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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E NATURAIS
DEPARTAMENTO DE LÍNGUAS E LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
MARIA APARECIDA DE ARAÚJO MONTEIRO
TEMAS E TEIMAS: O DISCURSO FEMININO E FEMINISTA DE
MARINA COLASANTI
VITÓRIA
2009
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2
MARIA APARECIDA DE ARAÚJO MONTEIRO
TEMAS E TEIMAS: O DISCURSO FEMININO E FEMINISTA DE
MARINA COLASANTI
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras do Centro de Ciências
Humanas e Naturais da Universidade Federal do
Espírito Santo, como requisito parcial, para
obtenção do grau de Mestre em Estudos
Literários.
Orientadora: Profª. Drª. Ester Abreu Vieira de
Oliveira.
VITÓRIA
2009
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3
Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP)
(Biblioteca Central da Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil)
Monteiro, Maria Aparecida de Araújo, 1971-
M775t Temas e teimas: o discurso feminino e feminista de Marina
Colasanti / Maria Aparecida de Araújo Monteiro. – 2009.
104 f.
Orientador: Ester Abreu Vieira de Oliveira.
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Espírito
Santo, Centro de Ciências Humanas e Naturais.
1. Colasanti, Marina, 1937- Crítica e Interpretação. 2.
Feminismo e literatura. 3. Contos. 4. Ensaios. I. Oliveira, Ester
Abreu Vieira de. II. Universidade Federal do Espírito Santo. Centro
de Ciências Humanas e Naturais. III. Título.
CDU: 82
4
MARIA APARECIDA DE ARAÚJO MONTEIRO
TEMAS E TEIMAS: O DISCURSO FEMININO E FEMINISTA DE MARINA
COLASANTI
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras do Departamento de nguas e
Letras do Centro de Ciências Humanas e Naturais da Universidade Federal do Espírito Santo, como
requisito parcial, para obtenção do grau de Mestre em Estudos Literários.
Aprovada em 15 de janeiro de 2009.
BANCA EXAMINADORA
Profª. Drª. Ester Abreu Vieira de Oliveira
Universidade Federal do Espírito Santo
Orientadora
Prof. Dr. Jorge Luiz do Nascimento
Universidade Federal do Espírito Santo
Titular
Profª. Drª. Sílvia Inês Cárcamo Arcure
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Titular
Prof. Dr. Alexandre Jairo Marinho Moraes
Universidade Federal do Espírito Santo
Suplente
5
A meus pais.
6
AGRADECIMENTOS
Agradeço aos meus orientadores, Francisco Aurélio Ribeiro, que comigo iniciou o
traçado desse caminho, e Ester Abreu, que me ensinou a paciência e a escuta.
Minha terna e especial gratidão às amigas-irmãs que me alimentaram de alegria e
incentivo. À minha filha, Mila, por ter suportado minhas ausências, a Jane, pelo
cuidado extra, e aos meus irmãos por entenderem a distância necessária. A todos
aqueles que se alegraram com minha vitória, e, em especial, a Deus, que me
concedeu a bênção de conviver com tantas pessoas especiais.
7
Como mulher, não tenho pátria.
Como mulher, não quero ter pátria.
Como mulher, minha pátria é o mundo
inteiro.
Virgínia Woolf
8
RESUMO
Apresenta a leitura da construção da identidade feminina na escrita de Marina
Colasanti. Desta autora analisa-se a articulação da escrita, em diferentes gêneros
textuais, para a construção de uma voz feminina que busca seu lugar no texto e na
história. Propõe um olhar sobre o feminismo e a influência desse movimento social
na literatura de uma maneira geral, e na produção de Marina Colasanti, mais
especificamente. Procura analisar como se deu, na escrita dessa autora, o
enfraquecimento do feminismo e sua gradual substituição pelas questões de gênero.
Palavras-chave: Feminismo; questões de gênero; conto; ensaio.
9
ABSTRACT
It shows the reading of the female identity development based on Marina Colasanti’s
writing. Through this author, the writing performance is analyzed on different textual
genres in order to build a female voice to find out its place on the text and in the
history. It proposes a view over the female movement and the influence of this social
movement on the literature on a broad perspective and specifically on Marina
Colasanti’s production. It aims to analyze how the female movement decreasing
happened and its gradual substitution on the genre matters.
Key words: Female movement, genre matters, short story, rehearsal
10
SUMÁRIO
1 O HÁBITO DA LIBERDADE: INICIANDO UM PERCURSO.................................11
2 SILÊNCIO: HERANÇA E IMPOSIÇÃO..................................................................18
2.1 FEMININO: UM SILÊNCIO ESQUECIDO............................................................19
2.2 FEMINISMO: UM SILÊNCIO A SER OUVIDO.....................................................24
2.3 QUESTÕES DE GÊNERO: O GRITO ABAFADO................................................39
2.4 LITERATURA: UM GRITO POSSÍVEL................................................................46
3 UMA NOVA MULHER DAQUI PRA FRENTE........................................................52
4 O QUE CONTA NO CONTO...................................................................................75
5 PONTO DESFEITO: O PERCURSO NÃO CONCLUÍDO.......................................97
6 REFERÊNCIAS.....................................................................................................104
11
1. O HÁBITO DA LIBERDADE: INICIANDO UM PERCURSO
[...] Minha crença é que essa poetisa que nunca escreveu uma palavra
[...] ainda vive. Ela vive em vocês e em mim, e em muitas outras
mulheres que não estão aqui esta noite, porque estão lavando a louça
e pondo os filhos para dormir. Mas ela vive; pois os grandes poetas
nunca morrem, são presenças contínuas, precisam apenas da
oportunidade de andarem entre nós de carne e osso. Essa
oportunidade, segundo penso, começa agora a ficar a seu alcance
conferir-lhe. Pois minha crença é que [...] se tivermos o hábito da
liberdade e a coragem de escrevermos exatamente o que pensamos
[...] então chegará a oportunidade, e o poeta morto [...] assumirá o
corpo que com tanta freqüência deitou por terra. Extraindo sua vida
das vidas das desconhecidas que foram suas precursoras [...] ela
nascerá.
Virgínia Woolf
1
Escrever “exatamente o que pensamos”, como preconiza Woolf, demanda coragem.
Coragem ainda maior se a escrita é no “no feminino”. Pois, após a afirmação, chega-
se à interrogação: “Existe uma escrita feminina?”
E de onde vem essa pergunta?
Durante séculos as mulheres foram as grandes narradoras. Atuando como
transmissoras de narrativas existentes, que mantinham os valores da sociedade
patriarcal, a elas não foi negada a voz. Porém, quando começam a criar suas
próprias narrativas, essa mesma voz é acusada de falsidade e atribuída às sereias e
feiticeiras. Assim, a palavra da narradora perde o pleno poder. E ao ser
transformada em literatura, essa voz torna-se transgressora. E numa sociedade
patriarcal, a transgressão é prerrogativa masculina. Sendo assim, perguntar se
existe uma escrita feminina é um esforço a mais para manter tudo como está. A
pergunta persiste porque seu valor não está na resposta, e sim na pergunta em si.
Afinal, respostas já vieram. De pesquisas acadêmicas, pelo intenso trabalho da
crítica feminista, pela fala e pela escrita de muitas autoras. Com elas, esperava-se
que a pergunta tivesse se desgastado e desaparecido. Mas, ao que parece, a
questão ainda persiste. Não fosse assim, o texto de Virgínia Woolf, que nos serve de
epígrafe, escrito em 1928, não nos pareceria tão familiar.
1
WOOLF, Virgínia. Um teto todo seu. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 148-149.
12
É do estudo da escrita feminina que se ocupa este trabalho. Mais especificamente,
da escrita feminina de uma autora feminista: Marina Colasanti, que, diante da tal
pergunta, parece ter encontrado o seu lugar.
[...] Não vou mais aceitar essa pergunta como se aceitam as perguntas que
esperam resposta. Recuso-me a procurar novos e, quem sabe, mais
convincentes argumentos. Eu, que a partir da escrita estou anos
empenhada em construir a arquitetura de uma voz, de uma voz que sendo
minha é feminina, declaro-me ofendida pela pergunta. E, em vez de
respondê-la, a questiono.
2
Na escrita de Marina Colasanti é possível verificar a presença de uma voz feminina,
tanto no campo ficcional nos contos quanto na realidade social em que está
inserida nos ensaios. O interesse deste trabalho está justamente em como se
a construção dessa voz, e se a voz de que fala a autora contribui para a visibilidade
da mulher na literatura e, conseqüentemente, na história.
A partir daí, surgem alguns questionamentos: primeiro, no que consiste essa voz?
Segundo, a que tipo de escuta ela se propõe? E, em seguida, como se deu, na
escrita de Colasanti, o enfraquecimento do feminismo e sua gradual substituição
pelas questões de gênero? Para tentar responder a essas questões, faz-se
necessário contextualizar a construção da identidade feminina na sociedade
patriarcal valorizando a voz feminina, por tantas vezes quase inaudível.
Na produção literária da escritora, nos diferentes gêneros pesquisados, verifica-se a
recorrência de temas ligados ao feminismo. Ora de maneira direta, como acontece
nos ensaios, ora com um tanto de metáfora e ironia, como nos contos. Mas, quase
sempre, oferecendo possibilidades de reflexão sobre o processo de construção da
identidade feminina a partir da linguagem. A linguagem com a qual a mulher se
construída pelo outro o homem e a linguagem que busca para construir sua
própria imagem.
A questão principal é analisar como, através da linguagem, se configura a imagem
do feminino nas obras A nova mulher, publicado em 1980; Mulher daqui pra frente,
de 1981, e Contos de amor rasgados, de 1986. Nessas obras, a autora busca
imprimir na escrita, voluntária ou involuntariamente, as impressões que gostaria de
2
COLASANTI, Marina. Fragatas para terras distantes. Rio de Janeiro: Record, 2004, p. 67.
13
ver no feminino. Tal escrita foi bem sintetizada por Hélène Cixous, em La risa de la
medusa:
[...] És necessario que la mujer se escriba porque es la invención de una
escritura ‘nueva’, ‘insurrecta’ lo que, cuando llegue el momento de su
liberacion, le permitirá llevar a cabo las rupturas y las transformaciones
indispensables en su historia [...]. Escribir, acto, que [...] ‘realizará’ la
relación des-censurada de la mujer [...] com su ser-mujer, devolviéndole el
acceso a sus propias fuerzas. [...] Escribe-te: es necesario que tu cuerpo se
deje oír. Caudales de energía brotarán del inconsciente. Por fin, se pondrá
de manifesto el inagotable imaginario femenino. Sin dólares oro ni negro,
nuestra nafta expanderá por el mundo valores no cotizados que cambiarán
las reglas del juego tradicional.
[...] La escritura es lo que está en relación con la no-relación; de que lo que
la historia prohibe, lo que lo real escluye o no admite, puede manifestarse
[na escritura].
3
“É necessário que a mulher se escreva... o que a história proíbe, pode manifestar-se
na escritura”. O olhar feminino sobre os registros históricos faz “falar” o silêncio das
mulheres. E desse silêncio ocupa-se o primeiro capítulo desse trabalho: Silêncio,
herança e imposição. Dividido em quatro partes, aborda alguns momentos
importantes da construção da identidade feminina no decorrer da história. A primeira
delas, Feminino: um silêncio esquecido, trata da instauração de um Olimpo patriarcal
e de uma filosofia que situa a mulher hierarquicamente subordinada ao homem, na
Grécia clássica, até a criação do pater familias na civilização romana. A Inquisição, a
medicina, os humanistas e intelectuais atribuíram à mulher, no decorrer da história, a
imagem desfocada que a colocava sob a tutela de um patriarcado que sempre se
esforçou por mantê-la submissa, inferior, sem voz. No entanto, o silêncio imposto
chegou a seu momento de insubordinação, e algumas vozes de resistência
começaram a ser ouvidas e registradas. Feminismo: um silêncio a ser ouvido trata
dessa resistência, que começou individual, e foi alcançando espaço até tornar-se um
movimento coletivo. Abrange o Movimento Feminista especialmente na França e nos
Estados Unidos e sua influência no Brasil, abordando com mais ênfase o movimento
sufragista que, de todas as lutas feministas, alcançou a maior mobilização.
Analisar o feminismo é algo complexo, pois quando se fala em feminismo o
pensamento análogo são as conquistas em relação ao mercado de trabalho, ao
3
CIXOUS, Hélène. La risa de la medusa: ensayos sobre la escritura. Barcelona: Anthropos; Madrid:
Consejería de Educación. Direccion General de la Mujer; San Juan: Universidad de Puerto Rico,
1995, p. 61-62.
14
direito ao voto, etc. No entanto, o feminismo, como é compreendido nessa
dissertação, aponta para uma infinidade de questões que vão além dessas
conquistas. Portanto, esclarecemos que nesse trabalho, o vocábulo “feminista” terá
o sentido adotado por June Hahner: “mulheres que se posicionaram contra a
desigualdade de gênero”. E “feminismo” abarcará “todos os aspectos da
emancipação das mulheres, suas lutas coletivas para elevar-lhes social,
econômica ou politicamente o status [...] e a tomada de consciência da mulher
como ser humano e como ser social”.
4
Questões de gênero: o grito abafado, é a terceira parte desse capítulo, e procura
esclarecer como se deu a passagem dos “estudos sobre a mulher” para o “estudo
das questões de gênero” e quais as eventuais vantagens e desvantagens que essa
mudança ocasionou. E, por fim, Literatura: um grito possível procura destacar a
contribuição da literatura como espaço privilegiado para a construção de uma nova
identidade feminina, agora sob o olhar e os ideais da mulher. Fala da literatura
feminina brasileira, que na sua origem, era coletiva e altamente política. As revistas
e jornais femininos abrigavam não o desejo de desenvolver a mão-de-obra
literária feminina, mas também a luta pela libertação dos escravos, por melhor
educação e pelos direitos das mulheres.
O segundo capítulo, Uma nova mulher daqui pra frente, analisa uma seleção de
ensaios de Marina Colasanti, escritos inicialmente para a revista Nova
5
e,
posteriormente, publicados em livros. A análise se apoiada, principalmente, na
teoria da estética da recepção de Wolfgang Iser e Hans Robert Jauss. Busca,
através da reconstrução do horizonte de expectativa, retomar as questões para as
quais os textos constituíram uma resposta. Para tanto, procura entender como
acontece a interação entre texto e leitor, que nos textos analisados o público é
bem demarcado: leitoras de uma revista feminina. A escolha teórica se justifica pois,
no dizer de Patrocínio Schweickart
6
, a crítica da teoria da estética da recepção deve
enfrentar as implicações históricas e, para tal, será necessário se apoiar também na
crítica feminista. Nosso aporte teórico ora nos leva a Stanley Fish, que acredita que
4
HAHNER, June E. Emancipação do sexo feminino: A luta pelos direitos da mulher no Brasil, 1850-
1940. Florianópolis: Ed. Mulheres; Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2003, p. 25-26.
5
Revista mensal inserida no grupo de revistas femininas da editora Abril.
6
SCHWEICKART, Patrocínio. In: FE, 1999, p. 118-119.
15
o leitor possui um interesse que exerce controle sobre o texto, ora se apóia em
Wolfgang Iser, que reconhece o papel criativo do leitor, mas considera o texto como
força dominante.
A autora traz, para o centro de seus ensaios, a busca de uma nova identidade
feminina, iniciada com as lutas do feminismo. Essa nova identidade foi sendo
moldada e modificada a cada nova conquista, trazendo à tona todas as
inseguranças e vidas que o novo e desconhecido sempre oferece. Mas, ao
mesmo tempo, visibilidade às novas experiências, inclusive e, principalmente, às
suas vivências, demonstrando a possibilidade de existência de um novo e melhor
lugar para a mulher, descoberto e ampliado por cada nova conquista. Trabalha com
o método descrito por Michel Leiris: “ver o que vejo, compreender o que eu
compreendo, e oferecer uma visão do mundo, partindo do meu compromisso com
este mundo”.
7
Assim, observa-se que a autora manifesta um desejo de levar suas
leitoras, e eventuais leitores, a alcançar a posse de uma nova identidade feminina
por meio do questionamento de seu papel na relação com o outro, em busca de um
esclarecimento sobre a difícil arte de abrir novos caminhos.
Passando do real para o imaginário, o último capítulo, O que conta no conto, trata de
alguns textos ficcionais da autora publicados no livro Contos de amor rasgados. A
análise empreendida busca verificar a recorrência dos temas do feminismo e como
se dá, também na ficção, a construção da “arquitetura” da voz feminina preconizada
pela autora. No dizer da própria autora, “o imaginário não é a palavra. É o que está
por trás da palavra”.
8
Sendo assim, é possível perceber que em seus contos nada é
gratuito. Tudo instiga à procura, à descoberta, ao achado. A começar pela extensão
dos textos, que, em sua maioria, não ultrapassam uma página. Como o próprio título
sugere, os contos falam do cotidiano da relação homem/mulher. E se o tema não é
novidade, os flagrantes — característica principal desse gênero — são apresentados
de ângulos geralmente insólitos e inesperados. Com personagens não nomeados
talvez para melhor servirem de representação para o leitor os textos são convites
à reflexão, ao irreal que representa o mais que real, à linguagem que seduz porque
fere. Para conseguir isso, Marina Colasanti conta com um bom domínio da
7
CARPENTIER, Alejo. A literatura do maravilhoso. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, Edições
Vértice, 1987, p. 20.
8
COLASANTI, 2004, p. 19.
16
linguagem e uma admirável economia no uso das palavras tudo é enxuto, nada
sobra. Trabalha com a beleza da simplicidade descrita por Drummond, aquela
simplicidade que é fruto do trabalho atento, do olhar agudo, que descobre
exatamente o que sobra e pode ser cortado. Para esclarecer melhor o que Marina
Colasanti consegue com seus contos, tomamos de empréstimo a fala de Alfredo
Bosi:
[...] Em face da História, rio sem fim que vai arrastando tudo e todos no seu
curso, o contista é um pescador de momentos singulares cheios de
significação. Inventar, de novo: descobrir o que os outros não souberam ver
com tanta clareza, o souberam sentir com tanta força. Literariamente: o
contista explora no discurso ficcional uma hora intensa e aguda da
percepção. Esta, acicatada pelo demônio da visão, não cessa de perscrutar
situações narráveis na massa aparentemente amorfa do real.
9
O questionamento sobre a identidade feminina é tema recorrente na literatura
brasileira e, desde a década de 1970 a partir dos movimentos feministas, vem
despertando interesse dos críticos e fez surgir a crítica feminista. Seguindo
caminhos diversos, a crítica feminista se desenvolveu em duas modalidades: La
primera modalidad es ideológica, se ocupa de la feminista como lectora, y ofrece
lecturas feministas de textos que examinan las imágenes y estereotipos de la mujer
en la literatura, las omisiones y falsos conceptos acerca de la mujer en la crítica, y el
lugar asignado a la mujer en los sistemas semióticos. [...] puede ser também [...] un
acto de liberación intelectual: [...] tomaria la obra, ante todo, como un indicio de
cómo vivimos y hemos vivido, cómo se nos ha inducido a imaginarnos a nosotras
mismas, cómo el lenguaje nos ha atrapado, al mismo tiempo que nos ha liberado
[...]”.
10
Os textos de Marina Colasanti podem ser estudados tanto por uma modalidade
quanto pela outra. Nos ensaios, é patente a presença de uma ideologia, ou melhor,
da busca de uma mudança de ideologia; e os contos proporcionam um olhar atento
sobre flagrantes do cotidiano que, pelo modo como são apresentados, induz a
mulher a perceber como vive e como constrói sua imagem a partir da linguagem do
outro, sem se dar conta disso.
9
BOSI, Alfredo (Org.). O conto brasileiro contemporâneo. São Paulo: Cultrix, 1977, p. 09.
10
SHOWALTER, Elaine. La crítica feminista em el desierto. In: FE, Marina. Otramente: lectura y
escritura feministas. México: Facultad de Filosofia y Letras de la UNAM, 1999, p. 78-79.
17
Apesar de nos apoiarmos na estética da recepção, onde o leitor é o foco
privilegiado, também concordamos com o modelo de Poulet, em que o sujeito da
obra literária é seu autor: Un libro es no sólo um libro; es un medio a traves del cual
alguien que escribe preserva ideas (de ella), sentimientos (de ella), modos de soñar
y de vivir (de ella). Es un modo de proteger la identidad (de ella) de la muerte...
Entonces, entender una obra literaria es permitir que la persona que la escribió se
nos revele dentro de nosotros”.
11
Sendo assim, acompanhando Marina Colasanti, é
possível entender a necessidade que ainda se faz premente entre as mulheres,
dentro ou fora da literatura: a necessidade de desenvolver e conquistar o “hábito da
liberdade”.
11
POULET, apud SCHWEICKART, Patrocínio. In: FE, 1999, p. 144-145.
18
2. SILÊNCIO: HERANÇA E IMPOSIÇÃO
Não, nem a pergunta eu soubera fazer. No entanto a resposta se
impunha a mim desde que eu nascera. Fora por causa da resposta
contínua que eu, em caminho inverso, fora obrigada a buscar a que
pergunta ela respondia.
Clarice Lispector
O esforço que por muito tempo se empreendeu em prol da visibilidade da mulher é
percebido nas inúmeras pesquisas feitas sobre as personagens femininas em
diversas obras literárias. Para vencer sua invisibilidade, tanto social quanto literária,
muitas mulheres, reais ou ficcionais, se puseram à mostra, transgredindo papéis
sociais até então bem delimitados pela sociedade patriarcal, onde a mulher é
plena no papel de esposa e mãe. Essa invisibilidade se mistura com a história da
humanidade, e tem suas raízes num tempo em que nem a História tinha sua voz.
Como bem disse Simone de Beauvoir, “não se nasce mulher, torna-se mulher”. E
nesse aprendizado do tornar-se mulher, se fizermos um breve relato de poucos
momentos históricos, é possível entender porque o conceito de mulher ainda é
vinculado ao que é inferior, frágil, manipulável e dependente.
O verbete sobre a mulher, na primeira edição da Enciclopédia Britânica, publicada
em 1771, constava de seis palavras: “A fêmea do homem. Ver Homo”.
É assim, colocada sempre numa relação de dependência, até mesmo conceitual,
que a mulher, parte silenciosa da memória social, viu sua imagem sendo construída
à mercê de suas vontades. Sua história, escrita por mãos masculinas, é marcada de
ausências, diferenças e indiferenças. A História procurou silenciá-la, afinal, “ninguém
pode sobreviver sem, de alguma forma, ser carregado pelo discurso”.
12
E o discurso
historicamente masculino buscou de muitas formas uma desqualificação identitária
da mulher.
13
12
Judith Butler em entrevista publicada na Revista Estudos Feministas. Florianópolis: UFSC, v. 10, p.
163, 1999.
13
BANDEIRA E BATISTA. Preconceito e discriminação como expressão de violência. Revista
Estudos Feministas. Florianópolis: UFSC, v. 10, p. 119-141, 1999.
19
2.1 FEMININO: UM SILÊNCIO ESQUECIDO
A posição hierárquica da mulher na Grécia clássica é digna de uma atenção
especial, pois foi nessa sociedade que se originou a especulação intelectual e a
filosofia que exerceram poderosa influência sobre nossa cultura.
Hesíodo, poeta grego que viveu entre os séculos VIII e VII a.C., descreve o
nascimento dos deuses. Gaia gera Urano, e da união de ambos nascem os Titãs.
Urano impede o nascimento desses monstros e Gaia, em contrapartida, arma o
menor deles, Cronos, com uma foice para castrar seu pai. Cronos e sua irmã Rea
geram os deuses olímpicos. Temeroso de perder seu poder, Cronos engole seus
próprios filhos, mas Rea dá-lhe, no lugar de Zeus, uma pedra. Quando Zeus chega à
idade adulta faz Cronos vomitar seus irmãos e estabelece sua supremacia. Depois
de vencer os Titãs, Zeus engole sua esposa Métis, a sabedoria, já grávida de Atena,
a qual nasceria da sua cabeça. Com esse recurso eliminava-se toda contribuição
feminina na geração de Atena e fazia-se da sabedoria uma prerrogativa masculina.
14
Esse triunfo de Zeus representa a sujeição e subordinação da natureza e seu
controle, em um mundo comandado por homens. O mito que culmina com o
estabelecimento de um Olimpo patriarcal é o primeiro passo para um processo de
endosso do mítico ao ideológico que vai caracterizar a sociedade grega e, mais
tarde, a romana. E chega ao século XX através de saberes enraizados e camuflados
ao longo da história. Não é á toa que os mitos têm seu eterno retorno em nossa
literatura. Marina Colasanti, objeto de nosso estudo, não foge à regra e também se
volta ao mito de Sísifo,
15
agora de maneira irônica, situando os tais “saberes
enraizados” nos tempos modernos.
Desde sempre, o dia chegando vinha encontrá-lo ali, no começo da
encosta, já empurrando e rolando sua esposa para cima, longo esforço em
direção ao cume.
Desde sempre, resvalando lentamente para a noite, o sol desenhava a
sombra embolada do corpo da mulher que, mal chegada ao alto,
despencava novamente pelo flanco do monte.
14
SANTOS E TOSI. Resgatando Métis. O que foi feito desse saber? Revista Estudos Feministas.
Florianópolis: IFCS/UFRJ, v. 4, p. 355-380, 1996.
15
Os deuses condenaram Sísifo a incessantemente rolar uma rocha até o topo de uma montanha, de
onde a pedra cairia de volta devido ao seu próprio peso. Eles pensaram, com alguma razão, que não
há punição mais terrível do que o trabalho inútil e sem esperança.
20
Desde sempre. Até o momento em que, cravando os dentes e agarrando as
unhas nas pedras daquele cimo árido, a mulher contém seu destino. E
erguidas aos poucos as costas, mal equilibrada ainda sobre si, faz-se de pé.
Desaparece quase a luz do sol, o último alento vermelho tinge a mão do
homem. Que se levanta. E firme, empurra a mulher pelas costas, monte
abaixo.
16
Prevalece a vontade masculina. Esse “deus” necessita de uma tarefa, de manter-se
no lugar de sempre, conquistado por seus antepassados e mantido de diferentes
maneiras no decorrer dos séculos, em diferentes sociedades.
Na Grécia, a situação se repetia. A posição ocupada pela mulher em nada diferia à
do escravo. Somente eles realizavam os trabalhos manuais, extremamente
desvalorizados pelo homem livre. Por livre entendia-se, em primeiro lugar, ser
homem e não mulher.
À mulher cabia a função não de reprodutora como também de mantenedora da
espécie humana. Além de gerar, amamentar e criar os filhos, era sua a
responsabilidade de produzir tudo aquilo que era diretamente ligado à subsistência
do homem: fiação, tecelagem, alimentação. Aos homens eram destinadas as
atividades consideradas mais nobres, como a filosofia, a política e as artes.
Na filosofia, assim como na mitologia, também foram criados tratados que serviram
como base científica à situação de subordinação e sujeição da mulher. É o caso dos
tratados hipocráticos, que sintetizam a medicina grega entre os séculos VI e V a.C.,
em que a imagem da mulher é a de um ser úmido e frio, produtor de fluidos,
dependente do homem e vítima dos desarranjos de sua matriz. Hipócrates
acreditava que tanto a mulher quanto o homem emitem uma semente e que, da
união de ambos se originava o feto.
Aristóteles, por sua vez, negava à mulher qualquer participação ativa na geração.
Segundo ele, a mulher é um macho impotente e sua semente é apenas o material
onde o sêmem do macho agirá.
17
16
COLASANTI, Marina. Ela era sua tarefa. In
Contos de amor rasgados. Rio de Janeiro: Roco, 1986,
p. 99.
17
SANTOS E TOSI, 1996, p. 363.
21
Acreditava-se que a mulher era um ser incompleto. O homem, ao ser gerado era tido
como ato, idéia e forma. O ato, ou enteléquia é a realização, perfeição atuante e
atuada. A alma é a enteléquia do corpo.
Um dos sentidos registrados no Dicionário de Filosofia refere-se ao ato como a
realidade do ser que alcançou ou está alcançando a sua forma plena e final,
enquanto se contrapõe ao que é simplesmente potencial ou possível.
18
A forma, por
sua vez, é o ato ou atualidade da coisa mesma, isto é, o começo e o fim.
19
E idéia,
designa uma unidade que é ao mesmo tempo perfeição ou valor.
20
a mulher, ao ser gerada, é potência e matéria, ou seja, tem a capacidade de
assumir ou receber a forma. Isso significava dizer que, um ser, ao ser gerado, dava
origem a uma mulher quando não conseguia a devida proporção para que se
formasse um homem.
21
Aristóteles afirmava a superioridade do ato sobre a potência
baseado no princípio de que, sem o ato, a potência não existiria. Ele entende a
potência como preformação e predeterminação e a considera como um modo de ser
diminuído ou preparatório do ato.
22
Portanto, na concepção aristotélica a distinção
entre matéria e ato determina a ordenação hierárquica de toda a realidade que vai
de um extremo limite inferior que é a matéria-prima, pura potencialidade, aDeus
que é puro ato sem mescla de potencialidade.
23
Idéias como essas foram utilizadas por muito tempo para institucionalizar a
inferioridade da mulher. E para derrubar os resquícios de tais idéias, autoras do
nosso tempo, como Marina Colasanti, utilizam-se da escrita para disseminar novas
descobertas e demarcar com mais precisão o espaço das mulheres. Em artigo
intitulado Daqui pra frente ela confidencia:
poucos dias contava-me um amigo médico recentes descobertas sobre
a atuação do óvulo. Sempre acreditou-se que o óvulo era atacado pela
horda dos espermatozóides, e que o mais apto deles conseguia vará-lo,
realizando a fertilização. Pois agora foi descoberto que não se trata de
aptidão do espermatozóide, mas de escolha do óvulo. Parado, ele faz a
seleção do espermatozóide que lhe parece mais conveniente, e este então
é atraído, sendo sua entrada permitida. De repente, o óvulo deixa de ser o
18
ABBAGNO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Mestre Jou, 1982, p. 86-87.
19
Ibid., p. 446.
20
Ibid., p. 501.
21
DUCLÓS, Miguel. Metafísica de Aristóteles: O ser se diz de vários modos. Disponível em
<http://www.consciencia.org/aristoteles.shtml >. Acesso em 24 junho 2006.
22
ABBAGNO, op. cit., p. 751-752, nota 19.
23
Ibid., p. 87.
22
passivo alvo dos espermatozóides, prêmio da vitória, para transformar-se
em parte ativa da criação, o seletor.
24
Sendo assim, a mulher perde a característica de matéria instituída por Aristóteles
receptividade e passividade — e passa a assumir a característica de ato — ação.
Na civilização romana a inferioridade e subordinação da mulher também eram
pregadas e mantidas sob os auspícios da lei. Com a instituição jurídica do pater
familias era dado ao homem livre todo o poder sobre a mulher, os filhos, os servos e
os escravos. Poder este que, mesmo não mais institucionalizado, ainda reaparece
de maneira camuflada e sutil em situações do cotidiano em pleno século XX, como
bem demonstra Colasanti em outro artigo cujo título diz tudo, Meu marido o
deixa.
Na ginástica, no trabalho, nos jantares, pingada com naturalidade no meio
das conversas, ouço com freqüência esta frase: “Meu marido não deixa”.
[...]
Que significa ela? Que o marido tem o poder de veto. Que tem o direito de
estabelecer tudo aquilo que a mulher pode ou não fazer. E que este direito é
tacitamente reconhecido pelos dois elementos do casal.
25
No entanto, no ano de 195 a.C., algumas mulheres expressavam sua resistência.
Em discurso no Senado Romano protestaram contra o uso dos transportes públicos
como um direito exclusivamente masculino, obrigando-as a se locomoverem a pé.
Diante de tal protesto, assim se manifestou o senador Marco Pórcio Catão:
Lembrem-se do grande trabalho que temos tido para manter nossas
mulheres tranqüilas e para refrear-lhes a licenciosidade, o que foi possível
enquanto as leis nos ajudaram. Imaginem o que sucederá, daqui por diante,
se tais leis forem revogadas e se as mulheres se puserem, legalmente
considerando, em de igualdade com os homens! Os senhores sabem
como são as mulheres: façam-nas suas iguais, e imediatamente elas
quererão subir às suas costas para governá-los.
26
Nessa relação de domínio e submissão, o poder foi usado como instrumento de
perpetuação da sujeição feminina. Nos períodos históricos em que a mulher teve
alguns direitos garantidos pela lei e pelos costumes, não é difícil detectar a
necessidade que advém do contingente masculino. Vejamos, por exemplo, o que
ocorreu nos últimos séculos da Idade Média. Nessa época, em algumas sociedades,
a mulher tinha acesso a quase todas as profissões e possuía o direito de
24
COLASANTI, Marina. Mulher daqui pra frente. Rio de Janeiro: Nórdica, 1981, p. 196.
25
Ibid., p. 81.
26
ALVES e PITANGUY. O que é feminismo? São Paulo: Brasiliense, 1981, p. 14-15.
23
propriedade e sucessão. Mulheres da burguesia participavam de assembléias, com
direito a voto. Porém, tal participação se explicava pela disparidade na distribuição
da população por sexo, com predominância de mulheres na população adulta.
Envolvidos em constantes guerras e longas viagens, ou recolhidos à vida monástica,
os homens deixavam lacunas que deveriam ser preenchidas por elas. Assumindo os
negócios da família, aprendiam sobre contabilidade e legislação, conhecimentos
necessários para efetuar com eficiência as transações comerciais e defender-se em
juízo.
No decorrer da história, a inclusão da mulher nas esferas ditas masculinas esteve
sempre relacionada ao afastamento do homem devido às guerras. No entanto, a
remuneração do trabalho feminino sempre foi desvalorizada, e a essa
desvalorização foi usada contra a mulher, pois provocou a hostilidade dos
trabalhadores homens, que viam nessa concorrência a diminuição do nível salarial
geral.
Como na Idade Média o poder baseava-se na posse de terra e na ascendência
espiritual, a participação feminina no mercado de trabalho não lhes proporcionou
ascensão social. Portanto, mesmo com a participação da mulher na vida social e
econômica dessa época, a herança que prevaleceu foi aquela deixada pela literatura
através do romance de cavalaria: “uma mulher frágil e indolente, entretida em
bordados e bandolins, à espera de seu cavaleiro andante.Essa imagem distorcida
criou um abismo entre a realidade e a representação simbólica do papel da mulher
na vida cotidiana da Idade Média.
Foi também nessa época que aconteceu a chamada “caça às bruxas”. Período
essencialmente teológico, a “caça às bruxas” foi um verdadeiro genocídio praticado
contra a mulher na Europa e nas Américas. Tendo início na Idade Média e
expandindo-se no século XVI, início do Renascimento, faz parte do legado de
silêncio que encobre a história da mulher. Apesar do grande número de mulheres
assassinadas e torturadas pela Inquisição, a “caça às bruxas” ainda é pouco
estudada pelos historiadores. Em consonância com esse discurso religioso, o
discurso médico também advoga em prol da perseguição às “feiticeiras”. Eram elas,
curandeiras e parteiras, as principais concorrentes da hegemonia da medicina,
instituição puramente masculina.
24
A mulher, porém, não é condenada apenas pela Inquisição e pela medicina.
Humanistas e intelectuais também contribuem para fortalecer a imagem de inferior e
impura atribuída a ela. No período renascentista, quando o trabalho é valorizado e
tido como instrumento de transformação do mundo pelo homem, a mulher é
novamente alijada de determinadas profissões e sua posição sofre um retrocesso.
Para justificar essa exclusão feminina do mercado de trabalho, cria-se uma cultura
de desvalorização da mulher que trabalha. A mão-de-obra feminina continuou
existindo, porém, foi relegada às atividades menos qualificadas e de menor
remuneração.
Juntamente com a valorização da idéia de trabalho, aconteceu, nessa época, um
crescente respeito pela ciência e pela aquisição do conhecimento. E mais uma vez o
que é valorizado pelo homem é afastado do domínio da mulher. Enquanto a
instrução masculina se desenvolve em vários níveis, a educação da mulher sofre
revezes.
A expansão do ensino público e privado na Europa vem acompanhada de uma
enorme disparidade entre o número de escolas masculinas e femininas. Disparidade
também observada em termos qualitativos, que o currículo empregado nas raras
escolas femininas era exclusivamente voltado às prendas domésticas.
É nessa sobreposição de silêncios e imposições, com poucos progressos e muitos
retrocessos, que a história da mulher, pouco contada porque pouco ouvida, chegou
ao seu momento de insubordinação. Não nos causa estranheza, portanto, que as
primeiras vozes de resistência feminina que a história moderna registra sejam
justamente contra a desigualdade sexual no acesso à educação e ao trabalho.
2.2 FEMINISMO: UM SILÊNCIO A SER OUVIDO
O feminismo enquanto movimento de resistência tem suas origens em tempos bem
remotos, por isso, para nos situarmos melhor quanto a sua formação, nos deteremos
nos acontecimentos da América e da Europa que deram forma ao que a história hoje
registra como Movimento Feminista.
25
Uma das primeiras vozes de resistência feminina que a História americana registra é
Ann Hutchinson. Na América do século XVII vivem-se as origens do capitalismo
imbuído de uma carga ideológica que tinha como base as idéias religiosas do
puritanismo e a crescente valorização da ciência e da razão como formas essenciais
de conhecimento. Ann, mulher religiosa, afirmava em suas pregações que o homem
e a mulher eram iguais perante Deus, pois assim ele os criou. Tal afirmação
contrariava sobremaneira os dogmas calvinistas de superioridade masculina. Por
isso, Ann foi a primeira mulher a ser julgada num tribunal da Colônia da Baía de
Massachussetts por afrontar os princípios fundamentalistas ultra puritanos que
regiam aquele estabelecimento
.
Por suas idéias foi condenada ao banimento em
1673.
27
No século seguinte, a voz a ser ouvida é de Abigail Adams. Lembrado como o
século das revoluções, o século XVIII é marcado pela participação das massas na
esfera política. A Declaração de Independência dos Estados Unidos tem como
princípio básico a igualdade entre os homens: “Todos os homens foram criados
iguais”. Na intenção de fazer com que a palavra “homem” abarcasse também o sexo
feminino, Abigail Adams escreve a seu marido, John Quincy Adams, líder da Guerra
da Independência, uma carta com suas reivindicações:
[...] Espero que no novo Código de Leis... vocês se lembrem das mulheres e
sejam mais generosos que seus antepassados. [...] Se não for dada
especial atenção às mulheres, estamos resolvidas a nos rebelar e o nos
consideraremos obrigadas a cumprir leis, diante das quais não temos nem
voz, nem representação.
A resposta que obteve revela com nitidez que a ideologia de exclusão e submissão
permaneceria intacta no novo século:
Quanto ao seu extraordinário Código de Leis, eu só posso rir. Nossa luta, na
verdade, afrouxou os laços de autoridade em todo o país. Crianças e
aprendizes desobedecem, escolas e universidades se rebelam, índios
afrontam seus guardiões e negros se tornam insolentes com seus senhores.
Mas a sua carta é a primeira intimação de uma outra tribo, mais numerosa e
poderosa de todos estes descontentes. [...] Esteja certa, nós somos
suficientemente lúcidos para não abrir mão do nosso sistema masculino.
28
As idéias de igualdade e exclusão, diametralmente opostas, caminham lado a lado
nesses e em muitos outros momentos da História.
27
ALVES e PITANGUY, 1981, p.30.
28
Ibid., p. 31.
26
Na França, também no século XVIII, a mulher novamente se viu banida das
conquistas políticas alcançadas no processo revolucionário que, por ironia, teve uma
ativa participação feminina. É nesse momento histórico que surge o feminismo como
prática de ação política. “E como todo movimento social, ele chega como desafio e
exigência de transgressão de uma ordem que vigorou ao longo dos tempos,
atribuindo ao masculino o direito de definir o feminino como seu avesso”.
29
O movimento feminista francês surge da necessidade de se fazer valer os direitos de
cidadania para a mulher. As mulheres revolucionárias da França dirigem-se à
Assembléia reivindicando a mudança da legislação sobre o casamento que outorga
ao marido direitos absolutos sobre o corpo e os bens da esposa. Tal lei, segundo
elas, é incompatível com os princípios de Liberdade, Igualdade e Fraternidade da
Revolução Francesa. Em documento de 1789, dirigido à Assembléia Nacional, as
feministas afirmam:
Destruístes os preconceitos do passado, mas permitistes que se mantivesse
o mais antigo, que exclui dos cargos, das dignidades das honrarias e,
sobretudo, de sentar-se entre vós, a metade dos habitantes do reino. [...]
Destruístes o cetro do despotismo... e todos os dias permitis que treze
milhões de escravas suportem as cadeias de treze milhões de déspotas.
30
Nessa luta por direitos iguais as mulheres contam com o auxílio da literatura que,
apesar de também ser dominada por grande contingente masculino, tem na escrita
de Olympe de Gouges, uma rara e forte presença feminina. Escritora conhecida
pela defesa dos ideais revolucionários, de Gouges publica em 1791 Os Direitos da
Mulher e da Cidadã. Seu texto nasce da decepção de não ver nos ideais
revolucionários nenhuma preocupação com a situação da mulher. Propõe, então,
que a mulher seja inserida na vida política e civil em iguais condições com os
homens, tanto nos deveres quanto nos direitos:
Diga-me, quem te deu o direito soberano de oprimir meu sexo? [...] Ele quer
comandar como déspota sobre um sexo que recebeu todas as faculdades
intelectuais. [...] Esta Revolução se realizará quando todas as mulheres
tiverem consciência do seu destino deplorável e dos direitos que elas
perderam na sociedade.
E parafraseando o discurso revolucionário, diz:
29
OLIVEIRA, Rosiska Darcy de. Elogio da diferença: o feminino emergente. São Paulo: Brasiliense,
1999, p. 14.
30
ALVES e PITANGUY, 1981, p. 33.
27
A mulher nasce livre e permanece igual ao homem em direitos. [...] Esses
direitos inalienáveis e naturais são: a liberdade, a propriedade, a segurança
e, sobretudo a resistência à opressão. [...] O exercício dos direitos naturais
da mulher encontra seus limites na tirania que o homem exerce sobre
ela; essas limitações devem ser reformadas pelas leis da natureza e da
razão.
31
Esse discurso é repetido ao longo do século XIX pelas feministas na luta pelo
sufrágio. Sua autora foi condenada à guilhotina em três de novembro de 1793 sob a
acusação de ter querido ser um homem de Estado.
32
Durante o período revolucionário a mulher francesa teve ampla participação na vida
pública. Porém, um decreto da Assembléia Nacional, em 1795, as leva de volta ao
âmbito doméstico:
Decreta-se que todas as mulheres se retirarão, até ordem contrária, a seus
respectivos domicílios. Aquelas que, uma hora após a publicação do
presente decreto estiverem nas ruas, agrupadas em número maior que
cinco, serão dispersadas por força das armas e presas até que a
tranqüilidade pública retorne a Paris.
33
Depois de Olympe de Gouges, outras mulheres também fizeram uso da palavra
escrita como forma de resistência e luta. Na Inglaterra, Mary Wollstonecraft denuncia
as idéias de Rousseau principal ideólogo da Revolução com relação à mulher
em um livro intitulado Defesa dos Direitos da Mulher. Para Rousseau, a mulher
deveria ser educada para colocar-se a serviço do homem, tornando-lhe a vida útil e
agradável, Wollstonecraft defendia uma educação para meninas que aproveitasse
seu potencial humano, argumento retomado mais tarde por Simone de Beauvoir: “Se
desde a primeira infância a menina fosse educada com as mesmas exigências, as
mesmas honras, as mesmas severidades e as mesmas licenças que seus irmãos,
participando dos mesmos estudos [...]” seu lugar na sociedade seria outro.
34
No Brasil, em 1827, surge a primeira legislação relativa à educação de mulheres. As
meninas poderiam ser admitidas em escolas elementares, mas ainda não lhes seria
permitido o acesso às instituições de ensino mais adiantado.
35
Em prol desse
avanço, a brasileira Nísia Floresta, uma das pioneiras na defesa dos direitos da
mulher no Brasil, lança, em 1832, uma tradução livre da obra de Wollstonecraft com
31
Ibid., p. 33-34.
32
Ibid., p. 34.
33
Ibid., p. 35.
34
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. 2 ed. - Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980, v.2, p. 494-
495.
35
HAHNER, 2003, p. 76.
28
o título Direitos dos homens, injustiças para as mulheres.
36
Toda a educação
destinada às mulheres brasileiras do século XIX refletia e reafirmava o que vinha
acontecendo em outros países, em praticamente todas as épocas: era
regulamentada, debatida e escrita por homens, o que resultava numa repetição dos
valores pré-determinados pela sociedade patriarcal. Enquanto os meninos
estudavam títulos tais como Noções da vida prática, as meninas recebiam Noções
da vida doméstica.
37
A luta pela emancipação feminina no Brasil fez largo uso da palavra impressa para
disseminar suas idéias e convocar as mulheres a se reconhecerem como portadoras
de direitos e capacidades intelectuais tanto quanto os homens. Nesse espaço
atuaram nomes como Joana Paula Manso (O Jornal das Senhoras), Francisca Diniz
(O Sexo Feminino), Amélia da Silva Couto (Echo das Damas), Violante Ximenes de
Bivar e Velasco (O Domingo), Josefa de Oliveira e Maria Estrela (primeiras médicas
brasileiras que fundaram o jornal A Mulher), Cacilda Martins (Nosso Jornal), Virgilina
de Sousa Sales (Revista Feminina) e tantos outros.
Tal convocação retorna na escrita de Marina Colasanti, num momento em que, após
as conquistas do feminismo, a mulher precisa descobrir seu lugar e fazer valer
direitos então conquistados.
Tivemos a coragem de começar um processo de mudança. [...]
Saímos de um estado que, embora insatisfatório, embora esmagador,
estava estruturado sobre certezas. [...] A mudança não se fez. Está se
fazendo. [...]
[...] Se a cada vez em que a incerteza aponta, a jogarmos para a frente, a
passarmos adiante, outros serão obrigados a participar dela, a fazê-la sua.
[...] Os problemas, esses problemas todos que nós sofremos, até mesmo
envergonhadas de sofrê-los, não são pessoais. São coletivos. E cabe à
coletividade resolvê-los.
38
No século XIX o capitalismo se consolida e traz para a mão-de-obra feminina uma
crescente desvalorização e, conseqüentemente, um rebaixamento do nível salarial
vigente. Dessa forma, os sindicatos recém-formados fecham as portas às mulheres
encarando-as como concorrentes desleais. Nesse contexto, Jeanne Deroin, operária
francesa autodidata, cria o projeto de União das Associações de Trabalhadores,
36
Ibid., p. 58-59.
37
Ibid., p. 126-127.
38
COLASANTI, 1981, p. 13.
29
precursor da idéia das futuras Centrais Sindicais, e escreve um Curso de Direito
Social para as Mulheres no qual busca despertar nas mulheres o desejo de
libertação, mas uma libertação advinda da própria mulher. Pois, segundo ela, essa
era a percepção que precisava ser mudada, a percepção de que o universo feminino
é sem valor e socialmente não-existente, pois a crença nessa verdade poderia
explicar a armadilha na qual a mulher de seu tempo ainda se encontrava presa.
Armadilha reconhecida também por Marina Colasanti em tempos bem mais recentes
onde ainda é possível encontrar mulheres presas aos
conceitos pré-fabricados de amor, dever, família, papel da mulher. [...]
iludidas debaixo da proteção institucionalizada [...]. Pois a sociedade nos
ensina que uma mulher tem valor e merece respeito quando
devidamente avalizada por um homem, seja ele pai, marido, ou até mesmo
irmãos. [...] ao dizer recatada ‘meu marido não deixa’ [...] está se livrando
das anátemas da coletividade, porque em sua frase está explícito: [...] eu
tenho um homem que me ama e zela por mim. [...]
Aí estão justificados não só o sorriso, como a docilidade. Não a covardia,
a falta de conhecimento. Não fraqueza, um engodo bem
engendrado. Não a submissão, uma grande vontade de acertar, e
uma imensa confusão sobre o que seja acerto.
39
Na luta por seus direitos, as mulheres operárias conseguiram lugar nas
organizações sindicais e, juntamente com os homens, saíram às ruas reivindicando
melhores condições de trabalho. Um evento marcante dessa luta foi o dia oito de
março, hoje proclamado o Dia Internacional da Mulher. Em 1857, as operárias da
indústria xtil de Nova Iorque entraram em greve ocupando a brica para
reivindicarem a redução de um horário de mais de 16 horas por dia para 10 horas.
Essas operárias, que recebiam menos de um terço do salário dos homens, foram
fechadas na fábrica onde se declarara um incêndio, e cerca de 130 mulheres
morreram queimadas.
Mais tarde, em 1908, mais de 14 mil mulheres marcharam nas ruas de Nova Iorque
reivindicando o mesmo que as operárias no ano de 1857, bem como o direito de
voto. Caminhavam com o slogan "Pão e Rosas", em que o pão simbolizava a
estabilidade econômica e as rosas uma melhor qualidade de vida.
40
No Brasil, as
39
Ibid., p. 85-86.
40
Arquivo do COMDIM/POA 2000 CEDIM/RJ, 1996. A política de cotas por sexo. Disponível em
<www.Cfemea.com.br>. Acesso em 30 agosto 2007.
30
primeiras manifestações de protesto contra a situação da mulher aconteceram por
volta de 1872, no Rio de Janeiro.
41
Mas de todas as lutas femininas, nenhuma teve tanta mobilização quanto o
movimento sufragista, que envolveu mulheres de todas as classes sociais. Em
determinadas ocasiões este movimento chegou a mobilizar dois milhões de
mulheres, mas apesar disso, fica restrito a uns poucos relatos nos livros de História.
Nos Estados Unidos e na Inglaterra foi uma luta que durou 70 anos e no Brasil,
quatro décadas a contar da Constituinte de 1891.
No Brasil, uma das primeiras vozes em favor do sufrágio feminino foi Leolinda de
Figueiredo Daltro. Professora e jornalista, Leolinda Daltro fundou, em 1910, o
Partido Feminino Republicano, que “deveria levar a questão do sufrágio para dentro
do Congresso”. Mas sua luta não se restringia ao voto, advogava também em prol
de uma emancipação feminina mais ampla, e buscava, mais especificamente, a
igualdade de direitos no ingresso a cargos públicos. A luta pelo sufrágio, no entanto,
ganhou espaço em alguns setores da elite brasileira depois que a conquista se
concretizou na Europa Ocidental e nos Estados Unidos em 1920.
42
Era uma época de revoltas tanto no campo político e econômico, quanto no campo
cultural. Greves e protestos por parte dos trabalhadores urbanos que perdiam poder
aquisitivo devido aos baixos níveis salariais e à política inflacionária do governo.
Levantes de jovens oficiais contra o governo federal. Revolução cultural
proclamando uma iconoclastia contra as artes tradicionais. Todos esses
acontecimentos abriam espaço para as lutas feministas.
Oswald de Andrade, líder do modernismo, juntamente com outros intelectuais,
atacava a “concepção brasileira da relação entre os sexos”. Sua companheira,
Tarsila do Amaral, apesar de não se manifestar em favor das lutas feministas, era
apontada por elas como prova das capacidades intelectuais do sexo feminino. Outra
contemporânea de destaque que colaborou para reforçar as capacidades femininas
foi Anésia Pinheiro Machado, primeira brasileira a receber um brevé. Mas,
diferentemente de Tarsila do Amaral, Anésia se uniu “à recém-formada Federação
41
HAHNER, 2003, p. 73
42
Ibid., p. 280.
31
Brasileira pelo Progresso Feminino, que se tornaria uma organização sufragista de
liderança no Brasil, e fez um importante pronunciamento sobre as novas carreiras
para a mulher, na sua primeira conferência nacional”.
43
Bertha Lutz, bióloga e uma das primeiras mulheres a ocupar um elevado cargo
público secretária do Museu Nacional do Rio de Janeiro juntamente com um
grupo de advogadas, médicas e engenheiras, liderou “uma bem-sucedida campanha
em favor do sufrágio feminino”. O movimento não tinha ligação com nenhum outro
movimento social ou partido político e não buscava uma revolução do papel da
mulher na sociedade, mas conseguiu fazer com que as mulheres da classe média
tomassem consciência dos seus problemas.
44
Bertha Maria Júlia Lutz viu de perto a campanha do sufrágio feminino na Inglaterra
enquanto concluía seus estudos na Sorbonne. De volta ao Brasil, publicou, em 1918,
“um artigo seminal que ajudou a lançar formalmente o movimento sufragista
feminino”.
45
Em resposta a um colunista do Rio que afirmava que as conquistas
feministas da Europa teriam pouca influência no Brasil, Bertha Lutz fez uma
convocação para a criação de uma liga de mulheres brasileiras. Seu projeto não se
concretizou imediatamente, mas serviu de ponto de partida para a criação de várias
associações femininas. No Rio, Alice do Rego Monteiro cria a Legião da Mulher
Brasileira, e a própria Bertha Lutz, juntamente com a escritora e professora Maria
Lacerda de Moura, organiza a Liga para a Emancipação Intelectual da Mulher.
Mostrando “preferência por um caminho político de ação”, Bertha Lutz deu ênfase à
discussão dos direitos políticos e legais bem como das questões educacionais. Ela
acreditava que o voto seria o principal instrumento “para a realização do progresso
feminino” e serviria como um símbolo dos direitos de cidadania. [...] Em várias
entrevistas dadas à imprensa, Bertha Lutz expôs os objetivos do movimento”:
questões gerais, como a paz mundial e questões mais “específicas como pagamento
igual para trabalho igual e idênticas oportunidades educacionais [...] bem como
participação política direta e legitimada”.
46
43
Ibid., p. 272.
44
Ibid., p. 29-31.
45
Ibid., p. 288.
46
Ibid., p. 292-293.
32
Inicialmente, o movimento internacional influenciou as feministas brasileiras com
idéias e exemplos, mais tarde, estreitando laços através de contatos diretos entre
sufragistas brasileiras e de outros países europeus, “o movimento internacional
passou a fornecer técnicas organizacionais e contatos pessoais muito úteis”.
47
Como
funcionária pública, Bertha Lutz teve a oportunidade de participar de encontros
organizados em outros países e ingressar “na cena sufragista internacional”. Em
visita aos Estados Unidos, em 1922, a líder sufragista encontrou um modelo do
movimento feminista mais apropriado aos moldes brasileiros, pois não empregava a
violência. Após sua volta, organizou a Federação Brasileira pelo Progresso
Feminino, ligada à Aliança Sufragista Feminina Internacional. Depois de criada, a
Federação fez surgir novas seções em vários estados brasileiros e seus objetivos
[...] reproduziam os da Associação Pan-Americana pela Evolução da
Mulher: promover a educação feminina e elevar o nível de sua formação
escolar; proteger mães e crianças; conquistar uma legislação trabalhista
para a mulher; expandir sua consciência política e social; assegurar os
direitos políticos garantidos à mulher pela constituição e instruí-la no
exercício inteligente desses direitos; fortalecer os elos de amizade com
outros países americanos, assim como garantir a manutenção perpétua da
paz e da justiça no hemisfério ocidental.
