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receber a mensagem da Vox ignota, a voz que no silêncio convoca-nos
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. Só resta,
então, perguntarmo-nos: estamos dispostos a ouvi-la?
Como aponta Quignard, a música permite que o inaudível se torne voz:
Noite negra no deserto, o ouvido alucinado acredita captar o sopro do nada,
que é sua afecção nua. Os ritmos e os matizes afectuais, prazer,
sofrimento, depressão, modalizam retrospectivamente o som do silêncio.
A música trabalha para dar à luz o audível do sopro inaudível (QUIGNARD
apud LYOTARD, 1996, p. 201).
Cabe-nos agora compreender como age o gesto dentro de nós. O
próprio Lyotard afirma que, em sua dinâmica, ele ―afeta a sensibilidade além do que
ela pode sentir‖ (LYOTARD, 1996, p. 194). A imagem do gesto seria a de um sopro
fugaz, sutil, aéreo. Sopro esse capaz de afetar o pensamento e informá-lo sobre seu
próprio estado através da sensação
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.
Segundo Lyotard, o gesto afetado desperta a alma,
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que só pode existir
se afetada. E a alma, ao ser afetada, fornece alimento ao pensamento, a matéria
sensível. Para compreender o fenômeno Lyotard estabelece a diferença entre a
matéria sonora e aquilo que o músico chama de material. O material é o timbre do
som, que é audível, enquanto que a matéria sonora ―é a dor de ser afetado‖; não é
ouvida, mas está sempre ai. ―O sopro da queixa, que é a matéria sonora, habita
clandestino, o material audível, o timbre‖. (LYOTARD, 1996, p. 204). O mesmo
fenômeno acontece com a matéria visual. Ambas são afetadas pela sensação, a
aisthesis. Deste termo e do termo aistheton (o sensível) surge a palavra estética,
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O sopro inaudito só é subentendido na escuta da língua musical e através dela. É preciso que o corpo cante e se
encante para dar acesso ao delírio do corpo desencantado, para alucinar em si mesmo um outro corpo, mudo, que
não cessa de se retrair. Como, sem a música, subentender um gemido inaudível [...])? Ele é tão silencioso quanto
a música das esferas. As esferas não têm língua e não ouvem sua música. Gemem por estarem jogadas no vazio.
O gemido do cosmo é mudo. Só a percussão, o batimento e a descontinuidade o fazem cantar e permitem,
retrospectivamente, evocar seu silêncio terrível (LYOTARD, 1996, p. 203).
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Sensação: Percepção de certas qualidades dadas aos sentidos, ou formadas pelos sentidos; [...] o fato de sentir,
especialmente o sentir globalmente; o conjunto de operações elementares que permitem apreender os
“sensíveis”. Em todos esses casos, a sensação se distingue do pensamento, o que não significa que se oponha a
ele; a rigor, pode-se conceber inclusive o pensamento como uma espécie de “prolongamento” das sensações, ou
pelo menos como uma “transformação” das sensações. (FERRATER MORA: Dicionário de Filosofia, 2001.
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Na doutrina platônico-agostiniana a sensação é considerada como “ um dos modos pelos quais a alma usa o
corpo. Isso não quer dizer que as sensações tenham exclusivamente sua origem na alma, as sensações são
apreensões de coisas sensíveis. Mas tais apreensões não seriam possíveis se fossem independentes da alma.
Assim, as sensações surgem porque as coisas externas (sensíveis) atuam sobre os órgãos dos sentidos. Mas as
sensações não são simplesmente sensíveis; em todo caso, são sensíveis enquanto apreendidas e, portanto
“conhecidas”. Por esses motivos, na tradição platônico-agostiniana, a sensação, embora de origem corporal [...]
é também “anímica”; a sensação é, em última análise, sensação da alma. (FERRATER MORA: Dicionário de
Filosofia, 2001).