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Marcelo de Carvalho Borges
TESSITURA VISUAL DA PALAVRA
Reexões acerca dos aspectos plásticos das palavras
na obra de Mira Schendel
Belo Horizonte
Escola de Belas Artes da UFMG
2011
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Marcelo de Carvalho Borges
TESSITURA VISUAL DA PALAVRA
Reexões acerca dos aspectos plásticos das palavras
na obra de Mira Schendel
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Artes da Escola de Belas Artes da Universidade Federal
de Minas Gerais, como requisito parcial à obtenção do
título de Mestre em Artes Visuais.
Área de Concentração: Arte e Tecnologia da Imagem.
Orientadora: Prof.ª DrMaria do Carmo de Freitas Veneroso.
Belo Horizonte
Escola de Belas Artes da UFMG
2011
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Borges, Marcelo de Carvalho, 1975-
Tessitura visual da palavra: reflexões acerca dos aspectos
plásticos das palavras na obra de Mira Schendel / Marcelo de
Carvalho Borges. 2011.
186 f. : il.
Orientadora: Maria do Carmo de Freitas Veneroso.
Dissertação (mestrado) Universidade Federal de Minas Gerais,
Escola de Belas Artes, 2010.
1. Schendel, Mira, 1919-1988 Crítica e interpretação Teses.
2. Imagem e escrita Teses. 3. Sinais e símbolos na comunicação
visual Teses. 4. Semiótica e artes Teses. I. Veneroso, Maria do
Carmo de Freitas, 1954- II. Universidade Federal de Minas Gerais.
Escola de Belas Artes. III. Título.
CDD: 701.08
ara quem ainda sonha com nuvens.
Agradeço a toda a família pelo apoio e, em especial, à Zezé, minha mãe
À Cacau, minha orientadora, pelo conhecimento transferido, pelas múltiplas direções
moradas e pelo acolhimento sereno e generoso
Ao Rodrigo, pela inspiração, compreensão e companheirismo ao longo dees três
intensos anos
À Daisy Turrer, por me despertar o entusiasmo pela leitura da “cambadinha”
A Geraldo Souza Dias que, sem seu livro sobre Mira Schendel, o aprofundamento
dee trabalho seria praticamente inviável
Aos meus queridos e genuínos amigos que, a despeito do recolhimento e do silêncio
que guardei nee período, mantiveram o afeto sempre vivo
No aspro
Queria a palavra sem alarmes, sem
chantilenas, sem suspensórios, sem
talabartes, sem paramementos, sem diademas,
sem ademanes, sem colarinho.
Eu queria a palavra limpa de solene.
Limpa de soberba, limpa de melenas.
Eu queria ficar mais porcaria nas palavras.
Eu não queria colher nenhum pendão com elas.
Queria ser apenas relativo de águas.
Queria ser admirado pelos pássaros.
Eu queria sempre a palavra no áspero dela.
Manoel de Barros
VI
RESUMO
Ea dissertação aborda as relações entre palavra e imagem, pela perspeiva das
possibilidades visuais que se abrem para o signo alfabético na produção artíica. Parte de uma
breve discussão sobre os sentidos de texto, de imagem, sem perder de via sua ligação com o
espaço, elemento comum a ambos. Passando pelas influências do pensamento ocidental sobre as
relações entre texto e imagem, o eudo segue com alguns exemplos na hiória da arte sobre o
tema, para refletir a seu respeito sob a luz do conceito barthesiano de escritura.
Desse referencial, o segundo capítulo se volta para a obra de Mira Schendel. Desenhando
um recorte entre as séries que são pertinentes ao seu foco de interesse e, intertextualizando ees
trabalhos com criações de Sphane Mallarmé e Karlheinz Stockhausen, o eudo tece um diálogo
com o pensamento de autores como Maurice Blanchot e Roland Barthes sobre a condição e as
possibilidades da escrita para além das concepções usuais da cultura.
Junto com os dois pensadores citados, a discussão sobre as possibilidades visuais da
escrita é retomada pelo ângulo de sua relação com o vazio e com o espaço. Concentrando-se,
principalmente, nos cadernos e nas monotipias de Mira, a exploração desse tema é subsidiada
pelas teorias sobre a origem da escrita chinesa tanto de Erne Francisco Fenollosa, quanto Anne
Marie-Chriin e suas reflexões a respeito das relações da superfície com a escrita oriental e com
a escrita e o pensamento alfabéticos ocidentais.
VII
ABSTRACT
is udy addresses the relationship between word and image, trought the perspeive of
the visual possibilities opened by the alphabetic sign in the arts. It arts with a brief discussion about
the meanings of text and image, without missing its links with the space, an common element between
both. Passing by the influences of Weern thought on the relationship between writing and image, the
udy follows with some examples on the theme in Art Hiory, to discuss from the Barthesian concept
of écriture.
From this reference, the second chapter turns to the Mira Schendel’s work. Focusing on
relevant arti’s produion, this research draws an intertextual line between Miras seleed pieces and
Stéphane Mallarmés and Kerlheinz Stockhausen’s creations. From this meeting, the udy weaves a
dialogue with the thought of authors such as Maurice Blanchot and Roland Barthes, on the writing
atus and its possibilities beyond the usual cultural conceptions.
Along with the two thinkers mentioned, the discussion about the visual possibilities of
writing resumes, but throught the point of view of their relationship with the emptiness and space.
Focusing mainly on Miras arti’s books and monotypes, the exploration of this theme is subsidized by the
theories about the origin of Chinese writing of Erne Francisco Fenollosa as Anne Marie-Chriin and
their refleions on the relationship of the surface with oriental writing and with the Weern alphabetic
writing and thinking.
VIII
LISTA DE FIGURAS
FIGURA 001 - Folha de rosto de capítulo de catálogo para UFMG .............................................. 19
Fonte: foto do autor, 2007.
FIGURA 002 - Diagrama de Jan Tschichold, 1928 ...................................................................... 20
Fonte: LUPTON, Ellen. Pensar com tipos: guia para designers, escritores, editores e estudantes. São Paulo:
Cosac Naify, 2006, p. 123
FIGURA 003 - Monotipias de Mira Schendel na galeria Milan, em São Paulo, 2009 ........................ 21
Fonte: foto do autor, 2009.
FIGURA 004 - Séries de trabalhos de Mira com signos alfabéticos (detalhes) ................................ 23
Fonte: DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009.
FIGURA 005 - Séries de trabalhos de Mira com signos alfabéticos (detalhes) ................................ 24
Fonte: DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009.
FIGURA 006 - Imagem de Mira Schendel nos anos de 1980 ........................................................ 27
Fonte: PÉREZ-ORAMAS, Luis (org.). Tangled alphabets: León Ferrari and Mira Schendel. New York/São
Paulo: The Museum of Modern Art/Cosac Naify, 2009, p. 173.
FIGURA 007 - TESSITURA ........................................................................................................ 29
Fonte: foto do autor, 2009.
FIGURA 008 - Deus asteca da chuva, Tlaloc (séc. XIV-XV) ........................................................... 30
Fonte: GOMBRICH, E. H. Histoire de l’art. 7. ed. London: Phaidon Press, 2001, p. 52.
FIGURA 009 - Detalhe de um vaso de cerâmica grego ................................................................ 31
Fonte: MANDEL, Ladislas. Escritas, espelho dos homens e das sociedades. São Paulo: Edições Rosari,
2006, p. 50.
FIGURA 010 - Piet Mondrian, Broadway Boogie Woogie, 1942-43 ................................................ 33
óleo s/ tela, 127 x 127 cm, MoMA, Nova York.
Fonte: ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 400.
FIGURA 011 - Iluminura inglesa, séc. XIII ................................................................................... 34
Fonte: LUPTON, Ellen. Pensar com tipos: guia para designers, escritores, editores e estudantes. São Paulo:
Cosac Naify, 2006, p. 64.
IX
FIGURA 012 - Guercino, Et in Arcadia ego, 1921 - 23 ................................................................. 35
óleo s/ tela, 81 x 91 cm, Galleria Nazionale d’Arte Antica, Roma.
Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/File:Et-in-Arcadia-ego.jpg. Acesso em 30 out. 2010.
FIGURA 013 - Nicolas Poussin, Et in Arcadia ego, 1638 - 39 ........................................................ 35
óleo s/ tela, 121 x 185 cm, Museu do Louvre, Paris.
Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/File:Nicolas_Poussin_052.jpg. Acesso em 30 out. 2010.
FIGURA 014 - Bloco de croquis de Manet com legenda, no Musée d’Orsay ........................... 36
Fonte: foto do autor, 2008.
FIGURA 015 - SUPERFÍCIES ....................................................................................................... 46
Fonte: montagem do autor a partir de imagens coletadas
FIGURA 016 - François Caspar. Cartas de Elisabet Vogler a seu lho, 2003 ................................... 47
serigrafia s/ papel, 175 x 120 cm.
Fonte: FOSTER, John. New masters of poster design: poster design for the next century. Gloucester:
Rockport, 2006, p.17.
FIGURA 017 - Hood’s Sarsaparilla ............................................................................................ 51
anúncio, litografia, 1884.
Fonte: LUPTON, Ellen. Pensar com tipos: guia para designers, escritores, editores e estudantes. São Paulo:
Cosac Naify, 2006, p. 6.
FIGURA 018 - Pablo Picasso, Copo e garrafa de Suze, 1912 ........................................................ 52
jornal colado, guache e carvão, 65,4 x 50,2 cm, Washington University gallery of Art, St. Louis.
Fonte: MORLEY, Simon. Writing on the wall: Word and image in modern art. Berkeley and Los Angeles:
University of California Press, 2003, p. 43.
FIGURA 019 - Stéphane Mallarmé, Un coup de dés jamais n’abolira le hasard, Paris,1914, (página dupla) ..... 52
Fonte: MORLEY, Simon. Writing on the wall: Word and image in modern art. Berkeley and Los Angeles:
University of California Press, 2003, p.31
FIGURA 020 - Guillaume Apollinaire, Lettre-Océan, 1914 ............................................................ 53
impressão tipográfica sobre papel.
Fonte: Aletria, v. 14, jul. – dez. 2006, p. 155.
FIGURA 021 - Paul Klee, Villa R, 1919 ....................................................................................... 54
óleo s/ cartão, 26,5 x 22 cm.
Fonte: PARTSCH, Susanna. Klee. Köln: Taschen, 2003, p. 45.
FIGURA 022 - René Magritte, A interpretação dos sonhos, 1927 .................................................. 55
óleo s/ tela, 38 x 55 cm.
Fonte: MORLEY, Simon. Writing on the wall: Word and image in modern art. Berkeley and Los Angeles:
University of California Press, 2003, p.87
X
FIGURA 023 - Cavalo sobre parede de caverna .......................................................................... 60
pintura, entre 15.000 e 10.000 a.C., Caverna de Lascaux, França.
Fonte: GOMBRICH, E. H. Histoire de l’art. 7. ed. London: Phaidon Press, 2001, p. 41.
FIGURA 024 - Homem com cabeça de pássaro (detalhe) ............................................................ 61
pintura na caverna de Lascaux, França, em torno de 13.500 anos atrás.
Fonte: BATAILLE, Georges. Las lagrimas de Eros. Barcelona: Tusquets, 2007, p. 55.
FIGURA 025 - Mira Schendel, Sem título, 1952 .......................................................................... 68
óleo s/ tela, 50 x 65 cm. col. Andrea e José Olympio Pereira, São Paulo.
Fonte: DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 44.
FIGURA 026 - Mira Schendel, Sem título, 1953 .......................................................................... 70
óleo s/ tela, 27 x 35 cm. col. particular, São Paulo.
Fonte: DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 41.
FIGURA 027 - Giorgio Morandi, Natura morta, 1956 ................................................................... 70
óleo s/ tela, 40,5 x 35,4 cm. Collezione Giovanardi, Rovereto.
Fonte: http://english.mart.trento.it/context_mostre_mondo.jsp?ID_LINK=346&area=62&page=2. Acesso
em 30 out. 2010.
FIGURA 028 - Mira Schendel, Sem título, 1953 ...........................................................................71
óleo s/ tela, 74,6 x 74,6 cm. Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, São Paulo.
Fonte: DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 53.
FIGURA 029 - Giorgio Morandi. Natura morta, 1947 ....................................................................71
óleo s/ tela, 20,7 x 27,5 cm. The Cartin Collection, Hartford.
Fonte: http://arthistory.about.com/od/from_exhibitions/ig/cezanne_and_beyond/cab_pma_09_24.htm
Acesso em 30 out. 2010.
FIGURA 030 - Mira Schendel, Sem título, 1955 .......................................................................... 72
têmpera s/ madeira, 40 x 60 cm. col. Ricardo Akagawa, São Paulo.
Fonte: DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 58.
FIGURA 031 - Mira Schendel, Sem título, 1954 .......................................................................... 73
técnica mista sobre madeira, 51,1 x 66 cm. col. Adolpho Leirner de Arte Construtiva no Brasil, Museum of
Fine Arts, Houston.
Fonte: MARQUES, Maria Eduarda. Mira Schendel. São Paulo: Cosac & Naify, 2001, p. 51.
FIGURA 032 - Mira Schendel, Sem título, 1964 .......................................................................... 74
têmpera sobre aglomerado, 50 x 45 x 1,5 cm, col. Ricardo Akagawa, São Paulo
Fonte: DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 82.
FIGURA 033 - Lucio Fontana, Conceito espacial, 1962 ................................................................ 74
waterpaint s/ tela, 52 x 52 cm. col. particular
Fonte: LIVRO da arte, O. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 159.
XI
FIGURA 034 - Mira Schendel, Sem título, 1964 .......................................................................... 75
nanquim e aguada s/ papel, 48 x 66 cm. col. particular, São Paulo.
Fonte: DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 94.
FIGURA 035 - Mira Schendel, Sem título, 1964 .......................................................................... 76
nanquim e aguada sobre papel, 48 x 66 cm. col. particular, Londres.
DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 102.
FIGURA 036 - Caixas para organização de tipos, espaços e intervalos de chumbo ......................... 79
Frank S. Henry, ilustração de livro, 1917.
Fonte: LUPTON, Ellen. Pensar com tipos: guia para designers, escritores, editores e estudantes. São Paulo:
Cosac Naify, 2006, p. 12
FIGURA 037 - Calendário asteca .............................................................................................. 81
basalto de olivina, ano de 13-acatl, correspondente a 1479 d.C. 3,57 m de diâmetro e 24,5 t.
Fonte: http://www.ideariumperpetuo.com/calendaztec.htm. Acesso em 30 out. 2010.
FIGURA 038 - EIXO FIXO E EIXO MÓVEL .................................................................................... 82
a) roda d’agua
Fonte: http://www.waterhistory.org/histories/waterwheels/waterwheel2.jpg Acesso em 30 out. 2010.
b) bicicleta
Fonte: http://startupblog.files.wordpress.com/2009/07/old-school-bicycle.jpg?w=432&h=485&h=291
Acesso em 30 out. 2010.
FIGURA 039 - Mira Schendel, Sem título, 1960 .......................................................................... 83
óleo sobre tela, 92 x 130 cm. col. particular, São Paulo.
Fonte: DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 186.
FIGURA 040 - PREIST DEN HERRN ........................................................................................... 84
Mira Schendel, Sem título, sem data; têmpera sobre juta, 50,5 x 50,5 cm. col. particular, São Paulo.
Fonte: DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 181.
FIGURA 041 - Karlheinz Stockhausen, Partitura de Gesang der Jünglinge, 1955-56 ....................... 86
Fonte: http://www.medienkunstnetz.de/assets/img/data/3569/bild.jpg Acesso em: 30 out. 2010.
FIGURA 042 - Mira Schendel, Sem título, 1964-65 ..................................................................... 87
óleo sobre papel de arroz, 47 x 23 cm. col. particular, São Paulo.
Fonte: DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 188.
FIGURA 043 - Mira Schendel, Sem título, 1965 .......................................................................... 88
óleo sobre papel de arroz, 47 x 23 cm. col. particular, São Paulo.
Fonte: DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 180.
FIGURA 044 - Mira Schendel, Sem título, 1965 .......................................................................... 91
óleo s/ papel arroz, 47 x 23 cm (cada trabalho). col. Sandra e William Ling, Porto Alegre.
Fonte: DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 196.
XII
FIGURA 045 - ROT [vermelho] ................................................................................................. 94
Mira Schendel, Sem título, meados da déc. de 1960; óleo s/ papel arroz, 46 x 23 cm.
Fonte: SALZSTEIN, Sônia (org.). No vazio do mundo – Mira Schendel. São Paulo: Marca D’Agua, 1996, p. 163.
FIGURA 046 - ZEIT [tempo] ..................................................................................................... 94
Mira Schendel, Sem título, 1964-65; óleo s/ papel arroz, 46 x 23 cm.
Fonte: SALZSTEIN, Sônia (org.). No vazio do mundo – Mira Schendel. São Paulo: Marca D’Agua, 1996, p. 179.
FIGURA 047 - Mapa celeste chinês .............................................................................................. 95
Mapa celeste de Dunhuang (detalhe), iníc. dinastia Tang; tinta s/ papel, 24,4 x 330 cm, British Museum, Londres.
Fonte: http://idp.bl.uk/database/oo_scroll_h.a4d?uid=-186141859315;bst=1;recnum=8280;index=1;img=1
Acesso em 30 out. 2010.
FIGURA 048 - Mapa celeste do séc. XVII ................................................................................... 95
Andreas Cellarius, Harmonia Macrocosmica (prancha 27), 1660; gravura, 24,4 x 330 cm, Amsterdã.
Fonte: http://opc.uva.nl/F/P3EXQESTJMKK79HFTE227DHDJ98MRM94DU3KBMJTHPKP13QS3D-28117?func=full-
set-set&set_number=017855&set_entry=000004&format=999&con_lng=eng Acesso: 30 out. 2010.
FIGURA 049 - René Magritte, A aparição II (Personage marchant vers l’horizon), 1928 ................. 96
óleo s/ tela, 81 x 116 cm. Staatsgalerie, Stuttgart.
Fonte: http://www.mattesonart.com/1926-1930-surrealism-paris-years.aspx Acesso em 30 out. 2010.
FIGURA 050 - Mira Schendel, Sem título, 1965 ............................................................................ 98
óleo s/ papel arroz, 47 x 23 cm. col. Paulo Pasta, São Paulo.
Fonte: DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 202.
FIGURA 051 - Mira Schendel, Sem título, 1964 (duas monotipias) ................................................... 98
óleo s/ papel arroz, 47 x 23 cm (cada monotipia). col. particular, São Paulo.
Fonte: DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 203.
FIGURA 052 - Mira Schendel, Sem título [este é um desenho gostoso], 1965 ................................ 99
óleo s/ papel arroz, 47 x 23 cm. Museu de arte Moderna de São Paulo.
Fonte: MARQUES, Maria Eduarda. Mira Schendel. São Paulo: Cosac & Naify, 2001, p. 67.
FIGURA 053 - Mira Schendel, Sem título [Disco], 1972 ............................................................... 100
letraset e grafite entre placas de acrílico fosqueado, Ø 27 x 0,5 cm. Tate Modern, Londres.
Fonte: SALZSTEIN, Sônia (org.). No vazio do mundo Mira Schendel. São Paulo: Marca D’Agua, 1996, p. 201.
FIGURA 054 - Mira Schendel, Sem título [Toquinho], 1970 ........................................................ 101
letraset e papel japonês tingido s/ papel, 49 x 25,4 cm. col. Sophia Wately, São Paulo.
Fonte: DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 228.
FIGURA 055 - Mira Schendel, Sem título [Toquinho], 1972 ......................................................... 101
letraset e papel japonês tingido s/ papel, 49 x 25,4 cm. col. particular, São Paulo.
Fonte: DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 232.
XIII
FIGURA 056 - Mira Schendel, Sem título [Toquinho], 1972 ........................................................ 102
letraset e papel japonês tingido s/ papel japonês, 49 x 25,4 cm. col. particular, São Paulo.
DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 234.
FIGURA 057 - Pablo Picasso, Natureza morta “Au bon marché”, 1913 ...................................... 103
óleo e papel colado s/ papelão, 24 x 36 cm. col. Ludwig, Aachen.
Fonte: MORLEY, Simon. Writing on the wall: Word and image in modern art. Berkeley and Los Angeles:
University of California Press, 2003, p. 40.
FIGURA 058 - Mira Schendel, Datiloscritos (detalhe), 1974 ......................................................... 105
datilografia, letraset e caligrafia sobre papel, 50,8 x 37 cm. col. Ricard Akagawa, São Paulo.
Fonte: DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 251.
FIGURA 059 - Mira Schendel, Datiloscritos, 1974 ....................................................................... 106
datilografia, letraset e caligrafia s/ papel, 50,8 x 37 cm. col. particular, São Paulo.
Fonte: DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 255.
FIGURA 060 - Mira Schendel, Datiloscritos, 1974 ....................................................................... 107
datilografia, letraset e caligrafia s/ papel, 50,8 x 36 cm. col. particular, São Paulo.
Fonte: DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 250.
FIGURA 061 - Mira Schendel, Datiloscritos, 1974 ......................................................................... 108
datilografia, letraset e caligrafia sobre papel, 50,8 x 37 cm. col. Ricard Akagawa, São Paulo.
Fonte: DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 251.
FIGURA 062 - Mira Schendel, Datiloscritos, 1974 ....................................................................... 109
datilografia, letraset e caligrafia s/ papel, 50,8 x 36 cm. col. particular, São Paulo.
Fonte: DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 248.
FIGURA 063 - Mira Schendel, Sem título [Disco], 1972 ............................................................... 110
letraset em placas de acrílico, Ø 18 x 5,5 cm. col. particular, São Paulo.
Fonte: DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 255.
FIGURA 064 - Mira Schendel, Objeto gráco, 1967-68 .............................................................. 111
letraset e óleo s/ colagem da papel-arroz entre duas placas de acrílico, 100 x 100 cm. col. Paulo
Kuczynski, São Paulo.
Fonte: DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 266.
FIGURA 065 - Mira Schendel, Objeto gráco, 1967-68 ............................................................... 112
letraset e óleo s/ colagem de papel-arroz entre duas placas de acrílico, 50 x 50 cm. col. particular, São Paulo.
Fonte: DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 260.
FIGURA 066 - Mira Schendel, Sem título [Caderno], 1971 ........................................................... 113
papel e acrílico, 6 x 20 x 7 cm. col. Alfredo Hertzog da Silva, São Paulo.
Fonte: DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 274.
XIV
FIGURA 067 - Mira Schendel, Sem título [Cadernos], 1971 ........................................................ 114
letraset sobre papel encadernado, 20 x 20 cm. col. particular, São Paulo.
Fonte: DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 277.
FIGURA 068 - Cadernos da artista em exposição ...................................................................... 115
Documenta 12, Kassel, 2007
Fonte: http://2.bp.blogspot.com/_SumNupDynRI/SMhW_vaRdfI/AAAAAAAAAGM/ctuTbiLqhO4/s1600-h/
Mira_Documenta12_a.jpg Acesso em 30 out. 2010.
FIGURA 069 - Mira Schendel, Sem título [Toquinhos], 1973 ........................................................ 116
letraset e acrílico sobre placa de acrílico, 47 x 26 x 4 cm. col. particular, São Paulo.
Fonte: PÉREZ-ORAMAS, Luis (org.). Tangled alphabets: León Ferrari and Mira Schendel. New York/São
Paulo: The Museum of Modern Art/Cosac Naify, 2009, p. 161.
FIGURA 070 - Mira Schendel, Sem título [Toquinhos], 1972 ....................................................... 117
letraset e blocos de acrílico montados sobre placa de acrílico, 50 x 50,5 x 1,4 cm, col. Ricard Akagawa, São Paulo.
Fonte: MARQUES, Maria Eduarda. Mira Schendel. São Paulo: Cosac & Naify, 2001, p. 93.
FIGURA 071 - Mira Schendel, Sem título [Toquinhos], 1972 ......................................................... 118
letraset e acrílico sobre acrílico, 46 x 20,5 x 3 cm. col. Esther Faingold, São Paulo.
Fonte: DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 282.
FIGURA 072 - QUADRINHOS .................................................................................................... 120
Mira Schendel, Sem título [Toquinhos], 1977
letraset, papel tingido e caneta s/papel, 49 x 25,5 cm (cada folha). Galeria Milan, São Paulo.
Fonte: PÉREZ-ORAMAS, Luis (org.). Tangled alphabets: León Ferrari and Mira Schendel. New York/São
Paulo: The Museum of Modern Art/Cosac Naify, 2009, p. 159.
FIGURA 073 - ISTO NÃO É UM CACHIMBO .................................................................................. 121
René Magritte, La Trahison des Images [A traição das imagens],1928-29,
óleo s/ tela, 63.5 cm × 93.98 cm. Los Angeles County Museum of Art, Los Angeles.
Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/File:MagrittePipe.jpg Acesso em 30 out. 2010.
FIGURA 074 - Mira Schendel, Sem título [Toquinhos], 1977 ........................................................ 121
letraset, papel tingido e caneta s/papel, 49 x 25,5 cm (cada folha). Galeria Milan, São Paulo.
Fonte: PÉREZ-ORAMAS, Luis (org.). Tangled alphabets: León Ferrari and Mira Schendel. New York/São Paulo:
The Museum of Modern Art/Cosac Naify, 2009, p. 159.
FIGURA 075 - Mira Schendel, Objeto gráco, 1967-68 .............................................................. 123
óleo s/ colagem de papel-arroz entre duas placas de acrílico, 100 x 100 cm, Daros-Latinamerica Collection,
Zurique.
Fonte: DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 273.
FIGURA 076 - Mira Schendel, Sem título, 1965 .......................................................................... 124
óleo s/ papel arroz, 47 x 23 cm (cada trabalho); col. Sandra e William Ling, Porto Alegre.
Fonte: DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 196.
XV
FIGURA 077 - Mira Schendel, Objeto gráco, 1967-68 ............................................................... 126
óleo s/ colagem de papel-arroz entre duas placas de acrílico, 100 x 100 cm; Daros-Latinamerica
Collection, Zurique.
Fonte: DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 273.
FIGURA 078 - CÉU ESTRELADO ............................................................................................. 129
ESA/Hubble & Digitized Sky Survey 2
Fonte: http://1.bp.blogspot.com/_viputHRpZ2A/S6uNcu6xAtI/AAAAAAAADLk/mfhfJ0PPGqk/s1600/
heic1005d.jpg Acesso em 30 out. 2010.
FIGURA 079 - Tipo de osso utilizado para adivinhação na China antiga .......................................... 134
Fonte: CHRISTIN, Anne-Marie. History of Writing: from hieroglyph to multimedia. Paris: Flammarion, 2002, p. 90.
FIGURA 080 - Parte inferior dos cascos de tartaruga ................................................................... 135
Fonte: CHRISTIN, Anne-Marie. History of Writing: from hieroglyph to multimedia. Paris: Flammarion, 2002, p. 90.
FIGURA 081 - Diagrama incidência do fogo e efeitos sobre desenho das rachaduras ............................ 135
Fonte: CHRISTIN, Anne-Marie. History of Writing: from hieroglyph to multimedia. Paris: Flammarion, 2002, p. 90.
FIGURA 082 - Casco de tartaruga utilizado para adivinhação ....................................................... 136
Fonte: CHRISTIN, Anne-Marie. History of Writing: from hieroglyph to multimedia. Paris: Flammarion, 2002, p. 90.
FIGURA 083 - Fragmento de casco de tartaruga utilizado para adivinhação ...................................... 136
Fonte: CHRISTIN, Anne-Marie. History of Writing: from hieroglyph to multimedia. Paris: Flammarion, 2002, p. 90.
FIGURA 084 - Mira Schendel, Sem título, 1964 ............................................................................ 142
monotipia sobre papel japonês, 46 x 23 cm, col. Cesare Rivetti.
Fonte: PÉREZ-ORAMAS, Luis (org.). Tangled alphabets: León Ferrari and Mira Schendel. New York/São
Paulo: The Museum of Modern Art/Cosac Naify, 2009, p. 91.
FIGURA 085 - Mira Schendel, Sem título [Objetos grácos], m do anos de 1960 .......................... 143
monotipia e letraset s/ papel japonês entre placas de acrílico transparente, 100 x 100 x 8 cm, col.
particular São Paulo.
Fonte: PÉREZ-ORAMAS, Luis (org.). Tangled alphabets: León Ferrari and Mira Schendel. New York/São
Paulo: The Museum of Modern Art/Cosac Naify, 2009, p. 124.
FIGURA 086 - Mira Schendel, Sem título, 1965 ......................................................................... 145
monotipia s/ papel japonês, 46 x 23 cm, Galeria Milan, São Paulo.
Fonte: PÉREZ-ORAMAS, Luis (org.). Tangled alphabets: León Ferrari and Mira Schendel. New York/São
Paulo: The Museum of Modern Art/Cosac Naify, 2009, p. 117.
FIGURA 087 - Mira Schendel, Sem título, 1965 .......................................................................... 146
monotipia s/ papel japonês, 46 x 23 cm, Galeria Milan, São Paulo.
Fonte: PÉREZ-ORAMAS, Luis (org.). Tangled alphabets: León Ferrari and Mira Schendel. New York/São
Paulo: The Museum of Modern Art/Cosac Naify, 2009, p. 117.
XVI
FIGURA 088 - Mira Schendel, Sem título, 1965 .......................................................................... 148
monotipia s/ papel japonês, 46 x 23 cm, Galeria Milan, São Paulo.
Fonte: PÉREZ-ORAMAS, Luis (org.). Tangled alphabets: León Ferrari and Mira Schendel. New York/São
Paulo: The Museum of Modern Art/Cosac Naify, 2009, p. 117.
FIGURA 089 - Mira Schendel, Objeto gráco, 1967-68 ............................................................... 149
óleo s/ colagem de papel japonês entre duas placas de acrílico, 100 x 100 cm, col. Rose e Alfredo
Setúbal, São Paulo.
Fonte: DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 267.
FIGURA 090 - Mira Schendel, Sem título, 1965 .......................................................................... 150
monotipias s/ papel japonês, 46 x 23 cm, Galeria Milan, São Paulo.
Fonte: fotos do autor, 2009.
FIGURA 091 - MU - Ideograma japonês signicando “nada” e “o vazio”........................................ 151
Fonte: BARTHES, Roland. O império dos signos. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 9.
FIGURA 092 - Cadernos de Mira Schendel exibidos em vitrine .................................................. 152
exposição No Vazio do Mundo, São Paulo, 1996-1997.
Fonte: SILVEIRA, Paulo. A página violada: da ternura à injúria na construção do livro de artista - 2. ed.
Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2008, p. 71.
FIGURA 093 - Caderno de Mira Schendel exibido na Documenta, 2007 ....................................... 153
Documenta 12, Kassel.
Fonte: http://2.bp.blogspot.com/_SumNupDynRI/SMhW_vaRdfI/AAAAAAAAAGM/ctuTbiLqhO4/s1600-h/
Mira_Documenta12_a.jpg. Acesso em 30 out. 2010.
FIGURA 094 - Mira Schendel, Sem título [Cadernos], 1971 ........................................................ 154
letraset sobre papel encadernado, 20 x 20 cm, col. particular, São Paulo.
Fonte: DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 277.
FIGURA 095 - Caderno da artista exibido na Documenta, 2007 .................................................. 156
Documenta 12, Kassel.
Fonte: http://2.bp.blogspot.com/_SumNupDynRI/SMhW_vaRdfI/AAAAAAAAAGM/ctuTbiLqhO4/s1600-h/
Mira_Documenta12_a.jpg Acesso em 30 out. 2010.
FIGURA 096 - Paredes e teto da caverna de Lascaux ................................................................ 160
Fonte: Fonte: GOMBRICH, E. H. Histoire de l’art. 7. ed. London: Phaidon Press, 2001, p. 42.
FIGURA 097 - Detalhe de estela funerária com nomes de soldados gregos ................................... 163
459 a.C. Museu do Louvre, Paris
Fonte: CHRISTIN, Anne-Marie. History of Writing: from hieroglyph to multimedia. Paris: Flammarion, 2002, p. 238.
XVII
FIGURA 098 - Placa de pedra com escrita fenícia ..................................................................... 164
calendário do séc. X a.C. Museu de Istambul, Istambul.
Fonte: CHRISTIN, Anne-Marie. History of Writing: from hieroglyph to multimedia. Paris: Flammarion, 2002, p. 238.
FIGURA 099 - Boa escrita ........................................................................................................ 165
prancha da Grande Enciclopédia, de Diderot e d’Alembert, metade do séc. XVIII.
Fonte: MANDEL, 2006, p. 158.
FIGURA 100 - Mira Schendel, Sem título [Objetos grácos], 1967 ................................................ 167
datilografia s/ papel entre placas de acrílico transparente, 100 x 100 x 1 cm, col. Ada Schendel, São Paulo.
Fonte: PÉREZ-ORAMAS, Luis (org.). Tangled alphabets: León Ferrari and Mira Schendel. New York/São
Paulo: The Museum of Modern Art/Cosac Naify, 2009, p. 130.
FIGURA 101 - L’hourloupe ....................................................................................................... 169
Jean Dubuffet, Banco dos equívocos, 1963, óleo s/ tela, 150 x 195 cm, Musée des Arts Decoratifs, Paris.
Fonte: LOPEZ BLAZQUEZ, Manuel. Dubuffet, 1901-1985. Barcelona: Globus, 1996, p. 34.
FIGURA 102 - Mira Schendel, Sem título (Letras circunscritas), 1970 .............................................. 170
caneta hidrográfica s/ papel, 50 x 36 cm, col. particular, São Paulo.
Fonte: DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 213.
FIGURA 103 - Ambiente construído por Dubuffet ..................................................................... 171
Jean Dubuffet, Jardim de inverno [L’Hourloupe], 1970
epoxi com tinta de poliuretano, 5 x 10 x 6 m, Centre Georges Pompidou, Paris.
Fonte: LOPEZ BLAZQUEZ, Manuel. Dubuffet, 1901-1985. Barcelona: Globus, 1996, p. 38.
FIGURA 104 - Mira Schendel, Sem título, 1964/65 ................................................................... 172
monotipia sobre papel de arroz, 46 x 23 cm, col. Ada Schendel, São Paulo.
Fonte: SALZSTEIN, Sônia (org.). No vazio do mundo Mira Schendel. São Paulo: Marca D’Agua, 1996, p. 159.
FIGURA 105 - Mira Schendel, Sem título [Toquinho], 1972 .......................................................... 172
letraset, papel tingido s/ papel, 49 x 25,4 cm, col. particular, São Paulo.
Fonte: DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 236.
FIGURA 106 - Mira Schendel, Sem título, 1972 .......................................................................... 174
letraset entre placas de acrílico fosqueado, 95 x 95 cm, col. Clara Sancovsky, São Paulo.
Fonte: SALZSTEIN, Sônia (org.). No vazio do mundo – Mira Schendel. São Paulo: Marca D’Agua, 1996, p. 197.
SUMÁRIO
RESUMO ............................................................................................................................................VI
ABSTRACT ........................................................................................................................................ VII
INTRODUÇÃO: Em busca de uma palavra plural ................................................................................19
Mira Schendel: escrituras visuais - desenhos verbais ........................................................................22
CAPÍTULO 1: PALAVRA
1.1. Tessitura visual da palavra .........................................................................................................28
1.2. Herança platonista .....................................................................................................................37
1.3. Palavras na arte – dos cubistas à contemporaneidade ...............................................................50
1.3.1. Escritura .................................................................................................................................56
1.3.2. Gozo, imagem e escrita em jogo .............................................................................................59
CAPÍTULO 2: MIRA SCHENDEL
2.1. Questão de vida ou morte ..........................................................................................................68
2.2. Primeiras pinturas ......................................................................................................................69
2.3. Sensível realidade ......................................................................................................................73
2.4. Questionamentos .......................................................................................................................77
2.5. Palavras na pintura ....................................................................................................................80
2.5.1.1. Monotipias - Louvado seja o Senhor ....................................................................................84
2.5.1.2. Rastro numinoso ..................................................................................................................93
2.5.2. Letraset ................................................................................................................................100
2.5.3. Datiloscritos ..........................................................................................................................105
2.5.4. Objetos grácos ....................................................................................................................110
2.5.5. Cadernos ..............................................................................................................................113
2.5.6. Toquinhos .............................................................................................................................116
2.6. Interpretações ..........................................................................................................................122
CAPÍTULO 3: VAZIO
3.1. O indecidível ............................................................................................................................127
3.2. Céus, pedras ou ossos: espaços de relações signicantes .......................................................129
3.2.1. Ideograma e escrita pictural ..................................................................................................138
3.3. Virando a página: cadernos e livros ..........................................................................................152
3.4. O pensamento da tela ..............................................................................................................159
3.4.1 Vazio: atuação do invisível no visível ......................................................................................162
3.4.2. Contínuo: a ausência presente ..............................................................................................168
CONCLUSÃO ...................................................................................................................................175
REFERÊNCIAS .................................................................................................................................181
APÊNDICE .......................................................................................................................................186

INTRODUÇÃO: Em busca de uma palavra plural
Imagina tu, uma escada que eu dantes era capaz de subir
e descer de olhos fechados, as frases feitas são assim, não
têm sensibilidade para as mil subtilezas do sentido, ea,
por exemplo, ignora a diferença entre fechar os olhos e
ser cego.
José Saramago
No decorrer da minha experncia como designer gfico surgiu o interesse pelo
eudo das relações entre palavra e imagem, devido à identificação de uma dificuldade recorrente
das pessoas envolvidas com as peças gráficas - e minha, inclusive - em lidar com texto e imagem
de forma integrada numa superfície, principalmente no que diz respeito a perceber o texto
como elemento potencialmente imagético. Apesar dos esforços para a integração de imagem
e texto numa composição em comunicação visual, na maioria das vezes ees elementos acabam
sendo vios de forma dissociada, onde um eá subordinado ao outro. A conatação dea
concepção dicomica, quase onipresente, evidenciou-se ainda mais a partir da leitura de textos
de Vilém Flusser e suas teorias insiindo na necessidade de elaboração de uma nova forma de
ver/ler/pensar imagem e texto, que tocaram algo que a intuição geava há longo tempo, indicando
os primeiros passos do caminho para uma busca mais siemática.
FIGURA 001 - COMEÇOS
Folha de rosto de capítulo para catálogo para UFMG.
Como a publicação apresentava os cursos da
Universidade separados em áreas do saber,
o projeto gráco tentou se contrapor à esta
divisão estanque, interferindo na tipograa para
sugerir um constante rearranjo do conhecimento.
(Foto do autor, 2007)

Contudo, no design gráfico, mesmo diante das experimentações com as palavras
e as tentativas de integrá-las ao contexto visual, uma sujeição dees elementos, orientando-os
em função da mensagem, a qual eá pautada por critérios de legibilidade, ergonomia, função, tipo
de suporte, tipo de blico e de respoa planejada para ee mesmo blico. Já no terreno das artes
visuais, também ocorrem inveigações do sentido imagético e pláico do texto, porém, sem os
mesmos condicionantes inerentes ao processo da comunicação, que pelos limites impoos e pela
sua especificidade, poderiam reringir o alcance dessa pesquisa. Assim, como o texto literário,
que por sua palavra plural
1
ultrapassa a mera proposão funcional de comunicação verbal,
a arte, despreocupada das funções de ferramenta, próprias do design, permite uma maior interface
com teorias e autores que abordam as relações texto-imagem, fator essencial para a ampliação do
espero dea pesquisa.
Considera-se oportuno então, que as inveigações e reexões acerca dos aspeos picos
das palavras nas artes visuais, propoas por ee eudo, ocorram a partir de artias de um cenário
mais próximo, como é o caso de Mira Schendel, que além de tamm exercer atividades vinculadas
às artes gráficas, desenvolveu uma extensa e relevante obra artíica, onde a palavra é de fundamental
importância. Sua série de experimentações focada na potencialidade das letras dialoga com os signos
alfabéticos sob uma perspeiva própria – ora tipográfica, ora caligráfica, ora pela sobreposição de
ambas. Vale nessa inveigação o aspeo pláico desses símbolos, seu desenho, bem como suas
confluências e múltiplas possibilidades compositivas, que adquirem uma identidade singular.
1 BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita – 1: A palavra plural. São Paulo: Escuta, 2001.
FIGURA 002 - DIE NEUE TYPOGRAPHIE.
Diagrama de Jan Tschichold, 1928.
O diagrama para revistas, desenvolvido por Tschichold, propõe a distribuição dos blocos (imagens) de acordo com o conteúdo, ao invés
de mantê-los centralizados nas páginas, envolvendo-os com o texto. Isto já representa um pequeno passo em direção à uma convivência
mais interativa entre texto e imagem no mesmo espaço.
(LUPTON, 2006, p. 123)

Em sua obra as palavras não se organizam segundo normas gráficas ou de leitura, que
em certo modo o a negadas, o por mera oposição, mas pela tentativa de se inaurar um novo
espaço pico, temporal e de significação. Um novo espaço tanto na obra quanto ao seu redor,
como nas suas experiências com letraset sobre acrílico, cujas sombras, ao incidirem em diferentes
superfícies, dialogam efetivamente com o espaço que circunda sua obra. Ao mesmo tempo,
a bidimensionalidade no trabalho de Mira Schendel é notável onde, através de sutis nuances
tonais criadas pelo esboroamento dos contornos e da variação no corpo dos tipos e intensidade
do geo da escrita, insinua-se uma profundidade realçada pelas níssimas folhas superpoas
de papel. Em vários de seus trabalhos, eas camadas refletem intensas preocupações de ordem
temporal, em que presente, passado e futuro fundem-se circularmente num mesmo tempo.
Junto à intensa exploração do potencial do espaço vazio por meio das transparências e da sutileza
do próprio suporte, pairam conelações de letras e palavras com evidente caráter escritural.
FIGURA 003 - TEXTO, ESPAÇO E TRANSPARÊNCIA.
30 monotipias de Mira Schendel na galeria Milan, em São Paulo, 2009.
A montagem privilegiou o deslocamento ao redor de todo o suporte.
(Foto do autor, 2009)

Mira Schendel: escrituras visuais - desenhos verbais
[...] os habitantes de Macondo eavam dispoos a lutar
contra o esquecimento: Ea é uma vaca, e deve ser
ordenhada todas as manhãs para que produza leite, e o leite
deve ser fervido para ser miurado com o ca e fazer café
com leite. E assim continuaram vivendo numa realidade
escorregadia, momentaneamente capturada pelas palavras,
mas que fugiria sem remédio quando fosse esquecido o
valor da letra escrita.
Gabriel García Marquez
Mira Schendel nasceu na Suíça e em 1949, após a guerra e o conturbado período que
a sucedeu, emigrou para o Brasil, vindo inicialmente para Porto Alegre. Chegou a participar da
I Bienal de Artes em 1951 e dois anos mais tarde transferiu-se para São Paulo, onde viveu até sua
morte em 1988.
Quando da chegada de Mira, a produção de arte brasileira, principalmente a paulia,
vivia o concretismo, caraerizado pela exploração de formas seriadas, racionalidade eética, simétrica
e formal. Mira o compartilhava desse rigor e acabou se aproximando das correntes neoconcretas,
surgidas da necessidade de alguns artias de fazer uma arte mais intuitiva, onde fosse posvel
um maior envolvimento do sujeito, de maneira que ee pudesse ser resgatado por meio de uma
experiência pessoal e autocognitiva. Em seu trabalho io se dá de maneira mínima, sutil e imanente.
A dialética eabelecida entre uma economia conrutiva/formal e a valorização sensória do geo
e da matéria deixam evidente a queão do suporte e suas superfícies, queo incorporados à obra
através de seus vazios e ausências.
De seu início no Brasil até os primeiros anos da década de 1960, Mira se dedicou
à pintura sob diferentes técnicas, evoluindo da clássica tinta a óleo para a experimentação
e miura de materiais, resultando num trabalho de textura compaa, densa, de grande preocupão
compositiva, como em suas pinturas matéricas obtidas com o uso de massa, cimento ou areia.
A partir da metade dessa cada, seu primeiro ciclo gradualmente cede espaço a novos experimentos.
Inicialmente com aguadas de nanquim, e em seguida com o uso intensivo de monotipias sobre

papel japonês, onde o “vazio silencioso”
1
e a presea de elementos alfabéticos intensificam-se
na vaa prodão da artia, que se eende até início dos anos de 1970, quando então há uma
retomada da pintura. Desse período podem ser agrupadas as diferentes séries: os chamados desenhos
lineares, como Mira os denominou, e os que contêm signos linguíicos, como letras, palavras e frases.
Dentro desses trabalhos com letras, podemos apontar sua extensa rie de monotipias, os objetos
gráficos, conituídos por trabalhos em papel-arroz e/ou acrílico de grandes dimensões, com
letras manuscritas ou aplicadas (letraset). Nesse período há também a rie de Datiloscritos, onde
a artia compõe grandes blocos de letras datilografadas e repetidas à exauão, eruturadas em
grades onde se diluem seus vieses linguíicos e evidencia-se sua condição espacial de tessitura.
Dentro dees trabalhos que incorporam signos linguíicos, é possível indicar outras duas séries
séries: os Toquinhos, pequenos pedaços de acrílico e letraset e os cadernos da artia, em que as
páginas e a encadernação atuam dinamicamente na transformação do significado dos signos da
escrita, quando os empregam.
Ao longo dee texto, será vio que sua obra sempre se fundamentou por
uma inquietante sondagem de ordem espiritual e losófica, galgada em leituras dos mais
variados temas e autores, em conante e intenso diálogo com interlocutores das artes
ou da losofia. Apesar da carga trica e espiritual da artia e, tentando se dianciar de uma linha
de abordagem determinia, não é objetivo dee eudo identicar em seus trabalhos as transposições
dessas referências assimiladas.
1 BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987, p. 12.
FIGURA 004 - Séries de trabalhos de Mira com signos alfabéticos (detalhes).
Da esquerda para a direita: monotipia; pequenos quadrados com letraset e objeto gráco.

Com sua maneira própria de abranger a letra e a escrita, tanto em seu aspeo mais formal
e impessoal por assim dizer – com os tipos readymade proporcionados pela letraset e a datilografia
– quanto em seu âmbito mais individual e íntimo, onde o desenho caligráfico reflete toda a carga
do geo de seu traçado, a obra de Mira Schendel extrapola sua origem. Por várias vezes a artia
tentou representar aquilo que em prinpio seria impossível de ser representado ou mesmo pensado
a priori. O percurso de tangência entre a pláica e a linguíica, entre o vazio e sua presença,
e entre a quase imaterialidade do suporte e a densidade muitas vezes toda concentrada em um único
traço leve, atravessa grande parte de seus trabalhos. Conantemente, no limiar entre visualidade
e linguagem, Mira Schendel concedeu ao elemento verbal (fosse ele uma palavra ou a simples letra)
completa liberdade, para que ee assumisse simultaneamente sua identidade visual e semântica,
nunca se fechando em uma coisa ou outra, mas sendo não-sendo sempre uma coisa e outra.
O foco de articulação dea pesquisa concentra-se nas séries com elementos verbais
com ênfase em suas monotipias onde emergem letras, caligrafias, símbolos, palavras ou mesmo
frases e também, com deaque para os cadernos e sua relação espaço-temporal. A principal fonte
de referência sobre a obra de Mira Schendel para ee trabalho foi o livro de Geraldo Souza Dias,
Mira Schendel: do espiritual à corporeidade
2
, onde o autor relaciona com abrangência o pensamento
e o trabalho artíico de Mira Schendel com suas buscas tricas e exienciais. Ees aspeos o
ponto de entrada para ea dissertação na obra da artia e conituem-se em uma fonte documental
ineimável. Outras referências são o livro de Maria Eduarda Marques: Mira Schendel
3
, e o de
2 DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009.
3 MARQUES, Maria Eduarda. Mira Schendel. São Paulo: Cosac & Naify, 2001.
FIGURA 005 - Séries de trabalhos de Mira com signos alfabéticos (detalhes).
Da esquerda para a direita: datiloscrito; toquinhos e caderno.

