Download PDF
ads:
1
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MEQUITA FILHO”
FACULDADE DE CIÊNCIAS E LETRAS
CAMPUS DE ARARAQUARA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGUÍSTICA E LÍNGUA PORTUGUESA
SÉRGIO BARBOSA DE SOUZA
SEMIÓTICA DO DISCURSO TRÁGICO EM HILDA HILST
Araraquara – 2009
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
2
SÉRGIO BARBOSA DE SOUZA
SEMIÓTICA DO DISCURSO TRÁGICO EM HILDA HILST
Tese de doutorado apresentada à Faculdade de Ciências e
Letras da Universidade Estadual Paulista “Júlio de
Mesquita Filho”, Campus de Araraquara, para a obtenção
do título de Doutor em Linguística e Língua Portuguesa,
com área de concentração em Estrutura, Organização e
funcionamento discursivos e textuais.
Orientadora: Profª DEdna Maria Fernandes dos Santos
Nascimento
Araraquara – 2009
ads:
3
SOU
ZA, Sérgio Barbosa de. Semiótica do discurso trágico em
Hilda Hilst. / Sérgio Barbosa de Souza — 2009
216 f.; 30cm.
Tese (Doutorado em estrutura, organização e
funcionamento discursivos e textuais)
Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e
Letras, Campus de Araraquara
Orientadora: Edna Maria Fernandes dos Santos Nascimento
1. Hilst, Hilda, 1930-2004. 2. Literatura Brasileira. 3. Estudos
semióticos. Título.
4
SÉRGIO BARBOSA DE SOUZA
SEMIÓTICA DO DISCURSO TRÁGICO EM HILDA HILST
Tese de doutorado apresentada à Faculdade de Ciências e
Letras da Universidade Estadual Paulista “Júlio de
Mesquita Filho”, Campus de Araraquara, para a obtenção
do título de Doutor em Linguística e Língua Portuguesa,
com área de concentração em Estrutura, Organização e
funcionamento discursivos e textuais, defendida 20 de
novembro de 2009.
Comissão julgadora
________________________________________________________________
Profª Dª Edna Maria Fernandes dos Santos Nascimento – UNESP-Araraquara
________________________________________________________________
1º Examinador: Prof. Dr. Arnaldo Cortina – UNESP-Araraquara
________________________________________________________________
2ª Examinadora: Profª Drª Maria Célia de Moraes Leonel – UNESP-Araraquara
________________________________________________________________
3ª Examinadora: Profª Drª Maria Adélia Ferreira Mauro- USP
________________________________________________________________
4º Examinador: Prof. Dr. Luiz Antonio Ferreira – PUC-São Paulo
5
RESUMO
A obra literária de Hilda Hilst é diversa, compreendendo poesia, teatro e narrativa. Neste
trabalho, porém, concentra-se a atenção na prosa da escritora paulista, com o objetivo de
capturar-se o trágico por meio da práxis enunciativa do discurso. Para apreender-se essa
práxis, parte-se do pressuposto de que Hilda Hilst simula um delírio, cuja predicação da
instância da enunciação é delegada a um ator paranoico, num discurso situado entre lucidez
e demência. A análise da significação discursiva, própria da semiótica do discurso, volta-se
para a potencialidade do sistema subjacente do trágico e revela uma trajetória marcada pela
tentativa de apreensão de todos os discursos existentes. Essa trajetória constitui uma
escritura que, por ser delirante, apresenta-se caleidoscópica, labiríntica e em espiral,
instaurando no discurso um caos aparente. No final dessa investigação, o trágico no discurso
traduz a própria existência humana, no sentido de atribuir a ela um vazio que não se pode
preencher.
Palavras-chave: Semiótica. Discurso. Trágico. Hilda Hilst.
6
ABSTRACT
Hilda Hilst´s literary work is varied, comprehending poetry, drama and narrative. This piece
of work, however, focuses on the narrative of the Paulistana writer, with the intent to
capture the tragic reality which passes through the enunciation praxis of discourse. In order
to aprehend that praxis, we presupose Hilda Hilst simulates a delirium state, whose
predication of the instance of enunciation is delegated to a paranoic actor inside a discourse
which lays between lucidity and insanity. The analysis of the discoursive signification,
common in the field of the semiotics of discourse, turns to the potentiality of the subjacent
system of the tragic, and reveals a path underlined by the attempt of aprehending all the
existing discourses. That path constitutes a particular writing which, by being delirious,
shows up in a kaleidoscopic-labyrinthic-spiral style, creating in the discourse itself an
apparent chaos. In the end of this investigation, the tragic in the discourse translates the
human existence itself, in the sense of attributing to it an emptiness that may not be filled
in.
Key words: Semiotics. Discourse. Tragic/Tragical. Hilda Hilst.
7
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO 10
2 A SEMIÓTICA DO DISCURSO SEGUNDO FONTANILLE 15
2.1 Predicação do discurso 15
2.2 Dimensão sensível e perceptível, tomada de posição e função semiótica 17
2.3 Campos do discurso 18
2.3.1 Campo de presença: fase emergente 19
2.3.2 Campo esquemático: fase em processo 22
2.3.3 Campo diferencial: fase conclusiva 25
2.4 Domínio da memória cultural 28
3 O TRÁGICO EM CLÉMENT ROSSET 29
3.1 Natureza terrorista da Lógica do pior 31
3.2 Trágico e silêncio 35
3.3 Trágico e repetição 37
3.4 Trágico e acaso 39
3.5 A estética do pior 45
3.5.1 O riso leve e a ironia 46
3.5.2 O riso demolidor 47
4 A INSTÂNCIA DE DISCURSO DO DUPLO PARANOICO 51
4.1 Dinâmica do discurso na paranoia 53
4.1.1 Constituição da metáfora delirante 53
4.1.2 Mecanismo do significante 54
4.2 Vozes persecutórias 56
4.2.1 Caráter litigioso da busca do saber 56
8
4.2.2 Encenação da subjetividade 57
4.2.3 Dialética das três vozes 59
4.2.4 Pertinência das vozes 60
4.2.5 Circularidade das vozes 62
5 O PROJETO: TRÁGICO E ACASO 68
5.1 O sujeito da enunciação e o duplo paranoico 72
5.2 A construção da casa 73
5.3 Lógica tensiva: saber tudo e saber nada 75
5.4 A letra do universo trágico 81
5.5 Hasard e a questão do ser 82
5.6 Semiose da estranheza 86
5.7 Hasard e estranho familiar 91
5.8 O espelho secreto das palavras 96
5.9 O espaço vazio 100
6 FLUXO: TRÁGICO E EXPERIÊNCIA DE PERDIÇÃO 104
6.1 Loucura controlada e júbilo 104
6.2 Tudo não é 107
6.3 O lúdico da perdição 110
6.4 A semente da errância 112
6.5 Máscaras da fragmentação do eu 115
6.6 Decomposição e pavor do nada 119
7 O OCO: A VAZIEZ DAS CRENÇAS 126
7.1 A perseguição da letra do trágico 127
7.2 A vã glória do poder 130
8 KADOSH: ESCRITURA-LÂMINA 136
9
9 A OBSCENA SENHORA D: ESTADO DE MORTE E JÚBILO 164
9.1 O preenchimento de um vazio 166
9.2 Labirinto de duplos 168
9.3 Espaço de trevas e luz 172
9.4 Espaço-viuvez nas teias de Deus 182
9.5 Espaço-vivente nas teias de...eus 187
9.6 Escritura e júbilo 195
10 CONCLUSÃO 203
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 207
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA 209
10
1
INTRODUÇÃO
Este trabalho restringe-se ao discurso trágico na obra em prosa de Hilda Hilst,
escritora paulista, cuja produção literária se dá entre 1970 e 1997. A trajetória de Hilst vai da
poesia ao teatro, com oito peças produzidas de 1967 a 1969, ingressando na prosa, pelo
caminho do delírio, em 1970. Este é um divisor de águas que a leva a explorar
exaustivamente, e com intensidade às vezes insuportável ao enunciatário, a paranoia pela
raiz, no sentido de saber paralelo, típico de uma estrutura teatral cujo fim é desvelar o
trágico, demolidor de todos os discursos convencionais.
No início, este projeto de doutoramento propunha uma análise do riso como paixão
na obra da escritora paulista. Acreditava-se ser esse o caminho para apreensão da práxis
enunciativa da autora, pois sua obra perpassa os caminhos do riso. No entanto, à medida
que se aprofundavam as leituras e os estudos sobre o modo de construção do riso nessa
perspectiva, descobriu-se a preponderância de um discurso trágico nas narrativas da autora.
A questão do riso não foi extinta desta pesquisa, mas ganhou outra nuance e passou a fazer
parte da tese, numa relação com o trágico, capturado por meio da práxis enunciativa do
discurso de Hilst.
A análise desse discurso se fará a partir de sua práxis enunciativa, com base em
fundamentos abstraídos da semiótica do discurso, segundo Jacques Fontanille (2007). Por
tratar-se de um discurso trágico, surge a necessidade de definir-se o trágico. A proximidade
do conceito de trágico em Hilst com a filosofia trágica exposta em Lógica do pior, de Clément
Rosset (1989), conforme se verificará no desenvolvimento desta tese, justifica a escolha
desse veio filosófico para delimitar-se de que maneira se constrói o trágico na prosa da
escritora. O texto de Hilst apresenta uma característica singular, a simulação de um delírio,
levando o analista a buscar na psicanálise de orientação lacaniana alguns conceitos que
sirvam como elementos para análise desse discurso.
As três teorias usadas para o desenvolvimento deste trabalho são bem complexas.
Coincidentemente, o mecanismo encontrado nas três posturas teóricas é o mesmo: pontuar
11
sempre por meio da repetição. Isso também ocorre com a escritura de Hilst que, pela
repetição, permite que se apreenda o sentido.
Buscou-se, a princípio, por meio da teoria semiótica do discurso, decifrar-se a
escritura de Hilst. Pela característica aparentemente caótica de seu discurso, houve
dificuldades. Em seguida, experimentou-se usar a lógica do pior de Rosset. As dificuldades
continuaram, porque não se apreendia o mecanismo da geração do discurso trágico. Pela
natureza delirante do texto, buscou-se apoio na psicanálise. Uma tese defendida em 1993,
produzida por Clara Machado, A escritura delirante em Hilda Hilst, acenou com uma
possibilidade de entrada na obra da escritora por esse caminho da psicanálise.
Afastando-se, temporariamente das teorias, trabalhou-se com a escritura de Hilst a
fim de descobrir-se um caminho para a semiose de suas narrativas. A reiteração do nada nos
textos da autora e o eterno retorno das mesmas questões em toda a sua obra em prosa
serviram de indicativo para destacar-se a dimensão trágica, mas o percurso semiótico para
apreender um discurso aparentemente caótico ainda era uma indagação. A partir deste
ponto, retorna-se às teorias e descobre-se que, somente na articulação entre a psicanálise (o
duplo paranoico) e a teoria da enunciação de Fontanille, os caminhos da investigação se
evidenciariam.
Nesse sentido, a psicanálise na perspectiva lacaniana, em consonância com C.
Machado (1993), serviu para afirmar a simulação da paranoia na escritura de Hilst. C.
Machado investiga a confluência entre os mecanismos da linguagem da paranoia e a
escritura delirante de Hilst. Utiliza-se, neste trabalho, o mesmo ponto de partida, porém,
para investigar, pelo vetor da semiótica do discurso, a práxis enunciativa da escritora, na sua
oscilação entre a demência e a lucidez a fim de capturar-se a perspectiva trágica de sua obra.
A práxis enunciativa de Hilst constrói-se, em cada narrativa, de forma diferente. O
que retorna é sempre o mesmo, porém com mecanismos diferentes. Nessa perspectiva,
surpreende a elaboração de uma escritura que se faz sistema subjacente de si mesma. Isso
ocorre em Hilst, pois um texto serve para explicitar outro. Surpreende também o fato de
uma obra, talvez escrita inconscientemente, porém com tamanha lucidez, obrigar o analista
a ir e vir, a fazer o percurso da própria escritura, perdendo-se, achando-se, reconhecendo-
se, mimetizando o caminho da enunciação paranoica.
A semiótica do discurso, segundo Fontanille, apresentou-se de forma relevante para
a explicitação da práxis enunciativa de Hilst, porque permitiu a operacionalização da análise
12
das narrativas. Primeiramente, propõe a predicação do discurso, manipulada por um sujeito
da enunciação e delegada, no caso de Hilst, a um duplo paranoico, nas posições de ator de
saber insabido e ator de saber trágico.
Em segundo lugar, a partir da função semiótica resultante da tomada de posição, a
instância discursiva enuncia a sua própria posição, que orienta e determina sua significação e
intencionalidade. Essa perspectiva fundamental serviu de âncora para entrada no discurso
de Hilst que, por ser caleidoscópico, permite inúmeras incursões que podem provocar no
leitor-enunciatário o risco de perder-se em seus labirintos. No momento em que se fez a
opção pela semiótica do discurso e escolheu-se a tomada de posição como ponto de partida
para compreensão da práxis enunciativa, os obstáculos à apreensão da obra de Hilst foram
removidos aos poucos e a segurança de que o caminho escolhido nesta pesquisa
possibilitava seu desenvolvimento.
A práxis enunciativa de Hilst, ao simular um delírio, adota a posição de um sujeito da
enunciação articulador de um discurso delegado a um duplo paranoico para usar a demência
a fim de explicitar, com lucidez, o trágico. Entenda-se trágico, segundo Rosset, como estado
de morte e júbilo. Justamente por explicitar esse trágico, essa condição da existência
humana fadada ao vazio, ao oco, à vaziez das coisas, a escritura de Hilst, muitas vezes, cria
para o enunciatário uma situação “insuportável”, ou seja, o deparar com a realidade.
Desvendar essa realidade significa trabalhar com a crueldade da lógica do pior, próxima da
noção de piedade de ordem assassina e exterminadora que, longe de amenizar os males,
intensifica-os até o intolerável. Nesse sentido, Hilst torna-se uma escritora cuja práxis
enunciativa cria um “incômodo” que, se não for ultrapassado pela apreensão da arte que
permite ao homem tomar consciência da existência por meio da linguagem poética
provocadora do júbilo, afasta o leitor.
Para análise do discurso trágico de Hilst, serão utilizadas cinco narrativas que
representam o conjunto de sua obra e permitem uma compreensão de sua práxis
enunciativa: 1) O projeto, narrativa curta, publicada em 1977, reeditada em 2003 no livro
Rútilos; 2) Fluxo, publicada em 1970, reeditada em 2003; trata-se da primeira narrativa da
obra Fluxo-floema; 3) O oco, publicada em 1973, reeditada em 2002; faz parte das narrativas
da obra Kadosh; 4) Kadosh, publicada em 1973, reeditada em 2002; também faz parte das
narrativas da obra Kadosh; 5) A obscena senhora D, publicada em 1982, reeditada em 2001.
13
Um sucinto apanhado dos capítulos que seguem possibilitará uma noção de conjunto
deste trabalho. No capítulo “A semiótica do discurso segundo Fontanille”, examina-se como
se constrói a significação discursiva, que toma forma no decorrer do procedimento de
reconfiguração da experiência vivida e manifestada no discurso. Com base na Semiótica do
discurso (2007), no que tange à práxis enunciativa, verificar-se-á em Hilst a existência de um
sujeito da enunciação que delega a predicação do discurso a um duplo paranoico.
Em “O trágico em Clément Rosset”, destacam-se posturas fundamentais à luz da
lógica do pior, expostas por Clément Rosset (1989). Essa perspectiva permitirá a
compreensão do trágico no discurso literário de Hilst. A postura filosófica da lógica do pior
afirma a impossibilidade de qualquer pensamento e torna-se um modo de olhar destruidor,
eliminando qualquer ilusão que o homem possa ter. As produções literárias, segundo Rosset,
comparadas à filosofia de um modo geral, têm-se revelado, desde Nietzsche, por seu caráter
trágico.
No capítulo “A instância de discurso do duplo paranoico”, explicitam-se conceitos
lacanianos que possibilitam o acesso ao discurso de Hilst, sob o vetor de um delírio. O
paranoico, em sua busca de sentido para as questões do ser, aproxima-se da filosofia trágica
de Clément Rosset. Em Hilst, essas questões são formuladas a partir do lugar do paranoico e
do trágico.
Nos demais capítulos, numa aproximação entre semiótica discursiva, psicanálise e
filosofia trágica, analisam-se as cinco narrativas já listadas anteriormente. O capítulo “O
projeto: trágico e acaso” põe em evidência O projeto, um “pequeno discurso” usado para
uma análise mais detalhada, conforme os fundamentos da semiótica do discurso, a partir
dos quais se explicita a práxis enunciativa de Hilst. Em Fluxo: trágico e experiência de
perdição”, por meio da narrativa Fluxo, articula-se um discurso entre o filosófico e o lúdico,
acentuando-se o caráter trágico da existência relacionado ao aspecto da experiência de
perdição. A narrativa O oco, analisada em O oco: a vaziez das crenças”, permite a
constatação da ausência original de referência, o vazio de encadeamento dos
acontecimentos e de toda ideia de finalidade. No capítulo “Kadosh: escritura-lâmina”, a
narrativa Kadosh é vista sob o prisma de uma ideia de Deus, relacionada ao caráter trágico
da existência. Em A obscena senhora D: estado de morte e júbilo”, explora-se o espaço
potencializado pelo trágico no discurso de A obscena senhora D, na sua relação com o acaso,
hasard, resultante da consciência do não-ser.
14
Para encerrar esta parte, destaca-se o fato de a práxis enunciativa da autora
apresentar-se lúdica, como um jogo entre enunciador e enunciatário, no qual este é
desafiado constantemente com a condição de aceitar o desafio caso queira capturar os
múltiplos registros de linguagens e, consequentemente, os múltiplos sentidos das narrativas.
Tal jogo envolve também uma escritura de teor enciclopédico, resultado das múltiplas
leituras de um sujeito da enunciação, passando pelos vários campos do conhecimento, tais
como: mitologia, teologia, política, filosofia, geometria, matemática, história, geografia,
física, química, botânica, arqueologia, teatro, poesia, possibilitando para o enunciatário a
experiência de errância comum tanto para o paranoico quanto para o trágico do ponto de
vista da perdição dos referenciais. As etapas desse jogo, entre apreender e não apreender os
sentidos, levam o enunciatário a buscar vários caminhos, num percurso sem fim, por isso
mesmo labiríntico da mesma forma que Borges engendrou a sua biblioteca imaginária.
15
CAPÍTULO 2
A SEMIÓTICA DO DISCURSO SEGUNDO FONTANILLE
O desenvolvimento desta pesquisa procura focalizar o discurso trágico na obra em
prosa de Hilda Hilst, pelo vetor da práxis enunciativa. Para isso, utilizam-se, no campo da
semiótica do discurso, fundamentos encontrados no texto de Jacques Fontanille (2007),
publicado inicialmente em 1999.
Elegem-se, portanto, alguns princípios teóricos da semiótica do discurso, para
operacionalizar-se a semiose das narrativas de Hilst, com o intuito de discretizar-se a práxis
enunciativa do trágico. Tais princípios serão selecionados pelo viés da enunciação e de sua
práxis, isto é, do ponto de vista do discurso em ato, da instância de discurso.
Examinar como se constrói a significação discursiva é próprio da semiótica do
discurso, ocupada em esquematizar e em generalizar conceitos, dando sustentação para
apreender-se a dimensão sensível de uma produção particular, em seu processo e operações
que levam ao sentido na articulação com o inteligível. Essa significação toma forma no
decorrer do procedimento de reconfiguração da experiência vivida e manifestada no
discurso. Apresentam-se, neste capítulo, níveis de articulação da práxis enunciativa,
selecionados em Semiótica do discurso (2007).
2.1
Predicação do discurso
Uma semântica das instâncias de discurso é possível, precisamente, porque o ato de
discurso é, em si mesmo, produtor de significância. O sentido discursivo é ativado na
apropriação da língua pela enunciação. Nessa “atualização”, todas as novas articulações
significantes assim produzidas são chamadas de atuais. Apreende-se o sentido do discurso
somente na atualidade que o define em ato. A enunciação, uma metalinguagem “descritiva”,
ao predicar o enunciado, explicita sua própria atividade, codifica-a, fazendo dela um
16
acontecimento sensível ou observável, carregando em si uma semiose em ato, da qual a
semiótica do discurso se ocupa.
A enunciação não é o ato em si de linguagem, mas a propriedade da linguagem que
consiste em manifestar essa atividade. Trata-se, portanto, de um ato metadiscursivo, lugar
em que o discurso declara o que advém (grandezas, atos, acontecimentos) em seu próprio
campo. A enunciação, lugar de organização de todo o discurso, é a instância responsável
pelo devir das figuras e, de uma forma geral, pelos atos que delas fazem um conjunto
significante, sujeito a alguma racionalidade e a alguma axiologia.
Tudo se ordena em torno da posição da instância de discurso e, como se trata da
análise de um ponto de vista, o fato de saber se este é da personagem ou do autor ideal, de
um observador abstrato ou de um protagonista da ação, somente serve para medir o grau
de engajamento da enunciação na trama do enunciado.
Segundo Fontanille (2007), três regimes discursivos parecem estar sujeitos à
enunciação: a ação, quando se torna programação estratégica e produção de simulacros; a
paixão, com a primazia acordada ao surgimento repentino do acontecimento no campo de
presença; a cognição, com a gama das diferentes apreensões que ordenam o conhecimento
do mundo discursivo em torno de sua instância de referência. Contudo, a expressão
“regimes discursivos” indica as diferentes dimensões do discurso que obedecem a regras
sobre as quais a enunciação não tem domínio algum. Essas regras e princípios de formação
do discurso se impõem a cada enunciação particular e à práxis enunciativa em sentido mais
geral.
Dessa forma, a instância do discurso pode tomar posição em relação às regras de
programação da ação, em relação aos efeitos passionais do acontecimento ou em relação às
apreensões cognitivas, mas ela não controla as consequências de cada uma dessas tomadas
de posição. Essas consequências são reguladas pelos regimes próprios às três dimensões do
discurso. Sob a forma de programação, de atos de manipulação passional ou de apreensões
e representações cognitivas, os regimes discursivos são suficientes, em geral, para dar conta
do conjunto dos atos de linguagem.
uma instância, porém, contrapõe Fontanille (2007), que escapa aos demais
regimes: a predicação. O sujeito narrativo pode seduzir, influenciar, persuadir, comandar
outro sujeito narrativo, mas ele não pode predicar a sedução, a influência, a persuasão ou a
17
injunção, salvo se lhe dão a palavra e, nesse caso, trata-se, na verdade, de uma delegação de
enunciação.
Fontanille (2007) separa a subjetividade da enunciação, pois o que se atualiza na
modalização é uma atividade enunciativa, não a subjetividade. Graças a uma deiscência de
tipo metassemiótico, o discurso reflete-se a si próprio e oferece uma representação das
condições e das operações que dirigem a produção do enunciado. Há uma tomada de
posição da instância do discurso, que se manifesta de todas as maneiras
independentemente dos efeitos de pessoa e de sujeito.
Propõe-se, com base nesse aspecto da semiótica do discurso, a existência em Hilst de
uma delegação da enunciação manipulada por um sujeito da enunciação, produtor do
discurso, como enunciador ou como enunciatário. Tal sujeito caracteriza-se por uma tomada
de posição engendrada de maneira paralogística em que há, simultaneamente, uma gica
que incide sobre a lucidez e outra, sobre a demência. Essa lógica “delirante” é controlada
pelo sujeito da enunciação ao delegar a predicação do discurso a um duplo paranoico (vozes
de um eu-outro), a partir de duas posições actanciais: a de um ator de saber “insabido” e a
de um ator de saber trágico.
A enunciação faz-se, portanto, numa estrutura dialética, operando por meio de três
posições: (1) a de um saber de controle, evidenciado por um sujeito da enunciação que
manipula, regula e filtra o discurso; a de “parceiros” desse sujeito que, ao receberem a
“delegação”, manifestam suas vozes: (2) por um lado, no lugar de um ator de saber insabido,
numa experiência de perdição de referenciais em busca de um sentido para a condição
humana; (3) por outro, no lugar de um ator de saber trágico, demolidor das ilusões dessa
busca do ator de saber insabido. A singularidade desse discurso encontra-se, justamente,
nessa visada intencional, de natureza metadiscursiva, que afeta as outras dimensões do
discurso, ao partir do pressuposto de uma enunciação simuladora de um delírio.
2.2 Dimensão sensível e perceptível, tomada de posição e função semiótica
O discurso está situado sob o controle da instância da enunciação que orienta e
determina sua significação (intenção de sentido) e intencionalidade (visada do mundo). A
18
semiótica do discurso considera em sua base a existência de uma dimensão sensível e de
uma perceptível. Esses dois universos semióticos são discriminados pela tomada de posição
de um corpo próprio, cujas singularidades pertencem, ao mesmo tempo, aos universos
interoceptivo e exteroceptivo. A correlação entre esses dois universos, com o objetivo de
fazê-los significar conjuntamente, é possibilitada por uma terceira dimensão, a da
proprioceptividade. Essa dimensão é uma posição assumida pelo corpo imaginário, o corpo
próprio do sujeito da percepção, invólucro sensível, fronteira que determina, assim, um
domínio interior e um domínio exterior.
A função semiótica é resultante de uma tomada de posição de um corpo próprio que
determina, primeiramente, um domínio interoceptivo, plano de conteúdo, e um domínio
exteroceptivo, plano de expressão, e, depois, a projeção desses dois domínios um sobre o
outro pelo efeito da mediação proprioceptiva. O sensível a propriocepção torna-se,
desse modo, o domínio comum aos dois planos. A significação é o ato que reúne a
interoceptividade e a exteroceptividade, graças ao corpo próprio do sujeito da percepção,
que tem a propriedade de pertencer, simultaneamente, às duas macrossemióticas de que se
vale para sua tomada de posição.
O corpo próprio é um operador semiótico complexo com múltiplas faces e funções
distintas: ponto-referência (centro de referência para a dêixis, visada intencional); invólucro-
memória (relativo às lógicas do sensível às demandas e aos contatos vindos do exterior
sensações; do interior emoções e afetos); “carne-movimento” (plasticidade dinâmica que
lhe permite ajustar-se às morfologias sensíveis do mundo natural). Da solidariedade
proprioceptiva entre as duas dimensões, vão-se originar todas as outras operações, entre
elas, especialmente, o controle tensivo, imposto à formação de valores e, de uma forma
mais abrangente, à organização sintagmática do discurso, de seus esquemas rítmicos e
axiológicos.
2.3 Campos do discurso
A práxis enunciativa é responsável pela administração do modo de existência das
grandezas semióticas, englobando o conjunto das operações, dos operadores e dos
19
parâmetros controladores do discurso. Para observar a dinâmica e a dialética das operações
dos três campos do discurso por que a práxis transita o de presença, o esquemático e o
diferencial —, selecionaram-se alguns parâmetros semióticos que compõem o discurso com
o intuito de investigar-se mais detalhadamente a apreensão da assunção de intensidades
sensíveis no discurso e seu desdobramento na extensão, os quais permitem compor o
sistema de valores do universo literário de Hilst, a fim de operacionalizar-se a análise de suas
narrativas.
Lugar da articulação entre as estruturas semionarrativas, de que fazem parte os
enunciados, e a instância de discurso, dominada pelo campo posicional da enunciação, a
práxis enunciativa recebe da instância discursiva o estatuto de ocorrência presente, atual e
específica. A instância de discurso designa o conjunto das operações, dos operadores e dos
parâmetros controladores do discurso. Conceber a enunciação, segundo uma perspectiva
dinâmica e dialética, implica tratá-la como uma práxis, exercida no campo do discurso, num
domínio espaço-temporal. Distinguem-se nesse processo semiótico três fases: “emergente”,
“em processo” e “concluída”.
2.3.1 Campo de presença: fase emergente
A primeira fase é a do campo de presença. Ao longo dessa fase, a instância de
discurso é o lugar da diversidade do sentimento de existência que lhe atribui variações de
presença. Esta é uma presença para instâncias sensíveis a ela e afetadas por ela. Tais
instâncias vivenciam emoções e experimentam espécies diferentes do sentimento de
existência.
A asserção é o ato de enunciação pelo qual o conteúdo de um enunciado advém à
presença, identificado como estando no campo de presença do discurso. A enunciação
assume a asserção: algo está presente para aquele que enuncia; algo acontece em relação a
ele, no campo de presença em que ele é o ponto de referência; algo advém em relação à
posição da instância de discurso, afeta essa posição ou obriga-a a reafirmá-la. Na perspectiva
da asserção, considera-se uma predicação existencial, pois o ato de enunciação situa o
enunciado no campo de presença e lhe atribui um modo de existência, um grau de presença.
20
Por outro lado, a práxis enunciativa administra, no campo do discurso, a presença de
grandezas discursivas. Segundo essa perspectiva, o discurso em ato e o sistema subjacente
estão em interação. A perspectiva da práxis enunciativa é, pois, interativa. Em termos
espaciais, ela extrai formas de um espaço de esquematização para modificá-las e alimentá-
las; em termos temporais, ela ultrapassa a oposição entre sincronia e diacronia. Se há leis na
práxis enunciativa, estas são pancrônicas, diferentemente do sistema que é, por definição,
acrônico. Em outras palavras, as grandezas discursivas articulam uma interação entre o
sistema da língua e o sistema da cultura, campo da semiosfera, para inová-lo ou para
confirmar seus valores.
Em termos de presença, envolvendo os aspectos espaciais e temporais, a práxis
enunciativa apreende o modo de existência das grandezas e dos enunciados que compõem
o discurso em seu estágio virtual, pois são entidades pertencentes a um sistema; atualiza-os,
pois são seres de linguagem e de discurso; realiza-os, pois são expressões; potencializa-os,
pois são produtos de uso. A práxis enunciativa, portanto, administra a distribuição e a
variação dos modos de existência, os quais dizem respeito diretamente às relações entre o
sistema e o discurso, uma vez que o sistema é, por definição, virtual, enquanto o discurso
visa à atualização.
Os modos de existência o virtualizado, o atualizado, o potencializado e o
realizado convertem, de certa forma, a co-presença em uma espessura discursiva e
projetam articulações modais sobre o campo do discurso. Para que em um mesmo discurso
coabitem grandezas de estatutos diferentes, elas devem derivar de modos de existência
igualmente diferentes: a copresença discursiva não se reduz à coocorrência, uma vez que
estas se articulam de forma tensiva.
O ato produtor do discurso de significação parte, a princípio, do modo virtual, isto é,
do que está fora do campo do discurso. Trata-se, no sentido próprio do termo, do modo das
estruturas de um sistema subjacente, da competência formal disponível no momento da
produção do sentido. O modo virtualizado pois não se volta mais ao modo virtual, uma
vez estando no discurso em ato é aquele das grandezas que servem de segundo plano ao
funcionamento das figuras do discurso. O ato semiótico consiste, então, em realizar uma
figura, em remeter outra figura ao estado virtualizado e em colocá-las em interação de tal
forma que, no momento da interpretação, o enunciatário seja conduzido a “ir e vir” de uma
figura à outra.
21
O modo atualizado é o das formas que advêm no discurso e das condições para elas
ali advirem. O modo realizado é justamente aquele pelo qual a enunciação faz as formas do
discurso se encontrarem com uma realidade — a realidade do plano de expressão, do
mundo natural, e do plano de conteúdo, do mundo sensível. O modo potencializado é
próprio à dimensão retórica dos atos de discurso. Uma forma é considerada potencializada
quando sua difusão ou seu reconhecimento são tais que ela pode figurar como topos do
discurso (tipo, lugar-comum ou motivo, disponíveis para outras convocações). É um espaço
categorizado, rede de diferenças, manipulação de estruturas tensivas e modos de
coexistência de enunciados. Com base nesse vetor, buscam-se investigar em Hilst a
ocorrência e o devir de figuras potencializadas pela categoria do trágico, por meio da
abstração de topoi significativos desse universo, na perspectiva da Lógica do pior, de
Clément Rosset (1989).
Os enunciados estão sujeitos a percursos ascendentes e descendentes, projetados
no gradiente dos modos de existência. O percurso ascendente explora a tensão entre o
modo virtual (fora do campo do discurso) e o modo realizado (centro do campo do discurso),
na medida em que ele emerge em direção à manifestação e almeja atingir o centro de
referência do discurso, a instância realizante. O percurso descendente explora outra tensão
e dá-se entre o modo realizado e o modo virtualizado, passando pelo potencializado (a
passagem da fronteira no sentido contrário). Na medida em que volta em direção ao
sistema, cristaliza as formas vivas em estereótipos e alimenta a competência daquele que
enuncia, graças aos produtos dos usos mais típicos.
Ao longo da fase de emergência, o campo perceptivo é articulado por intensidades
sensíveis e afetivas (visada), por extensões e quantidades perceptivas (apreensão). Perceber
algo é perceber mais ou menos intensamente uma presença, ou seja, perceber que algo
ocupa certa posição e certa extensão e que afeta, com alguma intensidade, o observador,
orientando sua atenção. A presença é uma articulação semiótica da percepção. A
intensidade (afeto) é a visada intencional que evidencia a relação de um sujeito com o
mundo.
A apreensão caracteriza a posição, a extensão e a quantidade, que determinam os
limites e as propriedades do domínio de pertinência. A presença conjuga, portanto, forças,
de um lado, e posições e quantidades, de outro e as duas operações semióticas: a visada e a
apreensão.
22
O ato semiótico depende dessa sensibilidade proprioceptiva. A visada e a apreensão
são operações perceptivas, antes mesmo de serem assumidas por uma enunciação que
deitiza, localiza, mensura e avalia. Essas operações são variedades do sentimento de
existência e revelam os graus do campo de presença do discurso. As primeiras articulações
do campo do discurso são as valências (intensivas e extensivas).
2.3.2 Campo esquemático: fase em processo
A segunda fase das grandezas discursivas é a do campo esquemático. Ao longo dessa
fase, “em processo”, aquela do discurso em ato propriamente dito, da instauração das
formas discursivas, o campo do discurso é uma combinação de esquemas discursivos. Nesse
nível, as fenomenologias subjacentes podem ser esquematizadas, as configurações
semióticas se configuram e os valores se formam.
Um sistema de valores pode ganhar corpo quando nele surgem diferenças que
formam uma rede coerente: é a condição do inteligível. A estrutura tensiva é uma operação
que se apresenta como um modelo de engendramento dos valores discursivos no espaço
interno da correlação a partir das valências (decorrentes da visada e da apreensão)
perceptivas e graduais que constituem o espaço interno de controle. Essa estrutura tensiva
relaciona o sensível e o inteligível na medida em que as valências de controle de tipo
gradual, tensivo e perceptivo determinam as diversas posições categoriais (ou valores) do
espaço interno. O sistema de valores resulta da intersecção de uma visada que orienta a
atenção para uma primeira variação, chamada intensiva, e de uma apreensão que relaciona
essa primeira variação a outra, chamada extensiva, e delimita assim os contornos comuns de
seus respectivos domínios de pertinência.
A instauração do sistema de valores é organizada pelas categorizações. Estas se
tornam estratégias no interior da atividade do discurso. quatro estilos de categorização,
baseados em intensidade e extensão. Esses estilos podem ser eles próprios estabelecidos
se se coloca a formação do sistema de valores sob as modulações da presença perceptiva e
sensível, se se leva em conta o controle que a percepção exerce sobre a significação. Os
estilos de categorização, por caracterizarem a maneira pela qual são formados os sistemas
23
de valores, determinam simultaneamente o valor nas suas dimensões: de um lado, como
posição em um conjunto de relações; de outro, como diferença no devir desse sistema.
Os quatro estilos de categorização baseada na intensidade e extensão são: a)
estratégia do agregado em torno de um termo de base neutro: o devir do sistema é limitado
ao movimento entre “particularização” e “generalização”, conforme o nível de especificação
do termo de base - o valor será, então, avaliado em termos de especificação; b) estratégia
da fila: o devir do sistema é avaliado em termos de representatividade por meio do melhor
exemplar, melhor amostra; c) estratégia da série: o devir do sistema se averigua em graus
de coerência conforme o número de traços comuns aumenta ou diminui; d) estratégia da
família: o devir do sistema depende da densidade das semelhanças e relações locais,
avaliados em termos de coesão.
Quando se evoca a coerência de um texto, buscam-se o número e a recorrência de
traços partilhados e distribuídos; quando se evoca sua coesão é a maior ou a menor
densidade de ligação local que está em jogo: anáforas, reiterações temáticas, concordâncias
e morfemas descontínuos, blocos rítmicos e rimas fonéticas ou semânticas. A escolha de um
estilo de categorização, por causa da dualidade do valor, é uma escolha de “estilo
sintagmático”.
A presença sensível exprime-se ao mesmo tempo em termos de intensidade, de
extensão e de quantidade. Cada efeito de presença associa certo grau de intensidade e certa
posição ou quantidade na extensão. A presença conjuga, em suma, forças, de um lado, e
posições e quantidades, de outro. As dimensões graduais obtidas na relação entre visada e
apreensão convertem-se em eixos de profundidade, a partir de uma posição perceptiva, os
quais estabelecerão as diferenças de posições não mais isoladas, mas de valores por meio de
correlações em que compareçam duas posições diferentes do espaço interno, consideradas
diretas ou inversas, conforme a quantidade.
O valor de uma posição depende, ao mesmo tempo, dos graus que a definem sobre
os eixos de controle e do tipo de correlação (direta ou inversa) a qual pertence. As zonas que
correspondem aos estilos de categorização são as seguintes: a) intensidade e extensão
fracas: agregado; b) intensidade forte e extensão fraca: fila; c) intensidade e extensão forte:
série; d) intensidade fraca e extensão forte: família.
Os níveis de articulação, propostos inicialmente, foram concebidos para dar conta da
categorização discursiva em práxis enunciativas concretas. A variação cultural é apresentada
24
a partir de estruturas elementares, sob o controle da percepção, na medida em que a
percepção de valores e das figuras discursivas é resultado, ela própria, de uma seleção de
valências perceptivas.
A distribuição de elementos naturais em uma estrutura tensiva deve ser específica ao
discurso e à cultura analisados. As próprias valências serão específicas, pois, se a intensidade
e a extensão têm realmente um valor geral, as isotopias que as realizam em cada discurso
são específicas. Os valores serão também específicos na medida em que os tipos figurativos
escolhidos dependem estritamente das valências e de suas correlações.
A estrutura tensiva é, portanto, obtida ao final de quatro etapas: a) a identificação
das dimensões da presença sensível; b) a correlação entre as duas dimensões: intensidade e
extensão; c) a orientação das duas dimensões, que se tornam então valências e a duplicação
da correlação em duas direções; d) a emergência de quatro zonas típicas, definidas como
pólos extremos dos dois gradientes e que caracterizam os valores típicos da categoria.
A assunção, ou predicação assuntiva, é outro tipo de articulação da presença,
complementar à da predicação existencial (asserção). Por ser auto-referencial, ela é, com
efeito, o ato pelo qual a instância de discurso faz conhecer sua posição em relação ao que
advém ao seu campo. Trata-se da presença em relação ao outro, presença da instância de
discurso em relação àquilo que advém, presença em relação àquilo que surge no campo e
que não é ela mesma. A dimensão da assunção articulada à dimensão do reconhecimento na
comunidade dos sujeitos concerne, portanto, a “sentimentos de existência” que lhe
atribuem essas variações de presença no discurso.
O alcance da assunção, expressa em intensidade e em extensão, provocará no
discurso verbal, por exemplo, um deslocamento didático, uma “tematização” ou uma
“ênfase”. A intensidade é a força de assunção da enunciação, dimensão indispensável das
tensões existenciais no discurso, obedece à lógica das forças, mais ou menos intensas; a
extensão concerne à capacidade de desdobramento e de declinação figurativa da
enunciação, caracteriza-se por posições e quantidades.
Os esquemas tensivos são modelos sintáticos que dão conta das variações de
equilíbrio entre a intensidade (sensível, afetiva, sentida) e a extensão (perceptiva, cognitiva,
mensurável). Nessa operação, deve-se procurar saber como as valências de afeto e as
valências cognitivas conjugam-se ou opõem-se, aliam-se ou combatem-se. Os esquemas
25
tensivos são esquemas discursivos elementares, que regulam a interação do sensível e do
inteligível, as tensões e os relaxamentos que modulam essa interação.
Recorrendo ao princípio de base segundo o qual os esquemas asseguram a
solidariedade entre o sensível (intensidade, afeto) e o inteligível (desdobramento na
extensão, o mensurável, a compreensão), pode-se definir o conjunto dos esquemas
discursivos elementares como variações de equilíbrio entre essas duas dimensões, variações
que conduzem seja ao aumento da tensão afetiva, seja ao relaxamento cognitivo. O
aumento da intensidade leva à tensão; o aumento da extensão leva ao relaxamento. Os
esquemas são:
a) Esquema descendente: diminuição da intensidade combinada com o desdobramento da
extensão produz relaxamento cognitivo;
b) Esquema ascendente: aumento da intensidade combinado com a redução da extensão
produz uma tensão afetiva;
c) Esquema de amplificação: o aumento da intensidade combinado com o desdobramento
da extensão produz uma tensão afetiva e cognitiva;
d) Esquema de atenuação: diminuição da intensidade combinada com a redução da
extensão produz um relaxamento geral.
2.3.3 Campo diferencial: fase conclusiva
A terceira fase do processo semiótico é a do campo diferencial, a do discurso
enunciado e acabado, na qual o campo do discurso se torna uma rede de diferenças, um
espaço categorizado, discretizado. Esse espaço engloba as tensões e os modos de
coexistência, na correlação entre sistema da língua e uma forma fenomenológica científica,
subjacente, específica, relativa à filosofia trágica. Essa abordagem será feita por meio de
três perspectivas: 1) coexistência entre os modos sensoriais e o ritmo passional, em Hilst, em
tensão com o trágico; 2) correlação de sistemas: entre o modo potencializado e dimensão
retórica, quanto aos topoi relativos à fenomenologia da filosofia trágica; 3) lugares
referentes à enunciação e às formas significantes: somação e desdobramento.
26
Na articulação da dimensão sensível à inteligível, ao lado da função semiótica, da
estrutura e dos esquemas tensivos, pode-se considerar outro nível de articulação pertinente
a esta pesquisa. Trata-se da proposta de apreensão de modos sensoriais no discurso de
Hilst, para investigar-se a ligação entre estado de júbilo e estado de morte, conceitos a
explicitar-se no capítulo seguinte. A capacidade de perceber sensações singulares pode ser
focalizada no discurso pelo modo sensorial, pela maneira como a instância de discurso utiliza
essa técnica articulada à função poética no campo literário. Pontua-se o fato de esses
encontros singulares ocorrerem no nível do discurso, atribuindo maior intensidade afetiva,
por meio da tessitura da linguagem, notadamente no uso de substantivos, adjetivos e
advérbios, manipulados sob o prisma das sensações. Esses encontros, explorados por forte
apelo sensorial, atuam na capacidade de perceber-se melhor a manipulação das
intensidades evidenciadas no nível estético, ou seja, as estesias engendradas no discurso.
O elemento norteador para essa abordagem seria: até que ponto os modos
sensoriais contribuem para apreender-se a extensão dos valores do espaço interno do
discurso? A análise dos modos sensoriais deve responder à questão: como o sensível se
converte no inteligível? Esse aspecto está ligado à especificidade semiótica dos modos
sensoriais e poderia levar ao questionamento, que envolve a estesia e suas relações com o
conjunto dos esquemas discursivos: até que ponto a experiência sensível determina a
estrutura discursiva?
Considerou-se no nível da predicação existencial que uma forma é potencializada
quando sua difusão ou seu reconhecimento são tais que ela pode figurar como topoi do
discurso (tipo, lugar-comum ou motivo, disponíveis para outras convocações), um espaço
categorizado, uma rede de diferenças, na manipulação de estruturas tensivas e modos de
coexistência de enunciados. Com base nessa explicitação, objetivam-se investigar em Hilst a
ocorrência e o devir de figuras potencializadas pela categoria do trágico, por meio da
abstração de topoi significativos desse universo, na perspectiva da Lógica do pior, de
Clément Rosset (1989).
A extensão do reconhecimento, que evidencia o domínio exteroceptivo, obedece à
lógica dos lugares e concerne, ao mesmo tempo, aos lugares da enunciação e à difusão das
formas significantes implicadas. A repetição de uma forma no uso é considerada
objetivamente como a quantidade de suas ocorrências, ou seja, a recorrência das
enunciações que a põem em cena, a quantidade e a frequência da sua assunção por
27
instâncias de discurso, sendo, então, a dimensão do reconhecimento, na comunidade dos
sujeitos de linguagem, mais, ou menos, extensa.
A frequência de emprego das formas significantes é sustentada pela sanção
intersubjetiva e depende da unanimidade de um número suficiente de sujeitos. Assim,
quando a intensidade da assunção e a extensão do reconhecimento evoluem na mesma
direção e fortalecem umas às outras, pode-se falar em correlação direta entre a intensidade
e a extensão. Essa correlação direta assegura o valor de troca de uma forma, o qual se refere
a duas operações. A primeira é a amplificação, um recurso que conduz da adoção de uma
forma a sua integração. A segunda, a atenuação, conduz do uso vivo à obsolescência de uma
forma.
Essa perspectiva do emprego das formas significantes relacionada ao uso na
comunidade dos sujeitos não concerne a nossa proposta de análise. Há, contudo, no caso de
Hilst, quanto à simulação do delírio, a ocorrência de uma dessemantização do procedimento
do “fluxo da consciência”, dando lugar a uma inovação, imperceptível, às vezes, pois
depende da visada do enunciatário. Ao substituir o fluxo da consciência pela forma
delirante, Hilst esgota o conteúdo e o valor daquele. Essa inflação discursiva corrói, assim, o
valor de uso dessa forma. Por outro lado, a abordagem das ideologias pela escritora é
investida de impacto explosivo de uma forte assunção e de um valor de uso singular ao
colocá-las sob a ótica da lógica do pior, segundo a filosofia trágica de Clément Rosset (1989).
Ocorre, então, uma inversão entre a intensidade e a extensão. Essa correlação
inversa define duas operações: a somação e o desdobramento. A somação de enunciados
demolidores das ilusões ideológicas impõe uma forma, por meio de uma assunção intensa,
no lugar de um reconhecimento menos extenso, apresentando-se como uma postura
singular ao colocar na demência do louco uma lucidez de saber trágico.
O desdobramento desse discurso, por meio da extensão e da quantidade, é marcado
pela reiteratividade de topoi do trágico. Em suma, pode-se propor que a somação de
ressignificações gera a tensão entre “crenças instituídas e reconhecidas” e o “esvaziamento”
de sentido dessas crenças. A extensão do reconhecimento das crenças é afetada pela
intensidade dessas inversões e reversões, relativas à lógica do pior.
Esse espaço categorizado remete ao sistema subjacente, domínio da discretização de
um sistema linguístico e da memória cultural, abstraído de uma rede de diferenças do
discurso. Por conseguinte, a práxis não concerne apenas ao domínio dos esquemas
28
semióticos, num discurso singular, mas também incorpora uma forma fenomenológica, uma
forma científica, em que outras disciplinas estão aptas a reconhecê-la, campo em que os
valores da cultura se presentificam.
2.4 Domínio da memória cultural
O modelo da Semiosfera, usado por Fontanille, a partir de Iuri Lotman (1996),
possibilitará, do ponto de vista do discurso de Hilst, uma aproximação com o domínio da
memória cultural, aquele da experiência semiótica no interior de uma cultura, notadamente
em relação à filosofia trágica, na perspectiva de Clément Rosset.
As grandezas discursivas articulam uma interação entre o sistema da língua e o
sistema da cultura, a semiosfera, para inovar este sistema ou para confirmar seus valores. A
teoria desse sistema apresenta um princípio de base utilizado para engendrar um modelo
cuja função será servir à práxis enunciativa. No domínio do sistema da cultura, os sujeitos,
imersos nessa cultura, experienciam a significação. A semiosfera é uma das condições para a
produção de discursos, uma vez que ela é anterior à experiência semiótica. Trata-se de um
domínio por meio do qual uma cultura pode definir-se e situar-se de tal forma a dialogar
com outras culturas, sendo, pois, um campo de funcionamento dialógico.
Lotman (1996) propõe, na teoria da semiosfera, a classificação dos tipos de
“tradução” e de “difusão” e descreve etapas no devir de uma contribuição por meio de
metamorfoses que a integração a uma nova cultura lhe impõe. Uma delas pode ser
relacionada à práxis enunciativa de Hilst no caso em que a contribuição exterior é percebida
como explosiva e singular, provocando inquietação pela inversão de valores das “crenças
institucionais”. Seu discurso beneficia-se de uma axiologia ambivalente: positiva quanto à
singular polêmica que suscita; negativa, quanto à sua força subversiva em relação à cultura
cristalizada. Essas axiologias estão relacionadas às questões metafísicas e a todo espaço do
sistema ideológico.
29
CAPÍTULO 3
O TRÁGICO EM CLÉMENT ROSSET
Selecionaram-se, em Fontanille (2007), alguns princípios básicos da Semiótica do
discurso, para operacionalizar-se a semiose das narrativas de Hilst. Destacam-se, neste
capítulo, posturas fundamentais, a partir da filosofia trágica à luz da lógica do pior, expostas
por Clément Rosset (1989), uma vez que tal perspectiva filosófica permitirá apreender-se de
modo mais preciso o trágico no discurso literário de Hilst, alvo desta pesquisa.
A concepção trágica, considerada oposta à visão plotiniana — um modo uno de olhar
a realidade, marcado de forma simples — evidencia-se de tal maneira múltipla que, levada a
seus limites, transforma-se em opacidade, culminando numa espécie de êxtase ante o nada.
A filosofia trágica define-se como a história dessa visão impossível, visão do nada, rien, que
não representa a instância metafísica chamada nada, néant, mas antes o fato de não existir
algo que seja da ordem do pensável e do designável. Esta não se propõe a revelar nenhuma
verdade, somente descrever de maneira mais precisa por isso, a expressão “lógica do
pior” o que pode ser esse “antiêxtase” filosófico em vista do espetáculo do trágico e do
acaso.
A ligação indissolúvel entre a alegria de existir e o caráter trágico da existência, que
une o gozo da vida ao conhecimento da morte, apresenta-se como essencial à filosofia
trágica, uma vez que não triunfo da vida sem igual triunfo da morte, logo, toda alegria,
cuja intenção for desconsiderar o trágico, ou ignorá-lo, será falsa. A filosofia ocidental
buscou estabelecer a ordem onde havia a desordem. Todas as coisas estavam em estado de
caos. A inteligência pôs ordem em tudo, segundo Anaxágoras (1991). Nessa perspectiva
organizadora do caos, o exercício da filosofia, em geral, busca ser tarefa séria e
tranquilizadora: um ato simultaneamente construtor e salvador.
30
A postura filosófica da gica do pior, no entanto, contrapõe-se ao que foi construído
pela maioria dos filósofos, até então, no Ocidente. O argumento trágico fundamental dessa
lógica parte de um estado de alegria virtual e chega à desordem, ao silêncio, por meio da
afirmação da impossibilidade de qualquer pensamento. Tal filosofia torna-se um modo de
olhar destruidor, catastrófico, adotando uma atitude terrorista e eliminando qualquer ilusão
que o homem possa ter imaginado para evitar a desgraça.
O objeto do estudo de Rosset (1989) é interrogar o fundamento dessa necessidade
de destruição para exercê-la. Trata-se de uma necessidade lógica, apoiada em considerações
que serão examinadas. A postura dos pensadores, denominados “terroristas”, é de pensar o
pior e explicitar que esse pior é nada poder afirmar. O cuidado não é mais evitar ou superar
um naufrágio filosófico, mas torná-lo certo e incontestável, eliminando-se quaisquer
possibilidades de escapatória. Se há uma angústia no filósofo trágico, esta é a de constatar o
silêncio em torno do caráter destruidor, na maneira de apresentá-lo de forma incompleta e
superficial. Esse filósofo não escreve, porém, por causa de sua angústia, e sim porque o
princípio dessa lógica légein, do grego: dizer, afirmar, segundo Isidro Pereira é falar do
pior, explicitar aquilo que está interdito, embora esse ato não eliminar o pior. O interesse
da filosofia trágica, longe de fazer viver melhor, é apenas verbalizar o pior sabido pelas
pessoas. Sua necessidade é fazer entender esse aspecto destruidor não relacionado a um
mal qualquer, que se deteriora chegando ao pior, mas sim afirmar a ausência de toda
ilusão.
Encontram-se na história da filosofia alguns expoentes desse modo de pensar: os
Sofistas, Lucrécio, Pascal e Nietzsche. O discurso da convenção nos Sofistas, da natureza em
Lucrécio, do homem sem Deus em Pascal, do homem dionisíaco em Nietzsche é ordenado
segundo uma lógica do pior, considerada como ponto de partida, cujo pressuposto
metodológico é o mesmo: o que deve ser buscado e dito antes de tudo é a essência do pior.
As filosofias ditas trágicas — a angústia vinculada a incertezas de ordem moral ou religiosa, a
perturbação perante a morte, a experiência da solidão e da agonia espiritual — não se
constroem segundo a lógica do pior. Portanto, afirma Rosset (1989), desde Nietzsche, vê-se,
entre as produções literárias e filosóficas de uma mesma época, a literatura revelar-se por
seu caráter trágico e a filosofia, por sua capacidade em suprimi-lo.
31
3.1 Natureza terrorista da lógica do pior
A gica do pior poderia ser confundida com outras formas de pensamento, como o
pessimismo, o masoquismo, o sadismo, a paranoia; porém ela difere dessas formas na sua
essência. O pior pessimista designa somente um dado, ou seja, a própria natureza
constituída, e uma lógica do mundo, enquanto o pior trágico designa a impossibilidade
prévia de todo dado, descobrindo-se incapaz de pensar um mundo. Portanto, o que separa
pensadores pessimistas e trágicos é seu objeto de questionamento, seu propósito, uma vez
que verificação, resignação, sublimação mais ou menos compensatória são palavras da
sabedoria pessimista. O objetivo trágico, propriamente terrorista, como se encontra em
Lucrécio, Montaigne, Pascal ou Nietzsche, difere sobre todos esses pontos, porque afirma a
impossibilidade de constatação, não procura uma sabedoria ao abrigo da ilusão nem do
otimismo, mas busca algo completamente distinto: loucura controlada e júbilo.
O masoquismoum prazer de ordem filosófica em criar a dor, reflexo de uma busca
de satisfação mais profunda em impor ao outro seu sofrimento , também se encontra
distante do pensamento trágico. O masoquista suportaria ser infeliz apenas com a condição
de demonstrar a impossibilidade de alguém ser feliz. Com base nessa perspectiva, o
masoquismo poderia ser considerado uma instância psicologicamente superficial, melhor
compreendida a partir do sadismo. Entretanto, na lógica do pior, motivada psicologicamente
por outro viés, além de a dor ser fonte de júbilo, há, na origem do saber trágico, um objetivo
de ordem psicanalítica e catártica: a de fazer passar o trágico da inconsciência à consciência,
mais precisamente, do silêncio à fala.
A singularidade do terrorismo na lógica do pior é entendida com mais clareza quando
se reflete sobre a paranoia e o caráter afetivo concernente ao universo mental da
paranoia. Ao masoquista, ao sádico, ao pessimista, ao paranoico, não cabe detalhar o
aspecto intolerável do sofrimento, mas que este “seja”. Todos eles estão unidos pela
experiência psicológica da dor; não interessa que esta seja intolerável, importa a dor “ser”.
Disso decorre a necessidade de expor a existência do sofrimento.
O benefício da dor, seja para dela gozar (masoquismo), seja para infligi-la aos outros
(sadismo), seja para dela lamentar-se (paranoia), não está na representação de uma dor
acidental e inevitável; a afirmação da dor é, sobretudo, a afirmação de um “ser”. O
32
pessimista, afirmando a dor, assevera alguma coisa; benefício a que se recusa o pensamento
trágico. Para este, o ser é impensável, nenhum ser “é”. Nesse sentido, distinguem-se duas
representações antitéticas do pior: uma paranoica, cuja lógica é afirmar o pior; outra,
trágica, cujo pior é nada afirmar. A representação paranoica pode ser traduzida num
aspecto: sofro, logo existo, fórmula que resume um tipo de lógica do pior no paranoico e em
todas as formas de pessimismo.
A intenção terrorista, diferentemente dos princípios expostos acima, aproxima-se da
noção de piedade de ordem assassina e exterminadora, detectável nos escritos de
inspiração trágica, tanto literários quanto filosóficos. Essa piedade assassina parece definir
sua insensibilidade, sua impermeabilidade a qualquer tipo de compaixão e parece tornar,
dessa forma, a filosofia trágica uma “farmácia”, uma arte de venenos, vertendo, no espírito
daquele que escuta algo mais violento que os males presentes na sua aflição. Os discursos
terroristas, sustentados pelo pensamento trágico, deixam transparecer uma piedade
singular que, longe de amenizar os males, intensificam-nos até o intolerável. A piedade
assassina manifesta-se, então, ao disponibilizar o trágico, oferecendo-lhe, não a consciência,
mas a fala, tornando exprimível um saber já existente, do qual o indivíduo pressupunha estar
livre.
Considerar a natureza do terrorismo na filosofia trágica implica dirigir o olhar para
questão da ideologia e das teorias antiideológicas. Essa filosofia concebe o discurso anti-
ideológico como um levar a sério a ideologia e, ao querer desmascarar o vazio, o branco, o
oco do discurso ideológico, ele se configura tão vago quanto aquele que pretende derrubar.
A inconsequência maior de tais discursos é querer o impossível ao tentar apagar o nada com
nada. A percepção do caráter ideológico de certos discursos anti-ideológicos leva a inferir
que existe uma fonte comum de onde derivam e onde se separam todas as formas de
pensamento trágico e as filosofias de modo geral: o problema da divergência de olhar do
homem com relação às suas ideias, específico da “ideologia”, que trata de valores como:
finalidade, justiça, riqueza, Deus, considerados, na perspectiva da lógica do pior, como não-
seres.
Sendo assim, extraem-se duas direções filosóficas, em torno do “nada”,
caracterizadas por uma diferença de ótica. De um lado, o discurso ideológico e o
antiideológico; de outro, o pensamento trágico por meio do qual se pode considerar o
homem consciente de que fala sobre nadas, em favor de um saber trágico. A marca deste
33
discurso é não ser falado, contudo ele é pensado; o homem sabe disso, mesmo não falando
desse saber. O ponto de partida deste pensamento é a explicitação da verdade que atribui
ao homem a posse de um saber silencioso, incidindo sobre o nada de sua fala. Essa ideia
invoca uma premissa básica: toda crença, posta à prova, é incapaz de precisar aquilo em que
ela crê; portanto, seria um crer em nada. O homem pode acreditar em tudo, mas ele não
poderá deixar de saber silenciosamente que esse tudo é nada. Em síntese, a intuição do
pensamento trágico está na incapacidade de os homens criarem uma ideologia, e não em se
desembaraçarem dela.
Dessa postura inferem-se três questões: a primeira, relacionada à piedade trágica,
afirma que nenhum homem é enganado por seu discurso, por suas representações. Para o
pensador trágico, ninguém crê “verdadeiramente” nos seus temas de crença: nem o juiz na
justiça, nem o neurótico em sua neurose, nem o padre em Deus. A segunda questão é a
impossibilidade de instituir qualquer luta anti-ideológica com o objetivo de demolir o que
não pode ser destruído, quando o discurso trágico constata que nada foi construído. A
terceira é a ideia de que todo pensamento não trágico possa organizar-se como filosofia,
pois as filosofias existentes são, fundamentalmente, um modo de crença.
O caráter trágico da “condição humana” está no fato de o homem falar do não
trágico, da ideologia. Instaura-se, por isso, uma contradição insolúvel: o homem tendo
necessidade de algo que é “nada”, confirmando-se a asserção de Jankélevitch (1977) acerca
do trágico como a união do necessário com o impossível. Esta permite considerar se o
“nada” confunde-se com a idéia de uma ausência, se a falta que falta ao desejo, para definir
seu objeto, deve ser relacionada à inacessibilidade do objeto ou à incapacidade de o sujeito
definir seu próprio desejo. Contudo, trata-se da necessidade humana que esbarra na
inexistência de um sujeito do desejo, não na impossibilidade de uma satisfação.
A perspectiva trágica revela-se quando se afirma não faltar nada ao homem com
relação ao seu desejo. Do ponto de vista antropológico, não consiste numa “falta de ser”,
mas numa “plenitude de ser”. Não significa apenas constatar as carências, mas em ter
consciência de que “nada” falta. O homem, que deseja nada, de forma paradoxal deseja e é
incapaz de desejar algo; constitui discursos em lugares onde está colocado em questão
“nadas”, aos quais ele não pode definitivamente ater-se, nem por eles interessar-se.
A noção usual de acontecimento, entendido como um ato, cujo autor seria o
homem, é necessária para ampliar a ideia de intenção terrorista. Ao agir, o homem,
34
evidentemente, provoca mudança no que existe; mas, na verdade, ele age sobre algo cujo
caráter é ser mutável, pois todas as possíveis intervenções na natureza de um
acontecimento estão previstas. Assim, o pensamento trágico destaca a inaptidão do
homem em atuar sobre o mundo, modificando-o. Quando o pensamento trágico assimila o
ser a um “dado”, ele o considera como uma reunião fortuita na qual nenhum reajuste pode
modificar sua natureza naquilo que ela tem de casual, eventual, imprevisível. A noção de
“acontecimento” no sentido de algo não modificável é chamada pela filosofia trágica de
acaso (hasard).
No entanto, há um ato capaz de afetar a vida dos homens com um mínimo de
alteração. Trata-se da forma como uma pessoa representa a si mesma seus pensamentos e
suas ações, a cada instante de uma existência da qual nenhum ato nem sua representação
lhe pertencem propriamente. Em outras palavras, a aprovação é o único ato a que o
pensamento trágico reconhece um valor de acontecimento”; a única ação cabível ao
homem é aceitar estar na vida ou não, isto é, matar-se. Desse modo, a aprovação está
presente na origem da intenção terrorista como condição indispensável para o pensamento
trágico.
Pensamento trágico e pensamento aprobatório são, para gica do pior, termos
sinônimos por três razões. Em primeiro lugar, a filosofia trágica considera a aprovação (e seu
contrário, o suicídio) como o único ato cuja disponibilidade é deixada ao homem, sujeito da
ação. Em segundo lugar, ela afirma o privilégio da aprovação em virtude de seu caráter
incompreensível e injustificável. Enquanto pensamentos pseudotrágicos lamentam-se de
uma “falta”, o trágico não leva em conta a existência de um “algo mais”, alhures, que
preencha essa falta. Em terceiro lugar, certificando-se da finalidade comum a todo ser
humano de apegar-se a “valores”, a postura trágica contraria esse objetivo ao declarar seu
único fundamento: o caráter ininterpretável e invulnerável da aprovação que o situa fora do
alcance de qualquer pensamento.
O mecanismo da intenção terrorista, ao reconhecer a instância aprobatória, implica a
exclusão da chamada “alegria vital”: o máximo de alegria pensável é definido pelo máximo
de trágico pensável. Essa lógica, direcionada a uma busca do pior, com seus filtros de morte
e desesperança é, então, vista como uma arte dos venenos, e o pensador trágico, definido
como alguém tomado pela alegria de viver, uma vez que ele experimenta a aprovação,
mesmo reconhecendo o caráter inconcebível desse júbilo. O verdadeiro objeto da aposta
35
terrorista, ao confrontar cada um dos instantes felizes com o pior momentaneamente
pensável, está em descobrir se este instante de aprovação é concebível intelectualmente.
Em suma, a lógica do pior baseia-se no pressuposto: o que deve ser buscado e dito
antes de tudo é o trágico, constituído pela impossibilidade prévia de qualquer dado. Todo
pensamento trágico é também aprobatório, único ato que tem valor de acontecimento. Seu
caráter terrorista, ou seja, determinar o pior dos pensamentos, demanda passar do silêncio à
fala. Afirmar o pior é constatar que este pior é nada poder afirmar a impossibilidade de
crer que possa haver crença, atribuindo ao homem um saber mudo que incide sobre o nada
de sua fala.
3.2 Trágico e silêncio
O comportamento filosófico do silêncio no trágico evidencia-se quando se chega à
conclusão de que não mais nada a dizer nem a pensar. Destaca-se, por conseguinte, a
idéia de pane, qualificadora de um discurso imobilizado; as formulações tornam-se
impossíveis, dissolvem-se no espírito do questionador antes mesmo de serem emitidas. As
perguntas se revertem em falta, cujo resultado é o aniquilamento de toda disponibilidade;
não se questiona mais; não nenhum apoio à vista, nenhuma saída é concebível; trata-se
de uma parada definitiva, de uma perdição.
O trágico, assim, emudece o discurso, desarticulando qualquer esforço de inferência,
principalmente, racional (ordem das causas e dos fins), religiosa ou moral (ordem das
justificações de toda espécie); diante do nada, a impossibilidade de afirmar nada. Se a ação
de interpretar é sempre segunda, se onde são operantes a psicanálise e o marxismo, por
exemplo, não se esgotam em sua leitura, considera-se que tudo é trágico, entendido,
geralmente, como um halo irracional em torno do núcleo de racionalidade constituinte da
vida e do pensamento do dia-a-dia.
Há, porém, um contrassenso em pensar numa divisão entre o racional (a vida) e o
irracional (o trágico), quando se reconhece o trágico em toda parte, inserido na
cotidianeidade, descaracterizado pela exceção e pelas catástrofes. Existem, portanto, dois
modos de olhar a realidade — trágica e não trágica — e não duas esferas de realidade.
36
O conceito de necessidade, na tragédia e na lógica do pior, expõe outro
contrassenso. Nos gregos, compreende-se o sentido da palavra sob a forma de um processo
de desdobramento inelutável, sujeito a uma explicação aparentemente causal, a partir de
uma determinada circunstância. Por sua vez, o trágico, segundo o pior, remete ao
acontecimento casual (hasardeux), resistente à interpretação. A primeira noção de
necessidade é entendida por meio da ideia de causa determinante (mesmo que sua origem
seja obscura) e o destino, como finalidade inevitável. Para os filósofos terroristas, a
necessidade está baseada no ser (casual-hasardeux), e não no ser porquê (causal), e o
destino designa somente o caráter irrefutável do que existe.
Portanto, considera-se a necessidade na filosofia trágica a partir de uma situação
determinada, cujo desenrolar provável, necessário, está marcado inicialmente e cuja ação
trágica está incluída na origem das premissas (de certa maneira, ela o repete). Nos trágicos
gregos, essa ideia deve ser entendida de maneira inversa por designar fatos antes que
efeitos. Na lógica do pior, seu significado não está no encadeamento das determinações que
conduzem inevitavelmente à crise e à morte; mas, ao contrário, no caráter não necessário,
casual, dessa trama.
A exterioridade, traço distintivo da paranoia — de que algo intervém de fora — é um
tema antitrágico por excelência. O “outro”, considerado inimigo, embora intervenha e
transtorne a alteridade do eu, apenas acidentalmente” pode atingi-lo, revelando seu
caráter não trágico. As figuras paranoicas da falta para com os outros ou da falta para com
Deus são variantes desse caráter, atribuído a um alhures que resume, ao mesmo tempo, o
desconhecimento do trágico e o reconhecimento do lugar onde se elabora a gênese da ideia
de “dor”. Os dois temas — dor e trágico — veem-se indissociavelmente unidos por exclusão:
se há trágico, não há dor.
A noção de interioridade bastaria para designar o campo específico do trágico, da
mesma forma que se encontra uma união entre a tragédia grega e as perspectivas atuais
exploradas pela psicanálise em relação ao homem. Por essa afirmação, compreende-se
melhor como é trágico, terrificante, para o homem, tudo aquilo que provém de sua
interioridade. Freud (1996) esclarece essa questão entre o estranho e o familiar, em seu
estudo Das Unheimliche: ver de súbito e demasiado tarde o presente, o próximo, o familiar
como ausente, distante e estranho, é a experiência trágica por excelência. Ora, de tudo o
que está próximo ao homem, nada se encontra tão perto quanto ele mesmo, quanto às
37
forças psicológicas que nele se agitam. O que faz de Édipo, ao mesmo tempo, um herói
psicanalítico e trágico, não é o fato de ele ser incestuoso e parricida, mas o de interrogar
uma exterioridade acerca de um tema que não concerne senão à interioridade.
3.3 Trágico e repetição
A consciência da mudez do discurso trágico, refratário à interpretação, passa pela
repetição. O acontecimento somente é trágico quando se revela sobre um fundo de
repetição que se reapresenta de maneira singular e envolve sentidos diversos. Quando o
primeiro acontecimento é imprevisível e constitui uma novidade radical, ele não é temível.
Quando o segundo, ao contrário do primeiro, é totalmente previsível, mas constitui uma
repetição exata, sendo, portanto, esperado, não pode ser impedido nem é temível. Para ser
terrível e trágico, numa terceira acepção, supõe-se a seguinte lei: um acontecimento
imprevisível, a partir do qual um previsível sobrevenha, pode ser manifestado
simultaneamente ao último acontecimento. A repetição trágica revela de uma só vez o
repetido e o original; é mais um olhar sobre o repetido que sobre a repetição propriamente
dita.
Uma das marcas do episódio trágico está em o herói reconhecer, como se
encontrasse, enfim, registrada, de modo claro, uma palavra esperada desde sempre, sem
jamais ter sido dita ou pensada. No domínio da investigação psicanalítica, também se atribui
importância ao reconhecimento no jogo do manifesto e do inconsciente. A ação trágica se
mostra como necessária (“eu sabia”), porque se deixa casualmente identificar. O princípio
que assegura, ao mesmo tempo, a identificação e a necessidade é a repetição, destacada por
trás do episódio trágico, a presença de um trágico difuso e repetível, de maneira mais exata,
temível.
Lidar com a questão da existência de um acontecimento original, fonte de todas as
representações, implica fundamentar-se na ideia de que o primeiro acontecimento é
considerado como o termo original de uma série. Entretanto, este poderá ser definido e
revelado num seguinte, num elemento qualquer que traz consigo o cerne da repetição.
Implica, então, levar em conta um duplo: o acontecimento original preserva um elemento
38
concernente ao tempo e ao mundo. De outra forma, o original seria um elemento “x”,
anterior a todo tempo, que exerce junto a este a função de um ordenador, de um antecessor
desconhecido, estranho ao tempo e ao mundo. A repetição trágica em estado puro revelaria,
assim, um acontecimento que reitera um evento original, inédito, desconhecido, como se
fosse repetido. Esse modo de abordar o acontecimento seria mais coerente, uma vez que
sendo considerado sob a perspectiva do tempo esse elemento “x” — aparentemente fora do
tempo leva ao mito, razão pela qual foram possíveis tal elemento e suas repetições.
Aquilo que repete a repetição encaminha, inevitavelmente, ao mito e ao desconhecido.
É possível observar como se a repetição, ou seja, a operação da passagem dos
acontecimentos imprevisíveis aos previsíveis e esperados, significativa também para a
psicanálise, por exemplo, na análise de atos falhos, e para a filosofia, na análise do trágico.
Essa operação, todavia, é concebida de modos diferentes no plano psicanalítico e filosófico.
O primeiro modo, a repetição mecânica, patológica ou repetição-lugar-comum, significa,
rigorosamente, o retorno do mesmo; concepção pessimista, no plano filosófico (Eclesiastes:
nada novo debaixo do sol; Schopenhauer) e patológica, no plano psicanalítico (instinto de
morte, compulsão de repetição, ato falho). O segundo modo, repetição operante ou
diferencial, significa o retorno de um elemento diferente a partir de uma “intenção” desse
mesmo elemento. Esta perspectiva, no plano filosófico, é ao mesmo tempo trágica e
jubilatória nos gregos e na teoria do eterno retorno de Nietzsche e terapêutica, no plano
psicanalítico, por permitir acesso a um comportamento “normal”.
As duas formas apresentam características opostas. A repetição mecânica, sem
diferença, encontra em Schopenhauer, explica Rosset (1989) exemplo significativo, sendo
sua grande obsessão, mais que o pessimismo, a moral de renúncia e a estética de
contemplação, derivados dela. Se tudo está previsto, porque são repetições-lugares-comuns,
o temível torna-se um ato incompleto e revela o caráter falso das atitudes da vida, expondo
um mundo tragicômico, e não trágico. Por outro lado, a repetição diferencial surge, sob
algumas circunstâncias, como a lei da vida. três exemplos significativos dessa repetição,
segundo Rosset (1989). No primeiro, encontrado em A busca do tempo perdido, de Proust, a
repetição aglutina a repetição na diferença, sugerindo o resgate contínuo de singulares. Por
esta razão, o propulsor da repetição é a diferença, capaz de garantir o retorno das
repetições.
39
O segundo exemplo é percebido na música, lugar privilegiado da repetição
diferencial; quando um intérprete ou compositor refazem o velho com o novo, constroem a
repetição no interior da partitura ou em reexposições de um mesmo tema. Esses
procedimentos efetivam simultaneamente o retorno do mesmo e a aparição do novo,
portanto, diferença e repetição, conferindo um valor inovador a um tema estritamente
repetido. O terceiro exemplo encontra-se em Nietzsche, considerado o filósofo da repetição
diferencial, sob a ótica do eterno retorno. O repetido é sempre um retorno do passado, do
mesmo diferente que surge como novo, numa reaparição de forma singular. Esta reaparição,
ou seja, renovação da diferença, faz renascer o júbilo original. O mesmo e o outro, a
repetição e a diferença, confundem-se na apreensão daquilo que, para Nietzsche (1992), era
o único objeto de reflexão a vida. Assim, a diferença é o trágico de fato, ao portar em si a
razão do não-interpretável que leva à mudez e ao silêncio.
3.4 Trágico e acaso
Uma vez definido o trágico pelo princípio do silêncio, nada mais haveria a ser dito, a
não ser que se encontrasse uma palavra capaz de falar sem nada dizer, de recusar toda
ideologia. Embora haja risco em construir um pensamento filosófico baseado em uma
palavra, tal palavra chama-se acaso (hasard); esta pode ser usada para compreender-se
melhor o trágico. Acaso (hasard) é o termo mais próximo do silêncio trágico. Seu significado
remete ao que é anterior a todo acontecimento, do mesmo modo como os antigos filósofos
gregos denominavam o “caos”, o estado primeiro do mundo, anterior a toda “ordem”.
Destacar o acaso (hasard) na forma de um princípio trágico implica falar dele a partir
da ausência original de referenciais, não de referenciais constituídos (série de
acontecimentos) ou pensados (ideia de necessidade). O acaso (hasard) se definirá, então,
como “anticonceito”, qualificando apenas uma soma de exclusivas. Nesse sentido, casual
(hasardeux) exclui, ao mesmo tempo, a ordem das causas, das determinações e suas
exceções, as ideias de ordem e de desordem. Se um acaso (hasard), este não depende da
ideia de contingência: longe de subordinar-se a ela, ele a precede e a engendra. A língua
francesa dispõe de uma palavra cujo uso corrente não se encontra nas outras línguas
40
européias. Essa palavra é hasard
1
e sua correspondente em português, acaso. Por sua
relevância no campo da lógica do pior, serão abordados quatro níveis diferentes na gênese
dessa palavra; do mais específico ao menos específico, do que é menos ao que é mais casual
(hasardeux), tendendo ao silêncio ou ao completo silêncio.
Por meio da primeira noção, de sorte (pelo latim fors e pelo grego
τυχη
), confere-se
a um determinado elemento, por exemplo, a fortuna, uma responsabilidade de uma série
causal feliz ou infeliz para o homem. A origem grega do termo indica seu caráter
antropológico, designa um resultado que se obtém ou não, de bom ou de ruim, fazendo falar
o silêncio, porém supondo, de um lado, a existência de séries causais; de outro, o caráter
feliz ou infeliz dessas séries. O acaso tem um caráter antropológico e teológico, pois, se o
homem é beneficiado ou não, busca um sentido que pode ser atribuído a uma referência
prevista ou, até mesmo, a alguma deidade. A noção de acaso, desde o começo da literatura
grega, hesita entre dois pólos: o absolutamente não necessário (hasard) e o absolutamente
necessário (destino). Para sustentar essa primeira noção de acaso (sorte), dois referenciais
se fazem presentes: a ideia de encadeamento dos acontecimentos, e a ideia de finalidade.
A segunda noção é a de encontro, expressa pelo latim casus; designa o ponto de
convergência entre duas ou mais séries causais (no sentido de causa). O surpreendente é
deslocado do conjunto de um encadeamento para o caráter imprevisível do encontro de
certos encadeamentos. O acaso (o imprevisível) incide sobre o fato de que em certo ponto
do tempo e do espaço duas séries se encontram, sendo os referenciais desse encontro
imprevisíveis. A terceira noção, também derivada da ideia de simultaneidade, é a de
contingência (cum-tangere, do latim). O acaso da contingência não designa mais o fato
casual (hasardeux) em favor de duas séries coincidentes, mas o princípio geral da
imprevisibilidade (no sentido de acaso, sem causa) que é aplicado a tais encontros. Se tudo é
imprevisível, pode-se dizer que tudo não é necessário. A contingência se chamaria, então,
não-necessidade e, para sustentar essa noção, contrapõe-se a ela a ideia de necessidade,
conceituada anteriormente.
A quarta noção, hasard, deriva de uma palavra árabe, indicadora, provavelmente, do
nome de um castelo situado na Síria do século XII, onde havia um jogo, com dados, cujo
nome era também hasard. Mais tarde, a palavra passou a designar a face do dado a qual traz
1
A partir desta seção, quando se referir ao sentido de acaso que interessa neste trabalho, usar-se-á o
termo em francês, hasard, para evitar qualquer confusão com o sentido do termo em português.
41
o número “seis”, logo, lançar o dado para obter o hasard significava acertar o número “seis”.
Pode-se razoavelmente conjecturar a respeito de tal jogo que devia caracterizar-se por uma
inabitual passividade do jogador, a quem era recusada toda possibilidade de intervenção:
o hasard presidia os destinos da partida. Essa noção de passividade do jogador e recusa de
toda possibilidade de intervenção levará à experiência da perdição, significando a perda de
toda referência.
Desde o século XVII, a palavra mantém, em francês, o sentido encontrado hoje: uma
espécie de silêncio original do pensamento que recobre tudo o que não é. Para o pensamento
trágico, essa noção não deve ser entendida como sorte (fors), encontro (casus), contingência
(contingentia). Por sua carga excepcionalmente fraca em ideologia, é uma denominação
adequada ao campo filosófico da lógica do pior, em razão de hasard ser uma palavra da qual
não haverá nada a tirar; nada a esperar para o ideólogo, nada a temer da parte do anti-
ideólogo.
Retomando as três primeiras noções para diferenciá-las da última, hasard, indica-se o
quadro comparativo:
Sorte Causal; encadeamento dos
acontecimentos
Necessário: destino; ideia de
finalidade
Encontro Causal; simultâneo Séries convergentes,
imprevisíveis
Contingência Simultâneo Encontros imprevisíveis; não
necessário
A diferença essencial entre essas noções de acaso: fors fortuna, destino; casus
encontro, inesperado; contingentia não necessidade, e hasard encontra-se no fato de as
três primeiras suporem, para ser, a existência prévia de uma natureza, porém qualquer
conceito de natureza será ao mesmo tempo vago e negativo. Essa circunstância leva à
retomada da postura terrorista: chama-se natureza certa quantidade de elementos que,
visto sob certo ângulo, podem em determinado instante dar a um observador a impressão
de constituir um conjunto. Natureza designa, portanto, um ponto de vista, não um objeto.
Hasard e natureza são conceitos bem diferentes, pois esta supõe um compromisso teológico
e teleológico, de ordem antropocêntrica. Além disso, a ideia de natureza considera na sua
42
origem a intervenção de uma vontade, atuando na sua própria constituição. Uma vez que as
três noções de acaso fors, casus, contingentia respeitam o conceito de natureza e têm
necessidade dele, a quarta noção hasard será relevante para a filosofia trágica, por
ignorar a idéia de natureza. Sendo assim, Rosset (1989) distinguirá somente dois conceitos
de acaso.
O acaso-“acontecimentual
2
ou acaso constituído supõe a existência de uma
natureza que lhe serve de ponto de apoio e está relacionado a acontecimento por
reconhecer a presença de séries causais e ser ele mesmo constituído pela natureza. O acaso
(hasard) original ou acaso constituinte recusa a ideia de natureza, pois não supõe qualquer
natureza na sua origem. O acaso original é anterior a “tudo que existe” e está por todos os
lugares; enquanto o acaso acontecimentual é posterior e localizado. Interessa ao
pensamento trágico apenas o acaso original, encontrado nos grandes pensadores trágicos:
Lucrécio, Montaigne, Pascal, Nietzsche.
O pensamento do hasard é materialista; a única forma de materialismo absoluto, o
único a prescindir de todo pressuposto de ordem, tais como as ideias de lei, determinismo e
mesmo de “natureza”. Hasard é o nome que designa a aptidão da matéria a se organizar
espontaneamente; hasard e espontaneidade organizadora são noções sinônimas e
intercambiáveis
3
. Essa ligação entre os termos, fundamento do único pensamento
materialista rigoroso, é também um pensamento de pavor. Na sua origem, podem ser
considerados dois aspectos: primeiro, a ideia de hasard dissolve a ideia de natureza e põe
em questão a noção de ser; segundo, a ideia de hasard soma-se à definição proposta por
Freud (1996), da perda do familiar, ou seja, da descoberta de que este é, inesperadamente,
um domínio desconhecido por excelência, o ápice da estranheza. O “que existe” é nada, cujo
sentido se entende como nada a respeito do que se pode definir como ser, nada que “seja”
suficiente para oferecer-se à delimitação tanto no nível conceitual quanto no existencial.
A extinção da ideia de natureza é comum na maioria das manifestações de
terrorismo filosófico, estabelecendo-se como tema fundamental. Para o pensador do
hasard, a extinção dessa ideia é concebível, apesar de o homem ter alguma intuição do
“natural”, pela afirmação da existência de várias “naturezas”, ao invés de uma, constituídas
2
Em nota, o tradutor de ROSSET, Lógica do pior, explica que événementiel é um neologismo traduzido por
ele como “acontecimentual”, no sentido de relativo ao acontecimento.
3
Tal afirmação é feita por Rosset (1989), recorrendo a Da natureza, poema de Lucrécio.
43
de circunstâncias, pensadas como resultantes do hasard. As circunstâncias, tidas como
generalidades, conjuntos, naturezas são percebidas de uma perspectiva humana por meio
da brevidade. Remete-se, assim, à noção sofística de κ
κκ
κα
αα
αι
ιι
ιρ
ρρ
ρóς
ςς
ς (kairós-ocasião), tessitura de
tudo o que existe, produtora de sensações singulares, jogos de encontros, imprevisíveis,
entre um sujeito móvel e um objeto. O homem e a sensação são ocasiões, não diferem um
do outro senão por sua maior ou menor duração: um mesmo hasard.
Ao eliminar a ideia de natureza, o pensamento do hasard institui a noção de
convenção; nada diferencia o natural do artificial. Nesse caso, vê-se a importância dos
sofistas na substituição das noções de verdade e de natureza para restituir o valor de
veracidade e introduzir as ideias de convenção e de instituição. A união das noções de
natureza e de ser leva à constatação empírica de que o excluído da natureza não é a noção
de ser, mas o conjunto de todos os seres pensados.
O pensamento do hasard, unido à ideia de ser, resulta necessariamente em uma
filosofia do não-ser. Certas ideias são suscetíveis de aterrorizar tanto quanto ameaças e atos.
Freud (1996) declara, em Das Unheimliche, que o pavor surge quando o familiar vem
sobrepor-se ao desconhecido, quando a estranheza se apodera do espaço previamente
ocupado pelo conceito de familiar, aquilo que é reconhecível. O pavor começa graças a uma
dúvida quanto à “natureza” de um ser qualquer e explode quando este vem a perder de
súbito, na consciência, a natureza que lhe era implicitamente reconhecida. Essa perda não
constitui um acontecimento, mas a revelação retrospectiva de um estado.
A filosofia trágica desencadeia o mesmo mecanismo de pavor quando afirma o
caráter não natural, mas de hasard, de tudo que existe. Pressentindo, sob a aparência de
toda a natureza a verdade de uma não-natureza, a filosofia terrorista coloca o pavor como a
chave de todas as observações concebíveis e inclui as possibilidades de pavor numa
desnaturalização generalizada, com mesmo caráter retrospectivo: tem-se medo, porém, de
ter acreditado em alguma coisa que, então, já era falsa. Nesse caso, o pensamento não pode
agir; somente reconstruir o drama, porque o desencontro entre o tempo anterior de uma
prática e o tempo posterior revela-se tarde demais, depois de ter-se instaurado uma crença
qualquer. A experiência original de angústia é o nascimento, entre tantas outras que se
seguem no decorrer da vida. O acaso é uma forma geral de experiência angustiante, uma
espécie de reencontro com a angústia original.
44
Do ponto de vista filosófico, a intuição do hasard, da não-natureza, pode explicar a
origem comum da geração de todas as angústias do ser humano, do mesmo modo que a
ideia de hasard pode explicar o princípio de pavor, referindo-se à experiência de perdição, a
partir da qual, somente, a experiência da angústia é possível. É preciso diferenciar perdição
de perda. A primeira é um questionamento do ser em geral; a segunda, um acidente no
curso do ser. Algo se perde (acontecimento imprevisível) quando está em perdição (estado):
um navio naufraga num momento preciso, mas pode permanecer em estado de perdição
durante um período determinado; do mesmo modo o homem morre uma vez, mas pode
estar sempre em perdição. Não é a morte que aparece como o termo de toda “vida”, mas a
própria vida que perde seu caráter vivente. Perder todo referencial é, em maior ou menor
prazo, perder a ideia que se possa ter da vida, isto é, de uma ou algumas naturezas. A ideia
do acaso constituinte, que é a origem de cada uma dessas perdas particulares, pode ser
considerada como a razão geral que ordena toda experiência da perdição. Perdição não
designa a soma das perdas que podem subitamente ocorrer, mas a verdade geral de que não
há nada a perder, não se tendo nada.
Os componentes da perspectiva trágica são: primeiro, a ideia de acaso, ou seja,
perda de referenciais espaciais e temporais; segundo, a ideia de desnaturalização,
entendida por meio da afirmação de Freud, referente ao estranho familiar, de que o lugar
mais conhecido se transforma no desconhecido; terceiro, a Ideia de pavor, resultado da
tomada de consciência do não-ser, experiência que, necessariamente, é uma afirmação do
estado de morte de tudo o que existe. O pensamento do hasard admite generalidades e
reconhece nelas um caráter tão casual (hasardeux) quanto em qualquer outra manifestação,
no entanto toda manifestação se reveste de um caráter excepcional. De maneira geral, para
caracterizar a existência, o pensamento do acaso restringe-se ao estatuto da exceção. O
estado de morte, entendido sob o prisma da exceção, é também um estado de festa. O
acontecimento carrega todas as características de festa: irrupção inesperada, excepcional;
ocasiões que existem num tempo, num lugar, para uma pessoa, não repetíveis, dotando
cada instante da vida das características de festa, de jogo e de júbilo. Tornar os homens
capazes de ver a sucessão das exceções, capazes de aproveitar a sucessão das ocasiões,
revela o essencial do ensinamento sofístico.
O estado de morte, característica do hasard, provoca a questão da indiferença em
relação a tudo que existe, nada podendo modificar a natureza ou constituí-la. Entretanto, é
45
necessário distinguir entre duas formas diversas e contraditórias de indiferença: uma
consiste em esperar o hasard com certeza, que tudo é hasard; a outra, em nada esperar,
se tudo é hasard; indiferença da festa oposta à indiferença do tédio. Tudo depende de: se é
o ser, o mundo é monótono; se é o hasard, o mundo é uma festa. Há, então, uma inversão
da espera: nada sendo regra, tudo se torna igualmente exceção, não pela chegada constante
de novidades, mas pela visão da falta de regras. A relação entre festa e trágico é uma
experiência filosófica da aprovação, que aparece no conteúdo do que é pensado no hasard
como regra de exceção e princípio de festa.
3.5 A estética do pior
É difícil imaginar atos praticados por motivo nenhum, em nome do hasard, pois o
comportamento humano, na maioria das vezes, é interpretado por alguma diretriz
intelectual ou biológica. Na perspectiva da filosofia trágica, esses atos acarretam implicações
no campo da práxis do pior. Com base na fórmula: nada fazer nada pensar, as práticas
desastrosas são assumidas como possíveis. Consideram-se, à luz da lógica do pior, três
condutas: a tolerância (moral do pior), a faculdade criadora (política do pior) e certa maneira
de rir (estética do pior).
Somente o pensador trágico é capaz de afirmar a tolerância, uma vez que ele se
encontra imune a qualquer tipo de ideologia e assume uma ética de acolhimento, uma
moral do pior. A faculdade criadora, um tipo de política do pior, é uma forma de invenção,
cujo efeito de deslocamento (décalage) põe em evidência a teoria freudiana da sublimação,
segundo Rosset (1989), ao mostrar que o prazer estético representa, por procuração, os
principais interesses do corpo e do espírito. Esse prazer é reduzido à superfície casual
(hasardeux) do que existe. O belo oscila entre o natural e o artificial e não resulta de um ato
criador, sendo primeiramente hasard. A “criação estética” é o reflexo de momentos
singulares, jubilosos, no hasard dos acontecimentos. Portanto, é uma arte de percepção, de
experiência de encontros inesperados e de retenção daquilo que é capturado no instante
oportuno. Essa ideia de criação estética resulta em: primeiro, a impossibilidade de criar;
46
segundo, seu aspecto desastroso, por realizar uma política do pior, uma vez que envolve a
apreensão do hasard para ressaltá-lo.
3.5.1 O riso leve e a ironia
A conduta do riso, terceiro modo de práxis da filosofia trágica, é um tipo singular de
estética do pior. O naufrágio do transatlântico Titanic, desaparecido na noite entre 14 e 15
de abril de 1912, levando à morte 1500 passageiros dos 2201 que eram transportados,
permite a consideração sobre o ato de rir. Nessa cena histórica, o sentimento de segurança
da tripulação e dos passageiros era predominante. No entanto, após chocar-se contra um
iceberg, em duas horas e meia, o navio estava imerso. Mesmo a tragédia tendo durado
pouco tempo, o pânico demorou muito para instalar-se, em razão da tranquilidade que
prevalecia entre todos. À medida que a água invadia o casco do navio, um rumor se impunha
a todos: “o Titanic não pode afundar”. De fato, esse navio tinha todos os requisitos que
justificavam tal comportamento das pessoas, porém afundou. Enquanto a água cobria os pés
dos músicos da orquestra, eles entoavam cânticos cuja letra era: “Mais perto de Ti, meu
Deus, mais perto de Ti”.
Tal acontecimento infeliz e trágico pode ser visto sob o ângulo da potência cômica
que irrompe de forma inesperada e manifesta-se em vários níveis. Em primeiro lugar, no
nível das responsabilidades humanas, à vista do iceberg, ocorre o fato de o comandante ter
dado ordens para que fossem com o máximo de velocidade, apesar da iminência do
acidente; em segundo, uma oposição entre a amplitude do desastre e o caráter
imperturbável das circunstâncias mar calmo, céu estrelado, visibilidade perfeita, além de
o navio ser um dos mais bem construídos para a época —, enfim, a técnica de advertência a
posteriori, cujo efeito cômico produzido parece inesgotável.
Essa conjuntura tragicômica não elimina a potencialidade do riso, que se encontra na
evocação do naufrágio do Titanic. O “engolimento” do navio revela uma peculiaridade
derrisória, inerente à lógica do pior, compreendendo um extermínio sem restos, de puro
deixar de existir. Uma hora antes, um seguro transatlântico; uma hora depois, nada. A
transformação do ser em não ser, imprevisível, indica sua perspectiva trágica, porque o
47
incongruente da desaparição revela, a posteriori, o insólito que a precedia: o hasard da
existência, riso exterminador, gratuito, ato paradoxal, que dissolve sem afetar, com grande
potencial risível.
O cômico manifesta uma disposição de espírito, que pode ser identificada na ironia e
no humor. A ironia é um rir que “vai longe”, um riso largo, porque sua eficácia não é
esgotada pelo cômico, mas prolonga-se a partir de um contrário revelador de uma instância
que sobrevive à destruição. O irônico pode destruir tudo o que lhe agrada com a condição
de deixar entender as ideias em nome das quais ele age; faz aparecer o grotesco, em nome
do razoável; o escandaloso, em nome do tolerável; o não-sentido, em nome de algum
sentido. A essência da ironia é otimista e moral.
A segunda maneira, oposta à outra, exprime-se mais comumente sob a forma de
humor; é um riso curto, rápido, com efeito cômico passageiro, não leva à destruição. Parece
atacar indiferentemente tudo, sem organizar-se em sistemas como a ironia. É preciso um
recuo no tempo para medir sua eficácia corrosiva, muito mais assassina que a do riso largo.
De alguma forma, no sentido cronológico, o riso curto é de longo alcance, por dispensar a
referência a valores que desaparecem com o tempo; no sentido filosófico, por constituir uma
agressão mais violenta a todo “sentido” e evitar o reinvestimento das significações
destruídas. Em essência, o riso curto é pessimista, pois não sobrevive ao significado
destruído, sua capacidade de absorção corrói tudo num golpe. A devoração do humor opõe-
se ao desmantelamento da ironia. Intrinsecamente, o humor e a ironia não diferem um do
outro, são investidos de igual função cômica destrutiva, com uma diferença de nível,
todavia, ambos mantêm o mesmo júbilo diante da catástrofe.
A ironia usa esse júbilo para fins mais limitados, uma vez que o ato destruidor não é
completo por sua alusão implícita a reconstruções. Essa limitação identifica menor poder
destrutivo, pelo interesse em desferir golpes previsíveis, ajustados a determinado alvo. A
ironia apresenta inaptidão para demolir e impotência para criar; o humor demonstra prazer
em aniquilar, embora conserve o mesmo júbilo da ironia. Assim, o humor é mais criativo que
a ironia.
48
3.5.2 O riso demolidor
Para além do humor e da ironia, encontra-se o riso exterminador, dotado de
perspectiva trágica, indiferente ao caráter daquilo que é destruído. A idéia de hasard e a
capacidade de reconhecê-lo como antiprincípio de tudo o que existe identifica esse riso,
caracterizado por um oco que não remete a nada de pleno e pelo júbilo diante da
destruição. O riso trágico desfruta o prazer do hasard e celebra uma aparição estranha ao
universo das significações: indiferença para com o sentido e o não-sentido, distinguindo-o de
todas as outras formas de riso.
O hasard incide numa superfície onde todo elemento contraditório seria
precisamente contraditório ele mesmo. Logo, o riso trágico não revela no pensamento uma
expectativa frustrada, pois seria preciso para isso a preexistência de uma indagação de
significado. Ora, aquele que afirma o hasard não espera nem demanda nada que se ofereça
à contradição. O riso exterminador estabelece com o sentido relação muito particular: não
de contradição nem de teor absurdo, mas de ignorância. Se o riso celebra, em algumas
ocasiões, a irrupção do hasard, não é por excluir o sentido, mas por ignorá-lo.
De outra forma, no humor e na ironia, há exigência de uma demanda prévia de
sentido, indispensável à aparição do derrisório e da cumplicidade por parte do receptor. Seu
caráter risível manifesta-se em dois níveis: ser incapaz de aceder ao pensamento do hasard,
pois o cômico está em pensar que a ordem das coisas é problemática; rir das contrariedades
do sentido, afirmando-o, essencialmente, pelo lado oposto. O cômico existe porque o não
sentido é posto fora de circuito, fora do sério.
O riso exterminador significa a vitória do caos sobre a aparência da ordem: o
reconhecimento do hasard como “verdade” “do que existe”; uma instância aprobatória, pois
esse riso é acompanhado de um prazer, que é aquiescência e assunção. Instância
aprobatória é divergente de aprovação, marca do terrorismo da filosofia trágica. O hasard é
fonte de riso, logo, de prazer, testemunho de seu caráter aprobatório. O riso exterminador
constrói-se pelo caráter aprobatório, mas não se confunde com ele. A aprovação não é riso
da morte, da consciência de que nada é, mas é festa ante essa morte. A filosofia trágica,
conforme reconhece Nietzsche (1992), não começou quando os homens apreenderam a rir
de seus cadáveres, mas quando os gregos confundiram em uma única festa o culto dos
49
mortos, do qual tinha nascido a tragédia, e o culto do deus, símbolo do vinho e da
embriaguez: as Grandes Dionisíacas, que celebravam, simultaneamente, os jogos da vida, da
morte e do hasard.
CAPÍTULO 4
A INSTÂNCIA DE DISCURSO DO DUPLO PARANOICO
A tese de Clara Machado (1993), A escritura delirante em Hilda Hilst, mencionada na
introdução, explora, na relação entre Psicanálise e Literatura, segundo os mecanismos do
delírio, a possibilidade de apreensão da linguagem caleidoscópica da escritora no aparente
50
caos de seu discurso. C. Machado, ao caracterizar a gênese do paranoico e sua linguagem, na
visão psicanalítica, extrai, do discurso delirante, um parâmetro para o estudo das
singularidades da escritura de Hilst. Os fundamentos dessa abordagem são os estudos de
Jacques Lacan (1988), realizados entre os anos de 1955 e 1956, sobre a linguagem paranoica,
nos quais ele passa a reformular as teorias de Freud sobre as psicoses na obra Memórias de
um doente dos nervos, de Daniel Paul Schreber (1985), do ponto de vista da dinâmica do
significante e da estrutura do eu na fala psicótica.
Segundo Lacan (1988), a linguagem é articulada entre os registros Real, Imaginário e
Simbólico. Para a estruturação do sujeito, o registro Simbólico é determinante; forma-se na
conjunção com o Imaginário e o Real e caracteriza-se pela castração, símbolo da falta, corte
imaginário entre mãe e filho, que se desloca para a linguagem em forma de leis reguladoras.
Na paranoia, o sujeito é forcluído, isto é, desconhece a função do Simbólico, sua linguagem
está entre o Real e o Imaginário, desamarrada dos significados regidos pelas leis da
linguagem. Visto que domina nesse “discurso” o desconhecimento da função simbólica, o
delírio apresenta-se como um significante hieroglífico, um “saber insabido”; para Lacan
(1985), um saber que não se sabe, um saber que se baseia no significante como tal, que põe
o Outro o Simbólico — na posição de um lugar a ser decifrado. Essa elaboração ocorre na
fala delirante, concebida na forma de um “discurso” feito de significantes, cuja significação é
sempre adiada. A linguagem apreende o Real do sujeito, capturado por meio do Imaginário,
que busca a completude das significações não condizentes com os paradigmas da realidade
exterior.
A abordagem da práxis enunciativa de Hilst, sob o vetor de um delírio simulado, terá
como pressuposto a instância de discurso de um sujeito da enunciação que, na sua
metadiscursividade, delega
4
a um actante paranoico a predicação do discurso. Importará,
neste estudo sobre o trágico, não a perspectiva dos lugares, ou posições de onde se
constrói a enunciação do duplo paranoico, mas também o ponto de enlace entre a busca de
sentido do paranoico sobre a noção do ser e os postulados da filosofia trágica de Clément
Rosset (1989). O paranoico, perdido em sua busca de sentido para responder às questões do
4
Fontanille (2007, p. 268) considera sobre a delegação discursiva: [...] os regimes discursivos são suficientes,
em geral, para dar conta do conjunto dos atos de linguagem. Há um regime, entretanto, que escapa aos demais
regimes, a predicação: o sujeito narrativo pode seduzir, influenciar, persuadir, comandar outro sujeito
narrativo, mas ele não pode predicar a sedução, a influência, a persuasão ou a injunção, salvo se lhe dão a
palavra, e, nesse caso, trata-se, na verdade, de uma delegação de enunciação”.
51
ser, aproxima-se da filosofia trágica, exposta por Rosset, para o qual todas as crenças
buscadas pelo homem são ilusórias, uma vez que não respostas para explicar-se a
condição humana. Em Hilst, é possível afirmar que as questões do ser são formuladas
simultaneamente de dois lugares: o do paranoico e o do trágico, isto é, por um caminho que
simula a demência de um ator de saber insabido que se reverte em lucidez de um saber
trágico a demonstrar-se mais à frente. Esse ponto de conexão abrirá o caminho para a
análise da práxis enunciativa do trágico.
Entende-se, todavia, que o ser humano, em geral, possa colocar dúvidas em torno da
validade das crenças para sustentar o sentido da vida, embora busque sempre algo para
preencher o vazio impossível de ser preenchido. Posto isso, surgem as perguntas: qual seria
a singularidade da opção por uma análise do trágico, a partir de uma enunciação delegada a
um ator paranoico, para nortear esta pesquisa no ponto de enlace entre a busca do ser em
perdição e a do ser humano consciente de que tudo não é, de que tudo é nada? A
abordagem da práxis enunciativa de Hilst, pelo lugar do paranoico, será pertinente para
respondermos a essas indagações.
C. Machado (1993), embora não tenha desenvolvido seu trabalho nesta direção,
sinaliza que o caminho do delírio ficcional, elemento de liberação das potencialidades da
linguagem, é, para Hilst, um modo de construir o trágico, por meio da simulação. A loucura,
entrevista no “espelho ficcional”, é utilizada pela escritora para apreender a condição trágica
do homem nas bordas do imaginário da Arte. Sua manipulação discursiva expõe os
significantes do trágico nos “entre-ditos”, permitindo uma reflexão acerca dos próprios
limites do discurso.
4.1 Dinâmica do discurso na paranoia
4.1.1 Constituição da metáfora delirante
O paranoico busca uma forma de dar conta da ausência da função simbólica ao
construir uma metáfora delirante. Ele articula uma teia de palavras e imagens, uma
metáfora fracassada com sentido singular, resultado de um processo de linguagem, em que
52
o imaginário forma à alienação paranoica. A imagem do próprio eu, refletida no espelho,
revela o lugar do outro
5
semelhante, alguém estranho e invasivo, objeto de amor e de ódio,
e desloca a relação amorosa do espelho para a própria linguagem, com a qual o delírio
manifesta um caso de amor.
No delírio, os significantes retornam do Real no registro Imaginário, logo, sua
significação o se efetiva no algoritmo significante/significado, mas numa elaboração
contínua de cadeias metonímicas nas quais o significado “perde-se”, numa errância, pois a
fala do Outro forcluído é, de certa maneira, deficiente. O sujeito circula num saber
metonímico, apesar de produzir alguma significação com efeito metafórico. A analogia com
a metonímia justifica-se por esta se referir à substituição de alguma coisa que se trata de
nomear por outra ou parte desta. O sentido é perseguido, porém sempre deslocado.
A partir da relação do sujeito com o significante, com o outro e com os diferentes
estágios de alteridade (o imaginário e o Outro simbólico), é possível captar a progressiva
ocupação psicológica do significante na paranoia. Em Hilst, a metáfora delirante, sem
significação aparente, ao nomear outra coisa, permite capturar, de alguma forma, uma
significação singular que se descola do delírio e aponta para o trágico da condição humana.
4.1.2 Mecanismo do significante
Lacan (2008) estende o conceito de significante em “A instância da letra no
inconsciente”, texto inserido em Escritos. Nesse estudo, observa-se que letra é suporte
material emprestado à linguagem e marca um lugar situado para além de sua relação
biunívoca de significante/significado. Na letra, concentra-se a estrutura fundamental da
linguagem que a experiência psicanalítica descobre no inconsciente, também denominada
5
Em “O outro e a psicose”, estudo inserido em O Seminário, livro 3, Lacan (1988, p.39-54) discorre sobre a
dialética entre o eu o outro o Outro: no processo de identificação, o outro se constitui na dialética com
"o outro do espelho", relacionado à fala materna, que abriria a brecha na sua relação com o terceiro, o Outro,
lugar do pai, do Simbólico. Na formação do sujeito não psicótico, cabe à mãe abrir a cena para a inclusão do
lugar do pai, simbolizado pela castração do desejo materno, o corte entre e e filho. Na psicose, o eu está
fixado na imagem desse outro, fala materna; ele está forcluído do simbólico, visto não querer saber sobre a
castração, sobre a determinação da função paterna.
53
“alíngua”
6
(lalangue). Nessa confluência, propõe-se uma analogia entre o estudo da letra em
Lacan e a estrutura do delírio simulado em Hilst, o qual permite extrair por sua letra o lugar
do trágico na práxis enunciativa.
Segundo Lacan (2008), um estudo das ligações próprias ao significante e da
amplitude de sua função na gênese do significado vai além do debate concernente ao
arbitrário do signo em Saussure e se opõe à correspondência direta entre fonema e coisa.
No linguista, o algoritmo significante S sobre uma barra em que está o significado s deixa
evidente uma separação dos dois em duas etapas. O foco detém-se na posição primordial do
significante e do significado como ordens distintas e separadas, inicialmente, por uma
barreira à significação.
É fato que nenhuma significação se mantém pela remessa a outra significação. A
insuficiência em cobrir-se o campo do significado desvia do lugar de onde a linguagem
interroga sobre sua própria natureza, afirma Lacan (2008). Enquanto persistir a ilusão de que
o significante responde à função de representar o significado, de que tenha de responder
pela existência de uma significação qualquer, está-se condenado ao fracasso, pois o
significante não aponta para um significado, mas depende da interpretação e de seu efeito
num discurso. Em “A função do escrito”, Lacan (1985) retoma o problema e acrescenta: a
dimensão do significante não tem nenhuma relação com o sentido auditivo do termo; o
significante em si mesmo não se refere a nada, a não ser que esteja inserido num discurso. O
que se ouve é significante; o significado é efeito do significante. Cada realidade se funda e se
define por meio do discurso; trata-se de saber o que se produz por efeito da escrita.
Lacan (2008) enfatiza que somente as correlações do significante ao significante
servem de modelo para toda busca de significação, pois o significante, por sua própria
natureza, antecipa o sentido, de algum modo, diante de sua dimensão. Na cadeia de
significante, o sentido insiste, porém nenhum de seus elementos consiste na significação.
Nessa estrutura, Lacan (2008) descobre um modo de usá-la para significar algo diferente do
que ela diz. O sujeito, na fala, pode disfarçar seu pensamento, na maioria das vezes
indefinível, mas o analista, observando a letra, tem a possibilidade de abstrair o lugar desse
sujeito na busca da verdade.
6
Em O Seminário, livro 20, Lacan (1985, p.190) afirma: “Alíngua nos afeta primeiro por tudo que ela comporta
como efeitos que são afetos. Se se pode dizer que o inconsciente é estruturado como uma linguagem, é no que
os efeitos de alíngua, que estão como saber, vão bem além de tudo que o ser que fala é suscetível de
enunciar.
54
A estrutura do significante é articulada de modo que suas unidades estejam
submetidas a uma dupla condição, a de serem reduzidas a elementos diferenciais e a de
serem compostas de acordo com as leis de uma ordem fechada. Esses elementos, caracteres
móveis tipográficos, tornam presente a estrutura essencialmente localizada do significante,
denominada letra, mencionada anteriormente. Lacan (2008, p.232) afirma, por
conseguinte, a necessidade do substrato topológico
7
, termo aproximado da expressão
“cadeia significante”: “anéis formando um colar que se enlaça no anel de outro colar feito de
anéis”. A origem de sua tese sobre a letra encontra-se em “A interpretação dos sonhos”, de
Freud (2001), que, na análise do sonho, considera a topologia, decifrando as imagens ao “pé
da letra” pelo seu valor de significante, conforme o lugar que elas ocupam na cadeia de
imagens.
Lacan (2008) entende o significante no delírio por seu modo de articulação, ou seja,
como uma estrutura, um conjunto de elementos e não uma totalidade. Essa estrutura é
estabelecida pela referência do que é coerente com algo diverso que lhe é complementar,
evidenciando, desse modo, a existência de uma estrutura aberta e de outra fechada. O
significante é o elemento que aproxima as duas e permite descobrir na abertura uma
circularidade, portanto, analisar sua dinâmica implica observar de que maneira os
significantes são articulados em relação à cadeia de delírios, em seu envolvimento fechado,
em uma narrativa qualquer, e, ao mesmo tempo, aberto, num vínculo de
complementaridade típica da linguagem delirante, explicita C. Machado (1993).
As considerações sobre a natureza do significante permitem analisar o trágico no
discurso de Hilst pela instância da letra
8
e ampliar o estudo de C. Machado sobre a escritura
delirante. Assim, por analogia ao estudo de Lacan, propõe-se o enfoque da práxis
enunciativa de Hilst, pelo vetor do actante paranoico, com o intuito de abstrair da letra do
delírio simulado uma significância para as questões do trágico da condição humana.
7
A terminologia usada por Lacan (2008, p.235) em seus Escritos, para apontar uma visão topológica, a partir da
linguística saussuriana como suporte, embora se efetuem nesta desvios e deslocamentos, indica uma
descoberta anterior à de Fontanille (2007, p.270), que propõe a enunciação como lugar metadiscursivo,
reforçando a busca por uma análise que tenha uma base na perspectiva da topologia.
8
Vallejo e Magalhães (1979, p.81), interpretando o sentido da letra em Lacan, explicam: “Quando Lacan fala no
sentido da letra, é preciso interpretar isso, inversamente, como o sentido que a letra por si mesmo traz em sua
combinatória, não o sentido que arrasta, mas o sentido que gera. A letra significante em sua combinação
produz efeitos de sentido que divergem quanto ao sentido que ela poderia portar em uma relação biunívoca
codificada na língua estabelecida”.
55
4.2 Vozes persecutórias
4.2.1 Caráter litigioso da busca do saber
Ao fazer uso da topologia do espelho, Lacan (1988) explicita a estrutura do duplo
paranoico: o eu, defrontando-se com o reflexo do outro, sente um envolvimento não
agressivo, mas também erótico, uma vez que a apreensão dessa imagem é feita por um ato
de sedução, num plano amoroso de miragem. O outro, prestes a retornar ao seu lugar de
domínio, é parte estranha ao eu, instalando-se uma tensão de rivalidade e de temor pelo
mecanismo “eu” ou o “outro”. Para defender-se desse outro, o sujeito constrói uma
metáfora delirante, à beira do Simbólico, na tentativa de definir a identidade, as intenções e
as motivações do Outro forcluído.
O perseguido pelas vozes torna-se também perseguidor, na busca de sentido para o
lugar do Pai; seu discurso adquire uma postura litigiosa manifestada nas vozes do delírio,
implicando a problemática persecutória do Outro em torno de sua condição. O discurso
evidencia uma paixão intelectual responsável pela busca do “sujeito” por um saber sobre o
Outro, na tentativa de decifrar o enigma de sua posição. No entanto, o eu paranoico, ao
confundir esse Outro com a imagem do outro no espelho, atribui a si mesmo um saber
um saber insabido — sobre essa demanda imaginária.
Esse caráter litigioso leva à investigação do lugar de onde o duplo paranoico
interroga, com a finalidade de verificar-se a relação entre o eu e o outro invasivo, que
supostamente detém um saber trágico. Acredita-se existir em Hilst na instância da
enunciação uma mobilidade entre esses dois lugares: o do saber insabido que, na perdição,
interroga sobre sua existência, e o do saber trágico que desloca os questionamentos para o
âmbito da condição humana, denunciando a falência de sentido das crenças e
desmistificando qualquer ilusão utilizada para preencher seu vazio.
4.2.2 Encenação da subjetividade
56
Lacan (1988) afirma que no delírio o sujeito se fala com o seu eu, assumido
instrumentalmente, passando de sujeito a objeto da fala: alguma coisa tomou forma de
palavra que lhe fala. O eu consciente se anula e voz ao inconsciente eu-outro,
instaurando um encontro semelhante ao do estágio do espelho
9
, com a diferença de que o
Outro já se encontra nesse momento forcluído. uma interrupção da palavra entre o
sujeito e o Outro, desviando-a pelos dois eus na sua relação imaginária eu/outro do espelho.
Assim, o sujeito fala de modo literal com o seu eu (outro), como se um terceiro, seu
“substituto de reserva” (Outro), falasse e comentasse a sua atividade.
O outro é estruturalmente desdobrável, conforme se observa no delírio. O terceiro
presente no discurso paranoico é uma fala pronunciada pelo eu, mas atribuída a outros,
vozes que perseguem e atormentam o sujeito: a voz do Outro, do Pai, registro Simbólico
irrompendo no Real. Essas vozes aparecem no uso indiscriminado de um eu/ele, atestado
nos verbos em primeira e terceira pessoa, numa referência à voz forcluída. O Outro ausente
representa no delírio a função do TU, palavra fundadora de mandato, de delegação. O
sentimento de estranheza do dizer paranoico está sempre ligado ao eu que não se
reconhece mais, ao entrar no estado de TU, no qual o eu crê encontrar-se; o TU (instância do
Outro forcluído) só pode ser capturado imaginariamente pelo outro. O eu é expulso de casa,
enquanto o TU continua sendo possuidor das coisas. Esse mecanismo de intromissão e
mistura de sujeitos, teorizado por Lacan (1988), domina, pois, a organização do discurso em
Hilst.
O paranoico ouve múltiplas vozes em suas alucinações. O outro, que fala nessas
vozes, é um “corpo” imaginário e não pode ser considerado um “ator” no enunciado, mas
antes como uma voz, uma linguagem significante que reflete os traços desse “corpo”. Em
Hilst, nessa simulação vista sob o prisma da instância de discurso, considera-se o duplo
9
Em Vallejo e Magalhães (1979, p.47-49), lê-se sobre o estágio do espelho: diante de um espelho, a criança vê
a imagem de outro, que é ele mesmo. No entanto, esse outro-duplo é visto como miragem (registro
Imaginário). O espelho devolve-lhe uma imagem de completude, instaurando na criança a imagem de um
corpo completo onipotente (narcisismo, eu-ideal). Antes desse estágio, o eu era um corpo em pedaços, seio,
boca etc. Quando esse corpo é confrontado com o corpo do outro a mãe —, os significantes do desejo
materno estão marcados no corpo da criança. Assim, o corpo se completo, porém, simultaneamente,
atravessado pelo desejo do outro, a mãe. Esta deveria abrir a cena, para dar entrada ao desejo paterno, lugar
do Outro. Na fase edípica, o corte desse duplo amoroso remete a uma lei que marca o lugar sexual da criança,
a metáfora paterna.
57
paranoico como ator da enunciação, desdobrado em ator de saber insabido e ator de saber
trágico. É possível identificar, dessa maneira, a estrutura das vozes, segundo os mecanismos
posicionais com referência à célula fechada (eu/outro) em que ocorreu a forclusão do Outro,
metáfora paterna. A estrutura da fala paranoica altera-se, conforme o mecanismo e o lugar
de onde a voz fala: lugar do eu, do outro, ou do Tu, representativo da função Simbólica
ausente (LACAN, 1988).
A mistura de sujeitos representa uma encenação da subjetividade, numa estrutura
teatral, em que a personagem aparece na cena como um fantoche, conforme observa Lacan
(1988): quando o eu fala, o é ele quem fala, mas alguém que está por trás. O eu, no
delírio, recebe do outro, em alguma parte, sua própria mensagem de modo invertido,
pronunciada por alusão.
A encenação da subjetividade no delírio, verificada por Lacan, permite aproximá-la
do conceito de intersubjetividade
10
da semiótica do discurso, para abordar-se a práxis
enunciativa em Hilst no nível do conceito transpessoal de enunciação. Trata-se de uma
práxis com função metadiscursiva, obra de vários atores de enunciação. Esse aspecto
prende-se ao fato de que as narrativas a serem examinadas não focalizam propriamente
atores em ação num campo semionarrativo, eles não são personagens, mas atores de
enunciação de “ações delirantes”, imaginárias; tudo se articula pelo nível metadiscursivo,
manipulado pelo sujeito da enunciação, numa estrutura teatral de vozes delirantes, com
valor de significantes, marcadas por lugares actanciais posicionais, na instância de discurso.
Em Hilst, o desdobramento da linguagem delirante de caráter metadiscursivo, delegado a
10
Em Fontanille (2007, p.262-265), vê-se que subjetividade e intersubjetividade devem ser tratadas na
perspectiva de uma construção progressiva da identidade modal dos actantes, não como um substituto da
enunciação. A questão da subjetividade deve ser, particularmente, distinta da questão da tomada de posição
da instância de discurso, que se manifesta de todas as maneiras e independentemente dos efeitos de pessoa e
de sujeito. Referindo-se à maneira como Christian Metz abordou a aplicação da categoria de pessoa à
enunciação cinematográfica, Fontanille afirma: “[...] a reflexão sobre a práxis enunciativa conduz a uma
concepção impessoal da enunciação: a práxis sendo, por definição, obra de vários actantes de enunciação — ou
ainda de grupos, de comunidades inteiras, se não de culturas —, deve ser considerada idealmente como
‘transpessoal’ ou ao menos como ‘pluripessoal’. A partir disso, parece prudente reservar a categoria de pessoa
à descrição da morfologia pronominal e verbal, ao menos nas línguas em que elas estão associadas a essas
partes do discurso”. Continua o semioticista: “[...] há outra razão que desautoriza essa projeção: a enunciação é
um conceito que tem caráter universal, enquanto a pessoa é uma formação cultural [...]. Não é preciso ir longe
para encontrar um grande número de textos poéticos em que o centro de referência é um Tu obtido o por
debreagem a partir do Ego, mas, ao contrário, por embreagem a partir de um mundo impessoal. [...] Tudo
depende, de fato, da maneira pela qual as relações constitutivas da categoria da pessoa são manifestadas. [...]
Na verdade, a noção de subjetividade’ remete à distinção entre os diversos actantes transformacionais
(sujeito/objeto/destinador/destinatário), enquanto a estrutura actancial da instância de discurso é somente
posicional”.
58
um duplo paranoico, possibilitará investigar o trágico do lugar em que se colocam as vozes,
isto é, dos atores com relação à instância de discurso, situados em lugares metadiscursivos.
4.2.3 Dialética das três vozes
A abordagem da semiótica do discurso de Fontanille (2007), sob o prisma da
enunciação na sua atividade metadiscursiva de caráter transpessoal e posicional, unida à
concepção de Lacan (1988) acerca da existência de vozes persecutórias no delírio encenadas
numa estrutura teatral, servirá, pressupõe-se, de instrumento para penetrar-se na práxis
enunciativa de Hilst com vistas à análise do trágico.
Considera-se a dialética das vozes simuladas no delírio em três posições diferentes.
No primeiro caso, têm-se a voz do fantoche e a estrutura de testemunho: no delírio, alguém
fala por trás no registro do Real. A voz do outro fala sobre o que lhe falou. No discurso de
Hilst, essa voz é simulada e proferida por um ator de saber insabido, por meio de indagações
sobre o lugar do ser, apontando para questionamentos semelhantes ao do vetor do trágico,
conforme C. Rosset (1989).
No segundo caso, têm-se a voz do outro e a estrutura de alusão: no delírio, o eu fala,
no registro Imaginário, por meio do outro, tentando apreender a terceira voz. O outro,
encontrado além do eu, intromete-se e aparece de forma invertida, no Real. Considerando-
se o discurso simulado de Hilst, pretende-se capturar esse lugar do outro, estruturado por
alusão, para evidenciar-se, em contraponto às buscas do saber insabido, o espaço do saber
trágico, segundo C. Rosset (1989).
No terceiro caso, têm-se a voz do TU e a estrutura de delegação: a metáfora
delirante construída entre o Real e o Imaginário só pode sustentar-se quando funciona como
uma metáfora pseudo-paterna, relacionada ao Simbólico (o Outro). Propõe-se, no discurso
de Hilst, a hipótese da ocorrência de uma terceira voz que dá credibilidade às vozes do duplo
paranoico. Essa voz pode ser atribuída a um sujeito da enunciação e percebida graças a uma
deiscência do tipo metassemiótico
11
, ou seja, por uma espécie de um saber de controle, que
11
Fontanille (2007, p.260-1) afirma: “Tanto para o enunciatário como para o enunciador, não se trata mais de
fazer circular mensagens, mas de situar-se em relação aos discursos para construir sua significação. [...] Do
59
manipula o discurso e, simuladamente, delega a práxis enunciativa a outras vozes,
representadas pelo duplo paranoico. Nesse lugar, a atividade enunciativa reflete a si própria,
visando a orientar, no aparente caos do discurso, as operações que o sentido à produção
do enunciado.
4.2.4 Pertinência das vozes
Com o intuito de demonstrar a pertinência dos lugares para a análise da práxis
enunciativa de Hilst e de evidenciar a possibilidade de tratar do trágico pela dialética das
vozes, serão utilizados, nesta seção, alguns exemplos de simulação do delírio. Para isso,
destaca-se o capítulo “A geometria da desordem” de C. Machado (1993), que servirá de
apoio para explicitar-se essa dialética. De Fluxo (in:Fluxo-floema, 2003), a primeira narrativa
de Hilst, publicada na primeira edição em 1970, uma espécie de escritura-delirante-semente,
matriz de outras desse teor, extrai-se o seguinte fragmento:
Toma as minhas mãos ainda quentes, galopa no meu dorso, tu que me lês,
galopa, não é sempre que vais ver alguém que é um, feito de três, assim à
tua frente, não é sempre que vais ver alguém contando trifling things com
tanta mestria e com maior gozo, trifling things pensas tu porque vês Ruiska
todo de folhas friskas, porque Ruisis assim, isis, infinitas arestas, porque
vês a mim como adãoeva, dúplice sim, tríplice sim, multifário, multífido,
multífluo, multiciente, multívio, multíssono, sim, principalmente
multíssono, goi goi chin chin roseiral mirim, e podes me chamar de
Verissimus porque há em mim uma avalanche de verdade, todo um vir a
ser inusitado, [...] e entro na memória, escalo rochedos, vou de lâmina em
lâmina ferindo os pés e depois as mãos e depois o peito e a cabeça, a
cabeça é um grande ovo liquefeito e a gosma escorre na pedra, na terra, na
lâmina mais aguda do rochedo, na. (Fluxo, p.52-3)
Esse fragmento de um delírio simulado apresenta-se em três posições enunciativas
com relação à instância de discurso. A voz de um saber de controle manipula “ações”
ponto de vista da produção, o ‘sujeito’ se expressa exibindo as modalidades de sua posição em relação ao
enunciado [...] o que se atualiza na modalização, por exemplo, não é a subjetividade, mas uma atividade
enunciativa: graças a uma deiscência do tipo metassemiótico, o discurso reflete-se a si próprio e propõe uma
representação das condições e das operações que dirigem a produção do enunciado. [...] a subjetividade deve
ser buscada na maneira pela qual a instância de discurso assume essa reflexividade, e não na própria
reflexividade”.
60
imaginárias exercidas não efetivamente por um ator do enunciado, mas por um ator da
enunciação que busca situar as operações do discurso no nível do enunciado "Toma as
minhas mãos ainda quentes, galopa no meu dorso, tu que me lês [...] pensas tu [...] porque
vês [...]”. Tal simulação identifica-se como uma voz proferida por um sujeito da enunciação
que se faz presente no enunciado, e que não passa de uma encenação de subjetividade
numa dialética de vozes, situadas num campo transpessoal, as quais indicam os diversos
lugares metadiscursivos. Trata-se da voz correspondente ao TU, que determina e delega a
enunciação ao duplo paranóico, cujas vozes aparecem em outros lugares de maneira
simultânea, visto ser simultâneo o tempo na fala delirante. Por isso, os lugares de onde
surgem as vozes estão constantemente misturados: um sujeito fala com seu eu, assumido
instrumentalmente, passando de sujeito a objeto da fala em que alguma coisa toma forma
de palavra que fala, à beira da função simbólica ausente.
A voz do ator de saber insabido também marca seu lugar nessa práxis enunciativa,
articulada do lugar do fantoche a voz do outro fala sobre o que lhe falou. Caracteriza-se
por uma linguagem aparentemente delirante que, numa associação fonemática, articula
significantes e cadeias metonímicas com uma significância que transcende os significantes,
simulando uma fala pressionada pela função do Simbólico ausente que lhe daria um sentido
convencional:
alguém que é um, feito de três [...] Ruiska todo de folhas friskas, porque vê
Ruisis assim, isis, infinitas arestas, porque vês a mim como adãoeva, dúplice
sim, tríplice sim, multifário, multífido, multífluo, multiciente, multívio,
multíssono, [...] goi goi chin chin roseiral mirim [...] (Fluxo, p. 52)
A voz do ator de saber trágico manifesta-se na simulação da metáfora delirante; o
lugar do eu é invadido pelo discurso do outro que se sobrepõe a sua fala, expondo a
consciência do trágico:
entro na memória, escalo rochedos, vou de lâmina em lâmina ferindo os
pés e depois as mãos e depois o peito e a cabeça, a cabeça é um grande ovo
liquefeito e a gosma escorre na pedra, na terra, na lâmina mais aguda do
rochedo, na. (Fluxo, p. 53)
O lugar do ator de saber trágico coexiste com o “eu”, do ator de saber insabido,
desgarrado na perdição dos sentidos. O saber insabido voz ao saber trágico, mistura os
61
lugares no discurso e tira partido de uma ambiguidade metafórica que deixa entrever
questões sobre a condição existencial. A “metáfora delirante”, manipulada do lugar
metadiscursivo, interfere na ambiguidade do discurso e funciona como uma letra que se
descola do discurso e permite capturar significantes do trágico. Isto pode ser atestado
“literalmente” no “inter-dito” pelo significante do saber insabido: “podes me chamar de
Verissimus porque em mim uma avalanche de verdade, todo um vir a ser inusitado.”
(
Fluxo,
p.52)
4.2.5 Circularidade das vozes
A obra em prosa de Hilst, segundo C. Machado (1993), pode ser considerada como
um único delírio que se desdobra e se repete de forma circular, aparentemente libertado
dos nexos do discurso, cuja linguagem é autoreferencial, uma vez que no delírio o sujeito “se
fala” por meio de vozes situadas em diversos lugares. O lugar metadiscursivo é parte
estrutural do delírio, possível de ser atestado em qualquer trecho que se extraia da escritura
delirante. Portanto, todos os trechos são reveladores do eterno retorno das mesmas vozes,
proferidas numa circularidade caleidoscópica. Isso justifica a escolha dessa investigação pelo
caminho da semiótica do discurso, da práxis enunciativa, considerada do âmbito das
posições ocupadas pelas vozes.
O saber de controle se sobrepõe a outras vozes e serve de ssola para penetrar-se
mais profundamente nos labirintos do discurso, metaforicamente indicados. Alguns
significantes manipulados como letras, lidos no “inter-dito”, deixam entrever uma
significância especial na metáfora delirante. A insistência na geometria do círculo, que se
repete no cavar um vazio, um oco, marca lugares de busca, imagens, relacionadas ao trágico,
as quais se “descolam” do texto e remetem à falência de sentido. Essas metáforas delirantes
simulam a lógica do significante, organizada numa estrutura circular de eterno retorno,
como se identifica neste exemplo de O oco (in Kadosh, 2002):
62
Estou contornando o círculo, com lentidão, se eu pudesse colocar um apoio
no centro, esticar muito bem o barbante e grudar-me à extremidade do
barbante,[...] continuo contornando o círculo. (O oco, p. 144)
Posso fazer um círculo na areia, uso meu dedo, e cavo cavo dentro do
círculo. [...] Sei que cavando vou encontrar. Sempre quis encontrar mas não
cavava. Ainda agora não cavo. É difícil começar. (O oco, p.156)
Em Com os meus olhos de o (2006), tem-se a retomada de lugares numa
simultaneidade de vozes: imagem do eu aprisionado no "círculo" do outro, em que o
"barbante" (metáfora do cordão que une mãe e filho na ausência de castração) estabelece
uma dialética entre o espaço da busca paranoica desde o lugar de um ator de saber insabido
e o dos vestígios de um saber trágico do outro, refletido no espelho, “maquinicamente”
sobreposto pela voz do sujeito da enunciação, num saber de controle:
A loucura da busca essa feita de círculos concêntricos e nunca chegando ao
centro, a ilusão encarnada ofuscante de encontrar e compreender. (Com os
meus olhos de cão, p. 50)
Estou no fundo, mas semeio como se estivesse fora. [...] Perguntas são nós
de um extenso barbante inconclusivo. (Com os meus olhos de cão, p.64)
Há sangue respingando as paredes do círculo. (Com os meus olhos de
cão,p.65)
As vozes fundem-se e confundem-se, podendo ser percebidas pela cadeia de
significantes: “perguntas, nós, barbante, círculos, centro, ilusão, ofuscante, fundo, como se”,
metáforas redundantes da busca de um eu desdobrado nas vozes, fadado à errância, ao
inconclusivo, ao nunca chegar ao centro, sinal da “ilusão ofuscante” do trágico, em não
compreender o que não pode ser compreendido, falência na significação, portanto. O saber
de controle do sujeito da enunciação sobrepõe-se às outras vozes ao traçar o “caminho
circular” como rota a seguir no labirinto do discurso. Por isso, é fundamental seguir-se o
caminho da “letra”, para capturar a práxis enunciativa por esse vetor multifacetado e
multissonante que espelha questionamentos relativos a ideologias e a filosofias, recursos
ilusórios para preencher-se o vazio do simbólico, metáfora do trágico na denúncia do vazio
das crenças: Não sei por que vos dou tantos dados. Afinal! O melhor é cada um descobrir
por si mesmo” (O Oco, in Kadosh, 2002, p.172).
O caminho para o vazio o “oco” (dentro, fora, alto, baixo) é retomado em outras
geometrias tais como: caleidoscópio, teia, labirinto, caracol, roda, fios, artesanatos de
palavras em busca do entendimento, típico da montagem do delírio paranoico. Em O oco (in
63
Kadosh, 2002), pode-se atestar a metadiscursividade de uma geometria do “perseguidor” na
qual a função do significante é nada significar, ao mesmo tempo em que é capaz de
significâncias diversas:
Se o oco não me circundasse, a estória, esta também seria outra [...]
Perdoai-me o vazio, as contradições do nada. Também o verme se contrai,
cortai-o em pedaços, cada pedaço vive, um dia estertora é certo. Enchei-vos
de paciência. Aos poucos a coisa chega ao fim. O caleidoscópio gira e se
espio nem sei do que se trata. Algures estará o espírito. Move-se ubíquo.
Move-se múltiplo [...] estou aqui acolá muito perto muito longe dentro.
Fora também. Enfim nada é fácil, creia-me até o oco tem seus mistérios.
Deve ter um centro oco naturalmente, e com vagar vou convergindo.
Círculo, roda de carroça, raios [...] cada vez mais perto do centro oco.
Depois mergulho no oco infinito. [...] se parece a uma teia, não esperai, a
um caracol. (O oco, p.184)
Em A obscena Senhora D (2005, p.71), o retorno de imagens semelhantes sobre
“as contradições do nada”: “Caminho com pés inchados, Édipo-mulher, e encontro o quê?
Memórias, velhice, tateio nadas [...]”. Pode-se entrever, nesse discurso, uma metáfora da
teoria do significante no delírio “tateio nadas”: a “teia”, capturada no anagrama da letra,
expõe sua construção no emaranhado simultâneo de registros em busca de uma ilusão para
preencher o vazio existencial.
O recurso ao registro mitológico, incorporado no exemplo anterior, aparece em
outras narrativas, utilizando-se da letra como significante para reafirmar o caráter
metaenunciativo, norteador da intrincada escritura delirante. Em O oco (in “Kadosh”, 2002,
p. 196) aponta-se uma nova imagem: “Parti-me. Sou artesão. Às vezes penso se não sou
Cadmo também. Cadmo e suas variações. Fui artesão e inventei o alfabeto. Isso me convém.
Não é verdade que construo a palavra e mando recados gaguejantes?” (grifos
acrescentados
12
). São numerosos os exemplos em Hilst, mas somente percebidos no
deslindar das repetições, em forma circular, caleidoscópica, num eterno retorno da
linguagem aos mesmos lugares do significante, opacidade do “nada”, do “sem sentido” que,
ao mesmo tempo, permite inúmeras significâncias. No texto O oco (in Kadosh, 2002, p.198),
a voz delirante acrescenta: “Quero me elucidar e unir elementos contrastantes. Se soubesse
como fazê-lo o teria feito.” Em Fluxo (in Fluxo-floema, 2003, p. 38,), a voz afirma, como se
tecesse uma teoria da fala delirante, num jogo entre significantes e significâncias: “Por favor,
12
Será utilizada a abreviação gs.a., para substituir “grifos acrescentados”.
64
tudo isso tem sentido, tem sentido tudo o que aparentemente não tem sentido, e tem
sentido também tudo o que realmente não tem sentido. Ah, eu queria ter sentido”. Em O
oco (in Kadosh, 2002, p.180): “Devo ouvir e falar ao mesmo tempo. Às voltas com discursos”.
outros vestígios de tensão das vozes, numa instância de discursos concorrentes,
em múltiplos espelhos:
O fio me conduzindo ou eu mesmo Ariana? Nunca tive a chave, ah, isso não,
busquei isso sim. Então sou eu que estou entrando e ela do lado de fora me
guiando? As rimas de repente. Paupérrimas. É que o som se fecha aqui por
dentro, paralelas e curvas, talvez o labirinto não seja a construção ideal,
procura volutas contorsões, tudo é segredo, olho para cima, devo puxar o
fio estendê-lo ao máximo, viro para a direita, para a esquerda, espaços
vazios, não um objeto, nenhum prego como ponto de referência [...]
(O oco, in Kadosh, 2002, p.151)
A insistência na geometria de discursos concorrentes, pelo controle do sujeito da
enunciação, usada como dêixis para marcar o caminho da busca do paranoico pelo sentido
sempre falhado, “cego”, “tateando nadas”, persegue os “segredos” ou os mistérios do ser,
traçando questões do ator de saber insabido em tensão com a lucidez do ator de saber
trágico. Assim, o discurso é manipulado simultaneamente a partir dos três lugares
metadiscursivos, confundindo a percepção dos registros que oscilam entre o delírio e a
significância do trágico, construído na simulação de uma metáfora delirante: “Vou indo aos
saltos. Melhor, como na gangorra, lentamente, prá prá para cima para baixo ainda não
sei, mas os dados são numerosos, a partir de agora um homem atento pode tecer uma
bela teia [...]” (O oco, in Kadosh, 2002, p. 145, gs.a.).
Em Com os meus olhos de cão (2006, p. 47) retornam os mesmos “recados
gaguejantes”, traços de percurso de busca de sentido: “Conhecimento. Bêbado vou indo.
Alguém descobrirá em parte o meu trajeto se aplicar aquela Lei da Desordem”. Ou em O oco
(in Kadosh, 2002, p. 160): “Fugi, pois amigos, vós que me ledes, a boca entupida de
asteriscos. [...] Devem ter notado que me fragmento, que interrompo a linha melódica e
sopro num trombone assim sem mais nem menos”. A mistura de significâncias entre corpo e
palavra atesta o lugar da fala paranoica: “Ai ai, a nudez das palavras. Despojá-las de tudo. De
ambiguidades. A minha própria nudez” (O oco, in Kadosh, 2002, p. 185).
As recorrências do trágico na metáfora delirante podem ser observadas na
repetição das mesmas significâncias em outros exemplos. Em Com os meus olhos de cão
65
(2006, p.23): “Afinal tudo deixa um certo rasto. Na morte ossos, depois cinzas. Vestígios na
urna [...] agora pertenço ao mundo dos mudos, os dedos agitando-se em ansiosos sinais e a
garganta ancha de vazios; “Linguaraz imobilizado. Aqui mesmo discurso” (Com os meus olhos
de cão, p.48). Em Floema (in “Fluxo-floema”, 2003, p. 225 gs.a.): Koyo, emudeci. Vestíbulo
do nada. [...] o que eu digo é impreciso, não é, não anotes, tudo está para dizer, e se eu digo
emudeci nada do que eu digo estou dizendo”.
Na confluência dos delírios, é inegável o retorno, “o desdobramento e a somação”
das mesmas significâncias repetidas em novas formas de significantes. Na instância de
tensões do discurso é possível perceber “as diferentes lógicas”, construídas por um jogo
insidioso que descola sentidos do “campo de presença, na sua predicação existencial” e pelo
“campo assuntivo” atinge a dimensão retórica representada por topoi que se articulam “às
potencialidades” do trágico, colado na letra do delírio pela arte da manipulação da
“predicação” delegada ao duplo paranoico pelo sujeito da instância de discurso; isso, para
incorporar as terminologias de Fontanille (2007), já explicitadas. Se nada do que o delírio diz
está dizendo, é preciso caminhar "cego" nas "dessignificações" da palavra, num
despedaçamento do corpo-linguagem, espelhando-se na voz de A obscena Senhora D (2005):
Vi-me afastada do centro de alguma coisa que não sei dar nome, nem
porisso irei à sacristia, teófaga incestuosa, isso não, eu Hillé também
chamada por Ehud A Senhora D, eu Nada, eu Nome de Ninguém, eu à
procura da luz numa cegueira silenciosa, sessenta anos à procura do
sentido das coisas. (A obscena senhora D, p.17)
compreender o quê, Ehud?
nomeia as ilusões, afasta-te da vertigem
hen?
loucura é o nome da tua busca, esfacelamento,
cisão.
derrelição. (A obscena senhora D,p.56)
É preciso, pois, seguir a simulação da letra delirante no discurso para apreender seus
hieróglifos que ressoam em "logogrifos", ler seus “recados gaguejantes”, na tensão entre as
“luminâncias” e a “mudez” das vozes, “descavando gritos” do trágico. Em Com meus olhos
de cão (2006), lê-se:
Dessignificando
Vou derretendo os compassos
66
Que criei
Círculos
que a minha volta desenhei (
Com meus olhos de cão
, p.41-42)
Dessignificando
Vou descavando gritos [...] (
Com meus olhos de cão
, p.54)
Em suma, as articulações do discurso de Hilst, apresentadas em seus contornos
iniciais, justificam a escolha da semiótica do discurso, no âmbito do estudo da práxis
enunciativa da escritora, pelo vetor da simulação de um delírio. Tal escolha privilegia o
enfoque da instância de discurso que delega a predicação do discurso a outras vozes,
representadas pelo duplo paranoico. Importará, desse modo, pesquisar o trágico, partindo-
se dos lugares de onde se constrói a atividade enunciativa, cujo fim é interrogar a noção de
ser, que permitirá capturar outras significâncias do ponto de vista da letra que extrapola o
campo de presença e remete às potencialidades do trágico, entre as questões do ser
delirante e as questões do trágico sobre a condição humana, caracterizadas pela mesma
lógica: todas as crenças são ilusórias.
CAPÍTULO 5
O PROJETO: TRÁGICO E ACASO
A narrativa O projeto faz parte da obra Pequenos discursos e um grande, de 1977,
reeditada em 2003 no livro Rútilos. Pela própria denominação da obra, trata-se de um
“pequeno discurso”, com procedimentos sintáticos mais ordenados em relação a outras
narrativas, pertinente para servir de contraponto a outras mais complexas, nas quais a
intensidade e a extensão marcam-se por aspectos identificadores da simulação de uma
escritura delirante.
67
Essas características justificam a escolha de O projeto, transcrito abaixo, para uma
análise mais detalhada, conforme os fundamentos da semiótica do discurso, selecionados no
capítulo 2, no nível da asserção e da assunção dos enunciados. A amostragem desses
mecanismos servirá para explicitar-se a práxis enunciativa de Hilst, apreender seu discurso
pela instância da enunciação marcado pela intensidade e pelo desdobramento na extensão,
a fim de evidenciar a potencialidade do universo trágico.
O projeto
HAMAT, EU HIRAM, quero construir a casa. Dentro de mim, sagrado descontentamento. Tu és minha
mulher e o teu olho traduz desejo de eloquência. Sei que posso falar a noite inteira e esvaziar teus
eternos conceitos, sei tudo o que tu és, veludosa e decente, redondez, faminta do meu gesto, sei,
Hamat, que vais dizer que se mudo de casa mudo de natureza, e que é inútil querer o real do meu
espaço de dentro, sei que vais dizer que eu, homem político, devo permanecer junto aos homens,
abrir e fechar constantemente as mandíbulas, sei quase tudo de ti, de mim sei nada, sei muito dessa
pallha que se chama aparência, sei nada dessa esquiva coisa entranhada no meu ser de dentro.
Hamat: a memória e seus ossos, a torpe lucidez, minha viagem através dos retratos, eu e meu rei
trocando segredos, ressonando espaço-viuvez, e a cólera de saber que tudo me possui e ao mesmo
tempo nada, que nada em mim é permanência, e tudo é permanência, vínculo, tudo se adere ao
círculo, tudo é a mesma linha que se estende, tudo é tangente, tudo está colado a mim. Da mãe e do
pai guardo minúcias, de ti, minha mãe, um amarelo-claro enrolado ao pescoço e descendo
desmaiado pelo dorso, olho-água distorcendo a visão das hortênsias, o dourado dos cogumelos, os
caramelos importados, e tu, meu pai, tua altura, magreza, teu olho duro, teu círculo de ouro,
distanciamento e secura, teus papéis, teus livros, teu tesouro ser assim que ninguém me perceba,
não estou em casa, diga, Hiram, que desde ontem sumi e ainda não me achei, frivolidade e fadiga
desta casa, tua mãe, Hiram, esse perfume-injúria pelas salas, senta aqui meu filho, que a tua relação
com as mulheres seja breve, confidente de ti mesmo não mistures as meas com teu todo austero,
poupa a palavra, fecha a boca com as fêmeas, vai metendo, fêmeas e loucos se for preciso escolher
não vacila, escolhe os dementados, escolhe um homem quando te der a bambeza nas pernas, medo
covardia nojo de existir, o choro que é do homem, porque a mulher não chora, Hiram, a mulher
esfarela, e vai se abrindo se o homem emudece e se fecha, meu filho, se tu tagarelas Perdoa,
Hamat, quando falo dos meus, essa agressão de mim Gostaria de ter nova síntese para todos os
dados anteriores, gostaria de te dizer do secreto das palavras, um vir-a-conhecer sem o lustro de
agora, que eu dissesse, Hamat, Política Poder, e tu dissesses assim: isso quer dizer vida, e o melhor
de ti mesmo no outro, não é isso, Hiram, Política Poder? E eu dissesse sim, é verdade.
Queria muito sorrir para alegrar teu momento, e mostrar meus dentes, morder teu peito, mistura
Hiram-Sade, te fazer sangrar de gozo, de desgosto, te dar outra vez mil vezes minha magnificente
dureza, ser lânguido e barroco, arabescos em cima do teu corpo, queria muito, Hamat, mas sou todo
impotência na minha rombuda cabeça aqui de baixo, porque mais volúpia em pensar na esquiva
coisa do meu ser de dentro, que me estender ao teu lado, ordenar-me, dizer que à noite sou teu é
mentira, meu tecido escondido, umbroso, meu ídolo sem nome, minha pergunta sem resposta em
nenhum livro, e tua boca muitíssimo dulçorosa, meu ciclo de vida, de poesia, plantado em tua boca,
envenenado, húmus de outra boca é o que se faz preciso, Hiram, não é de ninguém, nem de seu
povo, nem de sua língua que não diz a palavra. Hamat, a casa. Cresce, se faz continente, chega a ter
um espaço que não me pertence, não mais sabor nos triunfos, na construção de estradas, devo
deter-me, espiar o poço, dizer a mim: Hiram, não é verdade que nunca desceste?
68
Eu não sou teu, Hamat, porque antes de ti fez-se o sopro de Alguém sobre o meu corpo, e muitas
vezes pensei que nasci maduro e triste e perfeito para morrer porque as coisas em mim sabem do
seu destino adulto, as coisas em mim não são coisas-meninas, surgem na mão, prontas para serem
colhidas. É bom chamar Hakan, Herot, Hemin, e dizer-lhes que eu, Hiram, quero construir a casa.
Alicerce de pedra porque o chão é de areia, e matéria alvinitente para espelhar o grande sol de
dentro. É no deserto sim, Herot, e vais ter medo. Mas teu corpo que pode amar a Deus vai amar
todas as coisas, vento, areia sobre a tua cara, teu manto negro, a gordura que será preciso espalhar
pela carne, deves untar tudo, luzir oleosidade. E tu, Hakan, traz teu compasso, teu esquadro, teus
números, tua santa geometria. E tu, Hemin, meu filho, vais fazer parte de um tempo que não é o teu,
exercício imprudente, legado que pode te tornar idiota ou sábio. Meu corpo absorveu o mundo, a
cada manhã ele recria piedade e justeza, assimila e pranteia dores, e Herot em mim não me traz
alegria.
Herot: nem posso. Tocas a mulher, Hiram, e pensas no esgarçado do Tempo, tocas e não sentes a
carne de Hamat, o que vês é a tua própria mão, e contas os teus dedos, elaboras matemática e
poesia, são cinco, e cinco os sentidos, e dez os dedos das mãos e vinte todos os dedos, e dividido que
sou em três, cabeça tronco e membros, como posso ser um e dar de mim, se de tudo o que sou não
conheço o segredo? Para sentir a carne, Hiram, é preciso sorver o que se vê, ceifar o que se conhece,
arranca teu desejo de perenidade, de querer existir antes, desde sempre, e depois no infinito, pensa
que
Penso sim, que sou muito menos, Hamat, estendido ao teu lado, sou menos, vou te dizer porque:
devo esquecer tudo o que aprendi par te ver um corpo e me dizer — esta é Mulher, não Hamat, esta
é uma fêmea que não sabe de si mas que tem cheiro e gosto, e vai me dar seu gozo, e eu Hiram vou
ter o meu, e juntos somos apenas dois corpos, corpo de um que é o meu, corpo de outra o teu, e
assim devo te conhecer, sem formular perguntas, cindido, que eu não saiba que é tu Hamat, que eu
não me saiba Hiram, contorno nítido, singular juízo, inflamante e extenso diálogo político Hemin:
pai, não quero ir. Casa? Temos uma. E tu que tens teu povo, teu rei, como podes pensar em viagem e
deserto? Tudo isso é fantasia do pai. Ando pensando se não seria melhor conhecer a cada dia mais
teu outro. E outra coisa: o rei tem mais olhos para Hamat que para a verdade. Enquanto sonhas o
deserto, ele sonha teus linhos, tua mulher. Teu claro céu aberto é par o rei sombra e substância de
um quarto. Tu te imaginas ao sol. E ele se imagina na penumbra, com Hamat, a sós.
O rei, repressão, corpo. O rei, sepultura do povo. Cochicho em seus ouvidos: meu rei, não será para
sempre teu envoltório de gozo, um dia a garra do teu povo se alonga até a garganta e rasga a lâmina
metálica que tu colocaste. Fecundo e odioso pode ser o grito de quem jamais ouviu sua própria
palavra, experimenta, meu rei, repetir FACA FACA, mentalmente desenhá-la, FACA FACA e pensa
numa bota sobre a tua cara, FACA FACA, e a tua boca de sangue, e de repente ao teu alcance o
instrumento de aço. Não te tornarás inteiro fogo e agressor? FACA, meu rei, palavra que dirá teu
povo, com a mesma volúpia co que dizes amor. E com a mesma inflexão dos justos. Eu, Hiram, vou
construir a casa. Dentro de mim, sagrado descontentamento. (O projeto in Rútilos, p. 15-20)
O discurso nessa narrativa parece orientar-se por uma sintaxe do tipo fluxo da
consciência. Um parêntesis impõe-se para sinalizar-se uma distorção semiótica efetuada por
Hilst, no tocante à emergência de um novo padrão de fluxo da consciência, colocado não no
universo do neurótico, mas do psicótico, pela transformação da sintaxe reconhecível como
fluxo da consciência em uma que ordena os elementos simulando o acaso, pela
imprevisibilidade, e não pela associação livre, lógica especial para revelar os devaneios
comuns a uma mente paranoica. O ponto de partida é o mesmo, há o uso de mecanismos
69
semelhantes, porém com funções diversas. A técnica do fluxo da consciência orienta-se,
segundo
Humphrey (1976)
, predominantemente, pelos seguintes parâmetros:
a) ênfase na exploração dos níveis da consciência que antecedem a fala com a finalidade de
revelar o estado psíquico das personagens; representação do mundo natural com destaque
para a personalidade neurótica, entretanto desejosa de ter contato com aquilo que existe de
estável, no nível do significado;
b) escolha do mundo interior da atividade psíquica para ali dramatizar seus valores,
representar sua textura e destilar algum significado;
c) suspensão do conteúdo mental de acordo com as leis de associação psicológica;
d) captura da qualidade irracional e incoerente da consciência íntima não pronunciada para
comunicá-la ao enunciatário; procura de maneira realista para representação da
consciência, mas conservando suas características de intimidade: incoerência,
descontinuidade e implicações particulares;
e) técnicas de enunciação no nível do monólogo interior direto, indireto, descrição
onisciente e solilóquio;
f) representação de descontinuidade e condensação por figuras de retórica padronizadas;
sugestão de níveis de significado múltiplos e extremos por meio de imagens, metáforas e
símbolos; uso da mitologia como símbolo;
g) convenção de pontuação típica da apresentação de pensamentos e sentimentos que
aparecem não em cadeia, mas como um fluxo em rede labiríntica;
h) técnica de montagem semelhante à cinematográfica com função de representar
simultaneamente mais de um tempo ou objeto; técnica idealizada para projetar a dualidade
e o fluxo da vida mental;
i) a consciência dos níveis que antecedem a fala o tem um padrão definido, uma
consciência que, por sua própria natureza, independe da ação. O “enredo” deveria ficar em
segundo plano, mesmo assim seria preciso sobrepor certo padrão aos materiais caóticos da
consciência;
j) técnicas específicas a cada autor, por exemplo: a rede labiríntica, as palavras-valise, a
sátira, a ironia, o burlesco, a paródia, tendo como padrão o mítico, em Joyce; assim como a
anatomia psíquica de Virgínia Woolf está repleta de efeitos sensoriais, de sensibilidade
impressionista, pela cor, som e formas; os solilóquios chegam próximo à poesia.
70
Em Hilst, praticamente, encontram-se todos esses parâmetros, distorcidos pelo tipo
de práxis enunciativa simuladora de um delírio, cuja predicação da enunciação é delegada a
vozes, atribuídas a um ator paranoico, num discurso de caráter paralogístico que mistura as
referências entre lucidez e demência. Hilst usa a noção de paranoia na sua raiz, como
conhecimento paralelo. Este se descortina num saber trágico. Para chegar-se a esse tipo de
apreensão é preciso considerar a obra narrativa de Hilst como um todo, investigá-la em
profundidade, por ser dominante nela um discurso circular, num mecanismo de eterno
retorno na diferença.
A semiótica do discurso concerne ao campo que contém em si uma semiose em ato,
da qual se deve ocupar um analista. Ao ler um discurso, o analista deve elaborar a
significação. Para elaborá-la, necessita tomar posição em relação ao campo de discurso,
adotar um ponto de vista, desenvolver uma atividade perceptiva. Em O projeto,
elementos que sinalizam alguns parâmetros típicos da práxis enunciativa da escritora, no
âmbito do trágico, reiterados em outras narrativas que mais adiante serão analisadas. Esta
análise busca, por meio dos mecanismos da semiótica do discurso, explicitar caminhos que
permitam ampliar a percepção de certas sutilezas e singularidades da práxis enunciativa da
autora com relação ao universo do trágico.
5.1 O sujeito da enunciação e o duplo paranoico
Graças a uma deiscência de tipo metassemiótico, o discurso reflete-se a si próprio e
oferece uma representação das condições e das operações que dirigem a produção do
enunciado. Considera-se, no nível da predicação do discurso, em narrativas de Hilst
representativas do trágico, a posição de um sujeito da enunciação que engendra o discurso
de maneira paralogística em que há, simultaneamente, uma lógica que incide sobre a lucidez
e outra sobre a demência. Essa lógica “delirante” é controlada pelo sujeito da enunciação ao
delegar a predicação do discurso a um duplo paranoico (vozes de um eu-outro), a partir de
duas posições actanciais: a de um ator de saber insabido e a de um ator de saber trágico.
71
Essa postura é mais evidente em narrativas da autora em que a sintaxe surge
aparentemente caótica, numa escritura “delirante”. No entanto, em outras, como em O
Projeto, mesmo que a sintaxe seja mais ordenada, a instância de discurso mantém esse
procedimento de natureza paralogística.
A instância discursiva confere à práxis enunciativa o estatuto de ocorrência presente,
atual e específica. Designa o conjunto das operações, dos operadores e dos parâmetros que
controla o discurso. O ato fundamental dessa instância é o da tomada de posição, ou seja, o
da visada intencional. A função semiótica é o resultado da tomada de posição de um corpo
próprio, que determina, primeiramente, um domínio interoceptivo e outro exteroceptivo, e
depois a projeção desses dois domínios um sobre o outro pelo efeito da mediação
proprioceptiva.
A questão da articulação entre o sensível e o inteligível diz respeito à emergência da
significação a partir da experiência sensível. Essa conversão está presente no discurso em
ato. A intensidade que afeta a atenção e atua sobre ela tem relação com a visada
intencional, tomada de posição do corpo próprio. Essa visada orienta a atenção para uma
primeira variação, chamada intensiva, e leva a uma apreensão que relaciona essa primeira
variação a outra chamada extensiva, delimitando assim o domínio de pertinência que
articula as valências ao sistema de valores. Esse sistema pode ganhar corpo quando nele
surgem diferenças, condição para o inteligível. Ao enunciar, a instância de discurso enuncia
sua própria posição, a tomada de posição, dotada de uma presença que servirá de
orientação ao conjunto das outras operações.
Em O Projeto, a tomada de posição da instância de discurso é manipulada pelo
sujeito da enunciação, um saber de controle, que delega a voz a um ator da enunciação. Ao
enunciar, a instância de discurso enuncia sua própria posição: “Hamat, eu Hiram, quero
construir a casa. Dentro de mim, sagrado descontentamento” (p.15). A função semiótica,
resultado da tomada de posição desse sujeito da enunciação que delega a predicação do
discurso a uma voz, representada pelo antropônimo “Hiram”, sob a instância da enunciação,
é fundamentalmente aquilo que afeta, direciona a visada do discurso e vai interferir em
todos os outros atos de linguagem.
5.2 A construção da casa
72
A asserção: “Hamat, eu Hiram, quero construir a casa. Dentro de mim, sagrado
descontentamento” (p.15), ato de enunciação pelo qual o conteúdo de um enunciado
advém à presença, contém algumas dêixis. A enunciação assume a asserção: algo está
presente para aquele que enuncia; algo acontece em relação a ele, no campo de presença
em que ele é o ponto de referência; algo advém em relação à posição da instância de
discurso e afeta essa posição ou coage a reafirmá-la. Nessa perspectiva, considera-se uma
predicação existencial, pois o ato de enunciação situa o enunciado no campo de presença e
lhe atribui um modo de existência, um grau de presença.
Sendo assim, o sujeito da enunciação regula a forma do conteúdo, pelo contraste
entre a reiteração de valências “afetivas”, conotativas do espaço do “de dentro” e a valência
denotativa de “quero construir a casa”. Da tomada de posição, assumida pela voz do ator da
enunciação Hiram, depreendem-se, inicialmente, algumas direções com relação às
estratégias do sujeito da enunciação que podem ser deduzidas pela visada intencional:
“Hamat, eu Hiram, quero construir a casa. Dentro de mim, sagrado descontentamento”
(p.15). O discurso dirige-se a um interlocutário, Hamat, a seguir decodificado como sua
mulher: “Tu és minha mulher”. A voz do “eu” encontra-se em busca de algo, aparentemente
de um querer fazer: eu Hiram, quero construir a casa”. No entanto, esse enunciado recebe
o acréscimo de um elemento modificador do foco (construção da casa): “Dentro de mim,
(sagrado) descontentamento”.
Sob a ótica do estilo de categorizações, constata-se que o semema casa” funciona
como um agregado, termo de base neutro, numa dialética entre a generalização, na qual a
referência imediata aponta para “moradia” e a particularização, exercida pela dinâmica do
signo ao ser associado a elementos no campo de uma visada afetiva do “de dentro”; por
essa marca instaura-se uma pulsão que requer decodificação mais ampla, a ser articulada no
desdobramento do discurso, na sua extensão. Em suma, nesse enunciado inicial há, em
contraponto, duas orientações enunciativas: “quero construir a casa”, com ênfase num
querer fazer, que remeteria ao domínio da ação, em contraste com uma série de traços
comuns relacionados ao ator da enunciação Hiram: “eu” “dentro de mim (...)
descontentamento”.
73
Percebe-se ainda que algo afeta especialmente esse enunciado inicial e funciona
aparentemente como um elemento desencadeador, que não se encaixa no sentido reiterado
na visada, é o caso de “sagrado” (descontentamento) e, por isso, obriga a estabelecer uma
nova leitura. É impossível identificar de imediato no contexto a carga afetiva dessa palavra.
Nota-se que o semema “descontentamento”, pertencente à categoria do eu, ao aparecer
associado a “sagrado”, pressiona a busca de novas referências.
Essas primeiras pontuações caracterizam um percurso de semiose que privilegia na
tomada de posição a identificação da predicação existencial pela estratégia das categorias
no devir das figuras. Essas categorias, numa articulação entre visada e apreensão
esquematizada a partir de isotopias, permitirão distinguir valências que no decorrer das
articulações do discurso evidenciarão os valores buscados em relação ao universo do trágico.
Ao selecionar-se o estilo de categorizações na narrativa O Projeto, dirige-se a
percepção ao mesmo tempo para estabelecerem-se as primeiras articulações sintáticas do
discurso. Segundo a postura teórica de Fontanille (2007), as categorizações se tornam
estratégia no interior da atividade do discurso. Parte-se de visadas e apreensões, de marcas
da instância de discurso no campo de presença, de onde se estabelecem as primeiras
configurações do campo esquemático na decodificação de um esquema tensivo,
caracterizado por diferenças, que permitirão estabelecer no âmbito da proprioceptividade,
da tomada de posição do corpo próprio, a sua correlação com os outros dois domínios do
discurso: o da interoceptividade e o da exteroceptividade.
Os estilos de categorização podem ser estabelecidos quando se coloca a formação
dos sistemas de valor sob as modulações da presença perceptiva e sensível, quando se leva
em conta o controle que a percepção exerce sobre a significação. Essa categorização
determina simultaneamente o valor em duas dimensões: de um lado, pela posição num
conjunto de relações; de outro, pela diferença no devir desse sistema limitado entre a
“categorização” e a “generalização”, conforme o nível de especificação.
5.3 Lógica tensiva: saber tudo e saber nada
74
A estrutura tensiva apresenta-se como um modelo de engendramento dos valores
discursivos no espaço interno da correlação a partir de valências perceptivas e graduais que
constituem esse espaço de controle. Portanto, ela relaciona o sensível e o inteligível na
medida em que as valências de controle do tipo gradual, tensivo e perceptivo
determinam as diversas posições categoriais (ou valores) do espaço interno.
Considerando-se a posição num conjunto de relações, há quatro tipos de
categorização: agregado, fila, série, família; e considerando-se a diferença no devir do
sistema, uma estrutura tensiva num esquema elementar de tensão que pode ser
classificado alternativamente como ascendente, descendente, por amplificação, por
atenuação, quanto à captação de valores isolados. Esses valores agregam-se a outro nível de
valências e valores determinados pelos esquemas tensivos capturados em graus de
profundidade que sinalizam a correlação de forças direta ou inversa de intensidade
(interoceptivo) e de extensão (exteroceptivo) sob o paradigma forte/fraca. Essas forças
dizem respeito às diferentes posições que levam à correlação de valores no âmbito do
discurso. No presente esquema, essas posturas teóricas serão articuladas entre si e serão
demonstradas de forma integrada na análise de O Projeto. Para evitar a repetição de
enunciados na amostragem do texto, eles estarão relacionados ao mesmo tempo a diversos
níveis de articulação semiótica.
A estratégia de agregado, termo de base neutro, no devir do sistema, é limitada ao
movimento entre “particularização” e generalização”, conforme o nível de especificação do
termo de base. O valor, portanto, será avaliado em termos de especificação. No caso da
narrativa O Projeto, está concentrado em torno da figura “casa”, cujo grau de aparecimento
no discurso apresenta intensidade e extensão fracas: quanto menos a visada é intensa,
menos a extensão é extensa. No devir do discurso, repete-se, numa variação descendente, o
enunciado inicial “quero construir a casa”. A partir da tomada de posição, sofre uma
diminuição de intensidade, porque seu sentido se agrega a outros elementos estranhos à
primeira visada.
Na sua extensão, esse mesmo enunciado, ao reiterar-se no final da narrativa, produz
um relaxamento cognitivo por repetir a mesma postura, mantendo os mesmos sememas: no
tocante a “construir a casa” (p. 20). Nessa repetição, porém, instaura-se uma diferença, a
verificar-se não por outros desdobramentos no discurso, mas também pela mudança de
verbo no tocante ao enunciado inicial, ao comutar o verbo de “quero” para “vou”. Essa
75
mudança instaura uma ambiguidade quanto ao sentido de “casa”, pontua uma sintaxe
circular e pressiona um retorno ao início do discurso para revisar suas significações. No
desdobramento sintático, no nível do esquema tensivo, o semema “casa” estende-se a
outras valências e valores, por isso, será identificada também em outra categoria a analisar-
se mais adiante.
Na estratégia da fila, o devir do sistema é avaliado em termos de representatividade
por meio do melhor exemplar, melhor amostra. Aparece no conjunto seguinte à tomada de
posição. Após enunciar o “descontentamento”, o ator da enunciação Hiram passa a
desdobrar em sua mente essa ideia, conforme uma isotopia de saber/não saber, enunciados
do tipo: “sei...” isso ou aquilo, “não sei” isso, mas “sei” aquilo. No presente caso, surge num
contexto reiterativo, anafórico, de maneira acumulativa e antitética, permitindo selecionar-
se no devir desse conjunto a melhor amostra, avaliada em termos de representatividade,
conforme demonstração, organizada destacando-se a sintaxe anafórica (em negrito) e a
antitética (sublinhada) a seguir:
Sei que posso falar a noite inteira e esvaziar teus eternos conceitos,
sei tudo o que tu és, veludosa e decente, redondez, faminta do meu
gesto,
sei, Hamat, que vais dizer
que se mudo de casa mudo de natureza,
e que é inútil querer o real do meu espaço de dentro,
sei que vais dizer que eu, homem político, devo permanecer junto
aos homens,
abrir e fechar constantemente as mandíbulas,
sei quase tudo de ti,
de mim sei nada,
sei muito dessa palha que se chama aparência,
sei nada dessa esquiva coisa entranhada no meu ser de dentro. (p.15)
Considerando a “fila” de anáforas sob a instância de “sei” que marca a posição do
ator da enunciação, pode-se reduzir essa distribuição anafórica de enunciados sob o
classema “saber”. Este é atualizado por vários enunciados que se distribuem no conjunto e o
complementam. O modo atualizado é o das formas que advêm no discurso e das condições
para elas advirem. Essa fila de “saberes” abre outro estatuto a ser considerado ao lado das
categorias, que se integra a ela por meio da estrutura tensiva, para marcar uma diferença no
devir do sistema. O objetivo é extrair valências afetivas e cognitivas no devir das figuras,
procurando caracterizar sua dinâmica e dialética. Inicialmente, é necessário selecionar,
76
como amostragem, alguns modos de existência presentes no enunciado exposto, deitizado
por sememas que permitirão evidenciar algumas tensões existenciais nesse conjunto citado.
Segundo Fontanille (2007), os modos de existência compreendem: o virtualizado, o
atualizado, o potencializado e o realizado. Em um mesmo discurso coabitam grandezas de
estatutos diferentes que derivam de modos de existência também diferentes. Estes
convertem a copresença numa espessura discursiva e projetam articulações modais sobre o
campo do discurso. Para que em um mesmo discurso coabitem grandezas de estatutos
diferentes, elas devem derivar de modos de existência igualmente diferentes: a copresença
discursiva não se reduz à coocorrência, deve-se levar em conta a forma tensiva pelas quais
essas grandezas coexistem.
Do ponto de vista da copresença de grandezas de estatutos diferentes, considera-se
o exemplo: “sei tudo o que tu és, veludosa e decente, redondez, faminta do meu gesto”.
Selecionando-se nesse enunciado a coocorrência de “veludosa e decente”, observa-se um
percurso ascendente que explora a tensão entre o modo virtual e o realizado na medida em
que “veludosa” se distingue pela sua manifestação de certo modo estranha” e estabelece
de imediato uma relação virtual com o semema “veludo”. Assim, “veludosa” explora a
tensão entre o virtual “veludo” e o realizado “veludosa”. O morfema “-os” remete ao
conteúdo que atualiza a qualidade do veludo”, referência à maciez; no entanto, no
momento em que é percebida a copresença de “veludosa” com “decente”, este ressignifica
o termo anterior, potencializando-o de maneira oposta com a “qualidade” de uma mulher
“sedutora e ardilosa, sensualmente”, realizando um novo sentido.
Em outro exemplo, pode-se selecionar o movimento inverso de copresença numa
coocorrência tensiva, é o caso de um percurso descendente que explora outra tensão e se
entre o modo realizado e o modo virtualizado, passando pelo potencializado. O modo
potencializado é próprio à dimensão retórica dos atos de discurso. Uma forma é considerada
potencializada quando sua difusão ou seu reconhecimento são tais que ela pode figurar
como topoi do discurso (tipo, lugar-comum ou motivo, disponíveis para outras convocações).
É um espaço categorizado, rede de diferenças, manipulação de estruturas tensivas e modos
de coexistência de enunciados. O modo potencializado, à medida que volta em direção ao
sistema, cristaliza formas usuais em estereótipos e alimenta a competência daquele que
enuncia, graças a produtos de usos mais típicos: “e que é inútil querer o real do meu espaço
de dentro, (...) sei que vais dizer que eu, homem político, devo permanecer junto aos
77
homens, (...) sei muito dessa palha que se chama aparência, sei nada dessa esquiva coisa
entranhada no meu ser de dentro” (gs.a.)
No modo realizado, aquele pelo qual a enunciação faz as formas do discurso se
encontrarem com uma realidade, do plano de expressão, do mundo natural, e do plano de
conteúdo, do mundo sensível, é possível selecionar alguns sememas colocados de maneira
coextensiva: espaço de dentro x homem político; coisa entranhada no meu ser de dentro x
palha que se chama aparência; sei nada x sei muito. A práxis enunciativa articula esse
discurso numa coocorrência tensiva de enunciados representativos de dois espaços na
instância de discurso.
De um lado, um espaço externo que compreende o modo virtualizado,
correspondente à voz da mulher (evocada pelo ator da enunciação) que refrata um
estereótipo ideológico (“homem político”, “palha”, “aparência”). Esses enunciados podem
ser ratificados por outros, no desdobramento: “um vir-a-conhecer sem o lustro de agora,
que eu dissesse, Hamat, Política Poder, e tu dissesses assim: isso quer dizer vida, e o melhor
de ti mesmo no outro, não é isso, Hiram, Política Poder? E eu dissesse sim, é verdade.”
(p.16,17) De outro, em contraponto e coocorrente, o espaço interno em que o sujeito
evidencia seu descontentamento por não saber nada sobre o mundo interior, ou seja, sobre
a metafísica do SER.
Dessa postura do ator da enunciação, pode-se inferir o que se configura como melhor
amostra desse conjunto (fila) por meio do enunciado: “de mim sei nada (...) sei nada dessa
esquiva coisa entranhada no meu ser de dentro (gs.a.). Depreende-se, portanto, a
experiência de perdição do ator de saber insabido que sem “ter consciência” anuncia com a
máxima “lucidez” o trágico da condição humana: para o paranoico, “o pior é afirmar a dor de
ser”. Esse pior, potencializado pela tensão entre o modo realizado e o virtualizado,
desdobra-se em saber trágico entendido como o pior é nada poder afirmar, visto que “tudo
é nada”. Evidencia-se nessa acepção uma das máximas do discurso trágico segundo Rosset
(1989), ratificada por outras afirmações: “sei muito dessa palha que se chama aparência, sei
nada dessa esquiva coisa entranhada no meu ser de dentro”.
A práxis enunciativa, portanto, administra a distribuição e a variação dos modos de
existência, os quais dizem respeito diretamente às relações entre o sistema e o discurso,
uma vez que o sistema é, por definição, virtual, enquanto o discurso visa à atualização. Em
termos de presença, envolvendo os aspectos espaciais e temporais, a práxis enunciativa
78
apreende o modo de existência das grandezas e dos enunciados que compõem o discurso
em seu estágio virtual, pois são entidades pertencentes a um sistema; atualiza-os, pois são
seres de linguagem e de discurso; realiza-os, pois são expressões; potencializa-os, pois são
produtos de uso.
O ato semiótico consiste, então, em realizar uma figura, em remeter outra figura ao
estado virtualizado e em colocá-las em interação de tal forma que, no momento da
interpretação, o enunciatário “vá e volte” de uma figura à outra. Como foi referido, o modo
realizado é justamente aquele pelo qual a enunciação faz as formas do discurso
encontrarem-se com uma realidade a realidade do plano de expressão, do mundo
natural, e do plano de conteúdo, do mundo sensível.
Na estrutura tensiva da presente narrativa, comparecem duas posições diferentes no
espaço interno entre os enunciados anafóricos em tensividade com os antitéticos. Pode-se
determinar nessa confluência um tipo de correlação inversa de forças que atuam no
discurso, nesse conjunto: ocorre uma intensidade forte, ao reafirmar de maneira
enumerativa, o quanto ele sabe, num desdobramento de extensão cognitiva fraca; ou seja,
quanto mais acúmulo de valências aparentemente cognitivas em torno de enunciados
ligados à instância de “saber”, menos ele consegue medi-las na extensão. Quanto mais se
estabelecem diferenças entre as valências afetivas distribuídas em graus antitéticos, menos
o ator de saber insabido as reconhece. Essa correlação de elementos arrasta consigo uma
série de valências afetivas, no espaço interno do discurso, identificadoras de traços comuns
à posição inicial do ator: “dentro de mim (...) descontentamento”; série a verificar-se.
O próximo conjunto complementa a ideia de perdição dos referentes ao ser
estruturado do ponto de vista do eixo de profundidade, por meio de uma sintaxe
semelhante à anterior, conservando a estrutura anafórica, mas intensificando-a pelo uso de
figuras de retórica do tipo da antimetábole e do paradoxo, numa extensão cognitiva fraca
pelo estatuto enumerativo de um mesmo conteúdo: “saber tudo e nada” na tentativa de
apreender a “esquiva coisa entranhada no meu ser de dentro”: “a cólera de saber que tudo
me possui e ao mesmo tempo nada, que nada em mim é permanência, e tudo é
permanência, vínculo, tudo se adere ao círculo, tudo é a mesma linha que se estende, tudo é
tangente, tudo está colado a mim” (p.16).
Assim, ao falar-se em intensidade e extensão, remete-se a outra dimensão sintática,
própria da predicação assuntiva, isto é, a outro tipo de articulação da presença,
79
complementar à predicação existencial (asserção). A assunção, uma perspectiva
complementar à da asserção, além de evidenciar os efeitos no próprio corpo do discurso, é
auto-referencial. Por ser auto-referencial, faz conhecer sua posição em relação ao que
advém ao seu campo. Trata-se da presença em relação ao outro, presença da instância de
discurso em relação àquilo que advém, presença em relação àquilo que surge no campo e
que não é ela mesma.
A dimensão da assunção articulada à dimensão do reconhecimento na comunidade
dos sujeitos concerne, portanto, a “sentimentos de existência” que lhe atribuem essas
variações de presença no discurso. A intensidade é a força de assunção da enunciação,
dimensão indispensável das tensões existenciais no discurso, obedece à lógica das forças,
mais ou menos intensas; a extensão, concerne à capacidade de desdobramento e de
declinação figurativa da enunciação, caracteriza-se por posições e quantidades.
Quanto à posição do enunciador, no devir das figuras, deve-se observar se esta é
feita por acumulação, por somação parcial ou global, por amostragem ou por eleição de
uma parte representativa do conjunto, por fixação ou por rotação, características decisivas
para poder dispor-se sobre a forma do conteúdo que ele assim apreende. Esta nos informa
até sobre a concepção do mundo que determina a escolha do ponto de vista. No caso dessa
narrativa, nos dois primeiros conjuntos, a posição do enunciador pela ocorrência reiterativa
de elementos da visada intencional caracteriza-se pela somação parcial que remete à
figurativização de Hiram no âmbito de aspectos indiciadores do “de dentro”, postura
adotada com maior complexidade em Fluxo (in: Fluxo-floema, 2003), a tratar-se mais
adiante.
Contudo, nessa somação parcial distingue-se a melhor amostra identificadora do ator
de saber insabido, parte representativa em torno da qual vão girar todos os outros
elementos no devir das figuras no tocante aos topoi do trágico: a visão metafísica, numa
lógica tensiva entre lucidez e demência, entre o “saber tudo e o saber nada”. A essa
característica “fundante” somam-se, no desdobramento do discurso, outros mecanismos
que serão apontados no decorrer da análise.
A estratégia da série surge quando, no devir do sistema, se averiguam traços comuns,
em graus de coerência, conforme seu número aumenta ou diminui. Ao evocar-se coerência
de um texto, visa-se ao número e às recorrências de traços partilhados e distribuídos. Nessa
narrativa, os traços partilhados com maior ocorrência competem à representação do ator
80
de saber insabido em meio a sua concepção de mundo. Esta é passível de ser captada na
forma do conteúdo de enunciados, por meio da seleção de valências do espaço interno do
discurso, no âmbito da categoria série, para relacionar-se ao plano de expressão do espaço
externo, com o intuito de apreenderem-se os valores potencializados pelo universo trágico.
5.4 A letra do universo trágico
A demonstração da estratégia da série, quanto ao estilo de categorização, será
articulada, do ponto de vista do devir das figuras no sistema do discurso, estabelecendo-se
uma correlação entre a assunção de valências da narrativa e a extensão dos valores do
espaço interno, articulados ao campo cultural, na semiosfera do trágico. Assim, as valências
serão selecionadas, tendo por parâmetro a interpretação e a caracterização de topoi,
marcadores do espaço do ator de saber insabido que refratam a “letra” do universo trágico.
São decorrentes de vozes “ouvidas”, ou associadas, na mente do ator de saber insabido que
engendra seu discurso numa enunciação ambígua, de caráter paralogístico entre a lucidez e
a demência.
A assunção da experiência de perdição, na perspectiva da diferença, no devir do
sistema, faz-se por meio de somação de intensidades fortes e pela fixação do mesmo
enunciado construído com caráter paralogístico “a cólera de saber que tudo me possui e
ao mesmo tempo nada” (p.16) — e nos desdobramentos, visto ser o valor cognitivo fraco, na
extensão, pela redundância e pela insistência no mesmo sentido.
Para observar a fixação nos desdobramentos, basta acompanhar suas posições e
quantidades pela indicação das páginas nos enunciados selecionados: sei, Hamat, que vais
dizer que se mudo de casa mudo de natureza, e que é inútil querer o real do meu espaço de
dentro, sei que vais dizer que eu, homem político (...)” (p.15); “a cólera de saber que tudo
me possui e ao mesmo tempo nada, que nada em mim é permanência, e tudo é
permanência, vínculo,” (p.16).
5.5 Hasard e a questão do ser
81
Com o objetivo de aprofundar a apreensão da concepção de mundo trágico,
decorrente da instância da enunciação com base na coerência dos traços em torno de
Hiram, ator de saber insabido, destaca-se o enunciado: “sei, Hamat, que vais dizer que se
mudo de casa mudo de natureza” (p. 15). A referência à natureza leva à observação de
Rosset (1989) de que a literatura muitas vezes é ideal para exposição do trágico. Essa
referência, portanto, leva em conta o espaço em que está inserida. Não se trata de
conceituar filosoficamente o mundo e sim de refratá-lo por meio do ficcional, portanto o
pertinente é ater-se à instância da enunciação e marcar valências indiciadoras do universo
trágico, abordado sob a ótica da lógica do pior. Faz parte do terrorismo da filosofia trágica
considerar que não existe natureza, pois, na verdade, essa filosofia está centrada no não-ser.
Conforme Rosset (1989), a palavra hasard, acaso em francês, carrega o sentido
encontrado até hoje: uma espécie de silêncio original do pensamento que recobre tudo o
que não é, ou seja, o que não tem causa. Para o pensamento trágico, esse conceito não deve
ser entendido no âmbito das outras acepções de acaso: sorte (fors), encontro (casus),
contingência (contingentia). Por sua carga excepcionalmente fraca em ideologia, é uma
denominação adequada ao campo filosófico da lógica do pior. Esse aspecto leva à postura
“terrorista” dessa lógica de que “o pior é nada afirmar”.
Por essa postura, denomina-se natureza um agrupamento de traços que, de certo
ângulo, pode dar a um observador a impressão de constituir um conjunto. É tratada, pois,
sob um ponto de vista e não como um objeto; pressupõe um compromisso teológico e
teleológico de ordem antropocêntrica, leva em conta a intervenção de uma vontade,
atuando na sua própria constituição. Uma vez que as três noções de hasard fors, casus,
contingentiarespeitam o conceito de natureza e têm necessidade dele, só a quarta noção
hasard — será relevante para a filosofia trágica.
O hasard original ou hasard constituinte recusa a ideia de natureza, pois não supõe
qualquer natureza na sua origem. O hasard original é anterior a “tudo que existe” e está por
todos os lugares; enquanto o hasard acontecimentual é posterior e localizado. Interessa ao
pensamento trágico apenas o hasard original, encontrado nos grandes pensadores trágicos:
Lucrécio, Montaigne, Pascal, Nietzsche. Segundo Rosset (1989), o pensamento do hasard é a
82
única forma de materialismo absoluto a prescindir de todo pressuposto de ordem, tais como
as ideias de lei, determinismo e mesmo de “natureza”.
Hasard é o nome que designa a aptidão da matéria a se organizar espontaneamente,
sem causa (Lucrécio). Esse caráter de organizar-se espontaneamente, fundamento dessa
concepção materialista, é também um pensamento de pavor por levar a pensar sob dois
aspectos: primeiro, a ideia de hasard dissolve a ideia de natureza e põe em questão a noção
de ser; segundo, a ideia de hasard soma-se à definição proposta por Freud (1996), da perda
do familiar, ou seja, da descoberta de que este é, inesperadamente, um domínio
desconhecido por excelência, o ápice da estranheza. O pressuposto da ideia de hasard que
dissolve a ideia de natureza e põe em questão a noção de ser serve como suporte para
observar-se a trajetória de busca do ator de saber insabido. Os complementos do enunciado
anterior centram-se nessa redundância em torno das questões do “de dentro”:
sei, Hamat, que vais dizer que se mudo de casa mudo de natureza, e que é
inútil querer o real do meu espaço de dentro, sei que vais dizer que eu,
homem político, devo permanecer junto aos homens, abrir e fechar
constantemente as mandíbulas, sei quase tudo de ti, de mim sei nada, sei
muito dessa palha que se chama aparência, sei nada dessa esquiva coisa
entranhada no meu ser de dentro (p.15).
Observa-se que o lexema “casa” muda de espaço referencial ao ligar-se a um espaço
abstrato, existencial. Este é caracterizado como esquiva coisa entranhada no meu ser de
dentro. O próprio texto vai expondo um “projeto” de construção do ser de dentro. O
desdobramento, quanto à extensão dos enunciados, muda de valência se apreendido sob
esse ângulo. A demonstração desses desdobramentos levará em conta a série de traços que
partilham dessa visão, ou seja, que focalizam a instância do ator da enunciação em busca de
respostas para a questão do ser: “nada em mim é permanência, e tudo é permanência,
vínculo” (p.16).
Marca-se, no nível dessa busca do ator de saber insabido, a angústia do paranoico
sobre a desnaturalização” do que ele entende por SER. Em meio à perdição em torno de
questões metafísicas, constroem-se, em copresença e em um contraponto, enunciados que
pontuam a confusão e o deslocamento de sentidos entre o físico (corpo) e o ser de dentro
(metafísico, transcendente), entre espaço e tempo. O conjunto de enunciados a seguir serve
83
para caracterizar os desdobramentos (posição e quantidade na extensão) dessa angustiosa
questão do ser, conjuntos que serão analisados nos seus pertinentes desdobramentos:
mas sou todo impotência na minha rombuda cabeça aqui de baixo, porque
mais volúpia em pensar na esquiva coisa do meu ser de dentro, que me
estender ao teu lado, Hamat, e te amar. Me estender ao teu lado, ordenar-
me, dizer que à noite sou teu é mentira, meu tecido escondido, umbroso,
meu ídolo sem nome, minha pergunta sem resposta em nenhum livro (...)
Hiran, não é de ninguém, nem de seu povo, nem de sua língua que não diz
palavra (p.17).
Tocas a mulher, Hiram, e pensas no esgarçado do Tempo, tocas e não
sentes a carne de Hamat, o que s é a tua própria mão, e contas os teus
dedos, elaboras matemática e poesia,(...) como posso ser um e dar de mim,
se de tudo o que sou não conheço o segredo? (p.18, gs.a.)
Penso sim, que sou muito menos, Hamat, estendido ao teu lado, sou
menos, vou te dizer porque: devo esquecer tudo o que aprendi para te ver
um corpo e me dizer esta é Mulher, não Hamat, esta é uma fêmea que
não sabe de si mas que tem cheiro e gosto, e vai me dar seu gozo, e eu
Hiram vou ter o meu, e juntos somos apenas dois corpos, corpo de um que
é o meu, corpo de outra o teu, e assim devo te conhecer, sem formular
perguntas, cindido (...) (p. 19, gs.a.)
A confusão entre físico, psíquico e transcendente, a lucidez em relação à impotência
do ser e da linguagem reiteram as posições do ser cindido pelas questões. Ao observar-se o
enunciado: “sou todo impotência na minha rombuda cabeça aqui de baixo, porque mais
volúpia em pensar na esquiva coisa do meu ser de dentro, que me estender ao teu lado,
ordenar-me, dizer que à noite sou teu é mentira (...)” (p.17), o traço da “impotência física”
soma-se à impossibilidade de apreender a “natureza” do ser interior, indiciada pelo semema
“esquiva”, por meio do qual reafirma a dispersão do conceito de Ser pela projeção nesse
enunciado de uma afirmação dita anteriormente num campo semântico de negação e
mistério: “sei nada dessa esquiva coisa entranhada no meu ser de dentro” (p.15).
A ideia de desnaturalização do físico e do metafísico soma-se, por sua vez, a
contrapontos marcados na linguagem, pela exaustiva reiteração de sememas indiciadores de
falta, de ausência, usados também num campo semântico opaco: “meu tecido escondido,
umbroso, meu ídolo sem nome, minha pergunta sem resposta em nenhum livro (...) Hiram,
não é de ninguém, nem de seu povo, nem de sua língua que não diz a palavra(p. 17). A
copresença de elementos (sublinhados e em negrito) reincidem na fixação da
impossibilidade de dizer com palavras o que é o ser interior, associado a sememas do campo
semântico do tenebroso, do terrível — “tecido escondido, umbroso”; do enigmático — “meu
84
ídolo sem nome”, redundâncias em torno da busca de uma forma de expressão capaz de
explicitar a natureza do SER.
A inapreensível “natureza” do ser leva-o a questionar a linguagem, colocando-a
como inoperante para explicitar essa natureza. Esse aspecto ressoa na copresença dos
enunciados: “meu ídolo sem nome”/“minha pergunta sem resposta em nenhum livro”,
afirmações feitas por meio de mensagens “cifradas” que possibilitam a analogia com um ser
“desencarnado do verbo”, apoiada no espaço externo do discurso, pela reversão do conceito
religioso: “e o verbo se fez carne”. Essa referência aparece virtualizada no lexema: “livro”
(Bíblia?), ressignificada no texto seguinte: “Hiram, não é de ninguém, nem de seu povo, nem
de sua língua que não diz a palavra” (p.17), conduzindo a outra característica referente à
“natureza” da linguagem como não-toda. Descola-se a letra do trágico que reitera o “não-
ser”: de um “livro” (?), de uma língua, de um ídolo (?) sem nome, ou seja, a inexistência de
uma natureza capaz de comprovar o ser. Conforme a lógica do pior, o “que existeé nada,
cujo sentido se entende como nada a respeito do que se pode definir como ser, nada que
“seja”, suficiente para oferecer-se à delimitação, tanto no nível conceitual como no
existencial.
5.6 Semiose da estranheza
A ausência de sentido das coisas e dos discursos, a afirmação de que “nada é”, leva o
ator de saber insabido a inserir no discurso uma “frase enigmática”, porque desconectada da
lógica contextual e existencial: “existir antes, desde sempre, e depois no infinito pensa que”
(p.19). A frase interrompida, pensada por Hiram durante o ato sexual, leva-o a “copular” em
identificação com “aquele que é, que não teve princípio nem terá fim”, buscando apoio em
conceitos cristalizados da cultura religiosa, ao atualizar um pensamento metafísico, usado
85
para explicar a natureza de Deus, na tentativa de apreender o sentido de sua própria
existência.
Esse indício abre espaço para o analista retomar enunciados anteriores
aparentemente estranhos, palavras imprecisas, semanticamente desconectadas: “meu ídolo
sem nome”; “Eu não sou teu, Hamat, porque antes de ti fez-se o sopro de Alguém sobre o
meu corpo” (p. 17, gs.a.). Para dar intensidade à questão do ser, o sujeito da enunciação
manipula a práxis enunciativa por meio da inserção de enunciados nos quais o
estranhamento é a tônica, funcionando como elementos desencadeadores da “coerência”
do discurso, abrindo um novo patamar de articulações, em busca da apreensão do sentido.
O ator de saber insabido, cindido entre estranhezas do ser de dentro e do de fora,
entre um amor carnal e um “ídolo sem nome”, submetido a “o sopro de Alguém”, entre um
espaço e um tempo indefinidos, perdido numa linguagem hieroglífica, ouve a voz do filho
Hemin: “pai, não quero ir. Casa? Temos uma. E tu que tens teu povo, teu rei, como podes
pensar em viagem e deserto? Tudo isso é fantasia do pai” (p.19, gs.a.).
Entre os lexemas considerados como valências pela intensidade de seu caráter
enigmático, destacam-se “rei”, “viagem”, “deserto”, dos quais se pode apreender a
dinamicidade, com referências aparentemente insólitas e desconectadas do contexto por
falta de dados redundantes em seu entorno. Como há ausência desses dados, para
interpretá-los, no seu valor metonímico, de contiguidade, considera-se o nível metafórico,
simbólico, como possibilidade de leitura. O enunciado passa a espelhar dois tipos de
referências: de um lado, numa leitura metafórica, é espelho de uma lógica demente, em
perdição referencial de pessoa e espaço pela apreensão de vozes: “tens teu povo, teu rei,
como podes pensar em viagem e deserto? Tudo isso é fantasia do pai”.
De outro lado, por contiguidade, o enunciado marca a fixação da lucidez do ser sobre
sua condição trágica no mundo, quando, por meio de outras inferências simbólicas relativas
ao sistema subjacente, sob o âmbito de sentidos cristalizados, “viagem” poderá ser
apreendida como “busca” de sentido para a vida no âmbito metafísico, em que “deserto”,
ligado à imagem do “de dentro” é a dêixis da trajetória de Hiram numa “viagem” por um
“deserto”, em que “tudo é nada”, reiterando enunciados identificadores da perdição do ser:
“de mim sei nada” (p.15); “tudo me possui e ao mesmo tempo nada (...) nada em mim é
permanência, e tudo é permanência, vínculo, tudo se adere ao círculo” (p.16).
86
Descola-se, pois, pela tensividade metonímica/metafórica, a letra do trágico: o ator
de saber insabido anuncia, por meio de vozes, o universo trágico da condição humana. O
discurso pode ser questionado por duplos: trata-se de “verdades” filosóficas ou de fantasias
de um demente? É apenas o desdobramento de um discurso de um homem político
depressivo qualquer ou uma reflexão sobre o “não-ser”, o “nada”? Na lógica das forças do
discurso, quais intensidades permanecem valências na extensão do discurso e quais podem
ser apreendidas como valores? Nessa estrutura tensiva, instala-se pouco a pouco o espaço
da estranheza.
Esse espaço intensifica-se quando se observa o jogo paralogístico controlado pelo
sujeito da enunciação entre demência e loucura. Outros enunciados apreendidos no
desdobramento dessa referência se fazem presentes: “a memória e seus ossos, a torpe
lucidez” (p.15, gs.a.), quando se destaca o estranhamento entre os termos “memória” e
“ossos”, por parecerem desconectados, numa associação insólita que leva a descobrir, no
modo virtualizado de “ossos”, o sentido de “sobras”, obtidas ao descarnar o “torpe”
“homem político”, que pode ser confirmado pela metáfora “palha”: “sei muito dessa palha
que se chama aparência” (p.15, gs.a.). A mesma associação insólita faz-se no seguinte
argumento: “fêmeas e loucos se for preciso escolher não vacila, escolhe os dementados”
(p.16). Essa afirmação confirma a postura “lúcida” do ator da enunciação em escolher o lado
da demência.
A ambígua lógica demente desdobra-se em lucidez insólita: dividido que sou em
três, cabeça tronco membros, como posso ser um (...) se de tudo o que sou não conheço o
segredo?” (p. 18, gs.a.) “sem formular perguntas, cindido (...) “não me saiba Hiram,
contorno nítido, singular juízo” (p 19, gs.a.) Em contraponto, recupera-se: “Tudo isso é
fantasia do pai (p.19)”. “Dividido” e “cindido”, o ator de saber insabido fixa nos
desdobramentos a dúbia postura de um “singular juízo”, ou seja, por meio da simulação de
um sujeito da enunciação feita sob a ótica paranoica, para no seu saber paralelo evidenciar o
saber trágico.
A perdição do ser desdobra-se na busca de identificação do transcendente colocado
de forma enigmática: a ideia de “viagem” está também marcada no primeiro parágrafo da
narrativa de forma metafórica com referência a um ícone da memória: “minha viagem
através dos retratos” (p.15), e a “retratos” agrega-se um caráter dúbio quanto à natureza
87
das coisas, ao retomar-se: “nada em mim é permanência, e tudo é permanência” (p. 15). Sob
essa posição, o discurso parece fixar-se num pólo apoiado na coerência temática.
Esse parâmetro, contudo, vai-se modificando em posições e quantidades na
extensão, quando surgem novas inferências no nível de uma enunciação de saber insabido
em que o ator acrescenta à sua figurativização uma “coerência demente”, metafórica, para
indiciar o de dentro: “devo deter-me, espiar o poço, dizer a mim: Hiram, não é verdade que
nunca desceste?” (p.17, gs.a.). Ou pela retomada da questão existencial num duplo
paralogístico no mesmo nível de analogias: “muitas vezes pensei que já nasci maduro e triste
e perfeito para morrer (...) porque as coisas em mim sabem do seu destino adulto, as coisas
em mim não são coisas-meninas, surgem na mão, prontas para serem colhidas” (p.17, 18,
gs.a.); “as coisas em mim sabem”, um “saber” desprovido de lógica temporal: “nasci maduro
e triste/as coisas em mim não são coisas-meninas”. Essa indefinição temporal, típica da
demência, redunda no que foi citado: “existir antes, desde sempre, e depois no infinito”
(p.19), que se confirma na indefinição de sua identidade no espaço existencial: “Hiram, não é
de ninguém, nem de seu povo, nem de sua língua que não diz a palavra” (p.17).
O ator da enunciação, Hiram, ao pronunciar-se misteriosamente no enunciado: meu
ídolo sem nome (p.17, gs.a.), pontua uma valência que por seu caráter enigmático
pressiona a busca de outros elementos para poder-se apreendê-la. A esse elemento
enigmático adiciona-se outro mencionado: “Eu não sou teu, Hamat, porque antes de ti
fez-se o sopro de Alguém sobre o meu corpo” (p. 17, gs.a.). Essas referências a “sem nome”
e a “sopro de Alguém”, duas indeterminações de identidade, levam a outras relações com o
sistema subjacente. De um lado, no âmbito da semiosfera, no espaço cultural religioso, sabe-
se que “sem nome”
13
é uma referência a Deus e “sopro” remete à forma como Deus criou o
homem. A ligação desses lexemas a “Alguém” confirma-se pela letra maiúscula, nova
referência a Deus.
Outros estranhamentos somam-se na extensão da narrativa, sempre num
mecanismo em que ocorre um elemento aparentemente desconectado do contexto, com
uma taxa cognitiva de informação baixa: (1) “eu e meu rei trocando segredos, ressonando
13
Deus ao revelar a Moisés seu nome misterioso YHWH, “Eu sou Aquele que É” ou ainda “Eu sou quem Eu
sou”, Deus diz Quem é e com que nome deve ser chamado. Este nome divino é misterioso, tal como Deus é
mistério. E, ao mesmo tempo, um nome revelado e como que a recusa dum nome. É assim que Deus exprime
melhor o que Ele é, infinitamente acima de tudo o que podemos compreender ou dizer: Ele é o “Deus
escondido” (Is 45, 15), o seu nome é inefável. (Catecismo da Igreja Católica, 1993)
88
espaço-viuvez (...) tudo se adere ao círculo (p. 15, 16, gs.a.). A comutação de sagrado em
segredos continua ressonando pela ausência de referências explícitas; são apenas “rastos”
de que rei está ligado a “sagrado”. Em ressoar” tem-se a dúbia referência de “ressoar os
cochichos de um rei amoroso” e de “roncar”, marca da “omissão” desse que é apenas
ausência (“viuvez”, abandono) ou desenho-angústia porque “tudo se adere ao círculo”. A
referência a rei continua enigmática até o fim do texto: “Cochicho em seus ouvidos: meu rei,
não será para sempre teu envoltório de gozo” (p.19, gs.a.).
(2)“E tu, Hakan, traz teu compasso, teu esquadro, teus números, tua santa geometria”;
pergunta-se: um “sagrado” que “ressoa” em “santa” (geometria) para construir a casa ou a
ideia de Deus dentro dele(a)? Um compasso faria o “círculo”, um esquadro desenharia o
“triângulo”, a tríade de elementos: “compasso, esquadro, meros” redundaria em
trindade; somam-se conexões déjà-vu. (3) “E tu que tens teu povo, teu rei, como podes
pensar em viagem e deserto? Tudo isso é fantasia do pai” (p.19, gs.a.). “Fantasia” ou jogo
entre demência e lucidez, entre metáforas e metonímias levam a relacionar rei com “ídolo
sem nome” e “Alguém” com identificações criptográficas de Deus.
No entanto, surgem outras referências em contraponto, copresentes no
desdobramento de enunciados, que trabalham com o avesso da ideia cristalizada de um
Deus-rei:
1) Hiram é LUZ / Deus é “sombra”: “Teu claro céu aberto é para o rei sombra e substância
de um quarto” (p.19, gs.a.);
(2) o “amor” divino transforma-se em sexual e o rei não é mais “o caminho, a verdade e a
vida”: “o rei tem mais olhos para Hamat que para a verdade (p. 19, gs.a.);
(3) Deus-rei surge destronado pelo mal e pela violência, numa desconstrução da ideia de
“sagrado”: “O rei, repressão, corpo. O rei, sepultura do povo.(...) um dia a garra do teu povo
se alonga até a garganta e rasga a lâmina metálica que tu colocaste”(p.19);
(4) retomada da ideia de omissão: “Fecundo e odioso pode ser o grito de quem jamais ouviu
sua própria palavra” (p.19).
O desfecho marca-se por um discurso estranho e “demente” do ator de saber
insabido em perdição, com referências desencontradas, dirigindo-se ao rei de forma
ameaçadora:
89
experimenta, meu rei, repetir FACA FACA, mentalmente desenhá-la, FACA
FACA e pensa numa bota sobre a tua cara, FACA FACA, e a tua boca de
sangue, e de repente ao teu alcance o instrumento de aço. Não te tornarás
inteiro fogo e agressor? FACA, meu rei, palavra que dirá teu povo, com a
mesma volúpia com que dizes amor. E com a mesma inflexão dos justos.
Eu, Hiram, vou construir a casa. Dentro de mim, sagrado descontentamento
(p. 19,20, gs.a.).
O analista ou enunciatário, sem possibilidade de identificar a natureza contraditória
desse “rei”, feito de “amor, fogo e agressão”, e ao constatar o retorno das mesmas palavras
do início da narrativa ressoando totalmente insólitas no final, depara com a iconicidade do
trágico da loucura refletido na perdição de referências e na “certeza” paranoica fixada no
mesmo propósito: “Eu, Hiram, vou construir a casa”. Dessa forma todos os sentidos ficam
suspensos e mesclam-se num espelho do déjà-vu. Permanece a questão: qual “casa”?
Avançou-se pouco em termos de elucidação do sentido. Será necessário procurar
novos caminhos de semiose que permitam ampliar o espaço de sentido desse enigmático
discurso. Para isso, volta-se a buscar o espaço subjacente como espaço categorizado para
revelar o trágico.
5.7 Hasard e estranho familiar
Retoma-se o conceito no qual se fundamenta o sistema subjacente desta análise:
hasard ou “acaso” é a capacidade da matéria de organizar-se espontaneamente. Essa
relação entre hasard e espontaneidade é também uma experiência de pavor, unida à
definição proposta por Freud (1996), da perda do familiar, ou seja, da descoberta de que
este é, inesperadamente, um domínio desconhecido por excelência, o ápice da estranheza. A
90
manipulação do sujeito da enunciação de construir as narrativas num espaço perpassado de
estranheza, de colocar o discurso sob um campo semântico que oscila entre loucura e
lucidez, de exercer a simulação de uma instância de discurso que tem como tomada de
posição o duplo paranoico, não se limitaria a exercer essa postura em apenas quatro páginas
de um “pequeno discurso”. O espaço delirante de Hilst é uma fala de infinitas cadeias
metonímicas perdida na indefinição dos sentidos, visto que a simulada loucura não tem a
posse do simbólico.
Assim, qualquer narrativa da autora é um espaço metonímico que pressupõe
intermináveis fios de escritura que podem ser escolhidos ao acaso. Qualquer fragmento
selecionado mantém sempre a possibilidade de refratar, ou seja, de ser um espelho de
outros fragmentos. Essa é a forma “fundante” da práxis enunciativa da escritora: um grande
delírio que aprisiona o enunciatário em suas intermináveis cadeias; um ninho-masmorra,
uma “masmorra-ninho”, usando-se palavras de Kadosh (HILST, Kadosh in: Kadosh, 2002).
Quando se considera o próprio espaço interno da obra de Hilst como subjacente à
práxis enunciativa da escritora, tem-se uma visão mais ampla da “busca” do ator de
enunciação paranoica, de sua postura de saber insabido, passagem para o defrontamento
com o trágico. Isso acontece num duplo nível da práxis enunciativa: o campo do enunciador
aprisiona o campo do enunciatário por meio de inúmeros jogos de “enigmas” a serem
desvendados, situação que também encena o pavor do estranho familiar.
Para quem conhece suas obras anteriores, algo mais afeta o discurso de O Projeto na
leitura de retorno. Começa-se a perceber que os elementos estranhos da primeira
apreensão podem ser atualizados e realizados de maneira diferente, pois a memória de
outras leituras projeta-se nesse discurso pelas suas semelhanças e dessemelhanças, fazendo
dessa nova leitura um déjà-vu. nela a fixação de um mesmo tipo de busca que retorna e
a ocorrência do repetido dá-se na diferença.
Na análise do campo diferencial do discurso articulado até esse ponto entre tensões
e modos de coexistência de enunciados, abordados na correlação do espaço interno do
discurso com o sistema subjacente, demonstrou-se, por um lado, a relação com o sistema da
língua, buscando-se apreender aquilo que concerne às singularidades da semiótica do
discurso literário. Por outro, demonstrou-se a pertinência de traços fenomenológicos,
marcados pela instância de discurso que permite sua correlação com o universo ideológico,
91
religioso, metafísico. Esses traços servem de suporte para explicitar-se o universo da filosofia
trágica, referente à Lógica do pior, de Rosset (1989).
Observa-se no discurso de Hilst, na macroestrutura, um sistema de práxis enunciativa
coocorrente. Entre outros aspectos, prioriza-se nesta análise a “experiência de perdição”,
em torno da questão de Deus, a sua possível desnaturalização, a redução de Deus a uma
ideia a ser perseguida, sinalizada em outros textos anteriores, que retornam a este, O
projeto, por meio de marcas singulares de linguagem, ou seja, pela estranheza, fazendo da
repetição diferencial um patamar para descolar-se a letra do trágico.
Configura-se como trágica, em O Projeto, a experiência do ator de saber insabido na
busca de um “nada”, de um “ídolo sem nome”, perseguindo o “sopro de Alguém”. Além
disso, esse ator desenha não no campo semântico, mas na práxis enunciativa, a mesma
“ausência de rastos” de uma ideia identificadora de Deus, incessantemente buscada e
frustrada, principalmente em Kadosh (HILST, 2002), envolvendo a questão do “ser e não-
ser”, da reconstrução e destronamento da ideia cristalizada sobre a natureza de Deus. Pode-
se remeter a esse tipo de ocorrência de várias maneiras, pois cada narrativa de Hilst é um
“vestíbulo de espelhos”, visto sob a ótica de um discurso que simula um grande delírio,
levado à exaustividade dos retornos às mesmas questões, infinitamente repisadas. Para uma
amostragem, opta-se pelo caminho de Kadosh (HILST, 2002), publicado pela primeira vez em
1973.
Assim, essa noção perseguida por Hilst, que se pode denominar “familiar”, visto ser
facilmente reconhecível na maioria de suas narrativas, permite caracterizar essa práxis sob a
relação de hasard, na perspectiva do trágico e do estranho familiar. A perseguição do ator
de saber insabido, para identificar a natureza de Deus, ou a ideia que se tem dele, ocorre de
várias maneiras. Na narrativa O Projeto, a recorrência da busca identificadora de Deus
mescla-se à busca de identificação do ser “de dentro”, numa linguagem “criptografada”: um
“ídolo sem nome” e o “o sopro de Alguém”.
O mais evidente e o mais misterioso é apreender o sentido do “projeto” de
construção “da casa”; que se vai desconfigurando e se redesenhando, em sua sintaxe,
distribuída numa estrutura tensiva, caracterizada pela correlação de intensidades diversas e
contraditórias que, por suas redundâncias e oposições, remetem ao projeto de descobrir a
“esquiva coisa entranhada no meu ser de dentro”, algo que se reduz a uma “ideia” a ser
perseguida, simultaneamente mesclada e desconectada do contexto do discurso, demarcada
92
de maneira enigmática, como numa charada, num jogo, em que as peças se distribuem ao
acaso, podendo ser apreendidas de maneira caleidoscópica.
Esses enigmas distribuídos na extensão da narrativa, aparentemente desconectados,
ao serem colocados em contraponto com o primeiro enunciado da narrativa repetido no
último, provocam o retorno a um “projeto” para “construir a casa”. Essa visada insistente
em torno da “construção da casa” leva o analista a rever seu “projeto” de semiose, seguido
ou per-seguido anteriormente, cujos sentidos dependem da dinâmica e da dialética, da
instância da enunciação, entre lucidez e demência. Instalam-se, dessa forma, na semiose, as
marcas de um inquietante déjà-vu.
O sujeito da enunciação, em seu saber de controle, de fato, regula esse jogo ao
colocar na instância de saber insabido a busca de elucidação da natureza do ser por meio de
uma linguagem obscura, “umbrosa”, cheia de estranheza, mantendo assim a dúvida em
torno de demência e lucidez; é a reconstituição de um drama que aos poucos se instaura
como déjà-vu, o reconhecimento do familiar de modo insólito e temível. Configura-se por
esse artifício, além da dupla perdição do enunciador entre a lucidez e a demência, a
“perdição” do analista-enunciatário, na “com-fusão” e atualização de sentidos divergentes
no espaço da simulação de um delírio. No “ir e vir” da memória dos textos anteriores
projeta-se no discurso um espaço em espelho (ícone do paranoico) dos discursos anteriores.
Retoma-se a postura do trágico de que o pensamento do hasard, unido à ideia de ser,
resulta necessariamente em uma filosofia do não-ser. Com base nessa ideia, considera-se o
retorno da percepção do “não-ser” como algo novo e terrível. Certas ideias a cada vez que
retornam são suscetíveis de aterrorizar tanto quanto ameaças e atos. Freud (1996) declara,
em Das Unheimliche, que o pavor surge quando o familiar vem sobrepor-se ao
desconhecido, quando a estranheza se apodera do espaço previamente ocupado pelo
conceito de familiar, aquilo que é reconhecível. Uma angústia antecede o pavor; este
começa graças a uma dúvida quanto à “natureza” de um ser qualquer e explode quando este
vem a perder de bito, na consciência, a natureza que lhe era implicitamente reconhecida.
Essa perda não constitui um acontecimento, mas a revelação retrospectiva de um
estado, no caso, de um estado revelador do trágico da condição humana. Tem-se medo de
ter acreditado em alguma coisa que, então, já era falsa. Nesse caso, o pensamento não pode
agir; somente reconstruir o drama, porque o desencontro entre o tempo anterior de uma
prática e o tempo posterior revela-se tarde demais, depois de ter-se instaurado uma crença
93
qualquer. O hasard é uma forma geral de experiência angustiante, uma espécie de
reencontro com a angústia original do nascimento.
A questão de Deus, assunto familiar” ao homem na sua busca para responder às
inquietações de ordem metafísica, é refratada na práxis do discurso de Hilst sempre de
maneira enigmática, estranha, conforme lida em Kadosh (HILST, kadosh, 2002, p.36):
coincidentia oppositorum et complicatio, DEUS DEUS AENIGMATICA SCIENTIA. A essa
questão, associa-se a questão do eu, tenebroso e terrível: “meu tecido escondido, umbroso,
meu ídolo sem nome, minha pergunta sem resposta em nenhum livro” (HILST, O Projeto,
2003, p.17).
O domínio desconhecido de um Deus ausente, “rastro de ninguém” (HILST, kadosh,
2002, p.45), constrói-se na práxis de Hilst como uma questão abordada de forma insólita,
estranha, demolidora, profanação do sagrado, questão “mil vezes” (número reincidente em
alguns discursos) repisada no campo ficcional de Hilst e no espaço da cultura. A questão
metafísica engloba todas as interrogações fundamentais do homem: Quem sou? De onde
vim? Para onde vou? Qual o sentido da morte? Natural... transcedental...? Quem é Deus?
Existe “natureza” identificadora de ser-Deus e, consequentemente, daquele feito à sua
imagem? E como se pensa sobre o mal diante de Deus ou sobre Deus diante da violência do
mundo?
Um leitor desavisado que selecionar apenas a narrativa em pauta ficará limitado ao
sentido de uma primeira visada concernente à proprioceptividade, à instância de discurso
que articula os outros dois níveis, o da interoceptividade e sua correlação com a
exteroceptividade que engloba o sistema subjacente, projetado no discurso. Por pressão do
próprio estranhamento do texto, o leitor será levado a buscar novas fontes de articulação
com o sistema subjacente. O mais próximo e o mais insólito é que esse sistema está “bem”
ao alcance do leitor, visto que para uma decodificação em outro nível será preciso recorrer a
sua obra anterior, ter acesso aos “códigos secretos” da práxis de Hilst, obra para “iniciados”.
Somente assim se torna possível ampliar o sentido desses enigmas em jogo.
Dessa maneira, O Projeto pode ser decodificado se for levado em conta que o
discurso de Hilst é construído sob a ótica da simulação de um delírio, caracterizada por uma
sintaxe repetitiva e caleidoscópica, portanto instauradora de um duplo espaço interno no
corpo próprio (reflexo do duplo paranoico) que, além do espaço interno de cada narrativa,
mantém a copresença dos mesmos topoi de uma narrativa à outra, apresentados com uma
94
nova scara. Cada narrativa funciona como espaço categorizado da outra na própria
interoceptividade. Nessa visão, as obras seriam capítulos de um grande delírio.
Em O projeto, a tomada de posição do corpo próprio instala-se contendo um enigma.
Um “projeto” aparentemente novo começa a delinear-se: “Eu, Hiram, quero construir a casa.
Dentro de mim sagrado descontentamento.” À intensidade atribuída a essa tomada de
posição enigmática, somam-se outros enunciados na extensão, marcados sempre pela força
da menor taxa de informação que dá dinamicidade aos signos por sua obscuridade, atribuída
principalmente pela desconexão com o contexto em que se apresenta.
Algumas questões insistem e persistem referentes ao “projeto” para construir a casa,
a ideia vai-se desdobrando e se configurando ao longo do discurso pelo estranhamento:
Cresce, se faz continente, chega a ter um espaço que não me pertence (p.
17, gs.a.)
É bom chamar Hakan, Herot, Hemin, e dizer-lhes que eu, Hiram, quero
construir a casa. Alicerce de pedra porque o chão é de areia, e matéria
alvinitente para espelhar o grande sol de dentro. É no deserto sim, Herot, e
vais ter medo (p.18, gs.a.).
Qual casa? Qual projeto? E por que sagrado descontentamento? O que significa “se
faz continente”? “espaço que não me pertence”, pertenceria então a quem? Uma casa cujo
sol está dentro e não fora, como seria? No deserto, para um homem político? Causaria
medo? Todas essas questões ficarão suspensas, pois é necessário antes percorrer o caminho
de volta.
Pelo estranhamento de alguns sememas, pontuados no decorrer da análise, pode-
se reconstituir o sentido do discurso em outro nível de assunção, num retorno a outro
sistema subjacente, o das obras anteriores. Na trajetória da busca do ator de saber insabido,
algo começa a adquirir força, numa intensidade que se apoia em “rastros” de uma ausência.
O que é estranho nessa narrativa, configurado como algo a ser desvendado, no seu
desdobramento, ressurge de forma inquietante, como “uma coisa” estranhamente familiar:
“sei nada dessa esquiva coisa entranhada no meu ser de dentro” (p.15).
5.8 O espelho secreto das palavras
95
Os discursos anteriores começam a afetar o discurso presente, ou seja, a espelhar-se
no discurso atual, pelo mesmo prisma de paralogismo, num jogo entre memória, tanto do
enunciador como do enunciatário, entre lucidez e delírio, pelo eterno retorno, situações que
por si podem ser configuradas como trágicas, pela encenação do estranho familiar. Pelo
espelhar de letras, podem-se rever “lucidamente” narrativas anteriores em que a mesma
busca delirante ocorreu, instaurando-se por essa projeção um espaço que simula a
perdição de referências. É o típico exercício da práxis enunciativa de um discurso de
natureza paralogística e delirante que sobrepõe e iconiza a mesma busca do enunciador no
enunciatário, no papel de receptor, na apreensão do discurso em ato, como operador dessa
semiose. O caminho para uma nova leitura, controlado pelo sujeito da enunciação, que
manipula o “lance de dados”, pode estar cifrado no seguinte enunciado enigmático de O
projeto: “Gostaria de ter nova síntese para todos os dados anteriores, gostaria de te dizer
do secreto das palavras, um vir-a-conhecer sem o lustro de agora” (p.16,17, gs.a.).
A enunciação de O projeto feita pela lâmina da estranheza leva ao reconhecimento de
dados anteriores que se projetam no enunciado de forma insólita em um espaço de espelhos
que pressionam o analista a recompor a semiose. A escolha dos dados anteriores segue a
“lógica” do acaso; a semelhança ou a dessemelhança de um fragmento leva a novas
decodificações do espaço do trágico, as letras se misturam e, como diz Mallarmé em seu
poema, “um lance de dados jamais abolirá o acaso (hasard)”. As possibilidades de
articulação, de “encontros significativos” entre os dados do “jogo”, em uma obra aberta, são
quase infinitas. Por esse jogo de hasard, far-se-ão algumas amostragens. Pode-se optar por
uma “síntese” dos dados “secretos” sob a diretriz de três pontos de vista: a) o espaço doeu
de dentro”: a busca da noção de SER e sua dispersão; b) o espaço de identificação com
Deus: a apreensão da ideia de Deus depende da identificação do “eu” com Deus, ao levar-se
em conta o homem feito à sua semelhança; assim, encontrar Deus é encontrar-se ou
identificar o de dentro é encontrar Deus; c) o espaço da casa: a reunião dos dois parâmetros
anteriores ampliará o sentido de “casa” no espaço interno da escritura de Hilst.
A estratégia do analista será apenas a de misturar os discursos, sem indicação de
páginas, tendo como orientação a sintaxe de O projeto para deixar o enunciatário fruir o
texto da escritora como uma forma delirante, apresentando um dialogismo entre dois atores
que na realidade são um só: o de saber insabido que, sem ter consciência, põe em relevo a
96
letra do trágico. A seleção de exemplos terá por base os três parâmetros mencionados
anteriormente, destacando-se em negrito as relações mais pertinentes. Inspirando-se em
Sousândrade, usar-se-ão letras diferentes para “criptografar” os significantes de cada ator da
enunciação: Hiram, em monotype corsiva (letras sintetizadas” num espaço restrito) e Kadosh,
ator de saber insabido na novela Kadosh, em segoe script (espalhadas no espaço, como sua
escritura baseada na amplificação).
Após essa articulação entre as duas narrativas, O projeto e Kadosh, serão elaboradas
algumas pontuações, no item seguinte, sobre os dois discursos mesclados. A análise de
Kadosh, neste capítulo, ficará restrita apenas ao que serve para reiterar o discurso de O
projeto, pois será feita em outro capítulo, mais adiante. Os dados do jogo configuram-se
livremente, ao acaso, um “instante” de lucidez e loucura, como num delírio em que as vozes
do eu-outro misturam-se, permitindo um novo jogo para cada leitor, um Kairós de gozo da
escritura de Hilst, incorporando o poder de manipulação do sujeito da enunciação:
Gostaria de ter nova síntese...
nova síntese... nova síntese...
nova síntese... gostaria de te dizer do
dizer do dizer do
dizer do secreto
secretosecreto
secreto
das pa
das padas pa
das palavras...
lavras... lavras...
lavras... Se fosse possível achar alguma
coisa alquímica, o segredo para chegar até , atravessa as três salas lhe disseram, em
três estive, o vestíbulo, a sala dos ministros, o quarto... rastro de ninguém, nenhuma linha
de sangue, de púrpura, e o punhal dentro da manga e Plotino aberto ao acaso: o que é
então o Todo? The total of wich the transcendent is the Source. Fonte infinitude, infinitude
rugindo, um vir-a-conhecer sem o lustro de agora, doce morte, está onde devo procurar meu eu
inteiro, gaivota-prumo, agudez, límpido mergulho sobre eu mesmo, alguém de garras na
garganta grita: mergulha, Kadosh, lá embaixo a resposta, aqui vive apenas o teu ser-
pergunta... se mudo de casa
mudo de casamudo de casa
mudo de casa mudo de natureza
mudo de naturezamudo de natureza
mudo de natureza, e que é inútil querer o real do meu espaço de dentro, de mim sei
nada, meu ser inteiro de sigilo e medo NÃO PERTENCE, é isso, não sou nem isso nem
aquilo, escuro estranhamento, sei nada dessa esquiva coisa entranhada
esquiva coisa entranhadaesquiva coisa entranhada
esquiva coisa entranhada no meu ser de dentro, uma
coisa se impondo corrosiva, eis aqui o vestíbulo desse todo-poderoso, devo ter sido
guiado, a coisa de peso gigantesco sobre as omoplatas, vai vai, a lâmina no mais fundo
desse todo-poderoso, atravessa as três salas, não fiquei tantos anos na masmorra-ninho
para acabar na CASA desse que sei e não sei...... eu e meu rei trocando segredos
segredossegredos
segredos, ressonando espaço-
viuvez, Um dia alguém-coisa-alado piou diferente sobre o teto da masmorra-ninho, abri a
porta e estava o papel-pluma e as últimas instruções: o tempo é hoje, vai até a CASA DO
GRANDE OBSCURO, entra, tens adeptos, os de dentro te esperam... cochicho em seus
ouvidos... ó não, para Kadosh nunca esse alimento de rei... meu rei
meu reimeu rei
meu rei, não será para sempre teu envoltório
de gozo, um dia a garra do teu povo
a garra do teu povoa garra do teu povo
a garra do teu povo se alonga até a garganta e rasga a lâmina
lâminalâmina
lâmina metálica que tu colocaste.Não te
97
tornarás inteiro fogo e agressor? FACA, meu rei, palavra que dirá teu povo, com a mesma volúpia
volúpiavolúpia
volúpia com que dizes
amor... meu rei trocando segredos, ressonando... os homens são muitos mas a carne de todos não nos
basta, nada que nos estufe a barriga, é preciso devorar milhares para que um dia
percebas, GRANDE CORPO RAJADO, que a tua garra apenas dois milímetros mais
navalha, que a tua língua um quase nada mais crua e mais sedenta, escuma no teu de
dentro agarrada... Durante dez anos estudei os folhetos para matar esse que sei e não sei.
E ele, Kadosh, vai morrer outra morte, vai matar o melhor de si mesmo, seu rei, Kadosh o
regicida. Sou todo impotência na minha rombuda cabeça aqui de baixo, porque mais volúpia
volúpia volúpia
volúpia em pensar na
esquiva coisa
coisacoisa
coisa do meu ser de dentro
meu ser de dentromeu ser de dentro
meu ser de dentro, que me estender ao teu lado, metias furiosamente, e o que é mais
importante: ME ESQUECIAS. Porque EU digo que deve ser assim para o homem: EU não
devo estar na cabeça dos homens. Ordenar-me, dizer que à noite sou teu é mentira, meu tecido escondido,
umbro
umbroumbro
umbroso,
so,so,
so, meu ídolo sem nome
sem nomesem nome
sem nome, és alguém que incomoda durante licores falando de um outro sem
nome, de uma luta entre dois ninguéns, um, tu mesmo, Kadosh soturno delirante,
inapreensível, outro esse alguém imoldável... odiar a COISA SEM NOME. Para sempre. Eu
não sou teu, Hamat, porque antes de ti fez-se o sopro de Alguém
AlguémAlguém
Alguém sobre o meu corpo.
O GRANDE OBSCURO umbroso
umbrosoumbroso
umbroso não pode ser tocado antes do tempo. Que mais é
preciso fazer para que eu o conheça por inteiro? Para que eu possa colocar o dedo e sentir
até onde ele se faz víscera e sangue, até onde é cristal, onde exatamente o seu núcleo de
sol, onde meu Deus, a coisa se corrompe, que espessura tem ele de bondade ou ódio. O
rei, repressão,
repressão,repressão,
repressão, corpo
corpocorpo
corpo. O rei, sepultura do povo. Fecundo e odioso
odioso odioso
odioso pode ser o grito de quem jamais ouviu sua própria
palavra, experimenta, meu rei, repetir FACA FACA, mentalmente desenhá-la, esse alguém imoldável,
centro de um círculo que apenas tu desenhaste, círculo de uma folha gigantesca que
desdobras, e levantam-se sonolentos, dizem onde? onde? ah sim, esse centro rubro, muito
bem Kadosh, esse então é aquele de que falas, muito bem, esmuito bem feito, e onde
arranjaste o compasso-gigante para uma circunferência tão perfeita. A cólera de saber que
tudo me possui e ao mesmo tempo nada, que nada em mim é permanência, e tudo é permanência, vínculo, tudo se adere
tudo se adere tudo se adere
tudo se adere
ao círculo
ao círculoao círculo
ao círculo, tudo é a mesma linha
linhalinha
linha que se estende, tudo é tangente
tangentetangente
tangente, tudo está colado a mim... coisa que o outro
sabe que está pulsando, viva, ronda, Cão vultívogo, e agora examino tua tríplice goela,
tríplice goela, tríplices canais rubro intenso estufados, trina onipotência, hap! hap! hap! e
aqui tudo é lustroso, imperecível, novo... eu, Hiram, quero construir a casa
casacasa
casa. Alicerce de pedra
pedra pedra
pedra porque o
chão é de areia, e matéria alvinitente para espelhar
o
o o
o grande sol de dentro... E tu, Hakan, traz teu compasso
compassocompasso
compasso, teu
esquadro
esquadroesquadro
esquadro, teus números
númerosnúmeros
números, tua santa geometria.
santa geometria. santa geometria.
santa geometria. Escuta bem, Kadosh, queres interferir no meu destino?
milênios procuro me afastar de ti para que em mim surja um novo nome, milênios
procuro a ideia que perdi, não era nada que se parecesse contigo, ando atrás desse sem
forma, desse nada que repousa esperando o meu sopro, e cada vez que me chamam a
matéria que sou estilhaça. Por que me procuras, Kadosh, se eu mesmo me procuro? É
98
como se a pedra de repente se pusesse a andar atrás de ti, arranca teu desejo de perenidade, de
querer existir antes, desde sempre, e depois no infinito.
O que seria de Kadosh Existindo Antes? ANTES
DA COISA QUE NUNCA EXISTIU? que eu não interrogue mais, Cara Cavada, se estás em
mim também nas bolotas ... hein Cara Cavada? mas depois mas depois, ai que cosmogonia,
em que Tempo te fizeste, que Tempo era ANTES de ti, havia Tempo? Repregaram mil
vezes mil alguéns que perguntavam o que fazias ANTES, ANTES DA IDEIA? Tocas a mulher,
Hiram, e pensas no esgarçado do Tempo, tocas e não sentes a carne de Hamat, apressa-te, a cada minuto o
tempo se adelgaça... E a cada minuto, esse que É, o Tempo, estertorando, vigio, olho de
sapo aberto, tempo escorrendo, bocarra, lava descendo a dourada colina, e aqui por dentro,
dentro de Kadosh, o sonho envelhecendo... meu tecido escondido, umbroso, meu ídolo sem nome, minha
pergunta sem resposta em nenhum livro
pergunta sem resposta em nenhum livropergunta sem resposta em nenhum livro
pergunta sem resposta em nenhum livro, Olha aqui Cão de Pedra, abri dois mil livros, a ponta do
dedo descarnava, escrevi durante dez noites a palavra amor, e tua boca muitíssimo dulçorosa
boca muitíssimo dulçorosaboca muitíssimo dulçorosa
boca muitíssimo dulçorosa, meu
ciclo de vida, de poesia, plantado em tua boca, envenenado, húmus de outra boca é o que se faz preciso, Hiram, não é
de ninguém, nem de seu povo, nem de sua língua que não diz a pa
língua que não diz a palíngua que não diz a pa
língua que não diz a palavra...
lavra...lavra...
lavra... cem mil páginas, cem mil... FACA,
meu rei, palavra que dirá teu povo, com a mesma volúpia
volúpiavolúpia
volúpia com que dizes amor
amoramor
amor, durante dez anos estudei os
folhetos para matar esse que sei e não sei devo deter-me, espiar o poço
poçopoço
poço ... Hamat, a casa. Cresce,
Cresce,Cresce,
Cresce, se faz
co
coco
continente
ntinententinente
ntinente, chega a ter um espaço que não me pertence
espaço que não me pertenceespaço que não me pertence
espaço que não me pertence, e cresces pouco a pouco, estás crescendo,
não deixarás de crescer, nunca estarás crescido, és o TEMPO QUE É SEMPRE, TEMPO-
CADELA, coisa que não se vê, coisa que É sem nunca ser tocada, coisa que É e jamais
refletida, coisa que É e jamais foi olhada... te aprumas em direção ao sagrado buraco e as
mil bocas te agarram, mil bocas laterais sugando, torcendo o que te resta de carne, de
imagem do homem, nunca entrarás no abismo esplendoroso, nenhum condor para te
guiar ao cume, nem dentro do poço.
. .
. Eu, Hiram, quero construir a casa
casacasa
casa. Alicerce de pedra porque o chão é
de areia, e matéria alvinitente
alvinitentealvinitente
alvinitente para espelhar o
o o
o grande sol de dentro
sol de dentrosol de dentro
sol de dentro. É no deserto
desertodeserto
deserto sim, Herot, e vais ter medo.
Verdade que me esperam sim, vestíbulo dourado tapeçarias caçadas cadeiras de mogno e
marfim... Os meus quarenta dias no deserto, Excelência, a que ruína maior me levariam?
No primeiro dia, homem-Kadosh olho escaldante para o alto, todo eloquência por dentro,
diria: cheguei, Excelência, não te vejo nem venço mas os pés estão aqui exatamente onde
os pés de Antão e de outro santíssimo varão estiveram, e se cheguei é porque deve haver
íntima pendência entre o que pensa Kadosh e o que tu pensas. Enquanto sonhas o deserto, ele
sonha teus linhos, tua mulher. Teu claro céu aberto é para o rei sombra e substância de um quarto. Tu te imaginas ao
Tu te imaginas ao Tu te imaginas ao
Tu te imaginas ao
sol
solsol
sol. E ele se imagina na penumbra
ele se imagina na penumbraele se imagina na penumbra
ele se imagina na penumbra, com Hamat, a sós... atravesso portas corredores, brancura das
paredes do pátio estalando sobre o rosto, sim sim, vão se lembrar de mim, desse que
entrou na CASA DO GRANDE OBSCURO e cumpriu seus rituais, banhou-se de cadáveres,
evocou seus medos, seus triunfos, Kadosh mulher violada, CASA DO GRANDE
OBSCURO sombra e substância,
penumbra
penumbrapenumbra
penumbra. Corri em direção àquela sala de porta tão pesada
99
quanto a própria casa, a porta estava aberta e lá dentro nada. Sala de pedra, alicerce de pedra,
inteira vazia, no alto uma rosácea, um amarelo tão ouro que eu não suportei, o grande sol de
dentro. VAZIA. VAZIA. NADA. A casa cresce, se faz continente...
Gostaria de ter nova síntese
nova síntesenova síntese
nova síntese para todos os dados anteriores, gostaria de te dizer do secreto das palavras, um vir-a-
conhecer sem o lustro de... E eu dissesse sim, é verdade. Tempo de dez mil anos, Kadosh cobiçoso
sorriu, e já não sabia de sua própria identidade, Kadosh não era mais o que visitava a casa,
caça, sobriedade estupefação agonia, e aos poucos foi se movendo, presa dentro da teia
fimbrada, ele mesmo teia inteira coincidida, ele mesmo ante-sala chega a ter um espaço que não
me pertence, incorporando-se ao limite extremo da casa ... jorrando insanidade, o sopro de Alguém
sobre o meu corpo revisvecido sem ter jamais encarnado, suspenso úmido sumido
aprisionado...Eu, Hiram, vou construir a casa
vou construir a casavou construir a casa
vou construir a casa. Dentro de mim, sagrado descontentamento
Dentro de mim, sagrado descontentamentoDentro de mim, sagrado descontentamento
Dentro de mim, sagrado descontentamento. Persigo apenas a
ideia que tenho de um grande perseguido e suspeito que ele pode estar em cada canto, que
ele por alguma razão, em algum momento será submisso a Um Instante, e eu devo estar
quando esse tempo solitário e ardente se fizer, tempo de mim colado ao Sem-Nome, tempo
torvelinho.
5.9 O espaço vazio
Entre os elementos que dão coesão ao discurso de O projeto pela estratégia de
“família”, poderiam estar qualificados as vozes e os “retratos” dos que rodeiam Hiram. No
entanto, para não distanciar-se da proposta de investigação do trágico, optou-se apenas por
selecionar dessa categoria o lexema “casa” e suas figurativizações. Identifica-se a categoria
“família” quando o devir do sistema depende da densidade das semelhanças e das relações
locais, avaliadas em termos de coesão. O lexema “casa” foi considerado, na tomada de
posição, como um elemento neutro, à primeira visada, um agregado no discurso, com o
valor de “moradia” à qual o objeto evocado imediatamente remete. Observa-se, contudo, no
desdobramento, que a especificação de “moradia” no devir do sistema modifica-se quando
associada a outros signos, considerados pertencentes a um campo semântico denominado
estranho e enigmático.
Espera-se dos enunciados relativos à casa uma coesão que permita esclarecer os
enigmas pontuados no discurso. Quando se apreende o lexema “casa”, relacionado ao título
100
de um “pequeno discurso”, nomeado O projeto, segue-se o desdobramento dessa
intensidade, buscando uma coesão entre título e discurso, que dê coerência ao sentido
imediatamente referido. Entretanto, isso não se evidencia totalmente, visto estar ligado a
outros lexemas opacos em relação ao esclarecimento entre título e desdobramento do
discurso.
Os exemplos do desdobramento das características da “casa” foram incorporados ao
delírio de Kadosh e evidenciaram-se nesse espaço dialógico, pois, retornando-se a Kadosh
(in: HiLST, Kadosh, 2002), m-se a ressignificação e a apreensão do sentido do “projeto” da
“casa” a ser planejada e construída por Hiram.
Incorporando esse elemento “casa” que faz a conexão entre os demais sentidos
enigmáticos do discurso, retoma-se o espaço dialógico do delírio apresentado, apenas para
acrescentar algumas pontuações que servirão de motivação para a leitura de Kadosh a
apresentar-se em outro capítulo. O espaço do “eu de dentro”, relativo ao ator de saber
insabido representado por Hiram, foi articulado na análise da estratégia da série ligada à
busca para apreender-se a noção de ser, de seu espaço interior. Quanto mais ele buscava
identificá-lo, menos o encontrava, o que ocasionou sua dispersão e confusão com “alguém”
apenas “sopro”, “ídolo sem nome”.
O amplo espaço de busca de Kadosh, ator da enunciação em Kadosh, é sintetizado
em O projeto. Tanto Hiram quanto Kadosh sentem-se presos aos fios de uma ideia de Deus,
incessantemente perseguida. Um é convocado à casa do Grande Obscuro, o outro persegue
a ideia fixa de construir essa casa. Casa que se desenvolve e se faz “continente”, isto é,
espaço vazio tanto quanto aquele encontrado por Kadosh. O deserto é o espaço dos dois, a
metáfora da perdição de busca num espaço infinitamente vazio. Tanto Kadosh como Hiram
buscam uma consusbstanciação com o divino, mas para “matá-lo”, para livrarem-se dele. O
espaço de identificação com Deus é reiterado nos dois delírios: a identificação entre o “eu” e
o “outro”, imagem e semelhança no mal. Dá-se a reversão dessa busca numa desconstrução
e diluição da idéia de Deus-amor em Hiram e em Kadosh.
Todas as estranhezas são reconhecidas, o rei, o sem nome, o projeto de construção
da ideia de Deus, capturada no melhor ícone, o da geometria euclidiana: Deus representado
por um círculo, forma geométrica que possui um ponto orientador no centro, um círculo que
representa um espaço fechado, mas vazio. Em O projeto, assim como em Kadosh, a síntese
da representação da ideia de Deus está no círculo. A ele acrescenta-se outro semema
101
indicativo de vazio, além de deserto; a descrição do projeto menciona que a casa cresce e é
“continente”, apenas um espaço recipiente “para ser preenchido”. O projeto também prevê
que esse lugar seja adequado para abrigar o grande sol de dentro, outra metáfora ligada ao
Deus idealizado como LUZ.
Para Hiram, construir essa casa se o único caminho para apreender Deus, no
entanto ele perde-se na loucura dessa busca e ameaça de morte esse rei tão “idolatrado”. A
FACA e, em Kadosh, o punhal são os mesmos instrumentos para efetivar o corte libertador
dessa “aprisionante” ideia de Deus. Por mais que Kadosh reúna elementos para constituir
uma categoria, esses elementos não “cabem” na idealizada natureza de Deus. Não
conseguindo apreender sua natureza, nos dois discursos, tendo noção de sua inexistência,
consequentemente o ser “de dentro” perde-se, dilui-se, dispersa-se e depara com sua
situação trágica.
Do ponto de vista filosófico, a intuição do hasard, da não-natureza, pode explicar a
origem comum da geração de todas as angústias do ser humano, por intuir que o “que
existe” é nada, cujo sentido se entende como nada a respeito do que se pode definir como
ser, nada que “seja” suficiente para oferecer-se à delimitação tanto no nível conceitual como
no existencial. Assim, a ideia de hasard pode explicar o princípio de pavor, a partir do qual
somente a experiência da angústia é possível, marcada pela experiência de perdição, em
Hilst, representada pela loucura de um saber insabido que se torna “fantasma” do universo
trágico.
Eliminai, pouco a pouco, do vosso conceito de experiência de um corpo
tudo que nele é empírico, a cor, a rugosidade ou maciesa, o peso, a própria
impenetrabilidade; restará, por fim, o espaço que esse corpo (agora
totalmente desaparecido) ocupava e que não podeis eliminar
14
.
14
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Lisboa: fund. Calouste Gulbenkin, 1985.
102
CAPÍTULO 6
FLUXO: TRÁGICO E EXPERIÊNCIA DE PERDIÇÃO
6.1 Loucura controlada e júbilo
103
Cada narrativa de Hilst é campo fértil para ltiplas teses. Instala-se, dessa forma, a
consciência do trágico refletida pelo dilaceramento semiótico em que o analista é inserido. É
aconselhável, para apoiar-se em algum ponto, mesmo que este seja transversal, seguir o
conselho de “Deus” ao delegar um mandato ao ator de saber insabido, Koyo, em Floema (in:
HILST, Fluxo-floema, 2003), narrativa inserida no mesmo livro de Fluxo: “corta, escolhe o
que for mais adequado para o teu ouvido”. Fluxo (in: HILST, Fluxo-floema, 2003) é um
discurso que evidencia um espaço de múltiplas de possibilidades de apreensões de
linguagens e, por isso mesmo, evidencia o vazio de referenciais, cujos significantes procuram
preencher e criar um campo ilusório de significações. Assumir a incompletude torna mais
fácil o caminho para a semiose de um discurso construído a partir de uma sintaxe
caleidoscópica, selecionado para evidenciar uma escritura que busca depreender as
virtualidades e potencialidades do trágico, na relação entre experiência de perdição e festa.
A filosofia trágica não procura uma sabedoria ao abrigo da ilusão nem do otimismo, mas
busca algo completamente distinto: loucura controlada e júbilo.
No capítulo 4, A instância de discurso do duplo paranoico, tratou-se, por meio de
algumas amostragens da escritura delirante de Hilst, da pertinência do posicionamento da
instância de enunciação pelas vozes delirantes, para analisar-se a práxis enunciativa da
escritora. A instância da enunciação foi considerada na perspectiva de três saberes: o saber
de controle, representado pelo sujeito da enunciação que delega a predicação do discurso a
dois atores, representativos do duplo paranoico, simulado no discurso: o ator de saber
insabido que dá voz ao ator de saber trágico.
Essas instâncias se enunciam no discurso numa sintaxe de tipo paralogístico
manipulada por duas lógicas, a de lucidez e a de demência, analisadas em O Projeto. O
sujeito da enunciação, de modo a dinamizar o sentido do discurso, simula a perdição de
referenciais potencializados na associação com o sistema subjacente, do universo do trágico,
objetivo desta semiose.
A visada da tomada de posição do discurso em Fluxo e a intensidade atribuída às suas
valências carregam o duplo vetor da demência e da lucidez, numa manipulação digna dos
sofistas, na mestria em manipular verdades como mentiras e vice-versa. Tal mecanismo
instaura um estranhamento de referências, num aparente caos sintático, controlado pela
instância do sujeito da enunciação que deixa “pistas” de como seria possível mover-se nesse
labirinto simulado para apreenderem-se os valores do espaço interno e externo na sua
104
articulação com o trágico, segundo a Lógica do pior, de Rosset (1989). A própria topologia do
escritório de Ruíska, figurativização do ator de saber insabido, metaforiza a dupla
perspectiva: a opção do “poço” ou a da “clarabóia”, em busca da apreensão de um sentido
para “as coisas do de dentro”, questão semelhante à de Hiram em O projeto.
Se o ponto de partida das questões é o mesmo nas duas narrativas, diversa é a práxis
do discurso em Fluxo. O que é prolixidade e exploração das singularidades da linguagem
neste, é contenção no outro; em um é festa, “merdafestança” da linguagem, no outro é
seriedade, que se utiliza de metáforas para falar do filosófico e do teológico, um ser pensado
e dispersado numa linguagem que circula entre o discurso sério e imagens inseridas no
campo do sublime.
Entretanto, o que faz a diferença em Fluxo é o tom do discurso, articulando o
filosófico no lúdico. Trata das mesmas questões pelo viés do humor, da brincadeira, é um
corpo-próprio feito de gozo, jogo e júbilo em desfrutar de um discurso que exerce a
liberdade somente permitida pela arte, indiferente ao efeito que os sentidos assim
manipulados possam representar.
A experiência com a linguagem em Fluxo é ainda mais aprofundada, porque o
discurso faz-se num duplo de escrituras. Na primeira, a predicação é delegada pelo sujeito
da enunciação; na segunda, tem-se uma escritura dentro da primeira, projetada no
enunciado por meio do qual o ator de saber insabido, figurativizado como Ruiska, também
se pronuncia no âmbito de sua escritura, pois no espaço ficcional ele é um escritor que
deseja escrever as coisas do de dentro, mas é pressionado por um editor para escrever
coisas de fácil digestão, compreensíveis e vendáveis. Ruiska, para experenciar o que o editor
deseja, procura “novas possibilidades em torno do como o aconselhou o cornudo” do
editor.
Na tentativa de livrar-se da angústia de pensar sobre as coisas do de dentro, Ruíska
constrói um discurso em que a metadiscursividade se projeta no próprio corpo da língua,
explorando seu universo lúdico, visto que o abismo do de dentro foi interditado pelo
“cornudo”. Mesmo assim ele circula entre o “poço” e a “clarabóia”, em seu escritório,
isolado do “pátio de pedras perfeitas”, por uma “pesada porta de aço”. Hilst constrói um
mundo metafórico, possibilitando o risco dos equívocos, das pistas falsas, num lance de jogo
de hasard, em que o trágico e a festa se mesclam. A partir da tomada de posição em Fluxo, o
105
“estado de perdição e morte” do universo trágico confunde-se com a festa jubilosa de usar a
língua sem outra intenção que não seja a de desfrutar dos signos.
A ligação indissolúvel entre a alegria de existir e o caráter trágico da existência, que
une o gozo da vida ao conhecimento da morte, abre espaço para a consciência de que “nem
tudo está perdido”, como sugere o ator de saber insabido em Fluxo. A captura de instantes
fugidios percebidos no discurso em ato, no ato de fazer e no ato da leitura tudo compensa.
Segundo Rosset (1989), a existência do pensamento do acaso restringe-se ao
estatuto da exceção. O estado de morte, entendido como exceção, é também um estado de
festa. As circunstâncias percebidas pelo homem comum como generalidades, conjuntos,
naturezas são apreendidas por meio da brevidade. Remete-se, assim, à noção sofística de
Kairós (ocasião), tessitura de tudo o que existe, produtora de sensações singulares, jogos de
encontros imprevisíveis, entre um sujeito e um objeto. O homem e a sensação são ocasiões,
não diferem um do outro senão por sua maior ou menor duração: um mesmo hasard. Dessa
forma, o acontecimento carrega todas as características de festa: irrupção inesperada,
excepcional; ocasiões que existem num tempo, num lugar, para uma pessoa, não repetíveis,
dotando cada instante da vida das características de festa, de jogo e de júbilo.
6.2 Tudo não é
Para ter-se uma amostragem da relação entre o estado de morte de tudo o que
existe e sua consequente experiência de perdição, ou seja, da suspensão dos referenciais,
associados ao espaço lúdico, característica de festa evocada pela especificidade do uso da
linguagem artística, examina-se a visada intencional da instância de discurso, elemento que
deverá nortear as articulações subsequentes do discurso em Fluxo:
106
Calma, calma, também tudo não é assim escuridão e morte. Calma. Não é
assim? Uma vez um menininho foi comer crisântemos perto da fonte numa
manhã de sol. Crisântemos? É esses polpudos amarelos. Perto da fonte
havia um rio escuro, dentro do rio havia um bicho medonho. o
menininho viu um crisântemo partido, falou ai, o pobrezinho está
quebrando todo, ai caiu dentro da fonte, ai vai andando pro rio, ai ai ai caiu
no rio, eu vou rezar, ele vem até a margem, eu pego ele. Acontece que o
bicho medonho estava espiando e pensou oi, o menininho vai pegar o
crisântemo, oi que bom vai cair dentro da fonte, oi ainda não caiu, oi vem
andando pela margem do rio, oi que bom bom vou matar a minha fome, oi
é agora, eu vou rezar e o menininho vem para minha boca. Oi veio.
Mastigo, mastigo. Mas pensa, se você é o bicho medonho, você tem de
procurar menininhos nas margens do teu rio e devorá-los, se você é o
crisântemo polpudo e amarelo, você pode esperar ser colhido, se você é
o menininho, vo tem de ir sempre à procura de crisântemo e correr o
risco. De ser devorado. Oi, ai. Não há salvação.
Calma, vai chupando o teu pirulito (Fluxo in: HILST, Fluxo-floema, 2003,
p.19,20)
Essa extensa tomada de posição requer a observação das diferentes formas de
asserção no campo de discurso em seu desdobramento, para extraírem-se suas valências
num espaço interno, construído de metáforas nas quais a dupla referência analógica típica
dessa técnica reverte-se em ltiplas faces, articuladas num contexto que simula o delírio.
Conforme o foco em que se apreende essa asserção, tem-se um tipo de referência no nível
da assunção de intensidades. Pontuando-se a presença do sujeito da enunciação do discurso
em “calma”, segue-se, posteriormente, a pista do ator de saber insabido. Assim, a tomada
de posição pode ser subdividida em três focos:
1) Pode-se dizer que “as premissas” são: “Calma, calma, também tudo não é assim escuridão
e morte. Calma. Não é assim?
2) A ilustração do argumento inicial dá-se por meio de uma metáfora, numa analogia com a
estrutura de uma fábula. Dela extraem-se três argumentos que envolvem novamente a
mesma “estrutura silogística”: premissa, desenvolvimento e conclusão, com a peculiaridade
de que são múltiplas conclusões, explicitadas também como um silogismo: a) se você é o
bicho medonho, você tem de procurar menininhos nas margens do teu rio e devorá-los;
b) se você é o crisântemo polpudo e amarelo, você pode esperar ser colhido; c) se você é
o menininho, você tem de ir sempre à procura de crisântemo e correr o risco. De ser
devorado.
3) A conclusão das premissas iniciais é: Oi, ai. Não há salvação.
107
Diante de um discurso montado com lógicas divergentes, busca-se o auxílio do
Dicionário Houaiss de língua portuguesa (2009), para analisar-se a possibilidade de
preenchê-lo com alguma referência que sentido a esse silogismo: segundo o
aristotelismo, silogismo é um raciocínio dedutivo estruturado formalmente a partir de duas
proposições, ditas premissas, das quais, por inferência, se obtém necessariamente uma
terceira, chamada conclusão. O silogismo dialético se baseia em premissas apenas
prováveis, possíveis ou contingentes, oferecendo, portanto, uma conclusão sem o caráter de
verdade irrefutável, a despeito de sua verossimilhança. O silogismo retórico é usado em
discussões ou confronto de opiniões contrárias, geralmente vencidas pela habilidade
argumentativa ou retórica. O silogismo disjuntivo é aquele cuja primeira premissa é uma
proposição disjuntiva. O silogismo erístico é caracterizado por apresentar premissas que,
embora ostentem verossimilhança, são de fato inverídicas; silogismo sofístico, sofisma. O
silogismo ilegítimo é perfeitamente lógico e coerente, cuja conclusão não é
obrigatoriamente verdadeira, mesmo que suas premissas o sejam. O silogismo legítimo, uma
vez que se admita a verdade de suas premissas, oferece uma conclusão necessariamente
verdadeira; silogismo válido (das centenas dos modos possíveis de um silogismo, somente
19, tradicionalmente designados por termos mnemônicos, são legítimos).
Embora se explicitem os vários tipos de silogismo, entende-se não ser pertinente
para esta semiose determinar a qual tipo de silogismo esse enunciado pertence. Propõe-se
manter esse jogo aberto. Opta-se, no entanto, por extrair dele seu mecanismo, que é o de
servir para colocar o discurso e o enunciatário num espaço de perdição, iconizando a
experiência do ator de saber insabido. Somente a possibilidade de um discurso conter
simultaneamente vários registros de linguagem torna a visada da instância de discurso uma
experiência de perdição dos referenciais, evidenciando a potencialização de noções relativas
à lógica do pior. Em meio a tantas possibilidades de demonstrar esse enunciado, segundo
algumas lógicas evidenciadas pelo dicionário, escolhe-se “a do pior” para articulá-lo; aquela
que é objeto do presente estudo, a da filosofia trágica, segundo Rosset (1989).
A postura dos pensadores trágicos é a de pensar o pior e explicitar que esse pior é
nada poder afirmar, confirmando assim a ausência de toda ilusão. O argumento trágico
fundamental dessa lógica parte de um estado de alegria virtual e chega à desordem, ao
silêncio, por meio da afirmação da impossibilidade de qualquer pensamento: “Não
salvação”. O pressuposto dessa lógica do pior é: o que deve ser buscado e dito antes de tudo
108
é o trágico, constituído pela impossibilidade prévia de qualquer dado, como se lê: “também
tudo não é assim escuridão e morte. (...) Não é assim?”. Esta afirmação pode estar revestida
de uma voz trágica se for reestruturada com outra “pontuação”, de outra forma, para
decifrar o enigma em meio à diversidade de referentes: “Tudo não é. Assim, também
escuridão e morte. Não é. Assim.” Essas premissas, relidas dessa forma, revertem e
respondem a questão: “Não é assim?”. Desnuda-se, no avesso do enunciado, o trágico
latente na brincadeira de trocadilhos do lúdico, típico do mundo infantil de continhos
fabulosos como esse, em que um rio escuro, um bicho medonho, um menininho ingênuo
em busca de um crisântemo polpudo e amarelo; menininho esse que é mastigado e
devorado.
A premissa revertida em tudo não é coincide com a visão fundamental da filosofia
trágica, abordada por Rosset (1989), ou seja, a história dessa visão impossível, visão do nada,
rien, que não representa a instância metafísica chamada nada, néant, mas antes o fato de
não existir algo que seja da ordem do pensável e do designável. Esta não se propõe a revelar
nenhuma verdade, somente descrever de maneira mais precisa o que pode ser esse “anti-
êxtase” filosófico em vista do espetáculo do trágico e do acaso.
A atitude aprobatória, na lógica do pior, tem uma dupla face: de um lado, dizer o
pior, no sentido terrorista da noção trágica, verbalizar, constituir-se numa arte de destilar
venenos, expor o estado de morte de tudo o que existe, provocar a perdição e a abolição de
qualquer sentido que possa sustentar-se conceitual e filosoficamente. De outro, a aprovação
leva a alegria da escolha entre viver tendo consciência desse estado em lugar de matar-se.
Essa aprovação abre o espaço para unir morte e festa, conceito já mencionado.
6.3 O lúdico da perdição
Nessa alternância entre morte e festa, volta-se à análise da tomada de posição na
perspectiva do lúdico, da distorção semiótica dos referentes literários. No início de Fluxo (in:
HILST, Fluxo-floema, 2003
)
, a voz do sujeito da enunciação dirige-se ao enunciatário: “calma,
calma”, assumindo a predicação do discurso e dando voz juntamente ao ator de saber
insabido para refletir sobre os fantasmas do de dentro, deixando entrever a letra do saber
109
trágico sobre a condição humana, “também tudo não é assim escuridão e morte”, na
tentativa de buscar novas “possibilidades em torno do”. Essas possibilidades são encenadas
no texto pela manipulação de modelos cristalizados de linguagem que, por isso, no contexto,
adquirem uma tonalidade jocosa: a voz do ator de saber insabido, ao iniciar o discurso
nestes moldes “Uma vez um menininho foi comer crisântemos perto da fonte numa manhã
de sol”, denota em “uma veza marca de um conto de fadas, mas, no non sense, de “comer
crisântemos”, espelha simultaneamente outro estilo ao qual se acrescenta uma paisagem
romântica: “numa manhã de sol”.
Esse estilo romântico carrega nuances que resvalam para o fantástico, refratado em
duplo, não somente no gênero maravilhoso, típico do conto de fadas, mas no gênero
fantástico propriamente dito, criando no discurso certo suspense e acrescentando o humor
de um conto policial: “Perto da fonte havia um rio escuro, dentro do rio havia um bicho
medonho”. Por sua vez, o uso do diminutivo “menininho”, ao mesmo tempo em que faz
parte do contexto do conto maravilhoso, deixa entrever outro registro, novamente duplo
entre o riso e o trágico, por sua tonalidade irônica que poderá ser melhor percebida no
conjunto do trecho citado.
Nesse jogo entre atualização e potencialização, entre distorção e flutuação de estilos
na construção da práxis enunciativa, podem-se evidenciar outras formas. Na continuidade
do texto, o diminutivo vai-se repetindo, enfatizado pela atmosfera romântico-fantástica: “Aí
o menininho viu um crisântemo partido, falou ai, o pobrezinho está quebrando todo, ai caiu
dentro da fonte”. O suspense é mantido. O “aí” espelha-se em anagrama no “ai” que se
estende em ressonâncias em “vai” e “caiu”, explorando o nível dos significantes, próprio do
delírio: “ai vai andando pro rio, ai ai ai caiu no rio, eu vou rezar, ele vem até a margem, aí eu
pego ele”. Ao estilo maravilhoso-fantástico-romântico, acrescenta-se a tensão entre o
registro religioso e o registro de linguagem da crueldade, explícita em: “caiu no rio, eu vou
rezar, ele vem até a margem, eu pego ele”, acentuando, nesse contraponto, a cena do
riso.
O contraste se evidencia mais ainda, não no nível da repetição de palavras e de
metáforas como também no jogo de significantes em comutação, enfatizando seu caráter
lúdico e jocoso. A oposição entre as metáforas “bicho medonho, menininho, crisântemo”
abre a cena para a exposição da letra do trágico. O discurso atualiza a significância que
estava em potencial e transforma os estilos numa “parábola” que, na sua insidiosa ironia, na
110
oposição tensiva, transforma-se, no conjunto, em riso demolidor, explicitando
metaforicamente a antropofagia de estilos:
Acontece que o bicho medonho estava espiando e pensou oi, o menininho
vai pegar o crisântemo, oi que bom vai cair dentro da fonte, oi ainda não
caiu, oi vem andando pela margem do rio, oi que bom bom vou matar a
minha fome, oi é agora, eu vou rezar e o menininho vem para minha boca.
Oi veio. Mastigo, mastigo (Fluxo in: HILST, Fluxo-floema, 2003, p.19, gs.a.).
As constantes repetições, a insistência no nível do significante, as tonalidades
simultâneas do riso leve, jocoso, passando pela ironia, atingem, no confronto, o riso
demolidor que expõe a tensão entre o estado de morte, letra do trágico, e a festa. Na dupla
expressão “Mastigo, mastigo” revela-se metaforicamente a potencialidade do discurso
antropofágico que tudo devora de maneira “destruidora e trágica”, não só no gozo de
suspender, reverter, distorcer, trabalhando com a flutuação dos sentidos, mas também ao
acrescentar a significância do trágico capturado na letra, na negação de tudo que existe:
“tudo não é (...) Não há salvação. Calma, vai chupando o teu pirulito”.
Diante dessas considerações, fica explícito o mecanismo da práxis enunciativa de
Hilst na tensão entre festa e trágico. Sua capacidade de trabalhar a linguagem em uma
lâmina de duplos que se espelham caleidoscopicamente, simulando a enunciação exercida
do lugar do paranoico, deixa fluir os significantes em cadeias metonímicas, desamarradas do
sentido, na tentativa de encontrar um sentido para o discurso e para o trágico da existência.
As várias “possibilidades em torno do”, em torno do nada, da impossibilidade de fixar uma
significância capaz de situar a linguagem no discurso, abre a cena para o trágico:
impossibilidade de fixar sentidos e impossibilidade de fixar soluções para a consciência do
não ser. Em face disto, resta a aprovação pelo riso:
E ainda assim com esse esforço, a veia engrossando no pescoço, a língua se
enrolando líquida, mesmo assim vocês estão dizendo ui ui, que tipo
embobinado, que caldeirão de guisado, que merdafestança de linguagem.”
(Fluxo in: HILST, Fluxo-floema, 2003, p.51,52, gs.a.).
A quem te dirigias quando versejavas? A ninguém. Disseste aquém? A
ninguém, senhora. Disseste além? A ninguém. Ah, sim, a alguém, disseste
bem. Ruiska, eu Palavrarara, trouxe um grilanda de ouro com uuas pedras
preciosas, que ham virtude de confortar, contam algu us. Enton veerás que
todas as cousas de que os homes em a vilhise ham temor, é vento mui
pequeno, que o abala como canaveia leve. (...) Passaste queenturas,
111
misquindade? Nom hajas temor, lances âncora pera haveres folgança e
assessego (Fluxo in: HILST, Fluxo-floema, 2003, p.56).
Dessa maneira, na perdição do eu em busca de respostas para situar o lugar do ser, é
possível captar a voz do ator de saber trágico que inverte e reverte os sentidos dessa busca.
A atualização dessa potencialidade do trágico provoca nos desdobramentos do saber
insabido uma fenda por onde se instala a voz do ator de saber trágico, evidenciando um
saber paralelo, para revelar simultaneamente: “loucura controlada e júbilo”.
6.4 A semente da errância
A experiência de perdição do ser é um dos tópicos presentes no discurso de Hilst,
usado para abordar-se a enunciação do trágico. Segundo a gica do pior, trata-se do estado
permanente no qual o homem se encontra; estado que implica a ausência de referenciais de
qualquer ordem. O ser humano, defrontado com o acaso, perde-se na busca de um sentido
que justifique sua existência.
Fluxo é uma narrativa semente. Nela estão os genes do trágico e de toda a escritura
de Hilst que perpassam, num eterno retorno, o conjunto da obra. O discurso em Fluxo é
sempre um devir, um vir a ser, um ser linguagem em perdição. Na tentativa de encontrar-se,
o ator de saber insabido desdobra-se e multiplica-se, mantendo-se num estado de errância,
como num fluxo ininterrupto, experienciando todas as formas de dizer-se nesse estado. No
enunciado a seguir, observa-se o discurso do ator de saber insabido:
Eu queria ser filho de um tubo. No dia dos pais eu comprava uma fita
vermelha, dava um laço no tubo e diria: meu tubo, você é bom porque você
não me incomoda, você é bom porque é apenas um tubo e eu posso olhar
para você bem descansado, eu posso urinar a minha urina cristalina dentro
de ti e repetir como um possesso: meu tubo, meu querido tubo, eu posso
enfiar dentro que você não vai dizer nada (Fluxo in: HILST, Fluxo-floema,
2003, p.20).
A substituição da referência da pessoa do pai por um objeto surge como um aparente
non sense por buscar-se num objeto vazio por dentro, oco, uma referência de pessoa,
112
transformada em metáfora da letra do trágico. Do ponto de vista do ator de saber insabido,
essa metáfora desvela a perda de referência do sistema familiar. Além disso, um duplo
invertido na perspectiva da relação pai/filho. Comumente, um filho espelha-se no pai; por
tratar-se de um espelho, a imagem aparece “naturalmente” invertida. De forma semelhante
ao conto maravilhoso Branca de neve e os sete anões, em que a madrasta se olha no
espelho, buscando diferenciar-se da enteada, em Fluxo, as palavras do actante: “meu tubo
(...) você é bom porque eu posso olhar para você bem descansado (...) e repetir como um
possesso: meu tubo, meu querido tubo evocam o pai metaforizado em tubo, como se
evocasse a imagem espelhada, porém, no lugar de mostrar-se invertida, esta descortina a
noção de vaziez do trágico, passível de ser depreendida do saber insabido, pela brincadeira
feita com o mecanismo metafórico.
Na figura da madrasta, percebida dialogicamente, encontra-se um sema de poder
que, de forma divergente, em Fluxo, é deslocado e projetado no pai-tubo, indiciando o
desejo de poder sobre o pai. Essa imagem do pai, ameaçadora para o paranoico, é destruída
e subjugada, no momento em que o humano é transformado em objeto. Contudo, ao ser
identificada pelo vazio, permite o descolamento da letra do trágico: identifica-se o ator de
saber insabido com o vazio.
Se por um lado a voz do saber insabido fala na posição de filho, numa relação filho-
pai-tubo: “Eu queria ser filho de um tubo”, por outro, esse actante retorna à figura de um
“filho”, construindo uma referência inversa, quando pronuncia, em seu delírio: “Meu filho,
não seja assim, fale um pouco comigo, eu quero tanto que você fale comigo, você vê, meu
filho, eu preciso escrever, eu sei escrever as coisas de dentro, e essas coisas são
complicadíssimas mas são... são as coisas de dentro” (Fluxo in: HILST, Fluxo-floema, 2003,
p.20). Essa voz pronuncia a dolorosa solidão do paranoico diante do silêncio do filho
imaginário. Segundo Rosset, “o paranoico fala do pior”, e o trágico diz que “o pior é nada
poder afirmar”. Esta redundância em torno do pior associa mudez e impossibilidade de dizer
evidenciada na escritura de Ruiska: eu preciso escrever, eu sei escrever as coisas de
dentro, e essas coisas são complicadíssimas”.
Na desconstrução do discurso em torno do sistema familiar (uma ideologia) ocorre o
descolamento do que poderia ser pleno de sentido em mudez: “fale um pouco comigo, eu
quero tanto que você fale comigo”. O ator de saber insabido na referência anterior de pai,
usa essaa figura relacionada à vaziez e à mudez. Nessa somação, nesse retorno ao pior,
113
retorno do mesmo num contexto diferente, é possível evidenciar uma dupla enunciação
sobreposta: a do saber insabido e a do saber trágico: o pior é nada afirmar “essas coisas
são complicadíssimas”.
Outro ator interpõe-se na enunciação, a figura do editor, desconstruída de modo
jocoso e grotesco, por meio do epíteto: cornudo”. Essa voz entra em tensão com a voz que
se pronuncia do lugar do saber insabido na busca do de dentro e dissolve ironicamente a
ilusão metafísica, pondo em seu lugar outra ilusão, a da ideologia capitalista: “E vem o
cornudo e diz: como é que é, meu velho, anda logo, não começa a fantasiar, não começa a
escrever o de dentro das planícies que isso não interessa nada, você agora vai ficar riquinho
e obedecer, não invente problemas” (Fluxo in: HILST, Fluxo-floema, 2003, p.20).
Ao usar o riso como recurso na figura grotesca do “cornudo”, o sujeito da enunciação
potencializa o saber trágico, dissolvendo o ideológico, num contexto capitalista, por meio da
ridicularização do editor. O “cornudo” quer colocar no lugar do nada (experiência metafísica
do ser: falar do de dentro) outro nada (experiência capitalista do ter: “vai ficar riquinho e
obedecer”). As tonalidades irônica e grotesca são usadas pela enunciação para realçar a
desconstrução das ideologias:
Toma, toma quinhentos cruzeiros novos e se não com inspiração vai por
mim, pega essa tua folha luminosa e escreve no meio da folha aquela
palavra às avessas. Uc? Não seja idiota, essa é a primeira possibilidade,
invente novas possibilidades em torno do (Fluxo in: HILST, Fluxo-floema,
2003, p.21).
O ator de saber insabido pondera, no enunciado abaixo, sobre o seu completo
desconhecimento do discurso da invenção de “novas possibilidades em torno do”, unindo a
ironia ao silêncio trágico da incapacidade de verbalizar o vazio:
Agora estou livre, livre dentro do meu escritório. É absurdo minha gente,
estudei história, geografia, física, química, matemática, teologia, botânica,
sim senhores, botânica, arqueologia, alquimia, minha paixão, teatro, é,
teatro eu li muito, poesia eu até fiz poesia mas ninguém nunca lia, diziam
coisas, meu Deus, da minha poesia, os críticos são uns cornudos também,
enfim, acreditem se quiserem, não sei nada a respeito do (Fluxo in: HILST,
Fluxo-floema, 2003, p.23).
114
É intensificada nos inúmeros saberes, relativos à semiosfera cultural, a inutilidade
para “conhecer” a essência daquilo que ele procura investigar: as coisas do de dentro”. Ao
dizer: “não sei nada a respeito do”, Ruiska marca, sem saber, a insuficiência desses saberes
para dar sentido a qualquer discurso que se possa verbalizar.
Entre os saberes do homem são destacados inclusive aqueles relacionados às artes
dramática e lírica, porém nenhum deles é suficiente para dar sentido à existência humana. A
letra do trágico, depreendida desse reconhecimento, serve para pôr em relevo o saber
trágico ao afirmar-se a vida humana quando se constata que nada foi construído. Tal
reconhecimento entre o ser e o saber intensifica o estado de perdição do ator de saber
insabido pela impossibilidade de preencher o vazio com algum discurso.
6.5 Máscaras da fragmentação do eu
Outra forma de expressar a perdição do ser, caracterizada por sua natureza no limite
da experiência trágica fundamental, é apreendida no discurso de Hilst no modo como
Ruiska, ator de saber insabido, fragmenta-se em várias outras vozes no discurso:
Agora escreve... Espera, eu preciso sentar. Então senta. (...) Agora escreve:
dentro de mim, este que se faz agora, dentro de mim o que se fez, dentro
de mim a multidão que se fará. Alguns eu os conheço bem. Mostram a cara,
assim é que eu gosto, me enfrentam (...) Olhe aqui, Ruiska Ruiska sou eu,
eu me chamo Ruiska para esses que se fazem agora, para os que se fizeram,
para a multidão que se fará, e para não perder tempo devo dizer que minha
mulher se chama Ruisis e meu filho se chama Rukah (Fluxo in: HILST, Fluxo-
floema, 2003, p.23,24).
Observa-se no enunciado a marca de uma dupla instância de enunciação: “Agora
escreve... Espere, eu preciso sentar”. Trata-se do eu desdobrado em outro eu, perdendo-se
na multiplicidade dos eus, criando um triângulo familiar imaginário: pai-mãe-filho,
respectivamente Ruiska-Ruisis-Rukah. Dessa profusão de vozes de um eu-outro, porém,
destaca-se uma voz que entra em tensão com o eu do ator de saber insabido e o questiona:
115
Quem é você, Ruiska? Hein? Ele está começando a perder a paciência, está
se aproximando, me esbofeteia, não faz mal, vai batendo, vai me
arrancando os dentes, corta a minha língua, faz o que quiser mas eu não sei
responder. Quem é você, Ruiska? Hein? (Fluxo in: HILST, Fluxo-floema,
2003, p. 24)
Essa voz questionadora que irrompe de um outro potencializa o saber trágico ao
colocar em questão “Quem é você, Ruiska?”. Dessa maneira, permite que se detecte, na
origem do saber trágico, um objetivo de ordem psicanalítica e catártica: a de fazer passar o
trágico da inconsciência à consciência, mais especificamente, do silêncio à fala, concernente
à noção de ser, nesse caso, a que leva Ruiska a explicitar: “eu não sei responder”, além de:
(...) e estou pensando como é possível que esses que se fazem em mim, que
se fizeram e que se farão, não compreendam a impossibilidade de
responder coisas impossíveis. Ora vejam só, existo apenas alguns
minutos, essa ninharia de tempo, e é claro que não posso responder o que
sou. Porque não sei (Fluxo in: HILST, Fluxo-floema, 2003, p.24,25).
Evidencia-se, desse modo, o estado de perdição do ser, levado a intensificar o pior, “a
impossibilidade de responder coisas impossíveis”, ou seja, de não saber responder a respeito
do ser, porque, na verdade, segundo a letra do trágico daí depreendida, não existe o ser.
Disso decorre “a impossibilidade” de construir qualquer discurso sobre o ser. É o saber
insabido, destacando-se como arauto do saber trágico.
Num novo estado de errância do ser, o ator de saber insabido sai de si mesmo e
busca a desmaterialização do corpo, porém, no percurso, transforma-se em elementos
daquilo que se costuma denominar natureza:
Começo a sair de mim mesmo. (...) eu atravessando as paredes (...) eu me
tornando todas as árvores, todos os bois, as graminhas, as ervinhas, os
carrapichos, o sol doirado no meu corpo sem corpo (...) é mais bonito ser
tudo isso, ser água, escorregadia, amorfa, ser o que a água é quando está
dentro de uma coisa que é uma apenas, ser o rio, o copo, ser todos os rios,
todos os copos (...) ser leve, tatuado de tudo, tatuado de nada, ser o
estilete, a mão, a tinta, a figura, ser um mitocôndrio (...) Mas agora não
consigo voltar ao meu corpo, oh como é difícil deixar de ser o universo e
voltar a ser apenas eu (Fluxo in: HILST, Fluxo-floema, 2003, p.26,27).
Essa dispersão, pelo caminho da não materialidade, resvala para o estado tensivo
entre ser tudo e ser nada, ser o universo e ser apenas um eu. Essa perdição está inundada de
116
júbilo perceptível na linguagem poética, representativa de um mundo natural, transformado
em ficção no qual, ao eliminar-se a ideia de natureza, institui-se a noção de convenção, em
que nada diferencia o natural do artificial (o mundo da representação). A extinção da ideia
de natureza e da ideia de ser leva à noção sofística de ocasião (kairós): o homem e a
sensação são ocasiões, os sentidos flutuantes, deslizantes e singulares das coisas, o mundo
dos discursos sobre acontecimentos: “ser leve, tatuado de tudo, tatuado de nada, ser o
estilete, a mão, a tinta, a figura”, imagens que traduzem um mundo criado pelo que se
convenciona ser, a partir de uma “consciência” necessitada de nomear as coisas para que
elas tenham existência. Mantém-se, nessas circunstâncias, o ser em estado de perdição,
espelhado pelo saber trágico. A ideia de hasard dissolve a ideia de natureza e põe em
questão a noção de ser:
(...) eu Ruiska, tinha várias máscaras de cera, belíssimas, estupendas. Uma
manhã vejo Rukah diante de um improvisado fogão de tijolos e dentro do
caldeirão as minhas máscaras, quero dizer, apenas um nariz quase desfeito,
metade de algumas testas estupendas, e ele: pai, olha como você mesmo
derrete bonito (Fluxo in: HILST, Fluxo-floema, 2003, p.30).
A letra “derreter”, no discurso de Hilst, desnuda seu caráter trágico. A metáfora,
depreendida do fragmento acima desvela a noção de que, sob a aparência de toda natureza,
existe a verdade de uma não natureza, denunciada nas máscaras derretidas. Instaura-se,
portanto, o pavor do déjà-vu. Na metáfora do “caldeirão”, o “inferno” do ser defrontado
com sua diluição, com a “consciência” trágica de ser nada, de que todas as ilusões (as
máscaras) não conseguem preencher o vazio da existência. “Derreter” é igual a diluir,
consciência do nada de tudo que é concebido como sentido: o “nariz”, metonímia da
interferência do discurso do escritor no mundo; as “testas estupendas”, o pensar
brilhantemente o mundo. Tudo leva pela peculiaridade das imagens a evidenciar “o medo de
ter acreditado em alguma coisa que então já era falsa”, numa referência a Rosset (1989).
Na indeterminação temporal da loucura, surge no discurso outra voz, a de um anão:
“Oh, o anão. A primeira vez que eu o senti ao meu lado, apenas senti, não vi, a última vez,
isto é, três dias depois da morte de meu filho... três dias? três mil dias? (Fluxo in: HILST,
Fluxo-floema, 2003, p.33)”. Essa voz, algumas vezes, é manipulada apenas como um
desdobramento do eu, outras vezes, em tensão com o ator de saber insabido, assume o
lugar do saber trágico:
117
O espírito de Rukah? (...) mais um, mais um aqui neste escritório (...) É duro,
é duro ser constantemente invadido, nem com a porta de aço não adianta,
eles se fazem, se materializam. Ora, ora Ruiska,você abre uma claraboia,
abre um poço, e não quer que ninguém apareça? Vamos, você vai gostar de
mim, eu sou um anão. (...) De onde você vem, hein? Do intestino, da cloaca
do universo, do cone sombrio da lua (Fluxo in: HILST, Fluxo-floema, 2003, p.
34,35).
A identificação dessa voz que se manifesta no discurso é marcada por algumas figuras
portadoras de um sema grotesco, de metáforas que evocam o universo do trágico: anão,
intestino, cloaca, cone sombrio, remetem ao avesso, ao divergente, ao rejeitado, ao oculto,
àquilo que se procura manter encoberto por meio de alguma ilusão:
Tu mesmo, anão, seria tão simples te definir. Defino-te? Ou não te defino?
Não é melhor que cada um defina o seu próprio anão? O meu anão
certamente o é igual ao vosso, nem poderia ser, porque se eu sou como
sois, também sou único, e o meu anão é único também, apesar de ser igual
ao vosso. Ao vosso anão. Esperem. Há certas coisas que eu preferia calar (p.
37,38).
A impossibilidade de qualquer verdade marca o saber trágico, depreendido a partir
das indagações que definem o saber insabido:
Olhe aqui, Ruiska, não fale tanto em si mesmo agora, porque o certo no
nosso tempo é abolir o eu, entendes? Como é que é, anão? Fale do homem
cósmico, dos, das. Mas se eu ainda não sei das minhas vísceras, se ainda
não sei dos mistérios do meu próprio tubo, como é que vou falar dos ares
de lá? (...) Mas é justo falar do de cima se o de baixo nem sabe onde colocar
os pés? (Fluxo in: HILST, Fluxo-floema, 2003, p.41)
A lógica do pior considera o homem consciente de que fala de nadas, em favor de um
saber trágico, que denuncia o vazio, a impossibilidade de construir discursos para colocá-los
no lugar do nada, como se pode perceber no fragmento acima, na apreensão da voz
descolada do ator de saber insabido que, em perdição, interroga sobre sua existência, sobre
sua essência, por isso, incapacitado de falar do inconsistente “homem cósmico”. A incômoda
questão do ser no mundo é incessantemente repisada pelas vozes em busca do
preenchimento da falta de sentido original, que responda: quem sou? Quem são os outros?
Quem é o “homem cósmico”?
118
6.6 Decomposição e pavor do nada
Vou mergulhando no poço. O olho encarnado do. cadáveres por aqui. Ah,
isso há. Não queria chegar a tanto. Dizer que há cadáveres é chegar a tanto, é
chegar aonde eu não queria. Cadáveres de quem, Ruiska? Oh, não me
obrigues, anão. Oh, sim, velho Ruiska, chega perto,vamos, olha os
verdolengos fios de carne desse corpo (...) Quem é ele, Ruiska, hi, como
ficaste menino de repente, que brejeirice, que correcorre. É meu pai, anão,
meu pai amadíssimo. Como ele era na víscera, hein? Ele era eu, anão, ele era
todo pra fora e ao mesmo tempo era todo pra dentro. (...) era pra dentro nos
adentros (...) ficava se desentranhando (...) ele não era simples não, nada
disso, era um homem muito complicado, muito torcido como eu mesmo, e
quando eu digo que ele se desentranhava quero dizer que ele ficava se
descobrindo, que ele punha pra fora os pensamentos de dentro, que ele
pensamenteava, entendes? (Fluxo in: HILST, Fluxo-floema, 2003, p. 43,44,45)
Se a busca pela não materialidade, demonstrada noutro fragmento, mantém o ser
em estado de perdição, num mundo convencional onde tudo é ocasião, nesse trecho citado,
a “ocasião” se faz pelo “mergulho” no espaço-abismo do de dentro, metaforizado em
“mergulhando no poço”. Reafirma-se o mesmo estado trágico, depreendido do lugar de um
saber insabido por “figuras” micas que se acumulam e se complementam: cadáveres, fios
de carne verdolengos, vísceras. A decomposição do ser inscreve-se ao mergulhar no próprio
ser, afirmada pela inconsciência: “não queria chegar a tanto. Dizer que há cadáveres é
chegar a tanto, é chegar aonde eu não queria”, a fala delirante é manipulada pelo sujeito da
enunciação que deixa transparecer o trágico da desnaturalização da noção de ser: no de
dentro o que há são “cadáveres”.
Dessa forma, a figura do pai, associada à figura de cadáveres, é investida de um pavor
que se desloca do estranho para o reconhecimento do familiar. Ver de súbito e demasiado
tarde o presente, o próximo, o familiar como ausente, distante e estranho é a experiência
trágica por excelência, afirma Rosset (1989). A voz enunciativa “desentranha” a fala paterna,
instaurada no discurso de maneira insólita, fantamástica, do ponto de vista psicanalítico, e
fantasmagórica, do ponto de vista da literatura fantástica, recoberta por uma letra trágica,
perpassada paradoxalmente de demência e lucidez:
119
(...) ele falava assim: meu Deus, por que o mundo me comove tanto? É
dar dois três passos, ver o olho do cavalo, ver o olho da vaca, ver o homem
meu Deus, o homem, esse abismo mais fundo que me come, meu Deus a
memória tristíssima de tanta inocência, como eu gostaria de arrancar a
minha pele e mostrar o meu todo para o outro (...) eu existo até onde, eu
existo até... até... até que grande muro eu existo? (...) ele beijava o ubre da
vaca, sorria e ria grande e alto para a vaca, depois esguichava o leite no
corpo grande e alto que era o dele, e gritava: isso o que é, que milagre é
esse que é branco, eu sou tão EXISTIR quanto esse que é branco e que sai
do ubre da vaca? (...) ele dizia de um jeito santo: come terra, filho Ruiska,
esfrega a terra no dente, bobalhão, cheira essa que vai te comer, essa linda
vermelha, essa que é mais você do que você, essa que é mais eu do que
todos os meus cantares, meus esgares, meus (Fluxo in: HILST, Fluxo-floema,
2003, p.45,46).
Instaura-se uma identificação entre o discurso do pai demente e do filho em
perdição; discursos que se sobrepõem num mesmo prisma de busca, capturados em
instantes privilegiados, de Kairós, de déjà-vu, singularidades que redescobrem na diferença o
retorno do acontecimento original, por meio das mesmas questões, “logotípicas”,
fundamentais: “por que o mundo me comove tanto? (...) o homem, esse abismo mais fundo
que me come”. Marca-se uma identificação entre homem e natureza, inscrita de forma
“criptográfica”, por meio de aproximações de significantes inusitados: “que milagre é esse
que é branco, eu sou tão EXISTIR quanto esse que é branco e que sai do ubre da vaca?”.
A natureza e o ser revelados em estranhos “cantares” e “esgares” de júbilo e de
terror, na perdição do não compreender; a terra como substituto do homem-pó, na sua
imprevisível permanência de ser pó, diluição do nada, do antes, do agora, do depois, festa
diante da morte, como acentua Rosset (1989), ao caracterizar a especificidade da
consciência trágica: esfrega a terra no dente, bobalhão, cheira essa que vai te comer, essa
linda vermelha, essa que é mais você do que você, essa que é mais eu do que todos os meus
cantares, meus esgares, meus”. Loucura de um olhar e de um riso demolidores de quem
sabe o nada que é “EXISTIR”, semelhado ao “branco” da indeterminação da mente em
encontrar significados naquilo que julga ser a natureza do SER.
A voz do ator de saber insabido reconhece no estranho o familiar, no distante o
próximo quando se identifica não com o pai, mas também com a demência desse
cadáver-fala do pai, que passa a ser pronunciado do mesmo lugar de um saber insabido. O
saber de controle do sujeito da enunciação manipula as tonalidades poéticas do discurso,
revelando um saber estrutural sobre a linguagem que evidencia o contraste opositivo, o
120
duplo na própria letra da dimensão retórica, no uso que faz da antanáclase, colocando em
contraste convergente/divergente o retorno das afirmações do pior (visão do paranoico) e
das afirmações de que o pior é nada afirmar (visão do saber trágico):
Por favor, tudo isso tem sentido, tem sentido tudo o que aparentemente
não tem sentido, e tem sentido também tudo o que realmente não tem
sentido. Ah, eu queria ter sentido. Eu queria ter sentido aquela água na
cara outra vez, aliás eu gostaria de ter sentido aquela água na cara outra
vez (...) (Fluxo in: HILST, Fluxo-floema, 2003,p.38).
A alegria do jogo mistura-se ao estado de morte de tudo o que é vivente, numa
linguagem pontuada pelo uso da antanáclase. Esta é uma reiteração do mesmo com
sentidos diferentes; aponta vários sentidos, mas não fixa nenhum deles, servindo para
veicular a linguagem do trágico que, ao não fixar sentido, instaura a perdição do ser na
dimensão da linguagem, da mesma forma que o ator de saber insabido é um “eu” que se
deixa capturar por vários outros, no entanto, por não saber nada em relação às suas próprias
referências contextuais, encontra-se perdido. Em outras palavras, esse ator é manipulado a
partir da perspectiva do hasard original que, segundo a filosofia trágica, recusa a ideia de
natureza, por não supor qualquer natureza na sua origem, por ser anterior a tudo e estar em
todos os lugares.
O terrorismo filosófico manifesta-se pela extinção da ideia de natureza, que se
estabelece como tema fundamental do trágico. Em Fluxo, o aniquilamento da natureza
chega ao limite quando dissolve a figura do escritor, máscara do saber insabido, e dissolve a
própria escritura manipulada como delírio. O anão, figura de uma das vozes do paranoico, é
manipulado pelo sujeito da enunciação e coloca-se na posição do saber trágico:
Ruiska, chegou a hora, tens que compreender. Que medo, anão. Olha não
fales muito, o mundo por tem sofrido bastante, tu é que não sabes por
que ficas fechado, aliás, Ruiska, queria te dizer que manténs uma posição
muito antipática, isso de se trancar, ter a porta de aço, os adentros (...)
penso que deves... que nunca mais... quenuncamaisdevesescrever... (...)
Estás me matando, anão, para. (...) eu sei desse teu ser que também é o
meu (...) és tão só, eu compreendo. (...) a tua metafísica de dentro é coisa
pra depois, entendes? (...) Anão, por favor, o meu de dentro o teu a dor o
vazio palavra morta da minha boca tudo trevoso queria amo não sei amo
não sei amo não sei demais paredões da memória memória memória
memória cascalho confundindo o percurso das águas dor pátio onde os
homens caminham chamados ai AAAAAAAAAIIIIIIIII (...) o ovo a periferia da
121
galáxia vida vida ali se faz mais matéria ali começa a matéria ai e eu e eu
nunca mais o meu de mim sempre agora o meu do outro meu mais longe
ou meu mais perto não sei o outro não é eu ou não sei umbigo centro de
mim ou do universo não sei (...) vida goiabada em lata memória memória
memória morrer fica saliva gosma gosma esticando sempre teia sempre
teia teia de aranha centro umbigo AAAAAAIIAAAIAAI (Fluxo in: HILST, Fluxo-
floema, 2003, p.64, 65).
O ator de saber insabido, em errância, procura definir para o anão em que consiste
essa busca pela “metafísica do de dentro”. Impossibilitado de determiná-la, insiste numa
letra representativa do nebuloso, do vago, do fragmentário, da ausência, representativa do
não saber. A práxis enunciativa se processa como teia que enlaça o actante nos próprios fios
da escritura labiríntica, aparentemente caótica, circular, caleidoscópica. Essa estrutura,
manipulada pelo sujeito da enunciação, transtorna e desloca as referências tanto do
enunciador quanto do enunciatário, transformando a massa sígnica numa “gosma”
aderente, insólita que se alastra em repetições e retornos, confundindo na mente lucidez e
loucura, luz e trevas, desintegrando-se na matéria simuladamente informe, no vazio dos
significantes que em eco dão voz ao saber trágico: desintegração do discurso supostamente
preenchedor de ilusões.
Cala-se a voz do escritor-escritura: “quenuncamaisdevesescrever...”. Confundem-se
numa matéria informe os discursos mantenedores da ilusão de dar sentido ao estar-no-
mundo: “a dor o vazio palavra morta da minha boca tudo trevoso (...) não sei demais
paredões da memória memória memória memória cascalho confundindo o percurso das
águas dor pátio onde os homens caminham chamados ai AAAAAAAAAIIIIIIIII”. Dilui-se o
limite entre saber e não saber, entre consciência e insanidade, entre poder-dizer e não
dever-dizer, entre o todo da ilusão e o nada do significante vazio, entre a denúncia e o
silêncio.
Acompanhando-se a letra do discurso do ator de saber insabido, pode-se
desentranhar no pior da dor do paranoico a “dor” silenciosa da letra do trágico, por não se
ter como definir a existência. O próprio discurso é manipulado de um lugar cujo saber de
linguagem permite depreender-se uma gica dos significantes, uma lógica que trabalha a
letra como um sema lacunar, com valor de metonínia, desvelando o campo do trágico: “o
vazio palavra morta tudo trevoso não sei paredões da memória”. Observa-se que o sujeito
da enunciação manipula propositadamente o discurso por meio de uma pontuação
122
inexistente, com a supressão de elementos sintáticos conectantes, instaurando referências
paradigmáticas caóticas, em espelho, de igual valor ou de nenhum valor significativo. O que
existe é nada, cujo sentido se entende como nada a respeito do que se pode definir como
ser, nada que seja suficiente para oferecer-se à delimitação tanto no nível conceitual como
no existencial, segundo Rosset (1989), completa perdição do discurso e, consequentemente,
da voz que busca algum sentido na metafísica.
A práxis enunciativa simuladamente caótica, numa construção com base na ruptura
de noções causais, montada sobre o aparente acaso de relações sígnicas, articuladas de
forma aleatória, efetiva na voz do ator de saber insabido a confusão entre noções
existenciais de princípio, meio e fim, ou seja, de referenciais de pessoa, tempo e lugar, no
emARANHAdo do discurso, o tecido-teia da linguagem, formada no “informe” de uma
singular urdidura. Nessa “gosma” sígnica, o actante tenta explicitar as significações,
confusamente jorradas, por uma memória errante:
o ovo a periferia da galáxia vida vida ali se faz mais matéria ali começa a
matéria ai e eu e eu nunca mais o meu de mim sempre agora o meu do
outro meu mais longe ou meu mais perto não sei o outro não é eu ou não
sei umbigo centro de mim ou do universo não sei (...) vida goiabada em lata
memória memória memória morrer fica saliva gosma gosma esticando
sempre teia sempre teia teia de aranha centro umbigo AAAAAAIIAAAIAAI
(Fluxo in: HILST, Fluxo-floema, 2003,p.64, 65).
Na investigação para distinguir o que é matéria do universo e natureza do SER, no
extravasar de sua dor, o paranoico tenta desentranhar de sua fantasia falada de forma
simuladamente inconsciente aquilo que é silencioso na consciência da humanidade: a falta
de respostas consistentes para a origem do mundo, para o estar-no-mundo e para o fim da
existência do ser, do universo, da “galáxia”, invertendo em espelho, a letra do “pior” do
saber insabido em “pior” do saber trágico, na sua impossibilidade de fixar sentidos, na
impossibilidade de chegar ao “centro”, ao “umbigo” das significações que respondam
satisfatoriamente sobre a condição humana: “eu nunca mais o meu de mim (...) morrer fica
saliva gosma gosma esticando sempre teia sempre teia teia de aranha centro umbigo
AAAAAAIIAAAIAAI”.
A escritura, figurativizada em teia, teia de aranha, na qual se tece o delírio simulado e
se evidenciam posturas da instância da enunciação, é o espaço da perdição do ser. Nesse
123
caso, é o espaço de perdição do eu figurativizado como escritor que se perde na tessitura do
discurso delirante, nas tramas e nas artimanhas da práxis enunciativa, somando-se uma
intensificação acumulativa que evidencia o singular campo da proprioceptividade do
discurso, instantes diluídos em restos finíssimos e tênues do nada. Manipulação vibrante de
um sujeito de enunciação que de fora comanda maquinicamente os fios do discurso de seus
atores“fantoches”, numa insana lucidez de controle textual.
Agora fica quieto, há uma passeata, não vês? São os príncipes do mundo, a
juventude, os que vão fazer. O quê? Vão acabar com os discursos do medo,
o homem vai nascer outra vez, e tu, olha, deves te preparar para esse fim-
começo, esconde as tuas mãos, são mãos de escriba (...) E VOCÊS DOIS
QUEM SÃO? Responde corretinho, Ruiska. Sabem, eu escrevia, e esse aqui
sou eu mesmo mas do cone sombrio. PARA AÍ. Um escritor, senhores,
muito bem, o que escreves? Escrevia, sabem, sobre essa angústia de
dentro. PARA AÍ. Senhores, eis aqui, um nada, um merda neste tempo de
luta, enquanto nos despimos, enquanto caminhamos pelas ruas carregando
no peito um grito enorme (...) um merda escreve sobre o que o angustia (...)
morte à palavra desses anêmicos do século (...) quem é que te engole,
homem? Todos que não estão do teu lado te engolem, todos esses que se
omitem, esses escribas rosados, verdolengos, esses merdas dessa angústia
de dentro. Espera um pouco, moço, não sou desses não, quando falo de
mim quero falar de ti, nós dois e todos, nós todos somos um, entende?
Vem, Ruiska, o moço vai te arrancar a víscera. (...) PEGA ESSE COM ESSE
ANÃO DE CIRCO. OS SENHORES FAZEM PARTE DOS REVOLTOSOS? Para
dizer a verdade, capitão, estava apenas conversando sobre essa coisa de
escrever e. ESCREVES? Sim senhor. Porra, Ruiska, outra vez. TOMA
UMAS BORDOADAS. (...) Vem, Ruiska, o fica no meio (...) que mania
também de dizer tudo, para com isso, não escreves séculos, morde a
mão e cala, isso de palavras acabou. (Fluxo in: HILST, Fluxo-floema, 2003,
p.65,66,67).
Na teia do discurso, a experiência de perdição manifesta-se na sua profusão de vozes,
mascaradas de saber insabido, desdobradas num eu-outro/anão. No entanto, a figura do
escritor se destaca e de sua fala se depreende o trágico “escrevi (...) sobre essa angústia
de dentro” defrontado com os falsos profetas da ilusão: vão acabar com os discursos do
medo”; “um merda neste tempo de luta (...) um merda escreve sobre o que o angustia (...)
morte à palavra desses anêmicos do século (...)”.
No contraponto tensivo, o eu busca dar sentido às questões: “quando falo de mim,
quero falar de ti nós dois e todos, nós todos somos um, entende? (...) isso de palavras
acabou”. A imagem que se constrói desse escritor perseguido é a de alguém que afirma o
pior, ou seja, um escritor trágico. Do ponto de vista da filosofia trágica, segundo Rosset
124
(1989), a intuição do hasard, da o-natureza, pode explicar a origem de todas as angústias
do ser humano, do mesmo modo que a ideia de hasard pode explicar o princípio de pavor,
referindo-se à experiência de perdição a partir da qual, somente, a experiência da angústia é
possível. Sendo assim, sob a ótica do saber trágico, compreende-se a rejeição pelos
“príncipes do mundo,” vozes figurativizadas em juventude que opta pelas ilusões em
contraste com a voz que se pronuncia como escritor que verbaliza angústias do de dentro e,
nessa hora, escolhe o silêncio, deslocando-se na voz do saber trágico.
Na tensão entre a voz do saber trágico e as ilusões, evidencia-se o nada pela
destruição do escritor e de sua escritura, da qual ele não se desvincula, assumindo por meio
das vozes um não saber que marca definitivamente sua perdição, na lucidez das trevas do
não poder encontrar um sentido para o ser, pois o homem simula não saber que as coisas
não têm sentido , que tudo é nada, conforme se atesta no fragmento seguinte:
Pois é claro, Ruiska, sou tua sombra, tudo que vem de baixo em ti, é coisa
minha, e és tu também inteiro. Tens ódio no teu de dentro, anão? Claro,
não sou feito de açucenas, tu sabes que me enrabam por aí, que é treva
esse sulco que faço sob a terra, que existo porque, sabes que não sei bem
por que existo? Nem eu, anão. Estamos conversando muito tempo e
quase nada do que falas eu entendo. Nem eu, Ruiska. AIURGUR é bonito
porque tem ronco e ais, AIURGUR é muito dor, tu o achas? (...) Ai, estás
te desmanchando, Ruiska. Não é nada, é esse sol do meio-dia, o olho já não
vê, mas percebe que... o olho a dimensão do nada a memória outra vez o
corpo retina infância quaresmeiras do acaso fugidias fugidias (...) (Fluxo in:
HILST, Fluxo-floema, 2003,p.69,70).
Escuta, anão, estou pensando. Em quê? Na coexistência, nesse ser dos
outros. Vai falando. Me ouves? Claro, mas vou fritando esses peixes (...)
mas falavas, anda, te escuto. Que é difícil. (...) acalma-te, come o peixe,
agora sim está frito, estás frito também, pois coexistes (Fluxo in: HILST,
Fluxo-floema, 2003,p.71,72).
A experiência de perdição do ser, figurativizada em Fluxo pelo duplo paranoico,
atualiza-se, quando se depreende o eterno retorno do trágico na diferença. de se
considerar que na tomada de posição a instância de enunciação pronuncia-se por meio de
uma voz que afirma: “Calma, calma, também tudo não é assim escuridão e morte. Calma.
Não é assim?”. Essa voz, manipulada pelo sujeito da enunciação, vai desvelando o estado de
perdição, letra do trágico, revertendo uma parábola do contexto infantil para o âmbito do
universo trágico e serve de confirmação para a conclusão “não salvação” (Fluxo in: HILST,
Fluxo-floema, 2003, p.20). Tudo não é. De modo diferente, mas repetindo-se, o “silogismo”
125
inicial assim se “conclui”: “acalma-te, come o peixe, agora sim está frito, estás frito também,
pois coexistes” (Fluxo in: HILST, Fluxo-floema, 2003,p.72).
O episódio trágico, conforme Rosset (1989), é marcado pelo reconhecimento de uma
palavra esperada desde sempre, sem jamais ter sido dita ou pensada. A ação trágica
apresenta-se necessária, “eu sabia”, por deixar-se casualmente identificar. O princípio que
assegura simultaneamente a identificação e a necessidade é a repetição evidenciada no
discurso trágico, a presença de um trágico difuso e repetível, de modo mais preciso, temível.
A repetição trágica revelaria um acontecimento que insiste num evento original, inédito,
desconhecido, como se fosse repetido. Dessa forma se fecham numa circularidade os fios do
discurso de Hilst, os do começo da narrativa: “Calma, calma, também tudo não é assim
escuridão e morte. Calma. o é assim? (...) Mas pensa, se você é (...) Não salvação.”
(
Fluxo in: HILST, Fluxo-floema, 2003,
p.20)/“Escuta, anão, estou pensando. Em quê? Na
coexistência, nesse ser dos outros (...) acalma-te, come o peixe, agora sim está frito, estás
frito também, pois coexistes.” (
Fluxo in: HILST, Fluxo-floema, 2003,
p.72). O repetido é sempre
um retorno do passado, do mesmo diferente que surge como novo, numa estranha
reaparição, numa forma singular de pavor.
Na práxis enunciativa de Hilst, coexiste um discurso que joga com o paradoxo loucura
/lucidez trágica, tudo/nada. Deixa claro que os discursos coexistentes não podem preencher
o vazio da existência, visto que ele é, a priori, um nada; o saber insabido coexiste na sua
trágica lucidez trevosa, condenado a circular infinitamente em torno do oco.
O discurso em Fluxo articula-se por uma dupla direção, característica das narrativas
de Hilst: a consciência da desnaturalização do ser instalado num espaço trágico de loucura e
a consciência da libertação da linguagem no discurso, o poder dizer sem preocupar-se com
alvos específicos, sem preocupação em atuar nesta ou naquela ideologia. Tudo se configura
como máscara, simulação, simulacro de verdades; perdem-se as referências de sentido,
perde-se o homem, e tudo não é.
126
CAPÍTULO 7
O OCO: A VAZIEZ DAS CRENÇAS
O oco é uma das narrativas da obra Kadosh, publicada inicialmente em 1973 e
reeditada em 2002. A indicação do sentido de vazio no próprio título do texto justifica, a
princípio, a escolha dessa narrativa para esta breve análise. O termo oco figurativiza o
trágico da existência, marcando a experiência de perdição e a vaziez de sentidos que não
indicam a soma das perdas, que repentinamente podem ocorrer, mas a verdade geral de
que não há nada a perder, não se tendo nada. Dessa maneira, acompanha-se o ator de saber
insabido em sua busca para situar o seu lugar no mundo, porém, em estado de perdição,
depara com fragmentos de discursos por meio dos quais tenta reconstituir sua posição no
mundo. O que se encontra, na verdade, é a ausência original de referência, vazio de
encadeamento dos acontecimentos e de toda ideia de finalidade.
quanto tempo estou aqui? não sei. Tem passado gente por perto,
pescadores, sei que são pescadores porque passam por mim e dizem hoje
terás um peixinho, velho. À tardezinha depositam o peixe ao lado dos meus
pés e continuam andando sei para onde (O oco in: HILST, Kadosh, 2002,
p.129).
Instaura-se no discurso o hasard, componente da perspectiva trágica, que é
controlado pelo sujeito da enunciação, manipulador da ausência original de referenciais,
percebida na pergunta “Há quanto tempo estou aqui? não sei”, acrescida de outro
fragmento: “Às vezes tento aquela coisa outra vez. Aquela coisa é fechar os olhos e descobrir
como é que eu vim parar aqui” (O oco in: HILST, Kadosh, 2002, p.130). Literalmente, quer
dizer na letra, o ator da enunciação explicita um saber insabido: “não sei”, e tento (...)
descobrir como é que eu vim parar aqui”.
Enquanto espero, olho para as minhas canelas. De fato não têm bom
aspecto. As calças vão até os joelhos, encolheram eu penso. Ou cresci? Não
127
sei (...) Então as canelas ficam expostas ao sol, os pés também, mas os pés
não sofrem tanto quanto as canelas. Deve haver uma explicação para isso
mas eu não a tenho (O oco in: HILST, Kadosh, 2002, p.131).
Seguindo-se uma direção de análise que tem como pressuposto a simulação do
delírio, parte-se do conceito de letra no discurso, para ir depreendendo-se o trágico. É
importante recordar que, segundo Lacan (2008), letra é suporte material emprestado à
linguagem e marca um lugar situado para além de sua relação biunívoca de
significante/significado. No caso, infere-se que o sujeito da enunciação pode disfarçar,
inconscientemente, seu pensamento, mas o analista, observando a letra, abstrai a posição
desse sujeito na busca da verdade.
Em geral as velhas são mazinhas, também não me lembro se tive uma avó,
nem se tive mãe e pai, devo ter tido tias zuretas. Será que as tive? A
mancha vermelha jamais me deixará saber. (...) Posso inventar uma tia, isso
posso (...) inventei uma tia que sou eu mesmo (O oco in: HILST, Kadosh,
2002, p.132).
7.1 A perseguição da letra do trágico
A recorrência da letra do trágico, na perspectiva da experiência de perdição do ser,
configura-se cada vez que se percebe a tentativa de o ator de saber insabido fazer o discurso
progredir ao mesmo tempo em que se depreende um “não sei”, “seque eu as tive?”; “A
mancha vermelha jamais me deixará saber”. Seguindo-se a letra “mancha vermelha” pode
indicar-se também a recorrência de um sinal, de uma marca, de uma letra, que se estende
pelo discurso denunciando a perdição do ser, marcado (mancha) pelo saber insabido em O
oco: mancha vermelha estende-se por toda a narrativa: p. 130, 131, 132 etc.
Tatus e corujas têm tocas debaixo da terra, deve haver um buraco por onde
entra o ar, naturalmente o mesmo buraco por onde entram nas tocas (...)
porque se existissem dois buracos o tatu e a coruja entravam por um e por
outro entrava o inimigo. (...) Não entendo muito de tatus nem de corujas,
apenas um dia me lembro de ter visto um tatu (O oco in: HILST, Kadosh,
2002, p.133).
128
Na cadeia de significantes, verifica-se a metáfora do oco, do vazio, que indicia o
trágico. Lacan (2008) afirma: na cadeia de significantes, o sentido insiste, porém nenhum de
seus elementos consiste na sua significação, como se pode apreciar no exemplo acima
quando se destacam as repetições de: tatus, corujas, tocas, buracos, inimigo, que indicam na
direção do vazio, do escuro, do não sentido, da errância de sentido.
É porque toda vez que eu tento me lembrar eu vejo a mancha vermelha (O
oco in: HILST, Kadosh, 2002, p.130).
Deve haver uma explicação para isso mas eu não a tenho (O oco in: HILST,
Kadosh, 2002,p. 131).
Também não me lembro se tive avó (...) a mancha vermelha jamais me
deixará saber (O oco in: HILST, Kadosh, 2002, p. 132).
A mancha vermelha outra vez. Acabou-se. O corpo dos outros, fico
repetindo. O corpo dos outros. (O oco in: HILST, Kadosh, 2002, p.136).
Quase não falo. Porque tudo se complica. Tenho alguma memória, porque
me lembro de ter falado uma vez: RESTABELEÇAM A ORDEM.
RESTABELEÇAM A ORDEM foi o que eu disse. Isso não me sai da cabeça, e
deve ter dado algum resultado senão não me lembraria (O oco in: HILST,
Kadosh, 2002, p.140).
Não avancei, não fui claro. Tento outra vez (...) Tento outra vez ainda não
avancei. (O oco in: HILST, Kadosh, 2002, p.143)
Estou contornando o círculo, com lentidão (...) continuo contornando o
círculo. (O oco in: HILST, Kadosh, 2002, p.144)
Que nojo, toda essa história para chegar a nada. (O oco in: HILST, Kadosh,
2002, p. 153)
RESTABELEÇAM A ORDEM (O oco in: HILST, Kadosh, 2002, p.155).
(...) como dizia aquele da cicuta: o esquecimento nada mais é do que a fuga
de um conhecimento. Fugi, pois, amigos, vós que me ledes a boca entupida
de asteriscos (O oco in: HILST, Kadosh, 2002, p.160).
Eu havia dito: RESTABELEÇAM A ORDEM (O oco in: HILST, Kadosh, 2002, p.
177).
O ator de saber insabido percorre o caminho insidioso e perigoso da memória, modo
diverso da perdição em Fluxo (in: HILST, Fluxo-floema, 2003). Embora se aproximem “os
dados numerosos” para tecer-se “uma bela teia”, embora se use o “fio” para sair-se do
labirinto construído pelo próprio homem (este homem também constrói seu próprio
labirinto), embora se olhe no caleidoscópio para compreender-se, para depreender-se a
letra do trágico, a busca continua marcada pela perdição. Assim, o enunciatário identifica-se
com esse caminho para percorrer o discurso, feito de fragmentos de memória que vão
espelhando no discurso a perseguição do ator de saber insabido, escritura-lâmina do trágico
da condição humana, estado de perdição, segundo a lógica do pior: “O caleidoscópio gira
129
sozinho e se espio nem sei do que se trata (...) Enfim nada é fácil, creia-me, até o oco tem
seus mistérios” (O oco in: HILST, Kadosh, 2002, p.184).
Na manipulação de um eu-outro, num duplo paranoico, é inevitável o
desdobramento do eu em outros eus, indiciando o estado de perdição decorrente da
desnaturalização do ser que se dispersa em busca de um conhecimento, sinalizado por uma
“mancha vermelha”. Numa tensão, as vozes se contrapõem e o que se depreende, como se
observará abaixo, é um embate de ideologias. Na perdição, o eu desdobra-se, buscando as
referências do seu outro em semas que remetem ao campo do militarismo:
Não estou tranquilo. (...) nos cemitérios, diante do túmulo de alguém que
amamos um dia. Ficamos de pé olhando a laje, recordamo-nos: te lembras?
Eras um homem calado, acreditavas na humildade, na paciência, desde
menino guardavas os teus sonhos, tinhas uma ideia tão limpa da bravura,
nada de sangue, nada de lança furando o outro. E se houvesse combates-
pensavas-traçarias um plano perfeito, abririas o mapa, o dedo fazendo um
círculo: estão encurralados, nem é preciso matá-los, apenas cada vez mais
perto do centro... e aqui eles se rendem. (...) Dentro de ti algumas ideias.
Ideias de vencer a fome de todos, dar alimento ao corpo e ao espírito. Tuas
ideias não te deixavam dormir. Eras digno, eras alguém? Os outros não
eram como tu. (...) eras aos olhos dos outros um excelente oficial cheio de
ideias estimulantes. Estavas próximo dos grandes, líderes do povo, e
pensavas: política é... política é... POLÍTICA É DAR VIDA A TODOS. Sorriam,
alguns apertos de o, não te sorriam, sorriam-se, e algumas vezes
despejavam palavras: justificações éticas, direitos deveres punições.
Obedecias aos de cima, fazias parte (...) tuas ideias eram como um tambor
nos teus ouvidos tumtumtum sempre o mesmo som. Não eras poderoso a
ponto de torná-las realidade (...) Adiantaria pouco se o fizesses. Eram
muitos e apenas o teu amor e tua compaixão não serviria para nada. (...)
Ainda não estás morto (O oco in: HILST, Kadosh, 2002, p.164, 165).
Do ponto de vista da lógica do pior, não há mais nada a dizer nem a pensar, o saber
trágico emudece o discurso e desarticula qualquer esforço de inferência. Nesse sentido, no
fragmento em destaque, o saber trágico dissolve as razões do idealismo do eu do saber
insabido, descontrói suas ideias inocentes, pueris, cheias de esperanças: acreditavas na
humildade, desde menino guardavas os teus sonhos, eras digno, eras alguém?
tensão entre o conceito de política do ator de saber insabido e o conceito de
política adotado pelo sistema (não te sorriam, sorriam-se). A articulação dessa tensão da
parte do sujeito da enunciação instaura o saber trágico e força a este saber que, não
diferenciando as ilusões do saber insabido nem as do sistema, destrói a ambas: “os outros
130
não eram com tu (...) algumas vezes despejavam palavras: justificações éticas, direitos
deveres punições”. Duas ideologias que tentam apagar o nada com o nada: uma acredita no
homem, a outra trama para manter-se no poder e do poder, o que identifica uma crença na
qual os homens investem. Sendo assim, extraem-se, segundo Rosset, duas direções
filosóficas, em torno do “nada”, caracterizadas por uma diferença de ótica. De um lado, o
discurso ideológico e o anti-ideológico; de outro, o pensamento trágico por meio do qual se
pode considerar o homem consciente de que fala sobre nadas, em favor de um saber trágico.
7.2 A vã glória do poder
Em O oco, o sujeito da enunciação manipula o ator de saber insabido, para
experimentar a possibilidade de uma ideia de Deus, em sua busca para preencher o vazio da
memória com algum sentido:
(...) estou vivo ainda que me custe um pouco, pois a memória aos pedaços
entrou no vazio daquele. Seria mais fácil viver pensando que ele está lá,
sempre esteve lá, e daqui a pouco vai me envolver com seu grande manto
dourado: meu filho, é apenas um momento o vazio dentro de ti, um
momento que precede o teu encontro comigo, apenas um instante de
vazio, sonhaste meu filho, sonhaste. Falaria assim? Ou soltaria um gemido,
um ronco? Trovejaria? (O oco in: HILST, Kadosh, 2002, p.166)
A letra do trágico é depreendida do fragmento acima em duas perspectivas: em
primeiro lugar, manipula-se uma ideia judaico-cristã de Deus, protetor, que envolve “com
seu grande manto dourado”, como se fosse preencher o vazio da existência; em segundo
lugar, uma tensão entre duas vozes, a do ator de saber insabido e a proferida no delírio
do lugar de Deus, diluindo qualquer ilusão em relação à crença nesse Deus, uma vez que o
saber trágico sobrepõe-se ao assumir a voz de Deus, como se fosse visto de forma
espelhada, assumindo um discurso terrorista identificado com a lógica do pior:
Vamos vamos homem, não existo para zelar por cada um de vós, sois livre,
imaginais que me sobraria tempo se a cada dia precisasse dar pão a um,
casa a outro, para terceiro? Sobraria tempo... ele diria isso? (O oco in:
HILST, Kadosh, 2002, p.166)
131
A voz do ator de saber trágico sempre afirma o nada, a mudez dos discursos, ao
passo que o ator de saber insabido pergunta, indaga acerca de, porém não encontra
respostas para suas indagações. Observa-se no fragmento uma ideia de Deus, um Deus que
existe “para zelar por vós”, para dar pão, moradia, mas que não existe para isso, logo
inexiste, uma vez que ele faz parte desse imaginário, o que, na perspectiva da lógica do pior
é a deflagração do vazio das crenças. Na tensão de vozes, o eu pergunta: “ele diria isso?”
Não, pois ele não precisa do tempo para nada, ele não precisa rezar a
outro, nem penitenciar-se, nem fazer orações da noite. Talvez precise de
algo, talvez faça planos para começar tudo de novo, e este existir de agora
da humanidade seria apenas um pré-existir, um exercício sobre a lousa. Um
exercício sim. Ele adquire forças repetindo a cada instante o exercício, grava
o exercício na lousa e no imenso pré-frontal, grava para esquecer-se, para
não repetir. É possível, mas entendo que seria magnífico se se apressasse.
O trono está vazio (...) (O oco in: HILST, Kadosh, 2002, p.166, 167).
Descentra-se, assim, a ideia de um Deus criador. O saber trágico apresenta a
humanidade como “um exercício na lousa” e Deus, como uma ausência, um nada, pois “o
trono está vazio”.
(...) olha menino, tudo à minha volta é oco, entendes? Mais ou menos. É
assim: tudo à minha volta é o vazio, apesar do mar da areia da bananeira do
céu. Da moringa o menino diz. E isso, da moringa. E eu não conto, velho?
Conta sim, mas não chega para existir no meu vazio, entendes? E o mar não
chega, velho, para existir no teu vazio? Não. É grande esse vazio então. (...)
A as orações, nada disso é comigo. Apenas o oco. E tão pouca que
vomito o peixe. Vomito o símbolo daquele (O oco in: HILST, Kadosh, 2002,
p.169,170).
O discurso trágico afirma que nada pode ser destruído, uma vez que nada foi
construído. Dessa perspectiva, entende-se a afirmação: “vomito o símbolo daquele”. A
filosofia terrorista, sustentada pelo pensamento trágico, deixa transparecer uma piedade
singular que, longe de amenizar os males, intensifica-os até o intolerável. Trata-se de uma
piedade assassina que, ao disponibilizar o trágico, oferece-o, não à consciência, mas à fala, e
torna exprimível um saber existente, do qual o indivíduo pressupunha estar livre: “não
chega para existir no meu vazio”.
132
O ator de saber insabido é índice de uma busca, de um saber que faz perguntas, que
indicia a falta: “Tenho alguma memória porque me lembro de ter falado alguma vez:
RESTABELEÇAM A ORDEM”. A questão principal desse ator em O oco é investigar o sentido
de “RESTABELEÇAM A ORDEM”, recorrente no discurso. Essa investigação acerca de umas
“letras”, de uns “significantes” vazios que lhe vêm à memória e insistem num mandato:
“RESTABELEÇAM A ORDEM”. No delírio, esta é voz insidiosa da memória, insistindo num
“logogrifo”, logotipo da errância na qual se encontra o eu em perdição.
A questão que se apresenta pela voz do ator de saber insabido é buscar
compreender, investigar o sentido de uma frase, recuperada na memória “a memória aos
pedaços entrou no vazio daquele”, (O oco in: HILST, Kadosh, 2002, p.166). Essa investigação
é recorrente e não há fim para ela e, mesmo que chegasse a um final, estaria fadada ao
fracasso, porque é uma “investigação litigiosa” sem encontrar respostas, como se verifica
nas metáforas:
o oco me circunda (p.142); não avancei (p. 143); continuo contornando o
círculo (p.144); alguma coisa em mim... o quê? Nada, nada em mim, por
mais que eu procure não encontro nada. Salvar o quê? Salvar o de antes? Já
não sei o que digo. (...) Às voltas com discursos (p.180); Para chegar ao fim
devo continuar ainda que não exista solução (p. 181); Se o oco não me
circundasse a estória, esta, também seria outra. Perdoai-me o peso do
vazio. Perdoai-me o vazio, as contrações do nada (p. 184). (O oco in: HILST,
Kadosh, 2002)
Tenho alguma memória porque me lembro de ter falado uma vez:
RESTABELEÇAM A ORDEM. RESTABELEÇAM A ORDEM foi o que eu disse.
Isso não me sai da cabeça, e deve ter dado algum resultado senão não me
lembraria. Qual foi o resultado? Seria menos infeliz se soubesse?
Restabelecer a ordem parece-me um propósito muito louvável, digno até,
porque a ordem existe quando tudo fica bem arrumado, as botas todas de
um lado, os fuzis de outro. Soldados, mortos, botas e fuzis. Nunca percebi
muita coisa de tais coisas (O oco in: HILST, Kadosh, 2002, p.140).
Acompanhar essa enunciação do ator de saber insabido é descobrir que, embora seja
possuidora de um não saber ou justamente por ser possuidora de um não saber, a voz que
se pronuncia persegue a letra do significante e não o significado porque ela apenas transita
de significante para significante sem fechar a cadeia. É óbvio que, para quem atenta para a
letra no discurso, considerando o conceito de Lacan (2008), pode-se depreender uma busca
que se mostra fracassada, por exemplo, no uso que o sujeito da enunciação faz da
antanáclase quando afirma: “Nunca percebi muita coisa de tais coisas”. A manipulação desse
133
não saber deixa entrever um saber trágico: um ser em perdição circula num saber
metonímico, apesar de produzir alguma significação com efeito metafórico, cujo sentido
perseguido sempre se desloca, numa metáfora delirante.
Aqui está: na frente a coisa minguada sem perigo aparente. Na superfície.
Por dentro a besta atolada fuçando a carcaça. E em cima do corpo, do meu
corpo, as medalhas, o tecido grosso (a camisa maleável?), as botas
lustrosas, a voz. Voz de dentro toda escondida mas saindo para fora: meu
Deus meu Deus meu Deus, não foi isso que eu ordenei, eu disse apenas:
RESTABELEÇAM A ORDEM. Estúpidos, covardes, não, eu não disse assim, eu
apenas repeti: Meu Deus Meu Deus Meus Deus. Olhei-os. Aos soldados.
tinha ejaculado, o grosso branco escoria. Continuei meu Deus meu Deus
indefinidamente (O oco in: HILST, Kadosh, 2002, p.155).
A perseguição do sentido desdobra-se em reiterações que criam novas intensidades
num retorno da frase enigmática, remetendo a contextos diversos, “as cadeias” metonímicas
ampliam-se, indiciando um saber trágico: a repetição trágica revela de uma só vez o repetido
e o original; é mais um olhar sobre o repetido que sobre a repetição propriamente dita. A
repetição diferencial, do ponto de vista do trágico, significa o retorno de um elemento
diferente a partir de uma “intenção” desse mesmo elemento. Se se acompanha a dinâmica
dos significantes, vai-se descolando do discurso, aos poucos, a letra do trágico. Vê-se, por
exemplo, os significantes do primeiro fragmento que são repetidos, mas de forma diferencial
afirmando-se o mesmo: botas, fuzis, soldados, mortos, no segundo fragmento: “coisa
minguada sem perigo aparente” (conotação sexual) recupera “fuzis”; “a besta atolada
fuçando a carcaça” recupera a busca em “tenho alguma memória” e “Isso não me sai da
cabeça”; “já tinha ejaculado, o grosso branco escorria” recupera “soldados, mortos” numa
relação entre o gozo, morte e violência.
Deveria terminar, mas não. Vamos aos saltos. A pequena praça, o coreto e
o chão de cadáveres. Eu havia dito: RESTABELEÇAM A ORDEM. A frase é
como um funil. Vai até certo ponto (fim do tubo) alarga-se (começo e
infinito da boca do funil). Se eu dissesse assim: restabeleçam a ordem sem
violência. Um tubo apenas. Fechado numa das extremidades. Meu Deus...
meu Deus... eu disse. E o outro: mas foi preciso... eles avançaram com as
facas na mão... os soldados ficaram em pânico... foi preciso. A ordem
restabelecida. Depois a coxa escura de sangue. A mão da mulher. A coxa
escura de sangue. O gozo. E durante o gozo o meu entendimento, rápido, a
corda do poço escapou, a roldana girou. Assim: Ele, o Senhor, é como um
grande nervo avançando no todo, aqui ali ao redor a santidade a vileza
134
alimentam a sua fome ele vive de espasmos tem fome de espasmos ali ali
mataram mil, ali ali salvaram-se dez mil ali ali debaixo do fogo ali ali salvos
das águas um milhão apodrecendo ao sol dois milhões os ossos expostos
três milhões entoando loas cinco milhões as bocas sangrando seis milhões
de mandíbulas descansando medidas desiguais mas de igual intensidade o
mesmo espasmo no corpo-nervo no imenso corpo-nervo goza com ele fazes
parte da corrente anel elo do começo do meio do fim a ti que te importa és
extensão do todo goza com ele porque jamais romperás a grande teia. Fim.
O grosso branco escorrendo. Ele o senhor era então assim? Um imenso
corpo-nervo? E aos poucos a gosma, o soluço escapando, o meu grito na
praça: não és assim, meu Deus, misericórdia, não és assim (O oco in: HILST,
Kadosh, 2002, p.177-178).
Nos fragmentos do delírio, contrapõe-se uma voz que reafirma a necessidade da
violência para manter-se a ordem: “a ordem restabelecida”. O massacre se confunde com o
gozo. O saber trágico sempre explicita o pior, depreendido do saber insabido: “E durante o
gozo o meu entendimento, rápido, a corda do poço escapou, a roldana girou”. Instaura-se
assim a voz do saber trágico, em sua piedade assassina: “o gozo de Deus: santidade e vileza”.
O plano perfeito: a máxima violência civilizada. Ao deflagrar o nada, o vazio no qual se está
inserido, ao afirmar o pior, ao intensificar os males até o intolerável, conjugando a violência,
os massacres, as guerras, a vileza do gozo de Deus, o gozo de Deus diante da violência, o
saber trágico explicita o vazio de sentido da existência. Os massacres, as guerras, o gozo que
os homens m nisso tudo refratam a máxima violência “civilizada”, o que leva o retorno à
questão da ideia de Deus: “Ele o senhor era então assim? Um imenso corpo-nervo?”.
O pensamento de pavor do saber trágico dissolve a ideia do Deus misericordioso, põe
em questão o seu papel e o do homem feito à sua imagem. O trágico instaura-se: o que
existe é nada, cujo sentido se entende como nada a respeito do que se pode definir como
ser, tanto no nível conceitual quanto no existencial. Entra em tensão outra voz que enuncia
o saber trágico e reconstitui o pavor do massacre:
O homem no chão. Agonia do homem: és tu, Caiana? (...) eu vou morrer,
Caiana, o ódio cresceu mais do que o amor, entendes? (...) os nossos
tinham os dedos magros e cavaram a terra (...) os nossos não sabiam do
gosto da coisa que se engole, não sei por que me escolheram para falar
com os outros (...) depois ouvi as vozes (...) ajuda a gente, homem, tua cara
é cara de quem sabe falar, teu olho olha mais do que o nosso, vai fazer o
discurso para OS OUTROS, diz que a fome é uma coisa que i, fala que a
gente não tem força para pedir com força (...) vem com a gente falar com
OS OUTROS (O oco in: HILST, Kadosh, 2002, p.178,179).
135
O saber trágico reconstrói o drama e evidencia o pavor de ter-se acreditado em
alguma coisa que era falsa. Apesar de reconstruir-se o drama indiciado pela expressão
“RESTABELEÇAM A ORDEM”, a voz do saber insabido continua em seu estado de errância,
perdido no oco dos discursos, perdido em seu saber demente: “Alguns espiam pelo pequeno
quadrado da porta e sorriem: esse tem privilégios, deram-lhe a camisa” (O oco in: HILST,
Kadosh, 2002, p.197).
(...) a minha língua feriu a anca vaidosa da autoridade, se todos tivessem
essa minha língua que se fez de repente, o mundo ficaria limpo, e isso não é
bom, a anca vaidosa não pode sobreviver no rio de águas clarinhas (...) Que
eu estivesse aqui... que os homens estivessem aqui... compreendendo
compreendo, mas vós, minhas queridas, minhas humildes amiguinhas de
patas rosadas... por quê? (O oco in: HILST, Kadosh, 2002, p.200)
136
CAPÍTULO 8
KADOSH: ESCRITURA-LÂMINA
Kadosh faz parte do segundo livro em prosa de Hilda Hilst, publicado em 1973 e
reeditado em 2002 com título homônimo dessa narrativa. A escolha desse texto tem como
pressuposto sua aproximação de uma ideia de Deus, relacionada à palavra hebraica
“Kadosh” (qadôsh), cujo significado “sagrado” possibilita o estreitamento da narrativa com o
sistema subjacente da cultura e a apreensão do trágico, segundo a lógica do pior, na
perspectiva do terrível e da repetição que irrompe como pavor no discurso.
Mantendo a coerência com as elaborações arrazoadas no capítulo 2 deste trabalho,
aponta-se a predicação do discurso em Kadosh delegada a um duplo paranoico, manipulado
pelo sujeito da enunciação e apreendido na posição de um ator de saber insabido, em busca
de uma ideia de Deus. Esse ator, figurativizado pelo antropônimo de Kadosh, “meu nome
ficou sendo Kadosh”, (Kadosh in: HILST, Kadosh, 2002, p.37), desdobra-se em um eu-outro,
dando voz a um ator de saber trágico, como se vê neste enunciado:
PACTO QUE DE VIR, sombra pastosa, uma coisa se impondo corrosiva,
eis aqui o vestíbulo desse todo-poderoso, devo ter sido guiado, a coisa de
peso gigantesco sobre as omoplatas, vai vai, a lâmina no mais fundo desse
todo-poderoso, atravessa as três salas, evita aspirar o conturbado dele,
tudo isso de ordens de um miolo exuberante, lucidez acentuada pensei
quando ouvi tanta palavra dentro da minha pequena pétala de carne, essa
convulsiva, essa que se diz atenta, toda torcida (Kadosh in: HILST, Kadosh,
2002, p.35).
A predicação do discurso, explicitada, confirma-se nesse enunciado da narrativa.
Deste também se depreende a tomada de posição da instância da enunciação, a partir da
qual se destacam valências perceptivas e graduais, constituintes do espaço interno de
controle, responsáveis pela determinação dos valores do espaço interno. O primeiro
enunciado que se constrói nesse discurso oferece elementos para tecer-se a visada cuja
estrutura tensiva entre valências e valores abrirá o caminho para apreensão do trágico.
137
Observa-se no enunciado o lexema pacto, cujos traços acordo, ajuste, aliança,
contrato, pressupõem, pelo menos, dois atores. Nesse caso, tem-se o ator da enunciação,
reconhecido a partir do “eu” em: “devo ter sido guiado”, pensei” e “ouvi”, e o “todo-
poderoso”, a quem se refere o ator: “eis aqui o vestíbulo desse todo-poderoso”. No entanto,
esse pacto em Kadosh não está concretizado, que de vir, marcando dessa forma todo um
percurso que se delineará a partir dessa tomada de posição que se explicita. O ator faz
referência, ainda, a uma voz que lhe diz: vai vai (...) atravessa (...) evita”, um eu-outro,
desdobramento do ator paranoico. O pacto em devir, ainda não realizado mas pressuposto,
envolve o “todo-poderoso” e o eu, Kadosh, ator possuidor de um saber insabido, do qual
surge a voz de outro ator, voz num delírio simulado, um eu-outro, possuidor de um saber
trágico, evidenciado em sua enunciação: “a lâmina no mais fundo desse todo-poderoso”,
“atravessa as três salas” e “evita aspirar o conturbado dele”.
O ator de saber insabido se constrói na própria escritura por, literalmente, não saber:
devo ter sido guiado, isto é, não sabe por que se encontra no vestíbulo do todo-poderoso.
Além disso, o uso do lexema coisa determina um não saber definir que mantém no discurso
a indefinição, logo, um não saber. Em contraposição, pronuncia-se no discurso a voz de
outro ator, de saber trágico: “vai vai, a lâmina no mais fundo desse todo poderoso, atravessa
as três salas, evita aspirar o conturbado dele”, incitando o ator de saber insabido a uma ação
que será posta em prática no decorrer da narrativa. O ator de saber trágico é identificado na
construção “tudo isso de ordens de um miolo exuberante, lucidez acentuada”,
características deste que possui consciência: miolo exuberante e lucidez. Esse ator possuiu
um saber acerca do “todo-poderoso”, evidenciado na tomada de posição pela percepção
demonstrada em: “o conturbado dele”, que o diferencia do ator de saber insabido.
Depreende-se, portanto, a tomada de posição nos seguintes termos: o actante de
saber insabido, identificado em oposição com o actante de saber trágico, será manipulado
pelo sujeito da enunciação de modo a perseguir uma ideia de Deus delineada na tomada de
posição: sombra pastosa, uma coisa se impondo corrosiva, eis aqui o vestíbulo desse todo-
poderoso. Os lexemas sombra, coisa, acompanhados de seus respectivos apreciativos,
pastosa (com sufixo indicador de abundância e intensificação) e corrosiva (que provoca
desgaste, destruição lenta), reforçam o epíteto enigmático utilizado para essa ideia de Deus,
o “todo-poderoso”.
138
Pela copresença dos elementos “devo ter sido guiado” e “vai vai, a lâmina no mais
fundo desse todo-poderoso” no discurso, compreende-se o ator de saber insabido
responsabilizado por uma missão a ser ratificada em outros conjuntos, nos quais recebe o
qualificativo de emissário, conforme se lê: “as últimas instruções: o tempo é hoje, vai até a
CASA DO GRANDE OBSCURO (...) és um emissário graduado” (Kadosh in: HILST, Kadosh,
2002, p.38); “Kadosh ilustríssimo emissário senta-se” (Kadosh in: HILST, Kadosh, 2002, p.39);
“durante dez anos estudei os folhetos para matar esse que sei e não sei” (Kadosh in: HILST,
Kadosh, 2002, p.40).
No campo de presença do discurso, a asserção “PACTO QUE DE VIR” afeta a
posição da instância discursiva e encontra-se em relação com: a sombra pastosa, a coisa se
impondo corrosiva, o vestíbulo do “todo-poderoso”, a violência da lâmina no mais fundo do
“todo-poderoso”, o conturbado do “todo-poderoso”, elementos que, nesse conjunto da
narrativa, num esquema de amplificação, significam a correlação de mais intensidade e mais
extensão, produzindo uma tensão afetiva e cognitiva. Além disso, há um caminho traçado na
tomada de posição de incisão (lâmina no mais fundo) daquele que se apresenta numa
coexistência com “uma coisa se impondo corrosiva”. Irrompem no discurso, nessa tomada
de posição, indícios de violência: “ter sido guiado” para o vestíbulo do todo-poderoso, ir sem
saber (insabido), ir sem querer (coisa de peso gigantesco sobre as omoplatas).
Um dos aspectos da lógica do pior, a consciência da mudez do discurso trágico,
refratário à interpretação, incide na repetição. Nessa perspectiva, propõe-se que, de forma
singular, a tomada de posição em Kadosh é elaborada a partir de Floema, última narrativa de
Fluxo-floema (HILST, 2002):
KOYO, EMUDECI. Vestíbulo do nada. (...) Koyo, não entendes, vestíbulo do
nada eu disse (...) Abre. Primeiro a primeira, incisão mais funda, depois a
segunda, pensa: não me importo, estou cortando o que não conheço. Koyo,
o que eu digo é impreciso, não é, não anotes, tudo está para dizer e se eu
digo emudeci, nada do que eu digo estou dizendo (...) pega a faca e corta,
eu quero que pegues, quero que cortes, depois o que eu disser dos
paredões da mente, escolhe o mais acertado para o teu ouvido. Agora
corta. (...) Tenho o comprimento da minha casa, não hei de crescer mais (...)
Koyo, o pórtico vedado, nada sei, NADANADA do homem (...) (p.225,226)
Corta, Koyo, estou intacto, desde sempre sou esse que tu s. Não vês?
Afunda com mais força, levanta acima da cabeça o teu punhal, golpeia
muitas vezes. Desde o início te falo, emudeci, e nada me propões. (...)
Repito: tenho o comprimento da minha casa. (...) Usa a linguagem
fundamental (...) (p. 228)
139
Tudo tem nome e ao mesmo tempo não tem. (p.229)
NADANADA foi o que eu disse, mas agora percebo. (...) eu disse corta, mas
é melhor tomares tempo, didática fluente a tua, contigo aprendo. (...) As
perguntas são muitas, toma tempo. (p.230)
(...) usa a linguagem fundamental, sem essa que disseste. Chama-se língua,
essa? Não, nada tem a ver com o que eu digo (...) Nada é junto de mim,
nada é distante. Abarco o meu próprio limite. Ronco, pata, casco, tudo é
distante, mas pelo som deve ser perto. Pata vibra, ronco vibra, casco é mais
raso mas vibra porque toca. (...) Agora me exasperas repetindo Palavra.
Cala, Koyo, elabora o mudo. (p. 231)
Para apreender-se esse conjunto, leva-se em consideração que, segundo a lógica do
pior, um acontecimento é trágico quando se manifesta sobre um fundo de repetição,
reapresentado de maneira singular, e implica sentidos diversos, conforme se pode observar
nesta articulação: quando o primeiro acontecimento é imprevisível e constitui uma novidade
radical, ele não é temível. Quando o segundo, ao contrário do primeiro, é totalmente
previsível, mas constitui uma repetição exata, sendo, portanto, esperado, não pode ser
impedido nem é temível. Para ser terrível e trágico, numa terceira acepção, supõe-se a
seguinte lei: um acontecimento imprevisível, a partir do qual um previsível sobrevenha,
pode ser manifestado simultaneamente ao último acontecimento. A repetição trágica revela
de uma só vez o repetido e o original; é mais um olhar sobre o repetido que sobre a
repetição propriamente dita. Esse delineamento permite a leitura do trecho inicial de
Floema, repetido em Kadosh, e permitirá, mais à frente, nesta análise, desvendar-se de que
maneira inscreve-se nesse discurso o trágico na perspectiva da repetição.
O texto em análise mantém relações com o primeiro enunciado de Kadosh e permite
estabelecer uma leitura da repetição. Em Floema, a voz que se pronuncia no discurso recebe
a identificação de Haydum, nome que pode ser apreendido pela sonoridade: “Haydum, o
que chamamos de faca é brinquedo para a tua espessura” (Floema in: HILST, Fluxo-floema,
2003, p.232), interlocutário do ator de saber insabido, Koyo. Nesse conjunto, o primeiro
acontecimento, “original”, é imprevisível e constitui uma novidade radical, portanto não é
temível. Considera-se esse acontecimento original em relação ao conjunto da obra da
escritora. É o primeiro exemplo no qual se manipula, no delírio, um ator da enunciação a
ouvir uma voz identificada com de Deus, refratário às interpretações: “Koyo, emudeci.
Vestíbulo do nada”. Esse acontecimento não revela, ainda, o trágico no sentido de repetição,
que produz o pavor.
140
Ao ler-se Kadosh, tem-se um espelhamento do discurso de Floema a partir de
elementos, tais como: vestíbulo do nada” em conexão com “eis aqui o vestíbulo desse
todo-poderoso”, incisão mais funda” correlacionado a lâmina no mais fundo”. Embora em
Floema não se use esse epíteto “todo-poderoso”, ele é desnudado pela forma imperativa
que se traduz em intensidade e extensão: “aprende na minha fronte”, “abre”, “pega a faca e
corta”, “quero que pegues”, “quero que cortes”, “escolhe o mais acertado para o teu
ouvido”, “agora corta”, “corta” “afunda com mais força”, “levanta acima da cabeça o teu
punhal, golpeia muitas vezes”, “usa a linguagem fundamental” “come de mim”, “eu disse
corta”, “Cala, Koyo, elabora o mudo”. Esses imperativos, não presentes em extensão em
Kadosh, na tomada de posição, são compreendidos, no sentido de estarem contidos no
epíteto “o todo-poderoso”, marcado por intensidade, embora não se apresente em
extensão. Essa é a outra forma de evidenciar a repetição, ainda fora da esfera do trágico, ou
seja, considerar o segundo acontecimento, ao contrário do primeiro, totalmente previsível,
constituindo-se como uma repetição exata, sendo, portanto, esperado.
Tal acontecimento, que não pode ser impedido nem é temível, representa a tomada
de posição em Kadosh, estabelecida em paralelo, quando se tem uma visada que busca
apreender a interioridade de um discurso em relação a outro no campo discurso da obra de
Hilst. Kadosh recupera na tomada de posição, com mais intensidade e menos extensão, os
imperativos de Floema, sintetizados em: “vai vai, a lâmina no mais fundo desse todo-
poderoso”.Estabelece-se, assim, a tomada de posição em que o sujeito da enunciação
delega a um ator de saber insabido a “missão” de, por meio de uma busca incessante,
incindir o “corpo” do todo-poderoso, considerando-se os enunciados e o pressuposto de a
instância discursiva articular uma simulação de um delírio.
A repetição exata do primeiro acontecimento de Floema em Kadosh está relacionada
também a um mesmo foco: o mandato para uma escritura. Koyo, ator de saber insabido na
primeira narrativa, recebe um mandato para verificar “AQUELE GRANDE” (Floema in:HILST,
Fluxo-floema, 2003, p.233). Tal mandato, traduzido em qualidade, pela força dos
imperativos, e em quantidade, pelo desdobramento desses verbos, nesse conjunto, visa a
uma elaboração por meio da linguagem, como se pode verificar em: “abre”, “pega e corta”,
“escolhe”, “afunda”, “levanta”, “golpeia”, “come”, “usa a linguagem”, “limpa”, “cala”,
“elabora o mudo”. Todos esses verbos potencializam, ao mesmo tempo, uma isotopia de um
crime, do ponto de vista da literalidade, e outra de uma escritura, do ponto de vista
141
metafórico, principalmente quando se utiliza uma visada a partir do último imperativo
depreendido. A delegação ao ator de saber insabido é, então, para uma elaboração do
mudo, identificado no início da narrativa no enunciado: “Koyo, emudeci”.
Esse mesmo mandato é traçado em Kadosh a partir de “a lâmina no mais fundo desse
todo-poderoso”, que se vai estendendo pela narrativa por meio de outras imagens: “que a
tua língua absorva a palavra orvalhada” (p.36); “Kadosh deve procurar palavra, encher um
milhão de folhas com letras pequeninas (...) que os manuscritos de Kadosh provoquem nojo
se tocados (...) que os manuscritos de Kadosh não sejam submetidos aos computadores (...)”
(p.47). Tem-se, por conseguinte, um mandato para uma escritura-lâmina que busca
apreender uma ideia de Deus, tanto em Floema, quanto em Kadosh.
A reiteração de mesmos traços semânticos determina um plano de leitura. Em
Kadosh, começa-se a apreender um traço por meio do qual se articula a análise a parir da
dimensão retórica, espaço externo, espaço da semiosfera como se pode examinar em: “(...)
vivo no quatro por dois ninho-masmorra porque de repente ficou difícil viver entre os
demais (...) pensei era bom me separar. Kad = separar, na língua das delícias. E meu nome
ficou sendo kadosh” (p.36, 37).
Aproximar-se desse conjunto implica observar que a práxis enunciativa administra no
campo do discurso a presença de grandezas discursivas que são manipuladas de tal forma a
evidenciar a figurativização do religioso. Essa questão pressupõe a interação do discurso em
ato com o sistema subjacente, como se pode perceber na escolha que o sujeito da
enunciação faz do termo para nomear a narrativa: Kadosh, reiterado no trecho selecionado
e em outras posições no discurso.
A palavra-título da narrativa instaura, simultaneamente, uma tensão na intensidade
do termo correlacionada a sua extensão, em desdobramento por toda a narrativa. Numa
coocorrência entre o potencializado do discurso e o realizado na escritura de Hilst,
encontram-se na cultura valores que potencializam uma primeira leitura em Kadosh. A
palavra que nome à narrativa, usada como antropônimo do ator de saber insabido, é um
adjetivo de origem hebraica. Kadosh (qadôsh=sagrado, santo, o Santo) qualifica o que é
intrinsecamente sagrado ou pertence ao domínio do sagrado. Serve para distinguir o
sagrado (separado, santo) do comum ou profano.
A relação entre Deus e o sagrado (qadôsh=separado, santo), segundo o Dicionário
internacional de teologia do Antigo Testamento (1998), é explicada da seguinte maneira:
142
Deus é essencialmente santo e convoca o povo de Israel para ser santo, propondo-lhe um
padrão de obediência pelo qual pode manter a santidade: “Sede santos, porque eu sou
santo” é uma citação encontrada no Antigo Testamento. A exigência da santidade de Deus
está relacionada à isenção das imperfeições e fraquezas morais comuns aos homens. A
inviolabilidade das esferas do sagrado e do profano constitui a base para os aspectos éticos
do conceito de santidade. Por ser Santo, Deus não poderia ser adorado pelos israelitas se
eles mantivessem suas práticas consideradas idólatras. Em outras palavras, eles tinham de
estar separados de tudo, pois eram possessão de Deus em virtude de ele tê-los separado das
nações. O que é santo não apenas se distingue do profano, mas também se opõe a isso. O
denominado código de santidade é fortemente ético. Sendo o homem criado à imagem e
semelhança de Deus, é capaz de refletir a semelhança divina.
(...) vivo no quatro por dois ninho-masmorra porque de repente ficou difícil
viver entre os demais, queria devorar a carne-coxa da vizinha e ao mesmo
tempo usar um cilício que sangrasse o rim, ficava entre o carneiro ensopado
com batatas roliças pequeninas e a secura das ontologias. Ficava engolindo
o sopro dos grandes, repetindo: coincidentia oppositorum et complicatio,
DEUS DEUS AENIGMATICA SCIENTIA. Então por tudo isso pensei era bom
me separar. Kad = separar, na língua das delícias. E meu nome ficou sendo
kadosh (Kadosh in: HILST, Kadosh, 2002, p.36, 37).
Uma vez circunscrito à esfera do sagrado, o termo “Kadoshestá ligado à ideia de
Deus. Por conseguinte, algumas associações entre os valores externos da cultura e os valores
internos do discurso da narrativa em destaque são possíveis. O ator da enunciação, cujo
antropônimo é Kadosh, pertence ao domínio do sagrado: “E meu nome ficou sendo Kadosh”.
Para pertencer a esse domínio, deve cortar as relações com os demais ou com qualquer
coisa que o tire dessa esfera sagrada: “de repente ficou difícil viver entre os demais (...) era
bom me separar”. Deve, em outras palavras, estar/ser separado, estar/ser limpo, estar/ser
puro: usar um cilício que sangrasse o rim”. Deve encontrar-se nos domínios do sagrado
(vivo no quatro por dois no ninho-masmorra) e, sendo homem, deve espelhar a semelhança
com o divino, enunciado nesse conjunto como: coincidentia oppositorum et complicatio,
DEUS DEUS AENIGMATICA SCIENTIA. Dessa forma, introduz-se no discurso um plano de
leitura que perpassa o religioso no que tange, fundamentalmente, a uma ideia de Deus
perseguida pelo ator paranoico.
143
Essa ideia, identificada no campo de presença do discurso, sinaliza algo que afeta a
instância discursiva. Ao eleger o latim para referir-se a Deus, o sujeito da enunciação faz uso
do virtualizado pertencente a um sistema, em que está implícito um período de hegemonia
dessa língua tanto nos domínios da ciência quanto nos da religião. No entanto, por ser um
produto de uso, o enunciado se realiza no discurso com-fundindo ciência (coincidentia
oppositorum) e religião (DEUS DEUS AENIGMATICA SCIENTIA), atualizando a noção de
obscuridade de sentido do ponto de vista do conhecimento do homem nos dois domínios.
Apesar disso, sobrepõe-se o religioso ao científico por meio das valências presentes
no discurso, primeiramente pelo nome que instaura o sentido de separação (Kadosh),
remetendo ao sagrado. Por manipular grandezas discursivas de forma paralogística, o sujeito
da enunciação, ator de saber de controle, articula, ao mesmo tempo, a separação resultante
do sagrado (Kad=separar, na língua das delícias) e a separação resultante da loucura do ator
de saber insabido (vivo no quatro por dois), levando-se em consideração o fato de trabalhar-
se com um discurso no qual existe a simulação de um delírio. O plano de leitura estabelecido
inicialmente na esfera do religioso, por causa da origem do nome Kadosh e por causa dos
sentidos colados a esse nome, é mantido, embora se comece a descortinar uma visada
diferente acerca da ideia de Deus.
A simultaneidade instaurada no discurso, nesse fragmento, intensifica os valores que
ficam entre o sagrado e o profano. Viver na masmorra-ninho ativa a concepção do sagrado,
pela separação, característica de “santos”, ascetas, em busca da espiritualidade, ao passo
que viver entre os demais implica uma vida de dispersão. Devorar a carne-coxa da vizinha
instaura, a partir de traços semânticos, propriedades do corpo relacionadas ao prazer sexual;
por outro lado, usar cilício que sangra até o rim instaura no discurso a ideia de mortificação
do corpo-desejo, para dar abertura ao espiritual. Há, no entanto, um campo semântico que
se delineia no conjunto e que pode ser apreendido a partir dos lexemas: devorar; sangrar;
engolir; repetir. Trata-se da violência instaurada no discurso, uma reiteração da violência
sinalizada na tomada de posição: coisa se impondo corrosiva, vestíbulo do todo-poderoso,
coisa de peso gigantesco sobre as omoplatas, lâmina no mais fundo desse todo-poderoso.
Agora vejam, eu mesmo me chamava assim, só eu mesmo junto à porta
da masmorra-ninho, me dizia: Kadosh, é hora de beber água na fonte,
Kadosh é hora de meditar, Kadosh é hora de reler os folhetos, se alguém
deixa a cada dia os exercícios gráficos à porta de Kadosh, é porque Kadosh
144
deve ler. Agora uma boa frase: se os animais da noite em alguma noite
uivavam particularmente dissonantes (fim da boa frase) eu gritava surdo
enfiando a cara na terra:
Kadosh está cansado de não ter tarefas.
Kadosh pensa que o profano deve ser devorado.
Kadosh acredita que a excelência moral de seu
Deus é excessiva.
Mas Kadosh também acredita que o Divino
cospe prá lá e prá cá sem consultar a direção
do vento.
E que... e que... ele Kadosh aposta alto no critério da divina providência,
que ele Kadosh sacode o saco se a voz do repelente mia na sua pequena
pétala de carne, essa convulsiva que se diz atenta, essa toda torcida, então,
se a voz do repelente mia: ora, Kadosh, nada é como pensas, nasceste
porque um homem meteu o comprido e duro dele no mais fundo e mole
dela, e daí pra frente danação ou salvação isso depende se estás mais na
beirada ou menos do buraco de merda ou de jasmim (Kadosh in: HILST,
Kadosh, 2002, p. 37, 38).
Irrompe no discurso um estranhamento, desencadeador de um novo plano de
leitura: “Agora uma boa frase: se os animais da noite em alguma noite uivavam
particularmente dissonantes (fim da boa frase) eu gritava surdo enfiando a cara na terra”.
Explica-se esse estranhamento, em primeiro lugar, pela construção de uma frase com oração
condicional, porém sem oração principal, deixando o sentido suspenso. Em segundo lugar,
aparentemente, não há relação entre a frase e os enunciados que a rodeiam. Resta,
portanto, a apreensão da frase a partir da letra que permitirá a metáfora construída no
discurso.
Separando-se os termos “animais”, “noite”, “uivavam” e “dissonantes”, pode-se
chegar à metáfora manipulada no discurso, a partir deste último lexema, “dissonantes”,
indicador de que algo se apresenta em discordância no discurso e causa uma impressão
desagradável. A confirmação dessa leitura se nas linhas subsequentes, pois a fala de
Kadosh se apresenta dissonante em relação aos valores do sistema subjacente da cultura.
Nesse sentido, evidencia-se a metáfora: Kadosh é um animal da noite; seu discurso é
dissonante, diferente, desagradável ao ouvido, pois contraria as crenças sobre Deus. Reitera
o estranhamento nesse conjunto o uso do oxímoro, antes da fala dissonante de Kadosh: “eu
gritava surdo”, por sua imprevisibilidade, acentuando o efeito que se deseja no discurso, ou
seja, manter a dissonância apontada pela metáfora.
Na coocorrência dos enunciados, a expectativa do sagrado vai sendo revertida de
modo intenso, pela qualidade das frases, e de modo extenso, pelo seu desdobramento no
145
discurso, nas anáforas: “Kadosh está cansado de não ter tarefas. Kadosh pensa que o
profano deve ser devorado. Kadosh acredita que a excelência moral de seu Deus é excessiva.
Mas Kadosh também acredita que o Divino cospe pe prá sem consultar a direção do
vento”. A identidade do “todo-poderoso”, primeiro epíteto atribuído a Deus no discurso, é
contraposta à que se verifica na cultura, pois é desenhada com uma carga negativa bem
forte, depreendida nesses dois últimos enunciados em “excelência moral excessiva” e na
metáfora “cospe prá lá e prá cá sem consultar a direção do vento”.
A reversão continua no discurso na manipulação da postura irônica assumida pelo
ator de saber insabido. De seu enunciado “E que... e que... ele Kadosh aposta alto no critério
da divina providência” deduz-se o contrário em coerência com o afirmado anteriormente,
porque a enunciação se faz pelo dissonante. O irônico pode destruir tudo o que lhe agrada
com a condição de deixar entender as ideias em nome das quais ele age, conforme se
apreende a reversão usada para indiciar determinada ideia acerca de Deus. Nesse caso,
toma-se a ironia como um dos patamares manipulados no discurso a fim de potencializar o
riso demolidor da lógica do pior, evidente a partir do instante em que atinge nesse conjunto
uma intensidade maior:
Kadosh sacode o saco se a voz do repelente mia na sua pequena pétala de
carne (...) se a voz do repelente mia: ora, Kadosh, nada é como pensas,
nasceste porque um homem meteu o comprido e duro dele no mais fundo
e mole dela, e daí pra frente danação ou salvação isso depende se estás
mais na beirada ou menos do buraco de merda ou de jasmim (Kadosh in:
HILST, Kadosh, 2002, p. 37, 38).
Recupera-se nesse fragmento uma relação com a metáfora geradora de
estranhamento a partir do lexema “miar” correspondente semanticamente a “uivar”, ambos
inscritos no classema animal. Desvela-se no discurso, portanto, a semelhança entre Kadosh
(os animais uivavam/eu gritava surdo) e Deus (a voz do repelente miava), porém às avessas,
contrariando toda cultura religiosa sobre a qual se elabora a ideia de Deus criador do
homem à sua imagem e semelhança (Gênesis 1, 27). Lê-se no Catecismo da Igreja Católica
(1993, §41):
As criaturas, todas elas, trazem em si certa semelhança com Deus, muito
particularmente o homem criado à imagem e à semelhança de Deus. Por
isso as múltiplas perfeições das criaturas (sua verdade, bondade e beleza)
146
refletem a perfeição infinita de Deus. Em razão disso podemos falar de
Deus a partir das perfeições de suas criaturas, ‘pois a grandeza e a beleza
das criaturas fazem, por analogia, contemplar seu Autor’. (Sb 13, 5)
No discurso de kadosh, o classema animal sobrepõe-se ao humano e, se há
semelhança entre o homem e o criador, esta se de forma invertida, uma vez que o ator
de saber insabido é identificado com um animal, Deus também o é. Nesse caso, o riso revela-
se exterminador, dotado de uma perspectiva trágica, indiferente ao caráter daquilo que é
destruído, principalmente quando se observa a enunciação de Deus que irrompe no
discurso, alternando entre o grotesco e o sublime: “nada é como pensas...”
(...) quantos anos dentro de quatro por dois, delicada masmorra,
mastigando tâmaras, tudo parece muito longe dizendo assim tâmaras
masmorra, são coisas do mais além, nada afins com a minha terra de
mamões e bananas, nem porisso não estou aqui, estou sim, terra gorda
extensa e lustrosa, e as tâmaras vêm de alguém que não conheço, um todo
bom na didática dos punhais, recebo folhetos há dez anos e pequenas
estamparias onde se um homem todo nu com círculos (...) E vêm
também uns desenhos mais sóbrios, tijolo e ferrugem finamente
esboçados, a corpança de um tigre, garra pelos dente vísceras o de dentro e
o de fora em cortes transversais (...) (Kadosh in: HILST, Kadosh, 2002,
p.35,36)
O espaço identificado por “delicada masmorra” repete-se em outras posições na
forma “ninho-masmorra”: “vivo no quatro por dois ninho-masmorra porque de repente
ficou difícil viver entre os demais” (p.36), convertida mais à frente em “masmorra-ninho”,
“só eu mesmo junto à porta da masmorra-ninho” (p.37); “um dia alguém-coisa-alado piou
diferente sobre o teto da masmorra-ninho”, “olho dentro da masmorra-ninho, penso quanto
tempo dentro dela” (p.38); “não fiquei tantos anos na masmorra-ninho para acabar na CASA
desse que sei e não sei” (p. 41). Esse espaço constrói-se como uma metáfora da localização
do ator preso a um sistema (masmorra=prisão, cárcere), do qual ele procura livrar-se, no
entanto, essa “libertação” tem de ser concebida, engendrada (ninho) a partir do próprio
sistema, depreendido por associação com outros elementos presentes no discurso, que
ativam o domínio do religioso, do universo da cultura judaico-cristã: “tudo parece distante
dizendo assim tâmaras masmorra, são coisas do mais além (...) e as tâmaras vêm de alguém
que não conheço”.
147
Esse sistema religioso, a Escritura Sagrada, é construído, desde o início, a partir da
“palavra”, no sentido de “ação”, e por meio dela, como se podem ler nas primeiras linhas da
Bíblia as ações de Deus manifestadas por meio de “palavra” e num dos evangelhos, escrito
muitos anos depois, reiterando essa informação, porém manipulando a palavra “verbo”:
No princípio, Deus criou o céu e a terra. Ora, a terra estava vazia e vaga, as
trevas cobriam o abismo, um vento de Deus pairava sobre as águas. Deus
disse: “Haja luz” e houve luz. Deus viu que a luz era boa, e Deus separou a
luz e as trevas. Deus chamou à luz “dia” e às trevas noite”. Houve uma
tarde e uma manhã: primeiro dia. (Gênesis 1, 1-5)
No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus. No
princípio, ele estava com Deus. Tudo foi feito por meio dele e sem ele nada
foi feito de tudo o que existe. (João 1,1-3)
A manipulação da palavra para a elaboração de uma escritura também se em
Kadosh, porém nessa narrativa configura-se uma escritura divergente que vai espelhando a
outra escritura, a divina, a sagrada. A reiteração do uso do verbo” no sistema subjacente,
responsável pela origem de tudo o que existe, na perspectiva religiosa judaico-cristã,
coincide com uma série de elementos articulados no discurso (estamparia, desenhos
esboçados, papel-pluma, traços, legislações eclesiásticas), aos quais se pode associar essa
escritura “sagrada” que o ator da enunciação recebe na forma de folhetos: “durante dez
anos estudei os folhetos para matar esse que sei e não sei” (p.41). Entretanto, esses
folhetos, que de alguma forma lembram a panfletagem usada na Reforma Protestante no
século XVI, “convertem-se” numa escritura divergente da Escritura Sagrada de Deus, à
medida que se marcam outros traços que refratam Deus como num espelho.
A escritura dissonante, ao refratar a ideia de Deus, distorcida, divergente, trabalha
com signos, imagens-figuras-desenhos, e palavras como num crescente a identificar noções
invertidas em relação ao religioso da cultura. Em “tijolo e ferrugem, finamente esboçados”,
por exemplo, metaforiza-se a construção de uma imagem (tijolo), buscada, mas que se
revela também pelo elemento corrosivo (ferrugem). A violência do divino sobrevém ao
discurso, numa associação com elementos do campo semântico sob o classema animal,
apontado noutro conjunto: “corpança de um tigre, garra pelos dente vísceras o de dentro e
o de fora em cortes transversais”. A intensidade domina as imagens: corpança, garra, dente,
vísceras, iconizando a violência no discurso.
148
Os delineamentos expostos até esta parte possibilitam que se proponha a
manipulação de uma escritura divergente da Sagrada, parte do sistema subjacente da
cultura. Para Perrone-Moisés (1983), a escritura é uma linguagem enviesada que,
pretextando falar do mundo, remete para si mesma como referente e como forma particular
de refratar o mundo. A escritura questiona o mundo e, não fixando sentidos, libera a
significação. Nesse sentido, aproxima-se do Catecismo da Igreja Católica e da Bíblia:
Omnis Scriptura divina unus líber est, et ille unus líber Christus est, quia
omnis Scriptura divina de Christo loquitur, et omnis Scriptura divina in
Christo impletur – Toda Escritura divina é um único livro, e este livro único é
Cristo, que toda Escritura divina fala de Cristo, e toda Escritura divina se
cumpre em Cristo.(
Catecismo da Igreja Católica,
§ 134)
As Sagradas Escrituras contêm a Palavra de Deus e, por serem inspiradas,
são verdadeiramente Palavra de Deus. (
Catecismo da Igreja Católica,
§135)
Deus é o Autor da Sagrada Escritura ao inspirar os seus autores humanos;
age neles e através deles. Fornece assim a garantia de que os seus escritos
ensinem sem erro a verdade salvífica. (
Catecismo da Igreja Católica,
§136)
O trecho citado, do ponto de vista da cultura judaico-cristã, fixa, em relação à
Escritura, a existência de um autor, Deus; de um conteúdo que, em síntese, denota um pacto
entre Deus o homem, e de um modo de composição, “inspirada por Deus”. De forma
espelhada, tem-se a escritura divergente apreendida a partir da enunciação em Kadosh, que
evidencia um pacto, um conteúdo e um modo de composição, explicitado em Floema, no
mandato: “usa a linguagem fundamental”. Esta pode ser entendida num dialogismo com a
“língua fundamental”, isto é, a linguagem, segundo Schreber (1985), usada por Deus para
dirigir-se a ele, como também a Kadosh, ator paranoico, possuído por Deus. Nesse caso, fica
evidente que em Kadosh o modo de composição da escritura é o da paranoia, como um
saber paralelo, no caso o saber trágico. Da mesma forma que, em Shereber, o uso da língua
fundamental denota regressão às raízes, estas, em Kadosh, podem ser associadas às raízes
da Bíblia, da Escritura Sagrada.
Considera-se ainda, a partir de C. Machado (1993), que a linguagem de Schreber
remete a algo regressivo, a um retorno às origens, de certo modo, relacionado a uma
significação mortal, visto que manipula somente significantes, cujo significado é “morto”. De
alguma forma, inscrever-se numa escritura-lâmina, o caso da enunciação em Kadosh, revela
149
um morto (significantes), carregando outro morto no caso a Escritura Sagrada (significante
de Deus).
(...) em cima do papel-pluma um título: O GRANDE OBSCURO. Depois em
pequenos traços o que eu imagino ser coisa de fera: agilidade, rapidez, olho
precioso liquidez assombrada, olho de mãe-d’água mas voraz voraz. O
GRANDE OBSCURO GORDO DE PODER NÃO DEVE SER TOCADO ANTES DO
TEMPO. Envolve de saliva a frase, degusta, esse das tâmaras me ensina,
lambe a mucosa, que a tua língua absorva a palavra orvalhada, trança
dentro de ti o molusco e a tulipa, isso foi difícil de entender mas deduzi que
era preciso unir o duro e o aguado, punhal e tripa, punhal e gosma, punhal
e gordo rosado latejante. Pensei esse das tâmaras deve ser bom nas
minúcias, nas legislações eclesiásticas, de diversis quaestionibus
minuciosas, De misteriis, De penitencia. Eu com tudo isso? eu mesmo me
dizia salivando as tâmaras (...) (Kadosh in: HILST, Kadosh, 2002, p.36).
A palavra “papel-pluma” destaca-se no início e à imagem dela se associam as folhas
finas e leves da Escritura Sagrada, porém a escritura e seu conteúdo se invertem a partir do
título e da frase inscritos no papel-pluma. “GRANDE OBSCURO” projeta intensidade no
discurso com suas letras MAIÚSCULAS e expõe um duplo conteúdo: poderoso e misterioso,
recuperando o estranhamento apreendido no primeiro epíteto usado para referir-se a Deus:
“todo-poderoso”, preparando a assunção no discurso das expressões latinas mais à frente:
“coincidentia oppositorum et complicatio, DEUS DEUS AENIGMATICA SCIENTIA” (p.37).
Deus se apresenta no discurso, portanto, pelo excesso (todo-poderoso, grande,
gordo de poder) e pelo mistério (obscuro), informações acompanhadas de desenhos que
lembram as iluminuras usadas, especialmente na Idade Média, para ornamentar os livros.
Tais iluminuras, porém, ao ilustrar o texto inscrito no papel-pluma, reforçam a imagem
distorcida que se constrói de Deus: “Depois em pequenos traços o que eu imagino ser coisa
de fera: agilidade, rapidez, olho precioso liquidez assombrada, olho de mãe-d’água mas
voraz voraz”. Os lexemas de maior intensidade nesse fragmento, olho-precioso-liquidez-
assombrada-olho-mãe d’água-voraz, insistem na leitura de um pavor que se instaura no
discurso, aos poucos, conforme se percebe a figura da mãe d’água, com seus tentáculos
providos de células urticantes capazes de provocar queimaduras nos humanos, embora seja
também uma imagem sedutora. Nessas letras, encontram-se ao mesmo tempo o gozo com a
linguagem e a sutileza em manipulá-la ambiguamente, desvelando uma perversidade oculta,
os rastros do GRANDE OBSCURO.
150
Em trecho da Bíblia, lê-se: “a profecia jamais veio por vontade humana, mas os
homens impelidos pelo Espírito Santo falaram da parte de Deus”. (II Pedro 1, 21) Em outras
palavras, diz-se que um “sopro divino” (“impelidos”) teria orientado a produção dessa
Escritura. Por reflexo dessa imagem, apreende-se no conjunto selecionado de Kadosh a
“inspiração” para a escrita do discurso dissonante, vinda de uma voz “divina” que sopra nos
ouvidos do ator paranoico o modo como deve compor sua escritura: “vai vai, lâmina no mais
fundo desse todo-poderoso” (p.35). “Envolve de saliva a frase”, “degusta”, lambe a
mucosa”, “a tua língua absorva a palavra orvalhada”, “trança dentro de ti o molusco e a
tulipa”. O sopro em Kadosh impele a um requinte de escritura, a um excesso friamente
calculado, na conjunção de movimentos que resultam em violência e crueldade.
O GRANDE OBSCURO não pode ser tocado antes do tempo. Que mais é
preciso fazer para que eu o conheça por inteiro? Para que eu possa colocar
o dedo e sentir até onde ele se faz víscera e sangue, até onde é cristal, onde
exatamente o seu núcleo de sol, onde meu Deus, a coisa se corrompe, que
espessura tem ele de bondade ou ódio. Que espessura. Por que não me
contento em ser apenas esse que mastiga as tâmaras e sorri para a mulher,
a que estiver ao lado, porque de repente as palavras são eu mesmo,
pesadas, turvas, de repente O GRANDE OBSCURSO, o REI lá no fundo não se
reconhece mais, solta-se a máscara de ouro, procuro cem mil vezes um
rosto, um tempo sou Kadosh, doentio, a língua babosa quer sorver
humores, esparrama-se lânguida-espessa sobre um corpo fêmea, diz
palavras inúteis, mentirosas, repete amada amada mas sabe que aquela
que está ali é apenas o unguento de uma tarde, sabe muito bem que aquela
não é amor nem consciência, aquela não é veículo para o mais vida de
Kadosh, e ainda ainda demora-se sobre ela, pergunta-lhe se o gozo foi
mesmo para ela o melhor de todos (...) (Kadosh in: HILST, Kadosh, 2002,
p.42,43).
A escritura de Kadosh se traduz por uma busca por saber de que lado está o GRANDE
OBSCURO, reiterado, no discurso nesse conjunto, em duas possíveis posições, do lado da
bondade ou do lado do ódio. Ao mesmo tempo em que uma busca, um desvelar
contínuo do que pode ser esse Deus ainda não encontrado, mas de alguma forma delineado,
desenhado na escritura por imagens que se opõem tendo como paradigmas a bondade e o
ódio, tais como: víscera e sangue de um lado; cristal, núcleo de sol, de outro lado.
Encontram-se ainda outras imagens em contraste, evidenciando o paradigma da inteireza
pressuposto e do estilhaço dessa ideia de Deus que não se encontra, por isso é reiterado
como GRANDE OBSCURO: “eu o conheça por inteiro?”; “procuro cem mil vezes um só rosto”.
151
A escritura de kadosh se inscreve na perseguição de uma ideia de Deus, traduzida em
palavras, por isso escritura. Desdobram-se as palavras ao revelarem sua relação com aquele
que busca: “de repente as palavras são eu mesmo, pesadas, turvas, de repente O GRANDE
OBSCURO, o REI no fundo não se reconhece mais”; uma consubstanciação, uma “com-
fusão” entre o ser e a linguagem, indicadora não mais de uma verdade, mas de verdades”,
não mais do verdadeiro, mas do verossímil, não mais de um conceito de verdade, mas de
veracidade, manipulado por quem quer que seja e, talvez, não mais reveladora de uma ideia
de Deus, mas de várias. Nesse sentido, a imagem erotizada do corpo a língua babosa
esparrama-se sobre um corpo fêmea (que poderia dizer-se corpo próprio) estende-se à
linguagem, para indicar a imagem da língua sobre a escritura na busca por conhecer o
grande obscuro. Tal busca evidencia uma tarefa inacabada, sem fim, quando se expressa nos
dizeres: “por que não me contento em ser apenas esse que mastiga as tâmaras”, reiterando
um “sagrado descontentamento”, analisado em O projeto.
Kadosh despede-se, enorme corredor acetinado, indicam-lhe uma porta,
abrem-na. Sobre o leito um punhal. Sobre o leito os textos de Plotino:
Beleza é violência e estupefação. OOOOOOOOhhhhhhggrrrrr rrcc (...)
Kadosh deitado no leito entre o punhal e Plotino se pergunta: de que lado
estás, meu Deus? Não fiquei tantos anos na masmorra-ninho para acabar
na CASA desse que sei e não sei, colocam palavras na minha boca, durante
dez anos a carne foi esquecida, durante dez anos estudei os folhetos para
matar esse que sei e não sei, e agora até a pequena tripa que eu tocava
quando ia urinar sobre as pedras, cresceu, veemente, fremido, o pequeno
imbecil quer farejar buracos, contorcer-se. Kadosh-emissário pensa agora
que o tempo deve ser tempo de prazer? Que deve transmutar-se quem
sabe, que é preciso dar vida outra vez à carne esquecida, que a intenção
daquele que o mandara ali é reta, justa: Kadosh fragilíssimo vai fortalecer a
triste carne minguada, vai igualar-se àquele a quem deve matar (Kadosh in:
HILST, Kadosh, 2002, p.41).
Diferente diverso discordante, OUTRO, luxo de ser assim, buscando a fera,
as mãos muito úmidas alisando o pelo, tudo ao mesmo tempo adusto e
verossímil, Kadosh ao mesmo tempo cordeiro tigre corça, nítido diagrama
orvalhado de medo, bramoso celerado manso, pudim e pedra, inteiro
proeza. Kadosh levanta-se. Se fosse possível achar alguma coisa alquímica,
o segredo para chegar até lá, atravessa as três salas lhe disseram, em três
estive, o vestíbulo, a sala dos ministros, o quarto... rastro de ninguém,
nenhuma linha de sangue, de púrpura, e o punhal dentro da manga e
Plotino aberto ao acaso: o que é então o Todo? The total of wich the
transcendent is the Source. Fonte infinitude, infinitude rugindo, doce
morte, está onde devo procurar meu eu inteiro, gaivota-prumo, agudez,
límpido mergulho sobre eu mesmo, alguém de garras na garganta grita:
mergulha, Kadosh, embaixo a resposta, aqui vive apenas o teu ser-
pergunta, aqui a fanfarronice, o presépio de espuma, coloca as figuras a teu
152
modo, caminhas entre a vaca e o jumento, desinfetas o estábulo (...)
(Kadosh in: HILST, Kadosh, 2002, p.44, 45).
Dois paradigmas são mantidos nesses conjuntos: punhal e Plotino. O desdobramento
dos dois pode ser apreendido no texto a partir dos fragmentos que revelam de um lado a
busca de Kadosh, relacionada ao estilhaços produzidos por sua escritura dissonante, por
isso, punhal; de outro, o inteiro, o todo buscado pelo ator paranoico, porém não
encontrado, figurativizado pelo nome Plotino, que coincide com o “todo-poderoso” da
religião. Sendo assim, tem-se a correlação do profano com o religioso, na medida em que o
punhal implica a iminente agressividade potencializada nesse lexema que remete ao
estilhaço do todo, do uno, do belo, segundo Plotino (2000). O religioso, apreendido a partir
da filosofia plotiniana, revela o uno, neste caso, numa relação com o Deus trino da religião
cristã, descolado das imagens que insistem em triplicidade, tais como: “diferente diverso
discordante”; “cordeiro tigre corça”; “bramoso celerado manso”; “atravessa as três salas”
“em três estive, o vestíbulo, a sala dos ministros, o quarto”.
O universo trágico dessa escritura, manipulada na forma de um delírio, é
potencializado nesses paradigmas, principalmente quando se evidencia que a concepção
trágica da lógica do pior é oposta à visão plotiniana — um modo uno de olhar a realidade —,
sendo de tal maneira múltipla que, levada a seus limites, transforma-se em opacidade,
culminando numa espécie de êxtase ante o nada. No primeiro conjunto acima, podem-se
destacar alguns enunciados que, numa sequência, revelam esse êxtase ante o nada,
iconizado, por fim, num elemento de surpresa, de espanto: Sobre o leito um punhal. Sobre
o leito os textos de Plotino: Beleza é violência e estupefação. OOOOOOOOhhhhhhggrrrrr
rrcc”. O conceito de Beleza, articulado na filosofia plotiniana numa relação com Deus, na
perspectiva do que provoca um maravilhamento, um súbito deleite, é corroído ao ser
associado com “violência e estupefação”.
A escritura de Kadosh mostra-se dissonante, ao reverter os valores do sistema
subjacente e ao manipular oxímoros que se estendem pelo discurso, pressionando um
estranhamento em relação a uma ideia de Deus, buscada pelo ator paranoico. “tudo ao
mesmo tempo adusto e verossímil, Kadosh ao mesmo tempo cordeiro tigre corça, nítido
diagrama orvalhado de medo, bramoso celerado manso, pudim e pedra (...) fonte infinitude,
infinitude rugindo, doce morte”. A figura do punhal, desdobrada no discurso, está associada
153
ao imperativo “lâmina no mais fundo desse todo-poderoso”, da tomada de posição,
evidenciado nesta parte por “aí está onde devo procurar meu eu inteiro, gaivota-prumo,
agudez, límpido mergulho sobre eu mesmo”. Verifica-se nesse caso uma busca da ideia de
Deus, porém que resvala para uma busca em direção ao de dentro, pontuada na análise de
O projeto a partir do conceito religioso de que, se o homem é feito à imagem e semelhança
de Deus, buscar Deus é encontrar-se, ao mesmo tempo que encontrar o de dentro é
encontrar Deus.
Do trecho “alguém de garras na garganta grita: mergulha, Kadosh, lá embaixo a
resposta, aqui vive apenas o teu ser-pergunta, aqui a fanfarronice, o presépio de espuma,
coloca as figuras a teu modo, caminhas entre a vaca e o jumento, desinfetas o estábulo”,
evidencia-se um saber sobrepondo-se ao saber do ator paranoico, orientando uma leitura do
trágico, a partir do segmento “coloca as figuras a teu modo”. A insistência do dêitico “aqui”,
em oposição ao “lá embaixo”, somado ao segmento destacado, permite a apreensão de uma
“realidade”, construída não mais conforme o conceito de verdade, mas de veracidade,
comum à lógica do pior. O pensamento do hasard fixa a noção de convenção, logo, nada
diferencia o natural do artificial. A consequência disso é a eliminação da ideia de natureza,
levando à constatação de que o excluído da natureza não é a noção de ser, mas o conjunto
de todos os seres pensados, como se pode constatar no discurso dissonante de Kadosh: “Se
fosse possível achar alguma coisa alquímica, o segredo para chegar até lá, atravessa as três
salas lhe disseram, em três estive, o vestíbulo, a sala dos ministros, o quarto... rastro de
ninguém, nenhuma linha de sangue, de púrpura”.
recebo folhetos dez anos e pequenas estamparias onde se um
homem todo nu com círculos azuis. Círculo azul intenso nesse que aspira e
vomita sangue, esse rosado intenso que se agita quando amas além de uma
certa medida, se odeias além do que o limita, depois um azul
esbranquiçado à volta desse outro que filtra, e mais um azul céu-horizonte
de mar sobre a virilha, sobre a grande veia explosiva, outros azuis
espalhados, baços (Kadosh in: HILST, Kadosh, 2002, p.35,36).
Segue-se no primeiro enunciado o lexema “estamparias”, no sentido de vestígios
deixados sobre um tecido ou um papel. Nesse caso, os vestígios são de um homem todo nu
com círculos, imagem que atualiza o famoso desenho de Leonardo da Vinci, do homem
vitruviano, representando o ideal de perfeição da Renascença: um homem estampado em
154
duas posições dentro de um círculo e de um quadrado, tendo como centro o umbigo, imóvel
nas duas posições. A ideia de perfeição, depreendida da imagem, justifica a importância que
se dava aos princípios geométricos usados como instrumento para compreensão do mundo.
Além disso, o conceito religioso do homem criado à imagem e semelhança de Deus implica a
noção de perfeição encontrada no desenho de da Vinci.
Apesar da reiteração da ideia de perfeição, tanto nas artes quanto na religião, a partir
do centro, potencializada pelo enunciado, uma descentralização no discurso, o que
recupera a escritura “diferente diverso discordante”, uma vez que não se indica
propriamente o centro correlacionado ao umbigo, mas descentraliza-se, colocando-se
círculos e o apenas um círculo, círculos em volta de outros centros, tais como: “nesse que
aspira e vomita sangue”; “à volta desse outro que filtra”; “sobre a virilha, sobre a grande
veia explosiva”. Perde-se, assim, o centro, o equilíbrio, o eixo. O trágico surge, então, ao
desarticular-se qualquer esforço de inferência, seja esta racional (da ordem das causas e dos
fins), seja religiosa ou moral (da ordem das justificações de toda espécie). Diante do nada,
constata-se a impossibilidade de afirmar nada.
(...) és alguém que incomoda durante licores falando de um outro sem
nome, de uma luta entre dois ninguéns, um, tu mesmo, Kadosh soturno
delirante, inapreensível, outro esse alguém imoldável, centro de um círculo
que apenas tu desenhaste, círculo de uma folha gigantesca que desdobras,
e levantam-se sonolentos, dizem onde? onde? ah sim, esse centro rubro,
muito bem Kadosh, esse então é aquele de que falas, muito bem, está
muito bem feito, e onde arranjaste o compasso-gigante para uma
circunferência tão perfeita, ah, aqui está a cara e o corpo de um tigre em
cortes transversais, muito bem, então te interessas pela anatomia
espantosa das feras? Ai Grande Corpo Rajado, inteiro lunular no lúcido salto
lúpulo desiderato (que bonito que és lúpulo desiderato) desidério desejo
quero teu brilho teu pelo, fulgor sob tuas patas, sobre sob, passas inteiro
penumbra quando queres, inteiro solar se me quiseres, ando pensando por
que não me carregas no teu dorso, roteiro-um rugido fogoso,
caminharemos os dois tão delicados, tão assassinos, bocarra aquosa,
lambidona, língua lavada entre os nossos caninos, e vamos os dois rasgando
os fragilíssimos que encontrarmos, esses montados sobre duas pernas,
esses que acreditam que tu, Corpo Rajado, és um sopro do alto, que és
brisa, que passeias no teu verdolengo paraíso espiando primeiro as
ameixeiras, depois rememorando o coito assustado de um instante sob a
macieira, coito-pecado dos dois, coito-Adão Eva sim, e teu dedo em riste,
coito que sabias, que desde sempre soubeste o que seria, ai fragilíssimos
esses sobre duas pernas montados, vamos, o passeio é longo, passeio-
voragem, visceroso, os homens são muitos mas a carne de todos não nos
basta, nada que nos estufe a barriga, é preciso devorar milhares para que
155
um dia percebas, GRANDE CORPO RAJADO, que a tua garra apenas dois
milímetros mais navalha, que a tua língua um quase nada mais crua e mais
sedenta, escuma no teu de dentro agarrada, que... olhas em torno e o teu
rosto não reflete assombro, apenas BUSCA, PROCURA, mais um, milhares,
milhares desses fragilíssimos sobre duas pernas montados, e cresces pouco
a pouco, estás crescendo, não deixarás de crescer, nunca estarás crescido,
és o TEMPO QUE É SEMPRE, TEMPO-CADELA, coisa que não se vê, coisa que
É sem nunca ser tocada, coisa que É e jamais refletida, coisa que É e jamais
foi olhada, coisa que o outro sabe que está pulsando, viva, ronda, Cão
vultívogo, e agora examino tua tríplice goela, tríplices canais rubro intenso
estufados, trina onipotência, hap! hap! hap! e aqui tudo é lustroso,
imperecível, novo. Corpo Rajado, se pudesses pensar me ouvirias dizendo
tudo o que te digo e dirias: Facúndia! Embebida Eloquência! Aos olhos de
Kadosh sou auriflama, aos olhos de Kadosh minha goela é lambrim, Kadosh-
Beliz pensando que me engana. Lamúria do que não se vê, mas eu sim te
vejo, Tríplice-Acrobata, eu sim te vejo, Lúteo-Rajado, e enquanto espreitas
para o salto perfeito eu ando no teu rasto, piso o teu passo, incendeio-me,
às vezes sei que me sabe e me procuras exibindo as presas e... (Kadosh in:
HILST, Kadosh, 2002, p. 67,68,69).
Nesse outro conjunto, retoma-se a geometria, relacionada à perfeição, para explicar
Deus: “esse alguém imoldável, centro de um círculo que apenas tu desenhaste, círculo de
uma folha gigantesca que desdobras (...) centro rubro (...) compasso gigante para uma
circunferência tão perfeita”. A instância enunciativa manipula duplamente a perfeição: na
geometria e na violência. Aponta-se assim uma coocorrência entre geometria e violência,
figurativizada pela cara e pelo corpo de um tigre em cortes transversais, no centro do
círculo. Trabalha-se com a ideia de centro, porém o ponto, responsável pelo equilíbrio, pela
perfeição, é evidenciado pela violência. Os folhetos recebidos por Kadosh, “corpança de um
tigre, garra pelos dente vísceras” (p.36), são vistos agora como desenhos do próprio kadosh.
Os traços dos desenhos confundem-se, da mesma forma que o ator paranoico confunde-se
com Deus.
A identificação de kadosh com a ideia de Deus está, a princípio, vinculada ao não ser,
pois perpassa a informação de “uma luta entre dois ninguéns”. No entanto, essa
identificação desdobra-se em perfeita violência: o homem, imagem e semelhança de Deus,
consubstanciado com Deus na violência, na vileza. A doutrina católica da consubstanciação é
potencializada nessa fusão de naturezas, kadosh e Deus, humano e divino: “roteiro-um
rugido fogoso, caminharemos os dois tão delicados, tão assassinos, bocarra aquosa,
lambidona, língua lavada entre os nossos caninos, e vamos rasgando os fragilíssimos que
encontrarmos”; uma consubstanciação realizada no erotismo teofágico, kadosh devorando
156
uma ideia de Deus. Kadosh refrata o Catecismo da Igreja católica, como se pode ler no
parágrafo abaixo, explicitando-o de modo transversal em sua escritura:
Mas dado que o nosso conhecimento de Deus é limitado, a nossa
linguagem, ao falar de Deus, também o é. Não podemos falar de Deus
senão a partir das criaturas e segundo o nosso modo humano limitado de
conhecer e de pensar. (Catecismo da Igreja católica, §40)
Todas as criaturas são portadoras duma certa semelhança de Deus, muito
especialmente o homem, criado à imagem e semelhança de Deus. As
múltiplas perfeições das criaturas (a sua verdade, a sua bondade, a sua
beleza) refletem, pois, a perfeição infinita de Deus. Daí que possamos falar
de Deus a partir das perfeições das suas criaturas: “porque a grandeza e a
beleza das criaturas conduzem, por analogia, à contemplação do seu Autor”
(Sb 13, 5) (Catecismo da Igreja católica, §41).
Ao falar de Deus, kadosh “segue” a orientação do catecismo, a partir das criaturas,
porém, às avessas em relação à religião. As “múltiplas perfeições das criaturas”
transformam-se, em Kadosh, em múltiplas imperfeições, quando a “verdade” transforma-se
em veracidade (coloca as figuras a teu modo, p.45), a “bondade” transforma-se em maldade
(tão assassinos), a “beleza” transforma-se em grotesco (bocarra aquosa, lambidona,
visceroso). Por conseguinte, Deus se torna a imperfeição infinita. As explicações do
catecismo ganham, a partir da escritura de kadosh, um tom de ironia, de deboche, como se
pode ler no parágrafo abaixo que passa a ser derrisório, passa a ter efeito de um riso
demolidor porque destrói sem importar-se com o que é destruído (vamos, o passeio é longo,
passeio-voragem, visceroso, os homens são muitos mas a carne de todos não nos basta):
Deus transcende toda a criatura. Devemos, portanto, purificar
incessantemente a nossa linguagem no que ela tem de limitado, de ilusório,
de imperfeito, para o confundir o Deus “inefável, incompreensível,
invisível, impalpável” com as nossas representações humanas. As nossas
palavras humanas ficam sempre aquém do mistério de Deus (Catecismo da
Igreja católica §42).
O Deus uno de Plotino, depreendido das explicações do catecismo (Deus é a origem
primeira de tudo e a autoridade transcendente), também se reverte em riso demolidor a
partir da leitura de kadosh, principalmente quando se evidencia uma imagem da divindade
figurativizada em “ternura paterna” e “imagem da maternidade” em comparação com a
crueza do Deus de Kadosh:
157
Ao designar Deus com o nome de “Pai”, a linguagem da indica
principalmente dois aspectos: que Deus é a origem primeira de tudo e a
autoridade transcendente, e, ao mesmo tempo, que é bondade e solicitude
amorosa para com todos os seus filhos. Esta ternura paternal de Deus
também pode ser expressa pela imagem da maternidade, que indica
melhor a imanência de Deus, a intimidade entre Deus e a sua criatura
(Catecismo da Igreja católica §239).
A doutrina católica da consubstanciação, parte do sistema subjacente da cultura,
surge em Kadosh de forma espelhada, kadosh consubstanciado com deus, e estende-se à
trindade una, invertida em “tua tríplice goela, tríplices canais rubro intenso estufados, trina
onipotência, hap! hap! hap! e aqui tudo é lustroso, imperecível, novo”, refratando a ideia de
Deus numa imagem de devorador, de violência levada ao extremo pela reiteração de
“tríplice” e de “trina onipotência”, imagens da religião, do conceito que se expõe em:
(...) seguindo a tradição apostólica, no primeiro concílio ecumênico de
Nicéia, em 325, a Igreja confessou que o Filho é “consubstancial” ao Pai,
quer dizer, um só Deus com Ele. O segundo concílio ecumênico, reunido em
Constantinopla em 381, guardou esta expressão na sua formulação do
Credo de Nicéia e confessou “o Filho unigênito de Deus, nascido do Pai
antes de todos os séculos, luz da luz. Deus verdadeiro de Deus verdadeiro,
gerado, não criado, consubstancial ao Pai”. (Catecismo da Igreja católica,
§242)
A Trindade é una. Nós o confessamos três deuses, mas um Deus em
três pessoas: “a Trindade consubstancial”. As pessoas divinas não dividem
entre Si a divindade única: cada uma delas é Deus por inteiro: O Pai é
aquilo mesmo que o Filho, o Filho aquilo mesmo que o Pai, o Pai e o Filho
aquilo mesmo que o Espírito Santo, ou seja, um único Deus por natureza”.
“Cada uma das três pessoas é esta realidade, quer dizer, a substância, a
essência ou a natureza divina”. (Catecismo da Igreja católica, §253)
A potencialidade do universo trágico se descortina no discurso, por meio da
simulação da escritura delirante. A manipulação do ator paranoico, desdobrado em um eu-
outro, ator de saber trágico, permite à instância enunciativa expressar sua visada de mundo,
não apenas sobre Deus como se apreende nessa escritura, mas sobre a existência, com base
numa lógica cujo argumento trágico fundamental é a afirmação da impossibilidade de
qualquer pensamento. Tal lógica torna-se um modo de olhar destruidor, catastrófico,
adotando uma atitude terrorista e eliminando qualquer ilusão que o homem possa ter
imaginado para evitar a desgraça. Isso é o que se em: “és alguém que incomoda durante
158
os licores falando de um outro sem nome, de uma luta entre dois ninguéns”, fragmento por
meio do qual se pronuncia o pensamento trágico que revela o homem consciente de que
toda crença posta à prova é incapaz de precisar aquilo em que ela crê.
A partir da eliminação da ideia de natureza, a filosofia trágica trabalha com a noção
de que não nada a perder, não se tendo nada, afirmando o estado de morte de tudo o
que existe. Sendo assim, o acontecimento passa a carregar características de festa: irrupção
inesperada, excepcional, ocasiões que existem num tempo, num lugar, para uma pessoa,
não repetíveis, dotando cada instante da vida de características de festa, de jogo e de júbilo.
Essa maneira de articular o trágico destaca-se em Hilst quando se percebe o gozo com a
linguagem, não ignorado, embora o discurso potencialize uma lógica do pior.
No conjunto acima, as marcas do jogo irrompem de tal maneira que o enunciatário
desse discurso passa a desfrutar do prazer dos exercícios com a linguagem. Alguns
fragmentos permitem evidenciar esse jogo, por meio do qual se apreendem os sons, a
cadência das palavras, as repetições, a beleza das palavras, das imagens inesperadas,
instaurando no discurso um instante de júbilo ante o trágico da existência: Ai Grande Corpo
Rajado, inteiro lunular no lúcido salto lúpulo desiderato; desidério desejo quero teu brilho
teu pelo; fulgor sob tuas patas, sobre sob, passas inteiro penumbra quando queres, inteiro
solar se me quiseres; roteiro-um só rugido fogoso; caminharemos os dois tão delicados, tão
assassinos, bocarra aquosa, lambidona, ngua lavada entre os nossos caninos; Aos olhos de
Kadosh sou auriflama, aos olhos de Kadosh minha goela é lambrim, Kadosh-Beliz
pensando que me engana.
O nome da busca de Kadosh é Deus, aparência do eu ou máscara do que se procura,
sempre no de dentro, portanto, no vazio, no oco: Fiquei tantos anos na masmorra-ninho
para acabar na CASA desse que sei e não sei” “aqui por dentro, dentro de Kadosh, o sonho
envelhecendo”. A intensidade dessa busca e seu desdobramento no discurso de Kadosh
pode ser evidenciada na manipulação que o sujeito da enunciação faz do numeral “mil” e de
suas “infinitas” possibilidades, como se apreende nos exemplos colhidos em todo o texto,
indicadores daquilo que afeta e direciona a visada do discurso:
A que horas a execução dos mil? (p.39) Perguntem a Kadosh se está livre
para assinar a execução dos mil.(p.39) Vejamos... sim, uma mulher que se
violentada pelos mil. (p.40) Se permitires, essa que vai ser furada, que
resista, que não ceda logo, é tão raro o prazer de ver, e depois... mil passam
159
logo. (p.40) Mil devem ser executados, mil lembranças, o gosto ardente das
tâmaras, as pequenas maravilhas do existir, os dedos sobre a maciez de um
couro aveludado, Debussy orvalho, conta-gota alimentando ócio ucarado
de Kadosh. (p.42) de repente O GRANDE OBSCURO, o REI lá no fundo não se
reconhece mais, solta-se a máscara de ouro, procuro cem mil vezes um
rosto, um tempo sou Kadosh, doentio, a língua babosa quer sorver
humores, esparrama-se lânguida-espessa sobre um corpo fêmea, diz
palavras inúteis, mentirosas, repete amada amada mas sabe que aquela
que está ali é apenas unguento de uma tarde, sabe muito bem que aquela
não é amor nem consciência, aquela não é veículo para o mais vida de
Kadosh (p. 43) preparo-me para a execução dos mil (...) Kadosh mulher
violada, Kadosh apontando o fuzil, Kadosh ele mesmo mil mãos espalmadas
contra a parede (p.45) De onde essa agonia febre-fulgor que eu carrego mil
vezes cada dia? (p.45) deitei-me sobre ela e depois mil se deitaram (p.47)
sempre que a tua cabeça vazia imaginar a posse de ti mesmo, mil estarão
atrás de ti, mil lobos te invadindo, mil estrias de esperma sangue sobre a
coxa o ventre a cabeça (p.48) Há milênios procuro me afastar de ti para que
em mim surja um novo nome, há milênios procuro a ideia que perdi (p. 48)
eu ando em luta contigo milhões de milênios (p.49) escrevi durante dez
noites a palavra amor, cem mil páginas, cim mil (p.49,50) olha aqui Cão de
Pedra, abri dois mil livros, a ponta do dedo descarnava (p 50) os mil degraus
na sexta (p.56) é preciso devorar milhares para que um dia percebas,
GRANDE CORPO RAJADO, que a tua garra apenas dois milímetros mais
navalha (...) mais um, milhares, milhares desses fragilíssimos sobre duas
pernas montados (p.68) te aprumas em direção ao sagrado buraco e as mil
bocas te agarram, mil bocas laterais sugando, torcendo o que te resta de
carne, de imagem do homem, nunca entrarás no abismo esplendoroso
(p.74) houve alguma vez deicídio, holocausto, repregaram mil vezes mil
alguéns que perguntavam o que fazias ANTES, ANTES DA IDEIA? (p.76) (...)
dez mil milhões de neurônios e retalhos silenciosos (...) (p.77) Kadosh corpo
adequado, inspectio mentis, estás apenas no começo e desde aprendes
cento e e cinquenta mil milhões de estrelas agrupadas, espiralando vais
percorrendo um absurdo diâmetro de cem mil anos luz (p.78) vejamos,
meus alunos, a massa da galáxia... dizem... calcula-se habitualmente em
cento e vinte mil milhões de massas solares ou, vejam, que belíssima
síntese: 2,5.1044 (p.78)
Da mesma forma que o numeral “mil” e suas infinitas possibilidades o explorados
no discurso, os epítetos usados para representar essa busca de Deus se estendem e podem
ser apreendidos em intensidade.
o todo-poderoso (p.35); O GRANDE OBSCURO;(p.36); O GRANDE OBSCURO
GORDO DE PODER NÃO DEVE SER TOCADO ANTES DO TEMPO (p.36); DEUS
DEUS AENIGMATICA SCIENTIA (p.37); Kadosh acredita que a excelência
moral de seu Deus é excessiva (p.37); a voz do repelente mia (p.37);
alguém-coisa-alado piou sobre o teto da masmorra-ninho (p.38); CASA DO
GRANDE OSBSCURO (p.38); in nomine patriis (p.38); O GRANDE OBSCURO
vai lamber as patas de prazer (p.39); de que lado estás meu Deus? Não
160
fiquei tantos anos na masmorra-ninho para acabar na CASA desse que sei e
não sei (p.41); O GRANDE OBSCURO, o REI no fundo não se reconhece
mais (p.43); The total (p.44); por que não te vejo, CORPO DE DEUS, LÍNGUA
DE DEUS, MÃO ESBRASEADA DE DEUS (p.46); guardai-vos da lascívia porque
o meu santuário é sagrado (p.46); Grande incorruptível (p.46); Excelência
(p.46); Grande Obscuro; Máscara do Nojo, Cão de Pedra (p.47);
Sacrossanto, por que me enganaste repetindo: hic est filius meus dilectus,
in quo mihi bene complacui (p.51); Grande caracol baboso aguado brilhante
(p.53); o Sem Nome, o Mudo Sempre, o Tríplice Acrobata (p.54); veni
creator spiritus (p.56); Cadela de Pedra (p.56); O GRANDE ROSTO VIVO
(p.58); Obscura cara (p.59); Cara Cavada (p.65); o Grande Obscuro, o
Grande-Olho (p.65); Corpo Rajado (p.67); coito-pecado dos dois, coito-Adão
Eva (p.67); GRANDE CORPO RAJADO (p.68); TEMPO-CADELA (p.68); Cão
vultivogo (p.68); Tríplice-Acrobata (p.68); Lúteo-Rajado (p.68); COISA SEM
NOME (p.70); COISA QUE NUNCA EXISTIU (p.73); MUDO-SEMPRE, SEM
NOME (p.73); JUCUNDO (p.76); Sumidouro (p.77); GRANDE PERSEGUIDO
(p.79); CADELA CARA CAVADA (p.82); Coisa incomensurável (p.83); Sem-
Tempo (p.84); Sorvete Almiscarado (p.84); MEU PAI (p.85); titeriteiro luzidio
(p.87); Sorvedouro (p.89)
Kadosh, ator paranoico, ao construir sua metáfora delirante, busca dar conta da
ausência da função simbólica. Ele articula uma teia de palavras e imagens, uma metáfora
fracassada com sentido singular, resultado de um processo de linguagem em que o
imaginário forma à alienação paranoica. Dessa forma, apreende-se no delírio a voz de
Deus, que se manifesta tendo Kadosh como seu interlocutário:
Porque EU digo que deve ser assim para o homem: EU não devo estar na
cabeça dos homens. EU não devo ser chamado pelos homens. Escuta bem,
Kadosh, queres interferir no meu destino? milênios procuro me afastar
de ti para que em mim surja um novo nome, milênios procuro a ideia
que perdi, não era nada que se parecesse contigo, ando atrás desse sem
forma, desse nada que repousa esperando o meu sopro, e cada vez que me
chamam a matéria que sou estilhaça. Por que me procuras, Kadosh, se eu
mesmo me procuro? É como se a pedra de repente se pusesse a andar atrás
de ti, como se a pedra te segurasse as vestes cada vez que tentasses matar
a tua sede numa fonte inesperada, uma fonte esplêndida e absurda de
repente num vazio infinito e calcinado. E enrolas no teu pulso a minha
roupa e fazes-me voltar e eu ando em luta contigo milhões de milênios,
volto-me e o teu rosto é sempre o mesmo, teu olhar um ninho de
perguntas, tua boca um ruído de gonzos e guitarras, nada sei do que
esperas de mim, deixa-me em paz para que em mim surja um novo nome,
para que a Ideia se incorpore a mim, uma que num átimo vislumbrei, mas
escapou-se (Kadosh in: HILST, Kadosh, 2002, p.48,49).
Trata-se da imagem do próprio eu, refletida no espelho, revelando o lugar do outro
semelhante, alguém estranho e invasivo, objeto de amor e ódio, e deslocando a relação
161
amorosa do espelho para a própria linguagem, com a qual manifesta um caso de amor. No
entanto, nesse discurso, uma significação singular se descola do delírio simulado na escritura
pelo sujeito da enunciação e aponta para o trágico da condição humana, traçado na busca
de Kadosh em direção a uma ideia que se delineia no discurso a partir do vazio, a partir do
nada, espelhado na imagem do homem depreendida na voz do eu-outro Deus: “ando atrás
desse sem forma, desse nada que repousa esperando o meu sopro, e cada vez que me
chamam a matéria que sou estilhaça (...) uma fonte esplêndida e absurda de repente num
vazio infinito e calcinado”.
O trágico da condição humana insiste nesse discurso destruindo o homem vitruviano
de da Vinci (há milênios procuro a ideia que perdi), o homem imagem e semelhança de deus
(deixa-me em paz para que em mim surja um novo nome, para que a Ideia se incorpore a
mim, uma que num átimo vislumbrei, mas escapou-se), o uno de Plotino (cada vez que me
chamam a matéria que sou estilhaça), ideologias que vão sendo destruídas por uma postura
trágica que descola do delírio, ao considerar o homem consciente de que fala sobre nadas
em favor de um saber trágico, a intuição da incapacidade humana de os homens criarem
uma ideologia. A perspectiva trágica revela-se quando se afirma não faltar nada ao homem
com relação ao seu desejo. Do ponto de vista antropológico, não consiste numa falta de ser,
mas numa plenitude de ser. Não significa apenas constatar as carências, mas em ter
consciência de que nada falta. O homem, que deseja nada, de forma paradoxal deseja e é
incapaz de desejar algo, constitui discursos em lugares onde estão colocados em questão
nadas, aos quais ele não pode definitivamente ater-se nem por eles interessar-se.
Sobre a arca do meu quarto encontrei um papel onde estava escrito que
tudo que era dele era agora meu. Corri em direção àquela sala de porta tão
pesada quanto a própria casa (...) a porta estava aberta e dentro nada.
Sala de pedra, inteira vazia, no alto uma rosácea, um amarelo tão ouro que
eu não suportei. VAZIA. VAZIA. NADA. Ai, Sumidouro, uma parte de mim...
essa que me roubaste, o que seria dessa parte se de repente ela voltasse a
mim sem o teu sopro? Que coisa, Sumidouro, se faria nesse vazio-contorno,
que escrescência, que escama, como seria Kadosh sem essa ilha, Kadosh
sem umbigo, selvagem estupor, ventre ambarino liso, e as gentes ao redor
e ele mesmo buscando, nombril, nó, nombril muito mais que umbigo,
ovívoro buscando sem descanso o próprio ovo, e as gentes... punho
fechado para o alto, Kadosh chamuscado ouvindo: sai, Ominoso! (Kadosh
in: HILST, Kadosh, 2002, p. 81)
162
A reiteração do vazio, do nada, articulado ao religioso, remete ao trágico, cujo pior é
nada poder afirmar. Vão-se deslocando do trecho as evidências do religioso. A arca remete
ao religioso do Antigo Testamento, objeto guardado num lugar no qual ninguém podia
entrar a não ser o sumo sacerdote, ao mesmo tempo que está relacionado ao pacto entre
Deus e o homem firmado nas páginas da Escritura Sagrada. A porta tão pesada quanto a
própria casa reforça essa leitura desse espaço chamado na Bíblia de santo dos santos, o
tabernáculo. Além desses elementos que instauram no discurso o sagrado, mais um insiste
nessa direção: no alto uma rosácea, um amarelo tão ouro que eu não suportei, numa
referência ao ostensório, peça usada para expor a stia, corpo de Cristo na forma de um
círculo, imagem da presença real de Deus entre os homens. O religioso espelhado a partir do
homem perfeito de Leonardo da Vinci, cujo centro é o umbigo, centro do círculo, ícone
usado para apreender-se a ideia de Deus. No entanto, a refração do religioso no espelho do
discurso com o fim de apontar-se o trágico, reiterado: dentro nada; inteira vazia; VAZIA.
VAZIA. NADA; vazio-contorno; Kadosh sem umbigo, selvagem estupor, ventre ambarino liso,
nombril.
A refração do religioso no discurso remete a outras questões ainda no campo do
trágico. Kadosh, sem umbigo, encontra-se, portanto, fora do centro, sem poder explicar a
sua origem, o seu começo, a sua inquietação metafísica: de onde vim? Para onde vou? Além
disso, nombril, Kadosh possui um ventre ambarino liso, imagem que potencializa a teofagia
no discurso delirante, em sua relação de amor e ódio em relação a esse que ele busca,
questão mais à frente observada noutra narrativa, a da obscena senhora D, “teófaga
incestuosa”. Ao mesmo tempo que se orienta em direção a essa leitura da “teofagia”, da
ideia com a qual Kadosh se alimentou, descola-se também do discurso a consubstatnciação
entre Kadosh e Cristo, o Deus que, segundo o Credo, foi gerado consubstancial ao Pai, não
feito, uma vez que tem umbigo quem é gerado no ventre de uma mulher. Em oposição ao
uso que se faz do ostensório, erguido para o alto para ser adorado, uma vez que Deus está
na hóstia, o punho surge no discurso fechado para o alto. O trágico se configura nesse
exemplo a partir dos indícios apreendidos na perspectiva do pior ser nada poder afirmar,
nesse caso, sobre Deus, pelo vazio que se instaura e reinstaura no discurso.
Tempo de dez mil anos, Kadosh cobiçoso sorriu, e já não sabia de sua
própria identidade, Kadosh não era mais o que visitava a casa, caça,
163
sobriedade estupefação agonia, e aos poucos foi se movendo, presa dentro
da teia fimbrada, ele mesmo teia inteira coincidida, ele mesmo ante-sala
incorporando-se ao limite extremo da casa, e todo palpável descansou as
mãos sobre a parede, era não era ele mesmo que visitava um possível
kadosh esquecido, um calendário ardente agora diante de seus olhos, era
ele o belíssimo ou era Lázaro-Kadosh jorrando insanidade, revisvecido sem
ter jamais encarnado, suspenso úmido sumido aprisionado, quem era
kadosh nesse instante olhando o belíssimo (ímpeto, ilharga indevassável) e
um dia os dois nunca mais seriam... e no corpo se juntariam? (Kadosh in:
HILST, Kadosh, 2002, p. 95)
Caçada enlouquecida em direção a quê? A nada, Kadosh (Kadosh in: HILST,
Kadosh, 2002, p.96).
(...) agora virá um tempo de amor para Kadosh, um vívido tempo para
compensar o meu de antes desvivido, singradura agora para compensar
outro tempo onde o casco só caminhava por caminho ardoso, onde Kadosh
sedento procurava tua cara, procurava em tudo (...)(Kadosh in: HILST,
Kadosh, 2002, p.97)
Basta. Tempo de amor, o meu agora, Cão de Pedra. Que eu viva carne e
grandeza. E principalmente isso: que eu Te esqueça. Mais nada (Kadosh in:
HILST, Kadosh, 2002, p.98).
No início desta análise, sinalizou-se sobre a tomada de posição da instância da
enunciação a partir de Floema. Esta serve para marcar-se em Kadosh a terceira acepção de
acontecimento, terrível e trágico, segundo a lógica do pior: a tomada de posição em Floema
é um acontecimento imprevisível, como foi pontuado. O desdobramento da narrativa de
Kadosh revela-se na forma de um acontecimento previsível em relação ao outro, da outra
narrativa. No entanto, a ideia de Deus, primeiro acontecimento, que se desenvolve em
Floema, é mantida até o final: “Haydum, um gozo não me tiras: NADANADA de mim quando
me tomares, nem os ossos. Estou novamente no centro, as paliçadas ao redor, esta casa-
parede avança, vai me comprimindo. Porco-Haydum: tentei” (Floema in: HILST, Fluxo-
floema, 2003, p.249). Em Kadosh, porém, o destronamento da ideia de Deus é o grande
elemento causador do trágico. O pavor de perceber ter-se acreditado em algo que nunca
existiu revela não a inconsistência da crença em Deus, mas também a inconsistência de
toda a existência, fundada em quê? Em nada.
164
CAPÍTULO 9
A OBSCENA SENHORA D: ESTADO DE MORTE E JÚBILO
A obscena senhora D, obra publicada em 1982, reeditada em 2001, será abordada
considerando-se os conceitos que orientaram a posição da semiose em narrativas
anteriores. Para análise dessa obra, leva-se em conta o pressuposto de que a predicação do
discurso é atribuída pelo sujeito da enunciação a um duplo paranoico: o ator de saber
insabido serve de caminho para a investigação e revelação do universo trágico, ou seja, a
enunciação feita do lugar da “demência” dá voz à “lucidez” do ator de saber trágico.
Da tomada de posição da instância de discurso de A obscena Senhora D, pretende-se
recortar topoi pertinentes para serem usados como elementos norteadores da análise das
articulações semióticas do discurso, entendida no plano da proposta de investigar o espaço
potencializado relativo ao sistema subjacente do universo trágico, conforme a Lógica do
Pior, de Rosset (1989). Esses elementos indiciarão tensões e modos de coexistência das
valências e dos valores do discurso na mencionada perspectiva.
Os esquemas tensivos do discurso serão apreendidos, portanto, a partir da dimensão
retórica, identificando-se a sua sintaxe, ou seja, a organização das variações de equilíbrio,
dos tipos de correlação e das gicas de forças no discurso, no nível de intensidades, no
tocante às valências que remeterão às quantidades e posições de valores, no seu
desdobramento e extensão relativos ao trágico. Todo esse mecanismo de semiótica do
discurso, articulado anteriormente em O projeto, no capítulo 5, ficará implícito no
caminho escolhido para desenvolver-se esta semiose. Dessa forma, a proposta a ser
desenvolvida concerne à exploração do espaço potencializado pelo trágico no discurso de A
obscena Senhora D, na sua relação com a experiência do acaso, hasard, decorrente da
consciência do não-ser: o estado de morte.
Os componentes da perspectiva trágica, do hasard, podem ser abordados sob três
ângulos: 1º) consciência do não-ser: a ideia de hasard dissolve a ideia de natureza,
provocando o questionamento da noção de ser e desencadeando o “estado de perdição”, da
165
perda de referenciais de espaço e de tempo; 2º) estranho familiar: a ideia de hasard soma-
se à definição proposta por Freud (1996), da perda do familiar, ou seja, da descoberta de
que este é, inesperadamente, um domínio desconhecido, o ápice da estranheza; 3º) estado
de morte: como os anteriores, uma ideia de pavor, resultante da tomada de consciência do
não-ser, experiência que, necessariamente, é uma afirmação do estado de morte de tudo o
que existe, de que não nada a perder, não se tendo nada; não é a morte que aparece
como o termo de toda “vida”, mas a própria vida que perde seu caráter vivente. Os dois
primeiros conceitos de hasard foram articulados na análise de O projeto, no capítulo 5.
Essa experiência existencial do estado de morte tem por fundamento o estatuto da
exceção. O estado de morte, entendido sob o prisma da exceção, é também um estado de
festa. O acontecimento do ponto de vista do hasard carrega todas as características de festa:
irrupção inesperada, excepcional; ocasiões que existem num tempo, num lugar, para uma
pessoa, não repetíveis, dotando cada instante da vida das características de festa, de jogo e
de júbilo. Tornar os homens capazes de ver a sucessão das exceções, capazes de aproveitar a
sucessão das ocasiões, revela o essencial do ensinamento sofístico.
O estado de morte, característica do hasard, provoca a questão da indiferença em
relação a tudo que existe, a vida perde seu caráter vivente, nada pode modificar a natureza
ou constituí-la. duas formas diversas e contraditórias de indiferença. A primeira consiste
em esperar o hasard com certeza, que tudo é hasard. O mundo é considerado monótono,
logo a indiferença está relacionada ao tédio. A segunda consiste em nada esperar, se tudo é
hasard. Nessa perspectiva, o mundo é uma festa, por seu caráter de surpresa, de irrupção
inesperada. A ênfase é dada à indiferença vista pelo ângulo da festa, do jogo, do júbilo,
oposta ao tédio. Trata-se da inversão da espera: nada sendo regra, tudo se torna igualmente
exceção, não pela chegada constante de novidades, mas pela visão da falta de regras, pois as
coisas se “organizam” ao acaso (hasard). A relação entre festa e trágico na acepção do
estado de morte é uma experiência filosófica de aprovação, que aparece na idéia de hasard
como exceção e princípio de festa, júbilo, que será explorada no último item desta análise.
166
9.1 O preenchimento de um vazio
A obscena Senhora D, no título, apresenta-se como algo enigmático. A intensidade
de sua estranheza depreende-se dos epítetos em evidência. Decide-se, portanto, iniciar a
semiose por esse caminho. Trata-se da inversão da espera, como num legítimo jogo de
hasard: tem-se um ator reconhecido pelo antropônimo Hillé, com o epíteto de a Senhora
“D”, identificação feita com apenas um fonema, um significante que instiga o enunciatário a
uma investigação aberta, nada sendo regra. O “mapa caleidoscópico” para a investigação
dessa narrativa está delineado criptograficamente na tomada de posição da instância de
enunciação, imediatamente colocada após o título:
Vi-me afastada do centro de alguma coisa que não sei dar nome, nem
porisso irei à sacristia, teófaga incestuosa, isso não, eu Hillé também
chamada por Ehud A Senhora D, eu Nada, eu Nome de Ninguém, eu à
procura da luz numa cegueira silenciosa, sessenta anos à procura do
sentido das coisas (HILST, A obscena senhora D, 2001, p.17).
Escolher-se como “lance” nesse jogo o “nome” das coisas talvez seja uma estratégia
fadada ao desengano. Como jogo é risco, seleciona-se o topoi indiciado no título, com o
perigo de perseguir uma pista falsa, semelhante à encontrada no “tabuleiro” de O Projeto a
partir de “casa”. Entretanto, se a preferência é dada no discurso pela “cegueira” para
defrontar-se com a luz buscada, opta-se por esse viés delineado pelo ator da enunciação,
manipulado hieroglificamente pelo sujeito da enunciação.
Segue-se, pois, pelo caminho conhecido, elementar, para investigar-se uma narrativa,
a de responder àquelas perguntas padrão de um enunciado desse tipo: quem? onde?
quando? como? por quê? Tudo está indiciado na tomada de posição, mas, pelo tipo de
resposta, tem-se a noção da complexidade desse discurso, pela maneira de preenchimento
dada a essas questões que assim se configuram: 1) quem? eu Hillé também chamada por
Ehud A Senhora D, eu Nada, eu Nome de Ninguém; 2) onde? Vi-me afastada do centro de
alguma coisa que não sei dar nome, nem porisso irei à sacristia, teófaga incestuosa, isso não;
3) quando? Sessenta anos; 4) como? eu à procura da luz numa cegueira silenciosa; 5) por
quê? à procura do sentido das coisas.
167
Tal lance é uma jogada sem frutos, a não ser o da captura da intensidade desse
discurso enunciado por enigmas como um desafio ao enunciatário. Nesse espaço aberto e
indefinido, o ator da enunciação apresenta-se da seguinte forma: eu Hillé também chamada
por Ehud A Senhora D, eu Nada, eu Nome de Ninguém. Abrem-se no enunciado algumas
direções de sentido para o epíteto nomeado pelo marido Ehud, como Senhora D: a direção
dada por Hillé, antropônimo de saber insabido, é a de traduzi-lo como Nome de Ninguém,
um “eu Nada”. Pela estranheza desses acréscimos para explicar o significante “D”, estes,
nada elucidam. Reconhece-se nele a voz do saber trágico mascarado de saber insabido, o
que levará a outras associações com elementos colocados na própria tomada de posição a
explicitar-se.
Antes, porém, contrapõe-se a copresença de um enunciado a seguir, que dá um
preenchimento ao sentido desse significante, num foco diverso: “(...) porque me perguntas a
cada dia e não reténs, daqui por diante te chamo a Senhora D. D de Derrelição (...)
Desamparo, Abandono” (HILST, A obscena senhora D, 2001, p.17). Essa nova referência
dada pela voz do outro, Ehud, coloca a intensidade do discurso no domínio do “abandono”.
Tal identificação feita por Ehud parece ligar abandono com a indiferença, com a vida, que
perdeu seu caráter vivente na alienação por não conseguir compreender-se o sentido das
coisas, aspectos que se confundem com a demência, postura de um ator de saber insabido.
No entanto, esse discurso gruda-se na contiguidade da frase, numa mesma sintaxe, a outro
enunciado típico de lucidez, embora mascarado de demência:
desde sempre a alma em vaziez, buscava nomes, tateava cantos, vincos (...)
no ínfimo absurdo, nos mínimos, um dia a luz, o entender de todos nós o
destino, um dia vou compreender, Ehud
compreender o quê?
isso de vida e morte, esses porquês (HILST, A obscena senhora D, 2001,
p.17,18)
A frase interrompida indicia o jogo paralogístico entre duas enunciações,
simultâneas, conforme o parâmetro em que é decodificada. Se for pelo “eu-Hillé”, é a
consciência do trágico, estado de morte, indiferença em relação a tudo que existe; a vida
perde seu caráter vivente, pela consciência de que nada pode modificar sua natureza” ou
constituí-la. Se for pelo “eu-outro”, sua atitude lúcida parece loucura. Por ser classificada
168
pela máscara do tédio, recebe o epíteto “D”, no sentido de derrelição, desamparo,
abandono.
Seria derrisório como analista desse discurso complexo ficar somente com esse
parâmetro sugerido pelo outro-Ehud. Esse “significante” terá tantos preenchimentos quanto
o número de buscas: à procura do sentido das coisas. O auxílio do dicionário será pertinente
numa imitação do procedimento de Ehud: “de”, preposição. Pode-se intuir nesse contexto
“de” como “pré-posição”, elemento de ligação que pode expressar o sentido: “ponto de
partida”, “matéria”, “meio”, “instrumento”, “modo”, cujo preenchimento é um conjunto
aberto, “liga-se” a “alguma coisa”.
Isso denota a complexidade de sua escolha pelo sujeito da enunciação, com sua
singular práxis enunciativa estruturada em espiral, em teias, em labirinto, em geometrias
que levam ao nada de um sentido, sempre escorregadio, iconizando a própria escritura que
refrata a concepção do mundo trágico, segundo Rosset (1989), a consciência da
desnaturalização do ser: “eu nada, eu Nome de Ninguém”. O “que existe” é nada, cujo
sentido se entende como nada a respeito do que se pode definir como ser, nada que “seja”,
suficiente para oferecer-se à delimitação tanto no nível conceitual como no existencial.
9.2 Labirinto de duplos
A busca do sentido das coisas é classificada pelos “outros”, no discurso, como
“obsessões metafísicas”:
um dia me disseram: as suas obsessões metafísicas não nos interessam,
senhora D, vamos falar do homem aqui e agora. que inteligentes essas
pessoas, que modernas, que grande cu acesso diante dos movietones,
notícias quentinhas, torpes, dois ou três modernosos controlando o mundo,
o ouro saindo pelos desodorizados buracos, logorreia vibrante
moderníssima (...) (HILST, A obscena senhora D, 2001, p.26, gs.a.)
Tais palavras, pronunciadas por uma obscena senhora “obscenidade” explícita,
literalmente, nesse trecho comprovam o epíteto; porém, ao observar-se o grotesco
169
acrescido de tom irônico, pressiona-se a procura de outros mecanismos para esse epíteto, a
serem desvendados.
Assim, à maneira delirante, retorna-se ao ponto inicial: “à procura Do sentiDo Das
coisas”, num jogo de enigmas. Confirma-se, pois, ser pertinente buscar os topoi das
questões da Senhora D como um fio para explicitar sua complexidade; topoi esses cifrados
por referências na tomada de posição: “Vi-me afastada do centro de alguma coisa que não
sei dar nome nem porisso irei à sacristia, teófaga incestuosa, isso não”. Esse enunciado pode
ser apreendido do ponto vista de valências do plano do conteúdo, no espaço interno dessa
narrativa, e também em copresença com o plano de expressão do espaço externo,
concernente a outros discursos que funcionam como outro sistema subjacente, o de obras
anteriores de Hilst, a voz de um “outro” que é um mesmo, evidenciando sua estrutura de
simulação de um delírio.
O texto citado marca-se por uma intensidade igualmente enigmática e reiterativa,
sobre alguma coisa, que possui um centro, sem nome. Esses elementos remetem a um
contexto virtualizado e potencializado pela copresença de outros enunciados. Observando-
se a práxis enunciativa da escritora, de projetar narrativas anteriores num novo espaço
diferencial, capturam-se palavras marcadas em O projeto e em Kadosh: o “centro”,
“afastada do centro”, associadas à geometria de Hiram e Kadosh.
Ao construir-se um círculo, gira-se o compasso da percepção, levando-o a um ponto
central, indiciado pela geometria usada por da Vinci para representar o homem vitruviano,
perfeito, recuperado nos folhetos de Kadosh. Há, também, a referência ao compasso-gigante
de Kadosh, com uma “circunferência tão perfeita” para representar “alguém imoldável,
centro de um círculo que apenas tu desenhaste,” o mesmo compasso que Hiram solicita ao
filho a fim de desenhar o projeto de uma casa para abrigar o grande sol de dentro e de
Hiram preso ao círculo: “tudo se adere ao círculo”, ao “círculo” do seu “ídolo sem nome” e
tudo volta a ser espelho-estranheza trágica com o objetivo de refletir a “esquiva e
entranhada coisa do meu ser de dentro”, de Hiram, ou o “eu Nada, Nome de Ninguém” da
Senhora D. A essa copresença dos espaços externos da obra de Hilst, que se utiliza de
estranhamentos, aliada a “alguma coisa que não sei dar o nome”, evidenciam-se, no
contraponto do mesmo enunciado, as palavras denotadoras de um sistema subjacente,
ligado ao espaço religioso: sacristia, teo... (Deus).
170
A estrutura tensiva, utilizada para configurar os modos de existência do enunciado,
no âmbito do campo de presença desse discurso, abre novos espaços que levam a repisar o
sentido do título: A obscena Senhora D”. O significante “D” reflete a ausência de conexão
biunívoca com o significado e se refrata no enunciado da tomada de posição: “Vi-me
afastada do centro de alguma coisa que não sei dar nome nem porisso irei à sacristia,
teófaga incestuosa, isso não”. Nas palavras sublinhadas, configuram-se in praesentia os
elementos reiterativos do mesmo paradigma de ausência: falta, indeterminação, negação
em “afastada”, “alguma coisa”, “não sei dar nome”, “nem”, “não”.
Esses elementos reduplicam-se ao conectarem-se reiterativamente com outros,
coocorrentes, na tomada de posição: A Senhora D, eu Nada, eu Nome de Ninguém, eu à
procura da luz numa cegueira silenciosa, sessenta anos à procura do sentido das coisas”. A
falta é reiterada na dupla negação para identificar o eu, Hillé: Nada, Ninguém. Aliada à
cegueira silenciosa, essa falta remete a privação de dois sentidos: o da visão e o da audição,
reforçado também pela repetição de uma dupla busca, nos enunciados: “à procura da luz”,
“à procura do sentido das coisas”. Nota-se que luz” também é um duplo LUZ,
identificação de Deus, e luz, de “lucidez” ligado à reiteração de estruturas à procura
da luz... à procura do sentido...” identificadas por uma mesma sintaxe, à procura D (...)
duplo de enunciados que denotam “falta” D (...). Acrescenta-se a este, outro duplo: o
semema “coisas” do final do enunciado refrata, por sua vez, o do início, “de alguma coisa”.
Destaca-se ainda o segmento “teófaga incestuosa” por também manifestar um
duplo, numa relação com o enunciado inicial: “Vi-me afastada do centro de alguma coisa
que não sei o nome”. Já se evidenciou “a presença” de Deus em “teo” e busca-se explicitar o
duplo no enunciado em torno da palavra “centro”, que desvela uma geometria
identificadora de Deus, ressignificada por uma leitura déjà-vu. Somando-se “centro” a
“afastado” e a “alguma coisa”, tem-se a indeterminação desse centro, ligado a “alguma coisa
sem nome”, “alguma coisa que não sei dar nome”, que ressignifica in ausentia a referência
ao epíteto usado por Kadosh e por Hiram.
Nessas circunstâncias, o “sem nome” na sua referência a Deus instaura a presença da
ideia de Deus in ausentia e in praesentia, marcada pela intensidade atribuída à dupla lâmina
de significantes: “teófaga incestuosa”. O substantivo “teófaga”, de intensidade profanadora,
é amplificado pelo adjetivo “incestuosa”, indiciando duas posições diante de Deus: uma, de
amor carnal, interdito, no sentido de cópula com o Pai; outra, de agressividade, apreendida
171
por meio do radical fagia”, que amplifica a imagem de violência do corpo num espaço de
crueldade, associada à sonoridade “paródica” do trocadilho entre sacristia e eucaristia,
virtualizado, porém, realizado na rima. Esse duplo impõe-se como um discurso profanador
do sagrado, marcando a posição de afastamento do centro, atualizado e realizado no
discurso como substituto da ideia de Deus por uma geometria vazia, evidenciada na semiose
de discursos anteriores.
A identificação e a “desusbtanciação” com Deus evidencia-se nos reflexos de “alguma
coisa que não sei o nome”, o SEM NOME e o “eu Nada, Nome de Ninguém”, referenciando,
(ou “reverenciando”?) o mesmo sentido, o VAZIO: a noção do não-ser pelo “abandono” (ou
“afastamento?”) da ideia da não existência de Deus, ideia inapreensível; por isso, o estado
de morte de tudo o que existe, denunciado na identificação do eu-Senhora D-Deus,
escondido no D, inicial de Deus, identificada com o Nada pronunciado pelo ator de saber
trágico, usando a máscara de ator de saber insabido, sempre pelo ponto ausente,
enigmático” ou pelo afastamento do centro, na denúncia de um centro vazio, inexistente:
“desde sempre a alma em vaziez, buscava nomes, tateava cantos” (p.17).
Resta, na tomada de posição, identificar o duplo de letras em Hillé, criptograma de
Hilda Hilst, significante do sujeito da enunciação, uma das máscaras usadas pela obscena
senhora D, no espaço trágico das obsessões metafísicas:
compreender o quê, Ehud?
nomeia as ilusões, afasta-te da vertigem
hen?
loucura é o nome de tua busca. esfacelamento.
cisão.
derrelição (HILST, A obscena senhora D, 2001, p.56).
A tomada de posição ressoa no labirinto de duplos como um prenúncio ominoso,
letra esotérica do estado de morte de tudo o que existe, “escritura de templários”, pela
necessidade de apreender um código secreto, inexistente, teia-teo-terrífica, auto-fágica,
destruidora de ilusões, pronta para envolver o enunciatário nesse “espaço-viuvez” de
Hiram-Senhora D, viúva negra envolvente numa cópula fatídica, pronunciada e prenunciada
na “pré-posição” D:
172
O que é paixão? o que é sombra? Eu mesmo te pergunto eu mesmo te
respondo: Hillé, paixão é a grossa artéria jorrando volúpia e ilusão, é a boca
que pronuncia o mundo, púrpura sobre a camada de emoções (HILST, A
obscena senhora D, 2001, p.29).
Pelo verso ou pelo anverso da linguagem, instaura-se no discurso a perdição num
labirinto em que o estado de morte se faz júbilo de uma escritura-máscara demolidora, na
qual o trágico e a festa coexistem no “pré-ssuposto”: não nada a perder, não se tendo
nada:
(...) nas luminâncias das nossas mãos nenhum recado ou talvez sim um
logogrifo, chispas, um canto vindo da ossatura da terra, um feixe de puro
branco. (...) Hillé, minha filha, boas e vadias e solenes ilusões, movemo-nos
pelas ilusões, gigantescas e fofas, fiquei lumpesinando dentro delas e como
gostei, Hillé, anos apenas, mas que deliciosa deixação
as ilusões, pai? (HILST, A obscena senhora D, 2001, p.80)
9.3 Espaço de trevas e luz
os segredos da carne são inúmeros, nunca sabemos o limite da treva, o
começo da luz (HILST, A obscena senhora D, 2001, p.46)
Do ponto de vista da dimensão trágica do discurso, a obra de Hilst é um espaço de
busca, entre teias de trevas e de luz, utilizado para estabelecer questões metafísicas. A
escritura é metaforizada em máscara para expor a dissonância ante os sistemas ideológicos
que a escritora potencializa em seu discurso. Em algumas narrativas serve-se de outro
estratagema, o de criar nova postura de instância de discurso como topoi temático. O ator
de saber insabido constrói uma escritura ao mesmo tempo em que explora as questões
metafísicas. Esse é o caso em Fluxo, em Kadosh e em A obscena senhora D. Essa duplicidade
tem por função enfatizar a natureza da linguagem.
O ator de saber insabido encontra-se na seguinte condição: além da busca de
respostas para questões metafísicas, persegue uma linguagem que permita apreendê-las. A
consciência de dilaceramento do ser e da linguagem do sujeito da enunciação instala-se na
voz do paranoico e serve de veículo para dar voz ao ator de saber trágico. Essa postura
173
associa-se ao fundamento do trágico, segundo Rosset (1989): falar o pior. Nesse caso, o pior
é explicitar a consciência de que tudo é ilusão, tudo é discurso, para preencher um vazio.
Denunciar ou expor o estado de morte de tudo que é vivente é uma postura
terrorista. Significa, em outras palavras, refletir sobre a desnaturalização do ser e das coisas,
tarefa da “lógica do pior”. Observa-se essa característica na práxis enunciativa de Hilst no
nos domínios de seu discurso trágico: pensar a natureza da linguagem é pensar o ser, visto
que o “VERBO” está “encarnado”. Esse estado de morte é um estado dilacerador: ter
consciência de que o ser é linguagem é ter consciência de que é não-todo. O discurso trágico
de Hilst se marca por esse viés.
Esse caráter metalinguístico de evidenciar a consciência de que se está no nível do
discurso, num espaço de linguagem, intermediado pela impotência do dizer, enfatiza
igualmente a consciência de que a linguagem é por natureza um espaço de ficção, de
dispersão de referenciais, um espaço aberto a “n” possibilidades de sentido. Ter a “lucidez”
de que tudo é linguagem leva a instalar-se igualmente a noção de que constituir discursos é
constituir linguagens “preenchedoras” de um vazio. O sujeito da enunciação orienta esse
jogo de perdição referencial. Além do recurso a uma linguagem enigmática, metafórica, ele
cria um duplo espaço de escritura. Esse mecanismo de que tudo é linguagem associado ao
espaço de simulação do delírio cria um duplo que permite descortinar o trágico da
existência.
De igual modo, para evidenciar seu conceito de escritura, Hilst usa o subterfúgio
paralogístico. Na representação de um mundo subjacente que potencializa “verdades” e
mentiras, ideologias igualadas a discurso de “nadas”, inventa uma escritura dentro da
própria escritura, num espaço interno duplo, uma escritura dentro da outra. Essas duas
escrituras se misturam.
Rosset (1989) diferencia os discursos ideológico e anti-ideológico do discurso trágico,
cuja postura considera o homem consciente de que fala sobre nadas, em favor de um saber
trágico. A marca deste discurso é não ser falado, contudo ele é pensado; o homem sabe
disso, mesmo não falando desse saber. Tal questão pode ser decodificada na tomada de
posição da Senhora D: “à procura da luz numa cegueira silenciosa” (HILST, A obscena
senhora D, 2001, p.17).
Cabe, então, ao artista trazer à fala esse discurso, caracterizado na postura
dissonante da autora ao articular uma instância discursiva de forma singular. Além da
174
delegação do discurso a um paranoico, a um duplo manipulado para revelar o trágico, a
enunciação em Hilst configura-se como um espaço mítico de eterno retorno. Sua instância
enunciativa é marcada pela busca de uma origem: o ator de saber insabido persegue a noção
de Deus, fundamentada na ilusão de que encontrar Deus é encontrar a noção do ser, ou
vice-versa.
(...) e uma luz na tua cara tão difusa e em pontas que a boca amanheceu
com a luz dos rubis, e vi uma pedra exsudando, um extensor encolhendo,
um livro tentando olhar-se e ler-se, um sonho caminhando, uma ponte
enterrada, isso muito triste uma ponte enterrada. Cisão. Esfacelamento.
Um oco ardente de luz, o nome das coisas, quem tem o nome das coisas?
Encostei a testa na tua testa, Menino-Porco, dois vazios teus olhos dois
assombros, nenhum sentimento nesses dois funis, entre s nenhum
parentesco (HILST, A obscena senhora D, 2001, p.58,59, gs.a.).
Nas palavras grifadas, identificam-se valências que dão intensidade às questões
expostas exaustivamente nas obras de Hilst, do ponto de vista do discurso trágico: o
esfacelamento da linguagem, do ser e das coisas; a presença de uma “luz difusa” que se alia
a um “Menino-Porco”, metaforizando a ideia de um Deus destronado, distante, ausente,
cego e dessemelhante; cegueira e cisão de Deus e do mundo da linguagem, do ser e das
coisas: Um oco ardente de luz, o nome das coisas concentra a noção de Deus, linguagem e
vaziez, de tudo que não é.
A visão da escritura da Hillé-Senhora D metaforiza-se nesse fragmento: “às vezes
queremos tanto cristalizar na palavra o instante, traduzir com lúcidos parâmetros centelha
e nojo, não queremos?” (HILST, A obscena senhora D, 2001, p.50, gs.a.) Instaura-se no
espaço literário o que potencializa o sistema subjacente articulado à visão trágica, a lógica
do pior, segundo Rosset (1989). A escritura como uma fala delirante, “vertigem do nada”
para quebrar “os duros dos abismos”, irrompendo num “nascível de luz”, espaço de exceção,
estado de morte e estado de festa, simultaneamente, loucura e júbilo:
Tens uma máscara, amor, violenta e lívida, te olhar é adentrar-se na
vertigem do nada, iremos juntos num todo lacunoso se o teu silêncio se
fizer o meu, porisso falo falo, para te exorcizar, porisso trabalho com as
palavras, também para me exorcizar a mim, quebram-se os duros dos
abismos, um nascível irrompe nessa molhadura de fonemas, sílabas, um
nascível de luz, ausente de angústia. HILST, A obscena senhora D, 2001,
p.55, gs.a.)
175
O mecanismo de escritura metaforizada em “máscara”, num dinamismo de duplos
em tensão, de copresença de um duplo de escritura projetada no enunciado, como topoi
temático, reduplica em espelho e mescla os espaços de proprioceptividade, de
interoceptividade e de exteroceptividade, constituídos no discurso. Essa postura da instância
da enunciação que reafirma a demência e a lucidez e coloca a escritura como um espaço de
luz para refletir sobre as trevas da condição humana, ou, pelo avesso, que denuncia as trevas
para iluminar o instante de aprovação da consciência do não-ser, por meio de instantes de
gozo no exercício da linguagem poética, revela a tentativa de cristalizar na escritura esse
instante: “uma Hillé lagamar, escura, presa à Terra, outra Hillé nubívaga, frescor e
molhamento, e entre as duas uma outra que se fazia o instante, eterna oniparente” (HILST,
A obscena senhora D, 2001, p.55).
Os enunciados: centelha”, “uma Hillé, escura”, “outra nubívaga” “entre as duas o
instante”, remetem ao acontecimento “i-repetível” da criação e de sua percepção no
discurso em ato: confluência de duplos consonantes e dissonantes da escritura, da ideologia
e da perspectiva trágica. O nada é reiterado e “esfarinhado” nos desdobramentos da
escritura, o texto fala por si mesmo e se teoriza poeticamente numa montagem de posturas
da instância de discurso:
o esfarinhado no corpo da alma agora, papéis sobre a mesa, palavras
grudadas à página, garras, frias meu Deus, nada me entra na alma, palavras
grudadas à página, nenhuma se solta para agarrar meu coração, tantos
livros e nada no meu peito, tantas verdades e nenhuma em mim, o ouro
das verdades onde está? que coisas procurei? que sofrido em mim se fez
matéria viva? que fogo, Hillé, é esse que sai das iluminuras, folheia, vamos,
toca (HILST, A obscena senhora D, 2001, p.51,52, gs.a.).
O pensamento trágico postula: o homem tem consciência de que fala sobre nadas,
em favor de um saber trágico. Se esse fundamento não é pronunciado por muitos, é,
contudo, pensado. O homem sabe disso, mesmo não falando desse saber. O ponto de
partida desse pensamento é a explicitação da verdade que atribui ao homem a posse de um
saber silencioso, incidindo sobre o nada de sua fala. O homem pode acreditar em tudo, mas
ele não poderá deixar de saber silenciosamente que esse tudo é nada. Conforme Rosset
(1989), a literatura revela-se, muitas vezes, por seu caráter trágico. O homem dionisíaco em
176
Nietzsche (1992), por exemplo, é ordenado segundo uma lógica do pior, considerada como
ponto de partida, cujo pressuposto metodológico é o mesmo: o que deve ser buscado e dito
antes de tudo é a essência do pior.
A máscara pode ser um subtefúgio no teatro para velar e desvelar o horror; tem a
capacidade de representar outro espaço que não é o do real, embora o refrate. Às máscaras
liga-se a ideia de ilusões depreendidas de alguns dos sentidos dicionarizados da palavra para
compreender-se a dimensão do trágico na associação entre máscaras e ilusão. Máscara é
uma peça com que se cobre parcial ou totalmente o rosto para ocultar a própria identidade.
No teatro, é uma peça com que os atores cobrem o rosto para caracterizar a personagem;
expressão que o ator imprime ao rosto em suas caracterizações; falsa aparência (Dicionário
Houaiss da língua portuguesa, 2009). Dos sentidos apontados, constrói-se a relação, a partir
do trágico, entre máscara, ilusão e pavor. Esse recurso é utilizado na escritura-máscara de
Hilst:
(...) abro a janela nuns urros compassados, espalho roucos palavrões, giro
órbitas atrás da máscara, não lhes falei que recorto uns ovais feitos de
estopa, ajusto-os na cara e desenho sobrancelhas negras, olhos, bocas
brancas abertas? Há máscaras de focinhez e espinhos amarelos (canudos de
papelão, pintados pregos), uma máscara de ferrugem e esterco, a boca
cheia de dentes, uma desastrada lembrança de mim mesma, alguém-
mulher querendo compreender a penumbra, a crueldade quadrados
negros pontilhados de negro alguém-mulher caminhando levíssima
entre as gentes, olhando fixamente as caras, detendo-se no aquoso das
córneas no maldito brilho
Hillé, andam estranhando teu jeito de olhar (HILST, A obscena senhora D,
2001, p.20, gs.a.)
É possível extrair, a partir das metáforas desse enunciado, algumas direções,
manipuladas pelo sujeito da enunciação, mascarado de saber insabido. A postura dissonante
da instância de discurso coloca-se por meio de: “urros compassados”, “giro órbitas atrás da
máscara”, “máscaras de focinhez e espinhos”, “pregos”, máscara de ferrugem, esterco”,
imagens de pavor que iconizam a postura do sujeito da enunciação a respeito do “tom” de
discurso projetado na escritura de Hillé-Senhora D, na busca para compreender a penumbra,
a crueldade. Esse discurso é contraposto a outro tipo de máscara:
Antes havia ilusões não havia? Morávamos nas ilusões. Ehud, e se eu
costurasse máscaras de seda, ajustadas, elegantes, por exemplo, se eu
177
estivesse serena sairia com a máscara da serenidade, leve, pequenas
pinceladas, um meio sorriso, todos os que estivessem serenos usariam a
mesma máscara (...) máscaras de ódio, de não disponibilidade, máscaras de
luto, máscaras do não pacto, não seria preciso perguntar vai bem como vai
etc., tudo estaria na cara (HILST, A obscena senhora D, 2001, p.24,25).
Coloca-se, em contraste, a possibilidade de máscara de seda, de serenidade, um
meio sorriso” como teatralização das ilusões, oposta àquelas que iconizam o pior: máscaras
de ódio, de luto, ou ainda aquela que melhor evidencia a postura trágica: “máscaras do não
pacto” de preencher o vazio com ilusões. Retomando um fragmento do enunciado anterior,
observa-se seu desdobramento:
uma máscara (...), uma desastrada lembrança de mim mesma,
alguém-mulher querendo compreender a penumbra, a crueldade
quadrados negros pontilhados de negro — alguém-mulher caminhando
levíssima entre as gentes, olhando fixamente as caras, detendo-se no
aquoso das córneas no maldito brilho (HILST, A obscena senhora D, 2001,
p.20, gs.a.).
Destaca-se desse trecho: alguém-mulher caminhando levíssima entre as gentes”.
Examina-se em contraponto o fragmento seguinte:
Caminho com pés inchados, Édipo-mulher, e encontro o quê? Memórias,
velhice, tateio nadas, amizades que se foram, objetos que foram
acariciados (...) e eles continuam estáticos e ocos, sobre as grandes mesas,
sobre as arcas, sobre a estante escura, sonâmbula vou indo, meu passo
pobre, meu olho morrendo antes de mim (...) procuro um naco de espelho
e olho para Hillé sessenta, Hillé e emoções desmedidas, fogo e sepultura, e
falas falas, desperdícios a vida foi (...) (HILST, A obscena senhora D, 2001,
p.71, gs.a.)
O lexema “alguém”, de “alguém-mulher”, abre imediatamente a referência àquele
Alguém buscado em outros espaços narrativos, relacionado a alguma coisa que não sei o
nome”, “à procura da luz (LUZ-Deus/lucidez) numa cegueira silenciosa”. Tem-se assim a
projeção no enunciado da coocorrência de um espaço virtualizado referente a Deus, que se
“consusbstancia” nesse “alguém-mulher caminhando”. Esse enunciado amplia sua
significância e seu espaço subjacente se considerado em copresença com o outro conjunto
marcado pela repetição do duplo “Édipo-mulher”, refletido por meio da mesma estrutura
“alguém-mulher”, um duplo de Deus-mulher (teófaga incestuosa). A esses duplos deve ser
178
acrescido o índice de “cegueira”, relacionado a Édipo sob o classema “trevas”, implícito na
tomada de posição da instância de discurso. Ao articular “Édipo-mulher”, abre-se nova
metáfora espacial do trágico, por onde o ator de saber insabido, na sua “lúcida demência”,
vai circular, na rota do eterno retorno caracterizador do mítico.
No entanto, “as-sombra-se”, no enunciado “há uma desastrada lembrança de mim
mesma”, outro duplo, o da tragédia, evocando-se os desastres da tragédia grega, colada ao
nome “Édipo”, representação que tem por fundamento o mito. Condensam-se no espaço do
discurso o mito e a tragédia. Ao confundir esses dois espaços, cria-se uma nova dialética.
Recupera-se a noção de necessidade, explicitada por Rosset (1989), na análise
dialética entre o acontecimento representado na tragédia e a noção de acontecimento
entendida pelos filósofos trágicos: o conceito de necessidade, na tragédia e na lógica do pior,
envolve um contraste de sentido. Nos gregos, compreende-se o sentido da palavra sob a
forma de um processo de desdobramento inelutável, sujeito a uma explicação
aparentemente causal, a partir de uma determinada circunstância. Por sua vez, o trágico,
segundo o pior, remete ao acontecimento casual (hasardeux), resistente à interpretação.
A primeira noção de necessidade é entendida por meio da ideia de causa
determinante (mesmo que sua origem seja obscura) e o destino, como finalidade inevitável.
Para os filósofos terroristas, a necessidade está baseada no ser (casual-hasardeux), e não
no ser porquê (causal), e o destino designa somente o caráter irrefutável do que existe.
Portanto, pronunciar que uma “desastrada lembrança de mim mesma” instaura uma
ambiguidade entre os dois sentidos expostos. À primeira vista, parece ser um lamento do
ator de saber insabido; porém, num segundo momento de releitura, associado a “Édipo-
mulher”, a causalidade da imagem se espelha em outros espaços, levando ao descolamento
de “desastrada” no sentido de que todas as lembranças são nadas da existência e da
memória, potencializando a dimensão trágica do eterno retorno das lembranças revisitado
também num espaço mítico.
A necessidade na filosofia trágica é caracterizada a partir de uma situação
determinada, cujo desenrolar provável, necessário, está marcado inicialmente e cuja ação
trágica está incluída na origem das premissas (de certa maneira, ela o repete). Nos trágicos
gregos, essa ideia deve ser entendida de maneira inversa por designar fatos antes que
efeitos. Na lógica do pior, seu significado não está no encadeamento das determinações que
conduzem inevitavelmente à cisão e à morte; mas, ao contrário, no caráter o necessário,
179
casual, dessa trama. Assim, a imagem retomada em “Édipo-mulher”, do ponto de vista de
uma metáfora usada para iconizar a procura do sentido das coisas, reverte o sentido da
tragédia grega e do mito de Édipo, que evoca busca e incesto em uma escritura inserida num
espaço mítico de eterno retorno à procura de respostas para as mesmas questões-enigma
sobre a noção de ser e de Deus. O discurso também insurge como refração do espaço-
esfinge das concepções do mundo: “Estar aqui no existir da Terra, nascer, decifrar-se,
aprender a deles adequada linguagem” (
HILST, A obscena senhora D, 2001,
p.24).
Existe outra possibilidade de articular “uma desastrada lembrança de mim mesma”
no campo do discurso, na perspectiva da simulação de um delírio, perpassado de
“lembranças encobridoras”, segundo C. Machado (1993). Estas presentificam a noção de
máscara no sentido de personas de um estranho familiar, engendrando o pavor fatídico
encenado como num teatro, condensando mito e tragédia grega para espelhar o universo
trágico, postura “terrorista” usada para anunciar os desastres do ser diante da vida, sem o
seu caráter vivente.
Nessa função, o saber trágico espelha o lugar da cegueira de Tirésias, mascarada de
saber insabido, com o objetivo de anunciar os desastres da condição humana: escritura-
exorcismo e catarse, estado de morte e júbilo; em que a palavra Deus concentra as teias da
Senhora D, seus “eus” emaranhados numa mesma busca desenhada em diversas imagens:
“um oco de luz o nome das coisas”:
Texto, palavras, e derepente a mão do Porco-Menino me entupindo a boca
de terra, de cascalho, de palha. Engasgo nesse abismo, cresci procurando,
olhava o olho dos bichos frente ao sol, degraus da velha escada, olhava
encostada, meu olho naquele olho, e via perguntas boiando naquelas
aguaduras (...) Os olhos dos bichos é uma pergunta morta. E depois vi os
olhos dos homens, fúria e pompa, e mil perguntas mortas e pombas
rodeando um oco e vi um túnel extenso forrado de penugem, asas e olhos,
caminhei dentro do olho dos homens, um mugido de medos garras
sangrentas segurando ouro, geografias do nada (...) de seus peitos duros
saíam palavras Mentira, Engodo, Morte, Hipocrisia, vi o Porco-menino
estremecendo de gozo vendo o Todo (...) Seu irmão gêmeo estático, os
olhos cegos em direção ao próprio peito, a cabeça pendida, o corpo
perolado, excrescência e nácar (HILST, A obscena senhora D, 2001, p.30,31,
gs.a.).
180
A expressão mil perguntas mortas e pombas rodeando um oco reitera a intensidade
do discurso colocada na perspectiva do trágico, na mescla de imagens identificadoras da
ideia cristalizada de Deus esfacelada no oco, no vazio de um círculo trágico, numa fusão de
imagens da humanidade assemelhada ao Porco-menino estremecendo de gozo”, na suas
cegueiras que brilham na escritura jubilosa de luz e trevas: “corpo perolado, excrescência e
nácar”. Sendo “excrescência”, no sentido de excesso, superfluidade, coisa que desequilibra a
harmonia de um “todo”, e “nácar” espaço da escritura-“madrepérola”, “corpo”-próprio,
enunciando “geografias do nada”, tendo como ponto de origem” Deus: um ponto-origem
de um círculo oco e vazio. Assim, tudo se projeta num espaço mítico para explicar
simbolicamente uma origem de algo que é enigmático e que “não é”.
No caso do discurso de Hilst, a perseguição de uma ideia de Deus experimentada de
várias formas divergentes torna e retorna ao mesmo original. Desse modo, a ação trágica
identificada em uma tragédia mostra-se como necessária (“eu sabia”), porque se deixa
casualmente identificar. O princípio que assegura, ao mesmo tempo, a identificação e a
necessidade é a repetição, destacada por trás do episódio trágico, a presença de um trágico
difuso e repetível, de maneira mais exata, temível.
No caso do discurso de Hilst, o modo de abordar Deus num contexto do “aqui e
agora” cria, sob a perspectiva do tempo, um contraste com o sentido de uma ideia de Deus,
cristalizada no sistema subjacente teológico, de uma ideia de Deus atemporal, se considerar-
se a noção de Deus como “Aquele que não tem princípio e nem terá fim”, o que leva à sua
conjunção com o mito, razão pela qual é possível essa dissonância de elementos e suas
repetições. Aquilo que repete a repetição encaminha, inevitavelmente, ao mito e ao
desconhecido.
Entende-se, pois, a articulação das questões metafísicas na escritura de Hilst nesse
contexto: o repetido é sempre um retorno do passado, considerado na perseguição da ideia
de Deus no espaço interno do discurso e a noção de Deus no espaço cristalizado, do mesmo
diferente que surge como novo, numa reaparição de forma singular. Essa reaparição, ou
seja, renovação da diferença, faz renascer o júbilo original. O mesmo e o outro, a repetição e
a diferença confundem-se na apreensão daquilo que, para Nietzsche (1992), era o único
objeto de reflexão — a vida.
181
Portanto, a diferença é o trágico de fato, ao portar em si a razão do não-
interpretável, o que leva à mudez e ao silêncio. Por isso a retomada da posição inicial do
discurso soa como confirmação e retorno do que aqui se configura:
Vi-me afastada do centro de alguma coisa que não sei dar nome, nem
porisso irei à sacristia, teófaga incestuosa, isso não, eu Hillé também
chamada por Ehud A Senhora D, eu Nada, eu Nome de Ninguém, eu à
procura da luz numa cegueira silenciosa, sessenta anos à procura do
sentido das coisas (HILST, A obscena senhora D, 2001, p.17).
O estratagema da “máscara” soma-se a esse novo espaço na dupla representação da
máscara decorrente do teatral que, ligado a personas no nível psicanalítico (lembranças
encobridoras, retorno do repetido), incorpora na dupla escritura, a do sujeito da enunciação,
mascarado de saber insabido, e a de saber trágico, a escritura de Hillé-Senhora D, topoi
temático do trágico projetado no espaço do enunciado supostamente delirante de Hillé-
Hilst. Teias emaranhadas de duplos que enovelam seus fios num enunciatário desavisado e o
arrastam para esse espaço dilacerador de máscara, tragédia e mito, articulados pelo avesso,
potencializando o espaço subjacente das obsessões metafísicas da Senhora D.
A repetição diferencial, típica do eterno retorno dos acontecimentos de maneira
estranhada, é uma das marcas da práxis enunciativa de Hilst. O ator de saber insabido
retorna “n” vezes a elaborar as mesmas questões em contextos diversos. Ele é um ser que
pergunta e, como um Édipo às avessas, copula com o verbo-pai-Deus, teófaga incestuosa,
procura a luz numa cegueira silenciosa.
O sujeito da enunciação encena, na práxis enunciativa, a mudez do trágico, o estado
de morte de tudo o que existe, numa cena trágica de busca e vazio de sentidos, viúva negra
emaranhada em teias de renda trevosa. No entanto, o estado de morte é também momento
de festa que repete a ideia implícita nas festas dionisíacas: morte e festa; escritura-júbilo,
instante em ato, reestruturador do caos por meio da linguagem poética: afundando os
dedos na matéria do mundo (...) Quem a mim me nomeia o mundo? Estar aqui no existir da
Terra, nascer, decifrar-se, aprender a deles adequada linguagem” (
HILST, A obscena senhora
D, 2001,
p.24, gs.a.).
Desperdício sim tentar recompor o discurso sem saber do começo e do fim
ou o porquê da necessidade de compor o discurso, o porque de tentar
182
situar-se, é como segurar o centro de uma corda sobre o abismo e nem
saber como é que foi parar ali (...) Recomponho noites de sofisticações,
política, deveres, uma sociologia do futuro, um estar aqui, me pedem,
irmanada com o mundo, e atuar, e autores, citações, labiosidade
espumante, o ouvido ouvindo antes de tudo a si próprio mas respondendo
às gentes com elegância propriedade esmero como se de fato ouvisse as
gentes, teatro, tudo teatro” (HILST, A obscena senhora D, 2001, p. 72,
gs.a.)
9.4 Espaço-viuvez nas teias de Deus
Ao iconizar a perda dos sentidos da visão e da audição, impossibilitada de distinguir a
LUZ, de ouvir a voz de Deus, abandonada por ele, afastada do centro de alguma coisa sem
nome, Hillé, mascarada de Senhora D, empreende uma caminhada mítica, de eterno retorno
às mesmas questões para identificar Deus ou a ideia que tem Deus. Buscar Deus ou os “eus”,
na ausência do D contido em D-eus, descobrir o sentido de Deus, é descobrir o sentido do eu
e das coisas: a palavra Deus, “cabendo” no duplo Senhora D e os eus-máscaras, falar o pior
silenciosamente sob máscaras.
Desamparo, Abandono, desde sempre a alma em vaziez, buscava nomes,
tateava cantos, vincos (...) no ínfimo absurdo, nos mínimos, um dia a luz, o
entender de todos nós o destino (HILST, A obscena senhora D, 2001, p.17).
Rosset (1989) distingue a noção de dor para o masoquista, o sádico, o pessimista e o
paranoico. Considerando que todos eles estão unidos pela experiência psicológica da dor,
não cabe detalhar o aspecto intolerável do sofrimento, mas que este “seja”; não interessa
apenas que seja intolerável, importa a dor “ser”, daí a necessidade de expor a existência do
sofrimento. Nesse sentido, distinguem-se duas representações antitéticas do pior: uma
paranoica, cuja lógica é afirmar o pior; outra, trágica, cujo pior é nada afirmar. No caso do
discurso de Hilst, em A Obscena Senhora D, o mecanismo da práxis enunciativa distingue-se
por colocar dois discursos em espelho, simultaneamente ou paralogisticamente: a dor de um
saber insabido relida na dor de um saber trágico. Desencadeia-se dessa forma um discurso
dilacerador, de caráter paranoico e um discurso que destila venenos para denunciar o
intolerável do vazio das ideologias:
183
Engolia o corpo de Deus cada mês, não como quem engole ervilhas ou
rosca ou sabres, engolia o corpo de Deus como quem engole o Mais, o
Todo, o Incomensurável, por não acreditar na finitude me perdia no
absoluto infinito (...) porque acreditava, mas nem porisso compreendia,
olhava o porco-mundo e pensava: Aquele nada tem a ver com isso, Este
aqui dentro nada tem a ver com isso, Este, O Luminoso, O Vívido, O Nome,
engolia fundo, salivosa lambendo e pedia: que eu possa compreender
(HILST, A obscena senhora D, 2001, p.19, 20, gs.a.).
Segundo Rosset (1989), a intenção terrorista aproxima-se da noção de piedade numa
acepção assassina e exterminadora”, detectável nos escritos de inspiração trágica, tanto
literários quanto filosóficos. Essa piedade assassina parece definir sua insensibilidade, sua
impermeabilidade a qualquer tipo de compaixão e parece tornar, dessa forma, a filosofia
trágica uma “farmácia”, uma arte de venenos, vertendo, no espírito daquele que escuta algo
mais violento que os males presentes na sua aflição. Isso pode ser atestado na série de
fragmentos destacados da narrativa A obscena senhora D (HILST, 2001) que articulam um
discurso divergente com a ideia cristalizada de Deus cujos grifos falarão pela força de sua
intensidade demolidora:
Casa da Porca, assim chamam agora a minha casa, fiquei mulher desse
Porco-Menino Construtor do Mundo (...) Compreender o jogo brinquedo
do Menino Louco, pensa um pouco, Hillé, pensa no sinistro lazer de uma
criança louca (p.20)
Não pactuo com as gentes, com o mundo, não um sol de ouro fora,
procuro a caminhada sem fim, te procuro vômito, Menino-Porco (p.25)
de onde vem o Mal, senhor?
misterium iniquitatis, Senhora D, milênios lutamos com a resposta,
coexistem bons e maus, o corpo do Mal é separado do divino.
quem criou o corpo do Mal?
Senhora D, o Mal não foi criado, fez-se, arde como ferro em brasa, e
quando quer esfria, é gelo, neve, tem muitas máscaras (...)
e como é o corpo do Mal?
de escuridão e ouro (p.31)
As máscaras misturam-se num discurso de escuridão e ouro. Na sua tonalidade
irônica, o vômito do veneno-Deus mescla-se ao corpo do mal e ao não-pacto do discurso
trágico, “sinistro lazer”, decorrente do espelho do jogo do menino-louco, saber insabido que
se explicita num saber trágico em que a afirmação do pior dos venenos é não poder
confirmar nada sobre nenhuma ideologia. E o discurso da Senhora D reitera e amplifica nos
184
desdobramentos a intensidade com o mesmo tom dilacerante, demolidor, destronador do
jogo do Porco-Menino, incorporando “mal-dições”:
Desamparo, Abandono, assim é que nos deixaste. Porco-Menino, menino-
porco, tu alhures algures acolá longe no alto aliors, no fundo cavucando,
inventando sofisticadas maquinarias de carne, gozando o teu lazer: que o
homem tenha um cérebro sim, mas que nunca alcance, que sinta amor sim
mas nunca fique pleno, que intua sim meu existir mas que jamais conheça
a raiz do meu mais ínfimo gesto, que sinta paroxismo de ódio e de pavor a
tal ponto que se consuma e assim me liberte, que aos poucos deseje nunca
mais procriar e coma o cu do outro, que rasteje faminto de todos os
sentidos, que apodreça, homem, que apodreças e decomposto, corpo vivo
de vermes, depois urna de cinza, que os teus pares te esqueçam, que eu
me esqueça e focinhe a eternidade à procura de uma melhor ideia, de
uma nova desengonçada geometria, mais êxtase para minha plenitude de
matéria, licores e ostras (HILST, A obscena senhora D, 2001, p.36, gs.a.).
Articula-se a ideia de Rosset (1989) sobre o teor dos discursos terroristas. Estes,
sustentados pelo pensamento trágico, deixam transparecer uma piedade singular que, longe
de amenizar os males, intensificam-nos até o intolerável. A piedade assassina manifesta-se,
então, ao disponibilizar o trágico, oferecendo-lhe, não a consciência, mas a fala, tornando
exprimível um saber já existente, do qual o indivíduo pressupunha estar livre. Acrescenta-se,
ainda, sobre esse discurso, que o ouvinte nem “imaginaria” a extensão de seu veneno:
Quem sou eu para te esquecer Menino Precioso, Luzidia Divinoide Cabeça?
se nunca fazes parte do lixo que criaste, ah, dizem todos, está em tudo, no
punhal, nas altas matemáticas, no escarro, na pia, nas criancinhas mortas,
no plutônio, no actínio, na graça do teu pimpolho, no meu vão de escada,
nesta palha, em Ehud morto. Ele está em ti, Ehud, agora que estás morto?
como é o Menino Precioso dentro de Ehud morto? fervilha, tem muitas
cores, pulula, Corpo de Deus em Ehud morto é difícil de ser visto pelo olho
do vivo (...) Ehud possuído de Deus é um todo de carne repulsiva, um
esgarçoso de brilho e imundície. (...) os pequenos espaços do teu corpo de
carne são do Todopoderoso agora propriedades, como estão, Ehud, teus
pequenos espaços de carne? (HILST, A obscena senhora D, 2001, p.37)
A lógica do pior, destilando venenos, com seus filtros de morte e desesperança, leva
a refletir sobre a natureza desse terrorismo na filosofia trágica. Considera-se, nesse caso, o
contraponto entre ideologia e anti-ideologia. A filosofia trágica concebe o discurso anti-
ideológico como um levar a sério a ideologia e, ao querer desmascarar o vazio, o oco do
discurso ideológico, configura-se o vago quanto aquele que pretende derrubar. A
185
inconsequência maior de tais discursos é querer o impossível: tentar apagar o nada com
nada.
os intrincados da escatologia, os esticados do prazer, o prumo, o todo
tenso, as babas, e todas as tuas escamosas escatologias devem ser
discutidas com clérigos, com frades, abriste por acaso hoje o jornal da
tarde? Não. Então não abriste. pois se o tivesses feito terias visto a fome, as
criancinhas no Camboja engolindo capim, folhas, o inchaço, as dores, a
morte aos milhares (...) estás me ouvindo, Hillé? matam, torturam, lincham,
fuzilam, o Homem é o Grande Carrasco do Nojo, ouviste? (HILST, A obscena
senhora D, 2001, p.46)
A percepção do caráter ideológico de certos discursos anti-ideológicos leva a inferir
que existe uma fonte comum de onde derivam e onde se separam todas as formas de
pensamento trágico e as filosofias de modo geral: o problema da divergência de olhar do
homem com relação às suas ideias, específico da “ideologia”, que trata de valores como:
finalidade, justiça, riqueza, Deus, considerados, na perspectiva da lógica do pior, como não-
seres. Sendo assim, extraem-se duas direções filosóficas, em torno do “nada”, caracterizadas
por uma diferença de ótica. De um lado, o discurso ideológico e o anti-ideológico; de outro,
o pensamento trágico por meio do qual se pode considerar o homem consciente de que fala
sobre nadas, em favor de um saber trágico.
lembra como caminhávamos? te lembras de um brilho que vias numa
pequena colina naquele passeio às águas? e como te esforçaste para subir a
colina? e o que era afinal aquele brilho? sim, me lembro, uma tampinha
nova de garrafa, uma tampinha prateada como são todos os brilhos no
cume de todas as colinas.
Exageros. a Terra não é uma tampinha prateada como será a cara DELE
hen? é só luz? uma gigantesca tampinha prateada? não há um vínculo entre
ELE e nós? não dizem que é PAI? não fez um acordo conosco? fez, fez, é
PAI, somos filhos. não é o PAI obrigado a cuidar da prole, a zelar ainda que
a contragosto? é PAI relapso? (HILST, A obscena senhora D, 2001, p.38)
O pensador trágico é definido como alguém tomado pela alegria de viver, uma vez
que ele experimenta a aprovação, mesmo reconhecendo o caráter inconcebível desse júbilo.
O verdadeiro objeto da aposta terrorista, ao confrontar cada um dos instantes felizes com o
pior momentaneamente pensável, está em descobrir se este instante de aprovação é
concebível intelectualmente. Em suma, a lógica do pior baseia-se no pressuposto: o que
deve ser buscado e dito antes de tudo é o trágico, constituído pela impossibilidade prévia de
186
qualquer dado. Todo pensamento trágico é também aprobatório, único ato que tem valor de
acontecimento.
Há lugar para a carne no teu coração, Senhor? Há uns veios fundos e
gemidos com o som do UMM? Ehud, sabes como é a palavra Intelecto em
russo? É UMM. O M prolongado UMMMMMMMM, a carne é que deveria
ter o som do UMM, é assim no teu peito, Senhor, o sentir da carne? de
do escuro venho vindo, teias à minha volta, estou presa a ti, do UMM à
carne (...) tu e eu, um único novelo espiralado, não te separes nunca, não
tentes, (...) vou te lambendo lassa, aspiro pelos, cheiros, encontro coxa e
sexo, queria te engolir, Ehud, descias em UMM pela minha laringe, UMM
pelas minha tripas, nódulos, lisuras, trituro teus conceitos, teu roxo
intelecto, teu olhar para os outros, te engulo Ehud, altaneria, porte, teu
compassado, teu não saber de mim, teu muito nada compreender, deslizas
em UMM pelos tubos das vísceras, teu misturar-se a (HILST, A obscena
senhora D, 2001, p.60).
A intensidade de perguntas espalha-se pela narrativa em aproximadamente 324
interrogações, numa overdose avassaladora, oferecendo, ao enunciatário, com essa técnica
reiterativa, uma intensidade insuportável, se se o discurso na íntegra. Por isso, recortá-lo
não apreende sua verdadeira dimensão, sua tonalidade passional. A identificação e
“consubstanciação” entre Deus-demônio- homem soa como uma voz apocalíptica do saber
trágico e dissolve toda a ideia de ser:
Então, Senhor, Menino Precioso, ouviste Ehud também? Meu nome é
Nada, faço caras torcidas, as mãos viradas, vou me arrastando, capengo, só
eu e o Nada do meu nome, minhas mesquinharias, meu ser imundo, um
Nada igual ao Teu, repensando misérias, tentando escapar como Tu
mesmo, contornando um vazio, relembrando. Tens memória? Nostalgia?
Um tempo foste outro e agora és um que ainda se lembra do que foi e não
o é mais? Tiveste inestimáveis ideias, soterradas hoje, monturo e
compaixão? (...) olha Hillé a face de Deus
onde onde?
olha o abismo e vê
eu vejo nada
debruça-te mais agora
só névoa e fundura
é isso. Adora-O. Condensa névoa e fundura e constrói uma cara. Res facta,
aquieta-te (HILST, A obscena senhora D, 2001, p.46,47, gs.a.)
O caráter terrorista da perspectiva trágica em determinar o pior dos pensamentos
demanda, como foi acentuado, passar do silêncio à fala. Afirmar o pior é constatar que este
187
pior é nada poder afirmar — a impossibilidade de crer que possa haver crença, atribuindo ao
homem um saber mudo que incide sobre o nada de sua fala:
Hillé doença, obsessão, tocar as unhas desse que nunca se nomeia, colocar
a língua e a palavra no coração, toma meu coração, meu nojo extremado
também, vomita-me, anseios, estupores, labiosidades vaidosas, toma os
meus sessenta, sessenta anos vulgares e um único aspirar, suspenso, aspirei
vilas, cidades, nomes, conheci um rosto sem face, um homem sem umbigo,
um animal que falava e os olhos mordiam, uma criança que deu dois passos
e contornou o mundo, um velho que esquadrinhou o mundo mas quando
voltou à casa viu que não havia saído do primeiro degrau de sua escada, vi
alguém privado de sentimentos, nulo, sozinho como Tu mesmo Menino-
Porco, era esticado e leve, era rosado, e não sentia absolutamente nada
(HILST, A obscena senhora D, 2001, p.56,57, gs.a.)
Porque não me tocaste, Senhor, e nem me pensaste sóbrio os ferimentos,
porque nem o calor da ponta dos teus dedos foi sentido por mim, porque
mergulho num grosso emaranhado de solidões e misérias e te buscando
emerjo de mim mesma as mãos cheias de lodo e de poeira, este meu roxo-
encarnado sem vivez reside em mim séculos, lapidescente na superfície
mas fervilhante e rubro logo abaixo, eterno em dor com a tua esquivez
(HILST, A obscena senhora D, 2001, p.87).
9.5 Espaço-vivente nas teias de...eus
A tomada de posição desse discurso conduz ao outro pólo em que este é articulado
pela instância da enunciação, na dupla postura do ator paranoico, com suas “máscaras” de
ator de saber insabido e de saber trágico. No item anterior, deu-se ênfase à D “à procura da
luz”, num caminho de silêncio e cegueira, afastada do centro (Deus). O discurso provocado
pelo “distanciamento” desse centro adquire dupla tonalidade, típica da simulação do delírio
paranoico: a fala erótico-agressiva de uma “teófaga incestuosa”. A seleção de recortes da
narrativa, no item anterior, ilustrou esse discurso demolidor e profanador do sagrado.
A situação do “eu-outro” ao ver-se “afastada do centro”, ou seja, do ideal cristalizado
em um Deus-Bondade-Beleza, que remete ao sistema teológico e renascentista subjacente,
provoca um processo de desnaturalização do UNO, inserindo-o num estado de morte de
tudo “o que existe”. A desconstrução dessa ideia leva ao outro pólo pendente nesse
discurso: “à procura do sentido das coisas”. Se o que existe é o nada, o vazio; em relação à
existência de Deus, o homem encontra-se diante do nada, da ausência original de
188
referenciais que sustentem um sentido para o ser. Identificou-se esse paradigma
configurado no início desta semiose, quando o ator da enunciação paranoico apresenta-se
pelo lado da negação, do silêncio, da ausência, da falta: “eu Hillé (...) A Senhora D, eu Nada,
eu Nome de Ninguém,(...) sessenta anos à procura do sentido das coisas” (HILST, A obscena
senhora D, 2001, p.17). Retoma-se, neste ponto, a perspectiva da letra D, vista
anteriormente pelo prisma do enigmático. Recupera-se a dimensão desse discurso:
Derrelição Ehud me dizia, Derrelição pela última vez Hillé, Derrelição
quer dizer desamparo, abandono, e porque me perguntas a cada dia e não
reténs, daqui por diante te chamo A Senhora D. D de Derrelição, ouviu?
(HILST, A obscena senhora D, 2001, p.17)
E para Ehud, Hillé, foi apenas uma letra D, primeira letra de Derrelição (...)
(HILST, A obscena senhora D, 2001, p.29)
A perdição do ser pronuncia-se a partir da letra D, de derrelição, associada a
perguntas feitas do lugar do saber insabido. Deve-se considerar, conforme visto em Lacan
(2008), que uma letra é suporte material emprestado à linguagem; por meio desta pode-se
evidenciar noções relativas ao trágico:
Desamparo, Abandono, desde sempre a alma em vaziez, buscava nomes,
tateava cantos, vincos (...) nos mínimos, um dia a luz, o entender de todos
nós o destino, um dia vou compreender, Ehud
compreender o quê?
isso de vida e morte, esses porquês (HILST, A obscena senhora D, 2001,
p.17,18)
Embora o interlocutário de Hillé explicite o que ele, literalmente, descola da letra D, o
fato de nominar Senhora D mantém “infinitas” possibilidades, pontuadas nesta análise, na
tomada de posição da instância de discurso. Outras possibilidades são experimentadas pelo
próprio ator de saber insabido:
o que é Derrelição, Ehud?
vem, vamos procurar juntos, Derrelição Derrelição, aqui está: do latim,
derelictione, Abandono, é isso, Desamparo, Abandono. Por quê?
porque hoje li essa palavra e fiquei triste
triste? mesmo não sabendo o que queria dizer? DERRELIÇÃO. não, não
parece triste, talvez porque as duas primeiras sílabas lembrem derrota, e
lição é sempre muito chato. Não, não é triste, é até bonita. Desamparo,
Abandono, assim é que nos deixaste. Porco-Menino, menino-porco, tu
189
alhures algures acolá longe no alto aliors (...) (HILST, A obscena senhora
D, 2001, p.35,36)
O ator de saber insabido, manipulado pelo sujeito da enunciação, permite o
enlaçamento desse discurso ao conceito de letra de Lacan (2008), já pontuado no capítulo 4.
O significante, de alguma forma cifrado, apresenta-se como suporte de possibilidade de
preenchimento, com algum significado em potencial, porém obscuro, um vazio. Este leva a
evocar-se a perda de referenciais, uma vez que se tem na própria linguagem a falência da
apreensão dos sentidos, considerando que a relação significante/significado é “espiralada” e
não é fechada. O sentido pode estar “alhures algures aco longe no alto aliors” como
Deus-verbo, “interdito” pela Senhora D numa identificação implicitamente com Deus, pela
letra. Dessa forma, se a voz do ator de saber insabido assim se pronuncia, pode-se descolar o
que está sugerido: diante de Deus, a Senhora D nada poderá afirmar, sugerindo assim uma
lógica do pior.
Lê-se: “um dia me disseram: as suas obsessões metafísicas não nos interessam,
senhora D, vamos falar do homem aqui e agora” (HILST, A obscena senhora D, 2001, p.26).
Deus, a vida, a morte, o tempo, o sentido da existência, o abandono, o envelhecimento, o
saber, o compreender preenchem o espaço das questões perseguidas pelo ator de saber
insabido e servem para firmar-se a “procura do sentido das coisas”. Essa busca, fadada ao
fracasso, é manipulada de tal forma que leva a desvelar-se o trágico da existência:
(...) eu dizia olhe espere, queria tanto te falar, não faz agora, Ehud, por
favor, queria te falar, te falar da morte de Ivan Ilitch, da solidão desse
homem, desses nadas do dia a dia que vão consumindo a melhor parte de
nós, queria te falar do fardo quando envelhecemos, do desaparecimento,
dessa coisa que não existe mas é crua, é viva, o Tempo (p.18)
não compreendo o olho, e tento chegar perto. Também não compreendo o
corpo, essa armadilha, nem a sangrenta lógica dos dias (...) o que é pensar,
o que é nítido (...) escuto-me a mim mesma, há uns vivos dentro além da
palavra, expressam-se mas não compreendo, pulsam, respiram, um
código no centro, um grande umbigo, dilata-se, tenta falar comigo, espio-
me curvada (...) (HILST, A obscena senhora D, 2001, p.21,22)
Observa-se nesse enunciado um trajeto que vai do silêncio à fala. Embora se
mantenha o lugar de saber insabido, a fala permite descolar a letra do trágico por meio da
insistência na incompreensão das coisas, das ideias, da vida. Trata-se de um verbalizar que,
longe de eliminar a angústia, intensifica-a tornando-a intolerável: “não compreendo o corpo,
190
essa armadilha, nem a sangrenta lógica dos dias”. O discurso serve-se de valências
metafóricas para explorar o caráter quantitativo, dando intensidade a ele, em relação à
questão trágica da angústia, do isolamento, da prisão do ser, no dilaceramento do eu, em
busca do sentido das coisas.
Nesse trajeto do silêncio à fala, longe de possibilitar a compreensão, isola-se mais o
ser em perdição, levando-o, mesmo pela inconsciência, a afirmar o seu estado: “escuto-me a
mim mesma, há uns vivos lá dentro além da palavra, expressam-se mas não compreendo”. A
demência e a perdição do ator de saber insabido projetam-se sobre os outros, todos
identificados pela loucura, espelhando, no entanto, a visão do ator de saber trágico que
desloca as questões do eu para as “mil perguntas” sem respostas sobre a condição da
humanidade, abandonada por Deus (um oco) e esfacelada em uma intensidade insuportável
para compreender as “geografias do nada”:
(...) vi os olhos dos homens, fúria e pompa, e mil perguntas mortas e
pombas rodeando um oco e vi um túnel extenso forrado de penugem, asas
e olhos, caminhei dentro do olho dos homens, um mugido de medos garras
sangrentas segurando ouro, geografias do nada (...) (HILST, A obscena
senhora D, 2001,p.30)
(...) iria suportar a caduquice do mundo, o soco, a selvageria, a bestialidade
do século, a fetidez da terra, iria suportar até (...) as mil perguntas mortas.
Iria? suportaria guardar no peito esse reservatório de dejetos, estanque,
gelatinoso, esse caminhar nítido para a morte, o vaidoso gesto sempre
suspenso em ânsia para te alcançar, Menino-Porco? Suportaria o estar viva,
recortada, um contorno incompreensível repetindo a cada dia passos,
palavras, o olho sobre os livros, inúmeras verdades lançadas à privada, e
mentiras imundas exibidas como verdades, e aparências do nada,
repetições estéreis, farsas, o dia a dia do homem do meu século? e apesar
dessa poeira de pó, de toda cegueira, do aborto dos dias, da não luz dentro
da minha matéria, a imensa insuportável funda nostalgia de ter amado o
gozo, a terra, a carne do outro, os pelos, o sal, o barco que me conduzia,
umas manhãs de quietude e de conhecimento, umas tardes-amora
brevíssimas espirrando sucos pela cara, rosada cara de juventude e vivez, e
uma outra cara de mansa maturidade,absorvendo o que via, lenta, os
ouvidos ouvindo sem ressentimento. (HILST, A obscena senhora D, 2001,
p.33, 34)
A posição do discurso, do ponto de vista da dimensão trágica, leva aos fundamentos
decorrentes da “lógica do pior”. Conforme Rosset (1989), uma vez definido o trágico pelo
princípio do silêncio, nada mais haveria a ser dito, a o ser que se encontrasse uma palavra
capaz de falar sem nada dizer, de recusar toda ideologia. Embora haja risco em construir um
191
pensamento filosófico baseado em uma palavra, tal palavra chama-se acaso (hasard). Esta
pode ser usada para compreender-se melhor o trágico. Acaso (hasard) é o termo mais
próximo do silêncio trágico: O que significa estar morto? (...) Estar morto. Se Ehud Foi
algum dia, continua sendo, se não Foi, NUNCA SERIA, mas antes de ser Ehud não era, então
depois Foi não sendo?” (HILST, A obscena senhora D, 2001, p.24, gs.a.). Ao evidenciar a
perdição do ser, instaura-se o pavor, graças a uma dúvida quanto à natureza de um ser
qualquer, perdendo-se de súbito, na consciência, a natureza que lhe era implicitamente
reconhecida. Essa perda, afirma Rosset, não constitui um acontecimento, mas a revelação
retrospectiva de um estado. A ideia de pavor, resultado da tomada de consciência do não-
ser, é uma afirmação do estado de morte de tudo o que existe: “(...) estar bem/não estou
bem, Ehud/ninguém está bem, estamos todos morrendo (HILST, A obscena senhora D,
2001, p.24, gs.a.).
Não é a morte que aparece como o termo de toda “vida”, mas a própria vida que
perde seu caráter vivente. A ideia de hasard dissolve a ideia de natureza. Essa
desnaturalização provoca o questionamento da noção de ser. Por conseguinte, desencadeia-
se um “estado de perdição”: a perda de referenciais espaciais e temporais. Perder todo
referencial é, em maior ou menor prazo, perder a ideia que se possa ter da vida, isto é, de
uma ou algumas naturezas: “o que é um homem?” (HILST, A obscena senhora D, 2001, p.22)
“(...) não posso dispor do que não conheço, não sei o que é o corpo mãos boca sexo, não sei
nada de você Ehud a não ser isso de estar sentado no degrau da escada, isso de me dizer
palavras, nunca soube nada, é isso nunca soube” (HILST, A obscena senhora D, 2001, p.23).
Se há um acaso (hasard), este não depende da ideia de contingência: longe de
subordinar-se a ela, ele a precede e a engendra: “(...) e tendo visto, tendo sido quem fui, sou
esta agora? Como foi possível ter sido Hillé, vasta, afundando os dedos na matéria do
mundo, e tendo sido, perder essa que era, e ser hoje quem é?” (
HILST, A obscena senhora D,
2001,
p.24)
Destacar o acaso (hasard) na forma de um princípio trágico implica falar dele a partir
da ausência original de referenciais, não de referenciais constituídos (série de
acontecimentos) ou pensados (ideia de necessidade). O acaso (hasard) se definirá, então,
como “anticonceito”, qualificando apenas uma soma de exclusivas. Nesse sentido, casual
(hasardeux) exclui, ao mesmo tempo, a ordem das causas, das determinações e suas
exceções, as ideias de ordem e de desordem:
192
Senhora D, é definitivo isso de morar no vão da escada? (...) olhe, não
quero te aborrecer, mas a resposta não está aí, ouviu? nem no vão da
escada, nem no primeiro degrau aqui de cima, será que você não entende
que não há resposta? Não, não compreendia nem compreendo (...) (HILST,
A obscena senhora D, 2001, p.18,19, gs.a.)
Se em estado de perdição o ser de Hillé busca por meio de infinitas questões, do
ponto de vista trágico, a desconstrução dessa busca, esta está marcada metaforicamente
pela falência do próprio lugar de onde ela pronuncia suas questões: “no vão da escada”. O
estado de morte, característica do hasard, provoca a questão da indiferença em relação a
tudo que existe, nada podendo modificar a natureza ou constituí-la, característica que pode
ser atribuída ao ator de saber insabido, desvelando, nessa obsessão delirante de perguntar,
a lucidez da perspectiva trágica:
(...) acontecível isso de alguém ser muito ao mesmo tempo nada, de olhar
o mundo como quem descobre o novo, o nojo, o acogulado, e olhando
assim ainda ter o olho adiáfano, impermissível, opaco (...) (HILST, A obscena
senhora D, 2001, p.27, gs.a.)
em mim, Ehud, na minha cara um estupor, um nunca compreender, um
enrugado mole, olha como é a minha cara sem o teatro para o outro
um pouco caidinha sim
desesperada Ehud, porque todas as perdas estão aqui na Terra, e o Outro
está a salvo, nas lonjuras, en cielo, a salvo de todas as perdas e tiranias, e
como é essa coisa de nos deixar a nós dentro da miséria? que amor é esse
que empurra a cabeça do outro na privada e deixa a salvo pela eternidade
sua própria cabeça? e o que Ele fez com Jó, te lembras? (HILST, A obscena
senhora D, 2001, p.75, gs.a.)
A consciência de um abandono original, de um distanciamento daquilo que poderia
dar um sentido ao mundo, do afastamento desse centro que poderia ser a resposta e a
sustentação de todo o sentido das coisas, reafirma o estado de morte, marcado por uma
ideia de pavor, resultante da tomada de consciência do não-ser, da falta de sentido de tudo
o que existe, de que não há nada a perder, não se tendo nada:
Por que o ouro é ouro? Por que o dinheiro é dinheiro? Por que me chamo
Hillé e estou na Terra? E aprendi o nome das coisas, das gentes, deve haver
muita coisa sem nome, milhares de coisas sem nome, e nem porisso elas
deixam de ser o que são, eu se não fosse Hillé seria quem? Alguém olhando
e sentindo o mundo
Alguém, nome de ninguém
193
esse aí não é nada
esse sim é alguém (HILST, A obscena senhora D, 2001, p.43,44)
(...) entre as gentes sou como uma grande porca acinzentada, diante de
muitos a quem conheci sou uma pequena porca ruiva, perguntante,
rodeando mesas e cantos, focinhando carne e ossatura, tentando chegar
perto do macio, do esconso, do branco luzidio do teu rosto (...) (HILST, A
obscena senhora D, 2001, p.29)
o corpo é quem grita esses vazios tristes
por que não alimenta o corpo com bemquerença, aceitando o agrado dos
outros?
porque o corpo está morto
e a alma?
a alma é hóspede da Terra, procura e te olha os olhos agora, e te cheio
de perguntas
sou um homem como outro qualquer, Senhora D
então rua rua, fora, despacha-te homem como outro qualquer (HILST, A
obscena senhora D, 2001, p.32)
o que é o corpo? (HILST, A obscena senhora D, 2001, p.38)
perguntas perguntas, como se fosse simples isso de amar, como se o peito
soubesse desse adorno, como posso saber se a alma não compreende?
a alma sente
a carne é que sente (HILST, A obscena senhora D, 2001, p.54)
A extinção da ideia de natureza é comum na maioria das manifestações de
terrorismo filosófico e impõe-se como tema fundamental. Para o pensador do hasard, a
extinção dessa ideia é concebível, apesar de o homem ter alguma intuição do “natural”, pela
afirmação da existência de várias “naturezas”, em vez de uma, constituídas de
circunstâncias, pensadas como resultantes do hasard:
Ter sido. E não poder esquecer. Ter sido. E não mais lembrar. Ser. E perder-
se. Repeti gestos palavras passos. Cruzei com tantos rostos, alguns toquei,
que sentimentos eram Hillé quando cruzava tocava aqueles rostos? Te
busquei, Infinito, Perdurável, Imperecível, em tantos gestos palavras
passos, em alguma fiquei, curva sinuosidade, espessura, gosto, que alma
tem essa boca? E os gestos, meu Deus, como os tomei para mim: lerdos
frívolos pausados recebendo o mundo, afoitos grotescos. E os gestos passos
palavras daqueles que me fizeram sentir amor, gratidão em mim (...)
Caminhei escura pelas ruas, parei à margem de alguns rios escuros
também, e torpe e nítida para mim mesma convivi com Hillé e seus
negrumes, sua minimez, seu ter sido e esquecer, seu ter sido e não mais
lembrar, seu ser e perder-se. Hoje convivo com Derrelição, com a senhora D
(...) (HILST, A obscena senhora D, 2001, p.76)
As circunstâncias, tidas como generalidades, conjuntos, naturezas, são percebidas de
uma perspectiva humana por meio da brevidade. Remete-se, assim, à noção sofística de
194
kairós (ocasião), tessitura de tudo o que existe, produtora de sensações singulares, jogos de
encontros, imprevisíveis, entre um sujeito móvel e um objeto. O homem e a sensação são
ocasiões, não diferem um do outro senão por sua maior ou menor duração, um mesmo
hasard:
se está muriendo, sí, que gemidos meu Deus, não tenho muito tempo,
muitos que se foram estão por perto, é a hora, viver foi uma angústia
escura, um nojo negro (p.52)
não fales assim, não nesta hora
não é a hora da morte? por que me interrompes nesta hora? cala-te, é
morte minha. sempre que te deitavas comigo, homem, a carne era inteira
loucura e sedução, não enfiavas os dedos, o sexo, não sentias?
a vida foi isso de sentir o corpo, contorno, vísceras, respirar, ver, mas
nunca compreender. porisso é que me recusava muitas vezes. queria o fio
lá de cima, o tenso que o OUTRO segura, o OUTRO, entendes?
que OUTRO mamma mia?
DEUS DEUS, então tu ainda não compreendes? (p.52, 53)
que se deite aqui e sinta comigo os murmúrios, palavras que deslizam numa
teia, uma estacou agora, e vagarosamente uns fios brilhosos se torcem à
sua volta, meu deus, vão recobri-la, que palavra, que palavra?
CONHECIMENTO, Hillé, ainda posso vê-la, CONHECIMENTO sendo sufocada
por uns fios finos e de matéria densa. pronto. apagou-se. havia tardes, Hillé,
tardes de palha, estalidos, securas, eu ia andando e sentia nada, sentia sim
um descolorido pedregoso, sei que olhava as navalhas da pedra, sei que
sangrava mas não sentia dor, eram pés de palha que sangravam, eu inteiro
vazio, estofado de palha, terra e palha eu inteiro, e deitei-me ali sobre as
navalhas
e então, pai?
então fui cortado em delicadíssimos pedaços
como cortamos a salada de acelga
sim, Hillé, é isso, um montículo de palha e terra, minúcias, salada de acelga,
é bem isso, e o que foi a vida? Uma aventura obscena, de tão lúcida.
Me deitei ao teu lado na tua agonia, escutei verdades e vazios.
Inutilidades. (p.70)
Hei de estar contigo, com teus nós, teu rosto de maçãs, bravias, duras,
morta sim é que estarei inteira, acabada, pronta com fui pensada pelo
inominável tão desrosteado, morta serei fiel a um pensado que eu não
soube ser, morta talvez tenha a cor que sempre quis, um vermelho urucum,
ou um vermelho ainda sem nome tijolês-morango-sépia e sombra, a teu
lado eu cromo feito em escarlatim, acabados nós dois, perfeitíssimos
porque mortos, as mãos numa entrelaçadura de muito luzimento, mão
minha que tocou teu corpo luxesco, comprido, teu corpo uma brilhância
incircunscritível, tão doce para minha língua muito em timidez, mais doce
anda na corriqueirice dos dias, puro meloso depois, tua boca em mim, cheia
de colibris tua boca, mortos um dia os dois, atados, um irrompível eterno
(...) (p. 79)
195
Em Hilst, avalanche de intensidades, avalanche de questões levadas à exaustividade,
extravasar de gozo na escritura, tudo isso marca os instantes de júbilo mergulhados no
estado de morte, a verificar-se no item seguinte. Em suma, o “que existe” é nada, cujo
sentido se entende como nada a respeito do que se pode definir como ser, nada que “seja”,
suficiente para oferecer-se à delimitação tanto no nível conceitual como no existencial:
“loucura e júbilo”; “loucura é o nome da tua busca. esfacelamento. cisão derrelição.” (p. 56)
(...) a vida azul seboso. tu crias um caminho de dores para ti, Hillé, o
coração e o UMM também são ilusões, descansa.
não posso, as coisas pulsam, tudo pulsa (...) (p.61)
(...) deves ouvir Mussorgsky, nem sonatas, nem trios, nem quartetos de
cordas, vida, palpitação. Se pudesses esquecer, Hillé, teias, torsões,
sentir a minha mão sem o teu vivo-morte, te acaricio apenas, olha, é a mão
de um homem, que simples (...) não sou eu Ehud experienciado em ti,
me vês como nunca me pude ver, eu Ehud não sou esse que vivencias em
ti, és Hillé apenas, Hillé que pode ser feliz sendo assim tocada, não é
bom? (...) não mete o Outro nisso, não me olhes assim, o Outro ninguém
sabe, Hillé, Ele não te vê, não te ouve, nunca soube de ti (...) (p.62, 63)
(...) eu Nada, eu nome de Ninguém, eu à procura da luz numa cegueira
silenciosa (p.77)
Assim, o pensamento trágico destaca a inaptidão do homem em atuar sobre o
mundo, modificando-o: “Quem foi, Ehud, que apagou meu envoltório de luz, quem em mim
pergunta o irrespondível, quem não ouve, quem envelhece tanto, quem desgasta a ponta
dos meus dedos tateando tudo, quem em mim não sente?”.
9.6 Escritura e júbilo
O estado de morte, conforme explicitado anteriormente, entendido sob o prisma da
exceção, é também um estado de festa. O acontecimento carrega todas as características de
festa: irrupção inesperada, excepcional; ocasiões que existem num tempo, num lugar, para
uma pessoa, não repetíveis, dotando cada instante da vida das características de festa, de
jogo e de júbilo. Tornar os homens capazes de ver a sucessão das exceções, capazes de
aproveitar a sucessão das ocasiões, revela o essencial do ensinamento sofístico.
196
Hei de estar contigo, com teus nós, teu rosto de maçãs, bravias, duras,
morta sim é que estarei inteira, acabada, pronta com fui pensada pelo
inominável tão desrosteado, morta serei fiel a um pensado que eu não
soube ser, morta talvez tenha a cor que sempre quis, um vermelho urucum,
ou um vermelho ainda sem nome tijolês-morango-sépia e sombra, a teu
lado eu cromo feito em escarlatim, acabados nós dois, perfeitíssimos
porque mortos, as mãos numa entrelaçadura de muito luzimento, mão
minha que tocou teu corpo luxesco, comprido, teu corpo uma brilhância
incircunscritível, tão doce para minha língua muito em timidez, mais doce
anda na corriqueirice dos dias, puro meloso depois, tua boca em mim, cheia
de colibris tua boca, mortos um dia os dois, atados, um irrompível eterno
(...) (HILST, A obscena senhora D, 2001, p. 79)
Nesse fragmento, o trágico da morte reveste-se de júbilo, estado de exceção,
consciência do trágico que une morte e festa. Em Hilst, as sensações singulares podem
também ser apreendidas pelo modo sensorial, por meio da maneira como é trabalhada a
linguagem na sua função poética. Desse modo, esses encontros singulares ocorrem também
no nível do discurso e evidenciam maior intensidade afetiva, por meio da tessitura da
linguagem, notadamente no uso de substantivos, adjetivos e advérbios, manipulados com
maestria estética. Esses encontros singulares, com forte apelo sensorial, atuam na
capacidade de perceber-se melhor a manipulação das intensidades evidenciadas no nível
estético feitas pelo sujeito da enunciação, ou seja, as estesias engendradas no discurso.
Alguns destaques representativos, entre outros, podem ser abordados no enunciado
acima. Sobressaem-se evocações cromáticas principalmente na reiteração do vermelho
vibrante da emoção, capturada num instante singular que une o encontro entre morte e
festa: “morta talvez tenha a cor que sempre quis um vermelho urucum, ou um vermelho
ainda sem nome tijolês-morango-sépia e sombra, a teu lado eu cromo feito em escarlatim”.
A associação de imagens de frutas: maçãs (duras) e morango associam erotismo à cor
vermelha e à textura, festa do corpo-próprio” dionisíaco na captura da celebração trágica
da morte, instante fugidio de emoção estética, de festa no contexto da morte, evocando o
trágico das festas dionisíacas, aqui metaforizada pelo contraste entre vermelho, sépia e
sombra. O rosto de maçãs duras ecoa em as mãos na entrelaçadura dos dois amantes,
“acabados” na morte eterna, perfeitíssimos porque mortos. À hipérbole “perfeitíssimo” se
associam outras numa conjunção assonante: inominável, incircunscritível, irrompível,
evocação que projeta no enunciado o virtualizado em contraste com a “perfeição” corroída
de um Deus-ideia-círculo (inominável, incircunscritível), para evidenciar que perfeita e
197
definitiva é a morte e não Deus, perfeito é o nada que a morte representa: “mortos um dia
os dois, atados, um irrompível eterno”.
Entre outras evocações auditivas, presentificam-se igualmente sensações táteis e
gustativas, acrescentando maior erotismo às imagens: tão doce para minha língua muito
em timidez, mais doce ainda na corriqueirice dos dias, puro meloso depois”; em “puro
meloso”, associa-se a sensação gustativa e tátil do erotismo ao repugnante da decomposição
do corpo; entrelaçados ao visual cromático e luminoso: muito luzimento, teu corpo uma
brilhância, a esses estranhamentos na forma de referir-se à “luz”, no uso de monemas
singulares, enfatizado pelos afixos, associam-se: desrosteado e corpo luxesco. Em suma:
perfeito júbilo e estado de morte. Aqui se efetiva o que foi mencionado a respeito da
escritura: “um nascível de luz, nessa molhadura de fonemas”.
Indicia-se nessa amostragem até que ponto os modos sensoriais contribuem para
apreender-se a extensão dos valores do trágico e em como o sensível traz mais “luz” para o
inteligível. A estrutura discursiva é modificada pela intensidade que desloca da literariedade
do discurso literário para marcar um instante de júbilo em meio a essa impossibilidade de
determinar sentidos, mas na capacidade de evocar sensações fugidias e momentâneas.
Quando foi isso de perdição e luz, isso sem nome, cordão de ouro e fogo
cindindo os teus meios, te deitavas terra e viuvez mas Ehud te tocava e
viravas barca, incandescência, um grosso aguar, um sol de estupor também
escuro e violento. Como era isso de estar sendo hen? isso de estar sendo,
tempo vivo, estar sendo (HILST, A obscena senhora D, 2001, p. 53)
Ao erotismo perpassado de sensações feitas de instantâneos de luz e júbilo, associa-
se a técnica de palavras eruditas, estranhas ao uso comum, para atuar antes sobre a
sonoridade dos significantes (júbilo) e a vaziez de sentido evidenciando também o estado de
morte (trágico): “Porque guardei palavras numa grande arca e as levarei comigo, não
disseram isso em algum lugar? então guarda para tua arca: lúrido, undívago, intáctil” (HILST,
A obscena senhora D, 2001, p.80, 81).
Técnica semelhante dá-se no uso de palavras estrangeiras, que produzem
estranhamento no enunciatário, interrompendo o fluxo da língua portuguesa com a qual o
discurso é feito. Suspendendo momentaneamente o sentido, mantém-se assim sua
significância “turva e inundada”, num júbilo de ressonâncias de significantes. Desta forma,
Hillé sconbussolata instaura, no enunciado, uma “festiva” correspondência de linguagens
198
que estende e estilhaça seu sentido em outras correspondências, remetendo ao corpo da
língua, sistema linguístico, à língua-linguagem-desenho do corpo, sistema biológico, e ao
“corpo-próprio”, sistema da escritura: E depois tu saías e eu desenhava teu rosto sobre o
meu, teu longo corpo, turva e inundada de ti repetia palavras: rocio, júbilo, hermosura,
remolino, sconvolgente, Hillé sconbussolata, Hillé perduta(HILST, A obscena senhora D,
2001, p.55, gs.a.).
Além de evocar sensações por meio dos cinco sentidos, de hipérboles, de reiterações
de manipulação de afixos causando estranhamentos, há o uso peculiar de construções que
têm por base o duplo, iconizando a postura da instância de enunciação: paralelismo
estrutural, antíteses, oxímoros que fundem o exercício de uma práxis enunciativa elaborada
sob a ótica do paralogismo na confluência entre júbilo da linguagem para enunciar o estado
de morte dos sentidos e o trágico dos discursos.
Ehud, a boca numa fome eterna da tua boca, a vida era resplendor e prata,
demasiada rutilância se tu me tocavas, e sinistra e soluçosa nada quando tu
não estava (...) Enquanto tu morrias eu te abraçava numa fúria alagada,
numa sórdida doçura, minha alma era tua? o desejo era demasiado para a
carne, que grande fogo vivo insuportável, que luz-ferida, que torpe
dependência uma outra Hillé sussurrava muito fria e altiva, uma outra Hillé
fingindo mansidão e langor, roliça, passiva, perla sobre o fastídio de los
mármores (HILST, A obscena senhora D, 2001, p.54, gs.a.).
Na obra de Hilst, se de um lado um discurso em que se exerce o júbilo no nível do
sublime; de outro, o bilo está em expor a cena (ob-scena) do grotesco, do baixo, por meio
do discurso irreverente e profanador. Um, está no nível do aceitável, o outro, no do
escandaloso. A devoração pelo RISO opõe o humor leve ao desmantelamento da ironia até
atingir o nível demolidor e exterminador, próprio do universo trágico.
Intrinsecamente, o humor e a ironia não diferem um do outro, são investidos de igual
função cômica destrutiva, com uma diferença de nível. Todavia, ambos mantêm o mesmo
júbilo diante da catástrofe. A ironia usa esse júbilo para fins mais limitados, uma vez que o
ato destruidor não é completo por sua alusão implícita a reconstruções. Essa limitação
identifica menor poder destrutivo, pelo interesse em desferir golpes previsíveis, ajustados a
determinado alvo. O irônico pode destruir tudo o que lhe agrada com a condição de deixar
entender as ideias em nome das quais ele age; faz aparecer o grotesco, em nome do
razoável; o escandaloso, em nome do tolerável; o não-sentido, em nome de algum sentido.
199
A essência da ironia é otimista e moral. Para além do humor e da ironia, encontra-se o riso
exterminador, dotado de perspectiva trágica, indiferente ao caráter daquilo que é destruído.
O enunciado a seguir mescla as três tonalidades de riso expostas:
(...) sabe Antonão, a vida é tão cheia de tranquera (...) que se a gente não
enche o bucho e não uns mergulho nos buraco das mulhé, vezenquando
uns murro numas gente, cuspidas escarradas, uma paulada no cachorro,
esses descanso, se a gente não faz isso Antonão, a vida fica triste. é,
certo, isso de comer e de meter faz muito gosto, que coisa tem mais na
vida? que coisa? depois da morte os bicho, nem fumo pra pito, nem
meteção nem nada, depois da morte aquela fome, aquela escuridão, tu
acredita em alma de defunto seu Tunico? Besteira, o mundo muito
voluído, não tem mais disso não. e Deus? olhe, isso é assunto de padre, de
ministro, de político, é Deus todo dia dentro da boca, de dia Deus, de noite
a teta de uma, a pomba de outra, eles é que se regaleiam, viu? (HILST, A
obscena senhora D, 2001, 41,42)
A ideia de hasard e a capacidade de reconhecê-lo como antiprincípio de tudo o que
existe identifica o riso exterminador, caracterizado por um oco que não remete a nada de
pleno e pelo júbilo diante da destruição. O riso trágico desfruta o prazer do hasard e celebra
uma aparição estranha ao universo das significações: indiferença para com o sentido e o
não-sentido, distinguindo-o de todas as outras formas de riso.
Ai Senhor, tu tens igual a nós o fétido buraco? Escondido atrás mas quantas
vezes pensado, escondido atrás, todos espremido, humilde mas demolidor
de vaidades, impossível ao homem se pensar espirro do divino tendo esse
luxo atrás discurseiras, senado, o colete lustroso do políticos (...) mas o
buraco ali, pensaste nisso? (...) Estás destronado quem sabe, Senhor, em
favor desse buraco? (HILST, A obscena senhora D, 2001, p.45, gs.a.)
Por conseguinte, o hasard incide numa superfície em que todo elemento
contraditório seria precisamente contraditório ele mesmo. Logo, do ponto de vista do riso
trágico, não revela no pensamento uma expectativa frustrada, pois seria preciso para isso a
preexistência de uma indagação de significado. Ora, aquele que afirma o hasard não espera
nem demanda nada que se ofereça à contradição.
O riso exterminador é gratuito, ato paradoxal, que dissolve sem afetar com seu
grande potencial risível, estabelece com o sentido relação muito particular: não de
contradição nem de teor absurdo, mas de “ignorância”, ou seja, de substituição do
significado pelo significante-júbilo diante da ignorância em relação aos sentidos das coisas.
200
Se o riso celebra, em algumas ocasiões, a irrupção do hasard, não é por excluir o sentido,
mas por ignorá-lo”, diante da impossibilidade de pressupor algum sentido, pois não
considera que exista algo que “seja”, suficiente para oferecer-se à delimitação tanto no nível
conceitual como no existencial. Assim, em Hilst, a experiência do riso liga estado de morte
do sentido, experiência de aprovação da noção do não-ser e júbilo, evidenciando de forma
demolidora a inexistência de um sentido que possa constituir-se numa natureza.
Que amou Ehud ela diz, ó por favor, enquanto o coitado viveu atormentou
neurônios e sentidos do afável senhor, sempre sempre o enrodilhado
perguntante, na hora da comida, da trepada, do sono, até na privada
inventou que a luz de umas rosáceas incidia na coxa, reverberava nos
ladrilhos, que até ali estava o Senhor, quero dizer até ali o fulgor de alguma
coisa viva que ela não sabia (HILST, A obscena senhora D, 2001, p.78).
Volta-se à pergunta inicial: a senhora D é “ob-scena”? A resposta está na concepção
do universo trágico. Somente o pensador trágico é capaz de afirmar sua aprovação diante do
pior, uma vez que ele se encontra imune a qualquer tipo de ideologia, assume uma ética de
acolhimento e uma moral do pior. Para essa Senhora, obsceno é a miséria humana, a miséria
divina, os discursos “preenchedores” do buraco fétido das ideologias que tentam apagar o
nada com outro nada; o resto é instante de júbilo, água fresca para essas “fístulas
frenéticas”.
Rosset (1989) reflete sobre a faculdade criadora, como um tipo de política do pior,
uma forma de invenção, cujo efeito de deslocamento põe em evidência a teoria freudiana da
sublimação, ao mostrar que o prazer estético representa, por procuração, os principais
interesses do corpo e do espírito. Pode-se pensar pelo avesso no tocante à criação artística:
não como sublimação e sim como perversão, a père-version conforme o trocadilho de Lacan,
uma perversão do “nome do pai”, registro simbólico, Deus, linguagem ou qualquer “corpo-
próprio” que o artista possa “profanar”, esvaziar de significações cristalizadas. Esse prazer é
reduzido à superfície casual (hasardeux) do que existe. A “criação estética” é o reflexo de
momentos singulares, jubilosos, no hasard dos acontecimentos. Portanto, é uma arte de
percepção, de experiência de encontros inesperados e de retenção daquilo que é capturado
no instante oportuno, o que é tão bem exercido por Hilst, no que se poderia denominar
“teoria da criação-Kairós”, marca de instantes privilegiados no jogo jubiloso da escritura.
201
(...) será possível que até as coisas precisem de seu duplo? mais depressa
no fosso se sozinhas? Hillé e mais alguém, seria bom. Mas o quê? Quem?
Quem ou que seria Hillé tão duro e som? Tão estridência, arcada,
sabichona, misto de mulher e intelijumência? Rimas soltas voejando o vão
da escada, rotas rimas, fistulosas, rimas na margin da viuvez, uma cantoria
esmagada na planta dos pés
hembra dura, cerrada
los duros em la cara
hembra de la piedra mala
Madura. A boca visguenta no calhau do medo. Em abstinência de
compreensão, no entanto compreendendo. Ó cantatriz, acaba ainda hoje
teu falar demostênico, injúrias, perdições, que compridez a vida, o rombo
na cara da alma, juntaram vômitos e feridas, dúvidas pontudas, um
arcabouço colmilhoso, uma fístula frenética mas cheirando a jasmim
(HILST, A obscena senhora D, 2001, p.81, gs.a.)
Misturam-se nesse fragmento diversas faces do gozo em manipular o discurso,
espaço de incompreensão compreendida na “fístula frenética”, orgia embebida de
linguagem dionisíaca em múltiplos níveis: assonâncias, aliterações, hipérboles, reiterações
intensidade, duplos, oxímoros, paradoxos, paranóia, estranhamentos estrangeiros e
familiares, escolha “carnavalizante” de caminhos que vão do sublime ao grotesco, feito de
metáforas apocalípticas que associam tragicamente linguagem e cantoria esmagada, som,
fúria, loucura e lucidez do arcabouço-tessitura do sentido das coisas, saber trágico
demolidor, saber que se constrói de linguagem, em flashes instantâneos entre o gozo e o
nada, entre a sombra de um ser e seu estilhaço vidrilhado de nada. A obscena Senhora D:
Um ser que se descasca. Sem Deus. Sinistrosa lassa. Vai rebrilhar escura no
seu osso (HILST, A obscena senhora D, 2001, p.82)
Conheces o canto do pássaro sem-fim, senhora P? sem-fim, sem-fim, sem-
fim nosso existir sem-Deus. E me vem que posso entender a senhora P,
sendo-a. Me vem também, Senhor, que de um certo modo, não sei como,
me vem que muito desejas ser Hillé, um atormentado ser humano. E
SENTIR. Ainda que seja o aguilhão de um roxo-encarnado aparentemente
sem vivez (HILST, A obscena senhora D, 2001, p.88).
A escritura de Hilst, corpo-próprio dilacerado como espaço mítico onde se escreve e
se reescreve a história de uma origem, verbo cifrado e simbólico, atitude de “estruturação
do caos”, repisa o conceito de que tudo são discursos, ilusões “preenchedoras” de um
“nada” que pressiona eternamente a uma busca feita de cegueira e mudez, de trágico e
silêncio, em que tudo se cala, tudo é ausência, quando o ser reencena a consciência da
desnaturalização. Quando se instala o não-ser, resta o enigma, o silêncio para dizer o
202
trágico num discurso mesclado de lucidez e de loucura, entre um “abismo” e “um nascível de
luz”, escritura-lâmina, teia de trevas, vestíbulo-vidrilhado de nada”, espaço estranhado que
espelha o pavor do reconhecimento do trágico da condição humana: abismo, VAZIO,
vertigem do nada.
203
10
CONCLUSÃO
A consciência de um discurso preponderantemente trágico na prosa de Hilda Hilst
ganha corpo à medida que se aprofunda a leitura de sua obra. O início dessa leitura, porém,
incide sobre um desafio da descoberta de como decifrarem-se narrativas que se apresentam
de modo tão imbricado ao enunciatário. No princípio, a busca pela apreensão das narrativas
considerando-as nos moldes de um discurso lógico é fadada ao fracasso. A partir do
momento em que se descobre a perspectiva da simulação de um delírio, envereda-se aos
poucos por caminhos que permitem a apreensão dessa escritura e a consciência de que ela
tem como objetivo a explicitação do trágico, nem sempre suportada fora das teias de um
discurso literário.
Uma das características do discurso trágico, confirmada nas análises das narrativas, é
a do eterno retorno, constante nos textos de Hilst, provocadora do pavor e da sensação de
que se está perdido na tentativa de apreensão dos sentidos da escritura delirante de Hilda
Hilst. Nesse caso, tem-se uma narrativa feita de vazios e intensidades, de enigmas e pistas
falsas, reiterados, obrigando o analista a percorrer caminhos que poderão não levar à
construção da significação do discurso.
Para não se perder nessas narrativas, o apoio na semiótica do discurso foi
determinante. Esta permitiu a operacionalização das narrativas selecionadas como um ponto
de apoio no círculo de buscas tornando possível, pelo caminho da lucidez, penetrar-se na
demência do saber insabido, à procura da voz do universo trágico na práxis enunciativa de
Hilst. Ao considerar-se o ato de discurso, em si mesmo, produtor de significância, encontra-
se fundamento para evidenciar-se a enunciação, lugar de organização de qualquer objeto
semiótico, a partir do qual todos os discursos se constroem.
Nesse sentido, a tomada de posição da instância de discurso, mecanismo utilizado
pela semiótica, e a compreensão da existência da simulação de um delírio apresentaram-se
204
como caminho para verificar-se em Hilst a sua estrutura de enunciação, operada sempre por
meio de três posições: a de um saber de controle, exercida por um sujeito da enunciação
que manipula, regula e filtra o discurso, delegando a predicação a dois atores, o de saber
insabido e o de saber trágico.
Essa estrutura de raiz teatral que evoca a tragédia grega, o espaço do mito, para
representar o eterno retorno do pavor diante do estranho reconhecimento no seu próprio
espelho, utiliza-se de máscaras de loucos, de metáforas de cegueira e de luz para anunciar e
denunciar o trágico ao homem que se sustenta, e tenta, pelas crenças e pela linguagem,
reencenar a cena da origem “no princípio era o VERBO”, para organizar o caos com discursos
“preenchedores” de uma falta original.
Compreendida essa dialética hilstiana pela tomada de posição, buscou-se uma função
semiótica desencadeadora de todas as outras articulações não relativa ao espaço interno
do discurso, mas também externo, uma vez que sua linguagem insere o enunciatário no
âmbito do trágico.
A tomada de posição nos textos de Hilst provoca no analista tomada de posição
semelhante, levando-o a refletir como num espelho de uma lâmina de dois gumes o
fundamento do trágico de que tudo não é. Essa escritura-lâmina diverge do mundo
cristalizado das ideologias e dos discursos sustentadores das crenças e, direcionada por uma
linguagem que usa técnica semelhante a dos sofistas, representa concepções do mundo em
que mentiras, se bem argumentadas, podem parecer verdades, pela possibilidade de
preencher o vazio do não-ser com discursos.
Em O projeto, verificou-se não o mecanismo da tomada de posição da semiótica
do discurso, mas também outros mecanismos explicitados na análise, como o da distorção
semiótica. O discurso nessa narrativa aparenta utilizar-se do fluxo da consciência, porém,
compreende-se que, embora o ponto de partida seja o mesmo, a sintaxe reconhecida como
fluxo da consciência é distorcida em uma que ordena elementos simulando o acaso, por sua
imprevisibilidade e por sua lógica usada para revelar os delírios de uma mente paranoica.
Analisada mais detalhadamente conforme a semiótica do discurso, O projeto, em seu
campo de presença discursivo, apresenta um sujeito da enunciação que regula a forma do
conteúdo pelo contraste entre a repetição de valências “afetivas”, conotativas do espaço do
“de dentro” e a valência denotativa de “quero construir a casa”, explicitando, a princípio, um
espaço externo. A práxis enunciativa articula no campo esquemático uma estrutura tensiva
205
concernente a uma visão metafísica, numa lógica entre lucidez e demência, entre o saber
tudo e o saber nada, reiterados por meio da estratégia da fila, um dos tipos de categorização
que determina um sistema de valor.
A escolha do estilo de categorizações (agregado, fila, série e família) em O projeto
encaminha a percepção para o estabelecimento das primeiras articulações sintáticas do
discurso, as quais se tornam estratégia no interior da atividade discursiva. As visadas e as
apreensões de marcas da instância de discurso no campo de presença servem para fixarem-
se as primeiras configurações do campo esquemático na decodificação de um esquema
tensivo, caracterizado por diferenças que permitirão o estabelecimento da tomada de
posição do corpo próprio e de sua correlação com os domínios discursivos, da
interoceptividade e exteroceptividade. Considera-se, com base na análise de O projeto, que
esses aspectos da semiótica do discurso colaboraram para apreensão do trágico no discurso
de Hilst, nas especificidades dessa narrativa nomeada de “pequeno discurso”.
As análises subsequentes à de O projeto privilegiaram de modo mais objetivo topoi
do trágico, pressupondo os mecanismos da semiótica do discurso implícitos na opção
escolhida para desenvolver-se a semiose das narrativas. Essa postura teve como interesse
restringir a análise ao campo do trágico, com o fim de demonstrarem-se as especificidades
das narrativas quanto ao tratamento dado pelo sujeito da enunciação a determinados topoi
desse campo. Em Fluxo, por exemplo, demonstrou-se a presença da simultaneidade de
vários registros de linguagem, tornando a visada da instância discursiva um ensaio de
perdição dos referenciais, potencializando dessa maneira noções da lógica do pior.
Em O oco, a recorrência da letra do trágico ocorre também em relação à experiência
de perdição do ser. No entanto, o ator de saber insabido, manipulado pelo sujeito da
enunciação, deixa-se apreender na cadeia de significantes, na qual o sentido insiste, mas
nenhum de seus elementos consiste na sua significação, indicando na direção do não
sentido, da errância de sentido.
O conceito trágico do eterno retorno é depreendido em Kadosh, cujo foco se
encaminha para a presença de grandezas discursivas manipuladas de tal forma a evidenciar
a figurativização do religioso, numa repetição de outra narrativa mencionada no capítulo
“Kadosh: escritura-lâmina”, Floema, uma das narrativas de Fluxo-floema. A duplicidade de
escrituras configura-se nestas narrativas, Kadosh e Floema, nas quais ao mesmo tempo em
que se apreende a escritura trágica do sujeito da enunciação, apreende-se também a
206
escritura dos atores de saber insabido, respectivamente, Kadosh e Koyo. O mesmo
procedimento pode ser verificado em Fluxo e em A obscena senhora D, cujos atores de saber
insabido elaboram a sua própria escritura. O que se mostra específico em Kadosh é o
paralelismo entre a escritura mal-dita desse ator e a Escritura Sagrada, como se pôde
verificar na análise. O eterno retorno se descobre na escritura de Kadosh, quando se verifica
no final do discurso a presença do pavor de ter-se acreditado em algo que nunca existiu, ou
seja, a ideia de Deus.
Por fim, no discurso trágico em A obscena senhora D, três componentes da
perspectiva trágica, segundo a lógica do pior, são utilizados: a consciência do não-ser; o
estranho familiar; o estado de morte, resumidos na máxima não nada a perder, não se
tendo nada. Nessa narrativa, a escolha do sujeito da enunciação denota uma práxis
estruturada em espiral que leva ao nada de um sentido iconizado na própria escritura
delirante por meio da “consciência” do ator de saber insabido da desnaturalização do ser,
quando afirma “eu nada, eu Nome de Ninguém”.
O ser de linguagem, sujeito da enunciação do discurso de Hilda Hilst, na consciência
da ideia de um permanente estado de morte, busca pela aprovação da vida o caminho da
escritura para falar do mundo, espaço de angústia e gozo, de profanação e sublimação, de
simulações e simulacros, pela aprovação de que tudo é teatro, jogo, hasard. Faz-se arte de
um espaço de liberação da angústia e da alegria de existir, reencenando as festas dionisíacas
quando num mesmo espaço se celebrava a morte e o gozo.
207
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BÍBLIA de Jerusalém. São Paulo: Paulinas, 1985.
CATECISMO da Igreja Católica. São Paulo: Vozes, Paulinas, Loyola, Ave Maria, 1993.
FONTANILLE, J. Semiótica do discurso. São Paulo: Contexto, 2007.
FREUD, Sigmund. Das unheimliche in: Obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago,
1996. Vol. XVII
______________. A interpretação dos sonhos. Rio de Janeiro: Imago, 2001.
HARRIS, R. Laird (org.). Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento. São
Paulo: Vida Nova, 1998.
HILST, Hilda. Fluxo-Floema. São Paulo: Globo, 2003.
__________. Kadosh. São Paulo: Globo, 2002.
__________. A obscena senhora D. São Paulo: Globo, 2001.
__________. Com meus olhos de cão. São Paulo: Globo, 2006.
__________. Rútilos. São Paulo: Globo, 2003.
HOUAISS, Antonio e VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio
de Janeiro: Objetiva, 2009.
HUMPHREY, Robert: O fluxo da consciência: um estudo sobre James Joyce, Virginia Woolf,
Dorothy Richardson, William Faulkner e outros. São Paulo, McGraw-Hill do Brasil, 1976.
208
ISIDRO PEREIRA, S. J. Dicionário grego-português e português-grego. Porto: Livraria
Apostolado da Imprensa, 1984.
JANKÉLEVITCH, Vladimir. La mort. Paris: Flammarion, 1977.
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkin, 1985.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
_____________. O seminário, livro 3: as psicoses (1955-1956). Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1988.
_____________. Escritos. São Paulo: Perspectiva, 2008.
LOTMAN, Iuri M. La semiosfera I: semiótica de la cultura y del texto. Madrid: Ediciones
Cátedra, 1996.
MACHADO, Clara Silveira. A escritura delirante em Hilda Hilst. 1993. 282 f. Tese (Doutorado
em Comunicação e Semiótica) Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica,
Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 1993.
NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
Os Pré-socráticos: fragmentos, doxografia e comentários. São Paulo: Nova Cultural, 1991.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Roland Barthes: o saber com sabor. São Paulo: Brasiliense, 1983.
PLOTINO. Tratado das Enéadas. São Paulo: Polar Editorial, 2000.
ROMEYER-DHERBEY, Gilbert. Os sofistas. Lisboa: Edições 70, 1999.
ROSSET, C. Lógica do pior. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989.
209
ROSSET, C. Logique Du pire. Paris: Quadrige/Puf, 2008.
SCHREBER, Daniel Paul. Memórias de um doente de nervos. Rio de Janeiro: Graal, 1985.
VALLEJO, Américo & MAGALHÃES, L. Lacan: Operadores de leitura. São Paulo: Perspectiva,
1979.
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
ABREU, Caio Fernando in: HILST, HILDA. Cadernos de Literatura Brasileira. o Paulo:
Instituto Moreira Salles, 1999.
ALBERTI, Verena. O riso e o risível na história do pensamento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1999.
ANGELI, Concetta D’ & PADUANO, Guido. O Cômico. Curitiba: UFPR, 2007.
ARISTÓTELES. Arte Retórica e Arte Poética. 16ª ed. Rio de Janeiro: Ediouro, s. d.
____________. Retórica das paixões. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
ARRIGUCCI Jr., David. Borges ou do conto filosófico in: BORGES, Jorge Luis. Ficções. o
Paulo: Globo, 1995.
BAKHTIN, Mikhail, A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais. São Paulo: HUCITEC: Editora da Universidade de Brasília, 1993.
BARROS, D. L. P. de. Teoria Semiótica do texto. São Paulo: Ática, 1990.
BARROS, D. L. P. de. Retórica, pragmática e semiótica. Linha d´água. Humanitas/USP, n.º 8,
p.63-71, 1988.
210
BARROS, D. L. P. de. Teoria do discurso: fundamentos semióticos. ed. São Paulo:
Humanitas/FFLCH/USP, 2001.
BATAILLE, George. A literatura e o mal. Porto Alegre: L&PM, 1989.
_______________. História do olho. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
_______________. O erotismo. São Paulo: Arx, 2004.
_______________. La parte maldita. Barcelona: Içaria, 1987.
BAUDELAIRE, C. Poesia e prosa: volume único. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.
BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação do cômico. Rio de Janeiro: Editora
Guanabara, 1987.
BERTRAND, D. Caminhos da semiótica literária. Bauru: EDUSC, 2003.
BERTRAND, D. Parler pour convaicre: rétorique et discours, essai et anthologie. Paris:
Gallimard, 1999.
BRAIT, B. Ironia em perspectiva polifônica. Campinas, SP: Unicamp, 1996.
Cadernos de Literatura Brasileira: Hilda Hilst. Instituto Moreira Salles. Outubro de 1999.
CASTIGLIONE, Baldassare. O cortesão. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
CHABROL, C. (apres.) (vários autores) Semiótica narrativa e textual. São Paulo: Cultrix, 1997.
CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A Dicionário de símbolos. São Paulo: José Olympio, 1999.
211
COLUCCI, Vera Lúcia. Riso e rubor: reflexões sobre a escrita de uma tese in:LEITE, Nina
Virgínia de Araújo (org.). Corpolinguagem: a est-ética do desejo. Campinas, SP: Mercado de
Letras, 2005.
COURTÈS, J. Introdução à semiótica narrativa e discursiva. Coimbra: Almedina, 1978.
COURTÈS, J. Sémantique de l´énonciation: applications pratiques. Paris: Hachette, 1989.
DESCARTES, René. As paixões da alma. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 1974.
_______________. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal, 2006.
_______________. Francis Bacon: Lógica da sensação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
DUBOIS, J. et. Alii. Dicionário de Linguística. São Paulo: Cultix, 2001.
DUCROT, O. Princípios de semântica linguísitca (dizer e não dizer). São Paulo: Cultrix, 1977.
__________. & TODOROV, T. Dicionário enciclopédico das ciências da linguagem. São
Paulo: Perspectiva, 1998.
DURAND, G. As estruturas antropológicas do imaginário: introdução à arqueologia geral.
São Paulo: Martins Fontes, 1997.
___________. O imaginário. Ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem. Rio de
Janeiro: DIFEL, 1998.
ECO, Umberto. Viagem na irrealidade cotidiana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
ECO, Umberto. Entre a mentira e a ironia. Rio de Janeiro: Record, 2006.
EVERAERT-DESMEDET, N. Semiótica da narrativa. Almedina: Coimbra, 1984.
212
FERREIRA, Jerusa P. & MILANESI, Luís (organização) O obsceno. o Paulo: Hucitec e
INTERCOM, s/d.
FIORIN, J. L. Elementos de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 1992.
FONTANILLE, J. & ZILBERBERG, C. Tensão e Significação. São Paulo: Discurso Editorial:
Humanitas/ FFLCH/USP, 2001.
FONTANILLE, J. Sémiotique du visible. Paris: PUF, 1995.
FREUD, Sigmund. Os chistes e a sua relação com o inconsciente (1905). Rio de Janeiro:
Imago, 1996.
GREIMAS, A. J. Semiótica e Ciências sociais. São Paulo: Cultrix, 1981.
_____________. & COURTÈS, J. Dicionário de semiótica. São Paulo: Cultrix, s.d.
_____________. & COURTÈS, J. Sémiotique: dictionnaire raisonné de la théorie du langage.
Paris: Hachette, 1986.
_____________. & FONTANILLE, J. Semiótica das paixões. São Paulo: Ática, 1993.
_____________. De l´imperfection. Paris: Fanlac, 1987.
_____________. Du sens II: essais sémiotique. Paris: Seuil, 1983.
_____________. Semântica estrutural: pesquisa de método. São Paulo: Cultrix, 1976.
GREIMAS, A. J. & FONTANILLE, J. Sobre o sentido: ensaios semióticos. Petrópolis: Vozes,
1975.
GROUPES D´ENTREVERNES. Analyses sémiotique des textes: introduction, théorie, pratique.
Lyon: PUL, 1984.
213
HARKOT-DE-LA-TAILLE, Elizabeth. Ensaio semiótico sobre a vergonha. o Paulo:
Humanitas/FFLCH/USP, 1999.
HILST, Hilda. Tu não te moves de ti. São Paulo: Globo, 2004.
__________.O caderno rosa de Lori Lamby. São Paulo: Globo 2005.
__________. Contos D’Escárnio textos grotescos. São Paulo: Globo, 2002.
__________. Cartas de um sedutor. São Paulo: Globo, 2002.
__________. Estar sendo. Ter sido. São Paulo: Globo, 2006.
HOBBES, Thomas. Os elementos da lei natural e política. São Paulo: Ícone, 2002.
KAYSER, W. O grotesco: configuração na pintura e na literatura. São Paulo: Perspectiva,
1986.
KANT, Emmanuel. Observações sobre o sentimento do belo e do sublime; Ensaio sobre as
doenças mentais. Campinas, SP: Pontes, 1993.
KIERKEGAARD, S. A. O conceito de ironia constantemente referido a Sócrates. Bragança
Paulista: Editora Universitária São Paulo, 2006.
KUNDERA, Milan. O livro do riso e do esquecimento. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987.
LOPES, E. Discurso, texto e significação. Uma teoria do interpretante. São Paulo: Cultrix/
Secretaria da Cultura, 1978.
LOPES, E. Metáfora: da retórica à Semiótica. São Paulo: Atual, 1986.
MINOIS, Georges. História do riso e do escárnio. São Paulo: Editora UNESP, 2003.
214
MORAES, Eliane & LAPEIZ, Sandra. O que é pornografia. São Paulo: Brasiliense, 1994.
MOTTA, Leda Tenório da. Proust: a violência sutil do riso. São Paulo: Perspectiva: FAPESP,
2007.
MUECKE. D. C. Ironia e o irônico. Trad. Geraldo Gerson de Souza. São Paulo: Perspectiva,
1995.
NASCIMENTO E.M.F.S. Definição discursiva: memória e gênese. FCL-UNESP: Araraquara,
1997 (tese de livre-docência).
_____________________ & LEONEL, M. C. Campo lexical, modalização e massificação do
discurso religioso. Revista da ANPOLL, São Paulo: Humanitas/USP, n.10, p.101-120, jan.jun.
2001.
_____________________ & LEONEL, M. C. O amor tudo vence: invariantes e variantes na
narrativa. Itinerários. Araraquara, n.º 20, p.89-104, 2003.
NASCIMENTO, E. M. F. S. A construção da imagem social do profissional executivo. Revista
do Centro Universitário Barão de Mauá. Ribeirão Preto: PUBLIMAUÁ, n. 1, 2001, p.11-18.
_____________________. Mecanismos de referencialização e produção discursiva. Revista
da ANPOLL, São Paulo: Humanitas/USP. N.9, p.227-237, jul.dez.2000.
NESTROVSKI, Arthur. Ironias da modernidade. São Paulo: Ática, 1996.
NIETZSCHE, F. A gaia ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
____________. Além do bem e do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
NIETZSCHE, F. Ecce homo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
PAZ, Octavio. Conjunções e disjunções. São Paulo: Perspectiva, 1979.
___________. Um mais além erótico: Sade. São Paulo: Mandarin, 1999.
215
PIRANDELLO, Luigi. O humorismo. São Paulo: Experimento, 1996.
PRETI, Dino. A linguagem proibida: um estudo sobre a linguagem erótica: baseado no
Dicionário moderno de Bock, de 1903. São Paulo: T. A. Queiroz, 1983.
PROPP, V. Morphologie du conte. Paris:Seuil, 170.
PROPP, Vladimir. Comicidade e riso. São Paulo: Ática: 1992.
RABELAIS, François. Gargântua e Pantagruel. Belo Horizonte: Itatiaia, 2003.
ROUANET, Sérgio Paulo. Riso e melancolia. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
RUSSO, M. O grotesco feminino: risco, excesso e modernidade. Rio de janeiro: Rocco, 2000.
SARTRE, J. P. O imaginário. São Paulo: Ática, 1996.
SILVA, I. A. Figurativização e metamorfose. São Paulo: EDUNESP, 1995.
SILVA, I. A. (org.) Corpo e sentido. São Paulo: EDUNESP, 1996.
SKNNER, Quentin. A arma do riso in: Folha de São Paulo Mais!. 4/08/2002.
SLAVUTZKY, Abrão & KUPERMANN, Daniel (org.). Seria trágico... se não fosse cômico: humor
e psicanálise. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
SODRÉ, Muniz & PAIVA, Raquel. O império do grotesco. Rio de Janeiro: MAUAD, 2002.
SZONDI, P. Ensaio sobre o trágico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.
TODOROV, Tzvetan. Os gêneros do discurso. São Paulo: Martins Fontes, 1980.
216
VALLEJO, A. Topogogía de J. Lacan: del narcisismo. Buenos Aires: Helguero, 1979.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo