Download PDF
ads:
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Rodrigo Dalla Pria
Teoria Geral do Processo Tributário
MESTRADO EM DIREITO TRIBUTÁRIO
SÃO PAULO
2010
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Rodrigo Dalla Pria
Teoria Geral do Processo Tributário
MESTRADO EM DIREITO TRIBUTÁRIO
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora como exigência parcial
para a obtenção do título de Mestre em
Direito Tributário pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo,
sob a orientação da Professora Doutora
Fabiana del Padre Tomé.
SÃO PAULO
2010
ads:
Banca Examinadora
_______________________________________
_______________________________________
_______________________________________
Teoria Geral do Processo Tributário
Rodrigo Dalla Pria
RESUMO: Trata-se de delimitar o campo jurídico-normativo próprio do sistema
processual tributário, com o objetivo de investigar o particular modo de aplicação
dos institutos processuais fundamentais às chamadas lides tributárias ou relações
jurídico-tributárias conflituosas. Após a fixação das premissas jurídico-filosóficas e
teórico-jurídicas que darão respaldo às nossas investigações dogmáticas, define-se o
conceito de Direito Processual Tributário e sua repercussão sobre as três categorias
fundamentais de Teoria Geral do Processo: a ação – o processo – e a jurisdição.
PALAVRAS-CHAVE: Ação Tributária, Processo Tributário e Jurisdição Tributária.
Tax General Procedural Theory
Rodrigo Dalla Pria
ABSTRACT: This paper aims to delimitate the legal-normative range fitting to the tax
procedural system in order to investigate the particular manner in which the
procedural institutes are applied to the so called tax impleads or conflicting legal-tax
relations. After defining the legal-philosophical and theoretical-legal premises that
will support our dogmatic investigations, the concept of Tax Procedural Law is
defined, as well as its repercussion on the three fundamental categories of the
General Procedural Theory: the lawsuit – the proceeding – and the jurisdiction.
KEYWORDS: Tax Lawsuits, Tax Procedural, Tax Jurisdiction.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO............................................................................................................. 08
1. Metodologia e objeto de estudo ............................................................................ 10
2. Observações à bibliografia do trabalho................................................................. 10
CAPÍTULO I
SISTEMA DE REFERÊNCIA...................................................................................... 13
1.1. Considerações preambulares.............................................................................. 13
1.2. Cultura, linguagem, interpretação e direito: por um positivismo constructivista 20
1.2.1. A tese das fontes sociais do direito e os atos de enunciação prescritivos.. 25
1.2.2. A tese da separação entre direito e moral: entre normas e valores........... 28
1.2.3. A tese da discricionariedade judicial: a atividade jurisdicional como
fonte de criação de normas jurídicas ........................................................ 31
1.3. A interpretação como elemento essencial ao conhecimento e à
operacionalização do fenômeno jurídico...................................................... 35
1.3.1. Interpretação jurídica e aplicação do direito: o plano da concretização
(S
5
)........................................................................................................... 41
CAPÍTULO II
TEORIA GERAL DO PROCESSO TRIBUTÁRIO..................................................... 52
2.1. Direito material e direito processual: o sistema primário e o sistema
secundário..................................................................................................... 52
2.2. O sistema processual tributário e o Direito Processual Tributário .................... 62
2.3. As categorias fundamentais da Teoria Geral do Processo no contexto do
Direito Processual Tributário ...................................................................... 71
2.3.1. Relações jurídicas, direitos subjetivos e conflituosidade tributária.......... 71
2.3.1.1. O conflito e a lide como fatos jurídicos processuais ............................ 78
2.3.2. Direito de ação, ação e ações tributárias .................................................. 82
2.3.2.1. Definindo o(s) conceito(s) de ação........................................................ 84
2.3.2.2. Ações tributárias: definição do conceito ............................................... 90
2.3.2.3. Elementos e condições das ações tributárias ......................................... 93
2.3.2.4. Classificação das ações tributárias ........................................................ 100
2.3.2.5. As ações tributárias no contexto do processo de positivação do direito
tributário ................................................................................................... 104
2.3.3. Processo, direito ao (devido) processo e processo tributário ................... 112
2.3.3.1. O fenômeno processual ......................................................................... 112
2.3.3.2. Os pressupostos processuais ................................................................. 121
2.3.3.3. Processo e procedimentos tributários ................................................... 124
2.3.3.4. Classificação dos processos tributários ................................................ 131
2.3.4. Jurisdição, tutela jurisdicional e tutelas jurisdicionais tributárias ........... 134
2.3.4.1. Função jurisdicional e jurisdição tributária .......................................... 134
2.3.4.2. Tutela jurisdicional: norma e ato de cumprimento ............................... 143
2.3.4.3. Tutelas jurisdicionais tributárias: conceito e classificação ................... 164
CONCLUSÃO............................................................................................................... 170
BIBLIOGRAFIA........................................................................................................... 173
8
INTRODUÇÃO
O processo jurisdicional, instrumento vocacionado à produção de norma-tutela e
forjado com o específico objetivo de pôr fim á conflituosidade havida no seio das relações
jurídicas substanciais, não é o mesmo para todos os subsistemas jurídicos materiais.
Amolda-se a estes (direitos materiais), adaptando-se às circunstâncias normativas
peculiares a cada um dos inúmeros subsistemas substanciais. Daí a necessidade de se
recortar o chamado sistema primário para dele extrair o subsistema a partir do qual será
investigada a incidência do chamado sistema secundário.
O subsistema jurídico material escolhido é precisamente o do direito tributário, e
nossos esforços investigativos recairão sobre as relações jurídico-tributárias conflituosas,
isto é, as chamadas lides tributárias.
As particularidades próprias ao direito material controvertido contaminam a
interpretação, a forma de aplicação e a eficácia dos institutos normativo-processuais, sendo
essa a premissa que sustenta a escolha do tema a ser desenvolvido: Teoria Geral do
Processo Tributário.
A opção pela referida temática, no entanto, se em meio à forte inquietação que
nos causa a circunstância de a Dogmática do Direito Processual estar dividida, atualmente,
entre dois sistemas de referência que, em nosso sentir, restam absolutamente insuficientes à
satisfatória descrição do fenômeno jurídico-processual.
Os esforços intelectuais direcionados ao estudo do direito processual estiveram
centrados, durante boa parte do século passado, na obsessiva busca pelo reconhecimento da
autonomia didático-científica do Direito Processual. O isolamento do fenômeno processual,
no entanto, quando refletido no plano pragmático da aplicação normativa, implicou uma
indesejável ineficácia do sistema jurídico-processual, cujo escopo, em última instância,
estão diretamente relacionado à efetividade do sistema jurídico-material.
Em reação a essa postura isolacionista, desenvolveu-se, a partir do início da
década de 1970, uma outra tendência epistemológica que, a pretexto de superar o
9
abstrativismo que caracterizou as investigações jurídico-processuais que dominaram o
século XX, tentou reaproximar os sistemas jurídicos processual e material a partir de uma
concepção meramente finalística da normatividade processual, que parte da equivocada
ideia de que o processo perfaz, única e exclusivamente, um “meio” (instrumento) para a
“realização” de um fim.
O “extremismo isolacionista” deu lugar, então, ao “extremismo instrumentalista”,
a partir de uma guinada “praxista” que, em nosso sentir, pode acarretar malefícios
equivalentes àqueles decorrentes do isolamento conceptual ao qual pretende suplantar.
Neste modelo, abre-se mão da noção de devido processo legal, responsável pelo
controle do arbítrio da atividade jurisdicional, em nome de uma busca inescrupulosa pela
efetividade da tutela jurisdicional.
A ilusão de que o “justo” substancial precede o fenômeno processual, premissa
que respaldo à ideologia do instrumentalismo teleológico, ignora a circunstância de que
o processo perfaz uma técnica de produção de decisões normativas de natureza
eminentemente criativa, responsável, em última instância, pelo controle do arbítrio
decisório.
Os processos jurisdicionais, no entanto, da mesma forma que não substanciam um
fim em si próprio, também não se apresentam como meras entidades adjetivas postas à
mercê de uma suposta substância preexistente.
Em direito, diferentemente do que ocorre com outros fenômenos culturais, o
processo integra o próprio produto e vice-versa. Em outros termos: o processo, na
qualidade de técnica de produção de decisões normativas, é o responsável pela própria
(re)criação do direito material, integrando-o de forma indissociável (do ponto de vista
fenomenológico). Perfazem (os processos), sim, instrumentos do direito material. Mas não
instrumentos em sentido meramente teleológico, senão em sentido estritamente normativo.
É nesse contexto, portanto, e a partir da auspiciosa experiência que o chamado
“constructivismo lógico-semântico” obteve no desenvolvimento da moderna Dogmática de
Direito Tributário, capitaneada por Paulo de Barros Carvalho e escorada na sólida obra de
Lourival Vilanova, que se pretende, por meio deste trabalho, reconciliar a teoria e a prática
do direito processual, investigando as categorias fundamentais de Teoria Geral do Processo
à luz do subsistema jurídico-tributário, com vistas à superação do isolacionismo
10
abstrativista e do instrumentalismo funcional, mediante a noção de instrumentalidade
normativa, que busca delimitar as relações sintáticas, semânticas, pragmáticas e axiológicas
existentes entre direito material e direito processual, para que se possa, ao final, estabelecer
um modelo teórico conciliador das noções de devido processo legal e da efetividade da
tutela jurisdicional.
1. METODOLOGIA E OBJETO DE ESTUDO
Nossas especulações teóricas serão realizadas por meio dos instrumentos
conceptuais oferecidos pelo modelo constructivista, explicitamente demarcados em nossas
considerações preambulares. Após, tratar-se da delimitação do conceito de Direito
Processual Tributário, assim entendido como o sub-ramo do Direito Processual,
didaticamente autônomo, responsável pelo estudo dos instrumentos normativos
jurisdicionais incidentes sobre a chamada conflituosidade tributária. Por fim, investigar-se-
á cada uma das categorias normativas fundamentais da Teoria Geral do Processo (ação,
processo e jurisdição), estudadas a partir da prévia definição das noções de conflito e de
relação jurídica tributária conflituosa.
Trata-se, portanto, de investigação fundamentalmente conceptual, a ser
implementada por meio do método hermêneutico-analítico, próprio ao chamado
constructivismo lógico-semântico, por meio do qual as categorias de teoria analítica do
direito (teoria da norma, teoria dos sistemas, lógica deôntica etc.) são manejadas em
conjunto com categorias jurídico-culturalistas (teoria dos valores) e hermenêutico-
linguísticas (contexto, pré-compreensão etc.), de modo a permitir a apreensão do fenômeno
jurídico em sua inteireza ôntica, lógica e ontológica.
2. OBSERVAÇÕES À BIBLIOGRAFIA
A interdisciplinaridade (intrassistêmica) é a característica fundamental deste
trabalho. Por isso, as pesquisas voltadas à investigação do fenômeno processual tributário
11
pressupõem o contato com referências bibliográficas pertencentes às Dogmáticas do Direito
Processual e do Direito Tributário, envolvendo, portanto, um amplo espectro doutrinário
sobre o qual devem recair nossas investigações empíricas. A esse imenso contingente
Dogmático devemos acrescentar, ainda, as referências bibliográficas teórico-gerais e
filosófico-jurídicas, indispensáveis à delimitação dos parâmetros e fundamentos teóricos
que darão sustentação ao trabalho.
Para evitar inconsistências, a seleção desse vasto material de pesquisa obedecerá, na
medida do possível, a critérios de afinidade teórica entre os autores consultados. Dar-se-á
preferência aos autores que compartilham, mesmo que implicitamente, dos postulados
teóricos característicos ao constructivismo jurídico. Servir-nos-ão como referência,
também, as várias obras que enfrentaram diretamente a temática do Direito Processual
Tributário.
Na Filosofia (inclusive a do Direito) e na Teoria Geral do Direito, de onde
retiraremos os referenciais epistemológicos que servirão de alicerce às nossas investigações
dogmáticas, temos, como referências básicas, as obras de autores que integram as chamadas
Filosofias da Linguagem, tais como: Ludwig Wittgenstein, Hans Georg Gadamer, John
Austin, John Searle, Georg von Wrigth e Vilém Flusser; além de autores que, no âmbito
teórico-jurídico, em alguma medida se identificam com o pensamento jurídico-positivista,
como: Hans Kelsen, Herbert Hart, Alf Ross, Norberto Bobbio, Eugênio Bulygin, Carlos
Alchorrón, Ricardo Guastini, Lourival Vilanova, Tércio Sampaio Ferraz, João Maurício
Adeodato, Marcelo Neves, Celso Fernandes Campilongo, Friedrich Muller e Eros Roberto
Grau.
Nas Dogmáticas de Direito Processual e Direito Processual Tributário nossas
principais referências são: Hugo Rocco, Eduardo Couture, Elio Fazzalari, José Frederico
Marques, J. J. Calmon de Passos, Rosemiro Pereira Leal, Carlos Alberto Alvaro de
Oliveira, Cássio Scarpinella Bueno, Eduardo Domingos Bottallo, James Marins, Cleide
Previtali Cais, Alberto Xavier e Paulo Cesar Conrado.
Por fim, da Ciência do Direito Tributário teremos especial respaldo das obras de
Paulo de Barros Carvalho, José Souto Maior Borges, Alfredo Augusto Becker, Geraldo
12
Ataliba, Humberto Ávila, Eurico de Santi, Marcelo Fortes, Tárek Moussallem, Maria Rita
Ferragut, Fabiana Del Padre Tomé, dentre outros.
13
CAPÍTULO I
SISTEMA DE REFERÊNCIA
“Assim, teoria e experiência encontram-se
uma em frente da outra em constante
conflito. Toda unificação na reflexão é uma
ilusão; elas podem ser unificadas na
ação”
(J. W. Goethe)
1.1. CONSIDERAÇÕES PREAMBULARES
O direito processual, como bem anotou PONTES DE MIRANDA, é a porção do
ordenamento que está mais rente à vida
1
. Parece-nos razoável, portanto, que a Dogmática
do processo concentre seus maiores esforços na resolução de questões de natureza
eminentemente práticas.
Dessa constatação, contudo, não decorre a conclusão de que as formulações
dogmático-processuais prescindam de um arcabouço teórico que, ao menos,
sustentabilidade aos seus objetivos práticos e às suas pretensões científicas, até porque uma
boa prática é necessariamente sustentada por uma teoria consistente, sendo certo, também,
que qualquer teoria satisfatória deve se prestar à resolução de problemas práticos
2
, daí a
precisa constatação de LOURIVAL VILANOVA
3
de que o jurista é a intersecção da teoria
com a prática, da Ciência com a experiência.
A esse respeito, aliás, faz-se oportuna a reprodução da advertência feita por JOÃO
MAURÍCIO ADEODATO à ideia, nada incomum, de que a prática jurídica pode estar
alheia a considerações teórico-gerais:
Esta a grande ilusão de muitos profissionais do direito: achar que se opõem a
prática dogmática e a teoria geral. A história dos grandes juristas da
1
Apud Paulo de Barros Carvalho. Prefácio ao livro Introdução à teoria geral do processo civil, de Paulo
Cesar Conrado, p. 18.
2
Guibourg, Ricardo. El fenómeno normativo, p. 28.
3
“Fundamentos do estado de direito”. In: Escritos jurídicos e filosóficos, vol. 1, p. 414.
14
modernidade mostra isso claramente, até hoje. O procurador e o advogado não
familiarizado com conceitos como vigência, validade, eficácia, que não souber
quando uma norma entra em vigor e, quando ela deixar de vigorar, não souber o
que é vigência temporária determinada e indeterminada, relação jurídica ou
princípios hermenêuticos, não vai conseguir trabalhar dogmaticamente de forma
eficiente
4
.
Justifica-se, assim, a elucidação das categorias jurídico-filosóficas e teórico-gerais
que darão sustentáculo às nossas investigações dogmáticas, cumprindo esclarecer, desde
logo, que o modelo teórico adotado neste trabalho é aquele proposto pelo “constructivismo
jurídico”
5
, escola de pensamento cujos postulados fundamentais restam construídos a partir
de categorias e “gramáticas”
6
pertencentes a diferentes tradições filosóficas que, não
obstante as especificidades próprias a cada modelo, fazem do fenômeno da linguagem o
objeto principal de suas investigações.
No contexto das chamadas “Filosofias da Linguagem”
7
, nascidas a partir da virada
linguística que abarcou as mais variadas escolas filosóficas desenvolvidas na Europa
Continental, na Inglaterra (eixo Oxford/Cambridge) e na América, podemos incluir: (i) a
Filosofia Analítica da Linguagem (formal e ordinária), que abarca, a um só tempo, a
Filosofia do Positivismo Lógico da Escola de Viena (desenvolvida a partir das obras de
Bertrand Russel e do “primeiro” Wittgenstein), a Teoria dos Jogos de Linguagem (oriunda
4
Ética e Retórica: para uma teoria da dogmática jurídica, p. 179.
5
Ou constructivismo lógico-semântico, como prefere Paulo de Barros Carvalho. Entendemos, data venia, que
o adjetivo lógico-semântico é aplicável com justeza ao trabalho de Lourival Vilanova, que se restringe às
cogitações filosófico-jurídicas e teórico-gerais. Nossa opção por uma adjetivação mais genérica decorre da
constatação de que a referida escola de pensamento, ao ingressar nos domínios da Dogmática do Direito, vai
além das investigações lógico-semânticas, lançando o, inclusive, de modelos teóricos cujas categorias se
referem, fundamentalmente, aos aspectos pragmáticos do fenômeno comunicacional, tais como a Teoria dos
Jogos de Linguagem, a Teoria dos Atos de Fala e, também, a própria Semiótica de corte pierceniano.
6
O vocábulogramática é usado nesta expressão, e também, em todo o trabalho, no sentido a ele atribuído
por Ludwig Wittgenstein em sua obra “Investigações Filosóficas”, ou seja, como conjunto de regras que
regulam o uso da linguagem. As gramáticas das várias Teorias Gerais do Direito, portanto, têm a função
precípua de orientar o modo de aproximação do objeto jurídico pelo dogmático.
7
Parto da perspectiva de que se deve considerar como “filosofia da linguagem” tudo aquilo que os filósofos
pensaram e desenvolveram em termos de reflexão sobre a linguagem, seja qual for sua perspectiva e sua
metodologia de acesso (analítica, hermenêutica, fenomenologia, filosofia transcendental, crítica das
ideologias, psicanálise). (...) Poder-se-ia dizer, para início de reflexão, que a linguagem interessa á filosofia
namedia em que a primeira é entendida não apenas como “veículo” de conceitos, mas com um âmbito no qual
os conceitos são constituídos, conceitos que permitem articular o mundo com o intuito de torná-lo
significativo para nós. Denomino essa concepção, em contraposição à teoria veicular, concepção
constitucional da linguagem.” Julio Cabrera. Margens das filosofias da linguagem, p. 14 e 17.
15
do pensamento do “segundo” Wittgenstein), a Teoria dos Atos de Fala (John Austin e John
Searle), bem como as investigações sobre Lógica Deôntica (Georg von Wrigth); (ii) a
Hermenêutica Filosófica (desenvolvida em uma linha evolutiva iniciada pela
fenomenologia de Edmund Husserl, passando pelo existencialismo de Martin Heidegger e
consolidada na obra de Georg Gadamer); (iii) a Semiologia (Ferdinand de Saussure), a
Semiótica (Charles Pierce) e a Linguística em geral (como as desenvolvidas, por exemplo,
por Mikhail Bakhtin e José Luiz Fiorin).
O constructivismo jurídico se coloca como um modelo que busca seus fundamentos
em diversos gramáticas filosóficas que se desenvolveram, em diferentes partes do mundo, a
partir de um mesmo movimento histórico-global o giro linguístico –, de maneira que os
vários juristas que se formaram a partir do modelo constructivista utilizam em suas
investigações dogmáticas, especialmente no âmbito do Direito Tributário, instrumentos,
concepções e categorias diferentes, as quais, não raro, são divergentes.
A título de exemplo, podemos mencionar a concepção de “verdade pelo consenso”,
adotada por PAULO DE BARROS CARVALHO e FABIANA DEL PADRE TOMÉ
8
,
inspirada no pensamento hermenêutico-filosófico de corte gadameriano, em contraposição
à concepção de “verdade por correspondência”, adotada por CRISTIANO CARVALHO
9
,
própria ao pensamento analítico-filosófico, de corte pragmático, de JOHN SEARLE.
Essas discrepâncias decorrem, em parte, do fato de as diversas “Filosofias da
Linguagem” se apropriarem de paradigmas próprios às tradições filosóficas que lhes
antecederam. Nesse sentido, muitas das divergências entre analítica da linguagem e
hermenêutica da linguagem perfazem reproduções das oposições existentes entre o
empirismo, próprio ao pensamento desenvolvido por autores de origem inglesa, e o
idealismo, característico do pensamento germânico-continental.
Nada obstante, cremos que os postulados fundamentais que dão identidade ao
pensamento constructivista, e que dizem respeito especificamente ao conceito de direito e
às possibilidades de conhecimento do fenômeno jurídico, são compartilhados por todos os
teóricos constructivistas.
8
A prova no direito tributário, p. 15.
9
Ficções jurídicas no direito tributário, p. 113.
16
Parece-nos possível falar, portanto, tal qual se verifica na obra de HANS
KELSEN
10
, na existência de uma Filosofia do Direito constructivista, que se mantém
constante nas obras de todos os autores que se filiam a esta corrente de pensamento, e que
diz respeito, fundamentalmente, à delimitação do conceito de direito (pressupostos ôntico,
lógico e ontológico do constructivismo) e, por decorrência, às condições inerentes ao
conhecimento do fenômeno jurídico (pressuposto epistemológico do constructivismo). Ao
lado desta, é possível identificar a convivência mútua de variadas Teorias Gerais do Direito
constructivistas, concebidas a partir de gramáticas e categorias próprias a uma (ou mais)
das “Filosofias da Linguagem”, escolhida segundo as preferências pessoais do teórico
dogmático filiado ao modelo constructivista, escolha esta que, no mais das vezes, é
realizada por razões ideológicas ou meramente utilitaristas.
A separação dos campos de investigação proposta, isto é, a afirmação de que
uma Filosofia do Direito constructivista respaldando diferentes Teorias Gerais do Direito
Constructivistas, que variam conforme a gramática filosófica adotada, sustenta-se na
diferenciação dos focos temáticos próprios à Filosofia do Direito e à Teoria Geral do
Direito. A separação desses dois campos de investigação, no entanto, é sobremodo
controvertida, motivo pelo qual deve ser elucidada.
Muito embora seja certo que a Teoria Geral do Direito venha se apropriando, ano
após ano, de temas que, originariamente, eram próprios à Filosofia do Direito, quer nos
parecer que haja um parâmetro mais ou menos seguro de separação de seus campos de
interesse.
Se partirmos do pressuposto de que a Filosofia aplicada a cada um dos campos de
conhecimento (Filosofia Política, Filosofia do Conhecimento, Filosofia do Direito etc.)
perfaz uma adaptação das três perguntas existenciais que deram origem ao pensamento
filosófico Quem sou eu? De onde venho? Para onde vou? –, ao transpormos tais
perguntas para o contexto jurídico, temos as seguintes indagações: Que é o direito (conceito
10
Na Teoria pura do direito, a divisão entre a filosofia do direito e a Teoria geral do direito de Kelsen pode
ser aferida pela divisão de seus capítulos. Nos dois primeiros capítulos, direito e natureza e direito e moral,
resta formulado o positivismo kelseniano, isto é, a filosofia do direito de Kelsen. Nos três capítulos que se
seguem, direito e ciência, estática jurídica e dinâmica jurídica, Kelsen desenvolve sua Teoria geral do direito.
17
de direito)? De onde vem o direito (fonte do direito)? Para que serve o direito (eficácia do
direito)?
A Teoria Geral do Direito, a seu turno, é construída a partir das respostas dadas às
referidas perguntas jurídico-filosóficas, tentando, fundamentalmente, desenvolver
gramáticas que deem conta da descrição adequada dos elementos que integram o fenômeno
jurídico, previamente definido. A pergunta a ser respondida pela Teoria Geral do Direito é a
seguinte: como é o direito
11
?
Nessa medida, como as Teorias são linguagens artificialmente construídas com
vistas a fornecer regras para a correta descrição científica de um determinado fenômeno,
previamente delimitado, é possível que diversos modelos teórico-gerais convivam
respaldados sob um mesmo pressuposto filosófico.
Assim, poder-se-ia falar em um constructivismo jurídico standard, que é justamente
aquele concebido por LOURIVAL VILANOVA, desenvolvido, no âmbito da Dogmática
do Direito Tributário, por PAULO DE BARROS CARVALHO, e adotado por vários
dogmáticos que a eles se seguiram
12
. Referido modelo convive, lado a lado, com suas
variantes, estabelecidas por alguns discípulos do eminente Professor paulista que,
conquanto tenham se mantido fiéis à Filosofia do Direito Constructivista, manejaram
categorias que são incompatíveis com a Teoria Geral do Direito proposta pelo modelo
standard.
Que fique bem claro, no entanto, que esta ligeira variabilidade nas gramáticas
usadas pelos dogmáticos constructivistas para se aproximarem de seu objeto (o direito),
longe de descaracterizar ou desconstruir o modelo constructivista, fortalece-o, dando
espaço a uma constante evolução desta escola de pensamento e permitindo que os inúmeros
problemas inerentes à complexidade do fenômeno jurídico sejam enfrentados de maneira
cada vez mais satisfatória.
11
“Temos tomado a Teoria Geral do Direito como teoria dos conceitos normativos fundamentais, prolongando
a abstração generalizadora a partir das ciências jurídicas especiais.” Lourival Vilanova. Causalidade e
relação no direito, p. 13.
12
Para uma visão completa e aprofundada daquilo que chamamos de constructivismo standard, vide o
excelente Curso de teoria geral do direito, o constructivismo lógico-semântico, de Aurora Tomazini de
Carvalho.
18
É essa liberdade para busca de novas soluções teóricas, circundada por parâmetros
lógicos, ontológicos e epistemológicos constantes e muito bem delimitados, que afasta, em
nosso sentir, qualquer possibilidade de crítica ao constructivismo jurídico no que concerne
a uma suposta tentativa de efetivação daquilo que SOUTO MAIOR BORGES chamou de
“satelitização da inteligência”. Eis a lição do mestre pernambucano:
Não que o pensamento alheio não possa destinar-se a uma meditação em
profundidade. O próprio HEIDEGGER nos oferta um exemplo admirabilíssimo
de como um pensador pode voltar-se para outros sem sacrificar a meditação em
profundidade (...) Nada porém lhe é mais estranho do que o comentário no
sentido corrente, tradicional, ou seja, “satelitizado”. O que fundamentalmente
lhe importa é permanecer à escuta do que a linguagem desses grandes
pensadores e poetas por ela mesma fala. E, para além dela, pensar o que nela
restou impensado
13
.
Resta-nos, portanto, a pretexto de pensar o que restou impensado dentro dos
parâmetros fundamentais do constructivismo jurídico, tentar contribuir para a moldagem do
modelo teórico-geral constructivista às nossas necessidades dogmáticas, no que tange,
especificamente, à investigação do fenômeno processual tributário.
Como não poderia deixar de ser, dentro deste amplo instrumental teórico, havemos
também de assumir nossas preferências. São elas: a Analítica da Linguagem (formal e
ordinária)
14
, a Hermenêutica da Linguagem e a Linguística desenvolvida na obra de JOSÉ
LUIZ FIORIN
15
.
Advertimos, no entanto, que as categorias pertencentes a cada um dos modelos
filosóficos que nos servirão de referência serão, no maior parte do trabalho, tão somente
usadas, e não explicadas, de maneira que nos reservaremos o direito de remeter o leitor às
(inúmeras) obras em que cada uma delas teve tratamento conceptual direto.
A novidade fica por conta de nossa tentativa de integração ao modelo
constructivista da “intuição”, que inspirou o desenvolvimento da Teoria Estruturante do
13
Ciência feliz, p. 30 (g.n.).
14
Onde se incluem os modelos de lógica deôntica desenvolvidos por Georg von Wrigth e seus
desdobramentos, o instrumental teórico da Escolas Analíticas do Direito inglesa e argentina, a Teoria dos
jogos de linguagem e a Teoria dos atos de fala.
15
Especialmente as noções de enunciação, enunciação-enunciada e enunciado-enunciado.
19
Direito e da Metódica Jurídica de FRIEDRICH MÜLLER
16
e de outras escolas de
pensamento modernas
17
, qual seja: a de que o conteúdo semântico dos enunciados jurídicos
é subdeterminado
18
, de maneira que, por mais que seja possível construir, via interpretação,
o sistema jurídico estaticamente
19
, é na dinâmica do sistema que as significações últimas
são produzidas.
Em outras palavras, o momento da tomada da decisão normativa aplicadora,
especialmente a judicial, ocasião em que se torna possível a compreensão conjunta do
sistema jurídico e das circunstâncias fáticas específicas ao caso, impõe ao intérprete a
construção de um juízo normativo que não poderia ter sido previamente determinado pela
interpretação estática do ordenamento, dando oportunidade à emanação de decisão
normativa que seja adequada às circunstâncias peculiares e às necessidades pragmáticas
impostas pela situação concreta.
Esse ato de compreensão última, em nosso sentir, ocorre em momento posterior à
etapa de sistematização das significações normativas em sentido estrito (plano S
4
),
derradeira fase do percurso de construção de sentido proposto pelo modelo interpretativo do
constructivismo jurídico standard. Daí que, com vistas a adaptar o modelo constructivista a
esta contingência que é característica dos sistemas normativos pós-modernos, é que
vislumbramos a inserção de um’outra etapa ao processo de construção de sentido
originalmente proposto, qual seja: o plano da concretização (plano S
5
).
Nessa medida, o plano da concretização consubstancia uma tomada de consciência a
respeito de um aspecto do fenômeno jurídico-normativo muito importante às investigações
16
Teoria estruturante do direito, passim.
17
A questão da interpretação concretizadora é enfrentada por outros modelos teóricos, tais como o Pós-
positivismo e o Neoconstitucionalismo, que reconhecem a existência, em maior ou menor grau, da
indeterminação das significações normativas em momentos anteriores ao da produção da decisão normativa
(aplicação).
18
Segundo Susanna Pozzolo,afirmar que o discurso do direito é subdeterminado (underdeterminacy)
significa afirmar que um operador competente não é capaz de responder oferecendo uma única solução
jurídica para um caso com base somente na análise lingüística do texto.” Écito Oto Ramos Durate e Suzanna
Pozzolo. Neoconstitucionalismo e positivismo jurídico, as faces da teoria do direito em tempos de
interpretação moral da constituição, p. 145.
19
Essa é essa nossa principal objeção à Friedrich Müller, para quem não que se falar em normas judicas
antes do momento da concretização.
20
dogmáticas perpetradas no âmbito do direito processual, pois possibilita a demonstração de
que o “direito material aplicado” é, em verdade, construído dentro e por meio do processo,
e não simplesmente “revelado” por este.
Tal constatação assume alto grau de relevância prática quando confrontada com
postulados processuais como os da instrumentalidade e da efetividade, que não raro são
usados para chancelar a equivocada ideia de que o direito material a ser “efetivado” existe
antes do processo, restando a este a mera função de explicitá-lo.
Entretanto, para que tratemos desta questão mais diretamente, será necessário
delimitar os postulados que sustentam aquilo que denominamos constructivismo jurídico
standard, para então propormos as adaptações que nos parecem pertinentes. Esta
investigação inicial diz respeito, primordialmente, ao conceito de direito adotado pelo
constructivismo, e será feita, por motivos adiante explicitados, em cotejo com a polêmica
sempre antiga, porém atual, entre juspositivismo e jusnaturalismo.
1.2. CULTURA, LINGUAGEM, INTERPRETAÇÃO E DIREITO: POR UM
POSITIVISMO CONSTRUCTIVISTA
Se existe algo inerente a todas as atividades relacionadas à prática jurídica é a
tormentosa tarefa de identificar o direito aplicável a um determinado caso concreto. Não
obstante todo jurista tenha, intuitivamente, uma noção do que venha a ser o direito, em
determinadas situações-limite, chamadas de “casos difíceis ou complexos”, a identificação
da norma jurídica aplicável a uma dada situação concreta implica um esforço intelectual
que nada tem de trivial. Por esse motivo, cabe-nos, neste particular, tomar posição, mesmo
que parcial, sobre o problema da fixação dos critérios essenciais à definição do conceito de
direito.
Em sendo a função jurisdicional uma atividade de aplicação do direito por
excelência, a fixação dos parâmetros necessários à identificação do que é e o que não é
direito consubstancia uma condição indispensável ao enfrentamento de diversos problemas
práticos relacionados ao dia-a-dia do profissional do direito. Saber se a coisa julgada
21
incidente sobre sentença cujo conteúdo é incompatível com o texto constitucional existe ou
não sob o ponto de vista jurídico, ou, ainda, se a sentença decorrente de processo em que a
parte demandada não tenha sido citada é ou não juridicamente existente, são questões
diretamente ligadas à definição do conceito de direito, não obstante assumam proporções
práticas altamente relevantes.
Na busca por uma definição do conceito de direito, a primeira dificuldade com a
qual nos deparamos é de natureza semântico-pragmática, decorrente do caráter multívoco
do vocábulo “direito”, que ora é usado para designar o conjunto de normas jurídicas válidas
em um dado ordenamento (“direito” como sistema normativo), ora para mencionar um
interesse ou faculdade atribuída a um determinado sujeito (“direito” como direito
subjetivo), ora para referir o conjunto de proposições descritivas formuladas pela
Dogmática do Direito sobre a existência e o conteúdo de um determinado plexo jurídico-
normativo (“direito” como Ciência do Direito).
Não bastasse esse primeiro obstáculo, conforme previne LOURIVAL
VILANOVA, havemos de admitir, também, que não é possível delimitar o conceito de
direito sob todos os aspectos que o envolvem, visto que diante da complexidade do objeto
jurídico, os pressupostos filosóficos que servem de base às definições, os pontos de vista
mediante os quais se considera o direito ora forma, ora o conteúdo, ora o valor, a
natureza sociológica etc.
20
–, pode-se chegar a diversas definições incompatíveis entre si,
motivo pelo qual nossas considerações ficarão circunscritas a uma concepção de direito
que, em nosso entender, seja útil ao dogmático no enfrentamento dos problemas inerentes à
prática jurídica. Assim, nossas investigações sobre o conceito de direito incidirão sobre os
aspectos ôntico, lógico, ontológico e epistemológico do conceito de direito.
No contexto do sistema de referência constructivista, a definição do conceito de
direito pressupõe a aceitação de quatro postulados fundamentais. São eles: (i) sob o ponto
de vista ôntico, o direito é um objeto cultural; (ii) sob a perspectiva lógica, o direito se
apresenta como um sistema normativo; (iii) que se manifesta, necessariamente, mediante
um plexo de linguagem, o que equivale a dizer que, ontologicamente, direito é texto; e, por
20
Lourival Vilanova. “Sobre o conceito de direito”, p. 1. In: Escritos jurídicos e filosóficos, v. 1.
22
fim, (iv) sob o ângulo epistemológico, que a apreensão (conhecimento) e a
operacionalização (aplicação) do fenômeno jurídico não prescindem de interpretação.
Desenvolver e justificar a adoção de cada uma das premissas acima enumeradas, no
que tange às necessidades pragmáticas que dizem com o objeto deste trabalho, seria
suficiente para atingirmos, de forma satisfatória, nossos objetivos iniciais. No entanto, não
nos parece possível ignorar a circunstância de que o enfrentamento do problema do
conceito de direito deva passar ao largo de uma necessária tomada de posição a respeito da
polêmica estabelecida entre as duas principais escolas de pensamento jurídico-filosófico
modernas sobre esta questão fundamental: o juspositivismo
21
e o jusnaturalismo.
Nosso desafio, portanto, consiste também em situar – e, se for o caso, contrapor – o
modelo constructivista às teses que sustentam as escolas de pensamento acima referidas
22
,
com a finalidade precípua de verificar se o sistema de referência adotado se amolda a uma
delas, ou, ao contrário, consubstancia um modelo que não guarda relação com as
concepções propostas pelo positivismo jurídico e pelo jusnaturalismo, objetivo este que se
torna um tanto quanto árduo a partir do instante em que consideramos o fato de existir,
entremeando a indigitada polêmica, uma série de teorias que se propõem a delinear
modelos alternativos aos tradicionais.
Conforme bem anota KAUFMANN
23
, a procura de uma terceira via entre ou para
além do direito natural e positivismo é, hoje, em todo o mundo o tema da filosofia do
direito, circunstância esta que nos exige algumas ponderações a título de esclarecimento.
Assim, quando usamos o vocábulo “jusnaturalismo” pretendemos referir toda e
qualquer teoria cuja concepção de direito esteja sustentada pela tese da vinculação
necessária entre direito e moral, em contraposição à tese positivista da separação.
21
Referimo-nos ao positivismo normativo, desenvolvido por autores como Hans Kelsen, Herbert Hart e Alf
Ross, dentre outros, e não ao seu predecessor, o positivismo exegético. A ressalva se faz pertinente em razão
de grande parte das críticas dirigidas positivismo jurídico, principalmente as perpetradas por autores
dogmáticos, apontarem para concepções próprias da Escola da Exegese, concepções estas que nem de longe
são compartilhadas pelos autores do positivismo normativo. Um desses equívocos é atribuir ao positivista
normativo a ingênua ideia de que o juiz é mero aplicador do direito legislado.
22
Parece-nos evidente que o modelo constructivista se apropria de inúmeras categorias que, originariamente,
são próprias do juspositivismo e do jusnaturalismo, tais como a Teoria da Norma Jurídica e a Teoria dos
Valores.
23
Introdução à filosofia do direito e à teoria geral do direito contemporâneas, p. 135.
23
Existem, atualmente, inúmeros movimentos teóricos antipositivistas, um tanto
quanto amorfos no que tange à sistematização de seus postulados, mas que se auto-
proclamam como as alternativas à suposta indiferença do modelo positivista a questões
relacionadas à Justiça. Dentre estes, podemos referir o Neoconstitucionalismo e o Pós-
positivismo
24
.
O positivismo jurídico não escapa à referida fragmentação, pois também no
contexto do pensamento positivista é possível identificar pelo menos uma subdivisão: de
um lado, o chamado positivismo excludente, que repele qualquer espécie de vínculo
necessário entre direito e moral; de outro, o positivismo dito includente, que admite, em
circunstâncias consensuais específicas, a possibilidade da existência de um vínculo
necessário entre o direito e a moral
25
.
O que nos parece certo, no entanto, é que tanto o positivismo jurídico quanto o
jusnaturalismo perfazem modelos teórico-filosóficos que possuem concepções alternativas,
que variam conforme os pressupostos filosóficos dos quais parte cada um de seus autores.
Há, no entanto, tal qual no constructivimo jurídico, um núcleo duro que sustenta
cada uma das escolas de pensamento acima referidas, e que dizem respeito, essencialmente,
ao conceito de direito e às possibilidades de conhecimento do fenômeno jurídico, de sorte
que o cotejo entre constructivismo jurídico, positivismo e jusnaturalismo a ser realizado,
ficará circunscrito a tais aspectos.
Dois esclarecimentos parecem pertinentes: (i) a vertente positivista que servirá de
parâmetro para nossas considerações é a do positivismo excludente
26
; (ii) incluímos no
conceito de positivismo jurídico as doutrinas desenvolvidas pelos autores que integram o
chamado realismo jurídico, como é o caso de ALF ROSS.
Feitas essas considerações, podemos afirmar que são comuns às concepções
positivistas do direito os seguintes postulados: (i) todo direito nasce de uma fonte social
(tese das fontes sociais do direito); (ii) não existe vinculação necessária entre direito e
24
Sobre o assunto, vide Écito Oto Ramos Durate e Suzanna Pozzolo. Ob. cit., passim.
25
Écio Oto Ramos Duarte e Susanna Pozzolo. Ob. cit., p. 41.
26
Écio Oto Ramos Duarte e Susanna Pozzolo. Ob. cit., p. 46. Até porque, em nosso sentir, a corrente dita
includente nem sequer pode ser qualificada como positivista. Nesse sentido, vide Dimitri Dimoulis.
Positivismo jurídico, introdução a uma teoria do direito e defesa do pragmatismo jurídico-político, p.
141/147.
24
moral (tese da separação entre direito e moral); e (iii) em todo o sistema jurídico, o juiz, em
maior ou menor grau, tem a capacidade de criar direito novo (tese da discricionariedade
judicial)
27
.
As concepções jusnaturalistas, a seu turno, conforme o autor, não compartilham de
um, dois ou de nenhum dos postulados positivistas, sendo certo que as principais
divergências dizem respeito a teses da separação e das fontes sociais.
Será nossa missão, a partir de agora, contrapor cada uma das teses acima
enumeradas e analisar a compatibilidade delas com os postulados constructivistas.
Conforme denuncia o título deste item, estamos convencidos de que, se é possível incluir o
constructivismo jurídico no contexto da polêmica posta em questão, esta adesão deve ser
feita ao modelo positivista.
Os postulados constructivistas, a nosso juízo, se ajustam perfeitamente às três teses
positivistas (das fontes sociais, da separação e da discricionariedade judicial), o que nos
autoriza a dizer que, feitas as devidas adaptações concernentes a aspectos eminentemente
epistemológicos defendidos por alguns autores positivistas, o constructivismo jurídico pode
ser qualificado como um positivismo constructivista, uma espécie de evolução do
positivismo metodológico.
A Teoria do Direito, tal qual a história, não anda aos saltos, de sorte que o
pensamento constructivista, parece-nos, não compartilha de um equívoco comum aos
demais modelos ditos alternativos ao positivismo jurídico, equívoco este que vem
denunciado em uma prudente reflexão de SOUTO MAIOR BORGES sobre a ingenuidade
de se afirmar que o novo sempre é melhor que o velho, desconsiderando-se a circunstância
de que todo conhecimento é aproveitável (HEIDEGGER)
28
.
Nesse sentido, cremos que, diferentemente de outras escolas criadas com o
propósito específico de “superação do modelo positivista” o qual seria incapaz, segundo
propugnam, de enfrentar os problemas jurídicos próprios à chamada “pós-modernidade”–, o
constructivismo jurídico foi desenvolvido como proposta de evolução (e não de revolução)
27
Écio Oto Ramos Duarte e Susanna Pozzolo. Ob. cit., p. 31.
28
Conferência realizada por ocasião do II Congresso Nacional de Estudos Tributários IBET.
25
do pensamento positivista, motivo pelo qual não abre mão das conquistas perpetradas por
este movimento tão importante para a racionalização do conhecimento jurídico.
1.2.1. A tese das fontes sociais do direito e os atos de enunciação prescritivos
A questão de se determinar as fontes do direito está intimamente relacionada à
identificação de normas jurídicas aplicáveis. Nesse sentido, o positivismo jurídico defende
que toda norma jurídica nasce de uma fonte social. Esta, na expressão cunhada por
KELSEN
29
, traduz-se em um ato de vontade praticado por uma autoridade juridicamente
competente, assim considerada aquela que, segundo as normas de um sistema jurídico
globalmente eficaz, tem capacidade para praticar tais atos de ponência normativa.
Conquanto haja algum desacordo entre os positivistas acerca de quais seriam as tais
fontes sociais do direito, parece existir uma convergência quanto à identificação deste
conceito com as atividades legislativa (ato de vontade do legislador) e aplicadora (ato de
vontade do aplicador) do direito, perpetradas por órgãos ou indivíduos a quem o sistema
jurídico atribui competência (poder jurídico) para tal desiderato.
O pensamento jusnaturalista, a seu turno, defende a existência de outras fontes que
não aquelas consubstanciadas pelos atos de vontade emanados das autoridades a quem o
sistema jurídico atribui competência para o exercício de atividade jurídico-nomothética
30
.
Para tanto, afirma a existência de um direito racionalmente dedutível, cuja existência
independe de positivação e, também, da atividade legislativa ou aplicadora.
No âmbito do constructivismo jurídico, o problema das fontes do direito é
investigado, fundamentalmente, nas obras de PAULO DE BARROS CARVALHO
31
e
TÁREK MOYSÉS MOUSSALLEN
32
, que, respaldados no postulado constructivista de que
29
Teoria pura do direito, p. 21.
30
Atividade de produção normativa. Georg von Wrigth. Normas, verdad y lógica, p. 15.
31
Fundamentos jurídicos da incidência; Curso de direito tributário; Direito tributário linguagem e
método, passim.
32
Fontes do direito tributário, passim.
26
o direito é um objeto cultural
33
, materializado em um plexo de textos produzidos mediante
o uso da linguagem em sua função prescritiva, afirmam que as fontes do direito são os
focos ejetores de normas no sistema jurídico, isto é, os atos de enunciação prescritiva
emanados das autoridades juridicamente autorizadas, por normas de produção normativa
(normas de competência), para realização de tal atividade.
A definição do conceito constructivista de fonte do direito está registrado em
diversas passagens da obra de PAULO DE BARROS CARVALHO. Vejamos uma delas:
Pois bem, nos limites desta proposta, as fontes do direito serão os
acontecimentos do mundo social, jurisdicizados por regras do sistema e
credenciados para produzir normas jurídicas que introduzam no ordenamento
outras normas, gerais e abstratas, gerais e concretas, individuais e concretas ou
individuais e abstratas. Agora, tais ocorrências serão colhidas enquanto atos de
enunciação, já que os enunciados consubstanciam as próprias normas.
(...)
É preciso dizer que na idéia que reduz a ordem jurídica ao complexo de normas
existentes, está contida, por certo, uma concepção normativista de direito, que
identifica o órgão juridicamente legitimado ou o fato credenciado para a
construção das unidades normativas, na medida estrita em que houver regras que
incidam nos órgãos, qualificando-os como tais e outorgando-lhes a específica
competência, assim como tipificando fatos, aos quais se atribuem a força de
produzirem outras normas.
(...)
Fortes nesses pressupostos, não hesitaríamos em proclamar que o estudo das
fontes do direito está voltado primordialmente para o exame dos fatos
enquanto enunciação que fazem nascer regras jurídicas introdutoras,
advertindo desde logo que tais eventos assumem essa condição por
estarem previstos em outras normas jurídicas, tudo no âmbito daquela
composição dialética que já mencionamos. Posição, admitimos, é decorrência de
uma atitude cognoscente de quem toma o direito positivo qual sistema de
normas, respondendo às perguntas: de onde provêm as regras do ordenamento?
Como nascem? De que modo ingressam no sistema?
34
É de se notar que PAULO DE BARROS CARVALHO parte dos mesmos
pressupostos defendidos pela tese positivista das fontes sociais, isto é, de que todo direito
advém de fato praticado por órgãos credenciados pelo sistema jurídico (via normas de
33
Concernente, portanto, à projeção do espírito humano sobre a realidade.
34
Curso de direito tributário, p. 47/49 (g.n).
27
competência) no exercício de suas respectivas competências normativas. A novidade
35
fica
por conta da observação de que tais fontes se materializam por meio de atos de enunciação,
emprestando à tese das fontes sociais uma sofisticação teórica proposta na obra de JOSÉ
LUIZ FIORIN
36
, cuja utilização é possível a partir da aceitação da premissa de que o
direito se manifesta, essencialmente, por meio de um plexo de linguagem (postulado
ontológico constructivista).
Assim, segundo advertência expressa do mestre paulista, o fato-enunciação não
integra o direito, o qual é composto pelos enunciados que dele decorrem, o que significa
dizer, em outros termos, que se trata de um fenômeno social.
Realmente, o fato-enunciação perfaz o aspecto pragmático da linguagem normativa,
é nele que se verifica a prescritividade dos textos jurídico-normativos, ínsito à força
ilocucionária dos atos de fala emanados das autoridades credenciadas pelo sistema. Esta
prescritividade, inerente aos atos de fala normativos, é possível mediante a
pressuposição de uma relação de poder jurídico relação mando/obediência, nos termos
usados por LOURIVAL VILANOVA
37
posta pelas normas de competência
institucionalizadoras do poder.
Não se trata, portanto, de um poder de fato, mas de um poder de direito, que decorre
de uma condição fática prévia à atribuição do qualificativo “jurídico” a um determinado
sistema normativo, qual seja: a eficácia global do sistema. Daí o “poder jurídico” ser um
poder de direito e não um poder de fato
38
.
Noutra passagem de seu Curso de Direito Tributário, PAULO DE BARROS
CARVALHO anota que:
Pois bem: se agregarmos a tudo isso o caráter de bem cultural, que o direito
positivo inequivocamente exibe, enquanto objeto elaborado pelo ser humano
35
E aí está a contribuição do constructivismo para a tese das fontes sociais, própria do positivismo normativo.
36
As astúcias da enunciação, passim.
37
Ob. cit., p. 255.
38
Este é o fundamento da diferenciação feita por Kelsen entre um ato emanado de autoridade jurídica
competente, daquele provindo de um bando de salteadores. A prescritividade do primeiro decorre de um
poder jurídico; a do segundo, de um poder de fato.
28
para a realização de certa finalidade a disciplina da conduta nas relões inter-
humanas , encontraremos então os valores de que todo bem cultural é portador.
Daí concluir-se que é precisamente na textura da unidade normativa que vamos
saber dos fatos e das condutas juridicamente relevantes, bem como é nela
norma jurídica que o legislador deposita seus valores
39
.
Note-se que aqui o eminente Professor paulista deixa às claras a influência do
culturalismo jurídico sobre o constructivismo, circunstância que, segundo pensamos,
também consubstancia uma evolução à perspectiva positivista. Cabe advertir, no entanto,
que da admissão de que o direito, enquanto objeto cultural, proveniente de uma necessária
atividade humana, é produzido mediante atos de volição por meio dos quais se objetiva
valores, não decorre a conclusão de que haveria uma “moral objetiva”, imutável, da qual a
autoridade credenciada pelo sistema retiraria os parâmetros axiológicos que por ela são
positivados.
Os valores inerentes ao fenômeno jurídico, a que se refere o postulado
constructivista ôntico do direito como objeto cultural, decorrem da ideologia da autoridade
competente, que é controlada, por óbvio, pelos padrões axiológicos delimitados por outros
enunciados prescritivos (contexto intrassistêmico), mas também pela própria cultura
predominante em um dado momento histórico (contexto extrassistêmico), que restringem
(mas não absolutamente) a influência da consciência moral da fonte nas decisões jurídicas.
Significa dizer, portanto, que o constructivismo jurídico, por meio de sua inovadora
concepção de fonte do direito, é partidário da tese das fontes sociais positivistas, pois afasta
qualquer possibilidade de inserção de enunciados normativos no sistema jurídico que não
por intermédio de atos de fala emanados das autoridades juridicamente credenciadas.
1.2.2. A tese da separação entre direito e moral: entre normas e valores
O positivismo jurídico, em suas mais variadas vertentes, defende a inexistência de
uma relação necessária (conceptual ou normativa) que vincule o direito à moral. Entenda-se
por relação necessária a pressuposição da existência de uma “moral objetiva” à qual os
39
Ob. cit., p. 49
29
sistemas jurídicos estariam necessariamente vinculados, ou, na proposta teórica de
ROBERT ALEXY, de uma necessária relação normativa entre o direito e uma moral
qualquer (subjetiva e não objetiva) perpetrada por uma suposta “pretensão de correção”
formulada pela autoridade no momento em que é emanada a decisão normativa, de maneira
que a adequação à suposta moral objetiva (ou a uma moral qualquer, na teoria de ALEXY)
seria a condição última de validade do ato normativo.
O que a tese jusnaturalista da vinculação pretende provar, portanto, não é a questão
da influência da consciência moral de uma autoridade competente, individualmente
considerada, sobre as decisões normativas por ela emanadas, algo que nunca foi negado
pelo juspositivismo
40
, mas uma relação necessária entre todos os sistemas jurídicos e uma
moral ideal, cuja verificação empírica ainda está por ser comprovada.
Em sua versão normativa, a tese da vinculação pretende que a propalada relação
necessária entre direito e moral seja justificada por meio de uma suposta “pretensão de
correção” que seria formulada pela autoridade jurídica por ocasião da emissão do ato de
enunciação normativo. Em outras palavras, que no ato de enunciação normativo estaria
implícita, como força ilocucionária, uma pretensão de correção (adequação) com um
determinado sistema moral qualquer, de maneira que os sistemas normativos promulgados
sem a formulação da indigitada pretensão de correção não teriam existência jurídica, e os
atos normativos, individualmente considerados, formulados na mesma condição por
autoridades competentes, seriam juridicamente deficientes.
Conforme adiantamos por ocasião da análise da tese da separação, a relação entre
direito e valor defendida pelo constructivismo decorre, exclusivamente, do postulado ôntico
do direito como objeto cultural
41
. Na proposta constructivista, o fenômeno jurídico nasce da
40
A admissão positivista desta relação contingente entre direito e moral pode ser aferida por uma leitura
meramente superficial do anexo inserido por Kelsen à Edição de sua Teoria pura do direito (1960), bem
como de tudo o que consta da obra do conceito de direito de Herbert Hart. Sobre o assunto, vide também
Dimitri Dimoulis. Ob. cit. p. 167/195.
41
Sendo assim, o direito posto, enquanto conjunto de prescrições jurídicas, num determinado espaço
territorial e num preciso intervalo de tempo, será tomado como objeto da cultura, criado pelo homem para
organizar os comportamentos intersubjetivos, canalizando-os em direção aos valores que a sociedade quer ver
realizados. E recebo a locução “objeto cultural” como designativa daqueles bens derivados e complexos, que
ostentam uma forma de integração de ser e do dever ser. Nessa concepção, o bem da cultura será visto sempre
na sua dualidade existencial: suporte e significado (valor), de tal modo que este último penetre o primeiro,
30
manifestação do espírito humano, perpetrada pelos atos de vontade (enunciação)
prescritivos emanados de autoridades juridicamente competentes. Essa afirmação, repise-
se, está longe de endossar a tese jusnaturalista da vinculação necessária, pois os valores a
que se refere o constructivismo são exatamente aqueles que integram a ideologia de cada
um dos inúmeros sujeitos competentes. Trata-se, portanto, de uma relação contingente entre
direito e moral, mas não necessária. No máximo, uma relação necessária entre o direito e os
valores em geral, e não a um valor objetivo específico.
Há, no entanto, outro dado que corrobora nossa convicção de que o constructivismo
não chancela a tese da vinculação, e que diz respeito à ideia de fundamentos últimos de
validade dos sistemas jurídicos, adotada pelo constructivismo standard.
Com efeito, em várias passagens das obras de LOURIVAL VILANOVA
42
e
PAULO DE BARROS CARVALHO
43
é possível identificar uma total adesão desses
autores à Teoria da norma hipotética fundamental de KELSEN, nos mesmos moldes em
que foi proposta na obra do jurista vienense, isto é, como fundamento (epistemológico)
último dos sistemas jurídicos (pressuposto lógico-transcendental), a qual restaria
desprovida de qualquer conteúdo semântico ou axiológico. Referida adesão, por si e em si,
indica que o constructivismo não compartilha da tese jusnaturalista da vinculação, pois o
ponto de partida axiomático do qual partem os constructivistas para delimitar o conceito de
direito é axiologicamente neutro.
Também não nos parece possível adequar os postulados constructivistas à tese da
“pretensão de correção” proposta por ALEXY. É que a única força ilocucionária
reconhecida pelo constructivismo nos atos de fala normativos é aquela que diz respeito ao
caráter prescritivo do uso da linguagem por parte da autoridade jurídica, prescritividade
esta que decorre de norma de competência que constitui a autoridade como ente dotado do
poder jurídico que possibilita o uso da linguagem em sua função prescritiva.
É de se concluir, portanto, que a premissa ôntica constructivista que estabelece a
conexão entre direito e valor, tal qual a tese positivista da separação, somente admite a
sem que um se reduza ao outro, mantendo-se aquela relação de implicação e polaridade a que se refere Miguel
Reale.Direito tributário, fundamentos jurídicos da incidência, p. 4.
42
As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo, p. 163.
43
Ob. cit., p. 76.
31
relação entre direito e moral no plano da contingência, especialmente se considerarmos a
pluralidade de sistemas morais verificada nas sociedades complexas, circunstância esta que
afasta a possibilidade de o constructivismo admitir a existência de uma moral objetiva da
qual se poderia extrair qualquer enunciado jurídico normativo. Neste ponto, também, quer
nos parecer que o constructivismo jurídico se amolda ao conceito de direito proposto pelo
pensamento positivista.
1.2.3 A tese da discricionariedade judicial: a atividade jurisdicional como fonte de
criação de normas jurídicas
O pensamento positivista, em maior ou menor grau, admite a interferência da
vontade do aplicador do direito no processo de aplicação/concretização do direito.
KELSEN
44
menciona uma moldura dentro da qual estariam inseridas as significações
possíveis de uma norma e dentre as quais o aplicador teria a liberdade de escolher
(atividade volitiva), segundo suas convicções, a mais adequada para o caso posto à sua
apreciação, sem deixar de reconhecer a possibilidade de o juiz ir além dos parâmetros
significativos possíveis (emoldurados). HART
45
, por sua vez, faz menção à textura aberta
dos enunciados normativos, circunstância que daria ensejo a situações concretas em que o
aplicador se depararia com zonas de penumbra, tendo, nessas circunstâncias,
“discricionariedade” para escolher a solução normativa que lhe parecer mais adequada.
ROSS
46
, a seu turno, leva a questão da liberdade decisória às últimas consequências,
defendendo a tese de que, em verdade, o que vale é a vontade do aplicador, adotando uma
postura altamente cética com relação à normatividade do direito legislado e à possibilidade
de controle da atividade do aplicador por meio das chamadas fontes primárias.
O jusnaturalismo, com fundamento na tese da vinculação, afirma que a
discricionariedade judicial é controlada pelos parâmetros normativos que integram uma
44
Ob. cit., p. 465.
45
O Conceito de Direito, p. 140.
46
Direito e Justiça, p. 136.
32
moral objetiva. Algumas vertentes, como as propostas por ALEXY
47
e pelo pensamento
neoconstitucionalista, admitem certa liberdade decisória, que não obstante possa ir além do
direito legislado, será juridicamente válida caso esteja dentro dos referidos parâmetros
morais. Outras vertentes jusnaturalistas, como a desenvolvida na obra de DWORKIN
48
,
afirmam ser possível identificar, para todo e qualquer caso, a decisão moralmente correta.
Tanto o positivismo quanto o jusnaturalismo reconhecem, portanto, a existência da
atividade volitiva do juiz. A diferença, basicamente, está na circunstância de que, para o
positivismo, a validade jurídica da norma criada pelo juiz estaria fundada, exclusivamente,
na autoridade a ele atribuída pelo sistema jurídico, enquanto, para o jusnaturalismo,
decorreria da adequação moral da decisão. Daí que, para o jusnaturalismo, dada a
necessária sobreposição da moral sobre os sistemas jurídicos, mesmo que haja atividade
criativa do ponto de vista jurídico-normativo, não haveria que se falar, verdadeiramente, em
criação de direito novo.
Dentro do panorama teórico superficialmente descrito nos parágrafos acima, cabe-
nos investigar qual a posição assumida pelo constructivismo jurídico a respeito da tese da
discricionariedade do juiz. Não se trata de verificar se o pensamento constructivista
reconhece ou não que a atividade jurisdicional, tanto quanto a administrativa, tem o condão
de produzir normas, pois isso é facilmente verificável na vasta literatura dogmático-
constructivista, que a todo momento se refere às normas concretas e individuais emanadas
das referidas autoridades, mas do quão libertos estão os aplicadores, especialmente o juiz,
para determinar os conteúdos de seus atos decisórios e em que medida a validade destes
atos pode ser comprometida por eventuais excessos.
A pergunta pode ser respondida, parece-nos, por meio das investigações
perpetradas pelos autores constructivistas na complexa seara das Teorias da Interpretação,
pois uma possível liberdade criativa do juiz está diretamente ligada à sua condição de
intérprete autêntico do direito legislado, lembrando que, conforme propugnamos desde o
início deste trabalho, um dos postulados (epistemológico) que sustentam o pensamento
constructivista é exatamente o da inevitabilidade da interpretação.
47
Conceito e validade do direito, p. 43. Sobre o assunto, vide também Robert Alexy e Eugênio Bulygin. La
pretensión de corrección del derecho la polémica sobre la relación entre derecho y moral, passim.
48
Levando os direitos a sério, passim.
33
Nesta seara, a obra de PAULO DE BARROS CARVALHO
49
é muito rica em
informações a respeito das formas, critérios, possibilidades e limites da atividade
interpretativa, bem como dos modelos interpretativos desenvolvidos pelas “Filosofias da
Linguagem” que servem de parâmetro teórico à proposta interpretativa do modelo
constructivista.
A influência da hermenêutica filosófica sobre a teoria da interpretação do
constructivismo pressupõe um considerável grau de liberdade por parte do intérprete para
construir as significações normativas. Aliás, a simples afirmação, corriqueira nos escritos
constructivistas, de que interpretar é atribuir sentido aos textos jurídicos, com vistas à
construção da norma a ser aplicada, denota a aceitação do constructivismo de que a
atividade judicial é verdadeiramente volitiva, e não meramente cognitiva, o que não
significa dizer que o juiz possa fazer o que bem lhe aprouver.
O que importa anotar, por agora, é que, para o constructivismo jurídico, o controle
de eventuais excessos interpretativos poderá ocorrer internamente, de maneira que a
validade (existência) jurídica de decisões juridicamente arbitrárias restaria intacta até que
outra decisão advenha para extirpar seus efeitos, indicando que a tese positivista da
discricionariedade é compatível com a referida escola de pensamento.
Por outro lado, a tese da discricionariedade judicial costuma ser acolhida por autores
que defendem a incompletude dos sistemas jurídicos, o que, definitivamente, não é o caso
do constructivismo jurídico. Portanto, segundo os teóricos que partem da premissa da
incompletude jurídico-sistêmica, a discricionariedade judicial decorreria da necessidade de
o juiz, ante a proibição do non liquet, desencadear a atividade criativa nas circunstâncias
em que o caso posto à sua apreciação não tivesse solução normativa prevista no sistema
jurídico. Se o constructivismo jurídico acolhe o paradigma da completude, a tese da
discricionariedade soaria um tanto quanto incompatível à sua proposta, pois se os sistemas
jurídicos são completos, os juízes sempre teriam à sua disposição uma norma que seria
aplicável ao caso levado a julgamento.
Essa aporia, no entanto, é meramente aparente, pois o problema da (in)completude,
como condição para aceitação da tese da discricionariedade, deve ser considerado dentro da
49
Direito tributário linguagem e método, p. 181/198.
34
proposta teórica dos autores que se propuseram a enfrentar a questão. Assim, quando
autores como CARLOS ALCHORRÓN e EUGÊNIO BULYGIN
50
afirmam que os
sistemas jurídicos são incompletos, e que a atividade criativa do juiz incide justamente no
âmbito desta incompletude, o fazem em razão de terem se proposto a investigar os sistemas
jurídicos sob a óptica exclusivamente lógica, ou seja, como sistemas dedutivos.
Ora, é evidente que, de uma perspectiva estritamente formal (lógica), será difícil
identificar, empiricamente, um sistema jurídico que seja completo, pois não é possível
presumir que a atividade legislativa, perpetrada mediante atos de vontade, obedeça
totalmente a padrões de racionalidade lógica.
A premissa teórica do constructivismo jurídico, diferentemente daquela apregoada
pela analítica lógico-formal de ALCHORRÓN e BULYGIN, supõe que os ordenamentos
jurídicos sejam sistemas nomoempíricos
51
, de maneira que a atribuição do status de
“sistema” ao direito é realizada a partir do reconhecimento de um mínimo de racionalidade
que a eles seria inerente. Esse mínimo de racionalidade, por sua vez, está relacionado ao
fato de o direito se apresentar sob a forma de um plexo de linguagem, e se assim é, que
se exigir, pelo menos, que os signos veiculados nos documentos jurídicos obedeçam a
padrões sintático-normativos mínimos. O status de sistema, portanto, está relacionado ao
fato de que os elementos que compõem os ordenamentos jurídico-positivos as normas
jurídicas mantêm entre si relações de coordenação e subordinação decorrentes da
circunstância de terem um mesmo fundamento último de validade (a Constituição positiva).
Trata-se, portanto, de algo muito diverso de se exigir total adequação dos textos
jurídicos a uma racionalidade lógico-dedutiva. Isso não significa afirmar que a lógica não
seja útil ao raciocínio jurídico, mas que a racionalidade lógico-formal não é suficiente às
investigações jurídicas, especialmente as desenvolvidas pela Dogmática e pelo aplicador
autêntico.
Mediante a premissa de que o conjunto dos textos jurídicos positivos perfaz um
sistema nomoempírico cujas unidades são proposições normativas construídas via processo
50
Carlos Alchouurrón e Eugenio Bulygin. Introducción a la metodologia de las ciências jurídicas y
sociales, passim.
51
Paulo de Barros Carvalho. Fundamentos jurídicos da incidência, p. 55.
35
de atribuição de sentido perpetrado pelo sujeito cognoscente, a completude do sistema
decorre da possibilidade de o juiz, por meio de atividade interpretativa, construir unidades
de sentido (normas jurídicas em sentido estrito) que se amoldem a qualquer caso que venha
a ser posto à sua apreciação. Trata-se, portanto, não de uma completude lógica, mas de uma
completude hermenêutica
52
.
Essa adequação hermenêutica dos textos legislados aos casos concretos é realizada
sob forte influência de fatores extrassistêmicos (contextuais) e pressupõe, em maior ou
menor graus, atividade volitiva do intérprete, sendo esta a condição para que afirmemos
que a tese da discricionariedade é ínsita ao modelo constructivista, visto que, em certa
medida, interpretar o direito significa criar o direito.
A discussão a respeito da tese da discricionariedade exposta nos parágrafos
anteriores, engendrada à margem de considerações relativas a questões hermenêuticas,
permite que tomemos consciência da importância do postulado da inevitabilidade da
interpretação para o constructivismo jurídico. Também para as pretensões deste trabalho, o
modelo interpretativo constructivista tem importância central, razão pela qual nos
dedicaremos à sua análise nos tópicos que se seguem.
1.3. A interpretação como elemento essencial ao conhecimento e à operacionalização
do fenômeno jurídico
Tornou-se lugar comum em diversas obras e trabalhos jurídicos recentes a menção à
proposição 5.6 do Tratactus Lógico-Filosófico de Wittgenstein
53
. Parece-nos, no entanto,
que a questão não é mais a de se constatar que a realidade é constituída por meio da
52
Do ponto de vista extralógico, da dogmática ou Ciência-do-direito em sentido estrito, um sistema jurídico
positivo é completável, por recursos normativos do próprio sistema. Mas essa completabilidade, que tem
ângulos sociológicos, políticos, filosóficos, tem também o ângulo dogmático. Juridicamente não se preenche
lacuna normativa mediante fonte material, quer dizer, extrapolando do sistema para ir aos dados sociais, à
livre investigação científica do Direito (Geny), ao Direito da sociedade (Erlich), ou ao Direito natural. Cabe
distinguir, com Alf Ross, o conceito jurídico e o conceito político de lacuna (Alf Ross, Theorie der
Rechsquellen, págs. 347-348). Juridicamente a Urteilsfaellung als Konretisation innerhalb dês Rahmens dês
Gesetzes é da substância mesma do ato jurisdicional ante a indeterminação (Ubestimmengheit) das normas
gerais (ob. cit., pág. 344).” Lourival Vilanova. Ob. cit., p. 230.
53
“Os limites de minha linguagem significam os limites de meu mundo”.
36
linguagem
54
, muito menos do que o direito, fenômeno normativo que é, se apresenta como
um plexo de linguagem
55
. O problema fundamental, em nosso sentir, é responder à seguinte
indagação: se os limites de minha linguagem significam os limites de meu mundo, quais
são, então, os limites de minha linguagem? E como desdobramento, quais os limites da
linguagem do direito? Eis, aqui, o problema da interpretação.
O constructivismo jurídico assume, como pressuposto epistemológico do fenômeno
jurídico, válido tanto para atividade intrassistêmica de aplicação do direito quanto para as
investigações extrassistêmicas formuladas pela Dogmática do Direito, o postulado da
inevitabilidade da interpretação, pressuposto este que decorre diretamente de seus
postulados ôntico (do direito como objeto cultural) e ontológico (do direito como um plexo
de linguagem). O acesso aos conteúdos jurídico-normativos, portanto, não dispensa, para a
concepção constructivista do direito, a atividade interpretativa.
O conceito de “interpretação”, contudo, não está imune a controvérsias. Segundo
DASCAL, podem-se distinguir pelo menos três significados do termo “interpretação”,
quais sejam:
(a) ‘Interpretação’ latíssimo sensu (interpretação-LS) refere-se a qualquer
compreensão de qualquer objeto como um objeto de cultura, por meio da
atribuição ao substrato material desse objeto de um significado; um sentido ou
um valor. Esse conceito é, filosoficamente, uma das bases para a alegação de
que as ciências humanas, que lidam com tais objetos ‘significativos’, deveriam
ser metodologicamente distintas das ciências naturais (ver Rickert, 1911) A
hermenêutica textual e filosófica costuma chamar a atenção para esse tipo de
compreensão ou interpretação (ver Gadamer, 1976; capítulo 29).
(b) ‘Interpretação’ lato sensu (intepretação-L) refere-se a uma atribuição de
significado a um signo tratado como se pertencesse a uma determinada língua e
sendo usado de acordo com as suas regras e as práticas comunicativas aceitas.
Compreender um signo linguístico significa, então, L-interpretá-lo. A semântica
e, como veremos adiante, a pragmática ocupam-se desse tipo de interpretação.
(c) ‘Interpretação’ stricto sensu (Interpretação-S) refere-se a uma atribuição de
significado a um signo linguístico no caso do seu significado ser duvidoso em
uma situação comunicativa, isto é, no caso de sua ‘compreensão direta’ não ser
suficiente para o propósito comunicativo em vista. Ao contrário da
interpretação-L, a interpretação-S se refere, portanto, apenas à compreensão
54
Vilén Flusser. Língua e Realidade, passim.
55
Tais queses, não só no contexto do modelo constructivista, mas também na imensa maioria das propostas
teóricas modernas, são triviais.
37
‘problemática’, devido a fenômenos como obscuridade, ambiguidade, metáfora,
implicitude, indiretividade, alteração de significado etc. A prática legal enfrenta
esses problemas com frequência e há, consequentemente, uma tendência a ver
esse tipo de ‘interpretação’ como a única relevante para o direito. A pragmática,
em seu sentido estrito, também tende a enfocar exclusivamente a compreensão
‘problemática’, isto é, os casos em que somente a semântica não é o bastante
para determinar o significado de um signo linguístico e nos quais, por isso, a
informação contextual deve ser tomada em consideração
56
.
Dos conceitos de interpretação acima enumerados, amoldam-se ao modelo
constructivista aqueles descritos como interpretação-LS e interpretação-L. O primeiro em
razão do postulado ôntico constructivista do direito como objeto cultural, do qual decorre,
aliás, a afirmação de que a Ciência do Direito em sentido estrito (Dogmática do Direito) é,
por excelência, uma Ciência da Cultura.
Também a chamada interpretação-L deve ser considerada, pois interpretar o direito,
para o modelo constructivista, é atribuir sentido aos textos jurídicos
57
, de sorte que, mesmo
nas situações interpretativas mais elementares (os chamados casos fáceis), de se
reconhecer uma necessária atividade volitiva (decisória) do intérprete.
A proposta interpretativa constructivista é desenvolvida a partir de uma combinação
de categorias oriundas das várias “Filosofias da Linguagem”, especialmente da Analítica da
Linguagem (formal e ordinária), da Hermenêutica Filosófica e da Semiótica. Com efeito, o
modelo analítico standard de Lógica Dêontica proposto por Georg von Wright, juntamente
com a teoria da proposição normativa kelseniana (1960)
58
, fornecem ao constructivimo a
estrutura lógico-sintática mínima da norma jurídica a ser construída no final do percurso
interpretativo. Da semiótica, o constructivismo se apropria da teoria dos signos, que
sustenta a necessidade de interpretação dos textos jurídicos em seus aspectos sintático,
semântico e pragmático. A pragmática da linguagem, especialmente a Teoria dos Jogos de
Linguagem e a Teoria dos Atos de Fala, dão ao modelo interpretativo constructivista os
instrumentos para, por meio da investigação dos usos das palavras e expressões constantes
56
Interpretação e compreensão, p. 343.
57
Direito tributário, fundamentos jurídicos da incidência, p. 83.
58
Teorias estas que também fundamentam o postulado da homogeneidade sintática das normas jurídicas em
sentido estrito o mínimo irredutível do deôntico a que se refere Lourival Vilanova, adotado pelo
constructivismo jurídico. Sobre o assunto, vide Ob. cit., p. 189.
38
da linguagem jurídica, delimitar, empiricamente, os parâmetros significativos dos
enunciados jurídicos. A Hermenêutica Filosófica de corte gadameriano, a seu turno,
informa o modelo constructivista a respeito da inafastável influência de aspectos
contextuais, intra e extrassistêmicos
59
, no processo de atribuição de sentido perpetrado pelo
intérprete, categorias estas que bem se amoldam às condições impostas pelo postulado
ôntico adotado pelo constructivismo que toma o direito como objeto cultural.
Certo é, no entanto, que a teoria da interpretação adotada pelo constructivismo
jurídico acolhe, sem maiores pudores, a tese da inesgotabilidade da interpretação
60
,
admitindo que o contexto no qual a atividade interpretativa é realizada consiste em fator
determinante para a construção das significações normativas. Tais circunstâncias
aproximam muito a interpretação constructivista daquela proposta pela hermenêutico-
filosófica, que sem dúvida alguma é a mais “liberal” das teorias da interpretação a informar
o constructivismo
61
. Trata-se, no entanto, de uma liberdade interpretativa controlada pelas
categorias retiradas das teorias analíticas, que são reconhecidamente mais restritivas quanto
à criatividade interpretativa, de maneira a permitir que o processo hermenêutico seja
racionalmente controlável
62
. Parece-nos que é justamente tal combinação de modelos
59
(...) a hermenêutica gadameriana enfatiza três aspectos diferentes (embora inter-relacionados) da
determinação contextual da compreensão: (a) o fato de que por trás de cada enunciado (ou qualquer outra
elocução) existe sempre um ‘questão’ que a motiva; (b) o papel dos ‘preconceitos’ ou pré-juízos do intérprete
como fatores constitutivos de toda interpretação; (c) a mediação de toda experiência pela linguagem, que
funciona, assim, com um contexto abrangente de nossa vida.” Marcelo Dascal. Ob. cit., p. 646.
60
Ob. cit., p. 197.Dada a dependência contextual ouhistoricidade tanto do texto como do intérprete e
dado o caráter ilimitado do contexto, ou seja, o fato de que potencialmente qualquer fator contextual pode
acabar sendo relevante para a interpretação, seja qual for a compreensão alcançada, ela é sempre provisória e
passível de ser revisada ou inteiramente substituída à luz de fatores contextuais previamente
desconsiderados.” Marcelo Dascal, idem ibidem, p. 632.
61
“Mas, para Gadamer, o caráter falível e circular de toda compreensão é mais radical e insuperável do que se
pode pensar. Não é apenas uma questão de ter de compreender totalidades em termos da compreensão das
partes que são apenas compreensíveis em termos de suas posições nas totalidades às quais pertencem, como
nos dizem as descrições-padrão do ‘círculo hermenêutico’. Dado o papel consitutivo dos pré-juízos do
intérprete, que implica que não há algo como “o significado” de um texto a ser “descoberto”, conjugado com
o fato de que tais pré-juízos são por si só não-fixos e, sim, passíveis de alteração (entre outras coisas, devido à
‘resistência’ da ‘coisa em si’ expressa no texto) no curso do processo de compreensão, o círculo hermenêutico
deve ser compreendido como um nível ontologicamente básico, anterior à distinção entre sujeito e objeto.”
Idem ibidem, p. 652.
62
Por esse motivo,o de se cogitar que a proposta hermenêutica constructivista adote, por premissa, um
certo “ceticismo semântico” que o leve a ser qualificado como um modelo decisionista.O fato de não
podermos jamais nos afastar demais das convenções lingüísticas é claramente básico para a vida da
linguagem: aquele que fala uma língua privada que ninguém entende, não fala de jeito nenhum.” H. G.
Gadamer. Apud. Marcelo Dascal. Ob. cit., p. 645.
39
interpretativos que azo à afirmação de que o método próprio ao constructivismo é o
hermenêutico-analítico.
Ocorre, entretanto, que o postulado da inevitabilidade da interpretação
63
, quando
aplicado às investigações de natureza jurídico-científica, indica certo afastamento do
constructivismo jurídico de algumas concepções metodológicas positivistas, especialmente
a de matriz kelseniana
64
, que defende a tese de que uma Ciência do Direito deve ser
descritiva em sentido objetivo, tal qual ocorre nas Ciências da Natureza
65
, o que exige a
completa neutralidade por parte do sujeito cognoscente. Tratar-se-ia não de atividade
volitiva, mas de um problema estritamente cognitivo.
Com efeito, os estudos sobre interpretação desenvolvidos por KELSEN no texto
anexo à Edição de sua Teoria Pura (1960)
66
mostram que, para o Mestre de Viena, a
função da Ciência do Direito seria a de identificar as significações possíveis de um
determinado enunciado normativo é nesse sentido, aliás, que KELSEN usa,
metaforicamente, a palavra “moldura” –, de maneira que a preferência do dogmático por
uma delas, mediante atividade volitiva, consubstanciaria uma posição política do intérprete,
desprovida de qualquer cientificidade.
Mesmo a proposta metodológica do positivismo hartiano, que do ponto vista
epistemológico está, em nosso sentir, mais próxima ao método hermenêutico-analítico
constructivista, admite o exercício de atividade volitiva naquelas situações em que se
verifique a chamada “zona de penumbra”, uma espécie de limbo semântico que admitiria ao
sujeito cognoscente (aplicador ou dogmático) construir a mensagem normativa, adotando
63
Apesar de em muitos outros aspectos o constructivismo jurídico estar perfeitamente alinhado com o
positivismo de corte kelseniano. A teoria das fontes, a adoção da teoria da norma hipotética fundamental, a
caracterização dos sistemas jurídicos como ordens coativas, a dualidade ser/dever ser, são alguns
exemplos.
64
O ápice do descritivismo objetivo de Kelsen é atingido em sua obra póstuma, Teoria Geral das Normas,
onde o mestre de Viena afirma que a proposição da Ciência do Direito se resume à mera identificação do
enunciado jurídico (NxESy). O enunciado da Ciência do Direito é, para Kelsen, um enunciado sobre a
validade (existência jurídica) de enunciado jurídico, que não exprime nada a respeito de seu conteúdo. Para
tanto, basta a verificação da emanação do ato de vontade pela autoridade competente. Sobre esta questão, vide
Teoria Geral das Normas, p. 194/196.
65
É o reflexo da influência do positivismo weberiano no pensamento kelseniano.
66
Ob. cit., 466.
40
uma postura interpretativa compatível à concepção de Interpretação-S a que se refere
DASCAL.
No contexto da literatura jurídica constructivista, é possível identificar, em diversas
passagens das obras de LOURIVAL VILANOVA e PAULO DE BARROS CARVALHO,
restrições expressas às delimitações conceptuais do fenômeno jurídico que não levam em
conta seu caráter eminentemente cultural e, via de consequência, às propostas jurídico-
metodológicas que pretendem que o conhecimento jurídico seja absolutamente objetivo.
De fato, as possibilidades epistêmicas dessa pretensa objetividade, até no âmbito das
chamadas Ciências hard, são altamente questionáveis. A esse respeito, o pensamento de
THOMAS KUHN
67
se mostra revelador, ao demonstrar que os modelos teóricos, e as
descrições científicas a partir deles produzidas, estão sujeitos a prévio consenso a respeito
de determinados paradigmas sob os quais suas categorias teóricas são desenvolvidas.
Além disso, de se ressaltar que as teorias perfazem sistemas linguísticos
artificialmente construídos, via consenso, com a finalidade precípua de reduzir as
complexidades inerentes aos fenômenos empíricos, com vistas a explicá-los racionalmente
(racionalidade que é definida pela própria teoria). Assim, não há como se escapar da
contingência de que o conhecimento científico nunca será algo absolutamente objetivo.
Mesmo a matemática deve ser considerada na condição de um sistema de signos
artificialmente desenvolvido para a solução de necessidades humanas.
Com efeito, se para o constructivismo jurídico (i) todo direito nasce de um ato
psicofísico de enunciação prescritiva emanado de autoridade juridicamente competente
(tese das fontes sociais); se (ii) desta atividade resulta um enunciado normativo cujo
conteúdo não está, necessariamente, vinculado a uma moral objetiva, conquanto possa,
contingentemente, ter sido produzido sob a influencia da consciência moral (valores) da
autoridade enunciadora (tese da separação conceptual entre direito e moral); e, por fim, se
(iii) a atividade judicial, produtora de normas concretas e individuais, pode, em maior ou
menor grau, resultar na produção de direito novo; certo é, também, que este processo
normativo-comunicacional é intermediado por uma necessária atividade intelectual de
atribuição de sentido: a interpretação.
67
A estrutura das revoluções científicas, passim.
41
1.3.1. Interpretação jurídica e aplicação do direito: o plano da concretização (S
5
)
Respaldado nas premissas acima estabelecidas, PAULO DE BARROS
CARVALHO propõe um modelo descritivo do processo de construção de sentido
perpetrado pelo intérprete (descritivo ou prescritivo) uma gramática interpretativa com
vistas à delimitação dos conteúdos normativos de um determinado ordenamento jurídico. O
esquema descreve o percurso interpretativo mediante a estipulação de quatro subsistemas, a
saber: (i) o plano S
1
: o sistema da literalidade textual, suporte físico das significações; (ii) o
plano S
2
: o conjunto dos conteúdos de significação dos enunciados prescritivos; (iii) o
plano S
3
: o conjunto articulado das significações normativas o sistema de normas
jurídicas stricto sensu; e (iv) o plano S
4
: que espelha a organização das normas construídas
no nível S
3
, onde se estabelecem os vínculos de coordenação e subordinação entre as
regras.
Adverte o Mestre paulista, desde logo, que as incisões perpetradas nos textos
jurídicos, decompondo-os em quatro subsistemas, são de caráter meramente
epistemológico, não podendo ser vistas as fronteiras dos subsistemas no trato superficial
com a literalidade dos textos
68
, o que significa dizer, em outros termos, que a subdivisão
proposta perfaz um esquema teórico (gramática) que se propõe a descrever, explicar e
racionalizar o processo interpretativo.
O esquema de interpretação proposto toma como ponto de partida aquilo que
PAULO DE BARROS CARVALHO chama de plano da literalidade textual plano S
1
por ele definido como o conjunto das letras, palavras, frases, períodos e parágrafos,
graficamente manifestados nos documentos jurídicos pelos órgãos de criação do direito,
suporte físico que limita o âmbito dos suportes materiais utilizados na mensagem
prescritiva comunicacional que, emitido em determinado idioma, de seguir as regras de
formação e de transformação, preceitos morfológicos e sintáticos ditados pela gramática da
68
Ob. cit., p. 83.
42
língua, que estarão presentes em todos os instantes do seu desenvolvimento
69
. Trata-se do
único e exclusivo dado objetivo comum a todos os integrantes da comunidade
comunicacional. Tudo mais será entregue ao teor das subjetividades
70
.
Em seguida, ingressa o intérprete no plano S
2
, composto pelo conjunto dos
conteúdos de significação dos enunciados prescritivos, momento em que o exegeta tem o
primeiro contato com o conteúdo dos textos jurídicos, por meio da compreensão isolada
dos enunciados prescritivos, sem que seja possível, ainda, identificar qualquer mensagem
normativa com capacidade de direcionar as condutas intersubjetivas. Daí que, neste
subdomínio, não há de se falar, ainda, em normas jurídicas em sentido estrito, assim
entendidas como as proposições significativas por meio das quais é possível identificar as
circunstâncias fáticas (hipótese normativa) em que o destinatário da mensagem prescritiva
restará obrigado, proibido ou facultado a realizar determinada conduta (consequente
normativo)
71
. É neste plano, vale anotar, que se encontram os enunciados principiológicos,
inclusive os chamados princípios implícitos, derivados de formulações expressas do direito
positivo.
Na articulação dos enunciados prescritivos isoladamente considerados, tem início a
última etapa do percurso de construção da mensagem normativa em sentido estrito,
momento em que o intérprete organiza as informações prescritivas insulares de modo a dar
forma à estrutura dêontico-normativa minimal, composta pelo tópico do antecedente-
descritivo que se liga, sob a forma de juízo implicacional, ao consequente-prescritivo, no
qual uma dada conduta restará deonticamente qualificada pelos modais obrigatório,
proibido ou permitido. Eis o plano S
3
, o sistema das normas em sentido estrito
72
.
Por fim, como último esforço intelectual a ser despendido pelo exegeta, impende
organizar os conteúdos normativos em sentido estrito, agrupando-os sob a forma superior
de sistema, onde estarão explicitadas as relações de coordenação e de subordinação
69
Ob. cit., p. 88.
70
Idem, ibidem, p. 89.
71
Idem, ibidem, p. 92/94.
72
Idem, ibidem, p. 96/99.
43
normativas que expressam a estrutura escalonada mediante a qual se apresenta o sistema
jurídico. Trata-se do plano S
4
, etapa final do processo gerativo de sentido
73
.
Durante toda a exposição de sua proposta interpretativo-epistemológica, PAULO
DE BARROS CARVALHO faz expressas advertências relativas ao fato de que a
delimitação dos conteúdos de significação normativos está fortemente sujeita às oscilações
provocadas por fatores de ordem pragmático-contextual, alertando-nos para a circunstância
de que ninguém pode prever, com visos de racionalidade, o rumo que os utentes da
linguagem do direito, num dado momento histórico, vão imprimir às significações de
certas palavras
74
.
Impossível deixar de constatar que o Professor Emérito das Faculdades de Direito
da PUC/SP e da USP reconhece que os conteúdos de significação normativos dos sistemas
jurídico-positivos não são totalmente determináveis ex ante, pois estão sujeitos a constantes
modificações decorrentes de contingências contextuais, a final de contas, matérias sociais
novas reivindicam, a todo instante, sua absorção pelas hipóteses normativas, passando a
ser reguladas pelo direito
75
. (g.n.)
Neste momento, três questões se colocam: (i) quando e como as indigitadas
matérias sociais novas são oferecidas ao intérprete para que possa ser realizada a adequação
de seus conteúdos às significações jurídico-normativas? (ii) Trata-se, realmente, de uma
absorção pelas hipóteses normativas, ou de uma redefinição da conotação expressa nos
antecedentes das normas abstratas e gerais? (iii) Será que o plano da sistematização (plano
S
4
) é, de fato, o último grau do percurso de geração de sentido, ou poder-se-ia cogitar a
existência de um momento hermenêutico posterior, no qual o intérprete se põe na
contingência de redefinir os conteúdos normativos sistematizados de modo a proceder à
adequação do texto ao contexto?
Acreditamos serem os processos de aplicação do direito, mormente o judicial, os
principais instrumentos de contato do intérprete com as novas contingências sociais que
demandam a reconfiguração dos conteúdos normativos com vistas à adequação destes às
73
Idem, ibidem, p. 99/102.
74
Idem, ibidem, p. 91.
75
Idem, ibidem.
44
novas circunstâncias fáticas que surgem no seio das sociedades complexas. É na dialética
norma-fato/fato-norma, perpetrada no âmbito dos processos de aplicação do direito, que são
desencadeadas as modificações sistêmicas a que se refere PAULO DE BARROS
CARVALHO, dando oportunidade à construção das significações últimas, sendo esta
instância hermenêutica, aos nossos olhos, a fase derradeira do percurso de geração de
sentido, ao qual chamamos de plano da concretização (plano S
5
). Trata-se do momento
dinâmico do processo de construção de sentido, quando o direito se autoatualiza.
Poder-se-ia objetar, indagando a respeito da desnecessidade epistemológica de um
plano hermenêutico especificamente destinado a explicar a interpretação concretizadora,
por meio da afirmação de que as contingências contextuais a que nos referimos poderiam
ser absorvidas pelos planos S
1
, S
2
, S
3
e S
4
. Ocorre, no entanto, que por serem imprevisíveis,
a consideração dos elementos contextuais em momento anterior ao da concretização teria
de ser acompanhada do pressuposto de que não haveria norma e sistema jurídicos antes da
concretização, tal qual afirma LLER
76
, fazendo ruir, por conseguinte, toda a
esquematização teórica descritiva do percurso de interpretação.
Muito embora nossas cogitações recebam influência direta das ideias de
FRIEDRICH MÜLLER
77
, advertimos, desde logo, que não compartilhamos do pensamento
do referido autor no que diz respeito à afirmação de que não existe norma jurídica antes do
momento em que se dá a concretização normativa. Há norma e há sistema jurídicos antes da
aplicação, exatamente como esquematiza PAULO DE BARROS CARVALHO, caso
contrário não seria possível à sociedade, como de fato é, planejar seus comportamentos a
fim de atingir os valores juridicamente positivados.
A circunstância para a qual queremos chamar atenção é a de que os conteúdos de
significação normativos são, em si e por si, subdeterminados ex ante, subdeterminação esta
que não induz a perda do caráter normativo dos textos jurídicos estaticamente considerados,
76
A tese de Müller é que o texto e a realidade estão em constante inter-relação e que esta inter-relação, seja
mais seja menos eventualmente discrepante, é que vai constituir a norma jurídica. Quer dizer, não a norma
do caso concreto é construída a partir do caso, mas também a norma aparentemente genérica e abstrata, ou
seja, a norma geral não é prévia, só o seu texto o é. A norma geral previamente dada não existe, é uma
ficção, pois a Rechtsnorm vai ser criada após o trabalho de concretização.João Maurício Adeodato.
Ética e retórica, para uma teoria da dogmática jurídica, p. 237.
77
A teoria estruturante do direito, passim.
45
mas que pressupõe serem os processos de aplicação do direito as instâncias derradeiras do
percurso de geração de sentido.
Isso não significa, vale advertir, nossa adesão a qualquer espécie de ceticismo
interpretativo ou a uma concepção decisionista do direito, pois as significações normativas
concretizadoras, conquanto subdetermináveis, serão sempre fixadas dentro de um contexto
consensual mínimo, inclusive procedimental, consenso este que não é suficiente para que
sejamos otimistas a ponto de acreditarmos na viabilidade de uma Teoria da Decisão
78
, mas
que certamente está cercada por parâmetros dogmáticos suficientes a uma considerável
imunização do direito aos particularismos e às arbitrariedades.
Salientamos, também, que o plano da concretização não perfaz uma instância
hermenêutica exclusiva do intérprete autêntico, pois à Dogmática também cabe interpretar
o sistema jurídico à luz de casos concretos. Em verdade, os dogmáticos fazem isso
constantemente. Além disso, conforme anota HABERLE
79
, a Constituição Federal, bem
como os textos jurídico-positivos infraconstitucionais, são concretizados no seio de toda a
sociedade por meio de decisões estatais, acordos contratuais e instrumentos privados de
composição de conflitos.
A questão da importância do caso concreto na construção da norma abstrata e geral
a ser aplicada, aliás, tem especial relevância na concretização dos enunciados
constitucionais, dado o alto grau de subdeterminação destes e dada a impossibilidade de se
prever, ex ante, pela via das normas abstratas emanadas no exercício da atividade
legislativa, todas as hipóteses fáticas com as quais o aplicador (juiz) deparar-se-á no
processo concretizador.
Essa circunstância não passou despercebida à análise de CLARICE VON
OERTEZEN DE ARAÚJO, em recente estudo sobre hermenêutica e interpretação
constitucionais, realizado à luz da semiótica de corte pierceniano. Confira-se:
78
O problema das Teorias da Decisão, pensamos, está diretamente relacionado ao fato de não haver consenso
suficiente para que se possa delinear, previamente, uma racionalidade a que o julgador deve se submeter.
79
A sociedade aberta dos intérpretes da constituição, passim.
46
A operação de interpretação das leis é sempre realizada em vista da
necessidade posta por um caso concreto. No caso da obediência às normas,
esta atualização pode não restar registrada em toda a sua extensão. A lei pode
selecionar se o registro de sua incidência deve privilegiar a obediência ou a
desobediência, caso em que se registra predominantemente a aplicação das
sanções, como ocorre com a aplicação das leis penais.
Também a interpretação da constituição se põe diante de casos concretos.
(...)
No desempenho de suas competências legislativas, e na persecução de alvos
apontados pelas normas constitucionais programáticas, o legislador
infraconstitucional produz hipóteses de regulação falíveis, cuja eficácia
somente poderá ser revelada com o tempo de uso, obediência e aplicação das
normas positivadas. Em nível de aplicação dessas normas, o contexto social
encontra-se envolvido em todas as complexidades da pós-modernidade, das
tecnologias digitais, da globalização econômica e dos interesses difusos e
coletivos. A riqueza de aspectos do contexto social mantém sempre
incompleta a diagramação geral e abstrata das hipóteses normativas. Além
da baixa saturação semântica das normas programáticas, o aplicador lida
também com a complexidade social do contexto. Assim a dominância da
concreção das normas programáticas assenta-se predominantemente sobre o eixo
paradigmático de organização da linguagem, do pensamento, e, portanto, da
positivação normativa
80
.
O que importa dizer é que os dilemas hermenêuticos subjacentes às questões de se
os valores pagos a título de ICMS ou ISS estão inseridos na base de cálculo do PIS e da
COFINS (se integram o “conceito de faturamento”); se a locação de bens móveis é
operação que está acobertada pelo “conceito de prestação de serviço”; ou se a importação
de bens por pessoas físicas é fato abarcado pelo “conceito de circulação de mercadorias”;
só emergiram a partir do momento em que o intérprete (autêntico ou não) se deparou com o
caso concreto. No mais das vezes, a resolução de tais problemas resulta não na absorção
dos casos pelas hipóteses normativas previamente delineadas, mas em um verdadeiro
alargamento do espectro semântico dos enunciados conotativos localizados nos
antecedentes das normas abstratas e gerais.
A decisiva influência do caso concreto para a construção do conteúdo normativo,
abstrato e geral, não escapou à observação de EROS ROBERTO GRAU. Confira-se:
80
Semiótica na hermenêutica e interpretação constitucional. In: Sistema Tributário e a Crise atual - VI
Congresso Nacional de Estudos Tributários, p. 180/188.
47
Relembre-se: os textos normativos carecem de interpretação não apenas por não
serem unívocos ou evidentes isto é, por serem destituídos de clareza , mas
sim porque devem se aplicados a casos concretos, reais ou fictícios [Müller].
Quando um professor discorre, em sala de aula, sobre a interpretação de um
texto normativo sempre o faz ainda que não se conta disso supondo a sua
aplicação a um caso, real ou fictício.
O fato é que a norma é construída, pelo intérprete, no decorrer do processo
de concretização do direito. O texto, preceito jurídico, é, como diz Friedrich
Müller, matéria que precisa ser “trabalhada”.
Partindo do texto da norma (e dos fatos), alcançamos a norma jurídica, para
então cominharmos até a norma de decisão, aquela que confere solução ao caso.
Somente então se dá a concretização do direito. Concretizá-lo é produzir normas
jurídicas gerais nos quadros de solução de casos determinados [Müller].
(...)
Não será demasiada a insistência neste ponto: interpretação e aplicação não se
realizam autonomamente.
O intérprete discerne o sentido do texto a partir e em virtude de um
determinado caso dado; a interpretação do direito consiste em concretar a
lei em cada caso, isto é, na sua aplicação [Gadamer]. Assim, existe uma
equação entre interpretação e aplicação: não estamos, aqui, diante de dois
momentos distintos, porém frente a uma operação [Marí]. Interpretação e
aplicação consubstanciam um processo unitário [Gadamer], superpondo-se.
Assim, sendo concomitantemente aplicação do direito, a interpretação deve ser
entendida como produção prática do direito, precisamente como a toma
Friedrich Müller: não existe um terreno composto de elementos normativos
(=direito), de um lado, e de elementos reais ou empíricos (=realidade), do outro.
Vou repetir, mais uma vez: a norma é produzida, pelo intérprete, não apenas
a partir de elementos colhidos no texto normativo (mundo do dever-ser),
mas também a partir de elementos do caso ao qual será ela aplicada, isto é,
a partir de dados da realidade (mundo do ser).
(...)
Logo, o que incisivamente deve aqui ser afirmado, a partir da metáfora de
Kelsen, é o fato de a “moldura da normaser, diversamente, moldura do texto,
mas não apenas dele; ela é, concomitantemente, moldura do texto e moldura do
caso. O intérprete interpreta também o caso, necessariamente, além dos
textos, ao empreender a produção prática do direito.
Por isso inexistem soluções previamente estruturadas, como produtos semi-
industrializados em uma linha de montagem, para os problemas jurídicos.
O trabalho jurídico de construção da norma aplicável a cada caso é
trabalho artesanal. Cada solução jurídica, para cada caso, será sempre,
renovadamente, uma nova solução. Por isso mesmo e tal deve ser enfatizado
-, a interpretação do direito realiza-se o como mero exercício de leitura de
textos normativos, para o quê bastaria ao intérprete ser alfabetizado
81
.
81
Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito, ensaios V, X e XI (g.n.).
48
A dimensão significativa das proposições conotativas postas nos antecedentes das
normas abstratas e gerais é delimitada a partir da conjugação de vários enunciados
normativos fáticos. Estes últimos, por sua vez, só ingressam no sistema por meio do
processo de aplicação (jurisdicional ou não), de maneira que não podem ser antecipados,
dada a complexidade que impera nos sistemas sociais modernos.
