casa com companheiros que viveram com ela por um tempo. Desde que a filha saiu de casa,
há onze anos, Ana vive sozinha. A opção de Ana não está inserida em um projeto pessoal tão
bem definido e se insere no contexto de adaptação a determinadas contingências (a morte da
mãe, a saída da filha de casa). O que me parece decisivo, contudo, na maneira pela qual Ana
constrói seu discurso é a apropriação do morar só como escolha mesmo diante de fatores que
escapam de sua vontade.
Há aí, aliás, um fator que diferencia as mulheres que têm filhos das que não têm, no
que diz respeito à escolha de morar só. Aquelas que são mães não podem deliberar
simplesmente se querem ou não morar sozinhas: a saída de casa dos filhos é um fator que diz
mais respeito à vontade deles do que a dos pais – pelos menos, é raro um caso no qual os pais
tenham definido o momento em que os filhos devam sair de casa. No caso de Sabrina, seu pai
saiu de casa, o que é uma situação, ao que parece, incomum; mas acredito que seja mais raro
ainda uma situação na qual a mãe saia da casa. Em todo caso esta questão de gênero
ultrapassa o escopo do presente trabalho.
Ana, diante dos cenários possíveis, optou por morar só depois que sua filha saiu de
casa. O que independia de sua vontade foi apropriado e ressignificado como uma escolha. Ter
sido filha única parece ter feito de Ana, conforme ela coloca em seu discurso, uma pessoa
familiarizada com a situação de estar sozinha, tendo em vista que seu convívio muitas vezes
se restringia aos cuidados com a mãe doente. Mas no modo como fala de si, Ana relata a
oportunidade que teve, ao morar só, de ter esta experiência em termos distintos àqueles dos
tempos em que morava com sua mãe.
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Ainda que tenha o morar só como opção, Ana manifesta, de modo ainda mais claro
que Carla, as ambiguidades do espaço doméstico como reino de liberdade:
Agora, nem sempre a gente precisa de ter todo espaço só para si e liberdade
total para poder viver, porque ao mesmo tempo que a gente precisa de
liberdade, a gente precisa também se relacionar, precisa do outro, então eu
não preconizo: adoro morar sozinha, quero morar sozinha para sempre, acho
que todas pessoas deveriam morar sozinhas (Ana).
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Neste ponto, me deparo com as duas questões epistemológicas destacadas por Figueira (1985) ao tratar dos
desafios de se lidar com uma cultura psicanalítica: de um lado, o obstáculo epistemológico, ou seja, não recair
em estruturas simplificadoras que tendem a ler as narrativas como pertinentes a um ser humano universal e
previsível; de outro, o discurso psicologizante como provedor de a priori, ou seja, de ferramentas de
entendimento das ações dos sujeitos estudados. Gostaria de deixar claro que pretendo me afastar ao máximo do
primeiro aspecto e manter uma relação pautada por uma certa prudência em relação ao segundo. A vinculação
entre trajetórias e a produção de significados que tento estabelecer busca, neste sentido, se ater, ao máximo, ao
modo pelo qual as entrevistadas atribuem os sentidos na construção de suas narrativas de si próprias. Não quero
estabelecer relações causais entre trajetória e atribuição de significados.