Sônia Salztein: No vazio do mundo Mira Schendel
4
. O primeiro alinhava a trajetória da artia
e debruça-se mais sobre aspeos formais de sua obra, sendo uma grande e variada base de imagens
sobre os trabalhos. Já o livro de Sônia Salztein, o mais antigo dos ts, também traz muitas reproduções
de trabalhos, com um detalhado mapeamento hioriográfico da carreira de Mira Schendel
e a apresentação de análises e textos de alguns críticos e teóricos sobre sua obra, inclusive do próprio
Vim Flusser, um dos teóricos a contribuir para os primeiros passos dea pesquisa.
A partir desse referencial pesquisado, o eudo fundamenta-se teoricamente nos escritos
de Roland Barthes
5
, Maurice Blanchot
6
, Anne-Marie Chriin
7
e Vilém Flusser
8
para dialogar sobre
a tessitura visual da palavra na obra da artia. Pelo caráter fluido de duplicidade entre visualidade
e linguagem, o trabalho de Mira Schendel encontra consonâncias em teorias de Roland Barthes,
como a escritura, o sentido obtuso e suas considerações sobre o prazer do texto. Somando-se
a Barthes, Anne-Marie Chriin explora os aspeos gráficos da escrita e sua relação com o fundo,
o branco da página e o espaço, para além de uma concepção logontrica que tende a abordar
o alfabeto apenas por seus liames fonológicos. As ideias de Maurice Blanchot sobre a solio da obra,
o fora, a pluralidade da palavra, e também o vazio, ajudam a iluminar ees aspeos que, de algum
modo, emergem à medida em que se observa os trabalhos de Mira Schendel. Com abordagem um
pouco diferente dos três primeiros autores, e atravessada por seus “pensamentos relâmpago” sobre
temporalidade, espaço, escrita e comunicação, a escrita ágil de Vilém Flusser, muitas vezes inspirada
em/ou inspiradora do trabalho de Mira Schendel irrompe como a centelha para a elaboração
de algumas considerões iniciais.
Por seu resgate da visualidade da letra e pela tomada de consciência da importância
visual do espaço branco da página, operando, quase como um fundador da grande série
de trabalhos de escritores e artias que abordaram ees aspeos ao longo do culo XX, o poema
4 SALZSTEIN, Sônia (org.). No vazio do mundo – Mira Schendel. São Paulo: Marca D’Agua, 1996.
5 BARTHES, Roland. O grau zero da escrita: seguido de novos ensaios críticos. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
_____________. O óbvio e o obtuso: Ensaios críticos III. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.
_____________. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 1987.
6 BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita – 1: A palavra plural. São Paulo: Escuta, 2001.
_______________. La nascita dell’arte. in: BLANCHOT, Maurice. L’Amicizia. Genova-Milano: Casa Editrice Marietti, 2010, p. 23-34.
_______________. O livro por vir. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
7 CHRISTIN Anne-Marie. A imagem enformada pela escrita. in: ARBEX, Márcia (org.) Poéticas do visível: ensaios sobre a escrita e a
imagem. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários, 2006, p. 63-105.
________________. History of Writing: from hieroglyph to multimedia. Paris: Flammarion, 2002.
________________. L’ image écrite: ou La déraison graphique. Paris: Flammarion, 2001.
________________. Poétique du blanc: vide e intervale dans la civilization de l’alphabet. Paris: VRIN, 2009.
8 FLUSSER, Vilém. Bodenlos: uma autobiografia filosófica. São Paulo: Annablume, 2007.
____________. Língua e realidade. São Paulo: Annablume, 2005.
____________. O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. São Paulo: Cosac & Naify, 2007.

Un coup de dés jamais nabolira le hasard, de Mallar, se oferece a imeros diálogos com o trabalho da artia.
As grandes fontes de refencia e acesso ao trabalho de Mallarmé são o livro de Décio Pignatari
e dos irmãos Auguo e Haroldo de Campos
9
, com tulo honimo ao sobrenome do poeta e,
também, os livros
10
de Anne-Marie Chriin: Limage Écrite ou la raison graphique, e Poétique
du Blanc: vide et intervalle dans la civilization de lalphabet, que junto às leituras sobre o Coup de dés,
tamm abordam a escritura, a visualidade do ideograma e da letra. A intertextualidade entre
a produção artíica de Mira Schendel, a obra do poeta e mais alguns outros trabalhos no recorte
dea pesquisa, é respaldada pelo livro, organizado por Márcia Arbex na esfera das relações
palavra-imagem, Poéticas do visível: ensaios sobre a escrita e a imagem.
11
Com extensa introdução da
autora, essa leitura flexibilizou a incursão pelo terririo dos eudos intermídia. Mas evitou que o
eudo se deixasse levar para uma pura operação classificatória, que não se identifica, em absoluto,
com os objetivos dea pesquisa e, provavelmente, ainda menos com a obra de Mira Schendel.
Ee eudo não intenciona retornar ao ponto de origem dos queionamentos sobre
relação palavra-imagem no design gráfico, pois não se propõe conruir respoas enderadas
diretamente a ea área de atuação e pesquisa. Aqui tamm o se propõe explicar nem desvendar
sentidos absolutos das palavras na obra de Mira Schendel. Como dito, a motivação original partiu
do transcorrer cotidiano de uma prática profissional. Mas seu desdobramento extrapola ees limites
para se debruçar sobre transformões nos modos de ver e de ler, de criar imagens e de criar textos
que relacionam-se, mais amplamente, com compreensões sobre a condição da escrita na arte e
no pensamento contemporâneo. Transformações que, espera-se, possam ficar mais claras com a
interseção entre leituras sobre a palavra e a imagem, o espo e o vazio, o fora e o tempo, para que
assim, se lancem outros, e nunca definitivos, olhares sobre a exploração do signo linguíico pela
artia, com suas múltiplas possibilidades de sentido.
O primeiro capítulo inicia-se decompondo o verbete tessitura e seu significado relacionado
ao texto e à imagem, mantendo proximidade com o entendimento da condição espacial que permeia
ee termo tanto no âmbito visual quanto verbal. Passando pelas influências do pensamento
ocidental sobre as relações entre texto e imagem, como o platonismo e seu desdobramento
no logocentrismo, a pesquisa seleciona alguns exemplos na hiória da arte sobre o tema.
9 CAMPOS, Augusto de; PIGNATARI, Décio; CAMPOS, Haroldo de. Mallarmé. São Paulo: Perspectiva, 1991.
10 CHRISTIN, Anne-Marie. L’ image écrite: ou La déraison graphique. Paris: Flammarion, 2001.
_________________. Poétique du blanc: vide e intervale dans la civilization de l’alphabet. Paris: VRIN, 2009.
11 ARBEX, Márcia (org.). Poéticas do visível: ensaios sobre a escrita e a imagem. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG,
Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários, 2006. p. 17–62.

A partir desse contexto, uma reflexão sobre as possibilidades da escrita para além de sua função
referencial e cognitiva norteada pela noção de escritura desenvolvida por Roland Barthes.
Tendo-se aberto para a condição escritural do texto nas obras de arte e produções
literárias, o segundo capítulo mora a obra de Mira Schendel, desde sua chegada ao Brasil, com
seus primeiros trabalhos, onde é perceptível a forte relação da artia com o espo piórico
através de variadas explorações de cnicas e materiais. Desse início, parte-se para a escolha dos
trabalhos mais significativos para o escopo dee eudo, enumerando as séries pertinentes conforme
uma elaboração mais didática, tal qual Geraldo Souza Dias apresenta em seu livro, citado.
Alguns dos trabalhos são intertextualizados com criações de Stéphane Mallarmé e Karlheinz
Stockhausen, gerando reflexões baseadas em pensamentos sobre a condição e as possibilidades da
escrita, levantados por Maurice Blanchot e Roland Barthes
No terceiro capítulo, a reflexão sobre as possibilidades visuais da escrita continua, mas
atras de sua relação com o vazio e com o espaço. Para reforçar ea etapa do trabalho, é apresentada
a discussão suentada por Anne-Marie Chriin a respeito das origens comuns da imagem e da
escrita. Sua tese baseia-se no papel da consciência de nossos ancerais sobre o potencial gerador de
significados das superfícies. Desse pensamento, teriam surgido tanto as imagens quanto a escrita.
Chriin aborda a origem da escrita ideográfica chinesa e, em paralelo à autora, Haroldo de Campos
explora a pesquisa de Erne Francisco Fenollosa que tamm inveiga queões referentes às escritas
orientais. As reflexões dees autores auxiliam num melhor entendimento sobre as diferenças entre
as relações da superfície com a escrita chinesa e com a escrita alfabética e, até certo ponto, sobre
o papel do logocentrismo na interpretação ocidental desse processo. Consciente dessa conjuntura,
a pesquisa foca sua refleo, sobretudo, nos cadernos e monotipias de Mira, referendando-se novamente
em Barthes e em considerações de Blanchot sobre o vazio, a errância e o fora.
FIGURA 006 - MIRA
Imagem da artista nos anos de 1980 (detalhe).
(PEREZ-ORAMAS, 2009, p. 173)

CAPÍTULO 1: PALAVRA
1.1. Tessitura visual da palavra
A linha cona de um número infinito de pontos; o plano,
de um número infinito de linhas; o volume, de um número
infinito de planos; o hipervolume, de um número infinito de
volumes... Não, decididamenteo é ee, more geométrico,
o melhor modo de iniciar minha narrativa.
Jorge Luis Borges
A arte não exie para regirar, como um grande espelho,
todas as repetições da hiória. A arte não é um orfeão
que acompanha a hiória em sua marcha. Ela eá aqui
para criar sua própria hiória.
Milan Kundera
Em um de seus sentidos, tecer significa o processo de conrução de uma trama
pelo entrelaçamento regular de fios
12
. Ea trama - ou tecido - pelo reflexo da operação que a
erutura, é matematicamente resultante da sobreposição de dois planos: um plano compoo
por linhas horizontais e outro, por verticais. Mas ea não é uma sobreposição usual, como a
de duas folhas de papel dispoas em camadas uma sobre a outra, onde se percebe nitidamente
a folha de cima e a de baixo. No tecido, cada fio alterna-se com os demais entre uma superfície
e a outra, entre o sob e o sobre, entre um lado e outro. Mesmo em tecidos conituídos por um
fio contínuo apenas, como o tricô, é pela alternância de pontos, nós e laçadas que a linha conrói
o plano consigo mesma. Ee entrelaçamento é que consiência ao conjunto, fazendo com
que as linhas permaneçam juntas mantendo o tecido coeso. Exiem diferentes tipos de linhas,
entrelaçamentos e pontos, permitindo infindáveis tipos de tecidos. Alguns mais densos, outros,
mais abertos ou que combinam diferentes padrões e cores de fios. Ee aspeo de eruturação
e composição da trama e sua contextura chama-se tessitura. Ela é, portanto, a amoragem das
caraeríicas do tecido e, indiretamente, a amoragem da conituição de seus fios, o que
naturalmente revela também sua relação com a diversidade tátil entre os tecidos.
12 Cf. FERREIRA, Aurélio Buarque de Hollanda. Novo dicionário da língua portuguesa – 2 ed. rev. e aumentada. 1986, p. 1655-56.

Sendo uma amoragem, a tessitura é também a descrição da urdidura do tecido.
É ela que demonra como o todo se erutura sem necessitar ser esse todo, mas apenas sua
parte mínima ou, mais abratamente, a tessitura é a codificação da qual se concebe a trama.
É pela repetição dos padrões combinados conforme ea codificação que se gera o tecido inteiro.
A palavra tecido provém etimologicamente do verbo latino texere, que entre outros sentidos, tamm
aponta para urdidura e entrelaçamento, sendo que dee verbo deriva o vocábulo textum, do qual
se origina texto. Dea raiz latina comum advêm palavras aparentadas, como textura, textual,
texto, têxtil, tecer, tecido e tessitura.
Tomando o tecido pelo viés da geometria e, pensando-o como área, seus fios como
linhas e, também sabendo que linhas são sequências de pontos (unidimensionais por definição),
é do agrupamento dees pontos que se chega ao plano, que é um elemento bidimensional.
Porém, mesmo enumerando as coordenadas de cada um dos pontos formadores das linhas desse
plano, uma a uma (ou seja, a codificação de sua erutura geradora), é apenas através do plano
conituído que a tessitura evidencia-se bidimensionalmente para além de sua função de codificação.
Io é, a tessitura pode se manifear enquanto área, quando concretizada espacialmente.
Sob ea condição, a tessitura revela-se intrinsecamente espaço-visual, mas sem cancelar sua
ação descritiva desse espaço. Ela se posiciona, simultaneamente, entre o visual e o verbal: ao se
conituir como tecido ocupando uma área, a tessitura se inaura no âmbito da imagem, e ao
codificar a conrução desse tecido, a tessitura também remete à ordem do texto.
FIGURA 007 - TESSITURA
Diagrama de pontos e linhas coloridas ortogonais
na padronagem de um tecido de lã xadrez.
(Arquivo do autor, 2009)

Ea abordagem da bidimensionalidade e do aspeo visual do tecido enquanto plano,
ao mesmo tempo em que toca no caráter eruturador da tessitura, tem a intenção de discorrer
não somente sobre o parentesco etimológico entre texto, tecido e tessitura. Mas a partir daí,
também assinalar como texto e imagem, dois termos ocidentalmente tidos como separados,
podem participar do sentido de um mesmo conceito como a tessitura. Sob essa perspeiva,
é posvel pensar aproximações entre texto e imagem, sondando suas converncias e sobreposões
além do que usualmente se crê.
Um dos fatores de aproximação, nos primórdios da humanidade, entre o texto
escrito e as imagens ruperes, pintadas, gravadas ou desenhadas e seus desdobramentos
é a essencial intenção de comunicar. Cada um, dentro de suas especificidades, é um veículo gráco
que comunica através de formas. O hioriador de arte, Erne H. Gombrich
13
, deaca que, nas
primeiras civilizações, a criação de imagens, além de seu vínculo míico e religioso, também era
uma primeira forma de escrita. O autor ainda demonra a ausência de uma interdição, nesses
primórdios, para o desdobramento de uma imagem figurativa em um signo escrito correspondente.
Para ilurar ea relação entre formas significantes, Gombrich exemplifica (Fig. 008) a extensão
de sentido entre a representação de um antigo deus mexicano das chuvas e trovoadas, utilizando
imagens de cascavel e sua derivação para um signo que indicava o raio.
13 Cf. GOMBRICH, E. H. Histoire de l’art. 7. ed. London: Phaidon Press, 2001, p. 53.
FIGURA 008 - IMAGEM COMO PRIMEIRA FORMA DE ESCRITA
A cabeça do deus asteca da chuva, Tlaloc (séc. XIV-XV), é formada com várias
serpentes contorcidas. Segundo Gombrich, nessa civilização mexicana,
o simbolismo ligado à imagem da serpente também se estendia ao signo que
designava o raio.
(GOMBRICH, 2001, p. 52)

As fronteiras atribuídas entre ees veículos pela cultura ocidental diluem-se, mais
ainda, ao se pensar que todas as escritas operam pela miura de signos fonéticos e semânticos
14
,
ou seja, os signos escritos nos textos não remetem apenas à transposição de sons da fala, mas tamm
a ideias regiradas graficamente. Segundo Andrew Robinson, escritas como a chinesa e japonesa
utilizam mbolos fonéticos para representar sons e símbolos que ocupam o lugar de palavras e ideias,
conhecidos como logogramas ou ideogramas. Quanto mais ideogramática uma escrita, mais piórica
ela será e, ao contrário, quanto mais fonética, mais aproximada dos sons da fala. Contudo, mesmo
nas escritas de caráter mais fonético, os vínculos entre imagem e escrita o baante próximos. Para
eudiosos como Anne-Marie Chriin, “a letra nasceu de um eado visual da escrita que a precedeu
15
e
por essa origem na imagem, a escrita é, em um sentido erito, veículo gráco de uma palavra.
16
Gombrich reforça ea tese ao recomendar que, mesmo que se saiba pouco a respeito dessas
origens, para melhor compreender a arte, “[...] faremos bem em recordar uma vez por outra que
imagens e letras são, realmente, parentes consangneas.
17
A própria palavra gráfico’, que provém do grego graphikos, deriva de graphein, que
significa tanto escrever quanto pintar
18
.
Portanto, seja pelo geo de escrever e pintar imagens, seja
pela própria conituição dos elementos ideogramáticos ou foticos de uma escrita ou ainda, pela
eruturação dos significantes dessa escrita em um texto, revela-se a proximidade entre os objetivos
da escrita e da imagem. Objetivos relacionados à conante preocupação do homem, desde os seus
14 ROBINSON, Andrew. The story of writing. 1995, apud VENEROSO, Maria do Carmo de Freitas. Caligrafias e escrituras: diálogo e
intertexto no processo escritural nas artes no século XX. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas
Gerais, 2000, p. 82.
15 CHRISTIN, Anne-Marie. Poétique du blanc: vide et intervalle dans la civilization de l’alphabet. Paris: VRIN, 2009, p. 10.
16 CHRISTIN, Anne-Marie. L’image écrite: ou la déraison graphique. Paris: Flammarion, 1995, p. 5.
17 GOMBRICH, E. H. Histoire de l’art. 7. ed. London: Phaidon Press, 2001, p. 53.
18 FLAM, Jack. Robert Motherwell’s graphics In: ARMSTRONG, Elizabeth et al. Tyler Graphics: The extended image. New York: Abbeville
Press, 1987 apud VENEROSO, Maria do Carmo de Freitas. op. cit., p. 84.
FIGURA 009 - GRAPHEIN
A escrita e a pintura como partes de uma mesma ação
que se desdobra sobre uma única superfície:
a parede de um vaso de cerâmica grego. (detalhe)
(MANDEL, 2006, p. 50)

primórdios, em conruir meios que permitissem regirar os fatos, narrar-lhes a sucessão no tempo,
representar o mundo ou ter acesso a mensagens divinas, fossem eas informações relacionadas a
acontecimentos do cotidiano, como caçadas e casamentos ou de ordem mítica e religiosa, como é
comum nas sequências de imagens que iluram o desenrolar de hiórias nas paredes das cavernas onde
o homem viveu há milhares de anos.
Georges Bataille assinala a própria consumação do caráter humano do homem,
ou seja, o que o diferencia das outras espécies que o antecederam, pelo nascimento da arte
pré-hiórica
19
. Para Bataille, mais que resultantes de uma função utilitária de comunicação, eas
inscrões teriam parte em uma espécie de jogo, do qual o fator mágico/sagrado é indissociável,
assim como também indica Gombrich. Essa ligação, entre a mágica e a míica com a arte
e escrita ancerais, extrapola o conceito objetivo de comunicação da atualidade, em que se
ambiciona uma função referencial e cognitiva pura e aponta para o que se poderia interpretar
como significância.
20
A base das imagens, sejam elas pinturas ou inscrições sobre pedras, é o plano, ou mais
especificamente o que Vilém Flusser denomina superfície.
21
Por ea abordagem propoa pelo filósofo,
a superfície (logo a imagem) comunica todo seu contdo de uma vez. Mesmo com as pias e trajetos
sugeridos ao olhar pela composição ou pelas cores, as imagens têm toda sua informação apreendida em
um único inante, sendo depois decompoas, num processo de síntese e análise que, aprofundando
a sua leitura, pode ser repetido inúmeras vezes. Podese dizer então que a leitura de uma superfície é
desvinculada de um vetor lógico.
Já o texto, tem um processo diferente da imagem ao comunicar algo, pois sua base
erutural não é a superfície, mas a linha. Convencionalmente, nos textos as informações são
apresentadas linearmente, por meio de sucessões que deveo ser acompanhadas a o final da
escrita para se captar toda a mensagem. Diferindo da leitura da imagem, ler um texto implica em
obedecer a um encadeamento lógico: a linha.
22
Tomando a analogia apresentada inicialmente no
modelo de ponto/linha/plano nee capítulo, pode-se considerar cada palavra no texto como um
ponto (tal como no tecido) que, ligada à próxima, gera uma linha e cada linha à seguinte, sucessiva
e linearmente a formar toda a trama. Logo, o modo como eas diversas linhas se combinam na
articulação do todo do texto, também pode ser compreendido como a sua tessitura.
23
19 BATAILLE, Georges. Las lagrimas de eros. Barcelona: Tusquets, 2007, p. 65.
20 Cf. BARTHES, Roland. O óbvio e o obtuso: ensaios críticos III. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1990, p. 94.
21 FLUSSER, Vilém. O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. São Paulo : Cosac & Naify, 2007, p. 102-125.
22 FLUSSER, Vilém. O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. São Paulo : Cosac & Naify, 2007, p. 104.
23 Referindo-se à passagem de Mira Schendel dos desenhos para sua série de Droguinhas, o crítico inglês Guy Brett, pergunta se
“[...] seria meramente um acaso que [...] acabasse amarrando tantas linhas que vêm de um passado etimológico comum: texto,
textura, têxtil, tecido; e mesmo contexto, pretexto, sutil?” BRETT, Guy. Ativamente o vazio. in: SALZSTEIN, Sônia (org). No vazio do
mundo: Mira Schendel. São Paulo: Marca d’Água, 1996, p. 55.

Entretanto, o que se tenta apreender como tessitura no âmbito do texto é um pouco
diferente quando ocorre na esfera da imagem. Enquanto no primeiro ela é erutura, na segunda,
a tessitura é a própria superfície, o que remete à ideia de Flusser sobre texto e imagem como duas
formas de comunicação diintas. É importante esclarecer que a denominação de superfície dada
à imagem pelo filósofo, não quer dizer que o texto não ocupa uma superfície (como nos livros ou
jornais, onde o espaço do texto na página é chamado de mancha tipográfica) e nem que a imagem
possui uma mensagem de significado mais superficial que o texto. No contexto dea abordagem
inicial, o paralelo eabelecido entre superfície e linha tem a inteão de deacar as diferenças
eruturais que implicam na leitura do texto e da imagem.
É indissociável a relação da imagem com o plano físico (suporte) ocupado por ela,
já que esse plano participa da própria imagem, permitindo entendê-la como superfície. Enquanto que
na configuração tradicional do texto, o espo o é um significante, ou seja, o plano o é elemento
da mensagem, pois ela se desdobra ao longo do caminho designado pelas linhas. Além do mais,
o plano ocupado pelas linhas e os próprios sinais gráficos que conituem as palavras nessas linhas -
no caso de escritas fonéticas - não guardam relação de semelhança com o significado representado.
Apesar de que, indiscutivelmente, as letras e as palavras m um desenho e, portanto, tamm há
que se levar em conta seu aspeo visual.
FIGURA 010 - DANÇA DO OLHAR
Piet Mondrian, Broadway Boogie Woogie, 1942-43
óleo s/ tela, 127 x 127 cm, MoMA, Nova York
Caminhos de amarelo, vermelho e azul, entremeados
por trechos em cinza claro, evocam o traçado urbano e o
uxo de tráfego, enquanto a pulsação cromática remete,
simultaneamente, ao ritmo do jazz e ao piscar de luzes da
Broadway. Mesmo trabalhando a composição a partir de
uma estrutura sequencial de linhas ortogonais, os quadros
de Mondrian revelam como o olhar não obedece nenhuma
ordem xa de leitura quando encara uma imagem.
(ARGAN, 1992, p. 400)

Se dentro da trama de um texto a palavra é como o ponto, unidimensional,
portanto, indicadora de um significado externo sem relação de semelhança com sua forma,
mas que atua ainda como imagem por ear inscrita em uma superfície, como é possível abordar
a visualidade desse mesmo sinal, tão escorregadio entre o visual e o legível? A respoa para ea
queão pode ear no fato, já explicado, de que texto e imagem comunicam através de formas,
sendo baante tênue a fronteira entre ambos. E não só no que diz respeito a comunicarem por
formas, eas são formas que na hiória da civilização, dificilmente se deram completamente
separadas.
Depois da invenção da escrita, quando as narrativas puderam ter o suporte do
texto, as imagens não deixaram de acompan-las, como é o caso das iluminuras (Fig. 011),
onde “[...] as belas imagens conituem um outro texto que contamina e modifica a escrita.
24
Na arte do Medievo e da primeira Renascença, pode-se pensar formas de narrativa visual
direcionadas à população iletrada, como pinturas do evangelho feitas por artias desconhecidos.
“Havia uma parte verbal implícita nessas obras, já que as imagens agiam de modo mnemônico,
pois lembravam ao fiel as narrativas que havia escutado em sermões e catequeses.
25
24 MELENDI, Maria Angélica. Imagens e palavras. In: ALMEIDA, Maria Inês de (org.). Para que serve a escrita? São Paulo: EDUC, 1997, p. 30.
25 MELENDI, Maria Angélica. Imagens e palavras. In: ALMEIDA, Maria Inês de (org.). Para que serve a escrita? São Paulo: EDUC, 1997, p. 32.
FIGURA 011 - A IMAGEM TRANSFORMA O TEXTO
Iluminura inglesa, séc. XIII: um monge escala a lateral da
mancha escrita para indicar a substituição de um trecho pela
linha corrigida na margem inferior da página.
(LUPTON, 2006, p. 64)

Mas mais sutilmente, ao longo da pintura ocidental (Figs. 012 e 013), a palavra eeve presente
nos tulos das obras, nos textos da crítica e mesmo como elemento da composição, reforçando,
interditando ou direcionando a interpretação das imagens.
26
Uma quase sempre acompanha a outra,
na forma de comenrios, escritos ou orais, títulos, legendas, artigos de imprensa, bulas, didascálias
27
,
slogans, conversas, quase ao infinito.
28
No início do cinema os cortes e edições de sequências –o naturais para a audiência
dos dias de hoje eram desconhecidos ou ocorriam sem serem percebidos, de maneira que era
comum a figura do comentador de lmes, para apontar informões complementares à hiória ou
descrever as passagens para reforçar o nexo narrativo. Ee é o caso de vários lmes de Georges
Méls, como Le Voyage dans La lune (França – 1902) e Voyage à travers limpossible (França 1904),
os quais eram explicados por um texto do próprio liès, lido junto com a exibição, descrevendo os
acontecimentos dramáticos. Mas o cinema e o vídeo inauraram dois novos elementos: o primeiro
é o movimento e sua implicação temporal muito diversa da pintura ou do texto; e o segundo é o
som, que mesmo não eando presente na primeira fase do cinema, hoje é conante e acrescenta
profundidade, aproximando o cinema de uma posvel terceira dimeno.
26 DAIBERT, Arlindo. Cadernos de escritos. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1995, p.75.
27 Na Grécia antiga, as didascálias eram indicações que os autores acrescentavam aos manuscritos dados aos atores, para que
representassem suas obras conforme suas instruções.
28 JOLY, Martine. Introdução à análise da imagem. Campinas: Papirus, 2002, p. 116.
FIGURAS 012 e 013 - ATÉ NO PARAÍSO
Detalhes de dois quadros com o mesmo tema e título; o primeiro, de Guercino, data de 1621 – 1623 e, o segundo, de Poussin, feito
por volta de 1638 – 1639. Em ambas as pinturas, um grupo de pastores observa uma pedra semelhante à uma tumba, onde se lê a
inscrição “Et in Arcadia ego” (Eu também estou na Arcádia): no mais feliz dos lugares os homens não escapam a seu destino pois,
assim como as palavras na pintura, a morte, esta existência sem rosto, lembra sua presença até no paraíso. Dentro e fora do quadro,
ela se faz evocar como ausência que, nesse contexto, só a imagem da escrita poderia manifestar sob o peso de uma Lei.
(LÉVI-STRAUSS, 1997)

Porém, como a inclusão deas mídias na pesquisa implicaria numa ampliação de
seu espero e possível diminuição de chances de aprofundamento, convém reforçar a rerição
dee eudo sobre as relações texto/imagem dentro do âmbito das imagens eáticas ou, mais
especificamente, da pintura, gravura e desenho. Mas, independentemente de considerações
sobre mídias como o cinema ou a TV, o fato é que imagem e texto, mesmo com as separações
regulamentadas pelo pensamento ocidental vigente, sempre conviveram muito proximamente,
sobrepondo-se mesclando-se durante toda a hiória da civilização.
FIGURA 014 - O QUE SE VÊ É O QUE OS OLHOS LÊEM
Bloco de croquis de Manet e a legenda correspondente, no Musée d’Orsay, em Paris.
Abaixo dos dados de local e de data, o texto em letras menores explica que a imagem,
(que nos parece ser uma aquarela) da trigésima primeira folha à trigésima segunda,
representa o céu com a lua (sem título ou indicação escrita pelo pintor).
(Foto do autor, 2008)

1.2. Herança platonista
A ciência é a caça de um pássaro definido de antemão que,
depois de apanhado, se preso numa gaiola de palavras. [...]
É impossível engaiolar o sentido.
Rubem Alves
Imagem ou palavra; não importa o período nem a relação, predominância, subordinão
ou mescla, o que se nota a respeito das duas ao longo da hiória é a conante presença como
mediadoras gficas de significado e a contaminação de uma pela outra. Apesar disso, a cultura
ocidental sempre procurou tratar as duas coisas de forma separada, principalmente a partir do
Renascimento, quando houve um direcionamento do pensamento em função de uma explicação
racionalia cada vez mais compartimentada. Para Michel Foucault
29
, na pintura europeia do culo
XV a o século XX uma separão entre o siema pláico e o siema linguíico, fazendo com
que entre ambos, seja sempre mantida uma relação de subordinação. Sob essa separação, signos
verbais e representação visual não ocorrem simultaneamente, pois uma ordem hierarquizante é
eabelecida entre eles: “Faz-se ver pela semelhança, fala-se através da diferença.
30
Dentro desse
siema, há dois sentidos possíveis: do discurso à forma ou da forma ao discurso (Fig. 014).
Ao abordar ea cisão entre imagem e escrita em nossa cultura, assim como seus
desdobramentos no modo de pensar o mundo e ear nele, Vilém Flusser assinala que
[...] até bem recentemente o pensamento oficial do ocidente expressava-se muito mais
por meio de linhas escritas do que de superfícies. [...] As linhas escritas impõem ao
pensamento uma erutura específica na medida em que representam o mundo por
meio dos significados de uma seqüência de pontos. Isso implica um ear-no-mundo
hiórico” para aqueles que escrevem e que lêem esses escritos. Paralelamente a esses
escritos, sempre exiiram superfícies que também representavam o mundo. Essas
superfícies impõem uma erutura muito diferente ao pensamento ao representarem
o mundo por meio de imagens eáticas. Isso implica uma maneira “a-hiórica” de
ear-no-mundo para aqueles que produzem e que lêem essas superfícies.
31
29 Cf. FOUCAULT, Michel. Isto não é um cachimbo 4. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1988, p. 39-41.
30 FOUCAULT, Michel. Isto não é um cachimbo 4. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1988, p. 39.
31 FLUSSER, Vilém. O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. São Paulo: Cosac & Naify, 2007, p. 102.

No trecho anterior deacam-se dois tipos de pensamento, um, em linha e o outro,
em superfície. Seus nomes adm das diferenças eruturais entre texto e imagem, sendo que Flusser
tamm nomeia ees texto e imagem - como linha e superfície respeivamente. O fato de se usar
o termo “superfície” para se referir à imagem e o termo leitura em superfície” para se referir à
forma de ler a informão veiculada por ela, o significa que o sentido da imagem seja raso, ou que
o texto, em oposição, implique em uma apreensão de sentido mais profunda que a imagem.
Apenas diz respeito ao fato de que a leitura do texto segue encadeamentos sintáticos lineares
e que a leitura da imagem “[...] pode se desenovelar dentro de uma descrição infinita e uma
contemplação inesgotável.
32
Ou seja, o significado que os termos superfíciee linhaaqui assumem,
relaciona-se, mais propriamente, a diferenças entre a forma (erutura) com que texto e imagem
se pream à leitura e, pela conclusão de Flusser, à maneira com que eabelecem eruturas
de representação baante diferentes ao pensamento. Para ele, as operações de leitura da imagem
e leitura do texto são diintas. Seguindo a linha dee raciocínio, o pensamento eruturado
pelas superfícies (imagens) e a forma de “ear-no-mundo” de que quem em superfície são
diferentes do pensamento eruturado pelas linhas (textos) e a forma de “ear-no-mundo” de quem
lê em linha.
Em função das diferenças entre eas duas eruturações de pensamento,
decorrentes das diferentes formas de ler e ear-no-mundo engendradas pelas linhas e pelas
superfícies, Flusser chamade hiórico ao pensamento de quem (e/ou conrói) as linhas,
e de a-hiórico, ao pensamento correspondente a quem lê (e/ou conrói) as superfícies.
33
32 DURAND, Gilbert. O imaginário: ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem. Rio de Janeiro: Difel, 2004, p. 10.
33 É importante destacar que, a construção dessas noções (histórico e a-histórico) não se refere diretamente ao conceito de a-histórico
proposto por Nietzsche (ver: NIETZSCHE, Friedrich. Segunda consideração intempestiva: da utilidade e desvantagem da história
para a vida. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003.) e nem pretende um alinhamento profundo a correntes desconstrutivistas, que
percorrem um caminho de desestabilização das definições tradicionais de história para abordá-la sob outros ângulos.
No caso de Vilém Flusser, esta articulação concerne mais propriamente às relações estruturais e temporais da leitura de meios
baseados na imagem ou na linha escrita. Ou seja, estas relações amparam-se principalmente nos aspectos formais – se é que se
pode dizer assim – de uma analogia traçada entre ler um texto, acompanhando-o linearmente, ponto a ponto, e seguir uma história.
Ele levanta a hipótese de que dessas diferentes formas de mediação decorrem diferentes maneiras de estabelecer relações entre
as informações, compreendendo os acontecimentos e que, naturalmente, isto se reflete na maneira de se perceber a história e
agir sobre ela. À resultante dessa transformação na interação com os acontecimentos e em sua mediação, Flusser chama de
pós-história, que culminaria numa interpenetração entre pensamento conceitual e imagético, em função inclusive do próprio
surgimento de novas mídias, da fusão entre elas e entre suas formas de leitura.
Porém, dentro do escopo pretendido pela abordagem de seu ensaio, Flusser não especifica em que termos as mudanças nas formas
de mediação afetam a história e nem o grau desses efeitos. Isto, aliás, é deixado em aberto pela proposição feita por ele: que tudo
que se fala sobre esse quadro futuro “[...] foi feito por meio de linhas escritas, e é portanto produto de um pensamento conceitual [...]”
(FLUSSER, 2007, p. 124) e por isso, não pode ser concebido, mas sim imaginado “[...] com esse novo tipo de imaginação que está
sendo formado.” (loc. cit.)

Para ele, o pensamento a-hiórico relaciona-se à eruturação o linear proveniente da superfície
mediadora de informações visuais, ou seja, a imagem. O pensamento a-hiórico seria eruturado
de forma sincrônica, tal como é a comunicação eabelecida pela imagem, que apresenta todo
seu conteúdo a um só tempo. A imagem não submete sua leitura a um encadeamento temporal
de uma sequência início-meio-fim. Sua configuração é baseada em simultaneidades, onde todos
os tempos eão no agora da imagem.
do outro lado da elaboração propoa por Flusser, earia a eruturação
de pensamento diacrônica, que corresponde por exemplo, a uma sucessão temporal como
a de uma hiória tradicional. Por se basear nesse tipo de configuração, o pensamento
que se desdobra linearmente é chamado de hiórico. O pensamento em linha (hiórico),
por eruturar-se pelo modelo impoo pelas linhas escritas, é um tipo de pensamento que
se suenta por uma sequência lógica, partindo de um início determinado em direção a um fim.
Vilém Flusser defende que no ocidente, tanto o conhecimento quanto o método utilizado para
se decidir sobre o que é verdadeiro ou falso sempre se eruturou conforme a organização
impoa por essas linhas.
O pensamento hiórico, ou seja, em linha, se desdobra de modo análogo à eruturão
conruída pelas grandes narrativas religiosas ou hióricas, os códigos jurídicos e os tratados
científicos, e por isso o filósofo atribui a ee pensamento um caráter oficial, que é por intermédio
dele que o ocidente representa e ordena toda a compreensão e relação entre as coisas. É por meio
das linhas escritas, ou melhor, por meio de uma erutura de pensamento linear que o ocidente
legitima todo tipo de separação e hierarquização, eabelecendo suas regras e valores oficiais.
O modo oficial de pensamento atribuído ao pensamento em linha no ocidente, e identificado
por Flusser, é confirmado por Roland Barthes, quando ee, ao comentar sobre o poder de
diinção e conformação conferido à palavra, arma que: “A Letra edita a Lei em nome da qual
toda extravagância pode ser controlada [...].
34
É ee poder de controle e diferenciação advindo
da palavra que permite ao pensamento linear dianciar, tanto imagem e palavra quanto quem
as produz, “dando respaldo à separação entre grafias e pintores, romancias e poetas.
35
34 BARTHES, Roland. O óbvio e o obtuso: ensaios críticos III. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990, p. 93.
35 BARTHES, Roland. O óbvio e o obtuso: ensaios críticos III. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990, p. 96.

Em contrapartida, as civilizações não-ocidentais nunca separaram as informações
(“as verdades”) fornecidas pela imagem, daquelas fornecidas pelos siemas de escrita, como se
pode observar na escrita ideogramática, claramente mais piórica, de vários povos orientais:
[...] o ideograma é conituído de partes que sugerem uma relação entre si; é uma
colagem onde cada elemento, trazendo ecos de sua forma original, contribui para a
formação de um novo significado; não é uma somatória, é um processo de aglutinação.
Talvez seja por isso que, enquanto expressão, extrapola o contexto linguíico e torna-
se elemento pláico, linguagem visual.
36
Um siema de escrita como o ideogramático supera o âmbito do eritamente linguíico e
também se expressa em uma dimensão pláica, extrapolando as limitações impoas pelo pensamento
hiórico comum ao ocidente, que sempre separou os termos pela lógica binária de ou [uma coisa] ou
[outra]’. Na civilização oriental a escrita é ‘[uma coisa] e [outra]’, ou seja, ela é interseção e aglutinação
entre visual e verbal. Barthes parece confirmar ea percepção ao explicar que na civilização oriental
o que é traçado é o que eá entre a escrita e a pintura.
37
Ou seja, o “traçadoé uma interseção
entre pintura e escrita, logo, pelo pensamento oriental, não sentido em pensar a anteposição do
texto sobre a imagem, que um comunga com o outro.
A hierarquização ocidental eabelecida entre todas as coisas e atividades exientes,
dentre as quais a literatura e a arte, assim como entre palavra e imagem, é decorrente da influência
do platonismo e seus desdobramentos sobre o modo de pensar adotado por nossa civilização.
Para Platão, a fonte e a finalidade última de toda presea no mundo o a verdade, o bem
e o belo. É impossível separar o belo da verdade e o bem supremo decorre da fusão indissociável
entre os dois primeiros termos: o belo é a face do bem e da verdade. Por ees ts critérios
interligados tem-se acesso à inteligibilidade, ordem sem a qual o mundo decairia no caos:
se não for verdadeiro, nada poderá ser tido como belo; fora da verdade, nenhum bem exiirá.
O universo e a conituição de todos os seres são governados por esse princípio, que apenas
pode ser diinguido por meio do exercício do inteleo ao atravessar a aparência sensível das
coisas. Quanto mais inteligível algo for, mais alto eará na escala do conhecimento que conduz à
luz da sabedoria (phronesis) e da inteligência (nous), com toda a intensidade que as forças humanas
são capazes de suportar”.
38
36 MEDEIROS, Afonso. Pictograma, ideograma, metáfora visual. 1996, p. 278.
37 BARTHES, Roland. op. cit, p. 96.
38 CAUQUELIN, Anne. Teorias da arte. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 31.

Esse princípio de unicidade inaura a busca de um modelo puro e superior como
referência, o qual não é encontrável no diverso, no heterogêneo, no brido, no sensível e nem
no confuso. Evidentemente privilegia-se a ideia e o pensar em detrimento do fazer, que o pensar
aproxima mais o homem do ideal pretendido do que o fazer, pois ee sempre envolve a relação
com a matéria, a qual por si é menos inteligível que o pensamento e portanto inferior.
Pelo viés da filosofia de Plao, ao implicar em fazeres, as atividades produtivas como
a arte, assim como todas as ciências e cnicas, são depreciadas por earem muito longe de atingir
o belo. Eas atividades são hierarquizadas através do logos (processo de separação racional entre
as coisas ao discernir caraeríicas diintivas entre elas e suas aparências) que julga o grau de
diância com que se encontram do belo e da verdade. Em A Reblica, livro X, 605 b, a poesia e
a pintura implantam “na alma dos indivíduos aconduta” e criam “fantasmas a uma diância
innita da verdade.”
39
Ea diância pode ser compreendida por exemplo, no intervalo entre uma
pintura de uma cama e a ideia ‘pura’ (essência) de cama: a cama pintada pelo artia é, segundo
esse pensamento, a imitação da aparência da cama feita pelo artesão que, por sua vez, é a cópia da
cama essencial (ideia) (596 b – 598 a). De acordo com o princípio de Platão, cabe à arte voltar-se
para a busca da unicidade (bem-belo-verdade) sob a tutela da razão, a qual deve empenhar-se na
discriminação da ilusão incondicionalmente trazida por qualquer forma de arte.
Ea diferenciação pela razão não se reringe apenas ao objeto pronto, mas abrange
também os meios utilizados. Graças à valorização do método, via organização, separação,
hierarquização e purificação, todas as artes manuais que não utilizassem cálculo nem raciocínio,
réguas nem medidas ou que se permitissem algum meio de improviso eram severamente rebaixadas.
Assim, ao se privilegiar o inteligível, a razão lógica é fixada pelo platonismo como centro motor
em torno do qual tudo orbita com maior ou menor diância, conforme o grau de pureza
com que se relaciona à sua essência.
Os veígios do siema fundado por Platão, ao qual seu sucessor (Arióteles,
século IV a.C.) deu continuidade, exercem influência sobre a produção artíica até hoje.
Io não se reringe apenas ao campo da arte, mas de modo mais amplo, à eruturação
do pensamento ocidental e à maneira como o próprio ocidente se eabeleceu. Com as
transformações hióricas, o declínio da civilização greco-romana e expansão do criianismo,
39 apud: CAUQUELIN, Anne. Teorias da arte. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 29.

a interpretação dada pelos neoplatonias ao pensamento de Platão faz com que a arte não
mais se submeta à tríade das ideias e se eleve, ela mesma, ao nível das formas ideais.
O mais famoso e influente dos eudiosos desse período é o Tos de Aquino, que empreendeu
um grande esforço de conciliação entre o racionalismo e as verdades da em sua Summae
eologiae, que foi incorporada como filosofia oficial da Igreja Calica Romana por volta dos
séculos XIII e XIV.
40
Dentro do neoplatonismo, o princípio de avaliação da verdade por meio
da inteligibilidade é desvencilhado da arte, que passa a ser encarada como via para a compreeno
do cosmos, por meio da conjugação entre a ideia e o sensível presentes nas obras de arte.
Nee siema, o belo torna-se a forma ideal manifeada através da arte, que é elevada à condição
de meio para revelação de Deus e do espírito.
41
Boa parte dos regiros do pensamento de Plao (assim como de Arióteles), perdidos
durante toda a Idade Média, apenas seriam redescobertos no Renascimento.
42
A partir desse
momento há um novo inveimento na razão, que teria sua importância reforçada ao longo dos
últimos cinco séculos pelo acréscimo de novas teorias e interpretões. O desenrolar dee processo
no ocidente culminaria no Iluminismo, com sua no poder da ciência e na capacidade da razão
de sempre lançar sua luz sobre o que - do seu ponto de via – é tido como obscuro, supericioso
ou ininteligível, para que em função de uma nalidade superior, se aponte o caminho melhor:
o mais lógico.
Curiosa forma de orientação, que entre os termos de qualquer queão, ao assinalar
a necessidade da “melhor” escolha, imediatamente eabelece um jogo de hierarquias em função
de um ideal exterior a ees termos. Nesse jogo, para que se decida sobre a melhor respoa, a razão
é chamada ao centro do processo. O todo complexo, tendo excluídas todas as suas ambiguidades,
particularidades, disparidades e hibridismos, é separado em partes mais simples, que serão ordenadas
em uma grande cadeia de pares complementares. Sempre, entre cada um dos dois integrantes dessas
séries de pares, haverá um com valor positivo e, portanto superior ao seu opoo, sendo assim,
o escolhido. Da avaliação e seleção do conjunto desses elementos positivos resultantes, é que a
rao apontará a (melhor?) respoa. Porém, abre-se uma queão: o que (ou quem) determina o que
é positivo ou negativo dentre os integrantes desses pares? Nessa queão pode-se entrever a grande
40 Cf. DURAND, Gilbert. O imaginário: ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem. Rio de Janeiro: Difel, 2004, p. 12.
41 Cf. CAUQUELIN, Anne. Teorias da arte. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 32-34.
42 CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 1995, p. 46.

sombra do platonismo pairando ainda hoje. O juízo de valor é sempre feito com base no grau
de proximidade com que cada integrante dos pares de opoos se coloca de uma referênca ideal,
a qual pode ser permutável em diversos sentidos absolutos como pureza, verdade, universalidade,
belo, juiça, bem, essência, exatidão, objetividade, ordem, clareza, Deus, masculino, etc.
De acordo com Gilles Deleuze
43
, ees sentidos absolutos são a ideia fundadora, ao redor da qual o
platonismo eabelece dois tipos de imagens diintivas conforme o grau de semelhança que guardam
dea ideia: de um lado, as pias-ícones seriam imagens que guardam boa semelhança com a ideia
e logo, superiores. Do outro lado eá uma infindável série de simulacros-fantasmas, que mesmo
ainda possuindo alguma semelhança aparente (enganosa) com o ícone, são conruídos através
da dissimilitude, incorrendo em uma perversão do modelo e desvio da essência, sendo portanto,
representações inferiores. É eabelecido assim “[...] o domínio da representação preenchido pelas
cópias-ícones e definido não em relação extrínseca a um objeto, mas numa relação intrínseca
ou fundamento.
44
Sob tal domínio, não lugar para híbridos, para sobreposições, heterogeneidades
ou simultaneidade e portanto, é tarefa primordial eabelecer separações nítidas entre
as coisas. Eas separações tem sempre como referência uma identidade preliminar ideal,
um fundamento ou mais abratamente, um centro xo que norteia toda a erutura
de julgamento. Dentre os milhares de princípios ordenadores, eá o que circunscreve o que
é texto e o que é imagem. Dea atribuição de identidades xas, e obrigatoriamente separadas,
pode-se deduzir o porque da dificuldade da civilização ocidental em aproximar texto e imagem.
Pensando sobre a presença das palavras na pintura, Michel Butor identifica a maneira com
que ea civilização aparta nitidamente o verbal do visual:
As palavras na pintura ocidental? Levantada a queão, percebe-se que são
inumeráveis, mas que praticamente não são eudadas. Interessante cegueira, pois a
presença deas palavras, de fato, arruína o muro fundamental conruído por nossas
concepções sobre letras e artes.
45
43 Cf. DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 1974, p. 262.
44 DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 1974, p. 264.
45 BUTOR, Michel. Les mots dans la peinture. Paris: Flammarion, 1969, p. 5. apud: MELENDI, Maria Angélica.
Imagens e palavras. in: ALMEIDA, Maria Inês de (org.). Para que serve a escrita? São Paulo: EDUC, 1997, p. 34:
Des mots dans la peinture occidentale? Dès qu’on a posé la question, on s’aperçoit qu’ils y sont innombrables, mais qu’on ne les a
pour ainsi dire pas étudiés. Intéressant aveuglement, car la présence de ces mots ruine en effet le mur fondamental édifié par notre
enseignement entre les lettres et les arts.“ (Esta tradução e todas as outras que aparecem no trabalho foram feitas pelo autor, exceto
quando indicado de outro modo.)

