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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
CENTRO DE ESTUDOS GERAIS
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA
DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA
MESTRADO EM PSICOLOGIA
SAÚDE MENTAL E ATENÇÃO BÁSICA
O CUIDADO COMO CRIAÇÃO DE CANTOS NO TERRITÓRIO
Solange Santana Vieira
Orientadora: Profª. Dra. Claudia Elizabeth Abbes Baeta Neves
Niterói-RJ
2009
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2
Solange Santana Vieira
SAÚDE MENTAL E ATENÇÃO BÁSICA
O CUIDADO COMO CRIAÇÃO DE CANTOS NO TERRITÓRIO
Dissertação apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Psicologia do
Departamento de Psicologia da
Universidade Federal Fluminense,
como requisito parcial para a obtenção
do título de Mestre em Psicologia.
Orientadora: Profª. Dra. Claudia Elizabeth Abbês Baeta Neves
Niterói-RJ
2009
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Solange Santana Vieira
Saúde Mental e Atenção Básica
O cuidado como criação de cantos no território
Aprovada em 16 de Setembro de 2009.
BANCA EXAMINADORA
____________________________________________________
Profª. Drª. Claudia Elizabeth Abbês Baeta Neves
Universidade Federal Fluminense
_____________________________________________________
Prof. Dr. Eduardo Henrique Passos Pereira
Universidade Federal Fluminense
______________________________________________________
Prof. Dr. Paulo Duarte de Carvalho Amarante
Fundação Oswaldo Cruz – Escola Nacional de Saúde Pública
4
DEDICATÓRIA
Naquele dia, o nascer do sol inaugurava a mais linda das estações do
ano. A primavera chegava por entre todas as flores colorindo e dando
asas a inquietude de seu coração. Lançou-se como pássaro e partiu para
outra viagem.
Naquela cidadezinha de Mimoso do Sul, o pássaro havia feito pouso nos
dedos de uma mulher rendeira. Seu canto encontrava viço e alegria no
tecer daquelas mãos. Pareciam tecer sentidos para o próprio viver
quando tomados pelo cultivo desta relação doce e amorosa. As mãos
desenham pequenos bordados na colcha amarela emoldurada pelos fios
melódicos das canções do pássaro. Juntos fiavam o tempo, a memória.
Teciam no coração daquela cidade uma vida de companheirismo,
solidariedade e partilha.
No abrir sereno de suas asas no vácuo, o pássaro aproveitava para dar
sentido e força às coisas da terra e da natureza. No vôo daquela manhã,
deixava entre o bater de suas asas a eternidade em um simples instante e
toda a liberdade para amar perto e distante. A saudade era embalada
pela memória viva de suas canções.
A cidade emprestava-se em retalhos para a feitura de mais uma colcha
daquela mulher rendeira. Pouco tempo depois, aquela mulher também se
despede. Ficamos nós tecidos por este amor torcendo para que mulher e
pássaro se encontrem novamente.
Aos meus avós, Geraldo e Euzi Bruzzi, pássaro e mulher rendeira, que teciam com suas
vidas uma aposta amorosa de cuidado de si e do outro insistindo no cultivo de relações
de partilha, solidariedade e companheirismo. Nossa despedida nestes dois anos de
mestrado traz uma saudade que insiste como marca, a ressoar e ativar em mim o gosto
por experimentar esta prática de cultivo de nós mesmos, do mundo, da vida.
5
AGRADECIMENTOS
A Claudinei, amor companheiro e cúmplice desta jornada e de tantas outras ainda por
viver. Seu apoio e cuidado foram fundamentais para a realização deste trabalho.
Aos meus amados pais, Geraldo e Fátima e meus queridos irmãos Fabio e Rafael. Pela
vida que podemos partilhar juntos. Pela família que construímos tecendo nossas vidas
com laços de afeto e solidariedade. Amo muito vocês!
A minha orientadora Claudia Abbês por embarcar comigo nesta viagem interferindo
com sua força e coragem naquilo que sustentou não o trabalho, mas também nossa
viagem: a de fazê-la na habitação dos paradoxos com os quais constituímos nossa
existência e nossas lutas.
A Eduardo Passos e Paulo Amarante pelas contribuições preciosas durante o processo
de qualificação. Sem dúvida, viver este processo de modo coletivo nos ajudou no tom
de aposta que fazemos em todo o texto.
A Julio Cesar Pinto pela disponibilidade e gosto de fazer-se junto. Encontrarmo-nos
nesta viagem trouxe vida e sustento aos percursos da pesquisa.
A Helder Muniz pela escuta e delicadeza de suas contribuições que sempre me
lembravam que não estamos sós em nossas viagens.
A todos os trabalhadores da Saúde Mental e Estratégia de Saúde da Família do
município de Macaé que vêm experimentando em sua prática cotidiana o gosto desta
intercessão. Meu agradecimento especial à, Angela, Cristiane e Janaína (equipe de
Saúde Mental) e a toda equipe da ESF de Nova Holanda pela acolhida e disposição
generosa em participar da pesquisa.
Aos amigos do mestrado com os quais pude aprender e compartilhar intensamente o
gosto de nossas apostas. Em especial a Cristiane Knijnik, Beatriz Adura e Ariadna.
6
A Patrícia Campagnoli pela generosidade ao abrir as portas de sua casa e acolher-me em
Niterói neste tempo. Tenho certeza que as portas se abriram também para uma amizade
que vamos levar conosco para outras tantas viagens.
A todos os professores que participaram de minha formação em psicologia na
Universidade Federal do Espírito Santo, em especial à Sonia Pinto, Beth Barros e
Cristina Lavrador. Suas interferências intensivas continuam a reverberar ainda hoje em
minha vida trazendo força e coragem diante dos desafios.
Aos amigos da Clinica de Reabilitação Social pelo incentivo e pela compreensão da
necessidade de meu maior afastamento neste tempo.
A Luciana e Marcos, amigos fiéis e zelosos que se tornaram família em Macaé
ajudando-me a tecer sentidos para a vida nesta cidade.
Aos amigos de Vitória que sempre queriam saber como tudo andava e como eu estava.
A Priscilla, Anne, Elisangela, Léia, Erika e Rosana, obrigada por toda torcida!
A Michele, querida amiga de Macaé, que interferiu afetuosamente nos momentos de
cansaço trazendo alegria e renovo do ânimo para caminhar ainda mais.
A Secretaria Municipal de Saúde de Macaé.
A Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) pela bolsa.
7
RESUMO
Neste trabalho, problematizamos a produção de práticas de cuidado que têm
privilegiado o trabalho no território e o definido como prioritário em nosso
contemporâneo, dedicando-nos a pensar na importância da articulação Saúde Mental e
Atenção Básica na constituição de nossas práticas no campo da saúde. Para pensarmos
esta interface, utilizamos como metodologia de pesquisa, a cartografia, que marca uma
afirmação da produção da pesquisa como método processual criado em sintonia com o
domínio igualmente processual que ele abarca. A cartografia foi realizada na rede de
saúde do Município de Macaé fazendo-se junto a uma equipe de Saúde Mental e uma
equipe da Estratégia de Saúde da Família que se pretendem construtoras desta
articulação. Com elas participamos de visitas domiciliares, capacitações, oficinas
terapêuticas e interconsultas. Para tanto, compreendemos e apostamos em um certo
modo de operar o processo de construção de conhecimento afirmando seu caráter de
produção e invenção de nós e do mundo. Assim, trazemos como tema de pesquisa,
pensar o que se passa entre Saúde Mental e Atenção Básica tomando esta articulação em
suas interferências e ressonâncias, na aposta de que sua experimentação possa ampliar
nossa visão a fim de vivermos a dimensão coletiva de todo processo de produção de
saúde, de nós e daquilo que fazemos juntos. Fazemos isso na companhia de Foucault,
Deleuze, Guattari e tantos outros autores que nos auxiliaram na feitura da escrita e da
própria pesquisa como uma prática ética de cultivo e cuidado da vida.
Buscamos acentuar as memórias intensivas dos encontros e das lutas que atravessam e
constituem a saúde pública, quando entendemos que pensar o encontro entre Saúde Mental
e Atenção Básica, é também fazê-lo na dimensão do encontro entre a Reforma Sanitária e a
Reforma Psiquiátrica. Compreendemos que as políticas no campo da saúde não envolvem
apenas as ações formuladas pelo Estado, mas, sobretudo, as lutas cotidianas que intervêm
nessas ações, como marca da exigência dos movimentos instituintes que fazem emergir
novos problemas e engendram processos de autonomia e exercícios de resistência. Isto nos
convoca à construção de uma prática ética de cultivo da dimensão pública de todo processo
de saúde quando pensamos o público na inseparabilidade de três processos de produção:
produção de saúde, produção de subjetividade e produção de territórios existenciais.
Palavras Chaves: Saúde Mental. Atenção Primária à saúde. Território. Cuidados de
saúde.
8
ABSTRACT
In this work, we discuss the production of care practices that have focused on work in
the territory and defined as a priority in our contemporary, dedicating ourselves to think
about the importance of the joint Mental Health and Primary Care in the constitution of
our practices in the health field. To think this interface, used as research methodology,
cartography, marking a statement of research production as a method of procedure
established in line with the rule of procedure that he also embraces. The cartography
was performed in the health of the municipality of Macaé is doing with a team of
Mental Health and a team from the Health Strategy for the Family that intends to build
on this joint. With them participate in home visits, therapeutic workshops and
consultation-liaison. For this, we understand and are investing in a certain way of
operating the process of knowledge construction affirming his character of production
and invention of us and the world. So bring as research subject, think what is happening
between Mental Health and Primary Care taking this interference in their articulation
and resonance, on the bet that his trial can broaden our vision in order to live the
collective dimension of the whole production process health, and what we do together.
We do this in the company of Foucault, Deleuze, Guattari and many other authors who
assisted us in making and writing own research as an ethical practice of cultivation and
care of life.
We intended to highlight intensive memories of the meetings and fights that occurred in
the public health think when we understand that the encounter between Mental Health
and Primary Care, is also doing it in the dimension of the encounter between the Health
Sector Reform and Psychiatric Reform. We understand that the policies in the health
Field does not involve only actions made out by State but it involves also the daily
fights that come along with those actions as a mark of the movement institutive demand
bringing up new problems and producing autonomy processes and resistance exercises.
This calls us to build an ethical practice of cultivating the public dimension of the whole
process of health when the public think the inseparability of three processes: production
of health, production of subjectivity and the production of existential territories.
Keywords: Mental Health. Primary Care. Territory. Health care.
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO: um convite .......................................................................................11
CAPÍTULO I
Respiração, Vida, Escrita: Encarnando o verbo pesquisar.......................................18
1.1 Campo problemático: Por quais terras viajamos?.....................................................19
1.2 Provisões de viagem Kafkanianas: Um duplo exercício de desconstrução para o
caminho da (des)aprendizagem.......................................................................................25
1.3 Tecendo as condições do campo problemático.........................................................27
1.3.1 Produzindo Estranhamentos: a experiência de uma contratação coletiva..............32
1.3.2 Com que roupa eu vou? Ensaios das/nas provisões...............................................35
1.4 Encontros cartográficos: Quando ir a campo é ir ao território..................................40
1.5 Interferências: Um, Dois, Três - O incontável como oxigênio para a invenção do
presente............................................................................................................................48
1.6 Das Interferências: quando qualquer ‘entrada é boa desde que as saídas sejam
múltiplas’.........................................................................................................................50
1.6.1 Interferência Um: Fiando a Formação Acadêmica.................................................53
1.6.2 Interferência Dois: (Desa)Fiando a Experiência Profissional................................63
1.6.3 Interferência Três: Fiando a Experiência com /na Cidade.....................................65
1.6.3.1. Um pouco mais da cidade: Tecendo entradas na rede de Saúde de
Macaé...............................................................................................................................70
CAPÍTULO II
Habitando o plano paradoxal de constituição do SUS...............................................74
2.1 Estado Moderno na composição do plano de poder: As artes de governar ou o
governo ‘das coisas’........................................................................................................79
2.2 Desafios da Construção do SUS em tempos de biopolítica.......................................86
2.3 A construção do SUS no Encontro: Reforma Psiquiátrica e Reforma
Sanitária...........................................................................................................................89
10
2.3.1 Narrativas intensivas da experiência de Santos......................................................90
2.3.2 De quando as interferências se fazem na produção/experimentação de um novo
Ethos................................................................................................................................93
2.4 Atenção Primária: algumas modulações para a construção de uma rede básica de
saúde..............................................................................................................................100
2.4.1 Habitando um não-lugar: Experiência limiar da/na Atenção Básica....................104
2.4.2 Reverberações da experiência Santista na criação do Projeto Qualis/PSF:
Reinventando modos de fazer........................................................................................109
2.5. Saúde Mental e Atenção Básica: Que conversa é essa?.........................................114
2.5.1 Apoio Matricial? NASF’S? Como Pensar a interface Saúde Mental e Atenção
Básica?...........................................................................................................................117
2.5.2 Arando em outros solos: contribuições basaglianas frente à experiência norte-
americana.......................................................................................................................123
CAPÍTULO III
O cuidado como constituição de um Ethos................................................................130
3.1 O que em nós quer cuidar? Cuidando do cuidado...................................................146
3.2 De quando os modos de cuidar são modos de conhecer..........................................149
3.3 A experimentação da clínica como cuidado do/no território...................................160
CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................174
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..........................................................................179
11
INTRODUÇÃO: um convite
Ordenei que tirassem meu cavalo da estrebaria. O criado não me
entendeu. Fui pessoalmente à estrebaria, selei o cavalo e montei-o.
Ouvi soar à distância uma trompa, perguntei-lhe o que aquilo
significava. Ele não sabia de nada e não havia escutado nada. Perto do
portão ele me deteve e perguntou:
- Para onde cavalga, senhor?
- Não sei direito - eu disse - sei que é para fora daqui, fora daqui.
Fora daqui sem parar: só assim posso atingir meu objetivo.
- Conhece então seu objetivo? - perguntou ele.
- Sim - respondi -. Eu já disse: "fora-daqui", é esse o meu objetivo.
- O senhor não leva provisões - disse ele.
- Não preciso de nenhuma - disse eu - A viagem é tão longa que tenho
de morrer de fome se não receber nada no caminho. Nenhuma
provisão pode me salvar. Por sorte esta viagem é realmente imensa. (A
Partida in KAFKA, 2002)
Cavalgar para ‘fora daqui’ numa viagem tão longa onde não se leva provisões. Como
seria isso? O que nos inspiraria o conto Kafkaniano intitulado A Partida? Ao som da
trompa, o homem tem seu corpo estremecido. Ordena que o cavalo seja selado, pois
sabe que já é tempo de sair. O que a escuta faz em nós estremecer?
Parece-nos que embora organizemos a vida em direções precisas, com tantos objetivos e
metas pré-estabelecidas que nos digam de antemão o que fazer, há sempre um toque de
trompa que faz a vida escapar. Zonzo fica o criado que, com o corpo ainda intocado
pelo som, não entende como pode aquele homem não ter destino e provisões para sua
viagem. Mas, naquele instante, isto que parecia ser incompreensível, era exatamente, o
que aquele homem sentia como possibilidade de realizar o seu intento. Contaria com o
tempo, que por sorte era imenso; com os encontros pelas passagens no caminho, um
movimento de fazer-se com. A possibilidade de sobreviver seria inaugurada por uma
dimensão que constitui não a viagem, o tempo ou aquele homem do conto, mas que
constitui a nossa própria existência: a dimensão coletiva, tecida por um plano impessoal
e relacional
1
.
No diálogo entre o senhor e o criado, Kafka nos faz ver um impasse. Para viajar, haveria
que se construir, ao longo do caminho, um modo de fazer a viagem. Haveria que se
construir o próprio caminho, sem apego a metas prévias ou provisões. Para tanto, o
caminho seria o da (des)aprendizagem. Um duplo exercício de desconstrução dos
1
Dimensão que trabalharemos ao longo deste trabalho.
12
hábitos arraigados em nossos modos de vida atuais, para a construção de um modo de
fazer, de uma prática ética (ethos) onde o cuidado de nós mesmos e do que fazemos
juntos possa sustentar-nos nas lutas que travamos cotidianamente. Viver essa
experiência de viagem, neste trabalho, em nada nos aparta, do que temos vivido
juntos historicamente
2
. O sentimento de cansaço com e nas lutas, de falta de fôlego, de
se estar só, é algo que em muitos momentos parece prevalecer. Todavia, afirmamos
serem as lutas sempre coletivas e que, de algum modo (quiçá pelo som de uma trompa,
do ruído que nos acossa o corpo todo), também temos intuído a necessidade de
acessarmos esta dimensão coletiva da vida e de nossa existência, em nossas práticas no
campo da saúde.
Neste trabalho, apostamos nesta dimensão coletiva, constituinte em nós, e que nos tem
movido, como prática de cultivo e cuidado de nós e do que fazemos juntos. Buscamos a
construção de um olhar, sobretudo, para a articulação que temos feito entre Saúde
Mental e Atenção Básica. E a pergunta com a qual seguimos nesta viagem é: O que se
passa entre Saúde Mental e Atenção Básica? Quais têm sido os sons, cheiros e gostos
diários que nos movem a selar nossos cavalos para uma partida que tece o seu caminho
nos encontros entre Saúde Mental e Atenção Básica? O que da força deste encontro
temos podido provar?
As novas diretrizes produzidas na área da saúde, nos últimos anos, até mesmo pela
recomendação da Organização Mundial de Saúde (OMS) têm convocado,
especialmente, os profissionais que atuam na atenção primária e outras áreas, a intervir
nos processos de reabilitação das pessoas em sofrimento, quer sejam eles: por
sofrimento mental, pelo uso de drogas de modo suicida, por angústias, violências ou
graves opressões (Lancetti; Amarante, 2006). Parece-nos, pois uma prática de cuidado
que tem privilegiado o trabalho na atenção primária e o definido como prioritário em
nosso contemporâneo. Mas qual seria a importância desta articulação Saúde Mental e
Atenção Básica? Dedicarmo-nos à reflexão desta questão tem para todos nós,
trabalhadores da saúde, extrema relevância, pois é nesta dedicação que construímos
nossas práticas, que emprestamos outros sentidos ao nosso contemporâneo. É neste
2
Não adianta estarmos na mesma luta / o modo de fazer tem que estar presente, assim trazemos
algumas experiências no texto para pensar este modo de fazer.
13
cuidar do que fazemos juntos que podemos construir um entendimento de nossa prática
tendo maior clareza da relevância de trabalharmos nesta intercessão.
Na feitura da viagem, Kafka nos faz ver que embora tenhamos uma experiência de
individualidade, de sermos unos e separados uns dos outros também somos, ao mesmo
tempo, perturbados pela impossibilidade de sustentação dessa suposta unidade, por
estarmos sempre em relação com outros seres. A sobrevivência do homem daquele
conto era marcada pelos encontros tecidos na construção do próprio caminhar, este era o
seu alimento: habitar essa paradoxal experiência de constituição e sustento de si e da
própria viagem. Para a pesquisa, esta experiência ressoa como um convite quando
sentíamos que era na habitação deste paradoxo que também poderíamos construir
sentidos para o trabalho na intercessão Saúde Mental e Atenção Básica sem dicotomizar
o que somos e aquilo que fazemos em um binarismo.
De algum modo, viver essa experiência paradoxal implicou-nos também na
desconstrução de hábitos há tanto arraigados em nossos modos de conhecer atuais
marcando um compromisso ético-político com o próprio processo de produção de
conhecimento. O tom ensejado o pela viagem do conto, mas também pelos
próprios percursos da pesquisa nos ajuda na construção de nosso primeiro capítulo
quando compreendemos que a possibilidade de sobrevivência da própria pesquisa
também seria dada pela abertura à experiência do encontro, pela constituição de uma
prática ética de cultivo da vida, no cuidado que fazemos da dimensão coletiva e co-
dependente de nossa existência. Já no primeiro capítulo podíamos experimentar as
interferências intensivas dos encontros que, não gestavam as condições do
nascimento de nossa questão de pesquisa, mas também, a própria possibilidade de viver
o cultivo desta dimensão relacional e impessoal que nos move e nos constitui.
A aposta de afirmarmos a produção da pesquisa como método processual criado em
sintonia com o domínio igualmente processual que ele abarca nos ajuda a fazer uma
modulação para uma outra questão em nossa viagem. Compreendemos que na pergunta:
O que se passa entre Saúde Mental e Atenção Básica? podemos também nos interrogar:
O se passa entre Reforma Psiquiátrica e Reforma Sanitária? Esta modulação nos dá um
tom precioso, quando percebemos que é na dimensão da relação, no que se passou, e no
14
que ainda se passa entre as Reformas que vamos construindo nossas práticas de
cuidado.
No segundo capítulo de nossa dissertação, percorremos uma narrativa dos encontros
entre essas reformas em nosso país, chamando atenção para um ponto importante que a
modulação nos permite: o da construção. Ao ampliarmos nosso foco, compreendemos
que os encontros produzidos o se fazem de forma fortuita ou justaposta, mas são,
sobretudo, a construção (na prática concreta) de um modo de fazer o projeto de
democratização institucional que está na base do Sistema Único de Saúde (SUS). Esse
projeto se construiu e ainda hoje busca se construir num campo de tensões entre este
caráter constituinte de abertura coletiva e o que é o SUS como constituição.
Na luta contra os ventos neoliberais e a privatização da assistência no campo da saúde, o
SUS têm se constituído como um lugar efetivo de experimentos e disputas de distintas
tendências. Para habitarmos este plano paradoxal de constituição do próprio SUS
oxigenando os movimentos instituintes que tinham - no desafio assumido a partir da
década de 70 por movimentos como a Reforma Sanitária e Reforma Psiquiátrica a
busca por mudanças nas práticas de atenção e gestão no campo da saúde, foi primordial,
em nosso trabalho, pensarmos a construção do SUS apostando na ativação e
revigoramento da dimensão pública de todo processo de produção de saúde.
Ao longo de todo o segundo capítulo, compreendemos nos estudos de Foucault acerca
da governamentalidade, que quando falamos de modos de fazer estamos às voltas com o
processo de construção de uma política pública que não pode se sustentar apenas como
propostas, programas e portarias ministeriais. O autor nos mostra que da política de
governo à política pública não uma passagem fácil e garantida. A construção de
políticas públicas na máquina de Estado exige em nós e de nós, como marca intensiva
dos movimentos instituintes no campo da saúde, todo um trabalho de conexão com as
forças do coletivo, com os movimentos sociais, com as práticas concretas no cotidiano
dos serviços de saúde. (Benevides; Passos, 2005a)
Nas narrativas intensivas de experiências concretas do SUS, tomamos nas experiências
de Santos (SP) e do Programa de Saúde Mental para o Projeto Qualis/PSF (SP) a
possibilidade de pensarmos a intercessão Saúde Mental e Atenção Básica. De algum
15
modo, compreendemos que a marca dos movimentos instituintes de políticas públicas
no Brasil que se expressam nos encontros Reforma Psiquiátrica e Reforma Sanitária,
também nos coloca como exigência pensarmos o público na inseparabilidade de três
processos de produção: produção de saúde, produção de subjetividade e produção de
territórios existenciais. Aprendíamos em nossas caminhadas que o modo de se operar
mudanças nos processos de produção de saúde exige também mudanças nos processos
de subjetivação, visto que os modos como fazemos a gestão e atenção de práticas de
cuidado no campo da saúde, também são os modos pelos quais construímos e cuidamos
de nossa própria existência.
O tulo deste trabalho Saúde Mental e Atenção Básica: O cuidado como criação de
cantos no território, comporta para nós o sentido desta experiência de construção de nós
e nossas práticas, compreendendo, pois que o que se passa na intercessão Saúde Mental
e Atenção Básica, passa-se na forma deste movimento de produção de práticas de
cuidado aliançadas com a processualidade da vida em sua potência de invenção e
transformação de nós e do mundo.
Estarmos atentos a estes movimentos e suas teceduras e a como produzimos nossa
existência e nosso fazer é, pois o foco que queremos ressaltar nesta pesquisa. A aposta
de que nossas práticas e modos de existência se fazem neste movimento de tecedura,
produz desvios no olhar, “vesguices” que nos fazem ver outras paisagens como índices
de abertura ao movimento heterogêneo de (de)composição das redes, de nossas práticas
e de nós mesmos.
Entendemos que há uma dimensão fértil e produtiva na interface Saúde Mental e
Atenção Básica, sobretudo, quando temos a possibilidade de experimentar essa
articulação em suas interferências e ressonâncias no campo da saúde. Se por um lado,
temos demarcado nos princípios e diretrizes que oxigenam o movimento da Reforma
Psiquiátrica a busca por uma desinstitucionalização do cuidado que opere, sobretudo,
uma ruptura da cultura da tutela institucional e da lógica manicomial em nossas práticas
cotidianas também percebemos, por outro lado, os princípios do movimento da Reforma
Sanitária que têm privilegiado no campo da atenção básica, em algumas experiências
com a Estratégia de Saúde da Família (ESF
), a sustentação e consolidação dos
princípios do SUS.
16
Percebemos que esta interface marca-se fortemente nas iniciativas de se pensar a
produção de práticas de saúde mediante a construção de uma rede de cuidados de base
territorial, postulada tanto pela própria definição dos serviços substitutivos da Reforma
Psiquiátrica quanto pelos princípios norteadores do SUS e sua efetividade na Atenção
Básica. Neste trabalho, fazemos uma aposta para pensarmos o conceito de território,
tomando-o para além da composição técnica simples e formal dos ambientes. Neste
sentido, pensar a construção de uma rede de cuidados de base territorial é implicar-nos
com a produção do território em sua dimensão relacional, em sua potência de constituir-
se como território de encontros. Entendemos, pois que este território de encontros se faz
no cultivo de um modo de fazer o processo de produção de saúde que desestabilize os
limites identitários das disciplinas/saberes produzindo um atravessamento dos mesmos.
Marcamos ao longo de todo trabalho, os atravessamentos e caminhadas por este
território quando provávamos em uma experiência concreta do SUS na rede de saúde de
Macaé (RJ), a possibilidade de acompanhar esta interface junto aos trabalhadores da
saúde mental e da estratégia da saúde da família na atenção básica.
A radicalidade dessa discussão, quando nos propomos dentro de um mestrado de
psicologia falar de Saúde Mental e Atenção Básica, implica-nos em dissolver os
especialismos para de fato, ocupar-nos de uma questão que para nós não é mais de
especialismo, mas de saúde pública. Para tanto, nos vimos às voltas na última parte
deste trabalho a experimentarmos um exercício de dobras e desdobras de nossos modos
de existência. É que para avançarmos na discussão do que temos então chamado de
práticas de cuidado, haveríamos de construir com/na própria pesquisa uma prática de
cultivo refletindo sobre o que estamos fazendo de nós, como cuidamos de nós e do
outro e de que outras maneiras podemos nos cultivar.
Nesta aposta, afirmamos com os estudos de Foucault sobre os gregos, uma outra
qualidade de cuidado e de conhecimento quando podemos perceber que o modo como
cuidamos e como conhecemos modifica o que somos e o mundo que habitamos. Neste
estudo, temos a possibilidade de pensarmos uma ontologia crítica de nós mesmos como
possibilidade de reinvenção de nós mesmos como sujeitos éticos. Para tanto, podemos
questionar não somente com que forças nos aliamos nos movimentos de afirmação e
expansão da vida, mas sobretudo, nos perguntarmos: que vida queremos cultivar? O que
em nós queremos cuidar?
17
Pensarmos a construção de práticas de cuidado na articulação Saúde Mental e Atenção
Básica nos parece ser uma boa oportunidade para experimentar a feitura de nós mesmos
na direção do outro, uma boa ocasião para vivermos outras relações, uma boa prática
para compreendermos que o que fazemos de s mesmos é ainda uma aposta no que
podemos fazer juntos.
18
CAPÍTULO I
Respiração, Vida, Escrita: Encarnando o verbo pesquisar
Estou respirando. Para cima e para baixo. Para cima e para baixo. Como é
que a ostra nua respira? Se respira não vejo. O que não vejo não existe? O
que mais me emociona é que o que não vejo contudo existe. Porque então
tenho aos meus pés todo um mundo desconhecido que existe pleno de rica
saliva. A verdade está enquanto parte: mas inútil pensar. Não descobrirei e
no entanto vivo dela.
Clarice Lispector
Respiração. Movimento incessante da própria vida. Em contínua variação. Ora ofegante.
Ora truncada. Imperceptível ou silenciosa... Que até parece não existir.
E não existe porque não vemos? Insiste Clarice em nós com a pergunta.
O que também nos emociona é que neste mesmo silêncio, onde as apostas de vida-
respiração poderiam ser quase nulas, a vida segue trabalhando. Insiste. Encontra
forças para um fôlego, um possível de respiradouro.
A escrita aqui também se faz respiração a tecer os movimentos da vida. Pulsa no corpo-
pesquisador. Às vezes por movimentos leves, suaves, lânguidos. Por outras, sentindo o
peso dos dias endurecidos das andanças em nosso caminho-campo de pesquisa. Clarice
nos instiga a andar com os pés descalços por este caminho, ao falar de um mundo
desconhecido pleno de saliva, que temos aos nossos pés. O que mais parece nos
importar, neste momento, é essa inquietude-companheira, que está sempre a interferir e
tensionar o corpo do pesquisador. Concentra, expande, desliza e desloca a própria
escrita dando a ela contornos provisórios. Estes contornos provisórios emprestam
textura às questões de nossa pesquisa. Seguimos com a inquietação-companheira que ao
insistir com suas interferências em nosso corpo nos fizerem apostar no encontro com o
mestrado.
19
1.1 Campo problemático: Por quais terras viajamos?
Nossa pesquisa foi realizada no município de Macaé localizado no estado brasileiro do
Rio de Janeiro. Pertencente à Região Norte Fluminense do estado, Macaé possui uma
área total de 1.215,904 km², correspondentes a 12,5% da área da Região Norte
Fluminense que também abrange os municípios de Campos dos Goytacazes, Carapebus,
Cardoso Moreira, Conceição de Macabu, Quissamã, São Fidélis, São Francisco de
Itabapoana e São João da Barra.
Dividido em seis distritos Sede, Cachoeiros de Macaé, Córrego do Ouro, Glicério,
Frade e Sana, o município de Macaé, conta atualmente com uma população de 188.787
habitantes
3
.
De acordo com os dados repassados pela Coordenadoria de Saúde Coletiva do
Município
4
, a Rede de Saúde de Macaé, conta atualmente em seus serviços no campo da
atenção terciária com: 03 hospitais (Hospital do Trapiche, Hospital São João Batista e
Hospital Público Municipal), 05 Prontos Socorros (sendo um destes especificado como
Infantil e o outro como Emergência Psiquiátrica) e 03 unidades de saúde, denominadas
Unidades Mistas, que embora operem no funcionamento da rede no campo da atenção
primária como unidades básicas de saúde, também estão descritas na atenção terciária
por serem caracterizadas como unidades de emergência que funcionam 24 horas
(Unidades Mistas de: Glicério, Sana e Córrego do Ouro). Ainda para os atendimentos de
emergência são descritos também o Serviço de Hemoterapia (com atendimento a
emergências transfusionais) e um Centro de especialidade Odontológico.
No campo da atenção secundária, o município conta com uma série de Divisões e
Programas vinculados à Coordenação de Saúde Coletiva. As divisões destacadas são a:
3
Estimativas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no ano de 2008. Site:
www.ibge.gov.br/home/estatística/população/estimativas2008/POP2008_DOU.pdf Acesso em:
05/09/2008.
4
Nosso acesso aos dados de composição da atual rede de saúde do município de Macaé foram
disponibilizados pela Coordenadora da Saúde Coletiva Dra. Laila Aparecida de Souza Nunes em nossa
ida à Secretaria Municipal de Saúde. Cabe ressaltar que a maioria das informações das quais dispomos
são referentes a uma Cartilha intitulada: Cartilha SUS Macaé “Serviço de Saúde: Rede de Saúde e Rede
Social” que nos foi entregue neste encontro, todavia, em todo o período do mestrado setembro/07 até a
presente data - junho/09, estes dados não aparecem divulgados no site oficial da prefeitura municipal de
Macaé.
20
Divisão de Vigilância Ambiental responsável pelos Programas de: Controle de
Zoonoses e de Roedores; Divisão de Educação em Saúde responsável pelo Programa de
Educação Permanente em Saúde que conta também com o Grupo de Teatro e Arte em
Saúde (GRUTAS), Divisão de Vigilância Epidemiológica, Divisão de Informação e
Análise de Dados, Divisão de Laboratório responsável pelo Laboratório Municipal de
Saúde Pública e Divisão de Programas de Saúde.
Os serviços, em sua maioria, são referentes a atendimentos especializados considerados
de média complexidade. Atualmente, o município dispõe de 03 núcleos de atenção à
criança e à mulher (sendo um destes, específico à mulher e o outro à criança), 02
Centros de Especialidades (com atendimento ambulatorial) sendo um destes, sede de
funcionamento de alguns programas vinculados à coordenação de saúde coletiva, a
saber: Programa de Dermatologia Sanitária (com ênfase em hanseníase), Programa de
Pneumologia Sanitária (com ênfase na tuberculose), Programa de Hipertensão e
Diabetes (HIPERDIA), Programa de Imunização e Programa de Anemia Falciforme.
Vinculados ainda à coordenação de saúde coletiva pela Divisão de Programas de Saúde
a rede é formada pelos programas de: Assistência Domiciliar Terapêutica (P.A.D.T.),
Atenção Integral à Saúde do Idoso (P.A.I.S.I.), Assistência Integral à Saúde da Mulher e
o Centro de Referência ao Adolescente (CRA). Todavia, cabe aqui ressaltar que os
programas de: Imunização (Vacinação) Assistência Integral à Saúde da Mulher,
Hipertensão e de Diabetes (embora este último também conte com um Centro de
Referência ao Diabético – CRD) são caracterizados por suas ações descentralizadas com
atendimento realizado nas Unidades Básicas de Saúde valorizando o acompanhamento e
supervisão a estas unidades.
O Programa de Saúde Mental do município faz parte da Divisão de Programas de Saúde
vinculados à Coordenação de Saúde Coletiva. Os serviços que compõem a atual rede de
saúde mental no município são constituídos por 01 Núcleo de Saúde Mental
(atendimento ambulatorial), 01 Centro de Atenção Psicossocial (CAPS Betinho), 01
Centro de Atenção Psicossocial Infantil (CAPSi Oficina da Vida), 01 Centro de Atenção
Psicossocial em Álcool e outras drogas (CAPS ad PORTO), 01 Comissão de Apoio à
Desinstitucionalização e a Saúde Mental na Atenção Básica.
21
No campo da atenção básica, destacam-se no município de Macaé a existência de 06
Unidades Básicas de Saúde e 29 Equipes do Programa Saúde da Família (PSF). Embora
exploremos de modo mais detalhado, no segundo capítulo de nosso trabalho, os
diversos modelos de organização e ofertas de serviços de saúde que utilizam a
denominação de Atenção Primária à Saúde destacando suas diferenças quanto aos
modos de fazer a gestão e a atenção dos processos de cuidado no campo da saúde;
avaliamos a importância de trazermos aqui, algumas considerações acerca do PSF,
para entendermos de modo mais claro o campo circunscrito na efetivação de nossa
pesquisa.
O tema da rede básica de saúde tem sido colocado como um ponto estratégico para a
constituição de novas práticas que operem uma ruptura com um certo modelo de
conhecimento no campo da saúde que produz tanto um modelo assistencial médico
hegemônico, quanto um modelo de organização social voltado para o conceito de
doença.
Em documento propositivo para a organização do PSF no Brasil, publicado sob
responsabilidade do Ministério da Saúde, afirma-se que o objetivo do PSF é “a
reorganização da prática assistencial em novas bases e critérios, em substituição ao
modelo tradicional de assistência, orientado para a cura de doenças e no hospital. A
atenção está centrada na família, entendida e percebida a partir do seu ambiente físico e
social, o que vem possibilitando às equipes de trabalhadores uma compreensão
ampliada do processo saúde/doença e da necessidade de intervenções que vão além de
práticas curativas” (Brasil, 1996, p.2).
Por esse programa inicial ser considerado potente para a universalização do atendimento
à saúde e para a implementação dos preceitos da Reforma Sanitária Brasileira, passou a
haver um esforço e um incentivo para que se transformasse em Estratégia de um projeto
único do sistema da saúde e responsável pela Atenção Primária à Saúde. Neste contexto,
a Estratégia de Saúde da Família tem sido a possibilidade de um novo modo de operar o
trabalho em saúde com uma inversão da lógica de cuidados que procura sustentar-se
muito mais por seu caráter relacional do que por seus aspectos técnicos, tanto entre
equipe-usuário, quanto entre equipe-equipe. Composta por médico, enfermeiro, técnico
de enfermagem e agentes comunitários (trabalhadores fundamentais dentro desta lógica
22
por serem também moradores das comunidades onde atuam) as equipes da Estratégia de
Saúde da Família são responsáveis pelo acompanhamento de um número definido de
famílias, localizadas em uma área geográfica delimitada, atuando com ações de
promoção da saúde, prevenção, recuperação, reabilitação de doenças e agravos mais
freqüentes, e na manutenção da saúde desta comunidade. O trabalho com a comunidade
mediante a adscrição dos usuários/famílias tem sido um modo de priorizar o nculo
entre equipes-usuários bem como a construção de compromisso e co-responsabilidade
dos trabalhadores com a comunidade em uma relação onde o caráter de continuidade do
cuidado possa ser assegurado.
Se no intuito de operação da práxis da Estratégia de Saúde da família, a busca por
problematizar e romper com o paradigma racionalista baseado no problema-
solução/causa-efeito é importante ressaltar que, a construção de uma outra prática de
cuidado faz-se de fato com/na intercessão dos diversos processos que marcam os
modos de ser e de viver das pessoas no território
5
. A trama tecida pela organização
sanitária torna-se também espaço fundamental para a construção de um processo de
cuidado que produza saúde mental. A interface Saúde Mental e Estratégia de Saúde da
Família faz-se, sobretudo, quando percebemos que a convocação de um novo fazer na
atenção primária, nos exige também a construção de uma intervenção com/nos
processos de reabilitação das pessoas em sofrimento (Lancetti; Amarante, 2006) quer
sejam eles por sofrimento mental, por angústias, pelo uso de drogas de modo suicida,
violências ou graves opressões. Trabalhar, pois com esta interface torna-se fundamental
para a reorganização da atenção à saúde quando, também, se faz urgente em nossa
realidade a ruptura com dicotomias tais como saúde/saúde mental, exigindo-nos a
produção de práticas de cuidado não-fragmentadas/não-parcializadas no campo da
saúde.
Para percorrermos nossa viagem-pesquisa seguindo com a pergunta: O que se passa
entre Saúde Mental e Atenção Básica? - circunscrevemos como campo de nosso
trabalho os processos e práticas de produção de cuidado operadas conjuntamente na
atenção básica pelas equipes da Estratégia da Saúde da Família e pelas equipes de
Saúde Mental.
5
Conceito que trabalharemos com maior dedicação mais adiante.
23
Termos então contextualizado o modo de trabalho como a Estratégia de Saúde da
Família pretende desenvolver suas ões junto à comunidade é, para nós, extremamente
importante, para entendermos a inserção das ões de saúde mental na atenção básica,
bem como suas interferências e ressonâncias.
No município de Macaé, as primeiras tentativas de organização das ações de Saúde
Mental na Estratégia de Saúde da Família ocorreram no ano de 2001 através de uma
Capacitação em Saúde Mental para os profissionais do PSF
6
. Somado à capacitação foi
disponibilizado pela equipe de Saúde Mental atendimento aos pacientes encaminhados
pelos módulos do PSF. Os atendimentos eram realizados em conjunto por um psiquiatra
e uma assistente social, ao passo que os agentes comunitários compareciam juntamente
com os familiares dos pacientes. Dentre os avanços e limitações destas ações iniciais, as
equipes puderam apontar como favorável uma aproximação do Programa de Saúde
Mental com o PSF, passando este último, a conhecer melhor tanto o próprio programa
de saúde mental no município quanto seus serviços na rede de saúde em suas
possibilidades de referência e contra-referência. Apontam que o suporte no tratamento
de alguns pacientes que se encontravam sem uma orientação adequada possibilitou aos
profissionais dos Módulos do PSF maior segurança para lidar com os pacientes. Versam
inclusive, sobre a ação dos Agentes Comunitários de Saúde que, percebendo este
suporte da Saúde Mental, aproximaram-se de alguns pacientes estando mais atentos às
suas situações familiares e sociais. Todavia, a distância da própria equipe de saúde
mental em relação à vida concreta das pessoas e famílias atendidas; o grande intervalo
entre as reuniões de capacitação, fato que impedia por vezes a continuidade das
discussões e até mesmo a ausência de profissionais de saúde mental na comunidade via
módulos do PSF; acabaram por dificultar a potencialização de ações que concorrem
para o trabalho integrado e de capacitação mútua entre as equipes com vistas à
superação do modelo de referência e contra-referência.
7
6
Fazemos referência aqui ao texto “A Entrada da Saúde Mental no Programa de Saúde da Família de
Macaé” cedido pela Coordenadora da Saúde Mental na Atenção Básica cuja produção pela equipe de
Saúde Mental em agosto de 2003, versa sobre essas primeiras tentativas em seus limites e possibilidades.
7
Neste sentido, discute-se a necessidade de romper com a superespecialização no campo da saúde que
marca a produção de práticas dentro de uma lógica fragmentária e objetificante.
24
Os desdobramentos destas primeiras experimentações acabaram por afirmar a
importância de trabalho nesta articulação Saúde Mental e Estratégia de Saúde da
Família. Os investimentos para que este modo de operar na atenção básica pudesse se
sustentar foram intensificados em 2002, com a formação de uma equipe de saúde mental
formada por trabalhadores que prestaram o concurso público municipal de Macaé em
dezembro/2001. A composição da equipe foi marcada pela presença de 01 psicólogo, 01
psiquiatra, 01 assistente social e 01 terapeuta ocupacional. Com o decorrer do trabalho a
equipe avaliou a necessidade da entrada de um fisioterapeuta. Para o desenvolvimento
do trabalho, houve a implantação de uma experiência piloto, passando esta equipe de
saúde mental a trabalhar conjuntamente com uma equipe da Estratégia de Saúde da
Família em uma comunidade do município. A implantação das ações de saúde mental
em outros módulos de PSF seguiu nos anos posteriores.
Atualmente, a equipe de saúde mental que atua na atenção básica constitui-se de um
grupo de 17 profissionais, dentre eles: 04 psicólogos, 01 psiquiatra, 02 assistentes
sociais, 06 terapeutas ocupacionais, 03 fonoaudiólogos e 01 técnico de enfermagem.
Dos seis distritos que constituem o município de Macaé, apenas um (Córrego do Ouro)
ainda não existe a inserção da Saúde Mental junto à Saúde da Família. Das 29 equipes
da Estratégia de Saúde da Família existentes atualmente na rede de atenção básica do
município, 18 possuem articulação com a saúde mental que mantém sua inserção na
atenção básica desenvolvendo: Capacitação em Saúde Mental às equipes da Estratégia
de Saúde da Família (quinzenalmente), Oficinas Terapêuticas para crianças, adultos e
famílias (quinzenalmente), Visitas domiciliares (realizadas conjuntamente pelas duas
equipes) e Interconsulta (consulta conjunta do psiquiatra da equipe de saúde mental com
o médico do PSF. Dela também participa o profissional da equipe de saúde mental
vinculado àquela comunidade).
A equipe de saúde mental, atualmente composta por 17 profissionais, é dividida em
subgrupos de duas ou três pessoas (exceto as regiões de Trapiche, Frade e Bicuda que
contam com apenas um profissional de saúde mental para a equipe de Saúde da
Família), havendo previsão de futura inserção em mais 09 equipes da Saúde da Família.
Para o campo de nossa pesquisa, estivemos presente durante 07 meses acompanhando
um subgrupo desta equipe de saúde mental composta por 01 psicóloga, 01 terapeuta
25
ocupacional e 01 assistente social em seu trabalho conjunto com 02 equipes de Saúde da
Família, sendo estas últimas, lotadas em um mesmo módulo do PSF. A comunidade na
qual este trabalho é realizado atende pelo nome de Nova Holanda. Nossas idas a esta
comunidade foram realizadas, dentro deste período de 07 meses (junho/08 a
dezembro/08), todas as quintas no horário da tarde e nas sextas pela manhã. Neste
período, participamos de um grande número de atividades que se pretendem
construtoras desta articulação - Saúde Mental e Estratégia de Saúde da Família - como:
visitas domiciliares, capacitações, oficinas terapêuticas e interconsultas, mas aqui
destacamos também como parte integrante de nossa pesquisa, os acontecimentos que
marcam o ir e vir no território durante as visitas domiciliares, as festas e
confraternizações, o bate-papo nos cafezinhos, as conversas na recepção, no corredor ou
salas do módulo do PSF e nas reflexões que fazíamos nas chegadas e partidas de Nova
Holanda quando estávamos no carro de Amanda
8
(profissional da equipe de saúde
mental). Pactuamos também com a equipe de saúde mental, nossa participação 01 vez
por mês, em sua reunião de equipe juntamente com os demais integrantes que compõem
a Saúde Mental na Atenção Básica e que trabalham em outras comunidades.
1.2 Provisões de viagem Kafkanianas: Um duplo exercício de desconstrução para o
caminho da (des)aprendizagem
O toque de uma proposição de Deleuze (1991, p.53) ao falar sobre a escrita ressoava em
nós ao afirmar que: “escrever é lutar, resistir; escrever é devir; escrever é cartografar.
Estudar sobre a articulação entre Saúde Mental e Atenção Básica: que conseqüências
poderíamos extrair desta proposição de Deleuze para nosso trabalho? Como escrever
sobre o que se passa no encontro Saúde Mental e Atenção Básica quando, na verdade,
percebíamo-nos em alguma medida, enclausurados em uma impossibilidade de fazê-lo?