Fazendo nossas as palavras de JOÃO MAURÍCIO ADEODATO, parece hoje mais
do que óbvio, mesmo intuitivamente para o jurista prático, não apenas que os tribunais
criam normas gerais por intermédio da jurisprudência e que qualquer juiz cria direito no
caso concreto, como quer a doutrina, positivista porém antiexegética, mais tradicional,
mas também que o juiz singular cria normas gerais diante de casos singulares.
82
Note-se que a importância do caso concreto na construção dos conteúdos
normativos abstratos e gerais não é algo que seja próprio aos processos jurisdicionais, mas
também a outros processos de interpretação concreta do direito. Os processos de consulta
em matéria tributária, por exemplo, perfazem instrumentos importantíssimos de construção
de conteúdos normativos abstratos e gerais, perpetrados a pretexto de dar a solução
normativa adequada a casos concretos levados, preventivamente, à apreciação dos órgãos
consultivos fazendários.
Além disso, o que dizer a respeito do trabalho realizado por jurista especializado em
parecer encomendado a guisa de dar a adequada solução normativa para um determinado
caso concreto? Trata-se da mesma interpretação concretizadora a que temos nos referido
nos parágrafos acima, só que agora realizada com animus descritivo (opinativo).
Assim, as decisões normativas concretizadoras não são tomadas por meio de uma
racionalidade subsuntiva (dedutiva), que pressuponha a existência prévia de uma premissa
maior (norma abstrata e geral) a qual seja subsumida uma suposta premissa menor
(enunciado fático). A identificação e a construção conceptual das premissas fáticas e
normativas que dão sustentáculo às decisões concretizadoras decorrem de juízos indutivos,
82
Ob. cit., p. 255.
49
abdutivos
83
e ponderativos, realizadas no contexto de um processo empírico dialético
fato/texto, texto/fato.
Neste momento, parece-nos oportuna uma reflexão. As propostas teóricas que dão
maior relevo à interpretação concretizante geralmente partem da premissa segundo a qual a
ideia de que os juízes constroem suas decisões por meio de um raciocínio dedutivo, isto é,
por intermédio de uma “racionalidade subsuntiva”, em que a premissa maior seria a norma
abstrata e geral, e a premissa menor o fato denotativo que subsome aos critérios da hipótese
normativa (incidência), seria ingênua, visto que a decisão normativa, em verdade, é tomada
em algum momento do processo, sob influência de critérios subjetivos por vezes
inconfessáveis, que ao final são justificados por meio de estratégias retóricas responsáveis
pela adequação da decisão aos enunciados jurídico-positivos postos pelo sistema.
Essa constatação, a seu turno, poderia dar azo a uma eventual objeção quanto à (in)
compatibilidade de uma teoria hermenêutico-concretizante no âmbito de um contexto
teórico (como é o constructivista) que defende a homogeneidade sintática das proposições
normativas em sentido estrito, e que se desenvolveu em um contexto dogmático, o Direito
Tributário, para o qual os conceitos de incidência e a subsunção são muito caros, dado o
regime de estrita legalidade que a ele é inerente.
A objeção, no entanto, não nos parece fundada, pois muito embora o raciocínio
dedutivo seja insuficiente para explicar o processo decisório, ele (ainda) é um importante
instrumento de controle, a posteriori, da decisão objetivada. Por outras palavras, apesar de
o processo psicossubjetivo de construção da decisão concretizadora não ser realizado
dedutivamente, a objetivação de seu resultado a decisão plasmada em linguagem
concretizante (lançamento, sentença etc.) o é, especialmente aquelas produzidas em
subdomínios do direito regidos pelo regime de estrita legalidade (Direito Penal, Direito
Tributário), de maneira que a racionalidade subsuntiva integra o consenso dogmático que
possibilita o controle interno de legalidade da decisão.
83
O raciocínio abdutivo diz com as inferências envolvidas na formulão de uma hitese explanatória. É a
única operação lógica que introduz qualquer idéia nova. Trata-se de uma racionalidade típica da atividade
legislativa, mas que, ante a impossibilidade de se antecipar todas as facticidades possíveis, também é cada
vez mais manejada pelo aplicador jurisdicional. Para uma melhor compreensão do conceito de abdução,
vide Semiótica, de Charles Sanders Pierce.
50
Nesses termos, não nos parece que haja incompatibilidade alguma entre uma
hermenêutica concretizadora e um modelo teórico-normativo que tenha como um de seus
pressupostos o raciocínio subsuntivo, desde que se reconheça que a subsunção perfaz uma
das várias etapas talvez a última do processo decisório, sendo antecedida por outras
formas de inferência (indutivas, abdutivas e ponderativas) que integram a chamada
racionalidade decisória dos processos de concretização do direito, especialmente os
jurisdicionais.
Os modos por meios dos quais a interpretação concretizadora se efetiva, bem como
as questões concernentes à racionalidade decisória e à dinâmica de aplicação do direito, a
ela subjacentes, são problemas que merecem ser explorados de forma muito mais
aprofundada do que aquela a que nos propomos neste momento.
Dado o escopo deste trabalho, nossas considerações têm por finalidade última
demonstrar que, por não ser um mero instrumento de aplicação automática de conteúdos
normativos previamente dados, mas um meio de criação destes, as técnicas procedimentais
inerentes ao processo jurisdicional não podem ficar à mercê da conveniência do julgador,
sob risco de perda do mínimo controle sobre o uso do poder institucionalizado.
O caso concreto ingressa no processo na condição de enunciado afirmativo de um
evento/fato social. Para que se confirme, no entanto, precisa ser provado, isto é,
corroborado por enunciados probatórios que, a seu turno, são produzidos mediante a
observância das regras procedimentais
84
. Qualquer alteração ou desconsideração das
indigitadas regras tem potencial para alterar o conteúdo fático-probatório e, com isso, o
próprio direito material (norma de decisão) a ser produzido.
Noutro falar, se a capacidade criativa do julgador é algo inerente à sua função
normativa, e se parte do material jurídico que é manejado na construção da norma de
decisão é produzido por e pelo processo (os fatos jurídicos conflituosos e os enunciados
probatórios), a fragilização dos instrumentos responsáveis pela construção e seleção destes
dados empíricos (enunciados fáticos e probatórios) poderá implicar uma indesejável
situação de desmando e arbitrariedade.
84
Eis a sintaxe interna do procedimento probatório a que se refere Fabiana Del Padre Tomé. A prova no
direito tributário, p. 182.
51
O processo, nesse sentido, é um dos poucos instrumentos normativos geradores do
mínimo de consenso necessário ao controle do arbítrio decisório. Daí a necessidade de
preservação da noção de devido processo legal, não obstante a urgência de um processo
jurisdicional efetivo.
que se desenvolver, portanto, um modelo teórico-processual capaz de, a um
tempo, preservar as conquistas inerentes à ideia de devido processo legal e, também,
viabilizar a consecução da tão almejada efetividade da tutela jurisdicional. E é por meio da
tomada de consciência a respeito da natureza normativo-instrumental do processo
jurisdicional que será possível, cremos, atingir este objetivo.
52
CAPÍTULO II
TEORIA GERAL DO DIREITO PROCESSUAL TRIBUTÁRIO
2.1. DIREITO MATERIAL E DIREITO PROCESSUAL: O SISTEMA PRIMÁRIO E O
SISTEMA SECUNDÁRIO
Tem-se por premissa, desde antes tomada por verdadeira, que o direito é um sistema
normativo (premissa lógica) voltado à regulação das condutas intersubjetivas, que se
apresenta, eminentemente, sob a forma de textos (premissa ontológica) emanados de atos
de vontade prescritivos (premissa ôntica), cuja apreensão cognoscitiva imprescinde de
atividade interpretativa (premissa epistemológica).
Afirmar que o direito é um sistema normativo, no entanto, é falar do fenômeno
jurídico sob uma perspectiva global, que o apresenta como o somatório de uma série de
elementos que mantêm entre si relações mútuas (de coordenação e subordinação), relações
estas que são estabelecidas em razão do fato de que cada um dos referidos elementos terem
um fundamento comum. É possível, no entanto, percorrermos o caminho contrário,
analisando o fenômeno jurídico a partir de suas unidades mínimas.
Os elementos que compõem os sistemas jurídico-normativos são, justamente, as
normas jurídicas, isto é, as mensagens prescritivas minimais construídas, em atividade
interpretativa, a partir dos textos jurídico-positivos
85
.
85
Essas mensagens, por sua vez, se estruturam sintaticamente de maneira uniforme, sob a forma de um juízo
hipotético-condicional composto por dois termos: (i) o antecedente, denominado hipótese, descritivo de
situações fático-sociais, que está ligado, por liame implicacional, a (ii) um termo consequente, que se presta à
qualificação deôntica (O, V, F) de uma dada conduta
85
, por meio da qual é estabelecido um vinculo entre dois
sujeitos de direito (relação jurídica), de maneira que, se ocorrido o fato descrito no antecedente, deve ser o
nascimento da relação jurídica posta no consequente.
As normas jurídicas em sentido estrito diferenciam-se, no plano semântico, a partir da natureza conotativa ou
denotativa de seus termos (antecedente/consequente). Assim, sob a perspectiva do antecedente, as normas
jurídicas são abstratas ou concretas; sob a óptica do consequente, são gerais ou individuais.
Será abstrata a norma cujo antecedente for composto por uma proposição conotativa, delimitadora de notas
definidoras de eventos sociais de possível verificação empírica. Por outro lado, teremos norma concreta
quando o antecedente se apresentar sob a forma de uma proposição denotativa, que descreva um fato/evento
que tenha efetivamente ocorrido no mundo fenomênico.
53
O “ser norma jurídica”, no entanto, depende da verificação da necessária relação de
pertenência
86
(validade em sentido descritivo) da mensagem normativa a um determinado
sistema jurídico. Nessa medida, uma norma será jurídica se, e somente se, pertencer a um
determinado sistema jurídico-normativo. Para tanto, basta que tenha sido produzida por
autoridade juridicamente credenciada (competente).
Com efeito, os sistemas jurídicos convivem com diversos outros sistemas
normativos paralelos (religião, moral etc.), os quais são compostos, como não poderia
deixar de ser, por mensagens normativas similares àquelas que integram os ordenamentos
jurídicos. Se assim é, cabe, neste momento, fazermos a seguinte indagação: o que torna
possível atribuir o qualificativo de “jurídico” a um dado sistema normativo?
A resposta a essa pergunta está diretamente ligada a uma espécie normativa
exclusiva dos sistemas jurídicos, qual seja: a sanção, assim definida como uma proposição
normativa que estabelece que se verificado o não cumprimento de uma dada norma jurídica
(violação), deve ser a obrigação do Estado (juiz) de expropriar o patrimônio, restringir a
vida ou a liberdade do sujeito infrator.
Para que um sistema normativo possa ser qualificado como jurídico, portanto,
haverá de conter pelo menos uma norma que fixe a obrigação de o Estado sancionar aquele
que, eventualmente, não observar os preceitos jurídico-normativos. Não há, nas civilizações
modernas, outra espécie de sistema normativo que esteja autorizado (legitimado) a veicular
A verificação da generalidade ou individualidade de uma determinada norma jurídica, por outro lado, é feita
por meio da análise do termo consequente. Assim, se a proposição posta no consequente normativo qualificar
deonticamente uma conduta “tipo”, vinculando sujeitos de direito “tipo” (indetermináveis), teremos norma
geral. Se nesta proposição, porém, constar a qualificação deôntica de uma conduta concreta (individualizada)
a ser realizada por sujeitos de direito determinados ou determináveis, teremos norma individual.
Sob o ponto de vista sintático podemos falar, portanto, na existência de duas, e somente duas, espécies de
normas: as abstratas e gerais e as concretas e individuais, sendo certo que a segunda decorrerá,
necessariamente, de ato de aplicação da primeira.
Ocorrido o fato descrito na hipótese conotativa da norma abstrata e geral, dar-se-á, por ato de aplicação, o
nascimento do fato (antecedente) e da relação (consequente) jurídicos representativos da norma concreta e
individual. Concretiza-se o antecedente e individualiza-se o consequente, vertendo, via ato de aplicação,
norma abstrata e geral em norma concreta e individual. É neste momento que o direito positivo atinge,
efetivamente, a conduta que pretende regular.
86
Por não existir no vernáculo termo que indique, especificamente, a relação depertencer a, usamos o
vocábulo em língua espanhola.
54
norma desse jaez, sendo esta, aliás, a razão pela qual KELSEN define o direito como ordem
coativa da conduta humana
87
.
Isso não quer significar, no entanto, que todas as condutas reguladas por meio de
normas jurídicas são sancionáveis, isto é, a sanção não perfaz critério definidor do
conceito de norma jurídica, mas da noção de sistema jurídico. Com efeito, existem muitas
normas jurídicas para cuja violação não há previsão de imposição de sanções.
A referência à sanção como característica definidora de norma jurídica, vale
esclarecer, decorre de uma equivocada opção metodológica por se definir o conceito de
direito a partir da noção de norma jurídica (unidade), e não a partir da ideia de sistema
jurídico (todo). Ao se definir o conceito de direito a partir do conceito de norma jurídica, a
sanção acaba por ser incluída como elemento integrante da noção de norma jurídica.
Impossível falar, por este expediente, em norma jurídica sem sanção.
Se o procedimento é o inverso, isto é, se definimos primeiro o conceito de sistema
jurídico, caracterizando-o como um sistema normativo qualificado pela ideia de sanção,
não é necessário que uma dada norma, para ser jurídica, esteja acompanhada pela correlata
sanção; basta que pertença a um sistema jurídico que contenha pelo menos uma norma
sancionadora
88
.
Não obstante sua natureza controversa, o conceito de sanção é útil às nossas
investigações em razão de ser ela (sanção) uma espécie normativa especialmente dirigida
ao Estado-juiz, de maneira que a atividade jurisdicional, em certa medida, está
umbilicalmente relacionada à ideia de atividade sancionadora.
Não se pode afirmar, no entanto, que todas as normas jurídicas primárias possuam
suas correspondentes sancionadoras, as secundárias, e muito menos que todos os atos
praticados pelo Estado-juiz no exercício de suas funções precípuas tenham a natureza de
atos sancionatórios. Quando o juiz anula um ato constitutivo do crédito tributário, por
87
Outra característica comum às ordens sociais a que chamamos Direito é que elas são ordens coactivas, no
sentido de que reagem contra as situações consideradas indesejáveis, por serem socialmente perniciosas
particularmente contra condutas humanas indesejáveis com um ato de coacção, isto é com um mal como a
privação da vida, da saúde, da liberdade, de bens econômicos e outros , um mal que é aplicado ao
destinatário mesmo contra a sua vontade, se necessário empregando até a força física coactivamente,
portanto.” Teoria pura do direito, p. 60
88
Jorge L. Rodríguez. Lógica de los sistemas jurídicos, p. 25.
55
exemplo, não está a aplicar qualquer sanção, pelo menos não como definida por KELSEN.
Não há, neste caso, qualquer ato de expropriação forçada do patrimônio ou restrição da vida
e da liberdade do réu.
Não há dúvidas de que a anulação/nulidade implica efetivo prejuízo (inclusive
financeiro) ao titular de eventual vantagem constante do ato anulado ou nulo Isso, porém,
não nos autoriza a qualificar o ato de anulação/nulidade como uma espécie do gênero
sanção, pois a ação de “anular” também é de possível verificação empírica em outros
sistemas normativos, como o religioso (anulação de casamento, por exemplo). Admitir a
nulidade/anulação como notas definidoras do conceito de sanção, portanto, faria ruir o
critério de diferenciação dos sistemas jurídicos
89
.
Agora, de ser repisado o sentido em que usamos o termo “sanção”. Quando
falamos em norma sancionatória queremos referir aquela que obriga o juiz a restringir a
liberdade, a vida ou o patrimônio do sujeito infrator. Falamos de sanção, portanto, como
sinônimo de coação (vocábulos que, em KELSEN, são sinônimos), e não como mera
imposição de obrigações decorrentes de atos de violação a preceitos jurídicos, sentido em
que o termo é usado comumente. É essa “sanção coativa” que, em verdade, integra a
definição de sistema jurídico.
Sabedor da ambiguidade do termo, LOURIVAL VILANOVA se apressa em
elucidar a diferença entre sanção em sentido amplo e coação (sanção em sentido estrito):
Por isso, quando se diz que o direito é um conjunto de normas sancionadas,
coercitivas, coativas, necessário é, em análise no interior dos níveis das normas,
sublinhar onde a sanção é efeito da antijuridicidade material, onde é
conseqüência processual. É, ainda, conceptuado com rigor, como se
distinguem sanção e coação, esta como execução coercitiva, através do
órgão do Estado, de sanções preceituadas nas sentenças condenatórias.
(...)
O uso não-unvívoco dos termos “sanção” e “coação” é comum. Mesmo num
Kelsen, com sua habitual precisão, e em linguagem da Teoria Geral do Direito,
essa indistinção se faz notar.
90
89
Sobre as diferenças entre “nulidade” e “sanção”, vide Herbert Hart. O conceito de direito, passim; e Jorge
L. Rodrigues. Ob. cit., p. 22/39. Em sentido contrário, vide Tácio Lacerda Gama. Competência tributária,
fundamentos para uma teoria da nulidade, p. 340.
90
Causalidade e relação no direito, p. 199, g.n.
56
Certo é, portanto, que as atividades exercidas pelos órgãos jurisdicionais vão além
da aplicação de sanções/coações. A tais órgãos é atribuída a função precípua de garantir a
efetividade do sistema jurídico como um todo, declarando direitos, anulando atos jurídicos
e, até, controlando, em abstrato, a constitucionalidade das normas.
A Teoria Geral do Direito de inspiração normativo-positivista costuma fazer
referências às funções exercidas pelos órgãos jurisdicionais por meio da representação
bimembre da chamada “norma jurídica completa”. Trata-se de uma visão redutora das
complexidades dos sistemas jurídicos, os quais seriam caracterizados por veicular uma
proposição normativa bimembre, composta por um preceito normativo primário, regulador
das condutas intersubjetivas dos diversos sujeitos de direito (de direito material), e outro
secundário, que estabelece a obrigação da autoridade judicial de sancionar o sujeito de
direito que venha a violar o preceito primário.
Sobre a noção de norma jurídica completa, ensina LOURIVAL VILANOVA:
Em reescritura reduzida, como vimos, a norma jurídica total tem composição
dúplice: norma primária e norma secundária. Na primeira, efetivada a hipótese
fáctica, i. e., dado um fato sobre o qual ela incide, sobrevém a relação jurídica,
com os necessários termos-sujeitos, com pretensões e deveres reciprocamente
implicados. Na segunda, a hipótese fática de incidência é o não-cumprimento do
dever do termo-sujeito passivo. Ocorrendo o não cumprimento, dá-se o fato cujo
efeito (por isso não-cumprimento é fato jurídico) é outra relação, na qual o
sujeito ativo fica habilitado a exigir coativamente a prestação, objeto do dever
jurídico.
91
Não obstante a proposta redutora representada pela estrutura bimembre da norma
jurídica completa perfaça instrumento útil à investigação da atividade jurisdicional, por
estarmos, desde o início, trabalhando com o conceito global do fenômeno jurídico,
abriremos mão do modelo normativo bimembre norma primária e norma secundária
para manipularmos o fenômeno normativo jurisdicional a partir das noções de sistema
primário (sistema do súdito) e sistema secundário (sistema do juiz), este último destinado a
91
Ob. cit., p. 192.
57
regular a conduta do Estado-juiz no que tange ao exercício de todas as atividades inerentes
à função jurisdicional, incluindo a sancionadora.
Esse expediente metodológico, em nosso sentir, possui um potencial explicativo
mais adequado do que aquele representado pela versão reduzida (norma primária/norma
secundária), possibilitando uma análise mais ampla e completa da atividade jurisdicional e
de suas relações com os preceitos de direito material.
Com efeito, é a centralização da função jurisdicional nas mãos de funcionários
especializados que lugar à existência de dois sistemas normativos paralelos e
interdependentes: (i) o sistema das normas que regulam as condutas dos sujeitos de direito
em geral; e (ii) o sistema das normas que regulam as condutas dos juízes e dos demais
órgãos jurisdicionais. Sistema primário ou de direito material ali, sistema secundário ou de
direito processual aqui
92
.
O sistema secundário é constituído, basicamente, por duas espécies de enunciados
prescritivos: (a) os que estabelecem as condições em que os juízes podem julgar e quais as
questões que podem apreciar (competência), mediante a observância de determinadas
formalidades (procedimento); e (b) aqueles por meio dos quais são construídas as normas
que estabelecem determinadas obrigações e proibições aos juízes
93
.
O primeiro grupo é composto pelos enunciados que investem os juízes da própria
função jurisdicional, isto é, atribuem-lhes a aptidão para julgar. São enunciados
constitutivos da autoridade judicial, visto que ninguém é juiz sem que haja um enunciado
que assim o constitua. São estes enunciados os responsáveis por habilitar, juridicamente, os
juízes a emitir mensagens por meio do uso da linguagem em função prescritiva
94
.
Além dos enunciados instituidores da autoridade judicial, o sistema secundário
prevê uma série de normas que prescrevem obrigações e proibições aos juízes, normas estas
que têm por finalidade precípua regular o comportamento dos juízes no exercício de suas
atividades jurisdicionais. Dentre estas, duas devem ser destacadas, pois comuns a todos os
92
Carlos Alchourrón, e Eugênio Bulygin. Ob. cit., p. 205.
93
Idem, ibidem, p. 208.
94
Idem, ibidem.
58
sistemas jurídicos modernos: (i) a obrigação de julgar; e (ii) a obrigação de fundamentar a
decisão em normas do próprio sistema jurídico
95
.
A obrigação de julgar impõe aos juízes o dever inafastável de apreciar e solucionar
toda e qualquer questão que lhes for submetida. Trata-se de uma obrigação genérica, no
contexto da qual estão incluídas todas as exigências relativas à prática dos atos processuais
inseridos no iter processual jurisdicional
96
.
A obrigação de fundamentar a decisão em normas do próprio sistema primário diz
respeito à exigência de que toda decisão jurisdicional indique expressamente os preceitos
jurídico-positivos a partir dos quais o ato decisório foi inferido. Esta obrigação é muito
importante, pois constitui o elo que vincula os sistemas primário e secundário, a porta de
entrada dos conteúdos pertencentes ao sistema primário no sistema secundário.
Por outro lado, se a obrigação de fundamentar induz a exigência de inferir a decisão
a partir dos enunciados que compõe o sistema primário, forçoso concluir que as normas do
sistema secundário se referem, direta ou indiretamente, às normas do sistema primário, o
que justifica, aliás, que o sistema do juiz seja chamado de secundário, visto que pressupõe a
existência do primeiro. Daí por que o direito processual é instrumentalmente conexo ao
direito material
97
, ou seja, é um sistema de segunda ordem
98
.
Note-se, portanto, que a relação de conexidade instrumental existente entre os
sistemas primário e secundário decorre da própria estruturação lógico-normativa dos
sistemas jurídico-positivos. A atribuição do qualificativo jurídico” ao sistema normativo,
aliás, depende da identificação desta relação que é intrínseca, visto que a norma
sancionadora (em sentido amplo ou estrito) é aplicada, necessariamente, pela autoridade
jurisdicional.
95
Idem, ibidem, p. 210.
96
O que inclui, no âmbito dos Estados constitucionais de índole democrática, o dever de obedecer aos
esquemas básico-dialéticos de contraditório e da ampla defesa preestabelecidos pela legislação processual.
97
Eis a relação de conexidade instrumental a que se refere Lourival Vilanova. Ob. Cit., p. 194.
98
A relação entre direito material e direito processual configura, em nosso sentir, aquilo que Clarice von
Ortzen de Araújo chama de relação linguagem-objeto/mentalinguagem na forma intrassistêmica (Semiótica
do direito, p. 22). Aqui, no entanto, a relação linguagem-objeto/metalinguagem se no plano de uma
relação de coordenação, e não de subordinação (como ocorre no caso das relações hierárquicas dos preceitos
normativos).
59
Um sistema normativo exclusivamente primário estaria fadado à ineficácia, pois não
haveria nada que pudesse colocar óbices ao descumprimento de suas normas. Por isso, a
eficácia dos preceitos primários está umbilicalmente relacionada à existência do sistema
secundário. Há, portanto, não uma relação de interdependência sintático-normativa entre
os dois sistemas (primário e secundário), mas uma verdadeira relação pragmática, pois não
há de se falar em fenômeno jurídico sem que se pense na necessária relação entre as normas
de direito material e processual.
É que o que também constata LOURIVAL VILANOVA, ao afirmar que
“norma primária e norma secundária (oriunda de norma de direito processual objetivo)
compõem a bimembridade da norma jurídica: a primária sem a secundária desjuridisciza-
se; a secundária sem a primária reduz-se a instrumento, meio, sem fim material, a adjetivo
sem o suporte do substantivo”
99
.
À medida que avançamos na análise dos sistemas jurídicos individualmente
considerados, essa relação entre direito e processo, que é inerente ao fenômeno jurídico em
geral, vai se tornando mais perceptível. Percebe-se, de plano, que para além dos vínculos
lógico-sintáticos, existem diversas relações de ordem semântica, pragmática e axiológica
que atrelam as normas de direito material e processual.
Alguns dos mais importantes institutos processuais previstos no regime geral de
direito processual (Código de Processo Civil) são definidos a partir de conteúdos
normativos buscados no direito material (abstrato e concreto), senão vejamos: a
legitimidade para agir, tal qual definida no art. 6º do Código de Processo Civil, é a
atribuída, ordinariamente, ao titular do direito material violado; o conceito de causa de
pedir (art. 301, § 1º, do Código de Processo Civil), a seu turno, é construído a partir da
noção de relação jurídica de direito material conflituosa; a noção de possibilidade jurídica
do pedido, por sua vez, refere-se à relação de compatibilidade da pretensão deduzida com
as prescrições do direito material positivo.
Por conta disso, uma relativa dependência conceptual do direito processual para
com o direito material, de modo que para que saibamos se um contribuinte tem
legitimidade para propor ação de repetição do indébito tributário decorrente do pagamento
99
Ob. cit., p. 190.
60
indevido de ICMS, por exemplo, é necessário que tenhamos conhecimento prévio do
conteúdo normativo veiculado pelo art. 166 do Código Tributário Nacional.
Outros institutos jurídicos, como a prova, possuem natureza híbrida, pois se por um
lado têm seus conteúdos delimitados por normas de direito material, de outro, sua produção
é disciplinada por regras processuais. Nessa medida, a prova, tão importante para a
delimitação do espectro fático a partir do qual a decisão jurisdicional será construída,
também consubstancia um elo entre os sistemas de direito material e processual. Essa
circunstância, aliás, não escapou à análise de FABIANA DEL PADRE TOMÉ:
É certo, porém, que as provas não operam somente no processo; não constituem
exclusivamente uma instituição processual. (...)
(...) O mesmo se pode dizer da teoria das provas: apresenta um aspecto material,
voltado à constituição do fato jurídico tributário que subsume a hipótese
normativa, e outro de direito processual, disciplinando a forma pela qual tal fato
há de ser constituído nos autos.
(...)
As provas não apresentam unicamente a função de instrumentalizar o
conhecimento do julgador. Têm, também, o objetivo de dar sustento aos fatos
descritos no antecedente de normas individuais e concretas que irradiam seus
efeitos independentemente de serem levadas à apreciação do Poder Judiciário ou
de outro órgão julgador. Por essa razão, a prova também pertence ao direito
material
100
.
É sob o aspecto pragmático, no entanto, que as relações entre direito processual e
direito material são mais perceptíveis, pois dizem diretamente com os efeitos práticos da
prestação jurisdicional na efetivação do direito material violado. Não por outro motivo, as
várias técnicas de regulação das condutas intersubjetivas de que lança mão o legislador do
sistema primário possuem suas equivalentes formas de efetivação no plano do sistema
secundário, de maneira que para cada espécie de direito subjetivo corresponde uma forma
específica de tutela jurisdicional.
A aferição do interesse processual, por exemplo, está condicionada à verificação da
necessidade da interferência jurisdicional para compor a relação conflituosa, e da utilidade
da tutela jurisdicional pretendida na efetivação do direito alegado; a concessão de tutela
antecipatória, da mesma forma, depende da aferição de perigo de dano irreparável ao
direito material do autor, bem como da reversibilidade dos efeitos por ela produzidos.
100
Ob. cit., p. 204/205.
61
Além disso, a hierarquia entre os diferentes bens e valores protegidos pelo direito
material bem como as características peculiares a cada um, sempre que possível, são
expressa ou implicitamente consideradas pelas regras do sistema jurídico processual, o que
indica que a instrumentalidade das normas processuais também ocorre no plano axiológico.
Isso é claramente perceptível nas diferenças existentes entre os valores objetivados por
meio dos princípios jurídico-processuais que sustentam a clássica separação entre direito
processual penal e direito processual civil (“verdade formal” x “verdade material”, por
exemplo).
Essa relação axiológico-instrumental, por sua vez, também é identificável no âmbito
da jurisdição residual, que é aquela exercida pelos chamados “foros cíveis”, onde é possível
verificar a existência de regimes jurídico-processuais especializados, como é o caso das
regras processuais veiculadas pelo Código de Defesa do Consumidor, aplicáveis somente às
lides consumeristas.
É bem verdade que, historicamente, a evolução normativa ocorrida no plano
jurídico-material, principalmente quanto à diferenciação (direito administrativo, direito
financeiro, direito tributário, direito civil, direito do consumidor, direito do trabalho etc.),
não é simetricamente acompanhada por uma equivalente evolução normativa do sistema
jurídico processual. A diferenciação normativa processual, por esse motivo, acaba por ser
percebida tão somente no plano da aplicação das técnicas processuais de efetivação do
direito a cada um dos subsistemas de direito material.
Essa constatação tem relevâncias práticas consideráveis, visto que, não obstante seja
comum que dois ou mais subsistemas de direito material estejam adstritos a um mesmo
regime jurídico processual, a operacionalização prática do processo no âmbito de cada uma
das subáreas ocorre de forma diferente. É exatamente o caso, conforme veremos a seguir,
das lides tributárias.
62
2.2. O SISTEMA PROCESSUAL TRIBUTÁRIO E O DIREITO PROCESSUAL
TRIBUTÁRIO
101
A separação entre os sistemas jurídicos primário (material) e secundário
(processual), conforme anotamos, funda-se em critérios normativo-conceptuais e
funcionais. O sistema primário tem por objeto a regulação das condutas dos sujeitos de
direito no âmbito de suas relações intersubjetivas, com vistas a implantar os valores eleitos
pelo próprio sistema primário. O sistema secundário, doutro lado, regula a conduta do
Estado-juiz na produção de atos normativo-efetivadores destinados a garantir a eficácia
(social) do sistema jurídico primário.
O direito processual, portanto, disciplina a dinâmica de concretização do direito,
precipuamente nas situações de patologia normativa, isto é, nos casos de “lesão ou ameaça
de lesão a direitos subjetivos”, estabelecendo a forma, as condições e os limites ao
exercício daquelas que são as características normativas comuns a todos os sistemas
jurídicos contemporâneos: a obrigação de julgar e a obrigação de fundamentar a decisão em
normas do próprio sistema jurídico.
Eis, portanto, as duas funções fundamentais do direito processual: o controle do
arbítrio decisório e a eficácia dos sistemas jurídicos, funções estas que restam
expressamente positivadas por meio de dois princípios constitucionais do direito
processual: o do devido processo legal e o da efetividade da jurisdição.
Essa circunstância, por si só, é suficiente para atribuir ao Direito Processual o
status de “espectro dogmático didaticamente autônomo do Direito”, o que em tempos atuais
nem sequer é discutido, pois de fato é assim que os institutos processuais são apresentados
e ensinados na imensa maioria dos Cursos Jurídicos no Brasil.
Conquanto seja inegável que o Direito Processual tem seu lugar entre as disciplinas
didaticamente autônomas do Direito, fato é que as regras e princípios processuais
disciplinam a forma por meio da qual as regras e princípios de direito material são
concretizados, como uma gramática que regula as maneiras pelas quais uma determinada
101
Neste trabalho, grafaremos o vocábuloDireito com letra maiúscula toda vez que nos referirmos à
Dogmática do Direito ou Ciência do Direito em sentido estrito, e “direito”, com inicial minúscula, toda vez
que nos referirmos ao sistema jurídico positivo.
63
língua deve ser falada e escrita, de sorte que, tal quais as regras de uso do idioma, que se
ajustam a determinadas situações comunicacionais específicas, o direito processual tende a
se amoldar às circunstâncias peculiares ao direito material a ser concretizado, o que
significa dizer, por outras palavras, que o direito processual se caracteriza por ser um
sistema normativo altamente instrumental.
Por vezes, essa “adequação” do direito processual ao direito material é feita
expressamente, por meio de regras procedimentais especialmente positivadas com vistas à
instrumentalização de demandas relativas a setores específicos do direito material.
Essa especialização legislativo-processual, que tem em mira setores específicos do
sistema primário (direito material), por sua vez, mostra-se um tanto quanto acentuada em
relação aos subsistemas jurídicos de direito público, repercutindo de forma decisiva sobre o
processamento das lides tributárias.
A Lei 6.830/80 Lei das execuções fiscais –, que disciplina o procedimento de
realização forçada dos créditos da Fazenda Pública; a Lei 8.397/92, que regula a
chamada Medida Cautelar Fiscal; o próprio mandado de segurança, cuja especificidade é de
índole constitucional; o procedimento específico de execução contra a Fazenda Pública (art.
730, do CPC); os prazos diferençados para contestar e recorrer, previstos no art. 188 do
Código de Processo Civil e o reexame necessário das sentenças proferidas contra a Fazenda
Pública são alguns exemplos que revelam essa preocupação do sistema jurídico-processual
em atribuir tratamento especializado aos litígios em que o Estado ocupa um dos polos da
relação jurídica de direito material conflituosa.
Em se tratando de demandas em que a Fazenda Pública figura como parte, portanto,
que é exatamente o caso dos litígios tributários, essa especialização normativa se verifica de
forma muito acentuada, dada a existência de vários regimes jurídicos especialmente
destinados à resolução das lides de direito público.
A diferenciação normativo-processual verificada em relação às lides de direito
público, portanto, deita raízes em juízos valorativos diretamente ligados à noção de
supremacia do interesse público. Por outro lado, certo é, também, que por trás dessas
motivações axiológicas estão encobertas algumas tensões e problemas que são estranhos às
lides de direito privado.
64
Conforme anota CARLOS ARI SUNDFELD
102
, a primeira grande tensão específica
às lides de direito público é aquela diz respeito à relação que se instaura entre Poder
Executivo e Poder Judiciário, e que diz respeito, especificamente, aos limites do controle
judicial dos atos administrativos à luz das ideias de separação e convívio harmonioso entre
os Poderes estatais.
A ingerência judicial nas atividades administrativa e legislativa, principalmente
após a universalização da jurisdição judicial imposta pela Constituição Federal de 1988,
tem sido deveras discutida, de forma que muitos dos atos próprios às competências dos
demais Poderes da República acabam por ter sua eficácia condicionada à ulterior chancela
do Poder Judiciário.
As cogitações a respeito de uma suposta “judicialização da política”, e,
consequentemente, de uma gradual “politização do Judiciário”, expõem, com precisão, a
tensão havida entre política e direito, que decorre do sensível aumento da interferência do
Poder Judiciário em questões atinentes às competências dos demais Poderes da República.
Assim, malgrado o direito público atribua à Administração certas prerrogativas
(como a autoexecutoriedade dos atos administrativos), esta nem sempre está livre para fazer
o quiser. Vejamos o caso da cobrança do crédito tributário: a Fazenda Pública,
diferentemente do particular, goza da prerrogativa de constituir o próprio título executivo
(Certidão de Dívida Ativa). Apesar disso, não está autorizada a invadir o patrimônio do
devedor sem que haja a intermediação do Poder Judiciário
103
.
Diante disso, parece evidente que o processo judicial não é o mesmo
independentemente da qualidade dos sujeitos que dele fazem parte e, principalmente, do
direito material controvertido que lhe serve de objeto, mesmo quando as normas
processuais aplicáveis ao caso sejam aquelas veiculadas no regime geral de direito
processual.
Essa constatação acaba por tornar premente o estudo e a sistematização das normas
processuais à luz dos interesses e princípios específicos dos sistemas jurídico-substanciais
isoladamente considerados. A não percepção desta indissociabilidade, entre direito material
102
“Introdução ao direito processual público, o direito processual e o direito administrativo”, p. 25. In: (Coord.
Carlos Ari Sundfeld e Cássio Scarpinella Bueno) Direito processual público, a Fazenda Pública em juízo.
103
As pressões para aprovação do projeto de Lei que prevê a instituição da chamada Execução Fiscal
Administrativa estão umbilicalmente relacionadas ao desconforto que a interferência judicial no processo de
cobrança dos créditos públicos traz ao Poder Executivo.
65
e direito processual, assevera CARLOS ARI SUNDFELD
104
, acaba por criar sérios
paradoxos na vida forense.
Aliás, conforme anotamos anteriormente, a classificação do direito processual a
partir do direito material controvertido não é propriamente uma novidade, pois a clássica
separação entre direito processual em penal e civil desde sempre restou fundada nestes
parâmetros. Tal divisão, no entanto, de muito não é satisfatória, pois a especialização
que os sistemas jurídicos vêm experimentando desde o início do século passado – e que não
foi totalmente acompanhada pela legislação processual acaba por gerar a falsa impressão
de que tudo que não couber no escaninho do direito processual penal estará,
necessariamente, acobertado pelo sistema processual civil.
Em verdade, a ideia por detrás desta subdivisão é a da existência de um processo
penal de um lado, e de um processo não penal de outro, de maneira que o último
abrangeria, em caráter residual, tudo o que não couber no âmbito de incidência do primeiro.
Tal divisão, em tempos atuais, peca pela ingenuidade
105
, pois equipara litígios das mais
variadas naturezas, cujas particularidades influenciam de forma decisiva a aplicação e os
efeitos dos institutos processuais.
Assim, paralelamente ao chamado Direito Processual Civil em sentido estrito é
possível cogitar, a partir da interpretação conjunta dos enunciados normativos do regime
geral de direito processual (Código de Processo Civil), dos regimes processuais específicos
e das normas que integram o campo normativo relativo ao chamado direito material
público, a existência de um outro espectro jurídico dogmático, qual seja: o “Direito
Processual Público”.
A expressão “Direito Processual Público”, conquanto aparentemente pleonástica
visto que todo direito processual é público por pressupor o Estado-juiz como um dos
sujeitos que integram a chamada relação jurídica processual
106
–, denota a existência, em
104
Idem, ibidem.
105
Paulo Cesar Conrado. Processo Tributário, p. 16.
106
“No entanto, não é porque o direito processual civil é ramo do direito público que seu conteúdo pertence
àquele ramo também. Pelo contrário, como salientado no início, em geral o conteúdo do processo é de direito
privado, ou pelo menos nas nossas obras e nossos manuais de direito processual civil, em sua grande maioria,
acabam demonstrando que assim se pretende que seja. Na verdade, o processo civil foi estruturado e
sistematizado a partir de conflitos de direito privado. Até porque, ao longo do século passado, inexistia a
concepção o presente como a atual da necessidade do controle jurisdicional dos atos do Estado.”ssio
66
apartado, de um regime jurídico processual próprio ao exercício da função jurisdicional na
composição dos litígios atinentes às relações jurídicas de direito público, assim entendidas
como aquelas em que um dos polos da relação é ocupado por uma pessoa jurídica de direito
público ou equiparada.
Ocorre, entretanto, que no contexto daquilo que se denomina “direito público” há,
ainda, uma considerável gama de subsistemas normativos (administrativo, tributário,
previdenciário), que espelham as diversas faces de atuação do Estado (enquanto Estado), os
quais, devido às suas particularidades, não podem ser colocados no mesmo escaninho,
inclusive no que diz respeito aos aspectos processuais.
Consciente dessa diferenciação interna das normas de direito público, CÁSSIO
SCARPINELLA BUENO
107
afirma que, paralelamente ao chamado Direito Processual
Público, ainda um outro subsistema processual, ao qual corresponderia uma área
específica de investigação dogmática a que a doutrina vem chamando de Direito Processual
Tributário
108
.
Segundo o Professor da PUC/SP, a subclassificação resta plenamente justificada por
força (i) das peculiaridades do direito tributário, que o extremam dos demais ramos do
direito; (ii) da especificidade de seu objeto, que diz com os limites impostos ao Estado para
a restrição dos direitos patrimoniais dos particulares; bem como, e principalmente, (iii) do
âmbito da atuação vinculada do Estado neste campo do direito.
Nesse contexto, o sistema processual tributário é constituído pelo conjunto das
normas processuais gerais e especiais que regulam a atividade jurisdicional (judicial e
administrativa) vocacionada à resolução de conflitos havidos nas várias espécies de
relações jurídicas mantidas entre contribuinte e Fisco no percurso de positivação do direito
tributário, isto é, no iter de concretização perpetrado pelo exercício das competências
Scarpinella Bueno. “A emergência do direito processual público”. In: (Coord. Carlos Ari Sundfeld e Cássio
Scarpinella Bueno) Ob. cit., p. 33.
107
Curso sistematizado de direito processual civil, v. 1, p. 35.
108
A semelhança entre a concepção do processo na esfera penal e do processo quando aplicado ao direito
tributário (direito material público, portanto) não escapou a arguta observação de Arruda Alvim quando
afirmou que: “A processualização do Direito Tributário, isto é, a cobrança de tributos através de tribunais,
com todas as garantias que hoje revestem o Poder Judiciário, em todos os Estados de Direito, coloca-se ao
lado da chamada conquista da processualização criminal, que antigamente a punição penal era franqueada
aos detentores do poder, que prendiam e puniam como queriam, assim como era o poder tributário usado
como discriminação e arbitrariedade, significando instrumento de constante opressão.” “A emergência do
direito processual público”, p. 37. In: (Coord. Carlos Ari Sundfeld e Cássio Scarpinella Bueno) Ob. Cit.
67
tributárias que desencadeiam as atividades de instituição, cobrança e arrecadação de
tributos.
No âmbito judicial, a normatividade processual tributária não possui codificação
própria
109
, muito embora seja possível identificar, repise-se, de forma esparsa, a existência
de diversas legislações veiculadoras de normas processuais específicas, que mesmo não
sendo dirigidas, exclusivamente, à composição dos conflitos tributários, têm nele o seu
principal campo de incidência.
Um caso típico é o da Lei 6.830/80 (Lei das execuções fiscais) que, conquanto não
se aplique tão somente à realização do crédito tributário inadimplido, tem neste o seu
principal objeto. A Lei 8.937/92, que prevê a chamada medida cautelar fiscal, é outro
exemplo de instrumento processual precipuamente manejado na resolução de conflitos
tributários.
Existem, ainda, enunciados jurídicos esparsos que veiculam normas processuais
tributárias, como é o caso do art. 185-A do CTN, que autoriza ao Juízo executivo fiscal o
bloqueio eletrônico de valores depositados em conta-corrente do contribuinte devedor.
Fato é, no entanto, que esta especialidade normativo-processual ocorre, no mais das
vezes, nas circunstâncias em que a Fazenda Pública ocupa a posição de autora no processo
tributário judicial
110
. Nos casos em que a pretensão processual requerida é feita em defesa
dos direitos do contribuinte, isto é, quando o contribuinte ocupa a posição de autor no
processo judicial tributário, aplicam-se, em regra, as formas e os procedimentos
ordinariamente previstos no regime geral de direito processual – Código de Processo Civil.
109
Não obstante as várias propostas legislativas de instituição de um contencioso tributário autônomo. O
próprio anteprojeto do Código Tributário Nacional, de autoria de Rubens Gomes de Souza, inclusive, previa
um sistema de contencioso tributário específico, sem falar no projeto de contencioso tributário de autoria de
Gilberto de Ulhoa Canto. Sobre o assunto, anota Cássio Scarpinella Bueno: “O que é de relevo destacar neste
instante é que uma das críticas que estes autores fazem a partir da classificação que adotam é que as ações
próprias, vale dizer, aquelas ações que são tratadas específica e minudentemente pelo legislador tendem a
coincidir com as ações exacionais, isto é, ações em que a Fazenda Pública é autora. O legislador, assim, cria
ritos, procedimentos e ações diferenciadas para agilizar, facilitar ou até mesmo para viabilizar se próprio
acesso à Justiça em face dos particulares. Por outro lado, a grande parte das ações não-exacionais é imprópria,
o que equivale a dizer que a grande parte das ações que existem à disposição dos particulares contra os
desmandos do Estado não é regulada por leis específicas, caindo, portanto, na “ordinariedade”, siutação que é
tão criticada pelos estudiosos de direito processual civil que buscam enobrecer sempre o amplo acesso à
Justiça e, como vimos, a eficiência deste acesso.” Idem, ibidem, p. 42.
110
E nos casos em a Fazenda Pública ocupa a posição de ré, o procedimento especial tem como objetivo
afirmar a supremacia do interesse público sobre o particular. É o caso das regras de dilação de prazo, prevista
no art. 188 do Código de Processo Civil, bem como do regime de execução especial de execução contra a
Fazenda Pública, disciplinado pelo art. 730 e seguintes do mesmo diploma.
68
Isso não quer significar, entretanto, que a especificidade processual deixa de existir
em tais circunstâncias, isto é, o processo tributário não assume a condição de mero processo
não penal por estar submetido ao regime geral de direito processual. Conforme anotamos
anteriormente, as normas de direito material mantêm relações conceptuais intrínsecas com
o sistema jurídico processual, de maneira a exercer influência direta sobre a delimitação do
conteúdo e o alcance de seus institutos.
Além disso, os efeitos práticos decorrentes da aplicação dos institutos processuais,
isto é, a efetividade da tutela jurisdicional tributária, está intimamente vinculada às tensões
normativas e axiológicas próprias aos conflitos tributários.
A tutela declaratória negativa em matéria tributária, por exemplo, tem o condão de
prevenir eventual constituição de crédito e imposição de multa em face do contribuinte,
emanando efeitos prospectivos (ex nunc), impeditivos à constituição do crédito,
diferentemente do que ocorre com a tutela declaratória negativa exarada no âmbito das
lides privadas, cujos efeitos se reportam, retrospectivamente, ao tempo do ato ou do fato
sobre o qual recai a incerteza que deu origem à lide.
A questão do particularismo do processo tributário decorre, portanto, da noção de
diferenciação da lide tributária a que se refere JAMES MARINS
111
, de maneira que as
mesmas razões que sustentam a particularização das relações jurídicas tributárias e a
própria autonomia didática do Direito Tributário, também servem como fundamento para a
defesa do isolamento metodológico da normatividade processual tributária, pois as normas
e os princípios que norteiam o processo de positivação do direito tributário contêm
peculiaridades que acabam por contaminar as formas por meio das quais as demandas
tributárias são processadas e decididas.
Vale lembrar que os conflitos de interesses tributários põem em choque valores
constitucionais de mesma índole hierárquica. Assim, se por um lado as receitas
provenientes da cobrança de tributos perfazem as principais fontes de manutenção das
atividades fundamentais do Estado, por outro, a tributação se apresenta como uma das mais
poderosas formas de invasão e mitigação da propriedade privada e da liberdade individual,
sendo exercida, quase que totalmente, mediante atos unilaterais de poder que gozam de
presunção de legalidade.
111
Princípios fundamentais de direito processual tributário, p. 115
69
Há, evidentemente, uma clara situação de disparidade entre Estado e contribuinte,
constitucionalmente autorizada em nome do interesse público, mas que está sujeita a uma
série de limites impostos pela própria Constituição Federal, limites estes que visam, em
última instância, resguardar os direitos individuais dos contribuintes.
Investigar as formas de administração dessa tensão entre interesse público e direitos
fundamentais dos cidadãos (contribuintes) nas situações de conflituosidade, propiciando as
condições necessárias à defesa, em Juízo, dos direitos subjetivos dos sujeitos que integram
as relações jurídico-tributárias, consubstancia a função primordial do Direito Processual
Tributário.
Não é caso, entretanto, de cogitar a respeito da existência de princípios processuais
tributários típicos, visto que as mesmas diretivas axiológicas que estruturam o regime geral
de direito processual (inafastabilidade da jurisdição, efetividade da tutela jurisdicional,
devido processo legal, juiz natural, duplo grau de jurisdição etc.) também alicerçam o
sistema processual tributário, até porque é a Constituição Federal o repositório comum dos
princípios constitucionais do processo
112
, que emanam seus efeitos por todos os setores em
que a atividade jurisdicional se manifesta, não obstante se amoldarem às situações fáticas e
jurídicas que envolvem a questão concreta.
