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Universidade Federal do Rio de Janeiro
Sobre a verdade e as opiniões:
o Poema de Parmênides e a incisão entre ser e devir
Alexandre Costa
2010
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Sobre a verdade e as opiniões:
o Poema de Parmênides e a incisão entre ser e devir
Alexandre Costa
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de
Pós-graduação em Filosofia, Instituto de Filosofia e
Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Doutor em Filosofia.
Orientador: Fernando José de Santoro Moreira
Rio de Janeiro
Maio de 2010
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Sobre a verdade e as opiniões:
o Poema de Parmênides e a incisão entre ser e devir
Alexandre Costa
Orientador: Fernando José de Santoro Moreira
Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Filosofia,
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(IFCS/UFRJ), como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de
Doutor em Filosofia.
Aprovada por:
____________________________________________
Prof. Dr. Fernando José de Santoro Moreira, UFRJ
________________________________________________
Prof. Dr. Fernando Augusto da Rocha Rodrigues, UFRJ
_____________________________________
Profa. Dra. Izabela Aquino Bocayuva, UERJ
_______________________________________
Prof. Dr. Luís Felipe Bellintani Ribeiro, UFF
______________________________________________
Prof. Dr. Nestor-Luis Cordero, Université de Rennes 1
Rio de Janeiro
Maio de 2010
AGRADECIMENTOS
Ao programa de Pós-graduação em Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências
Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGF/IFCS/UFRJ) pela
generosidade ao ter acolhido em caráter excepcional o projeto de pesquisa que
resultou nesta tese de doutorado;
Ao orientador desta tese, professor Fernando José de Santoro Moreira, pela amizade e
transigência, aceitando orientar uma tese cuja interpretação acerca do Poema de
Parmênides difere consideravelmente da sua;
Ao professor Heribert Boeder, orientador da minha tese de doutorado na Universidade
de Osnabrück, Alemanha, pela difícil convivência que, entre concórdias e discórdias,
valeu-me como um êmulo fértil à especulação e à crítica, aspectos decisivos na
concepção deste trabalho;
Ao professor Fernando Rodrigues que, como de hábito, mostrou-se sempre
cordialmente disposto a auxiliar-me na resolução dos mais diversos problemas e
assuntos;
À professora Carmen Lucia Magalhães Paes, orientadora de um mestrado longínquo
mas nem por isso distante, que sequer imagina o quilate da sua presença no meu modo
de (tentar) fazer filosofia;
À professora Márcia Cavalcante Schuback, pelo diálogo de sempre;
Ao professor Henrique Murachco, pelas reiteradas lições de grego;
À Pilar, que durante um belo tempo da gestação deste trabalho me foi o que o seu
nome significa;
Aos mais íntimos, por todos e nenhuns motivos: Amoreau, Bahia, Patri e PC;
Ao caríssimo Pedro Paulo, pelas cartas e pelas plantas; também à Carlota e ao Chico;
A algumas pessoas que foram especialmente importantes ao longo deste percurso: Inês,
Carol, Sandra, Silvia, Liz, Luci e Gio;
À Anita, pela dinâmica;
À Ana Flaksman, Luisa e Marquinhos; à Ângela, ao Leandro e ao Renato, amigos da
filosofia;
À Olga, por duas valiosas conversas;
Ao Portuga e também ao Victor, pelas discussões;
À Bete e à Eva, pelo apoio sempre que foi necessário;
À Mônica, pela relação entre os deuses gregos e os orixás;
Aos meus amigos do grupo de Platão, Daniela, Heloísa, Lúcia, Meri, Paulo, Rui e Stella,
por aturarem e escutarem com crítica paciência os muitos paralelos que faço entre os
diálogos platônicos e o Poema de Parmênides, tentando realçar-lhes a diferença;
Aos mais diversos alunos com quem tenho tido o prazer de ter contato; especialmente
os da EDEM: Ana Chacel, Barata, Jack David, Jonas e Bruna, Júlia, Júlia Serran, Júlia
Almeida, Luã, Mateus, Paula, Rafael, Salim e Sofia, dentre tantos outros igualmente
importantes que mal souberam ter servido de “cobaias” às minhas interpretações sobre
o pensamento de Parmênides e que as aperfeiçoaram com uma incrível dose de
resistência crítica para a idade que tinham à época, sem que por isso me fossem menos
amáveis; da mesma forma agradeço a alguns dos meus ex-alunos do IFCS (primeiro e
segundo semestres de 2004 e 2005), que toleraram e avaliaram as primeiras exposições
desta minha interpretação do Poema de Parmênides, ajudando-me a maturá-la. Eles
tiveram ouvido para tanto: Adriana, Eduardo, Marcelo, Marcos, Nathália, Rafael e Vitor
Mauro;
À minha mãe, à minha avó e aos meus irmãos.
RESUMO
COSTA, Alexandre da Silva. Sobre a verdade e as opiniões: o Poema de
Parmênides e a incisão entre ser e devir. Rio de Janeiro, 2010. Tese (Doutorado em
Filosofia) Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.
O ponto de partida desta tese consiste em avaliar o Poema de Parmênides através da
clivagem que lhe serve como principal orientação: a absoluta incompatibilidade entre
verdade e opiniões. É a partir dela que se torna privilegiadamente possível analisar a
obra parmenídica em sua integridade, na medida em que configura o gesto que
determina a própria estrutura tripartida do Poema. Essa incompatibilidade que cinde
verdade e opiniões de forma irreconciliável depende, no entanto, de uma decisão de
pensamento que a sustenta e que lhe é anterior, servindo-lhe como fundamento a
clara e distinta incisão entre ser e devir. Defende-se, deste modo, que o verbo ser aplica-
se tão-somente à verdade, assim como o devir caracteriza as opiniões, o que exige a
pergunta: ao que se pode aplicar, então, cada um desses verbos em sua restrita
propriedade, uma vez imiscíveis? Propondo uma nova semântica e mesmo uma nova
gramática para o verbo ser, a verdade parmenídica e o ente de que trata serão aqui
compreendidos como um artifício e um exercício de autonomia da linguagem, de uma
linguagem, por conseguinte, necessariamente autoreferente; ao passo que a linguagem
que se faz como uma fala acerca dos sensíveis, aquela que se propõe a responsabilidade
de discorrer acerca do que costumamos nomear “realidade sensível”, é necessariamente
plural e, portanto, opinativa. Verdade e opiniões não são dois modos distintos de
pensar o mesmo, mas modos distintos do pensar: o noético e o frenético, cabendo a
cada uma dessas modulações não apenas uma propriedade específica de operar o
pensamento e a linguagem, mas também a submissão àquele que que determina o seu
gênero e caráter: o motivo pelo que se fazem, respectivamente, verdade e opiniões
deve-se justamente àquilo sobre o que versam. Não verdade sobre o “mundo”, posto
que este não é, devém; plural e diverso, ele exige da linguagem a diversidade e a
pluridade das opiniões. Em contrapartida, só é possível verdade sobre o que não
devém. E o que não devém? Seria pouco responder “o ente”. O desafio maior do
Poema de Parmênides resulta em saber do que se diz quando se diz “o ente”. Que seja
feita, finalmente, a pergunta: o que é o ente?
ABSTRACT
COSTA, Alexandre da Silva. Sobre a verdade e as opiniões: o Poema de
Parmênides e a incisão entre ser e devir. Rio de Janeiro, 2010. Tese (Doutorado em
Filosofia) Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.
The starting point of this thesis consists in evaluate Parmenides´ poem from the
cleavage that primarily orientates it: the absolute incompatibility between truth and
opinions. Starting from this cleavage, it is especially possible to analyze Parmenides´
work in its integrity, since it is the fundamental gesture that determinates the tripartite
structure of the Poem. Nevertheless, the incompatibility that separates irreconcilably
truth and opinions depends on a thought decision that supports it, and that must be
anterior to it, and that serves as its foundation: the clear and distinct division between
being and becoming. In this way, we support that the verb to be only apply to truth, just
as to become characterize the opinions, which takes us to the question: since they are
immiscible, to what may we apply each of these verbs in their restricted proprieties?
Since it proposes a new semantics and even a new grammar to the verb to be,
Parmenides´ truth and the being that it deals with will be understood here as a skillful
making and an exercise of the autonomy of language, that is, of a necessarily self-
referred language; on the other hand, the language that exists as the discourse about the
sensibles, the one which has the responsibility of describing what we usually call the
‘sensible reality’, is necessarily plural, and in this way, opiniative. Truth and opinions are
not two distinct ways of thinking the same reality, but two distinct ways of thought: the
noetic and the phrenetic, each of these modulations depending not only on a specific mode
in which thought and language operates, but also being submitted to that reality which
determines its kind and character: the final reason by which truth and opinions are
made depends exactly on that which they treat of. There is no truth about the ‘world’,
since it is not, but becomes; plural and diverse, it demands from language the plurality and
diversity of opinions. And what does not become? It would be too simple to answer
‘the being’. The major challenge of Parmenides´ Poem turns out to be to know what
one says when one says ‘the being’. So, it must be put, finally, the question, what is being?
SUMÁRIO
Introdução 10
1 A procedência poética da filosofia de Parmênides 26
e a singularidade do caráter divino do seu poema
2 Os dois caminhos de inquerimento e o caminho 44
das opiniões dos tombados pela morte
3 O elo comum entre o caminho das opiniões e o caminho 71
do não-ente: a dupla constituição da inverdade e a críti-
ca à tradição de pensamento dos primeiros tempos da
filosofia
4 O caminho da peítho: verdade e plenitude do ente 86
4. 1 Por uma breve genealogia desta interpretação 114
5 A distinção entre dokeîn e noeîn: as opiniões dos mortais 125
em oposição à verdade. A inevitabilidade das dokoûnta e
a antropogônica cosmologia parmenídica
Epílogo
159
Bibliografia
166
A razão está sempre com dois lados
Candeia, Filosofia do samba
10
10
Introdução
No que se refere à filosofia de Parmênides, julgo que o primeiro tema a ser
considerado e analisado em seu poema diz respeito à sua decisão pelo pensamento.
Refiro-me à decisão que me parece a mais determinante de sua obra, aquela que a
orienta e a partir da qual ela se realiza: a filosofia parmenídica vem a ser a primeira a
tomar explicitamente o próprio pensar como motivo do seu pensamento. Começo,
pois, com uma afirmação de grande arrojo: o principal tema da obra do Eleata não é o
ente, nem a verdade, nem as opiniões, mas sim demonstrar as possibilidades do
pensamento através da avaliação do que significa pensar e da discriminação das
naturezas distintas que o pensamento pode assumir. Decidido pelo cumprimento dessa
tarefa, o filósofo acaba por desenvolver, inevitavelmente, os célebres conceitos acima
aludidos, idéias ou conceitos pelos quais a sua obra justamente se destaca, sendo todos
eles, porém, desdobramentos correspondentes a essa questão e decisão primeiras;
correspondentes, portanto, às diferentes possibilidades internas do pensar e que por
isso e precisamente por isso vêm a ser metodicamente desfiados e analisados ao
longo do poema: o ente, o não-ente, a verdade e as opiniões referem-se às supracitadas
possibilidades de diferença.
Uma tal iniciativa lega a Parmênides a possibilidade de descobrir e expor as
diferenças internas ao próprio pensamento, diferenças que se situam menos na ordem
do conteúdo do que se pensa do que na ordem do modo como se pensa, ainda que os
possíveis conteúdos de um pensamento estejam necessária e intimamente ligados à
natureza ou ao caráter de como se pensa.
Na medida em que o pensamento filosófico de Parmênides decide debruçar-se
sobre o próprio pensamento, revela-se esta uma decisão que antecede à sua realização
sob a forma de obra: o que ali sempre se encontra decidido e que, portanto, se
apresenta como a força motora do poema parmenídico, remete à determinação (A) do
que se pode pensar; (B) do que se deve pensar e (C) de como pensar este que se deve
pensar. São esses que e como que prometem, uma vez identificados e reconhecidos, um
acesso privilegiado tanto à motivação como ao conteúdo da filosofia de Parmênides.
Além desses quê” e como” não se negligencie a outra diferenciação capital aqui em
11
11
jogo, exatamente essa entre o que se pode e o que se deve pensar. Esses três pontos,
juntamente às suas inevitáveis implicações, compõem o tema desta tese.
A obra de Parmênides mostra-se como um daqueles casos em que se pode
reconhecer uma decisão e um movimento inicial do pensamento que já incluem o
preenchimento pleno da sua finalidade, o cumprimento do seu télos. Esta disposição
provoca, inclusive, conseqüências formais na elaboração da obra, que se desenvolve e
se avoluma como se estivesse e de fato está em marcha, indo em direção de si
mesma no sentido de cumprir a tarefa e a promessa que a si mesma impõe desde o seu
início. Intimamente relacionado com essa disposição encontra-se o célebre proêmio do
poema parmenídico, ao descrever o progresso de uma viagem em que a diferença entre
o seu ponto de partida e o seu ponto de chegada indica uma transformação
radicalíssima: aquela em que o pensar se despede de um saber que é, de algum modo,
um não-saber, encaminhando-se paulatinamente à consolidação de um saber efetivo,
batizado como “verdadeiro”. Com efeito, a viagem que nos relata a deusa descreve o
itinerário da ignorância à verdade
1
.
Se causa espécie ou mesmo espanto o que a aqui exponho, ou se parece
incompreensível o que aqui ora se diz, seja introduzido a tulo de contextualização da
situação histórica em que desponta o poema de Parmênides, que o último passo dado
pela filosofia imediatamente anterior a ele, passo este dado por Xenófanes
2
, afirmava a
impossibilidade de um conhecimento
perì pánton
3
que fosse efetivo e exato, considerado
que o próprio conhecimento é, em si mesmo, vacilante e cambiante, o tendo pois
qualquer segurança para afirmar-se mais do que mera opinião. Este antecedente vale
para Parmênides como uma herança, um legado de caráter negativo quanto à
possibilidade do conhecimento e que, como tal, deverá ser confrontado e superado
caso se queira e pretenda afirmar positivamente a possibilidade de conhecer e saber de
1
O fato de o viajante ser qualificado logo no terceiro verso do proêmio como o homem que sabe”,
ei¹do/ta fw½ta
, não implica objeção ao que ora se afirma: ele não sabe, neste exato momento, o que seja a
verdade, posto que esta ainda de lhe ser revelada pela deusa que conduz o discurso ao longo de todo o
poema. É em relação a esse saber na ordem da verdade e do verdadeiro que aquele saber do eídota fôta
terá
necessariamente que ser considerado um não-saber, justo porque não-verdadeiro. O teor preciso dessa
distinção exige que se constate o que é e qual o caráter daquilo que no poema parmenídico é apresentado
como “verdade”, incluindo-se nisso a sua distinção perante as “opiniões”.
2
Xenófanes nasceu em Colofão, na Jônia. Levou, contudo, uma vida de andarilho em nome da divulgação
da sua filosofia, fato que ele mesmo refere em sua obra (B8), tendo-se fixado finalmente, e em idade
avançada, em Eléia, a mesma cidade em que nasceu Parmênides. Boa parte da doxografia da época
aponta-o como o seu mestre. A relevância, porém, de defender ou rejeitar uma eventual relação pessoal
entre ambos me parece desimportante, visto que o que deve nos interessar filosoficamente é a relação entre
as obras, esta sim inegável e francamente decisiva.
3
XENÓFANES B34, 2.
12
12
modo efetivo e seguro. É essa a tarefa de que Parmênides se investe de forma decisiva e
categórica: é na afirmação da incontornabilidade da dóxa, segundo a determinação
xenofânica, que Parmênides encontra o êmulo que o catapultará da ordem das opiniões
eis inicial e elementarmente o sentido do eídota fôta logo ao início do seu poema à
ordem da verdade, transitando assim da afirmação da impossibilidade de um saber
perfeito à perfeição do saber, que ele, Parmênides, denominará “verdade”
4
.
Enquanto Xenófanes nega de todo a possibilidade de um saber perfeito,
Parmênides ocupa-se não exatamente com essa possibilidade, mas imediatamente com
a sua concreção, com a construção de um saber assim caracterizado. Trata-se de
assumir uma atitude diametralmente oposta à do seu antecessor. E se a onipresença da
dóxa é o que impede, segundo Xenófanes, a realização efetiva desse saber, então é
necessário que seja ela, primeiro, conhecida a fundo e, segundo, superada, visto que
apenas o conhecimento sobre as dóxai pode prometer essa superação. Por isso é tão
necessário, diz-lhe a deusa, intruir-se plenamente a respeito das opiniões dos mortais
5
.
Mas não se pode incorrer no equívoco de pretender que essa superação a que me refiro
signifique a eliminação das opiniões como se elas não viessem mais a ocorrer após a
consolidação da verdade, mesmo para o filósofo que conquistou a possibilidade de
conhecê-la: as opiniões são um risco constante precisamente para o pensamento
verdadeiro, pois, de fato, elas representam uma modalidade do pensar que, como tal,
não é permanentemente possível, como se mantém sempre e continuamente como
uma presença, visto indicar a modalidade em que sempre operamos o nosso
pensamento, e isto ocorre, por sua vez, porque em Parmênides as opiniões estão
comprometidas com o pensar a realidade sensível. Antecipo aqui uma posição que
necessito fundamentar a contento no decorrer desta empresa, mas que por ora deve ser
anunciada de antemão: em que pese a distração típica e a amechaníe
6
c
aracterística de nós
mortais, o que qualifica a opinião como opinião não é tão-somente uma suposta
4
o se pode deixar iludir pelo uso coloquial e ordinário da palavra “perfeição” em nosso idioma. Aqui
ela assume o seu valor original, que significa “fazer inteiramente”, “concluir”, “finalizar”, encontrando-se,
por extensão, em absoluto acordo com a mencionada disposição do poema em cumprir o télos que a
filosofia de Parmênides estipula para si mesma, neste caso, a conclusão cabal e final perfeita como o
círculo e a esfera (B8, 43) – de algo então declarado como uma impossibilidade: o saber. Não se trata, pois,
de um saber qualquer, mas sim de um saber perfeito, a mais alta pretensão a que o pensamento pode se
erguer. Sublinhe-se aqui o quanto esta pretensão, nomeadamente a de almejar a perfeição do saber e tê-la
como norte, constitui um elemento primordial para que se compreenda a natureza do conceito de verdade
que o poema oferece.
5
PARMÊNIDES B1, 29-30.
6
PARMÊNIDES B6,5.
13
13
deficiência do pensamento ou da atividade do pensar, mas sim o seu “objeto”; as
opiniões estão muito mais fundamentadas na natureza e no caráter daquilo que sempre
tomamos – porque impossível que assim não o seja – como o nosso objeto privilegiado
do pensamento: a realidade à nossa volta, o smos, e tudo que nele se inclui. Múltiplo e
inesgotável e, porque inesgotável, imperfeito para o conhecer, no sentido que é
impossível conhecê-lo inteiramente, não há sobre ele, impossível haver, um único e
unívoco discurso. Desta forma, a perfeição de um saber a seu respeito torna-se
irrealizável, daí que considerá-lo impõe ser “contaminado” pelo seu caráter, motivo
pelo que, note-se bem, as opiniões são sempre plurais, o que Parmênides respeita com
incrível precisão textual: não a opinião, mas sim as opiniões, plurais como o kósmos a
que se dedicam.
Em contrapartida, a verdade é sempre singular, unívoca. Assim, são as opiniões
necessárias no sentido de serem inevitáveis, e são inevitalmente muitas, infindas,
equívocas. Por esse motivo, a possibilidade de pensar ou poder pensar segundo uma
outra modalidade do pensamento – a verdade – exige do pensamento, ainda que
pontualmente, não só um método e um procedimento crítico que lhe garanta uma ão
e uma “maquinação” distintas daquela amechaníe que caracteriza as opiniões. Bem mais
do que isso, pensar verdadeiramente, isto é, pensar consoante o modo da verdade, exige
a eleição de um outro objeto do pensamento que não aquele a que nos acostumamos a
chamar “realidade”. É neste sentido que se esclarece por que concebo que o
movimento fundamental e mais decisivo da filosofia parmenídica condiz com a sua
decisão pelo pensamento: pela primeira vez o pensamento pensa a si mesmo, e não
apenas o que desde sempre não a filosofia mas todas as expressões possíveis do
saber elegeram como o seu objeto por excelência: o real, o que “gregamente” significou
tomar sempre e insistentemente temas como a phýsis, o kósmos e a noção de pánta
7
como as realidades a que se dedica e se dirige todo e qualquer pensamento.
Aqui antecipo novamente uma outra posição não menos polêmica e que deve
ser igualmente desenvolvida a contento, mas que por ora reduzo a esta breve
7
Privilegio o emprego da forma neutra, acusativa e plural, tá pánta, em detrimento da forma nominativa e
singular, pãn, no intuito imediato de realçar a questão da multiplicidade do cosmo e o contraste que sua
natureza múltipla oferece ao caráter uno da verdade em Parmênides. Além disso, vale lembrar ser essa
uma forma já absolutamente comum ao vocabulário filosófico dos séculos VI e V a.C., sendo predominante
em Xenófanes (inclusive no já citado fragmento 34, absolutamente relevante para a compreensão da
filosofia parmenídica), Heráclito e no próprio Poema de Parmênides, onde o filósofo privilegia o uso de
panta ou de suas demais formas plurais (cf. B1, 3; B1, 28; B1, 32; B4, 3; B6, 9; B8, 33; B8, 38; B8, 60; B9, 1; B10,
1; B12, 3; B12, 4; B13; B16, 4).
14
14
formulação, a de que o pensamento que pensa a verdade não é e nem pode ser
pensamento sobre sensíveis. Conseqüentemente, se a filosofia parmenídica decide-se
em favor do pensamento como objeto do próprio pensamento, o que constitui a sua
decisão primeira conforme já exposto, esta decisão é porém antecedida pela necessidade
do Eleata de superar o interdito imposto por Xenófanes: o que Parmênides ambiciona,
ao debruçar-se sobre a natureza do pensar, consiste em tornar possível o perfeito saber.
A verdade, em Parmênides, corresponde à satisfação dessa necessidade; equivale
portanto à resposta positiva de Parmênides ao “não” xenofânico. É nesse contexto que
a assim chamada realidade sensível será o “outro” em detrimento de quem essa opção
por realizar o até então irrealizável é feita: o sensível pode ser pensado, mas o pode
ser pensado verdadeiramente, posto ser o motivo, por sua natureza e condição, daquilo
mesmo a que Parmênides oporá a verdade as opiniões. Aqui, devo frisar claramente
esses dois momentos pelo que a obra de Parmênides se orienta: (A) readquirir e
reafirmar a possibilidade de um conhecimento tão efetivo quanto perfeito é o intuito
maior de que a filosofia parmenídica se investe e (B) inquerir sobre a natureza e o
caráter do pensamento é o único meio de consegui-lo.
Essa decisão não promove, porém, a exclusão da realidade sensível como objeto
do inquerimento de cariz filosófico, uma vez que é a ela que Parmênides dedica a última
parte do seu poema; ela implica sim, contudo, o estabelecimento de uma clara
hierarquia no que concerne ao saber, posto que pensar a realidade sensível produz
necessária e inevitavelmente opiniões, uma região do pensamento em que é impossível
conhecer com firmeza e absoluta certitude: ser excluída da esfera da verdade, tendo
afirmada a sua fragilidade diante da segura consistência do pensamento verdadeiro é o
detrimento que esse “outro” sofre. Tem-se, portanto, que, segundo o critério do saber, isto
é, de um saber que se quer pleno e perfeito, o pensamento sobre o que é sensível está
sempre condenado a uma insegurança e a uma variabilidade que o determinam como
necessariamente inferior em relação a este rígido e específico conceito de verdade.
Eis então a mais radical e definitiva ruptura promovida pelo filosofia de
Parmênides em relação ao legado que recebe: a construção de um saber perfeito exige a
criação de um novo campo de reflexão para o pensamento filosófico que não aquele
por onde sempre se moveu, tradicional e historicamente; campo ou região do
pensamento jamais adentrado anteriormente. Por isso configura essa aludida decisão
15
15
em prol do pensamento a tomada de uma via apartada e nunca antes trilhada por
qualquer mortal
8
.
Obviamente, a tomada dessa decisão é igualmente algo pensado. Permitindo-me
o uso de uma tautologia, que aqui reforça o sentido que me interessa expor, essa
decisão é pensada pelo pensamento. O que pretendo com isso é sublinhar com o quê,
isto é, com qual teor de pensamento dá-se início ao pensamento que Parmênides nos
apresenta em seu poema, que desde o começo mostra-se ciente e convicto de sua
finalidade e para onde esta o dirige. É preciso perceber aqui uma determinada sutileza, a
de que essa decisão deriva de um raciocínio que recai sobre si mesmo e não sobre
aquilo que, estando fora do pensamento, vem a ser por ele pensado. aqui, por
princípio e à partida, uma certa autonomia do pensar na mais restrita acepção da
palavra. foi dito, mas vale repetir, reconhecer essa convicção ajuda a esclarecer por
que o poema começa com o detalhado relato de uma viagem, através da qual o viajante
é conduzido à concepção de um perfeito saber, à verdade. E muito embora Parmênides
descreva passo a passo o proceder e o desenvolvimento dessa viagem, assim como
expõe o pensamento que se desenvolve e se constrói em torno à verdade na parte
intermediária do poema, nada disso contraria o que aqui vem sendo dito: uma tal
exposição e uma tal descrição podem resultar como ali se encontram elaborados se
construídos de forma retroativa, iniciando-se portanto a partir da certeza de qual é o
ponto de partida e qual o ponto de chegada desse percurso, o que o próprio
Parmênides expressa, como que numa autoreferência, no fragmento 5: “para mim,
porém, é indiferente de onde eu comece; pois para mesmo voltarei de novo e de
novo”
9
.
Decidido a saber e pelo saber, ele sabe; sabe em que se deve basear aquele
saber cuja qualidade é declarada impossível por Xenófanes. Mas é preciso demonstrar e
exibir o caminho trilhado para tamanha conquista e expor também as pré-condições
que a tornaram possível. Estas são, entre outras, funções cumpridas metafórica e
alegoricamente pelo proêmio. Uma dessas pré-condições, imprescindível para a
elaboração desse ‘perfeito saber’, consiste em conhecer a tradição filosófica que lhe é
anterior e o tipo ou o modo de saber que professa. Se assim o fosse, como realizar
uma modalidade do pensar que lhe seja uma alternativa, que lhe seja um outro mais
8
Ver B1, 26-27.
9
B5. Tradução minha. Salvo menção em contrário, todas as traduções apresentadas são de minha autoria.
16
16
apto a conquistar o que os demais não teriam logrado, a saber, a irresistibilidade
persuasiva porque convincente de um modo de conhecimento que Parmênides
nomeará “verdade”? o é pois por mero acaso que Parmênides, o próprio viajante
referido pelo proêmio, seja caracterizado no imediato começo do poema como “o
homem que sabe”
10
.
Sua decisão pelo pensamento é, primeiro, uma decisão pelo pensamento
verdadeiro, na medida em que este e apenas este modo de pensar garante plenitude e
conclusão ao saber, intentando solucionar, desta forma, o impasse histórico quanto ao
problema do conhecimento, problema este que, como exposto, agudiza-se de tal forma
em Xenófanes que o obriga a declarar a sua impossibilidade, introduzindo, por sinal,
pela primeira vez e de forma definitiva o problema da dóxa na história da filosofia. Mas
a decisão parmenídica pelo pensamento inclui conceber e averiguar como o
pensamento opinativo age e pensa, qual o procedimento e a natureza do pensar que se
traduz na emissão de opiniões. Também aqui é a modalidade do pensar dóxico que
importa e ocupa principalmente a filosofia parmenídica. Assim sendo, pretendo expor e
defender a idéia de que o pensar, seja no seu modo verdadeiro, seja em seu modo
opinativo, constitui o objeto primordial do pensamento de Parmênides, um
pensamento que se empenha por distinguir e fundamentar a distinção entre as duas
modalidades possíveis ao pensamento. Sendo que a possibilidade do pensar
verdadeiramente exige que o pensamento debruce-se sobre si mesmo e de modo algum
sobre algo externo ao pensamento mesmo, sendo-lhe portanto exterior.
Talvez ainda não seja possível compreender de todo o que venho
desenvolvendo até aqui sem que se introduza, uma vez mais, uma alusão de caráter
histórico. É sem dúvida que essa decisão parmenídica em prol do pensamento deve ser
esclarecida a partir de uma perspectiva histórica, na medida em que representa uma
decisão pela possibilidade de construção e concretização de um saber que venho
denominando ‘perfeito’ e ‘efetivo’. Isto significa, imediatamente, que ao lançar o seu
olhar para as obras dos filósofos que o antecederam, Parmênides não reconhece neles
um saber verdadeiro. Antes de Parmênides decidiu-se toda a tradição filosófica grega
e também a poética, à sua maneira e diferença por ocupar as suas investigações com
algo a princípio exterior ao pensar, pelo que essa tradição escolheu, a cada vez,
diferentes porém similares objetos de reflexão e questionamento. Predominam assim
10
B 1, 3.
17
17
nessa tradição filosófica a tematização da phýsis, do kósmos e do todo ou mesmo
totalidade que engloba todas as coisas e fenômenos sensíveis, sejam naturais ou
artificiais, presentes espontanemente na natureza ou produzidos pelos afazeres e
relações humanas; a esse todo referiam eles sob a palavra tà pánta. Esses três temas são
a um tempo tão prevalecentes nessa tradição e, de fato, tão entrelaçados que não
seria exagero afirmar que formam, em conjunto, o tema principal da filosofia hoje
convencionalmente chamada pré-socrática, mesmo aquela pós-parmenídica. A despeito
de como os mais distintos filósofos dessa época abordaram essas questões
diferentemente em comparação um ao outro, persistem na natureza desses temas uma
identidade radical quanto ao caráter daquilo que constituiu o objeto comum a todo
pensamento filosófico pré-parmenídico, que dele se ocupou de forma não apenas
privilegiada mas absoluta; essa identidade refere-se ao fato de que esse objeto, mesmo
em suas nuances e distinções possíveis, tal como aludido acima, fosse ao tratar da phýsis,
do kósmos ou de pánta, encontra o seu lugar não no pensamento, mas fora dele.
Assim, o pensar típico e característico dessa tradição se orienta para a reflexão acerca
desses objetos de investigação, permanecendo esse pensamento inteiramente ocupado
com algo declarado distinto e externo ao próprio pensamento, de modo a jamais lhe ser
possível pensar-se a si mesmo, assumindo o próprio pensar como objeto de
inquerimento filosófico
11
. Esse passo é dado primeira e tão-somente por Parmênides,
no que foi seguido por Zenão de Eléia, seguimento este não-livre, porém, de
significativas divergências.
Pertence de fato à filosofia, desde o seu começo, um historiar acerca daquilo que
está a volta do homem e que lhe aparece ante os seus olhos. Com efeito, o próprio termo
historía em grego significa algo como ver com os próprios olhos’, pelo que se entende
como esse ‘historiar’ exige dos primeiros filósofos uma arte da observação e da apreensão
do mundo sensível que, mediatamente elaborada pelo pensamento, será enunciada sob
a forma de uma compreensão sobre isso mesmo que se observou e apreendeu. Essa historía
é para o começo da filosofia tão decisiva que o primeiro emprego textual da palavra
‘filósofo’ de que se notícia surge ladeado pela necessidade desse historiar, a tal ponto
11
Para uma detalhada e enriquecedora consideração a respeito do objeto próprio e predominante do
pensamento que caracteriza a filosofia grega em suas origens e em suas respectivas diferenciações
históricas apesar da sua identidade geral, indica-se a seguinte obra de H. BOEDER: Grund und Gegenwart
als Frageziel der frühgriechischen Philosophie. Den Haag, Martinus Nijhoff, 1962.
18
18
de ser ali qualificado como a pré-condição para que a filosofia seja filosofia
12
.
Conseqüentemente, quanto ao seu método e propósito, pode-se considerar que a
filosofia nascente entende-se a si mesma como um historiar acerca do que aparece e
acontece no kósmos, acerca, portanto, de coisas e fenômenos literalmente sensíveis. Essa
sua disposição não deixou de ser notada por aqueles que primeiro a tomaram como
objeto de análise e investigação histórica. Refiro-me a Platão e Aristóteles que em suas
considerações sobre o conteúdo do pensamento dos primeiros filósofos identificaram
como principal tanto o historiar como a ocupação dele com os sensíveis
13
e seu caráter
ou natureza essencial. Platão definiu toda essa filosofia como
perì phýseos historían
14
, ou
seja, um historiar acerca da phýsis, como de resto indica o uso quase sistemático do
título perì phýseos para boa parte das obras filosóficas escritas à época. Pelo mesmo
motivo denominou-os Aristóteles physiológoi ou phýsikoí, ressaltando assim que a
investigação característica a esses primeiros filósofos toma a phýsis como aquilo a que
consagram o seu pensamento. Isso faz da phýsis a palavra central de toda uma primeira
época da filosofia, um período que encontra o seu limite justamente no poema de
Parmênides, a partir do qual a filosofia deixa de ser necessariamente uma investigação
acerca disso que aparece e do seu modo de aparecimento.
É preciso ainda dizer sobre essa phýsis, que constitui o objeto principal da
filosofia nascente, que a sua tradução usual por ‘natureza’ acaba por obscurecer o
efetivo significado desta palavra dentro do contexto aqui referido. Com uma tal
tradução apenas aproximamos da nossa experiência mais freqüente e atual uma idéia
que a ela não corresponde. Primeiramente refere-se phýsis à natureza’ de cada ‘coisa’
sensível, pelo que se constata uma multiplicidade de phýseis
15
consoante a diversidade
dos fenômenos que se dão no kósmos. Essa diversidade pode ser igualmente considerada
em seu conjunto ou totalidade, conformando assim a idéia de um todo composto, não
12
Trata-se do fragmento 35 de Heráclito, em que se lê: “É bem necessário historiar muitas coisas para os
homens serem amantes da sabedoria”. Grifo meu. Sobre a criação do termo “filósofo” e, por extensão,
“filosofia”, é difícil precisar quando surgiu e por quem. É comum encontrar a alusão ao fato de ter sido
Pitágoras o primeiro a empregá-lo, o que de resto é bastante plausível. Mas a passagem textual mais
remota em que aparece o termo vem a ser este fragmento de Heráclito ora citado.
13
Em nome da precisão, considero terminantemente inapropriado o emprego da palavra ‘ente’ aplicada
aos filósofos anteriores a Parmênides. Como pretendo ainda demonstrar, a idéia de ente ocorre pela
primeira vez em seu poema. Não cedo, pois, á tentação de empregar aqui a expressão “entes sensíveis”,
por exemplo.
14
PLATÃO. Fédon 96a-b.
15
É também este o sentido do termo phýsis em sua primeira ocorrência na literatura grega (Cf. Odisséia, X,
303). A esse respeito, ver NADDAF, G. Le concept de nature chez les présocratiques. Paris, Klinksieck/Les
Belles Lettres, 2008, p. 25.
19
19
por entes, mas por aparecentes’, sem que essa concepção despreze ou desconsidere a
phýsis de cada ‘aparecente’ em particular. Também essa totalidade pode ser nomeada
como phýsis, pelo que este termo pode remeter tanto à ‘natureza’ específica de cada
‘aparecente’
16
como também à ‘natureza’ unívoca ou comum a todos eles. Neste
sentido, vê-se recorrentemente nos escritos da filosofia desse período o emprego de
uma outra palavra muito próxima à phýsis. Mais exatamente do que uma palavra, uma
expressão: nta. Ela se origina de pâs que significa, uma vez mais de forma
ambivalente ou mesmo plural, tanto tudo” e “todo” como “cada”, assumindo este ou
aquele sentido conforme se queira salientar o pensamento sobre a totalidade ou sobre a
especificidade
17
. A duplicidade semântica desses dois termos encarna-se sob a forma de
uma expressão aplicada de forma absolutamente freqüente a este âmbito de
pensamento, o ‘uno-múltiplo’, o ‘tudo-um’ utilizado por Heráclito
18
, que, mais do que
uma expressão, vem a ser a declaração definitiva de qual seja o tema primordial da
filosofia pré-parmenídica
19
.
A noção de phýsis e de tà pánta e a conseqüente distinção no que diz respeito à
‘natureza’ e caráter de cada ‘aparecente’ valem para a filosofia anterior à de Parmênides
como o seu tema principal. Forma-se assim um pensar de teor filosófico em que a
pergunta pelo kósmos será igualmente fundamental, configurando assim um pensamento
cuja característica maior consiste em deixar-se orientar pelo que lhe é exterior e,
portanto, pelo que lhe é de outra natureza e tessitura. Enquanto o pensar é i/)dioj (ídios),
“particular”, o cosmo e sua linguagem são “comuns”, cuno/i(xynói)
20
.
Mesmo quando phýsis, pánta e kósmos não são explicitamente tematizados, vêm
sempre implicitamente à ‘fala’ e permanecem sendo o fundo e também o horizonte
desse pensamento. Pode-se constatá-lo fácil e nitidamente tanto nos primeiros filósofos
Jônios, inclusive e sobremaneira em Heráclito, bem como em Xenófanes, em Pitágoras
e nos pitagóricos em geral. Os primeiros pré-socráticos pensam primordialmente os
temas acima aludidos, com especial destaque para a questão da phýsis. Quando se
afirma, então, que Parmênides decide-se pelo pensamento como objeto do pensar de
teor filosófico não deve isto dar a entender que os filósofos pré-parmenídicos não
16
HERÁCLITO B1.
17
Para uma extensa reflexão sobre o uso e o significado do vocábulo phýsis nos primeiros tempos da
filosofia indico o artigo “Was ist phýsis?” de H. BOEDER. In: Das Bauzeug der Geschichte. Würzburg,
Königshausen und Neumann, 1994.
18
Consultar HERÁCLITO B50.
19
Ver HERÁCLITO B50 e B10.
20
Consultar os fragmentos B2 e B30 de Heráclito, por exemplo.
20
20
pensaram; por suposto que sim, mas não o próprio pensamento em suas possibilidades
e modos
21
. Conseqüentemente, não é por mero acaso que a filosofia em seus primeiros
tempos tenha assumido as formas absolutamente predominantes de uma cosmologia e
fisiologia.
Um rico e variegado saber sio-cosmológico, eis o que realizou a filosofia antes
do surgimento do poema de Parmênides. Não se deve salientar aqui apenas a escolha
pela phýsis como objeto de investigação, bem como pelo todo dos ‘aparecentes’, tà pánta,
e pelo ‘lugar’ em que estes aparecem, o kósmos, como o traço mais decisivamente
fundamental dessa tradição filosófica pré-parmenídica, mas também o fato
filosoficamente cristalino de que essa tradição determina o saber como algo que se deve
ajustar ao que essas realidades sensivelmente apreensíveis mostram ou fazem aparecer.
Os physiológoi, para usar o termo consagrado por Aristóteles, persistem
fundamentalmente na idéia e na convicção de que o seu próprio conhecimento, aquele
que se pode ter e desenvolver tanto quanto possível
22
, deve retirar-se daquilo que nos é
presente e apreensível, logo da realidade sensível em que estamos inseridos e da qual
fazemos parte – ‘de onde mais?’, perguntaríamos todos nós. Parmênides, porém,
procura uma alternativa para essa resposta e, ao respondê-la, oferece-nos esse novo
campo ou região de pensamento, como tenho aqui aludido. Mas no que se refere então
a esses filósofos anteriores a ele, e não somente a eles, claro está, é a partir dessa
conjuntura acima exposta, é a partir daquela referida convicção que se explica a mais
decisiva importância que os sentidos adquirem para o historiar do filósofo, sentidos que
Heráclito, por exemplo, nomeará mártyres
23
, “testemunhas”, e de um modo tal que
estabelecerá:
Do que há visão, audição, aprendizado, eis o que eu prefiro”
24
.
21
Deve-se reconhecer que a filosofia de Heráclito inclui um discurso que aborda uma diferenciada
qualificação do pensamento, mas isso não o aproxima de Parmênides naquilo que ora exponho a respeito
da decisão parmenídica em favor do pensamento como o objeto que a filosofia deve adotar em nome da
ambição por um conhecimento efetivo. Ver HERÁCLITO B113 e B116.
22
É bom que se observe que a filosofia grega logo em seu início demonstra ter ciência de que seu empenho
por conhecer esbarra na questão dos limites do conhecimento. Impossível saber se essa descoberta já havia
se dado nos Milésios, mas em Xenófanes, como visto, coetâneo de Pitágoras, essa descoberta é
categoricamente expressa e assumida. Virá a ser um traço marcante do pensamento grego, provocando,
entre tantas outras a ela análogas, a mais célebre formulação socrática. Resta-me dizer que também em
Parmênides esse limite é afirmado e defendido, mas de forma dual: um limite de mesmo caráter, se se
toma a realidade sensível como tema; e um limite formal para o conhecimento verdadeiro, posto que ele só
pode ocorrer numa região de pensamento igualmente precisa e definida, a abstração de caráter lógico. Eis
mais uma posição que será defendida em momento oportuno.
23
HERÁCLITO B107.
24
HERÁCLITO B55. Permito-me citar a tradução publicada por mim. In: COSTA, Alexandre. „Heráclito:
fragmentos contextualizados“. Rio de Janeiro, Difel, 2002. p. 111-113.
21
21
O que se sabe e o que há; o que se conhece primeiro através da apreensão
sensorial e, em seguida, através da atividade do pensar e o que aparece, isto deve ser
um e o mesmo, ainda que não em sua própria natureza, mas em seu teor e significado.
O saber possível ao homem é então obrigatoriamente dependente dessa equivalência
25
.
Isto faz com que esse modo de proceder com o pensamento torna-o não-livre, no
sentido que a sua decisão implica obediência e submissão àquilo que a phýsis, o kósmos e
pánta revelam. Trata-se de um modo de saber que se decide deliberadamente por essa
dependência perante o mundo de que trata e que é, em relação ao próprio pensamento,
um outro. Essa decisão convicta, franca e ciente de si mesma justifica-se por não haver
um outro modo possível de conhecer. Ao pensar o pensamento, como pretende
Parmênides, essa alteridade entre o pensamento e o seu objeto encontra-se excluída e
vige, assim, uma relação pensamento-pensamento, ou seja, uma relação de identidade
absoluta, uma auto-relação. Pense-se aqui no fragmento 8 do poema, em que a exclusão
do diverso serve à afirmação de que o ente é total e absolutamente idêntico apenas a ele
mesmo. Por conseqüência, o saber de caráter físio-cosmológico, o saber promovido e
conquistado pela tradição filosófica aqui mencionada, faz da ‘natureza’
a fonte e o
fundamento a partir dos quais ele mesmo se constrói e desenvolve, e isto até um ponto
em que esse saber e essa ‘fonte’ sejam, tanto quanto possível, um mesmo. Daí, por
exemplo, o ideal de homología
em Heráclito e a sua palavra, no atual fragmento 1 do que
nos restou de sua obra, em que se fundem o lógos ouvido pelo filósofo e o próprio lógos
do filósofo
26
.
Fixando sua base tanto no conjunto das coisas e fenômenos sensíveis e em suas
respectivas phýseis, o conhecimento promovido por essa filosofia nascente oferece-nos
um saber perì phýseos. Ou, ainda mais precisamente, um saber que é determinado por
aquilo em torno do qual ele orbita: assim revela o sentido e o significado literal da
preposição perí/, “em torno a”, “acerca de”. Neste caso, trata-se de uma tarefa de
conhecimento que situa o seu inquerimento em torno à phýsis, conformando assim um
25
Pense-se, por exemplo, na analogía pitagórica e na homología heraclítica.
26
HERÁCLITO B1. Neste primeiro fragmento, que segundo o testemunho de Sexto Empírico corresponde
à introdução do livro escrito por Heráclito, o
lógos
que se depreende e se apreende a partir da phýsis de
cada coisa funde-se textualmente com o lógos
do próprio filósofo. A partir dessa fusão, categoricamente
ressaltada na apresentação do seu pensamento, reconhece-se aquilo em que consiste e o que constitui o
saber para Heráclito
ou)k e)mou= a)lla\
tou= lo/gou a)kou/santaj o(mologei=n sofo/n e)stin e(\n
pa/nta ei=)nai.
(B50). O que se ouve e se colhe do lógos, deve tornar-se lógos da filosofia, desde que esta se
entenda como pretendente a um saber efetivo. Essa idéia é de tal forma decisiva para o pensamento de
Heráclito que reaparece em distintas passagens do que restou dos seus escritos. Sejam aqui referidos, além
dos já mencionados fragmentos 1 e 50, os fragmentos 19 e 112.
22
22
saber que se movimenta em volta dela, mantendo-se igualmente atraído e enraízado em
sua órbita, encontrando justamente o seu limite e extremidade. Permanece, assim,
sendo a phýsis e seus temas correlatos tanto o objeto principal como o pensado pelo
pensamento dessa tradição filosófico-cosmológica.
Com a inclusão do poema de Parmênides na história da filosofia, esta passa a
conhecer uma decisão para uma possibilidade de saber que lhe era totalmente inaudita.
Decide-se não mais pelo tema central e mais importante dessa tradição; decide, então,
que não é estritamente necessário que o objeto primordial da filosofia seja este que
sempre foi, e que o pensamento não pode ter a si mesmo como objeto de reflexão
mas, mais do que isso, que é essa a alternativa mais certeira caso se queira efetivamente
conhecer. Doravante pense-se sobretudo o pensamento, parece propor Parmênides,
como se bradasse aos seus antecesssores: ‘por que se deve pensar única e
incondicionalmente os aparecentes’ e suas respectivas phýseis e fazer deles o objeto
exclusivo do conhecimento? Será de fato inevitavelmente necessário que o pensamento
tenha que lhes seguir e obedecer, como se fosse esta a sua única possibilidade?’. Não,
ao menos para Parmênides não é necessário que seja exclusivamente assim. Pelo
contrário, a questão que parece remeter aos seus antecessores que partilham da sua
mesma ambição, pode ser ainda mais agudamente formulada: ‘Não vêem vocês que a
filosofia, através dessa sua sempre repetida decisão, perde a sua possibilidade de
conhecer verdadeiramente?’. De acordo com esta interpretação da obra parmenídica,
Parmênides defenderia que a filosofia deve antes optar pelo próprio pensamento como
o seu objeto por excelência e, desde que ela mesma, a filosofia, caracteriza-se pelo teor
de pensamento que desenvolve e expõe, deve ser exatamente ele, o pensamento, seu
objeto privilegiado de conhecimento. Essa ruptura abre a possibilidade de um modo de
saber que se liberta do que lhe é externo. Em Parmênides é a filosofia definida, por e
desde o princípio, pela crítica e rigorosa lógica do próprio pensamento de caráter
filosófico. Eis então a decisão definitiva: primeiro a determinação do pensamento e do
seu objeto, o seu ‘quê’; somente esta decisão pode mostrar ‘o que é’ e ‘o que não é’, e
isto depende, por sua vez, de como’ pensar, de como proceder crítica e logicamente o
pensamento.
Diante desta minha interpretação, poder-se-ia questionar que, se a verdade e o
ente da parte intermediária do poema não se referem à phýsis
,
o poema não se chamaria
perì phýseos
.
Eis aqui uma objeção infundada. Primeiro porque
a phýsis
está incluída na
23
23
totalidade da filosofia de Parmênides; sua exclusão se dá, apenas, da ordem da verdade.
E, segundo, porque a própria elaboração do conceito de verdade, assim como os
predicados e o caráter do ente verdadeiro dependem de uma determinada concepção de
phýsis
,
concepção esta que condiciona, por contraste e oposição, a criação da verdade
parmenídica conforme o seu desejo de obtenção de um conhecimento efetivo. Se tudo
que se relaciona à phýsis envolve geração e corrupção, o ente parmenídico é não-nascido
e também imorredouro; se, da mesma forma, exige ela a temporalidade de tudo, o ente
é extemporâneo; se fosse ela chamada ‘fogo’, seria o ente ‘água’ e assim por diante, o
ente é sempre o seu avesso perfeito. Ao fim e ao cabo, é o caráter da phýsis
o que define
tudo no poema: para a parte central, indireta e negativamente, às avessas, portanto; para
a sua parte final, direta e positivamente. O poema descreve dois caminhos: a natureza da
verdade e a natureza do kósmos perì phýseos
.
É notável, porém, que a parte dedicada
positivamente à phýsis
seja exatamente a que versa sobre as opiniões. Simplício oferece-
nos um testemunho de suma importância a esse respeito, no qual justifica por que o
poema de Parmênides, assim como a obra de Melisso, possuíam esse título, que, tal
como venho propondo, vê-se sim a inclusão da phýsis
nessas obras, mas na qualidade de
um objeto do pensamento claramente sub-ordenado àquilo por meio de que se pode
efetivamente conhecer, por isso, no caso de Parmênides, a sua inclusão na parte das
dóxai.
Simplício
27
argumenta que o poema não versa apenas sobre o que está acima e é
superior à phýsis
,
mas também sobre o que lhe diz respeito: a parte final do poema.
Segundo este relato “o acerca da phýsis
é o que a deusa considera “o acerca das
opiniões”
28
.
Determinada pelo seu próprio e interno pensamento, aprenderia a filosofia
consigo mesma, não mais ou apenas com o ‘mundo’ ao seu redor. O pensamento assim
concebido e pensado ensina ao próprio pensamento o que é e como este quê’ deve ser
pensado, pois ao pensamento deve pertencer, obrigatoriamente, uma coesão e
coerência internas, caracterizadas pelo rigor crítico, rigor que impede que o pensamento
contradiga ou resista a si mesmo. E isto, este ‘como’, deve valer, também, para quando
o pensamento elege a realidade sensível como o seu ‘quê’. É o que faz Parmênides
27
SIMPLÍCIO. Testimonia. A14 Diels.
28
Ver PARMÊNIDES B8, 60.
24
24
quando trata das opiniões: a mesma deusa que discursa a verdade, discursa a verdade
das opiniões, revelando assim a verdade sobre um
dia/kosmon e)oiko/ta pa/nta
29
.
Com isso também ocorre na filosofia de Parmênides pela primeira vez um
pensamento que basta a si mesmo, e justamente por isso será dito pleno e a si mesmo
idêntico. O mesmo que dizer livre e autônomo. Mas, quando o é, não trata do real
sobre o que o nosso conhecimento está fadado à imperfeição –, mas do ideal
30
, único
terreno em que a perfeição é possível.
29
As traduções para a qualificação desse diákosmos das opiniões variam desde “de todo enganoso” a “em
todo verossímil”. Em todos esses casos, é esse um diákosmos não-verdadeiro, sendo a verossimilhança a sua
possibilidade máxima.
30
Não no sentido metafísico que esse termo irá adquirir mais tarde, mas sim com a denotação de aquilo
que se constitui na ordem das idéias, uma vez que puramente pensado, sem relação, portanto, com um
“outro” que não o pensamento.
25
25
A alternativa e a decisão de Parmênides tal como as exponho aqui representam
uma ruptura com o procedimento filosófico que lhe é anterior, decretando assim uma
transição possível ao pensar, a de abstrair da realidade sensível como seu único e
exclusivo tema, a fim de adentrar-se por um modo ou tipo de conhecimento
assazmente inovador. Um tal movimento define um gesto de transição absolutamente
revolucionário, tanto no que diz respeito à antiga filosofia grega, como no que concerne
à história da filosofia como um todo. Ela abre a essa história a possibilidade de pensar
não apenas o kósmos dito real e sensível, mas o kósmos do pensamento. É de
fundamental importância destacar que o poema de Parmênides dedica-se a esses dois
kósmoi, o que de resto justifica e explica a composição formal do seu poema, em que se
separam a parte dedicada à verdade e a parte dedicada às opiniões: do primeiro desses
dois kósmoi expõe o caráter e a ação do pensamento opinativo; do segundo, apresenta a
novidade lógico-argumentativa da abstração exigida ao pensamento verdadeiro. Define,
assim, sem possibilidade de toque ou conciliação entre ambos, dois campos
radicalmente distintos do saber possível ao homem, um deles apenas aproximativo; o
outro, firme e seguro. Distinção esta que corresponde ainda hoje, sem que demos por
ela, à cisão entre ciências da natureza e ciências puras. Eis então a totalidade do poema,
que trata, portanto, dos dois modos possíveis ao pensamento consoante os seus dois
distintos objetos. Totalidade esta, diga-se de passagem, desrespeitada pela imensa maior
parte da literatura atual a respeito do poema, que se ocupa quase que exclusivamente da
parte em que versa a deusa sobre a verdade e que se atrapalha de forma geralmente
constrangedora se perguntada por que teria Parmênides escrito a parte final do poema.
Concluo esta introdução deixando claro que tudo o que aqui se expôs em
caráter ao mesmo tempo afirmativo e proponente deve-se à necessidade de apresentar
as intenções desta tese que, exatamente por elas, pretende fazer-se uma tese na acepção
do termo. Sei que ela soa, de início, estranha e até mesmo quase tão ‘herética’ quanto
defender o diabo em plena Idade Média, de modo que me cabe o desafio de
desmanchar essa estranheza, realçando a sua pertinência.
Mas não tenho, em nenhuma
hipótese, a pretensão tão tola quanto estéril de que seja esta uma interpretação que
invalide as demais; pelo contrário, o interesse é o de mostrar o quanto pode ser mais
uma interpretação cuja arquitetônica é, tanto quanto me for logrado, sólida, fazendo-se
capaz de enriquecer o já rico acervo interpretativo acerca do poema. Os capítulos
seguintes prestam-se a esta intenção e à demonstração e conquista do que aqui foi
26
26
apenas apresentado, o que exige, de imediato, um recuo à relação que o poema
parmenídico estabelece com a tradição mito-poética grega.
27
27
I – A procedência poética da filosofia de Parmênides e a singularidade
do caráter divino do seu poema
Constituído por três partes
31
um proêmio (B1), uma segunda parte dedicada à
verdade (B2 a B8) e uma parte final cujo tema são as opiniões (B9 a B19) –, o Poema de
Parmênides oferece de imediato uma dificuldade aos seus leitores e estudiosos: sendo
essas três partes muito distintas entre si, seja no que se refere aos seus conteúdos, como
também às suas formas ou gênero, como conciliá-las a contento? Esta pergunta, por
sinal, gera um outro obstáculo: será mesmo que devem ser conciliadas? De onde
nasce a nossa tendência a conceber o poema como um todo necessariamente
harmônico, um conjunto internamente coerente apesar das referidas diferenças de teor
e de caráter que separam suas três partes?