A experimentação em nós, dos efeitos deste enclausuramento, faz a escrita arranjar-se,
incialmente, em blocos. Ao (re)lermos o texto produzido para o encontro de
8
Os nomes utilizados nas narrativas de nossa experimentação de viagem-pesquisa são fictícios.
26
qualificação
9
percebemos o quanto em nosso endurecimento distanciávamo-nos do que
realmente fazia pulsar em nossa questão: o de habitar o paradoxo com/no/pelo qual
constituímos a nós e nossas práticas, sem transformá-lo em dualidade: uno x múltiplo,
indivíduo x grupo, saúde mental x atenção básica, reforma psiquiátrica x reforma
sanitária.
No processo de experimentação no campo de pesquisa éramos, a todo o tempo,
perturbados pela impossibilidade de sustentarmos essa suposta dualidade: equipe de
saúde mental-equipe de Saúde da Família, trabalhador-usuário, pesquisador-trabalhador,
sujeito/pesquisador-objeto/pesquisado e de -los apenas como unidades separadas
umas das outras. César (2008) nos ajuda no desafio de permanecermos nesta
‘perturbação/desestabilização’ ao afirmar que, embora tenhamos uma experiência de
individualidade, de unidade, e de estarmos separados uns dos outros, estamos também,
ao mesmo tempo, sempre em relação com outros seres. Neste sentido, a autora nos
sinaliza para uma dimensão de grupalidade em nossa existência afirmando ser esta uma
dimensão coletiva e co-dependente que nos constitui. Se de algum modo, parecemos por
vezes ignorar essa dimensão relacional e interdependente de nossa existência é,
sobretudo, na prática de acesso a esta dimensão que nossas possibilidades tanto de
saúde como de alegria residem. O desafio de sustentarmos um processo de viagem-
pesquisa problematizando o que temos feito juntos na intercessão - Saúde Mental e
Atenção Básica - nos inspira, sobretudo, a nos perguntarmos como cultivamos essa
dimensão coletiva em nossas práticas de cuidado.
Pensar na constituição de nós e de nossas práticas, nesta relação Saúde Mental e
Atenção Básica, requer que habitemos este funcionamento paradoxal com/no/pelo qual
constituímos a nós e nossas práticas, sem transformá-lo em dualidade, sem dicotomizar
o que somos e aquilo que fazemos em um binarismo.
Mas o que estaríamos chamando de relação? Se de algum modo a interface
Saúde
Mental e Estratégia de Saúde da Família tem sido priorizada como um modo de se
9
Processo de qualificação do mestrado que tiveram como convidados da banca os professores Drs.:
Eduardo Henrique Passos Pereira, Paulo Duarte de Carvalho Amarante, minha orientadora Claudia
Elizabeth Abbês Baeta Neves e Julio César Silveira Gomes Pinto, Mestre em Psicologia pela
Universidade Federal Fluminense.
27
operar no campo da saúde, precisamos nos perguntar: como a temos feito? É que
sabemos que por mais que estejamos ‘juntos’, reunidos em ‘grupo’, trabalhando em
‘conjunto’, é necessário construirmos sentidos para este estar com/fazer-se com, para
este relacionar-se. Isto implica em empenhar-se na construção desta relação, pois
estarmos reunidos não é garantia para uma preciosa experiência que se abre neste plano
relacional: a experiência do encontro.
De algum modo, é nesta experiência que segue também a aposta de nossa viagem-
pesquisa. Por certo, o homem de nosso conto intui a potência da experimentação de uma
viagem para ‘fora daqui’, quando compreende que nenhuma provisão poderá salvá-lo, e
que tem, portanto, que receber no caminho para não morrer de fome. Aprendíamos,
pois, que a prática de cultivo da vida reside no cultivo de nossas relações, no cuidado
que fazemos da dimensão coletiva de nossa existência.
Nos movimentos de aproximação com o campo de pesquisa, intuíamos a necessidade
deste cultivo quando compreendíamos que é na habitação deste paradoxo, deste “espaço
intervalar do entre-domínios, do que não é totalmente isto ou aquilo, do que está nesta
operação da conjução ‘e’, onde proliferam encontros e composições” (Passos;
Benevides, 2006, p.89) que haveríamos de receber alimento.
1.3 Tecendo as condições do campo problemático
O empenho na construção desta relação também é algo que nos move em nosso
processo de pactuação, entrada e permanência no campo de pesquisa. É que interrogar
sobre os modos como temos construído práticas de cuidado na articulação Saúde Mental
e Atenção Básica implica em colocar em análise os modos de feitura da própria
pesquisa.
Nas primeiras reuniões com a equipe de Saúde Mental fomos ‘inquiridos’ com algumas
perguntas importantes: O que quer desse grupo? Em que momentos estaria conosco?
É observar? Observar o que? Como estar acompanhando a equipe sem interferir?
Como vai manter uma ‘neutralidade’? Estamos diante de um momento de muito
trabalho, não sabemos se poderemos gastar nosso tempo.”
28
Nossa respiração faz-se curta e acelerada. Muito respiro, mas ainda pouco oxigênio. A
aposta de afirmarmos a produção da pesquisa como método processual - criado em
sintonia com o domínio igualmente processual que ele abarca - só poderia ser construída
na habitação desta tensão: acolher as perguntas do grupo sem, contudo, respondê-las à
justa medida. Um compromisso ético-político, já que entendíamos que no modo de fazer
a pesquisa poderíamos ocupar um plano de resistência ao status quo da tradição
moderna em sua fundamentação cientificista que inscreve a produção de conhecimento
sob a chancela da objetividade, neutralidade e busca de uma verdade absoluta.
Parafraseando Deleuze, pesquisar é lutar, é resistir... Nesta aposta, seguimos com a
força das palavras de Benevides:
Talvez o maior de todos os desafios para nós, humanos, seja o de
desnaturalizar o mundo que nos cerca. Afinal, as condições de nossa gestação
ou seja, a gestação do chamado sujeito moderno nos puseram no centro
de tudo, fazendo-nos crer que acharíamos, em nós mesmos, as “chaves dos
mistérios”. Não é à toa que no final do século XIX os saberes já constituídos
se voltam para “explicar” nossos comportamentos, sentimentos, ações, além
de se constituírem novos saberes nesta direção. As respostas que o homem
passou a procurar o remetem à sua natureza ou a cultura em que vive.
Natureza de um lado, cultura de outro, as explicações oscilam de um pólo a
outro desta dicotomia solidamente implantada. Em ambos, entretanto, o que
se mantém é a crença de que os objetos existam por si mesmos e que ao
serem dados ao homem para serem conhecidos resta a ele a tarefa de dominá-
los. O reino humano acima de tudo. (BENEVIDES DE BARROS, 1994,
p.20)
A autora nos sinaliza para um modo de entender o processo de produção de
conhecimento centrado e interiorizado no sujeito e que se faz vigente até nossos dias
atuais, delineando um certo percurso das relações entre o sujeito que conhece e os
objetos a serem conhecidos. É importante pensarmos neste percurso e no que ele
produz: a polarização entre sujeito e objeto e a condição de que podemos conhecer
por essa dissociação de um em relação ao outro; sujeito e objeto constituídos
previamente e separados em duas séries que ‘entram em relação’. Percebemos que neste
caso, a relação constrói-se a posteriori ‘entre’ duas unidades a priori havendo,
sobretudo, um primado do sujeito-da-razão que apreende os objetos do mundo, na
29
crença de que estes existam por si mesmo, e seriam, portanto, naturais. Nesse
funcionamento, de acordo com Benevides:
Em primeiro lugar, processa-se uma descrição do objeto para que, a seguir,
ele seja inserido em uma determinada categoria definida a priori. O conjunto
de características ou de elementos que constitui uma categoria se assenta em
critérios que lhe asseguram identidade, algo que “permanece”, que “garante”
a existência daquela categoria e, conseqüentemente do próprio objeto.
Inserido numa categoria, o objeto está registrado, conhecido. Mas para que
permaneça nesta categoria, para que não perca sua identidade, ou seja, para
que seja reconhecido quando se apresenta ao sujeito, é necessário que outra
operação seja feita: a da exclusão. Assim, tudo que aparece como diferente
deve ser retirado ou “tratadopara que o objeto se enquadre na categoria. O
sistema de conhecimento que se monta é, por conseguinte, binário: a cada
categoria corresponde outra, oposta. Em cada situação de conhecimento, o
objeto é submetido a pares de categorias para que possa ser incluído em uma,
ou em outra. É como se houvesse uma sentença a ser proferida sobre o
objeto: “ou ele é isto ou é aquilo”. Caso o objeto não possa ser categorizado
em uma das duas opções, seexcluído e ficará à margem, esperando que
outra dualidade seja estabelecida para que, novamente, possa ser submetido à
prova de identidade garantida pelas categorias. É de se notar que, neste
processo, os objetos são submetidos sistematicamente a categorias que se
definem pela oposição (BENEVIDES DE BARROS, 1994, p.133).
A importância de construirmos um entendimento acerca da lógica a imperar neste modo
de conhecer, reside no constante desafio de desnaturalizar o mundo que nos cerca. Neste
trabalho, esta nos parece ser uma discussão a ser feita, sobretudo, quando afirmamos
que não existem sujeitos e objetos a priori. Implica-nos pensar que o modo como os
objetos estão sendo vistos/apreendidos não se esgotam naquilo como se apresentam e
que estão configurados em um campo histórico específico havendo em torno deles todo
um campo de possíveis a ser efetuado, outras formas para se conectarem.
A viagem Kafkaniana do conto, A Partida, nos inspira a tecer as condições do campo
problemático onde a própria pesquisa está a se fazer. Neste sentido, começamos por
desnaturalizar as próprias perguntas do grupo em um exercício ético-político de
desmistificação das condições de produção de todo conhecimento e da própria pesquisa
a ser feita.
30
O caráter participativo da pesquisa que realizamos dá a ela o sentido de pesquisa-
intervenção. Embora a palavra intervenção
10
esteja comumente associada à intromissão
de um terceiro com objetivo de (re) estabelecer uma ordem existente, o uso que dela
fazemos refere-se a um outro sentido que é o de vir entre, pôr-se como intercessor.
Neste caso,
não se trata de restabelecer nenhuma ordem, posto que a própria oposição
ordem/caos é colocada como falso problema. A intervenção toma aqui outro
rumo, que procura se conectar aos movimentos do invisível, às
composições de fluxos que ainda não se atualizaram. (BENEVIDES DE
BARROS, 1994, p.162).
E para caminharmos com esta afirmação em toda a sua potência precisamos romper
com as certezas dogmáticas, das quais muitas vezes compartilhamos, de que a validade
de nossas percepções o deve ser posta em dúvida. Por isso não estaríamos como em
um sobrevôo distante do campo de pesquisa a observá-los. Estamos, pois interessados
na produção de outra relação entre sujeito e objeto, uma relação a ser feita não na ação
sobre, mas na ação de estar com. Neste modo de conhecer podemos extrair uma
conseqüência fundamental apontada por Benevides (1994): a de que não uma
apreensão do objeto pelo sujeito, mas há sim uma ‘apreensão’ que constitui a ambos, de
tal maneira, que já podemos dizer que é a relação que os constitui. Afirmar um primado
da relação que faz desaparecer sujeitos e objetos como seres-em-si requer que
desloquemos nossas análises daquilo que é tornado natural e estático para apreender a
complexidade dos processos que aí se materializam. É compreender, pois o caráter
heterogêneo e histórico das práticas colocando sujeitos e objetos dados a ver como uma
dentre outras possibilidades num campo de acontecimentos que em muito os excede.
10
A palavra intervenção liga-se à pesquisa, ao final da década de 60 quando era proeminente às
discussões sobre a relação que o pesquisador estabelece com seu campo de investigação. A Análise
Institucional Socioanalítica, corrente desenvolvida na França durante as décadas de 60/70, formula a idéia
de uma pesquisa-intervenção que interrogasse os diversos sentidos cristalizados nas instituições.
Tratavam de produzir evidências que visibilizassem o jogo de interesses e de poder encontrados no campo
de investigação. Aqui fazemos uso da pesquisa-intervenção entendendo que o processo de pesquisar nos
remete a um processo de desnaturalização permanente das instituições, incluindo a própria instituição da
análise e a da pesquisa. Utilizá-la como modo de aproximação com o campo, é afirmarmos que tanto
pesquisador e pesquisado, isto é sujeito e objeto do conhecimento, se constituem no mesmo momento, no
mesmo processo.
31
De algum modo, é nesta ação de estar com, na relação, que reside a aposta de nosso
trabalho. Uma aposta que fazemos somente quando estamos na relação com os outros.
O modo de fazer a viagem pretendido pelo homem do conto nos enseja uma boa
imagem para fazermos os percursos da pesquisa: sem previsibilidades que estaquem o
movimento; sem respostas que nos sirvam como couraças a apartar-nos do que no
próprio movimento faz em nós outros, nossa capacidade de outramento.
A forma como lidamos com o campo exige de nós um outro olhar e inflexão sobre o
conceito e o uso que dele fazemos. Se afirmamos agora a pouco a indissociabilidade
entre sujeito e objeto e de que estes não se constituem a priori, mas na relação; também
a noção de campo começa a experimentar um deslocamento de seu sentido habitual
quando apontamos o engendramento dos termos que balizariam os seus limites.
Para o homem do conto, pouco importava o lugar de origem ou o destino a que fosse
chegar. Ele parecia estar mais interessado nos caminhos e trajetórias da viagem, na
experiência de saída para fora ‘daqui’. Não levando provisões ou buscando metas
prévias para a viagem aprendemos que para fazer este caminho temos que nos arriscar.
O conto nos diz nas palavras do cavaleiro: A viagem é tão longa que tenho de
morrer de fome se não receber nada no caminho”.
A cada cavalgada, a cada caminhada no campo, faz-se o processo de aprendizagem, pois
nele fazemos viver algo desconhecido até então. Parece-nos, pois que este constitui um
de nossos primeiros desafios: vencer o medo de perdermos a segurança das identidades
que construímos para nós, como territórios existenciais que nos dão a sensação-
segurança de estarmos em casa. Certamente, abrir mão de concepções apriorísticas e
essencialistas, bem como de maniqueísmos que fixam as práticas e os processos sociais
de forma dicotômica, exige de nós e em nós a criação de um modo de fazer os percursos
que nos permitam acolher os movimentos instituintes que emergem no campo. Do
contrário, nos veremos constantemente apavorados tentando nos segurar nestes
territórios, que por muitos momentos acreditamos dizer tudo sobre o que nós somos.
Procurando certezas absolutas, ancorados no/pelo medo, poderemos até escutar o som
da trompa, mas por vezes, não selaremos nossos cavalos para uma partida para fora
32
destes territórios existenciais. O perigo encontra-se no enrijecimento identitário daquilo
que somos e do que fazemos (de nossas práticas). Veyne (1998), a partir de uma das
teses de Foucault, nos ajuda a entender o que estamos afirmando como prática. Para o
autor não sendo a prática uma resposta ao dado, a um objeto ‘pré-existente’ não
estaríamos interessados em explicar ou entender o fazer tomando como ponto de partida
a análise do feito. Mas ao contrário, é o próprio fazer que pode explicar o feito. Neste
sentido, o autor nos propõe o desvio dos objetos naturais, a atenção às raridades, às
formas inusitadas tecidas neste fazer histórico, para percebermos que outras práticas são
possíveis. Esta nos parece ser uma boa indicação para a prática de nosso olhar nesta
viagem-pesquisa.
A intuição inicial de Foucault não é a estrutura, nem o corte, nem o discurso:
é a raridade, no sentido latino dessa palavra; os fatos humanos são raros, não
estão instalados na plenitude da razão, há um vazio em torno deles para
outros fatos que o nosso saber nem imagina; pois o que é poderia ser
diferente; os fatos humanos são arbitrários, no sentido de Mauss, não são
óbvios [...] (VEYNE, 1998, p. 239-240).
Enfrentar o medo, passo a passo, sem nos paralisarmos constitui-se uma das atitudes do
caminho da aprendizagem. É na possibilidade de caminhar, mesmo quando nos sabemos
sem provisões, sem coelhos na cartola mágica; arriscando-se no não sabido, no
desconhecido, é que podemos embarcar em mudanças que podem nos trazer outros
modos de viver.
1.3.1 Produzindo Estranhamentos: a experiência de uma contratação coletiva
De algum modo, é quando o não-saber é afirmado como lugar de possibilidade no
campo da experiência coletiva, quando não respondemos as perguntas do grupo à justa
medida, mas produzimos nelas um estranhamento - convidando-os a tecermos juntos a
própria pesquisa - que tentamos escapar dos perigos de ter na relação e na pesquisa um
caráter utilitário. E este risco parecia assombrar a nós todos quando emerge a seguinte
fala do grupo: “A concretude é muito difícil”. Pareciam falar das dificuldades de se
fazer o trabalho na lida diária, mas também de ver nesse fazer uma operacionalização da
teoria. Produzia-se na própria pesquisa a problematização entre teoria e prática. Os
33
olhares do grupo, quando ouviam da possibilidade de ser a pesquisa tecida por todos
nós, pareciam suspeitar, por vezes, que teoria fosse uma coisa e prática outra. À
pesquisa parecia ser dado o lugar da teoria e ao que faziam o lugar da prática. Intuímos
nas falas que emergiam no grupo, um certo receio de que a pesquisa, em meio a uma
relação de teoria e prática dicotomizadas, se utilizasse do campo para nele constatar ou
não a presença de uma teoria. E de que esta, numa relação longínqua de onde a vida se
passa, produzisse apenas a abertura de feridas, expondo as mazelas do grupo e as
debilidades de suas práticas.
O medo parecia entranhar-se nos pedidos de preparação de um projeto de pesquisa
formalizado sob a chancela da Academia à qual o pesquisador pertencia bem como na
necessidade de aprovação do projeto pelo Secretário de Saúde do Município de Macaé.
Este percurso de solicitações foi feito, pois nos parecia ser uma via, embora endurecida,
de sustentarmos o desejo de estar com aqueles trabalhadores. Nas idas e vindas ao
grupo, para levar o projeto encontramos dificuldades de horário, de espaço e de
acolhimento para estarmos juntos. Mas não seria este estar junto a matéria constituinte
da experimentação da pesquisa? Não seria nessa relação que deveríamos nos empenhar
e nos cultivar? Seis meses se passaram. O tempo de espera fez-se como tempo de
gestação também das durezas que se passavam a um tempo em nós. De algum modo,
em meio às durezas, o grupo parecia resistir a um modo de relação, de pesquisar, que os
objetificasse. Mas seria a prática uma simples representação dos conceitos? Poderiam
ser os conceitos desencarnados do que se passa na vida?
Uma conversa entre Deleuze e Foucault no texto “Os intelectuais e o poder” nos ajuda a
pensar uma inseparabilidade entre teoria e prática, ao apontarem para um revezamento
entre essas duas dimensões sem conceber suas relações como um processo de
totalização, em um sentido ou em outro. Afirmam, portanto, pensá-las como dimensões
da realidade que co-emergem localmente
.
Talvez para nós a questão se coloque de outra maneira. As relações entre
teoria e prática são muito mais parciais e fragmentárias. Por um lado, uma
teoria é sempre local, relativa a um pequeno domínio e pode se aplicar a um
outro domínio, mais ou menos afastado. A relação de aplicação nunca é de
semelhança. Por outro lado, desde que uma teoria penetre em seu próprio
34
domínio encontra obstáculos que tornam necessário que seja revezada por
outro tipo de discurso este outro tipo que permite eventualmente passar a
um domínio diferente). A prática é o conjunto de revezamentos de uma teoria
a outra e a teoria um revezamento de uma prática a outra (FOUCAULT,
1999, p. 69-70)
Colocar em questão a tradicional separação entre teoria e prática, entre pensar e fazer é
não pensarmos a relação teoria-prática, sujeito-objeto como também a relação
homem-mundo. Se habitualmente concebemos a relação teoria-prática pelo domínio de
um dos termos sobre o outro, pensando a prática como uma aplicação da teoria, uma
conseqüência, ou fonte inspiradora da teoria; percebemos que o que se coloca para este
tipo de análise, é que estas relações estão configuradas num campo onde o
conhecimento é algo a ser totalizado. Neste contexto, a teoria deverá servir para
domínios amplos, expressar práticas diversas, afirmar sentidos universais e gerais.
Descolar-nos das visões totalizantes, planificadas e burocratizadas de pesquisa requer de
nós pesquisadores e de todos aqueles que trabalham com a produção da subjetividade
acossar-se com o som das trompas, inquietar-se com as respostas tranqüilizadoras e
universalizantes, afirmar a diferença em um compromisso ético e político de resistência
às unificações e totalizações. Para tanto a produção de conhecimento, o entendimento
daquilo que fazemos de nós mesmos, de como produzimos a nós mesmos nas práticas
de cuidado que pomos a funcionar dia a dia não passa pela mumificação das teorias que,
como vimos, são práticas. De algum modo parece-nos ser na abertura das teorias a
outras conexões, onde o critério não seja a Verdade, ou um retorno à origem,
interrogando sobre o modo como as teorias estão sendo utilizadas, a que estão servindo
e quais os seus efeitos, é que poderemos produzir movimentos de ruptura e afirmação da
vida.
A aposta de que alguns conceitos possam ser disparadores de processos de mudança,
não se faz estéril quando podemos afirmar que uma experiência concreta dos
conceitos, em sua potência vibrátil, naquilo em que ele faz-se de passagem para outras
composições das linhas da vida, de outros arranjos. Um movimento de fazer aparecer as
visibilidades e dizibilidades que têm constituído nossas formas de existência, bem
como, às experiências e modos pelos quais temos nos produzido coletivamente.
35
1.3.2 Com que roupa eu vou? Ensaios das/nas provisões
um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que têm a
forma do nosso corpo e esquecer os nossos caminhos que nos levam sempre
aos mesmos lugares. É tempo da travessia e, se não ousarmos fazê-la,
teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos.
Fernando Pessoa
Tênis, jaleco, roupa confortável, jaleco, carro com vidros abertos, jaleco. Dentre todas
as recomendações feitas pela equipe da saúde mental para a entrada na comunidade de
Nova Holanda, o uso do Jaleco parecia saltar aos ouvidos como condição para a entrada.
O esquecimento marcava um modo de resistir ao Jaleco como quem resistisse a todos os
modos instituídos de seu uso. Algumas vezes o esquecia e tinha de correr às pressas em
casa para pegá-lo. Noutras, quando o tempo fora impiedoso com o esquecimento,
Amanda (da equipe de Saúde Mental) e uma amiga da clínica que trabalho me
socorreram com seus jalecos sobressalentes.
De algum modo, o incômodo era tamanho que não comprara nenhum jaleco para fazer a
pesquisa, embora ele tenha sido colocado como condição para a entrada na comunidade.
Tomei de empréstimo um jaleco de minha amiga dos tempos em que ela fizera
residência em um hospital de São Paulo. LUCIANA: era esse o nome bordado no bolso
direito da roupa. A cor verde das letras contrastava com o branco da veste. As tentativas
de colar uma fita crepe sobre o nome esvaíram-se quando comecei a perceber que o
mais importante era estar atenta ao que os trocadilhos dos nomes e do jaleco punham a
funcionar. Com Lourau (1993) percebíamos que a pesquisa é uma criação permanente
necessitando de dúvidas e não de certezas prévias. Interrogávamos, pois o que o jaleco
fazia falar para além dos sentidos já instituídos. Para onde o jaleco nos levava? Que
outros caminhos podíamos percorrer que não mais os corredores e alas de hospitais,
ambulatórios e espaços de reclusão convencionais? Como sair da suposta permanência
dos lugares de saber-poder instituídos, em uma desestabilização dos especialismos,
quando não estávamos mais cercados pelas quatro paredes do consultório?
36
Como nos diz o poeta, mais do que esquecer o jaleco em si, percebíamos a necessidade
de esquecer ‘os caminhos que nos levam sempre aos mesmos lugares’. O tempo de
travessia faz-se como tempo de uma experiência de passagem. É que caminhar pelo
campo acompanhando os movimentos que fazem pulsar nossa questão de pesquisa: O
que se passa entre Saúde Mental e Atenção Básica, requer que privilegiemos como
questão aquilo que se passa na pesquisa, aquilo que se faz no interstício de uma
passagem. É estarmos atentos a uma experiência de acompanhamento que se faz no
entre-dois, onde algo se passa, uma experiência de passagem. Um exercício cartográfico
de
dar língua para afetos que pedem passagem, dele [do cartógrafo] se espera
basicamente que esteja mergulhado nas intensidades de seu tempo e que,
atento às linguagens que encontra, devore as que lhe parecem elementos
possíveis para a composição das cartografias que se fazem necessárias.
(ROLNIK, 2007, p.23).
Esta nos parece ser uma indicação preciosa para a constituição de um pesquisar que se
faça como intercessor potencializando as experiências de cuidado e expansão da vida
em seu fazer-se, que nos interessa problematizar os modos pelos quais temos
construído práticas de cuidado no campo da saúde na interface Saúde Mental/Atenção
Básica.
***
De Jaleco às mãos, ou melhor, aos corpos; fomos realizar uma visita
domiciliar à casa de um paciente acompanhado pelas equipes de Saúde
Mental e do PSF/Nova Holanda bastante tempo. As lembranças de
uma fala de um profissional da equipe de saúde mental saltam ao corpo
na caminhada daquela manhã de sexta feira: “o jaleco é nossa
armadura, nossa proteção”. Quando passávamos em umas das ruas para
chegar à casa de Joaquim, éramos também levados a transitar entre a
miséria das ruas esburacadas com esgotos correndo a céu aberto e a
violência que assola a vida da comunidade com o tráfico de drogas.
Muitos meninos de 12, 13 e 14 anos estavam armados e dispostos em
situação estratégica. Com rádios às mãos e mochilas às costas pareciam
preparar-se para qualquer movimento de entrada da polícia. Deixavam-
37
nos passar sem qualquer interdição. Com pistolas às mãos e nós com
jalecos aos corpos. Armas. Armaduras. Amarras-duras ou nós?
Trocamos olhares-corpo-a-corpo. Estranhamentos quando o medo
não fazia parte dos afetos a nos perpassar. Das armas, poucos da equipe
de saúde podiam falar, porque poucos viram. Cegueira? Silêncio? O
cinza das pistolas parecia já não emoldurar seus formatos. O branco dos
jalecos desfazia seus sentidos instituídos naquela pausa tensa. Podíamos
até dizer que o branco se transformava em paz.
Na volta, podíamos ver os comboios de meninos se formarem a passos
rápidos e de repente se dispersarem em um corre-corre só. A ACS
cuidava de si e da equipe quando nos indicava um certo andar
estratégico que construíra na aprendizagem das andanças como modo de
resistir e poder continuar realizando o seu trabalho.
***
Naquela visita à casa de Joaquim percebíamos um certo definhamento
de seu corpo, de sua vida. Se há tanto estivera até andando pelas ruas de
Nova Holanda sentindo com os pés aquilo que a cegueira dos olhos lhe
retirava, havia emagrecido bastante e dormia o tempo todo em um
cômodo escuro da casa. Mudara de cuidadora. Dona Dirce falava
apressadamente, por vezes envergonhada durante a visita. Estimulada a
sair com Joaquim (o que para ela era difícil porque Joaquim gostava de
ficar todo o tempo nu), a ajudá-lo a participar de algumas atividades da
casa, Dona Dirce espanta-se e estranha uma certa dimensão do cuidado
que aparecia naquela intervenção que era a dimensão relacional.
Acostumada a deixá-lo e por vezes fazê-lo dormir e permanecer o
tempo todo deitado e enrolado nas colchas, Joaquim parecia já não mais
sentir a diferença entre um dia de frio e um dia de sol, como aquele de
nossa visita. A pele precisava ser tocada, acossada. A ACS contribui
preciosamente para a intervenção quando indicava à equipe de saúde
mental que Dona Dirce não estava se sentindo bem. Parecia viver uma
experiência de deixar-se só, muito próxima daquela de Joaquim. Tinha
também a pele sedada pelo uso e dependência de ansiolíticos a um longo
tempo, todavia, sabia esta senhora que a sedação parecia não anestesiá-
la para os acontecimentos vívidos da vida. Impaciente e irritadiça (como
38
ela dizia se sentir) parecia não encontrar em sua atual forma de vida
lugar para todos os sentimentos que compareciam e insistiam em não
serem anestesiados. A cuidadora precisava de cuidado.
***
No traçado das intensidades que compareciam na experiência, também
desestabilizavam-se os lugares daquele que cuida e daquele que é
cuidado. No deâmbulo pelo/no território, haveríamos de pensar em como
cultivar a dimensão relacional e coletiva de nossa existência em meio a
territórios existenciais de pele-sedada, às voltas em como produzir redes
de produção de cultivo e expansão da vida em territórios também
constituídos pela violência vivida por muitas famílias, crianças e
adolescentes emaranhadas às redes mortíferas do tráfico.
Desenhávamos cartografias traçando mapas provisórios de nossos
percursos.
(Diário de Bordo, 11 de setembro de 2008)
Para o desenho das cartografias que vão sendo descobertas/inventadas ao longo de
nosso percurso de viagem fazemos uso de um diário de bordo como instrumento-escrita
de passagem das intensidades que buscam expressão. As questões que por ele
perpassam não são mais as de falso ou verdadeiro, mas exatamente aquelas que nos
acossam a pele, que desestabilizam as formas instituídas, que abrem as formas da
realidade fazendo-nos ver seu processo de fabricação. A escrita opera cartograficamente
acompanhando as linhas que se traçam, marcando os pontos de ruptura e de
enrijecimento, analisando a composição e decomposição dos territórios existenciais na
impermanência de seus arranjos.
De algum modo, o diário nos é uma preciosa ferramenta metodológica e com a qual
contamos em nossa provisão de viagem quando percorremos as modulações de nossa
questão: O que se passa entre Saúde Mental e Atenção Básica? Experimentamos no
fluxo da narrativa do diário o acompanhamento do fluxo da experiência, o que por vezes
produz uma espécie de estranhamento para os leitores acostumados a uma linearidade
da narrativa como representação do vivido em um enquadre organizado do texto. A
escrita faz-se em sintonia com o próprio movimento do viver e dos tensionamentos de
39
nossa questão de pesquisa quando convocada a habitar o plano paradoxal com/no/pelo
qual constituímos nossa existência e nosso fazer.
Ao afirmarmos um modo de fazer os percursos de nossa pesquisa sem previsibilidades
que estaquem o movimento, sem respostas que nos sirvam como couraças a apartar-nos
do que no próprio movimento faz em nós outros, chamamos atenção também para um
outro modo de ‘coletar dados’.
Se tradicionalmente a coleta de dados é conhecida como uma fase inicial da pesquisa,
Kastrup (2007) nos ajuda a pensar que na perspectiva cartográfica o que é uma
produção de dados de pesquisa. Para seguirmos nesta afirmação com autora, a pista que
aqui tomamos diz respeito ao funcionamento da atenção do cartógrafo durante o
trabalho de campo. Não se trata aqui, de buscar uma teoria geral da atenção, mas de
compreender e apostar em um certo modo de operar o processo de produção de
conhecimento afirmando seu caráter de produção e invenção de si e do mundo. Para a
autora tomar o mundo, e aqui poderíamos dizer o próprio campo de pesquisa, como
fornecendo informações prontas para serem apreendidas é uma política
cognitiva realista; tomá-lo como invenção, como engendrado conjuntamente
com o agente do conhecimento, é um outro tipo de política, que
denominamos construtivista. (KASTRUP, 2007, p.16).
Destacamos, então, no que diz respeito ao funcionamento da atenção no trabalho do
cartógrafo, a complexidade deste processo, entendendo que sua função não diz respeito
a uma simples seleção de informações. Nas palavras da autora:
seu funcionamento não se identifica a atos de focalização para preparar a
representação das formas de objetos, mas se faz através da detecção de signos
e forças circulantes, ou seja, de pontas do processo em curso. (KASTRUP,
2007, p.15).
Uma mudança da qualidade da atenção do cartógrafo se faz quando deixa-se de buscar
informações para acolher o que lhe acomete. “A atenção não busca algo definido, mas
torna-se aberta ao encontro.” (Kastrup, 2007, p. 17)
40
1.4 Encontros cartográficos: Quando ir a campo é ir ao território
Na partida para o campo de pesquisa, Kafka nos faz ver um impasse. No diálogo do
conto entre o senhor e o criado, percebemos que na feitura da viagem-pesquisa
haveríamos de construir não um modo de fazer a viagem – sem apego a metas
prévias ou provisões mas também o próprio caminho. aqui uma experiência de
produção dos caminhos da pesquisa no próprio modo de fazê-lo: desenhando
cartografias, traçando mapas provisórios de nossos percursos. Esta feitura nos fala de
uma produção de um relevo diferente da geografia.
Embora tomemos o termo cartografia emprestado da ciência geográfica, operamos nele
uma inflexão com a ajuda de alguns autores
11
. Diferentemente de um geógrafo que se
interessa pelas formações estáveis e pela produção de mapas topográficos, o cartógrafo
está comprometido em acompanhar a produção de territórios existenciais, seus
contornos e arranjos, tendo em vista que seus movimentos são sempre provisórios e
estão sempre em transformação. Por certo, podemos dizer que com a produção de
mapas na prática cartográfica começamos a experimentar uma problematização do
conceito de território. Parece-nos importante então, interrogarmos: o que entendemos
como mapa? Como pensar o conceito de território?
Girardi (2006) nos indica que no dicionário cartográfico do IBGE, o mapa é definido
como uma representação gráfica das características naturais e artificiais, terrestres ou
subterrâneas, ou ainda das características de outro planeta, feita geralmente numa
superfície plana e em determinada escala. Nesta definição, os acidentes são
representados dentro da mais rigorosa localização possível, relacionados, em geral, a um
sistema de referência de coordenadas. Podemos aqui perceber uma necessidade de
representação do espaço que busca, por muitos momentos, uma localização. Isto nos faz
pensar que há, na preocupação de muitos que trabalham com a noção de território, uma
pergunta pelo lugar.
11
Esta inflexão é operada por DELEUZE G.; GUATTARI, F. (1995) e GUATTARI, F.; ROLNIK, S.
(2005) e com ela afirmamos uma certa direção metodológica que coloca em questão o status quo da
tradição moderna e sua fundamentação cientificista de que a produção de conhecimento se faz pela busca
de purificação dos fatos, neutralidade e sustentação do lugar da verdade.
41
Para Girardi (2006, p.65) transformou-se lugar comum na geografia a expressão: ‘mapa
é a representação do espaço’. Cabe aqui, questionarmos um certo entendimento do mapa
àqueles que o tomam como figura estática pressupondo-o capaz de representar uma
realidade pré-existente. Isto nos exige pensar em como construímos os mapas bem
como o uso que fazemos deles. Por hora, podemos pensar que um certo traçado do mapa
nos permite constituir contornos, limites territoriais que nos sirvam como referência,
como guia. Ter um mapa significaria aqui, ter visibilidade do território e, portanto,
‘segurança’ no trânsito por esse território. Aqui, uma outra questão nos parece ser
produzida nas tentativas de definição do território que não se faz somente por uma
pergunta pelo lugar, mas também a de como transitar no território. Se podemos falar que
vivemos na experiência de construção de mapas-territórios uma experiência de
‘localização’ podemos dizer que aqui também se faz presente uma experiência de
trânsito, de movimento.
O geógrafo Milton Santos (2008), nos ajuda a produzirmos algumas reflexões até
mesmo dentro do campo das ciências geográficas, quando questiona as definições
clássicas da geografia que entendem o espaço como resultado de uma interação entre o
homem e a natureza bruta e, até mesmo, o mapa como uma representação estática do
território. Em seu livro Metamorfoses do Espaço Habitado, o autor marca a importância
de considerarmos os três modos pelos quais o espaço tem sido conceitualizado.
Em primeiro lugar, o espaço pode ser visto num sentido absoluto, como uma
coisa em si, com uma existência específica, determinada de maneira única.
(...) identificado mediante um quadro de referências convencional;
especialmente nas latitudes e as longitudes. Em segundo lugar, o espaço
relativo, que e em relevo as relações entre os objetos e que existe somente
pelo fato de esses objetos existirem e estarem em relação uns com os outros.
Assim, se tivermos três localidades A, B, C, estando os dois primeiros
fisicamente próximos, ao passo que C está longe mas dispõe de melhores
meios de transporte para A, é possível dizer, em termos relativos espaciais,
que as localidades A e C estão mais próximas entre si do que A e B. Em
terceiro lugar, o espaço relacional, onde o espaço é percebido como
conteúdo
12
e representando no interior de si mesmo outros tipos de relação
12
Para o autor a noção de conteúdo refere-se à sociedade em andamento, em movimento, na construção
de suas formas de existência. “o espaço, por conseguinte é isto: um conjunto de formas contendo cada
qual frações da sociedade em movimento” (SANTOS, 2008, p.28)
42
que existem entre objetos. (MABOGUNJE, 1980 apud SANTOS, 2008, p.
38. grifo nosso)
O autor evidencia uma aposta no entendimento da noção de território como espaço
relacional quando afirma que o espaço não é
nem uma coisa em si, nem um sistema de coisas, mas uma realidade
relacional: coisas e relações juntas. O espaço deve ser considerado um
conjunto indissociável, de que participam, de um lado, certo arranjo de
objetos geográficos, objetos naturais e objetos sociais, e, de outro, a vida que
os preenche e os anima, ou seja, a sociedade em movimento. (SANTOS,
2008, p.27-28).
Entendemos o sentido precioso das contribuições deste autor para o nosso estudo, pois
embora saibamos da importância da dimensão espacial concreta para pensarmos o
conceito de território, também sabemos que ela não se sustenta por si própria. Há que se
pensar, sobretudo, na produção de uma outra territorialidade construída nas relações,
nos indagando sobre o modo como habitamos o território e como, de fato, o
produzimos.
Perlongher (1993) nos sinaliza que essa territorialidade é, em seu modo de operar,
itinerante, isto é, privilegia “os espaços intermediários da existência social, percursos,
trajetórias, devires” (p.54). Numa certa perambulação, o autor nos sinaliza a força de
um caminhar itinerante, que para ele “não se fixa aos trajetos por onde circula” (p.56). É
que embora tenhamos uma experiência de seguir trajetos costumeiros, indo de um ponto
ao outro, isto é, não ignorando os pontos, Perlongher afirma que operar no território
atento à sua dimensão itinerante é não sucumbir a uma fixitude monótona dos trajetos.
“A perambulação entre pontos não é princípio, senão consequência, da deixa nômade
13
ainda quando se transite entre pontos; esses pontos são consequência dos trajetos”
(Perlongher, 1993, p.56).
13
Para Perlongher a territorialidade itinerante, entendida como uma não fixação do próprio caminhar aos
trajetos por onde circula, traz a experimentação de um novo traço na constituição do território. Inspirado
na obra de DELEUZE G.,GUATTARI, F., Mil Platôs (1995), contrasta a localização peculiar do espaço
sedentário (onde os pontos do território são os que impõem uma fixitude monótona dos trajetos,
condensando uma palavra de ordem) ao espaço nômade. Este, embora tenha uma experiência de
localização, não é delimitado.
43
Percebemos aqui, uma experiência itinerante vivida com/nos traçados dos territórios,
muito próxima do que temos até então chamado de prática cartográfica. Se, não estamos
interessados pelas formações estáveis nem pela produção de mapas topográficos,
afirmamos a cartografia como
um desenho que acompanha e se faz ao mesmo tempo que os movimentos de
transformação da paisagem. Paisagens psicossociais também são
cartografáveis. A cartografia, nesse caso, acompanha e se faz ao mesmo
tempo que o desmanchamento de certos mundos sua perda de sentido e a
formação de outros: mundos que se criam para expressar afetos
contemporâneos, em relação aos quais os universos vigentes se tornaram
obsoletos”. (ROLNIK, 2007, p. 23).
Experimentamos uma outra qualidade na construção do relevo e da própria noção de
território quando podemos ampliar nossa visão para além dos sentidos produzidos pela
etologia, etnologia ou até mesmo a geografia. Neste sentido, Guattari e Rolnik (2005)
contribuem com essa ampliação quando nos indicam que
(...) o território pode ser relativo tanto a um espaço vivido, quanto a um
sistema percebido no seio do qual um sujeito se sente em casa”. O território
é sinônimo de apropriação, de subjetivação fechada sobre si mesma. Ele é o
conjunto de projetos e representações nos quais vai desembocar,
pragmaticamente, toda uma série de comportamentos, de investimentos, nos
tempos e nos espaços sociais, culturais, estéticos, cognitivos. (GUATTARI;
ROLNIK, 2005, p.388)
A ampliação de nossa visão acerca da noção de território formulada por esses autores
nos é preciosa, quando com ela podemos falar de um outro modo de operar com/no
território: acompanhar os contornos e arranjos da produção de territórios é estarmos
atentos aos processos de territorialização e desterritorialização dos modos pelos quais
construímos nossos modos de existência e nossas práticas. É que se entendemos que
um território é fabricado por segmentações, por cortes e recortes, que parecem distintos
entre si, mas que ao mesmo tempo, referenciam-se uns aos outros produzindo um
sistema fechado em si mesmo, uma espécie de identidade; também sabemos que todo
território tem a possibilidade de se desarrumar, de se desterritorializar. A possibilidade
de desfazimento de territórios, as brechas que neles se fazem - quando estes o são
44
obsoletos para fazer passar os afetos que pedem expressão - podem também promover
aberturas para a construção de outros jeitos de se relacionar, de se estar junto e de viver
a vida.
Mergulharmos na processualidade da formação destes arranjos, entendendo-os sempre
como provisórios, requer que recusemos um suposto lugar ‘protegido’ da neutralidade,
apostando na mistura dos corpos
14
, do caos que não se consegue classificar e controlar,
nos riscos de inventar. Esta nos parece ser uma indicação preciosa a nos mover nos
percursos de nossa viagem ao campo de pesquisa. Se dizíamos que para uma viagem
tão longa - quanto a do homem de nosso conto - sua sobrevivência seria dada por um
movimento de fazer-se com, afirmamos que o próprio movimento de (des) construção
de territórios, de nossa própria vida, também é sustentada por um cuidado das forças
geradas no encontro. A possibilidade de nos alimentarmos, quando sabemos que
nenhuma provisão pode nos salvar, é produzida no quanto nos abrimos para os
encontros, afetando e se deixando afetar. Há, sobretudo, nesta experiência do encontro
uma aposta de cultivo de nossa existência em sua dimensão relacional e coletiva.
Podemos apontar no modo de fazer os percursos e suas cartografias, uma reversão
metodológica quando resistimos ao assujeitamento do caminhar (e daquele que
caminha) ao primado da meta e operamos uma subversão metodológica onde o rigor é
de um hodos-meta, de uma experiência coletiva de caminhar na construção de metas,
onde o caminho se torna um ato de produção de si e de mundo em um processo
gerúndico do caminhando. Aqui, podemos fazer uma aposta não nos modos de se
fazer a pesquisa quando vamos ao campo interessados em acompanhar a articulação
entre Saúde Mental e Atenção Básica, mas, sobretudo, nos modos como temos
construído esta intercessão com/no território.
Ao caminharmos em nosso campo de pesquisa interessados nos processos e práticas de
cuidado realizadas na atenção básica conjuntamente pelas equipes da Estratégia de
Saúde da Família e pelas equipes de Saúde Mental, operamos um inflexão em nossos
percursos quando entendemos que ir a campo é ir ao território.
14
E aqui consideramos o corpo em seu potencial expressivo, em sua invisível vibração, suas
singularidades afetivas. Podemos até afirmar que a própria natureza do corpo é dada pelos agenciamentos
que fazemos. (ROLNIK, 2007).
45
Nesta inflexão, entendemos também que o nosso fazer em saúde se na afirmação da
processualidade do plano de produção de nossa existência. Compreendemos aqui que os
modos pelos quais buscamos operar uma mudança na atenção e gestão em saúde são
indissociáveis dos modos pelos quais produzimos a nós mesmos. A aposta que fazemos
para pensar o conceito de território é entendê-lo, sobretudo, como território de
encontros. E para nós, é neste território de encontros que produzimos, de fato, políticas
públicas: encontros da Saúde Mental e Atenção Básica, encontros das Reformas
Psiquiátrica e Sanitária.
Se o desafio assumido pelos movimentos das Reformas Psiquiátrica e Sanitária, na
década de 70, buscava uma mudança nos modos de se fazer a atenção e gestão nas
práticas de saúde, afirmamos que o caráter instituinte destes movimentos marca, em
nosso contemporâneo, a exigência de pensarmos a inseparabilidade entre produção de
saúde, produção de subjetividade e produção de territórios afetivos. O revigoramento do
movimento instituinte de constituição de políticas públicas no Brasil, requer pensarmos
a dimensão pública dessa construção pressupondo uma inseparabilidade desses três
processos de produção: produção de saúde, produção de subjetividade, produção de
territórios afetivos.
Neste sentido, adotamos o conceito de Ambiência da Política Nacional de
Humanização
15
, como modo de re-significar o que até então temos entendido como
território sanitário. Para a arquitetura dos espaços da saúde, a ambiência refere-se ao
tratamento dado ao espaço físico entendido como espaço social, profissional e de
relações interpessoais e que deve proporcionar uma atenção acolhedora, resolutiva e
humana. Operar no território com o conceito de ambiência é então tomá-lo para além da
composição técnica - simples e formal - dos ambientes e apreendê-lo em sua dimensão
15
A Política Nacional de Humanização (PNH) vista não como programa, mas como política que atravessa
as diferentes ações e instâncias gestoras do SUS, implica-se com a construção deste território de
encontros do SUS ao operar com o princípio da transversalidade, apostando nesta dimensão coletiva e
relacional como produtora de nossa existência. Entendendo por humanização a valorização dos diferentes
atores sociais implicados no processo de produção de saúde (usuários, trabalhadores e gestores) e,
portanto, o cultivo desta dimensão relacional, a PNH afirma a processualidade de nossos modos de
produção de saúde e de subjetividade, apontando para a constituição de valores nos modos de operar a
organização da atenção e gestão norteadas pela produção de: autonomia, protagonismo, co-
responsabilidade, participação coletiva e construção de vínculos solidários.
