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propriedade privada. Discutir a liberdade de escravos significava interferir no pacto
liberal de defesa da propriedade privada.
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Portanto, um dos momentos decisivos do encaminhamento político da crise da
escravidão foi a lei 2040, de 18 de setembro de 1871, chamada Lei do Ventre Livre. Ela
pregava no seu artigo 1º que “os filhos da mulher escrava que nascerem no Império
desde a data desta lei serão considerados de condição livre”. Este artigo vinha acrescido
de um parágrafo que declarava: “os ditos filhos menores, ficarão em poder e sob
autoridade dos senhores de suas mães, os quais terão obrigação de criá-los e tratá-los até
idade de oito anos completos”.
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A lei, que deixava aos proprietários das mães cativas
instrumentos legais para continuar explorando a mão de obra desses menores,
configurou-se, entretanto, em um passo decisivo em direção a abolição.
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A discussão em torno do fim da escravidão não se deu somente por conjunturas
políticas, mas sim pelas tensões existentes entre os cativos e seus senhores. Tensões
essas que se configuravam muitas vezes em fugas, revoltas e assassinatos. A resistência
em relação ao sistema escravocrata e os caminhos de autonomia encontrados pelos
escravos, mesmo no interior das relações escravistas, vêm sendo tema de inúmeras
pesquisas no Brasil, rebatendo a historiografia tradicional da escravidão que não
percebia o cativo como sujeito.
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CALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte, p.
99. Ver também: PENA, Eduardo S. Pajens da casa imperial: jurisconsultos, escravidão e a lei de 1871.
Campinas: Ed. da UNICAMP, 2001. Nesta obra o autor analisa o discurso jurídico emancipacionista de
jurisconsultos, juízes e advogados do Brasil Império.
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GEREMIAS, Patrícia Ramos. Filhos “livres” de mães cativas: os “ingênuos” e os laços familiares das
populações de origem africana em Desterro na década da abolição. Florianópolis: UDESC, 2001.
Monografia (Graduação em História), p. 9.
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Joseli Mendonça discute em seu livro “Entre a mão e os anéis” sobre as relações entre a Lei do Ventre
Livre e a dos Sexagenários, mostrando que desde os anos 1870 diferentes tendências políticas tinham
interesse na definição de um mercado de mão de obra livre no Brasil.
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Apesar da riqueza do trabalho de Gilberto Freyre, sua ênfase no caráter paternalista e de uma
escravidão amena tornou-se bastante difundida. Sua tese infere uma visão harmoniosa das relações raciais
no Brasil como herança da escravidão. Ver: FREYRE, Gilberto. Casa grande e Senzala: as origens da
família patriarcal brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1987. Caio Prado Junior (1942), concordava
com Freyre, mas contestava sua avaliação positiva: “Se o negro traz algo de positivo, isto se anulou na
maior parte dos casos, deturpou-se em quase tudo mais”, sobre esta citação ver em: SLENES, Robert W.
Na senzala uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava, Brasil sudeste, século
XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p.29. Nos anos 1950-70 a historiografia, influenciada por
Prado enfatizou a vitimização e coisificação do escravo e a marginalização dos homens livres, negros e
pobres, ressaltando a violência que foi a escravidão. Para Florestan Fernandes a herança deformadora da
escravidão seria apenas um dos fatores a explicar a desorganização social que ele percebia como
característica das populações negras. O cativeiro teria desenvolvido nos negros um comportamento
patológico, mesmo após se tornarem livres. Ver: FERNANDES, Florestan F. A Integração do negro na
sociedade de classes. São Paulo: Ática, 1978, v.1. Segundo Slenes, a mesma historiografia que nas
décadas de 1960 e 70 enterrou de vez a noção de uma escravidão brasileira “branda” ou “benigna”,
também deixou o escravizado sem mesmo a capacidade de almejar a formação de famílias estáveis.
SLENES, 1999, p.28. A incorporação do escravo como agente permitiu uma revisão historiográfica sobre