MONEGAL(b). op.cit., p.381-382.
279
BORGES, Jorge Luis. Textos recobrados (1931-1955). Barcelona: Emecé, 2001, p.53
280
Ibidem, p.53-54. É interessante notar que Estrada tinha Sarmiento na conta de um precursor.
281
MARTÍNEZ ESTRADA, Ezequiel. Literatura y vida (1956). In: ___ Para una revisón de las letras
argentinas. Buenos Aires: Ed. Losada, 1967, pp. 142-158.
282
SÁBATO, Ernesto. Três aproximações à literatura de nosso tempo. São Paulo: Ática, 1994, p.43.
283
FERNÁNDEZ RETAMAR, R. Todo Calibán. La Habana: Editorial Letras Cubanas, 2000, p.52.
284
Ibidem, p.52.
285
MONEGAL(b), op.cit., p.381.
286
Idem, p.380.
287
VÁZQUEZ, María Esther. Jorge Luis Borges: Esplendor y derrota. RJ: Record, 1999, p.226.
TERCEIRA PARTE DO CAPÍTULO – Primeiro Subitem
288
A partir deste ponto vamos nomear o ensaio apenas “La Postulación”. Todas as citações com itálico
correspondem a esta referência. In: BORGES, J.L. Discusión. Obras Completas. BsAs: Emecé, 1974, pp.217-
221.
289
BORGES, J.L. Thomas Carlyle: De los heroes. Ralph Waldo Emerson: Hombres representativos. Prólogo con
un prólogo de prólogos. Obras Completas (1975-1988). Barcelona: Emecé, 1996, p.41.
165
290
Como avisado no capítulo 2, estes são dois conceitos que Borges está forjando neste ensaio, por isso os
grafamos em itálico.
291
SARLO, Beatriz (c). Del otro lado del horizonte, Boletín 9, Centro de Estudios de Teoría y Crítica Literaria,
Facultad de Humanidades y Artes, Universidad Nacional de Rosario, 2000, p.20.
292
Idem, p.23.
293
O trecho de Cervantes, em seu conteúdo, traz uma imagem que explica a formulação clássica e seu primeiro
tipo; a lenda de Morris, a estruturação do clássico II; o de Larreta, explica o clássico III; a paráfrase do Homem
Invisível torna-se uma metáfora dos problemas deste modo, no gênero fantástico.
294
WATT, Ian. A ascensão do romance. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p.13.
295
BORGES, Jorge Luis. Of mice and man: John Steinbeck. Textos cautivos. Obras Completas (1975-1988).
Barcelona: Emecé, 1996, p.376.
296
BORGES, J. L. Prólogo. Luna de Enfrente. Obras Completas. Buenos Aires: Emecé, 1974, p.55.
297
BORGES, J. L. Obras Completas. Buenos Aires: Emecé, 1974, p.55.
298
PETIÇÃO 1. In: Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995, p.1322.
299
Acreditamos que esse seja o procedimento. Primeiro, lembramos de Balderstone que postula que Borges à
semelhança de Stevenson, costuma fixar a fisionomia das personagens, através de alguns rasgos marcantes.
BALDERSTON, Daniel. El precursor velado: R. L. Stevenson en la obra de Borges. Buenos Aires: Editorial
Sudamericana, 1985, p.61. A nosso ver, são alguns traços que alcançam uma projeção física geral das
personagens. Além disso, no final deste ensaio, vamos ver a questão dos pormenores que poupam aos clássicos,
e ao mesmo Borges, a descrição de um ambiente.
300
Desde jovem, Borges esteve atento aos problemas da linguagem. Em 1925, em “Examen de Metáforas”, ele
mostra que as palavras são insuficientes para dar conta de traduzir o que existe: “Buscarle ausencias al idioma es
como buscar espacio en el cielo”. BORGES, J. L. Inquisiciones. Barcelona: Seix Barral, 1994, p.72. Também
em “Acerca de Unamuno, poeta”, Borges apresenta vários destes problemas. Ver p.115 no mesmo livro.
301
ARRIGUCCI JR, Davi. Aula sobre dois Ensaios Borgeanos. São Paulo: s/ gravadora, 2007. Fita cassete.
302
Aparece em BORGES, J.L. A imortalidade. Cinco visões pessoais. Brasília: UNB, 1985, p.33.
303
BORGES, J.L. Textos recobrados (1919-1929). Buenos Aires: Emecé, 1997, p.86.
304
SOTO, L.E. “Esquerda e vanguarda literária” (s/d). In: SCHWARTZ, J. & LORENZO ALCALÁ, M., op.cit.,
p. 91.
305
Mais adiante vamos analisar um dos exemplos do clássico II que metaforicamente ilustra os procedimentos
dos escritores que utilizam esta técnica. Embora Borges não o faça, para explicá-la também seria possível
retomar a metáfora no trecho de Cervantes. O escritor deste segundo modo clássico é um Lotário que à diferença
do anterior não explicita suas intenções por meio de ações conclusivas. apenas sinais do que “sente”. Ao
contrário do primeiro, este Lotário pisca, abaixa os olhos, gagueja. Mas não importa, é o suficiente para que a
dama acredite que sua beleza foi integralmente contemplada, pese à timidez de seu admirador. Ama-a tanto que
não seria capaz de explicar. De forma semelhante, o leitor percebe o que deseja este tipo de autor, apenas por
intermédio de suas senhas.
306
O crítico aponta para a moral vitoriana desse poeta como influência para o significado urdido em várias de
suas obras. BURGESS, Anthony. A literatura inglesa. SP: Ática, 2003, p.225.
307
COZARINSKI, Edgardo. Magias parciales del relato. In: ___. Borges en/y/sobre cine. Madrid: Editorial
Fundamentos, 1981, p.20.
308
BORGES, Jorge Luis. Prólogo primeira edição de 1935). Historia universal da infâmia. São Paulo: Ed.
Globo, 1989, p.XXV.
309
BORGES, Jorge Luis. El idioma de los argentinos. Barcelona: Seix Barral, 1994, p.54.
310
BORGES, J.L. Arturo Capdevilla La santa furia del padre Castañeda. Textos recobrados. Buenos Aires:
Emecé, 2001, p.40.
311
BORGES, J.L. Prólogo con un prólogo de prólogos. Obras Completas (1975-1988). Barcelona: Emecé,
1996, p.152.
312
“Daniel Defoe parece haber sido el iniciador de esos pormenores de horario, de esas vanidades de cartógrafo o
de sereno: equivocación copiadísima”. BORGES, Jorge Luis. “La simulación de la imagen”. El idioma de los
argentinos (de 1928). Barcelona: Seix Barral, 1994, p.80. Depois, em um prólogo da terceira fase, também vai
afirmar que “el hallazgo esencial de Daniel Defoe (1660-1731) fue la invención de rasgos circunstanciales, casi
ignorada por la literatura anterior. Lo tardio de ese descubrimiento es notable; que yo recuerde no llueve una sola
vez en todo el Quijote”. BORGES, J.L. Biblioteca Personal. Obras Completas (1975-1988). Barcelona: Emecé,
1996, p. 499.
313
Sobre a inclusão de Defoe no modo clássico: a julgar dessa inclusão, é possível Borges não veja, ou não tenha
querido ver, um efeito de realidade real, na obra de Defoe. Talvez ele considerasse, como Auerbach, que o
divisor de águas para o efeito geral de realidade na literatura, seja o século XIX. Nós, acreditando na validade do
trabalho de Watt, colocamos a obtenção deste efeito, e portanto o início do modo romântico, no século XVIII;
166
mas é plausível que o próprio Borges pensasse no século XIX, como dito. No próximo tópico, vamos deixar
ainda uma segunda hipótese a respeito desta inusitada inclusão.
314
POSTULADO. In: MICHAELIS. São Paulo: Cia Melhoramentos, 1998, p.1675.
315
BALDERSTON, op.cit., pp. 45 e 55.
316
Idem, pp.57-58.
317
Gabriel Miró não é um realista, mas Balderston o compara às práticas literárias do século XIX, pela
estaticidade, envolvida nesta técnica de detalhar um quadro cênico.
318
BALDERSTON, op.cit., p.58.
319
Idem, p.61.
320
Ibidem, p.58.
321
Os textos de Discusión mencionados são “El Coronel Ascasubi” e “El Martín Fierro”. OLEA FRANCO,
Rafael. El otro Borges, el primer Borges. México DF: FCE, 1993, p.283-284.
322
BORGES, J. L. La poesía gauchesca. Discusión. Obras Completas. BsAs: Emecé, 1974, p.184.
323
OLEA FRANCO, Rafael. El otro Borges, el primer Borges. México DF: FCE, 1993, p.284.
324
Apud OLEA FRANCO, Rafael. El otro Borges, el primer Borges. México DF: FCE, 1993, p.283.
325
Ibidem, p.284.
326
Ibidem, p.231.
327
Ibidem, p.283.
TERCEIRA PARTE DO CAPÍTULO – Segundo Subitem
328
Pensamos no eterno retorno, embora culturas primitivas também estejam associadas ao tempo circular.
329
Como em “El Otro”, o velho entra no assunto de provar quem é o verdadeiro Borges. Assim, o jovem
assevera: “El soñador soy yo”. Tanto é, que em seguida entram no tópico do “quem sonha a quem”, cujo fundo é
a questão “quem existe, quem não existe”, como no primeiro conto.
330
BORGES, J.L. Discusión. Obras Completas. BsAs: Emecé, 1974, p.218.
331
ARRIGUCCI JR, Davi. Aula sobre dois Ensaios Borgeanos. São Paulo: s/ gravadora, 2007. Fita cassete.
332
Todas as citações grafadas em itálico, pertencem ao conto “El Milagro Secreto” no volume: BORGES, Jorge
Luis. Ficciones. Barcelona: Alianza Editorial, 1998, pp.173-183.
333
BORGES, Jorge Luis. 25 Agosto 1983 y otros cuentos. Madrid: Ed. Siruela, 1985, p.377.
334
BORGES, Jorge Luis. Obras Completas. Buenos Aires: Emecé, 1974, p.617.
335
BALDERSTON, op.cit., p.56.
336
BORGES, J.L. Biblioteca Personal. Obras Completas (1975-1988). Barcelona: Emecé, 1996 p. 499.
337
BORGES, J.L. Arturo Capdevilla La santa furia del padre Castañeda. Textos recobrados (1931-1955).
Buenos Aires: Emecé, 2001, p.40.
338
CANDIDO, Antonio. Realidade e Realismo (Via Marcel Proust). In: ___. Recortes. São Paulo: Cia das
Letras, 1996, pp. 123-129.
339
Ibidem, pp.126-127 passim.
340
Ibidem, pp.126-128 passim.
341
Ibidem, pp.123-124.
342
JAKOBSON, Roman. “Do realismo artístico”. In: EIKHENBAUM, B & alii. Teoria da Literatura.
Formalistas Russos. Porto Alegre: Ed. Globo, 1973, p.32.
343
RODRÍGUEZ MONEGAL(b), op.cit., p.239.
344
CANDIDO, op.cit., p.123.
345
ARRIGUCCI JR, Davi. Aula sobre dois Ensaios Borgeanos. São Paulo: s/ gravadora, 2007. Fita cassete.
167
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latinoamericana. Barcelona: Barral Editores, 1970, pp.119-137.
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