A noção de sistema processual tributário é construída, principalmente, no plano
concreto de aplicação do sistema processual aos conflitos tributários. É na pragmática do
processo que a diferenciação da lide tributária se manifesta, circunstância em que o
intérprete-aplicador se na contingência de dar conformidade e efetividade aos institutos
processuais à luz dos valores e limites que caracterizam o sistema jurídico tributário.
É no plano pragmático, portanto, que a necessidade e a dificuldade de harmonização
entre os princípios próprios aos dois sistemas, material tributário e processual, mostram-se
prementes, pois se de um lado a noção de devido processo legal limita a supremacia do
interesse público ao colocar, em situação paritária, contribuinte e Fazenda Pública, por
outro, a noção de supremacia do interesse público limita a efetividade do processo, visto
que impõe, por meio de procedimentos específicos como o previsto pelo art. 730 do CPC
(execução contra a Fazenda Pública), óbices à eficácia das tutelas jurisdicionais exaradas
contra o Estado.
112
O modelo constitucional de processo é uno.
70
A título de arremate, de se destacar que o sistema processual tributário não está
circunscrito às normas disciplinadoras da atividade jurisdicional típica, assim entendida
como aquela desenvolvida pelos órgãos e autoridades que compõem o Poder Judiciário.
Outro importante campo de manifestação da processualidade tributária diz respeito
às normas disciplinadoras da atividade jurisdicional perpetrada, atipicamente, pelos órgãos
judicantes da Administração Pública.
São as normas de direito processual administrativo tributário, produzidas no âmbito
das competências das várias pessoas políticas tributantes, que disciplinam a forma de
atuação da jurisdição tributária desempenhada, no exercício de função atípica, pela
Administração Pública nos três planos federativos (União, Estados e Municípios).
Nesse tocante, um dado de extrema relevância pragmática a ser considerado, e
que diz respeito ao alto grau de especialização técnica e normativa que caracteriza os
Tribunais Administrativos Tributários. Essa característica, inerente aos contenciosos
administrativos tributários, permite que uma considerável parcela dos conflitos tributários
seja solucionada sem que haja a necessidade de movimentação da máquina judiciária,
morosa por natureza. Diante disso, o processo administrativo tributário acaba por atuar
como uma espécie de filtro à contenciosidade tributária judicial.
Conquanto ainda haja um acentuado déficit de efetividade e de devido processo
legal do processo administrativo tributário com relação ao seu corresponde judicial, o
simples fato de haver por meio dele (processo administrativo) efetivo exercício de função
jurisdicional, somado ao alto grau de tecnicidade e especialização normativa que
caracteriza as Cortes administrativas, é motivo mais que suficiente para incluí-lo no
campo objetal do Direito Processual Tributário.
Justifica-se, portanto, o isolamento didático do âmbito de atuação das normas
processuais no contexto relativo à solução das lides tributárias, mediante a construção do
que vimos chamando de sistema processual tributário, cuja descrição interpretativa cabe a
um sub-ramo específico e didaticamente autônomo da Dogmática, qual seja: o Direito
Processual Tributário.
Nesse sentido, parece-nos intuitivo que as investigações dogmáticas a serem
perpetradas nesta específica área de manifestação da atividade jurisdicional devem ser
71
iniciadas pelo estudo das categorias fundamentais de direito processual à luz dos conflitos
tributários. É exatamente isso que faremos a partir dos itens que se seguem.
2.3. AS CATEGORIAS FUNDAMENTAIS DE TEORIA GERAL DO PROCESSO NO
CONTEXTO DO DIREITO PROCESSUAL TRIBUTÁRIO
A unidade do sistema jurídico processual está fundada em três institutos jurídicos
básicos: (i) a ação; (ii) o processo; (iii) e a jurisdição. Ao redor desses três entes
normativos, para os quais dedicaremos tópicos específicos, orbita um quarto gênero
jurídico-processual que, a seu turno, opera como pressuposto fático-conceptual para a
atuação daqueles, qual seja: o conflito de interesses.
Assim, tanto quanto os conceitos de ação, processo e jurisdição, a noção de conflito
deve ser tomada como categoria jurídico-normativa fundamental à Teoria Geral do
Processo, até porque é o fato jurídico conflituoso que concretiza o primeiro e mais
importante elo entre direito material e processual.
Conforme veremos, é a relação conflituosa o elemento qualificador e, portanto,
definidor daquelas três outras noções a que nos referimos, de modo que somente poder-se-á
falar em ação tributária, processo tributário e jurisdição tributária se tomarmos como ponto
de referência a ideia de conflito tributário.
Nessa medida, antes de ingressarmos na análise da referida tríade estrutural do
processo judicial, trataremos, de forma pormenorizada, do conceito e das condições de
manifestação do fato jurídico conflituoso.
2.3.1. Relações jurídicas, direitos subjetivos e conflituosidade tributária
O conflito representa para o direito processual com as devidas concessões
didáticas mais ou menos aquilo que o “fato gerador” representa para o direito tributário.
Não tributo sem hipótese normativa (fato gerador in abstrato), nem obrigação tributária
72
sem fato jurídico tributário (fato gerador in concreto). Da mesma forma, não há que se falar
em ação, processo e jurisdição sem que se tome por pressuposto o fato jurídico conflituoso.
Também de forma análoga ao conceito de tributo, a noção de conflito tem status
constitucional, possuindo, inclusive, previsão expressa no texto supremo, enunciada pelo
inciso XXXV do art. 5º da Constituição Federal, que o define por meio da expressão “lesão
ou ameaça de lesão a direito”. A noção jurídico-constitucional de conflito coincide,
portanto, com a ideia de lesão ou ameaça de lesão a direito.
As lesões ou ameaças de lesões a direitos, por sua vez, podem ser concretamente
verificadas no âmbito das normas concretas e individuais, lócus normativo em que residem
os fatos e as correspondentes situações jurídico-relacionais (relações jurídicas)
113
.
As posições jurídicas subjetivas (direitos e deveres subjetivos em sentido amplo),
postas nos consequentes das normas concretas e individuais, tais como faculdades,
potestades, direitos absolutos e direitos subjetivos em sentido estrito (direito a uma
prestação), são entidades eminentemente relacionais
114
, estando todas elas sujeitas a atos de
violação. Por isso, parece-nos conveniente que nos detenhamos, com um pouco mais de
vagar, a respeito dos conteúdos possíveis das relações jurídicas postas nos consequentes das
normas concretas e individuais (especialmente as tributárias), no seio das quais ocorrem os
atos de violação (conflitos).
As relações jurídicas em sentido estrito
115
, situadas nos consequentes das normas
jurídicas individuais, contêm direitos subjetivos que se contrapõem a deveres jurídicos.
Pois bem. Esta assertiva, conquanto correta e didaticamente útil (como técnica de redução
de complexidades), não esgota as possibilidades de descrição das diversas peculiaridades
que fazem com que os fatos jurídicos relacionais não sejam idênticos entre si, o que
113
As relações jurídicas pertencem ao domínio do concreto. Provêm de fatos, que são no tempo-espaço
localizados. Sem a interposição do fato, que a norma incidente qualifica como fato jurídico, o ocorre o
processo eficacial da efetivação da relação jurídica.” Lourival Vilanova. Causalidade e relação no direito, p.
137.
114
É na estrutura de relações jurídicas que se verificam direitos subjetivos em sentido técnico-estrito,
poderes ou faculdades, direitos potestativos, direitos relativos e direitos absolutos, direitos materiais e
processuais. Restringir a relação jurídica ao caso dos direitos subjetivos, em sentido restrito, não se
compadece com o conceito de relação e com o conceito de relação jurídica.”. Idem ibidem, p. 234
115
Idem ibidem, p. 120
73
significa dizer que os direitos e deveres subjetivos contrapostos em “diferentes espécies de
relações jurídicas” objetivam diferentes técnicas de regulação da conduta humana.
Os fatos jurídicos relacionais, isto é, as situações jurídicas subjetivas localizadas nos
consequentes das normas individuais, são compostos por qualificações jurídicas
116
que ora
referem fatos e pessoas, ora apontam para condutas. Qualificar uma coisa ou pessoa
significa atribuir-lhe um predicado jurídico
117
(móvel / imóvel ou capaz / incapaz,
competente / incompetente). Qualificar uma conduta, por sua vez, significa atribuir-lhe um
predicado deôntico, ou seja, modalizá-la com um dos functores deônticos: obrigatório,
facultado ou proibido.
Na relação jurídica em sentido estrito é a conduta modalizada que vincula os
respectivos sujeitos-de-direito, sendo chamada, por este motivo, de objeto da relação
jurídica. A regulação jurídica das condutas é feita de modo a afetar (juridicamente) os
interesses de outro indivíduo, circunstância que pressupõe a conjugação de duas vontades: a
vontade daquele que tem a conduta qualificada pela norma e, também, a vontade daquele
sujeito cuja conduta permitirá que a primeira se realize.
Nesse sentido, a regulação direta de uma conduta (modalização direta), numa dada
relação jurídica, pressupõe a regulação indireta de outra conduta (modalização indireta)
atribuída ao sujeito que tem seus interesses jurídicos atingidos pela primeira. Esta regulação
indireta, no entanto, ocorre no interior de outra relação jurídica: a chamada relação
conversa ou inversa
118
, cujo conteúdo (conduta) é diverso, porém complementar, ao
encontrado na relação jurídica principal.
A conduta qualificada numa dada relação jurídica pode, ainda, acarretar uma
vantagem ou uma desvantagem jurídica ao sujeito que a realiza. Chamaremos as condutas
(direta ou indiretamente) modalizadas (qualificadas) atributivas de “vantagens jurídicas”
119
116
Idem ibidem, p. 119
117
Idem ibidem, p. 125
118
Master o dever de é a relação inversa deter direito a.”A relação ter dever jurídico’ é conversa da
relação ‘ter direito’. E, ainda, não é relação simétrica, de modo a se poder enunciar: ‘A tem direito em face de
B’ equivale ‘B tem direito em face de A’. Idem, ibidem, p. 221
119
As ideias devantagem edesvantagem jurídicas, não obstante pressuponham, necessariamente, um
juízo valorativo, devem ser tomadas da perspectiva que leva em consideração os valores postos pelo sistema
74
aos indivíduos que as realizam de “situações jurídicas subjetivas ativas”
120
ou “direitos
subjetivos em sentido amplo”. Em contrapartida, denominaremos as condutas (direta ou
indiretamente) modalizadas (qualificadas) que trazem prejuízo ou “desvantagens jurídicas”
aos indivíduos que as realizam de “situações jurídicas subjetivas passivas” ou “deveres
jurídicos em sentido amplo”. Situações jurídicas subjetivas (direitos e deveres) são,
portanto, qualificações jurídicas (modalizações) de condutas postas nos consequentes das
normas jurídicas concretas e individuais.
Interessante notar como o vocábulo “direito” costuma ser empregado, tanto pelos
textos jurídico-positivos, quanto pelos enunciados da Dogmática, para referir diferentes
técnicas de regulação concreta das condutas intersubjetivas. Essa circunstância, aliás, não
escapou à rigorosa análise de DANIEL MENDONCA. Confira-se:
Pues bien, es importante precisar, en este contexto, el sentido del término
“derecho”. He mostrado que en la literatura jurídica el término “derecho
(subjetivo)” se vincula con diversas acepciones: (1) “derecho” como libertad, (2)
“derecho” como pretensión justificada, (3) “derecho” como permiso o permiso
protegido, (4) “derecho” como facultad, (5) “derecho” como obligación
correlativa, (6) “derecho” como potestad, y (7) derecho” como inmunidad. Me
inclino a creer que, en el contexto típico de los conflictos de derechos, éstos
aparecen como conglomerados de varios de los sentidos mencionados, y
especialmente de los sentidos (3) o (4) y (5): los derechos son, en esse contexto,
permisivos o facultativos para su titular, implican deberes activos o pasivos para
otros individuos y están protegidos por el Estado.
Por cierto, la disyunción a que se alude en la noción propuesta (permiso o
facultad), permite dar cuenta de la distinción entre derechos “discrecionales” y
“preceptivos”. Esta es una distinción familiar que recibido diferentes
denominaciones y que podría presentarse del siguiente modo22: un derecho
discrecional (discretionary right) encierra una opción a favor del titular, de
manera que quien goza de un derecho de este tipo tiene una opción abierta a X o
a no X: si A tiene derecho discrecional a X, se sigue lógicamente que le está
permitido hacer X y que le está permitido omitir X, según su elección; un
jurídico e não aqueles que compõem o espírito do titular do direito ou do dever. Não afastamos a
possibilidade de um titular de direito entender, em caráter pessoal, que não possui qualquer espécie de
vantagem jurídica.
120
Cf. André Fontes. A pretensão como situação jurídica subjetiva, p. 88 a 110. Lourival Vilanova faz o
seguinte comentário sobre as situações jurídicas: “Jèze distingue as situações jurídicas em gerais, impessoais,
objetivas e as situações individuais, subjetivas: aquelas procedem da lei ou do regulamento (normas gerais);
estas, de atos unilaterais ou bilaterais, manifestações de vontade no exercício de um poder. Mas cremos que,
se as duas classes são efeitos jurídicos, estarão sempre no nível dos fatos jurídicos. A lei geral, enquanto não
ocorra o fato ao qual a causalidade normativa ligue efeitos, não provoca situação, que é do plano eficacial
(g.n.). Causalidade e relação no direito, p. 147.
75
derecho preceptivo (mandatory right), por contraste, no confiere discreción
alguna a su titular, pues sólo una vía de ejercicio le está permitida, de modo que
deja abierto únicamente un camino y no una auténtica opción entre caminos: si
A tiene derecho preceptivo a X, se sigue lógicamente que le está permitido hacer
X pero no le está permitido omitir X (tiene el deber de hacer X).
121
Assim, no mais das vezes, a diferenciação entre as várias espécies de relações
jurídicas, bem como de seus respectivos direitos e deveres (situações jurídicas subjetivas
ativas e passivas), é feita por meio da análise de seus conteúdos, os quais dizem respeito,
vale repisar, a diferentes técnicas normativas de regulação de condutas.
A condição de situação jurídica subjetiva ativa (direitos subjetivos, em sentido
amplo) pressupõe a coexistência de situações jurídicas subjetivas passivas (deveres
subjetivos, em sentido amplo), atribuídas a um ou vários indivíduos, pessoalmente
identificados ou, pelo menos, identificáveis. Daí afirmarmos que o conceito de situação
jurídica subjetiva (direito subjetivo) é necessariamente relacional, circunstância esta que
evidencia a noção de intersubjetividade, inerente à regulação jurídica das condutas.
O direito subjetivo e o dever jurídico em sentido estrito ou, como prefere
LOURIVAL VILANOVA
122
, em sentido técnico-dogmático, perfazem situações jurídicas
subjetivas (ativa e passiva, respectivamente) que integram as chamadas relações jurídicas
prestacionais (como é o caso da obrigação tributária dita “principal”). Esta espécie de
relação jurídica se caracteriza por regular
123
, diretamente, a conduta do sujeito passivo,
titular do dever jurídico (situação jurídica subjetiva passiva) que, a seu turno, estará
obrigado a dar, fazer ou deixar de fazer algo (a prestação) em proveito do sujeito ativo,
titular do direito subjetivo (situação jurídica subjetiva ativa).
Nas relações jurídicas prestacionais, a conduta do sujeito ativo é indiretamente
regulada de modo a permitir que o sujeito passivo cumpra com seu dever jurídico. Esta
permissão, no entanto, não é bilateral, de forma que o sujeito ativo estará obrigado, por
meio da aceitação da prestação, a não impedir que conduta a ser realizada pelo sujeito ativo
seja concretizada.
121
Los derechos en juego, conflictos e, p. 15.
122
Lourival Vilanova. Causalidade e relação no direito, passim.
123
Regular significa qualificar juridicamente uma conduta, atribuindo-lhe os modos O, P ou V.
76
Os atos de violação aos chamados direitos subjetivos em sentido estrito, que
caracterizam os conflitos havidos nas relações prestacionais, decorrem ou do
descumprimento do dever realizar a prestação que lhe serve de objeto (não recolher os
valores cobrados a título de tributo ou não restituir o tributo pago indevidamente, por
exemplo) ou da recusa do titular do direito subjetivo em receber a prestação que lhe é
devida. Deixar de pagar tributo ou não restituir o tributo pago indevidamente são atos de
violação a direitos subjetivos tributários prestacionais.
Paralelamente aos direitos subjetivos em sentido técnico-dogmático, verifica-se a
existência de outras espécies de situações jurídicas subjetivas ativas. Dentre elas o chamado
“direito subjetivo absoluto” que, não obstante a ideia que seu nomem juris possa induzir,
constitui uma situação jurídica subjetiva ativa tão relacional quanto aquelas contidas nas
relações prestacionais.
Nas relações jurídicas em que se inserem os direitos absolutos, diferentemente das
prestacionais, é a conduta do sujeito ativo que serve de objeto de regulação direta. Nesta
espécie de relação jurídica a conduta é qualificada de forma a permitir que o sujeito ativo
faça ou deixe fazer algo sem que se possa criar qualquer impedimento ao seu exercício. O
dever correlato ao direito absoluto, portanto, se traduz numa espécie de sujeição erga
omnes, onde a conduta do sujeito passivo é qualificada (indiretamente) mediante uma
proibição geral de ocasionar óbice à realização da conduta permitida ao sujeito ativo
124
.
Exemplos de direitos absolutos são os chamados direitos personalíssimos: os direitos
inerentes à liberdade (ir e vir), à propriedade e à vida.
Com efeito, o poder de tributar perfaz uma exceção constitucionalmente posta ao
direito subjetivo absoluto de propriedade do cidadão, devendo ser exercido, por esse
motivo, nos estritos limites delimitados pelo texto constitucional e pela legislação
tributária, de maneira que, para além dos parâmetros constitucionais e legais, o direito
absoluto de propriedade é plenamente oponível a qualquer pretensão tributária do Estado.
124
Anota Lourival Vilanova:Direitos subjetivos absolutos são relacionais. Têm-se direitos subjetivos
absolutos em relação a outros titulares de deveres subjetivos os sujeitos-de-direitos passivos totais, ou a
universalidade dos sujeitos-de-direitos dos quais se exige o dever jurídico de respeito.” “Mesmo, não
prestação a cumprir para com os titulares ativos. Há dever jurídico negativo de abster-se de interferir na esfera
de licitude do direito subjetivo absoluto.Ob. cit.
77
Tributar fatos e operações que não estejam abrangidos pelas hipóteses tributárias
legal ou constitucionalmente prescritas, por exemplo, é um típico caso de violação a direito
absoluto do contribuinte de não ser tributado fora dos limites legais e constitucionais
previamente fixados pelo sistema jurídico.
Outra situação jurídica subjetiva ativa mencionada com muita frequência pela
Dogmática é o chamado “direito potestativo”. Nas relações jurídicas compostas por direitos
potestativos, a qualificação das condutas se de forma a permitir que o sujeito ativo da
relação interfira na esfera jurídica
125
do sujeito passivo, constituindo, modificando ou
extinguindo relações jurídicas, sendo este o elemento finalístico caracterizador desta
espécie de situação jurídica subjetiva.
Sobre o conteúdo do dever jurídico contido nesta espécie de relação jurídica, anota
LOURIVAL VILANOVA:
O titular passivo na relação de direito potestativo não tem dever a prestar, pois
fica reduzido à posição de sujeição. Suporta os efeitos jurídicos do exercício de
poderes de seu titular, que por ato unilateral, por si, é capaz de provocar
constituição, modificação ou desconstituição de relações jurídicas.
126
Assim, o direito de constituir o crédito tributário (constitutivo), o direito de
demandar, o direito de escolha nas obrigações alternativas (modificativos); o direito à
anulação do ato constitutivo do crédito tributário e o direito de compensar (extintivos) são
alguns exemplos de direitos potestativos.
No mais das vezes, a violação havida no âmbito da relação jurídica potestativa
ocorre por meio de óbices ao seu exercício, do qual decorre o interesse processual do titular
à tutela jurisdicional apta à sua realização. É exatamente o caso da tutela anulatória de
débito fiscal, cujo objeto é a efetivação do direito potestativo do contribuinte à
125
Cf. André Fontes, “O complexo de relações jurídicas que fazem com que se seja titular de algo, com um
próprio e determinado objeto, sugere a imagem de uma esfera na qual o sujeito é o centro, e ao qual
convergem as várias relações. Mais especificamente, entende-se por esfera jurídica o conjunto das relações
jurídicas de que uma pessoa é titular”. Ob. cit., p. 115.
126
Cf. Lourival Vilanova, Ob. cit., p. 231. Vale ressaltar, também, que a relação jurídica constituída,
modificada ou desconstituída por meio do exercício do direito potestativo, também tem, como um de sujeitos
integrantes, o próprio sujeito passivo da relação de direito potestativo.
78
desconstituição do ato constitutivo do crédito tributário irregularmente emanado da
autoridade competente.
São várias as relações e situações jurídicas subjetivas (direitos subjetivos em sentido
amplo) que permeiam o percurso de positivação do direito tributário. Não pretendemos,
neste momento, enumerá-las de forma exaustiva, mas tão somente destacar a importância
da tomada de consciência a respeito de suas particularidades, pois estas (particularidades)
estão diretamente ligadas à natureza específica de cada um dos conflitos tributários e,
consequentemente, das técnicas jurisdicionais de composição e reparação dos direitos
subjetivos violados (tutelas jurisdicionais).
Cada uma das diferentes espécies de direito subjetivo representa uma técnica
específica de regulação da conduta, motivo pelo qual a forma de violação e,
principalmente, de reparação, inclusive a jurisdicional, são diferentes. Tal circunstância,
queremos crer, reforça a premissa de que não se pode analisar as questões atinentes ao
fenômeno processual sem que se tenha em mira as peculiaridades relativas a espécie de
direito subjetivo material violado que serve de pretexto ao exercício da atividade
jurisdicional.
2.3.1.1. O conflito e lide tributários como fatos jurídicos processuais
Fenômeno jurídico que é, o conflito não dispensa a linguagem que o objetive
juridicamente
127
. A lesão ou ameaça de lesão a direito, portanto, deve ser tomada como
fato jurídico constituído mediante ato praticado por sujeito juridicamente autorizado a
produzi-lo (o cidadão, titular do direito personalíssimo de ação). Em sentido jurídico,
portanto, não que se cogitar sobre o conflito como algo externo ao processo, mas sim
como um específico fato jurídico deduzido (constituído em linguagem competente) em
juízo por meio do ato inaugural do processo jurisdicional (ação-demanda)
128
.
127
Onde houver normas jurídicas haverá, certamente, uma linguagem em que tais normas se manifestem”.
Carvalho, Paulo de Barros. Ob. cit., p. 19.
128
Podemos reconhecer, num primeiro momento, duas acepções para o termo; uma primeira de proporções
irrelevantes ao mundo jurídico-processual (social); a segunda, propriamente jurídica, governada pela idéia
79
Se é verdade que não existe fato jurídico tributário e a correlata relação jurídico-
tributária sem que se que se tenha produzido o documento jurídico especificamente
destinado a veicular estes conteúdos normativos (lançamento, autolançamento etc.),
também não é possível vislumbrar o conflito sem que se pressuponha a prática do
específico ato de provocação do órgão jurisdicional por meio do qual restará deduzido
(veiculado) o fato jurídico conflituoso (petição inicial, reclamação trabalhista, impugnação
administrativa etc.
)
129
.
A linguagem jurídica conflituosa, por sua vez, não obstante faça referência a um
plexo de eventos ocorridos no plano da facticidade social, com estes não se confunde. O
fato jurídico conflituoso é redutor das complexidades que compõem a conflituosidade
social, seletor dos dados que eventualmente sejam relevantes para que a pretensão a ser
levada ao conhecimento da autoridade jurisdicional seja adequadamente apreciada. Nem
tudo que integra os eventos sociais a partir dos quais os conflitos jurídicos são constituídos
é referido pela linguagem jurídica constitutiva do conflito, até porque não é possível que a
linguagem expresse, inteiramente, toda a complexidade dos fenômenos sociais a que se
refere.
Aliás, sobre a natureza constitutiva do processo com relação aos fatos jurídicos
conflituosos, anota EROS ROBERTO GRAU:
No decorrer deste trabalho, como a interpretação abrange também os fatos,
o intérprete os reconforma, de modo que podemos dizer que o direito
institui a sua própria realidade. Daí a importância do relato dos fatos (=
narrativa dos fatos a serem considerados pelo intérprete) para a
interpretação.
Pois é certo que os fatos não são, fora de seu relato (isto é, fora do relato a
que correspondem), o que são.
O que desejo afirmar é a fragilidade do compromisso entre o relato e seu
objeto, entre o relato e o relatado.
segundo a qual sem linguagem não direito, e que, por isso, edifica-se mediante específicos instrumentos.”
Conrado, Paulo Cesar. Processo tributário, p. 30.
129
Juridicamente, a constituição de um fato que se repute juridicamente relevante (e assim o conflito de que
vimos falando) supõe a produção de documentos (linguagem) cuja elaboração pode competir ou a autoridade
pública ou a sujeito de direito privado (lançamento e “autolançamento” são elucidativos exemplos, embora
atinentes ao direito material tributário, dessas duas realidades, na exata ordem em que formuladas).” Idem,
ibidem.
80
Esse compromisso é, antes de mais nada, comprometido em razão (1) de jamais
descrevermos a realidade; o que descrevemos é o nosso modo de ver a realidade.
Além de não descrermos a realidade, porém o nosso modo de ver a realidade,
(2ª) essa mesma realidade determina o nosso pensamento e, (2b) ao
descrevermos a realidade, nossa descrição da realidade será determinada (i) pela
nossa pré-compreensão dela (= da realidade) e (ii) pelo lugar que ocupamos ao
descrever a realidade (= nosso lugar no mundo e lugar desde o qual pensamos).
Por isso caberá aqui tudo o que digo no Ensaio sobre a pré-compreensão.
Também no que tange aos fatos não existe, no direito, o verdadeiro. Inútil
buscarmos a verdade dos fatos, porque os fatos que importarão na e para a
construção da norma são aqueles recebidos/percebidos pelo intérprete eles,
como são precebidos pelo intérprete, é que informarão/conformarão a
produção/criação da norma.
130
Além disso, necessário sublinhar que o conflito é fato jurídico expressivo de uma
determinada “lesão ou ameaça de lesão a direito” tão somente no plano da afirmação.
Significa dizer que o fato jurídico conflituoso não expressa a lesão ou ameaça de lesão com
foros de certeza, pois a efetiva existência desta deverá se confirmada ao final do processo.
Trata-se, em verdade, de mera afirmação da ocorrência de ato de violação a direito
subjetivo, sujeita a juízo de confirmação ou infirmação a ser realizado por ulterior ato
jurisdicional, responsável pelo acolhimento ou afastamento da pretensão deduzida. Assim,
independentemente do resultado final do processo (sentença de mérito favorável ou
desfavorável ou sentença extintiva do processo sem resolução de mérito), o conflito haver-
seconcretizado mediante a mera afirmação, em linguagem jurídica competente, do ato
lesivo em juízo.
Não que se confundir, portanto, o evento conflituoso (aquele que se verifica no
âmbito da facticidade social) com o fato jurídico conflituoso, expresso por meio dos
enunciados efetivamente deduzidos em juízo pelo titular do direito violado. O fato jurídico
conflituoso pode ser constituído, apreciado e solucionado, inclusive em favor do sujeito
requerente, sem que tenha havido seu correspondente social, da mesma forma que o fato
jurídico tributário pode ser constituído sem que se tenha verificado o evento social a que se
refere, dando ensejo ao nascimento de relação jurídico-tributária que produzirá eficácia
plena caso o sujeito passivo não conteste a cobrança, adimplindo a obrigação.
130
Ob. cit. (g.n.).
81
Relação jurídica e ato jurídico violador perfazem os elementos constitutivos do fato
jurídico conflituoso e se confundem com aquilo que o Código de Processo Civil ora
denomina “causa de pedir” (art. 301, § 2º, do CPC). Agora, se à noção de conflito
agregamos o conceito de pretensão, assim entendida como a solicitação feita pelo titular do
direito dito violado ao órgão jurisdicional para que seja exarada (pedido) a tutela
jurisdicional pretendida, aí obtemos o conceito de lide.
Conflituosidade e litigiosidade, conquanto possam ser consideradas, analiticamente,
noções distintas, sendo a primeira (conflito/causa de pedir) parte integrante da segunda
(conflito/causa de pedir + pretensão/pedido), no contexto do fenômeno processual
(jurisdicional) perfazem fatos jurídicos inseparáveis, pois a deducão, em juízo, de uma
pretensão qualquer será sempre precedida da afirmação de uma lesão ou ameaça de lesão a
direito subjetivo
131
.
É justamente o fato de a pretensão ser deduzida com fundamento em um conflito de
interesses, aliás, que induz a presunção de que esta (a pretensão) é resistida, ou seja, de que
a parte contrainteressada, em face de quem o pedido é deduzido, negou-se a reparar,
espontaneamente, o ato de violação por ela praticado
132
.
A pretensão, tanto quanto o conflito, é fato jurídico processsual, de sorte que
também não dispensa a linguagem para que seja constituída. Não haverá lide, portanto, sem
que o sujeito legitimado a ingressar em juízo deduza, juntamente com o fato jurídico
conflituoso, a pretensão à tutela jurisdicional que entende adequada a reparar o ato de
violação ou prevenir a violação do direito subjetivo ameaçado, estando a autoridade
131
É possível falar em pretensão sem conflito, como nos casos dos processos que instrumentalizam o
exercício da chamada jurisdição voluntária (por meio da qual o Poder Judiciário exerce, atipicamente, função
administrativa), situação em que a referida pretensão não decorre de um ato de violação a direito subjetivo,
mas de mera convergência das vontades das partes interessadas. A recíproca, no entanto, não é verdadeira:
onde houver afirmação de fato jurídico conflituoso, verificar-se-á, necessariamente, a dedução de uma
pretensão à tutela jurisdicional apta à sua composição.
132
Na clássica definição carnellutiana de lide como “conflito de interesses qualificado por uma pretensão
resistida”, a noção de resistência costuma estar vinculada à verificação do efetivo exercício do direito da parte
contrainteressada à contradição. Aceitar essa premissa, no entanto, significa afirmar que nos casos em que não
houver contestação do pedido (revelia, indeferimento sumário do pedido ou reconhecimento, de ofício, de
prescrição ou decadência), não restaria verificada, também, a lide. A mera dedução em juízo da pretensão, no
entanto, traz consigo a presunção de resistência da parte contrainteressada em reparar os efeitos do ato de
violação ao direito do demandante, o que se confirma pela previsão expressão de casos em que haverá a
apreciação do mérito da causa (da lide) sem que haja a necessidade de comunicação da parte contrária, como
é o caso das situações previstas nos arts. 219, §§ 5º e 6º e 285-A, do Código de Processo Civil.
82
jurisdicional vinculada ao que foi efetivamente levado à sua apreciação pela parte
provocadora
133
.
O conceito de lide, assim, decorre do somatório das noções de conflito (causa de
pedir) e de pretensão (pedido). Com efeito, um mesmo conflito pode servir de fundamento
a pretensões diversas, dando ensejo à formação de lides diferentes. O conflito decorrente da
não restituição de valores pagos indevidamente a título de tributo (art. 165 do Código
Tributário Nacional), por exemplo, pode fundamentar tanto a pretensão à condenação do
Fisco à devolução dos referidos valores (pretensão condenatória), quanto à pretensão ao
reconhecimento do direito do contribuinte de compensar os referidos valores (pretensão
declaratória).
A intrínseca relação entre as pretensões e as diferentes espécies de conflitos em
matéria tributária será retomada adiante. Por ora, devemos insistir na circunstância de que
as lides tributárias, na qualidade de fatos jurídicos processuais, são constituídas mediante o
exercício de direitos subjetivos que redundam na prática dos atos jurídicos processuais
responsáveis por lhes dar os contornos linguísticos necessários à sua existência jurídica.
Estes direitos e atos jurídicos dizem respeito, especificamente, à ideia de ação, sobre a qual
nos debruçaremos no tópico que se segue.
2.3.2. Direito de ação, ação e ações tributárias
2.3.2.1. Definindo o(s) conceito(s) de ação
O direito, na condição de plexo normativo que se manifesta sob a forma de textos
prescritivos, está sujeito às variações significativas impostas pelo contexto no qual está
inserido, bem como pelos específicos jogos de linguagem próprios ao momento histórico
133
É exatamente o que vem expresso nas regras veiculadas pelos artigos 128 e 460 do Código de Processo
Civil, os quais prescrevem que: “Art. 128. O juiz decidirá a lide nos limites em que foi proposta, sendo-lhe
defeso conhecer de questões, não suscitadas, a cujo respeito a lei exige a iniciativa da parte”. “Art.460. É
defeso ao juiz proferir sentença, a favor do autor, de natureza diversa da pedida, bem como condenar o réu em
quantidade superior ou em objeto diverso do que lhe foi demandado.”
83
em que é surpreendido,
134
amoldando-se às circunstâncias próprias a todo e qualquer objeto
cultural.
Os conceitos jurídicos, portanto, não surgem do nada, muito menos são
“descobertos na natureza”, mas construídos dentro de um processo histórico-evolutivo,
sendo, por esse motivo, permeáveis às contingências culturais, sociais e, principalmente,
jurídico-positivas que se verificam no transcurso da História.
Não obstante esta permeabilidade dos textos jurídico-positivos às contingências
contextuais, a busca incessante por previsibilidade (segurança jurídica e precisão
conceptual) por parte dos juristas práticos e teóricos leva a uma natural tendência à
“cristalização conceptual” ou “dogmatização” de determinados institutos jurídicos,
principalmente aqueles cujas origens históricas são mais longínquas
135
.
O fenômeno da dogmatização, no entanto, acaba por ser responsável pela
instauração de infindáveis e estéreis discussões a respeito da “natureza jurídica” de
determinados institutos jurídicos. Os juristas que se prestam a alimentar tais discussões, no
mais das vezes, não se dão conta de que mesmo os mais tradicionais institutos jurídicos
estão sujeitos às alterações conceptuais impostas pelo direito positivo vigente.
Mesmo os chamados conceitos lógico-jurídicos,
136
vale lembrar, dependem do
acolhimento consensual de uma determinada gramática ou modelo teórico desenvolvido
num determinado contexto histórico, modelo este que, não obstante possa se mostrar útil e
satisfatório no contexto em que foi desenvolvido, estará, mais dia ou menos dia, fadado à
superação.
A polêmica instaurada sobre o conceito de ação é uma daquelas que decorrem do
excessivo apego dos juristas aos dogmas historicamente cristalizados. Com efeito, todos
nós estudamos, nos bancos do curso de bacharelado, as várias “Teorias da ação” propostas
por abalizados dogmáticos, cada uma delas desenvolvida por juristas pertencentes a
movimentos de pensamento jurídico próprios a uma determinada época e, principalmente,
134
O que é inerente ao postulado ôntico do “direito como objeto cultural”.
135
É essa tendência à dogmatização que acaba por gerar, em nosso sentir, aquilo que Alfredo Augusto Becker
chamou de “senso comum dos juristas”.
136
Tais como os conceitos de norma jurídica, sistema jurídico e relação jurídica.
84
submissos a um determinado sistema jurídico-positivo. Isso, por si só, justifica a
discrepância entre as concepções desenvolvidas por cada um deles.
O que não é justificável, em nosso sentir, é que juristas contemporâneos levantem
bandeiras em favor de uma ou outra Teoria da ação como se a noção de “ação” pudesse ser
tratada qual um conceito absoluto e imutável. Tal postura ignora o fato de que o conceito de
ação, antes de qualquer coisa, é jurídico-positivo e não lógico-jurídico. Dessa maneira, se
uma resposta correta
137
e perene para a pergunta “que é a ação?”, essa resposta é: “ação
é aquilo que o direito positivo quer que ela seja.”
O problema, no entanto, não acaba aqui. Não basta dizer que a “ação” é aquilo que
direito positivo diz que ela é, porquanto, como veremos, os inúmeros enunciados jurídico-
processuais vigentes utilizam o vocábulo “ação” em vários sentidos. Interessante notar, no
entanto, que cada um dos sentidos normativos que costumam ser atribuídos ao vocábulo
“ação” corresponde a uma das indigitadas “Teorias da ação
138
a que nos referimos linhas
acima, o que está longe de ser uma coincidência, pois a natureza cultural do fenômeno
jurídico permite que o sistema absorva concepções diversas de um mesmo conteúdo
conceptual, cabendo ao intérprete, autêntico ou dogmático, harmonizá-las.
Há, entretanto, um traço característico que integra as diversas concepções de ação,
qual seja: o fato de estar ela (a ação) relacionada, direta ou indiretamente, às formas e aos
instrumentos por meio dos quais os sujeitos de direito exigem do Estado-juiz a proteção a
seus direitos subjetivos.
Cada um dos conteúdos significativos atribuídos pelo direito positivo ao vocábulo
“ação”, portanto, aponta para questões normativas relacionadas à tutela de direitos
subjetivos, sendo certo que cada um dos conceitos conhecidos, conquanto diversos, diz
respeito a preceitos jurídico-normativos que, direta ou indiretamente, apontam à noção de
inafastabilidade da jurisdição.
137
Correção essa que ainda depende do consenso, neste trabalho tomado como existente, de que o direito é
um sistema jurídico-normativo.
138
Para uma discussão aprofundada sobre as concepções subjacentes a cada uma das Teorias da Ação, vide
Polêmica sobre a ação, a tutela jurisdicional na perspectivas das relações entre direito e processo
(Coord.: Fabio Carlos Machado e Guilherme Rizzo Amaral),
85
Desse emaranhado de conteúdos semânticos, juridicamente positivados ou
doutrinariamente construídos a partir dos textos jurídico-positivos, a que o vocábulo “ação”
está relacionado, podemos destacar, inicialmente, as noções de ação que estão diretamente
vinculadas ao enunciado do art. 5º, XXXV, da Constituição Federal, o qual prescreve que
“a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de lesão a direito”.
É de se notar, em primeira análise, que o referido enunciado não faz uso do
vocábulo “ação”, apesar de a dogmática tradicionalmente vinculá-lo aos conteúdos
normativos que dele art. 5º, XXXV, da Constituição Federal se pode extrair. Com
efeito, da interpretação do indigitado enunciado é possível construirmos dois direitos
subjetivos básicos do cidadão: a) o direito subjetivo (absoluto) de provocação do Poder
Judiciário, ao qual corresponde o dever jurídico de não oposição de óbice à iniciativa do
jurisdicionado
139
; e b) o direito subjetivo público (prestacional) à apreciação da questão
deduzida em juízo, ao qual corresponde o dever jurídico do Poder Judiciário de dirimir,
efetivamente, o conflito
140
.
139
Trata-se, aqui, de direito de ação como “direito de acesso ao Poder Judiciário” ou como “direito
constitucional de petição”, ao qual EDUARDO COUTURE se refere: Si la acción es, a través del processo
histórico de su formación, un modo de sustituír el ejercicio de los derechos por acto propio, mediante la tutela
por acto de la autoridad; y si esa sustitución sólo se realiza a requerimento de la parte interesada, esse poder
de requirir, forma parte del poder jurídico de que se halla asistido todo individuo, de acudir ante la autoridade
a solicitar lo que considera justo?
El derecho de petición, configurado como garantia individual em la mayoría de lãs Constituciones escritas, y
considerado por los escritores clásicos del derecho constitucional como una expresión formal, pues esse
derecho es inseparable de toda organización em forma de Estado, se ejerce, indistintamente, “ante todas y
cualesquiere autoridades”.
El Poder Judicial no tiene por qué ser excluído de los órganos y autoridades ante los cuales los particulares
pueden ejercer el derecho de petición. (...)
Toda idea que tienda a asimilar el derecho a pedir con la justicia de lo pedido, constituye uma contradictio in
adejecto. El derecho de pedir no requiere um examen del contenido de la petición, pues siendo um derecho de
garantia, debe tener andamiento hasta el momento de la decisión. (...)
La violación de este derecho se consuma cuando se niega AL individuo su posibilidad material de hacer llegar
las peticiones a la autoridad, ya sea resistiéndose a admitir las peticiones escritas, ya sea rechazándolas in
limine y sin examen alguno, ya sea dejándolas indefinidamente sin respuesta. Fundamentos del derecho
procesal civil, p. 61/63.
140
Neste caso, temos direito de ação como direito subjetivo público à prestação jurisdicional, exatamente
conforme descrito na lição de Hugo Rocco; “El derecho de cada ciudadano, como tal, de pretender del Estado
o ejercicio de su actividad para la satisfacción de los interesses amparados por el derecho, se llama derecho de
acciôn.
Pertenece a la categoria de los derechos públicos subjetivos, y forma parte de la clase de los derechos cívicos,
por cuanto tiene por objeto una prestación positiva de parte del Estado.
86
Assim, parece-nos possível concluir que as normas jurídicas veiculadas no
enunciado da inafastabilidade da jurisdição são as seguintes:
a) Dado o fato de ser cidadão (deve ser) o direito subjetivo absoluto (faculdade)
de se dirigir ao Poder Judiciário (petição), ao qual corresponde o dever jurídico
do Estado de não impedir a ação do cidadão (relação jurídica conversa);
b) Dado o fato de o cidadão ter se dirigido ao Poder Judiciário (deve ser) o
dever jurídico (obrigação) de apreciação do pedido formulado, ao qual
corresponde o direito subjetivo público à efetiva apreciação da questão posta,
isto é, à prestação jurisdicional (relação jurídica conversa).
Os direitos subjetivos de provocação (ação-petição) e à tutela jurisdicional (ação-
resposta), ínsitos à noção de inafastabilidade da jurisdição, correspondem às duas faces da
chamada Teoria da Ação como “direito abstrato”, em que o termo “abstrato” deve ser
entendido como denotativo da autonomia do direito de ação em relação a qualquer espécie
de direito subjetivo material.
Nesse sentido, se um contribuinte ingressar com pedido judicial de repetição do
indébito tributário e, ao final, o Juízo constatar a ausência de um dos pressupostos
processuais, extinguindo o processo sem resolução do mérito, terá ele, contribuinte,
exercido plenamente seu direito constitucional de ação-petição. O mesmo ocorrerá se a
demanda for julgada improcedente, diante da constatação de que o direito subjetivo à
restituição não existe ou, ainda, que o referido direito restou fulminado pela prescrição. Em
ambos os casos, não se pode negar que a faculdade de se dirigir ao Poder Judiciário e o
decorrente dever de manifestação do Juiz foram plenamente exercidos.
Consiste su característica em ser um derecho abstracto, em El sentido de que prescinde de la existência
efectiva de um derecho material concreto.” Derecho Procesal Civil, p. 143/144.
87
Os direitos constitucionais de acesso à prestação jurisdicional (petição e resposta),
no entanto, perfazem direitos subjetivos prima facie
141
, visto que o efetivo exercício de
cada um deles está pautado por regras constantes dos inúmeros diplomas processuais
infraconstitucionais que disciplinam e (de)limitam o seu exercício, de maneira a evitar o
abuso e o desvirtuamento de seus escopos constitucionais.
É exatamente o caso da regra veiculada pelo art. 268, in fine, do Código de Processo
Civil
142
, que ao condicionar o despacho da petição inicial à prova do pagamento ou do
depósito das custas e dos honorários de advogado, impõe uma clara limitação ao direito
constitucional de ação-petição. Da mesma forma, o direito de ação-resposta está limitado
pela regra do art. 267 do Código de Processo Civil, que condiciona a apreciação do mérito
da demanda ao preenchimento dos requisitos enumerados em seus incisos.
É no âmbito da disciplina infraconstitucional do direito de acesso à prestação
jurisdicional, no entanto, que as demais acepções do vocábulo “ação” podem ser
identificadas, inclusive por meio do uso expresso do termo, todas elas relacionadas às
práticas normativas que visam dar efetividade ao exercício dos direitos subjetivos prima
facie constitucionalmente prescritos (ação-petição/ação-resposta).
O Código de Processo Civil possui inúmeros enunciados que fazem uso do termo
“ação” em sentidos diversos. A locução “proposta a ação”, constante do art. 263 do Código
de Processo Civil
143
, por exemplo, refere-se à conduta de se dirigir ao órgão jurisdicional,
estando relacionada com o exercício do direito constitucional de acesso ao Judiciário (ação-
petição)
141
Cuando consideramos el catálogo de derechos, habremos de considerar si esos derechos son absolutos, es
decir, si todos los sujetos tienen título suficiente para ejercerlos en todas las condiciones, o si se trata de
derechos prima facie, es decir, si admiten o no excepciones o cualificaciones, y si se convierten en derechos
absolutos únicamente si no existe concurrencia alguna de pretensiones competidoras. Daniel Mendonca. Los
derechos em juego, conflicto y balance de derechos, p. 26.
142
“Art. 268. Salvo o disposto no art. 267, V, a extinção do processo não obsta a que o autor intente de novo a
ação. A petição inicial, todavia, não será despachada sem a prova do pagamento ou do depósito das custas e
dos honorários advocatícios. A limitação imposta pelo art. 268 do Código de Processo Civil, conquanto
limitadora do direito constitucional de ação (petição), não pode ser considerada, em nosso sentir, violadora do
referido preceito constitucional, pois pressupõe que o autor tenha tido acesso à prestação jurisdicional em
processo anterior, no qual tenha sido, por exemplo, julgado carecedor da ação.
143
Art. 263. Considera-se proposta a ação, tanto que a petição inicial seja despachada pelo juiz, ou
simplesmente distribuída, onde houver mais de uma vara. A propositura da ação, todavia, só produz, quanto
ao réu, os efeitos mencionados no art. 219 depois que for validamente citado.” (g.n.)
88
na expressão “uma ação é idêntica a outra (...)”, veiculada no art. 301, § 2º, do
Código de Processo Civil
144
, o termo “ação” aponta para o ato-fato jurídico que objetiva
(em linguagem) o conteúdo da relação jurídica conflituosa e da pretensão deduzida (ação-
demanda).
A expressão “condições da ação” (art. 267, VI, do Código de Processo Civil
145
), por
sua vez, diz com os requisitos necessários para que haja efetiva apreciação da pretensão
deduzida (ação-resposta), a ser verificado após a concretização do ato de provocação
146
,
devendo o termo “ação”, neste caso, ser entendido como equivalente a “direito à apreciação
do mérito da causa
147
”.
Nesse sentido, as chamadas condições da ação perfazem, em verdade, condições
para o efetivo conhecimento do conflito deduzido, estando vinculadas ao segundo conteúdo
normativo do enunciado constitucional da inafastabilidade da jurisdição, qual seja: o do
direito à prestação da tutela jurisdicional pretendida (direito subjetivo público). Trata-se,
aliás, de “ação” no sentido proposto pela chamada “Teoria eclética” da ação
Por fim, ainda é possível identificar um’outra acepção do termo “ação”, vinculada
ao ato por meio do qual a autoridade jurisdicional concede, efetivamente, a tutela
jurisdicional deduzida (ação-tutela jurisdicional procedente), e que pressupõe o
reconhecimento concreto do direito material afirmado. É nessa acepção que o art. 352, I, II,
do Código de Processo Civil
148
usa o termo ação, ao prescrever que a confissão, quando
144
“Art. 301. Compete-lhe, porém, antes de discutir o mérito, alegar:
(...)
§ 2º. Uma ação é idêntica a outra quando tem as mesmas partes, a mesma causa de pedir e o mesmo
pedido.”(g.n.)
145
“Art. 267. Extingue-se o processo, sem resolução do mérito:
(...)
VI quando não concorrer qualquer das condições da ação, como a possibilidade jurídica do pedido, a
legitimidade das partes e o interesse processual.” (g.n.)
146
Imprescindível ao exercício do dever jurisdicional, por expressa determinação do art. do Código de
Processo Civil, in verbis: Art. 2º. Nenhum juiz prestará tutela jurisdicional senão quando a parte ou o
interessado a requerer, nos casos e formas legais.”
147
Efetiva porque, mesmo nos casos das sentenças proferidas com fundamento no art. 267, do Código de
Processo Civil, as quais, por definição legal, se caracterizam pela não apreciação do mérito da causa, há,
mesmo que de forma superficial, prestação jurisdicional.
148
“Art. 352. A confissão, quando emanar de erro, dolo ou coação, pode ser revogada:
I por ação anulatória, se pendente o processo em que foi feita;
89
emanar de erro, dolo ou coação, poderá ser revogada por “ação anulatória (art. 352, inciso
I)” ou por “ação rescisória (art. 352, inciso II)”. Eis o sentido de “ação” proposto pela
Teoria da ação como “direito concreto”, que se confunde, em dias atuais, com a noção
“tutela jurisdicional”.
Tem-se, portanto, o termo “ação” usado indistintamente para referir os atos e as
condutas que concretizam as várias etapas do processo de realização do direito
constitucional de acesso ao Judiciário, quais sejam: a conduta de provocação do juízo (ação
como exercício do direito de petição); o ato-fato que resulta do exercício do indigitado
direito (ação-demanda); o direito à prestação jurisdicional em sentido amplo (ação como
direito à resposta); e, por fim, o ato de concessão da pretensão deduzida (ação-tutela
jurisdicional).
O conceito de ação, portanto, cambia de acordo com o uso que os textos jurídico-
positivos fazem do termo, estando relacionado a diversos aspectos que compõem a teia
normativa que envolve o processo de positivação do direito processual, desde as
prescrições constitucionais mais básicas, passando pelas disposições normativas veiculadas
nos dispositivos legais e, finalmente, aos atos concretos realizadores da noção de
inafastabilidade da jurisdição, consubstanciando, assim, um emaranhado normativo
interdependente.
Cada uma das acepções do termo “ação”, por sua vez, compatibiliza-se com uma
das Teorias da ação descritas pela Dogmática Processual, o que nos faz insistir na tese,
desde antes esposada, de que as disputas doutrinárias relativas ao tema são, data venia,
demasiadamente essencialistas e, por esse motivo, estéreis. Com efeito, mais importante
que a essência (que é inatingível) é a existência.
Mais útil seria, talvez, tratar o tema a partir de uma óptica jurídico-global, sistêmica,
por assim dizer. A ação, sob este enfoque, seria mais que um direito subjetivo, um dever
jurídico ou um ato concreto de realização de ambos, mas uma “instituição jurídico-
processual”, em que o termo “instituição” é usado exatamente no sentido proposto por
GREGÓRIO ROBLES MORCHON, isto é, como um plexo normativo interdependente,
II por ação rescisória, depois de transitada em julgado a sentença, da qual constituir o único fundamento.
(g.n.)
90
composto por uma série de direitos e deveres que, em última instância, têm como objetivo
disciplinar o exercício da função jurisdicional.
Oportuna, neste momento, a transcrição das palavras do jusfilósofo espanhol a
respeito da abordagem institucionalista:
Uma tarefa capital que a dogmática vem cumprindo é estruturar o direito
em unidades mais amplas que as simples normas. O sistema que reflete
um ordenamento jurídico concreto é um sistema de instituições. Estas
constituem redes normativas unitárias em torno de um princípio básico (o
princípio institucional) e cuja função é regular juridicamente aspectos
concretos da realidade social
(...)
O estudo dogmático de um ordenamento jurídico concreto é possível
quando centrado no estudo das instituições, e nunca das normas
consideradas isoladamente. As normas não vivem isoladas. Pertencem ao
sistema e sempre fazem parte de alguma instituição. Se metaforicamente é
possível dizer que as normas são as células do organismo jurídico que é o
sistema, as instituições deveriam ser comparadas aos órgãos e aos tecidos.
Assim, como todas as células pertencem a órgãos ou tecidos, não existem
normas que não pertençam a instituições.
149
O modelo institucionalista tem a vantagem de possibilitar a compreensão do termo
“ação” dentro do contexto jurídico-normativo em que ele se encontra efetivamente inserido,
suplantando as limitações próprias às concepções parciais e superando a ilusão
essencialista, para imprimir ao estudo do tema um viés pragmático, cuja capacidade
explicativa é, em nosso sentir, muito superior àquelas oferecidas pelas várias “Teorias da
ação”.
2.3.2.2. Ações tributárias: definição do conceito
Os cortes analíticos perpetrados neste plexo normativo que materializa o “instituto
da ação”, realizados no item anterior com o intuito de enumerar as várias acepções em que
o termo é usado pelos textos jurídicos positivos, têm, no contexto deste trabalho, a
149
O direito como texto, p. 09/10
91
finalidade precípua de possibilitar a identificação do sentido adequado do termo nas
circunstâncias em que este estiver qualificado pelo adjetivo “tributária”. A pergunta a ser
posta neste momento é: em que sentido (dentre aqueles propostos) é possível falarmos em
ações tributárias?
Há, conforme mencionamos anteriormente, sentidos do termo “ação” que referem
normas jurídicas processuais cuja eficácia independe de qualquer conteúdo jurídico-
material. Assim, a ação, enquanto direito de provocação (ação-petição) ou, até mesmo,
direito à resposta do Órgão jurisdicional (ação-resposta), prescinde de qualquer juízo
relativo ao direito material controvertido para que seja efetivamente exercida. Dessa
maneira, qualquer vinculação do termo “ação” a uma adjetivação jurídico-material será
inadequada, não havendo que se falar, portanto, em tipificação dos direitos constitucionais
de petição e à prestação jurisdicional, que para propor ação (exercitar o direito de ação-
petição) e obter uma resposta do órgão jurisdicional (exercício do dever de prestação
jurisdicional), não é preciso que o direito material dito violado seja efetivamente apreciado.
O mesmo não pode ser afirmado, no entanto, sobre os atos concretos por meio dos
quais o direito constitucional de ação é exercido, atos estes que, conforme anotamos, têm
sua disciplina veiculada nos diplomas normativos infraconstitucionais, especialmente no
regime geral de direito processual do Código de Processo Civil.
Nessa medida, a ação-demanda, na condição ato de concretização do direito de
ação-petição, tem, por definição legal (art. 301, § 2º, do Código de Processo Civil), vínculo
direto com a relação jurídica de direito material controvertida, pois é ela a responsável pela
constituição da lide tributária.
Com relação aos atos de concretização do direito de ação-resposta (ação-prestação
jurisdicional), a mera manifestação do órgão jurisdicional pode dar azo, mesmo que
superficialmente (art. 267, VI e V, do Código de Processo Civil ausência das condições
da ação, litispendência ou coisa julgada), a juízos relativos ao direito material afirmado,
muito embora seja possível, também, a prolação de sentença extintiva que não traga em
seus fundamentos qualquer referência às questões de mérito (art. 267, I, II, III, IV, VII, VIII
e X, do Código de Processo Civil).
92
No que diz respeito aos atos que materializam a chamada ação-tutela (art. 352, I e
II, do Código de Processo Civil), concretizados nas circunstâncias em que a pretensão
deduzida é efetivamente concedida (procedência do pedido), parece-nos intuitiva a
constatação de que o acolhimento do pedido formulado pressupõe o conhecimento das
questões de mérito discutidas no processo, de sorte que, nesta acepção, ação e direito
material estão necessariamente vinculados.
Nesse contexto, cremos que a acepção do termo “ação” que deve ser adotada na
interpretação da expressão “ação tributária” é aquela que refere o ato concreto por meio do
qual o contribuinte exerce seu direito constitucional de ação-petição, que se confunde, aliás,
com a noção de demanda (ação-demanda). A opção se dá, em primeiro lugar, em razão de
os conceitos relativos às duas outras acepções (ação-resposta e ação-tutela) guardarem
similaridade com a noção de “tutela jurisdicional”, expressão esta que, em tempos atuais,
vem sendo utilizada com maior frequência pelos textos jurídicos positivos e doutrinários
para designar o ato concreto final do processo, por meio do qual a autoridade jurisdicional
cumpre com seu dever funcional e põe fim ao conflito deduzido.
Por se referir à forma de concretização de um direito subjetivo absoluto, que regula
diretamente a conduta do agente provocador (poder-faculdade de dirigir-se ao órgão
judicial), a ação-demanda traduz, com maior precisão, algo que realmente se encontra sob
total disponibilidade do cidadão, isso para não falar no fato de ser essa a acepção do termo
mais usada na práxis jurídica.
Além disso, é o ato de provocação (ação-demanda) que, por expressa determinação
legal (art. 2º do Código de Processo Civil), tem o condão de desencadear a atividade
jurisdicional (princípio do dispositivo), não havendo que se falar, por esse motivo, em
prestação jurisdicional sem que seja verificada a demanda concretamente deduzida pelo
titular do direito constitucional de ação-petição.
Note-se que é somente por meio da análise do conteúdo da ação-demanda, isto é, de
seus elementos identificadores – para usarmos a linguagem do legislador processual (partes,
causa de pedir e pedido art. 301, § 2º, do Código de Processo Civil) –, que se tem acesso
ao próprio direito material controvertido, não sendo incorreto afirmar que o fato jurídico
conflituoso se confunde com o próprio conteúdo da demanda. Daí, também, a conveniência
93
de adotarmos esta acepção como a mais adequada à interpretação da expressão “ação
tributária”.
Pensamos ser conveniente, neste instante, até para que não haja dúvidas sobre o que
realmente pretendemos expressar, fazer uma breve elucidação de índole teórico-geral.
Quando falamos em ato de provocação ão-demanda –, pretendemos referir o ato-norma
(enunciado-enunciado) veiculado no ato-fato (enunciação-enunciada) designado por petição
inicial (veículo introdutor da ação-demanda). Os elementos da ação perfazem, portanto, o
conteúdo (sentido) dos enunciados constantes de um específico veículo normativo, qual
seja: a petição inicial.
Posto isso, parece-nos ser possível definir “ação tributária” como o ato-norma
constitutivo do fato jurídico tributário conflituoso (antecedente), que impõe à autoridade
jurisdicional o dever jurídico (obrigação) de desencadear os subsequentes atos
jurisdicionais que darão azo à produção do ato final responsável pela composição da lide
tributária, constituída e delimitada pelo autor no ato inicial de provocação.
Sob esta óptica, ter-se-á ação tributária quando um dos sujeitos de uma dada relação
jurídica tributária se dirigir ao Judiciário (parte ativa autor) para afirmar uma situação
conflituosa (causa de pedir) e deduzir a pretensão (pedido) que entender adequada para
suplantar os efeitos do ato violador perpetrado pelo outro sujeito da relação jurídico-
tributária (parte passiva – réu).
2.3.2.3. Elementos e condições das ações tributárias
O sentido do termo “ação” no enunciado do art. 301, § 2º, do Código de Processo
Civil, é diferente daquele que lhe é atribuído pelo art. 267, VI, do mesmo diploma. No
primeiro caso, temos “ação” como demanda, o ato-norma inaugural do processo, cujo
conteúdo é a própria lide, tomada como fato jurídico constitutivo do conflito e da pretensão
a ser objeto de cognição judicial. É esta acepção, aliás, que usamos para definir o conceito
de “ação tributária”.
94
Na segunda passagem, por sua vez, a palavra “ação” é usada como denotativa do
direito subjetivo público à sentença que aprecia o mérito da causa, deduzido na ação-
demanda. Daí podermos falar em “condições da ação”, isto é, condições para a apreciação
do mérito da demanda e, por conseguinte, do direito subjetivo à prestação jurisdicional
plena (assim entendida como aquela que aprecia o mérito da causa e, assim, tem o condão
de produzir a chamada coisa julgada material).
Conquanto o significado do termo “ação” seja diferente nos dois dispositivos acima
referidos, fato é que existe uma íntima relação normativa entre eles. É que as condições da
ação (legitimidade para agir, interesse processual e possibilidade jurídica do pedido)
perfazem qualificações dos elementos identificadores da ação-demanda (partes, causa de
pedir e pedido), de cuja verificação depende a eficácia do ato-norma de provocação.
Assim, para que a ação-demanda seja efetivamente apreciada e, com isso, produza
todos os efeitos que dela se esperam (a composição da lide), é indispensável que seus três
elementos identificadores estejam qualificados pelas três condições da ação. Em outras
palavras, a eficácia plena da ação-demanda (fato jurídico litigioso), que se verifica quando
ocorre a efetiva apreciação de seu conteúdo por parte do órgão jurisdicional, depende da
verificação das condições da ação, de maneira que toda parte (elemento da ação) precisa
ter legitimidade (condição da ação) para agir; toda causa de pedir (elemento da ação) tem
de expressar a necessidade de ir a juízo e a utilidade da prestação jurisdicional para
compor o conflito deduzido (condição da ação); e, por fim, todo pedido ou pretensão
(elemento da ação) precisa ser juridicamente possível (condição da ação). As condições da
ação, nesse contexto, se apresentam como condições de existência do direito a uma
sentença de mérito e, via de consequência, de eficácia do fato jurídico ação-demanda.
Por expressa opção política do legislador processual, o juízo responsável pela
verificação das condições da ação não pode ser qualificado como um juízo de mérito, tanto
é assim, que a ausência de qualquer uma delas induz a extinção do processo sem resolução
do mérito (art. 267, VI, do Código de Processo Civil). Isso não quer significar, no entanto,
que as condições da ação perfazem categorias puramente processuais. Ao contrário, pois é
por meio delas que se torna possível a identificação dos liames mínimos que devem existir
95
entre a relação jurídica de direito material conflituosa afirmada na ação-demanda, os
sujeitos parciais do processo (partes) e a tutela jurisdicional pretendida.
Nessa medida, para que haja direito à tutela jurisdicional pretendida, os sujeitos
parciais do processo (partes) devem ser os mesmos que compõem a relação jurídica de
direito material conflituosa afirmada na demanda, visto que, por determinação expressa
veiculada da regra posta no art. 6º do Código de Processo Civil, é vedado pleitear, em nome
próprio, direito alheio, salvo quando autorizado por lei. A legitimidade de partes, portanto,
pode ser definida como a relação de identidade entre os sujeitos parciais do processo e os
sujeitos-de-direito que integram a relação jurídica de direito material conflituosa afirmada.
A única exceção à regra acima referida consta da parte final do indigitado artigo
do Código de Processo Civil, situação em que, por expressa autorização legal, um
determinado sujeito que não seja titular do direito material conflituoso poderá demandar em
nome de terceiro (legitimidade extraordinária).
O direito à tutela jurisdicional exige, também, que o direito material afirmado na
demanda (causa de pedir remota) tenha sido efetivamente violado ou esteja em vias de sê-lo
(lesão ou ameaça de lesão a direito causa de pedir próxima), de sorte que o recurso ao
Estado-juiz seja realmente necessário à sua preservação. Além disso, a tutela jurisdicional
pretendida precisa ser apta à realização da espécie de direito material controvertido, de
maneira a ser útil (eficaz) à composição do conflito. Dessa forma, é do binômio
necessidade/utilidade que se extrai a noção de interesse de agir, que nada mais é que a
relação de adequação entre o direito subjetivo dito violado e a proteção jurisdicional
pretendida.
Conforme destacamos por ocasião da definição dos conceitos de conflito e lide
tributários, existe uma estreita relação entre a espécie de direito subjetivo (prestacional,
potestativo ou absoluto causa de pedir remota), a específica forma de violação deste
(causa de pedir próxima) e o tipo de pretensão adequada a recompor o direito violado,
relação esta que, em verdade, se confunde com própria noção de interesse de agir.
Dessa forma, a possibilidade de cobrança indevida de um determinado tributo, por
meio do exercício ilegal do direito de tributar (direito potestativo), dá oportunidade à
formulação de pretensão processual obstativa deste direito (declaratória de inexistência de
96
relação jurídica), que impeça a indevida invasão da esfera jurídica do contribuinte (violação
de direito subjetivo absoluto).
A lavratura de auto de infração constitutivo de crédito tributário indevido, da mesma
maneira, ensejo ao nascimento do direito subjetivo (potestativo) do contribuinte à
anulação do débito e, consequentemente, à formulação de pretensão anulatória do ato de
cobrança.
Se o tributo houver sido recolhido, no entanto, a recusa do Fisco em devolver os
valores pagos indevidamente violará direito prestacional (direito subjetivo em sentido
estrito) do contribuinte, o que pressupõe a formulação de pretensão condenatória deduzida
com vistas à cobrança dos valores devidos.
As pretensões processuais destinadas à composição dos conflitos havidos nas
relações jurídico-tributárias (as lides tributárias), em verdade, são formuladas em estrita
observância da “espécie” de direito subjetivo material tributário (absoluto, potestativo ou
prestacional) e de sua específica forma de violação. A violação determina a forma de
reparação, de maneira a condicionar a tutela jurisdicional pretendida à adequada
composição do direito violado.
Nesse contexto, não nos parece despropositado afirmar que a toda espécie de direito
subjetivo tributário ameaçado de violação ou efetivamente violado corresponde uma
pretensão e, consequentemente, uma tutela jurisdicional tributária adequada à sua
preservação ou reparação. O quadro sinóptico abaixo ilustra bem a relação existente entre a
tutela jurisdicional pretendida (pretensão processual) e a espécie de direito subjetivo
violado, no âmbito das ações tributárias:
97
Por derradeiro, temos na possibilidade jurídica do pedido o terceiro critério
qualificador, cujo conceito também pressupõe uma relação entre um dos elementos da
ação-demanda (pedido) e o direito material afirmado pelo autor. Ter-se pedido
juridicamente possível se a pretensão formulada tiver o condão de tutelar direito subjetivo
que, abstratamente, seja de possível verificação nas disposições normativas de direito
material. Trata-se, portanto, de uma relação de compatibilidade entre a tutela jurisdicional
pretendida e o sistema de direito material, verificada por meio da análise dos consequentes
das normas abstratas e gerais válidas.
O direito à compensação de tributo pago indevidamente, por exemplo, em razão de
determinação expressa do art. 170 do Código Tributário Nacional
150
, está condicionado à
existência de Lei específica da pessoa competente para instituir o tributo em relação ao qual
ocorreu o pagamento indevido. Assim, se determinado contribuinte deduzir pretensão
declaratória do direito à compensação de tributo sem que haja norma abstrata e geral que
discipline essa forma específica de extinção do crédito tributário, o pedido formulado será
juridicamente impossível, motivo pelo qual nem sequer será apreciado.
150
“Art. 170. A lei pode, nas condições sob as garantias que estipular, ou cuja estipulação em cada caso
atribuir à autoridade administrativa, autorizar a compensação de créditos tributários com créditos líquidos e
certos, vencidos ou vincendos, do sujeito passivo contra a Fazenda Pública.”
98
Não se trata, neste caso, de afastar a pretensão deduzida por ausência concreta das
circunstâncias fáticas que dariam ensejo ao reconhecimento do direito afirmado (pagamento
indevido, por exemplo), o que pressupõe apreciação do mérito da causa, mas de negativa de
conhecimento do pedido por inexistência de regra de direito material que o preveja,
abstratamente. Não se analisa a incidência da norma, mas sua existência.
A identificação das condições da ação, o dissemos, conquanto esteja ligada a
aspectos do direito material conflituoso, não consubstancia juízo de mérito, e isso, repise-
se, ocorre por expressa opção do legislador processual
151
, que adota um conceito de
“mérito” que pressupõe o exame concreto das questões jurídico-materiais deduzidas pelas
partes. Essa circunstância impõe que o juízo de aferição das condições da ação seja
realizado, exclusivamente, no plano do direito material afirmado, e não no âmbito do
direito material concretamente provado.
Assim, uma coisa é constatar que, segundo as razões deduzidas pelo autor da ação, o
direito material conflituoso, se existir, não é de sua titularidade. Outra coisa é afirmar que,
muito embora seja possível constatar, pela leitura das razões trazidas na demanda, que os
sujeitos da relação jurídica de direito material conflituosa afirmada guardam relação de
identidade com aqueles que ocupam os dois pólos da relação processual, que tal relação não
foi corroborada pelo material probatório trazido aos autos. Nesse caso, teremos verdadeiro
juízo de mérito.
Vejamos, a título de exemplo, o caso do direito à restituição de tributos cuja
natureza pressupõe a transferência do encargo financeiro. Segundo prescreve o art. 166 do
Código Tributário Nacional, o direito à restituição desta espécie de tributo está
condicionada à (i) prova de ter contribuinte assumido o encargo ou, (ii) no caso de tê-lo
feito, estar o contribuinte expressamente autorizado por aquele que suportou o ônus.
Assim, se o contribuinte ingressar com ação de repetição do indébito relativo a
tributo desta natureza e, em suas razões, afirmar que o seu direito à restituição do indébito
independe das condições impostas pelo dispositivo legal acima referido, dará oportunidade
151
Opção esta que, aliás, pode ser modificada a qualquer momento, não havendo nada que impeça o
legislador de elevar as condições da ação ao status de questão de mérito. Se isso ocorrer, o conceito de
“julgamento de mérito” será ampliado, para abarcar juízos abstratos a respeito do direito material
controvertido, cognoscíveis no plano da afirmação.
99
à extinção do processo, sem resolução do mérito, por ausência de legitimação passiva, ou
seja, por não ser ele titular do direito material afirmado, cuja verificação depende das
condições impostas por lei.
Por outro lado, se o mesmo contribuinte afirmar, em suas razões, que é titular do
direito à restituição em razão de não ter repassado o ônus a terceiro, mas, ao final do
processo, não comprovar que o ônus não foi transferido, terá sua pretensão apreciada e
denegada, dando ensejo à extinção do processo por meio de sentença resolutiva do mérito.
O mesmo se aplica ao juízo de aferição do interesse processual, que pressupõe tão
somente a identificação da capacidade (potencialidade) de a pretensão deduzida proteger o
direito material dito violado, o que não garante que a tutela pretendida atinja seus escopos
sociais. A adequação de uma tutela condenatória que vise incentivar a conduta do Ente
tributante a realizar a restituição de tributo pago indevidamente, por exemplo, não garante
que sua concessão tenha o condão de acarretar a efetiva restituição do montante pago
indevidamente, visto que a efetividade da tutela jurisdicional depende de outras
circunstâncias jurídicas, sociais e políticas que escapam ao controle da autoridade
jurisdicional.
A juridicidade do pedido, da mesma forma, dispensa qualquer contato, por parte da
autoridade jurisdicional, com o material comprobatório trazido aos autos pelas partes,
sendo suficiente o mero cotejo do direito material afirmado com o direito material legislado
(norma abstrata e geral que fundamenta o direito subjetivo dito violado). Não se trata de
acolher ou afastar a pretensão, mas apenas de constatar, abstratamente, sua compatibilidade
com o direito positivo vigente.
O quadro abaixo espelha o vínculo que se estabelece entre direito material e
processual, por meio das noções de elementos da ação e condições da ação (sob a óptica
das ações tributárias)
152
:
152
Trata-se de uma adaptação de tabela constante do Curso de direito processual civil, v. 1, p. 178, de
Fredie Didier Jr.
100
Elementos da
relação jurídico-
tributária
Código Tributário
Nacional
Elementos da
ação
Condições da ação
Sujeitos da relação
jurídica tributária
Título II
Capítulos III, IV e
V
Partes
Legitimidade de
partes
Objeto
Título III
Pedido
Possibilidade
jurídica do pedido
Fato jurídico
tributário e relação
jurídico-tributária
Título II
Capítulos I e II
Causa de Pedir
Interesse
processual
2.3.2.4. Classificação das ações tributárias
Assumimos, em passagens anteriores, os elementos constitutivos das ações como os
caracteres a serem tomados na definição do conceito de ação tributária, visto que são eles
os elementos constitutivos da própria conflituosidade tributária. Pelo mesmo motivo, são
eles – os elementos identificadores – os critérios adequados à elaboração do esquema
classificatório das ações tributárias.
Assim, o primeiro elemento a ser considerado é aquele reflete o aspecto subjetivo da
demanda, isto é, as partes. No âmbito das ações tributárias, a posição de parte, já o vimos, é
ocupada, necessariamente, pelos dois sujeitos da relação jurídico-tributária, Fisco e
101
contribuinte, e, sob este ponto de vista, a definição da espécie de ação tributária dependerá
da identificação do sujeito propositor da ação (autor), por ser ele o responsável pela
constituição da demanda (critério da iniciativa). Sob esta óptica, temos de um lado as (i)
ações tributárias antiexacionais, assim entendidas como aquelas de iniciativa do
contribuinte; e, do outro, as (ii) ações tributárias exacionais, de iniciativa do Estado-Fisco.
A causa de pedir, na condição de segundo elemento identificador da ação,
determinará a divisão das duas classes acima referidas. Considerando a diversidade de
direitos subjetivos tributários (causas de pedir remotas), centraremos nossas atenções sobre
o aspecto próximo da causa de pedir, isto é, a lesão ou ameaça de lesão a direito. Por este
ângulo, as ações tributárias podem ser divididas em (i) ações tributárias preventivas,
fundadas na ameaça de lesão a direito subjetivo, e (ii) ações tributárias repressivas,
fundadas na efetiva lesão a direito subjetivo.
Por fim, o terceiro elemento da ação, o pedido, será utilizado na fixação do último
conjunto de subclasses. Identificaremos, então, quatro subclasses de ações tributárias: (i)
ações tributárias declaratórias; (ii) ações tributárias constitutivas (negativas); (iii) ações
tributárias condenatórias; (iv) as ações tributárias executivas (em sentido estrito).
Importante advertir, desde já, que este último critério classificatório, que diz
respeito ao conteúdo da pretensão deduzida, é objeto de diversas controvérsias doutrinárias
que, neste momento, não serão objeto de enfrentamento. É que o problema das espécies de
pretensão se confunde com a questão das espécies de tutela jurisdicional, visto que a
primeira (pretensão) determina o conteúdo da segunda, motivo pelo qual deixaremos a
análise do assunto para o capítulo destinado à análise da atividade jurisdicional.
Importa, neste momento, assumirmos duas premissas: (i) não que se falar em
eficácia das ações (mas somente das tutelas jurisdicionais que delas decorrem), mas apenas
em conteúdo das ações, de maneira que os conteúdos possíveis dos pedidos deduzidos nas
ações tributárias são aqueles que referimos no parágrafo anterior; (ii) as chamadas
pretensões cautelares, por serem instrumentais, têm o mesmo conteúdo da ação principal a
que visam instrumentalizar
153
, o que torna dispensável a sua inclusão no rol acima referido.
153
O que nos autoriza a falar em (i) ações cautelares declaratórias; (ii) ações cautelares constitutivas, (iii)
ações cautelares condenatórias e (iv) ações cautelares executivas.
102
Com efeito, para estruturarmos nosso esquema classificatório, tomamos as ações
tributárias na condição de classe universal, assim entendida como o conjunto de todas as
ações tributárias. Na primeira operação, usamos o critério da iniciativa (autor da ação
parte ativa) para realizar a primeira operação de divisão, a partir do qual obtivemos as
subclasses “ações tributárias antiexacionais” e “ações tributárias exacionais”.
A segunda operação de divisão, efetuada nas subclasses obtidas na primeira
operação, foi realizada tomando-se como critério de referência o segundo elemento da ação,
isto é, a causa de pedir (próxima – lesão ou ameaça de lesão), a partir da qual identificamos
o segundo conjunto de subclasses: as ações tributárias preventivas e as ações tributárias
repressivas.
Por fim, em nova operação de divisão lógica, lançamos mão do terceiro elemento da
demanda, o pedido, para obtermos o último grupo de subclasses: o das ações tributárias
declaratórias, constitutivas, condenatórias e executivas (stricto sensu)
154
, identificando,
então, as ações tributárias em espécie relacionadas a cada uma das subclasses.
O processo classificatório, acima descrito, pode ser representado pelo quadro
sinóptico abaixo:
154
A classificação proposta não se restringe às ações sujeitas ao chamado processo de conhecimento.
Portanto, quando falamos em ações executivas queremos referir aquelas produzidas em processos de
execução, neste caso, em se tratando de questões tributárias, os processos de execução fiscal e execução
contra a Fazenda Pública. Daí falarmos em pretensão executiva stricto sensu, que nada tem a ver com a
chamada pretensão executiva lato sensu a que se refere a Dogmática clássica de Direito Processual.
103
Ações
Tributárias
Antiexacionais
Exacionais
Preventivas
Preventivas
Repressivas
Repressivas
Declaratórias
(Classe Vazia)
Constitutivas
(Classe Vazia)
Declaratórias
(Classe Vazia)
Constitutivas
Condenatórias
Executivas
Declaratórias
Constitutivas
Condenatórias
Executivas
Declaratórias
Condenatórias
(Classe Vazia)
Executivas
Constitutivas
(Classe Vazia)
Condenatórias
(Classe Vazia)
Executivas
(Classe Vazia)
Ação
Declaratória
negativa
Ação
Declaratória de
Compensação
Ação
Anulatória de
Débito Fiscal
Ação de
Repetição do
Indébito
Tributário
Execução
Contra a
Fazenda
Pública
Ação
Cautelar
Fiscal
Ação
Anulatória de
Decisão
Administrativa
Ação de
Cobrança de
Tributos
Parafiscais
Ação de
Execução
Fiscal
Ação
Cautelar
Fiscal
Mandado de
Segurança
Preventivo
Mandado de
Segurança
Repressivo
Mandado de
Segurança
104
2.3.2.5. As ações tributárias no contexto do processo de positivação do direito tributário
As competências constitucionais tributárias, responsáveis pela delimitação formal e
material da atividade impositiva atribuída aos Entes Políticos constitucionais (União,
Estados, Distrito Federal e Municípios), não têm o condão de, por si sós, dar nascimento à
obrigação tributária necessária a compelir o cidadão a dispor de parcela de seu patrimônio
em favor do Estado. Para tanto, é imprescindível que as referidas competências sejam
efetivamente exercidas, por meio da instituição das regras de incidência tributária
responsáveis por selecionar, em suas hipóteses normativas, as materialidades (eventos/fatos
sociais) que fundamentarão sua incidência, e, em seus consequentes, os sujeitos de direito
capazes de compor o liame jurídico obrigacional (obrigação tributária em sentido estrito).
A mera instituição da regra-matriz de incidência tributária, por sua vez, também não
é suficiente para fazer nascer o vínculo obrigacional. A obrigação tributária só restará
efetivamente concretizada no âmbito das normas concretas e individuais produzidas pelos
atos de aplicação aptos a verter, em linguagem jurídica competente, os eventos sociais
juridicamente relevantes, constituindo os fatos jurídicos tributários necessários e suficientes
à instauração da relação jurídico-tributária em sentido estrito, de sorte que, somente neste
momento, poder-se falar em direito subjetivo de crédito e dever jurídico de débito
tributários.
Por fim, o ato derradeiro deste percurso de concretização normativa é, justamente,
aquele perpetrado pela conduta de cumprimento do dever jurídico tributário imposto ao
contribuinte, responsável por dar cabo à obrigação tributária.
A esta série de atos de aplicação, iniciada com o exercício das competências
constitucionais tributárias, mediada pelos atos de aplicação das regras de incidência
constitutivos dos fatos e das relações jurídico-tributárias obrigacionais e culminada pelo ato
de cumprimento da obrigação tributária, dá-se o nome de processo de positivação do direito
tributário
155
.
155
Carvalho, Paulo de Barros. Direito Tributário, Fundamentos Jurídicos da Incidência, passim.
105
Em um mundo ideal, toda competência legislativa tributária seria exercida nos
estritos termos fixados pela Constituição Federal. Do mesmo modo, qualquer ato de
aplicação das regras de incidência ocorreria nos exatos limites delineados pela moldura
normativa que lhe é correspondente. Por fim, como decorrência dessa correção normativa,
toda obrigação tributária seria extinta pelo pagamento espontâneo.
Esse mundo utópico, sabemos todos, não existe. Aliás, é a própria impossibilidade
de um sistema normativo exclusivamente primário plenamente eficaz, que fosse observado
consensualmente por todos os seus destinatários, a razão de ser dos sistemas normativos
processuais (secundários), cujo escopo, reafirmamos, é garantir a eficácia dos sistemas
primários por meio dos instrumentos normativos “sancionadores” das condutas que,
eventualmente, estejam em desacordo com as normas de direito material.
Não por outro motivo, é comum que as normas que disciplinam a dinâmica de
aplicação do direito tributário deixem de ser, em algum momento, observadas pelos seus
destinatários, fazendo nascer, então, os conflitos tributários, cuja composição dar-se-á, no
mais das vezes, por meio dos instrumentos processuais previstos no sistema jurídico-
processual.
Para que possamos tratar da relação existente entre o processo de positivação do
direito tributário e o surgimento das lides tributárias, faz-se necessário, neste momento,
retomarmos algumas das premissas firmadas em passagens anteriores.
Só há de se falar em conflitos tributários no plano das relações jurídicas situadas nos
consequentes das normas concretas e individuais. Isso não quer significar, no entanto, que
os conflitos tributários ocorram no âmbito das relações jurídico-tributárias em sentido
estrito (obrigações tributárias), pois, conforme destacamos anteriormente, existem outras
espécies de relações e situações jurídicas subjetivas (direitos subjetivos em sentido amplo)
que permeiam todo o percurso de positivação do direito tributário, dentre elas aquelas em
que se encontram o direito subjetivo (absoluto) de ser tributado nos estritos limites fixados
pela Constituição Federal e pela Lei tributária; o direito subjetivo (potestativo) de constituir
o crédito tributário; o direito subjetivo (potestativo) à anulação do crédito ilegitimamente
constituído, e o direito subjetivo (prestacional) à restituição do tributo pago indevidamente.
106
Além disso, afirmamos que a cada espécie de direito subjetivo tributário violado
corresponde uma pretensão processual adequada à produção da tutela jurisdicional apta à
sua reparação. E a isso acrescentamos: a pretensão, na condição de elemento da ação-
demanda, perfaz um importante critério de classificação das ações tributárias, de sorte que
se a pretensão deduzida é de anulação do débito fiscal, por exemplo, a ação tributária a ela
correspondente é a ação anulatória de débito fiscal.
Retomando o raciocínio, cabe agora atestar que a manifestação de cada um desses
direitos subjetivos tributários (absolutos, potestativos e prestacionais) e de suas correlatas
contingências patológicas mantém vínculo direto com o momento em que se encontra o
percurso de positivação do direito material tributário, ou seja, cada espécie de conflito tem
seu momento e lugar especificamente delimitados no percurso de positivação do direito
tributário.
Pois bem. Se (i) cada espécie de direito subjetivo tributário violado (conflito) tem
sua existência vinculada a um momento específico do processo de positivação; e, ainda, (ii)
se é a natureza do direito subjetivo violado que determina a ação tributária a ser deduzida
em juízo, podemos concluir que (iii) a identificação da ação tributária adequada à
composição dos conflitos tributários é determinada pelo momento em que se encontra o
processo de positivação do direito material tributário.
Assim, parece-nos correto afirmar que à violação dos direitos subjetivos tributários
próprios a cada etapa do processo de positivação corresponde uma específica ação tributária
apta a instar a produção da tutela jurisdicional adequada a dirimir os conflitos havidos entre
Fisco e contribuinte.
O direito absoluto de ser tributado nos limites (constitucionais e legais) fixados pelo
sistema se encontra no topo da cadeia de positivação do direito tributário e tem como fato
jurídico necessário e suficiente à sua existência a mera circunstância de ser contribuinte de
um determinado imposto. Trata-se de um direito subjetivo que impõe o dever do Estado-
administração de se abster da cobrança do tributo fora dos moldes normativos previamente
delimitados pelo ordenamento. A mera possibilidade normativa (instituição de regra-matriz
de incidência inconstitucional, por exemplo) de se exigir do contribuinte tributo indevido,
107
portanto, pressupõe a instauração da conflituosidade, visto que tal situação perfaz uma
evidente ameaça de lesão ao referido direito subjetivo.
A conflituosidade verificada no âmbito dessa espécie de direito subjetivo pode
ser sanada por meio de instrumentos processuais (ações) que tenham o condão de instar,
preventivamente, o Estado-juiz a produzir uma específica tutela jurisdicional dotada da
capacidade de evitar que a lesão efetivamente ocorra. Para tanto, o sistema jurídico
processual prevê dois instrumentos processuais aptos à obtenção da necessária e adequada
tutela preventiva: (i) a ação declaratória de inexistência de relação jurídico-tributária; e (ii)
o mandado de segurança preventivo
156
.
Note-se que a relação jurídica a ser “declarada inexistente”, neste caso, não é a
relação jurídico-tributária em sentido estrito (obrigação tributária), mas sim a relação
jurídica na qual se encontra o direito subjetivo potestativo da Fazenda Pública de constituir
o débito pelo lançamento. É sobre ela que recai a crise de incerteza que subjaz à tutela
declaratória negativa em matéria tributária.
A produção do ato constitutivo do fato jurídico e da correlata relação jurídico-
tributária marca o início da fase seguinte do percurso de positivação. A constituição do
crédito tributário sem a observância dos parâmetros normativos (legais e constitucionais)
perfaz fato jurídico necessário e suficiente ao nascimento do direito subjetivo (potestativo)
à anulação do débito ilegitimamente constituído, cabendo ao contribuinte, neste momento,
deduzir a adequada pretensão que acarretará a produção da tutela jurisdicional apta a
realizar seu direito subjetivo. Há, também nesta fase, dois instrumentos processuais capazes
de desconstituir o ato jurídico ilegítimo: (i) a ação anulatória de débito fiscal; e (ii) o
mandado de segurança repressivo.
Note-se que em ambas as situações acima descritas, as relações jurídico-tributárias
conflituosas dizem com o direito subjetivo absoluto de não ser tributado e o direito
subjetivo potestativo à anulação do débito. Tais relações assumem, respectivamente, a
condição de causas de pedir remotas das ações declaratória negativa e anulatória do débito
156
Não é o caso de, neste momento, entrarmos em detalhes a respeito das características procedimentais e
eficaciais dos mencionados instrumentos processuais. Importante, agora, delimitarmos o momento adequado
ao seu manejo, segundo a fase em que se encontra o processo de positivação do direito tributário.
108
fiscal. A relação jurídico-tributária em sentido estrito (obrigação tributária), por sua vez, em
ambos os casos, é o mero resultado do ato de violação, perfazendo, portanto, causa de pedir
próxima (fato do descumprimento) das referidas ações tributárias.
O marco seguinte do processo de positivação é aquele que, ordinariamente, seria o
responsável pelo encerramento do ciclo, isto é, o ato de cumprimento da obrigação
tributária (pagamento). Pressupondo que não haja qualquer irregularidade na cobrança,
deverá o sujeito passivo da obrigação tributária realizar seu dever jurídico de adimplir o
crédito. Cabe lembrar, no entanto, que a relação jurídico-tributária (obrigação tributária
dita “principal”) na qual está contida o dever jurídico de levar aos cofres públicos o
montante devido a título de tributo pressupõe a relação jurídica conversa consubstanciada
pelo direito subjetivo de adimplemento do crédito
157
.
Daí que, se o sujeito passivo da obrigação tributária, titular do dever jurídico e,
consequentemente, do direito subjetivo de adimplir o tributo
158
, encontrar quaisquer óbices
à realização de sua conduta (dúvida quanto ao sujeito passivo ou ilegítima recusa ao
recebimento do crédito), terá ele interesse processual (necessidade) para buscar no Poder
Judiciário a tutela jurisdicional apta a livrá-lo do encargo. Trata-se de um específico
conflito de interesses verificado na relação jurídico-tributária em sentido estrito (causa de
pedir remota), qualificado pelo óbice ilegítimo ao cumprimento da obrigação (causa de
pedir próxima). Neste caso, o instrumento processual adequado à composição da
conflituosidade é a chamada ação de consignação em pagamento (art. 164 do Código
Tributário Nacional).
O pagamento, dissemos há pouco, assume a condição de ato derradeiro do processo
de positivação. Essa afirmação, advertimos, deve ser interpretada no contexto de aplicação
das normas direta ou indiretamente voltadas ao recolhimento do crédito tributário.
Explicamos. Muito embora o sistema jurídico tributário se volte a disciplinar e
controlar todas as condutas relativas à instituição, cobrança e arrecadação de tributos, o
controle da legalidade deste conjunto de atividades não ocorre, exclusivamente, a priori,
157
Trata-se, em verdade, de uma condição lógico-deôntica: a obrigação de fazer algo implica a permissão para
fazê-lo.
158
Tomado, aqui, como sinônimo de prestação a ser cumprida objeto da obrigação tributária.
109
isto é, não está restrito aos momentos que antecedem o ato de cumprimento da obrigação
tributária. Existe, também, a possibilidade de que o controle de legalidade da atividade
impositiva do Estado seja realizado após a extinção da obrigação tributária, ou seja, por
meio de regras que determinam a reparação de eventual dano causado ao contribuinte em
decorrência da instituição e cobrança ilegítima de tributos.
Nesse sentido, se a instituição indevida de norma tributária de incidência implica a
constituição indevida de obrigação tributária, o ato de cumprimento desta, o pagamento,
também será indevido. Tem-se, portanto, o pagamento indevido como fato jurídico
necessário e suficiente ao nascimento de outra relação jurídica tributária, qual seja: a
relação de indébito tributário (art. 165 do Código Tributário Nacional), relação esta que
vincula, em polos opostos aos da obrigação tributária, os mesmos sujeitos da obrigação
tributária, impondo ao sujeito-contribuinte o direito subjetivo à devolução dos valores
pagos indevidamente, e ao sujeito-fisco, o dever jurídico de restituí-los.
Os conflitos havidos no âmbito da relação jurídica de indébito ocorrem de forma
similar àquele que se dá no âmbito da obrigação tributária, ou seja, pelo não adimplemento
espontâneo (independentemente de prévio protesto, nos termos do art. 164 do Código
Tributário Nacional) do dever de restituir os valores pagos indevidamente. Para a
composição dessa espécie de conflituosidade o sistema jurídico processual estabelece
outros dois instrumentos: a ação de repetição do indébito tributário e a ação declaratória do
direito de compensar, ambas fundadas, em última instância, no inadimplemento (causa de
pedir próxima) da relação jurídica de indébito (causa de pedir remota), diferençando-se, tão
somente, pela pretensão deduzida.
159
Até o momento, todas as patologias descritas nos parágrafos anteriores dizem
respeito, exclusivamente, a atos de violação a direitos subjetivos do contribuinte. Ocorre,
no entanto, que o Estado-fisco também é titular de vários direitos subjetivos verificados no
âmbito do processo de positivação do direito tributário. O primeiro deles é o direito
potestativo de constituir o crédito tributário, cuja violação é, pragmaticamente, de difícil
159
A ação declaratória do direito de compensar também pode estar fundada, exclusivamente, em dúvida
quanto ao direito à compensação, ou seja, é possível que a Fazenda Pública reconheça a existência do indébito
tributário mas resista à possibilidade de compensá-lo. Neste caso, a causa de pedir da ação declaratória não
será a relação de indébito, mas a própria relação jurídica do direito (potestativo) de compensar o valor pago
indevidamente.
110
verificação, sendo quase inimaginável a possibilidade de se obstar a constituição do crédito
tributário. Por esse motivo, não que se cogitar da possibilidade de haver interesse do
Estado-fisco de se dirigir ao Poder Judiciário para, preventivamente (antes da constituição
do crédito)
160
, garantir a realização de seus direitos.
Assim, o principal direito subjetivo atribuído ao Estado-fisco é justamente aquele
que é inerente à sua condição de sujeito ativo da relação jurídico-tributária em sentido
estrito: o direito ao crédito tributário.
Não é difícil inferir que a violação do direito subjetivo de crédito ocorre por meio
do inadimplemento da obrigação, de maneira que a tutela jurisdicional relacionada a esta
espécie de conflituosidade terá por objeto, necessariamente, a realização do crédito
tributário.
A mera ocorrência do inadimplemento no plano da facticidade social, no entanto,
não é suficiente para habilitar o sujeito ativo da obrigação tributária a pleitear junto ao
Poder Judiciário a tutela jurisdicional realizadora de seu direito subjetivo de crédito. Faz-se
necessário, ainda, que seja produzido outro ato jurídico, que será o responsável por verter
em linguagem jurídica competente o fato do inadimplemento, atribuindo à obrigação
tributária a presunção de liquidez, certeza e exigibilidade.
Diferentemente dos direitos subjetivos prestacionais de titularidade do contribuinte
(como o direito à restituição do tributo pago indevidamente), a constituição do fato do
inadimplemento da obrigação tributária se pela via administrativa, não havendo, em
regra
161
, necessidade de buscar judicialmente os meios (tutela condenatória) necessários à
realização do direito violado (via tutela executiva).
160
Há, em verdade, uma única exceção a essa regra, que é aquela prevista no art. 1º, parágrafo único, da Lei
8.397/92, que disciplina a medida cautelar fiscal, in verbis:
“Art. 1º. O procedimento cautelar fiscal poderá ser instaurado após a constituição do crédito, inclusive no
curso da execução fiscal da Dívida Ativa da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e
respectivas autarquias.
Parágrafo único. O requerimento da medida cautelar, na hipótese dos incisos V, b, e VII, do art. 2º,
independe de prévia constituição do crédito tributário.” (g.n.)
161
Falamosem regra, pois a exeqüibilidade de algumas espécies tributárias, cuja cobrança é atribuída, em
regime de parafiscalidade, a pessoas jurídicas de direito privado, deve ser constituída pela via jurisdicional
(tutela condenatória).
111
O ato de inscrição do débito em dívida ativa, portanto, é emanado em substituição
àquele que, ordinariamente, daria cabo ao processo de positivação, isto é, o pagamento.
Trata-se, portanto, do último ato de aplicação do ciclo concretizador praticado sem a
interferência direta do Poder Judiciário. A partir desse momento, a realização do direito
subjetivo do sujeito credor dar-se-á, exclusivamente, no âmbito jurisdicional.
Inadimplida a obrigação e inscrito o débito em dívida ativa extrai-se, então, aquele
que é o documento habilitado a permitir que o sujeito ativo da obrigação tributária se
socorra do Poder Judiciário para solicitar a realização de seu direito de crédito: a certidão
de dívida ativa. Referido documento, por definição legal (art. 585, VII, do Código de
Processo Civil), possui status de título executivo extrajudicial, viabilizando o ingresso em
juízo do sujeito credor (Fazenda Pública) por meio de instrumento processual
especificamente destinado a realização forçada do crédito fazendário: a ação executiva
fiscal.
Conquanto seja certo que o processo executivo fiscal, dada a presunção de liquidez,
certeza e exigibilidade da obrigação tributária a ser realizada, prescinda de juízo cognitivo a
respeito do direito material controvertido, fato é que a referida presunção poderá, ainda, ser
afastada por meio de dois outros instrumentos processuais postos à disposição do
contribuinte. São eles: a exceção de pré-executividade e os embargos à execução.
Eventual insucesso do contribuinte em afastar a cobrança, neste momento, implicará
a prática dos atos jurisdicionais expropriatórios de seu patrimônio, tendentes à obtenção dos
valores necessários à realização do crédito tributário, circunstância em que, pela via
jurisdicional, o sistema jurídico tributário atingirá seus escopos sociais.
Verifica-se, portanto, que não existem dois ciclos de positivação autônomos ou
independentes, um relativo ao sistema jurídico-processual e outro concernente ao sistema
jurídico-material, ao contrário, o ciclo de concretização do sistema secundário integra a
própria dinâmica do processo de positivação do direito material (in casu, o tributário).
Aliás, mera análise dos conteúdos normativos dos atos inicial (ação) e final (tutela) do
processo jurisdicional é possível concluir que o fenômeno processual se inicia e se extingue
sob o pretexto da efetiva concretização do direito material.
112
Nesse universo, o processo jurisdicional se apresenta como a face patológica do
ciclo de positivação do direito material tributário. Se o direito não se realiza (socialmente)
pelas vias ordinárias e consensuais, então o processo jurisdicional atua para realizá-lo por
meios coercitivos. Seu objetivo é, em primeira e última instância, dar plena efetividade ao
sistema jurídico primário.
Direito material e direito processual, portanto, mantém vínculo reflexivo, em que o
primeiro ingressa no espectro normativo do segundo sob o pretexto da violação, para, ao
final, regressar à região material das condutas intersubjetivas sob a forma de ato-norma
realizador, num movimento que, noutra oportunidade
162
, chamamos de “causalidade
circular”.
2.3.3. Processo, direito ao (devido processo) e processo tributário
2.3.3.1. O fenômeno processual
Dos três institutos fundamentais de Teoria Geral do Processo (ação, processo e
jurisdição), o “processo” é o único que pode ser alçado à condição de categoria teórico-
jurídica geral. O “processo” representa para a dinâmica do fenômeno jurídico aquilo que a
norma, o direito subjetivo e a relação jurídica representam para a estática do Direito. Em
direito, vale lembrar, a validade das decisões normativas está diretamente vinculada à
legitimidade do processo que lhes deu origem, sendo ele (o processo) um dos mais
importantes instrumentos jurídicos de controle do arbítrio decisório.
O conceito de processo, no entanto, também está longe de ser unívoco. Do ponto de
vista jurídico-positivo, numa análise superficial dos enunciados veiculados na Constituição
Federal e no Código de Processo Civil, a palavra “processo” aparece em pelo menos
162
Rodrigo Dalla Pria.O direito ao processo. In: (Coord. Paulo Cesar Conrado) Processo tributário
analítico, p. 42.
113
duzentas e oitenta e seis oportunidades, cinqüenta e seis no texto constitucional e duzentas
e trinta no indigitado diploma infraconstitucional.
Segregando as referidas aparições do termo em classes constituídas segundo o
alcance semântico do signo em cada uma de suas manifestações, é possível identificar, pelo
menos, cinco acepções para o vocábulo “processo”, a saber: (i) processo em sentido léxico:
meio por meio do qual se realiza algo; (ii) processo como meio ou instrumento de produção
de normas em geral; (iii) processo como relação jurídica triádico-angular, vocacionada à
produção de normas compositivas de conflitos havidos entre os sujeitos de relações
jurídico-substanciais; (iv) processo como conjunto de atos; e (v) processo como sinônimo
de suporte físico de atos processuais (autos)
163
.
Não obstante as várias acepções com que a palavra processo é usada pelo legislador
constitucional e infraconstitucional, tal qual acontece com o conceito de ação, parece-nos
possível extrair, em todas as passagens, um elemento semântico comum a todas suas
manifestações, que está relacionado às técnicas de produção de decisões normativas.
produção normativa mediante aplicação de outras normas estruturais que definem a
autoridade competente para emaná-las (normas de competência) e regulam as condutas
intermediárias do ato de decisão prolator da norma produto (normas procedimentais).
Assim, toda e qualquer decisão normativa exige um processo, que, por sua vez, resulta da
aplicação de outras normas.
O conceito de processo, portanto, não está circunscrito à atividade jurisdicional,
sendo inerente à atividade de produção normativa em geral, incluindo aquelas exaradas no
exercício das funções legislativa, administrativa e privada. Diferenciam-se, tão somente, em
razão dos regimes jurídicos processuais que são próprios a cada função normativa.
Os regimes jurídicos processuais aplicáveis à produção de normas no âmbito das
competências das pessoas jurídicas de direito público costumam ser muito mais rígidos que
aqueles que instrumentalizam as decisões normativas tomadas no âmbito das competências
privadas, pois as primeiras, no mais das vezes, envolvem questões, valores e bens
constitucionalmente indisponíveis, cujo controle deve ser feito, via processo, de forma mais
efetiva. Os processos de produção normativa privados, por sua vez, estão relacionados a
163
Um estudo semântico do vocábulo processo, ainda mais analítico do que o ora esposado, foi realizado por
Paulo Cesar Conrado, que identificou dez acepções jurídicas do termo. Ob. cit., p. 19.
114
interesses postos sob a disponibilidade dos agentes privados, razão pela qual costumam
estar submetidos a regimes jurídicos mais frouxos e informais.
A processualidade, portanto, é um fenômeno inerente à normatividade jurídica
164
,
em todos os setores em que ela se manifesta, caracterizando-se por ser uma estrutura na
qual se desenvolvem, segundo o ordenamento estatal, numerosas atividades de direito
público (principalmente deveres fundamentais do Estado, mas não somente eles) e algumas
atividades privadas
165
, o que significa dizer que o conceito de processo deve ser construído
a partir de critérios comuns a todas as competências decisórias previstas pelo ordenamento
jurídico, de forma que somente após a identificação do que vem a ser tal estrutura será
possível particularizar os elementos que diferenciam as espécies processuais
especificamente consideradas.
Uma advertência parece-nos, neste momento, pertinente. Até o momento temos
usado os vocábulos “processo” e “procedimento” indiscriminadamente, como sinônimos,
pois no âmbito da Teoria Geral do Direito a discussão a respeito das diferenças entre os
dois conceitos é um tanto quanto irrelevante
166
. Sobre o assunto, anotou J. J. CALMON DE
PASSOS:
Nós, juristas, operamos como dois conceitos: o de processo e o de procedimento.
Ainda que não se harmonizem os estudiosos em torno do assunto, subsistindo
renitente divergência mais verbal, no particular, que substancial. Para muitos,
procedimento seria a categoria básica e geral, desdobrada em tipos de processo,
como modos de proceder em cada espécie de procedimento. Para outros, a
categoria básica é o processo e o procedimento diria respeito ao modo de
proceder em cada processo. Ali, um pensamento de matriz kelseniana, aqui, um
pensamento influenciado talvez pelo procedimentalismo luhmanniano. Em
termos de conseqüências práticas, irrelevante a polêmica. Inclino-me, entretanto,
versão kelseniana, porque me parece a adequada em face de nossa Constituição.
Refere-se ela ao processo legislativo (Seção VIII do Título IV) e ao processo
administrativo (art. 5º, inciso LV), e quando cuida da disciplina do modo de
proceder em cada tipo de processo utiliza o termo procedimento, a exemplo do
que faz dispondo sobre a competência concorrente dos Estados para legislar
sobre procedimentos, reservando à União a competência para disciplinar o
164
J. J. Calmon de Passos. Direito, poder, justiça e processo, p. 76.
165
Fazzalari, Elio. Instituições de direito processual, p. 27.
166
Anote-se, no entanto, que no plano jurídico-positivo a diferenciação entre os conceitos de processo e
procedimento é de grande importância, especialmente para a delimitação das competências legislativas da
União e dos Estados em matéria de processo jurisdicional. Nesse sentido, vide os enunciados dos artigos 20, I
e 24, XI, da Constituição Federal.
115
processo (art. 24, inciso XI). Como frisado, entretanto, da divergência
meramente nominal nada de substancial decorre, visto que todo quanto
ponderado antes vale para as duas posições
167
.
Seguindo caminho contrário ao trilhado por CALMON DE PASSOS, ELIO
FAZZALARI
168
prefere usar a palavra “procedimento” como gênero do qual o “processo” é
espécie, de maneira que o segundo possa ser definido a partir do primeiro. Num primeiro
momento, continuaremos a usar os referidos vocábulos indistintamente, mas não
definiremos um pelo outro, até evitar futuros mal-entendidos. Por ocasião da análise do
processo jurisdicional tributário, especificamente considerado, faremos a diferenciação, no
plano jurídico-positivo, entre os conceitos de processo e procedimento.
Conforme assentado desde antes, o direito é, essencialmente, um sistema normativo,
razão pela qual, conforme corretamente anota FAZZLARI
169
, devemos tomar a norma
como ponto de partida para traçar o perfil de uma “forma jurídica” específica que traduza,
sob o ponto de vista lógico, o fenômeno processual. Nada obstante, o conceito de norma
jurídica, tanto quanto o de relação jurídica, considerados no âmbito de sua estrutura
sintática, traduz uma perspectiva estática do direito.
Daí que, para que consigamos nos manter fiéis às nossas premissas lógicas e, ao
mesmo tempo, construir um conceito de processo que conta de expressar sua natureza
eminentemente dinâmica, não nos resta alternativa senão tratar a “forma processual” como
um esquema de normas (processo em sentido abstrato), de cuja aplicação decorre uma
sequência de atos (processo em sentido concreto), neles incluído o ato final para cuja
formação eles conspiraram, tal qual sugere FAZZALARI
170
.
Os processos de produção normativa, portanto, devem ser tomados como uma
conexão normativa que se manifesta em sequência e que se verifica quando se está ante
uma série de normas, cada uma das quais reguladora de uma determinada conduta, mas que
167
Ob. cit., p. 79.
168
Fazzalari, Elio. Ob. cit., p. 40.
169
Idem, ibidem, p. 76.
170
Idem, ibidem, p. 81.
116
enunciam como condição de sua incidência o cumprimento de uma atividade regulada por
outra norma da série, e assim por diante, até a norma reguladora de um “ato final”
171
.
Agora, se o processo é regulado de modo que dele participem também aqueles em
cuja esfera jurídica o ato final é destinado a desenvolver seus efeitos – de modo que o autor
dele (do ato final, ou seja, o juiz) deve dar a tais destinatários o conhecimento da sua
atividade, e se tal participação é armada de modo que os contrapostos “interessados”
(aqueles que aspiram à emanação do ato final interessados em sentido estrito e aqueles
que queiram evitá-lo, ou seja, os “contrainteressados”) estejam sob plano de simétrica
paridade, então estará normativamente estruturado sob a forma de “contraditório”
172
.
Estaremos, neste caso, diante do processo jurisdicional.
Numa perspectiva dinâmico-abstrata, portanto, o processo é um regime jurídico-
normativo de produção de decisões normativas, sistematizado mediante um esquema de
normas conectadas com o fim específico de produzir um ato normativo final: a decisão. Se
esta sequência normativa estiver estruturada em regime de contraditório e se a competência
para exarar a decisão final for atribuída a uma pessoa jurídica de direito público, estaremos
diante de um processo jurisdicional
173
.
O que diferencia o processo jurisdicional dos demais processos jurídicos de
produção normativa, caracterizando-o, é a contraditoriedade, ou, conforme prefere SOUTO
MAIOR BORGES, a dialeticidade que é inerente às formas processuais que se destinam a
produzir decisões com vistas à resolução de interesses conflituosos. Vale, por oportuno,
conferir a lição o Mestre pernambucano:
O processo é depositário de um incomparável legado, porque a dialética, como
originalmente concebida arte do diálogo regrado -, persiste, hoje, no direito
processual positivo. Dito mais precisamente: o processo (seja civil, penal,
trabalhista, administrativo, tributário etc.) é a única província normativa do
Direito que abriga a dialética como conditio sine qua non para a aplicação de
171
Idem, ibidem, p. 93.
172
Idem, ibidem, p. 94.
173
Lembrando que os processos arbitrais têm a mesma estrutura dos processos jurisdicionais, pois também se
prestam à composição de relações conflituosas, tanto quanto a atividade jurisdicional. A diferença decorre do
fato de que a competência para a produção da decisão normativa é atribuída a uma pessoa jurídica de direito
privado.
117
suas normas. E essa exigência já se instaura no nível constitucional (CF de 1988,
art. 5º, inciso LV). Sem partes litigiosas (autor, réu) e para imparcial (o juiz)
nenhum processo. O antagonismo de posições das partes não é obstáculo à
dialética, antes a viabiliza. A dialética não é morada do consenso, mas do
diálogo regrado. O entrechoque de opiniões é, também ele, diálogo
174
.
É notável como a fórmula racional-dialética hegeliana, estruturada por meio da
tríade tese (ação), antítese (contraditório/defesa) e conclusão (provimento jurisdicional), se
amolda com perfeição ao esquema normativo do processo jurisdicional. Assim, do ponto de
vista concreto, o processo pode ser definido como um discurso normativo-dialético, por
meio do qual os interessados contrapostos se mantêm em diálogo intermediado que, ao
final, resulta em norma-tutela.
Não por outro motivo, na maioria das vezes, há, de fato, a formação de uma relação
jurídica angular que vincula autor, juiz e réu, que muito embora seja ínsita à natureza
dialética do processo jurisdicional, com ele não se confunde. O processo jurisdicional não
se reduz à relação jurídica angular que dele decorre, pois, para além desta, pressupõe a
formação de outras relações, situações e posições jurídicas que restariam inexplicadas caso
o reduzíssemos ao vínculo triádico
175
.
O processo representa o momento dinâmico do fenômeno jurídico, um continuum
normativo instrumental. Não obstante seja possível, e até útil, descrevê-lo sob uma
perspectiva estática, nunca será possível compreender, mediante tal expediente
metodológico, a complexidade própria ao fenômeno processual, lembrando que, sob uma
perspectiva pragmática, a função de qualquer teoria é facilitar a compreensão do objeto que
pretende descrever, com o intuito de, finalisticamente, otimizar o seu manuseio. É por isso
que, tão importante quanto a precisão da linguagem que descreve o objeto e produz o
conhecimento, é a eficácia explicativa do discurso que procura transmiti-lo aos seus
destinatários.
174
O Contraditório no Processo Judicial (uma visão dialética), p. 75.
175
A concepção de processo como relação jurídica angular não conta de explicar inúmeras outras relações
jurídicas que resultam na instauração do processo judicial, tais como: (i) a relação jurídica mantida entre os
litisconsortes; (ii) a relação jurídica mantida entre as partes, o Juízo e as testemunhas; (iii) a relação jurídica
estabelecida entre as partes, o Juízo e os peritos; dentre outras.
118
Quando se define “processo” como relação jurídica triádica ou angular, busca-se
“amoldar” o fenômeno processual, dinâmico por excelência, a uma gramática forjada para
surpreender o direito estaticamente. Esse expediente, aliás, também é adotado por outras
especulações doutrinárias que afirmam ser o processo uma espécie de situação jurídica, ou,
ainda, uma instituição jurídica.
Não queremos afirmar, repise-se, que o conceito de processo como relação jurídica
angular seja imprestável à descrição do fenômeno processual, ao contrário, pois a estrutura
angular acusa aquilo que o processo jurisdicional tem de mais essencial, a dialeticidade.
Trata-se, entretanto, de uma descrição momentânea do processo jurisdicional, que
prescinde de alguma complementação explicativa que conta da dinamicidade do
fenômeno normativo processual.
Assim, podemos oferecer três definições de processo jurisdicional, que surpreendem
o referido fenômeno sob três perspectivas distintas: (i) processo em sentido dinâmico-
abstrato, que se apresenta mediante um plexo jurídico-normativo esquematizado em regime
de contraditório, disciplinando a atividade de produção de tutelas jurisdicionais (regras do
discurso processual); (ii) processo em sentido dinâmico-concreto, consubstanciado por uma
sequência de atos e posições jurídicas oriundos da aplicação das normas que compõem o
esquema normativo abstrato, incluindo o ato final (norma-tutela) cuja produção se pretende
disciplinar (discurso processual em concreto); (iii) processo em sentido estático-concreto,
materializado por meio da relação jurídica triádica que vincula, em esquema angular, os
sujeitos que participam do processo jurisdicional de produção normativa.
O que mais importa ressaltar, no entanto, é que o regime jurídico constitucional do
processo jurisdicional é o do contraditório, de maneira que as diversas formas específicas
de concretização legal do processo jurisdicional devem obedecer à estrutura dialética
constitucionalmente estabelecida. É aqui que surge, no plano da atividade normativa
jurisdicional, a dualidade processo/procedimento. Enquanto o primeiro se traduz por meio
da previsão constitucional de um esquema normativo básico a ser seguido pelo legislador
ordinário, que deve obedecer, necessariamente, ao regime dialético do contraditório, o
segundo diz respeito aos inúmeros regimes jurídicos processuais prescritos pela legislação
119
infraconstitucional, os quais, não obstante suas particularidades, devem obedecer, mesmo
que minimamente, à estrutura dialética básica prescrita pelo texto constitucional.
Essa estrutura normativa dialética fundamental (processo), particularizada em vários
esquemas normativos processuais (procedimentos) previstos na legislação processual
ordinária, tem por objetivo precípuo garantir a paridade de forças entre os interessados
contrapostos, perfazendo um direito fundamental a ser garantido pelo Estado tanto ao
demandante, como ao demandado, nos termos do que prescreve o art. 5º, LIV e LV
176
, da
Constituição Federal. Daí a noção de direito ao processo, que também se apresenta na
condição de um direito prima facie.
Deve-se entender a noção de dialeticidade processual (contraditório e ampla defesa)
não apenas sob o ponto de vista formal (bilateralidade da audiência). Não se trata apenas de
dizer e contradizer pura e simplesmente, mas da concreta possibilidade de influenciar o
desenvolvimento do processo e a formação das decisões normativo-jurisdicionais. A
participação dos sujeitos parciais não pode ser mera ficção, pois de se possibilitar a
efetiva ressonância das alegações na fundamentação do provimento jurisdicional, de
maneira que a decisão não seja o resultado de operações racionais solitárias do juiz
177
. É
esse o conteúdo normativo expresso no enunciado do inciso LV do art. da Constituição
Federal.
Nesse sentido, pode-se afirmar que o discurso processual, por força de seu regime
dialético, se desenvolve dentro daquele contexto dialógico a que se refere TÉRCIO
SAMPAIO FERRAZ JR., visto que seus partícipes (sujeitos parciais do processo) aparecem
como habilitados para uma intervenção ou como interessados ativamente no discurso.
Oportuna, aliás, a reprodução da lição do eminente Professor das Faculdades de Direito da
USP e da PUC/SP:
176
“Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e
aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes.
(...)
LIV ninguém será privado de sua liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;
LV aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o
contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.”
177
Nunes, Dierle José Coelho. “O princípio do contraditório: uma garantia de influência e de não surpresa”.
In: Teoria do processo, panorama doutrinário mundial (Coord.: Fredie Didier Jr. e Eduardo Ferreira
Jordão).
120
O sentido oficial do processo judiciário, para concentrarmo-nos num dos modos
mais importantes do discurso judicial, é o de instrumento de composição de uma
lide. Sob o ponto de vista da situação comunicativa discursiva, diríamos que se
trata de uma relação entre diversos partícipes, cujo sentido é a representação da
busca de uma decisão, de acordo com certas regras. Essa concepção, em que
pese a sua extrema generalidade, nos ajuda, inicialmente, a identificar os
componentes básicos da situação discursiva, orador e ouvinte e objeto do
discurso. Quanto aos primeiros, distinguimos, em princípio, entre aqueles que
decidem emissores e aqueles que são os destinatários da decisão
(receptores). Os emissores não são, necessariamente, os juízes, mas todos
aqueles que devem encontrar a decisão. Os receptores, por sua vez, são os que
devem tomá-la como premissa de seu próprio comportamento. Sendo alvo do
discurso a decisão, o seu objeto é dialógico dubium de discussão-contra
conflitivo
178
.
Ademais, as formas por meio das quais este direito à dialeticidade é efetivamente
concretizado (procedimentos) devem ser aquelas preeestabelecidas, ex ante, pelo regime
jurídico processual, de maneira a imprimir um mínimo de previsibilidade (segurança
jurídica) ao processo de formação das decisões normativo-jurisdicionais. Trata-se de uma
imposição inerente à cláusula posta no inciso LIV do mesmo art. 5º da Constituição
Federal.
A expressão “devido processo legal”, constante do art. 5º, LIV, da Constituição
Federal, não perfaz um bis in idem daquela constante do inciso que lhe sucede (LV).
Enquanto esta impõe o regime dialético necessário do processo jurisdicional (tendo em
mira a igualdade, formal e substancial, entre os sujeitos parciais), aquela prescreve que o
referido regime deve ser aquele preestabelecido pelo sistema (tem em mira, portanto, a
segurança jurídica do processo jurisdicional). Daí que, por isso, a expressão “devido
processo legal”, tal qual insculpida no indigitado art. 5º, LIV, da Constituição Federal, deve
ser lida como “devido procedimento legal”, visto que se dirige às manifestações específicas
do regime geral de contraditório e ampla defesa imposto pelo inciso LV
179
.
178
Direito, retórica e comunicação, p. 73/74.
179
“Hoje, mais do que nunca, preocupa-se a nossa Constituição com o devido procedimento legal, como pode
ser visto do art. 5º, LV, da Constituição Federal de 1988. Muitas vezes, é confundido com o princípio do
contraditório e com o princípio da ampla defesa. Todavia, não se pode confundi-los. São princípios
autônomos e independentes.
Pode-se atender ao devido procedimento legal, sem atender a estes dois últimos mencionados. Neste caso, o
processo pode ser viciado por descumprimento destes princípios, mas não pelo descumprimento do devido
121
Com efeito, as garantias constitucionais do processo jurisdicional são concretamente
efetivadas por meio dos diversos procedimentos responsáveis pela estruturação, no plano
normativo geral, do esquema basal dialético do processo jurisdicional. Os regimes jurídicos
processuais legalmente postos, portanto, devem ser instituídos de forma a garantir o direito
das partes contrapostas à paridade de forças imposta pela Constituição Federal, o que
implica dizer, em outros termos, que cabe à lei fixar os instrumentos normativos que
fixarão os pressupostos indispensáveis à concretização do regime de contraditoriedade
constitucionalmente garantido. Deteremo-nos, a partir de agora, na investigação de tais
pressupostos.
2.3.3.2 Os pressupostos processuais
Em regra, o processo jurisdicional é identificado por meio de três elementos
básicos, que podem ser tomados como constantes lógico-processuais: (i) a provocação pela
parte interessada; (ii) a comunicação da parte contrainteressada (citação, notificação,
cientificação etc.); e (iii) a decisão que põe fim à controvérsia (sentença, acórdão etc.).
Dentro do contexto dialético que vem sendo descrito, tais constantes devem ser
consideradas na condição de atos jurídicos por meio dos quais os sujeitos do processo
exercem as competências constitucionalmente fixadas pelo esquema normativo mínimo do
processo jurisdicional: o direito de ação; o direito à contradição (réu); e o dever de
prestação jurisdicional (juiz).
A noção de pressupostos processuais, em verdade, está intimamente ligada à
identificação das constantes lógicas acima referidas, que espelham a estrutura dialética do
processo jurisdicional. O regime de contraditório que caracteriza os processos
jurisdicionais, por sua vez, é um atributo que qualifica o conceito geral de processo de
processo legal, se o procedimento está conforme a lei. Quando a lei nega o contraditório e a ampla defesa, o
vício, acaso existente, estará na lei, mas não no processo ou processo ou procedimento.
O procedimento que segue a lei não viola a mesma e nem viola o devido processo legal. Pode acontecer de
contrariar a Constituição Federal e não o devido procedimento legal que está de acordo com a norma infra-
constitucional. Porquanto se cumprida a lei, não se pode falar em não atendimento do devido procedimento
legal. O devido procedimento legal é aquele que segue as etapas descritas pela lei. Somente poderá haver
violação a este princípio quando não se atender a aquele procedimento pré-estabelecido.” Gelson Amaro de
Souza. Fraude à execução e o direito de defesa do adquirente, p. 176/177.
122
produção normativa, perfazendo o critério de diferenciação do processo jurisdicional em
relação aos demais processos de produção normativa.
Tal atributo, no entanto, pode ser, como de fato é, excepcionado em algumas
circunstâncias
180
, desde que não implique prejuízo algum à parte contrainteressada. Nesses
casos, as três constantes lógicas do processo jurisdicional são reduzidas a duas, quais
sejam: o ato de provocação e o ato decisório final. Ainda nessas circunstâncias
excepcionais, haverá processo jurisdicional, pois as exceções incidem sobre um regime
normativo que, aprioristicamente, é dialético, e sem prejuízo algum aos direitos da parte
contrainteressada.
Sendo o processo um esquema normativo (processo em sentido abstrato) de cuja
aplicação decorre uma sequência de atos, posições e situações jurídicas subjetivas (processo
em sentido concreto) que culmina num ato final decisório, os instrumentos teóricos usados
para definir o conceito de pressuposto de um ato jurídico não podem ser usados, ipsis
litteris, na identificação dos pressupostos processuais.
Por esse motivo, lançaremos mão, com as devidas adaptações que decorrem da
natureza dinâmica do processo, dos critérios estipulativos da definição do conceito de
pressupostos dos atos jurídicos propostos por EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI
181
,
para identificarmos os pressupostos processuais.
Nesse sentido, do ponto de vista concreto, os pressupostos processuais, tanto
quanto os pressupostos dos atos jurídicos em geral, também dizem respeito às
circunstâncias externas dos fenômenos normativo-processuais relativas aos fatos jurídicos
necessários e suficientes para o desencadeamento da sequência de atos que redundará na
decisão produto (tutela jurisdicional)
182
. Tais fatos jurídicos, no entanto, devem ser
180
O sistema jurídico processual contempla algumas aparentes exceções ao princípio do contraditório. É
exatamente o caso das prescrições veiculadas nos artigos 285-A e 295 do Código de Processo Civil.
Entendemos, no entanto, que em todos os casos previstos nos dispositivos acima referidos, estaria o Juízo
obrigado a informar o réu, a posteriori, a respeito da propositura da demanda que não logrou êxito, aplicando,
a todos os casos, a regra do § 6º do art. 219, até para permitir que o demandado possa, em caso de propositura
de ação idêntica, ter condições de alegar a perempção ou a coisa julgada. Não parece ser este, no entanto, o
entendimento majoritário da doutrina processual brasileira.
181
“Pressupostos são os fatos jurídicos que influem positivamente na formação do suporte fáctico do fato
jurídico suficiente do ato-norma.” Lançamento Tributário, p. 88.
182
A noção de pressupostos processuais, ressalte-se, é aplicável tanto à definição abstrata de processo
jurisdicional quanto à perspectiva concreta.
123
considerados no contexto da dinâmica processual, e não como um fato jurídico isolado que
dá origem a um determinado ato.
Assim, se as constantes lógicas que compõem o conceito de processo jurisdicional
são os atos de provocação do juízo, de comunicação da parte contrainteressada e o ato
decisório final da autoridade juridicamente competente, pressupostos processuais, seriam os
fatos jurídicos necessários que influem positivamente na formação dos mencionados atos.
São eles: (i) o ato veículo da provocação (petição inicial art. do CPC), realizado em
estrita observância das normas de estrutura que regulam sua produção, tais como:
capacidade postulatória (art. 36 do CPC), aptidão da petição inicial (art. 295, I, parágrafo
único, do CPC) e demais requisitos formais fixados pelo regime jurídico processual (arts.
282, 283 e 284 do CPC); (ii) os fatos jurídicos decorrentes da incidência das normas que
delimitam a competência jurisdicional (art. 92 e seguintes da Constituição Federal; e 86
e seguintes do CPC); (iii) os fatos jurídicos que dão oportunidade à cientificação do sujeito
contrainteressado (art. 5º, LV, da CF e 219 do Código de Processo Civil).
Dos fatos jurídicos acima mencionados, há aqueles cuja verificação é absolutamente
indispensável para a constituição do processo. De outra banda, aqueles cuja ausência é
verificada após a formação do processo, e que dizem respeito ao regular desenvolvimento
deste. Os fatos jurídicos pertencentes ao primeiro grupo podem ser denominados de
pressupostos de existência ou de constituição do processo. São eles: (i) o ato-fato de
provocação (art. do Código de Processo Civil); e (ii) os fatos jurídicos constitutivos do
poder/dever jurisdicional da autoridade a quem é dirigido o pedido, e que terão o condão de
permitir a produção do ato decisório final (investidura da autoridade ou órgão que recebe o
pedido – jurisdição – art. 1º do Código de Processo Civil).
Os outros pressupostos, ligados ao regular desencadeamento do processo
jurisdicional, são denominados pressupostos de desenvolvimento. Neste rol estão: (i) a
aptidão da petição inicial; (ii) a capacidade postulatória; (iii) a citação da contraparte (ou
ato de comunicação equivalente); (iv) a regularidade da citação; (v) a capacidade
postulatória; e (vi) a competência da autoridade jurisdicional
183
.
183
Sem contar com os chamados pressupostos negativos: litispendência e coisa julgada, que eso vinculados,
indiretamente, à competência da autoridade.
124
Em verdade, se levarmos em consideração, rigorosamente, a ideia de pressupostos
como algo que está relacionado aos fatos jurídicos necessários e suficientes à verificação de
um determinado ato jurídico, como propõe EURICO DE SANTI, o status de pressupostos
processuais pode ser atribuído aos chamados pressupostos de existência, até para
justificar a possibilidade de haver extinção do processo sem resolução de mérito nos casos
em que se mostrarem ausentes os chamados pressupostos de desenvolvimento.
Estes últimos, em verdade, consubstanciariam requisitos de regularidade
184
do
esquema processual, todos diretamente vinculados às garantias constitucionais do processo
jurisdicional.
2.3.3.3. Processo e procedimentos tributários
A definição do conceito de processo jurisdicional como estrutura normativa
dialética que disciplina a atividade estatal de composição de conflitos perfaz, conforme
anotamos anteriormente, uma visão abstrata do fenômeno processual. Nesse plano
(abstrato) não que se falar em qualquer espécie de adjetivação do substantivo
“processo”, pois o regime jurídico processual constitucional é o mesmo em todos os casos,
isto é, há um único e exclusivo modelo constitucional de processo jurisdicional.
Com efeito, a paridade entre as partes interessadas a que visa garantir a estrutura
dialética básica do processo jurisdicional assume relevância extrema no contexto dos
processos jurisdicionais tributários, pois, conforme anotamos em outra oportunidade, a
desigualdade de forças é algo inerente às relações jurídico-tributárias, e os atos de
imposição tributários, no mais das vezes, são praticados unilateralmente, estando
acobertados pelo manto da presunção de legalidade.
Dessa forma, o processo jurisdicional propicia ao contribuinte equiparar-se ao
Estado, dando-lhe os instrumentos necessários ao afastamento da presunção de legitimidade
dos atos de imposição tributários que, eventualmente, tenham sido praticados à margem dos
limites constitucionais e legais prescritos pelo sistema tributário nacional. Por outro lado,
fornece ao Estado-fisco os instrumentos adequados à invasão do patrimônio do contribuinte
184
Validade em sentido jurídico-positivo, isto é, compatibilidade do ato jurídico com as normas que lhe dão
fundamento.
125
com a finalidade de ver satisfeita a obrigação tributária inadimplida, atividade que está fora
o campo de incidência do princípio da autoexecutoriedade dos atos administrativos.
-se, portanto, que a diferenciação do processo tributário só é possível pela análise
do conteúdo substancial do discurso normativo-processual, no âmbito concreto de aplicação
do modelo constitucional de processo, isto é, tomando-se como parâmetro classificatório a
espécie de relação jurídica conflituosa, assim entendida como o fato jurídico-processual
desencadeador da atividade jurisdicional. Nesse sentido, importa afirmar que a noção de
processo tributário pode ser construída a partir da ideia de lide tributária ou relação
jurídico-tributária conflituosa.
Sobre a definição do conceito de processo tributário, anota PAULO CESAR
CONRADO:
Sobre a relação jurídica, efetiva ou potencial, da qual o processo é instrumento é
que incide a noção de conflito. Mais: é essa relação (de direito material, onde o
conflito se põe) que revela, adotado um certo modo de classificar, a natureza do
processo. Falaremos, com efeito, ora em processo civil, ora em processo penal,
sempre de acordo com a índole das relações jurídicas conflituosas. Regra: a
natureza da relação jurídica onde a noção de conflito se põe denuncia a natureza
da relação processual.
Não obstante expressos no seio do direito positivo (art. do Código de
Processo Civil), os predicados civil e penal merecem reelaboração, e assim
principalmente o primeiro deles. É que por civil o sistema do direito positivo
nacional entendendo as realidades jurídico-processuais que não operem debaixo
do fundamento do fato jurídico crime, único que justificaria a aplicação do
conceito processo penal. Temos, portanto, que a expressão processo civil,
ostentando nítido caráter supletivo, permite alcançar muito mais do que o
atributo (civil) revela, espraiando-se também sobre as relações de caráter
tributário.
Num certo sentido, devemos convir, portanto, que processo tributário é processo
civil, particularizado pela circunstância, única, de a relação jurídica que o
precede logicamente alinhar-se ao específico ramo didático do direito tributário.
Nada disso está a significar que não se possa falar em processo tributário
negaríamos, se assim fosse, nosso próprio foco temático. Sem afastar o
cabimento da locução, o que pretendemos com a afirmação pouco produzida
(de que processo tributário é processo civil) é situar o conceito de processo no
escaninho do direito positivo que reputamos mais adequado, considerando, para
tanto, o quadro de possibilidades que sua textura (do direito positivo) propicia.
185
185
Ob. cit., p. 25/26.
126
O processo tributário se apresenta, portanto, como o instrumento vocacionado à
resolução das lides tributárias, de maneira a propiciar a defesa e a realização dos direitos e
deveres atribuídos ao cidadão-contribuinte e ao Estado-fisco no contexto das relações
jurídicas inseridas no percurso de concretização do direito tributário que, a seu turno,
compreende as atividades de instituição, cobrança e arrecadação de tributos, perímetro que
delimita a normatividade tributária.
Agora, quando afirmamos que o processo é instrumento do direito material
conflituoso, in casu o tributário, usamos o vocábulo “instrumento” em um sentido muito
específico, qual seja o de mecanismo por meio do qual o direito material conflituoso é
constituído (criado) e, a seguir, efetivado. A instrumentalidade do processo a que nos
referimos é estritamente normativa, e não teleológica
186
, pois o processo não é meio de
revelação do direito material, mas instrumento de sua própria criação.
Nesse sentido, faz-se oportuna a transcrição da reflexão feita por J.J. CALMON DE
PASSOS a respeito desta deturpada noção de instrumentalidade finalística do processo:
Se o Direito é apenas depois de produzido, o produzir tem caráter
integrativo, antes que instrumental e faz-se tão essencial quanto o próprio
dizer o Direito, pois que o produto é, aqui, indissociável do processo de
produção, que sobre ele influi em termos de resultado. O produto também é
processo, um permanente fazer, nunca um definitivamente feito. O processo, no
âmbito jurídico, não é, portanto, algo que opera como simples meio,
instrumento, sim um elemento que integra o próprio ser do Direito. A relação
entre o chamado direito material e o processo não é uma relação meio/fim,
instrumental, como se tem proclamado com tanta ênfase, ultimamente, por
força do prestígio de seus arautos, sim uma relação integrativa, orgânica,
substancial.
Acreditar-se e dizer-se que o fundamental é a tutela jurídica, sendo o
processo (prestação da atividade jurisdicional) o acessório é adotar-se
postura ideologicamente perigosa, de todo incompatível com o ganho
civilizatório que a democracia representa como forma de convivência
política. Se o Direito é produzido socialmente pelos homens, a vitória mais
significativa da modernidade, em termos políticos, foi assentar-se como
inafastável postulado, que sua validade é indissociável do processo de sua
produção, processo este incompatível com o arbítrio, exigindo, para legitimar-se,
atenda às regras cogentes prévias, respeitados os princípios fundamentais do
Estado Democrático, tudo constitucionalmente prefixado. Em suma, que sejam
atendidas as exigências do devido processo legal, tanto do devido processo legal
186
Este sentido teleológico ou funcional da expressãoinstrumentalidade do processo é exatamente o
proposto por Cândido Rangel Dinamarco (Instrumentalidade do processo, passim) e José Roberto dos
Santos Bedaque (Efetividade do processo e técnica processual, passim).
127
(devido processo constitucional, seria mais adequado dizer-se) legislativo,
quanto do administrativo e do jurisdicional.
(...)
Destarte, o Direito, como produto, seja em termos de norma geral (lei em sentido
lato) seja sob a forma de decisão para o caso concreto (norma particular),
coloca-se na mais absoluta dependência da organização do poder político, do
saber e da probidade dos operadores e aplicadores, e da possibilidade de serem
responsabilizados por seus abusos e desvios, colocando-se em segundo plano,
ainda que não irrelevante, a disciplina do procedimento previsto para o atuar
desses operadores. Reflexão necessária e esclarecedora, que a esta altura se
impõe, é a que nos lembra haver instrumentos e instrumentos, jamais se
devendo perder de vista o fato de o mesmo vocábulo dizer respeito a coisas
essencialmente diversificadas.
187
De fato, em direito, o processo integra o produto (decisão), de maneira que o
vínculo instrumental verificado entre direito material e processo está longe de ser uma
relação meio/fim, pois o processo atua como meio de (re)constituição do direito material, à
luz das peculiaridades do fato jurídico conflituoso, e não de mera aplicação de conteúdos
normativos previamente fixados. O processo jurisdicional (re)constitui o direito material à
pretexto de efetivá-lo.
Aplicar o direito (legislado) significa criar direito novo a partir de direito prévio. O
processo jurisdicional, dessa forma, é o final do percurso de criação do direito material
iniciado pelo processo constitucional (originário ou derivado). Por isso, afirmar que o
processo perfaz instrumento do direito material significa, neste trabalho, afirmar que o
esquema processual deve adequar-se às peculiaridades normativas do sistema jurídico
substancial, com vistas a efetivá-lo.
A descrição metafórica de GALENO LACERDA a respeito da natureza
instrumental do processo jurisdicional, aliás, sobre ser didática, é altamente explicativa
daquilo que pretendemos expressar. Confira-se:
Instrumento é conceito relativo, que pressupõe um ou mais sujeitos agentes, um
objeto sobre o qual, mediante aquele atua o agir, e uma finalidade que
condiciona a ação.
Requisito fundamental para que o instrumento possa atingir e realizar seu
objetivo há de ser, portanto, a adequação. Comoo três os fatores a considerar,
a adequação se apresenta sob tríplice aspecto: subjetiva, objetiva e teleológica.
187
Ob. cit., p. 68/69 (g.n.).
128
Em primeiro lugar, cumpre que o instrumento se adapte ao sujeito que o maneja:
o cinzel do Aleijadinho, forçosamente, não identificava com um cinzel comum.
Em segundo, impõe-se que a adaptação se faça ao objeto: atuar sobre madeira ou
sobre pedra exige instrumental diverso e adequado.
Em terceiro, urge que se considere o fim: trabalhar um bloco de granito para
reduzi-lo a pedras de calçamento, ou para transformá-lo em obra de arte, reclama
de igual modo adequada variedade de instrumentos.
Assim também de suceder com o processo, para que possa cumprir a missão
de definir e realizar o direito. Galeno Lacerda.
O princípio de adequação, nestes termos, funciona, pois, como princípio unitário
e básico, a justificar, mesmo, a autonomia científica de uma teoria geral do
processo.
188
No âmbito da processualidade tributária, a adequação ao sujeito, a que se refere
GALENO LACERDA, diz com as tensões jurídico-axiológicas específicas que envolvem
os conflitos havidos entre Estado e contribuinte. A adaptação ao objeto”, por sua vez,
ocorre pela necessária consideração das particularidades normativas que envolvem as
relações jurídico-tributárias. Por fim, a adequação teleológica (ou pragmática) aponta para
necessidade da busca por uma tutela jurisdicional efetivamente realizadora dos direitos
subjetivos tributários constituídos por meio no processo jurisdicional.
Por outro lado, as regras processuais, ao atuarem na condição de instrumentos
(de)limitadores das formas de constituição do material jurídico que dará respaldo ao
processo decisório, possibilitam que esta atividade jurisdicional, volitiva que é, seja
minimamente controlável e, assim, não se transmute em decisões arbitrárias. O direito
processual limita a criação do direito material e não a sua aplicação cognoscitiva, de
maneira que alterar ou afastar uma regra processual sob o pretexto de garantir a efetividade
do direito material pode implicar a alteração do próprio conteúdo normativo substancial.
Não nos parece adequado, portanto, que a tensão entre devido processo legal e
efetividade da tutela jurisdicional deva ser resolvida por meio da flexibilização arbitrária
das regras processuais, a ser sustenta, teoricamente, por uma suposta (e equívoca) ideia de
instrumentalidade funcional, que coloca a técnica processual a mercê da peculiar noção de
“justiça” da autoridade julgadora.
Nesse tocante, adverte PAULO CESAR CONRADO:
188
Comentários ao código de processo civil, v. VIII, tomo I, p. 18/19.
129
E é exatamente a segurança jurídica, tomada no sentido antes comentado, o
primeiro dos valores cuja “renúnciaavizinha-se em favor da eficácia social da
jurisdição; vista, o sustentamos, como vetor que opera de modo a
“aprisionar”, formalmente, o órgão jurisdicional, segurança jurídica é ideal que
parece reprimir a noção de efetividade, situação que, tomada sob a óptica do
tempo, mostra-se ainda mais nítida: as regras de produção formal da tutela
jurisdicional implicam, no mais das vezes, a ampliação cronológica do
respectivo processo; protraem, assim, a emissão da norma que se quer ao final, o
que autoriza concluir, mesmo que isso represente indevido reducionismo, que a
forma estaria em permanente guerra com a eficácia e o conteúdo.
Por indevida (e assim nos colocamos), no lugar de tal visão postulamos uma
outra, fundada na premissa segundo a qual a norma proveniente da tutela
jurisdicional só existe pela forma que a contém, circunstância que torna inviável
qualquer teoria que, à guisa de atribuir efetividade à jurisdição, despreze a noção
de segurança.
[Nesse momento, adequado que se reflita, em breve paralelo, sobre a questão do
assim chamado “informalismo”, saída colateral lançada, em certos setores, como
solução para o problema da (in)efetividade da jurisdição. Quando nos propomos
a responder a tais perguntas, colhidos somos pela perplexidade: a
“informalidade” é “forma”, supostamente menos solene do que outra e que, de
todo modo, não é fixada pelo aplicador, o qual, para situações ordinárias,
determina a aplicação das “formas formais”.]
Queremos, com isso, que os problemas de efetividade sejam de fato enfrentados
pelos órgãos que respondem pela produção e pelo cumprimento das normas-fim
da jurisdição, sempre, porém, com base nos instrumentos que o sistema geral e
abstrato preordena, estando desautorizado o uso (que, parece-nos, seria abusivo)
do valor efetividade para motivar a prática de atos-meio sem base normativa
geral e abstrata.
[É de interesse lembrar, nesse momento e ainda que em breve anotação paralela,
que o uso (já qualificado, assim o fizemos, como abusivo) da efetividade como
justificativa para a prática de atos imprevistos no ordenamento aproxima-nos das
assim chamadas “razões de Estado”, fórmulas genéricas lançadas à guisa de
justificar certas decisões estatais, com as quais, de certa forma, lamentavelmente
nos acostumamos, até porque dotadas de uma atração quase irresistível.
Resumem, tais fórmulas, discursos como os que se enxerga no mais famoso
texto de Maquiavel, algo como “necessária tal providência, mesmo que não
prevista em lei, porque a autoriza a supremacia do interesse público”, ou “é
preciso abrir mão do rigor formal em prol da viabilização das políticas sociais”,
ou “a prática diuturna de uma conduta, mesmo que seja ela ilícita, autoriza sua
adoção, ainda mais porque assim procedo em nome dos infortunados”. Ao final,
o que se conclui, sob tal óptica, é que os órgãos jurisdicionais que renunciam ao
vetor da segurança em suposto proveito da efetividade, estariam a agir com
esteio nas tais “razões de Estado”, correndo o risco de engrossarem a lista de
“príncipes” que o Direito desejaria, por premissa e justamente em sentido
contrário, esvaziar.]
189
189
Revista do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, vol. 76, p. 52/54.
130
O processo tributário é o próprio direito tributário reconstituído em linguagem de
patologia. Falar de processo tributário, portanto, é falar da linguagem constitutiva do
conflito tributário
190
e, assim, do próprio direito tributário. Em outros termos, o processo
tributário se apresenta como um discurso jurídico-dialético por meio do qual são
constituídos o direito material tributário conflituoso e, também, as normas-tutelas
vocacionadas à sua composição.
Assim, “falar de processo tributário, mais do que falar de “conflito tributário” e de
sua constituição em linguagem, é falar do(s) meio(s) de (re)elaboração das normas de
direito (material) tributário. É falar da linguagem que, por presunção, constitui a solução
daqueles conflitos, normas individuais e concretas de direito tributário”
191
. O conflito
tributário e a tutela jurisdicional tributário perfazem, portanto, os fatos jurídicos processuais
inicial e final do processo tributário.
A ideia de conflito tributário como fato jurídico necessário e suficiente à
identificação do fenômeno processual jurisdicional tributário nos permite discernir o âmbito
de incidência de dois campos distintos de manifestação da processualidade tributária: (i) a
do chamado de direito formal tributário (processo tributário em sentido amplo); e (ii) a do
direito processual tributário (processo tributário em sentido estrito).
As regras que concernem ao chamado direito formal tributário dizem respeito às
técnicas normativas de constituição das normas tributárias (abstratas e gerais, e concretas e
individuais), no âmbito das competências legislativa e administrativa de instituição e
cobrança de tributos
192
, cujo exercício é desencadeado por iniciativa da própria autoridade
competente (legislativa e administrativa). Em razão de não terem como pressuposto de
incidência uma situação conflituosa (lesão ou ameaça de lesão a direito), as regras de
direito formal tributário não se submetem ao esquema constitucional dialético.
As normas que compõem o direito processual tributário em sentido estrito, por seu
turno, disciplinam o exercício das competências jurisdicionais tributárias mediante
esquemas jurídicos processuais estabelecidos, necessariamente, em regime de contraditório,
190
Conrado, Paulo Cesar. Ob. cit., p. 15.
191
Idem, ibidem, p. 16.
192
As normas que disciplinam o processo legislativo desencadeado a pretexto do exercício das competências
constitucionais tributárias também são regras de direito formal tributário.
131
e desencadeadas por atos iniciais de provocação (petição inicial, impugnação, manifestação
de inconformidade, defesa administrativa etc.) exarados por iniciativa do sujeito cujo
direito subjetivo se afirma lesado, em atendimento ao esquema dialético inerente ao modelo
constitucional de processo jurisdicional.
As referidas formas de manifestação da processualidade tributária costumam, no
entanto, servir de pretexto para o uso dos termos “processo” e “procedimento” com
dimensões semânticas distintas, sendo o primeiro (processo) usado para designar a
processualidade jurisdicional tributária e o segundo para referir a processualidade
administrativa (típica) materializada pelas regras de direito formal tributário que
disciplinam as formas de constituição e cobrança de tributos.
Essa, no entanto, não é a única forma de uso diferençado dos termos “processo” e
“procedimento”. No âmbito restrito da atividade jurisdicional é comum que o uso do
vocábulo “processo” ocorra quando se pretende designar o modelo dialético constitucional
básico imposto à processualidade jurisdicional, enquanto o termo “procedimento” acaba
por ser destinado a referir cada um dos regimes jurídicos processuais específicos previstos
pelo sistema jurídico processual infraconstitucional (procedimento ordinário; procedimento
sumário; procedimentos especiais etc.).
Interessa-nos, neste momento, a dualidade processo/procedimento feita no âmbito
das competências normativas jurisdicionais, visto que será este um dos critérios a serem
usados, no tópico seguinte, para explicitarmos nossa proposta de classificação do processo
jurisdicional tributário.
2.3.3.4. Classificação dos processos tributários
A manifestação concreta do processo tributário se dá mediante a aplicação dos
diversos esquemas jurídicos processuais previamente fixados, sejam aqueles previstos pelo
regime jurídico geral de direito processual (Código de Processo Civil), sejam os estipulados
pelos regimes jurisdicionais específicos de composição de conflitos tributários. Os
mencionados esquemas normativos processuais, por sua vez, são responsáveis pela fixação
dos órgãos autorizados a emitir a decisão normativa jurisdicional tributária (normas de
132
competência), bem como das regras que disciplinam o modo de desenvolvimento do
discurso processual tributário (procedimentos).
Nesse sentido, tanto os enunciados jurídicos que fixam os órgãos competentes para
apreciar as lides tributárias, isto é, as normas de competência jurisdicional tributária, quanto
os esquemas normativo-processuais que materializam os diversos procedimentos utilizados
nas soluções dos conflitos tributários, podem ser considerados os elementos integrativos do
fenômeno processual tributário. Parecem ser eles, portanto, os critérios adequados à
formulação de uma proposta de classificação do processo tributário.
Com efeito, a competência jurisdicional, no sistema jurídico brasileiro, é função
típica dos órgãos que integram o Poder Judiciário. Nada obstante, os demais Poderes do
Estado podem vir a exercer, atipicamente, atividades normativas de composição de
conflitos, ocasião em que deverá ser observado, por determinação constitucional, o modelo
dialético próprio aos processos jurisdicionais
193
. Seja no âmbito da jurisdição judicial, seja
no contexto da jurisdição administrativa, o processo tributário está sujeito a diversos
procedimentos específicos, estabelecidos ora em razão da espécie tributária objeto da
controvérsia, ora em razão da qualidade dos sujeitos de direito que integram a relação
jurídica tributária conflituosa.
Da combinação entre os critérios normativos que fixam a competência e os
procedimentos jurisdicionais tributários é possível identificarmos as classes, subclasses e
espécies de processos tributários previstos, atualmente, pelo sistema processual tributário.
A partir do critério do centro estatal competente (Poder), deduzimos as duas
primeiras subclasses: (i) a do processo judicial tributário; e (ii) a do processo administrativo
tributário.
Pertencem às referidas subclasses os seguintes elementos: (i) a do processo judicial
tributário da União; (ii) a do processo judicial tributário dos Estados; (iii) a do processo
administrativo tributário federal; (iv) a do processo administrativo tributário dos Estados; e
(v) a do processo administrativo tributário dos municípios. Do ponto de vista lógico, uma
classificação geral do processo tributário deve, necessariamente, ser encerrada neste ponto,
pois os critérios relativos ao procedimento não são aplicáveis, simultaneamente, aos
processos tributários judiciais e administrativos.
193
Art. 5º, LV, da Constituição Federal.
133
Se quisermos, no entanto, prosseguir com as operações de divisão, podemos tomar
os processos tributários judiciais na condição de classe universal, extraindo, por meio da
aplicação de critérios relativos a aspectos procedimentais, várias outras subclasses. O
empreendimento, no entanto, deve ser encarado com as devidas concessões didáticas, pois
não observa com rigor, repise-se, as regras lógicas relativas ao processo de classificação.
Advertimos, também, que não nos deteremos na análise e explicação de cada um
dos procedimentos jurisdicionais aplicáveis às lides tributárias, individualmente
considerados. Tal empreendimento deve ser realizado por ocasião da análise dos
instrumentos processuais tributários em espécie, o que vai além de nossas pretensões
teórico-gerais. Restringir-nos-emos à elaboração de um esquema geral de classificação dos
processos tributários atualmente previstos pelo sistema.
O quadro sinóptico abaixo esquematiza o processo classificatório acima descrito:
PROCESSO
TRIBUTÁRIO
JUDICIAL
ADMINIS-
TRATIVO
UNIÃO
ESTADOS
FEDERAL
ESTADUAL
MUNICIPAL
FEDERAL
TRABALHIS-
TA
GERAL
ESPECÍFICO
COMUM
ESPECIAL
GERAL
ESPECÍFICO
COMUM
ESPECIAL
ORDINÁRIO
SUMÁRIO
ORDINÁRIO
SUMÁRIO
134
2.3.4. Jurisdição, jurisdição tributária e tutelas jurisdicionais tributárias
2.3.4.1. Função jurisdicional e jurisdição tributária
Sob o ponto de vista jurídico, o Estado é um feixe de competências composto por
normas institucionalizadoras do fato social objetivo da dominação
194
, normas estas que
jurisdicizam a relação factual mando/obediência e, assim, habilitam os entes detentores do
poder juridicamente institucionalizado a exercerem suas atividades nomothéticas por meio
do uso da linguagem em sua função prescritiva. A institucionalização jurídica do poder, por
sua vez, é exatamente sua qualificação normativa em órgão
195
, constituída a partir da
ponência do fato fundamental concretizador da norma jurídica fundamental, válida por si,
que é a Constituição Federal
196
.
Na ideologia que subjaz ao chamado Estado de Direito, tem-se na pluralidade
orgânica (distribuição do poder em vários órgãos) e na diferenciação funcional (atribuição
de competências normativas específicas a cada órgão) dois mecanismos que se entrelaçam
com a finalidade de evitar o exercício arbitrário do Poder e otimizar as atividades e o
desempenho das competências normativas. Daí que a diferenciação funcional e a
pluralidade orgânica perfazem um processo evolutivo e, também, uma técnica política de
exercício de Poder
197
.
Não obstante os modos de separação do poder e a divisão das funções normativas
cambiem de acordo com as opções políticas próprias a cada realidade constitucional, se
tomarmos como referência o Estado moderno, tem-se por identificadas três competências
normativas básicas: a Legislativa, a Executiva e a Jurisdicional, que se diferenciam em
razão da espécie normativa a ser produzida, bem como pela finalidade a que se prestam.
Têm em comum, no entanto, o fato de ser exercidas, necessariamente, por órgãos estatais.
194
Lourival Vilanova. Ob. cit., p. 249.
195
Idem, ibidem.
196
Idem, ibidem, p. 255.
197
Idem, ibidem, p. 249.
135
A função legislativa se caracteriza, basicamente, pela produção de normas abstratas
e gerais destinadas a regular as condutas dos sujeitos de direito, inclusive no que toca ao
desempenho das competências funcionais dos demais Poderes. Trata-se de função
normativa primária, inovadora do sistema, pois criativa por natureza, responsável pela
produção dos conteúdos normativos que fundamentarão as decisões exaradas no exercício
das demais competências funcionais
198
. São os discursos de fundamentação, para falar com
HABERMAS, uma decorrência direta das decisões programantes a que se refere
LUHMAN.
As outras funções normativas estatais, a saber, a executiva e a jurisdicional,
caracterizam-se por operar com o material legislado
199
para, a partir deste, produzirem
preceitos normativos concretos e individuais, ou seja, os discursos de aplicação oriundos
das ditas decisões programadas.
As competências normativas executiva e jurisdicional, conquanto assemelhadas,
diferenciam-se, fundamentalmente, em razão dos pressupostos que dão oportunidade ao seu
exercício, bem como pela finalidade a que se prestam.
Nessa medida, a função executiva é exercida por iniciativa unilateral do órgão
estatal competente, com vistas à persecução de seus próprios interesses (primários e
secundários), mediante a produção de normas concretas e individuais destinadas à
realização dos valores e objetivos fundamentais do Estado.
Diferentemente da função executiva, a atividade jurisdicional atua em função do
interesse de terceiros, daí carecer de ato de provocação, prestando-se à produção de norma
concreta e individual vocacionada à preservação ou reparação de direito subjetivo violado
ou sob ameaça de violação, o que é o mesmo que dizer, mas em outros termos, que a
função jurisdicional aponta para composição de relações jurídicas conflituosas.
198
Daí por que, conforme anota Lourival Vilanova, “no Estado de Direito relações entre os órgãos do
poder, e entre esses órgãos e os indivíduos, membros da comunidade jurídica e política. Órgãos de um
Estado personificam-se, compondo termos de relações jurídicas.” Idem, ibidem, p. 254.
199
Mas não só a partir destes. Especialmente a atividade jurisdicional se presta à aplicação dos enunciados
jurídico-normativos do ordenamento total, inclusive os veiculados no texto constitucional. A atividade
executiva, por sua vez, em razão de estar subordinada ao regime de estrita legalidade, restringe-se à aplicação
material proveniente da atividade legislativa em sentido estrito.
136
Note-se que a diferenciação das competências normativas do Estado se dá mediante
a análise de critérios de ordem eminentemente objetiva, relacionados à natureza e função
das decisões normativas exaradas, independentemente do órgão que as emana. Disso
decorre que a repartição das competências estatais em um, dois, três ou mais órgãos é
meramente contingente, variando de Estado para Estado e segundo as concepções
ideológicas próprias a um específico tempo histórico.
Convém distinguir, portanto, diferenciação funcional e pluralidade orgânica.
Enquanto a primeira diz respeito às espécies de competências normativas
institucionalizadas (aspecto objetivo do poder institucionalizado), a segunda está
relacionada à divisão de tais competências nas mãos de órgãos distintos (aspecto subjetivo
do poder institucionalizado).
A pluralidade de órgãos, noção da qual se extrai o conceito de separação de
Poderes, não está necessariamente vinculada à diferenciação funcional. Esta última está
presente até mesmo nos Estados unicompetenciais. Um Estado qualquer que seja
constituído por um órgão que concentre todos os poderes institucionalizados, por
exemplo, não deixará de exercer as três competências normativas básicas (legislativa,
executiva e jurisdicional), donde se conclui que a inexistência de pluralidade de órgãos não
afasta a diferenciação funcional.
A questão da tripartição do poder, por seu turno, refere-se diretamente à pluralidade
orgânica (aspecto subjetivo do poder) e não necessariamente à diferenciação funcional
(aspecto subjetivo do poder). Tem-se tripartição do poder, como instrumento de combate ao
arbítrio, quando se distribuem as competências normativas a três órgãos distintos, e não
quando cada um desses órgãos exerce competências normativas funcionalmente distintas,
sendo perfeitamente factível que três órgãos distintos exerçam, a um tempo, as três
funções normativas estatais.
Não há que se confundir, assim, Poder Legislativo (aspecto subjetivo do poder) com
função legislativa (aspecto objetivo do poder); ou Poder Executivo (aspecto subjetivo do
poder) com função executiva (aspecto objetivo do poder); e, por fim, Poder Judiciário
(aspecto subjetivo do poder) com função jurisdicional (aspecto objetivo do poder).
137
No tocante ao Estado brasileiro, a Constituição Federal fixa os centros orgânicos
competenciais em seu art. 3º, prescrevendo que são poderes da União, independentes e
harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. Conquanto os nomes
atribuídos aos centros de poder indiciem, por si sós, a função normativa a ser exercida por
cada um deles, tais competências não são distribuídas de forma estanque, sendo possível
identificar diversas atribuições que escapam a competência normativa típica de cada um
dos centros de Poder
200
.
Cada centro de Poder estatal, portanto, a par de sua competência normativa
precípua, dita típica, também possui atribuições normativas próprias de outro Poder da
República (função atípica).
Importa ressaltar, neste momento, que as características definidoras de cada uma das
funções normativas estatais as quais, vale repisar, dizem respeito a aspectos
eminentemente objetivos da atividade normativa são identificáveis no próprio corpo do
texto constitucional.
Especificamente com relação à função jurisdicional, o enunciado art. 5º, XXXV, da
Constituição Federal, ao prescrever que a lei não excluirá da apreciação do Poder
Judiciário lesão ou ameaça de lesão a direito”, deixa às claras a natureza da função
normativa a ser desempenhada tipicamente por aquele específico centro de competência do
Estado (Poder Judiciário), qual seja: “apreciar lesão ou ameaça de lesão a direito”,
expressão que, por sua vez, pode ser reescrita por meio da expressão “solucionar conflito de
interesses”, ou, simplesmente, “julgar”.
O que merece relevo no enunciado constitucional acima referido é justamente aquilo
que revela o conteúdo da atividade jurisdicional (apreciar lesão ou ameaça de lesão a
direito) que foi posta com função precípua de um dos três centros de competência da
República, perfazendo, por isso, uma função típica de Estado. O fato de o referido preceito
proibir à lei que exclua, direta ou indiretamente, o exercício da referida atividade por parte
de um específico órgão da República (Poder Judiciário), não implica a vedação de seu
200
Grande parte das competências atribuídas aos Órgãos do Poder Legislativo da União, constantes dos
artigos 49, 50, 51 e 52 da Constituição Federal, têm natureza administrativa ou jurisdicional. As competências
atribuídas ao Presidente da República pelo art. 84, inciso VI (editar decretos), e XXVI (editar medidas
provisórias), por sua vez, têm natureza eminentemente legislativa.
138
exercício por parte de outro, se assim restar autorizado por outro preceito constitucional,
ou, ainda, por um veículo normativo hierarquicamente inferior.
Para além das características definidoras do conceito de jurisdição, o texto
constitucional e a legislação infraconstitucional também prescrevem uma série de atributos
normativos dos quais depende o exercício válido e eficaz da atividade jurisdicional. Com
efeito, o modelo constitucional do processo jurisdicional, fixado, basicamente, pelos
preceitos constantes dos incisos LIV e LV do referido art. 5º da Constituição Federal
(contraditório, ampla defesa e devido processo legal), impõe ao órgão julgador o
preenchimento de determinados requisitos que, muito embora não integrem a definição do
conceito de jurisdição, deverão estar presentes por ocasião de seu exercício, sob pena de
comprometimento da validade da decisão jurisdicional.
Nesse contexto, a atividade jurisdicional, segundo prescrito no texto constitucional,
que ser exercida por juiz imparcial e em regime processual dialético (contraditório e
ampla defesa), por meio do qual de ser garantida às partes contrapostas, destinatárias da
prestação jurisdicional, paridade de oportunidades e plena possibilidade de participação no
processo decisório. A não observância de tais requisitos normativos de exercício da função
jurisdicional não a descaracteriza como função, não obstante comprometa sua validade.
A Constituição Federal e a Lei processual, por sua vez, dispõem sobre certos
atributos que se agregam, exclusivamente, às decisões exaradas pelo órgão responsável
pelo desempenho da atividade jurisdicional em caráter precípuo, isto é, o Poder Judiciário.
O atributo da definitividade, por exemplo, decorrência direta da noção de coisa julgada,
incide tão somente sobre as decisões jurisdicionais emanadas do Poder Judiciário.
Note-se que, por não constar do preceito constitucional definidor do conceito de
jurisdição, a coisa julgada não pode ser considerada um elemento normativo inerente às
decisões jurisdicionais. Conquanto devamos reconhecer a grande importância da coisa
julgada para a eficácia das decisões judiciais, fato é que o referido instituto consubstancia
um atributo qualificador de algumas, e somente algumas, decisões jurisdicionais judiciais,
139
e não uma característica definidora do conceito de jurisdição. Essa condição, aliás, é
facilmente constatável por meio da análise empírica do ordenamento jurídico
201
.
Assim, parece-nos óbvio que toda vez que o Estado, mediante qualquer um de seus
centros de competência (Legislativo, Executivo ou Judiciário), exercer atividade normativa
voltada à apreciação de lesão ou ameaça de lesão a direito, ter-sefunção jurisdicional,
pois presentes os dois elementos constitutivos do conceito de jurisdição: (i) o objetivo, que
diz com a atividade compositiva de conflitos; e (ii) o subjetivo, representado pela figura do
Estado.
Fixadas tais premissas, cabe-nos, por agora, especular a respeito da possibilidade de
se cogitar sobre a existência de uma jurisdição especificamente tributária. Adiantamos,
desde logo, que qualquer pretensão de se atribuir extensões (qualificações) à conotação do
termo jurisdição deverá tomar como ponto de referência aquelas duas características
definidoras sobre as quais falamos anteriormente.
Assim, sob o ponto de vista abstrato, ter-sejurisdição tributária se, e somente se,
for possível identificar um órgão estatal cujas atribuições estejam, exclusivamente, voltadas
à composição dos conflitos tributários.
É exatamente o que ocorre no âmbito da jurisdição exercida, em caráter atípico,
pelos órgãos do Poder Executivo. Verifica-se no âmbito de toda a Federação a existência de
vários tribunais administrativos instituídos com o específico fim de apreciar conflitos
tributários relativos às competências tributárias das Pessoas Políticas que integram.
Nesse sentido, os tribunais administrativos se apresentam na condição de
verdadeiros órgãos de “Justiça Tributária” e se caracterizam pela grande capacitação
técnica de seus membros, tendo como efeito positivo a otimização da composição dos
conflitos tributários, seja do ponto de vista da celeridade da prestação jurisdicional, seja no
que diz respeito à qualidade das decisões.
201
As sentenças cautelares, típicas e atípicas, por exemplo, conquanto sejam emanadas por autoridade judicial,
não estão acobertadas pela coisa julgada. O mesmo pode ser afirmado com relação às sentenças exaradas em
cumprimento à previsão do art. 795, parágrafo único, do Código de Processo Civil, relativa à extinção do
processo de execução.
140
A competência para conhecer de matérias juridicamente relevantes por parte dos
tribunais administrativos, no entanto, costuma ser sensivelmente menor que a dos órgãos
judiciais. Isso decorre, principalmente, de restrições postas pelas legislações responsáveis
pela disciplina das funções exercidas por estes órgãos, que excluem da atividade cognitiva
destes tribunais matérias que, em regra, poderiam ser objeto de apreciação, tais como as
questões atinentes à constitucionalidade das cobranças.
A possibilidade de os tribunais administrativos exercerem controle difuso de
constitucionalidade, exatamente como o fazem os órgãos judiciais ordinários, está
diretamente relacionada à natureza jurisdicional de suas atividades. Em sendo a jurisdição
uma função normativa que, por imposição constitucional, deve ser exercida sob o regime
constitucional do contraditório e da ampla defesa, em princípio, toda e qualquer matéria
posta à apreciação da autoridade jurisdicional, seja ela administrativa ou judicial, pode e
deve ser conhecida.
Isso não impede, no entanto, que as regras de competência reguladoras da atividade
jurisdicional administrativa imponham restrições ao conhecimento de questões
constitucionais. É a própria noção de devido processo legal, aliás, que legitima a restrição.
Agora, o que não procede, em nosso sentir, é a afirmação de que as Cortes
administrativas estariam impedidas de apreciar questões constitucionais em razão de
estarem adstritas ao regime de estrita legalidade, aplicável, tão somente, para os atos
praticados pelos órgãos do Poder Executivo no exercício de suas funções típicas. Em sendo
atividade jurisdicional, mesmo que exercida em caráter atípico, o regime jurídico aplicável
é aquele especialmente fixado pela Constituição Federal para o processo jurisdicional, qual
seja: o do contraditório e da ampla defesa. E ampla defesa significa, dentre outras coisas,
ampla cognição.
Incabível, ainda, argumentar no sentido de que os tribunais administrativos não
seriam, verdadeiramente, órgãos jurisdicionais, dado que as decisões por eles emanadas não
seriam providas do atributo da coisa julgada. Muito embora tenhamos discorrido
longamente sobre essa questão em parágrafos anteriores, vale novamente insistir no fato de
o atributo coisa julgada não é, segundo consta do texto constitucional, característica
definidora do conceito de jurisdição.
141
O conceito de jurisdição, vale recordar, deve ser apreendido a partir daqueles dois
elementos normativos que, na condição de critérios definidores, se afiguram como
necessários e suficientes à sua identificação, quais sejam: o elemento objetivo, que se
prende à noção de atividade de produção normativa vocacionada à composição de conflitos;
e o subjetivo, representado pela figura do único ente competente para tal desiderato
(Estado).
Daí concluirmos que a atividade compositiva de conflitos exercida, eventual e
atipicamente, por outros órgãos da República que não aquele especialmente forjado para
fazê-lo (Poder Judiciário), é, por tudo e em tudo, atividade jurisdicional, incluídas neste
escaninho as decisões emanadas das cortes administrativas tributárias.
Por outro lado, afirmar que a atividade desempenhada pelos Tribunais
Administrativos se apresenta como autêntica função jurisdicional significa, também, impor-
lhes o dever de desempenhar suas competências mediante a estrita observância do modelo
dialético-constitucional do processo jurisdicional, o que não dignifica tal atividade, mas
também assegura que as decisões emanadas no âmbito de suas competências tenham a
credibilidade e a aceitação que delas se espera, impedindo que o conflito seja novamente
levado à apreciação do Poder Judiciário.
A alta complexidade que caracteriza as sociedades modernas impede que o Poder
Judiciário absorva, com foros de exclusividade, a responsabilidade pela administração da
justiça. Além disso, o gradual aumento das especificidades dos conflitos, mormente aqueles
atinentes a questões tributárias, acaba por demandar uma tecnicidade decisória para a qual o
Poder Judiciário não está satisfatoriamente aparelhado. A esse respeito, faz-se oportuna a
transcrição das argutas observações de PAULO DE TARSO RAMOS RIBEIRO:
A questão relativa à administração da justiça na sociedade não se exaure,
evidentemente, nos pórticos do Poder Judiciário. Seria ingênuo supor, em algum
instante, que a discussão a propósito dos problemas relativos à implementação
institucional da justiça pudesse restringir-se às balizas já por demais estreitas
dos mecanismos judiciais de resolução de conflitos e afirmação da jurisdição.
(...)
A intensificação do papel exercido pelo Poder Executivo, no que já se chamou
na sociologia de justiça administrativa no Brasil, é ilustrativa da impossibilidade
142
de se reduzir a discussão a propósito da administração da justiça no país às
cercanias forenses do Judiciário. (...)
Ora, concebido à luz das balizas napoleônicas de codificação das condutas
individuais, o Judiciário tem maiores dificuldades para proferir decisões nos
conflitos sociais modernos, marcados por forte complexidade e especialidade
técnica, para os quais o Executivo até mesmo, por um imperativo funcional de
proximidade mais direta com a gestão do conflito dispõe de meios mais
rápidos e eficazes. A necessidade de especialização técnica, uma das evidências
significativas da expansão da complexidade social contemporânea, é contraposta
a um Poder Judiciário ainda vinculado a métodos de ordenação do processo
decisório que parecem supor um juiz formalmente onisciente; alguém que, em
virtude da assunção do senso comum teórico de que não precisa se aprofundar
no mundo dos fatos para imputar juízos normativos, pode se dar ao luxo de
proferir decisões e impô-las às partes de forma mais ou menos acrítica, valendo-
se apenas do rigor lógico-formal que permeia o silogismo decisório do direito.
É importante notar que o problema da especialização social contemporânea
atinge o Judiciário de forma extraordinária, pois, à medida que os problemas
sociais são mais complexos e específicos, maior é a necessidade de
especialização judicial no âmbito do sistema decisório para compreendê-los.
202
De fato, os problemas concernentes à especificidade dos conflitos e à tecnicidade
decisória têm especial relevo para as questões atinentes a atividade resolutiva de conflitos
em matéria tributária. É isso, inclusive, que nos serve de pressuposto empírico para a
identificação do plano de investigação doutrinária a que convencionamos chamar de Direito
Processual Tributário.
A natureza jurisdicional da atividade desempenhada pelos Tribunais
Administrativos Tributários e a consequente necessidade de total submissão de seus
procedimentos decisórios ao regime jurídico do processo jurisdicional (contraditório e
ampla defesa) permitem que se agregue à alta capacidade técnica das Cortes administrativas
a segurança jurídica necessária ao acatamento das decisões por elas exaradas. Somente
assim, cremos, será possível evitar que o Poder Judiciário seja obrigado a absorver os
conflitos tributários a que, por conta da referida complexidade, não está tecnicamente
habilitado a oferecer adequada solução.
No que diz respeito à atividade jurisdicional típica, é a Constituição Federal a
responsável pela delimitação da estrutura orgânica do Poder Judiciário e, assim, pela
definição de quais são os órgãos judiciários que se destinam a julgar questões conflituosas
202
Direito e processo: razão burocrática e acesso à justiça, p. 54/55.
143
relativas a uma área específica do direito material. Portanto, no que tange à jurisdição
típica, não se verifica no texto constitucional previsão alguma a respeito de um específico
centro de competência destinado à resolução de lides tributárias, ao contrário do que ocorre
com outros sub-ramos do direito material, tais como o eleitoral, o trabalhista e o militar.
Não que se falar, portanto, em uma “Justiça Tributária” constitucionalmente
concebida para o exercício de atividade jurisdicional judicial voltada, com foros de
exclusividade, à composição de conflitos tributários. Por esse motivo, os conflitos
tributários acabam por ser alocados na competência residual da Justiça Comum (Federal e
Estadual), sendo processados e julgados no âmbito dos chamados “foros cíveis”.
Assim, no que toca à atividade jurisdicional típica dos órgãos judiciais, a
identificação da jurisdição tributária deve ser perseguida no plano concreto do exercício da
função. Ter-se jurisdição tributária toda vez que uma lide tributária houver sido
formulada a um órgão judicial da Justiça Comum e segundo as normas de competência
postas pela legislação processual.
Essa regra, no entanto, comporta exceção. Com o advento da Emenda
Constitucional nº 45/04 e a inserção do inciso VIII do art. 114 da Constituição Federal
203
, a
Justiça do Trabalho passou a ser competente para executar, de ofício, as contribuições
sociais previstas no art. 195, I, “a”, e II, do texto constitucional, o que significa afirmar que,
a partir de então, a Justiça do Trabalho passou a exercer, concretamente, jurisdição
tributária.
2.3.4.2. Tutela jurisdicional: norma e ato de cumprimento
A função jurisdicional se apresenta como uma atividade eminentemente normativa,
que toma como pressuposto de atuação um fato jurídico conflituoso (lesão ou ameaça de
203
“Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar:
(...)
VIII a execução, de ofício, das contribuições sociais previstas no art. 195, I, a, e II, e seus acréscimos legais,
decorrentes das sentenças que proferir;”
144
lesão a direito), constituído pelo ato inicial de provocação do juízo (ação) e apreciado
mediante regime jurídico-procedimental dialético (processo), culminado pelo ato normativo
compositivo do conflito, o qual, à guisa de aplicar o direito (material), também o realiza.
Ao ato-norma compositivo da situação conflituosa chamamos tutela jurisdicional.
A delimitação do conceito de tutela jurisdicional como ato-norma consta da obra de
PAULO CESAR CONRADO. Por nos parecer impossível fazê-lo com melhores palavras,
transcrevemo-la:
Tutela jurisdicional, guardadas tais observações, é: (i) o ato fim do processo, (ii)
produzido pelo órgão que responde pela missão jurisdicional (Estado-juiz), (iii)
tendo por objetivo a composição do conflito traduzido no ato-início do processo.
Ademais dessas três vertentes conceptuais, possível identificar, naquilo que
estamos a chamar de tutela jurisdicional, uma outra (valiosíssima)
particularidade: sua face normativa. Lembre-se: (i) o fato jurídico ensejador da
relação processual (o conflito), embora constituído por instrumento de
linguagem (petição inicial, v.g.) que não se aporta no “direito material”, a ele
sempre se referirá o processo não é um fim em si mesmo (ii) derivando,
assim, do “direito material”, nele próprio encontrará sua razão, vale dizer, a
produção de norma individual e concreta (de “direito material”). Pois é
justamente tal norma (individual e concreta) que encarna a noção de tutela
jurisdicional.
O que se conclui, portanto e já de logo, é que o ato estatal de que falamos não se
apresenta com um fato jurídico de caráter exclusivamente processual; é, ademais
disso, fato (fato-norma) aprisionado ao universo do “direito material”.
Tal concepção, associada à afirmação de que sem linguagem não norma (e
assim também o próprio direito), cumprirá relevante papel na estrutura que
buscamos desenvolver: sem prejuízo da idéia de ato processual, a tutela
jurisdicional, como norma, pode e deve ser avaliada como porção de linguagem
(forma) que retém, idealmente, conteúdo de “direito material”.
204
O que de essencial à concepção normativa de tutela jurisdicional está,
definitivamente, insculpido na passagem acima transcrita. Resta-nos, tão somente, atuar na
periferia desta construção, discorrendo sobre alguns de seus desdobramentos,
especialmente aqueles que dizem com os meandros de sua estrutura normativa, o conteúdo
da norma-tutela e dos seus efeitos. Para tanto, necessário será retomar os conceitos teórico-
gerais concernentes às noções de sistema e norma jurídico-processuais, desde antes fixados,
204
Ob. cit., p. 139/140.
145
agregando a esta gramática algumas ideias desenvolvidas por outros autores
constructivistas.
Pois bem. Ao exercer sua função, a autoridade jurisdicional produz, em regra, pelo
menos três normas jurídicas: (i) a que regula a sua própria conduta, e diz com a obrigação
de julgar segundo as normas do sistema jurídico-positivo (norma de julgamento); e (ii) a
que regula a conduta das partes, e que decorre, em regra, da aplicação do direito material
pertinente (norma de decisão); e (iii) a norma concreta e individual
205
, introdutora das duas
primeiras (sentença, decisão interlocutória, acórdão), construída a partir dos enunciados
dêiticos de tempo, espaço e pessoa objetivados (enunciação enunciada) do documento
normativo e decorrente do exercício da competência jurisdicional.
A tríade normativa a que nos referimos foi proposta, entre nós, por DANIEL
MONTEIRO PEIXOTO, em obra dedicada ao estudo do fenômeno da competência
administrativa tributária. Cai-nos, entretanto, como uma luva.
Assim, dada a originalidade da gramática proposta e a utilidade que ela nos
proporciona, parece-nos conveniente, neste momento, transcrevermos as observações do
autor sobre o assunto:
O exercício de autorização para produzir normas jurídicas, seja na produção de
leis a partir ou de sentenças judiciais a partir dos ditames legais/constitucionais,
é orientado por três referências básicas: (i) quanto à obrigatoriedade ou
facultatividade do próprio exercício da competência ante determinadas
circunstâncias fácticas; (ii) quanto à forma de produção (agente competente,
procedimento, tempo e espaço) e; (iii) quanto aos limites materiais das normas a
serem produzidas. Condicionantes denominadas, respectivamente, de referência
de desempenho; referência formal e referência material.
(...)
205
A Dogtica constructivista costuma identificar a norma introdutora com a concreta e geral, pois dirigida
a todos. Parece-nos, data maxima venia, que a descrição não é a mais adequada. É que a generalidade da
norma, que diz com o consequente normativo, pressupõe, tanto quanto a hipótese abstrata, um enunciado
conotativo, ou seja, uma conduta “tipo” e dois ou mais sujeitos de direito “tipo”. A norma construída a partir
das enunciações enunciadas (normas introdutoras), no entanto, possuem enunciados denotativos, seja no
antecedente, seja no consequente. A questão da generalidade, portanto, não diz com a quantidade de sujeitos
passivos a que ela é destinada ou, ainda, à expressa identificação de cada um deles, mas à regulação concreta,
por meio de enunciado denotativo tanto da conduta regulada quanto dos sujeitos de direito. Um consequente
normativo que regula concretamente a conduta de vários indivíduos é muito diferente do consequente
normativo que prevê a regulação da conduta de diversos indivíduos.
146
Exemplificando, os requisitos para a edição do veículo normativo Emenda
Constitucional, encontrados a partir de diversos enunciados prescritivos da
Constituição Federal, podem ser assim decompostos:
(i) referências de desempenho: impulsionam o próprio exercício da
competência, estabelecendo, diante da circunstância de “ser Estado Brasileiro”, a
facultatividade para a elaboração destes instrumentos normativos.
(ii) referências formais: estabelecem o órgão competente (Estado Brasileiro,
por meio do Congresso Nacional), o procedimento (trâmites legislativos
previstos no artigo 60, incisos, e parágrafos e da CF), bem como o tempo
(qualquer tempo, exceto durante a vigência de intervenção federal, de estado de
defesa ou de estado de sítio art. 60, § 1º da CF) e o local (Brasília) em que
deve ocorrer a atividade de produção normativa.
(iii) referências materiais: no exemplo tomado, estabelecem os limites negativos
da matéria que pode ser tratada via Emenda Constitucional “Art. 60, § 4º:o
será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I a forma
federativa de Estado; II o voto direto, secreto, universal e periódico; III a
separação de poderes; e IV os direitos e garantias individuais.
206
A capacidade explicativa do modelo proposto por DANIEL MONTEIRO
PEIXOTO para a análise estrutural do fenômeno normativo jurisdicional parece-nos
consideravelmente satisfatória. Senão, vejamos.
No âmbito do exercício da competência jurisdicional, o primeiro elemento da tríade
normativa a que nos referimos a norma introdutora pode ser estruturado, a título de
modelo, da seguinte forma:
Antecedente: dado o fato do exercício da competência jurisdicional mediante o
procedimento prescrito em lei, no tempo “X” e na “Y” Vara da Comarca “K”;
(deve ser)
Consequente: a obrigação de todos observarem os enunciados introduzidos pelo
juiz.
206
Competência Administrativa na Aplicação do Direito Tributário, p. 82 e 84.
147
Com efeito, o sistema jurídico secundário (dito processual), conforme observamos
anteriormente, está voltado à disciplina da atividade da autoridade jurisdicional e tem por
finalidade precípua garantir a eficácia do sistema jurídico primário, dito material, motivo
pelo qual é composto (o sistema secundário) por duas obrigações básicas, ambas dirigidas
ao juiz, quais sejam: (i) a obrigação de julgar; e (ii) a obrigação de fundamentar a decisão
nas normas que compõem o sistema primário, o que também significa aplicar as normas de
direito material
207
.
Nessa medida, a pretexto de aplicar o direito, o juiz cumpre seu dever jurisdicional,
o que nos autoriza a concluir que a decisão jurisdicional, mais que norma, também é ato de
cumprimento (do dever de julgar). Tal circunstância, aliás, também não escapou à fina
análise de EUGÊNIO BULYGIN. Confira-se:
Cuando el juez tiene que elegir entre las normas “a” y “b” y se decide por “b”,
no se dirá que no ha obedecido a norma “a”. Se le puede reprochar que su
sentencia no está justificada e incluso es posible que sea revocada por falta de
fundamentación adecuada, pero no se puede hablar aqui de desobediencia y
mucho menos de la violación de la norma. Y donde no hay desobediência,
tampoco hay obediência. Al sentenciar, el juez obedece la norma que obliga a
sentenciar (de acordo con la cual no puede negarse a hablar), pero las
normas que aplica son usadas, no obedecidas por el.
208
As duas obrigações básicas dos juízes – a de julgar e a de fundamentar a decisão em
normas do direito positivo podem, no entanto, ser interpretadas conjuntamente, o que nos
permite reduzi-las a uma norma jurídica, abstrata e geral, que é exatamente o segundo
elemento da referida tríade normativo-jurisdicional, qual seja: a norma de desempenho
jurisdicional, ou, se preferirmos, a norma de julgamento. Sua estrutura sintática pode ser,
genericamente, apresentada da seguinte maneira:
207
É exatamente o que prescreve o art. 126 do Código de Processo Civil, in verbis: “Art. 126. O juiz não se
exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lide caber-lhe-á
aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de
direito.”
208
El Concepto de Eficacia, in Validez y Eficácia del Derecho, p. 32 (g.n.).
148
Antecedente: dado o fato de o autor ter formulado pretensão nos termos X, o réu
exercido regularmente seu direito de defesa nos termos Y, e decorrido os trâmites
procedimentais devidos;
(deve ser)
Consequente: a obrigação de julgar a demanda, nos limites por ela delimitados
(artigos 460 e 462 do Código de Processo Civil) e segundo as provas produzidas pelas
partes e as regras de direito positivo aplicáveis.
Ocorre, no entanto, que se a regra sobre a qual falamos impõe o dever de julgar
segundo o direito positivo material, certo é também que do ato de julgamento decorrerá
um’outra norma concreta e individual, esta decorrente da aplicação de norma abstrata e
geral de direito material, reguladora das condutas dos sujeitos parciais do processo, e que
diz com o próprio objeto da demanda. Em outros termos, o conteúdo da norma concreta e
individual que impõe o dever de julgar é a produção de outra norma concreta e individual,
esta dirigida às partes, a qual podemos chamar de norma de decisão.
A norma a ser aplicada no ato de cumprimento da obrigação de julgar, por sua vez,
é justamente aquela que diz diretamente com o direito material controvertido, e deve ser
estruturada, sintaticamente, da mesma forma que as demais. Seu conteúdo semântico, no
entanto, dependerá das questões de direito material levadas a juízo pelas partes.
A título de exemplo, consideremos uma demanda que tenha por objeto um ato de
lançamento constituído com fundamento em regra de incidência aplicada sem a observância
do princípio da capacidade contributiva e que venha a ser acolhida pela autoridade
jurisdicional. A norma a ser produzida poderá ser assim representada:
Antecedente: dado o fato de o ato constitutivo do crédito ter sido fundado em
norma tributária inconstitucional;
(deve ser)
149
Consequente: o direito do autor (contribuinte) à anulação do ato de lançamento.
Se a pretensão for rechaçada, teremos a seguinte estrutura normativa:
Antecedente: dado o fato de o ato constitutivo do crédito ter sido regularmente
constituído, visto que a norma tributária aplicada é plenamente constitucional;
(deve ser)
Consequente: o direito do réu (Fisco) de exigir o crédito constituído.
Cabe, neste instante, uma advertência. Dissemos, desde antes, que entre as
obrigações básicas do juiz está a de julgar com fundamento em normas do direito material,
isto é, segundo os preceitos normativos constantes do sistema primário. Há, entretanto,
ocasiões em que o juiz deverá aplicar normas pertencentes ao sistema secundário, como nos
casos em que estiverem ausentes os requisitos prescritos pelo art. 267 do Código de
Processo Civil. Neste caso, a relação jurídica constante da norma concreta e individual
posta vinculará o órgão jurisdicional e a partes do processo.
Daí que, a título de complemento, talvez seja mais preciso afirmar que o juiz está
obrigado a julgar com fundamento nas normas do direito positivo como um todo,
mormente, e sempre que possível, nas normas que integram o sistema primário.
Com efeito, a possível estrutura normativa de uma decisão judicial que reconheça a
ausência de uma das condições da ação a legitimidade de partes, por exemplo será a
seguinte:
150
Antecedente: dado o fato de o autor não tem legitimidade para pleitear a tutela
deduzida;
(deve ser)
Consequente: o direito subjetivo do réu (e o dever jurídico do órgão jurisdicional) à
extinção do processo sem julgamento do mérito (que implica no reconhecimento da
inexistência do direito subjetivo público do autor à prestação jurisdicional ação-
tutela/pedido imediato)
Devemos lembrar que o pedido deduzido em juízo é composto por duas pretensões:
(i) a pretensão processual, que diz com o direito à apreciação do mérito da causa (pretensão
material); e (ii) a pretensão material, que diz com o próprio direito material dito violado. A
primeira pressupõe uma relação jurídica fixada entre as partes e o órgão julgador, enquanto
que a segunda se refere a uma relação jurídica vinculadora dos sujeitos parciais do processo
(demandante e demandado). O reconhecimento da inexistência da primeira, portanto,
impede a apreciação da segunda.
Existem, ainda, outras normas decisórias, concretas e individuais, também
provenientes da aplicação de regras processuais (abstratas e gerais), mas que,
diferentemente das sentenças extintivas, são dirigidas aos sujeitos parciais do processo,
emanando seus efeitos para além dos muros do processo judicial que lhes deram origem.
É exatamente o caso das normas que reconhecem a obrigação da parte sucumbente
ao pagamento de honorários, ou, ainda, a que resulta da aplicação de multa por litigância de
-fé, esta última, inclusive, fundada em fato ilícito puramente processual. Estas regras,
não obstante serem veiculadas no sistema secundário, perfazem verdadeiras normas de
direito material, pois regulam as condutas das partes entre si, e não destas com o juiz.
Parece-nos correto afirmar que a norma-tutela é o ato-fim do processo jurisdicional.
Por ato-fim, cabe esclarecer, deve-se entender aquele que presta, efetivamente, a tutela do
direito material deduzido, e não necessariamente aquele que põe fim ao processo. Daí que
as decisões interlocutórias antecipatórias da tutela jurisdicional, por exemplo, são atos-fim
151
tanto quanto aquelas veiculadas nas sentenças, inclusive no que diz respeito à aplicação do
direito material. A circunstância de serem produzidas mediante cognição sumária do direito
material e de terem sua eficácia no tempo limitada não altera em nada suas naturezas.
Com efeito, ninguém haverá de não admitir que a decisão concessiva de pedido de
tutela antecipada, que tenha por efeito a suspensão da exigibilidade do crédito tributário,
está a reconhecer e proteger, mesmo que de forma provisória, parcial e superficial, o direito
material do contribuinte. Aliás, a existência de tutelas jurisdicionais cujos efeitos são
limitados no tempo, em oposição àquelas que são produzidas com foros de definitividade
dá-nos oportunidade de estabelecer duas classes de tutelas jurisdicionais: (i) a das tutelas
jurisdicionais precárias; e (ii) a das tutelas jurisdicionais definitivas.
Não podemos esquecer, por fim, da norma-tutela executiva, cujas peculiaridades
fazem com que seu esquema estrutural seja distinto de todos os outros até agora
mencionados. Para tratarmos dessa forma específica de tutela jurisdicional, no entanto,
devemos fazer algumas considerações adicionais.
A tutela jurisdicional não se presta, exclusivamente, a aplicar o direito material, mas
também e principalmente a efetivá-lo. Tomemos como exemplo a tutela anulatória do
débito fiscal. A autoridade jurisdicional, ao reconhecer o direito do contribuinte-autor à
anulação do débito (norma de decisão), aplica o direito material. Logo após, emite outro
enunciado, veiculado na parte dispositiva da sentença, que o realiza: “julgo procedente e
anulo o débito XPTO”. Não é difícil constatar que neste enunciado não há qualquer
reconhecimento do direito material, mas tão somente sua efetivação.
Assim, nos chamados processos de conhecimento, o juiz conhece o direito material
(o constitui) para, logo em seguida, realizá-lo (tutelas jurisdicionais independentes) ou criar
as condições para tanto (tutelas jurisdicionais dependentes). É desta circunstância, aliás,
que decorre a máxima difundida pela Dogmática clássica de Direito Processual de que toda
sentença tem um mínimo de “declaratoriedade”, pois, de ordinário, em toda e qualquer
sentença proferida em processos cognitivos o direito material é efetivamente apreciado.
Algumas atividades jurisdicionais, no entanto, se restringem à mera realização do
direito material, visto que sua existência (do direito material) resta presumida. É
exatamente o caso da tutela executiva, que opera sob a ideia de presunção de existência do
152
direito material que fundamenta a pretensão do autor (obrigação líquida, certa e exigível),
presunção esta que subjaz à noção de título executivo, cabendo ao órgão julgador praticar,
tão somente, os atos materiais tendentes à sua efetivação.
Em verdade, no processo executivo não apenas um único veículo normativo
introdutor da norma tutela, mas vários, produzidos subsequentemente ou
intercorrentemente
209
, até que o resultado prático pretendido (satisfação do crédito) seja
obtido. Assim, correto é afirmar que cada um dos atos coativos exarados contra o devedor
ou constritivos de seu patrimônio (citação para pagar, penhora, leilão) perfaz veículo
normativo-executivo autônomo, destinado a coagir o devedor a cumprir com obrigação e,
com isso, realizar o direito material da parte credora.
A estrutura normativa da norma-tutela de execução, no entanto, difere daquelas
produzidas por meio das tutelas cognitivas. Na tutela executiva a tríade normativa se reduz
a um duo, pois não aplicação da norma de direito material (não a norma de decisão).
Este (direito material) está pressuposto pelo título executivo que aparelha a execução,
cabendo ao juiz, exclusivamente, desempenhar sua função realizadora do direito sem que
seja necessário constituí-lo (reconhecê-lo ou declará-lo, para usarmos a linguagem comum
à Dogmática de Direito Processual).
Trata-se, assim, de tutela produzida em atividade jurisdicional direcionada,
exclusivamente, à realização do direito material, contrapondo-se àquelas em que a atividade
jurisdicional é predominantemente cognitiva (produtora de norma) do direito. Daí falarmos
em (i) tutela jurisdicional executiva de um lado (que não produz norma de decisão), e (ii)
tutela jurisdicional cognitiva (que produz norma de decisão), de outro.
Na condição de normas concretas e individuais, as normas introdutora, de
julgamento e de decisão imprescindem de objetivação linguística que as documente.
Devem estar plasmadas, portanto, em linguagem jurídica competente, por meio da qual
serão constituídos os pressupostos fáticos previstos na conotação de suas hipóteses
normativas, fazendo nascer a consequente relação jurídica por meio da qual se dará,
efetivamente, a regulação das condutas de seus destinatários. Somente então serão
209
A tutela executiva é intercorrente. Daí por que a prescrição verificada no âmbito desses processos é
chamada de prescrição intercorrente.
153
constituídas as normas concretas e individuais que regularão, efetivamente, a conduta de
seus destinatários.
Assim, se tomarmos como exemplo o veículo introdutor “sentença”, a norma
introdutora constará dos enunciados que indicam o local (X Vara do Foro da Comarca Y), a
data e a autoridade julgadora. Essa regra, parece-nos, vale para todo e qualquer veículo
normativo judicial, inclusive as decisões interlocutórias e dos acórdãos.
A norma de desempenho jurisdicional (norma de julgamento), concreta e individual,
por sua vez, é construída a partir dos enunciados constantes do relatório das decisões
jurisdicionais, onde são reproduzidos, basicamente, o conteúdo controvertido da demanda e
os principais atos processuais (praticados pelas partes e pelo próprio juiz). O conteúdo
fático descrito no relatório denota, exatamente, as notas conotativas do antecedente da
norma de julgamento abstrata e geral, e antecede ao início do julgamento propriamente
dito.
Sugestivas, aliás, as expressões usadas pelos juízes por ocasião do encerramento do
relatório: “posto isso, passo ao exame do mérito”; “sendo esse o relatório, passo a julgar”;
ou, simplesmente, “julgo”. Interessante notar que essas frases, como muitas outras formas
de expressão usadas nessas ocasiões, são formuladas em primeira pessoa do singular,
denotando uma ação que está a se iniciar, ação esta que é, justamente, a de cumprimento da
obrigação constituída por meio dos enunciados que lhes antecederam.
A norma concreta e individual de decisão (material ou processual), a seu turno, é
construída a partir dos enunciados constantes do fundamento da decisão. É nele,
fundamento, que as questões fáticas e jurídicas são apreciadas e, consequentemente, onde
os direitos subjetivos ditos violados são reconhecidos ou não. A esse respeito, aliás, vale
lembrar que a autoridade jurisdicional está obrigada a julgar com fundamento no direito
material ou processual positivo, isto é, o direito material ou processual consta do
fundamento que ensejo ao julgamento a ser objetivado na parte dispositiva. Esta (parte
dispositiva) se resume a realizar (tutelas independentes) ou criar as condições de realização
do direito (tutelas dependentes).
154
A parte dispositiva da sentença, portanto, se apresenta na condição de um enunciado
prescritivo por meio do qual o juiz realiza ou cria as condições para a realização do direito
material constituído no fundamento da decisão. Trata-se do ato de julgamento propriamente
dito. É essa, aliás, a função precípua da tutela jurisdicional e do próprio sistema secundário:
garantir a eficácia do direito material.
O enunciado do dispositivo tem natureza eminentemente performativa, isto é, ao ser
objetivado impõe uma alteração no mundo jurídico, consubstanciado pelo cumprimento do
dever de julgar, bem como pela realização (ou pela criação de condições para tanto) do
direito material reconhecido (constituído) no fundamento da sentença. Assim, diante da
recusa do titular do dever jurídico em realizar a conduta devida, é o juiz que, em caráter
supletivo, efetividade ao direito subjetivo violado, fazendo-o no bojo de um mesmo
veículo normativo. Daí, aliás, a natureza substitutiva (da vontade das partes) da função
jurisdicional.
Mutatis mutandis, a parte dispositiva da sentença está para a norma concreta e
individual posta em seus fundamentos assim como o enunciado do pagamento está para a
norma concreta e individual constituída pelo lançamento. A diferença é que, no caso do
pagamento, é o próprio sujeito destinatário da norma que realiza a conduta prescrita. Na
sentença, o juiz age em substituição à vontade das partes (destinatárias da norma).
Note-se que o ato que efetiva o cumprimento da obrigação tributária também não se
apresenta, isoladamente, como uma norma jurídica em sentido estrito. Somente a partir da
interpretação conjunta do enunciado do pagamento com outros enunciados do sistema é que
se torna possível a identificação de efeitos normativos. O mesmo se com relação ao
enunciado objetivado na parte dispositiva da sentença que, em si e por si, não veicula
norma jurídica em sentido estrito, mas um enunciado por meio do qual se aplica uma
específica técnica de realização do direito subjetivo constante do fundamento da decisão.
Assim, quando o juiz reconhece, no fundamento da sentença, o direito do
contribuinte à anulação do débito, realiza-o imediatamente, efetivando a anulação do ato
pelo dispositivo da sentença. Algo semelhante ocorre com relação ao direito subjetivo
absoluto de não ser tributado, reconhecido no fundamento das sentenças declaratórias
negativas. Neste caso, pelo enunciado da parte dispositiva, põe-se fim à incerteza jurídica
155
quanto à (in)existência do direito de a Fazenda constituir o crédito, obstando, por via
oblíqua, a realização da cobrança.
Em verdade, o que se realiza por meio da parte dispositiva das sentenças
declaratórias (negativas ou positivas) reconhecimento pelo réu a respeito da existência ou
inexistência de uma dada relação jurídica. A incerteza causada pela recusa do réu
consubstancia ameaça de lesão ao direito subjetivo do autor (constituído no fundamento da
sentença.). Assim, nos fundamentos das tutelas declaratórias negativas em matéria
tributária, por exemplo, é o direito subjetivo absoluto do contribuinte de não ser tributado
nas circunstâncias fáticas e jurídicas discutidas no processo que resta ameaçado pela
incerteza quanto à existência ou não do direito de a Fazenda Pública constituir do crédito
(dirimida no enunciado da parte dispositiva).
A constituição do direito de não ser tributado (fundamento) implica a “declaração”
da certeza quanto à inexistência do direito potestativo do Estado de constituir o crédito
(dispositivo). O dispositivo da sentença declaratória negativa, portanto, afirma a ausência
de dúvida quanto à impossibilidade de o contribuinte ser objeto de tributação. Isso, por si
só, é suficiente para que seu direito seja resguardado. Com efeito, se o juiz afirma que
não dúvidas a respeito da inexistência do direito da Fazenda Pública de constituir o
débito, acaba, indiretamente, por proibi-la de fazê-lo.
Nas tutelas declaratórias (positivas) do direito potestativo de compensar
determinado crédito tributário, por outro lado, a incerteza diz com o não reconhecimento
espontâneo, por parte da Fazenda Pública, do direito à compensação, o qual, se for exercido
sem a chancela da tutela jurisdicional, poderá dar oportunidade a imposição de penalidades
por parte do Fisco. Ao por fim à incerteza, a autoridade jurisdicional evita que haja futura
lesão a direito do contribuinte. Nesse caso, a decisão judicial constitui o direito em seus
fundamentos para, na parte dispositiva, substituir a vontade da Fazenda Pública quanto à
sua reconhecimento de sua existência, o que imuniza o contribuinte de eventuais
represálias.
210
210
Note-se que nas ações declaratórias do direito à compensação de tributos pagos indevidamente, a causa de
pedir diz com a incerteza a respeito da existência do direito de compensar. A relação jurídica de indébito, isto
é, o direito à restituição do tributo pago indevidamente perfaz mera questão prejudicial.
156
Por isso, dizer que o enunciado constante do dispositivo da sentença não veicula
norma em sentido estrito não é o mesmo que afirmar a impossibilidade do referido
enunciado produzir, por via oblíqua, efeitos normativos.
Não obstante, “declarar”, “constituir” e “condenar” são categorias exclusivamente
pertencentes ao plano processual, que expressam ações (técnicas) que se pretendem
substitutivas da condutas necessárias à efetivação da norma concreta e individual em que se
encontra o direito subjetivo violado, veiculada nos fundamentos da decisão.
A realização total do direito material controvertido, via parte dispositiva, no
entanto, não perfaz uma característica própria a todas as espécies de tutela jurisdicional.
Algumas espécies de tutelas jurisdicionais (as condenatórias em sentido amplo) servem à
proteção de direitos subjetivos que se caracterizam pela impossibilidade de substituição
direta da vontade das partes pela vontade do juiz, cabendo a este, então, criar as condições
para que o direito subjetivo violado seja realizado por rotas indiretas.
Conforme anotamos por ocasião da delimitação dos conceitos de relação jurídica,
direito subjetivo, conflito e pretensão processual, são várias as técnicas usadas pelo
legislador para a regulação das condutas, sendo este o critério diferenciador das espécies de
“direito subjetivo” (direito subjetivo prestacional, direito subjetivo absoluto e direito
subjetivo potestativo). Cada uma dessas técnicas normativas, a seu turno, induz uma forma
específica de violação e, consequentemente, um técnica específica de reparação (tutela)
211
.
