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AS REPRESENTAÇÕES PAGÃ E CRISTÃ SOBRE O CORPO SENTENCIADO
V
ITÓRIA
2009
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AIXO
I
MPÉRIO
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OMANO
AS REPRESENTAÇÕES PAGÃ E CRISTÃ SOBRE O CORPO SENTENCIADO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em
História do Centro de Ciências Humanas e Naturais da
Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial
para a obtenção do grau de Mestre em História, na área de
concentração em História Social das Relações Políticas, sob
orientação do Prof. Dr. Gilvan Ventura da Silva.
Vitória
2009
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Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP)
(Biblioteca Central da Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil)
Nascimento, Geciane Soares do, 1976 -
N244s Suplício, martírio e poder no Baixo Império Romano : as
representações pagã e cristã sobre o corpo sentenciado / Geciane Soares
do Nascimento. – 2009.
146 f.
Orientador: Gilvan Ventura da Silva.
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Espírito Santo,
Centro de Ciências Humanas e Naturais.
1. Eusébio, de Cesaréia, Bispo de Cesaréia, ca.260-ca.340. 2. Martírio.
3. Roma - História - Império, 30 A.C.- 476D.C. I. Silva, Gilvan Ventura da. II.
Universidade Federal do Espírito Santo. Centro de Ciências Humanas e
Naturais. III. Título.
CDU: 93/99
G
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MPÉRIO
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OMANO
AS REPRESENTAÇÕES PAGÃ E CRISTÃ SOBRE O CORPO SENTENCIADO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em História do Centro de
Ciências Humanas e Naturais da Universidade Federal do Espírito Santo, como
requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em História, na área de
concentração em História Social das Relações Políticas.
Aprovada em ______ de ___________ de 2009.
Comissão Examinadora:
—————————————————————
Prof. Dr. Gilvan Ventura da Silva
Universidade Federal do Espírito Santo
Orientador
—————————————————————
Profª. Drª. Claudia Beltrão da Rosa
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
Membro
—————————————————————
Prof. Dr. Sergio Alberto Feldman
Universidade Federal do Espírito Santo
Membro
A
GRADECIMENTOS
Em primeiro lugar, à minha mãe, pelo grande esforço e amor a mim dedicados.
Ao Prof. Dr. Gilvan Ventura da Silva, pela dedicação e atenção que me vem devotando,
não no Mestrado, mas, também desde a graduação, pela paciência com meus erros e
por seus ensinamentos tão valiosos que me fizeram ser o que sou hoje.
Aos membros da Banca de Qualificação, Profª. Drª. Olga Maria C. Machado
Soubbotnik e Prof. Dr. Sergio Alberto Feldman, pelas importantes observações que me
fizeram atentar para aspectos do trabalho que passaram despercebidos.
Às funcionárias da Biblioteca Central da Ufes Patrícia Pacheco Barros e Adriana dos
Santos, pela disposição e boa vontade em buscar artigos necessários à pesquisa.
Às bibliotecas de Letras e de História/Geografia da FFLCH da USP, de onde eu trouxe
grande parte da bibliografia utilizada nesta dissertação.
À professora Maria Dalva Marchezi Rosário, em reconhecimento ao competente
trabalho e carinho e cuidado dispensados à revisão desta dissertação.
À Érica Cristhyane Morais da Silva, primeira grande companheira dessa jornada e
grande exemplo de luta e dedicação.
Aos meus amigos e familiares, que perdoaram minhas ausências e me incentivam num
afeto sempre cativante.
S
UMÁRIO
I
NTRODUÇÃO ......................................................................................................................... 09
C
APÍTULO 1:
O I
MPÉRIO
R
OMANO E O
C
RISTIANISMO ........................................................ 28
Um mundo em transformação ....................................................................................... 28
A concepção religiosa romana entre o paganismo e o cristianismo .............................. 37
As primeiras perseguições contra os cristãos ...................................... ............................ 47
O ciclo de perseguições sob a Anarquia Militar e a Tetrarquia ......................................... 52
C
APÍTULO 2:
O C
ORPO
S
UPLICIADO: A
D
EGRADAÇÃO DO
T
RANSGRESSOR .................... 71
O corpo, um novo horizonte de pesquisa ......................................................................... 71
Roma, o corpo e a morte ................................................................................................... 79
As penalidades dirigidas contra o corpo ............................................................................ 83
C
APÍTULO 3:
O C
ORPO
R
EDIMIDO: A
C
ONSTRUÇÃO DO
M
ÁRTIR .................................. 100
A concepção cristã do corpo (séculos III e IV) ............................................................... 100
Os mártires, testemunhas da fé ........................................................................................ 112
O martírio como recurso pedagógico ............................................................................... 114
C
ONSIDERAÇÕES
F
INAIS ........................................................................................................................ 121
R
EFERÊNCIAS ............................................................................................................................................. 127
R
ESUMO
Entre 235 e 284, o Império Romano vive um período de aguda crise conhecido
como Anarquia Militar, ocasião em que o Império tem de enfrentar, além das sucessivas
usurpações, dificuldades de transportes, intermináveis conflagrações com os “bárbaros”
e persas, corrupção de funcionários públicos, carência de mão-de-obra para o exército e
levantes camponeses e urbanos, o que exige um reaparelhamento do Estado a fim de
contornar os efeitos gerados por essa crise. Na seqüência, em 284, dá-se a ascensão de
Diocleciano, que inaugura um amplo conjunto de reformas visando a garantir a
governabilidade do Império. Num contexto como esse, de aguda crise política, verifica-
se ainda a deflagração, por parte das autoridades romanas, de uma perseguição religiosa
ostensiva em nome da manutenção das tradições politeístas cujo oponente, o
cristianismo, começa a conquistar a visibilidade popular e a ameaçar o mos
maiorum. São estabelecidas então novas relações de poder e novas representações entre
os grupos envolvidos, o que marca de maneira significativa a sociedade da
época. Tendo em vista essas considerações, analisamos, na presente dissertação, as
representações pagã e cristã do corpo do cristão supliciado sob as perseguições de
Décio, Valeriano e Diocleciano. Do embate entre os defensores do monoteísmo cristão
e os protetores das tradições romanas surgem os mártires da Igreja, ou seja, indivíduos
que, diante da recusa em abjurar da sua fé, têm seus corpos supliciados de várias formas
pelo poder imperial, de maneira que seus corpos figuram, para nós, como registros
capazes de revelar indícios da luta de representações que se estabelece entre os pagãos e
os cristãos à época.
A
BSTRACT
Between 235 and 284, the Roman Empire lives a period of serious crisis known
as Military Anarchy. In this period, besides successive usurpations, the Empire has to
face transportation difficulties, interminable conflagrations with the “Barbarians” and
Persians, corruption of civil servants, lack of workforce for the army and peasant and
urban uprisings, which demand restructuring the State in order to overcome the effects
generated by this crisis. Subsequently, in 284, Diocletian rises and opens a set of
reforms aiming at ensuring the Empire’s governability. In a context of serious political
crisis such as this, the Roman authorities also deflagrate an ostensive religious
persecution in the name of polytheistic traditions, whose opponent, Christianity, starts
to conquer popular visibility and to threaten the mos maiorum. New relations with
power and new representations among the groups involved are then established, which
marks the society of that time significantly. Taking this into account, this dissertation
analyzes the pagan and Christian representations of the Christian body that suffered
with the persecutions by Decius, Valerian and Diocletian. From the struggle between
the Christian monotheism defenders and the protectors of Roman traditions, Christian
martyrs rise, i.e. individuals who, before the refusal of giving up their faith, have their
bodies tortured in several ways by the imperial power, in a way that their bodies
represent, to us today, records that can reveal indications of the fight of representations
between pagans and Christians at the time.
Á minha mãe, ela sabe por quê.
9
I
NTRODUÇÃO
A história começa onde os documentos se tornam inteligíveis, e, como
assinala Marrou (1974, p. 61), é por meio deles, ou seja, por meio de seus traços, que
podemos tentar capturar parte do passado.
1
A inteligibilidade da história não está no
conhecimento do seu significado último, da sua finalidade misteriosa. A história possui,
segundo Foucault (2002, p.23), a inteligibilidade das lutas e das estratégias, uma vez
que não há, na história, a continuidade a partir de um princípio ou em direção a um fim,
visto que ela é marcada por rupturas, recomeços contínuos, definidos por lutas e
relações de forças. Desse modo, a história, tomada por estratégias simbólicas, passa a
registrar as posições e as relações que se constroem no embate de cada grupo ou meio,
de onde irrompem suas identidades.
Assim, as lutas e embates sociais que configuram uma parte significativa das
estruturas de poder o o nosso objeto de estudo nessa dissertação. Trata-se
especificamente das perseguições religiosas empreendidas pelo poder imperial romano
contra os cristãos que viveram o período da Anarquia Militar e a fase posterior de
reintegração da orbis romanorum, realizada por Diocleciano.
Esse contexto evidencia a mais cáustica perseguição religiosa travada pelos
romanos em nome de sua tradição e da manutenção de suas deidades, cujo oponente, o
cristianismo, começava a conquistar a visibilidade popular e a se chocar com os
princípios religiosos há muito estabelecidos, como afirma Brown (1990, p.7).
1
O documento, neste sentido, não é qualquer coisa que fica por conta do passado; é um produto da
sociedade que o fabricou segundo relações de forças que detinham o poder, como demonstra Le Goff
(1992, p. 535).
10
Compreendidos entre os anos de 235 e 284, encontram-se as lutas e conflitos que
marcaram de maneira singular a História do Cristianismo e do próprio Império. Nesse
período da História de Roma, também se observam mudanças significativas no cenário
político-administrativo, uma vez que a configuração da chamada “Anarquia Militar”
(235-284) desemboca, sob o calor de grandes embates, em um “novo” arranjo de
governo proposto pelo imperador Diocleciano, a Tetrarquia, de 293 a 326.
Assiste-se, assim, durante o terceiro século da Era Cristã, a uma intensa crise do
poder imperial, que é sentida em todas as instâncias de Roma e que é seguida,
posteriormente, de um processo responsável pela reestruturação do poder político
imperial, que acaba por promover uma reorganização da ordem imperial romana.
Simultaneamente, verifica-se um violento embate travado entre a Igreja e o
poder imperial pagão. Nesse conflito, são estabelecidas novas relações de poder e
representações entre os grupos envolvidos, o que marca de maneira significativa a
sociedade da época.
Do embate entre os defensores do monoteísmo cristão e os protetores das
tradições romanas, surgiram os mártires da Igreja, ou seja, indivíduos que morreram em
nome da fidelidade aos preceitos cristãos, que tiveram seus corpos marcados de várias
formas pelas punições efetuadas pelo poder imperial. Seus corpos figuram, pois, para
nós, como registros capazes de revelar indícios sobre os conflitos político-religiosos,
culturais e simbólicos do período.
Afinal, o comportamento humano e as relações sociais constituem uma
linguagem traduzida pela cultura, e esta, por sua vez, orienta o comportamento dos
indivíduos em sua vida e morte em sociedade.
11
A sociedade, portanto, é aqui entendida como uma entidade provida de sentido,
de maneira que a morte aparece como um elemento de significado importante, visto que
possui eficácia ritual, não podendo ser esquecida com facilidade, especialmente quando
atinge o corpo de personagens que carregam características especiais para um dado
grupo.
Desse modo, como sugere Rodrigues (1983, p. 89), o ato de morrer numa
situação pública acaba valorizando simbolicamente a morte em questão. Assim, o corpo
porta em si a marca da vida social, expressa os conflitos de um tempo e faz imprimir
fisicamente sobre ele os registros de transformações, em que a sociedade projeta a
fisionomia de seu espírito. Nesse sentido, cada sociedade produz um inventário das
marcas e impressões dos conflitos vividos em seu interior, que são, para nós, mensagens
de seus códigos de conduta que revelam, na superfície do corpo, as profundezas da vida
social.
No que toca ao foco deste nosso estudo, concentra-se ele em torno do corpo
supliciado, que assumiu uma dupla representação dentro do contexto da perseguição aos
cristãos do final do século III e início do século IV, ao se imprimirem sobre o corpo as
interpretações pagã e cristã do conflito. Trabalhamos, pois, na exploração de uma
documentação que revela duas frentes de percepção do corpo: a cristã, representada pela
obra História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia, e a pagã, assinalada nos editos
imperiais abordados em Les empereurs et le christianisme, por Leon Homo.
A partir dessa documentação, pudemos interpretar o corpo como elemento para
as análises dos conflitos políticos, como propõe a História Cultural. O foco deste estudo
sugere, portanto, uma observação minuciosa das representações referentes ao corpo. O
corpo que foi duplamente apropriado: por um lado, punido, como fruto de uma intensa
12
perseguição em nome da defesa das tradições romanas e da manutenção dos preceitos
pagãos; por outro, adorado pelos cristãos, que o tornaram um símbolo sagrado, o “corpo
santificado”. Tal perspectiva de análise a respeito do conflito entre o paganismo e o
cristianismo é algo ainda pouco explorado.
Muito foi dito sobre o corpo e também sobre a crise do Baixo Império, mas
ainda não se tem um olhar mais atento sobre o corpo no que se refere a sua
representação político-religiosa nesse momento histórico. Assim, nosso estudo pretende
compreender o corpo supliciado, o corpo que, por ordem de editos imperiais, por meio
da ação pagã, faz surgir um ícone da fé cristã: o mártir cristão, dentro de um contexto de
transformação das estruturas políticas romanas.
Trata-se de um estudo da figura do mártir, do transgressor cristão, que foi
exemplarmente penalizado pela ordem pagã e que assume, para seus iguais, a condição
de elemento sagrado. Ele é, pois, um elemento ressimbolizado, visto que, para a tradição
romana, trata-se do condenado, do desviante que deve ser execrado, ao passo que, para
os cristãos, o mesmo indivíduo, por meio do suplício infligido pelos pagãos, assume a
conotação de santidade.
Desse modo, o fenômeno do martírio comporta, segundo nossa hipótese, uma re-
significação por parte do cristianismo dos suplícios deflagrados sobre o corpo do cristão
durante a perseguição, pois cada ação executada sobre o corpo do cristão assume
significados distintos. O significado atribuído pelo poder imperial é o de degradação e
danação daquele que está sendo executado. Afinal, trata-se de um traidor da tradição
romana, o qual não reconhece os deuses e ignora a influência destes na vida cotidiana,
além de descumprir as determinações imperiais. Já para os cristãos, a dor e o sofrimento
dos mártires assumem a conotação de ação purificadora, uma vez que a tortura e a morte
13
infligidas sobre seu corpo são processadas como parte de um ritual ascético, ou seja, de
elevação espiritual.
Dessa maneira, o corpo do cristão supliciado é passível de receber duas
representações opostas: uma efetuada pelos cristãos, que assume o aspecto de
purificação e glória; outra pelos pagãos, que apresenta uma leitura de punição e repulsa.
Os documentos que concedem voz a tais embates religiosos e que exploramos
nesta dissertação apresentam-se sob duas modalidades distintas. A primeira é uma
documentação que nos permite interpretar o conflito sob a perspectiva cristã,
representada aqui pela obra História Eclesiástica, escrita por Eusébio de Cesaréia,
considerado um dos Padres da Igreja e precursor do gênero da História da Igreja. Essa
obra é composta de dez livros, que nos trazem informações importantes para o estudo
dos primórdios do cristianismo bem como dos intensos embates sóciorreligiosos que
marcam o Baixo Império.
Eusébio nasceu na cidade de Cesaréia, localizada na Palestina. Filho de família
ilustre, estudou em sua cidade natal, onde teve contato com a escola de Orígenes (185-
254), local onde se reuniam diversos sábios e filósofos das mais distintas correntes de
pensamento. Segundo Gurruchaga (1994, p. 284), tal experiência influenciou
diretamente seu pensamento e sua produção. Em 311, tornou-se bispo de Cesaréa em
substituição a Pânfilo, que fora encarcerado e executado no decorrer da Grande
Perseguição.
Historiador, cronólogo, teólogo, apologista, político, retórico e cronista,
considerado o mais erudito clérigo de sua época, Eusébio devotou boa parte de sua vida
14
a defender a união entre o Estado romano e a Igreja. Essa união se tornaria um dos
sustentáculos do longo reinado de Constantino, como afirma Oliveira (2005, p. 18).
Tendo em vista a ampla produção de Eusébio, podemos, como sugere Knight (2008, p.
72), classificá-la em diferentes categorias para melhor compreender o contexto de sua
produção. Existem as obras de caráter histórico, as de caráter apologético e as de
exegese, além de outras obras como orações e sermões de algumas das quais
restam fragmentos.
Dentre as obras de caráter histórico, podemos destacar as seguintes: A Vida
Perdida de nfilo, trabalho que descreve a relação de Pânfilo com os estudantes
pobres; Mártires da Palestina, obra que retrata as perseguições e os martírios ocorridos
na Palestina; A História Eclesiástica, que nos revela como Eusébio viveu o período de
transição do Mundo Antigo, momento em que a velha ordem romana estava sendo
forçada a re-visitar seus valores e preceitos. Por meio dessa obra, Eusébio transforma as
experiências da Igreja num conjunto de elementos históricos, com os quais retrata a
glória do cristianismo sobre a tradição romana, ou seja, apresenta a História da Igreja
como sendo o relato da vitória sobre os pagãos; Vida de Constantino, panegírico
formado por quatro livros, que, além de exaltar o imperador Constantino, nos traz
também informações sobre o Concílio de Nicéia e a questão ariana.
2
2
Os panegíricos, segundo Gérvas (1991, p. 45), designavam, em sua origem, os discursos pronunciados na
Grécia por ocasião de determinadas assembléias solenes, como as que tinham lugar durante as
Panatenaicas e os Jogos Olímpicos. Em 380 a.C., com o discurso de Isócrates em louvor
a Atenas, os
panegíricos se converteram em orações laudatórias destinadas a celebrar a glória das cidades ou de
indivíduos em particular. Somente a partir de Cícero o gênero se difundiu em Roma, tendo laudatio por
sinônimo. No decorrer do Principado, os panegíricos foram integrados ao protocolo imperial, sendo
pronunciados em diversas ocasiões, na maior parte das vezes sem que os protagonistas (isto é, os
imperadores) estivessem presentes: aniversário da fundação de Roma; comemoração do dies imperii;
súplica de uma cidade; natalis imperial; morte de um usurpador e gratiarium actio pelo consulado. Os
panegíricos eram, em geral, encomendados aos oradores mais respeitados de cada município, os quais
atuaram de modo decisivo no sentido de adaptar a retórica à comunicação política no Império Romano.
15
Entre as obras de caráter apologético, destacam-se estas três: Contra Hierocles,
referente a um governante da Bitínia que, para Eusébio, figura como um inimigo dos
cristãos, um personagem com o qual Eusébio travou um debate em defesa da cristã;
Praeparatio Evangelica e Demonstratio Evangélica. O primeiro trabalho é composto
por quinze livros; o segundo, por vinte livros. Na verdade, trata-se de uma obra
escrita em partes, cujo objetivo é justificar o cristianismo e rejeitar a religião e a
filosofia de base grega. Trata-se de um trabalho grandioso, não apenas em relação à
composição dos volumes como também ao propósito de Eusébio.
Dentre as obras de exegese, destacamos Seções e Cânones, trabalho de Eusébio
sobre os Evangelhos. Quanto aos sermões e orações, destacam-se as Orações Tricenais
ou De Laudibus Constantini, o primeiro e mais importante documento a especificar as
raízes de uma teologia política que ratifica a sacralidade do imperador em termos
cristãos.
3
Mediante essa breve exposição, percebe-se o quanto é significativo o conjunto de
obras produzidas por Eusébio. Para os fins deste estudo, concentramo-nos, porém,
exclusivamente na obra História Eclesiástica, uma vez que ela retrata as perseguições
que motivam o nosso trabalho.
Antes de escrever a História Eclesiástica, Eusébio tinha recolhido e transcrito,
na Coleção dos Antigos Mártires, uma vasta documentação (atos dos processos de
mártires, paixões, apologias, testemunhos de indivíduos e comunidades) referente aos
cristãos supliciados antes da Grande Perseguição.
A História Eclesiástica foi escrita entre os anos de 311 e 324 e se apresenta na
forma de um discurso no qual o próprio Eusébio fornece seu testemunho da jornada do
3
Em seu estudo, Oliveira (2005, p. 28) analisa a Tricennalia de Constantino ou De Laudibus Constantini
tendo em vista a relação do imperador Constantino com o cristianismo.
16
cristianismo rumo ao triunfo da Igreja. Nesse sentido, como escreve Orlandi (1996, p.
58), a História Eclesiástica é uma forma de registro permanente no tempo, um discurso
constituído por uma unidade complexa, um todo que resulta das articulações sociais
entre cristãos e pagãos e que pretende afirmar a memória cristã em detrimento da visão
pagã de mundo.
Para Momigliano (1993, p. 73), ao escrever a História Eclesiástica, Eusébio
inaugurou o gênero da História da Igreja, um tipo de produção historiográfica realizado
por membros da hierarquia eclesiástica voltados para a descrição do percurso e do
triunfo da ecclesia, do povo de Deus. Tal empreitada o fez figurar na história, segundo
Gurruchaga (1994, p. 58), como um teólogo de expressão, responsável pela afirmação
de um novo gênero literário que ganharia adeptos nos séculos posteriores.
Essa obra é fruto de 25 anos de pesquisa histórica, contínua e apaixonada. Nela,
Eusébio narra, nos sete primeiros livros, a história da Igreja, das origens até 303,
passando pelas perseguições contra os cristãos durante o período da Anarquia Militar,
especialmente nos governos dos imperadores Décio e Valeriano, informações essas
contidas nos livros VI e VII. Os livros VIII e IX referem-se à perseguição iniciada por
Diocleciano em 303 e concluída no Ocidente em 308, tendo continuado no Oriente com
Galério, até o Edito de Tolerância (311) e a morte de Maximino (313). O livro X
descreve a trajetória da Igreja até a vitória de Constantino sobre Licínio e a unificação
do Império (323).
Assim, notam-se duas fases na vasta obra de Eusébio: a primeira, caracterizada
pela prática da filologia bíblica e pelo trabalho como arquivista da memória do
cristianismo primitivo, o que o auxilia na redação da Crônica e posteriormente da
História Eclesiástica. Essa primeira fase se encerra com a Grande Perseguição, o que
17
determina as “novas” características presentes no seu trabalho, perceptíveis na redação
dos Mártires da Palestina e nos livros VIII a X da História Eclesiástica.
Poupado pela perseguição de Diocleciano (303-311), Eusébio foi dela
testemunha excepcional, porque viu pessoalmente a destruição de igrejas, as fogueiras
de livros sagrados e muitas cenas de martírio na Palestina, na Fenícia e até na distante
Tebaida do Egito, deixando-nos uma narrativa de grande valor histórico.
Na História Eclesiástica, Eusébio assume uma postura de testemunha da
perseguição e de propagador da memória daqueles que foram martirizados,
“identificando-os como parte responsável pelo triunfo posterior da Igreja” (Moreschini
& Norelli, 1996, p. 544).
Os martírios descritos por Eusébio são provenientes de regiões orientais do
Império, especialmente de Cesaréia e Alexandria, “tendo por propósito estabelecer a
visão de uma Igreja triunfante sobre todos os obstáculos”, como nos informa Donini
(1988, p. 163).
O outro corpus documental explorado nessa dissertação nos revela a perspectiva
pagã referente ao martírio. Ele é constituído por excertos recolhidos por Leon
Homo
na
obra intitulada Les empereurs et le christianisme.
Nela o autor nos apresenta uma
documentação valiosa referente à história das perseguições contra o cristianismo,
passando por textos que expõem o controle exercido pelo poder imperial nos três
primeiros culos do Império, chegando aos editos de perseguição e ao edito de
tolerância. Na segunda seção da obra, Homo reproduz importantes textos legislativos
dos imperadores contra o cristianismo, o que nos permite captar a posição oficial
romana acerca do problema.
18
A obra recolhe, assim, textos provenientes do Direito Romano, tais como editos,
libelos e sentenças, com os quais se pretende estabelecer a visão do poder imperial
sobre o corpo dos cristãos sentenciados que foram perseguidos e mortos.
Do ponto de vista teórico, a presente investigação se baseia na Nova História
Cultural. Como assinala Pesavento (2003, p. 43), a História Cultural permite-nos
decifrar a realidade do passado por meio das representações, tentando chegar àquelas
formas discursivas ou imagéticas pelas quais o homem expressa a si e ao mundo que o
circunda. É um processo complexo em que a leitura dos códigos de um outro tempo são
os filtros que o passado interpõe.
Assim, pensar a formação das representações no Império Romano com base nos
editos, libelos e sentenças, bem como na História Eclesiástica sugere uma prática que
permite enxergar com maior amplitude os múltiplos conflitos presentes naquele
momento histórico. Essa postura é defendida também pela Nova História Política, que
acaba contribuindo para promover, “sob o calor da história”, um “novo passado”, como
sugere Guarinello (2006, p. 17). Esse novo posicionamento perante a História acaba
gerando grande interesse no domínio da História Antiga, haja vista os múltiplos
conflitos que ocorrem no Baixo Império, motivados por fatores de ordem religiosa e
política.
Desse modo, consideramos apropriada, na realização desta pesquisa, a utilização
de duas diretrizes específicas e intimamente integradas. Trata-se da ênfase na História
Política e na luta de representação assumida pelo poder em momentos de conflito.
19
O poder não se restringe ao aparelho do Estado. Como prática social, o poder é
multifacetado, existindo sob formas diversas em diferentes lugares e épocas. Essa nova
interpretação acerca do poder, introduzida por Foucault, provocou um deslocamento.
Fez, como evidencia Falcon (1997, p. 75), com que os historiadores se voltassem para
outras esferas da vida social, pois as práticas políticas poderiam ser encontradas em
outros lugares além do Estado. Ou seja, o poder poderia revelar-se “em lugares
históricos pouco conhecidos [...] família, escola, asilos, prisões, hospitais, hospícios,
polícia, oficinas, fábricas [...] em suma, no cotidiano de cada indivíduo ou grupo social”
e, mais, interpor-se nas diferentes relações sociais entre indivíduos ou entre grupos
sociais. Outras contribuições também apontam novos caminhos no estudo do poder e da
política. As teorias provenientes tanto da Antropologia quanto da História Cultural
fornecem avanços significativos para a compreensão dos fenômenos políticos.
Esses dois campos do conhecimento são responsáveis pela introdução de novos
conceitos ao vocabulário político. A noção de representação, de Chartier (1990, p. 17),
a idéia de teatrocracia, de Balandier (1981, p. 5), e o conceito de habitus, de Bourdieu
(2003, p. 169), são alguns dos exemplos que direcionaram o debate historiográfico para
a discussão dos mecanismos simbólicos do poder e que auxiliam na compreensão da sua
dimensão invisível. Especialmente, o conceito de teatrocracia de Balandier trouxe à luz
uma série de mecanismos e estratégias simbólicas que contribuem para a manutenção de
uma ordem política estabelecida sem necessariamente recorrer ao uso da força.
Balandier (1981, p. 7) afirma que o poder e a ordem política mantida “unicamente pela
força ou sob a violência não controlada teriam uma existência constantemente
ameaçada”. Em razão disso, outros devem ser os artifícios que mantêm o poder.
20
Para Balandier(1981, P.7), o poder enuncia-se a partir da dramatização e por
intermédio da teatrocracia, que, como “um regime permanente que se impõe aos
diversos regimes políticos, revogáveis, sucessivos”, estabelece, concretiza, mantém,
conserva o poder e a ordem do “príncipe” mediante a criação de imagens.
A força da representação dramática, a realização e a produção de imagens, de
símbolos e a organização de um quadro cerimonial contribuem para o estabelecimento
de clivagens e para a legitimação das posições sociais. O cenário dramático no qual se
inscrevem a ritualização e a criação de mitos envolve todos os aspectos e dimensões da
vida social: a arquitetura, a linguagem, os comportamentos e as atitudes, os gestos, as
vestimentas, a paisagem urbana em tudo que esta implica, seus prédios e edifícios,
monumentos e disposição espacial. A manipulação desses recursos pelos grupos sociais
compõe o que Chartier (1990, p. 17) define como luta de representações, uma disputa
simbólica entre grupos, na qual cada um busca legitimar e estabelecer como universal a
sua visão particular. Assim, recentemente, esse mundo invisível da dominação
simbólica aparece como uma das principais áreas de investigação histórica.