O recalque deas palavras pela hiória da arte abre espaço para se pensar sobre
o temor da civilização frente à profusão de sentidos da imagem. Para reringi-la, ea civilização
tentou circunscrever a imagem a uma linguagem de cunho exclusivamente inico, ressaltou sua
diferença em relação ao texto e provocou seu dianciamento do devir infinito de uma leitura mais
ampla (e sincrônica).
46
Ea tentativa advém do processo de ordenação de todo devir ao Mesmo,
tornando-o Semelhante. Ou seja, ee é o imperativo fundamental que norteia ee siema de
pensamento. O enquadramento de toda profusão de sentidos, submetendo-a à validação por
apenas um único verdadeiro possível. Mas como não consegue totalmente, desconhece ee devir,
assim como torna invisíveis’ as palavras na pintura, tal é o objetivo platonia de fazer triunfar
os modelos.
47
Mas não baa separar, é necessário também classificar, hierarquizar, medir a que
diância enfim, cada coisa se coloca da ideia de verdade. Portanto, am da separação, também
uma hierarquização entre imagem e texto. Se o centro do pensamento ocidental ergue-se pela
supremacia da ideia, entre dois termos palavra e imagem logicamente, nee siema prevalece
o termo tido como mais próximo ao centro. As palavras escritas podem não guardar relação de
semelhança com seu significante, porém, remetem diretamente à fala, que dentro dee siema é
tida como mediadora mais inteligível da ideia.
48
Pela eruturação da leitura das palavras conforme
sucessões sinticas lineares, seu sentido obedece a uma ordem discursiva ordenada, ou seja,
que parte de um princípio em direção a um fim. A imagem, apesar de sua semelhança com o
representado, o se prea a uma leitura ordenada por um único vetor gico como no caso das
palavras. Eas inclusive, são sempre invocadas para explicar” a imagem, livrando-a de uma perigosa
profusão interpretativa, que deve ser evitada em um siema que visa sempre a unidade, o Um.
46 Cf. MELENDI, Maria Angélica. Imagens e palavras. in: ALMEIDA, Maria Inês de (org.). Para que serve a escrita? São Paulo: EDUC, 1997, p. 34.
47 Cf. DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 1974, p. 264.
48 Em sua obra, Gramatologia, Jacques Derrida identifica dentro da civilização ocidental e, de uma maneira mais específica, na filosofia
de orientação metafísica, uma tendência a valorizar a fala em detrimento da escrita. De acordo com o filósofo francês, essa
posição associa uma ligação mais direta entre a fala e “o que se quer dizer”, identificando uma presença mais nítida da ideia
na enunciação verbal, que sempre poderá ser reiterada e esclarecida por novas explicações e novas enunciações. Dentro desse
sistema de pensamento, em contrapartida, a ideia “pura” ao ser submetida à adequação exigida pela escrita, por mais que se
observe os critérios de clareza, está sujeita a distorções do meio escrito e à interpretação. Isso leva a avaliar a escrita, por
tratar-se de uma ausência seja do autor, seja da ideia como sempre incompleta, e portanto inferior à fala. À esta valorização
da palavra falada identificando-a diretamente com a ideia, Derrida chama de fonocentrismo, sendo que o fonocentrismo é
logicamente subordinado ao logocentrismo, ou seja, a valorização da ideia e da razão como eixo de toda estruturação do
pensamento. É este mesmo logocentrismo que por dar primazia à ideia, apesar de ressaltar a importância da fala sobre a escrita,
ainda identificará na escrita um meio mais “confiável” de expressão do sentido e portanto mais aceitável do que a imagem.
(DERRIDA, Jacques. De la Grammatologie. Paris: Les Éditions de Minuit, 1967.)

Entretanto, a imagem, “[...] que não pode ser reduzida a um único argumento verdadeiro’ ou
falso’ formal, passa a ser desvalorizada, [como] incerta e ambígua.
49
E como lugar para uma
verdade, a imagem, por sua inerente profusão de sentidos, é desqualificada perante as palavras.
Já eas, as palavras, por sua capacidade de encadear-se no enunciado claro de um silogismo e em
favor da inteligibilidade, obtêm mais crédito que as imagens, uma vez que o critério máximo do
pensamento da civilização ocidental suenta-se na clareza e precisão racionais.
Contudo, apesar da eruturação dee pensamento, que não apenas separou texto
e imagem, mas também atribuiu um maior valor ao texto, subordinando a imagem a um atus
inferior de representação, houve toda uma grande evolução e expansão dos meios de produção e
difusão das imagens. Como foi apontado, Flusser refere-se, através do nome de superfície, não
apenas à imagem, mas também a seus meios de difusão. A atribuição dee termo à imagem tem
o intuito da deacar uma oposição erutural em função da diferença na maneira com que se lê
uma imagem da de um texto, para o qual ele utiliza o nome de linha. Apesar da adoção da linha
como meio oficial de representação e eruturação do pensamento no ocidente, as superfícies (as
imagens e seus meios de difusão) eão cada vez mais presentes no cotidiano, ganhando imporncia
crescente. Espalham-se por todos os lugares, desde simples porta-retratos sobre a escrivaninha
ou mesas de cabeceira, às telas de tv, de cinema e os cartazes. As superfícies propagam-se
pela mídia impressa - região privilegiada das linhas tipogficas na “Galáxia de Gutenberg”
50
sob a forma de revias, livros, panfletos e jornais cada vez mais ilurados, que também podem
ser codificados, transmitidos e então reproduzidos a milhares de quilômetros do original, nas
superfícies de folhas contínuas de fax ou ginas impressas a laser. As superfícies compõem
a propoa pedagógica de enciclopédias, cartilhas, manuais, livros didáticos, apresentações
multimídia ou atlas onde se mapeia em variações de ordem anatômica, geogfica, aronômica
ou microscópica. As superfícies diribuem-se em um mosaico multicolorido de cores e formas
vibrantes nas gôndolas dos supermercados, provocando o desejo dos consumidores, menos pelos
produtos do que pelas imagens que os embalam. As superfícies eão, naturalmente, no plano da
obra de arte, como será melhor abordado mais adiante. As superfícies expandem-se em grandes
dimensões nos outdoors publicitários que margeiam o tráfego nas ruas das cidades e serializam-se em
49 DURAND, Gilbert. O imaginário: ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem. Rio de Janeiro: Difel, 2004, p. 10.
50 MCLUHAN, Marshall. A Galáxia de Gutenberg: a formação do homem tipográfico. São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1972.

lambe-lambes que disputam espaço com os grafites nos muros deas mesmas cidades. As superfícies
brilham nos monitores de computador, nos dispositivos eletrônicos portáteis, em displays de crial
líquido nas vitrines, nos aeroportos, eações, salas de espera, halls de entrada, corredores de saída,
plataformas de acesso, aviões, navios, ônibus, trens, elevadores e, até, nas portas das geladeiras ditas
inteligentes.
51
As superfícies ofuscam multies em imensos paiis eletrônicos que se erguem em
eádios e escalam as fachadas dos prédios.
Além dea difusão cada vez maior das superfícies, propiciadoras de uma representação
imagética e a-hiórica, também houve uma ampliação das possibilidades pláicas de manipulação
visual dos textos e signos alfabéticos neas superfícies, fazendo surgir linguagens bridas,
impregnadas pelas miuras entre palavra e imagem. Um exemplo dio é a edição eletrônica de
textos e imagens em softwares gráficos. Em jornais, no tempo em que se utilizava a tipografia para
compor as informações, as possibilidades técnicas de interação entre os tipos e as imagens eram
mais limitadas, fazendo com que a delimitação entre a mancha de texto e as áreas reservadas para
imagens fosse mais definida. Atualmente, a manipulação digital permite o apenas a sobreposão
entre textos e imagens, mas toda forma de variações dos textos, alterando seus tipos, dimensões
51 ZAMBIAZI, Saulo Popov. Ambientes inteligentes. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina/Programa de pós-graduação
em ciência da computação, 2002, p. 16-17.
FIGURA 015 - SUPERFÍCIES
Da esquerda para a direita: cartaz anunciando montagem de peça com a atriz francesa, Sarah Bernardt; Capa da revista americana
Esquire, intertextualizando outra superfície, a TV, com a imagem do assassinato de Harvey Lee Osvald; película de acetato com negativo
de lme para revelação em cores; fotograma do lme Blade Runner - O caçador de androides”, em que a parede de um prédio do
futuro incorpora um grande painel eletrônico publicitário; e à frente, um aparelho celular que, com conexão à internet e visor de cristal
líquido colorido, pode receber e exibir imagens digitalizadas de, praticamente, todas as outras mídias, e retransmiti-las, assim, como
também transmite as imagens de sua própria câmera.

e cores, diorcendo-os ou fundindo-os com outros elementos da gina. A tradicional diribuição
do contdo em colunas nas páginas de jornais, ainda presente na grande maioria dos periódicos,
tende cada vez mais a pulverizar-se: texto e imagens invadem-se e fundem-se, fazendo com que
a leitura passe de uma única possibilidade linear, ditada pela erutura do texto, para tornar-se
uma leitura circular, onde exie uma profusão de possíveis sentidos de leitura. Nesse aspeo,
pode-se compreender a página do jornal como caminhando para tornar-se uma grande superfície
visual, pela flexibilização de sua erutura de leitura, que cada vez torna-se mais pxima da leitura
em superfície do que da leitura em linha.
Dessas transformações no emprego da palavra e suas novas possibilidades de relação
com a imagem, pode-se pensar que a palavra, apesar de sua função primária em nossa civilização
como guardiã do sentido e da verdade, percorre também o caminho não da linguagem, mas
da escrita, não da comunicação, mas da significância: aventura que se situa à margem
das pretensas finalidades da linguagem, e, juamente por isso, no centro de sua ação.
52
Ea expansão da palavra para além de seus limites originais e a crescente inundação de
imagens parecem coincidir com o esgotamento das grandes narrativas e do conceito positivia
de progresso. Aliada à fragmentação, à fusão entre abordagens e ao declínio das ideias de hiória
52 BARTHES, Roland. O óbvio e o obtuso: ensaios críticos III. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990, p. 94.
FIGURA 016 - SOBREPOSIÇÃO
Cartaz para peça de teatro em que parte das letras do
título são, ao mesmo tempo, caracteres alfabéticos e recortes
de folhas de papel manuscritas. Junto a isto, a grande
superfície azul escuro e o restante do título, levemente borrado,
ampliam as incertezas sobre o que é figura e o que é fundo,
tanto quanto sobre o que é escrita e o que é imagem nesta
composição.
François Caspar. Cartas de Elisabet Vogler a seu lho, 2003
serigraa s/ papel, 175 x 120 cm.
(FOSTER, 2006, p.17)

e progresso pautados no iluminismo fundado numa visão eruturada na sucessão linear dos fatos
essa amplião das fronteiras para a palavra ocorre paralelamente ao desdobramento da modernidade
para o que se tem por referência chamar de pós-modernidade. Seria a diversidade presente no advento
do pós-modernismo uma das resultantes da expansão deas mesmas imagensltiplas? Ou seriam
as imagens, em crescente grau de importância e presença, um fruto da condição pós-moderna?
53
Parece haver aqui um dualismo, em que se busca origens para apontar desdobramentos. No entanto,
pela própria natureza do tema que se aborda, seria melhor não agir determiniicamente, tendo
de escolher entre uma coisa ou outra, pois causa e consequência mesclam-se nessa queão.
A relação da arte com a hiória se em um nível muito mais de ressonância, entre
alinhamentos e diverncias, que de sujeão de uma pela outra. Tomando Milan Kundera:
“[...] a arte não exie para ilurar a hiória e muito menos para engajarse em transformá–la;
54
e mesmo a própria hiória não tem como ser contada de forma isenta ou universal. A hiória é
um recorte, uma interpretação, que utiliza a linguagem para lançar seu foco sobre determinados
objetos e excluir outros. Nesse processo de conrução representativa em busca da(s) realidade(s)
a hiória possivelmente se cruza com a arte, a qual, “[...]fundadora de sua própria realidade[...]”
55
é real na obra. A obra é real no mundo, porque se realiza, porque ela ajuda a sua realização e
53 “A condição pós-moderna” é o título de um livro escrito por Jean François Lyotard na década de 1970, com considerações sobre as
progressivas alterações nas estruturas econômicas, políticas e filosóficas a partir do pós-guerra, e que se tornariam mais perceptíveis
na década de 1960. Em 1989 outro autor, David Harvey, retoma este título em seu livro para abordar o mesmo tema. De maneira
geral, tanto um quanto o outro identificam na Pós-Modernidade um período de grande compressão espaço-temporal pressionada
pela aceleração no ciclo de produção e descarte capitalista. Desse processo resultam crescente diversificação e efemeridade em
todas as áreas da civilização – do pensamento ao consumo, da cultura ao estilo de vida, do trabalho à religião, dos relacionamentos
aos esquemas familiares – de maneira que os sentidos de permanência e unicidade tendem a ceder terreno para a volatilidade e a
fragmentação.
Simultaneamente, um imenso crescimento da produção de imagens e signos, que se sobrepõem e substituem uns aos outros
aceleradamente. Nessas sociedades cada vez mais midiatizadas, impulsionadas pela inflação de imagens e sua intermitência, há
uma crise da representação relacionada ao constante deslocamento dos sentidos entre o que representa e o que é representado.
Essa desreferencialização faz com que boa parte do esquema de estruturação e validação do pensamento, que antes convergia
em torno da idéia de um eixo fixo, se volte para uma miríade de referenciais em permanente movimentação. Sob a ação dessas
forças, todo o sistema parece curvar-se em uma espiral que se autoalimenta, pois o descentramento do pensamento propicia uma
multiplicação das imagens, e estas, contribuem para a desestabilização deste.
Apesar do contexto pós-moderno ser bastante discutido, não existe um consenso sobre um termo para se referir a ele e, assim,
alguns autores preferem evitar o nome cunhado por Lyotard. O sociólogo polonês Zygmunt Bauman atualmente utiliza “modernidade
líquida”, para expressar a realidade fluida e multiforme da contemporaneidade, onde conceitos fixos tendem a se diluir, fazendo
lembrar a máxima de Marx, ‘tudo o que é sólido desmancha no ar.’ Gilles Lipovetsky prefere o termo “hipermodernidade” por
considerar não ter havido uma ruptura com a modernidade como sugere o prefixo ‘pós’. Segundo este filósofo francês, fatores
vividos na atualidade, tais como o individualismo, consumismo, a fragmentação do tempo e do espaço são uma exacerbação de
características já presentes nas próprias sociedades modernas. E o filósofo alemão, Jürgen Habermas, um dos principais herdeiros
da Escola de Frankfurt, associa o conceito de Pós-Modernidade a correntes políticas e culturais neoconservadoras, empenhadas em
desfazer-se dos ideais iluministas, os quais, ainda seriam passíveis de serem alcançados, repensando-se e dando outros rumos à
Modernidade, proclamada por ele como “Um projeto inacabado”.
54 KUNDERA, Milan. A cortina. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 67.
55 BLANCHOT, 1997 apud LEVY, Tatiana Salem. A experiência do fora Blanchot, Foucault e Deleuze. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003, p. 19.

terá sentido no mundo onde o homem será por excelência.
56
Assim, arte e conjuntura hiórica
engendram–se e contaminam–se, eão e não eão a deslizarem–se uma na outra, mas não se pode
reduzir io a um processo de subordinação objetiva.
Parece óbvio dizer que as imagens o polismicas por natureza, ou seja, não se fecham
a uma única interpretação. Mas io não ocorre apenas com as imagens, pois a palavra também
traz ea multiplicidade, principalmente a literia. Maurice Blanchot ao falar da pluralidade da
palavra e do pensamento que ela transporta, deixa claro a necessidade de se romper o círculo criado
pelo fascínio da unidade”
57
, onde sempre se busca uma ntese, um sentido unívoco e contínuo,
para que então cheguemos a propor e a expressar uma “palavra plural
58
, galgada na fragmentão,
na descontinuidade e na sobreposição. Desse modo, pensar os conceitos de texto e imagem como
separados e hierarquizados, sem, no entanto, se debruçar sobre suas possibilidades figurais de
hibridação, provavelmente implica num fechamento das oportunidades de lidar com o pensamento
e o contexto em que vivemos. Afinal, presencia-se um período de expansão das superfícies e por
intermédio da inundação das imagens propagadas por eas superfícies, tamm se difunde uma
erutura a-hiórica de pensamento. Um pensamento que o mais segue a linha com sua lei
impoa pela Letra. A porque essa lei apenas permite alguma margem de contextação dentro dos
mesmos caminhos eruturados na linha.
Na proporção em que as imagens se fazem mais e mais presentes, o pensamento
a-hiórico que se articula trança seus próprios fios num contínuo-descontínuo, simultaneamente
em várias direções, lançando-se como uma rede de conexões onde o que é centro ou origem tem cada
vez menos relevância. Na ausência de um vetor lógico a seguir, a tessitura, em rearranjo conante
desse pensamento livre de narrativas fixas, mora-se muito mais adequada na apreensão da realidade
das superfícies que nos rodeiam do que o pensamento em linha. Como reflexo (e também causa)
disso, vários artias e escritores, ao explorarem as fronteiras entre palavra e imagem, convergiram
uma sobre a outra, diluindo suas marcas divisórias e expandindo suas possibilidades de significação.
Para entender melhor ea movimentação, propõe-se retomá-la, a partir do nal do século XIX,
quando as separações entre imagem e palavra na cultura ocidental, pelo menos no âmbito da arte
e da literatura, começaram a ser poas em cheque.
56 BLANCHOT, 1997 apud LEVY, Tatiana Salem. A experiência do fora – Blanchot, Foucault e Deleuze. Rio de Janeiro: Relume Dumará,
2003, p. 25-26.
57 BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita – 1: a palavra plural. São Paulo: Escuta, 2001, p. 141.
58 BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita – 1: A palavra plural. São Paulo: Escuta, 2001.

1.3. Palavras na arte – dos cubistas à contemporaneidade
[...] propôs-se que, sendo as palavras apenas nomes para
as coisas, seria mais conveniente que todos os homens
trouxessem consigo as coisas de que precisassem falar
ao discorrer sobre determinado assunto [...] cujo único
inconveniente residia em que, se um homem tivesse de
falar sobre longos assuntos e de várias espécies, ver-se-ia
obrigado, em proporção a carregar nas coas um grande
fardo de coisas, a menos de poder pagar um ou dois criados
robuos para acompanhá-lo.
Jonathan Swift
Se, a o final do culo XIX, ainda vigorava o pensamento que delimitava as margens
do leito onde corriam separados os caudais da imagem e do texto, a partir de então, artias e
poetas lançaram remos de novos experimentos sobre ambos os fluxos. Essa travessia desaguou no
grande euário para onde palavra e imagem, tessitura e erutura, linha e superfície afluíram sob
uma infinidade de mesclas e significações. Dos primeiros experimentos com o texto e imagem
podemos tomar, como exemplo nas artes pláicas, as colagens cubias de Georges Braque e Pablo
Picasso, pela apropriação de fragmentos de impressos e a reprodução de letras e palavras em suas
pinturas. Em paralelo, na poesia, uma tomada de consciência em relação à visualidade dos
signos linguíicos e do espaço da página, como é o caso da poesia visual de Stéphane Mallar
e dos caligramas de Guillaume Apollinaire.
Todos eles tiveram contato com a produção gfica do nal do século XIX,
afetada pela rápida transformação dos processos, das linguagens e da proliferação de novas
famílias tipográficas.
59
Junto a isso, o encurtamento das diâncias pela comunicação e
pelos transportes contribuiu para novas percepções das relações espaço/temporais naquela
época, refletindo numa expansão da sensibilidade criativa para o simultaneísmo. A colagem
de fragmentos de letras, partituras, tíquetes e jornais, interagindo com outros elementos na
59 VENEROSO, Maria do Carmo de Freitas. O diálogo imagem-palavra na arte do século XX: as colagens cubistas de Pablo Picasso e
sua relação intertextual com os caligramas de Guillaume Apollinaire In: ALETRIA: Revista de Estudos da Literatura. Belo Horizonte:
Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários, v.14, jul.-dez. 2006, p. 148-149.

obra de arte cubia, conferiram textura ao quadro por sua ênfase no aspeo formal e pláico
de imediato (Fig. 018). Mas também expressam uma preocupação de ordem contextual
60
, pelo
menos nos papiés collés de Picasso, que é possível identificar certa seleção nos fragmentos
de jornais empregados pelo artia no tocante aos temas das nocias. O condicionamento das
letras ao plano acentuava o caráter de superfície da tela, rompendo com a pintura tradicionalmente
ilusionia/representativa e suas profundidades fiícias, aando ea arte a uma dimeno
gráfica, onde os signos verbais, arrancados de seu contexto funcional de comunicação, ganham
autonomia enquanto uma realidade em si, permitindo-se serem perpassados por múltiplos
e novos significados.
61
Com seu poema Un Coup de Dés, de 1897 (Fig. 019), Stéphane Mallarmé converge o visual
e o verbal. Além de empregar, como recurso visual, o uso de diferentes famílias tipográficas e
uma composição, na qual a valorização dos espaços em branco da página impressa quebra
a continuidade linear das frases, Mallarmé tamm rompe com a pontuação e a sintaxe para
eruturar espacialmente as relações entre as palavras. Por meio da fragmentação prismática das
60 VENEROSO, Maria do Carmo de Freitas. O diálogo imagem-palavra na arte do século XX: as colagens cubistas de Pablo Picasso e
sua relação intertextual com os caligramas de Guillaume Apollinaire In: ALETRIA: Revista de Estudos da Literatura. Belo Horizonte:
Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários, v.14, jul.-dez. 2006, p. 152-153.
61 Cf. VENEROSO, Maria do Carmo de Freitas. O diálogo imagem-palavra na arte do século XX: as colagens cubistas de Pablo Picasso
e sua relação intertextual com os caligramas de Guillaume Apollinaire In: ALETRIA: Revista de Estudos da Literatura. Belo Horizonte:
Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários, v.14, jul.-dez. 2006, p. 150.
FIGURA 017 - HOOD’S SARSAPARILLA
Anúncio, litograa, 1884.
Texto e imagem foram desenhados à mão e impressos
através de litograa em cores.
(LUPTON, 2006, p. 6)

ideias, os elementos do poema ganham autonomia, sem deixar de se relacionar no conjunto,
o que revela a ateão do poeta ao potencial do aspeo espaço-temporal na geração de sentidos.
A crítica considera ee poema como uma das primeiras manifeações literárias ocidentais a reconruir
a ponte entre imagem e palavra.
62
Sendo assim, Mallarmé pode ser vio como um dos primeiros
a cruzar as margens que separam texto e imagem, operando na fronteira entre o fazer do poeta
e o fazer do artia pláico.
62 Cf. VENEROSO, Maria do Carmo de Freitas. Caligrafias e escrituras: dialogo e intertexto no processo escritural nas artes no século XX.
Belo Horizonte: Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, 2000, p. 96.
FIGURA 018 - FRAGMENTOS DE ESCRITAS
Pablo Picasso, Copo e garrafa de Suze, 1912
Jornal colado, guache e carvão
65,4 x 50,2 cm.
(MORLEY, 2003, p. 43)
FIGURA 019 - ESPACIALIZAÇÃO DA ESCRITA
Stéphane Mallarmé, Un coup de dés jamais n’abolira le hasard, Paris,1914, (página dupla).
(MORLEY, 2003, p.31)

Seguindo pelo mesmo território redescoberto por Mallarmé, mas com suas pprias
caraeríicas e influências, podemos encontrar o trabalho de Guillaume Apollinaire que, através
da composição espacial com palavras, da abolição de nexos sintáticos e da pontuação, juapõe a
dupla realidade da escrita, assumindo-a como veículo de transcrição da fala, mas também como
dotada de uma dimensão visual. Seus poemas são fragmentados, colando e sobrepondo frases,
desenhando imagens em que o apenas o sentido das palavras explode simultaneamente em várias
direções, mas também eabelece relações complexas com os objetos representados. Seu poema
Lettre-Océan (Fig. 020) articula-se em um conjunto pláico e tipográfico pelo forte algama
do desenho com os elementos escritos.
Publicado no número 15 de Soirées de Paris em 1914
63
, o poema foi considerado por
críticos como G. Arbouin, como ideogfico e revolucionário, “[...] porque é preciso que nossa
inteligência se habitue a uma compreensão sintético-ideográfica, e não analítico-discursiva”
64
Ea armação de Arbouin, que opõe dois tipos de compreensão e reforça a importância de um
raciocínio visual, parece antecipar em mais de meio século a fala de Flusser sobre o pensamento
em linha e o pensamento em superfície. Io indica que a inquietação da crítica em relação
à separação ocidental entre discurso e forma, em conjunto com a tentativa de elaborar meios
de compreensão do novo contexto de simultaneísmos e juaposições que emergia, acontecia
há baante tempo, paralelamente às inveigações artíicas e literárias dessa ordem.
63 Cf. DELBREIL; DININMAN; WINDSOR. Lettre-Ócean apud VENEROSO, Maria do Carmo de Freitas. O diálogo imagem-palavra na arte do
século XX: as colagens cubistas de Pablo Picasso e sua relação intertextual com os caligramas de Guillaume Apollinaire In: ALETRIA:
Revista de Estudos da Literatura. Belo Horizonte: Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários, v.14, jul.-dez. 2006, p. 156.
64 ARBOUIN apud DELBREIL; DININMAN; WINDSOR. Lettre-Ócean loc. cit., p. 156.
FIGURA 020 - CALIGRAMA
Guillaume Apollinaire, Lettre-Océan, 1914.
Impressão tipográca sobre papel.
(Aletria, v. 14, jul. – dez. 2006, p. 155)

Paul Klee (Fig. 021) rompe a hierarquização entre signos lingicos e representão visual
ao apresen-los no mesmo espaço. Figuras e letras são ao mesmo tempo escrita e formas
que podemos nomear e reconhecer, e são dispoas sobre a tela como as linhas de um texto.
Na sua pintura é abolida a subordinação do signo à forma.
Na obra de René Magritte (Fig. 022) vamos encontrar a presença conante de palavras
e frases ligadas aos elementos pláicos. O próprio artia afirma que Pode-se criar entre as
palavras e os objetos novas relações e precisar algumas caraeríicas da língua e dos objetos,
geralmente ignoradas na vida cotidiana.”
65
Para ele, as palavras podem subituir uma imagem e a
imagem pode tomar o lugar de uma palavra: “Num quadro as palavras são da mesma subância
que as imagens.
66
No contexto brasileiro, o concretismo inaugura a discussão acerca da visualidade da
palavra na poesia. A superfície da página, se torna, assim, agente para a conrução do sentido
sonoro e pláico da palavra na criação de poemas. Para os poetas concretias, a composição era
o importante quanto o sentido das palavras, pois através de todos ees elementos é que afloraria
a essência do poema. Mas mais do que a propoa dos poetas concretias riu sensu, seria lido
abrir a percepção para seus frutíferos desdobramentos, abrangendo também um território mais
amplo, onde se situa a poesia visual.
65 FOUCAULT, Michel. Isto não é um cachimbo 4. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1988, p. 50.
66 FOUCAULT, Michel. Isto não é um cachimbo 4. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1988, p. 51.
FIGURA 021 - COEXISTÊNCIA
Paul Klee, Villa R, 1919.
Óleo s/ cartão, 26,5 x 22 cm.
Na paisagem do artista, formas e signos não
estão necessariamente subordinados.
(PARTSCH, 2003, p. 45)

Esses são alguns fluxos de trabalhos baante eudados, mas que sempre convidam
a novos aprofundamentos. Além deles, pode-se encontrar muitos outros na hiória da arte,
como as composições gráficas futurias de Tommaso Marinetti e Carlo Car, a série com
números de Jasper Johns, o letrismo de Isidore Isou e, principalmente, a partir da arte pop em
meados do século passado, um contingente cada vez maior de artias que lançaram mão do
texto como recurso pláico-expressivo, como é o caso da escritura em Cy Twombly e a crescente
importância da palavra nos trabalhos de diversos artias da arte conceitual, como Joseph Kosuth.
Nesse aspeo, a arte contemporânea é cenário vao de inveigações dea natureza, onde se
eabelece um dlogo cada vez mais variado entre elementos, técnicas e abordagens.
FIGURA 022 - René Magritte, A interpretação dos sonhos, 1927.
Óleo s/ tela, 38 x 55 cm.
Nesta composição, a única forma que obedece ao signicado da palavra que lhe serve de legenda é a esponja.
(MORLEY, 2003, p.87)

1.3.1. Escritura
Quem escreve (quem pinta, esculpe, compõe música)
sempre sabe o que eá fazendo e quanto isso lhe cua.
Sabe que deve resolver um problema. Pode acontecer que
os dados iniciais sejam obscuros, pulsionais, obsessivos,
não mais que uma vontade ou uma lembrança. Mas depois
o problema resolve-se na escrivaninha, interrogando a
matéria sobre a qual se trabalha matéria que possui
suas próprias leis naturais, mas que ao mesmo tempo traz
consigo a lembrança da cultura de que eá embebida (o
eco da intertextualidade).
Umberto Eco
Ee eudo inicia-se tentando abranger as definições de tessitura e como ela se
conitui no plano da imagem e do texto. Enquanto na primeira ela pode ser encarada como
o próprio plano, no segundo, a tessitura relaciona-se mais ao caráter erutural do texto.
As conclusões sobre esse termo acabam levando em conta a maneira como texto e imagem o
percebidos, remetendo ea inveigão às ideias de Vilém Flusser sobre texto e imagem como duas
formas diferentes de comunicação. Seus conceitos de “pensamento hiórico”, ligado à linearidade
inerente à leitura de um texto, e “pensamento em superfície”, mais próximo do modo rizomático com
que se lê uma imagem, sem dúvida, fazem sentido quando se aborda as relações entre palavra e imagem
de forma hierárquica e mais dicotômica. Condição lida como o eudo sobre as relações entre
a ilurão e o texto, entre o tulo e a obra ou, ainda sobre a ecfrase e todas as formas de descrição de
imagens, sobre a tradução de textos em imagens, sobre o discurso da crítica a respeito da imagem, etc.
Porém, no caso específico tratado nea pesquisa, ou seja, quando o texto é tratado também como
imagem, a relação hierárquica conrda pela divisão entre a palavra e a imagem se enfraquece.
Disso, o que parece ear um pouco à sombra dos conceitos usserianos é que, como compreendido nee
eudo, os limiares entre texto e imagem são muito mais tênues do que a separação dos dois tipos de pensamento
(em linha e em superfície) propõe. Assim, a exclusividade de uma abordagem em linha ou em superfície
encaixar-se-ia melhor, quando elaborada a partir de obras de arte e textos, declarada e exclusivamente,
verbais ou visuais, eranhos à revolução principiada com Mallar e com as composições
e colagens cubias.

Ao romper a linearidade do texto escrito, espalhando os significantes no espaço da
página, Mallarmé revelou uma erutura (tessitura) que não tem apenas um sentido único de leitura,
mas que é também visual, ao passo que Picasso e Braque recuperaram o cater pláico da palavra
e do texto em seus papiés collés. Desde então, com esse resgate de possibilidades, as palavras, na
grande maioria dos trabalhos literários ou artíicos do ocidente, são perpassadas por seu caráter
visual ou incidem dentro de uma erutura em que a linearidade abriu espo para simultansmos.
Fica claro então, que ao longo doculo XX, a palavra, am de portadora de sentido verbal, vem
readquirido seu atus visual e sua relação com a superfície, dentro de um contexto que tende
para o pensamento a-hiórico, algum tempo. Frente a ea conatação, a conceituação
elaborada por Flusser sobre leitura em linha e leitura em superfície e seu desdobramento em
pensamento hiórico e pensamento a-hiórico, tende a polarizar a palavra e a imagem em
extremos, mesmo com a ressalva do próprio autor de que o processo a que ee esquema remete
é bem mais complexo.
Assim, depois de observar detalhadamente as noções sobre as relações entre palavra
e imagem propoas por Flusser, concluo que suas teorias aplicam-se muito bem aos eudos do
design gráfico e à publicidade, por exemplo, onde a escrita tem um evidente cater funcional mais
pronunciado. No entanto, nota-se que suas teorias não apreendem com tanta abrangência a escrita
não inrumental, como a dos artias ou poetas, onde o sentido, abarcado pela função poética
do texto, se dissemina tanto em termos de significações quanto visualmente. Curiosamente,
apesar de ressaltar muito bem a importância da leitura da imagem e das superfícies, deacando
sua presença e difusão em nossa civilização, Flusser se apoia na linearidade e objetividade do texto
escrito para contrapô-lo à imagem.
67
Ea percepção de escrita aproxima-se de correntes teóricas
que a tomam a partir da linguagem, ou seja, que atribuem um caráter unitário e funcional à escrita,
identificando-a como um duplo da fala e subordinando-a à intenção do autor. A abordagem de
Flusser respalda sua argumentação sobre a profusão de sentidos na leitura da imagem, mas tende
a levar mais em conta o lado alfabético ou fotico da escrita e dianciá-la de sua condição tanto
gráfico-visual quanto relacionada ao suporte.
68
67 Flusser faz uma ressalva à sua teoria, explicando tratar-se de uma estruturação didática, com a intenção de facilitar a compreensão
do assunto e que, na prática, as relações entre a visão linear e a visão em superfície são muito mais complexas. Além disso, de
acordo com o autor, os meios para fazer ver e apreender com mais eficácia o que ele tenta explicar, ainda estariam para serem
criados no futuro, quando o próprio pensamento em superfície tiver se desenvolvido melhor. Cf. FLUSSER, Vilém. O mundo codificado:
por uma filosofia do design e da comunicação. São Paulo: Cosac Naify, 2007, p. 124.
68 A relação da escrita com o espaço que a circula e com suporte sobre o qual ela se inscreve, é abordada no terceiro capítulo desta
dissertação, intitulado “Vazio”.

Logo, com o objetivo de avançar nea alise das relações entre palavra e imagem na
obra de Mira Schendel, proponho, lançar mão também das teorias sobre a “escritura” de Roland
Barthes, que tanto ee autor quanto Anne Marie Chriin
69
ampliam mais a discussão,
abordando, profundamente, ea palavra plural
70
tanto gfica quanto semanticamente.
Para eles, reringir-se a uma concepção fonocêntrica e objetiva da escrita, significa acreditar
que a hiória humana, o desenvolvimento do pensamento e o surgimento de nosso alfabeto
foram conduzidos apenas pelo curso da razão. Além do que, significa engrossar a defesa do
mito cientificia de uma escrita linear, puramente informativa”
71
, como se representasse um
progresso inconteável o de achatar o signo escrito (volumoso no piograma e no ideograma)
em um elemento puramente eocáico.
72
Em outras palavras, as tão fundamentais clareza,
objetividade e concisão informativas, inerentes à evolução do alfabeto e da escrita, como defendem
os linguias, não são fatos inconteáveis, intrínsecos a esse processo de evolução, mas valores
atribuídos por nossa cultura.
Barthes considera a écriture (escritura), como outra modalidade de escrita, na qual
as palavras não são usadas como inrumentos, mas poas em evidência como significantes:
73
escritas de palavras trabalhadas em sua textura gfica, ou escritas poéticas não-funcionais.
Barthes trabalha ee conceito ao longo de sua obra, modificando-o sob conantes
deslocamentos evolutivos de significado em cada retomada, mas que de maneira sucinta
aproxima-se do que se poderia tomar como uma forma de linguagem intransitiva, plural, que
não objetiva prioritariamente a comunicação. Diferenciando-se do conceito de “escrevência”,
que por seu caráter carativo e totalirio, onde o discurso objetiva o fechamento e a
delimitação de um sentido unívoco, na escritura escreve-se talvez menos para materializar
uma ideia do que para esgotar uma tarefa, que traz em si mesma sua própria felicidade.
74
69 Cf. ARBEX, Márcia (org.). Poéticas do visível: ensaios sobre a escrita e a imagem. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG,
Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários, 2006, p. 23.
70 BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita – 1: A palavra plural. São Paulo: Escuta, 2001.
71 BARTHES, Roland. Le plaisir du texte précédé de Variations sur l’écriture. Paris : Seuil, 1994/2000, p.31. apud ARBEX, Márcia (org.).
Poéticas do visível: ensaios sobre a escrita e a imagem. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, Programa de Pós-Graduação
em Letras: Estudos Literários, 2006, p. 23.
72 BARTHES, Roland. Le plaisir du texte précédé de Variations sur l’écriture. Paris : Seuil, 1994/2000, p.31. apud ARBEX, Márcia (org.).
Poéticas do visível: ensaios sobre a escrita e a imagem. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, Programa de Pós-Graduação
em Letras: Estudos Literários, 2006, p. 23.
73 Cf. VENEROSO, Maria do Carmo de Freitas. Caligrafias e escrituras: dialogo e intertexto no processo escritural nas artes no século XX.
Belo Horizonte: Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, 2000, p. 44.
74 BARTHES, Roland. Essais critiques.1964, p. 151 apud PERRONE-MOISÉS, Leila. Texto, crítica, escritura. São Paulo: Ática, 1978, p. 38.

1.3.2. Gozo: imagem e escrita em jogo
Enquanto o riso do diabo morava o absurdo das
coisas, o anjo, ao contrio, queria alegrar-se por tudo
aqui embaixo ser ordenado, sabiamente concebido, bom
e cheio de sentido. [...] Um riso ridículo é um desare.
No entanto, os anjos ainda assim obtiveram um resultado.
Eles nos enganaram com uma impoura semântica.
Para designar sua imitação do riso e o riso original
(o do diabo), exie apenas uma palavra. Hoje em dia nem nos
damos conta de que a mesma manifeão exterior encobre
duas atividades interiores absolutamente opoas. Exiem
dois risos e não temos uma palavra para diingui-los.
Milan Kundera
O que eá em queão na escritura é mais do que apenas o objetivo de comunicar
ideias, fatos ou fazer regiros contábeis, mas o prazer de sua ppria realização. Ea concepção,
de que o ato de escrever pode ter uma finalidade de prazer em si, ultrapassa fechamentos objetivos,
que a condicionam em sua função utilitária, para a compreender também como um fazer artíico.
Ea condição não transitiva da escrita no presente remonta à sua origem comum com a imagem
nas origens da humanidade. Também vai de encontro a um entendimento mais amplo sobre o
que diinguiu o homem como humano, desde a pré-hiória até a atualidade. Para autores dessa
corrente, o fator de diferencião do humano earia não só numa notável expansão da capacidade
de raciocinar e trabalhar, mas também, na de criar arte. O que coloca em suspensão a ideia de
que a evolução do gênero humano pode ser pautada apenas pelo progresso da razão.
Grande parte das teorias sobre a arte da pré-hiória explica que, para o pensamento
primitivo, não uma separação nítida entre representação e representado. Por ea hipótese,
mais ou menos quinze mil anos atrás, qualquer ação física sobre a imagem de um animal
desenhado nas cavernas de Lascaux (Fig. 023) para o homem de então, implicava num efeito
correspondente no animal do mundo sensível. Marcas produzidas pelas pontas de lanças atiradas
sobre eas imagens parecem confirmar eas teorias. Elas também explicam que a interpretação
mágica e a interpretação objetiva dos acontecimentos no mundo sensível eram interligadas,
o que fundamentaria uma posição para as manifeações artíicas dentro de um contexto míico
religioso, de mediação entre o mundo espiritual e o sensível. Isso coloca a produção de imagens
em conexão direta com objetivos concretos, mesmo que por expedientes mágicos.