Perguntas como essas têm sido respondidas das mais variadas formas,
perfazendo a grande amplitude e diversidade que marcam a literatura a respeito da
compreensão do poema. um pouco de tudo dentro desse acervo crítico. Desde as
hipóteses que apontam no seu interior a mais franca contradição até as que vêem no
poema a mais absoluta coerência, passando por hipóteses ou soluções intermediárias,
como aquelas que sugerem que Parmênides tê-las-ia escrito em épocas distintas, de
modo a conterem o itinerário do seu pensamento e, portanto, as mudanças que esse
pensamento teria sofrido ao longo do tempo
32
.
Não é propósito desta tese fazer aqui uma tão longa e erudita quanto cansativa
inventariação a respeito dessas nuances todas. O que se intenta é somar a essa já tão
extensa e controversa tradição mais uma interpretação do poema, ela mesma
controversa e, quiçá, polêmica. A própria deusa garante a Parmênides que dela ouvirá
uma controversa tese
33
. Não se tem, portanto, o direito de achar que esta não seja
igualmente controversa. Antes, porém, de adentrar pela exposição da interpretação aqui
a ser proposta, devem-se antecipar duas das principais conclusões a que cheguei a
respeito: (A) afirmar-se-á aqui, relativamente ao todo do poema, uma perfeita coerência
31
É também muito freqüente considerar o poema como sendo constituído de duas partes, opção em que o
prólogo ou proêmio é considerado uma ‘antesala’ para as duas demais partes da obra.
32
É o caso de Nietzsche, por exemplo. NIETZSCHE, F. A filosofia na idade trágica dos gregos. Lisboa, Edições
70, 1987. p. 57. Aproveito a oportunidade para antecipar que, salvo em casos muito específicos, preferirei
sempre indicar edições em língua portuguesa quando as houver, naturalmente para os títulos
originalmente escritos em idiomas estrangeiros.
33
B7, 5-6. Sobre esse tema cf. ROBBIANO, Chiara. Becoming Being. Sankt Augustin, Academia Verlag, 2006.
28
28
e concepção, sem negar, entretanto, as referidas distinções, mormente entre as suas
duas partes finais, mutuamente excludentes e inconciliáveis; isto se torna possível a
partir do momento em que se entrevê aquela que constitui a finalidade da obra, a
disposição filosófica que move Parmênides; e (B) essa finalidade se faz visível se se
considera o movimento histórico em que o poema desponta, posto que a partir do
diálogo que estabelece com a tradição do pensamento a ele anterior, tradição esta não
apenas filosófica, mas também poética, é que se revela a sua genuína e decisiva
motivação.
As três partes do poema são classicamente divididas da seguinte forma: um
proêmio ou prólogo, em que se narra a viagem por que passa o autor; uma segunda
parte, central ao poema, contendo a exposição do caminho da
peítho, a quem
acompanha a verdade, freqüentemente chamada pela literatura especializada a ‘parte
ontológica’ ou mesmo ‘metafísica’; e, por fim, a parte final, referente ao caminho das
opiniões dos mortais.
Quanto ao estilo e gênero literários, o proêmio apresenta-se em linguagem
claramente poética e encontra-se versado consoante a métrica e o idioma épicos; a parte
intermediária, por sua vez, ainda que mantenha a métrica e o idioma épicos, adquire um
caráter radicalmente argumentativo, sendo a sua pronúncia predominante a de uma
argumentação lógica; e a parte final, novamente um tanto mais poética, possui,
contudo, forte caráter cosmológico
34
, muito semelhante quanto ao gênero, mas nem
tanto quanto ao conteúdo, aos escritos de mesmo teor produzidos à época,
especialmente na região em que viveu Parmênides. Essa distinção na ordem do estilo e
da linguagem obedece a uma dupla situação: primeiro, em virtude da função que cada
parte exerce no poema; cada uma delas funcionando de acordo com um determinado
propósito; e, segundamente, porque essas formas ou modos de linguagem o uma
contingência do conteúdo cognitivo exposto em cada uma dessas partes. Talvez não
pudessem, portanto, assumir uma outra forma que não aquela mesma que assumem,
pelo que se constata de imediato a copertinência entre o conteúdo do que é pensado e a
forma pela qual esse mesmo conteúdo é expresso.
O proêmio cumpre um duplo propósito: ao narrar a viagem de Parmênides,
menciona a sua própria formação, o diálogo estabelecido com a história do pensamento
34
Em momento oportuno será demonstrado como a parte cosmológica do poema, a sua parte final,
constitui também uma espécie de antropogonia, a quem os aspectos cosmológicos e cosmogônicos
encontram-se subordinados.
29
29
que lhe é anterior; a segunda função do proêmio é a da exortação, anunciando, em seu
final, a clivagem que, per se, justifica a divisão formal do poema.
Quanto ao trecho inicial e majoritário do proêmio, a descrição poética de uma
viagem, o que se é uma sucessão de alusões a variados poetas e filósofos da tradição
grega. As menções aos poetas são muitas, realizadas através de alusões a passagens de
obras antigas por meio do emprego de determinadas imagens poéticas e também do
uso de uma métrica característica. Essas alusões, entretanto, não se justificam apenas
como referências meramente estéticas ou mesmo gratuitas a Homero e Hesíodo, por
exemplo, mas constituem, para o próprio sentido do proêmio, a forma com que o
Eleata acena o seu estreito diálogo com o saber cantado pelas musas e, mais do que
isso, o modo como torna identificável qual seja a procedência e o ponto de partida do
seu pensamento. Tais referências são então utilizadas sobretudo como um modo de
demonstrar como Parmênides é conhecedor dessa forma de saber e, por extensão,
dessa linguagem.
Em seu caráter ricamente alegórico e por vezes decididamente minucioso,
passagens há do proêmio que podem ser igualmente lidas como remissões aos filósofos
ou às idéias filosóficas anteriores a Parmênides, alguns deles praticamente seus
contemporâneos. As noções de necessidade e justiça, por exemplo, ainda que também
refiram certamente à poesia épica, cumprem um papel decisivo nas filosofias de
Anaximandro e Heráclito. Aqui, portanto, apenas um meio pelo que se pode atestar o
conhecimento de Parmênides acerca da filosofia de sua época e o diálogo com ela. Por
outro lado, a persistente referência às dualidades, tais como noite e dia, luz e trevas,
dentre tantas, não são, novamente, apenas menções a Hesíodo, por exemplo, mas
também ao pitagorismo, tão popular à época, principalmente na Hélade italiota, onde
Parmênides viveu. O mesmo vale para Xenófanes que, tendo sido ou não mestre de
Parmênides, parece um dos seus principais possibilitadores, nem que seja por
necessidade de refutação da posição que ele, Xenófanes, assume em respeito à
possibilidade do conhecimento, atuando assim na finalidade fundamental de todo o
poema: é Xenófanes o primeiro filósofo a tratar explicitamente do problema da dóxa
35
,
mencionada aqui, no final do proêmio e, mais que isso, um dos caminhos viáveis
apresentados pelo poema, ainda que inferior ao da verdade e dela absolutamente
apartado. A posição final da filosofia de Xenófanes, declarando o império da dóxa e da
35
B1, 30.
30
30
verossimilhança sendo esta igualmente insuficiente para o conhecimento –, condiz
com aquilo contra o qual a filosofia de Parmênides parece se erguer: a fragilidade e a
falta de firmeza que reconhece no ‘saber’ dos seus anteriores, contra os quais arremesa
a sua fundamentada concepção de verdade, isto é, a conquista de um saber plenamente
seguro e confiável.
A título de correção, parece justo informar que tais referências, tanto a filósofos
como a poetas, não se encontram apenas no proêmio. Além de Xenófanes,
Anaxímenes, Pitágoras e o pitagorismo são uma presença marcante na última parte do
poema, em que é de se reconhecer um indelével sotaque pitagórico, a despeito da
originalidade do pensamento de Parmênides também em sua seara ‘cosmológica’.
Talvez a figura de Heráclito esteja presente, seja pela crítica ao seu célebre mobilismo,
seja sobretudo pela idéia da simultânea convergência e divergência dos contrários
36
que
possibilita reunir, num só nó, o que é e o que não-é
37
.
Sendo assim, o diálogo histórico com poetas e filósofos
38
mostra-se como um
traço marcante não só do proêmio mas de todo o poema. No proêmio,
especificamente, é um modo pelo qual Parmênides refere o seu conhecimento a
respeito dessas duas tradições, um artifício pelo que demonstra ter ouvido e assimilado
tudo o que o saber grego havia oferecido: a ele e a nós. À história. É por isso e
apenas por isso que o próprio autor se nomeia o eidóta fôta, “o homem que sabe”
39
. O
que sabe Parmênides? Tudo isso que lhe disse a tradição da filosofia e da poesia ditada
pelas musas, pelo que despontam progressivamente ao longo do proêmio, de forma
mais específica, mas também ao longo de todo o poema, de um modo geral, passagens
e passagens que dialogam intimamente com diversas obras do período pré-parmenídico.
Ele nos dá testemunho dessa sua formação e, num duplo salto, tanto presta reverência a
ela pois foi quem o nutriu a ponto de estar preparado para que ele mesmo,
Parmênides, pudesse inserir-se nessa tradição, impondo a sua novidade, a sua diferença
36
Cf. HERÁCLITO B8 e B10.
37
Parece-me extremamente difícil ler o fragmento 6 de Parmênides sem pensar no Efésio, por
exemplo.B49a: nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não somos.” (COSTA, Alexandre.
op.cit. p. 105). Isto não prova, contudo, que Parmênides tenha tido conhecimento a respeito do pensamento
heraclítico, ainda que essa possibilidade o deva ser de todo descartada. O fato é que os testemunhos
históricos com que contamos mostram-se insuficientes para uma constatação inconteste tanto sobre a
possibilidade como sobre a impossibilidade de Parmênides ter entrado em contato com o conteúdo da
filosofia de Heráclito.
38
É necessário referir que essa distinção refere-se muito mais a uma possibilidade atual do que a uma
diferenciação de época. Com efeito, é difícil determinar com exatidão quando se torna clara à própria
tradição grega a mencionada distinção.
39
B1, 3.
31
31
–, como também a critica, posto que, sendo tanta e tão vária essa tradição, onde,
efetivamente, o conhecimento, o saber? Daí tê-la chamado “multíloqua” polu/fhmon
(polýphemon)
40
: tem tanto a dizer e guarda em si tanta divergência que não diz verdade.
É preciso observar com precisão o rico e detalhado texto que compõe o
proêmio. Para legitimar a posição ora exposta, ou seja, para que se compreenda esse
“duplo salto” acima referido, faz-se necessária uma grande atenção aos primeiros versos
do proêmio. Inicialmente, o caminho para o qual Parmênides é conduzido por
divindades
41
ainda é o caminho nomeado multíloquo. Neste exato momento ele se
apresenta como “o homem que sabe”. Por isso a sua condição de sapiente ainda não
pode se referir à revelação da verdade, posto que esta ser-lhe-á revelada pela fala da
deusa mais adiante. Corrobora-se assim que esse saber relaciona-se com o saber que
Parmênides aprendeu e reconhece nos antepassados, sejam filósofos ou poetas. Ele
seguirá nesta senda até que as Heliades, as filhas do sol, conduzam-no até o ponto em
que se abandonam os domínios da noite”,
dw¯ mata nukto/j (dómata nyktós)
42
. Fica
assim rapidamente definida a dupla disposição que o filósofo assume diante do saber
pensado pelos seus anteriores: foi nessa via que ele, Parmênides, se tornou o homem
que sabe; mas agora, sabendo-a, conhecendo toda a extensão desta via, ele está
finalmente preparado para abandoná-la em prol de um outro saber, um saber ainda
superior àquele que aprendera com as musas e com os pensadores de seu tempo.
Mas se é assim, significa isto que o próprio Parmênides, na qualidade de
personagem do poema, ainda tem algo a aprender e a experimentar. No fundo, todo
esse saber que faz dele o homem que sabe consiste agora naquilo que terá de deixar
para trás. Neste momento, o viajante encontra o ponto da sua decisão, o seu marco
zero no caminho: o que ele decididamente tem que saber ainda está por vir. E virá
alegoricamente a partir de um outro, uma deusa que a ele tudo revela. Por ser o
discurso do poema o discurso da deusa, Parmênides é tratado no proêmio não como
sujeito das orações, mas como pronome oblíquo. Ele não é jamais um “eu”, mas
permanentemente um me” ou “mim”, até tornar-se definitivamente um “tu” tão logo
a deusa tome para si a palavra, indicando com isso que, no cenário do poema, nem a
ação nem o conteúdo do saber lhe cabem, mas sim à deusa. O saber o é seu, eis do
que tem que se convencer e no que confiar: que o verdadeiro saber lhe vai ser revelado,
40
B1, 2.7.
41
B1, 3.
42
B1, 9.
32
32
o que significa, para ele, que a sua tarefa consiste num deixar-saber, tal como ocorre a
Homero e a Hesíodo relativamente às musas que lhes ditavam os poemas.
Estilisticamente considerado, a adoção do pronome oblíquo constitui um
recurso inusitado, uma vez que a poesia grega não parece ter conhecido um tal uso,
especialmente se se toma Homero como critério literário. Mas para Parmênides está em
jogo essa situação filosófica, pelo que seu estilo assume exatamente essa forma. E uma
vez sendo assim, percebe-se que é ele o sapiente não apenas por ter sabido e por ter
aprendido com os seus antepassados, mas porque está disposto, com todo ardor do seu
ímpeto, thymós
43
, a saber o que ainda não sabe: disposto a descobrir a verdade. Esse
outro lado da sua condição de “o homem que sabe” reaparecerá indicada no fragmento
2 do poema, em que se percebe que é por motivo de um questionamento que ele se abre
para a aludida disposição em saber e descobrir o que ainda não sabe nem descobriu.
Aqui, neste momento, em que os portais da noite e do dia ficaram pra trás mas a voz
da deusa ainda não se pronunciou, aqui se encontra Parmênides diante dessa sua
disposição e diante da sua própria necessidade de decidir. Por esta razão, ele encontra-
se numa dizésis
44
, isto é, diante de um caminho de questionamento que se bifurca e,
diante desta bifurcação, deverá decidir por que caminho continuar. O discurso, bem
como a apresentação desta bifurcação são da deusa; mas a decisão é dele. E decidir-se
pelo caminho que a deusa o induz significa, para ele, não saber o que está por vir. E se
isso que ainda lhe está por vir ele não sabe nem pôde ainda saber, a despeito de tudo o
que tanto conhecia, significa que se trata de um saber e de uma experiência que não lhe
vêm pela observação nem pelos sentidos, nem pela memória do que sabia a partir da
aqui mencionada tradição filosófica e poética, mas apenas e tão-somente pelo
pensamento.
O proêmio evidencia portanto que Parmênides passou por esse caminho
multíloquo, mas também que o sentido de sua viagem consiste justamente em
ultrapassá-lo. Nessa passagem e nessa ultrapassagem, o encontro entre a reverência
diante de quem lhe formou e preparou, mas também a despedida e o desvencilhamento:
é chegada a hora de abandonar a tradição e dar o próximo passo. Chegou a hora de
abandonar a noite em prol da luz, a hora de libertar-se dos véus
45
. no proêmio um
trecho em que essa ambigüidade que une e separa Parmênides de seus antecessores faz-
43
B1, 1.
44
B2, 2.
45
B1, 9-10.
33
33
se especialmente clara, sendo a tradição algo a se reverenciar, pois é ela mesma que o
possibilita e, ao mesmo tempo, é ela também algo de que se despedir, porque equívoca.
Entre os versos 26 e 28, a deusa lhe diz que o foi uma moîra, um mau destino,
quem lhe conduziu até ali, mas, tendo-o portado até ali, se encontra agora
Parmênides trilhando um caminho jamais desbravado por qualquer mortal. Parmênides
adentra um novo domínio, não o da mortalidade das opiniões, que passam e devêm,
mas o da imortalidade da verdade, que é e permanece
46
. O discurso sobre uma moîra
kaké no proêmio do poema adquire outros significados igualmente relevantes. Trata-se
de uma expressão homérica (Ilíada, XIII, 602) pela qual se designa o “mau destino”, isto
é, a morte. A saudação chair´ (B1, 26), pronunciada pela deusa e dirigida ao seu ouvinte,
aliada ao esclarecimento de que este mesmo ouvinte chegava até ela não por intermédio
de uma moîra kaké, ou seja, não por intermédio da morte, revela não apenas que o
viajante chega onde chega sem ter morrido, mas ainda vivo, como revela também, por
extensão, que dificilmente se pode aceitar a hoje em voga interpretação de que
Parmênides teria descrito no proêmio do seu poema uma experiência de katábasis. A
saudação acima mencionada reforça esse impedimento quanto à opção pela
interpretação a favor de um mergulho no mundo dos mortos. A morte não pontua
aqui, como é usual em Homero, na qualidade de um destino funesto, moîra ka, mas
muito mais como a morte do não-saber, como o desvencilhar-se da ignorância dóxica
dos mortais. Vale notar, Parmênides frisa que se trata de um caminho à parte dos
homens” (B1,27), pelo que se pode interpretar que o novíssimo ‘território’ agora
explorado promete na verdade uma feliz e promissora experiência, uma inédita
experiência do próprio pensamento ao descobrir suas possibilidades jamais antes
pensadas. Trata-se então da experiência de um pensamento puro, mas puro apenas e
tão-somente porque depurado daquilo que turva o pensamento dos mortais, e que logo
será objeto de consideração da própria deusa (B1, 30)
47
. É por isso que,
sintomaticamente, o proêmio culmina com o encontro entre o filósofo e a deusa
46
B1, 26.
47
A interpretação do proêmio como o relato acerca de uma viagem mística ao mundo dos mortos, uma
katábasis, ganhou um novo alento a partir da publicação do artigo “Parmenides and Er” por J. S.
MORRISON (In: Journal of Hellenic Studies, 75, 1995, pp. 59-68) que, por sua vez, baseia-se nos estudos de
W. BURKERT (“Das Proömion des Parmênides und die Katabasis des Pythagoras”. Phronesis, 14, 1961) e
também nos de D. FURLEY (“Truth as what survives the élenchos”. In: Cosmic Problems. Cambridge,
Cambridge University Press, 1989). Os argumentos aqui arrolados são suficientes para descartar essa
possibilidade interpretativa. Em todo caso, indica-se o recente artigo de C. KAHN, intitulado “some
disputed questions in the interpretation of Parmênides” (In: Anais de filosofia clássica. I, 2, 2007), em que
este autor oferece a sua crítica à interpretação do proêmio como resultante de uma katábasis.
34
34
anunciadora da verdade
48
, pois é essa a diferença e a novidade que Parmênides tem a
revelar, somando-a à tradição: o ainda não pensado, a verdade
49
.
Mas para que adentre esse novo domínio, é preciso abandonar o anterior, aquele
em que se encontrava. Assim, uma vez abandonado o domínio da noite e ultrapassados
os portais da noite e do dia
50
, então é que o viajante se encontra no local e na
condição exata e necessária para que se lhe revele o que verdade é.
A figura dos portais da noite e do dia compõe uma imagem valiosa, uma das
muitas que atestam as referências que Parmênides faz à tradição do pensamento a ele
anterior. Através de uma imagem, Parmênides alude tanto ao pensamento e à obra
de Hesíodo como também ao saber filosófico de sua época, uma vez que reconhecer
que tudo ocorre ou move-se por meio de oposições e antíteses constitui um dos traços
mais marcantes de ambas essas matrizes de pensamento. Parmênides explicita através
dessa imagem a necessidade de abandonar esse pensamento antitético e, porque
antitético, plural, em favor do que seja uno. O âmbito ou domínio da oposição dia-
noite, que perpassa todo conhecer humano em suas várias possibilidades, deve ser
superado em favor do seu unívoco território de origem, que se mantém “atrás” dos
48
Tecnicamente, a deusa que, no poema, é quem detém e mantém o discurso, não é nomeada em nenhum
momento. Ainda assim, parece-me justa a consideração dos intérpretes que afirmam ser ela a deusa da
verdade. Segundo essa perspectiva a deusa seria a própria alétheia. Com efeito, o fato de o poema
apresentar uma clara hierarquia quanto às possibilidades de conhecimento entre a verdade e as opiniões
dos mortais, além da observação de que aquele que conhece a verdade pode descrever o efetivo caráter
da não-verdade, o argumentos bastante convincentes em prol dessa posição. É de especial interesse e
valor a argumentação de Martin Heidegger a respeito (HEIDEGGER, M. Parmenides. Frankfurt am Main,
Vittorio Klostermann, 1982, pp.1-23).
49
Não é Parmênides o primeiro a utilizar o termo. Em Heráclito, vê-se o emprego de ta/
a)lhqe/a
, (
aléthea) forma neutra plural de valor adjetivo (Cf. B112), d ser comumente traduzida por “coisas
verdadeiras”. Mais remotamente, a forma substantiva, tal como utilizada pelo Eleata, aparece uma única
vez na Ilíada, quando Homero relata um diálogo entre Príamo e Hermes, este disfarçado de escudeiro de
Aquiles. O curioso no emprego do substantivo no poema homérico é o fato de estar inserido numa
expressão
pa=san a)lhqei¿hn kata/lecon
(Ilíada, XXIV, 407) através da qual o rei de Tróia pede ao
‘escudeiro’ para que lhe conte toda a verdade, o que deixa entrever a possibilidade de uma gradação da
verdade, isto é, de ela ser parcialmente verdadeira e, ainda assim, verdade. Este uso seria absolutamente
absurdo em Parmênides. A verdade, se não é inteira e íntegra, a verdade que não é “toda”, perfeita, já não é
verdade. Essa clareza sobre o peso conceitual de um uso substantivo do verdadeiro, a verdade, é o que faz
a grande força e a revolucionária novidade do emprego da palavra no poema parmenídico. Nesse sentido,
não se deve tomar por incorreto que se declare que, ainda que o seja o criador do termo, Parmênides
venha a ser o “inventor” da verdade, posto que a partir dele, gostemos ou não, a verdade é,
efetivamente, a verdade: substantiva e unívoca; integral e completa. Única, a verdade. Além disso,
considerando que a palavra, antes dele, era de raríssimo uso em sua forma substantiva, o papel de
absoluto destaque do termo em seu poema, aliado ao novo e radical sentido que lhe confere, conforme
aludido acima, fazem do Eleata, do ponto de vista filosófico, o criador da idéia de verdade. Para uma
detalhada exposição sobre o uso textual do termo alétheia no antigo idioma grego, aconselho a leitura de
“Die Entwicklung des Wahrheitsbegriffs bei den Griechen”. In: SNELL, B. Der Weg zum Denken und zur
Wahrheit: Studien zur frühgriechischen Sprache. Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, (1978) 1990, pp. 91-104,
e também
“Der frühgriechische Wortgebrauch von Logos und Aletheia”. In: BOEDER, H. Das Bauzeug der
Geschichte. Würzburg, Königshausen und Neumann, 1994.
50
B1, 9-21.
35
35
portais fechados
51
. Trata-se pois de uma viagem que tem o equívoco como ponto de
partida e o unívoco como porto de chegada.
Entre um ponto e outro, é Parmênides guiado por divindades, até que seja
tomado pela mão
52
, finalmente, por uma deusa cujo discurso é responsável não apenas
pelo restante do proêmio, mas sim por todo o conteúdo do poema. Dessa forma, não
no proêmio, mas ao longo de todo o poema, o conhecimento que nos é oferecido
por Parmênides é textualmente movido e ditado por uma deusa. Qual seria o porquê
dessa escolha? Por que preferiria Parmênides esse estilo de literatura, uma alegoria
poética, quando pertence a um círculo em que tal modo de pensar e tal maneira de
expressão eram vistos como risíveis? Pense-se nos escritos de Xenófanes, por
exemplo
53
. Platão, no seu Parmênides, aponta o fato de ter sido o Eleata ridicularizado
pelo seu pensamento e obra
54
. Será que uma tal escolha condiz apenas e tão-somente
com o artifício literário pelo qual Parmênides mostra da grandeza do seu espanto,
espanto a quem tanto Platão como Aristóteles consideraram a origem de todo e
qualquer filosofar? É bem possível que sim. Mas para além dessa resposta possível,
duas outras inscrevem-se igualmente como possibilidades: (A) para indicar, como
relatado no proêmio, que se trata de um caminho nunca antes percorrido por qualquer
humano, isto é, por qualquer mortal, pelo que, não sendo pertencente ao mundo dos
mortais, tem que sê-lo do dos imortais, do divino; (B) e também para alegar a sua
procedência homérica, a quem deve uma decisão primordial para a sua filosofia.
Com efeito, essas duas possíveis respostas à questão aqui proposta não se
excluem mutuamente; pelo contrário, complementam-se. É preciso pois desenvolvê-las
para que se torne claro o que com elas se quer dizer.
É no verso 27 do proêmio que a deusa diz a seu ouvinte que o caminho que ora
se lhe abre é um caminho à parte dos homens”. No verso anterior, ela antecipa-lhe
que não se trata de uma moîra kaké/ quem o destinou a esse caminho. Essa antecipação
é necessária para que não se julgue que se trata aqui de uma viagem post-mortem. O
proêmio indica um caminho, sem dúvida, e também diz o ‘para onde ir’ desse caminho.
A última destinação humana, o seu último ‘para onde’ é a morte. Isso é óbvio e
flagrante, por isso tem a deusa que mostrar ao seu ouvinte que, neste caso, não se trata
51
B1, 16-17.
52
B1, 22-23.
53
XENÓFANES B1, B2, B11, B15 etc.
54
PLATÃO. Parmênides. 128 d.
36
36
dessa obviedade, porque, afinal, ela lhe diz que não é nenhuma Moira, a morte,
quem o trouxe até ali. Pelo contrário, fala de um regresso: “salve!, porque nenhum
destino funesto te enviou a voltar por este caminho”
55
.
Assim é quebrado o entendimento usual da morte como mau destino através da
idéia de um regresso, um regresso no sentido de um refúgio ou isolamento em relação a
todos os caminhos humanos, mortais. É nesse sentido que, não sendo mortal o
caminho, será ele necessariamente divino. E é também nesse isolamento, nesse estar à
parte dos homens, que Parmênides receberá da deusa a revelação de suas palavras.
Mas o verso acima citado impõe uma delicada pergunta: em que sentido pode
ser entendido o caminho pelo qual Parmênides agora adentra como um caminho de
retorno? A tradução se justifica pelo fato de que a forma
ne/esqai (néesthai)–
normalmente traduzida para o português pelo verbo “virou verbos análogos pode
ser tranqüilamente vertida para “voltar”, retornar”, “regressar”; com efeito, são estes
os seus significados mais exatos, uma vez sendo forma verbal de noste/w (nostéo) e dado
o parentesco deste com no/stoj (nóstos), assumindo assim o significado de regresso e,
mais do que isso, de um regresso ao pensamento no/oj (nóos)
56
. Isso consistência
textual à idéia de um retorno ou reencontro com um pensamento puro que, por sua
vez, para que seja puro, necessita depurar-se da errância
57
típica do ir e vir do pensar
humano que, desorientado, se movimenta sem meta, caminho ou destino próprios,
consumindo-se inteiramente em suas banais preocupações.
Assim sendo, o ouvinte da deusa deve penetrar uma região em que igualmente
afastados se encontram aquilo com que os homens geralmente se ocupam: o ‘mundo’ à
sua volta. Isolado no mais radical ensimesmamento do pensar, Parmênides adentra o lar
dessa deusa, onde todos e quaisquer ‘aparecentes’ encontram-se ausentes. É nessa
região do pensamento que lhe pode ser revelada a verdade. É nesse domínio que ante
ele se abre, a partir que fiquem para trás os portais da noite e do dia, onde nada mais
para ver e ouvir mas apenas para pensar, é que ele conquista a condição de
55
B1, 26-27.
56
A esse respeito, ver WINTER, S. “Die Gegenwart der Themis bei Parmenides und der Entzug der
Bestimmung in der Heideggers Lichtung”. In Sapientia. LIV, 205, 1999, pp. 5-21.
57
Cf. B6, 5:
pla/ttontai
(pláttontai). É interessante notar que também o vocábulo
pa/toj
(pátos; B1, 27)
“atalho”, “trilha”, “caminho” – pode ser traduzido por “vagueação”, o que realça, tal como também o faz a
sua tradução por “atalho”, que o caminho de Parmênides é um caminho apartado da falta de rumo
característica ao humano. Esta tradução mostra-se novamente adequada quando se considera que o uso
deste termo em linguagem homérica adquire muitas vezes o significado aludido. A esse respeito, indico o
artigo WINTER, S: Die Gegenwart der Themis bei Parmenides und der Entzug der Bestimmung in der
Heideggers Lichtung ”. In Sapientia. LIV, 205, 1999, pp. 5-21.
37
37
experimentar o que a deusa lhe tem a dizer, recebendo-o assim para além de toda
sensibilidade, uma região do pensamento que pode ser explorada a partir que o
próprio pensamento sofra uma total ‘desmundificação’.
A casa da deusa é portanto esse ensimesmamento do pensar, em que o
pensamento recai sobre si mesmo, fazendo de si o seu objeto. O isolamento onde se
calam as vozes que compõem aquela via multíloqua. Se, por um lado, não foi uma
Moira que o conduziu até aqui, por outro cabe perguntar: quem então? Anteriormente
se havia afirmado que essa condução dado o diálogo histórico com poetas e
filósofos da tradição que Parmênides deixa entrever ao longo do proêmio – relaciona-se
com a formação do saber do próprio viajante. Mas agora é preciso mais do que isso
para que se complemente a razão pela qual é permitido a ele a entrada nesse novo e
inexplorado terreno; é preciso pois dizer o que foi e sempre é decisivo nesse
aprendizado que o ouvinte da deusa colecionou da tradição, isto é, qual o conteúdo
positivo a partir do qual ele foi portado aonde ora se encontra, pelo que se revela,
igualmente, qual o ponto de partida do pensamento de Parmênides. É a própria deusa
quem de responder a essa pergunta: não uma moîra, mas thémis e díke
portaram o
viajante até o seu domínio
58
.
Se o encontro com a deusa significa um retorno, um reencontro do pensamento
consigo mesmo, esse regresso, por outro lado, foi-lhe propiciado por essas duas deusas,
uma, thémis, a fundadora de toda lei, e outra, díke, literalmente, a indicadora, aquela que
indica a obediência e a observância daquilo que já fora decidido como lei por sua mãe,
thémis. Díke, a filha, assume a missão de não permitir que se transgrida a lei
59
, cuida para
que o seu conteúdo, aquilo que thémis estipulou, não se desvaneça e perca valor. Díke
indica, separando, o que é justo e o que é injusto de acordo com essa lei, e é por isso
que é comumente referida como a deusa da justiça; sempre atenta, é ela quem pune
todos os possíveis desvios, todas as agressões ao que sempre se encontra decidido e
estipulado por thémis
60
. É na segurança dessa indicação, na firmeza desse mostrar o que é
58
B1, 26-28.
59
“O sol não excederá as medidas”, afirma Heráclito; “se o fizer, as Eríneas, servas de
di¿kh
, hão de o
encontrar”. HERÁCLITO B94. In: COSTA, Alexandre. op. cit. p. 151.
60
Sobre díke como punidora, o próprio proêmio oferece um belo exemplo dessa sua função ao nomeá-la
di¿kh polu/poinoj
(díke polýpoinos): justiça de muitas penas” ou “justiça de muitos castigos/condenas”
(B1, 14). Mostra-se relevante notar que é ela, no proêmio, quem controla o acesso aos portais do dia e da
noite, tendo ela se deixado persuadir pelas Heliades a fim de que o viajante pudesse transpassá-los (B1, 14-
18). Que a deusa da justiça se tenha permitido persuadir significa: (A) bons argumentos apresentaram as
Heliades a favor de Parmênides e (B) que neste exato momento, Parmênides é julgado por díke
como
merecedor ou não dessa permissão, o que reforça a idéia de que o acesso à verdade, mesmo que revelada,
38
38
ou não justo, ou seja, o que deve e o que não deve ser, que se engaja pístis, termo que
significa tanto “confiança”, como “convicção” e que não adjetiva a verdade
61
no
proêmio como também é o modo da experiência – puqe/sqai (pythésthai)
62
: “instruir-se”,
“aprender” pela experiência do que é fiável, convicto e convincente a que a deusa
exorta o seu ouvinte em total confiança e intimidade.
Tratam-se de deusas absolutamente tradicionais à cultura grega em geral e cuja
origem é tão remota que imemorial. Aqui Parmênides recorre a um modo de
pensamento que julga deter princípios e valores que devem ser recuperados. É porque
observou e obedeceu aos princípios e significados a que se associam thémis e díke que ele
pode, agora, estar onde está, ou seja, na iminência de ouvir a verdade através do
discurso da deusa.
Que princípios são esses, mais exatamente? E por que devem ser recuperados?
Comece-se pela primeira pergunta. Se thémis é a fundadora, vale inquerir: o que funda
thémis? A lei. E qual é o teor, qual o conteúdo da lei estipulada, decidida por ela? ‘Como
e o que tem que ser’
63
. E díke? O que julga e indica díke? A distinção do que obedece ou
não a essa lei. Decisão e distinção. O pensamento parmenídico encontra-se fortemente
marcado e orientado por esses dois elementos, por esses dois princípios que ele
converte em procedimento do pensar filosófico. Não seria exagero dizer que são eles
que determinam mais radicalmente o caráter da filosofia de Parmênides, ao passo que o
caminho do não-ente e sobretudo o das opinões dos mortais são assinalados com as
marcas contrárias, a da confusão e da indecisão
64
. É nesse binômio que Parmênides
encontra aquilo que regula e rege o seu poema, a primeva e primeiríssima decisão por
aquilo que desde thémis se encontra decidido, e a observância da distinção sempre
conhecida por díke: como e o que tem que ser, tem necessariamente que ser; como não tem
que ser e o que não é, que não seja!
65
.
É importantíssimo ressaltar essa procedência, esse ponto de origem do
pensamento parmenídico pois, do contrário, tornamo-nos presas fáceis das infindáveis
é resultado de uma conquista. De resto note-se também que díke
exerce um importantíssimo papel nas
filosofias de Anaximandro (cf. B1) e Heráclito (cf.. B23, B28, B80 e B94).
61
B1, 30.
62
B1, 28. A passagem “necessário é, porém, que de tudo te instruas” remete a uma expressão homérica.
Ver Odisséia IV, 494.
63
Esta é a qualidade mais notável e marcante dessa deusa, a ponto de constar com freqüência mesmo nos
mais usuais manuais de mitologia grega. Para uma detalhada análise sobre a etimologia e significado de
thémis no idioma grego antigo refiro o capítulo Themis de Karl Reinhardt. In: REINHARDT, K.
Vermächtnis der Antike. Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1989, pp. 26-32
64
Cf. B6.
65
Ver B2, 1-5; B6, 1-2.
39
39
discussões filológicas acerca da mais exata tradução dessa e daquela passagem do texto,
sem ultrapassar, com isso, mais do que um facilitado literalismo técnico. Baseadas
apenas em palavras, as traduções podem ser várias e, ainda assim, todas acadêmica e
cientificamente válidas. O que deve decidir alfim uma tradução é aquilo que o intérprete
considera ser o teor do pensamento que o texto defende. Sem que se tente
compreendê-lo não se chega a qualquer parte. Neste caso específico, observar que
thémis e díke valem como referências a serem obedecidas pelo pensamento pode
oferecer uma via promissora quanto à tarefa de interpretação do poema. Julgo,
especificamente, que a relação entre o que essas duas deusas representam para o poema
e a sua indicação de como proceder o pensamento a fim de que este se torne seguro e
fiável
66
possibilita esclarecer, por exemplo, expressões que, tomadas apenas em sua
literalidade, tornam-se um tanto obscuras, pouco compreensíveis. Uma dessas
expressões condiz justamente a uma das sentenças mais decisivas, senão a mais decisiva,
de todo o poema: a formulação muitas vezes encontrada sob formas sutilmente
diferentes para os versos 3 e 5 do fragmento 2, que, resumida, poder-se-ia apresentar
como ‘o que é, é, o que não é, não é’, ainda que expresse algo condizente ao conteúdo
do poema é, por outro lado, consideravelmente precária em termos de significação. Os
fragmentos 2, 3 e 6 do poema, por exemplo, caso se siga esta tendência obsessiva pelo
literalismo, tornam-se passagens difusas, redundando em formulações de pouco
sentido.
Em relação à sentença citada, o texto do poema emite uma clara carga
imperativa, impregnando-se de um sentido de necessidade, anánke
67
, que não raro é
negligenciado, tal como no caso da tradução paradigmaticamente aludida acima.
Retome-se então a segunda pergunta: por que devem ser recuperadas thémis e
díke? Primeiramente porque, da parte dos homens, o que elas decidem e distinguem
como lei e norma está sempre continuamente sob risco. Tanto a transgressão como o
esquecimento são caros aos mortais. Seja aqui relembrado apenas um de incontáveis
possíveis exemplos: Sísifo, cujas transgressões Zeus puniu, impiedoso, com dolorosa
pena, obedecendo o imperativo divino pela conservação da ordem das coisas, portanto,
pela manutenção de um kósmos estabelecido consoante uma determinada estrutura e
engrenagem. Mantê-los é da ordem da justiça, portanto da ordem de thémis e díke,
66
Cf. B8, 50.
67
Mais uma das idéias centrais do poema, interferindo decididamente na sua forma de expressão e
pensamento. Ocorre três vezes ao longo da obra, em B8, 16; B8, 30 e B10, 6.
40
40
sempre atentas e vigilantes a fim de preservar o que é tal como é. Trata-se de um estado
de direito. Do contrário, a akosmía. Aprisionar a morte, como fez Sísifo, não pode ser,
pura e simplesmente porque não é como é . Possível fosse, desmanchar-se-ia de todo o
próprio kósmos, corromper-se-iam sua ordem e sua estrutura, ao emperrar a sua mais
decisiva engrenagem, a morte. Trata-se do mesmo imperativo pelo qual, ele mesmo,
Zeus, ascendeu ao posto maior dentre os deuses, ao punir seu pai das injustiças
cometidas, e pelo qual, também, presenciou a morte de Heitor sem que em nada
pudesse interferir. Ele, o mais potente dos deuses, impotente diante do que tem que ser,
necessariamente. Também aqui, na mais alta divindade, age a lei por thémis e díke
respectivamente estabelecida e observada.
Sobre o fatídico esquecimento que atinge os mortais, sempre interessados em
esquecer o que lhes aflige a própria condição de mortais, talvez nada mais categórico e
belo possa ser aqui evocado quanto o trecho final do primeiro fragmento de Heráclito,
que assim versa: “Aos outros homens, encobre-se tanto o que fazem acordados, como
esquecem o que fazem dormindo”
68
. Heráclito afirma que “aos outros homens” cabe o
esquecimento e o deixar-se encobrir, e de tal forma a ser indiferente se estão acordados
ou adormecidos, tamanha a soberania que sobre eles tem o esquecer. Considerar a idéia
de verdade a partir dessa sentença de Heráclito pode constituir valioso recurso, uma vez
que esse encobrir lanqa/nei (lanthánei)– e esse esquecer
e)pilanqa/nontai
(epilanthánontai) mencionados pelo filósofo de Éfeso partilham o mesmo radical do qual
se origina ou é derivada a palavra grega para “verdade”, alétheia, que, portanto,
sublinhando o seu alfa privativo, significa justamente a necessidade de negar o esquecer, a
imperiosidade de rejeitar o esquecimento, léthe, do que seja o verdadeiro. Talvez
pudéssemos traduzir alétheia por inesquecimento” ou “desenconbrimento”, ou ainda
“desvelamento”, como faz Heidegger, mas, em todos os casos, uma vez que é vastas e
vastas vezes esquecido justamente o que não é para esquecer, essa negação introduzida
pelo alfa privativo com que se inicia a palavra parece impor-lhe um teor de
compromisso, uma conotação imperativa: verdade é aquilo que não se deve esquecer ou
deixar encobrir.
Eis aqui uma vez mais a idéia de retorno aludida pelo proêmio: sair do
encobrimento que o esquecer promove para se reencontrar com a deusa que profere a
verdade, a fim de que se redima e expurgue todo esquecimento possível. O que não se
68
In: COSTA, Alexandre. op.cit. p.53.
41
41
deve esquecer mostra-se portanto justamente como aquilo que thémis e díke, juntas,
significam. E é isso que Parmênides pretende recuperar com a sua filosofia. Esses
princípios que determinam e estipulam a lei que não deveria ser jamais esquecida.
Se esquecidos, porém, é necessário lembrá-los. E é aqui que o diálogo com a
mais remota e fundadora tradição mito-poética grega se revela, para Parmênides, uma
interlocutora inestimável. E, no que concerne a essa tradição, que outro nome mais
relevante, mais próprio para nos dizer o que significam thémis e díke do que o universo
homérico? Talvez resida a razão pela qual o Eleata veio a escolher a gramática’ de
Homero para servir de base à composição do seu poema. Claro está que é terrivelmente
difícil ponderar o porquê de Parmênides ter-se decidido pela língua e mesmo pela
métrica homérica para que ambas constituíssem a forma de expressão que domina e
tange o poema; mas essa possibilidade ora desenvolvida a recuperação e a utilização
do que esses dois nomes divinos têm a significar, e não apenas estes –, possa talvez
oferecer um próspero caminho, hodós, interpretativo. Com efeito, tanto quanto nos é
dado saber sobre, são os poemas homéricos que salvaguardam quase todo manancial de
um saber primevo e primordial dos gregos, um saber em que mais que os nomes os
conteúdos e significados de thémis e díke foram fundados e mantêm-se preservados.
Parmênides retorna a Homero principalmente para dele readquirir o valor e o
significado dessas duas deusas, pelo que uma vez mais se compreende a recorrente
presença de Homero em seu poema, seja no mencionado uso da métrica dos seus
versos, seja no uso do idioma épico, seja também no recurso a imagens e expressões
que evocam tanto a Ilíada como a Odisséia e seja, por fim, no conteúdo do saber que as
musas lhe ditaram, como aqui o presente caso. Uma presença que pouco a pouco
revela-se maior e mais preponderante à medida que avançamos na análise do poema.
Como teria sido possível dizer o que aqui foi dito sobre thémis e díke, por exemplo, se
não o fosse por essa tradição?
69
Entende-se também, finalmente, o motivo pelo que se
69
Tome-se como exemplo de uma dessas imagens alusivas aos poemas homéricos a passagem, no
proêmio, em que se descreve o lugar em que Parmênides se encontra quando abandona o domínio da
noite em direção à luz (B1, 9-10). Esta passagem mostra-se igualmente importante justo pelo fato de se
considerar, aqui, que a viagem descrita no proêmio consiste numa viagem de regresso. Esse ‘ir para a luz’,
ainda mais conduzido pelas Heliades, filhas do sol, é geralmente interpretado como uma viagem em
direção ao sol; mas se se considera que é este justamente o ponto intermediário do trajeto percorrido pelo
viajante, parece ser mais justo compreender que não se trata aqui tão exatamente do sol quanto da aurora.
Parmênides alcança os confins do mundo, onde o sol desponta. Mas o sol ainda o nasceu e por isso o
que ele contempla é a aurora que ora abandona a casa da noite. Haveria aqui, conseqüentemente, uma
clara relação com o nascer dos dias homéricos, cuja aurora irrompe com dedos róseos. Sendo assim, essa
aurora à viagem de Parmênides a sua decisiva direção, e uma viagem à aurora significa uma viagem à
origem, uma viagem de regresso.
42
42
declarou anteriormente que uma das razões pelas quais Parmênides opta por escrever o
proêmio de acordo com um discurso pleno de divindades e alegorias poéticas diz
respeito justamente à intenção de mostrar sua procedência mítica em geral e homérica
em particular, a quem deve a possibilidade de decidir-se por thémis e díke.
Se os homens moram nesse esquecimento, o esquecimento daquilo que jamais
deveria ser esquecido, são figuras como os acima citados Heráclito, Homero e
Parmênides que assumem a tarefa de alardear a sua lembrança. E isso que não se deve
esquecer é, tanto pra Homero como pra Parmênides, thémis e díke, ou seja, a
irreconciliável distinção entre o o que é e como tem que ser, por um lado, e o que o é e
como não pode ser, por outro. E isso a um tal ponto que, decerto, poder-se-ia intitular o
caminho do ‘como e o que é’ simplesmente como o caminho ‘como thémis é’, através do
que chegar-se-ia novamente à formulação ‘como tem que ser’ consoante a sua lei
70
.
Entende-se por que a deusa, então, saúda Parmênides como alguém que faz uma
viagem de regresso: trata-se do regresso que indica a conciliação do pensamento de
Parmênides com essa sua predeterminação, abandonando assim o esquecimento típico
e caro aos mortais em direção ao não-esquecimento da verdade. Esse retorno significa,
igualmente, a compreensão do verdadeiro como o justo, o direito.
E é aqui que se revela o segundo porqpelo qual devem ser recuperados os
princípios que thémis e díke representam. Refiro-me aqui à constatação de Anaximandro
sobre a predomínio do estado de desordem e caos, de injustiça, uma vez que a vida de
todas as coisas, compreendida e espremida entre o surgir e o perecer, expõe a
experiência do existir como algo injusto ou mesmo trágico; uma vida cujo único sentido
é aquele que, sob o ponto de vista do perecente, menos interessa. Em Anaximandro a
negação do direito precede a sua efetivação. Também miticamente são o direito e a
justiça pense-se nas sucessões dos ‘reis’ supremos dessa mitologia, Urano-Kronos-
Zeus, por sua vez, os criadores da ordem, da beleza e do organizado arranjo que os
gregos denominaram kósmos, um esforço literalmente divino no sentido da superação de
um caos não originário
71
como mais amplo e abrangente que o próprio kósmos; pelo
mesmo motivo também a sociedade humana o cosmo político deve empenhar-se
70
Sobre a sugestão de compreender o caminho do ‘como e o que é’ sob a forma ‘como thémis é’, consultar
BOEDER, H. Topologie der Metaphysik. Freiburg/Munique, Karl Alber Verlag, 1980, pp. 97-110.
71
Para Hesíodo, Caos é de todos o primeiro a nascer, nada antes dele, representando assim a condição
original a partir da qual o kósmos, seu avesso, foi criado e ordenado. HESÍODO. Teogonia, 116. Também em
Heráclito vemos o cosmo como possibilidade do caos: “das coisas lançadas ao acaso, a mais bela, o cosmo”
(B124). In: COSTA,Alexandre. op.cit. p. 191.
43
43
pelo direito e pela justiça. A idéia de kósmos, seja o divino ou o humano, o macro- ou o
microcosmo, consiste na decisão em favor de um ponto de resistência do estado de
direito contra o caos, sendo porém este ‘que’ interior ao todo, onde a desordem, o não-
direito e a injustiça prevalecem.
Uma tal concepção implicou como sintoma a enorme freqüência com que os
filósofos pós-anaximândricos consideraram as relações de direito em suas cosmologias,
assim como o largo emprego da palavra kósmos, que passa então a ser tão usual
justamente por ser ele, o kósmos, o único abrigo do que é justo. Anaximandro, ao
mostrar o ‘como é’, depara o não-direito e a injustiça de tudo. Por isso talvez tenha se
tornado claro para Parmênides que um ‘como é’ caracterísitca maior do modo de
expressão e descrição da filosofia pré-parmenídica –, não é suficiente: necessário é
regressar à origem, realizando a passagem desse como é’ da cosmologia filosófica para
o ‘como e o que tem que ser’ que ele, Parmênides, passa a comungar com o saber
ditado pelas musas.
O panorama aqui exposto, mesmo que sucinto, permite tornar tanto mais clara
como mais palpável a extensão do que deve Parmênides ao saber das musas, sobretudo
as homéricas, e o que dele retira como legado, neste caso, um legado positivo. Em
contrapartida valem-lhe Xenófanes, como indicado, e também Anaximandro como
heranças negativas, na medida em que afirmam aquilo contra o que Parmênides se atira.
Contra o primeiro arremessa a sua concepção de verdade, capaz de coexistir com as
dóxai sem confundir-se, porém, com elas: da necessidade parmenídica de estabelecer
uma incontornável incisão entre alétheia e dóxai, do que emerge à filosofia parmenídica a
possibilidade, pela via da verdade, de consolidação do conhecimento, uma motivação e
uma obrigação da sua filosofia diante do interdito anteriormente proferido por
Xenófanes; Anaximandro lhe oferece o ensejo, por negação, de que assuma o
compromisso de um retorno afirmativo em favor do saber e da justiça: saber o justo
implica a justiça e a justeza do saber. Essas três heranças, uma positiva e duas
negativas
72
, conformam, em seu conjunto, o ponto de partida e o impulso principal a
partir dos quais Parmênides desenvolve e edifica a sua filosofia.
72
Ainda que se especifiquem aqui esses dois nomes pelos motivos apresentados, pode-se tranqüilamente
afirmar que, em geral, toda a filosofia anterior à de Parmênides vale-lhe como ‘legado’ apenas no sentido
de uma negação, isto é, serve-lhe sobretudo na medida em que a decomposição dessa antiga filosofia
constitui um dos passos necessários da composição do pensamento parmenídico, o que teremos
oportunidade de observar aquando da análise da parte central do poema.
44
44
Tomados pela azáfama da vida cotidiana e pelas suas preocupações particulares,
os homens esquecem o que não se deveria esquecer, alétheia. Não é este o caminho que
Parmênides quer para si, justo o contrário: do esquecimento para a verdade, de léthe
para alétheia, eis a direção de sua viagem, eis o sentido de todo o proêmio.
45
45
II – Os dois caminhos de inquerimento e o caminho das opiniões dos
tombados pela morte
O proêmio abre, assim, o sentido histórico-filosófico da motivação do Eleata.
Num certo sentido, considerada a singularíssima novidade que introduz à história do
pensamento, a filosofia de Parmênides não possui qualquer predecessor. Mas aqueles
que lhe foram anteriores, sejam eles os primeiros filósofos, sejam eles os grandes poetas
da tradição grega, acabam por lhe servir, nem que seja por negação, como êmulo para
que erija o monumento que é o seu poema. Sem eles, não estaria formado. E, também,
não teria de algum modo como conceber a verdade: ela os nega, mas, por outro lado,
ela se faz possível como resposta aos seus equívocos; por isso mesmo ela, a verdade,
singular e unívoca. A equivocidade alheia orienta qual deve ser o caráter do novo: a
univocidade. Do multifalante discurso da tradição ao discurso de uma única deusa, eis mais
uma formulação que indica o sentido e o télos filosófico principal do pensamento de
Parmênides. Ainda que a verdade lhe seja revelada e dependa, para ele, de um ‘deixar
saber’, a sua elaboração não deixa de corresponder a uma reação à falta de
conhecimento efetivo que observa na tradição: suas múltiplas posições sobre o mesmo
atestam o seu equívoco, o seu erro e a sua errância
73
. Mera coincidência a verdade ter de
ser concebida como imóvel, isto é, não-errante? Para onde se moveria um
conhecimento verdadeiro, por onde erraria, para a inverdade? Para não ser mais
conhecimento? O problema principal contra o qual Parmênides se ergue é o problema
do conhecimento ou, antes, o da falta dele. O pensamento de Parmênides orienta-se
pela pergunta acerca do que se pode efetivamente conhecer e como.
Não é, portanto, mero acaso que o proêmio seja encerrado com o anúncio de
duas necessidades: necessário é que o ouvinte da deusa se instrua a respeito do tão
inabalável quanto imperturbável
74
coração da verdade bem-persuasiva, em torno do
qual o verdadeiro conhecimento se realiza; igualmente necessário, porém, que aprenda
73
B6.
74
B1, 29:
a)lhqei¿hj eu)peiqe/oj a)treme\j [a)treke/j] hÅtor
. Em seu primeiro testemunho Sexto
Empírico refere
a)treke/j
(atrekés)para este verso (§ 111); no segundo (§ 114), porém,
a)treme\j
(atremés). A
escolha é difícil, que ambos se enquadram muito bem no contexto geral do proêmio, que alude à coesão
e à firmeza do coração da verdade, pelo que não pode ser abalado, nem perturbado ou distorcido. Porque
acabam sendo complementares, acumulo aqui os dois adjetivos. O termo atremés
encontrar-se-á
novamente no poema, no verso 4 do fragmento 8, correspondendo aí a uma das determinações que
caracterizam o ente, o que pode ser um bom critério de decisão a seu favor.
46
46
as opiniões dos mortais, tíbias por definição, em que um conhecimento firme e fiável
não tem lugar por não partilhar da segurança e da convicção da verdade
75
. Para
Parmênides, chegou a hora de a filosofia ser filosofia: a hora de conhecer, finalmente.
O fato mesmo de empregar a expressão opiniões dos mortais” sempre no plural não
seria uma alusão precisa à “multifalácia” das considerações humanas? Dizera opinião”
não condiz com o seu carácter. São sempre plurais. Eis aqui a clivagem final do
proêmio, a clivagem que justifica as duas próximas partes do poema como uma
necessidade de se instruir sobre esses dois caminhos, até mesmo para expor a segurança
de um e a fragilidade do outro no que tange ao saber; o conhecimento efetivo e
inabalável que acompanha a verdade, conhecimento que se quer imortal, impossível de
se ultrapassar, em detrimento do pseudo-conhecimento que a cada vez afirma isso e
aquilo eis por que mortais são as opiniões. Não apenas porque por mortais pensadas,
mas também porque perecem face à sua própria falta de consistência.
O coração da verdade, assim como as opiniões dos mortais formam, em
conjunto, tanto o todo como tudo sobre o que se instruir. Com efeito, a deusa assim
afirma:
Necessário é, porém, que de tudo te instruas, tanto da verdade bem persuasiva o
inabalável coração, como as opiniões dos mortais, em que o confiança verdadeira”
76
.
Muito embora a verdade e as opiniões dos mortais perfaçam tudo o que há para
aprender, Parmênides apresenta, ao longo do poema, três vias, todas elas designadas
pelo mesmo termo, hodós, “caminho”: (A) a via da peítho
77
, a qual a verdade acompanha,
a via em que o ente perfeito e pleno é; (B) a via do não-ente, a via do que não é e de
como não deve ser
78
; e (C) a via das opiniões dos mortais
79
.
Como e pelo que foi excluída desse todo a se aprender uma das vias, a do não-
ente? O fragmento 2 responde a essa pergunta, mas aqui esbarra-se num problema
textual no que concerne à declaração da deusa a respeito do motivo dessa exclusão. Há
duas versões relativamente ao sexto verso do fragmento 2: uma em que consta
panapeuqe/a (panapeuthéa); outra, porém, em que se panapeiqe/a (panapeithéa)
80
.
Segundo a primeira versão, o caminho aqui excluído, o que e como não tem que ser, é
nomeado pela deusa como “de todo insondável”, podendo ser traduzido igualmente
75
B1, 30
76
B1, 28-30
77
B2, 2.
78
B2, 2.
79
B6, 4.
80
Ver DIELS-KRANZ. p. 231.
47
47
por “de todo inexplorável” ou mesmo “de todo impensável”. A segunda versão, por
seu turno, afirma-o de todo não-convincente”. Diga-se de antemão que ambas as
versões mostram-se pertinentes, isto é, compatíveis com o conteúdo geral do poema. É
claro que no caso da tradução por “impensável” deve-se assumi-lo necessariamente no
sentido de uma negação imperativa, um interdito proclamado pela deusa, ou seja, como
um “naquilo em que não se deve pensar”. Obviamente, se tomada ipsis literis, a tradução
por “impensável” não tem nenhum sentido, pois é óbvio que pensar como não tem que
ser e o que não é, é sim pensável, tanto o é que a deusa, ao início do fragmento, assim
considera:
Pois bem, eu enunciarei, e tu, ouvindo, guarda a palavra, que únicos caminhos
de questionamento são a pensar
81
, pelo que a própria deusa declara ser o caminho do
não-ente um caminho pensável.
Os defensores dessa primeira versão, seja a tradução de panapeuthéa vertida para
“impensável”, “inexplorável” ou ainda “insondável” têm como intenção ressaltar o
caráter auto-contraditório relativo à afirmação de um não-ente,
mh\ e)o\n (n)
82
, e,
para tanto, apóiam-se sobretudo nos versos finais do fragmento. Feita a opção por
panapeuthéa, ler-se-ia o seguinte:
este declaro-te atalho totalmente insondável; pois nem
conhecerias o não-ente, pois o realizável, nem
o
declararias
83
. Baseados na declaração
da deusa pela qual se afirma o não-ente como irrealizável e inefável
84
, tece-se o
raciocínio segundo o qual a via do não-ente mostrar-se-ia “impensável” ou
“insondável” porque dizê-lo significa realizá-lo, isto é, torná-lo um ente, dar-lhe ser
por intermédio da fala. Assim sendo, dizer o não-ente incorre necessariamente em
imediata auto-contradição. Porque inefável é igualmente impossível. Ou se, uma vez
dito, não é não-ente. O não-ente não nem é. Assim, defende-se a idéia de que o
não-ente é impensável” no sentido de ser pura e irrestritamente absurdo. Tratar-se-ia
aqui de uma reductio ad absurdum, acusando o efeito que a argumentação logicamente
81
B2, 1-2.
82
B2, 7.
83
B2, 6-8. Esta versão corresponde basicamente à tradução proposta por Diels, dentre tantos outras a ela
muito semelhantes. Cf. DIELS-KRANZ. p. 231. Aproveito para mencionar que além desta passagem
outra de mesmo teor em B8, 8. Nesta, especificamente, o caminho do não-ente é dito “não-pensável”,
ou)de\ nohto/n
, o que não entra em contradição com B2, 2, onde esta mesma via é dita a se pensar”,
noh=sai,
posto que esta segunda passagem se após a deusa ter esclarecido a seu ouvinte, justamente
no fragmento 2, quais os motivos pelos quais ele não deve mais pensar segundo esse caminho: convencido
de que deve seguir por apenas um desses dois caminhos noéticos, escolhido pois um deles, o do ente, seu
pensamento noético não tem mais por que ‘pensá-lo’.
84
Sobre a inefabilidade do não-ente refiro a valiosa contribuição de Alexander MOURELATOS, “It
cannot be said that anything is not”. In: MOURELATOS, A. The pre-socratics: a collection of critical essays.
New York, Anchor Books, 1974, pp. 248-264.
48
48
crítica de Parmênides impõe ao não-ente que seria, nele mesmo, contraditório. Quem
assim interpreta essa passagem o faz consoante uma argumentação estritamente lógica
e, como tal, absolutamente conseqüente, plenamente defensável quanto à decisão sobre
as duas variantes aqui em jogo.
Mesmo assim, que se observar que a coerência lógica, por mais pertinente
possa ela ser, não esgota a questão aqui em jogo, que pode ser interpretada a partir de
uma outra perspectiva além desta, ambas igualmente aceitáveis. Sem dúvida que a parte
central do poema de Parmênides, que abrange o intervalo compreendido entre os
fragmentos 2 e 8, caracteriza-se por uma tão irretocável quanto categórica
argumentação lógica, absolutamente inaudita até então
85
. O pensamento que expõe
tanto o ente pleno como também a verdade angaria assim para si uma força crítica que
faz dela, a verdade, aquele que se pode definir como o primeiro conceito formulado na
história da filosofia, considerando-o na mais integral acepção desse termo. Também
aqui se mostra o pensamento parmenídico como algo absolutamente inédito, não
havendo sequer qualquer vestígio de uma argumentação semelhante em toda a literatura
a ele anterior. O rigor desse pensar lógico e crítico parece ser atestado pelo próprio
Parmênides no atual fragmento 5, que pode ser compreendido, entre outras
possibilidades, como uma autoreferência, aludindo ao seu próprio método
argumentativo: “para mim, porém, é indiferente de onde eu comece; pois para lá
mesmo voltarei de novo e de novo”
86
.
O começo significa a demonstração, e o fim” o retorno confirmado do
começo. Isto revela-se especialmente significativo em consideração ao fato de que o
pensamento de Parmênides gravita em torno a uma decisão previamente pensada, isto
é, em torno daquilo que sempre está decidido: o que e como tem que ser. Sobre o
caráter lógico desse todo ou modo de argumentação, porém, vale notar (A) que não
aceita nenhum meio termo, ou bem se é, ou não dito mais exatamente, ou se é
totalmente ou não
87
; (B) a perfeição circular do método que perfaz, como se perfaz um
círculo, sempre uma plenitude, posto que se a argumentação é plena, perfeita e
totalmente íntegra, não o que se lhe possa incluir ou acrescer, pelo que repele e
85
A respeito da estrutura e das implicações lógicas do modo de argumentação inaugurado pelo poema
parmenídico, assim como sobre a sua força de refutação, cf. Jonathan BARNES, “Parmenides and the
objects of inquiry”. In: The presocratic philosophers: Tales to Zeno (vol.I). Londres, Routledge & Kegan Paul,
1979.
86
Comparar com HERÁCLITO B103.
87
B8, 11.
49
49
demonstra como inaceitável não apenas uma sua eventual antítese o não-ente, por
exemplo mas toda e qualquer tese que lhe seja diversa. A concretização cabal de uma
tal argumentação logicamente irrecusável nos é apresentada especialmente pelo
fragmento 8 como um todo, em que se pode contemplar como esse argumentar se
move consoante a sua força crítica e autosuficiência. Por isso ela, a verdade, é afirmada
como copertinente à persuasão/força de convencimento
88
peítho e adjetivada como
“bem-convincente”, pelo que vem a ser, por extensão, irresistível e logicamente
necessária.
É a partir desse poder de convencimento e necessidade – que de resto
sustento à afirmação de muitos intérpretes de que é no poema de Parmênides que
ocorre a fundação daquilo que a partir de Aristóteles denominou-se formalmente ‘lógica’
que e deve retornar ao fragmento 2 a fim de definir qual seja, entre panapeuthéa e
panapeithéa, a melhor decisão.
Se o poema apresenta o conceito de verdade sempre ladeado às idéias de poder
de persuasão e de convencimento, a ponto de afirmar que o caminho que representa o
ente pertence, não exatamente à verdade, mas à peítho mesma, isto é, à persuasão
89
, nada
mais justo que o caminho a ele oposto, o do não-ente, seja definido como panapeithéa
“de todo não-convincente”. Além disso, o primeiro argumento da deusa para
fundamentar a exclusão desse caminho sem contar naturalmente o primeiro desses
argumentos, este que aqui ora se decide, ou bem panapeuthéa, ou bem panapeithéa –, não é
nem que o o-ente seja “irrealizável”, nem que seja “inefável”, mas sim
“incognoscível”, e isto de um modo tal a garantir que o não-ente não é passível de
conhecer:
ouÃte ga\r aÄn gnoi¿hj to/ ge mh\ e)o\n
90
. Resulta afimar que o não-ente não
é cognoscível e, conseqüentemente, torna-se impossível alcançar por essa via aquilo a
que Parmênides se propõe, inaugurar e fundar um conhecimento plenamente efetivo,
um saber verdadeiro. Se algo, aqui especificamente o não-ente, não se permite jamais
conhecer de todo, como poderia ser ele critério do saber e meio para a consolidação de
um conhecimento que exige tais prerrogativas?
O peso maior da argumentação da deusa recai, portanto, sobre a mais radical
impossibilidade do conhecimento se percorrida essa via. E o conhecimento não lhe é
factível justamente porque, em oposição à verdade, é este um caminho que não
88
Ver, respectivamente, B1, 29 e B2, 4.
89
B2, 4: “da persuasão é esta a senda, pois verdade a segue”.
90
B2, 7.
50
50
convence, que não é seguro, não se mostrando portanto fundamentado e bem pensado
o suficiente para que seja experimentado pelo pensamento como convincente e
persuasivo, para que sobre ele se possa dizer ou exclamar ‘é verdade!’
Privado de força persuasiva, esse caminho carece igualmente do poder e da
força de decisão necessária para definir e manter a firme cisão que os torna
completamente inconciliáveis. Com efeito, quem maneja esse poder e essa força,
aliando os dotes de thémis e díke, é o caminho do ente que, distinguindo criticamente o
que é e como é e o que não, mantém firme os limites
91
dessa insuperável diferença. Daí
brota igualmente a clareza acerca de qual caminho deve ser excluído e qual não. O
caminho do não-ente sofre então essa exclusão precisamente por o ter como nos
conduzir a um conhecimento verdadeiro, uma vez incognoscível
92
ele nem pode ser
efetivamente conhecido nem conhecimento efetivo. Sendo o caminho do ente a via
da peítho, parece-me que nada mais adequado do que nomear o caminho que se lhe
opõe, o do não-ente, como o caminho panapeithéa, um caminho “de todo não-
convincente”
93
.
A presente decisão em prol de panapeithéa e em detrimento de panapeuthéa obriga
a uma reconsideração acerca da mais precisa tradução dos versos finais deste
fragmento, isto é, impõe a necessidade de rever se “irrealizável” e inefável”,
respectivamente
ou) ga\r a)nusto/n (ou gàr anystón)e
ouÃte fra/saij (oúte phrásais)
94
,
mantêm-se como as melhores opções de tradução também para o caso de panapeithéa
ser o termo escolhido para o verso 6. Se esta decisão recai justamente sobre a
impossibilidade do conhecimento, dada a falta de poder de persuasão ou
convencimento que caracteriza esse caminho, essa mesma impossibilidade deve ser
compreendida não no sentido de uma impossibilidade em si do pensamento, afinal,
pensada essa possibilidade não pode como costuma ser, tal como esclarece a deusa
ao início do fragmento. Este caminho é sim um caminho a se pensar
95
. Em que sentido,
então, é ele impossível e irrealizável? Justamente no sentido de se mostrar insuficiente
para o conhecimento – conquistar um saber verdadeiro ao longo desta via, eis o
impossível deste caminho. Ele é inexeqüível e irrealizável não como uma
91
Cf. B8, 26.
92
B2, 7:
ouÃte ga\r aÄn gnoi¿hj to/ ge mh\ e)o\n ou) ga\r a)nusto/n ouÃte fra/saij
: “pois nem
conhecerias o não-ente, nem o declararias”.
93
B2, 6. Segue-se assim o testemunho de Proclo contra o de Simplício. Cf. DIELS, H; KRANZ, W. Die
Fragmente der Vorsokratiker. Zurique, Weidmann, (1951), 1992. p. 231.
94
B2, 7-8.
95
Ver B2, 2.
51
51
impossibilidade irrestrita, como se fosse possível negar-lhe a possibilidade de que exista
de algum modo, mas irrealizável sim porque inesgotável, porque, diante da necessidade
do conhecimento, trata-se de um pensar que não se permite concluir-se ou completar-
se. Trata-se de caminho literalmente viável; não o fosse, não seria declarado um
caminho. Mas, quanto à pretensão de elaboração de um conhecimento com o caráter e
os atributos aqui referidos, ele não conduz a lugar nenhum, por ser um caminho que
não encontra um fim. Por isso o pensar que por ele trilha e por ele se orienta vem a ser
um pensar fadado necessariamente a cair num regressus ad infinitum, na medida em que
trai aquilo que a filosofia, por ser filo-sofia, busca, o saber eis a sua maior contradição.
Assim, apesar de possível e pensável, é ele impossível e impensável para as necessidades
e exigências do saber; é impensável justamente no sentido de mostrar como não se deve
pensar caso se aspire ao conhecimento. Não se pode esquecer que o pensamento e o
ente que Parmênides defende é aquele definido pela sua própria plenitude
96
e que assim
cerra circularmente as suas fronteiras
97
. Concebido desse modo, o não-ente não se deixa
concluir, plenificar-se, não cumprindo a finalidade, o télos, sempre aqui em jogo. É neste
sentido que ele é
ou gàr anystón, “irrealizável”, uma vez que não realiza nem tem como
realizar o propósito a que se destina. Para
oúte phrásais vale o mesmo: inefável sim, mas
em que sentido? No sentido em que não se permite explicar e esclarecer a partir de si
mesmo, haja vista a sua própria insuficiência face o conhecimento: o caminho do não-
ente não se deixa esclarecer, reafirmando o seu caráter incognoscível, daí que dizê-lo,
ainda que possível, será sempre impossivelmente verdade.
Assim tem-se que os quatro argumentos da deusa para a exclusão do caminho
do não-ente, são, em ordem: (A) falta de persuasão e convencimento; (B)
incompatibilidade com o conhecimento; (C) impossibilidade de efetivar-se, isto é,
impossibilidade de finalizar o percurso ao longo da sua própria extensão; (D)
impossibilidade de ser dito por contradizer-se. Bem observadas, essas qualidades são
exatamente as contrárias daquelas que caracterizam a verdade. Note-se igualmente que
os conteúdos precisos pelos quais o não-ente se revela através das supracitadas
qualidades, constituem, junto com a exposição da plenitude do ente, o tema central do
fragmento 8, a ser analisado oportunamente. Antecipe-se apenas que pela análise desses
referidos conteúdos torna-se-á claro o que aqui se vislumbra: que o caminho do não-
96
B8, 24:
eÃmpleo/n
97
Ver B8, 42-43.
52
52
ente corresponde em larga escala ao caminho percorrido pela filosofia até então, uma
vez que abole, passo a passo, cada uma de suas convicções.
Fica assim demonstrado como e por que o ‘caminho que não é’ não se inclui na
fala da deusa quando ela diz ao seu ouvinte tudo o que ele deve necessariamente
aprender
98
. Este caminho está, de fato, excluído de uma primeira totalidade, um
primeiro ‘tudo’, o ‘tudo’ do que para aprender, e o motivo para tanto consiste
justamente no que foi exposto acima: porque simplesmente não conduz ao
conhecimento. Mas não se encontra excluído do que para pensar. Se ele fosse
literalmente ‘impensável’, não passaria de mera contradição por parte da deusa declará-
lo um “a se pensar”
99
e, também, o fato de anunciar inicialmente apenas as opiniões dos
mortais e o coração da verdade como objetos que devem ser necessariamente
conhecidos, e, depois, irromper por um discurso que se ocupa primeiro em dissertar
justamente sobre o não-ente.
A partir daqui é preciso não confundir uma delicada situação através da qual
duas coisas devem ser devidamente diferenciadas: (A) a confirmação indubitável de que
as opiniões constituem, ainda que vaga e fragilmente, uma determinada forma de
conhecimento; e (B) a reconfirmação de que o caminho do não-ente é sim pensável
mas estéril para o conhecimento que se quer perfeito, e isto porque, se comparado ou
medido pelo critério do saber verdadeiro, revela-se imediatamente tão cheio de
contradições em sua própria estrutura que insuficiente para o conhecer.
O tema implicado pelo item (A) acima será posteriormente considerado. Por
ora, convém aprofundar o item (B).
Excluído desse primeiro ‘tudo’ na analisada seqüência do proêmio, o caminho
do não-ente será incluído pela deusa na passagem hoje conhecida como o fragmento 2
do poema, aquele que inaugura a parte dedicada à exposição de alétheia. Tal como
aludido acima, uma tal inclusão não incorre de forma alguma numa contradição ou
mesmo incoerência internas ao discurso da deusa, uma vez que será ele agora incluído
sim, porém, consoante uma outra categoria. Curiosamente, está ele excluído do ‘tudo’
cujo critério é o aprendizado, que não conduz ao conhecimento, mas incluído no
‘tudo’ cuja a referência é o pensar e, mais especificamente, o pensar noético. Os dois
98
B1, 28-30.
99
B2, 2.
53
53
primeiros versos desse fragmento indicam:
Pois bem, eu enunciarei, e tu, ouvindo,
guarda a palavra, que únicos caminhos de questionamento são a pensar
100
.
Os caminhos por ela apresentados, esses dois únicos, são o do ente e o do não-
ente. Para pensar – noh=sai (noêsai) – apenas dois caminhos ‘como tem que ser’ e ‘como
não tem que ser’. Apenas esses dois e nenhum mais. Os dois únicos caminhos a se
pensar perfazem novamente um todo e, ainda que componham um conjunto, são
claramente concebidos como opostos mutuamente excludentes, incompatíveis.
Excluído do ‘tudo’ que para aprender
101
, encontra-se agora este caminho
incluído no tudo que há para pensar. Enquanto isso, ocorre com as opiniões justamente
o inverso: incluídas naquele primeiro, excluem-se deste. Esse pensar a que a deusa se
refere é
noeiÍn(noeîn), o modo ou tipo de pensamento capaz de conceber a verdade. Um
pensar na ordem do saber e do conhecimento que a filosofia de Parmênides determina
como meta. Isso significa que se deve atentar novamente a uma outra sutil porém firme
distinção: (A) ainda que tenham que ser conhecidas e experimentadas
102
as opiniões não
participam desse modo de pensar
103
; (B) o pensar que pensa o o-ente é um
pensamento conseqüente, formulado de forma coerente e a princípio precisa, do
contrário não lhe seria consentida a honra e a estatura de participar desse modo
diferenciado do pensar, noeîn.
Não falta a esse caminho, portanto, sequer a seriedade do télos tipicamente
filosófico. O que ele quer e busca é o mesmo que busca e quer Parmênides. A diferença
consiste no como: qual deles pode garantir a conquista do que se quer? É essa a peleja
em jogo na bifurcação proposta pela deusa no fragmento 2. O viajante terá que se
decidir diante dessa bifurcação. Um caminho será demonstrado como promissor e
mesmo certeiro quanto a concluir o seu propósito e satisfazer a sua motivação. O outro,
como insuficiente para tanto. Percebe-se assim que as opiniões não têm mesmo como
participar dessa peleja, uma vez que não partilham desse mesmo impulso, o amar o
saber, disposição definidora da palavra filosofia, e que, como tal, arremessa o filósofo a
essa empreitada.
Trata-se aqui da esfera de um pensar noético, estranho às opiniões mas comum
aos outros dois caminhos: o grande ponto de identidade entre estes é que são ambos
100
B2, 1-2.
101
B1, 28-30; B2, 7.
102
B1, 28-30.
103
O porquê dessa não-participação será tematizado oportunamente. Uma vez mais, concentre-se por ora
no item (B), relativo ao ‘como não tem que ser’.
54
54
pensados noeticamente, almejando por isso uma mesma finalidade. É apenas e tão
somente na possibilidade de lograr ou não essa intenção que eles se diferenciam:
enquanto um erra pelas veredas do não-ente, o outro imobiliza-se em torno ao ente, pré-
condição metódica, segundo Parmênides, necessária à conclusão desse propósito. Os
caminhos do não-ente e do ente são pois noéticos, ao passo que o caminho das
opiniões dos mortais é phrenético.
Observada essa distinção, torna-se me possível e oportuno, ainda que
preliminarmente, um esclarecimento mais preciso a respeito do que expus e propus de
forma antecipada na introdução desta tese: a distinção entre verdade e opiniões obedece
a uma diferenciação interna ao pensamento no que concerne aos seus modos e
naturezas possíveis. Parmênides cinde com precisão cirúrgica noeîn e phroneîn, dois
modos de pensar apresentados como absolutamente inconciliáveis: àquele pertence a
parte central do poema e à possibilidade não à garantia! de edificação de um saber
perfeito e concluso, verdadeiro; ao segundo, por outro lado, pertencem as opiniões, visto
que pensam e consolidam uma forma de conhecimento, porém móvel e oscilante
phrenético que justo por isso revela-se precário para o saber e, por extensão, deficiente
para o suposto propósito incluso no próprio significado da palavra ‘filosofia’.
Demonstrar essa precariedade em contraste com a promissora eficiência do
pensamento noético para a verdade consiste no motivo maior de Parmênides ter
composto e incluído em seu poema a parte final dedicada às dóxai, motivo este que
causa tanto embaraço a um sem número de especialistas que assumem, com
honestidade, não ter o que dizer a esse respeito. Talvez lhes escape o conjunto dos
propósitos do Eleata, assim como praticamente ninguém tem observado essa distinção
formal e textual entre noeîn e phroneîn: será mero acaso que noeîn distinga a parte central
do poema e phroneîn apareça em sua parte final, opinativa? Imiscíveis, cada qual tem
o seu momento na partição do poema, ou seja, cada um tem o seu lugar próprio dentro
da constituição formal e trina do poema. Mais do que isso, é este justamente o motivo
que define a opção de Parmênides pela estrutura formal com que nos apresenta a sua
obra.
Pela mesma razão não ocorre o uso de gígnomai na parte do poema dedicada à
verdade. Antes pelo contrário, é o primeiro verbo a ser rechaçado pela deusa, expulso
por completo da esfera de alétheia, tanto filosoficamente como textualmente, posto que
Parmênides não se permite o uso deste verbo enquanto a deusa discorrer sobre o modo
55
55
de pensar verdadeiramente, uma vez que o devir será proposto como incompatível com a
verdade
104
: com efeito, uma verdade que devém não é verdade, ao menos não a
parmenídica. À verdade pertence o ser, assim como as opiniões pertencem ao devir, de
resto como tudo o mais que for mortal. Também aqui, como proposto na introdução
desta tese, o motivo pelo que o discurso que se funde com a própria verdade seja
concebido alegoricamente como o discurso de uma deusa: por ser imortal, por
pertencer-lhe ser, verbo indicador de permanência e estabilidade, e não devir, indicador
justamente dos valores e condições contrárias a essas.
Simplesmente não utilizado em toda extensão da parte dedicada a alétheia, esse
mesmo verbo, gígnomai, abunda na parte do poema que versa sobre as opiniões. Este
corte mais do que preciso respeita e observa Parmênides com espantoso rigor
terminológico e textual, não confundindo o que propõe como inconciliável. De fato, o
Eleata não se contradiz e, justo por isso, o caminho do ente e da verdade marca-se pelo
imperativo lógico da não-contradição: é esse o modo de operar o pensamento que
condiz à possibilidade noética de orientação à verdade e, principalmente, de sua
consolidação, a conclusão de um saber literalmente perfeito, pleno.
Infelizmente, esta mesma cesura tem passado despercebida praticamente de
todo na literatura a respeito da obra parmenídica. Ela mostra, contudo, o mais radical e
importante gesto do pensamento de Parmênides: a distinção entre verdade e opiniões é
conseqüência da incisão insuperável que o Eleata propõe e impõe entre ser e devir, a
qual se equivale uma outra, entre noeîn e phroneîn, respectivamente.
Sendo a idéia de devir um dos traços marcantes da filosofia pré-parmenídica, e
estando ele agora apartado da verdade, confirmo desse modo a interpretação de que o
caminho do não-ente concerne ao pensamento desenvolvido e afirmado pela filosofia
desde o seu surgimento até à geração coetânea a Parmênides, uma vez reconhecida a
sua natureza noética e a sua conseqüente finalidade. Mas é justo em nome dessa
finalidade que Parmênides expo-lo-á de forma contundente como um caminho de
fracasso, posto não concluir, não perfeccionar, aquilo a que se propõe. E por quê? Porque
só ocorre a Parmênides trilhar por essa via apartada dos mortais, ícone de sua novidade,
a de fincar os pés no fértil e seguro terreno ‘salve, não foi uma moira!’– desse
novo imperativo, o da não-contradição, inaugurando e desenvolvendo com isso o
104
B8, 3. Note-se que a deusa, ao afirmar o ‘ser’ como o que ‘é’, logo em seguida declara-o
a)ge/nhton
,
“ingênito”, primeiríssimo predicado do ente: o que é o devém; ser o participa de devir e vice-versa,
operando e conduzindo a argumentação com a navalha da tautologia.
56
56
advento inédito de um discurso de caráter puramente argumentativo não apenas para a
filosofia, mas para o idioma: a verdade parmenídica é um genial e assombroso artifício
de linguagem, a realização de uma sintaxe definida que decreta a invenção de uma
‘língua’ até então não falada nem pensada. Procure-se na literatura grega anterior a
Parmênides esse modo argumentativo e nada sequer semelhante será encontrado.
Quando menciono uma nova língua, aludo igualmente à invenção de conjunções e
estruturas sintáticas inauditas, de uma semântica do ser’ igualmente inovadora, de uma
sintaxe para a verdade, um monumento da linguagem, gostemos ou não dele
105
.
Desprovido dessa nova ‘gramática’ da escrita e do pensamento, não basta ao
caminho do não-ente pensar de modo noético, posto que, ainda assim, se contradiz,
afirmando ser e não-ser a um tempo
106
. Ao definir esta senda como aquela que não
tem que ser e nem deve ser, Parmênides estabelece uma crítica à história pregressa da
filosofia; bem mais que isso, porém, Parmênides demonstra, ao expô-la, como não se
deve filosoficamente pensar, isto é, como e de que modo não tem que ser o pensamento caso
queira ser verdadeiro.
Debruçar-se sobre o caráter do próprio pensar como objeto de reflexão e
indagação do pensamento filosófico ofereceu a Parmênides, como resultado, a
afirmação de dois modos e naturezas de pensar distintos até a tua exclusão (A=A;
B=B!), o noético e o phrenético. Consoante essa distinção, constroem-se as três vias de
que nos fala o poema. Pensar phreneticamente significa opinar, é este o caminho das
opiniões dos mortais, o caminho por onde anda e erra esse modo do pensamento. A
esfera do pensamento noético, porém, bifurca-se em dois caminhos como indica o
fragmento 2. É exatamente nessa encruzilhada que o ouvinte da deusa se encontra
agora, fazendo a experiência dessa bifurcação e tendo que se decidir por um deles. O
105
Sobre a radicalíssima novidade que o emprego e o valor do verbo ‘ser’ em Parmênides representam
para toda literatura grega – radicalidade esta que encontra sua expressão máxima na criação de um
neologismo,
e)o/n,
ente, que, como tal, tampouco consta em nenhum escrito anterior que nos tenha sido
legado –, destaco o seguinte comentário de Kahn: “Seria ingênuo assumir que poderíamos identificar o
significado de Parmênides para e)sti/ com um ou outro dos vários usos do verbo no grego oridinário, não-
filosófico. Parmênides foi o primeiro filósofo a desenvolver uma concepção de Ser. Antes de ele escrever,
não havia coisa tal que a ontologia, nenhuma exposição teórica sobre o que é. Assim, essa concepção (...)
não pode ser reduzida a um ou mais valores do verbo ser em Homero ou Heródoto”. Grifos e maiúsculas
conforme o original. In: KAHN, Charles. Sobre o verbo grego ser e o conceito de ser. Rio de Janeiro, Núcleo de
Estudos de Filosofia Antiga/PUC-RJ, 1997. p.199. Calcule-se agora o alcance disso para a língua que
falamos hoje: a invenção desse ‘idioma’ passa a ser historicamente dominante e afastou-nos, entre outras
tantas conseqüências, do discurso mítico, que, ainda que sempre possível, muito não nos é íntimo e
sim estranho. A esse respeito, refiro como de especial interesse e expressividade o filme Medéia, de Pier
Paolo Pasolini (1969).
106
Consultar B6, 8.
57
57
critério da escolha é o do sucesso para a empresa a que se destina a viagem e a escolha
do caminho recairá sobre aquele dentre eles que o convencer ser capaz de garantir um tal
êxito, a efetivação do saber. O discurso da deusa move-se por um deles, é a sua própria
encarnação, e ele, o discurso, e ela, a deusa, posto que são um e o mesmo, saberão
vencê-lo e convencê-lo em prol da verdade. Aqui situa-se o ouvinte diante dos dois
únicos caminhos de questionamento, diante, portanto, das duas possibilidades
filosóficas que se lhe abrem, pronto a ser conquistado por aquele que demonstrar o
irresistível poder de persuasão com o qual o poema caracteriza a verdade.
Sublinho, conseqüentemente, que a via do não-ente é, pois, eminentemente
filosófica. O não-ente inscreve-se no caminho daquela cosmologia filosófica aludida na
introdução; pode-se dizer que é ele o caminho da físio-cosmológica filosofia dos
primeiríssimos tempos e, por isso, um caminho de pensamento coeso e conseqüente,
um caminho de pensamento noético. Aqui, nesta bifurcação, tem que ser decidido por
qual caminho noético deve-se seguir: o conhecido caminho dessa cosmologia
107
, ora
caracterizado como o ‘que não tem que ser’, ou o novo caminho que ora se revela, o
caminho da peítho a quem a verdade acompanha, o do ‘como deve ser’: o caminho do
‘como tem que ser’ para que seja e não devenha. Em outras palavras: para que seja
verdadeiro.
A decisão é tanto mais necessária quanto mais claro se torna que um e outro são
inconciliáveis, repelindo-se mutuamente. Por causa dessa nítida incompatibilidade, esses
caminhos devem ser clara e firmemente apartados, respeitando-se assim a sua diferença.
A partir dessa clara separação reconhece-se pelo que se deve atribuir a Parmênides a
descoberta da contradição, não da antítese ou oposicionalidade. Antítese e oposição,
com efeito, compõem um dos mais marcantes traços da filosofia dos primeiros tempos,
de quem agora Parmênides se desgarra radical e definitivamente. Os caminhos devem
ser forçosamente diferenciados e, uma vez distintos, que se observe a distinção: ‘o que
é, é; o que não é, não é’. «A» não pode ser o mesmo que «B». Do contrário, apenas a
confusão. E a verdade não pode, nem tem como ser, confusa. Sendo mutuamente
excludentes, nem tensionam-se numa oposicionalidade antitética, nem constituem um
modo de composição ou de complementaridade recíproca. Mais que opostos ou
antitéticos, eles contradizem-se, sendo, um para o outro, intocáveis. ‘Contradição’
significa aqui mais do que um acurado procedimento lógico, como visto o que se
107
“Caminho já conhecido” porque já sabido pelo eidóta fôta B1, 1-3.
58
58
mostra incompatível com a verdade, ou seja, aquilo pelo que se faz impossível atingir
ou conquistar um verdadeiro conhecimento, na medida em que contradiz o mais legítimo
interesse de toda e qualquer filosofia.
‘A verdade’, pensada ‘gregamente’, aquilo no que sempre se deve pensar; o que
não se deve esquecer. E aquilo no que se deve pensar sempre é exatamente a diferença
entre o que tem que ser e o que não tem que ser. A verdade de que nos fala Parmênides
relaciona-se obrigatoriamente com aquilo que estipulam thémis e díke, isto é, o o-
esquecer alétheia daquilo em que e como sempre se deve pensar caso, claro está,
trate-se do melhor caminho, méthodos, para o conhecimento. Mais do que o melhor, o
poema defende-o como o único capaz para tanto. Este, o caminho do ente, o caminho
ao qual Parmênides é introduzido pela fala da deusa.
A total incompatibilidade entre ‘o que tem’ e ‘o que não tem que ser’ funda a
irrevogável cisão entre os caminhos declarados os únicos a se pensar noeticamente,
sendo também, por extensão, os únicos caminhos de investigação e inquerimento
o(doiì mou=nai dizh/sio/j ei¹si noh=sai
108
. Nessa investigação consiste a tarefa do
ouvinte da deusa. Ele mesmo tem que explorar e informar-se sobre os caminhos e, a
partir disso, tomar a sua decisão e seguir pelo caminho escolhido. O caminho da peítho
parte, por definição, contando com uma vantagem, no sentido que atua diretamente
junto ao ouvinte pela força do convencimento e da necessidade. Isto quer dizer que ao
ouvinte basta perceber, diante dessa bifurcação, qual dos caminhos é convincente e,
portanto, necessariamente irrecusável. Basta, conseqüentemente, que se deixe tomar
pelo caminho do convencimento daquilo mesmo que lhe é dito. Não é o ouvinte,
portanto, quem produz a verdade, mas a pei/qw, o poder de convencimento do
verdadeiro. Esse poder e a verdade são um e o mesmo. Eis então a via em que deve
seguir o viajante, a do deixar-se convencer pela verdade. E esse ‘deixar-se convencer’ é
decidido e motivado, por sua vez, pela ponderação crítica e reflexiva,
kriÍnai de\ lo/gwi
polu/dhrin eÃlegxon
109
, justamente aquela que pondera acerca dos motivos e
fundamentos de alétheia, que são sempre e continuamente expostos e esclarecidos pela
deusa ao longo do poema. É através de fundamentos e argumentos que a verdade faz-
se a si mesma como a “bem-persuasiva” ou “bem-convincente”
110
, de modo a lhe
108
B2, 2.
109
B7, 5.
110
B1, 29.
59
59
pertencer imediatamente um inabalável
111
poder lógico e crítico; a bem dizer, um modo
e uma força de crítica de acordo com o sentido mais próprio ao grego kri/nein
112
.
Argumentos e fundamentos não são causa’ ou ‘princípio’; são procedimentos de
pensamento e discurso. Sobre princípio – arché/discursava comumente a filosofia pré-
parmenídica. Também neste aspecto mostra-se inovadora a filosofia do Eleata, uma vez
que em seu poema não há espaço para a já então tradicional idéia de causa ou princípio,
mas sim para argumento e fundamentação. Por sinal, vale lembrar: a parte intermediária
do poema não a primeira como sói chamá-la, tamanha a obsessão da literatura por
um Parmênides mutilado, apenas pensador da verdade, como se não fora também o
pensador das dóxai – é o primeiro texto de caráter explicitamente argumentativo no que
tange à tradição grega e, por extensão, à toda tradição ocidental. Sua forma e seu modo
de literatura não encontram precedentes na literatura anterior, não importa de que
espécie ou gênero; originalidade literária que, por sua vez, é apenas a repercussão na
ordem da linguagem idiomática de uma transformação radical na ordem da linguagem
do pensar. Do pensar e do dizer, é a verdade parmenídica, sempre, um artifício da
linguagem, uma prodigiosa façanha filosófica
113
.
Fica assim exposta a questão de como Parmênides diferencia os modos
possíveis do pensamento: por um lado o modo phrenético e opinativo, e, por outro, o
noético, encontrando-se este rachado entre o verdadeiro, o ente, e o não-verdadeiro, o
não-ente, o que de resto permite entrever mais uma asseveração audaciosa o ente e
a verdade são, no poema, um e o mesmo, de modo que o ente de que nos fala
Parmênides é o próprio conceito de verdade, um ente puramente pensado e portanto
ideal, absolutamente não-sensível
114
. Os três caminhos apresentam, assim, como se deve
pensar e como não se deve pensar para que se alcance saber. Seguindo-se pela via da
peítho, adentra-se pelo caminho ‘como se deve pensar’, este o caminho da verdade; o
‘como não se deve pensar’ refere-se nomeadamente ao caminho do não-ente, mas
inclui, também, embora por outra condição, o caminho relativo às opiniões dos
111
B1, 29.
112
B7, 5.
113
Talvez comparável à época apenas àquela outra realizada justamente para ser o seu antídoto, o Tratado
do não-ente de Górgias. Sobre a relação Górgias-Parmênides, leia-se a inspirada tese de doutorado de
Carmen Lucia Magalhães PAES. Górgias ou a revolução da retórica. Rio de Janeiro, PPGLF/IFCS/UFRJ. 1989,
128p. É possível que ninguém tenha entendido Parmênides tão bem quanto Górgias, quiçá Platão, mas, à
diferença deste, essa compreensão e entendimento investem decididamente contra o Eleata.
114
A identidade entre o ente e a verdade no poema de Parmênides não é apenas filosófica ou é tão
radicalmente filosófica que se faz igualmente identificável em termos lingüísticos e gramaticais. Sobre a
equivalência gramatical entre
to/ e)òn
e
a)lh/qeia
em Parmênides ver MOURELATOS, A. The route of
Parmenides. New Haven and London, Yale University Press, 1970, pp. 74ss.
60
60
mortais, que é caminho que não só pode ser pensado como é sempre e necessariamente
pensado, mas que condiz a um modo de proceder o pensamento, o phrenético, que
rechaça a possibilidade de um conhecimento verdadeiro. É neste sentido e sob o
critério do propósito em questão que o caminho das dóxai é também um caminho
‘como não se deve pensar’, pois também ele é insuficiente para o saber, ainda que uma
forma de conhecimento, forma frágil porque oscilante – falta-lhe pístis.
Assim, sobre o como’ do pensar quedam aqui as suas possibilidades
nitidamente discriminadas pelo Eleata. Resta, ainda, abordar o ‘que’ do pensar, tal como
prometido na introdução. Um acesso privilegiado a essa questão dá-se justamente
através da constatação descrita acima, de que essa nova gramática e modo do pensar a
que Parmênides decidiu dar o nome de alétheia substitui a idéia cosmológica de uma arché
pela lógica da argumentação, a lógica dos lógoi, que, tal como essa última e redundante
expressão prenuncia, inaugura a to/-auto\-logikh/ (tó-autò-logiké), a tautologia, uma lógica
da identidade: ‘o ser é, o não ser, não é’; ‘o jardineiro jardina, o motorista motora’
115
;
A=A, B=B, C=C etc.
Essa ‘substituição’, no tocante à concepção da verdade, uma vez indicando a
mais absoluta ausência de um discurso a respeito de um princípio ou causa, mostra-se
como a principal chave para delinear a posição de Parmênides sobre os possíveis ‘quês’
do pensar. Pode-se naturalmente pensar o cosmo, a phýsis e pánta, conforme expus
preliminarmente. De fato, é esse o pensado pela tradição filosófica até Parmênides e
também o pensado pela tradição mito-poética. Ao decidir-se por pensar o próprio
pensamento, tal como venho propondo, Parmênides inaugura um novo ‘quê’ possível
ao pensar. Temos aqui, então, igualmente discriminados também os dois ‘quês’
possíveis ao pensamento, (A) a realidade sensível e, agora, (B) uma outra ordem de
‘realidade’ igualmente inédita e pela primeira ver afirmada, a ‘realidade’ ideal, conceitual.
Uma tal abertura de possibilidade que, como tal, é sempre uma abertura para a
distinção e diferença, constitui o mais importante elemento na caracterização de qual
seja o objeto possível e próprio ao discurso verdadeiro, uma vez que a noção de arché,
ausente do âmbito da verdade, obriga a pergunta: por que essa ausência é necessária ao
advento de alétheia? Sim, porque substituir a matriz cosmológica do princípio e da causa
pela lógica crítica e persuasiva do argumento não ocorre sem menos para Parmênides,
não fosse ele aquele que pensa sempre necessariamente, posto ser essa uma lógica da
115
In: “O que swingnifica isso?”, de Arnaldo Antunes.
61
61
necessidade lógica, anánke. A noção de arché/, tão típica do pensamento pré-socrático
em geral e do pré-parmenídico em particular, relaciona-se necessariamente com o
cosmo físico, com a realidade sensível. Não apenas longe mas totalmente apartado
desse modo de raciocínio que investiga as possíveis archaí/ de todas as coisas, parece-me
forçoso reconhecer no poema de Parmênides que a verdade que nos revela o ente que
ela mesma é, não é e nem pode ser uma coisa, um fenômeno ou qualquer outro de
natureza sensível, e por isso mesmo o-lhe um princípio, uma causa ou uma origem
absolutamente impossíveis, como o comprova, pela ausência dessas noções, a extensa
argumentação que compõe o atual fragmento 8, aquele que descreve a verdade e o que seja
o ente.
Por conseqüência, a mencionada distinção de natureza que distingue e separa,
por um lado, a noção de arché/ e, por outro, o modo de desenvolvimento do discurso
parmenídico na parte intermediária do poema, um discurso que se move consoante
fundamentação e argumentação, mostra-se assaz relevante, na medida em que revela
que esses argumentos, bem como a necessidade imperiosa de fundamentação, mantêm-
se internos ao pensar. É neste sentido, como exposto, que se trata então de um
pensamento puro, porque nele não adentra nada que não a sua própria maquinação. É
puro porque desconhece a diferença e a intrusão de um ‘outro’ qualquer, sendo
portanto exclusivamente identitário, homogêneo, ainda mais que isso: mounogene/j
116
. Um
pensamento que quer sim ser persuadido, característica indicadora do verdadeiro, mas
persuadido e convencido por si mesmo através de argumentação e fundamentação; um
pensamento que quer, enfim, fazer-se refém da persuasão crítica e do convencimento
lógico. A verdade em Parmênides e é este o seu primeiro capítulo filosófico, que se
não o esqueça, para que não se incorra no hábito de ler o poema anacronicamente,
projetando a posição platônica sobre a relação sensível-inteligível no poema
parmenídico, relação de resto que a meu ver ignora que Parmênides realiza
precisamente o gesto contrário, o da incisão, isto é, o de afirmar a mais absoluta o-
relação entre o puramente conceitual e o sensível, possibilidade única de pensar
consoante o modo da verdade nem de leve toca a realidade sensível; o é, pois, um
discurso sobre ‘as coisas’, sobre o ‘mundo’ ou como se queira chamá-lo, mas sobre si
mesma, a verdade sobre a verdade, daí a insistência na questão da identidade, a
insistência no autó, na tautologia como artifício do discurso, pelo que o ente é
116
B8, 4.
62
62
exclusivamente conceitual e auto-referente; pensamento sobre pensamento, eis o tecido
e as camadas de que se compõe e, também, toda a sua ‘carne’ possível.
O célebre fragmento 3 parece favorecer esta minha interpretação. Concordo
com Barbara Cassin quando afirma que a tradução do seu texto é simples, não havendo
por que estabelecer tanta discussão a respeito
117
. Alterá-lo remete, talvez, mais à
necessidade de adequá-lo a uma interpretação qualquer do que corresponder a uma
autêntica questão de tradução. O referido fragmento diz: “pois o mesmo é pensar e
ser”. É importante observar que essa categórica sentença encontra-se, tal como se
apresenta estabelecido o poema, logo após a primeira declaração, no fragmento 2, de
que ‘o ente é, o não-ente não é’, não podendo ser o não-ente. Portanto, para um
pensador cujo raciocínio lógico sempre exclui a diferença porque contraditória, isto é,
para quem A=A, B=B, C=C e assim sucessivamente, é forçoso reconhecer que, se ser e
pensar são ditos como o mesmo, é porque PENSAR = SER. Mas não qualquer pensar,
posto que o sentido conferido ao verbo ser, neste caso, é pensado noeticamente, pelo
que reformulo: noeîn=
eînai. Aqui, pois, a ratificação de que o ente de que trata a parte
intermediária do poema, a verdadeira, não ultrapassa o pensamento, antes é o que ele
mesmo é. E encontra nele o seu limite
118
, único ‘espaço’ em que se encontra
firmemente presente
119
. É interessante notar como essa sentença é referida comumente
como aquela em que Parmênides afirma a identidade entre ser e pensar. Não, não se
trata exatamente de identidade, não como a entendemos usualmente. Identidade e
mesmidade são distintas. Quando afirmamos que o fragmento 3 propõe a identidade
entre ser e pensar, confundimos as idéias lógicas de identidade qualitativa e identidade
numérica, sendo esta última a que caracteriza a identidade absoluta, ou seja, a
mesmidade.
Também aqui interfere em muito a concepção de ente posteriormente
desenvolvida pela história da filosofia; e, por isso, também aqui deve-se lembrar que
esse termo é mais uma das grandes inovações – senão invenções – de Parmênides e que
esta se restringe, no momento do seu primeiro capítulo na história do pensamento, a
um ente que diríamos hoje ‘ideal’ e ‘abstrato’, qualificação desnecessária ao poema,
que a idéia de ente nos vem à luz pela primeira vez pelas suas palavras e teor, em que o
ente é simplesmente o que ele é: um puramente pensado, aquele que é, no sentido de
117
CASSIN, Barbara. Parmenide: sur la nature ou sur l’étant. Paris, Éditions du Seuil, 1998. pp.122-23.
118
B8, 26-32.
119
B4.
63
63
que só o conceito pertence ao ser; as coisas, os fenômenos, os acontecimentos e tudo o
mais pertencem ao devir, não são pois entes, mas ‘aparecentes’, ‘deventes’. É, mais uma
vez, em nome dessa distinção que o Eleata promove essa nova palavra o ente. Por
que se inventam, afinal, novas palavras, senão para dizer o ainda não dito e não
pensado? A singularíssima concepção do ente e da verdade em Parmênides mantém a
sua especificidade, seja em relação ao passado, quando é uma ausência, seja em relação
ao seu futuro como conceito, quando seu sentido e significado são desmanchados pela
prossecução da tradição filosófica, como, por sinal, sempre ocorre à história de
qualquer conceito do contrário, claro está, não teriam também os conceitos uma
história
120
.
Findo por ora esse périplo sobre a propriedade da idéia parmenídica de ente, à
qual retornarei, decerto, tantas e tantas outras vezes, não fosse este um dos pontos mais
decididamente distintivos da obra do Eleata e desta minha interpretação a seu respeito.
o caminho do não-ente é sem convencimento, porque e pelo que o não-ente
é a um tempo incognoscível e infrutífero para o conhecer. À diferença do saber
verdadeiro que ora se implementa e se completa, argumentaria possivelmente
Parmênides, e ao contrário também do que cumpre a Odisséia, para salientar uma vez
mais a presença da herança homérica, este caminho, representante de uma decisão
filosófica e portador de um modo de questionamento e investigação que lhe é próprio,
não conduz a um termo, não cumpre a finalidade para qual ele se orienta. Trata-se de
120
O anacronismo a respeito do conceito de ente nos termos aqui referidos é possivelmente o maior
obstáculo para que compreendamos que ente é esse de que Parmênides nos notícia pela primeira vez.
Esquecidos dessa originalidade, projetamos uma concepção atualizada de ente, a que poderíamos reduzir
à seguinte formulação: ‘ente é tudo aquilo que se possa aplicar o verbo ser’, de modo que uma garrafa,
uma relação amorosa e uma equação biquadrada são todos corretamente considerados ‘entes’. Não é esta
concepção, em si mesma, o problema, mas a sua aplicação à obra e ao pensamento parmenídicos, uma vez
que nos afasta da situação histórica pela qual Parmênides saca a idéia de ‘ente’ justamente para cindi-lo
dos ‘deventes’. Quando um autor do quilate de Nestor Cordero arrazoa que “dizer que o ente o é, é
como dizer que um caminhante não caminha” expõe de forma constrangedora esse anacronismo
(CORDERO, N. L. Siendo, se es: la tesis de Parménides. Buenos Aires, Editorial Libros, 2005). A pergunta aqui
não é sobre o ‘ente’ ser, o que é óbvio, mas o que cabe sob essa nova designação. A pergunta que me parece
a mais certeira neste contexto é: ‘o que, por não devir, pode ser?’, isto é, ‘ao que se pode aplicar o
neologismo ente?’ Aquele que caminha, por exemplo, não édevém. A citada frase de Cordero mantém o
modo a tautologia pelo que o ente é concebido por Parmênides, mas não toma em consideração o seu
que, subentendendo ‘ente’ como ‘tudo aquilo que é’ de acordo com a nossa hodierna compreensão de ente,
em que se lhe é dado sentido existencial, o de ‘haver’ e ‘existir’. É claramente certo que quem caminha,
caminha; que quem ama, ama; assim como o que é, é. Mas, diante desta presente consideração, a seguinte
pergunta ganha outro valor: o que é? Sobre a motivação filosófica e histórica de onde Parmênides retira a
necessidade dessa nova palavra, cito: Die Wendung von der Anwesenheit des Eines bei Allem zu seiner
Anwesenheit für die Einsicht ist der entscheidende Wendepunkt der frühgriechischen Philosophie (…)
Was ist nun das für die Einsicht Anwesend? Von jeglichen Erscheinen abgesondert, bleibt es auch völlig
unzugänglich für das sinnenhafte Vernehmen. Wenn es sich aber nicht mehr einem Alles” verbinden
lässt, dann wird auch der Name “das Eine” nichtssagend. Sachgerecht ist es vielmehr “das Seiende” zu
nennen”. In: BOEDER, H. Das Bauzeug der Geschichte. Würzburg, Königshausen & Neumann, 1994. p. 105.
64
64
um caminho que pode ser caminhado, mas que não retorna à casa. A bifurcação, a que
se refere o fragmento 2, relaciona-se precisamente com a decisão pelo caminho de
retorno mencionado no proêmio
121
.
Será novamente o poder lógico e crítico da argumentação parmenídica ou, mais
exatamente, a força de persuasão e convencimento intrínsecos ao saber verdadeiro
quem demonstrará a falta de convencimento característica da via do não-ente. Uma vez
mais a lógica do pensamento verdadeiro o exclui da verdade, mas essa exclusão, levada
a cabo pelo poder argumentativo de uma tal lógica, serve a algo ainda anterior e
prioritário, aquilo que se pode aqui considerar como sendo o mais decisivo e
genuinamente filosófico: que o poema de Parmênides se ocupe em dissertar acerca do
caminho ‘que não é e não pode ser’ atende à necessidade de uma exposição
comprobatória da inverdade ou não-verdade, ou seja, à necessidade de demonstrar
claramente em que consiste o não-verdadeiro. É neste sentido que essa negação guarda
em si uma positividade que lhe é copertencente. Em Parmênides uma tal demonstração
não esgota a tarefa que ele assume para a sua própria filosofia, posto que decidido está
que não se demonstre o que seja o não-verdadeiro, justamente para que o não-
verdadeiro não seja, mas, mais do que isso, esem jogo também, junto à essa tarefa e
dentro dessa decisão, demonstrar igualmente o que seja o verdadeiro para que o
verdadeiro seja: Pois bem, eu enunciarei, e tu, ouvindo, guarda a palavra, que únicos
caminhos de questionamento são a pensar: um, que é, e que não é não <pode> ser, da
persuasão é esta a senda, pois verdade a segue; outro, que não é, e que é necessário não
ser, este declaro-te atalho de todo não-persuasivo; pois nem conhecerias o não-ente,
pois não realizável, nem o declararias”
122
.
Que o verdadeiro seja e para que o não-verdadeiro não-seja; para que seja,
portanto, como thémis e díke são, é este e unicamente este o motivo e o motor do
121
Este paralelo com a Odisséia reforça a minha decisão por considerar o caminho do viajante como um
caminho de retorno, proposta que formulei aquando da análise do proêmio. Mas aqui, além dos motivos já
ali expostos, encontro a mesma situação, ainda que por razões distintas, que fez Havelock apontar, em um
seu célebre artigo, que a Odisséia era a obra com que Parmênides mais intimamente dialogava, atuando
não apenas no proêmio sob a forma de esporádicas alusões, mas sim na estrura do todo do poema e por
conseqüência no todo do seu pensamento (HAVELOCK, Eric. “Parmenides and Odysseus”. Harvard
Studies in Classical Philology, 63, 1958, pp. 133-143). O que aqui exponho a respeito de uma filosofia que
cumpre o seu télos indica o principal porquê do paralelo entre a viagem do ouvinte da deusa e o retorno de
Odisseu a Ítaca. Chego, pois, à mesma conclusão, a de que a Odisséia funciona, para o poema, como
alegoria maior da sua própria finalidade. Sobre a presença da Odisséia no poema de Parmênides, ver
também MUNIZ, Fernando. “A Odisséia de Parmênides”. In: SANTORO, Fernando et alli. Acerca do Poema
de Parmênides. Rio de Janeiro, Azougue, 2009. pp. 95-100.
122
B2, 1-6
65
65
pensamento que distingue claramente o ente e o não-ente. Que esta constatação sirva
também para confrontar o recorrente discurso na literatura especializada a respeito de
uma eventual remissão por parte de Parmênides aos pitagóricos como motivo principal
pelo qual se justificaria a oposição, em seu poema, entre um pretenso ‘ser’ e um ‘não-
ser’ a ele antagônico, sob a alegação de que os pitagóricos entreviam na natureza um
jogo contínuo de oposição e complementariedade: assim o ímpar e o par, o cheio e o
vazio, o quente e o frio. Ainda que o pensamento parmenídico estabeleça de fato
diálogos com o pitagorismo, atribuir, contudo, que a negação do não-ente em
Parmênides refira-se a uma eventual oposição pitagórica entre ser e não-ser significa
não só ignorar o que acabo de propor – o que a princípio não constitui problema algum
–, mas também desconsiderar que uma tal distinção em termos de ‘ser’ e ‘não-ser’, a
despeito das demais acima mencionadas, ocorre com os pitagóricos tardios,
posteriores a Parmênides, pelo que este, mesmo que o quisesse, não teria como
encontrar aí a sua motivação para a negação de um suposto ‘não-ser’.
Os caminhos para pensar são unicamente dois, e o real motivo pelo que o são
ficou exposto acima. E a razão através da qual as opiniões dos mortais, ainda que
incluídas no ‘tudo’ do que há para aprender, vêem-se aqui excluídas do ‘tudo’ do pensar
dá-se pelo fato de que ao opinar não pertence qualquer pensamento de cariz preciso e
conseqüente ou que ao menos se empenhe em sê-lo. O opinar não opera, então, na
dimensão de noeîn, mas tão-somente na de dokeîn: as opiniões dos mortais são pensadas
com a firmeza da crítica; elas são fruto desse dokeîn. É a partir deste que as opiniões
opinam, ‘acham’, ‘crêem que’. Também aqui age a força do princípio lógico de
identidade: o ente é; o não-ente, não é; o pensamento pensa e, ainda mais radicalmente,
o pensamento noético pensa noeticamente opiniões opinam. o mais que isso.
Pertencendo e sendo produzidos por dokeîn, dóxai
123
é o seu nome, e dokoûnta
124
a sua
‘coisa’ ou obra, no sentido de que dokoûnta são, ao mesmo tempo, a concreção das dóxai
como ‘coisa’, o conteúdo opinativo que realizam. Sim, elas perfazem um conteúdo,
porém cambiante, mutável e não-fundamentado, apesar do que possuem elas a
convicção de que esse conteúdo seja verdadeiro
125
. Por isso é necessário que também
sobre elas o ouvinte da deusa se instrua
126
, de modo a não cair na sedução de suas
123
B1, 30.
124
B1, 31.
125
B8, 39.
126
B1, 28-30.
66
66
“belas palavras”, as morfai/ (morphaí)
127
. Por representar esse caminho um contínuo
risco de dispersão e de desvio do caminho em que verdadeiro convencimento, o
ouvinte da deusa não deve se instruir a respeito da sua existência e caráter, mas
igualmente sobre o motivo pelo que esse caminho necessariamente tem que haver.
Desta forma, o tudo’ do que é para aprender compõe-se de três momentos a serem
devidamente expostos: a verdade, as opiniões e a razão pela qual as opiniões
inevitavelmente têm que se dar
128
.
Uma vez caracterizados e diferenciados esses dois ‘tudos’, respectivamente o do
aprender/instruir-se e o do pensar noético, torna-se forçoso reconhecer que, da soma
dos dois, perfaz-se um terceiro ‘tudo’, que constitui enfim a totalidade do poema, a qual
é possível ser reconhecida pelo olhar daquele que conquista o conhecimento
verdadeiro. Trata-se do ‘tudo’ de um saber que se pretende perfeito, concluso, e por
isso pleno; o saber que sabe, não exatamente tudo mesmo porque aponta para o que
não se pode conhecer –, mas a totalidade. Um saber que sabe por inteiro, daí a
incorruptível integridade do ente. E um sinal desse saber a totalidade relaciona-se com
o fato de que apenas e tão-somente alétheia participa de ambos, tanto do ‘tudo’ do
aprender como do ‘tudo’ do pensar, sendo-lhes o ponto comum e de interseção. A
verdade é ao mesmo tempo para conhecer e ser experimentada e, por outro lado, para
se pensar, configurando assim uma verdadeira experiência do puro pensar.
No que diz respeito ao todo do poema, compõe-se ele de três momentos, os
três caminhos apresentados pela deusa: o caminho da peítho, o caminho do ente; o
caminho do não-ente e, por fim, o caminho das opiniões dos mortais ou, ainda mais
precisamente, o caminho das opiniões dos tombados pela morte
129
. A totalidade do
127
B8, 53.
128
B1, 31-32:
a)ll' eÃmphj kaiì tau=ta maqh/seai, w¨j ta\ dokou=nta xrh=n doki¿mwj eiånai dia\
panto\j pa/nta perw½nta
. Se as opiniões têm necessariamente que ser, vemos aqui uma associação
entre ‘ser’ e ‘opinar’, o que constitui tema delicado ao qual voltarei oportunamente. De qualquer forma,
sobre a inevitabilidade das opiniões, destaco “Die Doxa als unübersteigbares System”. In: JANTZEN, J.
Parmenides zum Verhältnis Von Sprache und Wirklichkeit. Munique, C. H. Beck’sche Verlagsbuchhandlung,
1976, pp. 79-85.
129
Essa formulação corresponde de maneira mais exata à opção parmenídica por não adotar para os
“mortais” o usual termo
qnhtoi/
(thnetoí), proveniente de “morte”,
qa/natoj
(thánatos), e oposto exato de
a)qa/natoi
(athánatoi), vocábulo largamente empregado para referir os deuses como “imortais”.
Parmênides escolhe, contudo, o termo
brotoi/
(brotoí) para aludir aos mortais, termo derivado de broto/j
(brotós) que, por sua vez, significa “sangue coagulado”, crosta (de ferida)” etc; e ainda do verbo broto/w
(brotóo), ensangüentar”, “untar com sangue”, daí a tradução de
brotoi/
por “tombados pela morte”,
aqueles que, face à sua própria condição de mortais, “caíram” desde sempre ante a morte, os que têm
nela a sua ruína, os tocados, atingidos e vencidos pela morte. Sobre essa questão, indico: BOEDER, H. “Die
Unterscheidung des ersten Anfangs der Philosophie”. In: Abhandlungen der Braunschweigischen
Wissenschaftlichen Gesellschaft 47, 1996, p. 290.; SCHEIER, C-A. “Spelunca. Überlegungen zu einem
67
67
poema perfaz, portanto, um ‘tudo’ final que engloba uma trifurcação, diante da qual se
encontra o ouvinte da deusa e a partir da qual ele terá que escolher e se decidir por um
desses três caminhos. Não se pode afirmar, conseqüentemente, que no poema de
Parmênides qualquer um desses caminhos poderiam ser deixados de lado, nem muito
menos que algum deles seja supérfluo ou devesse ser negligenciado em favor da
verdade. Porque a verdade pode ser concebida juntamente e por contraste com
aquilo que dela se diferencia e a nega, e o que a nega assume, conforme visto, duas
dimensões: (A) a de um pensamento consequente mas inesgotável, um noeîn que jamais
se realiza como noéma
130
, eis o caminho do que não é, a via de como não deve ser; e (B)
a dimensão do pensamento que não ultrapassa um mero opinar, o dokeîn. Sem que
sejam consideradas e negadas essas duas dimensões, impossível positivar o que seja
alétheia.
Aproveito o ensejo para observar que a controversa e muito polêmica discussão
tal como a própria deusa alude
131
, como se antevisse o quanto a literatura
especializada se dedicaria e se confundiria em torno a esse assunto sobre se são três
ou dois os caminhos apresentados pelo poema não tem, diante do que aqui exponho,
tanta relevância, possuindo sentido exclusivamente técnico, talvez até retórico;
filosoficamente, o importante é reconhecer, tal como expus, que um dos caminhos, o
do não-ente, é excluído segundo um critério, mas incluído segundo um outro. A
questão torna-se, assim, mais precisa e literalmente mais complexa, na medida em que
se revela questão não redutível a uma via de mão única. Em todo caso, são
textualmente três os caminhos, hodoí/, literalmente referidos pelo poema, tal como
esclarecido anteriormente, todos eles viáveis. O que parece legitimar tamanha
controvérsia em torno a essa questão relaciona-se certamente com a cabal rejeição do
caminho do não-ente. A esse respeito, porém, foi dito aqui o bastante: ele é
rechaçado, sim, quanto à possibilidade de erigir um conhecimento verdadeiro; em
contrapartida, é positivamente declarado uma possibilidade noética do pensar. Esses dois
momentos, como intentei demonstrar, não são mutuamente excludentes. Acrescente-se
ainda que, ao contrário do caminho das dokoûnta, este caminho pode ser evitado. E
justamente por ser um caminho interno a noeîn, um caminho em que o pensamento
orphischen Thema”. In: Kontiguitäten. Texte-Festival für Rudolf Heinz. Wien, Passagen, 1997, p. 35; und
WINTER, S: „Die Gegenwart der Themis bei Parmenides und der Entzug der Bestimmung in der
Heideggers Lichtung”. In Sapientia. LIV, 205, 1999, pp. 12-13.
130
Ver B16, 4.
131
Ver B7, 4-5.
68
68
pensa de forma critica e conseqüente e, se assim o é, capitulará diante da força de
convencimento da verdade tão logo esta lhe seja apresentada. Por sinal é exatamente
essa a condição de Parmênides como ouvinte da deusa. Trata-se, desse modo, de um
caminho que pode ser evitado, uma vez que o pensamento noético reconheça o seu
próprio equívoco. Cabe lembrar uma vez mais que dentre os dois caminhos não-
verdadeiros apresentados pelo poema é este o que mais bem condiz com o caminho
percorrido pela filosofia anterior a Parmênides: um caminho caracterizado por um
pensamento noético porque pensado justamente por filósofos e grandes pensadores. E,
neste caso, se ficar uma vez demonstrado como autocontraditório ou simplesmente
errôneo, torna-se imediatamente ‘impensável’, mas não como se inimaginável fosse, tal
como foi aqui esclarecido. Impensável apenas e tão-somente no sentido de um ‘não-
dever-ser’, ou seja, ele configura exatamente o que e o como não se deve pensar,
conquanto o pensamento queira se ater à esfera da verdade.
Esse caminho é totalmente conseqüente, mesmo que não haja um fim para as
suas conseqüências. Não é realmente um caminho ora aqui ora ali, como o das opiniões
dos vencidos pela morte, mas um caminho de um regressus ad infinitum no inquerir e
ponderar, o que o impede de alcançar a plenitude que Parmênides atribui a noeîn quando
ele é verdadeiro. E ‘verdadeiro’ significa aqui o pensamento que cumpre à perfeição e
integralmente o seu propósito. O caminho do não-ente é então trilhado e desenhado
por um pensamento noético sim, mas que permanece sempre em processo, sempre em
devir, não em ‘ser’. É essa a sua contradição. Um pensamento que jamais se desvencilha
desse seu interminável processo, interditando a si mesmo a possibilidade de completar-
se e preencher-se, isto é, um noeîn que se mantém como essa ação verbal infinitiva, não
atingindo a perfeição substantiva de noéma, o resultado final e pleno do pensar, ou seja,
o télos último de noeîn. É como se Parmênides alegasse que noeîn quer ser noéma, assim
como, por sinal, dokeîn também quer ser dokoûnta. Essa transição do infinitivo para o
particípio perfeito consitui a marca do que se cumpre e se realiza, concretizando-se.
Manter-se no infinitivo é não encontrar termo para o seu próprio télos, é não atracar no
cais em que o pensamento anteviu o seu oriente e porto de chegada. Trata-se de um
gesto gramatical que imprime no poema, de forma indelével, a insígnie e o timbre de
uma idéia que decide e define todo o procedimento do pensar parmenídico: se
necessário é resolver o impasse anunciado por Xenófanes, se é portanto preciso
construir o que ainda não havia sido logrado à filosofia anterior, a saber, um
69
69
conhecimento firme e seguro, inconteste, é então igualmente necessário trazer o
pensamento a um termo, à sua concreção final. Em Parmênides, as formas perfeitas e
substantivas esperam pela conclusão das formas infinitivas. O problema do caminho do
não-ente é justamente este: não conferir perfeição ao infinitivo que lhe impulso e
atividade.
Aproveito para repetir e firmar que é especificamente nesse sentido que o
caminho do não-ente denuncia-se como movido por um pensar que não possibilita um
saber verdadeiro, e é também nesse sentido que se mostra efetivamente contraditório,
na medida em que contradiz tanto a verdade como a si mesmo, conquanto ambiciona ser
verdadeiro. Avaliado sob a perspectiva da verdade e do ente pleno e portanto perfeito –
e é este o ângulo desde o qual Parmênides o considera nada se pode conhecer de
forma efetiva, final e acabada ao longo dessa via.
Recapitulo então os três ‘tudos’ presentes no poema: o primeiro corresponde à
totalidade do poema, que abarca os dois caminhos de inquerimento noético e o das
opiniões dos mortais. Dentro dessa totalidade, dois outros ‘tudos’ devem ser
diferenciados: o tudo do pensar noético e o tudo do que se para aprender. Ao
primeiro desses dois, pertencem os caminhos (1) do ente e (2) do não-ente. Ao segundo
pertencem (1) o mesmo caminho do ente, a via da peítho, e um terceiro caminho (3), o
caminho das opiniões dos que sangram pela morte. Apoiado no que desenvolvi
anteriormente, pode-se considerar a respeito das principais características desses três
caminhos:
(1) Logicamente necessário, mas apenas possível, ou seja, não ocorre
inevitavelmente; convincente e persuasivo; noeticamente pensado;
(2) Embora conseqüente e crítico, é logicamente não-necessário, visto que se
contradiz; não-convincente; possível e noeticamente pensado; é evitável, posto
que o pensamento, se noético, poderá reconhecer seu equívoco; portanto, mais
do que evitável, tem mesmo que ser evitado, daí a sua terminante exclusão o
pensamento noético deve voltar-se para a sua possibilidade máxima (caminho
1);
(3) Logicamente não-necessário, mas inevitável, o mesmo que dizer existencialmente
necessário; pensado de forma opinativa ou, com mais rigor, não é exatamente
pensado, mas opinado, ‘achado’, intuído.
70
70
Obviamente não são (2) e (3) o mesmo, mas possuem algo em comum que lhes
vale como um elo: a insuficiência para o verdadeiro conhecimento, pelo que precisam
ser igualmente diferenciados e negados em sua distinção frente à verdade. Um,
conseqüente e crítico, o outro, distraído e indeciso. Ambos, porém, não-verdadeiros.
Eis então o que não só legitima como faz com que seja necessário expor a ambos, a fim
de que, a partir dessa exposição, demonstre-se a pretendida exposição da inverdade,
pelo que a verdade não possa ser de modo algum com eles confundida e para que
possa, assim, sobressair-lhes em toda a sua nitidez
132
.
Justifica-se, desse modo, a estrutura formal do poema depois de percorrido o
propósito do proêmio e obedecidas as palavras da deusa a respeito dos três caminhos
que expõe ao seu ouvinte, indicando o que ele, Parmênides, deve deixar de lado e o que
deve acolher. Falta-lhe agora expor a sua decisão, a grande novidade implementada pela
sua filosofia, a verdade, e, em seguida e noutra parte que opiniões e verdade não se
tocam – ‘repetir’ as opiniões dos mortais.
Quanto à exclusão do segundo caminho, seja aqui ressaltado o quanto
corresponde à rejeição parmenídica relativamente ao saber promovido pela filosofia até
então. O percurso de Parmênides refere o quanto se ocupou dela, a fim de conhecê-la,
começando o seu caminho, mas apenas para que dela aprendesse o suficiente para
negá-la, para que dela se desgarrasse através da decomposição e da destruição de seus
alicerces. Eis o trecho negativo do seu caminho até que, uma vez abandonada a casa da
noite, este caminho comece a positivar-se através da conquista de uma direção e de um
sentido completamente novos: ao fim do seu percurso, Parmênides encontra o que
nenhum outro ainda havia descoberto: a verdade
133
. Eis aqui a deusa parmenídica: a
deusa que lhe revela a verdade. Não uma deusa como aquelas do Olimpo, mas uma
deusa filosófica, destituída de nome, uma deusa-pensamento
134
. Uma deusa que exorta
132
Especificamente a esse respeito (ver. p. 32) e acerca da inter-relação entre as partes do poema em geral
indico os seguintes escritos de Karl Reinhardt: “Das Verbindungsglied zwischen den beiden Teilen des
Gedichts” e “Der erste Teil”. In: REINHARDT, K. Parmenides. Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann,
1985, pp. 5-10; 32-51.
133
Lembre-se que Heraclito faz uso da forma neutra plural a)lhqe/a(B112), em que reside a ideia adjetiva,
portanto, a ideia do “verdadeiro” e, ainda assim, plural. A substantivação do termo é realizada em âmbito
filosófico primeiramente por Parmênides e, de fato, entre o adjetivo heraclítico e o substantivo
parmenídico mantém-se uma distinção enorme de pensamento, afastando decididamente a pluralidade do
“verdadeiro” do Efésio da univocidade da “verdade” do Eleata.
134
Essa mesma qualificacao vale igualmente para thémis e díke pelos seguintes motivos: o ente parmenídico
não é uma coisa nem se inscreve na ordem dos sensíveis em geral. Trata-se de um ‘pensado’. Isto quer
dizer que se compõe de pensamento, sendo este o seu tecido e textura, a sua ‘matéria’. O ente é pensado e,
sendo-o, é pensado segundo um critério e uma orientação. Esse critério, como exposto, condiz com o
que thémis e díke significam e o que elas significam é, novamente, um teor de pensamento, uma idéia. No
71
71
o “homem que sabe” da cosmologia e do conhecimento baseado na voz inspiradora das
musas a abandonar esses caminhos, porque não são os que conduzem à ela. Uma deusa
que não se contradiz justamente porque diz e decide a irreconciliável separação entre o
que e como é e o que e como não é tudo o mais não garante verdadeiro conhecimento
porque oscilante, equívoco, contraditório ou mesmo absurdo aquilo que não se pensa
consoante a fundadora lei de thémis e a indicadora justiça de díke.
que se refere, portanto, ao kósmos do pensamento, pois é que thémis e díke ‘vivem’, deve-se perguntar: se
assim não for, o que são thémis e díke? Uma coisa? Criaturas celestes ou ctônias? ‘Deusas!’, poder-se-ia
dizer. Mas sabemos o que isso significa, ainda mais tendo o pensamento de Parmênides como âmbito? O
que poderiam ser elas senão um conteúdo de pensamento, uma idéia, ou seja, deusas concebidas pelo
pensar? Elas são, então, do mesmo caráter que o ente, partilhando com ele a sua natureza, uma natureza
pensada.
72
72
III – O elo comum entre o caminho das opiniões e o caminho do não-
ente: a dupla constituição da inverdade e a crítica à tradição de
pensamento dos primeiros tempos da filosofia
Incluído por um critério e rejeitado por outro, o caminho do não-ente é
imediatamente deixado de lado tão logo sua imperfeição e deficiência para o saber sejam
expostas pela deusa. A partir de então, o poema dedica-se nas suas duas partes finais
àquele ‘tudo’ do que se pode aprender, experimentar e conhecer proferido ao final do
proêmio, desenvolvendo, assim, a exposição de dois modos distintos de pensamento:
(A) o pensamento unívoco e concluso, pleno, a verdade; o noeîn que atinge a sua forma
final e perfeita, expressa pelo substantivo noéma; e (B) um modo de pensamento
equívoco, mais exatamente o opinar e a sua emissão sob a forma de opiniões, isto é,
dokeîn e dokoûnta, respectivamente. Com isso distinguir-se-á o que é necessariamente
uno e o que necessariamente plural; o que conforma um verdadeiro saber e o que
configura um saber oscilante e frágil e, como tal, não-verdadeiro porque apenas
precário e aproximativo. Novamente são ambos os caminhos viáveis mas não se
cruzam; têm em comum, apenas, serem modos de pensamento: o verdadeiro e o
errante
135
, respectivamente.
Todavia, o ‘tudo’ do pensar não desaparece de todo do poema, pelo contrário.
Ainda que a deusa afirme, nos dois primeiros versos do fragmento 8, que “uma
palavra do caminho ainda resta, que é ”, a exposição do caminho da peítho e, por
extensão, do ente pleno e perfeito, realiza-se a partir de um incessante jogo de contraste
entre o ente e o não-ente, resultando num contínuo conjunto de negações, através das
quais se afirmam e se positivam, por oposição, os muitos sinais”
136
, que indicam e
definem o caminho do que é e de como tem que ser. Torna-se assim novamente claro
que a definição e concepção de alétheia pode ser realizada concomitantemente a uma
comprovação e caracterização da inverdade, do qual ela, a verdade, diferencia-se
sobremaneira. Esse jogo de oposições e negações serve igualmente para promover a
confirmação da exclusão do não-ente, expondo de forma logicamente pormenorizada
os argumentos que justificam a sua eliminação.
135
plakto\n no/on
”. Ver B6, 6.
136
B8, 2-3.
73
73
Isto significa, ademais, que o pensamento errante acima aludido não se compõe
apenas das opiniões dos mortais, mas também daquilo que é, frente à verdade,
igualmente não-verdadeiro, o caminho do não-ente. Dessa forma, para que se prossiga
a análise a contento, convém evocar uma vez mais o elo comum que une os dois
caminhos que não participam da verdade, uma vez que essa não-participação revela
decerto algo mais do que a mencionada insuficiência relativamente à construção e
afirmação de um saber verdadeiro. Faz-se necessário demonstrar qual o motivo e
fundamento final pelo que tanto o segundo como o terceiro caminhos são assim
insuficientes, não podendo garantir conhecimento seguro e efetivo. Com isso tornar-se-
á mais claro e mais preciso em que consiste esse elo que os une em sua diferença frente
à verdade, isto é, frente ao verdadeiro conhecimento.
Para uma tal demonstração faz-se aconselhável recorrer a uma situação histórica
mencionada anteriormente como uma das ‘heranças’ da filosofia parmenídica.
Remeto novamente à obra de Xenófanes que, sobre a possibilidade de um
conhecimento preciso e inconteste, chega à seguinte conclusão:
E o que é exato nenhum homem conheceu, nem haverá
alguém que conheça acerca dos deuses e de todas as coisas, de que apenas falo;
pois mesmo se a alguém lograsse dizer o perfeito,
ele mesmo não o conheceria: a opinião a tudo se agarra
137
.
A sentença de Xenófanes relativamente à possibilidade do conhecimento é tão
assombrosa quanto intimidadora. Ela afirma, mais exatamente, que essa possibilidade
simplesmente não existe. De forma categórica, o filósofo de Colofão não afirma que
jamais se conheceu e se conhece com exatidão o que quer que seja, como profetiza que
a ninguém será logrado um dia conhecer. E o motivo final para tanto é:
do/koj d' e)piì
pa=si te/tuktai, a opinião a tudo se agarra”. O dókos, o modo de pensar que é um
dokeîn, eis o incontornável obstáculo, afirma Xenófanes, que faz da perfeição quanto ao
conhecimento uma absoluta impossibilidade.
Diz-se comumente que Xenófanes teria sido o mestre de Parmênides. Se sim,
tratar-se-ia de um daqueles casos em que o discípulo volta-se radicalmente contra o
mestre, a ponto de torná-lo seu adversário, uma vez que o seu possível legado constitui,
137
B34. É interessante observar a grande semelhança entre esse “a opinião a tudo se agarra” com os dois
últimos versos do proêmio. Vide B1, 31-32. O ‘tudo através de tudo’ parmenídico relaciona-se
precisamente com este
pánta
xenofânico.
74
74
para Parmênides, uma herança a ser completamente rejeitada. De fato, o fragmento 34
de Xenófanes representa tudo aquilo contra o que o Eleata se ergue e, por sinal, com
uma incrível precisão terminológica.
Se o conhecimento é, para Xenófanes, uma impossibilidade, Parmênides realiza-
o e concretiza-o através da sua concepção de alétheia e da plenitude do ente; se ninguém
jamais conheceu nem de conhecer, como profetiza Xenófanes, e isto por razão de a
dóxa se agarrar sempre a pánta, a filosofia de Parmênides ambiciona apresentar-se
justamente como aquela por quem essa profecia será desfeita e invalidada e, para tanto,
necessitará excluir precisamente as dóxai mencionadas por Xenófanes do âmbito do
pensamento verdadeiro, para que o próprio pensamento possa conceber a verdade e
não permaneça sendo apenas um dóxico pensar.
É significativo observar que Xenófanes é o primeiro filósofo a introduzir
explicitamente o problema da dóxa na história da filosofia, e mais especificamente como
um intransponível obstáculo à possibilidade do conhecimento. Mesmo na sentença
acima citada, a opinião já se encontra excluída de um pretenso saber perfeito e exato. O
problema consiste justamente nisso, no fato de que o conhecimento possivelmente
verdadeiro impossivelmente se efetiva. De qualquer forma não é mero acaso que as dóxai
constem no poema de Parmênides igualmente excluídas da esfera da verdade. Mais do
que isso, o que faz Parmênides diante da negativa asserção de Xenófanes consiste em
propor positivamente algo alternativo à opinião, a fim de que se reestabeleça a
possibilidade de conhecer. Trata-se de uma questão histórica. E essa alternativa será a
verdade, de quem a perfeição circular
138
é uma das propriedades, a mesma perfeição,
tetelesme/non
139
, que Xenófanes afirmara inexeqüível.
Com o reino da opinião alargando-se sobre tudo, há, pragmaticamente, duas
opções: opinar e desistir do conhecimento ou propiciar algo que se possa efetivamente
conhecer. Parmênides decidiu-se, claramente, pela segunda opção. Mas é preciso não
esquecer que, se foram as opiniões excluídas da esfera do saber verdadeiro, não foram
elas, por outro lado, excluídas absolutamente do poema como um todo, sendo tratadas
e consideradas em sua parte final. A clara hierarquia que subordina as opiniões à
verdade esclarece-se em face do critério segundo o qual são avaliadas: o critério do
conhecimento ou, ainda mais exatamente, da possibilidade de promover um
138
Cf. B1, 42-45.
139
XENÓFANES B34, 3.
75
75
conhecimento firme e seguro. Nesses termos, a verdade garante saber. As opiniões
encontram-se sim excluídas do conhecimento inequívoco e da verdade, mas não do
pensamento. Ademais, elas não dão exatamente conhecimento, a não ser de forma
precária
140
e essa precariedade revela-se, aos olhos de Parmênides, efetivamente como
não-conhecimento. Mas elas podem, e devem, ser conhecidas. Esta é uma diferença
importantíssima que não se deve perder de vista. um modo de pensamento que as
concebe, necessariamente. Esse modo, o vimos, é dokeîn, o opinar. Com o advento da
filosofia parmenídica, porém, passa a existir uma alternativa a elas: a verdade. Eis a
grande ambição da obra parmenídica. Parmênides pôs seus tijolos, pedras e argamassa
onde Xenófanes vacilara. As opiniões são inevitáveis, mas é possível o conhecimento,
apesar disso. Incluídas no poema porque incluídas nas distintas possibilidades do
pensar humano, as opiniões encontram-se, também necessariamente, excluídas do
verdadeiro conhecimento, posto que o seu caráter trai a natureza do que se quer como
conhecimento, sendo-lhe absolutamente incompatível. Para a efetivação e elaboração
de um conhecer verdadeiramente, é de todo preciso excluir a opinião da via que conduz ao
conhecimento efetivo. E, daqui, o salto para a descoberta da verdade.
A declaração de Xenófanes permite perceber igualmente que a concepção de
conhecimento aqui em jogo, o conhecimento que ele, Xenófanes, julga irrealizável,
conhecimento este cuja elaboração constitui o télos basal da filosofia de Parmênides,
refere-se a um conhecimento, por um lado, tão exato como seguro e confiável assim
indica
to\ safe\j( saphés)
141
e, por outro, perfeito e pleno tetelesme/non
(tetelesménon)
142
. Isso significa que ele não nega que haja alguma forma de conhecimento;
o que nega é que o haja exato e perfeito. Este, o impossível. Exatidão, porém, é o que
se reconhece cabalmente na argumentação estritamente lógica e crítica que caracteriza o
discurso verdadeiro no poema de Parmênides. Da mesma forma, como indicado
anteriormente, a verdade parmenídica distingue-se sobremaneira por sua convicção e
confiabilidade. E, mais que uma inconclusa e imperfeita plenitude, Parmênides
apresenta a perfeita plenitude do ente e do saber verdadeiro.
140
No Livro VI da República, especialmente na analogia da linha (ver 509d-511e), percebemos como o
escapa a Platão essa difícil sutileza, uma vez que inclui as opiniões na escala do conhecimento, ainda que
em sua base, ou seja, no estágio mais precário e deficiente do conhecer, correspondendo essa base na
ordem do conhecimento justamente ao mundo sensível.
141
XENÓFANES B34, 1.
142
Idem B34, 3.
76
76
Aquilo que segundo Xenófanes define e caracteriza o conhecimento e o saber
não tem como ser alcançado porque sempre albarroados pela dóxa. Esses dois
elementos, necessários a um conhecimento inequívo, são a perfeição e a plenitude,
ambos expressos sob o termo tetelesme/non. Em Parmênides este predicado passa a
ser uma das principais características, senão a principal, da verdade e do ente
143
. Além
disso, dentre os atributos primordiais do ente parmenídico constam outros dois que
deste derivam, de onde se declara o ente como (A)
a)te/leston (atéleston), “perfeito”
144
,
no sentido daquilo que, sendo “sem finalidade” ou alvo, não tem mais o que cumprir
nem nada do que carecer; característica que vem a ser confirmada posteriormente
através da declaração de que o ente é (B) ou)k a)teleu/thton (ouk ateleúteton)
145
, “não-
aperfeiçoável”, pois thémis e díke sentencia como lei o ente não ser incompleto ou
aperfeiçoável –
ou)k a)teleu/thton to\ e)o\n qe/mij eiånai
146
. Destaque-se aqui a precisão,
não apenas do pensamento parmenídico, mas também da sua escrita, pela qual
Parmênides reage e responde à sentença de Xenófanes através da sua definitiva rejeição
e negação, utilizando para tanto cuidadosamente os mesmos termos empregados pelo
seu antecessor, mas impondo-lhes, como neste caso, um alfa privativo ou outro recurso
qualquer que os vire do avesso. Além disso, a argumentação de Parmênides vai ainda
mais longe: o ente não é tão-somente “preenchido”, ele é pleno. A idéia de um
preenchimento requer um desenvolvimento anterior. Ao invés disso, a plenitude do
ente parmenídico aponta para um “preenchimento” permanente, posto que se é de nada
carece
147
, sempre esteve cheio de si, constantemente preenchido sem tê-lo sido. Essa
sua condição remete uma vez mais àquela decisão, àquela lei, igualmente cheia de si
mesma, daí também inalterável e incorruptível, estabelecida por thémis, e que pontua no
poema como o seu imperturbável fundamento: o que é, é, e é como tem que ser; o que
não é, não, e não tem que ser. E isto, o que e como tem que ser, não conhece começo
nem fim, do mesmo modo nenhum desenvolvimento. Nenhum preenchimento de uma
eventual lacuna lhe pode ser imposto, que pleno e, portanto, não-lacunar. É-lhe
também inassociável o tempo, uma vez sem começo e sem fim.
143
B8, 42. Neste verso Parmênides emprega exatamente o mesmo termo usado por Xenófanes aqui em
análise.
144
B8, 4.
145
B8, 32.
146
B8, 32.
147
B8, 33.
77
77
Na caracterização do ente e da sua plenitude, Parmênides emprega exatamente
as mesmas qualidades que Xenófanes declara impossíveis de se associar ao saber, todas
em torno à impossibilidade maior: tetelesme/non
148
. Assim subverte o Eleata a sentença
do seu possível mestre: o ente e a verdade são efetivamente plenos inteira e
perfeitamente acabados.
Além disso, cabe ainda perguntar: o que para conhecer e que não se pode
alfim conhecer, segundo a supracitada posição de Xenófanes? Isto é, quais os dois
objetos de conhecimento mencionados que por fim não se permitem conhecer? O
divino, ho théos, e pánta. Pois a efetivação do conhecimento se dá, em Parmênides,
justamente pelo divino, através da palavra de uma deusa, pelo que aquilo que ela revela,
alétheia, concede a essa efetivação do conhecimento o seu caráter fundamental e mais
decisivo, que consiste exatamente na natureza divina do saber verdadeiro, indicando
assim, por esse artifício alegórico, tanto a imortalidade e a incorruptibilidade da
verdade, como a subversão acima aludida, fazendo do incognoscível conhecimento.
No que diz respeito a pánta, é este o único ponto em que Parmênides mostra-
se concordante com a sentença de Xenófanes aqui analisada: é em torno a esse pánta
que as dóxai fazem-se dóxai. Parece que a observação de Parmênides diante desse
impasse em que resulta a filosofia de Xenófanes impasse que o filósofo de Colofão
estende a todos os demais filósofos, sejam a ele anteriores ou posteriores, dado o
caráter profético de sua asseveração – concentra-se no fato de que, tendo todos eles um
mesmo objeto, mas divergindo tanto entre si, afirmando, portanto, sobre o mesmo o
não-mesmo
149
, talvez seja o conhecimento simplesmente impossível, fadado a esboroar-
se sempre diante daquela multiloquacidade referida no proêmio
150
. É a este objeto aqui
testemunhado por Xenófanes, pánta, que o pensamento invariavelmente se dedicou
até o surgimento da filosofia parmenídica, que decide, pela primeira vez, que também o
pensamento pode ser objeto do pensar. Se esse tradicionalíssimo objeto da
consideração filosófica fez gerar pura e simplesmente múltiplas e oscilantes
interpretações acerca de um mesmo, torna-se bastante plausível ponderar e parece
que Parmênides assim o fez que a impossibilidade referida por Xenófanes antes recai
e se fundamenta nesse objeto do que no pensamento que o investiga. Isso significaria,
conseqüentemente, que ao pensamento o é vedado o conhecer efetivo, mas sim
148
B8, 42.
149
B6, 8-9.
150
B1, 2.
78
78
especificamente ao pensamento que se orienta a esse tradicional objeto de
conhecimento. Querer conhecer pánta redundaria, então, na experiência de jamais
poder conhecê-lo. Não com a firmeza e força de convencimento perseguida pelo
Eleata. pánta, o todo e a totalidade do que talvez chamemos hoje ‘natureza’, não se
permite conhecer, não plenamente. Assim, que a opinião se agarra a tudo, isto é, a
pánta, do mesmo modo deve-se ler o “atravessando tudo através de tudo”
151
parmenídico: também em Parmênides a detecção de que as opiniões se agarram e se
atrelam a pánta, de modo que fugir delas e daquilo sobre o que opinam é a pré-
condição de possibilidade para a verdade, daí que esta apresentará predicados
exatamente contrários aos daquele.
Se o pensamento escolhe esse tema sensível por sua natureza e condição como
sendo o seu objeto de reflexão por excelência, então encontrar-se-á ele fadado a jamais
experimentar o que seja um saber consoante o modo da verdade. Eis a posição de
Parmênides. Concorda pois com Xenófanes quanto a esse objeto não permitir um
conhecimento exato e pleno sobre ele, o que inspira Parmênides a encontrá-lo ou
inventá-lo, talvez noutra parte, numa região do pensar jamais visitada por qualquer
outro, um caminho apartado dos já trilhados por mortais. Retira daí, por contraste,
outra decisão radicalíssima: se se quer verdadeiramente conhecer, que não se volte o
pensamento para os temas de sempre, nem para pánta, nem para a phýsis, nem para o
kósmos. Todos eles são, em sua realidade e por causa da sua realidade, impossíveis de se
conhecer inteiramente.
Esses temas tradicionais, tanto da filosofia como da mito-poética gregas,
terminam por se mostrar como os fatores que impossibilitam a concreção de um vero
saber. E a declaração de Xenófanes é aqui tão reveladora quanto exemplar de que o
de fato esses os objetos principais do tipo de investigação e inquerimento, do modo do
historiar, enfim, pretendido e promovido pela filosofia nascente. Mas não apenas por ela,
como também pelos homens em geral, consoante o hábito do seu pensar ordinário e
cotidiano, o seu opinar.
Fica então esclarecido finalmente o cerne do elo que une e entrelaça o caminho
das opiniões dos mortais e o caminho do não-ente: cada um deles pensa e considera, a
seu modo, o mesmo. É em torno aos três temas aqui principalmente referidos, é em
torno, por extensão, disso a que hoje chamamos ‘o real’ ou ‘realidade sensível’ que
151
B1, 31-32.
79
79
orbitam por regra, decisão e também por hábito, as atividades do seu opinar e do seu
pensar, respectivamente. Com a diferença de que as opiniões acrescentam sobremaneira
às suas considerações acerca desse mundo sensível suas preocupações relativas ao viver
cotidiano. Também o modo como as opiniões o consideram, um modo constantemente
oscilante porque desatento e descuidado, distingue-se totalmente do modo e da
qualidade com que o fazem os primeiros filósofos relativamente às suas questões e
reflexões, uma vez que estes, em sua tentativa sempre repetidamente inconclusa de
efetuar um saber firme e inconteste, alegaria Parmênides, conformam em torno a essa
realidade sensível um modo e um método de pensar que, como exposto, caracteriza-
se por ser conseqüente e crítico em prol do cumprimento desse seu télos típica e
propriamente filosófico: ocupando-se em conceber universalmente
152
tudo o que aparece,
funda-se então o modo de pensamento característico da filosofia em seus primeiros
tempos, modo este que parte de um olhar atento, acurado e observador para o seu
objeto de eleição, com o fito de conceber o princípio, o cerne e a estrutura que regulam
a totalidade dos aparecentes. A filosofia não se fez nem se fundou como um discurso
sobre exceções e particulares, mas sim como um discurso que se move na ordem do
universal, revelando assim um pensar que busca e pondera o que é aplicável a tudo e
todos.
A esse modo de pensamento é possível a verossimilhança e, portanto, em
alguma medida também o conhecimento. Mas jamais em sua plenitude, argumentaria
Parmênides, visto que não tem como esgotar o objeto que elegeu. Resulta disso que a
sua possibilidade extrema e máxima é apenas aproximativa, redundando num tipo de
conhecimento que se encontra predestinado e predestinado’ porque o seu destino
está definido pela sua decisão inicial
153
a ser não mais que verossímil, uma vez que
não como conceber a multiplicidade própria à realidade sensível com a mesma
convicção e exatidão com que a deusa do poema parmenídico concebe a unicidade da
verdade, uma verdade puramente conceitual. Embriagada pelo verossímil,
152
Lembre-se aqui da insistência de Tales, o primeiro dos filósofos de acordo com o testemunho e o critério
de Aristóteles (Metafísica, 983b20 ss.), relativamente ao caráter universal que empresta à filosofia
justamente na sua fundação, caráter esse traduzido pela presença de um “tudo” nas duas únicas sentenças
a ele atribuídas: “tudo é água” e “tudo está cheio de deuses”.
153
Por aqui um indício por que Parmênides inclui a Moira em seu poema. Conforme a decisão de cada um
dos caminhos noéticos a respeito de qual o melhor método, o mais reto caminho para o saber, assim
também o destino que angariam para si mesmos. O do ente, destinado à verdade; o do não-ente, destinado
à incompletude do seu télos e, por extensão, à errância.
80
80
considerando-o, por vezes, como se verdade fosse
154
, a filosofia pré-parmenídica acaba,
também ela, por se ver parcialmente enredada ao círculo das opiniões dos mortais.
Desenvolvendo consoante esse método e disposição de pensamento seus
questionamentos acerca do kósmos, da phýsis e de nta, têm esses filósofos como
ponto comum de identidade a busca por um princípio uno para a diversidade do mundo
sensível e seus eventos, o que por fim definiu a questão das relações entre unidade e
multiplicidade como a sua mais célebre e insistente tematização, sendo isto válido não
apenas para a filosofia anterior a Parmênides, mas, neste caso, também para
praticamente toda a filosofia da Antigüidade.
A temática do ‘uno-múltiplo’ servirá aqui como a chave para que se considere
por que é possível considerar tal como Parmênides considera, segundo esta minha
interpretação do poema que o pensamento dirigido à compreensão da phýsis e de
pánta, por exemplo, resulta obrigatoriamente num pensamento incapaz de atingir a
firmeza de um conhecimento seguro e inconteste, condenando-se a si mesmo a ser
infindável dircurso sobre o mesmo, “uma via multíloqua”. O problema fundamental
dessa temática, o uno-múltiplo, problema este que interdita ao pensamento a
oportunidade de vir a completar-se, construindo assim uma arquitetônica perfeita e
acabada, repousa precisamente no significado que esse hífen revela no meio dessa
expressão. Ele vale como um indicador da oposicionalidade e, por extensão, da inter-
relacionalidade pelas quais a estrututra e a dinâmica de ‘tudo’ são essencialmente
concebidas.
Unidade e multiplicidade, um e outro, luz e noite, amor e ódio: em meio ao
conjunto dos aparecentes vigora inevitavelemente um jogo insubtraível de relações e
reciprocidades. Mas o que possui caráter relacional, não pode ser absoluto, tal como o
ente parmenídico o é ou pretende ser. Essa referida relacionalidade esclarece-se, pelo
menos desde Anaximandro, através do estabelecimento de uma dualidade e
bipolaridade principiais. Como poderia ocorrer a esse modo de proceder o pensamento
na sua tarefa de conceber a realidade sensível a idéia de um uno, de uma integridade e
de uma plenitude absolutos? A filosofia de Parmênides não nega que esse jogo de
oposições e inter-relações seja o caráter mais marcante e definidor da phýsis. Tanto é que
recorre a um procedimento análogo para a sua própria cosmologia, aquela que vemos
manifesta na última parte do poema. Isto não constitui, de resto, nenhuma novidade; o
154
B8, 39.
81
81
que ele descobre, contudo, é que esse tema contradiz a verdade devido ao seu caráter e
natureza. Na qualidade de uma contradição, deve ele ser completamente banido da
dimensão do pensamento puramente conceitual. No que tange, pois, à idéia de verdade
em Parmênides, esse ‘múltiplo’ da expressão ‘uno-múltiplo’ deve necessariamente cair,
eis o que vemos ser realizado de forma cabal e categórica no atual fragmento 8 do
poema, por exemplo. Única e exclusivamente o uno deve ser pensado pelo puro
pensamento, o que quer dizer, por outro lado: uma unidade absoluta é possível como
idéia, mas impossível como realidade. ‘Unidade absoluta’ significa ser uno e único e não
apenas uno em relação a si mesmo. O absoluto é o que não comporta qualquer relação
e assim é apresentado o ente em Parmênides. Uma tal unidade, onde na natureza?
Este ente que é puro pensamento encontra-se, portanto, ausente em qualquer
outra parte. Ausente, então, do real, ainda que “firmemente presente no pensamento
(no/wi)”
155
. Naturalmente, no pensamento noético! O ente é contínuo única e
exclusivamente ao ente, e é este modo de pensamento quem o exclui e aparta
156
; “não o
encontrarás”, diz a deusa, “nem disperso totalmente por todas as partes do cosmo, nem
reunido”
157
. É aí, em
pa/nthi pa/ntwj(!), neste “totalmente por todas as partes do
cosmo”, que não se encontrará jamais o ente tal como concebido por Parmênides, nem
disperso, nem concentrado, nem de forma alguma, pois, ao contrário das dóxai, o ente
se agarra ao ente, não a pánta. Impossível maior contundência. E, então, por que
se o procura aí?
O ente pleno, aquele que “o mesmo no mesmo permanece e sobre si mesmo
repousa”
158
, caracteriza-se por essa identidade absoluta – uma identidadde que não
acolhe diferença alguma e, portanto, também não aquela presente na idéia do ‘uno-
múltiplo’ fazendo desse ente a expressão da própria idéia radical e pura de absoluto,
aquilo que só pode ser idêntico a si mesmo. Quando se fala, por extensão, de uma plena
e absoluta identidade do ente, alude-se com isso à idéia de uma auto-identidade que
sequer reconhece qualquer relação ou referência que não seja a si mesma. Ao contrário
disso, para que os sensíveis possam ser concebidos como auto-idênticos, exige-se a
presença de um outro, através do que cada unidade singular é idêntica a si mesma por
intermédio de sua diferença ou mesmo oposição frente ao seu diverso. Distinguem-se
155
B4, 1, .
156
Ver B4, 2.
157
B4, 3-4
158
B 8, 29-30.
82
82
deste modo a absoluta identidade do ente pleno e perfeito
159
e a identidade por
alteridade, um modo ou qualidade de identidade característica ao equívoco cosmo das
dóxai
160
. Enquanto esta representa a identidade consigo mesmo mas tão-somente a
partir da diferença em relação a um outro, aquela remete à identidade consigo mesmo a
partir da exclusão de toda e qualquer alteridade. Deste modo a identidade por alteridade
formula um A=A, mas apenas no sentido de que se opõe porque é necessário que o
seja a um B=B. Esta qualidade de identidade não é aquela que se reconhece no ente
parmenídico, posto que este indica uma absoluta e irrestrita auto-identidade, a plena
identidade do ente, pois o pensamento noético “
não apartará o ente do ater-se ao
ente
161
.
Essa identidade plena e absoluta encontra no poema, para além da sua
exposição no fragmento 8, duas outras passagens fundamentais que a complementam:
primeiramente o fragmento 3 e, em seguida, o fragmento 6. Naquele afirma-se a
absoluta e irrestrita identidade entre pensar e ser:
Pois o mesmo é pensar e ser
162
. E
neste, mais do que a confirmacão dessa mesmidade entre o que é para pensar e ser,
atesta-se a necessidade dessa mesmidade e auto-identidade através da inclusão do dizer,
o que se realiza pela determinação
xrh\ to\ le/gein te noeiÍn t' e)o\n eÃmmenai:
É
necessário que o dizer, o pensar e o ente sejam
163
. Assim tem-se no fragmento 6,
primeiro, (A) a plena identidade do dizer, do pensar e do ente, pelo que tanto o dito,
como o pensado têm que ser necessariamente o mesmo que o ente; e depois (B) a
imperiosa exigência
xrh\... eÃmmenai de que o pensamento e o saber a que o
pensar almeja afirmem o que é necessário ser; e, por fim, concluindo este primeiro
verso do fragmento, (C) a evidenciação daquilo que para dizer e pensar, eÃsti ga\r
eiånai, “pois ser é”, o que significa, no contexto semântico e lingüísitco sob o qual
venho desenvolvendo a minha análise, isto mesmo que distingue a sintaxe e o idioma
159
Ver B8, 29-30; 49.
160
Ver B8, 51-59. A precisa apresentação, por parte da deusa, do que seja o que ora chamo de identidade
por alteridade encontra-se descrita a partir do verso 58 do fragmento 8, referente ao mundo sensível
sobre o qual se emitem dóxai.
161
B4,2. Ver também B8, 25.
162
B3:
to\ ga\r au)to\ noeiÍn e)sti¿n te kaiì eiånai
. Sobre o uso do infinitivo do verbo ser no poema de
Parmênides e sua respectiva significação, refiro a obra de CAPLAN, T. Parmenides' conception of perfect
being, and a systematically deduced axiology of the verb eimi (to be) in Homeric speech. Tese de doutorado.
Universität Osnabrück, 1996, pp. 177-195.
163
B6, 1. Grifo meu. A respeito da comunhão e unidade de ser-pensar-dizer em Parmênides com premissa
do conhecimento perfeito, cito a seguinte frase de Hölscher: “Erkennen ist das Sagen eines Seienden”. In:
HÖLSCHER, U. Der Sinn von Sein in der älteren griechischen Philosophie. Heidelberg, Carl Winter
Universitätsverlag, 1976. p. 47.
83
83
parmenídicos, que o verbo ‘ser’ é e, como tal, não devém nem pode devir rigor, não
rigidez, do princípio de identidade como princípio artificial de linguagem. Na seqüência,
confirma-se por oposição a necessidade daquilo que tem que ser, lê-se “nada não é”
mhde\n d' ou)k eÃstin
164
.
Sucede nesses dois fragmentos o mesmo e importante advento: noeîn vem
primeiro, isto é, encontra-se anteposto ao próprio ente, eòn, deixando entrever dessa
forma não que o pensar noético tenha uma primazia diante do ente, mas que é dele a
pré-condição, dado que é ele e tão-somente ele que concebe este último. Eis então
novamente a decisão primeira e primordial do pensar consoante aquilo que thémis
legisla: se encontra sempre pensado e estabelecido, o que e como tem que ser. Trata-
se, portanto, de uma identidade pura, e aquilo pelo qual todo esse exercício de
pensamento anseia consiste em consolidar um fundamento que não encontre, por sua
vez, fundamento outro que não em si mesmo, portanto, no pensado. Mais do que isso:
que não possa encontrá-lo fora de si. Ele é, para si mesmo, o seu próprio e único
fundamento.
Porque o ente é idêntico somente e exclusivamente a si mesmo o que faz, por
sua vez, do ente pensado por Parmênides um ente pleno e cheio tão-somente de si –,
nada lhe pode faltar, sendo ele, pois, auto-bastante e perfeito. Por isso o pensar na
ordem do absoluto é puro, no sentido de abster-se de qualquer diferença ou alteridade.
Dessa forma o que é absoluto aparta-se por completo da realidade sensível, em que
vigoram de forma inconteste as recíprocas relações entre ‘um’ e ‘outro’, impondo-se
assim um abismo entre essas duas ‘realidades’, abismo que a concepção da alétheia
parmenídica torna obrigatória, exigindo por conseqüência uma ‘desmundificação’ do
pensamento e reivindicando terminantemente para si mesma substrair-se a essa
sensibilidade e operar o pensamento na ordem da abstração, compreendendo este termo
em seu sentido mais literal, o que aponta que quem abstrai, abstrai de algo: aqui, é a
realidade sensível o abstraído, o apartado da esfera da verdade.
Quando o pensamento de Parmênides, contudo, decide-se a pensar a phýsis e o
kósmos, o que ocorre claramente apenas na parte final do poema, reconhece-se
imediatamente aquele caráter relacional, pelo que concede não sem antes introduzir um
adversativo
au)ta\r
(autàr)– que, “mas desde que tudo (pánta) foi nomeado luz e
164
B6, 2.
84
84
noite...”
165
. É importante notar que é a partir desta concessão que tem início a parte
final do poema, dedicada às opiniões. Resssalto ainda a acurada precisão da
terminologia parmenídica: tão logo começa a deusa a versar sobre pánta, evoca-se de
imediato a fundamental oposicionalidade de luz, fa/oj, e noite,
nu/c. Além disso, não se
deve desconsiderar o uso de um discurso pretérito, através do que se indica que uma tal
relação de oposições de há muito distingue e caracteriza tanto a filosofia, como a poesia
da época. Lembre-se aqui, acima de tudo, a Teogonia de Hesíodo. Igualmente revelador é
o fato supracitado de que esta passagem do poema constitui justamente o que se
defende ser a abertura da parte dedicada às dóxai, reafirmando-se uma vez mais que
conquanto o pensar aja em torno a pánta, tudo, inclusive o pensamento, passa a ser
dominado pelo seu caráter, isto é, passa a ser regido por uma ‘lógica’ dóxica de
oposições mútuas, da qual a oposição luz-noite vem a ser a sua expressão fundamental.
O desenvolvimento dessa temática desponta no poema somente depois que a
deusa por encerrado o seu discurso a respeito da verdade e do ente pleno, o que
evidencia como ela se encontra necessariamente à parte da dimensão do pensamento
que pensa o ente e alétheia, mostrando-se-lhe completamente incompatível. Que
pontuem, e tão-somente aí, na parte dedicada às opiniões, o desenvolvimento de temas
tradicionais como a questão da phýsis, de nta e do kósmos sensível, mostra o quanto
esses temas merecem um tratamento fora do âmbito do pensar verdadeiramente, pura e
simplesmente porque o caráter dessas questões denuncia-se como contraditório à
verdade, na medida em que revelam a sua mais absoluta incompatibilidade com os
atributos ou determinações pelo que alétheia é concebida como alétheia no poema.
Verdade e opiniões são, de fato, imiscíveis.
Conseqüentemente, a exclusão de pánta e, portanto, da multiplicidade, assim
como a da phýsis ficam restritas à esfera do pensamento verdadeiro, correspondente à
parte intermediária do poema, aquela em que se pode consolidar um saber efetivo.
Excluídos da verdade, são esses os temas decisivos, porém, da parte do poema que se
ocupa das opiniões. Para a elaboração de uma cosmologia devem ser sim analisados e
conhecidos, não obstante sejam insuficientes para o estabelecimento de um
conhecimento convicto e invariável. Ainda assim esse tipo de saber deve ser
inevitavelmente realizado pelo simples fato de que é em meio a esse pánta que vive o
homem, pelo que se torna indispensável e irrecusável a todo homem, inclusive a
165
B9,1.
85
85
Parmênides, pensá-lo, mesmo quando sabe de antemão que sobre ele não é possível
haver conhecimento efetivo. Desta forma, deve-se precisar que a parte final do poema
de Parmênides não apresenta exatamente uma cosmologia mas algo como uma
antropologia cosmológica, que versa decididamente a respeito do homem e da sua
condição em meio ao mundo, inclusive e sobretudo, de como ele o pensa, isto é, de
como pensar a realidade sensível representa para esse homem, que nela se insere,
pensar de forma inevitavelmente dóxica.
Aproveito para repetir e deixar bem claro que a exclusão da temática da phýsis
não é pois uma exclusão absoluta, uma vez que vem a ser desenvolvida na parte final do
poema, pelo que se comprova igualmente como absurdo e completamente inapropriado
supor em Parmênides a concepção de que a presença e realidade do mundo sensível
sejam postas em questão.
Assim, friso que não apenas a insuficiência para a conquista de uma verdadeira
ciência compõe o elo que une esses dois caminhos, mas que bem mais que isso, o motivo
pelo que essa insuficiência se verifica é-lhes igualmente comum, derivando-se
necessariamente do objeto a que consagram a atenção do seu pensamento. Por fim,
consoante a concepção parmenídica, esse objeto, o mundo dos aparecentes, dada a sua
definitiva e constitutiva oposicionalidade, assim como o estabelecimento, por essa
causa, de uma identidade que se conforma por alteridade, sempre será o motivo final
pelo que de fracassar toda e qualquer tentativa de conceber um conhecimento uno,
puro e inalterável se essa tentativa orientar-se a isso que se situa exteriormente ao
pensamento; se orientar-se, portanto, em buscar a verdade na ordem do kósmos em
torno ao homem e no qual ele se encontra igualmente inserido. não a encontrará
nem dispersa, nem concentrada
166
. Entende-se assim, por mais este aspecto, por que o
caminho trilhado por Parmênides é-nos revelado como “à parte dos homens”
167
.
A aqui muitas vezes referida sentença de Xenófanes mostra-se assim como
um lugar privilegiado para que se reconheça que aquilo que constitui o pensado pela
filosofia pré-parmenídica significa para Parmênides o quanto esse pensamento imiscui-
se no dokeîn sem se aperceber disso e realizou-se sempre e tão-somente enredado à dóxa
que a tudo se agarra, idéia expressamente repetida por Parmênides com o seu “tudo
através de tudo”. Esse pensado, consoante Parmênides, jamais pode ser verdadeiramente
166
Cf. B4, 3-4
167
B1, 25.
86
86
pensado, desde que trate do kósmos sensível e de pánta, em que as dóxai pespegam
irremediavelmente.
Apesar de reconhecer a honestidade e a dignidade da filosofia que lhe é anterior,
dando-nos mostra da sua reverência ante a ela ao longo do proêmio do poema, esta será
considerada por Parmênides como próxima ao pensamento dóxico a despeito do
caráter noético que a distingue. É que partilha com as dóxai a condição de não-verdade
e isto por um mesmo motivo, por dedicar-se àquilo sobre o que um conhecimento
perfeito e um saber pleno e acabado são impossíveis, como, por sinal, o declarara
Xenófanes, incluindo-se corajosamente no rol dos que tentaram em vão
168
. Assim, é
preciso reconhecer igualmente que a crítica parmenídica à tradição filosófica do seu
tempo é empreendida ao longo do poema de uma dupla forma, correspondente a uma
ambivalente demonstração do não-verdadeiro: (A) durante a exposição do equívoco e
da contradição primordiais e característicos ao caminho do não-ente, que, por fim, não
permitem que esse tipo de investigação filosófica alcance a sua desejada conclusão, o
que vem a ser desenvolvido na parte central do poema, compreendida entre os
fragmentos 2 e 8 e, portanto, paralelamente à própria exposição do caminho da peítho; e
(B) ao longo da apresentação do teor do maximamente verossímil
169
e por isso
equivocado, enganoso cosmo
170
das opiniões dos mortais, que constitui, por sua vez, a
terceira parte do poema.
Isto posto, os três próximos capítulos dedicar-se-ão respectivamente à
apresentação de cada um dos momentos constitutivos dessa mencionada dupla
demonstração do não-verdadeiro, através dos quais tornar-se-á igualmente consolidada
a exposição do teor e do caráter de alétheia.
168
XENÓFANES B22: “Quem és tu, entre os homens, afinal? Quantos anos tens, meu caro? Qual a tua
idade quando o medo chegou?”.
Friso a polissemia do termo original
mh=doj,
que, além de “medo”,
também pode significar vergonha, pensamento e preocupação.
169
Cf. B8, 60.
170
Cf. B8, 52.
87
87
IV – O caminho da
peítho
: verdade e plenitude do ente
Através da argumentação estritamente lógica que se desenrola ao longo do
fragmento 8 do poema de Parmênides, todos os traços comuns à filosofia anterior à sua
são gradual e definitivamente rechaçados pelo discurso verdadeiro da deusa. A
eliminação contundente dos principais temas e características de pensamento
cosmológico-filosófico típico à filosofia em seus primeiros tempos padece, assim,
diante de uma forma de argumentação absolutamente metódica e rigorosa e, justamente
por isso, completamente inédita e inaudita. O conjunto de argumentos arrolados
empreendem, primeiro, a firme e irreconciliável cisão entre os caminhos do ente e do
não-ente. Eles são concebidos como lógica e mutuamente excludentes. Opostos que se
repelem e se anulam reciprocamente, não opostos que se compõem, como é usual
observar nessa referida tradição. Um representa a mais precisa e radical negação do
outro, o que se torna imediatamente claro na própria terminologia empregada para
nomeá-los: ente e não-ente indicam a contundente negação que um oferece ao outro.
Essa argumentação oferece-nos, assim, um jogo de oposições que se exercita através da
afirmação de contrários exatos, não apenas de diversos, pelo que se contradizem
reciprocamente.
Essa oposição de contraditórios perfeitos determina a mais categórica separação
entre os caminhos, uma vez que não são apenas distintos um do outro, mas
incompatíveis: entre eles, não qualquer toque possível, encontrando-se assim
apartados por um abismo. O que de imediato consolida e efetua esse abismo condiz
com o fato de que não versam sobre o mesmo, decidindo-se assim, cada um deles, por
distintos objetos para o pensamento. Eles valem, um para o outro, como a sua pura e
perfeita negação.
A exposição do que seja alétheia promove a consolidação da verdade e para tanto
lança-se mão de um sistemático conjunto de negações tão críticas como lógicas de cada
um dos pilares que sustentam a tradição filosófica a que Parmênides se antepõe.
Simultaneamente, essas negações efetivam por intermédio de uma lógica de
contradições quais sejam “os muito sinais”
171
, isto é, as várias determinações pelo que
171
B8, 2-3:
sh/mat' eÃasi polla\.
88
88
se configura e se conforma o caminho do ente, o caminho do que é e tem que ser.
Essas determinações, por sua vez, na qualidade de negadores do não-ente, serão
justamente os positivadores da verdade. Assim, a afirmação de um dos caminhos
promove imediatamente a dissolução do outro, pelo que enquanto um é construído o
outro é fatalmente demolido através de um único e mesmo gesto. Trata-se de uma
decomposição cabal do saber cosmológico característico às filosofias que precederam
Parmênides. A partir dessa decomposição, o Eleata logra, a um tempo, escrever o
primeiro capítulo da história do conceito de ente, assim como à palavra alétheia, pela
primeira vez, o caráter de um conceito eminentemente filosófico.
Ao olhar para a tradição, Parmênides reconhece nela a errância e o equívoco de
quem buscou a convicção de um vero saber fora das fronteiras do próprio pensar. Se o
historiar e a conseqüente acurada observação do mundo dito natural e sensível
mostraram-se flagorasamente insuficientes para o cumprimento dessa intenção, se a
phýsis e demais temas análogos não dão, pois, conhecimento seguro, Parmênides acaba
por criá-lo, realizando com isso uma inconteste proeza do pensamento puro e abstrato
e, como tal, também artificial e autônomo.
Convém agora demonstrar como pôde o Eleata realizar esse projeto, expondo o
passo-a-passo da argumentação levada a cabo pela deusa a fim de que, finalmente,
realize-se a possibilidade de conquistar um saber verdadeiro. Esta argumentação
encontra-se predominantemente concentrada naquele que atualmente se conhece como
o fragmento 8 do poema de Parmênides, em que se dão a criação do conceito de
verdade e do ente.
Mas o que é isso, a verdade? Sendo literalmente privativa, a-létheia, defini-se de
imediato por negações e exclusões. Ela nega exatamente isso que torna esquecível o que
não deveria ser esquecido: a decisiva lei de thémis e a diferenciadora justiça de díke. O
que essas deusas representam como idéias é o que forma o significado positivo da
etimologicamente negativa e privativa alétheia.
Para o fundamento e consolidação do lado negador e negativo de alétheia exige-
se como sua pré-condição primordial a eliminação da phýsis e de pánta, assim como de
todo e qualquer traço de diversidade como possível objeto do pensar que pensa
conforme o modo da verdade, pois do contrário naufragaria na vastidão do múltiplo,
dissipando-se em incontáveis, infinitas possibilidades, que alfim afastariam o
pensamento do seu télos, tal como ocorre, aos olhos de Parmênides, com os filósofos a
89
89
ele anteriores, esses Odisseus que não tornam a Ítaca. Trata-se de via inesgotável e que,
justo por isso, deve ser abandonada caso se queira de fato orientar-se a um saber que a
si mesmo completa e plenifica. Diversidade e alteridade necessitam ser afastadas por
completo deste âmbito do pensar que ambiciona a verdade, para que assim se possa
conceber a plena e conceitual identidade do ente, afirmando assim sua integridade e
plenitude, de modo a que estas jamais se vejam ameaçadas por uma eventual corrupção
por parte da multiplicidade tão característica ao mundo natural, mas que, neste caso,
pode ser artificialmente excluída de um mundo de pensamento igualmente artificial:
trata-se da inventiva e gica elaboração de um kósmos conceitual e de uma estrutura ou
mesmo ‘sistema’ de linguagem inteiramente novos.
Retornando à questão do caráter privativo e portanto negativo do termo alétheia,
é preciso lembrar que ele indica que suas qualidades são deduzidas e derivadas do
caminho do ‘que não é’ e de ‘como não deve ser’, por intermédio de artifícios lógicos de
negação e oposição a tudo aquilo que ‘devir’ significa, construindo assim o que seja o
ente e a verdade. O caminho do não-ser é exatamente o caminho do devir. Isto remete
uma vez mais ao tema da identidade plena e absoluta, posto que essa dedução acima
aludida nada mais é do que uma experiência da mesmidade do que é e do como se deve
pensar, tal como assinala o fragmento 3. Ocorre justamente aqui o câmbio do ‘como’
para o que’, a transição de um ‘como tem que ser’ para um ‘o que tem que ser’ e, por
extensão, para um ‘o que se tem que pensar’. E porque ambos, noeîn e eînai, se ligam por
intermédio de um
te kai\ (te kaì)
172
, torna-se necessário afirmar esse ‘que’ em vez do
‘como’, já que agora partilham o mesmo fundamento para a sua determinação: a
mesmidade de ambos. E isso, que tanto tem que ser pensado, como tem que ser, isto é
precisamente o ente e sua plenitude.
Essa mesmidade pode ser preservada conquanto aquilo que se pensa e aquilo
que tem que ser sejam um, pelo que a eventual intromissão de qualquer modo de
diversidade ou diferença virá necessariamente a corrompê-la, de modo a não ser
permitido à idéia de uma identidade absoluta a sua participação no modo ou mesmo
dimensão do pensamento no qual e para o qual tudo é múltiplo e relacional. Desta
forma, a temática do uno-múltiplo e o seu fundador, o pensar sobre a diversidade e
pluralidade de tudo, pánta, formam o obstáculo definitivo à elaboração de um saber
conceitualmente verdadeiro, pelo que devem ser categoricamente abandonados. Por
172
B3:
to\ ga\r au)to\ noeiÍn e)sti¿n te kaiì eiånai
.
90
90
isso todas as características negadas por alétheia e incompatíveis com a plenitude do ente
são aquelas mesmas que definem com exatidão as principais idéias defendidas pela
filosofia pré-parmenídica em geral. Por esse motivo serão elas eliminadas, uma a uma,
do caminho da peítho, conforme se desenvolva o convincente e persuasivo discurso da
deusa.
Esse discurso que a um tempo promove as aludidas eliminações e a
exposição positiva da arquitetônica que arremata o ente à sua perfeição e plenitude
divide-se em três segmentos. Cada um deles é introduzido através de um adversativo,
um autàr, com a óbvia exceção do primeiro, uma vez que é ele quem inicia a referida
exposição
173
. Aos três pertencem uma temática definida, tal como proponho: o
primeiro deles (A), promove as exclusões de devir, gi/gnesqai, e do verbo que a ele
sempre se associa, perecer, o)/llusqai, dos quais a eliminação e negação definem o ente
como
a)ge/nhton, ingênito, e a)nw¯ leqro/n, imperecível
174
. o segundo desses
segmentos (B) efetua a abolição de todo tipo possível de mobilidade e alterabilidade
através da determinação do ente, primeiro de tudo, como a)ki¿nhton
175
, imóvel, e o
terceiro (C) afasta do ente de forma categórica e radical qualquer vestígio de
incompletude através de tetelesme/non
176
, perfeito, motivo pelo qual o ente é
concebido necessariamente como pleno.
Reconhece-se nesses gestos de negação que a concepção do ente parmenídico
atende à necessidade de retirar à filosofia pregressa os seu principais fundamentos,
desmanchando com isso o chão em que se sustenta e encontra as suas raízes. Os três
segmentos aqui identificados servem à essa tarefa de forma precisa e pontual, fazendo
ruir, passo a passo, cada um dos elementos componentes desse solo. Por esse motivo, o
discurso da deusa adota, nesta parte do poema, a forma de um procedimento não
apenas lógico mas também metódico: primeiramente, afirma negações e, em seguida,
retira dessas negações os predicados positivos do ente. Friso o quão importante se me
173
A argumentacao relativa ao primeiro desses segmentos estende-se entre os versos 3 e 25 do fragmento
8. Os dois seguintes, respectivamente, entre os versos 26 e 41 e 42 e 49. Convém observar que o discurso da
deusa prenuncia em seus primeiros quatro versos que os “muitos sinais”, todos eles indicando um
atributo do ente, serão arrolados de acordo com esses três momentos: a exclusão do devir e do perecer
através de
a)ge/nhton
e
a)nw¯ leqro/n
(Verso 3); a negação do movimento, primeiramente através de
a)treme\j
, inabalável (Verso 4), e depois, no segundo segmento, através de
a)ki¿nhton
(Vers0 26); por
fim promove-se a mais categórica rejeição a qualquer tipo de não-preenchimento ou incompletude através
da determinação de que o ente é “perfeito” porque já cumprida a sua finalidade,
a)te/leston
(Vers0 4).
174
B8, 2.
175
B8, 26.
176
B8, 42.
91
91
revela esse procedimento metódico e, portanto, o quanto se deve atentar a ele:
primeiro, a negação e, a partir dela, também uma positivação. Isto significa que a
construção do conceito de ente promovido pelo poema consite em fazê-lo diferir à
perfeição daquilo que é reconhecido como o caminho do não-ente, isto é segundo a
interpretação que aqui proponho –, o caminho que não conduz a um conhecimento
efetivo, o caminho que não resulta num saber que é. De resto, seja aqui novamente
lembrado que o modo da argumentação que caracteriza esse discurso revela a célebre
força crítica e a imperiosidade lógica do pensamento parmenídico, por onde se
concretiza o seu distintivo poder de convencimento, o poder de persuasão e
convencimento próprios à verdade. Essa imperiosidade põe em jogo a idéia da
necessidade lógica, necessidade esta anánke – pela qual se define o que é e o que não é
verdadeiro, o que tem que ser e o que necessariamente não pode ser
177
justamente porque
devém; e um saber que devém não é um vedadeiro saber, eis a posição parmenídica: é
pela coercitiva necessidade lógica do pensar verdadeiramente que se delimita o que
pertence e o que não pertence à alétheia. Desse modo, não será mais preciso repetir,
aqui, o como dessa argumentação necessária, mas tão-somente desfiar o que ela
desdobra, alimentando-se e avolumando-se a partir de si mesma, no primeiro e cabal
exemplo histórico de como é possível ao pensamento operar de forma autônoma,
bastando-se a si mesmo.
O primeiro desses segmentos mostra como essa argumentação efetuará, acima
de tudo e dentre todas a primeira, a negacão correspondente à exclusão de gígnesthai e
óllysthai, a partir do que se predica o ente como ingênito e imperecível
178
. Essa dupla
predicação confere-lhe lógica e imediatamente duas outras, as duas primeiras
predicações positivas do ente, as de ser todo e único: ou)lon mounogen/ej
179
. A negação
do devir e do seu conseqüente perecer concede ao ente, portanto, um teor de unidade e
conjunto, uma integridade que constitui a sua primeira marca positiva: ser um todo.
Antes que se prossiga com a análise dos atributos essencias do ente, é preciso
considerar alguns aspectos de vital importância que podem e devem ser observados
neste início de argumentação da deusa: (A) a primeira predicação positiva, o todo ou
totalidade do ente, é conseqüentemente derivada da negação do devir e, por extensão,
de todo e qualquer modo de tornar-se e perecer. E daqui se retiram duas outras
177
B8, 16-18.
178
B8, 3.
179
B8, 4.
92
92
considerações absolutamente relevantes, (B) se essa negação determina, alfim, uma
predicação positiva que constitui apenas a primeira de um conjunto de predicados, os
semata polla\
180
, torna-se novamente irrecusável reconhecer que aquilo a que se refere o
discurso da deusa, o ente, não pode ser compreendido como uma coisa ou mesmo
como aquilo que em geral compreendemos hoje sob o vocábulo ‘ente’, mas exatamente
como esse conjunto de predicados desenvolvidos logicamente pelo pensamento; e (C)
se a apresentação desse ente, bem como dos seus predicados, realiza-se a partir de um
“ingênito sendo”
181
, isto é, a partir da negação de gígnesthai, é preciso inquerir por que
cabe a esta negação e a nenhuma outra uma tal primazia, uma vez que a partir dela
provêm todas as demais que, por oposição e constraste, predicam o ente. Com efeito, o
discurso da deusa inicia-se com este “ingênito” e desdobra-se consoante um uma vez
ingênito tem que ser também assim e assim e assim’
182
.
Este impressionante tour de force implementado pelo trecho do poema que hoje
constitui o fragmento 8 corresponde ao esforço e ao empenho de Parmênides em
promover a necessária incisão entre ser e devir de que a distinção entre verdade e
opiniões é corolário uma conseqüência por ele perseguida e desejada, que isolar o
ser do devir, impossibilitar-lhes o toque, criando entre eles um insuperável abismo, é o
único meio de ordenar e concretizar um pensamento puro, abstrato, posto ter abstraído
e se depurado justamente da movência de todo e qualquer devir, assim como da
diversidade desviante de toda multiplicidade. É esta a pré-condição incontornável e
primordial caso o pensamento queira proceder consoante o modo e a linguagem de
pensamento a que o Eleata denominou alétheia. Por isso, quando se discursa sobre a
verdade eînai é verbo admissível, ao passo que gígnesthai torna-se irrecusável sim, mas
180
B8, 2-3.
181
Cf. B8, 3.
182
Aproveito o ensejo para evidenciar o que aqui já deve ter se tornado claro quanto à posição que assumo
entre os dois grandes campos de interpretação a respeito da função do verbo ‘serno poema parmenídico.
A literatura especializada divide-se basicamente em dois grupos a esse respeito, os que defendem a função
existencial e os que defendem a função predicativa. Sem me arrogar uma competência técnica de que não
disponho, não em nível tão elevado quanto a tema tão espinhoso, é fácil perceber o quanto a interpretação
a favor da função predicativa harmoniza-se à minha própria interpretação da obra, parte dela tendo sido
desenvolvida e esclarecida justamente a partir do que os autores favoráveis a essa posição argumentam.
Sigo, neste ponto, especialmente a posição de Mourelatos. Na mesma linha encontramos Boeder, Scheier,
Caplan, Calogero e, em larga medida, também Jantzen, Aubenque e Kahn, uma vez que a função que
defendem, a veritativa, ao menos a mim soa muitíssimo semelhante à predicativa. Contra eles, os
defensores da função existencial, dentre os quais Cordero, Barnes, Stokes, Tarán e Owen. Em português
contamos com um levantamento muito prestativo e bem delineado de autoria do orientador desta tese,
Fernando Santoro, editado recentemente, através do qual se obtém um bom panorama sobre a questão
aqui em destaque: “Variações do verbo ei e “Tabela de valores funcionais do verbo eimí”. In:
SANTORO, Fernando. Poema de Parmênides: Da Natureza. Rio de Janeiro, Azougue, 2009.
93
93
tão-somente quando operamos o pensamento na ordem das opiniões e, para tanto,
basta tomar a realidade sensível como o ‘que’ a ser pensado pelo pensamento
183
.
Diga-se sobre o item (B) acima arrolado, que esse conjunto de predicados forma
uma unidade inextrincável e indivisível, pelo que se determina a irrevogável cisão entre
o ente, que tem que ser, e o não-ente, sobre o qual é pronunciado um cabal e
imperativo “que não seja”!
184
. Disso resulta: ou é totalmente, ou não
185
. Assim indica a
já sempre decidida decisão de díke
186
.
Sobre o item (C), por sua vez, torna-se forçoso admitir que a exclusão de
gígnesthai e óllysthai, igualmente exigidas e decididas por díke
187
, dispõe de uma tal
primazia pois se relaciona precisamente com aquela pré-condição primordial aqui
mencionada, a saber, o mais puro e radical desterro, do âmbito da verdade, de qualquer
temática que estabeleça relação com questões como as da phýsis, de pánta ou de
qualquer outro objeto de questionamento que lhes seja análogo. Nenhum deles pode
inscrever-se como objetos do pensamento que pensa consoante o modo da verdade,
pois, do contrário, impondo por sua natureza e caráter a consideração de toda a
diversidade própria à realidade sensível, torna-se conseqüentemente impossível
preservar a identidade absoluta do ente e do pensamento que pensa o ente que, por sua
vez, são, por motivo desta mesma identidade, um e o mesmo. Obedecendo a essa
necessidade, a necessidade de excluir totalmente esse tipo de temática, os primeiros
verbos a serem afastados pela deusa do âmbito de seu pisto\n lo/gon h)de\ no/hma
a)mfiìj a)lhqei¿hj
188
, são sintomaticamente tanto o devir, como o perecer, pelo que
igualmente banidos são também surgir e desaparecer, e isto por serem pura e
simplesmente aqueles verbos que mais decididamente traduzem e definem o caráter do
kósmos dos aparecentes, o mundo sensível em que nos incluímos e que nos circunda.
183
A respeito do mencionado abismo’, a que tenho chamado a incisão entre ser e devir operada tão
precisa quanto inauditamente por Parmênides, saliento que é justamente esse gesto de corte que possibilita
toda uma nova concepção e uso para o verbo ‘ser’ em geral e para a palavra ente em particular, não tendo
esta última, como aludido, qualquer paralelo anterior, formulada que foi pelo Eleata justamente para
expressar essa novidade. Essa incisão não passa despercebida a Kahn, que nota que é justamente através
dela que a supracitada concepção se edifica (Ver KAHN, Charles. Op.cit. p. 197). Além disso, o autor
relembra-nos muito argutamente como esta incisão a um tempo filosófica e gramatical também não
passou em branco diante dos olhos de Platão, que a ela se refere no início da argumentação do Timeu,
apresentada sob forma de charada: “A primeira distinção a ser feita é esta: o que é aquilo que sempre é e
não devém, e aquilo que está sempre devindo mas nunca é?” (Timeu, 27d5).
184
Ver B2 e B8, 8-9.
185
Comparar com B8, 11/15-16.
186
B8, 15-16.
187
B8, 13-15.
188
B8, 50-51.
94
94
Para que a verdade seja, o kósmos do pensamento, um ‘mundo’ de conceitos puramente
pensados, necessita abstrair desse smos sensível. Se este smos não permite que acerca
dele se estabeleça e se conquiste um conhecimento efetivo, seus verbos mais
característicos deverão ser igualmente excluídos
189
. É preciso respeitar o texto
parmenídico: enquanto na parte intermediária do poema esses verbos são
empregados para que sejam negados e arremessados para longe da verdade, na terceira
parte, aquela que se dedica às dóxai, aparecem positivamente e vastas vezes. Parece-me
igualmente revelador que na exposição de alétheia, para além da ausência desses verbos,
não ocorram quaisquer substantivos concretos que não se encontrem para serem
abolidos, eliminados pela irretorquível força de argumentação lógica da verdade. Com
efeito, o tecido dessa parte do poema compõe-se exclusivamente com o que a gramática
conceituou como ‘substantivo abstrato’ . Os concretos? Pululam na última parte. Mais
uma vez a precisão terminológica do poema mostra-se espantosa, incapaz de trair a
clareza do seu pensamento. Será uma mera coincidência, ainda, que ao longo do poema,
as próprias palavras phýsis e kósmos, por exemplo, refiram, positiva e textualmente, às
dóxai? De modo algum. Tem-se aqui, novamente, mais um contundente exemplo de
como a consolidação da verdade e a construção de um saber verdadeiro obriga a uma
radical e definitiva desmundificação’ do pensar. É desta forma, por sinal, que se deve
entender aqui o emprego do termo ‘abstração’ quando aplicado à filosofia parmenídica.
Isto posto, retomo a seqüência da argumentação estabelecedora dos predicados
do ente. Pertencem ainda à exclusão de gnesthai e óllysthai a qualificação “inabalável”,
a)treme\j, e “perfeito”, a)te/leston
190
, uma vez que a progressiva e eterna sucessão de
um surgir e perecer determinam uma forma de movimento, ademais incessante, uma
forma de mover-se para a qual não fim
191
. Os sensíveis movimentam-se, assim,
sobretudo no sentido o de um vir a ser uma vez que, seguindo a lógica do poema,
jamais serão –, mas de um vir a devir e, continuamente, um devir até deixar de devir, ou
seja, de um surgir para o desaparecimento, movimento que se cumpre integralmente
aquando da sua própria dissolução, perfazendo assim uma ciranda perpétua e sempre
renovável de nascimento e morte, que se mantém, desta forma, permanentemente em
189
Sobre as relações entre os verbos eînai e gígnesthai no poema de Parmênides refiro as interessantes
observações de Patricia CURD. The legacy of Parmenides: eleatic monism and later presocratic thought. New
Jersey, Princeton University Press, 1997, pp. 34-51. Da mesma forma KAHN, C. “Being in Parmenides and
Plato”. In: La Parola del Passato, Rivista di Studi Antichi, XVIII, 1988, pp. 237-261.
190
B8, 4.
191
Ver ANAXIMANDRO B1.
95
95
processo, interminável e incessante. A impossibilidade de concluir esse ciclo, a
interminabilidade dessa aludida ciranda denuncia, de resto, como um conhecimento
acabado e perfeito jamais poderá daí ser extraído, pelo que vem a ser declarado
irrealizável e inexeqüível
192
.
Em todo caso, as tematizações da imobilidade e da plenitude do ente
encontram-se desenvolvidas no segundo e terceiro segmentos do fragmento 8,
respectivamente. A eliminação de gígnesthai e óllysthai prossegue, contudo, através da
dissolução de toda e qualquer determinação temporal, pelo que o ente é concebido
como absolutamente extemporâneo
193
. Temos aqui mais um argumento, a sua mais
radical atemporalidade, a exigir que o ente não participe do devir
194
nem possa tornar-
se, mas apenas ser. Mais uma vez, um dos pensamentos diletos da antiga filosofia, a
reflexão acerca do tempo, sofre aqui um total desmanche, através do que se confirma e
se renova, por intermédio de argumentos vários, mas que resultam no mesmo, a
afirmação de que nem o surgir nem o desaparecer se ligam ao ente, aspectos que
pertencem naturalmente aos dois verbos aqui em questão. Vê-se, também, como a
temática do tempo deriva-se necessariamente do pensamento a respeito do conjunto
dos aparecentes e dos seus característicos devir e perecer, aos quais pertecem de fato
uma mobilidade temporal.
O primeiro passo a favor da caracterização do ente como extemporâneo
necessita, pois, de uma radical negação de toda e qualquer forma de temporalidade.
Negados são, consequentemente, o “era” e o será”
195
através de um “agora”, nu=n,
que significa antes de tudo que o ente não se despedaça nem se dispersa seja em direção
a um eventual passado, seja em direção a um possível futuro, não lhe pertencendo
qualquer antes ou depois
196
: o ente é, “nem jamais era nem jamais será, pois é todo
junto agora”
197
, pelo que se faz necessariamente uno, eÀn, e contínuo, sunexe/j
198
.
O discurso sobre esse ‘agora’ tem como meta libertar o ente das determinações
temporais tradicionalmente cosmológicas: era, é e será, que até então sempre foram
192
Comparar com B2, 6-8.
193
Ser extemporâneo não qualifica o ente como eterno, uma vez que a eternidade pode e costuma ser
compreendida como uma modalidade de tempo. Dizê-lo extemporâneo significa afirmar que o ente não
paticipa de forma alguma de qualquer modulação temporal. Em todo caso, sobre a pergunta se o ente
parmenídico deve ser considerado eterno ou totalmente livre do tempo ver O’ BRIEN, D. “L’être et
l’éternitè”. In: AUBENQUE, P (org). Op.cit. 1987. pp. 135-162.
194
Cf. B4, 2, em que se declara a idéia de que o ente atém-se ao ente. O mesmo valendo para B8, 25.
195
B8, 5.
196
B8, 10.
197
B8, 5:
e)peiì nu=n eÃstin o(mou= pa=n
.
198
B8, 6.
96
96
pensadas consoante um firme entrelaçamento
199
. Esse agora representa aquilo que nem
surge nem perece, aquilo que não morre nem pode perecer justamente em função de
sua natureza incriada, ingênita. Trata-se do tempo intocado, livre de qualquer
determinação. Dito propriamente, não é sequer o tempo, mas a sua total ausência, a
pura presença. Uma presença, vale dizer e repetir, não-sensível, que o tempo, em
qualquer modalidade possível, constitui uma propriedade phýsica. Essa ‘pura presença’,
‘firmemente fincada no pensamento’
200
define-se duplamente, primeiro por um nu=n, o
agora, depois por o(mou, uno, coeso, não fragmentado por qualquer traço de tempo.
Talvez fosse de esperar, neste exato momento do discurso da deusa, alguma
remissão ao tema do espaço, tema que nos acostumamos a considerar junto ao tempo.
Isto seria propriamente impossível, uma vez que o pensamento parmenídico não teria
como conhecer um tal espaço, posto se tratar de uma invenção zenônica, sendo,
conseqüentemente, posterior à sua filosofia. E mesmo em Zenão, ou ainda mais
tardiamente na Fisica aristotélica, não um discurso sobre o espaço tal como
tendemos a entendê-lo hodiernamente, seja na filosofia, seja no multifacetado rol das
ciências, dado que o termo que encontramos é to/poj
201
. Esta palavra, contudo, não
significa ‘espaço’, mas lugar’. Ainda que se possa considerar que tópos venha a ser
pensado por Zenão e Aristóteles com a carga de um conceito de espaço, designando
que o espaço constitui a residência dos lugares, não se pode esquecer que essa idéia
representa uma invenção filosófica terminantemente estranha ao pensamento e ao
antigo idioma gregos, ao menos em seus primórdios, posto que os antigos gregos jamais
falaram acerca do espaço, mas de lugares. Em todo caso, Parmênides não teve decerto
essa experiência e, de todo modo, assim como o ente parmenídico caracteriza-se em
aversão ao tempo pela sua mais irrestrita extemporaneidade, da mesma forma não se
encontra ele em qualquer parte ou lugar, tal como não se lhe pode associar qualquer
“para além de si mesmo”
202
, visto que, assim como a temporalidade, a idéia de
localização é igualmente phýsica, pelo que também esta se mostra necessariamente
incompatível com o conceito de ente que o poema parmenídico elabora.
A negação do tempo e de suas divisões também predica o ente positivamente.
Além de nu=n e o(mou=, assim como do próprio é deste ente, são três as demais
199
Ver HERÁCLITO B30.
200
Cf. B4, 1.
201
B8, 41:
to/pon a)lla/ssein.
202
B8, 13:
ti par' au)to
.
97
97
determinações que complemetan essa negação, afirmando conseqüentemente novos
‘lados’ do ente. Elas já foram aqui mencionadas, mas devem ser ratificadas: pa=n,
“todo”; eÀn, “uno”; e sunexe/j, “contínuo”. Assim são a totalidade, a unicidade e a
continuidade coesa e indivisível do ente os três momentos que dominarão toda a
temática deste primeiro segmento, incluindo-se portanto na tarefa de extirpar ao ente
todo e qualquer traço de gnesthai e óllysthai, bem como impossibilitar qualquer relação
entre aquele e estes. De resto é preciso frisar que através da estipulação da inexistência
de qualquer divisão temporal possível, assim como de qualquer temporalidade
intrínseca ao ente, este apresenta-se totalmente indivisível porque inteiro
203
,
encontrando-se plenamente apartado tanto do surgimento, como do crescimento do
que possa surgir
204
, sendo igualmente imune diante de toda e qualquer espécie de
perecimento
205
.
Recapitulo de forma conclusiva como se a destemporalização do ente: ela é
realizada por uma tríade composta pelo agora, pela coesão (“junto”) e por um perpétuo
“é”. Este é mantém-se ao centro da tríade, valendo como o fulcro dessa irrestrita
extemporaneidade
206
, o que se deixa esclarecer pelo seguinte: nu=n e o(mou= são
resultantes da abolição da temática dos aparecentes em geral, à qual pertence
incondicionalmente a questão da transitoriedade de tudo, aqui em seu sentido
claramente cosmológico, isto é, pánta. Conseqüentemente, o não típico como
dileto discurso da filosofia anterior à de Parmênides acerca da diferença e alternância
entre aparecer e desaparecer, ausentificar-se e presentificar-se, encontra-se aqui
igualmente excluído. Com o afastamento dessas noções, subtrai-se por completo o
tempo, que vem a ser substituído exatamente por aquele agora e por aquela indivisível
coesão, sinalizando a pura extemporaneidade do ente. Bem no ‘meio’ dessa
extemporaneidade predomina aquele que Parmênides instala entre nu=n e o(mou=, o
“é” porque, de fato, este é quem determina as outras duas referidas qualidades,
precisamente por se tratar, aqui, de um é que não conhece nem reconhece alteridade, ao
contrário do é cosmológico que, uma vez situado entre o era e o será afirma-se como um
é cuja fugacidade o desintegra, um é que a si mesmo corrompe, tal como no célebre
mito de Krónos.
203
B8, 22.
204
B8, 7.
205
B8, 21. Notar, neste verso, a insistência na negacao do binômio
gi/gnesqai
-
o)/llusqai
.
206
Esses predicados são apresentados segundo a seguinte ordem:
nu=n eÃstin o(mou
.
98
98
Na medida em que o ente parmenídico é agora e junto, deriva-se dessa condição,
igualmente, os predicados que o declaram ser “todo”, “uno” e “contínuo”, uma vez não
lhe sendo possível esboroar-se nem deslocar-se isto é, ser um outro de si mesmo por
ação do tempo ou por ação de qualquer tipo de movimento, neste caso, o da
temporalidade em direção a um será ou mesmo a um era. Essas três ‘novas’
predicações são responsáveis por uma tripla divisão no interior daquele que tenho aqui
denominado o primeiro grande segmento do fragmento 8 que, desta forma, reparte-se
em três segmentos menores que o compõem. O primeiro deles serve ao esclarecimento
a respeito de pa=n (pân), que encontra aqui o seu lugar com toda a pertinência, ao
contrário de pánta, esta sim uma expressão imcompatível com a concepção
parmenídica de ente, dado ser termo relativo à multiplicidade e à diversidade cósmica.
Pân indica apenas que o ente é “todo”, no sentido de ser íntegro e inteiro: a integridade
deste ente ‘destemporalizado’ resulta justamente da eliminação de toda e qualquer
divisão ou determinação temporal, com o que também as idéias de surgimento e
desvanecimento são novamente repelidas da concepção do que é o ente
207
.
O segundo desses segmentos internos dedica-se a eÀn (hén)
208
, portanto, à
unidade do ente. Neste segmento todo e qualquer ‘ser/estar ao lado’ ou ‘ser/estar
depois’ são definitivamente dissolvidos por meio da idéia de unidade absoluta proposta
pelo Eleata, que, sendo literalmente absoluta, não se refere apenas à unidade em relação
a si mesmo, mas, bem mais radical do que isso, ao insulamento e isolamento total desse
ente assim pensado, ente que não comporta qualquer alteridade: o ente parmenídico,
além de uno e todo, inteiro e íntegro, é também solitário
209
e único: não se quer dizer
com isto que não haja outra coisa”, quer-se dizer apenas que o discurso da deusa, ao
apresentar a verdade, o versa sobre haver ou devir, mas sobre ser, e é neste sentido
que a verdade é, so o ente é, e, sendo, tampouco , posto que ela, o mesmo que o
ente, é o único a poder ser; o único a permanecer imune a qualquer movimento; a única
‘coisa’ como é difícil ser tão exato em termos de abstração como o é Parmênides!
que desconhece por inteiro a experiência de devir, sendo pura e solitariamente: “pois
207
Este segmento engloba os versos 5 a 11. Sobre a temática do surgir e desvanecer ver SOLMSEN, F.
“Eternal and temporary beings in Empedocles’ physical poem”. In: Kleine Schriften. Vol. III.
Hildesheim/Zurique/Nova Iorque, Georg Olms Verlag, 1982, pp. 176-198.
208
Compreende-se este segundo segmento entre os versos 12 e 21.
209
Essa ‘solidão’ não passou despercebida a Empédocles, que a aplica na concepção do seu SPHAIROS. Cf.
EMPÉDOCLES B27 e B28.
99
99
nada é ou será para além do ente”
210
, de onde o ente é o único a ser; todo o resto
devém. A unidade deste ente é, portanto e mais exatamente, unicidade.
O terceiro e último desses segmentos faz sobressair syneches
211
, sinalizando o
caráter contínuo
212
e coeso
213
do ente, pelo que não pode ser decomposto ou
‘desmontável’, que a sua inteireza não se compõe por uma pretensa soma de partes,
nem sequer poder-se-ia aqui acolher a idéia de qualquer composição: contínuo e coeso,
é igualmente indivisível
214
e indestrutível, o que reafirma, uma vez mais, a absoluta auto-
identidade do ente
215
nem mesmo possíveis diferenças internas a si mesmo são aqui
admissíveis.
A passagem do primeiro para o segundo grande segmento do fragmento 8 de
acordo com o modo como o venho dividindo é introduzida pelo emprego do
adversativo autàr no verso 26, através do qual tem início a negação de qualquer modo
de movimento no que diga respeito à verdade e ao ente, resultando assim na
tematização da sua mais absoluta imobilidade. E os “muitos sinais”, agora, passam a
indicar esse pensamento orientado e definido por akíneton, a afirmação da imobilidade
do ente, pensamento este que se instaura como a contra-idéia do que a cosmologia
nomeou períodos
216
, o movente e móvel ciclo dos aparecentes, ciclo desenhado pela
temporalidade, pelo devir, pelo surgimento e pelo perecimento, conformando assim a
ciranda a que estão submetidos os aparecentes, surgindo e desvanecendo no cosmo “de
acordo com a ordem do tempo”
217
.
Antes de Parmênides ocorre apenas um emprego do vocábulo akíneton. Em Os
trabalhos e os dias de Hesíodo
218
. Neste uso o termo relaciona-se com uma proibição,
isto quer dizer, com algo que não pode nem deve ser movido nem mesmo tocado. E o
que não deve ser movido nem tocado tem a ver com os mortos, mais exatamente com
o túmulo dos mortos. O túmulo de um morto é akíneton. Por outro lado, o que não se
pode mover nem profanar é, também, o altar em honra aos deuses. Tem-se aqui as duas
grandes imobilidades, a mortalidade dos mortais e a imortalidade dos deuses, duas
condições, dois destinos sempre estipulados e que, como tais, jamais se alteram. A
210
B8, 36-37.
211
Estende-se entre os versos 22 e 25.
212
B8, 23; B8 25.
213
B8, 22.
214
diaireto/n
. B8, 22.
215
B8, 24-25.
216
HERÁCLITO B 100.
217
ANAXIMANDRO B1
.
218
Cf. 730-750.
100
100
parecência com o teor do poema de Parmênides quanto a esse contexto específico é
enorme. Assim, o discurso sobre akíneton, ao menos originalmente, está associado a essa
tensão mortais-imortais. Por isso são deusas que definem e garantem a imobilidade do
ente; mais inicisivamente, porém, a moîra, ela mesma intocável mesmo para os deuses.
Entende-se, assim, o porquê de a determinação dessa imobilidade encontrar-se
completamente fora do alcance dos homens: sua mortalidade e a imortalidade dos
deuses, como poder-se-ia alterá-las? Impossível: se encontra sempre decidido e
firmemente destinado o que é tal como é
219
.
No segmento ora em análise as determinações negativas são expostas de
imediato pela principal delas, akíneton, “imóvel”
220
. Complementares a ela são os demais
predicados negativos desse trecho, aÃnarxon e aÃpauston, respectivamente “sem
começo” ou “não-começável” e “não-cessável”
221
, posto que tanto o que cessa como o
que começa em-se em movimento, o que entraria em contradição e contradições
caracterizam a não-verdade, justo o contrário do que a deusa aqui nos apresenta com
a idéia de imobilidade. Neste primeiro momento, a imobilidade do ente é declarada
como sendo mantida pela coesão de “limites de grandes amarras”
222
, enquanto as duas
outras qualidades aqui envolvidas justificam-se ainda pelo horizonte da exclusão do
devir e das idéias de gênese e perecimento
223
a ele extensivas. Consolida-se aqui a
afirmativa e intransitiva identidade do ente para consigo mesmo, pelo que se declara em
seguida que o ente “o mesmo no mesmo permanece e sobre si mesmo repousa”
224
,
sendo exclusivamente e apenas para si, permanecendo firmemente em si mesmo
225
.
Nota-se pois que a imobilidade do ente condiz com a sua mesmidade. O ente é
em si mesmo e para si mesmo, através do que Parmênides lhe concede um modo de
identidade que será aplicada também ao dizer e ao pensar (noético), tal como
ponderei anteriormente.
Essa declaração do verso 29 contém todos os três momentos dessa referida
identidade: (A) o mesmo, (B) no mesmo e (C) para si mesmo, por isso sobre si mesmo
219
Interessante notar que mesmo em Aristóteles o divino confunde-se com o imóvel, ainda que esse divino
seja possuidor de um cariz radicalmente filosófico.
220
B8, 26.
221
B8, 27.
222
B8, 26.
223
Cf. B8, 27.
224
B8, 29.
225
B8, 29-30.
101
101
repousa, imóvel que é
226
. Desta vez não será thémis e díke, mas anánke, “a poderosa
necessidade”
227
, quem tomará as rédeas do discurso, fincando o ente dentre as suas
próprias amarras e limites
228
. Nesta passagem significa anánke antes a necessária
detentora, no sentido de ser aquela que detém o ente, encerrando-o e firmando-o
dentro dos seus tesos limites
229
, isto contra toda e qualquer possibilidade de uma
movente ou mobilizadora desintegração ou desordem, o que se relaciona a duas outras
propriedades antes mencionadas pela deusa: a)treme/j e a)te/leston, respectivamente
“inabalável” e “sem finalidade”, “perfeito”.
Para que se compreenda esta carência de finalidade distintiva do ente
parmenídico convém associá-la a um outro seu predicado afirmado um pouco mais
adiante – o ente é ou)k a)teleu/thton, “não-aperfeiçoável”
230
, uma vez ser “todo inteiro”
e “único”
231
; concluso e acabado perfeito, como tenho insistentemente proposto. E, se
perfeito, não possui o ente qualquer fim no sentido de possuir uma meta ainda a ser
cumprida, um alvo a ser atingido. Sua possível finalidade, como tenho versado
referentemente à realização da perfeição do saber e à concreção de um conhecimento
tão seguro e firme quanto as amarras de anánke, segurança e firmeza conferidas pela
força crítica da necessidade lógico-argumentativa, pode até ser indicada como a
finalidade que move o filósofo, Parmênides, mas, uma vez cumprida essa finalidade,
aquilo então anunciado e enunciado como um já realizado, alétheia, é, em relação a si
mesmo, imóvel, e conseqüentemente estranho ao possível desenvolvimento que lhe
tenha possibilitado, pelo que o ente, este ente já noética e perfeitamente pensado, não
conhece de fato nenhuma finalidade, encontrando-se satisfeito desde thémis e díke, de
modo a estar também livre de qualquer télos simplesmente porque “não-aperfeiçoável”:
o ente é concluso e perfeito e é justamente thémis quem o assim estipula, fazendo ser lei e
226
Além disso, a tematização da imobilidade por parte de Parmênides obriga à seguinte consideração: se o
ente é imóvel e esta imobilidade corresponde à plena satisfação do propósito de cumprir um conhecimento
efetivo, a idéia de imobilidade por ele apresentada refere-se sobretudo à própria imobilidade do conceito:
um conceito puro, verdadeiro, não pode ser alterado, quedando-se imóvel conquanto seja verdade.
227
B8, 30:
kraterh\ ga\r a)na/gkh
.
228
O verso 31 é textualmente muito semelhante ao 26, aquele que inicia este segundo segmento agora em
análise, reproduzindo assim a mesma idéia:
mega/lwn e)n pei¿rasi desmn
, “nos limites de grandes
amarras”, afirma o verso 26, ao passo que o verso 31 sentencia:
pei¿ratoj e)n desmoiÍsin eÃxei
, “detém-
no nas amarras do limite”.
229
B8, 31.
230
B8, 32.
231
B8, 4.
102
102
norma que o ente o seja não-perfeito
232
. Por fim, que não se esqueça que essas duas
determinações, a saber, (A) sem finalidade” ou “sem meta” e (B) “não-aperfeiçoável”
serão contundentemente ratificadas pelo predicado que julgo ser o mais decisivo dentre
todos quanto à natureza e qualidade do ente pensado por Parmênides: ele é justamente
o que Xenófanes declarara impossível ser: tetelesme/non
233
completo, perfeito,
acabado.
Reconhece-se assim, por todos esses caracteres do ente, que este segmento nos
apresenta bem mais que uma imobilidade restrita à negação de um movimento relativo
à mera transição de um daqui para ali. A negação do movimento promovida por
Parmênides, extirpando-o do âmbito do ente e da verdade para situá-lo na terceira parte
do poema, parte relativa ao âmbito da cosmologia e das opiniões, não se restringe à
idéia de deslocamento, mas a um modo de imobilidade que assegura ao ente a mais
completa consistência auto-identitária: não se move consoante nenhum modo ou
sentido possível, nem pela temporalidade, nem pelo devir, nem pela alteridade e
também não pelo deslocamento ser imóvel significa, mais que tudo, não se
diferenciar.
O ente encontra em sua mesmidade o mesmo como ‘residência’ de si e também o
deter-se em si mesmo e o repousado sobre si. Ancorado nesses três definidores
momentos da auto-identidade do ente, o pensamento parmenídico elabora o primeiro
conceito de repouso da história da filosofia e o faz por intermédio da oposição à
cosmológica percepção da mobilidade de tudo. Autobastante em seu repouso não
carece o ente de encontrar-se apoiado em nada que não seja ele mesmo, pelo que uma
vez mais se mantém intacto o seu caráter absoluto.
Geminada a esse princípio de imobilidade proposto por Parmênides encontra-se
anánke, cuja função deixa claro e nítido como uma tal concepção de repouso depende,
para poder ser formulado, do modus operandi de um pensamento a um tempo
logicamente necessário e necessariamente lógico, pois é somente desse específico modo
de pensar que o pensamento pode retirar força de persuasão e convencimento, poder
tantas vezes referido pela deusa, inclusive para adjetivar a necessidade, a)na/gkh, como
poderosa, kraterh/
234
. O pensar segundo o modo da necessidade lógica tem que ser com
232
B8, 32: “para ser lei [
qe/mij
] que o ente não seja não-perfeito” ou ainda “para ser lei que o ente seja não-
aperfeiçoável”.
233
B8, 42
234
B8, 30.
103
103
efeito coercitivo e poderoso, uma vez que a argumentação de caráter lógico procede o
pensamento de acordo a fazer dele refém de sua prórpia coerência: no poema uma
disciplina na ordem desse pensar, de modo a não poder ofender certas regras pelas
quais ele se caracteriza, sob pena de perder sua veracidade. Duas dessas regras lógicas
dizem respeito ao que Aristóteles denominou posteriormente princípio de identidade e
princípio de não-contradição que, decerto, encontram no poema parmenídico o seu
advento, pouco importando não serem eles mesmos nomeados pelo Eleata.
Para além disso, esse caráter logicamente necessário do pensar assume sua força
e coerção face a ameaçadora pressão que provém daquilo que lhe é avesso, a não-
verdade. Vimos que tanto as opiniões como o caminho do não-ente são ambos não-
verdadeiros, mas aqui, no fragmento 8, a ameaça maior parece corresponder à força de
persuasão do caminho do não-ente, afinal, tal como o caminho do ente, pode ser ele
persuasivo porque noético, desdobrando-se de forma crítica e coerente. Isto acirra
ainda mais a necessidade do jogo de positivação e negação que venho tentando
descrever e pelo qual o fragmento 8 se distingue, um jogo que visa a desabilitar todas as
características cosmo-filosóficas desse pensar ao contradizê-las, repelindo-as da esfera do
ente e da verdade. É essa necessidade quanto ao modo de operar o pensamento que nutre
a convicção verdadeira pi¿stij a)lhqh/j
235
a quem cabe rechaçar essas adversárias
indesejáveis porque extraviantes
236
do caminho que conduz ao vero saber, o caminho
do ente; é por isso, e só por isso, que constituem elas em conjunto o caminho do ‘como
não pode ser’ para que a verdade seja.
A ameaçadora pressão que contra a verdade se orienta mesmo quando
imagina ir a seu favor equivale portanto àquilo que é hostil e contrário a thémis, àquilo
que resiste à sua lei e à sua justiça, o não-ente. Daí a necessidade imperiosa de firmar os
liames do ente para que não seja corrompido. E desde que o não-ente nega
(in)justamente essa justiça, isso que, situado fora do ente porque não pode ser
237
, isso
que forceja a partir de fora é o injusto, o que não é direito, em outras palavras, aquilo
235
B8, 28 e também B1, 30.
236
Escrevo, naturalmente e como de hábito, na perspectiva que julgo ser a de Parmênides. Note-se a
respeito da coesão e do poder em torno do qual se unem anánke
e pístis alethés e a respeito de a que servem
esse poder e coesão, justamente o conjunto de versos entre os de número 27 e 32 pouco abordados, em
que vemos atuarem essas duas forças como poderes de repulsão aos predicados típicos do cosmo e, por
extensão, da cosmologia da época. Em meio a esses versos, destaco a passagem em que se lê “que gênese e
perecimento muito longe se extraviaram, rechaçou-os convicção verdadeira. O mesmo no mesmo
permanece e sobre si mesmo repousa, e, assim, firme fica, pois poderosa necessidade detém-no nas
amarras do limite”. B8, 27-31. Grifos meus.
237
Evoquem-se novamente os versos 35 e 36 há pouco citados.
104
104
que não deve nem pode ser, o não-ente; aquele que perfaz para si mesmo um caminho
que não chega ao seu desejado destino, o caminho em que não se exatamente aquilo
pelo que o outro caminho em questão pode: perfeição, plenificação e cumprimento de
meta. O que se situa fora do ente, o que não pode jamais ser,devir, é aquilo também
que se encontra para além das extremas fronteiras
238
do pensamento verdadeiro, pelo que
se deve inferir necessariamente e uma vez mais que o ente é completamente limitado a
si mesmo, inteiramente circunscrito ao ser e ao pensar, já que a própria idéia de ser em
Parmênides é um noéma, um pensamento. A ‘carne’ de que se compõe o ente, como
dito, é pensamento, e noético, nenhum outro modo do pensar deve nele interferir. O
ente é o que é apenas como noeticamente pensado, pois é apenas como conceito que se
pode ser. Todo o resto, sendo sensível, é’ porque devém, e devir não se confunde com
ser, eis a violenta incisão que Parmênides impõe à linguagem, daí a segunda parte do
poema, sobre ‘ser’, e a segunda, sobre ‘devir’; correspondem cada um deles, na ordem e
escala do conhecimento, à verdade e às opiniões, respectivamente. Compreende-se
assim, também, porque o ente é limitado, circunscrito apenas a noeîn e pelo quê: de fato,
pelas fortíssimas amarras desse poderoso e necessário artifício de linguagem.
O mesmo é pensar (noeiÍn)e aquilo pelo que pensamento (no/hma) é.
Pois sem o ente, em que está apalavrado,
não encontrarás o pensar. Pois nem é, nem será
outro algum além do ente.
239
O pensar noético apalavrado na palavra ente, firmemente amarrado e
acorrentado à linguagem, linguagem nova que sentencia que nenhum outro é senão o ente.
o ente é, e ele é por meio do que é fundamento de seu ser: noéma, o pensamento.
Modo de pensamento que pensa o ente e que o realiza como um pura e perfeitamente
pensado. Estamos diante de um domínio decididamente limitado. Um ‘mundo’ de
conceitos, de idéias livres do peso do real, autônomas, a si mesmo bastantes. Sua
matéria? Seu tecido? Pensamento. Não qualquer pensamento, mas apenas aquele
confinado dentro das circulares fronteiras do pensamento verdadeiro. E o que o
confirma é justamente este fragmento 8, em que, após inventariar vários predicados do
ente, a maioria deles negativos posto que se constrói a partir da negação do devir,
afirma de forma positiva ser o ente finito, circunscrito. Ao quê, senão ao próprio
238
Tal como para o círculo a fronteira extrema é a circunferência.
239
B8, 34-37. Grifos meus.
105
105
pensamento? Fora dele, para além do círculo ideal ou conceitual, não é o que é, ou
melhor, simplesmente inexiste. Não o encontrarás
240
. A verdade preenche uma
circunferência, nem mais, nem menos
241
. Por isso é também completa, plena e
contida
242
. Para fora dela, o não-verdadeiro, a vasta infinitude do real, cujos predicados
são exatamente opostos aos desse ente.
Convém lembrar: a questão do limite é um dos muitos e mais embaroçosos
problemas para a bibliografia especializada. Considerada freqüentemente obscura, a sua
inclusão no rol dos referidos predicados. Se a leitura aqui proposta é uma boa saída não
cabe a mim. É a que eu vejo. A limitação do ente, porém, não pode ser nem espacial
nem temporal, visto que espaço e tempo são propriedades phýsicas. O limite, aqui, é
também não-físico, não-real, e diz respeito à circunscrição acima aludida. A verdade é
interna ao pensamento e cabe, tão-somente, dentro dos estreitos e rígidos limites da
linguagem regrada e concebida por Parmênides. Sabe ele muito bem, portanto, que a
verdade não deve ser aplicada ao real nem se encontra em meio à ‘vida’. Sabe, então,
que a lógica é um sistema artificial que não dá conta da realidade porque não a concebe.
E não é mesmo assim? Em contrapartida, garante um conhecimento indiscutível, não
dando margem a opiniões. Será mero acaso que o substantivo alétheia venha
persistentemente acompanhado, no poema, por adjetivos derivados de pístis
,
designando segurança, firmeza, persuasão, convencimento e confiança? Tudo o que o
real não pode oferecer o Eleata depositou na invenção da sua argumentação lógica.
Princípio de identidade e princípio de não-contradição. Parmênides é o primeiro a
argumentar em toda a história, não da filosofia, mas da literatura. E assim oferta
definitivamente, à literatura, à filosofia e à história, um novo gênero de pensar, tanto na
forma como no conteúdo: na linguagem e no que é dito por ela e no como é dito por ela.
Circunscrito a noeîn é o ente, o que torna forçoso, a meu ver, constatar neste
passo da filosofia parmenídica a identidade entre o tema a que seu pensamento se
dedica e o pensamento mesmo, tal como exposto acima. Cabe, porém, ressaltar o
quanto se trata de resultado possível apenas à decisão parmenídica de fazer recair, pela
primeira vez, o pensamento sobre o próprio pensamento, tomando-o como objeto de
reflexão: isto que é, o único a poder ser, é obra de um pensar, não existe’, nem devém,
nem fora ou além de noeîn. O ente é produto final e acabado da atividade noética, a
240
Cf. B4.
241
B8, 43.
242
B8, 24.
106
106
construção conclusa do pensamento que opera conforme o modo da verdade,
resultando finalmente na perfeição do pensamento noético.
A seqüência acima citada em destaque abrange do verso 34 ao 37 do fragmento
8. Ela permite entrever de imediato a plena identidade do ente e, por extensão, aponta a
mesmidade entre (A) o que é e tem que ser necessariamente e (B) aquilo que e como se
deve pensar. Tanto a plena identidade do ente como a sua mesmidade com noéma
constituem o fundamento em que assentam tanto a definição do ente como akíneton
243
,
imóvel, como a sua determinação como ou)k a)teleu/thton
244
, “não-aperfeiçoável”
porque permanentemente perfeito.
Examinando mais de perto a referida seqüência, noto que noeîn vale aqui como o
modo de pensamento que detém a possibilidade de edificação de um verdadeiro saber,
pelo que se estabelece a conexão de toda essa seqüência com o motivo através do qual
o ente é ou)k a)teleu/thton
245
. Mas todo o peso dessa conexão parece recair sobre o
“pelo que pensamento é”, que, por sua vez, coliga-se à razão pela qual formam eón e
noeîn uma identidade absoluta. Esta passagem do fragmento 8 esclarece mais uma vez,
visto que o fragmento 6 também o aludira, que o fundamento dessa mesmidade
repousa numa condição igualmente fundamental, aquela que une o pensar, noeîn, e o
pensado, o pensamento noéma. Reafirma-se assim, tal como nos fragmentos 3 e 6, que
noeîn e eînai partilham uma condição de identidade, permitindo considerar que a prória
concepção de um ser e de um ente tal como expostos pela deusa no poema
parmenídico resulta da atividade noética do pensamento, pelo que se encontram
circunscritos a ele. Este ser e este pensamento idênticos não se encontram “no cosmo,
nem disperso, nem concentrado”, exorta a deusa ao seu ouvinte no atual fragmento 4
do poema, que o kósmos pertence a uma ordem e natureza, a da sensibilidade, distinta
e outra que a daqueles, fazendo dessas duas dimensões “realidades” imiscíveis. A
incisão entre ser e devir promove a separação radical e irreconciliável dessas duas
dimensões, e é apenas naquela cuja tessitura é ideal e conceitual que o ente pode ser
pensado e ‘existe’ ou, mais precisamente, é
246
.
243
B8, 26;38.
244
B8, 32.
245
B8, 32.
246
Porque o cosmo sensível não se permite conhecer integralmente, são os sentidos tão desviantes da
tarefa do conhecimento e, conseqüentemente, do caminho do ente, quanto são “extraviantes” (B8,28) as
idéias que por eles colhemos e apreendemos do ‘real’, como, por exemplo, gênese e perecimento (Ver B8,
27-31 e B7).
107
107
Trata-se de mais um elemento a contribuir para a percepção de que o ente é um
ente pensado, encontrando apenas em noeîn sua verdadeira tessitura. Uma vez que este ente
equivale ao próprio conceito de verdade formulado pelo Eleata, deve-se assumir, e
assim o faço, que a verdade concebida por Parmênides nenhuma relação estabelece
com a assim chamada realidade sensível, é dela abstraída e autônoma.
Creio que o fito de uma tão ousada e inventiva empresa se quede mais do que
claro e soe até repetitivo a essa altura da exposição da minha linha interpretativa: ele
atende à necessidade de elaborar e concluir um saber firme, seguro e inconteste. Com
efeito, como contradizer a gramática da tautologia? Como negar ‘que o ente é’ e ‘que o
não-ente não é’, assim como quem mata, mata e quem ama ama? Por sinal, admitindo-
se que Parmênides formula os princípios basais de toda lógica até os dias atuais, o de
identidade e o de não-contradição, é espantoso como não foram, salvo ignorância
minha, jamais contraditos pela própria história da lógica, que, naturalmente, espraiou-se
por outras sendas, mas sempre de acordo com esses princípios, sem negá-los, portanto.
Esse modo de linguagem inaugurado pelo poema impõe dificuldades terríveis a
quem quiser contradizê-lo. A solução sofística, mormente a de Górgias, recorre ao
mesmo expediente, o de assumir a artificialidade da linguagem, que enquanto
Parmênides o faz no sentido de concentrá-lo e orientá-lo de acordo com um télos
comprometido com a ambição por um conhecimento inatacável, o célebre e genial
sofista o faz na contra-mão desse gesto, isto é, dispersando essa artificialidade,
desregrando-a em vez de regrá-la, a ponto de fazer de um pretenso conhecimento
verdadeiro nada mais que algo patético: o Tratado do não-ente promove o desmonte
daquilo que Parmênides quis ser impossivelmente desmontável e constitui a mais ácida
perversão do pensamento do Eleata (a segunda é a de Platão), ainda que ambos
partilhem e partam de uma condição comum, a mais clara ausência, em nome dessa
artificialidade, de uma linguagem que se invista do que hoje costumamos denominar
‘responsabilidade ontológica’. Ainda mais radicalmente, percebendo Górgias que a
verdade é um artifício de linguagem, percebe igualmente que pode todos os artifícios,
desde a lógica até à antilogia, incluindo-se nisso também a responsabilidade ontológica
– basta querê-lo.
O compromisso e a responsabilidade assumidos por Parmênides não se
relacionam com a ‘realidade’, mas com a necessidade de sanar e superar o problema do
conhecimento tal como denunciado primeiramente por Xenófanes, não sendo pois
108
108
questão nem tema de caráter ontológico ou metafísico, mas epistemológico.
Curiosamente, uma responsabilidade ontológica ou talvez, neste caso, mais
precisamente ôntica, revela-se justamente em sua cosmologia, na tão negligenciada
parte final de seu poema
247
. O problema, quanto a essa empresa, a de assumir um
discurso sobre o smos e Parmênides o assume! – é que daí sempre resultam
opiniões, o um sólido saber, posto que a multiplicidade do ‘mundo’ multiplica as
interpretações sobre ele, não havendo nada que se revele firme a esse respeito. Como
disse, é este o ponto de concordância entre Parmênides e seu possível mestre
Xenófanes.
De fato, a phýsika, ao contrário da lógica, não tem hoje o menor interesse ou
mesmo respeito pelo seu passado, pelo conteúdo das cosmologias e das phýsikas da
Antigüidade. Trata-se de uma seara tão equívoca que sempre auto-corretiva,
“multifalante”
248
, eis o que Parmênides acusa, o que faz da sua história a história dos
seus equívocos, e do conhecimento alcançado um conhecimento apenas e
necessariamente aproximativo, além de absolutamente transitório, tal como o é o objeto
a que se dedica: um contagia o outro, e tornam-se ambos, felizmente, diria eu,
inesgotáveis. Note-se que nem assim seria possível afirmar uma eventual antipatia
parmenídica relativamente a essa seara, afinal, ele a abraça, reconhecendo-a como
inevitável. De resto, a confiar nos testemunhos de época, era ele também médico,
praticante, portanto, de uma ‘ciência natural’. Mas essa inevitabilidade e necessidade não
o fazem declará-la como detentora da possibilidade de chegar a um termo, a um
conhecimento imóvel a respeito de tudo e todas as coisas, pánta; pelo contrário,
demonstra-o como necessariamente móvel, uma vez mais tal como o objeto sobre o
qual versa. É por isso que esse modo de conhecimento, por mais elaborado seja, tal
como a cosmologia parmenídica intenta ser, está fadado ao fracasso quanto ao seu
desejo de conhecer efetivamente, pelo que, ainda que muito complexo e elaborado, vem
a ser pouco mais ou não mais que opinião, porque opinião é a forma móvel, vária e
oscilante do conhecer e, por isso mesmo, insuficiente para a ambição epistemológica do
Eleata.
247
Há, naturalmente, exceções dignas de nota, tal como o criterioso estudo empreendido por
REINHARDT. “Der zweite Teil”, In: REINHARDT, K. Op. cit. 1985, pp. 10-32. O mesmo vale para o
resumido porém justo panorama traçado por KIRK, RAVEN e SCHOFIELD sobre as “mortal opinions ”.
In: The presocratic philosophers. Cambridge, Cambridge University Press, 1983, pp. 254-262.
248
B1, 2.
109
109
Diante disso, considere-se agora as dificuldades enfrentadas corajosamente por
Platão, por exemplo, que, ao contrário da sofística e a favor de Parmênides, pretende
estabelecer um conhecimento verdadeiro, mas que, por outro lado, também ao
contrário da sofística e, neste caso, igualmente contrário a Parmênides, pretende aplicar
a univocidade conceitual da verdade à multiplicidade do sensível, assumindo, este sim,
uma responsabilidade ontológica como compromisso-mor do seu pensamento. Resulta
dessa sua intenção aquele toque, agora sim, fundador e caracterizador do que viemos a
chamar metafísica; todas elas, a despeito de suas possíveis e muitas diferenças, imbuídas
da necessidade de relacionar, de fazer tocar o inteligível e o sensível, precisamente
aquilo entre o que Parmênides impôs e interpôs um abismo. Pense-se sobretudo nos
Livros VI e VII da República e talvez possamos reconhecer ali o esforço platônico pela
conquista dessa relação contra a incompatibilidade proposta por Parmênides. E, depois,
no grandioso monumento que é o Sofista, em que a determinação do não-ser como
alteridade provém da demonstração do absurdo do absoluto, pelo que o ser,
arremessado às malhas do relacional e da alteridade, ganha carne. Platão viola assim o
inviolável,
aÃsulon
249
, parmenídico.
Ironicamente, a disposição sofística e a disposição platônica possuem ambas um
ponto de encontro e um ponto de desencontro com a filosofia de Parmênides, sendo
que estes pontos desencontram-se entre si. Isto faz de Parmênides tanto pai de Górgias,
como de Platão. Essa situação não escapa ao filósofo ateniense, que a acusa com
clareza em um de seus diálogos, não-coincidentemente no mesmo Sofista, escolhendo
como seu personagem principal justo um estrangeiro de Eléia para realizar o necessário
parricídio relativo a Parmênides, um parricídio reverente, porque no fundo pretende
resguardar do pai o ponto de encontro e rejeitar dele o de desencontro. É o momento
em que Platão, a um tempo, resolve-se com Parmênides e com a sofística: agora ele
sabe como desarticular esta sua inimiga, enquanto nós aprendemos a diferenciar a
intrincada e íntima relação entre esses três grandes filósofos, Platão, Górgias e
Parmênides, este o pai tanto do cão, como do lobo
250
.
A emenda parricida que Platão aplica ao pensamento de Parmênides vale, aos
olhos de Platão, como uma medida corretiva e, note-se bem, dá-se através da conquista
de um não-ente que é, rejeitando a posição de Parmênides quanto à insuperável
249
B8, 48.
250
Cf. Sofista 231a.
110
110
incompatibilidade entre ente e não-ente. O que Platão sabe necessitar, em nome
daquela sua disposição e compromisso acima aludidos, é de um não-ente que seja, de
modo que o discurso sofístico seja, de fato, mas que, apesar de ser, possa não ser, por
exemplo, verdadeiro, fazendo-lhe ser a verdade uma alteridade. Para tanto necessita
abolir a idéia de que ente e não-ente tenham que ser necessariamente pensados de
forma absoluta, como o faz o Eleata. Demonstrando que as ‘coisas’ e mesmo a gramática
esta por promover relações entre os seus termos são todas elas relacionais, abre
Platão uma fenda no ‘absolutismo’ característico à argumentação parmenídica,
possibilitando para si mesmo a célebre formulação do não-ente como alteridade, de
resto uma idéia presente no pensamento de Heráclito, embora expressa com outra
terminologia, nomeadamente a de morte – que é não-ser – como presença do outro.
Mas seria, contudo, possível imaginar uma insistente réplica de Parmênides, em
que bradasse ‘quem disse que estou falando de coisas’? Concordo que as ‘coisas’, os
‘deventes’, os sensíveis, são todos inter-relacionados, o que por sinal reconheço na
parte final do meu poema, lá onde apresento sim um discurso sobre a phýsis, o kósmos, o
sol, o mar e a lua. Mas nada disso dá conhecimento, senão apenas equívoco e
aproximativo; aquele, porém, exato, aquele que havia sido interdito por Xenófanes, só é
possível artificialmente e, se artificial, nada pode ter de natural...”
Minha imaginação pode até soar, aqui, um recurso covarde, mas ainda assim
esclarecedor quanto aos problemas que enfrentamos ao analisar a obra de Parmênides.
Quero e preciso deixar claro, portanto, que em nenhum momento intenciono defender
ou atacar o gesto fundamental da filosofia parmenídica, buscando tão-somente
compreender desde os motivos até as conseqüências do seu feito. E isto que aqui
exponho é simplesmente o que reconheço em seu texto.
Após essa longa digressão, retomo agora o ponto de análise em que me
encontrava, versando sobre a identidade entre noeîn e eînai, bem como entre noéma e eón.
O ente que é a verdade corresponde a um saber inconteste, perfeito; é em nome dessa
realização, em nome portanto da plenitude do ente que se orienta a filosofia de
Parmênides. O cumprimento dessa sua ambição consiste em conseguir conhecer. Por
esse motivo o verso 34 do fragmento 8 apresenta tanto noeîn quanto o seu resultado
final, noéma. Fundem-se assim a atividade perfeccionante, noeîn, e a sua plenificação final, a
111
111
perfeição do pensamento verdadeiro, noéma: o pensamento verdadeiro é o pensamento da
completude, e o que é perfeita e plenamente pensado é o ente
251
.
Prosseguindo com a análise do segundo segmento do fragmento 8, a exposição
ultrapassa a temática noeîn-noéma a partir do final do verso 36, dando início a uma
argumentação que demonstra impossíveis ao ente – sublinhe-se, à dimensão do ser, eînai
qualquer exterioridade
252
, sendo ele reafirmado como ouÅlon
253
, “todo”, “inteiro”, e
a)ki¿nhton
254
, imóvel”. O ente, agora, não é mantido e detido pela poderosa força das
amarras manejadas por anánke
255
, mas sim preso e atado pela moîra, a fim de que
permaneça sendo “todo imóvel”
256
. É esta a regra do jogo, posto que moîra, em grego,
pode significar também ‘jogo’, ‘partida’. Com efeito, todo jogo possui suas normas e
regras e, para este aqui, thémis é quem as decide. Mas como essa legislada decisão define
uma condição, todo esse sentido enquadra-se harmonicamente com as idéias de
condição e destino que acompanham o termo em questão: ser imóvel é condiçao do
ente, destino para o qual sempre esteve predestinado por thémis; destino mantido pela
moîra.
Sendo e permanecendo, cumprindo o ente a sua condição e destinação como
imóvel, passará a ser meramente nome aquilo que os mortais instituíram como devir e
impermanência, surgir e perecer, ser e também não
257
, desconhecendo o que ser
efetivamente significa, conforme o pensa Parmênides. É importante notar como esses
“nomes” são todos contraditórios à verdade, avessos a ela.
Quanto à moîra que ata o ente, ela é necessariamente a mesma que aquela
mencionada no proêmio. Não é, conseqüentemente, um mau destino
258
. Parmênides
lança mão do nome daquela dividande anterior a todos os deuses, a quem mesmo Zeus
251
Aproveito para salientar o caráter predicativo do discurso da deusa, responsável por praticamente toda
a composição do poema; trata-se de um discurso sem uso do sujeito. A deusa, exatamente como o ente, é
predicado, o que significa, neste caso “é verdadeiro, o que ela diz”. Sobre o uso predicativo em relação aos
deuses destaco o verso de desfecho de As traquínias (1275) de Sófocles, assim como, de Heráclito, os
fragmentos B22, B67, B108. Todos esses exemplos introduzem o uso predicativo de “Zeus”, à semelhança
do uso feito por Parmênides para a deusa do seu poema. Por sinal esta situação sintática é um dos
aspectos que favorecem a interpretação de Heidegger ao apontar que a deusa inominada é, justo por isso,
a própria alétheia.
252
B8, 36-37.
253
B8, 38. Comparar com B8, 4. Sobre oúlon, especificamente, mostra-se de especial interesse o extenso
estudo de Mario UNTERSTEINER: “L’Essere di Parmenide è OYLON”. In: UNTERSTEINER, M.
Parmenide: testimonianze e frammenti. Firenze, La Nuova Italia Editrice, (1958), 1979, pp. 27-50.
254
B8, 38.
255
Ver B8, 30-31.
256
B8, 37-38.
257
B8, 38-41.
258
B1, 26.
112
112
deve obediência, não tendo mesmo ele, senhor maior dos deuses olímpicos, poder para
alterá-la, não lhe sendo possível desfazer o fio por ela tecido. Para a moîra está sempre
decidido e sabido, o que é e como é, motivo por que deve ser aqui entendida em
associação ao que representam thémis e díke ao longo do poema.
A propósito de mais uma menção a divindades, vale observar que, para além de
todo o discurso do poema ser empreendido por uma deusa, vemos aqui, através desses
dois primeiros segmentos do fragmento 8, que todas as decididas decisões, assim
como todas as principais determinações do ente são implementadas por deusas. No
caso específico da imobilidade do ente é uma dupla delas, anánke e moîra, que a
preservam, o que pode ser esclarecedor quanto à origem mítica desta idéia.
Para finalizar o exame acerca deste segundo segmento dominado pela idéia da
imobilidade, vale mencionar uma última consideração sobre o tema da rejeição ao
movimento na ordem da verdade: uma vez sendo imóvel e correspondendo, também, à
concreção final de um conhecimento inabalável, repito que a questão da imobilidade no
poema de Parmênides remete igualmente à idéia da imobilidade do conceito. Um
conceito puramente verdadeiro não deve sofrer nenhuma diferenciação pois, caso a
sofra, será a custo de sua própria verdade. Deve, conseqüentemente, manter-se
intocado e imóvel, tal como aquele túmulo e aquele altar hesiódicos, pois, do contrário,
move-se para fora de si mesmo, transferindo-se para a esfera do impossivelmente
verdadeiro. Com respeito a Parmênides, a ordem dos conceitos é a ordem em que a
verdade pode ser, porque ela mesma, a verdade, é um conceito. Mais do que isso,
encontra-se nesse raciocínio a convicção de que o conhecimento, para sê-lo
efetivamente, exige algo de fixo e estável, daí a idéia de imobilidade. Mas a imobilidade
aqui nada tem a ver, como foi exposto, com aquela ideia cosmológica que, também em
Aristóteles, pensa a imobilidade como a unidade de um fundamento inteligível que se
depreende a partir da apreensão aisthética e que vem a ser afirmado e defendido,
posteriormente, como uma interpretação unívoca acerca da diversidade inerente à
realidade sensível.
No caso de Parmênides, o imóvel provém de uma auto-referência, isto é, da
pura imobilidade do conceito, ou, em outras palavras, da imobilidade do ente que
repousa sobre si mesmo. Trata-se de uma imobilidade radicalmente absoluta e não-
relacional. Imobilidade absoluta exige afirmar a negação, igualmente absoluta, do
movimento. É isto que leva Aristóteles a afirmar que a por ele denominada escola eleata
113
113
funciona numa dimensão de pensamento que tem como objeto qualquer outra coisa
que não a phýsis, porque esta, segundo o Estagirita, vem a ser, por princípio,
movimento
259
. Como o discurso e o pensamento fidedignos acerca da verdade pisto\n
lo/gon h)de\ no/hma a)mfiìj a)lhqei¿hj
260
apresentados no poema de Parmênides nada
têm a ver com a phýsis, não têm igualmente como ser concebidos por qualquer phýsika.
O terceiro segmento encerra e completa o fragmento 8, iniciando-se no verso
42 e findando no 49
261
. Dedica-se ele à rejeição final a todo tipo de incompletude, de
modo que a plenitude do ente seja confirmada e categoricamente concluída. Para a
execução de uma tal tarefa exige-se mais exatamente uma dupla determinação, que por
sua vez estabelece os dois predicados finais do ente, “inviolável”, aÃsulon
262
e “pleno”
ou “perfeito”, tetelesme/non
263
.
Antes que a deusa declare ser o ente perfeito, evoca-se novamente a força e o
rigor de um limite, desta vez o mais extremo: peiÍraj pu/maton
264
. Uma vez alcançado o
limite extremo e, nada sendo para além dele, confirma-se o ente como o único a ser.
Fora dele nada é. Assim concebido, deve-se reconhecer que é completo, tão perfeito
quanto cheio de si mesmo. Além disso, o insistente uso do termo peiÍra
265
,
“extremidade”, “limite”, indica não apenas a plenitude do ente, mas também a limitação
do ente ao pensamento pois, em caso contrário, poderia dispersar-se pelo que não tem
bordas nem fim, perdendo sua plenitude e perfeição.
Os extremos limites do ente perfazem uma circunferência a que o ente se
encontra circunscrito. Fora desse círculo conceitual nada mais é ou pode ser. Não por
acaso ocorre aqui a célebre imagem da “esfera bem redonda” , da qual a deusa se serve
para ilustrar, por comparação, a perfeição do ente e do conhecimento verdadeiro
266
. A
verdade preenche uma circunferência que, tal como o ente, o pode ser nem maior
nem menor
267
, nem mais, nem menos
268
do que é. Por isso é o ente todo e inteiro
269
, de
259
DK A 25; De caelo. G1.298b14.
260
B8, 50-51.
261
A partir do verso 50 a o seu final, o fragmento 8 prepara o terreno para a análise a respeito do
universo das dóxai, dedicando-se já a elas e não mais ao ente e à verdade.
262
B8, 48.
263
B8, 42. Além deste, o termo
eÃmpleo/n
(B8, 24) também indica a plenitude do ente.
264
B8, 42.
265
Palavra que voltará a ser empregada ainda em meio a este segmento ora em destaque. Ver B8, 49.
266
B8, 43:
eu)ku/klou sfai¿rhj e)nali¿gkion oÃgkwi
: “semelhante a volume de esfera bem redonda”.
267
Ver B8, 44-45.
268
B8, 48.
269
B8, 48.
114
114
si mesmo cheio, preenchido
270
, coeso e contínuo
271
. Coincidem aqui o ‘ser todo’ e o
próprio tetelesménon, uma vez que é por intermédio de um “todo”, aqui designado por
um pân, que se encontra qualificado o predicado que a ele se associa, aÃsulon (ásylon),
que é assim introduzido: pa=n e)stin aÃsulon o ente “é (de) todo inviolável”. Para
fora dessa esfera, apenas a inverdade: tanto a do não-ente, como a das opinões dos
mortais.
Porque esses dois modos de não-verdade ‘moram’ exteriormente ao ser, a
plenitude do ente que é plenitude passível de ser comparada à bem feita circularidade
de uma esfera deve ser concebida a partir “do centro para toda parte”
272
, de modo
que a sua força de coesão, i¹sopale\j
273
, repulse o que lhe vier de fora, não permitindo
que sejam expugnados os seus rijos e precisos limites. Elabora-se assim o equilíbrio do
ente pleno a partir do seu centro, não da sua periferia, afinal, como poderia esse
equilibrio consolidar-se de forma imperturbável se se fizesse à fronteira daquilo que
nega e de que se separa terminantemente, a inverdade? Do centro para toda parte”
significa então a partir do cerne do pensamento verdadeiro, a partir do coração da
verdade, inflando-se desde aí até bastar-se e preencher-se.
Finda a deusa deste modo a exposição acerca do ente e da verdade
274
. Seu
discurso verdadeiro de prosseguir, apresentando doravante a verdade a respeito das
não-verdadeiras opiniões. Cessa-se neste momento a palavra que realiza e explicita o
conceito parmenídico de verdade. Saber o que é todo, o ente, não o tudo de todas as
coisas, pánta, eis a disposição da filosofia de Parmênides em sua orientação pelo todo
da verdade, não pelo tudo da natureza’, sobre quem não é possível verdadeiro
conhecimento.
270
B8,24:
eÃmpleo/n e)stin e)o/ntoj
.
271
B8, 23.
272
B8, 44.
273
B8, 44.
274
B8, 50.
115
115
IVa – Por uma breve genealogia desta interpretação
Para que essa minha interpretação não pareça carente de paralelos na história da
interpretação do poema, passo a listar e comentar algumas poucas passagens de
filósofos absolutamente relevantes para a história da filosofia em geral que, por isso
mesmo, suscitam a pergunta: por que foram absolutamente esquecidos no que diz
respeito às suas considerações sobre o poema parmenídico? O que justificaria tamanho
ostracismo? Sim, porque estou falando de vultos sempre muito ouvidos e influentes,
mas que, neste caso, curiosamente, parecem estéreis. Falo de autores como Aristóteles,
Sexto Empírico, Plotino, Hegel e Nietzsche. É claro que suas interpretações podem ser
consideradas equivocadas, tal como a minha, mas que não encontrem qualquer eco no
atual panorama da literatura especializada acerca do poema é, de algum modo,
intrigante.
O Estagirita, por exemplo, afirma, em Do céu:
Uns negam absolutamente gênese e corrupção, pois afirmam
que nenhum dos seres nasce ou morre, mas somente nos
parece que sim. Tais são os casos de Melisso e Parmênides que,
por mais que os digam excelentes, não se pode dizer que
tenham por base a natureza das coisas: pois se existem seres
não-nascidos e inteiramente imóveis, pertencem mais a outra e
precedente ordem que não à da natureza.
275
E em Da geração e corrupção Aristóteles afirma:
De fato, a partir de raciocínios que deixam de lado e
negligenciam o sensível, e da idéia de que esses raciocínios têm
que ser obedecidos, alguns afirmam que o todo é uno, imóvel e
ilimitado, pois o limite poderia limitar frente ao vazio
276
.
Com efeito, são estas as causas pelas quais trouxeram à luz suas
teorias acerca da verdade. De acordo com esses raciocínios,
parece mesmo suceder assim. De acordo com as coisas reais,
porém, semelhante opinião parece ser loucura.
277
275
DK A 25 (Do céu. G1.298b14).
276
É importante observar que, na Física, Aristóteles acabará por observar uma diferença em meio às
identidades eleáticas que unem Parmênides e Melisso, diferença esta que, aqui, passou-lhe despercebida.
Essa distinção refere-se justamente à questão do limite. Em Parmênides, o ente é dito limitado (cf. B8, 26-
31), enquanto que Melisso afirmará o contrário.
277
DK A 25 (Da geração e corrupção. A8.325a13).
116
116
O que se vê de principal nessas considerações de Aristóteles é que em
Parmênides e também nos demais filósofos ditos “Eleatas” a referência para o seu
conceito de verdade não é o real. Em ambas as passagens Aristóteles parece repetir a
mesma atitude diante de uma tal filosofia: não sabe ao certo qual o seu objeto, mas é
seguro não ser a phýsis. Sobretudo no trecho do Da geração e corrupção supracitado, o
Estagirita é claro quanto à cisão entre uma ordem do raciocínio, para quem essas
considerações parecem ter validade lógica, e a ordem natural, em que o têm como se
verificar absolutamente. Trata-se de se perceber a determinação de dois critérios: de
acordo com um deles, os argumentos procedem; mas se tomados de acordo com o
outro, neste caso a realidade sensível, não.
Contudo, mesmo observando que o conteúdo dessas afirmações pode ser justo
de acordo com um desses critérios, Aristóteles deixa transparecer um certo desinteresse
por elas, não se demorando muito em analisá-las. E isso por lhe parecer que essa
posição é absurda. Uma “loucura” ou, conforme o original, uma mani/a (manía).
Absurdo que um pensamento se disponha a não ter a realidade sensível como seu
horizonte e objeto. Esse ar de estarrecimento e de aporia que se nota nas palavras do
filósofo talvez justifique por que ele acaba não se aprofundando em determinar que
objeto ou ordem do pensamento seriam esses. De fato, a conclusão aristotélica é apenas
negativa, no sentido que nega que o objeto da verdade em Parmênides seja a realidade
sensível.
Essa mesma perplexidade habita as páginas da Física de Simplício quando este
versa sobre a filosofia do Eleata. Num dado momento, o autor recorre às ponderações
de Eudemo, a partir da qual ele mesmo, Simplício, acaba elaborando uma interpretação
muito próxima daquelas em voga na imensa maioria da atual literatura secundária sobre
Parmênides, destacando que essa unidade e imobilidade poderiam se referir a uma
composição de contigüidade entre a unidade conceitual e inteligível, por um lado, e a
diversidade sensível, por outro. Menciona, por exemplo, existir o belo, mas também e
ao mesmo tempo muitas coisas belas. Lê-se então em Parmênides o jogo entre a
essência e as aparências. Mas o curioso é notar o que leva Simplício a essa
compreensão. É que essas unidade e imobilidade parmenídicas poderiam se referir
a isso”, porque, se assim não fosse, o próprio Simplício seria obrigado a exclamar, com
Aristóteles, “é loucura!”. Novamente, um tal teor de pensamento pareceria a ele,
Simplício, tão absurdo que simplesmente se recusa a acreditar que pudesse se tratar de
117
117
uma abstração assim o radical. E um sintoma dessa disposição encontra-se no fato de
o autor erguer essa interpretação com a clara intenção de ‘salvar’ Parmênides e prestar-
lhe um favor, uma vez que para ele o Eleata, na verdade, era apenas extremamente
inábil com as palavras. É como se Simplício ponderasse: ‘ele deve ter se expressado
mal, pode ser isso’. Chega a ponto de dizer que ninguém deve levar Parmênides a
mal se pronunciou palavras não-dignas de credibilidade, afinal, “parece que ele foi
enganado por elas”
278
. Ora, vê-se que a pré-condição para a interpretação ofertada por
Simplício consiste em desconsiderar a literalidade do texto, sendo-lhe ‘generoso’.
Portanto, em relação ao próprio Simplício, a sua interpretação consiste numa
conjectura, e não naquilo mesmo que veria nas palavras de Parmênides caso não as
‘elucidasse’ ou corrigisse.
É impossível deixar de pensar nas interpretações atuais que afirmam para a
filosofia de Parmênides um conteúdo semelhante ao elaborado por Simplício, muito
embora trilhem o seu caminho às avessas. Esse conteúdo do poema de Parmênides é
hoje defendido através da alegação de um grande rigor na análise do texto original,
enquanto que Simplício um autor que, mesmo que tardio, ainda pertence à antiga
tradição filosófica grega, tradição a que pertence também Parmênides –, foi capaz de
elaborá-lo por não respeitar a literalidade do poema, considerando que Parmênides não
escreveu exatamente o que escreveu, posto que o poeta e filósofo de Eléia, no fim das
contas, apenas escrevia mal
279
. Não deixa de ser uma ironia.
Pois parece mesmo que essa Antigüidade grega, para os casos dos filósofos que
não adotaram a mesma atitude de Simplício, via em Parmênides e nos demais Eleatas
aquilo mesmo que Aristóteles já observara ou intuíra. Confirmando e seguindo a
posição de Aristóteles, Sexto Empírico faz o seguinte comentário, em seu célebre
Contra os matemáticos:
Não existe [o movimento] de acordo com Parmênides e
Melisso. Com efeito, Aristóteles chama-os estáticos e não-
físicos: estáticos porque partidários do ‘estaticismo’
280
; e não-
físicos porque a natureza é princípio de movimento, que eles
rejeitam, afirmando que nada se move.
281
278
fai/netai te u(po\ tou/twn diayeusqh=nai.
Cf. DK A 28.
279
DK A 28 (SIMPLÍCIO. Física. 115, 11).
280
Tento ser o mais fiel e literal possível. Sexto Empírico não usa as formas negativas, mais comuns, para
dizer do i-mobilismo
(a)-ki/nhtoj)
e sim a positiva
(sta/sij)
, a que se refere ao ser/estar estático. De
qualquer forma, onde se lê “estáticos” e “estaticismo” lê-se, igualmente, “imobilistas” e “imobilismo”.
281
DK A 26 (Contra os matemáticos. X, 46).
118
118
Segundo esta consideração, não poderiam mesmo ter a phýsis como objeto do
conhecimento. Ainda dentre os antigos, refiro também Plotino que, em suas Enéadas,
afirma que o ente não é tomado por Parmênides em qualquer relação com as coisas
sensíveis
282
.
Hegel também menciona essa observação de Plotino em suas Preleções sobre a
história da filosofia, sendo uma das passagens que o filósofo alemão retira da Antigüidade
a fim de demonstrar a sua posição com elas concordante. Para Hegel, a escola eleata é
um mergulho na mais radical abstração que a história da filosofia já realizou, postulando
um modo de argumentação auto-suficiente que se afasta voluntária e decididamente da
realidade
283
, sem, contudo, negá-la: ela apenas não se presta ao conhecimento. Ao
comentar o célebre fragmento 3 do poema de Parmênides e, conseqüentemente, a
questão da identidade entre ser e pensar de acordo com o princípio lógico de identidade
proposto pelo Eleata, Hegel afirma:
O pensar produz-se a si mesmo; o que é produzido é um
pensamento. Portanto, o pensar é idêntico com o seu ser, pois o
pensar nada é senão o ser desta grande afirmação.
284
O que Hegel quer dizer com isso, ao fim e ao cabo, é que o ente de que
Parmênides trata na parte intermediária do poema não diz respeito a um ente sensível,
mas a um ente que é exclusivamente pensamento, idéia. O fato de aludir a uma
“produção” significa uma remissão ao método argumentativo, ou seja, ao modo de
operação desse pensamento, pensamento capaz de se estender a partir de si mesmo
através de deduções que têm que ser necessariamente aceitas como verdadeiras e, para
tanto, este modo de pensar precisa de um ponto de partida, do qual retire uma série
de outras asserções como conseqüências lógicas da proposição inicial. E o é
exatamente isso o que acontece na parte central do poema? Não são todos os
predicados do ente relatados por Parmênides conseqüências logicamente inevitáveis do
282
Enéadas. V, I, 8.
283
Hegel, ao analisar o pensamento de Zenão, tece o seguinte comentário em relação ao princípio de
identidade que, inaugurado por Parmênides, é o fundamento que determina o caráter principal da escola
eleática: “O nada é igual ao nada, não passa para o ser, nem o contrário; por isso, do que é igual nada pode
surgir. O ser, o um da escola eleática, é apenas essa abstração, este imergir-se no abismo da identidade do
entendimento.” In: HEGEL, G.W.F. Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie. Vol.1. Frankfurt am
Main, Suhrkamp, 1986. p.299.
284
Grifos meus. A “grande afirmação” mencionada refere-se à sentença pronunciada no fragmento 3 do
poema. Idem, ibidem. p.289.
119
119
ponto de partida o ente é, o não-ente não é’? Ou de ‘uma vez sendo ingênito...’ é
também isso, isso, isso e isso? E, de cada conseqüência daí derivada, outras tantas,
quantas se queiram, através do exercício contínuo do método? Mesmo que se afirme e
se possa defender com talento e pertinácia que essa proposição inicial tenha como
horizonte a realidade sensível, ainda assim é inegável que, a partir dela, o pensamento
trabalha sozinho, produz-se a si mesmo e pode, se assim o quiser, cerrar os olhos e
contemplar realidade nenhuma que não a própria realidade” desse pensamento. Trata-
se, pois, de um determinado modus operandis do pensar. Não seria, por exemplo, o
fragmento 8 do poema um modelo explícito desse exercício de autonomia? Esse modo
de pensamento tem o seu próprio ser e retira de si mesmo, sem depender de mais nada,
todas as extensões do seu conteúdo. É isso o que significa ‘autonomia’ quando refiro
que a autonomia do pensamento é a intenção filosófica principal de autores como
Parmênides e Zenão, por exemplo. E alfim tudo isso depende do princípio
fundamental dessa disposição filosófica: o princípio de identidade. Rígido e
intransigente, exclui a diferença e, mais que isso, o toque entre os diferentes. Não se
conjugam: ou bem se é, ou bem não. E assim por diante. É essa cisão que impõe o
caráter absoluto das afirmações em jogo no poema. Porque cisão é corte, tal como
significa o prefixo ab de absoluto, abstrato e abismo
285
. Pois é justamente esse abismo
que os Eleatas querem, o abismo que cinda radicalmente o que é da ordem do
pensamento abstrato do que é da ordem do pensamento sensível.
285
É significativo observar que a reavaliação das questões do ente e do não-ente realizada no Sofista de
Platão tem como argumento de base a interpretação de que a contrariedade e a negação em Parmênides
possuem caráter absoluto, o que justificaria não haver qualquer relação ou tensão dialética entre o que é e o
que não é, resultando daí a inevitável exclusão do não-ente por absurdo e auto-contradição. Com efeito,
até hoje a argumentação lógica que caracteriza o poema de Parmênides em sua parte central pode ser
considerada, relativamente à sua negatividade, um exercício do método posteriormente chamado reductio
ad absurdum. A proposta de um não-ente que é, compreendido como ‘não-ser por alteridade’, se torna
possível a partir do momento em que o Estrangeiro de Eléia demonstra que tanto negação como
contrariedade não devem ser pensadas como absolutos, mas relacionais. O que me parece interessante,
aqui, é uma espécie de dupla-troca entre aquelas que julgo ser as efetivas posições de Parmênides e do
Estrangeiro de Eléia, personagem do diálogo de Platão. A negação pode e deve ser concebida como
relacional se, de fato, tomarmos o sensível como objeto do discurso, daí o ‘não-ser como alteridade’, que
mais bem traduz a realidade da
phýsis; mas, por outro lado, o caráter absoluto do ente e do não-ente
parmenídicos não se invalida, a meu ver, com isso, pois para eles o critério empregado por Parmênides é
outro, posto que esse caráter absoluto não remete à natureza das coisas sensíveis e reais, mas sim à
natureza da própria lógica argumentativa do poema, à lógica do que denomina verdade. E, de fato, de
acordo com ela, ente e não-ente efetivamente não têm como se relacionar. Gostaria de frisar que não vai
aqui nenhuma crítica a Platão ou a Parmênides, mas apenas o reconhecimento de que é a diferença dos
seus interesses – para o Ateniense, o sensível e a relação que estabelece com o inteligível; para o Eleata, não
– o que no fim das contas legítima posições divergentes mas que, no fundo, configuram dois acertos. Cada
um, porém, em relação a um critério ou objeto distinto entre si. É aqui, acerca do critério que interessa ao
filósofo, que mora a divergência entre ambos.
120
120
Essa cisão será vista também por Nietzsche na obra A filosofia na idade trágica dos
gregos, em que afirma ser Parmênides o executor de uma filosofia fria no que dele
discordo inteiramente porque distante da vida, apartada da realidade, alcançando com
isso a certeza da lógica, mas perdendo, em contrapartida, as cores da existência. A
singularidade da verdade em detrimento da pluralidade do real. Logo de início, as
considerações de Nietzsche antecipam a sua conclusão principal, de forma breve e
categórica:
Parmênides tocou por um momento, provavelmente numa
idade muito avançada, na abstração mais pura, inteiramente
exangue e de todo subtraída a qualquer realidade.
286
Interessa-me, ainda, retornar a Aristóteles, porque em suas páginas parece
constar dois Parmênides distintos, o que talvez seja indício de que ao Estagirita não
tenha passado despercibida a cisão contumaz entre as partes intermediária e final do
poema. E isto por se ocuparem de objetos diferentes, tal como também proponho.
Naquela, o objeto é a unidade de um ente puramente conceitual e por isso limitado, uma
vez que circunscrito ao próprio conceito. E, na parte final, o objeto referir-se-ia à
multiplicidade dos entes fenomenais. Trata-se, pois, da clivagem que separa a
singularidade do ideal da pluralidade do real. E que, em Parmênides, distingue e separa a
verdade das opiniões. Assim, vê-se na Metafísica aristotélica um Parmênides que ora
sustenta uma unidade absoluta e imóvel, ora afirma uma multiplicidade sensível e
cambiante. Aristóteles deixa claro que essa ambigüidade remete-se, na verdade, ao
emprego de dois critérios distintos: segundo o conceito, a unidade; segundo o sensível,
a pluralidade:
Parmênides parece, de fato, referir-se ao uno segundo o
conceito e, Melisso, segundo à matéria; por isso aquele afirma
que finito é o uno e, este, infinito. (...) Parmênides (...), ao
considerar que, à parte do ente, o não-ente nada é, pensa existir
necessariamente o uno, o ente, e mais nada (...). Vendo-se,
porém, obrigado a obedecer aos fenômenos, é também
[obrigado] a aceitar que o uno segundo o conceito é múltiplo
segundo o sensível, pelo que propõe, ao contrário, duas causas e
dois princípios, o quente e o frio, como se dissesse o fogo e a
286
NIETZSCHE, F. A filosofia na idade trágica dos gregos. Lisboa, Edições 70, 1987, p.57.
121
121
terra, pondo, de acordo com o ente, o quente, e o outro de
acordo com o não-ente.
287
muito o que se observar nesta passagem. Primeiro, a clara distinção de dois
critérios, ambos adotados pelo Eleata: um, o do conceito, o que o faz afirmar uma
coisa; e, outro, o da sensibilidade, que o faz afirmar o seu contrário, pa/lin (pálin). Sim, o
seu contrário ou mesmo reverso, pois, de acordo com o conceito, afirma-se uma
unidade absoluta, uma unidade aniquiladora de qualquer diferença ou multiplicidade
(“existe o ente e nada mais”) e, por outro lado, de acordo com a ordem dos fenômenos,
afirma-se algo plural – dois princípios e duas causas. Ao falar de phýsis o discurso ganha,
portanto, o mesmo caráter dela: a pluralidade
288
. Essa diferença fica marcada no texto
aristotélico de forma dupla: explicitamente na alusão aos dois critérios, mas também de
forma sutil e implícita através do uso de advérbios e partículas que possuem valor
adversativo e de contraste. Mais do que essa contrariedade, Aristóteles também deixa
transparecer a hierarquia que vemos no poema, uma vez que considera que é pela
obrigação de tomar em conta os fenômenos que Parmênides ‘cairá’ na multiplicidade,
com que o Estagirita empresta ao trecho supracitado um certo sotaque do que é feito a
contragosto ou secundariamente. também uma clara contradição de conteúdo, pois,
de acordo com o conceito, o não-ente inexiste; de acordo com o sensível o o-ente
é algo igualmente sensível – o frio.
Ora, Parmênides, filósofo que manipula com afiada destreza o rigor do
argumento, não incorreria numa contradição tão simples: essa contradição’ significa
tão-somente uma remissão à radical cisão entre essas duas ordens: (A) a do pensamento
que pensa o ente que é o próprio pensamento, ordem esta que guarda a possibilidade da
verdade; e (B) a do pensamento que pensa os ‘entes’ reais e sensíveis, as opiniões. Vê-se
aqui, uma vez mais, a motivação e o fundamento que justificam a escritura das duas
partes do poema e a sua incisiva separação
289
.
287
Grifos meus. Metafísica 986b19-987a2.
288
E é isso que impõe à
dóxa
o seu caráter multifacetado: sua variedade, obstáculo ao conhecimento, é
reflexo e conseqüência da pluralidade do seu objeto, o
kósmos
.
289
Somente uma leitura desatenta do trecho mencionado justifica a sua interpretação como se fosse um
atestado de que haja, na leitura de Aristóteles a respeito do poema, a postulação de uma relação de
contigüidade entre o sensível e o inteligível em Parmênides. Os grifos que destaquei na passagem
cumprem a função de sublinhar como Aristóteles vê essas duas ordens, em Parmênides, como cindidas, de
modo que a ordem não-sensível não diz respeito a uma suposta ordem inteligível, que o inteligível só o
é em função da sensibilidade com que se relacione e compõe. Em Parmênides essa ordem, a abstração, opõe-
se à ordem sensível, daí a presença decisiva e estratégica, no texto aristotélico, dos adversativos, dos
contrastes e da idéia de obrigação cumprida a contragosto, o que o condiz com uma visão filosófica que
entre essas ordens o toque harmônico de contrários que se complementam. Em todo o pensamento
122
122
Com respeito a Parmênides e aos imobilistas em geral, a ordem dos conceitos é
a da verdade porque ela mesma, a verdade, é um conceito. Encontra-se aquele mesmo
raciocínio comentado anteriormente, de que o conhecimento, para cumprir-se
plenamente, adquirindo firmeza e estabilidade, exige igualmente algo inalterável e
estável, daí a idéia de imobilidade. Mas a imobilidade, para Parmênides, não é apenas
aquela que, para o próprio Aristóteles, pode ser pensada como a unidade de um
conceito inteligível que depende e é interpretação da diversidade do kósmos e sua phýsis.
O imóvel condiz com a questão da plena auto-identidade, derivando, portanto, de uma
auto-referência absoluta, a própria imobilidade do conceito tomado em relação a si
mesmo. Mas uma imobilidade absoluta exige proclamar a negação, igualmente absoluta,
do movimento. É isto que leva Aristóteles a considerar que os Eleatas trafegam por
uma dimensão do pensar que tem como tema qualquer outra coisa que não a phýsis,
porque esta, por princípio, é movimento
290
.
Importa, agora, realçar essa relação entre a idéia de imobilidade e a intenção de
obter um conhecimento efetivo porque estável, o que por fim determinará o teor e o
caráter do conceito de verdade. É que a necessidade e o desejo de alcançar esse
conhecimento constitui o fator que conduz os imobilistas a rejeitarem a phýsis e o
kósmos, não como falsos ou ilusórios, mas porque incognoscíveis, insuficientes para o
conhecimento, justo por serem mutáveis, variantes e provocadores de inumeráveis
interpretações, e não de um conhecimento invariável, firme e fixo. Conseqüentemente,
reside numa determinada compreensão do que venha a ser a phýsis a sua exclusão como
objeto daquele saber que almeja ao que foi conceituado por Parmênides como verdadeiro.
A filosofia poderá muito bem versar sobre ‘todas as coisas’ que compõem o cosmo
grego, desde Hesíodo, na poesia, e Anaximandro, na filosofia, essa idéia é bastante freqüente e sempre
assumiu, necessariamente, uma forma de reciprocidade, uma tensão harmônica. Por que em Parmênides
assumiria uma outra forma, a da mútua exclusão? É que, ao contrário dos demais, em que essa dualidade
– uma composição de opostos origina-se de um mesmo objeto de inquerimento, a realidade sensível, em
Parmênides o que ocorre de radicalmente novo é o fato de o seu pensamento dedicar-se a dois objetos
distintos: o real, parte final do poema, em que também ele apresentará essa dualidade; e o pensamento
verdadeiro, livre de qualquer dualidade. Acresça-se a isso, no caso específico de Aristóteles, se o trecho
citado pretendesse realmente identificar a relação entre sensível e inteligível, isso faria com que Aristóteles
estivesse afirmando que aquilo que ele mesmo pensa a respeito das relações sensível-inteligível e uno-
múltiplo já teria sido pensado exatamente da mesma forma por Parmênides, o que, com efeito, Aristóteles
jamais ousaria. Por isso, é importante observar que as interpretações atuais que defendem uma tal situação
de pensamento em Parmênides, sobretudo aquelas que afirmam que as partes do poema são
inconciliáveis, ainda que possuam o mesmo objeto, e que com isso pretendem fugir de uma platonização
de Parmênides, talvez até consigam escapar da platonização, mas incorrem, por certo e sem que o
percebam, numa aristotelização do poema.
290
Tal como Aristóteles pondera numa das citações que fiz anteriormente. Cf. DK A 25 (Do céu.
G1.298b14).
123
123
sensível e sobre o seu pretenso caráter unívoco, também Parmênides o faz, mas,
segundo ele, não poderá a filosofia elaborar, nesse terreno, um verdadeiro saber; se o
quiser, há de abandoná-lo.
Na Metafísica, após analisar historicamente o conteúdo de diversas filosofias
numa seqüência de menções aos mais diversos pensadores, Aristóteles observa esse
dilema da filosofia a ele anterior, dividida entre o desejo do conhecimento e a
impossibilidade de alcançá-lo. Por certo, pelo menos desde Xenófanes até Platão, é este
um dos temas e uma das aporias mais radicais da filosofia em seus primeiros tempos.
Esse dilema impõe a uma boa parte desses filósofos a incômoda pergunta ‘como é
possível conhecer algo se tudo se move e as coisas se alteram continuamente?’. Na
expressão de Aristóteles, esse dilema se verifica da seguinte forma:
Todos [esses filósofos], vendo que a phýsis se move e que a
respeito do que se altera nada se diz com verdade, julgam que
acerca de tudo o que se altera é de todo impossível dizer
verdade
291
.
É fácil notar que o corolário inevitável para quem assim julga e se mantém fiel a
essa posição consiste na negação da verdade e na impossibilidade do conhecimento. É
o caso extremo de Crátilo, por exemplo. Afinal, se tudo é phýsico e se a fu/sij não
possibilita conhecimento efetivo sobre o que é sensível e mutável, então é de todo
impossível conhecer e afirmar verdade. O eleatismo, contudo, parece ter feito o gesto
contrário ao de Crátilo: partindo da mesma noção, ou seja, da insuficiência da realidade
sensível para o conhecimento, trilhará o caminho oposto, da negação à positivação. Se
o real não permite conhecimento nem verdade, então ele deixa de ser objeto do
conhecimento. Necessário, pois, será inventar um objeto que o garanta. A verdade
conceitual de Parmênides é a solução para o problema: abandonando o natural e o
sensível, será – terá que ser – artificial e abstrata, criada pelo pensamento e enclausurada
dentro dele. Eis porque, no poema, o ente que acompanha a verdade é limitado
292
: o
ente é pensamento; pensamento artificial porque coincide com o modo de pensamento
lógico recém-criado. A verdade? A verdade é o próprio artifício. Obra, literalmente, de
gênio.
291
Metafísica. 1010a5-10.
292
B8, 26-32.
124
124
Vale dizer que conceber o pensamento parmenídico tal como os filósofos aqui
referidos o interpretam, acaba por nos dar a todos a impressão de que Parmênides seria,
de alguma forma, um pensador menor. Dentre os citados, Hegel é a clara exceção, uma
vez que com bons olhos o projeto filosófico da escola eleática em geral, ainda que
não chegue a compactuar com ele. Também Aristóteles, em certa medida, pois oscila
desde uma posição de interesse até a uma inegável perplexidadede diante da filosofia de
Parmênides como um todo, o que, por fim, parece ter inibido um debruçamento maior
de sua parte sobre a obra do Eleata
293
. Para os demais, em gradações distintas, o
sentimento de decepção é notório. No caso específico de Nietzsche, ocorre, mais do
que uma decepção, uma clara depreciação a respeito do valor do seu pensamento, que
chega a ser qualificado como uma aberração mental”.
294
O curioso é que esse
sentimento deceptivo vale também para Simplício que, não querendo admitir essa
decepção, apressa-se em ‘salvar’ Parmênides, inventando para isso um artifício tão
engenhoso e com tal eficácia que acabou por se convencer dele. Desnecessário dizer
que Parmênides não precisa dessa salvação, assim como não merece a decepção dos
demais. Convém deixar claro que esta linha de interpretação do poema de Parmênides –
que, obviamente, também apresenta as suas nuances e variações de autor para autor
tendo causado decepção, perplexidade e até mesmo desprezo em quem a identificou no
poema, no fundo não decresce a figura do Eleata em nada, muito menos macula o seu
valor ou deixa de reconhecer a incrível influência que exerceu sobre a história da
filosofia, mas colaborou decisiva e paradoxalmente para que essa mesma linha sofresse
tamanha resistência a ponto de praticamente desaparecer.
E fique aqui registrado, para quem a critica e resiste aos filósofos aqui
mencionados com a asseveração de que o ente parmenídico pode ser concebido
assim abstratamente pela incapacidade do intérprete de ver, direta ou indiretamente,
que a parte central do poema tem a realidade sensível como horizonte, que talvez a
asseveração oposta é que deva ser feita a esse crítico hipotético: afirmar esse horizonte
é que talvez nasça de uma resistência gratuita, resistência oriunda do pressuposto que
assim tem que ser simplesmente porque assim o quer. Essa crítica é que nasceria,
portanto, da incapacidade de perceber que se abre, com Parmênides, um novo domínio
de discurso e conhecimento, uma nova possibilidade do pensamento, hoje chamada
293
Nos casos de Xenófanes e Melisso, Aristóteles assume explicitamente o seu desinteresse. Metafísica.
986b25.
294
Op.cit. p.65.
125
125
ciência pura. E que ele, com essa crítica, talvez proceda exatamente como Simplício,
querendo salvar’ o que dispensa essa suposta salvação. Com isso, não estaria fazendo
mais do que projetar esse seu pressuposto no poema. Digo isso apenas para lembrar
que, se se quer discordar dessa linhagem interpretativa, que se faça, mas não por via
desse argumento, absolutamente insuficiente para tanto, posto que, com efeito, nem
argumento é.
126
126
O senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães
Guimarães Rosa, Grande sertão: veredas
V – A distinção entre
dokeîn
e
noeîn
: as opiniões dos mortais em
oposição à verdade. A inevitabilidade das
dokoûnta
e a
antropogônica cosmologia parmenídica
Se a parte central do poema expõe o que seja o pensar, noeîn, e o pensamento
noético, noéma, além de estabelecer como deve operar esse modo do pensamento para
que se oriente à verdade a conquistá-la, a parte final da obra parmenídica assume
como tarefa expor no que consiste o opinar, dokeîn, e definir o caráter e a natureza do
teor e do conteúdo das opiniões, dokoûnta
295
, realçando em que e como encontram a sua
base, o seu solo.
A partir de então o discurso da deusa continua a sua marcha, não mais segundo
a unidade e coesão de um lógos
296
, mas sim através de uma composição de palavras,
e)/pea (épea)
297
. Estas “palavras” cumprem o intuito de oferecer ao seu ouvinte a
verdade acerca de um “mundo enganoso”
298
, o cosmo das opiniões dos tombados pela
morte. E a verdade sobre as opiniões, antecipo, acusa a verossimilhança como a
possibilidade máxima desse modo do pensar, tal como já o considerara Xenófanes.
Imbuído da necessidade de elaborar um discurso acerca da realidade sensível e
acerca, também, de como geralmente a pensamos, Parmênides realiza a sua cosmologia
mirando justamente essa possibilidade máxima, engendrando acerca das ‘coisas naturais’
e dos aparecentes que devêm no cosmo um discurso tão verossímil quanto possível, sem
iludir-se, no entanto, de que possa ser, isto é, de que seja verdadeiro. Se a segunda parte
do poema apresenta como o Eleata concebe a sua idéia a respeito do verbo ser, esta
última parte dedica-se a desenvolver o que significa o verbo devir. Considerados verbos
mutuamente excludentes e por isso incompatíveis, Parmênides opera uma incisão entre
eles, um corte tão preciso e radical que fica estabelecido, através dele, uma insuperável
295
B1, 31.
296
Cf. B8, 50
297
Cf. B8, 52.
298
B8, 52:
ma/nqane ko/smon e)mn e)pe/wn a)pathlo\n a)kou/wn
.
127
127
diferença de significação, afirmando-os por completamente imiscíveis: não há, pois,
nem a possibilidade de que se misturem, nem tampouco formas intermediárias.
Também aqui é Parmênides o pensador que ele é, e, ainda que verse agora sobre um
outro modo de pensar à diferença do modo noético e essa alteridade funda-se
imediatamente no objeto de consideração que esse modo do pensamento elege –, será a
partir da perspectiva da verdade que ele analisará as opiniões dos mortais, a fim de que
se revele a verdade da inverdade das opiniões. Por conseqüência, também aqui vale o
princípio de que (A) é apenas e tão somente igual a (A), assim como (B) igual a (B), pelo
que, do mesmo modo que a con-fusão entre (A) e (B) é impossível, também assim o será
para ser e devir, como, de resto, para toda e qualquer palavra. O poema de Parmênides
é, do início ao fim, uma criteriosa investigação acerca do que cada possibilidade e modo
do pensar e do dizer significam.
É preciso pois dizer, agora, como dizem e pensam as opiniões. Fiel a essa cisão
irremediável entre o devir e o ser, tão fiel a ponto de que nem na estrutura textual e
formal do poema permite que ambos se toquem, reservando para cada um desses
verbos uma parte da sua obra, o que vemos ser desfiado no poema a partir de agora
não é mais uma argumentação lógica e criticamente construída que, como tal,
caracteriza-se pela apresentação dos fundamentos e das convincentes comprovações da
verdade do próprio discurso, afinal, não é assim que as opiniões ‘falam’ e pensam. O
que vemos nesta parte do poema é a exposição daquele conjunto de épea, não de
argumentos, lógoi; “palavras” que elaboram noções e conteúdos responsáveis pela
constituição de todo um universo opinativo, o kósmos das opiniões, o múltiplas estas
quanto a própria multiplicidade do kósmos de que costumam tratar.
A multiplicidade das opiniões é definida no poema por uma lacuna: a elas falta a
pístis, a fiabilidade só constatável na agora já ‘inesquecível’ alétheia
299
, posto que o
viajante, agora, ouviu e conhece, por intermédio do lógos da deusa, o que seja a
verdade. Deste modo, pístis é apresentada no poema anteposta a dokeîn, qualificando,
por um lado, a verdade e o ente, e, por outro, caracterizando as opiniões pela sua
ausência.
Apesar de não serem fiáveis nem confiáveis, as opiniões são consideradas
inevitáveis, porque isso que elas formam e concretizam, as dokoûnta, “têm que
299
Ver B1, 29-30.
128
128
opinativamente ser”
300
. Deparo aqui um problema inicialmente de grosso calibre para
esta minha interpretação, referente à presença do verbo ‘ser’ aplicado às opiniões.
Poderia justificá-la através da covardia do argumento de que ainda se trata, aqui, do
proêmio, momento em que o ouvinte da deusa mantém-se inexperiente quanto à
verdade; ainda que plausível, é consideração um tanto esquiva. Chamo atenção,
contudo, para a função que dokímos
assume neste sentido, emprestando valor adverbial
à sentença. Como o nome diz, o advérbio agarra-se ao verbo, matizando-o, definindo a
sua qualidade. Se as opiniões têm que ser opinativamente, reconhece-se que têm, sim, que
ser, mas segundo dokeîn: seu ‘ser’ possível é declarado pois a partir do opinar, de modo
a estarmos diante de uma concepção de ‘ser’ conforme as opiniões concebem e
empregam este verbo, o que obriga Parmênides a empreender a diferenciação da
sintaxe, do valor e de toda uma nova gramática do ‘ser’ na parte intermediária do
poema. O advérbio mostra, conseqüentemente, que esse ‘ser’ é equívoco, dual, misto
ou impuro, que uma contração entre ser e devir, fusão à qual a clareza lógica da
verdade pretenderá escapar. Sob a perspectiva desta última, dir-se-ia que as opiniões
não são, mas devêm, isto é, ‘são opinativamente’, o que condiz com a sua natureza vária e
oscilante. O destino das opiniões não é permanecer sempre idênticas, qualidade distinta
do verbo ‘ser’ consoante o modo da verdade, mas variar, tornar-se outras, alterar-se; do
contrário, não se trataria de dokoûnta, mas sim de alétheia.
O emprego do verbo ‘ser’ ladeado pelo advérbio em questão justificar-se-ia, por
parte de Parmênides, (A) pela necessidade de indicar o quanto elas mesmas, as opiniões,
têm a impressão que são, e (B) de acusar, portanto, como pensam o ‘ser’, modo este que
deve ser incontornavelmente exposto para que seja contrastado em seguida pela nova
concepão de ‘ser’ que a deusa ofertará, inaugurando todo um inaudito idioma. A essa
impressão que as opiniões têm de si mesmas, Parmênides refere ao declarar que se
encontram sempre persuadidas de ‘ser’, elas mesmas, verdade
301
, quando não o são:
afirmam ‘ser’ quando pensam devir
302
; crêem saber quando de fato opinam. As opiniões
300
B1, 31-32:
ta\ dokou=nta xrh=n doki¿mwj eiånai
. A tradução de dokímos
por “opinativamente”
atende o valor adverbial do termo e mantém intocada a sua pertinência etimológica relativamente às
dokoûnta
,
opiniões, de onde recai a minha opção por “opinativamente”, o que por sua vez indica que o ‘ser’
a elas condizente é um ‘ser’ conforme o pensam as opiniões.
301
Cf. B8, 39.
302
Além da decisiva função adverbial de
dokímos
em B1, 32, também o fragmento 19 favorece esta minha
interpretação, especialmente o primeiro verso, que alude a como os mortais entendem ‘ser’ a partir de
‘devir’: “Assim, segundo a opinião, tais coisas brotaram
(eÃfu)
e agora são/e depois, tendo crescido,
findarão;/os homens estipularam-lhes um nome, assinalando a cada uma.” Grifo meu. Note-se que
eÃfu
129
129
têm sim sua própria convicção, mas não convicção verdadeira não nelas pístis
alethés
303
. As opiniões ocorrem sim, inevitavelmente, mas o modo dessa ocorrência é
devir.
Dokímos assinala então o modo das dokoûnta, esclarecendo que elas são regidas por
dokeîn e não, por exemplo, por noeîn. Isto significa reconhecer de imediato que se
referem ao ‘achar’, ao opinar tão próprio a nós humanos. Claramente apartadas de
alétheia, as dokoûnta compõem a maciça e espessa dimensão da verossimilhança. Essa
espessura indica um universo cerradamente construído, a que todos nós nos
encontramos firmemente enredados e no qual assentamos fortemente frágeis raízes.
Todo esse afinco faz com que nós, homens, sequer intuamos o horizonte daquilo que o
poema apresenta e nomeia como verdade. Não operamos, decididamente, conforme
aquele modo de proceder o pensamento, tão exato e crítico quanto mostra o discurso
da deusa, discurso que é a própria alétheia. Decorre daí que esta, que não deveria ser
esquecida, nem sequer tem como ser lembrada se tão não-experimentada e
desconhecida.
Encontramo-nos tão radicalmente imersos e absortos nesse cosmo das opiniões
que não temos, decididamente, como livrarmo-nos dele; nem Parmênides, nem
tampouco a filosofia, do que é prova o fato simples de a obra do Eleata incluir,
também, uma filosofia perì phýseos. Surpreendentemente, o é aqui que Parmênides
reconhece um grande problema, afinal, como se diz popularmente, ‘o irremediável
remediado está’. O problema consiste antes no firme autoconvencimento que
possuímos de que esse “cosmo enganoso” não só é verdadeiro
304
como único, privando
a nós mesmos a possibilidade de experimentar outras regiões e modos do pensamento.
Parmênides tem a dizer que esse cosmo não é nem verdadeiro, nem único, pelo que
apresenta a sua concepção de ente e de verdade a fim de demonstrá-lo. Eis aqui o
motivo e a razão pelos quais a deusa anuncia ao seu ouvinte que ele deve aprender as
dokoûnta, conhecendo e experimentando, literalmente, “como as opiniões necessitam ser
opinativamente, tudo através de tudo atravessando”
305
.
Em torno a esse tà pánta – e assim o perì phýseos –, aqui expresso por um
eloqüente dia\ panto\j pa/nta, gravitam as opiniões, consoante um modo dual: (A)
(éphy forma pretérita do verbo
fu/w
(phýo) ‘brotar’, irromper’, ‘nascer’, ‘gerar , de onde deriva
igualmente o substantivo fu/sij (phýsis).
303
B1, 29.
304
Cf B8, 52 e B8, 39, respectivamente.
305
B1, 31-32.
130
130
convictas de si e de suas ponderações, elas forjam uma totalidade, o “tudo” da própria
esfera e dimensão que conformam, e (B) orbitam precisamente em torno a esse “tudo”,
a esse tà pánta, manifestando assim aquilo sobre o que opinam.
Convictas de si, convencidas de sua verdade e certeza, as opiniões dispõem de
um enganoso poder de convencimento, retirado precisamente dessa equivocada
convicção, a de que sejam elas firmes e certeiras, de modo a persuadirem a si mesmas
de que são verdade
306
. Constroem assim uma coerência interna que, de fato, não lhes
costuma faltar a despeito da sua pluralidade típica, conferindo-lhes, por vezes, toda
verossimilhança possível e tornando-as, da mesma forma, muito sedutoras apesar do
seu caráter variante. Conseqüentemente, é comum que dokeîn venha a ser considerado
verdadeiro e certo, quando apenas maximamente verossímil e freqüentemente incerto,
pelo que este verbo pode ser dito o verbo da verossimilhança por excelência. Neste
caminho, fazendo ou deixando funcionar o pensamento de acordo com o seu modo
dóxico, nós mortais sempre dispomos de uma determinada noção e convicção do que
seja a ‘vida’, o ‘mundo’ e tudo o mais sobre o que nos sentimos sempre aptos a
considerar, sobre o quê, portanto, as opiniões encontram prazer em opinar, defendendo
com característica convicção as posições que assumem.
Assim, ‘considerar’, ‘parecer-me que’ e outras formas verbais análogas
constituem, inicialmente, o traço basal de todo e qualquer conhecimento, tal como
Xenófanes pela primeira vez percebeu e Platão, igualmente, acatou. A filosofia grega
acabou por concentrar na idéia de dóxa e no seu verbo correlato, dokeîn, a experiência e
a condição desse modo de pensamento errante e de conhecimento geralmente precário
ainda que possivelmente verossímil. Sempre vinculado ao legado imposto por
Xenófanes, Parmênides utilizará a inexatidão acusada pelo filósofo de Colofão como o
grande distintivo da natureza desse pensar impossivelmente verdadeiro.
Deixo claro que o caminho do não-ente, tal como expus, também é não-
verdade, mas por motivos e condições outras é que ele não se faz completamente
verdadeiro, uma vez que, sendo noético, tampouco se confunde de forma decisiva com
o dóxico. São, também eles, modos distintos de operação e procedimento do pensar. O
elo comum que lhes possibilita o toque e, portanto, alguma possível (con)fusão e creio
tê-lo dito suficientemente fica por conta da impossibilidade da verdade e, portanto,
das suas respectivas circunscrições à verossimilhança, ainda que ao primeiro possamos
306
Ver B8, 38-39.
131
131
supor que o verossímil decorra e ocorra com mais freqüência e em maior grau. Neste
caso, são dois modos distintos de alcançar um mesmo – o verossímil.
O próprio modo com que Parmênides desenvolve a sua cosmologia denota esse
entrelace mais ou menos confuso, uma vez que pode ser considerada dóxica porque
não-verdadeira e assim constituir e ele sabe disso de antemão apenas mais um
conteúdo passageiro na história dos incontáveis equívocos travestidos de verdade que
se inscrevem na memória das hoje ditas ‘ciências da natureza’. Por outro lado, o
empenho em fazê-lo de acordo com a máxima verossimilhança, o esforço em alcançar
esse impossível, a saber, esgotar aquilo que é inesgotável, porque alfim o real motivo
pelo que o cosmo e as coisas sensíveis não dão conhecimento reside no fato de que não
se permitem conhecer de todo, não porque sejam dotados de vontade, mas pura e
simplesmente em função de sua pluralidade e movimento, enfim, o modo como abraça
esse compromisso e procede a essa empresa mantém o cariz noético da sua abordagem,
tentando pensar isso mesmo que, sim, muito a pensar, mas não verdade. Neste
ponto, Parmênides junta-se aos filósofos de sua época e também aos não muitos que
lhe foram anteriores, do que, por sinal, dá mostra o fato de a sua cosmologia apresentar
um gênero de literatura filosófica mutíssimo semelhante a quase qualquer outra do seu
tempo.
Por isso esse caminho noético é desviante, mas não inviável. Contra Cordero
tendo a manter a conjectura de Diels quanto ao terceiro verso do fragmento 6 porque,
ao contrário do que argumenta aquele, percebo nessa possibilidade muito mais
coerência com o todo do poema: não se deve esquecer de que é um caminho de
dignidade noética, um caminho a ser pensado e, como tal, é dito e declarado pela deusa,
também no verso 2 do fragmento 2, como hódos, tão hódos quanto os outros dois hodoí.
Não irei impor, pois, contradição à deusa da não-contradição
307
. Além disso, é um
enorme desafio incluir nessa lacuna um termo qualquer que inviabilize essa via, a do não-
ente, tão forte é o contexto do fragmento a esse favor. Talvez o mais sensato, uma vez
que estamos diante de uma lacuna, seja justamente não preenchê-la. Neste caso, ter-se-
ia novamente a impossibilidade de interditar a via em questão. Em todo caso, a posição
que exclui esse caminho costuma depender ainda de uma leitura do seu sexto verso que
me parece inadequada. E isto não porque eu me tenha decido em prol de panapeithéa em
desfavor de panapeuthéa. Tal como tive oportunidade de expor, ambas as versões
307
Além dos fragmentos 2 e 6, também o fragmento 7 nomeia o não-ente como ‘caminho’,
hódos.
132
132
legadas pela doxografia são inteiramente lícitas e completamente harmônicas ao teor do
poema de um modo geral; o que me parece incerto nessa leitura consiste justamente na
tradução de panapeuthéa por “incaminhável”, “não-trilhável” ou “inviável”. Parece-me
uma versão mais voltada para o vernáculo do que para o antigo grego, tradução esta
que portanto se empenha por inviabilizar a via aqui em jogo, uma vez que confere a esse
termo um sentido aceitável se assumido como figurado e conotativo, que os
sentidos possíveis ao termo aqui em questão são “insondável”, “não-cognoscível”,
“inimaginável”, “inexplorável” e até mesmo “impensável”. Transformá-los em
“inviável” abusa do uso coloquial e atual deste vocábulo em nossas línguas, em que
dizemos ser, por exemplo, ‘uma obra de todo inviável’, o que não quer dizer que haja
ou deixe de haver nesse contexto literalmente qualquer via ou caminho. Portanto, a
figuração e conotação de que esta versão se serve soa estranha ao idioma de sua origem.
O verbo que nos permite pensar a respeito do correto significado de panapeuthéa é
punqa/nomai (pynthánomai) e nenhum dos seus sentidos possíveis, salvo erro meu, indica
“caminhar”, “andar”, “trilhar” ou mesmo “atalhar” ou ainda “desviar”. De
“insondável”, “inexplorável”, “não-cognoscível” e mesmo “impensável” para “inviável”
acaba sendo um salto coincidente demais com o termo anteriormente adotado pela
deusa no verso 2, indicando “caminho”, “senda”, “via”. Fica a impressão de que a
escolha por essa tradução para panapeuthéa justifica-se pela necessidade interpretativa de
negar o hódos do verso 2, mais do que traduzi-lo em sua propriedade.
Isto posto, obedece o fragmento 6 justamente a essa tensão entre a distinção e a
identidade desses dois caminhos distintos mas igualmente não-verdadeiros: (A) ambos
são juntamente excluídos do caminho da peítho, o caminho seguido pela verdade; (B) essa
dupla exclusão dá-se, para cada um deles, por razões distintas: o caminho do não-ente
detém a prioridade neste caso, pois é o primeiro a ser rejeitado e, de fato, os motivos
para tanto haviam sido apresentados pelo fragmento 2, fragmento e rejeição já aqui
analisados
308
. Na seqüência fundamenta a deusa porque o caminho das opiniões deve
ser deixado de lado: “desta primeira via de investigação afasto-te; em seguida, porém,
(também) daquela em que mortais que nada sabem erram”
309
.
Esta passagem constitui, por sinal, um dos principais argumentos para que se
anteponha o fragmento 2 ao 6 nas edições críticas a respeito do poema. Posto que essa
308
Ver B2 e B6, 1-3.
309
B6,2-4. “Errar” assume aqui o sentido daquele que erra por um caminho, movendo-se sem direção
definida.
133
133
passagem exige que a refutação do caminho do não-ente tenha se dado anteriormente,
não só porque declarado como o primeiro de que o ouvinte da deusa deve ser afastado,
mas princialmente porque, ao anunciar ambas as exclusões em seus quatro primeiros
versos, nada mais desenvolve ou apresenta em relação a este caminho, irrompendo
porém a dissertar a respeito das opiniões dos mortais a partir do seu quarto verso. Os
argumentos pela sua eliminação estão incluídos no que se convencionou ser o
fragmento 2 da obra original.
O conteúdo do fragmento 6 oferece uma descrição acerca da típica ambigüidade
das dokoûnta, que, oscilantes, afirmam ora isso, ora aquilo, pelo que os tocados pela
morte são definidos como di¿kranoi(díkranoi)
310
literalmente, os de duplo crânio”.
Ambíguos e bicéfalos, por isso mesmo conformando hordas e hordas de indecisos
311
,
os mortais são igualmente declarados aqueles “que nada sabem”.
Trata-se de mais uma reutilização de uma expressão homérica em meio ao
poema. Segundo Homero, os homens sabem e conhecem muitas coisas, mas nem por
isso deixam de ser os de que nada sabem
312
. Não estamos, certamente, diante de uma
contradição do poeta, mas sim da percepção que esse saber humano deve ser afirmado
entre aspas, justamente por ser um conhecimento opinativo. Os mortais nada sabem, o
que não os impede de possuírem várias opiniões. Este o motivo, ou um dos, por sinal,
pelo que nada sabem. Porque os homens nada sabem efetivamente, o poeta clama às
musas pelo saber pois, tal como alegoricamente no poema de Parmênides, também em
Homero um conhecimento fiável pode ter procedência divina. Mas o que quer o
poeta saber? ‘Tudo’, responde ele. Reconhece-se, portanto, também em Homero o
tema de tà nta como aquele sobre o qual recai o pensamento. Saber tudo, eis a
disposição homérica, que agora por Parmênides é transformada em saber o todo, o
todo pleno e inteiro de alétheia, uma vez que a infinitude e inesgotabilidade do
conhecimento dóxico encontra o seu lugar e fundamento exatamente onde se acha
baseado nas intermináveis considerações acerca de pánta e de sua diversidade
cósmica.
Tomando parte nesse cosmo, nosso pensamento orienta-se inevitavelmente a ele,
fazendo-o, contudo, sem qualquer disposição crítica. É à sua totalidade, esta sim
310
B6, 5.
311
B6, 7. Importante realçar que, em contraste com essa indecisão dos mortais, o caminho do ente
caracteriza-se pela ação decidida do pensamento verdadeiro e das divindades que o mantêm firme e teso.
312
Cf. Ilíada, II, 484-485.
134
134
composta de incontáveis, múltiplas partes, que nós mortais, bicéfalos, contínua e
repetidamente consideramos, tomando o nosso pensamento igualmente incontáveis
caminhos, muitas vezes contraditórios, pois cada um deles sempre nos será um
caminho “de ida e volta”
313
, dada a oscilação, a incerteza e a indecisão características a
esse ‘considerar’, dokeîn, o que faz dessa atividade um verdadeiro trabalho de Sísifo, uma
tarefa sem sentido e repetidamente naufragada, posto que jamais se completa. Entende-
se a preferência de Parmênides por Odisseu, o herói que consegue tornar à casa,
cumprindo o seu propósito, tal como o Eleata pretende cumprir aquele que deveria ser
pretensamente o propósito de toda e qualquer filosofia. Por isso o pensar dóxico dos
mortais perambula sem orientação definida, cega e surdamente, estupefato numa
palavra: erra
314
, afirmando sem constrangimento, e muitas vezes sem o perceber, o
contraditório conteúdo dos seus “pareceres” e suposições, chegando a tomar como o
mesmo o que é completamente distinto e até incompatível: ser e não-ser, o mesmo e o
não-mesmo, movendo-se distraída e dispersamente por uma via do pensar que funciona
semelhantemente a um palíndromo, isto é, valendo-lhe o mesmo quando de trás pra
frente e quando de frente pra trás
315
.
Tamanha desorientação resulta como conseqüência inevitável de uma distraída e
despreparada perplexidade, a amechaníe
316
pela qual a deusa indica o desajeitado modo de
os mortais pensarem. Estes costumam manejar o pensamento apenas e tão-somente
pela sua utilidade, pelo que ele lhes pode trazer ou tirar vantagem. A falta de jeito e o
despreparo ora mencionados mostram-se como tais se comparados ou postos em
relação à possibilidade extrema do pensar, noeîn. O pensamento desajeitado dos mortais
é como uma espécie de atrofia sofrida por essa possibilidade noética, uma degeneração,
daí essa amechaníe impeli-los à errância do pensamento – plakto\n no/on
317
.
É importante realçar o quanto a argumentação lógica e crítica inaugurada na
parte central do poema de Parmênides é semelhante a uma operação maquinal,
funcionando regular e precisamente como o tique-taque de um relógio. Em
contrapartida, as opiniões dos mortais o aqui justamente denominadas como algo
‘desmecanizado’, que não funciona bem, sem método nem direção, um ir e vir
313
B6, 9.
314
Ver B6, 6-7.
315
Parmênides utiliza
pali¿ntropo/j
(palíntropos) para caracterizar esse caminho, daí minha lembrança ao
palíndromo. Ver B6, 8-9.
316
B6, 5.
317
B6, 6.
135
135
desencontrado. Com isso, nós mortais encontramos dificuldades até mesmo na
operação e conseguimento de coisas as mais simples, tais como aquele desejo de
utilidade e vantagem para o qual costumamos instrumentalizar nosso pensamento, mas,
até para isso, mostra-se ele no fundo despreparado, desinstrumentalizado, inepto
amecânico.
Muitas vezes impulsionadas por vantagens e proveitos, as opiniões opinam
consoante suas preocupações e esperanças. Não é mero acaso a insistência de
Parmênides com o termo brotoi/(brotoí), mortais. A morte e a mortalidade são, em larga
medida, o mesmo que a nossa condição de vida, fazendo-se o fulcro central pelo que
desejamos vantagens e proveitos, assim como pelo que colecionamos preocupações e
medos. Esses, todos s, que terão um dia o sangue plenamente coagulado eis o
sentido literal do termo broto/w (brotóo), coagular o sangue’, ‘besuntar com sangue’ –,
os que sempre sangram pela morte, preocupam-se e temem, afinal, como poderia deixar
de sê-lo? Essa condição ocorre aqui a propósito embora possa causar espécie: é que,
decididamente afetados pela morte, os mortais têm o seu pensar condicionado por ela.
No que pensamos, preocupamo-nos, zelamos e cuidamos de nós e, sem que notemos,
temos esse pensar sempre comprometido com o automatismo dessa orientação.
Ocupamo-nos e preocupamo-nos com o nosso corpo e com o seu estado, almejando,
se não vencer a invencível morte eis novamente Sísifo –, ao menos resitir
maximamente ao perecimento. Trata-se de disposição e condição absolutamente
interferentes quanto à natureza do pensar de acordo com a ‘norma’ pela qual pensam os
vencidos pela morte, e uma tal situação não escapará à deusa
318
, uma vez que
reconhecerá essa corporeidade e seus condizentes como elementos que predeterminam
o modo como predominantemente pensamos: doxicamente, “opinativamente”
319
.
Diante da não-liberdade vivenciada por esse pensar dos mortais, sobressai o
libertador caráter do pensamento noético-verdadeiro, no sentido que deve superar a
natureza desse corpo, phýsis
320
, e o teor de nossa condição, bem como nosso pensamento
“muito retorcido”, exatamente como retorcidos são os próprios membros do nosso
corpo
321
: para pensar a verdade é necessário empreender a hercúlea tarefa de superar
318
B16.
319
Ver B1,32:
doki¿mwj
.
320
B16, 3.
321
Ver B16, 1:
poluka/mptwn
.
136
136
esse incontornável cunho frone/ei mele/wn fu/sij
322
que a natureza nos impõe e sob
o qual experimentamos a nossa mais radical impotência; faz-se necessário, pois, arriscar
a proeza de não pensar apenas a partir dos nossos membros e vísceras, mas isso é
justamente o que nos sói acontecer. A sobrevivência, o medo, a preocupação, a doença
e também o quanto nos ocupamos em evitá-los, perseguindo o que a antiga ética grega
costumou chamar
eu)daimoni¿a (eudaimonía), ‘bem-viver’, enfim, tudo o que compõe e
em que consiste o nosso interesse pela vida modula o nosso pensar.
Esta questão oferece-nos, também, mais uma porta de acesso para que tentemos
compreender os diferentes motivos que fazem do caminho do pensamento noético
para a verdade uma via assinalada pela imortalidade, revelando uma vez mais o quanto a
parte final do poema é necessária à compreensão do seu conjunto e também o quanto
ela se interrelaciona harmonicamente com as demais partes da obra. Do contrário,
temos um Parmênides mutilado.
É de resto aterrador como a literatura especializada parece fazer questão de
ignorar praticamente por completo esse conteúdo do poema parmenídico, que desta
forma nos fala de como as condições físicas e corporais interferem na qualidade e
natureza do pensar. E quem pense ainda hoje que essa idéia de condicionamento é
exclusiva do pensamento contemporâneo. Não não o é, como reaparecerá com toda
a força na filosofia de Empédocles, cujo valor e conteúdo não podem ser medidos a
contento se não relacionados com esta sua herança parmenídica. Mas a literatura, claro
está e não peço perdão pela ironia tem olhos para a pretensa ‘metafísica da
verdade’ de Parmênides, não se furtando por vezes a confessar não saber por que
motivo o Eleata compôs esta última parte do seu poema. Confissão honesta, sem
dúvida, mas que deveria impeli-la a procurar sabê-la, não a desprezá-la
323
. Afirmar haver
uma ontologia em Parmênides parece-me bem mais razoável, mas apenas no seu
322
B6, 3.
323
Menciono, como um dos exemplos dessa interpretação e dessa perplexidade, os comentários de Kirk,
Raven e Schofield, para quem a última parte do poema descreve o esforço das opiniões em fazerem o seu
melhor; por outro lado, declaram que, por mais claro que seja este o ato de Parmênides na parte final do
poema, não compreendem o que efetivamente o teria levado a escrevê-la, permanecendo a sua inclusão no
poema um “mistério”. KIRK, G. S., RAVEN, J.E. e SCHOFIELD, M. The presocratic philosophers. Cambridge,
Cambridge University Press, 1983. pp.254-262. Esse “mistério” mantém-se um verdadeiro enigma também
para algumas das mais célebres e influentes interpretações do poema, tais como as de G.E.L. OWEN (Logic,
science and dialectic: collected papers in greek philosophy. Ithaca, Cornell University Press, 1986), BARNES, J.
(The presocratic philosophers. 2 vols. Londres, Routledge and Kegan Paul, 1979; Early greek philosophy.
Harmondsworth, Penguin books ltd., 1987) e CORDERO, N.L. (“Les deux chemins de Parménide dans les
fragments 6 et 7.” Phronesis 24 (1979) pp.1-32; By being, it is: the thesis of Parmenides. Las Vegas, University
of Chicago Press, 2004).
137
137
sentido estritamente literal, o de apresentar um discurso, lógos, sobre o ente, óntos. Mas
não é o que geralmente sucede quando vemos referências à ‘ontologia parmenídica’,
fazendo o Eleata caber no bolso do que esta terminologia acabou por significar
historicamente.
De volta ao fragmento 6, a amechaníe dos mortais resulta na formação de “horda
indecisas”, acríticas
324
. Distintos pela sua indecisão, não tendem os mortais a revelar sua
inconsistência e, assim, o que lhes vale como certo ou pretensamente verdadeiro
constitui um valor cambiante, daí o uso do particípio perfeito valido”, neno/mistai
325
,
indicando que esse valor ora é reputado isso, ora aquilo. Em virtude dessa indecisão
com que a deusa define o pensamento dos mortais, uma única coisa queda-se decidida:
a incessante mutabilidade desse valer. Assim valem-lhes como “o mesmo e o não-
mesmo”, por exemplo, “ser e não-ser”
326
.
Dessa forma, ao atacar e repelir tanto o caminho do não-ente como a via das
opiniões dos mortais no fragmento 6, a atitude da deusa deixa claro que uma tal
necessidade consiste no reconhecimento de que ambos representam uma ameaça à
verdade, posto que dispõem de uma força e de um poder que não podem nem devem
ser desprezados pois, do contrário, o ouvinte da deusa pode sempre e continuamente
deixar-se levar por eles, isto é, pelas suas respectivas e distintas, porém igualmente
potentes, forças de persuasão.
A possível ação perniciosa que essas forças podem exercer sobre o pensamento
noético para a verdade, ainda que não seja este o único motivo para justificá-lo, bastaria
por si para legitimar a necessidade de ter sido escrita essa terceira e última parte do
poema, correspondendo então à necessidade de denunciar e demonstrar a não-verdade
como não-verdade, posto que, em caso contrário, não haveria como expor do que a
verdade se diferencia para ser verdade. Além disso, se não se esclarecesse o viajante a
respeito desses dois lados do não-verdadeiro, como poderia ele convencer-se de sua
escolha por alétheia? Mais importante do que isso, ainda, é a observação de que se a
deusa não expusesse a verdade sobre a inverdade, expondo suas potências e perigos,
bem como o modo como procedem e pelo que conseguem passar por verdade embora
324
B6, 7:
aÃkrita fu=la
.
325
B6, 8.
326
B6, 8-9. Sobre o conteúdo do fragmento 6 e, mais especificamente, sobre o pensamento dos mortais
como o pensar da ‘reversibilidade’, indico o capítulo “Die allgemein-menschliche Grundüberzeugung” do
livro de Klaus HELD: Heraklit, Parmenides und der Anfang von Philosophie und Wissenschaft: eine
phänomenologische Besinnung. Berlim/Nova Iorque, Walter de Gruyter, 1980. pp. 483-493.
138
138
não sendo, não estaria ela, alétheia, devidamente protegida ante esses adversários. Por
isso a deusa insiste, em diversas passagens
327
, em alertar ao seu ouvinte acerca do perigo
que esses dois caminhos lhe representam, porque somente a inverdade pode seduzi-lo a
ponto de desviá-lo da via em que se constrói e se realiza o verdadeiro saber.
E por que é tão necessário à deusa alertar o viajante acerca desse risco
continuamente iminente? Precisamente porque possuem essas duas formas da não-
verdade, como aludido, o seu próprio poder de convencimento que, a julgar pela
insistência da deusa, nem de longe deve ser subestimado. No caso específico dos
mortais que pensam phrenética e doxicamente, acusando este modo de pensar uma
deficiência de sua própria e latente capacidade noética – plakto\n no/on
328
–, esta
condição acaba por conferir às opiniões, nem que seja pela insistente repetição, uma
força de coesão e uma aparente coerência interna que lhes imprimem, opinativamente,
uma determinada verossimilhança: trata-se aqui do tão perigoso quanto poderoso vigor
do hábito multiexperiente”, eÃqoj polu/peiron
329
, que nos obriga de modo violento
330
àquele caminho da indecisão “amecânica” dos mortais, tão avesso e incompatível à
verdade, forçando-nos a “vaguear sem escopo o olhar e ressoar ouvido e língua”
331
.
Como poderia se defender dessas ameaças o ouvinte da deusa, se não fossem
pormenorizadamente expostas e decompostas em seu conteúdo e qualidade? Com
efeito, é mesmo necessário que ele se deixe instruir muito bem e precisamente acerca
das opiniões dos mortais, tanto quanto sobre a própria verdade, visto que uma tarefa
não se cumpre sem a outra
332
. A estratégia de Parmênides é sempre a do confronto e do
contraste, primeiro, ante o caminho do o-ente, especialmente visível nos fragmentos
2 e 8, e, depois, ante o enganoso cosmo das opiniões.
Através do hábito e da repetição as opiniões conquistam sua força e poder.
Determinam, pelo seu volumoso conjunto, um kósmos próprio, predeterminando o que e como
327
Consultar B1, 28-32; B2, 1; B2, 6; B6, 2-5; B7, 2-3; B8, 51-52; B8 60-61.
328
B6, 6.
329
E se “multiexperiente” revela-se-nos esse hábito um costume que se baseia na experiência sensível, pelo
que novamente se deve reconhecer o quão danoso é, para o pensamento interessado na verdade conforme
concebida por Parmênides, deixar-se guiar pela sensibilidade. B7, 3:
eÃqoj polu/peiron o(do\n kata\
th/nde bia/sqw
.
330
Que o se menospreze a violência contida no termo
bia/sqw
(biástho), proveniente de
bi/a
(bía), a
mesma força capaz de prender Prometeu ao seu rochedo no Prometeu acorrentado de Ésquilo. Note-se,
também, que é deste termo que se origina etimologicamente essa força sensível a que chamamos vida,
bi/oj
(bíos). Prometeu, acorrentado por ela, humaniza-se e desdiviniza-se num único e mesmo ato; ganha,
assim, força de vida humana, uma vez que os deuses não participam de
bi/oj
(bíos), mas tão somente de
zwh/
(zoé).
331
B7, 4-5.
332
Cf. B1, 28-30.
139
139
todos opinarão, reproduzindo ad infinitum, como se fossem espelho ante espelho, o
conteúdo do seu’ pensamento, pelo que as idéias do modo opinativo do pensamento
não costumam ultrapassar a condição de uma variada reverberação de um (mais ou
menos) mesmo, indecisas, imprecisas e cambiantes que são até na sua identidade. Assim,
não são formadas as dokoûnta por cada um de s, não exatamente, mas crescem e se
apoderam de nós através de um mundo inteiro de opiniões, alcançando deste modo a
incomensurável ressonância de um eco que a si mesmo avoluma. É precisamente contra
essa força que atua alétheia, através da consciência que o pensamento adquire para si ao
tomar conhecimento que ele, se opinativo, nem a si mesmo pertence, tamanha a
apropriante força das dóxai. Elaborar o conceito de verdade representa, para
Parmênides, o quanto o pensamento necessita aprender a pensar contra si mesmo,
contra o predomínio do que nele é apenas hábito.
Trata-se, portanto, de reconhecer que um fundamento para que as dokoûnta
sejam opinativamente; há, pois, um fundamento para o aparecer de um parecer que ocorre de
forma inevitável
333
, pelo que se torna estritamente necessário aprendê-las
334
. Este
fundamento repousa precisamente sobre a violência de um pensar acostumado a si
mesmo, preguiçoso, cuja força indolente não pode ser jamais menosprezada. Também
por isso são propostas por Parmênides como inevitáveis, porque elas, pensadas
consoante o predomínio de dokeîn, consideram tudo opinativamente
335
. Neste
contexto, ‘tudo’ significa pánta em sua propriedade, e a ele pertence o homem como
um dos incontáveis viventes que nele devêm. Como nos seria possível, de fato, o
considerar essa totalidade mundana em que vivemos? Por isso Parmênides não o recusa
porque irrecusável. Dokeîn e o que ele costuma considerar está incluído em sua obra,
não excluído, mas essa inclusão tão inevitável quanto necessária não ilude o Eleata
quanto à sua possível verdade; excluído está ele, pois, apenas e tão-somente da
possibilidade do verdadeiro, que a verdade nada pode ter de sensível e mundano, daí
as divinais alegorias que realçam e atestam sua o-mundaneidade ao longo de todo o
poema. Com efeito, uma trilha apartada da mortalidade das opiniões
336
.
Dedico aqui um comentário que julgo assaz importante a respeito de uma das
correntes de interpretação mais aceitas e, diga-se de passagem, mais bem
333
Ver B1, 31-32.
334
B1, 29-30.
335
B1, 31-32.
336
B1, 27.
140
140
fundamentadas no que tange à atual literatura secundária sobre o poema. Refiro-me aos
trabalhos de Nestor Cordero, em que se encontra a idéia de que, sendo a verdade e as
opiniões modos de pensamento, têm igualmente em comum aquilo sobre o que versam:
a realidade sensível. Segundo essa interpretação, a diferença reside no que talvez se
possa chamar modulação: discursar sobre o real, tal como o faz Parmênides ao considerar
o ente na parte intermediária do poema, é dizê-lo verdadeiramente, é dizê-lo no modo da
verdade; ao passo que as opiniões, tratando deste mesmo real, difeririam da verdade por
dizê-lo desde um erro, nomeada e principalmente, o de confundir ser e não-ser. Ora, a
referida interpretação respeita, muito adequadamente, a argumentação rigidamente
lógica de Parmênides, adotando-a também para desenvolver a sua própria
argumentação. Mantendo, pois, a questão dentro desse mesmo domínio, ergue-se uma
pergunta inevitável: se opiniões e verdade tratam do mesmo, mas apenas de diferentes
modos, uma desde o próprio e, a outra, desde o impróprio, temos que, logicamente, as
opiniões são uma possibilidade e não uma necessidade, no sentido de serem
inevitáveis
337
. O problema que aqui se põe é que no proêmio as opiniões são declaradas,
mais do que possíveis, necessárias
338
. Necessidade e possibilidade são, logicamente,
muito distintas. E se a precisão lógica e terminológica de Parmênides deve ser
respeitada e é válida para todos os casos, também o é para este. Não é uma filigrana
nem uma bizantinice. Dentro do contexto em que se apresenta, é questão principal.
337
Diga-se a favor de Cordero que a sua posição, ao contrário da minha, considera que o texto do poema
situa as opiniões como possíveis, não como necessárias. Tive a feliz oportunidade de dialogar
pessoalmente com o professor Cordero a esse respeito. O autor baseia a sua posição no verso final do
fragmento 1 (B1, 32), em que
xrh=n
(chrên), que indica o que é necessário, apresenta-se no imperfeito,
sendo, portanto, uma forma passada. Segundo esse argumento, as opiniões teriam sido necessárias e,
agora, não mais, após o anúncio da verdade. Entretanto, essa mesma necessidade é referida outras duas
vezes no poema. Uma sob a sua forma verbal no presente do indicativo,
xrewÜ
(B1, 28), e outra em caráter
indireto, através de um imperativo,
ma/nqane
(“aprende”; B8,52), pelo que a deusa ordena e exorta o seu
ouvinte a aprender as opiniões dos mortais. Frente a essas duas outras passagens não vejo, sinceramente
e apesar da pertinência da observação de Cordero –, como não considerar as opiniões como necessárias
segundo o texto de Parmênides. Além disso, a forma imperfeita aludida pelo autor pode ser
tranqüilamente traduzida para o presente do indicativo das nguas modernas, uma vez que o imperfeito
grego podia ser utilizado, em certas circunstâncias gramaticais, com valor presente e não passado. E
parece ser esse o caso da passagem em questão: no verso final do proêmio, o imperfeito
xrh=n
relaciona-se
com um verso anterior, quando o “ser necessárioassume sua forma presente
xrew/
, como mencionados
acima. Ambos referem-se às opiniões. Segundo Smyth, é este o caso mais exemplar do uso do imperfeito
com valor de presente, quando a repetição de formas verbais que refiram a um mesmo objeto ou
sujeito, indo a segunda destas formas para o imperfeito. Ora, é exatamente esse o caso dos versos 28 e 32
do proêmio acima citados. Curiosamente, essa construção é chamada “imperfeito filosófico”. Há, ainda,
um outro caso em que o uso do imperfeito remete ao tempo presente no grego antigo: para os verbos cujos
significados são de dever ou obrigação. Mais uma vez, é justamente este o caso, visto que
xrew/
indica o
que é necessário, isto é, obrigatório, inevitável. Vê-se, assim, que a construção gramatical em questão na
passagem analisada inclui justamente os dois casos em que o imperfeito grego assume, paradoxalmente,
valor de tempo presente (SMYTH, H.W. Greek Grammar. Harvard University Press, 1956, p.426).
338
B1, 28-32.
141
141
Deriva daí a minha posição em defender que opinião e verdade têm em comum,
efetivamente e apenas, o dado de serem modos ou formas de pensamento distintas,
cuja distinção provém justamente do fato de que o objeto a que se dedicam não lhes ser
comum: a opinião é discurso sobre a realidade sensível; a verdade, não. Pelo mesmo
motivo, que logo voltarei a abordar, a verdade é que é possibilidade, enquanto as
opiniões são inevitáveis; aquela, pode ocorrer; estas, têm que ocorrer e sempre ocorrem.
Imperativo é, pois, que a verdade seja anunciada e, uma vez anunciada, que
manifeste uma força de persuasão tão irresístivel a ponto de fazer frente e não ceder
aos outros dois caminhos de que ela decididamente difere.
É preciso reconhecer conseqüentemente a enorme força diante da qual a
verdade parmênídica se confrontada, diante, portanto, da sólida e maciça
constituição do enganoso mundo das dokoûnta, que, como tal, é definido pela deusa
literalmente como um kósmos ou, mais exatamente, um diákosmos, isto é, um cosmo
construído processual e continuamente através da reiterada repetição de seus valores e
convicções, e que deve ser descrito e exposto com o máximo de exatidão, de modo a
garantir ao viajante, que ora entra em contato com a verdade, que ele jamais venha a ser
superado e ultrapassado por nenhum dentre os mortais de perecível opinião
339
. Declara-
se expressamente nesta passagem, por que as opinões têm que ser obrigatoriamente
conhecidas. Um diákosmos que é paradoxalmente firme em sua inconstância, além de
coeso e coerente até os máximos limites do verossímil, mas impossivelmente
verdadeiro.
O conhecimento e o reconhecimento acerca da natureza das opiniões e de como
se comportam inclui a demonstração de como elas se corporificam e se fortalecem,
através do que consolidam seu cerrado e acirrado mundo. Parmênides reserva-nos aqui
uma saída surpreendente para esta questão, tal como venho aqui progressivamente
alinhavando: a densa espessura desse tão encorpado cosmo compõe-se de “palavras”,
e)pe/wn
340
, palavras que revelam sua natureza enganosa e traiçoeira
341
, mas tão-somente
àquele que pode fitá-la desde a perspectiva da verdade. É essa a perspectiva que não se
pode abandonar para que o conhecimento verdadeiro nem se corrompa, nem possa ser
superado, tal como afirma categoricamente a deusa nos versos 60 e 61 do fragmento 8.
339
B8, 60-61.
340
B8, 52.
341
B8, 52.
142
142
Eis a primeiríssima lição
342
que se deve aprender a respeito das opiniões,
nomeadamente a de que adquirem sua força e consistência através de palavras, através
da insistente repetição de seus conteúdos. Tais palavras são imediatamente nomeadas
morfai/ (morphaí)
343
, pelo que se acresce a essa força a sedução da beleza, na medida em
que esta qualificação indica tratar-se aqui de belas, bem formadas palavras
344
. Um tal
acréscimo torna as dóxai não ainda mais fortes como atraentes e sedutoras. Em suas
ponderações acerca de tudo forjam os mortais as suas opiniões por meio de palavras
belas, de modo a embelezar e tornar sedutor aquilo que afirmam e estabelecem
345
.
E o que essas palavras opinativas tão belamente estabelecem converge
precisamente em favor da dualidade e oposicionalidade característica de pánta e sua
phýsis, motivo pelo qual as opiniões dos mortais engendram uma forma de
conhecimento igualmente dual, isto é, equívoco
346
e ambíguo
347
, o contrário exato do
caráter unívoco do conhecimento na ordem de alétheia.
Um desses conhecimentos em si mesmo equívocos, contraditórios pelo
menos sob o criticíssimo e imperioso olhar da argumentação lógico-verdadeira –, é
declarado pela deusa como ou) xrew¯ n
348
, “não-necessário”, o que no horizonte da
filosofia parmenídica significa afirmar que não possui nem vero fundamento nem a
342
B8, 51-52: a afirmação da necessidade desse aprendizado constitui, literalmente, a primeira asseveração
da deusa tão logo inicia sua exposição sobre as opinões dos mortais, imediatamente após terfindado “para
ti fiável discurso (lo/goj) e pensameto acerca da verdade”.
343
B8, 53.
344
Não comungo inteiramente com a tendência predominante na literatura especializada em traduzir este
termo por “formas”, “aparências” ou mesmo “corpos”. É muito difícil encontrar, em meio a essa literatura,
uma alternativa a esses vocábulos, formando-se assim um extenso rol que a eles adere, como por exemplo
CASSIN, B. Sur la nature ou sur l´étant: la langue de l´être? Paris, Éditions du Seuil, 1998, p. 89; MANSFELD,
J. Die Vorsokratiker. Stuttgart, Reclam, 1987, p. 323. AUBENQUE, P., O’BRIEN, D., FRÈRE, J. Études sur
Parménide. Vol. I. Paris, J. Vrin, 1987, p. 44; COXON, A.H. The fragments of Parmenides. Phronesis, 1986. p.76;
CONCHE, M. Parménide – Le poème: Fragments. Paris, Puf, 1996, p. 187; CORDERO, N.L. Siendo, se es: la tesis
de Parménides. Buenos Aires, Editorial Biblos, 2005, p. 221; dentre tantos outros. Morfh
/
indica sim uma
forma, mas a forma que as palavras são, no sentido de que toda palavra é ela mesma uma forma,
significado bastante comum no emprego épico deste vocábulo, idioma em que Parmênides escreve. Em
conformidade com esse uso, o termo aparecia geralmente em torno à idéia da força de sedução e de
convencimento que se alcança ao serem forjadas belas palavras,
morfai
. A idéia de beleza, por sinal,
sempre acompanha este termo, do que é exemplo o nosso vocábulo ‘formoso’. Esses sentidos de
morfh/
ficam ainda mais reforçados se pensarmos que aqui consta ainda, no fim do verso, o verbo “nomear”,
o)noma/zein
. As palavras são, sim, formas, e o conteúdo delas se corporifica na ‘forma-palavra’ que
assumem. É esta a força formadora pelo que as opiniões se distinguem, sentenciando nomes, forjando
palavras.
345
B8, 53:
kate/qento
.
346
Chamo a atenção para o uso literal e original deste termo, indicando aquilo que possui duas vozes, dois
sentidos ou, ainda, duas pontas, tal como numa faca de dois gumes: entre as suas extremidades desenha-se
o arco (
bio/j
) com que os gregos nominaram a (ambigüidade) da vida humana e apenas humana (
bi/oj
),
irrecusavelmente errante, posto que se move, errando ao longo da extensa amplitude desse arco.
347
B8, 53:
du/o gnw¯ maj o)noma/zein
.
348
B8, 54.
143
143
distintiva necessidade de alétheia. Um conhecimento não-fundamentado e logicamente
não-necessário não pode encontrar lugar na unicidade e univocidade da verdade, pelo
que deve ser terminantemente alijado da bem redonda esfera do verdadeiro. É em
conformidade com isso que se operam, no fragmento 8, as exclusões necessárias à
verdade para que possa ser verdade, para ser ela o ente único, o ente que é. Neste caso
aqui específico, o fato de o pensamento opinativo derivar sua dualidade
caracteristicamente ambígua e dicotômica a partir da realidade sensível, mostra, por
extensão, novamente por que o conhecimento que almeja ser verdadeiro não pode
versar sobre o que é exterior a ele, posto que isso que lhe é exterior, a totalidade
cósmica em sua vastíssima pluralidade, é o que contagia o pensar com essa
equivocidade, motivo pelo qual qualquer discurso acerca de pánta eis Parmênides
concordando com Xénofanes não dá conhecimento efetivo, impossível que o dê:
nomear dualmente de acordo com a própria dualidade oposicional da diversidade
sensível é o motivo pelo qual tanto o conhecimento sobre o ‘mundo’ vagueia
349
, como
os mortais erram, desgarrando-se do verdadeiro
350
.
Entende-se assim como e em que se constituem as opiniões, observando como
elas, partindo de seu típico opinar acerca de tudo, consolidam-se como ‘coisa’, isto é,
como o produto final desse opinar, cristalizando-se solidamente em forma de palavra
a opinião. A deusa esclarece, assim, como se a passagem do ativo dokeîn, a ação de
opinar, para a fixidez cristalizada e corporificada das dokoûnta. Para uma tal
consolidação, servem-se os mortais, mais até do que da tão evocada experiência
sensível, do sentenciar e estabelecer acima mencionados, que, por fim, realizam-se
através de um único exercício e poder: o de fixar nomes. A experiência sensível do
mundo que nos envolve e inclui precede, de fato, a esse ‘estipular nomes’, que é ela
que o provoca, impondo assim a inevitável geração das dóxai. Mas a conversão destas
em dokoûnta, a concreção delas na forma de uma dimensão coesa e fechada de opiniões,
a formação de seu sólido cosmo, esta realiza-se tão-somente pelo sentenciar, kate/qento
(katéthento)
351
, por esse nomear incessante que afirmar isso, isso e aquilo. Esta é a sua lei,
não aquela de thémis, invariável. Assim, de acordo com as suas próprias normas e
modos, fortalecem-se e avolumam-se as opiniões, convencidas que estão do teor e do
349
B7, 4.
350
Cf. B8, 54
351
Ver tanto B8, 39, como B8, 53.
144
144
conteúdo das suas próprias sentenças como se verdadeiras fossem
352
. Através desse
“estar convencidas”, pepoiqo/tej
353
, criam para si mesmas a sua própria peítho, a força
de persuasão e o poder de convencimento de um caminho que de fato, vale lembrar,
não carece de pístis, “convicção”, mas apenas de “convicção verdadeira”, pístis alethés
354
.
Enredadas a essa convicção não-verdadeira, encontram-se as opiniões ancoradas
na firme segurança dessa auto-persuasão, justamente por lhes parecer indubitável e
inconteste o conteúdo que afirmam. Não lhes ocorre sequer perguntar, por exemplo,
pela corretude das considerações que emitem acriticamente
355
acerca da assim nomeada
realidade, a qual concebem constante porém diferenciadamente assim, assim e assim.
O que as opiniões estipulam com seus nomes e palavras move-se por uma
dinâmica de oposições, tal como a deusa expõe entre os versos 55 e 59 do fragmento 8.
Nela, o que primeiro se determina é o aparentar de uma identidade. E essa aparência de
identidade vem a ser a identidade de cada um dos pólos de contrários
356
, os quais
devem ter caráter mutuamente excludentes
357
e pelos quais se afirma a oposicionalidade
de tudo. A recíproca exclusão de um e outro garante a cada um deles a sua auto-
identidade, dependente, porém, da relação ‘um-outro’, isto é, trata-se de uma relação
para consigo mesmo que se constrói sempre a partir da presença do outro, pois só em
relação a esse ‘outro’ pode ser o ‘um’ aquilo o que ele é. E vice-versa. Eis aqui a idéia da
identidade desenvolvida pelas opiniões, idéia esta que é distinta daquela identidade
plena, não-relacional porque absoluta, que distingue o ente parmenídico
358
.
Definidas as identidades de cada um, pelo que se fazem contrários uns dos
outros, as opiniões seguem a nomear, impondo e marcando com “sinais”
359
todas as
coisas. São mencionados aqui sinais, sh/mata (sémata), que não podem ser confundidos
com aqueles outros, os sémata pollà que demonstram e comprovam os predicados do
ente. Versa a deusa agora sobre os sinais de dokeîn, que novamente não são mais que
palavras e nomes e, com isso, dá-se início à demonstração de como o pensamento
cosmológico em geral se nutre desse raciocínio antitético, baseado que está naquela
noção de identidade há pouco descrita.
352
B8, 38-39.
353
B8, 39.
354
B1, 30 e B8, 28.
355
Cf. B6, 7.
356
B8, 55.
357
B8, 56
358
Ver B8, 51-59.
359
B8, 55.
145
145
Tem-se, por um lado, “o fogo etéreo da flama”
360
, e, por outro, “a opaca
noite”
361
, que fundamentam, por sua vez, a dualidade primordial a partir das quais se
estendem todas as demais dualidades. Mas são, para Parmênides, nomes, “sinais” que
impomos às coisas e com que as marcamos, como palavras que pespegam na própria
realidade. Por isso a deusa adverte o seu ouvinte de que tudo que vem a ser estipulado
pelos mortais são nomes, nada mais que nomes. E, justo por isso, nunca poderão ser
mais do que meramente nomes: ti pa/nt' oÃnom(aŸeÃstai
362
, “tudo será nome”. Se o
ente pleno e perfeito é um pensado pelo pensamento noético, contrapõem-se a ele as
opiniões dos mortais através da fixação de nomes, equivalendo essa contraposição às
distinções entre noeîn e dokeîn e, por extensão, entre noéma e dokoûnta. Considerando-se
então que as dokoûnta se caracterizam pela estipulação de nomes, valem estes onómata
como o contraponto exato de noéma: os nomes constituem o lugar apropriado da não-
verdade.
Convém deixar claro que tanto a verdade como as opiniões são ditas. São ambas
linguagens de pensar e dizer. Mas Parmênides estabelece novamente uma diferenciação
quanto à natureza e ao modo do dizer próprio a cada uma delas: enquanto a verdade
expressa-se por um lógos e, por conseguinte, logicamente, as opiniões não conhecem
quaisquer regras ou disciplinas, sintaxe ou ‘gramática’ alguma na expressão de seu
convicto falatório, sendo apresentadas pela deusa como essa eclosão de palavras que
phrenteticamente nomeiam.
É muito significativo que a expressão acima citada, que podemos formular sob a
forma de uma máxima, a saber, tudo é nome”, seja justamente aquela que início
formal à exposição da deusa a respeito das opiniões, isto ainda em pleno fragmento 8,
inaugurando assim a antesala da cosmologia parmenídica a ser desenvolvida na última
parte do poema. Por sinal, é extremamente significativo observar que essa terceira parte
do poema, dedicada às opiniões, começará lançando mão dessa mesmíssima máxima
acima citada, desta feita como se fosse uma literalmente concessiva confissão: “desde
que tudo é nome...”
363
, eu também vou opinar!’. Mais uma vez Parmênides sela uma
guinada no poema, indicando agora a passagem da verdade para as opiniões, através de
um autár, sintomaticamente posicionado como o primeiro termo do primeiro verso
360
B8, 56:
flogo\j ai¹qe/rion pu=r
.
361
B8, 59:
nu/kt' a)dah=
.
362
Cf. B8, 38-41.
363
B9, 1.
146
146
desta terceira parte. A partir daí Parmênides começa a desfiar os nomes com que orna
pánta, o objeto de pensamento o mais dileto, tanto para a filosofia a ele anterior,
como para a distraída ponderação opinativa de nós mortais. pánta e sua natureza,
phýsis, não passariam, sob essa concepção, dos nomes que sobre eles depositamos.
Nossa compreensão da sua realidade reside bem mais nesses nomes do que neles
mesmos, eis a acusação de Parmênides. E a entender que não mesmo como ser
de outra forma caso se queira direcionar o pensamento à realidade sensível, daí a sua
adesão. Em contrapartida, é por esse mesmo motivo que jamais de se encontrar ou
conquistar efetivo saber ao longo dessa via. Em todo caso, procurando ser um tanto
mais preciso, o que se entre palavras nomeantes e ‘coisas’ nomeadas é uma
indistinta (con)fusão.
Após a primeira declaração de que “tudo é nome”
364
dentre aquilo que os
mortais opinam ser verdadeiro, dá-se início a uma outra série de versos
365
, na qual nos
revela a deusa o que o mundo das opiniões sentencia sobre o mundo. Neste exato
momento não se nos pode escapar algo de suma importância: observe-se como é
começar a falar, não argumentar, de tà pánta, kósmos e phýsis, de como é só começar, pois,
a adentrar pelo universo das opiniões, abandonando assim a esfera da verdade, que
todas aquelas noções e palavras e verbos abolidos da esfera do verdadeiro retornam
com toda a força, irrompendo nessa fala em velocidade quase estonteante
366
: primeiro
gi¿gnesqai¿ te kaiì oÃllusqai
367
, “devir e perecer” ou ainda surgir e sucumbir”; depois
eiånai¿ te kaiì ou)xi
368
, “ser e também não”, por onde se faz notável, inclusive, como as
opiniões compreendem “ser” a partir da idéia de “devir”, como se fosse o verbo “ser”
uma espécie de contração do “tornar-se”, uma sua variação
369
. Imediatamente em
364
B8, 38.
365
Consultar B8, 38-41.
366
Deve-se reconhecer assim que no poema todo um vocabulário para a verdade e todo um outro para
as opiniões, vocabulários estes que jamais se interpenetram. Diante disso, como sustentar que o conceito
parmenídico de verdade possa referir-se ao sensível? Eles fundam, para o Eleata, duas linguagens de
pensar e dizer mutuamente intocáveis. Parece que para compreendê-lo devidamente teremos que deixar
de lado o que virá a ser, na história vindoura da filosofia grega, o futuro conceitual de alétheia, que, com
efeito, define-se pelo esforço em estabelecer uma ponte em meio ao abismo cavado por Parmênides. Essa
ponte, a idéia de verdade como adequação, em que vigora o firme elo e o inextinguível toque entre o
inteligível e o sensível. A meu ver, nada disso ocorre na obra do autor que por primeiro pensou
filosoficamente o termo alétheia. Impor-lhe um conceito de verdade a ele futuro, o mesmo valendo para o
ente, parece-me simultaneamente tão anacrônico quanto desprezante do valor propriamente específico
destes conceitos em sua obra.
367
B8, 40.
368
B8, 40.
369
A esse respeito, destaco o capítulo escrito por Pierre AUBENQUE: Syntaxe et mantique de l’être
dans le poème de Parménide”. In; AUBENQUE, P (org). Études sur Parménide: problèmes
147
147
seguida to/pon a)lla/ssein
370
, “mudar de lugar”, e o tipo de movimento a ele equivalente
‘aqui e acolá’; por último então xro/a fano\n
371
, “variar a pele (superfície)”, uma
menção à mobilidade e tranformação contínuas de todo e qualquer estado phýsico.
Com esta menção à mudança de cor das superfícies ou mesmo da pele, faz-se o
prenúncio disso que vale para os mortais como os princípios fundamentais de toda essa
diversidade dualizada, os mencionados fogo e noite, antítese depois formulada na
inauguração da parte dedicada às opiniões como luz, fa/oj, e noite, nu/c, antítese pela
qual pánta é duplamente constituído e preenchido: au)ta\r e)peidh\ pa/nta fa/oj kaiì
nu\c o)no/mastai
372
.
Os mortais estabelecem nomes, belas palavras, para que o seu conhecimento se
consolide e corporifique. Fazem-no de acordo com a necessidade reincidente da
oposição e do contraste, efeito do caráter relacional que a um tempo comunica e
distingue os aparecentes. Volto a destacar que ocorrerá aqui uma admirável e
surpreendente explicação por parte da deusa a respeito dessa condição partilhada por
todos nós mortais: a indicação de que a causa dessa necessidade reside no próprio
corpo dos homens: eles têm que sentenciar oposições por causa da sua natureza
antitética, determinada por uma “mistura de membros muito(s) retorcidos”
373
, pelo que
necessitam igualmente corporificar, desde o seu pensamento sob a forma de nominadas
sentenças, que se consolidam como se corpos fossem, as morphaí, até à sua perpetuação
como mortais através da procriação, através portanto da criação genética de corpos.
A phýsis desses membros corpóreos
374
atinge o pensamento humano,
interferindo diretamente no seu pensar, adquirindo então o mesmo caráter dos
membros, o de serem retorcidos, curvados, enfim, imperfeitos. Condicionado pela phýsis
desses membros, o pensamento humano, que pode ser noético, costuma ser phrenético.
Parmênides opera, assim, mais uma de suas precisas distinções: por essa condição,
fazem-se noeîn e phroneîn modos de pensar avessos um ao outro
375
. A deusa não afirma
expressamente que esse nóos
do fragemnto 16 seja humano, mas sim que ele se
apresenta aos mortais; ou ainda que ele os auxilia: twÜj no/oj a)nqrw¯ poisi pari¿statai:
d‘interprétation. Vol. II. Paris, Vrin, 1987. pp. 102-134. Além dele, também WIESNER, J. Parmenides und der
Beginn der Aletheia. Berlim/Nova Iorque, Walter de Gruyter, 1996.
370
B8, 41.
371
B8, 41.
372
B9, 1: “Mas desde que tudo luz e noite foi nomeado”. Ver também B9, 3.
373
B16, 1.
374
B16, 3:
mele/wn fu/sij
.
375
B16, 3.
148
148
Assim como cada um possui mistura nos membros muito retorcidos,
assim também o pensamento [noético] os homens ladeia
376
; pois o mesmo
é o que nos homens pensa [phrenético] e a natureza dos membros
em cada um e em todos; pois o pleno é o pensamento [noético].
377
Por fim, o fragmento se encerra afirmando que o pensamento noético é mais, é
pleno
378
, ple/on, excede o frenético. Plenitude, por sinal, remete à contenção do seu
limite e vem a ser um dos muitos predicados do ente descrito na parte intermediária do
poema. Uma vez mais, por um outro caminho, chega-se ao mesmo
379
: ente verdadeiro e
pensamento noético coincidem, são um e o mesmo. Não seria aqui que Parmênides iria
contradizer-se. Se o ente é pensamento perfeita e plenamente noético, o perfeito pensamento
noético, noéma, é pleno.
Eis as duas possibilidades de tradução para pari¿statai neste contexto,
“apresentar-se a” e “ladear”. Em ambos os casos, torna-se claro que o homem não
possui esse modo de pensar, muito menos sem que se esforce por ele. É-lhe uma
possibilidade, não uma condição. Aquele modo de pensar que lhe é condicionante e
condição é o phrenético. Para ele, o homem, mas não para o divino, noeîn é uma
conquista, trazendo-o à tona a partir de sua latência. Trata-se de uma possibilidade do
pensamento que necessita empenhar-se justamente contra a outra natureza do pensar
esta sim imediata, dominadora e sempre presente para que se efetive. Phroneîn
apresenta uma constituição mista, dado o elo entre este modo de pensamento e a
sensibilidade, por isso impuro; já noeîn, viu-se sobremaneira durante a análise a respeito
da verdade e do ente, é puro justamente porque pensamento sobre pensamento. Essa
modalidade do pensar, phroneîn, deve ser nitidamente diferenciada de noeîn. A necessidade
dessa distinção faz-se perceber textualmente, posto que ao longo do poema,
376
Grifo meu.
377
Grifos meus. B16.
378
Parmênides, sempre terminologicamente preciso, usa o mesmo adjetivo para o ente e para o
pensamento que é o mesmo que esse ente (cf. B3). Esse adjetivo é
ple/oj
(pleno), sob as formas
e)/mpleo/n
para o ente (B8,24) e
ple/on
para o pensamento noético (B16,4). Quanto ao pensamento opinativo e
phrenético, aqui nomeado
phroneîn, encontra-se referido uma vez na parte central do poema, a da verdade,
como uma qualidade deficiente de
noeîn, logo um pseudo
-
noeîn, um
noeîn
errante
(plagkto\n no/on),
sintomaticamente qualificado com o mesmo adjetivo que qualifica também os “membros errantes”
(mele/wn polupla/gktwn)
segundo uma das variantes para este verso; membros que determinam o
caráter e a natureza de phroneîn
no fragmento 16, pelo que, apesar desta ou daquela variação, a cristalina
distinção entre pensamento noético, o verdadeiro, e pensamento phrenético, o das opiniões, mantém-se com
incrível precisão.
379
Cf. B5.
149
149
Parmênides utiliza esse verbo na sua parte final, enquanto noeîn é empregado para
indicar o pensar consoante o modo da verdade.
Essa diferenciação importantíssima merece um detido comentário. Não é
somente pelo teor do que se encontra afirmado no fragmento 16 que phroneîn se mostra
como um misto duplamente composto frente à pureza monoaxial de noeîn, mas também
etimologicamente. De novo deparamos a riqueza e precisão terminológicas da filosofia
parmenídica. Trata-se de um verbo absolutamente usual para referir pensar’ em grego.
Compõe-se, contudo, justamente de duas matrizes que aqui se misturam, formando o
termo: uma delas é justamente noeîn, que recebe agora este novo estatuto por
Parmêndides, verbo ao qual se ajunta o vocábulo phrén. Esta palavra significa,
literalmente, “vísceras”, “entranhas”, “diafragma” e, ainda, a membrana, a película que
envolve a superfície do coração, possível motivo pelo que se verifica o uso deste
vocábulo, em linguagem homérica por exemplo, com o significado de “peito”,
“coração”, entendido, contudo, como a sede das paixões humanas. Toda essa semântica
remete ao que nos é ora apresentado por Parmênides que, então, sublinha o sentido
originalmente filológico do termo, esclarecendo que phroneîn é, desde a sua concepção
como palavra, um misto entre o pensamento e a sensibilidade dos membros do corpo,
de suas vísceras, de suas entranhas, indicando o caráter sensível do nosso
entendimento. E é exatamente este o modo de pensamento que pensa os sensíveis e que
por eles se sensibiliza.
De phroneîn, sensível pensamento de sensíveis mortais, dóxico justo por isso,
para retornar a noeîn, que guarda a possibilidade da divina verdade, Parmênides transita
de um verbo a outro, removendo justamente a ‘víscera’: nesse caminho de retorno
380
é
phrén que cai. Averiguando historicamente essa cisão, vale perguntar: será, novamente,
uma mera coincidência terem sido Parmênides e os Eleatas os primeiros a usarem noeîn
noeîn no âmbito da filosofia, ao passo que os seus antecessores, os mesmos que
Parmênides ultrapassa no proêmio ao ser conduzido à verdade, prediletaram sempre o
uso de phroneîn? A passagem do pensamento mito-poético para o pensamento filosófico
dos primeiros tempos marca-se por essa predileção, de noeîn a phroneîn, o que é muito
significativo quanto ao movimento de ruptura que distingue o aparecimento da filosofia
em relação à sua matriz poética. Agora, Parmênides inverte novamente este sentido,
retornando ao predomínio do antigo verbo, diferenciando-o, entretanto, a seu modo e
380
Aludo, naturalmente, à minha leitura de
ne/esqai
em B1, 26
.
150
150
maneira. À verdade, noeîn; às opiniões, inclusive as da “multifalante” tradição filosófica a
ele anterior, phroneîn: incisão entre a segunda e a terceira partes do poema.
Mais interessante do que isso, porém, é perceber que Parmênides concorda com
os seus antecessores quanto a essa predileção por phroneîn, afinal, vísceras pensam-se
com vísceras. Quando trata do cosmo, também o Eleata pensa phreneticamente. A grande
e central diferença é sempre a mesma: porque sobre as vísceras jamais haverá
conhecimento perfeito – sempre de novo a profética sentença de Xenófanes –, inventa-
se o conhecimento através de um novo modo de dizer e de pensar. É esta, e ‘só’ esta, a
consistência da (re)invenção e do retorno a noeîn tal como Parmênides o cria.
Noeîn mostra-se, assim, livre de toda e qualquer víscera, depurado das entranhas
do corpo humano e de todo e qualquer aparecimento e mundaneidade – o puro
pensamento, o livre de mistura, o livre de composição, o de um único gênero:
mounoge/nej
381
– a partir de um único gene, noeîn, o ente e a verdade.
Por conseguinte, é absolutamente inevitável que um pensamento perì phýseos seja
phrenético, não noético como o de alétheia, pelo que se estabelece como necessidade para
a verdade a sua absoluta depuração de todos os aspectos do sensível, incompatível que
é com as suas ordens: devir, mover(-se), alterar(-se) todos eles “rechaçou-os
convicção verdadeira”
382
. À diferença de noeîn e noéma, que vemos serem desfiados na
parte dedicada à verdade, o fragmento 16 apresenta-nos a forma nóos
e mostra como
essa possibilidade noética do pensar torna-se apenas latente, uma vez inserida no ir e vir
e no devir das coisas do mundo, incluída portanto no phrenesi da vida dos mortais:
misturado às vísceras e entranhas do nosso corpo, adquirindo, segundo Parmênides,
literalmente a phýsis dos nossos membros retorcidos, esse nóos converte-se em phroneîn.
É este o seu inelutável destino, sua condição, sua moîra.
Trata-se pois de uma mistura do que potencialmente poderia ser um
pensamento puro com aquilo que lhe é estranho, a pluralidade dos membros do corpo.
Assim, encontra-se em sua constituição corporal a inclinação dos mortais para o
pensamento imperfeito. Eis o mais radical e fundo motivo para a inevitabilidade das
opiniões, considerando-se que não há como tornar-mo-nos livres de uma tal phýsis. Essa
condição dificulta decisivamente que os homens se inclinem à perfeição de noéma,
mesmo quando esta lhe é apresentada por uma deusa, que para tanto se exige agora
381
B8, 4.
382
B8, 28.
151
151
uma superação dessa insuperável natureza. Por isso está noéma distante dos mortais,
assentado à parte deles
383
. O pensar que condiz com a nossa condição de mortais é
apresentado aqui como nóos, nem exatamente noeîn, a atividade infinitiva do pensar
noético para a verdade, nem exatamente noéma, o perfeitamente e plenamente pensado.
Nóos já havia sido referido pelo fragmento 6, onde se encontra igualmente relacionado
com as opiniões dos mortais. Ali é qualificado pelo adjetivo plakto/n
384
, o que faz dele
um modo de pensamento errante. Para além disso, o fragmento 16 dá-nos agora a
conhecer que esse nóos erra porque visceralmente entrelaçado à natureza sensível do
corpo, resultando daí uma composição, uma mistura: phroneîn.
O cosmo sensível é um mundo de misturas, um mundo erótico, dualizado, de
modo a valer também para o pensamento sensível a sua composição fundamental:
que está tudo cheio de luz e noite
385
, também nele interagem e condicionam a flama
ardente do fogo e a opacidade da noite. A um só tempo trevoso e brilhante, dada essa
sua dupla determinação, por luz e noite regido, pertencerá igualmente a esse nóos a
tensão entre isso que lhe queda latente e aquilo que o domina ao condicioná-lo, tensão
que justifica como possibilidade humana os dois modos de pensamento que Parmênides
distinguiu ao ter decidido-se pela natureza do pensamento como o grande e principal
tema de sua filosofia: ele pode ser phrenético e inevitavelmente o é; e ele pode ser também
noético, e possivelmente o é. Esta segunda possibilidade, como visto, depende e
desprende um terrível esforço e uma rigorosa disciplina de pensamento, justamente
porque, do contrário, não supera sua phýsis reinante. Daí ser ele um modo de
pensamento que opera consoante gidas regras, lógico, alegoricamente assentadas pela
deusa que as estabelece, thémis, e pela deusa que cuida da sua observância, díke.
As bifurcações e mesmo trifurcações que aparecem ao longo do poema
encontram a sua causa na condição e natureza desse nóos rachado entre as possibilidades
do esquecimento e do não-esquecimento, do não-verdadeiro e do verdadeiro,
aproximando-o e afastando-o de uma e de outra possibilidade. Num caso e no outro,
radicado nesse ir e vir, é sempre errante, vivendo o destino de um pêndulo, pois mesmo
aquele que pensa verdadeiramente, ainda que cumpra essa possibilidade, não está jamais
livre daquela necessária inevitabilidadee eis o poema de Parmênides funcionando como
prova dessa sua descoberta; ele que, ao reconhecer o todo e o tudo do pensar, tanto
383
Cf. B1, 27.
384
B6, 6.
385
Ver B9, 3.
152
152
argumenta a verdade como fala de sol, lua, estrelas e sexo. Aquela, um conseguimento,
uma extraordinária e por isso divina proeza; esta, o exercício de uma irrecusável
condição.
Porque inevitável, é phroneîn quem domina o pensamento humano, nutrindo-se
por sua vez do que tanto lhe permitem como lhe impõem os olhos, as orelhas e a
língua
386
, por intermédido dos quais testemunha e pensa tudo, pánta. Por esse liame
confundem-se, amalgamados, a phýsis do pensamento e a phýsis do smos, fusão e confusão
pelas quais a própria realidade sensível, ainda que real, é em larga escala, para nós, algo
pensado. Assim, mesmo a cosmologia é antes um pensamento sobre o que pensa do
que o mesmo sobre quem pensa. Subsiste, sempre, uma insuperável distinção de
natureza, pelo que também cosmologicamente Parmênides privilegia o pensamento,
tendo ele primazia frente a phýsis e o kósmos eles mesmos, posto que são inevitavelmente
pensados a partir do retorcido pensamento humano. Por isso o que eles sejam de fato e
em pretensa verdade é-nos tarefa impossível de conhecer, decorrendo disso, também, a
inevitável pluralidade de opiniões sobre um mundo igualmente plural.
O que interessa a Parmênides é como o homem pensa. Neste caso, como nós
mortais pensamos o ‘mundo’ através do nosso retorcido pensamento. Reconhecendo
esse como, descobre o Eleata que essa junção é via em que não como conquistar
efetivo conhecimento.
É por esse motivo que a cosmologia de Parmênides, a despeito de a nomearmos
assim, relaciona-se bem mais com o humano do que com o cósmico propriamente dito,
pois investiga e inquire precisamente sobre como o pensamos, fazendo incidir toda a
sua atenção sobre esse pensar dóxico-phrenético. Assim, mesmo quando inclui uma
cosmologia no poema, na qual vêm a ser tematizadas tanto a estrutura como a origem
do cosmo, essa cosmologia parmenídica reflete especularmente como esse kósmos é
pensado e digerido pelas opiniões dos mortais, encontrando-se aqui a origem do que
dizemos acerca dele. Por conseqüência, essa cosmologia é antes uma antropologia ou,
ainda mais audaciosamente, uma antropogonia, na medida em que considera
primordialmente o encontro entre homem e mundo e o que dele, para nós, se
desprende como dupla geração e reprodução de corpos: (A) sensivel e fisicamente,
nossos corpos propriamente ditos, através da reprodução sexual; (B) opinativamente, o
corpo de nossas belas palavras, morfai/, sobre a vida e o mundo através da reprodução
386
Ver B7, 4-5.
153
153
das opiniões. Somados, compõem esses dois temas a totalidade da parte final do
poema. Assim, configura esta parte da obra uma antropogonia, em que se considera
como o homem e tão-somente o homem pensa o kósmos, a phýsis e tà pánta.
Por isso, face à sua costumeira precisão, não supreende que o próprio
Parmênides não nomeie esta via como a do cosmo, da natureza ou como a de algo a
eles alinhado. Nomeia-a a via dos mortais. E o cosmo de que trata efetivamente, assim
o declara a deusa, não é o kósmos ele mesmo, mas o diákosmos das opiniões: o
movimento aqui não é do cosmo para o homem, mas do homem para o cosmo.
Como viver e não opinar sobre o ‘lugar’ e as condições sob as quais se vive?
Situados nesse ‘lugar’ e imersos temporal e provisoriamente nessas circunstâncias, nós
mortais ocupamo-nos em pensá-los. E isto também vale para Parmênides, como
sublinhei algumas vezes. É preciso pois desfazer a imagem vulgar de que Parmênides
teria pelas opiniões algo como uma ojeriza ou repulsa. Uma vez inevitáveis, também ele
comporá o conjunto das suas próprias dóxai, a fim de mostrá-las, tanto em seu que,
como em seu como, tão próximas e semelhantes às demais.
Mas mesmo trafegando pela similitude que une as dóxai e lhes confere um
caráter identitário e coeso, Parmênides mostra-se inovador. Neste âmbito, inovador não
porque se antepõe radicalmente a uma tradição qualquer, pelo contrário, é este o
momento, o ‘cosmológico’, em que se assemelha a ela. Mas sim no âmbito do típico
continuum do que possa ser considerado uma tradição, ou seja, mostra-se inovador
relativamente à continuidade do saber ‘científico’, no sentido de reconhecer, de
antemão, que a promoção desse modo de conhecimento é, por natureza e definição,
aproximativo. Quanto a isso dá Parmênides mais um passo avante nesse eterno e
infinito aproximar-se de um termo hipotético que jamais será alcançado justamente
porque não como se extrair da ‘natureza’ um conhecimento verdadeiro. É
simplesmente inesgotável. A exploração da natureza é um poço sem fundo para o
conhecimento e não depende portanto da menor ou da maior competência de quem a
pensa. Por isso que, a despeito da diferença como pensam, é este o ponto de toque entre
o caminho do não-ente e o caminho das opiniões: ambos pensam o mesmo, um
impossivelmente cognoscível. Ambos, por isso, não-verdadeiros. Ela, a natureza, ou é
insuficiente para o saber ou excedente ao saber, o que, no fim das contas, é o mesmo.
Não se deve esquecer que Parmênides considera a sua cosmologia um grande
feito, uma melhoria em relação aos seus predecessores também nesse âmbito de
154
154
investigação, o que se referido no verso 61 do fragmento 8: “para que nunca
nenhum dos mortais te ultrapasse em conhecimento ”. O que a Parmênides essa
superioridade que exala um tanto arrogantemente das palavras da deusa é essa sua nova
condição, a de poder conceber o mundo das opiniões e o mundo sobre o que opinam a
partir da perspectiva da verdade, não confiando, portanto, no que não é confiável: a
verdade, aqui, é a verdade do erro. Daí assumir a forma de um dizer com toda a
veracidade o equívoco diákosmos das opiniões. Mesmo dedicado a um objeto impossível
de se conhecer, o pensamento discipliando auxilia no seu contínuo aperfeiçoamento,
favorecendo-o.
Assim, “desde que tudo luz e noite foi nomeado”, consoante, portanto, os
antitéticos nomes das oposições e dualidades que impomos ao mundo em nome de
com eles sermos supostamente fiéis à natureza do mundo, será de acordo com esse
critério que esse duplo cosmo, o natural e o opinativo, forja, a partir desse amalgamado
encontro, um contínuo e processual diákosmos, agora desnudo em toda a sua
verossimilhança
387
. E isso significa indicá-lo, com o dedo de díke, como um kósmos
estabelecido kata\ do/can (katà dóxan)
388
, um diákosmos.
A respeito do conteúdo dessa cosmológica antropogonia, apresento aqui uma
compacta travessia ao longo do movimento que ela descreve: começa a partir do que
expus anteriormente, com a determinação da idéia de identidade por oposição, em que
cada aparecente em sua unidade pode ser idêntico a si mesmo mas apenas e tão-
somente por distinção a um outro, pelo que se conforma e justifica a dualidade de tudo.
Afirma-se então uma dualidade fundamental, de que todas as demais são extensões, é
esta a do fogo e, depois, luz e a da noite, que tudo dividem. Não se pode esquecer
que todas essas concepções têm, como anteriores a elas, o pensamento que as pensa,
um nóos bifurcado em sua própria constituição e possibilidade. Pensa-se, aqui, segundo
phroneîn, por onde o caráter do cosmo deve ser antes entendido como extensão do
caráter do pensar dos mortais. Bem observado, a concepção do pensamento
obrigatoriamente opinativo dos mortais é uma mistura, do qual coparticipa a phýsis de
um corpo múltiplo e de seus muitos membros retorcidos
389
. A partir dessa concepção,
impuros como a imperfeição do seu pensar, somos nós mortais também aparecentes
nesse pánta estruturado por luz e noite e no qual vivemos e tomamos parte
387
Cf. B8, 60.
388
B19, 1.
389
Ver B16.
155
155
exatamente como fogo e água e céu e terra, porque tanto o nosso corpo
390
como o
nosso pensamento são um compósito, uma mistura de luz e noite
391
, estes dois
princípios pelos quais as opiniões ordenam antiteticamente a totalidade dos aparecentes.
Todo aparecente ora pertence à luz, ora pertence à noite, nele predominando a
phýsis deste ou daquele. Caracteriza-se por sua vez este cosmo através da distinção entre
o que é a phýsis do aparecente e o que é a sua própria condição de aparecimento. A
phýsis de todo aparecente acusa essa sua origem primordial, encontrável em todos eles, e
por isso determinante do modo e da natureza de cada um; remetem, portanto, sempre
àquela dualidade de fundamento, luz e noite. Assim, tudo será sempre luminoso ou
noturno quanto ao seu caráter essencial, realizando-se contudo e concretamente na
forma de aparecentes, assim, por exemplo, sol e terra, éter e lua
392
.
Consoante essa primeva e primeiríssima distinção, segue-se a primeira oposição
na ordem dos aparecentes propriamente ditos, a de éter e terra, “impelidos a
devir”
393
. O éter representa o lado luminoso, também o do fogo
394
. Neste invisível
éter
395
avistam-se sinais, sémata
396
, aludindo-se assim também às estrelas pelas quais os
homens se orientam. Essa orientação é complementada pelo sol, igualmente luminoso e
resplendente
397
e, depois, pela lua
398
. Todos eles mantidos pelo “todo abrangente
céu”
399
.
Assim apresenta-se o primeiro lado dessa oposição, o da luz, que tem o éter
como o seu aparecente primeiro. Espera-se então por uma phýsis a ele contrária, é esta a
Terra. A Terra representa gígnesthai
400
, sendo por extensão responsável por todos os
nascimentos e surgimentos que se dão no kósmos. É ela a mãe de tudo, aquela que todos
gesta. Apesar disso, a Terra representa o lado noturno dessa primeira oposição de
390
Cf. B18.
391
Ver B9.
392
B11, 1-2.
393
B11, 3-4.
394
B10, 2.
395
B10, 2.
396
B10, 2.
397
B10, 2-3:
h)eli¿oio
lampa/doj
.
398
B10, 4.
399
B10, 5-6.
400
B11, 4.
156
156
aparecentes pois, tal como a noite
401
, ela é densa e opaca. Com efeito, a Terra não é
luminosa, mas iluminada pelo sol, tal como o é a lua
402
.
Éter e Terra precisam ser coligados para que formem a aqui referida oposição.
Quem lhes estabele a relação, conjugando a leveza luminosa do que está no alto, o éter,
e a obscura densidade do que está embaixo, a Terra, é o amor, e)/rwj (éros), o primeiro
dentre os deuses concebidos
403
, dispondo assim esta divindade de uma posição análoga
àquela de que desfruta na Teogonia de Hesiodo
404
. Mas se éros promove aqui coligações,
promove-as indiretamente, uma vez que foi “engenhado”
405
por uma inominada deusa,
provavelmente Afrodite, dada a estreita e usual relação que a une a éros
na poesia mítica
grega. Independentemente do seu nome, ela é qualificada, no fragmento 12, como um
daímon
406
, uma divindade. Trata-se da divindade que tudo dirige, anterior ao próprio éros
porque dele genitora, ela sim senhora primeira do nascimento e de todas as misturas,
uma vez que rege o parto e a cópula
407
. Neste âmbito, o verbo ser poderia aparecer
justamente como cópula, verbo de ligação, ainda que as opinões possam empregá-lo em
seu sentido pleno
408
, dizem-no equivocadamente, dizem-no de acordo com o seu dizer
kata\ do/can
409
–, confundindo o que efetivamente é e o que não é nem pode ser,
mesclando, tal como na cópula, o ser e o devir.
Essa divindade assume a conexão entre os aparecentes, é a divindade ligadora
num universo em que tudo é relacional, em contraste ao caráter absoluto com que alétheia é
pensada pelo Eleata. É uma deusa da mistura, cuja raíz fundamental é o sexo, enviando
o macho para unir-se à fêmea e a fêmea ao macho
410
. Aqui chega-se à distinção sexual
como extensão da dualidade fundadora e movedora de tudo, distinção esta pelo qual os
aparecentes se reproduzem. Exatamente no meio
411
entre esses dois extremos lados,
coloca-se essa deusa a fim de conjugar o fogoso
412
e o noturno
413
, de modo a tudo
401
B8, 59.
402
Vemos aqui o mesmo Parmênides do rigor tautológico expressar-se sobre a lua em poética de tocante
beleza: “noturno brilho a vagar em torno à Terra, alheia luz” (B14), “sempre à espreita dos raios do sol”
(B15).
403
B13:
mhti¿sato
.
404
Em que pontua como o terceiro na ordem do tempo, mas o primeiro na ordem do fundamento, porque
pré-condição de toda criação e aparecer.
405
B13:
mhti¿sato
, ‘conceber’, ‘engenhar’.
406
B12, 3.
407
B12, 4.
408
Cf. B19, 1.
409
B19, 1.
410
B12, 5-6.
411
Cf. B12, 3.
412
Ver B12, 1.
157
157
dirigir,
pa/nta kuberna=i
414
, e tudo governar, pa/nta=i aÃrxei
415
. Novamente à
semelhança de Hesíodo e de sua concepção erótica do cosmo, Parmênides indica que,
na ordem de pánta, é o erotismo que reina; enquanto isso, o ente é ásylon, “inviolado”,
termo de clara conotação (as)sexual.
É notável, porém, a indicação de que essa divindade não cria, mas engenha os
deuses
416
. Parmênides parece estabelecer aqui, entre deuses e homens, uma paralelismo
em torno àquilo que engenham pelo pensamento: tal como os mortais que criam através
do engenho de palavras e nomes, essa divindade engenha todos os deuses.
Retornando à concepção do lado noturno da phýsis, tem-se primeiramente a
Terra. Mas a Terra não é, nessa ordem, a primeira e mais anterior; mais profunda e mais
extrema do que ela é a água, na qual a própria terra se sustenta e se encontra radicada
417
.
Vale notar que a concepção parmenídica opõe luz e noite tão precisamente que, ao
descrever a sua distribuição como aparecentes na ordem do cosmo, essa oposição é
respeitada até mesmo na ordem da sua composição textual. Assim, a descrição do lado
do éter, correspondente à luz, começa pela mais extrema altitude e prossegue, sempre
para baixo, até os limites da Terra. O lado obscuro, equivalente à noite, começa então
sua descrição pelo meio do caminho de descida, a superfície da Terra, até chegar ao
ponto contrariamente extremo à luz. Este ponto, o mais extremo e fundo nessa escala,
diz respeito à água. É ela então a primeira, o mais basal deste lado noturno do cosmo
sensível por representa-lhe o seu extremo. A água indica portanto as trevas, o opaco de
suas regiões abissais, aludindo-se assim à idéia aterradora do invisível aquático.
Uma vez dados esses extremos, puros apenas para si e em si mesmos, eles vêm a
ser misturados por éros e por aquela divindade, através dos quais se realiza,
conseqüentemente, a diversidade do kósmos, um mundo composto por uma infinita
variedade de criaturas mistas. Aqui o amor exibe a sua unificadora força de atração,
conjugando os extremos e os contrários. Éros é portanto a força que mantém tendentes
à mistura todos os diversos. O domínio da divindade de quem éros é filho consiste em
juntar o masculino e o feminino para que as misturas se dêem. Pois luz e noite, dos
quais são extensões, por um lado, a leveza e a luminosidade do fogo celeste e, por
outro, a escuridão e a opacidade da Terra e da água, são puros cada um para si. As
413
Ver B12, 2.
414
B12, 3.
415
B12, 4.
416
VerB13:
mhti¿sato.
417
B15a.
158
158
misturas promulgadas por éros perfazem todo o campo dos viventes, formando e
definindo aquele tudo que se encontra sob o domínio e a regência dessa divindade
ligadora.
Também para os homens dois princípios estão dados, eles mesmos em si
mesmos puros, mas de cuja mistura depende a procriação de outros e outros corpos
igualmente misturados, aludindo-se assim à reprodução dos seres humanos
418
.
Separados encontram-se por princípio e como princípios o masculino e o feminino: “à
direita os meninos; à esquerda as meninas”
419
. Essa distinção sexual, sempre mantida,
vem a ser porém conjugada pela força reunidora do amor, propiciando-se assim a
referida reprodução. Sobre esta vale sublinhar a posição de Parmênides quanto à idéia
de que nela deve prevalecer sempre um dos lados, ou bem o masculino ou bem o
feminino, porque a partir da predominância de um deles a distinção e a clareza entre o
que é oposto e o que é composto fica salvaguardada. Necessárias pois as oposições para que
as suas composições possíveis se efetuem. Quando, contudo, na geração não se o
domínio do feminino ou do masculino, nascem os hermafroditas, seres que sofrem o
tormento desta sua condição
420
. Neles, não se conforma a unidade de um dos lados
dessa oposição, pelo que o seu sexo não se torna claramente definido. Corpos bem
feitos
421
resultam, conseqüentemente, apenas quando clara distinção sexual,
predominando ou o feminino ou o masculino aquando da mistura das “sementes de
Venus”
422
.
Sobre o tema da distinção sexual, é importante também observar o caráter
inovador da cosmológica antropogonia parmenídica nesse tocante, uma vez que ao
feminino coube o lado da luz, do fogo e do calor; ao passo que a noite, a água e o frio,
ao masculino. Percebe-se nisto uma valoração e um juízo que se antepõem ao que se
estabelecera tradicionalmente. Estabelecido este ao qual retorna Empédocles, herdeiro
maior desta negligenciada cosmologia parmenídica, situando o feminino junto ao frio e
o masculino junto ao calor. Tanto quanto me é dado conhecer, só em Parmênides dá-se
o contrário. Talvez se encontre nesta sua diferença e predileção a possível explicação
para o fato de que são femininas todas as figuras que despontam em seu poema, desde
as deusas, inclusive a proferidora da verdade, até as éguas.
418
B18.
419
B17.
420
B18, 4-6.
421
B18, 3.
422
B18, 1: Veneris gemina.
159
159
Caiba aqui a uma dessas figurinas femininas a última palavra: kata\ do/can
423
.
Assim afirma a deusa ao encerrar o seu discurso verdadeiro, no qual se demonstra a
(in)verdade das opiniões, mesmo a daquelas tão bem concebidas quanto possível, tão
verossímeis, mas ainda assim incertas, não-verdadeiras, como a própria cosmológica
antropogonia de Parmênides. Sobre esta, seja dito finalmente o quanto permanece atida
ao homem, pois dele parte e a ele sempre retorna. Partindo do pensamento dos
mortais, um pensar tão retorcido como os membros do corpo, passando pelas por ele
pensadas distinções entre luz e noite e céu e terra, até chegar novamente à constituição
dos seus corpos através da sua sexualidade e da sua reprodução, é este todo o trajeto e
extensão ao longo dos quais se desenha a sua dóxica antropogonia. Com a sua
conclusão, completa-se a dupla tarefa do pensamento parmenídico, o que perfaz a
totalidade do seu poema e obra: pensar e dizer a natureza da verdade, referente ao ser;
pensar e dizer a natureza das opiniões, referente ao devir, e indicar os muito sinais pelos
quais se mostram absolutamente inconciliáveis.
423
B19, 1.
160
160
Epílogo
Diante de Parmênides sinto-me por vezes como se sentiu Empédocles: o
filósofo de Agrigento, tentando aplicar não o modo de proceder o pensamento,
como também a própria terminologia parmenídica ao conhecimento das coisas naturais,
exclama: “por costume também eu equivoco-me ao falar”
424
.
Talvez não seja possível falar sobre essa nova e originalíssima semântica do ser
sem traí-la. Tantas e quantas vezes eu a trao tentar expô-la e interpretá-la. Algumas
vezes, por exemplo, lancei mão da expressão “os predicados do ente”, traindo a minha
própria compreensão da sintaxe e da gramática por ele inaugurada. É que se esconde
ou se revela nesta expressão a lógica do sujeito-e-predicado, quando o discurso da
deusa é sim predicativo, mas livre de qualquer sujeito. Trata-se de um discurso de
predicação tautológica, em que não raro o verbo ‘ser’ adquire caráter intransitivo. Não
estamos diante, por conseqüência, de um discurso sobre o ser, mas do discurso do ser.
O ‘ser’ em Parmênides é esse idioma e essa linguagem.
E aqui vale notar: independentemente de qualificá-lo como predicativo ou
existencial ou, ainda, veritativo, como o fazem Kahn e Aubenque, é inconteste que o
que se desmancha de todo através dessa nova semântica é o emprego do ‘ser’ como
cópula, apenas admissível quando se opina, quando se tem, portanto, a pluralidade
sensível como tema do pensamento, de onde este angariará para si todo o erotismo da
cópula, não coincidentemente resultando no caso específico do Poema de Parmênides
numa antropogonia, em que o cosmo é concebido eroticamente, pelo que irrompem
precisamente aí, na apresentação desse diákosmos, toda uma descrição a respeito da
reprodução sexual e do masculino e do feminino como princípios de natureza. Nesta
ordem rege uma divindade ligadora, daí nada mais justo do que o ‘ser’ como verbo de
ligação, aliando-se, confundindo-se com o devir.
O movimento do mundo e da vida é gerado pela cópula e pela contradição éros é
guerra. Ao pensá-los, o pensamento assimila seu movimento, seu caráter e natureza,
fazendo-se inevitavelmente phrenético, mesmo quando procede noeticamente. O
pensamento para e da verdade, no entanto, é puramente noético, sem vísceras, recusa a
contradição erótica e natural ao estabelecer a não-contradição como a sua principal
424
Cf. B9, 5. Ver também B8 e B114.
161
161
regra de linguagem; abole a diferença e insula a mesmidade, pelo que, nesta ordem de
pensamento, o dizer e o pensar terão na identidade plena o porto em que ancoram a
firmeza de sua fala. não mais qualquer sentido a cópula nem o copular: absoluta,
não comporta o relacional; é necessariamente não-erótica, ensimesmada. E, não sendo
phrenética, é também imobilizada por seus princípios e regras.
O pensamento noético, quando não se volta à realidade sensível, é também não-
erótico, é não-genético. É preciso reconhecer a carga de a)ge/nhton (agéneton), aquele que
não possui gene. Não tendo sido gerado, desconhecendo o erotismo pelo que se
caracterizam o cosmo e a sua natureza, encontra-se o ente absolutamente livre disso
que transmite genes: gígnesthai. Não é simples coincidência, conseqüentemente, que além
de ingênito, seja o ente também ásylon, “inviolado”. Que não se roube igualmente a
carga a este termo, que possui forte e clara conotação sexual o que não sofreu nem
pode sofrer defloração ou mesmo estupro. Como poderia, se não-erótico e in-gênito? O
ente não nasce pelas vísceras nem conhece sexo, totalmente apartado esde todo e
qualquer traço de sensibilidade, de todo e qualquer modo de gígnesthai, tal como ressaltei
especialmente aquando da análise do fragmento 8. É importante afirmá-lo, pois são
estes os sinais com que Parmênides marca que o ente e a verdade não guardam
nenhuma participação, nem o mais leve toque com a realidade sensível, o mundo
erótico, não propondo, portanto, nenhuma ontologia no sentido em que usamos e
aplicamos esse termo, muito menos uma metafísica.
O pensamento frenético, ao contrário, depende dos membros, da reprodução,
da criação própria a cada evento da phýsis. O éros hesiódico repetido no centro da
cosmologia parmenídica. Mas jamais na abstração da verdade. O pensamento noético é
o único que a quem é possível ser: a verdade é; o real torna-se. Naquele, em que não
sexo, o ente é ingênito
425
; neste, os ‘entes’ nascem, devêm e morrem. Parmenidicamente
considerados, não são entes, mas sim “deventes ou aparecentes”. Tanto faz. Não
importa tanto o meu esforço em nomeá-los a contento e um tanto inusitadamente.
Com um nome ou outro, são decerto “não-entes”. Eis aqui a proposta que reconheço
em Parmênides: o não-ser é devir e não-ente tudo aquilo que devém e que, como tal,
não pode ser. Mas é necessário pensá-los, é inelutável pensar essas vísceras. Tudo na
ordem sensível é erótico, é guerra e tensa harmonia entre princípios contrários: à
425
B8.
162
162
direita os meninos; à esquerda às meninas’
426
, diz o próprio Parmênides, assemelhando-
se aos seus antecessores
427
. É que aqui, a parte final do poema, o Eleata tem como tema
de pensamento o mesmo objeto que a tradição sempre elegeu. Os “deventes” nascem,
movimentam-se e reproduzem-se pelo sexo, pelas sceras. Vísceras que impõem phrén
a noeîn: desta junção eis o erotismo nasce phroneîn, o modo de pensamento que,
pensando o “mundo”, faz-se inevitavelmente erótico e frenético. Será mero acaso que
o pensamento verdadeiro, contradição deste último, seja ingênito e, também,
imorredouro? Não faz sentido ser simbolicamente proferido por uma deusa, uma
imortal?
Todo esse contexto pode ser contemplado se se o poema em sua
totalidade, porque o projeto da filosofia de Parmênides ultrapassa a novidade que é o
seu conceito de verdade. Por isso que as opiniões se apresentam ali ao mesmo tempo
excluídas e incluídas: excluídas da verdade, mas incluídas dentro das modalidades do
pensar e, de fato, são elas que representam a modalidade incontornável, porque
pensamento, sim, sobre a existência, mas na ordem do devir e do haver.
Recupero aqui o que antecipara na introdução desta tese: o tema principal da
obra parmenídica é o pensamento em suas distintas possibilidades. Dedicando-se a
analisá-lo, Parmênides distingue dois modos basais do pensar, aos quais o poema deve a
sua estrutura: noeîn e
phroneîn. Em termos estruturais, o proêmio cumpre a apresentação
dessa clivagem; a parte intermediária dedica-se ao pensamento noético, assim como a
final ao frenético. Cabe reafirmar que o primeiro desses modos do pensar é distinto
ainda em duas possibilidades: (A) aquele que se mantém puramente noético, cumprindo
o seu propósito quanto à sua finalidade de conhecimento perfeito um Odisseu que
retorna (ne/esqai)
428
à Ítaca; e (B) aquele que se imiscui à esfera do não-ser, o devir,
426
B17.
427
Quanto ao estilo literário, essa tensa dualidade impõe também outro estilo de linguagem à parte final
do poema. O Poema de Parmênides obedece sempre a uma coerência entre forma e conteúdo, entre
linguagem e o que diz a linguagem. Este aspecto constitui, inclusive, mais um argumento contra a
interpretação vigente e majoritária de que verdade e opiniões têm, também para Parmênides, o mesmo
objeto de discurso. Tal como expus, desde a sua origem essa dualidade marca a interpretação filosófica
acerca da phýsis, o que conferiu a esses filósofos uma forma de linguagem característica. Na parte final do
poema, Parmênides alinha com essa forma, justo por tratar do mesmo tema. Quando disserta sobre a
verdade, porém, a forma de linguagem é radicalmente outra, exigindo a exclusão e a cisão ao afirmar o
uno e o absoluto, ao invés da complementaridade ou da antítese. Ora, se o ente verdadeiro estivesse, de
fato, de alguma forma relacionado com a phýsis e o kósmos, compondo-se com ele, se fosse um inteligível
extraído a partir do sensível, como muitos o querem, a linguagem que o descreve angariaria para si esse
mesmo caráter dualista e harmônico, típico a toda metafísica futura, por sinal. Entretanto, esse caráter
literário se encontra no poema quando Parmênides expõe sua cosmologia, adotando nero e
linguagem semelhantes aos dos filósofos que lhe foram anteriores.
428
B1, 26.
163
163
contagiando-se dele, pelo que, ao adquirir seu caráter e feição, trai o seu propósito
quanto à finalidade do conhecimento uma viagem fracassada e sem retorno, e por isso
autocontraditória. A despeito de todo o seu empenho noético, o frenesi do “mundo” o
contamina, perdendo a sua pureza e conquistando para si a condição de um
conhecimento aproximativo, possibilidade máxima a toda e qualquer ciência natural,
fadada, por esse motivo, à historicidade de uma autocorreção ad infinitum: trata-se de um
Odisseu que não conhece regresso, mas que pode encontrar prazer e progresso em suas
aventuras. A imperfeição do saber é a sua
moîra. No que se refere às opiniões, o que de
mais seguro se pode conhecer por elas são justamente os seus modos de pensar e
conhecer.
Em termos históricos, defendo a idéia de que o ponto de partida para essa
inaudita decisão da filosofia parmenídica, a de pensar o próprio pensar, encontra o seu
impulso na constatação da questão do conhecimento como problema para o próprio
conhecimento e, ainda mais gravemente, na identificação da sua impossibilidade se o
quisermos exato e perfeito, o que por sua vez estabelece íntimo diálogo com a obra de
Xenófanes. No binômio Xenófanes-Parmênides encontramos a introdução da dóxa
como elemento impossibilitador do saber, contra o que a verdade parmenídica se
oferece como antídoto e solução. É curioso e valioso notar que a clássica distinção
verdade-opinião, mais tardiamente enunciada também como verdade-senso comum,
tem origem, primeiro, na detecção da dóxa como intransponível obstáculo ao
conhecimento, por parte de Xenófanes, e, depois, na elaboração do conceito de
verdade como solução e superação desse obstáculo, por parte de Parmênides. O
conceito de verdade em Parmênides, o mesmo que o ente, é uma reação à declaração
xenofânica de ser impossível a perfeição, a conclusão do conhecimento. Para torná-lo
possível, Parmênides realiza a inesperada proeza de inventar um novo modo de operar
o pensamento e a linguagem, que se distingue por sua autonomia e autoreferência; um
modo absolutamente artificioso e artificial.
A verdade parmenídica é uma abstração, justamente por abstrair daquilo que
impede ao pensamento a imobilidade e plenitude do perfeito. O devir mostra-se
incognoscível
429
: móvel e movente, ele torna-se inesgotável e inseguro para o
conhecimento, tal como se nos fluísse sempre por entre os dedos, pelo que deve ser
abstraído para que a verdade seja. O ente que Parmênides descreve diz respeito a um
429
Cf. B2, 7.
164
164
determinado domínio de linguagem, puramente ideal e conceitual, enunciador de
proposições elas mesmas entes que ‘existem’ sim, mas ‘existem’ sob essa qualidade e
condição. Eles são e, por isso, não devêm. E isto porque a chave-mestra do Poema de
Parmênides recai precisamente na firme incisão entre ser e devir. O corte que os cinde
já é produto de um pensamento que procede sob o modo posteriormente chamado lógica.
Essa incisão corresponde à própria fundação do princípio de identidade: A=A, B=B,
ser=ser, devir=devir. Como sabemos, a compatibilidade é logicamente impossível, não
havendo entre diferentes qualquer toque. Se algo devém, não é; se é, não devém. Logo,
reitera-se uma vez mais que não se trata aqui de um imóvel do móvel ou de um uno do
diverso, tal como em Platão e em Aristóteles, mas de “realidades” radicalmente distintas
e apartadas.
Que ‘ente’ sensível poderia ser enquadrado na predicação apresentada no
fragmento 8? Tente-se então aplicá-los às sentenças lógicas ‘o ente é, o não-ente não é’
e ver-se-á como se encaixam perfeitamente. Trata-se de uma autodescrição. Ocorre-me
mencionar uma passagem da Metafísica, em que Aristóteles considera a doutrina dos
pitagóricos e, em meio a seus comentários, assevera que os entes matemáticos são não-
sensíveis, carecendo assim de movimento
430
. Exceção feita àqueles relacionados à
astronomia. Daqui retiro duas ilações: (A) a referida exceção dá-se justamente quando
esses entes não-sensíveis pretendem estabelecer relação com sensíveis, neste caso com
os astros; é o bastante para contagiá-los; trata-se de raciocínio análogo ao que aplico, a
partir do Poema de Parmênides, ao modo de proceder noeticamente o pensamento
quando este, porém, toma o sensível como objeto; (B) se entes matemáticos forem de
fato carentes de movimento e não-sensíveis, é bastante plausível que também eles
pertençam ao domínio de entes que referi acima, sendo um outro conjunto, além das
sentenças lógicas, ao qual se pode parmenidicamente afirmar que é. Tome-se a título de
exemplo um sistema algébrico banal, tal como x + y = 9 / x y = 1, e ter-se-á como
resultado único 5 para “x” e 4 para “y”: uma única verdade para cada realidade” ideal.
Tem-se aqui a univocidade, a imobilidade, a extemporaneidade, a imutabilidade, a não-
gênese e a imortalidade do ente parmenídico. São apenas exemplos internos a um
determinado domínio. Exemplos que usam a matemática e a gramática como cosmos
possivelmente condizentes à lógica. Porque a lógica não se confunde nem com uma
430
Metafísica. 990a.
165
165
nem com outra, mas pode lhes ser aplicada: é um modo de raciocínio, um modo de
pensar. Uma possibilidade do pensamento e um artifício da linguagem – a verdade.
De resto, o indesmanchável elo entre persuasão e verdade sinaliza o ente
parmenídico como construção de uma linguagem auto-referente e, portanto, não-
ontológica. O discurso sobre o ente, em Parmênides, pode ser dito “ontológico” em
seu sentido absolutamente literal, o de ser um lógos sobre o ente, um gos criativo e
inventivo, sendo este uma criação da sua própria linguagem. Não se trata de um
discurso que se investe do que usualmente nominamos responsabilidade ontológica”,
pois isso significaria, além de tudo, atrelar-se a um outro, o que abriria uma fenda na
inexpugnável e absoluta identidade do ente. O pensar que se responsabiliza por esse
outro é tanto o da opinião, o dóxico, como aquele que pensa noeticamente o devir. Ainda
que distintos entre si, ambos são não-verdadeiros. Estes sim configuram modos
distintos de pensar um mesmo; sobre este, serão sempre e inevitavelmente
“multíloquos”
431
, assim como infindáveis. Eis o que têm em comum, a quantidade e o
número; de diferente, a qualidade e a estatura.
Mesmo que a verdade em Parmênides estabeleça alguma relação com os
sensíveis, ainda assim o poema apontaria, no mínimo, para o fato de que o conceito
possui natureza radicalmente outra ante a natureza daquilo sobre o que ele se faz
conceito. Mas isso reeditaria a questão: sendo o conceito um radicalmente outro, em
que medida o conceito diz do outro que supostamente conceitua? Esta percepção
tornaria inaceitáveis, por exemplo, tanto a homología heraclítica, como a futura idéia de
verdade como adequação. A incisão pelo que se articula todo o pensamento
parmenídico ou se é totalmente ou não –, calcada no princípio de identidade, não
pode em hipótese alguma ser desprezada e exigiria, também por este caminho, uma
linguagem autônoma, porque o conceito seria idêntico ao conceito e absolutamente
distinto do conceituado. Para onde quer que se volte, dêem-se as voltas que se derem, o
pensamento de Parmênides parece sempre retornar a si mesmo, tal como ele mesmo
indica: “para mim é indiferente de onde eu comece; pois para mesmo voltarei de
novo e de novo”
432
.
A verdade parmenídica compõe um círculo cerrado, um domínio restrito. Que
não se a aplique ao que vige fora desses limites. Parmênides denota enorme lucidez ao
431
Cf. B1, 2.
432
B5.
166
166
cindi-la da realidade sensível, uma vez que os muitos sinais que dela nos dá são de fato
incompatíveis com o caráter e a natureza do cosmo. Ao confiná-la internamente a rijos
liames, circunscrevendo-a, parece advertir para que não se meça a vida com a régua da
lógica. Quando se dispõe a versar sobre a vida do cosmo para usar de uma bela
expressão de Empédocles emprega linguagem completamente distinta da linguagem
que concebe verdade, adota exatamente o seu avesso. É essa a contramão que o poema
nos oferece e que infelizmente não tem sido trafegada.
É isso e tudo isso a grande invenção de Parmênides. Mas não duraram mais
que uma geração de filósofos a obediência a esses firmes liames e a observância da cisão
entre o verdadeiro e o real, até que alguém, num esforço igualmente genial e inventivo,
conciliasse o que para o Eleata era inconciliável. A síntese entre esses dois domínios, o
toque que comunica o incomunicável, começa com Platão. Estilhaçando os rígidos
limites lógicos da verdade, aplicando este conceito radicalmente abstrato às malhas
concretas do mundo sensível, Platão viola a inviolável verdade parmenídica, de que o
célebre parricído no Sofista ainda que seja, de fato, uma reformulação e não um
assassínio de Parmênides é metáfora máxima. A verdade deixa de ser uma
circunscrição e os seus limites serem despedaçados e sua circunferência corrompida,
espraiando-se em todas as direções. Conciliando-se o inconciliável, as dicotomias
ganham hífens e se proliferam. Fazendo da verdade uma palavra completamente outra
embora ainda a mesma, nasce a busca pela contigüidade entre sensível e inteligível a
partir de um mesmo ‘objeto’, que deve ser trespassado desde a aparência aa essência.
Está preparado o terreno de onde brotará um dia a idéia de verdade como adequação,
francamente aniquiladora do sentido e do caráter da verdade no Poema de Parmênides,
em que esta, a primeira de todas as possibilidades pensadas pela tradição, pôde ser
forjada a partir de um projeto histórico de pensamento, sabedor da sua proveniência e
sabedor da sua inovação. Parmênides sabe a tradição mito-poética (proêmio), sabe a
lógica da o-contradição (verdade) e sabe a lógica da contradição
(cosmologia/opiniões). Eis por que Parmênides é o homem que sabe ei)do/ta
fw=ta
.
433
433
B1, 3.
167
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