Em se tratando de técnicas de regulação da conduta que não estejam diretamente
relacionadas a um ato comissivo do sujeito devedor, tais como o direito potestativo (direito
à anulação do débito, por exemplo) e o direito absoluto (direito de não ser tributado fora
dos parâmetros constitucionais/legais), cujas violações ocorrem pela imposição de óbices
ao exercício do direito subjetivo do sujeito pretensor, é possível estabelecer uma técnica de
tutela jurisdicional que, ao ser efetivada, será suficiente à realização do direito. Nestas o
juiz pode, de imediato, substituir a vontade do sujeito que não honrou com seu dever
211
“O que distingue uma tutela de outra reside especificamente nas técnicas a serem adotadas para a tutela do
direito constante do título executivo judicial.” Cássio Scarpinella Bueno. Curso sistematizado de direito
processual, v. 1, p. 313.
157
jurídico, para efetivá-lo. Tratam-se de tutelas jurisdicionais dependentes ou, como prefere
CÁSSIO SCARPINELLA BUENO, intransitivas
212
.
Em se tratando de técnicas de regulação de condutas que se caracterizam pela
qualificação direta da conduta do titular do dever jurídico (direitos subjetivos prestacionais,
tais como a obrigação tributária e a relação jurídica de indébito), por sua vez, não é possível
ao juiz substituir a conduta comissiva do devedor, motivo pelo qual a tutela jurisdicional
restringir-se a criar as condições necessárias para que o direito se realize por meio da
aplicação de expedientes normativos sub-rogatórios (expropriação forçada do patrimônio
do devedor, por exemplo), a serem efetivados por intermédio de um’outra tutela
jurisdicional (a executiva, por exemplo). São as chamadas tutelas jurisdicionais
dependentes ou transitivas
213
.
A tutela condenatória é o exemplo clássico desta espécie de técnica jurisdicional. Na
sentença condenatória o juiz reconhece no fundamento da decisão a existência não da
relação jurídica de direito material (prestacional|), mas também de seu inadimplemento
(lesão). Ao condenar o réu, por meio do enunciado posto na parte dispositiva da sentença, o
juiz não está constituindo ou realizando o direito subjetivo violado, mas criando as
condições para que, em caso de não cumprimento espontâneo do dever jurídico, o credor
possa, por meio de outra tutela jurisdicional (agora a executiva), sub-rogar-se nos direitos
patrimoniais do réu. Trata-se de uma técnica jurisdicional de efetivação indireta do direito
subjetivo.
Algo semelhante ocorre com as tutelas específicas de efetivação de obrigações de
fazer ou não fazer e dar coisa certa, nos termos delineados nos arts. 460 e 461-A do Código
de Processo Civil. Nesses casos, após o reconhecimento da obrigação inadimplida, está o
212
“É que as tutelas declaratória e constitutiva bastam por si próprias. São, por assim dizer, tutelas
jurisdicionais “auto-suficientes”, “bastantes”, intransitivas, portanto, porque dispensam qualquer providência
do réu ou do aparato jurisdicional para que seus efeitos sejam sentidos regularmente no plano material”. Ob.
cit., v. 1, p. 311.
213
As tutelas condenatória, executiva e mandamental, no entanto, necessitam de atividades a elas exteriores
para que seus efeitos sejam sentidos, exceção feita, evidentemente, à hipótese de serem acatadas,
espontaneamente, por quem de direito. Em virtude desta sua característica, elas podem ser chamadas de
“tutelas jurisdicionais transitivas”, que dependentes de uma complementação, da prática de alguma
atividade ou de algum ato, do próprio juiz, ou, mais amplamente, da máquina judiciária ou do destinatário da
prestação jurisdicional (réu), a elas externas para serem completas, para serem eficazes, para realizarem-se e,
do ponto de vista que a questão mais interessa no presente estudo, para satisfazerem seu beneficiário (autor).”
Idem, ibidem, p. 312.
158
juiz autorizado a estabelecer medidas coercitivas que visam coagir o réu a realizar a
conduta devida. Neste caso, a realização do direito material também é buscada de forma
indireta.
214
Em verdade, o que se encontra por detrás dessa diferença entre as tutelas
condenatória e anulatória (e também a declaratória) é a espécie de direito material a ser
realizado e a natureza do ato de violação. Por se tratar de uma relação jurídica prestacional,
que pressupõe uma técnica de regulação de conduta diferente daquela que é própria aos
direitos subjetivos absolutos e potestativos (protegidos, respectivamente, pelas tutelas
declaratória e anulatória), a conduta da parte devedora não pode, pura e simplesmente, ser
substituída pelo ato do juiz, fazendo-se necessárias a prática de atos de coação e, até
mesmo, expropriação do patrimônio do réu.
A realização dos direitos subjetivos prestacionais, portanto, se dá, ordinariamente,
em duas etapas: (a) a etapa cognitiva da obrigação, ocasião em que a relação jurídica
obrigacional reconhecida e o fato de seu inadimplemento constituído (tutela condenatória
título executivo judicial); e (b) a etapa realizadora da obrigação, por meio da qual o credor
sub-roga-se nos direitos patrimoniais do devedor. Daí afirmarmos que os enunciados das
partes dispositivas das sentenças condenatórias são constitutivos dos meios de realização do
direito subjetivo, cuja violação restou reconhecida no fundamento da decisão.
Agora, se a relação jurídica prestacional inadimplida estiver plasmada em
documento ao qual o sistema jurídico processual atribui a condição de título executivo
extrajudicial (art. 585, do Código de Processo Civil) e, por essa razão, goze de presunção
de liquidez, certeza e exigibilidade (art. 580, do Código de Processo Civil), a realização do
direito subjetivo violado dar-se diretamente pela via jurisdicional realizadora (tutela
executiva), pois as condições de efetivação do direito (obrigação líquida, certa e exigível)
214
As tutelas específicas veiculadas nos artigos 461 e 461-A do Código de Processo Civil, nada mais são que
“condenações acompanhadas de atos de efetivação”. A diferença é que os indigitados atos de efetivação são
específicos para a realização de prestações de fazer/não fazer ou dar coisa certa. Tais relações prestacionais
demandam técnicas jurisdicionais de efetivação diversas daquelas usadas para a realização das prestações de
dar dinheiro. São essas diferenças, relativas às técnicas de realização do direito violado, que fazem com que a
doutrina reclassifiquem-nas em tutelas jurisdicionais “mandamentais” e “executivas latu senso”. O que
importa anotar, no entanto, é que todas elas assumem a condição de tutelas jurisdicionais transitivas ou
dependentes.
159
restam presumidas pelo indigitado título, o que dispensa a via jurisdicional cognitivo-
condenatória.
Neste sentido, parece-nos correto afirmar que, sob o ponto de vista da capacidade de
realização efetiva do direito material, podemos dividir a classe das tutelas jurisdicionais
cognitivas em duas outras subclasses: (i) a das tutelas jurisdicionais independentes ou
transitivas, assim definas como aquelas que independem de um’outra tutela para dar conta
da realização do direito violado ou ameaçado de violação; e (ii) a das tutelas jurisdicionais
dependentes, tomadas aqui como aquelas que dependem da produção de outra tutela para
que possam efetivar o direito subjetivo violado.
O que importa repisar é que a técnica de efetivação jurisdicional dos direitos
subjetivos está necessariamente vinculada à natureza destes (absolutos, potestativos ou
prestacionais) e, também, ao status do conflito (lesão ou ameaça de lesão) nele instaurados,
conforme pretende ilustrar o quadro abaixo:
Tutelas Jurisdicionais
Fundamento
Tutela
Declaratória
Tutela (des)
Constitutiva
Tutela
Condenatória
Tutela Executiva
Direito
subjetivo
absoluto
Ameaça de
lesão
(incerteza)
Direito
subjetivo
potestativo
Ameaça de
lesão
(incerteza)
Lesão efetiva
(óbice)
Direito
subjetivo
prestacional
215
(quantia)
Ameaça de
lesão
(incerteza)
Lesão efetiva
(inadimplemento)
Lesão efetiva
(inadimplemento)
215
Em matéria tributária é raro haver interesse na meradeclaração da existência de relações jurídicas
prestacionais. Normalmente, o reconhecimento do direito subjetivo prestacional como, por exemplo, aquele
relativo à restituição de tributo pago indevidamente é realizado em caráter supletivo a pretensões
condenatórias (repetição do indébito) ou declaratórias do direito de compensar. Nada impede, no entanto, que
haja interesse tão-somente em ver dirimida a incerteza quanto à existência do direito à restituição, caso o
contribuinte esteja seguro de que não haverá qualquer possibilidade de questionamento por parte da Fazenda
Pública quanto a possibilidade de compensar o indébito cujo reconhecimento ocorreu pela via jurisdicional.
160
Importante lembrar, ainda, que são os atos de realização (tutelas anulatória e
declaratória) e as técnicas indiretas de efetivação (tutelas condenatória) dos direitos
subjetivos violados que se tornam imutáveis pela força da coisa julgada, e não os próprios
direitos subjetivos que lhes dão fundamento. Os direitos subjetivos reconhecidos nos
fundamentos das sentenças perduram enquanto as circunstâncias fáticas, jurídicas ou
interpretativas consideradas na decisão, mantiverem-se as mesmas. Já os atos de efetivação
objetivados nos dispositivos das sentenças estarão resguardados pela imutabilidade própria
à noção de coisa julgada
216
.
A afirmação de que o direito material é concretizado no fundamento da decisão
jurisdicional e não em sua parte dispositiva, admitimos, tende a gerar certa perplexidade,
especialmente diante do dogma de que é na parte dispositiva da sentença que se encontra o
“comando” da decisão, sobre o qual, inclusive, deve incidir a coisa julgada
217
.
O que talvez dificulte a compreensão de que o enunciado do dispositivo da sentença
não consubstancia, em si mesmo, uma norma jurídica em sentido estrito, é o fato de que nas
tutelas ditas ordenatórias (sub-rogatórias ou condenatórias em sentido amplo) tem-se
claramente uma ordem emanada do juiz para o réu. Com efeito, ao expressar “condeno o
devedor a pagar (...)” ou “determino que a autoridade impetrante (...)”, o juiz faz com se
torne quase que intuitiva a conclusão de que há, de fato, uma norma em sentido estrito
expressa naquele enunciado.
As partes dispositivas dessas específicas técnicas jurisdicionais de tutela do direito,
no entanto, devem ser consideradas na condição de enunciados prescritivos isolados (plano
S
2
), e não normas jurídicas em sentido estrito. Aliás, parece-nos até possível admitir a
existência de norma nestes enunciados, mas não de norma em sentido estrito, assim
entendida como aquela que se apresenta mediante mensagem deôntica minimal (juízo
216
Aqui reside a diferença entre ato jurídico perfeito, direito adquirido e coisa julgado. O primeiro diz respeito
à imutabilidade (aperfeiçoamento) da norma (veículo) introdutora. O segundo torna imutável a norma
individual e concreta nele veiculada (direito subjetivo). Os terceiro, por sua vez, diz com a imutabilidade dos
efeitos jurídicos e sociais decorrentes do exercício dos direitos subjetivos (dos atos de realização do direito),
quando exercidos pela via jurisdicional.
217
É o que prescreve o art. 469, do Código de Processo Civil, in verbis: “Art. 469. Não fazem coisa julgada: I
os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da sentença; II a verdade
dos fatos, estabelecida com fundamento da sentença; III a apreciação da questão prejudicial, decidida
incidentalmente no processo.”
161
hipotético-condicional). Tratar-se-ia de norma categórica, composta, tão somente, por um
enunciado prescritivo, similar àqueles que constam do consequente normativo das normas
hipotéticas.
Poder-se-ia afirmar que, ao se admitir a existência de normas jurídicas categóricas
nas sentenças, estar-se-ia violando o postulado da homogeneidade sintática das normas
jurídicas. Parece-nos, no entanto, que não é esse o caso.
Lembramos que a redução dos componentes mínimos dos sistemas jurídicos as
normas jurídicas a juízos hipotético-condicionais consta, originalmente, da obra de
HANS KELSEN. É o próprio KELSEN, no entanto, que admite, na mesma obra em
defende a homogeneidade das estruturas normativas, a possibilidade de emissão, por parte
dos juízes, de enunciados categóricos isolados. Confira-se:
Também isto mostra que todas as normas gerais de uma ordem social empírica,
incluindo as normas gerais de omissão, apenas podem prescreve uma conduta sob
condições ou pressupostos bem determinados, e que, por isso, toda a norma geral produz
uma conexão entre dois factos, conexão essa que pode ser descrita pelo enunciado
segundo o qual, sob um determinado pressuposto, deve realizar a uma determinada
conseqüência. (...)
Apenas as normas individuais podem ser categóricas, no sentido de que
prescrevem, autorizam ou positivamente permitem uma dada conduta de
determinado indivíduo sem a vincular a determinado pressuposto. É o que se passa
quando, por exemplo, um tribunal decide que um certo órgão tem de proceder a certa
execução num determinado patrimônio, ou que certo órgão deve colocar numa prisão,
por um determinado período de tempo, um certo réu.
218
Com efeito, a justificativa para que as estruturas jurídico-normativas se apresentem
sob a forma de juízos hipotético-condicionais está ligada a uma técnica de regulação de
condutas que se relaciona à impossibilidade de contato direto do sujeito emissor da
mensagem normativa com o destinatário da norma.
Explicamos. Se o sujeito prescritor puder emitir a mensagem normativa diretamente
ao destinatário, no momento em que a conduta deve ser realizada, ele não precisa fixar,
hipoteticamente, as circunstâncias fáticas que dariam ensejo à realização da conduta que se
pretende ver realizada pelo destinatário, bastando que o emissor da norma se dirija ao
destinatário e prescreva diretamente: “Fulano, pague o tributo (Op)”; ou, “Cicrano, não
218
Teoria pura do direito, p.154 (g.n.).
162
constitua o crédito (Vq)”. Nessas situações, a emissão da mensagem normativa ocorre
mediante os chamados imperativos categóricos, que prescindem da previsão hipotética das
circunstâncias fáticas que servem de pressuposto à realização da conduta.
Em contraposição aos imperativos categóricos temos os chamados imperativos
hipotéticos, que se prestam à regulação da conduta do destinatário da mensagem normativa
nas circunstâncias em que não é possível que o emissor da prescrição esteja em contato
direto com o destinatário.
A normatização jurídica, em regra, ocorre por meio dessa técnica. Em direito, o
emissor da norma jurídica o legislador não está em contato direto com o destinatário da
mensagem prescritiva, motivo pelo qual não pode verificar, por exemplo, quando o
contribuinte adquire renda ou realiza operações de circulação de mercadorias para que
possa então emitir, diretamente, a ordem para recolher o imposto sobre a renda ou o
imposto sobre circulação de mercadorias.
Diante disso, o legislador lança mão de mensagens normativas estruturadas sob a
forma de juízos hipotético-condicionais, por meio das quais fixa, conotativamente, as
circunstâncias fáticas em que o destinatário deverá realizar tal conduta, fazendo-o da
seguinte forma: se adquirir renda, então deve ser a obrigação de recolher o imposto sobre a
renda (Se q, então Op).
Não obstante, na atividade normativa jurisdicional, diferentemente do que ocorre
com a função legislativa, verifica-se uma relação direta do juiz com as partes, havendo,
portanto, plenas condições para a emissão de uma norma categórica. Esta, no entanto, não
se apresenta como o resultado da aplicação de norma abstrata e geral, como de ordinário
ocorre, mas na condição de enunciado prescritivo que, a um tempo, objetiva o ato de
cumprimento da norma de julgamento (concreta e individual) e realiza o direito subjetivo
presente no consequente da norma concreta e individual de direito material posta no
fundamento da decisão (norma de decisão). Deve ser ela (parte dispositiva) encarada,
portanto, como um enunciado prescritivo isolado, e não na condição de norma jurídica em
sentido estrito, não obstante sua capacidade para produzir efeitos normativos externos.
Assim, em regra, teremos veiculados na sentença (ou acórdão, ou decisão
interlocutória): (i) a norma introdutora (enunciados dêiticos de tempo, espaço e
163
autoridade); (ii) a norma de julgamento (relatório); (iii) a norma de decisão (fundamento); e
(iv) o enunciado prescritivo realizador (dispositivo).
Há, entretanto, uma específica norma concreta e individual (norma jurídica em
sentido estrito, portanto) que se encontra veiculada no dispositivo da sentença. Trata-se da
norma que impõe a obrigação da parte vencida ao pagamento de honorários e demais ônus
sucumbenciais. É que o fato jurídico “sucumbência” é constituído por ocasião do
julgamento do pedido, fazendo nascer, neste instante, a correlata obrigação de arcar os
custos do processo, cabendo ao julgador torná-la exeqüível por meio da condenação da
parte vencida.
O mesmo não ocorre com obrigação de reparar os dados causados por litigância de
-fé. Esta, tanto quanto os direitos subjetivos que integram o objeto principal do processo,
é constituída no fundamento da decisão, pois é nele (fundamento) que o fato jurídico “má-
processual” é constituído. Neste caso, a condenação que dele decorrerá terá o condão de
estipular o quantum debeatur (liquidar a obrigação), tornando-a exeqüível.
As relações jurídicas relativas aos deveres de pagamento dos honorários
sucumbenciais e de indenização por litigância de má-fé, conforme adiantamos linhas acima,
nascem da incidência de normas abstratas e gerais formalmente processuais (visto que
veiculadas pelo sistema secundário e descritoras de fatos jurídicos processuais), mas cujo
conteúdo tem natureza eminentemente substancial, pois instaura vínculo jurídico entre os
sujeitos parciais do processo, e não entre estes e o órgão julgador.
Vale advertir, por fim, que os efeitos normativos das tutelas jurisdicionais nem
sempre podem ser identificados por meio da análise pura de suas espécies. Nesta seara,
mais uma vez, que se considerar a espécie de relação jurídico-conflituosa objeto da
atividade jurisdicional. É o que faremos a seguir com relação às tutelas jurisdicionais
tributárias.
164
2.3.4.3. Tutelas jurisdicionais tributárias: conceito e classificação
O exercício da atividade jurisdicional com a finalidade específica de composição de
conflitos tributários concretiza-se por meio da produção daquele ato derradeiro de aplicação
e realização do direito subjetivo tributário violado, qual seja: a tutela jurisdicional
tributária, assim entendida como o ato-norma produzido pelo Estado-juiz com vistas à
composição da lide tributária.
Quando afirmamos, porém, que o fim específico das tutelas jurisdicionais tributárias
aponta para a composição das lides daquela natureza, queremos expressar sua condição de
ato-norma vocacionado à produção de efeitos materiais concretos, incidentes sobre aquele
percurso de concretização do direito tributário ao qual nos referimos anteriormente, onde se
verificam os atos de violação que se pretende suplantar e os direitos subjetivos que se quer
efetivar.
Dessa forma, as relações de adequação instrumental que estabelecemos entre as
ações tributárias e os direitos subjetivos próprios a cada uma das fases do percurso de
positivação do direito tributário podem ser transpostas, sem reparos, para este específico
capítulo, visto que as pretensões deduzidas nas indigitadas demandas possuem conteúdos
que espelham a eficácia das tutelas jurisdicionais a elas correspondentes.
Significa afirmar, portanto, que, ordinariamente
219
, a toda ação tributária
antiexacional ou exacional corresponderá uma tutela jurisdicional tributária antiexacional
ou exacional, respectivamente. As ações tributárias preventivas ou repressivas, por sua vez,
darão azo à produção de tutelas jurisdicionais preventivas ou repressivas. Por fim, às
pretensões processuais tributárias declaratória, anulatória, condenatória e executiva
implicarão a produção de tutelas jurisdicionais de natureza idêntica.
Cada uma das tutelas jurisdicionais tributárias acima referidas terá o condão de
constituir e realizar o direito subjetivo material tributário violado. Podemos concluir, assim,
que as tutelas jurisdicionais tributárias, a despeito de serem produzidas via atividade
secundária e restarem veiculadas por instrumentos introdutores tipicamente processuais,
219
Dizemosordinariamente porque partimos do pressuposto da procedência do pedido formulado no ato
inaugural do processo. No entanto, uma ação antiexacional declaratória negativa, por exemplo ao ser
julgada improcedente dará ensejo, por via oblíqua, a uma tutela jurisdicional exacional, visto que reconhecerá
o direito da parte adversa a Fazenda Pública de constituir o crédito tributário.
165
perfazem verdadeiras normas jurídico-materiais
220
. Mais que isso, apresentam-se como atos
realizadores do direito material, fortes na convicção de que mais que norma, a tutela
jurisdicional se apresenta como ato-fato (direta ou indiretamente) efetivador do próprio
direito material.
Nessa medida, se a ideia subjacente à noção de norma-tutela tributária é a de
realização do próprio direito tributário, que se investigar a eficácia (normativa) típica a
cada uma das espécies normativas que assumem tal natureza, bem como sua capacidade
para interferir eficazmente no plano de concretização do direito material tributário. Com
efeito, é neste contexto que as particularidades normativas do sistema jurídico-substancial
sobre o qual incide a atividade jurisdicional tributária mostram-se relevantes.
Novamente, havemos de assumir como pressuposto a ideia de que a atividade
normativo-jurisdicional tem em mira a efetivação do direito material. Este objetivo, por sua
vez, pode ser atingido por meio de anterior atividade constitutiva do direito subjetivo a ser
realizado (tutelas cognitivas ou de conhecimento) ou pela mera prática de atos realizadores
do direito material previamente constituído (tutelas jurisdicionais realizadoras ou
executivas).
No âmbito das tutelas jurisdicionais tributárias cognitivas, temos aquelas que, por si
sós, são suficientes à efetivação do direito material, as quais podemos chamar de tutelas
jurisdicionais tributárias independentes ou intransitivas. Nesse escaninho se encontram as
tutelas jurisdicionais (i) declaratória de inexistência de relação jurídico-tributária
(produzida pela via ordinária ou pela especial do mandado de segurança); (ii) anulatória do
débito fiscal em sentido amplo (classe onde também estão incluídas as tutelas jurisdicionais
produzidas pelas vias do mandado de segurança repressivo e dos embargos à execução);
(iii) declaratória do direito de compensar; (iv) declaratórias da extinção do crédito por
consignação; e (v) anulatória de decisão administrativa (art. 156, IX, in fine, do Código
Tributário Nacional).
A tutela jurisdicional produzida em sede de mandado de segurança, importante
ressaltar, assumirá ora a condição (eficácia) de tutela declaratória ora a natureza de tutela
(des)constitutiva, a depender da espécie de direito subjetivo (absoluto ou potestativo)
violado pelo ato ilegal exarado pela autoridade coatora. Em matéria tributária, por exemplo,
220
Paulo Cesar Conrado. Ob. cit., p. 140.
166
o mandado de segurança terá natureza declaratória negativa quando impetrado com vistas à
proteção do direito absoluto de não ser tributado. Terá natureza constitutivo-negativa
quando manejado em face de ato de autoridade responsável pela constituição ilegítima do
débito tributário. Por fim, produzirá tutela declaratória positiva quando tiver por objeto o
reconhecimento do direito potestativo à compensação.
Além disso, as tutelas jurisdicionais precárias, antecipatórias ou cautelares, exaradas
no bojo dos processos relativos a cada uma das tutelas jurisdicionais acima enumeradas,
também são constitutivas e realizadoras do direito material, mesmo que em caráter parcial.
Com efeito, o direito (material) à suspensão da exigibilidade do crédito tributário objeto do
litígio, ou, no caso das tutelas preventivas, de não emissão do ato constitutivo do crédito
tributário (art. 151, IV, do Código Tributário Nacional), realizam, mesmo que precária e
parcialmente, a pretensão deduzida.
A par das normas-tutelas tributárias cognitivas independentes ou intransitivas,
temos também as denominadas tutelas jurisdicionais tributárias cognitivas dependentes ou
transitivas, assim entendidas como aquelas que constituem o direito material (fundamento)
para, em seguida, criar as condições necessárias para que, por meio de outras tutelas
jurisdicionais, possam ser concretizadas as atividades sub-rogatórias destinadas à efetivação
do direito material. Neste rol estão as tutelas (i) condenatórias de repetição do indébito
tributário; e (ii) condenatórias do dever de adimplir a obrigação tributária
221
.
Por fim, temos as tutelas jurisdicionais tributárias meramente realizadoras, ou seja,
aquelas que se destinam única e exclusivamente à realização do direito material, cuja
constituição ocorreu previamente, seja por meio de um’outra tutela jurisdicional
(condenatória), seja por documento a que a legislação atribui status de título executivo
que é exatamente o caso da Certidão de Dívida Ativa. No âmbito tributário, as tutelas
jurisdicionais realizadoras são duas: (i) a tutela executiva fiscal; e (i) a tutela de execução
contra a Fazenda Pública.
221
Muito embora a cobrança do crédito tributário, ordinariamente, dispense a fase cognitiva, visto que à
Fazenda Pública é dado o direito de constituir seu próprio título executivo (Certidão de Dívida Ativa), fato é
que alguns tributos, ditos parafiscais, são cobrados, por expressa transferência legal da capacidade tributária
ativa, por pessoas jurídicas de direito privado, às quais não é atribuído o direito de constituir o próprio título
executivo e, muito menos, de se valerem do procedimento executivo fiscal. Nesses casos, a cobrança do
crédito tributário inadimplido dar-se-á pelas vias processuais ordinárias, isto é, por meio de tutela
jurisdicional condenatória. É o caso, por exemplo, da Contribuição Sindical Rural, cobrada pela Confederação
Nacional da Agricultura.
167
Sob a óptica estritamente normativa, não que se falar em tutelas jurisdicionais
“declaratórias”, “constitutivas”, “condenatórias” ou “executivas”. Todas, sem exceção, são
constitutivas de preceitos normativos concretos e individuais (normas introdutora, de
julgamento e de decisão) e de enunciados prescritivos técnico-realizadores (dispositivos).
São estes últimos que, conquanto não possam ser considerados “normas em sentido
estrito”, produzem os efeitos jurídicos e sociais desejados pelo titular do direito violado ou
ameaçado (constituído no fundamento da decisão ou no título executivo).
Importante salientar, por fim, que muito embora seja útil e até desejável que
reelaboremos os conceitos postos pela Dogmática tradicional de Direito Processual à luz de
uma gramática analítico-normativa que conta de explicar, com maior precisão, o
fenômeno normativo jurisdicional, não se pode ignorar o fato de que o regime geral de
direito processual, ao fixar as diversas técnicas de realização dos direitos violados, atribui a
cada uma delas os nomes que refletem as “eficácias” descritas pela tradição doutrinária, os
quais, apesar de não refletirem, precisamente, os efeitos normativos que emanam,
costumam atingir os objetivos a que se propõem.
Com efeito, sob o ponto de vista estritamente normativo, o enunciado do
dispositivo de uma sentença que acolhe pedido formulado em ação declaratória de
inexistência de relação jurídico-tributária, ao expressar: “julgo procedente o pedido e
declaro inexistente a relação jurídico-tributária X”, deve ser lido como: “não qualquer
dúvida certo) a respeito da inexistência do direito da Fazenda Pública de constituir o
crédito”. Efeito normativo: está a Fazenda Pública proibida de constituir o crédito.
O enunciado da sentença que acolhe o pedido de anulação de débito fiscal, a seu
turno, ao dizer: “julgo procedente o pedido e anulo o débito fiscal XPTO”, deve ser
entendido como: “retiro do sistema jurídico o ato constitutivo do crédito tributário XPTO”.
Efeito normativo: está a Fazenda Pública impedida de cobrar o débito.
A sentença que reconhece o direito à compensação, por sua vez, ao expressar:
“julgo procedente o pedido e declaro o direito do autor a compensar o crédito X com o
débito Y”, enuncia que: “não há qualquer dúvida a respeito do direito de o autor compensar
o crédito X com o débito Y”. Efeito normativo: a Fazenda Pública não pode impor
quaisquer penalidades ao exercício do referido direito.
168
Por fim, a sentença que julga procedente o pedido de repetição do indébito
tributário, quando enuncia: “julgo procedente o pedido e condeno a a devolver o
montante pago indevidamente a título de tributo”, quer expressar que: “a está
inadimplente quanto à obrigação de pagar os valores pagos indevidamente a título de
tributo”. Efeito normativo: se não pagar espontaneamente, estará sujeita aos atos executivos
definidos no regime jurídico do art. 730 do CPC.
Neste último caso, no entanto, que se fazer uma advertência. É que no regime
jurídico ordinário de cumprimento de sentença condenatória (art. 475 e seguintes do
Código de Processo Civil) tem-se, efetivamente, a possibilidade da prática de medidas sub-
rogatórias (expropriatórias) do patrimônio do réu, caso não haja o cumprimento espontâneo
da ordem emitida por meio da tutela condenatória. Em se tratando de “execução” contra a
Fazenda Pública, no entanto, a “realização” da obrigação inadimplida ocorre por meio da
emissão de ordem de pagamento dirigida ao órgão estatal devedor (precatório), em
prestígio ao cânone da indisponibilidade dos bens públicos.
Dada a impossibilidade de, pelas vias ordinárias, sancionar o Estado pelo não
atendimento da ordem de pagamento no prazo constitucionalmente fixado, o grau de
eficácia das decisões condenatórias proferidas em desfavor da Fazenda Pública é
consideravelmente baixo
222
. Eis, aqui, um exemplo clássico de alteração dos efeitos
ordinários de certa espécie de tutela jurisdicional tributária, determinada em razão da
qualidade de um dos sujeitos da relação jurídico-conflituosa (Estado).
Posto isso, podemos classificar as tutelas jurisdicionais tributárias segundo os
seguintes critérios: (i) cognoscitividade/realizatividade; (ii) definitividade/precariedade
ilustrando o processo divisório por meio do esquema abaixo:
222
A execução contra a Fazenda Pública, conquanto se preste à realização da obrigação por quantia certa,
diferentemente das demais tutelas jurisdicionais executivas da mesma natureza, não se concretiza por meio de
atos expropriatórios (sub-rogatórios), tendo vista a ideia de indisponibilidade do bem público que, no regime
jurídico instituído pelo art. 730 e seguintes do Código de Processo Civil, restou expressamente prestigiada.
Assim, a realização jurisdicional da obrigação por quantia certa contra a Fazenda Pública ocorre mediante
ordem emitida pelo órgão jurisdicional ao ente público inadimplente, o que evidentemente reduz
consideravelmente a efetividade desta espécie de tutela jurisdicional. A sanção possível”, in casu, seria a
decretação de intervenção federal, mediante autorização expressa do Supremo Tribunal Federal.
Historicamente, no entanto, não há registros de ocorrência de ato deste jaez.
169
Tutela Jurisdicional
Tributária
Cognitivas
Realizadoras
Definitivas
Precárias
Definitivas
Precárias
Execução Fiscal
Medida Cautelar
Fiscal
Execução contra a
Fazenda Pública
Tutela Declaratória
de Inexistência de
Relação Jurídica
Tutela Anulatória do
Débito Fiscal
Tutela Anulatória de
Decisão Administrativa
Tutela de Repetição do
Indébito Tributário
Tutela Condenatória de
Cobrança de Tributos
Parafiscais
Tutela Declaratória do
Direito de Compensar
Mandado de
Segurança
Tutela Cautelar
Tutela Antecipada
Tutela Suspensiva de
decisões não definitivas
-suspensão de segurança
170
CONCLUSÃO
A pretexto de demarcar o âmbito normativo próprio ao que chamamos de Direito
Processual Tributário, pretendemos demonstrar, neste trabalho, a conexidade normativa
entre os sistemas jurídicos de direito material e direito processual.
Fixamos, por primeiro, o sistema de referência a partir do qual sacamos os
postulados jurídico-filosóficos e teórico-gerais que sustentaram nossas investigações
dogmáticas. Nesta ocasião, procuramos demonstrar, a partir da delimitação do conceito de
direito, que os processos de aplicação do direito, mormente o jurisdicional, perfazem o
momento culminante do percurso interpretativo/concretizador das normas jurídicas, de
maneira que, por essa razão, o vínculo existente entre direito material e direito processual
vai muito além de uma mera relação meio/fim, e que o fenômeno processual não se
apresenta como uma ferramenta que se presta tão somente à revelação de um direito
preexistente, mas sim como um importante instrumento de controle do processo de criação
do direito perpetrado pelos órgãos jurisdicionais.
no capítulo II, iniciamos nossas considerações por meio da análise da estrutura
sistêmico-normativa fundamental dos ordenamentos jurídico-positivos. Foi nessa
oportunidade que, por meio das noções de sistema primário e sistema secundário,
demonstramos que a relação de instrumentalidade normativa entre os sistemas de direito
processual e material se inicia já no plano lógico-sintático, de maneira que o sistema
jurídico processual caracteriza-se por ser um sistema de segundo nível, que se presta a
garantir a efetividade do sistema jurídico-material.
Avançamos, então, para o tópico seguinte, firmes no propósito de delimitar o
conceito e os critérios de diferenciação do chamado sistema jurídico tributário. Foi nesta
oportunidade que pudemos apontar outras relações normativas entre direito material e
direito processual, especialmente por meio da demonstração de que as particularidades
inerentes a um determinado sistema jurídico de direito material, in casu, o tributário,
influenciam diretamente no modo de aplicação e na eficácia do sistema jurídico processual.
171
Passamos então a investigar, pormenorizadamente, as categorias fundamentais de
Teoria Geral do Processo à luz dos conflitos tributários. Preocupamo-nos, por primeiro, em
delimitar os conceitos de relação jurídica, direito subjetivo, conflito e lide tributários,
diferençando as diversas técnicas de regulação de conduta (direitos subjetivos), e
identificando o modo específico de violação de cada uma delas, para, em seguida
associarmo-las às adequadas pretensões previstas no sistema jurídico processual. Nessa
mesma oportunidade, definimos o conceito de fato jurídico conflituoso e, também, de
conflito e lides tributários.
A ação foi o tema investigado no tópico seguinte, ocasião em que voltamos nossos
esforços para a desconstrução dos dogmas e das concepções essencialistas que tratam da
questão, buscando construir o conceito de ação a partir de critérios jurídico-normativos.
Identificamos, nessa ocasião, os vários sentidos em que o vocábulo é usado pelos textos
jurídico-positivos, escolhendo, entre tantos, aquele que permite que possamos qualificá-lo
com o adjetivo “tributário”. Definimos, então, o conceito de ação tributária, para, logo em
seguida, formularmos nossa proposta de classificação das ações tributárias. Por fim, ainda
tratando do tema “ação tributária”, investigamos a relação de adequação das principais
ações tributárias em espécie com os conflitos havidos no âmbito das relações jurídico-
tributárias instauradas no curso do processo de positivação do direito tributário.
O fenômeno processual foi objeto de nossas considerações no tópico seguinte.
Ocupamo-nos nesse tópico de delimitar o conceito base de processo de produção normativa
para, a partir deste, identificar a noção de processo jurisdicional. Em seguida, tratamos de
vincular o conceito de processo à noção de lide tributária, o que nos permitiu atingir nosso
objetivo principal, qual seja: o de definir o conceito de processo tributário. Findamos com a
formulação de nossa proposta de classificação do processo tributário.
Encerrando nossa jornada investigatória pela tríade categorial fundamental do
processo, passamos a nos ocupar com a ideia de jurisdição e, em especial, com a noção de
jurisdição tributária. Delimitado o conceito de jurisdição tributária, passamos, desde logo, à
análise estrutural dos atos normativos resultantes do exercício da função jurisdicional, qual
seja: a tutela jurisdicional. Por fim, definimos o conceito de tutela jurisdicional tributária
172
para, ao final, elaborarmos proposta de classificação das tutelas jurisdicionais tributárias em
espécie.
Pensamos ter demonstrado, por meio das análises realizadas no percurso acima
narrado, a inseparabilidade, não só conceptual, mas também pragmática, dos sistemas
primário (direito material) e secundário (direito processual), justificando, a partir dessa
premissa, a demarcação de um campo específico de investigação dogmática, qual seja: o
Direito Processual Tributário.
173
BIBLIOGRAFIA
ADEODATO, José Maurício. Ética e retórica para uma teoria da dogmática jurídica.
3ª ed. revista e ampliada. São Paulo, Saraiva: 2007.
ALCHOURRÓN, Carlos; e BULYGIN, Eugenio. Introducción a la metodologia de las
ciências jurídicas y sociales. 3ª ed. Buenos Aires, Editorial Astrea: 2002.
ALEXY, Robert. O conceito de validade no direito. São Paulo, Martins Fontes: 2009.
__________e BULYGIN, Eugenio. La pretensión de correción del derecho la
polémica sobre la relación entre derecho y moral. Bogotá, Universidad Externado de
Colombia: 2001.
ALLORIO, Enrico. Diritto processuale tributário. 5ª ed. Torino, UTET: 1969.
ALONSO, Juan Pablo. Intepretación de las normas y derecho penal. Buenos Aires,
Editores del Puerto: 2006.
ARAÚJO, Clarice von Oertzen de. Semiótica do direito. São Paulo, Quartier Latin: 2005.
__________. “Semiótica na hermenêutica e interpretação constitucional”. In: Sistema
tributário brasileiro e a crise atual VI Congresso nacional de estudos tributários.
São Paulo, Noeses: 2009.
ATIENZA, Manuel e MANERO, Juan Ruiz. Las piezas del derecho – teoria de los
enunciados jurídicos. 2ª ed. Barcelona, Ariel: 2004.
AUSTIN. John L. Como hacer cosas con palabras. Barcelona, Paidós: 1971.
__________. Sentido e percepção. 2ª ed. São Paulo, Martins Fontes: 2004
BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e processo: influência do direito material
sobre o processo. São Paulo, Malheiros: 1997.
__________. Efetividade do processo e técnica processual. São Paulo, Malheiros: 2006.
BOTTALO, Eduardo Domingos. “Processo administrativo tributário”, In: Curso de
iniciação em direito tributário. São Paulo, Dialética: 2004.
BORGES, José Souto Maior. O Contraditório no processo judicial (Uma Visão
Dialética). São Paulo, Malheiros: 1996.
__________. Ciência feliz. 2ª ed. revista e atualizada. São Paulo, Max Limonad: 2000.
BUENO, Cássio Scarpinella. O Poder público em juízo. São Paulo, Max Limonad: 2000.
174
__________ e SUNDFELD, Carlos Ari. Direito processual público, a Fazenda Pública
em juízo. São Paulo, Malheiros: 2000.
__________. Curso sistematizado de direito processual tributário, vol. 1, São Paulo,
Saraiva: 2007.
BULYGIN, Eugênio, KELSEN, Hans, WALTER, Robert. Validez y eficacia del derecho.
Buenos Aires, Editorial Astra: 2005.
CABRERA, Julio. Margens das filosofias da linguagem. Brasília, UNB: 2003.
CAIS, Cleide Previtalli. O processo tributário. ed. atualizada, revista e ampliada. São
Paulo, Revista dos Tribunais: 2001.
CALMON DE PASSOS, J. J. Direito, poder, justiça e processo. Rio de Janeiro, Editora
Forense: 2003.
CAMPILONGO, Celso Fernandes. Política, sistema jurídico e decisão judicial. São
Paulo, Max Limonad: 2002.
CARVALHO, Paulo de Barros. Teoria da norma tributária. São Paulo, 3ª ed. Max
Limonad: 1998.
__________. Curso de direito tributário. 16ª ed. São Paulo, Saraiva: 2004.
__________. Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência. ed. São Paulo,
Saraiva: 2009.
__________. Direito tributário, linguagem e método. São Paulo, Noeses: 2008.
CONRADO, Paulo Cesar. Introdução à teoria geral do processo civil. ed. São Paulo,
Max Limonad: 2003.
__________. Processo tributário. 2ª ed. São Paulo, Quartier Latin; 2007.
__________.“Efetividade do processo, segurança jurídica e tutela jurisdicional
Diferençada”, In: Revista do Tribunal Regional Federal da Região, 76, São Paulo,
Thomson IOB: 2006.
CONDÉ, Mauro Lúcio Leitão. As teias da razão, Wittgenstein e a crise da racionalidade
moderna. Belo Horizonte, Argumentvm: 2004.
COUTORE, Eduardo J. Fundamentos del derecho processal civil. ed. Montevideo-
Buenos Aires, B de F: 2005.
__________. Interpretação das leis processuais. 4ª ed. Rio de Janeiro, Forense: 2001.
175
__________. Estúdios de derecho procesal civil, tomo I, La Constitución y el Processo
Civil. 3ª ed. Buenos Aires, Depalma: 2003.
CUNHA, Leonardo Carneiro. A fazenda pública em juízo. ed. rev., ampliada e
atualizada. São Paulo, Dialética: 2006.
DANTAS, Francisco Wildo Lacerda. Teoria geral do processo (Jurisdição ação
(defesa) – Processo). 2ª ed. São Paulo, Editora Método: 2007.
DALLA PRIA, Rodrigo. “O direito ao processo”. In: CONRADO, Paulo Cesar (Coord.).
Processo tributário analítico. São Paulo, Dialética: 2003.
__________. “O processo de positivação da norma jurídica tributária e a fixação da tutela
Jurisdicional apta a dirimir os conflitos entre contribuinte e fisco”. In: CONRADO, Paulo
Cesar (Coord.). Processo Tributário Analítico. São Paulo, Dialética: 2003.
DASCAL, Marcelo. Interpretação e compreensão. São Leopoldo, Editora Unisinos:
2006.
DIDIER Jr., Fredie. Curso de Direito Processual Civil, v. 1. 11ª ed. Salvador, Podivum:
2009.
DIMOULIS, Dimitri. Positivismo jurídico, introdução a uma teoria do direito e defesa
do pragmatismo jurídico-político. São Paulo, Método: 2006.
DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do Processo. 10ª ed. rev. e
ampliada. São Paulo, Malheiros: 2002.
__________. Capítulos de sentença. São Paulo, Malheiros: 2002.
FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual. Campinas, Bookseller: 2006.
FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Conceito de sistema no direito positivo. São Paulo,
Revista dos Tribunais: 1976.
__________. Introdução ao estudo do direito. São Paulo, Atlas: 1991.
__________. Direito, retórica e comunicação. São Paulo, Saraiva: 1997.
FLUSSER, Vilém. Língua e realidade. 2ª ed. São Paulo, Anablume: 2004.
GADAMER. Hans-Georg. Verdade e método, traços fundamentais de uma
hermenêutica filosófica. vol. 1. 7ª ed. Rio de Janeiro, Vozes: 2005.
GAMA, Tácio Lacerda. Competência tributária, fundamentos para uma teoria da
nulidade. São Paulo, Noeses: 2009.
176
GIORGIS. José Carlos Teixeira. A lide como categoria comum do processo. Porto
Alegre, Lejur: 1991.
GUIBOURG, Ricardo. El fenômeno normativo. Buenos Aires, Astrea: 1987.
__________. Derecho sistema y realidad. Buenos Aires, Astrea: 1996.
__________. Pensar em las normas. Buenos Aires, Eudeba: 1999.
GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. São
Paulo, Malheiros Editores: 2002.
GUIBOURG, Ricardo; GHIGLIANI, Alejandro e GUARINONI, Ricardo. Introducción al
conocimiento científico, Buenos Aires, EUDEBA: 1985.
HABERLE, Peter. A sociedade aberta dos intérpretes da constituição. Porto Alegre,
Fabris: 1997.
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Rio de Janeiro, Vozes: 2006.
HART, Herbet. O conceito de direito. 3ª ed. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian: 1994.
KAUFMANN, A. e HASSEMER, W. Introdução à filosofia do direito e à teoria do
direito contemporáneas. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian: 2002.
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. Lisboa,
Armênio Amado: 1984.
KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo, Perspectiva: 2003.
LACERDA, Galeno. Comentários ao código de processo civil, v. VIII, t. I. ed. Rio de
Janeiro, Forense: 1992.
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo. ed. rev. e ampliada. São Paulo,
Thomson IOB: 2006.
__________. Teoria processual da decisão jurídica. São Paulo, Landy: 2002.
MACHADO, Fábio Cardoso, e AMARAL, Guilherme Rizzo (Coord.). Polêmica sobre a
ação, a tutela jurisdicional na perspectiva das relações entre direito e processo. Porto
Alegre, Livraria do Advogado: 2006.
MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de processo civil, v. 1, teoria geral do processo.
ed. revista, atualizada e ampliada. São Paulo, Revista dos Tribunais: 2006.
MARINS, James. Direito processual tributário brasileiro (administrativo e judicial).
São Paulo, Dialética: 2001.
177
MARTINS, Alan. “Norma jurídica secundária, norma processual e norma processual
tributária.” In: Revista jurídica eletrônica UNICOC 6. Disponível em:
<http//www.revistajuridicanicoc.com.br>. Acesso em: 12 dez. 2009.
MARQUES, José Frederico. Instituições de direito processual, vol. 1. Rio de Janeiro,
Forense: 1971.
MENDONCA, Daniel. Los derechos en juego, conflicto e balance de derechos. Tecnos,
Madrid: 2003.
MORESO, José Juan. Normas jurídicas e estrutura del derecho. Distribuciones
Fontamara, México, D. F.: 2002.
MOUSSALLEM, Tárek Moysés. As fontes do direito tributário. Max Limonad, São
Paulo: 2001.
MULLER, Friedrich. Teoria estruturante do direito. São Paulo, Revista dos Tribunais:
2008.
NUNES, Dierle José Coelho. “O princípio do contraditório: uma garantia de influência e
não-surpresa”. In: Teoria do processo, panorama doutrinário mundial. Salvador,
Podivm: 2008.
OLIVEIRA. Carlos Alberto Alvaro. Teoria e prática da tutela jurisdicional. Rio de
Janeiro, Forense: 2008.
OLIVEIRA. Manfredo Araújo de. Reviravolta liguístico-pragmática na filosofia
contemporânea. 2ª ed. São Paulo, Loyola: 2001.
PANDOLFO. Rafael. Fundamentos do direito processual tributário. São Paulo, Saraiva:
2005.
PEIRCE, Charles S., Semiótica, São Paulo, Perspectiva: 2003.
PEIXOTO, Daniel Monteiro. Competência administrativa na aplicação do direito
tributário. São Paulo, Quartier Latin: 2006.
POZZOLO, Suzanna e DUARTE, Écio Oto Ramos. Neoconstitucionalismo e positivismo
jurídico. Landy Editora, São Paulo: 2006.
QUINTERO, Beatriz e PRIETO, Eugenio. Teoria general del processo. ed. ampliada e
corrigida. Bogotá, Temis: 2000.
RIBEIRO, Paulo de Tarso Ramos. Direito e processo: razão burocrática e acesso à
justiça. São Paulo, Max Limonad: 2002.
178
ROBLES MORCHON, Gregório. Teoria del derecho (fundamentos de teoria
comunicacional del derecho). Madrid, Civitas: 1998.
__________. O direito como texto, São Paulo, Manole: 2005.
ROCCO, Ugo. Trattato di diritto processuale civile, volumes I a VII. Torino, UTET,
Edizione: 1966.
__________. Derecho processual civil. México, D. F., Porrua Hnos y Cia: 1944.
RODRIGEZ, Jorge L. Lógica de los sistemas jurídicos. Madrid, CEPC: 2002.
ROSS, Alf. Direito e justiça. São Paulo, Edipro: 2003.
SANTI, Eurico Marcos Diniz. Lançamento tributário. São Paulo, Max Limonad, 1999.
Paulo: 2001.
SEARLE, JOHN R. Mente, linguagem e sociedade, filosofia no mundo real. Rio de
Janeiro, Rocco: 2000.
__________. Expressão e significado. São Paulo, Martins Fontes: 2002.
SOUZA. Gelson Amaro. Fraude à execução e o direito de defesa do adquirente. São
Paulo, Editora Juarez de Oliveira: 2002.
TOMÉ, Fabiana del Padre. A prova no direito tributário. São Paulo, Noeses: 2005.
VÁSQUEZ, Rodolfo. Interpretación jurídica y decisión judicial. Distribuiciones
Fontamara México, D. F: 1998.
VERNENGO. Roberto J. Curso de teoria general del derecho. Buenos Aires, Depalma:
1995.
VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo. São Paulo,
Max Limonad: 1997.
__________. Causalidade e relação no direito. ed. revista, atualizada e ampliada. São
Paulo, Revista dos Tribunais: 2000.
__________. Escritos jurídicos e filosóficos, vol. I e II. São Paulo, Axis Mundi: 2003.
XAVIER. Alberto. Princípios do processo administrativo e judicial tributário. Rio de
Janeiro, Forense: 2005.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus logico-philosophicus. Tradução de Luis Henrique
Lopes dos Santos. São Paulo, EDUSP: 1994.
__________. Investigações filosóficas. 3ª ed., Petrópolis, Vozes: 2005.
179
WRIGHT. Georg Henrik von. Normas, verdad y lógica. Distribuiciones Fontamara,
México, D.F.: 2001
YARSHELL, Flávio Luiz. Tutela jurisdicional. São Paulo, Atlas: 1998.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo