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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP
Catarina Reis Matos da Cruz
Senhora, de José de Alencar: do folhetim ao romance
PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS
EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA
SÃO PAULO
2010
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Catarina Reis Matos da Cruz
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do título de Mestre
em Literatura e Crítica Literária sob a
orientação da Profª. Drª. Maria José G.
Palo.
SÃO PAULO
2010
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Banca Examinadora
__________________________________
Profª. Dr ª. Maria José Gordo Palo
__________________________________
Profª. Drª. Vera Bastazin
__________________________________
Profº. Drª. Luzia Machado Ribeiro de Noronha
Dedico aos meus pais,
Margarida e Modesto (in memorian),
pelo amor e carinho.
AGRADECIMENTOS
Agradeço a Deus por me conceder a realização de um sonho.
À minha orientadora, professora Dra. Maria José G. Palo mestra e educadora que
guardarei para sempre como exemplo de vida, pelo seu respeito e carinho como trata a todos a
sua volta.
Agradeço aos mestres e professores doutores: Fernando Segolin, Maria Rosa Duarte
de Oliveira, Edilene Dias Matos, Juliana Silva Loyola e Santana e Beatriz Berrini. duas
mestras que se tornaram igualmente exemplos para mim: professora Dra. Vera Lúcia Bastazin
pela perfeição em suas explanações e a professora Dra. Maria Aparecida Junqueira pela
inigualável simpatia e competência.
Ao programa Bolsa-mestrado da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo que
possibilitou a realização de mais um sonho.
Ao meu esposo, Wilson, por entender minha ausência e me ajudar a ser esposa, mãe,
estudante e pesquisadora.
Agradeço aos amigos da Diretoria de Ensino Leste, principalmente, a duas pessoas que
me mostraram que um ambiente de trabalho se faz com competência e amor: professora
Dirigente Marília C. S. de Polillo e Samuel Primo.
Enfim, a todos que me incentivaram a trilhar mais um caminho rumo ao conhecimento.
RESUMO
A presente dissertação tem o objetivo geral de desenvolver um estudo analítico
interpretativo do romance Senhora, do romancista José de Alencar em confronto com o
folhetim, gênero jornalístico do século XIX.
O objetivo central é verificar a presença das características da composição folhetinesca no
romance Senhora, entendendo que o escritor iniciou sua carreira literária com a experiência
jornalística.
A temática está assim distribuída: o capítulo I apresenta o panorama do gênero folhetim
até a formação do romance. O capítulo II trata do processo narrativo folhetinesco e do
romance Senhora em paralelo, por meio da verossimilhança. O capítulo III mostra-nos as
personagens do romance e a sociedade fluminense da época em aproximação e
distanciamento na intriga.
Os parâmetros teóricos de suporte analítico são: Marlyse Meyer (1996), Ribeiro (1996),
Roberto Schwartz (2000), Tzvetan Todorov (2008), Antonio Candido (1982), (1975) e (2007)
Mikhail Bakhtin (1993) e (2003), dentre outros.
Priorizamos o método de abordagem hipotético-dedutivo, pois a pesquisa parte da
hipótese que Alencar teria utilizado a metodologia e os procedimentos estruturais da narrativa
folhetinesca (romance-folhetim) no romance Senhora. Os procedimentos da análise e síntese
são constantes na interpretação do romance, resultando numa pesquisa descritivo-explicativa,
entre o romance-folhetim e o romance Senhora e suas estruturas similares.
Palavras-chave: verossimilhança externa; verossimilhança interna; romance-folhetim;
leitor/leitura ; Romantismo; José de Alencar.
ABSTRACT
This dissertation aims to develop an interpretative analytical study of the novel,
“Senhora”, novelist José de Alencar in confrontation with the feuilleton, journalistic genre of
19th century. The central aim is to verify the presence of the characteristics of the feuilleton
composition in novel Senhora”, realizing that the writer began his literary career with
journalism experience.
The themes are: Chapter I presents the landscape of the feuilleton genre until the
formation of novel. Chapter II deals with the storytelling feuilleton process and novel
“Senhora” in parallel, by means of the likelihood. Chapter III shows us the fictional romance
and society from Rio de Janeiro in middle of nineteenth century in approximation and
detachment from the romance-feuilleton. The theoretical support parameters are: Marlyse
Meyer (1996), Ribeiro (1996), Roberto Schwartz (2000), Tzvetan Todorov (2008), Antonio
Candido (1982), (1975) and (2007) Mikhail Bakhtin (1993) and (2003), among others. We
priorized the method of hypothetical-deductive approach because search assumes that Alencar
would have used the methodology and procedures feuilleton narrative structural (romance-
feuilleton) in “Senhora” novel. The procedures of analysis and synthesis are constants in the
interpretation of the novel, resulting in a search descriptive self-explanatory, between the
romance-feuilleton and “Senhora” novel and similar structures of both.
Keywords: external likelihood; internal likelihood; romance-feuilleton; reader/reading;
Romanticism; José de Alencar.
SUMÁRIO
Introdução 11
CAPÍTULO I: Ao correr da pena: “ao correr dos olhos”
1.1. Panorama histórico: do folhetim ao livro 17
1.2. O ritmo vertiginoso da cidade e o romance de costume 27
1.3. A unidade interna do folhetim no romance Senhora:
“ao correr dos olhos” 34
CAPÍTULO II: A personagem folhetinesca e o romance Senhora
2.1. O processo narrativo folhetinesco e o romance Senhora 45
2.2. O verossímil sob as duas ordens externa e interna: a referencial e a
discursiva 52
2.3. O perfil das personagens do romance Senhora: Aurélia e Fernando 56
CAPÍTULO III: O romance Senhora e a verossimilhança
3.1. As personagens de Senhora no cenário social fluminense 62
3.2. O jogo amoroso moralizante: Aurélia e Fernando 68
3.3. A vertente temática ao “correr dos olhos do leitor” no novo painel
do gênero romance 72
Considerações finais 81
Bibliografia Geral 84
Anexos
Anexo A Periódico francês “Feuilleton” 88
Anexo B Crônica: O asseio da cidade, José de Alencar (jornal digitalizado) 89
Anexo C Crônica: O emprego público aposentado, Machado
de Assis 90
Anexo D - Crônica: O Folhetinista, Machado de Assis 93
Anexo E - Crônica de José de Alencar publicada no “Correio Mercantil” em 3 de
setembro de 1854 96
Anexo F - Crônica de José de Alencar publicada no “Correio Mercantil” em 24 de
setembro de 1854 101
O Theatro de José de Alencar fundado em 1910, no Centro de Fortaleza, é referencia artística
nacional. O prédio, tombado pelo Iphan, é exemplo de estilo eclético e tem jardim projeto pelo
paisagismo Burle Marx. (detalhe da arquitetura art-nouveau)
11
INTRODUÇÃO
Nesta dissertação, abordamos o procedimento narrativo do romance de costume
Senhora (1875), de José de Alencar, com base no gênero folhetim jornalístico.
Encaminhamos a análise para a formação das personagens desse romance e para a
questão da sociedade fluminense da época. Nossa intenção é verificar como o
romancista Alencar transferiu as características folhetinescas ao romance Senhora,
entendendo que o romancista iniciou sua carreira literária no jornalismo. Segundo
Martins (2005, p.94), o romancista, ainda, como estudante de Direito, na cidade de São
Paulo, fundou com alguns colegas, a revista Ensaios Literários. Nesta época, Alencar
escreveu três artigos um sobre o ―cultivo da carnaúba‖, outro, sobre ―a história de
Antonio Felipe Camarão‖, aparecendo mais tarde no romance Iracema, como o
personagem Poti, além de um artigo questionando o problema de estilo mais adequado
para a literatura brasileira‖, tema que será abordado em suas crônicas jornalísticas.
No ano de 1854, Alencar inicia sua carreira de cronista, na imprensa carioca, no
jornal Correio Mercantil (1855) e depois no Diário do Rio de Janeiro (1855-1856). O
romancista informou, em uma de suas crônicas (Anexo C), que escrever no espaço
denominado folhetim era uma escrita feita ao correr da pena‖, que o escritor tinha
que preparar seu texto para o dia seguinte ou para o próximo final de semana, em ritmos
vertiginosos. Em recíproca, esses textos para Alencar , deveriam ser lidos ―ao correr dos
olhos‖.
O gênero folhetim existia na França, feuilleton, desde o início do culo XIX,
nos ―rodapés" de jornais, e apresentava textos com assuntos leves, críticos, dramáticos,
com intenção de entretenimento. Esse gênero sofre uma modificação necessária para
atrair a atenção do público. Èmile Girardin, fundador do jornal La Presse, em 1836,
tem a ideia de publicar histórias em seu jornal, e, após um ano de sucesso Girardin
convida Balzac, que já era um romancista reconhecido na França, para escrever o
primeiro feuilleton-roman. Surge, assim, a ―ficção em pedaços‖, o romance-folhetim
que começa a ser utilizado por muitos jornais, cada um procurando o melhor escritor
com histórias que atraíssem cada vez mais leitores. Devido ao seu sucesso, passou a ser
uma folha à parte, não mais um espaço do jornal, conforme vemos no anexo A.
Na França, segundo Meyer (1996, p. 66) o romance-folhetim poderia ser
denominado como ―popular‖ ou ―democrático‖, pois seu público alvo era o povo, que
12
buscava tanto fugir da realidade com as histórias fantasiosas, como ver a sociedade com
um olhar mais crítico. Dessas duas vertentes do folhetim destacam-se dois escritores,
Alexandre Dumas que recorria à ficção e muitas vezes ao sobrenatural para atrair seus
leitores, e Eugéne Sue, mais realista, que abordava os problemas da sociedade, como a
miséria do povo francês. Não podemos nos esquecer de citar Victor Hugo (1802-1885),
com seu famoso romance, Os miseráveis (1862), que fora publicado primeiramente no
folhetim. O enredo tratava da revolução francesa e das desigualdades sociais geradas
pelas lutas revolucionárias.
O romance-folhetim chega ao Brasil, na segunda metade do século XIX, e faz
sucesso aumentando inclusive as vendas dos jornais. Inicialmente, o folhetim no jornal
brasileiro era composto de crônicas, poesias e narrativas curtas que eram escritas no
rodapé dos jornais e traziam entretenimento para os leitores e, principalmente, às
leitoras. Os jornais que se destacaram com o folhetim foram o Correio Mercantil e o
Diário do Rio de Janeiro.
Esses textos evoluíram para histórias escritas em ―pedaços‖, como na França,
com heróis e heroínas e o leitor/leitora acompanhavam as aventuras dos heróis, que
mais tarde foram escritas em volumes. Algumas leitoras costuravam os capítulos
publicados diariamente ou semanalmente para no final terem o livro na íntegra. As
revistas brasileiras também foram usadas para divulgar o romance-folhetim.
Inicialmente, as histórias lidas pelos brasileiros eram traduzidas do francês e
publicadas nos jornais brasileiros e revistas. Depois vieram, na produção nacional,
nomes como Joaquim Manuel de Macedo, José de Alencar, Machado de Assis, Aluísio
de Azevedo, Raul Pompéia entre outros que tiveram menos destaque. Macedo faz
sucesso com A moreninha, em 1844, e o público acompanha a história do herói Augusto
e a heroína ―moreninha‖ em fatias.
José de Alencar fez sucesso com as crônicas no rodapé do jornal, algumas
publicadas, em 1874, na coletânea Ao correr da pena. Escrita no Correio Mercantil esse
espaço era chamado ―Páginas Menores‖, em que Alencar escreveu suas crônicas, (como
observamos no Anexo A), uma delas datada do dia 29 de outubro de 1854.
A partir dessas crônicas, Alencar inaugurou os romances-folhetins urbanos, tanto
pela temática desenvolvida pelo autor como por algumas características folhetinescas
que permaneceram nos romances. Nesses textos, o escritor observava o cotidiano da
sociedade fluminense de maneira crítica e irônica. O romancista, considerado o pai do
romance no Brasil, sofreu influência do gênero folhetinesco, que, apesar de advir de
13
outro país, absorve características nacionais. José de Alencar, antes de iniciar sua
carreira de jornalista é influenciado por nomes da literatura francesa e inglesa. Segundo
o romancista, em seu texto autobiográfico de 1873, Como e por que sou romancista
(1998, p. 43), ele teria lido com frequência Balzac, Alexandre Dumas, Alfredo de
Vigny, Chateaubriand e Victor Hugo, escritores que, além de reconhecidos como
romancistas, fizeram sucesso também como folhetinistas.
Os primeiros romances-folhetins de Alencar foram Cinco Minutos (1856) e O
Guarani (1857), o primeiro tratava do amor impossível, o segundo, da idealização do
índio e da nossa pátria. O Guarani recebeu o reconhecimento do público e da crítica.
Alencar, escreveu mais tarde, romances históricos, indianistas e de costume ou urbanos,
iniciando uma literatura nacionalista e até realista, ao escrever sobre seu país e os
problemas que começavam a surgir.
Ao pesquisarmos a fortuna crítica de Alencar sobre o romance Senhora (1875)
encontramos dissertações em várias áreas que o analisam sob algumas óticas. A
primeira a nos referirmos pertence à área de História, a de Soares (2003), com o título:
Moça educada, mulher civilizada, esposa feliz: relações de gênero e história em José de
Alencar, em que apresenta uma análise das personagens femininas dos romances
urbanos Lucíola, Diva e Senhora, que intencionavam instruir suas leitoras, na linha dos
romances moralizantes; a de Santos (2008), que pertence à área de Sociologia e
Antropologia, Amor, família e sociedade brasileira: literatura e vida íntima no século
XIX, por meio da análise dos romances: A Moreninha (1844) de Joaquim Manuel de
Macedo, Senhora (1875) de José de Alencar e Dom Casmurro (1899) de Machado de
Assis. Essa dissertação analisa as relações íntimas amorosas que eram codificadas na
sociedade brasileira do século XIX, na linha de uma análise comparativa.
Encontramos dissertações com análises comparativas justapondo elementos do
romance Senhora, como a dissertação de Matta (1998), Representações da casa em
Senhora e Dom Casmurro (Letras), que interpreta o elemento ―casa‖ dos dois romances.
Há, ainda, as dissertações que fazem análises comparativas entre os romances do
próprio Alencar, como a de Florêncio Coutinho (1997), A imagem do feminino em José
de Alencar Diva, Lucíola, Senhora (Literatura). Esse estudo, segundo o resumo, faz
uma abordagem psicológica, e, consequentemente, cultural da representação da mulher
para cada romance, como um tipo de arquétipo da imagem feminina, tanto na literatura
quanto na cultura ocidental‖, utilizando os conceitos yunguianos. Ainda na linha do
feminino, a de Thiengo (2001), O perfil de mulher no romance Senhora, de José de
14
Alencar (Literatura), a autora investiga a busca realizada pela personagem Aurélia que
para o autor sugere um antifeminismo, que ocorre uma ―suposta inversão de papéis‖,
masculino e feminino; a de Moraes (2003), Mulheres fundadoras de Alencar: Iracema,
Senhora e Lucíola, em que a autora apresenta um estudo sobre as protagonistas,
apontando-as como mulheres fundadoras, pois ultrapassaram os limites histórico-sociais
que lhes foram impostos nos séculos XVI e XIX; a de Silva (2007), De olhar e olhares:
a ficção urbana de Alencar e as tramas sociais, essa dissertação faz uma análise dos
romances Encarnação, Diva e Senhora com o objetivo de analisar a presença do olhar
na ficção urbana de José de Alencar, além de ―possibilitar a discussão do conflito
anunciado pelo escritor brasileiro, motivado por duas maneiras diversas de olhar a
realidade‖: a ―visão material‖ e a ―visão espiritual‖ do mundo; a de Ramos (2000)
Diva, Lucíola e Senhora: formas de tratamento em três perfis de mulher (Língua
portuguesa), ainda na linha de comparação das personagens, essa dissertação investiga
―quais eram e como ocorriam as formas de tratamento nos diálogos de três romances de
José de Alencar‖.
O teórico Roberto Schwartz (2000) analisa o romance Senhora como um livro
imitado, mas de outro lado, (...) como ponto de partida para um grande autor, que viria
depois e seria Machado de Assis, que acaba inventando uma nova solução.‖
1
A solução
para Schwartz refere-se à criticidade que Alencar inicia com seu romance, mas é com
Machado que ocorre uma visão crítica, usando da ironia para falar do caráter do
indivíduo na sociedade.
O crítico João Luiz Lafetá (2004, p.107), em seu ensaio, A dimensão da noite,
diz que Alencar ―busca estabelecer as conexões entre forma literária e processo social,
mostrando como a matéria histórica, descrita de modo estruturado no primeiro capítulo,
constitui o centro formal do romance Senhora‖. Essa conexão entre forma e sociedade
está relacionada à verossimilhança interna e externa da obra. O escritor preocupava-se
em convencer o leitor de que suas histórias eram tiradas da sociedade em que ele vivia.
Para entendermos o folhetim, pesquisamos no livro Folhetim: uma história, de
Meyer (1996), que é um verdadeiro guia para a compreensão histórica do folhetim,
tanto na França como no Brasil. Para entendermos o processo narrativo do folhetim,
usamos Ribeiro (1996), pois ele apresenta em seu livro Imprensa e ficção no século XIX
1
Em entrevista a Revista brasileira de Ciências Sociais Vol.23 n° 67- junho/2008.
15
Edgar Allan Poe e a narrativa de Arthur Gordon Pym, que apresenta ―técnicas de
construção-literário-folhetinescas‖ desses autores, a matriz que nos ajudou a identificar
características do processo narrativo do folhetim e associá-lo à narrativa do romance
Senhora.
A dissertação está dividida em três capítulos: o primeiro apresenta o folhetim,
gênero literário publicado nos jornais do século XIX e aclamado pela sociedade da
época, que evolui para o romance-folhetim até chegar ao gênero romance.
Abordaremos, ainda nesse capítulo, a mudança do processo narrativo
folhetinesco para o romance-folhetim como prenúncio histórico de uma sociedade
moderna e capitalista. Faremos, ainda, uma comparação entre as características
composicionais do folhetim e as do romance Senhora, para verificarmos suas
semelhanças na construção do processo narrativo de ambos os gêneros. Discutiremos a
vertente ―ao correr da pena: ao correr dos olhos‖, e, para isso, apontaremos a concisão e
a rapidez do folhetim paralelo ao ritmo da cidade do Rio de Janeiro e o papel do novo
leitor em emergência.
No segundo capítulo, enfatizamos o surgimento do gênero romance no Brasil e o
aspecto melodramático advindo do teatro, também usado no romance-folhetim. A fim
de analisarmos o processo narrativo do romance em questão, abordaremos,
principalmente a questão da personagem e da sociedade. Ressaltaremos a formação das
personagens Aurélia e Seixas, tratando a questão da verossimilhança literária, além de
discorrermos sobre o cronotopo de Bakhtin, para discutirmos as relações tempo e
espaço.
No terceiro capítulo, apresentamos a análise das personagens do romance
Senhora, Aurélia, Seixas, Lemos e D.Firmina imbricadas na intriga e no cenário social
fluminense.
A vertente temática ao ―correr dos olhos do leitor‖ será o nosso ponto de
chegada desta trajetória investigativa, enfatizando o novo olhar do escritor e do leitor do
romance brasileiro.
16
I Ao correr da pena: ―ao correr dos olhos‖
de haver muita gente que não acreditará no meu conto
fantástico; mas isto me é indiferente, convencido como estou de
que escritos ao correr da pena são para serem lidos ao correr dos
olhos. (ALENCAR, 2003, p. 3)
17
1.1. Panorama histórico: do folhetim ao romance
No século XIX, com o surgimento da imprensa, o jornal tornou-se o primeiro
meio de comunicação que modificaria a sociedade européia e depois a brasileira. Nele
havia as notícias do dia-a-dia e também a ficção, sendo a última, a que, aqui, nos
interessa.
Na França, segundo Meyer (1996, p.57), no início do século, havia um espaço
no jornal denominado ―feuilleton‖, ou ―rez-de-chaussée‖ ou rodapé, ―tradicionalmente
de tom e assunto mais leves que o resto do jornal‖, cheio de variedades, que foi a via
pela qual entrou a ―ficção, na forma de contos, novelas curtas‖, até em poesia.
O folhetim, ainda segundo a autora, era um pot-purri de assuntos‖, e Martins
Pena o chamou de ―sarrabulho lítero-jornalístico‖, pois misturava o tom literário e
jornalístico. A crônica foi muito usada para abordar esse ―pot-purri‖ de assuntos.
Segundo Bignotto (2004, p. 18), o folhetim é o responsável pelo surgimento da
crônica atual, inicialmente, escrita em jornais para tratar de fatos cotidianos, mas com
um tom de entretenimento. A autora apresenta Fernão Lopes como o primeiro cronista
português do século XV, que narrava ―os feitos dos antigos reis de Portugal até o
reinado de D. Duarte‖.
No Brasil, conforme a autora, Pero Vaz de Caminha, ao escrever a carta para D.
Manoel, em 1500, produzia a primeira crônica brasileira. O tom de conversa presente na
carta permanece nas crônicas jornalísticas do século XIX ao se dirigirem aos leitores. A
diferença é que a carta tinha um único alvo, no caso, o rei D. Manuel, enquanto a
crônica jornalística abrange leitores das classes sociais, lembrando que, na época,
poucas pessoas eram alfabetizadas.
Todos esses termos, carta, crônica apontam para a característica de variedades,
variétés‖, do folhetim. Outro termo usado era ―fait divers:
a página de fait divers é a única que não envelhece. Se é impossível,
hoje, ao ler um jornal antigo, compreender algum fato político sem
recorrer ao contexto, sem apelar para nosso conhecimento histórico, a
leitura de um fait divers ainda pode, cem anos depois, causar os
mesmos arrepios ou espanto. (MEYER, 1996, p. 99)
Esse afastamento da realidade é um índice de que a literatura estava chegando
aos jornais, no ―rodapé‖. Hohlfeldt (2003, p.18) afirma que o folhetim ―desdobra-se em
diferentes perspectivas: do ponto de vista formal, pode ser um lugar físico específico do
18
jornal‖, chamado de ―rés do chão‖, em relação ao conteúdo, ―trazia crítica teatral ou
literária‖, evoluindo para o ―romance-folhetim‖, com ―enredos complexos, grande
número de personagens, ações eletrizantes‖. Assim, esta modalidade de romance
começou a ganhar um novo público-leitor.
O jornalista Émile Girardin, aproveitando o sucesso desses textos variados nos
jornais franceses, ―decide publicar a ficção em pedaços‖, atraindo a atenção do leitor
para a continuação da história, a expressão conhecida: ―continua no próximo número‖.
Surge, então, o feuilleton-roman ou romance-folhetim. O primeiro a receber essa
denominação foi Lazarillo de Tormes, de autoria anônima e publicado em 1836. Depois
Girardin convidou Balzac, reconhecido como um grande romancista, para escrever
uma novela ―La vieille fille‖ iniciando, assim, no rodado jornal La Presse, as séries
dos romances-folhetins. Os jornais da época começaram a procurar escritores para
produzirem esses tipos de textos.
La Presse abre a série dos seus feuilletons (folhetins) com a
publicação das obras de Balzac, que, de 1837 a 1847, lhe fornece a
cada ano uma nova novela, e de Eugène Sue, que lhe entregará a
maior parte das suas obras. O Siècle (jornal) joga contra os autores de
La Presse Alexandre Dumas, e Dumas (filho), cujo Três Mosqueteiros
têm um êxito enorme, traz ao jornal enormes receitas. O Journal des
Débats deve a sua popularidade principalmente aos Mistérios de
Paris, de Èugene Sue, que é, depois da publicação desta novela, um
dos autores mais bem pagos e um dos mais procurados. (HAUSER,
1980, p. 894)
Segundo Meyer (1996, p. 31), Alexandre Dumas era conhecido como um
grande dramaturgo e romancista, e o folhetim com desconfiança, mas em 1838 adere
a esse gênero e será um dos melhores, com histórias como Os três Mosqueteiros (1844)
e O Conde de Monte Cristo (1846). Èugene Sue, conhecido pelos seus romances-
folhetins democráticos, Mistérios de Paris (1843) e O judeu errante (1845) que
discutiam os problemas sociais franceses, e Balzac com ―descrições de ambientes ao
mesmo tempo realistas e indicadoras de personalidade e história de vida‖ (p.172). O
romance As ilusões perdidas foi grande sucesso do escritor, em que mostra o ―mundo
das especulações‖ (p. 222) e ―escusas negociatas‖.
O romance-folhetim se espalha pela Europa com grande sucesso de público e
chega ao Brasil, conforme Meyer (1996), em 31 de outubro de 1838 com a história, O
Capitão Paulo, de Alexandre Dumas, publicada no Jornal do Correio. Inicia-se assim
nos jornais:
19
feuilleton-roman, que começa a jorrar descontinuamente a partir de
1839, que é também o ano em que o jornal acolhe as chamadas
primeiras manifestações da ficção em prosa brasileira, com os textos
de Pereira da Silva, J.J.da Rocha, Paula Brito e outros. A invasão
maciça do folhetim traduzido do francês, que vai estender-se por anos
a fio nem por isso elimina o calouro romance nacional: ambos vão
coexistindo em regime de alternância. (MEYER, 1996, p. 32)
Os considerados iniciadores definitivos do romance-folhetim são Teixeira e
Souza, A filha do pescador (1844) e Joaquim Manuel de Macedo, A moreninha (1844),
mas é com José de Alencar que começa a surgir uma característica nova: o nacionalismo
do romance brasileiro. Com O Guarani, publicado em 1857, Alencar expõe o índio
brasileiro idealizado como herói e as matas como um lugar perfeito. Começam a entrar
em cena as histórias em que o pano de fundo é a paisagem brasileira. Outros escritores
que utilizaram a publicação ―em fatias‖ foram Machado de Assis, Raul Pompéia e
Aluísio Azevedo. A utilização do espaço no jornal, ou seja, o folhetim, não significava
que todas as histórias pertenciam a esse gênero. Para Meyer (1996, p.63) o folhetim
começa a ―designar também o que se torna o novo modo de publicação de romance‖,
pois, após a grande aceitação pelo público, a história recebia status de ―romance‖ e era
publicado em um ―volume‖.
No Brasil, o romance-folhetim tem o mesmo processo de aceitação que na
França. No início, ele era apenas um espaço no rodapé do jornal, o fait divers” com
crônicas e comentários de muitos escritores. Esse espaço era usado para falar da
sociedade e para discutir a literatura. Um dos assuntos era a definição do folhetim, que
surgia como um novo gênero no cenário literário brasileiro, os escritores Machado de
Assis e José de Alencar tentaram definir essa novidade literária.
Machado de Assis o chamou de ―frutinha do nosso tempo‖, em sua crônica O
empregado público aposentado, publicada no jornal Espelho no Rio de Janeiro, em
1859, que está na íntegra no anexo A :
Este meio mesmo de retratar à pena, como faço, revoltaria o espírito
tradicional da grande múmia do passado. Uma inovação de mau gosto,
dirá ele. É verdade; não representa apenas a superfície da epiderme,
vai às camadas mais íntimas da matéria organizada. (...) O jornal é
lido, analisado com a finura de espírito de que ele é capaz. Devora-o
todo, anúncios e leilões; e se não vai ao folhetim, é porque o folhetim
é frutinha do nosso tempo. (ASSIS, 1994, p.167)
20
O folhetim, na época, representava o moderno; por isso era rejeitado pelo
empregado público aposentado que, por ter um ―espírito tradicional‖, não aceitava essa
novidade; lia o jornal, mas não o folhetim. Esse novo gênero se distanciava do aspecto
informativo da linguagem jornalística e utilizava a ficção misturada com a realidade.
José de Alencar inicia sua carreira como jornalista, escreveu crônicas no Jornal
do Comércio (1854-1855), mas por causa das censuras recebidas em relação ao seu
artigo sobre o poeta Gonçalves de Magalhães, sai e ingressa no Diário do Rio de
Janeiro. Alencar desenvolveu suas crônicas nos folhetins que discutiam muitos
acontecimentos da sociedade, ou apenas uma reflexão sobre algum tema como o próprio
folhetim até chegar aos romances-folhetins.
Alencar considerava o folhetim ―o livro da semana‖ (MARTINS, 2005, p. 103-
04), e usava-o para escrever contos de fadas, poemas, as crônicas, que muitas vezes
assumiam a forma de ―pequenas narrativas‖. Abaixo segue o trecho de uma crônica em
que Alencar escreve no Diário do Rio de Janeiro, em 24 de setembro de 1855:
Domingo passado o caminho de São Cristóvão rivalizava com os
aristocráticos passeios da Glória, do Botafogo e São Clemente, no
luxo e na concorrência, na animação e até na poeira. O Jockey Club
anunciara a sua primeira corrida; e, apesar dos bilhetes amarelos, dos
erros tipográficos e do silêncio dos jornais, a sociedade elegante se
esforçou em responder à amabilidade do convite. (ALENCAR, 2003,
p. 10)
Alencar escrevia sobre os acontecimentos sociais fluminenses, o Jockey Club era
o lugar em que a aristocracia se encontrava para conversar. Parece que o romancista não
apenas destaca o fato, mas aponta com certa ironia a ideologia burguesa ao se preocupar
com a elegância. Entendemos também que a expressão ―silêncio dos jornais‖ possa se
referir à censura e à intenção de escrever no jornal apenas o que é permitido,
entendendo assim, que vale mais destacar as futilidades do cotidiano da ―aristocracia‖
fluminense do que tratar de assuntos sérios.
O ―espaço do rodapé‖ era usado para discutir os acontecimentos da época,
geralmente sem nenhum aprofundamento crítico, apenas para apontar o que a
aristocracia considerava importante: as festas de ―aniversários felizes‖.
A semana que passou foi a dos aniversários felizes. Domingo
festejaram-se os anos da nossa Princesa, que trocou a bela terra do
21
Brasil pelo poético céu da Itália. Quarta-feira teve lugar a solenidade
do aniversário da nossa Imperatriz, que deixou as lindas ribeiras de
Nápoles pela majestosa baía do Rio de Janeiro. (...) Se perdermos por
algum tempo uma flor graciosa da nossa coroa imperial, ganhamos
para sempre um anjo de bondade, um exemplo das belas virtudes.
(ALENCAR, 2003, p. 106)
No trecho de sua crônica do dia 24 de setembro de 1855, que está na íntegra no
Anexo E, Alencar comparou o folhetim a um ―monstro de Horácio‖ e identificou-o
como ―um novo Proteu‖ (MARTINS, 2005, p.101).
É uma felicidade que não me tenha ainda dado ao trabalho de saber
quem foi o inventor deste monstro de Horácio, deste novo Proteu, que
chamam folhetim; senão aproveitaria alguns momentos em que
estivesse de candeias às avessas, e escrever-lhe-ia uma biografia, que,
com as anotações de certos críticos que eu conheço, havia de fazer o
tal sujeito ter um inferno no purgatório onde necessariamente deve
estar o inventor de tão desastrada idéia. (ALENCAR, 2003, p.12)
(Grifos nossos)
A primeira metáfora, ―monstro de Horácio‖, está relacionada à epopéia,
narrativa usada pelos clássicos. Para Alencar, o folhetim teria vindo desse tipo de
histórias, mas por causa da indefinição e à mistura de gêneros, além da rejeição sofrida
pelos escritores conservadores, o folhetim é considerado um ―monstro‖, por não ter
forma definida.
A segunda metáfora para o folhetim, ―um novo Proteu‖, refere-se às notícias
mais interessantes aos leitores, usando um tom de conversa para conseguir atraí-los.
Além disso, é como se o folhetim fosse o iniciador de uma novidade, pois esse mito
grego tinha o privilégio de conhecer o futuro e mudava de forma, assim como o
folhetim.
Alencar em suas últimas crônicas do jornal Diário do Rio de Janeiro indicava
aos seus leitores que mudaria de gênero. Em 18 de novembro de 1855, escreve:
Se bem me lembro, já dei aos meus leitores um folhetim-romance, um
folhetim-comédia, um folhetim em viagem, um folhetim-álbum.
Faltava-me porém dar um folhetim-livro, e por isso quero hoje realizar
essa nova transformação do Proteu da imprensa. (ALENCAR, 2003,
p.207-8)
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O Proteu da imprensa será agora transformado em literário, com o objetivo de
criar histórias ficcionais para serem lidas em livros. Ele prepara seu leitor, advertindo-o
para limpar os óculos e cheirar o rapé, com se dissesse que eles entrariam em outro
mundo, o da ficção:
concebi de escrever hoje um livro-folhetim. de ser um livro
completo, precedido de um prólogo, dividido em capítulos, e escrito
com toda a gravidade de um homem predestinado a visitar a
posteridade envolvido em uma capa de couro e na companhia das
traças, das teias de aranha e da poeira das estantes. Preparem-se pois
os meus leitores, limpem os vidros dos óculos, tomem a sua pitada de
rapé, e... aí têm o livro. (ALENCAR, 2003, p. 208)
Assim como na França, o Brasil começa a apresentar ficção ―em pedaços‖, o
romance-folhetim. Segundo Arnt (2001, p.56), Alencar publicou seu primeiro romance-
folhetim, Cinco Minutos, em 1856, no jornal Diário do Rio de Janeiro, após o
encerramento da publicação, presenteou os assinantes do jornal com a história em um
volume. Mais tarde, veio outro romance-folhetim, A Viuvinha, em 1857 e O Guarani,
que obteve grande sucesso do público e da crítica.
O romance-folhetim, segundo Meyer (1996, p.64) pode ser dividido em três
fases, seguindo a ordem cronológica. A primeira de 1836 a 1850, indigitado, nefando,
perigoso, muito amado seus representantes foram: Eugene Sue, Alexandre Dumas,
pai, Soulié, Paul Féval,‖; a segunda de 1851 a 1871, ―relato romanceado do cotidiano
real‖, e a última fase 1871 a 1914, o tom romanceado é substituído pelos ―dramas da
vida‖. (Meyer, 1996, p. 59)
Essas histórias, segundo a autora, serviam para distrair o leitor, principalmente
na sociedade européia que estava passando por muitas transformações, e a desigualdade
social começava a aumentar nos grandes centros urbanos. ―Essa é a paz social a que se
refere o panfleto de Girardin, que visa a distrair, no sentido pleno da palavra‖ (MEYER,
1996, p.67). O leitor precisava ler histórias com heróis e heroínas que o tirasse desse
contexto de revoluções e miséria, levando-o a um mundo de imaginação e fantasia.
A terrível miséria rural leva o homem do campo à cidade, no engodo
do salário-miséria dos operários das então recém-criadas manufaturas.
―Liberdade‖ de indústria, ―liberdade‖ de trabalho são os grilhões que
aprisionam homens, mulheres e crianças, que nem sequer ganham o
bastante para não morrer de fome. (MEYER, 1996, p.66)
23
No segundo momento, de 1851 a 1871, houve o ressurgimento do romance-
folhetim que fora proibido por Bonaparte III. A autora destaca o romance-folhetim As
proezas de Rocambole, de Ponson Du Terrail, que apresentava a sociedade capitalista
com visão pessimista, mas com traços melodramáticos e, a partir dele, surge o termo
rocambolesco que
(...) designa precisamente aquele conjunto de ações, conspirações,
planejamentos por um cabeça fria, de inteligência ímpar, para a
urdidura da trama que permite, utilizando todos os talentos, todos os
vícios, subornando, ameaçando, lançando mãos do crime e da sedução
alcançar a qualquer preço, sem o menor escrúpulo, desconhecendo até
a menção da moral, a única meta que interessa: o dinheiro (MEYER,
1996, p.120).
Nessa fase do romance-folhetim, as histórias apontavam para uma crítica social
e análise psicológica dos personagens, visto que começam a analisar como o dinheiro
afetava o homem na sociedade. Nesse período, houve a publicação em folhetim do
romance Madame de Bovary de Gustave Flaubert, e a mulher começa a ser observada
de maneira mais realista, não mais idealizada com comportamentos e pensamentos
puros. Elas querem ter poder de escolha, inclusive amorosa, visto que, antes, era a
família que escolhia o esposo.
A última fase, refere-se ao período entre 1871 a 1914, em que os temas se
distanciam dos ―arroubos românticos, das exaltadas indignações e denúncias, castigos e
vinganças‖.
Filho de seu tempo, matéria viva, o folhetim da terceira fase segue na
esteira do naturalismo, (...) O romance-folhetim era então a grande
narrativa dos ―dramas da vida‖. Ele imita a vida, que por sua vez imita
o folhetim, (...) também revisita o velho melodrama, gênero teatral
(MEYER, 1996, p. 233).
Assim, o romance-folhetim se aproxima das narrativas realistas, sem, no entanto,
perder o melodrama que se apresenta no teatro. Ribeiro (1996, p. 28), citando Alfred
Nettement, indica que o romance-folhetim da época era um ―teatro móvel que procura
os seus espectadores em vez de esperá-los‖. As narrativas, apesar de mostrarem traços
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da realidade, ainda estavam presas a assuntos românticos que seduziam o leitor como: o
encontro da pessoa amada, o bem e o mal e o final feliz.
A classificação do romance-folhetim feita por Hohlfeldt (2003, p. 44-46) o
divide em dois aspectos: em relação ao ―público‖ e ao ―conteúdo‖.
Quanto ao público havia: romance para as mulheres, tendo como ―variante a
fotonovela‖ e mais tarde as telenovelas; para os homens, ―relatos aventurescos,
policiais, de ficção científica‖, ―até os eróticos e francamente pornográficos‖ e para
crianças e jovens, o entretenimento e o riso.
O conteúdo referente à narrativa era lacrimejante ou sentimental; de alcova;
histórica; de modos, usos e costumes; narrativa de terror e horror; de capa e espada;
marítima ou de viagens; faroeste; narrativa policial. Essa divisão nos aponta para os
romances que derivam de alguma dessas narrativas.
O público era quem determinava o tempo do romance-folhetim no jornal; se a
história agradasse, os conflitos se estendiam para segurar os leitores. Assim,
Os jornais com público socialmente mais elevado ou com veleidades
culturais preferem folhetins mais curtos. Isso os aproxima da
―narrativa legítima‖ (...) e implica obviamente outra estrutura
narrativa, mais ágil de mais rememoração (...) um tema exótico,
aventuras policiais e seu leitor seria de preferência do sexo masculino.
(...) Este folhetim interminável que subentende técnica narrativa e
modos de leitura mais grosseiros, esse folhetim-feuve é predominante
sentimental, o ―romance da vítima‖. (MEYER, 1996, p. 231).
As narrativas eram formadas com base no público, para os homens uma leitura
mais curta e objetiva, seriam as crônicas policiais, mais tarde os romances. Para as
mulheres, as narrativas sentimentais, sem muita preocupação com a coerência; podiam
ser mais longas, em capítulos, e o tema era da ―vítima‖, sofredora, com heróis e
heroínas, contendo, assim, o teor melodramático.
Essas histórias deveriam ser atraentes para que, cada vez mais, o jornal pudesse
conquistar mais leitores. Ribeiro (1996), ao citar Régis Messac, nos confirma que
os indícios das narrativas folhetinescas têm que ser extremamente
impressionantes para agarrar o leitor logo no princípio, não
importando que, após o início, a história desenvolva-se menos
habilmente, pois nesse ínterim o leitor já fez a renovação da assinatura
do jornal. Explica, também, que os finais são menos consistentes que
o começo ( MESSAC, apud, RIBEIRO, 1996, p. 30).
25
O leitor do folhetim tinha suas expectativas, de certa maneira, respondidas uma
vez que isso favorecia o jornal a manter seus leitores; por isso muitas histórias eram
modificadas a pedido do editor do jornal: ―o leitor/ouvinte do folhetim é, ao mesmo
tempo, destinatário e determinador dos rumos dessa história‖ (MEYER, 1996, p. 235).
Para manter o leitor preso às histórias, os escritores também se preocupavam
com a narrativa, buscando sempre aproximar sua linguagem literária à linguagem
cotidiana e construir personagens que saíssem do dia a dia, para atrair mais o interesse
dos leitores.
Alencar, em seus folhetins e romances-folhetins, conforme aponta Martins
(2005, p.104), utiliza uma linguagem com ―tom de conversa amena que estabelece com
o interlocutor‖, criando, assim, uma ―aproximação entre autor, leitor e assunto‖. Como
exemplo, o trecho, a seguir, da crônica do dia 31 de dezembro de 1854: Agora, meu
leitor, se vos destes ao trabalho de ler o que ficou escrito, talvez desejeis saber a
explicação disto.‖ (ALENCAR, 2003, p.80).
Os temas dos romances-folhetins possuíam suas características próprias,
principalmente para satisfazer o público leitor:
Aspectos da vida criminosa e miserável: assassinato, envenenamentos,
raptos, reconhecimento das origens de nascimento e outros; aspectos
da vida urbana selvagem; maniqueísmo na contraposição entre o bem
e o mal: o herói e a sociedade, a felicidade e a desgraça, amor puro ou
selvagem, ódio unilateral, a virtude, os vícios e outros; o poder dado
àquele que é mais forte, mais hábil, mais audaz. (RIBEIRO, 1996, p.
45-6)
Os escritores criavam suas histórias para abordar as questões sociais e,
principalmente, o caráter do indivíduo, suas ―virtudes‖ e ―vícios‖ na sociedade
capitalista, em que o ―mais forte‖ vence.
Esses temas dúplices atraíam a atenção do leitor e os deixavam curiosos em
saber quem venceria, o bem ou o mal, o herói ou o vilão. O suspense criado por esses
escritores era o elemento que segurava a história, pois o leitor buscava, no dia seguinte,
a solução do problema que fora apresentado.
Ribeiro (1996, p.44-6) elenca ―uma síntese do conjunto básico das cnicas de
construção ficcional mais representativas da convenção narrativa folhetinesca‖.
Apontamos aqui um resumo dessas técnicas: títulos atraentes; histórias impressionantes
e sensacionalistas para provocar o interesse do leitor; abundância de diálogos; regra das
26
três multiplicidades de tempo, de lugar e de ação; referências diretas ao dia, mês e horas
da história; exploração de uma multiplicidade de pontos de interesse na intriga;
dependência da intriga para o desenvolvimento da história; técnica de priorizar a ação
dos personagens como unidade narrativa aglutinadora para o desenvolvimento da
história; cortes com ganchos nos finais de segmentos; lances teatrais abundantes com
bruscas mudanças inesperadas nos episódios; técnica de conduzir para trás o relato das
aventuras; utilização do acaso como ponto de convergência entre alguns acontecimentos
da narração; fisionomia interior dos personagens pouco aprofundada, aspectos fixos que
permanecem inalterados; ausência de análise psicológica; epítetos para caracterizar as
personagens; herói e heroína com traços exagerados e simplificados; traços de pureza,
honestidade e desinteresse; heróis que atuam para conquistar uma mulher ou boa
posição social.
O romance-folhetim é o iniciador do romance brasileiro, por isso suas
características folhetinescas tornaram-se presentes nos romances românticos, realistas e
mesmo modernos.
dúvida quanto ao primeiro romance brasileiro. Para Meyer (1996, p. 282) o
primeiro a receber o título de romance, no Brasil, foi O Filho do Pescador, de Teixeira
e Souza (1812-l881), publicado em 1843, mas, para José Castello (1999, p.428) o
enredo dessa história foi além das ―primeiras atitudes que marcaram o nascimento da
narrativa romântica, a tipo capa-e-espada‖. Em 1844, é publicado A moreninha, de
Joaquim Manuel de Macedo, considerado pela crítica, pois utiliza o sentimentalismo e a
cor local do Brasil.
27
1.2. O ritmo vertiginoso da cidade e o romance de costume
Schwarz (2000, p.35), ao citar Meyer, confirma que ―o romance existiu no Brasil,
antes de haver romancistas brasileiros‖. Nossos escritores foram influenciados pelos
escritores europeus, desde o folhetim até o romance. Para Schwarz, essa influência viria
adotar ―as ideologias‖ desses países. As capitais brasileiras estavam se formando e
recebendo influências de outros países, neste momento histórico, principalmente da
França, isso aparecerá na literatura e, principalmente, no romance.
Para Aquino (1999, p. 588), a sociedade brasileira, com o surgimento da
indústria, do comércio, da tipografia, faculdades e imprensa, cria ―novas formas de
pensar‖, indicando que a literatura brasileira começaria a enxergar a realidade brasileira,
procurando uma ideologia nacionalista. Com o advento do Positivismo, começa a mudar
o pensamento da sociedade, antes direcionado pelas influências ideológicas européias
românticas, os escritores iniciam agora uma visão mais científica e começam a observar
e analisar o comportamento do indivíduo na sociedade. Essa mudança de mentalidade,
em relação ao Romantismo, para Castello (1999, p.251), mostra que ―o romance
romântico e o que vem em prosseguimento, salvo raras exceções, subordinou ao social a
conduta e a trajetória do homem‖. Percebemos que as narrativas estarão direcionadas
para a sociedade e a questão do homem inserido nesse novo contexto.
O romance urbano ou de costume tem grande importância nesse momento da
literatura brasileira, pois nele encontraremos a modernidade em todos os âmbitos
sociais, com a mudança da ideologia, seja na indústria, transporte e nas artes presentes
nas capitais brasileiras.
Candido (1981, p.113) aponta outro fator que interfere na produção literária
desse momento, ―o advento da burguesia‖, que trouxe mudanças para a sociedade
brasileira, por ser uma ―classe mais culta, irrequieta e curiosa‖ e que influenciou todo o
país com uma nova ideologia, contribuindo com novos temas para a literatura brasileira.
Assim, como sintetiza Moisés (2001, p.25), o romance urbano se destaca nesse
momento ―em razão de a burguesia encontrar na cidade o seu espaço ideal,
protagonizado não mais pelos adolescentes românticos, mas por adultos.‖
O sucesso do romance no Brasil, segundo Candido (1981) decorreu de alguns
fatores:
28
Novas necessidades de expressão, correspondendo a uma visão
diferente do indivíduo e da sociedade; influência estrangeira, (...);
receptividade do público ante um gênero que se podia apreciar sem
iniciação teórica e atendia à perene necessidade de fantasia;
racionalização por parte da opinião culta oficial, atribuindo-lhe
significado compatível com as suas ideologias. (CANDIDO, 1981,
p.120-21)
Analisando esses fatores, especificamente, nas obras de José de Alencar, em
relação à liberdade de expressão e à influência estrangeira, citaremos o final da Benção
Paterna (ALENCAR, 2003, p. 19), escrita em 1872, no prefácio do romance Sonhos
D‘Ouro, ―o povo que chupa o caju, a manga, o cambucá e a jabuticaba, pode falar uma
língua com igual pronúncia e o mesmo espírito do povo que sorve o figo, a pêra, o
damasco e a nêspera?‖ Alencar pergunta, de maneira irônica, que mesmo sofrendo
influências de escritores de outros países, a história jamais seria igual, visto vivermos
em uma realidade diferente, nossa cultura não deriva dos europeus, mas dos índios,
considerado por Alencar nossa raiz cultural. A liberdade literária está em poder usar
temas brasileiros, aqui representados pelas frutas, pois um dos aspectos da obra de
Alencar é o nacionalismo. Na mesma Benção Paterna (p.15), ele confirma ―A literatura
nacional que outra coisa não é senão a alma da pátria‖.
Ainda em relação à sociedade, Alencar (2003, p.16) aponta para a nossa
sociedade que possui uma ―fisionomia indecisa, vaga e múltipla‖, ainda mostrando que
o país está se formando, tanto cultural como ideologicamente. Para indicar que o país
está em crescimento, ele usa a metáfora ―adolescente‖, indicando que nessa fase
necessidade de o Brasil pensar como ficará sua identidade, principalmente, a literária.
A censura estava presente nos romances, bem como esteve nos folhetins, por
isso, os temas que não intencionavam fazer nenhum tipo de reflexão sobre a sociedade
eram considerados aceitáveis, que não afetavam o comportamento do leitor. Desta
forma a ideologia da classe dominante continuaria a não ser questionada.
Machado de Assis (1873, p.2) sintetiza essas ideias no ensaio Notícia da Atual
Literatura Brasileira - Instinto de nacionalidade, escrito por encomenda para a revista
O Novo Mundo, publicada em Nova York, em português:
(...) o romance se preocupara apenas com a cor local e os costumes,
está desinteressado dos problemas sociais. Destaca que possui ―viva
imaginação, instinto do belo, ingênua admiração da natureza, amor à
pátria, uma agudeza e observação.
29
Para Alencar, segundo Martins (2005, p. 181), ―o romance é compreendido (...)
como o gênero do tempo‖, o que significa dizer que a questão do passado, presente e
futuro na obra representa ―um presente em progressão constante‖. Ainda sobre o tema,
Alencar o divide ―em função do cenário‖ que indica o lugar em que ocorre a história,
como o sertão a roça, regiões que não foram influenciadas pela cultura estrangeira,
sendo assim o verdadeiro Brasil, reforçando a ideia nacionalista dos românticos, e a
cidade que representa o povo influenciado por outras culturas.
Em relação ao espaço, que Alencar chamava de ―cenário‖, conforme o conceito
de cronotopo, segundo Bakhtin (1993), fusão dos indícios espaciais e temporais que
ocorrem no cronotopo artístico-literário. Isso significa que nos romances ―o tempo
condensa-se, comprime-se, torna-se artisticamente visível; o próprio espaço intensifica-
se, penetra no movimento do tempo, do enredo e da história‖. Alencar atribuía muita
importância ao tempo e ao espaço, chamado por ele de cenário, tanto que dividiu sua
obra com base nesses fatores. Para Bakhtin (1993), o tempo e o espaço estão
interligados no romance:
O cronotopo como materialização privilegiada do tempo no espaço é o
centro da concretização figurativa da encarnação do romance inteiro.
Todos os elementos abstratos do romance - as generalizações
filosóficas e sociais, as ideias, as análises das causas e dos efeitos, etc.
- gravitam ao redor do cronotopo, graças ao qual se enchem de carne e
de sangue, se iniciam no caráter imagístico da arte literária. Este é o
significado figurativo do cronotopo. (p. 356).
Por considerar o cronotopo como responsável pela formação do romance, o
teórico nomeou ―três cronotopos do romance‖: romance de aventuras de provações,
romance de aventuras e de costumes e o romance biográfico; e acrescenta, ainda, o
cronotopo idílico no romance, e o divide em: idílio amoroso, do trabalho agrícola do
trabalho artesanal e do familiar.
Senhora, para nós, pertence à categoria de romance de costumes, nele as
personagens principais, Aurélia e Seixas, sofrem metamorfoses e vivem
―acontecimentos exclusivos, fora da vida cotidiana, que são determinados pela série:
culpa-castigo-redenção-beatificação‖ (BAKHTIN, 1993, p. 242). A culpa segue
Fernando por ter trocado Aurélia pelo dote de Adelaide Amaral, e, para ele, o castigo é
ser humilhado por Aurélia, a redenção ocorre quando ele consegue guardar dinheiro
para quitar sua dívida com Aurélia, por fim a beatificação é a consagração dessa
30
metamorfose: Fernando se torna um homem de caráter, valorizando o trabalho, a
dignidade do que o dinheiro.
O idílio amoroso, referente ao amor campestre, segundo Bakhtin (1993, p. 335)
―não foi particularmente produtivo na história do romance em forma pura, mas em
comunhão com o idílio familiar (Werther) e com o idílio dos trabalhos agrícolas
(romances regionais)‖. Ele aponta que os idílios de modo geral não existem em sua
natureza pura, pois é como se cada um dependesse do outro. No caso, o idílio familiar
se une ao trabalho agrícola e mostra que a vida bucólica:
não existe em lugar algum, mas sobre a vida real do agricultor nas
condições de uma sociedade feudal ou pós-feudal, mesmo que ela seja
mais ou menos idealizada e sublimada (...) o elemento do trabalho
agrícola cria uma ligação real e uma comunhão dos fenômenos da
natureza com os acontecimentos da vida humana. (BAKHTIN, 1993,
p.335)
Encontramos no romance Senhora um topo de progresso e transformações. Essas
mudanças são sentidas nas vidas das personagens, principalmente pela entrada do
dinheiro na sociedade fluminense.
É nesse ritmo de progresso que o romance em questão surge, e sua construção se
baseará nessas modernidades, levando em consideração o leitor dessa nova sociedade.
Cabe, neste momento, uma aproximação da divisão da obra de José de Alencar
sugerida por Antonio Candido (1981, p. 223) com os três aspectos do cronotopo, vistos
anteriormente.
A obra de Alencar é dividida por Candido em três partes: a primeira chamada de
―romance heróico‖, o herói é a idealização do homem perfeito, no caso do índio, um ser
que chega a atingir um grau de divindade, visto que se cria uma lenda para retratar suas
lutas, como os antigos heróis das epopéias gregas. Os heróis alencarianos mais
conhecidos são: Peri (O guarani), Iracema (Iracema), Ubirajara e Araci (Ubirajara)
entre outros. O homem branco é o responsável pela desestruturação do ideal de paraíso
vivido pelos índios, considerados, nesses romances, os heróis. também as histórias
em que o herói é representado por uma mulher, ―o Alencar das mocinhas‖ (CANDIDO,
1981, p. 225). As mulheres começam a ganhar lugar tanto nas histórias românticas
como na sociedade.
31
O romance heróico aproxima-se ao de aventura de provações formulado por
Bakhtin (1993). Nesses romances há em comum o heroísmo; a ―beleza rara‖; separação;
―oferta de purificação‖ e ―a feliz união‖ (BAKHTIN, 1993, p. 214).
Na segunda divisão, estão os ―romances de que os homens são focos - os
romances do sertão‖ (CANDIDO, p.225), conhecidos também por regionalistas. Nesses
romances, os homens não são idealizados como os índios, o final feliz não aparece e o
homem possui um tom mais sentimental sem nenhuma força sobrenatural que os
protege. Para nós, esse tipo pertence ao que Bakhtin chama de ―romance geográfico‖.
Nesse romance o homem antigo, público e político, é que se
guia pelos interesses sócio-políticos, filosóficos e utópicos. Mais
ainda, o próprio elemento da viagem, do caminho assume
caráter real e introduz um centro organizador real e essencial na
série de tempo desse romance. (BAKHTIN, 1993, p. 228)
Romances como O sertanejo, O gaúcho, O tronco do ipê e Til são, para nós,
desse tipo. Para exemplificarmos a questão dos interesses sócio-políticos temos O
gaúcho que mostra os monarquistas e anti-separatistas dos chefes da Revolução
Farroupilha. Esses romances, para Candido, pertencem aos heróicos. Usaremos a
classificação feita por Bakhtin (p.21), como geográfico, pois além do ponto
demonstrado, temos o aspecto de ―temas descritivos‖ e ―obras historiográficas‖ que
aparecem nesses romances.
A terceira fase refere-se aos romances em que há ―denotadores dum senso
artístico e humano que contorno aquilino a alguns dos seus perfis de homem e de
mulher‖ (CANDIDO, 1981, p. 226). Para Candido indícios desses personagens nos
romances: Til, As Minas de Prata, A Pata da Gazela, mas serão, em Lucíola e Senhora,
que as personagens ―defrontam um plano de igualdade, dotados de peso específico e
capazes daquele amadurecimento interior‖.
Indicamos que tais romances pertencem àqueles que Bakhtin (1993) chama de
romance de aventuras e de costumes, destacando que a metamorfose cria um
tipo de representação de toda a vida humana em seus momentos
essenciais de ruptura e de crise: como um homem se transforma em
outro. São dadas imagens radicalmente diferentes de um único
homem, nele reunidas conforme as diferentes épocas, as diferentes
etapas de sua existência (BAKHTIN, 1993, p. 237-38)
32
Didaticamente, a obra de Alencar aparece dividida em quatro temas: romance
urbano, romance indianista, romance regionalista e romance histórico. Para nós, os
regionalistas e históricos pertencem aos romances geográficos de Bakhtin. Na esteira da
classificação bakhtiniana, a obra de Alencar apresenta três divisões: urbana, indianista e
geográfica.
Enfatizamos que o romance urbano ou de costume é o que utiliza o cronotopo
como o responsável pelas metamorfoses dos personagens. No romance Senhora,
entendemos que a transformação ocorre também no cronotopo, ou seja, na época e na
cidade, em processo de modernidade.
O ritmo da cidade traz para os romances românticos novas temáticas e
linguagens. Entre os novos temas Candido destaca:
(...) o que há de substancial na temática romântica é a reivindicação da
liberdade de exprimir a vida, a partir da condição individual,
surpreendendo a sua riqueza interior e a sua inadequação com a
realidade. Sobre ela, o predomínio da imaginação, alimentada pela
sentimentalidade e pelas contradições da dúvida. E também pelo
homem social e político, isso, e tudo o mais, em comunhão com o
sentimento da nacionalidade (1981, p.209)
Os romances traziam temas voltados para o espaço exterior e o interior do
homem. Alencar em seus romances urbanos mostra a sociedade se sobrepondo ao
indivíduo:
Por isso mesmo sua visão existencial (dos personagens), (...)
subordina-se à tentativa de representação do comportamento e da
condição individuais em relação ao social. (...) tende a reduzir o
indivíduo à matriz ou estereótipo. Resulta daí o seguinte esquema,
chave de todo o seu romance aqui dito social-urbano: individual +
individual = social (CASTELLO, 1999, p.275)
As personagens do romance Senhora aparecem de maneira que identificamos
seu comportamento sendo guiado pelos aspectos exteriores. inclusive Aurélia, que
mesmo questionando a sociedade da época, faz o jogo de aparência nos salões da corte.
Quanto à linguagem romântica, ela se apresentava cheia
(...) de elementos plásticos e sonoros. Cor, forma, musicalidade
enriquecem sobretudo a linguagem descritiva em correlação com os
33
estados da alma ou com as situações dramáticas. Linguagem carregada
de imagens e comparações, nela, muitas vezes, a palavra em si é
pouco significativa. (CANDIDO, 1981, p.209)
Percebemos que a linguagem do romance usa a imagem; a sociedade começava
a se deslumbrar pela fotografia e pelo teatro e, mais tarde, o cinema. O aspecto visual
começava a ser explorado pelos escritores, reflexo de uma sociedade em
desenvolvimento e descobrindo novas artes.
Os romances de Alencar, geográficos e históricos, tinham como intenção
preencher as horas de lazer, enquanto os urbanos começam a apresentar os problemas
sociais da época para levar o leitor a refletir sobre a realidade.
34
1.3. A unidade interna do folhetim no romance Senhora: ―ao correr dos olhos‖
Em suas crônicas Ao correr da pena, Alencar diz que seus contos ―escritos ao
correr da pena são para serem lidos ao correr dos olhos‖ (ALENCAR, p. 9, 2003) ou
explica:
O meu folhetim tornava-se um agradável passeio, um doce espaciar,
olhando à direita e à esquerda, medindo a calçada a passos lentos, e
rindo-me das coisas engraçadas que me revelaria a minha luneta.
Assim, pois, não é um artigo ao correr da pena que ides hoje ler, mas
um simples passeio, uma revista ao correr dos olhos.(ALENCAR,
2003, p. 139)
Entendemos que o verbo ―correr‖, para o folhetim, está relacionado à agitação
da cidade; ao leitor que está aprendendo a manusear o jornal, com sua linguagem
informativa e concisa. No romance, ―correr‖ significa o leitor fazendo sua leitura
rapidamente, apenas para satisfazer sua curiosidade das tramas na história.
A crônica de José de Alencar desce aos detalhes, às minúcias da vida
cotidiana de uma sociedade que começava a sair do obscurantismo
colonial. (...) Seu olhar recai sobre a desafinação de um cantor, a falta
de conforto do teatro, o calor das apresentações, mas irá além
reivindicando uma escola nacional de teatro ou de música.(ARNT,
2003, p.59)
Ao escrever os romances urbanos (costumes), Alencar compartilha esse olhar
crítico com o leitor. Ele aponta defeitos da sociedade, ―casamento de conveniência,
coisa banal e frequente, que tinha não somente a tolerância, como a consagração da
sociedade.‖ (ALENCAR, 2009, p.191). Segundo Proença (1959, p.5), o romance
―aponta os males e perigos da educação artificial da época‖, critica o ―patriarcalismo
familiar‖ e apresenta Aurélia como ―um tipo cerebral, lutando contra o cordial que,
afinal, vence.‖, ou seja, a razão versus a emoção. ―Operava-se nela uma revolução. O
princípio vital da mulher abandonava seu foco natural, o coração, para concentrar-se no
cérebro, onde residem as faculdades especulativas do homem.‖ (ALENCAR, 2009,
p.28-9)
Proença (1959, p.8) ressalta outro aspecto que aparece no romance, é o a
linguagem que se aproxima do coloquial e se afasta da retórica oitocentista. A ironia
35
também é um recurso que envolve o leitor atento. Para Proença (1899, p. 8), Alencar
inicia com a ironia contida, mas ―acaba aquecida pela revolta e ressentimento, explode
em sarcasmo‖. Na voz de D. Firmina: ―— Estes bailes que acabam tão tarde não podem
ser bons para a saúde; por isso é que no Rio de Janeiro tanta moça magra e amarela‖.
(ALENCAR, 2009, p. 21). Conforme Lafe (2004, p. 8) ―as imagens do romance
compõem uma estrutura apoiada sobre forte substrato mítico, que aflora a cada
instante‖. Como as mostram as imagens marcantes de religiosidade no decorrer do
romance: ―serpente‖, ―anjo‖, ―lucífero‖, ―profanação do santo‖.
O leitor começa a ser envolvido pelo olhar de Alencar, ou seja, a sociedade
com os olhos do escritor, as suas críticas veladas pela ficção.
Destacamos outra idéia que Alencar desenvolve como uma crítica apoiada na
máxima do bom selvagem, de Rousseau: ―o homem é bom por natureza, mas está
submetido à influência corruptora da sociedade‖. Tanto Fernando Seixas como Aurélia
vivem esse dilema. A metamorfose, de que falamos anteriormente, está relacionada à
influência da sociedade na vida de cada uma das personagens.
Aurélia, moça ingênua e pobre, é corrompida numa sociedade interesseira:
considerava ela o ouro um vil metal que rebaixava os homens; e no
íntimo sentia-se profundamente humilhada pensando que para toda
essa gente que a cercava, ela, a sua pessoa, não merecia uma das
bajulações que tributavam a cada um de seus mil contos de réis.
(ALENCAR, 2009, p. 18).
Seixas assume que a sociedade fora a responsável por ele ter esse caráter:
A sociedade no seio a qual me eduquei, fez de mim um homem a sua
feição, o luxo dourava-me os vícios e eu não via através da fascinação
o materialismo a que eles me arrastaram, habituei-me a considerar a
riqueza como a primeira força viva da existência e os exemplos
ensinavam-me que o casamento era o meio legítimo de adquiri-la (...)
Não me defendo se deveria resistir e lutar nada justificaria a abdicação
da dignidade. (ALENCAR, 2009, p. 212-13)
O romance Senhora, de Alencar, não foi publicado em romance-folhetim, ou
seja em jornal, mas em volume, no ano de 1875. No início do livro, Alencar apresenta
uma carta para o leitor em que o adverte de se tratar de uma história verdadeira, além de
36
tratar-se de um livro que não ―são da própria lavra do escritor‖, indicando-nos que se
refere a uma história diferente das encontradas nos romances-folhetins, pois
A história é verdadeira; e a narração vem de pessoa que recebeu
diretamente, e em circunstancias que ignoro, a confidência dos
principais atores deste drama curioso. (...) efetivamente um
heroísmo de virtude na altivez dessa mulher, que resiste a todas as
seduções, aos impulsos da própria paixão, como ao arrebatamento dos
sentidos. (ALENCAR, p.15)
O escritor indica ao leitor que a história é sobre uma mulher altiva e que não está
sujeita ao sentimentalismo como as heroínas dos romances-folhetins:
Os grandes gêneros populares do século XIX engendraram todo um
campo semântico intercambiável e de carga altamente pejorativa.
Melodrama, melodramático, folhetim, folhetinesco conotando
previsíveis e redundantes narrativas, sentimentalismo, pieguice,
lágrimas, emoções baratas (MEYER, 1996, p. 157)
Alencar em seus romances urbanos se distancia do arquétipo folhetinesco, em
relação ao enredo, pois conforme diz Schwarz (2001, p.41) ele utiliza uma ―versão
realista‖ apresentando a sociedade fluminense em seus romances urbanos, apresentando
o lado negativo das personagens. No caso do romance, a questão do dinheiro é o
responsável pela mudança do caráter do indivíduo.
Senhora é um romance que inicia o realismo na literatura, com aspectos
folhetinescos, visto que ele ainda se prende à questão do amor por vencer todos os
obstáculos, entre outros, além de apresentar, segundo Castello (1999, p.277), ―a
realidade contemporânea versus tradição‖. A tradição para nós será o aspecto do enredo
folhetinesco, visto anteriormente, e aqui fazendo uma comparação como o romance
Senhora.
Ao fazermos uma comparação com a unidade interna do romance Senhora e
algumas crônicas escritas no rodapé do jornal, encontramos características do folhetim e
do romance-folhetim. Apontaremos, a seguir, com o objetivo de entendermos essas
semelhanças e distanciamentos, trechos do romance e de crônicas escritas no espaço
denominado folhetim, do jornal Diário do Rio de Janeiro. Não temos intenção de
esgotar essas técnicas, mas de alguma forma apontaremos para o modo como elas se
apresentam no romance em questão. O paralelo que faremos com recortes do romance
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Senhora e das crônicas servem para analisar algumas cnicas que foram utilizadas,
primeiro nas crônicas e, depois, nos romances-folhetins.
Trechos do romance e de crônicas, publicadas no livro Crônicas escolhidas
(1995) serão nosso apoio para apontarmos características desses gêneros.
Por isso mesmo considerava ela o ouro
um vil metal que rebaixava os homens; e
no íntimo sentia-se profundamente
humilhada pensando que para toda essa
gente que a cercava, ele, a sua pessoa, não
merecia uma das bajulações que
tributavam a cada um de seus mil contos
de réis (ALENCAR, 2009, p.18).
Os trechos acima, tanto do romance como da crônica, exemplificam a
característica indicada por Ribeiro (1996, p. 46) como pertencente ao romance-folhetim:
―ideologia explorada tendenciosamente consoladora e mitificante a respeito de situações
sociais insatisfatórias‖. Alencar aponta em seus textos, folhetins ou romances para a
questão da essência humana modificada pelo dinheiro, chamado de ―vil metal‖,
―bilhetes de tesouro‖. A crítica julga a sociedade modificada pelo dinheiro que perderá
o lado humano, pois o homem não respeitará o próximo, mas apenas o verá como um
―número‖.
Outra técnica que aparece nos folhetins, romances-folhetins e romances é a
abundância de diálogos. Entendemos que essa técnica pertence ao teatro em que o texto
é construído a partir dos diálogos. O diálogo traz as palavras diretas das personagens
como se o narrador o quisesse se posicionar, isentando-se de qualquer ponto de vista
___ Está tão retirado! Também cultiva as
estrelas?
___ Quais? As do céu?
___ Pois há outras?
___ Nunca lho disseram? (ALENCAR,
2009, p.62).
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exposto por elas. A leitura do diálogo é mais rápida, o leitor pode ―correr dos olhos‖,
sem requerer um grau maior de atenção.
Quanto ao herói e à heroína, Ribeiro (1996, p.45) aponta que eles possuem
―traços exagerados e simplificados; traços de pureza, honestidade e desinteresse‖, atuam
―para conquistar uma mulher ou uma posição social‖, além de mostrarem um caráter
com ―traços fixos, exagerados que permanecem inalterados; qualidades ou defeitos
exagerados‖.
Em Senhora, a protagonista Aurélia não é apenas determinada por um traço
exagerado, mas aparece em seu caráter algo de antagônico, duplo, visto que o narrador,
ao apresentá-la, indica dois traços opostos,
Era rica e formosa.
Duas opulências, que se realçam como a flor em vaso de alabastro;
dois esplendores que se refletem, como o raio de sol no prisma do
diamante.
Quem não se recorda de Aurélia Camargo, que atravessou o
firmamento da corte como brilhante meteoro, e apagou-se de repente
no meio do deslumbrante que produzira o seu fulgor? (ALENCAR,
2009, p.17) (Grifos nossos)
A riqueza e a formosura de Aurélia fizeram-na ascender socialmente, mas isso
ocasionou uma mudança (―apagou-se‖) em seus sentimentos: ―Seus olhos não têm
aqueles fulvos lampejos‖ (p.20).
A protagonista não possuía um traço simplificado, entendemos que essa
personagem de Alencar é o início daquelas que são ―dissimuladas‖, nos remetendo aqui,
apenas como exemplo, à Helena e à Capitu de Machado de Assis. As mulheres dessa
sociedade começaram a se comportar diferente das moças puras, do passado. Para
ressaltar essa dissimulação, o narrador apresenta que ―ninguém veria nela a verdadeira
fisionomia de Aurélia, e sim a máscara de alguma profunda decepção‖ (ALENCAR,
2009, p. 18) Quem seria a verdadeira Aurélia: moça ingênua, que fora traída ou uma
mulher forte que mesmo sofrendo usa a máscara de ―deusa dos bailes? Parece que a
característica de personagem dúbia começa a surgir na protagonista.
Quanto ao nosso falso herói, temos, a princípio, as características do folhetim.
Seixas possui traços simplificados: desonesto, quer mudar de posição social e para isso
casa-se apenas por interesse e seus defeitos permanecem inalterados, ocorre apenas o
39
arrependimento, mas nenhuma ão, ou fala que mostre ao leitor que ele tenha mudado
de caráter.
O recurso apontado por Ribeiro (1996, p.45) são os ―lances teatrais abundantes
com bruscas mudanças inesperadas nos episódios: propósito de despertar o interesse do
leitor sem despertar o seu espírito crítico‖.
Intencionamos refletir alguns aspectos do romance Senhora. Primeiramente,
―lances teatrais‖, as cenas o descritas e as personagens tomam o domínio da fala e do
cenário e outras características que veremos no capítulo pertinente.
Discordamos que o propósito do narrador do romance seja ―sem despertar o seu
espírito crítico‖. Nesse momento literário de Alencar, verificamos que as personagens e
a presença de ironia direcionam o leitor para uma leitura crítica, para Castello (1999, p.
276) nos romances urbanos de Alencar ―crítica de nossas estruturas sociais.‖ Alencar
apresenta uma sociedade com o caráter deformado pelo dinheiro, tanto no romance
como na crônica, vejamos:
Desde porém que esse casamento de
conveniência fora convertido em um
mercado positivo, ele julgava uma infâmia
para si, envolver sua alma e afundá-la
nessa transação torpe.
(ALENCAR, 2009, p. 191)
A família é uma instituição social em que vemos a questão do dinheiro; um
exemplo é o novo ―contrato‖ matrimonial, sendo o que Alencar chamou de ―sinal
aritmético‖. De fato, o dinheiro alterou o comportamento social.
Para finalizarmos, no romance-folhetim temos:
a temática explorada: aspectos da vida criminosa e miserável:
assassinatos, envenenamentos, raptos, reconhecimento das origens de
nascimento e outros; aspectos da vida urbana selvagem; maniqueísmo
na contraposição entre o bem e o mal: o herói e a sociedade, a
felicidade e a desgraça, amor puro ou selvagem, ódio unilateral, a
virtude, os vícios e outros; o poder dado àquele que é mais forte, mais
hábil, mais audaz (RIBEIRO, 1996, p. 46). (Grifos nossos)
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O romance Senhora utiliza o tema que apresenta o aspecto da vida urbana
selvagem, com uma visão negativa da sociedade capitalista que surge com o progresso.
O dinheiro é visto como o mal e a virtude, o bem; assim, o maniqueísmo está presente
no romance: a sociedade como o mal e a heroína Aurélia como o bem. ―a torpe
humilhação dessa gente ante sua riqueza. Era um desafio, que lançava ao mundo;
orgulhosa de esmagá-lo sob a planta, como um réptil venenoso‖ (ALENCAR, 2009, p.
18). Aurélia, nessa passagem, representa uma santa, o bem que destrói o mal, que está
na sociedade. Em outro trecho, identificamos a heroína influenciada pelo dinheiro e que
teria sua personalidade modificada:
As notas que desatavam-se dos lábios de Aurélia, possantes de vigor e
harmonia, deixavam após si um frêmito, que lembrava o silvo da
serpente, sobretudo quando este braço mimoso torneado distendia-se
de repente com um movimento hirto para vibrar o supremo desprezo.
(p. 24)
Aurélia, apesar de representar o bem conviver com o ―silvo da serpente‖, pois se
sentia afetada pela sociedade, mas não a ponto de anular seus desejos e sonhos e
opinião, no caso acreditar que a sociedade era merecedora de seu desprezo.
Os temas podem ser os mesmos do folhetim, mas identificamos alguns traços
que Alencar acrescenta que parecem ir além das narrativas folhetinescas, como a ironia,
a crítica e a metalinguagem. passagens do romance em que o autor nos fala da
própria arte criativa, das mudanças que estão ocorrendo, bem como dos folhetins que
ele discutia esse gênero e o romance:
Então não sabe, D. Firmina, que eu tenho um estilo de ouro, o mais
sublime de todos os estilos, a cuja eloquência arrebatadora não se
resiste? As que falam como uma novela, em vil prosa, são essas moças
românticas e pálidas que se andam evaporando em suspiros; eu falo
como um poema: sou a poesia que brilha e deslumbra! (ALENCAR,
2009, p. 22)
Indicamos como hipótese que Alencar estaria se referindo à diferença dada por
Aristóteles entre a prosa (novela), o modo narrativo (diegesis), a poesia (mimesis), o
imitativo, sendo o último mais valorizado.
41
Aristoteles reconhece em Homero esta superioridade sobre os outros
poetas épicos, que ele intervém pessoalmente o menos possível em
seu poema, colocando na maior parte das vezes em cena personagens
caracterizados, conforme o papel do poeta, que é imitar o mais
possível. (GENETTE, 2008, p. 268)
No folhetim, encontramos a explicação do romance:
Estou decidido a não escrever hoje a minha revista, e como os meus
leitores não quererão dispensar o seu folhetim dos domingos, não
remédio; vou fazer um romance.
Um romance!
Não é qualquer coisa, é uma história dividida em capítulos, que
principia rindo e acaba chorando, ou vice-versa; e na qual devem
entrar necessariamente um namorado, uma moça bonita, um homem
mau (ALENCAR, 2003, p.204)
Alencar, no romance Senhora, refere-se à criação das personagens, em que
Aurélia não aceita a realidade e pede para o pintor melhorar o quadro:
(...) quando o pintor voltou para trabalhar em seu retrato, a moça antes
de tomar posição fez-lhe suas observações acerca da expressão fria e
seca da fisionomia de Seixas.
__ Pintei o que vi. Se deseja um retrato de fantasia, é outra coisa,
respondeu o artista. __ Tem razão; meu marido não anda bom. É
melhor interromper seu trabalho por alguns dias; eu lhe mandarei
aviso quando for ocasião. (ALENCAR, 2009, p. 160)
Aurélia se satisfaz após o pintor fazer um novo quadro de Seixas, Era um
desses retratos em que o modelo em vez de impor-se, inspira o artista; deixa de ser
cópias e tornam-se criações (p.161). Ele o pinta a realidade, ele cria um novo Seixas
conforme a vontade de Aurélia. Podemos supor nos romances-folhetins nos quais o
escritor colocava no papel um ―retrato‖ para agradar o leitor e não falar da realidade.
O pintor imita o original de tal maneira que, torna-se outra criação e não
cópia. Esse sentido também está nas teorias aristotélicas, a mesis, como imitação do
real, ao criar uma nova realidade:
Uma vez que o poeta é um imitador, como um pintor ou qualquer
outro criador de imagens, imita sempre necessariamente uma de três
coisas possíveis: ou as coisas como eram ou o realmente, ou como
dizem e parecem, ou como deviam ser. (ARISTÓTELES, 2004, p.97)
(Grifos nossos)
42
O processo narrativo do romance Senhora está muito próximo ao das crônicas
escritas no folhetim. Alencar, nos romances urbanos, constrói suas personagens e
ambientes de maneira que traz aos olhos do leitor sua realidade, com retoques de
criatividade e imaginação. Os folhetins traziam a realidade com a opinião do escritor:
Na quinta-feira, resolvi logo pela manhã por-me de ponto em branco,
isto é, todo de preto, para ir ao convento de Santo Antônio, assistir a
um ofício fúnebre que os estudantes de medicina fizeram celebrar
pela alma de seu colega José Cândido de Almeida. (...) Não me posso
lembrar com indiferença daquele moço, cheio de vida e de talento,
colhendo o germe da morte justamente quando, levado pelo amor do
estudo, investigava com o escalpelo na mão os segredos da ciência.
(ALENCAR,2003, p.20)(Grifos nossos.)
Aparentemente, um fato simples, o enterro do colega vira uma poesia, na mão do
escritor. Percebemos que não é para informar, mas, com uma linguagem poética, tratar
do dia a dia daquela sociedade.
Havia cinco anos que não se realizava esse poético costume das
monarquias, de fazer a distribuição das graças nos dias aniversários
de algum acontecimento feliz. (...) Este ano, porém, as circunstâncias
favoráveis de uma atualidade calma e serena permitiram que a
munificência imperial pudesse ao mesmo tempo pagar as dívidas da
nação e auxiliar a realização do pensamento de união e concórdia, que
é o programa de governo do Sr. D. Pedro II e o seu voto o mais
ardente como Brasileiro e como soberano. (ALENCAR, 2003,
p.56)(Grifos nossos)
Alencar mostra, de maneira irônica, a situação da política, apontando para os
defeitos de caráter: os políticos faziam ―distribuição‖ de presentes; critica a postura
de ―múmia‖ de D.Pedro II. Entendemos que, no romance, essa visão irônica e crítica
também aparecem: ―Não era difícil também que de repente se lhe abrisse essa estrada
real da ambição, que se chama política‖.
Em seus textos tanto folhetim como romance ele traz o leitor para a narrativa,
chama-o como um diálogo: Se as minhas amáveis leitoras não gostaram desta razão,
que acho muito natural, chamem a contas os pintores e os poetas, que são os autores de
tudo isto. (p. 22) Crônica do dia 15/10/1855. No romance Senhora, além de ele
começar o romance com uma carta Ao leitor‖ (p.15), na narrativa há algumas falas em
que parece que o narrador atrai e persuade o leitor: ―Dizia-se muita coisa que não
43
repetirei agora, pois a seu tempo saberemos a verdade...‖( p.17). Saberemos‖ indica
que o narrador conquistou o leitor e esse o seguirá para conhecer a verdade.
Alencar em algumas de suas crônicas nos remete ao fato de que ele escreve
sempre preocupado com o olhar que o leitor terá de sua produção, como se o quisesse
mais próximo dele.
Segundo Bakhtin (1993, p. 358), apesar de o autor e leitor estarem distantes ―por
séculos‖; apesar da distância espacial, ―... se encontram da mesma forma num mundo
uno, real, inacabado e histórico que é separado pela fronteira rigorosa e intransponível
do mundo representado no texto‖, significando que o texto é reconstituído pelo leitor.
O teórico russo (1993, p. 358-59) ainda refere-se aos ―cronotopos refletidos e
criados‖, ou seja, a realidade é apenas refletida na obra. Encontramos nela apenas uma
troca entre esses cronotopos, ―mundos representado e representante‖, o primeiro sendo
o real e o segundo a obra. Assim, faz surgir o terceiro ―cronotopo criativo particular‖
representado pela ―vida particular de uma obra‖. Podemos perceber, pois, que a obra
pode ser relida em vários momentos, o que importa é se o leitor-ouvinte é capaz de fazer
uma relação com a vida, tornando-se um ―renovador da obra‖, atualizando-a no
cronotopo em que ele está inserido.
Esse leitor que corre os olhos é o que renova a obra. O papel dele é olhar a
história no texto e olhar a sua realidade, entendendo-os como cronotopos diferentes.
Referente ao autor-criador, importa-nos verificar o que Alencar esperava de seu
leitor ao dizer ―correr dos olhos‖. Para Bakhtin (1993. p. 359), ―O mundo representado,
mesmo que seja realista e verídico, nunca pode ser cronotopicamente identificado com o
mundo real representante, onde se encontra o autor-criador dessa imagem‖. Alencar não
estava escrevendo sobre a vida real, ele criou uma história que refletia a imagem
daquela sociedade, e não um retrato fiel, a sua verossimilhança.
44
II A personagem folhetinesca e o romance Senhora
Não espanta, portanto, que a personagem pareça o que de
mais vivo no romance; e que a leitura deste dependa
basicamente da aceitação da verdade da personagem por parte
do leitor. (CANDIDO, 2007, p. 54)
45
2.1. O processo narrativo folhetinesco e o romance Senhora
A produção do romance-folhetim no Brasil se inicia sob a influência francesa.
As personagens dessas histórias seguiam uma padronização, para Ribeiro (1996) ―os
personagens da narrativa folhetinesca são conduzidos de acordo com a vontade do
escritor (...), obedecendo à exigência de provocar o máximo de interesse‖ aos leitores,
além de apresentar personagens que ―não m um caráter ligado às necessidades
pessoais interiores‖ e o escritor não apresenta a análise psicológica dos personagens.
O romance-folhetim, segundo Ribeiro (1996, p.30), ao citar Régis Méssac, seria
um ―melodrama narrado‖, por isso se faz necessário abordar as personagens e alguns
aspectos presentes nos dois gêneros.
O melodrama, como peça teatral, é composto por quatro personagens
fundamentais,
que são geralmente um homem honesto protetor dos inocentes; uma
mulher virtuosa, porém desafortunada; um traidor que tem muitos
cios e um homem tolo ou engraçado que povoca o riso em meio às
lágrimas copiosas que surgem durante a peça. A essência da trama
desenvolve-se em torno da luta entre o fraco e o forte. O traidor
persegue a mulher virtuosa, conduzindo-a ao máximo de sofrimento.
(RIBEIRO, 1996, p. 31)
Alguns dos personagens do melodrama estão presentes no romance Senhora:
―uma mulher virtuosa, porém desafortunada‖: Aurélia não mais desafortunada, mas
virtuosa, pois deseja que Seixas se redima por -la trocado por dinheiro; traidor:
Seixas trocou um dote de cinquenta conto de réis por um maior; um homem tolo ou
engraçado: Lemos seria esse homem que faz Aurélia rir; e, apesar de o ―homem
honesto‖ não existir, Alencar cria a personagem Lemos, indicando essa característica,
pois, ao mesmo tempo em que Lemos ajuda Aurélia está, evidentemente, interessado na
vida confortável que ele pode ter com o dinheiro dela.
As personagens do teatro se revelam aos poucos como nesse romance. Além
disso, é por meio da descrição de suas ações que conhecemos seus caracteres.
A descrição tem grande importância na narrativa do romance Senhora. Além de
trazer a visualização da cena, como no teatro, Genette (2008, p.274) apresenta outra
característica que é explicativa e simbólica‖ e justifica ―a psicologia das personagens.
46
Percebemos no romance de Alencar que as descrições das personagens estabelecem
caracterizações de caráter, ou seja, traços psicológicos.
O narrador descreve a casa de Fernando para contrastar com a vida de aparências
que ele levava, era o frisante contraste que faziam com pobreza carranca dos dois
aposentos certos objetos, aí colocados, e de uso do morador‖ (ALENCAR, 2009, p.35).
As descrições apresentavam o contraste de pobreza: ―papel de parede de branco
passara a amarelo‖, das velhas cadeiras de jacarandá‖, ―ar de velhice dos móveis‖,
―velho sofá‖ e da riqueza: casaca preta‖, ―chique‖, ―finíssimo chapéu‖, ―de Paris‖,
―charutos de Havana‖, ―almofada de cetim azul bordada a froco e ouro‖. Assim o perfil
psicológico de Seixas poderia ser traçado, não se preocupava com a família apenas com
seu luxo pessoal.
O romance-folhetim explorou a ideia do ―maniqueísmo inato‖, segundo Jean
Tortel, pois ―tudo funda-se sobre o algarismo dois‖. O gênero folhetinesco está ligado a
(...) à temática uma contraposição entre o bem e mal, a felicidade e a
desgraça, o herói e a sociedade, a alta sociedade e a sociedade dos
bandidos organizados, a fortuna e a miséria, a castidade e a
devassidão, os rostos angélicos e as carrancas horríveis, a polícia e a
sociedade secreta; até mesmo a topografia não escapa disto, pois as
aventuras geralmente acontecem em Paris ou em Londres.( RIBEIRO,
1996, p.37)
A produção folhetinesca de Alencar apresenta esse maniqueísmo, inclusive na
topografia: em Cinco minutos, o amor possível versus o impossível, o ambiente é a
cidade do Rio de Janeiro, em O Guarani além do mesmo tema amor, temos o branco,
como o ―invasor‖, o mal e a personagem do índio representa o herói, o bem; o espaço é
o campo. O espaço usado por Alencar demonstra o maniqueísmo, tanto nos folhetins
como nos romances, a cidade será o lugar em que o homem tem que vencer a si próprio,
pois em sua natureza é boa, mas ao ser influenciado pelo dinheiro, muda seu caráter.
Tortel em seu ensaio, segundo Ribeiro (1996) caracteriza o herói folhetinesco‖
como uma ―personagem com traços exagerados e simplificados ao extremo‖, para ele,
há duas fases fixas para o papel do herói:
(...) a primeira liga-se ao período romântico em que a narrativa
popular é nutrida por mitos e possui o tipo de herói exagerado que
indicamos anteriormente; a segunda fase seria aquela após o
romantismo em que o personagem central perde a onipotência e
47
aparece buscando conquistar uma mulher ou uma boa posição social.
(RIBEIRO, 1996, p.38)
Conforme aponta Meyer (1996, p.100), o gosto melodramático por essas
histórias atrai o público que as acompanha como se participassem delas.
As personagens, por meio de suas ações, levarão o leitor a se envolver na intriga
da história, para Ribeiro (1996) essa intriga é a história torna-se quase interminável,
provocando um interesse decrescente, um desfecho sem muita importância‖. Assim,
como no teatro a ação da personagem será a responsável pelo desenrolar da intriga.
Nos folhetins, as personagens se mostravam semelhantes a pessoas da realidade.
Segundo Arnt (2001, p.97), ―Balzac e Dickens foram grandes pintores da sociedade
francesa e inglesa do século XIX‖; no Brasil o folhetim Memórias de um sargento de
milícias, de Manuel Antonio de Almeida ―traça o quadro da sociedade em formação no
princípio do século XIX no Rio de Janeiro: artesãos, pequenos funcionários, ciganos,
portugueses e brasileiros pobres‖, para ele esse romance ―escapa dos padrões
folhetinescos importados‖. Para nós, é o que acontece no romance Senhora, que
começa a se distanciar do romance romântico.
Como neste capítulo, nosso corpus Senhora, é demonstrativo, acentuando dessas
características, tanto do processo narrativo quanto das personagens, expomos uma
síntese do romance.
Na primeira parte, O Preço, Aurélia Camargo surge na sociedade fluminense e
para o leitor: jovem de 18 anos, linda e debutando nos bailes. Nesta parte, Aurélia pede
ao tio que ofereça ao jovem Fernando Seixas o dote de cem contos de réis ou mais, para
que ele se case com ela. O intrigante é que Seixas não poderia saber quem era a noiva,
somente no casamento. Como Seixas se encontrava em dificuldades financeira, pois
gastara o espólio deixado pelo pai e precisava devolvê-lo à família, e sua irmã precisava
do dinheiro para a compra do enxoval. Seixas aceita a proposta, mas a surpresa acontece
na noite de núpcias, em que Aurélia acusa-o de mercenário e venal, enquanto mostra o
recibo de um adiantamento do dote assinado por ele.
A Quitação é a parte em que o narrador volta ao passado das personagens para
explicar o que levou Aurélia a comprar o marido. Vemos o amor que havia entre os dois
e como a protagonista se sentiu ferida ao ser trocada por outra mulher por causa do dote.
Fernando aparece como o homem que gosta da ―vida boa‖ da sociedade burguesa
fluminense.
48
Na terceira parte, Posse, o casal está no quarto. Fica explícita a ideia de que
Aurélia, de maneira cínica, mostra para Fernando que ele se vendera. Esse período do
romance, o casal vive de maneira hipócrita, pois fingem que têm um casamento feliz,
mas em casa eles optam pelo silêncio e frieza conjugal.
A quarta e última parte, Resgate, é o momento em que a intriga se desenrola.
Aurélia torna-se mais ferina, mordaz com desejo de vingança, mas com doses de doçura
e ainda demonstra amor por Seixas. Fernando mostra-se indiferente à riqueza de
Aurélia. Ele não se importa mais com a elegância da sociedade, apesar de continuar
sendo elegante. Diferente de antes do casamento, agora ela preocupa-se com seu
trabalho na repartição, mostrando-se um homem honesto e trabalhador.
O final como o título indica, Fernando tenta negociar o seu resgate, após um ano
trabalhando consegue devolver o dinheiro que pegara como adiantamento, vinte contos
de réis, e o cheque de oitenta contos de réis que nem usara. No momento previsto pela
separação, Aurélia mostra seu testamento, em que ele seria o único herdeiro, isso para
dizer que ele era seu grande amor e a riqueza não mais a satisfazia. Ele ―com os olhos
rasos de água‖, aceita seu amor.
Alencar, no romance Senhora, apresenta traços folhetinescos, mas também
começa a se afastar desses padrões estruturais da forma.
Uma dessas mudanças é a protagonista Aurélia que é descrita de maneira
figurada:
A ferocidade da mulher enganada, sanha da leoa ferida, (...) exímia
cantora, uma voz mais bramida, um gesto mais sublime. (...) lábios de
Aurélia, possantes de vigor e harmonia, (...) frêmito, que lembrava o
silvo da serpente, (...) braço mimoso e torneado (ALENCAR, 2009,
p.24). (Grifos nossos)
A personagem Aurélia possui um lado sublime, mas também é feroz como uma
leoa ou uma serpente, por saber como envolver as pessoas em sua graça. No entanto,
anjo e demônio parecem conviver na personalidade dessa personagem: anjo despira as
asas celestes, e vestira o fulgor lucífero‖ (p. ALENCAR, 2009, p. 190). O narrador
indica em algumas passagens o caráter excêntrico de Aurélia, mostrando-nos os dois
lados da personagem: ―D. Firmina, apesar de habituada desde muito ao caráter
excêntrico de Aurélia‖ (p.24); ―meu gênio excêntrico‖ (p.149-50) confirmando que as
49
descrições apontam para uma personagem com traços duplos. Isso nos direciona às
personagens duais da sociedade capitalista.
A destruição é apresentada sobre o fundo do centro capitalista de um
idealismo ou de um romantismo provincianos dos personagens, que
não são de modo algum idealizados; também o mundo capitalista não
é idealizado: revela-se a sua inumanidade, a destruição no seu interior
de todos os princípios morais (...) O homem positivo do mundo
idílico torna-se cômico, lamentável e supérfluo, ou ele perece, ou
transforma-se num abutre egoísta. (BAKHTIN, 1993, p. 341)
As personagens, no romance Senhora, começam a ter um perfil reconhecido pela
sociedade capitalista, apresentando os problemas do indivíduo gerados pelas
circunstâncias exteriores. Percebemos que, no romance, a história se move a partir das
ações e que também caracteriza o teatro,
No teatro, ao contrário, as personagens constituem praticamente a
totalidade da obra: nada existe a não ser através delas. O próprio
cenário se apresenta não poucas vezes por seu intermédio, (...) onde a
evocação dos lugares da ação era feita menos pelos elementos
materiais do palco do que pelo diálogo, por essas luxuriantes
descrições que Shakespeare tanto apreciava. (PRADO, 2007, p.84)
Alencar usa esse estilo no romance, uma vez que reconhecemos o caráter das
personagens por meio de suas ações e caracterizações do ambiente. No romance, o
narrador cita a admiração por Shakespeare ―Aurélia não gostava de Byron, embora o
admirasse. Seu poeta querido era Shakespeare‖ (ALENCAR, 2009, p.196). Entendemos
que o teatro de Shakespeare tenha influenciado Alencar, pois em Romeu e Julieta a
sociedade, ou melhor, a família muda o destino das personagens.
Segundo Ribeiro (1996), duas outras características melodramáticas que
aparecem no romance-folhetim: uma é o ―acúmulo de acontecimentos e catástrofes‖. No
romance Senhora não temos essa característica: a narrativa está presa a um problema
que será responsável pelo desenvolvimento da intriga, no caso a ―compra‖ do marido. A
outra característica é quanto ao tema que está ligado ―aos aspectos da vida criminosa e
miserável‖. Como vimos, o romance em questão traz o lado ―criminoso‖ e ―miserável‖
do caráter do homem que tem sua índole modificada em razão da sociedade em que
vive. Ao questionar a sociedade, entendemos que Alencar começa a trabalhar a
criticidade no romance.
50
Para Meyer (1996, p.31), em relação ao processo narrativo folhetinesco, ocorre
uma ―genial adaptação à técnica do suspense‖, além de apresentar ―grandes temas
românticos: o herói vingador ou purificador, a jovem deflorada e pura, os terríveis
homens do mal, os grandes mitos modernos da cidade devoradora, a História e as
histórias fabulosas etc.‖.
No romance Senhora, encontramos a heroína como vingadora e purificadora.
Aurélia deseja que Seixas se redima do pecado de acreditar que o dinheiro possa
comprar o amor das pessoas; ―os homens do mal‖ são os da sociedade capitalista que
mudam o caráter de Seixas, os quais consideram o dinheiro como o elemento mais
importante e que está presente na ―cidade devoradora‖, devoradora de caráter, no caso
de Seixas, pois Aurélia não se deixa ser devorada pelo dinheiro.
O romance-folhetim apresentava a História, pois muitas narrativas eram
baseadas em fatos reais. Em O Guarani, de José de Alencar, o personagem D.
Antonio de Mariz no enredo, e as outras histórias que se utilizavam de elementos
místicos e fabulosos.
A intriga dos romances-folhetins, para Pierre Noriey, segundo Ribeiro (1996,
p.36), se desenvolvia ―em torno dos temas do amor, do ódio, do dinheiro e da ambição
(...) os mesmos explorados intensamente pelo melodrama‖. Senhora traz este jogo do
amor, no início da história, em que Aurélia e Seixas se amam; ódio gerado pelo
dinheiro. A ambição é a responsável pelo ―ódio‖ que teria nascido no coração de
Aurélia, visto que o dinheiro a separa do seu amor.
O dinheiro, para Ribeiro (1996, p. 36), nos romances-folhetins, representa o
―motor da onipotência‖, a personagem rica aparece com a característica de soberano e o
―homem pobre‖ como necessitado. No romance essa intriga no momento em que o
papel de Aurélia sofre uma mudança: de menina necessitada à soberana.
Esses recortes, das características do processo narrativo, do folhetim nos
apontam que Alencar utilizava temas e personagens que eram sucesso na época, o
sentimentalismo, o herói de caráter, mas começa a acrescentar outros pontos, como o
lado negativo, ou visão pessimista do homem, que seriam aprofundados, mais tarde, por
Machado de Assis.
a desenvoltura inventiva e brasileirizante da prosa alencariana ainda
agora é capaz de inspirar. Isso posto, é preciso reconhecer que a sua
obra nunca é propriamente bem-sucedida, e que tem sempre um quê
descalibrado e bem pesada a palavra, de bobagem. É interessante notar
51
contudo que estes pontos fracos são, justamente, fortes noutra
perspectiva. (SCHWARZ, 2000, p.38)
O ―quê‖, dito por Schwarz, indica que Alencar estava direcionando a literatura
para algo diferente. Alencar mesmo preocupado em desenvolver os temas da época
insere ―pontos‖ fracos os quais serão melhorados por Machado de Assis.
Senhora é um romance romântico, com as características desse gênero e começa
a ir além, ou seja, de alguma maneira procura se afastar do sonho, buscando, em baixa
escala, refletir sobre a influência da sociedade no caráter de um homem. Como Lafetá
aponta:
como se o seu centro ou em outros termos, a espinha de seu enredo
tentasse reproduzir os grandes movimentos do romance realista
burguês, isto é, o curso do dinheiro e seu trajeto modificador das
relações sociais. Vimos, mesmo, que este tom problemático do
romance é tido pelo crítico como a grande audácia artística de
Alencar, sua marca de modernidade (ainda que manchada pela
―repetição ideológica de ideologias‖). (2004, p.110)
Lafetá explica que os ―pontos fracos‖ representam ―o romanesco‖, que aproxima
a obra de Alencar ao romance-folhetim, ao melodrama. Lafetá indica que não podemos
levar em consideração apenas o enredo, mas o ―estilo metafórico‖ responsável ―por
criar um mundo de sonho‖, apesar de o enredo reintroduzir o mundo ―real‖. O crítico
resume: ―Senhora oscila entre o mundo do desejo e o mundo do não-desejo, entre o
mito do amor inventado e a realidade decepcionante da experiência.‖ Dessa maneira,
apresenta o maniqueísmo:
Assim podermos ver, por exemplo, o conflito que organiza o enredo:
como um choque entre o mundo do amor idealizado, o arquétipo do
Amor invencível, e o mundo da experiência decepcionante e
degradante, governado pelo dinheiro emblema do demoníaco. Esse
choque constitui o da narrativa e encrespa suas páginas com a
emoção da luta. (LAFETÁ, 2004, p.428)
O romance Senhora utiliza-se do processo narrativo folhetinesco, pois está
voltado para a emoção e o mundo idealizado da época, e também antecipa o que viria a
ser a literatura realista, mas relativiza-o pelo conceito de verossimilhança que
exporemos a seguir.
52
2.2. O verossímil sob duas ordens: externa e interna, a referencial e a discursiva.
Segundo Martins (2005, p.192), o verossímil, na obra de José de Alencar, foi
alvo de crítica, principalmente por Nabuco, que o incomodavam as narrativas de
Alencar a ―deficiência da representação do ambiente social da corte‖ e ―a construção da
narrativa‖.
Para justificar a questão da verossimilhança em suas obras Alencar formula o
problema a partir de duas ordens distintas de argumentos‖; ―o verossímil é concebido de
perspectiva referencial‖ e o discursivo interno‖ refere-se ao texto (MARTINS, 2005, p.
194).
Quanto à verossimilhança e à verdade da vida real e da narrativa, precisamos
entender que
Por ―verdade‖, ou verossimilhança, não se entenda que a ação
reproduza literalmente ocorrências da vida real, pois nesse caso não
seria ficção, mas que a ação se organize como se se desse na
realidade, isto é, segundo uma coerência relativa, semelhante à que
preside os eventos da vida diária. Portanto, verossimilhança interna à
própria obra, não enquanto relação com o mundo real. (NABUCO
apud MOISES, 1996, p.90)
Percebemos que Nabuco estava preocupado com a verossimilhança externa, a
referencial, ou seja, da vida real. Para ele, a verdade deve ser tirada da realidade.
Alencar mostrou, como diz Moisés (1996, p. 90), a importância da obra de arte ter
verossimilhança discursiva, isto é, coerência interna da narrativa.
Martins (2005, p. 194), ao citar Barthes (1971), discute as categorias de
verossimilhança referencial e discursiva, para tratar do ―efeito do real‖, separando o real
do discurso encontrado na sociedade e o discurso narrativo, a ―realidade‖ do texto. O
primeiro refere-se ao momento histórico, enquanto que o segundo está relacionado ao
uso da linguagem. Para Barthes (1971), muitas vezes, para alcançar o efeito real‖, o
escritor utiliza elementos supérfluos da história, que servem apenas para dar esse efeito,
mas que não acrescentaria nada à estrutura narrativa, com o propósito apenas de criar o
efeito do real na história.
Essa realidade ou verdade nos remete a Aristóteles e ao que ele entende pela
função do poeta:
53
não é contar o que aconteceu mas aquilo que poderia acontecer, o que
é possível, de acordo com o princípio da verosimilhança e da
necessidade.(...) E, se lhe acontece escrever sobre factos reais, não é
menos poeta por isso: nada impede que alguns factos que realmente
aconteceram sejam [possíveis e] verosímeis e é nessa medida que ele é
o seu poeta. (ARISTÓTELES, 2004, p. 54-55)
A verossimilhança para Aristóteles é trabalhar com a verdade, real ou
imaginária. A primeira refere-se à História, pois trabalha a veracidade dos fatos e a
segunda ao homem que cria novas realidades.
Como diz Moisés (1996), a questão da verossimilhança será perceptível pelo
leitor, visto que ele terá que relacionar o texto com elementos extratextuais, para
identificá-lo como referencial ou aceitar o ―jogo de ficção‖ existente na obra.
No romance Senhora, a verossimilhança externa aparece porque o escritor
recorre a uma sociedade existente, mas é na sua criação que aparece a verossimilhança
interna, visto que se ele apenas retratasse o momento histórico, não seria ficção.
Quando Joaquim Nabuco aponta defeitos nesse romance de Alencar ―por um
realismo sem elevação e sem verdade, para o qual a arte é a surpresa, a sensação e o
escândalo‖, refere-se à verossimilhança externa, pois Alencar não retrata, de fato, a
realidade. A ―sem verdade‖ a que Nabuco refere-se é a fusão da fantasia e da
imaginação presentes na obra poética.
Essa discussão nos remete ao significado de mimese (imitação da realidade), de
Aristóteles (2004, p.98), em que o escritor não copia a realidade, ele a imita, a recria:
Uma vez que o poeta é um imitador, como um pintor‖. Essa questão afirmação, nos
leva a uma passagem do romance Senhora, em que Aurélia encomenda um quadro a
um pintor, para satisfazer seu desejo:
Na primeira versão do quadro surge, desagradável e fiel, a expressao
seca de Fernando. Aurélia não gosta disso, reclama, e o pintor retruca
dizendo ter pintado o que vira, sem fazer obra de fantasia. Aurélia-
Pigmalião pede tempo, adula o marido e consegue devolver-lhe o
sorriso à fisionomia. Então o pintor pode refazer o desagradável e
pintar...Seixas? Antes o desejo de Aurélia, aquilo que ela quer que
seja. (LAFETÁ, 2004, p.112)
José de Alencar utiliza-se da mímese, conforme aponta Lafetá (2004, p. 428)
para mostrar um enredo que, às vezes, direciona ―ora para o mundo do desejo, ora para
o mundo do não-desejo‖, ou seja, sonho e realidade; além de a narrativa ser ―movida
54
pela ambição da mimese‖ e dirigir-se ―a cada instante para a descrição da experiência
humana, à qual tenta permanecer fiel, deslocando e adequando os padrões míticos.‖
Alencar começou a expor a realidade social em suas histórias, mas, direciona-se para o
romanesco, para o sonho e para imaginação.
Martins resume a questão da verossimilhança externa e interna nas obras de
Alencar:
Da perspectiva alencariana, contudo, não contradição entre essas
duas concepções do verossímil, uma vez que o trabalho do escritor é,
como explicitou ao discutir a escolha do tema de O jesuíta, criar um
fato imaginário filiado à história e completá-lo nos aspectos deixados
na obscuridade pelos cronistas. (MARTINS, 2005, p. 196)
Alencar tinha consciência de seu ofício de ―imitador‖ da realidade, criava as
suas personagens com base na realidade em que ele vivia, sem negar a imaginação e o
sonho. Isso porque, para ele, criar personagens tirados da realidade não significa que a
história seguiria fatos reais: a verossimilhança interna deve tornar real o que está na
narrativa da história, dentro da estrutura textual e não da realidade.
Recorremos à verossimilhança baseada nas reflexões de Costa Lima (2000)
feitas das leituras de Schlegel, sobre a mesis e verossimilhança de Aristóteles. Um
aspecto importante que ele ressalta é o papel do leitor:
se a obra cortar todas as amarras com a verdade i.e., com o que a
sociedade em causa, de acordo com a ―classificação‖ que atravessa,
toma por verdade , constituirá, no melhor dos casos, um mundo
paralelo que, não identificável (...) com qualquer aspecto do ―real‖,
em princípio, não permitiria ao leitor nenhuma entrada (LIMA, 2000,
p.61)
O autor quer nos alertar de que o que facilita a entrada do leitor no romance, é
um aspecto da realidade no texto. Não pode ocorrer sua transcrição, pois o leitor precisa
reconhecer algo de real para que possa entrar na narrativa.
O verossímil externo traz para a narrativa apenas dados da realidade; a poética
preocupa-se com a criação ou recriação da realidade, conforme Aristóteles, não apenas
com a repetição. Quando o escritor se preocupa com a ficcionalidade da literatura, sua
preocupação é com a estrutura do texto. Na narrativa não haverá falso ou verdadeiro,
haverá, sim, a retomada de elementos externos a serviço da construção do texto literário.
55
Para Lima (2000), a verossimilhança pode gerar dois tipos de fracasso: o
ficcional e o interpretativo, que refletiriam na duração de vida de determinado romance.
Quando o romance fica muito preso à realidade, será importante apenas para
aquele momento histórico. O que determinará sua permanência na história é a maneira
como é escrito, se houver preocupação com o texto, ele ficará na história.
Portanto, para evitar que o interesse na obra de arte não seja
passageiro e não confunda com um truque apenas provisoriamente
curioso, será preciso que, sem ser verdadeira declaradora do que é
ou foi , se pareça (positivamente) com o mundo verdadeiro do que
brilha enquanto aparece. (LIMA, 2000, p. 62)
Entendemos que Senhora é um exemplo desse aspecto mimético. Ele foi escrito
em 1875, retratava a burguesia da época, mas a ultrapassa, quando discute na obra
temas como a valorização do dinheiro em detrimento do homem.
Martins (2005, p. 192) comenta, também, que a crítica em relação à
verossimilhança feita por Joaquim Nabuco, além da ―representação do ambiente social
da corte‖ nos romances de costume, refere-se à ―construção das personagens‖,
principalmente, aquelas que apresentavam uma ‗dualidade‘ de caráter, como a
personagem Lucíola do romance de mesmo nome, Loredano, de O Guarani e a Emília
de Diva. Esse tipo de personagem será uma constante em romances realistas e
modernos:
O romance moderno procurou, justamente, aumentar cada vez mais
esses sentimentos e dificuldade do ser fictício, diminuir a ideia de
esquema fixo, de ente delimitado, que decorre do trabalho de seleção
do romancista. (...) criar o máximo de complexidade, de variedade,
com um mínimo de traços psíquicos, de atos e ideias. (CANDIDO,
2007, p.59)
As personagens de Alencar apresentavam traços de personagens modernas e um
perfil psicológico que aumentava sua complexidade cada vez mais.
56
2.3. O perfil das personagens do romance Senhora: Aurélia e Fernando
Ao relacionarmos o romance-folhetim com o romance Senhora, como
poderíamos classificá-lo? Meyer (1996, p.242) expõe algumas definições para esse
―esqueleto narrativo, que visa agora atirar fora os ouropéis da fantasia e imitar a vida‖.
Classificaríamos como ―folhetim dos gritos da miséria humana‖, ―romance dos dramas
da vida‖, ―romance dos crimes do amor‖, ―romance da vítima‖, ―romance da heroína‖,
ou ainda romance de ―uma pobre heroína vitimizada.
Senhora pode ser classificado como ―romance da heroína‖. Encontramos na
narrativa uma protagonista que se considera vítima de uma sociedade capitalista em que
o dinheiro corrompe o caráter do indivíduo. A diferença é que a protagonista Aurélia
não representa ―uma pobre heroína vitimizada‖, já que usará sua herança para se vingar.
A riqueza, que lhe sobreveio inesperada, erguendo-a subitamente da
indigência ao fastígio, operou em Aurélia rápida transformação; não
foi, porém, no caráter, nem nos sentimentos que se deu a revolução;
estes eram inalteráveis, tinham a fina têmpera do seu coração. A
mudança consumou-se apenas na atitude, se assim nos podemos
exprimir dessa alma perante a sociedade. (ALENCAR, 2009, p.106)
Aurélia, a heroína, não terá seu caráter afetado, ela apenas terá ―atitudes‖
semelhantes às das pessoas dessa sociedade, mas sua alma se manterá a mesma. Ela
conhece o poder do dinheiro, e por isso consegue usá-lo para seu próprio bem-estar.
desses dezenove anos, dezoito vivi na extrema pobreza e um no seio
da riqueza para onde fui transportada de repente. Tenho as grandes
lições do mundo: a da miséria e a da opulência. Conheci outrora o
dinheiro como um tirano; hoje o conheço como um cativo submisso.
(ALENCAR, 1999, p. 30)
O dinheiro, que antes trouxera tristeza para Aurélia, seusado para cumprir seu
desejo de vingança. A sociedade que outrora a considerava ―ninguém‖, passará a tratá-la
como princesa.
Nossa protagonista, ao entrar na sociedade, se dividida: menina pura, apenas
com dezoito anos vivia de modo tranqüilo. Após receber a herança tivera que crescer e
enxergar a realidade sem idealizações das moças românticas para não ser enganada
pelos interesseiros. Parece preocupar-se com seu caráter, pois sabia que o dinheiro
57
destruía a honestidade do homem e ela sentia que existiam em si duas forças, algo em
seu íntimo tinha mudado. Como demonstra o narrador do romance: ―Operava-se nela
uma revolução‖ (p. 28-9). A primeira mudança foi a não ser mais romântica, passara a
não acreditar mais no sonho de um casamento feliz com Seixas, mostrando que o amor
vence tudo. Quando Seixas a abandona por causa de um dote, com isso, ela percebe que
tem que ser mais racional, enxergar a realidade sem as idealizações de uma adolescente
sonhadora. ―(...) abandonava seu foco natural, o coração, para concentrar-se no cérebro‖
(ALENCAR, 2009, p. 29), e no dinheiro:
Aurélia origem a um movimento vertiginoso, de grande alcance
ideológico o alcance do dinheiro, esse ―deus moderno‖ – e um
pouco banal; falta de complexidade a seus pólos. A riqueza fica
reduzida a um problema de virtude e corrupção, que é inflado até
tornar-se a medida de tudo. (SCHWARZ, 2000, p.34)
De um lado, o perfil de nossa heroína não pode ser definido apenas como uma
personagem romântica sem ―complexidade‖; ela apresenta uma reflexão sobre a
sociedade, em que o dinheiro é o ―deus‖. Não aprofundamento da tensão amor-
dinheiro‖, pois como foi dito, esse romance tende para o tom romanesco, e Aurélia sofre
as consequências da riqueza, porém continua sendo a mocinha dos leitores do romance-
folhetim. Como a personagem ironiza: ―A cabeça é fraca.‖ (ALENCAR, 2009, p. 29),
assim, o coração vencerá, ou seja, o amor.
Por outro lado, o autor ironiza também a postura das mocinhas românticas por
meio da voz de Aurélia:
Então não sabe, D. Firmina que tenho um estilo de ouro, o mais
sublime de todos os estilos, a cuja eloqüência arrebatadora não se
resiste? As que falam como uma novela, em vil prosa, são essas moças
românticas e pálidas que se andam evaporando em suspiros; eu falo
como um poema: sou a poesia que brilha e deslumbra! (ALENCAR,
2009, p. 22)
O poeta busca a palavra certa para referir-se à Aurélia. Ela não se entrega ao
sentimentalismo como as moças que ―se evaporam‖, ou seja, aquelas que são emotivas.
Para completar a ideia de que a protagonista, diferentemente dessas moças, o vive na
emoção. A personagem D. Firmina pergunta-lhe: ―Quem de dizer que uma menina
de sua idade sabe mais do que muitos homens aprenderam nas academias?‖ Aurélia
58
permanece pensando: ―murmurou a moça recaindo em sua meditação‖. (ALENCAR,
2009, p. 23).
Outro trecho do romance, comentado, nos ajuda a traçar o perfil de Aurélia: a
pintura do quadro de Seixas. Ela não gosta da primeira pintura e após deixar o marido
mais feliz pede ao pintor que providencie um outro, na tentativa de mudar o referente,
Seixas.
Lafetá (2004), ao fazer essa análise expõe a questão da narrativa realista e
romanesca. Aqui, refletimos, a nossa personagem romanesca, por mais que enxergue a
realidade, ela não é capaz de modificá-la, assim como o próprio escritor. Aurélia prefere
ver o lado bonito de Seixas, mesmo que não seja, mas que ela deseja. A protagonista,
por mais que aceite e faça reflexões sobre a realidade, prefere vê-la ao seu modo.
Aurélia confirma seu poder em relação à criação: o que não a agrada ela recria, como o
Pigmalião, citado pelo narrador do romance:
Como Pigmalião ela tinha cinzelado uma estátua, e talvez, como
artista mitológico, se apaixonasse por sua criatura, de que o homem
não fora senão o grosseiro esboço. E não é esta a eterna legenda do
amor, nas almas iluminadas pelo fogo sagrado? (ALENCAR, 2009, p.
90)
O amor é idealizado, assim como o narrador conclui: ―Aurélia amava mais seu
amor do que seu amante; era mais poeta do que mulher; preferia o ideal ao homem‖
(ALENCAR, 2009, p. 97). Podemos afirmar que a protagonista ama o seu ideal de
homem; mesmo Seixas se mostrando-se diferente, ela ainda acredita que pode
transformá-lo, torná-lo menos ambicioso, fazer com que ele enxergue o dinheiro não faz
nem bem nem mal:
__ Não é um mal; muitas vezes torna-se um bem; mas em todo o caso
é um perigo. Aqueles que se exercitam em jogar as armas, pensam que
tudo decide pela força. O mesmo acontece com o dinheiro quem o
possui em abundancia, persuade-se que tudo compra. (ALENCAR,
2009, p. 153)
Aurélia tenta obscurecer a realidade, ao modificar o retrato de Seixas, pois não
aceita o que vê, idealiza-o conforme seus sonhos de moça romântica.
59
Senhora recebeu o subtítulo perfil de mulher nas suas primeiras publicações
(Rio de Janeiro: Editora Expressão e Cultura, 1974). Entendemos que o romancista
mostrava o perfil de uma nova mulher na sociedade fluminense. Aurélia representava a
mulher que, ao entrar na sociedade capitalista, deixa a razão se sobrepor ao coração até
certo ponto, por amor a Seixas. Para isso, a protagonista o trata com desprezo, para que
sinta remorso, por tê-la trocado por dinheiro, quer vingar-se, tanto o leitor quanto
Aurélia aguardam, ao final da história de amor, o pedido de perdão de Seixas à Aurélia.
Assim, podemos desenhar um perfil de uma mulher que detém o dinheiro e o poder,
embora acredite que a felicidade está no amor.
Nos romances-folhetins da época, segundo Meyer (1996, p. 230) a mulher, por
ser seu principal público leitor, era uma temática constante, seja como ―imagem
tradicional da mulher, pura, virtuosa, boa esposa, boa mãe, educadora do homem, seja
―a mulher de vida dúbia‖. As histórias abordam temas em que a mulher é vista de
maneira positiva e negativa. No romance, Alencar faz a aproximação do enredo aos
dramas da vida real.
Nesse caso, a mulher é o foco, pois é no casamento, antes visto pela sociedade
como negócio, que Aurélia luta para que o esposo enxergue que o amor está acima do
dinheiro e das convenções dadas pela sociedade:
Seixas era homem honesto; mas ao atrito da secretaria e ao calor das
salas, sua honestidade havia tomado nessa têmpera flexível da cera
que se molda às fantasias da vaidade e aos da ambição. (...) tudo é
permitido em matéria de amor; e o interesse próprio tem plena
liberdade, desde que transija com a lei e evite o escândalo.
(ALENCAR, 2009, p. 55)
Fernando Seixas, por sua vez, também representa a sociedade capitalista, pois é
com ele que conhecemos a importância dada ao dinheiro pelos indivíduos. Os sonhos
dessa personagem refletem o desejo de frequentar os lugares da alta sociedade, mesmo
sem dinheiro, o importante era manter as aparências:
Foi assim que Seixas insensivelmente afez-se à dupla existência, que
de dia em dia mais se destacava. Homem de família no interior da
casa, compartilhando com a mãe e as irmãs a pobreza herdada, tinha
na sociedade, onde aparecia sobre si, a representação de um moço
rico. (ALENCAR, 2009, p.41)
60
Ao ser comprado por Aurélia, Seixas passa de sujeito à condição de objeto,
percebemos isso em sua fala:
Eu supunha haver feito uma coisa muito vulgar que o mundo tem
admitido com o nome de casamento de conveniência. A senhora
desenganou-me; definiu a minha posição com a maior clareza;
mostrou que realizara uma transação mercantil, e exibiu o seu título de
compra (ALENCAR, 2009, p.210)
O casamento com Aurélia leva Seixas a perceber que a sociedade em que ele
vivia o havia transformado em um homem interesseiro: ―A sociedade no seio da qual
me eduquei, fez de mim um homem à sua feição‖ (ALENCAR, 2009, p .213). Seixas
reconhece que, para adquirir dinheiro optou pelo casamento. No final do romance, ele
reconhece o erro cometido e aceita o amor de Aurélia.
As personagens masculinas nos romances-folhetins eram os heróis e a história se
passava baseada em suas ações. Em Senhora, Aurélia é a heroína que luta para
recuperar seu amor, não, de uma mulher, mas da sociedade que ―roubou o coração‖ de
seu amado. Não encontramos nele o triângulo amoroso como nas histórias em que as
personagens buscam a realização amorosa. O terceiro elemento é o dinheiro, o vilão
adia a realização o amor para o final. O amor, como indica Castello (1999, p. 270), é o
elemento ―regenerador e reparador‖, visto que Seixas ―recupera‖ sua honestidade e se
posiciona como um homem de caráter. O perfil do nosso casal, portanto, foge do
modelo dado pelo folhetim.
Os enredos começavam a apontar problemas da sociedade fluminense,
principalmente o dinheiro, que na história representa o mal que destrói o caráter do
homem, quando esse é fraco. Vemos, assim, que a ideologia capitalista é alvo de crítica
no romance, mesmo que de maneira superficial. O casamento por interesse e o valor
que é dado aos bens materiais mais do que ao indivíduo são um modo de dizer que a
ideologia interfere na formação do caráter das pessoas.
61
III O romance Senhora e a verossimilhança
No uso corrompido da linguagem, verossímil significa tanto
quase verdadeiro ou um pouco verdadeiro ou o que ainda pode
se tornar verdadeiro. Mas tudo isso a palavra, de acordo com sua
formação, não pode designar. O que parece verdadeiro não
precisa, por isso, e em grau algum, ser verdadeiro; mas deve
positivamente parecer. (SCHLEGEL, apud LIMA COSTA,
2000, p. 60)
62
3.1. As personagens do romance imbricadas no cenário social fluminense
As personagens centrais do romance Senhora: Aurélia, Seixas, Lemos e D.
Firmina representam ―cidadãos‖ do cenário social fluminense. Cada uma parece, de
certa maneira, expor um defeito dessa sociedade, característica que afere ao romance
também a designação de ―romance de costumes‖, conforme nomeia Candido (2007):
As ―personagens de costumes‖ são, portanto, apresentadas por meio
de traços distintivos, fortemente escolhidos e marcados; por meio, em
suma, de tudo aquilo que os distingue vistos de fora. Estes traços são
fixados de uma vez para sempre, e cada vez que a personagem surge
na ação, basta invocar um deles. Como se vê, é o processo
fundamental da caricatura (p.61)
As personagens, além de representarem caricaturas, começam a nos mostrar sua
análise psicológicas; o narrador as apresenta de forma que possamos reconhecer suas
qualidades e defeitos, retidos do cenário burguês fluminense. Essa caricatura social
possibilita-nos observar os problemas da realidade brasileira, em busca de uma literatura
nacional. A verossimilhança, como vimos, é um ponto de crítica nas histórias do
romancista Alencar. Vemos que essa verdade trabalhada pelo romancista traz a cidade
fluminense para as histórias ficcionais nas quais os defeitos morais de seus cidadãos são
vistos de maneira, muitas vezes, romanceados.
Verificamos que o romance se utiliza do cronotopo da cidade em progresso,
como dito foi dito anteriormente, e as mudanças que ocorrem no cenário serão refletidas
pelas personagens.
O ―topo‖ cidade do Rio de Janeiro, segundo Castello (1999, p. 271), a partir do
cenário exposto pelo romance, começa a ―se tornar o grande pólo de todas as atrações‖
intelectuais brasileiros. Desde a chegada da família real no Brasil, ocorreu um
crescimento em várias áreas: 1827, criação de cursos jurídicos em Olinda e São Paulo e
1836, no Rio de Janeiro, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
A imbricação entre personagem e cenário parece-nos indicada no progresso, na
transformação que ocorre, tanto com a cidade quanto com as personagens, nas
narrativas urbanas:
José de Alencar situou na Corte todos os romances do grupo
―narrativa social urbana‖. Eles acentuam perfis femininos esboçados
63
sob a visão romântica e mesmo romanesca no comportamento afetivo
e social da mulher. (...) numa sociedade em mudanças, marcada pela
ascensão da classe burguesa de comerciantes e banqueiros
enriquecidos honesta ou inescrupulosas (CASTELLO, 1999, p. 272)
A heroína, em seu projeto literário, não será tão perfeita como nos romances
românticos anteriores; ela sofre a influência de uma sociedade corrupta, em que o
dinheiro transforma o indivíduo.
Para Schwarz (2000), o escritor permanece imitando as histórias que estavam
sendo escritas na Europa, mas utilizando o cenário fluminense. A questão da imitação,
não será levada em questão, aqui, mas a intenção é apontar como a sociedade é
articulada no contexto da obra. O cenário fluminense abordado no romance mostra que
cada personagem tem uma função, mesmo que caricata: Aurélia, a moça que enriquece
e vingará seu amor; Seixas, o homem que fora corrompido pela sociedade; Lemos, o tio
que depende de Aurélia, e, por isso, muitas vezes obedece aos caprichos da heroína,
semelhante à D. Firmina, que é a pessoa que está sempre junto a Aurélia para servi-la.
Nossa protagonista se apresenta como uma juíza, que o defeito da sociedade
capitalista e não aceita os seus valores.
Para Schwarz (2000), no romance Senhora, ―ideologias de segundo grau‖,
pois, segundo ele, o romancista escreve sobre a sociedade européia, principalmente, a
francesa, que ao imitá-la, a outra cidade surge como ―segunda cópia‖, no caso, o Rio de
Janeiro:
Chega o romancista, que é parte ele próprio desse movimento faceiro
da sociedade, e não lhe copia as novas feições, copiadas à Europa,
como as copia segundo a maneira européia. Ora, essa segunda cópia
disfarça, mas não por completo, a natureza da primeira, o que para a
literatura é uma infelicidade, e lhe acentua a veia ornamental.
(SCHWARZ, p. 47)
Não tem como negar a influência da cultura européia na formação da sociedade
fluminense. O romance ao mostrar a ideologia burguesa destrói o idílico idealizado, ou
seja, a ideia de perfeição que havia nas histórias.
A destruição é apresentada sobre o fundo do centro capitalista de um
idealismo ou de um romantismo provincianos dos personagens, que
não são de modo algum idealizados; também o mundo capitalista não
64
é idealizado: revela-se a sua inumanidade, a destruição no seu interior
de todos os princípios morais (...), a desagregação (sob influência do
dinheiro) de todas as relações humanas de outrora amor, família,
amizade, a degeneração do trabalho (BAKHTIN, 1993, p.341)
O romance Senhora, ao usar personagens retiradas do ―topo‖, cenário
fluminense, faz críticas à ideologia capitalista, com base na vida do indivíduo e na
maneira como ele sofre a influência dessa sociedade.
O romance não discute a sociedade capitalista como um todo, mas a ideologia,
afetando as personagens desse topo‖ carioca fluminense, principalmente suas ações. O
enredo apresenta os espaços dentro da sociedade, que Aurélia começa a freqüentar após
receber a herança, ou seja, quando começa a participar da burguesia. Logo que recebe o
dinheiro, Aurélia se transformou em ―estrela‖, ―rainha dos salões‖, ―deusa dos bailes‖
(ALENCAR, 2009, p.17).
Os bailes, que Aurélia Camargo passou a freqüentar, mostravam o
comportamento dessa sociedade e sua ideologia:
Desde muito cedo vi-me exposta às suspeitas, às insolências e às vis
paixões; habituei-me para lutar com essa sociedade, que me aterra, a
envolver-me na minha altivez, desde que não tinha para guardar-me o
desvelo de uma mãe ou de um esposo.(ALENCAR, 2009, p. 204)
Aurélia aponta que a sociedade a ―aterra‖, parece que não a deixa viver como ela
gostaria, pois dela é cobrado uma mãe ou um esposo, por esse motivo se obrigada a
lutar por essa sociedade que a julga. Agora, com a riqueza, ela não precisa se sentir
humilhada. Como aparece em sua fala:
Para o senhor e para o mundo julgo-me dispensada de tudo; nada
lhes devo; o que me dão, são apenas as homenagens à riqueza, e ela as
paga com o luxo e a dissipação. Sou senhora de mim, e pretendo gozar
da minha independência sem outras restrições, além do meu capricho.
Foi o único bem que me ficou do naufrágio de minha vida, este ao
menos hei de defendê-lo contra o mundo. (ALENCAR, 2009, p.204)
Nossa protagonista, Aurélia, de um lado diz ter ficado apenas com seu
―capricho‖, pois a sociedade ao tê-la jogado em um ―naufrágio‖, parece mostrar que ela
tivera que se despir de tudo o que era e no que acreditava, principalmente, nas virtudes.
65
Fernando Seixas, por outro lado personifica o capitalismo, como verificamos,
pois acredita nessa ideologia e vive de aparências, julgando o homem pela posse e não
pelo que ele é.
Ele é transformado de coisa amada à coisa possuída, ou seja, objeto comprado
por Aurélia. É observável como os capítulos representam os negócios feitos nos grandes
centros urbanos, termos usados para compra e venda: Primeira parte: O preço, o
dinheiro elemento principal do capitalismo, em que qualquer pessoa tem um preço, no
caso o de Seixas ―cem contos de réis‖. Na Segunda parte: Quitação; é o documento que
certifica alguém de ter possuído algo; Terceira parte: Posse, segundo o dicionário
Aurélio (2000), ―detenção duma coisa com o fim de tirar dela qualquer utilidade
econômica‖. A última Quarta parte: Resgate, livrar-se do cativeiro, (...) a troco de
dinheiro ou de outro valor, remir‖. Salientamos o resgate do caráter de Fernando,
tornando-se um funcionário e marido exemplar, e também o resgate do amor, que
Aurélia havia substituído pela vingança. No final, percebemos que o resgate representa
o aspecto de remição: um perde perdão para o outro e assim, há o final feliz.
A personagem Lemos representa o homem de meia idade, que sabe ganhar
dinheiro e conhece as transações da sociedade capitalista.
Lemos voltara satisfeito com o resultado da sua exploração. Era o
velho um espírito otimista, mas à sua maneira; confiava no instinto
infalível de que a natureza dotou o bípede social para farejar seu
interesse e descobri-lo. (ALENCAR, 2009, p. 49) (Grifos nossos)
Com sua esperteza, Lemos, como mediador, consegue ―comprar‖ Seixas para
Aurélia. Em sua fala, Lemos, resume a questão do mundo capitalista:
Não se recusam cem contos de réis, (...) Queria que me dissessem
os senhores moralistas o que é esta vida senão uma quitanda? Desde
que nasce um pobre-diabo até que o leva a breca não faz outra coisa
senão comprar e vender? Para nascer é preciso dinheiro e para morrer
ainda mais dinheiro. Os ricos alugam os seus capitais; os pobres
alugam-se a si, enquanto não se vendem de uma vez, salvo o direito
do estelionato. (ALENCAR, 2009, p.50)
Lemos representa a personagem defensora dos ideais capitalistas, pois concorda
com a ideia de que o dinheiro é mais importante que o homem e seu caráter. Outra
personagem que se ―comprada‖ por Aurélia é D. Firmina de Mascarenhas. Ela é
66
dama de companhia da protagonista, para os bailes e compras está sempre disposta a
fazer Aurélia feliz, anulando-se.
tinha em sua essa companhia uma velha parenta, viúva,(...) que
sempre a acompanhava na sociedade. (...) mas não passava de mãe de
encomenda, para condescender com os escrúpulos da sociedade
brasileira, que naquele tempo não tinha admitido ainda certa
emancipação feminina. (ALENCAR, 2009, p. 17)
O narrador nos esclarece que essa personagem serve apenas para concordar com
a sociedade de que uma moça não pode viver sozinha. Aurélia precisava aparentar para
a sociedade uma moça que tem alguém que cuida dela, uma ―mãe‖.
As personagens no romance servem para mostrar a sociedade da época e indicar
que com o progresso da cidade os indivíduos também passam por transformações, sejam
boas ou más. No caso, Aurélia, a heroína, mantém seu caráter intocável, mas o Seixas
acaba desejando viver nessa sociedade em que o dinheiro se sobrepõe ao amor. Ele
reconhece isso ao sentir-se ―comprado‖ por Aurélia:
Seu corpo sim estava vendido; ele não o podia subtrair ao indigno
mister, desde que havia recebido o salário. Mas a alma, nunca!
Tivesse-o embora essa mulher na conta de um especulador sem
escrúpulos, ele sentia que a honra o abandonara; e que se outrora ia-se
embotando, esse acidente lhe restituía o rigor. (ALENCAR, 2009,
p.191)
A individualidade de cada personagem é apontada por caricaturas, no romance,
de maneira que percebemos que, mesmo tendo o social influenciando suas ações, o que
mais é valorizado é a alma que não pode ser contaminada pela corrupção da sociedade.
Conforme Castello (1999) o romancista Alencar, ―em identificação profunda com a
nossa realidade‖ e utilizando os ideais românticos, escrevia sobre a ―identidade
nacional‖, formando o ―modelo‖ da ―narrativa ficcional‖ nacionalista.
O enredo do romance traz personagens que ficam assim resumidas por
ambiguidades, para Castello (1999, p.278): ―(o herói), a heroína- reparadora e redentora
Aurélia, o anti-herói (ou anti-heroína) a ser redimido Seixas, e o vilão, sempre
condenado- Lemos‖.
67
Deduzimos que tanto a verossimilhança interna quanto a externa são leis que se
conflitam na ―alma‖ das personagens, à maneira de lei de um enredo que põe em jogo
os valores da sociedade do século XIX, no romance Senhora.
68
3.2. O jogo amoroso moralizante: Aurélia e Seixas.
A moral está presente nos folhetins que utilizam essa característica do
melodrama do teatro. Segundo De Marco (1986, p.27), Alencar utiliza-se da ―função
moralizadora da literatura e sua potencialidade de representar e discutir os costumes da
sociedade‖.
Aurélia e Seixas são indivíduos tirados do cenário fluminense do século XIX,
como visto anteriormente, cada um possuía uma moral: a protagonista mantinha o ideal
romântico, o amor é capaz de vencer todos os obstáculos e Fernando seguia os ideais
burgueses, em que se valorizava o dinheiro. Essas duas personagens criam um jogo
amoroso. Um romântico e o outro ―realista‖. Cada uma tem uma visão do mundo em
que vive, por isso duas forças contrárias, daí a ideia de jogo entre o bem e o mal, o
maniqueísmo presente no romance-folhetim.
Aurélia, após receber a herança, deseja vingar-se do seu ex-noivo. Por esse
motivo é que nela existem duas forças a do ―anjo‖ e ―demônio‖. Com Seixas ocorre ao
contrário: ele vive em uma sociedade em que considera o dinheiro o bem maior. Após
casar-se com Aurélia, muda seu pensamento. A união desses dois jovens, portanto, se
faz entre duas forças: bem x mal ou coração x dinheiro, temas comuns nos folhetins.
Essa mudança em nossos personagens mostra que
A imensa maioria dos romances (e das modalidades romanescas)
conhece apenas a imagem da personagem pronta. Todo o movimento
do romance, todos os acontecimentos e aventuras nele representados
deslocam o herói no espaço, deslocam-no pelos degraus da escada da
hierarquia social: de miserável ele se torna rico, de vagabundo sem
linhagem se torna nobre; o herói ora se afasta, ora se aproxima do seu
objetivo da noiva, a vitória , da riqueza, etc. (BAKHTIN, 2006,
p.218)
No romance, Aurélia sente que seu objetivo é casar-se com o homem que ama,
não vai acontecer, e o de Seixas, ter dinheiro para sanar as dívidas e viver como um
burguês, também não será realizado. Ambos se encontram e realizam seus sonhos, mas
cada um paga um preço. Aurélia não se sente mais amada, pois sabe que tem seu
amado, porque ela o comprou; Seixas ao se ver comprado por Aurélia também se sente
infeliz.
69
O jogo amoroso presente no romance ocorre, portanto, no momento do
casamento. Meyer (1999, p.251), ao discutir esse tema no folhetim, nos aponta que
Balzac a mulher como ―esperança de mudança social‖, e é, segundo esse olhar, que
enxergamos Aurélia. Ela representa essa modernidade da cidade, não mais verá o
homem como ―o protetor, o diretor, o senhor, aquele que pensa, que age, que assume as
responsabilidades‖ (p.251)
Vemos que, neste romance, a mulher é quem deveria possui o poder de
proprietária, e comprar seu marido. O homem começa a mudar de posição na sociedade,
e a mulher começa a assumir certos poderes que não tinha.
O casamento designa o ato de vingança tramado por Aurélia: comprar o marido
e que era muito comum no Romantismo. Para Meyer,
[...] a vingança, [...] embora tão velha na literatura quanto a própria
literatura, recebeu do Romantismo alguns toques especiais. Não será
excessivo lembrar que ele se tornou então um recurso de composição
literária, de investigação psicológica, de análise sociológica e de visão
de mundo. (1999, p. 68)
O romance Senhora, de certa forma, inova a concepção moral ao trazer a
vingança feita por uma moça que, teoricamente, seria ingênua e dependente de alguém.
Esse traço também aproxima a personagem Aurélia das heroínas realistas, como
Madame de Bovary (1856) e Luísa, do romance O primo Basílio (1878), pois elas
fogem dos padrões das moças idealizadas e têm seus defeitos expostos para os leitores,
além de existir uma ação psíquica, na medida em que nossa heroína está sempre
dividida entre seus valores e os da sociedade.
A vingança de Aurélia é feita também para aos valores capitalistas e a influência
que ocorre na vida do indivíduo que se sente atraído pelo dinheiro: ―As revoltas mais
impetuosas de Aurélia eram justamente contra a riqueza que lhe servia de trono‖
(ALENCAR, 2009, p.18), isso gerou dois sentimentos opostos:
Amor versus ambição, o que equivale a dizer: a ameaça de degradação
do amor pela força corruptora do dinheiro, dominante na ascensão
social. Valores a serem preservados entram em choque, sofrem o
impacto de fatores novos no meio das mudanças sociais propícias às
aspirações de glória. (CASTELLO, 1999, p. 277)
70
O jogo se apresenta no romance com a ideia maniqueísta: amor x ambição
(sociedade), bem x mal; esse dualismo existia no interior da personagem que ao entrar
na alta sociedade fluminense, conhece o poder do dinheiro de modificar o caráter dos
indivíduos fracos. Aurélia sente-se anjo e demônio: anjo: ―o anjo casto e puro que havia
naquela, como em todas as moças, talvez passasse despercebido pelo turbilhão‖
(ALENCAR, 2009, p.10). Demônio: ―Era um sarcasmo cruel e lascivo o que transluzia
com fulgor satânico da fisionomia e gesto dessa mulher‖ (p.130)
No final do jogo, ou do romance, ocorre a vitória do amor, pois é o ideal dos
românticos. Alencar utiliza a
visão lírica, geradora do mito amoroso, ou do amor regenerador e
reparador, à maneira romântica, (o amor) opõe-se às ambições da
glória e termina triunfando por força de seu poder regenerador e
reparador. Dessa maneira, alimenta-se a ilusão existencial, ao mesmo
tempo que se resguardam valores.(CASTELLO, 1999, p. 275)
Essa visão lírica permite que o amor seja consumado no happy-ending. A moral
da história tem a fruição de indicar a vitória do bem, no caso, o amor, que é a visão
lírica dos românticos.
A moral do romance aparece na busca de Aurélia em fazer Seixas reconhecer
que o amor é mais importante que o dinheiro. Assim, temos como no folhetim,
O autor do folhetim consegue a dupla proeza: preservar a necessária
verossimilhança que permite ao leitor popular a identificação possível,
melhor modo de se sujeitar às exigências dos donos da verdade e do
dinheiro. (MEYER, 1999, p.271)
No final da história, o amor é consumado mostrando que a mulher
―moralizadora‖ venceu, pois Seixas reconhece seus erros e entende que o amor é mais
importante do que os valores da sociedade:
A sociedade no seio da qual me eduquei, fez de mim um homem à sua
feição; (...) Hoje saberia afrontar a adversidade, e ser homem; naquele
tempo não era mais do que um ator de sala; sucumbi. Mas a senhora
me regenerou-me e o instrumento foi esse dinheiro. Eu lhe agradeço.
(ALENCAR, 2009, p. 212-13)
71
Após essa fala de Seixas, compreendemos que Aurélia desempenhou o papel de
moralizadora para ele, que reconhece que agiu segundo os valores da sociedade
capitalista, mas admite que fora mudado e conhece o mal que essa sociedade oferece.
Os leitores aguardavam o final feliz e justiceiro, pois estavam acostumados a
encontrá-los na maioria dos folhetins.
Folhetim e melodrama também apelam para a representação da
justiça. Donde tantos epílogos que não obedecem automaticamente ao
desejo do happy-ending, que vão além daquelas ―estruturas
consoladoras‖ (MEYER, 2009, p.385)
O final feliz presente nos folhetins e teatros também era solicitado pelos
romances que tinham suas estruturas, assim como no Senhora. A ―justiça‖ de que fala
Meyer é a moral da história, o bem vence o mal, e o amor vence as barreiras impostas
pela sociedade capitalista, além de obedecer ao desejo do leitor de ver reunido sua
heroína e seu herói no ―happy ending‖ romântico.
72
3.3. ―Ao correr dos olhos do leitor‖ no novo painel gênero romântico
Com o surgimento da imprensa no Brasil, o brasileiro começa a ter acesso a
jornais e revistas democratizando a leitura. Os gabinetes de leitura, lugares em que
leitores de todas as classes sociais frequentavam para ler as notícias ou alugar os
romances-folhetins, em volumes, que faziam sucesso e criavam um público leitor e
cada vez mais fiel.
José de Alencar responsabiliza a leitura das histórias, já em livros, que fazia para
sua mãe e ―senhoras‖ o influenciaram na carreira de escritor.
Dados os primeiros momentos à conversação, passava-se à leitura e
era eu chamado ao lugar de honra. (...) Lia até a hora do chá, e tópicos
havia tão interessantes que eu era obrigado à repetição. (...) e a
necessidade de reler uma e muitas vezes o mesmo romance, quiça
contribuiu para mais gravar em meu espírito os moldes dessa estrutura
literária, que mais tarde deviam servir aos informes esboços do novel
escritor. (ALENCAR, 1998, p. 29-30)
Em muitas casas ocorria o momento de leitura, geralmente, obras lidas por
garotos ou rapazes da casa, visto que poucas mulheres sabiam ler. O homem, um filho
mais velho fazia a vez de contador de história ao ler as lutas e conquistas do herói para
aquelas senhoras. Sabemos que o desejo de acompanhar as aventuras heróicas continuou
na rádio-novela e depois nas telenovelas. O ouvinte/telespectador também se alimenta
da curiosidade e expectativas para as histórias que continuam no próximo capítulo. Mas,
para que houvesse a espera da continuação dependia da criatividade do escritor, no caso
o romancista folhetinesco que escrevia com o objetivo de prender o leitor para a compra
do próximo jornal.
Alencar (2003, p. 3) em sua crônica, do dia 3 de setembro de 1854, ao se referir
aos textos escritos no rodapé do jornal, diz que são escritos ao correr da pena e, para
serem lidos, ao correr dos olhos‖. A primeira expressão ele se dirige ao escritor que
deveria preparar seu texto diariamente para a publicação no jornal. Muitas vezes,
Alencar usa suas crônicas para comentar o fato de acordar e perceber que não tem
assunto para aquele dia. Escrever ao correr da pena indica que o escritor não terá tempo
de pensar muito sobre seu texto, reler, reescrever são ões que o folhetinista não pode
fazer. A segunda expressão é para o leitor, que está acostumado a ler as notícias de
73
maneira rápida, sem se ater a detalhes. O olhar do leitor não é detalhista, ele passa os
olhos como para encontrar apenas as informações desejadas.
O leitor do folhetim é aquele que também lia o romance-folhetim e mais tarde o
romance em livro. Com a mudança de suporte das histórias folhetinescas temos a
alteração ou a manutenção de características do leitor. O suporte jornal pedia um leitor
que buscava as notícias para ser informado. Sua leitura, portanto, é objetiva e rápida,
pois quanto mais ele ler mais informação terá.
Quando o folhetim começa a participar do jornal, dando-lhe um aspecto literário
encontramos logo a presença de um novo leitor. Antes, ele estava interessado em ler as
notícias, com as crônicas escritas no espaço designado para o folhetim, o leitor, em
busca de informação, também quer entretenimento no momento da leitura do jornal.
O romance-folhetim mantém esse leitor, que busca entretenimento, e nas
histórias ―aos pedaços‖ ele alimentará sua imaginação. O escritor será o responsável por
cativá-lo a ler os próximos capítulos. Como resume Hauser:
A interrupção da história no fim de cada número da série, o problema
de criar de cada vez um clímax que desperte no leitor curiosidade pelo
número seguinte levam o autor a adquirir uma espécie de técnica do
tablado e apropriar-se do método descontínuo do dramaturgo, de
apresentação do assunto em cenas distintas. (1980, p. 895)
Essa interrupção dos capítulos é o uso da função persuasiva da linguagem, que
mais tarde será usada principalmente por Machado de Assis em suas digressões no meio
dos capítulos.
Segundo Martins (2005, p.104), O leitor passa os olhos rapidamente, folheia o
livro, e apenas de espaço a espaço encontra uma boa ideia, um trecho interessante. A
partir dessa afirmação, vemos que o leitor do século XXI continua correndo os olhos
nos textos, seja no livro, seja nos hipertextos da linguagem midiática contemporânea:
Hoje, parece ser pertinente dizer que ler é mergulhar nas malhas da
rede, é perder-se, é libertar-se, na medida em que a linearidade dá
lugar ao hipertextual, ao móvel e flexível, à interatividade que permite
conectar temas e idéias em duplo sentido: escolher links e produzir
inferências (CORREIA e ANTONY, 2003, p. 43).
74
O folhetim e depois o romance-folhetim apontam um aspecto do romance
moderno que é a diminuição da leitura linear. Alencar começa, assim, a educar o leitor
para o novo romance. A metáfora utilizada nesses textos torna a leitura sempre adiada
em sua significação, ou seja, o narrador diz, mas cabe ao leitor entender seu significado,
muitas vezes, limitado pelo repertório dos leitores.
A não-linearidade no romance Senhora surge com a apresentação da
personagem. Encontramos a personagem pertencente à sociedade fluminense e aos
poucos o narrador se remete ao passado da personagem. ―Proponho-me unicamente a
referi o drama íntimo e estranho que decidiu do destino dessa mulher‖ (ALENCAR,
2009, p.20). Outro momento de quebra de linearidade, na segunda parte, Quitação,
uma retrospectiva e conheceremos o passado de Aurélia e Fernando. ―Dois anos antes
do singular casamento.‖ (ALENCAR, 2009, p. 77). Entendemos que a não-linearidade
nesse romance, não alcança o mesmo grau de digressões existente nos romances de
Machado de Assis, nem nos modernos, mas inicia uma mudança na linearidade dos
romances.
No jornal, no qual havia o espaço do folhetim, trabalhava textos jornalísticos e
literários. Ambos se utilizam da linguagem escrita, do signo linguístico, o jornalístico e
do literário.
O signo jornalístico, segundo Oliveira (2001), é um ―signo icônico‖, pois ―capta
a dinamicidade do real‖ (2001, p. 114). O jornalista escreve para trazer a realidade aos
olhos do leitor. Por outro lado, o signo literário, tem por objetivo usar a imaginação, a
fuga da realidade. O leitor se liberta do real, constrói um mundo a parte. Esse espaço no
jornal representava esse desligamento da realidade. Resumido nas palavras de Vargas
Llosa:
El traslado es una metamorfosis: el reducto asfixiante que es nuestra
vida real se abre y salimos a ser otros, a vivir vicarimente experiencias
que la ficción vulve nuestras. Sueño lúcido, fantasía encarnada, la
ficción nos completa, a nosotros, seres mutilados a quienes ha sido
impuesta la atroz dicotomía de tener una sola vida y los deseos y
fantasías de desear mil.(1993, p. 11-12)(Grifos nossos)
O leitor realiza o desejo de sair de sua única vida, para viver outros desejos, e a
ficção propicia isso. Para que isso aconteça, segundo Candido (2007, p. 59), são "os
75
elementos que o romancista utiliza para descrever e definir a personagem, de maneira
que ela possa dar a impressão de vida, configurando-se ante o leitor.
Dessa afirmação, percebemos que Alencar ao se referir ao escritor e ao leitor,
mostra que os escritos ao correr da penasão para satisfazer o desejo do leitor, no caso
o público do século XIX, que tinha interesse em histórias romanceadas e estava
acostumado aos romances-folhetins, lidos de maneira rápida para solucionar o conflito
do dia anterior.
A expressão ao correr da penapara nós indica que o escritor está disposto a
entregar e satisfazer o leitor na manhã seguinte. No romance percebemos que essa
atitude de satisfazer o leitor continua no final feliz. O ―correr da pena‖ nos leva a pensar
que Alencar (2003, p. 3), ao dizer isso em sua crônica não está preocupado em escrever
sobre a realidade: Há de haver muita gente que não acreditará no meu conto fantástico;
mas isto me é indiferente, pois seu alvo era proporcionar um momento de lazer
convencido como estou de que escritos ao correr da pena são para serem lidos ao
correr dos olhos.
Para que o leitor corra os olhos no romance necessitará de uma narrativa,
carregada de melodrama e suspense para segurar o leitor. Aqui a pressa não se refere ao
―continua amanhã‖, mas ao prender o leitor a seguir as aventuras da heroína em busca
do final feliz.
Abordarmos alguns aspectos da narrativa para percebermos a relação entre o
escritor e leitor nas produções dos romances-folhetins contrapondo ao romance
Senhora.
Segundo Todorov (2008, p. 246), na ficção, a percepção do leitor é diferente
daquele que narra. Os ―tipos diferentes de percepção‖, etimologicamente a palavra
percepção significa ―olhar‖, por isso temos uma visão do narrador que passa para o
leitor e terá outro olhar sobre o romance.
Primeiramente, o autor-narrador para Genette (2008, p.283) assume ―seu próprio
discurso‖, na narrativa, ―interpelando seu leitor no tom da conversação familiar‖, mas
também a narrativa em que a responsabilidade do discurso é da ―personagem
principal que falará‖, são os escritos em primeira pessoa.
No romance Senhora, a narrativa possui o tom de conversa. Lembramos que, no
início do romance, o autor-narrador apresenta uma carta ao leitor, retomando a
característica da crônica na época do descobrimento, um único destinatário, além de
indicar um tom de realidade, no início do primeiro capítulo: ―A história é verdadeira‖
76
(ALENCAR, 2009, p. 15), ele também ironiza a questão dos leitores considerarem sua
história mais uma novela, um romance-folhetim, o autor-narrador adverte: ―Dizia-se
muita coisa que não repetirei agora, pois a seu tempo saberemos a verdade, sem os
comentos malévolos de que usam vesti-la os noveleiros‖ (2009, p.17). A mudança para
mostrar a realidade nos remete a ideia de Todorov (2008, p. 250), ao comentar sobre a
―evolução‖ do discurso, ele aponta os artifícios do narrador em apresentar a história:
(...) através de suas projeções na consciência de um personagem se
mais e mais utilizado no decorrer do século XIX, (...) Por outro lado, a
existência de dois níveis qualitativamente diferentes é uma herança
dos tempos mais antigos: o Século das Luzes exige que a verdade seja
dita. O romance posterior contentar-se-á com muitas versões do
parecer sem pretender uma versão que seja a única verdadeira.
(TODOROV, 2008, p. 250) (Grifos nossos)
Senhora se enquadra na ―verdade seja dita‖ e o final romanesco da história, visto
que nossa heroína segue o ideal romântico. A verdade do romance, ao qual o autor-
narrador refere-se é o fato de falar sobre os defeitos da sociedade e até do caráter dos
personagens sem se preocupar em iludir o leitor:
Aurélia era órfã; tinha em sua companhia uma velha parenta,
viúva, D. Firmina Mascarenhas, que sempre a acompanhava na
sociedade.
Mas essa parenta não passava de mãe de encomenda, que
naquele tempo não tinha admitido ainda certa emancipação feminina.
(ALENCAR, 2009,
A ilusão que o autor-narrador parece não querer usar, aponta-nos para o que
Booth (1980, p. 63) diz: ―Não pode haver intensidade de ilusão se o autor estiver
presente‖. No romance Senhora, encontramos o autor, como se estivesse mostrando ao
leitor para a realidade da vida, principalmente os defeitos da sociedade. ―Não diremos
festejados, como agora é moda, porque nesta nossa terra os cortejos e aplausos
rastejavam a mediocridade feliz.‖. (ALENCAR, 2009, p. 40) (grifo no romance). O
autor parece aparecer e chamar o leitor para refletir sobre ―nossa terra‖ e como as
pessoas festejam a ―mediocridade‖, em relação ao romance, quer dizer que Fernando
Seixas mesmo sem diploma era aclamado, como algumas pessoas na sociedade da
época, que por terem nome e/ou dinheiro são mais respeitados que outro. Assim,
percebemos que a história deixa de ser pura ilusão, e volta-se para a realidade, quando o
77
autor, conforme afirma Booth, entra e expõe algum ponto de vista sobre a realidade,
principalmente na questão do tempo:
Por outro lado, para o verdadeiro romancista, que luta por um
realismo completo, tudo é aparência e todas as aparências são, ou
pelos mendos parecem ser igualmente válidas. Assim o réalisme brut
de la subjetivité requer um realismo temporal que ligue
inexoravelmente o autor à duração dos acontecimentos. (...) Ele deve
comunicar-nos passivamente todos os pormenores, por insignificantes
que sejam, que constituam parte genuína dessa experiência. (1980,
p.69)
Todorov (2008, p. 230) indica, ainda, que ―o personagem parece-nos representar
um papel de primeira ordem e é a partir dele que se organizam os outros elementos da
narrativa.‖, mas romances modernos em que o personagem aparece-nos com ―um
papel secundário‖, como nas histórias anedóticas e as novelas do Renascimento.
Na mudança da narrativa, o primeiro aspecto foi sua apresentação. Quando a
história flui pela consciência da personagem, o leitor entra na história sem
intermediário. Todorov (2008, p. 246) ao citar J. Pouillon e sua classificação da relação
―narrador > personagem (a visão ―por trás‖)‖; ―narrador=personagem (a visão ―com‖)‖
e ―narrador < personagem (a visão ―de fora‖)‖. Esses aspectos do narrador são também
os responsáveis pela entrada do leitor na história.
No romance Senhora, verificamos que algumas vezes o autor entra na narrativa
para expor sua opinião crítica sobre a realidade, é intruso no discurso.
A personagem principal Aurélia é guiada pelo narrador, mesmo ele sabendo de
seus sentimentos, ele a observa de longe, prefere mostrar suas ações. Algumas vezes
parece que a voz de Aurélia se funde com a do autor-narrador, ao mostrar sua
indignação ante a sociedade da época:
(...) Está desmerecendo meus dotes, acudiu a menina sublinhando a
última palavra com um fino sorriso de ironia. Então não sabe, D.
Firmina, que eu tenho um estilo de ouro, o mais sublime de todos os
estilos, a cuja eloquência arrebatadora não se resiste? As que falam
com uma novela, em vil prosa, são essas moças românticas e pálidas
que se andam evaporando em suspiros; eu falo como um poema: sou a
poesia que brilha e deslumbra! (ALENCAR, 2009, p.22)
78
Poderíamos questionar se esses dotes de que ele fala, não seriam o que os
críticos cobravam dele? Alencar mostra sua ironia, ao dizer que sua heroína, não é como
as ―pálidas‖ moças românticas, Aurélia é a poesia, pois ela brilha e deslumbra se
precisar fugir da realidade ―evaporando em suspiros‖.
Esses apontamentos teóricos mostram-nos que a narrativa é a responsável por
trazer esse novo olhar do leitor moderno. Alencar espera que o texto possa proporcionar
―Ao correr dos olhos do leitor‖ uma visão critica da realidade, e que ao ler ele possa se
posicionar ante os fatos. Percebemos que na literatura posterior, principalmente, com
Machado de Assis, que as críticas serão mais usadas.
Alencar inicia a preparação de um leitor, mais crítico que possa entrar e sair da
narrativa, para refletir sobre a sociedade.
Assim, percebemos que ao analisarmos os fundamentos teóricos do romance, de
Bakhtin (1993), encontramos aspectos no romance Senhora, mas ele ainda está ligado às
grandes histórias folhetinescas. O teórico apontou três particularidades:
1. A tridimensão estilística do romance ligada à consciência
plurilíngüe que se realiza nele; 2. A transformação radical das
coordenadas temporais das representações literárias no romance; 3.
Uma nova área de estruturação da imagem literária no romance,
justamente a área de contato máximo com o presente
(contemporaneidade) no seu aspecto inacabado. (1993, P. 403)
O primeiro fundamento, no romance Senhora, refere-se às três consciências na
narrativa: do autor, do narrador, e da personagem, e muitas vezes essas falas se fundem.
Tem razão; não traduza Byron, não. O poeta da dúvida e do ceticismo,
só o podem compreender aqueles que sofrem dessa enfermidade cruel,
verdadeiro marasmo do coração. Para nós, os felizes, é um insípido
visionário. (ALENCAR, 2009, p. 142)
Não parece ser a fala da personagem, mas sim, do autor, pois ele entende da
literatura universal, mais do que a personagem.
O segundo indica que, no romance Senhora, no uso da ―transformação radical
das coordenadas temporais‖ aparecem às quebras de linearidades, feitas pelo narrador.
E, por último, o tema que sobressai no romance, a crítica à sociedade, mas sem fechar
uma ideia única: o amor vence, mas nisso o narrador fez o leitor pensar em questões
79
da sociedade fluminense, principalmente ao criticar o dinheiro que modifica a política,
social e até a individual mudança de comportamento.
No romance analisado existe a presença do tempo presente e, principalmente, a
ideia de que nada está acabado, pois percebemos as mudanças tanto na personalidade
quanto no comportamento das personagens principais Aurélia e Fernando.
Todos estes três tipos de particularidades do romance estão ligados
organicamente entre si, e todos eles estão condicionados por uma
determinada crise na história da sociedade européia: sua saída das
condições de um estado socialmente fechado, surdo e semipatriarcal,
em direção às novas condições de relações internacionais e de ligações
interlinguísticas. A pluriformidade das línguas, das culturas e das
épocas, revelou-se à sociedade européia e se tornou um fator
determinante de sua vida e de seu pensamento. (BAKHTIN, 1993, p.
403)
Assim, como na Europa, no Brasil, as mudanças ocorridas na sociedade e na cultura
foram fatores importantes para que o romance encontrasse um terreno fértil e começasse
a ser utilizado pelos escritores do século XIX, passando a ser um gênero que abordasse
aspectos da vida e da sociedade da época.
Aos poucos o nero romance se afasta das histórias folhetinescas, que possuíam
um enredo modelar em favor de sua autonomia quase sempre semelhante, com o herói/
heroína e o conflito maniqueísta.
Essas mudanças literárias, com Alencar, inauguram, no Brasil, principalmente,
com as transformações sócio-culturais do século XIX, uma literatura que apresenta o
conflito psicológico do indivíduo afetado pelos problemas da sociedade.
Alencar possuía uma visão futurista em relação ao escritor e leitor, em uma de
suas crônicas ele registra:
Tempo virá em que do obscuro gabinete do escritor a pena governará
o mundo, como a espada de Napoleão da sua barraca de campanha.
Uma palavra que cair do bico da pena, daí a uma hora correrá o
universo por uma rede imensa de caminhos de ferro e de barcos de
vapor, falando por milhões de bocas, reproduzindo-se infinitamente
como as folhas de uma grande árvore. Esta árvore é a liberdade; a
liberdade de imprensa, que de existir sempre, porque é a liberdade
do pensamento e da consciência, sem a qual o homem não existe;
porque é o direito de queixa e defesa, que não se pode recusar a
ninguém. (ALENCAR, 2003, p. 158)
80
Para ele, a escrita romperia barreiras e alcançaria ―milhões‖ de leitores, pois a
leitura parece possuir a característica de libertar, é por meio dela que o escritor atinge o
pensamento e a consciência de seus leitores. O leitor é o indivíduo que se deixa levar
pela leitura, sem, no entanto, deixar de ser consciente.
O jogo moderno entre escritor e leitor se molda no verbo ―correr‖ de José de
Alencar, enquanto o primeiro correr para satisfazer o leitor, em seu desejo de liberdade
consciente, esse, corre para que possa ser livre.
81
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na Europa, no século XIX, o folhetim, situado no rodapé dos jornais, começou a
ser substituído pelos romances-folhetins que eram escritos por romancistas
reconhecidos pelo grande público leitor europeu. O folhetim ganha espaço maior, para
comportar os romances-folhetins, leituras para entretenimento acompanhadas dia a dia.
No Brasil, o folhetim era escrito por jornalistas ou aspirantes, que ao produzirem
romances-folhetins, ganharam status de romancistas, por ganharem a publicação de seus
capítulos em livros.
O romance-folhetim europeu por sua vez entra no Brasil com as histórias
traduzidas, as quais, muitas vezes, tratavam de temas relacionados com ambientes
europeus nas histórias. Com o decorrer do tempo, os escritores começaram a mostrar
em suas histórias a cultura brasileira.
José de Alencar, ao escrever o romance urbano Senhora, aponta para um novo
projeto literário da época. Relevamos, nesse projeto, o conceito de realismo fundado na
sociedade científica emergente que visava ao comportamento do indivíduo
fundamentado na filosofia de Taine.
Na leitura de Senhora, a personagem feminina Aurélia encarna a princípio a
personagem frágil feminina, recebendo as marcas da personagem mulher do romance-
folhetim, mas ocorre uma mudança que traz em si uma performance de leitura, ―ao
correr da pena‖ e ―ao correr dos olhos‖.
O perfil tanto do escritor bem como do leitor sofre alteração, pois o livro, como
suporte da leitura mantém a atenção de um leitor inserido em uma sociedade em
progresso e com problemas sociais, que merecem aparecer nas histórias.
Destacamos por observação na leitura das relações entre Aurélia e Seixas e
demais personagens comportamentos mais relacionados à estrutura da verossimilhança
interna, visto que o narrador se volta para a importância do discurso, ou seja, da
narrativa. Os aspectos da realidade são firmados para que os leitores possam ―entrar‖ na
história.
O enredo do romance absorvendo a estrutura folhetinesca como uma história
romântica sofre a fragmentação nos diálogos e uma descontinuidade ainda inovadora da
época do Romantismo.
O enredo fundamenta-se em características psicológicas das personagens,
tratamento peculiar ao movimento romântico e tão assimiladas por Machado de Assis,
82
faz menção a uma história de amor montada por tensões no comportamento da
personagem.
A tensão do enredo é criada pelo dinheiro, tanto Aurélia como Seixas têm seus
comportamentos tensionados no ser e no dever ser, imposto pela sociedade, que valoriza
o bem material. O dinheiro é o elemento de tensão do comportamento das personagens,
pois ele será o responsável pela intriga.
Assim, temos a conclusão tanto de Aurélia como a de Seixas: o dinheiro destrói
o caráter do indivíduo. Com isso, o enredo apresenta também aspectos moralizantes,
pois o leitor acompanha os conflitos psicológicos sofridos pelos personagens e
identifica o responsável, o dinheiro.
O narrador, pelo discurso fragmentado, gera uma nova perspectiva de romance
com grande complexidade estrutural que prevê em si um texto crítico destinado a um
leitor em preparação.
Aurélia, contrariando as heroínas folhetinescas comporta-se como personagem
vingativa porque fora frutada pelo ambicioso Fernando, e no casamento a
possibilidade de ter de volta o seu amor. A satisfação amorosa ocorrerá no final do
romance que José de Alencar ainda oferece aos seus leitores protótipos de enredos
folhetinescos da cultura literária européia, o happy-end dos românticos.
O romancista, a nosso ver, segue a tendência européia e começa a seguir os
modelos realistas. Para isso, ele amplia o uso da verossimilhança interna sobre a
externa, ou seja, o realismo encontra fundamento na interioridade das personagens,
então representadas como a linguagem do real, surge o realismo nas narrativas
românticas brasileiras. Por isso, a apresentação de personagens ambíguas, a metafísica,
a metalinguagem e, porque não dizer, metaromance, visto que o escritor por vezes
aponta no romance o desejo de explicar seu fazer artístico.
Esse tom de novidade literária também aparece no aspecto dito pelo escritor ao
se referir primeiramente aos folhetins, que o escrito era feito ―ao correr da pena‖ e para
ser lido ao ―correr dos olhos‖. Alencar coloca em foco dois elementos tão estudados
pela crítica literária, o escritor e o leitor.
O escritor ―ao correr da pena‖, nos adverte das mudanças que insere, primeiro
nos folhetins e depois no romance Senhora. A escrita não é produzida para ficar parada
em uma gaveta, como aconteciam com as cartas e bilhetes. Após o tipografia no Brasil,
e a circulação do jornal, o escritor deveria produzir para muitos e seguindo a rapidez do
tempo. Assim, como os enredos que começavam a seguir esse progresso da cidade e
83
mostrar o que as pessoas estavam vendo, juntamente com as consequências no
indivíduo que está inserido em uma cidade que está sempre se modificando.
A leitura apresenta a velocidade e a agilidade da vida em fase de modernização
da sociedade brasileira, percebemos que Alencar tinha a preocupação em formar o leitor
da modernidade, em particular mostrar a leitura como um momento de fruição e
consciência. O leitor ―ao correr dos olhos‖ precisa conhecer a realidade para que possa
fazer inferências no enredo e nas ironias. Esse novo leitor constrói o texto, não é mais
passivo como aquele do início do século XIX.
Escritor e leitor, na vertente ―ao correr‖, sejam da pena ou dos olhos nos
direcionam para uma literatura em que não seja fechada, a ideia de liberdade dada por
Alencar, indica que a criação por parte do escritor não tem limites, e esse novo leitor
deve ser capaz de acompanhar e intervir construindo, ou recriando o mundo que o
escritor colocou a sua frente, sendo assim ativo e interativo.
José de Alencar nos aponta assim, para um projeto literário em que o realismo
começava a apontar no Brasil e questões sociais seriam escritas para que o público-
leitor não agisse com passividade ante os acontecimentos históricos, mas que de alguma
maneira começassem a questionar e criticar a sociedade.
O folhetim, com suas crônicas, foi solo fértil para a construção da carreira de
José de Alencar, não temos dúvidas, que a cada escrito ―ao correr da pena‖, o escritor
inovava a literatura brasileira. Depois vieram os romances-folhetins e por fim os
romances, em que as mulheres começaram a ser as personagens principais. O enredo era
definido por um conflito feminino, a mulher para Alencar, assim como na sociedade
começava a ganhar espaço.
Não podemos negar que os romances de Alencar apontavam para o novo projeto
literário brasileiro, mas para que possamos reconhecer, talvez, seja necessário um leitor
que o romancista estava preparando, com uma visão mais ampla e que encontrassem nas
palavras mais do que a codificação, mas sua escritura.
84
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87
ANEXOS
88
ANEXO A
Periódico intituladoFeuilleton Journal de romans - com publicações de romances-folhetins.
Fonte: www.bibliotecadafrança.com
89
ANEXO B
Jornal carioca: Correio Mercantil Espaço do folhetim denominado Páginas
Menores.
Crônica de Alencar-29 de outubro de 1854: O asseio da cidade
90
Fonte:Fundação Biblioteca Nacional (DINF) Rio de Janeiro
ANEXO C
Aquarelas
Texto-fonte:
Obra Completa, Machado de Assis,
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, V.III, 1994.
Publicado originalmente em O Espelho, Rio de Janeiro, 11 e 18/09 e 9, 16 e
30/10/1859.
III
O EMPREGADO PÚBLICO APOSENTADO
Os Egípcios inventaram a múmia para conservarem o cadáver através dos
séculos.
Assim a matéria não desapareceria na morte; triunfava dela, do que temos alguns
exemplos ainda.
Mas não existiu lá esse fato. O empregado público não se aniquila de todo na
aposentadoria; vai além, sob uma forma curiosa, antediluviana, indefinível; o que
chamamos empregado público aposentado.
Espelho à rebours, reflete o passado, e por ele chora como uma criança. É a
elegia viva do que foi, salgueiro do carrancismo, carpideira dos velhos sistemas.
Reforma, é uma palavra que não se diz diante do empregado público aposentado.
nada mais revoltante do que reformar o que está feito? abolir o método!
desmoronar a ordem!
Atado assim ao poste do carrancismo, eterno lábaro do que é moderno, o
empregado público aposentado é um dos mais curiosos tipos da sociedade.
Representa o lado cômico das forças retroativas que equilibram os avanços da
civilização nos povos.
É o tipo que hoje trago à minha tela. São variáveis o caráter e a feição desta
individualidade, mas eu procurarei dar-lhe os traços mais finos, os mais vivos.
Conceber um aposentado sem caixa de rapé é conceber o sol sem luz, o oceano
sem água. Uma pertence ao outro, como a alma pertence ao corpo; são inseparáveis. E
têm razão! O que vale uma caixa de rapé, não o compreende qualquer profano. É o
91
adubo oportuno de uma conversa árida e suada sobre qualquer reforma de governo. É o
meio de conhecimento com um potentado de quem se espera alguma coisa. É a caixa de
Pandora. É tudo, quase tudo.
E não parece. Aquele utensílio tão mesquinho, em um outro qualquer, está
circunscrito na estreita esfera do nariz; nas mãos do aposentado, transforma-se; em vez
de se transformar o depósito de um vício, torna-se o instrumento de certos fatos
políticos que muitas vezes parecem nascer de causas mais altas. Este prestígio do
empregado público aposentado não pára na caixa, estende-se por todos os acessórios
daquele curioso indivíduo. Na gravata, na presilha, na bengala, há certo ar, uma nuança
especial, que não está ao alcance de qualquer.
Ou natureza, ou estudo, a aposentadoria traz ao empregado público esses dotes,
como um presente de núpcias.
Ora, apesar deste metódico das formas, não estão limitadas aí as vistas do
aposentado. naquele cérebro alguma finura para se não entregar exclusivamente a
essas ninharias. E a política? A política o espera; lá o espera o governo; o espera o
teatro, as modas, os jornais, tudo o espera.
Não é maledicente, mas gosta de cortar o seu pouco sobre as coisas do país. Não
é um vício, é uma virtude cívica: o patriotismo.
O governo, não importa a sua cor política, é sempre o bode expiatório das
doutrinas retrógradas do empregado público aposentado. Tudo quanto tende ao
desequilíbrio das velhas usanças é um crime para esse viúvo da secretária, arqueólogo
dos costumes, antiga vítima do ponto, que não compreende que haja nada além das raias
de uma existência oficial.
Todos os progressos do país estão ainda debaixo da língua fulminante deste
cometa social. Estradas de ferro! é uma loucura do modernismo! Pois não bastavam os
meios clássicos de transporte que até aqui punham em comunicação localidades
afastadas? Estradas de ferro?
Desta sorte todas as instituições que respiram revolução na ordem estabelecida
das coisas podem contar com um contra do empregado público aposentado. Este
meio mesmo de retratar à pena, como faço atualmente, revoltaria o .espírito tradicional
da grande múmia do passado. Uma inovação de mau gosto, dirá ele. É verdade; não
representa apenas a superfície da epiderme, vai às camadas mais íntimas da matéria
organizada.
92
O empregado público aposentado poderá deixar de comer, mas perder um
jornal, perder um jubileu político ou sessão do parlamento, é tarefa que não lhe está
nas forças.
O jornal é lido, analisado com toda a finura de espírito de que ele é capaz.
Devora-o todo, anúncios e leilões; e se não vai ao folhetim, é porque o folhetim
é frutinha do nosso tempo.
No parlamento, é um espectador sério e atencioso. Com a cabeça enterrada nas
paredes mestras de uma gravata colossal ouve com toda a atenção, até os menores
apartes, vê os pequenos movimentos, como profundo investigador das coisas políticas.
Ao sair dali, o primeiro amigo que encontra tem de levar um aguaceiro de
palavras e invectivas contra a marcha dos negócios mais interessantes do país.
De ordinário o aposentado é compadre ou amigo dos ministros, apesar das
invectivas, e então ninguém recheia as pastas de mais memoriais e pedidos.
Emprega os parentes e os camaradas, quando os emprega, depois de uma longa
enfiada de rogativas importunas.
É sempre assim!
No sarau o empregado público aposentado é pouco cortês com as damas; vai
procurar emoções nas alternativas de um lindo baralho de cartas. Mas para não faltar ao
programa, vi tachando de imoral aquele divertimento que tanto dinheiro absorve;
fica-lhe a consciência.
Onde poderemos encontrar ainda o aposentado? Ele vai por toda a parte onde é
lícito rir e discutir sem ofensa pública.
O leitor conhece decerto a individualidade de que lhe falo, é muito vulgar entre
nós, e de qualidades tão especiais que a denunciam entre mil cabeças.
Que lhe acha? Quanto a mim é inofensiva como um cordeiro. Deixem-no mirar-
se no espelho dos velhos usos, falar em política, discutir os governos; não faz mal.
Em uma comédia do nosso teatro, uma reprodução deste tipo, o Sr. Custódio
do Verso e Reverso. Mirem-se ali, e verão que, apesar do estreito círculo em que se
move, faz pálidos e mirrados estes ligeiros e mal distintos lineamentos.
93
ANEXO D
Aquarelas
Texto-fonte:
Obra Completa, Machado de Assis,
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, V.III, 1994.
Publicado originalmente em O Espelho, Rio de Janeiro, 11 e 18/09 e 9, 16 e
30/10/1859.
IV
O FOLHETINISTA
Uma das plantas européias que dificilmente se têm aclimatado entre nós, é o
folhetinista.
Se é defeito de suas propriedades orgânicas, ou da incompatibilidade do clima,
não o sei eu. Enuncio apenas a verdade.
Entretanto, eu disse dificilmente o que supõe algum caso de aclimatação
séria. O que não estiver contido nesta exceção, o leitor que nasceu enfezado, e
mesquinho de formas.
O folhetinista é originário da França, onde nasceu, e onde vive a seu gosto, como
em cama no inverno. De espalhou-se pelo mundo, ou pelo menos por onde maiores
proporções tomava o grande veículo do espírito moderno; falo do jornal.
Espalhado pelo mundo, o folhetinista tratou de acomodar a economia vital de
sua organização às conveniências das atmosferas locais. Se o têm conseguido por toda a
parte, não é meu fim estudá-lo; cinjo-me ao nosso círculo apenas.
Mas comecemos por definir a nova entidade literária.
O folhetim, disse eu em outra parte, e debaixo de outro pseudônimo, o folhetim
nasceu do jornal, o folhetinista por conseqüência do jornalista. Esta íntima afinidade é
que desenha as saliências fisionômicas na moderna criação.
O folhetinista é a fusão admirável do útil e do fútil, o parto curioso e singular do
sério, consorciado com o frívolo. Estes dois elementos, arredados como pólos,
heterogêneos como água e fogo, casam-se perfeitamente na organização do novo
animal.
Efeito estranho é este, assim produzido pela afinidade assinalada entre o
jornalista e o folhetinista. Daquele cai sobre este a luz séria e vigorosa, a reflexão calma,
94
a observação profunda. Pelo que toca ao devaneio, à leviandade, está tudo encarnado no
folhetinista mesmo; o capital próprio.
O folhetinista, na sociedade, ocupa o lugar de colibri na esfera vegetal; salta,
esvoaça, brinca, tremula, paira e espaneja-se sobre todos os caules suculentos, sobre
todas as seivas vigorosas. Todo o mundo lhe pertence; até mesmo a política.
Assim aquinhoado pode dizer-se que não entidade mais feliz neste mundo,
exceções feitas. Tem a sociedade diante de sua pena, o público para -lo, os ociosos
para admirá-lo, e a bas-bleus para aplaudi-lo.
Todos o amam, todos e admiram, porque todos têm interesse de estar de bem
com esse arauto amável que levanta nas lojas do jornal a sua aclamação de
hebdomadário.
Entretanto, apesar dessa atenção pública, apesar de todas as vantagens de sua
posição, nem todos os dias são tecidos de ouro para os folhetinistas. -os negros, com
fios de bronze; à testa deles está o dia... adivinhem? o dia de escrever!
Não parece? pois é verdade puríssima. Passam-se séculos nas horas que o
folhetinista gasta à mesa a construir a sua obra.
Não é nada, é o lculo e o dever que vêm pedir da abstração e da liberdade
um folhetim! Ora, quando matéria e o espírito está disposto, a coisa passa-se bem.
Mas quando, à falta de assunto se une aquela morbidez moral, que se pode definir por
um amor ao far niente, então é um suplício...
Um suplício, sim.
Os olhos negros que saboreiam essas páginas coruscantes de lirismo e de
imagens, mal sabem às vezes o que custa escrevê-las.
Para alguns não procede este argumento; porque para alguns provimento de
matéria, certos livros a explorar, certos colegas a empobrecer...
Esta espécie é uma aberração do verdadeiro folhetinista; exceções
desmoralizadoras que nodoam as reputações legítimas.
Escritas, porém, as suas tiras de convenção, a primeira hora depois é consagrada
ao prazer de desforrar-se de uma maçada que passou. Naquela noite é fácil encontrá-lo
no primeiro teatro ou baile aparecido.
A túnica de Néssus caiu-lhe dos ombros por sete dias.
Como quase todas as coisas deste mundo o folhetinista degenera também.
95
Algumas das entidades que possuem essa capa, esquecem-se de que o folhetim é
um confeito literário sem horizontes vastos, para fazer dele um canal de incenso às
reputações firmadas, e invectivas às vocações em flor, e aspirações bem cabidas.
Constituindo assim cardeal-diabo da cúria literária, é inútil dizer que o bom
senso e a razão friamente o condenam e votam ao ostracismo moral, ausência de
aplausos e de apoio.
Não é este o único abuso que se dá. É costume de outros levantarem o folhetim
como a chave de todos os corações, como a foice de todas as reputações indeléveis.
E conseguem...
Na apreciação do folhetinista pelo lado local temo talvez cair em desagrado
negando a afirmativa. Confesso apenas exceções. Em geral o folhetinista aqui é todo
parisiense; torce-se a um estilo estranho, e esquece-se, nas suas divagações sobre o
boulevard e café Tortoni, de que está sobre um mac-adam lamacento e com uma grossa
tenda lírica no meio de um deserto.
Alguns vão até Paris estudar a parte fisiológica dos colegas de lá; é inútil dizer
que degeneraram no físico como no moral.
Força é dizê-lo: a cor nacional, em raríssimas exceções, tem tomado o
folhetinista entre nós. Escrever folhetim e ficar brasileiro é na verdade difícil.
Entretanto, como todas as dificuldades se aplanam, ele podia bem tomar mais
cor local, mais feição americana. Faria assim menos mal à independência do espírito
nacional, tão preso a essas imitações, a esses arremedos, a esse suicídio de originalidade
e iniciativa.
96
ANEXO E
3 de setembro
Texto-fonte:
Ao correr da Pena, José de Alencar,
São Paulo: Virtual Books, 2003
Publicado originalmente no ―Correio Mercantil‖ em 3 de setembro de 1854.
I
3 de setembro
O título que leva este artigo me lembra um conto de fada que se passou não
muito tempo, e que desejo contar por muitas razões; porque acho-o interessante, porque
me livra dos embaraços de um começo, e me tira de uma grande dificuldade,
dispensando-me da explicação que de qualquer modo seria obrigado a dar. de haver
muita gente que não acreditará no meu conto fantástico; mas isto me é indiferente,
convencido como estou de que escritos ao correr da pena são para serem lidos ao correr
dos olhos.
Um belo dia, não sei de que ano, uma linda fada, que chamareis como quiserdes,
a poesia ou a imaginação, tomou-se de amores por um moço de talento, um tanto
volúvel como de ordinário o são as fantasias ricas e brilhantes que se deleitam
admirando o belo em todas as formas. Ora, dizem que as fadas não podem sofrer a
inconstância, no que lhes acho toda a razão; e por isso a fada de meu conto, temendo a
rivalidade dos anjinhos deste mundo, onde os tão belos, tomou as formas de uma
pena, pena de cisne, linda como os amores, e entregou-se ao seu amante de corpo e
alma.
Não serei eu que desvendarei os mistérios desses amores fantásticos, e vos
contarei as horas deliciosas que corriam no silêncio do gabinete, mudas e sem palavras.
Só vos direi e sito mesmo, é confidência, que, depois de muito sonho e de muita
inspiração, a pena se lançava sobre o papel, deslizava docemente, brincava como uma
fade que era, bordando as flores mais delicadas, destilando perfumes mais esquisitos
que todos os perfumes do Oriente. As folhas se animavam ao seu contato, a poesia
corria em ondas de ouro, donde saltavam chispas brilhantes de graça e espírito.
Por fim, a desoras, quando não havia mais papel, quando a luz a morrer apenas
empalidecia as sombras da noite, a pena trêmula e vacilante caía sobre a mesa sem
forças e sem vida, e soltava uns acentos doces, notas estremecidas como as cordas da
97
harpa ferida pelo vento. Era o último beijo da fada que se despedia, o último canto do
cisne moribundo.
Assim se passou muito tempo; mas não amores que durem sempre,
principalmente em dias como os nossos, nos quais o símbolo de constância é uma
borboleta. Acabou o poema fantástico no fim de dois anos; e um dia o herói do meu
conto, chamado a estudos mais graves, lembrou-se de um amigo obscuro, e deu-lhe a
sua pena de ouro. O outro aceitou-a como um depósito sagrado; sabia o que lhe
esperava, mas era um sacrifício que devia à amizade, e por conseguinte prestou-se a
carregar aquela pena, que já adivinhava havia de ser para ele como uma cruz pesada que
levasse ao calvário.
Com efeito, a fada tinha sofrido uma mudança completa: quando a lançavam
sobre a mesa, fazia correr. Havia perdido as formas elegantes, os meneios feiticeiros,
e deslizava rapidamente sobre o papel sem aquela graça e faceirice de outrora. Já não
tinha flores nem perfumes, e nem centelhas de ouro e de poesia: eram letras, e
unicamente letras, que nem sequer tinham o mérito de serem de praça, que serviria de
consolo ao espírito mais prosaico.Por fim de contas, o outro, depois de riscar muito
papel e de rasgar muito original, convenceu-se que, a escrever alguma coisa com aquela
fada que o aborrecia, não podia ser de outra maneira senão Ao correr da pena De
feito, começou a escrever ao correr da pena, e como se trata de conto fantástico, não
vos admirareis de certo se vos achardes de repente e sem esperar a ler o que escreveu.
Estou persuadido que não gastareis o vosso tempo a censurar o título, que vale
tanto como qualquer outro.
Quanto ao artigo, correi os olhos, como vos disse, deixai correr a pena; e
posso assegurar-vos que, ainda assim, nem uns nem a outra correrão tão rapidamente
como os ministros espanhóis diante das pedradas e do motim revolucionário de Madri.
sabeis em que deu toda esta história, e por isso prefiro contar-vos outras
notícias trazidas pelos dois últimos paquetes a respeito da questão do Oriente, que ,
segundo uma observação muito espirituosa, tomou para a Áustria certo caráter
medicinal de muita importância. Napier, como velho teimoso, continuava de namoro
ferrado com a soberba Cronstadt, que em negócio de amores parece-me ter mais nos
cossacos do que nos ingleses velhos. Entretanto por prudência o nosso almirante foi-se
arranjando com Bommarsund para passar o inverno. Bem mostra que é inglês e teimoso.
Jurou que havia de passar, e, como não lhe deixam passar o canal, embirrou que
havia de passar o inverno. Queira deus, porém, que não seja o inverno que passe por
98
ele! Enquanto os ingleses na Finlândia se conservam frios, não por causa dos gelos do
norte, mas sim por causa do fogo da Rússia, os ingleses de Londres saíram do sério e
deram a mais formidável pateada em Mário, o belo tenor, que cantava Cujus animam
numa noite de representação em Convent-Garden.. A história desses motim teatral,
contada pelo folhetim do Constitutionnel, deveria ser bem estudada por grande número
dos nossos dilettanti, que se contentam em fazerem um barulho insuportável no teatro,
desaprovando pobres artistas sem mérito, e deixando em paz os únicos responsáveis de
semelhantes atos. O povo de Londres é mais positivo; depois de ter desaprovado os
cantores, obrigou a vir à cena o empresário, e a todos os seus speechs respondeu um
grito uníssono: money, money. A coisa não prestava, exigiam a restituição do dinheiro, o
que era muito justo: adez horas pagaram-se bilhetes recambiados! O empresário teve
de repor dinheiro de sua algibeira, mas no dia seguinte Mário foi aplaudido com três
salvas estrepitosas no romance da Favorita.Decerto, a causa desta demonstração a favor
de Mário não foi unicamente a sua bela voz de tenor e a sua presença agradável, mas
também a influência da Favorita, que ainda nos desperta tantas emoções e na qual os
parisienses, mais felizes do que nós, vão recordar atrasados ouvindo a Stoltz, que se
esperava devia cantar no primeiro meado de agosto na ópera de Paris. Também nós
tivemos esta semana nossas recordações bem doces da Stoltz e da Favorita e lembramo-
nos com saudade de Arsace na noite do concerto Malavazi, que esteve brilhante em
todos os sentidos. Nada faltou, houve de tudo, e até desgostosos, que sentiam que ainda
faltava alguma coisa; o que isto era não sei; é provável que fosse o chá do costume, que,
a falar a verdade, não atino com o princípio higiênico por que foi banido dos concertos.
Além destas recordações, tivemos a nossa festa musical na segundafeira, noite
do benefício do Ferranti. O ator simpático cantou como nos seus bons dias, e
desempenhou primorosamente a cena dos Prigioni de Edimburgo, que, à custa de
esforços seus, foi o mais bem ensaiado possível.
Nesta noite as mãos pagaram os prazeres do ouvido, num e noutro sentido, e,
depois de muitas salvas de aplausos, consta-nos que o nosso barítono brilhante saiu do
teatro mais brilhante do que nunca entrara. Tão feliz como Ferranti não foram dois
inspetores de quarteirão das bandas de São Cristóvão, que faziam o seu benefício à
nossa custa, sem nem ao menos terem a delicadeza de nos advertirem. A polícia, que
nem sempre está ocupada em dar passaportes e prender negros fugidos, assentou que,
sendo a semana de benefícios, devia também fazer o nosso, o do público, demitindo-os,
99
isto é, dispensando aqueles honrados cidadãos do grande obséquio que nos faziam em
servir-nos de graça.
O excesso em tudo, porém, é prejudicial, e o benefício, quando não é pedido, é
incômodo, como essa resolução dos números dos bilhetes de teatro que ontem foi posta
em vigor. Tiram-nos os lenços e as marcas, que eram mais pitorescas e mostravam no
público uma delicadeza louvável. Acharam que isto era mau; dessem-nos coisa melhor,
e não pusessem em homem grave na dura necessidade de ir ao teatro lírico recordar a
tabuada.
Além de não se saber que números terão as travessas e mochos, se pertencerão
aos inteiros, aos quebrados ou aos décimos, faço idéia em que apertos não se verá um
pobre homem que não souber ler ou que for míope, a procurar o tal número constante de
um pedacinho de papel microscópio, que precisamente no momento necessário, e como
para fazer pirraça, some-se no labirinto de uma carteira ou nas profundezas de um
desses bolsos à maneira, de vastas dimensões!
Quando vi pela primeira vez enfileirados pelos recostos das cadeiras aqueles
batalhões de números brancos, que sem licença e com a maior sem-cerimônia do mundo
se iam retratando a daguerreótipo nas costas das nossas pobres casacas, julguei que
aquilo seria uma medida policial, por meio da qual os agentes ocultos poderiam seguir
fora do teatro algum indiciado ou suspeito de importância, que fosse reconhecido no
salão. Mas nunca pensei que, quisessem ainda numerarem os bancos as casacas dos
dilettanti, quisessem ainda numerar-lhes os assentos, e obrigar um homem a comprar
por dois mil réis o direito de estar preso numa cadeira e adstrito a um número como um
servo da gleba. Também o que nos faltava era justamente uma nova questão de bancos,
embora de espécie diferente, porque a outra, a das sociedades comanditárias, vai
ficando velha e está quase a ir fazer companhia à do Oriente, à dos seiscentos contos e
outras, que provavelmente hão de reaparecer daqui a algum tempo, como está
sucedendo na Câmara dos Deputados com a das presas da independência. O crédito
proposto pelo Ministério da Marinha tem sido combatido por falta de uma liquidação
regular; mas tudo induz a crer que desta vez o negócio ficará decidido. E depois disto,
neguem-me que o Brasil seja um gigante! Uma criancinha que aos trinta anos lhe
começam a sair as primeiras presas! A falar a verdade, já era mais que tempo de
soltarem-se estas malditas presas, por causa das quais andam presas tantas algibeiras.
Falemos sério. A independência de um povo é a primeira página de sua
história; é um fato sagrado, uma recordação que se deve conservar pura e sem mancha,
100
porque é ela que nutre esse alto sentimento de nacionalidade, que faz o país grande e o
povo nobre.Cumpre não marear essas reminiscências de glória com exprobrações pouco
generosas. Cumpre o falar a linguagem do cálculo e do dinheiro, quando deve ser
ouvida a voz da consciência e da dignidade da nação. Com essa questão importante tem
ocupado a atenção da Câmara a discussão de um projeto do Sr. Wanderley sobre a
proibição do transporte de escravos de uma para outra província. Este projeto, que
encerra medidas muito previdentes a bem da nossa agricultura, e que tende a prevenir,
ou pelo menos atenuar uma crise iminente, é combatido pelo lado da
inconstitucionalidade, por envolver uma restrição ao direito de propriedade. Entretanto a
própria Constituição autoriza a limitar o exercício da propriedade em favor da utilidade
pública, que ninguém contestará achar-se empenhada no futuro da nossa agricultura e da
nossa indústria, principal fim do projeto.
Por hoje basta. Vamos acabar a semana no baile da Beneficência Francesa, onde
felizmente não há, como em Paria, a quête feita pelas lindas marquesinha, e onde
teremos o duplo prazer de beneficiar aos pobres e a nós mesmo divertindo-nos.
101
ANEXO F
24 de setembro
Texto-fonte:
Ao correr da Pena, José de Alencar,
São Paulo: Virtual Books, 2003
Publicado originalmente no ―Correio Mercantil‖ em 24 de setembro de 1854.
Rio, 24 de setembro
Domingo passado o caminho de São Cristóvão rivalizava com os aristocráticos
passeios da Glória, do Botafogo e São Clemente, no luxo e na concorrência, na
animação e até na poeira. O Jockey Club anunciara a sua primeira corrida; e, apesar dos
bilhetes amarelos, dos erros tipográficos e do silêncio dos jornais, a sociedade elegante
se esforçou em responder à amabilidade do convite.
Fazia uma bela manhã: - céu azul, sol brilhante, viração fresca, ar puro e sereno. O dia
estava soberbo. Ao longe o campo corria entre a sombra das árvores e o verde dos
montes; e as brisas da terra vinham impregnadas da deliciosa fragrância das relvas e das
folhas, que predispõe o espírito para as emoções plácidas e serenas.
Desde sete horas da manhã começaram a passar as elegantes carruagens, e os
grupos dos gentlemen riders, cavaleiros por gosto ou por economia. Após o cupê
aristocrático tirado pela brilhante parelha de cavalos do Cabo, vinha a trote curto o
cabriolé da praça puxado pelos dois burrinhos clássicos, os quais, apesar do nome,
davam nesta ocasião a mais alta prova de sabedoria, mostrando que compreendiam toda
a força daquele provérbio inventado por algum romano preguiçoso: Festina lente.
Tudo isso lutando de entusiasmo e ligeireza, turbilhonando entre nuvens de pó,
animando-se com a excitação da carreira, formava uma confusão magnífica; e passava
no meio dos estalos dos chicotes, dos gritos dos cocheiros, do rodar das carruagens, e do
rir e vozear dos cavaleiros, como uma espécie de sabat de feiticeiras, a começar no
campo de Sant‘Anna e a perder-se por baixo da sombra de meia dúzia de árvores do
Prado e das tábuas sujas e carcomidas de uma barraca que por capricho chamam
pavilhão, e que de velha já se está rindo das misérias do mundo.
Às 10 horas abriu-se a raia (turf), e começou a corrida com a irregularidade do
costume. Os parelheiros pouco adestrados, sem o ensino conveniente, não partiram ao
sinal e ao mesmo tempo, e disto resultou que muitas vezes o prêmio da vitória não
coube ao jóquei que montava o melhor corredor, e sim àquele que tinha a felicidade de
102
ser o primeiro a lançar-se na raia. A última corrida, que durou um minuto e dezenove
segundos, teria sido brilhante se dois dos cavalos não se tivessem lembrado de imitar as
pombinhas de Vênus, que dizem, voavam presas por um laço de amor.
A diretoria, que envidou todos os seus esforços para tornar agradáveis as novas
corridas, deve tomar as providências necessárias a fim de fazer cessar estes
inconvenientes, formulando com o auxílio dos entendidos um regulamento severo do
turf. Convém substituir o sinal da partida por outro mais forte e mais preciso, e
admitir à inscrição cavalos parelheiros já habituados à raia.
Seria também para desejar que se tratasse de melhorar a quadra (sport) com as
inovações necessárias para comodidade dos espectadores; e que desse alguma atenção à
parte cômica do divertimento. Instituindo-se corridas de burrinhos e de pequiras. Nós
ganhávamos com isto uma boa meia hora de rir franco e alegre, e estou certo que por
esta maneira o gosto dos passatempos hípicos se iria popularizando.
A uma hora da tarde estava tudo acabado, e os sócios e convidados disseram
adeus às verdes colinas do Engenho Novo, e voltaram à cidade para descansar e
satisfazer a necessidade tão trivial e comum de jantar, insuportável costume, que, apesar
de todas as revoluções do globo e todas as vicissitudes da moda, dura desde princípio do
mundo. À tarde, aqueles que tiveram a honra de um convite foram a Saúde assistir à
inauguração do Instituto dos Cegos na casa que serviu de residência do primeiro Barão
do rio-Bonito.
muito tempo que se esperava a realização desta bela instituição humanitária,
destinada a dar às pobres criaturas privadas da luz dos olhos a luz do espírito e da
inteligência. Devemos esperar do zelo das pessoas a quem foi confiada a sua
administração que em pouco conseguiremos resultados tão profícuos como têm obtido a
França e os Estados Unidos.
A inauguração fez-se em presença de SS.MM. e de um luzido e numeroso
concurso de senhoras e de pessoas de distinção, que se achavam animados pelo
mesmo sentimento, e como para realçarem aquele ato humanitário com a tríplice
auréola da majestade, da virtude e da ilustração.
Depois de tudo isto, uma bela noite sem lua, fresca e estrelada; algumas partidas
no Catete, um passeio agradável ao relento, ou o doce serão da família em redor da
mesa do chá; e por fim cada um se recolheu a repassar lentamente na memória os
prazeres do dia, e a lembrar-se de um sorriso que lhe deram ou de uns olhos que não
viu.
103
Entretanto a mim não me sucedeu o mesmo. Tinha-me divertido, é verdade; mas
aquele domingo cheio, que estreava a semana de uma maneira tão brilhante, fazia-me
pressentir uma tal fecundidade de acontecimentos, que me inquietava seriamente. via
surgir de repente uma série interminável de bailes e saraus, um catálogo enorme de
revoluções e uma cópia de notícias capaz de produzir dois suplementos de qualquer
jornal no mesmo dia. E eu, metido no meio de tudo isto, com uma pena, uma pouca de
tinta e uma folha de papel, essa tripeça do gênero feminino, com a qual trabalham
alguns escritores modernos, à moda do sapateiro remendão dos tempos de outrora.
É uma felicidade que não me tenha ainda dado ao trabalho de saber quem foi o
inventor deste monstro de Horácio, deste novo Proteu, que chamam folhetim; senão
aproveitaria alguns momentos em que estivesse de candeias às avessas, e escrever-lhe-ia
uma biografia, que, com as anotações de certos críticos que eu conheço, havia de fazer o
tal sujeito ter um inferno no purgatório onde necessariamente deve estar o inventor de
tão desastrada idéia.
Obrigar um homem a percorrer todos os acontecimentos, a passar do gracejo ao
assunto sério, do riso e do prazer as páginas douradas do seu álbum, com toda a finura e
graça e a mesma monchalance com que uma senhora volta as páginas douradas do seu
álbum, com toda a finura e delicadeza com que uma mocinha loureira sota e basto a
três dúzias de adoradores! Fazerem do escritor uma espécie de colibri a esvoaçar em
ziguezague, e a sugar, como o mel das flores, a graça, o sal e o espírito que deve
necessariamente descobrir no fato o mais comezinho!
Ainda isto não é tudo. Depois que o sero folhetinista por força de vontade
conseguiu atingir a este último esforço da volubilidade, quando à custa de magia e de
encanto fez que a pena se lembrasse dos tempos em que voava, deixa finalmente o
pensamento lançar-se sobre o papel, livre como o espaço. Cuida que é uma borboleta
que quebrou a crisálida para ostentar o brilho fascinador de suas cores; mas engana-se:
[e apenas uma formiga que criou asas para perder-se].
De um lado um crítico, aliás de boa-fé, é de opinião que o folhetinista inventou
em vez de contar, o que por conseguinte excedeu os limites da crônica. Outro afirma
que plagiou, e prova imediatamente que tal autor, se não disse a mesma coisa, teve
intenção de dizer, porque, enfim nihil sub novum. Se se trata de coisa séria, a amável
leitora amarrota o jornal, e atira-o de lado com um momozinho displicente a que é
impossível resistir.
104
Quando se fala de bailes, de uma mocinha bonita, de uns olhos brejeiros, o velho
tira os óculos de maçado e diz entre dentes:‖Ah! O sujeitinho está namorando à minha
custa! Não fala contra as reformas! Hei de suspender a assinatura‖.
O namorado acha que o folhetim o presta porque não descreveu certo toilette,
o caixeiro porque não defendeu o fechamento das lojas ao domingo, as velhas porque
não falou na decadência das novenas, as moças porque não disse claramente qual era a
mais bonita, o negociante porque não tratou das cotações da praça, e finalmente o
literato porque o homem não achou a mesma idéia brilhante que ele ruminava no seu
alto bestunto.
Nada, isto não tem jeito! É preciso acabar de uma vez com semelhante confusão,
e estabelecer a ordem nestas coisas. Quando queremos jantar, vamos ao Hotel da
Europa; se desejamos passar a noite, escolhemos entre o baile e o teatro. Compramos
luvas no Wallerstein, perfumarias no Desmarais, e mandamos fazer roupa no Dagnan. O
poeta glosa o mote, que lhe dão, o músico fantasia sobre um tema favorito, o escritor
adota um título para seu livro ou o seu artigo. Somente o folhetim é que de sair fora
da regra geral, e ser uma espécie de panacéia, um tratado de omni scibili et possibili, um
dicionário espanhol que contenha todas as coisas e algumas coisinhas mais? Enquanto o
Instituto de França e a Academia de Lisboa não concordarem numa exata definição do
folhetim, tenho para mim que a coisa é impossível.
Façam idéia, estando ainda dominado por estas impressões da véspera, como não
fiquei desapontado no dia seguinte, quando me fui esbarrar com a nova da chegada do
paquete de Southampton, o qual parece que mesmo de propósito trouxe quanta notícia
nova e velha havia lá pela Europa.
Nicolau, vendo que nada arranjava com os seus primos da Áustria e da Prússia,
assentou de aliar-se com o Judeu Errante, um certo indivíduo inventado, no tempo em
que ainda se inventava, e correto e aumentado no Século 19 por Eugênio Sue.
Entretanto saiu-lhe a coisa às avessas, porque os ingleses e franceses com o
cólera ficaram verdadeiramente coléricos e então não mais nada que lhes resista.
Tomaram Bommarsund, e é de crer que a esta hora já tenham empolgado Sebastopol.
Ao passo que eles no Oriente pelejam combates e batalhas para se distraírem
durante a convalescença da moléstia, os Egípcios deram ao mundo uma grande lição de
política constitucional a seu modo em duas palavras pau e corda; e mostraram
claramente que toda a ciência de governar está na maneira de empregar aqueles dois
termos.
105
Se Abbas-Paxá tivesse aprendido na escola de Napoleão pequenino, em vez de
mandar meter o bastão nos mamelucos para estes o enforcarem, teria usado da outra
forma simbólica de governar, corda e pau, isto é, teria os mandado enforcar num pau
qualquer, e estaria agora vivo e bem disposto para mandar enforcar uma nova porção.
Políticos do mundo inteiro! Jornalistas do orbe católico! Publicistas, que desde
Hugo Grocio queimais as pestanas a resolver a grande questão das formas de governo!
Podeis fazer cartucho de vossos jornais, podeis vender os vossos enormes infólios para
papel de embrulho, podeis dar aos vossos pequerruchos as memórias que elaborastes
para que eles se divirtam a fazer chapéu armado! Paula majora canamus! Tudo quanto
escrevestes, tudo quanto meditastes não vale aquela lição simples e grande dada por
dois mamelucos!
Quereis ver como a coisa está agora clara e simples? Teoria do governo
constitucional pau e corda. Teoria do governo absoluto corda e pau. Quanto à
república, como é a forma de governo simples por excelência, será simbolizada
unicamente pela corda. Os democratas estão livres do bastão, e contentam-se em
enforcarem-se uns aos outros como na revolução inglesa, ou a guilhotinarem-se, como
têm o bom gosto de fazer os nossos vizinhos do Sul.
Além destas notícias que vos tenho referido, todas as mais, trazidas pelo
paquete, não valem uma ode que nos veio também por ele, e que foi publicada no
Portuense. Não se riam, nem pensem que há nisto exageração! Leiam, e depois
conversaremos. É um homem obscuro, de um recanto de Portugal, com o nome mais
antipoético do mundo, que de repente sentiu na mente uma centelha de Vitor Hugo,
recebeu uma inspiração do céu, tomou uma folha de papel, e lavrou a sentença da
Inglaterra com uma ironia esmagadora, com um metro enérgico e uma rima valente.
Leiam, e digam-me se neste pensamento grande, nesta concepção vasta, nesta forma
imponente, não há como um pressentimento, como a profecia de um acontecimento, que
talvez não esteja muito longe?
Ia-me esquecendo de outra notícia, a da aposentadoria do Sr. Delavat y Rincon,
Ministro da Espanha, no caráter diplomático da missão que exercia no Brasil. Residindo
entre nós muitos anos, o Sr. D. José tem-se ligado intimamente ao Brasil, não
pelos laços de família que o prendem, como pelas atenções que sempre mostrou para
com o nosso país.
106
Com tanta novidade curiosa chegada pelo paquete, e que oferece larga matéria à
palestra e aos comentários, ainda assim não ficamos de todo livres de certas conversas
divertidas, muito usadas nos nossos círculos.
Não sabeis talvez o que é uma conversa divertida? Pois reparai, quando
estiverdes nalgum ponto de reunião, prestai atenção aos diversos grupos, e ouvireis um
sem-número desta espécie de passatempo, que é na verdade de um encanto
extraordinário.
Uma conversa divertida é um pretendente que vos agarra no momento em que
se vai dançar, para demonstrar a vantagem da reforma das secretarias. É um médico que
aproveita a ocasião em que pode ser ouvido por todos, para proclamar a probabilidade
da invasão da cólera no Brasil . É um sujeito que escolhe justamente o momento da
ceia, para contar casos diversos de indigestão e congestões cerebrais. É um indivíduo
qualquer que se vos posta diante dos olhos, como uma trave, e vos tira a vista da vossa
namorada, para perguntar-vos com voz de meio-soprano: o que há de novo?
Na primeira revisão do Código Penal é preciso contemplar estes sujeitinhos
nalgum artigo de polícia correcional. Uns furtam-nos o nosso tempo, que é um precioso
capital time is money, e, o que mais é, furtam com abuso de confiança, porque se
intitulam amigos; por conseguinte incorrem na pena de estelionato. Os outros são
envenenadores, porque com as suas conversas de cólera e febre amarela vão minando
surdamente a nossa vida com os ataques de nervos e com as terríveis apreensões que
fomentam.
Enquanto, porém, aquela reforma não tem lugar, chamo sobre eles a atenção do
Sr. Dr. Cunha, assim como também sobre a desordem que reina no teatro nas noites de
enchente.
A princípio, um homem sentava-se comodamente para ver o espetáculo. Entenderam
que isto era sibaritismo, estreitaram o espaço entre os bancos, e tiraram-nos o direito de
estender as pernas.
Ainda a coisa não ficou aí: pintaram os bancos e privaram-nos do
espreguiçamento do recosto. Julguei que tinham chegado ao maior aperfeiçoamento do
sistema, mas ainda faltava uma última demão. Agora aqueles que querem ver ficam de
pé; e os que preferem ficar sentados têm o pequeno inconveniente de nada verem. o
cabem dois provérbios num saco, diz o provérbio: ou bem ver, ou bem sentar.
Isto pode ter muita graça para a diretoria; porém aquele que compra o direito de
ver, sentado e recostado, não pode sofrer semelhante defraudação. É urgente proceder-
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se a uma rigorosa lotação das cadeiras do teatro, e proibir a introdução de mochos e
travessas. Este expediente, acompanhado da severa inspeção na venda e recepção dos
bilhetes, restituirá a ordem tão necessária num espetáculo onde a presença de Suas
Majestades e de pessoas gradas exige toda a circunspeção e dignidade.
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