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No processo de criação das matrizes de atuação de Smoked Love levamos
em consideração a definição de estado, imagem, objetivo e percurso para cada
quadro do espetáculo, investigando, sobretudo, o estabelecimento da relação
cerimonial de compartilhamento desses estados com o público. Memórias,
sensações e impressões surgem das composições colocadas em cena, a partir dos
seres ficionais que emergem na atuação.
Analisando as três categorias de seres ficcionais indicadas em O ator-
compositor (BONFITTO, 2002), actante ou ‘atuante-máscara’ – indivíduo e tipo -,
‘actante-estado’ e ‘actante-texto’, Bonfitto (2009: 98) diz:
Creio que tais categorias privilegiem os procedimentos e práticas realizadas
pelo ator pós-dramático, tais como montagem, musicalidade das ações
(polirritmia, polifonia, modulações), repetições, risco, presente contínuo,
ritualização das ações, corporeidade como matriz de ocorrências
expressivas, etc. De fato, em muitos casos o ator pós-dramático deverá
compor ou incorporar seres ficcionais que não podem ser remetidos a
indivíduos ou tipos humanos; eles serão muitas vezes canais transmissores
de qualidades, de sensações, de processos abstratos, de fenômenos
naturais, de combinações de fragmentos de experiências vividas, de resto
de memórias... Dessa forma, as matrizes geradoras dos materiais de
atuação, utilizados pelo ator pós-dramático, estão relacionadas mais
diretamente com a exploração de processos perceptivos, constitutivos do
que podemos chamar de experiência em diferentes níveis, do que com a
ilustração de histórias ou teses de qualquer gênero.
Já Lehmann não vincula a desreferencialização do sujeito “dramático”, ou do
personagem dramático, ao não-humano. Ele afirma que tais procedimentos de
atuação apenas fogem da homogeneidade e cisão do sujeito, assim como já fazem
a teoria filosófica, percebendo-o de modo fragmentado, polifônico, em uma outra
apresentação do mesmo:
Pois no teatro pós-dramático, quando o texto no sentido de uma clássica
fala figurativa desaparece, não convém afastar-se da representação
humana, como muitos presumem de modo errôneo. O que interessa é uma
outra apresentação do ser humano, a possibilidade do discurso polifônico
teatral, para através do ritmo espaço-temporal do texto, suas rupturas,
cesuras e vira-voltas, articular algo daquela não homogeneidade e cisão do
sujeito, que se tornou um lugar comum na teoria filosófica, mas encontra
ainda muita resistência no teatro, pois se quer ficar, obstinadamente, fixado
em concepções desmontadas há muito tempo, tais como: eu, ação, conflito
trágico, etc. (LEHMANN, 2009: 98)
A experiência de amor, ódio e demais emoções, estados e sensações
suscitados pelos relacionamentos amorosos frágeis, descrentes e liquefeitos de
Smoked Love, para utilizar a expressão de Bauman (2001, 2004, 2009), traz à cena