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Essas características justificam a escolha de O projeto, transcrito abaixo, para uma
análise mais detalhada, conforme os fundamentos da semiótica do discurso, selecionados no
capítulo 2, no nível da asserção e da assunção dos enunciados. A amostragem desses
mecanismos servirá para explicitar-se a práxis enunciativa de Hilst, apreender seu discurso
pela instância da enunciação marcado pela intensidade e pelo desdobramento na extensão,
a fim de evidenciar a potencialidade do universo trágico.
O projeto
HAMAT, EU HIRAM, quero construir a casa. Dentro de mim, sagrado descontentamento. Tu és minha
mulher e o teu olho traduz desejo de eloquência. Sei que posso falar a noite inteira e esvaziar teus
eternos conceitos, sei tudo o que tu és, veludosa e decente, redondez, faminta do meu gesto, sei,
Hamat, que vais dizer que se mudo de casa mudo de natureza, e que é inútil querer o real do meu
espaço de dentro, sei que vais dizer que eu, homem político, devo permanecer junto aos homens,
abrir e fechar constantemente as mandíbulas, sei quase tudo de ti, de mim sei nada, sei muito dessa
pallha que se chama aparência, sei nada dessa esquiva coisa entranhada no meu ser de dentro.
Hamat: a memória e seus ossos, a torpe lucidez, minha viagem através dos retratos, eu e meu rei
trocando segredos, ressonando espaço-viuvez, e a cólera de saber que tudo me possui e ao mesmo
tempo nada, que nada em mim é permanência, e tudo é permanência, vínculo, tudo se adere ao
círculo, tudo é a mesma linha que se estende, tudo é tangente, tudo está colado a mim. Da mãe e do
pai guardo minúcias, de ti, minha mãe, um amarelo-claro enrolado ao pescoço e descendo
desmaiado pelo dorso, olho-água distorcendo a visão das hortênsias, o dourado dos cogumelos, os
caramelos importados, e tu, meu pai, tua altura, magreza, teu olho duro, teu círculo de ouro,
distanciamento e secura, teus papéis, teus livros, teu tesouro ser assim — que ninguém me perceba,
não estou em casa, diga, Hiram, que desde ontem sumi e ainda não me achei, frivolidade e fadiga
desta casa, tua mãe, Hiram, esse perfume-injúria pelas salas, senta aqui meu filho, que a tua relação
com as mulheres seja breve, confidente de ti mesmo não mistures as fêmeas com teu todo austero,
poupa a palavra, fecha a boca com as fêmeas, vai metendo, fêmeas e loucos se for preciso escolher
não vacila, escolhe os dementados, escolhe um homem quando te der a bambeza nas pernas, medo
covardia nojo de existir, o choro que é do homem, porque a mulher não chora, Hiram, a mulher
esfarela, e vai se abrindo se o homem emudece e se fecha, meu filho, se tu tagarelas — Perdoa,
Hamat, quando falo dos meus, essa agressão de mim — Gostaria de ter nova síntese para todos os
dados anteriores, gostaria de te dizer do secreto das palavras, um vir-a-conhecer sem o lustro de
agora, que eu dissesse, Hamat, Política Poder, e tu dissesses assim: isso quer dizer vida, e o melhor
de ti mesmo no outro, não é isso, Hiram, Política Poder? E eu dissesse sim, é verdade.
Queria muito sorrir para alegrar teu momento, e mostrar meus dentes, morder teu peito, mistura
Hiram-Sade, te fazer sangrar de gozo, de desgosto, te dar outra vez mil vezes minha magnificente
dureza, ser lânguido e barroco, arabescos em cima do teu corpo, queria muito, Hamat, mas sou todo
impotência na minha rombuda cabeça aqui de baixo, porque há mais volúpia em pensar na esquiva
coisa do meu ser de dentro, que me estender ao teu lado, ordenar-me, dizer que à noite sou teu é
mentira, meu tecido escondido, umbroso, meu ídolo sem nome, minha pergunta sem resposta em
nenhum livro, e tua boca muitíssimo dulçorosa, meu ciclo de vida, de poesia, plantado em tua boca,
envenenado, húmus de outra boca é o que se faz preciso, Hiram, não é de ninguém, nem de seu
povo, nem de sua língua que não diz a palavra. Hamat, a casa. Cresce, se faz continente, chega a ter
um espaço que não me pertence, não há mais sabor nos triunfos, na construção de estradas, devo
deter-me, espiar o poço, dizer a mim: Hiram, não é verdade que nunca desceste?