No entanto, Georges Bataille
75
argumenta que a espécie humana, diferentemente das
outras, foi também a primeira a ter consciência da própria morte e, para o autor, foi tal descoberta
assombrosa que libertou o homem da animalidade. Ter consciência da morte, a partir de então,
significava para os homens que, mesmo submetidos ao incontornável fim que os aguardava,
abria-se a chance de agir de maneira não objetiva dentro de seu tempo de vida. Ou seja, além das
funções desempenhadas com uma intenção produtiva, ligadas ao trabalho ou à religião, também
apresentou-se a possibilidade para ee homem de realizar tarefas, em prinpio sem função concreta,
mas autojuificadas por um princípio simbólico ou de prazer. Afinal, de acordo com Bataille
76
,
frente ao horror da descoberta da própria finitude e da finitude do tempo para si, o homem demonra
uma atitude diferente dos símios, que são indiferentes aos reos mortais de um semelhante, ao
passo que no homem exie certo simbolismo, enterrando os cadáveres de uma maneira que
demonra um mio de medo e respeito. Ainda, segundo o autor, dessa consciência também
advém uma atitude que o diferencia das outras espécies, no que diz respeito à atividade sexual.
Para ele, “[...] é porque somos humanos e porque vivemos sob a sombria perspeiva da
morte, é que conhecemos a violência exasperada, a violência desesperada do erotismo.
77
A diinção do homem diante do escândalo dessas duas inâncias também explicaria como, além
de chorar diante da perda, o homem tamm se veria capaz de demonrar humor. Ou vice-versa.
Assim, conforme ea hipótese, diferente das outras espécies, a condição de prazer dos humanos
manifea-se vinculada à consciência tanto de sua morte como de sua sexualidade.
75 Cf. BATAILLE, Georges. Las lagrimas de eros. Barcelona: Tusquets, 2007, p. 51.
76 Cf. BATAILLE, Georges. Las lagrimas de eros. Barcelona: Tusquets, 2007, p. 53.
77 BATAILLE, Georges. Las lagrimas de eros. Barcelona: Tusquets, 2007, p. 53.
FIGURA 023 - CAPACIDADE DE IMAGINAR
Cavalo, entre 15000 e 10000 a.C.
caverna de Lascaux, França.
(GOMBRICH, 2001, p. 41)

Como exemplo da irrupção dessa condição do prazer, ligado simultaneamente à
consciência de morte com a sexualidade, Bataille
apresenta uma imagem (Fig. 024) inscrita no fundo
da caverna de Lascaux que intriga, tanto pela dificuldade de interpretação que seu agrupamento
de elementos desperta quanto por um certo eranhamento que dela parece derivar:
78
diante
de uma figura que se assemelha a um enorme bisão ameaçador há, também, o desenho de um
homem deitado. Se morto ou dormindo é difícil precisar, o que não compromete a relação com
os outros detalhes que compõem o desenho, pois, ao mesmo tempo em que seu falo eá ereto,
ee homem usa uma máscara de pássaro e, próximo dele há uma figura de um pássaro na ponta
de uma hae longa, o que indicaria se tratar de um utensílio ritual. É provável que nunca se
chegue à uma explicação exata dessa imagem, mas eas caraeríicas indicam tanto a consciência
e capacidade do homem pré-hiórico de aludir à sua sexualidade, quanto de associá-la com a
morte (pelo bisão, entre perigoso e pouco amioso, ou pela posição da figura humana). O autor
afirma tratar-se de um feiticeiro ou xamã mas, sua interpretação intenciona extrapolar uma leitura
utilitária baseada no tema religioso da expiação e culpa.
78 Cf. BATAILLE, Georges. Las lagrimas de eros. Barcelona: Tusquets, 2007, p. 65.
FIGURA 024 - HOMEM COM CABEÇA DE PÁSSARO
detalhe de cena na caverna de Lascaux, França, em torno de 13500 anos atrás.
(BATAILLE, 2007, p. 55)

Maurice Blanchot ressalta a atitude de Bataille, comentando que um de seus ritos
é de “[...] não violentar as guras que irrompem do chão: de iluminá-las com a luz que emana
delas mesmas, que é sempre mais clara que todas as explicações que são oferecidas para
clareá-las.
79
As interpretações correntes das imagens p-hióricas associam-nas a rituais gicos,
que expressam uma relação de interesse, de silenciosa concordância entre os caçadores com
a abundância do reino animal e, até de deferência, às forças e espíritos representados pelos animais
pintados.
80
Com seu exemplo do homem com cabeça de ssaro, Bataille vai am da esfera
ritualiico-religiosa, extendendo a imagem pré-hiórica também ao contexto de jogo.
81
O jogo de prazer que o homem cria em respoa tanto ao miério da sexualidade quanto da morte.
Blanchot também se pergunta: Eá morto? Dorme? Finge-se imóvel? Voltará à vida?
Ee esboço tem desafiado a ciência e a inteligência dos especialias.
82
Mas conclui:
[...] é a primeira marca do primeiro quadro, o sinal deixado modeamente num
canto, o traçado furtivo, temeroso, indelével do homem que, pela primeira vez, surge
de sua obra, mas que também, se sente gravemente ameaçado por ela e, talvez, até já
ferido de morte.
83
Ao convívio entre atividades, sem objetivo produtivo concreto, fundadas no prazer,
como a sexualidade e o humor, e à partir da consciência da morte, Bataille inscreve na inância
do que ele nomeia como jogo.
84
O jogo é, dentro da interpretação do autor, aquela atividade que
não transcorre no tempo visando um resultado externo, como um produto. O jogo tem em via
o prazer de seu próprio desdobrar. Blanchot interpreta, assim, o jogo inaurado pela criação
artíica p-hiórica, onde arte é “[...] como sua própria celebração e, Georges Bataille, segundo
as ideias que assinalam sua pesquisa, mora que as pinturas de Lascaux eão, provavelmente,
79 BLANCHOT, Maurice. La nascita dell’arte. p. 23-34 in: BLANCHOT, Maurice. L’Amicizia. Genova-Milano: Casa Editrice Marietti, 2010, p. 24.
80 Cf. BLANCHOT, Maurice. La nascita dell’arte. p. 23-34 in: BLANCHOT, Maurice. L’Amicizia. Genova-Milano: Casa Editrice Marietti, 2010, p. 25.
81 Cf. BATAILLE, Georges. Las lagrimas de eros. Barcelona: Tusquets, 2007, p. 56.
82 BLANCHOT, Maurice. La nascita dell’arte. p. 23-34 in: BLANCHOT, Maurice. L’Amicizia. Genova-Milano: Casa Editrice Marietti, 2010, p. 34.
83 “[...] è la prima firma del primo quadro, il segno lasciato modesta-mente in un angolo, la traccia furtiva, timorosa, incancellabi¬le
dell’uomo che per la prima volta nasce dalla sua opera, ma che si sente anche gravemente minacciato da essa e forse già colpito a morte.
BLANCHOT, Maurice. La nascita dell’arte. p. 23-34 in: BLANCHOT, Maurice. L’Amicizia. Genova-Milano: Casa Editrice Marietti, 2010, p. 34.
84 Cf. BATAILLE, Georges. Las lagrimas de eros. Barcelona: Tusquets, 2007, p. 63.

relacionadas ao movimento de efervescência, ao transbordamento prazeroso, [...]”
85
em outras
palavras, ao movimento do gozo,
[...] que se verifica quando, interrompendo o tempo da fadiga e do trabalho, o homem
naquele momento, pela primeira vez, verdadeiramente homem – retorna, no júbilo
de uma breve suspensão, às fontes de abundância natural, àquilo que era quando
ainda não era, infringe os interditos, mas pelo próprio fato de haver os interditos é
que ele os infringe e eleva-se bem acima da exiência original, recolhendo-se nela a
domina, dá lhe o ser deixando-a que seja [...]
86
No decurso do jogo, a condição temporal difere das outras atividades, uma vez que,
momentaneamente, o tempo se deixa capturar pelo contexto do jogo sob a forma de uma circularidade,
em que sua durão segue a do jogo. Tal como o jogo, a prinpio o objetiva produzir nada externo
àquilo que ele inaura temporariamente senão o prazer, o tempo dentro dele tamm deixa de ser um
tempo transitivo que suenta uma ação inicial de causa à um resultado procedente. Na inância do
jogo, a dinâmica de ação e reação faz parte de um eado simlico (re)inventado temporariamente.
Nea situação imaginária inalada, o prazer advém do poder alcançado pelo homem de colocar
entre parênteses, tanto a morte e sua inexorabilidade quanto o avançar do tempo na direção dela.
A princípio, o desdobrar do jogo segue regras lógicas próprias que são tributárias, em parte, da
fantasia, mas também em parte, da relação que ainda mantém com o mundo em que o homem
vive. E o erotismo participa também dessa condição. É como um mundo em paralelo, onde é
possível morrer ou viver quantas vezes a representação permitir. Eis o grande prazer e um grande
alento para o homem diante da concretude do tempo e da morte.
E o que a inscrição sobre a parede de uma caverna pré-hiórica, com a imagem de um
homem excitado, e, provavelmente morto, tem a ver com o conceito de jogo para Bataille
e com o
foco dee eudo sobre a escrita? Tal como o humor que, acrescentando sua nota dissonante àquilo
que a razão aponta com tanta convicção, quase sempre lhe revela a fragilidade, ea imagem, ao
85 BLANCHOT, Maurice. La nascita dell’arte. p. 23-34 in: BLANCHOT, Maurice. L’Amicizia. Genova-Milano: Casa Editrice Marietti, 2010, p. 25.
86 “L’arte è qui come la sua propria festa e Georges Bataille, seguendo alcune idee che hanno segnato la sua ricerca, mostra che le
pitture di Lascaux sono probabilmente legate al movimento d’effervescenza, alla generosità esplosiva della festa, che si verifica
quando, interrompendo il tempo della fatica e del lavoro, l’uomo - in quel momento per la prima volta davvero uomo - ritorna, nel
giubilo di un breve intermezzo, alle fonti della naturale sovrabbondanza, a ciò che era quando non era ancora, infrange gli interdetti,
ma, per il fatto stesso che ci sono ora degli interdetti e che egli li infrange, s’innalza ben al di sopra dell’esistenza originaria, si
raccoglie in essa dominan-dola, le dà l’essere lasciandola essere [...]” BLANCHOT, Maurice. L’Amicizia. Genova-Milano: Casa Editrice
Marietti, 2010, p. 25.

aproximar-se dos solenes bisões e alces ensinados pela hiória da arte, deseabiliza o entendimento
de que as imagens produzidas pelos homens primitivos objetivavam apenas uma comunicação com
os espíritos ou em função de um resultado concreto no mundo sensível. Sem perder de via que a
separação entre mundo mágico e mundo sensível o se dava como na consciência do homem na
civilização contemporânea, é preciso lembrar que uma inância se sobrepunha à outra. Logo, se
os homens desenhavam bisões visando atingir os animais verdadeiros ou contatar seus espíritos,
ees mesmos homens riscavam imagens onde a utilidade ou o objetivo delas também podia
transcen-las, irrompendo como um exercio de imaginação em si e que, portanto, configurava-se
como prazer de também infringir os interditos: o prazer do jogo imaginativo entre o pouco menos
que possível e, no entanto, ainda assim provável, perpassado por pulsões nem sempre conscientes
de todo. O prazer de ultrapassar a morte, o tempo, ou talvez mais prosaicamente, vencer o poder
daquele espírito incorporado na forma de um animal mais forte que o homem.
Blanchot associa ee prazer do jogo da arte, ainda em seus primórdios, ao dlogo
criativo entre o sensível e o imaginário, pela ordem de um retorno:
[...] o retorno à imensidão primeira, mas o retorno que é sempre mais do que retorno,
pois aquele que retorna, mesmo que seu movimento lhe dê a ilusão de apagar
milhões de anos de diância, de impossibilidade ou de enfraquecimento, ainda tem
uma consciência difusa do impossível desse retorno, tem consciência dos limites e
da força única que lhe permite romper ees limites, no entanto não se entrega ao
delírio de uma exiência total, se afirma como que esposando ea exiência, e, mais
intimamente, como a parte ínfima que, através da diância de seu jogo ambíguo,
pode vir a dominar o todo, apropriar-se simbolicamente ou comunicar-se com isso
dando-lhe exiência.
87
Nee fragmento pode-se deduzir que o gozo provém dessa ínfima parte de
probabilidade de irrupção sobre o real que o jogo criativo carrega. Uma propabilidade de
resgate de uma totalidade anterior às limitações que lhe são impoas, pela realidade, pela vida,
pela morte, pelo tempo, pelos interditos enfim, que são inerentes à toda condição humana.
E o homem, mesmo guardando sempre consciência desses impedimentos, ainda assim, se alegra
com a capacidade de pairar sobre eles, mimetizando-se num outro que é ele e é, ao mesmo
87 BLANCHOT, Maurice. La nascita dell’arte. p. 23-34 in: BLANCHOT, Maurice. L’Amicizia. Genova-Milano: Casa Editrice Marietti, 2010, p. 28-29.

tempo, um outro, enquanto permite fluírem outras significações para o desenlace dos interditos.
A abolição de toda diância ou diferença entre imagem e imaginado, entre presença e ausência,
ao mesmo tempo em que não se perde de via ea diância e ea diferença:
É a consciência dessa diância, armada, anulada e glorificada, a sensação de
assombro e alegria, de uma comunicação à diância e, no entanto, imediata, que a
arte traria consigo, de que seria armação sensível, a evidência que nenhum sentido
particular pode alcançar ou esgotar.
88
Com base nea teoria levantada por Georges Bataille sobre a condição das inscrições
pré-hióricas e sua extensão a uma situação de jogo, pode-se pensar dois aspeos a respeito
da escrita e da imagem. O primeiro, diz respeito às origens comuns da imagem e da escrita.
Se, conforme Gombrich
89
e Anne-Marie Chriin
90
, imagem e escrita são dois ramos de um mesmo
tronco e, pelo que foi abordado até aqui sobre o contexto de jogo que envolve certas imagens pré-
hióricas, em que não há a intenção apenas de uma transitividade, mas também o prazer de sua
criação ou do gozo pela enunciação que nenhuma limitação de sentido conseguiria fixar, é de se
deduzir que as escritas que surgiram nesse contexto ou as imagens que nele se desdobraram em
escrita, também possam carregar consigo ee gozo.
O outro aspeo sobre a escrita e a imagem, que advém da observação desse quadro
e que dialoga mais diretamente com o conceito de escritura, diz respeito à hiória da escrita
e à defesa pela cultura ocidental, de que a razão foi a única triburia da evolução da escrita.
Sob ea ótica, o pensamento lógico teria sido o responsável pela transformação do alfabeto de
um eágio híbrido entre imagem e escrita, para uma outra etapa, em que o alfabeto vincula-se
exclusivamente à fala e ao pensamento, sendo que sua porção de visualidade é absolutamente
dispensável, uma vez que a ligação entre os sons e os desenhos das letras é casual e arbitrária.
Em outras palavras, de um eágio inferior” a outro, livre de um contexto visual e, portanto,
mais objetivo e superior.
88 “È la coscienza di questa distanza, affermata, abolita e glorificata, il sentimento, spaventato e gioioso, di una comunicazione a
distanza e tuttavia immediata, che l’arte porterebbe con sé, di cui sarebbe l’affermazione sensibile, l’evidenza che nessun senso
particolare può raggiungere esaurire.” BLANCHOT, Maurice. La nascita dell’arte. p. 23-34 in: BLANCHOT, Maurice. L’Amicizia.
Genova-Milano: Casa Editrice Marietti, 2010, p. 29.
89 Cf. GOMBRICH, E. H. Histoire de l’art. 7. ed. London: Phaidon Press, 2001, p. 53.
90 Cf. CHRISTIN, Anne-Marie. A imagem enformada pela escrita in: ARBEX, Márcia (org.). Poéticas do visível: ensaios sobre a escrita e a
imagem. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários, 2006, p. 68.

Se ea hipótese evolutiva fosse absolutamente lida, só seria possível ao alfabeto e,
também à escrita, conceber-se como um meio unívoco de comunicação, servindo como ferramenta
conforme sua irresiível e eficiente função cognitiva: a modalidade de escrita, que em diferença
às possibilidades da escritura, Barthes dá o nome de escrevência
91
.
No entanto, mesmo com
a ubiquidade da escrevência, não deixa de haver a chance de uma criação escritural, ou mesmo
de uma escrita entremeada de sua função poética. O que demonra que a defesa da razão como
única via da escrita pauta-se, muito mais por uma escolha cultural, do que, necessariamente,
no desencadear de um caminho lógico e único.
A escritura, perpassada por pulsões inconscientes, resgata seu laro de gozo,
apresentando-se como enunciação que retoma a condição de ação que não exige e nem objetiva
apenas um resultado externo a si.
92
A escritura insere-se no mesmo âmbito imemorial do jogo
em que as imagens também podem coabitar. As do presente e aquelas de tempos ancerais.
E se, à escrita e ao alfabeto, é possível também configurarem-se em escritura, significa que
seus vínculos com um atributo visual e não transitivo permanecem similares ao tempo em que,
o laço entre palavra e imagem não havia sido rompido com tanta obinação pela civilização
ocidental.
O outro elemento que ainda hoje permanece comum e que, na cultura primitiva,
se eendia tanto à criação de imagens quanto a de escritas, era o espaço: da superfície das paredes
das cavernas, das areias das praias, de tábuas de madeira, de blocos de pedra ou da argila ainda
mole, emergiram tanto imagens quanto signos escritos, que conviveram no mesmo ambiente.
O pensamento alfabético ocidental também abraiu a relação do espaço com a escrita e fez
parecer ainda maior a diância entre palavra e imagem. Mas, o mesmo e abrangente conceito de
escritura, possibilita acolher todas as diferenças e similitudes apontadas para a escrita no terreno
da palavra ou da imagem. Se a eas (palavra e imagem) é permitida a coexiência num espaço
comum proporcionado pela condição escritural, elas também poderão ser abordadas através da
ideia de tessitura. Pois, sob o manto de significação de tessitura, revela-se mais enfaticamente
a relação da superfície com o texto e com a imagem.
91 BARTHES. Essais critiques.1964, p. 151 apud PERRONE-MOISÉS, Leila. Texto, crítica, escritura. São Paulo: Ática, 1978, p. 38
92 Cf. BARTHES, Roland. apud: PERRONE-MOISÉS, Leyla. Texto, crítica, escritura. São Paulo: Ática, 1978, p. 44.

Assim, a escritura não eá subordinada à linguagem, ela na verdade corre na via
de desconrução”
93
da linguagem, extrapolando seu caráter inrumental ligado à fala para
explorar os pontos de resiência da língua. A escritura “[...] produz uma significação circulante
(significância) que não é do tipo informativo. A significância não tem ponto de partida nem
ponto de chegada: ela circula, disseminando sentidos.
94
No siema de comunicação usual, o
sentido orbita de forma mais ou menos regular ao redor do centro de gravidade da palavra, que se
encadeia a outras palavras, como na sucessão de planetas de um siema solar. A escritura “força
a língua a significar o que eá além de suas possibilidades, am de suas funções.
95
Na escritura,
expelidos pela força centrípeta das palavras, os sentidos vagueiam por todo o conjunto, fundando
seu próprio universo livre das leis do firmamento da ngua. Ee além das leis do firmamento
da língua” permite então acolher e aplicar o termo escritura também às artes picas.
93 A dinâmica da estratégia da desconstrução não propõe um programa a ser cumprido ou uma atribuição de significado determinado
que deva ser realizado. Visa inverter a hierarquia que rege os termos de uma oposição conceitual dentro do pensamento metafísico
e que em conseqüência, destaca o segundo termo como o principal. O processo de deslocamento ou deslizamento desencadeia o
que Jacques Derrida chama de disseminação de sentido, não se tratando, nesse caso, de uma proliferação de níveis de significados,
mas da possibilidade do surgimento do sentido diversificado, num encadeamento de substituições. Esse processo é visto por Derrida
como um jogo de alternância da primazia de um termo sobre o outro, criando o indecidível, através de um ato de diferenciação e
diferimento: différance, neologismo criado pelo pensador e que implica em diferir, adiar ou protelar; o que pressupõe um espaçamento
temporal e uma diferença espacial. O ‘a’ introduzido por Derrida na palavra francesa différence alterando sua grafia para différance
só é possível de ser percebido quando a lemos, pois na fala as duas não se diferenciam. Esta operação propõe subverter a primazia
da fala sobre a escrita. Na crítica empreendida contra a visão metafísica, que representa um anseio pela origem e pelo fim, Derrida
opõe-se ao status privilegiado que é concedido à voz e à fala em relação à escrita, fruto do que ele chama de “logocentrismo” e
“fonocentrismo”.
Com a desconstrução, a exploração do logocentrismo ocidental ou metafísica da presença pode ser detectada para em seguida
ser, ao mesmo tempo que afirmada, também subvertida. Esta subversão é parte da proposta de uma visão de significado como
resultado da interação entre significantes, onde o sentido decorre de um jogo de significantes e que tem como característica a
possibilidade de ser infinito, ao contrário de um conceito fixo em um significante específico. Em outras palavras, o sentido não está
absolutamente e imediatamente presente em qualquer signo e, se o sentido de um signo está condicionado ao que ele não é, de
algum modo o seu significado nunca está totalmente contido nele e será, então, o resultado de um processo de articulação em que
os signos conseguem ser eles mesmos somente pelo fato de que não são nenhum outro signo. Isto leva a crer que a linguagem
não é um sistema estável conforme se entendia na visão estruturalista de Saussurre. Essa nova concepção de linguagem abala
o conceito de logos considerado o significante universal esse logos transcendental coincide com a presença, a palavra final, a
essência, a verdade ou a realidade – que é convocado a atuar como fundamento a todo pensamento ou linguagem, podendo conferir
e determinar o sentido de todos os outros significantes, vinculando-se aos Nomes: Deus, eu, substância, essência, matéria.
O que Derrida pretende, não é negar o horizonte da metafísica, nem tampouco afirmar que não existe significado em coisa alguma
que venha a ser lida, dita ou ouvida [e provavelmente vista, inscrita ou pintada] mas que é necessário prestar atenção à pretensão
de um sentido fundamental ou pré-existente: não se trata de negar o sentido, mas a ideia de que esse mesmo sentido deve ser fixo
e plenamente presente.
Cf. CULLER, Jonathan D. Sobre a desconstrução: teoria e crítica do pós-estruturalismo. Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Tempos, 1997.
94 PERRONE-MOISÉS, Leyla. Texto, crítica, escritura. São Paulo: Ática, 1978, p. 44.
95 PERRONE-MOISÉS, Leyla. Texto, crítica, escritura. São Paulo: Ática, 1978, p. 44.

CAPÍTULO 2: MIRA SCHENDEL
2.1. Questão de vida ou morte
- Isso não se lê, miúdo – admoeou o militar.
- Não se lê? Mas parecem letras...
- Parecem, mas não são. Isso é russo, e a língua russa
nem os russos sabem ler...
Mia Couto
Conforme Dias
96
, Mira Schendel, aproximando-se do contexto da arte concreta
brasileira empolga-se pelo sinal gfico desenhável, mas afaa-se do conruído. Desse modo,
a artia preserva assim “tanto para o espaço piórico-imagíico como para o signo abrato
uma vida reiteradamente pulsante e mutuamente penetrável e uma comunicação exiencial
97
Diferentemente dos artias dos anos de 1950 no Brasil, que de maneira positivia, acreditavam
na abração geométrica como fomentadora do progresso, a obra de Mira Schendel parte de
profundos queionamentos filosóficos e espirituais.
98
Mira embarcou para o Brasil em 1949, fixando–se em Porto Alegre, onde em 1950
frequenta algumas aulas da escola de Belas–Artes e, nesse mesmo ano, começa a pintar, o que
para ela, apesar das dificuldades nanceiras para comprar tintas a óleo e demais materiais de
pintura, era queão de vida ou morte.
99
96 DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 19.
97 HAUS, Andreas. 2007, no prefácio de: DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 19.
98 Cf. DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 23.
99 DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 35-36.
FIGURA 025 - EXPLORANDO O ESPAÇO PICTÓRICO
Ainda neste princípio, já é possível perceber como a artista
opera em direção ao reconhecimento espacial, uma das bases
do forte diálogo que a obra de Mira construiría com o plano
pictórico ao longo de outras séries que viriam.
Mira Schendel, Sem título, 1952
óleo s/ tela, 50 x 65 cm
col. Andrea e José Olympio Pereira; São Paulo
(DIAS, 2009, p. 44)

2.2. Primeiras pinturas
- Naturalmente eles atendem pelo nome – observou
diraidamente o Mosquito.
- Nunca ouvi dizer que fizessem isso.
- E de que serve, então, eles terem nomes, se não atendem
por esses nomes? – eranhou o Mosquito.
- Para eles, não serve de nada – Alice explicou. – Mas é
útil para as pessoas que dão os nomes, eu acho. Se não,
por que dar nomes às coisas?
- Não sei disse o Mosquito. na florea as coisas
não têm nomes.
Lewis Carrol
Em outubro desse mesmo ano a artia expõe dezesseis óleos com naturezas–mortas e
em 1951 é aceita na I Bienal Internacional de Artes de São Paulo. Mas, apesar do reconhecimento
público em alguns salões que participa entre 1952 e 1953, Dias
100
comenta que a artia alimenta
uma inquietação a respeito dos rumos de seu trabalho.
Em 1953 Mira muda–se para São Paulo, onde consegue alguns trabalhos em editoras,
criando cartazes de cinema e ilurando contos literios. Além disso, visita vários museus e
conhece alguns artias, vindo pouco a pouco a se adaptar à cidade. Sobre a relação da cidade com
as artes, Mira comenta numa carta a Vauco Arno: “[...] Nunca pensava que os pobres pintores e
escultores devessem ser rodeados de tanta elegância [...]”. Diante disso, ela reafirma a decisão de
preservar suas próprias concepções sobre vida e arte:[...] O que vejo por aqui geralmente não é
grande coisa. Muitas pretensões e esnobismo, quando sabemos que arte é um serviço humilde e
que a vida deveria ser vivida com intensa humildade.
101
De acordo com Dias
102
, apesar da convicção de que deveria continuar a pintar com
crescente dedicação, esse período é marcado por grandes queionamentos sobre os rumos que
seu trabalho deve seguir. Nas cartas em que escreve a Arno, Mira considera a possibilidade de
aproximação de uma pintura mais abrata, reflete sobre seu autodidatismo e principalmente
100 Cf. DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009.
101 HAGESHEIMER (Mira). carta a Vauco, São Paulo, 12/13 ago. 1953 apud DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à
corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 48.
102 Cf. DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 51.

sobre a importância e as consequências de ver o que os outros fazem, ao mesmo tempo em que
reafirma, apesar da angúia, sua necessidade de encontrar uma maneira própria para seu trabalho:
“[...] Penso, por exemplo, nea minha pintura até agora gehemmt [inibida], mas sempre a quis
assim. Ou talvez seja mesmo a falta de ofício, a improvisação.
103
Em suas primeiras pinturas (Figs. 025, 026 e 028), desde quando ainda vivia em
Porto Alegre, é possível identificar uma certa similaridade, pelo menos no aspeo sensível, com
pinturas do artia italiano Giorgio Morandi. O trabalho do artia compreende, quase que
exclusivamente, pinturas de naturezas mortas de garrafas e jarros. Nos seus quadros (Figs. 027 e
029), a composição harmoniosa junto à variação sutil de cores transmite uma aura de serenidade
simples e contemplativa, que é realçada pela suave simplificação geométrica dos volumes e da
profundidade. As naturezas mortas das primeiras pinturas de Mira Schendel também apresentam
composição equilibrada e sobriedade cromática, mas sua simplificação de formas e achatamento
da perspeiva são, de um modo geral, mais pronunciados.
103 Cf. DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 51.
FIGURA 026 - GEHEMMT
O aspecto “inibido”, identicado, pela própria artista, em seus primeiros
trabalhos, pode ser atribuído, dentre outros aspectos, ao reexo da
sobriedade cromática e da ocupação equilibrada do plano pictórico.
Mira Schendel, Sem título, 1953
óleo s/ tela, 27 x 35 cm
col. particular; São Paulo
(DIAS, 2009, p. 41)
FIGURA 027 - EQUILÍBRIO
Tal como na fase inicial de Mira, a composição e as
cores empregadas por Morandi também evocam uma
atmosfera de equilíbrio e sobriedade.
Giorgio Morandi, Natura morta, 1956
óleo s/ tela, 40,5 x 35,4 cm
Collezione Giovanardi; Rovereto
<http://english.mart.trento.it/context_mostre_mondo.
jsp?ID_LINK=346&area=62&page=2>

Morandi exerceu no Brasil, mais que em qualquer outro país - talvez apenas menos
do que na Itália - uma profunda influência sobre os artias.
104
Se a similaridade com o trabalho
do italiano não se configura como uma influência direta, pelo menos é valido pensá-la como parte
da bagagem artíica em formação de Mira Schendel ainda que interrompida – na Europa, que
encontra um contexto brasileiro de acolhimento dessa referência, ressoando em seus primeiros
trabalhos.
105
Maria Eduarda Marques
106
comenta que na obra de Morandi a experiência espacial
é vivenciada através da relação com os objetos, que por sua simplificação, realizam o espaço e
o manifeam a partir de suas formas. A autora prossegue, armando que assim como os do
artia bolonhês, ees primeiros trabalhos de Mira também se traduzem por um sentido de
concretude, ao mesmo tempo que evocam uma sensação de interioridade, através da figuração
simplificada, do rigor compositivo e da economia formal no tratamento de objetos contíguos ao
universo morandiano.
104 Cf. NAVES, Rodrigo. Mira Schendel: the world as generosity. In: PÉREZ-ORAMAS, Luis (org.). Tangled alphabets: León Ferrari and
Mira Schendel. New York/São Paulo: The Museum of Modern Art/Cosac & Naify, 2009, p. 66.
105 Sobre a chegada ao Brasil Maria Eduarda Marques afirma que “Mira trouxe consigo não uma prática artística consolidada, mas
uma concepção estética fortemente alicerçada no seu conhecimento teórico-filosófico.” (MARQUES, Maria Eduarda. Mira
Schendel. São Paulo: Cosac & Naify. 2001, p. 11.)
106 Cf. MARQUES, Maria Eduarda. Mira Schendel. São Paulo: Cosac & Naify. 2001, p. 13.
FIGURA 028
Mira Schendel, Sem título, 1953
óleo s/ tela, 74,6 x 74,6 cm
Museu de Arte Contemporânea da Universidade
de São Paulo
(DIAS, 2009, p. 53)
FIGURA 029 - INTIMISMO
Giorgio Morandi. Natura morta, 1947
óleo s/ tela, 20,7 x 27,5 cm
The Cartin Collection, Hartford
<http://arthistory.about.com/od/from_exhibitions/ig/cezanne_and_beyond/
cab_pma_09_24.htm>

À medida que a artia começa a traçar sua hiória no Brasil conruindo novas
vivências, a sensível similaridade com a obra de Morandi cede lugar para outras relações com a
pintura e outras linguagens artíicas. Dias
107
relata, que em 1953 Mira conhece os poetas eon
Spanudis e Haroldo de Campos, o físico Mário Schenberg, o filósofo Vilém Flusser, amigos com
quem mantém frutífera troca inteleual por todos os anos de 1960. Em 1954 Mira expõe no
Museu de Arte Moderna de São Paulo e as obras exibidas (Figs 028) apresentam, conforme o
autor
108
,
uma desvinculação de qualquer observação naturalia da realidade, eruturadas a partir
da inveigação da ocupação do espaço com quadriláteros e campos cromáticos, onde predomina
uma intensa planaridade da composição. Chamados de “Fachadas”, esses trabalhos traduzem o
modo como Mira Schendel assimila os pressupoos da Arte Concreta e da tendência informal
que conitram os dois principais focos da discussão que norteava a arte no Brasil dos anos de
1950.
109
é possível antecipar as primeiras caraeríicas do que viria a ser o seu trabalho mais
adiante: moderação no uso das cores, ou mesmo quase cor nenhuma, forte domínio do espaço
compositivo e da conrução das formas, ao mesmo tempo em que eas mantém o vínculo
expressivo com o geo que as gerou.
107 DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 56.
108 Cf. DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 56.
109 Cf. DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 56.
FIGURA 030 - “FACHADA
Mira Schendel, Sem título, 1955, têmpera sobre madeira, 40 x 60 cm
coleção Ricardo Akagawa, São Paulo
(DIAS, 2009, p. 58)

2.3. Sensível realidade
Apesar de não conhecer a língua e nem mesmo decifrar os
caraeres do alfabeto cirílico, ele começou a divagar em
torno das eranhas letras dos anúncios das eações por
onde passava, e acabou caindo numa espécie de devaneio,
pondo-se a imaginar todo tipo de significação para aquelas
palavras.
Carl G. Jung
Conforme Dias, a partir de 1963, Mira Schendel vai gradativamente se dianciando
da eética formal e compositiva do Concretismo paulia para se aproximar de uma expressividade
subjetiva, principalmente no que diz respeito ao uso sensível da cor.
110
Nesse período uma
intensificação da sensibilidade para o espaço vazio nos trabalhos da artia. Gradualmente suas
formas geométricas tornam-se irregulares e assimétricas em relação às bordas do suporte, ganhando
intensidade expressiva.
111
110 Cf. DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 63.
111 Cf. DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 64-65.
FIGURA 031
Mira Schendel, Sem título, 1954
técnica mista sobre madeira, 51,1 x 66 cm
coleção Adolpho Leirner de Arte Construtiva no Brasil, Museum of Fine Arts, Houston
(MARQUES, 2001, p. 51)

Em alguns trabalhos de 1964 a artia recorta telas criando furos e fendas no espaço
piórico (Fig. 032). Num primeiro momento podem lembrar os rasgos de Lucio Fontana
(Fig. 033), mas que diferem dee, uma vez que de acordo com Geraldo Souza Dias
112
, em
Lucio Fontana os rasgos possibilitam ultrapassar os limites dimensionais da superfície piórica,
criando outra dimensão que visa o infinito e relaciona a obra com o espaço que a circunda.
Já, nees trabalhos de Mira, ainda pelo autor, os recortes desafiam o alcance do geo propoo
por Fontana, mas abrem-se para o abismo e o vazio.
112 Cf. DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 67.
FIGURA 032 - JANELAS DO VAZIO
Mira Schendel, Sem título, 1964
têmpera sobre aglomerado, 50 x 45 x 1,5 cm
coleção Ricardo Akagawa, São Paulo
(DIAS, 2009, p. 82)
FIGURA 033 - ABRINDO-SE PARA O INFINITO
Lucio Fontana, Conceito espacial, 1962
waterpaint s/ tela, 52 x 52 cm
coleção particular
(LIVRO DA ARTE, O; 1999, p. 159)

Mais uma diferença que se percebe em relação ao artia argentino, é que junto do
ritmo provocado pelas angulações dos rasgos da mina de Lúcio Fontana, também se inaura
uma suave topografia sobre a superfície das telas, homogeneamente tingidas com uma única cor.
O espaço produzido pelas fendas “[...] é um espaço em eado nascente. Levemente entreabertas,
as fendas ainda não criaram de todo uma expansão do espaço.
113
nees trabalhos de Mira
Schendel, além dos recortes, talvez o que mais importa seja a eruturação através de uma ordem
compositiva. Nas “Fachadas” ea ocupação ocorria através da diribuição de pequenos retângulos
ou áreas de cor dividindo o espaço. Porém aqui, é através dos recortes, evidenciando a apurada
consciência gráfica da artia, que presumivelmente se manifearia nos futuros “Datiloscritos”.
Outra diferea percebida é a irregularidade marica das grossas camadas de mpera, ao contrário
da opacidade e, pouco mais que neutralidade, dos campos tonais na tela de Fontana, a qual
“se pode imaginar intocada antes dos cortes”.
114
113 TASSINARI, Alberto. O espaço moderno. São Paulo: Cosac & Naify, 2001, p. 80.
114 TASSINARI, Alberto. O espaço moderno. São Paulo: Cosac & Naify, 2001, p. 78
FIGURA 034 - ESCRITA
Mira Schendel, Sem título, 1964
nanquim e aguada s/ papel, 48 x 66 cm
coleção particular, São Paulo
(DIAS, 2009, p. 94)

Conforme Dias
115
, em meados dos anos de 1960, durante a expansão da Arte Pop
norte-americana, nota–se a presença de garrafas e embalagens nas naturezas-mortas da artia.
(Figs. 034 e 035). Mas ao invés de reproduzir as marcas e composições visuais de seus rótulos –
como acontecia na Arte Pop – a artia trabalha seus textos como elementos visuais autônomos,
ao mesmo tempo em que não respeita sua grafia tradicional. Para o autor
116
, ees trabalhos não
reproduzem a realidade sensível, mas a tornam visível, fazendo-a reverberar na fronteira entre o
abrato e o figurativo, por meio de econômicos traçados, indícios dos contornos de objetos, de
signos e de sugeões de planos.
115 Cf. DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 95.
116 Cf. DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 95.
FIGURA 035
Mira Schendel, Sem título, 1964
nanquim e aguada sobre papel, 48 x 66 cm
coleção particular, Londres
(DIAS, 2009, p. 102)

2.4. Questionamentos
[...] o dico tomou-o por um braço e foi inalá-lo por
trás de um aparelho que alguém com imaginação poderia
ver como um novo modelo de confessionário, em que os
olhos tivessem subituído as palavras, com o confessor a
olhar direamente para dentro da alma do pecador, [...]
José Saramago
Nas correspondências de Mira com os amigos, Geraldo Souza Dias
117
percebe
a preocupação da artia, mesmo antes da vinda para o Brasil e a respeito de suas relações
com o criianismo, a prática de uma reflexão sobre a fé. Sua crítica ao modelo fechado
de religião inituída pelo catolicismo eende–se ao positivismo e ao materialismo, que
teriam contribuído para o dianciamento do homem daquilo que ela consideraria o essencial.
Mira relata a leitura de Karl Jaspers
118
e Emmanuel Mounier
119
. Geraldo Souza Dias explica
que Jaspers associa uma transcendência íntima à realidade pessoal, eabelecida através de uma
linguagem radical, como uma transcendência inominável e inalcançável. Desse momento em
que simultaneamente a linguagem se realiza e evanesce, sua transcendência se converte num
inominável e inalcançável, como apontaria Jaspers, porque já penetra os domínios do imaginário.
É o incessante e o interminável de um desaparecimento (da linguagem) que se presentifica na
ausência por ela engendrada.
Na reflexão propoa por Dias sobre Karl Jaspers
120
, o modo para nos tornarmos nós
mesmos de forma integral, earia na interlocução advinda da possibilidade do convívio e do
diálogo entre os seres humanos e da busca dessa linguagem radical. A linha de pensamento de
Jaspers sobre uma evolução íntima e transcendente, rumo a uma exiência mais integralizada
do ser, parece assemelhar-se em alguns aspeos com a teoria de Carl G. Jung relacionada ao
117 Cf. DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 119-123.
118 Karl Jaspers, pensador alemão que viveu grande parte de sua vida na suíça, influenciado em parte por Kierkegaard e Nietzsche,
preocupou-se em estabelecer relações entre uma filosofia da existência e da razão.
119 Roland Bhartes diz que a revista francesa Esprit, fundada por Emmanuel Mounier em 1932, “[...] representa os pontos de vista de
um catolicismo de vanguarda progressista, com base numa filosofia personalista.” BARTHES, Roland. O grau zero da escrita: seguido
de ensaios críticos. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 23.
120 Cf. DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 121.

processo de evolução da subjetividade do indivíduo. O psilogo sço nomeou esse processo como
individuação, que pode ser caraerizado pela transformação do “ego” originário do indivíduo
em direção à uma consciência mais abrangente de si e do mundo, que Jung chamaria de “self ”.
121
Dias
122
relata que Mira Schendel leu parte da obra de Jung e isso contribuiu para seu interesse
pela arte e losofia orientais, aprofundando os queionamentos exienciais e religiosos em seu
trabalho. Uma de suas séries, inclusive, intitula–se Mandalas, uma forma arquetípica baante
explorada dentro da tipologia jungiana. Mais do que identificar uma ou outra corrente no trabalho
da artia, a ee eudo interessa perceber, por mais diversas que tenham sido suas leituras, um
possível diálogo entre elas com seu trabalho escritural.
O período de disseminação dessas correntes acontece no pós-guerra, quando boa
parte dos artias e pensadores se deparam com um balanço negativo sobre vários fundamentos
modernos: os esperos de Auschwitz e Hiroshima, produtos da modernidade e indiretamente do
racionalismo que lhe abriram caminho, pairam no ar com o paradoxo de siemas que juificaram,
em função de uma (ideia de) humanidade, o massacre do humano. Em paralelo, assiia–se à
continuidade de uma expansão tecnocrática sem precedentes, encabeçada por acontecimentos
tenebrosos como a guerra fria e o início da escalada das ditaduras na América Latina e Europa
do Lee. É o momento da modernidade em que, segundo Marshall Berman,
123
atinge-se um
grau tal de progresso e racionalidade, numa escala de funcionamento tão abrangente, que esse
mesmo progresso parece poder prosseguir autônoma e indefinidamente, atropelando a tudo e a
todos, prescindindo inclusive do próprio homem. Confirmando ee desamparo frente aos [des]
caminhos tomados pela modernidade, Vilém Flusser na primeira parte de sua autobiograa,
Bodenlos
124
(Sem chão), comenta que pouco depois de chegar ao Brasil, ainda nos anos de 1940,
percebe uma tendência nos inteleuais do período em se identificarem com correntes filosóficas
que de alguma forma traziam um componente em dlogo com o míico”. Nessa corrente,
outro pensador que possui consonâncias com o grupo de autores lidos por Mira nesse período
foi Emmanuel Mounier.
121 Cf. JUNG, Carl. O homem e seus símbolos 9. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988 passim.
122 Cf. DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 151.
123 BERMAN, Marshal. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. passim.
124 Cf. FLUSSER, Vilém. Bodenlos: uma autobiografia filosófica. São Paulo: Annablume, 2007,

Segundo Dias
125
, o grande erro da atualidade para Mounier, earia na percepção
diintiva e hierarquizadora entre homem e natureza, ou entre espírito e matéria, que relegaria
o corpo e sua concretude ao polo inferior da natureza, enquanto que a alma ou a razão eariam
assim ainda sob influência do neo–platonismo, transmitido ao longo dos séculos dentro do
criianismo – num plano superior. Esse modelo juificaria o desprezo e todo tipo de violência
do homem contra a natureza e, claro, contra si mesmo, já que ao alienar o homem da natureza,
a sua parte corpórea também sofreria as consequências da objetivação e impessoalização.
Dias
126
considera que, para Mounier seria necessário então uma espécie de
personalização do humano, que por meio de uma relação íntima” e particular com a natureza e a
divindade, se integraria a um grande corpo míico, que lhe proporcionaria ao mesmo tempo uma
nova consciência e liberdade. Da conjugação entre essas influências e trechos de cartas de Mira,
o autor
127
deaca como o processo de criação da artia associava-se com suas queões exienciais,
colocando-se como fio condutor de seus pensamentos e, naturalmente, de seu trabalho.
125 Cf. DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 123.
126 Cf. DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 123.
127 Cf. DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 125-129.
FIGURA 036 - SEPARAÇÃO
Caixas subdivididas para arranjo e distribuição dos tipos, espaços e
intervalos de chumbo de uma gráca tradicional.
Frank S. Henry, ilustração de livro, 1917.
(LUPTON, 2006, p. 12)
Conforme Mounier, a objetivação e a impessoalização de nosso modo
de pensar alienam o homem do continuum que interliga tudo que
existe, abstraindo-o da natureza e fragmentando este todo em unidades
separadas. Esta condição de nossa cultura pode ser pensada através da
metáfora das gavetas tipográcas: as palavras, estas unidades que, além
de mediarem a noção do todo através das signicações e conceitos
que carregam consigo, podem ser, ainda, subdivididas e ordenadas em
pequenas unidades abstratas, as letras alfabéticas.

2.5. Palavras na pintura
Até o m do século XVI, a semelhança desempenhou
um papel conrutor no saber da cultura ocidental. Foi ela
que, em grande parte, conduziu a exegese e a interpretação
dos textos: foi ela que organizou o jogo dos símbolos,
permitiu o conhecimento das coisas visíveis e invisíveis,
guiou a arte de represen-las. O mundo enrolava-se sobre
si mesmo: a terra repetindo o céu, os roos mirando-se
nas erelas e a erva envolvendo nas suas haes os segredos
que serviam ao homem. A pintura imitava o espaço. E
a representação - fosse ela fea ou saber - se dava como
repetição: teatro da vida ou espelho do mundo, tal era o
título de toda linguagem, sua maneira de anunciar-se e
de formular seu direito de falar.
Michel Focault
É interessante perceber que junto às leituras de teor mais míico-religioso, tamm
um movimento da artia em dirão a tricos que tratam de conceitos como tempo, transparência
e vazio. Ees conceitos serão abordados mais extensamente na obra de Mira em um capítulo
dedicado a eles nea dissertação. O que Dias
128
deaca, é a convergência de todo esse referencial
na preparação do caminho para a grande mudança na produção da artia a partir de princípios
dos anos de 1960. O autor
129
conata que as teorias de Jean Gebser
130
teriam levado Mira a crer
que a representação do tempo associado ao espo poderia ser abolida por meio da manifeação da
diafaneidade, adquirindo ea o caráter de uma totalidade: “Dentro dessa lógica, a simultaneidade
significaria a exclusão da sequência temporal, permitindo ao tempo manifear-se por si mesmo
e assim a visualização da transparência resultaria numa libertação do tempo.
131
Diferentemente de outros artias da década de 1960, que em sua maioria
lidaram com a queão da escrita e da imagem de modo puramente formal, para Dias
132
, ee
interesse de Mira poderia ser apontado por sua familiaridade desde a infância com a míica
128 Cf. DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009.
129 Cf. DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 141.
130 Cf. Geraldo Souza Dias: a partir de meados dos anos de 1960, Mira Schendel ocupou-se profundamente da leitura da obra do
filósofo, Ursprung und Gegenwart (Origem e presença), discutindo sobre seus conceitos principalmente com seu amigo Vilém Flusser.
A artista inclusive visitou Gebser em 1968 e manteve contato com ele até o final de sua vida.
131 DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 145.
132 Cf. DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 177.

da linguagem e com a iconoclaia, advindas da concepção de Deus do judaísmo. Os conceitos
de Weltbild (visão de mundo) e Zeigei (espírito do tempo) formulados respeivamente
nas culturas grega e judaica demonram duas formas de apreensão da realidade e do tempo
fundadas em sensibilidades baante diversas.
Dias, citando Wouter Kotte, explica que na concepção grega o tempo é circular,
eterno e imanente, em que a percepção espacial de mundo baseia-se na verdade objetiva do
ser, em última inância, apontando para uma sensibilidade de cunho visual. o paradigma
de tempo da cultura judaica, assim como no criianismo, é linear, com princípio, meio e m,
FIGURA 037 - TEMPO CÍCLICO
Calendário asteca, ano de 13-acatl, correspondente a 1479
basalto de olivina, 3,57 m de diâmetro e 24,5 t.
Este monolito era um monumento ao Sol e a Tonatiuh, o deus do sol
e sua existência relaciona-se a uma crença asteca de que o m do
mundo se daria ao término de um ciclo de 52 anos, correspondente ao
tempo de retorno das plêiades a seu zênite. Os astecas se preparavam
para essa data, desfazendo-se de suas posses, e até apagando seus
fogos. Do alto de uma colina aguardavam o trânsito das estrelas rumo
ao seu zênit. Se, depois da passagem das plêiades, e se, após a meia-
noite, o m do mundo não se concretizava, havia grande celebração
e tudo que fora destruído era renovado, com grandes festas, e rituais,
saudando o princípio de um novo ciclo e do nascimento de um novo sol.
disponível em: <http://www.ideariumperpetuo.com/calendaztec.htm>
Apesar de nenhuma ligão com a cultura grega, este ritual asteca
também denota uma relação mítica com o tempo, para o qual há
sempre um início e um m, que marcam o fechamento de um antigo
ciclo e a abertura do seguinte. Diferente da tradição judaico-cristã que,
também baseia seu paradigma temporal em um início e em um m,
mas linearmente, de maneira que, para esta cultura, somente um
primeiro e único início e, igualmente, um último e único m.

assentado em uma ordem verbal, em que se desdobram as leis da vida, da hiória e da moral.
133
Desde a Renascença o ocidente viu a juaposição do tempo ao espaço no racionalismo e a consequente
abração e mensuração de ambos, levando a uma alienação do ser humano de si mesmo.
134
Flusser utiliza os símbolos da roda cíclica solar e da roda veicular para contrapor
duas percepções de tempo diintas: uma mítica, fundada na ideia do eterno retorno dos
acontecimentos dentro de um tempo que se repete girando sobre o mesmo eixo fixo (Fig. 038a);
a outra percepção, a moderna, rompe com o eterno, vinculando-se à ideia de linearidade
hiórica, onde o tempo também gira, mas o faz como a roda veicular (Fig. 038b) que desloca
seu eixo junto com ela e descreve uma linha progressiva.
135
Io influenciou a consciência atual
de tempo, que passou a ser percebido de uma forma cada vez mais acelerada, influenciando de
maneira marcante a arte do século XX. Nesse mesmo século é possível perceber o conante
diálogo entre as artes visuais e a literatura, diluindo os rígidos limites que aentão prevaleciam
entre as linguagens, derrubando as fronteiras que separavam o texto da imagem. Assim como
os poetas valorizaram a visualidade da escrita e da página impressa, agregando imagens
e elementos gráficos aos poemas, os artias voltaram sua atenção para o aspeo visual da escrita,
incorporando elementos verbais em suas obras, como letras, palavras e colagem de textos impressos.
133 KOTTE, Wouter. Wort & Bild. Utrecht: Museum Hedendaagse Kunst, 1987, pp. 13 e 15 apud DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do
espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 177.
134 Cf. DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009.
135 Cf. FLUSSER, Vilém. O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. São Paulo: Cosac Naify, 2007, p. 68–74
(Esses conceitos serão tratados mais a fundo no capítulo desta dissertação sobre o vazio.)
FIGURA 038 - EIXO FIXO E EIXO MÓVEL
Segundo Flusser, a roda d’agua, com seu eixo xo, representa uma concepção de tempo
mítica, ancorada na idéia de um eterno retorno e já a roda veicular desloca seu eixo junto
consigo, descrevendo uma trajetória linear, análoga à concepção histórica de tempo.
a) <http://www.waterhistory.org/histories/waterwheels/waterwheel2.jpg>
b)
<http://startupblog.les.wordpress.com/2009/07/old-school-bicycle.jpg?w=432&h=485&h=291>
a)
b)

A escrita, tanto como elemento gráfico quanto conceitual passou, assim, a participar da conrão
de novos sentidos nas obras de arte. Ea percepção dos artias modernos sobre a relação da palavra
com a imagem reflete novas formas de relação do homem com o mundo: “Os artias modernos que
procuraram, a partir da relão da palavra com a imagem, novas formas para o vínculo arcaico entre
o homem e o mundo, perceberam a impossibilidade de separar o pensamento visual do contexto
verbal.
136
Para Dias, Mira Schendel ocupou um espo significativo dentro dessa vertente e
tamm incorporou ao seu fazer artíico a exploração das possibilidades da união do texto verbal
com o visual.
Mira identificou-se com esses esforços ao adotar como preocupação principal de seu
fazer artíico a relação palavra/imagem. Em delicados tons sobre superfícies pálidas,
ela começou a introduzir escritas em seus quadros. Linhas finas, geos caligcos,
palavras-palavras isoladas, fragmentos de frases ou passagens completas de textos-
tornaram-se elementos de sua arte.
137
Em um primeiro momento a artia incluiu fragmentos escritos em sua pintura
geométrica, empregando o alfabeto de imprensa em telas ou placas de madeira.
138
Dessa maneira,
a bidimensionalidade do texto juapôs–se ao efeito de profundidade em algumas áreas do espo
piórico (Fig. 039). Mas a escrita provocou uma irrupção vigorosa no trabalho de Mira Schendel,
principalmente a partir do uso de papéis transparentes, quando a artia produziu um grande
número de monotipias.
136 DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 178.
137 DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 178.
138 Cf. DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 178.
FIGURA 039
Mira Schendel, Sem título, 1960
óleo sobre tela, 92 x 130 cm
coleção particular, São Paulo
(DIAS, 2009, p. 186)

2.5.1.1. Monotipias - Louvado seja o Senhor
[...] para ele [Kierkegaard] é na música da fala que
nós moramos, é ali que se encontra nossa alma. [...]
Somos amados não pelo que dizemos, mas pela música
com que o dizemos. Pree atenção na sua música.
Rubem Alves
Na fala, o corpo eá demasiadamente presente;
na transcrição, ele eá demasiadamente ausente.
Ora, na escritura, o corpo (a voz) volta por uma via indireta,
medida, jua, musical.
Roland Barthes
FIGURA 040 - PREIST DEN HERRN
Mira Schendel, Sem título, sem data
têmpera sobre juta, 50,5 x 50,5 cm
coleção particular, São Paulo
(DIAS, 2009, p. 181)

A composição de Karlheinz Stockhausen, Gesang der Jünglinge (Cântico dos jovens),
de 1955-56, miura a voz cantada a sons eletroacúicos. Em algumas partes da sica ouvem–se
vozes de jovens em coro articularem palavras compreensíveis e em outras, apenas valores sonoros
são regirados. É possível ter vários níveis de compreensão verbal em diversos graus entre ees
dois polos. Sempre que os sinais sonoros tornam–se inteligíveis, ouve–se Prei den Herrn (Louvado
seja o Senhor).
139
De acordo com Dias
140
, Mira interpretou ea composição transpondoa para a tela
de uma forma simples, onde os textos, visualmente mesclam–se com outros elementos pióricos
(Fig. 040). As palavras kalter (frio), arrer (rígido), winter (inverno) e a frase Prei den Herrn
(Louvado seja o Senhor) são sensorialmente ampliadas ao serem incorporadas na pintura e tamm
pela maneira em que têm as sílabas separadas, baseandose na maneira em que são cantadas.
Eis um exemplo de intermidialidade entre uma composição sonora e uma composição
visual, que, pelo que propõe Claus Clüver, a transformação do conteúdo compoo na primeira
mídia se “[...] de acordo com as possibilidades materiais e convenções dessa nova mídia.
141
É necessário abrir aqui um parêntese para o que se admite por convenções”, que nem Stockhausen
e nem Mira Schendel operam dentro de convenções tradicionais da mídia “música” e da mídia
pintura”. Ambos, ao contrário, muitas vezes extrapolam os limites de seus campos por propor
linguagens com regras artíicas próprias e tamm por incorporar elementos até eno pertencentes
a contextos de outras mídias, como pulsos gerados eletronicamente ou a letraset. Nessa situação,
como encarar o termo convenções” tão conformador sem fazer com que a definição de
“transposição intermidiática” tropece sob a luz dos trabalhos dos dois artias?
Talvez seja porque a obra de arte projeta-se para fora da linguagem, realizando-se como
uma não-linguagem pela “negação de si mesma, mas é nesse movimento que ela termina por se
fundar, garantindo sua eternidade.
142
A obra de arte propõe suas próprias conveões. No início
dee eudo escreve-se sobre a relação da tessitura na imagem e no texto, todavia, no terririo
da música a noção de tessitura também é empregada. O sentido do termo ‘tessitura’, quando
139 Cf. DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 185.
140 Cf. DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 185.
141 CLÜVER, Claus. Intermidialidade In: Pós: revista do programa de pós-graduação em Artes. Belo Horizonte: Escola de Belas Artes da
Universidade Federal de Minas Gerais, v. 1, n. 1, mai. 2008, p. 18.
142 LEVY, Tatiana Salem. A experiência do fora: Blanchot, Focault e Deleuze. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003, p. 22.

utilizado para se referir a uma música, corresponde ao grupo de notas de maior frequência da
composição musical, abrangendo a extensão média em que ela eá escrita; ou seja, sua contextura.
143
Logo, mesmo que dentro das diferenças compreendidas entre imagem, texto e música, todas
compartilham de algo que coordena suas tramas: a tessitura.
Mas no âmbito da arte dos culos XX e XXI, o texto extrapola sua função linguíica
de suporte de uma fala, para ser trabalhado escrituralmente por muitos artias como textura
gráfica, como veígio, rasura, ou alusão a uma escrita e, portanto sobrepondo o visual ao verbal.
Na composição de Stockhausen a palavra também extrapola sua limitação verbal, transitando no
arco entre a clara inteligibilidade do som da fala transitiva e o seu borrão sonoro intransitivo, onde
apenas se pressente a emissão vocal ou eletrônica transmutadas em simples valores tonais. Assim,
tanto nos trabalhos de artias como Mira Schendel, quanto na composição de Stockhausen, as
convenções que informam
144
onde terminam e começam as mídias são ultrapassadas, descourando-
se e desconruindo-se para que seus fios se rearranjem, recombinando-se em redes mais abertas,
tramadas em regras fundadas nos próprios trabalhos.
143 Cf. FERREIRA, Aurélio Buarque de Hollanda. Novo dicionário da língua portuguesa. 2. ed. rev. e aumentada. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira: 1986, p. 1656.
144 Informar, neste contexto, significa uma ideia que vem dar forma, ou melhor, que coordena os limites entre cada mídia. O problema
é que estas ideias vem de fora, referenciando-se pelo que fora alcançado por outras obras anteriormente, e, por serem externas,
muitas vezes resvalam em pontos que são postos em cheque pelos próprios trabalhos artísticos, principalmente no caso dos aqui
estudados, que “forçam” os códigos dos quais se utilizam além do convencionado.
FIGURA 041
Partitura de Gesang der Jünglinge, 1955-56
< http://www.medienkunstnetz.de/assets/img/data/3569/bild.jpg>

O dlogo de mídias não se aplica apenas à divisão silábica das palavras ou à sua
inscrição na superfície piórica. outras caraeríicas dessa composão de Mira Schendel que
intertextualizam com Stockhausen. Os diferentes tamanhos das palavras e também sua variação
de contrae em relação ao fundo, indo da caligrafia em forte negro à sutil inscrição física na
mesma cor da matéria esbranquiçada que a envolve e cobre toda a superfície do quadro, parecem
remeter à absorvente sensação de espacialidade da música. Efeito causado por conelações de
sons e emissões vocais irrompendo em meio a momentos de silêncio ou quase silêncio, para depois
deixarem–se sobrepor por novos sons ou simplesmente pairar no espo até a completa dissipação.
Há também incisões e raros caligráficos que não formam nenhuma palavra identificável, mas
que fazem pressentir sua natureza de signos linguíicos, assim como em alguns trechos da música
onde sons e vozes se articulam aquém do inteligível, quase reconhecíveis, mas que apenas se
deixam ouvir como esboços de palavras.
FIGURA 042 - BENDIZEI O SENHOR
Mira Schendel, Sem título, 1964-65
óleo sobre papel de arroz, 47 x 23 cm
coleção particular, São Paulo
(DIAS, 2009, p. 188)

A natureza transcendente de Gesang der Jünglinge inspirou vários trabalhos de Mira
(Figs. 042 e 043), onde ela abraçou para si a juificativa metafísica do procedimento adotado pelo
compositor.
145
O sentimento religioso da composição de Stockhausen ecoa através da frase P r ei 
den Herrn e sua correspondente em português, “Bendizei ao Senhor” ou, ainda, Praise the Lord,
em inglês, regiradas em muitas de suas monotipias sobre papel de arroz japonês. A composição
de Stockhausen trabalha formal e espacialmente o movimento e o direcionamento sonoro, tanto
que na partitura (Fig. 041) a indicação para que grupos de vários alto–falantes sejam colocados
ao redor dos ouvintes. Ee procedimento remete aos recursos visuais da tipografia adotados em
Un Coup de Dés de Mallarmé, eruturado poético-musicalmente como uma partitura, onde a
variação do corpo e a disposição das palavras em diferentes posições da página ao alto, mais
próximo ao meio ou mais embaixo – indicam mudanças no volume e entonação ao longo de sua
leitura. Io implica na valorização de seu aspeo sonoro e da leitura em voz alta.
145 Cf. DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 189.
FIGURA 043 - TODO O FOGO
Mira Schendel, Sem título, 1965
óleo sobre papel de arroz, 47 x 23 cm
coleção particular, São Paulo
(DIAS, 2009, p. 180)

Compreender como eram os pressupoos da sica, eabelecidos ao longo de culos
de hiória (euroia) e como eles foram transformados por Arnold Schoenberg, pode auxiliar a captar
o contexto das composões de Stockhausen. O processo desencadeado por Schoenberg encontra
paralelos na difusão prismática da composição e reintegração visual de textos nos quadros de Picasso
e Braque, com seu desdobramento rumo a um espaço autônomo para a obra de arte, e também
remete ao esfoo empreendido por Mallarmé no “homidioda literatura, que objetivava “[...] uma
deruão da linguagem, de que a Literatura, de algum modo,o seria mais do que o cadáver.
146
Em seuLivro do riso e do esquecimento
147
, Milan Kundera compara metaforicamente cada tonalidade
em uma composição musical a uma pequena corte, e as relões entre as notas musicais baseiam-se
num jogo hierárquico, onde cada nota membro dessas cortes tem uma posição, um título e funções
próprias. Por causa dessas relações, a obra que se escuta vai além de uma massa sonora e evolui
como uma ação diante do ouvinte. Numa sucessão ligeira, “mesmo a música mais complicada é
ainda uma linguagem.” Então:
[...] um dia um homem alto conatou que, em mil anos a linguagem da música se
esgotara e só podia repisar continuamente as mesmas mensagens. Com um decreto
revolucionário, ele aboliu a hierarquia das notas e as tornou todas iguais. Impôs a
elas uma disciplina severa para evitar que uma aparecesse com mais freqüência que a
outra na partitura e se arrogasse assim os antigos privilégios feudais. As cortes foram
abolidas de uma vez por todas e subituídas por um império único fundado numa
igualdade chamada dodecafonismo.
148
Com o império do dodecafonismo a sonoridade da música era assim talvez mais
interessante que antes, mas de acordo com o autor, Schoenberg foi sucedido rapidamente por Varèse,
que anulou não apenas a tonalidade, mas a própria nota (da voz humana e dos inrumentos),
trocando-a “[...] por uma organização refinada de ruídos que é sem dúvida alguma magnífica,
mas que inaugura a hiória de algo diferente, fundado em outros princípios e numa outra
língua.
149
Ees prinpios novos eão para o universo musical, como eá para a poesia o trabalho
de Mallarmé. No prefácio de seu Un Coup de Dés o poeta arma que “sem presumir do futuro
146 BARTHES, Roland. O grau zero da escrita. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 6.
147 KUNDERA, Milan. O livro do riso e do esquecimento. São Paulo: Círculo do Livro, 1987, p. 168.
148 KUNDERA, Milan. O livro do riso e do esquecimento. São Paulo: Círculo do Livro, 1987, p. 168.
149 KUNDERA, Milan. O livro do riso e do esquecimento. São Paulo: Círculo do Livro, 1987, p. 169.

o que sairá daqui, nada ou quase uma arte, [...] entreabrindo as portas de uma nova realidade
poética”.
150
Uma evidência de que o próprio Mallartinha consciência da incursão de sua
criação por um campo expandido, indo além das convenções daquilo que até ali era tido como
produção poética e literária.
Auguo de Campos
151
relaciona a importância desse poema, com seu processo
de articulação poética para a “arte da palavra”, ao valor da descoberta por Schoenberg, da série
atonal na música, que de seu desdobramento deixou um legado a compositores eletrônicos,
como Boulez e Stockhausen. O processo de articulação a que se refere Auguo de Campos,
ligando o poema de Mallarmé ao universo sonoro de Stockhausen, é um novo conceito de forma,
“[...] onde noções tradicionais como início, meio, fim, silogismo, tendem a desaparecer diante
da ideia poético-gealtiana, poético-musical, poético-ideogrâmica de ESTRUTURA (sic).
152
Se Mira Schendel conduz um trabalho intertextual de aproprião, captura, absoão e assimilação
da composição de Stockhausen é porque ambos os trabalhos, o da artia e o do músico, habitam
esse mesmo campo expandido legado por Mallarmé. Nele, as divisões entre as artes e o pensamento
hiórico em linha são ultrapassados pelo dlogo entre eruturas que empream elementos e
procedimentos umas das outras.
Para Blanchot, a poesia em Mallarconitui-se como “um potente universo de
palavras cujas relações, a composição, os poderes, afirmam-se, pelo som, pela figura, pela mobilidade
rítmica, num espaço unificado e soberanamente autônomo.
153
Graças a ee campo “unificado” e
aunomo” de diálogo, o trabalho de Mira Schendel eabelece, via Stockhausen, diversas pontes
também com os poemas de Mallarmé, que “[...] são atos e são coisas não apenas celebrações,
elogios, louvores ou censuras, ou lamentos. São novas maneiras de ser das palavras e das coisas.
154
Armação que também pode ser eendida ao trabalho de Mira Schendel.
150 MALLARMÉ, Stéphane. Prefácio para Un Coup de Dés In: CAMPOS, Augusto de, PIGNATARI, Décio, CAMPOS, Haroldo de. Mallarmé.
São Paulo: Perspectiva, 1991, p. 152.
151 CAMPOS, Augusto de; PIGNATARI, Décio; Haroldo de. Mallarmé. São Paulo: Perspectiva, 1991, p. 23.
152 CAMPOS, Augusto de; PIGNATARI, Décio; Haroldo de. Mallarmé. São Paulo: Perspectiva, 1991, p. 23.
153 BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987, p. 35.
154 FAUSTINO, Mário. Coletânea 2, 1964 apud CAMPOS, Augusto de; PIGNATARI, Décio; Haroldo de. Mallarmé. São Paulo: Perspectiva,
1991, p. 25.

No que concerne ao caráter de espacialidade, Dias
155
conclui que o fundo
esbranquiçado das pinturas que Mira Schendel vinha produzindo, ganha mais amplitude
pelo reforço da sensação de imaterialidade e transparência do papel de arroz, que:
“[...] produz um efeito de eco que se diancia à medida que as folhas vão se sobrepondo.
156
A partir de depoimentos gravados pela artia, o autor
conata
157
que para Mira o papel
de arroz significou um importante movimento em direção a uma propoa própria,
comprometida com seus queionamentos sobre a transparência e também como elemento
inovador, onde a produção de imagens transborda o campo da pintura, se eendendo a novos
objetos em que se inscrevem pensamentos tecidos simultaneamente em linhas e escritas.
155 Cf. DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 189.
156 DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 189.
157 Cf. DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 189.
FIGURA 044 - PAISAGEM CELESTE
Sol, lua, águas, as expressões “tudo”, “tutti” e “alle” repetidas diversas vezes e dois círculos traçados agilmente nas três folha de papel
transparente, evocam a idéia da convivência de opostos, como dia e noite, o agora e o sempre, o céu e a terra, o homem e a natureza, o
eu e o mundo, reintegrados através do todo espiritual e infinito no tempo e no espaço, a quem Mira não se cansa de louvar, escrevendo:
priest den herren” ou ainda, praise the lord” e “bendizei ao senhor”.
Mira Schendel, Sem título, 1965
óleo s/ papel arroz, 47 x 23 cm (cada trabalho)
coleção Sandra e William Ling, Porto Alegre
(DIAS, 2009, p. 196)

Entre 1964 e 1967 Mira produziu pelo menos duas mil monotipias em papel de arroz.
Sua escolha por essa cnica é atribda como mais ou menos casual, ao mesmo tempo que em virtude
da fragilidade do papel.
158
Desde então, a escrita cursiva tomaria o lugar da escrita de imprensa
no seu trabalho. Sua caligrafia incorpora imagens de lampejos de sua corrente de pensamentos.
Desse momento em diante, Mira “[...] toca uma região nova queionando o conteúdo expressivo
da caligrafia e sua identificação com a verdade da mensagem.
159
Tal como os trabalhos de Mira Schendel, os poemas de Mallarincorporavam
em seus fundamentos a visualidade da letra e do branco do papel. Rompendo hierarquias, os
trabalhos dos dois negam a subordinação entre imagem e texto ou entre ees e o fundo, assim
como também negam atribuições linguíicas funcionais únicas entre as palavras ao aniquilar
“[...] uma intenção de relações [xas] para subituí-la por uma explosão de palavras.
160
Dessa “explosão”no espaço branco do papel de arroz das monotipias ou nos pares de páginas
do Coup de Dés, as palavras conservam apenas “[...]o movimento, a música, não a verdade.
161
Para Barthes, a palavra na poesia moderna – e pode-se dizer que também no trabalho de Mira,
por sua forte visualidade possui uma liberdade inesgotável e se propõe irradiar em direção a
mil relações incertas e plausíveis. A partir de Mallarmé, rios poetas no século XX também
abordaram em suas atividades poéticas a reintegração icônica e espacial da escrita, como foi o
caso da poesia concreta, que por sua vez, demanda pela materialidade e a concepção pláica do
poema. As monotipias de Mira compreendem um mio de poesia e espacialidade sem, no entanto,
seguir os caminhos da poesia concreta, pois os nós que eruturam seu trabalho são mais abertos
que na poesia concreta: seus desenhos tecem um diálogo visual entre arabescos e pintura geual.
Em suas monotipias o hasard (acaso) deixa mais raros do passeio escritural da mão do que na
poesia concreta, onde mesmo que os sentidos sejam múltiplos e simultâneos, ainda predomina
a eruturação compositiva.
158 Cf. SCHENDEL, Mira. Depoimento gravado para o Departamento de Pesquisa e Documentação de Arte Brasileira da Fundação
Armando Álvares Penteado, São Paulo, 19 ago. 1977. In: DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São
Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 189.
159 DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 190.
160 BARTHES, Roland. O grau zero da escrita: seguido de ensaios críticos. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 42.
161 BARTHES, Roland. loc. cit.

2.5.1.2. Rastro numinoso
- Não pode ser, mas é. O número de ginas dee livro
é exatamente innito. Nenhuma é a primeira; nenhuma
a última. [...]
- Se o espaço for infinito, eamos em qualquer ponto
do espaço. Se o tempo for infinito, eamos em qualquer
ponto do tempo.
Jorge Luis Borges
Nas artes houve tentativas de incorporar ao espaço da obra a letra ou a palavra,
conforme dito anteriormente, seja sob a forma escrita, seja tangenciando os limites do campo
figurativo, por meio de uma quase escrita. Um exemplo disso pode ser vio na obra de Paul
Klee, onde também se encontram letras e palavras formando composições ideogramáticas.
162
Além disso, na complexidade de seu trabalho, empenhado em descobrir o significado de todas
as coisas, Klee realiza uma grande inveigação semântica, sendo ea uma queão que também
permeia a obra de Mira Schendel.
Haroldo de Campos permite outros ângulos de observação dessa dialética entre
visualidade e linguagem no trabalho da artia, ao publicar um poema
163
(semtulo) no calogo
da exposição da artia no Museu de Arte Moderna do Rio (MAM), em maio de 1966.
164
Considerando a premissa de Roland Barthes, que renuncia às diferenciações (para ele de caráter
puramente material) entre uma pintura, um texto literio, um filme ou um pôer, para encarar
tudo como uma pluralidade de textos
165
, pode-se relacionar diferentes tipos de obras, assim
como relacionamos diferentes textos de diferentes autores. Nesse sentido, uma articulação sobre
o trabalho de Mira Schendel pode ser enriquecida ao se valer de trabalhos de outros artias ou
de poetas como Haroldo de Campos. As relações dialógicas entre ee poema de Campos e o
trabalho de Mira são inúmeras e sua intertextualidade, por si só, renderia uma pesquisa inteira.
Para o contexto dee trabalho será mais significativo deter-se em alguns versos, como os de
número 6: “uma arte de alfabetos conelados”; 20-21: “uma arte-escritura / de cósmica poeira de
palavrase 24-25: entrar no planetarium onde suas composições / se suspendem desenhos eelares.
162 Cf. MARQUES, Maria Eduarda. Mira Schendel. São Paulo: Cosac & Naify, 2001. p. 29.
163 Conferir no apêndice.
164 In: SALZSTEIN, Sônia (org.). No vazio do mundo – Mira Schendel. São Paulo: Cosac & Naify, 1996, p. 260. (originalmente publicado
em Mira Schendel, Rio de Janeiro: Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, mai. 1966)
165 Cf. BARTHES, Roland. S/Z. Paris: Seuil, 1970 apud ARBEX, Márcia (org.). Poéticas do visível: ensaios sobre a escrita e a imagem. Belo
Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários, 2006. p. 57.

A partir dees versos torna-se quase impossível não pensar sobre Mallarmé na fala de Barthes:
“O céu se escreve, ou ainda: superando a linguagem, a escrita é a linguagem pura dos céus,
166
que intertextualiza com o comentário de Paul Valéry sobre Mallarmé: “Il a essayé, pensai-je,
d’ élever enfin une page à la puissance du ciel étoilé!
167
(Ele tentou, eu creio, elevar enfim uma página
à potência de céu erelado!).
É explícita a ideia de uma ptica que se nutre de fragmentos ou mesmo de elementos
inteiros provenientes do universo da escrita e que deslocados no plano e desvelados pelo espaço
e o vazio entre eles, abrem a possibilidade para a geração de inúmeros significados. Talvez uma
forma de ajudar na compreensão disso seja pela analogia com os desenhos imaginários traçados
166 BARTHES, Roland. Le plaisir du texte precede de Variations sur l’ecriture. Paris : Seuil, 1994/2000 apud ARBEX, Márcia (org.). Poéticas
do visível: ensaios sobre a escrita e a imagem. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, Programa de Pós-Graduação em Letras:
Estudos Literários, 2006. p. 26.
167 VÁLERY, Paul. Varieté I et II. Paris: Gallimard, 1988.
FIGURA 045 - COR
Haroldo de Campos escreveria que esta é uma
arte em que a cor pode ser o nome da cor.
Rot”, em alemão, signica “vermelho”.
Mira Schendel, Sem título,
meados da déc. de 1960,
óleo s/ papel arroz, 46 x 23 cm
(SALSZTEIN, 1996, p. 163)
FIGURA 046 - TEMPO
Mira Schendel, Sem título, 1964-65,
óleo s/ papel arroz, 46 x 23 cm
(SALSZTEIN, 1996, p. 179)

entre as erelas no céu de maneira a criar conelações (Figs. 047 e 048). Eas, mesmo em
suas formas mínimas, podem ser nomeadas e a partir de seus nomes, toda uma vaa carga de
simbolismos e múltiplos referenciais pode ser convocada a preencher-lhes. Porém, o que exie de
concreto no espo o apenas as erelas, ou melhor, sua luz. As conelações exiem enquanto
conrução humana e fruto de uma tentativa de atribuição de referenciais mais significativos
ou palpáveis e, por isso, podem variar imensamente de lugar para lugar, de pessoa para pessoa.
Já as erelas, simplesmente eão lá no céu. Para nós observadores é que as erelas são erelas
e são também o nome que damos a elas.
FIGURA 047 - UM CÉU CHINÊS
Trecho de antigo pergaminho chinês, com mapa
celeste, retirado do sítio arqueológico de Dunhuang,
China. Note-se as linhas que ligam as estrelas, sob a
forma de constelações.
Mapa celeste de Dunhuang (detalhe), iníc. dinastia Tang,
tinta s/ papel, 24,4 x 330 cm
British Museum, London
< http://idp.bl.uk/database/oo_scroll_h.a4d?uid=-1861
41859315;bst=1;recnum=8280;index=1;img=1>
FIGURA 048 - UM CÉU BARROCO
Nesta gravura de um atlas do séc. XVII, as guras
dos seres associados às constelações, na abóbada
celeste, são tão ricas em detalhes, que as estrelas
tornam-se quase imperceptíveis.
Andreas Cellarius, Harmonia Macrocosmica
(prancha 27), 1660, gravura, 24,4 x 330 cm,
Amsterdã, 1660
<http://opc.uva.nl/F/P3EXQESTJMKK79HFTE2
27DHDJ98MRM94DU3KBMJTHPKP13QS3D-
28117?func=full-set-set&set_number=017855&set_
entry=000004&format=999&con_lng=eng>

Nesse sentido, Tatiana Salem Levy, refletindo sobre o pensamento de Blanchot,
explicaria o caráter duplo da imagem ao considerar que ela “[...] não vem depois do objeto, mas
é contemporânea a ele. O objeto é sempre ele mesmo e sua imagem ao mesmo tempo [...]”.
168
Para ler/ver as palavras nas Monotipias de Mira é necessário eno perceber que elas o escrita e ao
mesmo tempo imagem de escrita. Ou seja, conituem-se de agrupamentos de signos linguíicos
que representam sentidos, evocando as ausências dos objetos referentes aos sentidos representados.
Mas além de falarem de ausências (imaginárias), as monotipias são concretas, presentes por si
mesmas enquanto coisas. À ea simultaneidade, pode-se deduzir através da interpretão de Levy
ao pensamento de Blanchot, que “[...]o real é sempre real e imaginário ao mesmo tempo.
169
Sobre os elementos no trabalho de Mira Schendel, Haroldo de Campos ainda escreveria:
“uma arte onde a cor pode ser o nome da cor / e a figura, o comentário da figura / para que entre
significante e significado / circule outra vez a surpresa.Ee trecho também faz lembrar as
eratégias artíicas de René Magritte, como em sua pintura “Personagem caminhando em direção
do horizonte” (Fig. 049). Nele, a figura de um homem pode ser via entre manchas coloridas e
sobre cada uma delas pode-se ler as palavras fuzil, poltrona, cavalo, nuvem e horizonte.
168 LEVY, Tatiana Salem. A experiência do fora: Blanchot, Focault e Deleuze. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003, p. 27.
169 LEVY, Tatiana Salem. A experiência do fora: Blanchot, Focault e Deleuze. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003, p. 28.
FIGURA 049 - POSSIBILIDADE INVISÍVEL
René Magritte, A aparição II (Personage marchant vers l’horizon), 1928
óleo s/ tela, 81 x 116 cm
Staatsgalerie, Stuttgart
<http://www.mattesonart.com/1926-1930-surrealism-paris-years.aspx>

Foucault, ao falar dessa obra, aponta como formas tão vagas fazem sentido pela
possibilidade invisível
170
na disposição familiar que encontram na composição e pelas palavras
que as nomeiam, mas que junto a isso sobrepõe-se o insólito da juaposição da poltrona e do
cavalo. Ao elidir os objetos, deixando seus nomes superpoos a massas de cor, nesse eranho
grupo, Magritte liberta tanto as palavras quanto as formas de suas condicionantes interpretativas
para nos devolver a “surpresa” da qual fala Haroldo de Campos. À sua maneira, a arte de Mira
Schendel, tal como a de Magritte, também desnuda os signos alfabéticos de seus referenciais
linguíicos. Esse desvelar das letras se dá até o seu quase mínimo, apropriando-se delas
“[...] não apenas pela forma, mas também colaborando com um sentido conceitual à obra.
171
Incorporadas à imagem como símbolos, assim como em Magritte, sugerem significões em aberto
devolvidas para fora do espo da obra, convidando o espeador a dialogar, sem necessariamente
obedecer nenhuma ordem interpretativa pré-eabelecida.
Haroldo de Campos sintetiza essa operação de maneira reveladora, mais especicamente,
a partir de seus primeiros cinco versos: uma arte de vazios / onde a extrema redundância começa a
gerar em formação original / uma arte de palavras e de quase palavras / onde o signo gráfico vee
e desvee vela e desvela / súbitos valores semânticos” e também: “uma semiótica arte de ícones
índices e símbolos / que deixa no branco da página seu raro numinoso. O veir e desveir do
signo gráfico e seu deslizamento semântico junto de ícones, índices e símbolos sobre o branco da
página, evidenciam a relação não apenas entre texto e imagem no trabalho de Mira, mas entre
ees e o vazio, que provoca nees primeiros uma disseminação de sentido ainda maior.
E finalmente, no verso: “uma arte de palavras e de quase palavras” podemos nos
aproximar de Blanchot, quando ee, falando sobre a suspensão entre o vivel e o invisível trazidos
pela palavra diz que “exie talvez, uma invisibilidade que é ainda uma maneira de deixar–se
ver, e uma outra que se afaa de todo o invisível.
172
A palavra em Mira Schendel é então, assim
como é para Blanchot, um rumor, não se fixando a nada, pairando muito próxima de seu sentido,
mas sem nunca tocá-lo ou atrelar-se inteiramente a ele. um tremor nas palavras que nunca
as deixa no mesmo lugar.
170 FOCAULT, Michel. Isto não é um cachimbo - 4. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2007, p. 52.
171 MARQUES, Maria Eduarda. Mira Schendel. São Paulo: Cosac & Naify, 2001, p. 33.
172 BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita – 1: A palavra plural. São Paulo: Escuta, 2001, p. 70.

É um engano, por conta da forte espiritualidade da artia, identifi-la à uma conante
introspecção ou excessiva inteleualização. Dias
173
explica que na série de monotipias (Figs.
050 e 051) dedicadas à Amélia Toledo, Mira Schendel, quase “sismograficamente”, regira o
nome da amiga. Tal como a gradação da fala, desde o sussurro até o grito, pulsões de diferentes
intensidades inscrevem-se por meio de linhas sutis, rabiscos ou grandes manchas. Vêem-se em
outros trabalhos da série, expreses como: Ah come mi diverto! (Ah, como me divirto!) ou, ainda,
no trabalhoEe é um desenho gooso” (Fig. 052). Dias
174
tece considerações a respeito dessas
monotipias, sugerindo que aquilo que nelas se expressa através da linguagem não é fruto principal
do fluxo de pensamento, mas do que se pode nomear como gozo.
173 Cf. DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 190.
174 Cf. DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 190.
FIGURA 050 - GOZO
O cater escritural destas monotipias deixa
em aberto a interpretação desta enuncião
de gozo. Seja pelo próprio ato da escrita ou,
ainda, através da ironia que a mesma frase
pode representar. Junto das palavras, o traço
rápido, que se eleva e transcreve gracamente
o corpo no espaço, através do movimento
entre um jogar de cabeça e um espreguiçar.
Mira Schendel, Sem título, 1965
óleo s/ papel arroz, 47 x 23 cm
col. Paulo Pasta, São Paulo
(DIAS, 2009, p. 202)
FIGURA 051 - AMELIA
Depois de boiar calmamente na primeira monotipa, a caligraa sinuosa e a sobreposição
das expressões “Mira”, “Amelia”, “Mira nel mare e “Amelia nel mare”, evocam,
na segunda folha, a idéia de um prazeroso mergulho nas ondas do mar, ao mesmo
tempo que os sons e ondulações criadas pelas letras “m” e as vogais dos nomes
das duas mulheres se confundem com o som e a graa da palavra “mare” (mar).
Neste sentido, a própria transparência da superfície de papel de arroz se converte nas
profundidades da água do oceano e suas espumas, com bolhas e gotas que as palavras
respingam em todas as direções.
Mira Schendel, Sem título, 1964
óleo s/ papel arroz, 47 x 23 cm
col. particular, São Paulo
(DIAS, 2009, p. 203)

Barthes desenvolve um paralelo entre dois tipos de texto, o de prazer e o de gozo
(ou fruição)
175
.
O primeiro relaciona-se à cultura e, sem romper com ela, propõe uma leitura confortável,
que contenta seu leitor. o segundo tipo, o texto de gozo, traz o desconforto, balançando bases
hióricas e certezas fundamentadas na cultura, pondo em crise a relação do leitor com a linguagem.
O gozo eá interdito à fala, já que ele só pode ser dito entre as linhas. E ainda:
Com o texto de gozo (e seu leitor) começa o texto insuentável, o texto impossível.
Ee texto eá fora-de-prazer, fora-da-crítica, a não ser que seja atingido por um outro
texto de gozo: não se pode falar sobre um texto assim, só se pode falar “em” ele, à sua
maneira, [...]
176
Nesse contexto, as monotipias de Mira transportam ee gozo muito mais pelo que
tem de escritural do que por aquilo que eá escrito, pois sem o espo, a variação da velocidade e
intensidade do traçado, o leitor deas monotipias teria seu acesso a ele completamente vetado.
175 BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 2006, p. 20-21.
176 BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 2006, p. 28-29.
FIGURA 052
Mira Schendel, Sem título [este é um desenho gostoso], 1965
óleo s/ papel arroz,
47 x 23 cm
Museu de arte Moderna de São Paulo
(MARQUES, 2001, p. 67)

2.5.2. Letraset
[...] fomos para uma espécie de grande sala onde se via
em toda volta imensos murais enfeitados com slogans,
fotografias e desenhos desajeitados; presa numa divisória
do fundo havia uma grande inscrição recortada em papel
vermelho: NÓS EDIFICAMOS O SOCIALISMO, e
embaixo dessa inscrição havia uma cadeira, perto da qual
eava de pé um velhinho caquético [...]
Milan Kundera
Mira Schendel, além de artia pica, também trabalhava como freelancer, criando
leiautes gficos de capas de livros para editoras.
177
O processo, muito antes do advento dos
softwares de arte-finalização digital, requeria um trabalho manual de muita concentração e
precisão, quando as artes-finais das páginas, capas ou cartazes eram todas conruídas a partir da
montagem e colagem dos recortes dos elementos gráficos numa prancha, comumente conhecida
como pae-up.
Geraldo Souza Dias presume que a partir da prática de freelancer, Mira Schendel
tenha transferido algo dea técnica para sua obra ao utilizar letras auto-colantes (comumente
conhecidas como letraset) em seus desenhos. Essa transformão do trabalho com o sinal caligráfico
para a incorporação da letra readymade (Figs. 053-055) indica uma poura nova no trabalho.
177 Cf. DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 229.
FIGURA 053
Mira Schendel, Sem título [Disco], 1972
letraset e grate entre placas de acrílico fosqueado,
Ø 27 x 0,5 cm
Tate Modern, Londres
(SALZSTEIN, 1996, p. 201)

As palavras e sinais de pontuação atuam duplamente como representantes e representados, que
somados ao espaço do suporte passam por um processo de ressignificação. As letras prontas
para uso deacadas das cartelas de letraset não têm, a priori, a menor relação formal com a ação
da artia (ou quem quer que seja), que as organize no espaço. Condição baante diversa das
sutilezas do regiro do geo caligráfico presente nas monotipias, onde a intimidade da letra
se desdobra em abertura da intimidade de um universo que se manifea nas folhas de papel-
arroz. A impessoalidade, por assim dizer, da letraset dispensa a artia da conrução da letra.
A letra exie pronta, antes da criação artíica, como algo independente de uma intenção, reando
à artia dispor dela no espaço como melhor parecer.
FIGURA 054
Mira Schendel, Sem título [Toquinho], 1970
letraset e papel japonês tingido s/ papel
49 x 25,4 cm
col. Sophia Wately, São Paulo
(DIAS, 2009, p. 228)
FIGURA 055
Mira Schendel, Sem título [Toquinho], 1972
letraset e papel japonês tingido s/ papel
49 x 25,4 cm
col. particular, São Paulo
(DIAS, 2009, p. 232)

Nesses trabalhos, curiosamente, Mira Schendel não fazia recortes e colagens apenas
de letras e números; percebe-se também os recortes de papel japonês, que tivera uma incorporação
quase casual no início de sua utilização e agora mudava de atus. O que na obra da artia era a
então utilizado como suporte, neas novas composições, tanto por sua forma, quanto pela adição
de cores, ganhava o mesmo plano das inscrições com letraset, fazendo com que o significado das
letras também sofresse mudança. A superfície assim, participava ativamente no mesmo nível das
letras e seus fragmentos no jogo de relações visuais das composições da artia.
Ea nova condição de agente da superfície parece não se dar pelo acaso, mas como
reflexo da natureza da letraset, que como elemento autônomo, anterior à artia e ao suporte,
dialoga com a superfície quase diretamente. Nas monotipias as letras das palavras surgem depois
de definido o espaço do suporte, o papel japonês. Se nelas a artia fazia emergir as palavras a
partir do papel transparente, imprimindo indiretamente seu geo nea superfície, nas colagens
com letraset muda a posição da artia em relação ao trabalho, uma vez que também mudam as
relações entre letras e suporte. As letras exientes o queionadas compositivamente pelo espaço,
FIGURA 056 - UMA COISA E OUTRA
Por conta da presença da letra “e”, a imagem pode ser lida como uma frase:
“quadrado e retângulo”, pois os dois fragmentos de papel japonês tingidos de
verde abandonam temporariamente sua limitação enquanto formas coloridas
para se converterem, simultaneamente, em signos de uma escrita, como
ideogramas de si próprios. Igualmente, a presença destas duas formas verdes
na composição, descondiciona a letra “e” de sua exclusividade alfabética e a
faz dialogar espacialmente transformando-se, também, na imagem de um “e”.
Assim, a despeito de seu número mínimo de elementos, este trabalho possibilita
múltiplas leituras, sob a ordem da escrita e da imagem, apresentando-se
simultaneamente como uma coisa e outra.
Mira Schendel, Sem título [Toquinho], 1972
letraset e papel japonês tingido s/ papel japonês
49 x 25,4 cm
col. particular, São Paulo
(DIAS, 2009, p. 234)

e tentam respondê-lo, indagando por possibilidades de inserção em sua superfície e de participação
de seu código (Figs. 054-056). Enquanto isso, a artia desloca-se de uma supoa função de
autoria exclusiva, para aproximar-se também da posição de mediadora entre eas duas inâncias,
validando ou vetando, criativamente, as inúmeras configurações visuais que se precipitam com
o ímpeto da obra em conrução e de seu devir. O espaço abandona sua tradicional passividade
diante do geo e posiciona-se junto à artia como um co-criador de sentido na obra.
Ees trabalhos intertextualizam, em alguns aspeos, com as colagens cubias de
impressos (Fig. 057), uma vez que, tanto as composições de Picasso e Braque quanto as composições
com letraset, utilizam elementos diintos dos materiais tradicionalmente empregados pelas obras
de arte: signos alfabéticos produzidos em rie. Entretanto, os quadros dos artias cubias citados,
em sua maioria, incorporavam as letras pós-ciclo. Mira Schendel apropriou-se delas em seu
pré-ciclo, antes de serem incorporadas em qualquer mídia que tivesse o objetivo de comunicar.
Nas colagens cubias os signos alfaticos, em sua maioria, foram utilizadas após
percorrerem todo o ciclo da comunicação. Primeiro foram compoos em palavras, que foram
diagramadas e reproduzidas em impressos; ees, foram diribuídos, utilizados e, nalmente,
descartados, para, então, chegarem às pinturas cubias. Por mais alearia que seja, a coleta dos
fragmentos de tíquetes de metrô, de panfletos ou páginas de jornal feita pelos cubias, extrai os
signos alfabéticos a partir do contexto dos impressos, mesmo quando ees impressos já são refugo.
FIGURA 057 - PÓS CICLO
Pablo Picasso,
Natureza morta “Au bon marché”, 1913
óleo e papel colado s/ papelão
24 x 36 cm
col. Ludwig, Aachen
(MORLEY, 2003, p. 40)

Nas colagens cubias de Picasso e Braque são evidentes os procedimentos que visam desmontar
o vínculo entre as letras e seu contexto original. Folhas são rasgadas, linhas inteiras apagadas
ou partes dos textos são cobertas com tinta. Porém, os veígios da função comunicativa dos
impressos que mediam os signos e do caminho deles na cultura, mesmo que diorcidos, ainda
ecoam das letras na superfície dos obras, como ecos de sua condição primeira, reverberando em
um novo espaço para o qual não haviam sido direcionados incialmente.
Nos trabalhos de Mira Schendel com letraset o processo se reverte. É como se
os signos se encontrassem em um eágio prévio a qualquer desígnio comunicativo. As letras,
com suas infinitas probabilidades de combinação, foram apropriadas por Mira antes que, um
projeto, um uso, ou uma ideia, as submetesse ao leiaute de um cartaz ou qualquer composição
impressa específica. A letraset e seus fragmentos, descomprometidos da obrigação comunicativa
que porventura viessem a receber, pulsam nessas composições com a plenitude e a inocência
daquilo que pudesse exiir antes de qualquer início e igualmente avesso a qualquer final.
Mira libertou ees signos de seu consumo pela cultura e pelo tempo, para que se erguessem como
objetos “repletos de todos os seus possíveis”
178
: são formas visuais e, numa espécie de revogação
do tempo, são também, fragmentos de palavras que se revelam anteriores à exiência mesma
dessas palavras.
As letras deixam de se localizar em um ponto fixo em relação a um início ou a um
fim, pois permanecem alheias à linearidade de uma escrita ou de qualquer outra utilização que
pressuponha um direcionamento ou sentido específico: intenção-ação-resultado, daqui-pra-lá, causa-
consequência, início-fim. A seqncia temporal habitual se abre a um contexto de simultaneidade,
em que as letras não mais obedecem à um sentido fixo, mas à totalidade de inúmeras direções,
que a artia acompanha como uma espécie de contra-vidente” que materializasse os germes
de mensagens futuras ainda por serem cifradas. Assim, também como o faz em outras séries,
mas de maneira especial neas composições com letraset, Mira realiza o que Dias
explica como
libertação do tempo
179
e o que nós podemos também interpretar como um descondicionamento
linear e alfabético.
178 BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 2006, p. 45.
179 Cf. DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 145.

2.5.3. Datiloscritos
Um renque de árvores lá longe, lá para a encoa.
Mas o que é um renque de árvores? Há árvores apenas.
Renque e o plural árvores não são cousas, são nomes.
Tries das almas humanas, que põem tudo em ordem,
Que traçam linhas de cousa a cousa,
Que põem letreiros com nomes nas árvores absolutamente reais,
E desenham paralelos de latitude e longitude
Sobre a própria terra inocente e mais verde e florida do que isso!
Alberto Caeiro
Dando continuidade ao eudo da obra da artia, Dias
180
escreve que, em inícios dos
anos de 1970 Mira Schendel produziu trabalhos a partir do uso de uma máquina de escrever de
cilindro grande para datilografar palavras, letras e sinais, frequentemente combinados a outras
inscrões e interferências manuais e mesmo à aplicação de letraset. Ea série é conhecida pelo
nome de Datiloscritos (Fig. 058).
180 Cf. DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 249.
FIGURA 058 - OLIVETTI BOOGIE-WOOGIE
Mira Schendel, Datiloscritos (detalhe), 1974
datilograa, letraset e caligraa sobre papel.
50,8 x 37 cm
Coleção Ricard Akagawa, São Paulo.
(DIAS, 2009, p. 251)

Neas composições, Mira usou do artifício de repetição de um mesmo signo ou
letra em intervalos regulares, proporcionado pelo siema mecânico de coordenadas verticais e
horizontais da máquina de escrever. Esse processo permitiu que a artia conruísse grupos de
malhas com modulações visuais diintas; mais densas ou mais suaves, dependendo do signo
empregado em sua conrução ou do número de vezes que cada signo era impresso pelas teclas
da máquina no mesmo lugar do papel. Os blocos de signos datilografados e reconfigurados em
formas geométricas revelam sua condição de elementos integrantes de composição pláica.
FIGURA 059
Mira Schendel, Datiloscritos, 1974
datilograa, letraset e caligraa s/ papel
50,8 x 36 cm
col. particular, São Paulo
(DIAS, 2009, p. 248)

Vários Datiloscritos apresentam inscrições feitas pela própria artista a respeito de
temas que a preocupavam, como poluição ambiental ou explosão demogfica e também com
referências sobre autores que eram lidos por ela.
181
Ao mesmo tempo, Mira Schendel joga com
um fator lúdico ao subverter a ferramenta primariamente fabricada para a escrita em função da
produção de imagens. Essa atitude diante da plasticidade dos blocos de letras remete às composições
de rias de suas pinturas iniciais, ainda em óleo, como as séries de “Fachadas” ou mesmo os
quadros com recortes. Muitos Datiloscritos são sutilmente espaciais e planos na medida em que
os blocos de letras se adensam ou se espraiam, sugerindo tênues sobreposições de planos mais
próximos ou mais distantes.
Além disso, ao conruir grandes áreas pela serialização dos tipos da
máquina de escrever, Mira desfaz a separação entre letra e superfície inituída pelo
alfabeto (e pensamento) ocidental. Conforme a tradição fonocêntrica que acompanha
181 Cf. DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 249.
FIGURA 060
Mira Schendel, Datiloscritos, 1974
datilograa, letraset e caligraa s/ papel
50,8 x 36 cm
col. particular, São Paulo
(DIAS, 2009, p. 250)

a escrita alfabética do ocidente, é reconhecido valor de diferenciação e de sentido às letras
e às palavras, ao passo que a superfície
182
que as acolhe é abraída visualmente, figurando como um
nulo, ou, menos que isso, como algo inexiente. Quando, através de seus Datiloscritos, a artia
transforma as próprias letras em componentes de superfícies tão manifeamente visuais quanto
verbais, o atus de invisibilidade do espaço do suporte é deseabilizado. As áreas com letras interagem
entre si e, também, com as partes brancas do papel que, mesmo vazias ou transparentes, recobram
dinamicamente seu potencial significativo e sua importância como integrantes da composição.
Ao reconhecer uma exiência tão ativa e significante ao espaço branco quanto às tramas de letras
datilografadas, ees trabalhos de Mira Schendel enfraquecem a dicotomia entre o signo e o vazio
que impregna o alfabeto.
Outro aspeo que deve ser lembrado é que, enquanto na escrita cursiva, a superfície
permanece imóvel, à medida que recebe, passivamente, as marcas da trajetória da caneta ou do
pis que gravam as letras sobre ela; na datilografia, a superfície se move para indicar onde deverá
ser escrita. Logo, do ponto de via da letra, a escrita acontece sempre no mesmo lugar, na mesma
coordenada, enquanto que do lado do papel, ee único ponto de via se desdobra em linhas e,
a mesmo, em áreas inteiras. É posvel pensar que ea consciência da folha de papel como uma
superfície que, simultaneamente, acolhe a escrita e atua nela, talvez o seja meramente casual.
Afinal, em outros trabalhos, como os cadernos, que serão vios mais adiante, a artia também permite
à superfície da pagina interferir no signo alfabético e transformar a escrita e sua significação.
182 A relação da superfície com a escrita em nossa cultura e suas ligações com a obra de Mira, são aprofundadas no terceiro capítulo
deste estudo, intitulado Vazio.
FIGURA 061 (inteira)
Mira Schendel, Datiloscritos (detalhe), 1974
datilograa, letraset e caligraa sobre papel.
50,8 x 37 cm
Coleção Ricard Akagawa, São Paulo.
(DIAS, 2009, p. 251)

Assim como outras séries de trabalhos de Mira, os Datiloscritos dianciam-se de
uma pretensão de armar ou negar algo através da escrita, para aproximar-se mais da profusão
circular de sentido, inerente às superfícies. A obra de Mira, e ees trabalhos em especial,
interpretam o espaço branco, não como um neutro que recebe a marca positiva da escrita mas,
como uma das várias modalidades significativas de espaço. É posvel, igualmente, ao espo vazio
manifear-se, visual e significativamente nees trabalhos, através de sua brancura, assim
como também é possível às diferentes configurações de letras datilografadas suscitar, visual e
significativamente, os mais diversos sentidos.
FIGURA 062
Mira Schendel, Datiloscritos, 1974
datilograa, letraset e caligraa s/ papel
50,8 x 37 cm
col. particular, São Paulo
(DIAS, 2009, p. 255)

2.5.4. Objetos grácos
Levou muito tempo para que eu compreendesse que o que
convence não é a “letra” do que falamos; é a “música” que
se ouve nos interícios da fala. A razão entende a letra.
Mas a alma só ouve a música. O segredo da comunicação
é a poesia.
Rubem Alves
Dias
183
escreve que, num movimento de convergência entre os rios processos
experimentados pela artia até então: monotipias, letraset, caligrafias e, tendo como eixo condutor,
as inveigações acerca da transparência e suas implicações, Mira Schendel chamou de Objetos
Gráficos (Figs. 063-065) seus trabalhos com acrílico, expoos na 9ª Bienal de São Paulo em 1967
e na Bienal de Veneza de 1968. Ees trabalhos em geral eram conituídos por duas grandes placas
acrílicas que, numa espécie de sanduíche, uniam várias camadas de papel de arroz sobrepoas
em seu miolo, contendo monotipias e/ou composões com letraset.
184
Para xar os conjuntos,
eram utilizados parafusos atravessando as bordas de uma placa de aclico à outra, permitindo
que as peças fossem dependuradas do teto, expoas diantes da parede. Isso proporcionava ao
observador um ângulo completo de visão, ao circundar todo o trabalho.
183 Cf. DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 257.
184 Cf. DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 257.
FIGURA 063
Mira Schendel, Sem título [Disco], 1972
letraset em placas de acrílico,
Ø 18 x 5,5 cm
col. particular, São Paulo
(DIAS, 2009, p. 255)

Nos objetos gráficos o fator de transparência é mais marcante do que nas monotipias,
pois o olhar do espeador praticamente os atravessa, expandindo seu campo visual não apenas
naquele trabalho observado, mas em muitos momentos na sua interação com os outros trabalhos
posicionados próximos a ele, que eas placas eram usualmente posicionadas em leiras
subsequentes, ao longo do espaço expositivo. Devido à ausência de referencial de superfície e
de hierarquização dos elementos compositivos, Mira Schendel realiza, graças às caraeríicas
FIGURA 064
Mira Schendel, Objeto gráco, 1967-68
letraset e óleo s/ colagem de papel-arroz entre duas placas de acrílico,
100 x 100 cm
col. Paulo Kuczynski, São Paulo
(DIAS, 2009, p. 266)

do acrílico “[...] a ideia de acabar com o atrás e o à frente, com o antes, com o depois, uma
certa ideia de simultaneidade mais ou menos discutível, o problema da temporalidade, da
espacio-temporalidade etc.
185
Ao enxergar na transparência uma queão de simultaneidade compositiva, Mira
Schendel aponta para novas relações entre o olhar e a temporalidade. Isso ocasiona a possibilidade
de percepção visual inantânea das várias camadas de signos linguíicos. Graças ao ajuntamento
do antes, o agora e o depois num mesmo campo de visão, a perspeiva de apreensão linear,
subordinada a uma lógica de princípio, meio e fim, dilui–se como num hipotético livro em que
o olhar pudesse abarcar todo seu conteúdo, atravessando desde a capa até sua última folha, num
mesmo inante.
Nos anos de 1970, os objetos gráficos deixariam de lado a caligrafia da artia para
concentrar–se no uso da letraset, com as letras autocolantes aplicadas sobre o papel japonês
ou comprimidas diretamente entre as folhas de acrílico, tendo eas, muitas vezes, forma de discos
sobrepoos.
186
(Figs. 053 e 063).
185 SCHENDEL, Mira. depoimento gravado para o Depto. de Pesquisa e Documentação de Arte Brasileira – FAAP, São Paulo, 19 ago. 1977
apud DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 257.
186 Cf. DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 257.
FIGURA 065
Mira Schendel, Objeto gráco, 1967-68
letraset e óleo s/ colagem de papel-arroz entre
duas placas de acrílico,
50 x 50 cm
col. particular, São Paulo
(DIAS, 2009, p. 260)

2.5.5. Cadernos
Os icos pretendem que o êxtase lhes revele uma câmara
circular com um grande livro circular de lombada contínua,
que siga toda a volta das paredes; mas seu teemunho é
suspeito; suas palavras, obscuras. Esse livro cíclico é Deus.
Jorge Luis Borges
Como uma extensão de suas pesquisas sobre transparência, Mira Schendel dava
sequência ao trabalho iniciado com acrílico nos objetos gráficos, produzindo uma rie de cadernos
(Figs. 066-068) onde a sequência das páginas e seu ritmo, imprimiam progressivas composições
seriadas de signos alfabéticos, símbolos ou números. Dias
187
descreve ees cadernos como,
basicamente compoos por folhas de acetato, papel branco ou transparente e encadernados por
capas de papelão ou aclico. Em sua maioria, os cadernos têm suas lâminas agrupadas por um
único pino ou parafuso, fazendo com que o conjunto se eruture em torno de um eixo circular
que permite às páginas serem folheadas pelo simples girar.
O conceito norteador dos cadernos de Mira Schendel geralmente assenta–se em
queionamentos de ordem filosóca e lógico–matetica, sob o que se poderia chamar deteoremas
leigos”
188
. Na maioria deles fica evidente, desde sua eruturação, a presença do círculo enquanto
forma condutora, tanto no manuseio quanto na leitura desses verdadeiros livros de artia.
187 Cf. DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 275.
188 AMARAL, Aracy A. Arte e meio artístico: entre a feijoada e o x-burguer. São Paulo: Nobel, 1983, p. 184.
FIGURA 066 - GIRO
Mira Schendel, Sem título (Caderno), 1971
papel e acrílico,
6 x 20 x 7 cm
col. Alfredo Hertzog da Silva, São Paulo
(DIAS, 2009, p. 274)

Enquanto elemento condutor, o rculo remete, inantaneamente, à simultaneidade
que também é explorada nos objetos gráficos, colocando-se como mediadora das propoas a
serem levadas ao observador e como tentativa de solucionar eas mesmas propoas. Por meio de
um delicado jogo lúdico, a circularidade inaura uma leitura em contínuo, onde as capas agem
apenas como indícios de um princípio e fim arbitrários. As marcações de margens possíveis, mas
não obrigatórias, são ultrapassadas pelo conjunto evolutivo incessante, através de permutações
e combinações de signos alfabéticos, interferindo em nossa capacidade perceptiva. O olhar que,
dinamicamente, circundava e atravessava os objetos gráficos, agora se xa em um ponto, enquanto
o caderno passa a girar em torno dele.
FIGURA 067 - UM “TEOREMA LEIGO”
Mira Schendel, Sem título (Cadernos), 1971
letraset sobre papel encadernado
20 x 20 cm
col. particular, São Paulo
(DIAS, 2009, p. 277)

Um exemplo dee jogo de mutação circular e despojamento do sentido erutural
de uma letra por meio do manuseio do objeto arico é o caderno da artia (Fig. 067), onde
a letra pem rotação, por meio do folhear das páginas, transforma–se em b, dou q.
A esse jogo, Mira Schendel acrescentaria outros cadernos, como o do “nou “o, e que Aracy
Amaral sintetiza no trecho: “O ponto de via eá. Mas, igualmente não eá, conforme se
comprova na leitura e manuseio. Aqui, curiosamente, a precisão se funde como o elemento mágico
diante do branco sobre branco.
189
Mira subverte, assim, não apenas a lógica ocidental de leitura das letras e palavras,
da esquerda para direita e de cima para baixo, como também mora o quanto essa lógica
muitas vezes pode ser a determinante do que esse signo representa. Ao girar a superfície,
essa ordem se adapta à nova posição do signo e, com isso, sua compreensão também se altera.
Uma maneira delicada e lúdica da artia refletir sobre como o ponto de via é simplesmente
isso: um ponto, dentre tantos outros exientes do lado do objeto ou do lado do observador.
Com seus cadernos parece ficar claro que, mesmo a partir de eruturas o lógicas como o círculo
ou o alfabeto, o sentido, nas duas acepções do termo, tanto em relação a significado quanto a
direção, é apenas mais um, entre uma infinidade de tantos outros sentidos possíveis.
189 AMARAL, Aracy A. Arte e meio artístico: entre a feijoada e o x-burguer. São Paulo: Nobel, 1983, p. 184.
FIGURA 068 - DOCUMENTA
Cadernos da artista exposto na Documenta 12
Kassel, 2007
<http://2.bp.blogspot.com/_SumNupDynRI/SMhW_vaRdfI/AAAAAAAAAGM/
ctuTbiLqhO4/s1600-h/Mira_Documenta12_a.jpg>

2.5.6. Toquinhos
[...] cada vez que olhava mais demoradamente uma
prateleira, para ver o que continha exatamente, ea parecia
sempre vazia, enquanto as outras em volta transbordavam
de coisas, além de sua capacidade.
- As coisas aqui o tão fugidias! disse ela por fim em tom
queixoso, depois de gaar um ou dois minutos perseguindo
um objeto brilhante, que às vezes parecia uma boneca,
outras vezes um eojo, e eava sempre na prateleira de
cima daquela que ela eava olhando.
Lewis Carroll
FIGURA 069 - GANHANDO CORPO
Mira Schendel, Sem título (Toquinhos), 1973
letraset e acrílico sobre placa de acrílico
47 x 26 x 4 cm
col. particular, São Paulo
(PÉREZ-ORAMAS, 2009, p. 161)

Dias
190
escreve que, do início dos anos de 1970, junto com os cadernos, os Toquinhos
(Figs. 069-071) seriam as últimas ries de trabalhos de Mira Schendel predominantemente ligadas
às suas preocupações com a transparência ou a escrita. Rapidamente, tais queões ganhariam
um interesse secundário nas séries subsequentes, devido à retomada da pintura pela artia, até
desaparecerem por completo.
Os Toquinhos se organizavam por meio da disposição em linhas e colunas de pequenas
formas de acrílico, geralmente quadrangulares, coladas sobre placas do mesmo material transparente.
190 Cf. DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 283.
FIGURA 070
Mira Schendel, Sem título (Toquinhos), 1972
letraset e blocos de acrílico montados sobre placa de acrílico
50 x 50,5 x 1,4 cm
col. Ricard Akagawa, São Paulo
(MARQUES, 2001, p. 93)

Ees blocos continham letras e outros sinais gficos em letraset, gravados sobre eles ou então
comprimidos entre eles e as placas de acrílico. Por meio de iluminação direcionada, os toquinhos
dependurados a certa diância da parede, projetavam contornos de letras, linhas geométricas e
outras formas difusas entre luminosas e sombreadas.
191
Se o leitmotif da transparência e da escrita, que acompanhara boa parte do percurso
artíico de Mira até agora, caminhava para um plano secundário, rumo ao ressurgimento vigoroso
da pintura, curiosamente, os Toquinhos sugerem o contrário. Pelo menos em princípio. Afinal, a
escrita e sua relação com a transparência do suporte tendem a se exacerbarem nesses trabalhos.
191 Cf. DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 283.
FIGURA 071 - MATÉRIA E DISSOLUÇÃO
O acrílico deixa passar a luz e projeta
suaves sombras sobre as paredes à
partir de seus volumes transparentes e
das letras em sua superfície.
Mira Schendel, Sem título (Toquinhos),
1972
letraset e acrílico sobre acrílico
46 x 20,5 x 3 cm
col. Esther Faingold, São Paulo
(DIAS, 2009, p. 282)

A transparência parece atingir um tal grau de concretude, que chega a ser possível
cortá-la em tabletes. E é exatamente o que Mira faz. Tanto nos trabalhos com acrílico das
figuras 070 e 071, como em suas colagens de papel japonês tingido sobre papel (Fig. 072 e 074).
É como se, à medida que Mira rearmou, cada vez mais, a condição visual da escrita, o material
do suporte também pôde tornar-se mais consciente de seu potencial visual. A tal ponto, que a
própria matéria do suporte recortada em pequenos retângulos, se converteu, simultaneamente,
em elemento compositivo e em signo de si mesma. Fazendo lembrar e, talvez, intertextualizando
com séries anteriores de pintura da artia (como as Figs. 030 e 031 no início dee capítulo), o
relevo em acrílico dos pequenos blocos que saltam da superfície das placas maiores (Figs. 069 e
071) sugere ea impaciência” do suporte para deixar de ser matéria de fundo e também atuar
em primeiro plano.
Esse tamm parece ser o espírito que impregna os papéis-arroz recortados e tingidos,
que em 1977, chegam ao ponto extremo de falar”. Em alguns trabalhos desse ano, os pequenos
retângulos de Mira também intertextualizam com os quadrinhos dos gibis através das citações
que Mira faz desse universo, tomando de empréimo alguns elementos de sua linguagem.
A artia desenha balões de fala, como os das hiórias em quadrinhos, sobre os pequenos quadrados
coloridos e escreve diálogos” e onomatopeias com letraset. Se nos gibis, a divisão da página
em quadros tem, usualmente, a função de delimitar os diferentes momentos de uma hiória,
nees trabalhos os retângulos também m função na composição. Só que de maneira ambígua,
uma atitude recorrente no universo de Mira. Pois não é possível armar se ees recortes ainda
desempenham seu papel tradicional de enquadramento esquemático de cenas de hiória imaginárias
passadas dentro de sua opacidade colorida, ou se agem como personagens concretos em uma cena
que Mira cria na área maior do papel branco onde eão posicionados. O mais provável é que as
duas coisas ocorram em simultâneo.
Quanto à escrita, se a caligrafia de outrora, como as palavras fluidas das monotipias,
não participa desses trabalhos, os caraeres de letraset se reafirmam mais que nunca. Separados,
agrupados e diribuídos em diferentes corpos, desde enxames minúsculos, a exemplares únicos
em torno de 5 cm, as letras possuem uma presença” visual e concreta que sobrepõe em muito
seu âmbito linguíico, no caso dos trabalhos em acrílico.

Já nos “quadrinhos”, a letraset conrói frases ou expressões, em sua maioria, inteliveis.
No entanto, a delimitação de balões em torno deas palavras recaptura-as para um contexto
visual. Recordemos a caligraa redonda e cuidadosa que Magritte emprega na maioria de suas
pinturas, como em “Io não é um cachimbo”, onde a escrita posicionada abaixo da imagem de
um cachimbo é similar à escrita cursiva de uma lão escolar. Perceberemos o quanto a exaltação
dee tratamento caligráfico, quase como um paiche de escrita escolar, contribui para reforçar
o cater visual que Magritte dá à ppria escrita e, evidentemente, toda a ironia que permeia sua
FIGURA 072 - QUADRINHOS
Mira Schendel, Sem título (Toquinhos), 1977
letraset, papel tingido e caneta s/papel
49 x 25,5 cm (cada folha)
Galeria Milan, São Paulo
(PÉREZ-ORAMAS, 2009, p. 159)

mensagem. Nee trabalho de Magritte a escrita é escrita mas é, também, uma representação de
escrita. A escrita é, simultaneamente, uma imagem de si mesma. Nos quadrinhos de Mira o balão
de diálogo atua de modo similar. Como não exiem balões brancos com letras de forma sobre as
cabeças das pessoas no mundo sensível, o balão é um signo visual que convenciona a representação da
comunicação entre personagens que figuram em um gibi. Ao inserir a escrita no contexto visual do
balão e transpô-lo para sua obra, Mira opera como Magritte, e converte a escrita, simultaneamente,
em enunciação e em imagem de escrita através da citação visual que faz dee elemento.
FIGURA 074 - SANTA INTERTEXTUALIDADE BATMAN!
Mira Schendel, Sem título (Toquinhos), 1977
letraset, papel tingido e caneta s/papel
49 x 25,5 cm (cada folha)
Galeria Milan, São Paulo
(PÉREZ-ORAMAS, 2009, p. 159)
FIGURA 073 - ISTO NÃO É UM CACHIMBO
René Magritte, La Trahison des Images [A traição das imagens],1928-29,
óleo s/ tela
< http://en.wikipedia.org/wiki/File:MagrittePipe.jpg>

Assim, os queionamentos de Mira sobre a visualidade e a transparência, através
da ambiguidade da escrita e da superfície, parecem chegar a um transbordamento, em que eas
abordagens em trabalhos anteriores, sob outros ângulos, convergem aqui de maneira acentuada.
Mas ee excesso talvez seja, exatamente, a evidência de uma derivação em sua trajetória, rumo
ao “vértice de uma curva progressiva”
192
, em que a opacidade material e, muitas vezes, volumosa
do suporte, ganha corpo nos trabalhos seguintes. Neles, a escrita surge raramente, tal como
nos trabalhos essencialmente escriturais em que, algumas vezes, parece haver um eco de séries
anteriores, como as Fachadas que reverberam nos Datiloscritos. Mas desse ponto em diante na
trajetória de Mira, ea pesquisa se despede da obra da artia para se deter sobre os trabalhos
que mantêm maior proximidade com seu foco de interesse.
Os Toquinhos foram, junto com os outros trabalhos morados nee capítulo, as
principais séries de Mira Schendel em que Dias
193
deaca a utilização de signos verbais, sejam
caligráficos ou de imprensa. Em todos eles, o elemento alfabético possui um caráter também
visual. Seja a manifeação dessa visualidade de forma transcendente, no caso das monotipias,
seja nas demais séries, onde a queão conrutiva se coloca com mais intensidade.
Nos próximos capítulos propõe-se um retorno a ees trabalhos para explorar outros
aspeos, conceitos e leituras, com a intenção de ampliar a percepção das relações entre palavra,
imagem e superfície a partir da obra de Mira Schendel.
2.6. Interpretações
O homem sabe que não pode abarcar o universo com seus
sóis e suas erelas. Muito mais insuportável para ele é ser
condenado a ficar sem o outro infinito, esse innito bem
próximo, ao seu alcance. Tamina ficou sem o infinito de
seu amor, eu fiquei sem papai e cada um fica sem sua obra,
porque, na busca da perfeição, vamos ao interior da coisa,
e aí não podemos nunca ir até o fim.
Milan Kundera
192 DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 291.
193 Cf. DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 283.

Segundo Dias
194
, Max Bense interessou–se baante pelo trabalho de Mira e escreveu
uma “desintrodução” (ausleitung) para uma exposição da artia com quarenta desenhos na Galeria
de Eudos da Escola Superior Técnica de Stuttgart e para uma edição da revia rot dedicada a
ela, ambas introduzidas pelo poema de Haroldo de Campos:
[...] depois que meu amigo Haroldo de Campos introduziu ees caligramas gficos,
eu goaria de desintroduzi–los. Dea maneira eles ficam engaados em palavras;
eles, de certo modo, emergem delas, para nelas de novo reimergirem; desvio do
escrito, dispersão do anotado, sua redução gráca suspende a erutura linguíica em
favor da piórica.
195
Max Bense ressalta o trabalho de Mira Schendel enquanto busca pelo
essencial: “[...] aquilo que se passa, passa–se sobre a mais extrema pele da subância do
mundo, ali onde o mundo poderia começar a inltrarse na consciência, na linguagem.
196
Io aproxima–se do que Flusser comenta sobre o que seriam transparência e significado para a artia.
194 Cf. DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 219.
195
BENSE, Mira Schendel grafische reduktionen, texto para catálogo de exposição e revista rot, Stuttgart, n. 29, 1967, traduzido por
Haroldo de Campos in: BENSE, Max. Pequena estética. São Paulo: Perspectiva, 1971, p. 225 apud DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel:
Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 219.
196
BENSE, Mira Schendel grafische reduktionen, texto para catálogo de exposição e revista rot, Stuttgart, n. 29, 1967, traduzido por
Haroldo de Campos in: BENSE, Max. Pequena estética. São Paulo: Perspectiva, 1971, p. 225 apud DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel:
Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 219.
FIGURA 075
Mira Schendel, Objeto gráco, 1967-68
óleo s/ colagem de papel-arroz entre duas placas de
acrílico, 100 x 100 cm
Daros-Latinamerica Collection, Zurique
(DIAS, 2009, p. 273)

A partir de um conceito ou ideia, Mira Schendel tentava torná–lo imagem, uma imagem essencial
e desalienadora como ponto de partida para mudar nossa relação com o concreto do mundo,
ampliando nossa consciência dele.
197
Algo que parece chamar a atenção de ambos os autores no
trabalho de Mira Schendel, é a busca de uma palavra/imagem essencial que precede a exiência
da língua, livre de suas interdições e condicionamentos (Figs. 075 e 077).
[...] o ‘a’ de Mira Schendel não exie fora, mas sim dentro de você
mesmo. Por meio de lembranças e análises você o entra na arte; somente
se vo as vivenciar, compreenderá o pensamento da artia. O ‘a’ dança na
197 “Mira procede da seguinte maneira: (a) encontra um conceito no curso de sua vida, e procura imaginá–lo, para poder compreendê–lo;
(b) procura transformar a imagem em coisa concreta. Desta forma, tem a obra de Mira função violentamente desalienadora.
Um dos aspectos da nossa alienação é a inimaginabilidade dos nossos conceitos. Tal alienação é superável por nova força imaginativa,
a qual Mira nos oferece.” In: FLUSSER, Vilém. Bodenlos: uma autobiografia filosófica. São Paulo: Annablume, 2007, p. 190.
FIGURA 076 - MUNDO
O último “o” da palavra italiana “mondo” se transforma em um grande círculo que remete à própria
imensidão nas duas monotipias e que é reforçada pela repetição da palavra “alle” (tudo).
Mira Schendel, Sem título, 1965
óleo s/ papel arroz, 47 x 23 cm (cada trabalho)
coleção Sandra e William Ling, Porto Alegre
(DIAS, 2009, p. 196)

Terra e espelha–se no céu que exie dentro de nós: um vazio, do qual se
originam todas as forças. [...]Se nos transportarmos, real e totalmente, para
os desenhos de Mira Schendel, conseguiremos sair dos compartimentos da linguagem
que frequentemente nos aprisionam.
198
No trecho anterior, Dietrich Mahlow, em uma carta a Geraldo Souza Dias, tenta
reproduzir poeticamente os eímulos causados pelo trabalho de Mira. Ao falar do vazio originário
nea passagem, o hioriador faz uma aluo ao u enquanto presea na obra da artia, fazendo
lembrar a anterior analogia sobre conelações. Além disso, nas monotipias das guras 044 e
076, palavras como ‘erne’, ‘etoilee erelas no céu, junto com ‘alles regen und tau (toda a chuva
e orvalho) desfazem-se das formas redundantes dees elementos para evocá-los apenas em sua
esncia, desenhando fragmentos de uma paisagem conelada enquanto escrita, assim como os pares
celees de páginas do Coup de Dés de Mallarmé. Mas talvez dentre as interpretações de Mahlow a
que mais evidencia a inância visual das palavras e sua sobreposão ao aspeo linguíico, eeja
em outro trecho na mesma carta: “Imagens de letras, imagens de palavras, imagens com escrita.
Aqui o hioriador identifica a possibilidade de superação dos condicionamentos impoos pela
linguagem e que se pode perceber nas monotipias da figura 076, em que o último o” da palavra
italiana mondo” se transforma em um grande rculo que remete à própria imensidão, que é
reforçada pela repetição da palavra alle” (tudo) do alemão. Ao mesmo tempo, outras expressões,
como sole luajunto ao diáfano branco do papel, sugerem um flutuar sem gravidade, que
tanto pode ser na atmosfera rarefeita, quanto imerso no líquido primordial. Essa sobreposição de
início e fim, assim como das iias de origem e de além, que a sugeão de céu e útero carregam,
cancelam temporariamente os interditos de tempo e, também de espaço, fazendo coexiir
múltiplos espaços e tempos em uma mesma composição. Isso faz lembrar o espaço fluido do
sonho, onde os limites entre o agora e o depois, assim como entre o aqui e o se deixam permear.
É nesse espaço, que tanto as imagens quanto as palavras emergem pelo mesmo processo, a
imaginação, que consie, de maneira simplificada, em realizar imagens.
Roland Barthes aponta uma função primordial do texto em todas as sociedades, onde
desenvolvem-se “[...] técnicas diversas deinadas a xar a cadeia flutuante de significados, de
modo a combater o terror dos signos incertos: a mensagem linguíica é uma dessas técnicas.
199
198 MAHLOW, Dietrich. Carta a Geraldo Souza Dias, Seeheim, 24 ago. 1997 apud DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à
corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 247.
199
BARTHES, Roland. O óbvio e o obtuso: Ensaios Críticos III. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. 32.

Para o autor, numa de suas funções primárias, frente a uma imagem e sua possibilidade de proliferação
indefinida de sentidos, a mensagem linguíica poderia funcionar como um ordenador de sentido,
selecionando e controlando significados. Nesse processo, a mensagem linguíica tem, inclusive,
o caráter de interdição a conotões muito íntimas, fazendo com que a interpretação de uma imagem
seja mais homogênea, ao afaar-lhe de particularismos, mantendo-a num nível acessível e mais
aceitável para um grupo maior de pessoas. Mas na obra de Mira é o pprio elemento linguíico
o conituinte da imagem a proliferar–se em inúmeros sentidos, transbordando as margens entre
linguagem e imagem; indício de superação da função xadora do elemento linguíico definida por
Barthes. Desse modo, o é à toa que Mahlow fala da importância de um mergulho do espeador
na obra, buscando identificações pessoais para então alcançar um eado de transcendência.
“É por isso que a obra somente é obra quando ela se converte na intimidade aberta de alguém
que a escreveu e de algm que a leu, o espaço violentamente desvendado pela conteação mútua
do poder de dizer e do poder de ouvir.
200
O trabalho de Mira Schendel suspende as interdições às interpretações íntimas de
sentido, pois sua escrita, apresentada apenas como essência de escrita, permite essa expansão
ao flutuar livre no espaço transparente (Fig. 076 e 077). Nee espaço, uma mesma palavra em
diferentes idiomas, muitas vezes ultrapassa os horizontes de suas origens, combinando-se em
uma língua diferente e nova na qual reverberam diintos sons e imagens para cada leitor.
200 BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987, p. 29.
FIGURA 077
Mira Schendel, Objeto gráco, 1967-68
óleo s/ colagem de papel-arroz entre duas
placas de acrílico,
100 x 100 cm
Daros-Latinamerica Collection, Zurique
(DIAS, 2009, p. 273)

CAPÍTULO 3: VAZIO
3.1. O indecidível
Sim, o que te escrevo não é de ninguém. E essa liberdade de
ninguém é muito perigosa. É como o infinito que tem cor
de ar. [...] De que cor é o infinito espacial? é da cor do ar.
Nós – diante do escândalo da morte.
Clarice Lispeor
No capítulo anterior foi descrito o percurso de Mira Schendel a a irrupção
de suas diferentes séries com elementos alfabéticos, principalmente as monotipias. Em meio
às transformações do tratamento dado pela artia a ees elementos, obras de nomes como Karlheinz
Stockhausen, Stéphane Mallarmé e René Magritte, foram convocadas por intertextualizarem
com o trabalho da artia e o pensamento de autores como Roland Barthes, Haroldo de Campos
e Maurice Blanchot auxiliaram nea abordagem.
Nee capítulo pretende-se dar continuidade à exploração das composições de palavras
e elementos linguíicos criados pela artia, mas por seu viés em negativo, ou seja, pelo vazio
e pela transparência que os envolvem e os atravessam. Por sua grande importância na obra
de Mira Schendel, de imediato, o que se poderia dizer sobre o vazio é que ele reforça a presença
da palavra, não num sentido de xão e convergência de sentido, mas de profuo dele. Subvertendo
a compreensão usual do termo preto no branco, o branco do papel japonês ou o acrílico crialino
envolvem os geos gráficos de Mira, ao mesmo tempo em que se dianciam deles. Ees suportes
agem como uma forte luz, que projetada sobre um prisma, refrata-se em inconveis e simultâneas
facetas luminosas: inúmeras palavras, reflexos e ressonâncias visuais de uma mesma palavra,
somente apreensíveis em toda a sua extensão por sua relação com o vazio que as acolhe e as
faz ecoar em nossa percepção.
A pesquisa enveredou pelos eudos de Anne-Marie Chriin
201
, que na tentativa
de desconruir o modelo fonocêntrico da origem da palavra no ocidente, explora a influência
da imagem e da superfície na escrita. Baseado na concepção da autora, que na branca superfície
do suporte tudo menos uma presença nula, o vazio no trabalho de Mira parece adequar-se a
201 Este estudo se apoiou em quatro fontes de referência do trabalho de Anne-Marie Christin, os livros: History of Writing: from hieroglyph
to multimedia. Paris: Flammarion, 2002; L’ image écrite: ou La déraison graphique. Paris: Flammarion, 2001; Poétique du blanc: vide
e intervale dans la civilization de l’alphabet. Paris: VRIN, 2009; e um texto da autora, A imagem enformada pela escrita, publicado por
Márcia Arbex em Poéticas do visível: ensaios sobre a escrita e a imagem. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, Programa
de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários, 2006, p. 63-105.

ea forma de leitura. Complementando a tese defendida por Anne-Marie Chriin, o livro de
Haroldo de Campo, Ideograma: lógica, poesia e linguagem,
202
explora os eudos de Erne Francisco
Fenollosa a respeito da influência da superfície piórica na criação da escrita ideográfica chinesa
e sua relação com um pensamento dinâmico e espacial.
O eudo retoma novamente o neoplatonismo, mas dessa vez, indiretamente, através
de críticas que Haroldo de Campos faz à sua inflncia no pensamento e escrita ocidentais, através
de colocações de Jacques Derrida e de Fenollosa em relão ao fonocentrismo. A conatação a que
se chega é que a erutura linguíica e o pensamento ocidentais se recusam a um reconhecimento
do espaço em branco e do vazio, assim como o fazem com o elemento visual da escrita.
Devido à ameaça que representam ao fechamento de sentido encabeçado pelas eruturas baseadas
na sintaxe predicativa, tanto o vazio quanto o que ele pode representar de interferência em função
de uma disseminação do sentido são rechaçados pela escrita e lógica ocidentais. Nea parte do
eudorios comentários valiosos de Roland Barthes
203
elucidam sobre o “fechamento da frase”
e dialogam com as concepções de Maurice Blanchot
204
a respeito do fora.
Nessa discussão conroem-se as bases para se pensar as relações do vazio com a
temporalidade, a transparência e o fora através da leitura de alguns trabalhos de Mira Schendel,
mais especificamente, de cadernos da artia.
Em sua última parte, ee capítulo resgata a crítica de Jean Dubuffet
205
às limitações
impoas pela escrita e o léxico contra o pensamento em continuum natural ao plano visual.
Alguns dos pontos de via de Dubuffet o contrapoos às pesquisas de Mira Schendel, exploradas
através de suas monotipias e objetos gficos. A maneira como os aspeos espaciais desses
trabalhos operam em função de um indecidível o intertextualizadas com colocações de Maurice
Blanchot
206
a respeito da errância e da impossibilidade de fechamento de sentido: condição essencial
de uma obra como a de Mira. Isso completa o trajeto dee eudo à respeito das possibilidades
visuais das palavras, de sua pluralidade de sentido e de suas indissociáveis relações dinâmicas e
significantes com o espaço e o vazio.
202 CAMPOS, Haroldo de (org.). Ideograma: Lógica, Poesia, Linguagem. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000.
203 BARTHES, Roland. O grau zero da escrita: seguido de novos ensaios críticos. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 1987.
204 BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita – 1: A palavra plural. São Paulo: Escuta, 2001.
BLANCHOT, Maurice O livro por vir. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
LEVY, Tatiana Salem. A experiência do fora: Blanchot, Focault e Deleuze. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003.
205 DUBUFFET, Jean. Préface. In: THÉVOZ, M. Le langage de la rupture. Paris: Presses Universitaires de France, 1978, p. 5-8. apud:
DANTAS, Marta. Escritos brutos e outros escritos: a “experiência limite” em questão. XI Congresso Internacional da ABRALIC:
Tessituras, Interações, Convergências. USP: São Paulo, 13 a 17 de julho de 2008. Disponível em: <http://www.abralic.org/anais/
cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/005/MARTA_DANTAS.pdf> acesso em 8/9/2010.
206 BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita – 1: A palavra plural. São Paulo: Escuta, 2001.

3.2. Céus, pedras ou ossos: espaços de relações signicantes
Eou nee inante num vazio branco esperando
o próximo inante. Contar o tempo é apenas hipótese
de trabalho. Mas o que exie é perecível e io obriga
a contar o tempo imutável e permanente. Nunca começou
e nunca vai acabar. Nunca.
Clarice Lispeor
FIGURA 078 - O CÉU COMO TELA
Nossos ancestrais foram capazes de observar o espaço innito, a superfície original, e traçar signicados pela sugestão de seus pontos.
(ESA/Hubble & Digitized Sky Survey 2) <http://1.bp.blogspot.com/_viputHRpZ2A/S6uNcu6xAtI/AAAAAAAADLk/mfhfJ0PPGqk/s1600/heic1005d.jpg>

Para Anne-Marie Chriin, em todas as sociedades as palavras e as imagens admitem
acesso a diintos universos.
207
Enquanto a escrita permite que, dentre outras coisas, haja uma
transmissão das narrativas e dos mitos de geração a geração, a imagem possibilita a comunicação
desses grupos com mundos além de sua língua. A imagem acesso ao sagrado, que se manifea
por meio das visões e dos sonhos. A imagem revela o invisível
208
, diria Charles Baudelaire, tal
é a imancia desveladora que ea parece sugerir. Mas não são apenas os traços ou pinceladas
de uma imagem que operam dessa maneira, mas a superfície que a compõe também age como
espaço para revelação de segredos, como atea Mallarmé, um dos primeiros poetas a utilizar o
espaço branco dagina em seu Un Coup de Dés: “Poetizar pelas artes pláicas, inrumento de
preígios diretos, parece, sem intervenção, o fato de o ambiente despertar nas superfícies seu segredo
luminoso.
209
Dea breve afirmação pode-se antever a importância da superfície na conituição
da imagem, o que inclusive chegou a ser explorado através do conceito de tessitura nee eudo.
Mas se a ligação entre a superfície e a imagem se dá de uma maneira em que uma coisa e outra
praticamente se tornam indiinguíveis, curiosamente, no âmbito da escrita a associação entre a
superfície e o texto é usualmente menosprezada. Aliás, não é somente a relação entre superfície
e texto que é poa de lado, mas também o próprio caráter do texto enquanto sinal gráfico.
Ee entendimento fundamenta-se na concepção de que o alfabeto ocidental é
exclusivamente fonético e os signos que o comem o guardam nenhuma relação de semelhança
com o que é representado, referindo-se tão somente aos sons da fala. Dentro dessa tradição, o
sensível eá subordinado ao inteligível, ou seja, o significante (a palavra falada ou escrita) exie
para dar acesso ao significado. O significante cumpre o papel de transmitir da maneira mais
transparente posvel o pensamento, que é aado à posição de valor ximo desse siema. A fala,
por sua imaterialidade e pela exigência da presea do enunciador, é classificada como em contato
direto com o sentido, ao passo que a escrita, tratada como um derivado da fala, é conituída por
um conjunto de “[...] sinais físicos divorciados do pensamento que pode tê-los produzido.
210
207 Cf. CHRISTIN, Anne-Marie. A imagem enformada pela escrita in: ARBEX, Márcia (org.). Poéticas do visível: ensaios sobre a escrita e a
imagem. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários, 2006.
208
BAUDELAIRE, Charles. Exposition universelle de 1855. in: Curiosités esthétiques. Paris: Ganier Frères, 1962, p. 237. apud: CHRISTIN,
Anne-Marie. A imagem enformada pela escrita in: ARBEX, Márcia (org.). Poéticas do visível: ensaios sobre a escrita e a imagem. Belo
Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários, 2006, p. 63.
209
MALLARMÉ, Stéphane. Berthe Morisot in: Quélques médaillons et portraits en pied. Igitur, divagations. Paris: Gallimard, 1976, p. 166.
apud: CHRISTIN, Anne-Marie. A imagem enformada pela escrita. in: ARBEX, Márcia (org.). Poéticas do visível: ensaios sobre a escrita
e a imagem. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários, 2006, p. 64.
210
CULLER, Jonathan D. Sobre a desconstrução: teoria e crítica do pós-estruturalismo. Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Tempos, 1997, p. 116.

Diferentemente da fala, a escrita funciona na ausência do enunciador e pode, até mesmo,
agir independentemente de qualquer autor ou locutor, deixando o leitor livre para interpretações
diintas da pretendida quando o texto foi escrito. Ee dianciamento entre a vontade do autor
e a ação da escrita faz com que, num contexto onde o pensamento é tido como o valor ximo,
toda a possibilidade de autonomia da escrita, que pode vir assim a transmutar-se em escritura,
211
seja via como uma inconvenncia a ser controlada: o autor não eá presente junto ao texto
para corrigir interpretações e elucidar seu interlocutor, mas supoamente teria como fazê-lo no
caso da fala. Logo, os critérios de clareza, objetividade e concisão são aplicados à escrita para
garantir o mínimo de imprecisão possível, assegurando que a comunicação pretendida através
do texto ocorra tanto mais fiel ao autor quanto lhe é a fala. Sob ee ponto de via, a escrita tem
sua exiência atrelada à fala, que é elevada a modelo de representação e da qual a escrita, por ser
considerada uma dioão, é rebaixada à categoria de meio de reprodução. A escrita torna-se um
duplo imperfeito da voz e cujos signos escritos, plenos de possibilidades visuais, são achatados
como simples elementos fortuitos. Ea primazia da fala sobre a escrita é respaldada por Ferdinand
de Saussure, que arma que o objeto da análise linguíica não se define pela combinação escrita
com a palavra falada; a palavra falada conitui unicamente o objeto.
212
Anne-Marie Chriin
213
defende que a escrita não conitui uma reprodução da fala,
mas teve, além disso, sua gênese na elaboração de uma erutura proveniente da imagem, e sobre
a qual os elementos do siema da fala que lhe eram compatíveis foram integrados. A influência
da fala sobre a escrita seria, assim, de ordem poerior, quando a escrita tivesse sofrido sua
gênese decorrente da imagem. Para ea autora, a tese da escrita enquanto representação da fala
ampara-se em dois poulados que intencionam negar a importância da imagem para a criação
da escrita na civilização ocidental. Ee intuito torna-se mais evidente ao levar-se em conta a
importância do fonocentrismo nea civilização, que confere mais legitimidade à palavra falada
do que à escrita como vetor do pensamento.
211 O termo escritura está sendo usado aqui no sentido barthesiano, como uma escrita na qual a função poética se sobrepõe à sua
função referencial ou cognitiva.
212
SAUSSURRE, Ferdinand de. Cours, p. 45 apud: CULLER, Jonathan D. Sobre a desconstrução: teoria e crítica do pós-estruturalismo.
Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Tempos, 1997, p. 115-116.
213 Cf. CHRISTIN, Anne-Marie. A imagem enformada pela escrita in: ARBEX, Márcia (org.). Poéticas do visível: ensaios sobre a escrita e a
imagem. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários, 2006.

O primeiro dos poulados, que é relacionado à aparição dos piogramas, afirma,
sob uma acepção realia da figura, que eles seriam o desdobramento das imagens de coisas.
Para a autora foi ee enfoque na representação realia que respaldou a concepção saussurriana
de signo como unidade referencial fixa e, em paralelo, serviu como juificativa para a valorização
apenas do componente fonético na formação da escrita. A valorização apenas dee componente
deixa de lado a possibilidade relacional entre as figuras dos piogramas e ampara-se na conclusão
de que sua função representativa não lhes permitia mediar termos abratos ou gramaticais.
Refutando ea concepção exclusivamente representativa da imagem dos piogramas,
Chriin ressalta como André Leroi-Gourhan
214
demonrou que, mais que imagens de coisas,
os primeiros desenhos pintados sobre as paredes das cavernas pelo homem pré-hiórico refletiam
um pensamento simbolizador passível de abrações o que, portanto, qualificava ees desenhos
a desempenhar funções atribuíveis à escrita. Chriin deaca que, no entanto, ao propor o
pensamento simbolizador por detrás dos piogramas, ee autor lhes conferiu a condição de
mitograa, submetendo-os assim ao segundo poulado contra a influência da imagem no
desenvolvimento da escrita: a ligação entre mitos e a origem dos piogramas, que sujeita ees
signos a narrativas orais e determina a fala como causa do surgimento da escrita.
Para que se eabeleça a ascendência icônica da escrita com propriedade,
a autora ressalta a importância da análise dos piogramas incluir seu suporte junto das imagens
que os compõe:
[...] se o homem pôde ter a ideia de combinar figuras-símbolos sobre uma superfície,
e io de tal maneira [...] que elas formavam, em conjunto, um sentido, ele teve
necessariamente que conceber previamente, io é, antes de as escolher e até mesmo
de as imaginar, o suporte do qual iria fazê-las surgir e ordenar sua diribuição.
215
214
O pesquisador francês, André Leroi-Gourhan estudou as línguas orientais antes de se dedicar à etnologia e à arqueologia. Muito
versátil, deixou importantes contribuições para diversas áreas de estudo como a antropologia, a etnologia e a pré-história. As
descobertas de Leroi-Gourhan sobre a hominização são notáveis. Nelas ele lança a hipótese de que a invenção e uso de instrumentos
permitiu o aumento do crânio humano e incremento da capacidade cerebral, com consequente desenvolvimento das habilidades de
simbolização do homem. (Cf. LEROI-GOURHAN, André. Le geste et la parole. Paris: Albin Michel, 1964-1965).
215
CHRISTIN, Anne-Marie. A imagem enformada pela escrita in: ARBEX, Márcia (org.). Poéticas do visível: ensaios sobre a escrita e a
imagem. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários, 2006, p. 65.

Sob ea ótica, buscar no traço da figura a origem da escrita, significa atropelar
o suporte, pois a inveigação da evolução da figura na escrita é abordada quando o traço já fora
eabelecido pelo “[...] geo que visa representar um ato de enunciação.
216
Depois de inscrito ee
traço, o suporte que o recebera já o tem quase nenhum efeito sobre o desdobramento da imagem
em escrita, o que dificulta ainda mais a possibilidade de compreensão de sua influência.
Para entender como os homens conduziram-se em sucessivas etapas da imagem até
a escrita, é importante que se retome o momento anterior à inituição de qualquer traço.
O momento mesmo em que o suporte é indissociável da condição que gerou as figuras. Textura,
densidade, colorão, forma ou outros aspeos que caraerizam eas superfícies, indiscutivelmente,
m influência no resultado das figuras que nelas foram inscritas. Todavia, observar as superfícies
para definir e avaliar suas caraeríicas é próprio de um tipo de pensamento que, para identificar
um objeto, decompõe-no em termos separados e despreza aquilo que escapa a critérios de
diferenciação. Mais do que dissecar as superfícies onde surgiram os traços que levaram à criação da escrita,
é preciso compreender em que contexto ees suportes primordiais eram vios pelos homens de então.
Quando do surgimento da escrita, mais do que o visível da superfície, é o invisível
que desempenha um papel fundamental para o homem, conforme Chriin ressalta em Poétique
du blanc.
217
Evidentemente, o objetivo principal da criação da escrita nas sociedades humanas
associa-se à comunicação, contudo, a escrita não se resume à exclusiva notação da fala, pois o
signo que surge da imagem nem sempre possui indicação oral. O invivel que influenciava o signo
inscrito nas superfícies primordiais a que ee eudo se refere não é a fala. O signo que deriva da
imagem “resulta do mesmo exercício de observação de superfícies anunciadoras de revelações”
218
no intuito de desvelar aquilo que o além reservava aos homens. O invisível do qual trata ee
eudo é a manifeação de outros mundos nas superfícies escolhidas pelo homem para a prática
divinaria. O suporte era um importante meio de revelação do sagrado e as marcas e traços nele
surgidos eram entendidos como mensagens dos deuses para serem interpretadas pelos homens.
216
CHRISTIN, Anne-Marie. A imagem enformada pela escrita in: ARBEX, Márcia (org.). Poéticas do visível: ensaios sobre a escrita e a
imagem. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários, 2006, p. 68.
217 CHRISTIN, Anne-Marie. Poétique du blanc: vide e intervale dans la civilization de l’alphabet. Paris: VRIN, 2009.
218
CHRISTIN, Anne-Marie. A imagem enformada pela escrita in: ARBEX, Márcia (org.). Poéticas do visível: ensaios sobre a escrita e a
imagem. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários, 2006, p. 68.

Chriin
219
fala de dois modos de observação associativa ligados a práticas
divinatórias na China que, de forma simultânea e complementar, levaram à evolução da
escrita ideográfica. Uma é a criação dos trigramas do I Ching (Livro das mutações) que, diz
a lenda, advém da observação de marcas e figurações visíveis no céu, na terra, nos animais
e no próprio corpo do homem. Esse processo de observação visava eabelecer contato com
poderes do universo manifeados na natureza e, igualmente, classificar as circunâncias
de todos os seres. Além dos trigramas, outra forma de observação transcendental de
superfícies que gerou signos visuais e que se metamorfosearam na escrita humana, foram
os ossos do oráculo.
220
Desde a pré-hiória, rias populações do norte da Ásia que criavam rebanhos
praticaram a piroescapulomancia, io é, a interpretão divinatória de rachaduras produzidas pelo
fogo em ossos de animais.
221
Normalmente planos, esses ossos eram retirados dos animais oferecidos
em sacricio. A piroescapulomancia foi disseminada na China antiga, onde, ao longo dos tempos, sua
ptica sofreu inúmeros aperfeiçoamentos, inclusive, a subituição dos ossos pelos cascos de tartaruga.
219 Cf. CHRISTIN, Anne-Marie. History of Writing: from hieroglyph to multimedia. Paris: Flammarion, 2002.
220 Cf. CHRISTIN, Anne-Marie. History of Writing: from hieroglyph to multimedia. Paris: Flammarion, 2002, p. 91.
221
Cf. CHRISTIN, Anne-Marie. History of Writing: From hieroglyph to multimedia. Paris: Flammarion, 2002, p. 90.
FIGURA 079 - GADO
Exemplos do tipo de osso utilizado
para adivinhação na China antiga,
provenientes de animais do rebanho
oferecidos em sacrifício.
(CHRISTIN, 2002, p. 90)

Ea mudança no suporte juifica-se por conta da associação com o formato da tartaruga, que
“[...] era via como um pequeno modelo em escala do tempo-espaço cósmico, com sua casca
dorsal em forma de redoma sendo como os céus, sua sobre-casca plana como a terra e sua vida
medida em um século.
222
Inicialmente, a parte interna dos cascos era cuidadosamente limpa e
todas as saliências retiradas. Depois era feita uma rie de pares de pequenas incisões com formatos
bem definidos, dispoos em duas colunas seguindo a disposição dos quadrantes formados pelo
casco. As incisões duplas eram expoas à uma chama que causava pequenas rachaduras, visíveis
no lado externo dos cascos. Essas rachaduras formavam sinais regulares compoos por duas
linhas, uma longitudinal e outra que a cruzava mais ou menos na perpendicular, algumas vezes
se bifurcando. Como um oráculo em diagrama, as variações nesses sinais eram então lidas como
a representação de forças cósmicas que a tudo influenciam no universo. A previsão de como eas
forças se conjugariam em favor de determinado assunto consultado era baseada na interpretação
dos sinais pelos videntes.
223
222
CHRISTIN, Anne-Marie. History of Writing: From hieroglyph to multimedia. Paris: Flammarion, 2002 p. 90.
223
Cf. CHRISTIN, Anne-Marie. History of Writing: From hieroglyph to multimedia. Paris: Flammarion, 2002 p. 91.
FIGURA 080 - PREPARAÇÃO
Parte inferior dos cascos de tartaruga tratada para a adivinhação, mostrando
o formato das incisões feitas na superfície, prontas para a receberem o fogo,
de acordo com as normas do ritual adivinhatório.
(CHRISTIN, 2002, p. 90)
FIGURA 081 - ÂNGULOS
Diagrama mostrando as variações no ângulo de incidência
do fogo sobre as incisões nos cascos e os diferentes efeitos
sobre o desenho das rachaduras.
(CHRISTIN, 2002, p. 90)

Com o tempo, junto aos sinais das rachaduras, comaram a ser acrescentados regiros
relacionados à data, ao nome do vidente, ao motivo e, às vezes, até ao resultado da consulta.
Os cascos com essas inscrições, conhecidos como “Ossos do oráculo”, são uma das primeiras e
mais elementares formas de escrita ideográfica chinesa. O arranjo proporcionado pelo diagrama
divinatório dos ossos sobre os sinais de regiro teve fundamental importância para a invenção
da escrita chinesa. Foi ea organização da superfície dos cascos de tartaruga, como um espaço
de afinidades visuais, que permitiu aos sinais eabelecer relações de significação.
FIGURA 082 - REGISTROS
Exemplar de casco de tartaruga utilizado para adivinhação com registros relacionados
ao motivo e o resultado da consulta que, pelo que consta, foi bastante favorável.
(CHRISTIN, 2002, p. 90)
FIGURA 083 - REGISTROS
Fragmento relacionado às chuvas
e sacrifício ao senhor das alturas.
(CHRISTIN, 2002, p. 90)

Mesmo com as transformações sofridas ao longo de sua evolução, a escrita chinesa
ainda preserva ea relação com o espaço, o qual continua influenciando sua interpretação.
A compreeno do significado de um ideograma, e mesmo sua pronúncia, se altera de acordo com
outros ideogramas dispoos próximos a ele na página. Ao se contrapor ee aspeo da escrita
chinesa à ocidental, percebe-se que na primeira o sentido não eá desvinculado da posição de um
signo, pois relaciona o signo com o espaço e os outros signos que o cercam. na tradição escrita
ocidental, apesar do sentido de uma palavra alterar-se em função das relações com os demais
termos de uma sentença, a influência do espaço sobre ela é considerada nula. Por isso, Chriin
considera que a escrita ideográfica chinesa guarda uma memória indissociável da imagem, pois
ela “[...] é nascida da adivinhação
224
na própria superfície que a gerou. Até hoje, a importância
dea superfície como espo de relações visuais faz parte do ideograma, que é portador de valores
semânticos e/ou sonoros variáveis que dependem eruturalmente do contexto e do espaço físico
que com ele interagem.
Outro argumento de Chriin a favor da iconicidade da escrita e contra uma conceão
exclusivamente fonética, é que as escritas ideográficas, que se formaram a partir da interpretação
de manifeações visuais sagradas em superfícies selecionadas pelo homem, guardam um vínculo
inicial bem mais forte com o olhar e a leitura do que com a fala. Típico exemplo de “pensamento
da tela”
225
que nos leva a considerar uma mudança na tradicional posição do sujeito da escrita,
que é muito mais um leitor que um locutor.
226
Então, além de apenas compreender o que diz a
escrita, é preciso voltar a observá-la com olhos de quem decifra além daquilo que as palavras
articulam e do que o alfabeto ocidental transporta enquanto código linguíico: a dimensão visual
da escrita e sua relação com o espaço.
224
Cf. CHRISTIN, Anne-Marie. History of Writing: From hieroglyph to multimedia. Paris: Flammarion, 2002 p. 91.
225 “O pensamento da tela” ou no original la pensée de l’écran é uma expressão utilizada por Anne-Marie Christin para se referir
ao processo de geração de signos impulsionado por superfícies como a parede das cavernas, os cascos de tartaruga e mesmo o
céu. Para a autora, é pela demarcação destas áreas e pela consciência sobre sua função privilegiada como espaços de relações
significantes entre os signos, que o homem teve a oportunidade de desenvolver linguagens escritas. Este termo e sua implicação na
origem da escrita e suas relações com o vazio serão apropriadamente abordados mais adiante neste estudo.
226
Cf. ARBEX, Márcia (org.). Poéticas do visível: ensaios sobre a escrita e a imagem. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG,
Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários, 2006, p. 19.

