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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAIBA
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
CURSO DE LICENCIATURA EM HISTÓRIA
Sociedade e cotidiano: as fontes d’água na formação da cidade de
João Pessoa no período colonial
ANDRÉ CABRAL HONOR
João Pessoa, Outubro de 2006.
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SOCIEDADE E COTIDIANO: AS FONTES D’ÁGUA NA FORMAÇÃO DA CIDADE DE
JOÃO PESSOA NO PERÍODO COLONIAL
ANDRÉ CABRAL HONOR
Orientadora: REGINA CÉLIA GONÇALVES
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso
de História, do Centro de Ciências Humanas, Letras e
Artes da Universidade Federal da Paraíba – UFPB, em
cumprimento às exigências da disciplina Metodologia da
Pesquisa em História II.
João Pessoa - PB
2006
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André Cabral Honor
Sociedade e cotidiano: as fontes d’água na formação da cidade de João Pessoa no período
colonial
Aprovada em _____________com média________
Professores Leitores do TACC
____________________________________________________________
Profª Regina Célia Gonçalves
Orientadora
____________________________________________________________
Profª Carla Mary S. de Oliveira
Leitora Convidada
____________________________________________________________
Profª Cláudia Enger Cury
Responsável pela Disciplina de Metodologia II
3
A Maria da Vitória Barbosa Lima,
historiadora e professora nata.
4
Elenco em ordem alfabética (primeiro os individuais, depois os coletivos):
A Carla Mary, professora-orientadora (PIBIC), por ter sido mais que uma educadora,
uma amiga verdadeira, a qual devo o fato de ter conseguido me graduar feliz e tranqüilo.
A David, irmão, por numa noite de sábado para domingo, há nove anos atrás, ter me
abraçado e dito que me amava.
A Fátima e Honor, mãe e pai, pelo amor e pela vida.
A Juliano Carvalho, não só por ter contribuído academicamente para a monografia,
mas por ser a razão que me faz lutar diariamente para ser uma pessoa melhor.
A Kalel e Maria Clara, sobrinhos, por cada sorriso e cada “tio dedé” dito.
A Keive, a irmã mais nova que não tive.
A Laudereida Marques, arquivista do NIDIHR, por ter me acolhido no IPHAEP,
tornando-se uma “mãe” acadêmica e pessoal.
A Paty, minha irmã, por me amar incondicionalmente do jeito que sou. A Felipe por
fazê-la feliz.
A Regina Célia, também professora-orientadora-ídola, por ter me ensinado a ensinar, e
de quebra ter feito me apaixonar pelo Estado que adotei: a Paraíba.
A Vina e Celso, Padrinhos-tios, que mesmo à distância me amaram e me deram
segurança para ir adiante.
Aos amigos de sempre, com amor incondicional:
Bia, Cecília, Gregório, Nana, Rafael,
Luana, Herlon, Titi, Mila, Kyldare, Valery e Jucy, e o mais recentes, mas não menos
importantes, Thiago, Mariah e Berttoni.
Aos amigos da faculdade, Yanucha, Saulo Duarte, Júlio, Clécio, Frederic, Janaína,
Saulo Guimarães, Ari, Pedro, Dudu e Wilker, cada um contribuindo de sua forma para a
minha felicidade.
Ao Deuzerora Vamimbora, pelos sorrisos e lágrimas.
Aos professores Cláudia Cury, Damião de Lima, Genilda Azeredo, Giovanni, Jonas
Duarte, Monique Cittadino, Regina Behar, Ricardo Pinto e Vilma de Lourdes pelas
contribuições incomensuráveis para a minha formação acadêmica.
Aos meus ex-alunos por terem me agüentado por dois anos, tolerado meus erros e
vibrado com meus acertos.
As séries de TV “Friends”, “Queer as Folk” e “Desperate Housewives”, por terem sido
os meus únicos intervalos de descanso.
Por fim, a Deus por ter inventado o sexo e a camisinha.
5
Prefácio
A idéia do trabalho surgiu em conseqüência de um projeto chamado “Tesouros do
Brasil”, ao qual tive oportunidade de participar quando docente do Colégio IPEI.
Tendo feito uma recente visita a Fonte de Santo Antônio e me preocupado com seu
estado de degradação, decidi realizar, junto com os meus alunos da 7ª e 8ª séries, um projeto
que envolvesse tal monumento.
Em poucas palavras, a idéia era movimentar as escolas numa metodologia de educação
patrimonial voltada para a fonte, ao qual pudéssemos arrecadar fundos para a contratação de
um especialista em cantaria que faria um diagnóstico sobre o estado de degradação da fonte.
Ao tentar buscar o apoio do centro Cultural São Francisco, responsável pela
conservação da fonte, deparei-me numa conversar com o seu antigo diretor: padre Ernando.
A conversa foi decepcionante, para não dizer, irritante. O referido padre sentiu-se
atacado e ameaçado na sua posição de diretor. Utilizando palavras que não se adeqüam ao
meu prefácio, o reverendo negou que a fonte estivesse se degradando e questionou a minha
capacidade e a minha experiência. Ainda acrescentou que ninguém se interessava pelas fontes
d’água da cidade.
Transtornado, sentei em frente ao cruzeiro do mesmo convento. Olhando para o musgo
que o cobria, decidi que faria algo pela fonte. Infelizmente, o projeto foi desclassificado nas
semifinais (estava entre os 150 melhores, entre mais de 3 mil inscritos).
Porém, o desafio e a frase do Padre nunca me saíram da cabeça. E aqui está a minha
resposta, um trabalho sério, embasado nas mais diversas fontes, que busca analisar o papel
que as fontes de água possuíam no período colonial.
Os frutos deste trabalho não pararão por aqui. Tentarei divulgá-lo o máximo possível
para que ele sofra elogios e críticas. Um processo de tombamento das “Fonte dos Milagres”
será impetrado no IPHAEP, tendo como base este texto. Desta forma, estarei de cabeça
erguida para enfrentar os desafios que o “patrimônio” nos imputa.
6
Resumo
O presente trabalho busca analisar a importância que as fontes de água potável tinham
para a formação da cidade de João Pessoa, analisando a influência que estes locais tinham na
construção do espaço urbano e no cotidiano dos habitantes da cidade colonial. Utilizando-se
de autores clássicos (Pinto, Machado, Rodriguez, e outros) e de documentos primários (AHU,
Livro dos Guardiões de São Francisco, entre outros), procuramos resgatar a História de quatro
das principais fontes coloniais (Tambiá, Milagres, Santo Antônio e Gravatá), desfazendo
determinados enganos que se perpetuaram na historiografia paraibana, pretendemos
restabelecer o vínculo existente entre tais monumentos e a sociedade atual.
7
Sumário
Agradecimentos................................................................................................................ i
Prefácio............................................................................................................................ ii
Resumo............................................................................................................................ iii
Sumário............................................................................................................................ iv
Lista de Abreviações e Anexos........................................................................................ v
1) Introdução.................................................................................................................... 1
2) As fontes d’água coloniais na construção do espaço urbano....................................... 3
2.1) Considerações iniciais....................................................................................3
2.2) Construção do espaço urbano: uma breve revisão historiográfica.................4
2.3) As fontes d’água na formação do espaço urbano de João Pessoa..................8
3) A água das fontes no cotidiano da cidade colonial.....................................................18
3.1) Considerações iniciais..................................................................................18
3.2) Revisão historiográfica da História do cotidiano..........................................21
3.3) A água no cotidiano da cidade de João Pessoa.............................................28
4) As fontes d’água coloniais...........................................................................................36
4.1) Considerações iniciais, mas não menos fundamentais..................................36
4.2) A Fonte do Tambiá........................................................................................37
4.3) A Bica dos Milagres......................................................................................40
4.4) A Fonte de Santo Antônio.............................................................................44
4.5) A Fonte do Gravatá........................................................................................49
5) Considerações finais.....................................................................................................51
Bibliografia.......................................................................................................................53
Anexo I..............................................................................................................................56
Anexo II............................................................................................................................59
Anexo III...........................................................................................................................61
Anexo IV...........................................................................................................................64
8
Relação de Siglas utilizadas no trabalho:
AHU – Arquivo Histórico Ultramarino;
ACL – Administração Central;
CU – Conselho Ultramarino;
014 - Número da série Brasil - Paraíba;
Cx. – Caixa (1
a 50);
D. – Documentos.
IPHAN – Instituto do Patrimônio História e Artístico Nacional
IPHAEP - Instituto do Patrimônio História e Artístico do Estado da Paraíba
W.I.C. – Companhia das Índias Ocidentais
Lista de Anexos:
Transcrição dos documentos do AHU
I - Doc. 791
II - Doc. 1085
III - Doc. 2144
IV - Mapa com a localização das fontes
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1) Introdução
Ao trabalharmos as fontes d’água no período colonial na cidade de João Pessoa
procuramos analisá-las não só como equipamentos urbanos necessários para o abastecimento
da população, mas também como espaços de sociabilização e de definição da área urbana.
Deparamos-nos com desafios e problemas que, apesar de dificultarem e, em alguns casos,
limitarem o alcance desse trabalho, nos instigaram a aprofundar a pesquisa aqui presente.
Pretendemos, com essas palavras, deixar claro que o tema abordado não está perto de
ser esgotado, e que tal trabalho deve ser visto muito mais como uma ferramenta inicial, um
objeto instigador de futuras pesquisas para historiadores interessados em tal temática, do que
como uma argumentação completa e fechada.
Preferimos diluir a fundamentação teórica do trabalho em seus três capítulos, já que
esta perpassa toda a análise, tornando desnecessário, a nosso ver, a separação entre a
formulação da história, a partir dos dados empíricos, e seu embasamento teórico. Ao leitor,
não será difícil, ao final de cada capítulo, perceber qual a fundamentação teórica que se
encontra sustentando a análise.
No intuito de facilitar a escrita do trabalho e, conseqüentemente, a sua leitura,
utilizamos o nome atual da cidade que é João Pessoa
1
. Isto se faz necessário, já que a cidade
teve durante o seu período colonial quatro denominações diferentes: Nossa Senhora das
Neves, Filipéia de Nossa Senhora das Neves, Frederica, e, por fim, Parahyba.
O trabalho encontra-se dividido em três capítulos, ou se preferirem, em três temáticas:
Na primeira trabalhamos com a história da cidade
2
, mais especificamente com o que
chamamos de “construção urbana”, tentando, desta forma, analisar a relação entre as fontes
d’água e a formação da cidade de João Pessoa. No segundo capítulo analisaremos um pouco
da história urbana, com enfoque na história do cotidiano, tentando demonstrar a importância
dos locais fornecedores de água potável como ambientes de interação social. O terceiro
capítulo procura reconstruir um pouco da história de quatro importantes fontes da cidade de
1
Este nome foi dado à cidade em homenagem ao Presidente do Estado, João Pessoa, assassinado em Recife.
Esse acontecimento culminou na Revolução de 1930.
2
Decidimos utilizar, como referencial para a divisão destes capítulos, a distinção entre história da cidade e
história urbana formulada por Fania Fridman. Para maior aprofundamento consultar sua obra: FRIDMAN, Fania.
Breve História do debate sobre a cidade colonial brasileira: In: PINHEIRO, Eloísa Petti; GOMES, Marco
Aurélio A. de Filgueiras. A cidade como história: os arquitetos e a historiografia da cidade e do urbanismo. 1ª
ed. Salvador: UFBA, 2005.
10
João Pessoa: A Fonte do Tambiá, a Bica dos Milagres, a Fonte do Gravatá e a Fonte de Santo
Antônio.
A maioria das fontes, poços e cacimbas a que iremos nos referir ao longo desta
monografia, desapareceram da cidade e só restam vestígios de sua história. As fontes do
Tambiá e de Santo Antônio
3
resistem bravamente, apesar de já apresentarem sérios problemas
de conservação. A Bica dos Milagres agoniza lentamente numa ruela na ladeira de São
Francisco, “incorporada” ao muro de uma residência, restando, por debaixo da sua tinta de
cal, os lugares onde dantes se encontravam dois anjos que serviam de torneira, e no seu topo a
data “1849”. A Fonte do Gravatá estava perdida por completo, restando poucas referências
quanto à sua existência e dúvidas quanto a sua possível localização.
Ao reconstruir a história desses monumentos estamos não só devolvendo a sociedade
uma parte fundamental de sua História, mas também tentando garantir a preservação de tais
locais como monumentos perpetuadores da memória.
3
Ambas tombadas pelo IPHAN: A fonte do Tambiá em 26/09/1941 e a Fonte de Santo Antônio em 16/10/1952
como parte do tombamento do convento de São Francisco.
11
2) As fontes d’água coloniais na construção do espaço urbano
2.1) Considerações iniciais
A construção da cidade brasileira tem sido pouco estudada por pesquisadores com
formação acadêmica na ciência histórica. Este fato torna-se evidente quando percebemos a
pouca bibliografia existente escrita por historiadores. Existem pesquisas voltadas ao tema,
porém são estudos realizados por urbanistas que muitas vezes não possuem o embasamento
teórico-histórico necessário para lidar com algumas das fontes escolhidas. A situação
complica-se mais ainda se considerarmos que a formação dos historiadores é muito precária
no que se refere a preparar os alunos para lidarem com fontes como mapas de cidades e
plantas de edifícios.
Conscientes de tais problemas, tentaremos fazer uma análise da construção da cidade
de João Pessoa tendo, como enfoque privilegiado, as fontes e outros locais fornecedores de
água potável. Nossa abordagem será mais histórica, apesar de recorremos constantemente à
bibliografia e instrumentos urbanísticos imprescindíveis para a construção do relato ao qual
nos propomos.
Durante a nossa análise, evitaremos utilizar a expressão “Evolução Urbana”. Apesar
de ser largamente presente na bibliografia por nós utilizada
4
, tal expressão é atualmente
questionada pelos mais recentes pesquisadores por trazer em sua formulação a idéia de um
“progresso positivo”, em outras palavras, o conceito de que a cidade cresce continuamente, de
forma ordenada, sem que haja retrocessos. A formação de um espaço urbano é cheia de
congruências, e ao mesmo tempo, de contradições. Nem toda mudança, ou crescimento da
cidade é benéfico à mesma.
Percebamos, em um exemplo atual, a problemática que tentamos expor. A cidade de
João Pessoa cresceu sistematicamente em direção ao rio Jaguaribe, “sufocando”
principalmente o trecho do rio que se encontra entre os bairros do Castelo Branco e
Tambauzinho. Continuamente, suas margens foram sendo ocupadas por casas construídas
pela população de baixa renda. Tal forma de ocupação se apresenta perniciosa em seus mais
diversos âmbitos, como tentaremos demonstrar na análise a seguir.
Analisando tal ocupação podemos detectar os mais diversos problemas, que vão desde
os ambientais até os sociais. Primeiramente, o rio tem suas matas ciliares devastadas o que
ocasiona o seu assoreamento. A proximidade das construções facilita a poluição do mesmo,
4
Um dos livros que embasam teoricamente este trabalho de autoria de Nestor Goulart Reis intitula-se “Evolução
Urbana no Brasil (1500 -1720)”.
12
pois as casas sem infra-estrutura ou sistema de coleta de lixo eficiente passam a despejar seus
dejetos nas suas águas. As pessoas que vivem no local também são prejudicadas, pois sofrem
com as cheias do rio, que trazem a poluição para dentro de suas casas, vivendo em um
ambiente inóspito sujeito às mais diversas doenças. Porém o principal prejudicado é a cidade,
entendida como um habitat humano. Com a destruição do seu próprio ambiente através da
degradação de um rio extremamente importante não só do ponto de vista ambiental, mas
histórico também, estamos construindo uma cidade, e, conseqüentemente, uma sociedade, em
cima de idéias e conceitos equivocados, que são o gérmen de uma desigualdade social latente,
que só se agrava ao permitirmos que tais pessoas sobrevivam neste local insalubre
completamente inadequado para tal ocupação. Tal situação dificilmente poderia ser encaixada
na denominação “evolução urbana”.
No exemplo acima relatado podemos perceber que a utilização do conceito de
“evolução”, quando estamos tratando da construção da cidade, pode conduzir o leitor a
formular considerações falhas e errôneas a respeito do assunto discutido. Conscientes de que
tal vocábulo pode gerar problemas conceituais ao trabalho, optamos por não utilizarmos
substituindo-o pela expressão “construção urbana”.
