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CLÁUDIO GANDA
SEGURO PRIVADO: ENTRE A SOLIDARIEDADE E O RISCO
DOUTORADO EM DIREITO
PUC/São Paulo – 2.010
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CLÁUDIO GANDA
SEGURO PRIVADO: ENTRE A SOLIDARIEDADE E O RISCO
Tese apresentada à Banca Examinadora do
Programa de Estudos s-graduados Stricto Sensu
em Filosofia do Direito da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, como
exigência parcial para obtenção do título de
DOUTOR em Direito, sob orientação do
Professor Doutor Nelson Nery Júnior.
PUC/São Paulo – 2.010
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GANDA, Cláudio
CA_______ Seguro Privado: Entre a Solidariedade e o Risco.
Orientador: Professor Doutor Nelson Nery Júnior. São Paulo/SP:
2010, 437 págs.
Tese (Doutorado em Direito) Centro de Estudos Pós-graduados da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP.
1. Homem. 2. Sociedade. 3. Contratualismo. 4. Ética. 5. Potica. 6.
Economia. 7. Riscos. 8. Seguro. 9. Solidarismo. 10. Mutualismo.
CDD ________-________
Banca Examinadora
________________________________________________________________
Professor Doutor NELSON NERY JÚNIOR (Presidente – PUC/SP)
________________________________________________________________
Professor Doutor RICARDO HASSON SAYEG (PUC/SP)
________________________________________________________________
Professor Doutor PAULO LUIS DE TOLEDO PIZA (FGV)
____________________________________________________________________
Professor Doutor ANTONIO MÁRCIO DA CUNHA GUIMARÃES (PUC/SP)
________________________________________________________________
Professor Doutor LUCIANO DE CAMARGO PENTEADO (USP - USJT)
À D. Geralda Ganda, sempre!
À Rose;
O tempo, senhor de todas as curas, nos concede a oportunidade
de experimen-lo a cada sopro de nossas existências, a fim de
que possamos cumprir essa travessia colhendo o que de melhor
a vida pode oferecer: a sabedoria. A partir dela todas as demais
coisas, em que pesem os seus defeitos, se revelam perfeitas e,
como num jogo de quebra-cabeça, a harmonia que resulta do
encontro dos seres desnuda tamanha perfeição que não ousamos
jamais duvidar de que seja eterna. Assim tenho colhido até aqui
e é isto que me permite hoje saber: Minha eterna Rose, amo
você!
À Maria Izabella;
A emoção que transborda do meu coração confessa o quão
abençoado sou e, mesmo sem que ainda lhe tivesse visto os
olhinhos e sem lhe ter tomado nos braços, sabia o quanto te
amo. Maria Izabella, amada filha, seja bem vinda!
À Adriana, Carolina e Cláudia;
Presentes da minha vida, presentes na minha vida, vocês
representam, junto com Maria Izabella, o que de melhor posso
deixar aqui na Terra: os melhores tributos à D. Geralda.
Ao Clézio (In Memoriam);
A vida, falível e finita, floresce cândida e leve para os bem
aventurados que, por misericórdia ou benção, se nutrem no
convívio com alguns poucos seres que, de tão iluminados e
generosos, tornam esse nosso viver mais intenso e útil. Luzes
que são, deixam-nos também iluminados, e, leves, projetam-se
para o infinito, afastando-se sem nos deixar. Clézio, meu
querido irmão, tenho você eternamente comigo!
Agradecimentos.
Agradecemos, primeiramente, na pessoa do Magnífico Reitor, Professor Doutor Dirceu de Mello, à
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC/SP, instituição de ensino superior de notória
respeitabilidade em âmbito nacional e internacional, e cujo compromisso social e científico permite
a produção e difusão dos saberes, da edificação e emancipação humana;
Ao Professor Doutor Nelson Nery Júnior, em relação a quem, como ato de elementar justiça,
cumpre-nos demonstrar respeito e profunda admiração, e a quem devemos, como tem se tornado
costumeiro, para nossa felicidade, valiosos ensinamentos, dedicada atenção e inesgotável paciência.
Ao Professor Doutor Ricardo Hasson Sayeg, seleto amigo, irmão que contagia a cada dia com
demonstrações renovadas de bondade e sabedoria, virtudes que o dignificam sem enfraquecê-lo em
vaidades;
Ao Professor Doutor Antonio Márcio da Cunha Guimarães, douto no tema securitário, companheiro
de magistério jurídico nesta PUC/SP e distinto amigo que enobrece a trajetória de quem o cerca;
Ao querido Dr. Maurício Rodrigues Hortêncio, ilustre advogado, amigo incondicional, irmão
predileto que não esmoreceu no apoio e estímulo permanentes, não obstante os pesados encargos
dessa escolha;
Agradecimentos, que se estendem ao infinito com o propósito de que alcancem o saudoso Dr. Paulo
de Oliveira Filho, ilustre professor, com quem tivemos a honra da convivência e, de quem, a
oportunidade de haurir conhecimentos e exemplo de vida.
Por fim, amadas Rose e Maria Isabella, riquezas à vista de quem à dívida de gratidão se soma a
penitência pela intensa e prolongada privação do compartilhamento diário, minha eterna gratidão.
O passado não é imóvel pelo simples fato de ser
passado. Muda-se a posição do observador no tempo,
e eis que uma luz nova se projeta sobre os fatos,
revelando aspectos imprevistos, detalhes que alteram
substancialmente o quadro histórico, abalando
convicções das mais robustas.”
(Miguel Reale)
1
1
In Horizontes do Direito e da História, pág. 3.
Todo homem que for dotado de espírito filosófico
há de ter o pressentimento de que, atrás da realidade
em que existimos e vivemos, se esconde outra muito
diferente e que, por consequência, a primeira não
passa de uma aparição da segunda
(Friedrich Nietzsche)
2
2
In O nascimento da Tragédia ou Helenismo e Pessimismo, pág. 28.
RESUMO
Este trabalho se revela desdobramento e aprofundamento da dissertação intitulada O Contrato de
Seguro Privado e os Controles de Abusividade”, com a qual o autor obteve, na mesma instituição e
também sob orientação do ilustre Professor Doutor Nelson Nery Júnior, o título de Mestre em Direito.
Enquanto naquele trabalho nos ocuvamos de estudar o contrato de seguro sob a sua estruturação
interna, princípios regentes, elementos e características, víamos sobressair questionamentos acerca da
esncia desse negócio judico, os quais padecem de literatura específica e autorizada, sobretudo no
âmbito acadêmico, dado que nos estimula e, mais que isso, nos desafia a enfrentar o tema segundo os
seus vetores naturais humanos para, a partir deles, buscar uma conformação de cunho racional.
Adotamos, pois, como objetivo central deste trabalho o desafio de desenvolver um projeto de
investigação do contrato de seguro, visando fazer uma análise e reflexão crítica a partir dos fatores de
eclosão psicológica da necessidade de segurança e do interesse securitário, almejando vislumbrar os
fundamentos dessa prática, quá, sob nova perspectiva jurídica, sobretudo no que concerne à tradicional
dicotomia entre seguro social e seguro privado.
Com efeito, a despeito de se tê-lo por negócio econômico ou jurídico, vimos que o seguro é antes uma
manifestação humana involuntária, inadvertida e desorganizada, com origem no processo biológico e
desenvolvimento no campo de domínio da psicologia. Desse modo, avultam-se, do cotejo, liames da
matéria com conhecimentos de trato das ciências exatas, notadamente as ciências matemáticas, e
aprofundadamente nas ciências humanas, sendo possível, assim nos parece, viável o estudo do seguro
também dentro dos domínios da antropologia, da psicologia, da sociologia, da economia, do Direito e do
Estado.
A bem demonstrar a ambivalência do seguro, basta alinharmos de início o seu incondicional
multilateralismo, assim como a inexpugnável hibridez dos interesses individuais e coletivos que o
marcam, os quais ainda se desdobram, como visto, em difusos, tamanha a pujança e abrangência
econômico-social que lhe são peculiares, com o seu trato adicional no campo do direito privado.
Mesmo em conta do aspecto marcadamente patrimonial que o caracteriza de modo indelével, permite-se
atestar que o seguro não se cinge a barreiras de ordem econômica ou cultural, sendo até certo ponto
natural a sua expansão para am dos marcos fronteiriços nacionais, com tendência globalizante.
Demarcadas as experiências do seguro anglo-saxão, de vocação capitalista e traço individualista ao
menos no que toca aos resultados financeiros da operação e o de origem alpina, este centrado no
mutualismo, o estudo dirige o seu olhar para os princípios informativos da operação, com destaque para
o mutualismo e a solidariedade, essenciais e comuns a qualquer modelo securitário, não sem antes
indagar sobre ser de ordem pública toda e qualquer operação de seguro, dada a supremacia do bem
comum almejado pela prática e preponderância do aspecto coletivo sobre o individual.
PALAVRAS-CHAVE: 1. Homem. 2. Sociedade. 3. Contratualismo. 4. Política. 5. Ética. 6. Economia.
7. Riscos. 8. Seguro. 9. Solidarismo. 10. Mutualismo.
ABSTRACT
This work is an unfolding and in depth thesis entitled: "The insurance contract and private
control of abuse". This thesis was supervised under the guidance of renowned professor Dr. Nelson
Nery Junior, MA Law.
While we examined insurance contracts under their structures, their principles in which they
govern, and in their elements and characteristics, several questions arose about the essence of this
legal transaction. The topic lacks peer reviewed literature and academic articles. Therefore, it is a
challenging subject and we would like to address the issues of human instinct and find a
conformation of human nature in which insurance contracts act.
Therefore, the objective of this paper is to challenge of developing a research project about
insurance contracts in order to make an analysis and critical reflexion from the psychological
factors in which the need for security has developed and in the interest of insurance. The aim of this
paper is to discuss the reasons for such practice under a new legal perspective, especially regarding
the traditional dichotomy between social insurance and private insurance.
In spite of similar economic or legal structures, we noted that insurance is involuntary,
inadvertent and disorganized. The origin of insurance is a biological process in which the field of
psychology has developed. Moreover, sciences such as mathematics and even humanities and social
sciences such as: anthropology, psychology, sociology, economics, law and state, have manifested
the issue even further.
A good example of insurance law, in which aligns unconditional multilateralism, as well as
the impregnable hybrid of individual and collective interests that mark it, unfolds in such that is a
breadth and strength of the socio-economic situation that is peculiar to, and in which has additional
tract on the field of private law. In regard to the predominant aspect of society, insurance policies
cannot be limited to economic or cultural barriers, since they are likely to expand beyond their
national border, as a result of globalization.
As demonstrated in the instances of the Anglo-Saxon insurance policy, capitalism and
individualism—at least in financial situations –and within the Alpine region, it is centred on the
communitarianism. This study looks at the principle information of the operation, and more
specifically at mutualism and solidarity, which are essential and common to any model insurance.
However, not before inquiring about whether or not an insurance transaction is a good public
policy, the interest of the whole must be overlooked by the interest of the individual.
Keywords: 1. Man. 2. Society. 3. Contractualism 4. Politics 5. Ethics. 6. Economy. 7. Risks.
8. Insurance. 9. Solidarism 10. Mutualism.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................................. 19
PRIMEIRA PARTE: O HOMEM
Capítulo I: Aproximação através da Antropologia ....................................................................................... 34
I.1. A antropologia como ciência .................................................................................................... 34
I.2. A Antropologia biológica ......................................................................................................... 38
I.3. A Antropologia sócio-cultural .................................................................................................. 54
I.3.1. Antropologia arqueológica ......................................................................................... 55
I.3.2. Arqueologia lingüística .............................................................................................. 57
Capítulo II: Aproximação através da Psicologia ........................................................................................... 58
II.1. Propriedades primárias do indivíduo (as faculdades cognitivas humanas) ............................ 61
II.1.1. O pensamento ............................................................................................................. 64
II.1.2. A inteligência ............................................................................................................... 66
II.1.3. O conhecimento ........................................................................................................... 68
II.1.4. A consciência ............................................................................................................... 70
II.1.4.1. Uma das categorias do espírito humano: a noção de “pessoa” e do “eu”...... 73
II.1.5. A linguagem ................................................................................................................ 77
II.1.6. A liberdade .................................................................................................................. 81
II.2. Os sentimentos, paixões e vícios na órbita do indivíduo: a etiologia da neurose ................ 85
II.2.1. O desamparo e a angústia ............................................................................................ 87
II.2.2. A violência e o medo .................................................................................................. 89
II.2.3. O medo e o imaginário do medo ................................................................................. 94
II.2.4. Incerteza, insegurança, ansiedade ... ......................................................................... 103
II.2.5. Perigo e risco ............................................................................................................. 108
II.2.6. O homo ludens ........................................................................................................... 112
Capítulo III: Aproximação através da Sociologia ....................................................................................... 117
III.1. A natureza social do homem ....................................................................................... 119
III.2. A sociologia como ciência .......................................................................................... 122
SEGUNDA PARTE: A HUMANIDADE
Capítulo I: Em busca de nós mesmos ........................................................................................................... 131
I.1. O mundo através da Mitologia ............................................................................................... 133
I.2. O mundo através da Filosofia ................................................................................................. 140
I.3. O mundo através das Ciências ............................................................................................... 147
I.4. O mundo através das Revoluções ........................................................................................... 152
TERCEIRA PARTE: A SOCIEDADE
Capítulo I:. Conceitos sociológicos fundamentais (contatos, interões, relações e fatos sociais) .......... 156
I.1. Contatos sociais ...................................................................................................................... 158
I..1.1. Isolamento social .................................................................................................. 160
I.2. Interações sociais ou reciprocidade das ações sociais ............................................................ 162
I.3. Relações sociais ................................................................................................................ 164
I.3.1. Cooperão ............................................................................................................ 165
I.3.2. Competição ........................................................................................................... 166
I.4. Conflitos sociais e modos de superação ................................................................................. 169
I.4.1. Adaptação .............................................................................................................. 170
I.4.2. Acomodação .......................................................................................................... 170
I.4.3. Assimilação ........................................................................................................... 171
I.4.4. Aculturação ........................................................................................................... 172
I.5. Fatos sociais ........................................................................................................................... 173
Capítulo II: Conceitos sociológicos fundamentais (estrutura, regulamentação e instituições sociais) ... 176
II.1. Estrutura social ................................................................................................................... 176
II.2. Regulamentação e Controle social ..................................................................................... 178
II.3. Instituições sociais ............................................................................................................. 180
II.3.1. A Família .......................................................................................................... 182
II.3.2. O Estado ............................................................................................................ 184
II.3.2.1. O interesse público e o privado ...................................................................... 186
II.3.3. A Igreja ............................................................................................................. 189
II.3.4. Instituições Educacionais .................................................................................. 192
II.3.5. Instituições Econômicas .................................................................................... 192
Capítulo III: A vida em sociedade ................................................................................................................. 195
III.1. A Cultura ........................................................................................................................... 197
III.1.1. Socialização ........................................................................................................... 198
III.2. A linguagem ...................................................................................................................... 209
III.2.1. A Comunicação social .......................................................................................... 212
III.2.1.1. A indústria cultural ................................................................................. 214
III.2.1.2. A ideologia .............................................................................................. 216
III.3. A Política .......................................................................................................................... 220
III.4. O Corcio ....................................................................................................................... 221
III.6. A Economia ...................................................................................................................... 224
III.6.1. O Capitalismo ........................................................................................................ 228
QUARTA PARTE: O SEGURO
Capítulo I: Seguro e segurança: o aspecto semântico ................................................................................. 235
Capítulo II: A etiologia do seguro ................................................................................................................. 239
II.1: Angústia, medo, incerteza, insegurança, risco e perigo: crepúsculo da felicidade? ................... 247
II.2: Gestão dos riscos ....................................................................................................................... 252
II.2.1. Modos de enfrentamento dos riscos ............................................................................. 256
II.2.1.a. Modos de gestão individual de riscos: prevenção e poupança ....................... 258
i. Prevenção ........................................................................................... 258
ii. Retenção ............................................................................................. 260
iii. Distribuição ........................................................................................ 263
II.2.1.b. Modos de gestão coletiva de riscos: partilha e transferência ................... 264
i. Partilha dos riscos .............................................................................. 264
ii. Transferência dos riscos entre agentes ............................................... 267
II.2.2. O interesse comunitário no enfrentamento dos riscos ......................................... 268
II.2.3. A segurança da humanidade através do contrato social ..................................... 271
II.2.3.a. A fundação da sociedade ........................................................................ 275
II.3. Seguro: atomização do contrato social ............................................................................................. 282
i) Coletivismo ............................................................................................................... 283
ii) Comunitarismo ......................................................................................................... 287
iii) Solidarismo ............................................................................................................... 290
iv) Mutualismo ............................................................................................................... 293
Capítulo III: Manifestação do seguro ........................................................................................................... 298
III.1. O seguro como jogo ou aposta .......................................................................................... 300
III.2. O seguro técnico ............................................................................................................... 303
i. A empresarialidade ................................................................................................ 305
ii. Seguro é prestação de serviços ............................................................................. 307
iii. Seguro é relação de consumo .............................................................................. 310
iv. Obrigação de meio, de resultado ou de garantia? ................................................ 313
v. Da atividade securitária não resulta risco para a seguradora
(teoria da base objetiva do negócio) .................................................................... 319
vi. Contrato multilateral e multitudinário ................................................................. 327
vii. Função social do contrato de seguro ................................................................... 330
viii. Da inexistência de alienação de patrimônio pelo do contrato de seguro ........... 334
III.2.1: O seguro mútuo .................................................................................................... 344
III.2.2: O seguro mercantil .............................................................................................. 351
III.2.3: O seguro alpino .................................................................................................... 360
III.2.4. O seguro social ...................................................................................................... 363
Capítulo IV: O direito do seguro .................................................................................................................. 370
IV.1. O contrato de seguro brasileiro de lega lata ................................................................. 379
IV.2. O contrato de seguro segundo a doutrina .................................................................... 385
IV.3. Jurisprudência do seguro .............................................................................................. 387
IV.3. O contrato de seguro brasileiro de lege ferenda ........................................................... 392
QUINTA PARTE: CONCLUSÕES ............................................................................................................................ 397
BIBLIOGRAFIA .......................................................................................................................................................... 412
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
AAA
American Association for the Advancement of Science
AA.VV.
autores vários
a.C.
antes de Cristo
ac.
adap.
adaptação
ADC
Ato das Disposições Constitucionais Transitórias
ADIn
Ação Direta de Inconstitucionalidade
adj.
adjetivo; adjunto
AGF
Assurances Générales de France
AGU
Advocacia Geral da União
al.
alemão
ALCA
Associação de Livre Comércio das Américas
ampl.
ampliado (a)
ANS
Agência Nacional de Saúde Suplementar
art./arts.
artigo/artigos
atual.
atualizado (a)
BACEN
Banco Central do Brasil
BGB
Código Civil alemão (Bügerliches Gesetzbuch)
ca.
circa; cerca de; por volta de
CADE
Conselho Administrat
ivo de Defesa Econômica
Câm.
Câmara
Cap.
Capítulo
cc.
centímetros cúbicos
c/c.
combinado com
CC/16
Código Civil brasileiro (Lei Federal nº 3.071/1916)
CC/02
Código Civil brasileiro (Lei Federal nº 10.406/2002)
CDC
Código de Defesa do Consumidor (Lei Federal nº 8.078/90)
CECA
Comunidade Européia do Carvão e do Aço
CEE
Comunidade Econômica Européia
CEEA
Comunidade Européia de Energia Atômica
cf.
conforme; confira, confronte, compare
CF
Constituição Federal
CF/88
Constituição Federal de 1988
cit.
citado; citação
civ.
civil; cível
CONSU
Conselho Nacional de Saúde Suplementar
CONSIF
Confederação Nacional do Sistema Financeiro
coord.
cordenação; coordenador; coordenadora
CMN
Conselho Monetário nacional
CPC
Código de Processo Civil
cs.
indica pronúncia greco-italiana do x
CVM
Comissão de Valores Mobiliários
D.
Dom
d.C.
depois de Cristo
Des.
Desembargador (a)
DJ
Diário da Justiça
DL
Decreto-lei
DNA
Deoxyribonucleic acid; no vernáculo Ácido Desoxirribonucleico
DM
Dissertação de Mestrado
DOE
Diário Oficial do Estado (citação: abreviatura seguida da sigla do Estado)
DOU
Diário Oficial da União
Dr.
Doutor
Dra.
Doutora
EC
emenda constitucional
ECA/USP
Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo
ed.
edição
EDIPUCRS
Editora da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
EDUNEB
Editora da Universidade do Estado da Bahia
EEE
Espaço Econômico Europeu
EFTA
Associação Européia do Comércio Livre
e.g.
exempli gratia
em.
ementa; ementário
epi
equipamento de proteção individual
est.
estadual
et. al.
e outros
Et. Nic.
Ética a Nicômaco
et. seq.
e seguintes
EUA
Estados Unidos da América
Exeg.
Exegese
FEA
-
USP
Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo
fed.
federal
FGV
Fundação Getúlio Varg
as
FEMAR
Fundação de Estudos do Mar (Brasil: Botafogo – Rio de Janeiro/RJ)
fr.
francês
FUCAP
Faculdades Unidas Capivari - Capivari de Baixo/SC
FUNENSEG
Fundação Escola Nacional de Seguros
geom.
geometria
gr.
grego
ibidem; ibid.
do mesmo autor, em página diferente ou mesma obra
idem; id.
refencia subsequente de um mesmo autor
i.e.
isto é
inc.
inciso
in.
inglês
IRB
Instituto de Resseguros do Brasil
IRB-Brasil RE
IRB Brasil Resseguros S/A.
it.
italiano
j.
julgado / julgamento
LACP
Lei da A
ção Civil Pública
lat.; lt.
latim
LC
Lei Complementar
loc. cit.
no trecho citado
Maa
Milhões de anos
MEFP
Ministério da Economia, Fazenda e Planejamento
MERCOSUL
Mercado Comum das Américas
Min.
Ministro (a)
m.v.
maioria de votos
n.; n°
número
Nm
Nome masculino
ob.
obra
obs.
observação
OIT
Organizão Internacional do Trabalho
ONU
Organizão das Nações Unidas
op. cit.; opus citatm
obra citada
p.; §
parágrafo
p.; pág.
página
págs.
páginas
par. ún.
parágrafo único
passim
por aqui e
ali; em diversas passagens
Profª.
Professora
Prof.
Professor
Prov.
provimento
PUC/SP
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Rel.
Relator (a)
res.
resolução
rev.
revisão ou revisado (a)
séc.; s.
século
seç.
seção
s/d; [s. d.]
sem data
s/e; [s. e.]
sem editora
s.f.
substantivo feminino
sic
assim mesmo
s.m.
substantivo masculino
s/n
sem número
SNSP
Sistema Nacional de Seguros Privados
SP
São Paulo
ss.
seguintes
STF
Supremo Tribunal Federal
STJ
Superior Tribunal de Justiça
SUSEP
Superintendência de Seguros Privados
T.
Turma
t.
tomo
TACiv/SP
Tribunal de Alçada Civil de São Paulo (extinto)
tb.
também
TCE
Tratado da Comunidade Européia
tirag.
tiragem
TJMG
Tribunal de Justiça de Minas Gerais
TJRJ
Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro
TJSP
Tribunal de Justiça de São Paulo
t.l.a.
tradução livre do autor
Trad.
Tradução; tradutor(a)
UFPA
Universidade Federal do Pará
un.
unânime
UNCTAD
United Nations Conference on Trade anda Development
Universidade do Estado de S
ão Paulo
UniFMU/SP
Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas - São Paulo
v.g.
verbi gratia
vol.
volume
v.u.
votação unânime
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 – Cameleiros da Mesopotâmia ........................................................................................................ 344
Figura 2 – Navios .......................................................................................................................................... 351
Figura 3 – The Lloyd´s Coffee House ........................................................................................................... 359
19
INTRODUÇÃO
A tarefa não é contemplar o que
nunca foi contemplado, mas pensar como
ainda não se pensou sobre o que todo
mundo tem diante dos olhos.
(Schopenhauer)
1
O tema exposto no presente ensaio foi eleito dentre outras alternativas por
possibilitar relevante e oportuna discussão em torno da atividade securitária de
caráter privado em todo o mundo, sobretudo no que respeita às suas
repercussões sociais, econômicas e jurídicas, jornada que se abre ante a
perspectiva de releitura e de ressignificação do contrato de seguro, tomado o
mesmo a partir dos elementos técnicos e jurídicos envolvidos, com possível
revisão da hermenêutica que o envolve desde a sua aparição organizada no
Renascimento, tudo com o escopo de sua reconfiguração ou reclassificação no
âmbito do Direito.
1
Apud Madeleine Grawitz, Méthodes des Sciences Sociales. Paris: Dalloz, 1981, pág. 347.
20
Trata-se, o seguro, de mecanismo de prevenção contra riscos que tem
origem no espírito de solidariedade, sentimento inerente ao homem, o que
haveria de imprimir conotação exclusivamente comunitária à atividade, modelo
em que a solução econômica se constrói pela repartição dos riscos entre uma
mutualidade e cujos resultados deveriam reverter exclusivamente para o grupo
sob a forma de investimentos e de fomento ao desenvolvimento social
equilibrado, meio de cumprimento dos objetivos fundamentais da República que
traduzem o escopo do desenvolvimento nacional (CF, art. 3º, I).
No entanto, iniciada nos negócios a riscos do mar, a atividade securitária
adquiriu o traço da transferência de riscos, modalidade contratual em que a parte
tomadora assume para si as consequências adversas oriundas dos riscos eleitos,
com objetivo de lucro. Assim, nascida e cultivada em meio ao efervescente
comércio marítimo europeu desde os primeiros sinais de esgotamento do modelo
feudal, a atividade securitária sempre aguçou a imaginação do homem comum,
ao mesmo tempo em que lhe despertava fascínio, especialmente em virtude da
elevada margem de prosperidade dos capitalistas financiadores das expedições,
via de enriquecimento, porém, que não se abria senão mediante assunção de
elevada carga de riscos. Tais circunstâncias cobriam o seguro de admiração e
perplexidade, na mesma dimensão de como, nos salões de jogos, as apostas em
andamento atraem e mantêm absorta, à volta da roleta, uma boa parcela de
admiradores.
A trajetória do homem moderno, que assim passou a ser adjetivado em
virtude do contexto histórico-social experimentado a partir de fins do século
XVIII, tendo passado, e.g., pela Reforma Protestante e pela revolução
racionalista cartesiana, encontrou na valorização do indivíduo e da razão os
pilares do progresso humano rumo à felicidade, movimento que, embalado pelas
21
ideias de Montesquieu e Rousseau, dentre outros, desembocou na Revolução
Francesa, marco principal de emergência e de preponderância do indivíduo.
Com efeito, consolidados os ideais iluministas, inaugurada a soberania do povo
a partir da qual se alicerça o Estado de Direito, desencadeou-se a implantação de
governos presididos pela Razão. A esse modelo de Estado incumbe, pois, a
função precípua de promover a segurança que o máximo de liberdade individual
passou a exigir, respeitado o ideal do laissez-faire, laissez-passer
2
, fundamento
da garantia de que o fluxo de capital estivesse livre de qualquer interferência do
Estado, o que, sabemos, assegurou a ascensão da burguesia.
A nosso ver, a despeito de ser prática liberal recorrente a privatização dos
lucros e a socialização dos prejuízos, sobressai coerente com os desígnios
egoísticos do liberalismo a dicotomização do seguro em público e privado,
olvidado, por óbvio, o trinômio iluminista essencial que ditava as palavras de
ordem no levante de 1789: liberté, égalité, fraternité.
3
Agora, em tempos de inegável redimensionamento do individualismo
jurídico, que se forjou a reboque da Revolução burguesa de 1.789, e de
supremacia do mandamento legal da função social do contrato, na sintonia dos
princípios constitucionais da Carta Política de 88 e também do recém
promulgado Código Civil brasileiro com o seu apego ao princípio da
socialidade
4
, quer nos parecer enfrentar crise de paradigma o contrato de seguro
pautado pela transferência de riscos, mormente se tomarmos a observação sob o
ângulo da empresa seguradora como mera administradora de um fundo
comunitário, o que desafia a construção de um novo processo de relações entre
2
Deixe à vontade; deixe passar.
3
liberdade, igualdade, fraternidade.
4 Ricardo Bechara dos Santos, na sua obra Direito de Seguro no Novo Código Civil e Legislação Própria, já no
preâmbulo da mesma exalta que o princípio da socialidade “significa a passagem corajosa de um modelo
individualista para um modelo comprometido com a função social do contrato” (pág. 1).
22
capital, trabalho e Estado, sem perder de vista, nessa mesma dinâmica, os
ditames da função social da propriedade e, na sua extensão, da empresa.
Tal paradoxo oferece um campo de pesquisa bastante fértil no plano
teórico, posto que ainda pouco explorado. Trata-se de tema social, econômico e
jurídico de crescente importância, que, bem por isso, interessa o aos
estudiosos e operadores do direito, bem como a toda a sociedade, o que, nesse
sentido, exige do investigador uma certa mobilidade do intelecto como
pressuposto para a produção de um novo conhecimento em torno do objeto
tido sob o domínio da razão.
Seguimos, então, os passos metodológicos sugeridos pelo eminente
professor Luciano de Camargo Penteado, Doutor e Mestre pela Universidade de
São Paulo USP, que em sua obra do Direito das Coisas, leciona:
O direito normalmente tem sido estudado a partir da lei. Parte-se
dela para depois, com a citação de jurisprudência, exemplificar o que se
passa. Trata-se assim, o caso concreto, de modo residual, dando-se pouco
valor à perspectiva judicial que o sistema de direito apresenta. Entretanto,
muitas vezes, é preciso inverter a ordem para pensar o direito a partir do
caso concreto, para dele extrair as generalizações necessárias ao
conhecimento científico do direito.
5
O seguro, a fortiori, está a reclamar esta postura dos estudiosos, tendo em
vista que as incontáveis peregrinações em torno do tema mostram marchas e
contramarchas sobre as mesmas pegadas e trilhas inicialmente abertas em
direção ao seu conhecimento, nada úteis, porém, para desvendar-lhe os
“mistérios mais evidentes.
E nessa linha de prosito, a pesquisa aqui implementada busca se filiar à
corrente doutrinária do capitalismo humanista, cujo pensamento orienta estudos
voltados aos princípios e fundamentos que sustentam uma teoria do Direito que
5
Op cit. pág. 28.
23
harmoniza os aspectos econômicos do capitalismo com os pilares dos direitos
humanos e sociais, tudo sob a ótica do capitalismo democrático eleito pela
Constituição Federal de 1988, com sustentação nos pilares da soberania, da
cidadania, da dignidade da pessoa humana e dos valores sociais da livre
iniciativa e do trabalho humano, com vistas a assegurar a todos condições de
vida digna, sob os ditames da Justiça Social.
6
Nesse compasso, adotada como referencial teórico a antítese da corrente
de pensamento liberal ou neoliberal que defende o livre mercado, assim também
expressada com ênfase pela chamada Escola de Chicago
7
, neste estudo
envidaremos esforço teórico na empreitada de demonstrar o que entendemos, no
caso do seguro e em decorrência da visão puramente capitalista, consistir em
inconsisncia fundamental marcada pela indevida apropriação do instituto do
seguro pelo capital, em detrimento do desenvolvimento econômico, social,
político e cultural.
Para além disso, independentemente da frontal inconsistência teórica
acima referida, a mais aguçar as vidas em torno da mencionada crise
paradigmática do contrato de seguro, tomemos em lembrança as lições de Mauro
Cappelletti coligidas em nossa aludida dissertação de Mestrado “O Contrato
de Seguro Privado e os Controles de Abusividade”
8
, as quais dão conta de que a
6
A respeito da Doutrina Humanista de Direito Econômico, vide o Grupo de Estudos de Direito Econômico, da
PUC/SP, coordenado pelo eminente Professor Doutor Ricardo Hasson Sayeg.
7
Escola de pensamento econômico monetarista, reunida em torno de Milton Friedman e de outros professores da
Universidade de Chicago, e que sustenta a possibilidade de manter-se a estabilidade de uma economia capitalista
apenas por meio de medidas monetárias, baseadas nas forças espontâneas do mercado. Milton Friedman, o
principal teórico do grupo, considera a provisão de dinheiro o fator central de controle no processo de
desenvolvimento econômico. Explica as flutuações da atividade econômica não pelas variações do investimento,
mas apenas pelas variações de oferta de dinheiro entendida como a demanda monetária que depende da renda
permanente dos agentes econômicos. [...] Apoiando-se numa forte crença nos mecanismos de competição e nas
forças do livre mercado, a Escola de Chicago é contrária a qualquer política poskeynesiana de participação do
Estado na expansão das atividades econômicas, sustentando que qualquer intervenção desse tipo é inútil e nociva
e que apenas uma correta política monetária pode levar à estabilidade econômica. Além de Friedman, destacam-
se na Escola de Chicago Henry Simons, F. A. von Hayek, Frank Knight e George Stigler. (Paulo Sandroni,
Dicionário de Economia ...,; op. cit. págs. 305/306, verbete : Escola de Chicago.
8
Cláudio Ganda, O Contrato de Seguro Privado e os Controles de Abusividade. São Paulo: PUC/SP, 2004.
Dissertação de Mestrado, referida neste ensaio, doravante, simplesmente com a abreviatura DM.
24
tradicional dicotomia do interesse em público (o indivíduo em relação ao
Estado) e privado (os indivíduos em inter-relação) sofreu acentuada
transformação, pois entre eles passaram a ser vislumbrados os interesses
intermediários que transbordam daqueles meramente individuais, sem, contudo,
alcançar a categoria de interesse público, fazendo emergir os direitos
metaindividuais ou interesses de grupos de indivíduos.
9
De fato:
um momento no qual os interesses individuais, agrupando-se,
despojam-se de sua carga de egoísmo, para formar um novo ente: o interesse
coletivo. Aí, não se trata de um reforço à tutela dos interesses individuais,
conferido pelo grupo, mas da defesa de um interesse que depassa a mera
soma dos interesses pessoais, agrupados. Esses interesses coletivos
encontram seu lugar a meio caminho entre os interesses particulares e o
interesse público ou geral....
10
No caso das operações de seguro, certo que os interesses nelas enfeixados
extravasam os dos sujeitos comumente eleitos, a saber, segurados e seguradora,
vemos sobressair aqueles próprios do conjunto dos segurados que, em última
análise, é titular da formação do fundo comum de que se vale a seguradora para
garantir o ressarcimento de sinistros cobertos e, assim, adimplir com um dos
aspectos de sua obrigação de promover a garantia contratada. Visto sob esta
lente, não é menos certo que a seguradora, no papel de agente do pagamento da
importância segurada, por exemplo, dela não é titular, posto que o faz por
terceiro, no caso a mutualidade de segurados.
Nessa perspectiva, forçoso concluir que se a seguradora ressarci mal um
sinistro, enriquece indevidamente o segurado, em prejuízo da comunidade dos
seus segurados, que o faz com recursos do fundo comum; no viés oposto,
9 Formações sociais e interesses coletivos diante da justiça civil”. São Paulo: Revista de Processo v. 2, nº 5,
gs. 129/159, Jan./Mar. 1.977.
10 Rodolfo de Camargo Mancuso, Interesses Difusos.Conceito e legitimação para agir, págs. 46/47.
25
injustamente recusado o ressarcimento de prejuízo advindo de sinistro coberto –
leia-se previsto - pela alice, descumpre sua obrigação de prestar a garantia
contratada, em detrimento do escopo do seguro, consistente em elidir o estado
de insegurança daqueles que aderiram. Ipso fato, não obstante a providência
securitária, na hipótese de rejeição de justo ressarcimento, todos voltam ao
estado de insegurança, ante a possibilidade de sofrer dano sem possibilidade de
recomposição patrimonial.
Como se vê, uma escala de interesses no seguro que transcende aos
estritamente intersubjetivos, os quais não estão a receber adequada abordagem
ética e teórica e, consequentemente, não encontram coerente trato e proteção do
Estado, mercê do olhar mercantilista lançado sobre a operação, o que veda a
possibilidade, nas economias desenvolvidas, de se utilizar o sistema securitário
como um moderno recurso de proteção econômica e moral ao alcance da
comunidade segurada e proveito de toda a sociedade, mormente diante da opção
política de financiamento público direcionado às áreas de interesse social, como
sde e segurança, matérias de inquestionável emergência e inegável identidade
com o contexto do seguro.
O seguro comercial é mundialmente observado segundo duas concepções
originalmente antagônicas entre si, uma, mediterrânea, fundada na cultura
anglossanica e que o toma por atividade de mercado, surgida anteriormente à
baixa Idade Média e filiada aos negócios marítimos, de risco individual e
inescondível afinidade com os jogos de dinheiro, enquanto a outra, norte-
européia, de tradição alpina que se forma a partir doculo XVI, elege os
mecanismos comunitários e solidários para proteção das empresas e dos
indivíduos, os quais, encetados através das sociedades mútuas, revelam um
sistema erigido sobre os pilares do mutualismo para enfrentamento coletivo dos
riscos comuns.
26
Assim definidas as duas vertentes, decorre lógico inferir que o primeiro
dos sistemas aqui abordados, também conhecido por modelo marítimo, tem o
seguro como um mercado submetido às regras da livre concorrência, em que a
precariedade dos contratos e a segmentação das tarifas suplantam a inerente
solidariedade que dessai da diluição dos riscos no seio de uma coletividade. O
outro, de nítido caráter institucional, atua através de organismos cooperativos de
seguro e de previdência em que se compartilham os riscos, dependendo, para
tanto, de mercado rigorosamente regulamentado, viés oposto àquele primeiro.
Curiosamente, a experiência assistencialista erigida a partir das guildas,
corporações artesanais ou corporações de ofício, e das hansas, associação de
mercadores, largamente atuantes na Europa medieval, não obstante fundada nos
mesmos pressupostos da atividade securitária, não foi eficiente para cultivar essa
prática sob os cânones do solidarismo, bastando-se em marcos de inauguração
do seguro social previdenciário.
A dualidade demarca não o seguro segundo os sistemas de sua
exploração econômica, mas expõe a coexistência de mais de um modelo
capitalista, tal como alude Michel Albert em sua obra “Capitalisme contre
capitalisme” (Paris: Éditions du Seuil, 1991), o que assume importância máxima no
cenário contemporâneo de profundas e ao mesmo tempo rápidas transformações
dos rumos das sociedades ocidentais, sobretudo no que respeita aos aspectos
socioeconômicos e espaciais, aí entendido o fenômeno da globalização, talhado
para um sistema produtivo de escala, facilitador da consolidação de grandes
empresas e de mercados transnacionais, com grande fluxo de capitais, produtos
e serviços.
Por mais simplória que possa parecer a lição de fecundar a terra que dá o
trigo e permite o milagre do pão
11
, cujo grão tem de morrer para germinar;
11
O Cio da Terra, música de Chico Buarque e Milton Nascimento.
27
morre, nasce trigo, vive, morre pão
12
, é no solo fértil das lições filosóficas de
Aristóteles, Hobbes e Kant que buscaremos diálogo com as questões políticas,
éticas e jurídicas mantidas em aberto por essas três figuras para o trato das
relações entre justiça, direito e democracia, triangulação que este estudo irá
realçar como exigência da redescoberta do chamado seguro privado.
É esse o contexto que servirá de norte para a pesquisa que se propõe:
visando a sistematização do conhecimento em torno das concepções
consagradas universalmente sobre o seguro, com enfoque no conhecido seguro
privado, e buscando identificar em cada uma delas a sua teoria geral, através da
qual possibilitar-se-á a obtenção dos respectivos conceitos, características e
regras gerais, e a política, assim entendida a parte do estudo dedicada à
investigação das normas regentes dos institutos, adotadas em países filiados a
uma e à outra corrente, a fim de que o seguro alcance efetivamente a sua melhor
performance.
Nessa seara, uma vez identificada a segura definição do instituto, unitária
ou o, fixados os conceitos econômico, social e jurídico do seguro, proceder-
se-á a uma análise comparativa dos sistemas judicos apropriados a cada um
dos modelos conhecidos, especialmente no que respeita à tutela dos interesses
enfeixados nas operações securitárias.
Para tanto, indispensável investigar, a partir da gênese da atividade
securitária e seus vetores sociais e econômicos, sobre a classificação científica
de todos os elementos constantes da operação, providência a se valer de recursos
multidisciplinares, partindo, no particular, da doutrina do contrato social.
A nossa acuidade em torno do seguro em sua projeção exclusivamente
comunitária encontra eco na obstinação da educação grega em formar por meio
12
DrãO,sica de Gilberto Gil.
28
dela verdadeiros homens, nos quais a consciência clara dos princípios naturais
da vida humana e das leis imanentes que regem as suas forças corporais e
espirituais adquire a mais elevada importância.
O princípio espiritual dos Gregos não é o individualismo, mas o
«humanismo», para usar a palavra no seu sentido clássico e originário. [...]
Tal é a genuína paideia grega, considerada modelo por um homem de
Estado romano. Não brota do individual, mas da idéia. Acima do Homem
como ser gregário ou como suposto eu autônomo, ergue-se o Homem como
idéia. (sic)
13
Na mesma linha de observação filosófica, conforme sinalizamos,
pretendemos apoiar a busca também na doutrina contratualista, a qual encontra
defesa difundida a partir das obras de Hobbes, Rousseau e Locke, adicionadas,
ainda, as contribuições advindas de Ronald Dworkin e John Rawls.
Respeitadas a complexidade do tema e a interpenetração de várias áreas
do saber no fenômeno social do seguro, esta abordagem o foge ao imperativo
de cooperação e de interação entre as disciplinas das ciências sociais e humanas
destacadas acima, única alternativa, no nosso entender, de tornar profícua a
investigação e o diagnóstico dos caracteres inatos e das transformações e
adaptações por que tem passado o instituto ao longo de sua história.
Bem por isso, como se verá adiante, o estudo se desenvolve em quatro
partes, dedicada cada uma delas ao enfoque específico da interação do sujeito
com os elementos externos de organização da vida individual e, principalmente,
comunitária e do desenvolvimento dessas instituições desde a Antiguidade, em
especial o Estado. Uma quinta e última parte do trabalho é destinada ao arremate
dos achados e análise dos mesmos, o que se apresenta sob a forma de
conclusões.
13
Werner Jaeger, Paideia, gs. 12/13.
29
A primeira parte (O Homem) é dedicada ao estudo do homem sob a
perspectiva antropológica, buscando compreensão da lógica do homem sob suas
dimensões básicas, partindo da observação da interação biológica e cultural do
indivíduo e relacionando-a com a mente humana dentro do contexto psicológico,
ritual e geográfico. Na segunda parte (A Humanidade), voltamos nossa atenção
para a evolução da aventura do homem desde sua aparição sobre a Terra,
assinalando a epopéia que o mesmo protagonizou em busca de conhecimento,
modo de se dominar o ambiente com vistas à estabilidade e à segurança. A
seguir, na terceira parte (A Sociedade), estudamos os conceitos sociológicos
fundamentais, tratando de destacar as vinculações manifestadas na vida coletiva
de diferentes modos, as quais se manifestam, segundo os estudiosos, em termos
de contatos, interações, relações e fatos sociais. Segue-se, na quarta parte (O
Seguro), a abordagem do instituto tomado em foco pela tese, cuidando advertir
que o fazemos especificamente em torno do seguro privado, tomando-o desde
sua pulsão psicológica, instalada involuntária e desorganizadamente nos
sentimentos do indivíduo, até a sua elaboração material, esta consubstanciada no
contrato de seguro que se organiza assentado, inexoravelmente, numa
mutualidade. Por fim, na quinta e última parte (Conclusões), como já dito,
procuramos arrematar as idéias e articulações do texto mediante a tentativa de
sustentação da natureza pública do contrato de seguro, empreendendo esfoo
também para demonstrar ser teoricamente equivocada a tradicional dicotomia
entre seguro público e privado.
Convencidos de que a abordagem científica do fenômeno social exige
interdisciplinaridade, e certos de que o seguro reclama aproximação consentânea
com a intrínseca ligação entre indivíduo, sociedade e Estado, tudo com vistas ao
reencontro com o ideal de justiça, o método dialético de análise permeia o
trabalho e se associa ao esforço analítico-sintético de decomposição e rearranjo
da realidade do contrato de seguro, firmado o propósito de se reconhecer a
30
dissonância entre a produção e aplicação da lei formal e os parâmetros éticos
que devem orientá-las à realização da justiça.
O trabalho terá por base a pesquisa bibliográfica multidisciplinar,
envolvidas as áreas da Antropologia, Sociologia e Psicologia, recaindo nos
domínios da Filosofia do Direito o fio condutor da presente tese. A pesquisa será
tomada em doutrina nacional e estrangeira, seja em livros, artigos, monografias
ou teses, cuidando, ainda, de cotejar a legislação interna e a jurisprudência
voltadas ao assunto, sendo que no seu desenvolvimento, com efeito de
sustentação teórica, observaremos a identificação dos fenômenos que consagram
novos paradigmas, novos conceitos relacionais e contratuais impositivos, por
decorrência, de uma nova categorização do contrato de seguro.
No tocante ao título emprestado a este ensaio, seja-nos permitido
adicionar uma nota explicativa e ao mesmo tempo antecipatória da linha da
pesquisa.
Quer nos parecer decorrente do enfrentamento político e de deliberação
legislativa a questão sobre ter o seguro como atividade econômica dada à livre
iniciativa do capital, nos limites próprios emoldurados pelo liberalismo clássico,
e submetendo os contratantes ao libelo do pacta sunt servanda, caso em que a
opção se rende ao argumento do negócio mercantil que justifica o lucro a partir
dos riscos da atividade embora saibamos, hoje, da inexistência da álea no
contrato de seguro -, ou tê-lo como instrumento comunitário, de índole solidária
e voltado para a efetiva segurança coletiva e promoção do bem comum.
A respeito dos brados em favor da mais ampla liberdade de contratar, sob
o pálio da justiça da relação automaticamente assegurada pelo fato de o
conteúdo corresponder aos interesses dos contraentes num suposto plano de
igualdade jurídica, observemos os eslios de Enzo Roppo:
31
[...] liberdade e igualdade formal dos contraentes apareciam como os
pressupostos, não da prossecução dos interesses particulares destes
últimos, mas também do interesse geral da sociedade. As teorias
económicas então prevalentes traduzidas no plano prático, na directiva do
laissez-faire, laissez-passer pretendiam, de facto, que o bem estar
colectivo podia conseguir-se da melhor forma, não com intervenções
autoritárias do poder público, mas só deixando livre curso às iniciativas, aos
interesses, aos egoísmos individuais dos particulares, que o mecanismo do
mercado e da concorrência a «mão invisível» de Adam Smith teria
automaticamente coordenado e orientado para a utilização óptima dos
recursos, para o máximo incremento da «riqueza da Naçã. E é claro que
esta liberdade de iniciativa económica, considerada socialmente útil e
necessária, traduz-se no plano jurídico precisamente da liberdade, entendida
igualmente conforme o interesse social, de estipular contratos quando,
como e com quem queira. Na segunda metade do século passado um juiz
inglês exprimia sugestivamente este pensamento: «se há uma coisa
afirmou sir George Jessel na fundamentação de uma sentença de 1875 – que
o interesse público (public policy) requer mais do que qualquer outra, é que
homens adultos e conscientes tenham a xima liberdade de contratar, e
que os seus contratos tenham a tutela dos tribunais». (negritamos)
14
No entanto, é cediço e a história confirma, a liberdade o tem sido um
atributo útil a viabilizar a realização da justiça; ao contrário, o seu uso tem
proporcionado em larga escala a usurpação de direitos e a tirania. Demais disso,
ante a cultura jurídica contemporânea, sobretudo a brasileira, erigida sobre os
valores edificantes do humanismo, ou seja, da dignidade da pessoa humana, da
valorização social do trabalho e da livre iniciativa
15
, em busca da construção de
uma sociedade livre, justa e solidária, com garantia de desenvolvimento nacional
e erradicação da pobreza e da marginalização para o bem de todos
16
, não
como não se ter por anacrônica a ideia de absoluta liberdade econômica, tal
como apregoada e ferrenhamente defendida pelo neoliberalismo.
Adiantando-nos em arrefecer eventuais prevenções acerca da histórica e
infelizmente procedente - crítica sobre a ineficiência da intervenção estatal na
economia, alentamos com o fato de que a doutrina humanista do direito
14
O Contrato, págs. 35/36.
15
CF, art. 1º, incisos III e IV.
16
CF, art. 3º, incisos I, II, III e IV.
32
econômico nasce do processo de universalização e garantia dos direitos
humanos fundamentais, nas suas dimensões econômica, cultural e social, assim
como consagrado na Carta das Nações Unidas e nos documentos internacionais
posteriores que assentam a inalienabilidade dos valores do homem e da
humanidade, de sorte que a factibilidade de modelos alternativos ao despotismo
econômico haverá de ser construído e incorporado à realidade do mundo
posmoderno.
Conforme mencionamos acima, apregoamos a adesão ao compromisso
ético e social de colaborar com a aplicação do ‘direito do bem que, com
fundamento na livre iniciativa e valorização do trabalho humano, garantam a
todos uma existência digna conforme os ditames da justiça social.
17
17
Ricardo Hasson Sayeg, Revista de Direito Internacional e Econômico. Porto Alegre: Síntese, ano 1, nº 1, pág.
3, out/dez-2002.
33
PRIMEIRA PARTE: O HOMEM
34
Capítulo I: Aproximação através da Antropologia
I.1. A Antropologia como ciência
Carvalho Nunes
I
Para a Antropologia, o Mesmo e o Outro
são o Mesmo; ou, o Outro e o Mesmo são o Outro.
(Mércio Pereira Gomes)
18
No ano de 1800 desta nossa era Cristã, um grupo de médicos e
naturalistas fundou em Paris a Sociedade dos Observadores dos Homens,
visando promover o estudo da História Natural, através da qual forneceriam,
principalmente, de acordo com o projeto, orientação aos viajantes e exploradores
de regiões longínquas.
19
Ficou, no entanto, impossibilitada de prosseguir com
suas atividades, pois, em decorrência das Guerras Napoleônicas que se
alongavam em demasia, o comércio e as viagens ao exterior cessaram.
Com isso, interrompido o fluxo de dados e informações úteis aos
estudiosos, a entidade reorientou o seu foco para questões históricas e
psicológicas ligadas à etnologia.
20
Portanto, embora não por livre escolha dos
patrocinadores, a História Natural foi negligenciada em favor da Filosofia, da
Política e da Filantropia. Somente entre 1830 e 1840, momento de grande
18 In Antropologia: ciência do homem; ciência da cultura, pág. 12.
19 Até o século XVIII o saber antropológico ficou circunscrito às contribuições de cronistas, viajantes, soldados,
missionários e comerciantes que discutia, em relação aos povos que conheciam, a maneira como os mesmos
viviam, cultivavam seus hábitos, normas, características, interpretavam os seus mitos, os seus rituais, a sua
linguagem, etc.
20
S.f. Conjunto de conhecimentos sobre raças. (Dicionário Unesp..., op. cit., pág. 569, verbete: Etnologia).
35
importância para o estudo do homem, é que a aparição e consolidação da
Antropologia se deram com aceitação científica.
21
Do gr. άνθρωπος, transl. anthropos = homem + λόγος, transl. logos =
estudo, razão. Antropologia significa estudo e - também - gica do homem e da
humanidade em sua totalidade, sendo que, no primeiro caso a mesma se revela
um dos campos das ciências humanas, tal como a sociologia ou a economia, ao
passo que, sob o segundo enfoque, o estudo se concentra na observação da
mente humana dentro do seu contexto psicológico, ritual e geográfico, ou seja,
relacionando-se com temas próprios de outros campos do saber, a antropologia,
aqui, assume um aspecto mais sensitivo, tomando em observação o homem em
sua interação cultural e biológica, consideradas essas as dimensões básicas do
ser humano.
Por ser ciência da humanidade e da cultura, com um campo de observação
extremamente vasto, preocupa-se, no espaço, com toda a terra habitada; no
tempo, durante cerca de dois milhões de anos, com todas as populações
socialmente organizadas.
Sobressai gico, portanto, que duas subáreas da antropologia, com
objetivos definidos e interesses teóricos próprios, inauguraram esse campo
científico, a saber, a Antropologia Biológica e a Antropologia Cultural, às quais
se somaram, por questões de ordem prática, os subcampos da Arqueologia, da
Antropologia Linguística e da Antropologia Aplicada. A propósito, não é demais
anotar que o Dicionário de Ciências Sociais, do Instituto de Documentação da
Fundação Getúlio Vargas
22
, faz inserir adiante do verbete “antropologia”, as
seguintes especialidades da área: Aplicada, Cultural, Econômica, Física,
21 Sol Tax, Início da ciência do homem” - Panorama da Antropologia. Rio de Janeiro: Editora Fondo de
Cultura, 1966, pág. 10.
22 Benedicto Silva (coord. geral); Antonio Garcia de Miranda Netto et al. Dicionário de Ciências Sociais, págs.
58/71.
36
Política, Social, Urbana, além de explicitar a Antropometria
23
, o que entende
com a vastidão do campo de observação da antropologia, que, por ser muito
amplo, o é possível ser realizado por um único profissional, soando certo que
nenhum antrologo conseguiria dominar, sozinho, todos os campos abrangidos
pela disciplina.
Os estudiosos da história da Antropologia explicam que os filósofos
gregos, por se julgarem pertencentes a um povo muito superior aos demais e
nações vizinhas - a quem chamavam de bárbaros -, por não terem olhos ou
interesse em relação aos mesmos, o podem ser confundidos como precursores
ou mesmo fundadores dessa ciência, cuja característica mais marcante, a
propósito da epígrafe, é exatamente mirar o outro como um possível igual a si
mesmo. Santo Agostinho, ícone teológico do catolicismo, muito tempo depois,
descreveria as civilizações greco-romanas pagãs como moralmente inferiores em
relação às sociedades cristianizadas.
24
O professor Mércio Pereira Gomes, antropólogo, professor adjunto do
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal Fluminense,
destaca em sua obra, por exemplo, que a Europa somente se abriu à
possibilidade de reconhecimento do valor de outras culturas quando se
encontrava em situação de iminente perda de sua identidade medieval e, por
isso, hesitante quanto às possibilidades de seu futuro e duvidando de si mesma.
assim pode ver e conceber outros povos, ainda que no plano puramente
23 Antropometria: uma das cnicas da antropologia física que consiste em um sistema convencional de medir e
realizar observações no corpo humano, no esqueleto e nos demais órgãos, utilizando procedimentos adequados e
científicos. (op. cit., pág. 69).
24 Aceitando a provocação da epígrafe, é bom que se diga: não obstante a objeção por parte de alguns teóricos e
da certeza de que a Antropologia, como ciência, nasceu a partir da grande revolução cultural inaugurada com o
iluminismo no século XVI e cujo apogeu se deu no século XVIII, o certo é que desde a Antiguidade Clássica o
anseio de saber antropológico perpassa a curiosidade humana, vez que, desde que o ser humano pensou sobre si
mesmo e sobre sua relação com o outro, pensou antropologicamente.
37
teórico, como variedades humanas, cada qual com seus próprios valores e
significados.
25
No mesmo passo das outras ciências humanas que têm no homem e na
humanidade os seus objetos de estudo, cada qual destacando um ou alguns
aspectos, parte ou dimensão humanas, a Antropologia toma-os em sentido
integral de homem, mulher e coletividade, mas também sob o enfoque de
espécie da natureza e ser da cultura e da razão.
26
É a ciência que mais expressa a busca humana por compreender as
eternas queses que permeiam nosso intelecto desde tempos imemoriais
sob um ponto de vista totalizante: Quem somos? De onde viemos? Porque
somos o que somos? O que há de comum e de distinto entre nós? É a busca
humana por responder as questões sobre sua origem e natureza. Através dos
estudos antropológicos conhecemos melhor a nós mesmos e aos outros.
Estamos em busca da compreensão dos elementos que compõem a própria
natureza humana.
27
Em França de 1895, com a publicação da obra Regras do Método
Sociológico, Émile Durkheim elege os fenômenos sociais como objeto da
investigação sócio-antropológica, episódio que marca o início da linhagem
francesa da Antropologia, a qual tomaria os fatos sociais com a complexidade
que suplantava o entendimento da época e, juntamente com Marcel Mauss, esse
autor toma as representações primitivas para elaboração da obra Algumas formas
primitivas de classificação, publicada em 1901.
Contemporaneamente à Antropologia Francesa, nasce nos Estados Unidos
da América, a partir dos estudos de Franz Boas, o relativismo cultural e, na
Inglaterra, floresce o funcionalismo, inspirado na obra de Durkheim, que
enfatiza o trabalho de campo, com a observação direta do participante, forma de
25 Mércio Pereira Gomes, op. cit., págs. 11 a 31.
26 Idem.
27 Rossano Carvalho Nunes, in Antropology. Instituto Grupo Veritas de Pesquisa em História e Antropologia
(2007).
38
apreender na sua totalidade o conhecimento de determinada cultura,
privilegiando o paralelismo entre as sociedades humanas e os organismos
biológicos. Paralelamente a tudo isto, Claude Lévi-Strauss inaugura, na década
de 1940, a Antropologia Estrutural, centralizando o debate na idéia de que
existem regras estruturantes das culturas na mente humana, assumindo que essas
regras constroem pares de oposição em função da organização do sentido. Como
fundamento de sua teoria, vi-Strauss se vale de duas fontes primordiais, a
saber: a corrente psicológica de Wilhelm Wundt e o trabalho no campo da
lingüística, denominado Estruturalismo, de Ferdinand Saussure, além das
influências advindas de Durkheim, Jakobson, Kant e Marcel Mauss.
I.2. A Antropologia Biológica
A diferença marcante entre a matéria viva e
a matéria inanimada é que a matéria viva
reage a estímulos de maneira a aumentar
suas probabilidades de sobrevivência. (...) É
igualmente característica da ameba, essa
pequena massa gelatinosa que fica na raiz
da árvore genealógica animal, como do
homem, que se empoleirou nos mais altos
galhos. (Ralph Linton)
28
Através da Antropologia Biológica procura-se compreender o homem
como ser biológico, indagando sobre sua origem, evolução, variações e
constituição física, em busca do desenvolvimento do conhecimento enfatizado
28 In O homem: Uma introdução à antropologia, onde complementa: “Nos organismos unicelulares como a
ameba, todas as partes do indivíduo são sensíveis a todas as espécies de estímulos e o indivíduo todo lhe
responde. Em organismos ligeiramente mais complexos em que algumas células se ligaram para proveito mútuo,
existe uma especialização de funções. As células superficiais recebem e transmitem os estímulos, enquanto
células internas reagem para produzir as modificações necessárias à sobrevivência do organismo.” (pág. 80).
39
nas características fisicobiológicas das populações humanas, tanto antigas como
modernas, destacando, ainda, a relação entre biologia e cultura.
29
O blico, de um modo geral, toma contato com a Antropologia através
de noticiários, pela imprensa em todas as suas modalidades, o sendo rara a
exposição ou referência a documentários científicos dessa área, tornando-se
compreensível a imagem corriqueira que se tem dessa ciência, no mais das vezes
associada às escavações arqueológicas, à busca da origem do homem, à
comparação deste com os macacos, ao poder do instinto sobre a cultura e a
civilização, até porque esses foram, por certo, os primeiros assuntos desse
campo a seduzir o interesse do blico e ados pesquisadores, quando dos
tempos iniciais desse saber.
O mundo todo se mobilizou em discutir e se inteirar da notícia sobre a
descoberta de um certo esqueleto no vale de Neander, na Alemanha de 1856, o
qual, chamado homem de Neanderthal, fora proposto como um ancestral
humano, tornando-se o elo perdido entre o homem e os grandes símios. Logo a
seguir, a mais contribuir para esse imaginário coletivo em torno da nossa
origem, dá-se a publicação das obras Da origem das escies através da seleção
natural (1859)
30
e A descendência do Homem (1871)
31
, ambas do biólogo inglês
Charles Darwin. A partir daí, estimulada pela teoria evolucionista, iniciava-se
uma mudança radical na forma de se pensar a diversidade das escies da
natureza e o sentido científico da vida. Nascia a Antropologia Biológica,
segundo a qual:
29 Cf. Rossano Carvalho Nunes, idem.
30 Evolução das espécies. Título original: On the origin of species by means of natural selection or the
preservation of favoured races in the stuggle for life (em português: “Sobre a origem das espécies por meio da
seleção natural ou A preservação de raças favorecidas na luta pela vida). Londres, 24 de novembro de 1859. O
título foi simplificado para The origin of species a partir da 6ª edição, em 1872.
31 Título original: The descent of man and selection in relation to sex.
40
[...] o homem é visto e definido como um ser da natureza que
evoluiu fisicamente até chegar, uns 80.000 anos (a partir de seu
surgimento cerca de 200.000 mil anos) à condição atual, desde então
praticamente sem mudanças essenciais, a não ser aquelas derivadas e
adaptações físicas aos quatro cantos da Terra.
32
A esse prosito, aliás, cumpre anotar que durante o s de Fevereiro de
2009 foi divulgado pela BBC Brasil que cientistas do Reino Unido, liderados
pelo pesquisador Matthew Bennett, encontraram pegadas humanas de cerca de
1,5 milhões de anos, nas proximidades de Ileret, no norte do Quênia, as quais
revelam que os pés e o modo de andar de alguns dos primeiros hominídeos
eram bem parecidos com o do ser humano moderno. As pegadas, atribuídas ao
Homo erectus, apresentavam sinais de dedos pronunciadamente arqueados,
curtos e alinhados, além de o tamanho e espaçamento entre elas refletirem
altura, peso e modo de caminhar idênticos ao do homem atual. Embora
admirável, essa descoberta, publicada na revista Live Science
33
, não identifica
as pegadas mais antigas pertencentes a um membro da linhagem humana, posto
que marcas do Australopithecus afarensis, encontradas em Laetoli, na Tanzânia,
em 1978, datam de 3,7 milhões de anos. A conquista arqueológica dos ingleses,
no entanto, é uma importante peça para mapear a evolução dos humanos
modernos, tanto em termos de fisiologia como na forma como o Homo erectus
se relacionava com seu meio ambiente. O Homo erectus foi um grande salto na
evolução, demonstrando uma maior variedade de dieta e de habitat, e foi a
primeira espécie da linhagem humana a sair da África, cerca de 200.000 anos
atrás, em busca de alimentos que se escasseavam naquele continente.
34
35
32 Mércio Pereira Gomes, op. cit., págs. 16/17.
33 Live Science é o nome de uma das mais prestigiadas revistas científicas do mundo. Foi fundada em 1880 e é
publicada pela American Association for the Advancement of Science (AAAS). Seus artigos são submetidos a
processo de revisão paritária e sua tiragem semanal é de 130 mil exemplares, além das consultas on line, o que
eleva o número estimado de leitores a 1 milhão.
34 Colhido em UOL – Ciência e Saúde - BBC Brasil.com - 27/02/2009 - 08h36.
41
A propósito de tal descoberta, rememoram-se os escólios de René Dubos,
segundo os quais o homem é produto da hereditariedade e do ambiente em que
cresce, vive e em que cresceram seus ancestrais e que, embora a História
comece convencionalmente com o período dos mais antigos documentos
escritos, ou seja, na época da civilização sumeriana, cerca de 6.000 anos,
tantos são os artefatos bem preservados e conservados da Idade da Pedra que
fornecem hoje informações precisas sobre a vida humana, que o período pré-
literário deve ser incluído na história da sociobiologia da Humanidade.
36
Segundo esse autor:
A variedade de acabamento e a existência de modelos para vários
tipos de uso indicam, melhor do que palavras jamais poderiam, que o
35 Importante lição sobre o quadro evolutivo do Homo Sapiens pode ser obtido na obra de rcio Pereira
Gomes (Antropologia: ciência do homem, filosofia da cultura. São Paulo: Contexto. 2009), em que o autor
assinala:”Um dos quadros mais cambiantes da Antropologia Biológica é o da reconstituição da evolução da
linhagem humana. A cada momento os resultados de novas pesquisas arqueológicas parecem mudar
radicalmente aquilo que se tinha por certo alguns meses antes. O mesmo se dá no campo da Biologia Molecular,
que tanto tem contribuído para se entender esse processo através dos estudos sobre a evolução da mitocôndria do
DNA. muita divergência de opinião entre os antropólogos, e mesmo quando alcançam um consenso mudam
na primeira nocia de novas descobertas. Mas uma coisa até agora é certa. Homo sapiens e toda a sua linhagem
surgem e evoluem na África. Assim, o quadro que se apresenta aqui é apenas o estado da arte em agosto de
2007, podendo mudar em setembro ou em 2008. Homo sapiens é o resultado de um processo evolutivo que
começa há uns seis milhões de anos (6 Maa) quando nosso primeiro ancestral, o Australopithecus, desmembra-se
de uma família mais ampla que incluía os chimpanzés. Antes, por volta de 10Maa, os dois haviam se
desmembrado de uma linhagem que continha os gorilas e os orangotangos. Os Australopithecus tinham uma
postura ereta ou semi-ereta, e isso é o que mais os distingue dos chimpanzés, que o tamanho de seus cérebros
era quase igual, em torno de 400 cc. Os Australopithecus permaneceram na Terra até cerca de 1,4 Maa e tiveram
rias espécies, uns mais robustos e outros mais graciosos. Dos graciosos, provavelmente o Australopithecus
africanus é que surgiu o primeiro hominine do gene Homo. Isso por volta de 2,5 Maa. Da primeira fase do
nero Homo se desenvolvem ao menos duas espécies, o habilis e o rudolphensis, e talvez do habilis, já com o
uso de utensílios de pedras, surgem ao menos três espécies: erectus, ergaster e heidelbergensis, todos por volta
de 1,9 Maa. Todas essas espécies se espalharam da África para a Europa e Ásia e conviveram entre si. Homo
erectus sobreviveu no sudeste asiático até pelo menos 53 mil anos (53 Maa). Em algum momento, por volta de
200 Maa, surgem duas espécies muito próximas em termos de tamanho do crânio e capacidade linguística, o
Homo neanderthalensis e o próprio Homo sapiens. Alguns antropólogos consideram o neanderthal uma variação
do Homo sapiens, outros, seu precursor. De todo modo, eles conviveram e provavelmente disputaram entre si até
28 Maa. Daí por diante não mais sinal de neanderthal. A não ser que o Homem das Montanhas seja um
sobrevivente! Homo sapiens alcançou a Austrália por volta de 60 Maa, parece que ainda sem arco e flecha, mas
chegou às Américas, via Estreito de Behring, que ligava a Sibéria ao Alasca, por volta de 35 Maa, já armado de
arco e flecha. Por volta de 12 Maa já havia grupos humanos na ponta da América do Sul e em todas as partes do
mundo.” (sic - págs. 18/19).
36 “O comportamento não se fossiliza e os encadeamentos reais desaparecem quando o semi-homem do fim do
período Plioceno e princípio do Pleistoceno se extingue. Mas é possível mostrar que o comportamento humano e
o comportamento animal têm tanto em comum que a lacuna deixa de ter grande importância. (In Ralph Linton, O
homem: Uma introdução à antropologia, pág. 80).
42
homem da idade da pedra tinha dominado muitas habilidades e
desenvolvido uma organização familiar e social complexa.
37
E adverte:
A condição humana do homem pré-histórico é de relevância direta
para nossas próprias vidas, porque dele herdamos a maior parte de nossas
características fisiológicas e mentais e com ele compartilhamos as mesmas
necessidades fundamentais. Muitos aspectos da vida moderna são
profundamente afetados pelas forças que moldaram o Homo Sapiens e sua
vida no Paleolítico Superior ou Antiga Idade da Pedra, há mais de
100.000 anos.
38
O autor acrescenta, ainda, que:
O Homo Sapiens não difere dos animais tanto pela sua habilidade
para aprender quanto pelos tipos de coisas que aprende, particularmente
pelo acúmulo de suas experiências sociais no decorrer dos empreendimentos
coletivos ao longo de milhares de gerações. Em outras palavras, a espécie
humana fica melhor caracterizada pela sua história social.
39
As referências acima têm o prosito de despertar a atenção para a
constatação em torno da qual se reúnem em consenso os antropólogos e
cientistas sociais, de acordo com a qual vivemos hoje o processo de excepcional
acumulação cultural de cerca de seis milhões de anos, assim entendidos os
padrões de comportamento desenvolvidos historicamente como reação conjunta
a estímulos impostos pelo meio ambiente, pelos próprios indivíduos e pelo
intercâmbio cultural e socialmente transmitidos de geração em geração.
Rossano Carvalho Nunes, graduado em História pelo Centro Universitário
do Vale do Itajaí, em Santa Catarina, possui especialização em História Social
pela FUCAP, com ênfase em Antropologia Cultural e Biogica, e Coordenador
do Grupo Veritas de Pesquisa em História e Antropologia, alinhava:
37 Um animal tão humano, pág. 39.
38
Idem.
39
Idem.
43
O padrão de respostas (...) repetido diversas vezes no decorrer da
vida social gerando os padrões de comportamento, valores éticos e sociais,
regras de convivência, religiões entre tantos outros complexos (...) vão
caracterizando uma sociedade” de sorte que, “... a cultura é, então,
diretamente produzida através das relações sociais e respostas-criativas
encontradas por uma sociedade e constituída num sistema simbólico
compreendido e compartilhado por seus integrantes. O desenvolvimento das
sociedades é altamente dinâmico, estando sujeito a uma grande variedade de
estímulos. A cultura, portanto, é trabalhada constantemente no decorrer do
tempo através dos constantes estímulos. O homem é um produto não de
fenômenos biológicos, mas do meio cultural onde foi socializado, sendo
herdeiro de um processo acumulativo de experiências culturais de seus
antepassados.
40
Isto levou Dubos, que foi professor de microbiologia e patologia
experimental da Universidade Rockfeller, na cidade de Nova York EUA, a
discorrer em sua obra sobre o que denomina O Registro Genético de
Experiências Passadas
41
e, como exemplo cita:
Todos os organismos vivos retêm provas estruturais e funcionais de
seu passado evolutivo remoto. Sejam quais forem as condições sob as quais
nasceram e se desenvolveram, suas respostas aos estímulos são sempre
afetadas pelas experiências do passado, que estão incorporadas em sua
constituição genética. As etapas evolutivas, através das quais o homem
atingiu o nível de Homo sapiens, explica, por exemplo, os motivos por que a
estrutura de sua espinha dorsal pode ser comparada à dos peixes primitivos,
ou porque a salinidade de seu sangue ainda reflete a composição da água do
mar da qual a vida terrestre emergiu originariamente. O espessamento da
sola do pé, em relação à pele do resto do corpo, constitui, provavelmente,
uma expressão da lembrança biológica do passado, uma vez que esse
processo começa antes que o organismo experimente qualquer estímulo de
atrito e é perceptível mesmo dentro do útero. Parece certo admitir que, à
medida que os ancestrais protoanfíbios do homem, ocasionalmente, saíram
da água e impulsionaram-se sobre a terra com seus lobos em forma de
nadadeiras, estes óros reagiram criando um espessamento insignificante
da parte da pele que entrava em contato com o solo, da mesma forma que
40 In "Anthopology", op. cit.
41 O Autor assevera que Em seu sentido mais lato, a palavra ´evolução´ significa as transformações
progressivas de um sistema no decorrer do tempo. (...) A admirável capacidade que os organismos vivos têm de
aprender por meio da experiência e de transmitir esse conhecimento a sua progênie é grandemente facilitada por
certas características peculiares de seu equipamento genético. (...) Eventualmente, uma alteração ambiental leva
a uma mudança de hábitos, que, por sua vez, modifica certas características do organismo. Mesmo quando
repetidas por diversas gerações, tais modificações não são realmente hereditárias, não obstante possam favorecer
mudanças evolutivas. A razão disso é que a permanência continuada num ambiente particular tende a favorecer a
seleção de mutantes adaptados ao mesmo. Ocasionalmente, tais mutações o incorporadas à estrutura genética
da escie envolvida”. (In op. cit.,gs. 63/65).
44
nossa pele espessa, quando sujeita a atrito. Quando a locomoção sobre a
terra se tornou mais comum e a capacidade de desenvolver calosidades nos
pés se tornou, em consequência, importante para o êxito biológico, os
indivíduos mais bem dotados com essa capacidade provavelmente tiveram
uma oportunidade melhor de sobreviver. A tendência a desenvolver
calosidades tornou-se então inscrita no código genético.
42
Tudo isto nos impõe admitir que constituímos a resultante do processo
evolutivo do homem pré-histórico, vez que dele herdamos a maior parte de
nossas características fisiológicas e mentais e com ele compartilhamos as
mesmas necessidades fundamentais, de modo que o passado biológico sobressai
nos atributos anatômicos e fisiogicos, especialmente se os associarmos a
padrões de comportamento que se submetem ao controle de secreções
hormonais que, por sua vez, devem estar relacionadas com mudanças
ambientais.
Esse o ponto de partida que nos interessa para demonstrar que o homem
traduz a síntese da sua interação com o meio ambiente e, não obstante o fato de
ser o único animal capaz de moldar a natureza às suas necessidades e interesses,
prossegue reagindo aos estímulos, mesmo que de modo inconsciente,
exatamente como qualquer outro organismo vivo. Nesse sentido, mesmo dotado
de capacidade de controlar o meio externo, o que lhe possibilita iluminar seus
aposentos durante a noite, aquecê-los durante o inverno ou mesmo refrigerá-los
durante o verão, garantir suprimento amplo e variado de alimentos durante o ano
inteiro e, se quiser, tornar iguais todos os dias, ainda assim não se emancipa do
meio em que vive, pois todas as funções do seu organismo continuarão a flutuar
de acordo com ritmos determinados, associados com os movimentos da Terra e
da Lua, relacionados entre si com o Sol, vez que suas atividades hormonais
exibem ritmos ligados aos do cosmos.
42 Dubos, op. cit., pág. 69.
45
Com efeito, as reões fisiológicas e comportamentais do homem a
qualquer situação variam da manhã para a noite e diferem na primavera e no
outono, tanto que, segundo os historiadores, Napoleão dizia que poucos
soldados são corajosos às três da madrugada, quando as imaginações selvagens e
os temores inspirados pela noite são fatores que explicam porque o organismo
humano, influenciado por alterações fisiológicas associadas com a escuridão,
escapa do controle da razão.
43
As variações ambientais certamente afetam a maioria dos seres vivos,
dentre eles o homem, ainda quando temperatura e iluminação estejam
artificialmente controladas em nível constante.
A respeito de que todos os aspectos da vida têm determinantes históricos
que se aplicam também a padrões comportamentais, colhemos lição sobre o fato
de que até mesmo os organismos mais simples diferem da matéria inanimada,
em virtude de suas atividades serem condicionadas pelo seu passado.
Vejamos um exemplo:
[...] o ouriço-do-mar exibe uma manifestação de lembrança
biológica, ao responder à repentina passagem de uma sombra sobre seu
corpo, apontando seus espinhos na direção de onde vem a sombra. Tal
resposta tem valor de defesa, que é potencialmente útil, porque ajuda a
proteger o animal dos inimigos que poderiam estar projetando a sombra.
Mas, na realidade, refere-se a uma experiência passada, simbolizada pela
sombra – a aproximação eventual de um predador – mais do que sua ppria
presença. A reação do ouriço-do-mar à sombra demonstra que, mesmo no
caso de animais relativamente primitivos, grande parte do comportamento é
condicionada por experiências passadas da espécie que geraram padrões
instintivos de reação.
44
Parece inexorável, pois, que, transportada a afirmação para a vida
humana, prosseguimos, em nosso cotidiano, reagindo fisiologicamente à
presença de seres vivos estranhos e especialmente à de competidores humanos
43 Cf. René Dubos, op.cit., pág. 71.
44 Idem, pág. 72.
46
como se estivéssemos em perigo de sofrer agressão física por parte dos
forasteiros, isto com todas suas implicações bioquímicas ou hormonais, como
reminiscência do tempo em que a sobrevivência do homem primitivo, ao
enfrentar animal selvagem ou um homem estranho, dependia de sua habilidade
de mobilizar os mecanismos do corpo que o capacitava a empenhar-se
efetivamente em luta física ou a fugir tão rapidamente quanto possível.
45
Imersos ainda nas lições de antropologia de Ralph Linton, o podemos,
aqui, prescindir de reproduzir importante registro oferecido pelo mesmo em
torno da mentalidade humana, em comparação com a mentalidade animal. Anota
o autor:
Em organismos (...) complexos, inclusive o nosso, a especialização
de funções (celulares) ainda é maior. Todos esses organismos começam
como simples agregações de células que se tornam diferenciadas, formando
uma camada superficial altamente sensível aos estímulos, e uma camada
interior menos sensível. À medida que o indivíduo se desenvolve, uma parte
desta camada superficial permanece no exterior e se desenvolve na pele e
nos rios óros dos sentidos. Outra é dobrada e imersa entre as células
menos sensíveis, transformando-se no sistema nervoso. A parte imersa da
camada superficial senvel originária especializa-se na transmissão de
estímulos, exatamente como a parte exposta se especializa na sua recepção.
Nos animais organizados sobre um princípio radial, tais como as medusas
(phylum Coelenterata) e formas congêneres, os nervos formam uma rede
contínua. Nos organizados sobre linhas axiais
46
, que incluem todos os seres
longos, bilateralmente simétricos, desde os vermes até os homens, existe um
feixe principal de nervos que percorre a linha central do animal, com
ramificações que se desviam para os vários órgãos. Segundo nosso ponto de
vista, estes órgãos podem ser divididos em duas classes: os receptores, como
os olhos, nariz e ouvido, que estão em contato com o mundo exterior e dele
recebem os estímulos; e os efectores
47
, como os músculos, que agem para
45 Ibidem, pág. 70/72.
46 Axial: adj. Relativo ou semelhante a eixo; que serve de eixo. (In Dicionário Brasileiro Globo. 21ª Ed.
Francisco Fernandes, Celso Pedro Luft, F. Marques Guimarães. São Paulo: Editora Globo S/A., 1991, verbete
“axial”).
47 De acordo com suas funções, os neurônios podem ser classificados em três tipos: receptores ou sensitivos
(eferentes), motores ou efetuadores (aferentes) e associativos ou intraneurônios. Por “efectores” devem ser
entendidos os neurônios aferentes, ou seja, aqueles com aptidão para transmitir os impulsos motores. São os
neurônios que recebem as informações do rebro (as respostas aos estímulos captados pelos neurônios
receptores) e as repassam para os músculos, glândulas, etc. Exemplo: Ao encostar com a ponta do dedo em uma
agulha, as células sensoriais presentes na pele do dedo captarão essa “espetada” e transmitirão essa informação
para o cérebro, utilizando-se dos neurônios receptores e de conexão. O cérebro irá processar a informação e irá
dar uma ordem para que o músculo responsável pelo dedo se contraia, a fim de eliminar o perigo de ser
47
produzir modificações que adaptam o indivíduo a seu ambiente imediato. A
função dos nervos é conduzir os estímulos desde os receptores a os
efectores, aproximadamente da mesma maneira pela qual uma linha
telefônica leva mensagens de uma a outra pessoa.
A ligação entre receptores, condutores e efectores é conhecida por arco-
reflexo e é a base mecânica de comportamento em todos os organismos
suficientemente adiantados para ter sistemas nervosos. Nos organismos que
possuem sistemas nervosos axiais, a estrutura da parte condutora deste
circuito é altamente complicada. Os nervos que ligam receptores e efectores
são compostos de uma série de células especializadas, os neurônios, cujas
extremidades se aproximam mas não se ligam umas às outras. Os intervalos
entre os neurônios são chamados sinapses e desempenham papel vital em
todas as formas mais complicadas de comportamento. Os neurônios estão
organizados de maneira a levar impulsos em uma única direção. Tocando
em um dos receptores, o impulso provocado por um estímulo passa pelo
neurônio de ligação, à velocidade de cerca de cento e vinte metros por
segundo, até chegar a uma sinapse, que ele salta, passando para outro
neurônio; e assim por diante, a alcançar o órgão efector
48
-. Existe nas
sinapses uma espécie de resistência que afeta o impulso o qual pode ser
diminuído ou mesmo interrompido nesse ponto. Pode também ser desviado
para qualquer um dos vários neurônios, se suas extremidades estiverem
suficientemente próximas, ou pode desdobrar-se de maneira a continuar
percorrendo simultaneamente rios neurônios até chegar a vários efectores.
Mas a resistência oferecida pelas sinapses aos impulsos diminui com o uso.
Quanto mais facilmente tiver sido saltada uma sinapse, tanto mais fácil para
o impulso seguinte saltá-la. Esta repetição de passagem através das sinapses
é base neurológica da aprendizagem e da formação de hábitos.
Nos organismos mais complexos, como o nosso, há uma recepção constante
de estímulos variados e às vezes contrários. Os impulsos que surgem desses
estímulos devem ser selecionados e dirigidos para assegurar a espécie de
reação mais útil ao corpo todo. Os condutores dos vários arcos reflexos são
portanto orientados através de vários centros reflexos, que desempenham de
certo modo as funções de central telefônica. Nestes centros, as extremidades
de muitos são reunidas de maneira que os impulsos que chegarem possam
ser selecionados e transferidos de uma para outra linha, isto é, distribuídos.
A maneira pela qual os centros reflexos distinguem entre os impulsos,
inibem alguns e dirigem outros constitui ainda um profundo segredo; mas é
a mesma nos sapos e nos filósofos. O mecanismo dos arcos e centros
reflexos é o mesmo em todos os animais portadores de sistema nervoso
axial.
O feixe-mestre de um sistema nervoso axial (espinha dorsal dos
vertebrados) é em si mesmo um centro reflexo. Por ele, todos os impulsos
são encaminhados em seu trajeto, desde o receptor até o efector. Mas
existem dentro deste feixe áreas especializadas que têm poderes superiores
de discriminação. Estas áreas podem ser comparadas a centros telefônicos
perfurado. Essa última parte é feita pelos neurônios efectores. (Definição capturada em
http://www.infoescola.com/biologia/tecido-nervoso/, em 03/03/2010, 16:11 hs.).
48 Músculo ou glândula. Órgão de resposta. (cf. Lannoy Dorin. Enciclopédia de Psicologia Contemporânea.
Dicionário Ilustrado de Psicologia. vol. São Paulo: Livraria Editora Iracema Ltda., 1975, g. 82, verbete:
“efetor”).
48
distritais, em contraste aos centros locais. Nos animais axialmente
organizados, um destes centros reflexos superiores está sempre situado na
extremidade anterior do feixe principal de nervos, na cabeça, onde fica em
contato estreito com os órgãos especializados dos sentidos, também ali
situados. Nos vertebrados, este centro reflexo anterior, o encéfalo, domina
os outros. Continuando o símile telefônico, o encéfalo é uma espécie de
supercentral que deixa as questões rotineiras entregues aos centros distritais
situados na espinha dorsal e noutros pontos, e que lhe enviam os chamados
de significação incerta, ou que pareçam requerer atenção especial.
O domínio do enfalo sobre os outros centros reflexos era nos primeiros
vertebrados muito menos acentuado que nos últimos. Em alguns
dinossauros, por exemplo, o encéfalo era realmente menor do que o centro
reflexo situado na extremidade posterior do corpo. Um dos mais importantes
traços da evolução vertebral é o aumento do tamanho encefálico,
relativamente ao tamanho do corpo e dos outros centros reflexos. A par
deste, houve um aumento permanente de complexidade da estrutura
encefálica e de especialização de funções no interior do encéfalo.
Nos vertebrados inferiores, o encéfalo funciona principalmente na recepção
direta dos estímulos vindos dos órgãos sensoriais e na formação de
ajustamentos automáticos a estes estímulos. No nível anfíbio, aparece nova
divisão do encéfalo, o cérebro, que se especializa em reações mais
complexas e seletivas. À medida que avançamos na escala evolutiva, o
cérebro aumenta de tamanho em relação às outras partes do encéfalo e
assume cada vez mais a função de orientar o indivíduo. Nos primatas e
especialmente no homem, o cérebro tem muito mais imporncia que o resto
do encéfalo e cuida das atividades do organismo, com exceção de algumas
atividades simples e necesrias como a respiração, a deglutição, a
modificação do tamanho da pupila ocular.
O cérebro é constituído por inúmeros neurônios assentados num leito de
tecido conjuntivo
49
. Existem pelo menos 10.000.000.000 de neurônios no
encéfalo de um ser humano normal. Cada neurônio é separado de seus
vizinhos pelas sinapses. Os caminhos percorridos pelos impulsos através
deste labirinto de neurônios e sinapses não estão organizados por ocasião do
nascimento, mas se estabelecem pelo processo, descrito, de repetição do
percurso. Toda vez que um impulso, em seu percurso do receptor para o
efector, atravessa o cérebro, numerosos neurônios e sinapses são
empregados e alguma espécie de modificação na estrutura cerebral.
Estas modificações são a base estrutural da memória e do hábito do
indivíduo. O cérebro é o órgão especializado da aprendizagem e das formas
mais elevadas de seleção e integração de estímulos, a que chamamos
pensamento.
O sistema nervoso é a base do comportamento e, tanto quanto nos é
possível determinar por qualquer meio atualmente à nossa disposição, nada
existe de distintivo no sistema nervoso humano. Neste sistema, exatamente
49 O tecido conjuntivo ou tecido conectivo, amplamente distribdo pelo nosso corpo, tem como principal
função o preenchimento de espaços vazios e fazer a ligação de órgãos e de tecidos diversos e entre outros, como,
preenchimento, sustentação, transporte e defesa e são responsáveis pelo estabelecimento e manutenção da forma
do corpo. São tipos de tecido conjuntivo a derme, o tecido ósseo, o tecido liso e o esquelético. (Capturado em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Tecido_conjuntivo, em 03/03/2010, às 16:49 hs).
49
como em qualquer outro ponto de sua estrutura física, os homens se
enquadram nos moldes gerais dos mamíferos. Até mesmo o encéfalo
humano é quase idêntico ao dos antropóides. Precisamos admitir que os
elementos estruturais e menicos que servem de fundamento ao
comportamento são os mesmos nos homens e nos animais. Vejamos se o
emprego dado a este equipamento difere em ambos os casos. (destacamos).
Todo comportamento consiste em reflexos, isto é, combinações de
estímulos e de reação, que a estrutura e os traços que acabamos de descrever
tornam possíveis. Os reflexos são de dois tipos: incondicionados e
condicionados. Nos reflexos incondicionados o percurso do impulso, vindo
do receptor para o efector, está estabelecido quando o indivíduo nasce. O
encadeamento dos elementos no interior do arco reflexo é hereditário, como
qualquer outra parte da estrutura sica do indivíduo. Nos reflexos
condicionados o percurso do impulso vindo do receptor para o efector não
se acha determinado por ocasião do nascimento. O encadeamento dos
elementos no interior do arco reflexo surge como resultado da seleção e
direção dos impulsos dentro dos centros reflexos, junto com o uso gradativo
dos percursos através das sinapses. O reflexo incondicionado é o
fundamento do comportamento automático, isto é, instintivo; o reflexo
condicionado é o fundamento do comportamento adquirido. Todos os
animais possuidores de sistemas nervosos têm reflexos de ambos os tipos,
mas a relação que os reflexos de cada tipo mantêm com o comportamento
total do indivíduo varia tremendamente com a espécie. Por exemplo: os
insetos devem a maior parte de seu comportamento aos reflexos
incondicionados, ao passo que o homem deve a maior parte do seu aos
reflexos condicionais. (destacamos).
Acreditava-se antigamente que o comportamento animal era controlado
pelo instinto, o comportamento humano por uma qualidade misteriosa
e puramente humana chamada pensamento. Hoje, nenhum psicólogo
mantém este ponto de vista. O que chamamos pensamento é, na realidade,
parte integrante do comportamento, pois que não pode existir atividade
mental sem atividade muscular de alguma espécie. A atividade muscular
talvez se reduza ao ponto de poder ser denunciada pelos mais delicados
instrumentos, mas existe sempre. Pensar é questão de arcos reflexos, tanto
quanto o piscar. O pensamento baseia-se numa combinação de reflexos,
condicionados ou incondicionados, e na seleção e direção dos estímulos. (os
destaques são nossos)
Num estudo comparativo das atividades mentais dos homens e dos animais,
o investigador é prejudicado desde o princípio pelo fato de que com os
animais não se pode recorrer ao método introspectivo. Se um estudioso do
assunto pudesse durante meia hora ser um rato branco ou um chipanzé,
poderia dar-nos, a respeito do que se passa no interior do espírito dos
animais, uma descrição mais clara que aquela que teríamos probabilidade de
obter durante vinte anos de trabalho experimental. Na realidade, só do
comportamento dos animais podemos deduzir seus processos mentais. Se
abordarmos do mesmo ângulo os processos mentais humanos, os resultados
serão quase idênticos.
Tomemos em primeiro lugar o assunto da aprendizagem, isto é, do
estabelecimento de reflexos condicionados. Em experiências feitas na
50
Universidade de Wisconsin
50
, submeteu-se a testes a capacidade dos ratos e
os estudantes de segundo ano para aprender labirintos. Os resultados não
revelaram diferenças importantes nos processos de aprendizagem de ambos
os grupos, embora os ratos se mostrassem um pouco melhores quanto à
velocidade em aprender. É claro que aprender labirintos constitui uma
espécie muito simples de problema, com uma solução dependente de
tentativa e de erro e do estabelecimento do bito pela repetição. Não
necessidade de estabelecer reações complicadas.
As mais interessantes experiências sobre aprendizagem dos animais, até a
época em que este livro foi escrito, são, talvez, as que estão sendo realizadas
pelo Dr. Wolfe, no Institute of Human Relations, da Universidade de Yale.
51
O Dr. Wolfe fez experiências com chipanzés novos, usando fornecedores
automáticos de alimento, que foram apelidados Chimpomats. Pela inserção
de fichas de pôquer nas máquinas, os chipanzés obtêm alimento.
Aprenderam não a inserir as fichas, mas a distinguir entre as fichas de
tamanhos e cores diferentes, usando cada tipo na máquina adequada e
inserindo duas onde isso fosse necessário. Aprenderam o processo,
primeiro, imitando seu instrutor humano e, depois, imitando uns aos outros.
Estabeleceram entre as fichas e o alimento associações tão fortes que se
esforçam tanto por obter as fichas quanto por obter o próprio alimento.
Quando nos seus alojamentos, onde não existem chimpomats, se espalham
fichas entre eles, escolhem as que têm valor e guardam-nas até serem
levados à sala onde estão os fornecedores automáticos. O mais forte também
toma as fichas do mais fraco, à moda humana.
Podemos dizer com segurança que se existem diferenças entre os processos
de aprendizagem dos homens e dos animais, estas diferenças o mais
quantitativas que qualitativas. Os homens talvez aprendam mais, ou mais
facilmente, mas aprende da mesma maneira. É na solução de problemas,
onde o indivíduo não teve oportunidade de aprender, que a superioridade
mental dos seres humanos é mais evidente; vejamos portanto se existem
diferenças fundamentais entre os processos de pensamento humano e
animal.
Tem-se sustentado que a “performance” superior do homem na solução de
problemas deve-se a que os homens dispõem de imaginão e de razão,
qualidades de que os animais são desprovidos. Segundo experiências
recentes, isto parece improvável. Imaginação é a capacidade de representar
no espírito situações que não estão presentes. Razão é a capacidade de
resolver problemas sem passar por um processo físico de tentativa e erro. A
razão o poderia existir sem imaginação, pois no raciocínio a situação tem
de ser compreendida e os resultados de certas ações têm de ser previstos.
Fazem-se tentativas e eliminam-se os erros, mentalmente. Se estudarmos do
mesmo ponto de vista objetivo o comportamento humano e o animal, parece
certo que, se reconhecermos no homem imaginão e razão, devemos
reconhecê-las também no animal.
50 Universidade e centro de pesquisas, a University of Wisconsin-Madison (EUA), também conhecida como
UW, foi fundada em 1848.
51 Terceira mais antiga instituição de ensino superior nos EUA, foi fundada em 1701 sob o nome de Collegiate
School. Trata-se de universidade privada e está situada em New Haven, Connecticut.
51
Quando os chipanzés novos apanham as fichas espalhadas numa sala onde
não existem chimpomats, escolhendo as que são utilizáveis nas máquinas e
rejeitando as não utilizáveis, demonstram imaginação, pois devem ter
alguma espécie de imagem mental da máquina e do uso a que as fichas se
destinam. Ainda mais: pelo seu comportamento em face das situações novas
para eles, devemos conceder-lhes pelo menos rudimentos de poder
raciocinador. Uma das mais conhecidas experiências empregadas para
determinar este fato, consiste em colocar uma banana no meio e um cano,
onde o chipanzé não pode alcançá-la de nenhuma das extremidades. Depois
de experimentar métodos diretos e convencer-se de que o inúteis, o
chipanzé tomará uma vara e empurrará a banana pelo cano, depois dará a
volta para o outro lado e apanhá-la (sic). Entre as primeiras tentativas
diretas e o uso da vara, haverá usualmente um período de inação física,
durante o qual o animal estará mentalmente apreendendo a situação.
Durante este período devem formar-se imagens mentais da banana em
várias posições não existentes e representações de vários métodos de obtê-la
em uma das posições representadas, testados” em oposição à experiência
anterior e depois rejeitados, pois que o chipanzé quando recomeça as
operações, usualmente parece ter idéia clara do que vai fazer. Ainda mais:
uma vez resolvido o problema, a solução é relembrada e a mesma coisa se
faimediatamente quando o chipanzé de novo tiver de enfrentar a mesma
situação. Os chipanzés podem mesmo dar um passo avante e adaptar uma à
outra duas varas, para obter um chuço
52
do tamanho necessário. Em certa
experiência, uma chipanzé, enfrentando o problema da banana e do cano e
recebendo um par de varas que podiam ser adaptadas uma à outra,
experimentou-as separadamente e depois desistiu e começou a brincar com
elas. Quando acidentalmente as varas se adaptaram, a chipan mostrou
sinais de excitação considerável, separou-as e tornou a reuni-las, usando-as
então para pegar a banana. Depois de pegá-la, seu interesse pelas varas
persistiu e ela continuou separando-as e juntando-as a que dominou o
princípio. É difícil perceber em que os processos mentais que servem de
base a esse comportamento diferem dos de um homem que faz uma
descoberta e compreende sua possível aplicação. Os chipanzés também
cooperam em projetos para obter alimento mostrando em suas ações queo
capazes de compreender tanto a situação básica quanto aquilo que os outros
chipanzés que estão trabalhando com eles estão tentando fazer.
Em todos os terrenos em que se podem aplicar testes exatos, os chipanzés
parecem ter os mesmos poderes mentais que as crianças humanas de três ou
quatro anos de idade. É portanto fortemente presumível que as diferenças
entre a mentalidade humana e animal sejam puramente quantitativas. O
chipanzé se detém em certo ponto de desenvolvimento mental, enquanto o
homem continua. Mas, como os chipanzés não podem dizer-nos o que se
está passando dentro de suas cabeças, o melhor que podemos fazer, por
enquanto, é rendermo-nos ao veredicto escocês “ainda não foi provado”.
Mesmo que haja diferenças qualitativas entre o pensamento humano e o
animal, são tantos os processos mentais que parecem ser os mesmos, que
52 Chuço: s m Vara ou pau armado com uma ponta aguda de ferro. (In Dicionário Brasileiro Globo. 2Ed.
Francisco Fernandes, Celso Pedro Luft, F. Marques Guimarães. São Paulo: Editora Globo S/A., 1991, verbete
“chuço”).
52
nenhum cientista poria em dúvida que o pensamento humano é um
desenvolvimento direto do pensamento animal. A inteligência humana,
como o cérebro que a produz, é resultado de certas tendências que se podem
reconhecer na evolução mamífera.
Ninguém pode negar que entre o pensamento humano e o dos Simiidae
existem diferenças quantitativas profundas. Os fatos são patentes demais
para que seja necessário ex-los. Ao mesmo tempo, mesmo as diferenças
quantitativas não devem ser exageradas. A complexidade das atividades
humanas normais, comparada com a dos animais, não nos fornece base
exata para medida. Tanto nos homens quanto nos animais a maior parte do
comportamento é questão de hábito. Tendo aprendido a fazer uma coisa,
podemos desde então fazê-la sem ter de pensar a seu respeito. Nossa
capacidade de pensar é posta em ação quando defrontamos situões
novas. O homem civilizado pode fazer mais que o selvagem porque teve a
oportunidade de aprender mais coisas. Todos os testes até agora aplicados
ao civilizado e aos selvagens parecem mostrar que a capacidade mental
inata de um e de outro é aproximadamente a mesma. Do mesmo modo os
homens têm oportunidades melhores de aprender que as dos Simiidae, o que
os coloca muito mais avante. O equipamento mental superior dos homens é
responsável pela existência desta abundância de coisas a serem aprendidas,
mas a abundância foi produzida por muitos cérebros que trabalharam
durante muitas gerações. Sozinho, nenhum espírito poderia criá-la. O filho
do homem civilizado, se crescesse em completo isolamento, estaria, pelo
comportamento, muito mais próximo de um dos Simiidae que de seu
próprio pai.
53
Esta transcrição, que, a nosso ver, traz em seu conteúdo o mérito que
dispensa escusas em virtude de ser extensa em demasia, robora a epígrafe que
inaugura este capítulo e pontifica como raiz única dos comportamentos os
estímulos presentes no ambiente e atuantes indistintamente sobre organismos
vivos, os quais reagem de acordo com características próprias mas
invariavelmente determinadas pela imperativa necessidade de sobrevivência.
Quanto ao homem, embora tenha evoluído como um animal social e de
não poder desenvolver-se plenamente e nem mesmo exercer de modo exitoso
qualquer função senão em associação com outros semelhantes, muitos aspectos
do seu comportamento vistos de início como incompreensíveis e a irracionais,
revelam-se significativos quando interpretados como respostas a estímulos
53 Op. cit., págs. 81/89.
53
ambientais, ou seja, como resultado que eram úteis quando surgiram durante o
desenvolvimento evolutivo e que persistiram como resposta fisiológica ou
mental a estímulos sociais que o homem experimenta. Exemplo marcante desta
conclusão, veja-se, como traço biológico herdado, a necessidade de controlar a
propriedade e de dominar seu semelhante tal como existe em diferentes formas
de territorialidade e de domínio de terras entre quase todas as sociedades
animais.
A cobiça do poder político, independente de qualquer aspiração de
recompensas financeiras ou materiais, tão comuns entre os homens, tem
igualmente protótipos no comportamento animal. Até o instinto de brincar e
certos tipos de expressão estética correspondem a necessidades biológicas
de uma forma ou de outra nas espécies animais e que sempre fizeram parte
da natureza do homem.
54
Portanto, dois aspectos concorrem para complementar o desenvolvimento
de todos os seres vivos, seja ele uma ameba, um micróbio, uma planta, um
animal ou o próprio homem, que são as expressões da hereditariedade e, o outro,
aquele que afirma a tese de que as experiências dos primórdios da vida moldam
os atributos físicos e mentais.
Segundo o que nos informa Erich Fromm, Freud partilhava dessa idéia. É
o que se pode observar através do seguinte excerto:
Como os chamados instintos sicos do homem, aceitos por
psicólogos que o precederam, a concepção de Freud sobre a natureza
humana era essencialmente um reflexo dos impulsos mais importantes que
podem ser encontrados no homem moderno. Para ele, o indivíduo de sua
cultura representava “o homem”, e as paixões e ansiedades que caracterizam
o homem da sociedade moderna eram consideradas como forças eternas
arraigadas na constituição biológica do homem.
55
Identificadas respectivamente como natureza ou como educação, todas
as características físicas ou mentais dos organismos vivos têm base genética ou
54 Ibidem, pág. 73.
55 Apud O medo à liberdade (Erich Fromm. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1960, pág.19.)
54
são influenciadas pelo ambiente, o que constitui uma verdade biológica segundo
a qual a influência modeladora e controladora dos fatores ambientais,
particularmente eficaz durante os períodos formativos da vida
56
é o duradoura
que comumente chega a determinar as características do adulto e alcança efeitos
muito am do que simplesmente condicionar padrões comportamentais, indo
afetar também os padrões emocionais, a capacidade de aprendizado, a taxa
inicial de crescimento, o porte definitivo do adulto, as exigências nutricionais, as
atividades metabólicas e a resistência a vários tipos de tensão.
57
Para reflexão, julgamos oportuno coligir o espanto do Professor Mário
Sérgio Cortella, manifestado acerca do condicionamento a que os sujeitos da
modernidade estão submetidos, numa clara postura de assentimento quanto às
limitações de nossa liberdade.
Diz o filósofo:
É preciso observar um fenômeno que explodiu nos últimos 20 anos:
uma criança dos centros urbanos, a partir dos dois anos de idade, assiste, em
média, três horas diárias de televisão, o que resulta em mais de 1.000 horas
como espectadora durante um ano (sem contar as outras mídias eletrônicas
como rádio, cinema e computador); ao chegar aos sete anos, idade escolar
obrigatória, ela assistiu a mais de 5.000 mil horas de programação
televisiva. Vamos enfatizar: uma criança, no dia em que entrar no Ensino
Fundamental, pisará na escola tendo sido espectadora de mais de cinco
mil horas de televisão! (...) Cinco mil horas!
58
56
As influências modeladoras e controladoras dos fatores ambientais durante os períodos formativos da vida o
conhecidas por “influências prematuras”.
57 Ibidem, págs. 74/76.
58 Op. cit., pág. 48.
55
I.3. Antropologia sócio-cultural
59
A antropologia sócio-cultural se ocupa do estudo das adaptações dos
grupos humanos, contemporâneos, antigos ou extintos, aos diversos estímulos
que encontraram ao logo de suas existências. A diversidade cultural humana,
portanto, constitui o objeto direto do estudo desta disciplina, posto que intenta,
através da especialidade, compreender o homem enquanto ser cultural e social,
centrando o estudo, pois, na sua produção cultural, agrupamentos e relações
sociais, comportamento e desenvolvimento social, tomando por base os sistemas
simlicos utilizados pelos agrupamentos humanos e suas dinâmicas. Tudo isto
faz da Antropologia uma ciência dinâmica, que atua nos mais diversos setores
do conhecimento humano, perpassando áreas das ciências humanas, sociais e
naturais, além de partilhar com ciências afins, como história, geografia humana,
genética, sociologia, geologia, primatologia, etc.
É nesse subcampo que são estudados aspectos como a Antropologia da
sica e Etnomusicologia, Antropologia das Religiões, Mitologia, Antropologia
Histórica, Etnografia e Etnologia, além de outros. Dois subcampos se
destacaram ao longo desses dois séculos de existência da Antropologia, os quais,
tamanha importância e contribuição, são considerados por muitos como campos
propriamente ditos – e não subcampos -, que são a arqueologia e a linguística.
I.3.1. Antropologia Arqueológica
A arqueologia é a investigação das sociedades humanas através dos
vestígios materiais deixados, os quais servem ao arqueólogo como fonte de
59 Acerca dos dados que se seguem em torno do assunto sob foco, conferir, por todos, Rossano Carvalho Nunes,
in Antropology.
56
interpretação que fomenta a contextualização dos elementos e o confronto
interdisciplinar, tudo com o propósito de se encontrar respostas que possam
servir ao conhecimento das sociedades estudadas.
A importância e complexidade dessa área pode ser intuída a partir da
constatação de que as sociedades ágrafas, que desapareceram sem deixar
registros escritos, podem ser conhecidas indiretamente a partir dos artefatos e
outros vestígios. Assim também em relação àqueles grupamentos sociais que,
embora fazendo uso da escrita, não estabeleceram comunicação direta com a
nossa civilização, em virtude do também desaparecimento do digo
comunicativo.
Foi assim, por exemplo, com as escavações arqueológicas que lograram
encontrar tábuas de argila com escrita cuneiforme da Mesopotâmia. Despontam,
aqui, duas modalidades de antropologia arqueológica: a p-histórica, que cuida
de estudar os grupos ágrafos (que não tinham escrita) e arqueologia histórica,
estuda os grupos dotados de escrita.
A bem demonstrar a vastidão do campo de pesquisa e a atualidade dos
assuntos que decorrem dessa atividade intelectual, tomemos como exemplo
recentíssima nova descoberta anunciada por arqueólogos israelenses neste ano
de 2010. Segundo eles, uma equipe da Universidade Hebraica de Jerusalém, em
escavações feitas em Tel Hazor, norte de Israel, tio arqueológico declarado
Patrimônio da Humanidade em 2005, encontrou o fragmento de uma tábua
cuneiforme, com escritos na língua acádia, usada na antiga Mesopotâmia.
Semelhanças com o conteúdo e datação (entre os séculos XVIII e XVII a. C.),
levam a crer tratar-se de um novo fragmento do Código de Hamurabi, um dos
mais antigos conjuntos normativos escritos da humanidade, produzido por volta
do ano de 1750 a. C., inclusive referido neste trabalho.
57
De ver, assim, que a imagem que se tem do profissional da antropologia
arqueológica, no mais das vezes associada exclusivamente às escavações, é
incompleta e, mais, o quanto é imprescindível ao desenvolvimento do saber
humano os achados proporcionados por essa especialidade.
I.3.2. Antropologia Linguística
Conforme se extrai dos léxicos:
Herdeira dos estudos sobre gramática, a linguística, como ciência,
surgiu no século XIX com F. de Saussaure, que estabeleceu a distinção entre
os conceitos de `linguagem´ e `língua´. Essa proposição deu origem à maior
parte das correntes estruturalistas (esp. N. S. Trubetzkoy, R. Jakobson, L. T.
Hjelmslev, G. Guillaume, A. Martinet). Nos Estados Unidos, uma corrente
estruturalista nascida de estudos das línguas ameríndias desenvolveu-se com
a escola L. Bloomfield
60
, conduzindo ao distribucionalismo de Z. S. Harris e
à gramática generalista de N. Chomsky.
61
A busca de peculiaridades da comunicação humana, o estudo das relações
de linguagem e suas estruturas, origens, variações e/ou diversidades, constituem
o objeto especial da Antropologia linguística. Para ela, a linguagem, além de
proporcionar um aprofundado estudo da linguagem em si, representa uma
possibilidade de análise sócio-cultural de um grupo ou conjunto de grupos
humanos e suas interações, isto porque a linguagem é o elemento sico de
transmissão e interação cultural entre os indivíduos. N´outras palavras, é através
da linguagem oral, escrita ou simbólica, que os indivíduos ou grupos conseguem
interagir dinamicamente suas experiências, organizá-las e transmiti-las em
forma de cultura.
60 A linguística nos Estados Unidos se desenvolveu, como tantas outras, à sombra do programa de Saussure. No
entanto, em virtude do lingüista Leonard Bloomfield, tomou rumo histórico diferente, inaugurando o que
conhecemos por Escola L. Bloomfield. Bloomfield empenhou-se em encontrar a melhor forma de descrever os
padrões sonoros e regularidades da língua, usando a identificação de estruturas constituintes como um meio de
análise sintática. Ele concebia a língua como um fenômeno puramente físico e negava qualquer traço psicológico
como componente na explicação do comportamento lingüístico.
61 Vide, por todos, Dicionário Enciclopédico Ilustrado Larousse, verbete “lingüística”, pág. 619.
58
Capítulo II: Aproximação através da Psicologia
O homem é um ser no mundo,
dotado de consciência utópica e que se
descobre como não sendo aquilo que
deveria ser. O eu possível é sempre maior
que o eu real; sendo assim, ele estará
sempre buscando. O ser acabado é sempre
projeto, um vir a ser. Nesse sentido, o
homem é problema para si mesmo. E, pelo
fato de ser problema, é barreira a ser
superada. Ser mais é o desafio que se
coloca à sua frente.
(Adelmo Joda Silva)
62
Em psicologia um fenômeno denominado catexe
63
, que se define como
força encarregada de levar a idéia à consciência, cujo padrão é descrito pelas três
instâncias psíquicas que Freud identificou como formadoras da personalidade,
quais sejam: o id
64
, o ego
65
e o superego
66
.
62 Prefácio à obra A pessoa humana segundo Erich Fromm, de Silvio Firmo do Nascimento.
63 Catexe (do Gr. Kátheksis) datação: s. XX. Ortoépia: cs. s.f. Rubrica: psicologia, psicanálise. Ação de parar,
ação de reter, de conservar. Transliteração para o português: cataxia (datação: 1922): s. f. Concentração de todas
energias mentais sobre uma representação bem precisa, um conteúdo de memória, uma sequência de
pensamentos ou encadeamento de atos. Catexe. (Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa, São
Paulo: Editora Objetivo Ltda., Junho de 2009).
64 Em biologia, termo proposto por Weismann para designar a unidade vital composta de determinantes
hipotéticos. Em psicanálise, o conjunto de impulsos naturais e inconscientes que se regem pelo princípio do
prazer. Para Freud, esses impulsos eram todos de caráter sexual.” (Lannoy Dorin. Enciclopédia de Psicologia
Contemporânea, “Dicionário Ilustrado de Psicologia”, vol. V. São Paulo: Livraria Editora Iracema, 1975, págs.
141/142.
59
O id é o repositório das pulsões. É inato, fazendo parte da totalidade da
criança ao nascer. É governado pelo princípio do prazer que é satisfeito pelo
processo primário, o que à criança aquele caráter típico de impulsividade e
imediatismo na satisfação de seus desejos; não gostando da dor ou de
perturbações, foge delas e isto configura o princípio do prazer. Nem sempre a
satisfação pode ser obtida no momento e quando isto acontece, o id se utiliza do
processo primário, fazendo surgir, então, as alucinações como substitutas do
objeto que satisfaz a necessidade. O ego, segundo sistema a ser desenvolvido na
personalidade da criança, é a sua orientação para a realidade, nela buscando a
satisfação dos seus instintos pelos meios mais aceitáveis. No superego, por sua
vez, terceiro sistema da estrutura da personalidade, estão os valores ideais da
sociedade, transmitidos pelos pais e reforçados pelo sistema educacional, na
base de premiação e castigo. Por ser hetero-estruturado, não é necessariamente a
expressão exata das normas culturais, pois, embora inicialmente a criança julgue
os atos a partir das normas ditadas pelo adulto, com o seu desenvolvimento
haverá uma internalização do mesmo, de modo que o controle dos pais vai
gradativamente sendo substituído pelo autocontrole, tomando características
próprias do indivíduo.
67
-se, desse modo, que a espécie humana não se define apenas em termos
anatômicos e fisiológicos, mas também através dos componentes que se
organizam a partir das qualidades psíquicas básicas que administram o
funcionamento mental e emocional e que alimentam a ânsia permanente de
soluções satisfatórias para os problemas da existência. No entretanto, em que
65 “É uma parte do id modificada pelas influências ambientais, sobretudo pela educação. Ele se guia pelo
princípio da realidade e procura através de vários mecanismos satisfazer os impulsos do id. É a parte consciente
da personalidade”. (idem, pág. 83).
66 “ ´É uma modificação do ego por interiorização das forças repressivas que o indivíduo encontrou no decurso
do seu desenvolvimento.´ (Lagache). Todas as atitudes de controle moral do ego, que foram introjetadas na
infância, sobretudo pela atuação dos pais. Como dizia Freud, tal qual o id, o superego pode fazer do ego um
escravo. Nas reões obsessivas e compulsivas, e nos estados de melancolia, podemos perceber como se
manifesta essa `escravização` do ego”. (idem, pág. 316).
67 Amélia Dolores Berti, op. cit., págs. 15/17.
60
pesem os avanços do conhecimento nesse campo, os teóricos não elaboraram
ainda qualquer definição satisfatória do homem, abrangente em termos
psicológicos, cumprindo aos estudiosos da “ciência do homem”, portanto,
conquistar uma descrição segura do que chamamos natureza humana.
A despeito de se referir apenas a um ou alguns dos vários aspectos da
natureza humana, essa definição, que no mais das vezes é tomada em conta das
manifestações patológicas, tem cuidado erroneamente de postular um tipo
particular de sociedade como se esta fosse consequência da constituição mental
do homem e o o contrário, conceito contra o qual se levantam os liberais
desde o século XVIII, que identificam uma maleabilidade da natureza humana e
registram uma influência decisiva dos fatores ambientais sobre ela.
68
Dentre os posicionamentos que se oferecem em torno do conceito da
natureza humana, merece nota, para reflexão, a equivocada posição teórica dos
sociólogos que entendem ser, a constituição mental do homem, carente de
conteúdo próprio, comparando-a com um pedaço de papel em branco, no qual a
sociedade e a cultura escrevem o seu texto. Em verdade, o problema constitui o
desafio de se deduzir das inúmeras manifestações da natureza humana, normais
ou patológicas, a sua essência comum, que seja válida para toda a espécie
humana e capaz de indicar as leis da natureza do homem e os objetivos inerentes
ao seu desenvolvimento e plenitude.
69
Percorrendo, a Filosofia, desde os clássicos, caminhos bifurcados entre o
inatismo e o empirismo para formulação dos princípios e das ideias da razão,
passando ainda pelo ceticismo que periodicamente floresce ante as dificuldades
postas pelos problemas da realidade, foi Leibniz quem estabeleceu, no século
XVII, a distinção entre verdades da razão e verdades de fato, solução que
68 Cf. Erich Fromm, Psicanálise da Sociedade Contemporânea, pág. 27.
69 Idem.
61
perdurou até a revolução copernicana que Kant provocou no âmbito da Filosofia
no século XVIII, sobrevindo dai a substituição do eixo de observação que
possibilita o conhecimento. Para tanto, toma-se como ponto de partida o o
interior humano, o espírito ou alma humana, como propunham os inatistas, nem
a realidade inicial exterior, o mundo ou a natureza, como queriam os empiristas.
Segundo Kant, o ponto de partida da Filosofia não pode ser a realidade interna
ou externa, mas o estudo da própria faculdade de conhecer ou, por outras
palavras, o estudo da própria razão.
70
II.1. Propriedades primárias do indivíduo (as faculdades cognitivas humanas)
Os animais vivem em harmonia com a natureza externa e com a sua
própria natureza, posto que agem e reagem de acordo com as características de
sua espécie, dado que se revela, por exemplo, quando do acasalamento, da
guarda e proteção do filhote, da caça ou da defesa. Regidos por leis biológicas,
suas reações são guiadas pelo instinto e, por isso, podem ser antevistas, as quais,
aliás, compõem o objeto da etologia, ciência que estuda comparativamente o
comportamento dos animais, com vistas à identificação de sua regularidade.
Sem embargo de que enorme variedade de espécies animais, é útil e
necessário tomá-los em verificação da escala zoológica, modo de se destacar as
diferenças como, por exemplo, aqueles que revelam padrão rígido das ações
instintivas e os que, embora ajam também por instinto, são capazes de
desenvolver comportamentos mais flexíveis ou, por outras palavras, menos
previsíveis, conforme vimos acima (Capítulo I, item I.2, vide conteúdo da nota 46, págs.
60/69 supra). No primeiro caso, encontramos os animais inferiores, como, por
exemplo, as abelhas, as quais constroem sua colméia e produzem mel sem a
70
Cf. Marilena Chauí, Convite à Filosofia, pág. 76.
62
mais mínima cogitação, enquanto que, nos outros, superiores, mamíferos, por
exemplo, situações problematizadas que se lhes expõem podem ser enfrentadas
com o uso de uma inteligência capaz de desenvolver soluções criativas. Trata-se,
segundo os estudiosos, de uma inteligência concreta, ou seja, construção mental
que só se oferece com a concorrência da experiência vivida.
De modo a atenuar a distância entre instinto e inteligência, são numerosas
as pesquisas etogicas com resultados comprometedores da rigidez teórica
dessa distinção. Alguns tipos de chipanzés, por exemplo, conseguem
manufaturar alguns utensílios e criar sociedades de estrutura complexa, baseadas
em formas elaboradas de comunicação. Não obstante, é preciso reconhecer que
ainda assim esses mamíferos superiores não ultrapassam a linha demarcatória
entre natureza e cultura, esta exclusivamente pertencente à natureza humana.
Estamos, pois, diante da circunstância de identificar o quê, no homem, o
qualifica para desgarrar-se da natureza e assumir o poder de transformá-la à sua
vontade, sem nos esquecer, evidentemente, que tal processo se chama cultura e
que, esta, por sua vez, depende da elaboração de uma linguagem simbólica que
permita uma abordagem abstrata do mundo circundante, possibilitando o
distanciamento do mundo concreto e manuseio ilimitado através das ideias
abstratas, recurso que proporciona tornar presente aquilo que está ausente.
Parece-nos, desse modo, ilustrativo que o homem, embora nasça humano,
somente ingressa no mundo, ou seja, somente se humaniza, através de um
aprendizado, através da educação, processo que se inicia na infância, quando
o indivíduo, mediado por outros homens, com os quais aprende os símbolos e os
valores, recebe a tradição cultural e se torna capaz de agir e de compreender a
própria experiência. Esse meio de aquisição da cultura e de habilidades o
habilita para o trabalho, o qual se traduz na ntese de pensar e agir, vez que se
63
constitui em ação orientada por finalidades conscientes e tendentes à
transformação da realidade em que vive.
De ver, então, que o processo de humanização corresponde ao método de
aculturamento, assim entendida apropriação, pelos indivíduos, da linguagem
simlica e do trabalho comuns àquele grupo social. Para afastar em definitivo a
ideia de que o homem é dotado de instinto como os animais, basta notar a
consciência que ele tem de si mesmo e, mais, a capacidade que adquire de
controlar a agressividade e a sexualidade, primeiramente em virtude da atuação
das normas morais e das sanções impostas pela coletividade e, depois,
assumidas pelo próprio indivíduo.
A segunda metade do século XX foi profícua para a intensa e produtiva
pesquisa sobre as faculdades cognitivas humanas, sua natureza e os modos como
entram em ação a interpretação.
Quem nos traz esta afirmação é Noam Chomsky
71
, que, apoiado em
Vernon Mountcastle
72
, neurocientista aposentado da Universidade Johns
Hopkins/EUA, também cuida de destacar a tese de que as coisas mentais, na
verdade as mentes, são propriedades emergentes do rebro”, e do
reconhecimento de que essas emergências são produzidas por princípios que
controlam as interações entre eventos de nível mais profundo princípios que
ainda o entendemos”. Para o autor ora citado, a falta de compreensão da
interação mente/cérebro remonta a propostas do século XVIII e não é o único
aspecto no qual o progresso científico foi muito limitado no período, em que
7171
Avram Noam Chomsky (* Filadélfia/EUA, 7 de dezembro de 1928), linguista, filósofo e ativista político
estadunidense, é professor de Linguística do Instituto de Tecnologia de Massachusetts.
72
Vernon Benjamin Mountcastle, nascido em Kentucky/EUA em 15 de julho de 1918, descobriu e caracterizou a
organização do córtex cerebral em 1950, que foi decisiva para as investigações da função sensorial cortical.
Mountcastle descobriu uma verdade fundamental sobre a fisiologia do cérebro: as células atuando como funções
estão ligadas em intrincados “módulos”, dispostas em colunas verticais. Ele influenciou a criação do Krieger
Mind / Brain Institute da Universidade Johns Hopkins.
64
pesem os avanços registrados no campo da pesquisa científica sobre as
faculdades mentais mais elevadas.
73
II.1.1. O Pensamento
O homem não passa de um caniço, o
mais fraco da natureza, mas é um caniço
pensante. Não é preciso que o universo inteiro
se arme para esmagá-lo: uma gota é suficiente
para matá-lo. Mas, mesmo que o universo o
esmagasse, o homem seria ainda mais nobre
que aquilo que o mata, porque sabe que morre
e o que o universo tem de vantagem sobre ele;
o universo o sabe nada.
(Blaise Pascal).
74
O pensamento traduz um processo da mente humana que permite realizar
a reflexão, o julgamento, as abstrações, análise e ntese. Por outras palavras, é o
produto intelectual ou arsenal de ideias de um determinado indivíduo ou grupo
ou época.
75
Sua marca de humanidade pode ser identificada pela construção
metafísica do cogito cartesiano, através do qual o espírito adquire certeza de si
mesmo e, permitindo a cristalina separação entre sujeito e objeto, autoriza a
compreensão da relação deste com as coisas de sua circunstância.
s humanos - como de resto todos os animais - somos dotados de formas
de conhecimento sensível, visto que nos são comuns a visão, a audição, o
paladar, o olfato e o tato, recursos esses que possibilitam a apreensão da
existência dos objetos do mundo ou de suas propriedades por meio da
73 In Novos horizontes no estudo da linguagem e da mente,g. 25.
74 In Pensamentos, págs. 96/97.
75 Vide, por todos, Dicionário Unesp do Português Contemporâneo, pág. 1053, verbete “pensamento”.
65
composição de imagens. No entanto, para além disso, distinguindo-nos dos
irracionais, possuímos ainda a memória, capacidade de possibilita trazer de volta
à mente as informações que pertencem ao passado e, por fim, a fantasia,
mecanismo pelo qual representamos as coisas de forma original, diferentemente
de como as apreendemos pelos sentidos.
Valendo-nos das nossas aptidões naturais, nossa capacidade sensorial,
apreendemos a existência das coisas, e, existência, nesse contexto, significa
ocupar um lugar no tempo e no espaço. Portanto, podemos tomar como certo
que os objetos percebidos estão no mundo real e subsistem independentemente
de nossa vontade, o que nos permite divisar entre realidade e fantasia. Mas, além
dos objetos do mundo, os quais podem ser igualmente percebidos também por
outras pessoas, sim os objetos da nossa imaginação, e estes, pertencem
exclusivamente à nossa fantasia.
Nas lendas e contos infantis, fadas e personagens encantados rompem a
barreira entre realidade e fantasia e mudam o destino das coisas num passe de
mágica. Assim também quanto aos mitos, cujas palavras não se limitam a evocar
o sentido das coisas referidas, mas a própria realidade dessas coisas, como, por
exemplo, no caso do deus Kronos
76
que, para adiante de significar
metaforicamente o tempo, era a própria realidade do tempo.
Demorou a que se atingisse o entendimento de que o pensado é distinto
do que é efetivamente real. Somente depois de muitos avaos cognitivos na
interação do homem com o mundo se tornou possível tomar a realidade como
76 Kronos (em grego κρόνος) era a divindade suprema de segunda geração de deuses da mitologia e titã
correspondente ao deus romano Saturno. A etimologia do seu nome é relativa a tempo”, pois assim como o
tempo, Kronos devora os seus. Filho de Urano (o Céu estrelado) e Gaia (a Terra), é o mais jovem dos Titãs. A
pedido de sua mãe, se tornou senhor do céu, castrando seu pai com um golpe de foice. A partir de então, o
mundo foi governado pela linhagem dos Titãs que, segundo Hesíodo, constituía a segunda geração divina. Foi
durante o reinado de Kronos que a humanidade (recém nascida) viveu a sua “Idade do Ouro”. Casou-se com sua
irmã Réia, com quem teve seis filhos (os Crónidas): 3 mulheres: Héstia, Deméter e Hera, e 3 homens: Hades,
Poseidon e Zeus.
66
externa ao homem, de modo que a linguagem também se adapta para permitir
um falar das coisas (descritivo) e um falar sobre as coisas (interpretativo), o que
exige um distanciamento do sujeito falante em relação ao objeto de que fala
(observação).
A absoluta independência do mundo real em relação a s, no entanto,
nos impele a nos familiarizar com ele, aprendendo progressivamente a contar
com os objetos do mundo e, quiçá, tê-los em conta de modificação para
atendimento de nossas necessidades. Trata-se da significação da realidade, que
se por um processo de abstração. O pensamento.
77
É aprendizagem difícil pensar. Mas não há outro caminho para se
falar do ser que buscamos. Pensar significa conhecer e presentificar o ser,
tornando-o visível e audível junto a nós. O pensamento que pensa se faz
aurora do ser! Nele e por ele o ser nasce e se deixa conhecer. Aparece claro
e distinto. Toma consistência.
78
I.1.2. A inteligência
O homem se apartou da natureza e criou um universo seu, distanciando o
seu “eu” em relação ao mundo, o que implica estranhamento, ou seja, aquilo que
acontece no mundo não é imediatamente compreendido, não tem sentido
imediato, necessitando, pois, ser – esse sentido - objeto de busca, via de acesso à
familiarização e, via de consequência, atenuação da perda de vínculo existencial
entre o indivíduo e o mundo exterior. Essa capacidade de abstrair da realidade o
seu sentido próprio serve como lenitivo para a angústia resultante do
estranhamento acima referido e se dá pelo exercício da inteligência reflexiva ou,
simplesmente, inteligência.
77 José Auri Cunha, op.cit., págs. 73/78.
78 Arcângelo R. Buzzi, op.cit., pág.19.
67
Neste ponto é oportuno destacar, em consonância com o que antes
discorremos a respeito, que os animais também possuem inteligência, tanto que,
mencionamos, alguns adquirem habilidade bastante a para confeccionar
algumas ferramentas. No entanto, tal capacidade difere da humana, posto que
esta se compõe pela capacidade reflexiva do auto-exame, da autocorreção.
Através da inteligência o homem pode abstrair aspectos da realidade com
o fito de conferir-lhes significado adequado a um culto ou a uma análise. A
título de exemplo, observemos: o trovão, para o culto, se explica como
manifestação da irritação do deus, enquanto, resultado da análise, o trovão
representa a manifestação sonora decorrente de uma descarga elétrica.
79
Mas, em que consiste esse processo de abstração do real para criar a
realidade? Se o real permanece estranho, ele nada significa, portanto não
pode ser considerado como uma realidade a ser compreendida por nossa
consciência. Visando encontrar familiaridades à consciência, a capacidade
da inteligência é ativada, e quando bem sucedida ele revela no real um `algo
familiar´, uma `faz sentido´. Diz-se então que pela inteligência o real é
humanizado.
80
A palavra inteligência tem origem no latim, especificamente no verbo
intelegere (intus + legere) e significa ler dentro, correspondendo à capacidade de
descobrir o significado que subjaz dentro das coisas. Por seu intermédio, o
homem busca captar as qualidades invisíveis que qualificam os objetos.
79 José Auri Cunha, op. cit., pág. 78.
80 Idem, loc. cit.
68
II.1.3. O Conhecimento
Nosso conhecimento surge e duas fontes principais da
mente, cuja primeira é receber as representações (a
receptividade das impressões) [a percepção], e a segunda,
a faculdade de conhecer um objeto por meio destas
representações (espontaneidade dos conceitos) [a
inteligência]; pela primeira um objeto nos é dado, pela
segunda, é pensado em relação com essa representação
(como simples determinação da mente). Intuição
[entenda-se aqui no sentido de `ato de percepção´] e
conceitos [no sentido de produto construído pela
inteligência] constituem, pois, os elementos e todo o
nosso conhecimento, de tal modo que, nem conceitos sem
uma intuição de certa maneira correspondente a eles, nem
intuição sem conceitos podem fornecer um conhecimento.
[...] A nossa natureza é constituída e um modo tal que a
intuição não pode ser senão sensível. Nenhuma dessas
propriedades dever ser preferida à outra. Sem a
sensibilidade nenhum objeto nos seria dado, e sem
entendimento nenhum seria pensado. Pensamentos sem
conteúdo sensível são vazios, intuições sem conceitos
são cegas.
(destaques do original).
(Immanuel Kant)
81
O problema do conhecimento também permanece aberto e sem
perspectivas de que venha a ser alvo de uma solução conclusiva, alimentando
debates entre racionalistas, idealistas, empiristas, positivistas ou neopositivistas.
Assim, por certo, haverá sempre aqueles, ora com maior crédito, ora não, que
comungam da idéia de que o conhecimento é de ordem sensível, baseando-se
81 Crítica da Razão Pura, apud, José Auri Cunha, op. cit., págs. 78/79.
69
naquilo que é imediatamente experimentável; outros, fiando-se em expressões
do nosso conhecimento não conversíveis à ordem sensível, como, por exemplo,
o conhecimento científico, religioso, ético, estético, moral, etc., insistirão em
que somos dotados de uma forma de conhecimento ultrassensível, intelectivo.
82
Trata-se, o conhecimento humano, de um fenômeno complexo, misterioso
e que pode ser investigado multidisciplinarmente, vez que constitui, a um só
tempo, objeto de três disciplinas filosóficas, a saber, a psicologia, a gnosiologia
e agica. Através da primeira se estuda a sua origem e tipos principais,
enquanto que a segunda cuida de estabelecer o seu valor, estudando as relações
existentes entre o conhecimento e o objeto conhecido, sob a certeza de que o
valor do conhecimento é a verdade. A terceira, por sua vez, estuda as condições
essenciais para a constituição do conhecimento, ao mesmo tempo em que fixa as
regras de seu correto funcionamento.
83
Segundo o que nos recomenda Kant, nosso conhecimento nasce de duas
fontes principais da mente que o a percepção, por intermédio da qual
recebemos nossas impressões, e a inteligência, que consiste na aptidão humana
de conhecer um objeto por meio dessas representações. Pela primeira, um objeto
nos é dado e, pela segunda, esse objeto é pensado com relação a essa
representação. Em arremate, Kant assegura: A inteligência nada pode perceber
e os sentidos nada podem pensar. O conhecimento só pode surgir da sua
reunião.”
84
Portanto, a faculdade do conhecimento, adotada em sua acepção de
potência, se realiza através do pensamento, conforme experiência adquirida
desde os pressocráticos. De fato, os primeiros filósofos não esperavam que o
82 Cf. Battista Mondin, Introdução à Filosofia: problemas, sistemas, autores, obras, pág. 21.
83 Idem, pág. 11.
84 Apud José Auri Cunha. Iniciação à investigação filosófica: um convite ao filosofar. Campinas/SP: Editora
Alínea, 2009, págs. 78/79.
70
conhecimento viesse por graça divina a ser-lhes entregue pelos mensageiros dos
deuses, mas procuravam por si mesmo refletir sobre o que os sábios diziam,
numa atitude de reflexão sobre o significado do que estavam pensando, ou seja,
repensar o que já foi pensado. Nisso consiste a investigação filosófica.
O conhecimento em francês connaissance significa nascimento do ser, o
seu erguer-se e mostrar-se ao pensamento. (destaque do original).
85
II.1.4. A consciência
A (auto)consciência é uma
dimensão fundamental do ser humano como
ser espiritual e, a partir da modernidade,
transformou-se numa das categorias
fundamentais do pensamento filosófico.
(Vicente de Paulo Barretto)
86
O que é e como se forma a consciência? Segundo o significado comum,
consciência é a circunstância de o sujeito estar ciente ou ter consciência dos
próprios estados, percepções, idéias, sentimentos, vontades, etc., quando o
mesmo não esteja dormindo, desmaiado ou afastado - por outros acontecimentos
- da atenção a seus modos de ser e a suas ações.
No campo filosófico, embora o termo pressuponha genericamente esse
sentido comum, o significado é bem mais complexo, pois envolve a relação da
alma consigo mesma, de uma relação intrínseca ao homem, interior ou espiritual
85 Arcângelo R. Buzzi, Introdução ao pensar: o ser, o conhecimento, a linguagem. Petrópolis/RJ: Editora
Vozes, 33ª edição,2007, pág.19.
86
Dicionário de Filosofia Política, pág.108, verbete: “consciência”.
71
pela qual ele pode conhecer-se de modo imediato e privilegiado e por isso
julgar-se de modo seguro e infalível.
Observamos acima como os objetos são apreendidos na circunstância do
indivíduo e como todos os sinais captados pelos sentidos são encaminhados para
um centro que denominamos foco da percepção. Pois bem! Perceber a existência
desse foco de percepção é ter consciência de como se percebe ou como se
apreendem os objetos visados pelos sentidos. Em outras palavras, trata-se de
uma noção em que o aspecto moral - a possibilidade de autojulgar-se tem
conexão com o aspecto teórico, na medida da possibilidade de conhecer-se de
modo direto e infalível.
87
Nesse sentido, tomemos aqui a expressão em todas as suas vertentes
significativas, de modo que, por consciência, se entenda o conhecimento, noção
da própria existência e do mundo exterior; representação mental clara da
realidade de alguma coisa; sentimento do dever, da moralidade; discernimento,
juízo; senso de responsabilidade; faculdade mental que permite a percepção
daquilo que se passa dentro do ser humano ou em seu exterior; parte da vida
mental da qual o indivíduo tem perceão (o que não ocorre com os processos
inconscientes).
88
Emerge do aspecto moral a altiva determinação do indivíduo de agir
segundo sua consciência, numa alusão não à capacidade de discernir entre
valores de polaridade oposta, mas ainda e principalmente a de agir em
conformidade com esse julgamento.
A esse propósito, este trabalho não poderia deixar de adicionar dado
relevante para a análise dos comportamentos essenciais aos desígnios coletivos,
87 Vide, por todos, Nicola Abbgnano, Dicionário de Filosofia, op. cit., pág. 217/227, verbete “consciência”.
88 Cf. Dicionário enciclopédico ilustrado Larousse, pág. 293, verbete: “consciência”.
72
quer em virtude de estarmos situados no contexto das ciências humanas, quer
porque o tema central, de vocação comunitária, reclama, como veremos adiante,
reflexões e conclusões no âmbito das nossas possibilidades e das nossas
escolhas.
A História é generosa em nos fornecer exemplos de homens que,
sustentando princípios de justiça, de amor ou de verdade, se opõem a todo tipo
de pressão dirigida contra eles com o intuito de fazê-los renunciar àquilo que
sabiam ou em que acreditavam. Os profetas, por exemplo, agiram de acordo
com sua consciência ao denunciar sua própria pátria e predizer-lhe a queda que
resultaria da corrupção e da injustiça; Sócrates preferiu ingerir cicuta, pondo fim
à sua própria vida, a ceder diante de exigências para que adotasse conduta
contrária à sua consciência.
Em sentido oposto, mas ainda com o viés de fidelidade, outros surgiram
supostamente movidos por dever de consciência e em nome dela queimaram
homens de consciência na fogueira da Inquisição; milhões de vidas foram
dizimadas em campos de concentração nazista ante a sanha de poder que seduzia
guerreiros predatórios que agiam em nome de sua consciência.
De todo o modo, observamos que não ato de crueldade ou mesmo
indiferença para com o outro que não se faça sustentar racionalmente como
ditado pela consciência, mecanismo, a toda evidência, útil à necessidade de
apaziguá-la, dado que desnuda o quanto de obscuridade existe em torno da
consciência empírica. Destarte, é inescapável que a consciência é a convocação
do homem para si mesmo e, caso ela não existisse, muito a raça humana teria
sucumbido.
89
89 Cf. Erich Fromm. Análise do Homem, págs. 130/131,
73
II.1.4.1. Uma das categorias do espírito humano: a noção de “pessoa”
e do “eu”
Que sou um homem,
Tenho em comum com todos os homens,
Que vejo e ouço
E como e bebo
Partilho com todos os animais.
Mas que eu sou eu é exclusivamente meu,
E me pertence
E a mais ninguém,
A nenhum outro homem,
Nem a um anjo nem a Deus
Exceto na medida em que sou uno com Ele.
(Master Eckhart, in Fragmentos)
90
Vez que partilham da condição humana e, nela, as contradições
existenciais, os homens são semelhantes e originais na maneira específica como
solucionam o seu problema humano. Isso o pressupõe, no entanto, que as
semelhanças se estendem também para as formas e modelos de ações e reações
individuais, posto recaírem estas no campo da individualidade, da personalidade.
Compreende-se a personalidade como sendo a organização dinâmica dos
sistemas psicofísicos do indivíduo que determinam o seu ajustamento ao meio.
Mostra-se por meio de somatória de qualidades psíquicas herdadas e adquiridas,
as quais caracterizam, individualizam cada indivíduo como original, único. Ele
representa a raça humana, no sentido que é um exemplo específico da espécie
humana, mas, ao mesmo tempo ele” é ele e são todos”, pois é um indivíduo
90 Apud Erich Fromm, O Espírito de Liberdade, pág. 54.
74
com peculiaridades próprias, único, e, ao mesmo tempo, é representativo de
todas as características da raça humana.
A diferença entre qualidades herdadas e adquiridas é, no fim de
contas, sinônima da diferença entre temperamentos, dotes e todas as
qualidades psíquicas recebidas constitucionalmente, de um lado, e o caráter,
de outro lado. Enquanto as diferenças de temperamento não têm
significância ética, as diferenças de caráter constituem o verdadeiro
problema da Ética; indicam até que grau um indivíduo conseguiu êxito na
arte de viver.
91
O estudo da personalidade nutre o objetivo de solucionar o problema
fundamental do homem, que o desafia perenemente: Conhece-te a ti mesmo”,
conforme inscrição no pórtico do templo de Apolo
92
em Delphos
93
.
A compreensão do “eu”, tem mesmo ocupado o centro das atenções da
psicologia e da psicanálise através de duas correntes conceituais: uma que a
considera um atributo, ou seja, a resultante de uma soma de predisposições
naturais e inclinações hereditárias, influências psicossomáticas, ambientais e da
educação, enquanto que a outra, tendo-a por relação, acentua que o determinante
da formação da personalidade de afirmação do eu é a reação do indivíduo no
papel que o grupo lhe impõe.
A noção de persona
94
nos vem desde o início da civilização latina, sendo
normal e clássica a que a tem por máscara, máscara trágica, máscara ritual,
91 Erich Fromm. Análise do Homem, pág. 53.
92 Apolo ou Febo, o Sol na mitologia grega, filho de Zeus e Latona, nasceu na ilha de Delos, irmão gêmeo de
Diana ou Febe, a Lua. Logo após o seu nascimento matou a serpente Píton, em Delfos, local onde depois foi
construído o mais lebre de seus templos, cujos oráculos eram acatados e respeitados em todo o mundo antigo.
Inventor da lira, comanda as Musas e é o protetor das artes, deus da harmonia, da música e da inspiração poética.
Deus da profecia, protetor dos rebanhos e dos navegantes, grande curador e médico, é pai de Esculápio. Como
deus do Sol, conduz diariamente o carro do Sol de um extremo ao outro do céu, sendo responvel pelos dias e
pelas noites. Um dos doze deuses principais do Olimpo, é o mais radioso dos Imortais. (Cf. Grande Enciclopédia
Larousse Cultural, vol. 2, pág. 366, verbete: Apolo).
93 Delphos ou Delfos, cidade da Grécia antiga, na Fócida, próxima ao monte Parnaso, na qual se localizava um
santuário divinatório dedicado a Apolo. Heródoto e Homero chamavam-na de Pito, e suas ruínas começaram a
ser escavadas em 1892 por arqueólogos franceses, guiados na reconstituição do plano original por escritos de
Pausânias. (Cf. Enciclodia Barsa, vol. 6, pág.189, verbete: Delfos).
75
máscara de antepassado. Etimologicamente, justaposição de per (através) e
sonare (soar), logo, personalidade é alguma coisa através da qual nos
expressamos, soamos.
95
É natural, portanto, que tenhamos hoje a idéia de pessoa, do eu, que todos
encontramos natural e nítida no recôndito da consciência e totalmente equipada
no fundo da moral que nela está pressuposta, como inata ao espírito humano.
Mas, em verdade, ela nasceu no curso de vários séculos e através de muitas
vicissitudes, tanto que ainda hoje se encontra pendente de uma elaboração
teórica conclusiva.
Destarte, o homem pode ser definido a partir da possibilidade, única
dentre os animais, de dizer “eu”, que pode ter consciência de si mesmo como
entidade independente. Os seres vivos animados, por estarem integrados na
natureza, sem transcendê-la, como o fez o homem, não m consciência de si
mesmo, não precisam de um sentimento de identidade. Por oposto, por ter
perdido a unidade originária com a natureza, por ser dotado de rao e de
imaginação, o homem necessita formar um conceito de si mesmo, necessita
dizer e sentir: “Eu sou eu”. Somente depois de conseguir discernir e então
diferenciar-se do mundo exterior, concebendo-o como coisa separada e
independente dele, é que o sujeito adquire consciência de si como ser diferente e
uma das últimas palavras que aprende a dizer em relação a si mesmo é “eu”.
96
Para confronto e melhor compreensão do quanto afirmamos neste
capítulo, Erich Fromm
97
nos concede dois exemplos: 1º) a ideia de um indivíduo
94 Persona era o nome dado à máscara usada no antigo teatro grego, para que o público localizado à distância
pudesse identificar o ator, o personagem. Até hoje máscaras clássicas, com os lábios caídos expressando
tragédia, ou simbolizando a codia através do riso são encontradas na boca de cena dos teatros. (Cf. Murillo
Nunes de Azevedo, A Reconstrução Humana, pág. 33).
95 Idem.
96 Cf. Erich Fromm, Psicanálise da Sociedade Contemporânea, pág. 70.
97 In Psicanálise da Sociedade Contemporânea, págs. 70/72.
76
de um clã primitivo que, ao expressar sua identidade através da fórmula eu sou
nós”, o concebe a si próprio como um indivíduo existente à parte do seu
grupo, e 2º) a identificação social do homem medieval com o seu papel social na
hierarquia feudal, indicativa de que um campesino não o era por acaso, assim
como o senhor feudal também o o era por casualidade. Essa definitividade da
situação e dos papéis sociais, essa certeza de inalterabilidade, constituía a base
essencial de seu sentimento de identidade e perdurou até a queda do regime
feudal, quando então, abalado esse sentimento, perguntava-se: quem sou eu?”,
ou, filosoficamente, “como saberei se eu sou eu?”
Esse foi o ponto de partida de que se valeu Descartes para concluir,
magistralmente: “Duvido, por conseguinte, penso; penso; por conseguinte, sou”.
A cultura ocidental se desenvolveu no sentido de criar as bases do
pleno sentimento de individualidade. Libertando-se o indivíduo política e
economicamente, ensinando-o a pensar por si mesmo e libertando-o de toda
pressão autoritária, podia esperar-se que se estivesse capacitando-o também
para sentir-se “eu no sentido de ser centro e sujeito ativo de suas
potencialidades e de sentir a si mesmo como tal. Mas apenas uma pequena
minoria adquiriu o novo sentimento do “eu”. Para a maioria o individualismo
não foi muito mais que uma fachada atrás da qual se ocultava o malogro na
aquisição de um sentimento individual de identidade.
98
De fato, vivenciamos um estado intermediário entre a primitiva identidade
do clã, de que não mais dispomos, e aquela verdadeiramente individual
anunciada pelos avanços da modernidade, que não nos chegou. À míngua de
uma legítima identidade, através da qual possamos enunciar a um tempo a
pessoa e sua personalidade, nos limitamos às identificações de situação ou de
status, como, por exemplo, “sou brasileiro”, sou executivo, “sou católico”,
rmulas que ajudam o indivíduo a se esvanecer na multidão e, exatamente por
isso, por sentir-se igual aos demais, julga-se normal. Essa é a chamada
98 Idem.
77
identidade gregária, pela qual o sentimento de identidade repousa na convicção
de vinculação com a multidão.
II.1.5. Linguagem
A invenção da linguagem é a primeira das
grandes invenções, aquela que contém em
germe todas as outras, talvez menos
sensacional que a domesticação do fogo,
porém, mais decisiva. A linguagem se
apresenta como a mais originária das
técnicas. Constitui uma disciplina originária
de manipulação das coisas e dos seres. Uma
palavra é muitas vezes mais útil que um
utensílio ou que uma arma para a tomada de
posse da realidade. A palavra é a estrutura
do universo, a reeducação do mundo
natural.
(Georges Gusdorf).
99
Questões como: em que consiste esse privilégio de nomear a essências das
coisas através da linguagem verbal? Por que a linguagem verbal é a única que
torna possível essa operação de nomear? têm persistido ao longo dos tempos,
fomentando especulações, indagações e pesquisas nunca definitivamente
concluídas, mas que contribuem para o alargamento da compreensão em torno
do fato de que o homem é o único ser que possui o dom da fala e que, para a
inteligência humana, a linguagem é a morada do ser.
100
99 Apud José Auri Cunha, op. cit., pág. 109.
100
Idem, pág. 110.
78
O saudoso Professor Paulo de Oliveira Filho, notável jurista e professor de
Letras pela USP, debruçando-se sobre o assunto, lecionou:
O instrumento mais importante no processo de comunicação, em
qualquer sociedade, seja ela primitiva ou desenvolvida, é a linguagem. Todo
tipo de troca de informações implica a existência da linguagem. Os seres
humanos podem organizar-se, socialmente, a partir do momento em que
se estabeleça comunicação através da linguagem. Mas, o que é a linguagem?
(...) é a capacidade humana, um instrumento de comunicão social. Ela não
se confunde, por essa razão, com a chamada linguagem das abelhas, a
linguagem das flores e outras formas de comunicação existentes na
natureza. As coisas da natureza, neste caso, são instintivas e passivas, e para
haver linguagem, como diz Mattoso Câmara, é preciso, ao contrário, uma
atividade mental, tanto no ponto de partida quanto no ponto de chegada. Em
outras palavras, é necessário que o falante tenha tido a intenção de
comunicar-se e o faça de maneira articulada.
101
A linguagem expressa o pensamento e forma social a ele. Com efeito,
toda manifestação da vida espiritual humana, portanto inteligível, pode ser
concebida como uma espécie de linguagem, de sorte que não há acontecimento
ou coisa da natureza animada ou inanimada que o possa ser conteúdo de
alguma forma de linguagem, sendo, pois, possível cogitar de uma linguagem
artística, técnica, coloquial, etc. Desse modo, fica nítido que a linguagem verbal
não é a única que serve à capacidade comunicacional do homem, muito embora
seja a única que possibilita a compreensão e nomeação do seu ser e de todas as
coisas
102
. A esse respeito, é oportuna a nota distintiva que nos oferece a
Professora Lúcia Santaella, livre-docente em Ciências da Comunicação pela
ECA/USP e professora titular da PUC/SP, em que confronta as linguagens
verbais e não-verbais e apontando aquela como sendo objeto da lingüística, ao
passo que esta pertence à semiótica.
103
A linguagem é uma propriedade primária, fundamental do homem e, além
disso, uma propriedade que o caracteriza nitidamente em relação aos outros
101 Linguistica Aplicada à Língua Portuguesa, págs. 15/16.
102 Idem, págs. 110 e 113.
103 O que é Semiótica, pág . 10.
79
seres deste mundo. Através das palavras, que constituem apenas um caso
particular de linguagem, o homem cobre a si e ao universo que o rodeia de
significado, com elas o homem pode estabelecer fora do seu corpo os resultados
e o próprio processo da sua experiência interna de pensamento.
Os outros animais até possuem uma forma elementar de comunicação,
mas somente a utilizam como instrumento de sobrevivência, como, por
exemplo, para chamar a atenção de animais da mesma espécie para situações de
importância vital, como a presença de alimento, de perigo, etc. O homem, ao
contrário, utiliza a linguagem com finalidades e modos variados, seja como
instrumento de expressão de si mesmo, dos próprios sentimentos, desejos,
ideias, seja para se comunicar com os outros, para descrever as coisas, para
perguntar, educar, rezar, cantar, como instrumento de luta, de propaganda, de
diversão, etc.
104
Através das palavras o pensamento ultrapassa o plano do acontecimento
interno, privado e inacessível do sujeito e ganha dimensão pública, com vocação
para ser compartilhado por comunidades cada vez mais numerosas. Segundo as
lições aristotélicas, esse caráter expansível do pensamento, que torna pública e
compartilhável a vida interior do indivíduo, o caracteriza como “um animal que
fala” e que, por causa do dom da fala, torna-se “um animal social”.
105
Voltando aos escólios do Professor Paulo de Oliveira Filho, observamos
que o estudo da linguagem compreende dois aspectos, a saber, a língua e a fala,
sendo aquela um código abstrato de sinais, através do qual os indivíduos de uma
determinada sociedade ou grupos sociais de mesma língua se comunicam, e esta,
constituída pelo discurso, ou seja, a realização individual através do código
linguístico. Portanto, a linguagem entendida como capacidade humana, geral e
104 Cf. Battista Mondin, op. cit., pág. 35.
105 Cf. José Auri Cunha, op. cit., pág. 109.
80
abstrata, se realiza, se concretiza através das línguas: o português, o espanhol, o
inglês, o francês, o guarani, etc. Estas são, efetivamente, o código com o qual o
homem se comunica. O autor adverte, ainda, sobre o aspecto de ser a linguagem
um fenômeno geral, ou seja, comum a toda a espécie humana, ao passo que a
língua é uma realização particular, concretiza por meio de um código
linguístico.
106
Definitivo, pois, que a dimensão da linguagem tem lugar destacado no
processo humano, vez que se impõe pela sua inerente capacidade de
objetivação dos fenômenos, mecanismo através do qual, embora não
exclusivamente, damos sentidos ao mundo e a nós mesmos. Essa importância
reside também no pressuposto de que a linguagem é, por definição, dialógica, de
modo que os espaços e os tempos históricos povoados por pessoas e diversas
outras materialidades se presentificam na linguagem.
107
Todavia, o posicionamento diante do uso da linguagem impõe observar
uma distinção pragmática no trato da linguagem verbal, conforme nos adverte a
Professora Vera Sonia Mincoff Menegon, da Faculdade de Psicologia Social da
PUC/SP, para quem a linguagem pode ser compreendida, de um lado, como
práticas discursivas, especialmente se destacados o seu movimento caracterizado
por um processo de interanimação dialógica e a dinâmica de posicionamentos
dos interlocutores, processo do qual emerge a produção de sentidos a partir das
trocas de entendimentos com o outro, consigo mesmo e com tudo o mais que
estiver ao redor. Por outro lado, prossegue a autora, maneira distinta de
compreensão decorre do uso da linguagem como discurso, este caracterizado
pelo uso formalizado de conceitos no âmbito do domínio de saberes específicos.
106 Op. cit., pág. 16.
107
A respeito de linguagem e práticas discursivas, vide Vera Sonia Mincoff Menegon, in Entre a Linguagem dos
Direitos e a Linguagem dos Riscos: os consentimentos informados na reprodução humana assistida, págs.
60/61.
81
Ou seja, uma linguagem caracterizada por repertórios
interpretativos que foram encadeados em gêneros de fala específicos
de uma dada área de conhecimento. Por exemplo, um discurso técnico
da biomedicina.
108
Essa lógica explica como os repertórios linguísticos interpretativos -
assim entendidos os elementos, termos ou conjuntos de termos, descrições,
lugares-comuns e figuras de linguagem, que utilizamos para nos referirmos a um
fenômeno, seja no contexto dinâmico das práticas discursivas, seja nos discursos
já sedimentados das linguagens sociais - assumem papel teórico nuclear na
compreensão dos processos de produção de sentidos.
De forma geral, a linguagem como discurso, conforme
argumentação acima, carrega a articulação histórico-social de
linguagens específicas, as quais, na interrelação entre tempo longo,
tempo vivido e tempo curto, inscrevem continuidades,
descontinuidades e ressignificações, engendrando e dando sustentação
para práticas sociais variadas.
109
II.1.6. A Liberdade
O uso da liberdade expõe o homem
a acidentes dos quais ele não pode se
liberar, a não ser pelo uso de sua sabedoria
e de seus esforços. As crises são a indicação
menos de um funcionamento a ser
modificado do que um apelo a uma maior
prudência e previdência.
110
108
Idem, pág. 62.
109
Ibid.
110
Dicionário Enciclopédico de Teoria e de Sociologia do Direito, pág., 707, verbete: segurança, nota 1.
82
Embora a história desse conceito traga o registro de várias definições,
algumas privilegiando o significado normal da palavra, outras se distanciando
dela, em seu sentido mais geral, o termo liberdade designa o estado de ser livre
ou de estar em liberdade, de não estar sob o controle de outrem; de estar
desimpedido, de não sofrer restrições nem imposições. Por outro lado, a
liberdade tem sido insistentemente representada como um modo de vida
particular, em que se possa fazer o que está em conformidade com a lei moral ou
com a razão, o que enseja a afirmação de Epicteto segundo a qual os maus não
são livres, ou mesmo a de Thomas Carlyle, crítico escocês, defensor de que a
verdadeira liberdade de um homem consiste em encontrar o caminho certo e
segui-lo”.
Para certos pensadores, liberdade moral é a determinação da vontade
através da razão; para o indivíduo consiste na realização de uma idéia de
perfeição em si e por si próprio
111
. Para outros, esse conceito de liberdade é
parte integrante de uma elaborada filosofia política.
112
Posto que não existe uma liberdade, mas várias, que variam tanto
quanto as restrições, impedimentos e encargos, e em virtude dos vários e
diferentes modos pelos quais ela pode ser cerceada, revela-se útil distinguir as
suas rias espécies, mas em cada caso de seu uso comum, considera-se que
normalmente que representa: a) o desejo de fazer alguma coisa; b) a capacidade
real ou suposta de fazê-la; e c) impedimento da parte de outra pessoa, grupo ou
instituição.
113
O fenômeno existencial humano sob enfoque psicológico individual ou
coletivo pode ser sondado através de vários referenciais, como, por exemplo,
111 Hegel, por exemplo, ultrapassa esse conceito e afirma que o padrão de bondade ou de razão, cuja
observância constitui a liberdade, deve ser encontrado no Estado: O Estado, em si e por si, é o todo ético, a
realização da liberdade” (vide Dicionário de Ciências Sociais, op. cit., págs. 689/690, verbete “liberdade”).
112Idem.
113 Idem, pág. 690.
83
dentre outros, a individualidade, a alteridade, a liberdade, a autonomia, a
independência, a espontaneidade, a dignidade, a felicidade, a espiritualidade, a
fraternidade, etc., termos esses que se referem a um mesmo campo
paradigmático e cujos resultados, por certo, contribuem para a compreensão do
esforço hisrico de libertação do homem que nasce obnubilado, com imensa
dificuldade de ver a realidade e vitimado por uma tensão
114
que o empurra para
as tentativas de alterar a verdade. E a tensão não existe por si, mas somos nós
que nos tensionamos, pela barreira que formamos aos sentimentos e ao próprio
modo de pensar devido ao eterno desejo de recriar o próprio sentimento e
pensamento”. Isto é o que nos ensina Roberto R. Keppe
115
, em sua obra A
Libertação: o problema, a dialética, a conscientização.
116
O objetivo do desenvolvimento do homem é o da liberdade e
independência, entendida esta como dissolução dos vínculos primários, como o
corte do cordão umbilical para romper a dependência biológica em relação ao
corpo materno e à natureza, e capacidade de dever a manutenção de sua
existência exclusivamente a si próprio, mediante o desenvolvimento da
capacidade de tornar-se sujeito de suas ações, de tomar decisões, ter consciência
de si mesmo e do outro, de não ficar submetido a outrem. O desejo mais forte do
ser humano é o de construir ele mesmo a sua verdade.
A História Moderna gira em torno da libertação do homem de amarras
políticas, econômicas e espirituais, sobretudo na Europa e nas Américas. Aos
114 Encontramos na teoria freudiana referência sobre os princípios sicos da conduta humana, sendo um deles
o princípio da redução da tensão. Segundo Freud, a tensão aparece para o homem sempre que ele estiver sob
influência de forças opostas, o que estimula a tendência humana de reduzir a mesma a fim de que a realidade se
torne tolerável. Considerando que o homem por natureza busca o prazer e ao mesmo tempo deve conviver com a
realidade interna e a do ambiente, a tensão é algo obviamente presente na sua vida e daí ser ele considerado um
animal redutor de tensões. (Cf. Alia Dolores Berti. Cadernos da Universidade de Caxias do Sul. “Freud e
Rogers: tópicos significativos”. Caxias do Sul/RS: Editora da Universidade de Caxias do Sul, 1981, pág. 10.
115
Roberto R. Keppe, psicanalista graduado em Viena na Escola Analítica Existencial do Professor Dr. Viktor E.
Frank, é Presidente da Sociedade de Psicanálise Integral e organizador e dirigente do Servo de Medicina
Psicossomática de Clínica da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
116 São Paulo: Editora Próton, [s. d.], pág. 23.
84
que sucumbiram na luta por liberdade, por exemplo, rendemos eternas
homenagens, vez que, sabemos e experimentamos, sinal maior das
possibilidades de nossa individualidade, preferível morrer na luta contra
opressão a viver sem liberdade.
O certo é, como diz Miguel Reale, que o problema da liberdade é sempre
atual, ocupa intensamente a ordem do dia, pois a cada vez que a escala de
valores fundamentais da vida humana entra em crise, os homens cultos da
América Latina, cujos olhos serão sempre mediterrâneos, sentem a necessidade
de volver seus olhos para o Mediterrâneo, para a vida intensa dos antepassados
de Atenas e de Roma, onde os problemas político-sociais podem ser
surpreendidos na força poderosa dos fenômenos em ‘estado nascente’.”
117
A filosofia liberal postula que a relação do homem com a natureza não é
de adequação, mas de radical separação. Para o liberalismo, a liberdade coloca o
homem como uma espécie de soberano de si próprio, de modo que a natureza, o
mundo, os outros e até suas próprias fraquezas podem afetá-lo, sem que isto
diminua os privilégios exorbitantes de sua vontade.
Observar a liberdade do homem sob premissas da filosofia liberal nos
permite associá-la ao tema da segurança, curial para esta tese, na medida em que
o mal, a insegurança, o sofrimento e a miséria, desempenham importante
atuação de fomento à liberdade e também à ignorância.
Segundo os estudos que Silvio Firmo do Nascimento desenvolveu a partir
da obra de Erich Fromm e que o mesmo nos apresenta em seu livro A pessoa
humana segundo Erich Fromm
118
, a análise do aspecto humano da liberdade e
das forças autoritárias nos obriga a encarar como problema geral o papel que os
fatores psicológicos desempenham como força no processo social, o que pode
117 Horizontes do Direito e da História, pág.5.
118
Pág. 109.
85
levar ao problema das interações dos fatores psicológicos, econômicos e
ideológicos do processo social.
Nesse plano, é, pois, indispensável reconhecer o papel dos fatores
psicológicos na temática da liberdade, visto que lidamos com um sistema
político que não apela para as forças diabólicas do homem e cujas ações são
determinadas pelo seu interesse próprio e pela capacidade de agir racionalmente,
em conformidade com o seu interesse.
Liberdade e insegurança estão, pois, em relação de reciprocidade e o mal
e o sofrimento constituem essa ordem e não devem ser combatidos, dado o risco
de perda da liberdade
119
e, segundo consta do Dicionário de Filosofia Política:
Entender a liberdade significa vivenciá-la, da quimera de alcançar
uma existência sem grilhões. Embora a liberdade derive da compreeno e
da internalização de uma existência sem amarras, é, decerto, distinta a tarefa
quando se trata de apresentar um conceito ou significado para a liberdade.
120
II.2. Os sentimentos, paies e vícios na órbita do indivíduo: a
etiologia da neurose.
O nascimento do homem começou com os primeiros membros da espécie
Homo sapiens e a história humana não é mais do que o processo inteiro desse
nascimento. Com efeito, centenas de milhares de anos se passaram antes que o
homem desse os primeiros passos em direção ao interior da vida humana; antes
ele perpassou uma fase narcisista de magia onipotente, de totemismo e de
adoração da Natureza, até chegar aos primórdios da consciência, da objetividade
e do sentimento fraterno.
119
Dicionário Enciclopédico ..., idem.
120
Op. cit., pág. 311, verbete: “liberdade”.
86
Quando ultrapassou um mínimo de adaptação instintiva, deixou de ser um
animal e, no entanto, ficou desamparado e sem preparo para a existência
humana, o que se evidencia ainda mais na sociedade moderna, em cujo conceito
completo e sistemático da psicanálise humanista exposto por Fromm, permite
vislumbrar a responsabilidade do homem moderno em uma sociedade que
alimenta, como interesse principal, não a promoção do valor humano e sim a
produção econômica. Portanto, sociedade na qual o homem perdeu o seu lugar
de figura central e dominante.
121
O fato de o nascimento do homem ser primordialmente um ato
negativo, qual o de arrancar à sua unidade com a Natureza, de não poder
regressar ao ponto de origem, implica não ser de forma alguma fácil o processo
do nascimento. Cada passo nessa nova existência é temeroso; significa sempre
o abandono de um estado firme, relativamente conhecido, por outro, novo,
ainda a ser dominado. Indubitavelmente, se a criança pudesse pensar, no
momento de lhe cortarem o cordão umbilical, experimentaria o medo.
122
O que se observa, nesse contexto, é que o homem foi arrancado de sua
situação original através do nascimento, situação essa que era seguramente
definida, assim como seus instintos.
Foi jogado em uma situação totalmente aberta, indefinida e incerta, tanto
que, tendo se tornado humano, lhe é possível alimentar certezas como o
passado, dada a sua imutabilidade, e, quanto ao futuro, somente a morte, dada a
sua ineorabilidade. A morte, aliás, paradoxalmente lhe remete ao passado, assim
entendido o ciclo básico da natureza que vai do estado orgânico (vida) para o
inorgânico (morte), para depois tornar-se orgânico novamente, na mesma
dimensão que a natureza fez estabelecer entre o trigo e o pão (vide Introdução
supra, pág. 30).
121
Silvio Firmo do Nascimento, op. cit., pág. 34.
122 Erich Fromm, Psicanálise da Sociedade Contemporânea, pág. 39.
87
Marcada a impossibilidade de retorno à Natureza, o homem é impelido a
viver a sua existência humana, jamais podendo descansar numa situação de
passiva adaptação à Natureza, sendo inapelável que nem mesmo a satisfação
inteira de suas necessidades vitais, como fome, sede e sexo, lhe resolverá o
problema humano, isto porque suas paixões e necessidades mais intensas não
são aquelas instaladas no seu corpo, mas na própria circunstância da sua
existência.
123
Enquanto seu corpo lhe diz o que comer ou rejeitar, a sua consciência
deve lhe dizer quais necessidades cultivar e satisfazer, e quais deixar sem
atendimento.
Enquanto a fome e o apetite são funções do corpo, a consciência precisa
da direção humana e dos princípios que só se desenvolvem com a cultura.
II.2.1. O desamparo e a angústia
As abordagens anteriores nos permitem concluir que os homens, antes de
serem o resultado do seu processo histórico, são animais que compartilham com
todos os demais de algumas capacidades, dentre elas, especialmente a de
locomoção e sensibilidade, estas suficientes para estabelecer o padrão básico de
relações de adaptação com o meio natural e que compõem o chamado
equipamento sico de sobrevivência. Como nem sempre os animais, e dentre
eles o homem, mantêm relações equilibradas com o meio ambiente, de modo
que nem sempre também, o pado adaptativo se mostra o mais adequado, isso
faz surgir situações novas, não controladas e que oferecem ou se apresentam
123 Idem.
88
como ameaça, provocando estado de desamparo biológico e de desespero
mental.
No homem, a reação a tais dificuldades adaptativas e que representam
situações de ameaça é de angústia, uma disposição afetivo-emocional diferente
diante do perigo iminente, o que afeta a estabilidade interior do indivíduo, o
equilíbrio do seu eu, e lhe suscita vidas quanto ao direito de existir. Não
unicamente do ponto de vista de sua existência física, mas também moral, de sua
identidade afetiva, do seu modo de ser, de sua história e personalidade.
Em situação de trauma intenso, como a morte de um ente querido, é
normal indagações do tipo: Por que isso? Por que comigo? Por que eu? Esse
espanto, característica tipicamente humana, ocorre porque o homem, separado
da natureza, necessita encontrar o sentido da realidade e o estado de angústia é
sinal de que a realidade que o cerca deixou de fazer sentido.
Realidade, portanto, é a circunstância real e imaginária que envolve o
indivíduo e que faz sentido para a consciência humana. Exatamente por isso, a
morte, porque não a conhecemos, não faz sentido.
Certo que o homem habita dois mundos distintos, o real e o imaginário, é
indispensável, para a sua higidez mental, que sempre haja uma ligação entre os
dois, pois, rompido esse elo, a realidade deixa de fazer sentido e a imaginação
corre o risco de cair no desvario, na loucura. Quando isso ocorre, o homem
experimenta um estado de desamparo, uma angústia que muitas vezes é vivida
como uma crise do pânico.
124
Sinal dos tempos posmodernos, em que a angústia e a sensação de vazio
nos toma o espírito, encontramos nas reflexões de Karl Jaspers densas
considerações sobre a História e o Presente em seu livro Introdução ao
124 Cf. José Auri Cunha, op. cit., págs. 76/77.
89
Pensamento Filosófico, através das quais o autor se depara com o binômio
consciência e autodestruição e aponta para uma evidência de desaparecimento
do homem, ao que parece, motivada pela aceleração da troca de bens e da
realidade que faz com que todas as coisas assumam caráter efêmero, seja a
habitação, o vestuário, o mobiliário, as economias etc., circunstância que nos
impele a viver o agora, traduzindo-se em verdadeiro colapso do sentido de
duração do mundo material que absorve a circunstância humana e ameaça o
próprio homem. No dizer do autor, A fé que se aninha no coração o mais
encontra linguagem eficaz para expressar-se. Tornam-se vazias as dimensões
da alma e o mundo se faz um deserto ou um triste teatro de prazeres.”
125
Nessa mesma senda Erich Fromm havia identificado, através da sua
obra O Espírito de Liberdade, que o maior desafio do homem consiste em
assumir um humanismo radical, uma filosofia global que destaque a unidade da
raça humana, a capacidade que o homem tem de desenvolver suas forças para
chegar à harmonia e fazer um mundo pacífico.
126
II.2.2. Vioncia e medo
Obstupui, steteruntque comae, et
vox faucibus haesit.
(Fiquei estupefato, meus cabelos se
arrepiaram e minha voz parou em minha
garganta).Virgílio, Eneida, II, 774
127
125
Pág. 30.
126
Cf. Silvio Firmo do Nascimento, A pessoa humana segundo Erich Fromm, pág. 38
127 Apud Montaigne, Os ensaios: uma seleção, pág. 55.
90
Gilles Lipovetsky, um filósofo francês, professor da Universidade de
Grenoble, é um teórico da hipermodernidade que analisa em suas obras a
sociedade posmoderna, marcada, segundo ele, pelo desinvestimento público,
pela perda de sentido das grandes instituições morais, sociais e políticas, aqui
revitaliza a interrogação que persiste em torno da violência:
[...] durante milênios, através de formações sociais bem distintas, a
violência e a guerra foram valores dominantes, a crueldade manteve-se com
uma legitimidade tal que pôde funcionar como ‘ingrediente’ dos prazeres
mais requintados. O que é que nos transformou tanto? (...) Torna-se
necessário continuá-la, prolongá-la
128
analisando a violência e a sua
evolução, nas suas relações nos três eixos maiores que são o Estado, a
economia e a estrutura social. (os destaques são nossos)
129
130
O medo, por sua vez, é componente útil à manutenção da vida e povoa a
existência humana de maneira mais acentuada que nos demais animais devido à
nossa capacidade imaginativa, como será melhor analisado adiante.
O educador A. S. Neill, escocês de nascimento e fundador da escola
democrática
131
, nos oferece, na obra citada, um testemunho pessoal capaz de
ilustrar como o medo atinge indiscriminadamente a todos.
Lembro-me da minha primeira lição de arremesso de bomba, quando
era recruta. Um dos homens errou ao atirar sua bomba por cima da
trincheira e ela, explodindo, derrubou alguns soldados. Felizmente, nenhum
foi ferido de morte. Por aquele dia o exercício com bombas terminou. Mas,
no dia seguinte, marchamos de volta ao campo de bombardeio. Quando
apanhei minha primeira bomba tinha a mão trêmula. O sargento olhou para
mim com desprezo e disse-me que eu não passava de um maldito covarde.
128 O autor destaca, aqui, as obras de Nietzsche, Tocqueville, Norberto Elias e P. Clastres em torno da mesma
indagação.
129 In A era do vazio. Tradução de Miguel Serras Pereira e Ana Luisa Faria. São Paulo: Relógio D´Água
Editores Ltda., 1989, pág. 161/162.
130
Outras obras do mesmo autor: O luxo eterno, O império do efêmero e A felicidade paradoxal: ensaio sobre a
sociedade do hiperconsumo.
131 Em 1921 fundou a Summerhill School, na aldeia de Leiston, Suffolk, Inglaterra, mais ou menos a cem
milhas de Londres, que se caracterizou pela pedagogia democrática, com repugnância por qualquer espécie de
opreso.
91
Confessei que o era. Esse sargento, cujas proezas levaram-no a receber a
Victoria Cross
132
, não conhecia o medo físico. Mas, não muito tempo
depois, confessava-me:
- Neill, detesto instruir uma companhia quando você faz parte dela. Fico o
tempo todo apavorado como um palerma.
Surpreendido, perguntei por quê.
- Porque vo é licenciado em Letras disse ele e eu assassino a
gramática.
133
Vivemos hoje, no entanto, em estado de violência.
Somente o ódio pode florescer numa atmosfera de medo”, adverte A. S.
Neil.
134
De fato, a insegurança e o medo instalados na vida cotidiana e
ordinariamente considerados sob o enfoque do poder e potência, portanto,
comumente respondidos com medidas restritivas e isoladoras
135
, o são
percebidos somente pelo exercício e pela condição da violência, mas também
por um estado de violência”, ostensivo ou dissimulado, que se incorporou à
cultura e ao imaginário individual e coletivo, transformando as relações sociais e
provocando a busca por novos espos de relacionamento, socialidade, proteção,
etc.
As causas possíveis do crescimento da violência, a qual, por sua vez,
estimula a sensação de insegurança e, em desdobramento causal, forma a base
de surgimento e de fortalecimento de um imaginário do medo, podem ser
estudadas, dentre outros níveis teóricos, sob o ângulo social, econômico,
132 Victoria Cross é uma condecoração instituída pela Rainha Vitória em 29 de Janeiro de 1856 e originalmente
destinada aos membros da Força de Defesa Australiana destacados por coragem suprema, desprezo pelo perigo e
completa devoção pelo dever.
133 In op. cit., págs.116/117.
134
Alexander Sutherland Neill. Liberdade sem medo (summerhill).Tradução de Nair Lacerda. São Paulo:
Instituição Brasileira de Difusão Cultural S/A. - IBRASA, 1970, pág. 116.
135 Explica-se: O sistema político não tem como, por exemplo, combater o medo de castrofe, de modo que a
única atuação que lhe é possível nesse sentido é combater o objeto do medo, o que insere um desvio negativo a
toda gestão pública de riscos, convertendo-a numa política de proibições e restrições, de sanções e limitações.
(Cf. José Luis Serrano, in Revista Novos Estudos Jurídicos. A diferença risco/perigo”. Vol. 14, n. 2 gs.
233/250. Granada - Espanha, 2º quadrimestre de 2009.
92
político, psicológico, religioso, antropológico, na mesma esteira deste ensaio,
sendo mesmo notável o destaque que questões desse gênero têm tomado os
espaços de reflexão e de investigação acadêmicos, sociais e culturais.
Os efeitos indesejáveis que resultam da violência, da insegurança
generalizada e do medo, sobretudo ante a notória falta de perspectivas
alentadoras e mesmo ausência de controle da dinâmica da violência em qualquer
nível, atravessam o cotidiano e interfere cada vez mais no comportamento
coletivo e individual, mercê da modificação de comportamentos sociais e
hábitos mentais.
A violência pode ser tratada do seu ponto de vista interno, ou seja, como
herança própria do processo de civilização que prossegue atuando como
elemento de constante estruturação da vida em sociedade, em permanente
dinamismo referenciado pelo confronto e pelo conflito, uma vez que a luta é o
fundamento de toda relação social. Embora todas as coletividades históricas
tenham envidado esforços no sentido de controlar a violência, nas sociedades
modernas esse controle e exercício se traduzem em uma violência
monopolizada, pretensamente neutra e abstrata, visando domesticar a paixão e a
agressividade. No entanto, certo que a violência o pode ser eliminada, deveria
haver uma atitude de negociação, com o intuito de socializá-la. Dada a sua
potencialidade, a violência pede um certo grau de socialização e de acordo, que
nas sociedades primitivas se dava, sabiamente, por mecanismos de ritualização,
permitindo que, de algum modo, ela fosse exteriorizada.
136
136 Michel Maffesoli, Lógica da dominação. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. (O autor é um sociólogo francês,
considerado um dos fundadores da sociologia do quotidiano e conhecido por suas análises sobre a pós-
modernidade, o imaginário e, sobretudo, pela popularização do conceito de tribo urbana. Antigo aluno de Gilbert
Durand, é professor da Université de Paris-Descartes – Sorbonne. Michel Maffesoli construiu uma obra em torno
da questão da ligação social comunitária e a prevalência do imaginário nas sociedades pós-modernas).
93
Georges Balandier, antropólogo e sociólogo francês e professor emérito
da Sorbonne (Universidade Paris Descartes), assegura que a violência sempre
esteve presente e sob controle nas sociedades tradicionais; do homicídio não
reprovado até os confrontos internos entre grupos e a guerras; da violência
formadora, via de educação e de socialização dos jovens, à oculta e insidiosa
(feitiçaria) ou aberta, sempre a postos, sem jamais ter sido totalmente reprimida,
ela é sabiamente domesticada e tratada ritualmente, como forma de prevenir-se
contra a sua subversão ou perturbação.
137
Contrariamente a esse traço cultural das sociedades tradicionais, nas
sociedades modernas, o monopólio e racionalização da violência provocam, de
um lado, o desencadeamento que não se consegue reprimir e, de outro, a
interiorização das normas.
138
Com isso ou a partir disso, reprime-se a manifestação e antagonismos
próprios de todo e qualquer corpo social e, ao mesmo tempo, promove-se uma
homogeneização da sociedade, além de, ao se desconsiderar a sua essência
ritualística, particularizando a violência, aquilo que seria a luta de todos contra
os outros, fragmenta-se e passa a ser a luta de cada um contra todos, pequena
guerrilha fundada na atomização que faz com que a violência se dilua em
agressividade mesquinha e cotidiana"
139
No campo da observação da interação entre medo e violência, não se
pode, ainda, deixar ao largo da análise a violência que dessai da crença
generalizada assentada na indicação de impossibilidade da mudança de rota
coletiva, o que provoca as novas gerações a acreditar no individualismo
137 In A desordem: Elogio do movimento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.
138Idem, págs. 208/211.
139 Maffesoli, pág. 19.
94
extremo, não obstante os riscos que isto possa representar para a convivência
gregária e solidária.
140
II.2.3. O medo
141
e o imaginário do medo
142
Tudo é dor e toda dor vem do desejo
de não sentirmos dor.
143
(Renato Russo/ Legião Urbana
144
)
O medo é comumente descrito como sentimento imaginário, de ameaça,
pavor, temor, receio
145
e atua sobre nossas vidas de diversas maneiras, sendo
básica sua manifestação através da preparação do organismo para a luta ou para
a fuga. Quando, por exemplo, decorre de perigo real, o sentimento de
preservação da vida, o instinto primitivo herdado de nossos antepassados, é
comandado pelas forças libidinais forças de Eros –, as mesmas da nossa
140 Mário Sérgio Cortella, op. cit., pág. 40.
141 O encadeamento entre medo, incerteza e vida é tão certo para a desestabilização do homem que essa
prática se tornou recorrente no mundo publicitário, comercial e industrial, consistente em desacreditar o
concorrente através da disseminação de contra- informação sobre um produto rival. Não obstante a imoralidade,
muitos países a admitem. Medo, incerteza e dúvida é o significado da abreviação FUD (do inglês Fear,
Uncertaintyand Doubt).
142 O termo "imaginário" é aqui utilizado, na esteira do que fazem as pesquisadoras Maria Cecília Sanches
Teixeira, Maria do Rosário Silveira Porto (vide conteúdo da nota 141 abaixo), segundo um dos sentidos que lhe
atribui Gilbert Durand (in As estruturas antropológicas do imaginário. Lisboa: Presença, 1989), como "(...)
conjunto de imagens e de relações de imagens que constituem o capital pensado do homo sapiens" (pág. 41).
Gilbert Durand, nascido em 1921, é um universitário francês conhecido por seus trabalhos sobre o imaginário e
mitologia. Professor de filosofia de 1947 a 1956, professor titular e professor emérito de sociologia e de
antropologia da Universidade de Grenoble II.
143 In Quando o Sol Bater na Janela do Seu Quarto”, música do álbum Como é Que Se diz Eu Te Amo. Rio de
Janeiro: EMI-Odeon, 2001.
144 Legião Urbana foi uma banda brasileira de rock surgida em Brasília/DF, ativa entre 1982 e 1996. Ao todo,
lançaram treze álbuns, somando mais de vinte milhões de discos vendidos. Ainda hoje, é o terceiro maior grupo
musical, da gravadora EMI-Odeon, em venda de discos por catálogo, no mundo, com média de duzentas mil
pias por mês. O fim do grupo foi marcado pelo falecimento de seu líder e vocalista, Renato Russo, em 11 de
outubro de 1996.
145 “Medo. (ê) s. m. (Do lat. metus). 1. Sentimento de inquietação, de apreensão em face de um perigo real ou
imaginário. – 2. Apreensão, receio, temor, sobressalto. //Não ter medo de careta, não temer ameaças. // Ter medo
da própria sombra, ter muito medo, ter medo de tudo. // Muito medo e pouca vergonha, temer o castigo mas
cometer a falta. (Grande Dicionário Larousse Cultural da Língua Portuguesa. São Paulo: Editora Nova
Cultural, 1999, pág. 604, verbete “medo”).
95
sexualidade e, portanto, energia vital. O tronco cerebral manda mensagem para
que o coração bombeie mais sangue para os músculos, para que os pulmões
forneçam mais oxigênio às células e para que as glândulas suprarrenais secretem
maior quantidade de adrenalina, mecanismo de ativação do tônus muscular e de
dilatação das pupilas. Nesse sentido, frente a uma ameaça real, capaz de sua
destruição, o ser humano, sempre visando a preservação da vida e dotado de
uma força descomunal, reage em sintonia com o universo. Por outro lado, diante
dos medos imaginários, ou seja, aqueles instalados não por qualquer ameaça real
iminente, mas por crença, superstições ou modismos sociais, o homem alimenta
doenças e sofrimento. Com efeito, as respostas emocionais de medo foram
mantidas pelo organismo também para ameaças subjetivas, como, v.g., quando
numa apresentação em público, uma pessoa experimenta um sentimento
semelhante com o que manifesta diante de uma cobra
A discussão sobre o medo, não obstante permitir abordagens variadas, o
expõe como componente básico da experiência humana, ou seja, uma emoção
básica não do sujeito, mas em diferentes formas de vida e, em sentido estrito,
é concebido como emoção-choque devido à percepção de perigo presente e
urgente que ameaça a preservação do indivíduo.
146
146 Emoção. s.f. (Do lat. hipot. emotio). 1. Abalo moral ou afetivo; perturbação, geralmente passageira,
provocada por algum fato que afeta o nosso espírito (boa, ou má notícia, surpresa, perigo). 2. Reação afetiva
transitória, de grande intensidade, habitualmente provocada por uma estimulação vinda do meio ambiente.
3.Impulso que gera os sentimentos, tanto conscientes como inconscientes.” (Grande Dicionário Larousse
Cultural da Língua Portuguesa. o Paulo: Editora Nova Cultural, 1999, pág. 349, verbete “emoção”). Ou
“Emoção (Gr. πάδος; lat. Affectus ou Passio; in. Emotion; fr. Emotion; al. Affekt; it. Emozione). Em geral,
entende-se por esse nome qualquer estado, movimento ou condição que provoque no animal ou no homem a
percepção do valor (alcance ou importância) que determinada situação tem para sua vida, suas necessidades, seus
interesses. Nesse sentido, no dizer de Aristóteles (Et. Nic., II, 4. 1105 b 21), a E. é toda afeição da alma,
acompanhada pelo prazer ou pela dor, sendo o prazer e a dor a percepção do valor que o fato ou a situação a que
se refere a afeição tem para a vida ou para as necessidades do animal. Desse modo, as E. podem ser consideradas
reações imediatas do ser vivo a uma situação favorável ou desfavorável: imediata, porque condensada e, por
assim dizer, resumida no tom (agradável ou doloroso) do sentimento, que basta para por o ser vivo em estado de
alarme e para dispô-lo a enfrentar a situação com os meios que tem”. (Do Dicionário de Filosofia de Nicola
Abbagnano, com tradução primeira de Alfredo Bosi (São Paulo: Martins Fontes, edição, 2.007, pág. 363,
verbete “emoção”).
96
Para melhor compreensão quanto à instalação do medo no organismo
humano e assim perceber suas propriedades físicas e psicogicas, imaginemos
uma situação cotidiana em que se está em casa sozinho, em silêncio total, com
exceção do som proveniente da TV ligada. Ouve-se um barulho na porta da
frente. A respiração acelera, o coração dispara e os músculos enrijecem. Um
segundo depois, percebe-se que não há ninguém tentando entrar em sua casa, era
apenas o vento. Mas, por um segundo, o homem sentiu medo e reagiu como se
estivesse em perigo.
O medo provoca uma reação cerebral em cadeia, iniciando-se por um
estímulo de estresse e terminando com a liberação de compostos químicos que
causam o aumento da frequência cardíaca, aceleração na respiração e
energização dos sculos. O estímulo pode ser uma aranha, um auditório cheio
a espera de um seu pronunciamento ou a batida na porta de sua casa. O cérebro é
um órgão composto por uma intrincada rede de comunicações entre as mais de
100 bilhões de lulas nervosas, que são ponto inicial de tudo que sentimos ou
fazemos. Algumas dessas comunicações levam ao pensamento e à ão
consciente, enquanto outras produzem respostas autônomas.
ao tempo anterior da Segunda Guerra Mundial o médico, cientista e
escritor espanhol Gregorio Marañón produzia ensaios sobre endocrinologia,
especialmente interessado nas descargas de adrenalina no organismo e do nível
desse hormônio como meio de explicação dos processos da emoção.
147
As respostas ao medo são quase inteiramente autônomas, pois o as
iniciamos conscientemente. Com efeito, o processo de criação do medo acontece
no rebro, é totalmente inconsciente, começa com um estímulo assustador e
termina com a reação de luta ou de fuga.
147 Apud Mário rgio Cortella, op. cit., pág. 124.
97
Dois caminhos são envolvidos simultaneamente na reação de medo: o
caminho baixo, que é pido e desordenado que provoca, invariavelmente, a
idéia “não arrisque”, e o caminho alto, mais ponderado, demanda um tempo
maior para uma interpretação mais precisa dos eventos, refletindo sobre todas as
opções (exemplo: Será um ladrão ou será o vento? Se a porta de sua casa
repentinamente bate, pode ser o vento, mas também pode ser um ladrão tentando
entrar. É muito menos perigoso presumir que se trata de um ladrão e descobrir
que era o vento, do que presumir ser o vento e surpreender-se com um ladrão
à sua frente).
148
É fato que o homem moderno não mais precisa lutar pela vida na selva, o
que não significa que o medo tenha desaparecido. Muito ao contrário,
permanece intenso e servindo ao mesmo propósito de preservação, embora os
estímulos tenham mudado de fisionomia. O fato é que as emoções atingem o
máximo de sua complexidade no homem, com a participação das funções
cognitivas e interferências culturais.
A maioria de nós jamais esteve perto da peste bubônica
(epidemia que atacou a Europa na época medieval), mas nosso coração pára
ao vermos um rato. Para o ser humano, além do instinto, também há outros
fatores envolvidos no medo. O ser humano pode ter o dom da antecipação,
o que nos faz imaginar coisas terríveis que poderiam acontecer: coisas sobre
as quais ouvimos, lemos ou vimos na TV. A maioria de nós nunca vivenciou
um acidente de avião, mas isso não nos impede de sentar em um avião e
agarrar firme nos apoios dos braços. A antecipação de um estímulo de medo
pode provocar a mesma reação que teríamos se vivêssemos a situação real e
isso também é um benefício obtido com a evolução.
149
Não podemos deixar afastar da meria, como fatores externos que
contribuem de modo inquestionável para a escalada da violência, as condões
sócio-econômicas, os níveis cada vez mais elevados de miséria, a crescente
148 Cf. Julia Layton. "HowStuffWorks - Como funciona o medo". Publicado em 13 de setembro de 2005
(atualizado em 14 de julho de 2008) http://pessoas.hsw.uol.com.br/medo.htm (Capturado em 04 de março de
2010).
149 Idem.
98
deterioração do ensino blico, o distanciamento entre a escola e a tecnologia
que se sofistica a cada dia, a acentuada carência de equipamentos e de políticas
públicas de esporte e lazer destinados às crianças e aos adolescentes, contexto
em que a violência deve ser entendida como resultado negativo de uma ordem
social rbara que precisa ser controlada seja a que custo for, como reação a
uma sociedade de exclusão, de rejeição, expressões de xenofobia e de recusa do
outro.
150
Tudo isto contribui para o desenvolvimento de um imaginário do medo,
cujas conseqüências, de regra, estimulam o aumento da violência ou tratamento
inadequado da mesma.
De acordo com os escólios das pesquisadoras Maria Cecília Sanches
Teixeira e Maria do Rosário Silveira Porto, ambas professoras da Faculdade de
Educação da Universidade de São Paulo:
Esse imaginário do medo, bem como sua concretização, tem suas
raízes paradoxalmente fincadas, por um lado, numa crença infinita na razão,
que pretende explicar o medo por meio do conhecimento científico e
eliminar simultânea e gradativamente formas simbólicas de tratá-lo; por
outro, num excessivo individualismo próprio do liberalismo moderno (self-
made man), que vem promovendo, cada vez mais, o distanciamento entre os
indivíduos. Ambas as atitudes - racionalizadora e individualista - têm como
fundamentos justificadores e legitimadores uma visão etnocêntrica
predominante, cujas conseqüências concretas são a marginalização e a
exclusão do diferente, do Outro.
Teixeira (1992), preocupada com o problema da marginalidade e da
exclusão no que se refere à escola, colocou tais questões no âmbito da
discussão sobre identidade e alteridade. Citando R. Dadoun (1985)
151
, um
antropólogo francês, a autora discorre sobre o fato de que, para afirmar sua
identidade, uma sociedade ou instituição cria a imagem do Outro. No caso
da sociedade moderna, a razão ocidental desprende dela mesma partes
irracionais para compor, no mesmo movimento, essa imagem do Outro e da
sua própria identidade, essencialidade, normalidade. Ainda segundo Dadoun
(apud Teixeira, op. cit.), a essa identidade racional contrapõem-se as três
imagens de alteridade mais significativas do Ocidente - o louco, o selvagem
e a criança -, às quais poderíamos acrescentar as do homossexual, do
favelado, do migrante, do negro, enfim, todas aquelas que fogem à imagem
ideal do homem ocidental, ariano.
150 Cf. Georges Balandier, op. cit., pág. 212.
151
As autoras se referem à obra “Mais quel occident? Quels autres?(En Marge: L´occident e ses “autres”.
Colloque de Rome, 1985, págs. 11/21), do autor Roger Dadoun (1928), psicanalista, filósofo e poeta.
99
Nesse sentido, continua a autora, todos os que não se enquadram nos
padrões de normalidade vigentes são suspeitos; em decorrência, sofrem as
conseqüências do estigma e da exclusão. Completaríamos a assertiva,
lembrando que o criadas instituições para controlar, domesticar e reeducar
o diferente: escolas de todos os tipos, reformatórios, prisões, asilos,
manicômios etc., medidas que o fazem mais que alimentar o imaginário
do medo.
152
As autoras em destaque, referindo-se a um trabalho de Maria Milagros
López, da Universidad de Puerto Rico
153
, oferecem como conclusão que: 1) o
imaginário do medo é alimentado por dados reais ou imaginários; 2) o medo
consubstancia-se em objetos historicamente determinados; 3) ao mesmo tempo
em que o imaginário do medo coloca todos contra tudo, estabelece uma rede de
relações que fortalece a solidariedade e a socialidade entre os membros do
grupo, que se unem pelo sentimento comum de insegurança; 4) a insegurança e
o medo, reais ou imaginários, provocam novas medidas de segurança, que,
paradoxalmente, reproduzem-se em novas bases.
Para os antigos o medo não era interiorizado, posto que personificavam as
paixões em divindades e, por isso, concebiam-no como ira ou punição dos
deuses, razão porque, os gregos, por exemplo, principalmente em tempo de
guerra, buscavam harmonia com Deimos
154
e Phobos
155
, respectivamente deuses
do temor e do medo. Com o objetivo de furtarem-se ao poder aprisionador
dessas divindades, para que a força dos mesmos o se abatesse sobre seus
152 Maria Cecília Sanches Teixeira, Maria do Rosário Silveira Porto. Cadernos CEDES vol.19, n.47.“Violência,
insegurança e imaginário do medo”. Campinas/SP: Dec. 1998 version Print ISSN 0101-3262.
153 Trata-se de Notre peur de tous lês jour: imaginaire de l´insecurité et la militarisation de la vie
Quotidienne (Nosso medo a cada dia: a imaginação da insegurança e da militarização da vida cotidiana – t.l.a.),
trabalho apresentado no Colóquio Internacional de Sociologia da Vida Cotidiana, realizado na Université René
Descartes – Sorbonne – Paris, em 1988.
154 Deimos é uma palavra grega que significa pânico. Na mitologia grega, Deimos, que personifica o terror, é
um dos filhos de Ares (Marte), o deus da guerra, e de Afrodite (Vênus) e irmão de Phobos. Este, tal como seu
irmão, sempre acompanhava o seu pai durante as batalhas.
155 Phobos é a palavra que significa medo e que serve de raiz para a palavra fobia. Na mitologia grega a união
entre Marte e Vênus fez gerar quatro filhos, a saber: três homens (Deimos, Phobos e Cupido) e uma mulher
(Harmonia).
100
espíritos e tomasse suas almas, praticavam oferendas para assim desviar-lhes a
atenção.
156
-se, pois, que na Antiguidade o medo não era tido como manifestação
de algo interno ao indivíduo, de sua individualidade, mas expressava uma força
externa que vinha se manifestar no sujeito como experiência subjetiva, a
exemplo da paixão.
Com o passar do tempo, porém, o medo e de resto todas as emoções -
sofreu intenso e paulatino processo de internalização, sendo que os autores em
geral
157
sublinham a importância da Idade Média e da Igreja nesse intento de
estruturação de uma vida subjetiva interiorizada, destacando, mais, que a
Inquisição, direcionando suas investigações para descoberta do Anticristo e
anunciando o Juízo Final, muito contribuiu para a difusão da teologia como
discurso do medo de si próprio, disseminando o medo da condenação eterna, do
fogo do inferno, do não encontro com Deus e, simultaneamente, provocando
introspecção através da qual se podia combater o pecado mediante autocontrole
de conduta e de elevar-se à pureza. Por esse processo, os mecanismos de
controle, antes exercido por terceiros, são convertidos em autocontrole do
sujeito na conduta e na moderação das emoções, de modo que práticas humanas
reconhecidas como animalescas passam a ser progressivamente excluídas da
vida comunal e substituídas por sentimentos de vergonha. Portanto, a regulação
cada vez mais estável, uniforme e generalizada da vida instintiva e afetiva,
registra uma notável mudança psicológica durante o processo de
desenvolvimento da civilização, especialmente se observada desde o homem
medieval, que não tinha o bito de controlar suas paixões, aspecto que
156 Cf. Luciana de Oliveira dos Santos. Psicologia: ciência e profissão. O medo contemporâneo: abordando
suas diferentes dimensões. Brasília. jun. 2003, vol. 23. nº 2, págs. 48/49 – ISSN 1414-9893.
157 Ver, por todos, Noberto Elias. O processo civilizador. Vol. 2: Formação do Estado e Civilização. Tradução
de Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 1993, págs. 193 e seguintes.
101
confirma o fato de o medo ter se tornado emoção singularizada, interiorizada no
indivíduo, constituindo o seu psiquismo, parte do seu repertório emocional.
158
Nas primeiras décadas do século XX Freud descrevia o que entendia por
mal-estares sociais daquele tempo, inscrevendo na coletividade a origem e a
construção do sofrimento psíquico e tomava, como principal causa a insatisfação
imposta pela sociedade patriarcal de então, em que a religião tinha peso
relevante, com uma moral sexual castradora, ou seja, que impunha aos
indivíduos pesadas renúncias de desejos e fantasias. N´outras palavras, havia
uma repressão social associada à renúncia dos indivíduos a seus impulsos, fator
que, afora servir de obstáculo à infelicidade, insatisfação ou espécie de mal-estar
como resultado das restrições culturais, permitia ao mesmo nutrir o sentimento
de pertencer à sociedade.
159
Em simetria à afirmação acima, de que vivemos em estado de violência,
oferece-se oportuna a assertiva de que os tempos atuais, de crescente violência,
com quadro social em permanente mudança e sem garantias, disseminam o
medo e a insatisfação, a ponto de sermos levados a admitir a existência de um
estado generalizado de insegurança existencial.
Contemporâneos de uma era de globalização, que trouxe como
subprodutos ocidentais o individualismo e o consumismo, vemos crescer o
sentimento difuso e generalizado de desamparo e de vigilância contínua, em que
a busca por mecanismos defensivos alimenta um mercado consideravelmente
aquecido de sistemas de segurança e de defesa pessoal, o que dá visibilidade a
condomínios cada vez mais fechados e fortemente vigiados, automóveis com
vidros fechados, ambientes monitorados por sensores de presença, de ruptura, de
pressão, infravermelho ativo, etc.
158 Cf. Norberto Elias, op. cit., pág. 194.
159 O trabalho de Freud aqui referido está inserido em Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud.
Edição Standard Brasileira, Volume XXI. Mal Estar na Civilização”. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1996,
pags. 73/148.
102
Nesse contexto, em que o ter significa, no mais das vezes, a sobrevivência
social dos indivíduos, assim entendida a sua participação associada ao
sentimento de pertencimento ao grupo social, o é exagero inscrevermos o
seguro como mecanismo de suprema importância na vida contemporânea, o
qual, mercê de sua indispensabilidade, integra o que acima identificamos como
equipamento sico de sobrevivência (vide acima, item II.2.1. O desamparo e a
angústia, pág. 104).
O psicólogo e criminologista Domingos Barroso da Costa, na
apresentação de sua recentíssima e festejada obra A crise do supereu e o caráter
criminógeno da sociedade de consumo (Curitiba: Juruá, 2010), comenta sobre o
medo que predomina inclusive nas relações interpessoais, posto que elas não
mais se escoram, como cerca de trinta anos passados, em valores que garantiam
às partes mútua confiança estabelecida a priori. As matrizes axiológicas vêm se
alterando de modo tão acentuado, a ponto de não se poder mais usar o termo
“família” para designar uma célula social, isto em face das múltiplas
conformações familiares atualmente reconhecidas pela sociedade e protegidas
pelo Direito, sendo, portanto, adequado referir-se a “famílias”.
160
Luciana de Oliveira Santos, com suporte em escólios de Jurandir Freire
Costa, colhidos da obra Sem fraude nem favor: estudos sobre o amor romântico
(Rio de Janeiro: Rocco, 1998), adverte:
[...] vivemos em um mundo pobre de Ideais do Eu, onde não a força
dos meios tradicionais de doão da identidade como a família, a religião, o
pertencimento político, o pertencimento nacional, a segurança de trabalho, o
apreço pela intimidade, regras mais estritas de pudor moral, preconceitos
sexuais etc. (...) a matriz da identidade se inscreve no corpóreo, como também
os delírios, os fantasmas de desestruturação, de fragmentação, de fragilidade. O
medo é inscrito no corpo. A modalidade de identificação que anteriormente
possuía um referencial identificatório em Deus agora se inscreve no corpóreo.
O que mudou foi a natureza sentimental. (...) Em um mundo onde falta de
160
Op. cit., pág.13.
103
perspectivas futuras, onde o se tem modelos identificatórios, em que a
descrença na justiça, na lei, no que é transcendente, o que importa é o presente,
a fruição das sensações presentes; a boa vida se dá através dos cultos às
sensações. O medo já o é mais sacralizado, não tem mais relação com Deus,
é inscrito no corpo sob a forma de nico. Há uma invasão de sentimentos de
incerteza, fragilidade, insegurança, fragmentação, como maneira decomposta,
banalizada, de uma experiência que antes era tão densamente carregada como o
medo. Não faz parte mais do trágico, mas do comum; o medo aparece o tempo
todo, criando-se inclusive estratégias para lidar com essa emoção, sendo uma
delas o medicamento. O medo surge inscrito no corpo, o grande medo o de se
descontrolar, de perder o controle corporal.
161
É normal e é bom sentir medo, pois, conscientes da presença de um risco
ou de um mal, nos protegemos da exposição ao perigo e preservamos a vida.
No entanto, certo que o medo nasce do perigo, não é menos certo que ele
também nasce das incertezas, em cujas entranhas pode estar escondido um
perigo real, mas, no mais das vezes, pode estar morando um perigo imaginário.
A esse respeito é ilustrativa a experiência de Robinson Crusoé, a quem se
atribui a seguinte afirmação, que o mesmo teria dirigido ao amigo Sexta-Feira:
[...] se uma coisa que aprendi aqui, é que o medo do perigo é
sempre muito maior do que o próprio perigo.
162
II.2.4. Incerteza, insegurança, ansiedade ...
Primeiramente, é preciso referir que o fator de incerteza nem sempre
provoca no indivíduo uma perda líquida representada pelo medo, havendo
situações em que ela pode até aumentar a possibilidade de resultado favorável, o
que é considerado pelos economistas como “dominância estocástica”
163
,
161 Op. cit.
162 In Daniel Defoe. Robinson Crusoe. São Paulo: W.M. Jacson Inc. Editores, 1955.
163
“O termo ‘estocásticoé de origem grega e foi utilizado pelos autores ingleses no século XVI no sentido de
designar ‘aquele que pre o futuro objetivando a verdade’. Daniel Bernoulli, no seu Ars Conjectandi (1719), faz
referências a processos estocásticos, mas a palavra caiu em desuso desde então, sendo retomada no século XX.
104
conforme é lembrado por Pierre-And Chiappori
164
através de uma
exemplificação: imaginemos um cultor que sabe certo o acometimento de uma
doença sobre suas roseiras e que se vale de um tratamento preventivo vacinal
para obter uma pequena hipótese de ver poupadas as suas plantas.
165
Pom, diferentemente da situação em que se encontrava o cultivador de
roseiras acima, a situação que oferece dado de certeza sobre os resultados de
determinados eventos, mas não a probabilidade de eles ocorrerem, ou seja,
quando estamos diante de probabilidades desconhecidas, independentemente da
certeza de certos eventos, a situação denomina-se incerteza e fala-se em risco.
Exemplificando, embora saibamos com certo grau de certeza sobre as
consequências de um evento sobre um interesse, mas não podemos precisar
sobre se o evento ocorrerá ou não, ai estamos na situação mencionada de
incerteza e risco.
166
A consciência imaginativa do homem, que lhe permite transcender o
momento presente, acarreta o flagelo involuntário de deduzir a finitude da vida e
determina a sensação de impotência, mercê da dicotomia insuperável entre a
vida e a morte, verdade universal que representa o nascedouro de todas as suas
motivações psicogicas.
De uma forma geral, é o modelo que contém pelo menos um elemento aleatório, sendo portanto seu resultado
pobabilístico. Opõe-se ao modelo determinístico. Atualmente, denomina-se modelo estocástico um conjunto de
equações que descrevem a relação entre duas ou mais variáveis aleatórias com probabilidades definidas e não
necessariamente iguais e dependentes de uma variável o-aleatória, que é um elemento de variação contínua
(como o tempo, por exemplo). Apesar da inexatidão, os modelos estocásticos são representações reduzidas de
situações complexas e por isso costumam ser usados no estudo das interações humanas.” (cf. Paulo Sandroni.
Dicionário de Economia do Século XXI.ed. Rio de Janeiro: Editora Record, 2007, g. 561, verbete: modelo
estocástico).
164
Especialista em microeconomia dos lares e em análise econômica dos problemas de incerteza e de
informação, é autor de numerosos artigos publicados em revistas científicas francesas e internacionais, além de
produzir diversos relatórios destinados a organismos blicos. É professor de economia na École Normale
Supérieure, do Département et Laboratoire d´Economie Théorique et Appliqué e na Universidade de Chicago.
165
Risco e Seguro,g. 31.
166
Paulo Sandroni, op. cit., págs. 416 (verbete: incerteza) e 737 (verbete: risco).
105
Vivendo os males da modernidade em meio a uma era de incertezas, de
insegurança existencial, como afirmamos acima, sentimos os efeitos da
desconfiança com relação à política, à economia, à paz mundial, o que nos vêm
através de noticiários diários de desaquecimento da economia, de crescimento
dos índices de desemprego, da insegurança que não é física, mas também
social, moral. Os medos morais de perder o emprego, de faltar dinheiro, são
preponderantes se comparados com os medos físicos, como os de assaltos,
seqüestros, terrorismo, epidemias, etc. Essa dinâmica nos informa sobre a
ambivalência dos sentimentos humanos, com especial atenção para a ansiedade,
vez que, nela, podemos identificar um sentimento ruim, injustificado e que deve
ser dominado (i.e., a ansiedade causada pelo prenúncio do medo), ao passo que
certas ansiedades passíveis de serem tidas por aceitáveis, compreensíveis ou
justificadas (i.e., a ansiedade provocada pela expectativa de prazer), o que pode
anunciar a diferença essencial entre a ansiedade pura e simples, ou seja, uma
manifestação fisiológica de um estado de atenção associado ao instinto de
preservação da vida, sintoma não normal como também desejável e, de outro
lado, o transtorno de ansiedade, que faz desencadear um sentimento de
ansiedade desmedido e injustificado, quando o mais se trata de
manifestação fisiológica do organismo e sim de uma patologia que provoca
sofrimento e recomenda cuidado se o quadro se torna recorrente e constante. O
transtorno de ansiedade se submete a diagnóstico médico não como oscilações
emocionais, mas como fobias.
167
Como se vê, no medo uma ruptura da linha demarcatória do tempo que
traz para o presente o sentimento de insegurança que se projeta sobre uma
possibilidade, portanto do devir, o que revela, pois, ansiedade, ou seja, estado
afetivo que prende o indivíduo no medo do futuro, alimentando a vida em
167 Eunio Mussak, Ansiedade, artigo produzido para a revista Você S/A, da editora Abril, colhido no site:
http://vidasimples.abril.com.br/edicoes/046/pendando_bem/conteudo_236989.shtml
106
torno de um desejo ou de um temor e suprimindo o equilíbrio emocional e
psicológico para que a pessoa viva o momento presente. Com efeito, o ansioso
não vive o presente e, assim, não exerce sua plenitude na capacidade de criar, de
transformar, enfim, de ser completo, de viver consigo próprio, de ser feliz.
Longe disso, se encontra num estado de anstia, sempre faltando algo, como se
o mundo não fosse capaz de lhe proporcionar tudo o que precisa.
Trata-se, a olhos vistos, de um processo de alienação psicológica, de
neurose, enfim, de uma psicopatologia social, conforme Erich Fromm trata
psicanaliticamente a sociedade
168
, em que a pessoa, quando em contradição com
as exigências do grupo a que pertence, se revela capaz de qualquer expediente
ao seu alcance como forma de fugir ao cruel isolamento social.
Quanto maior o grau de incerteza maior a angústia causada pela
insegurança que isso representa, dado que opera efeito negativo sobre o
comportamento do ser humano, com reflexo desinteressante para a vida
social, na medida em que, nesse plano, a incerteza acarreta uma perda
líquida que se adiciona às perdas materiais reais desencadeadas pela
ocorrência dos eventos desastrosos. Por perda líquida entenda-se a total
ignorância sobre o volume, os locais e as datas das perdas futuras, caso em
que o homem é afetado com maior impacto negativo do que seria se
soubesse previamente sobre as perdas que viria suportar.
169
Para além de tratar-se de uma projeção para o futuro, o medo reúne ainda
a capacidade de desviar a acuidade do indivíduo sobre o seu eu, impelindo-o a
buscar na realidade exterior as explicações para o seu desencanto e, com isto,
propiciando o inexorável encontro com o outro. De fato, desde que a ansiedade e
a insegurança se encontram instaladas na existência individual, no eu,
enfrentando o medo de isolamento, de exclusão ou mesmo de não
168 In Meu Encontro Com Marx e Freud. Tradução de Waltensir Dutra. 7ª Ed. Rio de Janeiro: Editora
Guanabara, 1986, p.121.
169 Vide nossa dissertação O Contrato de seguro Privado e os Controles de Abusividade, págs. 36/37
107
pertencimento, elegemos nosso semelhante para nele encontrar o alívio de
reconhecer-se humano, social.
170
Trata-se, como se sabe, de busca pela verdade, o que exige uma atitude de
superar a incerteza e de afastar da insegurança. Se preferirmos, trata-se da busca
pela felicidade, uma vez que ela - a verdade -, surgindo no espírito humano,
serve de parâmetro de delimitação entre imaginação e realidade e, ao mesmo
tempo, faz dissipar a vida, que nada mais é que a incerteza de uma pretensa
verdade, a incerteza a respeito de determinado evento, sem o concurso da
vontade.
Mas, paradoxalmente, nem mesmo o homem livre, ou seja, aquele que se
desprendeu da alienação neurótica e que, portanto, vive sob suas próprias
convicções e desejos, que atinge os seus objetivos, se aproximando assim da
sensação de felicidade que se faz representar através de paz interior, equilíbrio
emocional e alegria íntima, nem mesmo esse indivíduo estará livre da
insegurança e angústia, vez que o atingimento desse estado faz desencadear uma
sensação de medo difuso e ainexplicável, aquele que não se identifica com
nenhum perigo espefico, real ou imaginário.
De fato, recebemos as coisas boas com alegria, mas também com temor,
visto que as tomamos como prenúncio de algo ruim, sob o contágio da idéia
comum de que a felicidade atrai desgraça. É que a felicidade e a alegria, embora
sejam experiências subjetivas, são a resultante de interações e de dependência de
170 Escrevendo sobre estratégia de desenvolvimento baseada no “controle social das necessidades”,
AlbertTévoédjré assevera: Todos nós aprendemos nos livros escolares: a mais simples definição de homem é
que ele é um `animal racional´. Se não se quiser, portanto, reduzi-lo a um ‘porco de engorda, é preciso
compreender em uma única e idêntica visão estes dois componentes ontológicos do ser humano. O
desenvolvimento é, então, aquilo que favorece em nós a satisfação de todas as necessidades essenciais, inclusive
as da razão, e portanto do espírito. Se integrarmos, segundo esta ótica de equilíbrio material e espiritual, o
critério de saúde mental na definição do grau de desenvolvimento, [...] seria necessário reconsiderar sob nova
perspectiva as condições de um país assim chamado ‘desenvolvido’, quando 30% dos seus doentes
hospitalizados estão internados em clínicas psiquiátricas”. (A Pobreza, Riqueza dos Povos. A Transformação
pela Solidariedade, pág. 28).
108
condições objetivas, que podem ser resumidas em produtividade, não devendo,
pois, ser confundidas com experiência meramente subjetiva do prazer.
171
Nesse sentido, permanecer onde estamos, sem nos mover para frente e
confiar no que possuímos é tentador, vez que, conhecer aquilo que temos nos
permite agarrá-lo e sentirmo-nos seguros nele, ao passo que, se dermos um
passo em direção ao futuro estaremos rumando ao desconhecido. Receamos e
até pretendemos evitar dar esse passo em direção ao incerto, porque antes dele
tudo parece perigoso e, portanto, temerário seja feito.
172
II.2.5. Perigo e risco
Viver é muito perigoso.
(Guimarães Rosa)
173
Niklas Luhmann, no seu livro Sociologia Del Riesgo (Universidad de
Guadalajara: UNAM, 1992, pág. 67) nos oferece segura diferenciação entre risco e
perigo.
Esta distinción supone (y a se diferencia precisamente de otras
distinciones) que hay uma incertidumbre com relación a daños futuros. Se
presentam entonces dos posibilidades. Puede considerarse que el posible
daño es una consecuencia de la decisión, y entonces hablamos de riesgo y,
más precisamente, del riesgo de la decisión. O bien se juzga que el posible
daño es provocado externamente, es decir, se le atribuye al entorno; y em
este caso, hablamos de peligro.
171 Vide, a respeito, Erich Froom. Análise do homem, pág. 157.
172 Erich Fromm, Ter ou Ser?. Tradução de Nathanael C. Caixeiro. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976,
g.115.
173 Apud Mário Sérgio Cortella, in Não Nascemos Prontos! Provocações filoficas. Petrópolis/RJ: Editora
Vozes, 2008, op. cit., pág. 67.
109
Vertido para o português:
Esta distinção supõe (e assim se diferencia de outras distinções) que
existe uma incerteza com relação aos danos futuros. Duas possibilidades,
então, se oferecem. Pode-se considerar que os danos possíveis são
conseqüência de uma decisão e, então falamos de risco, mais propriamente
risco da decisão, ou julga-se que os danos possíveis são provocados
externamente, vale dizer, atribuído ao ambiente e, neste caso, falamos de
perigo.
174
No nosso vernáculo, risco é possibilidade de perigo, inconveniente ou
fatalidade muito possível de realizar-se, enquanto perigo se traduz em situação,
conjuntura ou circunstância que ameaça a existência de uma pessoa ou uma
coisa. Mas, consultados os respectivos verbetes, constatamos serem eles dados
como sinônimos.
175
Antenor Nascentes nos traz certa diferenciação através da
seguinte explanação:
Perigo, risco Perigo é uma situação em que se teme mal iminente,
muito próximo, imediato, em que se está exposto a perecer. Risco é mal
possível, que o está muito próximo, com possibilidades de bom êxito.
Quem tenta apagar um começo de incêndio corre perigo. Quem compra um
bilhete de loteria corre o risco de perder seu dinheiro, mas também conta
com a possibilidade de tirar a sorte.
176
De todo o modo, parece certo que o desafio de uma investigação mais
acurada acerca das diferenças que cercam os dois conceitos se impõe.
Desde o trabalho de F. H. Knight (Risk, uncertainty and profit. New York:
Houghton Mifflin, 1921)
177
, os termos risco e incerteza passaram a ser adotados
num sentido que os torna mutuamente exclusivos e, então, usados em contexto
174 Tradução livre do autor. Abreviadamente, t.l.a.
175 Vide, por todos, Caldas Aulete. Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa, Rio de Janeiro: Editora
Delta S/A., 5ª edição, 1964 (verbete “perigo”, vol. IV, pág. 3076; verbete “risco”, vol. V, pág. 3555).
176 Vide Dicionário de Sinônimos, edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981, gs. 330/331, verbete
“perigo”.
177
Frank Hyneman Knight (* Branco, Município de Oak, Condado McLean, Illinois, 7 de Novembro de 1885
Chicago, Illinois, 15 de Abril de 1972. Norte americano considerado um dos principais fundadores da Escola
de Chicago “de economia”. Foi educador na universidade do Tennesse e na Cornel University. Perfil biogfico
capturado no sítio: http://www.britannica.com/EBchecked/topic/320341/Frank-Hyneman-Knight
110
econômico com o objetivo de referência a teorias micro e macroeconômicas,
constituindo-se, a distinção entre risco e incerteza, verdadeiro dogma da
modernidade.
Com efeito, exceto em economia, o termo é empregado de modo não
técnico que implica, como linguagem comum, a possibilidade de se incorrer em
dano ou perda de alguma espécie (física, psicológica, militar, política,
econômica, etc.), contexto em que risco seria uma característica do ambiente
externo, existindo efetivamente quer o indivíduo tenha consciência dele, quer
não o perceba. É, desse modo, objetivo.
178
Pom, para atermo-nos, por ora, na diferenciação específica entre perigo
e risco, valemo-nos das lições do Professor José Luiz Serrano, do Departamento
de Filosofia do Direito da Universidade de Granada Espanha, das quais
colhemos que uma categoria é diferencial quando não pode ser definida sem
recorrer ao seu oposto, a exemplo da comparação entre a cara de uma moeda em
relação à coroa. Por esse viés, torna-se certo que para definir o conceito de risco
é necessário nos socorrer do conceito de perigo e seu oposto. Conceito, como se
sabe, é o que se observa a partir de uma diferença ou distinção, porque de outro
modo não se poderia caracterizar os diferenciais. Por essa prática distintiva, o
conteúdo observado é delimitado de forma binária, ou seja, levando-se em conta
o seu outro lado, como, por exemplo, homem/mulher, belo/feio, lícito/ilícito ou,
se preferirmos, risco/perigo.
179
Em arremate, o autor enfatiza que o risco não é um objeto, no sentido de
ser observado, caracterizado e distinguido, sem possibilidade de separar a
caracterização da distinção ou diferença. Trata-se de um conceito. E acrescenta,
trata-se de um conceito histórico tardio que pretende caracterizar como unidade
178 Cf. Dicionário de Ciências Sociais, op. cit., págs. 1079/1080, verbete “risco”.
179 In op. cit., págs. 233/235.
111
uma série de diferenças; é um neolatinismo (risicum) com aparição em meados
do século XVI, de origem desconhecida, talvez do árabe, como forma de atender
à necessidade de melhor caracterização de certas situações não bem definidas
com expressões antigas, tais como sorte, perigo, acaso ou medo. O surgimento
tardio do termo não significa que os medievais não tivessem antes consciência
de risco, o que pode facilmente ser constatado a partir de transações comerciais
marítimas da época, em que figuras jurídicas previam a idéia, embora surgissem
mescladas com a noção de dano. A palavra risco, pois, pode ser construção
contemporânea do conceito diferencial de perigo.
Para melhor compreensão do cotejo, emendamos com a definição de
incerteza retirada do Dicionário de Ciências Sociais
180
, segundo a qual:
[...] o termo designa, num sentido geral, uma situação caracterizada
(objetiva ou subjetivamente) pela previsibilidade parcial de acontecimentos
alternativos. Em Economia o termo expressa: a) uma situação caracterizada
pelo desconhecimento dos parâmetros de uma distribuição de
probabilidades num conjunto de acontecimentos alternativos; ou b) uma
situação equivalente à do item a e/ou ausência pragmática de segurança ou
seriação nos acontecimentos. Em psicologia, designa um estado efetivo de
dúvida ou insegurança e/ou de indecio. (...) Incerteza, por outro lado, é
para o psicólogo um estado de espírito e o uma característica do ambiente
externo per se. É, portanto, um termo subjetivo. A incerteza pode ser
cognitiva, como na expressão incerteza subjetiva, usada pelos economistas,
ou pode ser emocional. A incerteza emocional envolve um sentimento de
dúvida e insegurança e/ou indecisão. Observam os psicólogos que a
incerteza cognitiva, no sentido de imprevisibilidade dos resultados de
determinadas linhas de ação, não é forçosamente motivão de tensão, nem
forçosamente origina incerteza afetiva; na verdade, situações que envolvem
incerteza cognitiva podem ser recebidas como um desafio. Por isso, os
psicólogos têm criticado a suposição comum dos economistas de que os
homens procuram evitar situações caracterizadas por incerteza cognitiva, ou
que exigem aquilo que os economistas denominam prêmios por risco, como
o preço de deliberadamente se lançarem a aventuras cujos resultados não
são cognitivamente certos.
180 Op. cit., págs. 1079/1080.
112
II.2.6. O homo ludens
O jogo é mais antigo do que a cultura. Com
efeito, a noção de cultura, se insuficientemente
delimitada, permite supor, em todo caso, a existência de
uma sociedade humana; mas os animais não esperaram
que o homem lhes ensinasse a jogar. Podemos afirmar,
portanto, com segurança, que a civilização humana não
enriqueceu a noção geral de jogo com nenhuma
característica essencial. Os animais jogam exatamente
como os homens. Todos os traços fundamentais do jogo
já se encontram presentes nos animais. É suficiente
assistir atentamente a jogos entre cães, para observá-los
em alegre brincadeira. (t.l.a.).
181
182
Da obra homônima de Johan Huizinga é que retiramos a idéia do homem
lúdico
183
, componente da natureza humana que desperta o desejo de jogar, de se
divertir, o que nos convida a observar o jogo em si mesmo e o que ele significa
para os jogadores, observando-o através do seu caráter estético. Essa opção
metodológica se justifica a partir da observação de que a natureza,
diferentemente de ter dotado suas criaturas de funções de descarga de energia
excessiva, de distensão as um esforço, de preparação do organismo para as
exigências da vida (amadurecimento), etc., sob a forma de meros exercícios e
181 Originalmente, assim redigido: Le jeu est plus ancien que la culture. En effet, la notion de cultures, si
insuffisamment délimitée soit-elle, suppose em tout cas l éxistence d´une société humaine, et lês animaux n´ont
pás attendu l´arrivée de l´homme pour qu´il leur apprit à jouer. Cetes, on peut le clarer impunément; la
civilisation humaine a enrichi la notion générale du jeu d´aucune caractéristique essentialle. Les animaux
jouent exactement comme lês hommes. Tous le traits fondamentaux du jeu se trouvent déjá réalises dans celui
s bêtes. Il suffit de suivre attentivement de jeues chiens, pours observer tous ces dans joyeux ébats.
182 Johan Huizinga. Homo ludens: essai sur la fonction sociale du jeu. Traduit du néerlandis par Cécile
Seresia. France: Librairie Gallimard, 8ª édition, 1951, pág.15.
183 Lúdico: adj. Que se refere a jogos ou divertimento // F. do lat. Ludus (jogo, divertimento, recreação).
In.Caldas Aulete. Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa. III volume. Rio de Janeiro: Editora Delta
S/A., 5ª edição, 1964, pág.2427, verbete “lúdico”.
113
reações puramente mecânicas, ou seja, ao invés de submeter a vida animal à
ação de forças deterministas, hipótese em que o jogo seria absolutamente
supérfluo, deu-lhes, para tanto, a tensão, a alegria e o divertimento do jogo.
Muito embora a Revolução Francesa tenha deflagrado uma onda de
seriedade extremada no Ocidente que, como afirma o autor, retirou do esporte,
das artes, da moda, da ciência e dos negócios de um modo geral, o caráter
lúdico, não suprimiu no homem, como traço característico de sua natureza, o
espírito de competição.
A essência do espírito lúdico é correr riscos, suportar a tensão que decorre
da incerteza, ser audacioso, o que pode ser atendido através do jogo e também o
que explica que no jogo algo que transcende as necessidades imediatas da
vida e confere sentido à ação de jogar, indicando a presença de um elemento
imaterial e também irracional em sua essência, ou seja, todo jogo significa
alguma coisa que não é o próprio jogo e que, portanto, nele deve haver alguma
finalidade de cunho biológico. Aliás, o jogo dos animais e dos homens, crianças
e adultos, é objeto de investigação da psicologia e da fisiologia, que o observam,
o descrevem e o explicam de modo a determinar-lhe a natureza e significado, em
busca de localizá-lo no sistema da vida.
184
Dentre as várias tentativas de definição da função biológica, há aquela que
o tomam em termos de descarga de energia vital abundante; outras, como
satisfação de um certo instinto de imitação ou mesmo aquela que indica uma
necessidade de distensão. ainda outras vertentes que vêem o princípio do
jogo como uma compulsão inata ao exercício de uma faculdade ou desejo de
184 “La psycologie et la physiologie s´efforcent d´observer, de decrier et d´expliquer le jeu chez les animaux, les
enfants et les homes adultes. Elles cherchent à fixer la nature et la signification du jeu et à assigner au jeu sa
place dans le plan de la vie ou, em tradução literal, A psicologia e a fisiologia se juntam no esforço de
observar, de descrever e de explicar o jogo para os animais, as crianças e os homens adultos. Elas procuram
fixar-lhe a natureza e a significação, atribuindo ao jogo o seu devido lugar no plano da vida. (t.l.a.). Op. cit., pág.
16.
114
dominar ou competir; também, se tentou tê-lo por um tipo de ab-reação, ou seja,
uma forma de escape para impulsos prejudiciais, uma restauradora de energia
despendida por uma atividade unilateral.
185
Vale a pena destacar a lição piagetiana que se aproxima da idéia de que o
jogo seria um tipo de preparação do jovem para as tarefas mais sérias que a vida
lhe exigirá na fase adulta. Jean Piaget escreve:
Le phénone du ‘préexercise’, dont K. Groos a voulu faire la
caracristique du jeu tout entier, ne explique que par le processus
biologique selon lequel tout organe se développe en fonctionnant; de même,
em effet, que pour coitre un organe a besoin de nourriture et que celle-ci est
sollicitée par lui dans la mesure de son exercice, de même chaque activité
mentale, des plus élémentaires aux tendances supérieures, a besoin pour se
développer d´être alimentée par um constant apport extérieur, mais
purement fonctionnel et non plus materiel.
Traduzimos:
O fenômeno do pré-exercício, que K. Groos quis ter como
característica comum a todo jogo, se explica unicamente pelo processo
biológico, segundo o qual todo órgão se desenvolve funcionando; com
efeito, assim como um órgão tem necessidade de alimento para crescer, o
que é por ele solicitado na medida do seu exercício, do mesmo modo cada
atividade mental, das mais elementares às tendências superiores, têm
necessidade de alimento para desenvolver-se a partir de uma constante
contribuição externa, mas puramente funcional e não material.
186
187
Parece haver dois tipos de traços psicológicos básicos de ser humano, um
que busca sentir sensações e outro que não, tipologia essa que pode ser utilizada
na explicação de comportamentos. Por exemplo, o indivíduo que busca
sensações, que procura prazeres hedonisticamente por meio de um
comportamento extrovertido como beber socialmente, freqüentar festas e dar-se
185 Ibidem.
186 T.l.a.
187 In La formation du symbole chez l´enfant. Imitation, jeu et rêve, image et representation. Paris: Delachaux
& Niestlé S. A., 1945,g. 92.
115
a atividades sexuais, é mais propenso ao interesse de jogar e é mais sensível às
probabilidades e aos valores envolvidos nos jogos.
188
E ... desde o início da história os jogos de azar – que em sua essência
representam o próprio ato de correr riscos têm sido um passatempo
popular e, muitas vezes, um vício. (...) Os seres humanos sempre foram
apaixonados pelo jogo, pois ele nos deixa frente a frente com o destino, sem
restrições.
189
(...) Os soldados de Pôncio Pilatos sortearam o manto de Cristo
enquanto Ele padecia na cruz. O imperador romano Marco Aurélio estava
sempre acompanhado de seu crupiê pessoal. O conde de Sandwich inventou
a refeição que tem o seu nome (sanduíche) para não precisar se afastar da
mesa de jogo para comer. George Washington organizou jogos em sua tenda
durante a Revolução Americana. Jogatina é sinônimo de faroeste. E `Luck
Be a Lady´ é um dos números mais memoráveis de Guys and Dolls, um
musical
190
sobre um jogador compulsivo e seu jogo de dados ambulante.
191
A força desse componente da natureza e atuação na vida dos homens pode
ser medida através de sua inegável capacidade de envolvimento e sedução. Por
exemplo: mesmo sem o recurso dos sistemas de probabilidades que hoje são
fatores determinantes de vitórias e derrotas, ou seja, antes das descobertas de
Pascal e Fermat, quando os riscos eram enfrentados livre e aleatoriamente, ou
seja, sem qualquer teoria de administração e que o ato de apostar era puramente
entregue aos desígnios do destino, da sorte, negócios vários foram inventados
com a mesma tônica das apostas, baseados em expectativas futuras, a exemplo
do seguro de vida e do seguro marítimo, os quais eram celebrados sob a forma
de apostas.
188 Cf. M. Zuckerman et al. “Sensation seeking and its biological correlates” Psychological Bulletin. American
Psichological Assocaition. 88(1): 187/214.
189 Consta que o jogo de dados é o mais antigo dentre os jogos de azar, datando de 3.500 a.C. e o seu uso entre
os egípcios e gregos antigos era através do astrágalo, osso do tarso de carneiros ou veados. (vide Bernstein, op.
cit., pág. 12). A mais antiga descrição de uma corrida de cavalos consta ser do povo hitita, cerca de 1500 a. C.,
no Canto XXIII da Ilíada de Homero (Tradução de Odorico Mendes. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2008,
gs. 801 e seguintes).
190 Guys ys and Dolls (Caras e Bonecas) é um musical com letra e música de Frank Loesser, concebido e
realizado a partir de "O Idílio de Miss Sarah Brown" e "Blood Pressure", dois contos de Damon Runyon. Estreou
na Broadway em 1950, e atingiu a marca e cerca de 1.200 apresentações, o que lha garantiu o prêmio Tony de
Melhor Musical, além de ter vários revivals Broadway, bem como produções do West End. A obra chegou à
telas do cinema através de um filme de 1955, estrelado por Marlon Brando, Jean Simmons, Frank Sinatra e
Vivian Blaine.
191 Peter Bernstein. Desafio aos deuses. A fascinante história do risco. Tradução de Ivo Korytowski. Rio de
Janeiro: Campus, 4ª edição, 1997, págs. 11/12.
116
Esse traço psicológico que se materializa em desejo de jogar, não obstante
sua essência irracional, repercute em de modo o acentuado na vida humana
que, segundo alguns registros, a linha demarcatória da modernidade pode ser
identificada pela elaboração da teoria de administração dos riscos que se tornou
possível a partir da formulação da lei das probabilidades por Pascal e Fermat,
em pleno Renascimento.
192
Hoje, portanto, na esteira desse desenvolvimento, pode-se facilmente
divisar entre práticas de jogo como investida fortuita, em que o jogador se ilude
com a idéia de que pode contar com a sorte que se interpõe entre nós e o destino,
ou, por outro lado, aquela que conta com técnicas de previsão de tendências e de
delimitação das alternativas possíveis, ambas com o fator operante de
expectativa de lucro.
A partir daqui, portanto, estamos aptos para identificar que a pretensa
seriedade resultante da crise lúdica desencadeada pela Revolução Francesa e que
teria alcançado inclusive os negócios, como referimos acima, provoca a ilusão
de que determinadas ões, por serem qualificadas por uma maior carga de
tensão, não se confundem com jogo. Assim, embora seja possível comparar o
mercado acionário com uma aposta em corrida de cavalos, os jogadores são
eufemisticamente denominados investidores e o negócio constitui uma função
econômica, sendo, portanto, uma das coisas sérias da vida. Por outras palavras,
um jogador de roleta não irá negar que está jogando, mas um corretor, dado que
sua atividade de comprar e vender em função do comportamento da Bolsa de
Valores, irá insistir que sua atividade é negocial e, supostamente, não é um jogo.
192 De acordo com o relato de Peter Bernstein, em 1654 um nobre francês que nutria paixão pelo jogo e pela
matemática, o Cavaleiro de Mére (este Cavaleiro era considerado por alguns um jogador inveterado, por outros
um filósofo e homem de letras. Antoine Gombaud, o Cavaleiro de Méré, foi um escritor frans nascido em
Poitou em 1607 e morreu a 29 de Dezembro de 1684) teria desafiado Pascal a decifrar um enigma matemático,
consistente em dividir as apostas de um jogo de azar entre dois jogadores, interrompido enquanto um deles
estava vencendo. Pascal contou com a ajuda de Fermat, advogado e matemático, e juntos desenvolveram a teoria
das probabilidades, o núcleo matemático do conceito de risco.
117
Capítulo III: Aproximação através da Sociologia
193
A sociologia o se afirma primeiro como
explicação científica e, somente depois,
como forma cultural de concepção do
mundo. Foi o inverso o que se deu na
realidade. Ela nasce e se desenvolve como
um dos florescimentos intelectuais mais
complicados das situações de existência nas
modernas sociedades industriais e de
classes.
(Florestan Fernandes)
194
O senso comum toma a Sociologia como se trabalho social fosse,
confundindo que pessoas que se dedicam a ela estariam interessadas em
trabalhar com pessoas na realização de algum tipo de trabalho social, o que
constitui evidente equívoco.
193 Os fundamentos básicos de Sociologia utilizados neste título foram extraídos da obra O Homem e a
Sociedade: uma introdução à sociologia, da Professora Maria Benedita Lima Della Torre (12ª edição.o Paulo:
Editora Nacional, 1984, passim).
194
“A herança intelectual da sociologia”, in Sociologia e Sociedade: leituras de introdução à Sociedade,
Foracchi e Martins, págs. 11/20.
118
Em verdade, como dito alhures, cuida a Sociologia do estudo científico do
comportamento humano construído pela sociedade ou, por outras palavras,
estudo das interações humanas, o que a torna um campo de atividades
acadêmicas e científicas, de cunho eminentemente teórico e não prático como o
caso do trabalho social. Não quer isso significar que a Sociologia não tem
ambições práticas. Tanto tem, que se afirma, também a seu respeito, tratar-se de
ciência que influencia o comportamento humano, posto ser seu propósito
contribuir para que as pessoas, compreendendo suas próprias vidas e a sua
relação com ao resto, possam melhor orientá-las. Os sociólogos, de um modo
geral, examinam as forças sociais e observam as tendências e padrões que
podem ser generalizados com o escopo, por exemplo, de explicar a pobreza e
outros problemas do gênero social.
195
Os primeiros pensadores a se manifestar de modo contundente sobre vida
social no passado foram, certamente, os gregos, especificamente os atenienses,
tendo em Aristóteles o seu principal representante, vez que ninguém se igualou
em importância e acuidade ao pensamento aristotélico, pelo menos até o advento
dos principais sociólogos contemporâneos, quais seja, Weber, Durkheim e
Marx.
A importância do pensamento clássico advém das próprias condões
sociais da Grécia antiga, onde, pela primeira, vez, a democracia floresceu de
modo contínuo e estruturado, possibilitando uma livre investigação dos nexos
profundos da própria sociedade. O contato com outros povos, cultura e religiões
permitiu que os gregos se desapegassem mais rapidamente de suas mitologias,
passando à compreensão racional e empírica sobre a sociedade.
195 Cf. Reinaldo Dias, op. cit., págs. 14/15.
119
Mas, ao nos aproximarmos do pensamento dos filósofos antigos acerca da
sociedade, é necessário traçar uma distinção fundamental, sem a qual não iremos
assimilar a compreensão dos mesmos nesse tema, sobretudo em virtude das
diferenças estabelecidas nos modos de produção da Antiguidade e atual, aquela
baseada na escravatura e esta, no capitalismo. Portanto, enquanto a visão do
cidadão ateniense, em função dos arranjos sociais daquele meio, se encaminhava
da sociedade para o indivíduo, hoje o vetor é inverso, posto que nossa visão
social parte do individualismo, realçado pelo capitalismo.
Platão, por exemplo, explicará a sociedade a partir de fenômenos sociais e
não a partir dos fenômenos do indivíduo, assim como fazemos. Nos escritos de
A República, esse notável ensina que não há homem justo numa sociedade
injusta, porque, sendo esta injusta, todos os membros que a compõem são
igualmente injustos. Para ele, um vínculo indissolúvel entre a sociedade e o
indivíduo, de modo que se a polis é injusta, os seus cidadãos também o são por
ação, por omissão ou mesmo por falta de entendimento de suas
responsabilidades sociais. Em outras palavras, Platão - e também Aristóteles e
os demais pensadores clássicos a compreensão social é molecular, no sentido
de que se toma o indivíduo como parte da sociedade e não fora dela.
Modernamente, ao contrário, separamos o indivíduo da sociedade e, portanto,
nossa visão sociológica é atomizante.
196
III.1. A natureza social do homem
O conhecimento acumulado nas ciências humanas, especialmente a
psicologia e a sociologia, permitem tomarmos algumas verdades como
196 Cf. Alysson Leandro Mascaro, Lições de Sociologia do Direito, pág. 36.
120
fundamentais, como, por exemplo, a de que a sociedade são os homens e as
interações de seus sentimentos, idéias e volições”.
197
Nesse sentido, é certo que dentro de cada um de s submerge um campo
psicológico social, o qual se demonstra pelo fato de que, se observarmos um
homem qualquer, ele nos parecerá isolado, sozinho à primeira vista, certeza que
se reduz somente em relação à sua singularidade, posto que, dentro de si, ou
seja, em si mesmo, realmente se trata de alguém único, irredutível a qualquer
outro em termos e pensamentos, emoções, iris e linhas digitais. No entretanto,
esse “eu” es firmemente entranhado, ligado a outros homens, de que é
reciprocamente uma cópia ou um plágio psicológico e social, resultado da
educação pela família e escola, convivência com amigos, da influência de
estranhos e até da luta contra os seus inimigos. É um ser social.
198
Debruçando-se sobre o fato de o homem ser social por natureza, conta a
Professora Maria Benedita Lima Della Torre, na obra que tomamos como
referencial deste tema
199
, que:
Por volta de 1921 foram encontradas, nas florestas da Índia, duas
meninas vivendo em cavernas, com lobos. Suas idades eram de 2 a 4 anos
para a mais jovem e entre 8 e 9 anos para a mais velha. Como e com que
idade foram abandonadas ali, não se pode precisar. Levadas a um orfanato, a
menor morreu em menos de um ano e a outra sobreviveu mais alguns, de
modo que foi possível avaliar seu comportamento e tentar reeducá-la.
Locomovia-se engatinhando, pois não sabia como andar só com os membros
inferiores; não conhecia palavras, embora emitisse gritos; comia carne crua,
não se acostumava às roupas, possuía olfato tão desenvolvido como o faro
de certos animais, e seus olhos, no escuro, tinham brilho peculiar.
Outro fato marcante de contornos semelhantes nos vem à memória. Trata-
se do caso da norte americana Helen Keller, que, cega, surda e muda desde tenra
idade, vivia entre seus familiares, mas permaneceu afastada do convívio social
197 Cf. Darcy Azambuja. Introdução à Ciência Política,g. 18.
198 Ibidem.
199 Op. cit., pág. 43.
121
até por volta dos sete anos de idade, quando encontrou-se com a professora
Anne Sullivan, que lhe proporcionou a compreensão dos símbolos, mecanismo
comunicativo através do qual não ingressou na humanidade, como se tornou
uma importante pensadora e militante da causa dos portadores de necessidades
especiais.
A narrativa evidencia que de fato o homem, para além de ser social por
natureza, depende da vida social para tornar-se humano e, assim, diferenciar-se
dos demais animais, sob pena de se traduzir em homo ferus ou mesmo de
sucumbir, dado que assinala o estado de absoluta depenncia do recém nascido.
O homem, em geral, nasce como membro de um grupo social que é a
família e nela permanece integrado e interagindo quase de modo exclusivo
durante os primeiros anos de formação. Depois, desenvolvendo-se, passa a fazer
parte de outros grupos, os quais se caracterizam segundo o núcleo de interesse
que os alimenta, como, por exemplo, amizade, escola, igreja, profissão, etc.
A capacidade de vida em associação demonstrada pelos animais, parece
repousar em mecanismos sociais elementares como ‘apetite social’, ‘cooperação
inconsciente’, ‘interatração’, ‘sociabilidade’, sendo que alguns autores, e dentre
eles Alfred Espinas, de quem aqui tomamos por empréstimo esses escólios,
apontam a existência desses mecanismos também nos seres vegetais. Enquanto a
organização de vida dos vegetais tem base orgânica, pois vivem juntos porque
necessitam das mesmas substâncias do solo ou porque requerem o mesmo clima,
a dos animais é biossocial, ou seja, vivem aglomerados e possuem uma certa
divisão do trabalho. a organização humana é sociocultural, porque, vivendo
em sociedade, não os homens são interdependentes, mas, ao mesmo tempo,
criadores de cultura.
200
200 Alfred Victor Espinas, Des Sociétés Animales. Étude de Pshychologie Comparée. Paris: Germer Ballière et
Cie, 1878, passim.
122
O Professor Dalmo de Abreu Dallari lembra que o antecedente mais
remoto da afirmação da sociabilidade humana remonta ao século IV a.C., mais
precisamente o que nos foi oferecido por Aristóteles, na medida em que,
segundo o filósofo grego, o homem é naturalmente um animal político”, sendo
absolutamente extraordinário o fato de alguém viver deliberadamente isolado do
convívio com os outros homens, só se admitindo tal hipótese em caso de homem
vil ou superior aos demais.
201
No entanto, adverte o mestre das Arcadas, oposição à ideia de
fundamento natural da sociedade enraizada no entendimento de rios autores,
sendo considerável a influência dos teóricos do contratualismo, para os quais a
sociedade é tão somente fruto de um acordo de vontades firmado entre os
homens num pacto hipotético, entendimento que aparece claramente proposto
nas doutrinas de Thomas Hobbes, Locke, Montesquieu e Rousseau.
202
III.2. A sociologia como ciência
No plano das ciências, as sociais se dedicam ao estudo do mundo social e
nelas o visíveis subdivisões em campos especializados, tais como sociologia,
psicologia, economia, ciência política, administração, antropologia, aspecto pelo
qual sobressai a constatação de que a agregação e a associação, assim como a
caracterização do que é social no comportamento dos organismos, não são
problemas exclusivamente sociológicos. Estas as ciências sociais - se
distinguem da idéia das ciências naturais, cujo conjunto de disciplinas tem por
objetivo a compreensão do mundo natural físico, biológico, etc. e para o q
fazem uso de metodologia científica com o intuito de encontrar padrões nas
201
Elementos de Teoria Geral do Estado, págs. 7/8.
202
Idem, págs. 9 et. seq.
123
relações de causa e efeito. Dentre aquelas, a sociologia é considerada a mãe de
todas as ciências sociais, posto que, surgida no século XIX, a partir dela foram
criadas outras áreas do saber social.
Max Weber, que é indicado o responsável pela elevação da Ciência Social
ao nível da verdadeira pesquisa e erudição no mundo ocidental, sublinha a
Sociologia como a ciência que tem como objeto:
[...] a compreensão interpretativa da ação social de maneira a
obter uma explicação de suas causas, de seu curso e dos seus efeitos.
Por “ação” prossegue a lição se designará toda conduta humana,
cujos sujeitos vinculem a esta ação um sentido subjetivo. Tal
comportamento pode ser mental ou exterior; poderá consistir de ação
ou de omissão no agir. O termo “ação social” será reservado à ação
cuja intenção fomentada pelos indivíduos envolvidos se refere à
conduta de outros, orientando-se de acordo com ela.
203
Augusto Comte, que antes a tomava por sica social
204
, não cunhou a
denominação “sociologia”, em 1839, como também foi um dos principais
elaboradores dessa ciência. Alguns consideram-na como ciência humana que se
ocupa exclusivamente de observar os fenômenos sociais das sociedades
humanas; outros entendem o seu objeto como sendo o estudo de certas
associações animais, cuja vida social se apresenta de forma organizada. Por fim,
a posição que é mais ampla em relação às anteriores, vez que por ela o estudo
sociológico se volta para toda e qualquer forma de aglomeração de seres vivos
em que haja padrões de organização e interações sociais, quer do reino vegetal,
animal ou humano, razão pela qual, ao que parece, Florestan Fernandes
conceituava a sociologia como a ciência que estuda as interações sociais em
todos os níveis de organização de vida”.
Com efeito, prossegue esse notável sociólogo:
203 Conceitos Básicos de Sociologia.Tradução de Rubens Eduardo Ferreira Frias e Gerald Georges Delaunay.
o Paulo: Editora Centauro, 2002, pág. 11.
204 Cf. Reinaldo Dias. Fundamentos de Sociologia Geral. Campinas – SP: Editora Alínea, 2009, pág. 16.
124
Mesmo o observador desprevenido pode dar-se conta de que certas
atividades de organismos como as formigas, as abelhas, os macacos ou os
homens realizam-se mediante a conjugação de esforços e concorrem para a
satisfação de necessidades que são tanto individuais, quanto supra-
individuais ou coletivas. (...) Nesse sentido, entende-se que a noção de
‘fenômeno social’ se refere a atividades (ou comportamentos) cuja
manifestação, generalidade e repetição dependem, indireta ou diretamente,
de condições externas ou internas dos organismos: o modo deles
coexistirem; as dependências existentes entre eles no que concerne à
adaptação ao ambiente natural, à alimentação, à reprodução ou à proteção
mútua.
205
Toda ciência possui objeto específico, ou seja, que não deve ser
confundido com o dos demais. Nesse sentido, toma-se um conjunto de
fenômenos a ser estudado por ela, o que autoriza sinalizar que o objeto da
sociologia é, grosso modo, o estudo das interações sociais, assim entendidos os
fatos que são característicos da vida em grupo e o da vida do indivíduo.
Portanto, nesse campo, podem ser destacados, como exemplos de objeto da
investigação sociológica, as maneiras de pensar idéias, valores, ideologia de
um grupo social; a concepção de beleza, o valor das profissões, a idéia sobre
trabalho, de moral -; as maneiras de agir os usos e costumes de uma
sociedade; o modo de cumprimentar as pessoas, no nosso caso estendendo a
mão direita; o modo de cultuar os mortos, que para os ocidentais se dá por meio
de flores e, para os orientais, de alimentos; as maneiras de sentir a exemplo
do gosto que sentimos em relação aos alimentos comuns ao nosso povo e
repugnância acerca de alguns alimentos muito diferentes.
Necessário por em relevo, também, que os fatos sociais são caracterizados
por objetividade são próprios do grupo, portanto, exteriores à consciência dos
indivíduos, que só os adquirem para viver em sociedade; coerção ferramenta
através das quais os fatos sociais se impõem aos indivíduos que
inconscientemente vão adquirindo o comportamento de seu grupo, quer falando
205In Elementos de Sociologia Teórica. São Paulo: Editora Nacional, 2ª edição, 1974, pag. 19.
125
a mesma língua, quer adotando os mesmos costumes, submetendo-se a sanções
premiais ou punitivas, conforme se comportem de acordo ou em desacordo -;
generalidade e diversidade os fatos sociais são gerais, pois são comuns,
existem em todas as sociedades, mas, ao mesmo tempo, apresentam-se com
diferenças entre si, o que pode ser conferido pela língua, recurso comunicativo
comum a todos os grupos humanos, embora, é cediço, de conteúdo diverso, de
acordo com o grupo, com sua formação e sua hisria.
Quanto a sua natureza, os fatos sociais podem ser observados por si
mesmos, e, segundo sua essência, são naturais podem ser estudados
objetivamente, cientificamente, quer dizer, com Émile Durkheim, devem ser
tratados como coisas -; explicam-se sempre por causas sociais no sentido de
que a causa de um fato social será sempre outro fato social, aspecto que, para
melhor compreensão, merece ter-se, primeiramente, em função da diferenciação
entre causa (tudo aquilo que determina o fenômeno) e condição (tudo o que
auxilia ou perturba o efeito); e são interdependentes não são realidades
autônomas, existindo entre eles estreita ligação, apresentando-se como fatos
entrosados.
Toda atividade científica, na investigação e demonstração da verdade, faz
uso de um conjunto de processos que se denominam métodos. Nas ciências
físicas ou naturais é possível a experimentação, ou seja, a observação do
comportamento das coisas sob condões mais ou menos artificiais, as quais são
cuidadosamente planejadas e aplicadas laboratorialmente. No caso das ciências
sociais, no entanto, não se oferece possível ao investigador social isolar o objeto
de análise e nele inserir ou sobre ele fazer atuar condições prévia e
artificialmente elaboradas para aplicação laboratorial. Demais disso, a mais
dificultar a tarefa, no caso da sociologia, que por ora nos interessa de perto,
embora os fatos sociais sejam naturais, objetivos, coisas, como lecionava
126
Durkheim, o dissemos, o observador, ou seja, o sociólogo, estuda os fatos
com os quais tem estreita participação, uma vez que se trata também de um
sujeito do grupo, o que não impede, porém, de o mesmo, diante dos fenômenos
sociais, se comportar como cientista, fazendo observações objetivas e
interpretações isentas. Por outro lado, dada a natureza complexa dos fenômenos
sociais, dificultada a elaboração de leis ou de previsões, pode-se dizer que a
sociologia científica, em alguns casos até impraticável, consiste em teorias e
pesquisas, elementos que se complementam na medida em que as teorias
orientam e dirigem as pesquisas, ao passo que estas servem para aumentar a
precisão daquelas.
rios métodos e técnicas científicas auxiliam o trabalho do sociólogo,
sem embargo de que ainda se podem criar novos métodos, de acordo com as
necessidades e/ou especificidades do fenômeno sob estudo. Vejamos alguns dos
métodos e técnicas mais comuns. Método histórico, consistente na busca das
raízes de um fenômeno social do passado, com o fito de se descobrir suas
origens e antecedentes; todo comparativo que, como a própria denominação
sugere, se ocupa do estudo de diferentes grupos ou povos, visando identificar
eventuais semelhanças existentes em determinadas circunstâncias e condições e
também para explicar as diversidades; método estatístico, em que os dados
sociológicos são reduzidos a termos quantitativos, baseando-se em amostragens,
distribuição de frequência, medidas de variabilidade, estabelecimento de
correlações e confecção de gráficos, o que possibilita sejam identificadas a
generalizações e significados dos fenômenos sociais, método este formulado por
Quetelet
206
, para o qual é possível aferir sobre a perfeição de uma ciência pela
206
Lambert Adolphe Jacques Quetelet (*Ghent, Flanders, Bélgica, 22 de Fevereiro de 1796 † Bruxelas,
Bélgica, 17 de Fevereiro de 1874), foi quem planejou o todo estatístico. Doutorou-se pela Universidade de
Ghent, Bélgica, em 1819, com uma tese sobre seções cônicas e com isso passou a lecionar Matemática em
Bruxelas. Foi para Paris em 1823, onde aprendeu astronomia e teoria da probabilidade com Joseph Fourier e
Pierre Laplace. Influenciado pelos mesmos, foi o primeiro teórico a fazer uso da curva normal não apenas como
lei dos erros. Sua teoria sobre a consistência numérica dos crimes estimularam discussões e confrontos entre as
teses do livre arbítrio e do determinismo social. Trabalhou para o governo do seu país com dados estatísticos,
127
facilidade com que ela permite o approach
207
pelo cálculo
208
; método do estudo
de caso, empregado no estudo de um grupo, comunidade, instituição ou
indivíduo que seja representativo de muitos outros, para investigação e análise
de todos os fatos que influenciam o caso, examinando-se todos os pontos de
vista - para análise desses casos empregam-se técnicas diferenciadas, como
entrevistas, questionários, tabelas, biografias, documentos, observação de
campo, etc. -; método tipológico, criado pelo celebrado sociólogo alemão Max
Weber, se aproxima do método comparativo, posto que também compara
fenômenos sociais complexos, com a diferença de que aqui o pesquisador
elabora modelos ou tipos ideais, construído por meio de destaque dos aspectos
essenciais, das linhas mestras definidoras dos fenômenos escolhidos,
desprezando-se pormenores dos mesmos (estado racional burocrático,
dominação carismática, capitalismo moderno, são categorias ideais criadas por
Max Weber para estudo das sociedades); método funcionalista, mais
interpretativo que investigativo, esse método supõe toda sociedade composta por
partes interrelacionadas e interdependentes, cada qual cumprindo uma função
necessária à vida social, compreendendo-as – as partes melhor segundo a
função que desempenham no todo ou, por outras palavras, conforme as
necessidades que satisfaçam.
geográficos e metereológicos. Em 1835 Quetelet publicou Sur l´homme et le developpement de ses facultés,
essai d´une physique sociale (Sobre o homem e o desenvolvimento de suas faculdades; ensaio de uma física
social t.l.a.), em que apresentava a sua concepção do homem dio como o valor central das medidas de
características humanas que são agrupadas de acordo com a curva normal. A medida de obesidade usada
internacionalmente é o índice de Quetelet, também conhecido como IMC (Índice de Massa Corporal) ou BMI
(Body Mass Index), sob a equação Peso em quilogramas ÷ Altura em metros. Se o índice for superior a 30, a
pessoa é oficialmente considerada obesa.
(Suma biográfica colhida na Internet http//www.pucrs.br/famat/staweb/.../Quetelet.htm em 15/03/2010,
01h37m).
207 Approach: s. aproximação; acesso; via de acesso; maneira de tratar ou de abordar ou de encarar (assunto);
todo usado para lidar com algo ou realizar algo; introdução; (no pl.) tentativas de aproximação / vt.
Aproximar-se de; abordar; aproximar, trazer (mais) para perto / vi. Aproximar-se, avizinhar-se (fig. com to)
aproximar-se de, assemelhar-se a (in Novo Dicionário Folhas Webster´s Inglês/Português Português/Inglês, op.
cit., pág. 16, verbete: “approach”).
208 Cf. Nicholas S. Timasheff, Teoria Sociológica. Tradução de Antonio Bulhões. Rio de Janeiro: Zahar Editores,
1971, págs. 64/65.
128
Augusto Comte com base na física, dividia a sociologia em: estática, em
que seriam estudados os fatos relativos às ordens, como família, instituições
sociais, etc., e dinâmica, que estudaria os fatos ligados ao desenvolvimento
(mudanças sociais, guerras, etc.). Durkheim, por sua vez, tomando a ciência da
biologia em comparação, dividia a sociologia em: morfologia social, voltada
para o estudo da estrutura material da sociedade, como, por exemplo, a
densidade populacional, a distribuição dos grupos que a compõem, etc.;
fisiologia social, dedicada às funções da vida social, como a religiosa, política,
econômica, daí que se subdividiu em sociologia religiosa, sociologia moral,
sociologia jurídica, sociologia educacional, sociologia estética, etc.; sociologia
geral, que seria a parte filosófica ou teórica da ciência a tratar dos problemas
teóricos que exijam unificação, síntese.
Hoje, no entanto, amadurecida, a ciência da sociologia toma essa
classificação apenas como valor histórico e divide o seu campo em seis
disciplinas sicas, a saber: sociologia sistemática, que estuda os elementos
básicos e universais dos sistemas sociais e o modo como se relacionam – noções
de ação, interação, relação, processos sociais, grupos, instituições, etc.;
sociologia descritiva, voltada para a investigação de fenômenos sociais nas suas
manifestações concretas, nas condições reais em que operam, como, por
exemplo, o estudo da cooperação na sociedade atual; sociologia comparada,
que quer identificar como os fenômenos sociais variam na história das diversas
sociedades e épocas, mais especificamente para neles vislumbrar semelhanças e
distinções, e também a evolução da formas sociais de vida, a exemplo do estudo
da família através dos tempos; sociologia diferencial, através da qual se procura
estudar as características particulares de cada sociedade, de cada sistema,
focalizando a individualidade de determinado povo; sociologia aplicada, que
estuda as intervenções racionais sobre as condições sociais de existência, como a
racionalização do trabalho em uma empresa; sociologia geral ou teórica,
129
disciplina de ntese porque sistematiza os conhecimentos sociológicos - e de
crítica, vez que traz indagação permanente sobre a validade gica dos
conhecimentos sociológicos.
130
SEGUNDA PARTE: A HUMANIDADE
131
Capítulo I: Em busca de nós mesmos
Muitos ainda especulam se o mundo
realmente existe. Para nós esta questão é
um contra-senso, porque sem esta
existência o homem não seria existência.
Seria, também, um contra-senso pensar no
homem como um simples resultado de
forças e processos cósmicos. Só o homem
dá sentido às coisas. Há uma prioridade da
subjetividade sobre as coisas, pois elas só
têm sentido para o homem. Ele é, pois, o
único ser que explica o próprio ser.
(Maria Luiza Silva Teles
209
)
210
O sentido das coisas, especialmente daquelas que nos dizem respeito
diretamente, como, por exemplo: Quem somos? Qual é a nossa origem? Por que
vivemos assim? Como devemos nos comportar? são inquietações que sempre
estiveram presentes em nossos espíritos, e as respostas são buscadas porque é da
natureza humana o se conter na imediatidade da sobrevivência como o fazem
os demais tipos animais.
209
Maria Luiza Silva Teles, nascida em Belo Horizonte/MG, é educadora e jornalista. Tem, também, formação
em pedagogia, inglês e posgraduação em Psicologia e Sociologia, tendo sido, por vários anos, professora de
Psicologia da Educação na Unimontes. É autoras de rias obras em psicologia, sociologia, educação, literatura
infantojuvenil, teologia, romance e poesia. Reside em Salvador/BA, em cujo Estado promove palestras, cursos e
oficinas literárias. Além de escritora é ainda tradutora
210 In Filosofia para Jovens. Uma iniciação à filosofia. Petrópolis/RJ: Editora Vozes, 3ª edição, 1996, pág. 15.
132
O homem, sendo um animal diferente, só ele tem consciência de si
próprio e da realidade; só ele pode fazer reflexão sobre isto; só ele tem a
capacidade de agir sobre si mesmo, transformando-se, e sobre a realidade
exterior, transformando-a através da cultura e da mudança das circunstâncias.
211
Entender o significado último da existência humana, as relações dos
homens entre si e com o trabalho, como forma de compreender o mundo natural
que nos acomoda é, portanto, o desafio que se nos impõe e a isso se propõem,
desde sempre, a imaginação e a racionalidade.
Portanto, antes de mais nada, segue-se um pouco de história, não só com o
ensejo de nos ambientarmos no tema da sociologia, mas também com o escopo
de provocar uma revisitação aos fatos que cercaram ao longo de todo o tempo o
processo de construção do saber humano, o que será suficientemente atendido
mesmo a partir de uma (re)visão panorâmica. Com efeito, não é despiciendo
rememorar os antecedentes históricos que fizeram eclodir ou, ao menos,
contribuíram para a eclosão das ciências humanas.
Basta ver, para conforto dessa afirmação, que a teórica política ale
Hannah Arendt, que rejeitava ser designada filósofa, utilizou o segundo capítulo
do seu livro intitulado Entre o Passado e o Futuro
212
para ocupar-se da
conceituação de história, o que fez confrontando antigo e moderno, e anotando,
de logo, como Heródoto
213
em Guerras rsicas, a pretensão de imortalidade
do homem. No item 1 do supracitado capítulo 2, em que se debruça sobre
História e Natureza, a autora adiciona a seguinte nota e rodapé:
211 Vida: Maria Luiza Silveira Teles, in op. cit., pág. 11.
212 Entre o Passado e o Futuro (Título original em inglês Between Past and Future). Tradução de Mauro W.
Barbosa. São Paulo: Editora Perspectiva, 6ª edição, 2009.
213
Heródoto foi cognominado por Cícero como pater historiae, vez que inaugurou a História Ocidental, da qual
é até hoje considerado o pai.
133
Heródoto, o primeiro historiador, não dispunha ainda de uma palavra
para designar a História. Ele utilizou o termo istoreín, mas não no sentido de
‘narrativa histórica’. Assim como eidénai, conhecer, o vocábulo istoa
deriva de id-, ver, e ístor significa originalmente ‘testemunha ocular’, e
posteriormente aquele que examina testemunhas e obtém a verdade através
da indagação. Portanto, istoreín possui um duplo significado: testemunhar e
indagar.
214
I.1. O mundo através da mitologia
u e terra estavam criados. Entre as
margens da terra, o mar debatia-se em
ondas; dentro dele brincavam os peixes; os
pássaros esvoaçavam, gorgeando; a terra
estava repleta de animais. Mas não havia
ainda nenhuma criatura onde o espírito
pudesse alojar-se e de onde pudesse
dominar o mundo terrestre. Prometeu
chegou, então, à Terra.
(Gustav Schwab)
215
Em tempos imemoriais, no limiar da vida social organizada, quando a
racionalidade humana ainda não havia dado as suas contribuições para a
genealogia do universo e das espécies, as representações sobre a realidade eram
exprimidas por meio de modelos antroporficos e divinizados, os mitos
216
217
.
214 In op. cit., pág. 69.
215 In As Mais Belas Histórias da Antiguidade Clássica. Os Mitos da Grécia e de Roma. Vol. I: metamorfoses e
mitos menores. Tradução de Luiz Krausz. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 6ª ed., 1994.
216 Segundo a filósofa Marilena Chauí, “A palavra mito vem do grego, mythos, e deriva de dois verbos: do
verbo mytheyo (contar, narrar, falar alguma coisa para outros) e do verbo mytheo (conversar, contar, anunciar,
nomear, designar). Para os gregos, mito é um discurso pronunciado ou proferido para ouvintes que recebem a
narrativa como verdadeira porque confiam naquele que narra; é uma narrativa feita em público, baseada,
portanto, na autoridade e confiabilidade da pessoa do narrador. E essa autoridade vem do fato de que o narrador
ou testemunhou diretamente o que está narrando ou recebeu a narrativa de quem testemunhou os acontecimentos
narrados. (In Convite à Filosofia. São Paulo: Editora Ática, 13ª edição, 2004, pág.35).
217 Mito (Gr. µΰθος; lat. Mythus; in. Myth; fr. Mythe; al. Mythos; it. Mito). Além da acepção geral de narrativa, na
qual essa palavra é usada, por exemplo, na Poética (I, 1451 b 24) de Aristóteles, do ponto de vista histórico é
134
Tratava-se, então, de uma verdade espontânea, de origem intuitiva, pré-reflexiva
que dispensava argumentações e provas, como veremos.
Durante a fase tribal dos povos gregos, que os manuais escolares apontam
ter se estendido entre os séculos XII e VIII a. C., os poetas rapsodos, em
especial, a quem os antigos dedicavam pleno crédito por tê-los como escolhidos
pelos deuses com a incumbência de mostrar aos homens os acontecimentos
passados, permitindo-lhes que vissem a origem dos deuses (teogonia) e de todos
os seres e de todas as coisas (cosmogonia)
218
, cuidavam para que as histórias
mitológicas fossem repassadas de geração em geração, em cujo conteúdo se
expressavam a concepção do mundo, a cosmovisão, de sociedade e de
economia, e o fortalecimento da identidade cultural perante os demais povos da
época. Essa tradição, em boa parte recolhida e conservada, serve de fonte
histórica útil ao conhecimento e à interpretação da cultura inicial da civilização
ocidental.
219
Estudiosos de ciências humanas nos ensinam que a mitologia é uma forma
narrativa dos feitos heróicos e divinos, com ensinamentos sobre como as pessoas
devem entender e se relacionar com o universo, a religião, o trabalho, a família,
a justiça, etc., prestando-se, o mito, portanto, em primeira análise, a uma função
pedagógica, cujas finalidades, como sentimento de fé, são a afirmação da
identidade do povo para si mesmo e para os povos de diferentes culturas.
O relato mítico carrega um conjunto simbólico e valorativo das práticas
sociais que legitimam o modo de vida. Por seu intermédio é possível identificar
possível distinguir três significados do termo: 1.M. como forma atenuada de intelectualidade; 2. M. como forma
autônoma de pensamento ou de vida; M. como instrumento de estudo social. (In Dicionário de Filosofia, Nicola
Abbagnano, op. cit., verbete “mito”, pág. 784).
218 A respeito, consultar Marilena Chauí, op. cit.,gs. 35/36.
219 Cf. Arnaldo Lemos Filho et.al. (organizadores) Sociologia Geral e do Direito. 4ª edição. Campinas SP:
2009.
135
o modo como o imaginário coletivo daquele povo representava sua idéia sobre a
origem do mundo, o aparecimento do homem e o trabalho.
A esse respeito, concordante com o sentido formador, educativo, ao qual
nos referimos, Werner Jaeger anotou:
Devemos recordar aqui o que atrás dissemos sobre o significado
do exemplo para a ética aristocrática de Homero. Falávamos então do valor
educativo dos exemplos criados pelo mito – por exemplo, as advertências ou
estímulos de Fénix
220
a Aquiles
221
222
e de Atena
223
a Telemaco
224
225
. O
220 Fênix ou Fénix é um pássaro da mitologia grega que quando morria, entrava em autocombustão e, passado
algum tempo, renascia das próprias cinzas. Outra sua característica é a força descomunal que lhe permite
transportar em vôo cargas muito pesadas, havendo lendas que narram o transporte de elefantes.
221 Aquiles: um dos mais importantes heróis da mitologia grega por sua bravura e força, com participação
importante no cerco à cidade de Tróia. Filho de Tétis (deusa grega do mar) e de Peleu (rei dos mirmidões). De
acordo com a mitologia grega, Aquiles, ao nascer, foi mergulhado pela mãe nas águas do rio Estige, o qual dava
sete voltas no inferno, sendo seguro pelo calcanhar, que não foi banhado. Este fato o tornou invulnerável.
Conforme retratado na Ilíada, de Homero, durante a guerra de Tróia, Aquiles, para vingar a morte de seu amigo
troclo, matou Heitor, mas também foi mortalmente ferido no calcanhar única parte de seu corpo não
protegida pelas águas do Estige - por uma flecha arremessada por Paris.
222 A Iada, em seu conjunto, é uma narrativa da grande tragédia da guerra de Tróia, o combate entre Aquiles e
Heitor. O cerco dos aqueus à Tróia. Um problema enfrentado por Aquiles é a grave ofensa perpetrada contra si,
ao ter a posse da cativa Criseida, que ele havia recebido como presente de seus companheiros gregos em razão
de suas virtudes em guerra, tomada que foi pelo autoritário Agamenon.
223 Atena, também conhecida na mitologia grega como Palas Atena, ela é a deusa da guerra, da civilização, da
sabedoria, da estratégia, das artes, da justiça e da habilidade. Uma das principais divindades do panteão grego e
um dos doze deuses olímpicos, Atena recebeu culto em toda a Grécia Antiga e em toda a área de sua influência.
Sua presença é verificada até nas proximidades da Índia e, por isso, seu culto assumiu muitas formas, além de
sua figura ter sido sincretizada com várias outras divindades. A versão mais difundida de seu mito a toma como
filha partenogênica de Zeus. Jamais se casou ou teve amantes, mantendo uma virgindade perpétua. Era imbatível
na guerra. Foi padroeira de várias cidades, mas se tornou mais conhecida como protetora de Atenas e de toda a
Àtica.
224 Telêmaco (ou Telémaco), neto de Laertes, filho de Penélope e do herói Odisseu (Ulisses, nome romano pelo
qual este ficou mais conhecido), o qual deixou sua família quando Telêmaco ainda era bebê, indo lutar em Tróia.
Segundo narrativa de Homero, na Odisseia, Odisseu teria sido convocado para a guerra logo depois do
nascimento de Telêmaco. Na tentativa de fugir à convocação, Odisseu simula loucura atirando sal contra a sua
plantação e puxando um arado como se fosse boi. Não convencido, o comissário Palamedes decidiu colocar
Telêmaco à frente do arado, provocando como reação que Odisseu parasse o arado, a fim de evitar a morte do
filho. Provada, então sua sanidade, Odisseu segue para a luta, demorando vinte anos para regressar a Ítaca, sua
casa. Sofreu ferrenha perseguição por parte do imortal Posídon, ofendido por Odisseu ter ferido um dos seus
ciclopes. Sempre que Odisseu tentava lançar-se ao mar, Posídon o atrasava com aflições de toda ordem, como
ventos desfavoveis, redemoinhos e tempestades que o faziam vagar de ilha em ilha. Telêmaco, por sua, vez,
passa grande parte de sua vida à busca de notícias sobre o pai, rejeitando informações de que seu pai teria
perecido no mar. Penélope se mantinha evitando pretendentes que visavam suas terras e posses. Quando, enfim,
do retorno de Odisseu à Ìtaca, pai e filho se juntam e decidem assassinar todos os usurpadores que tentavam
casar com Penélope.
225 Na Odisséia, Homero concebe o personagem Mentor, um sábio e fiel amigo de Odisseu (na mitologia
romana, Ulisses), rei de Ítaca, a quem este confiou a educação e o cuidado de seu filho Telêmaco. Mentor, que se
tornou o grande responsável pela educação do jovem Telêmaco, pela formação de seu caráter e valores e pela
sabedoria de suas decies. Para tanto, Mentor era ajudado pela deusa Palas Atena, dos olhos brilhantes e da
sabedoria, que muitas vezes assumia a forma e imagem do amigo de Odisseu para iluminar ainda mais o
caminho de Telêmaco.
136
mito contém em si este significado normativo, mesmo quando não é
empregado expressamente como modelo ou exemplo. Ele o é educativo
pela comparação dum acontecimento da vida corrente com o acontecimento
exemplar que lhe corresponde no mito, mas sim pela sua própria natureza. A
tradição do passado celebra a glória, o conhecimento do que é magnífico e
nobre, e não um acontecimento qualquer.
226
Os gregos criam, a partir dos seus mitos, que os deuses criaram os homens
a partir da argila e os deixaram na Terra, à própria sorte, vez que, embora não
precisassem trabalhar, suas condições de vida eram ruins. Porque lhes fora
proibido, o dominavam o fogo; viviam nus, se alimentavam de carnes cruas e
de restos de boi. O titã Prometeu
227
, incumbido dos raios e tempestades, porque
era mais amigo dos homens do que dos pprios deuses, roubara uma centelha
do fogo divino das fornalhas de Hefesto
228
e, apiedado com a miserável situação
dos homens, os presenteou com o fogo, dando-lhes, ainda, couro e carnes de boi
furtadas dos deuses. Isso lhes permitiu iniciar o processo da evolução humana,
pois, a partir das dádivas de Prometeu, tornou-se marcada a diferença entre os
homens e os demais animais, pois dominaram a técnica, descobriram os metais,
desenvolveram a arte da guerra. Com o fogo, aprenderam o cozimento dos
alimentos, a iluminação dos caminhos na noite e o aquecimento do ambiente no
inverno. Com o fogo, puderam fabricar instrumentos de metal para o trabalho e
226 In Paideia: a formação do homem grego. Tradução de Artur M. Parreira. São Paulo: Editora Herder [s. d.],
g. 62 .
227 Prometeu, tiirmão de Atlas, Epimeteu e Menoécio, filhos do também titã Jápeto e de Ásia (ou Clímene),
filha de Oceano e, segundo alguns autores, filha de Témis. Segundo a mitologia grega, Prometeu roubou o fogo
dos deuses para presentear os homens. Hesíodo conta que foi dado a Prometeu e a seu iro Epimeteu a tarefa
de criar os homens e todos os animais. Epimeteu encarregou-se da obra e Prometeu, de supervisioná-la.
Epimeteu atrabiu a cada animal dons variados de coragem, força, rapidez, sagacidade; asas a uns, garras a outros,
uma carapaça protegendo terceiro, etc. Pom, quando chegou a vez do homem, formou-o de barro. No entanto,
como Epimeteu havia gasto todos os seus recursos, o mesmo recorreu a seu irmão que, então, roubou o fogo
que era exclusivo dos deuses e o deu aos homens, assegurando a superioridade dos homens frente os outros
animais. Como castigo a Prometeu, Zeus ordenou a Hefesto que o acorrentasse no cume do monte Cáucaso, onde
todos os dias um corvo dilacerava o seu fígado que todos os dias se regenerava, castigo que deveria durar 30.000
anos. Hércules libertou Prometeu. No lugar deste, o centauro Quíron deixou-se acorrentar no Cáucaso, pois a
substituição de Prometeu era uma exigência para assegurar a sua libertação.
228 Hefesto ou Hefaísto era um deus da mitologia grega, filho de Hera e Zeus, conhecido como Vulcano na
mitologia romana. Era a divindade do fogo, dos metais e da metalurgia, conhecido como o ferreiro divino. Entre
outras obras, Hefesto foi responsável pelo escudo usado por Zeus na batalha contra os titãs. De suas forjas saiu
Pandora, a primeira mulher mortal. Casou-se com Afrodite que lhe foi infiel, tendo vários amantes dentre deuses
e mortais. O principal rival de Hefesto era Ares (chamado de Marte em Roma), deus da guerra. Hefesto foi
jogado do Olimpo por sua mãe Hera, desgostosa com o rosto do filho que não era um dos mais belos.
137
para a guerra. Fortalecidos, os homens se deixaram tomar por um sentimento de
poder e presunção e, fiando-se em que o mais precisavam cultuar e respeitar
os deuses, pretenderam lhes tomar o lugar, no que foram vencidos e humilhados.
Como castigo, o Olimpo
229
decidiu, em primeiro lugar, que Prometeu recebesse
o castigo de ser eternamente deixado amarrado num rochedo, exposto para que
as aves de rapina lhe devorassem o fígado. Por outro lado, quanto aos homens,
primeiramente, que a sobrevivência humana passasse a depender do esforço
próprio, através do trabalho de cultivo da terra, e, em segundo, criou a mulher,
Pandora
230
, determinando ao deus Eros
231
que a tornasse bela e sedutora, capaz
de despertar o amor dos homens. Através da deusa da fertilidade, Afrodite
232
, os
deuses fizeram que Pandora pudesse gerar os filhos dos homens e as Erínias
233
impingiram no caráter feminino a curiosidade e a traição. Pronta, Pandora foi
presenteada com uma caixa em que conteria coisas maravilhosas e várias
virtudes que ela, sem saber o conteúdo, deveria dar de presente aos homens; a
caixa, porém, não poderia ser aberta antes que Pandora os encontrasse. Tomada
de curiosidade, no entanto, Pandora não resistiu e desobedeceu aos deuses,
229 Monte Olimpo (grega: Όλυμπος; também transliterado como monte Ólimpos, e em mapas modernos, Óros
Ólimbos) é a mais alta montanha da Grécia, com 2.919 metros ou 9.576 s. Na mitologia grega, o Monte
Olimpo é a morada dos Doze Deuses do Olimpo, os principais deuses do panteão grego. Os gregos pensavam
nisto como uma mansão de cristais que estes deuses habitavam. Sabe-se também, na mitologia grega, que,
quando Gaia deu origem aos Titãs, eles fizeram das montanhas gregas, inclusive as do Monte Olimpo, seus
tronos, pois eram tão grandes que mal cabiam na crosta terrestre.
230 Pandora, a primeira mulher criada por Hefesto e por Atena, a mando de Zeus, como punição pela ousadia de
Prometeu em roubar aos céus o segredo do fogo. Todos sob as ordens de Zeus, os deuses contribuíram para a
criação de Pandora, cada um lhe conferindo uma qualidade. Recebeu de um a graça, de outro a beleza, de outros
a persuasão, a inteligência, a paciência, a meiguice, a habilidade na dança e nos trabalhos manuais. Hermes,
porém, s no seu coração a traição e a mentira. Feita à semelhança das deusas imortais, Zeus a destinou à
espécie humana, isto como castigo aos homens, por terem recebido de Prometeu o segredo do fogo divino.
231 Eros era o deus primordial do amor sexual e da beleza. Era também adorado como divindade da fertilidade.
Seu contraparte romano foi o Cupido (desejo), também conhecido como amor.
232 Afrodite, deusa grega da beleza, do amor e da procriação. Para os romanos, Vênus e o seu culto, origirio
de Chipre, se estendeu a Esparta, Corinto e Atenas. Possuía um cinturão onde estavam armazenados todos os
seus atrativos, que certa vez a deusa Hera, durante a guerra de Tróia pediu emprestado para encantar Zeus e
favorecer os gregos. De acordo com o mito teogônico mais aceito, Afrodite teria nascido quando Urano, pai dos
titãs, foi castrado por seu filho Cronos, que atirou os seus testículos ao mar; então, o sêmen de Urano caiu sobre
o mar e formou as ondas chamada de aphros, fenômeno do qual nasceu Aphroditê (espuma do mar), que foi
levada por Zéfiro para Chipre.
233 As deusas Eríneas ou Fúrias, que na tradição órfica são as três filhas de Hades e Perséfone e por isso estão
localizadas entre as sombras, estão entre as mais antigas deusas gregas. Ésquilo as descrevia como filhas da
noite, pois elas refletem os aspectos sombrios da deusa; na alma humana, representam os elementos primais do
inconsciente.
138
abrindo a caixa no meio do caminho, permitindo, assim, que dela saíssem todas
as desgraças, doenças, pestes, guerras e, principalmente, a morte. Quanto as
virtudes, como eram voláteis, voltaram aos deuses e restou apenas uma, a
esperança, que permaneceu para acalentar os sofrimentos da humanidade.
234
Por esse relato se torna clara a formação machista do povo grego na
Antiguidade, uma vez projetada sob a idéia de que o homem foi criado como
escolha original dos deuses, enquanto que a mulher somente foi concebida como
castigo. Portanto, a supremacia dos homens em relação às mulheres compunha o
imaginário coletivo, sob a convicção de que essa dominação tinha fundo natural
e divino. O mesmo raciocínio pode ser aplicado quanto ao mundo do trabalho,
tomado o mesmo como punição dos deuses e demissão do estado de graça. Por
isso é que, como expiação que era da falta humana, o trabalho era considerado
indigno do homem livre e culto. Ao mesmo tempo, estava justificada a
escravização dos povos bárbaros.
Em tempo, rendendo-nos à afirmação milenar de que as sociedades grega
e romana, formando ambas o conjunto conhecido por Antiguidade Clássica,
foram determinantes para a construção e formação do mundo ocidental,
sobretudo em virtude de que suas contribuições se encontram ainda impregnadas
no homem ocidental contemporâneo, quer na sua forma de pensar o
conhecimento, quer no modo como vê as instituições políticas e as leis civis que
organizam as sociedades, cuidamos de também referir sobre a gênese da
civilização romana.
De acordo com os dados armazenados na história, os quais
invariavelmente descrevem as grandezas de Roma, naturalmente pelo fato de ter
erigido o maior império do mundo antigo, de ter dominado várias civilizações,
234 Idem, pág. 20.
139
construído obras gigantescas, tendo ainda deixado uma herança cultural e
política para as sociedades que lhe sucederiam, o fato admirável é que as origens
de Roma são modestíssimas, ligadas a camponeses e agricultores.
Antes da fundação de Roma, a península itálica era habitada por tribos
italiotas. Outros povos etruscos, gregos, celtas e cartagineses - também vieram
para a região, dentre os quais se destacavam os etruscos, que se radicaram ao
norte, de cuja mistura se originou o povo romano. Logo iniciaram um processo
de expansão territorial em direção às planícies mais férteis, intento que foi
resistido pelos itálicos, os quais fundaram postos militares imbuídos de conter o
avanço. Contudo, a marcha estrusca o foi contida por muito tempo, posto que
esse povo do norte logrou conquistar a região do Lácio e a Campânia, por volta
do séc. VI a. C., unificando as aldeias que se situavam no entorno dos postos de
controle e fazendo nascer a urb romana.
235
Exatamente porque os cidadãos de Roma poderiam rejeitar a idéia de uma
origem o simplória para aquela que viria a ser, séculos depois, denominada de
cidade eterna, cuidou então a tradição literária de elaborar uma narrativa divina
e heróica. Desse modo, segundo a tradição lendária, a cidade de Roma teria sido
fundada por Rômulo, contando a lenda que os irmãos gêmeos Remo e Rômulo,
jogados no rio Tibre
236
pelo rei de Alba Longa
237
, foram salvos por uma loba,
que os teria amamentado na gruta de Lupercal
238
. Na adolescência teriam sido
235 A. Souto Maior, in História Geral. 14ª edição. o Paulo: Companhia Editora Nacional, 1971, págs.
116/119.
236 O Tibre é um rio italiano com nascente na Toscana. Atravessa Umbria (Città di Castelo), depois o cio
(Orte e Roma) e degua no Mar Tirreno. É terceiro rio mais longo da Itália, depois do e do Adige. Desde a
fundação de Roma, o Tibre foi a alma da cidade, e o fato de que a cidade lhe deve a própria existência é descrito
na primeira cena da lenda da fundação, com Remo e Rômulo na cesta, sob o fícus ruminalis (espécie selvagem
de figo, no Monte Palatino, na antiga Roma).
237 Alba Longa: cidade lendária que teria sido fundada por Ascânio, filho de Enéias.
238 A gruta de Lupercal: gruta mítica onde teriam sido encontrados os gêmeos Remo e mulo, onde teriam
sido alimentados por uma loba. Remo e Rômulo, filhos de Réia Silvia e do deus Marte, foram colocados numa
cesta e jogados no Rio Tibre por um rei usurpador. A cesta encalhou na margem do rio e os gêmeos recolhidos e
amamentados por uma loba e, em seguida, recolhidos e criados por um pastor de nome Fausto. Quando adultos,
140
recolhidos e criados por pastores e, adultos, resolvem fundar uma cidade, mas
entraram em um conflito fratricida em que Rômulo matara Remo.
Seguiu-se que o futuro das civilizações ficaria marcado pela herança
greco-romana, cuja sorte cresceu de importância especialmente a partir da
decadência das polis durante o período helenístico (séc. IV a II a. C.) e
consequente domínio macedônico e romano que se abateu sobre os gregos.
239
1.2 - O mundo através da filosofia
Ao surgir, a Filosofia não é uma
cosmogonia e sim (...) uma cosmologia, ou
seja, uma explicação racional sobre a
origem do mundo e sobre as causas das
transformações e repetições das coisas.
(Marilena Chauí)
Superando o modelo de vida em organizações tribais, as primeiras cidades
gregas davam mostras de uma organização comunitária mais complexa, em
que se observa o surgimento e o desenvolvimento do comércio e,
decorrentemente, ampla utilização da escrita e da moeda. De base produtiva
escravista, reminiscência dos tempos anteriores em que o trabalho braçal era
considerado indigno para os homens bons, mas necessário para os escravos,
vimos acima, aquela sociedade produziu um grupo de homens materialmente
beneficiados pelas transformações socioeconômicas, os quais, liberados da
atividade produtiva, passaram a se dedicar à erudição, à reflexão pura, que
os irmãos decidiram fundar, em 753 a. C., uma cidade sobre o monte Palatino, no lugar onde o Tibre os havia
deixado.
239 Cf. José Geraldo Vinci Moraes, in Caminhos das civilizações História integrada: Geral e Brasil. São
Paulo: Editora Atual, 1998, pág. 65.
141
conduz aos questionamentos sobre o funcionamento do universo e, nele, o da
vida. Os resultados nos chegam sob a forma de uma construção filosófica
erigida historicamente a partir da trajetória da Grécia Antiga, berço dos
pensadores, desde o início do século VI a. C., a qual, em síntese apertada,
consiste na formulação racional de tudo aquilo que antes era explicado através
da mitologia.
Como i ocorrer em casos assim, foram as condições econômicas,
sociais, políticas e históricas da época, mais do que qualquer capacidade
imaginativa, que tornaram possível o surgimento da Filosofia, mercê da
contribuição espontânea para a desmistificação do mundo e desencanto dos
homens. Com o auxílio das lições de Marilena Chauí, podemos citar como fator
de desencanto, as viagens marítimas, por exemplo, que propiciavam a
constatação de que lugares que eram tidos como sendo habitados pelos deuses,
titãs e heis, em verdade eram ocupados por outros seres humanos; e que os
mares o escondiam monstros ou lugares fabulosos. Ou seja, vê-se clara a
depreciação do mito como fonte de explicação convincente sobre a origem
humana. Some-se a invenção do calendário e da escrita alfabética, através das
quais a capacidade de abstração e de generalização se desenvolveu
admiravelmente, e iremos observar a disseminação de uma conduta racional
contundente, mas natural e acessível a todos. De outra banda, outras observações
devem ser trazidas ao cotejo, para auxílio da compreensão dessa passagem
histórica, como por exemplo, o surgimento das cidades, a invenção da moeda e
da política.
240
Para os primeiros filósofos, comumente designados pressocráticos e
suficientemente representados pelos físicos Tales de Mileto, Anaximandro,
Heráclito, Pitágoras, Demócrito e Leucipo, o objeto de busca eram o Cosmos e
240 Chaui, op. cit., pág. 37.
142
os fenômenos naturais. Em meio à prosperidade cultural e científica desse
tempo, à toda evidência acelerada pelo sistemático uso da razão e do
consequente desenvolvimento científico, Atenas desponta em esplendor,
especialmente pelo sistema político democrático, profundamente revolucionário
para a época, cujo modelo propiciou o pleno desenvolvimento do pensamento,
dando lugar à aparição de pensadores do escol de Sócrates, Platão e Aristeles,
entre os séculos V e IV a. C. No período clássico, pensadores como Górgias,
Leontinos e Abdera, consentâneos com o seu tempo e modo de vida citadino,
formulavam teoria segundo a qual o objetivo máximo da educação seria a
formação de cidadãos plenos, com aptidão para atuar politicamente, em
benefício da polis.
De ver, assim, que desde a Antiguidade, pensadores e filósofos vêm
refletindo e escrevendo sobre a sociedade, a exemplo de Platão, que, dentre
inúmeras obras, dedicou-nos A República
241
, em que idealizava uma sociedade
governada por sábios e protegida por guerreiros, ou Aristóteles, que na obra A
Política
242
, formulou a sentença de que o homem é um ser destinado a viver em
sociedade, assertiva que alguns autores reduziram mediante o emprego da idéia
de o homem ser gregário por natureza”. De todo o modo, vencida a idéia do
homem isolado. Aliás, o emprego dessa expressão aristotélica, no contexto que
aqui se desenvolve, exige uma pequena digressão, pois, de acordo com os
nossos dicionários, trata-se, a palavra gregário”, de adjetivação para o ser que
vive agrupado, mas sem estrutura social
243
, o que, como afirmamos acima,
implica num reducionismo da lição do filósofo, o qual, em verdade, faz uso de
expressão com sentido mais rico e abrangente, o que se pode inferir da
241 Platão. A República (ou: sobre a Justiça. Gênero Político). Tradução de Carlos Alberto Nunes. edição.
Belém: Editora Universitária UFPA, 2000.
242 Aristóteles. A Política. Tradução de Nestor Silveira Chaves. São Paulo: Átena Editora, 1944.
243 “adj. (Do lat. gregarius.) 1. Diz-se de animal que vive em bando ou em grupo, mas sem estrutura social. – 2.
Que é próprio das multidões: ilusão gregária. // Instinto ou espírito gregário, tendência que levaria o indivíduo a
viver em grupo ou a adotar o mesmo comportamento.”, (Cf., por todos, Grande Dicionário Larousse Cultural da
Língua Portuguesa, op. cit.,g. 477, verbete “gregário”).
143
referência sobre serevidente (...) que a cidade faz parte das coisas da natureza,
que o homem é naturalmente um animal político, destinado a viver em
sociedade ...”.
244
Ao longo de quase todo milênio da Idade Média sobressaíram as filosofias
patrística
245
e escolástica
246
, e, do mesmo modo, pensadores de escol se
dedicaram ao mesmo tema da sociedade ideal, com destaque, entre eles, não
obstante estivessem eles voltados para o intento de racionalização da fé, a
chamada filosofia teocrática ou teocentrismo, para Santo Agostinho, em cuja A
Cidade de Deus
247
esse autor desenhou a cidade perfeita, imaculada, em
confronto com a cidade dos homens, imperfeita, e também Santo Tos de
Aquino, filósofo católico que se empenhou em adaptar a filosofia aristotélica à
doutrina cristã, como nos trabalhos De Regimine Principum
248
e Summa Contra
os Gentios.
249
250
Pom, não obstante a exponencial importância dos pensadores cristãos
acima referidos, torna-se recomendável, aqui, anotar que o período medieval
compreendido entre os séculos VIII e XIV, foi também marcado pelo
pensamento filosófico em que se envolvem pensadores de outros rincões, como
244 In A Política, op. cit., pág. 12.
245 A patrística se refere ao período dedicado à obra dos apóstolos intelectuais Paulo e João, aos que se
seguiram os primeiros padres da Igreja Católica, incumbidos da elaboração doutrinal das verdades cristãs e,
ainda, da concilião entre a nova religião (cristianismo) e o pensamento filosófico greco-romano, isto como
forma de seduzir e converter os pagãos para a nova verdade. Inicia-se no séc. I, com as Epístolas de São Paulo e
o Evangelho de São João, e se prolonga até o séc. VII, início da Filosofia Medieval. (Cf. Marilena Chaui, op. cit.,
g. 45).
246 Com o domínio da Igreja Romana, a filosofia passou a ser ensinada nas escolas daí escolástica ou
escolasticismo -, todas elas patrocinadas pela própria Igreja, em cuja disciplina se fez inserir a imposição das
idéias cristãs, através dos dogmas, sobretudo no que concerne ao propósito de evangelização e defesa da religião.
Comparadas as duas posturas filosóficas acima, urge diferenciá-las, sendo bastante anotar que, dos ensinamentos
agostinianos sobressai a idéia de subordinação da razão em relação à fé, ao passo que o tomismo inverteu essa
ordem de prevalência, ditando uma certa autonomia da razão na obtenção de respostas. (Idem, págs. 46/47).
247 Vide Os Pensadores. “Santo Agostinho”. Tradução de J. Oliveira Santos, S.J. e A. Ambrósio de Pina, S.J.
o Paulo: Editora Nova Cultural, 1996.
248 De Regimine Principum
249 Summa contra os gentios
250 Vide Os Pensadores. Tomás de Aquino. Vida e Obra”. Carlos Lopes de Mattos (org.). São Paulo: Editora
Nova Cultural, 1996.
144
europeus, árabes e judeus. Nessa época, a Igreja Romana exercia forte domínio
sobre a Europa, coroava reis, organizava Cruzadas à Terra Santa
251
, e criava as
primeiras universidades à volta das catedrais.
A era renascentista foi toda ela influenciada pela descoberta de obras
platônicas aentão desconhecidas e de novas obras aristotélicas, obras essas
que passam a ser lidas diretamente do original grego e traduzidas para o latim. A
forma de pensar o mundo e o Universo ganha novas cores e novos rumos,
inclinando-se para um conhecimento que abandona a religiosidade para adentrar
num espaço puramente racional. A burguesia, nascida e se fortalecendo em meio
ao crescimento econômico, fomentou o movimento cultural e científico que se
convencionou denominar Renascimento, o qual era guiado por ideais do
liberalismo político e religioso, centrado em representantes e pensadores do
empirismo e do idealismo.
São alguns dos expoentes dessa época: Dante Alighieri (A Divina
Comédia
252
), Tos Campanella (A Cidade do Sol
253
), Tomas Morus
(Utopia
254
), Erasmo de Rotterdam (O Elogio da Loucura
255
), Nicolau Maquiavel
(O Príncipe
256
).
251 As Cruzadas: chama-se cruzada qualquer dos movimentos militares de caráter parcialmente cristão, que
partiam da Europa Ocidental com o objetivo de colocar a Terra Santa, nome pelo qual os cristãos denominavam
a Palestina, e a cidade de Jerusalém, sob o domínio cristão. Esses movimentos aconteceram entre os séculos XI e
XII, época em que a Palestina se encontrava sob controle dos turcos muçulmanos.
252 A Divina Comédia, poema épico de Dante Alighieri, que a iniciou por volta de 1307, concluindo-a pouco
antes de sua morte, em 1321. Escrita em italiano, a obra é um poema narrativo da odisséia pelo Inferno,
Purgatório e Paraíso, descrevendo etapas da viagem com detalhes quase visuais. Dante, personagem da viagem, é
guiado pelo inferno e purgatório pelo porte romano Virgílio, e, no paraíso, por Beatriz, musa em várias de suas
obras.
253 A Cidade do Sol (Civitas Solis) 1623 - a mais popular das obras de Campanella, nela o autor, seguindo a
República de Platão, formula a idéia de uma comunidade ideal, sem hierarquias, na qual todos trabalham e rias
funções são adequadamente repartidas. É abolida a propriedade privada e todo bem individual é subordinado ao
bem da comunidade.
254 Utopia (1516), palavra inventada por Sir Thomas More para designar uma sociedade com um perfeito
sistema sócio-político-jurídico e com a qual descrevia uma ilha ficcia no Oceano Atlântico. Utopia é
amplamente baseado em A República, de Platão, onde não existem os males da sociedade como, por exemplo, a
pobreza e a miséria.
145
Mais tarde, no Período Moderno, que a história registra como sendo do
Grande Racionalismo Clássico, o ambiente era de pessimismo teórico, o que
permeou os fins do século XVI e início do seguinte. Por pessimismo teórico, ou
seja, por ceticismo, compreenda-se a atitude filosófica de dúvida frente à
capacidade da razão para conhecer, o que teve lugar em virtude das guerras de
religião que pululavam entre católicos e protestantes, das constantes disputas
filosóficas e teológicas, descobertas de novos povos totalmente diferentes e
estranhos aos europeus, tudo isso capaz de comprometer as certezas em torno de
verdades universais. Num cenário assim, de proliferação de conflitos de
opiniões, os filósofos, por natural, se tornaram céticos.
Em reação a esse ceticismo, eis que se levanta o ideal filosófico da
possibilidade do conhecimento racional verdadeiro e universal, que elege o
sujeito do conhecimento, a realidade como intrinsecamente racional e, por fim, o
objeto do conhecimento como idéias que dependem unicamente de operações
cognitivas realizadas pelo próprio sujeito.
257
São representantes da Filosofia
Moderna, dentre outros: Francis Bacon (Nova Atlântida
258
), René Descartes,
Galileu Galilei, Blaise Pascal.
Sobrevém o século das Luzes, em cujo contexto a busca do conhecimento
tendo a experiência, a razão e otodo científico como sua base, toma o
255 O Elogio da Loucura; ensaio escrito em 1509 por Erasmo de Roterdã e publicado em 1511. Considerado um
dos livros mais influentes da civilização ocidental e um dos catalisadores da Reforma Protestante.
256 O Príncipe (1513), escrito por Nicolau Maquiavel, teve sua primeira edição postumamente, em 1532. É um
tratado político fundamental, dos mais importantes elaborados, exercendo um papel central no
desenvolvimento de um conceito de Estado como hoje o conhecemos. Neste livro, Maquiavel descreve as
maneiras de conduzir-se nos negócios públicos internos e externos, articulando argumentos de como conquistar e
de manter um principado.
257 Vide Chaui, op. cit., págs. 48/49.
258 Francis Bacon apresenta em sua obra Nova Atlântida o berço para toda civilização, mostrando como o
homem deve viver diante da natureza e sua postura diante do avanço industrial em meio às coisas naturais, sendo
estas benas comuns a todos. A obra trata, em primeiro plano, de uma viagem rumo à China e Japão, mas como
durava muito tempo, muitos adoeceram. Pensando que iriam morrer, avistaram uma ilha e tiveram um primeiro
contato de espanto com o povo local, pois era poliglota e muito cristão. Permitiram a estadia dos velejadores por
alguns dias, período em que alguns dos navegantes perguntaram sobre porque aquela ilha de Bensalém era tão
desenvolvida e ao mesmo tempo desconhecida. A partir daí, um monge, que os acolheu numa casa chamada
Colégio de Salomão, passa a lhes contar a história daquele povo.
146
homem como centro do Universo. Surgem vários autores, críticos da sociedade
regida por governo arbitrário e signatários da teoria segundo a qual o estado e a
lei, fundados na natureza, devem salvaguardar os sujeitos de prejuízos em sua
sde, sua vida, sua liberdade e suas posses.
259
Nesse diapasão, idealistas, como, por exemplo, Thomas Hobbes e Jean-
Jacques Rousseau, explicando a origem da sociedade civil a partir de um
contrato social, concebem, o primeiro, que o homem é lobo do próprio homem e
para que não se devorassem uns aos outros, criou-se o Estado, por ele
denominado Leviatã
260
, e, o segundo, vendo o homem bom em seu estado de
natureza, mas que se corrompe com a sociedade (O Contrato Social
261
).
Não por mera coincidência, os postulados do iluminismo foram
determinantes para a Revolução Francesa (1789), cujos líderes foram
influenciados por pensamentos dos filósofos acima e também de outros, como,
por exemplo, de David Hume, Friedrich Hegel, Montesquieu, Voltaire,
Immanuel Kant, Diderot, D´Alambert e Fichte.
Precedido por idéias propaladas por Augusto Comte, ícone do
positivismo, sob as quais uma sociedade deve se alicerçar no binômio da ordem
e progresso, em que o conhecimento pode ser haurido a partir do
reconhecimento de que o fato histórico fala por si e que o todo científico
deve ser controlado e medido; pela teoria de Marx e Engels, fundada no
materialismo histórico e explorada pelo método dialético, e até mesmo pela
filosofia libertária de Friedrich Nietzsche, a qual assenta que o pensamento deve
ser livre de qualquer forma de controle moral ou cultural, surge o século XX,
projetando-se como palco de embates de várias correntes de pensamento que
259 Vide Dicionário de Ciências Sociais, op. cit., pág. 686, alínea B1 do verbeteliberalismo”.
260 Leviatã ou Matéria , forma e poder de uma comunidade eclesiástica e civil (1651).
261 Título original Du contract social et Discours sur l´économie politique (1762).
147
agiam ao mesmo tempo, tendo eclodido escolas representativas de releituras de
novas propostas filosóficas, como, por exemplo, a antropologia de Claude Lévy-
Strauss, a fenomenologia de Edmund Husserl, o existencialismo de Jean Paul
Sartre, etc. Autores como Antonio Gramsci, Michael Foucault, LouisAlthusser e
Gyorgy Lukács, são representativos desse período.
I.3. O mundo a partir das ciências
262
Nos últimos 50 anos tivemos mais
desenvolvimento inventivo do que toda a
história anterior da humanidade; em outras
palavras: aceitando a hipótese de que
aproximadamente 40.000 anos somos homo
sapiens, apenas nas 5 décadas mais recentes
acumulamos mais estruturas de
conhecimento e intervenção no mundo do
que em todos os 39.950 anos anteriores.
(Mário Sérgio Cortella).
263
A contemplação dos períodos históricos ao longo do percurso humano nos
permite concluir que todas as transformações, espontâneas ou provocadas,
superficiais ou profundas, localizadas ou generalizadas, obedecem a uma
dinâmica de consequencialidade que chega a evocar a lógica sistemática dos
métodos racionais de experimentação. É nesse sentido que se pode tomar o
surgimento e acentuado desenvolvimento da racionalidade do homem a partir do
modelo produtivo que se implantou no mundo antigo, cujo modelo, fundado na
262Para esse tema fizemos uso dos ensinamentos de José de Souza Teodoro Pereira Júnior, in Sociologia Geral
e do Direito, op.cit., págs. 19/36.
263 In op. cit., pág. 15.
148
crença mitogica de que a atividade laboral, surgida como punição dos deuses e
penitência pela falta humana, era destinada aos escravos, os quais, por sua
condição supostamente ignóbil e agressiva, eram indignos e não-livres
264
. Foi
assim, por outro lado, que os homens livres e cultos, dispensados, portanto, do
labor, puderam se dedicar às atividades pretensamente mais nobres, como, por
exemplo, ao exercício filosófico e à cultura letrada. Como resultantes diretas
desse modelo, sobressaem a formação de uma sociedade complexa (a polis),
com comércio efervescente e uso acentuado da moeda, e, principalmente, o
avanço dos domínios da matemática, da geometria, da astronomia, enfim, das
ciências naturais.
E, mais, persistindo assim estruturada aquela sociedade durante sucessivas
gerações, não tardou a que se dessem também por insuficientes os modelos de
racionalidade inaugurados pelos sophos (filósofos), de sorte que um novo
paradigma explicativo da realidade se urgenciava para os gregos da época.
Interessava, para além da substância da matéria, conhecer sobre o movimento
das coisas, assim entendidos não o deslocamento, mas toda e qualquer
transformação da realidade dos corpos. Com efeito, se tudo flui, no sentido de
que os seres nascem, se desenvolvem, se modificam e, sem perder sua
identidade e sua essência, por fim desaparecem, salta aos olhos que a realidade
se movimenta e pode ser investigada em duplo sentido, a saber, por primeiro, em
busca de se saber se as transformações naturais são reais ou meras aparências
que enganam nossos sentidos, e, n´outro plano, independentemente do modo
como ele se opera, o porquê do movimento.
264 A citação (Ifigenia em Aulida) oferecida por Aristóteles em A Potica, o deixa a mais mínima vida a
esse respeito: “Os gregos têm o direito de mandar nos bárbaros”. (Op. cit., pág. 10).
149
Coube a Aristóteles, na tentativa de uma resposta à questão do
movimento, formular a Teoria das Quatro Causas
265
, segundo a qual o
movimento é determinado por causas materiais, formais, eficientes e finais. Por
causa material entenda-se a substância ou matéria de que se compõem todos os
seres em transformação; a causa formal consiste nas características típicas que
identifica, que definem o ser; causa eficiente é a atividade, força ou trabalho,
que se exerce sobre o ser para que ele se mova; por fim, a causa final se
identifica pelo objetivo que determinou a transformação. Na aplicação da teoria,
pode-se tomar o exemplo do fio de algodão, que se transforma em tecido e
depois em peça de vestuário , em que o algodão (causa material), se deixa
transformar, tornando-se tecido com determinadas características (causa
formal), para que, em decorrência do trabalho do artesão (causa eficiente) e
atendendo a uma necessidade específica, se ultima em roupa (causa final).
Importa assinalar que essa Teoria das Quatro Causas enfrentava o desafio
de explicar todas as espécies de movimentos, quer culturais, quer naturais, e era
pensada de modo a se -las de modo hierarquizado, com prevalência da causa
final, ou determinante, sobre as demais, o que indica o caráter teleológico das
ciências idealizado por Aristóteles, ao passo que a causa eficiente seria a de
menor importância.
Ao estabelecer finalidades para as transformações, - assinala o autor aqui
consultado - Aristóteles estruturou um tipo teleológico de ciências que conceitua o
movimento como a realização das potencialidades das coisas, que alcançariam a
perfeição por meio desse caminho (realização da poncia), cuja meta é a satisfação
de sua finalidade existencial. Esse modo de pensar espelha a cosmovisão da cultura
grega, segundo a qual o universo seria unificado, finito, lógico, estável e finalista
porque seria participante de uma espécie de Razão Cósmica. De outra parte, revela
um conteúdo ideológico relativo aos costumes e interesses sociais da época ao
265 Enquanto, para a ciência de hoje, causa consiste no evento factual, lógica e necessariamente antecedente ao
evento consequente, para Aristóteles e seus contemporâneos, isso era a idéia de motivo ou elemento, não
necessariamente factual.
150
refletir o desprezo pelo trabalho manual característico das elites aristocráticas,
cujos poder e riqueza estavam assentados na escravatura.
266
Fortes na convicção de que as narrativas mitológicas o eram mais
suficientes para desvendar a complexidade sócio-político-econômica, os
pensadores concentravam esforços no sentido de identificarem um novo modelo
de interpretação do mundo e, embora fosse inegável o avanço representado pela
sistematização proposta por Aristóteles, como vista acima, a teoria de causa
finalística encaminhava o raciocínio para campos insuscetíveis de verificação
empírica, o que tornava as conclusões desprovidas de conteúdo prático, o que
explica porque de a ciência helênica ter sido essencialmente teórica, sem ter
desenvolvido a técnica.
Com a desintegração do Império Romano a partir das invasões bárbaras e
muçulmanas, o comércio tornou-se impraticável em virtude das sucessivas
guerras e saques, crise que provocou o fechamento da Europa e desencadeou o
retorno do modelo produtivo para a economia de subsistência através da
agricultura e pecuária. A Igreja era única instituição estruturada e expandiu o
cristianismo até converter vários chefes rbaros e, por óbvio, angariava cada
vez mais prestígio e poder, o que condicionou a reestruturação européia sob o
comando religioso, dando início ao período medieval, fase em que a cultura
cedeu lugar ao apego pelas tradões do campo e à fé.
A ciência medieval tornou-se teontrica e livros e obras de arte foram
confinadas nos mosteiros, fazendo da Igreja a detentora do saber. Os poucos
letrados eram padres ou monges, enquanto o povo e a nobreza viviam no
analfabetismo. A prevalência das coisas espirituais sobre as materiais orientou
que a Igreja firmasse dogmas teológicos e encomendou a seus pensadores a
266 Op. cit.,g. 23.
151
classificação do conhecimento herdado dos gregos, mas tomando-o a partir do
olhar clerical, com o fito de conciliar razão e fé. Assim, todo o saber que
pudesse ser assimilado pela cristã era considerado verdadeiro, prevalecendo a
em caso de eventual conflito sobre o que poderia ser considerado verdadeiro.
A ciência dessa época retrata de modo claro a cultura da “estabilidade” e
justificadora das relações sociais baseadas na hierarquia social espelhada na
hierarquia cósmica. Nobreza e clero levavam uma vida aristocrática, valorizando
o ócio e desprezando as atividades práticas, de modo que também nesse tempo a
ciência se mantinha distante da técnica e da experimentação.
Esse quadro de estagnação da técnica e da agricultura, a inexistência de
comércio, a escassez de terras produtivas que pudessem ser tomadas pelas novas
gerações de nobres, o excesso populacional nos feudos, tudo isso fez com que o
feudalismo iniciasse seu declínio irremediável já no século XII. A falta de
opções econômicas impulsionou as guerras santas contra os muçulmanos que
cercavam o Mediterrâneo, mesclando objetivos políticos, econômicos e
religiosos, em busca, respectivamente, de expansão dos domínios, ampliação das
terras e de saques, e reconquista da Terra Santa. Em tais circunstâncias, as rotas
comerciais se reacenderam e com elas o ressurgimento das cidades e de novas
classes sociais, como a burguesia e, logo depois, do proletariado.
Os séculos seguintes permitiram aos comerciantes o acúmulo de riquezas,
dada a sua atividade prática, do trabalho e da capacidade produtiva, ao que se
soma a inventividade, pois criaram um sistema financeiro e passaram a financiar
a nobreza decadente e as produções artísticas. Cuidam-se, a olhos vistos, das
condições socioeconômicas que possibilitaram a formação de grupos de pessoas
ricas e, bem por isso, novos valores foram inaugurados com nítida transição do
teocentrismo para o antropocentrismo, a antiga valorização do ócio sendo
152
substituída pela valorização do trabalho, dava-se a superação da religião que
prometia o paraíso no Céu o catolicismo -, por outra que entendia a riqueza
terrena como benção (o protestantismo). Surgia o Renascimento.
As transformações também atingiram o plano do saber, pois, se antes o
conhecimento era desligado das questões práticas e por desnecessidade se ligava
somente à contemplação teórica, agora as necessidades econômicas do
capitalismo e a valorização do trabalho encaminhavam a ciência em direção à
técnica. Antes, o critério da verdade, de conceituação finalista, era apenas
limitado à coerência conceitual; agora, transformando-se o conceito de ciência
para o campo descritivo e utilitarista, fazia-se necessário submeter as hipóteses
ao crivo da observação empírica, à matematização e à comprovação
experimental. Enfim, voltada para a técnica.
I.4. O mundo a partir das revoluções
É na Idade Moderna que o Ocidente assistiu à Era das Revoluções, tendo
lugar a Revolução Comercial, a Revolução Cultural, as Revoluções Políticas e a
Revolução Científica.
De fato, o advento do sistema capitalista, tendo provocado profundas
transformações nas relações cio-econômicas, abalou a estabilidade e rigidez
do muno medieval, o qual foi levado a ceder lugar a uma sociedade não mais
fundada em laços de nobreza, mas centrada nas relações comerciais que
fomentam a mutabilidade social, agora definida pelo enriquecimento a partir dos
inventos e do trabalho mercantil, transformando a vida rural e provocando o
reaparecimento das cidades e surgimento de uma nova atividade produtiva, a
indústria.
153
Houve um processo migratório que marcou a retirada dos camponeses das
terras que compunham os antigos feudos, enviando-os para as cidades em
formação no entorno das novas indústrias, resultando em inchaço urbano não
planejado, responsável por problemas sociais como o aparecimento de cortiços,
bolsões de miséria, mendicância, prostituição, furtos, alcoolismo,
promiscuidade, epidemias, etc., enquanto que, na mão contrária, as elites
enriqueciam em níveis nunca antes visto.
Em paralelo ao processo de industrialização, a classe social dela derivada,
o operariado, premido pelas necessidades advindas da maciça concentração e
precariedade sanitária, passou a adquirir gradativamente consciência de sua
condição, e passou, das violentas revoltas contra as fábricas e os patrões, para a
formação de associações e sindicatos, chegando à produção de jornais próprios e
literatura engajada, ou seja, com conteúdo voltado para a formação de uma
crítica ao sistema capitalista e de propostas de inclinação socialista.
Ironicamente, nesse contexto de vertiginoso desenvolvimento da ciência
utilitarista é que desponta a preocupação com os fenômenos humanos, dada a
flagrante necessidade de compreensão das ocorrências da sociedade e da
necessidade de intervir no fato social com o objetivo de controlá-lo e de
modificá-lo.
Como se , afora o esforço humano sempre motivado pela busca do
conhecimento das causas primeiras, fatores históricos, destacadamente a
Revolução Inglesa (1649), a Independência dos Estados Unidos (1776) e a
Revolução Francesa (1789), surgiram e atuaram de modo determinante para as
ciências sociais, tendo em vista as diversas e profundas transformações d
surgidas, que acarretaram o aparecimento de novas classes sociais, elevação de
umas e rebaixamento de outras, fatores que estimularam os estudiosos a buscar
154
entendimento sobre a sociedade e a vida social. Intelectualmente, num contexto
de aceleração das idéias e da crença de que saber é poder, tais fatores históricos
e intelectuais, somados, provocaram a elaboração de uma filosofia baseada em
três pontos básicos, os quais foram reunidos pelo Conde de Saint-Simon
267
, a
saber: 1°) a regularidade dos fatos sociais e históricos, podendo ser considerados
submetidos a leis e, assim, passíveis de estudo científico; 2°) entrosamento do
homem com a natureza, sendo que antes ele era tido como estranho e o como
parte integrante e, pois, sujeito às leis da natureza; ) desejo de intervir no curso
da história e na sociedade, o que se possibilita em face de estarem, as mesmas,
sujeitas às leis.
Com isso, surge a sociologia no século XIX, mediante a contribuição de
Augusto Comte, Herbert Spencer e Karl Marx, respectivamente francês, inglês e
alemão.
267
Claude-Henri de Rouvroy - Conde de Saint-Simon (* Paris, 17 de Outubro de 1760 † Paris, 19 de Maio de
1825). Filósofo e economista francês, foi um dos fundadores do socialismo moderno e teórico do socialismo
utópico.
155
TERCEIRA PARTE: A SOCIEDADE
156
Capítulo I: Conceitos sociológicos fundamentais (contatos, interações,
relações e fatos sociais).
“A cidade é, pois, a forma suprema de
comunidade, mas uma forma
particular. Enquanto outras
associações surgem, agora
sim, artificialmente em vista
fins particulares – uma
sociedade de mercadores visa
o lucro, por exemplo, e nada
mais -, a cidade surge
naturalmente.” (Alberto
Alonso
Muñoz)
268
A propósito da epígrafe supra, oportuno tocarmos, como abertura desta
Terceira Parte, na teoria do contrato social ou teoria contratualista, cujas
primeiras lições são encontradasna obra aristotélica, em especial nA Política,
sobrevindo desde eno uma classe abrangente de teorias que se ocupam da
compreensão dos fatores que levam os indivíduos a formar Estados e a manter
uma ordem social.
Com efeito, teorias diversas se apresentam sob a nomenclatura do
contratualismo, todas oferecendo uma estrutura conceitual do consenso social
que traz implícito que as pessoas abrem mão de certos direitos individuais,
cedendo espaço para um governo, visando a obtenção das vantagens de uma
ordem social. Por esse ângulo, o contrato social seria um acordo entre os
268 “A filosofia política de Aristóteles”. In: MACEDO JÚNIOR. Ronaldo Porto (Coord.). Curso de Filosofia
Política: do nascimento da filosofia a Kant. São Paulo: Editora Atlas, 2008, pág. 148.
157
membros de uma dada sociedade, através do qual se reconhece a autoridade
igualmente sobre todos.
Em que pese irmanadas em torno de uma mesma estrutura conceitual, tais
teorias oferecem sensível dificuldade para uma adequada e segura definição
dessa corrente de pensamento ocidental que vê:
[...] a origem da sociedade e o fundamento do poder político
(chamado, quando em quando, potestas, imperium, Governo, soberania,
Estado) num contrato, isto é, num acordo tácito ou expresso entre a maioria
dos indivíduos, acordo que assinalaria o fim do estado natural e o início do
estado social e político.
269
A escola do contratualismo se difundiu na Europa, mais vigorosamente
nos séculos XVII e XVIII, como forma de explicar ou postular a origem legítima
dos governos e, portanto, das obrigações políticas dos governados ou súditos,
revelando como expoentes ximos da teoria da racionalização da força e da
sustentação do poder no consenso dos pensadores J. Althusius, T. Hobbes, B.
Spinoza, S. Pufendorf, J. Locke, J.J. Rousseau e I. Kant.
A maioria dessas escolas partem do exame do estado de natureza para
tentar explicar, cada uma a seu modo, como eclodiu o interesse racional pela
abdicação da liberdade individual para obter os benefícios da ordem política. O
Estado de natureza corresponde à condição humana diante da ausência de
qualquer ordem social estruturada, onde as ões dos indivíduos de orientariam
exclusivamente pelo poder e consciência de cada um.
Fixemos, agora, o sentido de atividade social, a fim de que a partir dela
passemos à verificação das ações individuais ou coletivas de interesse
sociológico, classificando-as, em seguida.
269 Nicola Matteucci, “Contratualismo”. In Dicionário de Política, vol. I, pág. 272, verbete: contratualismo.
158
Valemo-nos, uma vez mais das lições weberianas e, assim, colhemos:
Entendemos, por atividade, um comportamento humano (pouco
importa que se trate de um ato exterior ou interior, de uma omissão ou de
uma tolerância), sempre que o agente ou os agentes lhe comunicam um
sentido subjetivo. Por atividade social entendemos a que, segundo o sentido
visado, o agente ou os agentes relacionam com o comportamento de outrem
para orientar, em consequência, seu desenvolvimento.
270
I.1. Contatos sociais
De bases físicas
271
, psíquicas
272
e psicofísicas
273
, os contatos sociais estão
na fase incipiente da associação humana, a partir das quais ocorrem as
interações sociais e que, se contínuos, produzem: a) no indivíduo: socialização,
estimulação, libertação em relação aos costumes cristalizados, auxílio para a
solução de problemas novos; b) no grupo: justaposição de povos, costumes,
instituições sociais e mudanças sociais, aumento de problemas que podem levar
à desorganização social.
Diz-se, dos contatos sociais, ser fase incipiente da convivência humana
por se tratar de relacionamentos que somente produzem interações mentais e
conscientes, com possibilidades de ajuste de diferenças entre os indivíduos, se se
tornarem contínuos e prolongados, o que pode ser ilustrado através dos objetos
físicos que, em contato prolongado, nivelam as temperaturas corpóreas
inicialmente diferentes.
274
270 Apud Julien Freund, op. cit., pág. 78.
271 Quando fundados em percepções sensitivas, ou seja, estabelecidos por meio da visão, audição ou tato,
respectivamente quando, diante da presença de algm, o vemos, ouvimos ou apertamos-lhe a mão.
272 Pressupõe força de idéias ou emoções.
273 Os contatos humanos em geral possuem base psicofísica, que envolvem simultaneamente os padrões
anteriores.
274 A propósito do tema, vem-nos à mente ilustração ainda mais enriquecedora do que aqui se refere. Vejamos:
“[...] durante uma era glacial bem remota, quando parte de nosso planeta se achava coberto por densas camadas
de gelo, muitos animais não resistiram ao frio intenso e morreram. Morreram indefesos por não se adaptarem às
159
Os contatos humanos podem ser divididos em contatos diretos e contatos
indiretos, considerando, dentre aqueles, os estabelecidos face-a-face, de
indivíduo para indivíduo, com a percepção física dos mesmos e sem qualquer
intermediação; dentre estes, os contatos estabelecidos com a mediação de
terceiros ou de meios técnicos, como telefone, cartas, livros, etc. O contato entre
professor e seus alunos nas aulas presenciais são diretos e, na hipótese de se
tratar de cursos à distância, tratar-se-ão de contatos indiretos.
Outra forma de classificação dos contatos sociais toma-os em conta das
relações familiares, de vizinhança ou de amizade, em que as sensações auditivas
e visuais estão sempre presentes. Tratam-se, estes, de relações informais,
íntimas, intensas e possuem finalidade em si mesmas, a que se classificam
primários. Outros, tidos por contatos sociais secundários, caracterizam-se por
maior distanciamento entre os indivíduos em contato, a exemplo daquele que se
firma entre passageiro e cobrador de transporte coletivo, entre o frentista e o
motorista do veículo num posto de combustível, entre o alto dirigente e o
operário de uma grande empresa. Aqui, nota-se, invariavelmente, nenhuma
intimidade e muita indiferença, transitoriedade e se constitui um meio para se
atingir alguma finalidade distinta do próprio contato.
275
condições do clima hostil. Foi então que uma grande manada de porcos espinhos, numa tentativa de se proteger e
sobreviver, começaram a se unir, a juntar-se mais e mais. Bem próximos um do outro, cada qual podia sentir o
calor do corpo do outro. E assim bem juntos, bem unidos, agasalhavam-se mutuamente. Assim aquecidos,
conseguiram enfrentar por mais tempo aquele inverno terrível. Vida ingrata, porém... os espinhos de cada um
começaram a incomodar, a ferir os companheiros mais próximos, justamente aqueles que lhes forneciam mais
calor. Feridos, magoados e sofridos, começaram a afastar-se. Por não suportarem mais os espinhos de seus
semelhantes, eles se dispersaram. Novo problema: afastados, separados, começaram a morrer congelados. Os
que sobreviveram ao frio voltaram a se aproximar, pouco a pouco. Com jeito e precaução. Unidos novamente,
mas cada qual conservando uma certa distância um do outro. Distância mínima, mas suficiente para conviver,
sem ferir, para sobreviver sem magoar, sem causar danos recíprocos. Assim agindo, eles resistiram à longa era
glacial. Apesar do frio e dos problemas, conseguiram sobreviver.
(Colhido em http://www.contandohistorias.com.br/historias/2004223.php)
275 Convém frisar a existência de outras propostas classificatórias dos contatos sociais presentes na literatura
especializada, tais como contatos do nosso grupo e de grupo alheio, ou contatos categóricos e contatos
simpáticos, os quais, com a devida vênia, deixaremos apenas referidos.
160
I.1.1. Isolamento social
Desponta, ainda, da observação das interações sociais, essência da vida
em sociedade, o conceito de isolamento social, o qual não se confunde com o
isolamento geográfico, este representado pela separação espacial, e se orienta
através do nível comunicativo entre indivíduos ou grupos no mesmo espaço
social.
Atitudes sociais e particulares como egoísmo, etnocentrismo,
preconceitos, timidez, aversão ou suspeitas, e arranjos grupais, como a
organização de castas, classes, sociedades secretas, seitas, partidos e mesmo as
organizações profissionais, são mecanismos que provocam ou reforçam o
isolamento social
Em termos de isolamento, ou, se preferirmos, de baixa comunicação
social, certos fatores são recorrentes, como, por exemplo, geográficos,
biológicos, habitudinais e psicológicos, ruídos que provocam no indivíduo a
condição de homo ferus, como visto acima, dado o isolamento antes de qualquer
socialização, e, de outra banda, na hipótese de isolamento prolongado do
indivíduo socializado, o qual poderá vir padecer de diminuição das funções
mentais ou mesmo loucura. Quanto ao isolamento de grupo, é possível o seu
estudo a partir de quistos culturais, expressão esta que deve ser entendida no seu
sentido figurado, ou seja, “... conjunto de elementos discordantes do meio e que
formam um todo homogêneo; esses funcionários apadrinhados são um quisto na
repartição”.
276
Os estudiosos apontam o isolamento estrutural, o qual se apresenta sob
forma de baixa comunicação ou mesmo impedimento comunicativo em virtude
276 Cf. Grande Dicionário Larousse Cultural da Língua Portuguesa, op. cit.,g. 759, verbete “quisto”.
161
de diferenças estruturais biológicas responsáveis por provocar nos indivíduos
experiências diferentes, como na relação entre pessoas de idade e sexo
diferentes. O homem e a mulher, é sabido, não participam das mesmas
experiências, posto que nem todas são comuns a ambos os sexos, o que revela o
isolamento estrutural, assim como entre crianças, jovens, adultos e velhos.
Pom, para não tocarmos em diferenças que dão suporte a preconceitos
de qualquer espécie, o fator de maior isolamento estrutural reside nas
incapacidades biológicas, tal como suportado pela norte americana Helen Keller,
citada acima. Com efeito, os deficientes visuais, auditivos e da fala, não se
comunicam com uma intensidade que lhes permita trocar experiências com os
demais semelhantes.
O isolamento pode acontecer por diferenças entre os costumes, de língua
ou de religião e nestes casos são classificados como habitudinal. As dificuldades
de comunicação entre pessoas de línguas diferentes, por exemplo, só se viabiliza
mediante gestos ou intérpretes, o que facilita o isolamento, tal como acontece
entre pessoas de origem oriental e o ocidental, entre o cristão e o budista, entre o
primitivo e o civilizado.
Do ponto de vista psíquico, o isolamento ocorre entre grupos diversos
dentro de uma mesma cultura, materializando-se por diferenças de atitudes,
sentimentos, opiniões ou interesses distintos, etc., a exemplo do isolamento entre
pessoas de classes ou grupos sociais diversos. É o que nitidamente se observa
com o homem do campo que, devido ao distanciamento geográfico, mostra
mentalidade, hábitos e preferências diferentes em comparação com o homem
citadino, cuidando-se, pois, de isolamento psíquico.
162
I.2. As interações sociais ou reciprocidade das ações sociais
As ações humanas comem aquilo que se denomina comportamento e
podem ser observadas a partir de sua estrutura e fins, especialmente quando
consideradas em nível coletivo, partindo da assertiva de que a interação do ego e
do alter consiste a forma mais elementar de um sistema social e na qual ego e
alter ego constituem um objeto de interação, um em relação ao outro.
Serão consideradas sociais as ações humanas revestidas a um só tempo de:
a) significado: ato dotado de sentido, ou seja, que antes de ser realizado
materialmente passa pela consciência, nela eclodindo uma intenção de ser o
mesmo efetivado de uma ou outra maneira, com tal ou qual propósito; e b)
referência: quando desenvolvidos com relação a outros indivíduos, dentro da
situação natural, social e cultural do grupo.
Em sua interação, tanto o ego como o alter revelam duas diferenças
básicas de orientações, quando se tratar de objetos não-sociais, a saber: como os
resultados da ação do ego dependem da reação do alter, aquele orienta-se não
apenas pelo provável comportamento manifesto ao alter, mas pela interpretação
que faz das expectativas do alter com relação a seu comportamento, uma vez
que o ego espera que as expectativas do alter influenciarão seu comportamento.
Em segundo lugar, considerando-se um sistema integrado, tal orientação com
relação às expectativas de cada qual é recíproca ou complementar.
Quando duas pessoas estão em contato e entre si estabelecem uma
comunicação, ocorre uma ação recíproca entre elas, de modo que idéias,
sentimentos ou atitudes provocarão reações umas nas outras, resultando em
modificação no comportamento de todos. De fato, as pessoas influenciam outras
e, na mesma medida, sofrem influências, processo que se caracteriza por
163
interação social e que pode ser definida como ão recíproca de idéias, atos ou
sentimentos entre pessoas, grupos ou entre pessoas e grupos, implicando
modificação no comportamento nos indivíduos que deles participam.
É a interação a base da vida social e a responsável pelo processo de
socialização e formação da personalidade dos indivíduos. Conforme dissemos na
abertura deste item, consequência da influência tua, as ações de uma pessoa
dependem das ações de outros e vice-versa, de sorte que elas formam a base de
toda organização estrutura social.
A condição de viver em comunidade acarreta ao homem a necessidade de
pautar-se pelo conhecimento do que é socialmente aceito, para que assim possa
se conduzir no meio de modo não reprovável e também, na via oposta e em seu
benefício, possa, no mesmo diapasão, contar com o respaldo da comunidade
para reprimir eventual agressão que lhe venha ser perpetrada por outrem. Esse
mecanismo ajusta e controla a vivência em sociedade, podendo constituir-se de
modo rudimentar ou mesmo apresentar-se em volumoso e sofisticado
ordenamento jurídico. De todo o modo, é a partir desse conceito que retiramos a
segurança como requisito essencial para a vida em sociedade.
277
Conclui-se, portanto, que as interações sociais demonstram que indivíduos
se associam não porque cada um age sobre todos os demais com o seu conteúdo
de vida, mas porque entre todos os membros influências recíprocas, ou seja,
interações sociais, a que denominamos relação social, que podem se dar sob
diferentes formas (econômica, jurídica, política, religiosa, etc.).
278
277
Cf. nossa DM, pág. 33.
278 Cf. Reinaldo Dias, op. cit., págs. 90/91.
164
I.3. As relações sociais
Vimos acima, a forma que incorpora a interação social se denomina
relação social, esta sim, com possibilidade de ser qualificada como política,
religiosa, etc. e sujeita a diferenças de qualidade e de intensidade, como por
exemplo, aquela estabelecida entre patrão e empregado, indicativa de que a
mesma varia conforme o status e a distância social dos indivíduos envolvidos,
pelo fato de cada um possuir, na sociedade, um conjunto de direitos e deveres
que o caracterizam. A isso se dá o nome de status social e sua repercussão nas
relações sociais pode ser assim exemplificada: o Presidente da República e seu
ajudante de ordens podem estar fisicamente juntos, mas distanciados em termos
de relação social, visto que aquele é detentor de direitos e deveres que em mito
diferem dos direitos e deveres deste.
Elas se realizam pelos processos que constituem seu aspecto dinâmico e
que sempre marca a mudança contínua de algo numa direção definida. No
processo social, pois, a realização de relações sociais acaba por determinar a
aproximação ou afastamento entre os indivíduos implicados e, por isso, altera a
estrutura social existente, ainda que isto se dê de modo imperceptível.
Alguns autores preferem o entendimento de que os processos sociais
assumem um encadeamento direto e que encerram relações irreversíveis,
determinando que a competição acabaria por gerar conflitos; estes seriam
solucionados por processo de acomodação que resultaria em assimilação e assim
por diante, o que, no entanto, não é majoritária.
279
279 Cf. Maria Benedita Lima Della Torre, op. cit., pág. 64.
165
I.3.1. Cooperação
Para viabilizar a vida em sociedade os homens, não obstante sejam eles
próprios unidades biopsíquicas, se organizam de modo a constituir unidades
maiores, em forma de grupos, comunidades, sociedades, sistemas que permitem
a cooperação entre si.
Por cooperação se entende a uno de esforços ou auxílio tuo para a
consecução de objetivos comuns e significa atuação, ação em comum,
harmonizada, envolvendo desde o auxílio mútuo para a realização de simples
tarefas, como a remoção de uma pilha de tijolos, até a união de esforços para
jornadas mais complexas, em que se exige a especialização de todos e
conseqüente divisão do trabalho, ou mesmo mediante a intervenção técnico-
científica de terceiros, como no caso do seguro.
Especialistas distinguem entre cooperação direta, aquela que abrange
todas as atividades que os envolvidos realizam juntos, e, indireta, quando os
indivíduos cooperam realizando trabalhos diversos, não sendo autossuficientes;
pelo contrário, são interdependentes.
Outro método de verificação da cooperação é aquele que divisa os
interesses que a alimentam e que podem ser: a) comuns, os que tendem a unir os
indivíduos e os conduzir à cooperação (e. g., partidos políticos, religiões,
agremiações, etc.), e b) interesses que se interpenetram, os que se harmonizam, a
exemplo do que se pode vislumbrar entre o capitalista, o empresário e o
operário, em que o primeiro, animado pela captação de juros cada vez mais
elevados, coopera fornecendo capital para investimentos na indústria ou no
comércio; o segundo coopera assumindo a responsabilidade e os riscos da
atividade em troca de elevada remuneração; enquanto que o terceiro, por sua
166
vez, detentor apenas de sua força de trabalho, coopera objetivando receber em
troca um salário.
I.3.2. Competição
A luta pela existência significa, lato sensu, competição, e a ela estão
compelidos todos os seres vivos. Mesmo as plantas se excluem umas às outras,
num processo de competição pela umidade e luz, do qual resulta o sucesso das
mais vigorosas, enquanto as outras, com menor capacidade de adaptação às
mudanças ambientais, morrem e desaparecem do sistema. Quanto aos animais,
inclusive o homem, estes se mantêm vivos porque destroem plantas e outros
animais para sua subsistência, o que se conhece por competição ecológica.
Houve um tempo em que os deuses existiam, mas o as espécies
mortais. Quando chegou o momento assinalado pelo destino para sua criação,
os deuses formaram-nas nas entranhas da terra, com uma mistura de terra, de
fogo e dos elementos associados ao fogo e à terra. Quando chegou a ocasião de
trazê-las à luz, encarregaram Prometeu e Epimeteu de as prover de qualidades
apropriadas. Mas Epimeteu pediu a Prometeu que lhe deixasse fazer sozinho a
partilha. “Quando acabar, disse ele, tu vis examiná-la”. Satisfeito o pedido,
procedeu à partilha, atribuindo a uns a força sem a velocidade, aos outros a
velocidade sem a força; deu armas a estes, recusou-as àqueles, mas concedeu-
lhes outros meios de conservão; aos que tinham pequena corpulência deu
asas para fugirem ao refúgio subterrâneo; aos que tinham a vantagem da
corpulência esta bastava para os conservar; e aplicou este processo de
compensação a todos os animais. Estas medidas de precaução eram destinadas
a evitar o desaparecimento das raças. Então, quando lhes havia fornecido os
meios de escapar à tua destruição, quis ajudá-los a suportar as estações de
Zeus; para isso, lembrou-se de os revestir de pelos espessos e peles fortes,
suficientes para os abrigar do frio, capazes também de os proteger do calor e
destinados, finalmente a servir, durante o sono, de coberturas naturais, próprias
de cada um deles; deu-lhes, além disso, sapatos de cornos ou peles calosas e
desprovidas de sangue; em seguida deu-lhes alimentos variados, segundo as
espécies; a uns, ervas do chão, a outros frutos das árvores, a outros raízes; a
alguns deu outros animais a comer, mas limitou sua fecundidade e multiplicou
a das vítimas, para assegurar a preservação da raça. Todavia, Epimeteu, pouco
refletido, tinha esgotado as qualidades a distribuir, mas faltava-lhe ainda prover
a espécie humana e não sabia como resolver o caso. Então Prometeu veio
examinar a partilha; viu os animais bem providos de tudo, mas o homem nu,
167
descalço, sem cobertura nem armas, e aproximava-se o dia fixado em que ele
devia sair do seio da terra para a luz. Então, Prometeu, não sabendo que
inventar para dar ao homem um meio de conservação, roubou a Hefaisto e a
Atenéia o conhecimento das artes com o fogo, pois sem o fogo o conhecimento
das artes é impossível e inútil, e presenteou com isto o homem. O homem ficou
assim com a ciência para conservar a vida, mas faltava-lhe a ciência política;
esta, possuía-a Zeus, e Prometeu não tinha tempo de entrar na acrópole que
Zeus habita e onde velam, aliás, temíveis guardas. Introduziu-se, pois,
furtivamente na oficina comum em que Atenéia e Hefaisto cultivavam o seu
amor às artes, furtou ao Deus a sua arte de manejar o fogo e à Deusa a arte que
lhe é própria, e ofereceu tudo ao homem, tornando-o apto a procurar recursos
para viver. Diz-se que Prometeu foi depois punido pelo roubo que tinha
cometido, por culpa de Epimeteu.
280
Demais dessa competição ecogica, em que o homem se envolvido
para a mantença de sua existência física, outro tipo de competição anima a vida
humana e se trata da competição pela sobrevivência social, na qual se insere a
busca da sobrevivência pelos bens, por melhores ocupações, seara em que o
homem conhece – embora nem sempre de modo consciente - a competição
econômica, política e a social. Trata-se de uma disputa, em geral inconsciente,
como frisamos antes, impessoal e contínua, que se manifesta, de regra, quando
os recursos de interesse são insuficientes para a satisfação de todos. Nesse
campo de interesses podemos inserir, a título exemplificativo, alimentação,
moradia, trabalho, posições sociais, luxo, fama, poder, etc., valores que se
encontram povoando o desejo de grande parte dos indivíduos socializados e que,
num mundo de recursos inflexivelmente escassos, podem ser considerados
insaciáveis.
A competição é responsável pela divisão do trabalho, pela ordem
econômica, além de produzir a distribuição dos indivíduos e classes pelo espaço
social. Cada trabalhador procura emprego segundo a ocupação que entende ser
melhor para si ou a mais realizável dentro das possibilidades sociais. Portanto, a
divisão do trabalho decorre da diferença de capacidade, conhecimentos e
280
Da obra de Platão, apud José Cláudio Rocha, Teoria do Estado Democrático, págs. 7/9.
168
habilidades entre os homens, razão porque os mesmos distribuem-se em funções
diferentes, marcando assim a divisão do trabalho e, também, uma forma de
cooperação.
A ordem econômica responde assim à necessidade coletiva de
sobrevivência e hoje, em nível global em virtude da facilidade de comunicação
em todos os quadrantes da civilização, consiste na formação de uma rede
mundial de produção e troca de bens, compensando-se, desse modo, pelo
comércio internacional, as carências localizadas.
Por fim, acerca da distribuição espacial dos indivíduos e dos grupos,
basta observar a concentração de massa humana em determinadas regiões do
“mapa mundi”, em contraste com verdadeiros desertos humanos em certas
localidades, o que se explica pelo fato de os seres identificarem e buscarem o
seu habitat, onde podem melhor desenvolver suas potencialidades. É assim
também com os animais e plantas, que cuidam de identificar o habitat de acordo
com as melhores condões biológicas, ao passo que o homem, além dessas,
busca ainda respostas de cunho social, como, por exemplo, oferta de emprego,
melhor renda per capta e segurança.
169
I.4. Os conflitos sociais e modos de superação
A exemplo da competição, como vimos acima, que em verdade é um
processo inconsciente, impessoal e contínuo, visando a conquista de coisas
concretas, o conflito também pode ser visto como luta, mas que, no entanto,
muito diferente daquele, se trata de um processo consciente, pessoal,
intermitente e emocional, implicando, ainda, o uso da violência. Os agentes em
conflito, afora a plena consciência das divergências, alimentam rivalidade,
antipatias, tudo com forte teor emocional, objetivando a manutenção ou mesmo
mudança do status social vigente. Inclinam-se a ignorar as qualidades e a
destacar os defeitos uns dos outros, emitindo juízos parciais e subjetivos.
Os conflitos sociais resultam em status social e ordem política. Como os
status sociais nas sociedades altamente complexas são múltiplos e insveis por
natureza, crescem os estímulos e acirram-se as disputas. No plano político,
entendemos o domínio exercido pelos indivíduos ou grupos mais poderosos
sobre outros mais fracos.
Os estudiosos enumeram, não de modo exaustivo, os conflitos das
gerações, dos sexos, de raças, entre o campo e a cidade, de classes, os
econômicos, os religiosos e os internacionais. Costumam, mais, indicar como
fatores resultantes dos conflitos: a) o alívio de tensões, na medida em que a
eclosão permite liberar a tensão represada na fase que o precede; b) o aumento a
eficiência pessoal, posto que, em situação de conflito, despendemos esforços
maiores para a consecução de nossas metas, o que o ocorre em situação de
segurança; c) por fim, o pensamento é estimulado em circunstâncias
problemáticas, pois desafiam nosso poder criativo para soluções.
170
I.4.1. Adaptação
Adaptação é ajustamento e, por primeiro, designa um processo biológico
em que o organismo, reagindo às mudanças do seu meio físico, como, por
exemplo, clima, relevo, altitude e outros aspectos da geografia local, busca sua
conformação àquela realidade. Pode ainda ser mudança de natureza cultural, a
repercutir no organismo, como, por exemplo, alimentação e vestuário.
Na trajetória dos seres vivos constata-se que animais e vegetais ou se
adaptam ao meio, ou morrem, colocando em risco a manutenção da espécie. O
homem, embora submetido aos mesmos influxos, melhora as condições de sua
adaptação também porque reúne às suas condições biológicas a capacidade de
adaptar o meio às suas características. Através de suas capacidades específicas,
como o fabrico de ferramentas e a transmissão de conhecimentos através da
linguagem, o homem possui recursos naturais e tecnológicos com o que
modifica o meio.
I.4.2. Acomodação
Podemos definir acomodação como o ajustamento de indivíduos ou de
grupos em luta, tendo em vista que, modo geral, os conflitos não persistem
indefinidamente, o que leva os envolvidos a buscarem um modo de resolver suas
divergências e consequente diminuição do conflito, transformando-o em latente.
Isto facilita a assimilação que, ocorrendo, faz exaurir o conflito.
A acomodação se mostra presente em várias circunstâncias da vida social
e pode a contribuir para modificações na ordem social, novas relações ou
171
status, mas serão apenas mudanças formais e limitadas a aspectos secundários;
não haverá mudanças de atitudes ou de sentimentos.
I.4.3. Assimilação
A assimilação faz o conflito desaparecer, pois se trata de um processo de
ajustamento em que os indivíduos ou grupos diferentes tornam-se semelhantes
através de mudanças interiores, em aspectos sagrados, em que atitudes,
sentimentos e pensamentos se interpenetram e se fundem numa concepção.
Enquanto a acomodação se mostra como mera mistura de elementos diferentes,
a assimilação, no mesmo raciocínio, fará despontar uma nova composão
química ou uma nova liga a partir de diferentes substâncias.
A conversão, seja ela religiosa mais comum -, política ou filosófica, é
um bom exemplo de assimilação, vez que o convertido passa a nutrir
pensamentos, sentimentos e a desenvolver atitudes do grupo adversário,
demitindo-se de suas antigas convicções.
A partir das várias ondas de imigração de estrangeiros, principalmente
entre as cadas de 20 e 30 do século passado, podemos inferir vários processos
de assimilação em especial de japoneses, italianos e alemães, que em princípio
se adaptaram, se acomodaram para, ao final, assimilarem totalmente nossa
Terra, nossa língua, enfim, nossa cultura, mediante imitação despercebida e
inconsciente.
À evidência, pois, trata-se de um processo lento, sendo certo que, no
exemplo acima, a assimilação pode não ter, em alguns casos, se aperfeoado
172
diretamente pelos imigrantes, mas através das suas novas gerações, dos seus
filhos.
Quando as atitudes, sentimentos, valores do indivíduo ou grupo tenham se
tornado idênticos aos do grupo aentão diferente, pode se dizer completado o
processo de assimilação.
I.4.4. Aculturação
Embora sejam distintos, os processos de assimilação e de aculturação
guardam correlação entre si, pois que a assimilação está para o indivíduo que
passa a integrar um meio cultural diverso do seu, enquanto a aculturação está
para o grupo ou sociedade que se submete a mudanças nas suas configurações
culturais após contato com outros, podendo mesmo se definida como fusão de
culturas diferentes, duas ou mais, que dá origem a uma outra, como a que
ocorreu o Brasil, resultado da aproximação das culturas indígena, africana e
portuguesa.
As correntes migratórias que acima referimos também podem ser
apontadas como fator de aculturação brasileira e se confirma com o exemplo do
futebol, herdado dos ingleses e elevado ao nível de “arte”, como assim é
conhecido o futebol brasileiro em todo o mundo.
O processo de aculturação pode se dar de duas maneiras, a saber, do
sincretismo, em que verdadeira fusão dos elementos culturais, dando lugar à
aparição de outra, ou da transculturação, em que há troca de elementos
culturais. Como exemplo: o italiano trouxe as massas para a culinária brasileira
173
e, em troca, fez introduzir na sua cozinha o gosto pelo arroz com feijão, prato
que acabou incorporando a dieta italiana.
O estudo do processo de aculturação revela, porém, o problema do
homem marginal, assim identificado aquele que, vivendo um processo de
assimilação, permanece à margem da sociedade por estar dividido entre dois
sistemas de valores ou duas culturas. Ele vive e compartilha da vida dos dois
grupos, mas não se integra efetivamente em nenhum deles. Esse distúrbio se
instala quando o indivíduo toma como pessoal um conflito de diversidades entre
culturas a que ele está submetido e pode ser transitório, na medida da evolução
dos processos de assimilação e de aculturação.
Esse tipo de distúrbio provoca no homem marginal o desenvolvimento de
uma personalidade hipersensível, com complexos de inferioridade, cheio de
inquietações e emocionalmente instável, às vezes com atitudes ambivalentes,
como o mestiço indiano-inglês que odeia os ingleses, mas quer passar por
inglês.
281
Muitas vezes desvia para a delinqüência e criminalidade ou se
transformam em ativistas barulhentos.
Híbridos raciais (casamentos multirraciais, por exemplo) e híbridos
culturais apresentam numerosos exemplos de marginalidade, sendo que o
híbrido racial é também híbrido cultural.
I.5. Fatos sociais
Desde que o interesse deste ensaio é observar a sociedade o a partir
da interação entre os seus integrantes e do modo de vida, mas visa especialmente
281 O casamento entre inglês e mulher indiana pode resultar em filhos que enfrentem a marginalidade, visto que
as crianças mestiças não se integram nem na sua sociedade indiana, nem são aceitas na sociedade inglesa. Em
geral, querem se passar por ingleses, por considerarem os indianos inferiores, mas enfrentam a resistência dos
ingleses em aceitá-los.
174
a interrelação entre estrutura social e cultura
282
, sobressai oportuna uma
verificação do que constitui o fato social, isto, é claro, com o auxílio da
sociologia, cujo sentido etimológico, aliás, é mesmo o estudo da sociedade ou,
conforme alguns, estudo dos fatos sociais.
Uma vez que nesse campo estamos percorrendo a trilha teórica de Max
Weber e, nela, termos nos deparado com as observações sobre dispersão
metodológica, científica e filosófica que existe em profusão, por um lado, e, por
outro, sobre as dificuldades que comumente cercam o estudo, divergências
sobram quando se trata de precisar a noção de fato social, vez que, tratando-se
de realidade emanada da ão humana, esse objeto se confunde com o próprio
indivíduo ator, numa verdadeira simbiose em que o homem é simultaneamente
sujeito e objeto do conhecimento.
Desse modo, sendo prudente servirmo-nos de precisa qualificação,
adotamos a definição weberiana, cujo autor, que assinala contentar-se com o
processo enumerativo, denomina fatos sociais o conjunto das estruturas da
sociedade, das instituições, dos costumes, das crenças coletivas, etc.
283
A essa
delimitação adicionamos as lições referidas acima, de Émile Durkheim, o
qual, brindando a Sociologia de maior sutileza, a dividiu em duas partes
principais, a saber, de um lado a morfologia social, em que se descrevem as
estruturas sociais com base em seus condicionamentos (geográfico, ecológico,
demográfico, econômico, etc.), e, de outra banda, a fisiologia social, que tem por
objeto o estudo do funcionamento de tais estruturas, com o escopo de descobrir
as leis de sua evolução, para assim alcançarmos o intento deste trabalho, que é o
282 Cientes de que se é possível perquirir sobre a relação causal entre uma e outra dessas características,
apressamo-nos em esclarecer que a posição aqui adotada é a de que, em termos de integração do indivíduo ao
grupo já estruturado, é a cultura que proporciona o conteúdo de assimilação.
283 Cf. Julien Freund. Sociologia de Max Weber. Tradução de Luis Cláudio de Castro e Costa. 5ª edição. Rio de
Janeiro: Editora Forense, 2006, pág. 67.
175
de tomar o seguro como objeto da ação humana realizada no contexto puramente
de socialidade.
Émile Durkheim advertiu sobre a necessidade de se precisar o termo, sob
pena de tomarmos, sob sua designação, tudo aquilo que ocorre na sociedade,
posto que não acontecimentos humanos que não possam ser qualificados
como sociais. Isso se constata pelo fato de que todo homem come, bebe, dorme,
raciocina, e a sociedade tem interesse que tudo isso possa ocorrer regularmente
na vida humana, embora não se trate, até aqui, de fato social.
284
Segundo esse autor, no desempenho das obrigações de irmão, esposo, pai,
ou cidadão, quando satisfaço os compromissos assumidos, é que cumpro deveres
que estão definidos para além de mim, individualmente, e dos meus atos, pois se
enraízam nos costumes e no direito. Mesmo quando haja identidade entre minha
ação espontaneamente praticada e as prescrições costumeiras ou jurídicas,
percebo essa realidade externa e, como tal, objetiva que é, não foi por mim
estabelecida, mas estava pronta quando do nascimento e, portanto, externa e
recebida através da educação.
O sistema de sinais de que me sirvo para exprimir o pensamento, o
sistema monetário que emprego para pagar as dívidas, os instrumentos de crédito
que utilizo nas minhas relações comerciais, as práticas seguidas na minha
profissão, etc., funcionam independentemente do uso que deles faço. Tomando
um após outro, todos os membros de que a sociedade se compõe, pode repetir-se
tudo o que foi dito, a propósito de cada um deles. Estamos pois em presença de
modos de agir, de pensar e de sentir que apresentam a notável propriedade de
existir fora das consciências individuais. (...) Aqui está, portanto, um tipo de fato
que apresenta característica muito especial: consistem em maneiras de agir, de
pensar e sentir exteriores ao indivíduo, e dotadas de um poder coercitivo em
virtude do qual se lhe impõem. Por conseguinte, não poderiam ser confundidos
com os fenômenos orgânicos, visto consistirem em representações e ações; nem
com os fenômenos psíquicos, por estes existirem na consciência dos
indivíduos, e devido a ela. Constituem, pois, uma espécie nova de fatos, aos
quais deve atribuir-se e reservar-se a qualificação de sociais.
285
284 As Regras dotodo Sociológico, op. cit., pág. 390.
285 Idem.
176
Capítulo II: Conceitos sociológicos fundamentais (estrutura,
regulamentação e instituições sociais)
II.1. Estrutura social
Até pouco tempo os cientistas sociais se referiam à estrutura social como
se ela fosse uma espécie de organismo, dotada de um corpo com partes
exercendo funções diferentes e interrelacionadas. Atualmente os sociólogos
rejeitam essa comparação da sociedade como uma estrutura orgânica, embora
não tenha sido completamente afastado o conceito de estrutura. Com efeito,
ocupando-se do estudo científico das interações sociais, o sociólogo analisa a
interação em termos de estrutura e, a partir da constatação de que nenhum
homem é uma ilha, põe essa observação em nível sistemático, indagando sobre o
grupo humano a que as pessoas pertencem. A estrutura social representa o
elemento estático da organização social, envolvendo as relações padronizadas
entre indivíduos e grupos, ao passo que esta, a organização social, representa o
elemento dinâmico do processo social, o sistema de relações sociais existentes
em uma sociedade. Estas relações envolvem reciprocidade e obedecem, a
padrões normativos e valorativos socialmente aprovados.
177
Sob esse ângulo de observação, é lícito concluir que mesmo atos
individuais, como a escolha do cônjuge, não são livres de influência de
poderosas forças culturais, políticas ou econômicas, as quais atingem as pessoas
envolvidas até em questões como no fato de se apaixonar. A este respeito,
Stephen Cotgrove anota:
O casamento parece ser, à primeira vista, um assunto intensamente
pessoal. O rapaz encontra a garota, eles se apaixonam, casam, constroem um
lar juntos. Depois de alguns anos, ela para de trabalhar e tem um filho,
seguido por um segundo e, talvez, por um terceiro a intervalos de cerca de
dois anos, enquanto o marido continua a trabalhar. E embora cada um sinta
que está escolhendo livremente, cada um está, na verdade, se acomodando a
um padrão que seria bem diferente em outras sociedades. Na Índia, por
exemplo, o rapaz não encontra a garota e se apaixona. Os casamentos são
arranjados pelos pais, e estes escolhem um marido ou esposa depois de
consultar horóscopos e negociar com a outra família. Cada passo nesse
processo complexo é, na verdade, regulado por pressões sociais poderosas.
O namoro, o casamento e as relações subseqüentes entre marido e mulher
estão sujeitos a leis, convenções e expectativas que, se rompidas,
provocarão uma série de sanções que variam da prisão ao ridículo.
286
Augusto Comte distinguia entre três níveis na sociedade: o indivíduo, a
família e as combinações sociais, sendo a mais alta delas a própria humanidade.
No entanto, porque um sistema deve consistir exclusivamente em elementos
homogêneos, ele elimina o indivíduo do estudo sociológico, de sorte a restar a
família como unidade sica social, não obstante ter enfrentado
sistematicamente o problema das relações entre sociedade e indivíduo.
Comte observou que em sociedade cada indivíduo vive a própria vida,
mas também tem uma disposição espontânea e unilateral para participar do
desenvolvimento comum a todos, acreditando que obedece aos próprios
impulsos. Fundamentalmente, então, o indivíduo e a sociedade o inseparáveis
distinguindo-se apenas para fins de análise abstrata.
287
286 Apud John Scotson, Introdução à Sociedade, pág. 20.
287 Nicholas S. Timasheff, Teoria Sociológica, pág. 42.
178
II.2. Regulamentação e controle social
Caso os seres humanos agissem segundo seus impulsos, desejos e
interesses, sem levar em conta certas regulamentações, o equilíbrio e a ordem
social, por certo, estariam comprometidos e, talvez, até a própria existência
humana.
Para que os grupos e sociedades não incorram em caos, num estado de
anomia
288
, existem regras, valores, costumes, símbolos, idéias, instituições, os
quais regulamentam o comportamento dos indivíduos e grupos sociais. A
manutenção de qualquer sociedade exige paz e ordem, objetivos que são
almejados através da implementação de meios e dispositivos que regulam o
comportamento individual, cujo conjunto denominamos controle social.
Centenas de meios e dispositivos são colocados em operação numa
sociedade, seja de modo preventivo, seja corretivo, sendo aqueles mais
desejáveis e eficientes, vez que atuam evitando a ocorrência de desvios de
comportamento. A educação é o meio de controle preventivo mais eficiente e a
família é o agente mais eficaz nesse desiderato.
A existência de controle social passa despercebida pelos membros da
sociedade ou grupo social, pois esses, em geral, projetam as normas de maneira
tal que as mesmas lhes parecem naturais. Entretanto, em caso de resistência aos
padrões de conduta, especialmente em casos de violação, a sociedade recorre a
métodos que passam pela sugestão, persuasão e restrição, até coerção de outra
natureza, na qual se inclui penas físicas e, em algumas sociedades, até de morte.
288 Ausência de normas.
179
Para além da mera atuação de um sistema de coerção e repressão, o
controle social presta-se a exercer as funções criadora e construtiva, na medida
em que proporciona à sociedade ordem, proteção e eficiência sociais.
Por ordem social entenda-se o equilíbrio e harmonia na vida social,
derivada de longa e gradativa organização. Uma escola que tente operar
desprovida de horários, sem currículos, sem divisão em séries e classes de aula,
certamente não encontraria condições de funcionamento por falta de ordem e de
organização. Podemos, assim, imaginar o que ocorreria com a sociedade e, bem
por isso, cria-se uma ordem social para que, vivendo em sociedade, os
indivíduos e os grupos possam viver em paz e em equilíbrio.
Desde que não podemos ignorar que na sociedade muitos indivíduos, a
maioria, aliás, apresentam comportamento desejável, sem perturbação da ordem,
cônscios de seus deveres e obrigações, é igualmente certo que outros constituem
verdadeira ameaça à ordem estabelecida, circunstância que desafia o controle
social a atuar mediante ameaça e mesmo aplicação de sanções como modo de
garantir a proteção social.
Quanto a eficiência social, esta só é possível diante de procedimento
ordenado. Com efeito, a eficiência no mundo atual exige planejamento,
previsão, ão inteligente e organizada, o que se obtém, por exemplo, mediante
proteção ao trabalho, orientação profissional, esforço cooperativo, promoção da
educação e da saúde.
180
II.3. Instituições sociais
Antes de mais nada, é útil lembrar, com arrimo nas lições de Antonio
Bento Betioli
289
, que a instituição pode ser qualificada como social ou jurídica,
sendo certo que a instituições sociais são modelos de ões sociais básicas,
estratificados historicamente e destinados a satisfazer necessidades vitais do
homem e a desempenhar funções sociais essenciais, perpetuados pela lei, pelos
costumes e pela educação. Por satisfazerem necessidades vitais humanas, são
estáveis, sem serem imutáveis, posto que se adaptam às transformações
ocorridas na vida social. Por outro lado, quando as instituições, pela sua
importância ao convívio social, são objeto de normas jurídicas, ou seja, quando
o Direito delas se ocupa, ai temos as instituições jurídicas, as quais o espécie
do gênero instituições sociais.
290
Certos modos de comportamento surgem na vida dos indivíduos para
satisfazer-lhes necessidades e desejos e, com a repetição contínua no grupo a
que pertence, tornam-se costumes, os quais, sendo organizados, transformam-se
em instituições sociais. Por exemplo, da necessidade de regular as relações entre
homem e mulher e garantir a sobrevivência da humanidade e, ao mesmo tempo,
criação da prole, surgiu um conjunto e práticas que se sedimentaram e deram
origem à família e ao casamento. Exemplos outros de instituições são: a
democracia, o voto, os bancos, o teatro, a escola. Podemos, desse modo,
conceituar instituições sociais como costumes duradouros e organizados que se
impõe coercitivamente aos indivíduos.
Todos os setores da vida são permeados de instituições e o indivíduo é
totalmente envolvido por elas desde o nascimento até a morte, norteando-lhe o
289
Antonio Bento Betioli é Professor Titular de Introdução ao Estudo do Direito da UniFMU, membro da
Advocacia Geral da União e Chefe da Assessoria Jurídica da Delegacia Regional do Trabalho em São Paulo.
Mestre em Folosofia do Direito e Teoria Geral do Direito pela USP. Autor de obras jurídicas.
290
Introdução ao Direito. Lições de propedêutica jurídica tridimensional, pág. 279.
181
comportamento. Basta ver que o mesmo nasce numa família, é batizado e passa
a pertencer a uma igreja, ingressa na escola, assume uma profissão, casa-se e,
depois de morto, é sepultado ou cremado. Tratam-se, todos esses exemplos, de
instituições sociais. Dos inumeráveis costumes que normalmente existem na
vida social, somente aqueles mais importantes para o grupo, encontrados em
quase todas as sociedades e que persistem de modo organizado por longo tempo
são considerados instituições sociais.
As instituições podem ser estudadas em conta de sua origem, partindo-se,
porém, da certeza de que não é possível precisar o momento da aparição de
muitas delas. Para o ser humano, elas surgem para preencher necessidades e se
ligam tanto a aspectos biopsíquicos como a necessidades puramente sociais, e,
para alguns autores, as principais necessidades que deram lugar ao aparecimento
de instituições foram a fome, o amor, a vaidade e o medo, as quais
correspondem aos impulsos de autopreservação, sexo, satisfação pessoal e temor
ao sobrenatural.
A razão de existir, a função a que se destina é que distingue a instituição
social no tempo e no espaço. Todavia, como as necessidades humanas são
ltiplas, as instituições cuidam de promover atividades outras que se somam às
suas específicas e a que chamamos supletivas. Como exemplos, a escola não
cuida de transmitir conhecimentos ao estudante, mas também de sua saúde e da
sua formação geral; a igreja, que tem por finalidade aproximar o homem de
Deus, também exerce ões diversas quando ministra ensino, prega moral ou
promove filantropia.
Ainda quanto à sua origem, classificam-se as instituições em espontâneas,
aquelas que se desenvolvem sem planos, sem propósitos pré-estabelecidos,
resultando como manifestação espontânea da vida comum, a exemplo da
182
família, da escola. Por outro lado, as instituições criadas são produtos da criação
humana, do poder inventivo voltado para o atendimento de necessidades
específicas, mesmo quando para tanto se baseiam em costumes.
Demais disso, as classificamos, também, como instituições regulativas,
também denominadas grandes instituições, que são as que controlam setores
vitais da vida social e suprem as necessidades do homem (família, Igreja, Estado
e as instituições econômicas); e operativas, as que regulam apenas certos setores
da sociedade e se ligam apenas a determinados grupos (impostos, horários,
batismo, etc.).
II.3.1. A Família
Não melhor forma de estudar as interações dos grupos sociais do que
através da análise das funções da família, até porque em sua maioria as pessoas
nascem e crescem sob alguma forma de estrutura familiar e de cujo convívio
adquire a capacidade de ajustar-se às demandas dos demais entes. Portanto, a
família não se oferece somente como a primeira forma de vida em grupo, mas
também é ela mediadora entre o indivíduo e a sociedade.
Pelas funções que desenvolve, a família é considerada instituição
fundamental na sociedade, o que é natural, pois os acontecimentos mais
importantes em geral ocorrem no seio da família, tais como nascimentos,
casamentos, mortes, etc. o encerra apenas um grupo biológico, mas também é
regida por normas, costumes e sanções que regulamentam sua constituição,
sobrevivência e dissolução.
183
A família, conjunto de pessoas unidas por vínculos de parentesco, não se
confunde com casamento, que é uma aliança criadora de novas relações sociais e
de direitos recíprocos entre os njuges, entre cada um e os parentes do outro,
alem de estabelecer os status dos filhos quando nascerem. É ele que conduz à
criação da família e, ao que mostram os registros, esta é anterior àquele, pois é
provável que os homens vivessem em família antes mesmo de regularizá-la
através do casamento.
Dentre suas várias funções preenchidas pela família, variáveis no tempo e
no espaço, destacam-se as básicas: sexual, reprodutiva, econômica e
educacional, sendo que, pelas duas primeiras, estão atendidas, respectivamente,
as necessidades sexuais dos que se associam em casamento e a garantia de
sobrevivência da espécie humana. Através da função econômica, assegura aos
filhos meios de subsistência e bem-estar. Implica, normalmente, em divisão do
trabalho entre seus integrantes, quadro que sofreu sensível mudança nas últimas
décadas, em virtude de o trabalho da mulher ter sido retirado do âmbito
doméstico e levado para fora do lar, tendência esta que se instalou nas
sociedades urbanas e industrializadas. Hoje, portanto, as famílias constituem
unidade de consumo, ao contrário das antigas que eram unidades de produção.
A função educacional se refere à transmissão dos hábitos, conhecimentos
básicos e atitudes necessárias à participação na vida social, merecendo ela ser
distinguida entre instrução, como meio de transmissão de conhecimentos e
informações, e formação, ou seja, a educação propriamente dita, assim
entendida a transmissão de atitudes e hábitos higiênicos, morais, religiosos e
sociais. O desenvolvimento científico e tecnológico fez inserir um novo modelo
em substituição daquela educação toda e essencialmente doméstica, relegando
para as escolas o papel da instrução, deixando para a família e formação dos
infantes.
184
Não nos é possível, no bojo da discussão deste tópico, deixar de repisar as
observações acostadas ao item II.2.3, do Capítulo II, da Primeira Parte acima (O
medo e o imaginário do medo; pág. 110), oportunidade em que reproduzimos acurada
advertência sobre a mutação da família como lula social, dadas as
transformações dos valores em torno do referido conceito, circunstância da qual
resultam, inclusive, as várias conformações de grupos associativos reconhecidos
como “famílias”.
291
II.3.2. O Estado
Garanta o Estado, fornecedor de
segurança, a ordem, que os indivíduos se
encarregarão do resto. Igualdade, liberdade,
fraternidade ...”
292
Duas são as indagações que se apresentam quando se estuda a origem do
Estado, sendo uma de natureza temporal (quando?) e outra relativa aos motivos
determinantes de sua aparição (por quê?).
Não obstante entendimentos outros que afirmam a existência do Estado
desde que o homem vive sobre a Terra integrado numa organização social
dotada de poder e com autoridade para determinar o comportamento de todo o
grupo
293
, varias teorias admitem que ele representa o estágio de um povo
politicamente organizado e se mostra, então, como uma instituição social que
tem por finalidade promover o bem estar comum num determinado território,
noção que se consolida somente a partir do século XVI.
291
Cf. Domingos Barroso da Costa, op. cit., pág.13.
292 Pedro Calmon. Curso de Teoria Geral do Estado, pág. 254.
293 Vide Dalmo de Abreu Dallari, Elementos de Teoria Geral do Estado, pág. 44.
185
Com efeito, à medida que um povo vai amadurecendo e ultrapassa os
estágios iniciais de primitivismo, aprimora-se constituindo uma organização
política, o que se faz mediante a institucionalização de órgãos que se
diversificam para a promoção do bem comum e do controle social em nível
distinto dos controles que são concomitantemente exercidos pela família e pela
Igreja.
Cumpre ao Estado, portanto, e para isso ele detém poder, regular de modo
sistemático as relações intersubjetivas entre membros do grupo, com o escopo
de protegê-los e de manter a ordem e o bem geral.
Diferentemente do conceito de Nação, que envolve o entendimento acerca
da substância humana do Estado, assunto de trato da Sociologia, o conceito de
Estado é de natureza jurídica e política. Por aquele, se entende um conjunto
homogêneo e estruturado de pessoas ligadas entre si por vínculos permanentes
de idioma, religião, cultura, ideais, etc. É anterior ao Estado e pode sobreviver
sem ele, ao passo que o Estado pode abrigar várias nações.
294
O poder de um Estado é supremo dentro de um determinado território,
mas não absoluto, posto que se depara com limites estabelecidos pela
Constituição, pela opinião pública, pelas injunções da comunidade internacional
e pelos da pessoa humana. Detém soberania, que significa o poder, que no plano
interno como no externo, de autodeterminação, poder de autogoverno, auto-
administração e de manter relações com outros Estados.
Ponderadas as vertentes teóricas sobre a origem, importa observar de
modo mais detido os objetivos e finalidades próprias do Estado, o que aqui
fazemos adotando, desde logo, a concepção de que ele constitui meio para a
294 Anote-se, a título de exemplo, o Reino Unido da GBretanha, que é um único Estado e que congrega
quatro nações de tradições diversas: Irlanda do Norte, Escócia, País de Gales e Inglaterra. Também a Itália, antes
da unificão, chegou a dividir-se em cerca de uma dezena de Estados.
186
plena realização humana, refutando, portanto, a idéia de que seria um fim em si
mesmo, mesmo sob o enfoque de tratar-se do ideal e síntese de todas as
aspirações do homem e de todas as forças sociais.
Darcy Azambuja
295
, de modo didático e cristalino, enfatiza que esse
estudo impõe distinguir entre os conceitos de fim e competência, sob pena de
irremediável distanciamento daquilo que efetivamente importa para a correta
delimitação do tema.
O que varia sem cessar não são os fins do Estado e sim a espécie de
atividade, os meios empregados, os objetos da ação do Estado para atingir
os seus fins. A atividade do Estado no que diz respeito aos negócios e às
pessoas sobre as quais ele exerce o seu poder, é a competência do Estado. O
fim do Estado é o objetivo que ele visa atingir quando exerce o poder. Esse
objetivo, podemos antecipar, é invariável, é o bem público. A competência
do Estado é variável, conforme a época e o lugar. Assim, o Estado pode
chamar a si certos serviços ou permitir que os particulares os executem;
mas, tanto quando amplia como quando restringe a própria competência, o
Estado visa realizar o bem comum. (destaque do original)
296
II.3.2.1. O interesse público e o privado
Apontam alguns estudiosos que uma necessidade arraigada de
determinismo e de certeza provocou acentuada produção de verdades desde o
Iluminismo até os estertores do século XIX e adentrando ainda o século XX,
verdades essas que serviram e ainda servem de fonte produtora de substanciosas
dicotomias, resultantes, apontam, de racionalismo simplificador e de
metodologias simplificadoras, características estas que sobressaem do
paradigma cartesiano.
295
Ex-Professor Catedrático da Faculdade de Direito de Porto Alegre da Universidade do Rio Grande do Sul.
296 Darcy Azambuja, Teoria Geral do Estado, págs. 139/140.
187
De tais dicotomias parece certo que nenhuma foi tão mais profunda na
civilização ocidental como a que se divide entre os conceitos de Público e
Privado, a qual suplantou, inclusive, a noção de disciplina, posto tratar-se de um
tema que o se reconhece próprio de nenhuma área específica do saber.
297
Atesta a assertiva o fato de que bem poderíamos desenvolver, aqui, as noções de
interesse público e privado como desdobramentos do tema A Política, (subitem
III.3 abaixo), posto tratar-se de características definidas politicamente para
fixação da competência da autoridade superior.
Sobressai, em nosso tempo, obedecido o critério romano de divisão do
Direito, o qual desde o Digesto de Ulpiano tem que certas coisas são úteis
publicamente (quod ad statum rei romanae spectat
298
), enquanto outras o são
privadamente (quod ad singulorum utilitatem
299
), que Direito Público é o ramo
do direito objetivo que disciplina, em regra, as relações jurídicas de
subordinação em que o interesse blico seja prevalente e imediato, ao passo
que se diz direito privado quando o direito objetivo disciplina as relações de
interesse – prevalente e imediato – privado.
300
Desse modo, como nos ensina Norberto Bobbio, a dupla de termos
público/privado ingressou na história do pensamento político e social do
Ocidente, tornando-se, pelo uso contínuo e sem modificações substanciais, uma
das grandes dicotomias, das quais se servem as várias disciplinas, não a
jurídica, para delimitar, representar, ordenar o próprio campo de investigação, o
que ocorre, por exemplo, no âmbito das ciências sociais, com paz/guerra,
democracia/autocracia, sociedade/comunidade, estado de natureza/estado civil,
etc.
301
297
Ricardo Aronne, “A dicotomia irresolvida da modernidade”. In Olhares sobre o público e o privado.
Cristiano Tutikian (org.), págs. 13/14.
298
Que diz respeito à coisa pública do Estado romano.
299
Que diz respeito à utilidade dos particulares.
300 Nelson Palaia, Noções Essenciais de Direito, pág. 7.
301 Estado, Governo, Sociedade. Para uma Teoria Geral da Política,gs. 14/15.
188
Sejam quais forem a origem da distinção e o momento de seu
nascimento, a dicotomia clássica entre direito privado e direito público
reflete a situação de um grupo social no qual ocorreu a diferenciação
entre aquilo que pertence ao grupo enquanto tal, à coletividade, e aquilo que
pertence aos membros singulares.
302
Com efeito, a realização do bem público pelos governantes, relativo para
cada sociedade acerca dos meios de sua consecução e fixação do próprio
conteúdo, é obra de arte política. No entanto, exatamente em função de se tratar
da competência do Estado, bem de considerá-las seguidamente à definição e
conceituação acima.
Desde que se tome o Estado como ente a que incumbe promover vida
melhor aos indivíduos, ou, por outras palavras, o seu aperfeiçoamento físico,
moral e intelectual, tudo isso entende com o que se define como bem público, o
qual merece ser aqui definido, em que pese a impossibilidade de se defini-lo
analítica e perfeitamente, dada complexidade de seu conteúdo.
No entanto, seguindo os passos de Darcy Azambuja, é nos possível uma
aproximação tanto segura, iniciada pela delimitação daquilo que não pode ser
confundido como bem público.
Não se ignora que o bem geral é o bem de todos os que formam a
sociedade estatal, assim como o pode passar ao largo que esse bem geral não
se confunde com o bem individual, o bem de cada um. Sabido que os homens
alimentam aspirações e manifestam necessidades diferentes, o Estado não
poderia realizar a felicidade de cada indivíduo, ainda que dispusesse de poderes
e recursos ilimitados.
De outra banda, o bem público não é simplesmente a somatória de todos
os bens individuais, visto que nele não entram os interesses ilegítimos dos
302 Idem.
189
indivíduos, assim como não entram certos interesses lícitos, ou porque não está
no poder do Estado realizá-los ou porque, em certas circunstâncias, o bem
particular de alguns tem de ser sacrificado ao bem mais importante de todos os
outros.
303
Bem público, portanto, é
... o conjunto dos meios de aperfeiçoamento que a sociedade politicamente
organizada tem por fim aos homens e que constituem o patrimônio comum e
‘reservatório’ da comunidade: atmosfera de paz, de moralidade e de
segurança, indispenvel ao surto das atividades particulares e públicas;
consolidação e proteção dos quadros naturais que mantém e disciplinam o
esforço do indivíduo, como a família, a corporação profissional; elaboração,
em proveito de todos e de cada um, de certos instrumentos de progresso, que
só a força coletiva é capaz de criar (vias de comunicação, estabelecimentos
de ensino e de previdência); enfim, coordenação das atividades particulares
e públicas tendo em vista a satisfação harmoniosa de todas as necessidades
legítimas dos membros da comunidade. (sublinhamos)
304
Revela-se, de tudo, que os deveres e obrigações que se descortinam do
bem público não podem ficar ao arbítrio exclusivamente do Estado ou dos
governados, devendo ser, ao contrário, a expressão da consciência social e
juridicamente definidos como Direito Privado e Direito Social, traduzindo
aqueles em obrigações negativas do Estado, os que ele não pode fazer, e, estes,
obrigações positivas, tanto para o Estado como para os indivíduos, vez que todo
indivíduo tem o dever de cooperar para a realização do bem comum.
305
II.3.3. A Igreja
Em sentido material, podemos dizer que a igreja é o templo ou local onde
são praticados os cultos religiosos; no sentido amplo, refere-se ao conjunto dos
303 Idem, pág. 140.
304 Jean Dabin, Philosophie de l´orde juridique, pág. 160, apud Darcy Azambuja, op. cit.,gs. 140/141.
305 Ibidem, pág. 141.
190
fiéis de uma mesma religião e pode também ser entendida como a religião
institucionalizada e que supõe doutrina, cerimoniais, sacerdotes e fiéis.
A religião é um fato universal, pois todas as sociedades a conheceram ou
tiveram uma forma de religião, a qual, não obstante as dificuldades para tanto,
pode ser definida como crença em poderes sobrenaturais ou misteriosos,
associados a sentimentos de respeito e veneração que se expressam em
atividades públicas destinadas a lidar com esses poderes.
Algumas teorias tentam explicar a origem natural das religiões. Para
alguns, a gênese das religiões reside no medo, no temor de forças misteriosas.
Perplexo e inseguro diante de um mundo que não entende, o homem, em busca
da verdade, volta-se para o sobrenatural. Segundo a teoria animista, o homem
primitivo tende a dotar de alma (anima em latim) os objetos e fatos naturais,
transformando-os em poderes sobrenaturais, com os quais estabelece relações
semelhantes às existentes entre os seres humanos. A teoria sobre a mana ou
animatista, nutre crença na existência de um poder impessoal denominado mana,
o qual podia prender-se a uma pessoa, um animal ou objeto inanimado, com a
qual se explicaria a origem da religião, tendo em vista a crença na mana ser
anterior à crença em espírito.
Para a Sociologia, o importa perquirir sobre serem ou não verdadeiras
as religiões, mas tão somente o fato de se tratar de um fenômeno comum a todas
as sociedades, em todos os tempos. Foi Durkheim, em sua obra As Formas
Elementares da Vida Religiosa que formulou a definição que recebe maior
aceitação. Segundo ele, a religião é ... um sistema unificado de crenças e
práticas relativas a coisas sagradas, isto é, a coisas colocadas à parte e
proibidas – crenças e pticas que unem numa comunidade moral única todos a
191
que a adotam”.
306
Baseando-se na religião dos aborígenes, esse autor explica a
origem da igreja a partir da magia, tendo surgido primeiramente os ritos e
cerimoniais e somente depois a crença no sobrenatural.
Além disso, o estudo da origem possibilita diferenciar entre a religião
natural, as religiões primitivas, como as gregas e romanas, em que o homem era
levado a crer pelo medo que alimentava em relação ao desconhecido, pela
crença em espíritos, em poderes sobrenaturais impessoais (o mana) ou pela
magia; e a religião revelada, em que a crença e o sentimento religioso tiveram
origem em um personagem histórico vidente, profeta ou o próprio Deus que
tenha recebido a revelação divina e a atribuição e transmiti-la aos homens
(Buda, Maomé e Jesus Cristo).
Três são diferentes tipos de interesses sobre os quais a religião exerce suas
principais funções principais, a saber: a) as doutrinas, que são um padrão de
crenças que dizem respeito à natureza do relacionamento do homem com Deus;
b) os rituais, que simbolizam essas doutrinas e mantêm as pessoas conscientes e
seu significado; e c) uma rie de normas religiosas e de comportamento que
estão de acordo com a doutrina e exerce controle social.
Consoante as anotações supra acerca das funções supletivas das
instituições, convém anotar que a religião exerce função social não explícita,
quando promove a sociabilidade através dos seus cultos, atividades educacionais
e celebrações especiais, através das quais as pessoas estabelecem
relacionamentos que resultam em companheirismo, recreação, encontro de
casais e formação de lideranças.
307
306 Apud Reinaldo Dias, op. cit., pág. 155.
307 Idem, pág. 156.
192
O mundo moderno conhece a igreja separada do Estado; no entanto,
houve tempo em que ela detinha o poder temporal. Na Idade Média, no
exercício pico de igreja-estado, a Igreja Católica organizou o Direito, ministrou
ensino, criou Universidades, instituições assistenciais, organizou corporações de
ofício, coroou reis, etc.
II.3.4. Instituições educacionais
As instituições de ensino desempenham importante papel como
instrumento de socialização e de controle social, pois, por seu intermédio, é
possível formar o caráter de um povo, ministrando o culto a valores que podem
ser assumidos como característicos da cultura. É uma das atividades básicas da
sociedade que cuida para que sejam transmitidas para as novas gerações as
tradições, costumes e habilidades do povo, cujas primeiras lições acontecem no
contato da criança com os pais e parentes mais próximos.
Atualmente, dada a necessidade de a família incorporar à educação o uso
de mecanismos educacionais especializados (escola), dela esperam o preparo do
indivíduo para o desempenho de papéis sociais, estimulando a adaptação
pessoal, melhorando a capacitação e alargando os horizontes intelectuais e
estéticos, ao mesmo tempo em que se preserva a cultura, passando-a de geração
em geração.
II.3.5. Instituições econômicas
A abordagem do tema econômico exige a distinção entre que o se entende
por economia propriamente dita e problemas econômicos, cisão que nos autoriza
o enfoque daquela (Capítulo III – item V, abaixo) e destes separadamente.
193
Essencialmente, economia diz respeito à administração e gestão dos bens,
enquanto que problema econômico significa o processo de prover o bem-estar
material da sociedade mediante o estabelecimento de políticas e estruturas
econômicas, ou, se preferirmos, instituições econômicas ou mesmo ordem
econômica, o que se faz mediante o exame do componente da atividade
individual e social relacionada com a obtenção e utilização dos elementos
essenciais ao bem-estar comum.
308
um dado de certeza do qual parte a análise das instituições econômicas
que é a escassez de bens materiais necessários à vida humana, carência essa
solucionada mediante a divisão do trabalho que se materializa através de
algumas práticas como produção, circulação, distribuição e consumo de bens.
Paralelamente a essas atividades e ligadas a elas, quando as mesmas se
padronizam e se estruturam, surgem as instituições econômicas que se
classificam em: agrícolas, comerciais, financeiras, industriais ou as chamadas
instituições gerais, nas quais se incluem o dinheiro, os bancos, os mercados, o
propriedade, o trabalho, o capital, etc.
São tão antigas quanto a própria humanidade, embora entre os primitivos,
dada a baixa divisão do trabalho, se limitava à combinação de atividades para a
localização de alimentos, roupa, abrigo, etc. O sistema de comércio primitivo,
por exemplo, consistia na doação de presentes e prestação tua de serviços,
sob o princípio da reciprocidade. o há moeda e o valor estabelecido nas
transações é resolvido na base de troca de mercadorias. Nesse período não são
conhecidos os juros, o salário, o lucro, o investimento, práticas hoje universais.
308 Dicionário de Ciências Sociais, op. cit., pág. 381, verbete: “economia”.
194
De todo o modo, as instituições ecomicas podem ser tidas por
inseparáveis da vida social, sem possibilidade de serem compreendidas fora
desse contexto.
Nos dias que correm, a essencialidade das instituições econômicas pode
ser aferida pela possibilidade que elas têm de provocar revoluções no seu
próprio campo e até de provocar alterações nas demais instituições sociais.
O sistema econômico capitalista, nascido primeiramente na Inglaterra nas
últimas décadas do século XVIII, quando o sistema econômico comercial foi
superado pela implantação da forma de produção fabril; a revolução industrial,
que fez aparecer uma nova classe social que é o proletariado; a crescente divisão
do trabalho, que se instala e se impõe pela especialização científica e
tecnológica; a concentração de empresas, a produção em massa, o marketing, o
desenvolvimento dos meios de transporte e, principalmente, o desenvolvimento
dos meios de comunicação, são fenômenos que caracterizam a sociedade
contemporânea e ao mesmo tempo indicam o poderio das instituições
econômicas na interrelação com as demais instituições sociais.
309
309
Cf. Cyro Rezende, História Econômica Geral, pág. 138.
195
Capítulo III: A vida em sociedade
De acordo com os ensinamentos que colhemos através da Antropologia e
da Sociologia, parece incontornável que o homem nasce totalmente indefeso e
dependente, vez que não traz com o nascimento meios para defender-se,
necessitando, por um período relativamente prolongado, de cuidado e proteção.
Os casos conhecidos de indivíduos que foram privados do convívio humano e se
transformaram em Homo ferus estão a confirmar que o homem sobrevive em
sociedade, o que faz ruir a teoria de que a sociedade é artificial, originada da
inventividade humana. No particular, caem, portanto, as teorias contratualistas
de Hobbes e Rousseau, segundo as quais o homem era isolado e que se uniram
através de um contrato.
A sociedade também não se mostra um mero amontoado de indivíduos,
conforme postularam algumas tendências de profissionais da psicologia, até
porque, de acordo com os cientistas sociais, os indivíduos são mesmo condição
necessária, porém não suficientes para a sua formação, sendo indispensável que
estejam agregados e que formem um todo funcional, sendo ainda importante
196
anotar que esse todo não pode ser confundido com suas partes, ou seja, com os
indivíduos, posto que suas propriedades diferem das de suas partes isoladas.
Constitui, pois, noção básica para os estudos sociais que a sociedade não é mera
soma de indivíduos e sim que estes, estes vivendo integrados, dão origem a uma
realidade espefica que é a sociedade. Tamm as pessoas, vivendo em
sociedade, permanecem organismos distintos, com necessidades e capacidades
próprias, conservando elevado grau de individualidade.
O homem revela duas naturezas, sendo a primeira delas a biopsíquica,
também chamada natureza individual ou o “eu individual”, que todos trazemos
com o nascimento e que compreende as características físicas, fisiológicas e
psíquicas de cada indivíduo, as quais se mostram nos seus traços fisionômicos,
no seu temperamento, dons especiais, inteligências, etc.; enfim, o que o torna
único. A outra, a natureza social ou o “eu social”, o homem vai adquirindo na
medida em que, vivendo sociedade, ele se integra, se socializa, aprendendo as
maneiras de se vestir, as crenças, as ideias, a língua, etc. São essas duas
naturezas que se fundem na pessoa e que lhe conferem a personalidade, de modo
que toda pessoa apresenta, em qualquer tipo de comportamento, o seu “eu”
individual e o seu “eu” social.
É oportuno lembrar agora o conceito durkheimniano de consciência
coletiva, que seria o conjunto de ideias, de representações, crenças e valores da
sociedade, todas incorporadas pelos indivíduos integrantes, vez que toda pessoa,
vivendo em sociedade, as absorve do coletivo e as adere em sua própria
consciência individual, deixando antever que o social e o individual coexistem
no indivíduo, sendo útil a separação somente para fins de pesquisa, o individual
a cargo da psicologia e o social para a sociologia.
197
III.1. A cultura
A Unesco define a cultura como
“formas de viver junto [...] molda o nosso
pensamento, nossa imagem e nosso
comportamento. A cultura engloba valores,
percepções, imagens, formas de expressão e
de comunicação e muitos outros aspectos
que definem a identidade das pessoas e das
nações” (sic). (Amartya Sen e Bernardo
Kliksberg)
310
A palavra cultura possui vários significados, aparecendo para o senso
comum como sinônimo de erudição; para os agricultores cultura é plantação,
pois se fala de cultura de cana, de cultura de algodão, cultura de café, etc.;
para os biólogos cultura é um meio nutritivo para a propagação de
microorganismos, ao passo que para tantos outros, cultura é o patrimônio
artístico, literário e científico de um povo. Numa definição sociológica, cultura é
tudo que o homem produz, quer no sentido material, como utensílios, objetos,
vestimentas, cnicas, habitação, etc., quer no sentido espiritual, como a
filosofia, a ciência, as artes, as letras e as crenças. N´outras palavras, é a parte do
ambiente que é construída pelo homem. Enquanto as plantas e os animais
transmitem aos descendentes somente a herança biológica através dos genes, os
homens transmitem a herança social – ou cultura - pela educação.
A cultura sempre nasce como o propósito de atender necessidades
humanas, possibilitando que o homem se adapte ao meio ambiente, ao mesmo
tempo em que adapta esse meio a si. Por exemplo, o homem para se alimentar
310
In As Pessoas em Primeiro Lugar. A Ética do Desenvolvimento e os Problemas do Mundo Globalizado, pág.
302.
198
produz alimentos, descobre técnicas, inventa utensílios; para explicar o universo,
sua origem e a própria existência humana, cria-se a filosofia e a ciência. Não
obstante cada cultura tenha conteúdo característico de um povo, variando de
sociedade para sociedade, alguns aspectos são comuns a todas elas, embora
assumindo formas diversas, como a linguagem, a arte, a mitologia, a economia,
práticas religiosas, propriedades, sistema familiar, guerras, etc.
O olhar que se lança sobre a cultura em sede de um estudo que trata dos
fatores adversos à vida humana e os meios de sua administração, permite
observá-la também como um sistema de garantias, o que pode ser confirmado
pela doutrina de Ralph Linton.
Vejamos:
A cultura, como um todo, proporciona aos membros de uma
sociedade um guia indispensável em todos os campos da vida. Sem ela,
tanto a sociedade como seus membros estariam impossibilitados de
funcionar eficientemente. O fato de a maioria dos membros da sociedade
reagir a uma dada situação de determinada forma, capacita qualquer um a
prever o comportamento, com um alto grau de probabilidade, se bem que
jamais com absoluta certeza. Essa previsão é um pré-requisito em todo tipo
de vida social organizada. Se o indivíduo vai trabalhar para outros, precisa
estar seguro de ser recompensado. A existência dos padrões culturais lhe
proporciona essa segurança, com seu fundamento na aprovação social e no
poder conseqüente da pressão social sobre aqueles que não se lhes
amoldam.
311
III.1.1. A Socialização
Abre-se, aqui, a possibilidade de tocarmos no que se convencionou
denominar freudianismo biológico”,
311
In Fernando Henrique Cardoso e Octávio Ianni (orgs.), Homem e Sociedade. Leituras Básicas de Sociologia
Geral, págs. 98/99.
199
[...] tendo em vista o fato de a condição humana ser produto de um processo
de socialização que começa muito cedo na vida, moldando os aspectos mais
importantes da personalidade antes mesmo da etapa escolar, avolumando-se
em processo tão intenso de aculturação, capaz de inibir algumas
potencialidades e incentivar a manifestação de outras, especialmente formas
de condicionamento que ocorrem em períodos críticos do momento de
formação do organismo início da vida que documentam todos os
complexos freudianos subconscientes e revelam o grau em que as reações
durante a vida adulta são influenciadas por experiências da infância ou, por
outras palavras, pelas influências prematuras, dada a elevada receptividade
do organismo infante. O homem, com efeito, é produto de femenos
biológicos e também do meio cultural onde nasce e se socializa, sendo
herdeiro de um processo acumulativo de experiências culturais de seus
antepassados, sem as quais nada mais seria que um Simiidae
312
terrestre,
ligeiramente diferente em estrutura e ligeiramente superior em inteligência
(...) mas irmão do chimpanzé e do gorila.
313
De acordo com o que nos ensina a professora Maria Celina de Queiroz
Carreira Nasser, mestre em Ciências da Religião da PUC/SP, na sua obra O que
dizem os símbolos:
O símbolo nos fala de sonhos, conquistas, crenças, amores novos e
antigos, paixões que se foram, alegrias vividas, tristezas sofridas, dores
guardadas, segredos da alma, expressões do espírito. Os símbolos falam de
você, de mim, da sua família, do seu grupo de estudo e balada, sua cidade,
povo, história.
314
Com efeito, o simbolismo permeia a vida dos seres humanos, cujos
significados por eles criados proporcionam sentimentos de identidade e de
pertencimento ao mundo e ao conjunto de pessoas que comungam das mesmas
crenças e valores, dado que pode explicar a religião como fator de coesão e de
solidariedade durante culos de expansão das civilizações, unindo a sociedade,
controlando o comportamento individual e blico, via legitimação de valores
morais através de seus dogmas e doutrinas. O racionalismo se emancipara,
312 A família Simiidae “indiscutivelmente” o parente mais próximo do homem, segundo Ralph Linton (op. cit.,
g. 24), compreende os macacos comumente chamados antropóides ou antropomorfos e está representada na
Guiné Continental pelos orangotangos, chimpanzés e gorilas.
313 Ralph Linton, op. cit., pág. 101.
314
Pág. 05.
200
porém, após o Século das Luzes, dados os avanços da ciência e da tecnologia e o
Estado do bem-estar social.
E a cultura, como processo de acumulação das experiências, se revela
instrumento sico de coesão grupal, garantindo a sobrevivência daqueles que a
detém e que, não por acaso, constituem-se em membros do grupo social. Com
efeito, na medida em que se sujeita à aculturação e assimilação através de
contatos e interações com outros povos, permite a incorporação de hábitos,
normas e valores do mundo externo, a cultura se transforma, isto no
cumprimento do seu mister de assegurar a sobrevivência de seus portadores, no
que se mostra um mecanismo dinâmico e adaptativo que pode ser avaliado em
dimensões filosóficas e psicológicas, possibilitando a identificação dos
significados mais profundos da cultura e da formação da mentalidade humana.
E sob o prisma da mente humana, impõe-se investigar sobre a
personalidade, definida esta como o conjunto das qualidades mentais do
indivíduo ou a soma total de suas faculdades racionais, percepções, ideias,
hábitos e reações emocionais condicionadas, havendo íntima relação entre esta
configuração da personalidade e a cultura da sociedade a que o indivíduo
pertence, posto que, no seu interior aquela funciona e se desenvolve em
associação permanente com a cultura. A personalidade, que se apresenta sob
dois aspectos conteúdo e organização - afeta a cultura e esta, aquela. De todo o
modo, a cultura é responsável pela maior parte do conteúdo da personalidade e
também por grande parte de sua organização.
315
As sociedades são inteiramente inconscientes das influências gerais que
sua cultura exerce sobre seus membros, posto tratar-se de hábitos, valores,
normas universais e, portanto, atuantes independentemente de qualquer
315 Cf. Ralph Linton, op. cit., pág. 485.
201
motivação. Em relação às influências específicas, porém, é certo dizer que se
detêm um pouco de consciência sobre o quanto elas atuam sobre os indivíduos,
especialmente quanto aquelas associadas às diferenças de sexo ou de posição
social, uma vez que os pontos contrastantes servem para chamar atenção sobre
elas. Qualquer pessoa pode ver, por exemplo, que o espaço e tratamento
proporcionados aos meninos, pela nossa cultura, são diferentes quando se tratam
de meninas.
Numa outra categoria de influências específicas, observemos as que
resultam das tentativas mais ou menos conscientes da sociedade para adestrar o
indivíduo a ocupar em seu sistema um lugar determinado. Nos espíritos dos
membros da sociedade, este adestramento ocupa sempre um lugar importante, a
ponto de oferecer ao indivíduo os estímulos correspondentes aos objetivos a
serem por ele alcançados, como status social, por exemplo, sob risco de
profunda frustração. Contudo, é claro que as sociedades não pensam os
processos de adestramento em termos psicológicos, limitadas as suas ões em
auxílio para o indivíduo ocupar certos status que lhe são atribuídos, ou seja, para
ocupar na estrutura social posições que, de acordo com normais circunstâncias,
ele deverá atingir. Galgar certo status e nele se manter impõe ao seu detentor
não cumprir rigorosamente certos deveres, mas também certas atitudes
emocionais.
316
Novamente nos passos de Cortella:
Talvez aí esteja a raiz de muitos dos tormentos espirituais, das
aflições de consciência e das agonias pessoais: a perturbão por ter de
assumir os riscos e consequências das opções que podem ser feitas por
aqueles que superam a indigência das condições materiais de existência e,
portanto, atingiram a capacidade de ir além da mera sobrevivência física
cotidiana. Esses, tal como nós, não são privados de arbítrio e, portanto,
devem responder socialmente pelos encargos trazidos pela liberdade. A
atitude expectante, aquela que fica no aguardo do que vier, supondo a
316 Ralph Linton, op. cit., pág. 496.
202
representação involuntária de um enredo previamente elaborado por forças
alheias ao nosso mundo, representa uma postura negligente e, até,
irresponsável.
317
Explicado o processo formativo da experiência humana centrada na
natureza e na cultura, parece-nos de fácil aceitação a existência de uma
profundidade insondável da psique do homem, constituída por objetos herdados
da humanidade e que, embora comuns a todos os seres humanos, por vezes
escapam à compreensão e reprodução conscientes, vindo residir, então, no
inconsciente do indivíduo, tal como pontificou Freud em sua teoria dos
complexos subconscientes ou pré-conscientes.
318
319
Mas, considerado em nível
grupal, esse traço de profundidade psíquica, se submetido aos conceitos de
psicologia analítica propostos por Carl Jung
320
, permite seja identificado o
inconsciente coletivo, cujos elementos denominou arquétipos universais e
imutáveis
321
, os quais podem ser compreendidos como herança das vivências de
gerações anteriores de modo a expressar, através de uma ligação entre o
consciente e o inconsciente coletivo, a identidade de todos os homens, seja qual
for a época e o lugar em que tenham vivido. No dizer de Linton, trata-se do
317 Op. cit., pág. 125.
318 Segundo o conceito de subconsciente ou pré-consciente desenvolvido por Freud, seria o determinismo
psíquico, ou seja, o conjunto de processos psíquicos latentes e passíveis de emergirem para se tornarem objetos
da consciência, enquanto que o inconsciente, cujos conteúdos se reduzem às tendências infantis reprimidas sob
influência moral do ambiente, existe numa camada ainda mais profunda e até inatingível da psique, seria
insondável, misteriosa e obscura, responsável pela origem das paixões, do medo e da criatividade.
319 Freud dizia que o universo mental (ou, segundo suas palavras, aparelho pquico”) do indivíduo era
composto pela consciência e pelo inconsciente (inicialmente ele o dividia em dois componentes princípio de
prazer e princípio de realidade e posteriormente em três id, ego e superego , embora um grande número de
psicanalistas prefiram utilizar sua concepção inicial). O inconsciente era produto da repressão que a sociedade
fazia aos instintos do indivíduo, o lugar onde vivem os desejos reprimidos. (cf. Nildo Vianna. In Revista Espaço
Acadêmico – Ano III – nº 25Junho 2003 – Mensal – ISSN 1519.6186).
320 O eu e o inconsciente, passim.
321 Do grego arkhétypos, significa modelo primitivo, idéias inatas. Do Dicionário de Filosofia de Nicola
Abbagnano, com tradução primeira de Alfredo Bosi (São Paulo: Martins Fontes, edição, 2.007, pág. 91,
verbete “arquétipo”), consta: (lat. Archetypus; in. Archetype; Al. Archetyp, Urbild; it. Archetipo). Modelo ou o
exemplar originário ou original de uma espécie qualquer. As iias de Platão foram consideradas A. como
modelos das coisas sensíveis e, mais frequentemente, as idéias existentes na mente de Deus, como modelos das
coisas criadas (Plotino, Enn., V, 1, 4; Proclo, In Rep., II, 296). Mas Locke (Ensaio, II, 31, § 1) empregou a
palavra A. para dizer somente modelo; Jung utilizou-a para designar os modelos originários do inconsciente
coletivo.”
203
“background
322
da mentalidade humana
323
e que, para Erich Fromm, se
denomina inconsciente social.
324
Fromm, aliás, embora tenha uma visão puramente cultural por se afastar
do contexto psíquico do fenômeno, contribui para a conclusão de que o
inconsciente coletivo representa o repositório do desejo reprimido que atinge o
conjunto da sociedade ou de grupos sociais no seu interior. Portanto, tem-se que
o inconsciente coletivo é o conjunto de necessidades e/ou potencialidades
reprimidas em todos os indivíduos que formam uma coletividade. Nesse sentido,
tomando-se em linha de conta uma sociedade dominada pela repressão, pela
burocracia, pela disputa, etc., nada mais natural que observar a adoção de
escapes para ver manifestado o desejo reprimido de poder e de liberdade.
325
Observemos, a partir de duas figuras oferecidas pelo referido autor, como
a opressão na sociedade faz manifestar no indivíduo o desejo por liberdade e por
poder, entendido este não no sentido de dominação, mas de potência.
Deve haver muitos comerciantes em nossas cidades grandes que
tenham um cliente que precise muito, digamos, de um terno, de roupa, mas
que não dispõe de dinheiro suficiente para comprar nem mesmo o mais
barato. Entre comerciantes (especialmente os mais abastados), haveuns
poucos que sintam o impulso natural e humano de dar essa roupa ao cliente,
pelo preço que este puder pagar. Mas quantos se permitirão adquirir
consciência de tal impulso? Creio que serão poucos. A maioria o recalcará,
e poderemos ver entre eles alguns que terão, na noite seguinte, um sonho
que expressará o impulso reprimido, de uma forma ou de outra.
322 “background” [bak´grawnd] s. fundo de cena, segundo plano; (fig.) posição obscura; formação, educação,
conhecimentos; ambiente, meio. (In Novo Dicionário Folha Webster´s Inglês/Português Português/Inglês.
Antonio Houaiss e Ismael Cardim Editores. São Paulo: Empresa Folha da Manhã S/A., 1.996, pág.22, verbete
“background”).
323 Op. cit., págs. 80 e seguintes.
324 Erich Fromm define inconsciente social da seguinte maneira: “A diferença entre a expressão de Jung,
‘inconsciente coletivo’, e o ‘inconsciente social’ aqui empregada é a seguinte: o ‘inconsciente coletivoindica
diretamente a psique universal, grande parte da qual não pode nem mesmo tornar-se consciente. O conceito de
inconsciente social parte da noção do caráter repressivo da sociedade e se refere àquela parte específica da
experiência humana que uma determinada sociedade não permite que atinja a consciência” (In Meu Encontro
com Marx e Freud. 7ª edição, Rio de Janeiro, Zahar, 1979, p. 109).
325 Vide Nildo Vianna, op. cit.
204
O moderno ‘homem de organizãopode sentir que sua vida não
tem sentido, que seu trabalho o aborrece, que tem pouca liberdade de fazer e
pensar como quer, que está perseguindo uma ilusão de felicidade que jamais
se torna verdade. Mas se ele tivesse consciência de tais sentimentos, seria
muito prejudicado em sua atuação social. Sua consciência constituiria um
perigo real para a sociedade tal como está organizada, e em conseqüência o
sentimento é recalcado.
326
A partir dos exemplos acima, pode-se observar que a falta de liberdade na
sociedade contemporânea cria o desejo reprimido de superar tais limites, desejo
este que é reprimido e, portanto, sentimento que não se manifesta na consciência
coletiva, mas tão-somente no inconsciente individual e coletivo.
Aliás, em termos de necessidades e potencialidades reprimidas, as leis do
mercado, no plano do comportamento individual e coletivo, substituíram as
prescrições sagradas e o próprio mercado passou a ocupar o lugar da providência
divina, disseminando, nas palavras de Max Weber, o desencantamento do
mundo (Entzauberung der Welt
327
) e da vida.
328
Acresça-se ao desencantamento e à falta de liberdade do homem que
dessai do processo de adestramento identificado por Nietzsche
329
, a dinâmica
perversa do sistema econômico vigente em nível globalizado, o qual fomenta um
crescente distanciamento de valores como fraternidade e solidariedade dos
povos mediante a polarização entre riqueza, poder e acesso à informação nas
mãos de alguns, com a miséria, ignorância e marginalidade de muitos. Com
efeito, a realidade que nos cerca contradiz as promessas de progresso e de justiça
para todos que foram propagadas a partir da Revolução Francesa de 1789 e
renovadas após a Segunda Guerra Mundial, desmentidas que foram pelo
processo de desenvolvimento desigual que aprofundou ainda mais as
326 Erich Fromm, op. cit., pág. 115.
327 “Desencantamento do mundo” (t.l.a.).
328 Por Henrique Rattner, professor da FEA-USP, in Revista Espaço Acadêmico Em busca da identidade no
mundo de incertezas” 34 Março/2004 ISSN 1519.6186, capturado em http://espacoacademico.com.br
em 14/04/2009, 10h23m.
329 Vide, a respeito, nossa DM, pág. 37.
205
desigualdades dos países colonizados. De igual modo, a história o registrou o
surgimento de uma nova ordem mundial, de crescimento econômico ilimitado,
livre comércio e flexibilização das relações de trabalho que propiciassem uma
era de abundância e bem estar para a humanidade em geral, tal como endossava
a ideologia dominante que nos apresentava a globalização como sinônimo de
progresso e de associação dos países em blocos econômicos como primeiro
passo na construção de um mundo mais justo e igualitário. Com o fim do século
XX se foram as utopias revolucionárias e, a maioria da população mundial,
vivendo em países subdesenvolvidos, amarga o fracasso da ideologia
desenvolvimentista, tendo perdido as esperanças de um futuro mais justo e uma
vida mais digna. A brutalidade das políticas reais do sistema capitalista despreza
e reduz os valores humanistas a conceitos de mercado e de transações
comerciais, provocando indignação e revolta e gerando um ciclo de violência.
330
O citado filósofo, sociólogo e psicanalista Erich Fromm, autor de
diversas obras dedicadas à Psicologia Social, publicou nos EUA, em 1941, ou
seja, em meio à Segunda Guerra Mundial, a festejada obra Escape From
Freedom, que recebeu edição no Brasil, em língua portuguesa, sob o título O
Medo à Liberdade (tradução de Octavio Alves Velho. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1960). Nessa obra, sob o enfoque filosófico existencial, o autor
desenvolve, àquela altura, uma das mais importantes críticas psicossociais do
autoritarismo, destrutividade e conformismo próprios do século XX, fenômenos
que se explicam através de uma síntese dos aspectos psicológicos da neurose
com fatores sociais. Segundo esse pensador, a busca do sucesso financeiro que
caracteriza o homem contemporâneo, impregnada de solidão, ao lado da
liberdade material erigida ao longo da história ocidental, isolou os indivíduos
uns dos outros, provocando neles os sentimentos de angústia e de medo, o que
leva as pessoas a desejarem uma fuga psicológica alienante, através das ilusões
330 Idem.
206
de “terem ou de “pertencerem” a uma corporação ou grupo que lhes
proporcionem minimizar o sentimento de solidão.
As advertências de Fromm, sem serem alarmistas, apontam para os riscos
contemporâneos com que o homem se depara na atualidade sem perdermos de
vista que essa atualidade, para o autor, enquanto escrevia essas notas, remonta à
década de 40, em plena Segunda Guerra Mundial -, destacando, porém, que tudo
decorre da estrutura do caráter do homem moderno e da interação de seus
fatores psicológicos e biológicos. Se na Antiguidade a escravidão constituía um
perigo para os homens, atualmente esse perigo transformou-se no de serem
alienados psíquicos, autômatos, ou seja, para o autor,:
[...] o homem moderno, emancipado dos grilhões da sociedade pré-
individualista que simultaneamente lhe davam segurança e o cerceavam,
não alcançou a liberdade na acepção positiva de realização do seu eu
individual; isto é, a manifestação de suas potencialidades intelectuais,
emocionais e sensoriais. A liberdade, não obstante haver-lhe proporcionado
independência e racionalidade, fez com que ele ficasse sozinho e, por
conseguinte, angustiado e impotente. (sic)
331
O estudo prossegue assinalando que, pudessem encontrar uma alternativa
saudável ao conflito, haveriam os homens de reconhecer a importância do seu
semelhante nos vínculos de cooperação e de solidariedade. Contudo, a sua
solidão e a impotência foram tomadas pela indústria como artifícios da
felicidade de consumo e estímulos para o rápido alívio psicológico da condição
humana, a qual, em seu dinamismo, tende a procurar soluções de alguma forma,
com possibilidades de satisfação, ainda que ao preço da violência, da neurose e
da servidão voluntária. Explicando o fenômeno do nazifascimo, que bem
conheceu, esclarece que a ânsia de poder não é originada da força de quem a
exerce, mas da fraqueza de quem a ela se submete.
331
Op. cit., pág. 10.
207
Em síntese, Fromm, após desenvolver uma análise da patologia da
alienação psíquica inconsciente o inconsciente social, como vimos acima - da
sociedade industrial, a qual se manifesta através do comportamento coletivo
consumista e pelo sistema patriarcal autoritário, clama por mudanças éticas nas
determinações sócio-econômicas que se fazem segundo os preceitos da cultura
capitalista, modo de geração do desvio psicopatológico marcado pelo
consumismo passivo. De acordo com a visão do filósofo, essa espécie
compulsiva de consumo visa unicamente aliviar a ansiedade, a insegurança ou
mesmo o desespero que povoam nossa época.
332
A crítica do autor segue no sentido de rejeitar o princípio industrial
moderno de que a sociedade deve proporcionar ao homem a satisfação de todos
os seus desejos, isto na crença de que o seu desejo matriz é ser socialmente
aceito, sem discriminações, e alude ao que denomina consumo humanizado,
lembrando que algumas exceções a esse princípio são consensualmente aceitas,
como, por exemplo, a restrição ao consumo indiscriminado de bebidas
alcoólicas ou proibição de ingestão de drogas. Por esse viés limitador, sugere
esse pensador, a sociedade deveria se ocupar do exame de todas as necessidades
subjetivas com o fito de verificar se sua existência é uma razão suficientemente
válida para sua satisfação.
333
A frustração é fonte geradora de violência. É cedo que o animal, de
um modo geral, inclusive o homem, não obstante as ideias contrárias à ética
humanista
334
, não é gratuitamente violento, exceto se profundamente frustrado
em suas expectativas.
332 Idem.
333 In A revolução da esperança por uma tecnologia humanizada. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1975, págs.
127/128.
334 Vide, a respeito, Erich Fromm. A análise do homem. Tradução de Octávio Alves Velho. Rio de Janeiro:
Zahar Editores, 1966, págs.188 e seguintes.
208
Profundas distorções de distribuição de renda e perecimento das
possibilidades de conforto o consagrados estímulos à violência, ruído da vida
social que invariavelmente auxilia na identificação de dados estatísticos sobre
crescimento exponencial de crimes patrimoniais e diminuição gradual dos
crimes de sangue.
Depois de incorporada ao repertório animal, a violência segue seu curso
multiplicador como ferramenta eficaz para a solução de problemas, podendo se
constituir, por meio do processo de imitação, em modelo de conduta gratuita, o
que explica a violência pela violência.
E a imitação, que é um dado da psicologia social por cuidar do
comportamento do indivíduo no grupo, no ser humano é estimulada quando o
modelo que se apresenta através de uma prática correspondente a uma solução
otimizada para a necessidade do imitador.
Por esse mecanismo, o imitador não só acredita estar atingindo suas
metas, como também, mediante um comportamento o dissonante da estrutura
social, elimina a sensação de isolamento. Como exemplo, a propaganda de
cigarros não desperta a atenção do não fumante por não se tratar de um estímulo
capaz de ser assimilado e incorporado pelo mesmo, a o ser que, para ele,
passar a fumar possa ser incorporado ao seu comportamento como meio de
solução de um problema.
335
335 A respeito dessa teoria, vide a obra de Jean Piaget, psicanalista suíço que criou a escola da Epistemologia
Genética, através da qual propunha o estudo dos mecanismos de aumento dos conhecimentos.
209
III.2. A linguagem
[...] a inteligência atribui significados ao
real, codificando-o e a linguagem codifica
as regras de comunicação do pensamento,
estruturando-o; disso resulta que o universo
real foi substituído pelo universo da
significação: o homem já não habita a
natureza, mas a linguagem.
(José Auri Cunha)
336
No Capítulo II, item II.1.5, da Primeira Parte (supra, pág. 95), nos referimos
à linguagem como atributo da condição humana, recurso que possibilita ao
indivíduo estabelecer sua interação com o meio que ocupa e com os seus
semelhantes, enquanto que aqui, nos interessa abordar o mesmo tema, entretanto
focando-o no contexto da sociedade, como meio de observação de sua função
social.
Nesse diapasão também a Antropologia Filosófica, para a qual, segundo
nos diz a professora, Maria Celina de Queiroz Carrera Nasser, citada
anteriormente,
[...] somos seres que estabelecem relações com o mundo, com a gente
mesma, com o outro e com o Transcendente. Para que essas relações
aconteçam, é necessária a linguagem, que é o meio pelo qual nos
expressamos.
337
A primeira observação a fazer nesse sentido é sobre a controvérsia que
existe dentre os sociólogos sobre tratar-se, a linguagem, de uma instituição
336 Op. cit., pág. 142.
337
Op. cit., pág. 6.
210
social, exatamente pelo fato de constituir-se em padrão de controle,
programação de conduta individual imposta pela sociedade, tal como as demais
instituições, quando a maioria assim não entende.
Nessa mesma esteira, aliás, o entendimento comum designa instituição,
por um lado como uma organização que abrange pessoas, como por exemplo,
um hospital, uma prisão ou uma universidade, e, por outro, como ente metafísico
que paira sobre a vida do indivíduo, v. g., o Estado, a economia ou o sistema
educacional.
No entanto, perfilhando o entendimento de estudiosos e escol:
Diremos mesmo que muito provavelmente a linguagem é a
instituição fundamental da sociedade, além de ser a primeira instituição
inserida na biografia do indivíduo. É uma instituição fundamental, porque
qualquer outra instituição, sejam quais forem suas características e
finalidades, funda-se nos padrões de controle subjacentes da linguagem.
Sejam quais forem as outras características do Estado, da economia e do
sistema educacional, os mesmos dependem dum arcabouço linguístico de
classificações, conceitos e imperativos dirigidos à conduta individual; em
outras palavras, dependem dum universo de significados construídos
através da linguagem e que por meio dela podem permanecer atuantes.
Por outro lado, a linguagem é a primeira instituição com que se defronta o
indivíduo.
338
Com efeito, a linguagem é a objetivação da realidade, pois o fluxo
incessante de experiências adquire estabilidade numa série de objetos distintos e
identificáveis, como acontece com os objetos materiais, tornando o mundo num
todo orgânico formado por árvores, casa, mesas, telefones, etc. Mas a
organização o se limita à atribuição de nomes às coisas, mas também abrange
as relações significativas que se estabelecem entre os objetos, o que se evidencia
quando, por exemplo, levamos a mesa para debaixo da árvore com o propósito
de subir nela.
338 Peter L. Berger e Brigitte Berger. O que é uma instituição social? In Sociologia e Sociedade”, op. cit.,
gs. 193/194.
211
Como então se vê, a linguagem estrutura o ambiente humano por meio da
objetivação e por estabelecer relações significativas. Por intermédio dela a
realidade passa a ser ocupada por seres distintos, que para a criança vão desde a
mamãe, que ocupa o centro dum universo em expansão, até um menininho
malvado que tem acessos de cólera num quarto ao lado.
Mas não é só. Outro detalhe de crucial importância no processo de
socialização e que se desenvolve através da linguagem que são os papéis
desempenhados pelos diversos seres sociais. A criança aprende a reconhecer os
papéis como padrões repetitivos na conduta de outras pessoas, cuja imagem se
fixa na mentalidade infantil e, portanto, da sua interação com as outras pessoas,
realizada por meio da linguagem.
Some-se o fato de que a linguagem constitui, ao mesmo tempo,
interpretação e justificação da realidade e ai teremos certeza de sua
essencialidade como elemento do processo de socialização. Para prosseguirmos
no exemplo a aqui explorado, a criança apreende o contexto verbal no
momento em que o pai assume o papel de castigador, pois, enquanto castiga, sua
fala constitui apenas meio de dar vazão à sua contrariedade, embora, na maioria
das vezes, grande parte dessa conversa se desenvolve a título de comentário
sobre o ato incorreto e o castigo merecido, representando, assim, um meio de
interpretação e de justificação do castigo, enquadrando-o num contexto ético-
moral que ligam esse pequeno drama a todo um sistema de instituições
macroscópicas. Naquele momento, o pai representa esse sistema moral.
339
Assim, os primeiros contatos da criança são com objetos interpretados,
com signos. O que uma criança faz ou deixa de fazer progressivamente adquire
significado; primeiramente, deve satisfazer as expectativas e desejos da mãe, do
339 Idem, págs. 195/196.
212
pai ou de quem cuida dela e esses são os primeiros significados que a criança
aprende e com eles vai se instalando no mundo dos processos de significação.
Neste mundo, onde tudo significa, os homens devem tornar-se intérpretes,
devem operar interpretações”.
340
III.2.1. A Comunicação Social
Uma certa pesquisa revelou que o norte-americano consome cerca de
setenta por cento do seu tempo ativo comunicando-se verbalmente, na seguinte
ordem: ouvindo, falando, lendo e escrevendo, o que é de certo modo
surpreendente, posto que a comunicação verbal é apenas um dos modos que
usamos para exprimir idéias, coexistindo com formas não verbais, como, por
exemplo, expressões faciais, movimentos das mãos e braços, cores, tamanhos e
distância conforme usados pelos cenógrafos e redatores publicitários, enfim,
tudo o que o ser humano possa atribuir significação pode e é usado em
comunicação.
341
Por comunicação social pode-se entender o mecanismo pelo qual existem
e se desenvolvem as relações humanas, envolvendo todos os símbolos mentais e
os meios de sua propagação no espaço e sua preservação no tempo, no sentido
de que, o poder da linguagem permite a ligação entre o tempo passado e o
presente para que possam se perpetuar suas experiências e conhecimentos.
É óbvio que determinados processos de comunicação são necessários
para a manutenção de uma sociedade, de suas unidades e do entendimento
existentes entre seus membros. Embora falemos frequentemente da
sociedade considerando-a como uma estrutura estática, definida pela
tradição, ela é, quando a observamos mais de perto, algo completamente
diferente: uma trama extremamente complexa de entendimentos, parciais ou
340 José Auri Cunha, op. cit., pág. 141.
341 David K. Berlo. O Processo da Comunicação: introdução à teoria e à prática, pág. 13.
213
completos, entre os membros das unidades organizatórias de diferentes
graus de tamanho e complexidade, indo desde um casal de namorados ou
uma família, à Liga das Nações; ou, ainda, essa cada vez maior porção da
humanidade que pode ser atingida pela imprensa, através de todas suas
ramificações internacionais.
342
O impacto da comunicação nas sociedades evoluídas pode ser medido
através da comparação entre os tempos dos nossos avós com os dias de hoje, que
os cientistas sociais rotulam de idade da manipulação dos símbolos. Antes, a
maior parte das pessoas viviam profissionalmente da manipulação de objetos,
ocasião em que progredia o homem capaz de melhor forjar uma ferradura ou
confeccionar um par de botas, de colher melhor um produto agrícola ou de
construir uma ratoeira, ao passo que, hoje, manipulando símbolos, a indústria,
por exemplo, diante da revolução tecnológica e do autodesenvolvimento da
força de trabalho, tornou-se socialmente consciente de si, elevando-se ao nível
de instituição social, tanto que se lhe debitam responsabilidade social. Os
trabalhadores organizam-se e apontam deficiências e fraquezas da gerência, o
que obriga a criação de departamentos de relações trabalhistas e de relações
entre os empregados, que podem também ser chamados de departamentos de
comunicação, cuja principal tarefa é o preparo e divulgação de mensagens
destinadas a “contar” histórias da administração ou da mão-de–obra.
343
Aristóteles, embora se desse a discutir outros aspectos da comunicação,
definia o estudo da retórica como a procura de todos os meios disponíveis de
persuasão, estabelecendo-a como meta primordial, uma tentativa de levar outras
pessoas a adotarem o ponto de vista de quem fala.
Em fins do século XVIII os conceitos de psicologia tomaram a retórica e,
através dos quais a dualidade mente-alma passou a ser considerada a base para
342 Edward Sapir, apud Fernando Henrique Cardoso e Octavio Ianni, Homem e Sociedade: leituras básicas de
sociologia geral, pág.161.
343 David K. Berlo, op. cit.,gs. 15/16.
214
dois objetivos de comunicação independentes, um deles de natureza intelectual
ou cognitiva e, o outro, de natureza emocional. Por esta teoria, um dos objetivos
da comunicação era informativo, enquanto o segundo, persuasivo. Um terceiro
objetivo seria o divertimento e discutia-se que a intenção do comunicador
poderia ser classificada a partir dessas categorias.
Uma crítica ao conceito da divisão do objetivo comunicativo em três
partes diz respeito à própria natureza da linguagem, posto que parece ser
inequívoco que todo o uso da linguagem tenha mesmo por propósito a persuasão
e que ninguém se comunica sem alguma tentativa de convencer outrem de uma
ou outra forma.
III.2.1.1. A Indústria Cultural
Segundo Edgar Morin, a cultura industrial escorou a sua aparição nas
invenções cnicas, especialmente o cinematógrafo e o telégrafo sem fio, os
quais foram utilizados com frequente surpresa de seus inventores: o
cinematógrafo, concebido para registrar o movimento, foi absorvido pela
indústria do espetáculo, o sonho e o lazer; o telégrafo, idealizado para fins
utilitários, acabou sendo útil ao jogo, à música e ao divertimento, sendo o lucro
capitalista o fator determinante dessa improvisação. A partir disso, segundo o
autor, para e pelo lucro se desenvolveram novas artes técnicas, assinalando que
sem o prodigioso impulso do espírito capitalista tais invenções não teriam
conhecido desenvolvimento tão radical e maciçamente orientado.
A indústria cultural se desenvolve em todos os regimes, seja no quadro
estatal, seja no da iniciativa privada, e seus conteúdos culturais diferem mais ou
menos radicalmente de acordo com o tipo de intervenção do Estado, segundo o
215
caráter liberal ou autoritário, correspondendo, respectivamente, ao tipo
interventivo positivo (orientação, domesticação, politização) ou negativo
(censura, controle).
Não levando em conta essas variáveis, pode-se dizer que se há
igualmente a preocupação de atingir o maior público possível no sistema
privado (busca de máximo lucro) e no sistema do Estado (interesse político
e ideológico), o sistema privado quer, antes de tudo, agradar ao consumidor.
Ele fará de tudo para recrear, divertir, dentro dos limites da censura. O
sistema do Estado quer convencer, educar: por um lado, tende a propagar
uma ideologia que pode aborrecer ou irritar; por outro lado, não é
estimulado pelo lucro e pode propor valores de “alta cultura” (palestras
científicas, sica erudita, obras clássicas). O sistema privado é vivo,
porque divertido. Quer adaptar sua cultura ao público. O sistema de Estado
é afetado, forçado. Quer adaptar o público à sua cultura. É a velha
alternativa entre a velha governante deserotizada Anastácia e a pin-up
que entreabre seus bios. (os destaques pertencem ao original).
344
Destacando que tanto no caso privado como no estatal há uma
concentração da indústria cultural, Morin assinala que a imprensa, o rádio, a
televisão e o cinema são instrias ultraligeiras, e seus produtos, gravados sobre
uma folha de papel, sobre uma película magnética ou voando sobre as ondas, no
momento do consumo tornam-se impalpáveis, uma vez que esse consumo é
psíquico.
Entretanto, adverte, essa indústria ultraligeira está organizada segundo o
modelo da indústria de maior concentração técnica e econômica e, no quadro
privado, alguns grandes grupos de imprensa, algumas grandes cadeias de rádio e
televisão e algumas empresas cinematográficas concentram em seu poder o
aparelhamento e dominam as comunicações de massas.
344 Edgar Morin. A indústria cultural. In “Sociologia e Sociedade”, op. cit., págs. 299/300.
216
III.2.1.2. A Ideologia
A ideologia consiste na subjetivação da
vontade de dominação. Esta não anda nas
nuvens, longe dos homens. Ela faz a sua
morada entre nós, apodera-se da razão
humana, aninha-se soberana no coração da
modernidade.
(Arcângelo R. Buzzi)
345
A palavra ideologia traz consigo a característica mais ostensiva e ao
mesmo tempo mais oculta da modernidade e veicula a vontade de dominação
que se apossou da ciência e da cnica, tornando-as tecnologia. Na origem a
ciência e a técnica estavam a serviço do homem que colaborava com a natureza,
a fim de que esta se tornasse melhor na beleza e na utilidade; mas, quando do
advento da modernidade, tanto a ciência quanto a técnica trocaram de mãos,
tendo sido tomadas pela vontade de dominação, processo que obriga a natureza
a se comportar de acordo com essa vontade.
A ideologia, isto é, a subjetividade moderna, está toda fascinada e
visceralmente comovida por três projetos: o projeto da subjetividade, ela
mesma abrasada de vontade de dominação; o projeto industrial de produção
e consumo de bens úteis; o projeto industrial do niilismo.
346
O autor citado na epígrafe supra explica esses projetos aludindo a que o
primeiro deles, a subjetividade, quase imperceptível, mas sempre presente e
atuante, é o projeto através do qual o homem se atribui o direito de determinar o
sentido da objetividade, isto é, inicia, a partir da subjetividade, a criação de um
mundo subjetivo e isto nos diferencia substancialmente dos demais entes da
natureza, visto que estes vivem no seu meio ambiente, ao passo que nós vivemos
345 Introdução ao Pensar: o ser, o conhecimento, a linguagem, pág. 140.
346 Idem.
217
no mundo criado, na objetividade da sociedade industrial, onde a subjetividade
humana se reconhece e, ao mesmo tempo, se desconhece.
Ela, a subjetividade moderna, melhor se dá a conhecer na objetividade do
mundo industrial, mundo de produção e de consumo, sugerindo que estamos
compelidos pela mecânica de uma objetividade que suplanta toda decisão
humana, arrastando-nos a viver numa subjetividade que realiza plenamente o
projeto da sociedade industrial e, dentro dela, os grupos sociais concentram suas
lutas na implementação da ordem industrial. A competição entre os grupos
rompe a coletividade humana em partes antagônicas e, dada a escassez
generalizada, deflagra os conflitos, quando não a guerra de grupos.
Para se conseguir um acordo de ação e de comportamento de todos, i. e.,
quando se depende da subjetividade, o grupo mais forte passa a depender de
uma ideologia muito eficaz que regule a posse das coisas e o governo das
pessoas, uma ideologia que persuada e convença, de sorte que essa ideologia
ordena a sociedade não de acordo com a entidade do social, mas conforme a
vontade do grupo hegemônico.
Os ideólogos, ou seja, os intelectuais da subjetividade, prestam serviços
ao grupo hegemônico e a sua pretensão, mais do que domínio da ciência, é o
aproveitamento do saber em benefício dessa hegemonia. Desse modo, a
ideologia tem a sua força de persuasão ligada aos proveitos e benefícios que o
grupo dominante e também a sociedade crêem extrair do seu uso.
Francis Bacon demonstrou que a sociedade voltada para interesses
imediatos não procura a ciência, o esclarecimento e a superação dos
preconceitos, mas o saber utilitário, quase mesquinho e por causa disso persegue
os cientistas e favorece os ideólogos. Quando o rei não mais se considerava
servo de uma ordem superior divina, os ideólogos formularam a ideologia
218
regalista para afirmar que do rei emana toda a ordem social e, para assim, na
pessoa do rei, consolidar o poder dos grupos sociais que desfrutavam de
benefícios e privilégios acumulados ao longo da decadência feudal. État c´est
moi, exprimiu o Rei Luiz XIV, rompendo a tradição monárquica que mantinha o
rei sob o dever de consciência, submetido a uma ordem absoluta. Esse tempo
inaugurou uma nova subjetividade.
Outra subjetividade veio à cena no século XVIII, quando poderosos
empresários da indústria, finanças e comércio, que compunham o grupo
burguês, encomendaram uma nova ideologia com o fito de substituir a ordem
monárquica em decancia, quando então os idlogos, parodiando Luiz XIV,
ofereceram um novo mote: o Estado é a empresa capitalista, disseminando a
falsa certeza de que a empresa de capital favorece o bem estar social de todos e
escondendo que a mais-valia, porém, era apropriada pela burguesia.
Durante o período mais agudo do governo erigido pelo golpe militar de
1964, muitos opositores foram levados presos sob a severa acusação de insulto à
pátria e à nação, “incriminados” de comunistas. Muitos desses presos, para fugir
de torturas e de crueldades confessavam ser traficantes de drogas, incriminação
menos grave para a época, embora sensivelmente danosa para a humanidade.
Isso demonstra que o sistema social vigente ou, como o autor a denomina, a
subjetividade dominante, tem medo e pavor de ser tragada por outra.
A ordem social vigente é sustentada por poderosos grupos sociais,
apoiados intelectualmente por ideólogos, elaboradores da doutrina ideologia -
que a justifica e que mostra a sua eficácia não para esses grupos, mas para
toda a sociedade. A ideologia, tem, pois, o sentido da dominação; sublima toda a
dominação sob o pálio de uma ordem social de bem-estar para todos; alicia mais
219
adeptos quando consegue convencer que distribui o útil social ao maior mero
possível de pessoas.
No entanto, por mais bens que produza e por mais que se consuma, a
ordem capitalista é de interesse particular, pois não beneficia adequadamente a
todos e, muito ao contrário, favorece desmedidamente a poucos.
347
Encontramos na obra de Erich Fromm uma explicação sobre os desígnios
da sociedade tecnológica que fez gerar uma vastíssima máquina, da qual o
homem é apenas uma partícula viva e desimportante, o que faz mediante a
identificação de dois princípios desse sistema que orientam os esforços e o
pensamento de todos os que trabalham nele, a saber:
[...] o primeiro princípio é a máxima de que algo deve ser feito
porque é tecnicamente possível fazê-lo. Se é possível fabricar armas
nucleares, elas devem ser fabricadas, ainda que possam destruir-nos todos.
Se é possível ir à Lua ou aos planetas, tem-se de fazê-lo, mesmo que seja à
custa de muitas necessidades insatisfeitas aqui na Terra. Esse princípio
representa a negação de todos os valores que a tradição humanista
desenvolveu. Essa tradição dizia que algo deveria ser feito porque é
necessário ao homem, ao seu crescimento, alegria e razão, porque é belo,
bom ou verdadeiro. Uma vez aceito esse princípio de que algo deveria ser
feito porque é tecnicamente viável, todos os outros valores são destronados,
e o desenvolvimento tecnológico passa a ser a base da Ética. O segundo
princípio é o da eficiência e produção máximas. A exigência da eficiência
máxima conduz, como consequência, à exigência da individualidade
mínima. A máquina social trabalha mais eficazmente, assim se crê, se as
pessoas são reduzidas a unidades puramente quantificáveis cujas
personalidades podem ser expressas em cartões perfurados. Essas unidades
podem ser mais facilmente administradas por regras burocráticas porque não
criam dificuldades ou criam atrito. A fim de se atingir esse resultado, os
homens devem ser individualizados e ensinados a encontrar sua identidade
na companhia em vez de em si mesmos. (destaques do original).
348
347 Idem, págs. 141/143.
348
A revolução da esperança, págs. 48/49.
220
III.3. A Política
O significado clássico e moderno de política:
Derivado do adjetivo originado de polis (politikós), que significa
tudo o que se refere à cidade e, consequentemente, o que é urbano, civil,
público, e até mesmo sociável e social, o termo Política se expandiu graças à
influência da grande obra de Aristóteles, intitulada Política, que deve ser
considerada como o primeiro tratado sobre a natureza, funções e divisões do
Estado, e sobre as várias formas de Governo, com a significação mais
comum de arte ou ciência do Governo, isto é, de reflexão, não importa se
com intenções meramente descritivas ou também normativas.
349
A invenção da política, vimos acima, foi um dos fatores materiais
determinantes da transformação da postura do homem frente ao mundo, vez que
possibilitou o surgimento da Filosofia, destacada a circunstância de que o seu
objeto é a explicação racional sobre a origem do mundo e sobre os fenômenos.
Dimensão importante da vida social e da convivência cultural, na esfera da
política se encaixa toda atividade humana destinada à organização e governo da
sociedade civil, significando, v. g., a arte ou ciência de governar, assertiva de
que se extrai que o conceito de política envolve diretamente o exercício do
poder, no caso o poder político, que se materializa na condução das coisas do
Estado ou da Administração e representa, sempre, o manuseio de instrumentos
coativos em busca da imposição de idéias e comportamentos.
Ela apresenta uma gama de definições desde a Ciência Política até a
prática material da política e, afora ser vista como ciência e como filosofia, pode
349 Norberto Bobbio. Dicionário de Política. Vol. II. 12ª edição. Brasília: Editora UNB, 2004, pág. 954,
verbete: “política”.
221
também ser compreendida como uma arte, no sentido de bem governar, sendo
este, defendem os estudiosos, o sentido supremo da política.
350
Althusius foi um dos primeiros teóricos modernos a fazer frente ao
Absolutismo e, já no início do século XVII assentava que o poder do Estado não
deve ser pensado como ilimitado e absoluto nas mãos do monarca, sendo a
soberania pertencente ao povo reunido e não ao rei. Embora de formação
religiosa, esse pensador calvinista separava a instância teológica da instância
política, teorizando a respeito dos limites do poder estatal, no que se destacava
em relação aos demais pensadores de seu tempo, todos ainda muito ligados à
legitimação do Absolutismo.
351
III.4. O Comércio
“O comércio é tão antigo quanto a
história do homo sapiens sobre o ecúmeno
terrestre, pois é revelador do homem como
ser contingente e, por isso mesmo,
interdependente no contextocio-cultural
em que vive, interage e cria cultura no
sentido histórico.”
352
Com efeito, resgatando a proto-história, a partir de 4.700 a.C., e nela
identificando a evolução da Antiguidade oriental, berço das primeiras
civilizações, apuramos no Oriente Próximo, especificamente nas culturas egípcia
e mesopotâmica, os primeiros sinais de produção agrícola (linho, algodão, vinha,
350 Silvio de Salvo Venosa. Introdução ao Estudo do Direito, págs. 234/235.
351 Apud Alysson Leandro Mascaro, Filosofia do Direito, op. cit., pág. 136.
352 Dicionário de Ciências Sociais, op. cit., pág. 211, verbete: “comércio”.
222
cereais e oliveira) e pecuária (boi, asno e o cavalo a partir do Novo Império, ca
1.580 a. C.), afora uma desenvolvida indústria cerâmica, têxtil e mineradora,
voltados para o comércio exterior
353
, sob monolio do Estado, posto tratar-se
do único ente detentor de excedentes exportáveis. É provável que o comércio
marítimo do Mediterrâneo tenha se iniciado pelos egípcios, cujos navios
construíam com madeira adquirida da Fenícia em troca de metais preciosos e
artesanato. Arábia, Índia e Grécia mantinham intercâmbio comercial com o
Egito.
354
A civilização fenícia, da raça semita, que povoou a região do Oriente
próximo ao longo da costa oriental do Mediterrâneo desde o terceiro milênio
antes de Cristo, ocupava uma pequena porção de terra que, no entanto, era
compensada pela proteção de rochedos elevados e escarpados que ofereciam
abrigos naturais aproveitados como portos. A Fenícia era um país vocacionado
para o mar, ou seja, povo de grandes navegadores que enfrentavam riscos em
suas constantes travessias entre os mares Egeu e Mediterrâneo. Contava com
riquezas naturais das montanhas do Líbano, como cobre, cedro e matérias
resinosas úteis na construção de embarcões. Contava com solo fértil, mas que,
em virtude da escassez de terra, empenhou-se no comércio marítimo e suas
cidades, como Biblos, Sidon, Tiro, Arado e Gaza compunham uma coesa
federação de interesses econômicos e o governo era exercido por dois sufetas,
representantes de uma verdadeira oligarquia comercial.
355
Do outro lado, na China, não obstante as más condições geográficas que
lhe dificultava relações com outros povos e ademais da sua característica
estacionária moral e materialmente -, também se revelava berço de
agricultores e artistas pacíficos e laboriosos, pois, por volta de 3.468 a.C.,
353 O comércio interno se resumia a pequenas transações, feitas por força direta e, embora não houvesse moeda,
argolas de cobre e de ouro circulavam com peso fixo.
354 A. Souto Maior. História Geral. São Paulo: Companhia Editora Nacional , 1971, págs. 31/33..
355 Idem, págs. 59/60.
223
fabricavam seda, belas porcelanas; além de dominar as leis da astronomia e a
esfericidade da Terra, praticavam a escrita e o cultivo do campo com arado.
356
Relativamente à atividade que representa o nascimento do seguro,
encontram-se nos registros históricos sinais abundantes, indicativos de que o
comércio entre povos teria sido explorado profissionalmente a partir de 1.900
a.C., através de embarcações da Babilônia que singravam águas do rio Eufrates
e do Golfo rsico e de caravanas de burros que regularmente marchavam aa
Anatólia, atual Turquia.
357
Trata-se, assim também na atualidade, de uma forma de interação entre
pessoas, grupos e nações, por troca de mercadorias e serviços e, modernamente,
até por espaços econômicos integrados por convenções entre as partes.
Como a produção se faz teoricamente por áreas de especialização e de
divisão do trabalho, o comércio se faz sobre as vantagens comparativas de
custos de fatores alocados e dos preços formados sobre eles e sobre os preços de
distribuição, mais a margem de comercialização. É a atividade do setor terciário
que ordena, dinamiza e efetua a distribuição e venda dos produtos dos setores
primário (agricultura, pesca, pecuária e mineração), secundário (indústria de
transformação, manufatura, refino e construção) e terciário (serviços de
engenharia, consultoria e assistência técnica, transporte, turismo) entre as fontes
de produção e os vários níveis de consumo intermediário e final. Toda essa
atividade se regula pelo mecanismo de preços, na sua forma pura, regida pela
rmula da oferta e procura, chamada concorrência perfeita, ou em forma de
monopólio, oligopólio, monopsônio, cartel, etc.
358
356
Cf. M. Oliveira Lima, História da Civilização, pág. 19.
357
Jo Geraldo Vinci de Moraes, História das Civilizações – História Integrada, págs. 17/18.
358 Dicionário ...,, ibid.
224
III.5. A Economia
359
A etimologia da palavra economia (do grego οικονοµικος) revela a junção
das expressões gregas oikos (casa) e nomos (comum), cujo objeto, comum a
todas as sociedades humanas, se erige, segundo os escólios de Heilbroner, do
estudo de como o homem ganha o pão de cada dia, o que, destaca o autor, a
despeito de se tratar de questão tão humilde – o pão nosso de cada dia -, esconde
a força impulsora do destino humano.
360
O Dicionário de Ciências Sociais nos oferece uma definição conciliadora
para economia: “... é o estudo do comportamento humano em relação a meios
escassos, cujos usos são alternativos, para atingir fins determinados, tais como
a maximização da renda, empregando habitualmente na comparação de dados e
preço”.
361
Ocupando-se de observar as formas de produção de riquezas, Aristóteles
encontra na casa, oikos, a célula essencial, o componente básico na formação da
cidade. Ela é formada em duas dimensões, a saber: uma entre o homem e a
mulher, vínculo de relativa igualdade, horizontal, fundado no instinto de
reprodução. A outra dimensão é entre senhor e escravo que, ao contrário da
primeira, é verticalizada, desigual, fundada no critério fundamental da
subsistência e, no entanto, ou seja, o obstante a hierarquia entre os sujeitos da
relação, é igualmente marcada pelo instinto de autopreservação que os une, de
tal sorte que, segundo o estagirita, não é benéfica somente para o senhor, mas
sim proveitosa para ambas as partes. Vários oikos formam uma aldeia, cuja
função é satisfazer o que não é possível atingir no âmbito do oikos. E a reunião
359 S.f. ‘a arte de bem administrar uma casa ou um estabelecimento particular ou público’ Do lat. oeconomia,
deriv. do gr. oikonomía. (Cf. Antonio Geraldo da Cunha. Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, pág.
283, verbete “economia”).
360 Robert L. Heilbroner, A Formação da Sociedade Econômica, pág.19.
361 Dicionário de Ciências Sociais, op. cit., pág. 381, verbete: economia.
225
de várias aldeias é justamente o que configura uma cidade, que é a comunidade
completa.
362
O homem foi levado a enfrentar o problema da sobrevivência desde que
desceu das árvores e o fez o como indivíduo, mas como membro de um grupo
social, o que pode ser testemunhado pela continuidade de sua existência. Mas, a
levar em conta a carência e a miséria que campeiam as nações, amesmo as
mais ricas, nos confrontamos com a evidência de que a solução da sobrevivência
foi apenas parcial e o fracasso em tal jornada se explica pelas dificuldades de se
extrair um meio de vida na superfície deste planeta. Imaginemos os esforços
empreendidos nas primeiras domesticações de animais, na descoberta de
sementes para plantio, no primeiro trabalho de extração de minério e a
conclusão aponta para a certeza de que a homem somente conseguiu perpetuar-
se por ser criatura socialmente cooperativa.
363
Foi no decorrer do período neolítico (7.000 3.000 a. C.) que o homem
mudou sua postura frente a natureza, mudando radicalmente o seu
comportamento puramente predatório, aentão baseado na caça, pesca, coleta
de frutos e plantas comestíveis, o que lhe impunha uma vida nômade e impedia
o crescimento demográfico. Lentamente, passou a produzir, intervindo na
seleção natural das espécies vegetais e animais de modo a favorecer a
reprodução daquelas que lhe eram úteis como alimentos. Foi a atividade agrícola
que permitiu que o homem passasse a viver em comunidades estáveis e
sedentárias, com isso sendo introduzida a noção de trabalho coletivo e regular.
Em decorrência do crescimento populacional e do controle sobre as fontes de
alimentação passou a ocorrer uma diferenciação social do trabalho, o que
possibilitou o desenvolvimento de técnicas novas, como, por exemplo, a
362 Alberto Alonso Muñoz, A Filosofia Política de Aristóteles, in Curso de Filosofia Política. Do nascimento
da filosofia a Kant”, pág. 148.
363 Robert L. Heilbroner. A História do Pensamento Econômico. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1996, pág.
21.
226
produção de cerâmica, tecelagem e instrumentos de pedra polida. Logo essas
técnicas foram ocupadas em um sistema de trocas, precursor da atividade
comercial e desencadeador de diferentes ritmos de produção e acumulação de
bens econômicos. A noção de propriedade foi decorrência natural desse modelo,
dada a necessidade de se diferenciar os diversos segmentos dentro da
comunidade, de acordo com suas posses.
364
A noção de propriedade, por sua vez, levou à necessidade de rigorosa
demarcação dos limites dos lotes de terras, de se registrar o tamanho dos
rebanhos e de se mensurar o volume de produção agrícola, o que induziu a
invenção da escrita e, consequentemente, o ingresso da humanidade na era
histórica.
365
A circunstância de o homem depender de seu semelhante para viabilizar a
solução do problema da sobrevivência acarreta uma complexidade relacionada
com o fato de ele não ser dotado de instintos sociais ao nascer. Ao contrário,
ele é naturalmente inclinado ao egocentrismo, natureza que o coloca numa
constante tensão existencial determinada pela limitação de suas forças físicas,
que impõe a forma cooperativa, em contraposição com seus impulsos íntimos
que o estimulam a romper o trabalho coletivo. Nas sociedades primitivas essa
batalha entre o egocentrismo e a cooperação é resolvida pelo meio ambiente,
enquanto, em condições menos hostis, homens e mulheres realizam suas
obrigações regulares sob poderosa orientação de normas de parentesco e de
reciprocidade universalmente aceitas.
Nas sociedades desenvolvidas, porém, em quem homens e mulheres não
lutam a luta da sobrevivência ombro a ombro, onde cerca de dois terços da
364 Cyro de Barros Rezende Filho. História Econômica Geral, 7ª Ed. o Paulo: Editora Contexto, 2.003, pág.
12.
365 Idem.
227
população não tocam na terra, não penetram em minas, não entram numa
fábrica, o constroem com as próprias mãos, a preservação do animal humano
torna-se uma proeza exclusivamente social que se sustentou, ao longo dos
séculos, em três modelos de solução. A primeira assegurava a continuidade da
sociedade em torno da tradição, transmitindo as várias e necessárias tarefas de
geração em geração, de acordo com os usos e costumes, sendo que os filhos
substituem os pais no seu ofício e assim sucessivamente, preservando-se o
padrão; por outra, a sociedade garante que as tarefas sejam realizadas a partir
das regras autoritárias, assegurando a sobrevivência por meio de decretos de
uma autoridade e por castigos que a suprema autoridade aplicava em cada caso.
Por fim, de acordo com os economistas mais celebrados, a eles coube a
descoberta da terceira solução, o que se deu a través de um grande arranjo no
qual a sociedade asseguraria sua ppria continuidade deixando que cada
indivíduo fizesse o que lhe fosse conveniente, desde que obedecidas as
principais regras de orientação, modelo esse que se denominou “sistema de
mercado, cuja regra básica é de uma simplicidade surpreendente: cada um pode
fazer o que lhe for mais vantajoso monetariamente, de sorte a orientar cada qual
à sua obrigação não mais pela tradição ou pela imposição, mas pelo fascínio do
lucro.
366
Aristóteles, ao se dedicar ao assunto da justiça, no livro V da obra Ética a
Nicômaco, estabelece o valor da reciprocidade como critérios qualitativo e
quantitativo de retribuição nas transações voluntárias, que se aplica como
elemento equalizador das contraprestações, mediado pelo dinheiro, o que,
portanto, sinaliza a necessidade vital da economia para a vida social.
367
Nem é
por motivo outro que a economia é a primeira das ciências humanas inaugurada
em meados do século XVII, encontrando forte impulso de desenvolvimento
366 Robert Heilbroner, op. cit., pág. 23.
367 Ética a Nicômaco,g. 146.
228
no século seguinte, com Adam Smith e David Ricardo, e, no século XIX, com
Karl Marx.
368
III.5.1. Capitalismo
O termo “capitalismo”, embora de ampla circulação na linguagem popular
e acadêmica, inclusive na literatura histórica, não encontra fácil aceitação entre
os especialistas em economia, sendo notável que o termo raramente surgia ou
mesmo não era usado nas mais diversas escolas do pensamento econômico. Há,
inclusive, uma vertente de pensamento e de historiadores que negava conferir
significado exato a capitalismo enquanto nome de um determinado sistema
econômico. Por certo, isto se deve, ao menos em parte, ao fato de que os
economistas constumeiramente desenvolvem os conceitos centrais de sua teoria
num plano abstrato, totalmente desligado dos fatores históricos, em termos dos
quais o capitalismo pode ser definido.
369
Com a ruptura do feudalismo, com o seu tradicional exercício de poder
fundado na propriedade da terra e na personalidade
370
, deu-se o advento da
sociedade capitalista, não mais estável e estática, não mais com a rigidez social
que caracterizou o mundo medieval durante sua milenar duração, mas agora
estribada em uma dinâmica de relações de troca, de laços comerciais, de contato
entre diferentes povos. Num convite à aventura, as grandes navegações abriam
novas perspectivas e conhecimentos e as relações sociais se tornavam mais
complexas.
368 Cf. Jo de Souza Teodoro Pereira Júnior, op. cit., pág. 27.
369 Cf. Maurice Dobb. A Evolução do Capitalismo, 7ª edição. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1980, pág. 11.
370 John Kenneth Galbraith. Anatomia do Poder, 3ª ed. Tradução de Hilário Torloni. São Paulo: Pioneira, 1986,
g.103.
229
O capitalismo demanda novos conhecimentos e novas perspectivas
filosóficas, incluindo até mesmo as ciências físicas e naturais, pois o domínio da
natureza pressupõe o seu aproveitamento aos fins do capital. Nas ciências
humanas, por outro lado, busca-se dominar a sociedade sob novas formas e
novos interesses. Surgido numa base mercantil, o comércio foi o seu principal
esteio, sua primeira razão fundamental. Os Estados rompiam com o
segregacionismo dos feudos e possibilitavam maior base comercial e a
associação com a burguesia, no que se conheceu por mercantilismo,
inaugurando o estreito relacionamento do Estado com o capitalismo.
371
Inicialmente, para o fortalecimento do Estado, o Absolutismo foi
interessante para a burguesia, a qual pugnava por territórios mais amplos que
aqueles que lhe eram destinados entre os feudos e, por isso, nutria necessidades
econômicas, políticas e sociais específicas, que poderiam ser atendidas por
estados nacionais, com soberano forte o bastante para impor regras gerais, numa
ordem unificada, centralizada. Paradoxalmente, porém, se no início o
Absolutismo lhe era interessante, percebeu a burguesia, com a consolidação do
regime, que os privilégios que o monarca concedia à nobreza se contrapunham
aos seus interesses e necessidades, razão porque se inicia uma reflexão contra as
teorias legitimadoras do poder do Estado e sobre a liberdade individual
burguesa, liberdade no comércio.
O paradoxo enfrentado pelo Absolutismo revela outro contraponto
interessante que cresce de importância a partir dos desdobramentos históricos,
conforme Galbraith
372
nos dá notícia.
371 Alysson Leandro Mascaro. Filosofia do Direito, op. cit., pág. 134.
372
John Kenneth Galbraith, Professor Erito de Economia na Universidade de Harvard, ex-presidente da
Associação Econômica Norte-Americana, ex-embaixador na Índia e assessor do Presidente John Kennedy.
230
Os nomes dos senhores feudais, príncipes e reis eram célebres em
sua época; alguns ainda o são. A história da França e da Inglaterra é uma
narrativa das suas características, excentricidades e excessos pessoais, bem
como das campanhas militares pelas quais ampliavam ou defendiam as
propriedades fundiárias que eram a fonte principal do seu poder. Os
mercadores, em contraste, eram geralmente anônimos; não eram indivíduos,
mas uma classe. Quando algum obtinha o reconhecimento popular era,
significativamente, chamado de príncipe mercante. Ele havia adquirido algo
da ênfase feudal na personalidade. Certas qualidades pessoais perspicácia
financeira e comercial, disposição para assumir riscos, capacidade de avaliá-
los, facilidade em reconhecer oportunidades, conhecimentos geográficos e
marítimos eram importantes para o sucesso. Mas não eram fortuitas ou
excepcionais; podiam ser, e eram, adquiridas. E não sugeriam sempre uma
capacidade de liderança e comando.
373
As reflexões em torno das possibilidades do indivíduo frente ao Estado,
desencadeadas pelo afastamento da burguesia, abriram campo para reflexões
filosóficas que fizeram surgir a noção moderna de direito subjetivo.
As liberdades burguesas e a constante luta burguesa contra os
privilégios absolutistas farão com que a modernidade iluminista ressalte, em
termos teóricos, os direitos individuais. A noção de direitos subjetivos
fundamental ao desenvolvimento do capitalismo conduz a uma reflexão
sobre os limites do Estado, de seus poderes, de seu governo.
374
Na Idade Moderna, a partir do capitalismo, são inauguradas as grandes
matrizes do pensamento filosófico que até hoje acompanham o discurso da
filosofia do direito, que são o individualismo, os direitos subjetivos, a limitação
do Estado através do direito, a universalidade dos direitos, antiabsolutismo e
contratualismo. E as revoluções liberais modificaram o estatuto político social,
econômico e jurídico ocidental.
Não obstante a disseminação do capitalismo por todo o mundo ocidental e
consequente superação do modelo feudal, é necessário distinguir entre os
modelos econômicos e, por conseguinte, culturais, que se instalaram a partir do
processo de colonização. Os costumes do povo brasileiro, por exemplo, se
373 Op. cit., págs. 104/105.
374 Idem, pág. 135.
231
distanciam das raízes ordenadoras impostas pela tradição protestante ou pelo
empreendimento industrial de raiz inglesa, aproximando-se muito mais do
aventurismo a que se entregavam os portugueses que se lançavam ao mar
atraídos por lucros mirabolantes e fáceis ao mesmo tempo. Em função de ter-se
dedicado às grandes navegações, ladeando em importância à sanha
expansionista espanhola, Portugal deixou de lado o desenvolvimento da
indústria, permanecendo, pois, cerrado num capitalismo puramente comercial
que, por definição, possibilita a circulação de bens, sem, contudo, se ocupar da
sua produção.
375
De se observar, portanto, que a industrialização tardia e o apego ao
mercantilismo faz destacar que o Brasil não vivenciou a Modernidade como
processo, tal como experimentaram os europeus, circunstâncias que explicam a
razão de os brasileiros não terem cultivado uma cultura de realização do ser e da
convivência com vínculos de trabalho em cooperação, o que repercute na noção
de comunidade, na separação das esferas blica e privada, bem como a
aceitação de regras próprias à vida coletiva, de tal sorte que o Brasil foi levado à
globalização numa transição direta entre premodernidade e a posmodernidade.
376
Michel Albert, autor e respectiva obra citados na Introdução deste ensaio
(pág. 38), ao discorrer sobre as duas origens do seguro, culmina por assegurar
que o capitalismo se modificou a partir da queda do muro de Berlim (8 de
Novembro de 1989), evidenciando que, a partir de então, um capitalismo
contra o outro, posto que se bifurca, de um lado, no modelo anglossaxão,
assentado no liberalismo e, portanto, reconhecendo e prestigiando a
predominância do acionista e no lucro financeiro a curto prazo e, de outro, o
capitalismo renano, ou alpino, de preocupação a longo prazo e, bem por isso,
375
Cf. Domingos Barroso da Costa, op. cit.,g. 54.
376
Idem, pág 56.
232
vocacionado para a empresa, assimilada esta como comunidade que adota como
objetivo prioritário a associação do capital ao trabalho.
377
Por oferecer um depoimento dos mais elucidativos em torno da dicotomia
capitalista e por referendar ocleo, o cerne do presente trabalho, pede-se vênia
para a transcrição do aludido texto, seguido da livre tradução.
In verbis:
st en visitant la filiale des AGF en Suisse que j´ai découvert, il y
quelques annés, l´originalité du capitalisme alpin. Aupavarant, la Suisse
était pour moi le pays symbole du libéralisme économique, celui du laisser
faire laisser passer. Quelle n´a pas été ma surprise, lorsque ai demandé au
directeur de cette filiale de me décrire sa politique tarifaire en assurance
automobile, d´apprendre qu´il n´en avait aucune car il ne pouvait en avoir
aucune, attendu qu´en Suisse, les tarifs de assurance obligatoire auto son –
obligatoirement les mêmes pour toutes les compagnies. Moi qui, pendant
des annés, avais, dans mes fonctions de conseil économique auprès du
gouvernement français, milité pour la libération de tous les prix contrôlés,
je n´en revenais pas: sur ce point, la France est un pays beaucoup plus
libéral que la Suisse... Au cours du déjeuner qui sivit, un banquier suisse me
déclare que jamais les banques américaines ne parviendraient à conquérir
une part significative du marché des particuliers en Suisse. Pourquoi?
ponse: parce que les banques américaines ont la manie de faire tourner
constamment leur personnel. «Vous n´imaginez quand même pas que les
épargnants suisses von aller confier leur argent à quelqu un qu´ils ne
connaissent pas!» Je découvris ainsi qu´en Suisse le dépôt bancaire n´est pas
seulement une opération technique mais aussi un échange inter-personnel; et
que le marché de l´assurance fonctionne moins d´après la comparaison des
tarifs même dans les domaines oú les tarifs son libres que selon la
comparaision des services rendus. Ainsi, voici un capitalisme dans lequel le
prix, l´aspect matériel d´une chose, est considéré comme moins important
que le service, c´est–à-dire l´ensemble des éments immatériels, plus ou
moins subjectifs, voire affectifs, qi entourent Étrange! Il faut intterroger ce
paradoxe, l´nalyser, le comprendre, car il constitue une es meilleures
ilustrations du conflit des deux capitalismes.
377
Op. cit., págs. 100/101.
233
Vertido o texto:
Foi em visita a uma filial da AGF na Suíça que eu descobri,
alguns anos, a originalidade do capitalismo alpino. Para mim, antes disso, a
Suíça era um país símbolo do liberalismo econômico, do “laisser faire
laisser passer”.
378
Qual não foi a minha surpresa, quando solicitei ao diretor
daquela filial que me explicasse sua política de tarifas
379
de seguros de
automóveis, ao saber que ele não tinha qualquer política e que não podia ter
nenhuma, uma vez que na Suíça os prêmios de seguro obrigatório para
veículos são obrigatoriamente – os mesmos para todas as companhias. Eu,
que durante muitos anos, em rao de minha função de consultor econômico
do governo francês, lutei pela liberação de todos os preços controlados ,
nem podia acreditar: nesse ponto, a França é um país mito mais liberal que a
Suíça... Durante o almoço que se seguiu, um banqueiro suíço me disse que
jamais os bancos americanos puderam conquistar parte significativa do
mercado dos particulares na Suíça. Por quê? Resposta: porque os bancos
americanos têm a mania de fazer constante rotatividade do seu pessoal.
«Você não imagina mesmo que os aplicadores suiços vão confiar seu
dinheiro a qualquer um que não conhecem!» Eu descobri, assim, que na
Suíça os depósitos bancários não são apenas uma operação técnica, mas
também uma relação interpessoal; e que o mercado de seguros funciona
menos do apreço na comparação das tarifas mesmo nas áreas onde as
tarifas o livres do que da comparação dos serviços oferecidos. Assim,
portanto, um capitalismo no qual o preço, o aspecto material de uma coisa, é
considerado como menos importante que o serviço, vale dizer, menos que o
conjunto dos elementos imateriais, mais ou menos subjetivos, mesmo
afetivos, que o envolvem. Estranho! Necessário interrogar sobre esse
paradoxo, analisar e compreendê-lo, pois ele constitui uma das melhores
ilustrações do conflito dos dois capitalismos.
378
Deixar fazer, deixar passar.
379
“de prêmios”.
234
QUARTA PARTE: O SEGURO
235
Capítulo I: Seguro e segurança: o aspecto semântico.
A seguraa e a liberdade são dois
valores igualmente preciosos e desejados
que podem ser bem ou mal equilibrados,
mas nunca inteiramente ajustados e sem
atrito. (Zygmunt Bauman)
380
Todo conhecimento se constrói a partir da correta identificação e
delimitação do objeto, sem o que fica comprometida a técnica da aferição, ou
seja, cobre de perigo a verificabilidade do procedimento que possibilita a
descrição, o cálculo ou a previsão de um objeto. Por objeto, entenda-se qualquer
entidade, fato, coisa, realidade ou propriedade e, por cnica, o uso normal de
um órgão do sentido, tanto quanto a operação com complexos instrumentos de
cálculo.
381
380
In Comunidade: a busca por segurança no mundo atual, pág. 10.
381
Cf. Nicola Abbagnano, Dicionário de Filosofia, pág. 205, verbete: conhecimento.
236
Bem por isso, cuidamos aqui de abordar o termo “seguro” a partir de
sua grafia e do seu sentido, visando alcançar o verdadeiro significado do termo e
a reconstituição da ascenncia da palavra.
O termo seguro é apresentado pelos léxicos nacionais como advindo
do latim securus, constituindo-se, primeiramente, em adjetivo que
gramaticalmente exprime a qualidade de tranquilo, sem receio, isento de
cuidados, fora de perigo, livre de riscos, garantido, ao abrigo de perigos ou
ameaças. Segue-se que o mesmo pode ser empregado como substantivo
masculino, caso em que sua significação condiz com a definição do contrato de
seguro. Veja-se, por exemplo, a que encontramos no Grande Dicionário
Larousse Cultural da Língua Portuguesa
382
: Contrato aleatório em que,
mediante uma taxa (prêmio de seguro), uma das partes se obriga a indenizar a
outra por prejuízo eventual”, definição que, por certo, foi retirada do art. 1432
do CC/1916.
A forma seguro é usada com os verbos ser e estar (v.g: Ieltsin é seguro
pela presidente do Parlamento sueco, em Estocolmo), ao passo que, na forma de
particípio, a palavra segurado é usada com os auxiliares ter e haver, como no
exemplo: Eu nunca tinha segurado um cartão de crédito nas minhas mãos.
383
Mas é na sua locução substantiva feminina segurança que o termo se abre
a maiores significações, até porque assim se designa não a ação de proteger,
de por a salvo, como também indica qualidade ou condição do que é seguro
384
ou estado que resulta da ausência de impressão de perigo ou situação objetiva
correspondendo à ausência real de perigo.
385
382
Grande Dicionário Larousse Cultural da Língua Portuguesa, op. cit., g. 817, verbete “seguro”
383
Cf. Maria Helena de Moura Neves, Guia de Usos do Português ..., pág. 692, verbete: “segurado, seguro”.
384
Vide Dicionário Unesp do Português Contemporâneo, op. cit., pág. 1266, verbete: “segurança”.
385
Cf. Dicionário Enciclopédico de Teoria e de Sociologia do Direito,g. 707, verbete: “segurança”.
237
Ainda no campo das significações da palavra seguro, oportuno observar
que, para o sujeito, diferentemente de estar certo, assim entendida a adesão do
espírito à verdade reconhecida como tal – ou seja, estar certo refere-se ao
passado e ao presente -, a condição de estar seguro representa confiança no
futuro, na crença de que nada há de faltar.
386
Veremos adiante, tal condição estar seguro - tem sido admitida como
resultado da tomada de decisões em torno dos nossos interesses, postura que
representa, no mais das vezes, na escolha entre as alternativas à disposição, isto,
é claro, não sem antes racionar criteriosamente acerca dos riscos que cada uma
das possibilidades oferece ao interessado.
Com efeito, admitimos, com Chiappori, todos os dias somos levados a
fazer escolhas individuais. Desde situações mais simples e inclusive
insignificantes, até decisões capitais que podem nos comprometer a longo prazo,
estamos constantemente optando por uma das possibilidades em detrimento das
outras correlacionadas, exercício carregado de complexidade, o que se afere
através do nível de incerteza que se liga às possibilidades em jogo. De fato,
aquilo que conservamos e o que abandonamos não se resume a um futuro
apenas, mas nos diz respeito a um conjunto de futuros possíveis e que,
naturalmente, dependem da decisão a se tomada.
387
Em que pese a proposta inicial deste Capítulo sobre atuar no campo
semântico das expressões alinhadas, aliás referida no seu título, ultrapassamos,
como visto, a abordagem puramente conceitual para descermos a aplicações
práticas, decisão que condiz com o escopo de proporcionar melhor compreensão
nesse campo de tomada de decisões.
386
Vide Antenor Nascentes, Dicionário de Sinônimos, pág. 171, verbete: “certo, seguro”.
387
Pierre-André Chiappori, Risco e Seguro, pág.13.
238
Cumprindo ressaltar tratar-se de assunto que interessa à administração de
riscos, adianta-se que a pertinência com o seguro dessai da imanente condição
psicológica do homem, a qual evidencia ou não o bem estar na exata medida do
estado de segurança em que o mesmo se encontra.
Mas, Como fazer a escolha? Como comparar dois futuros incertos em
que os próprios riscos são diferentes? Como se opera a decisão de um agente
em situação de risco?
388
388
Ibidem.
239
Capítulo II - A etiologia do seguro.
Cumpre, de início, uma breve justificativa pela opção dada à expressão
que abre o presente capítulo, mormente em virtude da utilização de termo
comumente empregado em saberes da medicina e não em humanidades.
Etiologia (do gr. aitia + logos, tratado), segundo o Dicionário de Filosofia
de Nicola Abbagnano
389
, significa a pesquisa ou a determinação das causas de
um fenômeno, tratando-se de termo usado quase exclusivamente na área médica
para identificar a especialidade que pesquisa as causas das doenças.
390
“Quase
exclusivamente”, portanto, é licença para que usemos tal palavra neste ensaio de
direito, aporque o propósito aqui, como dito de início, é pesquisar sobre os
fatores determinantes da eclosão do seguro como solução natural de necessidade
ínsita ao ser humano.
389 Op. cit., pág. 452, verbete “etiologia”.
390
Fausto Edmundo Lima Pereira (apud Leandro Martins Zanitelli, Planos de saúde e doenças preexistentes”,
Olhares sobre o público e o privado, g. 118), define doença como “estado de falta de adaptação ao ambiente
físico, psíquico ou social, no qual o indivíduo sente-se mal (sintomas) e apresenta alterações orgânicas
evidenciáveis (sinais)”. Arriscamos, nessa seara, com a devida vênia, o entendimento de que crescem a cada dia
os registros de distúrbios psíquicos que eclodem relacionados com a (in)segurança dos indivíduos. Por isso essa
modesta incursão no campo médico.
240
Por isso, de modo precedente ao tratamento do seguro puramente como
negócio econômico ou como relação jurídica
391
, interessa-nos identificá-lo
embrionariamente, no interior do espírito humano, tomando-se-o como
resposta psicológica a estímulos ambientais atuantes na realidade divisada pelo
homem.
Com efeito, possibilita-se compreender que o seguro nasce mesmo das
pulsões libidinais - se preferirmos, fisiológicas - do homem, o que se constata
pela sensação de prazer que experimentamos quando nos sentimos seguros. Na
contramão da segurança temos a situação que naturalmente provoca repulsa e,
em certos casos, em nível bastante acentuado a ponto de merecer ou de
recomendar a intervenção de especialista comportamental (Síndrome do pânico?
Esquizofrenia?). Falamos, naturalmente, do risco e da riscofobia.
392
Por ocasião da elaboração de nossa dissertação de mestrado, aqui
referida, tivemos a oportunidade de constatar que, não obstante a falta de
registro a esse respeito, parece intuitivo que o homem, desde tempos
imemoriais, se organizou e se manteve em grupo impelido pela necessidade de
segurança individual e coletiva, o que se reproduz no padrão de convivência de
todas as culturas, pois, é cediço, a vida comunitária proporciona ao homem o
elemento essencial para o seu desenvolvimento que, antes mesmo da erradicação
de todo e qualquer tipo de ameaça, é o sentimento de estar seguro.
391
Autores de escol doutrinam que a operação de seguros tem origem em fatores econômicos e sociais (Por
todos, José Vasques. Contrato de Seguro. Notas para uma teoria geral. Lisboa: Coimbra Editora, 1999, pág. 20).
Porém, se esquecem, invariavelmente, dos elementos íntimos da motivação do agente, os quais, por razões que
se comunicam com a saúde blica, em última análise, vimos acima, merecem igualmente a atenção e
preocupação do estudioso do seguro, visando, inclusive, se o caso, nova conformação jurídica, tal como nos
propusemos nesta empreitada.
392
A mais contribuir para a constatação da origem biológica da segurança, colhemos das lições de Pierre-André
Chiappori a advertência de que, embora seja frequente a aversão ao risco, situações particulares que
demonstram a manifestação de sintomas inversos à aversão e indicam, ao contrário, preferência a certos riscos,
como no caso frequentador de corridas de cavalos, de viciado em roleta ou de jogador de pôquer. Como se , a
versão ao risco é freqüente, mas não universal. (Op. cit., pág.21).
241
Conforme vimos na abordagem de elementos de Psicologia acima,
especialmente no que toca aos sentimentos, paixões e vícios na órbita do
indivíduo (Primeira Parte - Capítulo 2 - item II), não é suficiente para a plena
existência, a certeza de acesso a mecanismos de neutralização ou controle dos
riscos, pois que a capacidade cognitiva que caracteriza a espécie permite aos
homens não perceber sensitivamente a realidade, mas também compreendê-
la, antevendo a ocorrência de um permanente futuro, dado que o conduz à
certeza de que não lhe é dada a possibilidade de mudar sua atitude de prevenção,
sob pena de ser surpreendido por eventos desastrosos.
De fato, em virtude dos desafios enfrentados em termos de integração
com o meio ambiente e tendo descoberto o todo de planejamento através do
emprego do raciocínio abstrato, nossos ancestrais deixaram de se portar
passivamente diante dos acontecimentos, em postura de mera observação, e
passaram a preparar o futuro, o que aconteceu mediante o domínio da natureza.
Foi nesse momento que o homem se desgarrou do mundo natural e passou
a cultivar o processo de sujeição do ambiente às suas necessidades e
interesses.
393
É impossível, porém, e todos nós o sabemos, o controle total e absoluto de
toda a natureza, circunstância que abre espaço para a parcela do desconhecido.
393 “O que distingue os milhares de anos de história do que consideramos os tempos modernos? A resposta
transcende em muito o progresso da ciência, da tecnologia, do capitalismo e da democracia. O passado remoto
foi repleto de cientistas brilhantes, de matemáticos, de inventores, de tecnólogos e de filósofos políticos.
Centenas de anos antes do nascimento de Cristo, os céus haviam sido mapeados, a grande biblioteca de
Alexandria fora construída e a geometria de Euclides era ensinada. A demanda por inovações tecnológicas para
fins bélicos era tão insaciável quantoi atualmente. Carvão, óleo, ferro e cobre estiveram a serviço dos seres
humanos por milênios, e as viagens e comunicações marcaram os primórdios da civilização conhecida. A idéia
revolucionária que define a fronteira entre os tempos modernos e o passado é o domínio do risco: a noção de que
o futuro é mais do que um capricho dos deuses e de que os homens e mulheres não são passivos ante a natureza”.
(Vide Peter L. Bernstein. Desafio aos Deuses. A Fascinante História do Risco, pág. 1).
242
E o desconhecido, nele incluído o porvir, sempre foi fonte de
incertezas; isto é, exatamente porque o sabe o futuro, o homem se sente
inseguro. Portanto, o risco que representa esse futuro incerto, provoca e
alimenta permanentemente o estado de insegurança. Dessa condição, vale
dizer, dessa natural limitação humana que o futuro desconhecido - impõe,
desponta a conjugação dos fatores risco e incerteza, aspectos distintos do
mesmo fenômeno, o primeiro de caráter objetivo e, o outro, subjetivo.
394
É exatamente a consciência de que o futuro, inexorável, invade a nossa
existência a cada momento e a certeza de que o depois o se resume ao acaso
ou à vontade divina que nos leva ao esforço de comparação a Tirésias, na busca
de predição das ocorrências possíveis do futuro em auxílio à tomada de decisões
em torno das alternativas possíveis.
395
Essa a essência da postura de prevenção e, ao mesmo tempo,
desencadeadora da atividade securitária, o que encontra eco nas lições de
Sêneca
396
, segundo o qual, os males previstos são menores e, se esperados, se
convertem em leves.
397
Visualizar o elemento da segurança como necessidade interna do
indivíduo nos remete às lições relacionadas aos problemas do desempenho
humano, cuja análise levou Abraham A. Maslow
398
a formular uma tabela
hierárquica das necessidades humanas, sugerindo que cinco escalas de
necessidades primárias, que em ordem crescente são: necessidades fisiológicas,
segurança, necessidades sociais, do ego e de autossatisfação.
399
394 In nossa DM, pág. 36.
395 Na mitologia grega, Tirésias, foi tornado cego por vingança divina, recebeu de Zeus, em compensação à
escuridão do presente, a dádiva de antever o futuro. O destino dos homens, para os romanos antigos, era decidido
na roda da Fortuna, filha de Júpiter, segundo o capricho da deusa.
396
Lucius Anaeus Sêneca, nasceu no ano 4 a.C. em Córdoba, Espanha. Ainda criança foi levado a Roma, onde se
dedicou ao estudo da Gramática, Retórica, Folosofia, Geografia e Latim. Engajou-se na vida política aos 33 ou
34 anos, tornando-se questor, incumbido das finanças do Império. Também foi senador e, em 48, tornou-se
preceptor de Nero que o condenou ao suicídio, em 65, suspeitando, sem fundamento, de que Sêneca havia
participado da conspiração de Pisão.
397 Cf. Alberto De-Juan Bellver. El seguro y su Historia (Fichas de mi archivo), pág. 15.
398
Abraham Maslow (*Nova Iorque, de Abril de 1908 Califórnia, 08 de Junho de 1970) foi um psicólogo
norteamericano que se tornou conhecido pela proposta de hierarquia das necessidades. Foi fundador do centro de
pesquisas National Laboratories for Group Dynamics.
399 In Thomas K. Connellan. Fator Humano e desempenho empresarial, págs. 47/48.
243
Segundo esse autor, as necessidades fisiológicas, a saber, necessidades
básicas de descanso, alimentação, água e abrigo, são as mais importantes, pois,
embora estejam no patamar mais baixo das necessidades, elas se tornam de
importância dominante quando não satisfeitas; isto porque concentramos nossas
energias de satisfação em uma ou duas necessidades por vez, além de
dedicarmos pouca energia pelo fato delas terem sido atendidas ou quando estão
distantes demais para terem importância imediata. A necessidade de alimento,
por exemplo, o tem efeito visível no indivíduo até que ele seja tomado pela
fome e privado de satisfazê-la, caso em que essa necessidade assume
importância preponderante nas suas prioridades.
A necessidade de segurança vem logo em seguida e se manifesta tão logo
estejam satisfeitas aquelas anteriores. Ou seja, na medida em que uma
necessidade é satisfeita, deixando de ser o elemento motivador primeiro,
sobressai a necessidade seguinte para tomar o lugar e afetar o comportamento do
indivíduo que depende de se sentir a salvo e seguro, com segurança no trabalho
e previsibilidade de renda, residindo numa boa vizinhança num país livre de
ataques.
As necessidades sociais, terceira categoria, envolvem o desejo de
pertencimento, de atenção e de aceitação pelo grupo e se manifestam quando o
indivíduo busca associar-se a clubes, participar de atividades comunitárias ou
qualquer tipo de envolvimento que acarrete aceitação social, cuja função tem
sido historicamente atendida pela família, pelo trabalho e pelos clubes. Esta
se torna essencial na medida em que as necessidades anteriores estejam
satisfeitas.
A necessidade de estima se relaciona com o desejo de autorrespeito, auto-
estima, autoconfiança, realização e conhecimento. São difíceis de atendimento,
244
posto que dizem respeito à intimidade do indivíduo, cujas necessidades do ego
têm diferentes graus e, exatamente por isso, quando atendidas as necessidades
inferiores e o sujeito busca a realização de suas necessidades do ego, os conflitos
se multiplicam.
As necessidades de autorrealização concentram-se na consecução do
potencial humano de cada um. O autodesenvolvimento, a autossatisfação e a
busca por criatividade estão nesse plano de comprometimento do indivíduo com
a realização do seu próprio potencial e maximização do retorno psíquico.
Aliás, situados numa realidade marcada pela caracterização de uma
sociedade de consumo massificado, em níveis globalizantes, é necessário, em
termos de identificação e aferição dos fenômenos responsáveis pela eclosão de
riscos, o cotejo entre mundos em que, de um lado, o indivíduo possa contar com
escolhas previamente definidas, facilitadas pela atuação de valores sociais
estáveis baseados no binômio de ordem e progresso e garantidos pelas
autoridades, ao passo que, de outro lado, surge um vácuo de possibilidades
infinitas, de comprometimento da legitimidade das autoridades, de superação
dos valores e desequilíbrio das instituições lidas como família, indústria,
Igreja e Estado, desestabilizando o sujeito e a sociedade que se mantinham
apoiados sobre esses pilares.
[...] as forças de mercado que transformaram as esferas da produção
e do consumo questionaram inexoravelmente nossas noções de certeza
material e de valores incontestes, substituindo-os por um mundo de riscos e
incertezas, de escolha individual e pluralidade, e de uma precariedade
econômica e ontológica profundamente sedimentada.
400
400
Jock Young (A sociedade excludente: exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade recente.
Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 1991, pág. 15), apud Domingos Barroso da Costa, op.
cit., pág. 53.
245
A intensidade de esforço que despendemos para a satisfação das
necessidades está intimamente relacionada com a quantidade de oportunidades
de que dispomos para atendê-las, de sorte que, superada ou iminentemente
atendida uma necessidade básica, nossos esforços para isso diminuem e, na
mesma proporção, aumentam na realização de esforços para o atendimento nas
necessidades de ordem superior, conforme dispostas na escala de Maslow.
401
Nos ocupamos, neste ensaio, da necessidade básica da segurança, da qual
extrairemos as observações fundantes da tese. E, nesse sentido, vimos na
abertura deste capítulo, também os autores de ciências sociais, de modo geral,
atribuem ao termo segurança o sentido relacionado com proteção.
De fato, o pensamento político ocidental, tendo se erigido a partir de um
movimento pendular entre segurança e liberdade, neles identifica os valores
fundamentais que representam o cerne de uma comunidade justa. No entanto,
excludentes entre si, a razão reclama seja identificado um ponto de equilíbrio
entre eles, tensão que, do nosso ponto de vista, pode ser fielmente medida
tomando o contrato de seguro como referente.
Exemplo histórico dos mais notáveis em termos de superação de
insegurança generalizada, quadro natural em situação de devastação, a Carta do
Atlântico foi um marco de solidariedade entre nações, numa amplitude tal que
representa o delineamento da organização comunitária, especialmente em
401 Com o fito de destacar que a jornada humana se desenvolve acumulando desventuras que decorrem de sua
própria condição errante, pedimos vênia para inserir destaque que Tévoédjré nos oferece em seu livro A Pobreza,
Riqueza dos Povos, sobre a escala inversamente proporcional de impacto no comportamento do homem na
relação entre necessidade e abundância. Aceitando tratar-se de um novo absurdo, o autor de Benin transcreve:
Difundiu-se entre o povo uma certa liberalidade imaginária ... que cria novas necessidades ... desta, senhores,
- acreditar-me-eis se vo-lo disser? – derivou o fato de que alguém pode ser pobre sem carecer de nada.” (págs.
21/22).
246
virtude da necessidade comum de sobrevivência e prosperidade de ingleses e
norteamericanos naqueles tempos pós Segunda Grande Guerra.
402
Mas não é só na intimidade de cada indivíduo que a segurança mobiliza o
homem de modo a exigir-lhe vigilância e esforço permanentes. Mesmo nos
textos normativos de tempos mais longínquos é possível observar o tratamento
da segurança como um problema da coletividade, o que se evidencia a partir
da proteção organizada das fronteiras ou mesmo dos esforços estatais para
expansão dos territórios. A fuga do Egito para a Palestina, por exemplo, liderada
por Moisés por volta de 1290 a.C., que através da História conhecemos como
Êxodo, outra coisa não significou senão a busca de um lugar seguro Canaã, a
Terra Prometida - para a sobrevivência do povo hebreu.
É nessa perspectiva de organização social em busca de segurança que
emerge o seguro, especialmente se encarado como instrumento ínsito à atividade
econômica, às práticas comerciais. Vale dizer, então, que o seguro, como
mecanismo de previdência, recebe tratamento normativo desde antes de se tê-lo
como operação cnica, evidenciando que o seu surgimento se deu de modo
espontâneo, atécnico e assistemático.
Portanto, aqui se amolda perfeitamente o entendimento de Aristóteles
sobre os fins econômicos almejados pelo grupo social, conforme já anunciado na
sua obra
403
, e as civilizações, nos mesmos passos, incorporaram essa prática
desde os primórdios, utilizando o método da diluição dos riscos e perigos da
vida entre uma coletividade, isto com o escopo de aumentar o potencial de
402
A Inglaterra, como se sabe, ficou isolada no confronto com Itália e Alemanha durante a Segunda Grande
Guerra, dada a derrota da França em Maio/Junho de 1940. Detentora de inquestionável poder marítimo, a Grã-
Bretanha sofria forte impacto sobre suas grandes rotas marítimas do Mediterrâneo e do Atlântico, as quais uniam
as ilhas britânicas às fontes de matérias-primas. Ameaçado, Churchil persuadiu Roosevelt de que uma vitória do
Eixo ítalo-germânico ameaçaria os interesses norteamericanos, razão porque assinaram, em Agosto de 1941, a
Carta do Atlântico, pacto de solidariedade anglo-americano que assentou os princípios democráticos para a
aludida reorganização.
403 A Política, pág. 17.
247
enfrentamento às agressões ou, por outra, para o fim de minimizar o impacto de
eventuais perdas pessoais ou econômicas sobre apenas um ou poucos indivíduos
do grupo, delineando nessa prática o princípio da solidariedade como processo
de defesa.
404
Forçoso concluir, desse modo, que o seguro tem origem no espírito, como
consequência da inata capacidade humana de previsão, tendo se formado,
portanto, sem o concurso da genialidade do homem; logo, as práticas
securitárias nascem da necessidade de se porem livres dos riscos as mercadorias
que circulavam por conta do corcio, generalizando-se em costume jurídico
marítimo, cujo processo evolutivo remata o uso dos contratos verbais, até o
surgimento do direito escrito.
II.1. Angústia, medo, incerteza, insegurança, risco e perigo:
crepúsculo da felicidade?
Todo vivente busca um mundo
melhor. Homens, animais, plantas, e
também organismos unicelulares, são
sempre ativos. Eles tentam melhorar sua
situação ou, ao menos, evitar uma piora.
[...] Todo organismo está constantemente
ocupado em resolver problemas. E os
problemas surgem das avaliações de seu
estado e de seu entorno, que ele procura
melhorar”. (Karl R. Popper)
405
404 Pedro Alvim, op. cit., p. 1.
405
Em busca de um mundo melhor,g.7.
248
Acima, na Terceira Parte (A Sociedade), Capítulo I, item I.4, tratamos dos
conflitos sociais e suas formas de superação, assunto que corresponde aos
modelos de enfrentamento de problemas eclodidos no processo de socialização e
que nos oferece informações sobre como o indivíduo se converte em agente
capaz de atuar ativamente na vida da sociedade, ao mesmo tempo em que mostra
a relevância da personalidade e da dinâmica psicológica para a estrutura e o
funcionamento da sociedade.
O processo de socialização, ensina Ely Chinoy, cuida de transformar a
matériaprima humana num ser social, desempenhando duas importantes funções,
a saber: prepara o indivíduo para os papéis que have de desempenhar,
fornecendo a ele o repertório necessário de hábitos, crenças e valores, padrões
apropriados de reação emocional e modos de percepção, as habilidades e o
conhecimento exigidos; por outro lado, transmite o conteúdo da cultura de uma
geração a outra, modo de prover a sua continuidade.
406
Induvidoso que o projeto comum aos homens é fruir o máximo possível e
sofrer o mínimo possível, ou seja, o bem-estar, resta identificarmos qual o bem
supremo capaz de fazer convergir todas as opiniões sobre o que seja fim para
uma vida bem-aventurada. No entanto, desde os pressocráticos se disputa entre
uma visão hedonista, que via o prazer como bem primeiro e último, vez que a
mesmo as virtudes o preconizadas pelo prazer que nos proporcionam, e outra,
que entende o esforço um bem que vale mais e é melhor que a fruição.
Com efeito, epicuristas e estóicos se opunham acerca do bem supremo.
Aqueles, defendendo que o prazer é o bem supremo, pois antes de princípio é
um fato que, além do mais, condiciona todos os outros; adicionam que o mal,
antes de ser um juízo, é um sofrimento, isso sem embargo de que existem certos
406
Sociedade. Uma introdução à sociologia, pág. 120.
249
tipos de sofrimento considerados bons, ao menos à vista de seus efeitos, assim
como prazeres vergonhosos e perigosos. É no prazer, concluía Epicuro, que
encontramos o princípio de toda escolha e de toda recusa.
407
Vemos, desse modo, despontar que todos os males gizados no título deste
item se apresentam como subproduto de um sofrimento primaz da vida humana
e podem, portanto, ser tratados sob o rótulo geral da insegurança, até porque são,
todos, abrangidos num único campo semântico.
Trata-se, a insegurança, da atribulação humana que gira, invariavelmente,
em torno das limitações do mundo material, relacionando-se com as
comparações entre rendas e realizações, entre mercadorias e capacidades,
entre nossa riqueza e nossa possibilidade de viver do modo como
gostaríamos”.
408
Portanto, em tais considerações, impõe sejam levadas em linha de conta as
necessidades essenciais do homem na sociedade, obedecida, como pontifica
Abraham A. Maslow (vide caput do Capítulo II acima), uma escala de hierarquia
entre elas e considerando-as frente ao permanente risco da privação que o
ameaça.
Cumpre salientar que num mundo globalizado, a pobreza, fenômeno
anômalo responsável pela insegurança da grande maioria dos viventes humanos,
deve ser entendida não simplesmente como baixa renda, mas principalmente
como fator que pode explicar a privação absoluta de capacidades, na medida em
que tal abordagem permite elencar privações intrinsecamente importantes, a
porque renda não é o único instrumento de geração de capacidades.
409
407
André Comte-Sponville, A Vida Humana, pág. 75.
408
Amartya Sen, Desenvolvimento como Liberdade,gs. 27/28.
409
Idem, pág. 110.
250
Esse dado das sociedades tecnogicas permite identificar os males que se
desdobram do desenvolvimento para se alojar nas aflições, males esses que, não
obstante suas peculiaridades, se abatem sobre os homens de modo a tolher-lhes a
felicidade, ou, se preferirmos, as possibilidades de uma vida feliz, circunstância
que, vista em perspectiva dicotômica, esclarece a retumbante insatisfação
existencial, a angústia generalizada dos homens.
Diversos autores de diferentes áreas do saber se debruçaram sobre o
fenômeno de alastramento dessa insatisfação existencial generalizada dos
indivíduos, mostrando-se crescente os textos dedicados a isso. na década de
20 do culo passado, Freud dedicava atenção ao que intitulou O Mal Estar na
Civilização
410
; Albert Tévoédjré, cientista social do Benin
411
, formula ácida
crítica em A Pobreza, Riqueza dos Povos. A transformação pela solidariedade;
Zygmunt Bauman, por sua vez, escreveu Comunidade: a busca por segurança
no mundo atual; Karl R. Popper nos oferece Em busca de um mundo melhor;
Lúcio Kowarick, Viver sem Risco. Sobre a vulnerabilidade socioeconômica e
civil; Amartya Sen discorre sobre Desenvolvimento como liberdade, e
associando-se a Bernardo Kliksberg, escreveram As Pessoas em Primeiro
Lugar. A ética do desenvolvimento e os problemas do mundo globalizado. Esse
rol, meramente exemplificativo, não esgota, naturalmente, os incontáveis títulos
dedicados a esse conteúdo crítico, de sorte que podemos mesmo entender que os
infortúnios todos do espírito, especialmente a angústia, o medo e a incerteza, são
típicos da modernidade, dos quais dessai insuportável e involuntariamente a
sensação de insegurança, mercê dos riscos e perigos que cercam o homem deste
nosso tempo.
410
“O Mal-Estar na Civilização”. Obras Psicológicas Completas, págs. 73/148.
411
Benin ou Benim, do francês Bénin, é um país da região ocidental da África, cuja capital é Porto-Novo,
contando cerca de 9 milhões de habitantes e mais de 112 mil km² de território. Mantém a sede de seu governo na
maior cidade do país, Catanou. Limitado ao norte por Burkina Faso e pelo Níger, a leste pela Nigéria, a sul pela
Enseada do Benim e a oeste pelo Togo. Oficialmente denomina República do Benin (République du Bénim).
Antiga colônia francesa, Benin alcançou independência a de Agosto de 1960 com o nome de República de
Daomé. No entanto, em virtude de ser banhado ao sul pela Baía de Benin, adotou esse nome em 1975.
251
Discorrendo a respeito da insatisfação existencial, Gilles Lipovetsky
ensaia:
Ao longo do tempo, a civilização materialista tem sempre sido alvo de
críticas por parte das mais diversas correntes de pensamento. Os movimentos
cristãos tradicionais acusaram-na de arruinar a fé e as obrigações religiosas.
Os «republicanos», a começar por Rousseau, criticaram o luxo e as
comodidades da vida, culpados da corrupção dos costumes e das virtudes
cívicas. Os racionalistas fustigaram a futilidade da moda, o supérfluo e o
esbanjamento das sociedades da abundância. Os pensadores aristocráticos ou
elitistas exprimiram o desprezo que lhes inspirava uma cultura «vulgar» que
fazia triunfar as paixões mais medíocres. Quanto aos teóricos marxistas,
lançaram suas flechas contra o capitalismo da opulência, encarado como um
novo ópio das massas, uma quina económica produtora de falsas
necessidades, de passividade alienante e de uma solidão impotente”.
412
Robert R. Keppe, citado neste ensaio, atuando criticamente dentro do
mesmo campo investigativo, pontifica:
O sofrimento obedece ao mesmo processo de fuga da consciência: ele
aparece quando negamos a realidade, tentando viver uma fantasia. Estou
dizendo que sofremos com a fantasia e não com a realidade. Seria possível
sofrer com a verdade? [...] O que nos faz sofrer é a luta que empreendemos
para conservar uma ilusão, uma fantasia; portanto, de algo que jamais deveria
existir.
413
Essa farta literatura nos convence da conveniência e oportunidade de
explorar o tema da insegurança em tópico no qual se encontram subentendidos
os distúrbios vivenciais de ordem exclusivamente psicológica, ou seja, excluídas
as patologias não comportamentais.
Com efeito, já o dissemos acima:
[...] o fenômeno existencial humano sob enfoque psicológico
individual ou coletivo pode ser sondado através de vários referenciais, como,
por exemplo, dentre outros, a individualidade, a alteridade, a liberdade, a
autonomia, a independência, a espontaneidade, a dignidade, a felicidade, a
espiritualidade, a fraternidade, etc.”
414
412
A Felicidade Paradoxal. Ensaio sobre a sociedade do hiperconsumo, pág.135.
413
Op. cit., pág. 29.
414
Vide Primeira Parte, Capítulo II, item II.1.6 acima, pág. 98.
252
Roboram essa nossa referência os ensinamentos de Zygmunt Bauman,
declinados em posfácio assim redigido:
Sentimos falta da comunidade porque sentimos falta de segurança,
qualidade fundamental para uma vida feliz, mas que o mundo que
habitamos é cada vez menos capaz de oferecer e mais relutante em
prometer. Mas a comunidade continua teimosamente em falta, escapa ao
nosso alcance ou se desmancha, porque a maneira como o mundo nos
estimula a realizar nossos sonhos de uma vida segura não nos aproxima de
sua realização; em lugar de ser mitigada, nossa insegurança aumenta, e
assim continuamos sonhando, tentando e fracassando”.
415
II.2. Gestão dos riscos
A linguagem popular fez de
inseguraa sinônimo de praticamente
todos os tipos de ansiedade. Assim, os
psicólogos, médicos, assistentes sociais
usam segurança para designar não só a
ausência de ansiedades específicas, mas
também uma sensação generalizada de
bem-estar.
416
O risco integra a maior parte das atividades humanas, permeando de
perigo a vida do homem, desde o seu nascimento até a sua morte, evento certo
quanto a ocorrência, o que lhe caracteriza a inevitabilidade, mas incerto quanto
ao momento. A constante exposição a situações de riscos faz acumular
experiência em termos de escolha de modelos de gestão, os quais dependem de
certos fatores que concorrem para o acerto da escolha, como, v.g., o tipo de
415
Comunidade. A busca por segurança no mundo atual, pág.129.
416
Dicionário de Ciências Sociais, op. cit., pág. 1104, verbete: segurança.
253
atividade, como, v.g., do bem ameaçado, do tipo de risco, do temperamento do
agente econômico.
417
Peter L. Bernstein lembra que quando corremos um risco apostamos em
um resultado que será consequência de uma nossa decisão, muito embora não
saibamos ao certo qual será o resultado.
Segundo ele, A essência da administração do risco está em maximizar as
áreas onde temos certo controle sobre o resultado, enquanto minimizamos as
áreas onde não temos absolutamente nenhum controle sobre o resultado e onde
o vínculo entre o efeito e a causa está oculto des”.
418
Vivemos, neste século XXI, muito mais que antes e crescentemente a cada
dia, em sociedades de risco, o que se pode afirmar a partir da fácil constatação
de que a modernidade, com acesso sem barreiras à informação globalizada e
elevada capacidade de intervenção ambiental, provoca os riscos derivados da
ação do homem sobre a regência da natureza.
Quase todas as sociedades contemporâneas desenvolveram instrumentos
específicos, normas e instituições para fazer frente à necessidade de
administração dos riscos, traço histórico consentâneo com o fato de tratar-se se,
a busca por segurança, de uma característica universal do comportamento
humano.
Alguns autores, concordes em torno do tema, se pronunciaram a
respeito das chamadas sociedades de risco e assim denominam a maneira pela
qual a sociedade moderna administra os riscos a que está submetida, os quais
crescem e se diferenciam, complexizando-se, na exata proporção do
417
Quem assim nos ensina é Francisco Galiza, in Economia e Seguro: uma introdução, pág. 23.
418
Against the gods (Desafio aos Deuses. A Fascinante História do Risco), p. 197.
254
desenvolvimento tecnológico dos povos, sendo possível, portanto, associar os
riscos ao nível de domínio científico.
419
O hoje pranteado professor baiano J. J. Calmon de Passos, por ocasião do
Primeiro rum de Direito do Seguro, realizado em São Paulo no ano de 2000,
sob patrocínio do Instituto Brasileiro de Direito do Seguro IBDS, se apoiava
em Niklas Luhmann e Raffaele de Giorgi para asseverar que o risco integra o
próprio modo de ser da sociedade contemporânea, caracterizando-se pela
crescente possibilidade de decisão, tomado o risco, portanto, como conseqüência
de uma decisão.
420
Com efeito, superado o modelo de estruturação social economicamente
sustentado nos processos de produção e tendo se transformado em modelo
articulado em torno do consumo, a sociedade denuncia a passagem da
modernidade para a posmodernidade, com efeitos que repercutem em todo o
mundo especialmente a partir da cada de 90 do século passado, identificando-
se, dentre os de maior relevo,...
[...] os riscos e insegurança que hoje se impõem a uma existência
humana que antes se apoiava em rígidos valores, fundados em ideais
racionais que, a partir da ciência e da ordem, poderiam era o que se
acreditava – conduzir ao progresso.
421
Niklas Luhmann, por sua vez, na consagrada obra Sociología Del Riesgo,
dedica um capítulo ao tratamento da questão sob o enfoque especial da alta
tecnologia.
E diz:
419
Cf. Ulrich Beck, Risk society: towards a new modernity, págs. 19/23.
420
“O risco na sociedade moderna e seus reflexos na teoria da responsabilidade civil e na natureza jurídica do
contrato de seguro”. Anais do 1º Fórum de Direito do Seguro - José Sollero Filho, pág. 11.
421
Domingos Barroso da Costa, op. cit., pág. 53.
255
La razón por la que la problemática del riesgo provoca tantas
discusiones em nuestros dias, por la que inclusive nuestra sociedad se
considera una sociedad de riesgo, tiene que ver fundamentalmente con la
velocidad del desarrollo tecnológico en esferas que son científicamente de la
competencia de la física, la química y la biologia. Más que cualquier outro
actor individual, ha sido la impresionante extensión de las posibilidades
tecnológicas la que mayormente ha contribuido a llamar la atención pública
hacia los riegos inherentes a las mismas.
422
Traduzindo para o nosso vernáculo:
A rao por que o problema do risco provoca tantas discussões em
nossos dias, por que inclusive nossa sociedade se considera uma sociedade
de risco, tem a ver fundamentalmente com a velocidade do desenvolvimento
tecnológico em setores que o cientificamente da competência da física, da
química e da biologia. Mais do que qualquer outro agente individual, a
impressionante expansão das possibilidades tecnológicas tem sido o que
mais contribui para chamar a atenção blica para os riscos que lhe são
inerentes. (t.l.a)
Ou seja, impelidos para o futuro inexorável, vivemos o paradoxo
representado pela constante necessidade de evolução dinâmica, o que nos
permite inferir que enfrentaremos riscos ainda desconhecidos e certamente de
muito maior complexidade, mas que por certo sobrevirão. Isso nos impõe uma
postura de controle dos riscos a ser pautada por uma nova base de conhecimento
que leve em conta também a democratização da própria modernidade industrial,
baseada não somente nos domínios da ciência e da tecnologia, mas também
ética.
423
Concluindo, certa a capacidade de previsão, faculdade humana que rompe
a barreira entre presente e futuro, possibilitando tornar presente algo ainda não
ocorrido ou, por outras palavras, certo o poder de presentificar o futuro,
preservamos a possibilidade de por os nossos interesses a salvo de eventos ainda
422
Pág. 131.
423
Beck, op. cit., pág. 29.
256
não eclodidos, prática que se denomina gerenciamento ou administração dos
riscos.
A propósito, conforme as lições de Alvaro Lópes Nuñes:
424
La previsión es aquella disposición de ánimo que, considerando las
necesidades futuras como si fueran presentes, produce en la voluntad el
esfuerzo necesario para prepararse contra las eventualidades adversas de
la vida.
425
Nessa seara, não menos certo que determinados eventos, naturais ou não,
são incontroláveis do ponto de vista de sua eclosão e da possibilidade de
provocar resultados danosos independentemente da vontade do homem, e
embora assim prevaleçam, deles extraímos dados que nos permitem anular ou ao
menos minimizar os riscos, mediante procedimentos de controle prévio.
Desse modo, o homem segue incapaz de controlar o Universo, mas bem
pode, vimos acima, implementar medidas que o resguardem de resultados
adversos.
II.2.1 Modos de enfrentamento de riscos
426
[...] em uma ferramenta de busca na
internet, o termo “risk” registra em torno de
335 milhões de entradas.
(Vicente de Paulo Barretto)
427
424
Apud Alberto De-Juan Bellver, op. cit. p. 16
425
Traduzimos: “A previsão é essa disposição do espírito que, considerando as necessidades futuras como se
fossem atuais, produz na vontade o esforço necessário para preparar-se contra as eventualidades adversas da
vida”.
426
Vide nossa dissertação O Contrato de Seguro Privado ..., op. cit., págs. 62/68.
257
O seguro não é a única alternativa de gerenciamento de riscos, embora
seja a mais recorrente nas sociedades contemporâneas, sobretudo em virtude de
sua flexibilidade e da atuação científica de instrumentos de medição e de
previsibilidade técnica dos riscos. Os instrumentos específicos de administração
de riscos são inumeráveis e variam de acordo com o lugar, a época, a cultura, as
classes sociais, etc. Por outro lado, os princípios gerais que regem tais
instrumentos são em número reduzido, como veremos a seguir.
De qualquer forma, em que pese tratar-se, o gerenciamento de riscos, de
um tema de cunho técnico-científico, é do senso comum - ou da prudência - a
identificação de expedientes desde os mais rudimentares aos mais complexos,
que vêm se combinando ao longo da experiência humana, com nítido
crescimento e sofisticação, especialmente a partir do advento do comércio e da
aplicação das ciências atuariais.
Com o auxílio da doutrina de Chiappori, torna-se fácil a compreensão de
que as várias atitudes cotidianas de autopreservação, como, v.g., a criança do
campo que desde cedo aprende a abrigar-se sob uma árvore diante do mal tempo
e de trovoadas, ou da criança da metrópole, que logo domina a técnica de
atravessar avenidas no semáforo, embrionárias, como vimos, da atividade
securitária organizada, se evidenciam como as melhores escolhas entre as
decisões possíveis, assim entendidas as alternativas que representam menos
perigo. Como nos mostram os exemplos aqui citados, a ppria educação, tão
por estimular comportamentos virtuosos, desempenha importante função em
matéria de gestão de riscos, pois através dela conhecemos a prudência, uma das
quatro virtudes cardeais da Antiguidade e da Idade Média que tem a ver com o
verdadeiro, com o conhecimento e com a razão e, além disso, rege
instrumentalmente as outras três virtudes (temperança, coragem e justiça).
427
Dicionário de Filosofia Política, pág. 452, verbete “risco”.
258
Conforme Aristeles, trata-se de uma virtude intelectual que permite ao
homem deliberar corretamente sobre o que é bom ou mau e agir em
consequência, a que se poderia, também, chamar bom senso. A prudência não se
limita a reinar no espírito, governa o comportamento.
428
Tomada a exemplificação acima, através da qual se pode atestar a
manifestação espontânea do seguro, passemos a uma proposta de agrupamento
das diferentes modalidades, obedecido o critério de separação segundo os
princípios da gestão individual e gestão coletiva dos riscos, a seguir enunciados,
isto, obviamente, sem prejuízo de outras propostas classificatórias.
Como veremos a seguir, são modos úteis de enfrentamento dos riscos e
tradicionalmente aceitos pela doutrina e jurisprudência.
II.2.1.a Modos de gestão individual de riscos: prevenção, retenção e
distribuição
i) Prevenção
Constitui um conjunto de medidas que visa a preparação, disposição
preventiva contra qualquer mal. Decorre da cautela, que nada mais é que a
atenção, a vigilância contra o que pode sobrevir, e dá oportunidade à precaução.
Prevenir-se, precaver-se ou acautelar-se, importa em preparação
antecipada, na adoção de mecanismos para dificultar ou mesmo impedir a
ocorrência de eventos indesejados e assim evitar algum mal, ou, diante da
impossibilidade de se evitar, ao menos, caso ocorram, que se possa resisti-lo de
428
Vide André-Comte Sponville, in Pequeno Tratado das Grandes Virtudes, págs. 38/39.
259
modo a minimizar as suas consequências. É modalidade que se combina com as
demais técnicas, complementando-as.
Evitar significa a simples anulação da possibilidade do risco, o que pode
ser alcançado mediante a eliminação da atividade geradora do fenômeno e
tornando impossível a eclosão do evento. Assim, para evitar a ocorrência de
acidentes automobilísticos, por exemplo, o sujeito mantém o seu carro na
garagem, o que elimina o risco, tornando impossível ao mesmo sofrer danos em
seu automóvel, ao menos em virtude de sua circulação.
Prosseguindo, a bem demonstrar a interpenetração dos recursos de
prevenção, observe-se, por exemplo, o conjunto de medidas à disposição dos
motoristas de veículos automotores, que, desde a habilitação dos mesmos em
termos de direção defensiva até a farta sinalização viária, cumprem função
preventiva, atuando essa infraestrutura com o escopo primeiro de evitar a
ocorrência de acidentes de trânsito.
Por outro lado, na hipótese de não ter sido evitado um certo acidente, um
exemplo típico de prevenção mitigadora de danos é o uso de dispositivo de
retenção - cinto de segurança - por motoristas e passageiros, meio de proteção à
integridade física dos mesmos e de manutenção da vida.
Nem mesmo a certeza inabalável sobre a ocorrência de determinado
evento danoso, como no caso da morte, certa quanto vir a acontecer e incerta
quanto ao momento de sua passagem, retira totalmente do interessado a
possibilidade do uso de medidas preventivas, o que se justifica pelo fato de que
a luta pela sobrevivência, dado natural do existir, representa em si a prática de
expedientes cujo escopo é evitar a morte, retardando-a o mais possível.
429
429
Francisco Galiza, ibidem.
260
A sabedoria popular se manifesta, a esse respeito, sob o adágio de que é
melhor prevenir que remediar”.
ii) Retenção
Retenção nada mais é que a prática de assumir os riscos a que o agente
está submetido. Assumir riscos pode representar a preferência de alguns. Há
mesmo aqueles que preferem assumi-los, quer por indiferença às suas
conseqüências, quer por considerá-las suportáveis, como num jogo de apostas ou
diante de perdas insignificantes um lápis, por exemplo. Ressalvadas as
observações concernentes ao risco inevitável, aceitam as perdas possíveis,
abrindo mão de adotar qualquer medida protetiva dirigida especificamente ao
bem ameaçado.
hipóteses, aliás, cuja conduta recomendada ao agente econômico é
exatamente a assunção dos riscos, como, por exemplo, diante da possibilidade
de perdas insignificantes, como a que pode ser ilustrada pela razoabilidade de o
agente econômico assumir o risco da perda de um lápis, ao que Francisco Galiza
prefere nominar retenção de riscos.
430
431
Por outro lado, ainda no plano individual, desde muito cedo o homem se
apercebeu de que a constituição de reservas para enfrentar as adversidades
eventuais e futuras se revelou muito mais eficaz e prático do que os rituais
seguidos de sacrifícios, cujo resultado não lhe rendia certeza de benefício.
430
Ibidem.
431
O exemplo declinado retrata a assunção deliberada de risco. No entanto, o mesmo autor observa a
possibilidade da retenção involuntária, quando o agente econômico, embora queira, não é capaz de alterar a
situação do interesse em jogo, como o que ocorre ao proprietário de uma edificação em madeira, sujeita a
elevado grau de sinistro de incêndio. Trata-se de risco desinteressante, o que alimenta a rejeição de cobertura por
qualquer seguradora.
261
Surgiu da técnica de formação de um fundo preventivo para a cobertura
de perdas ou frustrações futuras, o que pode ser admitido como autosseguro.
Nas sociedades primitivas, formava-se uma reserva com os produtos
cultivados, visando suprir as más colheitas, caso acontecessem. A acumulação
era possibilitada pela produção em volume maior que o consumo imediato ou
até por ato de deliberada redução do consumo. Por outras palavras, passou-se a
economizar. Trata-se, portanto, de um método de economia individual, via
distribuição dos recursos ao longo de um certo tempo, de modo a prover uma
poupança capaz de suprir as necessidades em qualquer ocasião, sobretudo em
situações emergenciais. A isso os economistas denominam autosseguro.
Uma advertência se mostra oportuna aqui neste ponto, que diz respeito à
ilusão do autosseguro, medida que representa um modo de pretensa prevenção
de riscos, caracterizado por uma economia individual, em que o interessado,
motivado por precauções contra consequências adversas de possíveis
acontecimentos futuros, utiliza o método da poupança, que significa a
constituição de reserva de parte de seus bens presentes, para eventual uso futuro.
Ousamos considerar equivocada a medida, cumprindo salientar que a
inoperância desse tipo de prevenção decorre do aumento da base patrimonial
sujeita a riscos, o que ocorre em virtude da poupança implementada. Com efeito,
tratando-se o seguro de método de preservação patrimonial, é certo que as
riquezas acumuladas em poupança integram, naturalmente, o patrimônio do
interessado, constituindo, em si, portanto, um bem passível de dano e, como tal,
paradoxalmente, merecedor de proteção. Isso nos mostra que o todo
provocaria o desencadeamento do crescimento do risco em progressão
aritmética, em escala infinita, o que é impossível, reinstalando a insegurança.
262
Modestamente, é da nossa opinião que a poupança é útil como fundo de
depreciação.
De todo o modo, ressalvados os entendimentos em torno da maior ou
menor eficácia das técnicas, é certo que da imperiosa necessidade de
enfrentamento dos riscos resultou uma cultura ppria, sendo conhecidos, ao
longo do tempo, alguns modelos de solução.
Em termos de assunção dos riscos e de suas conseqüências, útil adicionar
que existem duas espécies de perdas. A uma, são as perdas definidas, aquelas de
ocorrência previsível, representada pela necessidade imperiosa de substituição
dos bens em função de sua natural deterioração; a outra, as perdas indefinidas,
que decorrem de eventos incertos e bem por isso, são aleatórias. Visando
suportar tais perdas, cumpre ao interessado a constituição de um fundo, cujo
montante será aplicado na substituição dos bens perdidos.
Se a finalidade é a reposição de perdas definidas, a reserva de que trata
será denominada fundo de depreciação; por outra, se o fim for o de reposição
das perdas indefinidas, o capital a ser constituído se denomina fundo de seguro,
cujo valor, espera-se, seja superior ao necessário, mas que pode ser igual ou
mesmo inferior às perdas futuras. Como dissemos na nota supra, o
inconveniente da solução por meio do fundo de seguro reside no fato de que a
reserva financeira a constituir representa ela própria um bem sujeito a risco,
qualquer que seja a forma de se implementar a poupança. De outra banda, é de
se considerar que, nessa hipótese, a formação de um fundo de depreciação ou
de seguro - significa retenção de riqueza, isto é, aumento do patrimônio do
titular, elevando o grau dos riscos que este enfrenta.
Nessa mesma quadra os ensinamentos de Natalio Muratti, doutor em
Ciências Econômicas, foi professor de bancos, câmbios, bolsas e seguros na
263
Facultad de Ciencias Económicas, Comerciales y Políticas de la Universidad
Nacional del Litoral, Argentina, para quem é necessário diferenciar o seguro de
outros fenômenos econômicos similares.
432
Vejamos:
Para precisar, mejor n, el concepto del seguro es necesario determinar sus
relaciones con el ahorro y el juego de azar. El ahorro tine por finalidad
satisfacer necesidades futuras, mediante la colocación de dinero o por medio
de un bien económico presente, cuyo consumo se difere. En la formación
del ahorro, indispensable para satisfacer la necesidad prevista y futura, es
preciso el transcurso de un cierto tiempo, al paso que en el seguro, por el
contrario, el tiempo no desempeña sino un papel secundario. La cuota
destinada al ahorro se acumula periódicamente y se acrecienta con los
interesses devengados, hasta constituir el monto calculado. [...] Por lo
demás, el ahorro implica siempre un processo individual, en cambio, el
seguro supone la existencia de un conjunto de economía. El primero, enfin,
es una actividad que redunda en beneficio inmediato de un reducido número
depersonas; el segundo, por el contrario, favorece a toda una colectividad de
asegurados.
433
iii) Distribuição
Antes de mais nada, um parêntese. Embora estejamos explicitando esse
modelo de administração de riscos segundo o todo da distribuição, é
imperativo esclarecermos que se trata de modalidade que bem se acomoda
classificada na senda dos modos individuais, tanto quanto bem se acomodaria na
senda dos métodos coletivos.
432
Elementos Económicos, Técnicos y Jurídicos del Seguro, págs. 14/15.
433
Traduzimos: Para precisar melhor ainda o conceito de seguro é necessário determinar suas relacões com a
poupança e com o jogo de azar. A poupança tem por finalidade satisfazer necessidades futuras, mediante a
colocação de dinheiro ou por meio de um bem econômico presente, cujo consumo se difere. Na formação da
poupança, indispensável para a satisfação de uma necessidade prevista e futura, é preciso o transcurso de um
determinado tempo, ao passo que no seguro, pelo contrário, o tempo não desempenha mais do que um papel
secundário. A cota destinada à poupança se acumula periodicamente e ela se soma com os interesses devidos, até
constituir o montante calculado. [...] Além do mais, a poupança implica sempre um processo individual,
enquanto o seguro supõe a existência de um conjunto de economía. O primeiro, enfim, é uma atividade que
redunda em benefício imediato de um reduzido mero de pessoas; o segundo, pelo contrário, favorece a toda
una coletividade de segurados.
264
Com efeito, tal como na hipótese da prevenção, que se trata de uma
conduta preponderante e até, em muitos casos, determinante da bem sucedida
administração de riscos, a qual, aliás, pode ser tomada como dever dos
indivíduos, como encargo decorrente pura e simplesmente de cidadania, a
distribuição tanto pode ser a via eleita individualmente pelo agente econômico,
como decorrer de uma conduta orquestrada para atuação coletiva.
Vejamos. A distribuição dos riscos se dá mediante a subdivisão espacial
ou diversificação dos mesmos, providência que segue recomendações de cautela
de Markowitz, segundo as quais constitui inaceitavelmente arriscada a estratégia
de se colocar todos os ovos numa mesma cesta.
434
É ilustrativa desse modelo, a experiência dos chineses que, milhares de
anos passados, enfrentavam as tormentas dos Rios Yang Tsé e Huang Ho,
distribuindo suas cargas entre os diversos barcos de uma expedição, modo de se
evitar a perda total num único acidente.
II.2.1.b – Modos de gestão coletiva de riscos: partilha e transferência
i) Partilha dos riscos
A partilha, ou repartição dos riscos, vem sendo exemplificada
recorrentemente pela experiência dos cameleiros da Babilônia
435
, que
praticavam uma forma primária de seguro já por volta de 2.300 anos a.C.,
quando, para comercializar seus animais e mercadorias nas cidades vizinhas,
enfrentavam dificuldades e muitos perigos durante a travessia, que em muitos
434
Raciocínio desenvolvido por Harry Markowitz, economista norte-americano que recebeu o Prêmio Nobel de
Economia em 1990 por seu trabalho pioneiro sobre a teoria da economia financeira.
435
Nome dado à baixa Mesopotâmia, reunificada em torno da cidade de Babilônia e de seu império. (In.Grande
Enciclopédia Larousse Cultural. São Paulo: Larousse, 1995, vol. 3, pág. 576, verbete: Babilônia).
265
casos resultava em desaparecimento ou morte dos animais. Foi com o propósito
de enfrentar tais perigos e dificuldades que estabeleceram entre si um acordo:
cada membro do grupo que enfrentasse a perda de um camelo tinha a garantia de
receber outro animal, pago cotizadamente pelos demais cameleiros.
436
Por esse modo de geso coletiva, -se a transformação dos riscos
individuais em riscos socializados, o que nos convence de que o seguro nasceu
mesmo de soluções que se desenvolveram natural e espontaneamente, sem o
concurso criador do homem e resultante o da manifestação do seu espírito.
Das necessidades de se defender das adversidades, compartilhava providências
com os seus consanguíneos, e, depois, com um coletivo maior.
Não obstante as providências individualizadas, especialmente as que
indicam a solução por via da poupança, ou fundo de seguro, vimos emergir uma
modalidade que somente se viabiliza pela somatória de interesses, sob a forma
de economia coletiva, método que se traduz em repartição dos riscos ou, para
mantermos fidelidade com a denominação supra, partilha de riscos.
Para voltarmos a esse assunto em momento que irá se oportunizar adiante,
deixaremos, aqui, reproduzidas as anotações lançadas na nossa dissertação de
mestrado
437
, as quais colhemos dos professores Amílcar Santos e Maurício Issa.
O primeiro, na obra Seguro. Doutrina, legislação e jurisprudência, leciona: O
seguro parte de um princípio, hoje, universalmente aceito: a reparação do
prejuízo, pela repartição do risco
438
, no que é acompanhado pelo segundo,
quando em sua obra O seguro no comércio exterior, discorre sobre a base
científica do seguro.
439
436
Odaléa Cleide Alves Ramos (Coord.), in Teoria Geral do Seguro, pág. 09.
437
Op. cit., pág. 66.
438
pág. 8.
439
pág. 33.
266
De fato, o tempo permitiu ao homem observar que os fenômenos
eventuais somente são considerados aleatórios se observados no tempo e no
espaço em relação à sua esfera individual. No entanto, no caso dos fenômenos
naturais, por exemplo, que revelam considerável constância e regularidade,
embora em grande parte inevitáveis, sempre se apresentam, mas sem que
atinjam nunca todos ao mesmo tempo. Ao contrário, prejudicam somente certos
indivíduos, exceto quando se tratam de catástrofes.
Portanto, basta a reunião de vários riscos de mesma classe em um
grupo e concluiremos, pela observação, que as ocorrências gravosas acontecem
registrando certa regularidade quanto ao momento e lugar das ocorrências.
É dizer, quanto maior o grupo de riscos postos sob análise, maior certeza
se colhe quanto ao grau de probabilidade de ocorrências, dada a regularidade
observada segundo a lei dos grandes números, o que, sob esse ângulo, reduz a
aleatoriedade dos acidentes.
Repartir entre todos os membros de um certo grupo as conseqüências dos
riscos eleitos cujas frequência e intensidade sejam cientificamente medidas,
reduz o grau de incerteza reinante no seio da comunidade na mesma proporção
da certeza extraída do estudo matemático dos riscos, restando a ser suportado
pelo mutuário uma parcela financeira mínima.
Desse modo, as perdas, agora estimadas com elevado grau de certeza
posto que calculadas conforme a lei dos grandes números, são resgatadas com
recursos provindos da contribuição, prévia ou o, de todos os participantes,
capital que constitui um fundo único. Trata-se da redistribuição das perdas ou,
por outras palavras, do princípio do mutualismo que caracteriza o seguro.
267
ii) Transferência dos riscos entre agentes
O risco pode ser total ou parcialmente transferido de uma pessoa para
outra, viabilizando-se a operação desde que a sua avaliação possibilite estimular
o interesse de ambas as partes, ou seja, desde que resulte em conseqüências
positivas para uma e para outra parte. Correspondentemente ao modelo de
enfrentamento de riscos pela via da transferência, sobressai, no tema
contraposto, a aceitação dos riscos, a contraparte, ou seja, aquela que, mediante
o pagamento de valor adequado, aceita assumir o risco de perdas
predeterminadas que se produzirem em certo lapso temporal.
Por esse viés, o interessado em adquirir segurança se vê dispensado da
economia individual, como vimos acima (item I.2.1.a. ii). Ou seja, na hipótese
de o indivíduo estar exposto a certo risco que lhe exija constituir fundo de
seguro, certamente fará a opção de transferi-lo a um terceiro, desde que, é
evidente, pague por isso quantia inferior do que aquela que haveria de ser
acumulada em sua economia individual.
Não se ignora, para essa modalidade, a possibilidade de serem levantados
óbices à sua classificação, aqui, dentre os modelos de gestão coletiva de riscos,
mormente em face de se redarguir sobre a assunção individual de riscos, a
exemplo do que ocorria nos tempos do tradicional seguro marítimo medieval.
No entanto, adiantando escusas em virtude de eventuais dissonâncias de
entendimento a esse respeito, é de nossa opinião que esse modelo se justifica
encartado entre os coletivos, mercê de se tratar de solução coletiva, muito
embora encerrada apenas entre segurado e tomador do risco. Concorde com esse
entendimento, Atilio Anibal Alterini, Professor Titular de Obrigações e
Contratos Civis e Comerciais da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade
de Buenos Aires, preleciona que o contrato é em si coletivo, o que se vislumbra
268
pelo fato de que, por ele, as vontades se cruzam, de sorte a demonstrar que os
interesses geralmente contrapostos deixam de ser unilaterais para integrar o ato
jurídico bilateral.
440
II.2.2. O interesse comunitário no enfrentamento dos riscos
Num primeiro lance, é curial sinalizar que para além dos interesses
egoísticos eventualmente visados sob perspectiva de riscos, há um interesse
difuso a recomendar o trato desse assunto na senda coletiva, senão por outros
caracteres da espécie, pelo simples fato de tratar-se de uma realidade comum a
todos os cidadãos irmanados numa mesma comunidade, o que sugere o acerto da
teoria aristotélica, segundo a qual a vida social não decorre de mera convenção
entre os homens; é antes um produto natural do desenvolvimento das sociedades
humanas.
441
Hannah Arendt descreve que
A tradição de nosso pensamento político teve seu início definido nos
ensinamentos de Platão e Aristóteles [...]. O início deu-se quando, na
alegoria da caverna, em A República, Platão descreveu a esfera dos assuntos
humanos, tudo aquilo que pertence ao convívio dos homens em um mundo
comum, tem termos de trevas, confusão e ilusão, que aqueles que
aspirassem ao ser verdadeiro deveriam repudiar e abandonar, caso
quisessem descobrir o límpido das idéias eternas.
442
Nascida na Grécia, c. VI a.C., no contexto das colônias gregas e associada
à fundação da polis, a filosofia vem imprimindo, desde então, ao pensamento
ocidental, a direção e conteúdo que conhecemos, o que acontece em virtude das
440
Contratos civiles – comerciales – de consumo. Teoría General, pág. 24.
441
Vide Alberto Alonso Muñoz. “A filosofia política de Aristóteles”. In: MACEDO JÚNIOR. Ronaldo Porto
(Coord.). Curso de Filosofia Política: do nascimento da filosofia a Kant. São Paulo: Editora Atlas, 2008, págs.
147/163.
442
Entre o Passado e o Futuro, pág. 43.
269
discussões sobre a instituição da ordem que deve reger as cidades, sobre a
justiça e a lei, os contratos, o governo e a administração da cidade, a exemplo do
que acontecia em Atenas no século IV a.C., em que, segundo o pensamento
platônico-aristotélico, o binômio cidade justa/cidadão virtuoso avultava
indissociavelmente como duas faces de uma mesma moeda, integrando uma
mesma correlação.
443
Portanto, se ... em sua origem filosofia, política e ética estão ligadas
numa proposta única e original de um povo que deseja, acima de tudo ‘ser lei
para si mesmo e que para isso confia no logos
444
445
, falar a respeito de
incerteza e insegurança num contexto de identificação e de eleição de
mecanismos de enfrentamento desses distúrbios, nos desperta, novamente, para
a teoria do contrato social, uma vez que isso suscita mirar a matéria na via do
comunitarismo.
Por outro lado, em nossa dissertação de mestrado dedicamos espaço para
a demonstração das estratégias mais usuais de enfrentamento dos riscos, todas
construídas ao longo da experiência humana. O estudo da matéria nos deu a
oportunidade de constatar que em decorrência do estado de incerteza, um
custo imaterial suportado pelo indivíduo, o que denominamos “perdas
líquidas”, com repercussão na vida coletiva, que corresponde ao desconforto
gerado pela ignorância acerca do volume de perdas ou momento da sua
ocorrência.
446
Observamos que a instabilidade moral e emocional que se abate
sobre o indivíduo em decorrência do sentimento de insegurança resultante dos
riscos ameaçadores da incolumidade das bases materiais da sua vida, se
443
Vide Maria do Carmo B. de Faria, Direito e Ética. Aristóteles, Hobbes, Kant, g. 15.
444
O Logos (em grego λόγος, palavra), no grego, significava inicialmente a palavra escrita ou falada—o Verbo.
Mas a partir de filósofos gregos como Heráclito passou a ter um significado mais amplo. Logos passa a ser um
conceito filosófico traduzido como razão, tanto como a capacidade de racionalização individual ou como um
princípio cósmico da Ordem e da Beleza.
445
Ibidem.
446
Op. cit., pág. 50.
270
desdobra em custo social, vez que a interação social do mesmo faz recair na
sociedade o encargo final da incerteza.
Nesse sentido, parece lógico que a administração dos riscos seja mesmo
assunto da mais alta relevância aos interesses comunitários, na medida em que
desse expediente resulta a possibilidade de restauração de desequilíbrio
econômico que a somatória e variedade de riscos acarreta socialmente,
sobretudo em países de acentuado tráfico comercial e industrial, o que, de resto,
se faz de modo a atualizar os fundamentos éticos da vida comunitária.
Natalio Muratti, citado, atestando, por assim dizer, o caráter
comunitário da proteção contra riscos, escreveu importante obra de interesse
para o campo desta investigação, intitulada Elementos Económicos, Técnicos y
Jurídicos del Seguro (Buenos Aires: Librería El Ateneo Editorial, 1955),
oportunidade em que já ressaltava o aspecto público do contrato de seguro.
No dizer desse mestre
El seguro tiene una función económicosocial en cuanto satisface una
necesidad eventual que afecta a la colectividad. Los segyros privados y los
seguros sociales no solamente satisfacem una necesidad individual, sino y
s bien una necesidad colectiva, puesto que interesa a toda la coletividad
que los individuos que la componen estén a cubierto de las consecuencias de
los riesgos que gravitan sobre sus actividades y sus vidas. El fenómeno del
seguro es un problema social. [...] En nuestro concepto, el seguro es un
servicio público porque satisface en forma concreta necesidades colectivas
de previsión social.
447
447
Op. cit., págs. 13 e 53. No vernáculo: “O seguro tem uma função econômico-social na medida em que satisfaz
uma necessidade eventual que afeta a coletividade. Os seguros privados e os seguros sociais não somente
satisfazem uma necessidade individual, senão e melhor uma necessidade coletiva, posto que interessa a toda a
coletividade que os indivíduos que a compõem estejam seguros contra as consequências dos riscos que gravitam
sobre suas atividades e suas vidas. O fenômeno do seguro é um problema social. [...] Em nosso conceito, o
seguro é um serviço público porque satisfaz necessidades coletivas de previsão social de modo concreto”.
271
II.2.3. A segurança da humanidade através do contrato social
Desde os nossos estudos para desenvolvimento do trabalho através do
qual obtivemos o tulo de mestre na PUC/SP, se avolumavam informações
em torno do fato de que o homem sempre se utilizou do núcleo familiar para
dele retirar elementos úteis à sua sobrevivência, sobressaindo, dentre esses
elementos, o fator segurança pessoal e coletiva, dispensada, prima facie,
exatamente por se tratar de cleo familiar, qualquer diligência acerca da
solidariedade e fidelidade entre os membros.
448
Sobre ser interessante aos indivíduos qualquer tipo de associação,
encontramos lastro na filosofia aristotélica. Senão, vejamos.
Conforme as lições aristotélicas concebidas dentro de uma filosofia
prática e demarcadora do campo da ação humana, que se distinguir entre o
saber teorético
449
e o saber prático, este formulado no sentido de dirigir a práxis
(ação) humana. No entanto, certo que o homem é um ser natural e desse modo
contingenciado pelos princípios e causas da phýsis (Natureza), como tudo o mais
na natureza ele age tendo em vista um fim, uma finalidade.
Trata-se, pois, da teoria finalista de Aristeles, segundo a qual todas as
escolhas do homem e todas as suas ações, dirigidas pela razão, almejam algum
bem. Sendo assim, as coisas humanas se dirigem à eudaimonia (felicidade,
prosperidade, abundância de bens, estado de bem estar), meta que se alcança a
partir da ão virtuosa, considerando a virtude como uma disposição
desenvolvida a partir dessas ações.
448
Nossa DM, págs. 30/31.
449
Saber teorético é aquele que se apresenta criador dos seus objetos, mas apenas aquele que os contempla.
(Marilena Chauí, Introdução à História da Filosofia. Dos pré-socráticos a Aristóteles,g. 440) sic.
272
Abrindo a obra Ética a Nicômaco
450
, o filósofo grego pontifica:
Toda arte (khne) e todo procedimento (méthodos), assim como
toda ação (práxis) e toda escolha (proaíresis) tendem para algum bem,
segundo a opinião geral. Por isso declara-se, com razão, que o bem é aquilo
para o que todas as coisas tendem. Mas uma diferença entre os fins:
alguns consistem em atividades; outros, em obras distintas das pprias
atividades.
451
Em Aristóteles, então, a distinção entre as ciências práticas - atividades
que tem nelas mesmas os seus fins, como a ética e a política - e as produtivas
aquelas que m por finalidade alguma obra distinta de suas próprias atividades,
a exemplo das artes e da técnica, as quais não obstante a distinção, têm em
comum, são marcadas pela identidade de se destinarem a algum fim benéfico.
Nesse contexto, podemos, agora, discorrer sobre o contratualismo, cuja
teoria, nos ensina a filósofa Marilena Chauí, nasce em resposta a um mundo
desordenado.
Com efeito, o homem pertenceu primeiramente à família, submetido ao
pater familias que era o senhor de um pequeno Estado, chefe religioso, único
proprietário e juiz daquele grupo. Com o crescimento da família, surgiu a gens,
que parece ter sido uma família em sentido mais amplo, reunindo em torno de si
todos os descendentes de um antepassado comum e também alguns libertos e os
estrangeiros, ou, n´outras palavras, os clientes e os escravos. Como a religião
primitiva impedia duas famílias de se unirem em culto aos antepassados,
acharam de se unir somente para determinados atos religiosos, o que fez com
que as famílias se reunissem em número ainda maior, a que os gregos
denominaram fratria e, os romanos, curia. Assim como a reunião das famílias
fez nascer cúrias ou fratrias, a reunião destas deu origem às tribos, com deuses
450
Aristóteles, Ética a Nicômaco, passim.
451
Apud Marilena Chauí, op. cit., pág. 440.
273
próprios, sacerdotes exclusivos, culto especial e direito próprio. Assim, a partir
da família, deu-se o nascimento do Estado.
452
Desde o início do século XV, as cidades antigas medievais e mais aquelas
formadas à volta dos castelos feudais vivenciavam um antagonismo entre si que
viria ser desfeito logo depois. Tal antagonismo consistia no modelo social da
vassalagem reinante na sociedade como um todo, enquanto que nos burgos
surgia uma nova organização social, representada pelas corporações de ofício,
em torno das quais se reuniam tecelões, pedreiros, ferreiros, médicos, arquitetos,
comerciantes, etc., todos ligados por laços de confiança recíproca, selada entre
eles por juramento. Surge, das corporações de ofício, uma nova classe social, a
burguesia, que logo virá se tornar dominante do ponto de vista econômico e que,
exatamente em virtude da força econômica, passará a pleitear tamm poder
político. Nesse cenário, enquanto o poderio agrário dos barões despencava, na
mesma proporção crescia nas cidades o que mais tarde viria ser conhecido como
capitalismo comercial ou mercantil.
Em franca ascensão econômica e social, rias cidades do Império
Romano e também os burgos não podiam mais se manter submetidas aos
padrões, regras e tributos da economia feudal, sob pena de comprometimento
das possibilidades de desenvolvimento, razão porque dá-se início às lutas por
franquias econômicas.
Logo as lutas econômicas travadas entre a burguesia nascente e a nobreza
feudal passaram a ser marcadas por reivindicações políticas, via adequada para
rompimento do jugo dos barões, reis, papas e imperadores. Nesse tempo, em
meio aos conflitos, redescobertas de pensadores e técnicos da cultura greco-
romana, com destaque para as doutrinas políticas, dá margem à inauguração do
452
Cf. Ruy Rebello Pinho e Amaury Mascaro Nascimento, Instituições de Direito Público e Privado, págs.
82/83.
274
período conhecido como Renascimento, assim denominado como inscrição da
proposta central de fazer renascer o pensamento, as artes, a ética, as técnicas e a
política. Novos ideais políticos, marcadamente o ideal republicano, suscitam o
confronto entre a liberdade e o poder político-teológico dos imperadores e
papas.
Agora, a liberdade republicana constitui tributo à política, tidas como
expressão da mais elevada forma de apreço pela dignidade e capacidade
humanas, tal como era em Roma, em Atenas ou Esparta.
A história nos informa que por volta do final da Idade Média, mais
precisamente entre os anos de 1513 e 1514, a publicação da obra O Príncipe, de
Maquiavel
453
, em Florença, inaugura o pensamento político moderno, coroando
os esforços teóricos que pugnavam pela separação da Cidade de Deus, a Igreja, e
a Cidade dos Homens, a comunidade política.
454
De fato, para que a comunidade política possa dar a cada um o que lhe é
devido por conta de suas necessidades e mérito, ou seja, para que possa realizar
a justiça, legislador e magistrado precisam ser dotados de critérios e/ou medidas
para definir o justo. Essa medida é o direito natural subjetivo, formulado por
Guilherme de Ockham, que reconhece igualmente em todos os homens o direito
à vida, à consciência e aos bens materiais e espirituais necessários à plena
existência humana.
453
Machiavelli, O Príncipe, passim.
454
Teóricos de suma importância partilhavam da idéia de naturalidade da política, a exemplo de Santo Tomás de
Aquino, para quem o homem é um ser natural e, por isso, a sociabilidade natural já se instalara nele antes mesmo
da expulsão do Paraíso. Segundo esse notável pensador, após o pecado original, os homens, sem perder a
natureza sociável, se organizaram em comunidades, deram-se leis e instituíram as relações de mando e
obediência através do poder político. Santo Agostinho, em postura diversa, preconizava que o homem se tornou
perverso e violento com o pecado. Injusto, fundou a Cidade dos Homens, esta igualmente injusta. Guilherme de
Ockham, teólogo inglês, tamm se destaca na formulação de teoria política, através da qual conhecemos a
noção de direito natural subjetivo como critério para melhor definir a justiça e o bem comum. (Cf. Marilena
Chauí, Convite à filosofia, pág. 366).
275
A partir dessa doutrina, dois grandes direitos naturais emergem das
teorias, a saber, o direito natural objetivo, que é a ordem hierárquica universal
criada por Deus ou lei divina, e o direito natural subjetivo, apropriado pelo
indivíduo tãopela sua qualidade de ser racional e livre, valores que terminam
por servir de critério de legitimação e de justiça de um poder e de uma
comunidade política; ou seja, tem-se aqui a idéia do bom governo, da qual se
esboça a teoria do direito à resistência, em que os súditos ativam instrumentos
legais que contestem a autoridade e forcem a renúncia do governante.
II.2.3.a. A fundação da sociedade
A modernidade introduziu profundas alterações na cosmovisão, pois,
afastando-se das convicções de que a realidade era fundamentada em Deus e na
natureza, o homem levantou-se como o centro de todas as observações, mutação
que também se observa no plano jurídico, uma vez que a formação da sociedade
e organização da vida pública, antes explicadas a partir da natureza, agora se
entende resultante de um pacto entre os homens, portanto obra essencialmente
humana.
Essa linha de pensamento, ou seja, essa idéia da sociedade nascida a partir
de um consenso entre os homens, o contrato social, é permanente nas obras
desde o nascimento da filosofia, cuja compilação nos permite compreender
plenamente a construção da teoria contratualista.
Com efeito, a estruturação do pensamento sistemático e racional
platônico-aristotélico, especialmente em Aristeles, constitui oposição aos
sofistas, os quais deram início a uma disputa entre universalismo e
consensualismo, com o que se tornaram os ascendentes mais remotos do
276
contratualismo, em relação ao conflito construído historicamente entre indivíduo
e coletividade.
455
Vejamos, por exemplo, que em A República, seu texto mais famoso,
Platão nos oferece um diálogo em que Sócrates e outros discutem a natureza da
justiça, sua importância no Estado ideal – a politéia - e as qualidades necessárias
para os governantes e cidadãos deste mesmo Estado.
456
Aristóteles divergia quanto a idéia de que a vida social era o produto
artificial de uma convenção entre os homens e que contrariava a ordem natural.
No entendimento do estagirita, a vida social é um produto natural do
desenvolvimento das sociedades humanas. A polis, forma suprema de
comunidade, era para ele instrumento com o objetivo de proporcionar
autossuficiência das unidades de produção familiares que a compõem e, em
segundo lugar e fundamentalmente, proporcionar a vida boa, o bom viver.
457
Jurisconsultos como Hugo Grócio, Samuel Pufendorf e Joahannes
Althusius, e escritores políticos, como o Barão de Montesquieu, também se
dedicaram ao tema da formação da vida social e da legitimação do poder.
Para Grócio, muito lido nos séculos XVII e XVIII, tanto as relações entre
os indivíduos, como as relações entre os indivíduos e os governos e, por fim, as
relações entre os vários Estados Soberanos baseiam-se na idéia de um pacto de
cumprimento obrigatório, vez que impostos pelas próprias partes que o assinam
(pacta sunt servanda = os pactos existem para serem cumpridos). Ele
identificava como fundamento do Estado um pendor natural para a
benevolência; sustentou que homens livres e iguais no estado de natureza
estabelecem um contrato que gera a sociedade civil e submete o povo a uma
455
In Vicente de Paulo Barretto, Dicionário de Filosofia Política, pág. 101, verbete: coletivismo.
456
Platão, A República, pág. 35 e ss.
457
Alberto Alonso Muñoz, op. cit., pág. 147/148.
277
autoridade política, podendo ser estabelecido sob duas condões, a saber, pelo
direito de conquista ou pela alienação voluntária da liberdade por parte do
povo.
458
Pufendorf, jusfilósofo alemão, precisou a teoria de Grócio, de quem era
discípulo, fazendo a distinção entre dois tipos de pactos sociais, o primeiro um
pacto de associação através do qual é formada a sociedade, que não se desfaz em
caso de queda do governo e, o outro, um pacto de submissão, em que o poder é
confiado pelo povo a um soberano. Uma observação se ime sobre este
segundo tipo dado pelo autor, já que nesse ponto se identifica uma profunda
contradição, a qual pode ser constatada pelo fato de que Pufendorf, ao mesmo
tempo em que aceita a possibilidade de o povo outorgar poder a um soberano
para que o use visando o bem comum, assegura que o outorgante, embora possa
julgar o governante, nada pode fazer, pois não detém o direito de resistência.
459
Althusius, de formação religiosa calvinista, caracterizada pela severidade
moral e pela exigência intelectual, se notabilizou pelo pensamento moldado pela
cristã, os estudos humanísticos e a prática democrática das cidades suíças.
Encontra-se, assim, na obra filosófica, política e social de Althusius, uma
sistematização de diversos argumentos retirados da Bíblia e do direito romano
com vistas a defender o direito de resistência a um monarca injusto. No seu livro
mais famoso, Política Methodice Digesta et Exemplis Sacris et Profanis
Illustrata (Política metodicamente organizada e ilustrada por exemplos sagrados
e profanos), esse intelectual e jurista alemão desenvolve um sistema natural e
racional da sociologia e trata de problemas teológicos, éticos e jurídicos.
460
458
Eduardo Bittar e Guilherme Assis de Almeida, Curso de Filosofia do Direito, págs.247/248.
459
Idem, pág. 248.
460
Vicente de Paulo Barretto, Dicionário de Filosofia Política, págs. 31/32, verbete Althusius, Johannes.
278
Montesquieu, por sua vez, em seu Espirit des lois (O Espírito das leis),
acentua fatores geográficos, explicitados nos livros XIV a XVII da aludida obra,
pelos quais busca explicar o comportamento social, determinado por condições
climáticas. Sobre os grandes temas da filosofia política, a descrição do estado
ótimo ou da melhor forma de governo, assim como a questão da legitimidade ou
da justificativa ou recusa do dever de obediência política ocupam lugar central
nas preocupações de Montesquieu e de seus contemporâneos.
461
Merece, ainda, destaque, nessa senda dos fundamentos da sociedade, a
obra de Kant, cujo projeto jusfilosófico se sustenta numa teoria contratualista
particular, sem a qual o sistema jurídico não se completa em sua racionalidade.
É na idéia do contrato social, ou, em verdade, na pressuposição da vontade geral
do povo que reside a legitimidade do direito.
Segundo esse autor:
Eis, pois, um contrato originário apenas no qual se pode fundar entre
os homens uma constituição civil, por conseguinte, inteiramente legítima, e
também uma comunidade. Mas neste contrato (chamado contractus
originarius ou pactum sociale), enquanto coligação de todas as vontades
particulares e privadas num povo numa vontade geral e pública (em vista de
uma legislação simplesmente jurídica), não se deve de modo algum
pressupor necessariamente como um fato (e nem sequer é possível pressupô-
lo). [...] Mas é uma simples idéia da razão, a qual tem no entanto a sua
realidade (prática) indubitável: a saber, obriga todo o legislador a fornecer as
suas leis como se elas pudessem emanar a vontade coletiva de um povo
inteiro, e a considerar todo o súdito, enquanto quer ser cidadão, como se ele
tivesse assentido pelo seu sufrágio a semelhante vontade. É esta, com efeito,
a pedra de toque da legitimidade de toda a lei pública.
462
Como se vê, muito tempo antes da formação do estado moderno, centrado
na idéia do contrato social, a questão do poder tomou a atenção dos estudiosos e
fez produzir um incomensurável volume de obras e opiniões diversas. Afinal,
461
Idem, págs. 353/356, verbete: Montesquieu, Charles-Louis de Sécondat, Barão de la Bréde e de.
462
Apud Alysson Leandro Mascaro, Filosofia do Direito, pág. 227.
279
foco dos questionamentos em torno da organização da vida social e do poder,
por que um homem deve obedecer a outro homem?
A condição natural do homem promove o conceito de estado de natureza
ou de situação pressocial, em que os indivíduos vivem isoladamente. Duas
vertentes são preponderantes na teoria contratualista e se desdobram do conceito
de estado de natureza, uma preconizada por Hobbes e a outra por Rousseau.
Thomas Hobbes, em Levia
463
, faz consagrar, no século XVII, a
concepção de que os indivíduos, em estado de natureza, se acham isolados uns
dos outros e em luta permanente de todos contra todos, em cujo cenário
prepondera o medo, inclusive o grande medo de uma morte violenta. Isso
permitiu ao autor cunhar a expressão de que o homem é lobo do próprio homem.
Visando a sua proteção, os humanos inventaram as armas e levantaram muros
nas terras que ocupavam, medidas que, no entanto, se mostram inócuas, visto
que sempre haverá um mais forte que vencerá o mais fraco e ocupará suas terras
cerradas em muros. Nesse contexto, a vida não encontra garantias e a posse não
é reconhecida pelo mais forte e, portanto, desse modo, ela não existe. Quando
atentam para a possibilidade de aniquilamento, descobrem que a única
possibilidade de sobrevivência é a de procurar um entendimento entre todos,
estabelecendo-se, a partir disso, um pacto de associação em que cada um, com a
condição de que todos o façam, se despoja de todos os seus direitos, em favor de
um terceiro, o soberano, cujo poder lhe autoriza legislar, estabelecer os dogmas,
etc. Mesmo reconhecendo o perigo de se outorgar poder ilimitado ao soberano,
com possibilidades de se degenerar em despotismo, Hobbes entende ser a
melhor forma para que o homem consiga sair do estado de natureza.
463
Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil, passim.
280
Jean-Jacques Rousseau, por sua vez, no século XVIII, partindo da mesma
noção de homem em estado de natureza, diverge de Hobbes no que toca à
condição de luta permanente de todos contra todos visando a satisfação egoísta
de suas necessidades. No seu Do Contrato Social
464
, em viés oposto, o autor
assegura que os homens em estado de natureza viviam isolados pelas florestas,
mantendo-se unicamente com o que a natureza lhes proporcionava.
Desconheciam as lutas e comunicavam-se por gestos, pelo grito e pelo canto,
numa linguagem benevolente e generosa. Em estado de felicidade original, os
humanos viviam na condição de bom selvagem, cuja inocência termina no exato
momento em que um deles cerca um terreno, inaugurando, assim, a propriedade
privada e, portanto, estabelecendo a distinção entre o seu e o meu. Nasce, então,
o estado de sociedade em que prevalece, ai sim, a guerra de todos contra todos.
Afora percebermos, no cotejo das duas concepções contratualistas, que o
estado de sociedade rousseauniano corresponde ao estado de natureza
hobbesiano, é comum às duas vertentes a visão do aspecto social como luta entre
fracos e fortes e da supremacia e imposição da vontade do mais forte sobre a do
mais fraco.
Em tempos em que a insegurança, a luta, o medo e a morte rondam os
indivíduos, os mesmos decidiram passar à sociedade civil, mediante a criação do
poder político e das leis, providência para fazer cessar o estado de vida
ameaçadora. Trata-se, à evidência, do pacto social ou contrato social, pelo qual
os indivíduos aceitam renunciar à liberdade natural e à posse natural de bens e
armas, em favor do soberano, outorgando-lhe, ainda, o poder de criar e aplicar
as leis, de declarar a guerra e a paz. Por meio do contrato social emerge a
464
Do Contrato Social e Discurso sobre a economia política, passim.
281
autoridade política e a noção de soberania, que encontra em Jean Bodin
465
rica
elaboração teórica, em afirmação dos princípios da territorialidade da obrigação
política, da impessoalidade do comando público e da centralização o poder.
466
Hobbes angariou aversão generalizada no século seguinte à edição do
Leviatã, sendo possível aduzir que as suas teorias foram intensamente refutadas,
aversão que pode ser aferida, por exemplo, em John Locke, precursor do
liberalismo burguês e o autor moderno que primeiro se levantou em defesa dos
direitos individuais, conteúdo que pode ser identificado na justificação das
revoluções liberais na Europa e na América, postura de rigorosa contrariedade às
forças políticas tradicionais vinculadas à supremacia da autoridade do monarca.
Segundo a tese exposta por ele em seu contrato social
467
, no estado de natureza
os homens sentiam sim benevolência uns em relação aos outros, ajudavam-se
mutuamente e viviam de acordo com a lei natural, uma escie de código
estabelecido por Deus. Uniram-se em sociedade apenas em virtude de seus bens
e suas vidas se encontrarem em situação de perigo, por ocasião de conflitos, de
modo que, por esse entendimento, a função do Estado estaria limitada à polícia e
à justiça, no cuidado da liberdade e da propriedade individuais.
468
Por fim, como discorrer sobre o contratualismo exige no mínimo
referência às doutrinas mais expressivas do pensamento, não é possível passar
ao largo da teoria professada por John Rawls, em geral tida como
neocontratualismo, na qual, inclusive, esse autor embasa sua teoria da justiça.
Embora tenha se inspirado nas teorias contratualistas de Locke, Hobbes e
de Rousseau, Rawls difere dos mesmos no sentido de imprimir o entendimento
465
Jean Bodin (* Angers, 1530 † Laon, 1596) foi um jurista francês, membro do Parlamento de Paris e professor
de Direito em Toulouse. É considerado por muito o pai da Ciência Política devido sua teoria sobre soberania, na
qual baseou a legitimação do poder do homem sobre a mukher e da monarquia sobre a gerontocracia.
466
Cf. Alberto Ribeiro G. de Barros, Curso de Filosofia Política ..., op. cit., pág. 248.
467
John Locke. Dois tratados sobre governo, passim.
468
Cf. Yara Frateschi, Curso de Filosofia Política ..., op. cit., págs. 323/349.
282
de que o pacto original não seria um dado histórico, mas hipotético. Segundo
ele, os participantes não se encontram em estado de natureza, pois são
membros de uma sociedade.
Portanto, desautorizando o título do presente item, o conteúdo do pacto
não é o da fundação da sociedade com a escolha de uma forma de governo e de
um governante, mas o da seleção de princípios de justiça para a estrutura básica
da sociedade a constituir-se.
469
II.3. Seguro: atomização do contrato social
Para alcançar uma segura formulação de seu enunciado, cumpre ao
comunicador investigar sobre o uso vigente da língua contemporânea,
recomendando-se que empreenda essa busca tendo em conta, como ponto-chave,
que o uso pode contrariar as prescrições linguísticas que a tradição vem
repetindo, acautelando-se, pois, sobre o modo como os manuais normativos
dizem que deve ou não deve ser, e assim também o modo como realmente é.
Nesse sentido, resultado de uma observação não da ocorrência, mas
também da frequência do uso das formas da língua portuguesa, neste ensaio
enfrentamos a necessidade de nos deter diante da significação e do uso de
determinadas expressões-chave, como ocorreu, v. g., com a palavra seguro, cujo
uso, vimos, reproduz uma dicotomia entre a prescrição linguística e a situação
real de uso, o que reclama sejam declinadas as advertências de estilo,
principalmente quando da abordagem científica, em proveito do melhor
desempenho linguístico.
470
469
Vicente Paulo Barretto, Dicionário de Filosofia Política, págs. 431/433, verbete: John Rawls.
470
Cf. Maria Helena de Moura Neves, in Guia de Usos do Português. Confrontando regras e usos, págs. 13 e ss.
283
Bem por isso, detendo-nos sobre o que efetivamente esperamos ver
significado através do caráter eminentemente blico do contrato de seguro,
partimos da pesquisa etimológica em torno dos caracteres próprios da relação
securitária, tudo no propósito de se pugnar por uma releitura dos elementos
dessa atividade e sua consequente configuração jurídica.
Já tivemos aqui oportunidade de referir, com apoio nos ensinamentos
lexicais do Professor Pasquale
471
, que a aposição do sufixo “ismo” aos radicais
tem o propósito de formar uma nova palavra, indicativa, esta, de estado,
qualidade ou doutrina.
Não é por outra razão que abordamos nos subitens que seguem, os
princípios imanentes do seguro, assim entendidas as proposições elementares
lógicas que servem de fundamento da sua teoria contratual, sob enfoque ora de
qualidade ora de doutrina, que os mesmos conferem ou disciplinam a operação.
i. Coletivismo
Devemos primeiramente estabelecer um
princípio que sirva de base a este estudo. É
preciso que todos os cidadãos participem em
comum de tudo ou de nada, de certas cousas e
não de outras. De nada participar é impossível,
sem dúvida, porque a sociedade política é uma
espécie de comunidade. O solo pelo menos
deve ser comum a todos, a unidade de lugar
formando a unidade de cidade, e a cidade
permanecendo em comum a todos os cidadãos.
(Aristóteles).
472
471
In Dicionário da Língua Portuguesa comentado pelo Professor Pasquale, pág. 26.
472
In A Política, Livro II, Capítulo Primeiro, op. cit. pág. 39.
284
Os pensamentos de Aristóteles reunidos no Livro II d´A Política, se
formam com o propósito de prevenir o legislador contra tentações, apontando,
com uma delas o perigo de seguir as propostas dos inovadores, que são, explica
o sábio grego, aqueles que concebem algum projeto de organização política
inédita, numa tentativa de responder e de superar as deficiências de todas as
organizações políticas em vigor, inclusive as melhores.
473
Trata-se, como é sabido, de severa crítica ao projeto idealizado por Platão,
de quem o estagirita foi discípulo, derivado da metafísica do Bem ideal, segundo
o qual deveria ser suprimida toda e qualquer forma de propriedade privada,
orientando aos homens que combatessem o egsmo e compartilhassem não
apenas os bens, mas também as pessoas, mulheres e crianças, modo de instituir
uma forma de comunismo radical, o que mereceu intenso e prolongado rebate.
Embora implícita na crítica aristotélica uma defesa da propriedade
privada, o autor a faz somente em termos puramente pragmáticos, revelando a
convicção de que a coletivização radical não é realizável e, caso implementada,
proporcionaria vantagens tímidas que não justificariam a subversão da tradição
nem compensariam as perdas causadas por ela.
474
Artífice dos alicerces da tradição coletivista, Aristóteles antepôs, “... numa
ordem natural, a polis à família e a cada indivíduo, visto que o todo, em seu
raciocínio, deve ser, obrigatoriamente, posto antes da parte
475
, o que o faz,
como já mencionado, o seu principal articulador. Passados mais de dois milênios
da passagem de Aristeles, os primórdios da Modernidade oferece um outro
grande cultor do coletivismo na pessoa de Hegel.
473
Cf. Richard Boüs, Aristóteles. A Justiça e a Cidade, pág. 51.
474
Idem, pág. 54.
475
Vicente de Paulo Barretto, op. cit., pág. 104, verbete: coletivismo.
285
De todo o modo, por coletivismo pode-se compreender a subordinação do
indivíduo atomizado ao grupo, à comunidade e ao Estado, preponderando,
porém, dentre as inúmeras formas de entendimento acerca do que venha a ser o
fenômeno, enfocá-lo sob uma perspectiva metódica de tradições de pensamento
e pesquisas desenvolvidas ao longo da história do pensamento ocidental.
Dos dicionários de filosofia colhemos:
COLETIVISMO (in. Collectivism; fr. Colectivisme; al. Kollektivismus;
it. Collettivismo). 1. Termo criado na segunda metade do século XIX para
indicar o socialismo o estatista, em oposição ao estatista. Nesse sentido,
foram coletivistas o socialismo reformista anterior à guerra e é coletivista o
trabalhismo inglês por desejar uma sociedade sem desequilíbrios de classe,
portanto, coletivizada, mas não controlada pela força por uma elite privilegiada
que goze de um nível de vida radicalmente diferente do resto da população. 2.
Em sentido mais amplo, entende-se por C. toda doutrina política que se oponha
ao individualismo e que, em particular, defenda a abolição da propriedade
privada e a coletivização dos meios de produção. Nesse sentido, são
coletivistas tanto o socialismo quanto o comunismo em todas as suas formas.
476
Dos léxicos de economia política:
COLETIVISMO. Sistema político-social baseado no controle da
atividade econômica pela coletividade ou pelo Estado. Os coletivistas negam a
propriedade privada dos meios de produção e afirmam que vivendo em
comunidade e a ela se submetendo é que os indivíduos podem ser efetivamente
livres e realizar todas as aptidões pessoais. De inspiração socialista, enfatizado
sobretudo pelas correntes anarquistas, cujo coletivismo tem por base a
autogestão política e econômica a partir dos locais de trabalho. O coletivismo
de inspiração marxista enfatiza o papel transitório do Estado como instrumento
de planificação e coordenação econômica. Veja também Anarquismo,
Comunismo, Coletivização Forçada.
477
Do ponto de vista de nosso olhar, circunscrito, é claro, ao âmbito do
presente trabalho e sem que pareça reducionismo, interessa-nos destacar que o
substantivo coletividade, frequentemente usado como equivalente de sociedade,
e o adjetivo coletivo, que exprime o contrário de individual, o que é próprio de
476
Por todos, NicolaAbbagnano, op. cit., pág. 178, verbete: coletivismo.
477
Por todos, Paulo Sandroni, op. cit., págs. 158/159, verbete: coletivismo.
286
um grupo, constitui recorte legítimo para sustentação da nossa tese acerca do
aspecto eminentemente coletivista do contrato de seguro, como veremos adiante.
Nesse mesmo diapasão, em arremate do raciocínio, socorrem-nos, uma
vez mais, as lições de Aristóteles, reverberadas ao longo do tempo e das quais
sublinhamos, em reiteração: Aristóteles antepôs, ... numa ordem natural, a
polis à família e a cada indivíduo, visto que o todo, em seu raciocínio, deve ser,
obrigatoriamente, posto antes da parte.
478
Por outro lado, em sede de reflexão acerca da índole eminentemente
coletivista do contrato de seguro, não se pode olvidar que a cláusula geral da
socialidade, representada pela função social do contrato, inserida no digo
Civil de 2002 (art. 421), e assim todas as demais cláusulas gerais que
caracterizam a técnica legislativa aplicada no novo estatuto civil
479
, prestigia a
mobilidade do sistema jurídico no sentido de mantê-lo vivo e sempre atualizado,
impulsiona os contratos para atendimento precípuo da finalidade econômico-
social e não mais exclusivamente econômica, limitando, assim, a liberdade de
contratar.
Trata-se, portanto, de norma de ordem pública e de interesse social,
constitutiva de cláusula limitadora da autonomia privada, nos exatos termos do
art. 2035, par. ún., do CC 2002.
480
De se ver, pois, que a norma vigente cuida de inverter as prioridades antes
vistas em nosso ordenamento, o que faz elegendo a pessoa como preocupação
478
Vicente de Paulo Barretto, op. cit., pág. 104, verbete: coletivismo.
479
Relativamente aos contratos no CC2002, particularmente no art. 421, três são as cláusulas gerais constantes
do dispositivo, a saber, autonomia privada, respeito à ordem pública e função social do contrato.
480
Cf. Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery, Código Civil Anotado e Legislação Extravagante,
ed., pág. 142, nota nº 20 do art. 1º, e pág. 336, nota nº 4 ao at. 421, ambos do CC2002.
287
do direito civil e não mais o patrimônio, modo assim de prestigiar o convívio
sadio e promissor da coletividade.
No dizer abalizado do ilustre professor Roberto Senise Lisboa, Livre-
Docente e Doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo – USP, acha-
se superada a orientação liberal que praticamente transformou o direito civil em
um direito dos proprietários; doravante, a dignidade da pessoa humana passa a
ser o princípio fundamental a ser alcançado através da solidariedade social.
481
ii. Comunitarismo
Comunitarismo Nm [Abstrato de estado]
espírito comunitário.
(Francisco S. Borba)
482
Valendo-nos da abertura supra como justificativa, abordaremos o tema
através da substantivação feminina comunidade, a qual constitui, é cedo, o
radical daquele.
Assim, cumpre-nos, de imediato, anotar inexistir consenso entre os
cientistas sociais acerca da natureza da sociedade, exceto no que respeita à
concordância generalizada de que as pessoas vivem em comunidade.
483
Com efeito, certo que o termo comunidade possui significação variada,
parece inconteste que por ele se designa ao menos o grupo de indivíduos
capazes de manifestar elementos de união, formando uma comunidade. O termo
481
In “Dignidade e solidariedade civil-constitucional”, Revista de Direito Privado, Ano 11, nº 42, págs. 31/70.
482
Dicionário de Usos do Portugs do Brasil,g. 369, verbete: solidarismo.
483
Cf. Benedicto Silva, Dicionário de Ciências Sociais, pág. 229, verbete: comunidade.
288
aparece ainda relacionado a Estado, referência ao conjunto de cidadãos que, em
determinado território e sob um mesmo governo, são habitantes do Estado.
484
O termo comunidade tem datação do século XIII e, etimologicamente,
encontramos sua raiz na palavra comum (do lat. comũnnis)
485
, significando, forte
na tradição do uso e na coerência lexical, o que pertence ao público, é comum a
todos. “Portanto, em última análise, está relacionado com algo que é partilhado
por diversas pessoas, unidas, exatamente a partir desse elemento cultural,
político, histórico, social e comum”.
486
No entanto, em que pese a fixação de um conteúdo mínimo de
significação, ainda que se o faça como o fizemos - com o escopo de dotar de
maior segurança o trato da questão, é curial advertir sobre a possibilidade de
emergir, do confronto interpretativo, profundas consequências terminológicas, o
que pode ser aferido cotejando o que a foi dito em torno do tema com a
definição que segue, extraída do Dicionário de Economia do Século XX.
COMUNIDADE. Agrupamento humano cujos participantes possuem
interesses comuns e estão efetivamente identificados entre si. É oposta,
geralmente, à idéia de sociedade, na medida em que lhe são atribuídas as
características de homogeneidade, afetividade e consenso, enquanto à
sociedade são atribuídas as propriedades de heterogeneidade, interdependência
e racionalidade, além de luta e hostilidade. O sociólogo alemão Ferdinand
nnies, em sua obra Gemeinschaft und Gesellschaft (Comunidade e
Sociedade), 1887, estabelece uma tipologia segundo a qual a comunidade seria
o agrupamento humano onde predominassem a economia doméstica e a
organização social fundada nas relões de parentesco e no prestígio. Veja
também Sociedade.
487
De todo o modo, insuperável que todas as palavras m significado, certo
também que algumas delas carregam emotividade, exatamente o que ocorre com
o termo comunidade, posto que por ela sempre se entende algo bom. Ou seja, o
484
Vicente de Paulo Barretto, Dicionário ..., op. cit.,g. 105, verbete:comunidade.
485
Antonio Geraldo da Cunha, Dicionário etimológico da língua portuguesa, g. 202, verbete: comum.
486
Vicente de Paulo Barretto, op. cit., pág. 105, verbete: comunidade.
487
Op. cit., pág. 169, verbete: “comunidade”.
289
que quer que signifique, é sempre bom ter uma comunidade, estar numa
comunidade.
Para começar, a comunidade é um lugar lido, um lugar confortável e
aconchegante. É como o teto sob o qual nos abrigamos da chuva pesada, como
uma lareira diante da qual esquentamos as mãos num dia gelado. fora, na
rua, toda sorte de perigo está à espreita; temos que estar alertas quando saímos,
prestar atenção com quem falamos e a quem nos fala, estar de prontidão a cada
minuto. Aqui, na comunidade, podemos relaxar – estamos seguros.
488
No que toca ao conceito de comunidade associado à ideia do seguro, vêm-
nos à lembrança as lições do saudoso mestre Ovídio Baptista, conhecido
profissional da advocacia e professor gaúcho, que se apoiava em Karl Larenz
489
para elucidar a ligação entre os conceitos de direito subjetivo e relação jurídica,
cujo liame se forma a partir da polaridade de interesses conflitantes, e direitos
cooperativos “[...] sobre os quais se formam os necios jurídicos de natureza
comunitária, como os seguros. (destacamos)
490
Na mesma direção também a professora Vera Helena de Mello Franco
491
,
que a par de vislumbrar a noção de mutualidade como sendo indissociável do
seguro, apóia-se em Picard e Besson
492
para apontar duas idéias que reputa
fundamentais para a operação de seguros, a saber: a de dispersão ou
pulverização dos riscos e a de mutualidade, no contexto de comunidade de
riscos. (destacamos)
493
488
Zygmunt Bauman, Comunidade: a busca por segurança no mundo atual, págs. 7/8.
489
Karl Larenz (* Wesel, 23 de abril de 1903 Olching, 24 de janeiro de 1993) foi um jurista e filósofo do
direito, tendo sido professor na Universidade de Kiel e na Universidade de Munique até o fim de sua carreira.
Como jurista destacou-se em Direito Civil, tendo produzido diversas obras de importância na disciplina. Seus
ensinamentos influenciaramrios pensadores pátrios, destacando-se, dentre os que adotaram sua doutrina,
Orlando Gomes.
490
“Relações jurídicas comunitárias e direitos subjetivos”. Anais do 1º Fórum de Direito do Seguro Jo
Sollero Filho”, pág. 33.
491
Vera Helena de Mello Franco é mestre e doutora em direito Comercial pela Universidade de São Paulo e
professora assistente doutora na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. É membro do Conselho do
Instituto Brasileiro de Direito do Seguro IBDS e é, também, autora de vários trabalhos publicados,
conferecista, parecerista e consultora legal em São Paulo. Recebeu o prêmio Gastão Vidigal de 1966 e, pela obra
Os negócios e o direito, o prêmio Jabuti de 1993.
492
Autores da obra Traité general dês assurances terrestres em droit français (vide bibliografia in fine).
493
Lições de Direito Securitário. Seguros Terrestres e Privados, p. 18.
290
iii. Solidarismo
O que mantém uma sociedade estável é o
solidarismo.
(Francisco S. Borba)
494
Do estudo do vocábulo solidariedade pudemos observar que,
etimologicamente, é prudente partir da ideia de unidade, até porque assim
sugerem os melhores dicionários, os quais oferecem a lição de que a palavra em
apreço parte de sólido, solidum, como ocorre, v.g., no Dicionário Etimogico
da Língua Portuguesa, de Antônio Geraldo da Cunha: solid·ar, -ariedade,-
ário,-arizar LIDO.
495
Não obstante a isso não se em os manuais da lexicografia portuguesa,
desse exercício é possível inferir, ainda que numa visão puramente poética, i.e.,
sem rigor gramatical, que na expressão sublinhada vemos gravada a rejeição
visceral do seu oposto. Com efeito, se acurada e cuidadosa a leitura dos xicos,
deles podemos colher os indicativos que atestam a nossa observação. Vejamos,
então, por todos, o Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa de Caldas
Aulete:
SOLIDARIEDADE: s. f. qualidade do que é solidário;
responsabilidade ou dependência mútua que se estabelece entre duas ou
mais pessoas; estado de duas ou de muitas pessoas obrigadas umas pelas
outras // (For.) Direito que cada um entre muitos credores tem de reclamar
só à sua parte o que pertence a todos. // Laço ou ligação mútua entre duas ou
muitas coisas dependentes umas das outras. // Laço fraternal, sentimento de
duas ou mais pessoas ligadas, unidas pelos mesmos interesses e que por isso
se ajudam e se apóiam umas às outras; compartilham das mesmas tristezas e
alegrias, dos mesmos interesses. Deste estado de concepções positivas
nasceu um novo sentimento, o da solidariedade humana, manifestado pela
494
Dicionário Unesp..., op.cit. pág. 1302, verbete: solidarismo.
495
Op. cit., pág. 733, verbete: solidariedade.
291
palavra humanidade. (Teof. Braga, Sist. de Sociologia, p. 16, ed. 1884.) //
Filos.) Solidariedade orgânica, relação necessária que se estabelece entre um
ato da economia e tal ou tal outro diferente e que tem lugar num ponto
muito afastado daquele onde se produziu o primeiro. // F. Solidário.
(destacamos e sublinhamos)
496
. Adj. Que não es com outros, desacompanhado de outrem:
Mas tu, cruel, que és meu rival, numa hora em que ela julgar-se, hás de
escutar-lhe um quebrado suspiro do imo peito. (Gonç. Dias) // Único, que se
considera com exclusão de outro: D. Sancho Manuel convocara
imediatamente os oficiais a conselho; e um voto, o dele, aprovara a
conveniência de ferir a batalha (R. da Silva) Que vive no isolamento ou fora
da sociedade. // Desajudado; que não tem o apoio ou concurso de coisas ou
pessoas. // Simples. // Ermo, deserto, solitário: Lugares sós. // Ser ou estar
só de alguma pessoa, estar sem a companhia dela, estar viúvo ou órfão dela.
// Como um homem só, por unanimidade, por um sentido geral; em globo,
em massa: O povo levantou-se como um só homem contra os impostos. // ─,
adv apenas, unicamente, somente: A Polidoro mata o rei Treicio, só por
ficar senhor do grão tesouro. (Camões) Vou-me a ele chegando por ver se
poderei fazer que o mal que sente um pouco se lhe ausente da memória.
(Idem). Para mim desejo a paz de espírito. (Garret) // A sós (loc. adv.),
sem companhia, sozinho, solitário, só; consigo mesmo. // por (loc.
adv.), um por um; isoladamente. // (Bras.) (fam.) Que (loc. adv.), como;
que nem: É sabido que só o João. // (Bras.) (fam.) Só que (loc. conjunt.),
mas, porém: Chegou sim, que muito tarde. // ─, s. m. pessoa ou
desacompanhada de outrem. A opinião de um só. // (Jog. do voltarete) Jogo
que faz um parceiro com as cartas que teve e sem comprar nenhuma: Só
em ouros; em copas. // Fazer-se de , aproveitar qualquer coisa
consigo, sem dar parte a outrem; não querer companhia. // F. lat. Solus.
497
Solidarismo é um conceito amplo que se refere ao conjunto de crenças
que estimulam aqueles que propõem uma força coletiva de atuação, posto serem
conscientes de que o homem isolado, por mis forte que possa parecer, é
impotente para enfrentar o volume de dificuldades que se levanta à sua frente
como obstáculos ao atingimento da alegria, da felicidade e da fartura, cuidando
que ninguém fique privado dos recursos necessários à manutenção de uma vida
digna. Trata-se, pois, de um regime em que todos participam do esforço
coletivo, independentemente da condição em que se encontram, contribuindo
com o que estiver ao seu alcance para o bem comum.
496
Op. cit., vol. 5, pág. 3791, verbete: “solidariedade”.
497
Idem, pág. 3765, verbete: só.
292
A douta professora Rosa Maria de Andrade Nery, eminente
desembargadora do TJSP e professora de Direito Civil da PUC/SP, escrevendo
sobre o princípio da solidariedade no direito privado, anota que a marca
antropológica na análise do desenvolvimento da cultura é a da percepção da
vivência grupal e da preocupação com a sobrevivência de todos os seus, visto
que a responsabilidade do grupo é para com todos. E, com suporte nos ditos de
Ralph Turner, filólogo inglês, acrescenta:
Este é o código de ética dos núcleos primitivos: o resguardo
incondicional da intangibilidade de cada membro do grupo, ainda que para
atingir esse objetivo o homem tenha que ter convivido com o medo como
emoção central e com a violência como instrumento primordial de
superação de seus limites e de suprimento de suas necessidades. (itálicos do
original).
498
Dado o escopo coletivo dos esforços convergentes, difere-se, então, entre
solidariedade individual e solidariedade social, aquela caracterizada pela
conduta dos homens de bem, da generosidade manifestada para assistência às
vítimas do liberalismo ou de catástrofes, ao passo que esta, de cunho social, é
entendida como um sentimento coletivo que indica a dependência recíproca
entre todos os membros do grupo social, no bojo da qual se estabelecem relações
multilaterais de cooperação.
O assunto recrudesce na pauta das discuses acadêmicas, tendo em vista
que os fenômenos sociais atrelados ao processo de globalizão desencadeado
no fim do século passado e que prossegue em marcha renitente neste novo
século, sustentado pelo modelo neoliberal, toma de perplexidade as sociedades
contemporâneas, mercê das profundas transformações sociais, políticas,
econômicas, culturais, científicas e tecnológicas. A realidade posmoderna nos
impinge, pois, um espaço planetário “desterritorializado”, de relacionamentos
498
“Apontamentos sobre o princípio da solidariedade no sistema do direito privado”, Revista de Direito Privado,
ano 5, 17, págs. 65/70.
293
instantâneos, ao mesmo tempo que efêmeros, atrelados, embora antagônicos, o
que afirma o redimensionamento do mundo, tudo num contexto de dominação
em escala mundial, nutrido pelo projeto ideológico neoliberal, com resultados
sociais e econômicos devastadores, principalmente para a idéia do coletivismo.
Os avanços da globalização podem ser observados a partir do
desmantelamento das relações sociais, do enfraquecimento dos laços de
solidariedade e aprofundamento das desigualdades sociais, deixando cada vez
mais à mostra problemas relacionados com a escalada da intolerância, do
egoísmo e da exclusão social, expostos às escâncaras, portanto, os assombros
relacionados com a fome, a saúde, a educação, o desemprego, a gestão dos
espaços urbanos, etc.
499
Não foram outras as razões que nortearam os legisladores pátrios na
elaboração e aprovação do vigente CC2002, até mesmo porque, antes disso,
cuidou o constituinte de enriquecer nossa Carta Magna com os desafios
republicanos de construção de uma sociedade livre, justa, demais disso,
aprimorada pelo princípio da solidariedade (CF, art. 3º, I).
iv) Mutualismo
Manus manum lavat (uma mão
lava a outra).
(Epicarmo de Cós).
500
Primeiramente, antes mesmo de descrevermos a modalidade,
apressamo-nos em declinar a definição do termo mutualismo, providência que se
499
Jo Fernando de Castro Farias, A Origem do Direito de Solidariedade, págs. 1 et. seq.
500
Este ditado é encontrado nos fragmentos que restaram da obra do referido sábio grego. “Dá alguma coisa e
alguma coisa vais receber”. Mais tarde a frase é encontrada na obra do poeta e comediante grego Menandro (c.
342 – 290 a.C.), no Satyricon de Petrônio e nas obras de seu contemporâneo Sêneca. (Cf.Christa Pöppelmann, in
Dicionário de Máximas e Expressões em Latim,g. 74).
294
mostra indispensável e que servirá, adiante, como elemento de sustentação do
raciocínio norteador deste ensaio.
Não foi sem esforço que nos desincumbimos dessa tarefa, posto que a
palavra de entrada em apreço somente encontra assento nos léxicos da língua
portuguesa em seu sentido relacionado com o campo da biologia, em que se
colhe: Sm. Interação existente entre os vegetais ou animais que é benéfica
para seus participantes”.
501
. Caldas Aulete adiciona: O mesmo que
simbiose
502
, que é a associação de dois ou mais organismos vivos que traz
benefícios mútuos”.
503
Nem mesmo dicionários de usos da língua ou de etimologia, nem os
especializados em ciências sociais (Direito, Filosofia e Sociologia), trazem o
mutualismo como palavra de entrada, embora se ocupem das variações
substantivas e adjetivações como, v.g., mútua, mutualidade, mutualista e mútuo.
Honrosas exceções, nos socorrem nessa busca, em língua portuguesa,
o Grande Dicionário Larousse Cultural
504
e, dentre os especializados, o
Dicionário de Economia do culo XXI, de cujo verbete - mutualismo -,
obtivemos:
MUTUALISMO. Sistema de associações econômicas e previdenciárias
autogeridas pelos trabalhadores. O mutualismo assistencialista era
praticado pelos artesãos medievais por meio das corporações de ofício, que
proviam de ajuda viúvas, órfãos e artesãos impossibilitados de trabalhar.
Essa prática ampliou-se durante a Revolução Industrial entre os primeiros
contingentes de operários, totalmente desprovidos de uma legislação
trabalhista de proteção à saúde, à velhice e ao desemprego e contra
acidentes. As associações operárias de socorro tuo foram os primeiros
organismos de aglutinão dos trabalhadores fabris na Europa, precedendo
501
Ver, por todos, Dicionário Unesp do Português Contemporâneo, op. cit., pág. 951, verbete: “mutualismo”.
502
Caldas Aulete, op. cit., vol. IV, pág. 2724, verbete: “mutualismo”).
503
Dicionário Unesp ...,g. 1285, verbete: “simbiose”.
504
MUTUALISMO s.m. 1. Sistema de solidariedade entre os membros de um grupo, à base de ajuda tua.
(O mutirão é um tipo de mutualismo). 2. Relação durável entre duas espécies ou duas populações, vantajosa
para ambas. (A simbiose é um caso particular de mutualismo)”. Op. cit., pág. 648.
295
assim os sindicatos de classe. Elas existiram também no Brasil, no final do
século XIX, criadas por artesãos (pedreiros, carpinteiros, alfaiates, ferreiros)
e pelos primeiros núcleos operários dos principais centros urbanos, em boa
parte formados por imigrantes europeus. A idéia do mutualismo como
reforma da sociedade capitalista está presente nas doutrinas dos primeiros
pensadores socialistas, que propunham implantar uma sociedade igualitária
a partir da criação de cooperativas de consumo e de produção controladas
por artesãos e operários. Ver também Cooperativismo.
505
É comum referir que o princípio do mutualismo teria surgido no Egito
Antigo por mero acaso, quando certo faraó teria sugerido o armazenamento de
cereais em tempos de fartura, com o fito de prover épocas de escassez. Os
caldeus
506
haviam também adotado prática semelhante, pois conceberam um
acordo através do qual as perdas sofridas por uma caravana comercial em
consequência de roubo ou furto, deveriam ser suportadas pelos interessados na
expedição, os quais responderiam proporcionalmente. D´outra banda, afirma-se,
ainda, os mercadores chineses que se valiam do rio Yang Tsé como rota
comercial entre os anos 5.000 e 2.300 a.C., distribuíam suas cargas entre as
frágeis barcas, objetivando minorar os riscos a que se expunham durante as
viagens (cf. Victor Dover, A Handbook to Marine Insurance. 18ª ed. Londres: Witherby,
pág.3).
507
508
Por outra corrente de pensamento se atribui a Pierre-Joseph Proudhon,
teórico político francês, contemporâneo e amigo de Marx, a formulação do
mutualismo como uma teoria econômica que propõe justa equiparação entre
volume de trabalho e remuneração e organização do crédito gratuito como
resposta ao problema da miséria social.
505
Op. cit., pág. 584.
506
Relativo a povo da Caldéia, nome antigo de uma parte da região da Suméria, na baixa Mesopotâmia, e
estendida, depois, a toda a Babilônia. Na Bíblia é referida como equivalente à Babilônia, tendo sido ocupada
pelos caldeus, povo de origem semítica, oriundo do sul, que atacou a região desde o século XI a.C. Em 612 a.C.,
os caldeus derrotaram o Imrio Assírio e, sob o governo de Nabucodonosor II, subjugaram a Judéia (597 a.C.) e
capturaram Jerusam (586 a.C.). Seu declínio principiou em 539 a.C., com a invasão dos persas. (In.Grande
Enciclopédia Larousse Cultural, op. cit., vol. 5, g. 1054, verbete: Caldéia).
507
Apud Fernando José Marques, Direito do Seguro Marítimo (Doutrina e Jurisprudência),g. 1.
508
Vide, ainda, o quanto discorremos a respeito em nossa DM. Op. cit., págs. 69/70.
296
No caso particular do tema deste ensaio, é da essência mesma do seguro
técnico o mutualismo, posto que somente por esse viés é que se materializa a
organização de um método racional de combate aos riscos.
É o que colhemos, por exemplo, dos ensinamentos de Picard e Besson,
para os quais:
L’assurance suppose esssentiellement le groupement de personnes
qui, pour faire face à un même risque susceptible de les atteindre, décident
de contribuer toutes au réglement des sinistres; (...) Cette mutualité des
risques, qui est à la base même de l’assurance, est nécessaire pour que
l’entreprise d’assurance puisse éliminer le hasard et creér la sécurité.
509
No vernáculo:
O seguro supõe essencialmente a associação de pessoas que, para
fazer frente aos mesmos riscos suscetíveis de atingi-los, decidem contribuir
com a liquidação dos sinistros; [...] Essa mutualidade de riscos, que é a base
mesma do seguro, é necessária para que a empresa de seguro possa eliminar
o azar e criar a seguraa.
No mesmo sentido os escólios de Rubén Stiglitz, jurista argentino
reconhecido no plano internacional como uma das maiores autoridades em
direito do seguro. Também para ele:
[...] el seguro no es posible compreenderlo, en su función económica
ni técnica, como la asunción aislada de las consecuencias dañosas de un
riesgo al que se halla sometido un sujeto. Da allí que consituye esencial de
la operación, la conformación de una mutualidad que consiente el reparto
entre aquella pluralidad de sujetos expuestos a riesgos, de la carga
ecomica que implica su efectiva realización (siniestros). Lo expresado
presupone una transformación del riesgo individual en riesgo colectivo.
510
Ou:
509
Traité general des assurances terrestres en droit français, pág. 107.
510
Derecho de seguros, vol. I, pág. 22.
297
[...] não é possível compreender o seguro, em sua função econômica
nem técnica, como a assunção isolada das consequências danosas de um
risco a que se acha submetido um sujeito. Por isso é que constitui essencial
para a operação, a organização de uma mutualidade que consente em
repartir entre aquela pluralidade de sujeitos expostos a riscos, a carga
econômica que implica a sua efetiva realização (sinistros). Isto pressupõe
uma transformação do risco individual em risco coletivo. (t.l.a.)
Sérgio Cavalieri Filho, autor de obras consagradas sobre seguro, proferiu
palestra intitulada “A Trilogia do Seguro”, no 1º rum de Direito do Seguro
José Solero Filho, realizado em o Paulo no ano de 2000 por iniciativa do
Instituto Brasileiro de Direito do Seguro e que já referimos neste trabalho. Nessa
ocasião o ex-magistrado fluminense prelecionou:
Boa definição do seguro, calcada no princípio do mutualismo, é
aquela que lhe deu a Rainha Elizabeth I, mais de três séculos: “com o
seguro, o dano é um fardo que pesa levemente sobre um grande número de
pessoas, em vez de insuportavelmente sobre um pequeno número.
Mutualismo é isso – é solidariedade, é distribuição dos custos do risco
comum. É operação coletiva de poupança que serve de base econômica para
toda e qualquer operação de seguro. Onde houver seguro haverá sempre um
grupo de pessoas expostas aos mesmos riscos e que contribuem,
reciprocamente, para reparar as consequências dos sinistros que possam
atingir qualquer uma delas. (destaque do original)
511
511
“A trilogia do seguro”. Anais do 1º Fórum de Direito do Seguro - José Sollero Filho, pág. 89.
298
Capítulo III - Manifestação do seguro
Todas as minhas cargas não estão
confiadas a um só navio, nem as dirijo para
um só ponto; nem o total de meus bens está
à mercê dos contratempos do presente ano.
Não são, pois, minhas especulações que me
fazem ficar triste.
(Antônio, o mercador de Veneza na
peça de Shakespeare, Ato I, Cena 1).
512
Conforme vimos acima (Cap. II, item 1 - A etiologia do seguro), muito antes de
o seguro se manifestar como conduta material e, desse modo, se apresentar
observável aos nossos sentidos sob a forma de um negócio jurídico, o que
encontramos subjacente à idéia é meramente um estado de segurança, assim
definido lexicalmente. Desse modo, consentâneo com o raciocínio, a antonímia
apropriada para o termo seguro será inseguro, exercício gramatical que não nos
auxilia na outra vertente, ou seja, na do contrato.
512
Apud Peter L. Bernstein, op. cit., pág. 92.
299
Com efeito, ao invocarmos o assunto sobre seguro, é normal sobressair a
idéia do contrato de seguro antes mesmo de evocarmos o objeto dessa relação
jurídica, efeito metonímico que se explica pela substituição do continente pelo
conteúdo ou, talvez, do efeito pela causa.
O que é útil para a explicação de como o seguro vem sendo tratado ao
longo dos tempos, independentemente do lugar ou da cultura que se queira
considerar, linearidade que o decorre da intervenção criativa do homem, mas,
ao contrário, resulta das leis naturais que condicionam o fenômeno, é tomá-lo,
ab initio, como prática pública e geral, reiterada com constância e
obrigatoriedade jurídica. É dizer: originariamente o seguro foi, precedendo
inclusive a criação do Estado e por muito tempo, formado unicamente dos
costumes, origem que esclarece o mesmo como nascido de convicções
espontâneas, imprecisas e empíricas, caracteres, de resto, comuns aos costumes
jurídicos.
513
Não olvidamos que nos mais antigos textos normativos de que se tem
notícia, exemplos do Código de Manu
514
e o Código de Hammurabi
515
, são
encontradas disposições que comandam a prática de repartição de prejuízos
entre mercadores em transporte.
No entanto, como se vê, a par de não cuidaremaquelas normas antigas -
de disciplinar a exploração da atividade securitária, não dispensam a incidência
513
Acerca de costume jurídico, consulte-se Nelson Palaia, Noções Essenciais de Direito, págs. 21/22.
514
Código de Manu: Manu s. m. (sânscr., homem) Designa, segundo a mitologia hindu, o primeiro homem, pai
da raça humana de cada era (kalpa) do universo. É considerado o autor do código jurídico hindu. (Grande
Enciclopédia Larousse Cultural, vol. 16, pág.3786, verbete: “manu”).
515
Código de Hammurabi, editado por volta de 1750 a. C. pelo Imperador babilônico de mesmo nome, em cujo
texto são encontradas disposições acerca de questões econômicas, regulando salários, o preço de rias
mercadorias, taxa de juros, condições dos contratos de venda e compra e dos depósitos bancários. Em matéria de
segurança, regulava a responsabilidade cívica, princípio que orientava a responsabilidade do Estado pelo
pagamento de indenizações às vítimas de atos de violência ou de distúrbios da ordem que deveriam ser evitados
ou controlados pelas autoridades públicas; a bodomeria, empréstimo que contava com garantia através da
embarcação; a respondentia, empréstimo com garantia da carga, e o faenus nauticum, empréstimo contratado
com a participação no resultado da um expedição marítima. (Paulo Pompéia Gavião Gonzaga, O seguro na vida
cotidiana, pág. 22).
300
dos costumes, senão para estendê-los a mais essa hitese de cobertura
patrimonial.
Cediço que o transcurso do tempo fez esmaecer a importância dos
costumes, isso na mesma escala inversa da crescente predominância da lei,
sobretudo depois do advento da Revolução Francesa, também no ramo do
seguro, em todo lugar, numerosas leis surgiram com o escopo de regular a
matéria, o que ocorreu, a nosso ver, mediante a fixação, agora em lei, dos
costumes cristalizados ao longo de muito tempo.
Assim dada a norma jurídica para o setor, compreende-se como fator de
mera transposição para o texto legal das práticas securitárias, inclusive com a
importação dos defeitos de concepção ou, ao menos, insuficiente definição e
sistematização dos conceitos jurídicos que permitisse, em decorrência, segura
determinação da natureza jurídica e teorias jurídicas coerentes.
III.1. O seguro como jogo ou aposta
O risco pode ser temido e, por
vezes, procurado. Atitudes certamente
contraditórias mas nem sempre incoerentes.
(Pierre-André Chappori)
516
Apresentamos acima (Primeira parte: O Homem, Capítulo II, subitem II.2.6) o
homo ludens, designação que Huzinga propõe em justaposição àquelas outras
que também se referem ao homem, quais sejam, o homo sapiens (o homem
sábio), identificado pelos antropólogos como sendo o homem moderno e todas
516
Op. Cit., pág. 10.
301
as suas formas anteriores, que aparentemente era capaz de refletir sobre si
mesmo e de pensar, o que se pode confirmar pelos rituais religiosos, fúnebres,
etc., e, a outra, homo faber (o homem de trabalho artesanal), que na sociologia
designa os homens que produzem suas ferramentas e com elas podem
conscientemente transformar o ambiente.
517
O propósito do autor, anunciado no prefácio da aludida obra, era a
observação do jogo como função humana natural e, mais do que isso,
indispensável para a vida.
En revanche, le terme de Homo ludens, l´homme qui joue, me
semble exprimer une function aussi essentielle que celle de fabiquer, et doc
mériter sa place aups du terme de Homo faber.
518
Vertido:
Por outro lado, o termo Homo ludens, o homem que joga, me parece
exprimir uma função também essencial como aquela de fabricar ou de
raciocinar as quais justificam o uso do termo Homo faber. (t.l.a.)
Pois bem! Huizinga nos leva a uma melhor compreensão dos vetores
históricos que representam o marco de transposição para a modernidade, este
representado pela descoberta de um método científico de previsão dos riscos.
Com efeito, foi a partir da prática de jogos de salão que levou Pascal a ser
desafiado a raciocinar sobre as possibilidades de um jogo inacabado e assim
descobriu a lei das probabilidades.
Ou seja, não obstante a essencialidade do fator segurança para a
possibilidade da plenitude da vida humana, muito longe de ter sido produto de
517
Cf. Christa Pöppelmann, Dicionário de máximas e expressões em latim, gs. 63/64, verbetes: homo faber e
homo faber.
518
Op. cit., pág.11.
302
investigação científica particularmente dirigida para a solução de qualquer
problema relacionado a riscos propriamente dito, vale dizer, riscos inevitáveis,
foi através dos jogos de azar que o homem conheceu e dominou a cnica do
seguro, mediante o método da diluição dos riscos frente a um grande número de
pessoas submetidas aos mesmos riscos.
Peter Bernstein anota que desde o início da história os jogos de azar,
representativos do ato de correr riscos, m sido um passatempo popular e, em
vários casos, até um vício. No entanto, desde os primórdios ao Renascimento
as pessoas se entregavam a esses jogos sem nenhuma técnica de medição, sem
nenhuma noção do sistema de probabilidades que foi desenvolvido por Pascal e
Fermat em 1654, como vimos acima (vide Primeira Parte, Capítulo II, item II.2.6.).
Por fim, o é ocioso trazer à colação advertência que Natalio Muratti,
citado acima, nos oferece acerca dos diferenciais entre seguro e aposta, o que faz
realçando suas finalidades e consequências. Para esse autor, enquanto ...
La finalidad del seguro consiste en reducir o eliminar un riesgo
ecomico, mientras que el juego crea la incertidumbre de una ganancia.
El juego es un fin en mismo, no satisface una necesidad económica sino
que provoca un placer o un dolor. En cuanto a sus consecuencias, el juego
origina un riesgo nuevo, es decir, que antes de jugar no existía; en cambio,
el seguro cubre una necesidad económica eventual.
519
Em português:
A finalidade do seguro consiste em reduzir ou eliminar um risco
econômico, enquanto que o jogo cria a incerteza de uma ganância. O jogo é
um fim em si mesmo, não satisfaz uma necessidade econômica e sim
provoca um prazer ou uma dor. Quanto às suas consequências, o jogo faz
surgir um risco novo, ou seja, um risco que antes de jogar não existia; por
outro lado, o seguro cobre uma necessidade econômica eventual. (t.l.a.)
519
Op. cit., págs. 15/16.
303
III.2. O seguro técnico
La technique de l´assurance est, en
effet, inséparable de la notion d´assurance.
On peut même dire que l´assurance est une
tchnique, la technique de la solidarité, ainsi
qu´on l´justement qualifiée.
(destaque do original)
(M. Picard. et A. Besson)
520
521
A locução seguro técnico” é aqui empregada com o propósito de
designar uma prática gestora de riscos, em nível coletivo, resultante da aplicação
de tecnologia concebida nos limites das ciências exatas, especificamente a
ciência atuarial.
Sob essa ótica, portanto, faz contraponto à adoção de medidas, individuais
ou coletivas, mas cingidas ao plano doméstico, assim entendido, por exemplo, o
envolvimento de um número restrito de agentes submetidos a mesmos riscos e
que se solidarizam em um seguro mútuo.
Para melhor ilustrar, utilizaremos da obra de Chiappori um fato hipotético
assim narrado:
Aurepalle, pequena aldeia do distrito de Mahbunagar, no Andra
Pradesh, no sul do subcontinente indiano. Nessa zona tropical, semiárida,
diversas culturas coexistem: milho, sorgo, arroz, ervilhas, óleo de palma,
rícino ... Cada cultura tem as suas pprias necessidades climáticas, os seus
bons e maus anos. Acontece de a colheita do milho ser abundante enquanto
os arrozais produzem pouco. Neste caso, a sobrevivência de várias famílias,
as que só cultivam arroz, está a priori ameaçada. Mas, imediatamente,
520
Traduzindo: “A técnica do seguro é, na verdade, inseparável da noção de seguro. Pode-se mesmo dizer que
seguro é uma técnica, a técnica da solidariedade, como acabamos de qualificar.”
521
Traité Général des Assurances Terrestres en Droit Français, pág. 106.
304
organizam-se transferências através de um mecanismo de solidariedade, ou
mais exatamente de seguro mútuo; os que têm sorte ajudarão os sinistrados,
permitindo-lhes satisfazer a necessidade: atingir a estação seguinte. Nessa
aldeia, as formas de organização social pouco mudaram provavelmente
desde séculos. E, desde culos, os aldeões gerem os riscos da sua
existência de forma coletiva, eficaz, muitas vezes espantosamente
sofisticada.
522
O cenário descrito acima nos indica, desde logo, o nível de complexidade
das escolhas, dada a incerteza que se encerra sobre a realidade vivenciada pelos
agricultores. O camponês bem pode optar pela monocultura, o que, por certo,
dessai da avaliação das condições favoráveis da terra a ser cultivada. Nessa
hipótese, dada a especialização do plantio, caso as previsões se confirmem
através de uma boa safra, os lucros serão maximizados. Nesta senda, porém, na
mesma proporção das possibilidades de bons resultados, aumentam os riscos,
pois que aumentada a vulnerabilidade, o que se compreende tão somente por
uma seca excepcional e imprevista, indesejada, mas possível de acontecer.
Como se observa, o perigo de perder tudo é inversamente proporcional à
diversificação das culturas, opção que fará reduzir os riscos, uma vez
improvável a incidência danos de uma intempérie sobre todas as escies
plantadas. Consequentemente, o se tratando de monocultura, a produção
média será modesta, de sorte que será preciso calcular, para cada alternativa que
se apresenta, as diferentes possibilidades e os correspondentes níveis de colheita,
problematização que permitirá implementar a decisão em direção a uma melhor
expectativa de ganho.
Todavia, o obstante ter na memória dos antigos as ocorrências passadas
e a certeza da frequência dos sinistros, a avaliação empírica do camponês pode
falhar, enganando-se na probabilidade de seca ou inundações; se tal ocorrer, a
sua ruína é certa. Isso demonstra que a expectativa de ganho se identifica
522
Op. cit., pág. 08.
305
inadequada para a gestão de riscos, uma vez que por esse critério não se
considera o custo próprio do risco, não distinguindo o certo do aleatório. Por se
tratar de um modelo individual, o espectro de possibilidades favoráveis fica
consideravelmente reduzido, alterando a lógica das decisões que possibilitam
eficácia nos resultados. Com efeito, orientada pela expectativa de ganho, a
monocultura, em média, proporciona um melhor resultado na colheita; mas se
implica risco demasiado grave, pode-se optar por simplesmente abandonar a
alternativa de especialização da cultura em proveito de uma medida de
diversificação, a qual, é certo, se oferece menos eficaz em termos de resultado,
mas proporciona maior segurança.
Por outro lado, o que aqui referimos como seguro técnico, lastreado na lei
dos grandes números, proporciona que o agricultor opte pela monocultura, isto
independentemente das imprevisões climáticas, potencializando, portanto, os
resultados da colheita, tudo dentro de uma perspectiva de absoluta anulação dos
riscos ou mesmo sensível diminuição.
Conclui-se, assim, que mesmo a decisão alcançada segundo o critério
exclusivo da esperança de ganho médio é revestida de riscos, demonstrando que
são eles que se constituem em fator relevante para a adoção do seguro
profissional.
i. A empresarialidade
O seguro técnico, ou seja, a operação de seguro concebida para
proporcionar efetiva segurança sem o concurso da álea, exige seja assentada na
lei dos grandes números e no cálculo de probabilidades aferidos por
instrumentos atuariais. Portanto, é ínsita à operação de seguros a constituição de
306
uma sucessão coordenada de operações técnicas e administrativas voltadas para
a consecução do indispensável equilíbrio econômico da gestão de riscos,
descrição que se amolda exclusivamente ao caráter empresarial da iniciativa,
isto em razão da natureza peculiar da atividade seguradora.
523
O seguro, deve,
portanto, ser organizado por empresa estruturada profissionalmente para
desempenho dessa atividade, a qual, inexoravelmente, deve ser respaldada pela
massa de prêmios arrecadados.
Sobre a essencialidade da empresa para a atividade e sobre tratar-se de
exigência inerente ao seguro, Cesare Vivante, renomado professor da
Universidade de Roma no século passado, se pronunciou nos seguintes termos:
[...] solo contratto è capace di produrre tutti gli effetti (le azioni e le
eccezioni) di un contratto di assicurazionne, il quale sia assunto da
un’impresa assicuratrice, cioè da un’impresa che esercita quell’industria
formando coi versamenti degli assicurati un fondo di premi destinato a
somministrarle i capitali assicurati alle scadenze promesse.
524
525
Mais veemente, Trabucchi
526
, ao comentar o artigo 1.883 do Código Civil
italiano, assevera sobre a conveniência da medida em prol, inclusive, do controle
oficial da atividade.
impresa di assicurazione non può essere esercitata da una
persona singola o da un´empresa individuale: art. 1883 ne limita
l´esercizio agli istituti di diritto pubblico e alle società per azioni. Lo
svillupo dell´attività assicuratrice è infatti sottoposto alla legge dei grandi
numeri, e il rischio è meglio assicurato quanto piú è ripartito e quanto è p
larga la massa dei premi che si raccolgono. Inoltre la disciplina cui è
523
Cf. João José de Souza Mendes, Bases técnicas do seguro,g. 9.
524
“... só esse contrato pode produzir todos os efeitos (as ões e as exceções) de um contrato de seguro, o qual
supõe seja do trato de uma empresa seguradora, isto é de uma empresa que exercite a tal indústria, constituindo
com os depósitos dos segurados um fundo de prêmios destinado a administrar-lhes os capitais segurados, nas
hipóteses prometidas”. (t.l.a.).
525
“Del Contratto di assicurazione. Di pegno Di deposito nei magazzini generali”. Il Codice di commercio
commentato, vol. VII, págs. 10/11.
526
Alberto Trabucchi (* Verona, 26 de julho de 1907 dua, 18 de abril de 1998). Formou-se em direito pela
Universidade de Pádua em 1928, tendo se tornado um importnte jurista italiano. Lecionou Filosofia do Direito
nas Universidades de Ferrara e de Veneza. Tornou-se professor de Direito Civil na Universidade de Pádua a
partir de 1942.
307
sottoposta la società per azioni offre maggiore possibilita di controllo da
parte dell´autorità.
527
528
O ordenamento brasileiro observa essa exigência, conforme se colhe do
art. 24 da Lei de Seguros (DL 73/66) e do Código Civil de 2002, que, em
harmonia com a tradição jurídica nacional, prossegue impondo esse caráter
empresarial à atividade, através do parágrafo único do seu artigo 757, o que
pode ser admitido como requisito de empresarialidade intrínseco ao sujeito que
se oferece com o escopo de prestar garantia.
Em consonância as disposições do art. 4º, VIII, da Lei Federal nº
4.595/64, recepcionada pela vigente Constituição como lei complementar,
diploma legal que confere ao Conselho Monetário Nacional capacidade
normativa para, no exercício da qual, regular a constituição, a fiscalização e o
funcionamento das instituições financeiras no plano do sistema financeiro
nacional, de que fazem parte as sociedades seguradoras.
ii. Seguro é prestação de serviços.
Estudar o contrato de seguro na perspectiva da evolução do direito que o
rege nos permite destacar a transição havida na formulação legal trazida pelo
novo estatuto civil, art. 757, verbis: Pelo contrato de seguro, o segurador se
obriga, mediante o pagamento do prêmio, a garantir interesse legítimo do
segurado, relativo a pessoa ou coisa, contra riscos predeterminados.
(sublinhamos).
527
“A empresa de seguro não pode ser exercitada por pessoa singular ou por empresa individual: o art. 1883
limita o exercício aos institutos de direito público e às sociedades por ações. O desenvolvimento da atividade
securitária está subordinado à lei dos grandes números e o risco é melhor assegurado quanto mais compartilhado
e quanto maior a massa dos prêmios que são coletados. Além disso, a disciplina a que é submetida a sociedade
por ações oferece maiores possibilidades de controle por parte da autoridade”. (t.l.a.).
528
Istituzioni di diritto civile, págs. 792/793.
308
Harmoniza-se, o preceito supra com o que antes fora dado pelo CDC,
art. 3º, § 2º, verbis: Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de
consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira,
de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter
trabalhista.(negritamos e sublinhamos).
Quer nos parecer, pois, que a locução legal, de resto consentânea com a
essência do objeto de que trata, atribui à atividade securitária natureza de
serviço, o que pode ser confirmado inclusive pelos escólios de doutrinadores de
escol.
Ernesto Tzirulnik, advogado especializado em seguro e presidente do
Instituto Brasileiro de Direito do Seguro IBDS, concorda com a assertiva,
pois, segundo o seu entendimento: A comutatividade obrigacional
caracterizadora do contrato de seguro se materializa pela imediata e
continuada prestação de garantia do risco pelo segurador, mediante o
pagamento do prêmio pelo segurado”. (destaques do original).
529
Aliás, a propósito da natureza da obrigação contraída pela seguradora
através do contrato de seguro, não se pode olvidar que, já pela dicção do
revogado CC 1916, cujo art. 1432, com redação dada pelo Decreto do Poder
Legislativo 3.725, 15 de janeiro de 1919, a natureza do serviço sobressaia.
Referido dispositivo se oferecia assim expresso: Considera-se contrato de
seguro aquele pelo qual uma das artes se obriga para com a outra, mediante a
paga de um prêmio, a indenizá-la do prejuízo resultante de riscos futuros,
previstos no contrato.” (sublinhamos).
Antonio Márcio da Cunha Guimarães, eminente professor de Direito
Internacional dos cursos de graduação e de pós-graduação da PUC/SP, por
529
“Princípio indenitário no contrato de seguro”, pág. 93.
309
exemplo, concorde com esta linha teórica, colaciona na sua obra Contratos
Internacionais de Seguros entendimento de Cristina M. C. A. Biasotto Mano,
para quem:
A atividade seguradora é classificada dentre as atividades
econômicas como uma atividade de serviço. [...] O seguro, embora possa ser
tratado como um produto que é vendido ao mercado, ter certas
características que o diferem dos demais produtos, que são fabricados antes
de serem vendidos e utilizados. Como o seguro não é tangível, apenas com a
assinatura do contrato entre segurado e segurador, momento em que a
apólice começa a vigorar, o segurado passa a ter direito a serviços prestados
pela corretora ou seguradora. Assim, a apólice é a materialização, a
mudança do intangível. Mas, o que o segurado adquire não é um bem que
passa a ser de sua propriedade após a compra, e sim a possibilidade de
utilizar determinados serviços face à ocorrência de eventos estipulados no
contrato de seguro”. (sublinhamos)
530
Nesse mesmo sentido, aliás, as firmes lições de Isaac Halperin, jurista
argentino especializado em seguros, que nos empresta a seguinte definição:
Ecónomicamente, el seguro es un procedimiento por el cual un
conjunto de personas sujetas a las eventualidades de ciertos hechos
dañosos (riesgos), reúnen sus contribuiciones a fin de resarcir al integrante
de ese conjunto que llegue a sufrir las consecuencias de esos riesgos. La
organización de ese conjunto, selección de tales riesgos, fijación de las
contribuiciones de aquellas personas (asegurados), queda a cargo de una
empresa (sociedad anónima, cooperativa, mutualidad, Estado) que asume
la prestación del servicio, para el cual se capacita técnica y
financieramente. Esta organización compleja de elementos técnicos y
financieros de que depende el funcionamiento cabal de los contratos de
seguro, tiene una influencia decisiva en la aplicación pctica de la
instituición.
531
No vernáculo:
Economicamente, o seguro é um processo pelo qual um conjunto de
pessoas sujeitas a eventualidades de certos eventos danosos (riscos), reúne
suas contribuições a fim de ressarcir ao integrante desse conjunto que
chegue a sofrer as conseqüências desses riscos. A organização desse
conjunto, seleção de tais riscos, fixação das contribuições daquelas pessoas
530
Op. cit., pág. 25.
531
Lecciones de seguros, p. 3 (t.l.m. na nota 271 supra).
310
(segurados), fica a cargo de uma empresa (sociedade anônima, cooperativa,
mutualidade, Estado) que assume a prestação do serviço, para o qual se
capacita técnica e financeiramente. Esta organização complexa de elementos
técnicos e financeiros de que depende o funcionamento cabal dos contratos
de seguro, tem uma inflncia decisiva na aplicação prática da instituição.
(destacamos – t.l.a.).
iii. Seguro é relação de consumo.
É indiscutível a fundamental importância econômica e jurídica que a
relação securitária assume na dinâmica da sociedade, sobretudo se
vislumbrarmos como sua finalidade primeira a oferta de segurança e
tranquilidade para os segurados, assim como é notório que o contrato de seguro
foi dos primeiros a se apresentar sob a forma de adesão, mediante cláusulas
predispostas pelo segurador, dadas as especificidades da operação, da
complexidade dos elementos cnicos atuariais que o compõem e da diversidade
de assuntos que orbitam em torno da celebração, cláusulas essas que devem
necessariamente ser aceitas pelo aderente.
Sem embargo de que a higidez financeira de uma apólice securitária
pressupõe uma perfeita delimitação e rigorosa seleção dos riscos a serem
cobertos, dessai cirstalino que o contrato de seguro exige a aposição de cláusulas
limitativas, assim consideradas aquelas dedicadas a restrinigir as obrigações da
seguradora, observadas, é claro, as disposições legais do estatuto civil, do
código consumerista e das normatizações dos órgãos federais encarregados da
regulação do setor, sob pena de serem tidas por abusivas e, como tais, sujeitas a
declaração de nulidade.
Como se , não obstante serem, as cláusulas limitativas de risco,
inerentes à atividade e bem por isso consideradas lidas, temos certo que o seu
conteúdo deve ser redigido com linguagem clara e o instrumento de adesão
311
impresso com destaque para essas limitações, sendo indispensável o prévio e
pleno conhecimento do aderente de tudo quanto consta do contrato.
Tem-se, portanto, que o contrato de seguro, dentre outras modalidades
contratuais, justifica a defesa do consumidor, isto em virtude de sua própria
natureza, carecendo mesmo ser submetido à intervenção estatal, em defesa da
parte aderente, a qual, diante das póprias circunstâncias é, sem sombra de
dúvida, a parte frágil na relação. Bem por isso, de acordo com o comando do
artigo , § 2º, do Código de Defesa do Consumidor, acima transcrito, o seguro
se insere nas atividades caracterizadas como de consumo, medida que enfrentou
obstinada resistência do meio segurador - e também das instituições financeiras
como um todo -, as quais rejeitavam o tratamento dado pela lei, sob o
entendimento de que as relações jurídicas entre segurador e segurado
poderiam ser reguladas por lei complementar, ao passo que o CDC se veicula
através de lei ordinária.
Foi nesse passo que a Confederação Nacional do Sistema Financeiro
CONSIF levou ao Supremo Tribunal Federal pedido de declaração de
inconstitucionalidade do citado parágrafo segundo do art do CDC (ADIn
2.591-1), esforçando-se em demonstrar que as atividades financeiras em geral,
inclusive as securitárias, estariam fora do campo de abrangência do código
consumerista, tendo em vista que, segundo previsão do art. 192, caput, da Carta
Política, o sistema financeiro nacional será regulado por lei complementar.
532
Referida ADIn restou julgada em 7 de junho de 2006, tendo o plenário do
Pretório Excelso dado pela improcencia do pleito, constando da respectiva
ementa, da lavra do Eminente Senhor Ministro Eros Grau, a assertiva de que
532
CF, art. 192. “O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado
do País e a servir aos interesses da coletividade, em todas as partes que o compõem, abrangendo as cooperativas
de crédito, será regulado por leis complementares que disporão, inclusive, sobre a participação do capital
estrangeiro nas instituições que o integram.
312
“As instituições financeiras estão, todas elas, alcançadas pela incidência das
normas veiculadas pelo Código de Defesa do Consumidor”, tal como transitou
em julgado.
Aliás, de modo a afastar em definitivo qualquer ideia contrária à
incidência do CDC em operações financeiras, colhemos do voto do nobre
Senhor Relator originário, Ministro Carlos Velloso, acolhido no julgamento, as
seguintes expressões:
I. A defesa do consumidor, na linha da expansão do fenômeno
mundial do “consumerismo”, ganhou, no Brasil, com a C. F./88, status de
princípio constitucional: C. F., art. 170, V, que encontra embasamento em
diversos preceitos da C. F./88: art. 5º, XXXII; art. 24, VIII; art. 150, § 5º;
art. 175, parágrafo único, II; ADCT, art. 48.
II. O digo de Defesa do Consumidor, lei 8.078, de 1990, encontra
fundamento na Constituição, regula ele um princípio constitucional – a
defesa do consumidor e foi editado por expressa determinação
constitucional ADCT, art. 48 que fixou prazo ao legislador ordinário
para a sua elaboração.
E acrescentou às suas razões:
E o Código foi expresso e aqui está a questão sob julgamento
incluindo no conceito de serviço as atividades de natureza bancária,
financeira, de crédito e securitária”.
A questão a saber é se a inclusão mencionada afetou relações
próprias do Sistema Finaceiro Nacional, inscrito no art. 192 da Constituição,
invadindo campo reservado à lei complementar, como sustenta a autora
desta ação direta.
Penso que não.
Tal como entende o eminente Procurador-Geral da República, Prof.
Geraldo Brindeiro, no parecer que ofereceu, “pela Lei nº 8.078 não se criam
atribuições peculiares ao mercado e às instituições financeiras; as normas ali
insculpidas não dizem respeito absolutamente, à regulação do Sistema
Financeiro, mas à proteção e defesa do consumidor, pressuposto de
observância obrigatória por todos os operadores do mercado de consumo
até mesmo pelas instituições financeiras”. [...]
É que o Código do Consumidor não interfere com a estrutura
institucional do Sistema Financeiro Nacional. Esta, sim, será regulada por
lei complementar C.F., art. 192 que disporá, inclusive, sobre os temas
inscritos nos incisos I a VIII do mesmo artigo 192, cuidando o § 1º deste a
autorização a que se referem os incisos I e II; o § 2º disciplina os recursos
313
financeiros relativos a programas e projetos de caráter regional, de
responsabilidade da União, que serão depositados em suas instituições
regionais de créditos e por elas aplicados; e o art. 3º estabelece que as
taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e quaisquer outras
remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito, não
poderão ser superioresa doze por cento ao ano; a cobrança acima dests
limite será conceituada como crime de usura, punido, em todas as suas
modalidades, nos termos que a lei determinar”.
A alegação no sentido de que a norma do § 2º do art. 3º da Lei
8.078/90 – “inclusive as de natiureza bancária, financeira, de crédito e
securitária seria desarrazoada, ou ofensiva ao princípio da
proporcionalidade, porque estaria tratando as entidades bancárias da mesma
forma como trata os demais fornecedores de produtos e serviços, assim
violadora dco devido processo legal e, termos substantivos C.F., art. 5º,
LIVnão tem procedência.
Desarrazoado seria se o Código de Defesa do Consumidor
discriminasse em favor das entidades bancárias. Aí, sim, porque inexistente
fator justificador do discrímen, teríamos norma desarrazoada, ofensiva, por
isso mesmo, ao substantive due process of law, que hoje integra o Direito
Constitucional positivo brasileiro (C.F., art. 5º, LIV). (destaques e itálicos
do original).
Prevalece, pois, o que antes já havia sido sumulado pelo Colendo Superior
Tribunal de Justiça: O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às
instituições financeiras”.
533
iv. Obrigação de meio, de resultado ou de garantia?
Adentrar ao campo da classificação do conteúdo das obrigações para nele
enfocarmos as da seguradora e dos segurados pode significar propósito de
inúmeras dificuldades, dadas as peculiaridades próprias da atividade securitária.
E o tamanho e profundidade desses problemas podem ser divisados
pelo que entendemos tratar-se de antinomia no seio do tratamento que o CC
2002 deu ao seguro, o que identificamos do confronto entre os arts. 757 e 764 do
estatuto. É que a obrigação da seguradora, conforme dessai da expressão do
533
STJ, Súmula nº 297 (Data da decisão: 12/05/2004; Publicação: DJ 09/09/2004; RSTJ 185/666).
314
artigo de abertura do capítulo é prestar garantia a interesse legítimo do segurado,
ao passo que a locução do artigo aqui confrontado sugere tratar-se de obrigação
de fazer, consistente em indenizar em caso de sinistro. Portanto, de dizer que
este dispositivo se identifica com a definição do contrato de seguro de que se
ocupava o art. 1.432 do CC 1916 revogado, posto que lá, sim, havia menção à
obrigação de indenizar.
Embora desnecessário, não é ocioso lembrar que o valor pago pelo
segurado e que no âmbito do seguro se denomina prêmio, corresponde ao
sinalagma que mantém o equilíbrio do contrato, tendo por oposto equivalente a
garantia prestada pela seguradora. D resultar lógico que o segurado, tendo
adquirido e recebido a garantia pelo tempo do contrato, não se exime de pagar o
prêmio mesmo diante da não ocorrência do sinistro previsto.
O desencontro das normas acima gizadas repercute na identificação do
núcleo da obrigação da seguradora, vez que, pelo primeiro dos artigos citados, a
teríamos como sendo obrigação de resultado, e, pelo outro, como obrigação de
garantia, segundo definição do Professor Fábio Konder Comparato.
534
Lembrando que não constitui propósito deste trabalho elucidar a matéria
que envolve a natureza em si das obrigações das partes contratantes do seguro,
importa tocarmos no assunto para, em decorrência, analisarmos a natureza do
resultado operacional do seguro.
Foi do trato do regime da responsabilidade civil que se erigiu a
sistematização doutrinária das relações jurídicas privadas, conquista incidental à
534
Em relação ao conteúdo das obrigações, Comparato assegura que não se resumem às de meio e de resultado,
havendo um terceiro tipo que vem a ser as obrigações de garantia, consistente na atuação do obrigado para
eliminação de um risco que ameaça o credor. Vale dizer, pois, que o conteúdo de uma obrigação de garantia,
diferentemente de diligência ou de um resultado específico em proveito do credor, consiste na atuação sobre as
consequências da realização ou na ocorrência do próprio risco. Nesse sim, cabível a ressalva de que trata o CC
2002, art. 764.
315
questão da repartição do ônus da prova em matéria de obrigações contratuais e
por atos ilícitos, tendo sido atribuída a René Demogue, jurista francês, a mais
contundente diferenciação entre as obrigações contratuais.
Em se tratando de obrigação de resultado, como se sabe, “[...] a execução
considera-se atingida quando o devedor cumpre o objetivo final; nas de meio, a
inexecução caracteriza-se pelo desvio de certa conduta ou omissão de certas
precauções, a que alguém se compromete sem se cogitar do resultado final”.
535
A porque o assunto demandaria estudo específico com profundidade e
demora que não cabem aqui, o deixaremos a quem se aventure a tanto. No
entanto, seja-nos permitido tecer os comentários que seguem, os quais
adicionamos tão somente em proveito de uma melhor, ainda que provisória,
compreensão da natureza da obrigação da companhia seguradora no contrato de
seguro.
Se a considerarmos como sendo obrigação de resultado, mister atentar
para o objeto da mesma, assim entendida a prestação ou o ato humano, caso em
que, por essa vertente, haveria a seguradora de oferecer a importância segurada
na hipótese de sinistro coberto. Nesse sentido, incorre em inadimplemento a
seguradora que recusa injustamente um sinistro ou que, por quebra das reservas
técnicas se acha em estado de insolvência, impossibilitada de responder pela
obrigação.
Por outro lado, considerada de meio, bastaria ter em conta a conduta da
seguradora na organização da mutualidade, valendo-se dos meios ao seu alcance
para promoção das diligências técnicas indispensáveis à manutenção do estado
de segurança proporcionado aos segurados, hipótese que dispensaria perquirir
535
Cf. Caio Mário da Silva Pereia, Teoria Geral das Obrigações”, Instituições de Direito Civil, 2ed., vol. 3.
Rio de Janeiro: Forense, pág. 48.
316
sobre o resultado. Vale dizer, mesmo diante da ocorrência de um sinistro
previsto na apólice e de eventual o pagamento da importância segurada, não
se cogitaria de inadimplemento da seguradora, caso se demonstre a sua conduta
reta e proba na administração do negócio.
A outra vertente, porém, que se abre diante da doutrina de bio
Comparato, se de garantia, temos que a seguradora te adimplido a sua
obrigação contratual, independentemente da ocorrência do sinistro, vez que
o segurado experimentou o conforto da garantia durante o prazo de vigência do
contrato, tendo pago o prêmio correspondente.
Especificamente sobre esse aspecto Luigi Farenga escreveu em sua
importante obra Diritto delle asssicurazioni private (Turim: G. Giappichelli,
2001):
Não se pode falar de alea para o segurado, pois o eventual
pagamento da indenização não significa uma vantagem, mas a simples
reparação econômica de um dano inesperado. A não-ocorrência do sinistro
não pode, igualmente, ser concebida como uma ‘perda’, significando a
inutilidade do prêmio. Também a garantia do futuro tem o seu custo: o
segurado paga para encontar tranquilidade...
536
No entanto, diante do segurado que sofreu o sinistro, e por sinistro nos
referimos a hipótese prevista no contrato, é lícito entender que o adimplemento
da seguradora corresponde ao pagamento da importância segurada, sem o qa
garantia adquirida se frustrará.
Precária e provisoriamente, ousamos registrar que o nosso entendimento
em torno o tema corresponde ao que se denomina hibridez. Isto porque,
focalizada a operação de seguro observando polaridade entre a seguradora de
536
Apud Ernesto Tzirulnik et. al., O contrato de seguro de acordo com o novo Código Civil Brasileiro, págs.
30/31.
317
um lado e, de outro, a mutualidade, é possível, então, admitir como de meio a
obrigação daquela, uma vez que se cogita, s.m.j., de inadimplemento antecipado
da mesma em caso de desequilíbrio irremediável das provisões técnicas ou
comprometimento da solvabilidade da companhia, por quebra irreparável das
reservas matemáticas, consoante prevêem Resoluções do CNSP para isso
editadas.
No entanto, visado o vínculo jurídico exclusivamente sob o aspecto
bilateral, entre seguradora e segurado, entendemos que se trata de conteúdo
obrigacional que se filia à categorização de obrigação de garantia.
Quem assim preconiza é Fábio Konder Comparato. Vejamos:
A doutrina nacional limita-se a ver na prestação securatória o
pagamento da indenização estipulada na apólice para o caso de sinistro.
Contra esta concepção, tem-se feito valer não argumentos
teóricos, como observações tiradas da própria realidade social. Em primeiro
lugar, a doutrina tradicional o explica satisfatoriamente por que na
hipótese de ausência de sinistro não ocorreria a falta de prestação
securatória, ferindo o caráter bilateral do contrato. Ademais, o que se
verifica na realidade dos fatos é que, ao subscrever uma apólice de seguro, o
segurado tem em vista não apenas uma soma de dinheiro correspondente à
indenização, mas também a garantia de supressão do risco que pesa sobre si;
em uma palavra, a segurança.
Daí a concepção da obrigação própria do segurador como uma
obrigação de garantia, ou dever de prestar segurança (Sicherheitsleistung), e
a qualificação do contrato de seguro como um contrato de garantia. Pelo
contrato de seguro, o segurado obtém, independentemente do sinistro, e pois
da indenização, a transferência à seguradora do risco que afeta seu
interesse.
537
Apenas com o escopo de registro, destacamos na citação supra a
referência do mestre sobre transferência de risco para a seguradora, o que
fazemos para lembrar que nosso posicionamento nesse sentido diverge.
537
O seguro de crédito, pág. 136.
318
Conforme referimos antes, pelo contrato de seguro técnico, administrado
por empresa autorizada pelo Poder Público e, portanto, especializada em gestão
de riscos, opera-se a diluição dos riscos sobre a mutualidade que se organiza em
torno da atividade ou, sem prejuízo do raciocínio, pode-se até dizer que há
transferência de riscos, mas não para a seguradora e sim para a mutualidade.
Conosco, nessa mesma senda, a doutrina de Stiglitz, neste sentido apoiada
em Giuseppe Fanelli:
De s en s, quedado rezagada la ideia de que el seguro
importa una transferencia del riesgo, porque, en suma, la función básica
que cumple está dada, en lo que socialmente interesa y se enuncia, como
un instrumento al serviço de la eliminación de las consecuencias que se
derivan de la realización de un riesgo, através de la constitución de una
mutualidad que lo afronta, neutralizando las consecuencias económicas
individual y colectivamente dañosas. La causa-fin económico-técnica del
seguro alcanza su sentido en la dispersión del riesgo individual en una
pluralidad o suma de economías que conformam la noción de comunión de
riesgos o mutualidad.
538
No vernáculo:
De mais a mais, resta rechaçada a ideia de que o seguro importa em
transfencia de risco, porque, em suma, a função básica que cumpre está
dada, no que socialmente interessa e se enuncia, como um instrumento a
serviço da eliminação das consequências que decorrem da realização de um
risco, através da constituição de uma mutualidade que o enfrenta,
neutralizando as consequências econômicas individual e coletivamente
danosas. A causa-fim econômico-técnica do seguro alcança seu sentido na
dispersão do risco individual em uma pluralidade ou soma de economias
que conformam a noção de comunhão de riscos ou de mutualidade. (t.l.a.).
538
Op. cit., idem.
319
v. Da atividade securitária não resulta risco para a seguradora
(teoria da base objetiva do necio)
A noção originária da caudalosa interpretação da aleatoriedade do
contrato de seguro parece ter sido oferecida pelo Código Civil Francês, o qual,
não obstante não tê-lo tipificado diretamente, fez uso do mesmo como
exemplificação de negócio aleatório em seu art. 1964, daí se espraiando para as
diversas codificações ocidentais de direito privado.
No entanto, em sentido oposto, Fábio Konder Comparato preleciona que
Para o segurador, em qualquer ramo de seguro, a supressão da álea em sua
atividade operacional é exigência da própria natureza dessa atividade
539
Com efeito, ainda que antes houvesse renitência doutrinária em relação a
isso, após o advento do vigente digo Civil é induvidoso, como vimos acima,
inferir-se a comutatividade do contrato de seguro, que se erige em confronto
lógico com a aleatoriedade, até porque se trata de atividade negocial que se
assenta na lei dos grandes números e no cálculo de probabilidades aferidos por
instrumentos atuariais.
Inerente à atividade seguradora, a empresa especializada haverá de ser
dotada, exatamente em função de sua especialização, de mecanismos de
mensuração adequada da massa de riscos a ser suportada, modo pelo qual
eliminação da álea, no que se diferencia de modo absoluto do jogo ou da aposta.
No dizer superior de Pontes de Miranda, [...] o contraente que obtém o
seguro e o segurador não criam a álea: referem-se a ela e acordam no tocante à
cobertura do risco. [...] Quem joga ou aposta cria a álea”.
540
539
(In “SeguroCláusula de rateio proporcional – Juridicidade”. Revista de Direito Mercantil nº 7, pág. 109).
320
Luigi Farenga, a respeito do tema, verbera:
De outra parte, ainda que os intérpretes sejam tradicionalmente
inclinados a definir o contrato de seguro como contrato aleatório, categoria
esta diferenciada pela incerteza (alea), no momento da estipulação, sobre
qual das partes virá suportar o maior sacrifício ou qual terá maior vantagem,
por conseguinte com um substancial desequilíbrio entre as prestações, na
realidade, esta configuração não parece completamente satisfatória no que
diz respeito à operação securitária. Não se pode falar, com efeito, de alea na
perspectiva do segurador, pois, para este último, a ocorrência do sinistro, e a
consequente obrigação de pagamento da indenização, constitui evento
amplamente previsto e precisamente calculado com instrumentos atuariais.
O que não se pode prever é ‘qual’ entre os riscos segurados se realizará em
sinistro a ser indenizado; mas a circunstância é absolutamente indiferente ao
segurador. (sublinhamos)
541
E é mesmo assim como verbera o doutrinador italiano, até porque os
carregamentos que o segurador endereça ao valor do prêmio a ser suportado pelo
segurado correspondem, por si mesmos e também, a cnicas de administração
de riscos.
Tratam-se das provisões cnicas, que, incrementadas ao valor do prêmio
puro, eliminam, inclusive, riscos de má gestão de uma apólice, como veremos.
Discorrendo sobre as espécies de provisões cnicas, Carvalhaes Ribeiro
diz:
A primeira delas é a provisão de prêmios para riscos em curso, ou,
conforme a linguagem usualmente empregada pelos seguradores, “provisão
de prêmios não ganhos”. Trata-se de uma provisão constituída nos moldes
acima descritos: os prêmios recebidos pelo segurador são incorporados
ao seu patrimônio à medida que vai terminando a garantia contratual
por ele oferecida. A composição dessa provisão pode ser compreendida
pelo exemplo do seguro de veículos automotores. Esse seguro costuma ter a
duração de 12 meses. O segurado paga um prêmio por todo esse período no
início do contrato. A cada mês que passa sem que ele comunique um
sinistro ao segurador, este realiza uma operação contábil pela qual a
respectiva parcela do prêmio é transformada em patrimônio próprio. A
540
Apud Walter Antonio Polido, O contrato de seguro em face da nova perspectiva social e jurídica, pág. 101.
541
Apud Ernesto Tzirulnik, op. cit., idem.
321
parcela restante permanece sob a rubrica de provisão técnica”, e só se
esgota ao término do contrato. Se até não tiver ocorrido sinistro, diz-se
que o segurador “ganhou o prêmio”. (destacamos em negrito)
542
Nossa insistência acerca do reconhecimento em torno do caráter
comutativo, que significa a inexistência da álea no contrato de seguro,
reconhecimento esse que reputamos tardio, tem a ver com o propósito de
investigarmos sobre a natureza das riquezas que remanescem ao fim das
operações securitárias, propósito que se oferece razoável diante da ausência de
risco suportado pela seguradora em função da atividade, justificativa de que se
vale para apropriação dos valores constitutivos do resultado da operação.
Ainda sob os escólios de Luigi Farenga, destacamos:
O segurador não arrisca nunca, porque os riscos são amortizados
pela massa dos prêmios recolhidos e pelo lculo segundo hipóteses
atuariais. O prêmio pago pelo segurado, a seu turno, constitui o
correspectivo necessário para sustentar os custos desta particular atividade
empresarial, à medida que o benefício para o segurado é imediatamente
perceptível mediante a segurança e tranquilidade no futuro que justificou
um sacrifício econômico. (negritamos)
543
A mais reforçar a tese de inexistência de riscos para a seguradora,
tomemos em linha de conta, com auxílio das lições de Paulo Luiz de Toledo
Piza, eminente advogado especializado em seguros, com mestrado e doutorado
pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e professor da
Fundação Getúlio Vargas em São Paulo, que a seguradora ainda conta com
mecanismo de administração do risco da atividade securitária, o qual se adiciona
àqueles referidos acerca da seleção de riscos e das provisões cnicas. Trata-
se, agora, do resseguro, que nada mais é que o desdobramento verticalizado do
seguro, mediante a repartição dos riscos da operação com ente ressegurador. No
abalizado dizer desse mestre:
542
Op. cit., pág. 87.
543
Idem.
322
Os contratos de seguro celebrados pelo segurador representam fontes
de perdas potenciais para ele próprio, segurador. O contrato de resseguro,
por sua vez, volta-se justamente à garantia deste risco de sobrevirem tais
perdas, decorrentes de desvios ou desequilíbrios imprevistos, que apenas
pode ter pornese, em alguns casos, a ocorrência de um sinistro ou
conjunto de sinistros acontecidos no âmbito das relações securitárias
contraídas pelo segurador, no desenvolvimento de sua atividade
empresarial.
544
Não bastasse, resta ainda em defesa da empresa de seguros, a teoria da
base objetiva do negócio a ser invocada pela seguradora em hipótese de
excessiva oneração das bases negociais.
Evoluída na doutrina alemã a partir das teorias da pressuposição e da
imprevisão (fundada na cláusula rebus sic standibus)
545
a resolver situações de
insegurança, com riscos de ineficácia do negócio jurídico. Por base objetiva do
negócio devem ser entendidas todas as circunstâncias fáticas e jurídicas que os
contraentes levaram em conta ao celebrar o contrato e que devem ser observadas
nos seus aspectos subjetivos e objetivos. Segundo essa teoria, a modificação de
cláusula ou do contrato ou sua resolução por alteração das circunstâncias seria
admissível quando a base objetiva do negócio desaparecer e a alteração da base
negocial puder ocorrer quando houver falta, desaparecimento ou modificação
das condições que formaram e informaram essa base.
546
É o como entende o ilustre professor Nelson Nery Júnior, conforme se
infere da lição que segue:
Quando a seguradora, tão logo se dá conta da inviabilidade atuarial
que a manutenção da apólice defasada traria, constitui comissão para estudar
a matéria e propor soluções e alternativas, de modo a preservar os interesses
da companhia bem como os dos consumidores, a nosso ver age
corretamente. Da mesma forma, quando contrata auditor independente para
fazer estudo atuarial sobre as repercussões econômico-financeiras dessa
544
In “O risco no contrato de resseguro”, Seguros: uma questão atual,gs. 182/183.
545
Cf. Nelson Nery Júnior, Contrato de seguro de vida em grupo e o Código de Defesa do Consumidor”, in
Revista de Direito do Consumidor, ano 1, nº 3, págs. 165/210.
546
Idem.
323
defasada apólice, no sentido de preservar os direitos de todos os integrantes
do grupo, bem como quando comunica todos esses fatos à estipulante e aos
consumidores, manifestando sua expressa vontade de não renovar referida
apólice, dando os motivos pelos quais assim agiria. Entendemos que, com
esses procedimentos todos, terá sido respeitada a cláusula geral da boa-fé.
Assim agindo, o segurador não se terá utilizado de nenhum subterfúgio para
fugir às suas responsabilidades, mas, muito ao contrário, terá aberto todos os
seus procedimentos para a estipulante, mandatária e representante dos
segurados, para que não pairassem vidas sobre a justeza dos motivos que
o levaram à manifestação da vontade de não renovar a apólice defasada.
547
A bem de esclarecer essa afirmativa em relação à seguradora, convém
frisar, em reiteração do quanto se discorreu no item empresarialidade acima,
que decorre ínsito da natureza da atividade securitária o interesse público,
derivado do fato de que a atuação da empresa incorre em manipulação de
economia popular, circunstância que, per si, exige a intervenção estatal como
ente regulador.
Não se pode olvidar, no trato desta matéria, que o ingresso da sociedade
anônima no mercado segurador pressupõe rigorosa verificação dos requisitos
oferecidos pela pretendente ao ingresso, examinados sob os fundamentos que
justificam a regulação da atividade pelo Estado, sob pena, inclusive, de
responsabilidade deste, com base no princípio da ineficiência, em caso de
eventual flexibilidade de caráter subjetivo porventura concedido ou mesmo
incúria no procedimento regulatório e fiscalizador.
Por isso, constituem fundamentos integrados da regulação a demonstração
cabal da higidez econômico-financeira da seguradora
548
, modo de fiscalizar a
sua atuação, inibindo a administração imprudente dos prêmios dos segurados
pelos seguradores e a cobrança inadequada de prêmios, principalmente em
virtude dos riscos de impedimento de a seguradora responder pelos sinistros.
547
Idem.
548
O controle da higidez econômico-financeira da seguradora representa a principal tarefa do agente público
competente para a regulação e fiscalização, posto que o objetivo prepondenrante desse fundamento é garantir a
solvência das empresas. (Nesse sentido, vide, por todos, Rubén S. Stiglitz, Derecho de Seguros, vol. 1, pág. 36.)
324
Como demais fundamentos, observam-se a livre concorrência, a proteção ao
consumidor e a cooperação entre seguradoras.
549
O professor Walter Antonio Polido, eminente profissional da área jurídica
especializada em seguros, com larga atuação no mercado segurador e autor de
várias obras temáticas consagradas, escreve a respeito:
A permissão para que Seguradoras operem sem o rigor técnico
adequado e necessário, não sustentadas por notas técnicas e atuariais
consistentes e viáveis, certamente constitui crime contra a economia
popular, podendo, com base nos princípios destacados, abrir espaço para o
Ministério blico atuar. [...] Em síntese, total e inquestionável
responsabilidade do Estado quanto a solvabilidade do sistema securitário, de
modo que o fundo comunitário não pereça em razão da má gestão dos
negócios de uma Seguradora. O capital investido é privado, no âmito da
sociedade anônima criada, mas o fundo de reserva das operações tem
conotação relevante e diferenciada neste tipo de atividade econômica
pois não pertence tão somente à sociedade seguradora e sim à
coletividade de segurados... (negritamos).
550
E, mais, em perfeita sintonia com os propósitos deste trabalho, esse
mesmo autor nos brinda com lição lapidar, extraída de peças e minutas
processuais patrocinadas pela Associação dos Segurados alemães, cuja
transcrição inserimos abaixo.
Na Alemanha, país no qual os seguros e a consciência dos cidadãos
no que concerne aos direitos e obrigações de cada um são altamente
desenvolvidos, os consumidores questionam de forma precisa sobre a
atividade seguradora e também as funções legislativas de controle sobre tais
operações, em prol do fundo comunitário. Questionam mesmo a forma
empresarial construída há mais de um século, pela indústria do setor,
alegando peremptoriamente que até os dias atuais não regulamentação e
fiscalização adequadas. A Associão dos Segurados alemães defende que o
Estado deveria “substituir a ausência de concorrência e cuidar da atribuição
no âmbito jurídico patrimonial dos recursos de dinheiro dos seguros e da
poupança, bem como de seus excedentes, ou seja, impedir prêmios
excessivos, desperdício de custos, manipulações e apropriações indevidas de
549
Cf. Amadeu Carvalhaes Ribeiro, op. cit., págs. 94/103.
550
Cf. Walter Antonio Polido, op. cit., págs. 115 e 118.
325
lucros, impondo restrições com vistas na (sic) obtenção de prêmios
satisfatórios”.
551
As reivindicações da Associação dos Segurados alemães, que se
sustentam em teorias de vários juristas, prosseguem relatadas pelo nobre autor, e
pedimos vênia para tomá-las por empréstimo na sequência.
Seguro é uma prestação do próprio segurado, a saber, a mobilização
conjunta de recursos para a eliminação de riscos financeiros. Assim, o
seguro é uma comunidade de segurados que disponibiliza o dinheiro para
pagamentos de indenizações. Dessa forma, o seguro só pode ser operado por
uma associação de seguro ou como instituição pública. As companhias
seguradoras só deveriam poder organizar os seguros de forma a administrar,
na qualidade de fiduciária, os recursos mobilizados pelos segurados
separados do capital social e cobrar um preço pela prestação de serviços
de organização da associação de segurados. Assim, o legislador também
deveria ter determinado que as companhias seguradoras deveriam atribuir
um prêmio – por exemplo, 100 euros em 80 euros de prêmio de seguro (para
os sinistros) e 20 euros para as companhias como preço para a prestação de
serviços de organização. Então, todos os fluxos de dinheiro seriam
nitidamente separados e corretamente contabilizados. Dessa forma, seria
possível saber a quem pertence cada parte do prêmio: 80 euros à
comunidade de segurados e 20 euros à companhia. E os 20 euros deveriam
bastar como remuneração às empresas. Elas o mais poderiam avançar
sobre o dinheiro dos segurados em virtude de desperdício de custos ou de
má gestão, o que elas fazem prodigamente hoje em dia.
552
O autor ora citado, embora reconheça pragmatismo e razoável estrutura
teórica, apõe sua crítica à proposição dos associados alees, ao entendimento
de que se trata de conteúdo utópico, cuja forma organizativa se assemelharia à
cooperativa ou sociedade mútua.
Com a devida vênia, ousamos discordar do nobre autor e, para tanto, nos
escoramos na sistemática da operação securitária nacional, a qual permite
divisar as parcelas que compõem o prêmio e, por conseguinte, a perfeita
identificação das riquezas que integram o fundo comunitário.
551
Idem, pág. 120.
552
Idem, ibidem.
326
Vejamos, por exemplo, a respeito, o que Amadeu Carvalhaes Ribeiro nos
informa sobre isso:
[...] o segurador não recebe prêmios “puros”, e sim pmios por
assim dizer “cheios, isto é, que incluem partes destinadas a cobrir
outros custos, tais como os custos de distribuição e administração de
apólices. Justamente porque apenas a parte “pura” do prêmio tem a função
de suportar indenizações é que ela deve ser segregada contabilmente dos
acréscimos que lhe são feitos antes da comercialização. Essa segregação tem
um papel duplamente útil: em primeio lugar, permite que o segurador
controle se os prêmios puros são suficientes para fazer frente aos sinistros.
Em segundo lugar, evita que ele institua provisões excessivas, o que seria
um ônus desnecessário à sua atividade.
O segundo detalhe é que as provisões de prêmios puros, se
aplicadas e veremos logo que elas são sempre aplicadas -, geram
receitas financeiras significativas, que podem se converter em fonte de
lucro e expansão dos negócios do segurador. Tais receitas devem ser
segregadas, para que o segurador possa periodicamente se certificar de que
as provisões técnicas são suficientes para fazer frente às indenizações que
ele é obrigado a pagar. Certificar-se disso é, a propósito, certificar-se da
manutenção de uma boa situação financeira. (negritamos)
553
Mas é das próprias e abalizadas lições de Walter Antonio Polido que
retiramos a confirmação de que a administração financeira de uma seguradora
pode fluir tão clara e transparentemente, que a possibilidade de atendimento ao
pleito dos segurados alemães se mostra o razoável, mas plenamente
factível. Em perfeita consonância com os ensinamentos imediatamente
antecedentes, esse autor preleciona:
Para a composição do fundo comunitário as chamadas provisões
técnicas especiais conhecimentos são requeridos. Representam a maior
obrigação de uma Seguradora, pois que constituem o cerne da atividade. As
provisões dão sustentação ao sistema securitário. Compreendem os prêmios
ainda o ganhos (devido à parcelização do valor em pagamentos mensais)
ou as receitas futuras, e também as perdas ainda não indenizadas.
Considerando-se que elas representam compromisso do Segurador
fazendo parte, consequentemente, do passivo, precisam ter a contrapartida
da garantia em uma conta de ativo, através de aplicações financeiras que não
coloquem em risco a operação global de seguros da Seguradora.
Representam, desta maneira enunciada, o lastro das obrigações da
Seguradora. A constituição das provisões técnicas deve ser coberta por
553
Op. cit., pág. 86.
327
investimentos que garantam o trinômio: segurança, rentabilidade e liquidez.
Principais provisões: PPNG Provisão de prêmios não-ganhos; PPNG-
RVNE Provisão de Prêmios não-ganhos, riscos vigentes, mas não
emitidos; PIP Provisão de insuficiência de prêmios; PSL Provisão de
sinistros a liquidar; IBNR Incurred but not reported (sinistros ocorridos,
mas não reclamados). [...] As provisões cnicas devem garantir as
obrigações da Seguradora (sinistros ocorridos tanto os conhecidos como
os não conhecidos e os riscos assumidos ou riscos a decorrer). Se essas
provisões sempre refletirem a realidade, isto é, se forem suficientes para
lastrear todos os compromissos elencados, a Seguradora terá solvência.
Como pode ocorrer, todavia, insuficiência nas provisões, tanto nas de
sinistros como nas de prêmios (riscos a decorrer) é necessário que exista um
patamar de segurança, ou seja, a margem de solvência.(itálicos do original)
554
555
Percebe-se, portanto, através do modelo de administação financeira da
seguradora, e assim nos confirmam os ilustres autores supra citados, que
pleno e permanente controle do fluxo de recursos dos negócios em execução,
sem a mais mínima possibilidade de confusão das verbas disponíveis, isto, é
claro, a depender de uma administração contábil competente e séria, proba.
vi. Contrato multilateral e multitudinário
Novamente nos deparamos com terreno inexplorado, ao menos em nível
de doutrina jurídica, e, ao que parece, solo igualmente movedo.
rias são as indicações de que o seguro só pode ser concebido em bases
multitudinárias, sem o que, por óbvio, não se daria azo à aplicação dos preceitos
da lei dos grandes meros. Bem por isso, na medida em que os seguros se
explicam e se viabilizam através da mutualidade, parece incontornável que o
554
Margem de solncia – conjunto de recursos constituídos por patrimônio próprio não comprometido,
coincidente em certa medida com o patrimônio líquido contábil que, no mínimo, devem ter as companhias
seguradoras para garantir economicamente o máximo dos compromissos com seus segurados. Trata-se de
patrimônio livre, não sujeito nem vinculado a obrigação alguma, cuja quantia mínima vem legalmente
estabelecida e se calcula em função do volume de negócio (prêmios líquidos de cancelamentos) e de sinistros nos
ramos não vida, e em função das provisões matemáticas, no ramo vida. (...) A margem de solvência incorpora
um maior grau de garantia e solidez ao conjunto de medidas que estabelecem, a largo prazo, o equilíbrio técnico-
econômico do negócio segurador. In MATN, Julio Castelo. Diccionario MAPFRE de Seguros. Madrid:
Editorial Mapfre, 1988, p. 158. (Esta nota pertence e foi reproduzida conforme o orginal).
555
Walter Antonio Polido, op. cit.,gs. 117/118.
328
lime jurídico não se esgota na polaridade entre seguradora e segurado, posto que
vimos emergir um plexo de relações jurídicas horizontalizadas e verticalizadas,
todas derivadas no negócio de base, que é o contrato de seguro administrado por
empresa especializada.
Concorde com essa linha interpretativa, Rubén Stiglitz leciona:
La operación “seguro” no es factible de se entendida desde un
ponto de vista técnico-económico, fuera de una mutualidad de asegurados y
con la intervención de una empresa com intermediaria entre una pluralidad
de sujetos expuestos riegos determinados.
556
Traduzimos para o vernáculo:
A operação “seguro” não é possível de ser entendida a partir de um ponto de
vista técnico-econômico, fora de uma mutualidade de segurados e com a
intervenção de uma empresa como intermediária entre uma pluralidade de
sujeitos expostos a riscos determinados.
Dentre os vínculos horizontais vislumbramos aqueles que aproximam os
contratantes de um mesmo grupo segurado, uma vez certo que a conduta
individual, relativa ao contrato em apreço, pode significar impacto indesejável
sobre as expectativas do grupo e, de resto, de toda a comunidade de segurados,
expandindo-se, portanto, para além do contrato em particular, atingindo o
próprio mercado. Por esse viés, a fraude contra o seguro, típica conduta ilícita e
infelizmente de grandes proporções na nossa realidade, constitui ilícito que se
comete não exclusivamente contra a seguradora, mas vitima toda a mutualidade.
Ainda no plano horizontal, mas pelo lado oposto, ou seja, por conduta da
seguradora, vemos no cosseguro providência relacionada com a cnica de
administração de riscos, cujos instrumentos, oficiais ou privados, atuam de
modo a concitar a seguradora a pautar-se, sempre, com cautela e prudência.
556
Op. cit., vol.1, pág. 22.
329
Verticalmente, observamos o resseguro, que entende como recurso de
administração de riscos atuante por disposição regulamentar, no mais das vezes
direcionadas para cumprimento dos limites técnicos de operação de cada
empresa seguradora.
Por tudo isto, entendemos que o contrato de seguro, repita-se, não pode
ser observado nos estreitos limites da polaridade subjetiva entre seguradora e
segurado, merecendo ser tomado frente suas repercussões mais profundas e não
tão nitidamente observáveis.
Esse expediente nos possibilitará retirar do contrato de seguro verdades
até aqui inexploradas, como, por exemplo, o dissemos em nossa dissertação
de mestrado antes referida, a ocorrência de interesses difusos e coletivos que
reclamam a intervenção do Ministério Público como custos legis,
nomeadamente as curadorias de defesa do consumidor.
Por fim, aprofunda essa nossa certeza a equiparação que pode ser extraída
da observação dos influxos deste negócio, principalmente sob a égide do CDC,
particularmente no que concerne ao que consta inserto no art. 2º, par. ún. Com
efeito, a coletividade de pessoas, físicas ou jurídicas, não determináveis, mas
que podem vir a ser segurados traduz o consumidor por equiparação, na
extensão dos efeitos da referida atividade.
Por outro lado, ao conferirmos as anotações produzidas por Ana Luiza de
Andrade Fernandes Nery enquanto mestranda em Direitos Difusos e Coletivos
da PUC/SP, possível observar, na senda dos interesses metaindividuais, a
distinção aconselhável entre relação jurídica e situação jurídica, através de cujo
raciocínio se pode ter por inafastável a existência, no âmbito do direito
securitário, de interesses protegidos que ultrapassam aqueles identificados entre
330
segurados e seguradora, indo ao encontro de sujeitos que nunca são
considerados por essa visão puramente relacional, em detrimento da situacional.
Segundo a autora:
O sistema da técnica do direito realizado a partir de situões
jurídicas viabiliza uma compreensão significativamente mais simples do
sistrema de direitos difusos e coletivos, porque a grande dificuldade
conceitual do fenômeno de interesse transindividual é a absoluta
impossibilidade de identificação do sujeito de direito que titular do interesse
protegido.
557
Por entendemos que, mesmo diante de eventual resistência quanto ao
interesse juridicamente protegido de todos os segurados em relação ao contrato
de seguro, ao só situação jurídica dos mesmos e, de resto, de todos os
potenciais segurados, se enfeixam na trincehira da proteção do consumidor e por
isso justifica a intervenção estatal e a atuação fiscakizadora do Parquet, como
temos defendido.
vii. Função social do contrato de seguro.
O contrato de seguro deve ser instrumento
de justiça, de paz, de prosperidade,
assegurando tranquilidade e conforto, não
apenas aos que menos precisam, mas
também aos que mais precisam, exatamente
os menos favorecidos.
(Ernesto Tzirulnik)
558
557
In “O fenômeno jurídico de interesse transindividual”. Revista de Direito Privado, ano 9, nº 36, pág. 37.
558
In Tratado Luso-Brasileiro de Dignidade Humana, pág. 1329.
331
Não é demais repisar que os objetivos fundamentais de nossa República
consistem em construir uma sociedade livre, justa e solidária, de garantia do
desenvolvimento nacional e da promoção do bem de todos.
559
Persistem preservadas, aliás, seguem revalorizadas em nosso
ordenamento, a liberdade, a justiça e a solidariedade, que se traduzem na
liberdade de contratar, vez que é por esse meio técnico que permite integrar o
poder de vontade entre sujeitos de direito, sendo certo, porém, que não se cuida
mais daquela liberdade ilimitada, mas agora condicionada à garantia de
existência digna a todos, consoante ditames da Justiça Social.
Resulta, então, que a ordem constitucional, sendo expressa no sentido de
estabelecer fundamento na livre iniciativa e valorização do trabalho
560
, observa
os princípios da propriedade privada e da livre concorrência
561
, tudo em
prestígio de uma atividade empresarial, logicamente imbda do objetivo do
lucro lícito, mas comprometida com a satisfação das necessidades econômicas
da população.
562
Este é um contexto de ordenamento jurídico que concebe o
homem, segundo o pensamento kantiano, ou seja, sempre como sujeito, como
pessoa, e nunca como objeto.
563
Polido nos ensina que:
, no caso, uma supervalorização da pessoa humana, em
detrimento do objeto material do contrato. Várias formulações podem ser
feitas e todas elas passam pela noção de bem comum, pela exigência de que
o contrato não agrida ninguém mesmo que se trate de apenas um
indivíduo, pois que não é ético. [...] Há, portanto, um sentimento de
559
CF, art. 3º, I, II e III.
560
CF, art. 170, caput.
561
CF, art. 170, II e IV.
562
Cf. Ricardo Hasson Sayeg. O contexto histórico da defesa do consumidor em face do abuso de poder
econômico e sua importância”, in Revista de Direito Internacional e Econômico”, v.2, nº 7, págs. 5/14.
563
Cf.rcio Sampaio Ferraz Júnior, Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão dominação, pág. 148.
332
lealdade coletiva, de proteção metaindividual que transcende às partes
contratantes. (os destaques são do original).
564
A função social do contrato reflete o propósito de se conferir às relações
jurídicas de direito privado um nexo de comprometimento com o interesse
social, de sorte que um contrato desequilibrado, seja porque não pacifica os
interesses individuais envolvidos de forma direta, não evitando ou até mesmo
estimulando o litígio, seja porque não atende aos padrões de justiça social
clamados pela coletividade nem assegura harmonia social, não atende sua
função social.
565
Por oportuno, não é ocioso trazer novamente à tona os escólios de
Natalio Muratti, os quais destacam a natureza pública do contrato de seguro, de
modo a tomá-lo como essencial à vida comunitária e, desse modo, para além das
diretrizes que se endereçam para os contratantes, deve ser submetido, por
justificável, à rigorosa intervenção do Estado.
Segundo a percuciente doutrina desse professor argentino:
La conciencia social, en esta cuestión, está en continua evolución;
evolución que, sin duda alguna, influye sobre la voluntad del Estado, la
cual se manifesta en la transformación del ordenamiento jurídico. En la
evolución del Estado moderno, la satisfacción de una necesidad colectiva,
necesaria para cubrir los riesgos económicos a que están expuestos los
trabajadores y otros componentes del cleo social, debe ser impuesta por
un procedimiento especial. Ese procedimiento no es otro que el del servicio
público. Al Estado incumbe, pues, considerar que la satisfación de las
necesidades colectivas de previsión sea realizada por el seguro, mediante el
procedimiento del servicio público. [...] En consecuencia, la noción del
seguro debe ser dirigida, en estos momentos, por un verdadero sentido
ecomicosocial y no solamente económico privado.
566
564
Op. cit., pág. 44.
565
Cf. Tatiana Bonatti Peres, Função Social do contrato”, in Revista de Direito Privado, ano 10, 40, págs.
288/307.
566
Elementos Económicos, Técnicos y Jurídicos del Seguro, págs. 13/14.
333
Traduzimos:
A consciência social, nesta questão, es em contínua evolução;
evolução que, sem vida alguma, influe sobre a vontade do Estado, a qual
se manifesta na transformação do ordenamento jurídico. Na evolução do
Estado moderno, a satisfação de uma necessidade coletiva, necessária para
cobrir os riscos econômicos a que estão expostos os trabalhadores e outros
componentes do núcleo social, deve ser imposta por um procedimento
especial. Esse procedimento não é outro que o do serviço público. Ao
Estado incumbe, pois, considerar que a satisfão das necessidades coletivas
de prevenção seja realizada pelo seguro, mediante o procedimento do
serviço público. [...] Em consequência, a noção de seguro deve ser dirigida,
nestes momentos, por um verdadeiro sentido econômico-social e não
somente econômico privado.
Acerca da inerente supremacia do interese público que caracteriza o
seguro, é compreensível que em vários países a sua exploração, ao mesno
durante certo temp, tenha se dado por instituições blicas, através de
monopólio do Estado.
Como exemplo embletico, lembramos a experiência uruguaia, cujo
monopólio estatal se inaugurou através da lei de 27 de dezembro de 1911,
diploma que fez criar o Banco de Seguro del Estado para realizar, em regime de
monopólio legal, repita-se, seguros de vida, de acidentes de trabalho, de
incêndios e resseguros, sendo o Estado o garantidor de todas operações.
Lamentavelmente, porém, não mais resistindo aos influxos neoliberais da
globalização, o povo do Uruguai cedeu, conforme se do texto abaixo,
extraído da Ley N° 16.426 del 14 de octubre de 1993.
“El Senado y la Cámara de Representantes de la República Oriental del
Uruguay, reunidos en Asamblea General,
DECRETAN:
ARTICULO 1°. - Declárase libre la elección de las empresas aseguradoras
para la celebración de contratos de seguros sobre todos los riesgos, en las
condiciones que determine la ley.
Deróganse todas las disposiciones que establecen monopolios de contratos
de seguros en favor del Estado y ejercidos por el Banco de Seguros del
334
Estado, especialmente los artículos 1° a 7°, inclusive y 29 de la Ley
3.935, de 27 de diciembre de 1911, y el artículo de la Ley 7.975, de
19 de julio de 1926. Derógase, asimismo, el artículo 2° de esta última ley”.
567
viii. Da inexistência de alienação de patrimônio através do contrato de
seguro.
De acordo com as lições de Atilio Aníbal Alterini, o sistema jurídico do
século XIX, originado na Revolução Francesa, respondia aos ideais do
liberalismo, de modo que se construiu, inclusive através do Código Civil
francês, um sistema jurídico civil fundado na liberdade, projetando esta ideia de
liberdade sobre dois aspectos fundamentais, a saber: a liberdade de gozar dos
bens e a liberdade de troca dos bens e serviços, o que equivale à propriedade e
ao contrato, sendo que os direitos do proprietário foram concebidos como
absolutos, enquanto que ao contrato, se atribuiu força vinculante equiparada à da
lei.
568
Segundo o autor:
La economia de mercado y el sistema capitalista que es su ámbito
propio tienen uno de sus ejes en el contrato, como instrumento adecuado
para el intercambio de bienes y servicios. En la actualidad el contrato está
en expansión, y nunca en la historia se han celebrado tantos contratos, ni
de tanta magnitud, como los que se celebran ahora.
569
567
Lei nº 16.426 de 14 de outubro de 1993
O Senado e a Câmara de Representantes da República Oriental do Uruguai, reunidos em Asembleia Geral,
DECRETAM:
ARTIGO 1°. Declara-se livre a escolha de empresas seguradoras para a celebração de contratos de seguros
sobre todos os riscos, nas condiciones que determine a lei.
Derrogam-se todas as disposicões que estableçam monopólios de contratos de seguros em favor do Estado e
exercidos pelo Banco de Seguros do Estado, especialmente os artigos ao , inclusive, e 29 da Lei 3.935,
de 27 de dezembro de 1911, e no artigo 1° da Lei n° 7.975, de 19 de julho de 1926. Derroga-se, também, o artigo
2° desta última lei.” (t.l.a.)
568
In op. cit., pág. 39.
569
Idem.
335
Ou:
A economia de mercado e o sistema capitalista que é o seu âmbito
próprio tem um dos seus eixos no contrato, como instrumento adequado
para a troca de bens e serviços. Na atualidade o contrato está em expansão e
nunca na história foram celebrados tantos contratos, nem de tamanha
magnitude, como os que se celebram agora. (t.l.a.)
Sem embargo de que a classificação de contratos pode obedecer critérios
vários, entendemos, para os propósitos aqui assinalados, ser de todo conveniente
adotarmos a função econômica como útil ao entendimento e delimitação dos
interesses que as partes contratantes transacionam, certamente privilegiando a
maneira pela qual cada uma obtenha a satisfação do seu interesse visado. Isso
fazemos admitindo, desde logo, a possibilidade de regulação estatal, a fim de
que os contratos alcancem finalidades sociais e econômicas.
Alterini, na obra citada, nos informa que, segundo sua função econômica,
os contratos podem ser classificados como de câmbio (troca), de colaboração, de
custódia, de garantia, de prevenção ou para solução de controvérsias. Miramos
tão somente o primeiro, dado o nosso interesse imediato nesse modelo.
Contratos de cambio. Sirven para favorecer la circulación de cosas y
servicios. Incluyen los realizados a título gratuito (como la donación) y a
título oneroso; “cambiar es un vocablo general que conviene a la venta, a
la locación, acomo a todo contrato en el cual se recibe alguna cosa de
parte de outra. Los realizados a título oneroso comprenden estas
subcategorias:
1. Cambio para recibir una cosa. Por ejemplo, la compraventa y la
permuta, en las cuales una parte se obliga a dar una cosa, y la otra a pagar
un precio, o a entregar otra cosa.
2. Cambio para recibir un servicio. Por ejemplo, la locación de
cosas, la locación de obra, el transporte, en los cuales una de las partes (el
inquilino, el comitente, el transportado) recibe el cumplimiento de una
obligación de hacer de la contraparte, con un precio como
contraprestación. (destaques do original)
570
570
Op. cit., págs. 183/184.
336
Vertido para o português:
Contratos de troca. Servem para favorecer a circulação de coisas e
serviços. Incluem os realizados a título gratuito (como a doão) e a título
oneroso. “trocar é um vocábulo geral que define a venda, a locação, assim
como a todo contrato pelo qual se recebe alguma coisa da outra parte”. Os
realizados a título oneroso compreendem estas subcategorias:
1. Troca para receber uma coisa. Por exemplo, a compra e venda e a
permuta, nas quais a parte se obriga a dar uma coisa, e a outra a pagar um
preço, ou a entregar outra coisa.
2. Troca para receber um serviço. Por exemplo, a locação de coisas,
a locação de obra, o transporte, através dos quais as partes (o inquilino, o
comitente, o transportado) recebe o cumprimento de uma obrigação de fazer
da contraparte, com um preço como contraprestação. (t.l.a.)
Ainda seguindo a doutrina de Atilio Anibal Alterini, dela extraímos o
conceito de finalidade dado ao contrato, lição que o mesmo inaugura com as
seguintes advertências: o que é determinante precede ao que é determinado
(baseado em Ihering) ea causa final, última na ordem de execução, é a
primeira na ordem da intenção(Santo Tomás de Aquino). Assim o faz para
enunciar que a conduta humana não se realiza ao acaso, mas tem um por quê,
uma finalidade que se concretiza mediante fatos materiais tendentes a realizá-la.
Quien, por ejemplo, quiere adquirir una cosa, celebra una
compraventa para obtenerla; el contrato es posterior a la intención, pero
sirve para realizarla. Modernamente, tanto la noción de causa como la de
consideration
571
sirven no sólo para estabelecer cuando un contrato es
vinculante, sino también para lo contrario: sirven para saber en quê casos
un contrato no será válido o eficaz. (destaque do original)
572
571
O autor enumera em sua obra a teoria da consideração, retirando-a do sistema do common-law, informando
tratar-se de base primária para a obrigatoriedade das promessas. Tomada como doutrina, a consideration envolve
outros conceitos como auxiliares, o que torna difícil precisá-la. Em breve resumo, para que uma promessa tenha
consideration requer que as partes tenham convencionado uma troca, como a de bens ou serviços por dinheiro,
visando-se a reciprocidade.
572
Op. cit., gs. 256/257. Traduzida a citação: “Quem, por exemplo, quer adquirir uma coisa, celebra um
contrato de compra e venda para obtê-la; o contrato é posterior à intenção, porém serve para realizá-la.
Modernamente, tanto a noção de causa como a de consideração servem não para estabelecer quando um
contrato é vinculante, mas também para o contrário: servem para saber em que casos um contrato não será válido
ou eficaz”. (t.l.a.)
337
Tais considerações foram aqui declinadas com o escopo de se demonstrar
que através do contrato de seguro não há, por parte de qualquer dos contratantes,
vontade manifesta de alienação de bens, de transferência de titularidade sobre
riquezas de qualquer espécie. Com efeito, o objeto do contrato de seguro,
qualquer que seja o ramo de que se ocupa, se cinge à garantia de interesse do
segurado, prestado pela seguradora, e, em contrapartida, o valor do prêmio a ser
suportado pelo segurado.
Ou seja, por qualquer ângulo que se queira tomar o contrato entre partes, é
induvidoso que o mesmo se baseia no consentimento, não obstante a exigência
da tradição nos contratos reais ou de solenidades especiais para sua conclusão,
quando a lei o exige.
É sabido que a vontade humana era, no direito antigo, impotente para
fazer nascer, por si só, obrigações jurídicas. Para os romanos o modo normal de
obrigar-se era a stipulatio, formulando-se com solenidade, mediante pergunta e
resposta. Somente a partir do século XVI é que foi se firmando o princípio solus
consensus obligat (somente pelo consenso se obriga), sendo da modernidade o
contrato consensual.
573
O vocábulo consentir, no seu sentido etimológico, exprime o acordo de
duas ou mais declarações de vontade que, partindo de sujeitos diversos,
convergem para um mesmo fim, fundindo-se.
574
Sendo a vontade um fenômeno interno, exige o direito seja ela
validamente manifestada para o fim de que possa produzir efeitos jurídicos, de
sorte que a manifestação consiste na sua exteriorização, que pode ser
considerada constitutiva quando endereçada ao fim de dar existência a um ato
573
Cf. Darcy Bessone, Aspectos da evolução da teoria dos contratos, pág. 49.
574
Idem.
338
jurídico. Sobressai inconteste, desse modo, que a obrigação se cinge aos limites
da vontade declarada, assim considerada aquela manifestada livremente, sem
qualquer vício de consentimento, sob pena de serem tidos nulos os efeitos
jurídicos dela decorrentes.
Dito isto, parece de somenos que identifiquemos no contrato de seguro,
em reprise, as suas contraprestações, sabido ser a de prestar garantia a do
segurador, e a de pagar o valor do prêmio, a do segurado (CC, art. 757). Assim
delimitadas, quer nos parecer que qualquer outra obrigação inserida no contrato
sob lente exige rigorosa e expressa contratação, mormente se se tratar de
transferência de riquezas, uma vez assente, em nosso Direito, que somente se
admite a supressão da propriedade mediante alienação, renúncia, abandono,
perecimento do bem imóvel ou pela desapropriação.
575
Visto anteriormente tratar-se o seguro de prestação de serviço, parece
certo que a remuneração da seguradora esteja carregada no valor do pmio
puro, assim como explicitado no Capítulo III supra (Manifestação do seguro), item
III.2.v. (Da atividade securitária não resulta risco para a seguradora - teoria da base objetiva
do negócio), de sorte que a mesma não assume, pelo contrato, o poder de
apropriar-se dos valores que remanescem da operação, constituindo ilícito se o
fizer.
Frise-se que nem mesmo a hipótese de a seguradora quedar-se de acrescer
ao prêmio puro o quanto destinado à sua remuneração, modo de esquivar-se de
bis in idem, convalidaria o seu enriquecimento através da incorporação em seu
patrimônio do quantum remanescente das operações, haja vista, repita-se,
inexistir autorização para tanto.
575
Cf. Sérgio Pinto Martins, Instituições de Direito Público e Privado, pág. 280.
339
Com o fito de atestar a coerência da conclusão supra, basta cotejar, nesse
aspecto, o contrato de seguro com outros tipos contratuais com os quais assume,
no caso específico da administração de valores de terceiros, perfeita semelhança,
podendo ser citados o de consórcio e o de transações bancárias, notadamente,
neste caso, de conta-corrente ou de conta-poupança, posto que por eles não se
observa, sob qualquer pretexto, alienação de bens ou valores monetários que
seja adicionada ao objeto principal.
Para fins de breve detalhamento e comparação, fiquemos aqui com o
contrato de consórcio.
Conforme originalmente definido pela Portaria 190 do Ministério da
Economia, Fazenda e Planejamento (MEFP), de 27 de outubro de 1989,
consórcio é a uno de diversas pessoas físicas ou jurídicas, com o objetivo de
formar poupança, mediante esforço comum, com a finalidade exclusiva de
adquirir bens móveis duráveis, por meio de autofinanciamento.
576
577
Coerente com tal definição, a Lei Federal 11.795, de 08 de outubro de
2008, que ora regula a constituição e o funcionamento de grupos de consórcio,
dispõe que os valores recebidos dos consorciados se destinam à formação do
fundo comum do grupo (art. 25), da importância destinada à formação do fundo
de reserva e demais obrigações pecuniárias que forem estabelecidas
expressamente no contrato de participação, e da parcela relativa à remuneração
da administradora (art. 27).
576
Cf. Fabiano Lopes Ferreira, Consórcio e Direito. Teoria e prática, pág. 447.
577
Conforme dispõe o artigo da Lei 11.795, de 08 de outubro de 2008, que hoje rege a matéria, o Sistema de
Consórcios consiste em instrumento de progresso social que se destina a propiciar o acesso ao consumo de
bens e serviços, constituído por administradoras de consórcio e grupos de consórcio. O art. 2º, por sua vez,
define o consórcio como a reunião de pessoas naturais e jurídicas, com prazo de duração e número de cotas
previamente determinados, promovida por administradora de consórcio, com a finalidade de propiciar a seus
integrantes, de forma isonômica, a aquisição de bens ou serviços, por meio de autofinanciamento.
340
De acordo com a previsão do parágrafo único do art. 27 desse diploma
legal, integra o fundo comum, além dos recursos provenientes das prestações
pagas pelos consorciados, também os valores correspondentes a multas, juros
moratórios e rendimentos oriundos de aplicações financeiras do montante
custodiado pela administradora.
Aliás, com o fito de espancar qualquer vida acerca da natureza e
titularidade dos valores carreados para a operação, cuida a referida lei, em sua
seção segunda (Da Administração de Consórcios, art. 5º, § 5º), de esclarecer, sobre os
bens e direitos adquiridos pela administradora em nome do grupo de consórcio,
o seguinte:
I – não integram o ativo da administradora;
II não respondem direta ou indiretamente por qualquer obrigação
da administradora;
III não compõem o elenco de bens e direitos da administradora
para efeito de liquidação judicial ou extrajudicial;
IV – não podem ser dados em garantia de débito da administradora.
Na sequência, o mesmo diploma, em arremate, regula que por ocasião do
encerramento do grupo consorciado, a administradora deve, no prazo de sessenta
dias, comunicar aos consorciados que não tiverem utilizado os respectivos
créditos que os valores se encontram à disposição para recebimento em espécie
(art. 31, I), providenciando, ainda, a definitiva prestação de contas do grupo,
ocasião em que deverão ser discriminadas as disponibilidades remanescentes
dos respectivos consorciados e participantes excluídos, bem como os valores
pendentes de recebimento em cobrança judicial (art. 32, I e II).
Recursos remanescentes não procurados pelos titulares ficam confiados à
guarda da própria administradora, a qual assume, em relação a esses valores, a
condição de gestora, encarregada legalmente de promover a aplicação e a
341
remuneração do capital por ela custodiado (art. 34), dando-lhe tratamento
conbil específico (art. 38).
Percebe-se, portanto, da normartização do sistema de consórcios, que a
preocupação do legislador foi a de destinar a maior segurança possível ao
consorciado, sem perder de vista que tais operações financeiras rematam prática
social recorrente e, portanto, tipificada como assunto pertinente à economia
popular.
Certo que pelo contrato de consórcio o objeto avençado consiste no acesso
do consorciado à especialidade da administradora de formar, organizar e
administrar grupos de consórcios, cuja atividade se desenvolve mediante
estratégia de comercialização, o que evidencia o caráter empresarial, é elementar
que tal empreendimento credencie a administradora a justa e específica
remuneração, o que a lei sob comento denomina taxa de administração.
578
Por evidente, não se cogita da posibilidade de a administradora se
enriquecer com as sobras apuradas ao final dos grupos consorciados, cumprindo
à mesma providenciar o reembolso das quantias de titularidade dos participantes
ou de mantê-los em aplicação financeira remunerada.
Em termos claros e objetivos, cuida-se de contrato de prestação de
serviços especializados de administração de recursos de terceiros para fins
específicos, mediante remuneração prévia e expressamente pactuada.
Portanto, observados pontos significativos de semelhança com o contrato
de seguro, oportuno indagar: à falta de expressa autorização legal ou de expresso
consentimento dos segurados, isto disposto em cláusula redigida segundo os
578
Cf. Alexandre David Malfatti, “O contrato de consórcio e o direito do consumidor, após a vigência da Lei
11.795/2008”, Revista de Direito do Consumidor, ano 18, nº 70, págs. 09/40.
342
ditames da norma consumerista (CDC, arts. 6º, III; 31; 46; 51, IV; 52 e 54, §§ 3º
e ), como, então, justificar que a seguradora, ao fim da operação, se aproprie
dos prêmios arrecadados e não utilizados em ressarcimento de sinistros?
Nem se diga que a atividade seguradora merece tratamento diferencial em
virtude dos requisitos exigidos para ingresso no mercado, especialmente quanto
as garantias patrimonais, sabidamente mais volumosas em comparação com as
que se exigem das sociedades que buscam ingresso no mercado como
administradoras de consórcios.
579
A rebater o argumento, basta anotar que não
há, na espécie qualquer discrímen, dado que a diferença em torno dos volumes
de garantia patrimonial guardam, é certo, relação de proporcionalidade com os
volumes operacionais em cada uma das atividades, não se justificando, pois,
qualquer tratamento diferenciado, sob pena de vulneração ao princípio
constitucional da igualdade (CF, art. 5º, caput).
Aqui talvez resida o que Cesare Vivante identificou como erro de
perspectiva em torno do contrato de seguro
580
e, de nossa parte, a referência que
oferecemos sobre a inconsistência essencial que pesa sobre a matéria de seguro,
que vem sendo observado ao longo desses séculos ainda com espanto e
admiração próprios de uma assistência de jogo de roleta num cassino.
É possível que esse fascínio que nutrimos em relação ao poderio de quem
se presta a oferecer garantias, quer seja o capitalista do século XIII em negócios
a riscos do mar, quer sejam as poderosas instituições de seguros, nos tenha
embaçado as vistas para que pudéssemos mais tempo enxergar a pura
579
O controle de ingresso no mercado segurador observa dois asectos essenciais: capital mínimo e estrutura de
organização da sociedade seguradora. O art. 32, VI, do DL 73/66 atribui ao CNSP a função de delimitar o capital
das sociedades seguradoras com periodicidade mínima de dois anos, determinando a forma de subscrição e
realização. A lei 5.627/70, art. 1º, estabelece que os capitais mínimos de que trata o citado art. 32, VI, do DL
73/66 devem variar de acordo com cada ramo, em função de regiões. A Resolução CNSP 73, de 13 de maio
de 2002, dividindo a atividade seguradora nos ramos vida e elementares, estipulou o capital mínimo das
seguradoras. (Cf. Amadeu Carvalhaes Ribeiro, op. cit., págs. 150/151).
580
Apud Pedro Alvim, O Contrato de seguro, pág. 104.
343
essência dessa atividade econômica e, o a partir dela, erigirmos o sistrma
jurídico para a sua regulação. A situação sugere o quadro do religioso disperso e
desavisado que, perdendo-se embevecido com a beleza do manto, se esquece de
prestar devidamente rito ao santo.
Bem por isso, no nosso modesto entender, acolhidos os argumentos
nucleares desta tese, o tratar-se-á de buscar uma ressignificação do seguro,
posto que, em si, o instituto prossegue exatamente o mesmo. Necessitamos, isto
sim, de uma refundação da interpretação jurídica que até aqui se construiu em
torno do mesmo.
Com efeito, balizados os princípios elementares que permeiam a operação
de seguro, consultada a gica que deve servir de instrumento auxiliar da
ciência, ou aquiescemos tratar-se o seguro em nível de similaridade com o
consórcio para, a partir disso, concluírmos pela quebra ao princípio da isonomia,
dada a diferença de tratamento legal dado às administradoras de consórcio e às
companhias de seguro quanto a fonte de remuneração pelo sua atividade, ou,
caso contrário, estaremos condenados à uma ressignificação da noção de
igualdade.
E não é só. Ou se admite ser o fundo comum do seguro de propriedade da
mutualidade que se forma através dos segurados que aderem ao seguro, ou se
concebe, em retumbante contradição lógica e colisão com comezinhos princípios
gerais de direito, que ao segurador é dado administrar riquezas sobre as quais
nutre inescondível interesse, o que o reveste de suspeição e revela
incompatibilidade insuperável.
Nessa quadra, se é mesmo lícito ao segurador ter para si aquilo que sobra
do fundo comunitário do seguro, tal como lecionam ilustres autores da matéria,
obviamente que restarão inexoravelmete comprometidos os princípios basilares
344
da boa-fé contratual e da função social do contrato, visto que inexiste isenção
da seguradora para regulação dos sinistros, tendo em vista a sua expectativa
pela negativa a qualquer custo.
Mais o é preciso dizer para justificar a aludida inconsistência essencial
que macula o seguro que praticamos e que, bem por isso, reclama seja o instituto
refundado juridicamente, a fim de que por seu intermédio o se prossiga
promovendo injustiça social.
III.2.1. O seguro mútuo
Fig. 2
581
Sem que isso constitua uma proposta de classificação do contrato de
seguro, método que cuida de alinhar os elementos de identificação das rias
modalidades de seguro, aqui nos ocupamos tão somente de observar o seguro
tuo enquanto modalidade de gestão coletiva de riscos, em comparação com
os outros sistemas de exploração da atividade, o que será observado nos itens
subsequentes.
581
Ilustração colhida do website http://www.tudosobreseguro.org.br/sws/portal/paginaphp?1=382
345
Portanto, é suficiente, por ora, realçar que o seguro mútuo decorre da
formação de uma sociedade sem fins lucrativos e cujo gerenciamento obedece
aos princípios das antigas sociedades de socorro mútuo.
Por essa modalidade, os integrantes contribuem com o pagamento de
cotas, visando fazer frente aos prejuízos relacionados à vida ou a bens que
possam vir a sofrer qualquer dos associados, adicionados os encargos da
administração da sociedade.
582
Esse modelo se filia à mais antiga experiência em termos de prevenção
coletiva contra riscos, que remonta a Mesopotâmia de cerca de 2300 anos de
Cristo, onde passou a ser conhecidas as formas de enfrentamento de riscos hoje
consideradas rudimentares, mas que, à época, constituía mecanismo disponível e
eficaz perante a ocorrência de certos eventos danosos.
Os Sumérios, Assírios, Acádios e Babilônicos assimilaram culturas de
diferentes povos e, com isso, aproximaram experiências que surtiram efeitos
práticos como, v.g., o modo de organizar a vida em cidades, a construção de
pirâmides e de jardins suspensos, a utilização da roda e da metalurgia, estudos
astrológicos, calendários e outros cenários esculpidos em pedra, cujos registros
revelam o modus vivendi de uma civilização de mente criadora e atitudes
transformadoras, como a História bem pode registrar desde então.
Aliás, registros em pedra constam em parte conservados até hoje, nos
quais podem ser observadas normas editadas pelos governantes quase três
milênios antes da Era Cristã, fora oferecerem elementos de informação a
respeito da prática comercial entre povos situados em localidades opostas, tendo
entre eles os imensos desertos que cercam a Mesopotâmia. A ilustração de
abertura nos ligeira idéia de como os babilônicos se organizavam para
582
Celso Marcelo de Oliveira, Teoria Geral do Contrato de Seguro, Vol. I, pág. 38.
346
atravessar essa vastidão de adversidades de toda espécie, a fim de atingirem
lugares cada vez mais longínquos. As caravanas de camelos reuniam-se e, em
grupo faziam a travessia, modo de somarem-se em força, para o caso de
sofrerem ataques de salteadores, o que não era incomum.
Sabemos, hoje, que os cameleiros da Babilônia uniam-se para repor ao
mercador os camelos que o mesmo porventura tivesse perdido durante a viagem,
quer por terem se desgarrado, sucumbido em doenças ou sido subtraído por
piratas.
Esse é o dado de certeza de que nos valemos para tomar como certo que
os povos da Mesopomia foram os precursores do seguro que hoje conhecemos
submetido a intrincados métodos organizacionais, incompreensíveis tábuas de
sinistralidade e probabilidades.
Trata-se, a olhos vistos, de forma de cooperação, método de organização
que foi entusiasticamente aplaudida e incorporada à teoria econômica, à vista de
se tratar de uma forma de comportamento social mais vantajosa do que a
competição, desde que observados três requisitos essenciais: a) convém que o
número de participantes seja pequeno; b) que todos detenham o mesmo nível de
informações recíprocas; c) que as relações entre eles sejam continuadas, não
ocasionais.
583
A Alemanha herdou das guildas a experiência associativa e, a partir do
início do século XIX, fez surgir associações cooperativas que, desde o início e
até hoje, recebem a denominação de Versicherungsvereine auf Gegenseitigkeit
(VVaG). Operam mediante a associação de pessoas sujeitas a riscos de mesma
espécie, com o objetivo de que a indenização de eventual sinistro seja suportada
583
Amadeu Carvalhaes Ribeiro, Direito de Seguros: resseguro, seguro direito e distribuição de serviços, g.
123.,
347
por todos igualmente, modo de suplantar a impossibilidade de cada associado
suportar individualmente as consequências danosas de um sinistro e, também,
pela facilitação que a homogeneidade dos riscos proporciona a esse tipo de
organização, em que todos os associados são individualmente segurados e,
coletivamente, o próprio segurador.
584
Amadeu Carvalhaes Ribeiro anota que apesar de as cooperativas terem se
sustentado até hoje na economia alemã, o certo é que as seguradoras constituídas
sob a forma de sociedades anônimas, em sua maior parte ainda no século XIX,
assumiram a forma de organização preponderante no setor, tendo perdido campo
as cooperativas. O autor indica que no ano de 1994 operavam na Alemanha, sob
a supervisão da Bundesaufsicht-sam r das Versicherungswesen (BAV)
585
, 310
seguradoras sociedades anônimas, com participação de 65,5% do mercado
segurador; 91 cooperativas (VVaG), as quais detinham naquele ano 23,5% de
participação; e 34 companhias seguradoras públicas, com 8,5% do mercado.
586
nos EUA, as sociedades cooperativas de seguros são mais expressivas
em termos de participação no mercado, tendo surgido na primeira metade do
século XIX como resposta às contingências que o seguro de vida enfrentava na
época.
Dois motivos capitais são identificados como causadores do surgimento
do seguro sob forma cooperativa, em detrimento da sociedade de capitais, a
saber:
a) A uma, as incertezas futuras decorrentes das imprecisões de lculos
atuariais e tabelas de mortalidade que até então não dispunham de
584
Idem, pág. 10.
585
O BAV é o ente administrativo federal encarregado da regulação e fiscalização do mercado segurador
alemão.
586
Op. cit., págs. 10/11.
348
técnicas avançadas, de sorte que as alices de seguro de vida eram
fonte de riscos, elas próprias, tanto para os segurados como para a
seguradora, sujeitando-os, de um lado, a não receber a importância
segurada e, de outro, dificuldades em compor adequadamente suas
provisões, podendo, inclusive, provocar a falência da seguradora por
gestão técnica; decorrência natural do quadro supra descrito, os
prêmios cobrados eram exagerados, via imprópria de obtenção de
segurança na gestão de contratos de longa duração.
b) A duas, os contratos, nesse contexto, eram do tipo “lock in”
587
, ou
seja, vínculo pelo qual as seguradoras cobravam pmios elevados no
início do contrato e se recusavam a devolvê-lo caso o segurado
desistisse antecipadamente. Ante esse modelo espúrio de fidelização,
o consumidor se via impedido de migrar para uma opção contratual
mais favorável, sob pena de sofrer pesadas perdas financeiras.
Portanto, diante de tais circunstâncias, migrar para uma cooperativa de
seguros significava para o segurado uma possibilidade de compensação das
perdas pela desistência de um contrato “lock in”. Daí que as cooperativas
entraram no mercado segurador norteamericano, cobrando prêmios mais baixos,
sem que isso as impedisse de cobrar valores mais elevados diante de
eventualidades, isto sem que os cooperados se sentissem lesados.
Também no seguro de bens e de responsabilidade o mercado segurador
contribuiu para o surgimento de cooperativas de seguro de propriedade e de
responsabilidade, posto que as companhias seguradoras atuantes no ramo
cobravam preços bastante elevados, motivo que levou as empresas pertencentes
a um mesmo ramo industrial, que pagavam prêmio elevado para riscos baixos,
unirem-se sob a forma de cooperativa. As seguradoras, que não dispunham de
587
Em tradução literal: cercar, rodear.
349
informações em nível competente para administração dos riscos, provocavam o
inconveniente de fazer com que todos os segurados de incêndio, por exemplo,
pagassem o mesmo valor de apólice, independentemente da diferente gradação
dos riscos, v.g., entre uma fábrica de explosivos ou de alimentos. Afora a
sensível queda dos preços, as cooperativas, mercê da especialização, ainda
realizavam inspeções nas instalações das empresas seguradas, provincia que
gera ltiplos benefícios, iniciando-se pela correta avaliação dos riscos e
consequente fixação do justo prêmio, passando pela oferta de serviços de melhor
qualidade e menor custo, desembocando na possibilidade de adoção de medidas
de prevenção e de contenção de riscos. Na esteira de tais benefícios, ainda é
possível sinalizar para o aperfeiçoamento da segurança e medicina do trabalho,
de que são exemplos emblemáticos os EPI´s.
588
Pesem as vantagens da solução, porém, as cooperativas perdem espaço no
mercado segurador norteamericano em virtude do acesso ao capital, o que lhe é
extremamente difícil, principalmente se comparado ao capital de indústria.
589
A marcar de curiosidade a trajetória do seguro pelo Brasil, temos que a
primeira seguradora autorizada a funcionar após o advento da independência
brasileira foi a Sociedade de Seguros Mútuos Brasileiros, cujos cios eram
todos os negociantes proprietários de embarcações que navegassem em alto mar,
conforme o decreto de 29 de abril de 1.828.
No entanto, muito ao contrário do que esse início sugere em termos de
desenvolvimento, a história nos mostra que a experiência do seguro mútuo não
588
EPI´s = equipamentos de proteção individual estabelecidos para uso obrigatório, sob encargo do empregador,
a quem cumpre não somente o fornecimento, como ainda a fiscalização do us durante a jornada de trabalho em
que tais acessórios são exigidos.
589
As lições sobre seguro mútuo foram extraídas substancialmente da obra do Professor Amadeu Carvalhaes
Ribeiro, op. cit., passim.
350
foi bem sucedida no Brasil, conforme as preciosas informações que Numa
Pereira do Valle nos oferece.
[...] o ano de 1913 foi fertilíssimo na organização de sociedade de
seguros, principalmente, ou quase exclusivamente, sob a forma mútua. As
cousas mais disparatadas, organizações sem nenhum cálculo razoável, sem
nenhuma vista aos lculos de probabilidades, serviam para os
imprevidentes e pouco honestos manipuladores de tais instituições.
Consequência:- instituto de previncia de maior utilidade, como são as
sociedades tuas em suas várias modalidades, tornaram-se em dois anos,
entre nós, uma fonte de especulações inconfessáveis, enriquecendo uma
dúzia de homens sem escpulos em prejuízo de quase toda a população
brasileira.
590
Não é demasiado anotar que a alentada obra do Professor Carvalhaes
Ribeiro, que serve como uma importante referência teórica para este trabalho,
adota como tema a regulação estatal da atividade seguradora privada.
Ocupando-se, na primeira parte do livro, de investigar a origem e a evolução
histórica da regulação da atividade seguradora no Brasil e no mundo e, na
segunda parte, dedica-se aos fundamentos da regulação.
O dado seria desimportante, o fosse o detalhe que, ao final do primeiro
capítulo, após substancioso e singular cotejo das concepções preponderantes do
seguro privado, com indisfarçável predileção do autor pelo seguro de empresa,
se oferece com considerações sobre a atividade regulatória, segundo as quais:
[...] a história nos mostra que as seguradoras podem
espontaneamente, a depender dos interesses presentes em seu interior, visar
a fins diversos do lucro e não obstante florescer em sistemas econômicos
capitalistas. Referimo-nos aqui às cooperativas, em especial às de pequeno
porte, que ainda hoje representam um relevante meio de obtenção de
proteção securitária nos EUA e na Alemanha. Essa forma espontânea de
organização societária merece ser estimulada pela regulação estatal, pois os
resultados que ela é capaz de gerar são comprovadamente positivos.
591
590
Numa Pereira do Valle. Seguro Marítimo e Contrato de Risco. São Paulo: 1919. p. 13. Apud Pedro Alvim, O
Contrato de seguro, pág. 53.
591
Ibidem, pág. 19.
351
III.2.2. O seguro mercantil
Fig. 1
592
Outra vertente histórica do seguro parte das explorações marítimas do
Mediterrâneo, o que acaba por conduzi-lo ao seguro de empresa, seguro de
risco, atividade tão difundida na Idade Média, sobretudo a partir do século XV,
mais precisamente na Península Itálica.
Em virtude da deficiência de recursos tecnológicos hoje conhecidos,
pode-se imaginar o quanto o mar constituía rota de perigo e de mortalidade. Por
séculos a fio somente se navegava durante o dia e nas épocas mais apropriadas.
Ao anoitecer, a embarcação atracava em local de menor risco e somente no dia
seguinte a viagem era retomada. Poucas opções se ofereciam, pois os
navegadores da Antiguidade contavam com a navegação costeira, a qual era
baseada em pontos fixos em terra para orientação da rota dos navios; os
deslocamentos eram estimados através da velocidade, direção da corrente e
outros aspectos pelos quais se utilizavam para estimar a posição dos astros.
Somente com o aparecimento dassola, do sextante
593
, das cartas náuticas, dos
592
Imagem colhida do website http://www.tudosobreseguro.org.br/sws/portal/paginaphp?1=382
593
SEXTANTE. s. m. (geom.) a sexta parte do círculo. // (Fis.) Instrumento de reflexão em que existe um limbo
graduado, o qual é a sexta parte do círculo, e serve para medir ângulos, a altura dos astros, bem como as suas
distâncias angulares, etc. muito usado na navegação para determinar a posição do navio sobre a superfície do
mar]. (Caldas Aulete, Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa, vol. V, págs. 3729/3730, verbete:
“sextante”).
352
radares e da sinalização náutica, dentre outros recursos, é que se tornou possível
o desenvolvimento e a segurança da navegação.
594
os gregos, romanos e fenícios haviam, na Antiguidade, utilizado forma
racional de mitigar os riscos provindos dos perigos dos mares Egeu e
Mediterrâneo, ao que denominavam “empréstimo marítimo”, que seguia, grosso
modo, o seguinte esquema: um capitalista emprestava dinheiro a um armador a
fim de que este financiasse uma viagem marítima de negócios, com a promessa
de que, em caso de sucesso da jornada com o retorno seguro da embarcação ao
porto de origem, o devedor retornaria ao capitalista credor a importância
emprestada, acrescida de juros. Nem capital nem os juros seriam exigidos em
caso de fracasso da viagem e perda do navio.
Foi a proibição da prática da usura, retratada na célebre obra de Willian
Shakespeare, O Mercador de Veneza”, que fez com que essa prática caísse em
desuso na Idade Média e, em consequência, viu surgir uma nova operação em
substituição, com nova conformação de seus elementos, o que transformou e se
tornou conhecido como seguro marítimo. Como mecanismo primeiro de
contorno da referida proibição, dividia-se a operação do empréstimo marítimo
em duas partes, sendo a primeira delas consistente no empréstimo ao armador,
propriamente dito, feito de modo simples, ou seja, sem juros, o qual se associava
a um segundo contrato, através do qual o capitalista se remunerava pelo risco
que corria ao promover o empréstimo. Ao depois, essa alternativa evoluiu para
uma ficção jurídica, assim delineada: um terceiro, o ligado às atividades
mercantis ou ao transporte marítimo, declara ter recebido um empréstimo do
armador, prevendo esse contrato a dispensa do pagamento em caso de sucesso
da viagem empreendida pelo mutuante fictício. No entanto, caso a viagem
“naufragasse” e o navio se perdesse, o terceiro deveria devolver a quantia
594
Cf. J. Haroldo dos Santos e Carlos Rubens Caminha Gomes, Curso de Direito Marítimo, págs. 02/03.
353
ficticiamente tomada. Para que o terceiro corresse esse risco, o armador lhe
pagava certa quantia em dinheiro. A ficção aos poucos foi se desfazendo, a
que o contrato de seguro marítimo, nos moldes como hoje o conhecemos, estava
praticamente formado. Por esse novo modelo, cumpria ao capitalista pagar ao
armador o suposto empréstimo, isso, naturalmente, na hipótese de fracasso do
empreendimento marítimo visado pelo negócio. A contrapartida a ser dada pelo
armador, tão somente em virtude do risco assumido pelo segurador, era o
pagamento de quantia estipulada.
Parece mesmo ser esse o ponto de origem do seguro, vez que não
encontramos na doutrina disponível a que tivemos acesso nenhuma dissidência,
embora algumas delas façam ligeira referência sobre suposto mistério em torno
dessa inauguração, como é, e.g., a professada por Francesco Rocco, que abre o
primeiro capítulo de sua obra L´Assicurazione maritima ed aeronautica nel
diritto interno ed internazionale, afirmando que I primordi dell´assicurazione
maritima sono involti nel misterio (Os primórdios do seguro marítimo são
envoltos num mistério).
No entanto, logo a seguir, esse autor italiano também nos oferece:
Nel Medio Evo il negoziante, comprata la merce, la affidava pel
transporto ad un commissionario, che dava nel contempo garanzia contro i
rischi del mare. Il commerciate moderno, per conto, invece di pagare il nolo
e la assicurazione separatamente, lasciaonere al venditore, a cui nel
prezo della merce imputa anche il costo dell´uno e dell´altra (Bensa). Pur,
non potendosi, quindi, precisare l´epoca della nascita dell ´assicurazione,
tuttavia le moderne ricerche hanno ormai assodato che giá verso il 1300
vevivano stipulati vei e propri contratti assicuratori, come cosa consueta e
ausilio necessario al comercio, nelle pincipali città marinare e centri
commerciali d´Italia.
595
595
Francesco Rocco, L´Assicurazione maritima ed aeronautica nel diritto interno ed internazionale,g. 1.
354
Traduzimos:
Comprada uma mercadoria, o comerciante, na Idade Média, a
confiava a um comissário para transporte, o qual lhe dava garantia contra os
os riscos do mar. A empresa moderna, porém, ao invés de pagar o frete e o
seguro separadamente, deixa o encargo para o vendedor, que é aproximar o
mercado pelo custo de um e de outros (Bensa). Embora não podendo
precisar o momento do nascimento do seguro, a pesquisa moderna, todavia,
tem estabelecido agora que por volta do ano de 1300 já se assinavam
contratos e apólices de seguro de veículos, assim como o habitual e
necessário para ajudar o comércio, as principais cidades marítimas e centros
comerciais da Itália.
De tudo, parece-nos claro que o surgimento da empresa de seguros se liga
inquestionavelmente ao período histórico posterior às Cruzadas, as quais,
embora não tenham sido bem sucedidas quanto aos propósitos iniciais almejados
pela Igreja, proporcionaram resultados inesperados e determinantes de novos
rumos para a História. Com efeito, além de acelerar o fim do feudalismo e do
Império Bizantino, as Cruzadas repercutiram no processo que culminou na
reabertura do Mediterrâneo, medida que se mostrava oportuna principalmente
em virtude dos novos contatos estabelecidos com o oriente. Associando mais,
nesse contexto, o aumento da produção que se fez a partir da introdução das
novas técnicas apropriadas desde o século XI, estavam em processo de reação os
ingredientes ensejadores do renascimento comercial e urbano. Os tempos
pareciam estar deixando a cerração da Idade Média e ingressando na vida
moderna, toda iluminada e com promessas convincentes de prosperidade.
c. 1100 a.C, Grécia e Fenícia, em virtude de sua intensa atividade
comercial no mar Mediterrâneo, são as primeiras a se lançarem na jornada da
expansão marítima. Mercados dotados de porto, v.g., Biblos, Atenas, Tiro e
Cartago enchem-se de matéria prima como ferro, estanho e chumbo. Colônias
ocidentais proporcionavam que viessem especialmente azeite e trigo. Como se
vê, tudo era desenvolvimento.
355
Embora a economia na Europa se mantivesse eminentemente agrícola e
feudal, o capitalismo surgia, fazendo ressurgir com ele a figura do comerciante
que se instalava às margens dos feudos, locais que acabaram por se constituir em
verdadeiras praças de comércio e, por isso, passaram a atrair a atenção e a
presença cada vez mais numerosa de pessoas. Esses locais ficaram conhecidos
como burgos e, em decorrência, burgueses os seus ocupantes que, vimos, eram
os comerciantes em ascensão econômica e, muitos deles, saídos de condições
miseráveis como servos dos feudos.
Na Península Itálica, por exemplo, a prosperidade resplandecia e os seus
protagonistas, os burgueses, visando maior lucratividade, estabeleceram um
complexo sistema econômico, envolvendo indústria têxtil, de maior importância
em Florença, por exemplo; o comércio, através do qual os mercadores se
encarregavam do fornecimento de matéria prima aos artesãos, aquisição, em
seguida, dos artigos fabricados, e posterior transporte e revenda desses bens; e
finanças, que hoje conhecemos como atividade bancária, mas, que, naquela
época, consistia em facilitar a transferência de fundos entre cidades e resolver
problemas advindos das várias moedas em circulação, sem correspondência de
valores entre si, ou seja, o câmbio.
Sobressai evidente que o elemento comum a todos esses empreendimentos
é a busca pelo lucro, iniciativas que se rotularam capitalistas exatamente pelo
fato de se caracterizarem pela aplicação do capital em certa organização, com o
único e exclusivo objetivo do lucro.
Esse o cenário em que o seguro aparece de modo profissionalizado, ou
seja, explorado em nível empresarial. Nasce, portanto, contaminado pela
pujança do capitalismo e, em decorrência, comprometido com a realização do
ganho empresarial, o lucro, através da oferta de seguro.
356
As companhias de seguro aparecem primeiramente nas cidades comerciais
italianas do século XVI, de início oferecendo proteção contra riscos do mar.
Assim se expandiram por toda a Europa, mas, somente no início do século
XVIII, incorporam na atividade a proteção contra incêndio e, logo, o seguro de
vida. No século seguinte, sedimentada, a atividade cresceu significativamente
pela proliferação de novas empresas seguradoras e pela criação de diversos
novos ramos de seguro, inclusive o resseguro, assim como também aparecem
criados órgãos estatais para supervisão do já consolidado mercado de seguros.
Lecionando acerca das vertentes contrapostas da atividade securitária, o
citado Professor Amadeu Carvalhaes Ribeiro professa:
As sociedades seguradoras do tipo capitalista representam a prática
securitária orientada para a obtenção de lucro, por oposição às sociedades
cooperativas, orientadas para a proteção de seus cios contra determinado
risco. [...] A seguradora que se estrutura como sociedade de capitais, ao
contrário, é focada em captar recursos financeiros: seus sócios são uma
fonte direta desses recursos e têm interesse em fornecer tanto capital à
seguradora quanto seja necessário para que ela realize lucro. Se mais capital
representar mais lucro, grande será o estímulo para que os cios invistam
cada vez mais. Considerando que o capital é o maior insumo da
atividade, torna-se clara a vantagem competitiva que uma seguradora
do tipo capitalista tem em relação a uma cooperativa.(destacamos em
negrito)
596
O modelo econômico da Baixa Idade Média, portanto, como vimos,
representou uma resposta necessária de ruptura com o modelo tradicional antes
vigente, deixando para trás uma época de economia de subsistência com base
agrícola, realidade de estagnação, sem comércio, sem mercado, sem intercâmbio
de qualquer natureza.
Portanto, nesse contexto se deu o processo de mundialização mercantil e,
a partir deste, a economia monetarizada como instrumento de facilitação das
596
Op. cit., pág. 18.
357
transações comerciais, ensejando o surgimento de financistas, de instituições
bancárias, dos instrumentos de crédito, do uso de metais nobres para confecção
de moedas; enfim, era o capitalismo florescendo em pleno século XV, sistema
econômico baseado na propriedade privada dos meios de produção a serem
usados de modo contínuo com o escopo da realização do lucro.
A o ano de 1620, por exemplo, Lisboa era o epicentro do mundo, uma
vez que de se controlava o comércio marítimo internacional. Paulatinamente,
países como a Bélgica e a Holanda começam a despontar como grandes
potências do mar, o que ocorre na mesma proporção do declínio português.
Antuérpia, na Bélgica, se apresentava como centro comercial mais
proeminente da Europa no ano de 1629, conservando essa importância pelo
menos até o final do século XVII. É criada a Companhia das Índias Orientais na
Holanda, primeira grande companhia moderna a dedicar-se ao seguro de
transporte marítimo, cobrindo riscos contra caravelas, mercadorias e armazéns,
contra danos oriundos de tempestades, pirataria e incêndio. Amsterdã, entre o
século XVI e fins do século XVII, assumia a liderança comercial, quando, eno,
começa a evidenciar-se a hegemonia londrina, momento a partir do qual a
Inglaterra, com efeito, sabemos, se tornava a nação comercial dominante no
cenário internacional.
597
Sobre o surgimento e perenidade da força inglesa na economia mundial,
principalmente a partir do século XVII, uma particular ironia se instala na
História, peculiaridade relacionada à empresarialização do seguro e, desse
modo, também, a exploração da atividade com o propósito de lucro.
597
Para uma investigação mais aprofundada sobre a origem e evolução histórica do seguro no mundo, vide nossa
DM, págs. 68/94; Pedro Alvim, O Contrato de seguro; Giuseppe Fanelli, Le Assecurazioni; Nicola Gasperoni,
Le Assecurazioni; Paulo Pompéia Gavo Gonzaga, O seguro na vida cotidiana; Issac Halperin, Leciones de
Seguros; Ignácio H. Larramendi et. al., Manual Básico de Seguros; J. C. Moitinho de Almeida, O contrato de
seguro no direito português e comparado; Celso Marcelo de Oliveira, Teoria Geral do Contrato de Seguro;
Michéle Ruffat et. al., l´ÚAP et l´|Histoire de L´Assurance, dentre outros.
358
Ou seja, embora o horizonte capitalista sempre tenha sido o lucro, o
método utilizado nessa época não se compatibilizava com o que aqui
denominamos seguro técnico. Ao contrário, herança tradicional dos mercadores
de Veneza dos séculos XII a XIV
598
, os capitalistas que se punham a operar com
atividade securitária aceitando garantir interesses dados a seguro por armador ou
comerciante naqueles tempos, eram chamados a assumir riscos que naquelas
circunstâncias eram tão grandes, de sorte que a aceitação incorria, no mais das
vezes, na divisão dos riscos cobertos entre vários seguradores. Estes, à falta de
administração científica da atividade seguradora, envolviam-se em verdadeiras
apostas e respondiam individualmente pelas coberturas que aceitavam, o que
representa - essa a curiosidade - riscos sobre suas riquezas pessoais. Por conta
disso, há registros, inclusive, de que a Lei Genovesa de 1467 teria sido uma
providência legal de proteção do seguro contra as apostas e, também, para
criminalização dos abusos e fraudes dos segurados, o que alastrava
impunemente.
599
Esse dado de curiosidade se estende para o caso do Lloyd´s, referência
obrigatória ao se estudar o seguro mercantil, posto que, veremos, a sua atuação,
longe da imagem de que se constitui em uma tradicional e poderosa empresa
seguradora, outra coisa não é, e nunca deixou de sê-lo, senão uma associação de
tomares de riscos (underwriters
600
), que aceitam individualmente a cobertura de
riscos e respondem com suas economias pessoais.
Como, eno, aceitavam emprestar cobertura a riscos de outrem? Como
colhiam informações sobre conveniência e oportunidade de contratar?
598
Vide Ignácio H. de Larramendi; J. A. Pardo; J. Castelo. Manual Básico de Seguros,g. 4.
599
Os Países Mediterrâneos enfrentaram no século XV a necessidade de proteger o seguro contra a prática das
apostas, e os seguradores contra os abusos e crimes dos segurados. Com a proliferação dos negócios de seguro,
quando atividade extravasou os limites do seguro marítimo e tomou as cidades, a falta de conhecimento sobre os
riscos terrestres proporcionou uma crescente e generalizada especulação, com o conseqüente desvirtuamento do
seguro, degenerando-o em verdadeiro jogo de apostas. Daí a Lei Genovesa de 1467, proibindo a prática de
seguros terrestres.
600
Literalmente, subscritores.
359
É aqui que surge e assume importância vital para a história do seguro o
Lloyd´s Coffee House, um café inaugurado por volta de 1660 às margens do rio
Tâmisa, na esteira das novidades sociais londrinas eclodidas durante aquele
século XVII, lugar que se tornou hábito de frequência especialmente para
comerciantes e banqueiros.
Fig.
03
601
Consta de nossa dissertação de mestrado nota referente a esse dado
histórico, o que vale a pena reproduzir, nela incluída a nota de rodapé da redação
original:
O exemplo mais notório dessas reuniões de negócios pode ser
identificado no Lloyd´s Coffee House, um café londrino, ao que consta de
propriedade de Edward Lloyd
602
, onde, por volta do ano de 1.668, os
601
Les Lloyd´s Coffe House. Ilustração reproduzida da obra de Michéle Ruffat et. al., l´UAP et l´Histoire de
L´Assurance,...,g. 28.
602
Segundo consta das notas históricas que nos oferece Maurício Issa (O seguro no comércio exterior, pág. 20),
Edward Lloyd, que era garçom ou freqüentador de um café às margens do Tâmisa, observando as discussões que
ali eram realizadas por navegadores em torno de negócios, rotas marítimas, aliciamento de cargas, etc., idealizou
um sistema de ressarcimento dos prejuízos ocorridos em viagens marítimas, cujos riscos eram grandes e
360
seguradores (underwriters) passaram a se encontrar. Quase um século mais
tarde, mais precisamente no ano de 1.769, organizaram-se formalmente,
dando início à Lloyd´s de Londres, mais tradicional companhia de seguros
em todo o mundo. Em 1.779 adotaram a primeira apólice padronizada.
603
III.2.3. O seguro alpino
A adjetivação do seguro como alpino ou como norte-europeu se faz com o
objetivo de distinguir a atividade securitária desenvolvida em nível técnico-
profissional, mas, diferentemente da característica capitalista do seguro
mercantil, centrada na vinculação de pessoas para tua proteção contra riscos
diversos, tal como Michel Albert nos informa em sua obra.
604
É do nosso entendimento e temos defendido desde nossa dissertação de
mestrado, que os determinantes desencadeadores da atitude de prevenção no
homem se manifestam, se o antes, na questão do pprio desafio da
sobrevivência, envolvendo a busca e a manutenção de suprimentos das
necessidades primárias, básicas e comuns, como abrigo, alimento e defesa, no
seio familiar, contexto em que a avaliação dos riscos não se egoisticamente,
dado que os laços afetivos o incorporar nas preocupações comuns dos
integrantes de qualquer núcleo também os riscos que se endereçam contra os
demais, traço de comunitarismo, que confere suma importância para os
propósitos deste estudo.
A assertiva se assenta no fato inexorável de que a busca por segurança,
sempre teve início na família, em benefício de todos, o que revela a forma
comunitária, dado que desponta da característica de se enfrentar as adversidades
variados. Lloyd reuniu um pequeno grupo de seguradores individuais (underwriters), os quais subscreviam
seguros para garantir a liquidação de sinistros até o limite de suas fortunas pessoais. Essa organização chegou a
ser o maior grupo segurador do mundo, reunindo em torno de si milhares de subscritores.
603
Op. cit., pág. 142.
604
Capitalisme contre Capitalisme, op. cit., passim.
361
através da somatória dos esfoos individuais, não sendo, portanto, demasiado
repisar que as civilizações, sempre revigorando essa prática ppria e natural da
sociedade familiar, m se utilizado do método da diluição dos riscos entre os
integrantes de uma comunidade, isto, naturalmente, visando aumentar o poder
de resistência às agressões ou diminuir o impacto de eventuais perdas pessoais
ou econômicas sobre apenas um ou sobre poucos indivíduos do grupo.
Essa a característica essencial do seguro alpino, ou renano, no qual se
delineado o princípio da solidariedade como processo de defesa.
Voltando à obra de Albert, nela encontramos o ponto diferenciador entre
as duas concepções modernas do seguro, ambas marcadas e, por assim dizer,
determinadas pelas origens da montanha ou do mar e que o autor entende ser a
demonstração mais ilustrativa dos conflitos estabelecidos dentro do próprio
capitalismo, rompendo-o em dois, o anglo-saxão de tradição mercantilista, tal
como vimos no item antecedente, e o renano
605
, este filiado às tradições
cultivadas desde muito tempo nos altos vales dos Alpes, onde os aldeões
organizaram as primeiras sociedades de socorro mútuo já no século XVI.
Dessa tradição alpina surgiram vários organismos comunitários de seguro
e de previdência, os quais podem ser lembrados através das guildas, das
corporações de ofício, das entidades sindicais profissionais, etc., todas
cultivadas nas convicções de mutualização dos riscos. Por essa modalidade, cada
segurado suporta um custo relativamente independente da probabilidade de
ocorrência dos riscos que lhe é própria, de tal sorte que alimenta um fundo de
solidariedade e uma transferência dentro da comunidade que Michel Albert
nomina redistributiva. Ao que nos informa o autor, a prática desse seguro de
molde mutualista se conserva nos países onde tal prática foi originalmente
605
RENANO. adj. Do lat. rhenannus. 1. Relativo ao Reno, rio europeu ; situado às margens desse rio. E.
Relativo à Renânia. (Grande Dicionário Larousse Cultural da Língua Portuguesa, pág. 782, verbete: “renano”).
362
desenvolvida, Suíça e Alemanha, principalmente, tendo se estendido, talvez por
queses de sensibilidade comparável àqueles, ainda segundo o autor, também
para o Japão.
606
Em arremate da comparação que desenvolve entre os modelos
mediterrâneo e alpino de se fazer seguro, Michel Albert, que foi presidente da
AGF Assurances Générales de France, sintetiza que o seguro mercantil, de
origem marítima, diferentemente do alpino, proveniente das montanhas
européias, outra coisa não é senão o empréstimo altamente aventureiro para as
cargas dos navios venezianos ou genoveses e que terá futuro promissor na
Inglaterra, sobretudo, em Londres, através do Lloyd´s, relativamente às cargas
de chás embarcadas nos navios ingleses. No dizer do autor: Trata-se menos de
segurança e mais de uma gestão especulativa de desempenho do risco. Não há,
aqui, preocupação de redistribuição e de solidariedade, mas sim de avaliar o
mais exatamente possível a probabilidade de risco de cada um.
607
Em conclusão, enquanto a tradição alpina se mostra uma escola em que o
seguro constitui uma forma de organização da solidariedade, no modelo
mercantil ele tende contrariamente, ou seja, se inclina à diluição da
solidariedade, o que faz mediante a precariedade dos contratos e,
principalmente, pela hipersegmentação dos prêmios.
Indiscutivelmente, até pelas características que moldam o seguro
mutualista, essa modalidade é dentre todas a mais antiga e a mais coerente com
o propósito da vida em todos os sentidos, posto que, por ela, atendem-se os
reclamos mesmo irracionais, emergentes da pulsões libidinais como vimos
acima, e, como tais, decorrentes do organismo; responde-se aos imperativos da
606
Op. cit., pág. 107.
607
Ibidem.
363
sobrevivência, vez que provisiona o futuro e apazigua o presente; além de tudo,
irmana os mutualistas, dado o vínculo de fraternidade, de comunidade.
III.2.4. O seguro social
assurance sera t – elle socialle?
O seguro: será ele social?
(Bernard Laguerre)
608
SEGURO SOCIAL. Conjunto de garantias previdenciárias devidas
à população pelo Estado e, em alguns casos, por entidades particulares de
interesse público. Objetiva fornecer ao segurado e aos seus dependentes os
meios necessários à sua sobrevivência em casos especiais ou enquanto ele
estiver, temporária ou mesmo definitivamente, privado da capacidade de
exercer suas atividades profissionais. O seguro social destina-se, assim, a
cobrir os danos decorrentes de doença, desemprego, velhice, aposentadoria,
auxílio de natalidade, proteção a órfãos, viuvez, invalidez e acidentes. Os
recursos que garantem o auxílio previdenciário constituem, em certa
medida, uma poupança coletiva com vistas a cobrir os riscos próprios da
condição humana e da vida em sociedade. Nessas condições, o Estado
apresenta-se como principal promotor da aplicação e viabilidade dos
segurados sociais como órgão agenciador dos recursos arrecadados de
trabalhadores, empregados e fundos do próprio erário público. A instituição
dos seguros sociais decorre da consolidação e desenvolvimento da
sociedade surgida da Revolução Industrial e, particularmente, da difícil
situação de vida em que viviam as camadas assalariadas da população. Num
primeiro momento, desenvolveram-se entre os próprios trabalhadores,
organizações e associações de socorro tuo o chamado “mutualismo”
visando a enfrentar seu estado de pauperismo. Depois, o atendimento a essas
necessidades transformou-se em matéria de luta política para os grandes
movimentos operários do século XIX na Europa. Veja também:
Aposentadoria; Economia do Bem-Estar; Mutualismo; Previdência
Social.
609
A proteção social, mercê de suas características e de seus princípios,
deixou de ser matéria de segurança que se encerra nos limites do particular,
608
Bernard Laguerre, in l´UAP et l´Histoire de l´Assurance, pág. 89.
609
Paulo Sandroni, op. cit., págs. 761/762, verbete: “seguro social”.
364
tornando-se observável nos domínios do interesse público, o que, por certo,
reclama a intervenção estatal em busca da edificação de um abrigo social.
O seguro social, hoje enunciado como conjunto de garantias, a exemplo
de como consta descrito no verbete extraído do Dicionário de Economia Política
e que utilizamos na abertura deste subtítulo, se fez erigir da necessidade de
enfrentamento de diversos riscos oriundos do trabalho, v.g., a incapacidade
temporária ou permanente para o exercício de atividades laborais, quer por
velhice, por doença ou por acidente do trabalho, riscos inerentes que
acompanham e desafiam a sociedade desde o advento de sua formação, mas
acentuadamente a partir da Revolução Industrial.
Segundo renomados estudiosos, é uma especialização do seguro, tomado
pelo seguro de pessoas, cujo aparecimento corresponde ao resultado de
circunstâncias relacionadas com a produção de bens, evento de natureza
econômica eclodido na Europa do século XVIII e que a História registra como
Revolução Industrial.
Registre-se que a essa altura dos acontecimentos no mundo ocidental, o
seguro, como prática de segurança econômica, especialmente o seguro de vida,
estava de há muito consolidado, inclusive dotado de um acervo técnico que
possibilitava realizações mais abrangentes.
610
A introdução da máquina na produção de utilidades marcou uma profunda
alteração no processo produtivo como um todo, rompendo com o regime
artesanal que vigorava até aquele momento e, mais, cessando o período em que
o trabalhador desempenha suas funções por conta própria e com o uso dos seus
instrumentos de trabalho. Com a invenção da máquina o mundo ingressa na era
industrial, grandes empresas se organizam recrutando trabalhadores mediante o
610
Cf. Armando de Oliveira Assis, Compêndio de Seguro Social, pág. 47.
365
pagamento de salário, as cidades em torno das quais essas empresas se alojaram
passaram a receber volumoso contingente humano proletário, para quem a
sobrevivência passou a depender exclusivamente da força de trabalho que pode
ser “vendida” para a novel indústria.
A interrupção do exercício laboral representava para o trabalhador a
cessação de sua remuneração, o que aumentava o flagelo das famílias de
operários, dada a somatória de desventuras por que passavam, como
insalubridade das casas, inexistência de saneamento básico, promiscuidade na
convivência, tal como retratado na obra Germinal, de Émile Zola (1885).
Trata-se, à evidência, de um problema social a ser enfrentado pelos
governantes, assunto que proporciona observar o acúmulo histórico em torno do
mesmo tema.
De inúmeras experiências, modelos e locais em que soluções dessa
natureza aconteceram, algumas merecem destaque em virtude de um ou outro
aspecto de contribuição para o trato da assistência social, lato sensu.
Nas sociedades pré-industriais e precapitalistas exemplos de assistência
centrada na solidariedade são ltiplos. A família romana, e. g., tinha a
obrigação, através do pater familias, de prestar assistência aos servos e clientes,
encargo que fazia aparecer uma espécie de associação, com a contribuição dos
seus membros com o fito de ajuda aos mais necessitados. Durante o Império (27
a.C – 476), por exemplo, com o propósito de enfrentar problemas decorrentes da
aglomeração humana, os romanos, em particular os artesãos e atores, fundaram
organizações de amparo tuo que denominavam collegias, por meio das quais
prestavam assistência funerária (collegia tenuiorum) e de beneficência aos seus
membros.
366
Discorrendo sobre tais modelos de assistência mútua, Pedro Alvim, na
festejada obra O Contrato de Seguro, nos oferece:
Reuniam, em geral, os indivíduos mais pobres ou pertencentes a
classes humildes, com o propósito de angariar meios para a assistência
médica aos doentes, despesas de funeral, sepultura honrosa etc. (...) Os ricos
muitas vezes fomentavam a formação dessas associações e delas não se
esqueciam em seus testamentos. Num collegium todos os associados eram
“irmãos”, e, n´alguns o escravo sentava-se à mesa ou em conselho junto
com o homem livre. Cada “membro em bom pé tinha assegurado um bom
enterro”. (destaques do original).
611
No ano de 1601, a Rainha Isabel, da Inglaterra, editou o Poor Relief Act
ou lei de amparo aos pobres, considerada a primeira lei de assistência social,
através da qual instituiu-se uma contribuição obrigatória para fins sociais,
encarregando as paróquias de desenvolver programas de alívio da miséria, além
de consolidar outras leis de assistência pública.
612
Na Prússia das últimas décadas do século XIX, hoje Alemanha, Otto von
Bismarck, governante de extraordinária visão política, introduziu uma série de
seguros sociais, custeados pela classe operária, empresários e Estado, o que fez
na tentativa de minimizar a tensão existente nas classes trabalhadoras, ante as
precárias condições de trabalho e absoluta falta de assistência. São dessa época:
seguro-doença, seguro contra acidentes do trabalho e seguro de invalidez e
velhice. Esse conjunto de regras tornou, ainda, obrigatória a participação das
sociedades seguradoras e entidades de socorros mútuos.
613
A Igreja Católica, que sempre se mostrou preocupada com a instituição de
um sistema apto a formar um pecúlio para o trabalhador, através da encíclica
Rerum Novarum, de 1891, pregava a criação de sistemas universais de proteção
611
Op. cit., pás. 3/4.
612
Cf. Sérgio Pinto Martins, Direito da Seguridade Social, pág. 27; Miguel Horvath Júnior, Direito
Previdenciário, pág. 18.
613
Ibidem.
367
social. No papado de Leão XIII, autor da aludida encíclica, a Igreja Católica
passou por uma profunda renovação, especialmente nas áreas políticas e
pastorais. Leão XIII sucedeu Pio IX (1.878), que escolheu o seu nome, e,
embora contando com 68 anos de idade e com a saúde delicada, contrariou as
expectativas de um pontificado breve e dirigiu a Igreja por 25 anos. Durante esse
período, demonstrando habilidade política e diplomática, defendeu os direitos
dos trabalhadores e a prática de um catolicismo voltado para as queses sociais,
cuja mais notória expressão foi a encíclica Rerum novarum (1891).
Inaugurada uma nova fase do seguro social, a do constitucionalismo
social, Constituições de rios países incorporaram os direitos sociais,
trabalhistas e ecomicos, incluindo direitos previdenciários. A primeira
Constituição do mundo a incluir o seguro social em seu texto foi a do México
(1917, art. 123). A Constituição de Weimar, em seguida (1919), inseriu em seu
texto várias matérias de cunho previdenciário.
A Organização Internacional do Trabalho OIT -, criada pelo Tratado de
Versalhes (1919), passou a evidenciar a necessidade de um programa de
previdência social, e o fez aprovar em 192, sobrevindo várias convenções sobre
a matéria.
Nos EUA, sob presidência de Franklin Delano Roosevelt, foi aprovado o
Social Security Act, em 1935, através do qual se promovia ajuda aos idosos e
estímulo ao consumo, ao mesmo tempo em que instituía o seguro-desemprego
para os trabalhadores temporariamente privados do emprego.
Na Inglaterra, agora em 1942, o Plano Beveridge pugnava por um
programa de prosperidade política e social, garantindo receita suficiente para
que o indivíduo se mantivesse protegido contra alguns riscos sociais, como a
indigência ou a invalidez temporária. Essa iniciativa repercutiu de modo a
368
provocar o Governo inglês, o qual, a partir do Relatório Beveridge, apresentou
plano de previdência social, que deu azo à reforma ao sistema inglês de proteção
social, substituindo-o por um amplo plano de previdência social a partir de
1944.
614
A Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, contempla a
proteção previdenciária do indivíduo dentre outros direitos fundamentais da
pessoa humana, tendo em conta, no contexto da previdência social,
contingências bastante específicas, ou seja, aquelas que repercutem na vida
econômica do trabalhador; mira-se, pois, a sua proteção, i. e., uma técnica de
proteção específica que tem por fim debelar necessidades oriundas de
contingências também específicas.
615
No Brasil, desde a pífia disposição pertinente à seguridade social do art.
179 da Constituição de 1824, que preconizava a constituição dos socorros
públicos (inc. XXXI), passando pela Lei Eloy Chaves (Decreto-lei 4.682, de 24
de janeiro de 1923), primeira norma brasileira a instituir verdadeiramente a
previdência social no Brasil, até a Constituição vigente, que dedica todo um
capítulo ao tema da Seguridade Social, constata-se sensível evolução dos
institutos relacionados, sendo induvidoso que os mecanismos de proteção social
hoje disciplinados carregam admirável potencial de realização protetiva.
Como mudança considerável, cumpre observar que a teoria do seguro
social, por alguns denominada teoria do risco social, significou, entre s, a
superação da teoria da responsabilidade objetiva do empregador, também
denominada teoria do risco profissional, transformação que se operou através da
Constituição de 1969, deixando abandonada a idéia de que a responsabilidade
614
Ibidem, pág. 28.
615
Eduardo Rocha Dias e José Leandro Monteiro de Mado, Curso de Direito Previdenciário, págs. 28 e 49.
369
por qualquer infortúnio do trabalho seria do empregador, e adotando, em
evolução, a tese de que tal risco deve ser enfrentado pela sociedade.
616
Em conclusão do termo, possível sintetizar que o século XIX, tendo
registrado o mais admirável desenvolvimento industrial, disseminou o modelo
da produção de massa; em consequência, os comportamentos de acumulação de
bens e multiplicidade de serviços à disposição dos indivíduos, etc. Acentuadas
as desigualdades dos sujeitos, resultante maior da Revolução Industrial e seu
modelo produtivo, o Estado se viu impelido a tutelar a igualdade real dos
indivíduos, em superação da igualdade meramente formal. Assim é que se
conquistou o direito à educação, ao pleno emprego, à seguridade social, enfim,
os direitos sociais (Welfare State) ou de terceira geração.
617
616
Cf. Fernando Figueiredo de Abranches, Do Seguro Mercantilista de Acidentes do Trabalho ao Seguro Social,
g. 97.
617
Cf. Eliana Calmon, As Gerações dos Direitos e as Novas Tendências”, in Direito Federal - Revista da
Associação dos Juízes Federais do Brasil - Ajufe - nº 67, págs. 149/157.
370
Capítulo IV: O direito do seguro
O Direito do Seguro pode ser definido como um conjunto de normas
reguladoras da atividade securitária, esta entendida como fenômeno social e
econômico e, por conseguinte, jurídico. Nesse sentido, o mesmo é ainda
suscetível de ser classificado sob as nomenclaturas de Direito Público de Seguro
e Direito Privado de Seguro.
A respeito da dicotomia entre direito público e direito privado de seguros,
recomenda-se, em termos de aprofundamento do assunto, pesquisa da obra do
professor Enrique Linde Paniagua, particularmente no livro Derecho Publico del
Seguro
618
, em que o autor cuida, amiúde, da completa definição e segura
distinção entre os dois campos, com aplicação específica para o ramo do seguro.
618
Derecho Publico del Seguro, passim.
371
De todo o modo, indispensável para o desenvolvimento deste tópico,
permitimo-nos colacionar eslio do referido autor, não por acaso escolhido
dentre as lições mais elucidativas da distinção supra mencionada, assim
disposta:
El criterio decisivo, en cuanto al contenido de las normas y más
concretamente a las relaciones jurídicas y, por tanto, a sus
correspondientes elementos, para darles el carácter de privadas o públicas,
depende a nuestro entender del grado de autonomía privada que en ellos
exista. Diremos, de ese modo, que la produción del efecto (un contrato de
seguro, por ejemplo): tiene naturaleza privada si en la misma predomina la
autonomia de la voluntad, si los sujetos que intervienen en su producción lo
hacen libremente y, portanto, si son libres para desencadenar, desarrollar y
terminar la relación jurídica; y naturaleza pública cuando la incidencia
pública suponga la substancial eliminación en la producción del efecto de
la autonomia privada. Las dificultates para calificar la producción del
efecto, sin embargo, aparecen cuando los sujetos intervenientes no
participan con el miesmo grado de libertad y, s aún, cuando la libertad
está condicionada o limitada en uno, varios o la totalidad de los sujetos.
619
Traduzido o texto supra, temos:
O critério decisivo, quanto ao conteúdo das normas e mais
concretamente quanto as relações jurídicas, e, portanto, aos seus
correspondentes elementos, para dar-lhes o caráter de privadas ou públicas,
depende, no nosso entendimento, do grau de autonomia privada que exista
neles. Dizemos, desse modo, que a produção do efeito (um contrato de
seguro, por exemplo): tem natureza privada se na mesma predomina a
autonomia da vontade; se os sujeitos que intervêm na sua produção o fazem
livremente e, portanto, se são livres para desencadear, desenvolver e
terminar a relação jurídica; e natureza blica quando a incidência pública
suponha a substancial eliminação na produção do efeito da autonomia da
vontade privada. As dificuldades para qualificar a produção de efeito, sem
embargo, aparecem quando os sujeitos intervenientes não participam com o
mesmo grau de liberdade e, mais ainda, quando a liberdade esta
condicionada ou limitada em um, vários ou todos os sujeitos. (t.l.a.)
O assunto nos leva necessariamente à distinção entre seguro público e
seguro privado, de vital importância para o desate da presente pesquisa, o que,
no entanto, enfrentaremos adiante.
619
Idem, pág. 33.
372
Desse modo, nos limites deste pico, tomemos por Direito blico de
Seguro o conjunto de normas de intervenção estatal na economia, no particular
destinadas à regulação da atividade de seguros e que, conforme anunciamos
acima, constitui tema central da obra do Professor Amadeu Carvalhaes Ribeiro,
recorrentemente citada neste trabalho. Por Direito Privado de Seguro,
sublinhemos as normas de direito privado tendentes à disciplinação das relações
jurídicas em matéria de seguros, tais como, v.g., as constantes do Código Civil
brasileiro, Parte Especial, Livro I, Título VI, Capítulo XV, arts. 778 a 788.
Na medida em que, para os propósitos aqui alinhados, é desimportante a
separação das legislações segundo a classificação antes referida, a abordagem
deixa de distingui-las explicitamente, o fazendo na medida da necessidade
que eventualmente venha a se apresentar.
referimos acima sobre textos normativos da Antiguidade que versaram
sobre a matéria de seguros, tendo chegado até s fragmentos do Código de
Manu e do Código de Hammurabi. No século IX a.C., as leis de Rodes
620
(Jus
Navale Rhodiorum) fixavam as bases do processo da avaria grossa
621
, distinção
que se perpetuou entre os povos regidos por ordenamento jurídico, subsistindo
até hoje, por exemplo, em nosso Código Comercial, artigo 763.
Em 1318 consta ter sido publicada a "Ordenança de Pisa", que representa
a primeira manifestação legislativa conhecida sobre seguros que guarda
correspondência com a atual configuração. Há, no entanto, dissenso sobre a data
exata de sua publicação, havendo quem defenda ter sido em data foi muito
posterior, ou seja, em 1385, depois, portanto, do aparecimento da primeira
apólice de seguro marítimo, a qual, segundo notícia que nos chega, teria sido
620
Ilha grega do mar Egeu, perto da Turquia. [...] Importante escala comercial entre Egito, Fenícia e Grécia,
alcançou grande prosperidade a partir do século IV a.C., tornando-se a província romana sob Vespasiano.
(Dicionário Enciclopédico Ilustrado Larousse, pág. 1699, verbete “Rodes”.
621
Ignacio H. de Larramendi; J. A. Pardo; J. Castelo, op. cit.,gs. 2/3.
373
emitida em nova, Itália, no ano de 1347, referindo-se, esse primeiro Contrato
de Seguro, a um transporte de mercadorias entre Gênova e a Ilha de Maiorca
622
.
De fato, as primeiras apólices de que se tem notícia foram expedidas em
Pisa (11.07.1385) e outra em Florença (10.07.1397), cujas cláusulas
demonstravam elaborada disciplina jurídica, fato revelador de uma consciência
haurida em usos e costumes de diferentes praças comerciais da Itália, Espanha,
Portugal, Países Baixos e Inglaterra.
623
Em Barcelona do século XV, precisamente no ano de 1435, tem lugar o
aparecimento dos primeiros documentos legislativos sobre o contrato de seguro,
Las Capitulas de Barcelona, através dos quais se estabeleciam normas regentes
de elaboração do contrato, que deveria ser escrito. Impunha ao segurado
participação no risco, proibindo, assim, fosse segurada a inteireza dos bens,
proibindo, ainda, o duplo seguro, i.e., a hitese de um único bem ser dado a
seguro mais de uma vez.
624
Vejamos:
Une étape supplémentaire dans l´elaboration d´un droit maritime est
franchie en 1435 avec la publication du recuil législatif Las Capitulas de
Barcelona. Les assurances y sont énoncées dans plusieurs articles, prohibe
le cumul des emprunts à la grosse aventure, établit la présomption légale de
perte en cas d´absence de nouvelles d´un navire et interdit le jeu
assurances fictives. Las Capitulas de Barcelona ne s´applique qu´à la
Méditerranée et au Levant, èt demeure en vigueur jusqu´au XVII° siècle. Du
castillan, il est traduit en catalan en 1494, en italien en 1500, en français en
1577, et en allemand vers 1635. Reconnui par tous, y compris les
marchands arabes, il représente la première manifestation du droit
international en matière de navigation et d´assurance.
625
622
Em esp. Mallorca, a maior das ilhas Baleares, Espanha. (Cf. Grande Enciclopédia Larousse Cultural, vol.
XV, pág. 3743, verbete: Maiorca).
623
Cf. Pedro Alvim, O Contrato de Seguro, pág. 28.
624
Cf. Michèlle Ruffat et. al., l´ÚAP et l´|Histoire deAssurance, op. cit., pág. 25.
625
Idem, págs. 25/26.
374
Vertido para o português:
Um passo em frente no desenvolvimento de um direito marítimo
ocorreu em 1435, com a publicação do anuário legislativo Las Capitulas de
Barcelona. Os seguros são enunciados lá em vários artigos, proibida a
cumulação dos empréstimos para grande aventura, estabelecida a presunção
legal de ausência em caso de falta de notícias sobre um navio e proibido o
jogo e o seguro fictício. As Capitulas de Barcelona só se aplicam aos países
do Mediterrâneo e o Levant, e continuaram em vigor até o século XVII. Do
castelhano, foram traduzidas para o catalão em 1494, para o italiano em
1500, para o francês em 1577, e para o alemão por volta de 1635.
Reconhecidas por todos, incluindo os mercadores árabes, é a primeira
manifestação do direito internacional em matéria de navegação e de seguros.
(t.l.a.)
Com a proliferação de negócios de seguro por volta da Baixa Idade
Média, quando sua atuação extravasou os limites dos riscos do mar, vindo tomar
as cidades, a falta de conhecimento suficiente sobre os riscos terrestres levou à
especulação desenfreada e o consequente desvirtuamento do seguro,
degenerando-se em verdadeiro jogo de apostas, o que acarretou a proibição da
sua prática, tal como ocorreu em Gênova, a partir do ano de 1467.
626
Somente no
final desse século, mediante rigorosa regulamentação do seguro proposta por
juristas, com a adoção de instrumentos idôneos, v.g., os corretores de seguros e o
cosseguro, restaurou-se a confiança no instituto. Segue-se que a intensificação
marítima do século XVI impulsionou novamente o seguro, como haveria de ser,
quadro que resultou em intensa produção legislativa dedicada ao assunto,
aparecendo as Ordenanças de Florença, Burgos, Sevilha, Bilbao, Amsterdã e
Flandres.
Na perspectiva liberal clássica, as sociedades modernas, marcadas pelo
patrimonialismo que restou deveras impulsionado pela Revolução Industrial,
tomava o indivíduo independentemente de suas relações sociais, consagrando o
princípio da autonomia da vontade, este erigido a partir do conceito essencial da
626
Cf. Celso Marcelo de Oliveira, op. cit., vol. I, pág. 12.
375
dignidade da pessoa humana, preceito tão largamente explorado a partir do
século XVII, especialmente com a promulgação do Bill of Rigths, através do
qual, um século antes da Revolução Francesa, rompia-se com a monarquia
absolutista na Inglaterra, momento a partir do qual o poder de legislar e de criar
tributos saíram das os do monarca, passando para o Parlamento. Em França,
como dito, um século mais tarde, a Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão derruba o Ancién Régime, deixando gravada, porém, a marca da
burguesia triunfante de garantia da propriedade privada contra expropriações
abusivas. Na mesma senda de acontecimentos revolucionários e descobertas de
um novo mundo, a indepenncia das treze colônias britânicas da América do
Norte que, iniciada em 1776 com a Declaração dos Povos da Virgínia, resultou
em Estado Federativo no ano de 1787.
O Código Civil francês, tornado famoso sob o cognome de Código de
Napoleão, se constituiu em monumento jurídico inspirado pelos ideais da
Revolução e, portanto, insculpindo como pilares desse ordenamento a
propriedade e o contrato, este informado pelo princípio do pacta sunt
servanda.
627
Vide os dispositivos em sua redação original:
Art. 544. A propriedade é o direito de gozar e de dispor dos bens da
forma mais absoluta, desde que não se faça deles um uso proibido pelas leis
e pelos regulamentos.
Art. 1113.1. As convenções legalmente formadas valem como leis
para aqueles que as fizeram.
Seguiu-se que em 1896 veio à cena o Código Civil alemão (Bügerliches
Gesetzbuch – BGB) e, depois deste, as chamada codificações tardias, dentre elas
o Código Civil brasileiro de 1916.
627
Cf. Walter Antonio Polido, op. cit., pág. 11/12.
376
Aliás, aproximando-nos na realidade brasileira, assim buscando sua
origem direta mais remota, em Portugal, durante o reinado de D. Fernando I
(1373 1383), foi editada a primeira lei sobre seguros em língua portuguesa,
dizendo respeito a uma associação tua para seguros de navios de lotação
superior a 50 toneladas, os quais deveriam ser obrigatoriamente registrados. Esta
é a data do primeiro resseguro de que se tem conhecimento. Em 1375, ainda, D.
Fernando I fixa por lei um pagamento de duas coroas por cento sobre o valor
dos navios, e constituiu bolsas no Porto e em Lisboa. Quando algum navio se
perdesse ou fosse tomado pelo inimigo, essa perda seria repartida por todos os
armadores, caso os fundos existentes nas Bolsas fossem insuficientes. Em 1383
é publicada em Portugal a primeira lei nacional sobre seguros. D. João I, Rei de
Portugal, promulga a Carta Régia de 11 de Julho de 1397, em que o monarca
renova, confirma e amplia a instituição seguradora criada pelos seus
antecessores.
No Brasil, com a chegada da Família Real em Janeiro de 1808,
decorrência hisrica imediata aos avanços napoleônicos na Europa do início do
século XIX, tem início uma história brasileira do seguro. Logo na chegada, o
príncipe regente D. João contempla reivindicações de comerciantes locais, todos
bastante otimistas com a abertura dos portos ao comércio internacional, e cede
autorização para a criação da Companhia de Seguros Boa Fé, dedicada ao
seguro marítimo, criada por decreto de 24 de Fevereiro de 1808. Seguiram a
expedição da Carta Régia de 24 de Outubro de 1808 e a Resolução de 5 de
Fevereiro de 1810, através das quais foram autorizadas a funcionar,
respectivamente, mais a Companhia de Seguros Conceito Público, na Bahia, e a
companhia Indenidade, no Rio de Janeiro.
Já havíamos anunciado acima, ao final do tópico dedicado ao seguro
tuo, que a primeira seguradora autorizada a funcionar após o advento da
377
independência brasileira foi a Sociedade de Seguros tuos Brasileiros, isto
conforme o decreto de 29 de abril de 1828.
A então, i. e., antes da chegada da Família Real portuguesa em solo
brasileiro, não se encontram registros sobre atividade securitária. Com efeito, os
negócios da Coroa eram realizados diretamente por Portugal, e nisso se incluía o
comércio de produtos coloniais. Nesse sentido, nem seguros terrestres foram
praticados, nem seguradores existiam em território brasileiro antes de 1808. As
atividades securitárias eram regidas pelas disposições portuguesas, as
Ordenações Filipinas, as quais autorizavam a todos os negociantes nacionais ou
estrangeiros de boa fama e crédito, instalados dentro do Reino Unido de
Portugal ou nos seus domínios, que subscrevessem apólices de seguro, exigindo
apenas que fossem habilitados junto à Real Junta do Comércio e tivessem seus
nomes inscritos na Casa de Seguros de Lisboa, que fora fundada no século
XVII, e se submetessem ao regulamento da mesma. Decreto datado de 30 de
agosto de 1820, assinado pelo Rei no Palácio do Rio de Janeiro, alterou e
incorporou no Brasil a aludida regulamentação.
628
Com o início da atividade securitária por companhia brasileira atuante em
solo brasileiro, foram instaladas provedorias, chefiadas por escrivães, a fim de
que se encarregassem do registro e da cobrança de impostos incidentes sobre as
operações de seguros. Tais provedorias funcionaram até depois da proclamação
da independência em 1822, tendo sido extintas pela Lei de 26 de julho de 1831,
decretada pela Assembléia Geral do Império. A partir daí, conforme ditava a
citada lei, os antigos escrivães - e na falta destes qualquer pessoa idônea -,
poderiam emitir apólices; as operações de seguros tornaram-se isentas de
628
Pedro Alvim, op. cit., pp. 48 - 49.
378
tributação e os conflitos deveriam ser resolvidos por árbitros nomeados pelas
partes.
629
A Revolução Industrial iniciada no final do século XVIII e a divisão
internacional do trabalho conferiram à Inglaterra a hegemonia no capitalismo
mundial, liderança que se fazia sentir inclusive aqui no Brasil e que perdurou a
cerca de 1870, quando outras potências mundiais passaram a disputar com os
ingleses o controle dos mercados. No Brasil, a presença hegemônica inglesa que
vinha desde 1808, com a chegada da família real portuguesa em solo brasileiro,
se estende até 1902, regredindo a partir de então por meio da concorrência
travada com países exportadores de capital, disputa, aliás, que serve como causa
importante para eclosão da Primeira Grande Guerra em 1914.
O surto expansionista do comércio exportador, com destaque para a
indústria cafeeira, promoveu desenvolvimento acelerado de nossa instria de
seguros. No entanto, sem tradição e sem acúmulo na área, sempre foi
dependente da experiência secular das seguradoras estrangeiras, sobretudo das
européias, traço que pode ser aferido pelos contratos de seguro firmados na
época, os quais eram simples peças de tradução das normas constantes das
apólices e vertidas para o português, acolhendo, em muitos casos, condões
gerais de apólices não ajustadas à nossa realidade e cultura jurídicas. De todo o
modo, as seguradoras nacionais se limitavam a transcrever para as suas apólices
disposições utilizadas pelas congêneres estrangeiras. Resultava que os conflitos
advindos dessas relações contratuais não dispunham de ordenamento jurídico
próprio a ser dirimido pelo Judiciário nacional.
Reinante ainda a crise deflagrada por esse processo, veio o governo
republicano intervir de modo mais acentuado no mercado segurador, isto
629
Ricardo César Rocha da Costa, “A atividade de seguros nas primeiras décadas da república”. In: Verena
Alberti (Coord.), Entre a Solidariedade e o Risco: História do Seguro Privado no Brasil, pág. 25.
379
mediante dispositivo que ficou conhecido como Regulamento Murtinho, em
alusão ao então ministro da Fazenda Joaquim Murtinho. Tratava-se do Decreto
4.270, de 1
o
de dezembro de 1901, que, a par de estender as medidas da
legislação então vigente, especialmente diversas disposições da Lei nº 294/1895,
criou o primeiro órgão fiscalizador das atividades de seguros, a
Superintendência Geral de Seguros.
Subordinado ao Ministério da Fazenda, referido órgão foi subdividido em
duas superintendências, uma responsável pela fiscalização das companhias de
seguros terrestres e marítimos, e outra voltada para a fiscalização das empresas
de seguros de vida. Exercia a fiscalização preventiva e também a repressiva,
segundo a experiência européia e norte americana.
630
Dentre outras disposições
do Regulamento Murtinho, inseriam-se, ainda: a separação dos ramos vidae
“elementares”, vedando que uma mesma companhia explorasse os dois ramos;
os prêmios, dividendos e os pagamentos aos segurados deveriam ser totalmente
aplicados em valores nacionais; limitação, em cada operação, da capacidade de
retenção em até 20% do capital realizado pela companhia nacional ou
estrangeira.
IV.1. O seguro brasileiro de lege lata
Pedro Alvim, na sua densa obra O Contrato de Seguro, leciona que a
evolução do seguro no Brasil passou, até aqui, por quatro períodos, a saber: o
primeiro, de vínculo colonial e sem atividade econômica própria, caracterizou-se
pelo seguro marítimo praticado sob regulamentação da Casa de Seguros de
630
Idem, p. 40.
380
Lisboa e que se estende até o ano de 1850
631
, o seja, até a promulgação do
Código Comercial Brasileiro; o segundo, iniciado com o advento do Código
Comercial, se estende até 1916, momento em que foi promulgado o Código
Civil; o terceiro segue aa criação do Instituto de Resseguros do Brasil IRB,
no ano de 1939, e, por fim, o quarto, que vem até o presente momento.
632
Com o advento do Código Comercial, promulgado em 1850, o seguro
marítimo passou a ser regido no Brasil por dispositivo interno, propiciando que
outras seguradoras nacionais fossem criadas para a exploração desse ramo, além
de outras que, na esteira desse desenvolvimento, foram instaladas nos ramos de
incêndio e de seguro de vida.
De outra banda, o potencial desse mercado, aquecido em virtude das
possibilidades que se abriram com a regulamentação dada pelo Código
Comercial, despertou a atenção do Estado, vislumbrando daí a necessidade de se
estabelecer controle oficial sobre a atividade.
Primeiras mostras de intervenção e de controle, vieram à cena através dos
decretos s 2.679, de 02 de novembro de 1860, e 2.711, de 19 de novembro de
1860, os quais impunham às companhias de seguro, respectivamente, a
obrigatoriedade de apresentação de seus balanços e de pedido de autorização
para funcionamento e aprovação dos estatutos.
No Senado da República tramitou um projeto de lei em 1894, objetivando
a regulamentação da atividade de seguro, cujo projeto resultou na edição da Lei
631
Em Portugal e no Brasil o seguro era regulado pelo Alvará de 22 de novembro de 1684, o qual fazia remissão
a outro Alvará e uma Provisão, ambos de 1641. Posteriormente vigorou o Alvará de 11 de agosto de 1791, até
que nova regulamentação da Casa de Seguros de Lisboa foi aprovada pela Resolução de 30 de agosto de 1830. O
Código Comercial brasileiro, tomando como fonte o Código Comercial francês de 1808, ocupou-se somente do
seguro marítimo. Apesar de as outras modalidades de seguro só terem sido regulamentadas pelo Código Civil de
1916, a sua prática generalizou-se, principalmente desde a chegada da família real portuguesa em solo brasileiro
(1808), inclusive do seguro de vida, que o Código Comercial proibia em seu art. 686. (Cf. Waldirio Bulgarelli,
Contratos Mercantis, g. 646).
632
Ibidem, p. 48.
381
294, de 5 de setembro de 1895, primeira lei voltada para a regulação do
mercado de seguros, tendo sido regulamentada pelo Decreto 2.153, de de
novembro de 1895. Cuida-se, nesses diplomas, da fiscalização das empresas
estrangeiras que operavam seguro de vida no Brasil, delas exigindo a
publicidade de suas operações, bem como a obrigação de aplicação dos prêmios
arrecadados e das reservas técnicas em valores e bens no país. Além disso,
dispôs mais a norma: autorização prévia para funcionamento de companhia
mediante emissão de carta patente; exigência de depósito inicial como garantia
de operações; autonomia administrativa das seguradoras em relação às suas
matrizes no exterior; fiscalização dos livros pelo governo.
633
Conforme mencionamos acima, na esteira das codificações francesa e
alemã, sobreveio o Código Civil brasileiro, sob tutela intelectual de Clóvis
Bevilácqua, que inova em relação às matrizes europeias
634
e introduz disciplina
do contrato de seguro, embora, ao tempo de sua promulgação, não contasse o
Brasil com uma economia industrializada. Muito ao contrário, a economia de
então era basicamente agrícola.
635
Sem tradição em mercado de seguros, percebe-se que a movimentação
legislativa tem como objetivo regulamentar essa atividade econômica, àquela
altura exercida preponderantemente por companhias estrangeiras, tal como
informado logo acima. -se, portanto, que a atividade de seguro sempre esteve
sob a marca interventiva do Estado.
Fenômenos como a globalização e a comunicação digital se revelaram
marcantes a ponto de provocar intensa discussão ao longo do século passado,
tomando por referência o direito privado, sobretudo em virtude de não se ter
633
Ibidem, p. 37.
634
Os códigos francês e alemão não cuidaram de regular o contrato de seguro no corpo codificado, preferindo,
em ambos os casos, a legislação extravagante para trato da matéria.
635
Walter Antonio Polido, op. cit.,g. 12.
382
mais o Código Civil como configuração normativa unitária e generalizada,
eclodindo leis especiais fragmentárias da codificação e um considerável mero
de subsistemas normativos que, no nosso exemplo, podem ser vistos
emblematicamente a partir da Lei da Ação Civil Pública (Lei Federal 7.347,
24 de julho de 1985) e do Código de Defesa do Consumidor (Lei Federal
8.078, de 11 de setembro de 1990).
Diante das alternativas de enunciar princípios gerais aos quais se
submeteria a interpretação e aplicação das leis especiais ou de subordiná-las à
Constituição Federal, pedra fundamental de sustentação do edifício normativo
naciona, optamos pela segunda via, de modo que os princípios do direito privado
foram elevados e, assim, a propriedade, a família e o contrato ingressaram na
Carta Política de 1988, marco de transformação estrutural e de uma nova
racionalidade para o direito civil.
636
Desfazendo barreiras que separavam rigidamente o Público do
Privado, indaga-se o porquê da constitucionalização do direito civil. A
resposta é depositada na passagem da luta contra o despotismo político para
luta contra o despotismo econômico. A preocupação em eliminar
desigualdades econômicas e sociais encontrou lugar no Estado Democrático
de Direito.
637
Na esteira desse redesenho constitucional da autonomia privada, podemos
observar o significado axiológico proclamando o indivíduo e os direitos no ápice
da regulamentação, dada a adoção do princípio da dignidade da pessoa humana
como fio condutor do novo conceito de direito privado.
Eros Belin de Moura Cordeiro, pesquisador do cleo de Estudos em
Direito Civil-Constitucional da Universidade Federal do Paraná, escreve que o
advento da Constituição Federal de 88 representa um marco de transformação da
636
Marcelo Conrado e Rosalice Fidalgo Pinheiro (orgs.), Direito Privado e Constituição. Ensaios para uma
recomposição valorativa da pessoa e do patrimônio, págs. 6/7.
637
Idem.
383
teoria contratual, sendo indispensável observar, nesse contexto, três questões de
suma importância, a saber:
a) a alteração da postura metodológica do estudioso da matéria contratual,
pois a Constituição não somente impõe uma reflexão construtiva do direito
contratual, como também expõe uma visão contratual histórica (e, portanto,
mutável no tempo); b) a modificação do núcleo axiológico fundamental da
teoria contratual, que deixa de ter conteúdo individualista e patrimonial e
passa a adotar visão solidária e humana e c) a abertura sistemática
provocada pela Constituição Brasileira de 1988, documento recheado de
enunciados abertos (princípios e valores).
638
Por óbvio, o contrato de seguro não ficou infenso a tais transformações,
até porque, segundo os escólios colacionados acima, não se permite ao
legislador ordinário dispor em confronto com a nova configuração do direito
privado inscrito na Carta Política.
Portanto, sendo próprio do novo estatuto civil a superação do modelo
individualista que caracterizava o antigo diploma, é certo ainda que três novos
princípios básicos regem a nova ordem, quais sejam, a socialidade,
representativa da migração do modelo egoístico anterior para a nova concepção
de função social do contrato; a eticidade, princípio que realça a boa objetiva,
da lealdade de conduta e; a efetividade, princípio orientador da prestação
jurisdicional que deve ser comprometida com a realização da justiça, carecendo,
pois, de atuação criadora e dinamizadora do direito.
Bem por isso, consentâneo com essa nova ordem, o Código Civil (Lei
Federal nº 10.460), promulgado em 10 de Janeiro de 2002, este sob liderança do
jusfilósofo Miguel Reale, traz em sua Parte Especial, Livro I (Do Direito das
Obrigações), Título V (Dos Contratos em Geral), Capítulo XV (Do Seguro),
artigos 757 a 802, novas disposições do seguro brasileiro, deixando para trás o
638
“A Constituição da República de 1988 e as transformações na teoria contratual”, in Direito Privado e
Constituição. Ensaios para uma recomposição valorativa da pessoa e do patrimônio, Marcelo Conrado e
Rosalice Fidalgo Pinheiro (orgs.), pág. 212.
384
revogado Código Civil de 1916, no qual a disciplina correspondente se ocupava
do contrato de seguro, nos arts. 1432 a 1476, e que se valeu, como fonte, do
Código Civil do Cantão de Zurich.
639
Balizadas pelas diretrizes superiores de ordem pública introduzidas pelas
normas constitucionais de 88, acima mencionadas, as novas disposições legais
em torno do seguro no CC2002 apontam como novidades a atribuição da
natureza comutativa ao contrato, mercê da conceituação do objeto imediato do
contrato de seguro, ou seja, da obrigação da seguradora como sendo a de
garantia de interesse legítimo do segurado (art. 757), afastando-se da anacrônica
ideia sobre tratar-se de contrato aleatório.
Por outro lado, inova também quando retira o caráter solene da celebração
do seguro, classificando-o como consensual, vez que toma a apólice como
documento probante e não mais como condição de constituição do vínculo
jurídico entre segurador e segurado (art. 758).
Sobre o caráter consensual do seguro, Nelson Nery nior e Rosa Maria
de Andrade Nery anotam:
Contrato meramente consensual. O contrato de seguro está
perfeito e acabado com o acordo de vontades firmado pelas partes. Eventual
atraso no cumprimento da obrigação do segurado de pagar o prêmio devido
à seguradora constitui mora possível de ser purgada com a paga dos juros
devidos, à taxa pactuada, ou, na ausência dela, à taxa legal. O texto do CC
763, diferentemente do que prescrevia o sistema anterior, cria, para a
hipótese que prevê, sui generis, cláusula resolutiva expressa do negócio, que
impede que o segurado receba a indenização, ainda que purgue a mora.
640
De outra banda, cedendo às críticas hisricas de que o monopólio do
resseguro, detido nas mãos do Estado desde o governo de Getúlio Vargas, com a
639
Vide Waldirio Bulgarelli, op. cit., pág. 646.
640
Op. cit., pág. 452, nota nº 2 ao art. 763 do CC2002.
385
fundação do Instituto de Resseguros do Brasil – IRB em 1939, provocava
engessamento e estagnação do mercado segurador, o legislador brasileiro, por
meio da Emenda Constitucional 13, de 21 de agosto de 1996, deu início ao
que podemos identificar como processo legislativo de quebra do monopólio do
IRB, o que se consumou com a promulgação da Lei Complementar 126, de
15 de janeiro de 2007. A partir de 2008, portanto, com a regulamentação da
referida LC, a livre negociação de resseguros passou a imprimir nova dinâmica
ao mercado segurador brasileiro, o qual ainda se ressente, segundo alguns
doutrinadores, dos sessenta e oito anos de regime fechado e de consequente
estagnação do desenvolvimento tecnológico do setor.
641
Segue-se, portanto, estruturado o Sistema Nacional de Seguros, tal como
articulado no Decreto-Lei 73, de 21 de novembro de 1966, compreendido
pelo Conselho Nacional de Seguros Privados CNSP, a Superintendência de
Seguros Privados – SUSEP, o Instituto de Resseguros do Brasil, hoje IRB-Brasil
Resseguros S/A., as companhias seguradoras e os corretores de seguros.
IV.2. O seguro segundo a doutrina
Tem crescido em quantidade a doutrina em torno do seguro, a porque,
decorrentemente da crescente exploração econômica dessa atividade, o assunto
toma a pauta e se impõe como matéria relevante para o trato nas várias áreas do
saber. Demais disso, a produção legislativa, pari passu com a dinâmica do
mercado segurador nacional, tem provocado o estudo sistemático do seguro,
dada a abrangência e especificidades jurídicas que o distinguem das demais
modalidades contratuais.
641
A respeito, vide Walter Antonio Polido, op. cit., pág. 34.
386
No entanto, como todo o respeito que nos merecem os inúmeros autores
que se dedicam ao tema, inclusive os doutos, o se vê, das várias escolas
interpretativas do contrato de seguro, aquela que se debruça sobre a sua natureza
mesma, dela, e somente dela, retirando os contornos jurídicos que deveriam
nortear a construção de um entendimento mais balizado, sobretudo quando a
retórica invariavelmente gira em torno de valores como dignidade da pessoa
humana, justiça social, etc.
A título de exemplo do lugar comum em que se acomodam as doutrinas
disponíveis, podemos mencionar que honrosas exceções viam a comutatividade
no contrato de seguro muito antes do advento do CC 2002, vez que, na verdade,
jamais a álea do seguro técnico poderia ser tida como caracterizadora da
operação, tal como era assente na doutrina pátria
642
e também na estrangeira.
643
Outro aspecto de curial importância para a fiel conceituação da relação
jurídica em apreço diz respeito a se tomar por bilateral o contrato de seguro,
quando, à vista da multifacetação dos efeitos decorrentes dos vínculos
642
Em nossa DM (págs. 302/303) já referíamos sobre partidários da aleatoriedade do contrato de seguro, citando
alguns autores de nomeada. Verbis: “Entre nós, partilham da ideia civilistas de escol como Orlando Gomes
(Contratos, gs. 463/464); Caio rio da Silva Pereira (“Fontes das Obrigações” Instituições de Direito Civil,
g. 303); Maria Helena Diniz (Tratado teórico e prático dos contratos, Vol. IV, g. 375), Sílvio de Salvo
Venosa (Teoria Geral dos Contratos, pág. 46), Fran Martins (Contratos e obrigações comerciais, pág. 417), Luiz
Roldão de Freitas Gomes (“Contrato”, Curso de Direito Civil, pág. 314); Roberto Senise Lisboa (Contratos
Difusos e Coletivos, pág. 386); e outros. Mesmo uma significativa parcela da doutrina especializada em seguros
comunga desse entendimento, a exemplo, dentre outros, de Pedro Alvim (O Contrato de Seguro, págs. 123/124);
Maurício Issa (O seguro no comércio exterior, pág. 48); Ângelo Mário de Moraes Cerne (O seguro privado no
Brasil, pág. 23); Antonio Carlos Otoni Soares (Fundamento jurídico do contrato de seguro, pág. 42) e João
Marcos Brito Martins (Direito de Seguro. Respónsabilidade civil das seguradoras, pág. 35)”. OBS: No texto
original as obras aqui citadas entre parênteses constam de notas de rodapé.
643
Confira-se, dentre outros autores estrangeiros: Francesco Messineo (Manuale di Diritto Civile e Comerciale,
g. 173); Alberto Trabucchi (Istituizioni di diritto civile, pág. 792); J. C. Moitinho de Almeida (O contrato de
seguro no direito português, pág. 30); Isaac Halperin (Lecciones de Seguros, pág. 9); Gustavo Raúl Meilij
(Seguro de responsabilidad civil, págs. 23/24); Larramendi, Pardo e Castelo (Manual Básico de Seguros, pág.
32); Rubén S. Stiglitz (Seguro contra la responsabilidad civil, pág. 50), etc. Stiglitz, aliás, cita Ripert, J.
Boulanger, J., atribuindo-lhes o seguinte exemplo de contrato, verbis: si el siniestro no se produce, el
asegurado, al extinguirse el contrato, habrá pagado inutilmente. Caso contrario, el asegurado que sufra un
siniestro percibirá una fuerte suma en virtud del contrato, de donde concluyen que lo que es ganancia para uno,
es pérdida para el otro por lo que es imposible que un contrato sea aleatorio para una de las partes sin serlo
para la otra. (Traduzimos: “se o sinistro não ocorre, o segurado, ao extinguir-se o contrato, terá pago
inutilmente. Caso contrário, o segurado que sofrer o sinistro receberá uma grande soma em rao do contrato, de
onde se conclui que o que é vantagem para um, é perda para outro, porque é impossível que um contrato seja
aleatório para uma das partes sem que o seja para a outra”).
387
existentes, se pode admitir a existência de um contrato multilateral, na
medida em que os vários contratos de seguro celebrados pela seguradora fazem
nascer liame entre os segurados, o que pode ser identificado, v. g., pelos deveres
de lealdade contratual e veracidade.
A propósito, os escólios de Guido Alpa e Mário Bessone
L’abuso di condizioni generali di contratto è fenômeno diffuso
ovunque, perchè ovunque esistano mass production, mass distribuition e
imprese in posicione dominante il ricorso a standards negoziali funziona
sempre p come una técnica di dominazione delle contraparti deboli, che il
diritto comune dei contratti certamente non protegge e non tutela se non in
forma marginali.
644
Vertido para o português:
O abuso das condições gerais do contrato é fenômeno difuso em
qualquer lugar, porque em qualquer lugar existe produção em massa,
distribuição em massa e empresas em posição dominante. O uso de
negociações padronizadas funciona sempre mais como uma técnica de
dominação das contrapartes débeis, que o direito comum dos contratos
certamente não protege e não tutela, senão de modo marginal. (t.l.a.)
Ousamos dizer que neste ponto se identifica o maior dos desafios deste
ensaio, posto que, numa tentativa de reacender o debate acadêmico sobre o
contrato de seguro, insta, ainda que pretensiosamente, que se promova uma
revolta doutrinária em torno do tema, quiçá com possibilidades de refundação do
seguro, a bem da humanidade.
IV.3. A Jurisprudência do seguro
Com o escopo de demonstrar a inconsistência essencial que permeia a
tradicional operação de seguro, assim revelado inclusive pelo tratamento
644
I contratti standard nel diritto interno e comunitário. Terza edizione a cura di Fabio Toriello. G. Giappichelli
– Editor Torino, 1.997, p. 10.
388
jurídico dado à questão, cuidaremos de coligir neste trabalho arestos nos quais
os aspectos centrais da temática estejam envolvidos, notadamente no que
concerne ao tratamento que os tribunais vêm dispensando aos assuntos da
mutualidade, da solidariedade, da função social do contrato de seguro, etc.,
deixando, portanto, fora de nossas considerações os demais aspectos da relação
jurídica securitária conforme vistos pela jurisprudência pátria.
Nesse sentido, cumpre seja destacado o princípio da efetividade ou
operabilidade, introduzido no ideário do novo Código Civil e que se endereça à
magistratura nacional, no sentido de exortar a mesma a exercer o prudente poder
discricionário que se lhe confere por um novo sistema jurídico de cláusulas
abertas, cuja contrapartida, sem perder de vista a segurança jurídica, recai sobre
a já tardia incorporação na jurisprudência de decisões consentâneas com os
propalados princípios da função social do contrato e boa fé objetiva.
No entanto, pesem os avanços ideológicos conquistados pelo ordenamento
pátrio, não estamos ainda diante de uma realidade que autorize à magistratura o
uso ainda que equitativo da interpretação propícia à função social do contrato de
seguro, dadas as amarras essenciais contidas no sistema, especialmente no
sentido de não proibir à seguradora apoderar-se dos valores que sobram ao fim
da operação securitária, o que se acoimoda sob o adágio de que, para o sujeito
de direito privado, “se a lei não proibe, permitido está”.
De fato, não se ignora a grande marcha a ser ainda desenvolvida pelo
legislador pátrio no sentido de dar ao seguro trato legislativo compatível com as
suas marcas mais profundas e que aqui destacamos, o que, insistimos, deverá
ocorrer com o escopo de imprimir à atividade a sua destinação puramente
comunitária, por meio da socialização dos resultados operacionais, sem prejuízo
da justa remuneração pelos serviços especializados das seguradoras.
389
Não obstante a lacuna jurídica, espera-se do judiciário nacional, no que
respeita ao contrato de seguro, uma nova jornada de decisões criadoras de casos
típicos, voltadas para a plena realização da justiça, agora possibilitada por uma
legislação aberta, principiológica.
Portanto, se certa essa atribuição de poder jurisdicional, impõe-se admitir,
por exemplo, que não se coaduna com o propósito do legislador pátrio a
sobrevivência do princípio da plena autonomia da vontade, como a que se
estampa no aresto que segue:
EMENTA. Ação ordinária de Obrigação de Fazer Seguro de Vida em
Grupo com prazo determinado Pretensão de renovação pelos mesmos
termos e condições anteriormente avençados Ausência de obrigatoriedade
– Autonomia da vontade. Não concordando a Seguradora em renovar a
apólice por prazo determinado, comunicando previamente à estipulante do
contrato acerca da sua manifestação de vontade, o há como obrigá-la a
manter em vigor a mesma apólice, para atender unicamente os interesses
dos segurados, à vista dos princípios da autonomia da vontade e da
liberdade de contratar, não tratando-se, dessa forma, a sua conduta de ato
ilegal ou abusivo. (sic).
645
Destaca-se, mais, do referido julgado supra, ao encontro de nossa crítica
acerca do entendimento da relatividade dos efeitos do contrato de seguro,
referência sobre tratar-se, o contrato de seguro, de avença bilateral, nos
seguintes termos:
[...] a apólice de seguros é, por natureza, insvel, dependente da
incidência de sinistros ou mesmo da maior probabilidade de ocorrência dos
mesmos, o que influi diretamente no aumento ou diminuição do seu custo.
Assim, é evidente que a seguradora não pode ser obrigada a renovar o
contrato de seguro inicialmente avençado com o segurado, com as mesmas
condições e preço do vigente no ano anterior, e isso porque o seguro é um
645
TJMG - 18ª Câmara Cível - Agravo de Instrumento nº 1.0024.06.204402-9/001 – Comarca de Belo Horizonte
- Rel. Des. D. Viçoso Rodrigues. j. 06/02/2007. v.u.
390
contrato bilateral e não um serviço perpétuo, sem alteração de valores.
(sublinhamos).
646
Ora, sendo induvidoso tratar-se, o seguro de vida, de contrato de caráter
relacional e cativo, não se pode mais to-lo na senda da livre e absoluta
autonomia da vontade do segurador, mormente em se tratando de solução de
continuidade de um serviço essencial a considerável número de segurados, de
modo que a decisão supra coligida se revela na contramão da nova ordem
jurídica.
Por outro lado, decisões judiciais revelam a sensibilidade do judiciário
pátrio para a efetiva existência, no seguro, dos caracteres próprios do
coletivismo, ressaltados os aspectos do mutualismo e do solidarismo.
EMENTA: SEGURO Incapacidade parcial e permanente
Ausência de cobertura securitária Demanda de cobrança de capital
segurado Procedência Apelação provida para inversão do resultado do
julgamento.
647
Do julgado acima se destaca, ainda:
O princípio da força obrigaria dos contratos, assim, será sico ao
seguro, porque é com espeque nele que pode o segurador dimensionar sua
responsabilidade como gestor do mutualismo chamado “seguro, ou seja, a
massa de contribuições de dado universo de segurados, do qual faz parte
cada segurado e que, na conformidade do risco existente, concorreu com o
pagamento do prêmio e concorrerá no futuro na proporção do que os riscos
se agravaram. (destacamos).
646
Cumpre-nos anotar, a bem da verdade, que referido julgado, prolatado em sede de recuso de agravo interposto
contra decisão interlocutória proferida initio litis para indeferir pleito de antecipação dos efeitos da tutela
formulado pelo segurado, foi prudentemente revogada por decisão colegiada prolatada em se de de recurso de
apelação, conforme se do v.Acórdão assim ementado: “AÇÃO ORDINÁRIA – SEGURO DE VIDA –
CLÁUSULAS MODIFICAÇÃO DESEQUILÍBRIO CONTRATUAL. Tratando-se de contrato bilateral de
seguro de vida, com vários anos de duração, em que previsão de reajuste anual, não pode a seguradora
impor a substituição da avença por outra, com maior gravame para o segurado, o que vem contrariar os deveres
de boa-fé e de lealdade, que devem ser observados. (Apelação vel 1.0024.06.204402-9/003 Comarca de
Belo Horizonte – Rel. Des. Guilherme Luciano Baeta Nunes, j. 03/02/2009, v.u.)
647
TJSP 25ª Câmara de Direito Privado. Apelação com Revisão 871470-0/7. Comarca de São Paulo. Rel.
Des. Sebastião Flávio. j. 06/09/05, v.u.
391
Percebe-se, pela dicção do v.Acórdão, em benefício de nossa tese, que se
reconhece a conseqüência gravosa para a massa de segurados que resulta da
eventual licenciosidade ou imperícia no pagamento de eventos não previstos na
apólice, gizando o papel da seguradora como gestora do fundo mútuo.
, ainda, expressões contidas em julgados rios que deixam antever a
reprovação judicial da lucratividade da companhia de seguros que surge em
decorrência do resultado da operação técnica do seguro, principalmente quando
a mesma se basta, para esse mister, em alguns casos, em elevar a renitência em
aceitar honrar coberturas, valendo-se, no mais das vezes, de filigranas jurídicas,
cuidadosamente inseridas em cláusulas contratuais predispostas para adesão
preferencialmente – irrefletida de segurados.
Vejamos alguns exemplos desse reconhecimento.
Em questões dessa natureza, aliás, o custa assinalar que a imaginação das
seguradoras parece não ter limites... Talvez a mais curiosa para o
consumidor não versado em letras jurídicas, será simplesmente impossível
distinguir uma situação da outra sendo aquela que exclui indenização ao
furto simples (item 3, letra a’, fl. 49), mas a defere no furto qualificado ou
no roubo. Assim se chegando a situações absurdas: se o furto foi com mais
de um, em comparsaria (qualificadora do concurso de agentes, artigo 155, §
4º, IV, do Código Penal), é indenizável; se o autor obrou sozinho, não.
Se o ladrão desparafusar as dobradiças da porta, entrando no imóvel sem
quebrar, o haverá indenização; have se estourar a própria porta’,
pois caberá falar na qualificadora do rompimento de obstáculo, do
inciso II do § 4º. O que, insista-se, é de uma estupidez a toda prova, é feito
para ilaquear a boa-fé dos incautos.
Como com propriedade colocado em RT 765/339-341, “ao contratar o
seguro, o consumidor não é obrigado a conhecer a diferença entre roubo,
furto e apropriação indébita, sendo certo que seu único intuito é ser
ressarcido em caso de perda do bem”.
648
Mais:
648
Considerações constantes da Apelação Cível 327.060/4-2, da Câmara de Direito Privado do TJSP, Rel.
Des. Luiz Ambra e reproduzidas no bojo da Apelação com Revisão nº 296.680-4/2-00 – Comarca de Rio Claro
8ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Salles Rossi, j. 22.06.2006, v.u.
392
EMENTA: SEGURO EMPRESARIAL COBRANÇA Relação
contratual amparada pelo CDC Furto de mercadorias Negativa da
seguradora, sob a alegação de que ocorreu furto simples, quando a cobertura
contratual existe apenas para o furto qualificado Abusividade Cláusula
excludente que somente favorece a seguradora em detrimento do
consumidor Conceitos jurídicos que envolvem tipos penais são de difícil
compreensão ao consumidor não versado em letras jurídicas, que, por conta
disso, não está obrigado a saber a distinção entre furto simples e qualificado
Boa-fé do segurado (que ao contratar objetivava ser ressarcido em caso de
perda do bem) deve prevalecer Indenização devida nos termos do
contrato, com desconto do valor reclamado, do percentual de 10% a título
de franquia (expressa previsão contratual) Sentença reformada Recurso
parcialmente provido. (destacamos).
649
IV.4. O seguro brasileiro de lege ferenda
O Instituto Brasileiro de Direito do Seguro IBDS, sob a presidência do
ilustre advogado Ernesto Tzirulnik, patrocinou a coordenação de uma comissão
de juristas e cnicos em seguros, esforço do qual resultou a redação de um
anteprojeto, convertido no projeto de lei 3555, por proposição do Deputado
Federal José Eduardo Martins Cardozo (PT/SP), à Câmara dos Deputados, em
13 de maio de 2004.
O projeto segue o curso do processo legislativo no Congresso Nacional,
tendo recebido aprovação unânime o relatório em forma de substitutivo
elaborado pela Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria e Corcio
CDEIC da Câmara dos Deputados, isto em 02 de julho de 2008. Na sequência,
em 09 de setembro de 2009, ante a relevância e repercussão do assunto, foi
proposta e criada uma comissão especial para apreciação do projeto que, em
linhas gerais, busca a aprovação de um regime jurídico contemplativo da
emancipação legal do contrato de seguro, sob o pálio de modernidade e de
649
TJSP - 8ª Câmara de Direito Privado - Apelação com Revisão 296.680.4/2-00 Comarca de Rio Claro -
Rel. Des. Salles Rossi, j. 22.06.2006, v.u.
393
proteção aos contratantes, com especial enfoque para o atendimento à função
social do contrato, respeitados corolários da boa-fé, eticidade e probidade.
No entanto, pesem o esforço e o mérito da iniciativa parlamentar, urge
salientar que toda matéria relativa ao Sistema Financeiro Nacional, em que se
insere o trato securitário, se encontra no bojo da reforma do artigo 192 da
Constituição Federal de 1988, mercê do comando da Emenda Constitucional
40, aprovada em 29 de maio de 2003.
Como se sabe, antes do advento da atual Constituição em 1988, as
matérias relativas ao Sistema Financeiro Nacional eram objeto de legislação
infraconstitucional, sendo certo que, no que concerne ao Sistema Nacional de
Seguros Privados, o diploma legal regente se expressa através do Decreto-Lei nº
73, de 21 de novembro de 1966, a chamada Lei dos Seguros (LS).
Através da EC 40/03, num esforço de evolução ideológica e de
adequação das normas financeiras à realidade brasileira, a matéria, antes elevada
ao nível constitucional, se “desconstitucionalizou”
650
, de maneira que a redação
original do citado art. 192 restou substancialmente alterada, substituída que foi
pela seguinte:
O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o
desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da
coletividade, em todas as partes que o compõem, abrangendo as
cooperativas de crédito, será regulado por leis complementares, que
disporão, inclusive, sobre a participação do capital estrangeiro nas
instituições que o integram.
Portanto, ante os fatos anotados acima, percebe-se que todos os assuntos
relacionados com o sistema financeiro, inclusive o de seguros, repita-se, se
encontram na pauta política nacional, circunstância que desafia governantes e
650
Expressão utilizada por Alexandre Moraes na sua obra Direito Constitucional, 14ª ed.,g. 661.
394
parlamentares para a inauguração de uma nova etapa em prol da nossa
sociedade.
Com efeito, dos princípios específicos do sistema financeiro nacional
insculpidos pelo art. 192 da Carta Magna, ressaltam explicitados o de promoção
do desenvolvimento equilibrado e o de atendimento aos interesses da
coletividade, de modo que, para além da propriedade e dos contratos, também o
sistema financeiro resta convocado para o escopo da função social, princípio que
deve nortear todo o ordenamento que se avizinha.
No particular, é do nosso entendimento que a supremacia do interesse
coletivo imposto agora também ao Sistema Financeiro Nacional, significa o
encargo que se atribui aos operadores do setor de convergir a atividade para os
desígnios universais da sociedade brasileira, sobretudo no concernente à meta de
promoção do desenvolvimento equilibrado, assim entendido não o
desenvolvimento quantitativo, mas principalmente qualitativo da nossa
sociedade, tanto quanto anota o eminente professor José Afonso da Silva, in
verbis:
[...] é importante o sentido e os objetivos que a Constituição imputou
ao sistema financeiro nacional, ao estabelecer que ele será estruturado de
forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos
interesses da coletividade, de sorte que as instituições financeiras privadas
ficam assim também e de modo muito preciso vinculadas ao cumprimento
da função social bem caracterizada.
651
Quer nos parecer, pois, que estamos diante de oportunidade única de
trazer o sistema securitário nacional para o projeto de evolução já delineado pelo
revogado inciso VI do art.192 da CF.
651
Curso de Direito Constitucional Positivo, 21ª ed., pág. 800.
395
A fortiori, dadas as peculiaridades em torno das riquezas financeiras que
remanescem das operações securitárias, é lídima a aplicação desses recursos em
seguro voltado à proteção da economia popular, afora a curial importância do
seu emprego diretamente no desenvolvimento social, via de consecução do
Estado Brasileiro da Fraternidade, tal como preconizam os ideólogos do
capitalismo humanista antes referidos, liderados, no âmbito desta PUC/SP, pelo
eminente professor doutor Ricardo Hasson Sayeg.
652
Muito a propósito do tema legislativo, investigando sobre os horizontes
norteadores do aludido projeto de lei hoje em tramitação no Congresso
Nacional, eis que encontramos depoimento mais do que legítimo e ao mesmo
tempo elucidativo, proporcionado pelo já citado especialista Ernesto Tzirulnik, o
qual nos informa:
poucos anos escrevemos um anteprojeto de lei para regular o
contrato de seguro privado. Nessa oportunidade, embora não tenhamos
sistematizado, sobreveio como preocupação central garantir o máximo
acesso possível das pessoas ao serviço de seguro. Tínhamos
despercebidamente nos deparado com uma questão própria do debate para o
qual é vertida esta reflexão: garantir a dignidade humana criando meios
para que o fluxo da solidariedade propiciado pelo seguro corresse o
mais livre possível; bloquear a radicalização dos interesses empresariais
movidos pelo fim do lucro que, mesmo sem notar, acaba produzindo
práticas discriminatórias entre indivíduos e inibirias da interação entre a
atividade empresarial e a promoção dos homens e da sociedade, enfim,
práticas que se alheiam à função social do contrato de seguro.
(negritamos)
653
Com a palavra o Congresso Nacional!
652
Vide Tratado Luso-Brasileiro da Dignidade Humana, pág. 1.368.
653
Tratado Luso-Brasileiro da Dignidade Humana,g. 1.330.
396
QUINTA PARTE: CONCLUSÕES
397
01 – Neste estudo, tendo sido eleito o seguro como objeto a ser observado
diante dos modelos de sua atuação entre a solidariedade e o risco, julgamos
prudente percorrer o caminho teórico inverso, no sentido de identificá-lo antes
mesmo de sua manifestação. Ou seja, em perspectiva cartesiana de identificação
e domínio intelectual da relação entre causa e efeito, tentamos buscar
primeiramente, no indivíduo, a causa do seguro, providência que entendemos
útil à verificação da essência mesma do instituto, visando respostas às
indagações sobre ser ele passível de mera especulação mercantil ou, ao
contrário, dadas as causas de sua utilização deve ser-lhe destinado tratamento de
bem essencial da vida, vital à plena existência humana e sadia vida social e, por
isso, totalmente infenso a qualquer tentativa de privatização dos seus resultados.
Com esse intento, partimos para um minucioso estudo do homem enquanto
existência biológica, psicológica e social, afora verificarmos, em termos das
interações humanas e sempre com vistas aos mecanismos de segurança, o
surgimento e o desenvolvimento da humanidade, das sociedades e do Estado.
Feito isto, voltamos especificamente ao objeto e, agora, com propósito de
confrontar o seguro solidário, pura e inexoravelmente humano, e o seguro
especulativo, chamado de risco embora risco não haja este pura e
insensivelmente capitalista.
02 - Em busca dos elementos que compõem a própria natureza humana,
podemos observar que todo esforço despendido aaqui reafirma e reacende o
mesmo fogo com que Prometeu nos presenteou, recurso que paradoxalmente nos
libertou e nos impeliu ao flagelo eterno de lutar pela subsistência e pela
sobrevivência. Girando em torno de um mesmo eixo desde sempre,
prosseguimos superiores no reino animal, mas, embora cercados de tecnologias
e de feitos grandiosos, nos mantemos impotentes para seguirmos a jornada
altivamente, sem medos ou incertezas.
398
03 - Antropologicamente, como nos ensinam os mestres dessa área do
saber, a existência de regras estruturantes das culturas na mente humana em
função da organização do sentido, as quais podem ser explicadas segundo os
influxos psicológicos ou sob os domínios da lingüística. Do ponto de vista da
constituição biológica, o homem, tal como qualquer outro organismo vivo,
representa um complexo de células sensíveis a quaisquer tipos de estímulos
ambientais, sendo certo que mesmo hoje, em pleno século XXI da era Cristã,
nos identificamos com nossos ancestrais de cerca de 200.000 anos, com os quais
mantemos identidade de modelo constitutivo, deles tendo herdado a maior parte
de nossas características fisiológicas e mentais, além de com eles
compartilharmos as mesmas necessidades fundamentais. Podemos constatar,
ainda, com o auxílio de antropólogos e de cientistas sociais, que vivemos hoje o
resultado de uma acumulação cultural de cerca de seis milhões de anos, período
no qual desenvolvemos e conservamos pades de comportamento que
representam reação conjunta a estímulos impostos pelo meio ambiente.
04 O fato de sermos animais dotados de sistema nervoso explica que
todo o nosso comportamento consiste em reflexos, condicionados ou
incondicionados, os quais significam a combinação entre estímulos e reações do
organismo, sendo presumível que embora reconhecidamente superiores em
comparação com os outros animais, as diferenças entre a mentalidade humana e
animal sejam puramente quantitativas. Portanto, certo que todas as
características, físicas ou mentais, dos organismos vivos têm base genética ou
são influenciadas pelo ambiente, podemos concluir que as condões ambientais
exercem função modeladora e controladora sobre os indivíduos, alcançando em
relação aos mesmos, inclusive, condicionar padrões comportamentais e,
juntamente com isso, afetar os padrões emocionais, além de muitos outros
aspectos da vida orgânica, culminando com a formulação da capacidade
individual de resistência aos vários tipos de tensão.
399
05 Aprendemos a desenvolver e assimilar no superego os valores ideais
da sociedade, os quais recebemos a partir dos nossos pais no seio familiar e que
são também reforçados pelo sistema educacional, na base de premiação e
castigo. Por ser hetero-estruturado, o seu desenvolvimento permite uma
internalização gradativa, de modo que aquilo que era controle dos pais se deixa
substituir por autocontrole, mecanismo a partir do qual o se formando as
características próprias do indivíduo. Por esse processo, apresentam-se em cada
um as peculiaridades de seu personagem, isto através dos componentes que se
organizam em decorrência das qualidades psíquicas básicas, responsáveis pela
administração do funcionamento mental e emocional e que alimentam a
permanente expectativa de soluções confortáveis para os problemas da sua
existência. Dessa combinação se levanta a questão de se deduzir as inúmeras
manifestações da natureza humana, normais ou patológicas, sobretudo em conta
do enfrentamento das adversidades e expectativas que rondam a existência do
homem, em especial as relacionadas com a premente satisfação de suas
necessidades básicas.
06- Os animais em geral são regidos por leis biológicas, de modo que as
suas reações, por serem guiadas pelo instinto, podem ser antevistas, inclusive do
ponto de vista de sua regularidade, atividade especulativa de que se ocupa a
etologia. Não obstante a existência de certas espécies animais capazes de emitir
comportamentos mais flexíveis ou menos previsíveis, o se ignora que se trata
de uma inteligência concreta, imediata, i. e., um tipo de construção mental não
reflexiva, que se manifesta diante da experiência vivida, portanto, sem o
concurso de ideias abstratas, ou seja, de objetos da imaginação. De todo o modo,
mesmo reconhecendo a complexidade de algumas formas de organização social,
inclusive comunicacional, de algumas espécies de mamíferos superiores, é
inquestionável que os mesmos não cruzam a linha que demarca natureza e
cultura, possibilidade que pertence exclusivamente à condição humana.
400
07 - Diante dessa capacidade de desgarrar-se da natureza e assumir o
papel de agente transformador do ambiente externo, submetendo-o à sua
vontade, processo a que denominamos cultura, imediatiza-se a necessidade de
um método comunicativo capaz da integração de todos os componentes de dado
grupo social, instrumento de transmissão e de comunhão das ideias abstratas
entre os mesmos, concebidas pela imaginação. Ou seja, depende-se da
elaboração de uma linguagem simbólica que permita uma abordagem abstrata do
mundo circundante. É disso que decorre o processo de aprendizagem das novas
gerações, quando cada indivíduo, assistido por outros homens, aprende os
símbolos e os valores comunitários, recebe a tradição cultural e se torna capaz
de agir e de compreender a própria experiência, o que, dada a aquisição da
capacidade de pensar e agir, o torna habilitado para a vida social e para o
trabalho.
08 Eno, o processo de humanização depende de aculturamento, o que
se obtém mediante a consciência de si mesmo, associada à capacidade que
adquire de controlar a agressividade e a sexualidade, primeiramente cedendo
observação às normas morais e evitando as sanções impostas pela coletividade;
ao depois o assumidas pelo próprio indivíduo. Outro aspecto de crucial
importância para o aculturamento é a aquisição da linguagem simbólica e do
trabalho, comuns ao grupo social. Ora, desde que não se alimenta mais dúvida
sobre o fato de que o pensado é distinto do real, cediço, portanto, que a realidade
é externa ao homem, impõe-se reconhecer que a linguagem, por conseguinte, se
adapta a isso exatamente com o escopo de permitir um falar descritivo e um
falar interpretativo, o que exige isenção do sujeito falante em relação ao objeto
de que fala, sob pena de exercer sobre o interlocutor um desvio de compreensão
sobre a realidade e de permitir o exercício de um poder do emissor sobre o
receptor, num processo de ideologização.
401
09 - Com efeito, da contínua especulação de questões como a elucidação
do privilégio de identificar nomeadamente a essência das coisas através de um
código verbal e de esclarecer por que a linguagem verbal continua a ser a única
alternativa que possibilita essa operação de nomear, a par de contribuir para a
compreensão do fato de que o homem é o único ser que possui o dom da fala e
que, para a inteligência humana, a linguagem é o veículo de autoconhecimento,
o homem acumulou conhecimento alentado sobre o processo comunicativo, o
que lhe permite o uso de processos de linguagem capazes de condicionar
comportamentos ou, por outras palavras, de estimular reações predeterminadas.
Com efeito, sendo a linguagem uma propriedade primária fundamental para o
homem, através das palavras, que constituem apenas um caso particular de
linguagem, ele cobre a si e ao universo que o rodeia de significado, e com elas o
homem pode fazer disseminar significados condizentes com propósitos pontuais
e o necessariamente relacionados com a verdadeira descrição dos fenômenos
visados. Fala-se, aqui, portanto, do discurso retórico, exercício de poder
derivado da manipulação da comunicação, ou, nas sociedades mais complexas,
dos meios de comunicação de massa. A palavra é a estrutura do universo, a
reeducação do mundo natural. A linguagem expressa o pensamento e forma
social a ele.
10 - O pensamento, atributo da mente humana, possibilita ao indivíduo a
reflexão, o julgamento, as abstrações, análise e síntese, ou seja, o produto
intelectual que pode ser identificado pela certeza de si próprio e deste com a sua
circunstância. Some-se, ainda, a memória, que possibilita recuperar na mente o
passado e a fantasia. Apreendemos a existência das coisas por meio da atividade
sensorial e, assim, tomamos como certo que os objetos percebidos existem
mesmo e estão no mundo real, cuja existência independe da nossa vontade, dado
que nos permite divisar entre realidade e fantasia. Afora os objetos do mundo,
402
sensíveis tamm às outras pessoas, há ainda os objetos da nossa imaginação, os
quais pertencem exclusivamente à nossa fantasia.
11 Seguindo a trilha aberta por Kant, entendemos que o conhecimento
nasce da percepção e da inteligência. Pela primeira, um dado objeto nos é dado
e, pela segunda, esse objeto é pensado. Por consciência entenda-se
conhecimento, noção da própria existência e do mundo exterior, representação
mental clara da realidade, sentimento do dever, da moralidade, discernimento,
juízo, senso de responsabilidade, faculdade mental que permite a perceão
daquilo que se passa dentro do ser humano ou em seu exterior; parte da vida
mental da qual o indivíduo tem percepção. Surge do apelo moral a determinação
do indivíduo segundo sua consciência, de sorte que a consciência é o
chamamento do homem para si mesmo. Nisso difere frontalmente dos outros
animais, os quais, por não terem se desgarrado da natureza, como o fez o
homem, não têm consciência de si mesmo e por isso não precisam de um
sentimento de identidade.
12 - Os homens, embora semelhantes e originais no modo de
solucionarem o problema humano, não são semelhantes também nas formas e
modelos de ações e reações, já que estas recaem no campo das qualidades
psíquicas recebidas constitucionalmente, de um lado, e o caráter, de outro lado.
Ou seja, falamos da individualidade, da personalidade. Política e
economicamente liberto o indivíduo, sabendo pensar por si mesmo e livre de
qualquer pressão autoritária, pode-se cogitar de que esteja capacitado para ser
centro e sujeito ativo de suas potencialidades e de sentir a si mesmo como tal.
13 - O termo liberdade é indicativo do estado de ser livre ou de estar em
liberdade, de não estar sob o domínio de outrem; de estar desimpedido, de não
sofrer restrições nem imposições. Por outro lado, a liberdade tem sido
403
insistentemente representada como um modo de vida particular, em que se possa
fazer o que esem conformidade com a lei moral ou com a razão. Tomamos
como liberdade moral a capacidade de o indivíduo determinar a sua vontade
através do uso da razão, consistindo isto na realização de uma ideia de perfeição
em si e por si próprio. O objetivo do desenvolvimento de cada indivíduo é a
conquista da sua plena liberdade e independência, em busca da capacidade de
prover a sua existência exclusivamente a si próprio, o que é possível
tornando-se sujeito de suas ações, senhor de suas decisões, consciente de si
mesmo e do outro, sem laços de submissão em relação a nada e a ninguém. O
desejo mais forte do ser humano é o de construir ele mesmo a sua verdade, para
assim ser livre e manter-se humano.
14 O liberalismo doutrina a liberdade do homem como o atributo que o
faz soberano de si próprio. Ainda que a natureza, o mundo, os outros e mesmo
as próprias fraquezas possam afetá-lo, isto não diminui os privilégios de sua
vontade. Sob tal premissa torna-se de curial importância observar a atuação dos
fatores psicológicos no exercício da liberdade, cujas ações são pretensamente
determinadas pelo seu interesse próprio e pela capacidade de agir racionalmente,
em conformidade com esse interesse que é, inexoravelmente, e nisso é possível
antecipão, marcado pela impossibilidade de retorno à Natureza e que,
portanto, impele o homem a viver a sua existência humana, sem jamais poder
descansar, sendo inapelável que nem mesmo a satisfação inteira de suas
necessidades vitais, como fome, sede e sexo, lhe resolverá o problema humano,
isto porque suas paixões e necessidades mais intensas não são aquelas
instaladas no seu corpo, mas na própria circunstância da sua existência.
654
Trata-se, à evidência, da angústia inerente ao processo da vida humana, que
desestabiliza interiormente o indivíduo e lhe remete dúvidas quanto ao direito de
existir física e moralmente. Não obstante certo que o homem moderno não
654
Pág. 98 supra.
404
enfrenta mais a vida selvagem, o fato é que o medo permanece intenso e
servindo ao mesmo propósito da sobrevivência, embora os estímulos tenham
mudado.
15 Nesse contexto, em conta desse aspecto humano da liberdade, somos
levados a mirar o papel que os fatores psicológicos desempenham como força
autoritária, observadas as interações dos mesmos com os fatores econômicos e
ideológicos do processo social. Ora, sendo certo que o homem vive em dois
mundos distintos, o real e o imaginário, certo ainda que é indispensável para a
sua saúde mental, que sempre haja uma ligação entre os dois, sob pena de
loucura, vislumbra-se uma vulnerabilidade humana suscetível de manipulação,
bastando, para tanto, atuar no campo do imaginário, visando estimular condutas
pré-estabelecidas.
16 - O medo é componente útil à manipulação das vontades, posto tratar-
se de um sentimento imaginário relacionado à manutenção da vida e que,
portanto, perturba profundamente a existência humana, dada a capacidade
imaginativa do homem. O medo prepara o organismo para a luta ou para a fuga,
e, frente ao perigo real, vimos acima, o organismo emite resposta que se articula
involuntariamente, comandada pelas forças libidinais. Diante dos medos
imaginários, porém, o homem alimenta doenças e sofrimento. Desenvolve-se
uma reação cerebral em cadeia, iniciada por um estímulo de estresse,
culminando com a descarga de componentes químicos que causam o aumento da
frequência cardíaca, aceleração na respiração e energização dos músculos.
17 Com o nascimento, o homem é jogado e se encontra exposto a uma
situação totalmente aberta, indefinida e incerta, sendo-lhe possível somente
alimentar certezas em relação ao passado. Certeza em relação ao futuro é
somente a da morte, o que estimula a sensação de insegurança e lugar ao
405
surgimento de um imaginário do medo. No entanto, de tão banalizada, essa
situação não faz parte mais do trágico, mas do comum, já que o medo se
apresenta o tempo todo, e, inscrito no corpo, o medo cotidiano se transforma
no grande medo de se descontrolar, de perder o controle corporal, fazendo o
indivíduo socorrer-se de estratégias alternativas para lidar com essa emoção,
uma delas o medicamento.
18 - As sociedades posmodernas, absorvidas pelo processo de
globalização econômica, vivem em estado de violência real ou latente,
concorrentes para tanto fatores como as condições cio-econômicas, os níveis
cada vez mais elevados de miséria, a crescente deterioração do ensino público,
o distanciamento entre a escola e a tecnologia que se sofistica a cada dia, a
acentuada carência de equipamentos e de políticas blicas de esporte e lazer
destinados às crianças e aos adolescentes, contexto em que a vioncia deve ser
entendida como resultado negativo de uma ordem social bárbara que precisa
ser controlada seja a que custo for, como reação a uma sociedade de exclusão,
de rejeição, expressões de xenofobia e de recusa do outro
655
, tudo de modo a
fazer proliferar sentimentos de incerteza, de fragilidade, de insegurança.
19 - A capacidade de transcender o presente, ou seja, a consciência
imaginativa, proporciona ao homem a certeza de sua finitude e lhe impõe
sensação de impotência diante da polaridade entre a vida e a morte, fonte de
motivações psicológicas. Experimentando os males da modernidade, como
incertezas, desconfiança com relação à política, à paz mundial, desaquecimento
da economia, crescimento dos índices de desemprego e o medo moral de perder
o emprego, de faltar dinheiro, de perder o carro, percebemos que são maiores se
comparados com os medos físicos, como os de assaltos, seestros, terrorismo,
epidemias, etc., o que nos permite afirmar a existência de um estado
655
Vide págs. 108/109 supra.
406
generalizado de insegurança existencial, sentimento de desamparo e angústia
que acomete a todos e a todos impõe o flagelo da vigilância contínua.
20 – O mercado capitalista se beneficia disso, uma vez que primeiramente
explora o indivíduo na inculcação de anseios, desejos e necessidades
artificialmente projetadas, fomentando um modelo social imperativo, cujo
pertencimento se possibilita e se mantém na exata medida da capacidade de
consumo do indivíduo, para, depois, cuidar de fornecer a ele sofisticados
sistemas de segurança patrimonial e de defesa pessoal, confinando-o num casulo
egoístico. Tratando-se de um mal da posmodernidade, com ele nos defrontamos
alimentando profunda e crescente ansiedade, manifestação fisiológica
relacionada com o instinto de preservação da existência, isto num contexto em
que “viver é muito perigoso
656
, tanto que o conceito de risco evoluiu de
simples noção de possibilidade para se transformar em área específica de
investigação científica, tudo com o fim de atender aos imperativos de gestão das
“posmodernas” sociedades de riscos.
21 Por irônico que possa parecer, o homem, naturalmente dotado de
espírito dico e, portanto, estimulado irracionalmente a correr riscos pela tão só
sensação de enfrentar e de suportar a tensão dada pela incerteza, desafiando-o a
ser audacioso nos jogos, nisso encontrou a trilha que se abriu em horizontes
científicos de administração de riscos, uma vez que foram os propósitos dos
jogos de azar que encomendaram de matemáticos notáveis - leia-se Pascal,
Fermat, Leibniz e tantos outros estudos sobre previsão de resultados possíveis
diante de partidas inacabadas. Há menos de três séculos dessas aventuras, o
resultado daquelas descobertas repousam nos fundamentos de modernos
expedientes de administração de riscos, com atuação determinante em assuntos
relacionados a apostas, bolsas de valores e de mercadorias, crimes, epidemias,
656
Vide pág. 119.
407
etc. Também possibilitam a existência do mercado de seguros, que o se
encerra em fronteiras nacionais e que se oferece como alternativa
contemporânea de preservação das conquistas materiais que o indivíduo
consegue amealhar como resultado de seu trabalho e também do interesse de
pertencimento ao grupo social.
657
22 Nesse passo, desde que existimos, queremos, ou melhor, precisamos
pertencer e, para tanto, como quer a indústria, é possível existir com
liberdade, assim entendida a possibilidade e oportunidade de “ter”, “ter”, “ter ...,
onde tudo é efêmero exatamente para que os mercados ressurjam sempre nos
mesmos consumidores. De todo o modo, desde que tenho”, quero, aliás,
necessito conservar
658
, sob pena de perder” e, caso ocorra, ter de recomeçar,
quando as energias não serão as mesmas e, mais, o entusiasmo restará
diminuido pelo fato de ter de refazer. Trata-se, como se , de um processo que
mostra indelével a marca da violência, impessoal, inominada, difusa, mas que
toma a todos por vítimas.
23 Vistas acima as circunstâncias da posmodernidade que assolam a
vida humana e suprimem a possibilidade de plenitude, já que estamos todos
condenados à eterna vigília e guarda do que “temos”, fácil constatar que o
metabolismo humano cuidará de produzir e de liberar no organismo as cargas
vitais de adrenalina, impulsionando o indivíduo para reagir diante do perigo ou
da incerteza. Diante de eventual incapacidade de reação, tal organismo adoece,
somatiza no corpo os males produzidos pela mente. Disso resulta que os
expedientes ao alcance do indivíduo capazes de lhe proporcionar segurança
657
Com o objetivo de ilustrar o quanto asseveramos nessa conclusão, seja-nos permitido reproduzir excerto
lançado na Segunda Parte, Capítulo II, item II.2.4, nestes termos: “nem mesmo o homem livre, ou seja, aquele
que se desprendeu da alienação neurótica e que, portanto, vive sob suas próprias convicções e desejos, que atinge
os seus objetivos, se aproximando assim da sensão de felicidade que se faz representar atras de paz interior,
equilíbrio emocional e alegria íntima, nem mesmo esse indivíduo estará livre da insegurança e angústia, vez que
o atingimento desse estado faz desencadear uma sensação de medo difuso e até inexplicável, aquele que não se
identifica com nenhum perigo específico, real ou imaginário” (pág. 118).
658
Ocupar certo status e nele permanecer significa cumprir certos deveres sociais (pág. 214).
408
devem ser considerados itens constitutivos de seu equipamento básico de
sobrevivência, tendo certo e em consideração que antes mesmo da morte
biológica há, para o homem, a possibilidade da morte social, profissional,
econômica, familiar, etc., caso em que aquela poderá ocorrer por decorrência
direta destas. Não será exagero afirmar, nesse contexto, que o seguro,
instrumento racional e pacífico, de cunho social e de solidariedade, eficaz para o
enfrentamento de riscos, presta serviço público de saúde, em benefício da
sanidade física e psíquica dos agentes econômicos que dele fazem uso, numa
ligação fisicobiológica.
659
24 Esse o contexto em que identificamos o seguro. Produto da natureza,
a necessidade de segurança se instalou no homem que a tem e a usa
instintivamente, sem contribuição necessária de sua inteligência para defender a
si, aos seus e aos seus interesses, desde a violência irracional até a mais
requintada e insidiosa ou mesmo pacífica e civilizada. Embora eclodidos
espontaneamente, diligenciou ou homem no aprimoramento dos mecanismos de
administração de riscos, sem escapar, no entanto, da inexorável solução
mediante o concurso da coletividade, de sorte que, dentre os fatores
condicionantes da liberdade do homem reside aquele que o mantém
indissociável. Dessai, pois, o caráter genuinamente blico do contrato de
seguro, avultando-se inapropriada a sua adjetivação como público ou privado,
dada a inexistência deste, segundo nossas convicções. De rigor, a despeito do
pleonasmo, haveria de se tê-lo por seguro blico de interesses sociais ou de
interesses privados.
25 Em proveito de roborar a índole publicista do contrato de seguro, é
suficiente consultarmos os fundamentos teóricos que propiciaram a formação
das sociedades modernas, os quais, calcados na solidariedade entre os indivíduos
659
Vide pág. 49.
409
e no propósito comum de segurança e liberdade, consolidam o contrato social
concebido pelos pensadores renascentistas e que propicia a vida social até hoje
e, quiçá, ainda por muito tempo. Em termos comparativos, temos que o contrato
de seguro, valendo-se também dos caracteres da associação e da conjugação de
esforços, pugna igualitariamente pela garantia dos interesses alinhados no
contrato, tudo mediado por uma empresa especializada que é a seguradora e que
se incumbe de administrar tecnicamente a operação. Tratando-se de interesse
socioeconômico, com acentuada importância no trato da economia nacional e na
possibilidade de fomento ao desenvolvimento, resta evidenciado o interesse
comunitário que recai sobre essa atividade e torna inafastável o poder
regulatório do estado sobre os contratos do setor.
26 Embora tendo como de natureza pública o contrato de seguro e de
serviço público a operação securitária, compreendemos que a execução não se
insere no rol dos serviços necessariamente estatais, sendo de todo possível a sua
exploração por empresas privadas. No entanto, tipificada a atuação empresarial
nesse ramo econômico como relação de consumo e de prestação de serviço,
saudável seja explicitada a justa remuneração da sociedade seguradora, mediante
a expressa e prévia indicação dos valores acrescidos ao prêmio puro, a título de
pagamento pela administração dos riscos sobre os interesses dos segurados.
Vimos acima, à vista de inexistir previsão legal ou contratual para tanto,
constitui prática ilícita a apropriação pela seguradora dos montantes financeiros
remanescentes da operação de seguros, sendo induvidoso que o aderente, não
dispondo, em regra, de conhecimentos específicos para avaliar a condição
técnico-financeira do contrato e do segurador, faz certo que ignora estar
renunciando à resistência de que sejam transferidos para a empresa seguradora o
quanto do prêmio que pagou e que não foi absorvido em indenizações de
sinistros.
410
27 Registrados os avanços do ordenamento acerca da proteção e defesa
do consumidor e dos interesses difusos e coletivos, entendemos que o contrato
de seguro carece ser visto sem olhar míope, a fim de que dele seja afastada a
herança histórica, de contornos épicos, que dificultam a sua correta investigação.
As matrizes ideológicas do contrato de seguro fizeram prevalecer no tempo a
ideia da iniciativa privada. Com efeito, aquela imagem do capitalista dos séculos
XII ao XVI, que sozinho enfrentava os riscos de expedões marítimas e que, em
caso de sucesso da jornada, auferia ganhos vultosos, ainda contagia a ideia que
alimentamos em torno das operações de seguro. Dai porque tomamos por natural
que o segurador”, ainda que não mais individualmente mas empresa, fique com
o que sobrar da operação, assim como o capitalista ficava com todo aquele
ganho no passado. Posto que a linguagem exerce um papel fundamental na
significação do mundo cultural, temos convivido com o discurso da
transferência de riscos do segurado para a seguradora, quando, o vimos, se
transferência houver, esta se em direção da mutualidade e não da seguradora,
de sorte que não há risco a ser suportado por ela e sim pelo fundo mútuo.
28 – Sendo o caso de interesses vários enfeixados numa operação de
seguros e que a tornam de caráter multilateral, acena-se com possibilidade de ser
suscitada a intervenção do Ministério Público, na sua condição de exercente do
nus público de custos legis, uma vez patente que ao cabo das operações
restarão riquezas merecedoras de trato coletivo, senão de natureza difusa. Em
outras palavras, aceito o fato de que a reversão de valores aos segurados, como
se faz ao fim do grupo de consórcio, vimos acima, se inviabiliza pela
impossibilidade de apuração de haveres, é a sociedade que deve ser beneficiada
com tais recursos, os quais devem ser destinados ao desenvolvimento
equilibrado e à promoção da justiça social.
411
29 De acordo com a comparação feita ao longo deste ensaio entre as
operações de seguro e de consórcio, cotejados os diplomas legais regentes das
matérias, concluímos, ad referendum da douta banca examinadora, que sobressai
tratamento jurídico desigual porporcionado pela Lei de Seguros, em comparação
com a Lei do Consórcio, afora vermos aviltados o princípio da boa-fé contratual,
irremediavelmente comprometido que fica pela indisfarçável suspeição da
seguradora na custódia e administração dos recursos da mutualidade, ante sua
expectativa de o indenizar sinistros para auferir maior ganho através da
transferência dos recursos finais para o seu patrimônio. Vemos, ainda,
suplantado, na espécie, o escopo da função social do contrato, uma vez que o
privilégio consentido em favor das seguradoras demonstra a tomada de via
oposta, em detrimento das metas sociais fincadas no Texto Constitucional. Com
efeito, em tais circunstâncias, estamos a permitir, não simbólica mas
concretamente, a apropriação privada da solidariedade, uma vez que nem
mesmo o seguro, esse instituto essencialmente comunitário e de fraternidade,
resulta em proveito maior da coletividade e sim de particulares.
30 – Identificamos lacuna no ordenamento jurídico, posto nele faltar, até o
momento, dispositivo impeditivo da simples assunção de valores pela
seguradora, silêncio da lei que pode ser observado como licença para a prática
aqui reputada ilícita em virtude dos outros fundamentos apontados.
31 – Com Miguel Reale à frente, diremos, por fim queO que vale mais
na história talvez seja menos o fato do que a sua compreensão, e esta implica
necessariamente uma atitude de escolha, uma tomada de posição entre
valores, subordinada à hierarquia axiológica do ciclo social a que
pertencemos”.
660
660
Horizontes ..., pág. 3.
412
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