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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
MESTRADO
TATIANA ZISMANN
A CONSTRUÇÃO DE UMA REFERÊNCIA DE IDENTIDADE
NACIONAL PARA O RIO GRANDE DO SUL NOS DISCURSOS
CRÍTICO-LITERÁRIO E HISTORIOGRÁFICO DE MOYSÉS
VELLINHO
Orientadora: Dra. Maria Cristina dos Santos
Porto Alegre
2006
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1
TATIANA ZISMANN
A CONSTRUÇÃO DE UMA REFERÊNCIA DE IDENTIDADE
NACIONAL PARA O RIO GRANDE DO SUL NOS DISCURSOS
CRÍTICO-LITERÁRIO E HISTORIOGRÁFICO DE MOYSÉS
VELLINHO
Dissertação apresentada como
requisito para obtenção do grau
de Mestre, pelo Programa de Pós-
graduação da Faculdade de
História. Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul
Orientadora: Dra. Maria Cristina dos Santos
Porto Alegre
2006
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2
TATIANA ZISMANN
A CONSTRUÇÃO DE UMA REFERÊNCIA DE IDENTIDADE
NACIONAL PARA O RIO GRANDE DO SUL NOS DISCURSOS
CRÍTICO-LITERÁRIO E HISTORIOGRÁFICO DE MOYSÉS
VELLINHO
Dissertação apresentada como
requisito para obtenção do grau
de Mestre, pelo Programa de Pós-
graduação da Faculdade de
História. Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul
Aprovada em 02 de agosto de 2006
BANCA EXAMINADORA:
___________________________
Dra. Maria Cristina dos Santos – PUCrs
____________________________
Dr. Luiz Antonio de Assis Brasil – PUCrs
____________________________
Dr. René Ernaini Gertz – PUCrs
3
Ao Donnie
4
AGRADECIMENTOS
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES), pela concessão da bolsa de estudos. Ao Programa de Pós-
graduação em História da PUCrs. Aos meus amados pais e irmão, Leoni,
Evaldo e Deivis, muito obrigada por tudo, especialmente pela confiança
irrestrita. À Maris por ter me propiciado um lar no “entre-tempo” do
projeto. Ao Leonel que foi minhas pernas quando estas literalmente
faltaram. À Bia e à Carla, pela feliz surpresa de as conhecer. Ao Jean,
amigo que me ouviu narrar e ajudou a percorrer com maior lucidez os
caminhos da escrita. À prof. Sílvia Paraense, que me ensinou a ler as
primeiras figuras de linguagem. À prof. Mara Regina Nascimento, pelo
precoce apreço das minhas interpretações. Ao Fernando Villarraga, que me
ensinou a conceber toda a leitura como um problema e à Tereza Cabañas,
pela ajuda bibliográfica, ambos mestres e amigos. Ao Carlos Armani, que
incutiu a idéia do mestrado e ajudou a pensar o projeto. Ao Márcio Belloc,
meu interlocutor existencial. À Tita, que se dispôs a orientar este trabalho,
exigindo os procedimentos sem os quais esta dissertação não se constituiria
numa realidade. Ao Linho e aos amigos para além de bem e mal, que
compreenderam a necessidade de recolhimento que a escrita exige.
Agradeço sinceramente a tod@s!
5
Achava belo, a essa época, ouvir um
poeta dizer que escrevia pela mesma
razão por que uma árvore dá frutos. Só
bem mais tarde viera a descobrir ser um
embuste aquela afetação: que o homem,
por força, distinguia-se das árvores, e
tinha de saber a razão de seus frutos,
cabendo-lhe escolher os que haveria de
dar, além de investigar a quem se
destinavam, nem sempre oferecendo-os
maduros, e sim podres, e até
envenenados.
Osman Lins in Guerra sem testemunhas
6
RESUMO
Esta pesquisa objetiva analisar em que consiste e como é articulada a
identidade nacional do Rio Grande do Sul por Moysés Vellinho. Para isso,
se analisará como o intelectual constrói por meio de sua crítica literária –
assinada sob o pseudônimo Paulo Arinos, e em sua interpretação
historiográfica, uma narrativa da identidade nacional para o Rio Grande do
Sul e o gaúcho. A análise dos dois discursos permite compreender como a
preocupação nacionalista, sendo comum aos dois, os irmanará em objetivos
que extravasam a crítica literária puramente formal e a interpretação
histórica neutra – ou estritamente baseada em pressupostos científicos.
Palavras-chaves: Moysés Vellinho, crítica literária, historiografia,
identidade nacional, nação, região.
7
ABSTRACT
This research aims to analyze into what consists as well as the articulation
of the national identity of Rio Grande do Sul by Moysés Vellinho. In order
to do it the building throughout his literary criticism will be analyzed – one
made and signed under the pseudonym of Paulo Arinos, and in the
interpretation of his historical textual production, a national narrative for
both Rio Grande Do Sul and the gaúcho. The analysis of the two speeches
allows to comprehend on how the nationalist concern being common to
both, will unite them into objectives that go beyond the literary criticism
which is purely formal as well as the neutral historical interpretation – or
rigorously estimated in scientific affirmations.
Key-words: Moysés Vellinho, literary criticism, historiography, national
identity, nation, region.
8
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...................................................................................09
1 A BUSCA DA CONSCIÊNCIA NACIONAL: UMA NECESSIDADE DE
ÉPOCA.............................................................................................. 20
1.1 Um homem de gênio universal-provincial......................................... 21
1.2 O tempo do qual se fala: a nação em busca da consciência de si
própria............................................................................................... 26
1.3 A consciência particularizada: a nação por meio da região................ 35
2 A IMAGEM DE UM RIO GRANDE DO SUL NACIONALIZADO
ATRAVÉS DAS MÁSCARAS DE SEU AUTOR..................................... 42
2.1 O gaúcho moderno e nacionalizado: da crítica literária ao discurso
historiográfico.................................................................................... 45
2.2 Os heróis e o anti-herói: um debate concebido entre a História e a
Mitologia............................................................................................ 66
2.3 A formação do Rio Grande do Sul no discurso historiográfico de
Moysés Vellinho................................................................................ 75
3 A NARRATIVA DA IDENTIDADE NACIONAL POR MOYSÉS
VELLINHO........................................................................................92
3.1 A identidade nacional do Rio Grande do Sul: uma questão de
referência........................................................................................... 93
3.2 O estilo pessoal articulando uma identidade nacional para o Rio Grande
do Sul................................................................................................ 98
CONSIDERAÇÕES FINAIS..............................................................114
REFERÊNCIAS................................................................................119
INTRODUÇÃO
A obra de Moysés Vellinho possui, segundo Gilberto Moraes, uma
característica identificada como própria do comportamento hispânico. Esta
peculiaridade teorizada por Gilberto Freyre, designa a faculdade de análise
onde são considerados não exclusivamente os objetos dados à observação
do intérprete, mas também é relevante a reflexão produzida pelo observador
em face dos mesmos. O comprometimento de Vellinho a uma causa, a de
conferir uma identidade calcada em referências nacionais para o Rio
Grande do Sul e para o seu tipo representativo – o gaúcho – imprime
características únicas aos seus discursos. O testemunho do autor vem a
confirmar essa peculiaridade apontada em sua obra: “dentro da
desarticulação do que venho realizando, nas minhas horas de lazer literário,
se há certa unidade, desde as primeiras manifestações até as mais recentes,
é a busca de uma afirmação em face do meu horizonte social e afetivo”
1
(VELLINHO, 1979, p.10). A afirmação subjetiva do autor dá-se por
intermédio do objeto por sobre o qual ele se debruçou em toda a sua obra, o
Rio Grande do Sul, a sua região de análise.
1
Algumas citações de Moysés Vellinho foram submetidas a uma atualização lingüística,
em observação às normas atuais vigentes.
10
O testemunho de caráter confessional reproduzido a seguir é um
indicativo da interposição do eu na escritura de Moysés Vellinho:
Eu não nasci para confissões, e a ficção tem muito disto.
Ela retira suas melhores forças deste elemento confidencial. O
ensaio, porém, era a minha maneira natural de realizar
qualquer coisa em literatura. [...] Uma só vez tentei um conto.
Mostrei-o a João Pinto da Silva. Foi literalmente condenado!
Assim o ficcionista não chegou a sair da casca e morria ao
nascer (VELLINHO, 1979, p.11). [grifo nosso]
Não seria o latente do ficcionista, em grande medida, o responsável
pela interposição radical do autor em relação aos seus objetos de reflexão,
permitindo assim, larga margem subjetiva à interpretação? Mais importante
do que a pura reconstrução factual da história sul-rio-grandense, o que
parece interessar a Moysés Vellinho é a consciência ativa do intérprete
arranjando os fatos e proporcionando sentido à reconstrução do passado.
Isso é evidenciado naquilo que Guilhermino Cesar compreendeu como “o
sopro de vida” (1979, p.3) que animou a interpretação de Vellinho. Assim,
os dados históricos seriam vivificados pelo sentido neles depositado,
prescindindo, muitas vezes, do rigor científico. A questão da cientificidade
da interpretação historiográfica de Vellinho será priorizada no segundo
capítulo, onde se analisará o comprometimento do historiador com os
heróis a serem rememorados pela comunidade sul-rio-grandense. Esse traço
é o responsável por dissolver as aspirações particulares do autor em sua
obra, e direciona a atenção que deve ser despendida no estudo do modo
como Moysés Vellinho constrói uma identidade nacional para o Rio Grande
do Sul. Esse é o objeto de análise desta pesquisa, que buscará interpretar
em que pontos é baseada a nacionalidade do Rio Grande do Sul e mediante
quais argumentos ela é defendida nos discursos do intelectual. Essa
interpretação será realizada no capítulo três, mediante a interpretação dos
indícios a serem colhidos no capítulo dois.
11
O Rio Grande do Sul, por ser tomado como periférico diante dos
quadros nacionais da época, precisou ser alinhavado ao centro mediante
uma valoração do discurso regional, questão a ser desenvolvida no primeiro
capítulo. Nele se buscará contextualizar o discurso de Vellinho em sua
época, mostrando como o intelectual atuará, com empenho marcadamente
nacionalista, nas questões de seu tempo, que tornaram urgentes, com o
Modernismo de 22, a necessidade de desvelar as particularidades
brasileiras.
A manipulação analítica da região e da nação se dá pelo ângulo de
quem as observa, não com a rigidez metódica dos que se pretendem
neutros, mas por meio do mergulho nas categorias em análise,
característica que confirmará a concepção do historiador italiano Carlo
Ginzburg de que, quanto maior o traço individual, menor a possibilidade de
uma ciência rigorosa (1990). O método indiciário se mostrou o mais
apropriado para a análise do que consiste o tracejar particular da linha da
identidade bordada pelo intelectual. Esta referência metodológica permite
construir interpretações sobre as representações do passado a partir de
pistas tomadas, muitas vezes, por negligenciáveis (GINZBURG, 1990) que
podem valorizar os detalhes mínimos do estilo de um autor.
Moysés Vellinho, quando se refere à região ou à nação, coloca-se
intimamente dentro de seu discurso como evidencia a enunciação na
primeira pessoa do plural:
Quando se diz e repete que o Rio Grande é o único estado
brasileiro por opção não encontro fundamento para tal
afirmação. Somos brasileiros não por opção, mas por vocação
histórica. Nascemos e crescemos brasileiros. Nunca
poderíamos desertar de nós mesmos, sob pena de perdermos a
nossa identidade histórica (VELLINHO, 1979, p.11).[grifo
nosso]
12
É preciso levar em conta a subjetividade radical de Moysés Vellinho
para se analisar sua escritura: “minhas ligações com as atividades
propriamente literárias eram um tanto furtivas, pois tinha que recorrer a
elementos impessoais. Mas uma terra tão rica como a nossa em elementos
históricos me fascinou desde logo” (VELLINHO, 1979, p.11). Este
enunciado pode ser compreendido como uma traição ao ofício do
historiador
2
segundo paradigmas mais canônicos que postulam o
distanciamento dos juízos valorativos na interpretação histórica. Sobre a
confecção de Capitania d’El Rei, seu autor explicita preocupações que
parecem mais próximas do ficcionista do que do historiador, uma vez que
no processo de composição da obra “as coisas foram se arrumando a meu
modo e os capítulos do livro se multiplicando sem pressar” ou, ainda,
“Capitania d´El Rey [sic], fiel, no seu conjunto, à unidade de concepção
que procurei alcançar, dentro do mesmo espírito [refere-se à liberdade de
prazos que o ensaísta necessita]. Quem escreve, às vezes é surpreendido
por elementos inesperados, inspiradores” (VELLINHO, 1979, p.11). A
unidade de concepção da obra, impelida por elementos inspiradores
atrelados ao modo pessoal do arranjo, define bem a originalidade marcada
pelo eu, incrustado na escritura historiográfica, embora esse eu não seja o
eu da enunciação (pois a história não é narrada pelo foco da primeira
pessoa), que se pretende impessoal em sua apresentação, como é de praxe
nos discursos historiográficos. A sua obra empenhada em questões que
extravasam a pesquisa neutra ou desinteressada, rendeu-lhe o rótulo de
ideólogo, como exemplifica a interpretação de Hildebrando Dacanal.
2
O próprio Moysés Vellinho não se atém a uma designação, quer como historiador, quer
como ensaísta: “[...] do ensaísta, se assim me posso classificar” (VELLINHO, 1979,
p.11). Neste trabalho optou-se por designá-lo historiador quando há referência ao seu
trabalho historiográfico. Embora seu discurso levante controvérsias sobre a sua
natureza científica, é como historiador que ele atuou institucionalmente como evidencia
o vínculo ao IHGRS (Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul). Outro
dado marginal é fornecido pela orelha de sua obra Capitania d´El Rei, onde se lê
“Moysés Vellinho, nome de alta qualificação na História”. Assim, se o discurso nega, o
meio institucional ou o simples fato de sua obra ser encontrada numa prateleira de
livros de história, não em livrarias, mas em sebos, é um indício relevante a ser
considerado ao se optar por designar Moysés Vellinho de historiador.
13
O crítico caracteriza Moysés Vellinho como “o melhor ideólogo da
classe dominante sul-rio-grandense do séc. XIX” (DACANAL, 1981, p.30)
expulsando, dessa maneira, o autor de seu próprio século. É certo que
Moysés Vellinho tem posturas marcadamente ideológicas
3
, sendo as
mesmas explicitadas em vários momentos da sua argumentação. Mas parece
pouco esclarecedor transformá-lo num ideólogo farsante, que entre outros
“representantes de nossa historiografia oficial a recheiam – que farsa
tragicomédia – da mumificada ideologia da oligarquia rural da fronteira
[...] não poucas vezes regredindo e alçando-se em intransigentes defensores
da administração colonial portuguesa do séc. XVIII! – é simplesmente
espantoso” (DACANAL, 1981, p.26). A análise de Hildebrando Dacanal
encerra a cognição do discurso de Vellinho ao tomá-lo exclusivamente
como uma falsa representação da realidade. O crítico concebe ainda como
cômico o enaltecimento da colonização lusa por Moysés Vellinho: “a
tentação do riso, diante de tais situações, nasce exatamente da percepção da
defasagem entre criações ideológicas do passado e a realidade presente.
[...] O papel cômico desempenhado pela historiografia gaúcha no presente
não é o de defender os valores do grupo dominante. Defender tais valores
nunca é cômico e, quase sempre altamente proveitoso. Cômico é defender
os valores de uma época morta há muito” (DACANAL, 1980, p.33).
Hildebrando Dacanal soluciona a crítica sobre o caráter ideológico do
discurso de Vellinho, coadunando este à realidade do século XIX, já que
não estaria a refletir a do XX.
E se Moysés Vellinho não passasse de um anacrônico, escrevendo
para sustentar o poder da oligarquia do século XIX, a serviço de quem sua
escrita se achava, já que era empreendida por um ideólogo?
4
Interpretações
3
Esta pesquisa perspectiva o termo ideologia como visão de mundo, desvinculado da
noção de representação falsa da realidade a serviço dos segmentos socialmente
dominantes. A ideologia como visão de mundo compreende as representações não
unicamente atreladas aos imperativos político-econômicos da classe.
4
A crítica da representação discursiva a partir de ser caráter ideológico foi um enfoque
teórico utilizado em alguns momentos pela historiografia sul-rio-grandense, como
exemplifica a dissertação de Marlene Almeida, Introdução ao Estudo da Historiografia
Sul-Rio-Grandense: inovações e recorrências do discurso oficial (1920-1935). Neste
estudo, a autora toma por objeto de análise a historiografia sul-rio-grandense “em seu
14
como a de Dacanal, facilmente esquecem que o discurso não representa a
realidade de forma linear. Ao contrário, a representação recria os dados da
realidade de maneiras não-paralelas, mesmo quando a serviço do poder,
como interpreta a historiografia a respeito do contexto da época: “muito
mal andava a história do Rio Grande do Sul, ou satisfazendo a interesses
políticos imediatos, ou religiosos, pura ideologia que ainda não alcançara o
estatuto de ciência” (GUTFREIND, 1991, p.30)
5
.
Na tese transformada em livro, A historiografia rio-grandense, Ieda
Gutfreind identifica os momentos na produção historiográfica sulina que
diferem entre si pela forma como enfatizam algum tipo de relação ou
influência mantidas entre o Rio Grande do Sul e o Prata, historiando os
momentos de hegemonia alcançados por cada uma das interpretações. A
historiadora salienta que, em inícios do século XIX, as interpretações sobre
o Rio Grande de Sul tratam com naturalidade as relações do Estado tanto
com o Prata como com relação às demais províncias brasileiras. Em fins do
XIX e início do XX, o “discurso historiográfico” (expressão de Gutfreind)
muda de tom, passando a salientar as relações ou proximidades com a
região do Prata, interpretação que enfatizou a singularidade autônoma do
Estado frente ao Império e à República. Essa diretriz é ofuscada por outra,
nacionalista, que, iniciada na segunda década de 1920, valorizou a origem
lusa e a brasilidade sul-rio-grandense. Essas duas tendências de
interpretação constituíram duas matrizes
6
de interpretação histórica – a
platina e a lusitana.
sentido concreto de estrutura ideológica da classe dominante”, analisando como as
“forças sociais que são dominantes em uma formação social viabilizam,
superestruturalmente, sua dominação como direção’’(ALMEIDA, 1983, p.7).
5
Mesmo que se recorram a dados da trajetória política de Moysés Vellinho, que esteve
muito próximo aos articuladores da Revolução de 30, como Oswaldo Aranha e Getúlio
Vargas, esses elementos não parecem esgotar a interpretação ideológica de sua obra a
serviço das classes dominantes.
6
Por matriz, Ieda Gutfreind compreende “um tipo de discurso com características
comuns encontradas em um conjunto de obras históricas, cujos conceitos adquirem
significados ocultos, conforme a conjuntura” (GUTFREIND, 1991, p.2).
15
A matriz lusitana arrola argumentos que, em linhas gerais,
construíram uma forte relação do Rio Grande do Sul com o restante do
Brasil:
Com Moysés Vellinho a historiografia da matriz lusa se
aprofundou a partir de 1930 tendo como valiosos colaboradores
Aurélio Porto, Souza Docca e Othelo Rosa que acompanhados
por Moysés Vellinho permaneceram repetindo preocupações com
a origem do Rio Grande do Sul, apenas vinculando-o à Coroa
lusa. Como esse vínculo era unilateral, os temas históricos se
reproduziam, variando a sofisticação da idéia, o achado precioso
do documento (GUTFREIND,1998, p.143).
Para enfatizar os vínculos entre o Rio Grande do Sul e o Brasil, os
historiadores da matriz lusitana buscaram construir uma interpretação
nacionalista-brasileira para a formação histórica sulina e tomaram o gaúcho
sul-rio-grandense como distinto do gaúcho platino. Como se observa na
análise de Gutfreind, é dentro desta matriz que Moysés Vellinho se integra
com a tarefa de “sofisticar” o discurso da matriz:
A obra desse historiador simbolizou a culminância e o
esgotamento do discurso historiográfico sulino nacionalista-
brasileiro. Não que tenha inovado ou encontrado documentos
autênticos ou bebido em fontes fidedignas. Sua tarefa foi
sofisticar e reorganizar, ratificando documentos anteriormente
desenvolvidos (GUTFREIND, 1991, p.40).
Ieda Gutfreind, em virtude de priorizar na sua análise as duas
grandes matrizes de interpretação da formação histórica do Rio Grande do
Sul, não se detém nos discursos específicos dos autores de sua pesquisa. A
ênfase da interpretação está assentada no traço comum percebido nos
discursos dos autores “a partir do papel que desempenharam na formulação
da tese de o Rio Grande do Sul ser luso em sua origem e brasileiro em seus
sentimentos” (GUTFREIND, 1998, p.45). Assim, os autores são
perspectivados de acordo com o papel desenvolvido na construção do
“discurso historiográfico”, em sua matriz lusitana:
16
Aurélio Porto é posto como o lançador desta tendência
historiográfica que se intensifica a partir dos anos 20, Souza
Docca dá continuidade e desloca o discurso, tornando-o mais
convincente, Othelo Rosa expande e aprofunda a matriz
lusitana, cabendo a Moysés Vellinho seu aprimoramento
lingüístico e literário, finalizando a sua trajetória
(GUTFREIND, 1998, p.45).
A análise aqui apresentada privilegia não o “discurso historiográfico”
sulino, mas os vários discursos de um mesmo autor, dos quais o
historiográfico é uma das faces. Discurso que se confrontado com os de
seus pares de Instituto, manterá as especificidades decorrentes da autoria
que, embora possam comportar influências variadas, guardam os detalhes
sintomáticos que os constituem como únicos. A presença do pensamento de
Gilberto Freyre na obra de Moysés Vellinho é um exemplo disso. As
concepções de região do sociólogo pernambucano constituem-se em uma
das principais chaves teóricas importadas para a obra de Vellinho, tendo
possibilitado a este pensar as dinâmicas do regional frente ao nacional.
A atenção ao modo particular como Moysés Vellinho concebe a
identidade nacional do Rio Grande do Sul permite compreender o seu
discurso historiográfico, não como maquiavelicamente deturpador da
realidade, mas visceralmente empenhado em dotar a história sul-rio-
grandense de valores nacionais. A subjetividade acionada na interpretação
histórica de Vellinho o leva até mesmo a refutar o formalismo da crítica
literária, já que tinha que recorrer a “elementos impessoais” na análise. Por
outro lado, na interpretação historiográfica o autor estaria livre para
recorrer aos elementos pessoais. Essa característica explica, em grande
medida, as deturpações ou invenções na reconstrução do passado sob a
inspiração nacionalista do intérprete. Sem esta perspectiva, não se
compreendem as contradições observadas em sua produção, das quais a
mais saliente é percebida na homogeneização da história do Rio Grande do
Sul ao denominador-comum luso-brasileiro. Tal interpretação acabou por
padronizar a região, um espaço que o intelectual compreendia como de
autonomia relativa mediante o centralismo do Estado-Novo. Outro traço
17
incongruente em sua obra é a interpretação racista da história sul-rio-
grandense que exclui os indígenas e se acha em desacordo com sua
compreensão da formação social brasileira, um “povo híbrido e extra-
europeu, portador de novas formas de vida, de um novo tipo de civilização”
(VELLINHO, 1981, p.138). Esses são pontos conflituosos da obra do autor,
e serão desenvolvidos no capítulo segundo onde se analisarão as
especificidades características do seu discurso historiográfico.
Os temas em que Moysés Vellinho se deteve em sua interpretação são
os mesmos priorizados pela matriz lusitana, assentados na concepção
brasileira do gaúcho sul-rio-grandense e na formação lusitana do Estado
(GUTFREIND, 1998). Mas diferem, todavia, nos modos de exposição da
argumentação, na modalização da explicação e na maneira como os fatos
históricos foram acessados documentalmente. A interpretação de Moysés
Vellinho recebe, assim, uma moldura original que a torna única perante a
matriz que integrava. Sem essa preocupação, o nacionalismo presente na
interpretação da história sulina no discurso de Vellinho se daria pela
apropriação artificiosa de temas e não pelo enraizamento profundo das
concepções alheias, reformuladas na escritura. Por isso, esta pesquisa se
atém ao tratamento original da identidade nacional do Rio Grande do Sul,
alcançada por meio do engenho decorrente da autoria.
A identidade nacional almejada para o Rio Grande do Sul é uma
narrativa que se constrói como uma linha invisível que costura os discursos
do intelectual em uma colcha de interesse comum. Como a linha não é
aparente, ela precisará ser reconstruída, para tornar visível a sua forma de
articulação textual. A narrativa da identidade subsiste às faces dos
diferentes discursos, daí por que é possível descobrir uma unidade de
interesses nos escritos de Vellinho: “tais preocupações, cobrindo uma tela
de interesses complexos, uniram o crítico-literário ao pensador” (CESAR,
1979, p.3)
7
. Para analisar as formas que possibilitaram ao intelectual
7
Guilhermino Cesar foi o prefaciador dos livros Aparas do Tempo e Fronteira.
18
realizar a sua narrativa da identidade nacional, foram selecionados alguns
dos discursos que permitissem compreender como é operada a construção
dessa narrativa e em que referências de identidade ela está assentada.
Para a composição do corpus, foram selecionados alguns dos
primeiros escritos publicados no Correio do Povo a partir de 1922
8
,
importantes porque dialogam com a estética propalada pelos modernistas.
Dessa época também são selecionadas as críticas de Paulo Arinos,
pseudônimo de Moysés Vellinho, e Rubens de Barcellos, datadas de 1925,
que polemizam sobre as obras Tapera e Ruínas Vivas e sobre o gaúcho
representado nas obras de Alcides Maya. As críticas a obra de Maya são
retomadas em 1944, onde o crítico, já auto-designado Moysés Vellinho,
manterá os mesmos pontos de vista sobre o caráter falacioso da ficção de
Maya e sobre o gaúcho deste. Este panorama possibilitará verificar como o
crítico põe a obra literária a dialogar com as questões do entorno social. Os
editoriais da revista Província de São Pedro, que compreendem o período
de 1945 a 1957, são outras fontes documentais que serão utilizadas nesta
pesquisa. Elas elucidam os interesses de Moysés Vellinho como editor de
uma revista fomentadora da cultura regional e marcam sua rotatividade para
a produção historiográfica, da qual será priorizada a obra Capitania d’El
Rei: aspectos polêmicos da formação rio-grandense, lançada em 1964.
Como explica Stuart Hall, sem a identidade nacional o sujeito
moderno “experimentaria um profundo sentimento de perda subjetiva”
(2005, p.48). A cultura nacional como uma comunidade imaginada, faz com
que os cidadãos que nela vivam compartilhem sentidos, cujas
representações influenciam as ações deles, estabilizando até mesmo as
noções particulares dos mesmos (HALL, 2005). Isso abre caminho para
compreender o empenho pessoal empregado na construção de uma
8
O intelectual inicia sua produção neste ano e não em 1925 como apontado por Ieda
Gutfreind: “Moysés Vellinho iniciou sua atuação no ambiente intelectual sulino em
1925” (GUTFREIND, 1991, p.26).
19
identificação nacional para o Rio Grande do Sul, mediante a qual Vellinho
procurou coadunar a região sul-rio-grandense ao todo brasileiro por meio
da naturalização de uma identidade nacional para a sua região,
estabelecendo referências pessoais ao mesmo tempo em que estabiliza
categorias sociais.
1 A BUSCA DA CONSCIÊNCIA NACIONAL: UMA NECESSIDADE DE
ÉPOCA
Levantou-se com o passo vagaroso do
costume, não aquele vagar arrastado
dos preguiçosos, mas um vagar
calculado e deduzido, um silogismo
completo, a premissa antes da
conseqüência, a conseqüência antes da
conclusão. Um dever amaríssimo!
Machado de Assis – Dom Casmurro
Esta outra Independência não tem Sete
de Setembro nem campo de Ipiranga;
não se fará num dia, mas
pausadamente, para sair mais
duradoura; não será obra de uma
geração nem duas; muitas trabalharão
para ela até perfazê-la de todo.
Machado de Assis – Instinto de
Nacionalidade
Moysés Vellinho foi desses intelectuais os quais podemos designar
empenhados. Empenhado porque sua vida inteira dedicada às tarefas
intelectuais não teve somente por fim a erudição, e sim, a erudição por um
causa a ser defendida – a identidade nacional do Rio Grande do Sul e de
seu tipo representativo, o gaúcho – causa primeira que se desmembrou em
várias outras subordinadas a coadunar o Rio Grande do Sul às balizas da
nação. O trabalho intelectual para todo pensador engajado deve,
necessariamente, por meio das armas que lhe são próprias – palavra e
argumentação – responder aos impasses que a realidade impõe à reflexão
teórica. Devido à causa empenhada de conferir um lastro luso-brasileiro
21
ao Rio Grande do Sul, Moysés Vellinho conduziu sua obra a serviço direto
dessa verdade. A síntese dos problemas operados em seu discurso decorre
do confronto com as questões que as particularidades histórico-sociais
fomentaram ao intelectual. Sua obra constitui-se mediante um diálogo com
as preocupações imperativas à época, que estavam à procura do traço
definidor da nacionalidade brasileira – que se encontrava em aberto
processo de identificação –, acelerado a partir da segunda década do século
XX. As concepções de Vellinho, profundamente marcadas pelas questões da
época, dialogam, dessa maneira, com a dúvida do que consistia o caráter da
nação brasileira, que não é apenas uma entidade política, mas “um sistema
de representação cultural” (HALL, 2005, p.49), daí o seu empenho,
diametralmente antagônico ao intelectualismo puro.
Buscando analisar o processo de construção da identidade nacional
do Rio Grande do Sul operada por Moysés Vellinho, procura-se delinear,
num primeiro momento, os elementos biográficos que possibilitam
caracterizar o lugar de enunciação de sua fala. Isso permite rastrear sua
inserção nos ambientes a partir dos quais vinculou o seu discurso,
resgatando as principais vozes intelectuais com quem debateu, recebeu
influências ou continuou determinada tradição. Esse trajeto almeja
caracterizar o entorno histórico-social da produção de seu discurso, que
marcou uma época ao mesmo tempo em que foi marcado por ela.
1.1 Um homem de gênio universal-provincial
Moysés Vellinho nasceu em 1901, na cidade de Santa Maria, no
interior do Rio Grande do Sul. Viveu até 1980 em Porto Alegre, onde teve
seu nome perpetuado em um importante centro de documentação municipal,
o Arquivo Histórico Moysés Vellinho. Nota-se, assim, o prestígio que seu
nome alcançou no campo dos estudos historiográficos. Foi intelectual dos
22
mais atuantes no cenário cultural
9
e político
10
sul-rio-grandense, ao longo
de mais de meio século de vida dedicada aos assuntos da sua província.
Suas atividades intelectuais de maior expressividade foram a crítica
literária e o ensaio historiográfico. Sua estréia como crítico se deu em 1922
no Correio do Povo, sob o pseudônimo de Paulo Arinos, identidade
abandonada
11
ao proferir em julho de 1939, na Biblioteca Pública do
Estado, uma conferência sobre aspectos da vida e obra de Machado de
Assis, conferencia esta que deu origem ao seu primeiro livro publicado pela
Globo (VELLINHO, 1979, p.11), editora-livraria tradicional de Porto
Alegre que marcou indelevelmente a sua vida intelectual. Situada na Rua
da Praia, foi um espaço de sociabilidade de idéias e trocas culturais. Os
intelectuais que lá se encontravam foram designados por Augusto Meyer de
“o grupo da livraria” (apud GUTFREIND, p.31), grupo que contou,
inclusive, com as visitas de Getúlio Vargas, quando governador do Rio
Grande do Sul, e do político Oswaldo Aranha, íntimo de Moysés Vellinho,
sobre quem este escreveu um ensaio biográfico em 1978 e a quem dedicou
sua primeira obra historiográfica, Capitania d’El Rei: aspectos polêmicos
9
A título ilustrativo, reproduz-se aqui a cronologia elaborada por Cida Golin (2001) em
ensaio biobliográfico sobre Moysés Vellinho: foi admitido em 1949 no Instituto
Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul (IHGRS), além de ser sócio
correspondente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB); ocupou os
cargos de segundo vice-presidente do IHGRS entre 1950 e 1956 e entre 1964 e 1980 o
de primeiro vice-presidente. Em 1954 foi conferencista do curso Fundamentos da
Cultura Rio-Grandense na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, instituição pela
qual recebeu o título de doutor Honoris Causa em 1979, ano em que foi admitido como
acadêmico correspondente da Academia Portuguesa de História. Presidiu a Orquestra
Sinfônica de Porto Alegre (OSPA) entre 1952 e 1972. Em 1966 é eleito correspondente
da Academia Internacional de Cultura Portuguesa com sede em Lisboa. Em 1980 é
homenageado postumamente como patrono da Feira do Livro de Porto Alegre.
10
Na política eleitoral–partidária e na atuação em órgãos públicos, podem-se destacar
os seguintes feitos: foi chefe de gabinete do secretário do Interior Oswaldo Aranha
entre 1928 e 1930, ano em que assumiu como oficial de gabinete do já então Ministro
da Justiça no Rio de Janeiro por ocasião da Revolução de 30, até 1932. Foi eleito
deputado constituinte pelo Partido Republicano Liberal (PRL) em 1934 e foi deputado
da Assembléia Estadual entre em 1935 e 37, ano da Dissidência Liberal da qual foi
partícipe. O jornal republicano A Federação encerrou suas publicações sob sua direção
em novembro de 1937, período em que ficou sob a responsabilidade da Dissidência
Liberal (Golin, 2001).
11
Quando o intelectual faz referência à troca de nomes, expressa a mudança nos
seguintes termos: “Paulo Arinos morreu, cedendo o seu lugar a Moysés Vellinho”
(VELLINHO, 1979, p.11). A morte de Arinos é somente nominativa, já que Moysés
continua a exercer a função de crítico.
23
da formação rio-grandense, publicada em 1964 e lançada nos Estados
Unidos quatro anos depois.
Sua participação na imprensa como crítico literário se deu entre 1922
e 1927, ano em que escasseou seus artigos por ter assumido cargos no
interior. Sua crítica na impressa continuaria de maneira esparsa até 1929
(VELLINHO, 1979, p.11). No periódico Diário de Notícias, assinou a
Página Literária e no Correio do Povo, respondeu pela coluna Livros e
autores. Foi por meio das páginas desses periódicos sulinos que vinculou
por muitas décadas suas concepções críticas, com uma recepção pública,
vale lembrar, muito mais abrangente do que a recepção marcada pelo
mercado editorial. Moysés Vellinho salientou, inclusive, que suas obras
12
,
especialmente as de crítica literária, nasceram quase todas das páginas do
periódico de Caldas Júnior (BAUMGARTEN, 2001, p.7). Entre seus títulos,
Machado de Assis – histórias mal-contadas e outros assuntos de 1960,
Letras da Província de 1944 e o póstumo Aparas do Tempo de 1981.
A admissão como sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico
do Rio Grande do Sul (IHGRS) em 1949, marca uma mudança de eixo nos
interesses intelectuais de Moysés Vellinho. Tornada rara a sua função
crítico-literária, passa a se aprofundar cada vez mais nos estudos
históricos. Paulo Arinos, o nome que deu autoria aos trabalhos do crítico
literário é solapado pelo de Moysés Vellinho
13
, tornando visível outra
máscara do autor, onde foi mantido, todavia, um mesmo interesse pela
identidade nacional sulina, espécie de pano de fundo dos discursos. Essa
discussão será aprofundada em análise a ser desenvolvida no capítulo
segundo, que se deterá nos argumentos construídos em seus discursos.
12
Vellinho diz não ser detentor de uma obra, e sim de obras eventuais, como ele próprio
afirma. Estas obras foram alinhavadas num contínuo de argumentação que expressou
“certo pensamento que surge já nos primeiros escritos” (VELLINHO, 1979 p.11).
“Sempre defendi o princípio da unidade nacional. Este pensamento é constante em tudo
o que tenho escrito” (VELLINHO, 1979 p.11).
13
O pseudônimo Paulo Arinos foi inspirado no crítico Afonso Arinos, “o grande
regionalista” (VELLINHO, 1979, p.11).
24
Seu empreendimento de maior fôlego foi a concepção, criação e
direção da revista Província de São Pedro, que circulou nacionalmente
entre 1945 e 1957, para quem contribuiu com inúmeros ensaios, além de
assinar os editoriais. Foi pelos editoriais que Moysés Vellinho,
acompanhando de perto “[...] as transformações pelas quais passou a
produção literária em geral e o sistema literário regional”
(BAUMGARTEN, 2001, p.7), forneceu a linha de atuação a que se
pretendia a publicação. A idéia da revista nasceu de uma conversa casual
entre Henrique Bertaso da Globo e Gilberto Freyre, que inicialmente
pensaram em uma publicação amparada por Porto Alegre e Recife que
divulgasse nacionalmente as manifestações de cultura regional
(VELLINHO, 1979, p.10), já que Pernambuco e Rio Grande do Sul eram
dois focos de discussão de assuntos regionais. Embora não vingada a idéia
inicial, a revista projetou de forma ampla o Rio Grande do Sul no Brasil. A
publicação trouxe para a província grandes nomes nacionais, ao mesmo
tempo em que espraiou nomes sulinos para o restante do país, fomentando a
visibilidade cultural às questões locais frente às demais regiões e ao todo
nacional. Aliás, esse é um dos objetivos principais da publicação, como
literalmente ficou explicitado no primeiro editorial da revista:
O que Província de São Pedro deseja não é afogar-se nas
águas rasas da retórica regionalista. É uma publicação
regional. Sem dúvida, faz questão de sê-lo, mas não a animam
exclusivismos localistas. Seu objetivo é o de fomentar, no Rio
Grande do Sul, as obras da inteligência, através do ensaio, da
crítica, da ficção, da poesia, de todas as manifestações do
pensamento (VELLINHO, 1945, p.6). [grifo nosso]
A diferenciação de sentido empregada nos vocábulos localista e
regionalista elucida os objetivos de expandir a cultura regional para além
dos limites da região. Ao fugir do afogamento no localismo, como expressa
a imagem do “afogar-se” a que se refere o autor, isolando-se no fechamento
em si próprio, tem-se o contraponto disto: o destaque do regional que,
emergindo das “águas rasas”, mergulharia em profundidade nas obras da
25
inteligência, buscando, deste modo, o universal, “todas as manifestações do
pensamento” no traço local.
Foi Antonio Candido que em 1946 destacou “[...] um certo
regionalismo aparente demais” em relação à Província de São Pedro, ao
mesmo tempo em que ressalva a sua opinião com a concepção de que “sem
consciência literária regional, não há consciência literária nacional” (apud
GOLIN, p.16). Percebe-se, assim, a preocupação da inteligência da época,
em pensar o caráter brasileiro. Para isso, buscou muitas vezes no regional,
as partes plásticas
14
do nacional, tendo sido Gilberto Freyre sem dúvida,
um dos maiores inspiradores dessa maneira de pensar o Brasil, influência
que está na base das concepções de região utilizadas por Vellinho:
[...] os centros de elaboração mental, quanto mais vinculados à
terra na sua condição de novo ponto de referência aos velhos
problemas do homem, tanto mais se firmará a nacionalidade na
consciência de si mesma. Sem a definição das partes não é
possível a definição do todo. Nem se poderá admitir, já agora,
que o sentimento de unidade de uma pátria de fronteiras quase
ilimitadas se possa consolidar mediante a anulação das
diversidades regionais. Nestas condições, o provincianismo
cultural no Brasil deve ser mais que uma tendência entregue às
suas próprias forças: impõe-se como o mais lúcido dos
programas se queremos chegar à ampla compreensão dos
brasileiros entre si para a definitiva assimilação de uma terra de
dimensões imperiais e que em grande parte ainda se pertence
mais a si mesma que ao homem” (VELLINHO, 1945, p.6).
14
Plástico e plasticidade são termos utilizados por Gilberto Freyre para caracterizar o
gênio luso. São qualidades tradicionalmente moldadas no passado cultural do povo
português, tomado por indefinido entre a Europa e a África (FREYRE, 1981 – a, p.4). A
plasticidade, assim, garante “o bambo equilíbrio de antagonismos” (FREYRE, 1981 – a,
p.4). A maleabilidade do estilo permitido pela plasticidade aparecerá em vários
momentos da obra de Moysés Vellinho e não fará referência exclusiva ao lusitano, mas
a todos os elementos da realidade brasileira inspirados por esse gênio. A história
regional sulina e o seu tipo representativo, bem como as demais diversidades regionais
brasileiras, são modos plásticos de ser nacional, pois constituem variações do mesmo
substrato luso-brasileiro: “ajustada àquele binômio [espírito de aventura e rotina] a
situação regional de aparência menos brasileira, vê-se que a combinação
caracteristicamente lusa dos dois antagonismos ou das duas constantes foi
particularmente intensa no Rio Grande do Sul” (FREYRE, 1981 – b, p.75).
26
A condição necessária para romper o “provincianismo cultural”
brasileiro, que deve sair de sua condição inconsciente de “tendência
entregue às suas próprias forças” para alcançar uma conscientização obtida
através do mais “lúcido dos programas”, evidencia os ares de projeto
empenhado, acelerado pela inteligência brasileira da época, que buscou
firmar a consciência nacional por meio do reconhecimento dos vários traços
particulares identificadores da terra.
1.2 O tempo do qual se fala: a nação em busca da consciência de si
própria
Roland Corbisier, intelectual pertencente ao Instituto Superior de
Estudos Brasileiros (ISEB) acreditava que “[...] enquanto não houve
autoconsciência na história do Brasil, de fato, não houve história. Até a
Semana de Arte Moderna de 1922, sustentava Corbisier, não há
propriamente história, mas pré-história do Brasil” (KONDER, 2001, p.364).
Embora o programa nacionalista do ISEB não tenha uma ligação estrita com
os objetivos desta pesquisa, esse exemplo é utilizado para evidenciar como
se tornou imperativa a necessidade de que é preciso alcançar o
desenvolvimento geral sem prejuízo das características e especificidades
histórico-geográficas brasileiras (MOISÉS, 2001, p.18). Sob essa
perspectiva, a realização da Semana de Arte Moderna de 1922 é vista como
pedra-de-toque na tendência, já iniciada no Romantismo, de tornar o Brasil
consciente de sua expressão particular.
Conceber a história brasileira anterior a 1922 como pré-história,
revela uma frágil ou não bem-decantada consciência de identidade. Assim,
o movimento modernista iniciaria uma ordenação na estrutura da narrativa
da identidade nacional brasileira, tornando-a consciente e fundando-a
historicamente até, já que “a partir de 1922 acelera-se o processo da nossa
identidade histórica, mercê da qual vimos amadurecendo virtualidades e
atualizando latências” (MOISÉS, 2001, p.18). Com o desenvolvimento do
27
programa modernista, a perspectiva antropofágica será melhor digerida,
pois num primeiro momento revelava-se indefinida entre a conciliação de
vanguardas estéticas européias e o trato das raízes brasileiras (BOSI,
1970).
Esse traço aparentemente incongruente deve ser entendido no próprio
contexto de desenvolvimento do recém-iniciado Modernismo brasileiro “em
sua ânsia de acertar o passo com a modernidade” (BOSI, 1970, p.384). A
dissociação metodológica operada pelo crítico entre código e tema
minimiza as incoerências modernistas, precisando o termo modernista
como o caracterizador de um código novo, em desacordo com os
simbolistas e parnasianos (BOSI, 1970, p.373). O termo moderno, por sua
vez, é perspectivado num sentido amplo, designador de um fator de
mensagem, os “motivos, temas, mitos modernos”, em suma, “algo mais que
um conjunto de experiências de linguagem”, como explica Bosi; o que
implicou uma produção poética que “[...] representou também uma crítica
global às estruturas mentais das velhas gerações e um esforço de penetrar
mais fundo na realidade brasileira” (BOSI, 1970, p.373). Bosi minimiza,
assim, a contradição moderno-antimoderno, redefinindo os termos da
discussão, a contradição pode ser explicada mediante os termos moderno e
antimodernista (1970, p.373). Ou seja, o termo moderno possui um sentido
mais amplo que não se restringe às formas de expressão modernistas.
Massaud Moisés, por sua vez, enxerga como ultra-paradoxal a atitude dos
modernistas de 22 que, “sendo antipassadistas, guiavam-se por um ferrenho
nacionalismo, o que significava retomar as tradições legitimamente
brasileiras” (MOISÉS, 2001, p.24), mostrando-se “[...] a um só tempo
modernistas [...] ansiosos de atualidade, e tradicionalistas” (MOISÉS,
2001, p.24). Indigenismo, antropofagia, verdeamarelismo eram um
retrocesso na interpretação de Massaud, já que a utopia estava situada no
passado e não no futuro, descambando o movimento a uma espécie de
paradoxo:
28
[...] o caráter ambivalente, para não dizer esquizotímico, do
nosso Modernismo se enraíza nessa dualidade reativa perante as
novidades introduzidas ou propostas pelas frentes renovadoras
do início do século. Reagiam, portanto, contra o
ornamentalismo, o vernaculismo, o europeísmo parnasiano, ao
mesmo tempo que rendiam reverência a um passado ainda mais
remoto, e além disso reaquecendo um estereótipo romântico,
posto que sob o pretexto de brasilidade e nacionalismo. E
assimilaram soluções futuristas, cubistas e outras, sem
considerar que, assim procedendo, estavam-se submetendo,
tanto quanto os autores que abominavam, aos valores europeus,
não obstante avançados ou vanguardistas” (MOISÉS, 2001,
p.25)
O paradoxo identificado por Massaud no Movimento Modernista está na
reação assumida diante da novidade, instaurada por meio da reverência a
um passado remoto que está para além da colonização lusa. O que é
problemático para o crítico na busca dos modernistas pelas raízes
brasileiras é a pretensão de apagamento do primado colonizatório luso,
como demonstra o trecho a seguir.
Ainda se esqueciam de que o abrasileiramento do Brasil não
podia significar, como julgavam, simplesmente voltar as costas
à influência portuguesa e propugnar pelo retorno às tradições
indígenas, o folclore, etc: de um lado, tombavam no vezo do
passadismo ao remontar às nossas raízes; de outro, o seu
antilusismo eliminava uma parcela considerável dessas próprias
raízes históricas e culturais (MOISÉS, 2001, p. 25)
Para o crítico, é salutar compreender que a busca pelas tradições
legitimamente brasileiras se fazia sem ignorar o português, já que,
histórica e culturalmente, o lastro luso impediu o Brasil, por séculos, de
instaurar a própria alteridade, inclusive nas letras, como evidencia o fato
da literatura nacional brasileira só ter se conflagrado como um sistema
próprio com o Romantismo (CANDIDO, 1997). A preocupação com a
herança portuguesa, repelida pelo nacionalismo modernista, mas tornada
carro-chefe no nacionalismo propugnado por Moysés Vellinho, pode ser
demonstrado no texto a seguir:
29
O sentimento de rebeldia deflagrado nas lutas pela
independência, e que havia de repercutir demoradamente ao
longo do tempo, torna compreensíveis em grande parte os rasgos
de lusofobia em que chegava a descambar o nosso nativismo,
sem olharmos a que com isso estávamos nos ferindo a nós
mesmos, estávamos renegando as nossas próprias raízes
(VELLINHO, 1981, p.132).
Esse sentimento de lusofilia levará o historiador a condições extremas em
sua exegese sobre a formação histórica do Rio Grande do Sul, o que
implicará uma identidade unilinear forjada em traços essencialistas do
caráter português.
Um modernismo transcendente ao código modernista, conforme
expresso por Bosi, parece ser a chave interpretativa que possa esclarecer o
posicionamento assumido por Moysés Vellinho a respeito da existência ou
não do modernismo no Rio Grande do Sul. Em entrevista concedida a Ligia
Chiappini Leite em 22 de fevereiro de 1970, o intelectual negou a
existência do Modernismo no Estado, concepção que foi relativizada pela
entrevistadora. O modernismo a que Vellinho se referia, segundo Chiappini
Leite, tratar-se-ia de um modernismo em termos caracteristicamente
paulistas, modernismo “escandaloso” (LEITE, 1972, p.245), modernismo
modernista demais, como interpreta Chiappini Leite a respeito das opiniões
de Moysés Vellinho:
Para ele, o regionalismo, no Rio Grande do Sul, antecedeu
certas conquistas do Modernismo. O problema do nacionalismo,
por exemplo, aquele desejo de uma volta aos temas, à
linguagem, à gente, às coisas brasileiras, - isto é, o caráter
nacionalista do Modernismo, - já existia concretamente,
plasmado em obras de escritores regionalistas do Rio Grande
(LEITE, 1972, p. 245).
Os ataques de Moysés Vellinho aos modernistas (especialmente aos
códigos modernistas) se deram por meio das páginas do Correio do Povo e
ocorreram quase concomitantemente à realização da Semana, já que o
30
crítico foi inteirado dos acontecimentos ocorridos no Teatro Municipal,
poucos dias depois, por intermédio de um “ruidoso” (ARINOS, 1922)
telegrama de São Paulo. Seu ataque deu-se por meio de uma crônica
intitulada Bendita Vaia
15
, que constituiu, segundo Chiappini (1972, p.338),
na primeira manifestação que aparece na imprensa gaúcha sobre os
modernistas, então designados de futuristas pelo crítico. A crônica exaltou
o repúdio do público presente à Semana: “bem hajas, oh! Paulicéia, que
atentaste uma cultura bastante para tripudiares sobre os troféus de uma arte
infeliz, que nasceu morta!” (ARINOS, 1922). A falência do movimento,
presente na mortalidade já observada ao momento do nascimento, é
desenvolvida no trecho seguinte, onde o crítico, abusando de figuras de
linguagem e dos torneios semânticos, vai provendo de significados a
Semana de Arte Moderna:
E o futurismo? Reação, talvez, da infecundidade, não é o
futurismo mais que um adubo diabólico, fertilizante de saharas,
nos quais desenvolve plantas monstruosas que apenas medradas,
as tina o bafo causticante das soalheiras do deserto. Ou é isto,
ou, então, um veneno viperino que mata, implacável, as mais
belas florescências de um espírito destinado a rumos concretos,
para os quais devera abalar
(ARINOS, 1922).
O movimento, assim, mesmo constituindo uma reação à infecundidade
parnasiana, não passaria de um “adubo diabólico”, fertilizador de coisa
alguma, já que fertilizador de desertos. O modernismo é, desta forma,
igualado à esterilidade parnasiana. O contraste semântico entre a
infecundidade e o adubo dá lugar ao paroxismo presente na função do
adubar infecundo, fazendo igualar em aridez o novo movimento àquele que
pretendia suplantar em potencialidades. A essas imagens é agregada a do
“veneno viperino”, que empresta um terceiro designativo ao grupo, todos
eles marcadores da mesma função semântica, a da morte. Para encerrar a
crônica, não é preciso mais que o sepultamento irônico: “[...] à
insustentável e desajeitada escola futurista, minhas respeitosas
condolências” (ARINOS, 1922).
15
A precisão da página foi impossibilitada em virtude do mau-estado do original.
31
As críticas atacam a falta de harmonia das manifestações
modernistas, que é expressa no desequilíbrio apontado por Moysés
Vellinho: “é uma lei da física que tudo quanto carece de equilíbrio, cai. O
futurismo, caso tenha centro de gravidade, é nos pés” (ARINOS, 1922). A
crônica finaliza elogiando a sensatez de Monteiro Lobato que, como se
sabe, foi um dos maiores tripudiadores das renovações modernistas, postura
já delineada, na célebre crítica à exposição de Anita Malfatti de 1917,
intitulada Paranóia ou Mistificação (MOISÉS, 2001, p.14). Assim, Lobato
encarnaria o equilíbrio, faculdade que careceria aos modernistas, de uma
“arte legítima e compreensiva, como aliás soem ser todas as criações
duradouras, uma arte que dispensa intérpretes, outros que a mesma alma
nacional, que todos temos latejante” (ARINOS, 1922). É movido por ideais
como este, de defesa de uma arte possível de interpretação pela “alma
nacional”, possivelmente porque fala do corpo nacional, que Moysés
Vellinho passará a defender o Modernismo logo depois, quando esse tiver
melhor perspectivado o trato estético das particularidades nacionais. Esse é
o vagar calculado e deduzido que marca a cadência das críticas de Paulo
Arinos ao Modernismo, do repúdio irônico à aceitação incondicional do
programa nacionalista dos modernos. Quando o crítico julgar maduras as
aspirações nacionalistas da nova arte brasileira, passará a defender o
movimento na imprensa.
É precisamente no dia 02 de setembro de 1923, através da
conferência intitulada Variações sobre a moderna poesia no Brasil,
publicada no Correio do Povo, que Moysés Vellinho passa a defender o
Modernismo, não o enxergando como uma escola em virtude das variações
individuais, mas guardando como traço comum a necessária reação ao
movimento parnasiano (LEITE, 1972, p.58). Para o crítico, o Parnasianismo
cuidou “[...] de cercear no verso justamente seu motivo de ser: a poesia
sentida” (ARINOS, 1922). Esse movimento cumprira, ao ver de Vellinho,
uma função histórica, já esgotada, a de disciplinar o verso que fora posto
muito em liberdade pelo movimento romântico (LEITE, 1972, p.58). A
urgência histórica do Modernismo estaria assentada na simplicidade e
32
espontaneidade trazidas à poesia em contraponto à inteligência (LEITE,
1972, p.58). O motivo da reatualização das velhas formas estéticas é uma
das principais críticas a Alcides Maya, romancista sul-rio-grandense
criticado por Vellinho (a ser analisado no próximo capítulo), devido ao
emprego de uma forma passadista e inundada de verbo (VELLINHO, 1960,
p.12), deixando pouco espaço para a terra se mostrar em sua
particularidade.
É especialmente por meio da vinculação do Modernismo ao programa
nacionalista que o crítico defende a potencialidade e a criatividade do
Movimento, apesar da cautela de quem fala “da margem da corrente”
16
com
um “misto de simpatia pelo instinto criador que ela traz e de amável
indiferença pelo seu ânimo demolidor”(ARINOS, 1924, p.3). A aceitação
cautelar do Modernismo se faz por meio da retomada da preocupação
romântica em retratar a terra:
Na fermentação atual, a princípio, sem orientação definida,
eu vejo acentuar-se, sobranceando as demais, uma tendência
nacionalista, que visa incorporar às nossas cogitações
estéticas os motivos brasileiros. E pela nova estima que vão
merecendo Gonçalves Dias, Alencar e Castro Alves, que,
embora confusamente, souberam afirmar a grandeza tropical,
cuido que tentamos reatar o fio da nossa verdadeira evolução
mental, tanta vez interrompido pela encomenda de mestres
exóticos (ARINOS, 1924, p.3). [grifo nosso]
O interesse de base sociológica com um tônus nacionalista aparece cada
vez mais presente nos escritos de Vellinho vinculados pela imprensa, já que
em suas análises a significação sociológica acompanhará, em muitos
momentos, o juízo da expressão literária.
Isso evidencia como o crítico empenhado se sobressai ao crítico
impressionista, responsável por afirmações como esta: “eu não tenho
16
Da margem da corrente é o título da crônica.
33
preferência em arte. Tudo quanto me comove, me basta, me satisfaz. Tanto
é verdade que sabemos acerca dos nossos desejos menos do que
vulgarmente contamos saber. Uma imagem que me toque a sensibilidade,
traz-me logo rendido, venha ela de onde vier, seja satânica ou
piedosa”(ARINOS, 1924, p.3). Esse traço de compleição estética passível
de realização plena no individual parece antitético se confrontado a
enunciados como o seguinte, no qual Vellinho destaca a falência da obra de
Alcides Maya como manifestação de uma coletividade: “sua obra vale mais
como expressão individual do que como expressão coletiva” (VELLINHO,
1960, p.12). Não é possível esgotar uma interpretação sobre as incoerências
ou simplesmente transformações valorativas do juízo estético presente na
crítica literária de Moysés Vellinho, dos quais os enunciados aqui presentes
não pretendem mais do que apontar algumas antinomias sintomáticas, sem
nenhuma pretensão de tomá-las como símbolos de toda a sua produção
crítica.
Os compromissos da literatura em retratar as particularidades
brasileiras parecem se sobrepor em importância aos interesses da fruição
estética pessoal. É a potencialização doinstinto de nacionalidade”
(ASSIS, 1999) que liga os escritores uns aos outros (CANDIDO, 1999) na
procura de uma arte possível de interpretação pela “alma nacional, que
todos temos latejante” (ARINOS, 1922). Moysés Vellinho, crítico
empenhado nas questões de seu tempo, aplaudia a definição do traço local
nas criações brasileiras para possibilitar que os intérpretes se reconheçam
nas obras. O crítico estava, assim, muito próximo daquilo que Machado de
Assis, ainda no século XIX, postulava como uma necessidade para as
literaturas em formação: que o escritor se alimente de sua região, por meio
de “certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu
país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço
(ASSIS, 1999, p.18).
34
Na crônica O Sonho dos modernos, Moysés Vellinho explicita sua
efetiva adesão ao Movimento Modernista, especialmente porque este é o
responsável por conflagrar o “nosso ritmo” (ARINOS, 1924, p.3). O ritmo
particular é a marca nacional a qual os novos escritores brasileiros estariam
conscienciosos de criar, pois “eles não acreditam numa harmonia oficial e
entenderam de criar a harmonia dos trópicos” (VELLINHO, 1924, p.3).
Esta concepção de uma harmonia imanente a terra é o desejo de revelar a
particularidade brasileira. Uma realidade que por muito tempo, como
explica Damatta, fora tomada como algo indefinido, entre o trópico e
Portugal, o Brasil como “um conjunto doentio e condenado de raças que,
misturando-se ao sabor de uma natureza exuberante e de um clima tropical,
estariam fadadas à degeneração e à morte biológica, psicológica e social
(DAMATTA, 2000, p.11). Contra essa degeneração projetada por olhos
alheios, incapazes de enxergar o outro, é que Vellinho trazia latente uma
vontade de enxergar o Brasil tal como ele é, não europeu, mas de raiz
portuguesa, algo que urgia pela conscientização de seu traço próprio, que
“bárbaro ou não, [...] seja nosso”(VELLINHO, 1924, p.3). A nacionalidade
brasileira se faz descoberta por meio das formas que possam expressá-la em
sua face particular. Face esta que, como acreditava Machado de Assis
(1999), se desvelava na instintiva busca das cores locais. Para Vellinho, o
“ritmo” próprio brasileiro deve levar em conta o legado luso que, devido à
colonização, impediu o Brasil de se enxergar como realidade própria por
um largo tempo, aquele que Corbisier definiu de “pré-história do Brasil”,
porque pré-consciente de sua identidade:
Da Europa trouxemos, com os primeiros colonizadores, uns
rudimentos de cultura e civilização, de que guardamos a mais
obstinada memória [...] Mas isto não quer dizer que nos
cerremos as portas ao sol americano. Pelo contrário: deixemo-lo
que nos banhe de cheio e que nos queime a epiderme delicada.
Não é que pretendamos neutralizar a ancestralidade lusitana
que trazemos. Nem queremos, tampouco, anular-nos dentro
da nossa natureza. Mas comunguemos com ela tanto quanto
possível, invoquemos a sua força, emprestemos-lhe o nosso
gênio, que breve teremos um ritmo nosso, inconfundível,
diferente de todos ritmos. É tempo de criá-la. Vivamos a nossa
vida. Sejamos mestres de nós mesmos. Somemos os nossos
caracteres dispersos e formemos uma personalidade
nossa...”(VELLINHO, 1924, p.3). [grifo nosso]
35
A busca de uma síntese compreendida no “ritmo nosso” ou da
“personalidade nossa”, deveria conjugar a memória do colonizador que
estaria guardado no caráter brasileiro, mas que tem seu corpo marcado pelo
“sol americano”, o que garante uma realidade única e particular que carece
ser descoberta em sua especificidade, já que antes de Gilberto Freyre, como
salienta Vellinho, “vivíamos enfeudados ao preconceito de que
culturalmente éramos apenas um prolongamento ultramarino do Velho
Mundo” (1981, p.129). Ser mestre de si mesmo é criar as próprias
referências de identidade, e para Vellinho, já “é tempo de criá-la”. Sem
essa criação de estilo, como brinca Damatta, o brasil não seria o Brasil,
seria “[...] objeto sem vida, autoconsciência ou pulsação interior”
(DAMATTA, 2000, p.11).
1.3 A consciência particularizada: a nação por meio da região
Como se observou, Moysés Vellinho passa a defender a estética
modernista especialmente por causa da vertente nacionalista, um traço que
o crítico julgou valer a pena na “fermentação” (ARINOS, 1924, p.3) do
Movimento Modernista. O crítico estava de acordo, portanto, com os
modernistas de 22 que se propunham a “[...] abrasileirar o Brasil,
sustentados nos três princípios que Mário de Andrade apontou como
fundamentais: “‘o direito permanente à pesquisa estética; atualização da
inteligência artística brasileira; e a estabilização de uma consciência
criadora nacional’” (ANDRADE apud MOISÉS, 2001, p.24). Esses três
pontos são defendidos por Moysés Vellinho, e são especialmente evidentes
nos exemplos da necessária superação da escola parnasiana mediante a
criação de novas formas estéticas e na aplaudida tomada de posição da
intelectualidade brasileira, que desestabilizaria a antiga, tomada por vadia
17
(ARINOS, 1924, p.3). Esses dois pontos aliados definiriam a “consciência
criadora nacional”, postulada por Mário de Andrade e precisada por
17
“Já não prevalece a estagnação vadia da nossa intelectualidade” (ARINOS, 1924,
p.3).
36
Vellinho em termos de busca do ritmo próprio (ARINOS, 1924, p.3)
brasileiro.
Acontece que, no caso de Moysés Vellinho, o tão almejado traço
nacional era compreendido quase como uma abstração, se não se atentasse
para as definições locais brasileiras. A totalização referencial da identidade
nacional necessita das antíteses pululantes regionais, como foi
desenvolvido pelo crítico no editorial 1 de A Província de São Pedro ao
defender a linha de ação da publicação:
Província de São Pedro procurará manter em permanente ordem
do dia, afora os assuntos de interesse geral e permanente, os
temas e motivos da formação rio-grandense e de sua evolução
dentro dos limites maiores da nacionalidade. A discussão e o
livre debate em torno da nossa integração histórica e da nossa
sedimentação social conduzem, forçosamente, ao adensamento
cultural do meio e do enriquecimento espiritual do brasileiro
que aqui se fixou para construir a sua querência e que, como os
demais patrícios, ainda anda em busca de si mesmo na escassez
humana da paisagem” (VELLINHO, 1945, p.7). [grifo nosso]
Observa-se no trecho citado a presença de um esquema interpretativo no
qual o nacional desenvolve-se na região que está forçosamente dentro dos
“limites maiores” daquele. O reconhecimento de uma história sul-rio-
grandense, a partir de seus “temas e motivos” próprios, propicia o
“adensamento cultural do meio” que permitiria a tomada da consciência
nacional, enriquecedora espiritual do brasileiro. O brasileiro abstrato
porque inconsciente de si, vai ser munido de definições locais, concretas,
para se corporificar no gaúcho ou nos demais “patrícios”, brasileiros de
outras regiões.
Uma grande influência para o pensamento de Moysés Vellinho,
especialmente no tocante a este movimento de compreensão pendular
regional-nacional, foi Gilberto Freyre, que recém-egresso dos Estados
37
Unidos, articulou em torno de si nomes locais nordestinos no chamado
Movimento Regionalista, que também contou com sua semana, a Semana
Regionalista do Recife. As principais tendências podem ser lidas no
Manifesto Regionalista de 1926, que, conforme as palavras do prefaciador
18
do Manifesto, “fecundou mais de uma zona de sensibilidade ou de cultura
brasileira, abriu-lhe meios novos de expressão ainda hoje visíveis em
revistas e movimentos de jovens, intitulados ‘Região’, ‘Nordeste’,
‘Província’ [de São Pedro, provavelmente], ‘Clã’, ‘Bando’ e até há pouco
tempo ‘Planalto’” (FREYRE, 1955, p.6).
Segundo o sociólogo Ruben Oliven, o Manifesto Regionalista é
significativo em seu diálogo com o Modernismo de 22, ao problematizar a
atualização do Brasil em consonância com os modelos estrangeiros. Ao
mesmo tempo em que concebe a região como microcosmo onde se
estabelecem as raízes mais íntimas das características brasileiras (1992).
Assim, nas palavras de Gilberto Freyre, a realidade brasileira “[...]
regionalmente deve ser estudada, sem sacrifício do sentido de sua unidade,
a cultura brasileira, do mesmo modo que a natureza; o homem da mesma
forma que a paisagem” (FREYRE, 1955, p.18).
O Regionalismo nordestino se constituiu de forma autônoma frente ao
modernismo paulista (CHACON, 2001, p.60). O que não impediu um
contato dos autores locais com o grupo de São Paulo e conseqüentes
absorções poéticas das liberdades modernistas, “apesar das resistências
emocionais que um Gilberto Freyre e um José Lins do Rego sempre
opuseram à franca admissão de uma presença modernista anterior e paralela
às profissões de fé regionalistas de ambos e de outros” (BOSI, 1970,
p.388). De qualquer forma, o modernismo nordestino, como o próprio
Alfredo Bosi salienta, teve sua face própria e não foi uma derivação de São
Paulo (1970, p.388). Gilberto Freyre, que já estivera como convidado no
18
Prefaciador identificado apenas pelas iniciais AR, não sendo possível precisar sua
autoria.
38
ateliê de Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade em Paris, achava que
havia entre estes muito de estrangeirismo, daí, em parte, sua recusa
modernista e conseqüente apego às “realidades regionais concretas do
Brasil” (CHACON, 2001, p.72). A necessidade de mergulhar nas
profundidades concretas das experiências brasileiras fez o grupo
regionalista minimizar a experiência da Semana de São Paulo, tal qual o
crítico sul-rio-grandense em sua Bendita Vaia, como exemplifica o
testemunho de José Lins do Rego sobre a interpretação de Gilberto Freyre
sobre a Semana de Arte Moderna de São Paulo:
O rumor da Semana de Arte Moderna lhe parecia muito de
movimento de comédia, sem importância real. O Brasil não
precisava do dinamismo de Graça Aranha, e nem da gritaria dos
rapazes do Sul; precisava era de se olhar, de se apalpar, de ir às
suas fontes de vida, às profundidades de sua experiência (REGO
apud CHACON, 2001, p.72).
A crítica literária antecedeu as preocupações com relação à “[...]
necessidade do respeito às peculiaridades regionais do Brasil” (CHACON,
2001, p.61), como demonstra a obra História da literatura brasileira de
1888, de Sílvio Romero, que foi o primeiro, como salienta Chacon (2001,
p.26), a fazer uma conexão da historiografia com a literatura no processo
de conscientização da brasilidade, sendo por isso, inclusive, acusado de
sociologismo por José Veríssimo:
Se não é possível confundir as populações do Norte com as do
Sul em pequenos países europeus...por que hão de confundir o
Pará, Pernambuco ou o Ceará com São Paulo, Rio Grande ou
Paraná!? A vida histórica nestas regiões, tão distantes entre si,
não tem sido sempre a mesma (ROMERO apud CHACON, 2001,
p.60).
Essa citação explicita bem como as especificidades regionais começaram a
ser perspectivadas a partir de suas realidades próprias, fugindo do risco das
descaracterizações que pudessem incorrer em confusões ocasionadas não só
pelas distâncias geográficas, mas principalmente pelas peculiaridades
39
históricas das diferentes regiões, pois, como interpretava Gilberto Freyre,
“‘dentro da imensidade quase continental desta parte da América, natureza
e cultura têm as suas próprias subdivisões. Por isso mesmo precisa o Brasil
defender-se permanentemente dos próprios inimigos internos do
regionalismo orgânico’” (FREYRE apud VELLINHO, 1970, p.7). As
peculiaridades necessitam ser respeitadas sem incorrerem no bairrismo, um
sentimento menor para Gilberto Freyre. O regional, para este, deveria estar
subordinado à brasilidade e ao universalismo. Universalismo que é herança
do gênio português, já que “as diferentes regiões se conciliam através do
lusismo, comum, com o universalismo essencial” (FREYRE, 1942),
concepção que inspirará Moysés Vellinho a tomar a região como parte
plástica do nacional na interpretação sobre a formação histórica sul-rio-
grandense, questão que será apurada no próximo capítulo.
A influência freyreana não se mostra puramente teórica em Vellinho;
os indícios indicam que Gilberto e Moysés eram amigos, correspondentes e
admiradores mútuos das obras um do outro. Quando Gilberto fora agredido
em 1942 pela polícia política do Estado-Novo no Recife, Moysés Vellinho
remete-lhe carta, que atesta a proximidade dos intelectuais, datada de 25 de
julho 1944:
ontem soube, e ainda assim causalmente [sic], da covarde
violência de que V. foi vítima em Recife. Agressão não a V.
propriamente, que está acima dessa miséria, mas à cultura
mesma do Brasil, que tem em V. e na sua obra uma das suas
expressões substanciais. [...] Com esta portanto vai o afetuoso
abraço de solidariedade do amigo muito grato e sincero
admirador (VELLINHO apud CHACON, 2001, p. 81)
19
.
Gilberto Freyre, em ensaio intitulado Moysés Vellinho e sua interpretação
do Rio Grande do Sul, compilado na obra Pessoas, coisas e animais, elogia
Moysés Vellinho de “crítico admiravelmente lúcido e, ao mesmo tempo,
19
Carta pertencente ao Arquivo da Fundação Gilberto Freyre, localizada em Recife,
Pernambuco.
40
fraternalmente generoso” (FREYRE, 1981, p.74). Outro índice de
admiração intelectual se refere ao fato de Freyre ter dedicado a Moysés
Vellinho (juntamente com Vianna Moog e Gastão Cruls) a sua obra Uma
cultura ameaçada: a luso-brasileira de 1942. Ao relatar ter lido um ensaio
sobre Alcides Maya, Gilberto Freyre declara a sua experiência de leitor de
Moysés Vellinho: “me parece um dos melhores estudos críticos já
aparecidos no Brasil sobre o ethos rio-grandense-do-sul surpreendido numa
de suas expressões mais provocantes: o gauchismo” (FREYRE, 1981, p.74).
Moysés Vellinho se convertera, a despeito da participação na
Revolução de 30, num crítico do centralismo e da ditadura do Estado-Novo
à época do regime, como explicita a alfinetada ao centralismo varguista no
editorial 1 de Província de São Pedro, que alude os “que vêem com temor a
vocação do país à multiplicidade cultural [...]” (VELLINHO, 1945, p.6).
Essa opinião é mantida até o final de sua existência, quando afirma, em
entrevista, que a grande política de Província de São Pedro era a afirmação
contra o Estado-Novo e o “ditador de coisa nenhuma”, por isso, “o estímulo
que buscávamos dar à literatura que procurava crescer nos diferentes cantos
do Brasil” (VELLINHO, 1979, p.10). Os partidários do centralismo,
supostos temerosos da multiplicidade cultural, são designados no mesmo
edital de “maníacos” em plena era de queima das bandeiras estaduais: “se
de tudo resultar uma nova afirmação das nossas peculiaridades regionais, é
bem possível que os maníacos da centralização se encham de suspeitas e
temores. Não faz mal” (VELLINHO, 1945, p.7). Nessa conjuntura de
centralização política e administrativa “qualquer forma de regionalismo,
mesmo dialetal ou simbólico, era vista como perigosa e passível de
repressão” (ALMEIDA, 1977, p.76).
No caso de Moysés Vellinho, as influências freyreanas são bem
diagnosticadas na concepção da região como unidade orgânica do nacional
e no enaltecimento da lusitanidade, que empresta lastro comum às
41
diferentes formações regionais. Essas concepções modelarão a
interpretação histórica da formação sul-rio-grandense, apreendida sob um
enfoque que permite contemplar o nacional pensado pelo regional que não
lhe será antagônica, mas, pelo contrário, fornecerá unidade ao nacional:
“creio visceralmente que esta unidade é a própria razão da existência da
vida brasileira, e a história do Rio Grande do Sul, fora disto, quase que
perde seu sentido mais nobre” (VELLINHO, 1979, p.11).
A interpretação de Moysés Vellinho busca espantar concepções que
tomavam o Rio Grande do Sul como terra sem nenhum caráter, ou de
caráter dúbio porque de influência platina. Vellinho, para rebater essas
concepções, definirá com tintas pesadas o traço luso-brasileiro da formação
sulina, levando à condição de periférico tudo o que for considerado
desviante a esse caráter aglutinador, já que as particularidades sulinas
seriam “sempre animadas por aquilo que se pode chamar – mais que
instinto – consciência de integração nacional” (VELLINHO, 1962, p.116).
Imbuído dessa consciência, outrora tomada por instinto na interpretação de
Machado de Assis, Vellinho minimizará as particularidades locais para que
estas não corrompam o movimento de integração nacional: “será que se
pretende converter a história rio-grandense, tão inteiriça, tão vigorosa no
seu sentido e suas afirmações, numa espécie de terra neutra, politicamente
indiscriminada, sem caráter nacional?” (VELLINHO, 1970, p.120).
2 A IMAGEM DE UM RIO GRANDE DO SUL NACIONALIZADO
ATRAVÉS DAS MÁSCARAS DE SEU AUTOR
A instabilidade em que até hoje temos vivido, sem
atinarmos, ainda, com o verdadeiro ritmo que há
de, um dia, presidir ao duplo movimento estético e
moral da nacionalidade[...]
Paulo Arinos
Estremecemos ao pensar no que é preciso de
buscas para chegar à verdade sobre o mais fútil
pormenor.
Stendhal
Dando continuidade à análise da identidade nacional do Rio Grande
do Sul construída no discurso de Moysés Vellinho, o presente capítulo
objetiva examinar os meios formais pelos quais o intelectual manipulou
esta identidade em seus enunciados. A identidade nacional do Rio Grande
do Sul formulada – e tautologicamente reafirmada ao longo da obra de
Moysés Vellinho – será aqui analisada por meio de três eixos temático-
discursivos: o gaúcho, os heróis formadores da tradição sulina e a formação
histórica do Rio Grande do Sul. A construção de uma verdade, como a
verdadeira identidade nacional do Rio Grande do Sul efetivada por
Vellinho, pode ser uma tarefa longa, trabalhosa e múltipla em seus
caminhos, conforme lembra a referida epígrafe de Stendhal. A busca pela
compreensão desta identidade exige caminhos interpretativos não-retilíneos
que possam alcançar a interpretação, esse sutil maior. O pormenor
nacionalista luso-brasileiro é uma verdade comezinha que salta aos olhos
de quem se deparar com a obra de Moysés Vellinho. São
43
páginas que exigem uma leitura indiciária do leitor, se este não se quiser
deixar impressionar pelas leviandades do dito. É preciso atenção para os
modos de enunciação das verdades de Moysés Vellinho que, longe de serem
passíveis de captação textual, necessitam ser reconstruídas analogicamente
para possibilitar ao intelectual falar o que não disse ou disse de forma
maquiada nos meandros da ironia ou das “[...] sutilezas do seu pensamento,
que sugere mais do que diz” (BARCELLOS, 1925, p.3).
A extensão da identidade nacional ao Rio Grande do Sul e ao seu
tipo representativo, concepção-mestra das preocupações de Moysés
Vellinho, necessita uma pesquisa de sua produção que se movimente como
um pêndulo entre os domínios crítico e historiográfico nos quais o
intelectual atuou. A particularidade multifacetada de Vellinho necessita
que se ligue o crítico ao historiador, de maneira diferente ao da junção
operada por Ieda Gutfreind, que interpreta Moysés Vellinho como o
amálgama do crítico, do historiador e do político, os quais “fundem-se
numa só pessoa” (1991, p.17). Que se fundem em uma só pessoa as
distintas atividades intelectuais não se poderia duvidar, mas acredita-se
problemático juntar o crítico e o historiador – dois autores de discursos
distintos – num único sujeito. Antes parecem dois estilos particulares que,
aproximados, revelam um a face do outro, respondendo cada um, mediante
forma específica, à mesma dúvida de identidade.
É possível pensar nas facetas do crítico e do historiador num sentido
muito próximo ao da persona latina, com o significado desenvolvido a
partir das máscaras dos atores, utilizadas conforme o papel a desempenhar
(ELIAS, 1994, p.131). É através da máscara que o ator fala. No caso de
Vellinho, do crítico nasceu o historiador, mas crítica literária não é
conhecimento histórico, são discursos que soaram por trás de máscaras
específicas. Essas duas áreas do conhecimento, temporal, institucional e
44
mesmo nominalmente
20
desligadas uma da outra na vida intelectual de
Moysés Vellinho, são aproximadas porque há um fio arraigado que as une
em sua preocupação estruturante. Afinal, o ator que está por trás das
máscaras é o mesmo, e é com esse sentido que se pode perceber a
vinculação entre Paulo Arinos, crítico
21
, e Moysés Vellinho, historiador.
Relação de permuta entre as duas personas que acabam por estabelecer,
como acredita Flávio Loureiro Chaves, “a coerência da múltipla atividade
intelectual de Moysés Vellinho, onde se alternam o historiador e o crítico,
duas faces da mesma personalidade, uma completando a outra” (CHAVES,
1979, p.17). Tem-se, assim, Paulo Arinos, o ensejador de uma literatura
que possa revelar o traço nacional, e Moysés Vellinho, o arquiteto de uma
interpretação nacional para o Rio Grande do Sul.
Assim, dialoga-se com os dois discursos que percorreram aquilo que
o próprio Moysés Vellinho respondeu sem explicitar formalmente como
pergunta em seus esforços de pensar as relações da face particular nacional
com o universal. Relações transmalhadas numa ‘‘‘coisa, acaso indefinida
mas real, que é o íntimo e inconsciente nacional, produto da história, da
raça, da geografia, dos instintos tradicionais’” (apud CESAR, 1981, p.21).
O que é isso, senão a formalização de uma dúvida identitária, dúvida mais
subliminar do que a formalmente explicitada, por exemplo, na obra de
Roberto Damatta O que faz o brasil, Brasil? O que aparece consciente no
discurso de Vellinho é a explicitação do resolvido, da solução encontrada
para a pergunta, pois é a resposta que se deixa mostrar impudica no
discurso; a pergunta, embora norteadora, serpenteia indefinida em muitos
pontos. A dúvida sobre a identidade nacional sul-rio-grandense necessita
ser reconstruída indicialmente por meio dos artifícios explicitados na
20
A identidade Paulo Arinos foi abandonada em 1939, como afirmado no capítulo um.
Sua última obra de crítica literária foi Letras da Província de 1944, com autoria de
Moysés Vellinho.
21
A crítica de Moysés Vellinho “torna-se ao mesmo tempo literária e sociológica, isto
é, busca pensar o texto em seu contexto. O discurso literário mantém a autonomia
certamente, mas cabe ao crítico a tarefa de relacioná-lo aos demais sistemas de valores
que compõem a vida social” (CHAVES, 1979, p.17).
45
resposta, já que “quando as causas não são reproduzíveis, só nos resta
inferi-las a partir dos efeitos” (GINZBURG, 1990, p.169).
Foi a preocupação de identificar o gaúcho que tonificou a polêmica
entre Paulo Arinos e Rubens de Barcellos
22
em suas críticas literárias sobre
duas conhecidas obras de Alcides Maya, Tapera: cenários gaúchos e Ruínas
Vivas: romance gaúcho. Essas críticas fizeram a consciência social sul-rio-
grandense voltar-se sobre si mesma, reavaliando a sua identidade
(CHAVES, 1979, p.25). Neste embate de argumentos marcadores de
posturas, duela-se pela nominação e caracterização do tipo representativo
sul-rio-grandense, se este poderia ou não ser expresso no termo gaúcho,
com todo o peso da tradição que o termo carregava. Esse foi o eixo
principal das críticas de Arinos e Barcellos que tangenciaram, em grande
medida, a interpretação puramente formal
23
da obra literária.
2.1 O gaúcho moderno e nacionalizado: da crítica literária ao discurso
historiográfico
A análise desenvolvida neste item almeja uma interpretação sobre a
identidade do gaúcho ensejada por Moysés Vellinho. Essa identidade foi
inicialmente plasmada na crítica literária sobre o romance Ruínas Vivas e o
volume de contos Tapera de Alcides Maya
24
. Sua crítica, inicialmente
publicada em 1925 sob o pseudônimo de Paulo Arinos, perpassa o tempo e
alcança a crítica de Moysés Vellinho dos anos 40, mantidos os principais
pontos de vista sobre a obra de Maya. As concepções de Vellinho sobre o
22
Rubens de Barcellos (1896–1951): Seus ensaios histórico-sociológicos foram
reunidos no volume Estudos rio-grandenses lançado em 1955 (CHAVES, 1979).
Ingressou no IHGRS em 1924 (GUTFREIND, 1998).
23
Como explica Flávio Loureiro Chaves, a reflexão crítica de Moysés Vellinho “transita
do juízo estético para a articulação com a totalidade do painel social, da avaliação do
mérito literário para sua integração no processo cultural” (CHAVES, 1979, p.17).
24
Alcides Maya (1878–1944), ensaísta crítico-literário e contista-romancista. Entre as
suas obras de ficção se encontram Ruínas Vivas de 1910, Tapera de 1911 e Alma
Bárbara de 1922.
46
que é o gaúcho são transpassadas, em suas principais linhas de
interpretação, para o seu discurso historiográfico iniciado na década de 60.
A primeira crítica de Paulo Arinos foi estampada nas páginas
dominicais do Correio do Povo
25
de 16 de agosto de 1925, sob o título de O
papel da nova geração. A réplica foi acionada por Rubens de Barcellos,
publicada no domingo seguinte com uma aditivação no título: O
regionalismo e o papel da nova geração. A polêmica adquire tons próprios
de debate e se acirra com Guerra à saudade, de Paulo Arinos, publicada no
dia 30 de agosto. Rubens de Barcellos responde com o ensaio Regionalismo
e Realidade no primeiro domingo de setembro. Os embates entre os dois
intelectuais têm fim com Moysés Vellinho em 15 de setembro com a crítica
Pessimismo e realidade, numa réplica ao ensaio anterior de Barcellos.
Moysés Vellinho interpreta as obras Ruínas Vivas e Tapera como
saudosistas, especialmente devido aos títulos, os quais os conteúdos só
viriam a corroborar. Assim, na interpretação do crítico, que são ruínas,
que é tapera, senão destroços? Lembranças de coisas que se foram... Coisas
mortas ou morrendo...” (ARINOS, 1925, p.8). Alcides Maya narrou em suas
obras, segundo a compreensão do crítico, o esmorecimento da figura do
gaúcho de maneira dolorosa, pois
[...] não lhe fora possível reprimir a dor, uma grande dor, ante
os despojos dispersos de sua nobre raça, filha da aventura das
‘bandeiras’ e de um longo e sangrento reencontro entre
espanhóis e portugueses. Quem um dia imaginou os seus
irmãos heróis em retirada não soube vencer as lágrimas”
(ARINOS, 1925, p.8).[grifo nosso]
25
A imprensa constitui importante fonte de pesquisa histórica, pois ela agenda parte
consistente da memória escrita de uma coletividade. As matérias veiculadas pelo jornal
– como as críticas literárias de Arinos e Barcellos que discutem a pertinência de
designar o sul-rio-grandense de gaúcho – provêm os cidadãos de definições que são
parte do funcionamento do imaginário da sociedade (MARIANI, 1993).
47
A suposta dor manifestada pelo romancista explicaria a criação do
saudosismo nas letras gaúchas por parte de Alcides Maya que, num aceno
voltado ao passado, mimetizaria ao seu gosto a “[...] saudade dos bons
tempos, a saudade da sua raça que morria, a saudade de si mesmo...”
(ARINOS, 1925, p.3). A escolha do termo saudosista para qualificar a obra
de Maya não terá sido vã e fora provavelmente inspirada no movimento
homólogo português que iniciou em 1910 com a fundação da revista A
Águia
26
(MOISÉS, 2002). O Saudosismo
27
constituiu um movimento que
previa o estabelecimento de uma filosofia essencialmente portuguesa
calcada na saudade, entendida como sentimento-idéia a ser cultuado e “que
somente um português seria capaz de nutrir” (MOISÉS, 2001, p.238) em
virtude de sua especificidade vocabular e sentimental. É Guilhermino Cesar
quem explica a influência desse movimento português na interpretação de
Moysés Vellinho sobre a obra de Maya:
[...] esse largo surto teve a puxá-lo uma utopia – o
‘nacionalismo tradicionalista’, a que se opôs energicamente o
ensaísta Antônio Sérgio, que viria a escavar sua trincheira, para
melhor resistir-lhe, nas páginas da Seara Nova. Quer dizer, este
último queria reunir as energias do país para ocidentalizar o
mais possível a cultura portuguesa, inserindo-a no corpo da
Idade Moderna, livre de uma interpretação que narcotizava o
povo com a mera evocação sentimental dos esplendores
renascentistas (CESAR, 1981, p.12).
A bandeira de reatualização da cultura lusitana, levada a cabo por Antônio
Sérgio fora emprestada como argumento à luta do crítico sulino, segundo
Guilhermino Cesar, para que chamasse à renovação as novas gerações
literárias do Rio Grande do Sul. Contra a saudade imobilizadora presente
na obra de Alcides Maya, Vellinho roga aos novos escritores sulinos “que o
traço das nossas realidades assinale fundo o seu estilo. O que queremos é
que eles revelem a nossa terra tal como ela é: não um cemitério de lendas,
mas um jardim de palpitantes realidades” (ARINOS, 1925, p.8).
26
E não A Água como se encontra em Ieda Gutfreind (1998, p.101).
27
O mentor dessa escola foi Teixeira de Pascoaes, que dirigiu A Águia entre 1912 e
1916. No seio do próprio movimento Saudosista ocorreu um cisma, do qual surgiu a
revista Seara Nova em 1921, de bases mais racionalistas que A Águia.
48
Vellinho desejava que os novos poetas e prosadores sulinos se
impusessem radicalmente contra a saudade por dois motivos, a
“decadência” e o “afastamento” (expressões do crítico) que ela implicaria;
e, para ele, só se sente saudade de algo que não está perto, o que no caso
significa estar longe do gaúcho (ou de si próprio no caso de um enunciador
do discurso sul-rio-grandense, como é a situação do próprio crítico). Ele
não acreditou na decadência contida na idéia de saudade, pois cria que o
ambiente sul-rio-grandense na época era um tempo “[...] afirmativo,
impróprio à germinação de idéias e sentimentos decadentes” (ARINOS,
1925, p.8). Era um período que o crítico compreendia como o das “grandes
assimilações” (ARINOS, 1925, p.8). O animismo decadente mimetizado por
Maya estaria impresso, segundo Vellinho, na incapacidade de renovação
das personagens de Maya, personagens estas que comporiam o espólio das
“[...] sociedades decadentes, onde a gente vive com os olhos fincados em
glórias avitas, incapaz de reeditá-las” (ARINOS, 1925, p.6). Consistia um
sentimento de aplasia dos que “acreditavam no passado e desconfiavam do
presente, partido desencantado e melancólico” (ARINOS, 1925, p.8),
concepção que não vingava a realidade sul-rio-grandense no enfoque
positivo acionado por Vellinho, pois para este,
[...] não são esses frágeis cercados de arame, que talham e
retalham as grandes extensões de campo, que hão de intimidar e
tolher as expansões do instinto cívico do guasca. Quando é
tempo, quando lhe ferem o amor-próprio, ele destrói os
aramados e restabelece os primitivos latifúndios, reconstruindo,
num repente de loucura e de heroísmo, o cenário das velhas
batalhas. Nada de esmorecimentos. A capacidade heróica do
gaúcho é sempre a mesma (ARINOS, 1925, p.8).
Moysés Vellinho procura lograr a verdade ficcional que mimetiza a
derrocada do gaúcho mediante a vontade de crer perene a capacidade
heróica do mesmo. A característica empenhada da crítica de Vellinho toma
em grande medida a obra literária como reflexo da realidade, pois a analisa
em sua expressão ou significação social (ARINOS, 1925, p.3). Dessa
forma, a crítica duela sentidos, luta por vencer a verdade ficcional por
meio da observação social, provendo, assim, de outras verdades que não as
ficcionais, a identidade do gaúcho. Todavia, não deixa de ser interessante
49
apontar que a criação de Alcides Maya se pretendia puramente ancorada em
observações do entorno social – como a crítica de Vellinho, portanto –,
como nos informa a interpretação de Marlene Almeida acerca da concepção
de Maya sobre a sua obra, que se pretendia uma
[...] obra de observação, triste e amarga, áspera e crua, do
meio gauchesco. Um trabalho em que estudara seus tipos
sofredores, miseráveis e espoliados, ameaçados injustamente por
um destino social trágico, devido à carência de recursos e à
falta de cultura, somadas a uma série de circunstâncias morais
atávicas em descompasso com a civilização atual (ALMEIDA,
1997, p.75).[grifo nosso]
Observadas e confrontadas as concepções do romancista e do crítico, elas
evidenciam o mesmo ponto de origem, a observação social, que vai se
bifurcar em compreensões antitéticas sobre o gaúcho. Se Maya diz ter se
pautado na observação atenta dos tipos sociais, “do meio gauchesco” para
transformá-los em personagens, por que Vellinho interpreta essas mesmas
personagens como descoladas da verdadeira realidade social?
Nas obras de Maya, uma época heróica feneceria por não mais
encontrar as condições específicas que deram origem ao gaúcho
representativo, constituindo-o em sua identidade forjada no campo e nas
batalhas. Miguelito, personagem principal de Ruínas Vivas, filho de Chico
Santos, um autêntico guasca peleador, é um exemplo do gaúcho que,
crescido num meio de paz, não conseguiria, segundo interpretação de
Vellinho, dar vazão aos ímpetos guerreiros da raça e acaba descambando
no crime. O crítico põe-se frontalmente contra a morte do gaúcho ficcional,
morte propiciada pelo entrechoque anacrônico entre a figura tradicional do
gaúcho e o tempo presente moderno, ao ponto de contrapor ao gaúcho
agonizante outra imagem que lhe possa fazer frente. Esta nova imagem é a
do gaúcho sociologicamente adaptado, em oposição ao tipo alcidiano,
vinculado ao espaço da Campanha.
50
Ora, salvar a imagem do gaúcho tradicional, que tem seu pago
furtado pela locomotiva, exigiu esforço do crítico para deslocar o tipo
tradicional sulino de sua roupagem característica dos tempos heróicos para
reconduzi-lo ao fluxo da história como ser dinâmico e em compasso com as
transformações da modernidade. Se na obra alcidiana o gaúcho esmorece
em ruínas vivas, devido às transformações modernizantes na Campanha,
para Vellinho esse fatalismo é falseamento sociológico, pois, segundo seu
ponto de vista, o pessimismo de Alcides Maya deriva “mais de fatores
subjetivos que da observação desprevenida dos fatos sociais” (VELLINHO,
1944, p.19), estando a literatura em desconformidade com o real, o que
implicou a desqualificação do falso gaúcho ficcional. Falso porque a obra
de Maya se faz “[...] verdadeiramente notável como expressão individual e
não como expressão coletiva ou social” (ARINOS, 1925, p.3). Se tanto o
crítico quanto o romancista versam sobre o mesmo objeto dado
empiricamente à observação, só se pode compreender a bifurcação das
opiniões a partir da subjetividade dos intérpretes.
A suposta pobreza de aspectos representativos na obra de Maya –
“donde será fácil concluir que o aspecto estritamente representativo das
páginas do insigne escritor sulino resulte quase medíocre” (ARINOS, 1925,
p.3) – perspectiva o alvo dos ataques de Vellinho à figura do narrador,
atrelado à pessoa do autor, que é uma esfera que está para além do texto,
cujas escolhas discursivas são tecidas pelo narrador. Este, no caso de
Maya, estaria longe de fotografar o pampa, como o faria uma objetiva, por
meio de uma postura descritivista-realista. É interessante frisar que este
olhar da crítica é antípoda à própria concepção de Maya acerca do seu
romance Ruínas Vivas, sobre o qual asseverou em um arrazoado intitulado
O Sr. José Veríssimo – clássico
28
, que o modelo inspirador do livro fora
Educação Sentimental e a técnica narrativa fora a flaubertiana. Ou seja,
não haveria antagonismo maior entre a composição de um autor e a leitura
de um crítico. Para Vellinho, o narrador alcidiano focaliza a cena através
28
Publicado na seção de crítica literária do jornal A Época, em outubro de 1912
(ALMEIDA, 1997).
51
de um foco criacionista pouco descritivo. O crítico, dessa forma, qualifica
de “pessimista” (expressão do crítico) o narrador/autor alcidiano, já que
para este, “[...] as coisas não têm voz. Quem fala é ele. Fala por elas, mas
nem sempre diz o que elas diriam, caso as deixasse falar” (ARINOS, 1925,
p.3).
Moysés Vellinho vincula, assim, a imagem penosa e decadente do
gaúcho tradicional ao caráter subjetivo do autor da ficção, em cuja obra as
personagens estariam em desacordo com os gaúchos reais, vivos, e não em
vias de perecer, como compreendia o ficcionista. O viés de corte
psicológico acionado na interpretação do crítico a respeito da obra de
Alcides Maya é importante salientar, pois desqualifica em grande medida a
obra do romancista, ao menos do ponto de vista pelo qual o crítico optou
por analisá-la. A prosa de Maya poderia, segundo Vellinho, ser tomada sob
dois aspectos: como reflexo de uma individualidade ou como reflexo de
uma sociedade. E neste último ponto, pode ser analisada a significação
social da mesma (ARINOS, 1925, p.3). A opção de Vellinho em basear sua
análise na significação sociológica da obra, não o impediu de incorrer na
leitura de base psicológica para resolver alguns pontos conflitivos da sua
interpretação. Assim, o falseamento sociológico da realidade é justificado
pela psique opressiva do autor da ficção.
O sentido opressivo que o crítico vê na obra alcidiana derivaria do
malogro da Revolução Federalista
29
. Esta conjuntura histórica vivida na
29
Conforme Sandra Pesavento, a Revolução Federalista (1893-1895) foi a maior e mais
sangrenta contestação ao governo gaúcho sob a égide do PRR (Partido Republicano
Rio-Grandense) e de seu líder primeiro, Júlio de Castilhos. Esta revolução foi levada a
cabo por revoltosos articulados em torno de Gaspar Silveira Martins, que por terem
adotado ideais parlamentaristas, opuseram-se tanto ao poder local quanto ao federal,
sob a liderança de Floriano Peixoto. As forças maragatas foram subjugadas pelas
facções governamentais, sob a promessa de um acordo, que não se efetivou, de revisão
da Constituição, especialmente no ponto em que esta previa a reeleição do presidente
do Estado, desde que obtido 3/4 dos votos, procurando impedir dessa forma, as
sucessivas reeleições do presidente. A Revolução Federalista perdurou por um largo
tempo as cisões entre sul-rio-grandenses, divididos entre maragatos e pica-paus (2002,
p.79).
52
infância pelo romancista teria desacreditado o menino Alcides Maya.
Assim, os olhos opressivos do autor que estariam por trás da máscara do
narrador, operariam uma deturpação da realidade através do filtro
psicológico pelo qual captam o real: “aquela sensação de aniquilamento que
derreara o espírito do menino, haveria de perdurar, haveria de refletir-se
longe, impregnando depois a obra do escritor e inspirando o sociólogo. [...]
Aí está o suporte subjetivo de sua tese” (VELLINHO, 1960, p.19). A
significação social da opressiva obra de Maya justifica-se, então, por ela
ter surgido
[...] num período de descrença, de aplastamento moral, e reflete,
fielmente, esse estado de ânimo. É um documento precioso
desse tempo. O erro do autor de ‘Ruínas Vivas’ está, porém
em ter ele acreditado na permanência dessa crise. Em vão se
procurará nas suas páginas uma só palavra de confiança ou de fé
(ARINOS, 1925, p.3). [grifo nosso]
A interpretação de Moysés Vellinho parte da expressão literária da
obra de Maya para alcançar o “sentido sociológico de seu pensamento”
(VELLINHO, 1960), como revela o título do ensaio dedicado ao escritor
saudosista, compilado no volume Letras da província de 1944. Analisando
os problemas de forma, o crítico vai perscrutando o sentido sociológico da
expressão. No perfazer desse caminho crítico, Vellinho se detém, da mesma
forma como fizera em 1925, na crítica à psicologia do autor, portador de
uma cultura universal demais para narrar a terra em suas particularidades:
E então aconteceu o que tinha que acontecer; o desencontro
entre o imperativo de sua personalidade, já solidamente
definida como expressão de cultura geral, e o do meio que ele
pretendeu revelar no seu mais genuíno particularismo. Foram
duas forças que se desenvolveram, que se chocaram, sem nunca
poderem resolver-se em harmonia. Pelo contrário, a colisão
ressalta nos menores detalhes de suas obras de ficção,
traduzindo-se principalmente na falta de conformidade entre
estilo e assunto. O escritor defende com brio sua cidadela e
acaba sempre senhor do terreno, reduzindo tudo ao domínio
do seu gosto, do seu temperamento, do seu caráter
(VELLINHO, 1960, p.12).[grifo nosso]
53
O background da inteligência do romancista inviabilizaria, assim, o próprio
radiografar da terra e de seu tipo, tornando a expressão literária
problemática em termos de verossimilhança, no que tange à
desconformidade entre tema e expressão, o que implicaria prejuízos de
compreensão sociológica.
Esse não foi um problema para Alcides Maya, conforme interpreta
Marlene Almeida, pois o regionalismo para o ficcionista não se restringiria
à descrição, mesmo que essa tenha sido a técnica empregada em Ruínas
Vivas conforme explicitou o autor. Para o romancista, a emoção humana
seria concebida em termos universais e “enfático, situou a possibilidade de
realizar a obra de arte como resplendor da realidade, com base no talento
criador do artista e não no ambiente onde se desenvolve a trama”
(ALMEIDA, 1925, p.77). Percebe-se que para o romancista, não seria um
problema aquele apontado pelo crítico, do interposicionamento do autor
perante a realidade
30
.
Para o crítico, era necessário ultrapassar a “intenção simbólica”
(expressão de Vellinho), presente na obra de Maya, já que “no destino de
seus heróis oculta-se o destino de uma estirpe, às vezes de toda uma
coletividade. Atrás do novelista descobre-se o sociólogo em observação
atenta, a perscrutar o destino da raça – ‘raça’ é a expressão de sua
preferência – através dos lances e contingências do drama individualizado
pela ficção” (VELLINHO, 1960, p.15). Pode-se observar na citação
presente, o foco diretivo da leitura de Vellinho, que vê colada às
personagens uma carga simbólica latente, a das qualidades virtuais da raça.
As personagens de Maya, recortadas como metonímias “de toda uma
coletividade” (VELLINHO, 1960, p.15) designariam, desta maneira, a
30
Parece haver um paradoxo na posição assumida por Alcides Maya com relação à
realização da obra de arte, que necessitaria da radical interposição do artista em sua
concepção, e o modelo descritivista-realista empregado, conforme ele próprio anunciou,
na composição de Ruínas Vivas. Não é o objetivo aqui, todavia, esmiuçar essa questão.
54
morte simbólica dos valores constitutivos da comunidade sul-rio-grandense
tradicional. Isso parece ser uma interpretação extremamente projetiva, pois
Vellinho descobre significados simbólicos para além da trama ficcional. O
sentido sociológico do pensamento, que entrevê na própria figura do
romancista o sociólogo, parece estar muito além das preocupações da
expressão literária, chegando ao ponto do crítico abjurar a crença do
perecimento da raça gaúcha cantada por Maya.
Já a partir do título do livro de contos Tapera, Vellinho enxerga um
significado para além de “uma simples paisagem, mero conjunto de motivos
plásticos ou pinturescos” (VELLINHO, 1960, p.16). A significação da obra
de Maya extravasaria simbolicamente a compreensão puramente literária:
“o que ali vemos cair aos pedaços não é uma construção qualquer, mansão
sem história sem legenda, mas o largo teto que abrigara toda uma raça. A
tapera, ali, é a imagem de uma coletividade que se desfaz e esboroa sob as
intempéries da história” (VELLINHO, 1960, p.16). Essa concepção de casa,
como abrigadora da raça, parece ser a própria casa do ser, conforme
concebe Bachelard em sua Poética do espaço, daí esta obra fornecer chaves
interpretativas interessantes para pensar o empenho na reativação da função
da casa feita tapera por Alcides Maya. Assim, o “largo teto”, seria então, a
própria casa acolhedora do ser, casa esta que pode ser a lembrança das
casas onde ele se abrigou, entrevista na tradição, ou o desejo da casa onde
se quer morar, como explica Bachelard (s/d).
A casa é, então, o espaço virtual da morada do ser, e guarda a
legenda pessoal que é parte constitutiva da história coletiva. As relações
indivíduo-sociedade, relações que se dão por partilha entre o eu-nós,
fazem, segundo Norbert Elias (1994), com que cada indivíduo, mesmo
sendo portador de uma idéia de singularidade, compartilhe uma fatia da
noção identidade eu – numa espécie de balança – com a identidade nós,
estando essas referências, portanto, em constante negociação dentro das
sociedades modernas e contemporâneas. Dessa forma, pode-se compreender
55
como a casa do ser abriga a história coletiva do nós, os valores da raça. É
especialmente por meio desta mediação indivíduo-sociedade que a
essencialidade da identidade gaúcha parece ser reatualizada na obra de
Vellinho, em seu embate empenhado de quem procura salvar a própria pele
da ruína, de quem se vê desabrigado mediante a derrocada de valores da
raça gaúcha individualizados em personagens que sucumbem aos tempos
modernos.
A concepção da casa como vislumbrada por Bachelard, “[...] nosso
canto do mundo, [...] nosso primeiro universo, [...] um verdadeiro cosmos”
(BACHELARD, s/d, p.22), parece se coadunar perfeitamente à filiação
afetiva de Vellinho à casa de sua raça, que não quer acreditar tapera,
tragicamente pintada como uma paisagem agônica. Tapera seria, segundo a
interpretação de Vellinho, um símbolo: “todo um vasto painel, em que se
derrui, não um pobre casarão, onde uma só família houvesse habitado, mas
um longo e largo teto, em que toda uma raça se abrigara” (ARINOS, 1925,
p.3).
“Morta, mas ainda de pé, em debuxo ao fundo ermo dessa imensidão
triste, que sensações provocas!” (MAYA, 1962, p.35). Terá sido
possivelmente a agonia uma das sensações provocadas em Vellinho.
Angústia ao vislumbrar nas páginas falsas do romance a derrocada da
tradição que ele queria sociologicamente viva. A casa da raça feita tapera
parece provocar em Vellinho desagradáveis sensações de desfiliação da
terra, um conceito sociológico, conforme Roberto Damatta, que mantém
significados próximos ao sentido da casa de Bachelard. Terra, assim,
[...] pode ser localidade, pátria, torrão natal, gleba, lugar,
povoação, estilo de vida, território, propriedade e espaço
sagrado, lugar onde nossos mortos devem ser enterrados e do
qual nossos inimigos devem ser banidos, como ocorre nas
expressões simétricas e inversas, enterrar e desterrar, que
permitem recuperar o sentido sagrado, moralmente encharcado e
totalizante da idéia de terra. [...] Terra que é lida como casa
56
(lar) e como tal não deve ser dividida e muito menos vendida
(DAMATTA, 2004, p.23).
E muito menos soterrada, enquanto casa virtual da raça, poderia se
emendar, pela implacável evolução histórica, como concebera Maya aos
olhos de Vellinho. A casa que não pode ser tomada como uma construção
qualquer, deixa entrever, no seu sentido de terra, a concepção de
pertencimento, conforme pensado por Damatta. Ao se ver desfiliado de sua
terra, o crítico resiste ao soerguer o que a ficção derrubou, nada menos do
que a marca da legenda e a tradição forjada na história, abrigadoras virtuais
das referências de identidade da comunidade sulina.
Para Vellinho se fazia necessário vencer a verdade ficcional que
desabrigou a raça e o seu tipo social, por meio do desejo “de revelar a
nossa realidade, a nossa bela e forte realidade, com a qual já não se
coaduna o espírito que preside ao simbolismo doloroso de ‘Tapera’ e de
‘Ruínas Vivas’” (ARINOS, 1925, p.6). Para isso, é necessário vitalizar a
casa da raça mediante novas identificações. A verdade literária, mentirosa
dos fatos reais, longe de ser inocente, se faz perniciosa, pois mascararia
nos meandros da trama ficcional um narrador não puramente literário, mas
“soturnamente” travestido de falsas verdades sociológicas, pois, “sempre
que o sociólogo toma a vez do artista é para anunciar, soturnamente, o
dobre de finados de uma raça inteira...” (VELLINHO, 1960, p.18).
Ao fundo, a questão problematizada por Vellinho parece ser esta:
como pode a literatura versar a morte do gaúcho, se somos gaúchos e
estamos de fato vivos e reinventando a história? A leitura saudosista do
gaúcho, sendo uma mentira ficcional, seria facilmente desmantelada para o
crítico, se contrastada com os dados empíricos dados à observação na vida
contemporânea da primeira metade do século vinte, um período de
“evolução” e de “afirmação”, como acreditava o crítico, e não de
derrocada:
57
Na ficção de Alcides Maya os rebates de afirmação
obedecem invariavelmente a um aceno retroativo. São
melancólicas evasões para o passado. Os horizontes se fecharam
a quaisquer esperanças de ressurreição. Todas as resistências
atávicas cederam à pressão do tempo. Só a tradição moribunda,
se mede inutilmente com as forças vindas de fora para se
apossarem da terra (VELLINHO, 1960, p.17).
As transformações modernizantes, tomadas por Vellinho sob o ângulo
afirmativo, diferem diametralmente das opiniões de seu antagonista Rubens
de Barcellos, para quem as forças modernas eram nefastas para o caráter e
o modo de vida do tipo tradicional gaúcho, como se pode observar no
trecho seguinte:
Que puderam eles contra tantas energias mecânicas,
locomotivas, telégrafos, caminhões-Ford, – mais rápidos do que
a veloz cavalaria andante da tradição épica, e contra as
ceifantes metralhadoras? Adeus belas cargas de lança seca!
Entoaram-nas as últimas estrofes dum canto bárbaro. Talvez ele
ainda ressoe aos nossos ouvidos, mas a sua voz será cada vez
mais fraca e distante” (BARCELLOS, 1925, p.3).
Para Rubens de Barcellos, as mudanças sociais são evidenciadas por Maya,
“como faria uma objetiva fotográfica” (BARCELLOS, 1925, p.3), além de
se darem por meio de uma perspectiva privilegiada, própria de quem se
acha na “eminência dum cimo” (BARCELLOS, 1925, p.3). Maya, desta
forma, mimetizaria em suas obras o retrato fidedigno da derrocada de
formas sociologicamente caducas mediante o categórico da evolução,
expresso no “progresso material, com a sua teia de forças mecânicas e
interesses econômicos, inimigo implacável das antigas formas de heroísmo
gaúcho” (BARCELLOS, 1925, p.3).
A perspectiva evolucionista, igualmente cara a Vellinho, é
considerada sob o prisma positivo da transformação plástica do tipo
mediante a modernização. Esta operação torna possível a transposição
orgânica do gaúcho tradicional ao habitante sul-rio-grandense, diferente do
58
dicotomizado por Barcellos, pois para este “não é o mesmo rio-grandense
de agora e o de antanho. O passado não se faz presente” (BARCELLOS,
1925, p.3). Evolução para Vellinho implicaria transformação da forma,
enquanto que para o seu adversário implicaria transposição da forma. Para
este, Alcides Maya: “fixa a evolução, exprime o sentimento – que é certeza
– da caducidade de certas formas, da evanescência de certos tipos que não
morreram, mas vão morrer, e estão transitando para a esfumadora grisalha
das coisas desaparecidas” (BARCELLOS, 1925, p.3).
Vellinho aprimorou os seus argumentos sobre a revitalização da
tradição mediante a evolução histórica, quase quarenta anos depois da
polêmica com Barcellos, em O Rio Grande e o Prata: contrastes. Nessa
obra, afirma a evolução nominativa do vocábulo gaúcho que “desbordou de
sua paisagem nativa para sobreviver como idéia-força [referência de
identidade sul-rio-grandense moderna]” (VELLINHO, 1962, p.119). É a
“idéia-força”, a responsável por manter guardado o lastro da tradição
mediante o devir histórico: “a velha Província de São Pedro já teria perdido
a consciência de seu ‘etos’[sic] se o gaúcho revivido, não continuasse em
guarda, velando pela chama que uma vez foi acesa nestes confins”
(VELLINHO, 1962, p.119).
Para dominar nominalmente (ASSIS BRASIL, 2004), é necessário
vencer o signo, decantar um sentido quando há disputas de significado
sobre ele, como o explicitado nesse caso, onde se disputa a viabilidade de
designar o moderno habitante sul-rio-grandense com o termo gaúcho. Para
que uma determinada identidade desempenhe satisfatoriamente sua função
identificadora em uma comunidade, ela precisa funcionar como um espelho,
para que cada um que se diga gaúcho, ou seja designado como tal, possa, a
partir de uma certa gama de particularidades compartilhadas e identificadas
como próprias da essência ou índole gaúcha, identificar-se como gaúcho de
fato. Isso é o que Roberto Damatta denomina de “lógica relacional” (2000,
59
p.17), espécie de zona de sensibilidade e reconhecimento onde a identidade
designará isso é, aquilo não é gaúcho.
Para designar o habitante do Rio Grande do Sul, o termo gaúcho
deveria ser atualizado em relação à sua indumentária tradicional, para que
reunisse qualificativos capazes de identificar o moderno sul-rio-grandense.
No caso da polêmica aqui tratada, o enfoque se dava pela positivação e
transmutação de um tipo tradicional concebido em vias de perecimento,
tanto no agônico literário de Alcides Maya quanto no sociológico de
Rubens de Barcellos. Na crítica de Vellinho, a verdade possibilitada pela
observação procura vitalizar o gaúcho real perante seu homólogo ficcional,
expirante aos ventos da modernidade:
[...] o gaúcho, reduzido e limitado, implacavelmente fixado
no tempo e no espaço, possível apenas dentro de
especialíssimas condições naturais e culturais inflexivelmente
combinadas entre si. Entregue a atividades e hábitos
primitivos, imobilizado dentro de uma indumentária que não
diria apenas de sua caracterização pinturesca, mas da própria
natureza de seu feitio moral, estaríamos, sem dúvida, em face
de um tipo incapaz de enfrentar o tempo e transpô-lo.
Transformar-se, para ele, não seria viver, como ensinava Rodó,
mas renegar-se a si mesmo, e perecer. Confiado às leis do
instinto, afeito unicamente às turbulências de fronteira e à
livre campeiragem, o gaúcho de Alcides Maya não encontraria,
não poderia encontrar, num regime normal de ordem e
disciplina, o ambiente propício ao surto de suas qualidades
específicas. A crescente vigilância da polícia, amparada pela
repressão da lei, haveria de criar uma atmosfera incompatível
com o seu conceito primário de liberdade. Desta forma, sem
capacidade de adaptação às mudanças que a evolução traz
consigo, privado de um mínimo dessa plasticidade psicológica
imanente à própria condição humana, o gaúcho, concebido
dentro destas limitações, não poderia deixar de ser uma criatura
inviável, tragicamente compenetrada, como os heróis de Ruínas
Vivas, de que o seu destino é uma linha tensa, prestas a romper-
se a cada instante” (VELLINHO, 1960, p.19). [grifo nosso]
A partir desse trecho, pode-se precisar a interpretação evolucionista
do termo gaúcho por Vellinho, que buscou atualizar uma figura –
estaticamente apreendida pela literatura de Maya por meio da redução e
60
limitação da sua personalidade às características precisas de um “tempo” e
“espaço” que respeitam ao pampa e sua fronteira móvel. Esta imobilização
do gaúcho operada por Maya o priva de se desenvolver historicamente, pois
suas qualidades endurecidas o impedem de qualquer reinvenção frente aos
novos tempos. A “indumentária” tradicional mimetizada na ficção é
problemática e inviável, pois não diria respeito apenas à forma, expressa na
“caracterização pinturesca”, mas também ao caráter, “feitio moral” das
personagens, o que abalaria o gaúcho em sua psicologia. E isso parece ser
ainda mais pernicioso para Vellinho, pois o que estaria a ruir não é somente
uma vestimenta tradicional que poderia ser trocada por outra, mas a própria
coisa em si, por meio da derrocada da autenticidade de seus costumes.
São hábitos moldados, segundo Ruben Oliven, pela bravura que fora
exigida do gaúcho frente às necessidades de domar a natureza e também
devido às particularidades desenvolvidas em função das lides campeiras
(2002). Tais particularidades, no caso de Maya, estariam empedradas nas
especialíssimas condições forjadas em meio às “turbulências de fronteira e
à livre campeiragem” (VELLINHO, 1960, p.19), bárbaras para Vellinho,
para quem “era preciso que fossemos uma tribo de berberes extraviada nas
coxilhas se só nos sentíssemos à vontade em meio aos sobressaltos da
guerra e às asperezas de um ruralismo primário e agressivo” (VELLINHO,
1960, p.20). O tipo emoldurado sob coordenadas implacáveis e tomado
como um bárbaro se vê desprovido de uma racionalidade moderna, que lhe
permitiria evoluir. Absolutizado por Maya em seus hábitos primitivos, o
gaúcho não poderia ser coadunado ao gentílico pacífico, próprio de “um
regime normal de ordem e disciplina” (VELLINHO, 1960, p. 19) como
seria a vida em crescente urbanização e modernização de um Rio Grande do
Sul na primeira metade do século XX. O gaúcho concebido por Maya
poderia ser uma “criatura inviável” (VELLINHO, 1960, p.19), mas não
seria uma “raça” inviável, pois a raça guardaria na sua legenda uma
essência permanente que é maior do que uma forma circunstancialmente
apresentada em espaço e tempo precisos, como explicita Vellinho no trecho
seguinte:
61
Esse tipo poderá ter dado o tom a uma época, mas ainda
assim encarnando uma classe, determinada fração social, e não
uma raça na unanimidade de suas reservas, na inesgotável
complexidade de seus valores. [...]. Não haveríamos de perecer
simplesmente por termos vencido as crises e vicissitudes que
deram colorido a determinado estágio da nossa formação
(VELLINHO, 1960, p.20).
O tipo tradicional parecia ter duas soluções: ou a morte, em virtude
de sua não-coadunação às formas civilizadas de convívio, suposta
interpretação de Maya e Barcellos (e por contingência a falência do termo
gaúcho em sua acepção tradicional para assim designar o moderno sul-rio-
grandense), ou o seu alargamento no tempo até a contemporaneidade, opção
de Vellinho. Daí que para este realizar o alargamento do termo gaúcho,
pondo-o em consonância com os novos tempos, já que “o gaúcho ainda se
sente bem de saúde ao lado da locomotiva, do automóvel, do telégrafo, do
aeroplano, do jazz-band” (ARINOS, 1925, p.6), foi necessário rearticular
duas temporalidades. Religava-se, então, o tempo das origens, conforme a
concepção de tempo forte primordial de Mircea Eliade (1963), onde o
gaúcho forjou suas qualidades de bravura e belicosidade, e o estendia numa
linearidade diretiva de aperfeiçoamento, que permitisse, inclusive, a
suavização de alguns traços bárbaros que deram o “tom a uma época”
(VELLINHO, 1960, p.21). Com o entrelaçamento desses dois tempos, se
garantia que o termo gaúcho não perdesse, mas renovasse suas qualidades
de bravura constitutivas, provenientes, segundo Moysés Vellinho, da
formação étnica lusa do Rio Grande do Sul: “a verdade é que os nossos
ancestrais trouxeram consigo uma laboriosa tradição de além-mar e uma
bravia experiência de sertões e de bandeiras. Nas veias dessa gente já
pulsava o sangue com que o gaúcho iria escrever o seu poema épico”
(VELLINHO, 1960, p.21). O gaúcho contemporâneo resulta desta forma, da
reatualização de uma série de particularidades do gaúcho heróico
tradicional, escritor do “poema épico”, qualidades essas que são
transpassadas ao sul-rio-grandense que tinha, em consonância com os novos
tempos, um romance a escrever.
62
A heroicidade do gaúcho tradicional é mantida em sua transposição
para a forma contemporânea: “o coração do guasca ainda pulsa. O
gauchismo não morreu – o gauchismo que não é apenas a nossa vocação
belicosa, mas a fonte profunda das nossas energias, donde até aqui só tem
derivado sangue, mas donde pode irromper água pura e fecunda” (ARINOS,
1925, p.6). A nobilitação do gaúcho, como esclarece Flávio Loureiro
Chaves
31
implicou a ressemantização do termo, permitindo que o elemento
tido por desviante e marginal fosse alçado a símbolo da identidade
regional. Para isso foram destacadas as funções de campeador e guerreiro;
funções estas, tributárias da coragem, virilidade e argúcia (apud OLIVEN,
1992). Na interpretação de Vellinho, ao gaúcho é atribuída, ainda, a famosa
adaptabilidade do gênio lusitano conforme concebido por Gilberto Freyre,
para quem o povo lusitano é marcado pela plasticidade: “o gaúcho médio –
esse que deve ser tomado em linha de conta, na presente discussão – sabe
pelear, mas sabe também viver na paz. As cidades estão cheias de guascas
urbanizados” (ARINOS, 1925, p.6).
Por meio da transposição do gaúcho tradicional ao habitante gentílico
sul-rio-grandense, iam sendo decantadas as referências de identidade sul-
rio-grandese moderna. Em virtude da herança lusa e açoriana, esta última
portadora de “elementos de costumes sedentários na incipiente sociedade
pastoril” (VELLINHO, 1960, p.25), o gaúcho pôde angariar novas
características capazes de “moderar e disciplinar, em gerações sucessivas,
os desgarres do gaúcho primitivo, reativando-lhe, quem sabe, velhas
tendências adormecidas, provenientes dos troncos lusitanos” (VELLINHO,
1960, p.25). A essa herança foram agregadas ainda, as qualidades
“pacíficas e laboriosas” (VELLINHO, 1960, p.26) dos imigrantes alemães e
31
O termo gaúcho como habitante do Rio Grande do Sul, em seu sentido gentílico,
passou por diversas mutações de significado. O termo guasca foi cunhado no período
colonial enquanto que gaudério era utilizado para designar os paulistas desertores que
viraram coureadores e ladrões de gado, errantes de uma área de fronteira móvel. No
final do século XIX, eles são chamados de gaúcho com a mesma carga pejorativa
expressa no gaudério (apud OLIVEN, 1992).
63
italianos. Assim, é acoplada ao tipo tradicional a capacidade de adaptação
que o faz se coadunar ao gentílico moderno:
[...] a figura do gaúcho, alimentada e enriquecida pela
legenda, ia projetar-se no tempo e ganhar espaço, já agora
liberta de seus caracteres primitivos, e acabaria, como por
uma espécie de mimetismo sociológico, absorvendo na sua
estrutura moral todos os rio-grandenses identificados com a
terra não só por filiação histórica, mas ainda por aculturação ou
adesão afetiva (VELLINHO, 1962, p.118). [grifo nosso]
Imune a uma concepção estanque porque exclusivamente atrelada ao
passado, mas não totalmente “liberta de seus caracteres primitivos” como
desejava, Moysés Vellinho concebe o tipo tradicional como uma espécie de
base lapidar do que não é concluso e forçosamente impele ao
desenvolvimento da forma por meio da adaptação das particularidades
mediante as “injunções orgânicas da evolução” (VELLINHO, 1960, p.24).
A história do Rio Grande do Sul é concebida por intermédio da
associação de dois tempos, já que “encerrado o ciclo heróico, definidas as
instituições locais rigorosamente dentro do complexo brasileiro, a história
nova do Rio Grande passou a ser escrita por todos os seus filhos
solidariamente, sem distinção de procedências raciais” (VELLINHO, 1957,
p.6). De acordo com a perspectiva de Vellinho, não é mais necessário o
barbarismo da legenda gaúcha. Somente são necessários à “história nova”,
certas fixações da imagem do gaúcho tradicional, a bravura e o próprio
vocábulo designador que, devido à plasticidade da forma, amaciou os
caracteres que o amordaçavam a um tempo tomado agora como
circunstancial na história sulina:
[...] mais tarde, já sossegadas as fronteiras, outras gentes
vieram de outros climas, a emprestar novas colorações e novos
valores a essa mistura. Então já tinha o Rio Grande construído a
sua legenda guerreira. E é essa legenda, ponto de encontro e
reconhecimento de seus filhos, que funde espiritualmente as
64
gerações entre si e lhes dá a unidade histórica que as vincula
ao todo nacional (VELLINHO, 1962, p.113).[grifo nosso]
A necessidade de modernizar o gaúcho, levada a cabo pela crítica de
Vellinho, integra um largo movimento interpretativo presente também em
sua obra historiográfica, que buscou deslocar qualquer concepção
particularista ou autonomista do Rio Grande do Sul que pudesse ser tomada
como alienada aos quadros nacionais. Não parece ser com outros fins que
não os de estabelecer pontos de parecença entre o gaúcho e o brasileiro que
Vellinho escreve a sua obra O Rio Grande e o Prata: contrastes, lançada
em 1962
32
. Fundamentalmente movido por meio da premissa dos gaúchos
antagônicos é que a argumentação da obra se constrói pela confrontação
antitética entre os dois tipos, que são a todo instante comparados para daí
serem postos em lados distintos, alcançando, assim, a síntese do contraste
essencial: “os homens do Rio Grande e do Prata, já marcados por um
antagonismo atávico, seriam lançados uns contra os outros numa violenta
reativação de rivalidades imemoriais, herança subjacente de velhas disputas
peninsulares” (VELLINHO, 1962, p.8). Para tornar o gaúcho aproximado ao
brasileiro, Moysés Vellinho precisou dissociar a imagem do gaúcho sul-rio-
grandense do homólogo platino, cujo nominativo estaria a designar tipos
antagônicos:
Quando a palavra ‘gaucho’ (gáutcho), que se apresenta como de
origem quíchua, cruzou a fronteira rio-grandense, e aqui deitou
raiz e alastrou-se, a modificação que sofreu não se limitou à
brusca transposição do acento tônico. Na verdade, o apelativo
‘gaúcho’ iria ajustar-se a outro tipo social, portador de um
lastro antropológico diferente: outra composição étnica e
psicológica, outra polarização histórica, compromissos políticos
rigorosamente subordinados ao vasto plano de integração
geográfica e cultural da nacionalidade (VELLINHO, 1962,
p.118). [grifo nosso]
Embora Moysés Vellinho citasse a etnia, a psicologia e processos
históricos distintos como marcadores das diferenças entre os gaúchos
32
Esta obra publicada em 1962 se transforma em capítulo homônimo de Capitania d’El
Rei, lançada dois anos depois. A transposição se dá mediante ligeiras alterações e é
acrescida de alguns poucos parágrafos.
65
platino e sul-rio-grandense, o contraste primordial está no “compromisso
político” do sul-rio-grandense à nacionalidade. O elemento político embora
somado aos demais, se sobrepõe a eles como a modalização
“rigorosamente” está a indicar e a argumentação desenvolvida ao longo da
obra pode confirmar. Os pontos de parecença entre o sul-rio-grandense e o
platino se devem (e são restringidos a este ponto na interpretação de
Moysés Vellinho) ao fato de terem surgido em áreas contíguas, na qual se
prestaram às mesmas atividades do pastoreiro (VELLINHO, 1962, p.9). Já
com relação às diferenças étnico-culturais, essas se devem ao fato do
gaúcho sul-rio-grandese, ou o “brasileiro do extremo sul” (VELLINHO,
1962, p.7) estarem a serviço de outra tradição, a lusa, “antagônica” à
hispânica em seus interesses de fronteira, cujas “relações de vizinhança,
durante todo o ciclo da nossa formação, não foram outras senão os atritos e
guerras de fronteira” (VELLINHO, 1962, p.8).
Os antagonismos se estabelecem mediante um atrito de contingência
histórica proveniente da condição de fronteira, irreconciliáveis devido a
uma legenda inalienável aos tipos. A condição inimiga do gaúcho sul-rio-
grandense e do platino é decorrente das características herdadas dos
diferentes colonizadores, já que para Vellinho os platinos são filhos do
“orgulho e prepotência do espanhol” (VELLINHO, 1962, p.16). Antípodas
portanto, ao gênio universal português: “imperioso, cru, esse modo de ser
talvez explique, em grande parte, por que os fabulosos conquistadores que
foram os homens de Castela revelam como colonizadores virtudes tão
escassas”(VELLINHO, 1962, p.19).
Foram as virtualidades de raça que explicariam o caudilhismo platino
e as dicotomias “campo e cidade, barbárie e civilização” (VELLINHO,
1962, p.40), tomados como fenômenos platinos por excelência, e
provenientes do tratamento de arrogância do espanhol com relação aos
elementos socialmente subalternos (VELLINHO, 1962, p.19), ambos os
fenômenos tomados como inexistentes no caso sul-rio-grandense, conforme
66
a interpretação de Vellinho. Outro elemento de diferenciação entre os
gaúchos sul-rio-grandense e platino adviria da miscigenação do europeu
com o índio que, no caso platino, deu origem ao mestiço, um “elemento de
raivosa pugnacidade” (VELLINHO, 1962, p.13). Já “na formação
antropológica do nosso campeiro, o índio não só entrou com um
contingente bem mais pobre, como trazia a alma sem a carga de ódio com
que ele reagiu ao desprezo e às violências do espanhol, nas campanhas
platinas” (VELLINHO, 1962, p.34). O elemento mestiço é, portanto, um
ponto contrastante nas diferenciações estabelecidas com o gaúcho do Prata
e constituirá também elemento diferenciador na discussão sobre a formação
histórica do Rio Grande do Sul, da qual o elemento autóctone fora
extirpado, bem com a experiência missioneira, ponto que será tratado
adiante.
2.2 Os heróis e o anti-herói: um debate concebido entre a História e a
Mitologia
Às vésperas do bicentenário da morte do índio Sepé Tiaraju que
ocorreu em 7 de fevereiro de 1956, um oficial do Exército, o Major João
Carlos Nobre da Veiga, sugeriu ao governador do Estado, a edificação de
um monumento em homenagem ao índio reduzido. O governador solicitou a
opinião sobre a pertinência do monumento aos membros do IHGRS que
emitiram parecer publicado no Correio do Povo em 29 de novembro de
1955. O documento vem assinado por Afonso Guerreiro Lima, Moysés
Vellinho e Othelo Rosa, seu relator. Mansueto Bernardi salienta em sua
obra O primeiro caudilho rio-grandense que a pertinência do monumento
não evoca motivos de brasilidade pela parte do major, como o Instituto
compreendera, já que a questão da brasilidade seria um anacronismo pelos
idos de 1750. O pedido se fazia em “em termos de valor pessoal, de lutas,
de glórias, de sacrifícios, de heroísmo, de apego à terra natal, de
resistência”, encarnados por Sepé (BERNARDI, 1957, p.49). Mas não foi
por esses termos que Moysés Vellinho compreendera a questão
67
A homenagem presente na edificação de um monumento a Sepé
conduziria, segundo Moysés Vellinho, a um “bifrontismo histórico
incompatível com a veneração que devemos aos que, no passado, lutaram
por conservar dentro das confrontações luso-brasileiras as terras do Rio
Grande” (VELLINHO, 1957, p.155). Bifrontismo significa, no enunciado de
Vellinho, a conciliação de fatores adversos na formação histórica sul-rio-
grandense, já que havia duas frentes antagônicas em disputa pelas
possessões territoriais meridionais. De um lado, os jesuítas, de outro, o que
o historiador designa por fundadores do Rio Grande. A experiência
missioneira dos jesuítas, denominada “ciclo antibrasileiro”
33
, é um hiato
temporal e espacial que deveria ser alienado da história sulina. Desta
forma, Sepé era um elemento pertencente ao outro ciclo, que só não é
estranho à tradição gaúcha, como Vellinho gostava de frisar, porque nela
figurou como inimigo, um agente da “desintegração nacional” (VELLINHO,
1957, p.157).
O bifrontismo histórico conduziria, para Moysés Vellinho, à dupla
identidade do Rio Grande do Sul, apresentada por uma imagem marcada por
duas faces, uma voltada para o Prata e a outra para a ação catalítica luso-
brasileira. Essa dupla “visada”, possibilitada pelas duas frontes,
corromperia a identidade nacional que se pretendeu única, construída sob o
primado da colonização portuguesa. Por isso é que o bifrontismo era
visceralmente negado, constituindo-se numa “falta de consciência
histórica” (VELLINHO, 1970, p.109). O desconfortante para o intelectual
são as interpretações históricas que possibilitam dar vazão a um duplo viés
genealógico do Rio Grande do Sul – que se pretende intimamente nacional,
já que do ponto de vista da história política, preferência elegida no enfoque
interpretativo de Vellinho, era impossível a acomodação de duas tradições
33
Expressão apropriada do historiador português Serafim Leite S.J. Esse estudioso
concebeu a distinção entre “‘o ciclo português e portanto brasileiro’” e o “‘ciclo que às
vezes foi anti-brasileiro, o ciclo paraguaio’” (Apud VELLINHO, 1957, p.156).
68
antagônicas sob o prisma do “dúbio critério, acomodatício e misto”
(VELLINHO, 1970, p.105):
Nem por sermos hoje, mais que bons vizinhos, amigos fraternais
dos povos que nos cercam, devemos tolerar a distorção da
história ao ponto de confundirmos no mesmo culto os nossos
heróis de verdade e aquele que do campo contrário os
combateram como inimigos? (VELLINHO, 1957, p.7).
Essa passagem evidencia preocupações que não deveriam figurar em
questões de natureza puramente científica. Se a história não pode ser
distorcida em nome da verdade, poderia ela referendar o culto de heróis?
São indagações dessa ordem que se procura apresentar acerca das relações
estabelecidas entre a história e a mitologia, que embora sejam
tradicionalmente perspectivadas como antagônicas, uma tomada como
reduto da crença e a outra como produto da verificação científica, podem
estabelecer reciprocidades – a despeito de pressupostos teóricos e
interpretativos próprios que as configuram como distintas – na manipulação
de ferramentas comuns na tarefa de rememoramento do passado. São
imbricamentos entre ciência e mito que possibilitam, por exemplo, que a
história crie mitos ou objetos de estudo fundamentados em mitos, a
despeito da neutralidade científica tradicionalmente requerida em seu
discurso.
A palavra mito, aqui, não é utilizada no seu sentido de relato
fantasioso. Essa não é uma palavra opaca, mesmo quando se precisou seus
significados na Antropologia. Mesmo depurado enquanto conceito, ainda há
um sentido mais lato do mito que arrasta consigo qualquer sombra de
mentira, de algo que não logrou um certo desenvolvimento histórico com o
nascimento da filosofia grega. E, com relação à ciência, a esta não diria
respeito, posto que nos estreitos caminhos do desenvolvimento do método
científico não haveria lugar para o mundo mítico. Dessa forma, o
paradigma da ciência, em sua linha teleológica, deu as costas ao mundo
mítico, pensando que o deixava para trás (LÉVI-STRAUSS, 1978).
69
A outorgação do valor de verdade ao pensamento mítico fora
reforçada sob a esteira da análise estruturalista de Lévi-Strauss, que visa
apreender o sentido do mito sob uma invariante à aparente desordem do que
se manifesta culturalmente. Isso permitiu uma guinada interpretativa que
estaria agora subordinada à construção das relações estabelecidas pelas
formas, e não mais atrelado ao significado prévio, rechaçando a alcunha de
insignificação ou absurdidade das manifestações culturais míticas –
produto de mentes primitivas, como se pensava, destituídas de saber ou
conhecimento. Lévi-Strauss implode com essa lógica ao salientar que o
relato mítico possui significado e este é prescindido pela ordenação dos
elementos que se relacionam no mito de forma lógica. O mito tem sim uma
lógica, intelectiva, construída por meio das formas concretas que manipula
em seu relato, que visam significar e ordenar o mundo por meios
intelectuais através das “imagens tiradas da experiência. Esta é a
originalidade do pensamento mitológico – desempenhar o papel do
pensamento conceptual” (LÉVI-STRAUSS, 1978, p.37).
A partir das considerações de Lévi-Strauss é minimizado o
irredutível antagonismo entre a História e o mito, oposição simplificada
segundo o antropólogo, já que existiria um nível intermediário entre eles. A
História apresenta um sistema de interpretação aberto, observado na
diversidade de interpretações que permite em relação ao mito. Este, por sua
vez, é um “sistema fechado”, mais estático, onde os mesmos elementos
mitológicos são combinados de maneiras diversas (LÉVI-STRAUSS, 1978,
p.61). Em que pontos do fazer historiográfico podem residir características
que são próprias do mito? Pois, como pergunta o antropólogo, “quando
tentamos fazer História científica, fazemos, porventura algo científico ou
adoptamos também a nossa própria mitologia nessa tentativa de fazer
História pura?” (LÉVI-STRAUSS, 1978, p.62). É possível pensar que os
componentes provocativos dessa pergunta podem ser vislumbrados na
figura do historiador que, na observação e análise dos eventos, movido por
necessidades subjetivas, pode, e aí se dá o paradoxo, criar objetos
fundamentados em mitos, em função da própria observação, sustentando-os
70
cientificamente em seu discurso, irmanando, assim, elementos da crença
com a análise que se pretendia estritamente científica. O filósofo Gianni
Vattimo é outro que se interessa com a perduração das crenças míticas no
mundo contemporâneo, entendendo como precárias as formas de
racionalidade que possam designar de míticas outras formas de saber
(VATTIMO, 1989, p.44). E, indo mais além, pensa que os “princípios
primordiais” sobre os quais é construído um determinado universo cultural
não são objeto de saber puramente racional, de natureza demonstrativa,
deixando aberta a
[...] possibilidade de os considerar [os universos culturais]
como objeto de um saber de tipo mítico: mesmo a racionalidade
científica, que constituiu durante tantos séculos um valor
directivo para a cultura européia é, afinal, um mito, uma crença
partilhada na base da qual se articula a organização desta
cultura; e assim [...] é também um mito, uma crença-guia não
demonstrada nem demonstrável, a própria idéia de que a história
da razão ocidental é a história do afastamento do mito
(VATTIMO, 1989, p.44).
Por intermédio dessas chaves interpretativas é que se pode inferir o
significado da permanência de elementos próprios da crença no discurso de
Moysés Vellinho. Seu fazer historiográfico subjetivamente comprometido é
formalmente explicitado em seu enunciado: “[...] nossa posição em face
deste caso não há de ser a de quem julga com a displicência dos neutros,
como se nos fosse lícito ver as nossas próprias coisas do ponto de vista dos
Sírius...” (VELLINHO, 1970, p.119).
Não deixa de ser interessante essa tomada de posição do historiador
em face dos temas que aborda, visto que soa como atar um guizo ao próprio
pescoço – alardeando-a ideológica, impregnada de uma visão de mundo
muito bem definida. Todavia, a explicitação radical da subjetividade de
Moysés Vellinho, frente aos temas que aborda, parece não deturpá-lo da
crença de que a verdade científica repousa ao seu lado, por um único
motivo: a verdade está conosco e não ao lado dos “sírius”. Esse elemento
71
próprio da crença parece ter sido a bússola mitológica de posicionamentos
históricos conflitantes no contexto do debate historiográfico sulino do
século passado, dicotomizado em duas grandes frentes que lutaram por uma
hegemonia de interpretação acerca da formação histórica sul-rio-grandese,
a matriz lusitana e a platina, como destacado por Ieda Gutfreind (1998).
O enfoque político priorizado por Vellinho na análise da formação do
Rio Grande do Sul, tomada como produto de duas linhas de oposição – a
luso-brasileira e a hispânica – tem como argumento, que a tradição que
deveria resguardar a memória do índio Sepé era a de cultura hispano-
americana, pois o indígena agia movido por interesses contrários aos luso-
brasileiros:
Quando homens como Francisco Pinto Bandeira, pai do fabuloso
Rafael, e Cristóvão Pereira, – esses, sim, legítimos patriarcas do
Continente de São Pedro, – se encontravam na tronqueira de Rio
Pardo plantando os marcos do nosso crescimento, construindo
com os seus homens o Rio Grande do futuro, quem foi que
lhes surgiu do outro lado, do lado inimigo para disputar-lhes a
posse da terra, senão o próprio Sepé em carne e osso?
(VELLINHO, 1957, p.7). [grifo nosso]
O conflito é posto, como se observa, no antagonismo do herói (ou heróis) e
do anti-herói, que “estava vigorosamente no seu papel” político de “tenaz
inimigo dos fundadores do Rio Grande” (VELLINHO, 1957, p.7). Tomados,
Francisco, Rafael Pinto Bandeira e Cristóvão Pereira, como “patriarcas
legítimos” do Rio Grande do Sul, eles são dotados de uma função positiva,
pois eram os fecundadores do “Rio Grande do futuro” como expressam os
verbos do campo semântico criacionista: plantar e construir. Para o
historiador, essas personagens não deveriam ter sua memória poderosa
maculada, por isso trazer Sepé “de seu lado para o nosso, começa por ser
uma injúria à sua própria memória”, ao mesmo tempo em que
desqualificaria “os esplêndidos construtores do Rio Grande de São Pedro”
(VELLINHO, 1957, p.7). Proporcionalmente, na medida em que os heróis
de estrato luso são enaltecidos, decresce qualquer caracterização de
72
heroicidade atribuída à personagem Sepé, que recebe no discurso de
Vellinho, a encenação de sua morte com tintas pouco coloridas: “num
encontro fortuito, poucos dias antes do combate de Caiboaté, sofreu uma
rodada bem pouco épica e foi atingido e morto por um tiro de pistola.
Apenas isto” (VELLINHO, 1957, p.10).
O historiador invalida assim, o que do seu ponto de vista é distorção
histórica, como a pseudo-heroicização de anti-heróis nacionais como Sepé
Tiaraju que, na trama do historiador, tem esfumada as tintas que o
pudessem colorir como personagem histórica. A desvalorização da
personagem histórica Sepé é justificada na medida em que ela se ergueria
“no âmbito impalpável do mito com mais relevo que no plano da história
propriamente” (VELLINHO, 1970, p.121). Assim, para Vellinho, sob o
risco de cair em perniciosa anamnésia cívica, é necessário expurgar os
falsos heróis históricos da tradição sulina, pois “[...] o nosso panteon
cívico não pode dar agasalho a um ‘indígena que tinha um sentido de pátria
e que se firmou contra os portugueses’” (VELLINHO, 1970, p.117).
A desqualificação da figura de Sepé Tiaraju, por pertencer ao âmbito
da fábula, não exime o historiador de operar verdadeiras criações míticas
em sentido contrário, tornando heróis personagens históricas encarnadas em
figuras como Silva Paes, “o fundador do Rio Grande do Sul” e o tropeiro
Cristóvão Pereira, “senhor de todos os caminhos” (VELLINHO, 1970,
p.137). Esses são os únicos heróis possíveis de serem referendados, heróis
condutores do destino da comunidade, posto que são os guardadores dos
“tempos primordiais” (ELIADE, 1963) da história do Rio Grande do Sul.
Temos, assim, a construção histórica derrubando mitos e edificando outros
que possam catalisar as funções dos heróis culturais legítimos. Estes, ao
contrário de Sepé Tiaraju, gozam da autoridade dos testemunhos históricos,
testemunhos que falam segundo a ótica do historiador que, munido da
verdade científica pode outorgar à comunidade lições de rememoramento,
visto que esta pode cair em desengano cultuando algum falso herói, como a
73
obscura figura de Sepé Tiaraju, fruto do mito, que “se insinua pelos
arraiais, e ei-lo emprestando seu nome a escolas e logradouros públicos, e
até a centros de tradição!...É que nem todos se apercebem de que não é este
o meio mais honroso de dignificar a autenticidade das nossas raízes...”
(VELLINHO, 1970, p.117).
Alinhavados à interpretação histórica, Moysés Vellinho traz
argumentos que extravasam aos de base puramente científica, como
evidencia a evocação dos verdadeiros heróis da formação sulina. Para fins
de rememoramento, o historiador apela para os componentes essenciais da
tradição na qual se auto-filia: “por que então usufrutuários que somos do
heroísmo e dos sacrifícios dos nossos campeadores d’antanho, haveríamos
de tripudiar sobre seus feitos” (VELLINHO, 1970, p.119). Para isso,
rogaria, caso fosse necessário, às próprias almas desses heróis luso-
brasileiros a respeito da impertinência da celebração de um anti-herói, este
sim denominado explicitamente de “fantasma” (refere-se a Sepé, cf.
VELLINHO, 1970, p.117) a assombrar os verdadeiros heróis: “que diriam
eles, do fundo de suas tumbas, se nos surpreendessem a escamotear o
reconhecimento que lhes devemos” (VELLINHO, 1957, p.7). De forma
subjetiva Vellinho põe-se na condição de continuador da tradição
inaugurada por esses predecessores, pondo-se em vigília às injúrias da falsa
rememoração e celebração, já que, como aponta o historiador, “não são
poucos os que tentam arrastá-lo [a Sepé], a viva força, para a comunhão
dos heróis rio-grandenses!” (VELLINHO, 1970, p.116).
Os heróis luso-brasileiros são os “ponteiros da nacionalidade”
(VELLINHO, 1970, p.102) imbuídos de uma consciente missão construtora
da pátria: “os primeiros povoadores do Continente de São Pedro, que foram
também os seus primeiros soldados, não surgiram do chão como obra do
acaso. Vieram, sabendo a que vinham” (VELLINHO, 1970, p.102). A
função cívica estava colada à ação desses tropeiros em guerra contra os
espanhóis. Eles expandiam as fronteiras e fundavam o Rio Grande do Sul
74
que se animava por meio de suas obras instintivamente pátrias: “as
inspirações da condição política que o fronteiro trazia consigo juntamente
com suas armas” (VELLINHO, 1970, p.102).
A mitificação dos heróis verdadeiros, diante dos quais o historiador
punha a coletividade sul-rio-grandense na qualidade de herdeira cultural, se
dava mediante um acesso ao passado, por meio da pesquisa historiográfica.
A formação sul-rio-grandense tomada sob uma perspectiva isenta de marcas
dúbias na genealogia, forja a identidade pura circunscrita ao legado da
expansão luso-brasileira. A auréola mítica que envolvia a imagem do
inimigo Sepé Tiaraju que “altera e deforma, em suas linhas essenciais, a
personagem real, única a ser vista e compreendida pela exegese da
História” (VELLINHO, 1970, p. 121), não impediu que Moysés Vellinho
operasse na sua interpretação histórica, o que condenava no lado oposto, ou
seja, o reconhecimento mítico de sujeitos históricos. Pelo lado de cá, as
personagens históricas, norteadoras da identidade luso-brasileira, eram os
heróis possíveis de rememoramento, personagens como os Pinto Bandeira e
Cristóvão Pereira, tomados como os legítimos patriarcas do continente, os
condutores épicos do destino da comunidade: “símbolos de integração e não
de desintegração nacional” (VELLINHO, 1957, p.10). A clarificação do
passado, no discurso historiográfico de Vellinho, objetiva assim, uma
tomada de consciência subjugada às necessidades cívicas. Para isso, a
ciência estava ao seu lado, os documentos não haveriam de mentir, embora
o historiador pudesse fingir
34
sobre eles.
34
Sempre que aparecerem as expressões fingir, fingida ou fingidor, elas se referem ao
sentido de verdade permitida pela mentira ficcional conforme o poema Autopsicografia
de Fernando Pessoa: “O poeta é um fingidor./ Finge tão completamente/ Que chega a
fingir que é dor/ A dor que deveras sente”. Mentira permitida pela ficção mas estranha
à história, um discurso onde se espera a fidedignidade dos enunciados. Moysés
Vellinho, não sendo fidedigno à verdade factual, finge tal qual o poeta a realidade.
75
2.3 A formação do Rio Grande do Sul no discurso historiográfico de
Moysés Vellinho
Se é por meio da crítica literária que Moysés Vellinho inicia sua
obra, finaliza-a no domínio dos estudos históricos; as suas posturas são
então munidas de provas documentais. Seu discurso historiográfico é de
uma interessante especificidade formal, pelo tratamento que o autor
dispensa às fontes e documentos. Lançar-se-á mão das interpretações já
realizadas pela historiografia quando o estudo da temática em questão
exigir, para, desta maneira, compreender por uma gama maior de enfoques
os mecanismos pelos quais o historiador constrói uma narrativa nacional
para a história sul-rio-grandense.
O trato dispensado ao documento é um ponto importante a ser
considerado no fazer historiográfico de Moysés Vellinho. O estatuto do
documento se mostra diferente na obra de Vellinho e na de seus pares do
IHGRS, Aurélio Porto, Souza Docca e Othelo Rosa. Esses foram na
expressão de Ieda Gutfreind, “garimpeiros de documentos”, num contexto
onde a história era construída por meio de recortes de velhos livros
(GUTFREIND, 1998). Para Aurélio Porto, o documento era comparado ao
ouro de alto quilate que serve de lastro para a interpretação histórica. Para
Souza Docca, o trato dispensado ao documento implica “‘[...] descobri-lo,
eliminar-lhe as impurezas ao toque da crítica histórica, para que se engaste
à verdade’”(apud GUTFREIND, 1998, p.68). Othelo Rosa, por sua vez, foi
um autor que concebeu o papel ativo do historiador na reconstituição
histórica a partir do documento como indício (GUTFREIND, 1998, p.88),
embora esse documento encerrasse um valor essencial de verdade
(GUTFREIND, 1998, p.95).
76
O que se observa no discurso de Moysés Vellinho é que há muito
mais uma estratégia de evocação ao documento, através de um artifício
textual, do que a efetiva tomada dele como fonte de pesquisa histórica.
Ainda porque a documentação primária, apesar de louvada em sua
importância, aparece rara em sua produção e, quando aparece, é acionada
indiretamente na maior parte das vezes, posto que tomada da obra de outros
historiadores, que acabam por constituir a fonte principal de sua
interpretação histórica. Seu discurso historiográfico conta a partir do que
outros leram nos documentos.
A referência ao documento como fonte de pesquisa histórica aparece,
com freqüência, no discurso historiográfico de Moysés Vellinho, como
forma de alcançar uma ilusão maior de fidedignidade à interpretação
histórica, não havendo muitas vezes, referências explícitas a quais
documentos o historiador faz referência e qual o caráter e conteúdo desses
documentos. Exemplifica-se a questão com uma apelação do autor aos seus
leitores: “a quem interessar por informações completas a respeito, não
custa ir aos documentos da época, a começar pelos de extração jesuítica”
(VELLINHO, 1970, p.104). O historiador põe-se, dessa maneira, no papel
de detentor das verdades documentais, não as compartilhando com os
leitores e tampouco indicando a natureza ou localização dos documentos
citados. Trazer à tona o documento em situações como a demonstrada
acima, seria muitíssimo necessário para desta forma angariar maior
veracidade à interpretação, já que o tema tratado neste caso é um ponto
nevrálgico da argumentação do historiador (a função não puramente
catequética, mas política dos Sete Povos das Missões, interpretação que vai
corroborar na sua tese de expurgação da experiência missioneira da história
sulina).
77
Outro exemplo do particular trato dispensado ao documento por
Moysés Vellinho é quando, na introdução de Capitania d’El Rei, o autor
desqualifica a interpretação do historiador Alfredo Varella, contrária à sua
em relação à natureza brasileira da Revolução Farroupilha
35
. Para sobrepor
a sua interpretação ao do antagonista, apela a fontes ocultas: “já se pensou
na onda de malquerenças que o trato com Varela é capaz de levantar entre
os que não disponham de melhores fontes” (VELLINHO, 1970, p.4). Mais
uma vez, a fonte da qual teria jorrado o conhecimento verdadeiro não é
explicitada. Em outro momento, ao justificar sua interpretação de que os
jesuítas portugueses se anteciparam aos espanhóis, na catequese em futuro
território sul-rio-grandense, assenta sua interpretação na Coleção de
Angelis (a mais completa documentação de extração jesuítica sobre as
Missões), mas não explicita em qual dos documentos da coleção teria se
baseado. A evidência documental se mostra por meio dos seguintes termos:
“graças à divulgação da Coleção de Angelis, tão fecunda em revelações
retificadoras, sabemos hoje...” (VELLINHO, 1970, p.58). Ora, a mera
divulgação da Coleção não significa que se tenha efetivamente consultado a
fonte que, como qualquer outra, necessita de análise e crítica documental.
Em outro momento, provavelmente se referindo novamente à Coleção de
Angelis, interpreta como temporais os planos dos “padres seculares”
(expressão dele mesmo), assentando possíveis posicionamentos contrários à
sua interpretação no desconhecimento somente justificável por “quem
nunca leu as velhas cartas dos milicianos de Santo Inácio” (VELLINHO,
1970, p.68).
35
Como afirma Ieda Gutfreind (1998), Moysés Vellinho não se preocupou em
desenvolver o tema da Revolução Farroupilha. No entanto, ele tinha uma opinião bem
marcada sobre o episódio, e a reproduziu em vários momentos de sua obra. Para ele a
Revolução Farroupilha estava vinculada “aos focos de fermentação liberal de que
resultaram todas as agitações e revoluções brasileiras da época” (VELLINHO, 1962,
p.44). Desta forma, “os homens de Bento Gonçalves e de Neto não eram de forma
alguma estranhos à nacionalidade” sendo desta maneira, irmanados aos demais
brasileiros (VELLINHO, 1945, p.6).
78
Quando se põe a narrar a “decadência” em que supostamente se
encontravam as almas dos “pobres paraguaios” – assim denomina os
Guarani reduzidos (VELLINHO, 1970, p.85), o historiador se baseia em
“certo inquérito revelado pela Coleção de Angelis” (VELLINHO, 1970,
p.85). O “certo inquérito”, embora precisada a localização, com volume e
páginas explicitadas da obra onde se acha compilado, embasa a
interpretação do historiador no testemunho dos “encanecidos” jesuítas
(expressão de Vellinho), querendo outorgar com encanecidos, propriedade
aos testemunhantes do inquérito. As fontes são enaltecidas, na medida em
que “nenhum testemunho depõe com mais crueza nesse sentido que certo
inquérito revelado pela Coleção de Angelis” (VELLINHO, 1970, p.85). Ao
querer desmantelar a visão de sucesso da empresa jesuítica, torna o
discurso dos depoentes jesuítas como prova, isenta, todavia, de críticas à
fonte e aos autores do documento. Os documentos escritos têm seus
enunciados sempre perspectivados pelos filtros subjetivos e horizonte
cultural precisos de quem relata, além de condições próprias de natureza
espaço-temporais que condicionam a gênese e as particularidades sobre as
quais o historiador precisa atentar. Esse caso é significativo sob este
aspecto, pois se trata de um inquérito, com uma natureza depoente diversa
do que a de uma carta informativa, por exemplo. Em outro momento,
discorrendo sobre o mesmo tema, a derrocada da empresa jesuítica
catequética: “os jesuítas eram os primeiros a confessar em sua
correspondência” (VELLINHO, 1970, p.68). Mais uma vez a pergunta:
quais são os documentos citados e o que dizem eles?
Estratégias discursivas como as demonstradas acima foram muito
provavelmente as responsáveis por críticas sobre o caráter ideológico do
discurso historiográfico de Moysés Vellinho que, ajustar-se-ia mais às
características de um romance do que da pesquisa histórica. Essas críticas
ao pretenderem atacar o caráter falacioso do discurso, não atentam na
maior parte das vezes, aos modos como são construídas as ilusões de
verdade. Que Vellinho fingiu sobre a verdade histórica é óbvio, não sendo
79
óbvio, todavia, os meios pelos quais o discurso se faz de aparência
romanesca.
Para ilustrar essas questões, é oportuno utilizar dois apontamentos de
autores que fazem referência ao estilo de escrita de Moysés Vellinho. José
Hildebrando Dacanal é um crítico que, ao lado de caracterizar Vellinho de
ideólogo e de racista, em função do falseamento histórico acerca da
contribuição do elemento autóctone na formação do Rio Grande do Sul,
caracteriza a escrita do historiador como um “furioso estilo pedante e
insuportável” (DACANAL, 1980, p.30). Ainda para sustentar esse juízo,
Dacanal, em nota do texto, acresce outras considerações a respeito do estilo
e função da escritura de Vellinho: “tem-se a impressão de que seu objetivo
não é propriamente escrever história mas sim mostrar seu estilo,
insuportável no gênero kitsch pseudoclassicizante” (DACANAL, 1980,
p.30). Dacanal além de empregar o qualificativo “kitsch”, caracterizando a
obra de Vellinho como um engodo de má qualidade, reduz o autor a um
mero exibicionista ávido por mostrar seu estilo “pseudoclassicizante”, seja
lá o que vier a significar este designativo, possivelmente coadunável com
outra obscura designação, a de Júlio Quevedo, historiador, que além de
conceber Vellinho como o representante de uma “tendência historiográfica
escamoteadora” (QUEVEDO, 1991, p.22) caracteriza o estilo de Vellinho
como “ilustrado renascido” (QUEVEDO, 1991, p.28). Essas críticas de
modo algum resolvem as problemáticas postas na escritura fronteiriça de
Moysés Vellinho, já que, como salientou o próprio Dacanal (1980), o fato
dela não parecer uma escrita histórica, por negacear aspectos factuais, não
faz dela, todavia, um romance.
Esses exemplos pontuais são sintomáticos e possibilitam observar o
que há de mais característico em relação às críticas ao caráter ideológico
presente no discurso de Moysés Vellinho. Críticas que atacam o estilo da
escrita, pensando que, com isso, descortinavam a capa falaciosa do discurso
supostamente encobridor do real, não se analisando, todavia, os
80
mecanismos textuais que permitiram o falseamento de dados da realidade
histórica. Ao se tomar o estilo sem o considerar em sua especificidade,
incorre-se no erro de procurar os propósitos ideológicos do autor, sua visão
de mundo, fora de onde se deveria procurar, ou seja, no próprio código de
expressão.
Esses julgamentos parecem estancar a crítica ao nível da impressão
de leitura, não a transformando em problemas que possam fazer
compreender a maneira efetiva como o discurso se constrói ideológico. A
análise de Dacanal, atrelada ao nível da impressão do “furioso”, do
“pedante” e do “insuportável”, não adentrando uma análise mais miúda, é
cômoda, como ensina Machado de Assis (1999, p.39), e não se faz fecunda
em seus desígnios, sem contar, ainda, que quando se apresenta mediante
termos tão cáusticos como os empregados por Dacanal, acabam por ferir
sua própria função crítica, que poderia ser instrutiva e corretiva, como a
queria Machado de Assis. Críticas assim podem facilmente se auto-
aniquilar na aridez de seus propósitos, pois “uma crítica que, para a
expressão de suas idéias, só encontra fórmulas ásperas pode perder as
esperanças de influir e dirigir” (ASSIS, 1999, p.43).
Moysés Vellinho inicia sua obra historiográfica Capitania d’El Rei:
aspectos polêmicos da formação rio-grandense narrando uma anedota
36
pinçada do cotidiano e alçada à qualidade de testemunho empírico, que vai
lhe fornecer o mote da questão que glosará em Capitania d’El Rei – a
nacionalidade do Rio Grande do Sul. A longa explanação introdutória dos
equívocos gerados pelas incompreensões históricas da intelectualidade sul-
rio-grandense ou brasileira é a norteadora dos pontos a serem
desenvolvidos em sua exegese acerca da polêmica (por estar em desacordo
36
A anedota refere o caso de uma senhora baiana que viera ao Rio Grande do Sul por
ocasião de um Congresso Eucarístico em 1948. A senhora viera temerosa, segundo
entrevista a uma folha local, achando que se encontraria em um meio exótico, de “gente
estranha, hábitos estranhos, mas tivera uma surpresa tranqüilizadora: via que se achava
entre um povo que era afinal o seu próprio povo, a mostrar, no fundo, o mesmo jeito de
ser e de sentir dos demais brasileiros” (VELLINHO, 1970, p.3).
81
com o caráter brasileiro que Moysés Vellinho almeja para o Rio Grande do
Sul) formação histórica sulina.
As incompreensões sobre o Rio Grande do Sul dizem respeito à sua
identidade, encarada como exótica ou castelhana demais, segundo as visões
equivocadas de brasileiros ou sul-rio-grandenses, como exemplifica o juízo
de Assis Chateaubriand: “[...] o Brasil português termina em Santa Catarina
e que dali para o sul começa o Brasil espanhol!...” (VELLINHO, 1970,
p.10). Concepções como essa são perniciosas, segundo a interpretação de
Vellinho, pois tornavam o gaúcho e a história sul-rio-grandense alienígenas
aos quadros nacionais. Opiniões como as de Chateaubriand constituíam,
para o historiador, um flagrante das distorções factuais que devem ser
retratadas mediante a verdade histórica, por meio da clarificação factual,
função que efetivamente outorga a si próprio, em sua Capitania d’El Rei.
Esta obra procura esclarecer a comunidade sul-rio-grandense e nacional
acerca dos preconceitos e desconhecimentos decorrentes de distorções
históricas nefastas porque irradiam dos intelectuais aos cidadãos comuns,
daí a cadeia de incompreensões que tomam por um viés exótico as
particularidades sulinas.
A introdução já antecipa o caráter dirigido pelo empenho nacionalista
que se desenvolverá ao longo da obra, que buscará sanar os equívocos da
interpretação bifrontal por parte daqueles “[...] que nos têm por uma
coletividade culturalmente indefinida, a flutuar sem opção entre o mundo
luso-brasileiro e o mundo hispano-americano” (VELLINHO, 1970. p.9). Os
equívocos precisavam ser expurgados não unicamente por meio da via de
aceitação afetiva do Rio Grande do Sul pelo pai brasileiro, mas porque o
reconhecimento da nacionalidade gaúcha decorre do fato de o Rio Grande
do Sul ter preservado a integridade territorial brasileira frente ao mundo
hispano-americano:
82
Tudo isso está a denunciar a existência difusa de
preconceitos que se nutrem de inveteradas incompreensões.
Quando menos se espera, esses preconceitos se condensam,
desabam como carga daninha sobre certos espíritos, e ei-los a
apostar contra os vitais interesses da integridade do Brasil
(VELLINHO, 1970, p.12).
Como evidencia o testemunho que inicia a obra, o da senhora baiana
que, ao aportar em terras sul-rio-grandenses, identifica-se de imediato com
os gaúchos por meio da mesma referência de identidade brasileira
compartilhada, Vellinho finaliza sua introdução destacando os dados
empíricos para reforçar a tese da não exoticidade sul-rio-grandense. O peso
maior posto na balança dos testemunhos empíricos injeta no discurso o
argumento comprovado pelo dado real: a brasilidade gaúcha era um fato
vivo, cotidiano, e estava à evidência de quem tivesse interesse em
enxergar. Por isso é significativo que Vellinho inicie e finalize a
introdução mediante testemunhos empíricos, aos quais juntará documentos
históricos que fornecerão o lastro à interpretação, permitindo, deste modo,
afirmar a ancestralidade luso-brasileira da formação sul-rio-grandense.
Alinhavados os documentos à verdade cotidiana, Capitania luta por
neutralizar preconceitos que, gerados no campo intelectual, contaminam os
setores leigos da sociedade,que o que fundamentalmente parecia
equivocado aos olhos do historiador eram as teorias e não a realidade,
como é percebido no trecho a seguir.
O que se verifica nos altos círculos do pensamento histórico
brasileiro é isto, esse inveterado jogo de incompreensões acerca
das coisas rio-grandenses, não é de estranhar que a cada instante
patrícios de outras circunscrições, aportados ao Rio Grande, se
admirem de ver que nós aqui falamos a mesma língua que eles,
sem as rebarbas castelhanas que temiam, e que a nossa extração
racial e política é também a mesma... E então desabafam, cheios
de honesta franqueza: ‘Engraçado, como o Rio Grande se
parece com o Brasil!’ Sim, envolvidos, silenciosamente
contaminados pelas teorias discriminatórias, teorias que não
puderam, por mesquinhas, assimilar nem apreender a realidade
brasileira em sua magnífica pluralidade, esses bons patrícios
como que ignoram que o Rio Grande sempre foi, desde o
berço, um pedaço do Brasil, o Brasil que cresceu de si
mesmo” (VELLINHO, 1970, p.17). [grifo nosso]
83
A citação apresentada demonstra as bases empíricas sobre as quais é
assentada a interpretação do historiador: “desabafam, cheios de honesta
franqueza: ‘engraçado, como o Rio Grande se parece com o Brasil!’”. O
testemunho efetiva uma ilusão de prova documental, visto que aparece sem
autoria, sem fonte explicitada, sem mensuração quantitativa que possa
valorizá-lo como índice. O testemunho assim tratado não passaria, quando
muito, de uma doxa, verdade popular, que textualmente se mostra por meio
do discurso direto, travado por um testemunhante oculto. Alguém disse,
obviamente permitido pelo autor, como era engraçado o fato de o Rio
Grande se parecer com o Brasil!
O embasamento da tese do primado absoluto luso-brasileiro na
formação sul-rio-grandense dá-se a partir de dois artifícios textuais
presentes na introdução de Capitania d´El Rei. O primeiro deles está
presente na verdade figurativa do testemunho empírico, característica já
salientada. O outro ponto está assentado na estratégia de transformar os
desenganos dos intelectuais em índices atestadores da verdade do
historiador, como pode ser inferido pela citação seguinte: “quem sabe,
porém se tudo isso não corresponde, de algum modo, às contingências
vitais de um país como o nosso, tão grande, tão vário na sua esplêndida
unidade?” (VELLINHO, 1970, p.17). Uma das mais hábeis formas de
invalidar as concepções alheias é tomá-las como elementos de antítese de
problemas próprios. As incompreensões só vêm a corroborar o que o autor
anunciava, influenciado pelo regionalismo de Gilberto Freyre, desde os
idos da década de quarenta, expresso na certeza de que o Brasil não fora
ainda assimilado em sua imensidade territorial (VELLINHO, 1945, p.5),
necessitando, para isso, da valoração do traço particular da região.
A posse das terras que compreendem a região sul-rio-grandense deu-
se pelas mãos do herói Silva Paes, quando este edifica o forte Jesus-Maria-
José em 1737, com o objetivo de salvaguardar a Colônia do Sacramento:
“era a posse oficial da nova circunscrição já virtualmente incorporada, sob
84
a vaga designação de Capitania d’El Rei, ao complexo luso-brasileiro”
(VELLINHO, 1970, p.41). Esse fato veio a oficializar o que já era, na
interpretação de Vellinho, um domínio português:
[...] tendo sido o Rio Grande do Sul luso-brasileiro conquistado
quase um século depois da restauração de Portugal em 1640,
nunca chegou a fazer parte do domínio colonial da Espanha.
Após a incorporação e povoamento da Capitania, os espanhóis
só entraram aqui como inimigos, nunca como senhores. E nada
deixaram (VELLINHO, 1970, p.10).
Os domínios comportados nas terras que constituíram o Rio Grande do Sul
eram projetivamente brasileiras segundo Moysés Vellinho porque estavam
na alçada da expansão bandeirante:
Que espantoso instinto de criação política sob os impulsos
predatórios dos aventureiros paulistas do século XVII! Acima
do bem e do mal pelas cruas contingências do meio e da época,
a eles, pela sua espantosa mobilidade, pela dureza e
desassombro de suas investidas, estava reservada uma
fulgurante missão histórica: – a integração da América
Portuguesa em quase toda a sua extensão (VELLINHO, 1970,
p.66).
Os bandeirantes, na interpretação de Vellinho, além de perseguirem
objetivos particulares em suas empresas, são dotados de uma função que
transcende ao próprio caráter político da conquista, pois são “ao mesmo
tempo chamados a cumprir um mandato político de soberba transcendência”
(VELLINHO, 1970, p.66). A obra dos bandeirantes é dotada, assim, bem
como a de outras personagens históricas construtoras do Rio Grande do Sul
(notadamente os de etnia lusa), de uma espécie de essência instintiva
nacionalista colada à suas ações. A integração do Brasil, sendo fruto da
obra dos desbravadores bandeirantes, é perspectivada em termos de dívida
afetiva: “não há como pesar ou medir a dívida do Brasil para com o
bandeirismo” (VELLINHO, 1970, p.66). A integração brasileira é, desta
maneira, fruto direto da ação dessas personagens que, sendo munidas de
instintos de natureza pátria e cívica, justificam a expansão lusa, pois foram
85
elas que desvirtuaram o Tratado de Tordesilhas em seu “extraordinário
arbítrio de dispor livremente sobre os mundos de além-mar” (VELLINHO,
1970, p.67). A diplomacia é então minimizada em importância na
argumentação do historiador, em nome das leis da contingência histórica,
ainda que essas sejam impregnadas de transcendentalismo, pois “o que
tinha de ser trazia a força em si mesmo” (VELLINHO, 1970, p.93). Deste
modo, o Tratado de Tordesilhas “[...] nada poderia contra as forças da
História” (VELLINHO, 1970, p.34). Daí o significado da dívida pátria que
se deve ao bandeirante que lutou “[...] contra a ‘intromissão’ da coroa
espanhola e contra os membros da Compainha de Jesus e seus neófitos,
porque ‘alteraram’ a geopolítica da colônia portuguesa” (SANTOS, 1987,
p.81).
O que se observa na narração de Vellinho é o recuo das políticas
distantes, articuladas em além-mar, como o Tratado de Tordesilhas, para
figurar em primeiro lugar, os elementos autóctones. Assim, a expansão
luso-brasileira “desenvolveu-se, por instinto e inspiração política, sobre a
unidade geográfica, cultural e econômica já obscuramente delineada antes
do Descobrimento pelo grupo tupi-guarani. O espaço desde cedo cobiçado
pela Metrópole coincidia com essa unidade” (VELLINHO, 1970, p.66).
Estranhamente aqui, há uma recorrência que referencia, positivamente, o
elemento autóctone – que quando não ignorado, aparece sob um viés racista
– como elemento unificador do topônimo brasileiro, guardado pela tradição
do tronco Tupi-Guarani. Essa unificação permitida pela “obscura” tradição
autóctone teria pontilhado as linhas das “fronteiras naturais” (VELLINHO,
1970, p.45). Justifica-se, assim, a unidade alcançada pela expansão luso-
portuguesa a oeste em terras meridionais, que é politicamente propiciada
pela instalação da Colônia do Sacramento: “foi realmente sob o signo
político que se promoveu a conquista da fronteira meridional do Brasil,
tanto que a ocupação do Rio Grande de São Pedro se apresenta como uma
operação complementar do episódio da Colônia do Sacramento”
(VELLINHO, 1962, p.111).
86
O Tratado de Santo Indefonso é outro desrespeito à contingência
histórica na interpretação de Moysés Vellinho, já que previa “o humilhante
retorno ao estado de coisas anterior à fundação da Colônia do Sacramento
(VELLINHO, 1970, p.43). A história da formação sul-rio-grandense neste
momento é concebida em termos de “defesa e reconquista” do território, e
tem como protagonistas não mais os bandeirantes, mas os sujeitos locais, os
“vassalos remotos e afoitos” do Rei (VELLINHO, 1970, p.43), todos de
extrato luso: “descendentes de bandeirantes e de elementos ocorridos de
outras capitanias, os reinóis, os retirantes da Colônia do Sacramento, os
ilhéus e seus filhos” (VELLINHO, 1970, p.43). Observa-se que todos os
moldadores étnicos do barro formador sul-rio-grandense eram de origem
lusa. Seus feitos, como os dos bandeirantes, eram carregados de funções
projetivas de cunho nacionalista, conforme o anacronismo necessário para
viabilizar a argumentação de Vellinho: “todos haviam madrugado na
consciência de um dever urgente: - conter a ferro e fogo a irrupção inimiga,
que agora, em virtude da vitória de Santo Ildefonso, ameaçava retalhar as
divisas meridionais do Brasil” (VELLINHO, 1970, p.43).
Estavam alicerçados os mesmos pontos de parecença entre o Rio
Grande do Sul e o Brasil: o mesmo componente colonizatório de extrato
luso, dotado de uma função pátria que transformou sujeitos históricos em
construtores empenhados da nacionalidade em uma terra virtualmente
brasileira, já que a despeito de divisas políticas entre Portugal e Espanha,
as terras sul-americanas já constituíam para Vellinho a divisa meridional
do Brasil. Era necessário, ainda, que os “construtores do Continente de São
Pedro” (VELLINHO, 1970, p.44) liquidassem o inimigo intruso para
confirmar a essência da naturalidade de que se é intimamente luso-
brasileiro. A leitura de Vellinho sobre a “defesa e reconquista” das raias
meridionais do Brasil é um evento de caráter e importância nacional, daí
porque se observa o recuo na cena narrativa das personagens geradoras do
Rio Grande do Sul (colonizadores portugueses e bandeirantes) para figurar
em primeiro plano as personagens luso-brasileiras que, filiadas às
primeiras, encarnavam a feição nacional. Eram as cores locais nacionais
87
lutando pelos interesses do Brasil em sua porção meridional: “o poderoso
sentido premonitório de uma nacionalidade em gestação como que se
descobria a si mesmo, e por si mesmo se afirmava, ao afrontar com suas
forças os riscos de uma empresa que Portugal já não podia tomar a si”
(VELLINHO, 1970, p.44). Por mais que Vellinho acione, ligeiramente,
eventos de ordem econômica para atrelar o desenvolvimento do Continente
de São Pedro à diretriz nacional, como o argumento da complementação
econômica do Estado ao Brasil mineiro (VELLINHO, 1970, p.45), o
argumento enfatizado na sua exegese é a missão da arquitetura pátria
nacional em terras meridionais: “era a vocação dos brasileiros para a
autodeterminação que se alçava mais uma vez, agora com redobrado vigor,
e que depois, chegado o tempo, alcançaria a independência do país”
(VELLINHO, 1970, p.44).
O caráter antibrasileiro decorrente da presença dos Sete Povos das
Missões na área que constituirá o Brasil é, para Vellinho, “apenas uma
evidência histórica” (VELLINHO, 1957, p.9). Até o fim do domínio
espanhol na região em 1801, a área missioneira estaria a serviço de uma
tradição antagônica, e “é por isso que a história que deles se conta, sempre
voltadas suas armas contra os fundadores do Continente, não pode
constituir um capítulo integrante da história rio-grandense, senão por artes
de uma beata ou tendenciosa falsificação interpretativa” (VELLINHO,
1970, p.78). Devido ao antagonismo entre a empresa jesuítica e o mundo
luso-brasileiro, o historiador concebe os postos missioneiros como intrusos
numa área que a “fatalidade histórica pusera ao alcance do surto
expansionista dos lusos brasileiros” (VELLINHO, 1970, p.79), negando,
desta forma, “o papel e a função dos Povoados missioneiros, como primeiro
núcleo de colonização” (SANTOS, 1987, p.105). O historiador extirpa,
assim, um evento da formação histórica sulina por compreendê-lo
unicamente sob o aspecto político, já que a área missioneira encontrava-se
provocadoramente em terra projetivamente brasileira, que estava “destinada
à complementação geográfica do sul do Brasil” (VELLINHO, 1957, p.9).
Para reforçar a sua argumentação traz como índice de interpretação, as
88
designações jesuíticas para a área do Tape: “‘nosso Paraguai’” ou “‘minha
colônia paraguaia’” (SEPP S.J., Antonio, apud VELLINHO, 1970, p.78).
Como decorrência de uma argumentação que elegeu o contraste
político como motriz da formação sul-rio-grandense, marcado pelo conflito
Portugal versus Espanha, é salutar o literal apagamento do passado
missioneiro da tradição sul-rio-grandense (VELLINHO, 1957, p.10), já que
os Sete Povos das Missões seriam palco de interesses estranhos e
contrastantes aos luso-brasileiros. A tomada da área missioneira pelos
portugueses, em 1801, marca o inicio de uma nova história, tomada como a
“definitiva” na exegese de Vellinho. Assim, da área missioneira, “outra
história, sob inspiração política antagônica, ia começar ali, em nome da
estruturação definitiva do Rio Grande” (VELLINHO, 1957, p.10).
Um dos meios de extirpar a experiência missioneira era depreciando
a etnia Guarani: “os rebanhos de guaranis que então cruzaram o rio, de
regresso ao Tape, eram apenas os escarmentos sobreviventes de uma
população desbaratada” (VELLINHO, 1962, p.29). Quando se deu o
episódio da incorporação do território missioneiro para a jurisdição
portuguesa, os indígenas reduzidos foram incorporados como ruínas à
“nova história” (expressão do autor) a ser desenvolvida em território sul-
rio-grandense, já que os Guarani eram uma etnia “em franca derrocada
(VELLINHO, 1962, p.31), o que é uma forma de anular a presença indígena
no Rio Grande do Sul, pois da “anexação dos Sete Povos ao Brasil em 1801
não suscitou nenhum processo de aculturação” (VELLINHO, 1970, p.94).
A interpretação da formação histórica do Rio Grande do Sul, de viés
racista, efetivada por Moysés Vellinho, necessita expurgar o legado dos
Guarani da tradição sul-rio-grandense para daí erigir um elemento
contrastante entre o gaúcho sul-rio-grandense e o gaúcho platino, tomados
como antagônicos, em virtude deste ser mestiço. O racismo é um ponto
89
contraditório na obra de Moysés Vellinho
37
. Pode-se dizer contraditório
porque o Vellinho historiador está em desacordo com o Vellinho leitor e
comentador da obra de Gilberto Freyre que, como se sabe, elevou o índio e
o negro
38
à condição de formadores do Brasil e ajudou a espantar o
fantasma do fenômeno da miscigenação das “infundadas reservas inspiradas
pelo material humano que constitui o casco da nacionalidade – e tais
reservas são com freqüência tão dilacerantes!” (VELLINHO, 1981, p.132).
Compara-se a crítica de Vellinho a Freyre, elogiosa da mestiçagem, e fica-
se em terreno pantanoso:
Levados por certo bovarismo, como que procurávamos
esconder sob uma falsa imagem componentes decisivos da nossa
estratificação social. Numa palavra, as teorias interpretativas da
nossa formação acusavam geralmente, em grau maior ou menor,
uma atitude de resistência, até mesmo de repulsa, ao fato de
constituirmos, desde o fundo das nossas camadas biológicas e
culturais, o produto de um vasto processo de mestiçagem, do
qual participavam povos e raças que a mística do arianismo
incriminara de inferiores (VELLINHO, 1981, p.129).
Como pode um autor que aplaudiu a crítica ao arianismo e aos
modelos filosóficos estrangeiros na interpretação da realidade brasileira,
levados a cabo por Freyre, incorrer em tamanho disparate na sua práxis
intelectual? Não pode haver contradição maior, se levado em conta que
datam do mesmo ano o ensaio de Vellinho sobre Freyre
39
e a obra O Rio
Grande e o Prata, da qual é recortado o trecho seguinte.
37
Como já salientou Ieda Gutfreind (1990), a interpretação historiográfica de Vellinho
não se detém nos temas negro e escravidão. Da mesma forma como no caso da
miscigenação indígena, o que se observa é uma contradição entre a interpretação
histórica, racista, e um Moysés Vellinho impressionado com o lugar social equalitário
que o negro alcançara nos Estados Unidos, como o intelectual observou em sua viagem
àquele país nos anos 50. As impressões de viagem renderam o artigo O negro
americano: algumas observações, inicialmente publicado no número 18 de Província de
São Pedro em 1953 e compilado em Aparas do tempo (1981).
38
Rapidamente em uma passagem de Capitania d’El Rei, o historiador considera o
influxo índio e negro na formação do casco antropológico (expressão do autor) sul-rio-
grandense: “elementos da mais variadas procedência e condição [...] e índios, e negros,
e mestiços. Em proporção variável, contribuíram todos com o seu quinhão para a obra
comum” (VELLINHO, 1970, p.216).
39
Ensaio compilado no póstumo Aparas do tempo com o título: Gilberto Freyre e a
valorização do português, e originalmente publicado sob o título Gilberto Freyre: sua
ciência, sua filosofia, sua arte para o volume Ensaios sobre o autor de Casa-grande e
90
O sangue indígena que se juntou ao daqueles pioneiros não foi
suficiente para corromper-lhes a vocação firmada em sua
ascendência luso-brasileira. Nossa tradição desconhece a
conjugação de fatores que proporcionam ao gentio papel
decisivo nos trágicos antagonismos que caracterizaram a
história platina. Ao contrário do que sucedeu ali pela força do
número, entre nós encontraria confirmação a regra segundo a
qual se raças diferentes se juntam para a realização de
atividades similares, prevalecem os caracteres da mais dotada.
O elemento indígena que nos sobrou era escasso, e, além de
tudo apagado e dispersivo (VELLINHO, 1962, p.108).
Com relação aos indígenas reduzidos, eles são, ou mortos pelas empresas
bandeirantes, ou minimizados em importância racial na narrativa do
historiador: “apesar da extraordinária empresa dos jesuítas, o certo é que a
experiência daí resultante veio demonstrar que o guarani isoladamente, isto
é, segregado dentro dos limites de sua raça, jamais poderia ser contado
como fator ativo de civilização” (VELLINHO, 1962, p.32).
Acredita-se que não há fechamentos possíveis para essa questão, pois
há mais problematizações do que encerramentos a serem almejados. Uma
das possibilidades para se lidar com essas antinomias é a convicção de que
a análise da obra de um autor não pode encerrar uma perspectiva sintética
sob pena de apagar a própria contradição, já que tanto autor como obra não
são estruturas herméticas, os enunciados não são cristalizados e uniformes
a ponto de rejeitar contradições. Moysés Vellinho racista? Sim e não,
enquanto leitor e comentador de Freyre, não, enquanto historiador que
negou a miscigenação, sim, como se observa na sua bem fechada exegese
histórica, imbuída em destacar o português. Para valorizar esta etnia em
importância, o historiador não se constrangeu em usar a vassoura, como
pode ser observado no trecho seguinte, onde fica explicitada a assepsia de
nativos do mapa sul-rio-grandesense: “os índios que deambulavam pelos
campos e canhadas rio-grandenses, desgarrados de tribos já em
desagregação, acabariam quase desaparecendo do nosso mapa demográfico”
senzala e sua influência na moderna cultura do Brasil, comemorativo do vigésimo-
quinto aniversário da publicação de Casa-grande e Senzala.
91
(VELLINHO, 1962, p.29). Com relação ao impasse possibilitado pelo
racismo observado em Vellinho, não se pode crer que o fechamento da
questão possa ser alcançado através de uma interpretação unívoca – Moysés
Vellinho é racista – porque, desta forma é apagada uma de suas faces, a que
aceitava a realidade mestiça brasileira.
Contra os desenganos que concebiam o Rio Grande do Sul como
híbrido de influência espanhola e portuguesa, bem exemplificado na
posição do poeta Humberto Campos, para quem o Rio Grande nasceu
espanhol e se tornou brasileiro “‘mais por influência artificial da política
do que pela força natural dos fenômenos sociais. [...] Foi o hispano-
americano que, infiltrando-se com os raros indígenas poupados pelas
guerras atiçadas nas missões, deu ao povo rio-grandense uma psique e,
quase, a língua que fala’” (Apud VELLINHO, 1970, p.10) Moysés Vellinho
tinha todo um leque de argumentos contrários organizados numa bem
fechada interpretação histórica para lhe fazer frente, asséptica, livre dos
Guarani, jesuítas e espanhóis, e construída unicamente por meio das mãos
de colonizadores do mesmo tronco étnico luso – a etnia-mestra,
denominadora-comum da formação brasileira. Para coadunar sua
interpretação historiográfica aos imperativos nacionais, Vellinho
necessitou de fingimento para reinventar factualmente a história sul-rio-
grandense, soando através de máscaras que se defrontadas, podem, negar
uma a face da outra, mas a homogeneidade para o sujeito moderno se faz
por meio da ficção da unidade (HALL, 2005) e, para isso, é necessário,
como postula certo narrador de Machado de Assis, que as cores não se
desmintam umas às outras mesmo que irregulares e assimétricas.
3 A NARRATIVA DA IDENTIDADE NACIONAL POR MOYSÉS
VELLINHO
O principal é que as cores se não
desmintam umas às outras, – quando
não possam obedecer à simetria e a
regularidade. Era o caso do nosso
homem. Tinha o aspecto baralhado à
primeira vista; mas atentado bem, por
mais opostos que fossem os matizes, lá
se achava a unidade moral da pessoa.
Machado de Assis – Quincas Borba
[...] sabemos falsidades dizer, muitas,
certas só no aspecto, mas sabemos
também, quando queremos proclamar
revelações.
HesíodoTeogonia
Para se construir a narrativa da identidade nacional, Stuart Hall
salienta que “há a ênfase nas origens, na continuidade, na tradição, e na
intemporalidade. A identidade nacional é representada como primordial”.
Essa narrativa é também, muitas vezes, baseada na idéia de um povo puro e
original (HALL, 2005, p.53). Na narrativa identitária
40
nacional do Rio
Grande do Sul construída por Moysés Vellinho há a ênfase no primado
absoluto da etnia portuguesa modulando a tradição, a responsável pela
formação social sul-rio-grandense.
40
Em lugar da dicotomia os discursos de Moysés Vellinho (o crítico-literário e o
historiográfico) trabalhados no capítulo segundo, a palavra discurso é empregada aqui
no singular, pois não são os discursos tomados separadamente o objeto de discussão
neste capítulo, e sim a função identificadora comum aos dois. Têm-se, assim, o
discurso ou a narrativa da identidade de Moysés Vellinho.
93
A origem do Rio Grande do Sul é contada a partir da etnia lusa, que
marcará a legenda ou essência da coletividade sul-rio-grandense. Não
importa para Moysés Vellinho, que outras etnias tenham concorrido para a
formação social do Estado desde que não comprometam o “componente
nobre da mistura” (VELLINHO, 1981). A manipulação da imagem do
gaúcho, cuja nominação é uma criação do intelectual urbano, como salienta
Luiz Antonio de Assis Brasil (2004), evidencia como Moysés Vellinho cria
o seu tipo representativo do sul-rio-grandense coadunando o termo gaúcho
ao uso gentílico moderno. Para isso, ele apreende o legado de essência
portuguesa que moldou o tipo na origem e o estica temporalmente, fazendo
com que a diversidade seja atrelada à pureza da origem. É o essencial
amarrando as ocorrências históricas para que elas não se desvinculem da
linha costurada pela tradição.
3.1 A identidade nacional do Rio Grande do Sul: uma questão de
referência
Ao fixar uma referência nacional para o Rio Grande do Sul, Moysés
Vellinho elege qualidades de um sistema maior de representação, o Brasil,
e as dilui no Rio Grande do Sul. Ao mesmo tempo, elimina as possíveis
características de outro sistema representativo que possa fazer frente ao
sistema principal. Tem-se, assim, no discurso de Moysés Vellinho, um Rio
Grande do Sul que nega o mundo platino e afirma os apelos centralistas da
nacionalidade. O intelectual, uma vez convencido da unilinearidade luso-
brasileira da formação étnico-social do Rio Grande do Sul, instaura o
diálogo relacional entre a parte e o todo, que vai estender o lastro luso-
brasileiro constituidor do Brasil até a sua porção meridional para englobá-
lo como parte orgânica. Essa operação demonstra a mobilidade presente nos
processos de identificação que se estabelecem por meio de relações entre os
universais de um sistema e o sistema específico (DAMATTA, 2000, p.15).
Aceitar o vínculo unilateral português implicou tomar o Prata como um
elemento antagonista na narrativa de Vellinho, daí os embates
94
estabelecidos entre as afirmações e negações de elementos presentes em
dois sistemas de representação, um tomado como força contrária, marginal
e circunstancial, e o outro convergente, central e permanente.
O aspecto relacional presente nos processos identificadores decorre
do fato de que nenhuma identidade cultural se constrói sozinha, pois
nenhuma coletividade realiza uma leitura isolada de si própria
(DAMATTA, 2004, p.19). A identidade, como um exercício de
autoconsciência, é construída por meio daquilo que o sociólogo designa de
“lógica relacional”, uma leitura realizada por cada sociedade mediante
“referências internas e externas, por meio de comparações com outras
comunidades que se situam no seu âmbito histórico-social” (DAMATTA,
2004, p.20). Na narrativa da construção da identidade sul-rio-grandense de
Moysés Vellinho, observa-se o relacionamento afirmativo do Rio Grande do
Sul ao todo nacional, bem como a negação de eventuais características de
índole platina que o Estado possa manifestar em sua identidade cultural.
Obtém-se assim, ao nível discursivo, o relacionamento de referências para
negar umas e afirmar outras para, desta forma, identifixar
41
uma imagem
nacional para o Estado sulino.
A desestabilização de uma noção essencial da identidade por Lévi-
Strauss (1981) é particularmente importante, pois possibilita ter presente
que realidades identificadas como Brasil, Rio Grande do Sul, brasileiro e
gaúcho são categorias em constantes jogos de significação. Longe de serem
realidades fechadas, são fluidas: “[...] ha de renunciar a considerarse
esencial, para aprehenderse como una función inestable y no como
realidad sustancial, como lugar y momento, igualmente efímeros, de
41
Se as “identidades são, pois, identificações em curso” (SANTOS, 1994, p.31),
representações construídas mediante constantes processos de criação e recriação, o
neologismo identifixa parece explicitar o processo criacionista da identidade mediante
estilos particulares de apropriação. A fixação de identidades sob uma aparência
essencial empresta uma forma naturalizada à representação culturalmente construída,
minimizando o componente da criação pela forma cristalizada da apresentação,
plenamente identificada e identificável numa forma intransitiva.
95
concursos, intercâmbios y conflictos” (LÉVI-STRAUSS, 1981, p.10). A
identidade assim compreendida consiste na apropriação de qualidades
universais que são particularizadas numa forma que, uma vez identifixada,
toma os ares de realidade essencial, embora não passe de “una especie de
fondo virtual al cual nos es indispensable referirnos para explicar cierto
número de cosas, pero sin que tenga jamás uma existência real” (LÉVI-
STRAUSS, 1981, p.369). A ilusão da rigidez e imutabilidade da identidade
decorre, pois, de sua apresentação solidificada que escamoteia as
“negociações de sentido, jogos de polissemia, choques de temporalidades
em constantes processos de transformação” (SANTOS, 1994, p.31).
Para Boaventura de Souza Santos, “quem pergunta pela sua
identidade questiona as referências hegemônicas mas, ao fazê-lo, coloca-se
na posição de outro e, simultaneamente, numa situação de carência e por
isso de subordinação” (1994, p.31). O certo é que as respostas de Moysés
Vellinho (e de sua outra máscara, Paulo Arinos) têm o seu lugar de
enunciação marcado à época por uma posição percebida como deficitária
perante o nacional. É a postura do intelectual da província que queria ser
ouvido (a si e a sua cultura) pela coletividade nacional que
tradicionalmente tomava a cultura sul-rio-grandense como periférica, como
evidencia a compreensão de Vellinho sobre a recepção do regionalismo
sulino pelos círculos nacionais: “mas como justificar então que a crítica da
corte nunca tenha recusado foros de brasilidade à literatura da seca, da
cana de açúcar e do cacau, aos regionalismos do norte em suma, não menos
agarrados à terra que o do sul?” (VELLINHO, 1948, p.6). A idéia da região
sul-rio-grandense como periférica, parecia ser um problema ainda
perturbador na metade do século XX, uma vez que, findo o período do
regionalismo literário brasileiro (segundo a opinião de Vellinho), os
problemas de compreensão e aceitação nacionais ainda perdurariam:
Enfim, o regionalismo, na sua feição dialetal, é hoje um
capítulo encerrado. E então? Então passamos a responder
por um novo delito. Antes vivíamos à margem, cultivando
96
maneiras aberrantes da forma consuetudinária. Confinados
dentro de uma área histórica e política supostamente excêntrica,
indisciplinados, refratários, chegávamos a ser, na literatura e
fora dela, os castelhanos do Brasil... Hoje, acusados de viver em
morna lua-de-mel com a gramática! Somos agora os tímidos
neoclássicos do panorama brasileiro! (VELLINHO, 1948, p.7).
[grifo nosso]
Se a identidade é uma necessidade “semi-fictícia e semi-necessária”,
para quem formula a pergunta identificadora, a questão é sempre “uma
ficção necessária”(SANTOS, 1994, p.31). Uma vez alcançada a resposta, o
seu êxito deve ser medido “pela intensidade da consciência de que a
questão fora, desde o início, uma necessidade fictícia. É, pois, crucial
conhecer quem pergunta pela identidade, em que condições, contra quem,
com que propósitos e com que resultados” (SANTOS, 1994, p.32).
O modo pendular de Moysés Vellinho pensar a identidade, oscilando
entre o todo e a parte, está presente em sua narrativa desde as primeiras
críticas da década de 20. Nessa época, como crítico, interrogava a
identidade nacional relacionando duas instâncias: o traço brasileiro frente
ao universal. A identidade nacional seria entrevista a partir do
reconhecimento da “harmonia relativa” (ARINOS, 1924, p.3). A harmonia
relativa parece ser a própria identidade, já que ela seria a fixação ou
harmonização de referências mediante coordenadas temporais e espaciais
das “[...] circunstâncias de cada momento, de cada raça, e à luz, e à
perspectiva, e ao espírito de cada uma dessas paisagens históricas”
(ARINOS, 1924, p.3). O termo operador do contraste é a harmonia absoluta
(provavelmente calcada na esteira do pensamento platônico), inacessível à
história, já que é uma realidade que “[...] só vagamente pressentimos. Há,
no fundo de nós mesmos, herdada dos nossos troncos mais recuados, uma
teimosa aspiração de unidade. Sonhamos uma lei universal que presida
todas estas pequenas desarmonias, dentro das quais vivemos” (ARINOS,
1924, p.3). A desarmonia é o inominado e, portanto, inacessível. A
nomeação, como explica Assis Brasil, denota a capacidade de dominar um
espaço regional, tomando-o simbolicamente para si (2004, p.32).
97
Consciente disso, e também do fato de que a harmonia absoluta estaria para
além dos planos da contingência histórica, é que Vellinho busca ordenar a
desarmonia por meio da harmonia possível, a relativa que se dá pela
conscientização da face local para assim dominar o tempo/espaço
inominados, que se acham desarmonizados e, portanto, com uma identidade
instável.
O modelo de interpretação fornecido pelo par harmonia
absoluta/relativa, que faz referência às categorias universal/brasileiro, será
reatualizado para pensar a identidade sulina por meio de outro binarismo, o
Brasil/regiões, ou mais precisamente, o brasileiro/sul-rio-grandense,
apontando desta forma, o regional como o espaço possível de realização da
harmonia relativa. Haveria, desta maneira, o assenhoramento da harmonia
relativa, não por meio da sinfonia da totalidade brasileira, mas por meio de
suas batidas locais.
O estilo, sendo uma variação contra um fundo comum, veste o corpo
com roupas que o caracterizam; “o axioma do estilo é pois, este: há várias
maneiras de dizer a mesma coisa, maneiras que o estilo distingue”
(COMPAGNON, 1999, p.168). A mesma capacidade de particularização,
por meio da distinção, é percebida nas sociedades, se si pensar a construção
da identidade social como um estilo de composição: “a construção de uma
identidade social, então, como a construção de uma sociedade, é feita de
afirmativas e de negativas diante de certas questões” (DAMATTA, 2000,
p.7). A pergunta identificadora de Moysés Vellinho parece perspectivar a
identidade como uma apropriação particular que distingue do comum para
afirmar o próprio: “porque não teremos nós o nosso ritmo?” (ARINOS,
1924, p.3). Acontece que, para o ritmo regional marcar o passo com o
nacional, ele precisou ser apresentado como uma harmonia absoluta porque
nacionalizada.
98
3.2 O estilo pessoal articulando uma identidade nacional para o Rio
Grande do Sul
“Parece que tudo ficaria mais fácil de compreender se passássemos,
de uma vez para sempre, a encarar o episódio das missões jesuíticas como
substancialmente estranho à formação histórica do Rio Grande. É evidente
que não interfere nesta proposição nenhum juízo de valor” (VELINHO,
1957, p.9). Moysés Vellinho conseguiu de fato, alcançar uma interpretação
do passado que supostamente tornaria as coisas mais fáceis de serem
compreendidas porque tornou o múltiplo em uno bem amarrado. O que não
é, todavia “evidente”, é a ausência do julgamento de valor, que se mostrou
marcado em seus discursos. E sobre esse ponto se assenta uma das
significativas antinomias presentes em sua obra, que a faz balançar entre a
subjetividade explicitada na própria enunciação: “nossa posição neste
debate [sobre os heróis culturais] não é a de quem julga, não pode ser a de
uma falsa e perigosa neutralidade, pois nela figuramos como partes que
sofreram na própria carne” (VELLINHO, 1957, p.7), e a neutralidade dos
enunciados exigidos do historiador:
Creio que a tarefa mais urgente é encarar sem paixão a realidade
brasileira, contemporânea, fugindo ao culto dos falsos ídolos, e
buscando entendê-la e interpretá-la com coragem e boa-fé. A
verdadeira história está ameaçada cada vez mais pelas
improvisações [...]. Ao historiador cabe, porém, antiga tarefa de
separar o joio do trigo (VELLINHO, 1979, p.11).
Moysés Vellinho manipula a história, fazendo das Missões “capítulo
frustrado” (expressão de Vellinho) da expansão espanhola, ao mesmo tempo
em que toma o Rio Grande do Sul como produto da história nacional
brasileira: “a única realidade é a nossa condição luso-brasileira que se
impôs naturalmente” (VELLINHO, 1979, p.10). Moysés Vellinho ao
apresentar o caráter luso-brasileiro da identidade sul-rio-grandense como
“a única realidade”, absolutiza algo que não passa de uma representação
99
cultural. A naturalização das apresentações da identidade é presente aos
processos identificadores e corrompe a historicidade das representações,
como explica Stuart Hall: “os elementos essenciais do caráter nacional
permanecem imutáveis, apesar de todas a vicissitudes da história. Está lá
desde o nascimento, unificado e contínuo, ‘imutável’ ao longo de todas as
mudanças, eterno” (HALL, 2005, p.53).
O certo é que Moysés Vellinho nunca perdera de vista “os
compromissos maiores, os que exaltam a natureza humana, sua missão e
destino” (CESAR, 1981, p.9). Parecem ser esses serviços prestados aos
compromissos “maiores” da empresa humana que fazem o intelectual
extrapolar o exercício diletante da crítica literária, formalista em demasia
para ele, bem como a pesquisa de reconstrução do passado mediante
métodos de análise estritamente científicos. Essas duas formas de
conhecimento recuam mediante a necessidade de estabelecer a harmonia
relativa, capaz de identificar como brasileiro o Rio Grande do Sul e o
gaúcho. Pode-se traçar uma comparação entre a função cívica de
rememoramento entrevista na obra de Moysés Vellinho e as funções do
aedo tradicional, pois o historiador acreditava possuir o poder de contar a
história da comunidade (ELIADE, 1963), desvelando-lhe a verdade – canto
que podia conter muitas falsidades, embora possuíssem aparência
verdadeira, como lembra o canto das musas de Hesíodo. A pesquisa
rigorosamente científica do passado é mediada por outras formas de acesso
ao conhecimento, como a análise realizada no capítulo anterior permite
afirmar e o depoimento de Guilhermino Cesar vem a reforçar pela riqueza
dos termos que utiliza na caracterização da interpretação historiográfica de
Moysés Vellinho, a quem coube,
[...] no plano da interpretação histórica, rever com agudeza o
passado rio-grandense, balizando os pontos essenciais que
explicam e definem a Marca, a Fronteira do Sul. Portanto, na
sua ação silenciosa, dentro de seu gabinete de estudos, o autor
de Capitania d’El-Rei encarnou a seu modo, com
determinação férrea, o ‘fronteiro’ do século XX. Isto é,
investigando o espaço, ouvindo rumores obscuros da terra,
100
adivinhando os sonhos e os sofrimentos da grei, teve o
privilégio de ressuscitar fatos e atos (CESAR, 1981, p.17).
[grifo nosso]
Moysés Vellinho perpetuava por meio da encarnação do fronteiro, a mesma
função cívica desses sujeitos históricos que ele concebeu como construtores
da nacionalidade em sua exegese. Fundia-se, assim, numa única instância,
sujeito intérprete e objeto analisado, no qual aquele alargava no tempo as
mesmas funções pátrias que moveram os desbravadores bandeirantes em sua
interpretação. A capacidade, quase xamânica do historiador, de “ressuscitar
fatos e atos” e de ouvir “rumores obscuros da terra” explicita modos de
acesso ao passado que equivalem mais a desvelar, ou a criar “a seu modo” a
realidade histórica. A compreensão do passado não se restringia a descobri-
lo, e sim a revelá-lo mediante uma leitura que buscasse “uma significação
mais funda do que deixam transparecer os meros registros históricos”
(VELLINHO, 1970, p.28), interpondo, desta forma, aos objetos analisados
a consciência intérprete: “nem todos trazem o espírito aberto às pulsações
subjacentes que dão aos fatos históricos seu verdadeiro sentido”
(VELLINHO, 1970, p.4).
Quem procura um romance sabe que encontrará a mentira ficcional e
não cobrará verdades que transcendam o gênero. Quem se debruça por
sobre uma obra historiográfica há de querer ver figurada a narração
fidedigna dos eventos (MIGNOLO, 1993). O que pode acontecer quando um
historiador outorga a si próprio a função de clarificação histórica e
manipula o passado? A compreensão da obra de Vellinho é comprometida
se lida exclusivamente pelos olhos do historiador, que procuram sempre a
verdade nos enunciados da obras historiográficas. Atrelar-se
exclusivamente à busca de verdade no discurso de Vellinho é ignorar o
significado das mentiras, ou fingimento de seu discurso. Assim, para alguns
intérpretes, Vellinho não é um historiador porque sua obra além de falsa e
ideológica, é destituída de neutralidade – ou a falta de neutralidade a faz
ideológica: “é claro que a imparcialidade do historiador pode existir. O que
raramente existem são historiadores” (DACANAL, 1980, p.26).
101
Hildebrando Dacanal é um leitor que, acreditando na imparcialidade
do ofício do historiador, “esta imparcialidade existe na medida em que o
historiador, sem negar a si e ao seu grupo, está em situação de, por seu alto
nível de compreensão da condição humana, distanciar-se no tempo e relatar
os eventos sob o signo da eternidade” (DACANAL, 1980, p.26), buscará na
obra de Moysés Vellinho o que procura
42
, a neutralidade do historiador.
Muita coisa há de aviltar a verdade histórica na obra de Vellinho, daí o
desconforto e a revolta do crítico em face da obra, como ele próprio
explicita: “antes de tudo, a exteriorização da revolta de quem desde os mais
tenros anos [...] foi engambelado pelas ficções da historiografia oficial”
(DACANAL, 1980, p.28).
Daí porque Dacanal encara sua própria análise como uma “proposta
agressiva para o início de um debate que há muito já deveria ter sido
iniciado” (DACANAL, 1980, p.28). Acontece que a obra de Vellinho não se
presta como documento de verdade, serve para outros fins do que contar a
história fidedigna do Rio Grande do Sul. Ela é o testemunho do empenho e
da compreensão do intérprete sobre os assuntos da sua região. Além de que,
Moysés Vellinho não se pretendeu neutro para se fazer historiador, pois a
parcialidade era necessária para não “negar a si e ao seu grupo”. A
imparcialidade era, como ele demonstrou em vários momentos da sua obra,
inverossímil à matéria tratada. A abordagem do passado pelo historiador
não se restringia a uma “[...] operação gratuita, de interesse puramente
acadêmico. Ao contrário disso, ela busca responder ao desafio de um
problema vivo, cheio de implicações políticas e sociológicas, e ainda
exposto a freqüentes deformações” (VELLINHO, 1962, p.7).
Os esforços de Moysés Vellinho para coadunar o Rio Grande do Sul
ao Brasil são articulados pela categoria da região:
42
Instrumento óptico é como Proust designa a obra. Ela é assim, um instrumento de
visão para o leitor enxergar-se a si próprio na leitura. Para Proust, qualquer leitor
maltrata o texto, já que a compreensão é subjugada à leitura (COMPAGNON, 1999).
102
Os que deliram com um Brasil centralizado e uniforme,
valores culturais artificialmente padronizados, esquecem que
a própria salvaguarda da nossa unidade territorial, [...] está em
grande parte na dependência da legítima expansão dos
regionalismos’, que constituem, [...] ‘a parte viva e plástica
em que se conservam e desenvolvem a variedade e
originalidade do complexo nacional (VELLINHO, 1970, p.7).
[grifo nosso]
Moysés Vellinho desejava uma leitura “dos regionalismos” efetivada pelas
“bandeiras”, que deveriam ler o Brasil por meio da região. O sentido
tomado por essa leitura é justificado pelo fato do Brasil ser um país de
dimensões continentais: “o nosso país é grande demais para já ter sido
literariamente
43
assimilado em toda a sua imensidade, acontece que há
vastas zonas, dentro das nossas fronteiras humanas e geográficas, ainda não
alcançadas pela morosa expansão das bandeiras culturais” (VELLINHO,
1945, p.7), o que fomentaria uma riqueza diversa ao todo somente captada
no microcosmo regional. A tão afirmada necessidade de edificar uma
literatura e uma história nacionais, e reconhecidas como tais, permite
compreender porque o intelectual, mesmo tratando de temas regionais, não
os quisesse esgotar no localismo.
A dicotomia regional e nacional implica uma tensão no
relacionamento dessas categorias na narrativa de Moysés Vellinho, pois ao
mesmo tempo em que rogava os traços da região, muitas das particulares da
província foram negadas mediante a compulsão de homogeneização. Desta
forma, salientava-se a vocação presente no pertencimento da parte Rio
Grande do Sul ao todo brasileiro. O que se observa em Moysés Vellinho é a
assimilação das partes ceder, contraditoriamente, à apropriação das partes
pelo todo. Vellinho parece ter-se tornado presa do que queria vencer,
transformando-se ele próprio em um dos “inimigos internos do
regionalismo orgânico” (VELLINHO, 1970, p.7), como evidencia a sua
interpretação homogênea e unilinear da formação histórica sul-rio-
grandense. Nas fissuras do seu discurso, é possível identificar o desejo de
43
Embora Vellinho esteja nesse caso falando da literatura, a sua postura de assimilação
da realidade brasileira pela região não se restringe ao literário.
103
uma planificação futura das regiões
44
que, num limite extremo, apagaria
qualquer particularidade local historicamente construída, como é percebido
na sua interpretação da formação sul-rio-grandense transformada num
capítulo da epopéia luso-brasileira em sua expansão meridional. A leitura
identificadora da região é a leitura antitética das partes para se resolverem
na síntese do todo:
A fisionomia histórica e social do Rio Grande do Sul, com
todos os seus particularismos, se formou e desenvolveu, não à
margem ou ao arrepio da elaboração nacional, mas pelo
contrário, tensa e organicamente subordinada ao processo de
expansão geográfica e integração do Brasil em sua múltipla
feição política, econômica e cultural. Foi primeiro o
centripetismo lusitano, depois o luso-brasileiro, por fim o
nacional – escalões sucessivos da mesma vocação histórica
que deram sentido e direção aos diferentes fatores da formação
rio-grandense (VELLINHO, 1970, p.102). [grifo nosso]
Os traços desviantes das balizas dos “limites maiores”, possíveis
corruptores do “sentido e direção” da narrativa nacional brasileira foram
considerados pouco orgânicos na caracterização da história sulina, sendo
ignorados ou tomados como circunstanciais na narrativa de Vellinho. A
condição espacial do intelectual que desejava espraiar a cultura regional
para o restante do país, modela o seu discurso que, enunciado numa região,
queria-o inteligível e aceitável pelo nacional, como evidencia seu
ressentimento pela “resistência à aceitação do regionalismo sul-rio-
grandense” (VELLINHO, 1948, p.6). Isso implica estabelecer meios de
parecença entre a parte e o todo nacional. Esta equalização significou
tornar a realidade sul-rio-grandense e a brasileira idênticas, relativizando a
diferença da parte. A plasticidade contida no regional explicaria em grande
44
Moysés Vellinho situa o Rio Grande do Sul como uma das regiões que estariam
imbuídas na tendência da unificação da língua escrita: “o Brasil, à proporção que lê e
aprende, caminha em massa, através de ligeiras variações de superfície, para a unidade
estrutural da língua escrita [...] essa unidade repousa necessariamente nas fundações
clássicas do idioma ou nos processos regulares de transformação de seus valores. Ora,
dentro dessa tendência generalizada é que vem operando a evolução literária do Rio
Grande do Sul” (VELLINHO, 1948, p.6). Na interpretação de Vellinho, o brasileiro
meridional foi o responsável por preservar a língua portuguesa frente aos castelhanos e
aos imigrantes. A língua comum e padronizada do Estado-nação é tradicionalmente um
dos principais elementos de homogeneização nacional.
104
medida os desvios circunstancias do local, espécie de etapa conflitiva rumo
à homogeneização. Isso talvez explique a diferença existente entre as
categorias local e regional no discurso de Vellinho. Este ao negar o local,
por considerá-lo raso, toma a região como parte do nacional. O local
tornaria autônomo enquanto a região compartilha sentidos com o todo.
Nas sociedades modernas e contemporâneas ocidentais, como explica
Stuart Hall, as diferenças regionais acabaram por ser subordinadas ao
“‘teto político’ do Estado-nação, que se tornou, assim, uma fonte poderosa
de significados para as identidades culturais modernas” (2005, p.49). Não
parece ser por outra razão que a identidade sul-rio-grandense (gravitando
em torno da identidade nacional brasileira) apareça na narrativa de
Vellinho por um viés absoluto. O que se observa é que o componente de
escolha presente no jogo relacional dos elementos identificadores é
esfumado pela apresentação mononuclear da identidade nacional absoluta.
E é necessário que assim se faça, pois, do contrário, a identidade não
cumpriria sua função identificadora, apresentada sob uma fachada essencial
e monolítica. O Rio Grande do Sul é brasileiro e qualquer transitividade
atrelada à sentença corromperia a absolutização necessária, já que a
identidade é permanente, diferente da pergunta identificadora que é
variável.
A identidade se mostra mediante o superlativo, como explica
Boaventura de Souza Santos, já que a resposta satisfatória à questão da
identidade “se traduz sempre numa reinterpretação fundadora que converte
o déficit de sentido da pergunta no excesso de sentido da resposta” (1994,
p.32). A vocação do Rio Grande do Sul em ser brasileiro, devido ao
“centripetismo” (VELLINHO, 1970, p.102) luso-brasileiro, encerra a
certeza que a identidade necessita para fixar uma forma, rechaçando a
possibilidade de opção. Daí porque o par vocação/opção seja um dos mais
poderosos operadores da identidade na narrativa de Moysés Vellinho. A
opção espreitando do lado de lá da fronteira estropia e macula a vocação
105
essencial que se quer intransitiva para assim permitir a identidade centrada,
inteira e pura (HALL, 2005, p.50).
Moysés Vellinho, mesmo sendo crítico do centralismo político da era
Vargas, como foi demonstrado no primeiro capítulo, reduziu o múltiplo
regional à linha coesa da nacionalidade. Para melhor enfatizar essa
contradição, pode-se ligar dois trechos do editorial 1 de Província de São
Pedro
45
e confrontá-los. Num primeiro momento, segundo seu editor, a
publicação almeja elucidar “[...] os elementos fundamentais da tradição
local, os autênticos valores do passado, porque acredita que a preservação
de certas fixações é indispensável à caracterização de uma cultura”
(VELLINHO, 1945, p.7). O que se observa adiante, na mesma página, é que
os proclamados “elementos fundamentais” ou “autênticos valores”
necessários para uma região se reconhecer social e culturalmente são
compreendidos à linha da “evolução dentro dos limites maiores da
nacionalidade” (VELLINHO, 1945, p.7). Ou ainda, conforme anunciado um
ano antes no prefácio de Letras da Província: “que importa a formação de
diferenciações regionais? Sujeitas ao denominador comum da tradição luso-
brasileira, elas não se resolverão nunca em divergências que possam
conduzir à desagregação” (VELLINHO, 1960, s/p). Com certeza a ameaça
da desagregação fora extirpada da obra de Vellinho, mas o preço para
manter unida a província à coesa linha nacional foi o apagamento de muitos
de seus traços particulares.
As especificidades regionais que deveriam ser preservadas frente às
“bandeiras culturais” são, na verdade, canalizadas por estas. A região é
assim, em grande medida, não lida pelo nacional, mas por este traduzida
mediante códigos homogêneos. As regiões apreendidas sob essa perspectiva
45
A revista foi o maior veículo divulgador do pensamento de Moysés Vellinho, visto
que espraiou no Brasil o que se pensava em termos de cultura no Rio Grande do Sul.
Como já foi dito no capítulo primeiro, a publicação surgida em 1945 perdurou 12 anos e
estabelece uma ponte cronológica entre os fazeres crítico-literário e historiográfico de
Moysés Vellinho.
106
são tomadas como brasis regionais para, dessa forma, comporem a utopia
de um Brasil completamente integrado em seus quadros constitutivos. As
peculiaridades seriam as partes (sob muitos aspectos forçosamente)
nacionais, ou o próprio nacional que, erradicado do centro, se especializou
nos ritmos próprios ou harmonias relativas. Esses eram os únicos traços
que poderiam ser salientados da legenda sul-rio-grandense, pois não
afrontariam o nacional. Moysés Vellinho castrava, assim, sua almejada
“unidade múltipla” ao extirpar as nuanças sul-rio-grandenses que pudessem
ser interpretadas como desviantes das cores nacionais:
Tanto vale dizer, sob o ângulo histórico e sociológico, que
aquilo que nos diversifica e particulariza no amplo cenário
nacional provém da nossa própria identidade política, da
nossa própria condição de brasileiros. Nem houve aqui, dentro
destas raias meridionais, gente de substância diversa da que
vinha constituindo a base comum das populações de outras
partes do Brasil. O mesmo sangue, o mesmo legado cultural, as
mesmas raízes” (VELLINHO, 1970, p. 8). [grifo nosso]
Por atrelar as particularidades da formação sul-rio-grandense à
totalização brasileira, Vellinho torna a região o próprio nacional, e essa é a
síntese conflitiva de sua narrativa da identidade. O regional como elemento
desviante é fruto de uma leitura errônea, como se observa no trecho
recortado:
O processo de formação rio-grandense, em qualquer de seus
passos, nele incluídos todos os fatores de natureza cultural,
sofreu invariavelmente a ação catalítica do Centro. Só quem
nunca folheou os testemunhos do nosso passado, quer se fale de
história, de política, de economia, de literatura ou de teatro,
pode deixar de sentir a preeminência dos vínculos comuns da
nacionalidade sobre o complexo da vida regional
(VELLINHO, 1962, p.115). [grifo nosso]
Como explica Ruben Oliven (1992), a construção social da identidade
sul-rio-grandense vacilou historicamente como um pêndulo entre a ênfase
nas peculiaridades do Rio Grande do Sul e o pertencimento do Estado ao
107
Brasil. Dois aspectos dariam a tônica à atipicidade do Rio Grande do Sul
frente ao conjunto da nacionalidade: um deles seria o isolamento
geográfico que afastaria o Estado por meio dos areais litorâneos, rios,
serras e matas; o outro aspecto seria de ordem histórica e decorre da
integração tardia do Estado junto ao Brasil. Para apagar os traços históricos
desviantes, Moysés Vellinho teve que carregar nas tintas nacionalistas do
Rio Grande do Sul:
Se as peculiaridades da vida rio-grandense não se originam
de fatores naturais e culturais em estado de repouso, pois que
esses fatores sofreram aqui longamente a ação tensa,
estimulante das guerras e conflitos de fronteira, isto se deve,
antes de mais nada, à nossa posição de constante vigilância
sobre as demarcações da nacionalidade em seu ponto crítico
por excelência (VELLINHO, 1970, p.8). [grifo nosso]
A recorrente compreensão que tomava o Rio Grande do Sul como
uma coletividade exótica e desviante sofre um giro interpretativo na
narrativa de Vellinho. As diferenças locais são desabsolutizadas porque
tornadas circunstanciais: o Rio Grande assumiu formas particulares porque
estava em contato com o Prata, contraste antagônico e não convergente com
este outro corpo político social. Qualquer leitura de exotismo seria fruto de
uma interpretação “desagregadora” (expressão de Vellinho) que
desvirtuaria o que se pretende puro e indissociável.
A situação de belicosidade circunstancial decorrente da condição de
fronteira, que “teve por efeito robustecer e ativar o conteúdo cívico do
sentimento de apego à grande terra comum” (VELLINHO, 1970, p.8) é
atrelada ao permanente da vocação luso-brasileira. O Rio Grande do Sul,
legado português, estava sob as mesmas inspirações culturais do “gênio que
nunca deixou de atuar decisivamente na formação do Brasil”, a quem se
deve a “vocação para a unidade” (VELLINHO, 1962, p.116), como atesta o
juízo de Gilberto Freyre formulado a partir da leitura da crítica de Moysés
Vellinho a Alcides Maya de 1944:
108
Ajustada àquele binômio [a aventura e sedentarismo
portugueses] a situação regional de aparência menos
brasileira, vê-se que a combinação caracteristicamente lusa dos
dois antagonismos ou das duas constantes foi particularmente
intensa no Rio Grande do Sul. Donde a condição
profundamente brasileira de sua gente quando examinada de
perto e analisada nos seus mais íntimos motivos de vida e nas
suas manifestações mais genuínas de cultura (FREYRE, 1981,
75).
[grifo nosso]
Quando Guilhermino Cesar comenta a obra de Moysés Vellinho, diz
que “a cidadania [sul-rio-grandense] resultou para ele [Vellinho] de uma
opção consciente” (1979, p.3). Embora o termo “opção consciente” esteja
designando o sentimento da vocação, Moysés não se utiliza dessa
modalização
46
. Tudo o que poderia denotar opção fora tomado como
circunstancial, que nada poderia perante o intemporal absoluto da vocação.
Vocação e opção marcam valorativamente as posições assumidas mediante
a “obsessão da diferença e pela hierarquia das distinções” (SANTOS, 1994,
p.31) com relação ao Prata na narrativa de Vellinho. A opção como força
antagônica acena do outro lado da fronteira. Ela marca o traço
circunstancial historicamente assumido, já que tudo o que poderia ser
interpretado como dúbio na formação sul-rio-grandense fora temporal e
espacialmente circunscrito às formas plásticas assumidas pela vocação em
sua linha ascendente à unificação do Brasil. A dita opção platina
(compreensão dos antagonistas de Vellinho) nunca fora tomada como uma
opção de verdade em sua narrativa que se construía conscientemente dentro
de uma das linhas demarcatórias da fronteira: “para quebrar o caráter de
uma tradição, para corrompê-la nas suas próprias fontes, nada melhor que
misturar, confundir valores que as forças da história puseram em conflito”
(VELLINHO, 1957, p.8). Não se poderia optar pelo outro (o platino),
quando se é tão visceralmente brasileiro, pois “uma tradição de sangue há
de ir até depois que as feridas deixaram de sangrar” (VELLINHO, 1970,
p.28).
46
Segundo Ieda Gutfreind, Moysés Vellinho ao utilizar a concepção de vocação
histórica, difere de seus colegas do IHGRS, já que Othelo Rosa e Manoelito de Ornellas
defendiam a idéia de opção histórica do Rio Grande do Sul em se tornar brasileiro
(1998, p.99).
109
Na interpretação da formação histórica sul-rio-grandense, empreendia
por Moysés Vellinho, o Estado sulino nasceu sob os desígnios da nação.
Para Vellinho, as bandeiras, tomadas como instintivas em outras partes do
Brasil, revestiram-se de um verniz pátrio em terras sulinas: “é certo que o
Rio Grande de São Pedro nasceu com o encargo de vigiar e guardar as
partes meridionais da América Portuguesa e suas fronteiras, as únicas
verdadeiramente críticas da nacionalidade que amanhecia” (VELLINHO,
1948, p.5). O Rio Grande do Sul não era somente um Estado nacional por
opção, uma vez que sua vocação brasileira fora moldada em sua gênese,
que permitiu o desenvolvimento do próprio pai, esse Cronos que
historicamente o reconhecia como um filho à parte, porque lhe parecia
castelhano. A imagem sul-rio-grandense como “parcela militante” da
nacionalidade, ou como sua “fronteira vigilante” (expressões de Vellinho),
explicaria a decantação de particularismos mediante o todo nacional. Ao
postular uma função defensiva ao Rio Grande do Sul, a particularização que
poderia ser desautonomizada manteve-se vinculada ao todo mediante a
função de resguardar a pátria, e por isso a interpretação de Vellinho: “o
Brasil prolonga-se no Rio Grande do Sul, e nele se revê, graças à ação
aglutinadora da tradição local” (VELLINHO, 1960, p.27).
Os valores da estirpe lusa são os responsáveis por vitalizar a imagem
do gaúcho tradicional que perduraria vivo porque maleável, diferente do
tipo enrijecido das páginas de Alcides Maya, cujas críticas foram
analisadas no capítulo segundo. O trecho seguinte demonstra como os
valores essenciais da raça transcendem às formas historicamente
assumidas:
Vinham de longe, por certo, as energias que agora se
resolviam, por força das circunstâncias, em rasgos de bravura
e belicosidade [...]. Se, pois, tais virtualidades eram
anteriores ao violento ciclo das lutas e arreadas, por que não
iriam subsistir a ele, embora sob outras formas? Encerrado o
ciclo heróico, as virtualidades da ‘raça’ não se perderiam por
falta de objeto (VELLINHO, 1960, p.21). [grifo nosso]
110
As qualidades do gaúcho por serem plásticas permitiram atualizar suas
formas circunstanciais – a belicosidade sanguinária e o nomadismo. Essa
reatualização permite a transposição temporal do vocábulo gaúcho, do
velho tipo de outrora, com suas características insuladas em uma
“determinada fração social” (VELLINHO, 1960, p.20) ao moderno gentílico
sul-rio-grandense. Os traços circunstanciais são, desta forma, circunscritos
às “virtualidades mais profundas”, como pode se observar no trecho
seguinte:
Nas suas virtualidades mais profundas, menos contingentes,
nas linhas substanciais de seu caráter, poderia o rio-grandense
legitimamente representado pelo produto de fatores acidentais,
qualquer coisa como um ser de geração espontânea, sem
afinidades retrospectivas, sem vinculações com seus
antecedentes de tradição e de sangue, e ademais disso
incapaz de assimilações e adaptações ulteriores?
(VELLINHO, 1960, p.20). [grifo nosso]
No discurso de Vellinho, a etnia lusa é a responsável direta pela
capacidade adaptativa do tipo. O gaúcho é tomado por um caniço, forte
porque adaptável. A interpretação de Vellinho coaduna a maquiagem do
circunstancial do gaúcho ao caráter permanente dos antecedentes de
“tradição e de sangue”. O essencial guarda as formas circunstanciais
plásticas para que não se percam da legenda-guia referencial. Mantêm-se,
assim, no arcabouço da representação da identidade gaúcha, a fonte do
essencial que modulou o circunstancial.
“O Sr. Moysés Vellinho contrasta com o que há de romanesco, de
dispersivo e de desintegrante no gaúcho” (FREYRE, 1981, p.74). Essa
crítica de Gilberto Freyre sobre a concepção de gaúcho traçada por
Vellinho exige que o leitor subtenda os elementos não-explicitados na
comparação. Depois de analisada as críticas de Vellinho sobre as obras de
Maya (é sobre a crítica a Maya que Freyre faz referência), podem-se inferir
que os elementos contrapostos ao romanesco, ao disperso e ao
111
desintegrante são, respectivamente, a realidade, o centrado, o integrado. A
realidade no caso da crítica a Maya empresta veracidade à interpretação de
Vellinho. O centrado e o integrado por sua vez, são designativos que
firmam uma identidade monolítica que se pretende verdadeira (em contra-
ponto ao falso romanesco). Dessa forma, são retiradas dos processos
identificadores características que ferem a homogeneidade, dispersando-a e
desintegrando-a. Reunindo a ilusão de fidedignidade ao real e os valores
do centrado e do integrado têm-se as bases da narração, que fixariam as
referências de identidade do verdadeiro gaúcho. O falso gaúcho foi um
embuste traçado sob códigos ficcionais pela literatura mal-informada
(VELLINHO, 1960, p.26), que coordenou características dispersivas e
desintegrantes. A literatura restrita à forma transitiva ignora o essencial.
Assim, decantada a essência do tipo em Vellinho, “o gaúcho brasileiro”
estaria devolvido à sua “verdadeira efígie” (CESAR, 1979, p.3).
O velho tipo tomado como circunstancial é coadunado mediante
origem, história e função “ao tipo que resultou da combinação do espírito
de aventura dos pioneiros com o ânimo ordeiro e severo dos ilhéus em face
de uma portentosa tarefa comum, que foi a de resguardar e consolidar o
‘imperium’ brasileiro em suas fronteiras mais expostas e cobiçadas”
(VELLINHO, 1960, p.26). O ajustamento do gaúcho ao gentílico sul-rio-
grandense visa aproximar a imagem do gaúcho, tradicionalmente tomado
por desviante, ao brasileiro. Assim, o “brasileiro meridional” é uma
particularização não estranha aos quadros da nacionalidade, como é
possível ler no texto reproduzido a seguir:
Com efeito, da confusão reinante acerca da origem e
caracterização histórica do brasileiro do extremo sul
decorrem desacertos que atingem aspectos vitais da tradição rio-
grandense e a própria posição do Rio Grande do Sul perante a
comunidade nacional (VELLINHO, 1962, p.7). [grifo nosso]
112
Moysés Vellinho imobiliza o fantasma da opção castelhana no outro
lado da fronteira e, quando este esteve em contato íntimo com o Rio Grande
do Sul, como no caso da experiência dos Sete Povos das Missões, esse
passado foi expurgado da tradição em nome da homogeneidade: “será
mesmo que se pretenda fazer da história sul-rio-grandense, tão inteiriça,
tão vigorosa nas suas afirmações, uma espécie de terra de ninguém, onde
todos os contrários se acolhem impunemente?...” (VELLINHO, 1957, p.7).
A experiência das Missões é alienada da tradição sul-rio-grandense, a quem
coube “o papel de depositários circunstanciais de algumas ruínas”
(VELLINHO, 1957, p.10). Essa experiência circunstancial é solapada
quando da tomada do território missioneiro em 1801. Este ano marca, na
narrativa de Moysés Vellinho, um novo começo para a história sul-rio-
grandense em sua ofensiva rumo a oeste: “outra história, sob inspiração
política antagônica, ia começar ali, em nome da estruturação definitiva do
Rio Grande” (VELLINHO, 1957, p.10).
Ao desconsiderar a herança cultural dos Sete Povos, por esta ter-se
desenvolvido sob bandeira política espanhola, Moysés Vellinho postula um
novo começo isento de contaminações hispânicas para a história do Rio
Grande do Sul, como atesta seu repúdio a qualquer herança cultural
proveniente da experiência missioneira, como expresso na imagem da
“enxertia” missioneira: “não se tratava de um processo de enxertia. Era
uma planta nova que ali ia meter novas raízes. Uma civilização diferente,
com outra bandeira, sob outro signo cultural” (VELLINHO, 1957, p.10).
Processo de “enxertia” esse, que alienou os indígenas, especialmente os
Guarani, da tradição sul-rio-grandense.
“Em face de Moysés Vellinho, de sua reflexão pousada, de seus
gestos medidos, a gente como que voltava a compreender melhor a vida”
(CESAR, 1981, p.9). Certamente a vida poderia ser melhor compreendida
porque Vellinho fez parte de uma época em que se podia guiar por sólidas
referências (HALL, 2005) construídas sob os auspícios da Modernidade.
113
Referências de identidade que, sem dúvida, o intelectual se empenhou em
construir mediante a articulação de uma imagem nacional para Rio Grande
do Sul. Se aceita a explicação de Roberto Damatta de que a nacionalidade é
“também casa, [...] lar, memória e consciência de um lugar como o qual se
tem uma ligação especial, única, totalmente sagrada” (DAMATTA, 2000,
p.11), entende-se a manipulação da história do Rio Grande do Sul por
Moysés Vellinho, que tomou este espaço como uma categoria afetiva de
análise.
Este é o movimento pendular da narrativa identificadora do Rio
Grande do Sul de Moysés Vellinho, de sua província para o centro,
espraiando as referências deste na região – espelho do nacional. A região
como parte plástica do nacional, permite tornar potente e aceitável
mediante o todo brasileiro a enunciação regional da terra. Enunciação que
se atrelada ao localismo seria um elemento desagregador que poderia
perigosamente atentar para a unidade da nação, já que a especificidade
local parecia ter olhos próprios que não os olhos nacionais especializados
na região. As peculiaridades regionais, como se observou, foram em muitos
pontos apagadas ou, quando não passíveis de erradicação, foram tornadas
circunstanciais na diacronia da narrativa nacional. A identidade “pura cepa
luso-brasileira” (expressão de Vellinho) transforma, assim, a
particularidade histórica local sul-rio-grandense em parte integrante porque
em essência igualitária do nacional, subjugando qualquer traço desviante à
condição de circunstancial em sua narrativa.
114
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para analisar a identidade nacionalizada do Rio Grande do Sul
construída por Moysés Vellinho, foi necessário unir os discursos crítico-
literário e historiográfico do intelectual. Como se observou, subsiste às
duas modalidades uma mesma narrativa da identidade. Após terem sido
analisados os modos pelos quais foram precisados a imagem nacional do
Rio Grande do Sul e seu tipo representativo, buscou-se caracterizar o
sentido desta narrativa da identidade. A crítica e a interpretação
historiográfica de Moysés Vellinho, profundamente comprometidas com a
necessidade de narrar a nação, têm por objeto de análise o Rio Grande do
Sul, uma realidade que ele naturalizou em seus discursos como de vocação
brasileira. As identificações nacionais do Rio Grande do Sul foram
pesquisadas por meio de três eixos temático-discursivos: o gaúcho, os
heróis da tradição sulina e a formação histórica do Rio Grande do Sul.
Moysés Vellinho foi contextualizado dentro do panorama histórico
brasileiro de uma época caracterizada pela potência com que buscou revelar
as particularidades brasileiras. Essa perspectivação o desvincula do
fechamento na categoria da região. Atrelar Vellinho aos limites regionais é
apreendê-lo sob categorias de análise que apagam as particularidades do
115
intelectual que estava em diálogo com o centro, e não fazem mais do que
negar o movimento pendular de sua interpretação que buscou na totalização
do nacional a compreensão da região. Procurou-se delinear, num primeiro
momento, os dados biográficos que pudessem caracterizar o lugar de
enunciação do discurso de Moysés Vellinho, resgatando as principais vozes
intelectuais que o influenciaram, para assim, caracterizar o entorno
histórico-social de sua produção. As críticas ao modernismo paulista e as
relações com Gilberto Freyre evidenciaram os vínculos estabelecidos para
além da província.
A interpretação de Moysés Vellinho busca excluir concepções que
tomavam o Rio Grande do Sul como terra sem nenhum caráter, ou de
caráter dúbio porque de influência platina. Para rebater essas concepções,
Vellinho define com tintas marcantes o traço luso-brasileiro da formação
sulina, levando à condição de circunstancial tudo o que podia ser
considerado desviante do nacional. Os traços regionais decorrem de
especializações do nacional e estão a ele vinculados, por isso é que o local,
que sob muitos aspectos poderia comportar o autônomo, é suplantado
enquanto categoria pela região. Tomando a vocação como premissa
dirigente da formação sul-rio-grandense, Vellinho dialoga com a
comunidade nacional que acredita como dúbia – meio brasileira, meio
castelhana, ou opcional brasileira por sorte ou destino – a identidade sul-
rio-grandense. Vellinho descartou a opção de sua narrativa, porque ela
corrompe a vocação nacional da identidade sulina. A opção figura sempre
como um elemento de contraste do que o Rio Grande do Sul não é, ou seja,
platino, porque brasileiro por vocação.
Os traços regionais desviantes das balizas maiores da nacionalidade
foram considerados pouco orgânicos na caracterização da história sulina,
sendo ignorados ou tomados como circunstanciais na narrativa de Moysés
Vellinho. A condição espacial do intelectual que desejava espraiar a cultura
regional para o restante do país modela o discurso que, enunciado numa
116
região, fosse plenamente aceitável pelo nacional. Isso implicou estabelecer
meios de parecença entre a parte e o todo nacional. Essa equalização
significou tornar a realidade sul-rio-grandense e a brasileira em grande
medida, idênticas. A plasticidade observada no regional explicaria os
desvios circunstanciais locais na narrativa de Moysés Vellinho. A forma
historicamente assumida comportaria a etapa antitética rumo à
homogeneização. Isso parece explicar a diferenciação existente entre as
categorias local e regional no discurso de Vellinho.
Este é o movimento pendular da narrativa identificadora do Rio
Grande do Sul de Moysés Vellinho, de sua província para o centro,
espraiando as referências deste na região – espelho do nacional. A região
como parte plástica do nacional, permite tornar potente e aceitável
mediante o todo brasileiro a enunciação regional da terra. Enunciação que
se atrelada ao localismo seria um elemento desagregador que poderia
perigosamente atentar para a unidade da nação, já que a especificidade
local parecia ter olhos próprios que não os olhos nacionais especializados
na região. As peculiaridades regionais, como se observou, foram em muitos
pontos apagadas ou, quando não passíveis de erradicação, foram tornadas
circunstanciais na diacronia da narrativa nacional. A identidade “pura cepa
luso-brasileira” (expressão de Vellinho) transforma, assim, a
particularidade histórica local sul-rio-grandense em parte integrante porque
em essência igualitária do nacional, subjugando qualquer traço desviante à
condição de circunstancial em sua narrativa.
Sua exegese histórica fora construída por hábeis mãos de romancista,
pois conscientemente engenhosas. A sua prosa historiográfica se realizou
com o êxito dos romances concebidos com enredo bem-estruturado, nem
mesmo os documentos faltaram, embora citados de maneira evasiva e
obscura, e complementaram a ilusão de verossimilhança pretendida. Pode-
se, assim, compreender as particularidades da interpretação historiográfica
de Moysés Vellinho, que toma a história do Rio Grande do Sul como um
117
capítulo da história nacional permitido pela instalação da Colônia do
Sacramento. A interpretação do Rio Grande do Sul como brasileiro afasta-o
do Prata, erradicando a hipótese de opção histórica do Estado em se tornar
brasileiro, pois ele o é em essência. É movido por esse interesse que
Moysés Vellinho cola funções cívicas às personagens históricas
construtoras do Rio Grande do Sul, tomando-as como agentes da
nacionalidade. Estas personagens construíam não fundamentalmente o Rio
Grande do Sul, mas o Brasil meridional.
“Não será demais repisar o fato, dar-lhe a ênfase necessária, porque
de outra forma estaremos alimentando os equívocos” (VELLINHO, 1970,
p.103). Essas palavras de Moysés Vellinho são ótimas caracterizadoras da
sua obra que compreende mais de meio século de atividade, onde firmou e
reafirmou as suas opiniões quer como crítico-literário, historiador ou
editor. Muitos de seus trechos se repetem, algumas de suas obras são
reeditadas sob novos títulos, evidenciando um fundo de interesses comuns,
vislumbrado na obsessiva identificação do Rio Grande do Sul como
brasileiro por vocação.
Ao final da existência, o intelectual afirmara a resposta a que
chegara em sua busca pela harmonia relativa: “eu não posso, assim, deixar
de concluir que este espírito [o legado luso] é o cimento, o tecido
conjuntivo que funde as almas brasileiras numa só, qualquer que seja a sua
procedência, e que nos garante nossa unidade” (VELLINHO, 1979, p.10).
Embora a resposta seja a mesma colada ao mote especulativo já presente
nos anos vinte, ela precisou ser glosada em vários discursos através de
várias décadas, para se firmar como a resposta verdadeira. Para isso,
Moysés Vellinho construiu uma narrativa da identidade única e em muitos
aspectos homogeneizada, operada pelo contraste de vários pares, a
harmonia absoluta e a relativa, o circunstancial e o temporal, a opção e a
118
vocação e até mesmo Moysés Vellinho e Paulo Arinos
47
. A manipulação da
realidade social pelo intelectual é perspectivada de um dos lados da
agônica fronteira, o lado de cá.
A necessidade de identificação está sempre reformulando a harmonia
relativa e adequando-a a novas configurações que fomentarão novas
dúvidas identificadoras: “tenho a impressão de que, quaisquer que sejam as
aparências em contrário, o Brasil continua à procura de seu próprio
equilíbrio” (VELLINHO, 1979, p.10). O que é o Brasil, ou sua parte
meridional, embora sejam dúvidas encerradas numa resposta
hermeticamente bem-costurada por Moysés Vellinho, deixa entrever
fissuras que urgem por atualizações pressentidas pelo próprio intelectual:
“a minha impressão íntima [...] é que pertenço a uma época já encerrada. A
vida agora é um encargo das novas gerações. Estou auto-marginalizado.
Não creio que, na minha descida, possa escrever nada mais de efetivo
interesse” (VELLINHO, 1979, p.11). A resposta que foi fechada ao longo
das décadas parece ser entreaberta ao final da existência. Moysés Vellinho,
o alfaiate projetor da roupa perfeita para o modelo específico da ocasião
datada, parece ter consciência que seu traje não é intemporal, novas
tendências buscarão novos modelos interpretativos para designarem
cambiantes harmonias relativas, embora estas pareçam querer sempre se
apresentar como absolutas aos homens perscrutadores.
47
Moysés Vellinho em entrevista concedida um ano antes de falecer, relembra a fase de
crítico literário como fortuita apesar dos mais de vinte anos de atividade: “minhas
ligações com as atividades propriamente literárias eram um tanto furtivas, pois tinha
que recorrer a elementos impessoais” (VELLINHO, 1979, p.11).
119
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