Para que possamos empreender a análise da construção da cidade de João Pessoa,
fomos buscar a diferenciação que a arquitetura faz entre história urbana e história da cidade.
A primeira, referida ao abstrato e ao geral, dedicar-se-ia à história das
atividades (emprego, classe, divisão do trabalho, socialização), e a segunda
consagrar-se-ia ao concreto, ao particular (transportes, propriedade,
habitação, urbanismo [grifo nosso] e centralidade). (FRIDMAN, 2004,
p.66).
O que a autora chama de História urbana está incluído na discussão sobre o cotidiano
da cidade no enfoque das fontes coloniais. Assim, freqüentemente nos referiremos a
urbanismo quando estivermos analisando a história da cidade.
2.2) Construção do espaço urbano: uma breve revisão historiográfica
Ao realizarmos uma revisão historiográfica dos autores que, de alguma forma,
contribuíram para a construção de uma história da cidade, estamos tentando demonstrar como
se formularam, na historiografia brasileira, os conceitos atuais de construção urbana. Tal
revisão é de vital importância para entendermos o embasamento teórico no qual este estudo
13
está fundado. Para nos auxiliarmos em tal tarefa, teremos como base o artigo intitulado Breve
história do debate sobre a cidade colonial brasileira de Fania Fridman.
É fascinante percebermos que no desenvolvimento da história os conceitos e as teorias,
são sempre um desdobramento de todo o arcabouço de estudos e informações de um período
anterior. O que não significa que não existam contestações entre as teorias. Ao contrário, os
focos de divergências são as sementes da formulação de uma “nova” teorização. Sendo assim,
o estudo da própria História, como ciência, nos demonstra a inexistência do “inédito”, pois, ao
descortinar as bases construtivas de um conceito revela-se todo um arcabouço de formulações
anteriores sem as quais tal teoria não teria sido desenvolvida.
Segundo Fridman (2005, p.44), em 1907, Capistriano de Abreu formula a idéia de que
a colonização brasileira tem como fundamento principal a garantia de posse deste território,
sendo que esse processo inicia-se próximo às áreas que possuíam interesse econômico. Ao
preocupar-se com a ocupação e dominação do território, Capistriano de Abreu dá o pontapé
inicial para o estudo das cidades e vilas coloniais brasileiras, já que é através destas que o
colonizador português tentará garantir a posse do território.
Na geração dos anos 30 teremos três autores exponenciais: Gilberto Freyre, Caio
Prado Júnior e Sérgio Buarque de Holanda. Para Fridman (2005, p. 44-45), Gilberto Freyre,
em 1936, fez o primeiro estudo específico sobre a vida urbana colonial no seu livro Sobrados
e Mocambos, pois até então os estudos sobre a colonização voltavam-se para a área rural.
Caio Prado Júnior, em seu livro Evolução política do Brasil, nos traz a idéia de que:
(...) o rural e urbano eram referências quase geográficas de eventos, cuja essência
estava nas relações de produção e de dominação. (...) Essa economia agrícola,
voltada para o comércio europeu, além de gerar aglomerações com poder dirigente
em termos regionais, foi capaz de ocasionar uma oposição entre cidade local e
cidade metropolitana pela disputa do campo. Daí o importante papel exercido pela
cidade, mesmo a mais miserável (cuja construção material deveu-se aos escravos),
como locus da formação da classe dominante brasileira. (FRIDMAN, 2005, p. 46)
Sérgio Buarque de Holanda, no clássico livro Raízes do Brasil, mais especificamente
no capítulo quarto, intitulado de “O semeador e o ladrilhador”, faz uma análise da colonização
portuguesa voltada para a construção dos núcleos urbanos. Realizando um contraponto com a
colonização espanhola, ele vai gerar todo o debate em torno da existência ou não da
racionalidade na cidade colonial brasileira.
Para o autor, a colonização espanhola possui um claro caráter de racionalização, no
intuito de assegurar o predomínio político, militar e econômico da área conquistada. Para isso
é fundamental que haja um planejamento minucioso da cidade adotando como paradigma a
14
idéia jesuítica da urbe geométrica com ruas ortogonais, em que a civilização parte de um
centro. O fato do reino de Castela ser carente de uma unidade territorial mais concisa faz com
que, na colonização espanhola, houvesse um maior apego aos princípios centralizadores e
uniformizantes nas suas colônias. É como se eles tentassem construir na América latina a tão
sonhada unificação do território espanhol.
A colonização portuguesa caminharia numa direção completamente oposta à
espanhola. O caráter comercial, no qual predominava a idéia de enriquecimento rápido e fácil,
fazia com que o português
5
, não estabelecesse uma política regulamentadora dos núcleos
urbanos. Portanto, a urbanização portuguesa se moldaria à localidade, adaptando-se não só ao
relevo, mas às características raciais e culturais da região. Por este motivo, a cidade colonial
portuguesa seria tortuosa, com a predominância de ruas estreitas e angulares.
Fridman (2005, p.49), relata que Aroldo de Azevedo propõe a idéia de que, no século
XVI, a colonização se caracterizava pela maritimidade, ou seja, as vilas e cidades eram
próximas do mar. Os núcleos de povoamento também poderiam estar à beira de rios, desde
que estes fossem navegáveis permitindo um acesso fácil ao oceano. A exceção a essa
“maritimidade” era a cidade de São Paulo, que se localizava na boca do sertão. Com isso o
autor enfatiza “o papel dos cursos d’água e dos caminhos terrestres como espinha dorsal da
rede urbana” (FRIDMAN, 2005, p. 50). No século XVII consolidam-se as regiões baiano-
pernambucanas, paulista-fluminenses, paraense e maranhense. Posteriormente, século XVIII,
temos um deslocamento do eixo econômico para o centro com a descoberta das minas. Para o
autor, os engenhos eram representações minimizadas de cidades, além disso, considera as
fazendas de gado e de café como locais geradores de centros urbanos.
Para Fridman (2005, p.50), Del Brenna afirmava que o urbanismo português não
aderiu ao traçado geométrico, em função de considerarem as cidades orgânicas
6
mais
perfeitas. Ao analisar o trabalho de Robert Smith, Fridman (2005, p.44) relata que este foi o
pioneiro no estudo do traçado urbano no Brasil colonial, afirmando que as cidades
portuguesas do além mar utilizavam-se do modelo desordenado da cidade de Lisboa. Somente
no século XVIII é que o traçado ortogonal seria inserido na colônia.
Segundo Fridman (2005, p.51), Aurélio de Lyra Tavares, em seus estudos sobre a
construção da cidade colonial portuguesa, ressalta a importância do engenheiro-soldado
5
No segundo capítulo intitulado de “Trabalho e aventura”, o autor irá diferenciar o Aventureiro (português) do
trabalhador (espanhol). O primeiro preferia descobrir a consolidar a colonização, acomodando-se a lugares
provisórios adaptando a sua sobrevivência ao mesmo, procurando retorno financeiro a curto prazo; já o
trabalhador priorizava a consolidação do território, através de um investimento a longo prazo, ao qual prezava-se
a segurança e o conforto dos colonizadores.
6
Inspiradas nas cidades medievais em que cada elemento exercia uma função dentro da mesma.
15
responsável por reformar e modular o espaço urbano do além-mar, provendo o local com as
edificações necessárias como fortificações, igrejas, prédios públicos, chafarizes, e outros.
Para Fridman (2005, p.52), Nelson Omegna, em seu livro A cidade colonial, contesta a
tese de um descaso da colonização portuguesa no que se refere à sua urbanização. Para o
autor, a construções de cidades na colônia atendia a um interesse: o de assegurar as relações
mercantilistas entre a colônia e metrópole. Por este motivo, a cidade era construída no intuito
de formular uma célula opressora para os escravos e os índios, pois a subjugação destes era a
garantia de domínio do território e retorno financeiro do mesmo.
Nestor Goulart Reis, em seu livro Evolução Urbana no Brasil (1500 – 1720), defende
a tese de que a evolução
dos grandes núcleos urbanos possuía um traçado regular tendendo ao
xadrez já no final do século XVI. Para isso, a Coroa exercia um controle da construção
urbana, através de arquitetos e engenheiros militares. Para Reis (2000, p. 121), “As posturas
determinavam, além dos arruamentos, obrigações de alinhamento, desapropriações (...).”, mas
as medidas não ficavam apenas no campo restritivo. Em alguns locais, como São Paulo, foram
feitas casas de taipa para serem alugadas por auxiliares de construtores, no intuito de
estimular os crescimentos das vilas. Mesmo assim, o autor relativiza a ação regulamentadora
da corte portuguesa, pois a própria natureza da política colonizadora de Portugal,
solucionardo as situações à medida que elas aparecem, reduz o alcance das medidas
urbanizadoras.
No que diz respeito aos núcleos menores, a política de urbanização da Coroa era
descentralizada, tendo como agentes delineadores as câmaras, os donatários e, até mesmo, os
colonos. Como conseqüência, temos um menor controle do formato da cidade, e uma maior
adaptabilidade do traçado às condições locais, sem uma intenção de maior ordenação
geométrica. “Os núcleos menores, mais antigos, instalavam-se em sua maior parte em sítios
acidentados, no topo das colinas. Seus traçados apresentavam, então, no conjunto,
características de acentuada irregularidade.” (REIS, 2000, p. 130). A cidade de João Pessoa se
enquadraria no ramo das cidades menores construídas na foz de um rio importante, sendo
edificada em um terreno plano, ou quase plano, tendo o seu traçado se adaptado ao relevo e às
necessidades locais.
Ao tempo do descobrimento do Brasil, as experiências urbanísticas mais importantes
e os principais escritos referentes ao assunto tinham por base esquemas ideais, de
tendências geométricas, cujas origens mais remotas chegavam até o Vitrúvio. Esses
esquemas ligavam-se ainda às experiências das cidades novas do fim da Idade
Média, com suas muralhas e suas plantas regulares. Os esquemas renascentistas
eram em princípio rádio-concêntrico mas suas aplicações prendiam-se muitas vezes
às vantagens do plano em xadrez, como ocorre em Sabbioneta, cidade italiana
16
fundada em 1560. Além desses critérios de racionalidade, que se traduziam
formalmente pela geometrização e que seriam mais tarde interpretados como
correspondendo à concepção cartesiana de ordenação urbanística, surgiam já nessa
época outros, que pretendiam reconhecer a racionalidade não apenas através de
critérios formais mas também de critérios de uso, onde se incluiria mesmo a
variedade de perspectivas, constituindo o que, dentro da nomenclatura atual, poderia
ser indicado como uma corrente orgânica. (REIS, 2000, p. 130)
Posteriormente, Roberta Delson tentará desfazer com a idéia de cidade sem
planejamento, analisando a política urbanística setecentista. Ela vai afirmar que a partir do
século XVIII, principalmente nos núcleos urbanos estabelecidos no sertão, vai se seguir um
planejamento cujo “traçado possuía conceitos barrocos (ruas retilíneas, praças bem
delineadas, uniformidade de elementos arquitetônicos) facilmente adaptáveis às condições
locais” (FRIDMAN, 2005, p. 56). Segundo Reis (2006, s/p) , Roberta Delson será umas das
pioneiras no estudo da regulamentação da cidade colonial portuguesa tendo com base a
iconografia disponível nos mais diversos arquivos portugueses.
Segundo Fridman (2005) um texto “clássico” que trata sobre a construção urbana é de
autoria de Paulo F. Santos e intitula-se Formação de cidades no Brasil colonial. Nele o autor
expressa a idéia de inexistência de um traçado prévio das cidades coloniais brasileiras, já que
estas seguiam o contorno da natureza se adaptando, principalmente, ao relevo, retomando a
idéia de que esses núcleos urbanos brasileiros eram uma reedição das cidades medievais
cristãs.
Renata Malcher de Araújo, em análise feita por Fridman (2005, p.58), trabalha com a
tese de que a construção de núcleos urbanos era uma tarefa do serviço público. Para a autora,
a arruação
7
partia de um traçado determinado, de uma praça central, o que não descartava a
viabilidade e adaptabilidade do traçado ao terreno.
2.3) As fontes d’água na formação do espaço urbano de João Pessoa
Estudar as fontes d’água no período colonial, do ponto de vista do urbanismo,
significa estabelecer uma relação entre a configuração das ruas e a construção da urbes, com a
necessidade de se obter água potável para o consumo. Tais locais se tornarão pontos de
sociabilidade nos quais teremos a presença dos mais diversos estratos sociais componentes da
sociedade colonial.
7
A arruação era a medição e alinhamento do terreno através de cordas.
17
Para Reis (2000, p. 126) “vários são os aspectos a considerar na escolha dos sítios
8
das
povoações: natureza do solo, relevo, fontes de água para o consumo, [grifo nosso] cursos ou
massas de água, etc.”
Sem água potável, tornava-se impossível a povoação de um local. Salvador (1965, p.
160) diz ao falar da ocupação das terras da Bahia, “Depois que El-rei soube da morte de
Francisco Pereira Coutinho e da fertilidade da terra da Bahia, bons ares, boas águas [grifo
nosso] e outras qualidades que tinha para ser povoada (...), determinou povoá-la e fazer nela
uma cidade (...).”
No caso da cidade de João Pessoa, a existência de lugares onde se pudesse obter água
limpa e de boa qualidade foi ponto definidor da colonização. No Sumário das Armadas (2006)
podemos perceber isso logo na chegada de Frutuoso Barbosa à parte Norte do Rio Paraíba
Assim chegarão a barra do Rio da banda do Norte com esta viptória com que
consularão os da Armada e animados uns com os outros e tratados em sete ou oito
dias que ali estiverão os meios de se fortificarem e povoarem da banda do Norte
porque pareceo imposivel da banda do Sul do cabedello por ser mao sítio e não
ter água [grifo nosso] e feita experiência em alguha que se abriu na praia e tudo
muito praticado e não sei como feito pellos enconvenientes e emposibilidades que a
tudo a tudo achava Frutuoso Barbosa fogirão a maior preça que o medo a cada hum
ensinou por verem da banda dalém junto com muito gentio Potiguar mandando dali
o galleão com aviso a sua Magestade do que pasava.
Liderados por Frutuoso Barbosa, os desbravadores da região escolheram a margem
direita do Rio Paraíba para estabelecer o início da colonização por acharem impossível à
fixação do povoamento no outro lado, já que este não possuía um local em que se pudesse
obter água de boa qualidade para o consumo.
Dez anos após a fundação da cidade de João Pessoa
9
, temos o primeiro registro da
existência de uma fonte de água na cidade. No dia 21 de janeiro de 1595, o padre frei Damião
da Fonseca, da congregação beneditina, veio a Paraíba por ordem do Padre Geral, para pedir
um local para a edificação do mosteiro de São Bento. Tal concessão foi confirmada em
Olinda em 16 de julho de 1603. Na descrição do sítio temos:
(...) pelo que pede que em nome de S.M. lhe dê o sítio que está junto das terras de
João Netto no arrabalde e termo desta cidade, convem a saber, para edificação do
Mosteiro oitenta braças em quadro no alto para a banda do sul, e para a serca abaixo
da varge com aguas vertentes do oeste, leste e sul indo entestar no rio Eiroy, da
banda do norte ficando dentro da dita demarcação a fonte [grifo nosso] que está
na rossa nova que fez Francisco Pinto, a qual fonte ficará por marco da banda de
8
Nota do autor: Reis entende por sítio o local ao qual uma aglomeração urbana está sentada.
9
Em 4 de Novembro de 1585, com o nome de Nossa Senhora das Neves.
18
leste, o que pede lhe dê ou por baldia ou devoluta ou sesmaria (...) (TAVARES,
1982, p. 33).
Em seu pedido, Padre Frei Damião da Fonseca, faz questão de frisar que a referida
fonte ficará dentro da área delimitada para a construção do convento, servindo como marco
delimitador do terreno. O terreno era ideal para o estabelecimento da congregação, já que este
possuía uma fonte d’água que ficaria à disposição dos padres de São Bento.
Segundo Fridman (2005, p.56) a obra de Murilo Marx sobre os conventos franciscanos
já ressaltava a influência que as construções cristãs possuíam no traçado da cidade. O caso,
tanto dos beneditinos quanto dos
franciscanos na Paraíba, corrobora com a
tese do autor, ao dizer que a localização de
tais edificações passava por uma minuciosa
escolha na qual se priorizava características
como: sítio alto, locais decentes, bons
ventos, fontes de água, entre outros.
Elias Herckmans, governador da
Capitania da Paraíba durante o período
holandês, quando o governador-geral era
Maurício de Nassau, também cita em sua
Descrição Geral da Capitania da Paraíba
(1639), a existência de fontes de água como
um dos quatro elementos fundamentais para
o desenvolvimento da capitania: “Tem
excelentes águas, e particularmente claras
fontes de água doce e potável [grifo nosso], além dos seus rios belos, grandes e piscosos, os
quais não somente fornecem água boa para se beber, sinão também peixes, ostras e outros
mantimentos, (...)” (HERCKMAN, 1982, p. 61).
BROSTERHUISEN, Jan Van. 1634-1644. Frederica
Civitas. In: REIS, Nestor Goulart. Vilas e cidades no
Brasil colonial. CD-ROM.
Durante o período de domínio holandês podemos perceber a importância que as fontes
de água tinham para o sucesso da colonização. Para a Companhia das Índias Ocidentais o
estudo esmiuçado da região, através de mapas, iconografias e relatos, era ponto fundamental
para a manutenção e expansão de seus domínios no território brasileiro, pois estava implícito
que Portugal não desistiria de sua colônia mais lucrativa. A invasão era uma declaração de
guerra no território brasileiro, guerra esta que seria vencida, não pelo mais forte, mas por
19
aquele que melhor conhecesse e soubesse desenvolver estratégias que se adaptassem a
realidade local. De acordo com Fridman (2005, p.63), para Bueno os mapas revelam:
(...) o quão importante era a cartografia para intenção (desígnio) portuguesa
de explicitar seu domínio sobre outras terras, muitas das quais impossíveis
de demarcar fisicamente. Era pelo mapa que o rei ausente se fazia presente
em locais distantes e, simultaneamente, as terras distantes se apresentavam
ao conhecimento e ao controle real.
S/A. Frederick Stadt. 1634. In: REIS, Nestor Goulart. Vilas e cidades
no Brasil colonial. CD-ROM.
20
Brosterhuisen, Jan van. Frederica Civitas. Detalhe de uma imagem publicada em BARLAEUS, Caspar: Casparis
Barlaei rerum per octeniumin Brasilia et alibi nuper gestarum, sub praefectura illustrissimi Comitis I. Mauritii,
Nassoviae, Amstelodami, Ex Typographeio Ioannis Blaev, 1647. Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro. In: REIS,
Nestor Goulart: Imagens de vilas e cidades do Brasil Colonial. São Paulo, Edusp/ Imprensa Oficial, 2000,
p. 118.
Nos mapas analisados encontramos a existência de uma fonte de água que fica
próxima à fortificação. Tal registro revela a importância que o abastecimento d’água possuía
na consolidação da dominação de um território. Para a W. I. C., era fundamental conhecer os
pontos fornecedores de água, não só para o abastecimento diário, mas para que num possível
cerco da cidade, a derrota não fosse causada pela falta de água da mesma.
21
VINGBOONS, J. Frederyck Stadt. 1640. In: REIS, Nestor Goulart. Vilas e
cidades no Brasil colonial. CD-ROM.
A relativa distância que a fonte de água possuía do núcleo urbano não devia ser um
problema de maior gravidade. A tarefa de buscar água nas fontes era predominantemente feita
por escravos, e não havia uma preocupação por parte da sociedade colonial de amenizar ou
facilitar o trabalho do negro. O sistema escravista colonial emperra o desenvolvimento, não só
de métodos mais eficientes de cultivo da terra, como a historiografia bem nos coloca, mas
também o avanço de uma série de serviços públicos, principalmente ligados ao abastecimento
da cidade, como o fornecimento de água. Não é à toa que o primeiro sistema de canalização
somente se realiza no início do século XX quando já não mais existem escravos legalizados
no Brasil.
À medida que a população aumenta e o núcleo urbano cresce, a cidade tende a se
aproximar das fontes d’água e a construir novos locais de fornecimento. As câmaras começam
se preocupar progressivamente com o abastecimento de água da cidade já no final do século
XVII. Segundo Reis (2000, p. 123), “O material contido nas Atas da Câmara de Salvador,
nesses anos, revela um crescente interesse das autoridades municipais pelo abastecimento de
água, pela abertura de ruas, por questões de calçamento, alinhamento, etc.” Em João Pessoa, a
fonte de Santo Antônio é finalizada em 1717, enquanto que no AHU encontramos, a partir do
século XVIII, uma massa documental que revela um crescente interesse da administração da
22
capitania para com as fontes de água
10
. Tal levantamento documental corroboram com a
colocação de Reis, citada acima, sobre a crescente atenção dos núcleos urbanos para com as
fontes d’água.
Através da análise dos mapas acima, percebe-se que a formação urbana de João Pessoa
atende a um traçado linear, racional. Em seus cruzamentos as ruas formam ângulos de 90°, ou
seja, com uma disposição ortogonal.
(...) seguindo as diretrizes das cidades novas derivadas dos planos renascentistas,
embora com as adaptações necessárias e decorrentes da implantação em suas origens
da praça principal, deslocada para o lado do rio, onde se situam a Matriz de N. Sa.
das Neves e a Casa de Câmara e Cadeia c/ açougue. (...) Na verdade, o aspecto
regular desse primeiro núcleo tem passado desapercebido, porquanto a cidade é vista
em conjunto com as ampliações que ocorreram depois, ao se estender para a direção
do varadouro e do parque Solon de Lucena, ampliações irregulares, no traçado, (...).
(MENEZES, 1985, p. 13-14).
Reis (2000), ao tratar da cidade de João Pessoa como um centro menor, portanto
irregular e em terreno acidentado, faz uma generalização que termina por distorcer a realidade
local. No mapa abaixo podemos perceber claramente que as primeiras ruas (destacadas em
vermelho) da cidade possuem um traçado claramente ortogonal, enquanto que o traçado só
começa a ficar irregular a partir do século XVII com a abertura de novas ruas. Apesar da
cidade de João Pessoa ter sido fundada durante a União Ibérica
11
, durante este período “as
autoridades portuguesas foram conservadas na colônia” (HOLANDA, 1985, p. 180.), a idéia
era tratar Portugal como uma terra da coroa espanhola e não como um país dominado. A
noção de ordenamento já vinha presente na colonização brasileira antes da União Ibérica, em
cidades como Rio de Janeiro e Salvador. Segundo Gasparini (s/d, p. 6):
O traçado de Salvador, na Bahia, fundada em 1549, se adapta à plataforma na qual
está assentada, com um critério de ordenamento evidente, nas ruas retilíneas, que,
mesmo não apresentando o obsessivo parcelamento em tabuleiro de damas
quadriculado, como nas cidades hispano-americanas, revela a preocupação de
realizar as coisas com uma certa ordem, ultrapassando os inconvenientes
topográficos do lugar.
10
São eles: AHU_ACL_CU_014, Cx.10, D.791; AHU_ACL_CU_014, Cx.10, D.1060; AHU_ACL_CU_014,
Cx.10, D.1085; AHU_ACL_CU_014, Cx.10, D.1537; AHU_ACL_CU_014, Cx.10, D.2144. Apesar de
sabermos pelo resumo contido no Catálogo dos documentos manuscrtios avulsos referentes à capitania da
Paraíba, existentes no Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa de que todos os documentos acima identificados
trazem alguma informação sobre fontes d’água, os dois documentos que se encontram em negrito não puderam
ser analisados. O primeiro encontra-se com boa parte do documento manchado de tinta e o segundo encontra-se
completamente apagado, o que impediu as suas respectivas transcrições.
11
Em 1580, com a morte do cardeal-rei D. Henrique, chega ao fim a dinastia de Avis. Sem descendentes diretos,
o reino português é anexado a Espanha. esta situação dura até 1640, quando há revolução restauradora que leva
ao trono de Portugal D. João, Duque de Bragança.
23
CARVALHO, Juliano Loureiro de; MARTINS, Carla Gisele M. S.. Mapa da Parahyba do Norte em 1889. 2003.
In: TINEM, Nelci. Marcos, fronteiras e sinais: Leituras das ruas de João Pessoa. João Pessoa: UFPB, 2006.
Legendas
1)Rua da Matriz; 2)Rua do Tambiá; 3)Beco das Cacimbas; 4)Rua do tanque; 5)Rua Bica dos Milagres; 6) Beco
do Tanque; 7) Caminho da cacimba do povo; 8) Rua do Gravatá; 9)Rua da Bica.
Ao analisarmos o mapa acima, construído com base na Monographia da cidade da
Parahyba do Norte de Vicente Gomes Jardim, elaborada no ano de 1889, nosso intuito é
demonstrar como é marcante a presença das fontes de águas coloniais no imaginário e na
construção da cidade de João Pessoa, tanto é assim, que mesmo no final do século XIX, já
findo inclusive o período imperial, nos é possível verificar que várias ruas que possuíam
fontes d’água coloniais receberam a mesma denominação da respectiva bica. Tais registros
demonstram a importância que as fontes d’água tinham no cotidiano da cidade, estando
presentes de forma marcante em seu imaginário, o que perdurará, em alguns casos, até os dias
atuais.
24
Apesar de as fontes d’água representarem pauta importante na colonização de um
espaço, a preocupação da administração colonial com o abastecimento d’água cresce à medida
que há o aumento populacional das cidades. Algumas cidades mais importantes chegam a
construir aquedutos, como o Rio de Janeiro em 1720. Nas cidades menores, como João
Pessoa, percebe-se um crescente interesse em reformar as fontes melhorando a qualidade das
águas que jorram da mesma.
A ascensão do Marquês de Pombal para a Secretaria de Negócios Estrangeiros
12
, e a
conseqüente implantação de sua política urbanizadora de povoar o território, reforça a idéia de
uma cidade regular, como podemos perceber nas intervenções feitas na cidade de Salvador, ou
nas novas cidades fundadas. Por algum tempo a historiografia
13
creditava a Pombal o início
de um processo que culminou na perda do traçado regular dos núcleos urbanos. Baseava-se na
idéia que o traçado regular da cidade colonial tinha inspiração no ideário jesuítico, e como
uma das políticas de Pombal foi a de diminuir o poder eclesiástico na colônia, este teria
combatido o traçado regular das cidades, já que as ordens religiosas estavam diretamente
envolvidas na definição desse formato.
Em contraposição à política pombalina de urbanização, a cidade de João Pessoa passa
por um processo de perda desse traçado regular. A este fato levantamos a hipótese de que essa
política não chegou à Paraíba, visto que esta se encontrava anexada à Capitania de
Pernambuco, o que tornava a cidade de João Pessoa um espaço periférico em que esse tipo de
intervenção não se justificava.
As fontes d’água influenciavam na formação da cidade, delimitando o contorno das
sesmarias urbanas, por vezes modificando-os, para a possível inclusão de um local fornecedor
de água potável.
A história da cidade não se descola de uma história urbana. As questões sobre a
linearidade da cidade colonial, a influência que as fontes de água possuem no contorno das
sesmarias, a importância que as ordens religiosas possuem na construção da cidade colonial,
não podem ser plenamente respondidas sem que haja um estudo das camadas sociais que
habitavam na colônia. Ao compreendermos quem eram essas pessoas que viviam em um local
inóspito, ao qual o calor e a umidade reinavam, estaremos por nos aproximar da formulação
12
Durante a administração do Marquês de Pombal na Secretaria de Negócios Estrangeiros, ele tomou uma série
de medidas em relação ao Brasil: Criou a capitania de Mato Grosso, São José do Rio negro, Rio Grande de São
Pedro, Piauí; extinguiu as donatarias; mudou da capital de Salvador para o Rio de janeiro; colocou em
funcionamento juntas de justiça na capitania; suprimiu a lei que distinguia entre cristãos-velhos e cristãos-novos;
criou duas companhias gerais do comércio: Grão-Pará e Maranhão e a de Pernambuco e Paraíba; acabou com a
administração temporal dos missionários; expulsou os jesuítas da colônia; dentre outras ações.
13
Sérgio Buarque de Holanda, em seu livro Raízes do Brasil, foi o maior expoente dessa corrente.
25
de uma História, que está longe de ser completa, mas que, com certeza, possui um sólido
alicerce.
26
3) A água das fontes no cotidiano da cidade colonial
3.1.) Considerações iniciais
A realização de um trabalho sobre a História do cotidiano das fontes d’água nos exige
um forte embasamento teórico, em função da especificidade do tema e suas complicações. A
noção de cotidiano está entrelaçada com a divisão existente, na contemporaneidade, entre o
privado e o público. Segundo Duby (2002), essa divisão só toma as formas atuais no século
XIX em algumas regiões da Europa.
Essa clivagem está ligada à instauração de relações de produção capitalista das quais
o meio burguês era o detentor. Tais relações levaram à separação dos espaços de
produção das condições materiais de vida, daqueles de reprodução da existência.
(DEL PRIORE, 1997, p. 260)
Seria problemático, portanto, aplicarmos tal conceito que pressupõe a separação entre
vida pública e vida privada ao período que estudamos, já que a sociedade brasileira colonial
vivia sob uma ótica completamente diferente. Como escrever, então, uma História do
cotidiano das fontes d’água, se esta está intimamente ligada ao contraste entre o público e
privado, diferença esta desconhecida para o período abordado? A solução apontada para este
problema está no próprio Duby (2002, p. 10):
Partimos, portanto, da evidência de que, sempre e por toda parte, exprimiu-se no
vocabulário o contraste, claramente detectado pelo senso comum, que opõe o
privado ao público, aberto à comunidade do povo e submetido à autoridade de seus
magistrados. De que uma área particular, claramente delimitada, é atribuída a essa
parte da existência que todas as línguas denominam de privada, uma zona de
imunidade oferecida ao recolhimento, onde todos podemos abandonar as armas e as
defesas das quais convém nos munir ao arriscar-nos no espaço público; onde
relaxamos, onde nos colocamos à vontade, livres da carapaça de ostentação que
assegura proteção externa.
Apesar de nos ajudar metodologicamente, ao analisarmos a História percebemos que
tal divisão não se encontra harmonizada, muito pelo contrário, os constantes conflitos entre
essas duas áreas se estendem até os dias atuais. Se considerarmos as fontes como locais de
convivência entre membros de uma classe social, estas podem ser incluídas na esfera privada.
Isso porque, segundo ainda Duby (2002, p. 10):
O fortalecimento do Estado provocou intrusões mais agressivas e penetrantes (...),
ajudavam a fortificar – fora da família da casa – outros grupos de convívio, levando,
assim, a diversificar o espaço privado. Progressivamente para os homens e a
princípio nas cidades e nos vilarejos, tal espaço distribui-se em três partes: a morada,
27
onde se confinava a existência feminina; áreas de atividades também privatizadas –
a oficina, a loja, o escritório, a fábrica; finalmente os lugares propícios às
cumplicidades [grifo nosso] e aos repousos masculinos, como o bar ou o clube.
É bastante claro, nos documentos analisados, o papel das fontes como lugares que
propiciam essa cumplicidade. Neste contexto, os escravos são fundamentais, por serem os
seus mais assíduos freqüentadores. Tal presença se justifica pela obrigação que os mesmos
tinham de abastecer com água as casas de seus senhores. Na escassa historiografia existente
sobre as fontes d’água no período colonial, os escravos apareciam como seus únicos
freqüentadores, sem nenhuma referência à presença de representantes de outras classes
sociais. No máximo, poderíamos estender tal interpretação às pessoas pobres livres que
necessitavam das fontes para abastecer suas residências.
Porém, na cidade de João Pessoa, teremos um caso específico de fonte d’água que,
durante um determinado período, é vista pela elite colonial como um local de cumplicidade.
Isso pode ser percebido em um ofício expedido pelo então governador da Paraíba, Jerônimo
José de Melo e Castro, cujo trecho transcrevemos a seguir:
Na fonte nova que sua magestade permitiu se fizesse de sua (...) fazenda (...) mirão
todos a incançavel assitencia que diariamente faça na mesma obra, de que a Nobreza
e Povo esta muito satisfeitos por verem um chafariz, de sete bicas de agoa
abundantes, em hum lugar que antes era um Paul e Charco indecentes onde os
escravos brigavam pela pouca agoa de huma casimba, servindo hoje de passeio
publico pela situação amena e mais deliciosa pelas arvores silvestres que na melhor
ordem mandei plantar ficando a melhor obra que tem a cidade e ainda
Pernambuco.
14
Neste documento ressaltamos o fato inesperado da elite colonial freqüentar o local
onde se encontra uma fonte de água, além de confirmar a importância da figura do escravo
naquele espaço. Percebe-se claramente que a fonte, que neste caso, está inserida numa área de
lazer, possui uma significação completamente diferente para a elite colonial do que para o
escravo, por exemplo. Tais significações serão analisadas mais à frente.
Ao alargarmos o conceito de “privado” na colônia, incluímos as fontes coloniais como
locais de interação, lugares em que a vida íntima das casas se intercomunica, tendo como
interlocutores os escravos. Neste sentido, escrever sobre o cotidiano desses locais significa
resgatar um pouco, não só da vida íntima da sociedade, mas também do papel do escravo na
dinâmica colonial.
14
AHU_ACL_CU_014, Cx. 29, D.2144..
28
Apesar de situarmos as fontes d’água na história do cotidiano da cidade de João
Pessoa, inserindo tais locais como pontos de influência na vida privada de seus habitantes,
devemos lembrar que, na esfera administrativa, elas são claramente diferenciadas ou como
fontes públicas, aquelas cuja responsabilidade de manutenção pertencia ao governo da
Capitania da Parahyba, a exemplo das fontes do Tambiá, dos Milagres e do Gravatá; ou
privadas, que se encontravam em terrenos particulares sob a jurisdição dos mesmos, como a
Fonte de Santo Antônio.
A base da análise será a divisão administrativa dessas fontes, ou seja, consideraremos
as fontes do Gravatá, do Tambiá e dos Milagres como sendo públicas e a de Santo Antônio
como sendo privada. Porém, na reconstrução do cotidiano de tais lugares, não perderemos a
noção de que se trata de ambientes “propícios às cumplicidades” (DUBY, 2002, p. 10) que
invadem a esfera privada e íntima da sociedade colonial. Isso se justifica porque a relação
entre essas duas esferas da vida social, o público e o privado, não se sobrepõem uma à outra,
mas coexistem num imbricado sistema em que a dialética é constante. Ao afirmamos isso,
estamos colocando também a idéia de que o cotidiano não é apenas um espaço reprodutor e
mantenedor da existência, mas que é também um espaço de produção social da existência, já
que se trata de uma relação dialética, não só entre o público e o privado, mas entre a
cotidianidade e as esferas das superestruturas, não estando o cotidiano alijado das realidades
políticas. Não é suficiente entendermos como o sistema funciona e quais são suas formas de
ação, é necessário, também, estarmos atentos para perceber qual o significado e o impacto que
este sistema tem na sociedade comum, principalmente para os chamados “excluídos” da
História.
Percebe-se que a discussão existente entre a divisão do que é público e do que é
privado é fundamental para investigarmos, na História, a vida cotidiana e as fontes d’água,
porém, não se deve resumir a tal questão apenas a esse embate. Devemos entender a visão que
os diversos estratos da sociedade colonial possuíam sobre as fontes d’água, quais as
representações e usos que esses grupos sociais faziam de tais locais.
No senso comum, cotidiano nada mais é do que o dia-a-dia, aquela série de ações que
exercemos sem pensar, como se estas não tivessem nenhuma influência de fatores externos,
em suma, um conjunto de hábitos. A este senso comum acrescenta-se a idéia de que o
cotidiano simplesmente existe e sempre existiu, quase como se fosse algo imutável na
sociedade. Para desmistificarmos essa construção é necessário perceber como o mesmo foi
pensado na historiografia como tema do conhecimento histórico, servindo, de início, como
29
alegoria à História; até os dias atuais, em que a História do Cotidiano se solidifica cada vez
mais como um ramo autônomo.
3.2) Revisão historiográfica da história do cotidiano
A preocupação com a esfera cotidiana ronda os estudos históricos desde as suas
origens. Heródoto, no intuito de fazer um estudo completo sobre a história do conflito entre os
gregos e os bárbaros, descreveu, com minúcias, os costumes dos persas, lídios e egípcios.
Porém, tal análise apenas serve de alegoria para explicar o itinerário da sociedade. Os
primeiros passos do desenvolvimento da história do cotidiano remontariam aos literários
setencentistas, para os quais tal estudo se resumia aos povos “selvagens” ou às sociedades
distantes, sem que isto constituísse uma história científica, mas apenas um conjunto de dados
exóticos para a história tradicional.
A arqueologia impulsionou o surgimento da história do cotidiano como um ramo
consistente da História. Isto porque, através dela, o historiador foi obrigado a estudar a cultura
material de uma sociedade e conseguir desenvolver uma história que abarque as suas mais
diversas facetas. “Graças ao estudo da cultura material privada e cotidiana, reencontramos as
relações sociais e os modos de produção que não podemos perceber com outras abordagens”
(DEL PRIORE, 1997, p. 267). Portanto, a arqueologia parte da História do cotidiano,
representada pela cultura material, para poder analisar a sociedade nos seus aspectos
econômicos, sociais, políticos, culturais, dentre outros.
No século XIX, adotando uma abordagem etnológica, Jules Michelet “através de um
processo de ‘ressurreição integral do passado’, passa, também, a descrever, mais além das
peripécias do exercício do poder, as condições de existência dos grupos mais obscuros da
sociedade” (DEL PRIORE, 1997, p. 265).
Com o surgimento da Nova História, representada pela fundação dos Annales, a idéia
de história dos vencidos, em oposição à história dos heróis e dos grandes acontecimentos,
toma fôlego e desponta como um sólido ramo do conhecimento histórico. A história do
cotidiano passa, então, a ter um importante papel nesta corrente legitimando o papel de
agentes históricos dos “vencidos”. “Incentivada por Lucien Febvre, uma certa democratização
da História no sentido de dar voz aos humildes encontra na História do cotidiano uma
aplicação prática” (DEL PRIORE, 1997, p. 262). Para tal corrente, estudar a História do
cotidiano e da vida privada é uma forma de analisar a história social e econômica. Isso
significa que este ramo do conhecimento histórico não se detém apenas à análise daquilo que
30
é ordinário, em contraponto ao que é extraordinário, mas que o estudo do habitual deve estar
“imbricado na análise dos equilíbrios econômicos e sociais que subjazem às decisões e aos
conflitos políticos.” (DEL PRIORE, 1997, p. 266). Nessa perspectiva, percebe-se a
importância que a história do cotidiano possui, pois é nas esferas menores, nos problemas do
dia-a-dia que a história se constrói e tem sua maior representação. Dessa forma, restaura-se o
vínculo inquestionável que existe entre cada ser humano e a história, tirando do ostracismo os
atores discretos, verdadeiros responsáveis pela construção da humanidade, recolocando-os
dentro da História.
Esta discussão é importantíssima para o contexto das fontes d’água coloniais e para a
necessidade de sua preservação como patrimônio da cidade de João Pessoa. É através do
resgate da história do cotidiano desses monumentos que poderemos desenvolver um vínculo
de tais locais com a sociedade. A definição do uso desse patrimônio, ou seja, a sua função
social, será definida através de uma interação entre a sociedade e os órgãos responsáveis pelos
mesmos. Participando ativamente do processo de reintegração do patrimônio na vida
contemporânea, a comunidade passa a ser agente fundamental de preservação das fontes.
De acordo com Del Priore (1997, p.262-263), Fernand Braudel, em 1958, num artigo
para a revista dos Annales, falava da importância do vestuário e dos códigos alimentares como
fatores determinantes na vida de certos grupos sociais. No primeiro volume de sua obra
Civilisation matérielle, économie et capitalisme, o autor se propõe a analisar as estruturas do
cotidiano. Sua contribuição para a história do cotidiano deve-se principalmente ao defender a
mesma como uma História-problema e não mais como uma história-descritiva na qual o
cotidiano serve como adorno à “História geral”. Nessa obra, Braudel não se resumia a
descrever as ações cotidianas, mas observava como as estruturas econômicas e os seus
diversos sistemas de trocas influenciavam e modificavam a vida diária das pessoas integrando
gostos e pensamentos ao cotidiano.
Porém, sua análise coloca a história do cotidiano como um aporte para o estudo do
capitalismo, o que significa que esta deve servir de alicerce para uma análise econômica. De
acordo com Del Priore (1997, p. 263) “De suas premissas, devemos reter que a cultura
material a ser estudada deve ser aquela das maiorias e que a vida material e a vida econômica
são, ao mesmo tempo, estreitamente ligadas embora bastante distintas”. Tentando ir um pouco
mais além na contribuição de Braudel para a formulação de uma História do cotidiano como
um ramo teórico fundamental para a História, devemos pensar em construir, através da
inversão do caminho de análise do autor, um embasamento teórico que venha iniciar sua
31
análise nas características da vida cotidiana, e, a partir delas, construir um quadro analítico da
sociedade, englobando os aspectos políticos econômicos.
Nos seus trabalhos, Braudel aponta para a questão das diversas temporalidades
existentes numa mesma época. Tal teoria atravessa a análise da história do cotidiano. De
acordo com a análise do autor, é fundamental perceber as articulações existentes entre essas
temporalidades. O fato é que apesar de serem “relativamente autônomas”, integram-se umas
às outras.
“Outrora rejeitada como trivial, a história da vida cotidiana é encarada agora, por
alguns historiadores, como a única história verdadeira, o centro a que tudo o mais deve ser
relacionado.” (BURKE, 1992, p. 23).
O cotidiano também enseja a possibilidade de discussão sobre as tensões e conflitos
existentes na sociedade. Na análise de Del Priore (1997, p.267-268), o sociólogo americano
Charles Tilly trabalha com a idéia de que cada cultura, em determinada época, possui uma
forma diferente de “desordem pública”. Assim como as manifestações de descontentamento
com a ordem vigente se exprimem na sociedade de acordo com o seu contexto específico,
existe um “repertório de formas regulares de interação” (DEL PRIORE, 1997, p. 267) que
estão presentes no cotidiano, responsáveis por estabelecer esse elo entre a História e a vida
cotidiana.
Para Del Priore (1997, p. 269), Norbert Elias, com o auxílio da Antropologia
Histórica, realiza um estudo sobre como, a partir do século XVI, existiu um progressivo
aumento do controle sobre as necessidades fisiológicas, representadas pelo pudor e pela
autodisciplina, além de um afastamento físico entre as pessoas no intuito de evitar o contato
corpóreo. Para o autor, isso seria o reflexo da pressão organizadora do Estado burocrático que
necessitava moldar a sociedade aos seus interesses. Esta moldagem é feita através de um
rígido controle social. Através do estudo de Norbert Elias podemos perceber como a análise
da vida privada e do cotidiano pode nos trazer uma visão global da História, e ao mesmo
tempo, desvendar o papel que cada indivíduo possui na formulação da sociedade, destacando
a pluralidade de fatores que constroem a realidade analisada. O sociólogo alerta ainda para o
fato da imprecisão e complexidade do termo cotidiano, o que pode acarretar conclusões
errôneas, caso o historiador não tenha um forte embasamento teórico. Neste sentido, a
fundamentação teórica com a pré-definição do que seja cotidiano é de fundamental
importância para o bom andamento do trabalho a ser escrito.
Para Del Priore (1997, p.273), Michel de Certeau fala que na história do cotidiano
podemos perceber as rupturas das relações de dominação, através de deslocamentos feitos
32
pelas próprias pessoas, ao projeto de sociedade que lhe é imposto. Em sua obra, Certeau
chama isso de “invenção do cotidiano”, que nada mais é do que o conjunto de táticas e
práticas que o homem comum utiliza para fugir da ordem imposta. O ser humano apropria-se
do cotidiano e o transmuta, invertendo os seus sentidos e suas significações, utilizando a
realidade à sua maneira. Com isso perde-se a idéia do homem passivo e dócil que aceita tudo,
que sempre age de acordo com as regras e normas do projeto de sociedade que lhe é imposto
quando, na verdade, este improvisa e negocia com o presente.
Em uma análise realizada por Frederico (2006), Lukács filósofo alemão crítico da
escola de Frankfurt, materialista e marxista convicto, dava um importante valor à
cotidianidade em sua obra filosófica. Para ele, o cotidiano é o início e o fim de toda atividade
humana. Do cotidiano "se depreendem, em formas superiores de recepção e reprodução da
realidade, a ciência e a arte; diferenciam-se, constituem-se de acordo com suas finalidades
específicas, alcançam sua forma pura nessa especificidade - que nasce das necessidades da
vida social - para logo, em conseqüência de seus efeitos, de sua influência na vida dos
homens, desembocar de novo na corrente da vida cotidiana" (LUCÁKS apud FREDERICO,
2006, p. 11 - 12). Com sua visão materialista, o filósofo alemão afirma que tanto a arte quanto
a ciência surgem de uma necessidade da vida cotidiana constituindo, portanto, um reflexo da
mesma. História e cotidiano não se descolam, pois cada sociedade monta a sua estrutura de
vida cotidiana de forma concreta e distinta, sendo este um dos níveis constitutivos da História.
Agnes Heller defende a teorização da vida cotidiana como algo heterogêneo, pois engloba
vários aspectos de conteúdo e significações do tipo de atividade desenvolvida naquela
sociedade, além de compreender o seu aspecto hierárquico, pois nela se reproduzem as
estruturas econômico-sociais. Filósofa marxista, esta desenvolve uma teoria sobre o cotidiano
no intuito de realizar uma crítica ao capitalismo, já que é nessa esfera que a alienação se
realiza. Seu intuito é tentar demonstrar que uma vida cotidiana sem alienação é concebível.
Ainda no eixo da corrente marxista, Petersen (s/d, p.26-27) fala que Lefebvre tenta
formular uma nova ordem social para a França no pós-guerra no intuito de libertar o homem
de sua alienação. Ele passa a analisar a raiz do problema da alienação, que, segundo lhe
parece, é a instância que compreende o “movimento da produção”, ou seja, a produção da
própria vida pelo ser humano. Esta instância não se encontra nas superestruturas e, sim, no
cotidiano, pois é neste que se estabelecem as relações e conjunturas que sustentam e movem a
sociedade. Para Lefebvre, somente uma revolução cultural poderia mudar o sentido da vida
cotidiana, suprimindo a alienação. Seu estudo deve ser feito abarcando suas minúcias, porém,
sem esquecer das explicações sobre o conjunto da sociedade.
33
Segundo Petersen (s/d, p.31), a obra de Michel Foucault vem inserir a análise política
no estudo do cotidiano, pois este institui a idéia de que o poder é exercido na prática da vida
cotidiana. Ao desenvolver a teoria dos micropoderes, Foucault demonstra que a opressão não
se origina numa escala de cima para baixo, ou seja, das superestruturas para a sociedade, mas
que estes provêm de uma gama de minúsculos mecanismos que adentram na trama social. Os
mecanismos de poder surgem, na verdade, no que ele chama de grupos primários (família,
vizinhos, convivência informal), para, depois, serem apropriados pela burguesia, ou por outra
classe, servindo de ferramentas para a realização de seus próprios interesses.
Essa idéia causou um grande impacto nas ciências humanas, que entendiam o poder
como algo ligado ao discurso que é direcionado para a legitimação da realidade e salvaguarda
da mesma de possíveis turbulências. Tentando mostrar que esse poder atinge as mais variadas
esferas da sociedade, Foucault relaciona o surgimento do Estado jurídico com a idéia de
disciplina que cria uma rede de instituições buscando regrar a conduta dos cidadãos de uma
sociedade.
Para Burke (1992, p. 24-25), o maior desafio do historiador é inserir a história do
cotidiano dentro de um contexto global, ou seja, interligá-lo aos grandes acontecimentos. “Um
foco de atenção para os historiadores sociais poderia ser o processo de interação entre os
acontecimentos importantes e as tendências por um lado, e as estruturas da vida cotidiana por
outro.”
Na historiografia brasileira, a história do cotidiano só toma impulso como um ramo
conciso da História na década de noventa, porém já começara a dar seus primeiros passos nos
anos oitenta. Influenciados pelas correntes estrangeiras, alguns historiadores brasileiros
ensaiaram a formulação de uma História do cotidiano nacional, limitando-se a defini-la como
a vida de todo o dia, sem que esta se constituísse um campo teórico que viesse a investigar e
desvendar as tramas da sociedade. Essa História, desenvolvida na década de oitenta, possui
uma tendência empírica e um caráter narrativo, não solidificando entre os seus autores um
debate teórico sobre a problemática.
Laura de Mello e Sousa
15
, em análise feita por Petersen (s/d, p. 6-7), ensaiava a
formulação de uma história do cotidiano com o artigo Notas sobre a vida cotidiana das
degredadas da inquisição no século XVII. Porém, apesar da palavra “cotidiano” estar presente
no título, a autora realiza uma análise do imaginário e do simbólico fugindo da questão a que
se propunha. Ainda segundo Petersen (s/d, p.6-7), um contemporâneo de Laura de Mello e
15
No final da década de noventa a autora organizaria o primeiro volume da coleção História da Vida Privada no
Brasil.
34
Sousa, o historiador marxista José Amaral da Lapa escreve um artigo intitulado Da
necessidade do diabo (imaginário social e cotidiano no Brasil do século XVIII). O autor
também cai nas mesmas armadilhas, ao fugir da temática cotidiana e fazer uma História das
mentalidades, do imaginário, sem esclarecer qual a relação que essas esferas possuem com o
cotidiano.
Alguns trabalhos traçam pontos importantes que devem ser levantados na História do
cotidiano, porém, não chegam a formular um aporte teórico para a mesma. O artigo de
Francisco M. Paz, analisado por Petersen (s/d, p.7-10), intitulado História e cotidiano: a
sociedade paranaense do século XIX na perspectiva dos viajantes, é um bom exemplo do que
Petersen (p.7) chama de “pseudo-teorização”. O texto se propõe a trabalhar com uma gama
variada de campos do conhecimento, elenca vários temas sobre a cotidianidade, além de
colocar a importância do cotidiano como fonte histórica. Porém, ao realizar a análise dos
relatos dos viajantes, o autor não incorpora suas concepções iniciais sobre o cotidiano, não
tomando o aporte teórico “adotado” como referência para a sua análise. Em suas conclusões
percebe-se que o seu trabalho está mais voltado para uma análise do dicurso do que para uma
história do cotidiano.
Boris Fausto, em seu livro Crime e cotidiano. A criminalidade em São Paulo (1880 –
1924) realiza uma análise do cotidiano no qual este é palco onde a trama se desenvolve,
servindo de apoio à contextualização do seu objeto de investigação. Apesar de tratar-se de
uma obra de extrema qualidade é, porém, equivocada ao colocar o vocábulo “cotidiano” em
seu título. No livro, o cotidiano aparece apenas como o local em que os crimes se desenrolam,
sem explicitar o seu conteúdo ou analisá-lo mais especificamente, não cumprindo o aporte
teórico que o próprio autor havia proposto em seu início: o de transformar o cotidiano em uma
categoria explicativa, sem reduzi-lo ao palco onde se localiza o seu objeto.
Para Petersen (p.12), três livros respondem melhor à temática do cotidiano na História.
Seus objetos de análise “são tensões específicas das relações de poder na sociedade que tem
lugar no cotidiano” (PETERSEN, p. 13). O primeiro é escrito por Maria Auxiliadora Guzzo
De Decca e intitula-se A vida fora das fábricas. O cotidiano dos trabalhadores em São Paulo,
1920-1934, na qual analisa as formas impostas pelo sistema capitalista para racionalizar o
cotidiano dos trabalhadores, a fim de que estes possam se transformar em pessoas eficientes e
disciplinadas. Neste trabalho a autora inclui os salários, saúde, lazer, habitação e os conflitos
como sendo parte da teorização do cotidiano operário.
O segundo, de autoria de Maria Odila Leite da Silva Dias intitula-se de Quotidiano e
poder em São Paulo no século XIX. Neste livro a autora busca analisar as mulheres
35
subalternas, livres, escravas ou forras, e seus papéis na sociedade, já que estas se sustentam de
maneira informal, ou seja, longe das instituições formais de poder e produção. Através da
reconstrução dos mais diversos papéis que as mulheres exerceram na sociedade é que
podemos colocar as mesmas como personagens da História, contrapondo à idéia, presente na
historiografia tradicional, de que as mulheres não participam da dinâmica social.
O terceiro livro, Trabalho, lar e botequim. O cotidiano dos trabalhadores no Rio de
Janeiro na “belle époque”, de autoria de Sidney Chalhoub, analisa a sociedade carioca, com
bases ainda nitidamente escravistas, e sua transformação em uma sociedade de ordem
capitalista através da inserção de uma valorização do trabalho em contraposição ao mundo do
ócio. Desta forma, o controle exercido sobre o trabalhador passa pela fábrica até as diversões
populares, como o botequim. Configura-se uma teorização do cotidiano compreendida como o
maior nível de enraizamento de um controle social que é exercido através de instrumentos
disciplinares, englobando também a resistência apresentada pelas camadas oprimidas. A
noção de existência de um comportamento desviante está intrinsecamente ligada à idéia de
que existe uma política do cotidiano que busca regular a vida das pessoas em sociedade.
Segundo Petersen, os três apresentam, como fio condutor, tensões específicas da
sociedade que demonstram as relações de poder nela existentes, ou seja, o cotidiano é
estudado como um lugar em que práticas de dominação, suas resistências e lutas de classes
são estruturadas, reconfigurando a sociedade, proporcionando um caráter político ao
cotidiano. Neste contexto, a vida cotidiana pode funcionar como objeto analítico, já que
expressa práticas e inter-relações entre as mais diversas esferas da sociedade. É importante,
também, colocar que assim como esses autores situam o cotidiano como aspecto
indispensável para análise histórica, a História produzida não pode se resumir a ele.
Porém, apesar dos avanços impostos por estes autores, na maior parte dos trabalhos, o
vocábulo cotidiano é, usualmente, empregado em três sentidos: O de vida de todos os dias;
como um qualitativo de um substantivo ou; um palco, local no qual o fato ocorre. Também
não há uma preocupação em relacionar o cotidiano com o não-cotidiano.
A historiografia do cotidiano no Brasil atinge o seu auge na década de noventa,
resultado da influência da coleção francesa, dirigida por Philippe Ariès e George Duby,
intitulada História da vida Privada. A coleção tem cinco volumes que abarcam desde o
império romano aos dias atuais. O sucesso editorial e o impacto que a coleção teve na
historiografia mundial fez com que no Brasil se fizesse uma edição nacional com o mesmo
recorte. Dirigida por Fernando Novais, a coleção brasileira abarca desde a colonização, o que
eles chamam de América portuguesa, até os dias atuais. Atualmente, trata-se do mais
36
completo estudo sobre a História do cotidiano no Brasil, procurando analisar os mais diversos
níveis sociais.
Trata-se de um estudo em que o cotidiano rural aparece, porém o predomínio é da
cotidianidade na cidade colonial. Exclue-se da coleção a temática indígena. Na verdade, o
índio pouco aparece no volume e quando o faz, nunca é como personagem do cotidiano, mas
sim, como mais um elemento do mesmo. A abordagem teórica e temporal adotada pela
coleção não inclui o indígena como personagem de uma História do cotidiano. Já o negro
possui seu espaço na pesquisa, aparecendo como personagem ativo de um cotidiano, e que,
juntamente com os mazombos e os reinóis, influencia e define a dinâmica da vida social
colonial.
3.3) A água no cotidiano da cidade de João Pessoa
O sucesso do processo colonizador dependia da existência de locais fornecedores de
água potável. Assim, os locais escolhidos para a fundação de vilas e cidades estavam
próximos a rios, ou em terrenos em que fosse possível encontrar água de boa qualidade
através da construção de poços e fontes. A água proveniente deles era fundamental para o
funcionamento da sociedade em seu aspecto cotidiano e em sua vida privada. As residências
coloniais necessitavam do líquido para conseguir manter o funcionamento de uma rotina
doméstica, que ia do asseio pessoal com a higienização da casa e de seus utensílios
domésticos, até a preparação dos alimentos. É interessante perceber que raramente as
atividades de higiene e limpeza, como a lavagem de roupas e louça, eram feitas dentro das
casas. Geralmente estas se realizavam nos seus quintais ou à beira de rios, preservando-se o
ambiente interno das residências. Ainda é muito comum no interior do Brasil, nas cidades
menores, a lavagem da roupa pelas chamadas “lavadeiras” nos riachos da cidade ou do sítio.
O abastecimento d’água no período colonial se fazia primordialmente por três meios:
através da construção de poços ou fontes particulares de uso exclusivo do proprietário, da
compra de água a particulares detentores de pontos fornecedores do líquido ou por meio da
coleta de água nas fontes públicas.
Aqueles que possuíam uma condição financeira mais abastada resolviam o problema
de fornecimento de água através da construção de um poço ou de uma fonte em sua
propriedade. O caso dos religiosos franciscanos é exemplar: Localizando-se seu convento no
alto de um morro, e sendo donos de uma quantidade de terras que se estendia até o seu sopé,
optaram por construir uma fonte que canalizasse naturalmente a água que corre pelo lençol
37
freático
16
do mesmo. Trata-se de uma obra magnífica do ponto de vista artístico e
arquitetônico, porém, ao que parece, não podia ser admirada com freqüência pela população
local, porque era de uso exclusivo da congregação que restringia seu acesso à mesma.
Rodrigues comenta que apenas em anos calamitosos, provavelmente de grande seca ou de
epidemias, quando o convento era utilizado como hospital de emergência, a população da
cidade usufruía de suas águas. O autor acrescenta que “talvez seja a mais remota notícia que
se tem, referente ao abastecimento d’água na cidade, por encanamento.” (RODRIGUES,
1994, p. 112)
17
. Provavelmente tal encanamento levava água apenas para o interior do
convento, o que tornava desnecessária a ida das pessoas à fonte para buscar água. Apesar de
necessitarmos de maiores pesquisas sobre tais situações esporádicas, os poucos dados que
possuímos nos levam a crer que, mesmo nesses períodos calamitosos, a população ordinária
não tinha um contato direto com a fonte de Santo Antônio.
Era comum, pelo menos na cidade de João Pessoa, as ordens religiosas possuírem um
local “privativo” do qual pudessem obter água a qualquer momento sem necessitar sair de seu
enclausuramento, evitando, desta forma, um contato mais direto com a população, mais
especificamente com as negras e mulheres responsáveis pelo serviço doméstico das casas
coloniais. No caso dos Frades de São Bento, apesar da fonte se encontrar em seus terrenos,
eles só poderiam usufruir da 3ª parte de suas águas.
“que cabem do dito Sitio do Padre João Vaz até o canto da rua ´que vae para a fonte
[grifo nosso] e Varadouro, correndo pela dita rua abaixo até emtestar com fonte de
que ora se serve esta Cidade, de qual fonte lhe dão 3ª parte da agoa do posso que
está feito com condições que em tempo algum não façam outro posso mais fundo
nem outra bemfeitoria que faça prejuizo a dita Agoa, nem tapem nem tolhão ao
povo, salvo a dita terça parte que lhe cober servindo-se do dito posso somente com
Caldeirão.” (PINTO, 1977, p.31).
Neste trecho de documento transcrito podemos perceber a preocupação da
administração colonial com a água da fonte, não só no sentido de proporcionar um acesso da
mesma a população, mas também de manter a vazão de suas águas, proibindo os frades
beneditinos de construírem qualquer tipo de edificação que venha a prejudicar a água da
mesma.
16
Tal lençol é alimentado pela água da chuva que se infiltra na terra. A diminuição do fluxo de água nas fontes e
até mesmo a secagem de algumas delas deve-se a dois fatores: O calçamento/pavimentação da terra em seu
entorno, criando uma barreira sólida que impede que a água se infiltre no solo; e o desmatamento das áreas ainda
não calçadas/pavimentadas próximas ao local, já que as árvores amortecem a queda dos pingos da chuva
permitindo a absorção da água pela solo.
17
Infelizmente o autor não nos traz maiores informações a respeito deste fato. Também não foi encontrada, nos
documentos e bibliografia utilizadas informações adicionais, o que nos impede de analisar a referida citação.
38
Porém, na concessão da sesmaria em 16 de julho de 1603, os beneditinos ganham uma
fonte privativa denominada de Bica da Jaqueira, “a qual fonte ficará por marco da banda de
leste, o que pede lhe dê ou por baldia ou devoluta ou sesmaria (...) (TAVARES, 1982, p. 33).
Provavelmente a água da primeira fonte, posteriormente chamada de Bica dos Milagres, era
suficiente para abastecer o convento. Porém, como já foi dito, a não exclusividade do acesso a
água da fonte podia significar transtornos para a vida de reclusão que a ordem desejava para
os seus religiosos. Talvez, por isso, eles tenham obtido uma fonte exclusiva, apesar de terem
acesso garantido a água da Bica dos Milagres.
Algumas vezes possuir uma cacimba de água potável representava, mais do que uma
simples conveniência, uma forma de obter alguma renda. Era comum o proprietário de fontes
e poços venderem suas águas, constituindo um verdadeiro comércio dentro da cidade. Alguns
desses locais criavam fama e respeito pela qualidade de suas águas, o que valorizava o seu
preço. Rodrigues (1994, p. 118-119) nos lembra o caso das cacimbas denominadas de Sabino
e Amorim, cujos donos vieram a público denunciar de que haviam aguadeiros vendendo água
de péssima qualidade dizendo que sua proveniência era das referidas cacimbas, e que
passariam a marcar os barris e etiquetá-los
18
no intuito de impedir que tal fato se repetisse.
Algumas vezes, a câmara municipal, responsável pela administração e manutenção das fontes
públicas, tornava fontes particulares de utilidade pública, através de uma indenização. No
século XVII, o Varadouro, denominado, à época, de cidade baixa, estava repleto de cacimbas,
que eram abertas ao público aos domingos, cobrando dez réis por pessoa que nelas se
banhasse (RODRIGUES, 1994, p. 110).
A qualidade das águas das fontes variava de acordo com o estado de conservação que
a mesma se encontrava. Filho (1948, p.61) fala que “com relação à qualidade das águas, não
há divergência entre os cronistas: todos tecem-lhe rasgados elogios”. Porém em um relatório
que data da segunda metade do século XIX
19
, o seu autor atenta para o problema da
quantidade de água que é pouca para abastecer a população e para a questão da qualidade da
mesma. Ressalta que apesar de algumas fontes fornecerem água de qualidade, boa parte delas
encontra-se em péssimo estado expondo a população a doenças decorrentes da má qualidade
da água.
18
Tal relato data do ano de 1906. Apesar de fugir do corte cronológico proposto, o que nos impossibilitará de
fazer uma análise mais profunda do fato, resolvemos incluir tal informação para que possamos perceber a
importância que a população dava a proveniência da água, criando uma certa propaganda e respeito em torno da
fonte que a provia.
19
Deste relatório, de autoria de João Claudino de Oliveira Cruz, resta apenas um fragmento que foi publicado na
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Paraibano número 7.
39
Apesar dos já citados casos em que o abastecimento das casas era feito através de
cacimbas ou fontes particulares, seja por meio da construção de um poço no quintal de casa
ou através da compra do líquido a particulares, a principal forma de abastecimento de água na
cidade de João Pessoa se dava através das fontes públicas.
As fontes públicas, onde a coleta de água era aberta a todos, representavam um
importante ponto de interação social. O
entendimento das fontes d’água do período colonial
como pontos de socialização pode gerar confusões
conceituais. O que queremos demonstrar, ao
colocarmos tal afirmação, são as evidências de que,
apesar desses locais não promoverem uma
integração ou interação entre as classes sociais
distintas existentes na cidade colonial, eram lugares
em que os indivíduos dessas classes se socializavam
entre si, entre os seus “iguais”. Vale lembrar que
essa clivagem social não é rígida a ponto de não
existir nenhuma espécie de contato entre tais classes,
pois escravos e senhores conviviam no mesmo espaço físico, se relacionando
hierarquicamente. As fontes são lugares de encontros para os escravos, em que estes podiam
se relacionar longe dos olhos de seus donos. Em alguns casos específicos tornaram-se lugares
de convivência social para as classes dominantes, através dos passeios que se realizavam nas
áreas que as circundavam.
Transporte de água da Fonte do Tambiá
– Foto: Desconhecido. RODRIGUEZ,
1977, p. 141.
O fluxo de escravos era constante nos caminhos que levavam às fontes públicas, pois
eram os principais responsáveis, como já foi dito antes, pelo abastecimento das casas
coloniais. Tal atividade ficava sobre o encargo dos escravos domésticos, que possuíam uma
maior liberdade de circulação nas ruas da cidade. Apesar de tratar-se de um trabalho pesado,
carregando, nas mãos e na cabeça, gamelas e jarras cheias de água, podemos nos arriscar a
dizer que se tratava de uma atividade, de certa forma, prazerosa. A ida até as fontes d’água era
uma oportunidade para sair do ambiente interno das casas, e encontrar outros escravos que
realizavam a mesma tarefa. Lá eles podiam conversar e interagir longe dos olhos de seus
donos, mexericando tranqüilamente sobre a vida deles, e sobre as suas próprias. Nas fontes, a
vida doméstica ultrapassava as paredes das casas e dos sobrados, tomando dimensões sociais,
e o agente maior de tal interação era o elemento negro, o escravo.
40
Numa carta do provedor da fazenda real, Jorge Salter de Medonça, ao rei D. João V,
em 20 de março de 1736, é colocada à necessidade de uma obra de reedificação da cadeia da
cidade de João Pessoa e da Fonte do Tambiá. É ressaltada a importância fundamental que a
fonte tem para cidade, “sem a qual nam se pode pasar”
20
, por isso a urgência em se reedificá-
la já que se encontra expostas a “imundícies”.
Neste documento já podemos perceber a presença do elemento negro como elemento
presente na história das fontes coloniais. Na bibliografia pesquisada, o negro é colocado como
o principal personagem desses ambientes, porém percebemos a existência de outras camadas
sociais. Pessoas livres que não possuíam escravos se abasteciam das fontes públicas, e ao
pensarmos numa capitania pobre como a da Paraíba, na qual possuir um escravo era um luxo
exclusivo de uma elite mais abastada, podemos afirmar que na cidade de João Pessoa, o fluxo
de não-escravos na captação da água era bastante significativo. Não queremos, nem podemos,
afirmar que nesses locais havia uma interação entre escravos e homens pobres livres,
rompendo, desta forma, com a clivagem social existente na colônia. Ao contrário, esses
“encontros” não deviam ser bem vistos pela sociedade como um todo.
Da mesma reedificaçam se necessita na fonte chamada do tambiá que há nos
arebaldes desta cidade e sem a qual se nam pode pasar por estar se bebendo de um
xarco exposto as immundiçias de que nam pode deixar de rezultar perjuizo a estes
moradores que nam duvido concorram tambem com os seus escravos pela
utillidade que se lhes segue [Grifo nosso].
21
O governador coloca no mesmo patamar a reedificação da fonte e da cadeia como
locais essenciais para a população, e até se estende mais na descrição dos problemas da
cadeia
22
, porém, a degradação da fonte afeta mais diretamente os moradores, e possivelmente
os incomoda mais do que a possibilidade de fuga de presos. Isso se explica pelo fato de José
Salter de Mendonça supor que os senhores de escravos irão contribuir, sem custos adicionais à
Fazenda Real, com o trabalho dos mesmos para a reedificação da fonte da qual são usuários.
Apesar de ambas obras serem necessárias à cidade, os moradores contribuirão com seus
escravos apenas para a reconstrução da fonte, já que a sua deterioração afeta diretamente o
cotidiano da sociedade colonial.
20
AHU_ACL_CU_014, Cx.10, D.791.
21
Idem.
22
É bem claro que no período analisado, a reconstrução da cadeia interessa mais ao Estado do que à população
em si. O fato desta se encontrar em péssimo estado não afeta o cotidiano da sociedade, incomodando muito mais
ao Estado, no caso o governador Jorge Salter de Mendonça, já que a fuga de presos possui um caráter simbólico
de anarquia ou de fraqueza do poder vigente.
41
Numa carta dos oficiais da câmara ao rei de Portugal D. João V, datada de 15 de
outubro de 1754, estes reclamam do provedor da fazenda por este não ter feito as obras
necessárias a cidade como a recuperação da casa da câmara, cadeia e fonte do Tambiá,
como podemos perceber no trecho transcrito a seguir:
Foy Vossa Magestade servido deferir que o provedor da fazenda fizesse por o altar
de ensalha (?) na forma dos mais da dita igreja no que vemos tanta frouxidão que se
não alcanssa nem ainda esperanssa algum
a de que se venha a fazer. Como tambem
as obras do conserto da cadeya, casa da camara e fonte do tambiá [grifo nosso]
sendo qualquer dellas tão precizas. o que nos obriga a repetimos a Vossa
Magestade
a mesma representação por se achar tudo ainda no mesmo estado.
Percebemos que mais uma vez a Fonte do Tambiá é colocada ao lado de outras
edificações essenciais para a cidade. Demonstra-se, assim, a importância que as fontes de
água possuem para as cidades coloniais.
A dicotomia social entre os escravos e o restante da sociedade colonial, pode ser
percebida no documento que será analisado a seguir. Em 1785, o então governador da
Paraíba, Jerônimo José de Melo e Castro, escreve um ofício ao Secretário de Estado da
Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro, sobre a vinda do vigário Antonio Soares
Barbosa, relatando a construção de uma nova fonte que serve de passeio público para a
sociedade.
A carta, de um conteúdo aparentemente banal, nos revela interessantes características
não só da sociedade colonial, mas também de uma das figuras mais controversas da história
da Paraíba, Jerônimo José de Melo e Castro. Ao final o governador diz:
E se nestes (...Res) disposorios em que regularmente se lembram todos os governos
eu ficar esquecido acabares de conhecer a minha desventura ainda que vivo muito
confiado de que Vossa
Excelência que admiravelmente esta informado de que não ha
nota alguma em meos procedimentos intercedera pelo meu adiantamento comovido
da infausta e prolongada situação em que me vejo descerrado.
23
A insatisfação de Jerônimo José de Melo e Castro com a posição que ocupa e
principalmente com o lugar que lhe foi destinado é notória. Sua vida é uma verdadeira
“desventura’ por se encontrar em tão inóspito lugar. Ironicamente, torna-se o governador que
mais tempo passou à frente da Capitania da Paraíba, governando-a de abril de 1764 a maio de
1797, apesar dos constantes apelos e pedidos ao rei de que o removesse para outro lugar.
23
AHU_ACL_CU_014, Cx.29, D. 2144.
42
Suas atitudes à frente do governo são bastante controversas. Apesar de afirmar detestar
viver na Paraíba, toma uma série de medidas que visam melhorar a economia e a qualidade de
vida das pessoas. O referido ofício fala sobre a construção de uma fonte e um parque ao seu
redor, que serve de passeio para os habitantes da cidade de João Pessoa. O próprio governador
freqüenta assiduamente o local, no intuito de preservá-lo e, ousamos arriscar dizer, de tentar
transformá-lo, através da sua presença física, em um ambiente agradável e bem freqüentado.
Neste local, a “nobreza” da cidade poderia passear e se divertir sem se deparar com elementos
indesejáveis. Talvez, ao criar um ambiente deste tipo, com ares europeus, Jerônimo José
tentasse escapar, da maneira que lhe foi possível, da terrível realidade que, para ele, era morar
na cidade de João Pessoa
Na fonte nova que
sua magestade permitiu se fizesse de sua real fazenda admirão
todos a incançavel assitencia que diariamente faça na mesma obra, de que a
Nobreza e Povo [Grifo nosso] esta muito satisfeitos por verem um chafariz, de sete
bicas de agoa abundantes, em hum lugar que antes era um Paul e Charco indecentes
[Grifo nosso] onde os escravos brigavam pela pouca agoa de huma casimba,
servindo hoje de passeio publico pela situação amena e mais deliciosa pelas arvores
silvestres que na melhor ordem mandei plantar ficando a melhor obra que tem a
cidade e ainda Pernambuco.
24
Este documento deixa claro que os escravos não eram os únicos personagens no
cotidiano das fontes coloniais, mas também a sociedade colonial como um todo. O
governador verbaliza a presença da “Nobreza e do povo”. É interessante perceber que
Jerônimo José de Melo e Castro utiliza um termo aplicado a uma realidade européia,
transferindo-o para a sociedade da cidade. Neste contexto, a “Nobreza” provavelmente são os
senhores de engenhos e suas famílias, incluindo-se talvez alguns comerciantes e criadores de
gados mais abastados financeiramente. Junto da “Nobreza” encontra-se o povo, ou seja, as
pessoas livres e pobres.
Para que o local se transformasse em um passeio público agradável, além da
construção da fonte
25
e da plantação de árvores silvestres em seu entorno, construindo um
verdadeiro parque ao seu redor, era necessário acabar com a “indecência” do local. Essa
“indecência” era fruto da presença de escravos, que para lá se dirigiam no intuito de buscar
água na cacimba que lá existia, não só por causa da confusão que estes criavam pela disputa
da água, mas também pela sua permanência física no local. Ao reflorestar e embelezar o local
com uma estonteante fonte de sete bicas de “agoas abundantes”, o governador também acaba
24
AHU_ACL_CU_014, Cx.29, D. 2144.
25
A localização exata de tal fonte é ainda por nós desconhecida, porém, como será embasado no terceiro capítulo
desta monografia, acreditamos tratar-se da Fonte do Gravatá.
43
com as confusões causadas pelos negros que iam até a antiga cacimba disputar a pouca água
existente.
A fonte, situada em um parque, é um reflexo da dupla face do cotidiano colonial. Um
lugar onde o lazer de alguns é o trabalho de outros. No caso dos escravos, um misto de prazer
e sofrimento, inserindo na labuta diária um pouco de distração. Para Jerônimo José de Melo e
Castro, a tentativa de tornar a cidade um local mais suportável, tendo que para isso que ser
obrigado a fazer periódicas passagens pelo parque. Reproduz-se, no ambiente público, a
relação existente entre senhores e escravos no ambiente privado das casas coloniais, que
convivem no mesmo espaço, às vezes interagindo entre si, porém mantendo sempre uma
distância necessária para a continuidade de uma clivagem social.
44
4) As fontes d’água coloniais
4.1) Considerações iniciais, mas não menos fundamentais
Em seu conto “O primeiro beijo”, Clarice Lispector relata a experiência de um menino
que mata sua sede ao beijar a boca de uma estátua de uma fonte d’água não renovável. De
seus lábios fluía o tão precioso líquido. Ao beijá-los, o garoto é tomado de uma súbita
excitação, que culmina em seu primeiro orgasmo. A vida entra pelo seu corpo através da água
e, naquele momento, o personagem deixa para trás sua infância e transforma-se num homem.
As fontes d’água coloniais são mais do que lugares fornecedores de água potável: são
também monumentos, locais de memória. Nelas, se entrelaçam os membros de uma sociedade
em suas frágeis relações e separações. Por elas, constroem-se cidades e vilas com todas as
suas concordâncias e contradições. A elas, devemos as lembranças de um tempo remoto, de
um cotidiano em que a luta diária pela sobrevivência nessa extenuante jornada da vida fazia
sentido. Delas, retiramos a água que sacia a nossa sede.
Algumas delas encontram-se entre nós. De outras restam lembranças. A maior parte
desapareceu diante das redomas de concreto que invadiram as cidades. Suas lembranças
perderam-se embaixo do asfalto preto e tórrido. Seus registros foram corroídos pelo mofo e
pelas traças. Dessas, talvez nunca venhamos a saber nada: como eram, onde ficavam, quantos
meninos tornaram-se homens em suas águas.
Pensando nas questões acima, ao realizarmos a análise das fontes d’água da cidade de
João Pessoa, estaríamos cometendo uma falha imperdoável, se não nos detivéssemos na
reconstrução do percurso histórico de alguns desses monumentos. A escolha baseia-se em
dois aspectos: a) o fato de remontarem ao período abordado na pesquisa, ou seja, à época
colonial; b) a quantidade de material que nos foi possível levantar sobre cada uma delas. Tal
seleção resultou na escolha de quatro fontes: a fonte do Tambiá, a fonte de Santo Antônio, a
bica dos Milagres e a fonte do Gravatá.
Antes de começar tal análise, nos reservamos um pedido de desculpas. A bica de
Maria Feia, do Mandacaru, ou do Mindêlo; a cacimba do povo; a cacimba do Dr. Moreira; a
cacimba da Jaqueira; Sabino; Amorim; a do Dr. Cícero Brasiliense de Moura; a do Dr. Belino
Souto; a de Maroca Estrela; a de Joca Marinheira; e a tantas outras fontes de água cujos
nomes se perderam no percurso da história. A estas, nossas humildes desculpas por não
conseguir resgatá-las de seu quase completo esquecimento.
45
4.2) A Fonte do Tambiá
Tambiá era um valente guerreiro da tribo dos Cariris que havia sido aprisionado por
uma tribo de potiguares, cujo chefe possuía uma filha de nome de Aipré. Como era de
costume, a índia foi ofertada para Tambiá como “esposa da morte”. Aipré se apaixonou
instantaneamente pelo índio e se colocou ao seu lado para cuidar de seus graves ferimentos.
Ao fazer isso sua alma se libertou. Toda a nação indígena rendeu honras ao guerreiro. Aipré
chorou no túmulo de seu amado durante cinqüenta luas, tendo suas lágrimas dado origem a
uma fonte que leva o nome de seu amado: Tambiá.
Uma índia tabajara soube que o noivo iria trabalhar nos engenhos de Pernambuco em
função do escasso ano na Capitania da Paraíba. Ciumenta, fez de tudo para que o rapaz não
seguisse, então, pediu a sua madrinha, Mãe-d’água, que o rapaz ficasse. No dia da partida, a
jovem se desmanchava em lágrimas enquanto o noivo prometia o retorno, porém, ao dar o
primeiro passo para ir embora, foi picado por uma centopéia - Tambiá. Ergueu o pé para
esmagá-la e, com força, empurrou o calcanhar no terreno úmido. Ao retirá-lo, brotou um olho
de água fria, abundante. A índia limpou-lhe a ferida com a água, a dor acalmou e o noivo
disse ter sede. Esta ofereceu-lhe, com suas mãos, a água da fonte, e ele após saciar sua sede,
adormeceu. Ao acordar, esqueceu-se de sua viagem e retornou para a taba ao lado da futura
esposa.
Duas lendas bastante distintas tentam ilustrar a origem da vazão de água que
futuramente se tornaria a fonte do Tambiá. A primeira está descrita em Rodriguez (1994,
p.113) e a segunda em Medeiros (1994, p.46). Não nos foi possível saber porque duas lendas
tão distintas se referem ao mesmo local, porém, é bastante claro que as histórias possuem
origens diferentes, sendo muito improvável que uma seja a corruptela da outra. Os estudos de
tradição oral têm, em seu arcabouço teórico, a noção de maleabilidade do oral, o qual sofre
modificações à medida que é passada de geração para geração. Porém, tais alterações não
comprometem o cerne principal da tradição oral, mudando drasticamente o seu sentido, como
podemos perceber nas lendas acima.
A historiografia tradicional paraibana adota como data da construção da referida fonte
aquela que se encontra inscrita em seu corpo. Para isto tem como base documental, Pinto
(1977, p.170), que afirma que em 1782, mais especificamente no dia dois de março, “por
Ordem da Provedoria da Fazenda é mandada edificar a fonte do Tambiá".
46
Foto: André Cabral. Acervo pessoal. 2006.
A placa data a construção da fonte do Tambiá em 1782, porém vale lembrar que se
trata de uma data afixada posteriormente, pois como está escrito, a placa é colocada no
governo de Solon de Lucena, no ano de 1922. Vale lembrar que a fonte já havia sido
reconstruída no ano de 1889, como podemos perceber na inscrição da outra placa existente.
Foto: André Cabral – Acervo Pessoal. 2006.
Segundo Rodriguez (1994, p. 113), a fonte já existia, porém só foi edificada, devido a
“uma ordem emanada da Provedoria da fazenda, datada de dois de março de 1782”. Esta teria
sido construída por meios de donativos e contribuições do povo.
Apesar destas evidências, encontramos no AHU um documento de 1736, em que o
Provedor da Fazenda Real, Jorge Salter de Mendonça, pedia recursos para a reedificação da
fonte do Tambiá;
Da mesma reedificaçam se necessita na fonte chamada do tambiá [grifo nosso]
que há nos arebaldes desta cidade e sem a qual se nam pode pasar por estar se
bebendo de um xarco exposto as immundiçias de que nam pode deixar de rezultae
47
perjuizo a estes moradores que nam duvido concorram tambem com os seus
escravos pela utillidade que se lhes segue.
26
Posteriormente, em 1743, numa carta dos oficiais da câmara ao rei D, João V, trata-se
novamente da questão da reconstrução da fonte do Tambiá:
Como tambem as obras do conserto da cadeya, casa da camara e fonte do tambiá
[grifo nosso] sendo qualquer dellas tão precizas. o que nos obriga a repetimos a
Vossa
Magestade a mesma representação por se achar tudo ainda no mesmo
estado.
27
Com base nesses dados podemos afirmar que a fonte do Tambiá não foi construída em
1782. Naquele local já havia alguma espécie de edificação, que era conhecida por tal nome, e
que possuía uma relevância para a população local, já que os moradores contribuiriam com
seus escravos para a reedificação da mesma. Torna-se impossível descrever que tipo de
construção era essa, poderia até ser uma estrutura de madeira, porém o mais provável é que se
tratasse de alguma construção de alvenaria.
Fonte do Tambiá – Foto: André Cabral – Acervo
Pessoal
. 2006.
Fica difícil afirmar, em função das sucessivas reformas pelas quais a devida fonte
passou, se ainda resta algum traço da sua estrutura original. Através de uma análise de seus
26
AHU_ACL_CU_014, Cx.10, D.791.
27
AHU_ACL_CU_014, Cx.10, D.1085.
48
ornatos, podemos perceber claros traços arquitetônicos que remontam ao final do século
XVIII, início do XIX.
Fonte do Tambiá – Foto: André Cabral – Acervo Pessoal. 2006.
Os ornatos de seu frontão são compostos por elementos barrocos, com volutas em
formato de S e C, além de possuir dois tipos de conchas. Uma menor central e duas conchas
de mesmo formato, uma de cada lado. Ao centro temos uma espécie de medalhão, que
provavelmente, devia ser adornado por algum tipo de brasão ou símbolo.
A fonte do Tambiá foi uma das mais importantes da cidade, não só no período
colonial, mas até o período de decadência das fontes, já no século XX. Tombada pelo SPHAN
em 26 de setembro de 1941, constitui-se um dos monumentos de maior importância para o
Estado da Paraíba.
28
4.3) A Bica dos Milagres
As informações a respeito da Bica dos Milagres são confusas e muitas vezes
contraditórias entre os autores pesquisados. Tentaremos, por meio deste trabalho, expor não
28
A localização atual da Fonte do Tambiá, assim como das outras fontes analisadas nesse capítulo encontram-se
no mapa em anexo ao final do trabalho.
49
só as contradições que encontramos, mas também as conclusões a que chegamos remontando
a sua história.
Bica dos Milagres – Foto: Desconhecido
RODRIGUEZ, 1977, p. 120.
A Bica dos Milagres é a única fonte, dentre as estudadas, a qual temos informações
que datam do final do século XVI. O seu primeiro registro encontra-se no pedido de
concessão, feito pelos religiosos do mosteiro de São Bento na Paraíba, dos sítios e casas do
Padre Vigário João Vaz Salem, que haviam sido confiscados pela Fazenda Real no dia 19 de
Setembro de 1599.
“que cabem do dito Sitio do Padre João Vaz até o canto da rua ´que vae para a fonte
[grifo nosso] e Varadouro, correndo pela dita rua abaixo até emtestar com fonte de
que ora se serve esta Cidade, de qual fonte lhe dão 3ª parte da agoa do posso que
está feito com condições que em tempo algum não façam outro posso mais fundo
nem outra bemfeitoria que faça prejuizo a dita Agoa, nem tapem nem tolhão ao
povo, salvo a dita terça parte que lhe cober servindo-se do dito posso somente com
Caldeirão.” (PINTO, 1977, p.31).
Existe uma pequena confusão na bibliografia paraibana já que existiram duas fontes
que pertenceram aos monges beneditinos, uma, como já dissemos, era Bica dos Milagres, que
não era de uso privativo dos referidos padres. A outra, de nome “cacimba da Jaqueira”, cujo
registro encontra-se na carta de sesmaria do mosteiro de São Bento, situava-se completamente
dentro do terreno do mesmo, sem que a população ordinária tivesse acesso a suas águas.
“A cacimba da jaqueira, pertencente ao sítio do mesmo nome no passado, servia ao
Convento de S. Bento. Situava-se quase no sopé da antiga ladeira de S. Bento e atual
da Borborema. Do lado direito de quem sobe, outra não seria senão a fonte citada na
sesmaria concedida no governo de Feliciano Coelho de Carvalho, em 21 de janeiro
de 1595, ao Padre Damião da Fonseca e que, em 1904, quando a conhecemos,
pertencia aos terrenos do patrimônio do citado convento.” (RODRIGUEZ, 1994,
p.111).
50
Tal informação é confirmada por João de Lyra Tavares no livro Apontamentos para a
história territorial da Paraíba, numa carta de sesmaria de 21 de Janeiro de 1595.
(...) pelo que pede que em nome de S.M. lhe dê o sítio que está junto das terras de
João Netto no arrabalde e termo desta cidade, convem a saber, para edificação do
Mosteiro oitenta braças em quadro no alto para a banda do sul, e para a serca abaixo
da varge com aguas vertentes do oeste, leste e sul indo entestar no rio Eiroy, da
banda do norte ficando dentro da dita demarcação a fonte [grifo nosso] que está
na rossa nova que fez Francisco Pinto, a qual fonte ficará por marco da banda de
leste, o que pede lhe dê ou por baldia ou devoluta ou sesmaria (...) (TAVARES,
1982, p. 33).
A bica dos Milagres não serviu exclusivamente aos frades beneditinos, ao contrário,
provavelmente estes pouco usufruíram da mesma, já que possuíam uma fonte privativa, a
Cacimba da Jaqueira. A Bica dos Milagres é um monumento que remonta ao século XVI e
que, apesar de ter sofrido modificações arquitetônicas, representa um marco fundamental para
a história da cidade, visto que é a fonte que possui o mais antigo registro
29
dentre as poucas
ainda existentes na cidade de João Pessoa.
Bica dos Mila
g
res
Foto: André Cabral
Acervo Pessoal. 2006.
29
118 anos afastam os registros da Bica dos Milagres do registro mais antigo até então encontrado sobre fontes
de água coloniais: a inscrição “1717” na Fonte de Santo Antônio que data a finalização da mesma.
51
Já no período imperial é construída a fachada, por ordem da Presidência de Província
em 14 de novembro de 1847, porém esta só veio a ficar pronta em 1849, como podemos
perceber na inscrição em suas ruínas.
Bica dos Milagres – Foto: André Cabral –
Acervo Pessoal
. 2006.
Segundo Rodriguez (1994, p. 110) “A partir de 1849, o povo se abastecia do precioso
líquido que jorrava das duas torneiras de bronze, ladeadas por colunas de pedra, cujos capitéis
eram rematados por uma cornija em semicírculo.” No centro podia-se encontrar a coroa com
as armas imperiais em relevo que, ainda segundo Rodriguez (1994, p.110), foram arrancadas
“dizem, a mandado da diretoria do Colégio das Neves, sob pretexto fútil, talvez por se achar
proprietária daquele monumento”.
As colunas de pedra ainda encontram-se visíveis em suas ruínas como podemos ver na
foto a seguir:
Bica dos Mila
g
res
Foto: André Cabral
Acervo Pessoal. 2006.
52
A cornija em semicírculo a qual Rodriguez (1994, p.110) se refere ainda pode ser vista
na foto retirada de seu livro. Infelizmente tal ornato foi destruído provavelmente na
“incorporação” da fonte na parede da residência.
Bica dos Milagres – Foto: André Cabral – Acervo
Pessoal. 2006.
A fonte encontra-se, atualmente, desprotegida por qualquer órgão de preservação ao
patrimônio histórico, apesar de se tratar da fonte mais antiga da cidade da qual se têm
vestígios. Sua única proteção é estar dentro da delimitação do centro histórico de João Pessoa,
protegido “em teoria” pelo IPHAEP.
4.4) A Fonte de Santo Antônio
Fonte de Santo Antônio
Foto: André Cabral
Acervo Pessoal. 2004.
53
Fonte de Santo Antônio – Foto: André Cabral – Acervo
Pessoal. 2004
De todas as fontes estudadas neste trabalho, podemos afirmar que a fonte de Santo
Antônio é a que causa maior fascínio devido ao extraordinário trabalho arquitetônico em
cantaria.
Trata-se de um monumento do início do século XVIII, tendo como data de finalização
o ano de 1717. Tal data encontra-se talhada em uma cartela
30
superior, porém, devido ao
musgo que cobre o monumento, a sua visualização é quase impossível como podemos
perceber na foto. A informação é corroborada por Pinto (1977, p.112) “Fica concluida no
presente anno uma fonte que ainda hoje existe no quintal do convento de S. Francisco”.
De caráter privativo a fonte raramente era aberta ao público, a não ser em caso de
calamidades públicas “quando foram instalados hospitais de emergência no convento”
(RODRIGUEZ, 1994, p.111).
Foi nos arredores da fonte de Santo Antônio que ocorreu o famoso crime cometido em
31 de julho de 1801 pelo Frei José Lopes, do convento de Santo Antônio. Pinto (1977, p.219)
relata que tal crime ocorreu na Bica dos Milagres, porém, tal informação é contestada pelo
historiador do IHGP, Octacílio Nóbrega de Queiroz, na Revista do IHGP nº19, de 1971. Para
contestar tal afirmação ele se baseia na sentença do assassino, o frei José de Jesus Cristo
Maria Lopes, a qual, em nenhum momento, cita a Bica dos Milagres, além de expor a idéia de
que a mesma só foi construída em 1848.
30
Cornija decorativa (no caso com volutas e folhas de acanto) usada em geral em volta de emblemas (KOCH,
1998, p. 119).
54
Demonstramos, no nosso trabalho, que a Bica dos Milagres possui o registro mais
remoto de todas as fontes coloniais, porém, é fato que ela só se chamará de Milagres em 1848,
com a edificação da estrutura que se encontra atualmente em ruínas. O que podemos levantar
é que o crime ocorreu nas mediações de tais fontes, sem podermos identificar o local exato de
sua consumação. A confusão provavelmente se deu em função das duas fontes estarem
bastante próximas, com uma distância de mais ou menos 300 metros separando-as.
Tal crime teve uma grande repercussão na
sociedade paraibana. O referido frei José de Jesus
Cristo Maria Lopes, da ordem franciscana,
apaixonou-se pela mulata Teresa, com quem
manteve um caso amoroso. No dia 31 de Julho de
1801, este a encontrou com outro homem e deduziu
que se tratava de seu amante. Por volta das dez
horas da noite o referido frei matou Teresa a
pauladas e introduziu uma vara em sua genitália. O
crime foi assistido pelo escravo Francisco, de seu
convento, o qual havia chamado a mulata até o
local do crime, e, também, pela filha da mesma,
Anna, de apenas sete anos.
Germain Bazin, no seu livro A arquitetura
religiosa barroca no Brasil traz uma colocação, no
mínimo intrigante, ao ver semelhanças entre a
Fonte de Santo Antônio e a Igreja da Ordem
Terceira dos Franciscanos em Salvador. Segundo o autor:
Fonte de Santo Antônio – Foto: Machado
Bittencourt – Acervo Machado
Bittencourt. S/D.
A fachada da capela dos terceiros de Salvador, coberta de esculturas desde a base até
a cumeeira, é um monumento ímpar no Brasil, o único comparável aos de
ornamentação exuberante da Nova Espanha. (...) A ornamentação está dividida em
três níveis: o pavimento térreo – (...) – o corpo principal e o frontão. A composição
do todo é semelhante à da fonte do jardim do convento franciscano de João Pessoa,
datada de 1717.” (BAZIN, s.d., p. 190-191).
Infelizmente, a nossa pesquisa não conseguiu identificar os autores da obra da fonte, o
que nos impede de analisar tal coerência mais a fundo. O Livro dos Guardiães do Convento
de Santo Antônio da Paraíba não traz nenhuma informação a respeito de tal monumento.
55
A fonte possui quatro cartelas com as seguintes inscrições transcritas abaixo
31
:
1ª cartela
Transcrição Tradução
Posteritati
Quod cernis lector, quaeris
quo munere factum?
Hoc fraternus amor
Sumptibus egit opus
1717
F.M. T.F.
À posteridade.
O que tu aprecias, ó leitor,
indagas com que trabalho foi feito?
O amor fraterno
construiu esta obra
com muito custo (despesas)
1717
F.M. T.F.
Quanto às iniciais transcrevemos o que diz Burity (1988, p.101):
As iniciais F.M. e T.F. talvez signifiquem a origem dos artistas ou dos responsáveis
pela decisão da construção do monumento, vale dizer: F.M. significando frades
menores, numa alusão à ordem franciscana, e T.F. terceiros franciscanos, isto é,
referência à ordem terceira dos franciscanos.
2ª cartela
Transcrição Tradução
S. Antoni
Ora pro nobis
Santo Antônio
ora por nós
3ª e 4ª cartela (frase bipartida)
Transcrição Tradução
Hy Fon
mnum tes Do
dicite mino.
Ó fontes
dizei
um hino ao senhor
As inscrições são a expressão do sentimento barroco que existe em tais obras e que
está expresso no seu trabalho de cantaria. Primeiramente, a consciência de que se trata de uma
31
Devido a dificuldade de leitura das cartelas na fonte, algumas em função do musgo, outras em virtude da
degradação da cantaria, decidimos por utilizar a transcrição e a tradução feita por: BURITY, 1988, p. 99-100.
56
obra de valor artístico inestimável, que causa fascinação e, concomitantemente, uma sensação
de opressão. Realizando aqui uma análise superficial da estética barroca, suas obras buscam
causar, no seu expectador-fiel, uma sensação de medo e
culpa. O mascarão
32
(foto ao lado) é uma das formas
encontradas pelos artífices barrocos para expressar esse
sentimento de opressão. Todos nós somos pecadores e
estamos condenados, porém aqui (neste ambiente religioso)
é possível garantir a salvação, através do arrependimento e
da penitência.
A frase descrita na primeira cartela expressa bem
esse sentimento: Afirma que, para atingir tal nível de beleza
e contemplação, foi necessário, primeiramente “o amor
fraterno”, ou seja, a devoção a Deus, e segundo, muito trabalho. Ou seja, nós podemos nos
tornar (assim como a fonte) um exemplo de beleza e virtude, mas para isso é necessário que
amemos a Deus e nos sacrifiquemos por ele. O nicho adornado com folhas de acanto
33
continha a imagem de Santo Antonio que se perdeu com o passar dos anos.
A fonte foi tombada pelo IPHAN em 16 de outubro de 1952 na circunscrição da área
do convento de São Francisco.
Fonte de Santo Antônio – Foto:
André Cabral – Acervo Pessoal.
2004
Fonte de Santo Antônio – Foto: André
Cabral – Acervo Pessoal. 2004
32
Mascarão - Máscara com função decorativa (KOCH, 1998, p.171). Interessante perceber que esse mascarão
possui feições negras, com seus lábios grandes e carnudos, seu nariz achatado, e sua “barba” formada por
pequenas mísulas em volutas, assim como o seu “cabelo”.
33
As folhas de acanto constituem um ornato bastante presente na arte barroca. O acanto é uma planta típica do
Mediterrâneo, que apesar de ser bastante bonita, possui muitos espinhos. Numa lenda narrada pelo grego
Vitrúvio, o escultor Calímaco, no final do século V, utilizou tal planta como modelo para adornar um dos
capitéis do túmulo de uma menina. O acanto representava as privações da vida e os sofrimentos que passamos, e
a utilização do mesmo em um adorno significava a superação de tais martírios. O acanto tornou-se um símbolo
da terra virgem e da própria virgindade, ou seja, um triunfo da vida sobre os seus espinhos (VALENTE, 2006,
s/p).
57
4.5) A Fonte do Gravatá
Segundo Nóbrega (1974, p.29), a fonte do Gravatá foi edificada em 30 de outubro de
1784. De acordo com Jardim (1911, p. 110) a fonte foi erigida em 1781 por ordem da Junta da
Fazenda Real de Pernambuco e reconstruída, em 1785 sobre a jurisdição do capitão-mor
,governador José Jerônimo José de Melo e Castro.
Através da análise da documentação do AHU, encontramos um ofício escrito em
1785
34
, no qual o então governador da Paraíba, Jerônimo José de Melo e Castro, se dirige ao
Secretário de Estado da Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro, a respeito da vinda
do vigário Antonio Soares Barbosa, neste documento ainda relata a construção de uma nova
fonte que serve de passeio público para a sociedade.
Na fonte nova que
sua magestade permitiu se fizesse de sua real fazenda admirão
todos a incançavel assitencia que diariamente faça na mesma obra, de que a
Nobreza e Povo [Grifo nosso] esta muito satisfeitos por verem um chafariz, de sete
bicas de agoa abundantes, em hum lugar que antes era um Paul e Charco indecentes
[Grifo nosso] onde os escravos brigavam pela pouca agoa de huma casimba,
servindo hoje de passeio publico pela situação amena e mais deliciosa pelas arvores
silvestres que na melhor ordem mandei plantar ficando a melhor obra que tem a
cidade e ainda Pernambuco.
35
Rodrigues (1994, p. 112), descreve a Fonte do Gravatá como:
(...) um quadrado murado de pedras com cornijas, ficando a superfície das águas
abaixo do nível da rua e tendo torneiras de bronze com lavôres nas três faces das
paredes de leste, norte e sul. No paredão do lado oeste, servindo de frontão mais
elevado, ostentava as armas imperiais em pedra de cantaria. nessa parede, estavam
colocados os canos de esgôto das águas servidas.”
Na mesma obra, Rodrigues (1994, p. 129) traz um desenho da referida fonte:
34
AHU_ACL_CU_014, Cx.29, D. 2144.
35
Ibidem.
58
Confrontando
os três documentos não é difícil perceber que se trata da mesma fonte. A descrição
apresentada por Jerônimo José de Melo e Castro, assemelha-se em demasia com o desenho e a
descrição de Rodrigues. Ambos falam que a fonte foi construída com o dinheiro da Fazenda
Real
36
. E, principalmente, os registros apontam para sua construção em 1785, o que confere
com o ano do ofício. A probabilidade do capitão-mor da Paraíba ter construído duas fontes
desse porte no mesmo ano é quase nula, o que nos leva a afirmar que a fonte descrita no
referido ofício é a Fonte do Gravatá. Rodrigues (1994, p.112) esclarece a confusão a respeito
da data de construção da fonte:
Fonte do Gravatá – Autor: Desconhecido. In:
RODRIGUEZ, 1977, p. 129.
A fonte do Gravatá, construída mediante contribuição do povo, embora sob
administração da Câmara Municipal (deliberação da provedoria da fazenda, de vinte
de maio de 1781 e expediente de 20 de outubro de 1784, consubstanciado na ordem
da Junta, de 20 de agôsto de 1785).
Porém, é importante lembrar que já existia no mesmo local uma cacimba da qual a
população se abastecia de água através de seus escravos.
A fonte situava-se até a sua demolição, em 1922
37
, no Pátio do Quartel, onde
posteriormente existiu a casa das convertidas. Provavelmente, o parque transformou-se no
pátio do quartel e lentamente foi sendo degradado. Atualmente, no prédio funciona a Casa do
Artesão, e a sua área está repleta de pequenas lojas de artesanatos.
CARVALHO, Juliano Loureiro de; MARTINS, Carla Gisele M. S.. Mapa da Parahyba
do Norte em 1889. 2003. In: TINEM, Nelci. Marcos, fronteiras e sinais: Leituras das
ruas de João Pessoa. João Pessoa: UFPB, 2006.
36
Lembrando que entre 1755 e 1799 a capitania da Paraíba esteve anexada à Capitania de Pernambuco.
37
Segundo Rodrigues (1994, p.112), foi um jovem sanitarista, que dirigiu os serviços de saúde pública, que deu
a ordem de aterrar a referida fonte.
59
Não pudemos encontrar qualquer espécie de vestígio da outrora glamourosa Fonte do
Gravatá. Por este motivo, optamos por não colocar nenhuma foto do local atual, deixando
que a ausência da imagem fale por si.
60
5) Considerações finais
Não se constrói uma civilização em lugares onde não exista água potável, ou seja, ela é
condição indispensável da sobrevivência humana. Na colonização do espaço brasileiro a
preocupação com estes lugares foi constante, e, à medida que a população crescia, a
administração colonial aumentava os seus cuidados nesse setor.
Neste contexto, as fontes d’água tiveram um papel marcante para essa sociedade que
estava se desenvolvendo. Tais locais encontravam-se presentes no cotidiano das mais diversas
camadas sociais: desde a “nobreza” com seus parques públicos, como bem fala Jerônimo José
de Melo e Castro, passando pelos religiosos com suas fontes privativas, até os negros, na
árdua tarefa diária de cuidar dos seus senhores e de seus bens. Tais locais não propiciavam
uma interação social entre essas camadas, mas reproduziam a dinâmica social vigente, na qual
as pessoas conviviam no mesmo espaço sem haver, contudo, uma integração visível entre os
seus membros. Tais contatos, geralmente de ordem sexuais, existiam e não eram raros, porém
ficavam à margem da ordem social.
Apesar de não constituírem um fator determinante, esses locais fornecedores de água,
tiveram certa influência no traçado da cidade. Em alguns casos serviram de marcos e limites
entre os lotes urbanos que foram doados como sesmarias desde o período inicial de fundação
(final do século XVI). Um dos melhores exemplos dessa influência foi o caso da doação feita
à Ordem dos Beneditinos para a construção de seu mosteiro: o tamanho do lote chegou a ser
estendido no intuito de englobar a fonte que já existia na área.
A reconstrução da História dos principais locais de fornecimento de água é um micro-
espaço representativo da narrativa histórica. É nesses locais em que percebemos a presença do
fluxo da história sobre a humanidade, com suas intervenções, modificações e abandonos. Ao
reproduzirmos a História dos monumentos neste trabalho, tentamos tornar explícito o
significado que cada uma daquelas edificações possui, não só no tempo em que foram
construídas, mas principalmente para a sociedade atual. As fontes d’água estiveram, durante
muito tempo, conectadas ao imaginário da população, como podemos observar pela nomeação
de diversas ruas com as denominações das referidas fontes. Tais nomenclaturas, assim como
as lembranças desses locais, estão sendo lentamente apagadas da memória.
A história das fontes de água não se interrompe com o fim do período colonial, ao
contrário, ela se estende até os meados da República. As primeiras preocupações com a
canalização da água surgem já na segunda metade do século XIX, quando se começa a aplicar
uma política de modernização das urbes aos moldes das cidades européias. A importação de
61
novas tecnologias que visavam construir uma rede de infraestrutura básica nas cidades
brasileiras
38
, faz com que se torne cada vez mais inevitável o processo de canalização de
água. Apesar disso, somente após diversos projetos e “inevitáveis” desvios de verbas, a
canalização da água se concretizará no início do século XX. Aliados a esses fatores, temos a
influência, no caso específico do abastecimento d’água, do fim da escravidão colocado pela
Lei Áurea de 1888. Sem os escravos para realizar tal tarefa, que como já foi relatado era
constante e cansativa, a sociedade passa a pressionar a administração da cidade para que a
canalização da água potável saia dos projetos e torne-se uma realidade.
As fontes d’água coloniais representam resquícios de uma História que ainda se
encontra viva no imaginário de parte da sociedade pessoense. Tais lembranças encontram-se
ainda de pé, em algumas poucas esquinas da cidade. Resistindo às intempéries e,
principalmente ao descaso, elas continuam sobrevivendo, tentando contar às pessoas um
pedaço pequeno, porém indispensável, de nossa História.
38
Não é por acaso que no mesmo período em que se discute a canalização da água na cidade de João Pessoa,
também existe uma preocupação maior com a rede de esgotos, iluminação pública e com os meios de transporte,
tanto para deslocamento das pessoas dentro da cidade quanto para o escoamento da produção.
62
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Escrito e feito por mandado do muito reverendo padre em Cristo o Padre Cristóvão de
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Arquivo pesquisado:
ARQUIVO Noronha Santos. Disponível em: <http://www.iphan.gov.br/ans/inicial.htm
>.
Acesso em: 10 de Outubro de 2006.
65
ANEXO I
66
1736, março, 20, Paraíba
CARTA do provedor da Fazenda Real da Paraíba, Jorge Salter de Mendonça, ao rei [D. João
V], sobre a representação dos oficiais da Câmara da Paraíba, a respeito das obras da cadeia e
fonte de Tambiá, necessárias à cidade.
AHU_ACL_CU_014, Cx. 10, D. 791.
Junto o requerimento haja vista a provisão da fazenda
Lisboa, 11 de Agosto de 1736
Nao posso ser (...) a que (...) reparos
e por em estado de heregir as duas obras de que se trata
cem anda a que dellas se (...) publico
a que le ordenar
Senhor [1
Pella ordem por copia junta me ordena Vossa Magestade informe sobre a repre [2
zentação dos officiais deste senado para que Vossa Magestade lhe mande suprir com [3
o que for necessário para as obras da cadea e fonte desta cidade [4
se as obras que Vossa Magestade ordena se façam [5
se frabicasem com a segurança necessária agora se escutariam novos dis[6
pendios[7
fazendo vestoria na cadea pelos arombamen[8
tos que nella tem feyto os presos inda que sem efeito pella muita vigillancia[9
que eu e o cappitam mor pomos na sua guarda em razam de antecedente[10
mente terem muytos fugidos, achey procederem estes de estarem as vigas[11
disttantes humas das outras, e que basta fixarçe qualquer taboa para [12
poderem sahyr[13
A forma de esta se tirar he puxarem os pre [14
zos do seguro as cabeças dos pregos ou qualquer pedaço de taboa como de [15
prezente o tem feito por duas vezez humas prezas que no dito seguro se achão[16
para que quando os prezos da ensonia possam unidos levar a porta do dito [17
seguro,e fugirem e asim que le (...) ordenar Vossa Magestade se unam as dittas[18
vigas para que se façam impraticaveis semelhantes arombamentos, [19
67
como tambem mandra reforçar as grades, da cadea por se fazerem com[20
piquena fortaleza e reedificar a escada por onde se sobe para a audien [21
cia que esta bastante (...) arruynada. [22
Da mesma reedificaçam se necessita [23
na fonte chamada do tambiá que há nos arebaldes desta cidade e sem [24
a qual se nam pode pasar por estar se bebendo de um xarco exposto as [25
immundiçias de que nam pode deixar de rezultae perjuizo a estes [26
moradores que nam duvido concorram tambem com os seus es [27
cravos pela utillidade que se lhes segue. [28
Isto o que me pareçe Vossa Magestade ordenará o que for ser [29
vido Paraíba 20 de março de 1736. [30
O provedor da fazenda real Jorge Salter de Mendonça
68
ANEXO II
69
1744, outubro, 15, Paraíba
CARTA dos oficiais da Câmara da Paraíba, ao rei [D. João V], sobre o atraso das obras de
decoração em talha dourada do altar de São Sebastião, na igreja matriz da cidade, bem como
da cadeia, casa da Câmara e fonte de Tambiá, devido à falta de verbas, cujo pagamento, o
provedor da Fazenda Real ainda não efetuou.
AHU_ACL_CU_014, Cx. 13, D. 1085.
Senhor [1
A representassão que fizerao os nossos antesessores a Vossa Magestade
[2
no anno de 1743 sobre a pouca decencia com que estava o altar do glori-[3
oso martir São Sebastião colocado na igreja matriz dessa cidade onde,[4
se faz a selebridade de seu dia a custa da Real fazenda de Vossa
Magestade a que[5
assistimos. Foy Vossa Magestade servido deferir que o provedor da fazenda [6
fizesse por o altar de ensalha (?) na forma dos mais da dita igreja no que[7
vemos tanta frouxidão que se não alcanssa nem ainda esperanssa alguma de que[8
se venha a fazer. Como tambem as obras do conserto da cadeya, casa[9
da camara e fonte do tambiá sendo qualquer dellas tão precizas. o que nos[10
obriga a repetimos a Vossa Magestade a mesma representação por se achar tudo[11
ainda no mesmo estado. Porque ao depois que o contratto dos subsidios das[12
carnes se marco (?) na fazenda real se tem experimentado todas essas dannifi[13
cassões porque nunca se acode as obras necessarias e consertos precizos de que[14
se segue para o adiante mayor prejuizo a fazenda de Vossa
magestade por falta[15
de dinheyro que não tem essa cârmara rendimentocom que as possa fazer e os pro[16
vedores da fazenda real, o nao (?) dao (?) nao obstantes os repetidos requerimentos que para
isso se lhe fazem[17
Deos guarde a catholica pessoa de vossa
magestade poe muitos e fellissez[18
annos. escrita em camara da Parahiba aos 15 de outubro de 1744.[19
Manoel Rodrigues Portella escrivão da camaara a escrevi.[20
70
ANEXO III
71
1785, maio, 6, Paraíba
OFÍCIO do [governador da Paraíba], brigadeiro Jerónimo José de Melo e Castro, ao
[secretário de estado da Marinha e Ultramar], Martinho de Melo e Castro, sobre a chegada do
vigário António Soares Barbosa e a propósito da construção de uma fonte nova, com um
passeio público, que antes só servia aos escravos.
AHU-Paraíba, cx. 15
AHU_ACL_CU_014, Cx. 29, D. 2144.
[fl.1]
1785
Paraiba
Cartas do governador
[fl.2]
Ilustríssimo Excelentíssimo Senhor [1
Em fim chegou o vigário Antonio Soares de Bar [2
bosa a que (...) os annos,e trabalhos tem moderado [3
o genio no que apparece [4
Na sua vida, lhe fez [5
hum grato recebimento como Vossa Excelencia me recomendava [6
de que ficou tam satisfeito, que continuamente me [7
visita, o que lhe correspondo com os possíveis ob[8
séquios que merece o seu caracter e demonstraçoens de[9
affecto com que me trata.[10
Na fonte nova que sua[ 11
magestade permitiu se fizesse de sua real fazenda ad [12
mirão todos a incançavel assitencia que diariamente [13
faça na mesma obra, de que a Nobreza e Povo es [14
ta muito satisfeitos por verem um chafariz, [15
de sete bicas de agoa abundantes, em hum lugar [16
que antes era um Paul e Charco indecentes onde [17
os escravos brigavam pela pouca agoa de huma [18
72
casimba, servindo hoje de passeio publico pela [19
situação amena e mais deliciosa pelas arvores [20
[fl.3]
silvestres que na melhor ordem mandei plantar[21
ficando a melhor obra que tem a cidade e ainda Per[22
nambuco.[23
Assim he que me emprego, e sirvo[ 24
a sua magestade com a infelicidade de não ter quem[25
ponha na presença de sua magestade a efficacia e fi[27
delidad
e de meos serviços, e a rigorosa subordinação[28
que carrego ha vinte e dois annos por ser qual[29
quer destes objetos capaz de mover sua piedosa[30
clemencia[31
E se nestes (...Res)disposorios (?) em que[32
regularmente se lembram todos os governos[33
eu ficar esquecido acabares de conhecer a minha[34
desventura ainda que vivo muito confiado de que[35
Vossa
Excelência que admiravelmente esta informado[36
de que não ha nota alguma em meos procedimentos[37
intercedera pelo meu adiantamento comovido da[38
[fl.4]
infausta e prolongada situação em que me vejo[39
descerrado. Deis guarde vossa Excelência muitos annos Paraiba[40
6 de maio de 1785 [41
Ilustríssi
mo Excelentíssimo Senhor Martinho de Mello e Castro[42
73
ANEXO IV
74
TINEM, Nelci. (org.). Fronteiras, marcos e sinais: leituras das ruas de João Pessoa. João Pessoa: UFPB,
2006. p. 17.
Legenda:
1) Fonte do Gravatá (Demolida)
2) Bica dos Milagres (Ruínas)
3) Fonte de Santo Antônio (Bom estado)
4) Fonte do Tambiá (Bom estado)
75
76
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