3.2.1. Ideograma e escrita pictural
Porque seu Saulinho tinha tirado da algibeira o retrato
da patroa, e cou espiando, mais as cartas... Porque seu
Saulinho não sabia ler, mas goava de receber cartas da
mulher, e não deixava ninguém ler para ele: abria e ficava
só olhando as letras, calado e alegre, um tempão...
João Guimarães Rosa
Em seu livro sobre o ideograma, Haroldo de Campos
227
deina todo um capítulo ao
legado deixado pelo ensaio e Chinese Written Charaer as a Medium for Poetry” (Os Caraeres
da Escrita Chinesa como Inrumento para a Poesia) do filósofo e orientalia americano Erne
Francisco Fenollosa, que se dedicou siematicamente à inveigação da escrita oriental e procurou
ultrapassar os métodos exientes até então de tradução de poesia utilizados pelos sinólogos
ocidentais, para descobrir, no exame intrínseco dos caraeres ideográficos, as fontes do prazer
eético dessa poesia.
228
De acordo com Campos, a grande objeção de rios linguias à análise
erutural da escrita ideográfica feita por Fenollosa sucede da falta de um “cririo de pertinência
por parte dees eudiosos para diinguir entre a “função referencial ou cognitiva” e a “função
poética” da linguagem. A função referencial ou cognitiva objetiva à comunicação prosaica de
mensagens e se concentra no “referente”, enquanto que a “função poética” faz com que a língua
se volte para a materialidade dos próprios signos, atuando de maneira autoreflexiva.
229
Fenollosa inveigou o que fora designado por ele como os “elementos universais
da formaque compõem a poética na escrita ideográfica e o modo pelo qual ees elementos
operam na poesia chinesa, diinguindo-se do uso da escrita com função referencial. Para ele, a
diferenciação dessa poesia “[...] repousava numa diferença de forma: o caráterpláico” manifeo
por uma sequência regular e flexível, seria o pprio poético [que] visa pôr em evidência o caráter
palpável dos signos.
230
Fenollosa na escrita chinesa um reflexo piural da natureza, não como
na pintura clássica, que é definida pela imitação naturalia-figurativa, ou um decalque do real,
227 CAMPOS, Haroldo de (org.). Ideograma: Lógica, Poesia, Linguagem. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000.
228
Cf. CAMPOS, Haroldo de (org.). Ideograma: Lógica, Poesia, Linguagem. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000, p. 41.
229
Cf. CAMPOS, Haroldo de (org.). Ideograma: Lógica, Poesia, Linguagem. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000, p. 25.
230
Cf. CAMPOS, Haroldo de (org.). Ideograma: Lógica, Poesia, Linguagem. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000, p. 24.

mas, através da reconfiguração das relações naturais em uma síntese criativa, que toma a natureza
como um “modelo dinâmico.
231
As guras e relações dos ideogramas provém de meforas
visuais inspiradas em analogias com forças e eruturas da natureza e não na reprodução formal
dos elementos naturais.
Nas notas preliminares de uma das versões em português do Tao Te King de Lao
Tse, o tradutor esclarece que na escrita ideogfica “[...]trata-se mais de sentir, adivinhar, farejar
o sentido exato de cada símbolo, do que, propriamente, transliterar o respeivo ideograma.
232
Logo, para se compreender as possibilidades de sentido do ideograma é preciso convocar outras
faculdades am da lógica, como a sensibilidade e a intuição. E com io transcender a disposição
para o pensamento linear enformado pelo texto ocidental, para que se possa ler e pensar, como
diria Flusser, “em superfície”, chegando-se à profusão e circularidade de sentidos: A organicidade
eláica de um ideograma oriental permite grande número de variantes, quando expressa pela
mecanicidade rígida de um vocabulário ocidental.
233
Ponto de via que se aproxima baante das
hipóteses de Fenollosa e rearma a maneira como o significado na escrita chinesa é resultante
de relações flexíveis entre os sinais. O desenho dos ideogramas e o espaço entre eles participam
deas relações, o que torna ea escrita indissociável de seu aspeo piural ao mesmo tempo
que o sentido fixo lhe é pouco familiar uma vez, que a profusão de sentido é também inerente a
qualquer desenho e, por extensão, a qualquer imagem.
Ee enfoque tem afinidade com a defesa sobre a origem da escrita chinesa e sua
ressonância na escrita alfatica levadas a cabo por Chriin, que crê, assim como outros eudiosos,
que o surgimento dos ideogramas foi eimulado pela observação das relações visuais entre as
formas inscritas nos ossos do oráculo.
234
Além da importância dessas superfícies divinatórias para
a conituição dos ideogramas, a autora também deaca a influência de relações eruturais e
morfológicas presentes na natureza, cuja observação associativa derivou, em diferentes períodos,
na concepção tanto dos hexagramas do Livro das Mutações, quanto dos ideogramas da escrita
chinesa.
231
Cf. CAMPOS, Haroldo de (org.). Ideograma: Lógica, Poesia, Linguagem. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000, p. 49.
232
ROHDEN, Huberto. Lao-Tse: Tao Te King. São Paulo: Fundação Alvorada, 1979, p. 13.
O Tao Te Ching, Tao Te King ou ainda Dao de Jing, usualmente traduzido pelo nome de “O Livro do Caminho e sua Virtude” ou “O Livro
que Leva ao Absoluto”, é um antigo e conhecido escrito chinês. Conforme diz a tradição, o livro foi escrito por um sábio chamado
Lao-Tse por volta do 6º século a.C. Seus brevíssimos 81 capítulos constam de pequenos aforismos ou provérbios que muitas vezes
se valem do paradoxo como meio de revelação. Por relacionar-se ao Tao, o livro inspira diversas religiões e filosofias como o Taoísmo,
o Budismo Chan e o Zen Budismo japonês.
233
ROHDEN, Huberto. Lao-Tse: Tao Te King. São Paulo: Fundação Alvorada, 1979, p. 14.
234 Cf. CHRISTIN, Anne-Marie. History of Writing: From hieroglyph to multimedia. Paris: Flammarion, 2002.

De acordo com Haroldo de Campos, muitos linguias rejeitam o eudo de Fenollosa,
235
principalmente por sua ênfase na piuralidade da língua chinesa, alegando que a metáfora visual,
inicialmente piografada nos ideogramas, fora perdida em sua quase totalidade até tornar-se
irreconhecível pelas sucessivas eilizações e mutações dessa escrita através dos tempos. Para esses
especialias o leitor do chinês lida com os ideogramas em seu uso comum de modo semelhante ao
leitor dasnguas alfaticas, que trata os caraeres como símbolos convencionais. A minimização
da importância visual da escrita chinesa aproxima-a da dinâmica da escrita alfabética ocidental,
na qual, em favor de uma origem que se crê como unicamente fonética, os aspeos gráficos e -
mais ainda - espaciais são encarados como indiferentes para sua utilização.
Ea resiência a um enfoque na conituição visual da escrita é compreensível,
que representa uma ameaça aos fundamentos do que Jacques Derrida define como a “epieme
logocêntrica” que, para o filósofo, teve sua ruptura iniciada por Mallar no campo da literatura
e da escritura poética: “Ee é o sentido dos trabalhos de Fenollosa, cuja influência sobre Ezra
Pound e sua poética é sabida: ea poética irredutivelmente gfica era, como a de Mallarmé, a
primeira ruptura da mais profunda tradição ocidental.”
236
Ea reintegração do elemento visual e
espacial ao alfabeto, iniciada por Mallarmé, e o queionamento do rigor da escrita alfabética que
desde então foi tomada em seu viés imagético, tanto na literatura quanto nas artes, evidenciam
que mesmo a escrita ocidental não rompeu completamente com a origem visual da escrita.
237
O novo modo de lidar com a escrita vio nas artes e na literatura do século XX indica mais
especificamente, “[...] uma recuperação do valor visual dos signos linguíicos e um resgate dos
vínculos entre palavra e imagem, obscurecidos por muito tempo, na sociedade ocidental, pela
consideração exclusiva do aspeo sonoro [...]”
238
que ea sociedade confere à escrita.
Uma das caraeríicas da língua chinesa que prendeu a atenção, tanto de Saussure
como de Fenollosa, é sua ausência de gramática.
239
Se ee atributo é para o primeiro a prova
235 Cf. CAMPOS, Haroldo de (org.). Ideograma: Lógica, Poesia, Linguagem. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000, p. 46.
236
DERRIDA, Jacques. De la Grammatologie. Paris: Les Éditions de Minuit, 1967. apud: CAMPOS, Haroldo de (org.). Ideograma: Lógica,
Poesia, Linguagem. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000, p. 27.
237
Cf. ARBEX, Márcia (org.). Poéticas do visível: ensaios sobre a escrita e a imagem. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG,
Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários, 2006, p. 19.
238 VENEROSO, Maria do Carmo de Freitas. Caligrafias e escrituras: dialogo e intertexto no processo escritural nas artes no século XX.
481 f. Tese (Doutorado em Letras) – Belo Horizonte: Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, 2000, p. 37.
239
Cf. CAMPOS, Haroldo de (org.). Ideograma: Lógica, Poesia, Linguagem. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000, p. 75.

da xima arbitrariedade
240
dessa língua, para o segundo, demonra sua independência dos
padrões gramaticais ocidentais e, por extensão, do modelo gico que os rege. Campos ressalta
que, independentemente das diferenças de ponto de via entre os dois eudiosos, o chinês é
propenso às conruções infundidas por uma “lógica de correlão”
241
, o que parece coincidir com
a disposição da própria linguagem poética do ocidente para desvincular-se da lógica tradicional
e orientar-se por outra lógica, a lógica da analogia. A crítica de Fenollosa ao poder repressor da
lógica ocidental ariotélica (e também platonia) sobre a língua se expandiu além da esfera da
poética ao encontrar ressonâncias no pensamento de Derrida, que em seu livro De la Grammatologie
empreendeu semelhante crítica às implicações dea lógica sobre o discurso losófico.
242 e 243
Haroldo de Campos segue esclarecendo que a lógica chinesa carece da típica proposição sujeito-
predicado ocidental, assim como lhe é eranho o pensamento ontogico baseado em uma lógica
da identidade. O interesse, no chinês, é voltado para o inter-relacionamento dos caraeres (signos)
por meio do pensar analógico, ao invés de pautar-se pelo silogismo ocidental que se ocuparia
com a queão da inferência.
Campos deaca a avaliação que Charles S. Peirce teceu sobre o esforço dos gramáticos
europeus em encaixar ao modelo do silogismo as sentenças de línguas de raiz diferente da indo-
europeia e, por extensão, desacreditou a dominância autoproclamada do logocentrismo ocidental:
“Que a análise da proposição em sujeito e predicado represente toleravelmente a maneira pela qual
nós, arianos, pensemos, eu concedo; nego porém, que seja o único modo de pensar. Não é sequer
o mais claro ou mesmo o mais eficiente.
244
Ea atitude de boa parcela dos eudiosos de línguas
que aqui é criticada por Peirce, parte de uma visão etnocêntrica do ocidente eruturada muito
240
Neste contexto, afirmar que a língua chinesa é arbitrária quer dizer que entre os significados representados pelos ideogramas e a
ordem das sentenças construídas com eles não relação lógica direta, uma vez que não existe uma gramática que distinga os
termos em classes e prescreva sua disposição de maneira precisa.
241 Cf. CAMPOS, Haroldo de (org.). Ideograma: Lógica, Poesia, Linguagem. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000, p. 77.
242
Cf. CAMPOS, Haroldo de (org.). Ideograma: Lógica, Poesia, Linguagem. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000, p. 83.
243 No livro Gramatologia, Jacques Derrida versa sobre a estruturação do pensamento ocidental, o “logocentrismo”, que é apoiado
e reforçado por uma estrita concepção sobre a escrita, a qual seria baseada num sistema de diferenças entre os componentes
identitários mínimos da língua, os signos, e sua correspondência com o sentido. Porém, ao longo do livro, Derrida trabalha em direção
à desconstrução dessa condição “logocêntrica”, buscando uma abordagem mais ampla, em que o sentido deixa de ter sua tônica
exclusivamente baseada na separação, para transitar em meio a um sistema aberto onde as nuances de sentidos são possíveis,
mais pelo acréscimo de variações intercambiáveis do que pela divisão total entre termos. O autor põe em questão a oposição forma/
conteúdo, destrinchando-a de dentro das investigações da linguística de Saussure. (DERRIDA, Jacques. De la Grammatologie. Paris:
Les Éditions de Minuit, 1967.)
244 PEIRCE, Charles S. Collected papers of Charles Sanders Peirce: Volume IV - The simplest mathematics. Cambridge: The Belknap
Press of Harvard University Press, 1933, V. IV, p. 33 apud CAMPOS, Haroldo de (org.). Ideograma: Lógica, Poesia, Linguagem. São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000, p. 89.

mais por valores que por fatos. Visão que desconsidera tanto o simbolismo quanto a dimensão
piórica do signo escrito e, numa escala ascendente, em função da razão, coloca o nosso alfabeto
no topo de uma lia na qual as outras escritas, como a ideográfica por exemplo, são subordinadas
em posições evolutivas anteriores e portanto inferiores.
Ee movimento reritivo de parte das ciências das nguas observado por Pierce
não se limita às escritas não alfabéticas, mas também atua dentro do próprio universo de línguas
em que se escreve alfabeticamente. O escopo dea área de eudo não abre mão do modelo
conrutivo encabeçado na frase, deixando à margem toda uma sorte de linguagens onde predomina
o fragmento, o murmúrio lexical e o arfar de pausas cheias, por onde as palavras se desdobram
FIGURA 084 - NO VAZIO DO MUNDO
Mira Schendel, Sem título, 1964
monotipia sobre papel japonês,
46 x 23 cm
col. Cesare Rivetti
(PEREZ-ORAMAS, 2009, p. 91)

alheias ao cabreo dea erutura. “Ela [a linguíica] que acredita na frase e sempre atribuiu uma
dignidade exorbitante à sintaxe predicativa (como forma de uma lógica, de uma racionalidade)”
245
,
deserda as linguagens que não necessariamente negam ea ordem, mas que são indiferentes
à sua autoridade e operam num espero ampliado por outras coordenadas. Linguagens onde
o arejamento ou o adensamento entre os signos (escritos ou falados) é o vetor que tenciona
ou diende suas ligações. Onde o cheio e o vazio, o ruído e o silêncio, a palavra e a não-palavra,
o é e o não-é, o traço e o papel surgem, não como termos opoos de um dualismo maníaco,
mas esperalmente, superpondo-se e reverberando ao innito. São linguagens assim que,
incorporando o espaço e o vazio na mesma hierarquia dos demais signos, dobram-se sobre
si mesmas como a escrita espacial do Coup de dés ou a pintura escritural de Mira Schendel.
Nas monotipias (Fig. 084) ou nos objetos gficos da artia (085), a falta de cor”
do papel de arroz ou do acrílico sinaliza muito mais que uma complacência passiva dees suportes
diante do negro das palavras. A falta de cor” é agente que em algumas áreas reforça letras e linhas,
ampliando-lhes a carga significativa e, em outras áreas, derrama nees sinais um apagamento,
que quase os silencia com seu clarão. A “falta de cor” faz o espaço compositivo oscilar
245 BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 1987, p. 65.
FIGURA 085 - ENTRE CONCRETO E PRESSENTIDO
Mira Schendel, Sem título (Objetos grácos),
m do anos de 1960
monotipia e letraset s/ papel japonês entre
placas de acrílico transparente
100 x 100 x 8 cm
col particular São Paulo
(PEREZ-ORAMAS, 2009, p. 124)

simultaneamente entre exiência material concreta e invisibilidade pressentida. Ee movimento
ambíguo, descrito pelo suporte entre a presença plena e a ressonância impalpável, sem jamais
ocupar exclusivamente uma deas posições, é análogo ao movimento de incessante deslocamento
das palavras e letras entre o atus de escrita e de imagem.
A nossa civilização alfabética supervaloriza a conrução ordenada pela frase:
A Frase é hierárquica: implica sujeições, subordinações, recções internas.
246
A hierarquização e
encadeamento exigidos por essa erutura demandam uma linearidade e organização de pensamento
em que se privilegia a razão e o fechamento do discurso. E é sabido que toda linearidade concebe
um ponto de partida e um ponto de chegada, um início e um final. O princípio que aponta para a
selão do um: um resultado, um conceito, uma verdade, um termo, um fim. “D o seu acabamento:
como poderia uma hierarquia permanecer aberta? A Frase é acabada; é mesmo precisamente:
essa linguagem que é acabada.
247
Barthes comenta como a conrução verbal (e de pensamento)
em nossa cultura, baseada na sintaxe predicativa, identifica-se com a configuração do discurso
daqueles que representam posições de autoridade, e que falam tanto através do fechamento da
frase quanto da autoridade do sujeito que a profere: o professor, o sacerdote, o político, o militar,
o curador, o juiz ou o Pai são posições onde a origem do discurso e o seu centro se sobrepõem
garantindo xidez ao sentido: a epieme.
248
Ee siema de forças se perpetua pela linguagem, e
a faz perpetuar pelo modelo de um fechamento linear: a frase seguinte se inscreve na poerior e
leva sempre adiante o fio de seu germe que fora trazido pela anterior. Antes da anterior, o germe
da penúltima, e da penúltima, remissivamente, numa sequência de fechamentos encadeados
donde se pressupõe uma ligação até a origem. Da mesma maneira, após uma frase sempre haverá
uma próxima, e à ela a seguinte, subordinada às demais rumo ao desenlace. Nee contexto,
o descontínuo, o fragmentário e o diverso podem ser tratados de duas maneiras: ou se configuram
como erro e devem, portanto, ser sumariamente desconsiderados; ou provém de uma conrução
anterior e, logo, demandam por outros termos que os reinscrevam – os reabilitem – na ordem de
fechamento do discurso corrente. Para além da frase com sua Palavra e sua Lei, é inconcebível
qualquer legitimidade ao fragmento: somente outra palavra que o retome dentro da erutura
da frase.
246 BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 1987, p. 66.
247 BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 1987, p. 66.
248 BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 1987, p. 66.

Parece a Maurice Blanchot que o erro “[...] não fecha, não abre: nada é limitado, e,
no entanto, nenhum horizonte; io não é fechado, nem a céu aberto.
249
Nea interpretação,
o erro não se prea a um enquadramento nem positivo e nem negativo, no sentido em que ele
desconhece um início e um fim, sendo tangível mas indimensionável. Enquanto erro, o desconnuo,
o diverso e o fragmenrio correspondem, paradoxalmente, ao que Blanchot associaria com a
errância de uma busca infinita: percurso que se desdobra por um espaço que se abre cada vez
mais, quanto mais se acredita chegar perto de seu horizonte. Imensidão aonde se diluem tanto as
tradicionais coordenadas lineares de tempo e de localização, quanto as certezas que a linguagem,
que se propõe precisa, tenta proteger com seu fechamento apoiado na diferença entre o que é e o
que não é. A ee aspeo tangível e no entanto indimensionável e atemporal do erro, Blanchot
associa imagens da literatura: “O espaço da neve evoca o espaço do erro, como o pressentiram
Tol oi, K a f k a .
250
Nees exemplos a neve o surge simplesmente como um cenário entre tantos,
mas sua imensidão e brancura reverberam um silêncio que absorve as ações dos personagens,
conduzindo a obra ao indecidível e à incerteza.
249 BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita – 1: A palavra plural. São Paulo: Escuta, 2001, p. 65.
250 BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita – 1: A palavra plural. São Paulo: Escuta, 2001, p. 65.
FIGURA 086 - UM NADA
Mira Schendel, Sem título, 1965
monotipia sobre papel japonês,
46 x 23 cm
Galeria Milan, São Paulo
(PEREZ-ORAMAS, 2009, p. 117)

Em paralelo, tal como a neve, o espaço branco do papel vegetal nas monotipias de
Mira Schendel também promove o indecidível dos signos, ao fazê-los vacilar entre imagem e
palavra, entre início e m, entre a noção de próximo e de diante e entre o que é o acima e o
que é o abaixo. Afinal, a brancura de todo o espaço piórico eabelecido por Mira e sua alusão
à transparência remetem o olhar à errância da busca incessante em que não há marcos precisos
onde se apoiar: não a Certeza, não a Verdade e no entanto a transparência e a brancura
refoam sentimentos de profunda sinceridade e abertura que emanam da obra. A sinceridade dos
queionamentos que a artia jamais se esquivou do compromisso de levantar, como demonra
Geraldo Souza Dias ao longo de seu livro sobre a artia e, nea parte em especial: “[...] uma obra
pessoal e peculiar, pautada pela autodeterminação e pela conante busca da liberdade, tendo em
via a atualização da ideia de Deus [...] como possibilidade de compreender e interpretar todas
as relações humanas.
251
251 DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 335.
FIGURAS 087 - ESPAÇO DE ERRÂNCIA
Mira Schendel, Sem título, 1965
monotipia sobre papel japonês,
46 x 23 cm
Galeria Milan, São Paulo
(PEREZ-ORAMAS, 2009, p. 117)

Deus e o divino, nessa acepção, vão muito além de um conceito fechado e caterico,
mas se desdobram para uma vaidão que a tudo contém e ultrapassa, que exie através e além
das segmentações de tempo, e se manifea como pressentimento em meio ao invisível. Na obra
de Mira a apreensão do divino se através da intuão de infinito. Sobre a relação do vazio com
ee posicionamento da artia, o autor conclui que:
A diafanidade entra em seus trabalhos para conceder ao vazio do mundo ilimitado o
significado de amplidão do mundo aberto, e para fletir relações rígidas. A consideração
do elemento tempo desfaz a compartimentalização do espaço, permitindo-lhe fluir.
O espaço abrato torna-se um contínuo espaço-tempo concreto, em que ela tentaria
representar o não representável.
252
Convém lembrar que na tradição ocidental, tanto o texto quanto seus elementos
mínimos, as palavras, guardam uma proximidade muito maior com a ideia de Lei e de ordem, na
direção de um fechamento de sentido, do que a imagem, que sempre pareceu tão rebelde a ea
cultura. Não é sem razão então, pensar que para as religiões monoteías do ocidente, a palavra
também represente um meio muito mais seguro do que a imagem para a conservação de seus
fundamentos, apesar de que a maioria das religes não abriu mão da imagem completamente.
253
Nesse contexto religioso, a palavra carrega o peso duplo da representação da lei e da mediação
com o sagrado que concebe essa lei. Ao mesmo tempo, ee sagrado oculta sua face por trás do
texto, fazendo-se proclamar através de narrativas, nunca diretamente ao leitor. Mira Schendel
não deseabiliza a ideia de fechamento do texto, como de religiosidade, uma vez que seu
trabalho incorpora o vazio que envolve as palavras. A carga do divino, que a tradição ocidental
só reconhece por meio da palavra, se vê subitamente dispersa pelo vazio infinito que Mira tenta
conruir com seu trabalho. Desse modo, é reconcedido às palavras a liberdade da profusão de
sentido, ao mesmo tempo que o vazio se apresenta pelo viés de um devir que pode ser também
espiritual.
O rumor e a dispersão ou, ainda, o vazio que se abre sob/sobre/durante a palavra e
aquém e além dela, não podem ocupar outro lugar senão que o da invisibilidade num siema
como o ocidental, que abrai o espaço da escrita e reconhece exiência significativa apenas ao
252 DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 335.
253 É necessário frisar que mesmo durante o Barroco, quando o catolicismo se utilizou amplamente do poder da imagem para disseminar
sua ideologia, as representações visuais estavam submetidas a narrativas previamente determinadas por esta religião.

signo cheio
254
que se enquadra em seu esquema sintático. Nee âmbito, o vazio é menos que o
negativo. O vazio e o espaço são inexientes, uma vez que a cultura ocidental só diingue valor
(positivo ou negativo) ao que se conitui como Verbo, naquilo que representa fechamento para
essa tradição de pensamento. Para proteger sua Lei da ameaça de dispersão, a escrita tenta se
valer enquanto uma ordem de cercamento completo frente a todo vazio.
254 Neste trecho, a utilização do adjetivo “cheio” designa o modo como a linguagem enquadra os signos, tomando-os apenas por sua
porção livre de ambiguidades ou fragmentação.
FIGURA 088 - ATRAVÉS E PARA ALÉM DE QUALQUER FECHAMENTO
Mira Schendel, Objeto gráco, 1967-68, óleo s/ colagem de papel japonês entre duas placas de acrílico, 100 x 100 cm, col. Rose e Alfredo Setúbal, São Paulo
(DIAS, 2009, p. 267)

Am dessa ordem, outros tipos de linguagens abertas, dinâmicas e que (escritas
ou orais) acolhem o vazio, o espaço, o rdo, o borrão ou o murmúrio. Linguagens que podem se
dar de forma esporádica como a sobreposição dos sons, ruídos e partículas das várias falas em um
ambiente de bar, como exemplicaria Barthes
255
. Mas também linguagens como a “escrita branca”
256
de Mallarmé, a anti-escrita de Antonin Artaud, de Cy Twombly, a composição de Stockhausen e
a pintura escritural de Mira Schendel (Fig. 089), que se valem do descontínuo “além e através” da
frase: “Ea não-frase o era [o é] de modo algum algo que o tivesse tido poder para chegar à
frase, que tivesse exiido antes da frase; era [é]: aquilo que exie eternamente, soberbamente, fora
da frase,”
257
como um amplo e abrangente “simque não aponta, necessariamente, para nenhuma
pergunta específica, mas para todas.
255 Cf. BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 1987.
256 Esta expressão é utilizada por Roland Barthes para designar o empreendimento ambicionado por Stéphane Mallarmé (mas não
apenas ele) de criar uma escrita livre de toda obrigação com a ordem da linguagem. Um escrita que não nega os julgamentos, os
valores e os conceitos, nem da língua viva e nem da literatura, mas que se põe em meio a eles de uma maneira neutra, apartidária.
Colocando-se como uma ausência de estilo ou de engajamento, essa “escrita branca” transborda as margens das polaridades entre
termos, sobrepondo-os por meio de uma transparência que não esconde nem nega nada, mas que se afirma através dos vazios que
esta mesma escrita faz aparecer entre os termos. (Cf. BARTHES, Roland. O grau zero da escrita: seguido de novos ensaios críticos.
São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 65-66.)
257 BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 1987, p. 65.
FIGURA 089 - PONTO: PONTO; SONHO CURTO; SIGNO SIGILO; SIGNO SIGILOSO; SIGNO ABERTO; SIGNO PONTO: SIM
Mira Schendel, Sem título, 1965, monotipias s/ papel japonês, 46 x 23 cm, Galeria Milan, São Paulo
(Fotos do autor, 2009)

É importante reconhecer a autonomia dee fora em relação à ordem gica da sintaxe
predicativa encabeçada pela frase ou em relação a qualquer outra ordem. O fora não representa
um eágio rudimentar anterior à frase e a ela inferior (ou superior), como faria crer a lógica
ocidental, que a tudo hierarquiza em função do grau de maior ou menor clareza e Verdade.
Ee fora da frase é como o espaço que embebe os fios da trama do tecido. Ele se sobrepõe aos
fios, mas também exie nos intervalos entre eles. O fora ocupa o mesmo espaço e sentido das
palavras de um texto, e também o mesmo espaço dos traços de uma composição, porém ele não
se reringe às coordenadas xas de tempo, espaço e significado a que eão submetidos ees
elementos localizáveis.
O fora se insinua através de sua invisibilidade como um duplo e como um além.
Ee fora da frase, ee exterior “[...] não pode se oferecer como uma presença positiva coisa
iluminada do interior [como a frase, a razão, o sujeito] pela certeza de sua própria exiência [...]”
258
,
uma vez que ele não se eabelece enquanto comunicação objetiva, mas se faz experimentar no
desnudamento de um vazio que se abre infinitamente.
258 FOCAULT, Michel. O Pensamento do Exterior. In: MOTTA, Manoel Barros (org). Michel Foucault Estética: Literatura e Pintura, Música
e Cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001a. (Ditos & Escritos. v. III), p. 219-242, p. 227.
FIGURA 090
Mira Schendel, Sem título (detalhe), 1965
monotipias s/ papel japonês, 46 x 23 cm
Galeria Milan, São Paulo
(Foto do autor, 2009)

É ee o vazio alcançado pela obra de Mira Schendel, que desconhece qualquer
interpretação definitiva, desviando-se de toda assertividade. No entanto, apesar da impossibilidade de
localizar ou circunscrever o fora nos trabalhos da artia, ees jamais o abandonam, oferecendo-no
“[...] como a ausência que se retira para o mais longe possível dela mesma e se esvazia no sinal que
ela faz para que se avance em direção à ela, como se fosse possível encontrá-la”
259
numa infindável e
circular sobreposição do e. Seja ee e a sucessão de páginas de seus cadernos ou a oscilação incessante
do sentido de suas composições com letraset sob camadas de acrílico. Ou ainda, o apagamento pelo
acréscimo gradual das palavras submergidas no papel-arroz das monotipias, atransformarem-se
em um grande quase-borrão (Fig. 090).
Nelas não se sabe mais se fôra o papel o receptor dos traços, que vieram depositar-se
do exterior, ou se são os traços a emergir, lá de onde o nada ainda exiia, bem antes de ser nada.
Aflorando intensidades do geo no papel para se evolarem, quase sem veígio algum, logo no inante
seguinte. No trabalho de Mira, ea dinâmica não pode ser creditada apenas aos traços, caraeres
e demais signos. O branco do suporte e mais amplamente, o vazio dele-nele incorporado opera
ativamente na obra da artia com tanta propriedade quanto seus traços e letras, o que faz lembrar
a importância do espaço sobre os fluxos de sentido que perpassam as escritas orientais.
259 FOCAULT, Michel. O Pensamento do Exterior. In: MOTTA, Manoel Barros (org). Michel Foucault Estética: Literatura e Pintura, Música
e Cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001a. (Ditos & Escritos. v. III), p. 219-242, p. 227.
FIGURA 091
MU: IDEOGRAMA JAPONÊS SIGNIFICANDO “NADA”, “O VAZIO”
Barthes conta que no japonês, “[...] aquilo que nos parece um
excesso de subjetividade (diz-se que o japonês enuncia impressões,
não constatações) é muito mais uma forma de diluição, de
hemorragia do sujeito numa linguagem parcelada, particulada,
difratada até o vazio.” (BARTHES, Roland. O império dos signos. São
Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 12-13)
Assim, sob certo aspecto, ler as escrituras de Mira ou os
ideogramas orientais corresponde a intuir sentidos junto dos
vazios que atravessam os signos presentes, e nossa fala jamais
se prestará a descobrir ou xar completamente esses signicados.
(BARTHES, 2007, p. 9)

3.3. Virando a página: cadernos e livros
A que me levará minha liberdade? O que é io que eou
te escrevendo? Isso me deixa solitária. Mas vou e rezo e
minha liberdade é regida pela Ordem - Já eou sem medo.
O que me guia apenas é um senso de descoberta.
Atrás do ats do pensamento.
Clarice Lispeor
Circularidade é uma das figuras chave para a maneira como a obra da artia maneja
o vazio, principalmente naqueles trabalhos onde menos se suspeita da força que ele exerce, como
em seus livros e cadernos, por exemplo. Vários deles (Fig. 093 e 094) têm uma conrão baante
simples, em formas retangulares ou quadradas, com capas em acrílico ou, principalmente, papel
cartão e as páginas do miolo em papel negro ou em vegetal branco. O que amplifica ainda mais
a ação deas páginas (e do espaço dos cadernos como um todo) parece ser a maneira original
encontrada pela artia para encaderná-las.
FIGURA 092 - EM EXPOSIÇÃO
Cadernos da artista exibidos em vitrine na exposição
No Vazio do Mundo, São Paulo, 1996-1997.
(SILVEIRA, 2008, p. 71)

Enquanto cadernos e livros tradicionais têm toda a extensão de uma das bordas
axada por grampos, por cola ou couras, formando uma lombada, em muitos cadernos de
Mira, as páginas são usualmente presas apenas em um dos cantos das folhas, de maneira que
sua manipulação difere do comum. A encadernação tradicional pressupõe uma trajetória linear
partindo do marco inicial representado pela capa, seguindo através da sucessão das páginas que se
moram aos pares e por inteiro, até chegar ao final assinalado pela última capa. Ea concepção
clássica de formatação de livro tende a encará-lo como um meio em que só aquilo que eá impresso
e, mais precisamente, escrito nele é que ocupa o atus de conteúdo. Pretende-se que o suporte
livro seja, senão completamente passivo em relação ao texto, pelo menos subordinado à escrita
do autor e a seus desígnios. Em consequência disso, tudo que conitui o livro – desde o papel
escolhido, as gramaturas e formatos, as cores e dobras, as falias tipográficas e a diagramação,
os acabamentos e até os espaços das páginas – exie sob a condição marginal de paratexto, uma
vez que sua razão de ser advém do texto e é o texto e somente ele o centro em torno do qual todo
o livro é orquerado.
260
260 É evidente que na preparação editorial de um livro tradicional há diálogo entre o projeto gráfico e o texto do autor, o que faz do livro
um todo que vai além do texto por ele contido. Entretanto, o centro do livro ainda concentra-se nesse texto, em torno do qual todo
o resto é subordinado. Tal como uma fruta da qual se separa o seu sumo (representado pelo texto) de seu bagaço (representado
pela constituição material do livro), seria bastante incomum algum livro tradicional que o projeto gráfico e o paratexto tivessem
determinado o conteúdo do texto. Esta concepção que privilegia o texto no centro é, inclusive, reforçada pela condição aspirada pela
cultura alfabética ocidental de separação e abstração da escrita em relação ao espaço que a cerca.
FIGURA 093 - TRANSPARÊNCIA
Caderno da artista exibido na 12 Documenta em Kassel, 2007.
< http://2.bp.blogspot.com/_SumNupDynRI/SMhW_vaRdfI/AAAAAAAAAGM/
ctuTbiLqhO4/s1600-h/Mira_Documenta12_a.jpg>

nos cadernos de Mira Schendel é difícil diinguir uma hierarquia divisória entre
texto e paratexto. Sua forma e concepçãoo é nem ditada pelas letras ou outros signos presentes
nas páginas e nem ee suporte é determinante dos signos presentes nele. Nos cadernos de Mira
há uma sinergia entre as inscrões e o espaço, sem que se saiba exatamente o que deu origem a
que, pois em vários momentos parece ser a tela, ou melhor, a página que escolhe e desenha a letra
e não o contrário. Com isso, Mira coloca em cheque a concepção de um centro xo originário
ocupável somente pelo texto, tratando a escrita, os espaços vazios do suporte, sua textura, cor,
formato e todo o conjunto em um mesmo nível de interação dinâmica.
Ea sensação é ampliada ainda mais pela maneira como as páginas eão unidas
nos cadernos. Em rios deles, as capas e páginas são encadernadas em um único ponto: um
pino ou parafuso em torno do qual as folhas giram à medida que as páginas são mudadas.
Io permite abrir e ver até quatro ginas simultaneamente, ou então até mais, quando elas
são abertas e folheadas como num leque deslizante, o que não acontece no manuseio de uma
encadernação tradicional. Nea, as páginas anteriores e as seguintes são subtraídas do campo de
visão pelo par de páginas que se abre em toda a extensão do volume durante o momento de leitura,
tal como o dia de hoje, que apesar de ser uma continuidade, encerra o dia de ontem no passado e
FIGURA 094 - NO EIXO
Mira Schendel, Sem título (Cadernos), 1971
letraset sobre papel encadernado
20 x 20 cm
col. particular, São Paulo
(DIAS, 2009, p. 277)

impede que se chegue ao amanhã antes que o hoje acabe: uma sucessão linear segmentada pelos
intervalos de dias e que por sua ubiquidade, nos é tão gica quanto todas as outras possibilidades
de segmentação, assim como a divisão do tempo em anos, em horas ou em segundos. Mas io o
se reringe apenas à contagem de tempo, pois a concepção tradicional de livro e texto também
segue uma lógica de segmentação linear: a leitura obedece o encadeamento de uma letra após
a outra, ponto a ponto, formando as palavras, que ligadas, palavra após palavra, geram linhas e
frases; a sucessão dessas linhas se eende do topo à base da folha, preenchendo a página e, após
ea primeira página, a leitura prossegue pelas seguintes, enformadas na mesma erutura da
primeira, ao longo de todo o livro até desaguar no seu fechamento.
Os cadernos de Mira deseabilizam a segmentação linear seja do texto, seja do
tempo – e fazem antever possibilidades abertas por duas vias que transpõem ee paradigma: uma
delas, como foi vio nee eudo, mora-se através das letras que se permutam em outros
signos, escapando a qualquer sentidoxo, graças à conante mutão
261
conduzida pelo movimento
circular das páginas. A outra via transcorre pela expansão do espaço e do tempo, representada
pela abertura simultânea de várias páginas. Algo que só é possível graças à encadernação circular
que torna o espaço branco da página num agente significante: ver rias ginas abertas de
uma vez é como enxergar simultaneamente o inante presente ou o dia de hoje junto dos
demais inantes e dias que os precederam e que o sucederão num grande todo. Ao se dissolver
a segmentação temporal linear de passado-presente-futuro em favor de um contínuo cíclico, é
possível ver um mesmo signo em diferentes posições conforme o ângulo da página em que ele
eá e desse movimento intuir a condição mutável de toda exiência. Ao longo das páginas
dos cadernos de Mira, o sentido sintático e semântico dos signos não evolui por uma linha reta
que, ao exemplo de uma narrativa, parte de uma origem xa e ruma através de uma sucessão de
etapas até um fim único. Nesse todo circular não há razão em se armar nem um início e nem
um fim, assim como não faz mais sentido qualquer divisão em etapas, pois o decurso do tempo
e do sentido se revelam como um todo de múltiplos sobrepoos, conforme cambiam as páginas
e os pontos de via que eas imprimem aos signos. Assim, nos cadernos de Mira, o espaço da
página deixa de significar intervalo eanque para vir a ser um contínuo variável.
261 Cf. DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 276.

Talvez, o mais importante nos cadernos, é que a página, lugar que tradicionalmente
nos acoumamos a interpretar como sendo o espaço sobre o qual as letras interferem, sai dessa
condição de neutralidade invisível, para subverter a relação: o signo, sejap, “d, n” ou “u, passa
a ser sempre o mesmo em todas as folhas, e o vazio muda gradualmente de valor à medida em que
as páginas mudam. Com esse movimento, é o espaço que recupera sua posição de co-agente da
escrita e interfere ativamente no texto, tal é o poder da página nees cadernos e sua capacidade de
manipulação do signo pela simples mudança de posição que a ee impinge. Io também revela
a profunda percepção do espaço e do vazio que Mira Schendel apresenta em sua obra como um
todo. Algo que Anne-Marie Chriin, muito possivelmente, associaria como “o pensamento da
tela” e que será esclarecido logo mais nee capítulo.
Mas não apenas o rculo tem ea capacidade de ampliação temporal.
Vários exemplares também seguem uma encadernação tradicional, mas nees a transparência
do papel de arroz ou aspeo translúcido do vegetal potencializam o efeito de imaterialidade do
suporte e permitem antever, sutilmente, o contdo das páginas seguintes, como ecos futuros sobre
o inante da página presente. Nesse sentido, o branco do suporte, que na concepção ocidental
FIGURA 095
Caderno da artista exibido na 12 Documenta em Kassel, 2007.
< http://2.bp.blogspot.com/_SumNupDynRI/SMhW_vaRdfI/AAAAAAAAAGM/
ctuTbiLqhO4/s1600-h/Mira_Documenta12_a.jpg>

habitual representa um vazio nulo e passivo em detrimento dos signos, converte-se em presença
ativa e geradora de sentido para a obra. Nos cadernos da artia, a página de vegetal deixa de ser
apenas o leito imaculado que acolhe complacentemente o traço ou o caraere e passa a projetá-los
de, e através de si, interagindo tanto com ees signos quanto com as folhas que lhe o contíguas,
numa interminável reverberação. Qualquer tentativa de xação, seja do aqui, do agora ou do
sentido é dispersada pelo conante murmúrio entre as páginas por onde o vazio avança num
jorro infinito, oscilando, indefinidamente, entre a vertigem da gênese e da morte. Dee modo,
ao aproveitar-se do branco e da transparência nas páginas de seus cadernos
262
, Mira aborda, de
maneira visualmente simples e aguçada, as suas reflexões acerca da perenidade, da origem, do
fim e também do próprio sujeito diante do todo da exiência.
Tanto Geraldo Souza Dias quanto Aracy A. Amaral relatam a ateão dada por Mira
à transparência e ao vazio e como ela os relacionava com seus queionamentos sobre o tempo,
o espaço e o sentido mutável das coisas. Em capítulo dedicado à relação de Mira Schendel com
a transparência, Geraldo Souza Dias conclui que a aproximação da artia com a obra de Jean
Gebser e suas teorias sobre a diafaneidade a levaram a crer na possibilidade de dissolução do
vínculo entre tempo e espaço, possibilitando alcançar uma totalidade:
Uma vez que a simultaneidade implica a eliminação da sequência temporal, permitindo
ao tempo expressar-se por si mesmo, a visualização da transparência se reeruturaria
como libertação de tempo.
263
Mira elimina a segmentação do tempo através do continuum circular proporcionado
pela encadernação caraeríica de seus livros e se apropria da transparência como meio de
diluição do aqui e do presente em função de um todo invisível. Desse modo, a artia dissolve a
xidez de sentido, a qual se faz conduzir pelo verbo “éao armar sobre aquilo que se vê e que
se lê, para reaurar-nos a um momento anterior à criação de qualquer escrita, principalmente
da alfabética, em que a superfície dos céus, transparente como suas páginas, era capaz de gerar
262 Cf. AMARAL, Aracy Abreu. Mira Schendel: os cadernos. In: AMARAL, Aracy Abreu. Arte e meio artístico: entre a feijoada e o x-burger.
São Paulo: Nobel, 1983, p. 183-185.
263 DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 145.

uma infinidade de relações dinâmicas de sentido entre os sinais neles presentes. Por conta da
transparência ou do branco nas páginas dos cadernos de Mira, os múltiplos sentidos dos sinais
que nelas repousam não disputam uma posição hierárquica. Ao contrário, a transparência leva
esses sentidos a coexiirem através da infinita sobreposição permitida através de um “também”,
que torna igualmente válidas todas as alternativas de interpretação.
Assim, reconhecer a importância do vazio, da transparência e a simultaneidade
implicada neles, ao dissolverem segmentações de tempo, espaço e sobretudo sentido, pode
ajudar a ultrapassar as rerões e o imperativo de fechamento da lógica ocidental, que confere
à escrita alfabética com sua sintaxe predicativa o mais alto grau de expressão do pensamento.
Um pensamento que abrai a escrita de toda interação com a superfície em que se inscreve e de
suas possibilidades visuais. A escrita, por essa vertente, se desobriga de um olhar que a reconheça
como um todo perpassado por elementos simbólicos, visuais e também espaciais, fazendo-se
passar apenas por regiro fonético. A obra de Mira Schendel e seus cadernos, de uma maneira
especial, se desviam de uma posição antitética e dualia de negação enfática desse pensamento.
Seria mais adequado concluir que esse pensamento e essa condição da escrita coexiem com a
propoa de abertura visual das palavras, desenvolvida pela artia. Anal, se os trabalhos de
Mira reituíram a dimensão visual de palavras e letras, que figuram como imagens em relação
aberta com o espo, também é preciso reconhecer que a artia não nega em nenhum momento a
condição fonética das palavras e letras. Mesmo nos trabalhos em que a sobreposição de caraeres
ou de camadas de papel levam sua legibilidade a um quase completo apagamento, as palavras e
letras, já mais visuais que legíveis, no entanto não abandonam a possibilidade de serem lidas.
Mira Schendel incorpora os elementos da escrita alfabética em seus trabalhos e os faz
interagir com o espaço sob o signo da transparência, do vazio ou do branco. assimilação, mas
não negação do alfabeto. Ee território de diálogo aberto por Mira, entre o alfabeto e o espaço,
amplia as propriedades visuais da escrita. Assim, é resgatado um modo múltiplo e, por isso, mais
amplo de pensar a escrita, onde tanto o espaço e as letras, quanto a possibilidade de se ler e ver
simultaneamente os signos, se desdobram num mesmo nível: através do pensamento da tela.

3.4. O pensamento da tela
É tão curioso e difícil subituir agora o pincel por essa
coisa eranhamente familiar mas sempre remota, a palavra.
A beleza extrema e íntima eá nela. Mas é inalcançável - e
quando eá ao alcance eis que é ilusório porque de novo
continua inalcançável. Evola-se de minha pintura e deas
minhas palavras acotoveladas um silêncio que também é
como o subrato dos olhos. Há uma coisa que me escapa
o tempo todo. Quando não escapa ganho uma certeza: a
vida é outra. Tem um eilo subjacente.
Clarice Lispeor
Dentro do que foi introduzido nee eudo sobre a importância da superfície para
a conituição da imagem e da escrita, o céu sempre teve deaque como campo de manifeação
do divino. Nea grande tela celee, eventos como raios e nuvens, eclipses e cometas, erelas
e planetas ou a alvorada e o crepúsculo, apesar de variações em seu simbolismo, sempre foram
interpretados como mensagens a serem decifradas. Também o siema de signos do zodíaco, que
a despeito das alterações aplicadas pelas civilizações que o utilizaram, resulta de relações entre
formas figurativas e formas geométricas combinadas e que, como observa Barthes, corresponde
a um extrato das possibilidades eruturais da escrita, sintetizado pelo filósofo através da citação
de Mallarmé: “O céu se escreve”.
264
Não apenas o u, mas o casco de tartaruga, seu molde em miniatura e outras superfícies
são campos onde o vazio corresponde à potência de manifeação de formas. Se a escrita surgiu
da imagem, como propõe Chriin, ou se a imagem pelo menos é um dos conituíntes principais
da escrita, isso se deve ao fato de que “a própria imagem originou-se antes, da descoberta – io
é, da invenção da supercie: ela é o produto direto do pensamento da tela.”
265
Para a autora, é
da consciência do espaço como campo de relações que se criaram as imagens. A mutação da
imagem em escrita demonra que apesar das diferenças entre as duas, o espaço atravessa tanto
a contextura da imagem quanto a da escrita, “[...] como se fosse ele que conituísse o princípio
264
BARTHES, Roland. Le plaisir du texte precede de Variations sur l’écriture. Paris: Seuil, 1994/2000, p. 53. apud: ARBEX, Márcia (org.).
Poéticas do visível: ensaios sobre a escrita e a imagem. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, Programa de Pós-Graduação
em Letras: Estudos Literários, 2006, p. 26.
265
CHRISTIN, Anne-Marie. L`image écrite ou la déraison graphique. Paris: Flammarion, 2001, p. 6. apud: ARBEX, Márcia (org.). Poéticas
do visível: ensaios sobre a escrita e a imagem. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, Programa de Pós-Graduação em
Letras: Estudos Literários, 2006, p. 18.

comum a ambas, e que até mesmo a redução da figura em signo se devesse a ele.O suporte
como um “caldo primordial
266
, um catalisador das relações entre os sinais nele presentes que,
eimulados pela proximidade conferida por ee espaço e pelo olhar dos primeiros homens,
sofreram mutações tanto em sua forma quanto no seu diálogo com os demais sinais.
Por serem espaços escolhidos e tratados para receber as marcas do futuro, os
cascos lixados de tartaruga e as paredes das cavernas cobertas com branco ou areia (Lascaux,
Pech-Merle e Altamira) demonram a consciência que nossos ancerais tinham deas superfícies
como suportes para a feitura de imagens. Refletindo sobre as relações entre esses ancerais e as
paredes de Lascaux, Blanchot nos dá uma bela pia sobre a influência dialética da superfície no
processo criativo, não apenas dos primitivos, mas de todos os homens:
266 A hipótese do caldo primordial surgiu nos anos de 1920 através dos estudos do russo Alexander I. Oparin e do britânico J. B. S.
Haldane, que postularam o surgimento da vida terrestre nos lagos de milhões de anos atrás a partir de reações químicas entre
compostos orgânicos ricos em hidrogênio, carbono e nitrogênio que, expostos majoritariamente ao calor, aos raios e à radiação
ultravioleta, resultaram em estruturas simples de RNA, versão primitiva de DNA e base de todos os seres vivos. É referente ao líquido
presente nestes lagos e oceanos primordiais, rico em substâncias orgânicas e comparado à um caldo, que veio a denominação de
“caldo” ou “sopa primordial”.
O que parece ser mais estimulante no paralelo entre esta hipótese de biopoiese (origem da vida) e a hipótese do surgimento da
imagem e da escrita por meio da superfície é que, tanto numa como noutra, as estruturas geradas são códigos constituídos a partir
do próprio meio em que surgiram. Como novas formas mais elaboradas e com novas funções, elas apenas se reconfiguraram por
forças presentes no mesmo espaço em que estavam, diferente das concepções que crêem que estas estruturas foram reproduzidas
“à imagem e semelhança” de um elemento externo, o que, por um viés metafísico, no caso do surgimento da vida, seria por obra de
Deus e, no da escrita, seria por mérito da voz, do Verbo.
FIGURA 096 - CALDO PRIMORDIAL
A caverna de Lascaux e dezenas de inscrições feitas pelo homem em suas paredes.
De acordo com Anne-Marie Christin, a imagem e a escrita compartilharam a mesma superfície desde seus primórdios.
(GOMBRICH, 2001, p. 42)

Às vezes, como Leonardo da Vinci, o homem olha as pedras, paredes e, nas suas
manchas, reconhece as figuras, que com uma uma súbita correção faz aparecer.
Às vezes, deixa correr os dedos sujos pela superfície das rochas - ou sobre si mesmo -
e esses traços o agradam, esse barro é já a cor.
267
Por esse pensamento, a superfície é deslocada da posição, inicialmente passiva no
processo de criação de imagens, para uma condição de correspondência com o homem que
nela/com ela desenha. Mais que um simples nada que se oporia à presença positiva do traço, o
espaçamento entre as formas presentes permitiu que eas pudessem emergir significativamente.
Nesse sentido, o espaço vazio é parte integrante das formas, e tão importante quanto os pprios
traços que as compõem, sejam eas formas imagem ou escrita:
[...] considerando que a imagem diz respeito à categoria do espaço, é preciso admitir
inicialmente que sua superfície é primeira, io é, anterior às superfícies representadas
e de tal maneira que as próprias guras sejam tributárias dessa superfície, mas admitir
também que os intervalos que as separam preservam seus valores.
268
A capacidade, ppria do homem, de demarcar uma parte do espo como forma
original em uma zona diferenciada, é a demonração desse pensamento do fundo
269
, que tanto
reconhece no vazio um valor de maneira alguma neutro, quanto é capaz de se desdobrar na invenção
da escrita.
Relembrando a comparação eabelecida por Vilém Flusser
270
entre o pensamento em
linha associado à escrita e à maneira como se um texto alfabético, e o pensamento em superfície
relacionado à leitura e à conituição de imagens, ee pensamento de fundo” aproxima-se mais da
concepção do segundo por admitir a profusão de sentidos. Profusão inerente às duas dimenes do
plano, que é incorporado na conituição da imagem e da escrita que nele afloram. Os interícios, os
espos entre os pontos, entre as linhas e, afinal, entre as palavras, deixam de ser considerados como
um vazio nulo, para corresponder a uma presença, eabelecendo-se como valores semânticos.
267 “Talora, come Leonardo da Vinci, l’uomo guarda le pietre e le pareti e nelle macchie riconosce delle figure che una leggera correzione
fa apparire. Talora lascia scorrere le sue dita sporche sulla superficie delle rocce - o su di sé - e queste tracce gli piacciono, questo
fango è già colore.” BLANCHOT, Maurice. La nascita dell’arte. p. 23-34 in: BLANCHOT, Maurice. L’Amicizia. Genova-Milano: Casa
Editrice Marietti, 2010, p. 30.
268 CHRISTIN, Anne-Marie. L`image écrite ou la déraison graphique. Paris: Flammarion, 2001, p. 17-18. apud: ARBEX, Márcia (org.).
Poéticas do visível: ensaios sobre a escrita e a imagem. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, Programa de Pós-Graduação
em Letras: Estudos Literários, 2006, p. 25.
269
CHRISTIN, Anne-Marie. L`image écrite ou la déraison graphique. Paris: Flammarion, 2001, p. 20.
270 FLUSEER, Vilém. O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. São Paulo: Cosac & Naify, 2007.

Entretanto, o que Flusser denomina como pensamento em linha, que provém do tipo
de pensamento engendrado pela escrita alfabética (linear por definição), parece desconsiderar o
espaço. A escrita alfabética dise do espo simplesmente para desdobrar suas linhas de caraeres
em sequências de palavras que, numa analogia geométrica, são como os pontos conituintes de
um segmento: localizam-se no espaço sem no entanto possuírem dimensão. Na escrita ocidental, a
dimensão das palavras na sentença não altera seu significado, uma vez que ea escrita se pretende
tributária apenas da fala. As palavras pairam sobre a página, eendendo-se sobre o branco do
suporte, mas não lhe reconhecem nenhum valor. Foi preciso a “agrafia tipográfica de Mallar
para criar em torno das palavras rarefeitas uma zona vazia [...]”
271
onde o espaço desempenhava
um papel tão importante quanto o das palavras, reafirmando-lhes a exiência material e fazendo
com que a linguagem aentão tida como palavra viva – retornasse à dimeno concreta de seus
signos de maneira autoreflexiva para conituir-se em escrita como um todo. Desse momento em
diante, o pensamento “em superfície” como diz Flusser, ou “de fundo” como quer Chriin, pôde
voltar a atuar junto das palavras, tal como o fazia nos primórdios da imagem e da escrita, antes
de ter sido renegado por tantos séculos de vigência da “epieme logocêntrica”.
3.4.1 Vazio: atuação do invisível no visível
[...] a vertigem da página branca, do pagrafo ou
do exergo vazio subsie apesar de todos os artifícios
de escrita que tentam enegrecer a página, preencher
os espaços a priori.
Antoine Compagnon
As interpretações dadas sobre o branco nas culturas do Ocidente e do Oriente
diferem em rios pontos. Enquanto no Oriente o branco é compreendido como um processo
ativo e gerador, no Ocidente ele usualmente representa uma falta, um nada. Leitura que
também é atribuída ao espaço vazio, o lugar perdido e indefinido do intervalo entre as figuras.
Um dos motivos (e para Anne-Marie Chriin, o motivo) dea diferença de julgamento earia
na forma com que eas culturas concebem a escrita.
272
271
BARTHES, Roland. O grau zero da escrita: seguido de novos ensaios críticos. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 64
272 Cf. CHRISTIN, Anne-Marie. Poétique du blanc: vide e intervale dans la civilization de l’alphabet. Paris: VRIN, 2009, p. 10.

No Oriente os caraeres da escrita ideográfica chinesa, provenientes da observação celee
e do regiro pelos adivinhos em cascos de tartaruga, admitem uma amplautuação de sentido, sendo
capazes de receber vários valores dependendo de sua localizão. Tanto o suporte do ideograma chinês
quanto os sinais que lhe são contíguos influem na variação de sentido dee sinal.
273
Diferente da
escrita ideográfica, que preserva a importância do espaço vazio plenamente no próprio ato de leitura
como reforço aos sinais da escrita, o nosso alfabeto é eruturado a partir de uma divisão abrata da
ngua sem nenhuma atribuição de valor ao espaço vazio. O siema alfabético foi o primeiro, após um
peodo em torno de três mil anos de exiência do ideograma e do siema hieroglífico, a desfazer os
vínculos com o visível inicial da escrita – e logo, também com o espaço.
274
O alfabeto ocidental deriva de uma erutura gfica precedente, a escrita grega
(Fig. 097) que se conitui num dos desdobramentos do siema alfabético criado pelos fenícios
(Fig. 098) em meados do segundo milênio a.C. Conforme eudiosos, ee siema corresponde
à apropriação e adaptação de alguns sinais da escrita hieroglífica egípcia por mercadores
mades hicsos e hebreus e a poerior transmutação desses sinais em figuras de seres e animais
familiares decil memorizão e que tinham os mesmos nomes nas diversas línguas semíticas.
275
273
Cf. CHRISTIN, Anne-Marie. Poétique du blanc: vide e intervale dans la civilization de l’alphabet. Paris: VRIN, 2009, p. 42.
274 Cf. CHRISTIN, Anne-Marie. Poétique du blanc: vide e intervale dans la civilization de l’alphabet. Paris: VRIN, 2009, p. 42..
275 MANDEL, Ladislas. Escritas, espelho dos homens e das sociedades. São Paulo: Edições Rosari, 2006, p. 42
FIGURA 097 - HELENOS
Detalhe da escrita em uma estela funerária com nomes de
soldados gregos mortos em batalha no ano de 459 a.C.
Museu do Louvre, Paris
(CHRISTIN, 2002, p. 238)

Os fenícios adotaram ee alfabeto e o simplificaram ainda mais, transformando-o num siema
acronico, em que baava nomear as figuras desse conjunto de sinais e reter seu primeiro som
daí a denominação acro, relativa ao significado de topo, de alto e de primeiro - para se ter
acesso à letra correspondente. Da decomposição das articulações dos diferentes idiomas falados
e sua acomodação mais ou menos adaptada às suas pouco mais de duas dezenas de sinais,
o siema alfabético admitiu a mesma escrita para todas as nguas reduzidas em fonemas,
“[...]xando definitivamente assim as relações entre a palavra falada e sua figuração gfica.
276
Relações baseadas numa compilação da língua que tem como objetivo a transcrição fonética xa em
detrimento de possíveis interações visuais utuantes entre esses sinais gráficos e desses com o espo:
“[...]saber ler refere-se, eritamente nee siema, a decodificar.
277
276
MANDEL, Ladislas. Escritas, espelho dos homens e das sociedades. São Paulo: Edições Rosari, 2006, p. 43.
277 CHRISTIN, Anne-Marie. Poétique du blanc: vide e intervale dans la civilization de l’alphabet. Paris: VRIN, 2009, p. 10.
FIGURA 098 - FENÍCIOS
Placa de pedra encontrada em Gezer, entre
Tel-Aviv e a fronteira egípcia.
Escrita em uma das línguas dos fenícios,
esta placa mostra um calendário do séc. X a.C.
Museu de Istambul, Istambul
(CHRISTIN, 2002, p. 238)

Todavia, segundo Anne-Marie Chriin, o alfabeto apresenta uma inadequação
endêmica em relação aos sons das línguas e suas nuances, sendo portanto insuficiente para a
definição de uma linguagem genuinamente oral, pois a letra de nosso alfabeto não é resultante de
uma alise fonética rigorosa.
278
A letra surgiu de uma condição visual da escrita que a precedeu:
a erutura gfica do alfabeto fenício, a qual dava suporte concreto à leitura dee alfabeto.
O esquema fotico atual adequou ea eruturação de forma mais ou menos adaptada à acomodação
das línguas.
279
Assim, a escrita ocidental, por sua conituição híbrida, ao mesmo tempo em que
abrai veementemente sua parte visual, o faz de maneira inável. Do mesmo modo que nossa
civilização do alfabeto identifica, por definição, o branco e o vazio à ausência, à falta e ao não
nomeado, recusando-se a enxergar-lhes como parte das formas visíveis.
Por conta da fragilidade dessa posição de rejeição do branco, do vazio e da visualidade
alfabética, abrem-se possibilidades dentro dea mesma escrita e dea civilização para
se explorar e manejar o vazio e o intervalo de modo a fazer-lhes emergir significativamente.
Quando a norma é a letra, não há reconhecimento aplicável previo fora do nome que ela anseia
xar, mesmo que tacitamente. Eno ler ou olhar o branco, sem associá-lo à tragédia de uma perda
ou de uma falta, equivale a transgredir o siema de forças que se resguarda nessa invisibilidade
presumida do vazio: a razão.
278 CHRISTIN, Anne-Marie. Poétique du blanc: vide e intervale dans la civilization de l’alphabet. Paris: VRIN, 2009, p. 10.
279 CHRISTIN, Anne-Marie. Poétique du blanc: vide e intervale dans la civilization de l’alphabet. Paris: VRIN, 2009, p. 10.
FIGURA 099 - FERRAMENTAS PARA UMA BOA ESCRITA
E essa “boa” escrita pressupõe uma “bela” escrita
não apenas no sentido caligráco do termo, mas que
também obedeça às expectativas alicerçadas pela
cultura. Uma escrita que apazigua o leitor, completando
todos os “buracos” do sentido, como a “escrita de
prazer” barthesiana. Bem diferente, seria a écriture,
praticada por Mira, Mallarmé ou Artaud, que tira o leitor
de sua posição de conforto, uma vez que não se propõe
a corresponder-lhe com fechamento de sentido, mas, ao
contrário, explora o vazio como fonte geradora
de novos significados.
Prancha da enciclopédia da Grande Enciclopédia,
Diderot e d’Alembert, metade do séc. XVIII
(MANDEL, 2006, p. 158)

o foram senão os artias e os poetas os primeiros a terem a ousadia de enxergar
o vazio em nossa civilização, ees arfices a quem Platão sempre guardara severa desconfiança,
rebaixados à condição de desoneos ilusionias da polis grega. Foi preciso que os artias levassem o
alfabeto à redescoberta do branco e do vazio, para que ees fossem explorados de diversas maneiras
originais. O artia pláico francês Jean Dubuffet expõe claramente o oracismo do branco no
contexto alfabético de nossa civilização e explica como “[...]para o olhar não intervalos”
280
,
diferentemente do vocabulário, ao qual não há nada além do nomeável. Ou melhor, para a visão
os intervalos não são nulos, conituindo-se como meio potencial onde o olhar e a imaginação
se projetam completando (recriando?) as formas:
[...] há um condicionamento cultural que induz a olhar o entre os objetos como
vazio. [...] O continuum das coisas foi decompoo pela cultura em vinte mil noções
cujo inventário corresponde às vinte mil palavras do dicionário. É desse contexto de
vocabulário que se utiliza o pensamento. Ele é pobre, arbitrário. A escrita não tem
outra alternativa, enquanto que a pintura pode libertar-se: a sua língua de sinais não é
dependente e, nee continuum, ela pode xar ao infinito os pontos que se encontram
em todos os intervalos entre os conceitos que foram nomeados. [...] É missão da
pintura ultrapassar convenções, reituir o contínuo, sobrevoar e introduzir pontos de
contato ou de apoio mutáveis a todo momento, que criam, para o pensamento, todo
tipo de novas trajetórias.
281
Eas novas trajetórias indicam claramente a possibilidade representada pelo
pensamento da tela ou pensamento em superfície”, onde o sentido não mais transcorre linearmente
segmentado pela escrita, mas difunde-se em inúmeras direções. Pensamento que redesenha
flexivelmente os conceitos, levando em conta a imaginação e a memória associativa, tal qual os
antigos adivinhos chineses e alogos que observavam os intervalos entre os corpos celees,
fazendo surgir novas formas significativas dees espaços. No Tao uma passagem sobre o
vazio e o invisível:
280 DUBUFFET, Jean. Batons rompus. Paris, Minuit, 1986, p. 26 e 27, apud: CHRISTIN, Anne-Marie. Poétique du blanc: vide e intervale
dans la civilization de l’alphabet. Paris: VRIN, 2009, p. 11 e 12.
281 DUBUFFET, Jean. Batons rompus. Paris, Minuit, 1986, p. 26 e 27, apud: CHRISTIN, Anne-Marie. Poétique du blanc: vide e intervale
dans la civilization de l’alphabet. Paris: VRIN, 2009, p. 11 e 12.

A atuação do invisível no visível
282
Trinta raios convergentes no centro
Tem uma roda,
Mas somente os vácuos entre os raios
É que facultam seu movimento.
O oleiro faz um vaso, modelando a argila,
Mas é o oco do vaso que lhe dá utilidade.
Paredes são massas com portas e janelas,
Mas somente o vazio entre as massas
Lhes dá utilidade -
Assim são as coisas físicas,
Que parecem ser o principal,
Mas o seu valor eá no invisível
Ee aforismo sugere o modo pelo qual a cultura oriental visa a compreeno do vazio:
pela integração daquilo que não é como sendo parte do que é. Em outras palavras, é graças ao
vazio que o envolve que aquilo que é visível e nomeável tem a possibilidade de exiir como tal.
Mais que um espaço de separação entre os termos, o vazio permite que se eabeleçam inúmeros
feixes de relações significativas e mutáveis entre as coisas, de maneira que conceitos e formas pré-
exientes possam ser ultrapassados rumo a um eado de mutável e conante devir: o fora.
282 ROHDEN, Huberto. Lao-Tse: Tao Te King. São Paulo: Fundação Alvorada, 1979, p. 46
FIGURA 100 - TRANSPARÊNCIA E OPACIDADE
EM UM MESMO CONTINUUM
Mira Schendel, Sem título (Objetos grácos), 1967
datilograa s/ papel entre placas
de acrílico transparente,
100 x 100 x 1 cm
col. Ada Schendel, São Paulo
(PEREZ-ORAMAS, 2009, p. 130)

3.4.2. Contínuo: a ausência presente
A escrita tem horror ao vazio: o vazio é o lugar do morto, da
falta; e não se põem mais epígrafes senão nos monumentos
funerários. Mas a prática da escrita oferece ea imensa
vantagem sobre as outras, sobre todas as outras, inclusive
a da cirurgia, a vantagem de baar-lhe, para conjurar o
horror e preencher o vazio, modificar seu léxico.
Antoine Compagnon
Jean Dubuffet, como rios de seus contemporâneos, rejeitava a tradição artíica
ocidental e se interessou profundamente pela criação desvinculada dos condicionamentos da cultura
europeia, como a linguagem do grafite e as manifeações artíicas dos pacientes psiquiátricos,
das crianças e de marginais. Muito do entusiasmo de Dubuffet pela produção dees indivíduos
vem do fato de que eles ignoram que a linguagem e suas regras sejam culturalmente conruídas.
Io os coloca à margem de relações de força que se impõem através da língua aos indivíduos,
como o poder político, o poder de classe ou da literatura. E por também ignorarem que a língua
se proponha ao regiro ideal do pensamento, ainda que a linguagem inituída eeja longe de
abranger todas as possibilidades exientes e imagináveis de expressão, ees indivíduos, como
crê Dubuffet, têm então a liberdade de ultrapassar as fronteiras do que é demarcado pela língua
para navegar no indizível, no impensável, no indefinível: naquilo que extrapola o Verbo e que a
razão positiva chamaria de vazio ou de delírio, mas que nem por isso deixa de exiir enquanto
manifeação criativa original:
Os objetos e noções tal como são formatados poderiam muito bem ter sido escolhidos
de maneira diferente, segundo um recorte totalmente diverso no continuum das
coisas. O qual resultaria em diferentes conexões para o pensamento e, logo, em
outro compasso. Em outra gramática. Em outra lógica. Em toda uma outra visão das
coisas.
283
283 «Les objets et notions don til est forme pourrait aussi bien avoir été choisis différemment et selon un découpage tout autre du
continuum dês choses. Il en résulterait un clavier différent offert à la pensée et, pour celle-ci, un autre mécanisme de cheminement.
Une autre grammaire. Une autre logique. Une vision dês choses tout autre
DUBUFFET, Jean. Préface. In: THÉVOZ, M. Le langage de la rupture. Paris: Presses Universitaires de France, 1978, p. 5-8. apud:
DANTAS, Marta. Escritos brutos e outros escritos: a “experiência limite” em questão. XI Congresso Internacional da ABRALIC:
Tessituras, Interações, Convergências. USP: São Paulo, 13 a 17 de julho de 2008. Disponível em: <http://www.abralic.org/anais/
cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/005/MARTA_DANTAS.pdf> acesso em 8/9/2010.

Dentre as diversas fases vividas pela obra de Dubuffet, uma onde o intento do
artia de fazer novos recortes no continuum das coisas se evidencia com mais intensidade através
de desenhos que redividem e, ao mesmo tempo, reagrupam as formas por meio de contornos e
áreas brancas hachuradas: L’Hourloupe.
Ee também é o título do pequeno livro criado pelo artia, em que eas formas
contíguas, traçadas com boa dose de acaso, eimulam o olhar. A visão atravessa toda a extensão
deas imagens sem se decidir por nenhuma associação definitiva em meio à profusão de formas
exientes. Como reflexo dessa reverberação experimentada pelo olhar, as palavras nas quais se
apoiam os conceitos que alicerçam nossa percepção e nossas certezas são deseabilizadas por um
indecidível rumor, em que nada mais pode ser afirmado ou explicado em definitivo (Fig. 101).
Mais que a polarização entre o figurativismo ou a abração das formas que
primariamente ees desenhos poderiam levar a pensar, é a sua reconfiguração inesperada do
continuum das coisas, que faz do espaço um incessante agente de relações dinâmicas e simultâneas
entre as formas. Tal como os espaços opacos e os transparentes (Fig. 100) dos trabalhos de Mira
interagem entre si eimulando relações visuais, ee espaço criado por Dubuffet atua ativamente
nos dlogos entre as formas, sendo avesso a qualquer fechamento de sentido e de tempo. Pois
tanto o vazio nas monotipias e na obra escritural de Mira, quanto o espaço superpovoado por
FIGURA 101 - L’HOURLOUPE
Como o próprio nome Banco dos
equívocos indica, a superfície pictórica,
redividida e novamente costurada
pelo artista, se apresenta como
espaço de errância, onde o sentido é
gerado, simultaneamente, através da
coexistência entre o que é encontrado e
o que é perdido pelo olhar.
Jean Dubuffet, Banco dos equívocos
(L’Hourloupe), 1963
óleo s/ tela,
150 x 195 cm
Musée des Arts Decoratifs, Paris
(LOPEZ-BLAZQUEZ, 1996, p. 34)

formas e contornos dessa série de Dubuffet amplificam o simultaneísmo visual inerente ao plano
piórico. Ee simultaneísmo liberta o olhar e o pensamento de qualquer linearidade que possa
ainda persiir, conduzindo-os em função de um infinito vir a ser das coisas. Desse pensamento
espacial (ou da tela) engendrado por Dubuffet e, conforme entende ee eudo, tamm por Mira,
emerge “[...] um sentimento de incerteza sobre os fundamentos das nossas noções habituais de
cheio e vazio, de ser ou de não ser, de pertença aos dados reais ou às projeções do imaginário.
284
Nas composições de Dubuffet ea incerteza pode ser experimentada pela infinita probabilidade
de associação espacial entre as formas (Fig. 101 e 103) e nos trabalhos de Mira Schendel é o
rumor escritural, ampliado pelo vazio, que coloca o signo, simultaneamente, entre a posição de
elemento visual e sinal verbal (Fig. 102).
284 LOPEZ BLAZQUEZ, Manuel. Dubuffet, 1901-1985. Barcelona: Globus, 1996, p. 39.
FIGURA 102
Mira Schendel, Sem tulo (Letras
circunscritas), 1970
caneta hidrográca s/ papel,
50 x 36 cm
col. particular, São Paulo
(DIAS, 2009, p. 213)

Para Dubuffet, a cultura ocidental privilegiou demasiadamente a literatura e, em
contrapartida, qualificou a pintura como uma manifeação rudimentar, que teria lugar e
função nea cultura pela mediação de conceitos como a eética ou o belo,
285
que não deixam
de ser conruções linguíicas. O artia ressalta ainda como a percepção não da arte, mas de
todas as coisas e do pensamento, eão condicionados pela segmentação impoa pelos conceitos
e palavras exientes. A saída apontada por Dubuffet para ea limitação seria trilhável pela
pintura, uma vez que para ele a escrita permanece dependente do vocabulário, o que resulta no
empobrecimento do pensamento e da percepção ocidentais.
285 Cf. LOPEZ BLAZQUEZ, Manuel. Dubuffet, 1901-1985. Barcelona: Globus, 1996, p. 9.
FIGURA 103 - UMA LASCAUX CONTEMPORÂNEA
Como as paredes das cavernas ou dos cascos de tartaruga que guiaram o olhar dos homens
primitivos na criação de imagens e escritas, o ambiente construído por Dubuffet transforma o
espaço ao nosso redor numa grande rede de tessitura dinâmica, que faz e desfaz seus nós, à
medida que o olhar gera novas signicações.
Jean Dubuffet, Jardim de inverno (L’Hourloupe), 1970
epoxi com tinta de poliuretano, 5 x 10 x 6 m
Centre Georges Pompidou, Paris
(LOPEZ-BLAZQUEZ, 1996, p. 38)

Nee ponto é preciso esclarecer sobre a maneira como o artia vê a escrita,
identificando-a, grosso modo, com a forma da literatura clássica, ou eno, reringindo sua erutura
à lógica da sintaxe predicativa. Definição que toma a escrita como um meio obrigatoriamente
transitivo de comunicação e que se pretende como um duplo gráfico da fala, dispensando o aspeo
visual das palavras e a sua relação com o suporte. Ea acepção abordada por Dubuffet eá em
conformidade com o modo como a cultura ocidental também concebe a escrita, limitando-a
a funções baante específicas e aquém do potencial atribuído à pintura pelo artia. Entretanto,
como Dubuffet se interessava pelas escritas, por assim dizer, marginais que extrapolam esse
cânone, é de se entender que ele utilize ea definição mais como referência das limitações que a
cultura impõe à escrita e em oposição às possibilidades da pintura, do que essencialmente como
seu entendimento a respeito do que é e do que pode ser a escrita.
FIGURA 104
Mira Schendel, Sem título, 1964/65
monotipia sobre papel de arroz,
46 x 23 cm
col. Ada Schendel, São Paulo
(SALZSTEIN, 1996, p. 159)
FIGURA 105
Mira Schendel, Sem título (Toquinho), 1972
letraset, papel tingido s/ papel,
49 x 25,4 cm
col. particular, São Paulo
(DIAS, 2009, p. 236)

As monotipias e colagens de letraset de Mira Schendel e sua pintura escritural
(ou escritura piórica) são uma pequena demonração de como a fronteira apontada por Jean
Dubuffet entre escrita e pintura pode ser muito menos evidente do que indicam as colocações do
artia. Pelo contrário, nos trabalhos de Mira Schendel ea fronteira mora toda sua porosidade,
pois o espaço piórico congrega a escrita e interage com ela de modo a ampliar seu alcance e sua
capacidade de induzir novas formas de pensamento além das limitações que Jean Dubuffet atribui à
escrita alfatica ocidental. Max Bense chega a afirmar que a redução gráfica introduzida por Mira
“[...] suspende a erutura linguíica em favor da piórica.
286
Tanto ea suspensão apontada por
Max Bense, quanto o antagonismo escrita/pintura colocado por Dubuffet soam queionáveis,
uma vez que eles parecem invocar um cancelamento do componente linguíico, sendo que no
trabalho de Mira há muito mais uma reincorporação do aspeo visual aos signos linguíicos, do
que necessariamente uma negação de seu caráter enquanto elementos da escrita. É ee acréscimo,
e não a ruptura completa com os fundamentos da escrita alfabética, que caraeriza o indecidível
em meio à incessante busca sem fechamentos que o trabalho da artia suscita. Também, por
não negar o caráter de escrita dos elementos linguíicos, o trabalho de Mira permite que o
espaço branco ou transparente, seja do papel de arroz ou do acrílico, hesite perpetuamente entre
a percepção do invisível e um pressentimento quase palpável.
Mira joga com a invisibilidade” do branco e do vazio, uma vez que sua obra lança
mão da escrita alfabética que, por princípio, abrai tanto o suporte quanto seu aspeo visual.
Em um primeiro exame não nenhum indício de que o trabalho da artia se proponha
a negar ou romper com essa concepção de escrita e sua relação com o espaço. Ela parte da
escrita alfabética ou, pelo menos, daquilo que Wilcon Joia Pereira sensivelmente chama de
“pseudopalavras
287
, unindo-as a “reminiscências de geos e percursos visuais”
288
. Ao dispersar
ees sinais em meio ao branco do suporte, deixando que o espo interfira em suas relações, Mira
leva a escrita à quase completa diluição, permitindo ao espaço vazio se manifear ativamente.
286 BENSE, Max. Pequena estética. São Paulo: Perspectiva, 1971, p. 225, apud: PEREIRA, Wilcon Joia. Escritema e figuralidade nas artes
plásticas contemporâneas. Assis: Faculdade de filosofia, ciências e letras de Assis, 1976, p. 33.
287 PEREIRA, Wilcon Joia. Escritema e figuralidade nas artes plásticas contemporâneas. Assis: Faculdade de filosofia, ciências e letras
de Assis, 1976, p. 32.
288 PEREIRA, Wilcon Joia. Escritema e figuralidade nas artes plásticas contemporâneas. Assis: Faculdade de filosofia, ciências e letras
de Assis, 1976, p. 33.

Porém, como nos trabalhos da artia o signo alfabético chega ao limiar entre o piórico e o
linguíico, sendo impossível captá-lo univocamente entre uma coisa ou outra, seu espaço tamm
evoca uma branca e connua transparência indecidível, onde o impossível também se eende à
armação de presença ou de ausência do vazio.
FIGURA 106
Mira Schendel, Sem título, 1972
letraset entre placas de acrílico fosqueado,
95 x 95 cm
col. Clara Sancovsky, São Paulo
(SALZSTEIN, 1996, p. 197)

CONCLUSÃO
O verdadeiro pensamento parece sem autor. E a beatitude
tem essa mesma marca. A beatitude começa no momento
em que o ato de pensar liberou-se da necessidade de forma.
A beatitude começa no momento em que o pensar-sentir
ultrapassou a necessidade de pensar do autor - ee não
precisa mais pensar e encontra-se agora perto da grandeza
do nada. Poderia dizer “tudo”. Mas “tudo” é quantidade,
e quantidade tem limite no seu próprio começo.
A verdadeira incomensurabilidade é o nada, que não
tem barreiras e é onde uma pessoa pode espraiar sem
pensar-sentir.
Clarice Lispeor
Empregar o termo conclusão para um eudo sobre a obra de Mira Schendel soa um
tanto paradoxal, uma vez que concluir compreende a ideia de que se tem de armar algo sobre
alguma coisa a priori. De que se tem de chegar a um fim dentre tantos fins possíveis após um
tamm subentendido início: xar-se em um ponto. E isso parece se contrapor inteiramente ao que
impregna a busca exiencial de Mira, que Geraldo Souza Dias relata. Também parece a negação
do fruto dessa busca, que se reflete no universo conruído pela obra da artia. Um universo
de procura pela liberdade através da superação de qualquer limitação: de tempo, de sentido, de espo
e de fronteira: a transparência. Um universo frágil, sutil, onde o limiar entre o silêncio escancarado
e a tagarelice enclausurada se confundem e se correspondem pela simples inversão do ponto
de via ou da via de um ponto: um sinal algébrico? Verbal? Visual? O início? O fim? Perde-se
completamente aquele que tenta responder. A respoa será sempre uma nova pergunta.
E pergunta é algo que, mais do que qualquer coisa, Mira soube fazer insientemente
e que, resume como – imagino – ela teria goado de responder sobre seus achados e sobre seu
trabalho. As ferramentas utilizadas por ela parecem absurdamente escassas e improváveis para
alguém com propósito tão intenso. Palavras, letras, linhas e fragmentos disso tudo, em meio a
uma imensidão branca e imaterial como o papel de arroz ou o acrílico transparente: um mínimo,
um quase nada. Mas é nesse quase que a artia se apoia e dele se utiliza como alavanca para
ampliar suas perguntas e abranger poderosamente tudo com sua busca que não cessa.

Na obra de Mira Schendel o piórico e o pláico se esposam, gerando uma delicada
e vacilante poética, tal como no Coup de dés de Mallarmé. Ambos exploram a visualidade dos
signos e sua materialidade no espaço. Entretanto, nesses trabalhos não é possível desprender
completamente os signos de suas relões com seus referentes linguíicos. Mesmo que essa ligão
seja tênue, como um mero eco do referente, ou resgatada do eado de pura ininteligibilidade
que os signos tenham atingido. Mira e Mallartiram partido disso e exploram, cada um
à sua maneira, a possibilidade autoreflexiva da língua: eis então o caráter poético indissociável
do aspeo visual dos trabalhos.
Tal como, quase meio século antes, na agrafia introduzida por Mallarmé através
da espacialização e da interferência tipográficas no aspeo visual de seu texto, na obra de
Mira Schendel, tanto o vocábulo quanto o espaço vazio são perpetuamente dissociados
e reconeados às concepções que os acompanham. Caso contrio não seria possível ler e nem
seria possível ver simultaneamente ees trabalhos. Nesse contexto, todos os sentidos são possíveis
pela (des)afirmação da ambiguidade que impregna eas obras: uma inocência consciente.
O que começou como um queionamento no campo do design gráfico ganhou uma
dimeno muito mais ampla (e talvez arriscada) ao desdobrar-se para o território das artes pláicas.
Os queionamentos sobre a relação palavra-imagem avançaram, inicialmente por um levantamento
de alguns trabalhos na hiória da arte e depois por exemplos a partir dos cubias. Através desse
panorama, chegou-se a um entendimento sobre como ea relação foi fundamentada em nossa
cultura e como o platonismo influiu decisivamente nos modelos e limitações do que são e do que
podem imagem e escrita. Inclusive, foi observado como ee modelo comou a ser deseabilizado
pela própria produção de imagens e de textos de nossa civilização e como, à partir das vanguardas
e de Mallarmé sua coerência foi colocada em cheque tanto nas artes quanto na literatura.
Com a arte moderna e contemporânea, o modelo platonia e logocêntrico que delimita
a escrita já não goza do mesmo crédito de outrora. No entanto, sua sombra ainda se projeta sobre
nosso pensamento e percepção da escrita e das imagens. Nesse cenário encontra-se a obra de
Mira Schendel e, mais especificamente, sua produção artíica abordando o signo linguíico e
as palavras. Vários trabalhos e séries foram vias e, em vários deles, o que parece ficar baante

claro é que para Mira a escrita nunca se pretende uma coisa apenas. Ela é sempre uma coisa e,
imediatamente, sua possibilidade de contrário. Logo, se no trabalho da artia a escrita se coloca
como escrita, ao mesmo tempo ela também é imagem e é imagem de escrita. Não negação
e nem armação em sua obra, mas coexiência. Uma coexiência que ruma em direção à maior
abrangência possível: de sentidos, de possibilidades, de indeterminações. Mas, paradoxalmente,
a artia trabalha isso sempre o mais próximo do mínimo. nimo de cor, de elementos,
de detalhes, de ruído. E, talvez por isso, a busca dessa abrangência seja potencializada, pois
os vaos espaços crus das superfícies de seus trabalhos também amplificam essa profusão de
possibilidades que seu geo lança através das palavras. A superfície dialoga com o signo e lhe
devolve em dobro o seu rumor.
Desde os primeiros trabalhos de Mira Schendel fica evidente a grande consciência
que a artia possui do espo piórico e de seu poder, através de uma composão extremamente
bem-sucedida. Para um olhar mais desatento, à medida em que a escrita e seus signos começam a
surgir, a superfície parece perder importância em sua obra. No entanto, é dessa relão íntima com
o espaço que Mira extrai o melhor da escrita. Em seu trabalho, assim como a escrita não protagoniza
um papel xo, mas se desdobra em múltiplas posições, a superfície do suporte tamm se comporta
dea maneira. Logo, Mira Schendel reconhece ao espaço branco ou transparente uma exiência
visível, concreta, ativa, significante, cheiae, ao mesmo tempo, o apresenta como imaterial, neutro,
aberto, permeável e vazio. Essas permutações de sentido irão variar de acordo com o trabalho
ou com configuração escritural criada, mas de forma geral, fica claro que em se tratando de
Mira Schendel, uma coisa nunca é uma só coisa apenas.
E falando em vazio, do vazio se parte e ao mesmo vazio pode se ear a chegar, ainda
que ee não seja o de início. Letras e fragmentos parecem reminiscências do que outrora
foram palavras, mas nada impossibilita armar que ees mesmos signos são o balbucio de uma
escrita ainda por vir, em vias de uma completa explicitação. Através dessa errância, que tem
em si muito mais a marca da necessidade de busca do que de respoa, o tempo torna-se curvo,
circular, transparente: múltiplo. Através da abordagem do vazio e sua relação com a escrita,
a pesquisa adentra por eudos sobre a importância do espaço na geração de significado em escritas

ideogficas, como a chinesa. Por esse percurso também fica claro como neas escritas, tanto
o aspeo visual quanto o espacial participam do sentido e como ee sentido não se pretende
algo xo, ancorado no fechamento apenas da razão. Frente a esse modelo é colocada a matriz
ocidental de escrita, evidenciando-se mais uma vez como, tanto a elisão do aspeo visual da
escrita alfabética, quanto de sua relação com o espaço, não se tratam de uma evolução gica e
simplesmente incontornável, mas de uma escolha fundamentada e arbitrada conforme padrões
de nossa cultura. Tal é a evidência dee fato, que ainda assim é possível empreender escritas
plenas de significações permeadas de aspeos visuais e relações espaciais, utilizando o alfabeto
ocidental: queão de escolha. O trabalho de Mira se apresenta como um imenso teemunho da
abertura para ea possibilidade escritural. Ou mais, da sua amplificação ao infinito.
Através dee infinito é possível então intuir em um só relance (de dados?) e
compreender que tanto aquilo que denominamos como limite quanto os marcos do que tomamos por
prinpio, meio e fim têm esses nomes e valores porque assim decidimos escolhe-los e chamá-los.
Mil outros pontos poderiam ter sido designados para indicá-los, assim como mil outros nomes
poderiam eles ter. Mas como toda escrita pressupõe uma interrupção que convencionamos chamar
de m, também é chegada a hora de conceder - mais sob a forma de uma pausa - esse momento
ao eudo que se desdobrou ao longo deas páginas. Fim: denominação de tempo e espaço tão
arbitrária quanto parece ser a de seu improvável início. Anal, acreditar que as motivações para
ea busca eão todas esmiuçadas na introdução, como um início inconteável, soa baante
simplia.
Uma das experiências nunca antes imaginada sobre a conrução dee texto
acadêmico foi o eabelecimento de uma profunda relação com a escrita através de dois raios
de propagação superpoos: enquanto a pesquisa avançava por leituras a respeito de escritas
intransitivas relacionadas ao espaço e à sua profusão visual de sentido, em paralelo, também era
necessário organizar de maneira clara (ou quase) tudo o que era vivenciado e eruturar io de
forma linear, como num grande casaco em que os pontos da gola não podem vir antes dos da
manga. Ee tnsito entre duas inâncias de escrita e a gináicada tentativa de elaboração
disso da melhor forma possível, me fizeram, em muitos momentos, lamentar por não poder

acrescentar mais coisas, por não abordar o assunto de outras formas trocando-lhe o tom, e
nem poder desfazer a trama de um capítulo inteiro e tecer tudo de novo em ponto miudinho.
Mas a escrita de uma dissertação tem suas limitações de tempo, de abrangência,
de profundidade e, enfim, de forma, assim como o casacão do exemplo, que
também tem seus limites e que, provavelmente, não funcionaria muito bem se lhe
inventassem uma terceira manga ou um bolso de ponta-cabeça no meio das coas.
Não obante, se por um lado a angúia para dar uma direção e um fim à ea escrita foi quase tão
difícil quanto a angúia de agora em que eou prees abandoná-la, por outro lado ea trajetória fez
descobrir muitas coisas.
Talvez a principal seja que os olhos não olham mais como antes. Não olham
textos acadêmicos e nem texto ou imagem alguma como anteriormente. Antes do início da
pesquisa, ainda no projeto, o nome “tessitura” surgiu como uma intuição feliz, um sopro sutil em
meio à dureza dos primeiros conceitos e da dureza da expeativa de “sim” e de não”, como se
o preto no branco fossem assegurar-me respoas seguras. Mas essa palavra, tessitura, acabou
sendo bem mais abrangente do que se pudesse supor, morando-se como uma grande chave
para que o olho percebesse mais que apenas letras ou imagens, mais que o isso ou o aquilo.
Ea transformação e a inquietude advinda com ela começaram a brotar à medida em que
tornava-se cada vez mais claro que as respoas mais verdadeiras eram as mais provisórias e que,
se eu quisesse avançar além dos queionamentos iniciais, teria de olhar o “entre”.
Olhar para o espo que eá entre as palavras, mas, igualmente sob/sobre/através delas e também
das imagens. Olhar para ee espaço o nomeado e nem xado por palavras ou por qualquer outro
sinal. Olhar e compreender que, pela sua impossibilidade de xação como uma única coisa apenas,
o “entre” pode ser várias coisas ao mesmo tempo e pode, também, transformar aquilo que, como
a escrita, exie junto dele.
Foi então que a “tessitura” passou a ser para mim ee campo expandido em que
palavra e imagem se entrelaçam e se relacionam, simultaneamente, de diversas maneiras.
Um campo que, muitas vezes, antecede a inteão do traço e influi em sua forma, sua cor e sua força
ou que, ao contrário, é escolhido conforme àquilo que se pretende inscrever. Independentemente
se um meio, um fim ou o princípio de toda escrita, o que ficou claro é que a superfície, por mais

transparente, neutra, inexiente” ou dispensável que pareça ou que se queira, é integrante
fundamental da escrita (e da imagem) para quem deseja compreender um pouco mais sobre os
aspeos pláicos das palavras e suas possibilidades visuais.
Dessa compreensão se faz vislumbrar uma nova retomada do caminho que aqui
se encerra, a partir de regiros de escritas e suas superfícies que, um tempo durante ea
pesquisa, começaram a ser recolhidas no espaço urbano. Mas io é assunto para uma possível
outra escrita ou seria talvez, ainda para ea mesma escrita de agora, que com a tal terceira
manga courada nela. No entanto, o que se tem é o agora e o que nele eá. E do agora é muito
difícil, senão impossível, precisar o que será. Depois do inante presente tudo é liberdade do
que ainda não chegou. Do que não eá. A liberdade do “entre” que a tessitura ajudou tanto a
perceber: o devir.
E, à beira do próximo inante, se a pesquisa em si não termina nem acaba,
assim como não acabam os queionamentos e descobertas aprendidos com Mira Schendel,
aproprio-me de Roland Barthes, que soube traduzir a abrangência da obra de Mallarmé,
para seguir então a uma última sentença que parece também iluminar as relações
palavra-imagem-espaço nas obras da artia abordadas nee eudo: “Essa arte tem a própria
erutura do suicídio: o silêncio é nela um tempo poético homogêneo que fica entalado entre duas
camadas e faz explodir a palavra menos como o farrapo de um criptograma do que uma luz, um
vazio, um assassínio, uma liberdade.
289
289
BARTHES, Roland. O grau zero da escrita: seguido de novos ensaios críticos. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 65.

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
APÊNDICE
uma arte de vazios
onde a extrema redundância começa a gerar em formação original
uma arte de palavras e de quase palavras
onde o signo gráfico vee e desvee vela e desvela
súbitos valores semânticos
uma arte de alfabetos conelados
de letras-abelhas enxameadas ou solirias
a-b-(li)-aa
onde o dígito dispersa seus avatares
num transformismo que visa ao ideograma de si mesmo
que força o digital a converter-se em analógico
uma arte de linhas que se precipitam
e se confrontam por mínimos vertiginosos de espaço
sem embargo habitados por diâncias insondáveis
de anos-luz
uma arte onde a cor pode ser o nome da cor
e a figura, o comentário da figura
para que entre significante e significado
circule outra vez a surpresa
uma arte-escritura
de cósmica poeira de palavras
uma semiótica arte de ícones índices símbolos
que deixa no branco da página seu raro numinoso
ea arte de mira schendel
entrar no planetarium onde suas composições
se suspendem desenhos eelares
e ouvir o silêncio como um pássaro de avessos
sobre um ramo de apenas
gorjear seus haicais absolutos
Haroldo de Campos
1
1 Texto publicado originalmente no catálogo Mira Schendel, Rio de Janeiro, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, maio de 1966
apud: SALZSTEIN, Sônia (org.). No vazio do mundo – Mira Schendel. São Paulo: Marca D’Agua, 1996, p. 260.
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