48
Influenciando líderes políticos, fazendo uso de contatos pessoais dentro dos círculos
do governo, usando a imprensa para propagar sua causa através de resenhas e
constantes entrevistas ressaltando “as potenciais contribuições femininas para as
necessidades políticas e sociais da nação”, enviando “telegramas com elogios aos
políticos que assumissem posições públicas favoráveis ao voto feminino, assim
como mensagens de apoio aos esforços do Estado em favor do voto local para as
mulheres”,
49
o movimento sufragista alcançou sua meta em 24 de fevereiro de 1932,
quando o novo código de leis dava às mulheres amplo direito de voto, nas mesmas
condições dadas aos homens.
Conquistado o direito ao voto, “algumas mulheres abandonaram a atividade política”
e o fortemente organizado movimento sufragista se fragmentou dando lugar a
pequenos grupos. A Federação, no entanto, continuou seus trabalhos, buscando
agora a participação das mulheres através de seu registro eleitoral. Em 1933 a
Federação criou a Liga Eleitoral Independente com o intuito de promover a
47
Ibid., p. 294.
48
Ibid., p. 297-299.
49
Ibid., p. 305.
33
educação política e apresentar candidatas femininas. Nenhuma dessas, porém, foi
eleita naquele ano. A primeira mulher a conquistar um cargo nas eleições nacionais
foi Carlota Pereira Queiroz, e sua vitória não está vinculada ao movimento
sufragista, mas sim à grande influência política de sua família. Os trabalhos na
Federação para a disseminação da educação política e a apresentação de
candidatas tiveram sucesso nas eleições de 1934, quando Bertha Lutz alcançou
uma suplência no congresso, e, nas assembléias legislativas estaduais, duas
mulheres foram eleitas em o Paulo, uma em Sergipe e outra no Amazonas. A
médica Lily Lages, de Alagoas, e a advogada Maria Luísa Bittencourt, da Bahia,
foram as primeiras candidatas eleitas que, realmente, tinham vínculo com o
movimento feminista. No final de 1936, Bertha Lutz assume como suplente na
Câmara dos Deputados e, no ano seguinte, ajuda a criar a Comissão do Código
Feminino, que “exerceu intensa pressão [...] para que fosse sancionado um estatuto
da mulher”, que não se concretizou a o fechamento forçado do Congresso em
1937. Até 1945, quando Getúlio Vargas deixou o poder, “nenhuma atividade política
organizada pelas mulheres pôde ter lugar no Brasil”.
50
O movimento sufragista, no
entanto, não se confunde com o feminismo, mas foi sem dúvida um movimento
feminista que denunciou a exclusão da mulher da esfera política.
Atingido o objetivo do movimento sufragista, os grandes grupos organizados de
mulheres foram se dissipando. No Brasil, os anos de 1930 e 1940 representam os
anos das conquistas formalmente atingidas: as mulheres conseguiram o direito ao
voto e à elegibilidade, além de poder ingressar nas instituições escolares e participar
do mercado de trabalho.
Vendo sua luta encerrada, a organização de mulheres, praticamente, desaparece.
Nos países envolvidos na Segunda Guerra Mundial, especialmente Inglaterra e
Estados Unidos, a conquista de igualdade entre os sexos se confunde com as
necessidades da economia. A mão-de-obra feminina torna-se imprescindível para
preencher os espaços deixados pelos operários convocados para a frente de
batalha. Terminada a guerra, porém, a mulher perde novamente seu espaço. Os
meios de comunicação se encarregam de divulgar a “nova” velha ideologia de
mistificação da “rainha do lar”.
50
Ibid., p. 355-356.
34
Neste momento de transição, Simone de Beauvoir é uma voz isolada que denuncia
as raízes culturais da desigualdade sexual evocando uma análise profunda de
questões relativas à mulher na área da biologia, da psicanálise, dos mitos e da
educação.
51
Esta análise de Beauvoir fundamenta a reflexão feminista que reaparece a partir da
década de 1960. Apoiada nesses estudos, Betty Friedan publica A Mística Feminina,
que confronta a exacerbada mistificação do papel de dona-de-casa, esposa e mãe
pregada pela ideologia pós-guerra e detecta o que chamou de “o mal que não tem
nome” uma frustração constante e indefinida percebida em depoimentos de
mulheres de classe média dos Estados Unidos que correspondiam ao ideal da
“rainha do lar”.
Friedan, mais tarde, em tempos comumente chamados pós-feministas, serve de
referência para uma análise sintetizada por Marina Colasanti sobre as conquistas do
feminismo. Colasanti descreve a nova angústia descoberta por Betty Friedan:
Nas jovens que trabalham em suas novas carreiras, diz Betty Friedan
decididas a não serem apanhadas nas armadilhas em que suas mães
caíram e encarando como naturais as oportunidades pelas quais nós, as
antigas militantes, lutamos duramente, identifico sinais de sofrimento,
confusão, uma amargura que elas relutam em admitir. Com todas as
oportunidades que arrancamos para elas, evitam falar alto e bom som a
respeito de outras necessidades contra as quais algumas de nós do
Womens Lib nos rebelamos anseios em relação a amor, segurança, os
homens, os filhos, a família e o lar.
52
Os primeiros indícios da construção de uma teoria feminista apareceram no final
dos anos 1960, quando Kate Millet publica Política Sexual. Em seu trabalho a autora
afirma que “o sistema patriarcal é um sistema universal de dominação prevalente em
todas as culturas, e que penetra as religiões, leis e costumes de todas as
civilizações”. Idéia reafirmada por Marina Colasanti em variados textos, dando-nos a
conhecer diversos costumes e leis que deflagram a desvalorização da mulher em
relação ao homem, principalmente no que tange à sua honra, como no artigo
Mulheres assassinadas:
O direito à reparação da honra ofendida é coisa que vem de longe, e que
irmana os homens além de bandeiras e fronteiras. Na Itália, até 1977, o
crime de honra constava do Código Penal e previa penas leves, de três a
51
BEAUVOIR, 1980.
52
COLASANTI, 1981, p. 195.
35
cinco anos de prisão, para os culpados pelo assassinato de filhas, irmãs e
mulheres descobertas em “flagrante delito” sexual. A cláusula, generosa,
permitia matar também os companheiros do crime. E segundo um relatório
apresentado à ONU no mês de agosto de 1980, centenas de mulheres são
assassinadas diariamente em países árabes, para proteger a honra da
família. As mulheres do Egito, Iraque, Jordânia, Arábia Saudita e territórios
árabes ocupados por Israel, são degoladas, enterradas vivas, envenenadas
ou estripadas por irmãos, pai, um primo, ou um assassino pago. Sua culpa:
manterem relações extraconjugais livremente ou mesmo violentadas
“ou simplesmente por terem sido vistas quando conversavam com algum
rapaz, tornando-se assim suspeitas de manterem relações mais íntimas”.
53
A subordinação feminina em nome da honra masculina é também o tema do
curtíssimo conto, Como se fosse na Índia.
Quando ele soube que ia morrer, comprou uma serra, um formão, e durante
semanas, com as poucas forças que lhe restavam, empenhou-se em
destruir os móveis do apartamento, reduzindo armários, mesas, cadeiras,
molduras e consoles em cavacos de pau que ordenadamente empilhava no
centro da sala.
A mulher acompanhava o labor, varrendo o entulho, cuidando para que ele
não se cansasse demais, sempre disponíveis na bandeja a xícara de
cafezinho ou o copo d’água. E estando tudo pronto afinal, quando se
esgotava o tempo do homem, subiu ela no alto da pilha, atenta para não
derrubar o cuidadoso arranjo.
Deitada em cima, ainda tirou com a mão uma teia de aranha do lustre.
Depois vasculhou o bolso do avental, e estendeu para o marido a caixa de
fósforos.
54
A autora reconstrói, ironicamente, o costume indiano que leva as viúvas a serem
queimadas juntamente com o corpo do marido. Ao mesmo tempo, Colasanti revela
os traços dessa submissão internalizada, a mulher preocupa-se, até o último
momento, com a limpeza da casa e os cuidados com o marido.
Seguindo a mesma perspectiva de Kate Millet, Juliet Mitchell publica A Condição da
Mulher, que acrescenta a especificidade da discriminação de sexo nas diferentes
classes sociais. E no Brasil, na mesma época, Heleieth Saffioti escreve A Mulher na
Sociedade de Classes, em que examina o status da mulher no sistema capitalista.
Com essas contribuições, o feminismo incorpora em suas reflexões as raízes
culturais das desigualdades sexuais no exercício de direitos. Através delas, o
movimento feminista contesta a ideologia dominante que legitima a inferioridade
“natural” da mulher, e faz eco às conclusões de Simone de Beauvoir: “o ‘masculino’
53
Ibid., p. 59-60.
54
COLASANTI, 1986, p. 135.
36
e o ‘feminino’ são criações culturais e, como tal, o comportamentos apreendidos
através do processo de socialização que condiciona diferentemente os sexos para
cumprirem funções sociais específicas e diversas”.
55
Funções essas bem exploradas
por Colasanti no ensaio Esta complicada história de ter de fazer concessões.
Desde pequena, o aprendizado: “Minha filha, deixe essas brincadeiras para os
meninos, você é mais ajuizada”. [...]
Mas Maria gosta de ceder? Ela não escolheu o trabalho doméstico. Apenas
soube, desde sempre, que ele lhe caberia. Ela não escolheu ser sustentada.
Apenas aceitou, desde sempre, que seu trabalho não fosse remunerado,
apesar de ser, ele também, um trabalho indispensável à família. Ela não
pediu para ficar em casa, simplesmente foi posta ali. [...]
56
A partir da década de 1970, o feminismo ressurge com inegável força política.
Surgem inúmeras organizações que servem como pólos congregadores de um
grande número de mulheres. Formam-se grupos de trabalho que promovem
debates, pesquisas, cursos e publicações. Estes grupos conseguem mobilizar
milhares de mulheres em campanhas com reivindicações específicas.
No Brasil, o feminismo chegou ao final da cada de 1970 como um movimento
organizado em grande expansão. E novamente a imprensa dirigida por mulheres
surge como mola propulsora de debates, questionamentos e lutas, colocando em
evidência a participação das mulheres na construção de um novo cenário político.
Em 1975 nasce o jornal Brasil Mulher, que serve de porta-voz ao recém-criado
Movimento Feminino pela Anistia. Logo depois, em 1976, surge Nós Mulheres,
periódico declaradamente feminista que traz à tona questões polêmicas daquela
época, “como a anistia, o aborto, a mortalidade materna, as mulheres na política, o
trabalho feminino, a dupla jornada e a prostituição, trazendo ainda muitas matérias
sobre sexualidade, preconceito racial, mulher na literatura, no teatro e no cinema”.
57
Mais tarde, em São Paulo, foi a vez do Mulherio, publicação criada em 1981 por
feministas ligadas à Fundação Carlos Chagas. A variedade de assuntos tratados no
periódico era tão diversificada que falava desde denúncias de violência até a
produção cultural feminina, o que fez com que alguns números se tornassem
55
BEAUVOIR, 1980.
56
COLASANTI, Marina. A nova mulher. Rio de Janeiro: Nórdica, 1980, p. 175.
57
DUARTE, Constância Lima. Mulher, Mulheres: Feminismo e literatura no Brasil. Disponível em
<www.scielo.br>. Acesso em 18 agosto 2007.
37
“verdadeiros documentos da trajetória da mulher na construção de uma consciência
feminista.”
58
No novo feminismo nacional destaca-se o nome de Rose Marie Muraro, escritora
feminista atuante, uma das fundadoras do Centro da Mulher Brasileira, entidade
pioneira desse novo feminismo. Dentre seus trabalhos, realizou uma pesquisa
intitulada Sexualidade da Mulher Brasileira, em 1983, que teve grande repercussão
incitando o debate acadêmico e servindo de orientação para outras pesquisas.
Outro nome de expressão dessa época é Nélida Piñon, “que participou da redação
do Manifesto dos 1.000 contra a censura e a favor da democracia no Brasil”. Nélida
foi a primeira mulher a ocupar a presidência da Academia Brasileira de Letras.
Inúmeras outras escritoras brasileiras suscitaram em suas leitoras reflexões
relevantes sobre o novo papel da mulher na sociedade. Seus textos e personagens
contribuíram na disseminação de idéias e ideais que ajudam, ainda hoje, na
formação dessa nova identidade feminina.
59
Entre elas está Lygia Fagundes Telles,
Clarice Lispector, Lya Luft, nomes bem conhecidos da literatura brasileira e
Marina Colasanti, autora cuja parte da obra foi escolhida como nosso objeto de
estudo.
Nos anos de 1980 e 1981 novos grupos se espalham por diversos estados
brasileiros, intensificando as reflexões, a publicação de folhetos sobre sexualidade e
direitos da mulher, as pesquisas em diversas áreas, os grupos de estudos, a criação
de centros de combate à violência praticada contra a mulher e muitos outros
trabalhos que objetivavam a valorização da mulher e do seu papel na sociedade. A
participação das mulheres ganha espaço dentro e fora dos lugares tradicionais da
política. Conseguem inserir seus temas específicos nas agendas políticas gerais e
participam das negociações da transição política do país. Alcançam espaço no
mundo sindical, artístico, acadêmico e profissional. Criam organizações não-
governamentais e iniciam a tradição dos congressos de mulheres e encontros
feministas que fomentam novas lutas e discussões sobre o novo papel da mulher.
Espaços também ocupados por Marina Colasanti, tal seu interesse pelo assunto
confirmado e retratado em seus artigos, contos e crônicas. Em 1985 é criado o
58
Ibid.
59
Ibid.
38
Conselho Nacional dos Direitos da Mulher do qual Colasanti também faz parte
que fortalece a presença feminista no debate político nacional e garante a
participação das mulheres no processo da Assembléia Nacional Constituinte. Com o
lema “constituinte pra valer tem que ter palavra de mulher”, uma força-tarefa
feminina, intitulada o lobby do batom, elaborou emendas populares e recolheu
milhares de assinaturas por todo país, além de participarem de debates em diversos
setores da sociedade: com políticos, autoridades do executivo e do judiciário e com
a sociedade civil. Desse trabalho nasce A Carta das Mulheres Brasileiras para os
Constituintes, a primeira plataforma política feminina para a sociedade brasileira.
A Constituição Cidadã de 1988 legitima muitas das conquistas almejadas pelos
movimentos feministas: a igualdade jurídica entre homens e mulheres, ampliação
dos direitos civis, sociais e econômicos das mulheres, igualdade de direitos e
responsabilidades na família, definição da não-discriminação por motivo de sexo,
raça e etnia como princípio do Estado Brasileiro, proibição da discriminação da
mulher no mercado de trabalho e criação dos direitos reprodutivos.
60
Variando de acordo com o momento histórico e as características sócio-econômicas
e políticas do país em que atuam, os grupos de mulheres do movimento feminista
almejam, de forma generalizada, a mesma mudança: o desejo de individuação, a
recriação de uma identidade própria, livre da ideologia de que “masculino” e
“feminino” correspondem a “superior” e “inferior”. Enquanto que em suas origens o
movimento feminista “tinha como meta o paradigma da igualdade, no qual o
masculino era o modelo e o ideal a ser seguido”, nessa nova fase a contestação
feminina reformula a definição de igualdade, que assume a conotação de afirmação
da diferença. Anuncia que as diferenças existem sim, porém sem o estigma da
inferioridade de um perante a superioridade do outro. “A mulher não quer mais ser o
espelho do homem, nem mesmo o seu avesso ou seu contrário; quer encontrar a
sua própria marca, seus valores e direitos, sua identidade”.
61
[...] Éramos uma realidade revestida de tantas capas de mentira, de tantas
máscaras adulteradas, que essa realidade se perdeu. Nem nós, nem
60
BONAN, Cláudia. Mulheres e Movimentos: Política, Cultura e Feminismo na Virada do Século.
Disponível em <www.mulheresemovimentos.com.br>. Acesso em 30 agosto 2007.
61
SCHMIDT, Rita Terezinha. Desafios da alteridade. Disponível em <www.sidarta.blogger.com.br>.
Acesso em 18 agosto 2007.
39
ninguém saberia mais dizê-la. E à sua procura lançamos mão de vários
meios.
Um deles foi dizer o que não éramos. [...]
Outro foi tomar o símbolo do poder, o valor máximo, a única coisa mais
semelhante a nós na natureza, a única com que podíamos nos equiparar, e
dizer: somos iguais a ele.
[...]
O que não foi visto é que, como homem, ela (a mulher) seria sempre
forçosamente incompleta.
[...]
Hoje sabemos [...] que temos capacidades ilimitadas.
[...] Conseguimos desmanchar as primeiras capas de preconceitos e
mentiras, mas ainda não chegamos à realidade de nós mesmas.
62
Na busca dessa nova identidade faz-se um questionamento do que era senso
comum, a hierarquia dos sexos, e nessa busca muitas protagonistas sociais
atacaram princípios sagrados da ordem estabelecida. Todas as teorias feministas
tiveram o mérito de criticar, do interior de seus fundamentos epistemológicos, o viés
masculino presente nas transformações políticas, filosóficas, sociais e religiosas
pelas quais a sociedade passou. Em cada uma delas, as feministas buscaram
denunciar a inscrição do poder masculino, tendo, por isso, que lutar duplamente:
colaborando com o homem em busca de melhores condições, e contra o homem
para provar seu valor e suas capacidades. Foram punidas, reprimidas, silenciadas,
mas eram tantas que mesmo em silêncio elas conseguiram soltar seu grito. A
esse grito coletivo deu-se o nome de Movimento Feminista.
2.3 QUESTÕES DE GÊNERO: O GRITO ABAFADO
Dentre as várias mudanças provocadas pelos movimentos feministas dos anos 1970
está a instituição dos “estudos sobre a mulher” que pretendia garantir a manutenção
de direitos conquistados e promover debates e pesquisas que auxiliassem na
aquisição de novos direitos. Isso aconteceu, em parte, devido ao grande número de
acadêmicas que participou ativamente na organização do movimento feminista
62
COLASANTI, 1981, p. 192.
40
brasileiro.
63
Na década de 1980, quando o movimento perdeu força, os estudos se
intensificaram na academia, com a criação de “grupos de consciência”, onde
aconteciam debates e reflexões com o intuito de “tornar público aquilo que fica
oculto na subjetividade”, contribuindo, com essa troca de experiências, para a
“construção de (uma) nova identidade da mulher brasileira”,
64
ponto de culminância
dos movimentos feministas. O tema era trabalhado “sob diferentes óticas, em
diferentes situações”. Nenhum desses grupos de estudo, no entanto, alcança status
de unidade própria de ensino.
65
Acontece, então, uma segregação em um espaço
exclusivo”, resultado da ausência da construção sistemática de um corpo
consistente de conceitos teóricos”.
66
Os estudos da mulher não conseguem expandir
sua área de atuação nem interferir nos currículos universitários e, por isso, no início
da década de 1990, surgem propostas para superar essas limitações. Inicialmente,
introduziram-se as temáticas de gênero que substituíram o tema da mulher e da
identidade feminina em alguns grupos de trabalho realizados na academia. E a partir
daí, gradativamente, ocorre uma
[...] substituição do termo mulher, uma categoria empírica/descritiva, pelo
termo gênero, uma categoria analítica [...]. Em termos cognitivos essa
mudança favoreceu a rejeição do determinismo biológico implícito no uso
dos termos sexo ou diferença sexual e enfatizou os aspectos relacionais e
culturais da construção social do feminino e masculino.
67
Antes, porém, o termo gênero já vinha sendo usado por feministas americanas
desde a década de 1970 para afastar “o fantasma da naturalização [...] e comprovar
o caráter fundamentalmente cultural e social das distinções baseadas no sexo”.
68
O conceito vem de uma tradição anglo-saxã e jamais foi incorporado pela linha de
investigação francesa que primou pelo termo “relações sociais de sexo (rapports
sociaux de sexe)”.
63
SORJ, Bila. Estudos de gênero no Brasil 1975-1995. In: MICELI, Sérgio (Org.) O que ler na ciência
social brasileira (1970-1995). São Paulo: Editora Sumaré, 1999.
64
AGUIAR, Neuma. Gênero e Ciências Humanas. Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Tempos, 1997,
p. 11.
65
SORJ, Bila. In: MICELI, 1999.
66
COSTA, Albertina de Oliveira e BRUSCHINI, Cristina, Uma questão de gênero. São Paulo:
Fundação Carlos Chagas, 1992, p. 6-7.
67
SORJ, op. cit., nota 64.
68
BONAN, Cláudia. Mulheres e Movimentos: Política, Cultura e Feminismo na Virada do Século.
Disponível em <www.mulheresemovimentos.com.br>. Acesso em 30 agosto 2007.
41
Nos Estados Unidos, a principal referência sociológica dos estudos de gênero foram
as teorias funcionalistas. Tal referência se mostrou mais negativa do que positiva,
visto que distanciou-se do modelo original criado por Parsons e Bales
69
que enfatiza
a família como principal mantenedora do funcionamento regular da ordem social.
Para eles, no interior da família nuclear moderna havia a diferença de gênero
concebida na divisão de papéis “expressivos” (femininos) e “instrumentais”
(masculinos).
Criticando a posição de Parsons e Baile, inúmeras pesquisadoras “argumentaram
que considerar gênero como papel social limitava o foco da análise ao
comportamento individual e diminuía seu poder de explicação da dinâmica social
mais ampla”.
70
A partir dessa perspectiva, a noção de gênero passou, então, a ser desenvolvida
como uma categoria de análise teórica.
Outra referência teórica utilizada na sociologia do gênero foi o marxismo. Debatendo
questões tais como “trabalho doméstico” e “participação da mulher na força de
trabalho”, o marxismo contribuiu “para que as análises do gênero saíssem dos
limites da família [...]”.
71
No Brasil, optar pelos estudos de gênero foi uma forma de tirar o tema “mulher” de
um campo sem interlocução.
72
O gênero, utilizado como uma categoria de análise,
poderia ser um forte instrumento para as críticas aos “pressupostos que informam os
principais paradigmas da teoria social.” Essa perspectiva levaria ao entendimento de
“como o gênero afeta o próprio conhecimento produzido pelas ciências sociais”.
73
Adotar o conceito de gênero resultou em uma maior aceitação acadêmica desses
estudos, visto que, assim, a problemática da mulher foi despolitizada.
Diante das novas temáticas
69
PARSONS, Talcott and Bales, Robert, F., Family, Socialization and Interaction Process, New York,
Free Press, 1995. Apud SORJ, Bila. Estudos de gênero no Brasil 1975-1995. In: MICELI, Sérgio
(Org.) O que ler na ciência social brasileira (1970-1995). São Paulo: Editora Sumaré, 1999.
70
SORJ, Bila. In: MICELI, 1999.
71
Ibid.
72
AGUIAR, 1997, p. 15.
73
SORJ, op. cit., nota 64.
42
[...] algumas preocupações teóricas revelaram-se comuns: a existência ou
não de uma teoria e de um método feminista, a adoção ou o do conceito
de gênero, na medida em que a passagem do conceito de sexo para o de
gênero poderia [...] obscurecer uma perspectiva politicamente
transformadora, que sempre foi a marca dos estudos de mulher.
74
O conceito de gênero foi tomado de empréstimo da gramática, e em sua acepção
original é a categoria que classifica os nomes em masculino, feminino e neutro”.
75
Nos estudos das Ciências Sociais, no entanto, o termo “relações de gênero” não
possui precisão cognitiva. Numa análise estruturalista “o gênero pode operar sob
diversas perspectivas”
76
e não há consenso “no que tange à sua armação”.
77
A noção de gênero requer posicionamento teórico, pois “aponta para o caráter
implicitamente relacional do feminino e do masculino [...]”. A noção de gênero não se
confunde com a idéia de sexo, pois, enquanto esta tem a ver com o biológico,
aquela é resultado das relações sociais. “O gênero é um produto social, aprendido,
representado, institucionalizado e transmitido ao longo das gerações”.
78
“Já a idéia
de gênero, por sua vez, está ligada à de diferença”, que se alia à idéia do pós-
feminismo, na busca de evidenciar “as diferenças e as relações não entre
homens e mulheres, mas também entre mulheres, baseando-se especialmente nas
diferenças entre culturas [...]”.
79
Essa nova proposta insiste na “‘superação’ dos estudos dos papéis sexuais pelas de
gênero”, afirmando que este, “por ser relacional, supera a idéia das esferas
separadas para um e outro sexo”.
80
O gênero possui uma constituição simbólica, realizada “num contexto social
determinado no tempo e no espaço”.
81
Assim, a essência das relações de gênero
varia “dentro e através do tempo, inviabilizando o tratamento da diferença sexual
como ‘natural’”.
82
74
COSTA e BRUCHINI, 1992, p. 7-8.
75
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Minidicionário da língua portuguesa. Curitiba: Posigraf,
2004, p. 430.
76
COSTA e BRUCHINI, op. cit., p. 104, nota 67.
77
Ibid., p. 183.
78
Ibid., p. 15.
79
Ibid., p. 9.
80
Ibid., p. 26.
81
Ibid., p. 32.
82
SCOTT, 1986, apud COSTA e BRUCHINI, op. cit., p. 59, nota 64.
43
A opção em se trabalhar o conceito de relações de gênero em detrimento de
relações sociais de sexo está diretamente ligada ao fato de que “o termo gênero
está lingüisticamente impregnado do social, enquanto é necessário explicitar a
natureza social da elaboração do sexo”.
83
Retomando a célebre frase de Simone de Beauvoir, “não se nasce mulher, torna-se
mulher”, os estudos das relações de gênero apontam para a existência de indivíduos
que são transformados, “através dessas relações, em homens ou mulheres, cada
uma destas categorias-identidades excluindo a outra [...]. O tornar-se mulher e o
tornar-se homem [...] constituem obra das relações de gênero”.
84
Na década de 1990 o conceito foi muito discutido na produção feminista ligada às
Ciências Sociais. Donna Haraway, que estuda a relação da Antropologia com o
feminismo, acredita que o conceito de gênero está diretamente ligado “a uma
distinção com o sexo, na qual nem o sexo nem as raízes epistemológicas da lógica
de análise implicada na distinção e em cada membro deste par seriam situados
historicamente e relativizados”.
85
O fato de não situar historicamente o sexo e a
natureza contribuiu para a permanência de idéias equivocadas sobre as identidades
sociais de “mulheres” e “homens”. Para ela, essa categoria “obscurece ou subordina
todas as outras; ‘outras’ que emergem nitidamente das ‘políticas da diferença’”.
86
Isso acontece porque na Antropologia as diferenças de gênero são tratadas como
dados e o como tema de pesquisa e reflexão. Isso resulta numa limitação das
“possibilidades de estranhar a ideologia de que o desempenho social de mulheres e
homens é natural”.
87
E isso entra em confronto com os objetivos antes almejados
pelos “estudos de mulher”.
Houve, então, uma remodelagem do objeto de estudo. Antes, estudava-se “a
construção social e subordinada do feminino”,
88
agora, o foco está na construção
das relações de gênero.
83
Ibid., p. 185.
84
BEAUVOIR, 1980.
85
AGUIAR, 1997, p. 51.
86
Ibid.
87
Ibid., p. 41.
88
COSTA e BRUCHINI, 1992, p. 12.
44
Diferentemente de Haraway, outras autoras ligadas à Antropologia buscaram vencer
essas limitações do conceito de gênero e deram-lhe um lugar central na
desconstrução de posições teóricas existentes.
Antropologia e Feminismo, uma coletânea de artigos publicada na segunda metade
da década de 1970, se tornou um dos clássicos da antropologia feminista. Nela,
Olívia Harris e Kate Young, introduzem “a dimensão política na relação entre os
sexos”, e isso influi diretamente na maneira de compreender o gênero. A partir daí,
várias autoras passaram a questionar as “dicotomias analíticas no estudo do gênero
particularmente natureza/cultura, noções que foram seriamente situadas na
história —, questionando as diferenças biológicas como base universal [...]”.
Dentro da Antropologia o gênero pensado como “categoria empírica” revela “tanto a
impossibilidade de se pensar universalmente em termos do dualismo
natureza/cultura quanto de se outorgar bases fixas para a diferença”.
89
O Seminário Estudos Sobre Mulher no Brasil: Avaliação e Perspectivas, realizado
em novembro de 1990, em São Paulo, se tornou um marco na passagem dos
estudos de mulher para os de gênero, e proporcionou debates e reflexões sobre as
relações entre a academia e o feminismo. “A partir das noções de desconstrução e
de diferença [...] a noção de gênero, reconstituída, foi perpassando por diferentes
áreas da Psicanálise, Lingüística, História, Antropologia e Sociologia”.
90
Na área de História, uma das acepções mais difundidas acerca da questão de
gênero é da historiadora Joan Scott, e diz respeito ao uso da questão de gênero na
análise histórica.
Para Scott,
[...] os estudos sobre gênero devem apontar para a necessidade da rejeição
do caráter fixo e permanente da oposição binária ‘masculino versus
feminino’ e a importância de sua historicização e ‘desconstrução’ nos
termos de Jacques Derrida revertendo-se e deslocando-se a construção
hierárquica, em lugar de aceitá-la como óbvia ou como estando na natureza
das coisas”.
91
89
AGUIAR, 1997, p. 59.
90
COSTA e BRUCHINI, 1992, p. 11.
91
AGUIAR, op. cit., p. 101-102, nota 65.
45
A historiadora propõe a política como domínio de utilização do gênero para análise
histórica. Ela acredita que o aprofundamento da análise dos diversos usos do
gênero para justificativa ou explicação de posições de poder fará emergir uma nova
história, que abrirá possibilidades para reflexão sobre as estratégias feministas e o
futuro utópico. Algumas teóricas feministas, no entanto, questionam sua viabilidade
como ferramenta útil para análise.
92
Segundo Scott, o uso apenas descritivo do gênero não é capaz de “interrogar e
mudar os paradigmas históricos existentes”. Prova disso é o fato de não ter sido
suficiente provar a existência de uma “história de mulheres”. O reconhecimento não
foi capaz de criar-lhes um espaço de real valor.
Na Sociologia essas relações são entendidas como relações de poder
93
, sendo o
gênero um produto social. E é nesse “terreno de poder, onde têm lugar a exploração
dos subordinados e a dominação dos explorados” que se travam as relações de
gênero.
94
O que se pode inferir nessa transição dos estudos da mulher para o estudo das
relações sociais de gênero é que este ganhou “estatuto de paradigma ao informar
sobre as relações sociais entre homens e mulheres”,
95
consagrando “o princípio de
entender o outro a partir do próprio ponto de vista”.
96
Esta foi uma estratégia a mais
de legitimação do tema “mulher” para que o conhecimento produzido sob essa
temática não perdesse sua voz no espaço acadêmico. “[...] El cambio de la categoria
de sexo a la de gênero permitió a las feministas explorar el condicionamiento
sociohistórico, cultural y literário, y las representaciones de los seres humanos de
manera más significativa [...]”.
97
Optar por trabalhar com gênero, porém, implica necessariamente privilegiar um
enfoque que tem como ponto de partida certas diferenças e não outras. Esse é o
principal problema encontrado no estudo de gênero, pois este “olhar” privilegia a
92
Ibid., p. 49.
93
O conceito de poder aqui utilizado, refere-se ao formulado por Foucault (1976): “o de constelações
dispersas de relações desiguais, discursivamente constituídas em campos sociais de força”.
94
AGUIAR, 1997, p. 101-102.
95
COSTA e BRUCHINI, 1992, p. 243.
96
SUÁREZ apud AGUIAR, 1997, p. 21.
97
BROAD, Charlotte. In: FE, 1999, p. 20.
46
diferença sexual quando “as discussões ‘politicamente corretas’ parecem exigir,
cada vez mais, privilegiar ‘outras marcas’ na explicação das desigualdades”.
98
Esta é também a opinião de Marina Colasanti. Ela acredita que com essa mudança
houve um “enfraquecimento daquilo que era trabalho em cima do feminino, cravado
no feminino, insistindo no feminino [...].” E tal enfraquecimento “num país onde a
miséria é um problema de primeiríssima linha, e onde, portanto, as mulheres estão
num estado terrível — porque sempre que há pobres, os mais pobres são as
mulheres, os [sic] mais sacrificados são as mulheres —” as questões do feminino
que estavam em aberto não foram resolvidas.
99
2.4 LITERATURA: UM GRITO POSSÍVEL
No caminho empreendido pelas mulheres para a conquista de novos espaços,
melhores condições de vida e, principalmente, ter sua identidade reconstruída, é
possível identificar a literatura como um dos principais instrumentos por elas
utilizado. Seja através da imprensa criada especificamente para esse fim, seja
galgando espaços na publicação de livros, a palavra escrita foi presença constante
nos momentos de transição e luta por uma nova história das mulheres. [...] La
literatura, como forma de acceso al conocimiento, es um espacio privilegiado para la
organización, representación, interpretación y articulación de la experiencia, al igual
que para la exploración de los ideales, valores y prejuicios de los diferentes grupos
socioculturales y lingüísticos — los cuales determinan la construcción del significado,
de la identidad de género y de la sexualidad, entre otras cosas —, así como de
muchas de las ideas y principios en que se basa el feminismo [...]”.
100
Olimpe de Gouges abriu caminho com Os Direitos da Mulher e da Cidadã, em 1791.
Mais tarde, outras seguiram-na: Mary Wollstonecraft (Defesa dos Direitos da
Mulher), Joanne Deroin (Curso de Direito Social para as Mulheres) até chegar em O
Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir, talvez o livro mais importante usado nesse
processo de construção de uma nova identidade feminina.
98
AGUIAR, op. cit., p. 65, nota 65.
99
Entrevista a André Azevedo. Disponível em <http: // www.revelacaoonline.uniube.br>. Acesso em
16 agosto 2007.
100
BEAUSTEGUIGOITIA, Marisa. In: FE, 1999, p. 8.
47
Muitos livros publicados foram usados como referência para a disseminação de
idéias e ideais revolucionários, responsáveis pela mudança de valores da sociedade.
No Brasil, o livro de Mary Wollstonecraft pode ser considerado como a referência
inicial para o feminismo. Foi a partir da tradução livre de Defesa dos Direitos da
Mulher que Nísia Floresta publicou seu primeiro livro, Direitos das Mulheres e
Injustiças dos Homens, em 1832. Nísia foi “uma das primeiras mulheres no Brasil a
romper os limites do espaço privado e a publicar textos em jornais da chamada
‘grande imprensa’”. Para Zahidé Muzart
101
qualquer mulher do século XIX que
almejava ser reconhecida como escritora era feminista, “pois o desejo de sair do
fechamento doméstico indicava uma cabeça pensante e um desejo de subversão.
E eram ligadas à literatura. Então, na origem, a literatura feminina no Brasil esteve
ligada sempre a um feminismo incipiente”.
Foram poucas as brasileiras dessa época que conquistaram esse feito. Nomes que,
infelizmente, ainda carecem de espaço e de pesquisas mais consistentes para
tornarem-se visíveis: Beatriz Francisca de Assis Brandão, Clarinda da Costa
Siqueira, Delphina Benigna da Cunha, Ana Eurídice Eufrosina de Baranhas, entre
outras. Pelo objetivo deste trabalho, não detalharemos as obras de todas essas
escritoras, mas queremos citar pelo menos uma, de Ana Eurídice de Baranhas,
publicada em 1845: A philosopha por amor, um livro de contos, versos e uma peça
teatral que trazia reivindicações femininas. A personagem apresentada, Mariana,
repete idéias que se encontram no primeiro livro de Nísia Floresta, “tais como a
convicção na capacidade da mulher para exercer cargos de comando, sua
competência para estudar e o discernimento para opinar sobre momentos
importantes do país, no caso, a Revolução Farroupilha”.
Mas, sem vida, foi nos jornais e revistas femininas que as mulheres conquistaram
um maior espaço para divulgar suas idéias, comprovar seu talento literário e suas
capacidades intelectuais. Em meados do culo XIX, surgiram os primeiros jornais
dirigidos por mulheres, neles, muitos foram os textos publicados que ajudaram no
avanço em direção à construção da identidade feminina. Alguns, citados
anteriormente, serão retomados neste ponto pelo valor que tiveram na construção
da literatura feminina brasileira por se abrirem para publicações que não seriam
101
MUZART, Zahidé Lupinacci (Org.). Escritoras brasileiras do século XX. Antologia. Florianópolis:
Mulheres; Santa Cruz do Sul: Edunisc, 1999.
48
aceitas em outro espaço. Em 1852, Joana Paula Manso de Noronha fundou o Jornal
das Senhoras que, logo no primeiro número, expõe em seu editorial o objetivo de
sua publicação: incentivar as mulheres na busca da emancipação moral e social.
Acreditando na inteligência feminina, Joana Manso acusava os homens de egoísmo
por terem suas mulheres apenas como objetos disponíveis ao seu prazer. Pioneiro,
o Jornal das Senhoras contava com muitas colaboradoras anônimas e representou
“um decisivo passo na longa trajetória das mulheres em direção à superação de
seus receios e conscientização de direitos”.
102
E nesse mesmo passo, em 1862,
Júlia de Albuquerque Sandy Aguiar cria no Rio de Janeiro O Belo Sexo. A novidade
trazida por Júlia Albuquerque é o incentivo para que suas colaboradoras assinassem
seus trabalhos e participassem efetivamente do jornal.
103
Depois do sucesso dessas primeiras publicações, nas décadas de 1870 o número
de jornais e revistas de feição nitidamente feminista cresce vertiginosamente. Essa
fase, porém, é menos literária e mais jornalística. Francisca Senhorinha da Mota
Diniz publica O Sexo Feminino que possui três fases, de 1873 a 1875, de 1887 a
1889 e por último, como O Quinze de Novembro do Sexo Feminino, de 1890 a
1896. Para Francisca Diniz a ignorância de seus direitos é a maior inimiga das
representantes do sexo feminino, por isso lutou incansavelmente pela instrução das
mulheres. Sua filha Elisa fundou o Colégio Santa Isabel, para moças, que se tornou
um dos mais prestigiados do Rio de Janeiro. Também dando ênfase à defesa do
direito da mulher à educação, de 1875 a 1885, foi publicado o Echo das Damas.
Dirigido por Amélia Carolina da Silva Couto, o jornal divulgava as realizações
femininas em outros países, incentivando as brasileiras a tomarem os mesmos
rumos. Na mesma época surgiram outros jornais como O Domingo e o Jornal das
Damas, ambos de 1873, que se destacaram pela divulgação de idéias que, na
época, eram consideradas novíssimas, como o direito da mulher à propriedade e ao
trabalho profissional.
104
Dentre tantas publicações, destaca-se o jornal A Família, dirigido por Josefina
Álvares de Azevedo que, num tom assumidamente combativo lutou em prol da
emancipação feminina questionando abertamente a tutela masculina. À frente do
102
HANNER, June E. A mulher brasileira e suas lutas sociais e políticas: 1850-1937. São Paulo:
Editora Brasiliense, 1981, p. 34-35.
103
Ibid., p. 42-43.
104
Ibid., p. 53-59.
49
jornal, Josefina realizou um intenso trabalho de militância feminista, sendo
incansável na denúncia da opressão, nos protestos pela insensibilidade masculina
por não reconhecer o direito da mulher ao ensino superior, ao divórcio, ao trabalho
remunerado e ao voto, e em incentivar as compatriotas à ação.
105
Além do trabalho
jornalístico, Josefina Álvares de Azevedo escreveu a peça O Voto Feminino,
encenada no Teatro Recreio e depois publicada em livro. A peça foi uma das
primeiras obras a defender publicamente o direito ao voto feminino e à cidadania.
106
Outra publicação de destaque foi O Corimbo que, apesar de estar fora do centro
intelectual do país, o Rio de Janeiro, alcançou uma vida surpreendentemente longa,
foi publicado de 1884 a 1944 e, por isso, guarda “em suas páginas a produção
literária de várias gerações de escritores e escritoras”. Publicado em Porto Alegre
pelas irmãs Revocata Heloísa de Melo e Julieta de Melo Monteiro, O Corimbo teve
grande participação na mobilização das mulheres em favor do voto feminino, da
educação superior para mulheres e da profissionalização feminina. Também fora do
Rio de Janeiro, a revista A Mensageira, de São Paulo, teve visibilidade nacional
“tanto por sua ampla distribuição como pelas idéias que defendia e as escritoras que
nela colaboravam”. Dirigida por Presciliana Duarte de Almeida, apresenta a defesa
da educação superior e textos divulgando o feminismo como sua principal bandeira.
Enfim, movida por uma mesma força e mesmo idealismo, esta imprensa
terminou por criar concretamente uma legítima rede de apoio mútuo e
de intercâmbio intelectual, e por configurar-se como instrumento
indispensável para a conscientização feminina. Nas lúcidas palavras de
Dulcília Buitoni, tais jornais e revistas tornaram-se um eficaz canal de
expressão para as sufocadas vocações literárias das mulheres, tendo
exercido ainda uma função conscientizadora, catártica, psicoterápica,
pedagógica e de lazer.
107
Tendo, então, o caminho aberto por tantas publicações em defesa da educação, em
1918, Maria Lacerda de Moura publica Em torno da educação. Seguindo os mesmos
preceitos de tantas outras intelectuais do país, Lacerda de Moura acredita na
instrução como principal ferramenta para a transformação na vida da mulher.
“Escritora lúcida, inteligente e engajada”, publicou em 1924 A mulher é uma
degenerada?. Sua obra causou tanta polêmica que teve três edições e alcançou os
105
Ibid., p. 62-63.
106
Ibid., p. 83.
107
DUARTE, Constância Lima. Mulher, Mulheres: Feminismo e literatura no Brasil. Disponível em
<www.scielo.br>. Acesso em 18 agosto 2007.
50
meios letrados do país. Outra obra que gerou muita polêmica foi Virgindade inútil
novela de uma revoltada, escrita em 1922 por Ercília Nogueira Cobra. Seu objetivo
era “discutir a exploração sexual e trabalhista da mulher” e nessa mesma linha
publicou mais dois livros: Virgindade anti-higiênica Preconceitos e convenções
hipócritas, em 1924 e Virgindade inútil e anti-higiênica novela libelística contra a
sensualidade egoísta dos homens, em 1931. Diferentemente dos textos polêmicos
de Lacerda de Moura, mas também com o intuito de colaborar com a emancipação
feminina, Diva Nolf Nazário registra em seu livro Voto feminino e feminismo, de
1923, esse importante capítulo da história da mulher brasileira. Diva Nazário faz uma
seleção de inúmeros artigos sobre o tema publicados na imprensa da época e
comenta as diversas opiniões e argumentos pró e contra essa conquista feminina.
108
No campo literário, muitas escritoras, feministas ou o, usaram sua vocação em
prol de novas conquistas femininas. Em 1918, Gilka Machado publica Meu glorioso
pecado, livro de poemas eróticos que causa bastante escândalo aos seus
contemporâneos por afrontar a moral sexual patriarcal e cristã”. Poetisa talentosa,
Gilka contribuiu para a emancipação da sexualidade feminina. Três anos depois,
Rosalina Coelho Lisboa lança o livro Rito pagão, recebendo por ele o primeiro
prêmio no concurso literário da Academia Brasileira de Letras.
Diferentemente das autoras citadas até aqui que declararam abertamente seu apoio
aos movimentos feministas, temos em Rachel de Queiroz uma situação
emblemática. Apesar de sua obra figurar dentre aquelas que serviram como marco
no processo de emancipação social da mulher brasileira no século XX, a autora
nunca admitiu a legitimidade do movimento feminista. Porém, sua temática principal
é a posição que a mulher ocupa na sociedade de seu tempo, com os seus
preconceitos morais e sociais. Usava como pano de fundo os problemas geográficos
e sociais do nordeste. Suas personagens femininas são colocadas em posição de
reação contra a dependência e inferioridade da mulher, numa rebelião individual
contra o ambiente doméstico e social.
109
Seu primeiro livro, O quinze, de 1930, trata do drama dos flagelados e de várias
outras questões sociais que causaram grande impacto no público, que não estava
108
Ibid.
109
COUTINHO, Afrânio. A Literatura no Brasil, 7 ed. São Paulo: Global, 2004, v. 5, p. 279.
51
acostumado a ver personagens femininas emancipadas e em atitudes que
afrontavam a norma vigente. Conceição, protagonista desta primeira obra, era
“acostumada a pensar por si, viver isolada, criara para seu uso idéias e preconceitos
próprios, às vezes largos, às vezes ousados...”.
110
Assim como Conceição, outras
mulheres vieram nas demais obras da autora e foram usadas como agentes de
mudança, formadoras de opinião, marcos de preocupação social. Noemi, em João
Miguel; Maria Bonita na peça Lampião; a Beata, em outra peça, A Beata Maria do
Egito; Maria Moura, em O memorial de Maria Moura; as três Marias, personagens-
título que representam os vários aspectos da condição feminina em As três Marias.
Nesse romance, Raquel de Queiroz recorre à introspecção e, na voz de Maria
Augusta, relata todo o sentimento trágico da vida das três Marias, através de um
estudo psicológico envolvendo os grandes problemas humanos e a vida da
mulher.
111
Todas elas, mulheres cheias de “idéias” e ideais.
Nos efervescentes anos de 1970 e 1980, época mais forte dos movimentos
feministas, novamente reaparecem os jornais dirigidos por mulheres e para a
emancipação e valorização da mulher: Brasil Mulher (1975), Nós Mulheres (1976),
Mulherio (1981).
Na literatura da época, figuram nomes como Hilda Hist, Lygia Fagundes Telles, Lya
Luft, Ana Cristina César, Diná Silveira de Queirós, Clarice Lispector, Rose Marie
Muraro e Marina Colasanti, cuja parte da obra está sendo analisada neste trabalho.
Mulheres reais que, através de suas mulheres ficcionais, convidaram suas leitoras a
serem co-participantes da escrita de uma nova história, história real, História das
mulheres.
110
QUEIROZ, Rachel de. O Quinze. Rio de Janeiro, José Olimpyo, 1974, p. 31.
111
COUTINHO, 2004, p. 280.
52
3. UMA NOVA MULHER DAQUI PRA FRENTE
Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a
surpresa de nele caber como se o tivesse inventado.
Clarice Lispector
O final da década de 1970 apresenta um feminismo organizado e em expansão.
Neste momento, a imprensa dirigida por mulheres e para mulheres ganha nova
força. Os grupos de pesquisa sob a égide de Estudos da Mulher proliferam pelo
país. A mulher-cidadã é um projeto cada vez mais real, e a presença feminina se
instala em novos espaços: o mundo sindical, acadêmico, profissional e artístico.
Em meio a essa efervescência, a mulher, essa nova mulher, se descobre diferente,
em mutação. “Somos mutantes, mulheres em transição. Como nós não houve outras
antes. E as que vierem depois serão diferentes”.
112
Para atender às necessidades
dessa mulher que está em processo de construção de uma nova identidade, surge
na imprensa brasileira periódicos específicos para esse público feminino.
Marina Colasanti insere-se nesse mundo das letras em 1962 quando ingressa no
Jornal do Brasil, onde no caderno B desenvolve as atividades de secretária de texto,
cronista, colunista e ilustradora. Seu primeiro livro, no entanto, é de 1968 Eu
sozinha, crônicas pela Gráfica Record Editora. Enquanto trabalha em revistas,
jornais e televisão, desenvolve paixão pela escrita literária.
Começa, como vimos, pela crônica, talvez pela intimidade desenvolvida com o
gênero através de seu trabalho no jornal. Depois do primeiro livro, só volta a publicar
em 1973 Nada na manga, uma nova coletânea de suas crônicas publicadas aos
domingos no Jornal do Brasil. Outra coletânea acontecerá em 1996 com Eu sei,
mas não devia e mais tarde, em 2002, com A casa das palavras.
Em 1975 envereda pelos caminhos da ficção e publica Zooilógico, livro de contos. E
desde então passeia por variados gêneros, do ensaio aos contos de fadas. Seu
maior mero de publicações, no entanto, é na área da literatura infantil e infanto-
112
COLASANTI, 1981, p. 13.
53
juvenil, onde iniciou em 1979 com Uma idéia toda azul. Dentre seus títulos infantis
tivemos contato com Doze reis e a moça do labirinto do vento (1982), O verde brilha
no poço (1986), A mão na massa (1990) e Ana Z. onde vai você? (1993).
Apesar da grande dedicação ao blico infantil, Colasanti não deixa de lado os
artigos espaços dedicados em sua maioria à mulher e ao seu “ser-estar” no
mundo. Publica em 1984, E por falar em amor. Um livro inteiro, vinte e cinco artigos,
dedicado ao amor em suas mais variadas facetas: amor-troca, amor-egoísta, amor
que mata, amor-calado, amor não correspondido. Sua tentativa é fazer perceber as
sutis e às vezes escancaradas diferenças entre o amor-homem e o amor-mulher.
Assunto revisitado em Aqui entre nós, de 1988. De sua experiência na revista Nova
respondendo às cartas das leitoras nasceu Intimidade blica (1990), mais um de
seus livros que trata exclusivamente da condição feminina.
Marina Colasanti também escreve poesias Rota de colisão (1993), Gargantas
abertas (1998) e Poesia em quatro tempos (2005) sempre retorna aos contos
A morada do ser (1978), Penélope manda lembranças (2001), Do seu coração
partido (2005), Com certeza, tenho amor (2005), 23 histórias de um viajante (2005)
— e continua sendo presença constante em palestras, encontros e congressos
femininos.
Para este capítulo, nos interessa as publicações que fizeram parte da revista Nova,
onde Colasanti “levada por profissão... aproximada por afeto”
113
mantinha um
espaço em que dialogava com suas leitoras. Em seus ensaios jornalísticos, que a
autora denomina como sendo artigos, Colasanti tratava dos mais diversos assuntos
sobre a Nova Mulher a mulher independente e ativa —, seus
comportamentos na vida familiar, no trabalho, no amor, na amizade, no
relacionamento com os homens e com as outras mulheres, enfim, na vida
cotidiana dos tempos [que se faziam] modernos.
114
Alguns desses textos deram origem, posteriormente, a dois livros: A Nova Mulher e
Mulher Daqui pra Frente. Neste ponto do trabalho selecionamos alguns desses
ensaios para ilustrar o quanto a escrita de Marina Colasanti está ligada às lutas do
movimento feminista, suas conquistas e suas agruras.
113
COLASANTI, Marina. Em apresentação ao livro A Nova Mulher.
114
Ibid.
54
A palavra Ensaio deriva do latim exagiu(m), que significa a ação de pensar. A
autora, no entanto, classifica seus ensaios de artigos, mas não devemos estranhar
tal posição, afinal, segundo Alfredo Kazin
115
“o ensaio como uma forma literária e o
artigo, na medida em que põe ênfase nos acontecimentos hodiernos, podem e
devem ser a mesma coisa”.
E por que o ensaio? Em apresentação do livro A nova mulher, a própria autora
esclarece que seus textos figuram “um diálogo emocionado a respeito da identidade
feminina”. temos aí, neste pequeno trecho, duas características do ensaio: a
emotividade e a estrutura de um diálogo. A emotividade dá-lhe uma dimensão
humana, necessária ao ato de pensar
116
, e organizando o texto como um diálogo,
abre-se espaço para a exposição de uma seqüência de idéias que não precisam,
necessariamente, levar a conclusões.
117
O ensaio é um espaço onde o autor pode
expor suas reflexões em dois níveis de subjetividade: “a do ‘eu’ que se auto-analisa,
forcejando por conhecer-se, e do ‘eu’ que se debruça em problemas vários tendo em
vista conhecê-los a fim de conhecer-se”.
118
É este exatamente o espaço que a
autora busca para expor suas idéias comprovando-as, muitas vezes, com suas
próprias experiências.
Para a Nova mulher nada mais novo e desconhecido que a independência. E é por
que Colasanti inicia seu diálogo com suas leitoras. Leitoras mesmo, assim, no
feminino. Pois os textos deste livro voltam-se inteiramente para a mulher e seu ser-
estar no mundo. O primeiro deles, Independência, que bonita é, convoca as
mulheres a assumirem a independência conquistada. E começa de maneira
inusitada para a época, comprovando, com sua própria experiência, que é possível
conciliar casamento e independência, termos, até então, usados como opostos.
[...]
Eu ainda não estava na faculdade, e pensava nisso, em como e quando
ia sair pela vida carregando meu próprio corpinho. Mas a heroína da classe
não era eu, eram as duas noivas, que desde o início do ano exibiam
alianças e certeza no futuro [...]. Não era costume, não ficava bem uma
moça de família pensar em independência. Certo, era casar cedo e
115
Apud MOISÉS, Massaud. A criação literária. São Paulo: Cultrix, 1983, p. 228.
116
Ibid., p. 234.
117
Ibid., p. 238.
118
Ibid., p. 232.
55
definitivamente, ingressando na única profissão digna de uma mulher,
louvável carreira de esposa e mãe.
Pois é. Mas aqui estou eu hoje, esposa e mãe respeitabilíssima, e mais
profissional reconhecida na praça, com algum trabalho realizado e um
monte de trabalho pela frente, cheia de curiosidades e alegria, tranqüila
dona de meu nariz. E das noivinhas, o que foi feito? Não sei, porque nunca
mais ouvi falar delas, mas é fácil imaginar.
Por isso sorrio dos “não fica bem”, e me tranqüilizo: os hábitos, esses
hábitos, estão mudando rapidamente, e logo não haverá riachos que
cheguem para tantas mulheres darem seu grito.
119
Com esse discurso, cujo destinatário é concreto e visível,
120
a autora se aproxima do
leitor através da legitimidade que seu texto adquire pelo que Iser Wolfgang chama
de “confrontação com a nossa (do leitor) biografia. O autor somos nós, pois cada um
de nós é autor de sua biografia.”
121
Isso se deve ao fato de a autora colocar em seu
texto não apenas o desejável, o fácil, o que parece irreal. Ela passeia pelos diversos
espaços possíveis dessa tal Independência. A independência que assusta por ser
atrelada ao abandono, à solidão; a independência que trabalho, cuja
concretização depende diretamente da independência financeira; a independência
que afasta os homens, tão acostumados à mulher dependente. Mas para cada uma
dessas facetas, a autora propõe possíveis caminhos, experimenta bem ao estilo
ensaístico proposto por Afrânio Coutinho interpretar a realidade à custa de suas
próprias reações, de maneira incisiva, individual, direta.
122
[...]
Independência assusta. [...]
[...] A primeira razão é que costumamos confundir dependência com
carinho. Achamos [...] que ser independente é ser [...]. Mas
independência não é sinônimo de solidão, muito menos de abandono. Uma
pessoa independente não é monobloco, auto-suficiente vinte e quatro horas
por dia. Pode, e deve, precisar dos outros, recorrer aos outros. O que não
deve é confundir necessidade de carinho com necessidade de babá. [...]
[...]
Independência é uma forma da gente se colocar em relação à vida, que
abrange a totalidade de nossas ações. E que independe do estado civil.
Pode-se, portanto (e como é bom!), ser independente e ser casada, ou ser
independente e morar com um rapaz, ou até ser independente e morar com
119
COLASANTI, 1980.
120
WOLFGANG, Iser e JAUSS, Hans Robert. A Literatura e o leitor: textos de estética da recepção.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002, p. 9.
121
Ibid., p. 82.
122
COUTINHO, 2004, p. 118.
56
os pais. Pois independência é a condição de não depender, de não ser
tutelada, de ser dona das próprias decisões, de ser autônoma.
E temos que enfrentar uma conversinha argentária. [...] sem
independência econômica não existe independência.
[...]
Um salário, portanto, ou uma qualquer habilidade que nos permita ganhar
dinheiro, são os primeiros requisitos para dar entrada nos papéis da
independência. Pois é a partir daí que tudo pode mudar.
[...]
Alguns dizem que homem se assusta com mulher independente porque
teme a concorrência. Mas se um homem teme a concorrência, seja ela de
quem for, é sinal de que está inseguro em relação a si próprio. [...]
Outros dizem que homem não gosta de mulher independente justamente
por sua independência [...]. Estes prefeririam uma coisinha mais submissa
[...].
[...]
Então, se são esses os homens que a nossa independência assusta, viva a
independência! Não só ela é boa, eletrizante, enriquecedora, como é uma
fantástica peneira, encarregada de uma triagem que já afasta do nosso
caminho grande parte dos homens que não nos serviriam.
[...]
Como um camelô, venho vida afora apregoando este produto, tentando
mostrar que a independência é o único verdadeiro regulador da mulher.
Tenho, para convencer, um modesto mostruário dos resultados: eu mesma.
E ofereço em garantia minha comprovada satisfação. Mas ao contrário de
um camelô, não tenho o produto para vender. Tenho, sim, a alvissareira
notícia de que ele é acessível, nacional, e está bem ao alcance de cada
uma, escondido na manga à espera de ser solicitado.
123
Para Iser, “a única função social reconhecida para o texto literário é a de questionar
o saber prévio do leitor”.
124
E isso é o que a autora faz, paulatinamente, citando
exemplos bem próximos do cotidiano de suas leitoras e, ao mesmo tempo,
derrubando tabus, incitando reflexões, apontando possíveis caminhos. Desta forma,
seu texto cumpre a função formulada por Hans Robert Jauss em sua estética da
recepção. Função que, de acordo com ele,
precisa ser determinada pelo menos duas vezes; a primeira, como alteração
do conhecimento de seus receptores, intencionalmente pelo autor; a
123
COLASANTI, 1980, p. 11.
124
WOLFGANG e JAUSS, 2002, p. 29.
57
seguinte, como alterações buscadas e realizadas pelos receptores quanto a
seu próprio conhecimento.
125
Quando escolhe para si a figura de um camelô, Marina Colasanti expõe para suas
leitoras suas próprias reações e ações diante do conhecimento recebido
previamente, da sua intimidade com a independência da qual ela fala.
E falar de independência para a mulher que está impregnada com o paradigma da
figura tripartida de mulher/mãe/esposa tão intrínseco no seu “eu” o é
tarefa fácil, nem tampouco admirada por muitos. Até mesmo as mulheres para quem
a autora se dirige não estão totalmente afeitas às mudanças provocadas pelo
feminismo, que mesmo no auge de sua organização ainda encontrava resistência
naquelas a quem buscava defender. Tal resistência influi diretamente na interação
texto e leitor, pois “quanto mais preso esteja o leitor a uma posição ideológica, tanto
menos inclinado estará para aceitar a estrutura básica de compreensão do tema e
horizonte”
126
que regula essa interação.
A autora, ciente dessa situação, busca, em outro texto, aproximar-se ainda mais de
suas leitoras identificando-se agora com a mulher/mãe. E vai direto ao ponto, sem
preâmbulos. O título diz tudo: Mãe que trabalha não precisa ter filho problema,
não. Seguindo o mesmo estilo do texto anterior, a autora se mostra como a
mulher/mãe que ocupa um lugar diferente. Além de mulher e mãe é também
escritora, enfim, é “uma mãe que trabalha”.
127
Marina começa seu texto analisando o discurso contraditório de uma sociedade que,
embora necessite e desfrute da mão-de-obra feminina, mantém uma “velada
repreensão” à mulher que “abandona” os filhos para trabalhar fora. Em
contrapartida, ao mesmo tempo em que critica esse discurso contraditório, a autora
faz uma análise fenomenológica do tema. Ou seja, busca entender esse
comportamento através do quadro referencial no qual os indivíduos que compõem
essa sociedade interpretam seus pensamentos, sentimentos e ações.
128
Afinal, “o
125
Ibid., p. 195.
126
Ibid., p. 129.
127
COLASANTI, 1980, p. 117.
128
RICHE, Rosa Maria Cuba. In O feminino na Literatura Infantil e Juvenil Brasileira: poder, desejo e
memória. Suplemento FNLIJ Reflexões sobre leitura e literatura infantil e juvenil. Fascículo 1 de
11/1997.
58
ser do feminino recebeu desde sempre sua definição canônica na maternidade.”
129
Nietzche afirma que por sua natureza as mulheres são seres destinados e mais
adequados “para sua primeira e última missão, que é a de colocar no mundo filhos
sãos.”
130
Não foi impunemente que ouvi as vozes acusatórias. Elas ecoam nos meus
ouvidos desde o nascimento, e desde sempre fazem parte do meu
conhecimento de mundo. Eu, mulher, fui criada por mulheres, às quais não
era permitida outra opção que não a maternidade. Minhas avós nem
sonhavam em trabalhar, minha mãe abandonou a faculdade com a primeira
gravidez. E embora nem umas nem outra me doutrinassem para a vida do
lar, estava subentendido que esse seria o meu destino.
131
E novamente, numa aproximação com a leitora, a escritora relata sua experiência
pessoal em relação à maternidade. A decisão tão difícil para a época de ter
filhos e continuar trabalhando fora, as adaptações possíveis e necessárias para
conciliar a vida de mãe e jornalista, as dúvidas e medos em relação às escolhas que
se mostravam imprescindíveis; e tantos outros entraves que iam aparecendo na
concretude da vida. Para cada um deles encontrou-se uma solução. Soluções que
não vêm prontas, são individuais. E para suscitar a motivação para essa descoberta
individual, Marina Colasanti lança mão da auto-reflexão. Questiona, perturba, busca
a inquietação.
Que mãe seria eu se tivesse largado o trabalho em favor das crianças?
Tenho me feito essa pergunta, de vez em quando, ao longo dos anos,
quando o peso da sociedade acusadora se faz mais forte, ou quando eu
própria, enfraquecida por algum motivo, me questiono sobre o valor real de
tanto sacrifício.
[...]
Me vejo então empobrecida. Sem trabalho, tenho certeza, eu seria um ser
humano mais pobre. Não apenas pelo estado de dependência econômica
em que isso me colocaria e a dependência é sempre empobrecedora ,
como pela ausência de tantos dados que acumulei movida por uma
necessidade profissional, pela falta de uma visão que me foi dada no
contato diário com um trabalho de informação. Eu teria adquirido outros
dados, é evidente, mesmo ficando em casa com as meninas. Mas seria
apenas justo que grande parte desses dados, senão a maioria, fosse
relativo a elas, à casa, ao pequeno mundo doméstico em que eu estivesse
contida.
129
POMMIER, Gerard. A exceção feminina: os impasses do gozo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987.
130
NIETZCHE, Friedrich. Além do bem e do mal ou o prelúdio de uma filosofia do futuro. São Paulo:
Hemus, 1997.
131
COLASANTI, 1980, p. 117.
59
E sendo eu tão mais pobre, que educação poderia transmitir às minhas
filhas?
132
Quebrar uma idéia cristalizada tanto tempo, e repetida por tantos
insistentemente, não é tarefa fácil, e Colasanti sabe, por experiência própria, que é
necessário comprovar o que se diz. Daí a necessidade de ilustrar com situações
concretas as mudanças possíveis que propõe às suas leitoras.
Dando continuidade ao seu percurso pelas diferentes facetas/possibilidades da
mulher, fala agora da mulher/esposa. E nada mais imperativo para quem ocupa este
lugar que o ato de ceder. Esta complicada história de ter de fazer concessões fala,
como o próprio título antecipa, da necessidade/imposição de ceder que
acompanha a mulher desde sempre. Logo de início, percebe-se que o foco principal
recai sobre a mulher/esposa.
Desde pequena, o aprendizado: “Minha filha, deixe essas brincadeiras para
os meninos, você é mais ajuizada”. E a longa doutrinação. A mulher devia
conceder-se ao marido, embora o desagradável do sexo. Devia tolerar as
traições, embora a humilhação. Devia suportar-lhe a arrogância, embora a
revolta. Era papel da esposa ceder e emoldar-se para proteger o
casamento”.
133
O texto de Colasanti nos remete às palavras de Rousseau, que acreditava que a
mulher deveria ser educada para tornar agradável a vida do homem.
134
O texto data
de 1980, no final do século XX, e mesmo assim é possível detectar o quão longe
os valores disseminados pelas sociedades patriarcais conseguem chegar.
muito a mulher concede. Concede a honra dessa valsa, concede a mão
em casamento. No papel passivo em que se viu trancafiada pela sociedade,
a concessão foi o que lhe restou. Concedendo, fingia dar aquilo que, de
qualquer forma, lhe seria tomado. Submissa, brincava de generosa, de
altaneira.
135
Diferentemente dos textos analisados anteriormente, neste, Marina Colasanti não
fala de sua experiência com o casamento. Para ilustrar suas reflexões cria situações
hipotéticas em que muitas de suas leitoras poderão se reconhecer.
Maria quer ir ao cinema. João não quer. João está cansado do trabalho.
Maria também está cansada do trabalho. Mas o trabalho de Maria é
doméstico, ela não saiu de casa o dia todo, lavou, passou, cuidou das
132
Ibid., p. 120.
133
Ibid., p. 175.
134
Cf. primeiro capítulo deste trabalho.
135
COLASANTI, 1980, p. 175.
60
crianças, cozinhou. ouviu voz de rádio e televisão. Falar, não falou com
ninguém. João falou, mexeu-se, andou pela rua. Quer sossego, enquanto
Maria quer movimento. Quem deve ceder?
O comum é Maria ceder. Por quê? Porque o trabalho de João rende
dinheiro no fim do mês e, por isso, é considerado mais importante. Porque
estabeleceu-se que o trabalho de João é mais cansativo. Porque a própria
Maria, sustentada por João, sente-se culpada e tende a favorecê-lo, a
“pagar” de alguma forma por aquele dinheiro que gasta na compra de todo
mês.
Mas Maria gosta de ceder? Ela não escolheu o trabalho doméstico. Apenas
soube, desde sempre, que ele lhe caberia. Ela não escolheu ser sustentada.
Apenas aceitou, desde sempre, que seu trabalho não fosse remunerado,
apesar de ser, ele também, um trabalho indispensável à família e à
comunidade. Ela não pediu para ficar em casa, simplesmente foi posta
ali.
136
Junto com o reconhecimento deve vir a reflexão. E a autora, estrategicamente,
mostra mais adiante que o ato de ceder pode ser entendido como algo negativo visto
sob a ótica do marido, principal preocupação das mulheres “doutrinadas para servir”.
Antônio casou com Wilma. Ela era jovem, esfuziante, bonita. Antônio
gostou dela e por isso a escolheu. Mas Wilma havia sido bem doutrinada:
postas as alianças, começou a se amoldar a Antônio. fazia as comidas
de que Antônio gostava, só vestia as roupas que Antônio escolhia, só
expressava opiniões gêmeas das de Antônio. Mas era com Wilma que se
havia casado e com Wilma queria viver. Então começou a exigir Wilma.
Reclamava das comidas, e ela, humilde, providenciava outras; reclamava
das roupas, e ela dócil, trocava; reclamava das opiniões dela, tão iguais às
dele, e ela, triste, se calava.
[...]
Wilma era uma “santa mulher”. Mas o caso era que Antônio não queria uma
“santa”. Queria apenas uma mulher, de preferência, aquela com quem havia
se casado.
137
Esta visão inusitada de uma situação tão comum tem o mérito de instigar a reflexão.
Com isso, pode-se dizer que a autora procura incutir em suas leitoras o germe da
inquietação capaz de levá-las a “recriar as relações interpessoais sob um prisma
onde o feminino não seja o menos, o desvalorizado”.
138
Nesses escritos vêem-se ecoando insistentemente as idéias de Simone de Beauvoir
que aponta o feminino e o masculino como criações culturais. Colasanti sempre
retorna ao processo de socialização no qual a mulher foi condicionada a cumprir
136
Ibid., p. 176.
137
Ibid., p. 177.
138
ALVES e PITANGUY, 1981, p. 9.
61
papéis sociais específicos. É possível detectar nos textos, traços da mais
importante, e talvez menos aparente conquista do movimento feminista: a
semente de questionamento e reivindicação que surge na consciência das
mulheres que, vivendo anonimamente o seu cotidiano, vem tentando
transformá-lo e recriar sua relação com o mundo, com os companheiros,
com os filhos, consigo mesmas.
139
Mas é em Mulher, meu bem querer que Marina mostra de maneira mais direta sua
ligação com o movimento feminista.
Fim da década dos anos 70. Olho as minhas mãos no teclado da máquina,
e percebo restos de massa ao redor das unhas. Massa de ravióli, que
acabei de fazer porque hoje tenho convidados para jantar. Mas agora aqui
sentada devo, quero, escrever um artigo sobre a posição da mulher ao
término destes dez anos de pequenos e grandes avanços feministas.
A resposta, eu sei, está nas minhas mãos, cheirando a pão como as da
minha avó e batendo rápidas nas teclas como as das minhas jovens irmãs.
Pois o sou eu, ambígua e perplexa, dividida entre a farinha que se estala
sobre a mesa limpa e as limpas folhas que esperam reflexões, não sou eu
uma entre tantas, uma como todas, mulher?
140
“Ambígua e perplexa”, Marina avalia os dez anos do movimento feminista e das
mudanças efetivas que ele alcançou. Mas se posiciona em um ponto de onde é
possível tocar o passado e viver as conquistas do presente.
Ambígua por se ver feminina e feminista. Perplexa por perceber que existe uma
ausência que une as mulheres entre tantas diferenças. Desta ausência sabemos
um pouco mais à frente, quando a autora nos fala das prostitutas de Amsterdam que
se exibem nas vitrines para que os clientes possam “refletir sobre a conveniência, ou
não, de adquirir a mercadoria”.
141
Turista a trabalho, Colasanti deseja entrevistar a
mulher da vitrine. E é aí que percebe a armadilha de seu raciocínio, que mesmo
aguçado para a condição da opressão feminina não pensou em entrevistar o homem
que se farta da “mercadoria”.
[...] Como a moça de Amsterdam, me vejo na vitrine da vida esperando que
os homens me digam o que fazer. E como ela, embora consciente e
rebelde, jogo freqüentemente de acordo com as leis que me ditam, passiva
139
Ibid., p. 70.
140
COLASANTI, 1980, p. 187.
141
Ibid.
62
tantas vezes sem saber, mercadoria enquadrada em ferozes leis de
consumo.
142
A ausência da qual nos fala a autora é a falta de uma história. Uma história de
séculos, milênios, como o é a história do homem. Não do homem significando a
humanidade, idéia com a qual temos larga intimidade. E sim o homem
representante do sexo masculino, e por isso mesmo investido de poder. Poder
hereditário, passado de pai para filho e, principalmente, de mãe para filha.
Ironicamente a mulher foi peça fundamental para a manutenção desse poder
patriarcal tão enfaticamente pregado que se tornou uma armadilha difícil de
desfazer.
Entretanto, burlando os caminhos pelos quais seu pensamento a levou, Marina
Colasanti se volta para outra mulher. Uma feminista que, em Roma, lidera um grupo
de mulheres. Feminista radical, “quer trucidar a sociedade, a começar pelos
homens, quer tomar o poder, atear fogo às estruturas. Escheia de verdades, certa
de ter descoberto a resposta da vida. E marchando no exército das revolucionárias
dos anos 70 se fortalece”.
143
Colasanti, no entanto, sabe que a verdade se forma com muitas verdades. E
estrategicamente, levada ao sabor das emoções e do saber, nos leva a outras
mulheres, com verdades multifacetadas. A mulher turca emigrada na Alemanha que,
apesar do desconforto do calor, cobre seu corpo com “a couraça multicolorida das
roupas”
144
para reservar seu corpo apenas para os olhares de seu marido. A jovem
mãe na praia de Ipanema que se despe para dourar o corpo que, à noite, oferecerá
a todos os olhares em exibição coletiva nas discotecas.
Umas e outras, não o donas ainda do seu corpo. Sabem escondê-lo ou
enfeitá-lo para o uso dos homens, mas recentemente lhes foi dito que
elas também poderiam usá-lo para seu próprio prazer. O orgasmo é livre,
lhes disseram. E mais, é obrigatório. Mas o que é o orgasmo? [...] E
debruçadas ao mesmo tempo sobre seu corpo e sobre livros, revistas,
142
Ibid., p. 188.
143
Ibid., p. 189.
144
Ibid.
63
filmes, procuram aflitas uma coincidência de sensações, uma superposição
de modelos, tentando, mais uma vez, obedecer.
145
Perplexas ficamos também nós, leitoras, e aqui me incluo abertamente, que
procuramos no texto de uma autora feminista a certeza de que as lutas do
movimento feminista deram frutos e que tais frutos poderiam e deveriam ser colhidos
e saboreados. Mas o estilo ensaístico de Marina Colasanti é impregnado de
inquietações. E nada mais perturbador para o leitor do que encontrar no texto
justamente aquilo que não esperava encontrar, o inusitado.
Eu te procurei, mulher, contemporânea minha destes anos 70, na Porno-
shop da Ohe Strasse, na Alemanha. A loja fica na rua principal da cidade,
junto à butique mais elegante, à livraria mais sofisticada, nem ninguém se
espanta, passando diante da vitrine, de ver os manequins seminus nas
roupas pretas dos sado masoquistas. Manequins de mulher. Mas você,
dentro, onde estava? Eu, mulher do meu tempo, supostamente liberada,
entrei para ver o que encontrava de mim, ou das minhas semelhantes. E caí
no século dezoito. Nenhuma mulher dentro, excitando-se com filminhos,
comprando implementos. Apenas vendedoras que me olhavam com
evidente desagrado, e a massa monótona daqueles homens silenciosos,
evitando encarar-se, procurando entre as caixinhas de rótulos discretos
como quem escolhe remédios homeopáticos.
Em plena revolução sexual, aquele era um recinto tacitamente proibido às
mulheres. E eu não encontrei ali nenhum eco daquelas palavras de ordem
que nestes últimos dez anos nos esforçamos tanto para fazer passar,
palavras de igualdade, de abertura, de busca do prazer. Encontrei somente
a velha mulher objeto tão conhecida nossa, de glúteos redondos e
empinados, seios redondos e empinados, empinada toda e exposta, para
uso e abuso.
146
Em sua avaliação sobre as conquistas do feminismo, Marina Colasanti esbarra no
velho estigma da repressão sexual.
Considerada por Marilena Chauí como “um conjunto de interdições, permissões,
normas, valores, regras estabelecidos histórico e culturalmente para controlar o
exercício da sexualidade”,
147
é possível perceber em vários trechos o paradoxo
repressão/liberação sexual, tão apregoada nos anos 70. A loja a que se refere, a
Porno-shop, “fica na rua principal da cidade, junto à butique mais elegante, à livraria
mais sofisticada”; e o que é mais importante, “ninguém se espanta, passando diante
da vitrine, de ver os manequins seminus”. Mas ao entrar na loja, eis o paradoxo. “Eu,
145
Ibid., p. 190.
146
Ibid.
147
CHAUÍ, Marilena. Repressão Sexual: essa nossa (des)conhecida. São Paulo: Brasiliense, 1987, p.
9.
64
mulher do meu tempo, supostamente liberada, entrei para ver o que encontrava de
mim, ou das minhas semelhantes. E caí no século dezoito”.
Mais adiante, novos paradoxos. “Na Rádio Luxemburgo, uma mulher responde a
cartas e telefonemas de outras mulheres, e falando [sic] com uma dirige-se a todas”.
Uma dessas mulheres era martinicana, e buscava orientação para seu problema:
“Não tinha prazer com o marido [...]. Jovem ainda, havia sido deflorada pelo irmão,
possuída por ele várias vezes. Não dissera a ninguém.Por tudo isso, “o ato sexual
lhe era doloroso”. A conselheira sugere uma consulta ao ginecologista. E nesse
momento tem-se um claro exemplo do quanto a repressão sexual exerceu e ainda
exerce poder sobre as mulheres em várias culturas. “[...] eu não posso ir a um
médico desses. Na Martinica as mulheres não vão ao médico para essas coisas”.
Buscando ajudá-la, a conselheira ainda insiste, e oferece a possibilidade de
encontrar uma ginecologista martinicana, e descobre que tal oferecimento é uma
afronta, pois “uma médica martinicana melhor do que ninguém saberia que isso
estava errado, que na Martinica não se faz; e ela, martinicana descente, não poderia
fazê-lo”.
Vemos aí, que “as proibições e permissões são interiorizadas pela consciência
individual”
148
e que, no caso da martinicana, foi aplicada o que costuma-se
denominar de “repressão perfeita”.
A repressão perfeita é aquela que não é mais percebida como tal devido à forte
interiorização dos códigos de permissão e proibição impostos pela sociedade. Ou
seja, a repressão não é mais imposta “de fora”, e passa a ser uma auto-repressão,
concretizando, assim, a forma mais poderosa de repressão: fazer com que a vítima
se aposse de todos os sentimentos que deveriam ser do repressor o medo, o
ressentimento, a vergonha.
149
Marina entende a situação, não julga, não condena, apenas conclui: “Era
martinicana antes de ser simplesmente mulher”.
E assim, falando de situações tão diversas, mostrando mulheres de variadas
culturas, a autora demonstra que, na verdade, após esses dez anos de lutas, o
148
Ibid.
149
Ibid., p. 13.
65
feminismo não é algo acabado e que as mulheres a quem esse feminismo buscou
ajudar não podem ser reduzidas a uma “espécie”. Não existe apenas uma maneira
de ser mulher. Portanto, não é possível também que todas as mulheres respondam
de uma maneira a todas as mudanças provocadas por esse movimento. As
mulheres envolvidas nesse processo, passiva ou ativamente, ocupam agora um
novo espaço. Marina Colasanti se coloca nessa posição intermediária, em
movimento, em construção. Às mulheres que caminham à frente, ela dedica seu
esforço, mas àquelas que ainda não sabem quem são, ou não têm coragem de
soltar as amarras, ela dedica seu amor.
E é esse amor, provavelmente, que leva a autora a publicar uma nova seleção de
artigos que, segundo ela, se voltam para as mulheres de “formação burguesa” que
“se interrogam sobre sua posição no mundo, sua essência de mulher, e procuram
novos ângulos de visão”.
150
Essa nova mulher, ou novas mulheres como foi explicitado anteriormente, diante
das mudanças ocorridas precisam agora descobrir como será o ser Mulher daqui pra
frente.
no prefácio, a autora repete a estratégia usada no livro anterior: se dirige a um
interlocutor, ou melhor, a uma interlocutora concreta.
[...] Este livro é feito de uma presença e uma ausência. Presença de
mulheres semelhantes a mim, de formação burguesa, que neste momento
se interrogam sobre sua posição no mundo, sua essência de ser mulher, e
procuram novos ângulos de visão.
151
Mas a ausência das “outras” mulheres é justificada.
[...] O que ocorre é injunção profissional, dever de atendimento ao público
ao qual minha revista se dirige. E também uma natural inclinação para tratar
daquilo que melhor conheço.
E reafirmando seu estilo ensaístico Marina Colasanti conclui seu prefácio com um
pedido:
150
COLASANTI, 1981, p. 11.
151
Ibid.
66
Que este livro não seja visto, pois, como uma pretensão totalizadora.
Mulher, vou escrevendo meu caminho. Um caminho que, para todas nós, é
daqui pra frente.
152
Enquanto A nova mulher necessitava de uma maior intimidade com a independência
conquistada, Daqui pra frente seria premente livrar-se da culpa. Pois, la estructura
supramosaica [...] siempre le reservaban el eterno papel de culpable (culpable de
todo, hiciera lo que hiciera: culpable de tener deseos, de no tenerlos; de ser frígida,
de ser ‘demasiado’ caliente; de no ser las dos cosas a la vez; de ser demasiado
madre y no lo suficiente; de tener hijos y de no tenerlos; de amamantarlos y de no
amamantarlos...) [...]”.
153
Chega essa culpa pra , citado algumas vezes neste trabalho, toca num ponto
essencial: a auto-punição que por vezes impede a mulher de seguir adiante. É
desnecessário retomar toda a discussão sobre as origens e os motivos dessa auto-
punição já tratados em alguns dos textos analisados até aqui. Nos deteremos, então,
na situação utilizada pela autora para desenvolver seu raciocínio acerca do ser
Mulher daqui pra frente.
No Canadá, num Instituto ligado à educação, ocorria uma importantíssima
reunião. [...] De repente, no acarpetado silêncio em que se tomam as
grandes decisões, explodiu alto, inesperado, o choro de um bebê. Espanto.
Levantam-se os componentes da mesa. [...] Naquele lugar, por tão
improvável, o choro causava espanto. E foram todos procurar a fonte de
tanto estrépito. Fonte que logo foi encontrada, bebê rechonchudo, deitado
em seu moisés, ao lado de uma funcionária.
O diálogo que se seguiu eu não ouvi, mas posso imaginar.
D. Fulana deve ter perguntado indignada alguma chefe —, o que
significa isso?
— Isso significa um bebê. Meu filho.
— Mas o que ele está fazendo aqui?
— Está chorando, como a senhora pode ver.
E por que chorava ali o filho da funcionária? Porque tinha dor de ouvido. E
ela, a mãe, não podia deixar o filho doente na creche. Não tinha com quem
deixar em casa. Não tinha com quem deixar fora de casa. Não tinha direito
de faltar ao trabalho por doença de filho. Então tinha resolvido o problema
da única maneira possível, trazendo o filho para o escritório.
152
Ibid., p. 12.
153
CIXOUS, 1995, p. 61-62.
67
A funcionária canadense era uma mutante, e tinha achado uma solução
mutante para seu problema.
Como agiria a maioria das outras mulheres em situação semelhante?
Telefonando para uma amiga e pedindo para tomar conta do bebê. Levando
o bebê para a casa da vizinha e até pagando para ela ficar com a criança.
Faltando ao trabalho e sendo descontada por isso. Ou seja, todas soluções
individuais que, de uma forma ou de outra, a deixariam em culpa.
154
Transformar em coletivo um problema individual é a base do movimento feminista.
155
Se pensarmos que o livro foi publicado em 1981, ano em que grupos de reflexão se
fortaleceram por todo o país, podemos caracterizar o texto de Marina Colasanti
como mais uma via de discussão. Lido em tempos atuais poderia parecer, à primeira
vista, uma discussão desnecessária, porém, se reconstruirmos o horizonte de
expectativa sob o qual o texto foi escrito e retomarmos as questões para as quais
constitui uma resposta,
156
veremos que ele cumpre o papel proposto pela própria
autora: a busca de novos ângulos de visão sobre a nova situação da mulher.
Vem, entretanto, à minha memória, uma outra situação, presenciada por mim e
algumas amigas recentemente, em um restaurante que freqüentamos regularmente.
A funcionária que sempre nos atendia estava muito distraída, cometeu alguns erros
em nossos pedidos, o que nos chamou atenção. Questionada, em tom de
brincadeira, do por que da distração, respondeu-nos que seu filho de três anos
estava internado. Mesmo amparada por lei para acompanhar o filho, ela estava
cumprindo seu horário de trabalho. E a explicação foi simples: “ali não se podia
faltar”.
Duas situações tão distantes no tempo e no espaço, e, no entanto, tão próximas.
Talvez seja por isso que ainda hoje nos propomos a repetir os mesmos caminhos
usados pelas mulheres no início do movimento feminista: utilizar a literatura como
via possível de uma reflexão que hodiernamente se faz necessária.
Abandonando nossas digressões não literárias, retornemos ao texto. Marina, nesse
e em vários outros ensaios, retoma insistentemente os motivos originários das
reações das mulheres diante das novas situações.
154
COLASANTI, 1981, p. 15 e 16.
155
ALVES e PITANGUY, 1981, p. 67.
156
JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação a teoria literária. São Paulo: Ática,
1994.
68
[...] colocadas diante de situações novas, tentamos resolvê-las à velha
maneira.
Não por falta de imaginação. Mas pela força da formação.
Educadas dentro dos antigos moldes, fomos por eles colocadas numa
direção. É de pequenino que se torce o pepino. E quando o pepino, já
grande, resolveu tomar seus próprios rumos, viu que pelo menos uma parte
do feitio estava determinada. E era difícil fugir dele.
157
Vemos nessa insistência, talvez, a maneira encontrada pela autora de impingir em
suas leitoras uma premente necessidade de mudança de uma ideologia. E aqui
pensamos a ideologia nas palavras de Barthes: “Pois a ideologia é o quê? É
precisamente a idéia enquanto ela domina [...].”
158
Talvez, e somente talvez pois
é impossível precisar os reais sentidos originários dados pelo autor Marina
Colasanti tenha entendido que por tanto tempo a identidade feminina foi “modelada”
pelo olhar masculino que, mesmo sendo a mulher a principal responsável pela
educação dos filhos, ela mantém a “idéia que domina” voltada contra si própria. E
usamos a ideologia no sentido proposto por Althusser: “esse sistema de crenças e
suposições inconscientes, não examinadas, invisíveis que representam a
relação imaginária dos indivíduos com sua condição real de existência (grifos
nossos)”.
159
Sendo a ideologia constituída de crenças inconscientes, não examinadas e
invisíveis, e tendo o movimento feminista o objetivo de mudar algumas dessas
crenças que vinculam a mulher à subordinação, podemos encontrar nos textos de
Marina Colasanti uma vontade de trazer à consciência tais crenças para examiná-las
e torná-las visíveis.
[...] Se, a cada vez em que a incerteza aponta, a jogarmos para a frente, a
passarmos adiante, outros serão obrigados a participar dela, a fazê-la sua.
Como no caso do bebê canadense. Os problemas, esses problemas todos
que nós sofremos, até mesmo envergonhadas de sofrê-los, não o
pessoais. São coletivos. E cabe à coletividade resolvê-los.
160
E se tal objetivo tácito afasta seu texto da literatura, podemos reportar-nos a
Massaud Moisés, que caracteriza o ensaio como sendo “obra literária como texto,
157
COLASANTI, 1981, p. 16.
158
BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 1996.
159
BEAUSTEGUIGOITIA in FE, 1999, p. 27.
160
COLASANTI, op. cit., p. 19, nota 25.
69
mas autônoma (não-literária), como execução [...].”
161
Ainda apoiando-nos nas idéias
desse autor, pousamos nosso olhar em outro texto, Meu marido não deixa, sobre o
qual citamos algumas passagens. Massaud Moisés no ensaio um texto que
pressupõe o amadurecimento de certas convicções. Segundo ele, esse tipo de texto
é usado não para informar, e sim para formar opiniões. No ensaio o autor utiliza-se
da pessoalidade para assinalar suas reflexões numa “reavaliação inconformista das
idéias feitas”.
162
Na ginástica, no trabalho, nos jantares, pingada com naturalidade no meio
das conversas, ouço com freqüência esta frase: “Meu marido não deixa”. E
com naturalidade quase surda eu a ouvi durante muito tempo sem
questioná-la, assim como a ouve e vive a quase totalidade das mulheres.
Mas um momento em que a gente ouve”, e se espanta, um momento
em que finalmente entende o que está sendo dito.
163
É bem certo que, como disse Teresa de Lauretis,
164
homens e mulheres são
constituídos socialmente pelo fato de cada um possuir uma história pessoal e social
permeada de “identificações prévias” pelas quais cada um é inserido em seu sexo.
Daí, a recorrente análise de Marina Colasanti sobre essas “identificações prévias”
que tão bem enclausuraram a mulher numa posição de inferioridade, de propriedade
perante a fala masculina. E por que a fala do marido tem tanto poder? Temos para
esse questionamento respostas históricas, filosóficas, sociológicas, etc., mas nos
apoiamos em Foucault, neste momento, para dar luz às nossas interpretações.
[...] por ser o local da associação entre o poder e o conhecimento, [o
discurso] vai alterar sua forma e sua relevância dependendo de quem es
falando, da posição de poder dessa pessoa e do contexto institucional em
que o falante esteja situado.
165
Numa sociedade patriarcal o poder está nas mãos do homem, seja ele o chefe, o pai
ou o marido. Sua situação será, então, privilegiada, privilegiando também seu
discurso. Afinal, quando o homem diz
Não quero que você faça aquilo, es na verdade dizendo eu quero que
você viva de acordo com as minhas vontades; você me pertence como um
161
MOISÉS, 1983, p. 221.
162
Ibid., p. 229.
163
COLASANTI, 1981, p. 81.
164
Apud HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo. Rio de Janeiro: Imago, 1991, p. 206.
165
Ibid., p. 235.
70
objeto pertence ao seu dono; eu sou o opressor e estou lhe oprimindo
porque seu é o papel do oprimido.
166
Mas o que a mulher ouve são aquelas frases agradáveis que ajudaram a disfarçar a
verdade por tanto tempo. Ouve o que lhe foi ensinado ouvir desde sempre.
Eu sou seu dono, porque dono do seu amor; e como tal sou seu protetor; eu
sou mais forte e sábio do que você, e como tal sei melhor do que você o
que lhe convém; eu sou o chefe da família, o responsável, e como tal cabe
a mim tomar as decisões.
167
Podemos perceber nessa “explicação”, o que Eagleton denomina de “ideologia
sexual”, ou seja,
as maneiras pelas quais os homens e mulheres se concebem e concebem o
outro em uma sociedade dominada pelos homens, de percepções e
comportamentos que vão da brutalidade explícita à brutalidade
profundamente inconsciente.
168
A mulher, cumprindo o papel social que lhe foi destinado é também co-autora na
construção desse papel social. É levada e, ao mesmo tempo, se deixa levar pelas
percepções construídas sobre o “ser mulher”.
A solução encontrada pela autora para mudar essa percepção engendrada sócio e
historicamente acaba repetindo o jogo masculino de poder.
Detectar a eventual insegurança do marido significa ter na mão um
elemento muito importante. Não para usá-lo como arma agressiva, atirando-
o ao rosto dele em tom de acusação e insulto. Mas para conviver com ela
reconhecidamente, trabalhando com delicadeza até torná-la visível e aceita.
[...]
O que importa é ajudá-lo a fortalecer seu ego e a solidificar a relação [...].
169
Ora, quando o homem utiliza-se de palavras melífluas para dar à mulher a
segurança de estar protegida não está ele também fortalecendo o ego feminino? Ao
incutir na mulher que o papel de mãe e esposa a torna “perfeita” e “imaculada” não
está o patriarcado insuflando o ego feminino para usá-lo mais tarde em causa
própria?
166
COLASANTI, 1981 p. 84 e 85.
167
Ibid., p. 85.
168
EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 205.
169
COLASANTI, op. cit., p. 86 e 87, nota 25.
71
A diferença nesse jogo de poder é que, enquanto os homens “se vêem geralmente
apoiados pelo resto da família, pais e mães que criados dentro dos velhos padrões
defendem ferrenhamente sua validade”,
170
a mulher não pode contar com esse
contingente extra. Deve contar apenas com sua própria habilidade de avançar e
recuar no momento oportuno para concretizar, gradualmente, as conquistas nas
quais acredita. E esse acreditar deve vir impregnado de muitas outras contingências,
pois na falta de uma história passada na qual se apoiar, resta à mulher lançar sobre
o futuro suas expectativas. Podemos deduzir que seja esse também o pensamento
da autora, já que encerra seu livro com um ensaio intitulado Daqui pra frente.
“Eu estou livre, e acho um saco. Eu quero um homem.”
Escândalo. Quem, em plena década de 80, ousa fazer uma afirmação
dessas? Será que não ouviu falar em feminismo, libertação, independência?
Mas em que mundo, afinal, vive essa mulher?
Em Paris, França, para sermos mais precisos. E ainda acrescenta: “O
homem, a vida a dois, são indispensáveis para uma mulher. As mulheres
desejam um homem a seu lado. E será sempre assim.” Categórica, assina
embaixo: Annie Girardot.
171
Eu gosto disso. Do que é dito, e de quem o diz.
172
Nesse ensaio a autora novamente põe em foco uma breve avaliação sobre as
conquistas do movimento feminista e o que efetivamente mudou, após o movimento,
na relação homem/mulher. Pelo exposto no primeiro parágrafo, não nos parece que
a autora sinta-se com motivos para comemorar.
Falência do feminismo, uiva em deleite a classe conservadora.
Dependência do macho, bufa taurina a ala masculina. E todo mundo toca a
pesquisar, a perguntar, será que a tal revolução da mulher não deu certo?
Será que acabou?
173
Para responder a tais questionamentos, Marina Colasanti refaz, de maneira bem
pessoal, o caminho percorrido pelo movimento feminista. Tudo começa com uma
constatação: a mulher não é igual ao homem. Para confirmar essa constatação
lançou-se mão das diferenças biológicas “olhando meu corpo, recebendo minha
menstruação e minhas filhas, jamais duvidei de que eu fosse uma mulher, e como
170
Ibid., p. 87.
171
Uma das mais populares e respeitadas atrizes da França desde os anos 1960.
172
COLASANTI, 1981, p. 192.
173
Ibid.
72
tal, específica.” — e psicológicas — “Não, eu não era menos inteligente, mais
medrosa, menos lógica, mais sensitiva, menos combativa, mais vaidosa, menos
sensual do que ninguém.” No final, porém, restou uma inquietação: “Então, quem
era eu?”.
174
A resposta, como se sabe, não foi encontrada de pronto. O Movimento luta pela
igualdade, e toma como referência aquele que detém o “poder”: o representante
masculino. Mas descobriu-se que, “como homem, ela seria sempre forçosamente
incompleta.”
Marina constata, e ao mesmo tempo justifica o equívoco cometido pelo Movimento:
“Teria havido outro jeito de armar a luta pelas reivindicações feministas? Não.”
175
E o não nos remete novamente às amarras sociais e históricas nas quais as
mulheres se viram enredadas. As amarras foram construídas sobre s difíceis de
desfazer. Vivemos numa sociedade patriarcal e nela o homem detém o poder. Para
se livrar de um nó que não se desata, torna-se necessário “arrebentar” a corda.
As feministas que, equivocadas ou menos, quebraram as primeiras e mais
fortes barreiras, e estabeleceram os primeiros conceitos, eram as
vanguardas de um movimento que mais tarde se alastraria. Vanguarda
vem do francês avantgarde, que significa, ao da letra, “antes da guarda”,
aqueles que antecedem os exércitos, que realizam o trabalho mais
arriscado, dentro das linhas inimigas, preparando a situação para que o
grosso dos soldados possa avançar.
É uma missão suicida, porque o inimigo está pronto a te estraçalhar, e o
próprio exército, atrás, te abandona ao menor sinal de perigo. Foi o que
aconteceu. As feministas que partiram na primeira leva se viram entre dois
fogos. Dos homens, e da maioria das outras mulheres. Não havia um
sentido de classe que tornasse solidário o todo feminino, o havia
consciência do que estava sendo reivindicado, e parecia mais natural à
maioria ater-se ao jogo dos homens para não perder o nada que se tinha.
Para que a consciência se fizesse, foi preciso o sacrifício das queimadoras
de sutiãs.
176
“Para que a consciência se fizesse”. Está o cerne da questão. foi dito que a
mulher não tem uma história, pelo menos não da forma como existe a “história
masculina”. o estamos nos livros, muito de s se perdeu pelo caminho, sem
registro. Nossa participação sempre existiu, mas foi escondida, relegada. Então,
174
Ibid.
175
Ibid.
176
Ibid., p. 194.
73
para que no aqui-agora, seja possível a escrita dessa história, “foi preciso o sacrifício
das queimadoras de sutiãs”.
Nós não fomos à praça. Não ateamos fogo. Não criamos preceitos. Nós
chegamos depois. E tivemos tempo para ver e refletir. A nossa foi sem
dúvida uma posição bem mais confortável e menos arriscada. Que nos
permitiu agir sem os extremismos indispensáveis às vanguardas.
177
Voltamos, então, às perguntas iniciais: “Será que deu certo? Será que valeu a pena?
Será que estava tudo errado?”.
Marina Colasanti conclui seu raciocínio numa avaliação positiva:
[...] E o que nós adquirimos, acima de tudo, acima das leis e das conquistas
de espaço, foi conhecimento, consciência.
[...] Isso não se apaga. Se uma parada existe, ela é de avaliação, não de
recuo. E é a partir de nosso conhecimento que seguiremos caminho.
178
E voltando também à primeira afirmação do texto, Colasanti se coaduna com Annie
Girardot e justifica:
As mulheres precisam de um homem ao lado. É uma bela verdade. Que
algumas tiveram que negar porque “um homem do lado” estava por demais
confundido com um homem acima, e “precisar se embaralhava com
depender. Uma verdade que hoje parece nos indicar exatamente o caminho
da nossa especificidade.
Da nossa, e da deles. Porque é evidente que se não descobrirmos o
recíproco e o correspondente não chegaremos a lugar nenhum. Se o
homem nos é necessário, a mulher também é necessária ao homem, em
igual medida. A natureza não é burra. E ela nos fez para a união, nos fez
complementares. Como realizar esta complementaridade é a tarefa que nos
cabe.
Não se trata, portanto de questionar o acerto da revolução feminista, para
apagar os erros e retroceder nas posições. Trata-se de avaliar e procurar
caminhos novos, certas de que tudo o que tiver que ser feito o será, daqui
pra frente.
179
Nos textos apresentados até aqui foi possível identificar uma constante preocupação
de Marina Colasanti em delinear para suas possíveis leitoras o novo caminho aberto
pelas lutas do movimento feminista. A autora procurou analisar as diferentes
“imagens” que a sociedade construiu para as mulheres mulher/mãe,
177
Ibid., p. 196.
178
Ibid.
179
Ibid., p. 197.
74
mulher/esposa para desconstruí-las, pois habiendo estudiado las imágenes em
el espejo, cada mujer puede atravesarlo para descubrir una multiplicidad de reflejos
y cambios inexplorados.”
180
Seus ensaios, em sua maioria, levavam a
questionamentos indispensáveis para essas “mudanças inexploradas” que poderiam
gerar uma mudança de ideologia idéia enquanto domina. Esse era também o
objetivo do feminismo que, nas palavras de Eagleton
[...] Não era uma questão isolável, uma “campanha” particular juntamente
com outros projetos políticos, mas uma dimensão que informava e
interrogava todos os aspectos da vida pessoal, social e política. A
mensagem do movimento feminino, tal como interpretada por pessoas fora
dele, não era apenas a de que as mulheres deviam ter igualdade de poder e
de condição com os homens era um questionamento desse poder e
dessa condição.
181
No caso dos ensaios analisados até aqui fica fácil identificar os motivos que levaram
a autora a ser tão direta nas questões do feminismo. Afinal, a revista na qual os
ensaios foram publicados inicialmente era dedicada ao público feminino.
Buscaremos, então, no próximo capítulo, aprofundarmos nossa pesquisa passando
para a análise de um outro gênero visitado pela autora: o conto.
Será possível, numa obra de ficção, identificar a mesma preocupação da autora em
relação à condição de submissão da mulher? Ou discutir o feminismo era apenas
injunção profissional?
180
BROAD in FE, 1999, p. 23.
181
EAGLETON, 2003, p. 206.
75
4. O QUE CONTA NO CONTO
[...] Quando se faz um conto, o espírito fica mais alegre, o tempo
escoa-se, e o conto da vida acaba, sem a gente dar por isso.
Machado de Assis
O mais importante para mim, na literatura, é chegar, com o máximo de
economia, ao máximo de resultado. Entrar, como de leve, em um tema, e
com poucos toques virá-lo de cabeça para baixo. Minha alegria é chegar,
com concisão, ao âmago das coisas.
182
Esse comentário de Marina Colasanti pode muito bem servir-nos de ponto de partida
para a análise que pretendemos fazer de seu livro Contos de amor rasgados.
Publicado em 1986, o livro chamou-nos atenção pela extensão dos textos que
apresenta. Dos 99 contos, apenas 41 ultrapassam uma página, o chegando, no
entanto, a preencher duas. É possível, também, encontrar dois contos constituídos
de apenas um parágrafo: Olhando para o horizonte da vida e A grande fome do
Conde Ugolino. Contos cujo título se contrapõe claramente à sua extensão, pois,
nada mais extenso que o horizonte, e nada maior que a fome de um personagem
que devora a seus próprios descendentes. Deixemos de lado, porém, este tipo de
análise para não nos afastarmos do objetivo principal de nosso trabalho.
Angélica Soares, em Gêneros Literários, conclui que o conto, quanto mais
concentrado, “mais se caracteriza como arte de sugestão, resultante de rigoroso
trabalho de seleção e de ênfase no essencial”
183
. E, para Colasanti, o que seria o
essencial em Contos de amor rasgados?
O livro traz em seu título o adjetivo, no plural, “rasgados”, que, imagisticamente, nos
remete a algo separado em pequenos fragmentos. Ao mesmo tempo, o dicionário
Aurélio nos apresenta as seguintes acepções para o adjetivo rasgado: 1. Que
182
Disponível em <www.record.com.br/entrevista.asp?entrevista=56-24k>. Acesso em 16 agosto
2007.
183
SOARES, Angélica. Gêneros Literários. São Paulo: Ática, 1993, p. 54.
76
apresenta rasgo ou rasgão. 2. Extenso, amplo. 3. Aberto, franco.
184
Para esclarecer
o sentido específico do qual a autora se apropriou no título de seu livro, necessário
se faz adentrar na leitura de seus contos e ir, gradativamente, descobrindo o que
de essencial nos Contos de amor rasgados.
Prólogo
Enfim, um indivíduo de idéias abertas
A coceira no ouvido atormentava. Pegou o molho de chaves, enfiou a mais
fininha na cavidade. Coçou de leve o pavilhão, depois afundou no orifício
encerado. E rodou, virou a pontinha da chave em beatitude, à procura
daquele ponto exato em que cessaria a coceira.
Até que, traque, ouviu o leve estalo e, a chave enfim no seu encaixe,
percebeu que a cabeça lentamente se abria.
185
O indivíduo de idéias abertas não tem indicação de gênero, pode, então, ser
atrelado, de acordo com a vontade do leitor, a uma imagem masculina ou feminina.
O indivíduo em questão passa de uma inquietação, “a coceira no ouvido”, a uma
ação, abrir suas idéias. O texto está repleto de imagens que nos indica a ação de
abrir. Abertura do livro o conto vem também com o nome de prólogo —, abertura
para novas idéias que podem brotar dos textos que o sucederão. A palavra “chave”,
repetida por três vezes no texto de apenas dois parágrafos, reforça essa idéia.
Quem tem a chave certa nas os tem o poder de abrir a porta, descobrir o que
por trás. Nesse caso, podemos dizer que a chave certa pode nos levar a descobrir o
que por trás das palavras, pois, “nenhum texto diz somente aquilo que desejava
dizer”.
186
O indivíduo “virou a pontinha da chave em beatitude”, o que, no Dicionário
de Filosofia significa estado de satisfação completa, perfeitamente livre das
vicissitudes do mundo.
187
Entendemos o texto como um convite. Um convite a abrir o
livro, e ali, nos variados textos, descobrir qual a chave certa para abrir nossos olhos
e ouvidos para o que ecoa em nós, através de nós, e ao nosso redor.
184
FERREIRA, 2004, p. 681.
185
COLASANTI, 1986, p. 11.
186
WOLFGANG e JAUSS, 2002, p. 142.
187
ABBAGNO, 1982, p. 100.
77
O prólogo é entendido como “um discurso ou advertência que antecede obra
escrita”,
188
fomos, então, de certo modo, advertidos de que precisamos abrir nossas
idéias para o que vem depois. E o texto subseqüente já nos cobra essa posição.
Por preço de ocasião
Comprou a esposa numa liquidação, pendurada que estava, junto com
outras, no grande cabide circular. Suas posses o lhe permitiam adquirir
lançamentos novos, modelos sofisticados. Contentou-se pois com essa, fim
de estoque, mas preço de ocasião.
Em casa, porém, longe da agitação da loja homem escolhendo mulher,
homem pagando mulher, homem metendo mulher em saco pardo e levando
às vezes mais de uma para aproveitar o bom negócio percebeu que o
estado da sua compra deixava a desejar.
“É claro”, pensou reparando na sujeira dos punhos, no amarrotado da pele,
nos tufos de cabelos que mal escondiam rasgões do couro cabeludo, eles
não iam liquidar coisa nova.”
Conformado, deitou-a na cama pensando que ainda serviria para algum
uso. E, abrindo-lhe as pernas, despejou dentro, uma por uma, brancas
bolinhas de naftalina.
189
Uma das características do gênero conto é a apresentação de um episódio singular
e representativo como um flagrante ou instantâneo.
190
Observamos que o flagrante
aqui retratado nos mostra a mulher em um de seus papéis mais recorrentes numa
sociedade patriarcal, a mulher-objeto. Sim, captamos nesse primeiro flash o que
Marina Colasanti considera essencial, o papel social da mulher. Mas o queremos
tirar conclusões precipitadas. Vamos dar ouvidos ao texto, e somente a ele. Afinal,
como bem disse Roland Barthes, o texto “produz em mim o melhor prazer se
consegue fazer-se ouvir indiretamente; se, lendo-o, sou arrastado a levantar muitas
vezes a cabeça, a ouvir outra coisa”.
191
E que outra coisa podemos ouvir ao nos depararmos com a palavra liquidação?
Liquidação é a venda de determinados produtos a preços abaixo do normal.
Produtos com pouca procura, aqueles considerados como “ponta de estoque”, que
precisam ser vendidos para dar lugar aos produtos da “nova estação”. Nossa
personagem comprou sua esposa numa liquidação e logo percebeu que sua compra
188
FERREIRA, 2004, p. 649.
189
COLASANTI, 1986, p. 13.
190
SOARES, 1993, p. 54.
191
BARTHES, 1996, p. 35.
78
“deixava a desejar”. Mas esse fato era esperado “eles não iam liquidar coisa
nova”. E de que lhe serviria essa mulher-objeto? “Conformado, deitou-a na cama
pensando que ainda serviria para algum uso. E, abrindo-lhe as pernas, despejou
dentro, uma por uma, brancas bolinhas de naftalina”. A esposa lhe servirá apenas
como objeto sexual. Objeto que não será usado com muita freqüência, já que
despejou nela “bolinhas de naftalina”.
O texto seguinte O leite da mulher amada , no entanto, não retrata mais a
mulher-objeto, e sim a mulher que, com malícia e esperteza, tem, além do marido,
um amante. E, com certa destreza, consegue do próprio marido a “autorização” para
a permanência desse amante.
O leite da mulher amada
No seio direito mamava o marido. Mamava o amante no esquerdo. Sem que
um soubesse do outro, e o outro pensasse muito no um. Ambos, porém
cobiçando o peito que não lhes cabia, e que ela negava pretextando
ardências não fosse um esvaziar o seio reservado ao outro,
desencadeando um universo de ciúmes.
Mas a posse garantida e o uso constante tornavam o marido cada vez mais
exigente, sempre disposto a queixar-se da qualidade do leite. Ora parecia-
lhe muito amargo ora invectivava por achá-lo fraco. E sempre afirmando que
o outro seio deveria estar melhor, agredia a mulher por negá-lo, acusando-a
inclusive de piorar propositadamente o produto.
A necessidade de solução ficou patente para ela na tarde em que, tomada
de desespero, surpreendeu-se invejando as Amazonas. Chamou o marido,
e com voz contrita lhe disse que sim, ele tinha razão, fora nos últimos
tempos esposa descuidada, permitindo que ele bebesse leite por vezes
mais áspero que o das cabras. Isso não tornaria a se repetir. De agora em
diante, um provador testaria o leite antes que chegasse aos lábios conjugais
e, estando um seio ácido, recorreriam ao outro, para que nunca faltasse o
precioso néctar a quem de direito.
E foi assim que, tendo sido nomeado o amante para o cargo de provador,
instalou-se este com lábios ávidos, sempre disposto a provar e comprovar,
garantindo com sua experiência a satisfação do marido. Agora, um de cada
lado, mamam os dois. Enquanto ela, generosa, se oferece na grande
cama.
192
Que tipo de mulher temos agora retratada? Ainda podemos identificar no conto a
mulher representando o papel que lhe confere a sociedade, o de esposa e mãe? “No
seio direito mamava o marido”. A mulher, assim, doava o seu alimento. Mas, neste
192
COLASANTI, 1986, p. 15.
79
caso, o que era alimentado era o desejo, o envolvimento sexual. A mulher era infiel,
mesmo assim, sendo esposa, tinha o marido sobre ela a “posse garantida”. Tão
garantida que lhe dava o direito de agredí-la caso assim o desejasse. Logo, temos
novamente uma mulher-objeto, propriedade de outro, nesse caso, de outros, que
seu seio esquerdo sustentava o amante. A imagem da mulher “generosa”, que “se
oferece na grande cama”. Assim, como no texto anterior, é na cama que a mulher-
objeto cumpre o papel esperado pelo seu dono. Aqui, porém, a mulher não é o
produto, e sim aquela que o oferece. E, ironicamente, a mulher que possui o amante
é procurada muitas vezes pelo marido, num uso constante que o tornava cada vez
mais exigente, enquanto que à mulher-objeto do texto anterior restaram apenas as
naftalinas.
Em O leite da mulher amada é possível perceber alguns dados sobre a mulher que a
autora procura retratar: a imagem da mulher-objeto cuja posse é garantida ao
marido; a presença da agressão física à mulher por negar o sexo ao seu
companheiro; a mulher submissa que, para conseguir manter a única coisa que
considerava sua o amante teve que se mostrar contrita e dar razão ao marido.
No entanto, temos a presença do mito das Amazonas, invejadas pela personagem
A necessidade de solução ficou patente para ela na tarde em que, tomada de
desespero, surpreendeu-se invejando as Amazonas. —. As Amazonas eram
mulheres guerreiras, e, para melhor manejarem o arco, mutilavam-se arrancando o
seio direito. No conto, a esposa oferecia o seio direito ao marido, aquele que tinha a
posse, logo, mutilando esse seio não teria mais que oferecê-lo ao marido, podendo
assim livrar-se da submissão.
A personagem do conto retrata, ao mesmo tempo, a mulher submissa, dominada
pelo marido, e a mulher maliciosa e perspicaz que consegue resolver seu problema,
satisfazendo ao marido e a si mesma. Uma solução irônica que, no entanto, foi
criada para garantir “a satisfação do marido”. Satisfação essa sempre negada à
mulher, como mostra Quando já não era mais necessário.
“Beije-me”, pedia ela no amor, quantas vezes aos prantos, a boca
entreaberta, sentindo a língua inchar entre dentes, de inútil desejo.
E ele, por repulsa secreta sempre profundamente negada, abstinha-se de
satisfazer seu pedido, roçando apenas vagamente os lábios no pescoço e
rosto. Nem se perdia em carícias, ou se ocupava de despir-lhe o corpo, logo
80
penetrando, mais seguro no túnel das coxas do que no possível desabrigo
da pálida pele possuída.
Com os anos, ela deixou de pedir. Mas não tendo deixado de desejar,
decidiu afinal abandoná-lo, e à casa, sem olhar para trás, não lhe fosse
demais a visão de tanto sofrimento.
Mão na maçaneta, hesitou porém. Toda a sua vida passada parecia estar
naquela sala, chamando-a para um último olhar. E, lentamente, voltou a
cabeça.
Sem o grito ou suspiro, a começar pelos cabelos, transformou-se numa
estátua de sal.
Vendo-a o inofensivamente imóvel, tão lisa, e pura, e branca, delicada
como se translúcida, ele jogou-se pela primeira vez a seus pés.
E com excitada devoção, começou a lambê-la.
193
Mais uma vez, Colasanti retoma o ato sexual como o espaço onde o homem usa a
mulher para sua satisfação. Ao mesmo tempo, reforça a idéia de que o homem não
se preocupa em satisfazer os desejos de sua companheira. Sexo é tabu. E, mesmo
depois de todas as mudanças provocadas pela revolução sexual, e pelas
descobertas iniciadas pelo relatório Kinsey nos anos 50, esse ainda é um assunto
pouco discutido entre os mais interessados, os parceiros sexuais. E novamente, à
mulher é ainda mais difícil vencer esse tabu.
Vemos que, em Quando já não era mais necessário, a mulher consegue expressar o
seu desejo, pede pelo beijo. o homem mantém sua repulsa em segredo, negada,
“logo penetrando, mais seguro no túnel das coxas”. De acordo com a antropóloga
Jennifer James, pesquisadora da Universidade de Washington, “muitos homens não
estão sintonizados com as necessidades sexuais da mulher”.
194
Ela, então, deixou
de pedir e decidiu abandonar o marido. Mas sua hesitação, tal qual na história
bíblica do Gênese, transformou-a numa estátua de sal. E só então, estando a mulher
“inofensivamente imóvel, tão lisa, e pura, e branca, delicada como se translúcida, ele
se jogou pela primeira vez a seus pés”.
“E com excitada devoção, começou a lambê-la”.
Vemos explicitado novamente a rmula usada por Marina nos contos anteriores:
a mulher consegue o que deseja mediante sua total submissão. Certa de que
193
Ibid., p. 19.
194
COLASANTI, 1981, p. 44.
81
“existe uma funcionalidade rigorosa de cada palavra no arranjo textual”,
195
atentemos para os adjetivos e advérbios usados no penúltimo parágrafo: “vendo-a
tão inofensivamente imóvel, tão lisa, e pura, e branca, delicada como se
translúcida, ele jogou-se pela primeira vez a seus pés”.
O inofensivo, segundo o Aurélio, é aquele que não faz dano,
196
sendo assim, a
mulher inofensiva não causará dano algum a seu marido. Ele não terá mais
necessidade de negar ou esconder sua repulsa. Imóvel, em uma de suas acepções,
designa o bem que não é móvel, como terras, casas, etc.,
197
e, de acordo com as
idéias que a autora apresentou nos textos anteriores, cabe perfeitamente em nossa
interpretação. Indo um pouco mais além, buscamos no Dicionário de Filosofia o
oposto de imóvel, móvel. “O próprio Aristóteles compara ao primeiro móvel a
faculdade de desejar da alma”. Recordemo-nos que a mulher, no início do conto,
desejava ser beijada, não alcançando seu intento, deixa de pedir, mas não de
desejar. Por isso mesmo decide abandonar a casa e o marido. Mas, transformada
em estátua de sal, fica imóvel, logo, sua alma perde a faculdade de desejar.
198
Temos, então, em “inofensivamente imóvel”, a mulher que não causará dano pois
não tem mais desejo algum.
A estátua de sal é também lisa, pura e branca, ou seja, sem nenhuma aspereza
199
e
constituída rigorosamente conforme à própria definição.
200
Historicamente, a mulher
é definida como a fêmea do homem e, portanto, subjugada a ele em todas as
instâncias. É socialmente definida como a responsável pela casa, pelos filhos e pelo
marido. Sua brancura reforça a castidade tão esperada da mulher que deve “se
guardar” para o marido.
Por fim, a estátua de sal é delicada como se translúcida. Ser delicada é não ter
força, é se apresentar frágil.
201
Condição primeira para que o homem possa
assegurar-se de sua superioridade. Translúcida é aquela que deixa passar a luz sem
195
MOISÉS, 1983, p. 23.
196
FERREIRA, 2004, p. 480.
197
Ibid., p. 463.
198
ABBAGNO, 1982, p. 655.
199
FERREIRA, 2004, p. 519.
200
ABBAGNO, op. cit., p. 780, nota 19.
201
FERREIRA, op. cit., p. 290, nota 76.
82
permitir que se vejam os objetos com nitidez.
202
À mulher é permitido ver o que
convém ao seu dono.
“No conto todas as palavras hão de ser suficientes e necessárias, e convergir para o
mesmo alvo”.
203
Sendo assim, ao se transformar em estátua de sal, a mulher passou
a ter todas as características desejáveis em uma esposa. E aí, seu marido, “com
excitada devoção, começou a lambê-la”. E por que tão grande excitação? Nas
palavras de Barthes, “basta que, num lampejo, eu veja o outro sob a forma de um
objeto inerte, como empalhado, para que eu transfira meu desejo, desse objeto
anulado, para meu próprio desejo; é meu desejo que desejo, e o ser amado nada
mais é que seu agente”.
204
Foi também o desejo de ter uma esposa com as características que mais lhe
agradavam que levou a personagem de um outro conto, Verdadeira estória de um
amor ardente, a criar, ele próprio, a companheira que buscava.
Verdadeira estória de um amor ardente
205
é a história de um homem que “nunca
tivera namorada, esposa, amante”. Em determinado momento, porém, a solidão,
“que antes lhe parecera apenas repousante” transformou-se em tristeza. Daí surge o
desejo de “providenciar uma companheira”.
Em loja especializada adquiriu grande quantidade de cera, corantes, e todo
o material necessário. Em breves estudos nos almanaques e tratados
aprendeu a técnica. E logo, trancado à noite em sua casa, começou a
moldar aquela que preencheria seus desejos.
Pronta, surpreendeu-se com a beleza que quase inconscientemente lhe
havia transmitido. [...] Era uma dama de nobre silêncio. E tinha olhos
para ele.
Perdidamente a amou. O calor dos seus abraços tornando aquele corpo
ainda mais macio, conferia-lhe uma maleabilidade em que todo toque se
imprimia, formando e deformando a amada no fluxo do seu prazer.
206
Algum tempo depois, cansado “de tanta docilidade”, procura, na leitura de um
livro, uma maneira de se livrar do tédio que havia se instalado entre eles, mas, “a
202
Ibid., p. 787.
203
MOISÉS, 1983, p. 27.
204
BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994,
p. 23.
205
COLASANTI, 1986, p. 35.
206
Ibid.
83
lâmpada se apagou” e, depois de um breve instante de hesitação, o marido
“inflamou a trança da mulher, iluminando o aposento”.
“[...] E, sereno, começou a ler à luz do seu passado amor, que queimava
lentamente”.
A autora, consciente ou inconscientemente, reproduz em seu texto a teoria de
Aristóteles de que a mulher é potência e matéria, enquanto o homem é ato e idéia.
Nela, o filósofo afirma que, sem o ato (homem) a potência (mulher) não existiria.
207
Sendo assim, coube ao homem “moldar aquela que preencheria seus desejos”. Ele,
sendo ato e idéia, “em breves estudos nos almanaques e tratados aprendeu a
técnica”. A beleza de sua criação não se comparava com a “das mulheres que
porventura conhecera”. Ela, sendo potência e matéria, tomou forma a partir dos
desejos do marido. E, de acordo com esses mesmos desejos, foi sendo deformada,
moldada pelo toque de seu dono. Sendo o desejo a força propulsora de sua criação,
deixando o homem de desejá-la, a mulher perde sua beleza, começa “a empoeirar-
se, turvando em manchas acinzentadas os tons antes translúcidos”. Ganha, a partir
daí, outra utilidade. Para satisfazer uma necessidade de seu dono, é queimada,
destruída. Perde toda sua forma.
Notamos também, em Verdadeira história de um amor ardente, a presença do mito
de Pigmaleão e Galatéia que aqui contamos resumidamente:
Segundo a mitologia grega, Pigmaleão era um escultor e rei de Chipre que
se apaixonou por uma estátua que esculpira ao tentar reproduzir a mulher
ideal. Na verdade ele havia decidido viver em celibato na Ilha por não
concordar com a atitude libertina das mulheres dali, que haviam dado fama
à mesma como lugar de cortesãs. A deusa Afrodite, apiedando-se dele e
atendendo a um seu pedido, não encontrando na ilha uma mulher que
chegasse aos pés da que Pigmaleão esculpira, em beleza e pudor,
transformou a estátua numa mulher de carne e osso chamada Galatéia,
com quem Pigmaleão casou-se e com quem teve um filho chamado
Pafos.
208
Assim como Pigmaleão, o personagem do conto também faz a sua mulher ideal,
constata que sua beleza é sem igual e se apaixona pela sua obra-prima. A diferença
207
DUCLÓS, Miguel. Metafísica de Aristóteles: O ser se diz de vários modos. Disponível em
<http://www.consciencia.org/aristoteles.shtml >. Acesso em 24 junho 2006.
208
Disponível em <http://wapedia.mobi/pt/Pigmale>. Acesso em 02 dezembro 2008.
84
está no desfecho. Enquanto Pigmaleão pede à Afrodite que vida à sua obra, a
personagem do conto usa a obra para dar luz á sua leitura. Leva sua obra à morte.
“Quando um leitor recebe um texto ficcional, baseia-se, mais ou menos
inconscientemente, na rede de orientação de sua experiência”.
209
Sendo assim,
poderíamos analisar esse conto de duas perspectivas bem distintas. Na primeira,
poderíamos constatar uma reafirmação do poder masculino sobre a mulher. O
homem constrói e destrói a seu bel prazer. Por outro lado, é possível também,
constatar que esse tipo de relação homem/mulher, fruto apenas da vontade
masculina, termina num fracasso total. O desejo inicial era ter uma companheira que
lhe tirasse da solidão. Seu intento foi satisfeito por pouco tempo. E o mesmo se
repete ao final do conto, que a chama “de seu passado amor” não queimará
eternamente, também se esgotará.
O mesmo fracasso, intencionalmente ou não, é também apresentado em Para que a
ninguém a quisesse.
Para que ninguém a quisesse
Porque os homens olhavam demais para a sua mulher, mandou que
descesse a bainha dos vestidos e parasse de se pintar. Apesar disso, sua
beleza chamava a atenção, e ele foi obrigado a exigir que eliminasse os
decotes, jogasse fora os sapatos de saltos altos. Dos armários tirou as
roupas de seda, das gavetas tirou todas as jóias. E vendo que, ainda assim,
um ou outro olhar viril se acendia à passagem dela, pegou a tesoura e
tosquiou-lhe os longos cabelos.
Agora podia viver descansado. Ninguém a olhava duas vezes, homem
nenhum se interessava por ela. Esquiva como um gato, não mais
atravessava praças. E evitava sair.
Tão esquiva se fez, que ele foi deixando de ocupar-se dela, permitindo que
fluísse em silêncio pelos cômodos da casa, mimetizada com os móveis e as
sombras.
Uma fina saudade, porém, começou a alinhavar-se em seus dias. Não
saudade da mulher. Mas do desejo inflamado que tivera por ela.
Então lhe trouxe um batom. No outro dia um corte de seda. À noite tirou do
bolso uma rosa de cetim para enfeitar-lhe o que restava dos cabelos.
Mas ela tinha desaprendido a gostar dessas coisas, nem pensava mais em
lhe agradar. Largou o tecido numa gaveta, esqueceu o batom. E continuou
209
WOLFGANG e JAUSS 2002, p. 173.
85
andando pela casa de vestido de chita, enquanto a rosa desbotava sobre a
cômoda.
210
Logo no início é possível encontrar indicadores do poder do marido sobre sua
mulher. Afinal, quem tem a posse tem também o direito de fazer o que bem lhe
aprouver com sua “propriedade”. Mas o dono não tem culpa dessa situação, “ele foi
obrigado”. E quem o obrigou? A educação recebida pela sociedade em que vive.
Como foi citado por várias vezes no decorrer de nosso trabalho, o homem sempre
foi educado para a força, o poder, a superioridade. Até hoje temos fortes resquícios
dessa educação: ao menino é proibido chorar, brincar de boneca, demonstrar algum
tipo de fraqueza. E em sua maioria, as mães nem percebem o quanto contribuem
para a permanência desse tão falado machismo. a educação feminina, também
citada em alguns pontos de nosso trabalho, por muito tempo teve como objetivo
principal ensinar à mulher como ser uma boa esposa e mãe, submissa e cuidadosa.
Não à toa, Marina Colasanti a ilustra como a ovelha, que, pelo senso comum, está
relacionada à docilidade e submissão “[...] pegou a tesoura e tosquiou-lhe os
longos cabelos”.
Terminado o conto constatamos que ao homem restou a saudade, mas,
ironicamente, não era saudade da mulher, e sim “do desejo inflamado que sentia por
ela”. É possível também, ver, mais uma vez, que a mulher, quando moldada pelo
marido, acaba por não lhe satisfazer mais, resultando no fracasso do qual falávamos
anteriormente.
“O texto ficcional, mesmo no âmbito da recepção mais elevada, possibilita [...] a
tomada de consciência ou de aumento de consciência”.
211
Sendo assim, é possível
afirmar que Marina Colasanti, ao escrever contos com temas tão recorrentes
lembremo-nos que seu livro foi intitulado Contos de amor rasgadostem o objetivo
de causar estranheza através de situações que, mesmo não sendo reais, trazem em
si uma carga tão grande de realidade que podem levar o leitor, ou mais
especificamente a leitora, a refletir sobre a situação na qual se encontra no momento
da leitura. O texto foi escrito em 1986, mas não é difícil para qualquer um de nós,
encontrarmos exemplos, na contemporaneidade, de mulheres/esposas que se
encaixariam perfeitamente no perfil descrito pela autora. Tomando de empréstimo a
210
COLASANTI, 1986, p. 111.
211
WOLFGANG e JAUSS, 2002, p. 34.
86
caracterização de Hegel sobre a arte, “segundo a qual o individuo, pela criação
artística, pode satisfazer a sua necessidade geral de ‘sentir-se em casa, no mundo’,
ao ‘retirar do mundo exterior a sua estranheza’ e convertê-la em sua própria obra”,
212
podemos concluir que, para uma autora de cunho feminista, parece muito estranho
que a maioria das mulheres se acredite inferior e naturalmente frágil, a tal ponto de
se deixar moldar por seus companheiros. Como vimos em seus ensaios, a autora
busca, de alguma maneira, contribuir para que aconteça uma mudança de
paradigma, e, para isso, utiliza a literatura como principal fonte de reflexões.
Diferentemente dos ensaios, escritos, em sua maioria, para uma revista feminina, os
contos o têm público específico e podem ser lidos tanto por homens quanto por
mulheres. Isso amplia ainda mais a possibilidade de reflexão, pois a linguagem
utilizada pela autora possibilita a identificação dos papéis desempenhados por cada
indivíduo. Para que ninguém a quisesse apresenta o que Stanley Fish denominou de
“apresentação literária dialética, uma apresentação que perturba os leitores,
forçando-os a examinar seus próprios valores e crenças, em vez de satisfazê-los ou
mostrar-lhes complacência”.
213
Nesse conto, um leitor do gênero feminino pode se
assustar ao perceber que age exatamente como a personagem. Já o leitor do
gênero masculino pode descobrir, com o desfecho do conto, que negar à mulher sua
beleza e seu desejo é negar-lhe a própria essência de ser mulher. Sendo assim, ele
próprio perde seu objeto de desejo, que, mesmo tentando voltar atrás, a
personagem do conto não consegue mais devolver à mulher sua capacidade de ser
desejada. O desejo de voltar atrás é explicado por Barthes quando fala do ciúme:
[...] quando uma ferida acidental me ameaça (uma idéia de ciúme, por
exemplo), eu a recupero na magnificência e na abstração do sentimento
apaixonado; deixo de desejar aquilo que, estando ausente, não pode mais
me ferir. Entretanto, imediatamente, sofro ao ver o outro (que amo) assim
diminuído, reduzido e como que excluído do sentimento que ele suscitou.
Me sinto culpado e me reprovo de abandoná-lo. Uma reviravolta se opera:
procuro desanulá-la, me obrigo a sofrer novamente.
214
Essas mulheres, anuladas por anos de silêncio e submissão, são retratadas por
Marina Colasanti em diversos outros contos. No entanto, entre tantos, elegemos A
honra passada a limpo como sendo o texto que melhor nos “fala”, no estilo
bartheniano, sobre as conseqüências de tantos anos de silêncio.
212
Ibid., p. 80.
213
HUTCHEON, 1991, p. 69.
214
BARTHES, 1994, p. 23.
87
A honra passada a limpo
Sou compulsiva, eu sei. Limpeza e arrumação.
Todos os dias boto a mesa, tiro a mesa. Café, almoço, jantar. E pilhas de
louça na pia, e espumas redentoras.
Todos os dias entro nos quartos, desfaço camas, desarrumo berços, lençóis
ao alto como velas. Para tudo arrumar depois, alisando colchas de crochê.
Sou caprichosa, eu sei. Desce o pó sobre os móveis. Que eu colho na
flanela. Escurecem-se as pratas. Que eu esfrego com a camurça. A aranha
tece. Que eu enxoto. A traça rói. Que eu esmago. O cupim voa. Que eu
afogo na água da tigela sob a luz.
E de vassoura em punho gasto tapetes persas.
Sou perseverante, eu sei. À mesa que ponho ninguém senta. Nas camas
que arrumo ninguém dorme. Não ninguém nesta casa, vazia tanto
tempo.
Mas sem tarefas domésticas, como preencher de feminina honradez a
minha vida?
215
Esse é o único conto do livro narrado em primeira pessoa. Com isso, a autora
imprime à narrativa maior verossimilhança dando ao leitor “a impressão de que está
sendo participado de ocorrências quase contemporâneas à leitura, como se a
realidade viva lhe fosse revelada em pleno processo dinâmico”.
216
E de que
ocorrências fala o texto? Quem fala no texto? Quem nos fala é uma mulher. E ela
fala de si própria. Em meio a tantos textos cujas personagens são, de algum modo,
silenciadas, encontramos uma voz que fala de si, e ao mesmo tempo de tantas
outras.
“Sou compulsiva, eu sei”. Nesse primeiro adjetivo temos o esboço de uma
explicação. O compulsivo é aquele que se sente obrigado a alguma coisa.
217
Percebemos, no decorrer do texto, que toda sua obrigação está no espaço privado
do lar. E o que foi ensinado à mulher em anos de história? O espaço da mulher é o
lar, onde ela é a “Rainha”. O espaço público está reservado ao homem. Essas
informações, no entanto, soam como que desgastadas, repetidas por tantas vezes
que se perderam no tempo. Talvez por isso mesmo, a autora tenha escolhido a
narração em primeira pessoa para revelar que o que se pensava antigo, distante e
215
COLASANTI, 1986, p. 187.
216
MOISÉS, 1983, p. 35.
217
FERREIRA, 2004, p. 251.
88
ultrapassado, é, na verdade, contemporâneo. Essa contemporaneidade é reforçada
pelo uso dos verbos no presente, “[...] boto a mesa, tiro a mesa. [...] desfaço
camas, desarrumo berços [...]”.
Nos parágrafos centrais, a mulher se autodenomina caprichosa. E o capricho nada
mais é que teimosia, obstinação.
218
Nessa parte do texto a narradora repete
insistentemente o “eu” acompanhado de verbos que indicam, gradualmente, a
presença de uma força que até então não aparecia.
Sou caprichosa, eu sei. Desce o pó sobre os móveis. Que eu colho na
flanela. Escurecem-se as pratas. Que eu esfrego com a camurça. A aranha
tece. Que eu enxoto. A traça rói. Que eu esmago. O cupim voa. Que eu
afogo na água da tigela sob a luz.
Colho, esfrego, enxoto, esmago, afogo... Colocados assim, lado a lado, é possível
perceber que as ações vão ganhando força até o ápice de afogar, matar o que
incomoda. Mas, ironicamente, a imagem construída pela autora na frase seguinte
mostra uma mulher cuja arma se resume numa vassoura: “E de vassoura em punho
gasto tapetes persas”.
“Sou perseverante, eu sei”. Num primeiro instante, perseverante poderia ser
considerado como um adjetivo nobre, pois em seu uso mais recorrente, na
linguagem do cotidiano, perseverar é não desistir. Mas no contexto em que se
apresenta, podemos utilizá-la em outra acepção: perseverar é permanecer sem
mudar,
219
o que, nesse caso, faz com que o adjetivo perca sua aura de nobreza, e
ganhe matizes de um conformismo que destrói. Para chegar a essa conclusão, é
necessário que se entenda o significado da expressão “feminina honradez”.
Enquanto no Aurélio encontramos a honra com o sentido de dignidade, no Dicionário
de Filosofia, o sentido dado por Aristóteles “inclui uma boa dose de conformismo aos
prejuízos dominantes no grupo ou na classe social que concede a honra”.
220
Retomando os estudos de Simone de Beauvoir, tão distantes historicamente,
percebemos que, “treinada” para as lides domésticas, a mulher tem nelas a razão de
ser de sua feminilidade. Para desvencilhar-se de tal pensamento será necessário ter
A honra passada a limpo.
218
Ibid., p. 209.
219
Ibid., p. 626.
220
ABBAGNO, 1982, p. 492.
89
Esse discurso da inferioridade natural da mulher está de tal forma internalizado, que
é difícil à própria mulher romper com a imagem de desvalorização de si mesma por
ela introjetada. Para mudar essa imagem, serão necessários outros tantos anos de
história. E para mudar a história real, pode-se, muito bem, utilizar-se da ficção.
Afinal, “o mundo da ficção e o mundo real se coordenam reciprocamente: o mundo
se mostra como horizonte da ficção, a ficção, como horizonte do mundo”.
221
Não por
acaso, Marina Colasanti insere em seu livro alguns contos que podem ser utilizados
como representação de um desejo de mudança. Com a chegada da primavera é o
primeiro deles.
Com a chegada da primavera
Primeiro num vaso, depois em outro, e logo em latas e canteiros de
caixotes, o homem plantou bulbos e ficou à espera das flores.
Mas antes das flores ou de qualquer germinar, ervas daninhas começaram
a despontar na plantação. Atento, o homem arrancou uma por uma,
sacudindo bem as raízes para poupar a terra preciosa. E mais regou,
sabendo que as flores logo chegariam.
Despontavam as primeiras folhas prenunciando jacintos e narcisos, e já as
daninhas se multiplicavam, ameaçando sufocar a brotação delicada.
Novamente o homem foi obrigado a intervir, arrancando impiedosamente as
invasoras.
Até a chegada daqueles dias mais amenos em que, uma por uma, as flores
começaram a se abrir, encharcando o ar de perfume, colorindo os canteiros
de matizes. Aproximou-se o homem com seu canivete e, escolhendo as
mais bonitas, degolou-lhes o caule, empunhando o buquê que levaria para
enfeitar alguma casa. Não teve tempo de fazê-lo. Antes que deixasse o
jardim, as flores o arrancaram, daninho.
222
As possibilidades de entrelaçamento de idéias no espaço textual se multiplicam
infinitamente, por isso, a constituição da significação é o “espaço ou meio de
reflexão em que o leitor pode penetrar cada vez mais, sem nunca o esgotar”.
223
Portanto, no contexto de nosso trabalho, nos é possível confrontar a situação
relatada no conto com a história do feminismo. A personagem, definido apenas
como sendo um homem, “plantou bulbos e ficou à espera de flores”. Podemos
relacionar o ato de plantar bulbos com o ato de “plantar” nas mulheres idéias de
221
WOLFGANG e JAUSS, 2002, p. 171.
222
COLASANTI, 1986, p. 79.
223
WOLFGANG e JAUSS, 2002, p. 161.
90
inferioridade, mencionadas anteriormente, que por tanto tempo a sociedade
patriarcal impôs. As ervas consideradas daninhas podem servir de representação
para todas as idéias que também, desde 195 a. C.
224
apareciam com o intuito de
impulsionar as mulheres para a luta por igualdade de direitos. Pois, assim como
acontece com as ervas daninhas do conto, essas idéias foram sendo “arrancadas”
no decorrer da história. Podemos citar, como exemplo, o surgimento do feminismo
que tantos entraves encontrou pela frente. A cada nova tentativa de mudança de
paradigma, “novamente o homem foi obrigado a intervir, arrancando
impiedosamente as invasoras”. Como em Para que ninguém a quisesse, aqui
também o homem é “obrigado” a tomar esse tipo de atitude.
O último parágrafo retrata a violência praticada contra as mulheres na imagem do
homem que “degolou-lhes o caule, empunhando o buquê que levaria para enfeitar
alguma casa”. Se lembrarmos que, ainda hoje, a mulher é “orientada” a se tornar
esposa e e para alcançar a felicidade completa, entenderemos a referência à
“enfeitar alguma casa”. Na frase final, no entanto, vem a reação: “Antes que
deixasse o jardim, as flores o arrancaram, daninho”. A autora começa, então, de
maneira sutil, porém enfática, a incitar a reflexão sobre a necessidade de mudança
que requer a ação, não a vontade. Tal interpretação é possível porque “no s-
modernismo a ficção é apresentada como mais um entre os discursos pelos quais
elaboramos nossas versões da realidade”.
225
Sendo a autora conhecida por sua
participação em movimentos de mulheres e discussões que envolvem a questão do
gênero, qual é a sua versão da realidade? Nos contos apresentados até aqui, e nos
demais que não serão apresentados nesse trabalho, a autora nos coloca frente a
frente com situações pinceladas por seu olhar de contista. Mostra-nos aqueles
flagrantes no qual “o contista doa à contemplação do leitor um episódio semelhante
aos da existência diária”.
226
Mas, no caso dos contos de Marina Colasanti, essa
semelhança o nos chega de maneira direta, e sim com aquela arte de tornar
verossímil aquilo que, na realidade, seria impossível. Essa verossimilhança é
encontrada, por exemplo, em Sem que fosse tempo de migração.
Sem que fosse tempo de migração
224
Cf. primeiro capítulo do trabalho.
225
HUTCHEON, 1991, p. 64.
226
MOISÉS, 1983, p. 44.
91
Embora vivendo na gaiola tantos anos, sua esposa não cantava. Nem
ele a culpava por isso. Bastava-lhe a presença vivificando a casa.
Com quanto amor cuidava dela, trocando sua água todo dia, providenciando
alimentos que só bem lhe fizessem à saúde. Com quanto encantamento a
admirava na hora do banho, apesar do gesto habitual com que ela,
sacudindo dos cabelos pingentes de cristal, o obrigava a trocar os jornais
com que forrava o fundo. E era sempre com doçura que à tardinha, dando o
dia por encerrado, cobria a gaiola com um pano.
Sim, a vida conjugal era cheia de alegrias, repetia para si mesmo quando,
chegando em casa com um pacotinho de uvas, deparou com a portinhola
aberta. Vazia, a gaiola pareceu-lhe subitamente inconsistente, agora que
nada havia para reter seu olhar entre as varetas.
Chamou, sabendo que não teria resposta. Procurou nos quartos, olhou
atrás de móveis e portas, lugares onde ela o estaria. Depois debruçou-se
à janela como se ela tivesse podido voar, e em alguma cornija ou fio ainda o
esperasse.
Mas embaixo as pessoas iam a suas vidas. E nenhum rosto era o rosto
da mulher.
Então colocou uma cadeira debaixo da gaiola, subiu, ergueu uma perna
esgueirando-a com cuidado, levantou-se na ponta do outro pé, puxou para
cima o resto do corpo.
Só depois de entrar e fechar com cuidado a portinhola, percebeu que
ninguém viria trazer-lhe a noite com um pano.
227
Ao ler esse conto é possível entender as palavras de Barthes quando explica que “o
leitor pode dizer incessantemente: eu sei que são apenas palavras, mas mesmo
assim... (emociono-me como se essas palavras enunciassem uma realidade).”
228
A
emoção está bem demarcada no segundo parágrafo. Era com muito amor que o
marido cuidava da esposa; com muito encantamento ele a admirava na hora do
banho; e era sempre com doçura que ele cobria a gaiola ao fim do dia. Vemos, no
entanto, a emoção vivenciada pelo marido. Não nos é dado conhecer detalhes sobre
a esposa que ficava na gaiola. Apenas sabemos que ela não cantava. Todo nosso
olhar é dirigido, pelo foco narrativo, às ações “amorosas” do marido. Até a fuga da
esposa apesar de justa, dadas as circunstâncias torna-se para nós motivo de
tristeza, pois “colamos” nossos sentimentos ao da personagem em destaque: o
marido. Parece-nos que o marido, assim como nós, também não tinha conhecimento
dos sentimentos da esposa, e para suprir esse desconhecimento colocou-se em seu
lugar, foi para dentro da gaiola. Percebeu, porém, que seu intento não seria
227
COLASANTI, 1986, p. 203.
228
BARTHES, 1996.
92
alcançado, pois não tendo alguém para tratá-lo “amorosamente” não alcançaria
jamais a experiência vivida pela esposa.
Na relação amorosa retratada no conto podemos identificar o que Laing explicitou
sobre a interpretação: “Tua experiência de mim é invisível a mim e minha
experiência de ti é invisível para ti”.
229
E, assim como no texto, a impossibilidade da
transparência mútua nos obriga à prática da interpretação. O marido considerava a
vida conjugal cheia de alegrias. A situação lhe agradava sobremaneira. A esposa, no
entanto, fugiu. Logo, podemos deduzir que não era tão feliz quanto o marido. Ele
busca vivenciar a experiência da esposa, e nós, leitores, como estamos “colados” a
ele pelo foco narrativo, somos também convidados a “entrar” na gaiola e descobrir o
que não nos foi mostrado.
O processo de comunicação [do leitor com o texto] se realiza [...] através da
dialética movida e regulada pelo que se mostra e se cala. O que se cala,
impulsiona o ato de constituição, ao mesmo tempo que este estímulo para a
produtividade é controlado pelo que foi dito, que muda, de sua parte,
quando se revela o que fora calado.
230
Temos no conto Cantata dividida uma outra situação. Quem vai embora é o marido,
e quem fica também não sabe muito bem o que fazer.
Cantata dividida
Desde os tempos de namoro, amavam-se numa língua que só os dois
conheciam. Com ela trocaram juras, com ela inventaram uma canção. E
mesmo depois de casados, embora falassem outras línguas na rua, ao
fechar a porta de casa só em sua língua se entendiam.
Foi também em sua língua que se desentenderam e, depois de muitas
brigas, resolveram separar suas vidas. Dividiram os discos, partilharam os
livros, ficou ela com os móveis do quarto, escolheu ele os da sala, e até o
piano dado pelos padrinhos foi feito em dois, cabendo a ela as teclas
brancas, enquanto ele se contentava com as pretas.
Apesar da perda da metade do cotidiano, ela lutava para conduzir a vida a
uma nova ordem quando uma tarde, sentada frente ao que restava do
piano, a revelação gelou-lhe as mãos. naquele instante, preparando-se
para cantar, percebeu que o amor nunca mais lhe seria possível. O marido
havia levado todas as consoantes da sua língua. E, subreptício [sic],
carregara consigo o segundo verso da canção.
231
229
WOLFGANG e JAUSS, 2002, p. 23.
230
Ibid., p. 90.
231
COLASANTI, 1986, p. 85.
93
Sabendo que o livro foi escrito em 1986, podemos supor que a situação apresentada
no conto já havia se tornado mais freqüente. O “recado” está nos detalhes da
situação. O título escolhido é Cantata dividida. A cantata é por si só, cheia de
contradições, pois é uma composição vocal muito extensa, de inspiração profana e
religiosa. É feita para uma ou várias vozes. Destinada aos salões, à igreja, ao
concerto, nunca ao teatro.
232
Assim também pode ser considerado o casamento,
cheio de situações contraditórias. Mas essa cantata foi dividida. E como foi feita
essa divisão? Ela ficou com os móveis do quarto, espaço mais privado da casa;
enquanto que ele escolheu os da sala, cômodo considerado como o espaço público
do lar, já que é ali que o casal normalmente recebe as visitas. Vemos, então,
reproduzida a relação social que submete a mulher aos espaços privados,
reservando ao homem o espaço público.
“Ela lutava para conduzir a vida a uma nova ordem”. Para a mulher, na maioria das
vezes, a separação é mais difícil, pois geralmente depende do marido
financeiramente, e pelas dificuldades históricas apresentadas por diversas vezes
nesse trabalho, tem mais dificuldades de se estabelecer profissionalmente. A língua
também foi dividida, e de maneira também não muito justa. “O marido havia levado
todas as consoantes da sua ngua”. A mulher fica, assim, impossibilitada de falar,
foi, mais uma vez, silenciada. Para Ardener, “o termo silenciado sugere problemas
tanto de linguagem quanto de poder”. Isso porque os grupos dominantes controlam
as formas ou estruturas nas quais a consciência pode ser articulada. Ou seja, “toda
linguagem é a linguagem da ordem dominante, e as mulheres, se falarem, devem
falar através dela”.
233
O marido, mesmo longe, controlará a sua fala “a ela restou
apenas as vogais” e o seu canto ficou apenas com as teclas brancas do piano
e o primeiro verso da canção. Essa divisão injusta torna-se mais um entrave para a
efetivação de conquistas por parte das mulheres. Essa efetiva concretização das
conquistas históricas e sociais da mulher é representada em outro conto do livro,
Tentando se segurar numa alça lilás.
Tentando se segurar numa alça lilás
Entrou no elevador.
232
FERREIRA, 2004, p. 207.
233
HOLLANDA, Heloísa Buarque de (Org). Tendências e impasses. Rio de Janeiro: Rocco, 1994, p.
47.
94
A um canto, outra mulher segurava firme debaixo do braço uma enorme
bolsa de couro lilás.
— Que ousadia, uma bolsa lilás — sorriu ela.
Acabei de dizer a um homem que o amo respondeu a outra. Então
entrei numa loja e, entre todas, escolhi essa bolsa. Eu precisava sentir nas
mãos a minha audácia.
Não sorriu. Agarrou-se náufraga na alça.
O verbo usado no gerúndio tentando expressa a idéia de que a ação está em
curso. O que nos remete aos ensaios apresentados no capítulo anterior em que
Marina Colasanti se propõe a, junto com suas leitoras, descobrir o novo papel da
mulher depois das conquistas do feminismo. Novo papel não em relação ao voto,
ao divórcio e ao mercado de trabalho as conquistas mais lembradas —, mas
também, e principalmente, na relação homem/mulher. A personagem apresentada
está tentando se segurar numa alça lilás. Essa é a cor usada nos símbolos
relacionados aos movimentos de mulheres. Podemos, então, “ouvir”, no sentido
barthiniano, que o título nos indica uma personagem que busca concretizar em suas
ações as mudanças alcançadas pelo movimento feminista.
“O lugar geográfico por onde as personagens circulam é de âmbito restrito”
234
o
elevador. Narrado em terceira pessoa, observamos a cena pelo olhar do narrador. A
primeira mulher, que estava no elevador, encontrava-se a um canto. Atitude que
pode ser entendida como que de medo ou insegurança. No entanto, a bolsa de
couro lilás que segurava debaixo do braço era enorme. Logo, estava ali para ser
vista, como prova de que o medo está sendo vencido. Ela segurava firme na bolsa,
mostrando que era algo que poderia lhe dar segurança.
Vejamos o olhar fotográfico do narrador que nos possibilita enxergar todas essas
nuances na postura da primeira mulher: “A um canto, outra mulher segurava firme
debaixo do braço uma enorme bolsa de couro lilás”.
A segunda mulher que entra no elevador também observa a primeira, como s. E
considera uma ousadia a bolsa lilás. Expressa sua opinião e sorri. Esse sorriso, não
sabemos se é de encorajamento, de pena ou de escárnio. Sabemos, porém, que a
mulher da bolsa lilás não lhe sorriu de volta. Mas apresentou uma justificativa para
234
MOISÉS, 1983, p. 22.
95
sua ação: “Acabei de dizer a um homem que o amo respondeu a outra. Então
entrei numa loja e, entre todas, escolhi essa bolsa. Eu precisava sentir nas mãos
minha audácia”.
A audácia é o impulso que leva a cometer atos arrojados ou difíceis.
235
A mulher
audaciosa disse a um homem que o amava. Historicamente a mulher é ensinada de
que, numa relação homem/mulher cabe-lhe o papel passivo, sempre à espera que o
homem tome a iniciativa. A mudança de atitude estava, e ainda está, em curso.
Mudar não é fácil, e por isso a ousadia lhe é demasiadamente cara. “Não sorriu.
Agarrou-se náufraga na alça”.
Naufragar é perder-se.
236
E para o náufrago nada melhor que uma ia na qual
possa segurar firme até que apareça alguém para resgatar-lhe. O feminismo, nesse
caso, pode ter sido essa “bóia” na qual essa mulher, e tantas outras, consciente ou
inconscientemente, se agarrou firmemente para continuar seu processo de
mudança.
A mudança, no entanto, não afeta à mulher. O homem também é deslocado de
seu espaço, a então muito bem demarcado histórico e socialmente. Marina
Colasanti também insere a reação do homem frente a tais mudanças.
É só não tomar conhecimento
Com a escova de dentes na mão, pousa a lagarta verde da pasta sobre as
cerdas, e levanta o rosto para o espelho, entreabrindo os lábios em esgar
higiênico. Mas no gesto rotineiro a rotina se rompe, e não é a si mesmo que
vê. Outro é o rosto que, contido no vidro, o encara sem sorriso ou
reconhecimento.
Em pânico, querendo segurar-se na objetividade dos atos práticos, abre o
espelho, porta do armarinho do banheiro. E eis que no reverso, costumeiro
como sempre, seu rosto espera, de lábios entreabertos, que ele comece a
escovar os dentes.
Corre a água sobre a escova levando os últimos restos de pasta. E
enxugando a boca com a toalha, ele pensa que o fato afinal não foi tão
grave, um susto apenas. Bastará deixar a porta aberta, ignorando o outro,
para que tudo continue como antes.
237
235
FERREIRA, 2004, p. 153.
236
Ibid., p.574.
237
COLASANTI, 1986, p. 145.
96
A cena escolhida para representar a ação do homem frente às mudanças do sexo
oposto não poderia ser mais rotineira: o ato de escovar os dentes, realizado todos os
dias, quase que automaticamente, sem a necessidade de uma atenção maior ao
fato. Mas, somos levados a perceber alguma coisa diferente logo na primeira frase.
“Com a escova de dentes na mão, pousa a lagarta verde da pasta sobre as cerdas
[...]”. Uma lagarta verde. Imagem que nos leva, também quase que
automaticamente, à outra imagem: a da borboleta que nasce de tal lagarta,
simbolizando a transformação. Depois da transformação, ao contemplar a
borboleta, não reconhecemos nela nada da lagarta de outrora. A personagem do
texto também não se reconhece no espelho. E em pânico tenta se segurar em
alguma coisa, como a mulher da bolsa lilás. Procura se segurar na “objetividade dos
atos práticos”, ou seja, naquilo que está acostumado a ver e fazer todos os dias.
Para isso, “abre o espelho” e no reverso seu rosto costumeiro o espera.
É no reverso do espelho que o homem reencontra sua tranqüilidade. Podemos
entender esse reverso como sendo o sexo feminino no papel que sempre
representou para a sociedade patriarcal: o reverso do sexo masculino.
Homem/mulher são comparados a pares tais como natureza/cultura, público/privado,
força/fraqueza, emoção/razão, e tantos outros pares conhecidos por nós. Cabe
sempre à mulher o lado considerado de menos valor.
A ação de abrir o espelho nos remete ao mito dos animais dos espelhos, contado
por Jorge Luis Borges em El libro de los seres imaginários. O mito conta a história de
Pez, un ser fugitivo y resplandeciente que nadie había tocado, pero que muchos
pretendían haber visto en el fondo de los espejos”.
238
Porém, Herbert Allen Giles,
acredita que o mito de Pez é parte de um mito mais amplo que se refere à época
legendária do Imperador Amarillo. De acordo com esse mito,
en aquel tiempo, el mundo de los espejos y el mundo de los hombres no
estaban, como ahora, incomunicados. Eran, además, muy diversos; no
coincidían ni los seres ni los colores ni las formas. Ambos reinos, el
especular y el humano, vivían en paz, se entraba y salía por los espejos.
Una noche, la gente del espejo invadla tierra. Su fuerza era grande, pero
al cabo de sangrientas batallas las artes mágicas del Emperador Amarillo
prevalecieron. Este rechaa los invasores, los encarceló en los espejos y
238
BORGES, Jorge Luis. Obras completas en colaboracion. Madrid: Alianza Editorial, 1983, p.132.
97
les impuso la tarea de repetir, como en una especie de sueño, todos los
actos de los hombres. Los privó de su fuerza y de su figura y los redujo a
meros reflejos serviles. Un día, sin embargo, sacudirán ese letargo mágico.
El primero que despertará será el Pez. En el fondo del espejo percibiremos
una línea muy tenue y el color de esa línea será un color no parecido a
ningún otro. Después, irán despertando las otras formas. Gradualmente
diferirán de nosotros, gradualmente no nos imitarán. Romperán las barreras
de vidrio o de metal y esta vez no serán vencidas. Junto a las criaturas de
los espejos combatirán las criaturas del agua.
239
Duas frases do conto de Marina Colasanti nos levaram ao texto de Borges: a
personagem abre o espelho, e, depois, deixa a porta aberta para que tudo continue
como antes. No mito contado por Borges, o antes remete ao tempo em que o reino
especular e o humano viviam em harmonia. Mas nesse tempo, eles Eran, además,
muy diversos; no coincidían ni los seres ni los colores ni las formas”. no conto de
Colasanti, o antes é um tempo em que o espelho refletia uma imagem idêntica à da
personagem. A mudança, de acordo com o mito, acontecerá gradualmente
exatamente como preconiza Marina Colasanti nos ensaios apresentados no capítulo
anterior. E desta vez as criaturas do espelho não serão vencidas.
“Corre a água sobre a escova levando os últimos restos de pasta”. Assim como no
mito, a água também ajudará a restabelecer a ordem do lugar — Junto a las
criaturas de los espejos combatirán las criaturas del agua”. E se formos bem atentos
ao peso das palavras que a autora nos relatou que seu maior prazer é tirar o
máximo do mínimo poderemos nos deter no fato de que “ele pensa que o fato
afinal o foi o grave, um susto apenas”. Ele pensa. Mas na verdade, nada mais
será como antes. Pois deixando a porta aberta “elas” Romperán las barreras de
vidrio o de metal y esta vez no serán vencidas”.
Como bem disse Michel Foucalt,
as fronteiras de um livro nunca são bem definidas; por trás do título, das
primeiras linhas e do último ponto final, por trás de sua configuração interna
e de sua forma autônoma, ele fica preso num sistema de referências a
outros livros, outros textos, outras frases: é um nó dentro de uma rede.
240
239
Ibid., p.132 e 133.
240
HUTCHEON, 1991, p. 167.
98
Sendo assim, se a autora não relacionou nenhuma das idéias apontadas nessa
análise, isso não desautoriza nossa interpretação, pois através das palavras de um
autor s, muitas vezes, como Barthes, somos levados a levantar a cabeça e ouvir
ecoar em nós palavras vindas de outros textos, “pois os livros continuam uns aos
outros, apesar de nosso hábito de julgá-los separadamente”.
241
E essas mesmas
palavras e idéias nos servem de “pre-texto” para nossa katharsis.
242
241
WOOLF, 1985, p. 106.
242
Designa-se por katharsis, unindo-se a determinação de Górgias com a de Aristóteles, aquele
prazer dos afetos provocados pelo discurso ou pela poesia, capaz de conduzir o ouvinte e o
expectador tanto à transformação de suas convicções, quanto à liberação de sua psique.
99
5. PONTO DESFEITO: O PERCURSO NÃO CONCLUÍDO
Necessitamos que uma voz úmida nos chame para que nossa alma
deixe de morrer de sede em nossa garganta.
Hélène Cixous
[...] Segurou a lançadeira ao contrário, e, jogando-a veloz de um lado
para o outro, começou a desfazer seu tecido.
Marina Colasanti
Ao longo deste trabalho, propusemo-nos a identificar como se deu a construção da
voz feminina na escrita de Marina Colasanti e se essa voz, dita feminina, contribuiu
para a visibilidade da mulher na literatura e na história. Escolhemos, para isso, dois
gêneros bem distintos dentre os vários visitados pela autora: o ensaio jornalístico e o
conto. Contudo, no decorrer do trabalho, outras questões apareceram: é, ainda,
necessário ter uma literatura que se ocupe da problemática feminina? As diferenças
que dizem respeito às questões de gênero já não foram suficientemente superadas?
É realmente necessário trazer para o âmbito da literatura uma questão de cunho
ideológico e político? Para responder a tais questões procurei mostrar, ao longo
deste trabalho, que a história social da mulher reflete diretamente na sua história
literária. De Mary Wollstonecraft a Marina Colasanti a literatura está ligada aos
valores ideológicos e políticos. Sabemos que a literatura é feita de muitas outras
questões, mas, neste trabalho especificamente, nossa proposta esteve voltada para
a problemática feminina e em como uma autora, Marina Colasanti, contribuiu,
através da literatura, para mudanças sociais concernentes ao papel da mulher.
Nos ensaios, ponto de partida de nossa análise, ficou evidente a participação da
autora em movimentos ligados ao movimento feminista. Afastamos-nos, então, da
teoria da morte do autor, e procuramos abertamente aproximar a autora de sua obra.
O que não foi difícil nesse primeiro gênero, que o ensaio se propõe como um
espaço de reflexões. E nesse espaço, a voz que apareceu foi a da própria autora,
como mulher que ocupa seu lugar na sociedade. Ou melhor, lugares, pois nos
100
textos, a autora se apresentou como escritora, mãe, jornalista, artista plástica e
esposa. Essa foi uma voz questionadora, que propôs o repensar as normas
estabelecidas e a aceitação da inferioridade natural da mulher. Marina Colasanti
falava com suas iguais, pois, publicados originalmente numa revista feminina de
grande circulação, os ensaios eram dirigidos às mulheres de classe média. Essas
leitoras, então, buscando o ensaio, estavam atrás de novos conhecimentos, novas
visões. E tendo uma revista feminina como suporte primário, deduzimos de pronto
que as leitoras já sabiam o conteúdo dos textos: a problemática feminina. Mas nossa
análise se deu posteriormente, quando os textos já haviam sido transportados para o
livro. Isso direcionou ainda mais nossa pesquisa, pois a própria seleção dos textos
para publicação em livro apontou para a escolha ideológica da autora. Os textos
continuaram com um público determinado os títulos dos livros apontam para isso:
A nova mulher e Mulher daqui pra frente e as reflexões propostas pela autora
revelaram sua insistência na questão do feminino, e, principalmente, na teoria,
bem trabalhada por Simone de Beauvoir, de que a educação da mulher é a principal
razão da permanência da desigualdade social entre os sexos. A preocupação da
autora chegou, em alguns pontos, a nos parecer exagerada. Talvez para tentar
encobrir o grande abismo que existe entre homens e mulheres quando o assunto
são as benesses da educação.
Iniciamos este trabalho buscando as origens dessa desigualdade, e constatamos o
que não é novidade para ninguém, que a mulher, por ter sido sempre subjugada à
vontade masculina, não teve tempo, nem espaço, nem dinheiro suficiente para
usufruir a educação oferecida tão benignamente aos homens das classes
abastadas. Marina Colasanti justifica a posição ocupada pelas mulheres daquela
época — início dos anos 1980 — pela falta de conhecimento e pelo acúmulo de uma
história carregada de um patriarcalismo repressor que, de posse do poder,
oferecia à mulher a educação que lhe convinha. Colasanti insiste em mostrar às
suas leitoras que o cenário atual foi construído sob um discurso histórico que
procurou desqualificar a mulher em todas as áreas. Ousamos afirmar que Marina
Colasanti seguiu a proposta de Beauvoir e foi, texto a texto, fazendo uma análise
biológica, sociológica, psicológica e histórica da mulher. Falou de pesquisas
científicas que comprovam que a inferioridade da mulher foi um engodo, buscou na
relação amorosa entre homem e mulher o ponto de partida para as mudanças
101
necessárias para uma sociedade que respeitasse as especificidades da mulher,
deixando de encará-las como fraquezas. Ficou, assim, patente a influência dos
ideais feministas na escrita de Colasanti, pois todas essas questões apontadas e
analisadas pela autora formam a base do movimento feminista que abordamos em
nosso primeiro capítulo.
essa constatação, no entanto, não foi suficiente para responder nossa questão
inicial. O ensaio é considerado gênero factual, portanto, mais acessível a essa
aproximação de texto/autor que propomos. Continuamos nossa pesquisa partindo
para o texto ficcional. Propusemo-nos uma nova pergunta: Será possível, numa obra
de ficção, identificar a mesma preocupação da autora em relação à condição de
submissão da mulher? Ou discutir o feminismo era apenas injunção profissional?
Escolhemos para nossa análise o livro Contos de amor rasgados por entender que
nele também encontraríamos a relação amorosa entre homem e mulher como ponto
de partida para a criação literária. A extensão dos contos também foi um fator que
influenciou nossa escolha. A própria autora os classificou de mini-contos, tal o poder
de concisão desenvolvido nos textos. Voltamos nosso olhar novamente para a
construção da voz feminina nos textos, o que a voz dizia, ou calava. Em contraponto
com os ensaios, todos os contos apresentados, com exceção de apenas um, foram
narrados em terceira pessoa. E o que essa voz “alheia retratava? Justamente a
relação amorosa homem/mulher reproduzindo a situação histórica que, segundo a
própria autora em seus ensaios, deveria ter sido ultrapassada. Algumas
personagens masculinas apresentadas agiam imbuídas do poder do pater familias,
vendo a companheira como uma propriedade. O exagero encontrado nos ensaios se
repetiu nos contos. A autora repete insistentemente são 99 contos a questão
da submissão da mulher. O contraponto se faz pela maneira como a questão foi
trabalhada. Os contos apresentaram situações que, por sua estranheza, podem
causar no leitor/leitora certa inquietação. O fato é estranho, no entanto nos foi
apresentado pelo narrador como algo corriqueiro. O leitor podia, assim, se sentir
convidado a pensar sobre sua inquietação. O gênero conto se caracteriza pela
apresentação de um flagrante, episódio singular. Buscamos, a partir daí, detectar
nesses flagrantes aquela mesma voz feminina que procurava, nos ensaios, trazer à
baila discussões da problemática feminina. Concentramos-nos também em perceber
102
se o enfraquecimento do feminismo enquanto movimento social repercutiu na escrita
da autora.
No decorrer da análise percebemos, desde o início, que a autora se propunha, sim,
também no âmbito ficcional, a discutir sobre o papel social da mulher. As
personagens femininas apresentadas se mostraram como fragmentos de um único
“eu”. A figura tripartida da mulher, trabalhada nos ensaios mãe/mulher/esposa —,
volta à cena. A voz estruturada pela autora, no entanto, não foi mais a voz ativa e
questionadora dos ensaios. A voz dos contos foi silenciada. As personagens, em
sua maioria, falaram através do não-dito. E o não-dito nos revelou que a mulher,
sendo tratada como simples propriedade, perde sua essência de mulher, e,
conseqüentemente, deixa também de ser o que o homem/companheiro desejava
inicialmente. Essa estratégia discursiva, utilizada na maioria dos contos, talvez se
explique pelo fato de os contos, diferentemente dos ensaios, não terem seu público
leitor predeterminado, podendo ser lido tanto por homens quanto por mulheres.
Encontramos nos contos selecionados as mesmas questões tratadas nos ensaios,
porém os textos ficcionais não trazem as reflexões em sua superfície, neles, a
interpretação depende do olhar que o leitor/leitora lança sobre o texto. E o meu olhar
de pesquisadora, em momento nenhum deixou de ser também um olhar feminino. E
aqui, para concluir, abandono o tom impessoal que uma pesquisa acadêmica requer.
A pesquisadora que ora se apresentou neste trabalho, foi precedida pela leitora, e é
impossível separar a pesquisadora da leitora, da professora, da mãe, da mulher que
sou. Não existe teoria “pura”, como não existe interpretação “pura”. Minha
interpretação de qualquer texto, seja ele literário ou não, vem carregada da minha
história pessoal, que de maneira nenhuma é solitária. Sou o reflexo de onde vivo,
com quem vivo, como vivo. Assim como Marina Colasanti, minha essência é
feminina. E essa essência se imprime naquilo que faço. E não foi diferente neste
trabalho. Numa sociedade onde ainda é necessária a criação de leis, como a lei
Maria da Penha, em defesa dos direitos da mulher, respondo sem medo, é preciso,
sim, ainda trazer para o âmbito da literatura questões consideradas de cunho
ideológico e político. É preciso, sim, estudar as autoras femininas para fortalecer a
imagem da mulher no espaço literário, pois os cânones literários ainda são
privilégios de mãos masculinas. É imperativo que se registre a presença das
103
mulheres em todas as áreas, pois a História é construída dia a dia e a História que
chegará às mãos das gerações futuras é aquela que fica registrada, no papel, na
consciência, na essência do ser humano. E essa essência também é FEMININA.
104
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