Nesse sentido, a análise de conteúdo e a interpretação dos dados a partir do
conceito de lutas de representação nos permitiram interpretar os dados empíricos
recolhidos da documentação primária impressa com uma abrangência capaz de dar
conta, na medida do possível, das múltiplas implicações contidas no nosso objeto. O
conceito de lutas de representação proposto por Chartier (1990, p. 17) foi tomado de
empréstimo da História Cultural e da Antropologia Cultural, como forma de
compreender melhor a dupla interpretação acerca do corpo martirizado.
Entendemos que a relação do homem com o mundo e as linguagens produzidas
por ele manifestam sua compreensão da realidade, esta constituída por “choques”, seja
21
no campo das idéias, seja no campo das práticas, que, no fundo, representam uma luta
de poder, uma vez que cada grupo que integra a sociedade almeja afirmar-se sobre os
demais, como afirma Machado (2000, p. 7). Partimos de uma análise em que o corpo
martirizado passa a ser o elemento que expressa duas interpretações opostas: uma
construída pelo pensamento cristão, identificado no momento em que o corpo do mártir
recebe a punição oficial sob a forma de tortura, tornando-se dessa maneira mbolo de
elevação; a outra interpretação, de caráter pagão, que compreende o ato do martírio
como uma punição, atitude que manifesta o desprezo romano pela cristã. Nota-se,
assim, uma luta de representações que remete para o corpo físico todos os signos com os
quais a consciência de cada segmento social, pagão ou cristão, constrói a sua realidade,
como sugere Chartier (1990, p. 13).
O conceito de representação é aplicado aqui em dois momentos distintos. No
primeiro momento, ele é aplicado para interpretar a atuação imperial depositária das
tradições pagãs romanas no sentido de decretar a pena capital contra os cristãos, de
maneira que a morte é representada como um ato de degradação, destinado a marcar de
forma violenta o condenado. no segundo momento, o conceito é empregado para
interpretar o instante em que o cristianismo atribui um outro significado à punição
aplicada pelo poder imperial: o corpo passa por uma purificação, gerando-se assim uma
representação do corpo redimido pela dor e pelo sofrimento produzidos pelos pagãos.
Desse modo, duas representações de morte são aqui tratadas, bem como o choque entre
elas dentro do contexto histórico das perseguições. Para compreendermos melhor o
assunto, faz-se necessário, entretanto, que nos detenhamos, ainda que brevemente, na
definição do conceito de representação.
22
O termo representação não é novo. Como uma derivação do substantivo latino
repraesentatio, ele remonta aos antigos romanos. Estes o utilizavam no vocabulário
latino. Não obstante, a compreensão que os romanos tinham de representação não
corresponde diretamente à noção moderna do conceito. A representação, no pensamento
moderno, diferencia-se da antiga idéia de representação. Conforme Faria (1992, p. 474),
na Antigüidade clássica, repraesentatio – ou sua derivação verbal repraesentare
possuía dois sentidos: no primeiro deles, representação ou representar significava “um
pagamento à vista com dinheiro” ou mesmo “uma satisfação de pronto”, numa segunda
acepção, significava “tornar presente, realizar uma ação de pôr diante dos olhos
mediante pintura, linguagem”, o que, por extensão, implicava uma idéia de “retrato” ou
“imagem”.
Para este estudo, interessa especialmente a última acepção, pela relação que
mantém com nosso objeto de pesquisa, uma vez que a representação da morte bem
como a apropriação e redefinição do corpo estão presentes nos discursos produzidos por
Eusébio e naqueles recolhidos por Homo. Temos, no entanto, a compreensão de que
nenhum discurso é neutro. Os discursos, qualquer que seja a sua natureza, estão
permeados pelos interesses do grupo social do qual são produto. São apreensões e
interpretações da realidade de grupos que impõem sua forma de compreender o mundo
e que desembocam em práticas sociais. Em outras palavras, os documentos fornecem
certas informações que não são neutras, na medida em que são perspectivas particulares
de uma realidade social que “buscam alcançar a universalidade por meio de estratégias”
(
CHARTIER,
1990, p. 17). Não obstante, as perspectivas particulares aos grupos
comportam apenas parcelas de realidade, informando-nos sobre as divisões e
classificações arbitrárias projetadas na vida em sociedade.
23
No sentido imagético, o termo representação pode também ser comumente
empregado tanto no contexto da teoria do conhecimento como no contexto da teoria das
representações sociais. De forma simplificada, pode-se dizer que esse conceito, tal como
é aplicado pela teoria do conhecimento, fundamenta-se a partir de uma dupla metáfora,
a da representação teatral e a da representação diplomática. A primeira modalidade,
como afirma Silva (2000, p. 84), pressupõe a idéia de uma presença: nesse caso, a
representação expõe uma situação significativa, que evoca um encadeamento de ações,
tornando presentes o destino, a vida, o mundo, tanto em relação aos aspectos visíveis
quanto em relação a suas significações invisíveis. A segunda modalidade sugere a idéia
de “delegação”, no sentido de uma transferência de atribuições, por meio da qual uma
pessoa pode agir em nome e lugar de uma outra. De fato, essas duas acepções são
indissociáveis. Se, no sentido teatral, a representação tem aparência concreta, no sentido
diplomático, ela se manifesta pela presença real de um representante visível. Sendo
assim, a representação pressupõe a idéia de uma superposição de dois tipos de presença:
uma presença efetiva e direta e outra de forma indireta.
Agregamos ao nosso estudo, também, o aporte teórico sugerido por Rodrigues
(1983, p. 46) para interpretar o corpo. Segundo o autor, o corpo é um elemento capaz de
exprimir concepções diversas, pois é um suporte privilegiado de signos distintos.
Acreditamos que o comportamento humano constitui uma linguagem condicionada, em
boa parte, pela cultura que, por sua vez, se utiliza do corpo para externar seus embates
ideológicos no instante em que traduz, a seu modo, os signos impressos sobre o corpo,
como no caso do mártir.
Quanto à metodologia empregada neste trabalho, utilizamo-nos da Análise de
Conteúdo, tal como propõe Bardin (2002, p. 95). A análise de Conteúdo nos
24
proporcionou ir além de uma leitura meramente informativa, visto que tal metodologia
nos permitiu uma interpretação crítica da documentação. Levamos em consideração que
o conhecimento histórico é evidenciado por meio de textos das mais variadas naturezas
(escrito, falado, iconográfico e outros) e que estes, por sua vez, são apresentados sob a
forma de discursos, cujas condições de produção se relacionam com os valores próprios
de cada sociedade, revelando os embates ideológicos da sua época. Nesse sentido, a
Análise de Conteúdo, associada à técnica de Análise Categorial, mostrou-se um
instrumento importante e adequado para a efetivação dessa pesquisa.
Análise Categorial, conforme propõe Bardin (2002, p. 153), funciona por
operações de desmembramento do texto em unidades, em categorias segundo
reagrupamentos analógicos”.
4
A categorização pode ser realizada de duas maneiras. Na primeira, cria-se, a
priori, um sistema de categorias, a partir das quais os dados são retirados da
documentação e alocados no complexo categorial. No segundo caso, o processo é
inverso. O sistema de categorias não é fornecido inicialmente, o que implica a
classificação analógica e progressiva dos elementos, sendo cada categoria definida
apenas ao final da operação (
BARDIN
, 2002, p.119). Em nossa pesquisa, adotamos esse
segundo procedimento.
4
As categorias “são rubricas ou classes as quais reúnem um grupo de elementos sob um título genérico,
agrupamento esse efetuado em razão dos caracteres comuns destes elementos” (
BARDIN
, 2002, p. 117).
Ademais, as categorias seguem algumas regras de composição. Em primeiro lugar, devem apresentar um
princípio de “exclusão mútua”, ou seja, cada elemento não pode existir em mais de uma divisão. Esse
primeiro princípio depende de uma segunda condição: a “homogeneidade” das categorias. De acordo com
essa condição, as categorias devem estar em concordância com um mesmo objeto. A “pertinência” refere-
se à adaptação das categorias ao material de análise e ao quadro teórico. Logo, o sistema de categorias
forma um todo que reflete as intenções de investigação, as questões propostas e as características da
mensagem (
BARDIN
, 2002, p. 120). Outros princípios são “objetividade” e a “fidelidade”. Segundo esses
dois princípios, as categorias não devem gerar resultados diferentes quando empregadas em diferentes
segmentos do mesmo corpus documental. Por fim, a “produtividade”, que se refere aos resultados obtidos
do processo de categorização. Um conjunto de categorias é produtivo quando fornece resultados fecundos
por ocasião da inferência.
25
A definição das categorias e o agrupamento dos dados foram efetuados após a
retirada dos dados da documentação. Estes foram, inicialmente, retirados e alocados em
uma planilha. Embora não tenha sido definido previamente um sistema de categorias, a
retirada dos dados obedecia a alguns critérios, a partir da orientação fornecida tanto pela
Análise de Conteúdo quando pelas regras de composição das categorias conforme reza a
técnica de Análise Categorial. Ademais, orientamos nossa seleção de acordo com os
nossos objetivos e nossa hipótese.
Desse modo, empreendemos uma seleção de dados específicos que fossem
capazes de revelar a visão pagã e a cristã acerca do corpo do sentenciado por crime
religioso. Tratamos de categorizar os flagelos aplicados contra a carne, captando da
documentação a maneira pela qual pagãos e cristãos interpretaram a punição infligida
pelo poder imperial. Posto isso, segue o complexo categorial empregado na pesquisa.
Sobre a definição das penalidades que foram aplicadas pelo
poder imperial – Como as mortes eram provocadas
Categoria Título conceitual da categoria (Descrição dos
dados a serem retidos)
1 As execuções por meio de linchamentos nas ruas
2 As mortes por apedrejamento
3 A utilização de objetos quentes, como garfos e
grelhas
4 A morte pelo fogo
5 A morte pelo afogamento ou lançamento ao mar
E, na seqüência, para as informações coletadas que diziam respeito à ressignificação
cristã acerca das execuções, temos o seguinte conjunto de categorias:
26
Sobre a interpretação cristã
Categoria
Título conceitual da categoria (Descrição dos dados
a serem retidos)
6 A purificação dos pecados por meio da dor
7 A purificação por meio do fogo
8 O acesso ao reino dos céus trilhado pelos torturados
pela fé
9 A “construção” das relíquias sagradas
10 A “construção” do mártir
No primeiro complexo categorial, selecionamos os dados relacionados à ação
imperial contra os cristãos em dívida para com as deidades do Império, além de se
recusarem a cumprir as determinações do imperador. Os elementos desse complexo
foram retirados tanto da obra de Homo quanto dos livros VIII e IX da História
Eclesiástica. Na categoria 1, estão alocados os dados referentes à morte por meio de
esfoliações causadas pelo ato de arrastar o corpo pelo chão com o auxílio de cavalos. A
categoria 2 classifica as mortes provocadas por apedrejamento em praça pública. As
categorias 3 e 4 se referem à morte provocada pelo fogo ou por objetos escaldantes,
como grelhas e garfos de ferro incandescente. Na seqüência, a categoria 5 trata da morte
com o emprego da água por meio do afogamento.
No segundo complexo categorial, buscamos identificar e compreender a posição
cristã diante da aplicação das penalidades jurídicas. Na categoria 6, identificamos os
argumentos de ressimbolização do suplício, empreendida pela Igreja ao apontar a dor e
a tortura como instrumentos de purificação da carne. Na categoria 7, tratamos da
utilização do fogo como elemento de purificação máxima dos pecados da carne e da
27
alma. Na categoria 8, apresentamos a forma como a Igreja desenvolveu um repertório
de argumentos que transformaram as penalidades em fases de elevação espiritual dos
“escolhidos”. A categoria 9 foi estabelecida para dar conta da maneira como se
desenvolveu a relação com os restos mortais dos cristãos supliciados, que são
convertidos em relíquias. Finalmente, na categoria 10, tratamos da construção da figura
do mártir, esse ícone sagrado fruto das perseguições.
No que se refere à estrutura da dissertação, esta se apresenta dividida em três
capítulos. O Capítulo primeiro, intitulado “O Império Romano e o Cristianismo”,
pretende abordar o contexto político-religioso do Império Romano e o surgimento do
cristianismo, sendo privilegiada a relação de conflito estabelecida entre as autoridades
imperiais e a Igreja primitiva.
O Capítulo segundo, intitulado “O Corpo Supliciado: a Degradação do
Transgressor”, tratará do corpo supliciado, acompanhado do contexto de redefinição
política e social que se configura durante a Anarquia Militar e a Tetrarquia com
Diocleciano, conjunturas nas quais verificamos a aplicação de uma série de penas
corporais sobre o corpo dos cristãos perseguidos pelo sistema político vigente, ou seja,
trataremos do contexto de transgressão da ordem, privilegiando a interpretação pagã
sobre os mártires.
No Capítulo terceiro, intitulado “O Corpo Redimido: a Construção do Mártir”,
abordaremos a imagem do corpo redimido, ou seja, a concepção cristã acerca do corpo
espoliado pelo poder imperial, a ressignificação do corpo do mártir, que o torna um
mediador privilegiado entre Deus e os homens, um pólo de sacralidade sobre a terra,
uma autêntica hierofania.
28
1
O I
MPÉRIO
R
OMANO
E O
C
RISTIANISMO
U
M
M
UNDO EM
T
RANSFORMAÇÃO
Estudar a história da humanidade é observar o próprio desenrolar do fazer
histórico. Basta um olhar mais atento para percebemos o amplo incremento da pesquisa
histórica durante as últimas décadas no campo da economia, da política e cultura e de
outros campos do saber que serviram de estímulos para o desenvolvimento da História
Social. A continuação de tais avanços depende, portanto, da elaboração de novas
questões, de uma releitura dos documentos e da exploração de novas fontes, além do
reconhecimento e da prospecção de novos campos investigativos, como assinala Duby
(1995, p. 130).
Esse seguir do fazer historiográfico se situa, não na descoberta de mecanismos e
motores que explicariam a história, mas, como sugere Veyne (1995, p. 68), na
conceituação do não factual. A História não factual estaria assim, em oposição à
História dos tratados e das batalhas de outrora. Por conseguinte, a História passou a
trilhar caminhos diferentes cujas práticas mudaram a forma pela qual as fontes são
exploradas, bem como a interpretação das dinâmicas sociais, cada uma delas
condicionada por suas redes de poder e conflitos.
Nessa perspectiva, como sugerem a História Política e a História Cultural,
compreender a ordenação das sociedades humanas e ser capaz de discernir suas forças
tornam-se um desafio para o estudioso das relações sociais, que este tem por tarefa
29
identificar as articulações que se estabelecem na sociedade, além de atentar para o
movimento que faz com que sejam transformadas tais articulações, cujo desdobramento
é orientado por um sistema de valores que estão em constante conflito.
Estes sistemas, por sua vez, possuem uma lógica própria, sendo formados por
imagens, mitos, ritos, idéias ou conceitos com os quais se compreende o mundo,
elementos dotados de uma existência histórica que revelam a forma como identificam
seus mbolos de poder e de força. Aliás, é a partir desse contexto de percepção do
mundo, quando identificados seus símbolos e elementos de poder e controle, que
podemos observar mais atentamente o comportamento do ser humano, segundo Geertz
(1989, p. 188):
(...) os sistemas de símbolos chamados cognitivos ou expressivos são
fontes extrínsecas de informações em termos dos quais a vida
humana pode ser padronizada mecanismos extra-pessoais para a
percepção, compreensão, julgamento e manipulação do mundo. Os
padrões culturais religiosos, filosóficos, estéticos, científicos,
ideológicos são “programas” que fornecem um gabarito ou diagrama
para a organização dos processos sociais e psicológicos. O motivo
por que tais gabaritos simbólicos são necessários reside no fato do
comportamento humano ser extremamente plástico, não sendo
controlado estritamente, mas apenas de modo amplo (...) tal
comportamento, se tiver que produzir algum resultado, tem que ser
controlado, numa extensão significativa. Assim, é através da
construção de ideologias, de imagens esquemáticas da ordem social,
que o homem faz de si mesmo, para o bem ou para o mal, um ser
político.
O corpo político, envolto em conflitos e choques de representações, que tenta a
todo custo reestabelecer o caos que assola seu mundo, é aqui evocado como a
sociedade romana da segunda metade do terceiro século e início do IV, período em que
30
os ritos e códigos tradicionais de conduta não são mais suficientes para gerenciar as
insatisfações manifestas por amplos grupos da população num contexto de aguda crise
política.
As ideologias que outrora se fizeram suficientes no envolvimento da
população em relação a seus padrões morais e religiosos e seus preceitos éticos já não
se mostram mais adequadas ao exercício do poder estabelecido, poder este que também
alterou sua fisionomia e suas redes de acesso e permanência dentro do vasto Império.
5
Desse modo, imersa nesse arranjo de conflitos ideológicos e manifestações de
poder que envolve a sociedade, desenrola-se uma situação bastante conturbada na
história do Império. Trata-se de um período designado de Anarquia Militar, momento
em que ocorrem alguns episódios de intensa crise que se estende do ano de 235 ao ano
de 284.
De fato, no decorrer da Anarquia Militar, o Império era desafiado por
dificuldades de transportes, pelas intermináveis conflagrações com os “bárbaros” e
persas, pela corrupção de funcionários públicos, pela carência de mão-de-obra para o
exército, pelos levantes camponeses e urbanos, pelas sucessivas usurpações, exigindo-
se a rearticulação dos mecanismos de controle do poder ao mesmo tempo em que novas
normas de conduta eram estabelecidas (
SILVA
, 1993, p. 80).
No curso dessa história, ocorre inevitavelmente o encontro da História do
Império Romano com a História do Cristianismo, seja pela questão temporal, que a
história da morte e ressurreição de Cristo se desenrola à luz do domínio romano, seja
5
As ideologias aqui mencionadas seguem a definição apresentada por Duby (1995, p. 132) e referem-se a
um sistema de representação (imagens, mitos, idéias), dotados de uma existência e de um papel histórico
no seio de uma dada sociedade.
31
pela trajetória de formação da própria Igreja, que, ao longo dos tempos, se apropria de
elementos simbólicos reconhecidos e estabelecidos pela tradição romana.
6
Dessa forma, o período intitulado Baixo Império ou, conforme alguns autores,
Antiguidade Tardia, se constrói a partir de uma associação direta do Estado romano
com o cristianismo, ora perseguindo-o, ora adotando-o como credo da casa imperial.
A designação Antiguidade Tardia segue uma interpretação “culturalista” sobre
os estudos referentes ao final do Mundo Antigo e assinala “o fosso entre o Alto e o
Baixo Império”, procurando dar conta da continuidade de um mundo que se
transformou radicalmente, sem decair ou desaparecer (
CARRIÉ
, 1999, p. 17).
O conceito representa, segundo Silva & Mendes (2006, p. 195), uma tentativa de
reinterpretar o tema da “decadência” do Império Romano numa outra perspectiva, na
qual são evidenciados acontecimentos ocorridos a partir de meados do século III, os
quais acabaram promovendo uma ampla alteração na sociedade romana.
Por tal razão, a Antiguidade Tardia pretende exprimir não apenas o
desenvolvimento de novas concepções religiosas e estéticas, como também de novas
inovações técnicas e artísticas. Como expressa Silva (2003, p. 19), “não restam dúvidas
de que as transformações de ordem religiosa representaram um importante papel na
transição da sociedade romana do Alto para o Baixo Império, especialmente a partir de
meados do III século”, o que parece propiciar uma redefinição dos parâmetros da
relação do homem com o sagrado na sociedade romana.
7
6
Balsdon (1987, p. 197) apresenta, em seu estudo sobre o mundo romano, a releitura efetuada pela igreja
cristã de certas práticas que faziam parte de rituais pagãos, como a comemoração de 25 de Dezembro, o
aniversário do Sol Invictus da tradição romana, que passou a representar, a partir do século IV, para a
igreja cristã, o dia do nascimento de Cristo, assim como a prática de trocar presentes nesta data, era
realizado pelos romanos na celebração das Saturnálias.
7
Embora existam interpretações que relacionam o sagrado apenas com a religião, ele não se restringe,
segundo Augé (1994, p 58-60), apenas ao campo religioso. O sagrado também implica categorias de puro
e impuro e remete ao âmbito do político. Ele se apresenta como um poder de ordenação que classifica e
seleciona os indivíduos. Conjugando-se no par puro e impuro, divide e separa aquilo que contamina,
32
O conflito ocorrido no decorrer da Anarquia Militar é também intitulado de
“Crise do Terceiro Século” ou “Período dos Imperadores-Soldados”, um momento na
história romana que chega ao fim com Diocleciano e seu novo arranjo de governo: a
Tetrarquia.
O termo Anarquia Militar, segundo Gonçalves (2006, p. 185), indica um período
especifico do Império em que a maior parte dos imperadores foram escolhidos de forma
rápida, por meio do apoio direto de suas guardas pessoais. Prontamente elegiam um
sucessor, haja vista a fragilização na qual se encontrava inserido o Império (
SILVA
,
1998, p. 202).
No que se refere aos assuntos estratégicos, por se tratar de governos efêmeros,
dificilmente os imperadores fixaram medidas de governo que não tivessem relação com
a guerra e a defesa das fronteiras. Esses fatores contribuíram para a designação desse
período como Anarquia Militar, cuja característica se apresenta na exigência de que o
imperador possuísse elementos distintivos de um bom combatente.
Assim, a Anarquia Militar não somente intensificou e acelerou a tendência à
centralização que, havia anos, vinha sendo esboçada, como também trouxe o tema da
salvação do Império para o primeiro plano da ação governamental. Assistiu-se, nesse
período da história romana, à ascensão de uma série de imperadores que conduziram
suas administrações pautados em discursos que visavam à defesa do Império contra a
fragmentação iminente.
excluindo-o do sistema. O sagrado age como um poder invisível, impondo ordem, separando aquilo que
lhe é parte daquilo que deve ser excluído, segregando a transgressão ou o desvio. Geralmente concebidos
como algo que contamina bem como algo que é relativo ao sujo, todos os desvios e irregularidades são
extraídos da comunidade ou exorcizados mediante processos de purificação; assim, o sagrado implica
normatização. O sagrado não se desvincula do profano. Um não pode ser compreendido sem o outro. A
distinção do que é sagrado daquilo que é profano não é uma tarefa das mais simples. “As regras mudam”
(
NOLA
, 1987, p. 133-156). O que é sagrado para uma sociedade pode ser profano para
outra e vice-versa.
Isso significa que o que é sagrado ou profano é relativo à sociedade, ao seu tempo e espaço, a sua maneira
própria de organização. E o ato da purificação torna-se a subtração daquilo que não deve fazer parte do
sagrado, inserindo-o ou devolvendo-o à categoria do profano, afirma Augé (1994, p. 59).
33
Segundo Grant (1987, p. 298), a principal dificuldade interna, em todo o período
que se estende entre os anos de 235 e 284, foi a grande proliferação de usurpadores
militares, visto que somam mais de cinqüenta os que assumiram o título imperial, seja
na Capital, seja em alguma outra parte do Império. O autor prossegue com a seguinte
afirmação:
Dentre estes imperadores usurpadores dezessete foram mortos pelo
próprio povo, outros executados pelos soldados, ou suas guardas
pessoais, dois foram obrigados a se suicidar. O que indica um dos
mais sérios e onerosos problemas de Roma. O velho costume
segundo o qual seus governantes eram nomeados pelo senado
transformara-se numa farsa. Na realidade, com poucas exceções os
imperadores ascendiam ao trono por um dos exércitos, sendo
posteriormente comunicado ao senado (
GRANT
, 1987, p. 298).
Dessa maneira, o exército passou a controlar o Estado. Assiste-se, assim, uma
espécie de “roleta” de imperadores. A partir dessa época, a sede do poder político
deixou de ser a capital, Roma, e foi transferida aos poucos para o campo de batalha,
onde o que valia era a vitória de um comandante militar sobre seus rivais.
Em geral, os imperadores que ascenderam ao poder entre os anos de 235 e 284
eram aclamados pelos legionários estacionados nas fronteiras. Os soldados esperavam
encontrar em seu líder atributos de um bom general, capaz de rebater os invasores e
proteger as fronteiras. Esses imperadores experimentaram períodos curtos de governo,
sendo mortos em combate ou executados pelos rivais; logo, raramente conseguiram
indicar sucessores.
Essas ameaças apresentavam-se imbricadas com questões religiosas, cujos
clamores eram, por vezes, tão tempestuosas que conferiam ao período em questão
reações que acabavam atingindo toda a sociedade.
34
Os acontecimentos ocorridos no Império Romano entre os anos de 235 e 284
representam, sem dúvida, um momento de enfraquecimento de toda a organização
político-administrativa do Império, haja vista a infinidade de golpes militares, de
incursões bárbaras ao sul das fronteiras romanas e de insistentes investidas sassânidas
no Oriente.
Para Silva (1999, p. 199), a necessidade de conter essas ameaças constituiu, de
certo modo, o pano de fundo para a condução das ações governamentais dos
imperadores dessa época, que se depararam ainda com a ameaça de ações separatistas
ou pretensões expansionistas.
8
Tais fatores surgiram como graves ameaças à própria
integridade do Império.
Assim, verifica-se, nesse momento da história romana, a irrupção de uma grave
crise que ameaçava precipitar todo o Império numa fragmentação sem volta, não
obstante a atuação de imperadores cujas medidas emergenciais tentavam
desesperadamente atenuar o confronto militar e a desordem administrativa que minavam
a estrutura do Império. Ao mesmo tempo, este lutava para perpetuar seus domínios.
Se recuarmos um pouco no tempo, é possível percebermos, na ascensão da
“casa” dos Severos (Sétimo Severo, Caracala, Geta, Macrino Heliogábalo e Alexandre
Severo), entre os anos de 193 e 235, que o Império não podia mais conviver com uma
organização político-administrativa na qual o Senado e a Itália, por intermédio de seus
pretorianos, detinham algumas prerrogativas significativas no que se refere aos assuntos
de foro público, como, por exemplo, a eleição e a sustentação dos imperadores.
8
A ação separatista evocada refere-se à atitude de stumo, Vitorino e Tétrico nas Gálias, entre os anos
de 260 e 274, e as pretensões expansionistas de Zenóbia sobre a Ásia Menor e o Egito entre 269 e 272,
aliada a instauração de dois Estados independentes: um com ingerência sobre as Gálias, a Bretanha e o
Norte da Península Ibérica e o outro agrupando territórios orientais dominados pelo reino de Palmira,
como nos apresenta Silva, (1999, p. 200).
35
É possível identificar também, ainda sob os Severos, a existência de alguns
elementos que remetem a um período de crise e transformações que atingem todas as
instâncias do Império Romano.
9
A Crise do Terceiro Século é antecipada, em parte, pelo fim das guerras de
conquista, o que trouxe escassez de mão-de-obra escrava, que se tornou extremamente
cara. A solução encontrada pelos grandes proprietários foi o arrendamento de parcelas
de terras a agricultores livres (colonos) em troca de uma parte da produção, dando início
à prática do sistema de colonato. que se considerar ainda que, nesse período, a
produção de metais diminuiu e a moeda sofreu uma nítida desvalorização.
10
Outro fator a ser considerado como elemento constitutivo de um panorama
indicativo da presença de uma “crise” que acabou conduzindo a uma série de mudanças
no Império foram os problemas existentes nas fronteiras. Eram constantes os ataques
das tribos “bárbaras”, tais como os saxões, na Bretanha; os francos, na Gália; os godos,
na Ásia Menor, e os persas, na Mesopotâmia e Síria, os quais seguiam rumo ao interior
do Império, forçando o rompimento do limes.
Tal realidade exigia um grande número de funcionários e a constante
manutenção do exército, o que, por sua vez, fazia aumentar as despesas do Império,
levando o governo a freqüentes elevações dos impostos, que recaíam principalmente
sobre os pequenos produtores e arrendatários, como nos informa Maier (1972, p. 19).
9
Segundo os estudos de Gonçalves (2006, p. 175), os Severos, por terem sucedido aos Antoninos, foram
vistos como Príncipes em parte responsáveis por várias crises que abalaram as bases imperiais, na
passagem do século II para o século III, como, por exemplo, as rivalidades fratricidas e usurpações desse
período, que conteve, de certo modo, as alterações abruptas na configuração do Império, pelo menos por
quatro décadas.
10
Mucheroni (2001, p. 89) chama a atenção para uma crise econômica devida, em parte, à produção e
circulação de moedas, que diminuíram consideravelmente entre os anos de 235 e 284.
36
Diante de uma necessidade urgente de controle sobre o limes, sucederam-se vários
soberanos, muitos deles governando simultaneamente a vasta extensão territorial que se
estendia desde as fronteiras da Escócia até o limite do Saara e do Sudão, de Portugal até
a Anatólia oriental, do Eufrates à Transjordânia. Um território que abrigava as mais
deferentes culturas e exigia cada vez mais do controle romano.
Essa realidade acabou exigindo, no início do terceiro século, uma autêntica ação
de política externa, haja vista as intensas e constantes invasões das fronteiras romanas,
uma vez que as tribos bárbaras passavam a combater o poder romano que outrora havia
se mostrado eficaz. Na verdade, as fronteiras do território romano sempre exigiram
certo esforço de vigilância. A partir de 224, o Oriente começou a se tornar um problema
maior para os romanos, quando os persas sassânidas pretenderam a retomada de
territórios na Ásia Menor, Síria e Egito, que haviam pertencido aos aquemênidas, dos
quais se consideravam herdeiros.
Nesse contexto de crise, muitos aspectos se modificaram dentro do próprio
território imperial, de modo que um outro elemento precisa ser evocado: trata-se da
grande concentração de poder acumulada pelas forças militares imperiais, o que acabou
gerando, de certo modo, um colapso no que diz respeito à autoridade imperial. Eram
constantes os confrontos civis dessa época, ocasião em que as tropas entravam em
disputas internas freqüentes pela sucessão imperial.
37
A
C
ONCEPÇÃO
R
ELIGIOSA
R
OMANA ENTRE O
P
AGANISMO E O
C
RISTIANISMO
O estudo antropológico da religião é, de acordo com Geertz (1989, p. 42), uma
operação a dois níveis: em primeiro lugar, uma análise do sistema dos significados
encarnados nos símbolos que tornam a religião típica e, em segundo lugar, a relação
desses sistemas com a estrutura social e os processos psicológicos. Trata-se, de fato, de
momentos de afloramento violento de crenças populares, em que atitudes coletivas
latentes podem encontrar um ponto de ressurgência propício, uma vez que, que a
linguagem simbólica pode ser utilizada para encobrir ou reivindicar uma ação política.
É necessário perceber, no entanto, que os movimentos se inscrevem em situações
sociais determinadas: perda da individualidade por uma traição já estabelecida, opressão
ou desorganização que ameaça a configuração de todo um conjunto sociocultural. Sendo
a reação contra a desagregação de um equilíbrio e a desestruturação de uma cultura, os
movimentos em torno do religioso assumem a forma proporcional ao tipo de sociedade
no qual se incluem.
O ser humano, nesse contexto, tem como uma de suas principais características a
busca de sentido para o que observa na realidade. Para Silva (2001, p. 33), esse sentido
se expressa por meio dos símbolos e padrões culturais que fornecem parâmetros para a
compreensão, o julgamento e a manipulação do mundo, propiciando, dessa forma, a
organização de processos psicossociais de naturezas diversas: religiosa, filosófica,
artística, científica, ideológica. As ideologias, nesse sentido, possuem capacidade de
“produzir consenso, de angariar o apoio de amplos segmentos da população, de gerar
valores que legitimem o poder instituído”, e dependem das formas que assumem,
38
porque os símbolos de que se servem são recolhidos do contexto cultural e se revestem
de alto valor significativo para os atores envolvidos.
O Império romano sempre fora marcado por profunda diversidade, seja no
tocante às diferenças culturais e étnicas, seja no que se refere à organização social e
política. Tais características acabaram conferindo ao Império o aspecto de um grande
mosaico de povos e línguas, tradições, costumes e religiões diferentes, cuja unidade
centralizava-se, nesse instante, política e simbolicamente, na figura do imperador,
sustentado por seus exércitos, e em uma cultura literária grega e latina, de modo que era
fundamental preservar e assegurar, a qualquer custo, as tradições do Império. Como
aponta Guarinello (2003, p. 13), vários foram os fatores que contribuíram para criar um
sentimento de romanidade entre a sociedade, ou seja, de identidade cultural num mundo
em permanente perigo de fragmentação.
Como sugere Rosa (2006, p. 146), os romanos eram muito cuidadosos com sua
vida religiosa, uma preocupação que se manifestava em diferentes níveis de atividades.
A religião estava intimamente ligada à vida política, e por tal razão, assumia um caráter
oficial em meio às práticas ritualísticas realizadas pela sociedade por ordem do Estado.
A religião era uma das expressões mais visíveis da visão de mundo dos romanos.
Os rituais representavam a certeza da manutenção da sociedade, além de serem
símbolos de identidade e elementos socialmente agregadores. Dessa maneira, ao
respeitar as regras de comportamento, o cidadão garantia a ordem social e a pax
deorum.
Muitos eram os deuses que formavam o panteão romano. Suas origens
provinham de uma parte indo-européia que se instalou na Itália por volta do segundo
milênio antes de Cristo e entrou em contato com deuses locais e gregos. Segundo Badel
39
(1993, p. 577), a religião romana da época histórica expressava uma mentalidade
arraigada nos preceitos remanescentes dos tempos da própria origem de Roma, quando
havia uma intensa lealdade e respeito ao se prestaram rituais aos deuses, de modo que a
solenidade deveria ser mantida para a manutenção da ordem estabelecida pelo sagrado.
O romano “devoto” tinha respeito para com os deuses; era importante consultá-
los, saber se estes estavam de acordo com suas libações e sacrifícios. Para isso era
necessário capturar e entender os sinais enviados pelas deidades cujas manifestações se
davam por meio de presságios e prodígios.
Os presságios se apresentavam sob duas formas principais: os auspícios,
representados essencialmente por sinais provenientes do vôo dos pássaros; e os omina,
palavras que anunciariam o fortuito, o futuro. Já os prodígios, apesar de serem tratados
sob a mesma categoria dos presságios, possuem aspectos diferentes destes, uma vez que
se trata de fenômenos imprevistos, que são manifestos pela natureza, indicando a
ruptura da paz com os deuses. Seriam, então, a manifestação da fúria dos deuses,
expressa sob a forma de pragas, doenças, períodos de fome, enfim. Esses prodígios
anunciariam um perigo imediato, visto que, para os romanos, não seria possível subsistir
nenhuma sociedade sem a autorização dos deuses. Tudo deveria ser feito e executado
para que, rapidamente, a paz fosse restabelecida entre deuses e homens.
Assim, as práticas que acarretavam a transgressão à ordem vigente podiam levar
a sociedade ao caos e à desagregação, de modo que a concordia entre homens e deuses
era a garantia da ordem romana, como afirma Rosa (2006, p. 141).
Inserido nesse contexto de “reajuste” ou “desajuste” político da Anarquia
Militar, como assinala Pérez Medina (1991, p. 402), que suscita profundas inquietudes
na sociedade, estabeleceu-se um outro conflito, uma divergência de ordem religiosa, que
40
se referia á maneira como os grupos sociais executavam os rituais e se posicionavam
perante o sagrado, além da relação que cada grupo mantinha com o poder do Estado.
Os grupos que melhor exprimem os conflitos religiosos do século III são aqueles
compostos por pagãos e cristãos. Os primeiros eram formados pelos protetores da
tradição romana, valorizavam o mos maiorum e acreditavam que somente a retenção das
práticas e rituais antigos podia agradar às divindades. Já os cristãos eram compostos
inicialmente por discípulos do Cristo. Seus seguidores assumiram o papel
evangelizador, e, sob o impulso do labor do apóstolo Paulo, o cristianismo conseguiu
transformar-se de um agregado de comunidades dispersas por todo o Oriente em uma
missão que chegou até à Itália sob a forma de uma Igreja universalista, com bases
teológicas e moral cristã.
Posto isso, é importante tratarmos, ainda que brevemente, da história do
surgimento do cristianismo e da Igreja, bem como da relação estabelecida entre os
cristãos e o Império Romano, do século I ao século III, de modo que seja possível uma
melhor compreensão do alcance dos embates travados nesse período, os mesmos que,
quando travados sobre o corpo do supliciado cristão, acabaram por fazer surgir o mártir
e, por extensão, sua significância histórica.
A formação inicial das primeiras comunidades cristãs era constituída por Simão
Pedro, André, Tiago (filho de Zebedeu), João, Felipe, Bartolomeu, Tomé, Mateus,
Tiago (filho de Alfeu), Judas Tadeu, Simão Cananeu e Judas Iscariotes (depois
substituído por Matias). Eram os doze Apóstolos, escolhidos pelo próprio Jesus, entre
todos os seus discípulos, para divulgar o evangelho pelo mundo.
Sob a autoridade dos apóstolos e dos seus sucessores, o cristianismo assumia
uma feição que se organizava como igreja (do grego ekklesía, reunião). Esses apóstolos
41
decidiram por nomear os anciãos presbíteros para dirigir as novas comunidades.
Muito cedo surgiram os grupos de servidores diáconos para a assistência aos pobres
das comunidades. Aos poucos, estruturava-se uma hierarquia: os responsáveis pelas
comunidades eram os bispos - do grego, episcopos, supervisor - auxiliados pelos
presbíteros e diáconos.
Seus discípulos espalharam-se pelas regiões do Mediterrâneo, inclusive Roma, e
fundaram várias comunidades. Nota-se então, a difusão das concepções cristãs no
Império, atingindo praticamente todas as províncias, como relata Homo (1931, p. 78):
“[...], espalham-se barulhos em Roma no tempo de Augusto, são pessoas que falam
sobre um rei e práticas de mistérios, contam sobre ceia, como sendo uma refeição com
doze divindades ou mensageiros”.
Desse modo, a população romana tomava contato, mesmo que de maneira ainda
sutil, com a existência de uma outra religião, fato não raro de se perceber na história de
Roma, em especial para uma sociedade que convivia com diferentes cultos religiosos
em seus limites. Afinal, um romano poderia adorar a Juno em um dia e a Isis no outro,
sem qualquer conflito. Existia um panteão de diferentes deuses na tradição romana, e
não havia nenhum empecilho em se promoverem outras divindades. Aliás, como
pontuam Beard, North e Price (2000b, p. 247), podem subsistir interpretações distintas
dentro de um mesmo sistema simbólico, de maneira que não se tratava de cultos ou
práticas religiosas uniformes. Como reforça Alston (1998, p. 308), os romanos estavam
abertos às novas influências religiosas ao longo de sua história, e a prática religiosa era
notadamente múltiplas.
Ora, diante da intensa circulação de pessoas e idéias, era comum que novas
correntes religiosas atingissem o Império. Então, a expansão do novo “preceito”
42
religioso trazido por Jesus foi uma questão de tempo, uma vez que os mensageiros
cristãos lançavam as bases da cristã nos mais diferentes espaços. Aliás, a história do
cristianismo está intimamente associada à história do Império Romano e das províncias
nas quais ele se subdivide. Sua expansão também está vinculada ao prolongamento da
civilização ocidental e ao processo de assimilação de povos de outras culturas
(
BLÁZQUEZ
, 1995, p. 260).
Desde o século I, a religião cristã difundiu-se rapidamente em Roma, não apenas
em virtude da originalidade e da universalidade da nova prática religiosa, mas também
como proposta que parecia atender às expectativas de parte da população.
Vale ressaltar, contudo, que, desde o início da relação do cristianismo com o
Império, é possível verificar uma postura contrária a tal segmento religioso. Essa
postura, por sua vez, é evocada por pensadores e filósofos cuja tradição religiosa se
apresenta bem estabelecida no que tange ao paganismo romano e seus rituais, já que
tomam para si o “dever” de negar e repudiar qualquer prática que os afaste do legado
histórico romano.
Nesse contexto de repúdio ao surgimento e à propagação do cristianismo em
Roma, são vários os autores que se posicionam contra o cristianismo, entendido como
uma crença perversa e danosa, como afirma Wilken (1984, p. 50) ao apresentar a
insatisfação de Suetônio, nos tempos do imperador Nero, para com os cristãos que
viviam em Roma, apontando-os como estrangeiros portadores de um culto estranho a
Roma.
Com o passar dos anos, a religião cristã foi declarada strana et illicita: estranha e
ilícita (decreto senatorial de 35), exitialis, perniciosa. Depois foi posta como fora da lei.
Entendido como superstitio, o cristianismo foi então perseguido. Passou a ser
43
considerado como o mais perigoso inimigo do poder de Roma, visto que este se baseava
na antiga religião e no culto do imperador, instrumento e símbolo da força e unidade do
Império.
Segundo Goodman (1997, p. 289), superstitio, na concepção dos romanos,
indicava um medo que humilha e afasta o homem da divindade. Uma vez entendida a
necessidade de atenção que os deuses exigiam, era cil imaginar o perigo a que a
população estaria exposta caso estes resolvessem se vingar, submetendo os romanos a
infortúnios e castigos, fato que poderia ser evitado com o ato de adoração, que era o
ponto crucial da relação entre homens e deuses.
Em parte, a idéia de superstitio estava atrelada a práticas “exóticas” mantidas
pelos judeus, como não consumir carne de porco considerada como uma iguaria para
os banquetes romanos a circuncisão, o respeito ao sábado como um dia sagrado e a
celebração de feriados e festivais. Plutarco, um escritor grego que viveu no início do
segundo século, ridicularizou os judeus e os chamou de fanáticos, tomando contra eles o
seguinte julgamento: “entre os judeus todas as coisas que fazemos e defendemos são
profanas; por outro lado eles consideram permissível o que nos parece imoral”
(
WILKEN
, 1984, p. 51).
Ao lado da censura por atividades sediciosas, os romanos acusavam os cristãos
de sectarismo, de um ato designado como odium humani generis. A expressão traduz o
conceito de misantropia, ressaltando essencialmente o fato de uma comunidade se fazer
suspeita por ter seus costumes próprios, o que, por sua vez, contrariava o conceito
romano de filantropia, ou seja, do humanismo estabelecido como norma pela cultura
greco-romana. Daí o fato de as acusações, já levantadas contra os judeus, serem
44
renovadas contra os cristãos, como adoradores de um asno (
DANIÉLOU &
MARROU
,
1984, p. 102).
Nota-se, assim, que judeus e cristãos foram criticados com base em suas práticas
e posturas, que conflitavam com os ritos e concepções tradicionais. Por tal razão,
passaram a ser apontados como supersticiosos. Contudo, advertem-nos Beard, North e
Price (2000a, p. 148) sobre o cuidado de não se pensar em uniformidades dentro do
Império, seja no tocante ao judaísmo, ao cristianismo, seja até mesmo em relação à
religião romana. Outra questão a ser destacada é a associação feita, de maneira
equivocada, pelos próprios romanos, entre judeus e cristãos. Não se trata evidentemente
do mesmo grupo e, por isso, deve-se ter o cuidado de não os confundir.
Essa postura de ataque contra preceitos e práticas religiosas que fugiam da
tradição romana era interpretada como ato de devoção pietas em latim ou eusebeia no
grego uma atitude de civismo dos romanos, para os quais o ato religioso permitia
revelar sua lealdade às tradições dos antepassados.
Assim, julgados como praticantes de superstição, os cristãos eram associados
pelos romanos a manifestações mágicas. Para os romanos, a magia seria constituída por
um conjunto de práticas que magos e feiticeiros de personalidade sinistra usam para
enganar a gente ignorante, sem educação filosófica. Os cristãos eram, portanto, tidos
como gente desprezível, capaz de crimes horrendos, como afirma Brown (1994, p. 228).
Os crimes mais infames atribuídos aos cristãos eram o infanticídio ritual
como
se na renovação da ceia, quando ao tomar a eucaristia, sacrificassem uma criança e
comessem sua carne
e o incesto
clara deformação do abraço da paz que se dava na
celebração da eucaristia "entre irmãos e irmãs" (
MARCOS
, 2004, p. 2).
45
O cristianismo foi associado a práticas ilícitas, e como tal, o cristão assumia,
perante o direito romano, quatro ofensas graves, como nos apresenta Homo (1931, p.
43): “a magia, o incêndio, a recusa ao exercício militar e o crime de lesa-majestade”.
11
Mediante tais acusações, as cerimônias dos cristãos passaram a ser perseguidas. E,
proibida por lei, o preço da transgressão poderia levar o cristão à morte. Para os
romanos, a magia poderia provocar a ira dos deuses, que poderiam punir a população
com colheitas ruins.
No tocante ao serviço militar, inicialmente, os cristãos insistiam em não
ingressar no exército imperial. Tal atitude era identificada como uma falta formal aos
deveres de Estado, e a resposta legal a essa falta era o banimento e a execução; afinal,
tratava-se de uma grave ofensa à ordem estabelecida.
Por fim, havia o crime contra a autoridade imperial, o crimen maiestatis, a
violação ao poder supremo e ao dever para com a ordem do Império. Nesse caso, era
também prescrita a execução.
Como sugerem Jones & Pennick (1999, p. 102), os documentos oficiais que
chegaram até nós dão a entender que a opinião pública foi endurecendo em relação aos
cristãos à medida que grandes calamidades públicas, das guerras à peste, despertavam
convicções de que os deuses estavam encolerizados contra Roma, que os cristãos
ficavam ausentes das práticas dos rituais aos deuses, sendo isso pretexto para a
manifestação de repúdio popular e furor imperial contra eles.
Ora, tal fúria pode ser justificada, em parte, quando se considera que os romanos
acreditavam que eram rodeados por inúmeros seres sobrenaturais e reconheciam que as
11
A questão do incêndio surge na polêmica levantada por Nero, quando esse imperador acusou os
cristãos de terem ateado fogo em Roma, abrindo precedentes futuros para novas acusações, o que
colocava os cristãos em evidência sempre que algum incêndio irrompia no Império.
46
divindades interferiam diretamente em suas vidas terrenas. Seus deuses lhes
asseguravam o prosseguir das estações agrícolas, a ordenação do mundo e a manutenção
da vida, sem contar que algumas divindades eram consideradas imensamente poderosas
para a população.
Desde sua origem, o cristianismo difundiu-se rapidamente por todo o Império
Romano, exercendo certo fascínio entre diversas estratificações da sociedade, visto que
propunha um estilo de vida novo, envolto num discurso universalista, como aponta
Maier (1972, p. 40). Afinal, a religião cristã se colocava como uma religião nova, com
princípios universalistas que perpassavam toda a vida do homem e da sociedade,
sancionando a indissolubilidade do matrimônio e exaltando a fidelidade conjugal e o
valor da virgindade; além disso, afirmava o culto ao Deus único, rejeitando qualquer
outra divindade (
BROWN
, 1994, p. 260).
Os cristãos pregavam ainda o princípio da liberdade e dignidade de todos os
homens, recusando qualquer forma de exploração do próximo; difundiam a doutrina da
imortalidade da alma e da vida futura, além da morte; praticavam uma moral severa;
desenvolviam um intenso trabalho caritativo, especialmente com os mais necessitados e
escravos. Enfim, todos esses princípios de liberdade, igualdade, justiça, caridade eram
valores e preceitos difundidos pelos cristãos. Porém, para os pagãos, era algo
completamente insólito e incompreensível ao seu modo de pensar e viver, conclui Maier
(1972, p. 33).
As comunidades cristãs, por sua vez, entraram em choque com o poder imperial
por várias razões, como a recusa dos cristãos em praticar o culto prestado aos
imperadores, ou por serem essas comunidades consideradas sociedades ilegais. Nesse
sentido, as perseguições têm, pois, um motivo religioso e político, visto que o
47
cristianismo é novo e recusa a religião tradicional de Roma. Por isso o governo romano,
geralmente aberto e tolerante às religiões estrangeiras, mostrou-se muitas vezes hostil e
intransigente em relação à religião cristã, especialmente pela diferença radical entre ela
e as demais religiões. Não se trata, contudo, de afirmar que apenas os cristãos foram
perseguidos, uma vez que diversos outros cultos foram banidos de Roma.
A
S
P
RIMEIRAS
P
ERSEGUIÇÕES
C
ONTRA OS
C
RISTÃOS
As perseguições contra os cristãos deflagradas pelo poder imperial abrangem
uma temática bastante complexa, pois incluíram tanto os titulares das autoridades
públicas, quanto os indivíduos comuns de múltiplas localidades do Império. E, a partir
da fúria que irrompeu contra a Igreja e seu séqüito, os cristãos viram-se aviltados em
sua crença diante da exigência do poder imperial em portarem o libellus de sacrifícios,
uma declaração assinada por autoridades locais, concedida a cada indivíduo que
sacrificasse aos deuses. Para os preceitos cristãos, tratava-se da apostasia, o ato de
abjuração da cristã, prática que assegurava a concessão do libellus, o certificado
concedido pelo poder imperial que atestava o dever para com a tradição romana.
12
De início, os cristãos propuseram um messianismo sem implicações políticas e
pacíficas. Por isso, os órgãos romanos de governo mantiveram-se neutros ou até mesmo
12
Em um artigo publicado por Knipfing (1923, p. 346), é possível ler 35 libelli, completos. As
declarações são de cidadãos que declaravam lealdade aos deuses. Essa documentação era iniciada por
suas filiações, nomes e endereços. Para a efetivação dos certificados, cada localidade apresentava
procedimentos diferentes, razão pela qual aparecem letras diferentes e formato textual variado; no
entanto, certos procedimentos eram seguidos rigidamente, como a assinatura do comissário responsável,
uma espécie de “secretário de sacrifício”, como afirma o autor. Esse comissário respondia pelo
acompanhamento dos sacrifícios como também pela definição dos castigos e punições que eram dirigidos
às pessoas que recusavam o sacrifício. De qualquer modo, parece ter existido um grupo de comissários
que se deslocava até as comunidades mais distantes do império a fim de fazer valer os desígnios do
imperador para com os deuses.
48
benévolos diante da nova religião que encontrava simpatia mesmo nos ambientes mais
abastados (
PIETRI & FLAMANTE
, 1995, p. 156).
Essa relação harmoniosa foi, contudo, se alterando com o tempo, e, em 64,
acontece a primeira perseguição contra os cristãos da qual temos notícia, uma
empreitada coordenada pela ação imperial de Nero.
13
Segundo Daniélou & Marrou (1984, p. 106), Nero entregou aos suplícios os
cristãos, raça entregue a uma superstição nova e culpada”. Sobre esse assunto, os
autores prosseguem, dizendo que,
para fazer calar os rumores relativos ao incêndio de Roma, Nero
designou como acusados a indivíduos detestados por causa de suas
abominações, a quem o povo chamava de cristãos. O nome lhes veio
de Chrestos que, sob Tibério, fora entregue ao suplício pelo
procurador Pôncio Pilatos, prenderam primeiro os que confessavam a
fé, em seguida, por indicação destes, prenderam uma multidão de
outros, acusados não tanto por terem posto fogo na cidade mas de
odiarem o gênero humano.
Como podemos observar na citação, a acusação se pela censura a uma
atividade sediciosa, ligada ao messianismo. Para Jones (1980, p. 1049), a reviravolta
iniciada por Nero acabou enquadrando os cristãos como sendo adeptos de uma
superstitio illicita, ou seja, indivíduos que apresentavam uma prática supersticiosa e
ilícita em relação aos preceitos tradicionais de Roma.
Vale ressaltar que, nessa época, toda a vida política, religiosa e cultural de Roma
se organizava em torno da tradição pagã. De modo que o teatro, o exército, as letras, os
esportes, tudo, enfim, estava ligado ao culto aos deuses, do qual os cristãos se
ausentavam. Portanto, diante dos olhos de um romano que prezava sua sociedade, os
13
Nero chegou ao poder em outubro do ano 54, graças às intrigas e articulações de sua mãe Agripina,
para assegurar a sucessão do trono em favor de seu filho. Mas, dez anos depois de chegar ao trono, Nero
já era desprezado por boa parte da população de Roma.
49
cristãos figuravam como praticantes de misantropia aquele que tem aversão à
sociedade , ou seja, apresentavam-se como um grupo de indivíduos que odiavam toda
a raça humana (
BLÁZQUEZ
, 1995, p. 292).
Sobre o fundamento jurídico da perseguição, incidem diferentes hipóteses que
tentam esclarecer a razão pela qual o imperador Nero decidiu se voltar contra os cristãos
e persegui-los de maneira intensa. A hipótese mais recorrente aponta para a questão de
ser o cristianismo designado como uma prática ilícita. Como tal, incorria numa medida
de ordem pública, uma vez que o fato de os cristãos não reconhecerem a religião
romana afrontava a maiestas imperial, demonstrava desrespeito para com a imagem e o
poder imperial. Soma-se a esse aspecto o fato de os cristãos serem apontados também
como desordeiros, praticantes de crimes infames e sacrilégios. Segundo Fernández
(1984, p. 335), essas características seriam substancialmente as primeiras justificativas
jurídicas para as perseguições contra os cristãos, embora fossem acrescidos outros
aspectos políticos e religiosos, com o passar dos tempos, de acordo com outros
imperadores que também pretendiam combater os cristãos.
De qualquer maneira, é sob o jugo de Nero, o imperador que acusou os cristãos
de atearem fogo em Roma, que se tem notícia dos primeiros mártires do período.
14
As
execuções, segundo o testemunho de Tácito, citado por Blázquez (1995, p. 291),
14
Na noite de 18 de julho do ano 64, ocorreu um enorme incêndio em Roma. Ao que parece, Nero se
encontrava, na ocasião, em sua residência de Antium, a umas quinze guas de Roma, e, assim que soube
o que sucedia, correu a Roma, onde tratou de organizar a luta contra o incêndio. Para os que haviam
ficado sem refúgio, Nero fez abrir seus próprios jardins e vários outros edifícios públicos. Mas tudo isso
não bastou
para afastar as suspeitas que logo caíram sobre o imperador, a quem muitos tinham por
louco. O fogo durou seis dias e sete noites e depois voltou a se acender em diversos lugares durante mais
três dias. Dez dos catorze bairros da cidade foram devorados pelas chamas. Em meio a todos seus
sofrimentos, o povo exigia que se descobrisse o culpado, e não faltava quem se inclinasse a pensar que o
próprio imperador havia ordenado o incêndio da cidade para poder reconstruí-la a seu gosto, como um
grande monumento à sua pessoa. O historiador Tácito, que provavelmente se encontrava então em Roma,
conta vários dos rumores que circulavam, e ele mesmo parece dar a entender a sua opinião, pela qual o
incêndio havia começado acidentalmente num depósito de azeite. Nero fez todo o possível para afastar as
suspeitas contra sua pessoa e ter-se-ia aproveitado do fato de que dois dos bairros que não haviam
50
[...] serviam de diversão para o público, e algumas ocorriam no próprio
jardim do imperador. Os cristãos, nessa ocasião eram cobertos por peles
de animais e devorados por es, outros eram queimados em grandes
fogueiras no entardecer. Entre os cristãos mortos neste período
encontra-se Pedro, o primeiro bispo de Antioquia.
A perseguição empreendida por Nero contou com um edito de perseguição, um
documento que expressava os desígnios do imperador contra os cristãos e suas práticas,
exigindo punição para os que a descumprissem. Contudo, apesar de violenta, essa
perseguição não teve uma abrangência em todas as províncias; ela apresenta-se mais
local.
Em 68, uma boa parcela do Império se rebelou contra Nero, e o Senado romano
o depôs. Prófugo e sem ter para onde ir, Nero se suicidou. Com sua morte, muitas de
suas leis foram abolidas. Mas seu edito contra os cristãos continuou em vigor. Isto
significava que, enquanto ninguém se ocupasse em persegui-los, os cristãos podiam
viver em paz; mas tão logo algum imperador, ou magistrado decidisse retomar a
perseguição, poderia sempre apelar para a lei promulgada por
Nero.
Depois de Nero, seguiu-se um período de mais ou menos três anos de uma
relativa tranqüilidade, quando assume Domiciano (81-96), que empreendeu uma rápida
perseguição contra os membros da aristocracia e os intelectuais cristãos no decorrer dos
últimos dois anos de seu governo.
15
queimado eram as zonas da cidade em que mais se encontravam cristãos. Portanto, o imperador passou a
culpar os cristãos do feito. Assim, apesar de todos os esforços humanos, da liberalidade do imperador e
dos sacrifícios oferecidos aos deuses, nada bastava para apartar as suspeitas, nem para destruir a crença de
que o fogo havia sido ordenado (
HAMMAN
, 1990, p. 34).
15
Como assinalam Daniélou & Marrou (1984, p. 103), o documento capital que confirma a perseguição
de Domiciano é o Apocalipse. Informa-nos ele sobre um grupo de igrejas da Ásia, da Líbia e da Frigia,
dizendo que perseguições campearam nessa região, em que o próprio João se viu exilado de Éfeso a
Patmos. A igreja de Éfeso sofreu “pelo nome” de Cristo. Em Pérgamo, Ântipas foi morto, e isso está
relacionado “ao trono de Satanás”, que designa provavelmente o templo de Roma, ou seja, o culto
imperial. Não se deve esquecer, alertam-nos os autores, de que o gênero do Apocalipse consiste em
traduzir uma mensagem de esperança para os fiéis provados e supõe, assim, a perseguição. Ele é um
51
Em 98, inicia-se o governo de Trajano, imperador que, como relata Silva (2006,
p. 247), já havia manifestado claramente a intenção de se manter fiel ao mos maiorum, à
tradição romana, criando então uma lei que tornou possível a perseguição contra os
cristãos.
16
No segundo século, irrompeu uma nova perseguição sob Trajano (98-117),
devido à proibição de se criar sociedades que não fossem autorizadas, as hetérias.
17
uma carta do governador romano Plínio para o imperador Trajano, por volta de 112, que
contém uma referência explícita à perseguição. Plínio pediu conselho ao imperador
sobre se deveria tomar medidas contra aqueles que eram acusados de serem cristãos,
tendo em vista que ele próprio não estava certo se “o simples nome de cristão” era uma
ofensa punível. Em todo caso, ele acreditava que a “teimosia e obstinação inabalável”
desse povo deveriam ser punidas. Plínio relatou também que havia usado de tortura para
interrogar “duas escravas, que eles chamam de diaconisas”, para saber mais sobre as
práticas cristãs. Nessa época foram mortos Inácio, bispo de Antioquia, e Policarpo,
bispo de Esmirna, depois de se recusarem a abdicar sua em Cristo (
BLÁZQUEZ
,
1995, p. 292).
Nota-se que a jurisprudência presente nesse caso parece ter durado todo o
século, com uma perseguição aos cristãos que se resumia a ataques locais movidos pelo
documento que assinala uma mudança de atitude dos cristãos em relação ao Império. O contraste com as
Epístolas de São Paulo é notório. O império, desde Nero, é considerado como perseguidor dos cristãos.
João descreve-o sob o símbolo da besta que sobe do mar. Os dez chifres e as sete cabeças representam a
lista dos imperadores; as alusões ao culto imperial são explícitas. Roma é designada pelo nome de
Babilônia, como símbolo do paganismo perseguidor. A mesma hostilidade em relação a Roma se
encontra na Ásia, nessa época, como revela o V livro dos Oráculos Sibilinos. Mas o tema do Império
perseguidor cristaliza-se principalmente em torno do personagem de Nero. É provável que seja ele o
designado pelo número 666. O livro A Ascensão de Isaias apresenta o tema de Nero, trata do culto ao
imperador, e a igreja é aí chamada “plantação feita pelos Doze Apóstolos do Bem-Amado”, que é
perseguida e um dos Doze é morto, alusão certa ao martírio de Pedro sob Nero.
16
De família nobre, Trajano concluiu a formação militar junto ao pai, governador primeiro da Síria e
depois da Ásia, na época de Vespasiano. Comandou uma legião na Hispãnia e participou das campanhas
na Germânia, nas quais conquistou grande prestígio. No ano de 98, tornou-se imperador.
17
O termo designa a formação de sociedades políticas secretas que remontam à sociedade grega.
52
povo e depois submetidos à apreciação e ao julgamento dos magistrados romanos, cujos
motivos não estavam ligados a crimes determinados, mas, em parte, à designação de
“cristãos”. Deste modo, o nome os condenava.
Nesse contexto, observamos os cristãos numa situação precária, sujeitos a todos
os tipos de denúncia, por parte da população. A principal característica desse momento
da perseguição é o fato de a maioria dos casos de perseguição não partir do Estado, mas
da ação do povo. Era a população quem delatava os cristãos e exigia sua punição.
Ao romper do terceiro século, sob Septímio Severo (193-211), outros casos de
furor popular foram desencadeados contra os cristãos, declarados inimigos públicos e
acusados de crime de lesa-majestade. Não parece, contudo, que o imperador tenha
publicado qualquer lei geral de perseguição.
18
O
C
ICLO DE
P
ERSEGUIÇÕES SOB
A
NARQUIA
M
ILITAR E A
T
ETRARQUIA
O período entre 235 e 284 é designado de Anarquia Militar, momento em que se
verifica a existência de governos nos quais as perseguições aos cristãos se tornaram
mais intensas e acabaram assumindo características de execuções públicas. Trata-se do
período mais duro da perseguição.
18
O advento dos Severos levanta para o século a presença de atos legislativos emanados do poder central
diretamente contra os cristãos, alertam-nos Daniélou & Marrou (1984, p. 106). O cristianismo já não se
apresentava como fanatismo ou superstição sem importância e da ordem anedótica. Em suas doutrinas
não se vêem senão empréstimos mal assimilados de máximas tradições, cujas atitudes constitui um perigo
para o Estado Romano. Além do mais, fazia parte dos costumes romanos, por ocasião de certas
solenidades, oferecerem-se ao povo espetáculos para os quais se exigia uma certa disponibilidade de
vítimas destinadas aos combates do circo. Essa prática se tornaria recorrente contra os cristãos com o
passar dos anos e o agravamento das perseguições.
53
Os imperadores proclamados durante a Anarquia Militar eram, na verdade,
usurpadores vitoriosos, e muitos deles eram apenas conhecidos por suas próprias
legiões, como propõe Gonçalves (2006, p. 187). Alguns desses imperadores assumiram
durante seu governo o restabelecimento da tradição romana, o mos maiorum, e, para
tanto, exigiam da sociedade a prática de rituais pagãos. Tal exigência, por sua vez,
tornava os cristãos os responsáveis pelo rompimento da pax deorum, visto que, eles
eram indicados como os responsáveis pela falta na relação entre homens-divindades,
que se negavam a cultuar as divindades pagãs.
Entre os imperadores que assumiram essa concepção e, por isso, perseguiram os
cristãos estão Décio (240 a 251), Valeriano (253 a 260) e Diocleciano (285 a 306).
Esses imperadores utilizaram como justificativa para a perseguição o perigo político que
os cristãos representavam para o bom funcionamento do Estado. Afinal, os cristãos se
negavam, com veemência, a prestar culto e oferendas aos deuses do panteão oficial e
aos imperadores, o que, para a ordem imperial, era interpretado como um ato de
impiedade.
As perseguições de caráter religioso que se observam a partir de Décio são
episódios, segundo Silva (2003, p. 31), nos quais os soberanos identificam inimigos
reais e/ou potenciais ao equilíbrio do próprio cosmos do qual se julgam ordenadores e
tratam de erradicá-los mediante o uso da força. O que se encontra em jogo é uma
determinada concepção de realeza que atribui ao dominus uma incumbência religiosa
jamais exigida ao princeps na qualidade de pontifex maximus, ou seja, a imposição para
toda a extensão do orbis romanorum de um padrão de comportamento religioso tido
como correto pelo Estado, mediante o uso da coerção física, caso necessário.
54
Os deuses em desagrado teriam decidido punir a população do Império com
desgraças traduzidas pela crise na qual a sociedade romana se via inserida, por exemplo,
a peste que assolava o Império. Para Décio e Valeriano, os cristãos eram os únicos
responsáveis por estas desventura. Sendo assim, o princípio de equilíbrio entre o mundo
dos deuses e o mundo dos homens, a pax deorum, havia sido rompido pela falta dos
cristãos, exigindo a pronta intervenção imperial.
Vale ressaltar, contudo, que não se trata de perseguições contínuas e
empreendidas em toda a extensão do Império, tampouco, sempre cruéis. Aos períodos
de perseguições seguiam-se períodos de relativa tranqüilidade, como ressalta Barnes
(1992, p. 159).
Segundo Gonçalves (2006, p. 186 e ss.), a Anarquia Militar iniciou-se com
Maximino, que governou de 235 a 238. De origem humilde, nasceu nas montanhas da
Trácia, por volta do ano 173. No entanto, a sua extraordinária robustez e resistência
física cedo o habilitaram para a carreira das armas, que abraçou ainda adolescente.
Depois de alistar-se na cavalaria, tornou-se guarda pessoal do imperador; mais tarde,
serviu como tribuno durante o governo de Heliogábalo e tornou-se o principal
comandante militar no período de Alexandre Severo. Mas, em 235, um grupo de oficiais
revoltou-se contra o imperador, reclamando a púrpura imperial para Maximino, que
logo assumiu o governo imperial, assassinando Alexandre Severo.
Maximino instaurou um regime de governo forte. Mandou executar a maioria
dos conselheiros, amigos e parentes de Alexandre, confiscou terras e propriedades,
retirou poderes do Senado, o que contribuiu para que fosse visto como um bárbaro
feroz, inimigo da tradição e das leis romanas. Maximino foi o primeiro "imperador
soldado", pois, antes dele, todos os Césares eram oriundos da ordem senatorial. Era,
55
então, identificado pelas camadas mais abastadas de Roma como um inimigo do Senado
e das velhas tradições romanas.
Em 238, porém, explodiu uma revolta na província de África, liderada pelos
patrícios gordianos, alegados descendentes de Caio Graco e Marco António, ou seja,
membros da aristocracia romana. A revolta de África foi rapidamente esmagada e o
imperador depressa marchou para Itália, mas as forças do Senado travaram o seu avanço
em Aquiléia. Após o assédio infrutífero a essa fortaleza, sem provisões e vendo que
todo o Império aderira à revolta, os soldados acabaram por assassinar Maximino e o seu
filho, reconhecendo a autoridade do Senado.
Em 238, assumiu o poder imperial Gordiano III, que enfrentou os godos e os
persas e acabou assassinado em 244 pelos soldados. Teve início assim uma fase de
ascensão ao poder imperial por uma série de imperadores soldados, que, num primeiro
momento, pareciam incapazes de conter o grande acúmulo de ameaças presentes dentro
e fora das fronteiras imperiais, como assinala Grant (1987, p. 299).
Em 244, ascendeu Felipe, o Árabe, que governou até 249 e que também foi
aclamado e morto pelas legiões. Entre seus feitos, vale destacar a comemoração que
realizou do milésimo aniversário de Roma, o que, de certa forma, pode ter contribuído
para relembrar as tradições romanas um tanto esquecidas em meio a crises e sucessões
constantes. Esse imperador, nos cinco anos de seu reinado, se opôs aos defensores mais
intransigentes do paganismo e, por tal razão, foi odiado e desprezado por eles, como
traidor da religião e da tradição pagãs (
MAIER
, 1972, p. 48).
Ascendeu, em 249, Décio, que governou até 251. Esse imperador praticou uma
política de restauração da antiga religião romana e desencadeou uma sistemática
perseguição contra os cristãos de todo o Império. Para tanto, promulgou editos, que
56
eram determinações legais estabelecidas diretamente pelo imperador, os quais deveriam
ser rigorosamente seguidas. O primeiro edito de Décio promulgado em 249, obrigava
toda população a oferecer publicamente um sacrifício propiciatório, a supplicatio, aos
deuses da pátria.
19
O descumprimento dessa ordem resultaria em punições, incluindo a morte.
20
Sobre isto, relata-nos Eusébio de Cesaréia:
Décio inaugura uma batalha aberta e geral contra os cristãos
considerados inimigos do estado. O imperador restaura o culto
imperial como religião do império e força a inúmeras apostasias,
exigindo dos cristãos a obtenção de um certificado no qual constava
que este havia oferecido sacrifícios aos deuses, queimado incenso ao
pé das estátuas (Hist. Eccl. Livro VI, p. 328).
Algumas hipóteses foram levantadas por estudiosos que tentaram compreender as
reais motivações que levaram o imperador a exigir de toda a população uma
documentação comprobatória de libação às deidades do Império. Oborn (1933, p. 68) é
categórico ao afirmar que a principal motivação de cio foi a situação econômica, já
que as reservas imperiais estavam arruinadas nessa época, problema que poderia ser
resolvido com a aquisição dos bens confiscados dos indivíduos que desobedecessem à
ordem imperial.
Autores como Jones & Pennick (1999, p. 33), Millar (1972, p. 164), Croix (1963,
p. 25), Momigliano (1993, p. 320), não são, contudo, tão enfáticos sobre o aspecto
exclusivamente econômico. Assim, apesar de reconhecerem a grande dificuldade pela
19
Os deuses a quem eram dedicados os sacrifícios eram baseados no populi publici di Romani cujas
deidades eram representadas por Júpter, Juno, Minerva, Apolo, Vênus e Nemeses, como explica Knipfing
(1923, p. 348). Os objetos divinos escolhidos por Décio não foram o culto de Mithras, Isis ou Sol
Invictus. Quanto às libações, trata-se de um registro escrito e reconhecido pelas autoridades como
documento comprobatório dos deveres religiosos em dia e do cumprimento dos desígnios imperiais.
20
Oborn (1933, p. 67), atenta ao fato de o primeiro edito ser direcionado a toda a população, e não apenas
recair contra os cristãos. Contudo, ao notar a resistência para a execução de suas determinações, o
imperador emitiu um segundo edito, que determinava a punição com a morte para aqueles que não
seguissem suas determinações.
57
qual passava o Império, principalmente a necessidade de manutenção do exército para
assegurar o combate às inúmeras incursões estrangeiras, esses autores assinalam como
fator principal da perseguição a realidade social dramática à qual a população estava
submetida. Afinal, a comunidade estava acometida de pavor constante, provocado pelas
invasões e por uma crise na produção de alimentos. Além disso, uma doença a peste
bubônica, que era ainda pouco conhecida pela população estava assolando cidades
quase que totalmente. Diante dessa realidade, um grande temor repercutia sobre o vasto
território e exigia medidas drásticas e urgentes que propiciariam o restabelecimento da
paz de outrora.
Diante de tal contexto, é inegável que qualquer provimento adicional ajudaria, e
muito, as reservas do Império. Contudo, esses autores chamam a atenção para o fato de
o confisco de bens ser uma medida submetida a regras estritamente claras. Assim, uma
pessoa podia ser exilada e ter parte de seus bens transferida para sua família, ou seja,
nem tudo que ela possuía era necessariamente absorvido. Dessa forma, não é possível
pensar a perseguição aos cristãos exclusivamente como forma de aquisição de riquezas
para o tesouro imperial. Aliás, como assinala Keresztes (1975, p. 88), a própria ação do
imperador Décio demonstra que o confisco de bens não era o elemento fundamental do
edito publicado em dezembro de 249, uma vez que o primeiro edito foi rapidamente
substituído por outro, levando a crer que seus objetivos não foram alcançados, exigindo
um dispositivo mais rígido, que foi obtido com o segundo edito, promulgado em
meados do ano 250.
Com Décio, verifica-se o uso total da violência contra os cristãos e um número
considerável de penalizados; que, para Homo (1931, p. 62), se explica pelo desejo do
imperador em restabelecer a moral religiosa romana. Décio elaborou um juramento
58
cívico como forma de expressão religiosa para todos os habitantes do Império, sem
qualquer exceção, o que acabou gerando uma forte repressão aos cristãos, como nos
conta Eusébio:
Nenhuma estrada, nenhum caminho ou ruela estava aberto a nós, de
noite ou de dia; sempre e em todos os lugares, todo o mundo estava
gritando para qualquer um que não manifestasse a favor dos deuses,
que deveria ser arrastado imediatamente para fora e queimado. Por
muito tempo o terror permaneceu intenso, (Hist. Eccl. Livro VI).
A perseguição foi breve, porém muito intensa, informa-nos Eusébio, ao tratar da
ação realizada na cidade de Alexandria contra os cristãos:
Um homem de nome Metra, que havia se recusado a realizar
sacrifícios aos deuses foi chicoteado e teve seu rosto espetado,
marcaram seus olhos com agulhas, levaram-no então para os
subúrbios da cidade onde foi apedrejado até concluir seu
sepultamento. Em seguida pegaram uma mulher de nome Quita,
obrigaram-na a adorar aos deuses no templo, como ela se recusou
amarraram-na pelos pés e a arrastaram pelas ruas de toda a cidade
golpeando seu corpo sobre todos os obstáculos que encontravam pelo
caminho, conduzindo-a até o mesmo subúrbio onde acabaram de
matá-la a pedradas. Posteriormente começaram a irromper como um
vendaval sobre as casas dos cristãos, (Hist. Eccl. Livro VI).
Trata-se de um acontecimento presidido pela população pagã da cidade, como
esclarece Eusébio em seu relato: “A multidão zomba e lança pedras em certas
circunstâncias sobre aqueles que seguiam para a execução” (Hist. Eccl. Livro VI).
Tal citação atesta o caráter de espetáculo que estas perseguições assumiram ao
longo do século III e revela, de forma explícita, a manifestação popular contra os
cristãos nesse período. Aqui, vale lembrar, nas palavras de Wilken (1984, p. 56), a
grande significância política da ação religiosa. A religião contribui para a imposição dos
princípios de estruturação da percepção e do pensamento do mundo, em particular, do
59
mundo social, na medida em que impõe um sistema de práticas e de representações com
os quais a sociedade apreende o mundo (
BOURDIEU
, 2003, p. 9).
Quanto à extensão das perseguições, assistiu-se, nesse momento, a uma ação do
poder imperial de forma restrita a certas localidades do domínio romano. Depois de 251,
contudo, a perseguição foi relaxando, e só foi retomada com Valeriano.
Em 251, o imperador Décio morreu em combate contra os godos, sendo
sucedido por Treboniano Galo (251-253), que, por ocasião de uma nova e grave peste
que devastou todo o Império, ordenou sacrifícios expiatórios (holocausta) dos quais os
cristãos não podiam participar, desencadeando, como reação, o furor do povo.
Galo não deflagrou, no entanto, uma perseguição sistemática como a de seu
antecessor Décio, talvez em virtude da gravíssima situação na qual o Império se
encontrava, com numerosas invasões forçando todo o limes. Além de constantes ataques
e saques nas províncias do Danúbio, os persas golpeavam a Síria rumo a Antioquia.
Nesse instante, um novo surto de peste bubônica irrompeu. Assim, Galo não teve
oportunidade de concentrar-se de forma mais rigorosa na questão religiosa, conclui
Haas (1983, p. 134).
Galo morreu em combate e seu sucessor, Emiliano, ficou no poder por alguns
meses do ano de 253, sendo logo morto também no campo de batalha. Esses
imperadores tiveram de enfrentar não apenas os ataques rbaros e persas mas também
uma epidemia prolongada de uma moléstia pouco conhecida, a peste bubônica,
enquanto os desastres econômicos também se multiplicavam.
Em 253, assume o poder Valeriano, que, nos primeiros anos de seu governo,
tentou empreender uma política que restabelecesse o Império. Contudo, no verão de
257, por meio de um edito dirigido a todos os cristãos do Império, determinou o
60
fechamento dos edifícios sacros, o confisco dos cemitérios e, no verão do ano seguinte,
em 258, promulgou um segundo edito, cujas exigências eram mais severas, como a pena
de morte para os chefes religiosos (bispos e diáconos), além da perda da dignidade e o
confisco dos bens para todos os demais cristãos.
Devido ao segundo edito, muitos bispos, padres e diáconos padeceram o martírio.
Nota-se, desse modo, uma política implacável contra os cristãos. As comunidades
cristãs localizadas nas províncias da África sofreram, nessa ocasião, perdas
significativas quando observado o número de mártires provenientes dessa região.
A perseguição contra todos os cristãos do Império, de individual e limitada a
determinadas regiões, como se verificou em tempos de Décio, tornou-se geral, ou seja, o
cristianismo foi perseguido em todo o Império como Igreja, como instituição, como
estrutura.
Verificou-se, por parte do Estado a utilização de medidas sumárias para efetuar o
combate aos cristãos, uma vez que Valeriano não exigiu documento algum de renúncia
ao cristianismo, mas avançou diretamente sobre as igrejas.
Afinal, o que teria persuadido o imperador a adotar tal posição política contra os
cristãos, que, em seus primeiros anos de governo, de 253 a 257, não se tinha nenhum
registro de ataques oficiais contra os cristãos, e, subitamente, irrompe um novo surto de
perseguição? Para compreender esse novo arranjo político, é necessário recorrer
novamente à conjuntura pela qual passava o Império.
Como foi visto anteriormente, nos governos que antecederam Valeriano a questão
das invasões era proeminente. Essa situação se agravou ainda mais durante seu governo.
No Ocidente, os alamanos continuavam a invadir e ameaçavam a própria cidade de
Roma. No lado oriental do Império, a situação também era dramática. Várias tribos
61
invadiram os Bálcãs, sitiando cidades importantes como a Tessalônica. Na Ásia Menor,
cidades como Pítio, Calcedônia e Nicomédia foram saqueadas. Tudo isso aconteceu
entre os anos de 255 e 258, sem contar o poderoso exército comandado por Sapor, que
liderava os sassânidas e avançava sobre as províncias da Mesopotâmia e da Síria. O
próprio Valeriano chegou à Síria em 257, conseguindo assegurar algumas vitórias na
região.
Em resposta a tantos anos de lutas e ataques constantes, muitas cidades foram
saqueadas, as guerras esvaziaram os tesouros imperiais, as provisões alimentares
escasseavam, a inflação alcançou taxas elevadíssimas, se comparadas com a de outros
anos do século III, o comércio e a cunhagem de moedas também sofreram reduções
consideráveis. O único problema que Valeriano não teve que combater efusivamente foi
o perigo da usurpação de seu poder, talvez pelo fato de ter nomeado como Augusto seu
jovem filho Licínio Galieno, o que, além de assegurar a sucessão pacífica das insígnias
imperiais, somou forças para combater os focos de insurreição que eventualmente
irromperam dentro do próprio exército.
Como ressalta Jones (1964, p. 36), era sob a administração de Valeriano que o
Império continuava sob ameaça, e, para tentar restituir a paz, o imperador lançou mão
de suas crenças religiosas, elevando o culto de Vesta, Vênus, que se tornou Venus
Victrix, “Vênus, a vitoriosa”, assim como o de Apolo, de Diana e de Júpiter. Todos
esses deuses foram igualmente reconhecidos pelo imperador como protetores do
Império contra as ameaças bárbaras. Esses deuses deveriam ser obedecidos, temidos e
adorados para assegurar a sobrevivência do Império.
Assim, é necessário compreender a relação que se estabelece entre a crise
generalizada na qual vivia o Império e a perseguição aos cristãos. Nesse intento, Haas
62
(1983, p. 136) aponta algumas proposições que poderiam ter motivado o imperador a se
levantar contra os cristãos. Trata-se de uma perspectiva de ordem religiosa, uma vez que
a crise experimentada pelo Império entre 235 e 284 criou um clima perturbador sobre a
população, que se via desamparada pelos deuses. Mediante a recusa eminente dos
cristãos em prestar culto às divindades do Império, os romanos viam-se em dívidas com
os seus deveres religiosos.
Oborn (1933, p. 72), por sua vez, aponta a questão econômica como o elemento
primordial para compreender a atitude de Valeriano contra os cristãos. Para tanto, o
autor recorre ao segundo edito que determinou o confisco dos bens dos cristãos que não
seguiram as determinações imperiais. No entanto, autores como Baynes (1975, p. 131),
Jones (1981, p.89), Balsdon (1987, p.183), Momigliano (1996, p. 298) e Burckhardt
(1996, p. 22) discordam dessa via de análise, já que consideram que, mesmo com o
segundo edito, não houve um registro significativo de crescimento dos tesouros
imperiais. Além disso, bastava que o cristão prestasse os sacrifícios para sua vida
retornar à normalidade.
Nessa perspectiva, afirma Janssen (1979, p. 14), a perseguição religiosa
representa, para os romanos, a resposta negativa dos cristãos a um ato político e
patriótico do Império. A não execução dos ritos era uma violação das cerimônias que
asseguravam paz e prosperidade. Essa falta agredia não somente os deuses como
também o sentimento de “nacionalidade” dos romanos e o próprio imperador.
A perseguição de Valeriano foi arrebatadora, como nos relata Eusébio:
Valeriano se mostrou a princípio tolerante para com os cristãos,
porém, no ano de 257 publicou um edito contra os clérigos e logo
depois outro contra os cristãos em geral, o motivo invocado pelo
imperador foi o perigo político, (Hist. Eccl. Livro VII).
63
No verão de 260, Valeriano foi capturado pelas tropas de Sapor e passou o resto
de seus dias como cativo dos sassânidas, sendo por eles executado. Nesse momento, a
história das perseguições presenciou um novo cenário, quando, na seqüência, assumiu o
poder Galieno, filho de Valeriano. Ilírio de nascimento, Galieno governou até 268,
quando foi morto pelas suas próprias legiões. Esse imperador não deu continuidade à
perseguição aos cristãos iniciada pelo seu pai, talvez pelo fato de as ameaças de invasão
se tornarem ainda mais fortes, o que foi acompanhado pelas inúmeras tentativas de
usurpação de seu poder. Desse modo, não houve talvez tempo hábil para o imperador
promulgar editos contra os cristãos, o que lhes permitiu desfrutar de um período de paz.
Com o assassinato de Galieno, ascendeu ao poder Cláudio II, conhecido como
“Gótico” por ter vencido os godos. Cláudio governou até 270, quando foi morto pelos
próprios godos, sendo sucedido por Aureliano. Durante seu governo, Aureliano
apresentou uma grande preocupação com a proteção da cidade de Roma. Com o
propósito de protegê-la de ataques, mandou construir uma nova muralha, além de
estimular o culto ao Sol Invictus, representado pela imagem do olho que tudo vê,
ilumina, aquece e protege, como afirmam Jones & Pennick (1999, p. 102 e ss.).
Depois da morte de Cláudio II, o exército proclamou Aureliano como imperador,
em 270. Em seu governo, que foi até 275, ocorreu uma intensa pressão no limes do
Império, especialmente pelos sassânidas. No tocante à sua postura para com os cristãos,
sabe-se que Aureliano empreendeu uma perseguição que durou apenas alguns meses,
em face da constante ameaça de invasão do Império. A razão para tal perseguição
estaria atrelada ao fato de Aureliano manter o culto ao Sol Invictus.
Aureliano, morto em combate, foi sucedido por Tácito (275-276), membro da
ordem senatorial, Probo (276-282), um militar de carreira, e Caro (282-283), todos
64
mortos em combate. Caro passou o poder a seus filhos Carino (283) e Numeriano (284),
ambos assassinados pelas suas legiões.
Abriu-se, então, em 284, uma nova ordem com Diocleciano. De origem dálmata,
foi aclamado imperador pelas suas legiões e estabeleceu um novo sistema político
chamado Tetrarquia, promovendo assim a reorganização do Império.
Diocleciano, em 284, por meio de várias medidas, pôs fim à anarquia e deu
início a uma nova fase do Império, denominada Dominato, em oposição ao Principado,
estabelecendo em Roma uma monarquia despótica de tipo oriental, em que os
imperadores se intitulavam Dominus et Deus, sendo adorados e reverenciados como
soberanos orientais (
SILVA
,1998, p. 207).
21
A fim de deter a crise e manter a defesa e a ordem interna, Diocleciano
aumentou os efetivos do exército para mais de 450.000 homens e dividiu o Império em
aproximadamente 101 províncias, 17 dioceses e 4 prefeituras do pretório. O imperador
ainda elaborou um novo arranjo na distribuição da autoridade ao criar a Tetrarquia, na
qual o Império seria governado por quatro titulares: dois Augustos e dois Césares.
Segundo Finley (1990, p. 158 e ss.), o que Diocleciano pretendia com a Tetrarquia era
evitar a ocorrência dos principais problemas detectados nos regimes anteriores, como a
excessiva participação das legiões na escolha dos imperadores, o curto período de
governo dos príncipes e a dificuldade em estabelecer um sucessor. De fato, com as
constantes mudanças dos governantes, ficava realmente difícil estipular uma política de
21
O Dominato se caracterizou, segundo Silva (2003, p. 26), nos aspectos políticos e administrativos, pela
divisão progressiva entre competências civis e militares, pela ampliação das instâncias administrativas e
do número de funcionários públicos, bem como pela centralização crescente das tarefas de governo nas
mãos do comitatus, o órgão diretor máximo do Império, formado pelo próprio imperador e seus auxiliares
de chancelaria. No que toca á questão ideológica, percebe-se sob o Dominato, a potencialização da
majestade imperial, na qual o soberano é convertido a uma entidade cada vez mais onipotente do ponto de
vista simbólico: o soberano não é um deus, ele é a representação de um Deus. Esses imperadores
postulam, de modo enfático, uma relação privilegiada com o mundo divino.
65
defesa de fronteiras que se mantivesse por mais tempo e que pudesse tornar a defesa
efetivamente eficaz e rendendo resultados esperados. Essa reforma militar e
administrativa aumentou enormemente os gastos do Estado. Para enfrentar as despesas,
foram lançadas novas taxações sobre a terra, o comércio e demais atividades. Foi
também criado um imposto em gêneros annona recolhido pelos decuriões, que era
destinado à manutenção da burocracia e do exército. Esses impostos oneravam
principalmente os pequenos proprietários e os arrendatários. As taxas seriam pagas per
capita e per jugero, ou seja, um tanto por cada pessoa e por cada pedaço de terra
cultivável. A coleta das taxas era confiada a uma burocracia cada vez maior.
Quanto à perseguição aos cristãos, esta, que havia cessado substancialmente no
ano seguinte à captura do imperador Valeriano, por ocasião da guerra contra os persas,
em 259, acabou sendo retomada de forma violenta e generalizada por Diocleciano e
Galério no início do culo IV, com os editos de 303 e 304. Esses editos impunham a
destruição das igrejas, a entrega dos livros sacros e a ordem a todos os cristãos de
sacrificar aos deuses, sob pena de condenação à morte.
Por tal feito, Eusébio chama esse período de “Era dos Mártires,” momento em
que os cristãos, assim como sob Décio e Valeriano, foram considerados perigosos à
ordem imperial. Segundo Eusébio,
Durante a maior parte dos governos desses imperadores, os cristãos
desfrutaram de uma relativa paz, porém, em 303, iniciou-se uma
perseguição que foi primeiramente manifestada no edito de 303, o
qual negava os direitos cívicos aos cristãos, dois meses mais tarde,
um segundo edito foi dirigido ao clero. Por fim, em 304, apareceu
outro edito, no qual, todos os cristãos do império que negaram a
apostasia, foram condenados (Hist. Eccl. Livro VII).
66
Desse modo, as punições podiam ser executadas ora sobre um único indivíduo,
ora sobre uma comunidade inteira, abrangendo todos os moradores de uma mesma
região, como testemunhou Eusébio:
Na cidade de Nicomédia, onde o bispo Antimo e seu rebanho sofreram
os atos do martírio, os quais por sentença, foram degolados, outros
queimados e outros amordaçados e lançados ao mar (Hist. Eccl. Livro
VIII).
Em seguida, foi emitido o segundo edito imperial, que condenava os clérigos à prisão:
O espetáculo do que sucedeu nessas circunstâncias supera toda
narrativa. Em toda parte, inumerável multidão era presa e em geral
os cárceres, outrora preparados para assassinos e violadores de
túmulos, estavam cheios de bispos, padres, diáconos, leitores e
exorcistas, de sorte a não restar mais lugar para os condenados por
seus crimes (Hist. Eccl. Livro VIII).
Tantos foram os que cederam às pressões do governo e ofereceram sacrifício aos
deuses pela segurança do imperador e sua vitória diante das ameaças que pairavam
sobre o Estado, sem contar os inúmeros mártires, que a Igreja quase entrou em colapso.
Em 303, Diocleciano adotou uma série de medidas, que seriam as últimas contra
os cristãos do Império. A Grande Perseguição prosseguiu durante onze anos em
algumas zonas da Ásia Menor, da Síria e do Egito, como assinala Brown (1997, p. 30).
De início, o imperador havia promulgado um edito, em 303, que determinava a
retirada dos cristãos do exército, dos cargos públicos, ou de qualquer função
administrativa do Império. Nesse instante, Diocleciano pareceu não gostar do grande
número de cristãos existentes no Império. E, na seqüência, por ocasião da festa das
Terminalia, no mês de fevereiro do mesmo ano, promulgou um outro edito, o qual
designava a destruição das igrejas e a queima dos livros sagrados. Sobre esse feito
Eusébio declara:
67
Todas essas coisas aconteceram em nosso tempo, quando vimos os
edifícios sagrados totalmente destruídos ao chão e as divinas
escrituras queimadas em praça pública, os pastores da igreja em
tormentos enquanto outros eram aprisionados e expostos aos
inimigos (Hist. Eccl. Livro VIII).
O primeiro edito de Diocleciano atacava a igreja como instituição e os cristãos
que ocupavam cargos públicos, mas, logo depois, no mesmo ano, foram promulgados o
segundo e o terceiro editos, que apresentavam aspectos mais abrangentes contra os
seguidores do cristianismo, pois ampliavam as determinações aos sacerdotes e
diáconos, fato que parece ter relação com um incêndio no palácio imperial de
Nicomédia, o qual recaiu como acusação contra os cristãos. Sobre esse assunto,
Eusébio nos relata:
Os romanos chamaram março, na ocasião da festa da paixão de
nosso senhor, quando em todos os lugares foram expostos os editos
imperiais os quais ordenavam a destruição das igrejas, queima dos
livros sagrados e todas as pessoas cristãs eram despojadas de sua
liberdade em expressar a em Cristo. Este edito, que foi o primeiro
dirigido contra nós, logo foi sucedido por outros que ordenavam o
cárcere de todos os bispos em todos os lugares do Império, estes
eram obrigados, de todas as formas, a oferecer sacrifícios aos deuses
(Hist. Eccl. Livro VIII).
O quarto edito foi promulgado em 304, e suas determinações eram dirigidas a
todos os cristãos do Império, os quais foram obrigados a sacrificar e dirigir libações aos
deuses. Nesse edito, caracteriza-se a face mais violenta da perseguição aos cristãos,
além de apresentar-se como a proporção territorial mais ampla da perseguição dentro do
vasto Império, cuja abrangência varreu as terras da Mauritânia, Egito, Tebaida,
Palestina e África.
Em 308, Maximino Daia promulgou um quinto edito contra os cristãos. Nesse
edito, ficava determinado que as carnes vendidas nos mercados seriam antes
68
consagradas aos deuses, com libações, e todos aqueles que utilizassem os banhos
públicos prestariam sacrifícios aos deuses.
Inserida no contexto político da Tetrarquia, a perseguição acabou, contudo,
assumindo faces distintas, de modo que o César Constâncio Cloro não empreendeu a
perseguição nas Gálias e na Britânia, e, quando o fez, aplicou as determinações
referentes ao primeiro edito. Na Itália, o Augusto Maximiano, empreendeu a
perseguição segundo os desígnios imperiais. Mas, depois da abdicação de Diocleciano,
em 306, a perseguição aos cristãos se apresentou de forma diferente no Oriente e no
Ocidente. Maxêncio, filho de Maximiano, proclamado Augusto, interrompeu as
perseguições. Constantino, filho de Constâncio Cloro, foi proclamado Augusto por seu
pai e também não continuou a perseguição. Somente Galério continuou a perseguição
nos territórios da Macedônia, Grécia, Trácia e Ásia Menor, até 311, quando então
promulgou, em Nicomédia, um edito concedendo liberdade de culto aos cristãos
(
BLÁZQUEZ
, 1995, p. 303).
Diocleciano foi sucedido por Constantino (306-337), que tomou medidas
importantes como a mudança da capital de Roma para Constantinopla, o
reconhecimento da religião cristã e a vinculação do colono à terra. A mudança da
Capital para a parte oriental do Império demonstra, segundo Brown (1994, p. 231 e ss.),
o esvaziamento de Roma como centro econômico e político. Constantino baixou
decretos no sentido de vincular o homem à terra e às suas profissões urbanas, facilitando
a cobrança de impostos.
As reformas introduzidas por Diocleciano e Constantino conseguiram manter o
Império coeso durante o século IV. Em 395, com a morte do imperador Teodósio, o
Império foi dividido entre seus filhos Honório e Arcádio, em Império Romano de
69
Ocidente e Império Romano do Oriente. Arcádio tornou-se governante no Oriente, com
a capital em Constantinopla, e Honório tornou-se governante no Ocidente, com a capital
em Mediolanum atual Mião e mais tarde em Ravena.
Diante de tal contexto, é possível perceber a ocorrência de diferentes
acontecimentos que desenharam uma mutação no Império Romano, que se viu
confrontado por “novas” necessidades e aspirações, que exigiam “novas” medidas e
filiações de poder. As soluções impostas pela crise do terceiro século operaram-se no
interior e no exterior do Império e alteraram o equilíbrio de poder dentro da Bacia do
Mediterrâneo, permitindo que o Império se mantivesse ainda por mais dois séculos,
(
BLÁZQUEZ
, 1995, p. 277). Nesse sentido, é preciso combater uma visão de que teria
havido, no culo III, uma decadência real que teria, obrigatoriamente, conduzido ao
fim do Império, a chamada “lenda negra”, momento em que todas as forças teriam sido
deterioradas ao ponto de não se recomporem mais (
CARRIÉ e ROUSSELLE
, 1999, p.
13).
Vale ressaltar que todo o movimento de reestruturação do Estado empreendido
por Diocleciano não se fez de uma única vez, nem se apresentou sob uma evolução
linear e pacífica. Ao contrário, a obra reformadora, esboçada inicialmente pelos
imperadores Galieno e Caro e desenvolvida com maior vigor por Diocleciano e
Constantino, não deixou de ser alterada por seus sucessores, pelo menos até a separação
definitiva entre Oriente e Ocidente após a morte de Teodósio, como nos chama a
atenção Silva (1996, p. 72).
Tais mudanças foram resultantes de um sistema político que, ao se constituir,
reunira, desde a sua formação inicial, diversas demandas, necessidades e conflitos
70
provenientes dos diversos segmentos que constituem a sociedade e que interferem em
sua dinâmica de funcionamento (
SILVA
, 1996, p. 76).
Diante dessa visão do contexto histórico do Império Romano e de sua relação
com o cristianismo, bem como da perseguição empreendida contra os cristãos do
Império, passamos, então, para uma análise que pretende observar a relação do Império
e da tradição religiosa pagã para com a aplicação das penalidades que recaíram sobre os
corpos dos cristãos sentenciados pelos editos imperiais, ou seja, passamos a discorrer
sobre a forma como o Estado romano se utilizou das leis e da tradição religiosa pagã
para punir os cristãos.
71
2
O C
ORPO
S
UPLICIADO: A
D
EGRADAÇÃO DO
T
RANSGRESSOR
O
C
ORPO
,
UM
N
OVO
H
ORIZONTE DE
P
ESQUISA
No contexto do final do século III e início do século IV, o corpo sentenciado pelo poder
imperial se apresenta como o locus da dor. Sobre ele são expostos signos que remontam
à repressão empreendida contra os cristãos, ao mesmo tempo em que se manifesta sobre
o mesmo corpo condenado o rigor das penalidades empreendidas em nome da
manutenção da tradição romana.
No mundo pagão, segundo Sennett (1997, p. 110), o sofrimento físico quase nunca
era considerado como uma circunstância humana. Homens e mulheres podiam tê-lo
suportado, aprendido com ele, mas não o buscavam. O advento do cristianismo conferiu
à dor do corpo um novo valor espiritual. Lidar bem com ela talvez tenha se tornado
mais importante do que sentir prazer, segundo a lição ensinada por Cristo por meio de
seus próprios infortúnios.
Desse modo, uma vez que a morte é acompanhada por um conjunto de
atrocidades perpetrado contra o corpo, a dor assume, então, um papel relevante na ação
punitiva do Império sobre os cristãos. Logo, o corpo, a dor e a morte são indícios dos
recursos utilizados pelo poder imperial para a produção das penalidades que traduzem o
ideal de justiça vigente na sociedade romana.
Assim, mediante a leitura da superfície dos corpos, pode-se alcançar as
profundezas da vida social, já que os registros corporais revelam muito acerca do
significado da experiência humana. É um esforço que pretende evidenciar as cadeias e
72
práticas de execução da lei sobre o corpo, revelando os detalhes do uso da dor na
composição de um espetáculo marcado por signos capazes de expressar o poder do
Império sobre um determinado grupo. São esses os desafios sugeridos para este
capítulo.
As expressões físicas anunciadas pelo corpo, pela dor e pela morte conjugam-se
numa trama capaz de revelar a maneira pela qual pagãos e cristãos apropriaram-se do
corpo de forma distinta, e imprimindo sobre ele seus traços culturais, sua moral
religiosa, e dele fazendo plataforma para sua ação política.
Tem-se, então, um rico repertório histórico e antropológico acerca das
apropriações simbólicas do corpo, uma vez que sobre o corpo constavam, de forma
aparente, os registros físicos do embate travado entre o poder imperial e os cristãos, uma
tensão político-religiosa expressa diretamente sobre a carne. Desse modo, o corpo
acabou assumindo a forma de um estandarte, ou seja, daquele que estampa e releva
algo, no instante em que abrigou e expôs os registros físicos e simbólicos do embate
entre o cristianismo e o paganismo.
Trata-se, de fato, de um grave conflito que envolveu todo o Império e
movimentou toda a população, e que revelou procedimentos penais aplicados sobre o
corpo. Tais penalidades perpassaram matrizes e pormenores definidos específica e
cuidadosamente investidos sobre a carne. Nessa perspectiva, o corpo é percebido como
um elemento que comporta em si a marca da vida social e expressa a preocupação dos
diferentes grupos. Pode-se imprimir sobre ele, fisicamente, determinadas
transformações ou fisionomias por meio das quais os homens exprimem a sua visão de
mundo (
RODRIGUES
,1983, p. 13).
73
Segundo Porter (1992, p. 325), há um vasto campo de investigação para os
pesquisadores do campo político que precisa ser analisado, tendo em vista as realidades
do poder que são produzidas a partir do exercício da autoridade do Estado, sobre os
corpos de seus súditos. Sobre tais corpos mas, logicamente não apenas sobre eles,
consegue-se ler as características e os códigos de conduta que estruturam o mundo.
Mas, especialmente, do corpo, exigem-se comportamentos e atributos, direitos e
obrigações capazes de propiciar certo sentido de segurança.
Desse modo, pode-se afirmar que, em cada sociedade, é possível realizar um
inventário das mensagens impressas no corpo dos sujeitos e descobrir, com isso, a
forma como elas se organizaram e concederam sentido ao mundo. O corpo pode então
representar um microcosmo para o exercício do poder, um suporte das próprias relações
políticas sobre ele escritas por intermédio de códigos de conduta, punições físicas e
refinamentos de etiqueta (
SILVA
, 2007, p. 23).
O corpo com o qual nos ocupamos é fruto dos embates entre cristianismo e
paganismo do final do século III e início do século IV, eventos testemunhados por
Eusébio especialmente nos livros VI, VII e VIII da História Eclesiástica, onde constam
as descrições de múltiplos flagelos deflagrados sobre o corpo dos cristãos perseguidos
pelo Estado romano. A esse respeito, Eusébio assim declara:
É inútil tentar mencionar os nomes de todos aqueles que padeceram a
perseguição, como também é desnecessária uma tentativa de separá-
los por grupo, que foram muitos os homens e mulheres, jovens e
anciãos, donzelas, soldados aldeãos, enfim, todo o tipo de gente de
todas as idades, uns foram coroados com a morte pelo açoite com
varas, outros com a agudeza do ferro ou ainda pelo fogo, (Hist. Eccl.
Livro VI).
As punições eram efetuadas contra os cristãos, revelando assim a forma pela qual
o Império Romano, sob o comando dos imperadores pagãos, se apropriou dos corpos
74
dos transgressores da religião e da moral romanas, tendo como objetivo final o de
imprimir sobre a carne as evidências do rigor da repressão disposta em todas as partes
do Império.
O corpo cristão, posto à mercê das autoridades romanas, era tocado, marcado,
distinguido dos “outros corpos”; era o principal suporte para a manifestação do poder.
Ele foi transformado, para os espectadores das execuções, num portador de mensagens
claras e visíveis da política religiosa conhecida pelo Estado entre os séculos III e IV.
Os sinais emanados provinham dos sofrimentos físicos exteriorizados pela dor
impingida sobre a carne, resultando no que Foucault (2003, p. 31) chama de “arte das
sensações insuportáveis”. Com isso, formava-se uma composição de imagens em que a
dor e o corpo figuravam como os objetos últimos da ação punitiva. O resultado da
aplicação da pena não era o abate imediato do condenado; tratava-se de um espetáculo
que derivava do controle que assegurava a sucessão quase infindável de “mortes”, ou
seja, o furor para garantir que a morte pudesse ser multiplicada e prolongada.
A ação sobre o corpo do transgressor se dava por meio de um longo processo em
que a morte era ao mesmo tempo retardada por interrupções calculadas e multiplicada
por uma série de ataques sucessivos. É o que nos assegura Homo (1931, p. 150):
As pessoas confessoras da fé cristã eram detentoras de um ódio sagaz
e seus tormentos serviam de entretenimento para o público. Alguns
eram devorados por bestas, como um cão que devora sua presa,
outros morreram esquartejados, ou foram queimados, havia ainda
aqueles que eram jogados ao mar.
O apelo simbólico contido nas execuções sumárias descritas por Eusébio segue um
repertório de representações sociais cultivadas desde os tempos lendários de Roma,
quando cada execução encerrava um significado simbólico que emanava do trato
recebido pelo corpo dos supliciados até se produzir a morte. Nesse sentido, o corpo,
75
como observa Fontes (2004, p. 23), é um território construído por liberdades e
interdições e apresenta-se como revelador de sociedades inteiras. Contudo, a morte,
assim como a dor, também desempenha, nesse contexto, funções significativas, visto
que ambas são utilizadas como elementos capazes de propagar mensagens de poder e de
controle para toda a população do Império.
O sentido agudo da presença do corpo invade lugares, exige compreensão,
determina funcionamentos sociais, cria disciplinas e desperta inúmeros interesses de
diversas áreas do conhecimento. Segundo Soares (2004, p. 2), os múltiplos sentidos do
corpo
pedem múltiplos olhares, teorias, interações de saberes, para que dele
se fale. Pois o corpo, mesmo remexido e revirado pelo avesso,
minuciosamente perscrutado em seu exterior e interior, recortado e
transformado em partes que vão viver em outros corpos, ou em
receptáculos de muitos e múltiplos objetivos e materiais que nele se
incorporam, ou ainda sofrendo todo tipo de mutilação ou intervenção
desejada ou imposta, parece guardar a possibilidade de ser um
território de preservação do humano factível que esconde uma réstia
de mistério sobre a sua existência.
Desse modo, são diversos os caminhos e numerosas as abordagens para se efetuar
um estudo sobre o corpo. sempre, como assinala SantAnna (2004, p. 3), novas
possibilidades de reconhecer o corpo, assim como maneiras inéditas de estranhá-lo.
Afinal, o corpo é um território tanto biológico quanto simbólico, processador de
virtualidades infindáveis, campo de forças que não cessam de inquietar e confortar.
22
O corpo, segundo Chartier (1991, p.177), talvez seja o mais belo traço da memória
da vida, um verdadeiro “arquivo vivo”, pois o corpo de um indivíduo pode revelar
22
Segundo Bourdieu (2003, p. 9), os sistemas simbólicos agem como instrumentos de conhecimento e
comunicação, de modo que o simbólico atua nas redes de construção da realidade e tendem a estabelecer
a ordem, como expressa.
76
inúmeros traços tanto da sua subjetividade quanto da sua fisiologia. Mas, ao mesmo
tempo, pode também escondê-los. Com isso, ele pode ser um painel que estampa para a
comunidade as representações pelas quais os indivíduos e os grupos dão sentido ao
mundo e, por outro lado, pode ser uma camuflagem de valores e comportamentos.
Seguindo tal raciocínio, pode-se considerar o corpo como um artefato “biocultural”, um
organismo biológico que não cessa de ser transformado pela cultura.
Evidentemente, como sugere Porter (1992, p. 295), deve-se enxergar o corpo da
forma como ele tem sido vivenciado e expresso no interior dos sistemas culturais
particulares, tanto no âmbito privado quanto no âmbito público, sendo, por esses
próprios sistemas, alterado ao longo do tempo. Reafirmando, assim, que o corpo tem
história, que ocupa um lugar na sociedade, que sua presença no imaginário e na
realidade, na vida cotidiana e nos momentos excepcionais sofreu modificações em
todas as sociedades, pode-se afirmar que, se mudança no tempo história, então
não existe história sem corpo.
No tocante à dinâmica da sociedade imperial romana, por exemplo, as tensões
evidenciadas entre deuses e homens, entre as instâncias de poder institucionalizadas,
entre o imperador e os exércitos, entre os períodos de paz e os de violência podem ser
identificadas pela forma como o corpo foi tratado e exposto.
Em termos históricos, como explica Foucault (2003, p. 31), reinou, por longa data,
a idéia de que o corpo pertencia à natureza e não à cultura o corpo, no entanto, possui
ele também uma história, uma vez que é condicionado pela cultura. Isto se exprime, em
parte, pela forma de se vestir, de se alimentar, de desejar, de sonhar, de sorrir ou chorar,
de morrer aqui reside nosso interesse especial sobre o corpo. As manifestações
77
expressas pelo corpo revelam muito sobre uma sociedade em uma dada época, razão
pela qual não podemos ignorá-lo.
Foi apenas no contato com as Ciências Sociais que a História passou a observar
mais de perto o corpo, percebendo o modo como cada sociedade impõe ao indivíduo um
uso rigoroso e determinado dele.
23
Nesse sentido, os trabalhos de Elias (1990, p. 43)
desenvolvidos na base na Sociologia Histórica foram fundamentais ao “processo
civilizador” que repousa no autocontrole da violência e na interiorização das emoções
por meio do estudo dos costumes e das técnicas de disciplina corporal utilizadas na
Idade Média e no Renascimento.
Trata-se, portanto, de como o corpo foi sendo percebido e estudado nas últimas
décadas e do quanto as contribuições de outras disciplinas foram determinantes para a
existência de uma história do corpo efetivada como leitura da sociedade, travando,
assim, combate com a visão tradicional do corpo, julgado muitas vezes como o
elemento indigno de uma cultura. Ou seja, o corpo, não seria objeto de pesquisa. Essa
perspectiva dita tradicionalista, segundo Le Goff e Truong (2006, p. 10), interessava-se
pelos homens e, secundariamente, pelas mulheres, mas quase sempre sem corpo, como
se a vida dos homens se situasse fora do tempo e do espaço, reclusa na imobilidade
presumida da espécie. Tratava-se de pintar os reis poderosos, santos e guerreiros. Seus
corpos resplandeciam como mbolos, representações e figuras, seus atos, eram
apontados apenas como sucessões históricas. A marca central dessas produções era
apenas a de exaltar seus atos identificados como dignos de glória, descartando as redes
23
Le Goff e Truong (2006, p. 19) retratam a trajetória da historiografia que reconhece o valor histórico do
corpo, traçando uma análise que perpassa desde os tempos dos trabalhos de Marc Bloch na escola dos
Annnales até a confluência da Antropologia e da Sociologia, quando em Marcel Mauss se alude ao
interesse pelas “técnicas do corpo”, entendida, anteriormente como um ato tradicional. Nessa nova
perspectiva, o corpo se torna o primeiro e mais natural instrumento do homem.
78
que se estabelecem no arranjo social e que são expressas pela maneira como o corpo se
comporta diante da sociedade da qual ele faz parte.
Assim, entre as novas abordagens acerca do corpo, contamos com a valiosa
contribuição de Foucault (2003, p. 43), quando esse autor se interroga sobre a maneira
como o corpo é diretamente envolvido em um campo político, visto que as relações de
poder se operam nele numa apreensão imediata. O corpo é cercado, marcado, educado,
supliciado, submetido ao trabalho, obrigado a praticar cerimônias, e sobre ele
inscrevem-se signos.
Para Foucault (2003, p. 46), algumas manifestações de controle do corpo não são
essencialmente ocidentais e cristãs. Trata-se de saberes provenientes do Oriente, que
foram incorporados e moldados ao longo dos processos históricos, caso verificado nas
recomendações dietéticas e nos preceitos que se poderão encontrar mais tarde na moral
cristã e no pensamento médico. As informações são numerosas, como os princípios de
uma economia estrita, tendo em vista a escassez; a obsessão pelas infelicidades
individuais ou pelas doenças coletivas que podem ser suscitadas por um domínio
rigoroso dos desejos; a luta contra as imagens de uma anulação do prazer como
finalidade das relações sexuais.
Ao realizarem um breve levantamento sobre as contribuições das diversas áreas
para a compreensão da “expressão do corpo” como elemento histórico, Le Goff e
Truong (2006, p. 28) destacam a Sociologia de Émile Durkhein, que propunha analisar
o corpo como sendo um “fator de individualização”. Sob essa gica, o corpo assumiu a
conotação de organismo vivo, entendido, por sua vez, como célula autônoma ou por
várias células que funcionam de modo integrado. Sugeriu-se, com isso, a harmonia entre
os órgãos, no desempenho de suas funções. Nessa definição, o corpo é exposto de forma
79
biológica, tendo como conseqüência o seu aprisionamento no organismo, o que faz dele,
portanto, um fator de individualização, segundo a função social assumida por seu
“dono”. O corpo constituiria, nessa perspectiva, um “fato social” que pode ser
concebido como uma “coisa” viva ou, simplesmente, uma “coisa”.
Outras contribuições advêm do trabalho de autores que procuraram refletir sobre
o corpo tendo como referência o Império Romano, como por exemplo, Paul Veyne,
Aline Rousselle e Peter Brown.
Assim, segundo Porter (1992, p. 293), esses novos estudos empreendidos pelas
diversas áreas propiciaram numerosos benefícios, como é o caso da Antropologia
Cultural, que, tanto na teoria, quanto na prática, proporcionou aos historiadores uma
linguagem para a discussão dos significados simbólicos do corpo, contextualizando o
corpo no interior de sistemas de mudança social. De maneira similar, a Sociologia
encarregou-se de estimular o estudo do corpo como uma encruzilhada entre o individual
e sua correspondência com a sociedade.
Após essas reflexões preliminares acerca do corpo e de seu papel na história,
faz-se oportuno entender mais especificamente o corpo e seus significados dentro da
lógica imperial romana do final do século III e início do século IV.
R
OMA
,
O
C
ORPO E A
M
ORTE
Como propõe Marcos (2006, p. 2), deve-se compreender inicialmente que, na
História Romana, existia uma simbiose entre religião e política. Desta forma, os ritos
estão associados às instituições políticas e sociais, o que proporciona a eles
legitimidade. Logo, todas as áreas importantes da vida, seja no âmbito do público seja
80
no do privado, se desenrolam numa inter-relação de cerimônias religiosas que remetem
à tradição romana, para qual continuidade da vida individual dependia freqüentemente
do comportamento religioso da coletividade.
Em Roma, qualquer ato público era acompanhado por uma consulta ou cerimônia
religiosa gerida por sacerdotes, ou mesmo pelo imperador, de maneira que o sagrado e
o político se encontravam em estreita simbiose. Os cultos, segundo Rosa (2006, p. 146),
são partes constituintes da vida pública, o que atrela as atividades religiosas à dimensão
política. No centro dessa relação, está a idéia de pax deorum, a “benevolência dos
deuses”, tão antiga quanto as origens de Roma. Seu princípio se instala na crença de
que a aeternitas de Roma depende, não da força humana, mas da vigilância dos deuses,
cuja boa disposição está correlacionada à execução precisa de ritos a eles devidos.
Desta forma, o ato de não cumprimento dos deveres para com os deuses é
identificado como contravenção e requer interferência do poder instituído (Grodzynsky,
1984, p. 370).
Os atos de transgressão ou infração aos dispositivos estabelecidos pelo poder
imperial eram punidos pelo sistema legal do Império, que estava inserido numa certa
economia política do corpo, na medida em que recorria a mecanismos sangrentos e
castigos violentos, como forma de controle e expressão de força. Como sugere Foucault
(2003, p. 25), ainda que se utilize de métodos “suaves” para corrigir, é sempre do corpo
que se trata. Do corpo e de suas forças de reparação de um ato e de sua submissão. Este
investimento sobre o corpo é político na medida em que se manifesta segundo uma
relação complexa de poder e de dominação; é econômico no sentido de considerar o
corpo como força de produção preso a um sistema de sujeição, cercado por instrumentos
cuidadosamente definidos e calculados pelo Estado Imperial.
81
Pensar assim numa história do século III e do século IV a partir do exame do
corpo e da simbologia que dele emerge para se criarem diferenças entre as categorias
sociais é uma tarefa sem dúvida importante. Assim também observar a história de uma
dada coletividade destacando com atenção sua relação para com os mortos ou o modo
como a morte é experienciada pela coletividade e é por ela representada, é algo
fundamental para a História, como atestam Le Goff e Truong (2006, p. 120).
Trata-se, segundo Rodrigues (1983, p. 20), de reconhecer no corpo seu valor
expressivo, porque o corpo humano morto não pode ser considerado um cadáver
qualquer. A efervescência ritual provocada por uma morte varia de acordo com a
importância social do defunto. Nesse enlace, deve-se pensar a relação entre morte e
poder como um tema fundamental para a compreensão das representações da morte
vigentes numa dada comunidade, pois cada sociedade comporta dimensões particulares
de coerção do corpo e de produção da morte.
Nesse sentido, a sociedade é compreendida como sendo essencialmente um
sistema de comunicação e de significação, o que implica um sistema de regras
particulares que organizam o pensamento e o comportamento de seus membros. Tais
regras são intrinsecamente dotadas de poder. Esse poder, em última instância, consiste
em dispor de meios, por intermédio da violência e da ameaça, para conduzir os
indivíduos à morte, para obrigar um adversário a se dobrar às intenções de outrem,
melhor instalado nas posições de poder.
A morte se destaca como possuidora de uma capacidade de produzir efeitos em
torno da sociedade e de seus sistemas simbólicos. A morte é um produto social, seja do
ponto de vista dos estilos particulares que acometem indivíduos e das práticas rituais e
crenças que os cercam, seja sob o ângulo de sua apropriação pelos sistemas de poder. A
82
morte é assim um produto da história, de maneira que a História é, ao mesmo tempo,
tanto o produto da vida dos homens em sociedade quanto o resultado da morte deles.
A história da morte assume, na Nova História, um espaço que não é menor. Como
atesta Vovelle (1996, p. 12), ela se situa no fio direto da evolução que levou os
pesquisadores interessados no desenvolvimento das culturas ao domínio em que a
clareza do pensamento lugar a atividades inconscientes, em que as estruturas do
pensamento por vezes se revelam mais por atos involuntários que por um discurso
coerente.
São esses aspectos que tornam apaixonante o empreendimento de estudar os
suplícios dos cristãos no Império Romano, impondo uma abordagem ao mesmo tempo
prudente e ambiciosa. Prudente, porque é preciso evitar conclusões muito rápidas
propondo um “modelo” de história da morte, o que seria fugir ao aspecto multiforme da
morte. Ambiciosa, porque é fundamental tomar a morte como um todo. É preciso passar
pela morte biológica ou demográfica até as produções mais elaboradas do sentimento da
morte, ou seja, a morte envolta pela cultura.
Embora os antigos romanos apresentassem bastante familiaridade com a morte
também a temiam, e quanto mais religiosa fosse uma determinada comunidade dentro
do Império, maior o medo da morte. Seus ritos fúnebres tinham como função principal
manter os mortos separados dos vivos.
Em Roma, uma lei proibia o enterro dentro da cidade pelo temor causado pela
proximidade dos defuntos. Era preciso deixá-los longe.
24
Até porque, como assinala
Sennett (1997, p. 82), os romanos cuidavam de garantir a continuidade da cidade, sua
24
Desde a antiguidade os vivos se ocupavam dos corpos dos membros de suas famílias. As mulheres, em
particular, eram encarregadas de lavá-los e prepará-los para se juntarem ao reino dos mortos, que,
segundo as crenças, se estivessem os corpos manipulados de forma descuidada, poderiam retornar às
vezes para atormentar o mundo dos vivos.
83
durabilidade e a imutabilidade de sua essência de tradição pagã, na qual se evocava, sob
a luz arquitetônica, os atos cívicos e eventos notáveis de sua existência. Exaltando a
persistência da cidade ao longo do tempo, o que por sua vez, movia-se em sentido
contrário ao tempo no qual o corpo humano ultrapassava as fases da vida atingindo a
morte, o que gerava uma postura de afastamento dos mortos em relação à cidade.
Pode-se, assim, destacar que cada civilização define-se, entre outros fatores, pela
maneira como trata seus mortos, pelo modo como a morte é vivida e representada. O
estudo da atitude em relação ao corpo dos mortos e dos moribundos entre os séculos III
e IV reencontra os significados que os romanos concediam aos cristãos supliciados,
cujos corpos foram submetidos à “purificação” da pena.
A
S PENALIDADES DIRIGIDAS CONTRA O CORPO
Em se tratando dos ritos sumários de execução adotados pelo poder imperial, em
quase todas as narrativas de martírio retratadas em Eusébio temos detalhes da maneira
pela qual ocorreu o suplício dos cristãos. Segundo Gil (1996, p. 342), o suplício
não é só uma punição infligida em expiação de um crime. Embora a
sua razão interna seja medida entre os limites lícitos do direito, no
suplício permanece um excesso, uma infração ao senso comum da
piedade, o que torna a lex, já em si dura, até desumana sobre-
humana, de modo que todos os homens sejam obrigados a respeitá-
la. O suplício evoca o gelo atroz da sentença “justa”, o impiedoso
rigor do poder chamado a defender e a justificar o próprio saber
sobre o qual está fadado, provocando o sofrimento do réu, em
proporção ao grau da culpa, através do próprio excesso em relação
à pietas, o que confirma o princípio jurídico e a verdade daquele
saber.
84
Desse modo, cada ação exercida sobre o corpo supliciado produz resultados
evidentes. Cada golpe infligido faz transparecer na carne as ações engendradas na
punição. E a história dos suplícios coincide, em certa medida, com a história política
dos sinais revelados sobre o corpo. Trata-se, portanto, de uma história das modalidades
culturais segundo a qual se torna dizível o suplício como “pena justa”, como atividade
de controle radical e correção dos sujeitos sociais.
Nessa perspectiva, o suplício se apresenta como uma atividade altamente
ritualizada, em nada “selvagem” ou irregular. A regra que assegura à tortura o estatuto
da lei, embora seja, como toda lei, eticamente necessária e odiosa, é a inserção do corpo
supliciado no processo de produção e publicação da verdade, que, nesse contexto, o
corpo do supliciado assume a forma de uma superfície de escrita, sobre a qual a
máquina, para escrever a lei, grava a sentença de condenação e imprime no corpo do
condenado o mandamento que violou. Nesse sentido, a lei é a sentença; a máquina, a
tortura.
A tortura, nessa perspectiva, não se deixa transpor para um código diferente do
próprio, que é o da lei. Aliás, a tortura não faz mais do que reforçar a lei, produzindo-se,
infinitamente idêntica, mediante o testemunho escandalizado do público. Nesse curso, o
suplício alcança o ar do espetáculo, onde o próprio prisioneiro se transforma em
estandarte no qual a lei deve ser escrita, e o mecanismo-base da tortura consiste na
redução do sujeito a objeto. Como indica Foucault (2003, p. 40), a tortura é, em si, justa
e equânime, ou seja, responde adequadamente aos pedidos e às necessidades de um
saber fundado nos princípios da “ortopedia social”, do controle microfísico dos corpos e
de sua minuciosa e disciplinada regulamentação.
85
Dessa maneira, a tortura ênfase ao sofrimento e conduz a inquisição-pena ao
extremo do imaginável e do admissível, para reforçar o princípio que tem sentido num
sistema religioso, já que, de fato, a infração à lei é imediatamente decifrada como
crimen maiestatis, sendo interpretada como uma agressão ao princípio da soberania e da
legitimidade ilimitada do poder e do saber do soberano. Nesta ordem de idéias, o menor
delito é visto como um ataque à lei, e a pena para quem atenta contra a integridade do
Império só poderá ser o mais extraordinário, o menos dizível dos suplícios, um tormento
que possa refletir na forma da pena o excesso da culpa.
A tortura é essencialmente um sistema de marcação que inscreve a marca de uma
apropriação do corpo do sujeito conquistado. Essa marca é um obstáculo ao
esquecimento. Assim, o corpo supliciado torna-se um lugar de memória. O código da
crueldade é eminentemente espetacular. A tortura é sobretudo um teatro do sofrimento,
do mal, da impassibilidade. E na cena que se apresenta, o corpo sentenciado é reduzido
a migalhas pelo tormentum.
25
Em muitos casos, nos ritos sumários de execução adotados pelo poder imperial,
recorria-se ao poder da imagem do dorso dilacerado, uma operação feita com
instrumentos que retalhavam os corpos, provocando uma dor exacerbada, como narra
Eusébio:
Quantos sofrimentos suportaram os seguidores de Cristo. Quanta
força diante da dor insuportável que se arrastava por dias, quando as
penalidades eram aplicadas sobre as pernas que eram esticadas mais
e mais dia após dia, seguindo uma onda de perfurações pelo corpo.
25
Segundo Gil (1996, p. 351), no vocabulário das penas, tormentum designa os instrumentos de tortura
utilizados na efetivação dos suplícios, a crux, o flagellum, a furca, a venatio, etc., ou seja, o amplo aparato
de ferramentas organizadas com o propósito de assegurar a execução de interrogatórios ou aplicação de
penalidades. No plano etimológico, o tormento designa instrumentos que promovem a torção dos
músculos e a saída das articulações, com o auxílio de cordas que permitam aumentar a tensão
progressivamente. Mas, quem está privado da propriedade sobre o seu próprio corpo pode ser
submetido aos tormentos; assim, só quem é “coisa” pode ser tratado como tal.
86
Tamanha dor fazia-os desfalecer e acordar dias depois, quando os
tormentos recomeçavam, (Hist. Eccl. Livro VI).
Assim, é a carne que fala (
LAQUEUR,
2006, p. 242), que o corpo passa a ser
meticulosamente manipulado diante do público.
Nesses ritos de execução sumária, reforçava-se a consciência do poder da
tradição de Roma, reafirmando-se a existência do Império e castigando-se os
transgressores, de forma a restabelecer a pax deorum.
O emaranhado de execuções sumárias que exploramos à luz de Eusébio e dos
editos e libelos recolhidos por Homo fazem parte da perseguição religiosa dos séculos
III e IV, momento em que o cristianismo começava a se consolidar dentro do Império.
Mas, apesar dessa conquista, seus princípios entraram em choque direto com os ideais
de restauração da tradição religiosa romana nutridos pelos imperadores da Anarquia
Militar, o que o levou a ser perseguido violentamente.
Durante a perseguição de Décio, exigiu-se de todos os habitantes do Império uma
documentação, o libellus de sacrifícios, uma declaração assinada por autoridades locais,
concedida aos indivíduos que sacrificassem aos deuses. Tratava-se de uma forma de se
retratar diante das deidades, o que na verdade era traduzido na prática como uma
“anulação” ou abdicação da fé cristã perante as autoridades romanas.
Décio havia nomeado uma comissão que percorria o Império, a qual, após assistir
ao sacrifício prestado aos deuses, entregava um certificado ao devoto com a seguinte
declaração:
À comissão eleita para a supervisão dos sacrifícios. De Kamis
Aurélia, originário de Théadelphie: Eu sempre fui dedicado ao
serviço dos deuses. Eu pratiquei libações e eu comi carne sagrada na
presença de seus comissários e agora eu venho lhe pedir a assinatura
como reconhecimento de meu ato.
87
— Nós, Aurelios Serenoses e Aurelios Hermases, o vimos sacrificar.
Em nome do imperador César Caius Messius Quintus Trajanus
Decius, devoto, feliz, Augustus (Homo, 1931, p. 157).
Aqueles que se recusassem a prestar os sacrifícios não recebim os certificados
ficando em dívida com o Império. O indivíduo ficava então sob o estigma do desviante,
sujeito à punição em resposta à sua recusa em cumprir seu dever para com a lei , o
imperador e os deuses.
Pode-se, então, pensar esse contexto considerando o sentido de estigma
projetado para os cristãos no Império. Como propõe Goffman (1982, p. 32), estigma não
é apenas um atributo pessoal, mas uma forma de designação social “Um estigma é,
então, um tipo especial de relação entre atributo e conceito”. É uma forma de
designação social, partindo da análise de sua relação com a identidade social de cada
grupo instituído. Existem, segundo o autor, três tipos de estigmas: por deformidades
físicas; por moralidades e por linhagem de raça, nação e religião. Em se tratando do
caso do Império romano, o estigma é evocado pela religião e sua marca destaca os
cristãos como desviantes da lei e provocadores do caos e da desordem, ficando sujeitos
a severas punições.
26
Quase todos os suplícios praticados contra os cristãos parecem ter sua origem no
tempo da própria fundação de Roma. Nota-se que, no mesmo instante em que se assiste
ao nascimento da cidade, acompanha-se o poder de condenar à morte aqueles que eram
considerados os traidores públicos, os portadores de ameaças para a vida da civitas
(
TEJA
, 1993, p. 614).
26
Para Goffman (1982, p. 34), o estigma é motivo de exclusão social, olhares desconfiados e fala às
escondidas. O autor explora em seus estudos os detalhes da identidade individual e social e das relações
em grupo a um nível microssociológico, observando a interação social nas ações de todos os dias, e foca a
sua atenção na forma como cada um desempenha o seu papel e gere a impressão que causa nos outros em
diferentes contextos.
88
Entender a razão de cada punição efetuada contra o delito específico é, portanto,
algo que exige certo cuidado, pois cada suplício possui um sentido próprio dentro da
sociedade que o emprega. De qualquer forma, as crenças religiosas nos auxiliam a
entender uma concepção de justiça, como a romana, que se fundamenta no princípio
segundo o qual a finalidade última da pena é devolver à cidade o seu estatuto de
sacralidade, que teria sido ameaçado pelo crime que exigia a intervenção das
autoridades públicas defensoras da civitas.
Ao ser identificado como culto proibido ou superstitio, o cristianismo passou a ser
estigmatizado e, por isso, perseguido com furor, o que nos remete a indícios acerca de
uma crescente influência da religião de Jesus à medida que avança o período imperial.
Certamente era preciso reduzir os espaços conquistados pelos cristãos, e os
romanos fizeram isso de forma violenta, utilizando-se dos suplícios contra o corpo dos
mártires. Essa ação degradante sobre o corpo respondeu a uma tríplice função: a de
punir, a de dissuadir e a de divertir. Punir de forma explícita e exemplar a recusa cristã
de prestar culto aos deuses do Império, desencorajando pela dissuasão, que decorria do
medo, do temor das conseqüências de se cometer um ato que pudesse gerar uma
represália violenta. Quanto ao sentido de diversão que assumiam algumas execuções,
este ficava a cargo principalmente das feras que faziam parte dos espetáculos do
anfiteatro que o próprio Estado imperial organizava e do qual o público participava
ativamente (
BROWN
, 1990, p. 159).
Segundo Cantarella (1996, p. 145), parece que, no romper do século III, abriu-se
um período “animado por um espírito hostil do imperador”, que aplicava com rigor a
lex Iulia maiestatis, o que causou hostilidade sobre o réu em virtude da particular
gravidade do crimen maiestatis.
89
Essa acusação implicava penas gidas, na medida em que estava relacionada
com ações que eram concebidas como atitudes, atos e comportamentos que colocavam
em perigo a ordem imperial, a única reconhecida pelos romanos. Nesses termos, o crime
de lesa-majestade significa uma identificação com a desordem, o caos que poderia
repousar sobre o Império. O medo da entropia, do desconhecido, do caos, faz com que
os homens produzam mecanismos de defesa da ordem que conhecem. Assim, a
sacralização da ordem subentende, em grande medida, a vontade humana de
manutenção da ordem conhecida, o que coloca o problema de sua perturbação também
no nível do sagrado.
Harries (1999, p. 128) afirma que, mesmo que maiestas seja definida como
“traição ou como qualquer outro crime cuja intenção seja atingir a majestade ou os
interesses não do imperador, mas também do Estado romano em geral”, ainda se
pode adicionar a isso uma série de outros crimes equivalentes à traição, como:
“falsificação de documento imperial, práticas inefáveis (nefanda dictu), ou seja, práticas
mágicas e feitiçaria, e práticas divinatórias por membros do comitatus imperial”.
O crime contra a majestade do imperador exigia penalidades rigorosas que
demonstravam, em última instância, o poder incontestável de aniquilar o criminoso
utilizando, para isso, todo o rigor da lei. Eram designadas Corporalis de insultos, as
penas corporais que o poder imperial adotava, em ocasiões específicas, contra os
transgressores da ordem romana. Grodzynsk (1984, p. 361) afirma que não se tratava
diretamente de pena capital, ou seja, da quaeslio ou summa execução, pois havia uma
distinção entre as aplicações de cada penalidade de acordo com a transgressão
identificada, além de existir também o respeito pela condição de nascimento e condição
jurídico-social a que o indivíduo entendido como culpado pertencia.
90
Segundo a interpretação de Celso, um filósofo pagão do século II, o corpo humano
não passava de um organismo carente que implorava atenção, e o fato de os judeus e
depois os cristãos afirmarem desfrutar de uma comunhão direta com a divindade
suprema deixava-o irado. Assim como Celso, Plotino, filósofo neo-platônico
contemporâneo a Orígenes, acreditava que os seres humanos tinham que conhecer seu
lugar, muito abaixo das estrelas, não devendo afirmar-se capazes de descartar os deuses
que os assistiam dos us distantes (
BROWN
, 1990, p. 154). Desse modo, para esses
filósofos pagãos, o corpo humano era algo frágil demais para portar em si a dignidade
de qualquer santidade.
À luz dessa perspectiva filosófica sobre o corpo é que as penalidades foram
aplicadas contra os cristãos, condenados à morte de múltiplas formas. Nesse sentido,
faz-se oportuno refletir um pouco sobre o poder da repressão e seu papel para a
sociedade romana, a fim de compreender de que maneira o Império se apropriou do
corpo para reforçar a lealdade cívica ao panteão politeísta.
Em seus estudos sobre as punições e as construções dos espaços de poder e
controle, Foucault (1987, p.11) reflete acerca da existência, na Antiguidade, de uma
economia do castigo, cujo amálgama de atitudes evoca claramente punições infligidas
diretamente sobre o corpo. Haveria, assim, no Império, todo um arranjo de sofrimentos
e de ostentação da aplicação das penalidades que caracterizariam o suplício. Para
Balandier (1981, p. 4), trata-se de arranjos nos quais as penalidades são efetuadas e
operadas diante do público.
Grodzynsky (1984, p. 362), em um estudo sobre a tortura e a morte no Império
Romano, afirma que as autoridades romanas utilizavam o espetáculo da dor e do
sofrimento como extensão da capacidade punitiva do imperador. O corpo, executado
91
sob essa lógica, revelaria assim a própria majestade imperial. Cantarella (1996, p. 175)
assinala que, exatamente por conta disso, temos, na época do Império, uma
multiplicação das formas de execução, bem como o surgimento de outras formas.
Se, no início de Roma, as penalidades sumárias eram dirigidas àquelas pessoas
que não respeitavam a autoridade familiar ou política, nos tempos imperiais e, mais, no
decorrer do Baixo Império, os suplícios dirigiam-se àqueles que não respeitavam as
determinações imperiais de culto aos deuses do Império, pois tal comportamento
provocava a ruína de toda a comunidade.
Como assinala Cantarella (1996, p. 120), algumas penalidades deixaram de ser
praticadas ao longo da história de Roma, como a morte por inanição, o estrangulamento
e a crucificação, sendo substituídas por outras formas de execução, como a morte por
espancamento, o esquartejamento, a exposição às feras, a vivicombustão e o
afogamento. Tais execuções são recorrentes nos relatos de martírio presentes na
História Eclesiástica.
No que diz respeito às execuções de cristãos mencionadas por Eusébio, temos os
suplícios de condenados que eram arrastados pelas ruas ou tinham suas entranhas e
outras partes do corpo retiradas e lançadas ao fogo.
Alguns irmãos foram atacados com golpes de espadas, desferindo
lesões sobre a pele e logo em seguida apanhavam com pau. Então,
seus corpos eram esticados por uma máquina e presos a ela, tinham
suas orelhas e bochechas cortadas e jogadas no fogo. Aqueles que
sobreviviam a tamanha dor eram ainda arrastados pelas ruas até
serem consumidos pela morte (Hist. Eccl. Livro VIII).
Essas penalidades e execuções provinham da autoridade imperial e visavam à
preservação da dignidade da religião romana. Entre seus objetivos, pode-se apontar a
necessidade imperial de combater certas práticas cristãs. Segundo Homo (1934, p. 98),
92
Os imperadores agiram inicialmente contra os três espaços
encontrados pelo cristianismo dentro da legislação romana do
Império: o direito ao enterro dos mortos sepultamento assegurado
para todos que viviam no Império; o direito a associações funerárias
o culto aos mortos - e o direito às propriedades corporativas o
lugar onde ficavam as tumbas, os cemitérios e os templos. Como se
pode verificar, por essas concessões funerárias os cristãos
desfrutavam pela lei romana o direito de enterrar seus mortos pela
mesma razão como a de outros, o que engendrou uma perseguição
sem epíteto, um violento embate sem clemência, em que um dos dois
adversários tinha que pagar com a pena de morte.
As perseguições contra os cristãos, empreendidas nos tempos de Décio, Valeriano
e Diocleciano, exigiram punições com a morte para quem transgredisse o edito
imperial. Assim, as mutilações, os ferimentos no corpo, a exposição às feras eram
procedimentos que faziam parte do espetáculo da exibição pública da dor, que deveria
ser visível e apreciada por todos, para, como explica Goldhill (2001, p. 53), as punições
se tornarem eficientes:
A sematologia do corpo deve estar articulada aos gestos que
constituem, no momento da aplicação da pena, um idioma, um
sistema de sinais que revelam todo o espetáculo do corpo em dor.
Quando examinados os flagelos infligidos sobre os corpos dos cristãos
perseguidos, descritos por Eusébio, deparamo-nos com um vasto repertório de
execuções, diversas formas de provocar a morte de um sentenciado. Passemos agora ao
exame mais detalhado dos flagelos presentes na História Eclesiástica, categorizando o
flagelo e sua relação com a tradição religiosa romana e com o direito penal. Nesse
93
sentido, devemos antecipar que alguns flagelos, a partir do século III, caíram em desuso
ou foram substituídos por outros.
27
Em relação ao tempo da perseguição empreendida por Décio, conta-nos Eusébio:
Quantas e quantas coisas sofreram aqueles que professaram a fé
cristã, além do cárcere e dos tormentos corporais, quantas
penalidades suportaram na armadilha que esticava suas pernas até
quase retirá-las do corpo, além das queimaduras feitas com o fogo, e
como ainda resistiam, o os matavam, tinham que morrer por seus
próprios meios (Hist. Eccl. Livro VI).
Como pode ser observado, trata-se, na verdade, de uma série de ações supliciais
sobre o corpo. Raramente encontramos Eusébio descrevendo uma situação de flagelo
que seja uma execução sumária, sem preliminares. Quanto a isso, era recorrente o ato
de pendurar o indivíduo pelas extremidades de seu corpo a fim de provocar a extensão
máxima de todos os membros, ao mesmo tempo em que um outro soldado imprimia
chagas com o uso de ferro, perfurando todo o corpo. A esse respeito, menciona
Eusébio:
Alguns tinham o nariz cortado, as orelhas e as mãos e foram
mutilados e divididos em outros membros do corpo como aconteceu
em Alexandria (Hist. Eccl. Livro VIII).
Aliás, em relação à cidade de Alexandria, Brown (1990, p. 141) afirma que se
tratava de uma localidade famosa por sua lei de linchamento, prática recorrente nos
27
No caso da summa execução, a execução da penalidade máxima, a morte, notamos que a adoção da
crucificação, prevista pela lex horrendi carminis, segundo Cantarella
(1996, p. 175), nos primeiros anos
da Era cristã, se resumia a envolver o condenado a uma corda e amarrá-lo a uma árvore deixando-o a sua
própria sorte. Não havia, de início, um instrumento específico para a crucificação. Além do mais, a
crucificação era empregada como punição destinada aos escravos. Sob este aspecto, Grodzynsky (1984, p.
367) complementa que a crucificação, mesmo destinada aos escravos, deixou de ser utilizada, visto que,
apesar de seu ritual assegurar o tormento prolongado, ação prevista e desejada a uma penalidade, este tipo
de execução remetia, no entanto, no decorrer do Baixo Império, ao martírio de Cristo e passou a ser
considerada entre os cristãos como o mbolo do suplício e exemplo máximo de fé. Deste modo, tal
execução deixou de ser utilizada, talvez para não criar semelhanças entre os cristãos penalizados com a
morte e o suplício do próprio Cristo. De qualquer forma, não encontramos na História Eclesiástica
nenhuma menção de execuções realizadas por meio de crucificação, de maneira que as execuções citadas
por Eusébio são as mesmas prescritas no sistema penal romano.
94
tempos da perseguição aos cristãos dos séculos III e IV. Eusébio prossegue então em
seu relato:
Os primeiros tormentos eram os açoites, depois as feridas com o
ferro e, por fim eram colocados no solo e arrastados pelas estradas,
(...) Em Antioquia alguns foram colocados sobre grelhas e
queimados vivos, não até a morte, mas para prolongar o suplício;
outros tinham suas entranhas perfuradas com um golpe por uma
espada escaldante para que lhes queimasse os membros do corpo
mais necessários (Hist. Eccl. Livro VIII).
Sobre essa prática punitiva, Grodzynski (1984, p. 366) atesta que os tormentos
com garfos e grelhas quentes eram recorrentes no Império, o que prolongava bastante o
sofrimento. A punição assume aqui o seu papel: o de não matar imediatamente, e sim,
prolongar a punição. Afinal, o corpo era chamado a responder pela ofensa cometida, de
modo que sobre ele não só precisam incorrer ferimentos, como também deve ser
produzida uma morte gradual. Assim testemunha Eusébio:
Um jovem camareiro do palácio imperial foi levado à presença do
imperador. Como o mesmo se recusou a prestar oferendas aos
deuses, teve, então, suas vestimentas retiradas sendo açoitado até o
romper da pele de seu corpo, já que ele continuava a negar aos
deuses. Então, lançaram vinagre e sal sobre suas chagas; na
seqüência, as partes de seu corpo eram retiradas e lançadas ao fogo,
pouco a pouco, para que ele não morresse rapidamente e pudesse ver
seu corpo queimar, tornando-se um legítimo herdeiro da cristã,
chamado de Pedro. Como Pedro, muitos outros trabalhadores do
palácio foram martirizados (Hist. Eccl. Livro VIII).
Dentre as punições empreendidas no Império Romano, figuram ainda as
aplicações de castigos com o uso do fogo. Esta é a mais antiga de todas as punições e
representa o absoluto da destruição, segundo os preceitos da moral pagã. É o que
explica o relato de Eusébio:
95
Ocorreram martírios na Arábia em que alguns pereceram com as
pernas cortadas, e, como ocorreu na Capadócia, o fogo foi aceso
lentamente para causar uma morte devagar para que sufocassem com
a fumaça, outros foram jogados diretamente dentro do fogo (Hist.
Eccl. Livro VIII).
A esse respeito, como afirma Le Goff (1993, p. 86), o espetáculo com fogo tem
um triplo papel expresso pela moral cristã, como sendo o punitivo, o purificador e o
probatório.
O fogo, contudo, foi mais aplicado, segundo o autor, no decorrer dos séculos III e
IV. Com esses tipo de execução, revelava-se, assim, o desejo de erradicar até “as raízes
da dor”, destruindo por completo o corpo do transgressor resistente à ordem da lei.
Ainda nesse ponto, Cantarella (1996, p. 117) assinala que desde as leges regiae,
que são os dispositivos legislativos mais antigos de Roma, e depois com a Lei das Doze
Tábuas, que congregam informações da leges regiae, cujas normas e penalidades foram
estabelecidas por volta de 451-451 a.c, já se percebe o uso do fogo nas penas capitais.
28
Em relação à perseguição empreendida por Valeriano, Eusébio testemunha um
enfrentamento direto contra os líderes da Igreja:
Deus tem concedido resistência e força, aos missionários e diáconos
que valentemente têm suportado o cárcere e sepultado seus
companheiros que foram consumidos por enfermidades, (Hist. Eccl.
Livro VII).
Eusébio relata, acerca dessa perseguição, que o bispo Teonas foi decapitado em
Nicomédia. Esta é a única menção de decapitação encontrada no livro VIII da
História Eclesiástica. Em outras localidades, os representantes da Igreja foram
queimados, mutilados lentamente até a morte ou lançados ao mar.
28
Nota-se uma apropriação intensamente distinta da utilização do fogo para pagãos e cristãos. Para a
cristandade, o fogo assumiu o valor de purificador, assunto que será abordado no capítulo seguinte.
96
O lançamento do supliciado ao mar era um flagelo usual no sistema penal
romano e é em várias ocasiões descrito por Eusébio, especialmente no decorrer da
perseguição de Valeriano. Trata-se de um ritual que se anunciava como uma forma de
negar o repouso final ao corpo supliciado, uma forma de evitar seu contato com a
terra, impedindo que sua sepultura se tornasse um local de culto e adoração ou que
seus restos mortais fossem convertidos em relíquias.
Aliás, como esclarece Bayet (1975, p. 82), segundo a tradição romana, negar ao
corpo morto um último contato com a terra, o elemento fundador, era uma penalidade
aterrorizante. Afinal, a morte significava retornar à terra, e se regressava à terra se
se possuísse um corpo, de modo que era fundamental, na crença romana, o último
momento de união do homem com a terra, a sede do reino em que habitavam os mortos.
Nesse sentido, ao lançar os corpos dos supliciados ao mar, os romanos retiravam destes
qualquer possibilidade de descanso e paz. Era como se os condenassem eternamente a
vagar pelas águas, perpetuando para todo o sempre a punição.
Notamos, assim, que as punições infligidas aos cristãos seguem um repertório
semelhante tanto em Décio quanto em Valeriano e se apresentam sob a forma de morte
provocada por meio de longos açoites seguidos de retiradas de partes do corpo com os
indivíduos ainda vivos ou também de morte provocada pelo fogo ou pelo mar.
É, contudo, nos testemunhos de Eusébio, ao referir-se às perseguições em
Diocleciano, no episódio intitulado A Grande Perseguição, que verificamos uma prática
muito recorrente e não mencionada nos casos das perseguições anteriores. Trata-se da
damnatio ad bestias, a exposição às feras, que ocorria quase sempre no anfiteatro.
Nesse tipo de execução pública, o condenado era lançado às arenas com quatro animais,
geralmente o cão, o urso, o touro e os leões.
97
Os mártires ficavam de pé e o público acenava com as mãos em sinal
de aprovação para o começo do espetáculo, até o ataque da primeira
besta, e um segundo e terceiro ataque contra eles. Era impressionante
a sua força e firmeza em seus corpos. Como no caso de um jovem de
vinte e poucos anos de idade, de pés descalços, que invocava a Deus
com as mãos estendidas em forma de cruz e com ânimo firme na fé.
Sem retroceder de onde estava, foi atacado por ursos e tigres que se
lançavam contra ele. No outro lado, estavam cinco jovens sendo
atacados por um touro enfurecido, o qual despedaçava com seus
chifres os mártires já meio mortos, e aqueles que resistiram ao ataque
do touro seguiam para o ataque de outras feras.
Por fim, depois de múltiplos ataques horríveis das feras, todos
aqueles que sobreviveram acabaram padecendo logo em seguida ao
fio da espada e, em seguida, ao invés de serem sepultados, foram
lançados ao abismo do mar (Hist. Eccl. Livro VIII).
O governo de Diocleciano representava a reestruturação das bases do Império, o
que acabou servindo para reforçar seu compromisso para com os deuses tradicionais,
mantendo viva a memória dos antepassados. Para tanto, não tardou em utilizar as
execuções públicas como parte de suas comemorações. Segundo Jones (1980, p. 1048),
Diocleciano desenvolveu uma política religiosa que proclamava o culto a Júpiter, um
movimento que acabou revelando seu interesse em reavivar o culto imperial, no qual
enfatizava o caráter sagrado de seu poder. Até porque, como ressalta o autor, se
haviam passado mais de dezoito anos de seu governo, e o Império havia alcançado
diversas melhorias em comparação a tempos anteriores. Assim, era chegada a hora do
imperador resolver as questões religiosas que ainda existiam dentro do Império, o que
por sua vez, pode ter gerado um tom mais agressivo e público às execuções dos cristãos
empreendidas nesse período.
Observamos, assim, que as punições aos cristãos no período de Diocleciano se
revestiam de características de encenação, mais precisamente quando ocorreu a
98
promulgação do terceiro e quarto editos, por volta de 304. Nesse momento da
perseguição, quando ela se estendeu a todos os cristãos do Império que descumpriam as
determinações imperiais de libações, o poder imperial se apresentava envolto em um
jogo dramático de símbolos. Pode-se, então, evocar aqui a concepção romana do
teatrum mundi, como sugerida por Sennett (1997, p. 90), ao fazer referência aos
costumes instituídos pelos romanos, a partir do ano 118, sob o domínio imperial de
Adriano, entre os quais o de tornar as aparências verdadeiras representações de poder e
controle. É o que o autor explicita a seguir:
A pantomima passou a integrar o comportamento político através
de uma linguagem precisa do corpo. [...] Vira-se a mão direita
vagarosamente para cima, fechando os dedos, um após o outro,
começando pelo menor; em seguida, reabre-se a mão, virada do
lado contrário. A mão fechada de encontro ao peito era o gesto
mais simples para expressar a pena. Tanto o orador como o mártir
[...] precisavam usar uma seqüência de expressões corporais ou
fisionômicas para dar força às suas palavras (
SENNETT
, 1997, p.
90).
Nessa demonstração de poder imperial, o teatrum mundi se apresentava sob uma
composição precisa de vários elementos: cenas que reproduziam os gestos da
autoridade, indivíduos atuantes na composição da cena, representados pelos cristãos
sentenciados à morte e pelas autoridades de tradição pagã responsáveis pela realização
da pena, cada um efetuando ações baseadas na linguagem silenciosa do corpo.
O significado de tudo isso era direto. No anfiteatro, diante do miserável vestido de
forma adequada, o romano logo identificava aquele que seria devorado pelas bestas. Tal
cena era diversas vezes multiplicada, ao invés de inventar uma morte inédita e fora do
comum. Havia o gosto pela repetição, o que reforçava a imagem gravada na mente dos
99
espectadores, uma cena que fundia o anseio de ver e acreditar com a regra de olhar e
obedecer (
SENNETT
, 1997, p. 94).
Nessa perspectiva, como assinala Foucault (1987, p. 12), a eficácia da punição na
Antiguidade clássica é atribuída a sua intensidade visível, seguida de seu “teatro”. A
justiça assume publicamente a parte da violência que está ligada ao seu exercício. O fato
de matar e ferir lhe concede a glorificação de sua força, que é a legitimidade para tal
ato.
Dessa forma, as cenas de execuções descritas por Eusébio, concernentes à
perseguição empreendida por Diocleciano, fazem referência a uma execução pública na
qual são evocadas atitudes permeadas pela violência. Para Dadoun (1998, p. 81), trata-
se de um contexto em que o poder afronta e utiliza a violência, e esta, em troca, exprime
certa forma de poder. Desse modo, o espetáculo da execução é expresso por meio do
poder de repressão e execução dos códigos de condutas legalmente defendidos pelo
poder imperial instituído, como afirma Espejo Muriel (1993, p. 94).
Enfim, analisado o ritual de punição imperial sobre o corpo do cristão, passamos a
observar a sua transcendência para um outro plano. À luz da concepção cristã, veremos
surgir o rtir, cujo suplício lhe propicia a regeneração do corpo pela dor e lhe permite
ascender ao reino dos céus.
100
3
O C
ORPO
R
EDIMIDO: A
C
ONSTRUÇÃO DO
M
ÁRTIR
A
C
ONCEPÇÃO
C
RISTÃ DE
C
ORPO
(S
ÉCULO
III
E
IV)
A morte, a dor e a imortalidade são elementos recorrentes na construção dos
símbolos sagrados da Igreja no final do século III e início do século IV , uma vez que,
nesse momento, grande parte do esforço cristão era empregado na resistência à intensa
perseguição ao cristianismo. Desse modo, os líderes da Igreja trataram de empreender
uma ampla ação discursiva capaz de registrar sua história e exaltar as inúmeras mortes
ocorridas entre seus seguidores. Tal resistência era resultante das características
inerentes aos cristãos que, a despeito de todas as vicissitudes e provações, conseguiram
manter viva a sua crença, mesmo em conjunturas adversas.
Assim, analisamos, neste capítulo, a maneira pela qual a Igreja conseguiu
ressignificar o corpo punido com flagelos até a morte, durante as perseguições
empreendidas pelos imperadores Décio, Valeriano e Diocleciano, observando os
atributos utilizados por Eusébio para transformar corpos desfigurados, queimados,
esquartejados em elementos sagrados para a comunidade cristã. Nesse momento, como
afirma Laqueur (2006, p. 240), o corpo passa a ser objeto da misericórdia cristã e não
apenas um elemento passível de reprovação pela sua condição mundana.
O Império Romano, na verdade, jamais dispôs de meios efetivos para combater
um movimento espiritual cuja fé, difundida da periferia para o coração do Império,
enraizou-se nas cidades, de onde, num moto continuo, se ramificou em todas as direções
101
e cujos adeptos, por volta de 250, alcançavam uma considerável proporção da
população das províncias adjacentes ao Mediterrâneo. “O exílio de líderes cristãos para
partes remotas foi um meio involuntário de difusão da Palavra. [...] O zelo missionário
cristão foi uma das razões pelas quais as perseguições eventualmente fracassaram”,
assinala Frend (1959, p. 11).
Não apenas isso, mas também, como percebeu Orígenes, o que havia conferido à
Igreja uma intensa capacidade para sobreviver em meio às tribulações fora a espantosa
prontidão de seus seguidores para morrer por ela. Afinal, o cristianismo era a religião do
martírio, e isso lhe conferia um caráter singular entre todas as outras religiões
(
RODRIGUES
, 1983, p. 101).
Nesse sentido, o cristianismo, desde suas origens, já investia largamente no
corpo como um elemento fundamental para a efetivação e propagação de seus preceitos,
difundindo, segundo Eliade (2001, p.17), elementos simbólicos dos quais emergiram
seus ícones sagrados, como a cruz e a coroa de espinhos, símbolos do sofrimento do
Salvador.
A Igreja interpretou como martírio a experiência vivida pelos cristãos que foram
perseguidos em virtude da recusa em abjurar a cristã, atitude que acabou
sentenciando-os à morte por meio das dores resultantes dos flagelos infligidos sobre
suas carnes. Estes corpos, evocados em tons sacramentais pela Igreja, tornaram-se
“outra coisa,” os elementos sagrados do cristianismo. E isso implicou um esforço da
Igreja para a elaboração de um discurso de sacralidade a envolver o rtir, ou seja, um
discurso que transforma “carne retalhada” e completamente desfigurada” em elementos
santificadores e purificadores.
102
O corpo se tornou lugar crucial de tensões, especialmente no período em que
predominou a perseguição aos cristãos. Um cenário dramático constituído por diferentes
categorias, que revelam de diversas maneiras o corpo como o suporte físico da redenção
pelo sofrimento. Nesse jogo, a matéria física, quer dizer, o corpo, foi significado dentro
de um jogo complexo de apropriações, como ressalta Trías (1993, p. 16). Desse modo, o
corpo do mártir figura como uma base simbólica de apropriação pela Igreja, que se
empenhou em sacralizá-lo.
Nessa perspectiva, o corpo é o suporte de onde partem as interpretações que
ressignificam sua existência. Sobre esse suporte ocorrem outras apropriações por parte
da Igreja, que atua na transformação da matéria em cosmos, ou seja, na transmutação do
corpo.
29
Contando com um cenário que intervém como condição de possibilidade da
ressignificação, no caso, a ação sumária de execução, tem-se a possibilidade da
redenção do corpo. Assim, a relação simbólica deixa de ser oculta e se torna
testemunho, assumindo uma determinada forma ou figura representada pelo corpo
supliciado, local onde a presença do sagrado se revela àqueles que testemunham o
ocorrido. O corpo do mártir adquire assim a condição de uma epifania, ou seja, uma
manifestação visível do sagrado, sendo cercado de uma aura de glória que se irradia e
se converte no guia para a comunidade cristã.
A transfiguração da “carne” do mártir em elemento sagrado é o reconhecimento
do sacrifício daquele que, ao doar sua vida em sinal de fidelidade aos preceitos
religiosos cristãos, prestou um sacrifício a Deus.
29
O simbólico é criado ou formado num mundo que concede à matéria indiferentes limites, demarcações
ou determinações. Seus recortes espaciais e temporais são explicitamente evocados por templos ou
festivais de maneira que elevam para outra dimensão a ação empreendida contra o corpo (
TRÍAS
, 1993, p.
18).
103
A palavra sacrifício sugere a idéia de consagração e poderia até indicar uma
equiparação entre os dois termos. Com efeito, é certo que o sacrifício sempre implica
uma consagração, uma vez que, em todo sacrifício, um objeto ou outro elemento passa
do domínio comum ao domínio religioso, ao tornar-se consagrado. Mas as consagrações
não são todas da mesma natureza. aquelas que esgotam seus efeitos no elemento
consagrado, seja ele homem, seja objeto, como no caso da unção de um rei.
O sacrifício, ao contrário da consagração, irradia-se, para além da coisa
consagrada, atingindo, entre outros, o oficiante que se encarrega da cerimônia no
caso, a morte do cristão elevando-o a um estado de graça (
MAUSS; HUBBERT
, 2005,
p. 16).
Para que a concepção do sacrifício do mártir manifestasse sentido entre os
cristãos, foi necessário um empenho por parte de alguns de seus membros, seja na
revelação da importância do corpo sob a ótica cristã, seja no esforço empreendido para a
categorização dos signos registrados sobre o corpo dos fiéis executados, de maneira a
compor uma memória do martírio que se perpetuasse ao longo do tempo e que pudesse
ser evocada sempre que necessário (
BROWN
, 1990, p. 68).
Para discutirmos as categorias de apropriação do corpo pelo cristianismo, faz-se
necessário compreendermos a sua trajetória dentro do pensamento cristão entre o final
do século III e início do IV. Nesse sentido, é de fundamental importância a contribuição
legada pelos autores do período, a começar por Orígenes (185-254).
Estabelecido em Alexandria, Orígenes tornou-se guia espiritual em idade
precoce. Identificado no círculo cristão como o “filho do mártir”, viu-se em meio a uma
dura realidade na ocasião em que seu pai fora executado na perseguição de Septímio
104
Severo.
30
Quando, em 206 e 210, a perseguição voltou a ameaçar os cristãos, o grupo
de cristãos que estava ao seu redor mostrou-se forte e com grande capacidade de
recuperação.
Sabe-se pouco sobre os quarenta anos de Orígenes em Alexandria. Em 234, no
entanto, ele deixa a cidade e se transfere na condição de professor para Cesaréia, na
costa marítima da Palestina, local, aliás, onde Eusébio travou contato com seus
ensinamentos, tendo sido bastante influenciado por Orígenes. Aí, Orígenes lecionou e
pregou como sacerdote, expondo as Escrituras Sagradas na Igreja até vir a falecer,
aproximadamente em 253-254, em virtude das torturas que lhe foram infligidas, no ano
anterior, nas fétidas prisões de Cesaréia (
BROWN
, 1990, p. 142). Eusébio, no entanto,
tomou contato com a doutrina de Orígenes por meio de seu professor, Pânfilo, a quem
coube a tarefa de assegurar a continuidade da escola de Cesaréia fundada por Orígenes.
Orígenes viveu num momento em que as comunidades cristãs começavam a se
desenvolver, o que gerava disputas por prestígio intelectual e poder entre os membros
do clero. Apresentado por seus seguidores como um mestre excepcional Orígenes
tornou-se um modelo de “santo” para os cristãos do Oriente, embora nunca tenha sido
canonizado.
Suas reflexões representam uma importância fundamental acerca da concepção
que o corpo martirizado passou a assumir dentro da comunidade cristã. Seus preceitos
teológicos figuram como base para a fundamentação cristã do corpo e estavam
imbricados na antiga problemática platônica, segundo a qual a interpretação do corpo
derivava, de certa forma, de um ambiente de pesar, de maneira que o corpo, como
30
Segundo Crouzel (2002, p. 1050), Orígenes recebeu de seu pai Leônides uma educação grega e bíblica,
mas, com o advento da perseguição em 202 e com o martírio de seu pai, os bens da família foram
confiscados, e, para manter a mãe e seus seis irmãos menores, Orígenes começou a lecionar Literatura,
quando então foi convidado pelo bispo de Alexandria, Demétrio, para assumir a formação dos
catecúmenos enquanto continuava a perseguição.
105
assinala Brown (1990, p. 44), era para Orígenes um limite e uma fonte de frustração,
mas também, um desafio, já que era uma fronteira pronta para ser transposta.
31
A partir das concepções de Orígenes sobre o corpo, é possível identificarmos, nos
tempos das perseguições contra os cristãos, a maneira pela qual se operou a mudança na
compreensão do corpo do cristão condenado, que foi ressignificado e tornou-se mártir.
A dialética em torno do corpo do mártir assume uma ambivalência que transita entre a
concepção da queda do espírito num corpo particular e, ao mesmo tempo, a visão dessa
queda como um ato de misericórdia divina experimentado pelo mesmo ser.
O corpo não figurava como uma prisão, pois a misericórdia divina assegurava que
cada corpo se adaptasse às necessidades peculiares de sua própria existência até os mais
ínfimos detalhes, de modo que as relações de cada um com seu corpo representava sua
própria história.
32
Nessa dialética acerca do corpo, Orígenes transmitiu, acima de tudo, um
profundo sentimento de fluidez do corpo, no qual se refletiam as necessidades de cada
momento. Embora tido como um invólucro que limitava o espírito, ele podia ser
transformado, juntamente com o espírito, ao longo do tempo, mediante um trabalho de
pedagogia, de autocontrole, de ascese, de sacrifício.
Ora, são esses os princípios que fundamentam a transmutação do corpo do mártir
em matéria sagrada. O corpo era um veículo para o espírito se adaptar ao seu ambiente e
31
A tônica central de sua discussão se acentuou em torno da diversidade observada no mundo material,
embrionária da unidade originária do mundo das idéias. Para Orígenes, Cristo fora o único ser cujo “eu
originário” mais profundo havia permanecido “não esfriadopela inércia. Todos os outros seres tinham
de vivenciar um sentido implacável de tristeza e de frustração. A definição primária mais expansiva de
seu “eu” se estendia inevitavelmente para além das condições estreitas de seu modo de vida presente.
32
A visão de luta espiritual de Orígenes penetrou na corrente das futuras tradições de orientação ascética
da Grécia e do Oriente Próximo. Ela envolveu o ser humano num diálogo solene e contínuo, tomando
como orientação o princípio de que “se somos dotados do livre arbítrio, é muito provável que alguns seres
espirituais sejam capazes de nos exortar ao pecado, e outros, de nos assistir rumo à salvação”. Cabe
ressaltar que, nos séculos III e IV de nossa Era, anjos e demônios estavam muito próximos das
vicissitudes dos cristãos. (
BROWN
. 1990, p. 145).
106
servia aos desígnios de Deus, uma vez que o mundo invisível não era um mundo de
isolamento, mas de socialização intensa.
33
As declarações de Orígenes tiveram implicações práticas. Por volta de 248, a
perseguição contra os cristão era eminente. O irromper da perseguição foi associado, em
diversas cidades, ao renascimento de um sentimento de busca do sagrado nas
comunidades pagãs. Houve levantes populares por instigação de sacerdotes pagãos
enfurecidos com os insultos aos templos, e o imperador Décio passou a crer que a
negligência do Estado romano para com os deuses pagãos havia posto em perigo a
segurança do Império.
Foi nesta época que Orígenes havia deixado evidente para os seus críticos pagãos
onde era possível encontrar o sagrado na terra, fazendo do corpo humano um elemento
fundamental e primeiro da ação de Deus, já que o corpo humano poderia ser “oferecido”
a Deus, em gratidão pela sua misericórdia.
O vaso humilde do corpo podia, assim, transformar-se no veículo
“resplandecente” da alma a partir dos atributos dignificantes evidenciados por Orígenes,
de maneira que cada um dos homens ou mulheres cristãos tinha a oportunidade de erigir
seu corpo como um “tabernáculo santificado do Senhor”.
Configurava-se, então, a via por onde o corpo poderia transitar até alcançar os
céus. O corpo executado na perseguição era transformado em oferenda a Deus e
encaminhado diretamente à salvação. Desse modo, Orígenes legitimou, do ponto de
33
O mundo espiritual fervilhava de alegrias, e esse deleite sensorial era vedado aos fiéis pelo
entorpecimento de seus espíritos. Aqueles que conseguissem delegar seus corações voltariam a desfrutar
de uma sensação espiritual. Desse modo, o espírito para Orígenes precisava aprender a arder e ansiar em
seu eu mais profundo pelo aroma de Deus, e o disciplinamento do corpo era como exercício para o
desenvolvimento do espírito, (
CROUZEL
, 2002, p. 1051).
107
vista intelectual, um corpo que seria exaltado por Eusébio por meio da narrativa
histórica.
34
Assim, na liturgia eclesiástica, o martírio se apresenta como um calvário em que o
corpo supliciado torna-se uma oferenda sagrada, de maneira que seus pecados
desaparecem diante do seu padecimento. A realidade física do flagelo transmuta-se
numa realidade sobrenatural, com o acolhimento imediato do morto por Deus. Eleva-se,
então, um corpo completamente novo e inviolável, purificado e redimido por meio da
entrega à morte e à dor.
Um exemplo desse processo pode ser observado na utilização da simbologia em
torno do fogo que foi amplamente utilizado nos suplícios infligidos aos cristãos, seja no
ato de aquecer os garfos e lanças para a prática da tortura, seja para “assar” partes do
corpo retiradas às pressas das vítimas e lançadas sobre a brasa incandescente,
permitindo-lhes “ver com seus próprios olhos” a queima de seu corpo. O fogo foi
utilizado ainda como o suplício final, quando o corpo era lançado às chamas ou ardia
lentamente para eliminar o cristão. Encontramos, na História Eclesiástica, de Eusébio,
relatos de cidades inteiras que foram consumidas pelo fogo devido ao seu zelo na defesa
da crença em Cristo:
Soldados armados sitiaram a cidade de Frigia, refúgio de vários
cristãos e atearam fogo juntamente com seus homens, mulheres e
crianças, que entoavam louvores a Cristo, Deus de todas as coisas.
Por haver confessado a em Cristo, toda a cidade, com seus
magistrados, pessoas de honra e pobres, quando se recusaram a
34
A intensa produção literária de Orígenes sofreu uma brusca interrupção em face da violenta
perseguição desempenhada pelo imperador Décio em 250, ano em que Orígenes foi preso e torturado até
que, em 251, na ocasião da morte do imperador Décio, ele foi libertado; no entanto, com a saúde bastante
debilitada, morre aos sessenta e nove anos, por volta do ano 254. Eusébio dedicou-se a escrever, no sexto
livro da História Eclesiástica, sobre a vida e obra de Orígenes, evocando sua grande contribuição para
com a construção dos pilares da Igreja.
108
prestar os sacrifícios, arderam no fogo, ornados com a coroa do
martírio, preservando a verdade e piedade de Deus (Hist. Eccl. Livro
VIII).
Assim, o corpo cristão que foi elevado por meio do fogo adquiriu uma aura
sagrada, tornando-se digno das bênçãos de Deus. Invertendo a gica pagã de suplício
pelo fogo, a Igreja tratou de considerá-lo como um elemento que consome a existência
vivida e torna possível uma outra. Para Orígenes, este fogo tanto espiritual quanto
real, presente, sobretudo nas execuções sumárias contra os cristãos é um queimar que
purifica, que mata o que antes existia e abre espaço para algo completamente renovado,
por isso purificado.
Nessa perspectiva, pode-se observar que, por um lado, o corpo foi o maior
prejudicado devido à desobediência de Adão e Eva, que o primeiro homem e a
primeira mulher foram condenados ao trabalho e à dor trabalho manual ou trabalho de
parto, acompanhados de sofrimentos físicos e ao sentimento de vergonha em relação a
seus corpos. Por outro lado, no entanto, esse mesmo corpo, maculado pelo pecado
original, foi reabilitado pela encarnação de Cristo. Assumindo a forma humana, tendo
sido crucificado e ressuscitando ao terceiro dia, Cristo se tornou a prefiguração de todos
os cristãos que, repetindo seu sofrimento, desejavam a redenção.
Como assinalam Le Goff e Truong (2006, p. 12), a materialidade dos corpos será
recomposta no Juízo Final, quando homens e mulheres encontrarão um corpo para
sofrer no inferno ou para usufruir do Paraíso. Nesse último caso, receberão um corpo
glorioso, no qual os cinco sentidos estarão em festa: a visão, na plenitude da
contemplação de Deus e da luz celeste; o olfato, no perfume das flores; a audição, na
música dos coros angelicais; o paladar, no sabor dos alimentos celestes e o tato no
contato com o precioso céu e com a terra. A centralidade assumida pelo corpo dentro
109
do cristianismo se revela, por exemplo, através dos sacramentos, que têm por finalidade
santificá-lo. Do batismo à extrema-unção, passando pela eucaristia, o centro do culto
cristão são o corpo e o sangue de Cristo, e a comunhão é interpretada como uma
refeição, ou seja, um alimento consumido pelos fiéis. Nesse sentido, para os cristãos, o
corpo físico do homem foi a grande metáfora que descrevia a sociedade e as suas
instituições, poderosos símbolos de coesão, de ordem e de harmonia.
Há de se ressaltar aqui a existência de uma diferença entre a ação humanitária para
com o corpo, conforme pregada por Cristo, e a interpretação do próprio corpo como um
símbolo sagrado. A exortação de Cristo de vestir, alimentar e abrigar os necessitados, no
Evangelho, é uma recomendação de manutenção do corpo físico daqueles que se
encontram numa posição de inferioridade na escala social.
o corpo do mártir que subiu aos céus é um corpo que, embora vilipendiado, não
necessita de cuidados, mas é ele próprio responsável por zelar pelo bem-estar de seus
contemporâneos.
Dessa maneira, o mártir assume um papel fundamental entre os vivos. Como
assinala Porter (1992, p. 213), o cadáver vivifica a e regenera a vida do outro. Assim,
o cristianismo se apropriou da morte produzindo mártires que são heróis e modelos de
como morrer, o que capitaliza em benefício do cristianismo a finitude dos seus
membros.
Saugnieux (1996, p.153) observa que, na teologia cristã, a morte não pode ser
considerada em si mesma, mas apenas como a possibilidade de acesso à vida eterna. Ela
é um começo e não um fim. A morte figura, no cristianismo, como a separação dos dois
elementos que compõem o homem, a alma e o corpo, produzindo a ruptura de um
equilíbrio. Não é o fim da vida o último episódio da vida do indivíduo; é uma divisão
110
desejada por Deus, na qual o corpo se aniquila totalmente, mas para libertar a alma
prisioneira. Logo, trata-se do acesso trilhado pelos mortos rumo à vida eterna.
Para a redefinição das concepções cristãs em torno da morte, foi fundamental a
conjuntura de perseguição vivida pela Igreja entre os séculos III e IV. Sabemos que,
para além de sua estrutura biológica, o corpo humano é constituído também por todo o
seu entorno político-cultural, e foi por meio da repressão das autoridades romanas e da
resistência ideológica cristã que se “fabricou” um corpo sem paralelo com qualquer
outro: o corpo do mártir.
O martírio não era, contudo, uma prática defendida de maneira igualitária por toda
a comunidade cristã. Havia segmentos, como os gnósticos, que refutavam a validade da
entrega do corpo para o suplício como possibilidade de salvação, sob a alegação de que
“Cristo, se morreu por nós, foi morto para que não precisássemos ser mortos”. Sobre
esse aspecto, Pagels (1995, p. 106) atesta que, entre a comunidade cristã, havia uma
grande polêmica em torno, não apenas da prática do martírio, como também da questão
da interpretação sobre a morte de Cristo, um debate que gerou uma controvérsia em
torno da validade do martírio.
35
Entre os escritores que combateram a visão gnóstica de negação do martírio como
prática de salvação e fé, encontra-se Tertuliano (ac-190), escritor que defende não
somente a ressurreição de Cristo como também a exaltação e a validade do martírio
35
Segundo Filoramo (2002, p. 624-627), o gnosticismo deriva do vocábulo grego vulgar e significa
conhecimento [gnosis]. Trata-se de um movimento religioso que floresceu no decorrer do segundo século
da Era Cristã. Chadwich (1967, p. 39) explica que tanto o grupo fundado pelo egípcio Basílides quanto o
grupo fundado por Valentino de Roma rejeitavam a questão da encarnação de Cristo. Para esses
gnósticos, era inconcebível a idéia de que o divino Cristo pudesse ter vindo “em carne”, no verdadeiro
sentido. Assim, ao rejeitarem a parte carnal de Cristo, os gnósticos não reconheciam no martírio qualquer
possibilidade de evocação da prática do Salvador.
111
cristão, assim como Orígenes. Tertuliano figura como um dos opositores mais exímio
do gnosticismo, o que justifica nosso interesse.
36
Tertuliano assume a posição dos chamados cristãos ortodoxos, os quais pregam
que, como Cristo ressuscitou em corpo e alma do túmulo, então cada fiel deveria
contemplar a ressurreição da carne. Desse modo, em defesa dessa posição, ressalva que
“a ressurreição é do corpo, inundado de sangue, constituído de ossos, entrelaçado por
nervos, entremeado por veias, sem dúvida alguma humano” (
PAGELS
, 1995, p. 3).
Ele prossegue em sua posição contrária aos gnósticos, intitulando-os de hereges,
pelo fato de não reconheceram a ressurreição do corpo de Cristo. Para Tertuliano, tal
afronta retirava de qualquer indivíduo a identificação atribuída a um cristão. No entanto,
como esclarece Chadwick (1967, p. 41), certos cristãos a quem Tertuliano intitula de
hereges discordavam da maneira como a ressurreição era evocada, rejeitando, na
verdade, a interpretação literal, mas não a negavam. Assim, para os cristãos gnósticos,
o Cristo ressuscitado era uma experiência espiritual.
Trata-se, de fato, como assinala Pagels (1995, p. 5) de um contexto relevante para
a Igreja, visto que, à medida que ela se organizava politicamente, abrigava, em seu
âmbito, idéias e práticas divergentes que, nos séculos III e IV, acabaram gerando
polêmicas, como o caso do martírio e sua relação com a composição carnal de Cristo.
Assim, deve-se ainda considerar que a ressurreição de Cristo funda o dogma
cristão da ressurreição dos corpos, crença desconhecida entre os pagãos e amplamente
36
As datas de nascimento e morte de Tertuliano divergem um pouco, mas parece que ele nasceu por volta
de 155, em Cartago, e se converteu ao cristianismo em torno do ano 193. Apologético é a obra que se
destaca em relação a sua posição perante a defesa do martírio, na qual denuncia o comportamento, para
ele, injusto das autoridades políticas contra a Igreja, além de explicar e defender, nessa mesma produção,
os ensinamentos e os costumes dos cristãos, de apresentar as diferenças entre o cristianismo e as
principais correntes filosóficas da época, e, por fim, de manifestar o triunfo do Espírito, que opõe à
violência dos perseguidores o sangue, o sofrimento e a paciência dos mártires.
112
discutida entre os cristãos, que serviu de base para abrigar a justificativa da prática do
martírio.
O
S
M
ÁRTIRES
,
T
ESTEMUNHAS DA
F
É
Mártires não temem a morte. Fazem dom de suas vidas à comunidade a que
pertencem e nela sobreviverão, e são lembrados muito mais por sua morte do que por
sua vida. Os mártires, na concepção cristã, são identificados pela coragem e apontados
como modelos de fé (
HAMMAN
, 1990, p. 13).
A designação mártir é proveniente do grego martyr e quer dizer testemunha: a
testemunha que certifica o que viu ou aquilo que existiu. É a partir de sua experiência
que o mártir atesta a veracidade dos fatos, como nos Evangelhos, em que o Cristo
testemunhou o que viveu (
BARNES
, 1992, p. 154).
O termo foi aplicado aos cristãos dos primeiros séculos que enfrentaram a
perseguição e a morte em defesa da no Cristo. Entre os cristãos, os mártires
representam, seguramente, a primeira categoria de theioi andrés, de homens divinos.
Após os apóstolos, são aqueles que exercem por séculos um notável fascínio sobre a
ecclesia, afirma Silva (2007, p. 25).
Segundo Hamman, (1990, p.11), Jesus escreve seu testemunho com o próprio
sangue. A doação de sua vida torna-se um ato supremo de obediência à vontade de seu
Pai, fato que transforma a história terrena de Cristo em um modelo do martírio,
executado por determinação de Deus.
Desse modo, o martírio defendido pela Igreja no final do século III e início do
IV apresenta-se como um prolongamento da paixão de Cristo. Para se chegar a uma
113
concepção como essa, foi necessária a articulação de elementos simbólicos que
permitissem ressignificar a vida, a morte, a dor e o sofrimento e, com isso, inverter a
valorização negativa imputada aos mártires pelas autoridades romanas, que os viam
como criminosos.
A força do mártir reside na convicção íntima da presença de Cristo, uma vez que
Cristo foi crucificado para assegurar aos crentes de que aquele que sofresse em seu
nome viveria eternamente em comunhão com ele. Nessa perspectiva, o mártir é o
indivíduo que suporta o teste de estar em Cristo (
BINGEMER
, 2001, p. 133).
O martírio, além de ser um ato litúrgico que prolonga no tempo a presença de
Cristo, relembrando sua Paixão e agonia, é também considerado pelo cristianismo como
um segundo batismo, um sacramento que confere novamente a graça divina após a
conclusão de um período de provações. O martírio se revela como a confirmação da
graça batismal e a identificação do fiel com a pessoa de Cristo (Grodzynski, 1984, p.
370).
A importância do martírio para a Igreja é tanta que o batismo pelo sangue assume
o aspecto de um batismo mais nobre e mais glorioso que o batismo pela água. Afinal, no
martírio, o fiel proclama a em Cristo por intermédio do seu corpo inteiro. Trata-se
assim de uma concessão total, de uma entrega sem restrições.
O batismo pelo sangue consome o corpo, de modo a impedi-lo para sempre de
pecar, o que torna o ritual do martírio ainda mais purificador que o batismo. O martírio
consiste em confessar, pela linguagem corporal, o amor a Deus, servindo de incentivo a
que outros assim procedam. Como afirma Eusébio, “o sangue do rtir é a semente dos
cristãos” (Hist. Eccl. Livro VIII).
114
Dessa forma, o cristianismo se converte na religião do martírio, o que lhe
confere um caráter singular entre as outras religiões. A morte figura como palavra-
chave do cristianismo, visto que foi através da morte - e ressurreição - de seu fundador
que a fantástica engrenagem que moldaria os rumos de boa parte da humanidade se pôs
em movimento, e foi também, em parte, por meio da morte, pelo sacrifício de seus
mártires, que o cristianismo derrotou, de modo surpreendente, as sucessivas
perseguições a que fora exposto (
HAMMAN
, 1990, p.12).
Assim, o martírio apresenta-se como entrega da vida e garantia de salvação e sua
missão se encerra não apenas na intenção, não apenas de manter viva a memória
daqueles que morreram em nome da fé, como também de prolongar, no tempo, a
presença de Cristo.
O
M
ARTÍRIO
C
OMO
R
ECURSO
P
EDAGÓGICO
Existe uma linha tênue que delimita a dor infligida sobre o corpo supliciado da
dor que conduz à salvação. Trata-se, pois, na verdade, de uma distinção estabelecida por
meio dos sistemas simbólicos atuantes na sociedade. São eles que intervêm no modo
pelo qual a dor e o sofrimento são interpretados por uma determinada coletividade ou
grupo, atuando como redes de representações para a compreensão do infortúnio e da
infelicidade (
CHARTIER,
1991, p. 177).
A classificação da dor como elemento purificador foi utilizada de forma
habilidosa pela Igreja no contexto do final do século III e início do culo IV, a fim de
conferir a sacralidade àqueles que pereceram nas perseguições. Grandes esforços
litúrgicos foram concentrados juntamente com o apelo universalista e evangelizador, no
115
intuito de desenvolver um discurso que não apenas justificasse a dor à qual os cristãos
perseguidos foram submetidos em nome da fé, como também exaltasse tal ação perante
a própria comunidade, transformado-os em modelos e ícones para o cristianismo.
A “dor para a salvação” e o enaltecimento daqueles que foram submetidos a
longos flagelos até a morte em certas circunstâncias alguns cristãos chegavam a ficar
com o corpo completamente desfigurado foram fatores imprescindíveis para a
conversão dos cristãos supliciados em símbolos sagrados da Igreja. Isso se deu por meio
dos notáveis esforços de padres e bispos, tal como Eusébio, para difundir os sofrimentos
dos mártires e sua memória, o que retrata toda a luta da Igreja para sobreviver às
perseguições.
Ora, a Igreja passava, nesse momento, por uma intensa situação aflitiva, com os
decretos imperiais que determinavam desde o fechamento dos templos cristãos, a
queima das Sagradas Escrituras, as proibições de cultos, até o encarceramento, sob pena
de execução, de seus líderes e seguidores. Enfim, trata-se de um momento crítico na
História da Igreja, de modo que, ao lançar mão das narrativas em torno do flagelo dos
mártires, a Igreja acabou articulando uma saída simbólica para a tensa situação na qual
se via envolvida. Desenvolvendo uma estratégia para sobreviver às perseguições,
encontrou, em meio aos ataques que sofria, uma forma de atribuir sentido às inúmeras
execuções que ocorriam em toda a extensão do Império e que comprometiam
diretamente sua existência (
BURKERT
, 1991, p. 26).
Nesse sentido, é possível identificarmos os esforços promovidos pela Igreja
especialmente por bispos como Cipriano, Orígenes e Eusébio visando à elaboração de
testemunhos edificantes sobre aqueles que morreram em conseqüência da violência a
que foram submetidos. Esse empenho em torno da elaboração da figura do mártir
116
converteu-se em um elemento didático para a comunidade cristã, uma vez que evocava,
por meio dos cristãos martirizados, a sua recusa à idolatria. Além disso, como afirma
Bingemer (2001, p. 132), no martírio os cristãos têm a possibilidade de relembrar a
Paixão de Cristo.
O martírio, nessa perspectiva, pode ser identificado como uma instrução
evangelizadora para a comunidade, uma forma de ensinar a partir da experiência da
perseguição e morte dos cristãos, um recurso pedagógico empregado pela Igreja e
composto em três etapas. A primeira etapa de doutrinação contida no martírio pode ser
encontrada na grande repercussão alcançada pelo nome de Cristo, haja vista que a
grande quantidade de pessoas do Império que passaram a ouvir falar de Jesus pela
primeira vez. Sendo assim, a perseguição e o martírio serviram para propagar não
apenas a existência do cristianismo, mas também o próprio nome de Jesus. Eusébio
alerta, no livro VI da História Eclesiástica, para a grande divulgação que ressoou no
Império nos tempos da perseguição; “quando em todo canto do Império se espalharam
notícias sobre o Cristo e seus seguidores”.
A segunda etapa de evangelização é constituída pelo suplício. Ela figura como
uma etapa importante, que se refere à demonstração da bravura por parte do cristão.
Não se trata aqui de exímios guerreiros, mas de mulheres, jovens, escravos, anciãos, ou
seja, pessoas do povo, pessoas comuns cujas armas eram a e a crença na vida eterna,
como nos apresenta Eusébio:
[...,] Esses santos mártires de Deus que amaram a seu Salvador supremo
mais que suas próprias vidas e foram arrastados pelo conflito tornaram-se
gloriosos em suas confissões, preferindo a morte a uma vida em pecado.
Homens, mulheres, jovens e anciãos foram coroados com a virtude da vitória
e conservaram os caminhos dos céus com seus testemunhos, e suas almas
estão em honra juntamente com a dos apóstolos de Jesus. [...,] quando então
117
foram golpeados pela maravilhosa coragem e tiveram a elevação de suas
mentes e olhos abertos à profissão de na verdadeira religião e superaram
os inimigos, porque eles amaram a Deus, o soberano supremo, com todo o
seu fervor, e Deus os fortaleceu diante dos inimigos e não sentiram medo da
entrega ao reino do Pai (Hist.Eccl. Livro VI).
A terceira etapa seria constituída pelo combate, uma designação recorrente na
obra de Eusébio, não como referência ao triunfo sobre homens ou feras, mas no sentido
de luta contra a tentação de se manter vivo, embora abjurando da fé. Eusébio assim
explica esse embate:
[...,] E por não aceitarem prestar os sacrifícios aos deuses e ao
imperador, lutaram em nome da glória de Deus, combatendo os
soldados do mal com na piedade e no poder do Cristo todo poderoso
e suportando a dor pela qual passavam com a força de um soldado do
exército de Deus (Hist. Eccl. Livro VI).
A quarta fase da constituição do discurso pedagógico sobre o martírio pode ser
evidenciada pela atitude de ressignificação dos supliciados. Nota-se que os cristãos
encaminhados ao martírio se deixam atacar e matar sem resistência, munidos da crença
nos preceitos do cristianismo e convictos na bem-aventurança prometida. Eusébio, ao
tratar do caso dos mártires, observa que :
[...,] havia uma mulher que estava prostrada ao centro da arena junto das
bestas famintas que seguiam em sua direção, e a jovem mulher com os
braços estendidos para os céus em oração não reagiu aos ataques até ser
atingida com violência pela besta (Hist.Eccl. Livro VI).
A etapa seguinte é constituída pelo efeito da cena sobre os espectadores. As
execuções contra os cristãos eram realizadas publicamente, e os assistentes por vezes
ficam surpresos e aterrorizados diante da entrega dos cristãos, chegando até mesmo a
questionar a procedência da alegria e da força que alguns aparentavam diante da morte.
Dessa maneira, Eusébio concede seu testemunho:
118
O público assistia a tudo, em certos momentos não faziam qualquer
barulho e em completo silêncio olhavam uns para os outros, outras
vezes, intervinham com gritos de protestos pelo fato de os cristãos não
reagirem aos golpes que rapidamente os levavam ao chão,
desfalecidos (Hist. Eccl. Livro VI).
Na sexta etapa da doutrinação da comunidade cristã pelo martírio, podemos
destacar, segundo Bingemer (2001, p. 133), a flagelação dos mártires, que assume, para
os fiéis, uma aura de maravilhoso, visto que tal entrega se aproximava da Paixão do
Cristo, cujo testemunho, embora tenha lhe tenha custado a vida na terra, rendeu-lhe a
glória do Pai. Além disso, como assinala Hamman (1990, p. 10), o martírio era capaz
também de produzir a purificação total dos pecados, uma vez que, após a aplicação do
batismo de sangue, o cristão não teria mais condição de pecar, conservando-se puro até
ser acolhido em sua morada celeste. Essa concepção acerca do martírio ganha destaque
na História Eclesiástica, ao serem relatados os martírios ocorridos nos tempos de
Diocleciano, quando Eusébio faz a seguinte consideração:
Assim abraçaram com ânimo a morte em defesa da em Cristo,
conheceram bem o que o Nosso Senhor fez em nosso nome, e se
purificaram e destruíram todo o mal e pecado se dirigindo à vida eterna,
(Hist. Eccl. Livro VI).
A última etapa no tocante à utilização pedagógica do martírio encontra-se na
veneração de que se tornaram objeto aqueles que passaram pelo suplício. Os mártires
assim se tornaram ícones da cristã, relíquias sagradas da Igreja, cujos restos mortais
são guardados com todo zelo, como expressa Eusébio:
Aqueles que haviam padecido o martírio com ânimo no amor de Cristo
e suportado todos os tipos de tormentos receberam de Deus a coroa da
imortalidade e devem ter seus restos tratados por todos nós como
expressão de fé em nosso Senhor (Hist. Eccl. Livro VI).
119
Todas essas etapas constituem um esforço da Igreja para conceder significado ao
martírio. E, segundo Bingemer (2001, p. 135), por meio dele, os cristãos
contemporâneos aos mártires se sentiam encorajados a prosseguir com a fé no Cristo. Já
os neófitos poderiam aprender com as histórias desses seres excepcionais que não
hesitaram em entregar sua vida pela fé.
Devemos assinalar que o fator que torna o martírio objeto de exaltação não é
necessariamente a penalidade sofrida, mas o propósito de entrega da vida. O mártir, no
entanto, não é um suicida, pois é preciso que sua morte tenha sido controlada pelo poder,
que tenha sido determinada por uma autoridade “ilegítima”.
37
O martírio aparece como a forma eminente da santidade cristã, como mostra o
Apocalipse de João (11: 45-53), todo ele consagrado à glória dos “que lavaram a veste
tornando-a alva no sangue do cordeiro”. Os mártires se encontram diante do trono de
Deus. Ao morrerem, ingressarão imediatamente no Paraíso, enquanto os demais mortos
têm que esperar a Parusia.
Os restos mortais dos mártires serão objeto de culto pelos cristãos, que se
reunirão em torno deles para celebrar as ocasiões festivas. A Eucaristia será consagrada
sobre seus túmulos. Além disso, os mártires serão tidos como campeões na luta contra
Satanás (
DANIÉLOU; MARROU
, 1984, p. 139).
O martírio é igualmente transformação em Deus e prefiguração da ressurreição.
Essa aspiração para o martírio como caminho para a transformação interior em Cristo
aparece em Paulo. Em seu texto, o martírio aparece como a participação mística na
morte e na ressurreição de Cristo e como a mais perfeita forma de devoção, a realização
37
Em Roma, afirma Rodrigues (1983, p.107) o suicídio era um privilégio dos membros das elites, que
poderiam beneficiar-se dele e preservar algo de sua dignidade. Enquanto isso, os escravos e as pessoas do
povo deveriam necessariamente perecer nas mãos do carrasco. Mas, na teologia cristã, o suicídio é
definitivamente condenado, e sua penalidade se estende para além da morte.
120
perfeita da essência do cristão. Ser mártir significa tornar-se verdadeiro discípulo,
conforme apresentam Daniélou e Marrou (1984, p. 142).
O mártir não edifica apenas a Igreja por seu testemunho. Possui ainda valor
redentor. O martírio é obra de caridade fraterna. O mártir entrega a vida pelo próprio
povo, como prega Clemente de Alexandria, para quem o martírio era a perfeição do
ágape, a plenitude da caridade (
RIVES,
1995, p.176).
Pode-se concluir, então, que o martírio foi processado dentro da Igreja como
sendo uma reprodução da Paixão do Cristo. A Igreja dos primeiros séculos assimilou de
maneira profunda a convicção de que todas as pessoas homens ou mulheres, velhos ou
crianças que derramaram seu sangue pela em Jesus encontram-se em comunhão
plena com a própria pessoa do Senhor morto e ressuscitado. Nota-se que não existe
distinção entre o passado de Jesus e seu presente. Assim, Jesus continua revelando-se
nos mártires, que atualizam o seu sofrimento para todos aqueles que não acompanharam
a Paixão.
Desse modo, abraçar o martírio e a morte violenta passou a ser a suprema
demonstração de fé. Caminhando para o martírio, o cristão dava o exemplo para toda a
sua comunidade. E a comunidade cristã identificava o sofrer, o submeter-se, o suportar
as provocações e tentações, o experimentar a dor violenta como virtudes cristãs. Assim,
no coração da figura do mártir cristão, salienta Bingemer (2001, p. 138), se encontram e
se fundem o herói grego, com sua combatividade, e a ressignificação bíblica daqueles
que, com humildade e paciência, vislumbraram a misericórdia de Deus, a exemplo de
Jó.
121
C
ONSIDERAÇÕES
F
INAIS
O período da História Romana designado pela historiografia como Anarquia
Militar, que se estende de 235 a 284, foi marcado por uma grave crise sentida em todas
as frentes do Império. No âmbito político, apontamos o preponderante destaque
concedido aos exércitos em relação ao estabelecimento do soberano e à questão
sucessória, agravada pelo caráter efêmero de tais governos, que, no decorrer desse
período, somam-se mais de cinqüenta imperadores que assumiram a púrpura.
No aspecto militar, destacamos a intensa pressão sobre o limes, que, a todo
momento, era forçado pelos povos bárbaros, o que, por sua vez, acabava exigindo uma
onerosa manutenção dos destacamentos militares. No que se refere à questão
econômica, esta passava por consideráveis dificuldades, visto que, além das provisões
destinadas às tropas, o número de escravos havia caído, os decuriões fugiam da
cobrança dos tributos, e, para agravar ainda mais a situação, abateu-se sobre o Império
um grave surto de peste que assolou um considerável número de províncias, o que
contribuiu para uma baixa na produção agrícola.
Esse período crítico da história do Império foi sucedido pelo governo de
Diocleciano. Trata-se do imperador que inaugurou a chamada Tetrarquia, cujo governo
conseguiu restabelecer as bases administrativas do Império mediante uma ampla ação
de reformas em todos os âmbitos, o que, por sua vez, permitiu um reaparelhamento do
governo em face do período anterior de crise.
Na perspectiva religiosa, assinalamos as mais violentas perseguições
empreendidas contra os cristãos nas quais, os imperadores defensores da tradição pagã,
Décio, Valeriano e Diocleciano, empreenderam, por meio de editos, uma sistemática
122
perseguição aos adeptos do cristianismo, acusando-os de expor o império à fúria dos
deuses. Assim, esses Imperadores acreditavam que somente valorizando o mos
maiorum, com a preservação das práticas e rituais romanos, poderiam agradar às
divindades e restabelecer a paz.
Notamos que, em meio ao intenso embate religioso travado entre a tradição pagã
e os preceitos cristãos, o corpo do mártir se tornou uma espécie de arcabouço no qual
esses segmentos religiosos registraram suas marcas e imprimiram sentido a suas
experiências. Ou seja, o embate religioso evocado nesta dissertação foi identificado a
partir da maneira como cada segmento, pagão ou cristão, empreendeu sinais e
interpretou o corpo. Trata-se de uma disputa simbólica entre esses grupos, na qual cada
um buscou legitimar e estabelecer como universal a sua visão particular.
Na perspectiva pagã, o corpo foi degradado diante da negativa do cristão em
prestar culto aos deuses e ao imperador. Desse modo, o cristão teve seu corpo punido de
maneira exemplar por ordem imperial, figurando, então, o corpo como um estandarte no
qual a lei deveria ser escrita e anunciada para todos os habitantes do Império. Sobre a
carne do sentenciado, a punição alcançou seu ponto máximo. A representação assumida,
nesse caso, pelo corpo foi a de um elemento passível das mais atrozes punições.
Na carne se escrevia a sentença; era ela quem deveria pagar pela transgressão
cometida contra a ordem vigente, cujo crime contra a autoridade imperial, o crimen
maiestatis, a violação da lei romana o desprezo pelos deuses do Império, exigiam uma
punição exemplar.
Foram diversos os atos de punição infligidos sobre o corpo, uma condenação que
contava com diferentes castigos, como o emprego do fogo, a utilização de instrumentos
incandescentes que cauterizavam as timas ainda com vida, o apedrejamento em via
123
pública, a morte a fio de espada, o afogamento, chegando à exposição às bestas; o que
acontecia em circos ou em anfiteatros.
Nesse sentido, destacamos que alguns castigos apresentados nesse estudo eram
devidamente acompanhados por um caráter de encenação, especialmente a damnatio ad
bestias, a exposição às feras. Esse tipo de execução geralmente assegurava aos
espectadores a sensação do real cumprimento da lei. Era um espetáculo organizado com
o fim de revelar, por meio da exacerbação da dor, a aplicação da pena.
Trata-se, como sugere Crespo (1990, p. 447), do espetáculo político do controle e
do poder, o que Sennett (1997, p. 90) chamou de teatrum mundi, uma exposição da
aplicação das penas cuja missão se encerrava no ato de combater o inimigo exposto à
execração pública na arena, neste caso, os cristãos.
De fato, verificamos que, ao expor os cristãos sob tortura à censura pública
ocasião em que o público gritava ou gesticulava recorria-se ao poder anunciado pelo
espetáculo da punição como forma de demonstração da autoridade imperial num
ambiente composto de vários elementos: cenas que reproduziam os gestos da
autoridade, personalidades atuantes na composição da cena: de um lado, os cristãos
sentenciados à morte, de outro os responsáveis pela aplicação da pena. Cada um
desempenhava, nessas cenas, um papel baseado na linguagem silenciosa do corpo, que
muito dizia acerca da ordem, do controle e do poder. Nesse sentido, a simbologia do
corpo estava articulada aos gestos que constituíam a cena, no momento da aplicação da
pena, e era transmitida por um sistema de sinais que revelavam todo o espetáculo do
corpo em sofrimento.
124
O corpo se tornou, dessa maneira, o lugar crucial das tensões, especialmente no
período em que predominou a perseguição aos cristãos. Um cenário dramático
constituído por diferentes categorias, que revelam de diversas formas o corpo como o
suporte físico da redenção pelo sofrimento.
Num outro sentido, o corpo, proscrito pelo poder imperial, que se apresentava
como o guardião da tradição religiosa romana, foi também submetido a uma outra
representação e assumiu um significado completamente distinto. Tratava-se da
interpretação cristã empreendida sobre o corpo desfigurado e corrompido pela ação
pagã, de maneira que, sob a perspectiva cristã, ao passar pela dor intensa e por longos
processos de tortura, o corpo era submetido a uma purificação.
O cristianismo, por meio da ação de seus bispos e clérigos, tratou de efetuar uma
ressimbolização da ação desempenhada pela ordem imperial, convertendo a tortura e a
dor em elementos que remontavam à Paixão do próprio Cristo, uma provação que
assegurava aos supliciados certa proximidade com a dor provada pelo Salvador. Não se
tratava de os equiparar ao Cristo, mas sim de realizar a defesa da cristã. Para isso,
exaltaram-se aqueles que se negaram com veemência a prestar culto às deidades
romanas e, devido a tal recusa, foram condenados à pena capital. Esses indivíduos
foram designados de mártires pela Igreja.
Os mártires figuram na História da Igreja como modelos de fé, símbolos sagrados
que foram purificados com sangue e habitam na casa do Pai. Nessa perspectiva, o corpo
foi imolado e recebeu as graças de Deus; a carne flagelada se tornou passível de receber
a misericórdia divina.
Como atesta Chadwick (1967, p. 32), no entanto, “os cristãos tinham um espírito
teatral”, de modo que a representação da Igreja sobre a sacralidade do corpo flagelado
125
também assumiu uma aura de encenação, na medida em que os cristãos levados às
arenas prostravam-se diante da morte e suscitavam nos espectadores uma certa reflexão
no sentido de pensar sobre o culto e a religião pela qual morriam. Por meio de sinais,
gestos e ações, como o sinal da cruz, o entrelaçar dos braços remetendo à imagem de
uma cruz, o ajoelhar-se diante do ataque feroz de feras ou dos golpes letais do carrasco,
o entoar de cânticos de louvores, tudo isso feito pelo supliciado no momento da
aplicação da pena, parecia representar de certa maneira, a cena da entrada do mártir no
“reino dos céus”.
Assim, identificamos, de acordo como nosso aporte teórico, que o corpo do mártir
foi envolvido numa luta de representações, na qual os cristãos e pagãos interpretaram a
cena do suplício de maneira distinta.
Eusébio foi, sem dúvida alguma, testemunha ocular de muitas das perseguições
que descreveu, legando-nos informações diretas daquilo que presenciou ou recolhendo
relatos dos martírios por meio de outras fontes. o inúmeros os relatos em sua obra, de
diferentes castigos empreendidos contra os cristãos em diversas localidades do Império
Romano, como nos territórios da Palestina, nas províncias do norte da África, além dos
domínios da Arábia, Panônia, e na própria cidade de Roma.
É importante ressaltar, todavia, que as perseguições aos cristãos não atingiram
de maneira igualitária toda a extensão do Império; elas ocorreram de forma irregular,
tanto em termos geográficos, pois nem todas as províncias foram atingidas pela
perseguição, quanto em termos temporais, que nem sempre o imperador dava
prosseguimento à perseguição iniciada por um outro. Sabemos ao certo que, nas
localidades onde os cristãos eram mais numerosos, a perseguição se desenrolou de
forma mais violenta.
126
Eusébio não foi o único a defender o martírio. Entre outros que compartilharam
tal posição, encontra-se Tertuliano, que, segundo Chadwick (1967, p. 31), chegou a
afirmar que “o sangue dos mártires era a semente da Igreja”, em resposta ao suplício aos
cristãos que eram devorados por leões nos jardins do palácio imperial de Nero, em
Roma. Outro a evocar esse símbolo de foi Lactâncio, um apologista que apresentou,
em suas obras intituladas De ira Dei e De mortibus persecutorum, a ira de Deus que
atingiu os imperadores que perseguiram os cristãos, assim como sobre suas respectivas
famílias. Lactâncio descreve a morte horrível que atingiu os imperadores Décio,
Valeriano, Diocleciano e Galério, cujos corpos expiaram em vida as atrocidades
cometidas contra a Igreja e seus seguidores.
38
Constatamos que a história das perseguições aos cristãos do final do século III e
início do século IV e a difusão do martírio figuram na historiografia como contextos que
marcam não somente um período de significativas mudanças para o Império Romano,
como também o fortalecimento das bases institucionais da Igreja rumo à edificação de
uma mensagem triunfalista da cristã. Nesse processo, a simbologia que se constituiu
em torno do corpo ultrajado dos mártires assumiu uma importância fundamental.
38
Para uma melhor apreciação sobre a vida e obra de Lactâncio bem como sobre a idéia da ira divina e da
punição aos imperadores perseguidores do cristianismo, ver dissertação de TIGGES, P. R. J. História,
memória e identidade no século IV d.c: Lactâncio e a ação da providência na construção de uma ordem
política cristã. 2007. 112f. Dissertação de Mestrado − Programa de Pós-Graduação em História Social das
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