46
relacional. Podemos afirmar que é neste plano coletivo e relacional que se dá,
efetivamente, a produção de territórios afetivos/existenciais.
No campo da atenção básica, a produção de um certo mapa do território sanitário
utilizado como referencial para a estruturação da Estratégia de Saúde da Família têm
sido marcado pela territorialização e adscrição da população a uma área de abrangência
definida. nesta adscrição a recomendação de que uma equipe da Estratégia de Saúde
da Família seja responsável pelo acompanhamento de, no máximo 4.500 pessoas. A
produção de uma localização do espaço territorial que delimita a área de
responsabilização de uma determinada equipe torna-se o lócus operacional do
programa. Com a adscrição de 600 a 1.000 famílias à uma equipe de Saúde da Família
preconiza-se como diretriz para este trabalho a longitudinalidade entendida como o
acompanhamento das famílias ao longo do tempo independente da presença de
patologia articulando assim a idéia de vínculo que tem como princípio a constituição de
referências dos usuários para com os profissionais responsáveis pela sua área. Uma
outra diretriz norteadora do trabalho no território sanitário é constituída pelo
planejamento ascendente que tem como proposta definir as ações de saúde a partir das
necessidades identificadas no território vivo.
Se de algum modo, percebemos, no campo da atenção básica um certo delineamento do
próprio território sanitário com seus princípios e diretrizes de territorialização,
adscrição, longitudinalidade e planejamento ascendente; sabemos que estes não
garantem por si só a construção de uma política pública compromissada com a produção
da vida. Se as iniciativas para a constituição de um trabalho territorial têm sido
apontadas na atenção sica como modo de operar o trabalho em saúde, entendemos
que aqui, este modo se faz na contra-mão da normatização rígida dos processos de
organização dos serviços de saúde que definem modalidades de acesso; modos de cuidar
centrados na doença, na queixa e nos especialismos; bem como modos de trabalhar que
destituem a capacidade de construção de autonomia e protagonismo dos trabalhadores e
usuários. Sabemos que a produção do próprio território sanitário, se passa na aposta de
um exercício ético, estético e político a ser feito cotidianamente na potencialização da
capacidade de criação que nos constitui, no cultivo de nossa dimensão coletiva e
relacional.
47
Lembro de Dona Maria José. Senhora de 74 anos, que havia acabado de
receber a notícia de que a nora, a quem amava como uma filha acabara
de falecer em um acidente trágico de automóvel. O neto que também
estava no acidente, encontrava-se muito mal no hospital. O irmão desta
nora havia falecido no local do acidente também. Ao encontramos com
ela em sua casa, dizia ter muita vontade de correr pela rua. O corpo
debatia-se em meio à dor e desespero de não ver mais a nora querida.
Ao ver o médico do PSF adianta-se em dizer que não queria calmante
algum. “Minha cabeça está boa. É meu corpo que está todo quebrado.
machucado”. Todos ficam receosos de D. Maria José sair correndo
pela rua. Não pela sua idade... a rua também estava toda quebrada!
Em vésperas de eleição, a prefeitura tentava mascarar a falta de água e
saneamento no bairro. Não havia, pedra (...), ou melhor, paralelepípedo
sobre paralelepípedo. Em meio a dor, D. Maria José, não queria
calmantes. Não esses calmantes que tiram a possibilidade de, mesmo
“quebrada” (como D. Maria José referia-se a si mesma), passar com e
pela experiência paradoxal de morte e vida. Vida que insistia, por vezes,
tão lucidamente à insanidade da miséria e precariedade daquele bairro,
todo quebrado!
A casa cheia de amigos. Os filhos, modo como D. Maria José se referia
aos vizinhos mais próximos, também estavam lá. Se pudéssemos falar em
“calmante” neste momento, este seria o carinho destes filhos-vizinhos, o
cuidado dos amigos, do enfermeiro atento à pressão de D. Maria José
(que havia subido bastante).
Quantos anos a Sra. tem? pergunta a psicóloga para anotar em seu
caderno.
Tenho 74. Mas pode anotar 47! – responde faceiramente Maria José.
Gostei! Vou começar a fazer isso também! – corresponde a psicóloga
O riso do trocadilho produz alegria nas duas mulheres que se olhavam
como cúmplices. Embaralham-se os lugares de quem dá apoio e de quem
é apoiado. Em meio ao trocadilho, produz-se troca e acolhimento.
O que faz suportar as dificuldades parece ser uma aposta nas redes de
solidariedade tecidas no cotidiano.
(Diário de Campo, 08 de agosto de 2008).
48
A aposta que temos feito no território como espaço de proliferação de encontros e
composições, em muito tem apontado para a complexidade da vida que nele e com ele
se passa. Afirmarmos com Rolnik (2007) que nossos modos de subjetividade são
compostos de materiais diversos, de muitas histórias entremeadas, de aspectos sociais,
econômicos, políticos, familiares, afetivos, etc, também afirmamos que nossa existência
é produzida coletivamente, porque essa é sua matéria. Se em nossa ida ao campo-
território apostamos que é transformando que se conhece, afirmamos também que nas
cartografias que aqui traçamos não sentidos para serem revelados, mas para serem
criados. De algum modo, compreendemos que é na provisoriedade e parcialidade das
cartografias que reside também sua multiplicidade. As cartografias são multiplicidades
que não formam um todo e se algum todo é formado é o das partes ao lado. Parece-nos
que a pesquisa vive os cruzamentos desta cartografia como partes ao lado ao pensarmos
em algumas interferências que se comporam como forças a encarnar-se em cheiros,
ritmos, cores e jeitos para a construção de um corpo-pesquisador.
1.5. Interferências: Um, Dois, Três - O incontável como oxigênio para a invenção
do presente
A harmonia secreta da desarmonia: quero não o que está feito mas o que
tortuosamente ainda se faz.
Clarice Lispector
Uma questão de pesquisa. Como ela nasce?
Ao percorrer nossa memória para buscar os fatos que constituíram o nascimento de
nossa questão de pesquisa, nos é inevitável falarmos de uma outra memória
16
: não a dos
16
Fazemos referência também à tese de doutorado de Ana Heckert (2004) ao trabalhar com a importância
dos restos, detritos, dos detalhes insignificantes em Benjamim afirmando uma outra dimensão da história.
A autora nos mostra que para Benjamim articular historicamente a história não significa conhecê-la como
ela foi de fato. A história não é, portanto, compreendida como acabada, encerrada em um definitivo era
uma vez”. A história é construção. Não diversidade do tempo sendo recolhida na ntese de um
processo progressivo em direção a uma destinação que recuperaria a origem, não finalismo em sua
marcha, há, em contrapartida, apropriações estratégicas de descontinuidades, não recuperação de
identidades, mas sim construção de sentidos que se entrecruzam com as urgências do presente. Com
efeito, como a história genealógica, a história em Benjamin, na quebra do tempo homogêneo, faz emergir
a diferença. Ver em: GAGNEBIN, J. M.; GARBER, K. Por que um mundo todo nos detalhes do
cotidiano. Revista USP - Dossiê Walter Benjamin, São Paulo, n. 15, p. 39-47, set./out./nov., 1992
49
fatos lógicos e lineares, mas a dos afetos que produziam em nosso corpo inquietações e
buscavam passagem que os dessem sentido.
A memória que aqui chamamos de afetiva, Rolnik (1993) nomeia como memória do
invisível. A autora propõe considerarmos que, os ambientes de toda espécie nos quais
vivemos mergulhados, compõem-se não apenas de um plano visível e mais óbvio à
nossa percepção a olho nu, mas igualmente, de um plano invisível. Neste plano, ela diz:
“o que é uma textura (ontológica) que vai se fazendo dos fluxos que constituem
nossa composição atual, conectando-se com outros fluxos, somando-se e esboçando
outras composições. Tais composições, a partir de um certo limiar geram em nós
estados inéditos, inteiramente estranhos em relação àquilo de que é feita a consistência
subjetiva de nossa atual figura. Rompe-se assim o equilíbrio desta nossa atual figura,
tremem seus contornos.” (Rolnik, 1993, p.242).
A partir das composições que vamos vivendo, nossos modos de sentir, pensar e agir
(nossa figura atual), são inaugurados por estados inéditos. Em nosso corpo produz-se
uma marca, uma diferença. Neste momento, somos convocados pelo desassossego, pelo
desequilíbrio de nossa atual figura/forma que necessita criar um novo corpo, novos
contornos para nossos modos de sentir, pensar e agir que possam acolher esta
inquietação, este estado inédito que se fez em nós. Uma marca se faz em nós. “E a cada
vez que respondemos à exigência imposta por um destes estados, nos tornamos outros.”
(Rolnik, 1993, p.242).
As marcas, matéria constituinte desta memória invisível, não são apenas lembrança do
que nos aconteceu. As escolhas que fazemos em nossas vidas já sinalizam para o vívido
das marcas. É que muitas de nossas escolhas se fazem quando, mergulhados em um
ambiente, alguma marca encontra ressonância e volta a reverberar. Ela atrai e é atraída
por ambiência
17
, (re)atualiza-se por uma nova conexão. Produz-se então uma nova
17
Na construção da própria pesquisa operamos com este conceito de ambiência, entendendo que, nos
fragmentos desta memória afetiva, o que dá o tom de nossas escritas é, precisamente, a aposta na
dimensão coletiva vivida em algumas experiências. Nelas, nos interrogamos sobre esse território dos
encontros, sobre o lugar, os cheiros, as cores e gostos que desestabilizam e potencializam a construção de
outros sentidos para nossas existência, nosso próprio fazer. Falaremos delas como interferências e
destacamos para isso: nossa formação acadêmica, o exercício profissional e a cidade.
(Fonte:
http://www.saude.rr.gov.br/humanizasus/cartilha_ambiencia_2007). Acesso: 04/03/09.
50
diferença, e mais uma vez somos convocados a criar um novo corpo que permita a
existencialização desta diferença. Uma marca continua viva como exigência de criação,
pois mesmo que consigamos criar um plano de consistência para os afetos - gerados no
encontro de nosso corpo com outro corpo novos afetos estarão surgindo e nos
convocando a este plano de criação.
Assim poderíamos contar a história de nossa gênese, do modo como vamos criando a
nós mesmos e nossas questões. A diferença que se produz, como efeito das composições
que vão se formando, está sempre nos arrastando para outro lugar, nos dessubjetivando,
nos desensimesmando, nos tornando outros. Ela é disparadora de um devir, daquilo que
se produz em nós nas incessantes conexões que vamos fazendo.
Ao acessarmos e sermos acessados por esta memória afetiva experimentamos alguns
fios que esboçam as intensidades das questões que movem nossa pesquisa, podemos
dizer que também experimentamos uma outra temporalidade. Estamos distantes da
memória das coisas/representações ou de uma memória de passado como existido. Os
fios de memória quando contados, exigem-nos uma atitude de criação. Cria em nós a
ação de fiar a história em suas descontinuidades, em seu não-sentido, em sua
complexidade, suas lutas e contradições. O passado que ainda pulsa nas mãos dos
acontecimentos que tecem a vida.
1.6 Das Interferências: quando qualquer ‘entrada é boa desde que as saídas sejam
múltiplas’
18
Parece-nos, pois que neste trabalho temos tomado as interferências como oxigênio para
a invenção de nosso presente, de nós mesmos e nossas questões. Mas o que estaríamos
chamando de interferências? Como pensá-las quando nos propomos a ação de fiar a
história em suas descontinuidades, em seu não sentido e sua complexidade? Como
pensar a articulação que temos feito entre Saúde Mental e Atenção Básica em meio a
história em suas lutas e contradições?
18
Deleuze, G; Parnet, C. Diálogos. Tradução Eloísa A. Ribeiro. São Paulo: Escuta. 1998. p.119.
51
Uma pista: seguirmos viagem com a pergunta - O que se passa entre Saúde Mental e
Atenção Básica? - requer que tomemos esta articulação em suas ressonâncias, suas
interferências, seu encontros.
Seguindo em nossa questão com as pistas de Neves (2002) parece-nos que o desafio que
nos atrai e que move de certo modo este trabalho é pensar em interferências do ponto de
vista da produção social de nossa existência, de como produzimos a nós, nossas
questões, nosso fazer. Muitas vezes parece-nos comum limitar a idéia de interferência a
uma espécie de ação de um termo sobre outro, “poderíamos afirmar que um algo
qualquer pode interferir em outro sendo ele o que for, seja para transformar, seja para
ratificar um funcionamento, ou simplesmente para perturbar uma recepção de sinais,
caso em que interferência e ruído chegam a virar sinônimos”. (Idem, p.134).
O homem de nosso conto apressa-se por selar o cavalo quando o criado ainda zonzo não
entendia como poderia aquele homem viajar sem destino e provisões. Seu corpo fora
todo estremecido por um som de trompa. Parece-nos que há a produção de uma
interferência que inaugura em seu sentir, pensar e agir um estado inédito e é neste
momento que em seu corpo produz-se uma marca, uma diferença. É neste desassossego
que o homem faz-se outro, que a vida insiste em si mesma, em ir ‘para fora daqui’.
Não estaríamos aqui, supondo que a perturbação provocada pelo som da trompa seria
um problema de ‘recepção de sinais’ ou uma mera ação de algo qualquer sobre um
outro como efeito de uma sobreposição, afirmamos aqui, o caráter intensivo das
interferências em seus aspectos qualitativos e invisíveis e seus efeitos de contágio.
Compartilhamos aqui do conceito de interferência apontado por Neves quando afirma
ser esta:
(...) uma relação ou um conjunto de relações que incidem, de maneira casual
ou intencional, sobre outra relação ou outro conjunto de forças. Isto quer
dizer, nos termos de certas filosofias contemporâneas da diferença, que
interferir é estar presente num jogo de forças e, portanto, num complexo jogo
de poderes, entendendo que poder implica sempre correlações plurais de
forças. (NEVES, 2002, p.134)
52
Pensarmos em interferências
19
onde os movimentos não se fazem apenas como
sobreposição de algo qualquer sobre outrem, mas como um jogo de forças é estarmos
atento a um outro movimento produzido na relação, no encontro
20
. Com Rolnik (1993)
experimentávamos um outro modo de contar a história de nossa gênese e do modo
como vamos criando a nós mesmos e nossas questões percebemos, sobretudo, que a
construção de nossa existência é produzida no plano dos encontros, pois é nele que
efetuamos nossa potência de afetar e ser afetado, de interferir e sofrer interferências. É
neste plano que se produz uma diferença, como efeito das interferências em suas
relações de forças e das composições que vão se formando; diferença esta que está
sempre nos dessubjetivando, nos tornando outros, nos arrastando para outro lugar (para
‘fora daqui’ como o homem do conto).
dizíamos, em um momento anterior, que a experimentação da feitura da própria
pesquisa, nos faz acessar e sermos acessados por uma memória afetiva. Constituída por
marcas vívidas, estas se atualizam por ressonâncias e nos convocam a todo o tempo à
criação de um novo corpo que nos permita a existencialização da diferença que se
produz em nós nos incessantes encontros que fazemos. Se por vezes, construímos
pausas, territórios que nos possibilitam dar contornos aos nossos modos de existir, ao
19
Neves (2002) destaca que a realidade, na qual vivemos imersos, é produzida numa multiplicidade de
interferências extensivas e intensivas que, ‘em suas afirmações diferenciais, produzem ressonâncias tanto
inibitórias quanto favorecedoras de proliferações de sentidos e modos de vida como imantações do desejo
numa linha de fuga’ (p.138). Os aspectos extensivos (molares/visíveis) e intensivos (moleculares/
invisíveis) da interferência são coexistentes em um mesmo movimento e, portanto, não podem ser
pensadas como opostas, mas devem, sobretudo, ser pensadas nas relações e nos processos que as
constituem ao avaliarmos os movimentos que promovem ou estacam.
20
Com a ajuda do professor de física Marcio Pudenzi da Universidade de Campinas, Neves nos chama
atenção para esta perspectiva de análise da interferência onde os movimentos de ressonância e contágio se
dão por interação. Transcrevemos a explicação do professor Pudenzi retirada da tese de doutorado de
Neves para evidenciarmos que no encontro de uma onda com a outra, de um movimento com outro, de
um corpo com outro, o que está presentemente marcado é a idéia da produção de uma diferença.
"Temos
vários tipos de ondas, mas, para simplificar, vamos visualizar as ondas geradas em um lago calmo,
quando jogo uma pedra nele. Observando estas ondas, podemos notar, entre outras particularidades,
aquelas mencionadas na definição de Houaiss: amplitude, que é a altura máxima que um ponto na
superfície da água atinge, quando a onda passa por ele, em relação à superfície calma do lago (a crista
da onda); freqüência, que é a taxa com que a perturbação se repete (por exemplo, quantas vezes por
segundo um determinado ponto do lago atingiu a amplitude). Agora, resolvemos jogar juntos uma pedra
cada um, gerando ondas com mesma freqüência e amplitude (que coincidência feliz!). Aí, notamos que,
em determinados pontos, na região em que sua onda se encontra com a minha, as amplitudes delas se
somam, e em outros se subtraem. Isto é a interferência. Ela ocorreu porque nossas ondas tinham a
mesma freqüência e amplitude, mas foram geradas em locais diferentes. O mesmo efeito poderia ocorrer
se nossas ondas fossem geradas no mesmo local, mas em tempos diferentes. Esta diferença (espacial e/ou
temporal) nas ondas é o que chamamos de diferença de fase". (Neves, 2002, p.135)
53
nosso fazer, há, todavia, que estarmos atentos ao caráter sempre contingente e
provisório destes arranjos. A pausa, como nos indica Neves (2002), necessita manter
seu caráter de tensão, naquilo que se constitui de abertura e porosidade ‘às potências de
virtualização que estes movimentos portam’ (p.140).
Pensar, pois as interferências na ação de fiar a história em suas descontinuidades, em
seu não sentido, sua complexidade, lutas e contradições exige de s a ativação desta
dimensão intensiva da interferência. E é quando somos tomados por essa intensividade
que nos propomos a fiar algumas marcas de nossa memória afetiva que estão a interferir
no processo de gestação de nossa questão de pesquisa e na construção de um corpo-
pesquisador. Trazemos então a Formação Acadêmica, o Exercício Profissional e a
Cidade como interferências: Fiemos um pouco cada uma delas.
1.6.1 Interferência Um: Fiando a Formação Acadêmica
A escolha por retornar à academia no programa de Pós Graduação de Psicologia da
Universidade Federal Fluminense faz-se como o reverberar de uma marca. Marca de um
tempo em que éramos convocados a repensar nossas práticas em um hospital
psiquiátrico.
Ano de 1999. Entrara para um projeto de extensão
21
intitulado
“Intervenção no Hospital Adauto Botelho - A desnaturalização da noção
de doença mental: produção de outras formas de espaço-tempo”. Tempo
de luta e embates. Tempo de movimento. Nosso país, assim como outros
tantos cantos e meios do mundo, iniciara ao final da década de 1970,
uma intensa crítica ao modelo psiquiátrico clássico e a busca pela
criação de novos serviços que extinguissem o sistema asilar.
Neste projeto, éramos estimulados em um clima de estudos,
questionamentos e de busca por movimentos que pudessem quebrar com
a dura frieza daquele hospital psiquiátrico que alisava as paredes, o
21
Trata-se de um Projeto de Extensão da Universidade Federal do Espírito Santo, onde cursara minha
graduação em Psicologia. Nosso grupo formado por estudantes de diversos períodos do curso de
psicologia era orientado pela Professora Maria Cristina Campello Lavrador.
54
chão, as grades das enfermarias e os corpos semi nus indiferenciados no
pátio de “banho de sol”.
***
Nas nossas leituras tínhamos em Michel Foucault, um intercessor fundamental, para a
construção de nossas questões e de nossas intervenções naquele hospital psiquiátrico.
Aprendíamos com este autor a desnaturalizar a noção de doença mental. Seu projeto
metodológico de estudar os saberes sobre a loucura em diferentes épocas e sem se
limitar a nenhuma disciplina, marca decisivamente uma postura ético-política deste
pesquisador a reverberar em nosso grupo. Pretendeu Foucault, neste estudo, estabelecer
o momento e as condições de possibilidade do nascimento da psiquiatria. Ao analisar a
relação entre os saberes não se limitando às fronteiras espaciais e temporais da
disciplina psiquiátrica racha as formas da história naquilo que se supõe linear, contínuo
e natural tomando-a em suas descontinuidades, contradições e rupturas. A história da
loucura deixava de se fazer em nós a história da psiquiatria.
Em Historia da Loucura, Foucault (1978) desenvolve um estudo do nascimento da
psiquiatria e das práticas médicas de intervenção sobre a loucura. Segundo o autor,
antes do século XVIII, a loucura não era sistematicamente internada; ela era
essencialmente considerada como uma forma de erro ou da ilusão. Ainda no começo da
Idade Clássica a loucura era percebida como pertencente às quimeras do mundo; podia-
se viver no meio delas, e não tinha de ser separada, a não ser quando tomava formas
extremas ou perigosas.
Compreende-se nessas condições, que a percepção da loucura, na época clássica,
encontra-se com uma idéia de alteridade pura, inscrita no universo de diferenças
simbólicas que permite à loucura um lugar social reconhecido. Nesse contexto, os
hospitais surgem como instituições religiosas e filantrópicas de cuidados aos
necessitados, remontando a características de algumas ordens religiosas que prestavam
assistência humanitária a mendigos e miseráveis. Os muitos problemas de doenças
evidentes nesta população, também se associavam às condições de pobreza e carência
econômica e social da mesma. A assistência prestada não tinha caráter terapêutico/de
tratamento do doente, e sim, o de uma obra de caridade aos pobres que deveriam morrer
assistidos material e espiritualmente. Com este tipo de assistência, era mantida também
55
a função de separação e exclusão dos indivíduos considerados perigosos para a ordem e
saúde da população, pois além dos pobres e necessitados, também se misturam doentes,
loucos, prostitutas, devassos, etc. Em geral, eram grandes instituições que funcionavam
como depósitos de centenas ou milhares de pessoas, amontoadas nos pátios e pavilhões.
A experiência hospitalar não fazia parte da formação do médico. A idéia de uma longa
série de observações no interior do hospital estava excluída da prática médica. A
formação se dava pela transmissão de receitas mais ou menos sigilosas e o
conhecimento de textos. A intervenção era organizada em torno da noção de crise. O
médico observava o doente e a doença desde seus primeiros sinais tentando prever a
evolução, descobrir o seu momento de crise, e favorecer a vitória da natureza sadia do
indivíduo sobre a doença.
***
Nosso fazer era movido pela disponibilidade de estar com aquelas
pessoas, de construir vínculos e de possibilitar ‘saídas’, ou melhor,
dizendo, ‘entradas na cidade’. Muitos estavam internados mais de
vinte cinco anos, sem qualquer contato com as ruas. A localização e
arquitetura daquele hospital marcavam os traços de violência e
exclusão social da institucionalização. As conexões com a cidade-
sociedade eram encerradas naquele lugar tão distante e ermo do
município de Cariacica-ES. Encontrávamos dificuldades com transporte,
com a estrada, tudo parecia conspirar para que não chegássemos perto.
Como essa distância aconteceu? O que a tornou legítima? Como poderia
a vida encerrar-se naquelas paredes? Como poderíamos afirmar que o
que se fazia ali eram práticas de saúde?O que estaríamos tratando?
***
Os muros do manicômio erguem-se para isolar a loucura para que ela não invada
‘nosso’ espaço. Desta forma eles surgem habitualmente na periferia das cidades, em
zonas isoladas, cercadas por muros. Marca-se precisamente o sentido de separação. A
figura do doente mental como uma expressão daquilo que rompe com a norma,
56
constitui-se em uma imagem a ser mantida à distancia. O ‘doente mental’ apresentava-
se como um problema social, mas este deveria ser resolvido fora da sociedade.
Se durante a época clássica, o critério que marcava a exclusão e o enclausuramento
estava referido à figura da desrazão, não estando a loucura diferenciada das outras
categorias marginais; a partir da segunda metade do século XVIII, a desrazão,
gradativamente, vai perdendo espaço e a alienação ocupa o lugar como o critério de
distinção do louco ante a ordem social. Este percurso prático/discursivo tem na
instituição da doença mental o objetivo fundante do saber e prática psiquiátrica. Assim,
a psiquiatria aparece como a primeira medicina especial, o primeiro campo de
especialidade do saber médico. Desse modo, o nascimento da psiquiatria está
fundamentalmente apoiado sob a responsabilidade de lidar e dar conta da loucura.
***
Passávamos pelo portão central do hospital. Nosso caminhar era
cortado pelas divisões e segmentações regulamentadas daquele espaço.
O andar de cima era reservado aos pacientes com “quadro-agudo”, no
térreo ficavam os pacientes ‘crônicos’. Para a esquerda segue-se até
outro portão gradeado. É a ala masculina. Para a direita a ala feminina.
Percorríamos um longo corredor que margeava todo o pátio-de-banho-
de-sol para mais longe encontramos as enfermarias classificadas por
números. Parecia haver uma ordenação que permitisse a vigilância
permanente. O que podíamos para além e aquém daquele caminhar
cortado que direcionava nossa visão e simplificava nossos trajetos?
Chegávamos à 13ª Enfermaria Feminina.
***
O movimento de volta às condutas regulares inscritas no eixo paixão-vontade-liberdade
delineia o papel do asilo já no fim do século XVIII. Neste eixo paixão-vontade-
liberdade, mais que um lugar de desmascaramento para descoberta da verdade da
doença mental, o hospital torna-se um lugar de afrontamento. A loucura, vontade
perturbada/paixão pervertida, deve encontrar aí, uma vontade reta e paixões ortodoxas.
Desse modo, a luta que se estabelece a partir da vontade do doente e da vontade reta do
médico, se for bem conduzida, deverá levar à vitória da vontade reta, à submissão, à
57
renúncia da vontade perturbada. Um processo, portanto, de oposição, de luta e de
dominação.
O momento que a loucura passa a ser percebida - mais como desordem de condutas e
menos como erro ou desrazão - coincide com a prática de internamento. O hospital
passa a ser concebido como um instrumento de cura. A distribuição do espaço torna-se
um ‘instrumento terapêutico’. A disciplinarização do espaço e o deslocamento da
intervenção médica marcam a emergência do hospital médico.
Em seu texto “O Nascimento do Hospital”, Foucault (1979a) nos mostra que a
reorganização do hospital imbuída de uma função disciplinar teve seu ponto de partida
nos hospitais marítimos e militares. A introdução de mecanismos disciplinares para a
anulação das desordens às quais estes hospitais eram portadores ocorre como resposta:
ao maior rigor das regulamentações econômicas no mercantilismo, à tentativa de se
evitar que as doenças epidêmicas se espalhassem, e, também, às mutações nas táticas de
guerra tanto da marinha, como do exército com o surgimento do fuzil. O valor da vida
de um soldado treinado torna-se cada vez mais elevado, principalmente, pelos gastos
que sua formação implicava.
Os hospitais são, portanto, submetidos a um esquadrinhamento disciplinar. A isto
implica a vigilância, a classificação, o registro contínuo, e distribuição dos indivíduos
para julgá-los, medi-los, localizá-los e utilizá-los ao máximo. Neste sentido, o autor
apontará também um deslocamento da intervenção médica. Em seu texto A Casa dos
Loucos”, Foucault (1979b) nos mostra este deslocamento ao apontar que a botânica
torna-se o modelo de inteligibilidade no sistema epistemológico da medicina do século
XVIII. Neste modelo, a doença é compreendida como um fenômeno natural, com tipos,
características e desenvolvimento à semelhança das plantas. O meio participa desta
noção, à medida que se entende que a doença (seu tipo, característica e
desenvolvimento) se dá conforme a ação do meio sobre o indivíduo. A medicina passa a
intervir não mais na doença, propriamente dita, como a medicina da crise; mas no meio
que circunda a doença. Uma medicina do meio, que pretende transformar as condições
do meio em que os indivíduos são colocados. Neste sentido, o hospital é constituído
como lugar de eclosão da “verdadeira” doença.
58
Supunha-se, com efeito, que o doente deixado em liberdade, no seu meio, na
sua família, naquilo que o cercava, com o seu regime, seus hábitos, seus
preconceitos, suas ilusões, poderia ser afetado por uma doença complexa,
opaca, emaranhada, uma espécie de doença contra a natureza, que era ao
mesmo tempo a mistura de várias doenças e o empecilho para que a
verdadeira doença pudesse se produzir na autenticidade de sua natureza.
(FOUCAULT, 1979b, p.118)
A prática e a teoria da hospitalização bem como a concepção da doença, são tomadas
pela dupla função do hospital: lugar ambíguo de constatação para uma verdade
escondida e de prova para uma verdade a ser produzida. A função de produção de
verdade da doença ocorre em torno da instituição médica. Um jogo no qual o que está
em questão é o sobre-poder médico que encontra suas garantias e justificativas nos
privilégios do conhecimento.
Todas as técnicas ou procedimentos praticados nos hospícios do século XIX
o isolamento, o interrogatório privado ou público, os tratamentos-punições
como a ducha, as entrevistas de cunho moral (encorajamentos ou sermões), a
disciplina rigorosa, o trabalho obrigatório, as recompensas, as relações
preferenciais entre os médicos e alguns de seus doentes, as relações de
vassalidade, de posse, de domesticidade, por vezes de servidão, que ligavam
o doente ao médico tudo isso tinha por função fazer do personagem
médico o “mestre da loucura”: aquele que a faz aparecer na sua verdade
(quando ela se esconde, quando permanece escondida e silenciosa) e aquele
que o domina, a apazigua e a faz desaparecer, depois de tê-la sabiamente
desencadeado. (FOUCAULT, 1997, p.82).
É nesse contexto, que a obra de Pinel representa o mais importante passo histórico para
a medicalização do hospital, transformando-o em instituição médica e não mais
social e filantrópica para a apropriação da loucura pelo discurso e prática médicos.
Este percurso marca, a partir da assunção de Pinel à direção de uma instituição pública
de beneficência, a primeira reforma da instituição hospitalar, com fundação da
psiquiatria e do hospital psiquiátrico. As práticas de separação dos doentes e
classificação das enfermidades definiam não as novas funções do hospital
psiquiátrico, mas, sobretudo, o próprio processo de construção do paradigma
psiquiátrico que acorrenta o louco como objeto de saber de seus discursos e práticas
59
atualizadas na instituição da doença mental. Nesta perspectiva, a psiquiatria seguirá a
orientação das demais ciências naturais. Assumindo uma postura eminentemente
positivista, constrói uma relação objetivante com o homem doente, a expressão de um
pensamento normativo e totalizante.
Tal é a ação paradoxal de uma ciência e de uma instituição que, nascidas para
tratar de uma doença cuja etiologia e patogênese resultaram desconhecidas,
fabricaram um doente à sua imagem e semelhança, de modo a justificar, e ao
mesmo tempo garantir, os métodos sobre os quais baseavam sua ação
terapêutica. Desta forma, a doença se transforma gradualmente, naquilo que a
instituição psiquiátrica é, e a instituição psiquiátrica encontra no doente,
moldado segundo seus parâmetros, a confirmação para a validade dos seus
princípios. (BASAGLIA, 2005, p.76).
***
Os raios do sol incidiam em um pequeno pátio descoberto da 13ª
enfermaria chegando a nossos olhos após caminharmos por um
corredor escuro. Corre para o nosso encontro Lourdes Maria. Ah
Lourdes! Enigma que jamais tivemos a pretensão de desvendar, pois a
complexidade de seus movimentos, sua voz-gargalhada e olhar
zombeteiros eram o que nos deixava zonzos. E era disso que
precisávamos! Desta zonzeira que nos impelia à vivência de uma
experiência de deslocalização. As teorias desarrumavam-se, não tinham
lugar nesta experiência com Lourdes.
É que a vida naquela instituição asilar, em muito simplificada pelos
mecanismos disciplinares que produziam o que Goffman chamou de
carreira moral do institucionalizado
22
, ainda resistia em Lourdes. Vida
que tentava ser contida para garantir a ordem e hierarquia da
instituição. Em uma dessas contenções, Lourdes teve amputado seu
22
Trajetória do institucionalizado marcado por um processo gradual de desintegração e
despersonalização. Em nome da ordem e da eficiência mantêm-se uma relação hierárquica e autoritária.
Determinadas atitudes dos internados que muitas vezes são confundidas com sintomas de doença são
produzidas por essa lenta e artificial adaptação do paciente por uma ação despótica e arbitrária que o
transforma em um corpo coisificado. “A apatia, o desinteresse e o lento e monótono caminhar de cabeça
baixa, sem rumo, pelos corredores ou pelos pátios fechados; certos impulsos imotivados (com demasiada
freqüência reportados à doença); um comportamento submisso de animal domesticado; as lamúrias
estereotipadas; o olhar perdido, desprovido de um ponto de apoio; a mente vazia porque o tem uma
meta para a qual voltar-se – esses são apenas alguns aspectos(..)”. (BASAGLIA, 2005, p.50).
60
antebraço direito. Ficou tanto tempo amarrada que o braço gangrenou.
Seu nome estava na boca de toda a equipe médica. Um incômodo para
profissionais que se mantinham em uma inércia teórico-prática e que
preferiam seguir no curso do “bom funcionamento” do asilo tendo seus
diagnósticos validados, fazendo visitas esporádicas às enfermarias,
mantendo-se à distância em suas salas abarrotadas de prontuários,
sancionando as mesmas sentenças.
Lourdes desorganizava aquela ordem. Insistia em fazer desviar o curso
das regras e estrutura daquela instituição psiquiátrica. Lourdes fazia-se
resistência. Fazia-se em nós quando, em luta, percebíamos que nossa
existência como profissionais de saúde nos implicava a um
posicionamento e embate cotidianos entre a manutenção de modos de
viver e trabalhar massacrados pela desassistência, e a aposta em outros
modos possíveis de viver e trabalhar. Internos, pareciam todos: loucos e
profissionais - presos à lógica manicomial. Mas como implodir as
prisões que construímos para nós mesmos? Como romper os muros
concretos e invisíveis que encerram e encarceram a vida? O manicômio
concretiza a metáfora da exclusão que a modernidade produz na relação
com a diferença.
***
No que pese o suposto compromisso ‘terapêutico’ de Pinel, à época de criação do
hospital psiquiátrico, este não se tornou um lugar de tratamento e cuidados das pessoas
em sofrimento mental. Inúmeras foram as denúncias de violência e maus tratos sofridos
pelos pacientes nestes lugares que passaram à condição de lócus de degradação e
produção da própria doença mental.
Para Foucault (1979b), todos os grandes abalos sofridos pela psiquiatria desde o fim do
século XIX, foram aqueles que colocaram em questão o poder médico e os efeitos deste
sobre o doente, visto serem essas relações de poder que constituíam o a priori da prática
psiquiátrica. A priori que condicionava o funcionamento da instituição asilar e regiam
as formas de intervenção médica.
61
Todas as grandes reformas, não da prática psiquiátrica, mas do
pensamento psiquiátrico, se situam em torno desta relação de poder; são
tentativas de deslocar a relação, mascará-la, eliminá-la e anulá-la.
(FOUCAULT, 1979b, p. 124)
***
Saímos do hospício. Caminhávamos até os carros estacionados embaixo
das castanheiras. O sol forte batia em nossas moleiras como que a nos
deixar prontos para um estalar de ovos. Idalina seguia um pouco à frente
com seu andar empinado, mas tropeçado de uma mesura exagerada. O
batom forte nos lábios entrava em descompasso com o rouge rosa-shock
a escorrer pelo rosto em suor. Parecia saudar a vida com tropeços de
reverência. Durante a acomodação das pessoas nos carros estacionados,
meu olhar e o de Idalina se procuram como dois cúmplices. Convidamo-
nos, sem palavras, a estarmos juntas neste passeio. Seguíamos no mesmo
carro. Sua atenção pousa na cidade que corria pela janela. Seu olhar
parecia mais um modo de escutar. O que seria que ela retirava da
cidade? Nossa chegada à praia foi acompanhada de um andar sôfrego
de Idalina pelas areias. Ávida para encontrar-se com o mar. Separada
até então do que podia na experiência do corpo, era taxada como
paciente crônica. Por certo o crônico, palavra com origem no latim,
Kronikós
23
, refere-se a uma relação com o tempo inveterado. Tempo que
dura demais, enraizado pela idade. Entranhado. Idalina tivera sido, ao
longo dos 30 anos de internação naquele hospício, marcada por um
corpo que não era seu. Habituada a estar pronta para a vida da
instituição, assusta-se com o abraço das ondas caudalosas por todo o
seu corpo. No movimento múltiplo do mar que lhe remexia toda, luta
para subir por entre as espumas da imensa onda desfeita. E quando
enfim, respira. Transpira o coração em cada gesto. Olha-me com raiva,
com dor, mas com brilho nos olhos. não era mais aquela mulher com
quem eu, tantas vezes, conversara ao pé da cama tamanha era a entrega
de seu corpo à desassistência da vida. A vida pulsava mar, pulsava
Idalina. Não conseguimos retornar no mesmo carro tamanha era a raiva
23
Dicionário Priberam (http://www.priberam.pt/dlpo/definir_resultados.aspx)
62
que, naquele momento, Idalina demonstrava por mim. Acusava-me de ter
lhe afogado. Não poderia discordar dela, pois não seria mesmo um caldo
tudo o que aquela experiência entoava? Como poderia sentir tantas
outras coisas, sentir que estava viva, e ter que retornar para aquele
hospício? Construir sentido de volta àquela vida? Vida de um corpo que
funciona com uma alma quase morta?Jamais...
***
É nesse momento que o internado, com uma agressividade que transcende
sua própria doença, descobre seu direito de viver uma vida humana.
(BASAGLIA, 2005, p.110)
Na experiência de saída com aquelas pessoas do Hospital sentíamos que não era apenas
a vida delas que se alterava. A cidade - que corria na janela emoldurada pelas esquadrias
do carro - era interrogada enquanto voltávamos do passeio. Interrogados eram também
os modos de estar na cidade que construímos.
Apressada em esclarecer a estranheza que eu também recolhera naquele caldo do mar,
percebia que muito além de encontrar respostas que adequassem tal estranheza à
normalidade vigente para incluí-la, havia que se colocar em análise essa normalidade
e os muros que ela ergue cotidianamente. A estranheza leva-nos a interrogar sobre os
muros de concreto, mas também, sobre os muros invisíveis tanto naturalizados e
erguidos cotidianamente apartando-nos da cidade e esvaziando a vida de tudo aquilo
que ela pode na experiência.
Experimentávamos, com a proposta deste projeto fundamentalmente agenciada com o
movimento antimanicomial no Brasil, a construção de uma prática extra-muros que
colocava em questão o manicômio, mas, sobretudo, a loucura. Se percebíamos a
importância da saída daquelas pessoas para fora dos muros do hospital, sentíamos na
pele que fundamental era a saída para fora da cultura manicomial em nós.
Ora, aquilo que estava logo de início implicado nestas relações de poder, era
o direito absoluto da não loucura sobre a loucura. Direito transcrito em
termos de competência exercendo-se sobre uma ignorância, de bom senso no
acesso à realidade corrigindo erros (ilusões, alucinações, fantasmas), de
normalidade se impondo à desordem e ao desvio. (FOUCAULT, 1979b,
p.127)
63
1.6.2 Interferência Dois: (Desa)Fiando a Experiência Profissional:
De algum modo sabemos que as interferências imbricam-se umas nas outras formando
complexos arranjos que se por ora parecem manter uma forma consistente e duradoura,
por outras se desmancham ao sabor das impermanências da própria processualidade em
que a vida e nossas questões se constituem. Parece-nos que habitar essa dimensão
processual de nossas práticas é uma direção importante a se fazer nos acompanhamentos
desta pesquisa. Como interferência potente, a Formação Acadêmica em nada estaria
apartada do que aqui escolhemos chamar de Experiência Profissional. (Desa)fiar a
experiência profissional requer que forcemos os limites das tradicionais separações
entre teoria e prática, entre formação e trabalho, compreendendo que é operando entre-
dois, onde algo se passa, que podemos produzir intercessões potentes capazes de
desestabilizar práticas/formações instituídas em nós.
A formação, entendida por Heckert e Neves (2007) como um processo que extrapola o
sentido clássico da aquisição de conhecimentos técnico-científicos a serem aplicados em
uma dada realidade, também era vivenciada de outro modo em nossas práticas de
formação acadêmica. Tais autoras ao fazerem uma distinção dos processos de formação
analisando-os em seus diferentes e distintos vetores, nos trazem um vetor precioso para
pensarmos as experiências vividas no dentro e fora dos muros daquele hospício: a
formação como força. Este vetor nos sinaliza a potencialidade da formação ao conferir-
lhe o caráter de produção de realidade. Nela e com ela constituímos modos de
existência, que não estão dissociados da criação de modos de cuidado no processo de
trabalho. Com a formação e o trabalho entendíamos que há uma indissociabilidade entre
os modos de formar, de gerir e de cuidar; entre os modos de produzirmos a nós e nossas
práticas. E é sobre o efeito dessas práticas nos processos de subjetivação, de criação de
modos de existência e vida que há algum tempo seguíamos nos questionando.
Trabalhando como profissional de psicologia em uma clínica particular e atendendo
crianças e adolescentes de baixa renda através de um convênio do Programa Rede SAC
(antiga Legião Brasileira de Assistência LBA) com o Governo Federal, interrogava-
me quanto aos encaminhamentos que recebia dos mais diversificados
órgãos/estabelecimentos como: Conselho Tutelar, Escolas Municipais e Estaduais,
Lares Abrigados e alguns Serviços de Saúde. O que pretendem da atuação/intervenção
64
do psicólogo? Que demandas e dispositivos estavam sendo explicitados a cada
encaminhamento? Em muitos casos, os encaminhamentos constituíam-se como um fim,
como o objetivo-meta da prática de muitos desses profissionais. Encaminhar torna-se
um modo de “resolver” (de passar) o “problema”.
A (re)produção de um empobrecimento nas relações de trabalho e de um esvaziamento
dos espaços de produção coletivos são percebidos com a falta de interlocução entre os
próprios profissionais e de um questionamento de sua prática frente aos projetos do
Estado e da inoperância das políticas públicas em vigor no município. Encaminhar se
desresponsabilizando o despotencializava a construção de espaços coletivos de
conversação e de produção de redes de atenção como também fortalecia uma
individualização/psicologização das questões. A realidade social, política e econômica
do município bem como as ações e projetos da política municipal junto à população
eram excluídas dos processos de análise dos casos.
Afirmar assim como Heckert e Neves (2007, p.148) o trabalho como ‘exercício de
potência de criação do humano’ é colocarmos à prova experiências, saberes e
prescrições sem estancar o movimento de variabilidade e imprevisibilidade que sustenta
a vida. De algum modo na relação com os pacientes esta variabilidade da vida
comparecia e insistia a uma convocação na criação de novos modos de estar com o
outro, de cuidar. Por certo, que inúmeras vezes, neste exercício de acolhimento da
imprevisibilidade, sem encaixá-las nos registros e códigos prévios de nossos
especialismos, na tentativa de nos sentirmos mais ‘seguros’, percebíamos que também
éramos cuidados.
A insistência da urgente necessidade de desviarmo-nos da prática de encaminhamentos
faz-se questão importante nesta pesquisa. Neste desvio, entendemos que é no entre os
saberes, nas bordas e limites de seus poderes que os saberes têm realmente como
contribuir para a invenção de uma outra saúde e mundo possíveis. Acompanhar os
modos pelos quais temos produzido práticas de cuidado na intercessão Saúde Mental e
Atenção Básica é também estarmos atento ao que estamos fazendo de nós mesmos, de
nossa saúde e do mundo. O que temos chamado de práticas de cuidado? Quando
falamos em práticas de saúde, estamos falando em práticas de cuidado? Quais modos de
65
ser, viver e estar no mundo temos produzido com elas e em meio a elas? Que tipo de
vida temos cultivado? Como a temos afirmado?
Se de algum modo percebíamos que a prática de cultivo da vida residia no cultivo de
nossas relações, parece-nos importante explorar a dimensão coletiva de nossa
existência, rompendo com práticas que esvaziam os espaços coletivos e empobrecem a
tessitura de redes de conversação. Desa(fiar) a experiência profissional parece-nos, pois
habitar este plano do entre construindo uma experiência de passagem.
Uma passagem das experiências no campo da formação vividas em Vitória na
Universidade Federal do Espírito Santo, por certo se abria quando de minha chegada na
cidade de Macaé. Sentia-me uma novata a respirar outros ares, outros cheiros, outros
gingados que fulguravam paisagens naquela cidade do norte fluminense. Por vezes
tinham cor de cinza, de saudade entristecida das terras capixabas, por outras pareciam se
abrir para um novo cenário de cores. Como tecer redes com/na cidade? O trabalho de
construção de vínculos de amizade, de trabalho, de compartilhar a vida e experiências
também teria que ser feito à época de minha chegada. Lembro-me aqui de uma linda
mensagem de uma amiga com quem tecia redes poiéticas de amizade no mestrado que
não indicam a dimensão da feitura do trabalho de pesquisa como do próprio inventar
morada e rede na cidade de Macaé.
querida (...) polvilhar úcar de baunilha no bolo da vida, suave, levemente
doce, fazendo a sutil diferença que o distingue de um bolo qualquer do
mercado. O nosso, artesanal, sem separar o sabor da feitura do sabor final
(...) 04/11/2008- email eletrônico.
1.6.3 Interferência Três: Fiando a Experiência com/na Cidade
Seguindo as pistas daquela interferência-amiga nos pusemos ao feitio do
bolo. Era mês de maio/08 quando enfim começamos a acompanhar uma das
equipes de saúde mental
24
em suas idas e vindas à Comunidade de Nova
Holanda. No primeiro dia participara de uma das atividades que constituem
ferramenta no modo com que as equipes operam no território. Era uma
24
Esta equipe realizando um trabalho conjunto a duas equipes de referência do programa saúde da família
era composta por uma psicóloga, uma terapeuta ocupacional e uma assistente social.
66
oficina. Crianças e familiares estavam à espera. Pareciam ansiosos com a
chegada dos profissionais. Maíra, fonaudióloga, que fazia parte da equipe
havia se despedido de muitos deles dias antes. Estava saindo do programa
de saúde mental para fazer morada noutro lugar. Em meio a um certo
entristecimento, Marta parecia não ver mais sentido para suas idas ao
grupo. Achava que o filho caçula que a acompanhava, necessitava de uma
fono e era somente por esse motivo que se punha a ir ao anexo do posto de
saúde na rua 03 com Gilberto (seu caçula) e outros dois filhos. A saída de
Maíra mexia com os contornos da oficina, com os sentidos atribuídos a ela,
e com os contornos da própria equipe de saúde mental. É que
costumeiramente dividiam crianças e familiares em dois grupos e, por
conseguinte, dividiam-se profissionais também. Dois para lá, dois para cá...
Ops! Mas como fazer as divisões agora?Tomada pela força dos
acontecimentos pônho-me à invenção de um corpo pesquisador-trabalhador
nessa equipe. Entro na divisão dos dois. E não estamos mais divididos
pela dicotomia: pesquisador de um lado, trabalhador de outro. Vou com
Laura para o grupo das crianças. A respiração de todos parece mais
aliviada quando escuto de alguém: “Nem bem chegou e está colocando a
mão na massa!” Surpreendidos parecíamos todos pelo rico
embaralhamento que o ‘fazer com’ nos provocava, pois uma certa divisão
que os próprios participantes fazem das ‘especialidades’ dos profissionais
comparecia na fala de Marta.Ela continua a vir mesmo dizendo que não
voltaria mais. Talvez porque outros sentidos comecem a ser construídos
quando se questiona sobre os motivos que a levam às oficinas. Fico atenta a
este movimento. Marta que de costume vinha muito desarrumada, com os
cabelos desalinhados e sem ânimo, chega de outro jeito. Parecia estar
dando outros tons à sua vida. Tingindo os cabelos e arrumando-se toda, ela
aproveitara o tempo naquele anexo para marcar consulta com o dentista.
Queria cuidar dos dentes. Queria cuidar de si. era junho/08. Época de
festa de São João. Sem divisão de dois éramos muitos em uma oficina de
bandeirinhas. Cuidando de si, Marta parecia abrir-se para o cuidado dos
filhos. coloriam juntos os cordões emaranhados nas pilastras do posto.
Dava gosto de provar. Bolo com gosto de alegria. Marta fala da felicidade
em estar mais próxima dos filhos e de que sente que pode viver isso em casa
com eles. Em meio às brincadeiras, comes e bebes do dia da festa, chega
67
com os cabelos escovados. Sorrindo afirmava:”Daqui pra frente vai ser
sempre assim”. A oficina fazia-se como lugar de passagem para outras
Martas possíveis.
(Diário de Bordo, 20 de Junho de 2008)
***
Julho/08. Época de festa da cidade de Macaé. Continuávamos o feitio do
bolo. De algum modo experimentávamos sabores no próprio fazer-
artesanal. Em nossas idas à Comunidade de Nova Holanda
costumávamos nos encontrar em um lugar, que poderíamos dizer,
estratégico. Usamos esta palavra, porque em muito ela nos fala das
múltiplas imagens que teciam a paisagem de nosso ponto de encontro,
apontando para uma certa leitura da cidade de Macaé.
Onde nos encontramos? No Braille. Este nome, dado ao nosso ponto de
encontro, surgira em função de uma estátua de bronze que,
homenageando Louis Braille
25
, fora construída à época de inauguração
do novo prédio da prefeitura. O prédio, com suas linhas retas que
formavam vários quadrantes verticais de vidros fumês dando a
impressão de um estilo moderno, contrastava com a paisagem que se
seguia por trás daquela estátua. As imagens eram animadas pelo porto
dos pescadores. Nos momentos em que esperava algumas pessoas da
equipe para partirmos, percebia que o que a então parecia uma
imagem estática da paisagem, sempre igual, não era bem assim. A
paisagem ganhava vida. Animada pelo porto dos pescadores os
movimentos teciam novas e infinitas composições naquela área de foz. O
rio desembocando no mar era agitado pela mudança na posição do
25
Louis Braille é inventor do Alfabeto de leitura com o tato para cegos, conhecido mundialmente como
Braille. Após perder a visão aos três anos de idade em um acidente com uma sovela na oficina de seu pai,
ingressa quatro anos depois, no Instituto de Cegos de Paris. Em 1827, então com dezoito anos, tornou-se
professor desse instituto e reinventa um método de leitura para cegos a partir de um sistema de pontos em
relevo. Nesta ocasião ouvira falar de um sistema de pontos e buracos inventado por um oficial para ler
mensagens durante a noite em lugares onde seria perigoso acender a luz. Em 1829, publicou o seu
método. O sistema Braille é um alfabeto convencional cujos caracteres se indicam por pontos em relevo,
o deficiente visual distingue por meio do tato. A partir dos seis pontos salientes, é possível fazer 63
combinações que podem representar letras simples e acentuadas, pontuações, algarismos, sinais
algébricos e notas musicais. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Braille
. Acesso em 04/04/09.
68
vento, do cruzar dos barcos, das altas e baixas da maré que faziam
aparecer e esconder as pedras de pouso das gaivotas e albatrozes. À
beira do cais víamos um símbolo BR nas cores verde, amarelo e branco,
indicando a presença de um posto de abastecimento da Petrobrás.
(Diário de Bordo, 17 de julho de 2008)
Inserido no processo de reestruturação econômica nacional, o estado do Rio de Janeiro,
nas últimas décadas, vem passando por transformações em sua estrutura política,
econômica, demográfica e territorial. Nesse contexto, o Norte Fluminense vem
despontando como região privilegiada, condição essa garantida pela atividade
petrolífera da Bacia de Campos.
A crise na atividade canavieira, a partir dos anos 1970, gera a estagnação do
desenvolvimento econômico dessa Região. A partir das primeiras descobertas de poços
de petróleo na Bacia de Campos, a Petrobras instala, na cidade de Macaé, uma base de
operações, fazendo com que essa cidade passe a sediar também inúmeras outras
empresas. Até então, Macaé tinha na pesca sua principal atividade cio-econômica.
Com a instalação da base petroleira no município, no entanto, a cidade inicia um
processo de intensas transformações, tanto em termos populacionais como de tecido
urbano. As embarcações, não mais pesqueiras, que cruzam a foz do Rio Macaé em
direção às plataformas da Petrobrás não constituem a única mudança produzida pela
atividade petrolífera na paisagem da região Norte do Estado do Rio de Janeiro.
O município tornou-se referência na produção petrolífera, e passou a ser conhecido
como uma espécie de novo “Eldorado” rótulo que em suas implicações, passou a atrair
um grande número de migrantes em busca de trabalho. Aqueles migrantes com
formação especializada para trabalhar no ramo do petróleo ou nas atividades
diretamente ligadas a ele conseguem emprego, recebem altos salários e estimulam um
processo de especulação imobiliária no vetor de expansão sul do município; enquanto
aqueles migrantes tecnicamente desqualificados, em sua maioria, ficam subempregados
e engrossam os bolsões de pobreza que crescem em ritmo acelerado no setor de
expansão norte, principalmente. (Paganoto, F. 2008).
O crescimento da malha urbana da cidade, baseada na expansão destes dois vetores
principais, norte e sul, evidencia um processo de segregação espacial e de crescente
69
favelização, violência e tráfico de drogas; que têm trazido uma dimensão sócio-política
significativa na intervenção dos processos de promoção de saúde.
A chegada na cidade, para muitos que vinham transferidos pela Petrobrás, era
desanimadora. A experiência da mudança tem, por vezes, seu movimento cristalizado
em uma forma de vivência desconfortável e de certo modo raivosa por parte dos
trabalhadores e de suas famílias no próprio processo de desfazer-se de vínculos
familiares, profissionais, de amizade e conectividade com as cidades de origem. Muitos,
mesmo depois de anos, não conseguem construir laços com a cidade. Apesar de uma
grande maioria de moradores serem de outros estados uma imensa dificuldade de
construção de laços afetivos entre eles mesmos. Os macaenses vivem uma certa
nostalgia falando da vida tranqüila que perderam, sentem-se até violentados pelas
mudanças radicais no que tange a aspectos sociais, políticos, econômicos, estruturais e
culturais pelos quais o município passa com a chegada da Petrobrás. Segundo Paganoto
(2008) as piores perspectivas em suas cidades de origem, fazem com que os migrantes
sem qualificação profissional específica, permaneçam em Macaé, fato incentivado, por
uma rede assistencialista que se torna mais visível nos períodos eleitorais
26
.
A cidade aqui, não mais corria emoldurada pela janela do carro, quando de nosso
passeio com Idalina na saída daquele hospital psiquiátrico. Mas uma experiência de
interrogá-la quanto aos modos como a construimos ainda se fazia presente em Macaé.
Ao acessarmos e sermos acessados pelas intensidades de nossa memória afetiva na
construção deste trabalho percebíamos que o exercício de fiá-lo produzia-se, sobretudo,
quando o experimentávamos em suas interferências, suas ressonâncias. De algum modo,
a trama dessa tecedura tinha sua feitura nos sons da voz gargalhada de Lourdes e seu
olhar zombeteiro desconcertante, na força dos inúmeros caldos de mar que tomávamos
com Idalina, na vida tingida de cores nos cabelos de Marta, no vôo das gaivotas à beira
do cais, no encontro de rio e mar.
26
Uma reportagem do jornal do Brasil de 08/02/2006 com o título Macaé: Um poço de desigualdade -
traz o relato de um Líder de uma comunidade de baixa renda, Jorge Luiz de Almeida. Este conta que, em
2004, às vésperas da última eleição para prefeito, um mutirão que incluiu vereadores e representantes da
própria administração municipal garantiu não só títulos de propriedade para moradores irregulares de uma
área de manguezal, mas também uma farta porém, temporária distribuição de cestas básicas. Neste
processo, cerca de um mês depois, se via contornos mais consistentes da favela Nova Esperança
(erguida em uma área de manguezal) vizinha à Nova Holanda.
70
De certa maneira, apostávamos naquilo que nos sustenta em nossa tecedura de redes,
de relações: a dimensão coletiva que nos move como prática de cultivo e cuidado de nós
e do que fazemos juntos. Podíamos experimentar nestas interferências sons, cheiros e
gostos que nos moviam a selar nossos cavalos para uma partida que tece seus caminhos
nos encontros entre Saúde Mental e Atenção Básica.
1.6.3.1 Um pouco mais da cidade: Tecendo entradas na rede de saúde de Macaé
Um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre
as coisas, inter-ser, intermezzo. (...) o rizoma é aliança, unicamente
aliança. (...) Entre as coisas não designa uma correlação localizável que
vai de uma para outra e reciprocamente, mas uma direção perpendicular,
um movimento transversal que as carrega uma e outra, riacho sem início
nem fim, que rói suas duas margens e adquire velocidade no meio.
Gilles Deleuze e Félix Guattari
As viagens de nosso percurso de pesquisa imbricavam-se a tantas outras feitas a Niterói.
Cursando o mestrado na Universidade Federal Fluminense (UFF), foi através dele que
um agenciamento com/na rede de saúde de Macaé pode ser operado. Conhecíamos,
então, o Coordenador do Programa de Saúde Mental de Macaé que também fizera o
mestrado em Psicologia da UFF. Pensar outros espaços-tempo para esta conexão foi
primordial para produzir alianças que possibilitassem uma entrada na rede. Para nós este
fazer rede-conexão estava agenciado com uma proposta de trabalho que desse um tom
metodológico (modo de fazer) à nossa dissertação, posto que é por uma
problematização do como fazer que construíamos cartografias do que se passa entre
Saúde Mental e Atenção Básica.
Começamos a participar de algumas ‘reuniões de rede’ (nome dado pelos próprios
trabalhadores) das quais participavam os diversos dispositivos de saúde mental como
CAPS, CAPSad, CAPSi), o grupo da saúde mental atuante na atenção básica, a atenção
Básica com o PSF, dentre outros. Os debates acalorados do grupo repercutem como
interferências para pensarmos a produção de tessituras da/na rede de atenção à saúde.
Ficamos atentos aos movimentos do debate que trazem em seu bojo uma discussão
sobre a forma-lidade e a informa-lidade da rede. Algumas falas que emergem no grupo
marcam essa discussão:
71
“Porque a rede formal não funciona?”
“Se eu ligar(serviço de outro programa) pelos trâmites normais nada funciona. Não
consigo encaminhar o paciente, não consigo nem informação direito. Quando ligo para
algum serviço em que conheço os profissionais é diferente.”
“Isso é um absurdo! As coisas deveriam acontecer independentemente de conhecermos
alguém ou não nos outros lugares”.
(Diário de Bordo, 27 de fevereiro de 2008)
Os trabalhadores parecem referir-se à rede formal como uma relação de suporte que
deve ocorrer entre os demais serviços/dispositivos de saúde e destes com outros
programas. O debate sobre a formalidade e informalidade da/na rede é tensionado pelo
grupo discutindo-se a importância do estabelecimento de vínculos informais para que a
rede funcione. Os sentidos atribuídos à informalidade perpassam desde a construção de
vínculos afetivos e efetivos até o questionamento quanto à forma de organização dos
processos de referência e contra-referência.
“Os programas se burrocratizam”, mas “a gente cria um sistema molecular, é... manda
o moleque chamar”.
“É o vínculo que faz a rede funcionar”.
“É na informalidade que a rede funciona”
(Diário de Bordo, 27 de fevereiro de 2008)
Nesta discussão, seguimos as pistas de Kastrup (2003) quando a autora nos aponta que a
rede, cujo conceito é oriundo da topologia
27
, tem como único elemento constitutivo o
nó.
Pouco importam suas dimensões. Pode-se aumentá-la ou diminuí-la sem que
perca suas características de rede, pois ela não é definida por sua forma, por
27
Ao contrário da geometria, a topologia focaliza-se no objeto estudado desconsiderando uma série de
fatores como: medidas de largura, altura ou profundidade. Atendo-se às propriedades mais simples e
como Kastrup (2003) nos coloca, mais dramáticas, a topologia não necessita recorrer à álgebra como o
faz a geometria. Seus objetos são ditos de geometria variável. Podemos tomar, segundo a autora, a rede
como um desses objetos.
72
seus limites extremos, mas por suas conexões, por seus pontos de
convergência e de bifurcação. Por isso a rede deve ser entendida com base
numa lógica das conexões. (KASTRUP, 2003, p.53)
Atentarmos para essa lógica requer percebermos que as redes não podem ser
caracterizadas como uma totalidade fechada, dotada de superfície e contornos definidos,
mas sim como um todo aberto, sempre capaz de crescer e inventar-se através de seus
nós, por todos os lados e em todas as direções.
Essa movimentação do debate parece colocar em questão não a
formalidade/informalidade da rede, mas os arranjos que vão sendo configurados quando
podemos pensar a rede instituída indissociada daquilo que nela e através dela produz
movimento. E parece-nos que falamos da tessitura de uma rede instituinte aquecida
nos/pelos encontros-agenciamentos que fazemos.
Se entre as figuras topológicas a rede destaca-se por ser vazada, composta de linhas e
não de formas espaciais, podemos então afirmar este movimento instituinte com o
primado das linhas sobre a forma. Pensar que o aquecimento da rede se por suas
conexões é afirmar uma prática ética de trabalho de contágio mútuo, de aliança. Talvez
a isso devemos nos questionar sobre os processos de referência e contra referência que
fazemos estando atentos ao modo como os fazemos.
As conexões e agenciamentos provocam modificações nas linhas conectadas,
imprimindo-lhe novas direções, condicionando, sem determinar conexões
futuras. É um princípio que se ergue contra o princípio de causalidade, contra
o determinismo e a previsibilidade. (KASTRUP, 2003, p. 54).
Rompendo com uma relação de causa-efeito e um regime temporal que se baseia apenas
em um tempo cronológico, podemos afirmar uma relação de conexão que se estabelece
em uma tensão permanente entre o movimento de criação de formas e organizações e de
desmanchamento dessas mesmas formas, entendendo-as em seu caráter contingente e
temporário. Talvez nisso resida nossos sofrimentos e questionamentos de uma ‘rede
formal que não funciona’, quando nos prendemos a um regime identitário das formas,
73
sem atentar-nos para um plano ontológico, pré-subjetivo e pré-objetivo da rede como
multiplicidade e anterior ao plano das formas e das conexões efetivas que fazemos.
As discussões suscitadas produzem interferências na pesquisa que, inicia seus percursos
de viagem interessada neste movimento de construção e aquecimento de redes. Nesta
direção buscamos pensar os paradoxos do SUS e suas experimentações na construção
de um fazer em rede/em tessitura, quando sabemos que este se constitui também como
um de nossos maiores desafios.
74
CAPÍTULO II
Habitando o plano paradoxal de constituição do SUS: Reforma Psiquiátrica e
Reforma Sanitária no Brasil
As décadas de 60, 70 e 80 marcam a emergência de diversos movimentos políticos e
sociais, no Brasil, que combatendo o Estado autoritário característica do período da
ditadura militar -, lutam pela democratização de nosso país. Diferentes movimentos
marcam essas décadas, não somente no Brasil, mas na América Latina, que tinham
como caráter predominante a resistência ao autoritarismo de Estado e seus efeitos
deletérios nos modos e condições de existência, e foram conhecidos mundo afora como
contracultura. Embora nosso foco maior seja dado aos movimentos de reforma no
campo da saúde, não podemos negligenciar a potência que os Movimentos: Feminista,
Gay, Hippie, o Tropicalismo e outros Movimentos organizados de luta contra a ditadura
militar trouxeram para a composição de um ‘experimentalismo político’ (Benevides de
Barros; Passos, 2005a, p. 562) dinamizado por forças de invenção e contestação da
ordem instituída.
No campo da saúde, podemos destacar dois movimentos que produziam suas críticas
com base na ineficiência da assistência pública e no caráter privatista das políticas do
governo central, sendo eles: o Movimento da Reforma Sanitária e da Reforma
Psiquiátrica. Ao tentar compreender o período que marca a emergência do movimento
sanitarista brasileiro, Campos (2007) destaca alguns fenômenos históricos relevantes
que nos permitem percebê-lo como um processo de indução e construção de uma outra
relação entre as políticas públicas e o Estado, em seu papel regulamentador.
O período da ditadura militar intensificou a separação entre o campo da assistência
médica e o da saúde pública bem como um sucateamento do setor público associado às
ações sanitárias. Nesta configuração, são eleitos pelo Estado os setores privados -
nacional e internacional - como grandes prestadores de serviços: assistenciais curativos
e de insumos; e de equipamentos e medicamentos, respectivamente. Segundo Mendes
(1995) o modelo denominado médico assistencial privatista
28
que possui, entre algumas
28
Os anos 1950 têm como característica a industrialização e com ela o início da “teoria do bolo”:
primeiro o desenvolvimento econômico para o grande salto social. A ambigüidade entre contenção e
75
de suas características: a cobertura da assistência previdenciária e o privilégio de uma
prática curativa, médica, individual, especializada e assistencialista; ganha força durante
os governos militares. A expansão do setor privado
29
favorece a criação de um grande
complexo médico-industrial que tem o hospital como ponto de apoio privilegiado.
Dentre os efeitos dessa política, podemos citar a produção de uma “indústria da
loucura” - na qual a ‘doença mental’ é transformada em objeto de lucro -, a precarização
dos serviços públicos de assistência, a proliferação de hospitais psiquiátricos regionais,
a cronificação da clientela internada, entre outros (Amarante, 1995a; Resende, 2001).
Dentro dessa lógica privatista a saúde constituía-se como um bem de consumo com
“valor de troca” e as intervenções médicas assumiam caráter de mercadoria.
Caminhar por uma política de saúde que apontava uma dicotomia
institucional entre assistência médica e saúde pública (desde o final de 40
era evidente uma inversão dos gastos públicos, favorecendo a primeira como
uma mercantilização da assistência médica) e que apresentava uma ação
pontual e desordenada das instituições de saúde pública em contraste por
gerar, opostamente, uma contundente crítica ao modelo adotado
30
.(Merhy,
1997, p. 211).
concessão é a marca dos governantes do período de Getúlio Vargas a Juscelino Kubitschek. Dentre as
características de ambos, esteve a criação, organização e extensão da assistência médica previdenciária
apenas aos trabalhadores e seus dependentes, empregados de empresas públicas ou privadas, mas cada
vez mais às custas do Estado e não dos empregadores. Isto nos mostra, claramente, a dicotomia da
medicina e saúde blica, uma para quem paga ou é empregado e outra apenas para manter a capacidade
produtiva, e então para todos os sem posses. Neste período ainda não existia no Brasil uma estrutura
sanitária permanente e descentralizada. Segundo Merhy (1997), a saúde pública era caracterizada pelo
modelo do “sanitarismo-campanhista”, que teve na polícia sanitária e nas campanhas de saúde seus
principais meios de efetivação, dirigindo-se, prioritariamente, ao combate às doenças de massa
pestilenciais (caracterizadas por epidemias de tifo, varíola, febre amarela etc). Esse modelo foi marcado
pelo saneamento dos espaços urbanos e de circulação de mercadorias, pelo estilo repressivo das decisões
e pela divisão entre saúde pública (direcionada às ações coletivas) e atenção médica (direcionada aos
indivíduos trabalhadores isoladamente).
29
Entre 1965 e 1970 saltou de 14 mil para 30 mil a clientela das instituições privadas remuneradas pelo
poder público, não havendo nenhum aumento da população internada diretamente nos hospitais públicos
(Resende 1987 apud Tenório 2002).
30
As ões, no campo da saúde pública, adotadas pelo modelo do sanitarismo-campanhista eram alvo de
críticas na Conferência Nacional de Saúde (CNS), realizada em 1963. Ficam expressos os problemas
em relação à concentração política, administrativa e geográfica dos dispositivos assistenciais, deixando
grandes contingentes populacionais desassistidos. Discutia-se a necessidade de expansão da cobertura
assistencial. A palavra “rede” é mencionada nesta CNS rede hospitalar nacional, rede de ambulatórios,
rede nosocomial, rede básica todavia, ainda referia-se a um conjunto de serviços com características
comuns. (Brasil, 1992). Sua concepção é marcada como um meio de organização do espaço-tempo, de
uma melhor disposição dos recursos sobre o espaço territorial que, aliada a necessidade de contenção de
gastos, traz para a proposição de expansão da cobertura, o entendimento de uma rede básica como
76
Durante a década de 1970, com o fim do ‘milagre econômico’, evidenciou-se que o
modelo de desenvolvimento adotado pelo país, pautado na concentração de renda, trazia
enorme malefício e mostrava claramente a desassistência à saúde da população. Com a
diminuição do ritmo de obras, que empregavam um grande contingente de assalariados,
constatou-se que o modelo de assistência à saúde, além de ineficiente, era também
excludente, ao contemplar apenas os trabalhadores de “carteira assinada”, por meio do
INAMPS - Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social. (Luz,
1991).
Alguns autores
31
apontam para o desenvolvimento de projetos com um sentido contra-
hegemônico face aos interesses mercantilistas e corporativos do modelo neoliberal. A
importância do movimento sanitário, em suas articulações com outros movimentos
sociais nas décadas de 60, 70 e 80, produz interferências na reconfiguração do padrão de
intervenção estatal brasileiro no campo dos direitos humanos e na saúde. As lutas pela
democratização da sociedade brasileira que aconteciam em meio a movimentos de
resistência à ditadura militar exprimem-se, no campo da saúde, sobretudo, no
Movimento da Reforma Sanitária, a partir do qual foram formulados os princípios de
universalidade, equidade e integralidade da saúde presentes no texto da Constituição de
1988
32
que culmina com a criação do Sistema Único de Saúde (SUS). Essas décadas
são marcadas por lutas que impunham não somente a recolocação das funções e deveres
do Estado, como também dos ‘direitos dos homens’ (Benevides de Barros; Passos,
2005a), haja vista a busca pela construção de uma política universal que seja garantida
pelo Estado e de direito de todo cidadão.
atenção mínima e de baixo custo. Apesar das discussões levantadas nessa conferência, a política de saúde
acaba tomando outros rumos, uma vez que, com o golpe militar de 1964, os governos priorizam a
expansão da assistência com a compra de leitos em hospitais privados.
31
Ler Merhy, E. E.;Queiroz, M. Saúde pública, rede básica e o sistema de saúde brasileiro. Cadernos de
Saúde Pública. 1993. p.177-184 e Campos, G. W. S. Reforma da reforma: repensando a saúde. São
Paulo: Hucitec.1997.
32
O relatório produzido na VIII Conferência Nacional de Saúde, ocorrida em março de 1986, serviu de
referência para os constituintes que elaboraram a Constituição de 1988. Nesta conferência composta pela
participação de diversos setores organizados da sociedade e na qual houve um consenso de que para o
setor da saúde no Brasil não era suficiente uma mera reforma administrativa e financeira, mas sim uma
mudança em todo o arcabouço jurídico-institucional vigente, que contemplasse a ampliação do conceito
de saúde segundo os preceitos da reforma sanitária.
77
Campos (2007) ressalta que a constituição e implementação deste sistema acontecem
em anos marcados por uma crise global das políticas públicas do sistema de bem-estar
em países capitalistas e à derrocada do comunismo face ao crescimento e fortalecimento
mundial do neoliberalismo. Embora muitos estudiosos acreditem que o SUS tem sido
uma política favorável à construção da justiça social e do bem-estar entre os brasileiros,
também apontam para os problemas e impasses dessa política designando-a como uma
reforma “incompleta”, haja vista, a heterogeneidade de sua implantação, a desigualdade
no atendimento às necessidades e na utilização de serviços de saúde, problemas de
financiamento, da gestão do sistema de trabalho, entre outros
33
. O sentido de reforma
incompleta, muitas vezes, parece-nos fazer crer em um SUS como obra mal acabada.
Todavia, aqui destacamos o sentido positivo de pensarmos o SUS como uma obra
aberta, entendendo que é em sua dimensão de abertura, de conjugação e intercessão com
distintos movimentos e atores sociais que podemos não só colocar em questão os
dispositivos que inventamos, mas, sobretudo, potencializarmos o SUS em sua radical
vinculação com o movimento social.
Se nas décadas de 70 e 80, nosso país vivia uma crise do modelo desenvolvimentista e
do regime militar, sofrendo todas as conseqüências administrativas, financeiras e sociais
do mesmo; Neves (2009) sinaliza para mais um agravante: “a eleição de um novo
presidente, Fernando Collor de Mello (1990/92), que assume com um programa de
orientação claramente neoliberal” (p.505). Insistindo com o pensamento da autora, de
fato, percebemos que o processo de construção do SUS como Política de Estado foi, e
ainda é, produzido no contra-fluxo da história.
Em uma análise dos fragmentos de discursos
34
de lideranças do governo do presidente
Fernando Henrique Cardoso (FHC), Merhy (et al.1997), apontam como cerne da
reforma do Estado brasileiro um processo que procura seguir os ditames neoliberais de
um “Estado Mínimo” para as questões sociais e um “Estado Máximo” para o livre fluxo
do capital financeiro globalizado, esvaziando a lógica de um Estado prestador para a de
33
Ver mais em Vasconcelos, Cipriano M. Paradoxos da mudança no SUS. Campinas/SP, (tese de
doutorado apresentada ao Departamento de Medicina Preventiva e Social/FCM/UNICAMP); 2005.
34
Mapeados a partir das propostas do Ministério da Reforma Administrativa do Governo Federal
(MARE) e da Norma Operacional Básica NOB-96, através das quais o Ministério da Saúde tem
procurado regulamentar o funcionamento do setor.
78
um Estado regulador. Como os autores evidenciam, embora o significado da
privatização do setor saúde não acompanhe a desestatização que os setores empresariais
imprimem no parque industrial ou de infra-estrutura
35
, é importante ressaltar, o impacto
de propostas intermediárias produzidas pelo governo federal no nível do imaginário e da
operacionalização de um certo modo de se produzir saúde, que procura mostrar como
‘necessária e inevitável’ a desmontagem do Estado que garante os direitos sociais. Para
tanto, argumentam que não seria possível considerar todos os brasileiros como cidadãos
idênticos.
Assim, encarar, os brasileiros como cidadãos de diferentes níveis e matizes
tem permitido ao Governo Federal propor uma reforma no setor saúde que
procura combinar estratégias estatizantes com privatizantes, dentro de uma
mistura de conveniência de acesso aos serviços por direito e/ou compra no
mercado. Aliás, situação totalmente coerente com o que as Agências
Internacionais (por exemplo o Banco Mundial) têm proposto aos países da
América Latina. Argumentam que, não para tratar todas as pessoas de
maneira igual, temos de garantir nos serviços públicos, portanto, uma cesta
mínima de serviços de saúde, coerente com o nível dos brasileiros tipo ‘uma
estrela’. Aos brasileiros tipo “três estrelas” ou mais, ofertam-se outros
produtos que se compram no mercado, tanto em alguns serviços públicos
quanto privados. (MERHY et al 1997, p.13)
Dialogando com Campos (2007), em um de seus ensaios
36
, seguimos as pistas do autor
ao problematizar os modos de se fazer o processo de saúde no campo das políticas
públicas quando nos interroga: “Como decifrar a polissemia política do sistema de
35
O governo de Fernando Henrique Cardoso foi marcado pela privatização de empresas estatais, como:
Embraer, Telebrás, Vale do Rio Doce e outras estatais. Na elaboração de um Plano Diretor da Reforma do
Estado, um acordo que priorizaria o investimento em carreiras estratégicas para a gestão do setor público
residia na aprovação de emendas que facilitaram a entrada de empresas estrangeiras no Brasil e a
flexibilização do monopólio de várias empresas, como a Petrobrás, Telebrás e etc.
Evidencia-se também que a ausência de inovação no modo de se enfrentar a questão social no Brasil
continua sendo determinada pelo traço característico do país, herança da era desenvolvimentista que se
afirma atualmente buscar superar, de contrapor política econômica à política social. Vale dizer, continua
ainda prevalecendo o ditame absoluto da economia sobre as formas de o país gerir a questão da pobreza e
das desigualdades sociais. Ver em: COHN, Amélia. As políticas sociais no governo FHC. Tempo Social;
Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 11(2): 183-197, out. 1999. (editado em fev. 2000).
36
Campos, Gastão Wagner de Souza. O SUS entre a tradição dos Sistemas Nacionais e o modo liberal-
privado para organizar o cuidado à saúde. Cienc. Saúde coletiva. 2007, v. 12, suppl., pp.1865-1874.
79
saúde brasileiro realmente existente e, a partir desta compreensão reconstruir o bloco
histórico em defesa do SUS?”.
Neves (2009) nos ajuda a pensar que um dos mais importantes e difíceis desafios seja o
de habitar o plano paradoxal de constituição do próprio SUS, problematizando: o que
nos modos de funcionamento do SUS se hibridiza com uma ‘ordem liberal-privatista a
se manifestar como resistência permanente ao SUS, estando dentro do SUS e, ao mesmo
tempo, dentro do imaginário dominante dessa nossa época de globalização do
capitalismo.” (Campos, 2007, p.1870). De algum modo, Neves nos ajuda a perceber que
a habitação deste plano paradoxal não se constitui em uma suposta busca pelo
‘deciframento’ da polissemia política do SUS que nos trouxesse a possibilidade de
‘refundá-lo’. Afirmarmos o SUS como obra aberta implica-nos a apreender dessa
polissemia os movimentos instituintes que oxigenam o SUS como potência de
transformação e invenção.
Campos (2007) nos alerta que a resistência permanente ao SUS feita pela oposição
liberal-conservadora desloca-se da “discussão de seus princípios, em torno de grandes
diretrizes, para elementos pragmáticos” (pg.1869) de nossos modos de fazer e implantar
o acesso universal a uma rede que sustente a integralidade da assistência. Neste
deslocamento buscam operar no cotidiano dos serviços a cada programa, projeto,
modelo de gestão ou de atenção - meios de “atender” a estes princípios segundo
interesses corporativos e valores capitalistas de mercado.
Como nos indica Neves (2009), é necessário tanto pensarmos a construção do SUS em
sua tensa relação com a máquina de Estado/governo, como também, a consolidação de
seus princípios de universalidade, equidade e integralidade das práticas de atenção e
gestão no campo da saúde em meio a um contexto contemporâneo marcado por uma
nova relação entre poder e vida.
2.1 O Estado Moderno na composição do plano de poder: As artes de governar ou
o governo ‘das coisas’
Foucault (1979c) nos ajuda a interrogar acerca dessa nova relação entre poder e vida e
seus desdobramentos no campo da saúde quando pensamos a construção do SUS em sua
80
tensa relação com a máquina de Estado/governo. Neste sentido, o autor irá nos apontar
para uma importante construção da arte de governar que desenhará e sustentará o Estado
moderno entre o século XVI e o início do século XIX. Evidencia em suas análises, não
o contraste entre duas tecnologias distintas do poder no século XVI que se rivalizam,
mas, sobretudo, uma modulação de uma sociedade tradicional marcada por um modo de
governar soberano para uma sociedade moderna dita disciplinar. Para tanto, marca uma
diferença entre os modos de existência produzidos nestas sociedades, isto é, entre o
governo do soberano e uma ‘arte de governar’ que não se apresenta mais sob um regime
do Príncipe
37
, mas se dá, principalmente, sobre o que se exerce e como se exerce o
poder.
Os cursos que o autor apresenta no Collège de France, na década de 70, nos indica uma
torção da teoria política tradicional que coloca o Estado como o lócus de emanação do
poder ao propor o conceito de governamentalidade
38
. Ressalta o desenvolvimento de
uma série de tratados a partir do século XVI até o final do século XVIII que não se
apresentam mais como “conselhos ao príncipe como modo de se comportar, exercer o
poder, de ser aceito e respeitado pelos súditos; conselhos para amar e obedecer a Deus,
introduzir na cidade dos homens a lei de Deus, etc”. (Foucault, 1979d, p.277), mas sim
como arte de governar. O problema de como ser governado, até que ponto, por quem,
com que método e objetivo são questões intensificadas no encontro de dois
movimentos
39
. Por um lado um movimento de concentração estatal em um contexto de
instauração dos grandes Estados territoriais (processo de superação da estrutura feudal)
e por outro lado, um movimento de dispersão e dissidência religiosa com a Reforma e a
37
Para Foucault (1979c) a teoria da soberania está vinculada a uma forma de poder que se exerce muito
mais sobre a terra e seus produtos do que sobre os corpos e seus atos, estando sua extração e apropriação
ligadas ao poder dos bens e riquezas e não do trabalho. Fato que possibilita fundamentar o poder na
existência física do soberano, cuja ação é de exterioridade e descendente; transcendente e descontínua
(p.188)
38
Aula de 1 de fevereiro de 1978. Foucault M. 1979d. A Governamentalidade, p. 277-293. In R
Machado (org). Microfísica do Poder. Ed. Graal, Rio de Janeiro.
39
A construção da arte de governar se produz na combinação da razão de Estado e do poder pastoral. O
Estado de Governo apropria-se de uma antiga técnica cristã: o poder pastoral redirecionando a meta da
salvação para que esta passe a ser neste mundo. Isto envolve uma luta por prosperidade, realização e
segurança. O Cristianismo já havia indicado no desenvolvimento desta técnica uma direção
individualizante através de rituais de exame de consciência, confissão e arrependimento dos pecados.
Todavia, com a formação do Estado moderno o poder pastoral transforma-se em técnica política com a
finalidade de reforçar o poderio do Estado.
81
Contra-Reforma, que questiona os modos de como ser espiritualmente para se alcançar
a salvação.
A arte que governa sob um regime que o é mais o do Príncipe começa a tomar como
alvo não mais um território com seus súditos, mas um conjunto heterogêneo de ‘coisas’.
Foucault empreende uma análise dos dispositivos de poder que produzem determinadas
formas de viver na formação das sociedades. Para tanto, privilegia em sua analítica do
poder um jogo de luz que compõe um novo diagrama da modernidade. Ao invés de
considerar o poder como propriedade do estado, de uma classe social ou de alguém, o
poder é afirmado como exercício de forças, que cria, incita, normatiza e,
fundamentalmente produz formas de vida. Neste novo diagrama, o exercício do poder se
faz de um modo microfísico, capilar, espalhado pelo tecido social de modo a garantir-
lhe invisibilidade. O que ganha foco (visibilidade) são os objetos sobre os quais o poder
incide. Mas qual é a qualidade da mudança indicada por Foucault nos mecanismos de
poder/saber que nos ajuda a pensar as práticas de atenção e gestão no campo da saúde?
Uma indicação importante parece-nos ser a de uma nova relação entre poder e vida.
A partir de suas pesquisas sobre a história da penalidade, Foucault (1987) percebe a
produção de uma relação específica de poder que incide sobre os corpos daqueles que
estão enclausurados. Se antes, no escravismo e feudalismo, os dispositivos voltavam-se
para uma sociedade de soberania, no capitalismo passam a funcionar a partir de dois
regimes: sociedades disciplinares e sociedades de regulamentação (de controle). Dois
pólos interligados que, embora se distingam, são inseparáveis.
Em suas análises, o autor aponta para a existência de uma tecnologia disciplinar que
chama atenção por não ser exclusiva da prisão, podendo ser encontrada também nas
fábricas, hospitais, exército e escolas. Este regime preconiza a vigilância constante dos
indivíduos através de práticas disciplinares ligando-os a aparelhos cuja função e centro
comum é o de produção, formação e correção para o bom funcionamento da lógica do
capital. Nas sociedades disciplinares, o poder centra-se em um corpo individual onde o
que se tenta é ampliar ou mesmo sugar até o limite as forças úteis para o trabalho. No
espaço fechado, individualizado, os corpos recebem as marcas da classificação,
82
combinação e vigilância. O modelo produtivo desenvolvido por Taylor
40
ao fim do séc.
XIX e início do séc. XX torna evidentes os avanços e utilização desta tecnologia.
Em Microfísica do poder (1979), Roberto Machado nos ajuda a compreender o que a
utilização desta tecnologia objetiva política e economicamente: uma docilização dos
corpos.
tornar os homens força de trabalho dando-lhes uma utilidade econômica
máxima; diminuição de sua capacidade de revolta, de resistência, de luta, de
insurreição contra as ordens do poder, neutralização dos efeitos de contra-
poder, isto é, tornar os homens dóceis politicamente (p.XVI).
O avanço das técnicas de poder e a ampliação do poder disciplinar fazem surgir uma
nova tecnologia. As instituições que asseguravam a atualização do poder disciplinar e os
modelos, que formatavam o corpo e o espírito dos homens, antes tão claros, tornam-se
difíceis de identificar, que o controle se exerce em uma modulação rápida e contínua.
Esta nova tecnologia, fundamentada na regulamentação, em práticas de controle,
decretam a crise dos dispositivos de normalização, operando por um controle ao ar
livre’. não se precisa, necessariamente, da demarcação de sistemas fechados para a
produção de efeitos individualizantes. O alcance desses efeitos expande-se não mais à
vida de cada homem (em seu corpo e atos), mas para a Vida. As sociedades de controle,
termo utilizado por Deleuze (1996) para designar a lógica de dominação que se
configura na atualidade - produzida no contexto do capitalismo contemporâneo - têm
como alvo a Vida dos homens, o homem enquanto ser vivo.
As tecnologias de regulamentação que se formam em meados do séc. XVIII, não
excluem as tecnologias disciplinares, mas como nos aponta Foucault (1999),
implantam-se nela, integrando-a, e modificando-a parcialmente, para com ela efetivar-
se. Ao contrário de uma extrema individualização, como descrevemos nos
mecanismos da tecnologia disciplinar; as técnicas de controle produzirão uma
massificação que Foucault (1999) denominará de uma ‘biopolítica da espécie humana’
40
No Taylorismo os investimentos de saber/poder se dão a fim de produzir o homem necessário ao
funcionamento da sociedade capitalista. Experimenta-se o controle racional de cada gesto e movimento a
ser utilizado na execução de uma tarefa, para estabelecer o tempo ideal a ser perseguido como forma de
aumentar a produtividade. As disciplinas aumentariam a força econômica diminuindo, ao mesmo tempo,
os perigos políticos. Colocamos aqui que o que está em questão é o tipo de relação de poder que incide
sobre o corpo.
83
(p.289). Para o autor, o se trata de considerar o indivíduo no detalhe, mas segundo
mecanismos globais que busquem estados globais de equilíbrio e regularidade. Portanto,
podemos chamar essa nova tecnologia de biopolítica ou biopoder e que estará,
principalmente com o nascimento das cidades, voltada para a espécie humana e suas
relações. Todas as condições
41
relacionadas à vida dos homens, vistos agora como seres
vivos, são constitutivas do campo de intervenção e controle das relações de poder.
toda uma engenhosidade e produção de inteligências diversas na modulação das
tecnologias de poder para construir formas de controle cada vez menos localizáveis,
sutis e perspicazes. Neves (1997) nos fala do auge desse complexo funcionamento
capitalista que trabalha no paradoxo produzindo modelos que estão a todo o momento
em mudança.
Uma engenhosidade das sociedades de controle é operar por um tipo de
controle que nunca destrói as coisas completamente, mas ao contrário não as
deixa jamais terminar. (...) nas sociedades de controle os moldes não chegam
nunca a se constituir totalmente. Transformam-se continuamente e
rapidamente em outros moldes, impedindo a identificação dos modelos de
moldagem. (NEVES, 1997, p. 86)
Rolnik (2003) nos aponta que a operação investida pelo capitalismo contemporâneo de
extrair fórmulas de criação da vida em suas diferentes manifestações o é realizada
somente na vida biológica, mas igualmente, na vida subjetiva. Vida na qual se produz o
sentimento de si e de um território de existência, configurado por jeitos de ser, amar,
sentir, cuidar, etc. A autora nos alerta que nesta exploração invisível o estatuto de
potência criadora é intrinsecamente marcado por uma ambigüidade, e torna-se a
principal matéria prima do modo de produção neocapitalista. A fabricação de modos de
subjetivação singulares não se sustenta efetivamente como modo de expandir a vida,
mas sim de expandir o capital que cria modos de existência
41
Percebemos que o desenvolvimento desta nova tecnologia é marcado por problemáticas de ordem
econômica e política bem como por um conjunto de problemas relacionados à natalidade, mortalidade,
fecundidade, reprodução, longevidade, incapacidade biológica, efeitos dos meios geográfico e
hidrográfico, etc. Se o séc. XVIII traz como desafios as endemias (doenças de maior dificuldade de
extirpação) cujos os efeitos recaem sobre a produção com a diminuição das forças e do tempo de trabalho
e redução dos lucros; o sec. XIX - cujo campo de atuação do biopoder encontra-se relacionado ao início
do processo de industrialização terá como alvo a população como uma das maiores preocupações do
sistema capitalista.
84
para serem reproduzidos, separados de sua relação com a vida, reificados e
transformados em mercadoria: clones fabricados em massa, comercializados
como ‘identidades prêt-à-porter’(...) Na reinvenção contemporânea do
capitalismo, a distância entre produção e consumo desaparece: o próprio
consumidor torna-se a matéria-prima e o produto de sua maquinação”.
(ROLNIK, 2003, p.208)
Seguindo as pistas de Benevides e Passos (2005a), nos indagamos: por que destacarmos
o lugar do Estado moderno na composição do plano de poder quando não pensamos
mais em uma centralidade e sim em uma dispersão do poder, no plano das ‘artes de
governar’?
Diferente da descontinuidade do exercício do poder soberano, não mais uma
distância entre quem exerce o poder e quem o sofre. Por certo, o Estado não possui mais
o lócus de centro do poder, todavia ainda permanece como um dos pontos de referência
na constituição da governamentalidade.
As formas de governo, nas quais Foucault destaca: o governo de si mesmo (que diz
respeito à moral); o governo da família (que diz respeito à economia) e a ciência de bem
governar o Estado (que diz respeito à política) se cruzam e imbricam-se umas às outras
produzindo um plano multifocalizado, complexo e contínuo. No entanto, Deleuze, em
uma leitura de Foucault, nos indica que o que ocorreu no Ocidente foi a
governamentalização do Estado, ou seja, a captura dentro da máquina do Estado das
práticas de governo exteriores a ela.
O que Foucault exprime dizendo que o governo tem primazia em relação ao
Estado, se entendermos por “governo” o poder de afetar sobre todos os
aspectos (governar as crianças, as almas, os doentes, uma família...). Se
procurarmos, a partir daí, definir o caráter mais geral da instituição, seja o
Estado ou outra, tenderíamos a concluir que ele consiste em organizar as
supostas relações poder-governo, que são relações moleculares ou
“microfísicas”, em torno de uma instância molar: “o” Soberano, ou “a” Lei,
no Estado, o Pai, na família, o Dinheiro, o Ouro ou o Dólar no mercado, Deus
na religião, “o” Sexo na instituição sexual. (DELEUZE, 1998, p.84, grifos
seus).
85
Para o governo político, Benevides e Passos (2005a) nos apontam que, em um regime
moderno das ‘artes de governar’, temos uma inversão da série que partia da centralidade
do Estado. Neste sentido,
o governo político se faz na referência ao Estado em sua relação com a
dimensão pública das políticas. Na máquina do Estado encontramos este
intricado do poder moderno que nela se expressa como programas, projetos,
burocracias, instâncias e esferas de governo político, numa complexidade tal
que faz do interior desta máquina um mundo que tende a nos atrair e capturar
em sua interioridade complexa. (BENEVIDES DE BARROS; PASSOS,
2005a, p.566 grifos nosso)
Como então pensarmos o processo de construção e fortalecimento do SUS em sua tensa
relação com a série governo-Estado-políticas públicas?
O desafio assumido a partir da década de 70 por movimentos como a Reforma Sanitária
e Reforma Psiquiátrica Brasileira que buscam uma mudança da atenção e gestão nas
práticas de saúde produziu, sem dúvida, um revigoramento da dimensão pública para a
construção de políticas de saúde, que aqui, não mais identificamos à estatal. Se de
algum modo podemos experimentar nestas lutas fôlego para inventar e contestar modos
de cuidar e produzir nossa existência já dados/instituídos sabemos que só o fizemos por
uma ativação e aposta desta dimensão pública, que para nós se constitui no plano do
coletivo. Benevides e Passos (2005a) nos ajudam a compreender a potência desta
dimensão ao apontarem que as mesmas linhas de capilarização do poder sobre as quais
o Estado tende a absorver e interiorizar não têm seu movimento de dobra só para dentro.
Diante dos perigos da totalização e da individualização veremos que as resistências já se
fazem em nosso cotidiano, que a própria vida resiste à sua modelização.
algo que resiste a esta interiorização das linhas de capilarização, algo que
insiste em sua exterioridade fazendo com que a máquina do Estado se abra
para o que é o seu fora. Chamamos este fora de plano coletivo, onde se
constroem, de fato, políticas públicas (BENEVIDES DE BARROS;
PASSOS, 2005a, p.566)
86
Afirmarmos, pois o fortalecimento do SUS como uma política pública, implica-nos com
a produção deste plano coletivo, reativando o movimento instituinte que nos anos 70/80
possibilitou a constituição do próprio SUS. Nosso desafio consiste em colocar em
análise os processos de institucionalização vividos no campo da saúde. O movimento
institucionalista nos traz uma potente contribuição para pensar este desafio quando nos
convoca a permanecer nesta tensão entre instituído e instituinte, entendendo o instituído
como constitutivo de um sistema de regras e normatizações que incide sobre a vida dos
indivíduos, dos grupos sociais e seus modos de agir, se relacionar, enfim, suas formas
sociais organizadas. Conforme destaca Lourau (2004)
42
Hoje em dia não é possível conceber as instituições como um estrato, uma
instância ou um nível de uma formação social determinada. Pelo contrário é
necessário definir instituição como um cruzamento de instâncias
(econômicas, políticas, ideológicas e desejantes) e afirmar além do mais,
empregando a linguagem da análise institucional: se é certo que toda
instituição é atravessada por todos os níveis de uma formação social, a
instituição deve ser definida necessariamente pela transversalidade
(LOURAU, 2004, p.76)
2.2 Desafios da Construção do SUS em tempos de biopolítica
No âmbito da criação de temáticas para projetos de reforma na saúde, Merhry (2007a)
nos chama a atenção para a presença do ideário da Atenção Gerenciada (A.G.)
produzida e disseminada, principalmente, nos países da América Latina, a partir do
processo de disputa entre o modelo médico hegemônico - que predominou na
organização do sistema de saúde norte-americano - e o da Atenção Gerenciada regida
pelo capital financeiro vinculado aos seguros de saúde.
O autor realiza uma breve digressão histórica para mostrar como a aparição da Atenção
Gerenciada nos Estados Unidos (E.U.A) refere-se à construção de propostas que, diante
dos planos de ação do período da Guerra do Vietnã, estavam interessadas em criar
critérios que contribuíssem para o direcionamento das decisões governamentais tendo
como base o cálculo entre custos de ações de guerra e resultados obtidos de forma a
42
Ver em: Altoé, S. (org.) René Lourau Analista Institucional em Tempo Integral, São Paulo, ed.
Hucitec, 2004.
87
otimizar esta díade. Esta metodologia, introduzida de modo semelhante, nos anos 70, na
elaboração de projetos no campo da saúde tinha como estratégia vital para equacionar a
relação custo-benefício do sistema, a possibilidade de transferência do processo de
decisão sobre as ações de saúde do campo das corporações médicas para o dos
administradores.
Os efeitos paradoxais desta proposta têm trazido novos contornos ao cenário da
organização dos modelos de atenção e gestão. As críticas deste modelo às práticas de
atenção medicocêntricas conectam-se aos próprios processos do trabalho vivo impondo
uma nova forma tecnológica de constituir o próprio ato de cuidar e de se operar a sua
gestão. O autor aponta que, na saúde, os processos de cuidado e sua gestão têm sido
privilegiados como campo de ação da lógica de reestruturação produtiva que expressa a
ótica acumulativa do capital financeiro.
Segundo Merhy (2007a) mesmo que os benefícios pretendidos pela Atenção Gerenciada
referente a custos, qualidade e satisfação não tivessem sido passíveis de investigações
mais precisas que, demonstrassem e comprovassem a viabilidade de suas propostas de
reforma, a perspectiva de implementá-las difunde-se rapidamente, e em particular, sob
influência das grandes empresas de seguros. Evidencia-se, portanto, que as bases de seu
compromisso se fazem aliadas muito mais às propostas de incentivo à competição no/e
do mercado, do que com os resultados a serem obtidos em saúde.
Paradoxalmente, percebemos que este campo de ação, no qual se agencia o capital
financeiro, quando se vincula ao território das tecnologias leves e leves-duras,
43
também
se faz como plano de luta dos projetos anti-hegemônicos de todos aqueles que lutam
pela saúde como bem público comprometidos com a criação de outros modos de
existência e cuidado que busquem a expansão da vida.
43
O conceito de tecnologia de trabalho é proposto por Merhy ao afirmar a existência de uma
micropolítica do trabalho vivo em ato nos processos de produção de saúde que não podem ser esgotados
em equipamentos ou nos saberes estruturados. Para o autor há então um desdobramento deste conceito em
três tipos de tecnologias. As tecnologias leves seriam as tecnologias de relações nas quais a produção
de vínculo, autonomização, acolhimento, e da gestão como uma forma de gerir/governar os processos de
trabalho cotidianamente. As leve-duras seriam os saberes estruturados que operam no processo de
trabalho em saúde como a clínica médica, a epidemiologia, o taylorismo, etc. As duras seriam os
equipamentos tecnológicos como máquinas, normas e estruturas organizacionais.
Ver em: Merhy, E.E. et al. Em busca de ferramentas analisadoras das tecnologias em saúde: a informação
e o dia a dia de um serviço, interrogando e gerindo trabalho em saúde. In: Merhy, E.E. e Onocko, R. Agir
em Saúde: um desafio para o público. Editora Hucitec. 2ªed. 1997.p. 113-150.
88
No Brasil, Merhy (2007a) indica a aparição de propostas semelhantes cujo ideário tem
se fortalecido entre prestadores de serviços de saúde, vinculados aos seguros privados e,
também, difundindo-se muito rapidamente pelos veículos de comunicação
44
como
solução para “a crise da saúde, sua inoperância e seu alto custo para o Estado brasileiro”
(Neves, 2009, p.505). Esta difusão, evidencia-se também nos aparatos de poder
midiáticos, numa tentativa de invisibilizar as experiências concretas de um ‘Sus que
certo”
45
.
Como nos apontaram Benevides e Passos (2005a), na série governo-Estado-políticas
públicas, são as políticas públicas que devem explicar os sentidos dos processos de
capilarização das linhas do poder. Para os autores, malgrado o movimento de
interiorização da máquina do Estado, o que nos anima nas experiências concretas do
SUS que se mostra possível a cada dia, são as lutas e invenções que fazemos
coletivamente. Sustentarmos o movimento instituinte que nos anos 70/80 possibilitou a
constituição do próprio SUS em sua força emancipatória, implica de nós, que
avancemos na discussão, no campo da saúde coletiva, da relação entre produção de
saúde e produção de sujeitos, entre gestão e subjetividade. (Campos, 2000).
Se pensávamos em um tempo em que as lutas e resistências a um determinado regime
de produção capitalista pudesse ser feita estando-se de fora dele e em oposição a ele,
44
Uma reportagem exibida em rede nacional pelo Jornal Nacional do dia 04/03/09, relata a dificuldade
que idosos enfrentam para efetuar sua adesão a planos de saúde. Para nós, a operação entre seguradoras e
empresas de planos de saúde evidencia traços característicos das proposições feitas pela Atenção
Gerenciada. Nesta reportagem, a denúncia era feita por este grupo da população indicando a
impossibilidade de serem aceitos em qualquer plano de saúde quanto maior fossem suas idades. Os
mecanismos de exclusão desta parcela da população são evidenciados por medidas das empresas como, o
pedido de inúmeras avaliações periciais e, das seguradoras, pelo desestímulo das vendas de planos para
pessoas maiores de 60 anos. Corretores mostram algumas tabelas fornecidas pelas operadoras de saúde
indicando que 09 das 13 empresas que aparecem na lista não pagam comissão a corretores que vendam
planos a clientes a partir de certa idade, algumas a restrição começa aos 58 anos. Para um sistema
como o da A.G. baseado na capacidade dos administradores de planos captar recursos financeiros de
certos grupos compradores (empresas, pessoas) e definirem uma clientela alvo bem adscrita, o acesso é
marcado por uma lógica de exclusão de qualquer grupo que possa implicar maior custo para o sistema
para além da possibilidade de equilíbrio contábil entre preço final dos atos e seu pagamento. A aposta na
adscrição de clientela é feita pela seleção de grupos sadios que não sejam custosos ao sistema. Fonte:
http://www.g1.globo/notícias/economia_negocios/planodesaude Acessado em: 04/03/09.
45
Referimo-nos aqui às experiências que acolhem os desafios como matéria de invenção do próprio SUS.
Neste trabalho exploramos as experiências de Santos, na tessitura da relação entre as reformas sanitária e
psiquiátrica, e do Projeto Qualis entrelaçando as possibilidades de pensar esta relação entre saúde mental
e atenção básica, para afirmar esta marca motora de reinvenção nos processos de gestão e atenção no
campo da saúde.
89
percebemos que de algum modo este regime se exerce em meio aos processos materiais
e imateriais nos quais se afirma a Vida, buscando regular a todo tempo uma certa forma
de agir, de pensar, de sentir, de criar e, principalmente, de viver que se torne
combustível para a sua sobrevivência. Foucault nos indicará que as funções políticas
dos dispositivos de saber/poder seriam passageiras se não estivessem integradas
também por uma produção de subjetividade. Somos então tomados do ponto de vista da
produção de subjetividade.
O delineamento que temos feito até o momento nos permite traçar não somente o campo
problemático de nossa pesquisa, como também a aposta que nele/e com ele queremos
fazer: a experimentação de práticas que possibilitem fazer aparecer visibilidades de
experiências de cuidado que apostam na dimensão pública e coletiva das políticas de
saúde.
Como vimos no item anterior, percebemos que, nas lutas contra a onda dos ventos
neoliberais e a privatização da assistência no campo da saúde, o SUS tem se constituído
como um lugar efetivo de experimentos e disputas de distintas tendências. Um embate
de forças que por um lado têm decretado a ‘ineficácia’ do SUS e, por outro, tentado
afirmá-lo em seu compromisso ético-político com a vida e a democracia através de
experiências concretas do “SUS que dá certo”.
2.3 A construção do SUS no Encontro: Reforma Psiquiátrica e Reforma Sanitária
Sabemos que realizar uma viagem para ‘fora daqui’ é para o homem de nosso conto não
contar com provisões ou metas prévias que garantam de antemão o que fazer. Há
inaugurado no modo de fazer a viagem sua possibilidade de sobrevivência: contar com o
tempo, com os encontros pelas passagens no caminho, um exercício de fazer-se com que
aposta no cultivo de uma dimensão coletiva que constitui não a viagem ou o homem
daquele conto, mas que também têm nos constituído e sustentado nas lutas que
travamos cotidianamente. Por certo, a experiência de viagem também nos lança a uma
saída para ‘fora daqui’ quando sabemos que a afirmação do SUS em seu compromisso
ético-político com a vida e a democracia também se faz quando cultivamos essa
dimensão coletiva constituinte em nós e em nossas práticas. Se na década de 70/80
experimentávamos com os movimentos da Reforma Sanitária e Psiquiátrica, fôlego para
90
lutar por mudanças nas práticas de atenção e gestão no campo da saúde,
compreendemos também que nosso sustento se fazia por uma aposta na ativação e
revigoramento da dimensão pública de todo processo de construção de saúde.
Se nesta viagem nos perguntamos daquilo que podemos provar nos encontros Saúde
Mental e Atenção Básica, por certo entendemos que é na dimensão da relação, no que se
passa nesta intercessão, que podemos construir nossas práticas de cuidado. Cultivarmos
essa relação, permite-nos não aliançarmo-nos com seu caráter processual e múltiplo,
mas, também ampliarmos o nosso olhar entendendo que os encontros que
experimentamos são, sobretudo, um modo de fazer o projeto de democratização
institucional que está na base do SUS. Operamos, pois em nossa viagem, uma
importante modulação de nossa questão, quando compreendemos que na pergunta: O
que se passa entre Saúde Mental e Atenção Básica? - podemos nos interrogar acerca do
que se passa entre Reforma Psiquiátrica e Reforma Sanitária.
Tomamos aqui as experiências de Santos (SP) e Programa de Saúde Mental para o
Projeto Qualis/PSF (SP) para pensarmos o encontro Saúde Mental e Atenção Básica.
Acreditamos ser uma modulação importante de nossa questão pensar esta interface
naquilo que se passa entre a Reforma Sanitária e a Reforma Psiquiátrica. As narrativas
intensivas dessas experiências sustentam-se pela aposta ético-política que nela e com ela
fazemos: a de que a reverberação destas marcas operem passagem para a construção de
outros sentidos da/na intercessão Saúde Mental e Atenção Básica em nosso
contemporâneo. Fazemos esta aposta não somente pela possibilidade de fiarmos o que
se passou entre as reformas em suas heterogêneses - mas aquilo que em nós e em
nossas práticas continua a se passar.
2.3.1 Narrativas intensivas da experiência de Santos
Pólo da região metropolitana da Baixada Santista, a cidade de Santos, com cerca de
425
46
mil habitantes foi duramente castigada pela ditadura militar, com a perda de sua
autonomia política e administrativa, em função de seu enquadramento como Área de
46
Fonte Consultada: Fundação Sistema Estadual de Análise Dados (SEADE) - 2008.
http://www.seade.sp.gov.br . Acesso em 07.03.09.
91
Segurança Nacional
.
Governada, durante décadas, por interventores
47
que traduziam os
interesses da elite local apoiada no autoritarismo político; a cidade integra-se em 1989, à
luta pela construção do Sistema Único de Saúde. Este processo é marcado por muito
trabalho e muita luta, visto que, até 1988, os serviços de saúde do município tinham,
praticamente, a mesma abrangência que a dos anos 40. Mas, para nós, não basta
dizermos que Santos, ‘cumpriu’ com as leis
48
8.080 e 8.142 que definem a organização
do SUS e suas formas de controle pela sociedade. O que queremos aqui é refletir
ativamente sobre os fundamentos desse esforço e no que ele operou de invenção de um
sistema público de saúde local que se transformou em referência nacional e
internacional, em um período de radical predomínio do pensamento neoliberal.
A partilha de inúmeras experiências comprometidas com a defesa da vida e da saúde ,
bem como de sua reinvenção, fizeram de Santos, terra rtil para a proliferação de
práticas coletivas. O avanço da democratização da saúde marcava a um momento,
que o fortalecimento do SUS exigia mudanças nas relações de poder que estabelecemos
cotidianamente com nossos parceiros de trabalho e com os usuários. A Constituição de
47
O general Clóvis Bandeira Brasil que, em 1964, teve uma atuação destacada - na crise da renúncia de
Jânio Quadros e na preparação do golpe militar comandando em Santos (SP) a Artilharia de Costa e a
Artilharia Antiaérea - foi nomeado o Interventor do Governo Federal no município de Santos (SP)
conforme determinação do Ato Institucional Número Sete (AI-7). Caracterizados por decretos emitidos
durante os anos após o Golpe Militar de 64, no Brasil, os Atos Institucionais funcionaram como
mecanismos de legitimação e legalização das ações políticas dos militares, estabelecendo para eles
próprios diversos poderes extra-constitucionais. O AI-7, decretado em 1969, configurou-se como uma
complementação do AI-6 (este estabeleceu que os crimes contra a segurança nacional seriam julgados
pela Justiça Militar e não pelo Supremo Tribunal Federal), tratando, pois da suspensão de todas as
eleições parciais para cargos executivos ou legislativos da União, dos Estados e dos Municípios, até
novembro de 1970. Seus incisos § e §
sancionavam, respectivamente: o decreto de intervenção
federal nos municípios pelo Presidente da República em caso de renúncia, morte, perda ou extinção dos
respectivos titulares; e o exercício pelo Interventor das atribuições da Lei Organica dos Municípios caso a
vacância do cargo de Prefeito municipal coincida com o término do mandato.
Na articulação política entre o término do mandato do então prefeito de Santos (SP), Sílvio Fernandes
Lopes; a emissão de cassação do prefeito eleito Esmeraldo Tarquínio e a renúncia do vice-prefeito
Oswaldo Justo é que Santos (SP) foi durante décadas, governada por interventores.
Fontes consultadas: http://www.novomilenio.inf.br/santos e http://pt.wikipedia.org/wiki/Ato_Institucional
Acesso: 07.03.09.
48
Preconiza que as ações e serviços públicos de saúde e os serviços privados contratados ou conveniados
que integram o SUS são desenvolvidos de acordo com as diretrizes previstas no artigo 198 da
Constituição Federal, tomando como princípios e diretrizes principais a universalidade de acesso aos
serviços de saúde em todos os níveis de assistência; a integralidade de assistência, entendida como um
conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos,
exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema; a igualdade da assistência à
saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie; a participação da comunidade e a
descentralização dos serviços para os municípios com ênfase na regionalização e hierarquização dos
serviços. Ver em: http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/LEI8080.pdf . Acesso em 30/04/08.
92
1988 confere novos sentidos quanto ao papel dos municípios como ente federativo
quando assume o processo de descentralização como um dos pilares da implantação do
Sistema Único de Saúde. A dimensão das mudanças permitia ao município de Santos,
não apenas assumir mais tarefas, mas interrogar-se sobre suas próprias atribuições. É
que se após a Constituinte o município passava a ter maior autonomia,
responsabilidades, recursos e novas competências, abria-se também um espaço para que
as prefeituras deixassem de se preocupar apenas com a “zeladoria das cidades para
transformarem-se de fato em governos locais, autônomos e intimamente ligados ao
tecido social.” (Capistrano, 1996, p.15).
Em um período de radical predomínio do pensamento neoliberal os municípios
enfrentam grandes dificuldades para financiar seus investimentos, pois os recursos da
área social que deveriam ser destinados para sustentar os processos de produção das
políticas de interesse público giram no sistema financeiro como se fosse este um fim em
si mesmo, alimentado pelas altíssimas taxas de juros da dívida externa, a subsidiação de
usineiros e bancos falidos pelo governo federal, que prejudicando a saúde pública,
apostavam na sua privatização tentando implantar reformas que iam contra direitos
constituídos, piorando as condições de aposentadoria e desprezando um enorme
contingente de trabalhadores informais. Neste cenário, é fundamental percebermos que
Santos remava contra a maré neoliberal da política econômica federal e de quase todos
os estados brasileiros, cuja fórmula baseia-se no ‘estado mínimo’, no ‘enxugamento’
das funções sociais do Estado e no corte dos serviços e direitos públicos, abrindo-nos
em sua experiência para um outro sentido de municipalização.
Se podemos dizer que, a história do SUS em Santos coincidia com a história do SUS no
país, dela se desviava radicalmente para garantir avanços no processo de
descentralização com: a destinação de recursos financeiros do orçamento municipal para
a saúde; na compreensão de que o município deve assumir integralmente a gestão do
sistema local; na vontade política de enfrentar e vencer os obstáculos que garantam a
saúde como direito do cidadão; e no esforço permanente em formar equipes de saúde
aliançadas com os movimentos de expansão da vida no território, entendendo que a
viabilidade do SUS está diretamente relacionada com a criação de canais efetivos de
controle social e participação popular.
93
A fertilidade destas terras banhadas, em grande parte de sua extensão, pelo oceano
atlântico, faz desta cidade sede de muitas lutas libertárias quando resistia ao golpe de 64
que implantou a ditadura militar,
49
e também, terra de refúgio nos tempos da escravidão.
É que muitos escravos que fugiam das fazendas de café do planalto paulista iam
refugiar-se nos quilombos criados nos morros da cidade de Santos. Nela também, os
refugiados encontravam acolhimento da população santista com a ajuda de alimentos,
roupas e remédios. Na luta pela abolição da escravatura, a cidade abrigou milhares de
escravos em quilombos na área continental, fugidos das fazendas de café do planalto
paulista. O trabalho foi tão intenso que, três meses antes de a Lei Áurea ser promulgada,
não havia escravos na cidade. Posteriormente, a população participou da campanha
pela República, organizando listas de assinaturas, comícios, movimentos.
A potencialidade desta cidade e de todas as experiências que nela puderam germinar
ressoam como memórias intensivas de suas batalhas
50
marcando, a um tempo, a
positividade do encontro entre as Reformas Sanitária e Psiquiátrica. Nossa intenção ao
fiarmos um pouco da história do SUS em Santos, se faz junto com a aposta feita por
sujeitos que puderam experimentar protagonismo e exercício de autonomia naquela
cidade: trabalhadores, gestores e usuários dos serviços de saúde que teciam no concreto
da experiência da saúde pública a dimensão coletiva de todo processo de produção de
saúde. A marca que esta experiência produz toca-nos, desassossega-nos, e nos faz
aprender que o próprio processo de construção dos modos de gerir e cuidar, são os
modos pelos quais produzimos a nós mesmos.
49
Agitava-se naquela cidade à beira mar todo um movimento efervescente contra a ma das ondas
neoliberais de mercantilização da saúde e da vida e que configura a expressão do livro que compila as
experiências do SUS em Santos: Contra Maré À Beira Mar. Ver em: Campos, F e Henriques, C. (org.)
Contra A Maré À Beira Mar: A experiência do SUS em Santos, São Paulo, ed. Scritta, 1996.
50
Ver tese de Doutorado em Educação de Heckert, A.L.C. Narrativas e Resistências: Educação e
Políticas. Universidade Federal Fluminense, Niterói RJ, 2004. No primeiro plano de seu trabalho, a
autora intitula-o de Os roncos surdos da batalha, para pensar as noções de resistência e narrativa que
tecem seus percursos e que tem como compromisso ético político acentuar as batalhas cotidianas que
engendram outros possíveis no campo das lutas travadas na escola pública. Tal noção nos é preciosa para
pensarmos em nosso trabalho as narrativas que tecem práticas de resistência no campo da saúde, ao nos
indicar em sua aliança com Foucault “a (..) a ouvir o ronco surdo da batalha” (Foucault, 1983 apud
Heckert 2004). E para captar este 'ronco surdo das batalhas' que pode estar nas entre−linhas das propostas
oficiais e, sobretudo, no fazer cotidiano
dos trabalhadores da saúde que, neste fazer, reinventam modos de
cuidar e gerir, é necessário uma atenção redobrada ao modo de produção das práticas de saúde.
94
2.3.2 De quando as interferências se fazem na produção/experimentação de um
novo Ethos
51
A intervenção na Casa de Saúde Anchieta, um hospício privado que contava com mais
de 500 internos, e a criação do cleo de Atenção Psicossocial (NAPS) em 1989 são
dois acontecimentos que marcam a trajetória do encontro entre as reformas. Segundo
Mesquita e Silveira (1996) durante o processo de construção da rede blica de saúde
de Santos, apenas o programa de saúde mental teve, desde o início, um referencial
teórico definido; os demais programas eram criados, em sua maioria, dentro do modelo
tradicional, centrado na consulta e/ou no saber médico, atribuindo aos serviços
especializados o papel de retaguarda técnica e de exames auxiliares de diagnose e
terapia que fragmentavam o sujeito. Esta nos parece ser uma importante indicação feita
pelos autores com a qual queremos seguir: se de fato não houve, por parte do
movimento sanitário, uma preocupação central com as práticas cotidianas de gestão do
cuidado em saúde, bem como, seus efeitos/produções, foi com o contágio e
reverberação de um outro movimento, e aqui destacamos o da reforma psiquiátrica, que
Santos pode se interrogar quanto a construção desta nova rede de saúde pública. A
intervenção na Casa de Saúde Anchieta, marca a diferença deste novo fazer, que não
poderia simplesmente passar pela construção de mais serviços à população, mas
sobretudo, por uma mudança na lógica de funcionamento dos mesmos.
A década de 1980 foi preciosa ao Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental
(MTSM) por ser um período de amadurecimento da crítica ao modelo privatista-asilar.
Para a Reforma Psiquiátrica, o MTSM, efetiva-se como ator social estratégico pelas
reformas no campo da saúde mental. Buscando compreender a função social da
psiquiatria e suas instituições para além de seu papel explicitamente médico-terapêutico,
51
Foucault (2006, p. 290) lendo os textos gregos levanta algumas das variações da palavra êthos.
Desdobra-se como: substantivo, verbo e adjetivo. Ethopoieîn: produzir o êthos, “transformar o êthos, a
maneira de ser, o modo de existência de um indivíduo”. Ethopoiía: formação do êthos. Ethopoiós: “aquilo
que tem a qualidade de transformar o modo de ser de um indivíduo”. O êthos, portanto, aparece como
algo produzido e não como uma regra a priori a ser seguida. É algo que se constitui no decorrer da vida de
um indivíduo, através de uma prática de si. É ainda aquilo que, ao longo da prática, traz a possibilidade de
uma transformação no ser. Foucault (2004, p.270) define como “a maneira de ser e a maneira de se
conduzir” de um sujeito ou de um coletivo. Para dar força aos nossos percursos que estão engajados com
a produção de uma ética nas/das práticas de produção de cuidado/saúde, com um certo modo de operar no
campo da saúde, traremos mais à frente o estudo de Foucault referentes à antiguidade (gregos) e que nos
ajuda na construção desta ética.
95
este movimento, constrói um pensamento crítico ao modelo psiquiátrico clássico e sua
falência constatada na prática em instituições psiquiátricas. Nesta década, marca-se
também a importância dentro do próprio movimento da Reforma Psiquiátrica quanto a
necessidade de ampliar sua participação como protagonista no Movimento da Reforma
Sanitária Brasileira.
A I Conferência de Saúde Mental em 1987 evidencia a necessidade desta ampliação ao
constatar que, muitas das dificuldades vivenciadas pela perspectiva sanitarista quanto a
incorporação de suas propostas reformistas nas políticas oficiais, “vinha sendo anulada
pela resistência passiva ou ativa da iniciativa privada, da estrutura manicomial, da
burocracia estatal e do conservadorismo psiquiátrico” (Bezerra Jr. 1994 apud Tenório
2002, p.35). Aliada ao II Encontro Nacional dos Trabalhadores de Saúde Mental que
teve como lema: “Por uma Sociedade sem Manicômios”, a I Conferência de Saúde
Mental traz novos rumos e tensionamentos à trajetória sanitarista que tinha como foco
uma transformação apenas do sistema de saúde. Vemos neste momento uma crítica
radical, de clara inspiração basagliana, que produz como nova e fundamental estratégia
a ampliação do próprio MTSM no sentido de ultrapassar sua natureza exclusivamente
técnico-científica. Neste sentido, aponta-se para a necessidade do envolvimento da
sociedade na discussão e encaminhamentos das questões relacionadas à loucura e à
assistência psiquiátrica. Temos então a incorporação dos usuários e seus familiares
como agentes críticos dos processos a serem transformados discutindo-se a invenção de
novos dispositivos e tecnologias de cuidado diversificados que rompam com o modelo
asilar e suas práticas de exclusão e violência.
Na Casa de Saúde Anchieta, em Santos, muitas foram as denúncias de hiperlotação,
falta de funcionários, maus tratos e mortes violentas sofridas pelos pacientes sendo a
intervenção neste hospital psiquiátrico possibilitada pelo processo de municipalização
do sistema de saúde. O fechamento deste hospício e a substituição do modelo
assistencial, com a criação dos Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS) são a um
tempo, um modo de fazer - a organização e gestão das práticas de cuidado no cotidiano
dos serviços - calcadas no projeto de desinstitucionalização.
Operar com o conceito da desinstitucionalização que incide como processo prático-
crítico de problematização dos serviços, dos saberes e estratégias; implicou para esta
96
intervenção uma série de discussões a respeito de uma suposta ‘periculosidade’ do
louco, trazendo à cena não somente a violência dos pacientes como também dos
funcionários e, primordialmente, da instituição saúde mental. A mobilização dos
profissionais em um processo de (de)formação que transitava nos liâmes das fronteiras,
no entre o saber e o fazer também inspirou as bases desta IN-ter-VENÇÃO. Era
necessária uma aposta coletiva para que se pudesse defrontar com os limites das antigas
concepções, crenças e valores de todo trabalho, forçando-as em um exercício ético-
estético e político que partisse para novas experimentações. A ousadia de novas
práticas, um reaprendendo a aprender. Neste sentido a discussão em torno da perda de
cidadania e dignidade que vitimava os pacientes possibilitou a abertura para novas
relações entre profissionais e usuários, como também, para a construção de estradas
entre o hospital e a cidade.
Traça-se um mapa. As alas e enfermarias são organizadas segundo uma correspondente
divisão da cidade em regiões.
Reativar as subjetividades’, isto é, estimular a comunicação interna, suprimir
a violência institucionalizada, reconstruir identidades, coletivizar as pessoas,
melhorar as condições materiais do hospital, redistribuir tempo e espaço...
todas essas modificações não teriam sentido caso não estivessem
direcionadas para um projeto mais amplo. Interferir no ‘espaço social’, na
comunidade. Em realidade, essas ações encontram sua maior barreira
exatamente na precisa separação entre o ‘dentro’ e o fora’ do hospital.
(TYKANORI, 1996, p.42)
A ‘reativação de subjetividades’, apontada pelo autor desdobra-se em uma necessidade
de ativação de recursos da comunidade. Neste mapa,
52
e em todos os infinitos traçados e
52
Os pacientes eram agregados nas alas e enfermarias segundo uma área determinada. Isto permitiu que
as equipes pudessem conhecer os habitats de origem dos pacientes e tomar como tarefa a busca de
recursos e a construção de projetos no próprio território de pertença dos pacientes. Segundo Tykanori
(1996), a delimitação de um território não seria dada apenas pelos aspectos geográficos em si. Para os
serviços seria a área sobre a qual este deve assumir a responsabilidade sobre as questões de saúde mental.
Amplia-se para tanto, o setting terapêutico dos profissionais que não mais se limitam à sua unidade, mas
saem em busca de conhecer e atuar no território de cada paciente, “nos espaços e percursos que compõem
a vida cotidiana dos pacientes, visando enriquecê-lo e expandí-lo.” (p.45). Em Santos, o termo território
foi utilizado para operar a regionalização dos serviços de saúde mental. A cidade foi dividida em cinco
áreas sendo cada qual referida a um serviço, todavia, os limites entre os territórios foram sendo
modificados a partir da prática e das possibilidades efetivas de se exercer sua função. Termo que será
utilizado, como veremos mais adiante, para as áreas adscritas das Equipes de Referência da Estratégia de
Saúde da Família.
97
movimentos que ele possibilitou, o NAPS delineia-se como força para a superação do
antigo modelo manicomial que tem o hospital psiquiátrico como núcleo operacional.
O projeto de Saúde de Santos tratou de combinar diretrizes aparentemente contraditórias
como, por exemplo, o papel dos indivíduos e das coletividades na história. Inverter a
lógica dominante do modelo médico-centrado nos serviços especializados tornou-se um
dos grandes desafios quando a necessidade incide sobre a modificação da escassa
responsabilidade destes com relação ao processo de saúde-adoecimento, na falta de
vínculos com o paciente e nas relações burocráticas com os demais serviços.
Aprendemos nesta experiência que a tessitura das redes de novos serviços se constituía
com/nos modos de fazê-los operar cotidianamente. Neste sentido, um rico movimento
de reformulação das práticas clínicas, que priorizavam o trabalho em equipe, a
aproximação com o território, a ampliação dos settings terapêuticos e do significado de
responsabilizar-se pela saúde de um paciente ou de uma comunidade pôde ser
construído em ato ao tecer as redes de cuidado.
Rotelli (1990) nos afirma em seu texto - A Instituição Inventada - que o paradigma
clínico foi o verdadeiro objeto do projeto de desinstitucionalização, visto que, implodir
com a lógica manicomial e com os manicômios, implica a ruptura da relação mecânica
causa-efeito abrindo para a complexidade do cuidado em saúde. Tomamos aqui, a noção
de complexidade trabalhada por Passos e Benevides (2003), na tentativa de afirmá-la
para além e aquém do sentido atribuído pelo senso comum. Para estes autores, o
complexo não seria apenas o complicado ou o que ainda não foi explicado, mas ao
contrário, “é a propriedade de certos fenômenos cuja explicação exige de nós o esforço
de evitarmos simplificações reducionistas” (p.81).
De algum modo podemos dizer que a experiência de aprendizagem gerada no encontro
da Saúde Mental com a Saúde Coletiva em Santos, trouxe-nos uma discussão
importante acerca da clínica e sua prática no ato de cuidar. A intercessão do movimento
sanitarista, com a perspectiva teórico-prática da desinstitucionalização do movimento
antimanicomial, vivida na construção dos modos de se operar em saúde, transforma a
trajetória santista.
98
A intervenção na Casa Anchieta que instaurava um processo de ruptura da cultura da
tutela institucional como resposta única e absoluta à diversidade, fez emergir o desafio
de produzir uma outra relação onde a autonomia e a cidadania fossem modos mais
possíveis de existência. A relação de tutela, marcada na prática asilar, por estabelecer-se
como relação de opressão/repressão, fundada na competência do tutor sobre a
‘incapacidade’ do tutelado instaura um paradoxo na prática asilar, pois a ‘proteção’
baseia-se na incapacidade, redução e anulação da liberdade do tutelado. Neste caso
a proteção não responde a uma necessidade pautada por uma diferença ou
particularidade mas identifica o sujeito globalmente pela negatividade,
invalidando-o, absorvendo-o na instituição. (NICÁCIO E KINKER, 1996,
p.121)
Se uma preocupação em desprender-se de modelos pré-definidos que tendem a tornar-se
limitadores para a ação prática constitui-se uma forte característica da construção do
SUS local em Santos, é porque de algum modo uma operação de transversalização,
podia ser experimentada
53
. Segundo Guattari (1981) a transversalidade constitui-se pelo
grau de abertura que garante às práticas de saúde a possibilidade de diferenciação ou
invenção, a partir de uma tomada de posição que faz dos vários atores sujeitos do
processo de produção da realidade em que estão envolvidos. Aumentar os graus de
transversalidade é superar a organização do campo assentada em códigos de
comunicação e de trocas circulantes nos eixos da verticalidade e horizontalidade: um
eixo vertical que hierarquiza os gestores, trabalhadores e usuários e um eixo horizontal
que cria comunicações por estames/corporações. Ampliar o grau de transversalidade é
53
A produção de subjetividades autônomas e protagonistas implicava uma nova forma de agir e pensar. A
construção de cidadania das pessoas com sofrimento psíquico não se limitava a uma declaração de
direitos, mas deveria ser efetivada no trabalho cotidiano e artesanal de tecer as condições que possibilitem
o ‘viver fora’ das instituições totais. Para tanto, novos problemas com relação à reabilitação, ao trabalho e
a saúde também tiveram que ser construídos. Uma desestabilização do lugar que o trabalho em muito
ocupa nas intervenções reabilitadoras teve que ser pensado. Na experiência de Santos enfrentava-se
cotidianamente as concepções e uso do trabalho como ideal normativo da reabilitação, como resultado ou
indicador de cura. As ações de reabilitação não deveriam configurar-se como fase final e/ou posterior ao
tratamento. Um (re)dimensionamento destas se fazia, uma vez que, propunham permear todas as
trajetórias do processo de cuidar, produzindo e ampliando a rede relacional e o poder contratual dos
usuários. Neste âmbito, os projetos de inserção no trabalho como: Lixo limpo, Cantina Paratodos,
Serigrafia, Limpeza e Desinfecção de Caixas D’água, Marcenaria, dentre outros, acompanham o percurso
da saúde mental em Santos, partindo das necessidades dos usuários que emergem com/na desconstrução
das instituições e da cultura manicomial em nós. que se lembrar neste processo a superação da prática
laborterápica vivida por muitos pacientes no interior da Casa de Saúde Anchieta ainda no período inicial
da intervenção.
99
produzir uma comunicação multivetorializada construída na intercessão dos eixos
vertical e horizontal.
Esta operação nos convoca a um outro modo de operar
54
sobre/com as práticas,
afirmando mais a dimensão processual de nosso fazer em saúde do que as formas. Neste
sentido a operação de transversalização impõe-nos um processo de desestabilização
inclusive daquilo que até então era nomeado como o campo da clínica. Como nos alerta
Passos e Benevides (2003), não perdemos com isso a preocupação com as questões
estratégias, mas estas não se definem mais como puramente técnicas. Uma dimensão do
fazer muito “menos como inventário de procedimentos e formas de ação e mais como
um processo constante de invenção de estratégias de intervenção em sintonia com os
novos problemas constituídos” (p.85).
Se o SUS fazia-se conquista expressa como proposição geral e abstrata na forma de lei,
de suas portarias e normativas em todo o Brasil; fazia-se em Santos como modo
possível de existência quando remetido ao plano das experiências concretas que
apostavam em uma mudança nas práticas de saúde. A construção de um plano comum,
que conecta diferentes atores no processo de produção de saúde nos o tom de como
se implanta efetivamente a idéia de ‘único’ encontrada no SUS. Processo que se fez na e
com as reverberações do encontro entre as reformas: psiquiátrica e sanitária. Com a
saúde mental aprendíamos que o modo de se operar mudanças nos processos de
produção de saúde exigia também mudanças nos processos de subjetivação.
Aprendíamos também que é a transformação de sujeitos concretos em sintonia com as
mudanças das próprias práticas de saúde que dá cheiro, cor e vida aos princípios do
SUS quando encarnados na experiência concreta do fazer. (Benevides; Passos, 2005b).
54
Um modo de fazer operar que produza a saída do circuito psiquiátrico foi pensado com a multiplicação
de parceiros/atores envolvidos nestes projetos, haja vista, a participação de inúmeras outras pessoas como
instrutores, clientes, gerentes, etc. E também, a busca de agenciamentos com atores cujo interesse comum
por realizar intervenções urbanas e culturais na cidade eram articulados a um conjunto de ações (políticas
públicas, associações não-governamentais e cidadãos). O processo de transformação cultural do lugar de
desvalor que a loucura ocupa no imaginário social requer o envolvimento, a prática conjunta como meio
indispensável de conhecer e comunicar de forma não abstrata para encontrar outras formas de
compreensão da loucura. A potencialização e a ‘reconversão de recursos’ (Nicácio e Kinker, 1996,
pg.129) materiais, humanos e sociais para a criação de frentes de trabalho e ampliação da contratualidade
social e não para a exclusão e cronificação dos sujeitos foi uma das estratégias centrais para fazer operar a
desinstitucionalização das instituições.
100
Com a criação de redes de atendimento que buscassem uma efetiva mudança dos
modelos assistenciais de saúde percebemos que a transversalidade e a inseparabilidade
entre atenção e gestão são indicações importantes do ‘como fazer’. De algum modo é
quando experimentamos essas indicações que percebemos que a criação de uma rede de
saúde em Santos privilegiou, sobretudo, a transformação de nossos modos de relação,
formando coletivos que pudessem apostar e sustentar a produção de vínculos, de
acolhimento, produzindo-se a si e suas práticas em um exercício de transversalização,
aumentando os graus de comunicação, de conectividade e de intercessão intra e
intergrupos. (Deleuze, 1996).
2.4 Atenção Primária: algumas modulações para a construção de uma rede básica
de saúde
A discussão de como operar mudanças nos modelos de atendimento que visem a uma
maior extensão de cobertura e maior efetividade no conjunto de ações em saúde, tem
colocado o tema da rede básica como um ponto estratégico na constituição dessas novas
práticas. Analisando historicamente os processos de constituição deste espaço, o autor
nos indica o quanto suas configurações e dimensões tecno-assistenciais devem ser
entendidas no contexto das políticas sociais, constituídas nas relações: Estado e Classes
Sociais.
Durante a cada de 1970, Merhy (1997) destaca o aparecimento de posições que se
organizaram em torno da disputa por um novo modelo de política social de saúde, a
saber: as Conservadoras, as Reformadoras e as Transformadoras; ressaltando as
distintas conformações tecno-assistenciais que as mesmas imbuíam na constituição da
rede básica. Se as posições mais Conservadoras tinham pouco a dizer sobre a
organização tecnológica da rede básica, pois marcavam a defesa de uma ordenação dos
serviços de saúde a partir da lógica de mercado capitalista; as Reformadoras
associavam-se ao mote da racionalização do funcionamento da máquina estatal, que
preconizando a rede básica como porta de entrada dos serviços, tentou responder ao
processo dicotômico construído historicamente entre medicina e saúde pública sem
discutir de fato o que esta rede precisaria efetivar para cumprir o seu papel de porta de
entrada nem tão pouco o que a diferenciaria do modelo de rede da perspectiva médico-
sanitária. Neste sentido, não nesta concepção o enfoque na unificação efetiva das
101
ações, mas sim, uma redução medicalizante do conjunto dessas ações que não
potencializa/inclui como projeto de saúde a autonomia dos usuários.
Ao propor uma reflexão sobre o lugar estratégico que a rede básica vem ocupando na
construção do Sistema Único de Saúde, Merhy (1997) nos ajuda a avançar nas
discussões dos sentidos que têm constituído a rede de atenção básica. Para o autor este
entendimento não deve ser confundido, necessariamente, com um espaço físico, mas
como um espaço de trabalho em saúde.
Internacionalmente, muito vinham sendo realizadas discussões do conceito de
Atenção Primária à Saúde (APS). Muitas experiências de países desenvolvidos e em
desenvolvimento apontavam para o fato de que a APS apresentava impactos positivos
nos indicadores de saúde da população, bem como influência efetiva no acesso a
serviços essenciais preventivos e promocionais de saúde. (Andrade, Barreto e Bezerra,
2006).
Starfield (2002) aponta para a APS como uma tendência, relativamente recente, de se
inverter a priorização das ações de saúde de uma abordagem curativa, desintegrada e
centrada no papel hegemônico do médico para uma abordagem preventiva e
promocional, integrada com outros níveis de atenção e construída de forma coletiva
com outros profissionais de saúde. Ilustra no quadro a seguir as dissimilaridades
essenciais entre Atenção Primária à Saúde e Atenção Médica Convencional.
102
CONVENCIONAL ATENÇÃO PRIMÁRIA
ENFOQUE
Doença Saúde
Cura Prevenção, atenção e cura
CONTEÚDO
Tratamento Promoção da saúde
Atenção por Episódio Atenção Continuada
Problemas específicos Atenção Abrangente
ORGANIZAÇÃO
Especialistas Clínicos Gerais
Médicos Grupos de outros profissionais
Consultório Individual Equipe
RESPONSABILIDADE
Apenas setor de saúde Colaboração intersetorial
Domínio pelo profissional Participação da comunidade
Recepção passiva Auto-responsabilidade
Fonte: Starfield. Atenção Primária: Equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia.
Brasileira: Unesco-Ministério da Saúde, 2002, p.33.
As diferenças dos dois enfoques parecem nos indicar uma diferença no modo de fazer a
gestão e a atenção dos processos de cuidado no campo da saúde. A Atenção Primária
busca romper com um certo modelo de conhecimento no campo da saúde que produz
tanto um modelo assistencial médico hegemônico, quanto um modelo de organização
social voltado para o conceito de doença. Franco e Merhy (2006) nos sinalizam que
mesmo no contexto de pós guerra, onde o crescimento econômico elevado pelos
avanços tecnológicos da indústria possibilitavam, especialmente aos países
desenvolvidos na Europa, financiarem a implantação de políticas sociais amplas o
modelo tecnoassistencial utilizado caracterizou-se pelo Médico Hegemônico.
Na caracterização deste Modelo Médico Hegemônico, Starfield (2002) nos mostra em
seu quadro, os problemas de uma orientação de trabalho voltada para a cura que
corroboram para uma visão da doença como desvio, como anormalidade, e que em
muito significou a objetificação de um sujeito hospitalizado, institucionalizado,
103
reprimido e passivo. Neste sentido, percebemos o desenvolvimento na Atenção Médica
Convencional, tanto de uma organização dos serviços voltada para uma atenção por
episódios - quer seja, em momentos de crise em uma psicose, emergência e/ou
internação, quanto para a formação de profissionais centrada em uma super-
especialização do conhecimento desenvolvida, em sua maioria, pelo uso de tecnologias
duras
55
- equipamentos/máquinas e fármacos.
Franco e Merhy (2006) evidenciam que a dinâmica do capitalismo no campo econômico
geral também é (re)produzida no campo da saúde quando “um sistema de saúde
centrado em procedimentos, corrobora com os processos de acumulação do capital, ou
seja, a dinâmica de produção de serviços é estruturada e comandada por interesses desta
ordem”. (pg. 68)
Nesta discussão é importante salientar que diversos foram os modelos de organização e
ofertas de serviços de saúde que utilizavam a denominação APS. Numa tentativa de
descrever e diferenciar os diversos modelos, Vuori (1985 apud Andrade; Barreto;
Bezerra, 2006), propôs uma classificação para os enfoques de APS então existentes
explicitados no quadro a seguir.
55
Para repensar a clínica e o trabalho na saúde desde uma perspectiva que valoriza a dimensão
micropolítica do cuidado e os processos de regulação aos quais esta se encontra imbricada, Merhy realiza
uma crítica ao modelo médico hegemônico produzindo um novo conceito de tecnologia. O autor
problematiza uma clínica fundamentada em uma tecnologia dura e leve dura e sua produção de
diagnósticos e tratamentos que em muitas vezes têm pouco a contribuir para a construção de um cuidado
que produza ganhos a abertura de graus de autonomia nas vidas dos usuários. Ressalta, sobretudo, que o
uso destas tecnologias é inclusive uma das grandes causas do aumento dos custos na saúde, pela forte
tendência de agregar tecnologias duras não substitutivas, com uma questionável eficiência. Em sua
distinção as tecnologias duras são aquelas que tradicionalmente se usa para designar os equipamentos
tecnológicos tipo máquinas, normas e estruturas organizacionais. As leves-duras são os
conhecimentos/saberes sistematizados e estruturados (clínica, epidemiologia) que se expressam nas
práticas clínicas dos médicos, dentistas, psicólogos, enfermeiros, etc.
104
ENFOQUE
DEFINIÇÃO OU CONCEITO DE
ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE
ÊNFASE
APS Seletiva Orienta-se a um número limitado de serviços de alto impacto
para enfrentar alguns desafios de saúde mais prevalentes dos
países em desenvolvimento. Um dos principais programas que
incluiu este tipo de serviços foi conhecido por sua sigla em
inglês Gobi (controle do crescimento, técnicas de reidratação
oral, aleitamento materno e imunização) e também foi
conhecida como Gobi-FFF quando adicionou alimentos
suplementares, alfabetização da mulher e planejamento.
Conjunto
limitado de
atividades dos
serviços de
saúde para os
pobres.
Atenção
Primária
A maioria das vezes refere-se a à porta de entrada do sistema
de saúde e ao local para a atenção contínua da saúde da
maioria da população. Esta é a concepção de APS mais
comum na Europa e em outros países industrializados. Já a
partir da definição mais restrita, este enfoque está diretamente
relacionado com a disponibilidade de médicos especializados
em medicina geral ou familiar.
Alma-A
“APS
Ampliada”
A Declaração de Alma-A define APS como um primeiro
nível amplo e integrado, que inclui elementos como
participação comunitária, coordenação intersetorial, e
descansa em uma variedade de trabalhadores da saúde e
praticantes das medicinas tradicionais. Inclui os seguintes
princípios: respostas aos principais determinantes da saúde;
cobertura e acessibilidade universal segundo a necessidade;
autocuidado e participação individual e comunitária; ação
intersetorial pela saúde; tecnologia apropriada e custo-
efetividade em relação aos recursos disponíveis.
Uma estratégia
para organizar
os sistemas de
atenção à saúde
e a sociedade
para promover
a saúde.
Enfoque de
Saúde e
Direitos
Humanos
Concebe a saúde como direito humano e prioriza a
necessidade de responder aos seus determinantes sociais e
políticos mais amplos. Difere por sua maior ênfase nas
implicações sociais e políticas da Declaração de Alma-Atá
que em seus princípios defende que, se há um objetivo de que
o conteúdo social e político de Alma-Alogre melhoras na
equidade em saúde, este deve orientar-se mais para o
desenvolvimento de políticas “inclusivas, dinâmicas,
transparentes e apoiadas por compromissos legislativos e
financeiros” que está atrás de aspectos específicos da doença.
Uma filosofia
que atravessa a
saúde e os
setores sociais.
Neste quadro, percebemos a importância de realizarmos uma discussão sobre a própria
Atenção Primária, os sentidos que as diferentes práticas põem em funcionamento,
estando atentos às propostas que surgem no Brasil.
2.4.1 Habitando um não-lugar: Experiência limiar da/na Atenção Básica
Nos anos 1990, a atenção básica se torna a área de concentração de programas e
investimentos do Ministério da Saúde (MS). As mudanças do Modelo Assistencial em
Saúde são iniciadas em 1991 com a implantação do Programa de Agentes Comunitários
105
de Saúde (PACS) e, posteriormente, em 1994, com a criação do Programa de Saúde da
Família (PSF). Este tem se tornado a principal resposta oferecida, no âmbito da
assistência, pelos órgãos governamentais, à crise do modelo assistencial.
As ações do PSF foram, inicialmente, implantadas em regiões de escassa assistência à
população, com os objetivos de atender às minorias sem acesso a serviços de saúde e de
responder a uma tendência mundial de redução de custos, de desmedicalização da
medicina e humanização dos serviços (Vasconcellos, 1998).
Por esse programa inicial ser considerado potente para a universalização do atendimento
à saúde e para a implementação dos preceitos da Reforma Sanitária Brasileira, passou a
haver um esforço e um incentivo para que se transformasse em Estratégia de um projeto
único do sistema da saúde e responsável pela Atenção Primária à Saúde (APS) com o
objetivo de:
colaborar decisivamente na organização do Sistema Único de Saúde e na
municipalização, implementando os princípios fundamentais de
universalização, descentralização, integralidade e participação comunitária
(...). O PSF prioriza as ações de proteção, promoção à saúde dos indivíduos e
da família, tanto adultos quanto crianças, sadios ou doentes, de forma integral
e contínua. (BRASIL, 1994, p.10-1)
Em documento propositivo para a organização do PSF no Brasil, publicado sob
responsabilidade do Ministério da Saúde em outubro de 1998, afirma-se que o objetivo
do PSF é “a reorganização da prática assistencial em novas bases e critérios, em
substituição ao modelo tradicional de assistência, orientado para a cura de doenças e no
hospital. A atenção está centrada na família, entendida e percebida a partir do seu
ambiente físico e social, o que vem possibilitando às equipes de trabalhadores uma
compreensão ampliada do processo saúde/doença e da necessidade de intervenções que
vão além de práticas curativas
56
Para avançarmos um pouco mais nas discussões em torno da Atenção Primária e das
diferentes propostas que embasam seus modelos tecnoassistenciais no campo da saúde,
acreditamos ser importante mencionar o estudo comparativo realizado por Franco e
56
“Saúde da Família: Uma Estratégia de Organização dos Serviços de Saúde”. MS. Brasília; março/1996;
pág. 2.
106
Merhy (2006) do PSF com a Medicina Comunitária e as Ações Primárias de Saúde
(Alma Ata, 1978). Nele, o autor mostra similaridades entre as três propostas, que se
organizam a partir de um ideal racionalizador e operam através do núcleo teórico da
epidemiologia e da vigilância à saúde.
Apontando para alguns dos desafios a incorrer no trabalho da Estratégia de Saúde da
Família, Franco e Merhy (2006) nos sinalizam para: as normatizações do programa
inspirados nos cuidados à saúde com características bastante higienistas, bem como,
para a necessidade de ampliação do conjunto de práticas clínicas que se produzam na
contra-mão do modelo médico hegemônico. Para o autor, a Medicina Comunitária e os
Cuidados Primários não se disporam a atuar na direção de uma ampliação da clínica por
basearem-se em uma prática de cuidado centrada no território e normatizada em função
de concepções desenvolvidas pela Organização Pan-Americana de Saúde. Nesta prática
o território é entendido apenas como espaço físico e os cuidados a serem oferecidos
constituem-se por ações no ambiente. Neste sentido, o autor aponta para o risco do PSF
agir como linha auxiliar do Modelo Médico Hegemônico.
É como se o PSF estivesse delimitando os terrenos de competência entre ele e
a corporação médica: ‘da saúde coletiva cuidamos nós; da saúde individual
cuidam vocês, a corporação médica’. E nada é melhor para o projeto
neoliberal privatista, do que isso, pois deixa-se um dos cenários vitais para a
conformação dos modelos de atenção sem disputa anti-hegemônica.
(FRANCO e MERHY, 2006, p.102).
Embora, os autores evidenciem que o PSF traz em sua concepção teórica a tradição
herdada da vigilância, por outro lado, é importante salientarmos que pretendê-lo como
uma mudança do modelo assistencial no campo da saúde é compreender que as
transformações são produzidas quando apostamos em uma reorganização dos modos de
atenção e gestão do processo de trabalho e de cuidado ativadas no plano dos encontros,
das relações.
***
Chegávamos a mais uma ‘reunião de rede’ em Macaé. As poucas
cadeiras existentes na sala funcionavam como um analisador para
107
pensarmos a experiência de construção de nossas práticas no campo da
atenção básica quando emerge no grupo uma fala:
“É... nós somos Atenção Básica”, “precisamos do básico”,a gente não
precisa de cadeiras”.
Afetos, corpos e entre-olhares produzidos naquela cena multiplicam os
sentidos de ser atenção básica. O que estar sem cadeiras produz? O que
o campo da saúde vem produzindo como atenção básica?
(Diário de Bordo, 03 de agosto de 2008)
***
Se por vezes o estar sem cadeiras parece ao grupo, emprestar sentidos a um fazer
entendido como um básico de ‘menor importância’ ou um básico plugado na idéia de
falta, percebíamos que a ausência de cadeiras como marcadoras dos especialismos
também sinalizam para muitos o embaralhamento dos lugares e saberes instituídos e o
quanto os mesmos por si só não respondem à variabilidade da vida e dos problemas com
os quais os trabalhadores se deparam. Habitar o plano de constituição da atenção básica
parece-nos, pois uma convocação a reinvenção da lógica do processo de trabalho.
Mergulhados na complexidade do território onde se desdobra a clínica praticada
em/com o movimento, fora dos espaços de reclusão convencionais, inauguram-se outras
formas de agenciamento terapêutico, outras possibilidades de conexão com os fluxos da
cidade e da cultura. Na clínica que se insinua, percebemos a possibilidade de
construção de um modo de fazer com o qual temos neste trabalho afirmado o próprio
processo de pesquisar. A experiência de acompanhamento vivida marca-se, muito mais,
pelos percursos do caminhar do que pelos lugares de partida ou de chegada. Atenta às
articulações com o fora, às conexões possíveis e aos planos de consistência que se
conquistam, estas nos parecem ser as pistas para viver este processo de experimentação
e acompanhamento que é sempre de aprendizagem. Como nos indica Benevides (1994)
Desnaturalizar os especialismos é, portanto, questão central para aqueles que
repensam a produção do conhecimento, que problematizam as dicotomias.
Não se trata, entretanto, de negar o poder do saber do especialista, isto seria
uma farsa. Farsa liberal. Cabe-nos pensar sobre seu funcionamento, sobre as
práticas que tem implementado e sobre o desmonte daquelas que em seu
próprio nome desqualificam as demais. Eis o nosso desafio: ocupar o lugar
108
do especialista, desmontando-o a cada momento (BENEVIDES DE
BARROS, 1994, p. 160)
Os percursos produzidos no trânsito, na deambulação provisória do ir e vir no território
são marcados pela lógica de uma zona que Lancetti (2006) denomina de ‘autonomia
temporária’ afirmando o caráter provisório e inacabado de todo percurso. Nesta direção,
o autor questiona o modelo piramidal utilizado para representar uma certa
racionalização do atendimento em saúde, ao propor o conceito de complexidade
invertida.
No sistema de saúde existe uma hierarquização que pode ser descrita da
seguinte forma: os processos simples como programas de aleitamento
materno, programas para diabéticos e hipertensos, enfim todas aquelas ações
desenvolvidas em unidades básicas de saúde, situadas no bairro em que as
pessoas moram, são procedimentos simples, de baixa complexidade. Os
procedimentos realizados em centros cirúrgicos e hospitais de grande porte
como cirurgias de transplante de órgãos, cirurgias cardíacas, etc. são
procedimentos de alta complexidade. Na saúde mental ocorre exatamente o
contrário: os procedimentos realizados do outro lado do muro do hospital
psiquiátrico, nas enfermarias ou nos pátios; as atividades desenvolvidas nas
clínicas de drogados são procedimentos simples e que tendem à
simplificação. [...] As ações de saúde mental que ocorrem no território
geográfico e existencial, onde o sujeito vive, em combinação com os diversos
componentes da subjetividade, sejam eles universos culturais locais, de
culturas originárias, mídias, religiões, etc., são ações complexas
(LANCETTI, 2006, p. 107-108).
De algum modo o encontro Saúde Mental e Atenção Básica com seu plano de tessitura
com/no território chama-nos atenção justamente pelo movimento transversal que opera,
ao entrecruzar as mais variadas interfaces políticas, econômicas, sociais, culturais,
sexuais, etc., desestabilizando os limites identitários das disciplinas e produzindo
diferenciações no próprio conceito de clínica. Neste sentido problematiza o paradigma
racionalista: problema-solução/causa-efeito afirmando-se mais na força das próprias
experiências e os efeitos terapêuticos que produzem.
109
2.4.2 Reverberações da experiência Santista na criação do Projeto Qualis/PSF:
Reinventando modos de fazer
De algum modo, uma das mudanças substanciais que vieram potencializar a Estratégia
de Saúde da Família com a implantação de um programa de saúde mental no Projeto
Qualis/PSF (SP), também recolhe no tempo algumas reverberações importantes da
experiência de Santos. Se o trabalho de desconstrução manicomial nos mostrava que o
cenário do hospício e da organização dos espaços-tempos eram promotores de
identidades cronificadas; também aprendíamos que a clínica é imanente ao processo de
desmontagem manicomial. Lancetti (2006) nos ajuda a entender este processo de
imanência com a vivacidade dos tempos em que construíam práticas de cuidado onde a
marca da ousadia, da invenção e de uma potência de transformação estava sempre a se
fazer. As experimentações
57
vividas tornaram-se referência para a Reforma Psiquiátrica
Brasileira, e também fundamento para a invenção de diversas outras ocorridas em áreas
como educação, assistência social, segurança e saúde.
À medida que se desmontava os espaços-tempos manicomiais se ativava a
relação do coletivo (pacientes, trabalhadores de saúde mental, dirigentes)
com a sociedade, inventávamos cada dia empreendimentos que produzissem
desejo de viver fora do hospício. Clinicávamos para pôr de pé os cidadãos
psiquiatrizados e para promover uma intensa interação com a cidade, com
pessoas e movimentos de diversas partes do Brasil e de outras partes do
mundo.” (LANCETTI, 2006, p.22)
57
Lancetti (2006) destaca o agenciamento que produziam ao levarem um grupo de meninos e meninas de
rua para passar um período na Casa de Saúde Anchieta. Nesta aposta, acreditavam que a conexão entre
sedentários (pacientes crônicos) e nômades (moradores de rua) poderia produzir novas subjetividades.
O trabalho com meninos de ruas, meninas prostituídas, de redução de danos ou com toxicômanos também
se gestou inspirado na experiência de transformação da psiquiatria. O autor relata a experiência da
chamada Casa de Inverno que constitui-se em meio a uma campanha emergencial realizada pela
prefeitura de Santos no inverno de 1993 para acolher a população de rua da cidade. A montagem de um
método de trabalho e de intervenção baseados no que se denominou de pedagogia da surpresa conduzia a
direção de uma prática afetiva de combate à chegada do crack à cidade de Santos e às inúmeras mortes
por overdoses de meninos e meninas que moravam nas ruas. O entusiasmo com os êxitos dessa
intervenção inspirou o desenvolvimento de uma outra experiência com meninos e meninas de rua
chamada de internação invertida. Nesta experiência, os educadores é quem eram internados junto com
estes adolescentes com a saída da cidade para sítios, casas de praia ou acampamento. Nela, a idéia de
desterritorialização do contexto pedagógico é que estava presente, tendo-se em conta que a assistência do
modo como vinha sendo prestada estava fracassando. Nesta intervenção buscava-se fazer funcionar a
criação de vínculos inéditos de afeto e transferência em uma relação entre educadores e meninos até então
saturada e estereotipada, sem potência pedagógica ou terapêutica.
110
A prática de acompanhamento terapêutico que consiste em transitar pela cidade com
pacientes psicóticos ou com alterações psíquicas graves também era gestada em meio a
muitas dessas experimentações. Santos, criou o primeiro concurso público para
acompanhantes terapêuticos
58
, de modo que o NAPS de Santos têm esses profissionais
em seu quadro de funcionários. A potencialidade destas experiências nos ajuda na
discussão do fazer clínico quando desafiamos um certo consenso moralista onde o
‘cuidar’ encobre um imperativo de higiene social.
A clínica praticada em movimento, fora dos espaços de reclusão convencionais,
inaugura outras formas de agenciamento terapêutico bem como, outras possibilidades de
conexão com os fluxos da cidade e da cultura. A nomadização da clínica não é
independente da própria falência das instituições de reclusão, e de algum modo o
sinalizamos, quando junto com Deleuze analisamos a passagem de uma sociedade
disciplinar baseada no confinamento para uma sociedade de controle calcada no
monitoramento dos fluxos em espaço aberto. Pelbart (2006) evidencia a possibilidade
da reinvidicação/construção de uma clínica peripatética ou cartográfica
59
, visto que,
precisamos construir outros modos de combate face a mutação histórica caracterizada
pela nomadização atual dos fluxos de toda ordem, e da própria subjetividade.
Ao lutar contra a produção maciça da impotência subjetiva, num contexto de
desterritorialização generalizada, trata-se de inventar as linhas de fuga aptas a
relançarem o movimento na direção de outras possibilidades de subjetivação.
(PELBART, 2006, p. 13)
Insistir na importância do trânsito na relação terapêutica e na problematização do
próprio percurso, do ir e vir, para que essa práxis não se reduza à de um auxiliar
psiquiátrico nos parece ser uma direção importante apontada por Lancetti (2001) ao ser
58
Ver mais em BENEVIDES, L. L. M. G. A função de publicização do acompanhamento terapêutico
na clínica: O contexto, o texto e o foratexto do AT. Dissertação de Mestrado em Psicologia. Universidade
Federal Fluminense. 2007.
59
No sentido comum do adjetivo e na etimologia da palavra, peripatético provém de: peripatéo que
significa: Passear, ir e vir conversando. Lancetti utiliza este termo muito próximo ao que Deleuze e
Guattari trazem como a construção de uma clínica cartográfica, fundamentalmente, por entender que
uma fazer clínico que acompanha as linhas de constituição da vida. É trabalhando no acompanhamento
dessas linhas, aliançando-se com o lado de fora das formas, com sua impermanência nos arranjos, que
outros modos de subjetivação podem ser criados. Uma aposta insistente de busca e produção das poiéticas
que pulsam nos percursos de afirmação da vida, tecidos coletivamente, sempre plural e cooperativo.
111
convocado, em maio de 1998, para a construção de um programa de saúde mental para
o Projeto Qualis/PSF em São Paulo. Tal projeto se constitui como experiência piloto, e
neste trabalho, marcamos sua importância para pensar não a interface experimentada
entre saúde mental e atenção básica, mas sobretudo, o desafio de construção e
sustentação do SUS. À época de implantação do projeto Qualis/PSF em São Paulo,
também coexistiam o Plano de Assistência à Saúde (PAS) baseado na privatização e em
motivações eleitoreiras e uma pobre rede de saúde básica gerenciada pelo estado
60
.
Uma das características peculiares deste desafio, é que o PSF tratava-se de um programa
que nunca havia sido testado em megalópolis de altíssima complexidade como São
Paulo. Até então, o PSF, tinha manifestado eficácia em diversos municípios brasileiros
de pequeno porte, a maioria situados no Nordeste e Norte do país. A prevalência do
mapa epidemiológico de São Paulo não era a desidratação como ocorre em pequenos
municípios do sertão, mas a violência e uma série de doenças de complexidade diversas.
Se em uma de suas indicações, Franco e Merhy (2006) nos alertam sobre o risco de
dicotomizações no PSF entre a saúde coletiva e a saúde dos indivíduos, Campos (2007)
corrobora com este autor ao considerar que no funcionamento do próprio SUS se
hibridiza uma ordem liberal privatista que se manifesta tanto dentro do SUS como
resistência permanente a ele, como dentro do imaginário dominante em tempos de
globalização capitalista. Um dos riscos de não enfrentarmos estes constantes
tensionamentos, visto que se fazem dentro do próprio SUS, incorre em
despotencializarmos tanto os movimentos instituintes do SUS, e neste sentido, da
Estratégia de Saúde da Família, caindo na enunciação de suas configurações como uma
60
Enfatizamos a importância da experiência Santista e suas reverberações na construção do Projeto
Qualis/PSF em São Paulo, uma vez que temos a participação de grandes expoentes desta experiência
como Davi Capistrano e Antônio Lancetti. Todavia, queremos também ressaltar a fertilidade de inúmeras
experimentações de movimentos sociais, com destaque para o campo da educação, vividas em São Paulo
no governo da prefeita Luíza Erundina de 1989 -1992 e que foram extremamente minadas pelo governo
posterior do prefeito Paulo Maluf e seu sucessor Celso Pitta, haja vista, todo o investimento desta gestão
em processos que corroboravam para o fortalecimento de uma gica neoliberal. De acordo com estudos
de Yamamoto e Carvalho (2002), o PAS (Plano de Atendimento à Saúde) tido como uma destas propostas
de cunho neoliberal, se tronou possível após três anos de deliberado sucateamento e desmonte da rede
de serviços, ainda na gestão de Maluf, seguidos de um golpe, pelo violento afastamento da grande
maioria dos trabalhadores da rede. Segundo os autores, neste processo, foram afastados de suas funções
originais 35.035 servidores, 88,30% dos existentes, que se negaram a ingressar neste esquema, apesar das
pretensas "vantagens", dos quais 17.705 "exilaram-se" em outras Secretarias, muitos se demitiram e os
demais foram para espaços remanescentes da Secretaria Municipal de Saúde não repassados para o PAS.
Ver em YAMAMOTO, O. H. ; CARVALHO, D. B. . Psicologia e políticas públicas de saúde: anotações
para uma análise da experiência brasileira. Psicologia para América Latina, México, v. 1, n. 1. 2002. p.
1-12
112
política de saúde “(...)‘para pobres’, com baixa capacidade resolutiva, cuja função seria
gerir sobrevidas” (Neves, 2009, p. 505).
No Projeto Qualis/PSF, optou-se pela criação de duas equipes volantes de saúde mental
acreditando que o modus operandis do PSF, bem como, o trânsito e as possibilidades de
conexões com os recursos da comunidade deveriam ser ativadas em primeiro lugar.
É que a trama tecida pela organização sanitária torna-se uma “esteira fundamental de
onde deveria emanar um processo que viesse a produzir saúde mental” (Lancetti, 2001,
pg. 18). Ao analisar as novidades importantes que o modo de trabalho (o como fazer)
proposto pelo PSF traz para a produção e cuidado em saúde, Lancetti ressalta o
deslocamento da dinâmica de trabalho centrada no médico para uma equipe de saúde
como núcleo profissional (composta por cinco agentes comunitários de saúde, dois
auxiliares de enfermagem, um enfermeiro e um médico responsáveis por mil e duzentas
famílias). O autor destaca, sobretudo, a existência de um membro da equipe (Agente
Comunitário de Saúde) ser membro da equipe e morador do mesmo território atendido,
o número limitado de famílias atendidas por cada equipe e a dinâmica de funcionamento
favorecendo o vínculo, a responsabilização, coletivização das ações de saúde e a
continuidade no cuidado pela Equipe de Referência.
A criação de um dispositivo articulado à rede tecida pela organização de saúde
possibilitou, de fato, um encontro intercessor entre Saúde Mental e Atenção Básica. De
algum modo podemos dizer que novamente as reformas se encontram construindo
ressonâncias significativas nos movimentos instituintes de oxigenação e sustentação do
SUS. Este encontro potencializa não somente a produção de saúde e construção de redes
de cuidado integral, como também, um processo de diferenciação no interior das
próprias práticas de saúde.
Para a saúde mental, a possibilidade de trabalhar efetivamente no território, tem
significado uma estratégia radical da desinstititucionalização. De acordo com Pinto
(2007) nesta interface Saúde Mental/PSF, tem se constatado uma imensa faixa de
desassistência. “São pessoas em cárcere privado, trancadas em cômodos, isoladas em
partes das casas ou terrenos, onde moram as famílias ou mesmo perambulando a esmo,
em más condições, pelas comunidades” (p.189). Muitos CAPS, ainda, mantêm o bojo
de suas ações centradas nos usuários-pacientes sendo as abordagens familiares e
113
comunitárias pontos cruciais a serem operados mais efetivamente. Muitas dessas
abordagens são dificultadas pelas próprias faltas concretas vividas pelas famílias em
suas comunidades, haja vista, a distância, preço de passagens, complicações de quem
acompanhe regularmente o usuário, irregularidades do transporte oferecido pelos
municípios quando da dificuldade de locomoção do usuário, etc. Dificuldades sobre as
quais precisamos nos interrogar, levando em consideração, que muitas delas, acabam
por interferir na adesão ao tratamento do próprio usuário.
Para a ESF tem sido a possibilidade de um novo modo de operar o trabalho em saúde,
uma inversão da gica de cuidados menos técnico e mais relacional tanto entre
equipe-usuário como entre equipe-equipe. As equipes da Estratégia de Saúde da Família
(ESF) são responsáveis pelo acompanhamento de um número definido de famílias,
localizadas em uma área geográfica delimitada, atuando com ações de promoção da
saúde, prevenção, recuperação, reabilitação de doenças e agravos mais freqüentes, e na
manutenção da saúde desta comunidade. Mediante a adstrição de clientela, as equipes
de Saúde da Família estabelecem vínculo com a população, possibilitando o
compromisso e a co-responsabilidade destes profissionais com os usuários e a
comunidade. Seu desafio é o de ampliar suas fronteiras de atuação visando uma maior
resolubilidade da atenção, onde a Saúde da Família é compreendida como a estratégia
principal para mudança deste modelo, que deverá sempre se integrar a todo o contexto
de reorganização do sistema de saúde. (Brasil, Departamento de Atenção Básica, 2004).
Neste sentido, a idéia de porta de entrada
61
visa ser não somente o primeiro acesso da
população ao serviço, mas também um dispositivo de responsabilização institucional e
61
As propostas veiculadas pelas posições Reformadoras tornam como estratégico em sua concepção, a
conceituação de uma rede de saúde, que funcionasse como porta de entrada dos serviços e estaria
organizada na base de uma hierarquia piramidal e tecnológica de assistência à saúde estabelecendo-se
como nível primário. Haja visto, o modelo lançado em 1982 pelo CONASP Conselho Consultivo da
Administração de Saúde Previdenciária cujas as diretrizes para a implantação da Atenção Primária
postulavam a hierarquização dos serviços em formato piramidal em função dos níveis crescentes de
complexidade tecnológica, a saber: a prevenção e os cuidados básicos em saúde para o nível primário
como porta de entrada ao sistema; a assistência especializada em ambulatórios para o nível secundário; e
as ões mais complexas na rede hospitalar para o nível terciário. A rede básica, entendida como o nível
primário encarregado por atos simples” e de “baixa” complexidade evidencia uma organização de um
novo modelo assistencial que possuía todas as prerrogativas para efetivar “uma rede básica que seja lugar
de uma verdadeira triagem dos problemas de saúde, comportando plenamente um eixo tecno-assistencial
do tipo queixa/procedimento’, ou variante, descaracterizando a articulação da dimensão individual e
coletiva dos processos saúde/doença, acabando por realizar uma ‘deslavada’ medicalização-
medicamentosa e produtora de procedimentos como fins em si mesmos” (Merhy, 2007, p.222).
114
sanitária no processo do cuidado com a saúde articulado a toda a rede de serviços.
(Brasil, 2003a)
A ênfase no cuidado em saúde no território pressupõe um entendimento deste não
apenas como espaço geofísico, mas, sobretudo como espaço cultural, relacional onde o
estabelecimento de vínculos e a criação de laços de compromisso e de co-
responsabilidade entre profissionais da saúde e comunidade são pontos fundamentais
para a ruptura da perspectiva tecnicista em saúde e o fortalecimento do envolvimento
dos diversos atores sociais no processo saúde-doença-cuidado. Algumas diretrizes da
ESF como, a longitudinalidade e o planejamento ascendente, são colocadas em curso,
no intuito de operar esse novo modelo de assistência à saúde. A longitudinalidade é
definida como o segmento do usuário e de sua família no tempo, com a formação de
vínculo, independente da presença de patologia. O planejamento ascendente é definido
como o delineamento de estratégias de intervenção nas famílias, de acordo com as
necessidades da comunidade que reside no território. (Brasil, 1997)
2.5 Saúde Mental e Atenção Básica: Que conversa é essa?
As novas diretrizes que ocorreram na área da saúde, nos últimos anos, até mesmo pela
recomendação da Organização Mundial de Saúde (OMS) têm convocado,
especialmente, os profissionais que atuam na atenção primária e outras áreas, a intervir
nos processos de reabilitação das pessoas em sofrimento quer sejam eles: por
sofrimento mental, pelo uso de drogas de modo suicida, por angústias, violências ou
graves opressões. (Lancetti; Amarante, 2006). Os processos de descentralização na
saúde ocorridos para formação de uma rede de cuidados com recursos assistenciais,
políticos, culturais e sociais, têm aproximado os usuários/famílias, de seus territórios.
Ao mesmo tempo, o trabalho efetivo com as pessoas em seu território tem enunciado
diversas formas de sofrimento, desassistência e processos que transformam as
diferenças em desigualdade e exclusão social. A incorporação das dimensões subjetiva e
social na prática clínica das equipes da atenção básica e o modus operandis de trabalho
da Estratégia de Saúde da Família faz com que os profissionais da Saúde da Família se
deparem cotidianamente com problemas de saúde mental.
115
Após o monitoramento realizado pelo Ministério da Saúde em 2001 e 2002 para
avaliação da Estratégia de Saúde da Família em todo o país, a discussão quanto a
elaboração de uma proposta de ão conjunta tendo como base a metodologia de
trabalho de equipes matriciais tornou-se premente, visto que, a realidade das equipes de
atenção básica demonstra que, cotidianamente, elas se deparam com problemas de
“saúde mental”: 56% das equipes de saúde da família referiram realizar “alguma ação
de saúde mental”.
62
Estimativas da Organização Mundial de Saúde (OMS, 2001),
revelam que 12% dos problemas da carga mundial de doenças correspondam a
problemas de saúde mental. Destes, o Ministério de Saúde avalia que, no Brasil, 3% da
população (5 milhões de pessoas) apresentem transtornos mentais severos e persistentes
necessitando de cuidados contínuos - específicos dos CAPS -, e 9% apresentem
transtornos mentais “leves” - pelos quais a Atenção Básica deve se responsabilizar. Para
o Ministério também dados de que 6 a 8% (embora existam estimativas ainda mais
elevadas) das pessoas com necessidade regular de tratamento apresentam transtornos
decorrentes do uso prejudicial de álcool e outras drogas, demanda esta que se insere
como parte das práticas de cunho preventivo e assistencial da rede básica. (Brasil,
2003b)
Trabalhando com a classificação feita pelo Ministério de Saúde, Figueiredo (2006)
dispõe como transtornos psíquicos ‘leves’: a prevalência de queixas somáticas e
‘nervosas’, transtornos de ansiedade, quadros depressivos relacionados a problemas
sociais e familiares decorrentes do uso e abuso de psicotrópicos. Todavia, questionamos
o que viria a ser essa divisão de transtornos metais em ‘leves e severos feita pelo
Ministério e as conseqüências desta divisão para o próprio processo de trabalho, na
medida em que entendemos os riscos de naturalizarmos o CAPS como local único e
específico para o tratamento de psicóticos.
Se o percentual levantado pelas pesquisas da OMS indicam que 56% das equipes de
saúde da família referiram realizar “alguma ação de saúde mental”, podemos aqui tomar
este índice não somente como um sensível dado estatístico, mas, sobretudo, como um
analisador da urgente necessidade de se operar na transversalidade. Pensarmos a
intercessão Saúde Mental e Atenção Básica no território é também a possibilidade de
62
Levantamento do departamento de Atenção Básica, apresentado em Seminário Internacional sobre
Saúde Mental na Atenção Primária – Opas/MS/Universidade de Harvard/UFRJ, abril de 2002.
116
operarmos mudanças nas relações no campo da saúde quando experimentamos a
inseparabilidade entre as práticas de cuidado e de gestão do cuidado aumentando os
graus de comunicação, de conectividade e de intercessão na organização dos processos
de trabalho.
Uma operação de transversalização de nossas práticas implica-nos necessariamente a
ultrapassar as fronteiras, muitas vezes rígidas, dos diferentes núcleos de saber/poder que
se ocupam da produção da vida fomentando em nosso dia a dia um processo contínuo
de contratação e pactuação que pode se efetivar a partir do aquecimento das redes e
fortalecimento dos coletivos garantindo o caráter questionador das verticalidades pelas
quais estamos, na saúde, sempre em risco de nos ver capturados. (Passos; Benevides de
Barros, 2004).
***
Na escrita do diário, parecia por vezes que esta ganhava vida própria.
Desajeitando o jeito de nossos entendimentos, parecia não querer
comparecer à velha caderneta como forma de representação daquilo que
é dito ou visto. E foi numa dessas incursões com o diário que a escrita
tropeça em si mesma e se reinventa. Nair, ACS do PSF de Nova
Holanda, narrava histórias das lidas no/com o território quando avista
Dona Gertrudes sentada na sala de recepção do posto. Animada pela
visita dessa senhora conta que com a ida das equipes de saúde mental
para o trabalho conjunto com o PSF muitas pessoas começaram a se
encontrar. Os encontros não pareciam ser de um eu consigo mesmo, mas
com acontecimentos que faziam disparar outros modos de andar a vida,
uma transformação de modos de existência. “Muitos, dizia ela, saem da
depressão, saem de casa. Sabe o que é isso? Vão à farmácia, à padaria,
vem à unidade (de saúde), estão vendo o mundo de outra forma, de
outro jeito”.
Dona Gertrudes compunha-se com os tempos intensivos das narrativas
de Nair quando a ACS lembra-se que esta senhora vivia dizendo que
estava doente. “Ela ia a todos os médicos de Macaé (oftalmo, otorrino,
gastro, etc...), pois achava que tinha todas as doenças do mundo.
117
Tomava todos os tipos de remédio que você puder imaginar, desde o
xarope até remédio controlado.”
A escrita tropeça escrevendo-se: tomava todos os tipos de conversa que
você puder imaginar”
“Com a vinda da saúde mental começamos a ter mais paciência com ela,
ela sempre foi receptiva, mas ficávamos irritados porque ela achava que
a gente não dava jeito, saía daqui para fazer terapia no Barracão
(ambulatório de Macaé). Hoje o hábito de dizer que está doente diminui
muito, parou de tomar aquele montão de remédios, vem aqui no posto,
faz seus tratamentos conosco, confia na gente, temos um vínculo”.
(Diário de Bordo, 06 de outubro de 2008)
***
O que os tropeços da escrita poderiam nos indicar? Tomar remédios? Tomar conversas?
Dona Gertrudes parecia abrir-se ao mundo construindo uma certa porosidade de
abertura através do remédio. Parecia ter sede de vida, de saúde quando sabia-se tão
doente (como ela mesma insistia em afirmar tantas vezes), mas parecia insistir em tomar
não só remédios, mas conversas quando produzia a si e ao mundo nos percursos ‘de ir a
todos os médicos de Macaé’. Parece-nos que a insistência pelos remédios, são a
insistência em estar com o outro, em relacionar-se, e quiçá, de cutucar um certo modo
de relação dicotômica e distanciada pela qual nos produzimos. Sua insistência em tomar
remédios tomando conversas, pedia um outro modo de relacionar-se. Não bastava dar-
lhe remédios. Parece-nos que o que se passa entre Saúde Mental e Atenção Básica,
passa-se nos modos pelos quais nos constituíamos e nos relacionamos. Demorar-se
naquilo que nos inquieta, ‘ter paciência’, pôde produzir uma outra escuta, não para
Dona Gertrudes, mas para a própria equipe em seus modos de fazer. Nesta construção
de vínculo e cuidado, há produção de mundo sem que aquela senhora precise ir a ‘todos
os lugares de Macaé’.
Se para as equipes de saúde mental a práxis operada no território evidencia-se por sua
complexidade e oposição à simplificação que faz funcionar um manicômio (Lancetti,
2006), percebíamos também que esta complexidade também se estendia às equipes da
Estratégia de Saúde da Família e seus modos de operar no/com o território. Nesta
118
direção, parece-nos ser com/na intercessão dos diversos processos que marcam os
modos de ser e de viver das pessoas que podemos construir uma prática de cuidado.
2.5.1 Apoio Matricial? NASF’S? Como Pensar a interface Saúde Mental e Atenção
Básica?
No campo da saúde, tem sido freqüente a organização de oficinas de planejamento,
treinamentos e cursos, grupos de sensibilização e de discussões de problemas em
ocasiões nas quais se almejem mudanças na realidade cotidiana dos serviços. Todavia,
como nos aponta Campos (1999) estes espaços têm se constituído de forma bastante
transitória, visto que, não se efetivam como um plano consistente que altere a lógica de
funcionamento das organizações quer seja em sua dimensão gerencial, quer seja em
seus aspectos assistenciais.
Entendendo, em consonância às contribuições do pensamento de Guattari (1981), que
tanto a subjetividade quanto a cultura de uma instituição são produzidos socialmente e
que resultam também da estrutura e do funcionamento e ordenação específica dos
processos de trabalho, Campos (1999), propõe o investimento também na estrutura
gerencial e assistencial dos serviços de saúde. No que pese a importância do uso regular
de alguns dispositivos de caráter episódico, para o autor, estes “são regras para uma boa
gerência”; mas há, sobretudo, a necessidade de se inventar novos arranjos para o
funcionamento cotidiano dos serviços de saúde que operem na construção de outra
cultura profissional, na produção de outras linhas de subjetivação; que rompam com as
práticas de trabalho fragmentado, centrados no corporativismo e na alienação do
trabalhador do resultado de seu trabalho.
Os conceitos de equipe de referência e de organização matricial do trabalho vêm sendo
discutidos e ampliados propondo a adoção de um novo sistema de referência entre
profissionais e usuários onde cada serviço de saúde seria organizado pela composição
de equipes básicas de referência, recortadas segundo o objetivo de cada unidade de
saúde.
Um novo arranjo que estimulasse, cotidianamente, a produção de novos
padrões de inter-relação entre equipe e usuários, ampliasse o compromisso
119
dos profissionais com a produção de saúde e quebrasse obstáculos
organizacionais à comunicação. (CAMPOS, 1999, p.398).
Para Campos e Domiti (2007), a Equipe de Referência constitui-se como um rearranjo
organizacional que busca reforçar o poder de gestão da equipe interdisciplinar
deslocando-o das profissões e corporações de especialistas. A construção de um
funcionamento dialógico e integrado da equipe de referência pressupõe tomá-la como
um espaço coletivo de discussão e análise dos processos de gestão e atenção construídos
na prática cotidiana dos serviços. A gestão deste trabalho interdisciplinar tem como
dispositivo operacional a definição de responsabilidade sanitária valendo-se da
adscrição de clientela de modo que se ampliem as possibilidades de construção de
vínculo e de cuidado continuado mantida por uma relação longitudinal no tempo com
esse conjunto de usuários adscritos.
O termo, Apoio Matricial, incorporado pelo Ministério da Saúde (Brasil, 2003b) como
estratégia de gestão para a construção de uma rede ampla de cuidados em saúde mental,
surge em Campinas (SP) como um instrumento que se insere em um conjunto de
estratégias fundamentais no processo de construção do programa Paidéia de Saúde da
Família
63
e da transformação da assistência em saúde mental, em especial, na atenção
básica.
Segundo Campos e Domiti (2007), o Apoio Matricial da Saúde Mental opera como uma
metodologia de trabalho complementar à organização dos profissionais em Equipes de
Referência (PSF). Neste sentido, o arranjo matricial constitui-se como ferramenta
especial para a consolidação de práticas em saúde que contemplem a complexidade da
vida que se passa no território. Pretende operar uma desconstrução na lógica do
encaminhamento, da especialização e do trabalho fragmentado; destinando-se a criação
de uma rede de atenção integrada, onde os projetos terapêuticos dos usuários sejam
construídos de forma singular e acompanhados conjuntamente.
63
O nome Paidéia tem sua noção originária da Grécia Clássica e faz referência à abordagem ampliada das
questões de saúde. Para além do biológico, a saúde é entendida como fruto da sociabilidade, da
afetividade, da organização da vida cotidiana, das relações com o território e com o meio ambiente. Este
programa é uma adaptação do PSF do MS ajustado ao contexto sanitário de Campinas e tem como
pressuposto que a produção de saúde se opera também com a intervenção nessas dimensões. (Campos,
2003).
120
A responsabilização compartilhada dos casos pelas equipes de Saúde da Família
(Referência) e Equipes de Saúde Mental (Matriciamento) implica sempre na construção
de um projeto terapêutico integrado, todavia, Campos e Domiti (2007) ressaltam que
esta articulação pode ser desenvolvida em três planos fundamentais, a saber:
Atendimentos e intervenções conjuntas (em atividades como: visitas
domiciliares, interconsultas, oficinas);
Atendimentos e intervenções especializadas feitas pelo apoiador (mantendo
sempre contato com a equipe de referência). Esta por sua vez, não se
descomprometeria, procurando redefinir seu plano de cuidados ao paciente, à
família ou à comunidade complementar e compatível ao cuidado oferecido pelo
apoiador; e
Troca de conhecimento e de orientações na avaliação do caso entre equipe de
referência e apoiadores (em capacitações, reuniões, grupos de discussão),
mantendo o diálogo sobre alterações do caso e reorientações de condutas em
função dos impasses e dificuldades vivenciados.
É importante salientar que dados da OMS e do Ministério da Saúde estimam que quase
80% dos usuários encaminhados aos profissionais de saúde mental não trazem, a priori,
uma demanda específica que justifique a presença destes especialistas. Segundo Braga
Campos e Nascimento (2007), a observação de várias experiências em curso nos mostra
que não é pequena a porcentagem de usuários que, embora encaminhados, não
conseguem ter acesso ao atendimento especializado e por vezes, quando atendidos, a
espera é tão longa que acaba por comprometer a ‘adesão’ do usuário ao atendimento.
No que pese a importância do olhar e tecnologia do especialista em saúde mental,
percebe-se que determinadas necessidades expressas por parte significativa da
população encaminhada não podem ser satisfeitas com base apenas em tecnologias
utilizadas por essa ou aquela especialidade. Em muitos casos, o empreendimento de
longos processos psicoterápicos e a administração de psicotrópicos são insuficientes
como únicas respostas. O melhor acompanhamento de muitas dessas demandas se faz
na integralidade e esforços conjuntos dos profissionais envolvidos, mobilizando outros
dispositivos da rede, recursos da própria comunidade (materiais e subjetivos) a serem
121
pactuados com o usuário ou rede social em questão. (Figueiredo, 2006; Braga Campos e
Nascimento, 2007)
Baseando-se nesta compreensão, o Ministério da Saúde (Brasil, 2004) tem ‘estimulado’
a inserção da saúde mental na rede básica, através de redes de cuidado e da atuação
transversal com outras políticas. Propõe, neste sentido, a ‘ampliação da clínica’ das
equipes de Saúde da Família, sendo necessária às mesmas, a incorporação de outras
dimensões dos usuários além de sua faceta biológica. A construção de uma relação
longitudinal no tempo entre a Equipe de Referência e usuário mediante a definição da
responsabilidade sanitária com a adscrição de clientela é apontada por Lancetti (2001)
como um precioso do programa de Saúde da Família. O estabelecimento de vínculo
continuado, mesmo em condições onde o paciente necessite ser referenciado a outro
serviço ou quando a própria equipe necessite de suporte, mantém a responsabilidade de
seu cuidado na Equipe de Referência. Um modo de operar a atenção que permite
contrapor-se aos mecanismos tradicionais de referência e contra-referência que tendem
à descontinuidade e a fragmentação do cuidado.
Mesmo quando se indica uma internação, uma cirurgia ou tratamento de
maior complexidade, o paciente continua a ser da equipe, enquanto morar no
mesmo bairro. O vínculo e a continuidade exigem lidar com o sofrimento
humano, processo para o qual os técnicos não estão preparados (LANCETTI,
2001, p. 39).
Todavia, é importante realizarmos algumas discussões tanto sobre quais têm sido os
estímulos do Ministério da Saúde para que essa inserção da saúde mental na atenção
básica de fato aconteça, bem como, do que temos proposto como ampliação da clínica.
É que embora houvesse uma preocupação com a necessidade de inserção da saúde
mental na atenção básica, de fato, não existia nenhum tipo de repasse financeiro que
garantisse a implementação dessas propostas. Trabalhadores da Saúde Mental do
município de Macaé conseguiram garantir a implantação desta proposta de
matriciamento desde 2002, com recursos do próprio município, todavia, não podemos
dizer que esta prática se desenvolvia amplamente em outros lugares do país, visto que,
não havia nenhuma ajuda financeira do Ministério da Saúde.
122
A aprovação da Política Nacional de Atenção Básica na forma da portaria 648/GM
de 28 de março de 2006 (Brasil, 2006), estabelece a revisão de diretrizes e normas para
a organização da Atenção Básica para a Estratégia Saúde da Família (ESF) e o
Programa Agentes Comunitários de Saúde (PACS). Todavia é somente em 2008 com a
Portaria
N°154
64
que o estabelecimento formal de uma política de financiamento
com a criação dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família/NASF (Brasil, 2008). Como
modo de ampliar a abrangência e o escopo das ações de atenção básica melhorando a
qualidade e a resolutividade da atenção à saúde, o NASF constitui-se por equipes
compostas por profissionais de diferentes áreas de conhecimento
65
que atuarão em
parceria com os profissionais das equipes de Saúde da Família. Neste sentido, é
reafirmado o apoio às equipes de referência dos PSF’S/Unidades Básicas nas quais o
NASF esteja vinculado, ressaltando a direção de um trabalho e responsabilização
compartilhados que atente para uma revisão da prática do encaminhamento com base
nos processos de referência e contra-referência, ampliando-a para um processo de
acompanhamento longitudinal de responsabilidade da equipe de Atenção Básica/Saúde
da Família.
Ressaltamos que a constituição de um modelo assistencial de saúde, que subverta a
lógica e paradigma biomédico, tanto por parte da Atenção sica, com a Estratégia de
Saúde da Família, quanto por parte da Saúde Mental (inserida com essa portaria nos
NASF’S) deve ser interrogada continuamente, no intuito de que a intenção de mudança
não se resuma a expansão de “ambulatórios melhorados”, riscos concernentes tanto às
64
Nesta portaria os NASF’S foram classificados em duas modalidades, sendo vedada a implantação
concomitante das duas modalidades em um mesmo município.
O NASF 1 com financiamento de R$ 20
mil a cada mês, será composto, no mínimo, por cinco profissionais de nível superior como médicos de
diversas especialidades, Assistentes Sociais, profissionais de Educação Física, Farmacêuticos,
Fisioterapeutas, Fonoaudiólogos, Nutricionistas, Psicólogos e Terapeutas Ocupacionais, que deverão
realizar suas atividades com o mínimo 8 e o máximo 20 equipes de saúde da família.
Poderão implantar o NASF 2 somente os municípios que tenham densidade populacional abaixo de dez
habitantes por metro quadrado. Ele será composto por pelo menos três profissionais de nível superior, que
podem ser assistente social, professor de educação física, farmacêutico, fisioterapeuta, fonoaudiólogo,
nutricionista, psicólogo e terapeuta ocupacional. Cada NASF 2 deve realizar suas atividades com no
mínimo três equipes de saúde da família seu financiamento será de R$ 6 mil a cada mês, repassados
diretamente do Fundo Nacional de Saúde aos fundos municipais de saúde.
65
Os núcleos multiprofissionais são compostos por no mínimo cinco profissionais, definidos pelos
gestores municipais, dentre as seguintes ocupações: Médico Acupunturista, Assistente Social, Professor
de Educação Física, Farmacêutico, Fisioterapeuta, Fonoaudiólogo, Médico Ginecologista, Médico
Homeopata, Nutricionista, Médico Pediatra, Psicólogo, Médico Psiquiatra e Terapeuta Ocupacional.
123
práticas de saúde mental como a própria proposta do PSF. Como nos sinaliza Silva
Júnior (2006) “... sob o nome de programa de saúde da família encontram-se desde as
piores práticas de pronto atendimento simplificado, passando por atendimento médico
tradicional, até experiências realmente inovadoras na assistência”. (p.64)
Como então pensarmos a produção desta interface Saúde Mental e Atenção Básica?
Como construí-la aliançando-nos com as forças dos movimentos instituintes produzidos
neste encontro? De algum modo, acreditamos que mais do que a produção de respostas
para nossas questões há que se estar atento para os novos problemas que temos
construído em nossa prática cotidiana. Nesta direção, acreditamos que a análise das
experiências de ‘expansão’ da saúde mental nos Estados Unidos da América (E.U.A) na
década de 1960 e, por conseguinte, para a análise do papel dos ‘desviantes’ neste país,
permite-nos tirar algumas indicações tanto para os sentidos que queremos afirmar
com/na intercessão saúde mental e atenção básica, quanto para a reestruturação do
modelo assistencial viabilizado pela Estratégia de Saúde da Família.
2.5.2 Arando em outros solos – contribuições basaglianas frente à experiência
norte-americana
De acordo com Amarante (1995b) um dos argumentos comumente utilizados por
setores
66
que se mostram contrários ao processo da reforma psiquiátrica no Brasil,
utilizam a experiência dos E.U.A para dizer sobre as tentativas e fracassos da reforma
em saúde mental.
Passando ao largo da experiência americana, a Reforma Psiquiátrica Brasileira se
inspira claramente na crítica radical ao paradigma psiquiátrico clássico na tradição
66
Dos setores que resistem às reformas no campo da saúde mental, o autor evidencia grupos de
empresários ligados ao intenso processo de privatização da assistência psiquiátrica no Brasil consolidada
a partir do Plano de Pronta Ação do Ministro Leonel Miranda, que servia não somente ao
esquadrinhamento do espaço público, mas à constituição de uma verdadeira ‘indústria da loucura’.
Amarante ressalta o financiamento por parte destes grupos de uma entidade de familiares para se oporem
às reformas ao deturparem aterradoramente os princípios da reforma. Neste sentido, o autor também
destaca parte do setor acadêmico que se baseando no paradigma da psiquiatria clássica constroem e
veiculam no campo da reformas, um falso argumento às idéias de Basaglia. Contrapondo-se a esses
setores, sabemos das influências do movimento da psiquiatria democrática italiana, tendo como expoente
Franco Basaglia, na constituição do movimento da Reforma Psiquiátrica no Brasil, e que em muito,
significou o questionamento e ruptura com todo o processo de objetivação do homem.
Ver em: Amarante, P. Novos Sujeitos, Novos Direitos: O Debate sobre a Reforma Psiquiátrica no
Brasil. Cad.Saúde Públ.,Rio de Janeiro,11 (3):491-494,jul/set,1995.
124
iniciada por Franco Basaglia e continuada pelo movimento da psiquiatria democrática
italiana. Afirmando a urgência de revisão das relações, a partir das quais o saber médico
funda sua práxis, a tradição Basagliana vem matizada com cores múltiplas; traz em seu
interior a necessidade de uma análise histórico-crítica a respeito da sociedade e da
forma como esta se relaciona com o sofrimento e a diferença. É, antes de tudo, um
movimento político: traz a polis e a organização das relações econômicas e sociais ao
lugar da centralidade e atribui aos movimentos sociais um lugar nuclear, como atores
sociais concretos, em um confronto com o cenário institucional onde o que está em jogo
é o questionamento da construção de nossas práticas e de nossas relações e no quanto
estas perpetuam ou reinventam outras práxis.
A experiência de Trieste, na Itália, proposta por Basaglia como um empreendimento de
demolição do aparato manicomial, marca decisivamente uma crítica à natureza da
instituição psiquiátrica e a inviabilidade de se operar em uma gica de reforma que se
pretendesse apenas uma mera reorganização técnica, humanizadora, administrativa ou
política. Com esta experiência, Basaglia propunha não somente a extinção dos
tratamentos violentos e destruição dos muros manicomiais como também a constituição
de novos espaços e formas de lidar com a loucura.
O modelo de comunidade terapêutica idealizada por Maxwell Jones, na Inglaterra
é utilizado como ponto de referência para os primeiros passos da instauração de uma
crise interior ao dispositivo institucional. Crise que passava pela negação de quaisquer
classificações nosográficas que se mostrassem ideológicas quanto à condição real do
paciente. O nível de degradação, objetificação e aniquilação total que ele apresenta não
são a expressão pura de um estado mórbido, mas, sobretudo, o produto da ão
destrutiva de uma instituição cuja finalidade baseou-se em salvaguardar os sãos, da
loucura.
É importante ressaltarmos que Basaglia recusa-se a propor a Comunidade Terapêutica
como modelo institucional que seria vivenciado como uma proposta de uma nova
técnica resolutiva de conflitos ou ato reparatório. A partir dessa experiência, torna-se
possível refletir sobre os riscos inerentes ao modelo de comunidade terapêutica. Este
caráter ainda terapêutico matizava e deixava intacto um dos elementos constituintes do
dispositivo psiquiátrico: a relação terapêutica médico/paciente, lugar instituinte das
125
relações de objeto e saber/poder. Este espaço produzia um mundo ainda à parte das
relações sociais complexas, ainda promovia uma redução da loucura à objeto de
intervenção e visibilidade exclusiva. A gestão comunitária que procurava apenas
humanizar o manicômio não colocava em discussão as relações de tutela e custódia e
nem questionava o fundamento de periculosidade social contido no saber psiquiátrico.
Em seu texto “Carta de Nova York O doente artificial Basaglia (2005) analisa a
experiência norte americana de construção de pequenas unidades psiquiátricas como
projeto de reforma no campo da saúde mental. Ressalta que o nascimento dessas
unidades não se fazem como reversão do modelo psiquiátrico clássico adotado pelas
velhas instituições manicomiais, mas se traduzem como uma expressão direta de uma
nova legislação que pretende resolver tecnicamente as contradições da realidade sobre a
qual opera. Agindo de modo complementar às instituições da violência (uma vez que
estas ainda continuam a existir) e mostrando-se, aparentemente, mais abertas e não
discriminatórias buscam a readaptação cada vez mais de uma gama de ‘desviantes’ que
o próprio sistema sócio econômico produz. Examinando o fenômeno dos desvios nos
E.U.A, Basaglia ressalta o quanto este ‘problema’ racionalizado num terreno
multidisciplinar , vem apresentando-se como tema pertinente à sociologia em função de
uma necessidade de se garantir a totalização do controle. As novas organizações
psiquiátricas dispõem de uma capilaridade multidisciplinar conseguindo criar uma rede
de controle técnico-social muito mais penetrante e sutil, cuja barreira entre norma e
desvio torna-se cada vez mais frágil e discriminatória. Cria-se uma nova categoria de
doentes, restringindo o conceito de norma e englobando como patologia os ‘desvios’, as
‘marginalidades’ e as ‘desadaptações’. A ação das unidades psiquiátricas, em um
contexto, no qual continua a coexistir de forma ativa o Hospital Psiquiátrico, como o
lugar para onde devem ser enviados os doentes definidos como crônicos ou
‘transtornados’, traduz-se por um caráter preventivo que, neste caso, serve muito mais
para dilatar o campo da doença do que para reduzi-lo. De algum modo, percebemos com
as discussões apontadas por Basaglia, que a lei Kennedy de 1963 que instituía a criação
das unidades psiquiátricas nos E.U.A reconhecia o problema de saúde mental como
problema eminentemente social.
Se, na sociedade afluente, tende-se a romper o rígido vínculo entre a
ideologia médica e a lei, para criar um novo tipo de interdisciplinaridade com
126
outras ciências humanas, a finalidade desse deslocamento não é a melhora
das condições de vida do homem, mas a descoberta de um novo tipo de
produtividade e de eficiência que consegue explorar o ineficiente e o
improdutivo ou encontrar um novo papel para eles. (BASAGLIA, 2005. p.
199-200)
O alargamento do conceito de doença usado para justificar as contradições do próprio
sistema capitalista, torna-se evidente dentro da lógica do capital no momento em que se
criam novos serviços encarregados de tratá-las. Como qualquer instituição inserida no
ciclo produtivo, os novos serviços orientam-se o para reduzir o fenômeno para o qual
foram criados, mas para produzi-lo em consonância às exigências de controle do capital.
Neste sentido devemos estar atentos a uma estreita relação feita entre clínica e política
quando percebemos que a ‘ampliação da clínica’ insere-se como alargamento dos
limites de norma definidos pela organização político-social. Desse modo,
compreendemos neste caso o quanto a definição de doença serviu para manter intactos
os valores da norma postos em discussão. Seguimos com as interrogações de Basaglia
(2005, p.202) “Como pretender estar cuidando de quem sai da norma, se nossa principal
preocupação é a adaptação à norma e a manutenção dos seus limites?” Para o autor:
O sentido do nosso trabalho pode continuar a mover-se numa dimensão
negativa que é, em si, destruição e ao mesmo tempo superação. Destruição e
superação que ultrapassem o sistema coercitivo-carcerário das instituições
psiquiátricas, o sistema ideológico da psiquiatria enquanto ciência, para
entrar no terreno da violência e da exclusão do sistema sócio-político,
recusando-se a deixar-se instrumentalizar por aquilo que se deseja negar. (...)
O desviante como problema real (que evidencia a face perdedora do capital,
enquanto rejeição aos seus valores ou expressão de sua falência) torna-se o
problema do desviante como uma das faces do capitalismo vencedor, ao ser
assumido como problema técnico, para o qual estão prontas soluções técnicas
apropriadas (...) (BASAGLIA, 2005, p. 130; 204-205)
Basaglia nos aponta outros aspectos da vida norte americana - como o problema da
pobreza e dos negros
67
- evidenciando o quanto o ‘fenômeno dos desviantes’ nos E.U.A.
67
A criação dos Community Mental Health Centers confirmam que a introdução de uma perspectiva
‘social’ serve apenas para formular uma racionalização ‘interdisciplinar’ para um fenômeno de origem
socioeconômica. Os negros, os porto-riquenhos, judeus e italianos assistidos pelo Welfare por estarem às
margens da produção, são privados de um projeto que vá além da sobrevivência assegurada pelas
127
é transformado de um problema real para uma dimensão ideológica. Para o autor, a
difusão e explicitação dessas questões como ‘problemas a serem conhecidos e
enfrentados’ faz com que percam seu caráter ameaçador à dinâmica do capital, para
tornarem-se uma ideologia pela qual se buscam soluções. Com a norma aqui definida
em termos de produtividade, assim também se faz a definição de desvio.
Para Basaglia, o negro, o doente, o desviante, o pobre são faces diversas de um mesmo
problema, suas semelhanças se traduzem pela não participação na produção, isto é,
pessoas que de algum modo perderam ou nunca tiveram uma força contratual face às
fontes produtoras. A produção de modos de ‘sobrevida’ neste sistema aponta para uma
prática de ‘cuidado’ organizada e definida pela doença, que aqui, é entendida como todo
e qualquer desvio da norma, passível de ser tratado.
As influências do movimento da psiquiatria democrática italiana, no Brasil, às lutas
no campo das reformas em saúde mental, um outro tom. Uma tensão recíproca que
colocasse em jogo os papéis cristalizados foi a aposta de trabalho e invenção em uma
unidade do Hospital Psiquiátrico de Gorizia à época de Basaglia. E seria sobre essa
tensão que a organização interna começaria a se desenvolver tornando-se ela mesma um
ato terapêutico. Ao questionar todo o processo de objetivação do homem, questionamos
junto com Basaglia, os modos de cuidado que temos produzido com/na vida. O que em
nós quer cuidar? Com que forças nos aliamos nos movimentos de afirmação da vida?
Entender que os processos relacionais se constituem como centro da atenção no
processo do cuidado, e não mais o “diagnóstico”, levou as experiências da
desinstitucionalização em Trieste a esse desconstruir/construindo relações (doença e
ciência), à autogestão do processo de trabalho (da reabilitação, do tempo, do cotidiano
de um serviço e da vida) pela equipe de cuidadores e dos cuidados. Assim produziam-se
novas subjetividades
68
com a aposta em um sujeito capaz de fazer andar a própria vida.
organizações assistenciais. Esses Centros de Saúde Mental funcionam como controle de uma faixa
marginal produzida pelas contradições e desigualdades do próprio sistema capitalista que não consegue
absorvê-las em instituições produtivas. O aumento progressivo da população em zonas subdesenvolvidas
entra em conflito com “os desígnios imperativos dos grupos que, para sobreviver, devem manter regimes
burgueses-latifundiários que impedem o desenvolvimento e a industrialização” (BASAGLIA, 2005, p.
211).
68
A noção de subjetividade é trabalhada por Guattari (1989) como um conjunto de componentes que são
tanto da ordem extra-individual (sistemas econômicos, sociais, tecnológicos, ecológicos etc.), quanto da
128
No que pese a importância de outras propostas de reforma
69
que surgiram ao longo do
século XX, a crítica italiana opera uma ruptura radical às diversas experiências que
procuravam recuperar as funções de tratamento e cuidado no manicômio. Para além de
pensar a desinstitucionalização da psiquiatria enquanto saber normativo e totalizante,
Basaglia passa a pensar os funcionamentos do social e do coletivo no problema dos
internos dos hospitais psiquiátricos
70
. Sua preocupação, ao versar sobre o papel dos
trabalhadores de saúde mental após aprovação da lei 180
71
, focava-se na constituição de
práticas que assumam riscos, que vivam na experiência o não saber, sem incorrer
precipitadamente a provisões que dessem respostas aos distúrbios psíquicos.
Quais seriam então nossas questões? O que estaríamos colocando em jogo nesta luta?
Como manejar com o não saber, apostando na invenção e na construção de práticas que
não nos aprisionem ao terreno da normatização? Como não nos apartarmos de tudo
aquilo que podemos na experiência e no encontro com o outro?
De algum modo, fazemos uso das palavras de Rotelli (1990): para pensar que
O projeto de desisntitucionalização coincidia com a reconstrução da
complexidade do objeto que as antigas instituições haviam simplificado (e
não foi por acaso que tiveram que usar de violência para consegui-lo). Mas se
o objeto muda, se as antigas instituições são demolidas, as novas instituições
devem estar à altura do objeto, que não é mais um objeto em equilíbrio, mas
está, por definição (a existência-sofrimento de um corpo em relação com o
ordem infrapessoal (sistemas perceptivos, de afetos, de desejo, orgânicos etc.). Para o autor, a
identificação da subjetividade à individualidade tem sido uma das estratégias de se reduzir os
componentes múltiplos e heterogêneos dos modos possíveis de subjetivação a apenas uma de suas
possibilidades a representação universalista e unificada do indivíduo. Ver em GUATTARI, F. As Três
Ecologias. Campinas: Papirus, 1989.
69
De extrema importância uma vez que as iniciativas reformadoras que prosseguiram ao longo do século
XX, pelas propostas de Comunidade Terapêutica e as conhecidas como Preventivistas ainda mantinham
como eixo norteador de suas ações o modelo hospitalocêntrico, reforçando a existência do hospital como
lugar privilegiado de tratamento.
70
nos textos de Basaglia a afirmativa que o poder normativo exercido pela psiquiatria não era
exclusivo da prática de “cuidados aos doentes mentais”. Esse poder era encontrado nas fábricas, escolas,
universidades, prisão. Tais instituições ele denominou instituições da violência.
71
Lei que determinava o fim dos manicômios em todo o território italiano.
129
corpo social), em estado de não equilíbrio: esta é a base da instituição
inventada (e nunca dada). (ROTELLI, 1990, p.90)
Parece-nos que a radicalidade deste projeto toma força nos movimentos instituintes
operados nas experiências de constituição do SUS tanto em Santos quanto no Projeto
Qualis/PSF, mas, sobretudo, nos enseja a pensar nos modos como temos tomado as
forças destes movimentos reinventivos na construção de práticas de cuidado na interface
Saúde Mental e Atenção Básica.
130
CAPÍTULO III
O cuidado como constituição de um Ethos
A construção de nosso percurso de viagem-pesquisa, até o momento, permite-nos
interrogar sobre as estratégias que podemos inventar diante dos perigos de totalização e
individualização. A experimentação de práticas que possibilitem fazer aparecer as
visibilidades de experiências de cuidado que apostam na dimensão coletiva e pública
das políticas de saúde, requer que avancemos na discussão do que temos chamado de
práticas de cuidado e, neste sentido, problematizarmos, em nosso contemporâneo, a
relação entre produção de saúde, produção de cuidado e produção de subjetividade.
Ao propor uma análise da produção do sujeito a partir do saber e do poder, Foucault,
percebe a necessidade de desenvolver, o que podemos chamar de uma terceira dimensão
de seus estudos, que é a da subjetividade. Essa necessidade, talvez resida no que
Deleuze (2005) apontará em seu estudo sobre o autor, em uma certa sensação de
sufocamento, de um impasse que o próprio poder nos coloca ‘tanto em nossa vida
quanto em nosso pensamento’ (p.103) quando nos debruçamos no estudo das relações
de poder em exercício nas nossas sociedades contemporâneas e em nossas vidas de
modo geral. Este impasse é percebido por Foucault ao apontar para o complexo
funcionamento capitalista na passagem da técnica de poder disciplinar para a de
regulamentação (controle), onde o poder se exerce na vida e é a própria vida que se quer
atingir - como vimos anteriormente neste trabalho. Diante desse avanço do poder
sobre a vida, nos perguntamos junto com o autor: Não haveria nada para além do poder?
Como apostar em práticas de resistência quando o poder aparece como exercício de
forças, que cria, incita, normatiza e, fundamentalmente produz formas de vida? Como
afirmar a vida a partir de sua potência de resistência?
Foucault nos indica uma direção importante para pensar uma saída deste impasse ao
estudar o pensamento grego. Neste estudo, o autor observa uma outra possibilidade de
relação que não reside simplesmente na ação sobre o outro, mas em uma ação sobre si
mesmo. Ao analisar as relações de poder, Foucault percebe que as leis, normas ou
estruturas de governo não são os fatores primordiais que regulam as relações entre os
homens. O fenômeno que chama sua atenção e que se configura como o mais
131
importante e determinante para uma acentuação da reflexão moral concerne às
mudanças que se pode observar nas condições de exercício do poder
72
. Foucault destaca
mudanças quanto ao aumento do número de senadores e cavaleiros no decorrer dos
primeiros séculos para governar como e quando convém frente às necessidades de uma
administração complexa e extensa; bem como mudanças quanto ao papel que estes são
levados a desempenhar e o lugar que ocupam no jogo político.
Às novas formas de jogo político e às dificuldades do próprio sujeito se
pensar como sujeito de atividade entre origem e funções, poderes e
obrigações, encargos e direitos, prerrogativas e subordinações, foi possível
responder com uma intensificação de todas as marcas reconhecíveis de status
ou pela procura de uma relação adequada consigo mesmo. (FOUCAULT,
2007, p.92)
Ao perceber que as novas condições da vida política modificavam as relações entre
status, encargos, poderes e deveres, Foucault atenta para dois fenômenos que puderam
se produzir neste período. Se por um lado nota-se uma acentuação de tudo aquilo que
permite ao indivíduo fixar sua identidade
73
, o que chama a atenção do autor é a
existência também de uma atitude que consiste, ao contrário, na intensificação e
desenvolvimento de uma relação consigo sem que por isso, e de modo necessário, os
valores do individualismo ou da vida privada encontrem-se reforçados.
(...) fixar o que se é, numa pura relação consigo: trata-se, então de constituir-
se e reconhecer-se enquanto sujeito de suas próprias ações, não através de
um sistema de signos marcando poder sobre os outros, mas através de uma
72
Foucault questiona uma certa análise sobre o declínio das cidades-Estado a partir do século III a. C.
como entidades autônomas e da organização das monarquias helenísticas e, em seguida, do Império
romano que acredite haver neste período uma redução ou anulação das atividades políticas pelos efeitos
de um imperialismo centralizado. Para o autor, convém pensar muito mais na organização de um espaço
complexo (mais vasto, mais descontínuo e mais flexível do que poderia ser o espaço das pequenas
cidades-Estado). “É um espaço onde os focos de poder são múltiplos, onde as atividades, as tensões, os
conflitos são numerosos, onde eles se desenvolvem de acordo com várias dimensões, e onde os
equilíbrios são obtidos por meio de transações variadas” (FOUCAULT, 2007, p.89). Ressalta que as
monarquias helenísticas procuraram muito menos reorganizar os poderes locais freando-os ou até mesmo
suprimindo-os, e mais apoiar-se sobre eles como intermediários para recolhimento de tributos e impostos
extraordinários necessários à manutenção dos exércitos.
73
Destaque para uma identidade fixada ao lado do próprio status e dos elementos que o manifestam de
forma mais visível como comportamentos a partir dos quais o sujeito se afirmaria na superioridade
manifestada sobre os outros. Procuravam adequar-se o tanto quanto fosse possível a “(...) todo um
conjunto de signos e de marcas que dizem respeito à atitude corporal, ao vestuário e ao habitat, aos gestos
de generosidade e de magnificência, às condutas de despesa, etc.” (FOUCAULT, 2007, p.92)
132
relação tanto quanto possível independente do status e de suas formas
exteriores, que ela se realiza na soberania que se exerce sobre si próprio.
(FOUCAULT, 2007, p.92)
Há nos gregos, uma preocupação com um cuidado de si, com um modo de trabalhar a si
mesmo, de se conduzir, como condição para governar os outros. Torna-se importante,
uma constituição do sujeito como sujeito moral. O que está em questão nesta
constituição de si como sujeito moral não são os códigos e regras que agem como
referência para determinadas condutas. Embora, estes não sejam negados o que se faz
fundamental são as diferentes maneiras para aquele que age de operar com esses
códigos, de criar regras facultativas, o que faz com que se constitua sujeito moral de
uma ação. “Moral no sentido amplo comporta os dois aspectos que acabo de indicar, ou
seja, o dos códigos de comportamento e o das formas de subjetivação” (Foucault, 1984,
p.29).
Os dois primeiros séculos da época imperial (séc. I e II de nossa era) são considerados
como a idade de ouro para o desenvolvimento e ápice do que Foucault chamou de uma
‘cultura de si’, na qual foram intensificadas as relações de si para consigo, tendo no
princípio do cuidado de si uma espécie de condição ética para constituir-se como um
bom governante. “Constituir-se como sujeito que governa implica que tenha se
constituído como sujeito que cuida de si” (Foucault, 1984, p.278).
Os gregos orientavam-se, pois em sua reflexão moral, não para construir um quadro de
prescrições, uma codificação dos atos, mas para constituir uma estética da existência.
Torna-se fundamental para a constituição das subjetividades uma dimensão ética que
aqui comparece e que implica os humanos em relações reflexivas de cada um consigo
mesmo. Afirmar a importância desta dimensão ética no que concerne à constituição
subjetiva dos indivíduos nos permite apontar uma outra qualidade de cuidado onde o
cuidado de si, surge a partir do cuidado do outro. Há, portanto, uma relação consigo que
começa a derivar-se da relação com os outros bem como uma constituição de si que não
está submetida a um código moral como regra de saber. César (2008) destaca a
importância desta derivação ao colocar que é a através dela que podemos afirmar uma
‘independência da relação da força consigo (...). o que podemos chamar de uma
autonomia da força’(p.48).
133
Interessava a Foucault, no estudo da subjetividade, problematizar as práticas pelas quais
os homens foram levados ‘a prestar atenção a eles próprios, a se decifrar’(1984, p.11).
Para tanto, empreenderá, a partir de uma ‘ontologia histórica
das relações humanas com
a moral, um olhar para esta outra qualidade de cuidado que aparece na antiguidade e que
nos possibilita pensar uma ontologia crítica de nós mesmos como possibilidade de
reinvenção de nós mesmos como sujeitos éticos. Compreendemos nos gregos a
independência da relação da força consigo quando se percebe que não basta que uma
força exerça ação ou sofra a ação de outra força, mas que ela atue sobre si mesma. A
força curva-se sobre si mesma. Deleuze nos fala desta curvatura como uma espécie de
dobra da linha.
Os gregos inventam o modo de existência estético. É isso a subjetivação: dar
uma curvatura à linha, fazer com que ela retorne a si mesma, ou que a força
afete a si mesma. Teremos então os meios de viver o que de outra maneira
seria invivível. O que Foucault diz é que podemos evitar a morte e a
loucura se fizermos da existência um ‘modo’, uma arte’. (DELEUZE, 1996,
p.141)
Nos gregos percebemos que é na relação consigo orientada pelo preceito cuidado de si,
que os indivíduos são impelidos a realizar um trabalho sobre si mesmo de modo a se
transformar. É na inflexão da linha de força sobre ela mesma que se produz um si.
Parece ser esta a afirmação que Foucault traz para a superação do impasse vivido: a de
que os processos de subjetivação se produzem na ação da força sobre si mesma. De
algum modo, Foucault parece encontrar fôlego nesta afirmação quando ainda sentia-se
sufocado ao se debruçar sobre o estudo das relações de poder em exercício nas nossas
sociedades contemporâneas e em nossas vidas. Esta sensação de asfixia é percebida por
Deleuze (2005) nos estudos de Foucault, quando este autor nos aponta para o complexo
funcionamento capitalista na passagem da técnica de poder disciplinar para a de
regulamentação e o exercício do poder sobre a vida. Diante deste avanço do poder sobre
a vida, e numa espécie de impasse, Foucault se perguntaria: Não haveria nada para além
do poder?
Ao propor uma análise da produção do sujeito a partir do saber e do poder, Foucault
experimenta neste impasse, a necessidade de desenvolver uma terceira dimensão de seus
134
estudos: a da subjetividade. De algum modo, com o estudo dos gregos, um novo
respiradouro pôde ser feito para a superação deste impasse, quando Foucault percebe
que os processos de subjetivação e os modos como produzimos nossa existência se
fazem na ação da força sobre si mesma. E é na possibilidade de nos transformarmos,
que podemos com Foucault afirmar que a subjetivação nos ajuda a pensar que não
estamos a mercê das tecnologias de poder/saber. Nesta direção, podemos pensar este
processo de cultivo, exploração e transformação sempre como inacabado, pois é nele
que nos constituímos eticamente e estamos sempre a nos fazer. Esta nos parece ser uma
indicação preciosa apontada pelo autor para afirmarmos a vida a partir de sua potência
de resistência. De algum modo, sabemos que nela e com ela podemos refletir sobre o
que estamos fazendo de nós, como cuidamos de nós e do outro e de que outras maneiras
podemos nos cultivar.
Se para Foucault a subjetivação diz respeito aos modos como nos governamos e como
governamos uns aos outros, em meio às relações de poder, precisamos ainda
problematizar a idéia de “relação consigo” que neste trabalho entendemos ser uma
forma de resistência, além de servir como parâmetro para as relações de cuidado e
governo entre os homens. É que sabemos que a possibilidade de existência e seus graus
de mudança ancoram-se nas relações de forças que compõem a vida.
Deleuze (2005) nos ajuda na problematização do que seria esta relação consigo ou o que
chamamos de Si quando percebemos que é a inflexão da linha de força sobre ela
mesma, sua dobra, que produz um Si.
Essas dobras são eminentemente variáveis, aliás em ritmos diferentes, e suas
variações constituem modos irredutíveis de subjetivação. Elas operam ‘por
sob códigos e regras’ do saber e do poder, arriscando-se a juntar a eles se
desdobrando, mas não sem que outras dobras se façam. (DELEUZE, 2005, p.
112)
Um exercício de experimentação de dobras e desdobras nos modos de existência.
Parece-nos serem estes os movimentos que o autor nos indica no cuidado de si.
Entretanto, Deleuze (2005) nos alerta que este trabalho não se faz em um binarismo
(dentro e fora). “As relações de forças móveis, evanescentes, difusas, não estão do lado
135
de fora dos estratos, mas são o seu lado de fora” (p.91). Para tanto, César (2008), em
seus estudos, nos indica que se no lado de dentro podemos dar forma a modos de viver,
de amar, de querer produzindo referências para as nossas ações, bem sabemos que o
dentro faz-se como dobra de um lado de fora múltiplo e processual. “O que ganha
existência produz-se a partir desse fora, que continua a existir em tudo. (...) Nossa
matéria é multiplicidade, que não está em outro lugar senão em nós mesmos” (p.53).
Construirmos uma prática de cuidado que aposte na dimensão coletiva e pública das
políticas de saúde requer que compreendamos que o cultivo e a transformação de nós
mesmos se faz possível na relação com este lado de fora. O si como dobra, é apenas
um artifício dentro de uma vastidão de possibilidades, entendendo que a dobra ou os
modos de existência que construímos não se separam de seu plano de constituição
múltiplo e processual. Cuidar de si e do outro nos parece ser cuidar da relação que se
constitui nos movimentos de dobrar e desdobrar como prática de cultivo da própria
vida.
As problemáticas do modo como vivemos e cultivamos a vida em nós e no outro, de
como construíamos práticas de cuidado, parece se instalar na cristalização das dobras
produzidas, em uma captura do movimento de dobrar-se. E por onde passam as nossas
lutas? Como construir práticas de cuidado que cultivem a vida em sua potência de
resistir? Como não cultivarmos vidas apartadas daquilo que nos faz enquanto potência
de outramento, de transformação? Como não produzirmos uma vida individualizada e
distanciada do outro?
Parece-nos que para nos demorarmos um pouco mais nestas questões, também é
necessário nos debruçarmos sobre o sofrimento produzido pelas maneiras como
vivemos e percebemos o mundo. E podíamos colher na experimentação de nossa
cartografia, uma dentre as muitas formas de expressar e de viver esse sofrimento que é
por um certo entristecimento de perda de uma identidade sabida e conhecida. Para
muitos que trabalhavam nesta intercessão Saúde Mental e Atenção Básica, o “quem sou
eu?” parecia intensificar-se como pergunta a ser respondida. E percebemos que esta
questão desdobra-se a cada vez que nela se toca como um buraco sem fim. É que junto a
ela muitos se perguntavam: “O que devo fazer? Do que sou capaz? O que eu tenho?
Para que sirvo?”
136
Tomávamos uma pista importante. A produção de um certo sofrimento nos modos de
existência de muitos trabalhadores, pareciam se instalar nas dobras produzidas por esses
questionamentos e em uma certa cristalização do próprio movimento de nos dobrar e
desdobrar nas práticas de cuidado que pomos a funcionar no dia a dia de trabalho. Por
certo, também nos perguntávamos em nossa cartografia, como essas questões tornam-se
tão importantes nos dias de hoje e quais os efeitos dessa necessidade de se saber com
segurança o que se é.
Certa feita, em uma das conversas no cafezinho, encontrava-me com Nair novamente.
Ao rever a Agente Comunitária de Saúde (ACS) lembrava-me de sua voz forte e suas
narrativas intensivas quando ela contava-me de seu trabalho e fitava com brilho nos
olhos uma senhorinha que estava sentada na recepção do posto. O registro de suas
palavras em minha pequena caderneta era transformado quando dava-me conta de que
Dona Gertrudes ao contrário de tomar ‘todos os remédios do mundo’ (como dizia a
ACS), tomava todas as conversas do mundo. Insistia aquela senhora com suas
constantes idas a várias médicos, inclusive àquela equipe de Saúde da Família, que sua
‘doença’ não seria curada com remédios. Ou que o próprio ‘remédio’ haveria de ser
construído na relação, nas conversas que tomava com todos os profissionais de saúde.
Com gosto de vida em sua boca, Nair parecia sentir-se mais potente com a melhora de
Dona Gertrudes.
Uma estranheza corta-me nas lembranças afetivas daquela narrativa de Nair, quando a
ACS em voz entristecida dizia:
Quando eu entrei na unidade eu era uma coisa, tinha uma vontade de
que eu ia ajudar todo mundo. Então pensava: “eu posso, tenho
condições, tenho meios pra isso. Não é o que imaginei. Gosto muito de
ser ACS, mas eu quero é sair, fazer uma nova coisa. Ser ACS hoje não
está dando mais certo... Estou estudando e pretendo ser Técnica de
Enfermagem porque assim vou ter o que fazer. A pessoa vai vir até a
mim e eu vou poder fazer curativo, dar vacina, remédio, aferir a pressão.
Vou dar orientação, mas não vou mais ter que ouvir o problema. Me
sinto abandonada, não tenho o que oferecer como ACS”.
137
Parece que a solução encontrada pela ACS seria a de se transformar em cnica de
Enfermagem. Mas o que ficaria resolvido nesta mudança? Conseguiria então saber o
que se é, ter uma identidade conhecida, sendo Técnica de Enfermagem? Não é que
desenvolver seu trabalho como Técnica de enfermagem seja um problema, mas o que se
quer resolver com essa mudança? Não haveria um modo de se relacionar em que o
outro é subsumido na relação? E então fatalmente nos sentimos sozinhos e
abandonados?
Acreditar que uma pratica de cuidado possa ser feita na objetificação de si e do outro e
do próprio cuidado e que este se transformaria em uma simples prescrição de
procedimentos, parece-nos falar da produção de uma vida individualizada e distanciada
do outro. De certo modo, Nair até nos faz parecer que seu sofrimento seria aliviado
neste tipo de relação. Mas será que de certa maneira não comparecemos no
sofrimento do outro? Será que não cuidamos de nós mesmos quando cuidamos do
outro? Há mesmo uma independência entre mim e o outro?
É certo, que Dona Gertrudes, em sua insistência de ir a todos os médicos e tomar todos
os tipos de remédios cutucava a equipe daquele posto de PSF com suas idas e vindas
constantes e nos uma pista importante: a de que aquilo que somos não está separado
daquilo que fazemos. E de certo modo, é justamente na criação de uma outra relação de
vínculo da ACS com Dona Gertrudes que uma outra possibilidade de vida pôde ser
acessada tanto para uma quanto para outra. Parece-nos que não era somente Dona
Gertrudes que era cuidada quando por certo, havia parado de tomar todos aqueles
remédios e deixado de ir a tantos outros lugares. A relação de vínculo também tratava a
ACS quando esta podia se ver potente e feliz com o seu fazer na melhora de Dona
Gertrudes. O mesmo gesto de conexão da ACS em se demorar com Dona Gertrudes, em
desfazer-se de um tempo imediato e fugidio tão presente em nossos modos de vida
atuais, de cuidado de um e outro, trata aquelas duas mulheres. O cuidado é duplo, pois
acessa em uma aquilo que doía e a fazia prisioneira de tantos ‘remédios’ e traz na
partilha a possibilidade de acesso à dimensão de liberdade da relação de co-emergência
que advém: e é quando a ACS sente-se potente e capaz. Podemos dizer que no cultivo
desta relação, há uma relação consigo que começa a derivar-se da relação com os
outros.
138
De algum modo, tomamos ainda como pista em nossas cartografias pensarmos este
sentimento de abandono e impotência que parece envolver a muitos trabalhadores. Em
uma capacitação da Saúde Mental com a equipe de Saúde da Família, muitos Agentes
Comunitários de Saúde haviam pedido que o tema trabalhado fosse frustração. Por
certo me lembrava ainda da fala de Nair quando dizia
“Você vai na casa de uma pessoa e ela diz: ‘o que eu quero é que você
mande a prefeitura vir aqui’. Houve um surto de hepatite em função da
contaminação da água. A rede de rede de água que estava toda furada e
passava dentro da rede de esgoto. Como você vai falar de saúde?Tem
muita ACS sentada na cozinha do PSF por causa disso. Nem a
coordenação tem vindo mais aqui”.
Pensando junto com a equipe de saúde mental em como produzir a discussão deste tema
sobre frustração na capacitação, propomos uma dinâmica que dividira os profissionais
em duplas e estes trabalhariam juntos a partir da consigna:
“Cada dupla está em uma ilha deserta à espera de resgate após um
naufrágio. Enquanto isso, precisam ir criando meios para sobreviver.
Percebem que o tempo está se armando e que em breve irá chover.
Juntos, cada dupla deverá construir algo (objeto) que possa coletar a
água da chuva que é vital para a nossa sobrevivência. Antes, devem
conversar entre si e decidirem quem será cego e quem será maneta. As
mãos serão amarradas para trás e os olhos vendados”.
Durante a atividade, cada dupla vai construindo jeitos diferentes de se entenderem. Os
sentimentos que perpassam aquele momento são muitos. Alguns dizem que a
experiência foi muito ruim, horrível... Outros, o quanto se percebe que com o outro
para fazer coisas que sozinho não conseguiria.
O maneta precisa ser muito amigo do cego porque senão ele ferra sua
vida. É ele que está vendo tudo. Você faz o que ele diz que é para ser
feito”.
139
“Tem que ser muito seguro, para estar passando as instruções ao
colega”.
“Não fomos criados para ter nenhuma deficiência”.
“É muito difícil acolher o jeito diferente do outro”.
“Tem que ter cumplicidade muito boa, parceria, porque senão não
anda”.
Um analisador irrompe durante a discussão quando pensavam sobre sua prática no dia a
dia na comunidade de Nova Holanda.
“O ACS hoje é igualzinho ao maneta. tudo e não pode fazer nada. A
gente as pessoas com fome, mijado, aleijado e não pode fazer nada.
Vão ficar assim. Não tem material no PSF. Não tem mais como
conseguir cesta básica. Estamos empurrando com a barriga. A visita
domiciliar é um oi-tudo-bom-e-tchau.
Se a pessoa precisa de um remédio. Não tem. Não tem nem material para
fazer curativo aqui. Agora com as eleições, falaram com a gente que
senão fizermos campanha para os políticos vão mandar a gente embora.
Tamo com a faca no pescoço. Antes a equipe estava cheia. Hoje ninguém
tem animo pra fazer nada.
O povo com tanta da gente que pedem pra assinar nosso papel.
(Refere-se a planilha de assinaturas que precisam apresentar e que
consta o número de vistas feitas). As visitas são falsas. É tudo na base da
amizade. Você entra na casa pra conversar e tomar um café, porque,
como você vai evitar escabiose se não tem saneamento no bairro? Como
você vai falar com a mãe que o menino precisa tomar banho de duas a
três vezes por dia se não tem água no bairro? Nosso trabalho que é a
prevenção não acontece”.
A pesquisa realizada em 2008 era atravessada pelo período de eleições municipais.
Muitos ACS sentiam-se coagidos a participar da prática de distribuição de ‘santinhos’
de políticos, receosos por perderem seus empregos. As capacitações e outras práticas
140
coletivas que permitiam que as pessoas se encontrassem para discutir sobre seu trabalho
eram esvaziadas. E por vezes, esvaziados pareciam estar os sentidos de se trabalhar
como Agente Comunitário de Saúde. A falta de saneamento básico dentre outros
recursos essenciais para a realização do trabalho angustiavam em muito aqueles
profissionais.
“É complicado montar estratégias de prevenção quando você não pode
modificar a situação de falta de saneamento básico dessas famílias. A
gente previne de um lado, mas do outro a situação só piora”.
De algum modo perceber-se como maneta que tudo vê ao contrário do cego, mas
sentindo-se de mãos amarradas, coloca-nos uma importante discussão no campo da
saúde. Poderíamos pensar nos desdobramentos desta discussão na própria pesquisa
quando as tentativas de nosso fazer apostavam naquilo que se passa conosco em nossas
experiências de deslocalização. É que quando apostamos nesta experiência há,
sobretudo, uma afirmação de um não-lugar em nosso fazer que não estaria no lugar do
maneta: aquele que fica olhando e não toca em nada, apenas julga pelo olhar
desencarnado; nem tão pouco no lugar do cego: aquele que tem o seu fazer emoldurado
por um lugar e tarefas definidos a priori.
Cartografando um pouco mais, transpomos os espaços-tempos de nossas caminhadas na
comunidade de Nova Holanda para acompanhar a equipe de saúde mental em uma outra
comunidade intitulada Fronteira. No trabalho de grupo feito por essa equipe no módulo
do PSF, a maioria dos participantes eram Agentes Comunitários de Saúde. Uma certa
experiência de trabalho maneta parecia comparecer às discussões do grupo, mas por
vezes também se desfazia. As duras amarras das mãos se desfaziam quando se podia
viver uma experiência de produção de cuidado onde o toque já era de corpo inteiro.
Como equipe de referência aqui do posto nós somos o exemplo.
Fazíamos um bom trabalho na comunidade e sabemos da importância de
nosso trabalho aqui. Mas com a saída da médica que trabalhava aqui
07 anos e da enfermeira que engravidou e está de licença, a rotatividade
de profissionais ficou muito grande. Atualmente, a médica que temos
aqui não nos brechas para propormos soluções. Acha que isso aqui
141
deve funcionar em uma hierarquia, numa auto-suficiência não quer
saber o que o outro quer falar. Até sabemos o que precisamos fazer, mas
não temos autonomia. É horrível viver achando que precisa de uma
pessoa para tudo. Faço parte desta equipe 05 anos. Sou nascida e
criada aqui na Fronteira. Eu não tenho medo não! Vai chegar um
momento que eu vou ter que lutar por isso. A gente tem que falar mais
disso. É muito bom poder estar neste grupo a gente se fortalece.
(fala de uma Agente Comunitária de Saúde)
***
“Fico contente quando posso fazer alguma coisa para as pessoas.
Ajudar aqueles que não têm condição. Fazer um bom trabalho.
Dona Isaura, nossa paciente, estava deprimida, com problemas com o
marido desempregado e com os netos que já estavam entrando no mundo
do tráfico. Quase não saía de casa e estava com 120 kg. Tinha muita
dificuldade de andar e era hipertensa.
Começamos um trabalho nesta família com ela. Hoje ela perdeu mais
de 50 kg, mudou a alimentação e está participando do grupo de
caminhada e exercícios físicos para a terceira idade. Já sai de casa, está
se gostando, gostando mais da vida.
pouco tempo ela veio à médica do posto queixando-se de uma dor na
perna e a médica lhe disse que sua hipertensão poderia lhe gerar uma
diabetes e ela iria perder a perna. Dona Isaura ficou apavorada, não
quis mais voltar a consulta e nem ao grupo. A médica não considerou
todo o trabalho que Dona Isaura já tinha feito consigo mesma para
perder 50 Kg! Estamos trabalhando para trazê-la de volta. Para
construir vínculo é um longo trabalho agora para desfazê-lo parece ser
muito rápido”.
(fala de uma Agente Comunitária de Saúde)
***
“Com a vinda da Saúde Mental para percebemos mudanças em
alguns casos. O Luizinho, por exemplo, saía daqui do bairro carregado
pelo corpo de bombeiros em uma camisa de força. Vivia internado.
142
Agredia as pessoas nas ruas. Hoje não é mais assim, ninguém mais
chamando o corpo de bombeiros. A comunidade tem ajudado. A família
tem se envolvido mais. O Geraldo, por exemplo, teve a atenção da
família e foi fazer tratamento no CAPS, antes vivia jogado pelos cantos”.
(fala de uma Agente Comunitária de Saúde)
***
“Edilson era paciente aqui da Fronteira. Vivia trancado em casa, era
muito solitário. Começamos a tratá-lo em função de uma tuberculose.
Uma vez chegamos e ele estava cozinhando feijão com carne podre
para comer. Pedi que ele esperasse. Fui a minha casa, fiz uma comida e
trouxe para ele. Estávamos muito preocupados, pois a casa que Edilson
morava era muito precária e estava quase caindo. Tinha até medo de
olhar para as paredes. Além disso, a casa estava virando esconderijo
para bandido. Várias pessoas do tráfico utilizavam a casa de Edilson
como ponto de uso de drogas e para se esconder nos confrontos com a
polícia. Trabalhamos juntos com a equipe de Nova Holanda para
sensibilizar a irmã. Sabíamos que sua situação de vida era difícil, tinha
05 filhos pequenos para criar. Fizemos um mutirão de comida aqui na
comunidade, todo mundo ajudou. Combinamos com a irmã de ajudá-los
com o que pudéssemos na alimentação. Fizemos isso por alguns meses
até que Edilson pudesse encontrar seu espaço naquela família. A casa de
Edilson foi tombada pelos riscos de desabamento. Estamos pensando
com a irmã em como ajudá-la, ela quer futuramente construir dois
cômodos para Edilson, caso ele queira voltar para sua casa.
(fala de uma Agente Comunitária de Saúde)
Vecchia e Martins (2009) discutem a relevante atenção que vem sendo concedida no
âmbito das políticas públicas de saúde brasileiras à articulação - Saúde Mental e
Atenção Básica. Para os autores, há nesta articulação uma dimensão fértil e produtiva
quando são demarcados por um lado os princípios da reforma psiquiátrica brasileira e,
por outro, os princípios do movimento da reforma sanitária. Destacam tanto a busca
pela construção de uma prática de cuidado que rompa com a lógica manicomial quanto
143
uma ruptura com o modelo médico hegemônico centrado na doença e que em muito
significou a construção de um cuidado que objetifica o outro e retira da vida sua
potência de protagonismo, autonomia e invenção.
Por certo, podemos pensar nesta intercessão, no campo da saúde, na construção de
práticas de cuidado que assegurem a importância do incremento dos laços sociais, o
aumento de autonomia, e contratualidade ‘daqueles que cuidamos’. Entretanto, podemos
também pensar que, quando lutamos contra os processos de exclusão social, de
isolamento afetivo e da impossibilidade de se construir protagonismos na vida, há
também que se romper com uma certa dicotomia no campo da práticas de saúde,
daqueles que cuidam e daqueles que são cuidados. De algum modo, podemos dizer que
também precisamos construir um cuidado dos próprios processos e práticas de trabalho
que pomos a funcionar em nosso cotidiano. Estaríamos então apontando não somente
para um cuidado do cuidado, mas, sobretudo, para um cuidado da dimensão relacional
na qual nos constituíamos.
De certa maneira percebemos um enfraquecimento na potência de vida dos
trabalhadores e em especial, aqui destacamos o Agente Comunitário de Saúde, quando
se vêem sem recursos concretos para lidarem com os problemas que assolam os
territórios em suas ruas e vielas de um deambular cotidiano. Como trabalhador, mas
também como morador da comunidade na qual atua, podemos dizer que há na
experiência de sentir-se maneta, mas não cegos, a produção de um corpo que respira e
por vezes constata nas constantes caminhadas pelo território o capitalismo real. A
convivência com as condições de vida e com os territórios existenciais de muitas
famílias os põe diante da devastação subjetiva que o capitalismo produz.
As contribuições que trazemos de Basaglia (2005) em nosso trabalho, quando este autor
analisa a experiência de ‘expansão’ da saúde mental nos Estados Unidos (E.U.A) bem
como a análise do papel dos ‘desviantes’ neste país, nos ajudam a problematizar a
produção de práticas de cuidado no território quando percebemos que na experiência
norte americana produziu-se um alargamento do conceito de doença para justificar as
contradições do próprio sistema capitalista. Quando o autor nos mostra que os novos
serviços criados orientavam-se não para reduzir o fenômeno para o qual foram criados,
mas para produzi-lo em consonância às exigências do capital, cabe-nos refletir o quanto
144
a produção de modos de ‘sobrevida’ neste sistema aponta para uma prática de cuidado
organizada e definida pela doença, que neste contexto, é entendida como todo e
qualquer desvio da norma, passível de ser tratado. De algum modo, podemos tomar nas
pistas trazidas pelos Agentes Comunitários de Saúde os perigos de estarmos produzindo
práticas mantenedoras de ‘sobrevidas’ geridas pela lógica do capital cujas práticas de
assistência focal e incipiente devem ser combatidas cotidianamente em nossas lutas
quando pensamos na produção de práticas de cuidado que expandam a vida e a saúde na
construção de políticas públicas de direitos. Parece-nos que de certo modo, a angústia
vivida por estes profissionais coloca em jogo não os questionamentos quanto ao
modo concreto como produzimos o cuidado, mas também com que forças nos aliamos
nos movimentos de afirmação da vida. Que tipo de vida queremos cultivar?
A experiência de um fazer-maneta que comparecia nas falas dos trabalhadores, quando
diziam a tudo ver e nada poder fazer desfazia-se nos próprios percursos da cartografia.
Quando narravam tantas mudanças produzidas nos modos de viver de Dona Isaura,
Luizinho, Geraldo e Edilson já não pareciam estar falando de um fazer maneta. Mas
então, com as mãos desamarradas, o que podiam tocar? Se a experiência de sentir-se
maneta fosse tão sólida e acabada, porque então não desistimos? O que ainda nos move?
De certo modo, as lembranças da consigna usada para o trabalho na capacitação entre a
equipe de Saúde Mental e a equipe de Saúde da Família, nos ajudam a revê-la e
problematizar os sentidos do que ainda nos move. Era dito a cada dupla que estavam em
uma ilha deserta à espera de um resgate e que, enquanto isso, precisavam ir criando
meios para sobreviver. As gargalhadas eram ouvidas, quando a água era colocada nos
recipientes construídos pela dupla e quando esta era retida pela espécie de vasilhame ou
não. Na brincadeira, nos perguntávamos: será esse sentir-se abandonado uma espécie de
ilha deserta que construímos em nossos modos de nos relacionarmos? Mas o que será
mesmo o resgate dessa ilha? Algo exterior a nós mesmos?
Experimentávamos, pois que aquilo que nos resgata, aquilo que nos mantém vivos e nos
move fazia-se justamente quando chegávamos perto do outro, quando nos
disponibilizávamos e nos misturávamos àquela cena. Era que encontrávamos forças.
Forças que fazem Dona Isaura perder mais de 50 Kg, que sustenta a família de Geraldo
a construir uma outra relação que não a de ficar pelos cantos, que não deixa a equipe
145
desistir de incentivar o vínculo de Edilson e sua irmã, mesmo sabendo das condições
adversas daquela mulher, mãe de cinco filhos. De algum modo, sabemos que o início da
construção de uma relação de afeto entre Edilson e sua irmã, não vem somente com o
alimento orgânico doado pela comunidade, mas com o alimento destas forças do fora,
advindas de uma dimensão impessoal e coletiva, sem nome próprio, sem lugar.
Foucault, nos indica, no estudo dos gregos, que a transformação de nós mesmos, dos
nossos modos de existência se faz possível na relação com este fora quando nos
afirma que o si como dobra é apenas um artifício dentro de uma vastidão de
possibilidades. As dobras ou os modos de ser, de viver e de nos relacionarmos que
construímos não se separam de seu plano de constituição múltiplo e processual. E
parece-nos que é quando experimentamos sobre nós mesmos, um trabalho de dobras e
desdobras de nossos modos de ser, quando tocamos esta dimensão múltipla e
processual, que encontramos forças para nos sustentarmos nas lutas pela construção de
políticas públicas de saúde. “Faz-se necessário, pois, um trabalho sobre si mesmo, o
cultivo de um cuidado consigo, com o outro e com o mundo, de onde um si desapegado
de si e aberto ao outro pode advir” (César, 2008, p. 123). Nos gregos percebemos que é
na relação consigo que os indivíduos são impelidos a realizar este trabalho sobre si
mesmo de modo a se transformar.
Deleuze, nos estudos sobre Foucault, indica que pensar a relação consigo é sabermos
que nossas lutas passam por uma resistência a duas formas atuais de sujeição
uma que consiste em nos individualizar de acordo com as exigências do
poder, e outra que consiste em prender cada indivíduo a uma identidade
sabida e conhecida, bem determinada de uma vez por todas. A luta pela
subjetividade apresenta-se então como direito à diferença, e como direito à
variação, à metamorfose. (DELEUZE, 2005, p.113).
De algum modo, o que Foucault (1984) indica ao analisar como as relações de poder
são produzidas tanto na antiguidade como nas sociedades atuais parece ter como ponto
fundamental a questão da liberdade. Para o autor possibilidade de haver relações
de poder quando liberdade, isto é,
quando os sujeitos forem livres. “Se um dos dois
estiver completamente à disposição do outro e se tornar sua coisa, um objeto sobre o
146
qual ele possa exercer uma violência infinita e ilimitada, não haverá relações de poder”
(p. 276). Para isto, é necessário que as relações de poder possam circular, se reverter,
que os indivíduos tenham a possibilidade de resistir, transformando-se, modificando-se.
dissemos neste trabalho que a governamentalidade é, exatamente, esse campo
estratégico de relações de poder móveis e reversíveis que envolvem tanto a relação para
consigo quanto a relação com os outros. Isto nos faz pensar que a questão do governo
de si e governo dos outros, constitui-se principalmente, a questão de como cultivar a
liberdade no cuidado consigo e com os outros. Assim, entendemos que a analítica do
poder foucaultiana, quando apresentada a partir da liberdade, permite pensar as relações
de poder em termos de cuidado consigo e governo dos outros numa perspectiva ao
mesmo tempo ética e política, uma vez que se trata de um duplo exercício efetuado em
relação a si e ao outro. As relações de poder são éticas quando se trata do domínio que o
sujeito, em sua liberdade, realiza sobre si, de modo a governar sua conduta, a se
transformar e são políticas, quando o exercício de poder que é direcionado para si
representa uma maneira de se conduzir, na relação com os outros sem assujeitamentos
mútuos. O retorno de Foucault à antiguidade é importante para compreendermos como
pensar a construção de práticas de cuidado em nossas sociedades atuais não como
assujeitamento de uns em relação aos outros, mas como uma prática ética de liberdade.
Como nos aponta
Deleuze (1996):
o que interessa essencialmente a Foucault não é um retorno aos gregos, mas
nós hoje: quais são nossos modos de existência, nossas possibilidades de vida
ou nossos processos de subjetivação; será que temos maneiras de nos
constituirmos como ‘si’, e, como diria Nietzsche, maneiras suficientemente
‘artistas’, para além do saber e do poder? (DELEUZE, 1996, p.115)
3.1 O que em nós quer cuidar? Cuidando do cuidado
No período greco-romano a ética como prática da liberdade esteve vinculada ao cuidado
de si, e se relaciona à noção, em grego de, epimeléia heoutôu que constituiu-se como
princípio fundamental para a produção de subjetividade. Neste sentido, o epimeléia
heoutôu congregava um movimento tanto de reflexão quanto de ação. Enquanto o
movimento de ação implicava ações para consigo de modo a transformar-se, o
movimento de reflexão consistia em estabelecer relações para consigo, com outros e
147
com o mundo, refletindo sobre as coisas (um modo de estar no mundo). Implicava
também em conhecer-se, em grego, gnôthi seautón, que significava conduzir o olhar
para si mesmo estando atento ao que se passa no próprio pensamento a fim de se
perceber na ação.
O interesse de Foucault em seus estudos foi em perceber de que forma o cuidado de si
foi sendo reduzido ao longo dos séculos, na história do pensamento ocidental a apenas
um dos princípios, o gnôthi seautón ou o conhecer-te a ti mesmo. Foucault nos aponta
que a redução do epimeléia heoutôu à apenas um de seus princípios - a partir do modelo
cristão e pós-cristão e da apropriação destes pela razão de Estado - produz uma
mudança de perspectiva percebida da diminuição do cuidado de si para uma exaltação
de um conhecimento de si. Um dos perigos vividos em nossas sociedades modernas é a
produção de um olhar para si onde o ‘si’ se confunde com um sujeito individualizado.
Como vimos em nosso trabalho nossas sociedades de controle investem na produção
de subjetividades solitárias, sendo o cultivo de si entendido e alimentado por uma
cultura de cuidado que por vezes, instala inúmeras técnicas de controle sobre o corpo e
sobre a vida. A relação consigo passa a ser interiorizada, codificada em um saber moral
que faz nascer o indivíduo, cuja noção é cada vez mais voltada para uma equivocada
interioridade. É quando passamos a fazer um cuidado de formas e identidades e
alimentamos um modo de subjetivação que se por um processo de objetificação do
mundo e de nós mesmos que busca determinar as regras das coisas e estabelecer a
normalidade humana por procedimentos de decifração.
percebemos que o que interessa a Foucault no estudo dos gregos não é um retorno
aos modos de existência criados por eles naquela época, mas a possibilidade de
modularmos o problema do cuidado em nosso contemporâneo nos questionando sobre
os nossos processos de subjetivação, sobre os modos de existência e possibilidades de
vida que construímos para nós mesmos na atualidade. Parece-nos importante a partir
desta perspectiva ética e política apontada por Foucault, das relações de poder, pensar as
práticas de cuidado e de governo em nosso contemporâneo.
A urgência desta questão faz-se quando percebemos que, na saúde, os processos de
cuidado e sua gestão têm sido privilegiados como campo de ação da lógica de
148
reestruturação produtiva que expressa a ótica acumulativa do capital. Como permanecer
na luta pela produção de um cuidado comprometido com a criação de modos de
existência potentes que se afirmem nos processos de expansão da vida? Como inventar
modos de luta quando percebemos que o capital e sua lógica têm se agenciado
exatamente ao processo de criação das tecnologias relacionais?
Compreendermos que é no próprio processo de construção dos modos de cuidar e gerir
que produzimos a nós mesmos é perceber que o cuidado de si a que Foucault se refere é
o cuidar do próprio cuidado. aqui um cuidado que se faz no próprio cultivo do
processo de constituição, para que nossos modos de existência não sejam reduzidos e
aprisionados a apenas uma forma de viver. Como nos indica César (2008) “o que somos
deve sempre esvaziar-se do caráter sólido das identidades, para que não nos agarremos a
elas, possamos nos mover em meio a elas, criando no que somos espaços vazios de
passagem.” (p.65)
Na experiência vivida pelos trabalhadores na capacitação sobre frustração percebíamos
que não é possível ficarmos à espera de um ‘resgate’, de um milagre que nos tire do
desértico das ilhas que produzimos para nós mesmos, mas também compreendíamos
que não sairemos dessa ilha deserta sozinhos. Não é possível apostar em nossas próprias
forças, porque estas não são próprias, não são unicamente nossas. A aposta que fazemos
então, exige-nos trabalho, como Foucault tem nos apontado nos estudos dos processos
de subjetivação. Um trabalho de esvaziamento de si enquanto sujeito, para não
acreditarmos que as forças nos pertencem, que são nossas, e ao mesmo tempo, uma
prática de produção de um si esvaziado de si, esvaziado do caráter sólido das
identidades, de achar-se coisa sabida, de fixar-se no lugar de cego ou de maneta, para
passearmos nas paisagens sem acreditarmos que estas são verdadeiramente reais, sólidas
e acabadas.
A fim de afirmar uma perspectiva ética de produção de subjetividade, podemos então,
afirmar um cuidado que problematize a mudança de perspectiva percebida por Foucault
em nosso contemporâneo, evidente na diminuição de um cuidado de si múltiplo e
processual, para a exaltação de um conhecimento de si como afirmação da
individualização do sujeito. Parece que há aí uma mudança de perspectiva não só do que
entendemos como Si, mas do modo como conhecemos.
149
3.2 De quando os modos de cuidar são modos de conhecer
Merhy (2007b), inspirado pelos estudos de Maturana e Varela, nos ajuda a pensar em
uma reversão do cartesianismo presente nos modos hegemônicos de conhecer que
acreditam em uma realidade objetiva, dada e independente, lançando mão da noção de
autopoisese
74
. Para Merhy, nos processos relacionais uma micropolítica dos
encontros, “expressa por vários mapas, ou melhor, por uma efervescente cartografia
daqueles processos relacionais, que os sujeitos do encontro operam” (p. 25). Para
trabalhar com a noção de autopoiese Merhy, utiliza destes autores, a imagem do
movimento de uma ameba para afirmar que um movimento no caminhar de um vivo
que constrói o sentido de um viver, um movimento da vida produzindo vida. A
autopoiese afirma que organismo e meio não pré-existem um ao outro, mas emergem
juntos por uma produção co-emergente que se faz através de perturbações recíprocas e
‘acoplamentos estruturais’. Entendendo que o acoplamento estrutural se realiza na busca
do organismo por encontrar respostas para os problemas com os quais se depara, é
necessário afirmar com esses autores que não uma direção dada de antemão ou
resposta prévia para os problemas. O que é um processo de invenção, de
transformação do organismo e do meio. As perturbações do equilíbrio são positivadas
por esses autores ao entenderem que é na experiência de perturbação do equilíbrio de
uma certa forma de funcionar que o sistema vivo pode se reinventar e se autoproduzir.
74
Para compreendermos o processo de autopoiese é necessário recorremos à crítica realizada por
Maturana e Varela (1995) às teorias evolucionistas propostas por Darwin e Lamark. No Darwinismo, a
fim de se combater a perspectiva criacionista, que postula o surgimento das espécies a partir da vontade
divina, Darwin afirma o conceito de seleção natural em que um engendramento das espécies umas
pelas outras, onde os indivíduos com mais oportunidade de sobrevivência seriam aqueles cujas
características fossem mais apropriadas para enfrentar as variações ambientais. Aqui há a idéia do
organismo como fundamento da evolução. no Lamarkismo o meio faz o papel central na direção de
mudança do organismo. Maturana e Varela criticam a idéia de um ponto de partida para a evolução sendo
em Darwin o organismo e em Lamark o meio. Afirmam que organismo e meio são efeito de inúmeros
processos disparados por uma deriva natural. Portanto, não preexistem um ao outro, mas emergem juntos.
O processo de autopoiese faz-se como condição para a evolução de modo a garantir a contínua auto-
criação dos seres e do mundo em que vivem. Maturana e Varela concebem, portanto, o processo de
transformação do vivo de forma mais radical que a biologia, afirmando o sistema vivo não como auto-
regulador, cujo trabalho diante das perturbações sofridas seria o de compensação tendendo a uma
homeostase, de forma a manter ou resgatar o equilíbrio perturbado. Na autopoiese a experiência de
perturbação do equilíbrio dado é positivada, visto que é na perturbação de uma certa forma de funcionar
que o sistema vivo pode se reinventar e se auto-produzir na direção de uma deriva natural. Ver em
MATURANA, H; VARELA, F. A árvore do conhecimento: as bases biológicas do entendimento
humano. Campinas: Editorial Psy, 1995.
150
Poder pensar a constituição de uma fazer ético no cuidado de si e dos outros é
afirmarmos com a noção de autopoiese uma outra qualidade de produção de
conhecimento. Problematizar a produção de práticas de cuidado em nosso
contemporâneo requer um deslocamento do que conhecemos para o modo como
conhecemos, pois como nos indica Merhy
não basta ser um ato produtor de cuidado, para estar necessariamente
implicado com processos terapêuticos construtores de mais vida. (...)
modelos de organização tecno-assistencial, da produção dos atos cuidadores,
que podem não ter nada a ver com a finalidade de construção da recuperação
do viver, como seu eixo central. (MERHY, 2007b, p.31)
Como constituir práticas que ativem a dimensão coletiva de nossa constituição e de
nosso fazer? Como lutar contra práticas de violência onde o outro torna-se coisa,
objeto?
Nossa ida ao campo como cartógrafo nos indicava que a produção de uma pesquisa
intercessora é feita não por um sobrevôo distante que de certo modo acredita em uma
relação objetificada e dicotômica em que sujeito e objeto estariam como pólos
separados e dados a priori. Afirmar um deslocamento do que conhecemos para o modo
como conhecemos implica-nos na produção de uma outra qualidade de conhecimento
entendendo que sujeito e objeto são co-emergentes. Se supomos que alguma coisa
que venha primeiro, esta seria a relação. Neste plano relacional, as formas e tudo aquilo
que muitas vezes tomamos como natural e estático se desfazem, para enfim,
apreendermos a complexidade dos processos que se materializam. A afirmação de um
primado da relação que faz desaparecer sujeitos e objetos como seres-em-si se faz,
efetivamente, por uma aposta ética, estética e política interessada no cultivo desta
relação. Aqui diríamos que este cultivo se faz não na ação sobre, mas na ação de
estar com.
Para uma pesquisa que não se supõem desencarnada de onde a vida se passa, a produção
de uma outra qualidade de conhecimento também é feita, quando compreendemos que
nossa ida ao território deve constituir-se neste fiar de relações, neste cultivo. Esta
indicação parece-nos preciosa para pensarmos a dimensão fértil e potente deste plano
151
relacional e coletivo quando afirmamos com o princípio da autopoiese uma co-
emergência do organismo e do meio. Aqui, poderíamos apostar que o cultivo de nós
mesmos, de nossa relação, também se faz no cultivo do território quando tomado em
sua capacidade de produzir-se como território de encontros.
A territorialização e adscrição da população têm sido usadas na atenção básica como um
modo de transitar pelo território e até mesmo de tomá-lo em sua capacidade produzir
um cuidado que construa vínculos potentes e esteja atento às reais necessidades de
saúde desta população. Mas aqui poderíamos nos perguntar: Quais os trajetos que o
delineamento deste mapa tem colocado em curso?
O trabalho intercessor da Saúde Mental e Estratégia de Saúde da Família trazia para
nossas cartografias a necessidade de discussão deste território e do modo como temos
operado nele e com ele.
Era sexta de manhã, quando nos aproximávamos da casa de Fabiano
para uma visita domiciliar. Daniela, ACS da área adscrita onde Fabiano
morava, parecia inquieta e relutante em fazer a visita. Dizia que em sua
área, até então, era tudo uma maravilha, mas que agora com a vinda de
Fabiano estava de cabeça quente. fazia 04 anos que a equipe de
saúde mental trabalhava junto às equipes de saúde da família na
comunidade de Nova Holanda e, neste tempo todo, Daniela nunca havia
solicitado a ajuda da equipe de saúde mental nos casos que atendia.
Quando a equipe de saúde mental se aproximava, Daniela parecia
querer se afastar dizendo que não tinha ‘problemas’ na área dela.
Fabiano e sua mãe Etelvina moravam anteriormente na comunidade da
Fronteira, mas a ‘casa muito pequena’ que habitavam naquele bairro,
fez a irmã de Fabiano procurar outro lugar para eles morarem. A irmã
morava no Rio de Janeiro, era casada e tinha um filho, e vinha uma vez
no mês para fazer compras para a mãe e o irmão e pagar as contas.
Antes de se mudarem para a comunidade de Nova Holanda, as equipes
de lá, tentaram contato com essa irmã para saber de suas possibilidades
de levá-los para morar com ela no Rio de Janeiro. A irmã respondia que
152
todos daquela equipe eram verdadeiros anjos na vida dela, e que ela não
tinha a menor condição de levar o irmão porque senão iria enlouquecer.
A inquietação e relutância de Daniela pareciam comparecer também
naquela mulher.
Tamanha era minha surpresa ao chegar à casa daquela família. Dona
Etelvina era cega, mas morando ali 07 meses, construíra algumas
coordenadas importantes para si mesma. A casa muito limpa parecia
contar-nos do esmero e cuidado que Dona Etelvina tinha com seu
espaço. O fogão azul bebê reluzia como se tivesse sido lustrado muitas
vezes. Acolhedora, aquela senhora mostrava-nos como havia feito para
identificar os remédios que havia de dar a Fabiano todos os dias.
Retirava de uma cestinha os comprimidos que, enrolados por sacolinhas
diferentes, eram reconhecidos pelas mãos de Dona Etelvina. As
conversas pareciam girar em torno da medicação, no modo como
Fabiano estava tomando. Dona Etelvina reclamava muito de sua visão
dizendo que estava sentindo dores no olho. A cadeira higiênica de
Fabiano estava quebrada, dificultando muito suas idas ao banheiro. A
equipe se articulava para marcar uma consulta oftalmológica para Dona
Etelvina e conseguirem trocar a cadeira higiênica de Fabiano.
Naquela manhã, conhecia Fabiano também. Por entre as cobertas,
parecia relutante em conversar conosco, mas com um pouco mais de
tempo que estávamos ali, foi se interessando pela nossa presença.
Fabiano parecia estar saudoso do tempo em que vivera na Fronteira.
Um certo entristecimento em sua voz, era entrecortado pelo brilho de
seus olhos quando nos contava da praça daquela comunidade. Era do
que mais Fabiano sentia saudades. A praça: lugar onde a vida
comparecia com brilho. E quando falava dela, Fabiano que até então
estava deitado na cama entre as cobertas, tinha no corpo um novo
viço, quando insistia em se sentar.
As visitas tornavam-se mais freqüentes, Dona Etelvina parecia sempre
ter muito a dizer em nossas idas. A ACS sentia-se até incomodada com a
153
imensa necessidade daquela senhora em falar. Tentava apressar a visita,
quando muito, esperava na soleira da porta como quem estivesse de
partida. Sempre que encontrava Daniela no módulo do posto, nas
capacitações ou nas andanças pela comunidade perguntava sobre
aquela família. Percebia que algumas vezes ela mudava a rota para não
se encontrar comigo, com aquelas perguntas. Com as nossas idas mais
constantes à casa de Dona Etelvina, as conversas na volta para o posto,
percebia uma certa mudança em Daniela, que não desvia o olhar.
Certa vez, me disse que Fabiano estava mais calmo, mais tranqüilo, que
não estava mais xingando-a com palavrões, mas que estava se
mostrando muito resistente a realizar a fisioterapia nas pernas. Este era
o momento que mais o deixava nervoso.
Interessada por saber mais da praça, de Fabiano, por demorar-me mais
naquilo que trazia brilho à vida e viço ao corpo, fui até a Fronteira
encontrar-me com Dejair. Esta mulher era a antiga ACS daquela
família. Em nossa conversa, Dejair nos contava que Fabiano era uma
‘pessoa normal e saudável’(sic). Trabalhava na prefeitura e gostava de
andar nestas bicicletas bem altas. Dizia também que Fabiano sofrera um
espancamento em uma estrada quando ia a uma festa na região Serrana
do município com sua bicicleta. Acreditava ter sido uma briga, mas não
sabia ao certo dizer o que houve nem como Fabiano conseguira
sobreviver tamanha fora a violência sofrida. Após essa agressão, ficou
na cadeira de rodas sem poder andar. Dejair achava que seu nervosismo
veio depois de ter levado muita pancada na cabeça, por não conseguir
mais andar e por ter perdido a forma da vida que tinha antes.
Aqui na fronteira, começou a ir ao CAPS, mas depois ocorreram
problemas com transporte. Uma hora o carro não pegava, noutra não
tinha carro ou não tinha gasolina. Começaram a atendê-lo na
comunidade com a ajuda da equipe de saúde mental. ‘O nosso trabalho é
criar vínculo e ajudar a pessoa no que ela precisa. E Fabiano precisava
de carinho, de afeto’ (sic). Dejair passava na casa dele quase todos os
dias e levava-o para o trailler da pracinha. O vizinho sempre os ajudava
154
na locomoção com a cadeira de rodas. A ACS ainda continuava a
narrar: ‘Ali na praça ele conversava com um, com outro. Via a
movimentação do bairro me pedia para chupar o geladinho (picolé de
sacolinha)... Quando tinha dinheiro comprava, quando não tinha dizia e
ele não se importava. Queria mesmo é ficar na praça. Às vezes deixava-o
ali e ia fazer outras visitas na minha área e depois passava para pegá-lo.
Nisso ele ia conhecendo as pessoas. Conheceu até um rapaz que o
pegava três vezes na semana junto com Dona Etelvina para irem à
igreja. Quando perguntava ao Fabiano como estava na igreja, ele dizia
que estava uma benção! Às vezes chegava na casa dele e ele estava com
a cabeça toda tapada pelo cobertor e não queria conversar. Quando
dizia que eu ia embora ele me gritava sorrindo. Ele não tinha vergonha
de mim. Cortava a unha dele e um outro vizinho sempre o ajudava a
fazer a barba. Ele tinha muitas vontades, e às vezes era agressivo com
Dona Etelvina. Se eu chegava e via alguma mancha vermelha na mãe
dele logo ia perguntando. Falava sério com ele e ele me ouvia. Não tinha
medo de quando ficava agitado, ele tinha vínculo com a gente e isso era
o principal para conseguirmos nos entender’.
A conversa com Dejair trazia novo alimento à própria pesquisa, interferia
intensivamente e nos fazia perguntar: como a vida comparecia em brilho e viço nos
olhos de Fabiano ao falar da Fronteira? O que podemos experimentar quando habitamos
a fronteira? O que haveria de fronteiriço neste habitar?
As inquietações de Daniela, ACS de Nova Holanda, e sua relutância em olhar para
aquela família nas inúmeras passagens pela sua área de atuação adscrita, nos indicam
que a adscrição por si não garante o sustento de uma prática de cuidado onde o
vínculo se faça presente. Haveria que se fazer em Nova Holanda, na própria prática
daquela ACS e da equipe de saúde mental uma experiência de fronteira.
Procurando acerca dos diversos sentidos dados a esta palavra, podemos trazer alguns
que nos ajudem não nesta discussão, mas também em fazermos aqui esta
155
experimentação de estarmos na fronteira. Alguns sentidos da fronteira
75
aparecem
como: o limite entre duas partes distintas’, ‘representa muito mais do que uma mera
divisão e unificação de pontos diversos, determina a área territorial precisa de um
Estado’, ‘delimitações territoriais e políticas’, ‘representa a autonomia e a soberania
perante outros’, ‘faixa do território, situada em torno dos limites. No ponto preciso e
exato em que estes limites chegam ao seu fim é que se pode falar de fronteiras’.
Por muitos momentos, olhamos a fronteira como aquilo que nos separa, como aquilo
que nos ‘o ponto preciso e exato’ para nos sentirmos seguros e certos de nossos
limites e até mesmo daquilo que somos. Parece-nos que podemos problematizar aqui
certos modos de olhar hegemônicos através dos quais, muitas vezes, nos movemos em
nosso cotidiano numa espécie de visão bifocal. Nesta visão, ora enxergamos o que está
mais distante como uma realidade objetiva e independente de nossa capacidade
perceptiva; ora enxergamos o que está muito perto acreditando que toda a experiência
humana é justificada como uma construção da mente, e que portanto, todas as respostas
estão somente em nós mesmos. Sofremos com essa visão bifocal quando, aos nossos
olhos, acreditamos que nossas experiências se explicam por um mundo real separado ou
por um sujeito real separado. (Varela, Thompson, Roch, 2003)
O que vemos parece contornado e delimitado por essa visão bifocal. Focados, deixamos
de ver o que está no limite dessa visão, nas suas bordas. De certo modo, podemos dizer
que essa visão bifocal, também produz uma cegueira no modo como temos apreendido a
a fronteira. Quando acreditamos em nossa suposta unidade e independência do mundo, a
fronteira também é tomada como algo ameaçador de nossas identidades. Distanciamo-
nos dela acreditando que tudo que nela se movimenta, tudo que nela é gerado pode nos
fazer mal. Por outras, nos aproximamos, a espera de encontrar algo para além da
fronteira que irá prover nossas necessidades, acreditando-nos carentes. Nessa visão,
também produzimos uma vida, por vezes, impotente e separada de sua capacidade de
acontecer, de viver, de se misturar e de encontrar quando aquilo que nos acontece, que é
um efeito de um encontro, vira essência em nós.
75
Ver em http://pt.wikipedia.org/wiki/Fronteira. Acesso: 16.07.09
156
Por certo, a irregularidade e complexidade de nossas vidas extrapolam esses focos,
exigindo-nos uma ampliação da visão, para que possamos ver a natureza de co-
dependência da realidade, do mundo e de nós mesmos. De algum modo, intuíamos que
era no cultivo desta natureza, de seu plano relacional e processual que uma outra
experiência de fronteira habitava os olhos irradiantes de Fabiano: nela não se via
carente, nem fadado a ressentir-se ‘pela vida que perdera’.
Se afirmamos neste plano, a não solidez e impermanência da realidade e também o fato
de tanto o mundo como nós mesmos não possuirmos uma substancialidade inerente
poderíamos pensar que estaríamos aqui tentando negar toda a concretude daquilo que
vemos e vivemos, e das muitas formas de vida nas quais nos movimentamos. Ou então,
acreditarmos em uma segunda possibilidade onde o ponto não estaria mais na negação
do que quer que seja, mas na descoberta do processo que anima as formas, que anima o
que somos. Se de certo modo, percebemos a existência de ao menos dois caminhos
possíveis para nos movimentarmos e ficamos nos perguntando: ‘mas qual escolher? Por
onde ir?’, compreendemos que a resposta não é ter que escolher um ou outro caminho.
Quando ampliamos nossa visão, experimentamos a processualidade que gera a solidez
das identidades, das objetivações, que está nelas como princípio ativo de construção; e
também vemos na processualidade a emergência das formas. Aqui, o que nos interessa
de fato é entendermos que o acolhimento não faz escolhas: partimos de onde é possível,
começamos com o que temos à mão. Se o início de uma relação poderia ser construída
entre a equipe e esta família no cuidado com a medicação, com a viabilização de
consultas médicas para Dona Etelvina e da cadeira higiênica para Fabiano, que de fato,
o fizéssemos. Começamos por onde nos sentimos mais seguros, com a aparente solidez
daquilo que vemos e fazemos, para então trabalharmos nas identidades, nas formas
muito cristalizadas, acolhendo e compreendendo que dentro das formas seu lado de
fora, um fora no dentro, que as produz.
Construirmos práticas de cuidado que cultivem a vida em sua expansão, em sua
capacidade de produzir protagonismo, autonomia e reinvenção de si mesma, em nada
nos aparta do modo como temos tomado e operado no/com o território. As narrativas de
Dejair, nos indicavam que haveríamos de fazer nesta viagem uma experiência de
fronteira compreendendo que o mundo não é independente de nós, não nos é dado de
157
antemão, mas é algo que construímos juntos a partir do modo como respiramos, como
tocamos, como conhecemos.
***
A respiração um tanto quanto tensionada, seguia conosco nas passadas
pelas ruas de Nova Holanda. Estávamos indo à casa de Fabiano e Dona
Etelvina, mas estranhamente algo se fazia diferente para o cartógrafo. A
iniciativa da visita partira dele, o convite à ACS e a Terapeuta
Ocupacional da equipe de Saúde mental foi feito e acolhido por aquelas
mulheres. Se tanto o cartógrafo fazia uma experiência de
acompanhamento, sentia naquele momento que também era
acompanhado. Na chegada à casa daquela família, conversamos um
pouco mais com Dona Etelvina. Fabiano por debaixo das cobertas ainda
não tinha tomado seu café. passavam das 10:00 horas, mas Dona
Etelvina falara que ele não tinha fome. Com um desejo já há muito
cultivado nas idas àquela casa, convidei Fabiano para sairmos de casa.
me vinham aqui as lembranças do homem do conto Kafkaniano, que
tinha como intento em sua viagem ‘sair para fora daqui’. Fabiano aceita
prontamente o convite, mas Dona Etelvina mostra-se resistente. Dizia
que o sol estava muito quente, que era tarde, que Fabiano poderia
criar problemas e não querer voltar... Uma situação nova para ela
também: a saída de Fabiano para fora dali. Por certo, como aquele
homem viajante de nosso conto, não tínhamos provisões, nem certezas
prévias de como seria nossa saída, do que iríamos encontrar. Para fazer
este caminho nhamos de nos arriscar, mas era também que residia a
nossa aposta: de que seria naquela experiência que haveríamos de
encontrar o nosso sustento. Fabiano firmara-se com nossa ajuda para
sair pulando com a perna direita até a porta. É que havia uma pequena
suspensão de concreto que impedia o acesso livre à porta. Passávamos
por ela para que enfim, Fabiano se sentasse na cadeira de rodas. A casa
daquela família era nos fundos de um longo corredor no qual haviam
mais 3 casas. Passávamos também pelo corredor, para chegarmos ao
portão da rua. O sol convidava-nos a esta viagem contrastando com a
escuridão dos cômodos daquela casa de fundos. E quando parecia não
158
haver nada a dizer, Fabiano em seu encontro com o sol nos diz: “Estou
com fome, quero comer”. Fui com Dona Etelvina à casa e juntas
prepramos o café da manhã de seu filho. Os vizinhos passavam
esboçando cumprimentos tímidos quando surpreendidos pelo bom dia
efusivo de Fabiano.
Ainda emocionada em como aquele encontro pudera despertar tamanha fome em
Fabiano, recolhíamos também como sustento de nosso fazer o cuidado de ‘Uma vida’.
Deleuze (1995) radicaliza a idéia de vida, afirmando-a paradoxalmente como ‘uma
vida’ que não encontra referência em uma pessoa ou em um fato que a transcende, mas
em si mesma como potência singular de ação e reinvenção. O autor marca a importância
do uso do artigo indefinido ‘uma vida’, numericamente uma, mas multiplicidade
substantiva afirmando-a em seu processo de conectividade intempestiva, em constante
estado de criação e recriação. Para Deleuze:
A vida do indivíduo é substituída por uma vida impessoal, embora singular,
que produz um puro acontecimento livre de acidentes da vida interior e
exterior, ou seja, da subjetividade e da objetividade que acontece. [...] Uma
vida está em todos os lugares, em todos os momentos que atravessa esse ou
aquele sujeito vivo e que mede tais objetos vividos: vida imanete levando
acontecimentos ou singularidades que só fazem se atualizar nos sujeitos e nos
objetos. (DELEUZE, 1995, p. 15-19)
Neves também nos ajuda nesta compreenção ao nos dizer desta Vida
como ‘povoamento’ de variações intensivas/dobras que se atualizam em nós
e nas coisas como ‘entre-tempos e entre-momentos’ que não marcam um
tempo entre dois instantes, mas coexiste com o instante em seu povir.
(NEVES, 2002, p.103)
De algum modo parece-nos que o cultivo de nossa existência e daquilo que fazemos
juntos também se no cultivo desta vida impessoal, que está em todos os lugares
sabendo que as individualizações, as segmentações que atravessam e produzem o corpo
orgânico são “imanetizados em virtualidades, em entre-tempos, intervalos, corpos
159
informes, hecceidades, acontecimentos, singularidades em constante tessitura e devir”.
(Neves, 2002, p.105).
***
Enquanto Fabiano tomava seu café e apreciava a movimentação da rua,
tomamo-nos pelos braços Dona Etelvina e Eu e seguimos para um
passeio pela rua. O sol também podia ser experimentado por aquela
senhora que dizia não saber quanto tempo não sentia as bochechas
da face corar. Na volta do passeio, Dona Etelvina contava fatos novos
que estavam ocorrendo em sua vida. A filha que morava no Rio estava
construindo uma casa para ela e Fabiano irem morar lá. Parecia estar
animada, pois haviam muitos parentes. A vida estava mais difícil com
a ida para Nova Holanda. Dizia ela: ‘Na fronteira a casa era pequena,
mas do que adianta ter uma casa maior e a vida ficar pequena?’ Dona
Etelvina parecia perceber que não era a casa que havia ficado
pequena, mas o próprio viver.
era quase meio-dia e precisávamos partir. Fabiano resistia em voltar
para a casa. Por certo, me lembrara aqui de Idalina e de nosso passeio
pela praia quando tomamos aquele caldo do mar. O cheiro do mar que
nos invadia e nos embriagava fazia-se sol refletido naquela rua de Nova
Holanda. A saída para ‘fora dali’, parecia enfim explicar para que a
vida, as ruas e as praças haviam sido feitas. Mas o que voltar para casa
de fato seria?Nos havíamos então com um impasse: não poderíamos
ficar mais tempo com Fabiano fora, mas não podíamos obrigá-lo a
voltar. Não poderíamos também deixá-lo ali, porque isso seria um
descuido com Dona Etelvina, que não conseguiria ajudar Fabiano a
entrar na casa, e desde o início ela demonstrara esse medo tentando
até impedir que Fabiano e ela própria experimentassem uma outra vida.
De certo, a saída deste impasse também não estava em uma ou outra
posição, mas no modo como juntos faríamos. Por certo, podemos pensar
que o não-saber como lidar com este impasse, pode em muito nos afastar
e nos impedir de habitarmos uma experiência de fronteira. Neste medo,
muitas vezes nos distanciamos do outro, distanciamo-nos de nós mesmos
quando nos separamos de nossa capacidade de encontrar, de outrar.
160
Mas ali, algo se fazia diferente, quando não era incidido sobre ele uma
ação coercitiva, mas também quando não éramos tomados por uma mera
‘tolerância’. E é quando Fabiano começa a falar da perna atrofiada, e
da possibilidade de sua melhora. A terapeuta ocupacional se dispõe a
estar com Fabiano, a tocar em sua perna, a mesma que ele não deixava
a fisoterapeuta tocar. E é na possibilidade desse toque que Fabiano
entra em casa. Sabíamos que o que se dava, neste momento, não era um
certo ‘jeitinho’ para que Fabiano entrasse, mas a construção de um
sentido para esse voltar.
Parece que ao afirmarmos uma outra qualidade de cuidado e de conhecimento, podemos
perceber que o modo como cuidamos e como conhecemos modifica o que somos e o
mundo que habitamos. Compreender a natureza co-dependente de todas as coisas
produz um compromisso ético-político com a vida que construímos juntos. De algum
modo, é para nos empenharmos na construção desta vida que construímos juntos que
buscamos pensar a relação Saúde Mental e Atenção Básica em nosso contemporâneo.
Como temos construído nossas relações? Como tecer redes autopoiéticas de cuidado
que nos sustentem nas lutas cotidianas coletivamente? A aposta na produção de outros
modos de cuidado de nós e de nossas práticas requer de nós um cultivo de nossas
relações, deste plano do encontro no qual afirmamos a natureza co-dependente de todas
as coisas, da vida que construímos juntos. Compreender o primado deste plano coletivo
e relacional aliançando-nos com seu caráter processual e múltiplo de constituição
permite-nos uma ampliação de nosso olhar para as práticas de cuidado que temos
produzido entendendo que este fazer o está em um, nem em outro ponto, mas na
relação construída.
3.3 A experimentação da clínica como cuidado do/no território
De algum modo, tecermos redes entre a Saúde Mental e Atenção Básica na produção de
práticas de cuidado também nos permite construir o próprio olhar que temos de nós e do
que fazemos juntos. Neste fazer já podemos experimentar uma problematização da
própria pratica clínica.
161
Em uma das reuniões de capacitação que participamos com a Saúde Mental e a equipe
do PSF podemos pensar uma certa relação da clínica com o território quando este
coloca-se como plano de complexidade onde a clínica se desdobra. Se podemos pensar
uma ação no território enquanto espaço vívido que inaugura outras formas de
agenciamento terapêutico bem como outras possibilidades de conexão com os fluxos da
cidade e da cultura, cabe-nos então nos interrogar sobre a clínica que se insinua. O
que afirmamos como clínica? Como não situarmos a clínica como uma atividade de
consultório ou de qualquer serviço/estabelecimento reduzindo-a ao que está
objetivado?
Uma das falas que emerge no grupo tensiona essa discussão: “Infelizmente, às vezes a
gente na atenção básica tem que ficar como babá. A rede tá fraca.”
O que em nós e nos nós da rede enfraquece? O que diminui nossa potência quando nos
percebemos fracos? Será que podemos realmente apostar que o ser babá é uma
produção desta suposta fraqueza da rede, de nossas conexões? Que modos de se operar
a clínica com/no território podem ser problematizados quando acreditamos ser a função-
babá apenas um inconveniente?
Lancetti (2006) nos ajuda a pensar a experiência oficiosa do terapeuta em uma espécie
de função-bá trazendo outros sentidos para o ser babá. Bá, diz-nos o autor, ao invés de
babá, pois mais antigo em português, significa o mesmo que ama-de-leite, ama-seca,
preta velha
76
. Para o autor impera a necessidade de nos produzirmos em nossos modos
de cuidar através da clínica produzida no território nesta espécie de função-bá,
afirmando que é nela e através dela que se sustenta a continuidade de um tratamento, a
produção de vínculo e acolhimento, e a disposição em cuidar de nossas relações. Posto
que, esta experiência oficiosa constitui-se na “disposição para cuidar e nunca desistir”
(p.106)
Não seria a experiência-bá uma experiência do acompanhamento? Muitas vezes o “ficar
como babá” percebido pelos trabalhadores, refere-se ao acompanhamento dos processos
de intervenção ou de encaminhamento que dão sustentação à continuidade dos projetos
76
Ver em LANCETTI, A. Clínica peripatética. São Paulo. Editora: Hucitec, 2006.
162
terapêuticos. O grupo fala da necessidade de se intensificar a função-bá quando se
percebe que a rede está “fraca”. Mas, em meio a insistência para se garantir a
continuidade dos projetos terapêuticos é produzido também a sensação de desconforto e
inconveniência desta função.
Podemos dizer que ao falarmos aqui da função-bá sinalizamos para a experiência de um
acompanhamento paradoxal naquilo em que tensiona em nossas práticas a produção do
cuidado e da tutela, da expansão e do constrangimento da vida. Devemos estar alertas há
alguns perigos que rondam aqueles que acreditam que o acompanhamento seja uma
simples tarefa. Alguns terapeutas, nos diz Lancetti (2006), “acompanham o ir e vir de
uma pessoa acreditando que o cumprimento de uma tarefa se resume a sua ação.
Espécie de ação de soma que iria compor magicamente a subjetividade ou o que é mais
grave, uma espécie piegas de adaptação”. (p.105)
Será somente a produção de um sentido de inconveniente do exercício da “função-babá”
que é compartilhado pelos trabalhadores? Ao operar uma prática de acompanhamento
dos processos de trabalho (encaminhamentos com garantia de atendimento,
compartilhamento dos casos) não estaríamos produzindo resistência aos “formalismos”
das redes frias? Não poderiam indicar a afirmação de outros modos de ação?
Passos e Benevides (2003) nos ajudam a recolocar o problema da clínica, uma vez que,
para instaurarmos processos disruptores com/nas práticas de cuidado orientando a
organização dos serviços em busca de transformações para a saúde e para a vida das
pessoas, temos como desafios não somente o enfrentamento de problemas concretos,
como também a criação de novas questões. Desse modo, os autores nos fazem pensar
que este duplo aspecto é, pois o que a clínica nos coloca.
De um lado, a clínica se apresenta como um campo de problemas a serem
resolvidos exigindo um esforço intelectual de construção de estratégias de
intervenção. De outro, ela se constitui como um plano problemático a ser
criado exigindo o esforço intuitivo de desmontagem dos problemas
estabelecidos e a invenção de novos problemas, de novos modos de
existência (PASSOS; BENEVIDES DE BARROS, 2003, p.84)
163
Se não compreendemos a clínica como uma especialidade e sim como uma experiência
podemos então recolocar o problema da clínica perguntando-nos conforme os autores
mencionados ‘o que pode a clínica?’ ou o que nela se passa. O que se passa na
experiência do acompanhamento? Compreendermos a clínica como uma experiência,
traz à cena o paradoxo de ela mesmo ser confrontada em sua prática com a dimensão de
não-clínica. De algum modo, é nesta zona de indiscernibilidade onde saberes e objetos
são inseparáveis que o exercício clínico se faz, trabalhando nas formas, nos seus índices
ativos, intensificando as aberturas e produzindo-as em muitos momentos.
Forçando sempre os seus limites ou operando no limite, a clínica se apresenta
como uma experiência do entre-dois que não pode se realizar senão neste
plano onde os domínios do eu e do outro, do si e do mundo, do clínico e do
não clínico se transversalizam. (BENEVIDES DE BARROS; PASSOS,
2004, p. 279).
A construção de uma outra postura neste exercício clínico nos é exigida quando não
bastam mais os recortes binarizantes e excludentes operados pelo paradigma da ciência
moderna que simplifica os problemas numa ação purificadora e deputariva. Colocamos
então o desafio de superarmos os antigos isolamentos entre as disciplinas/saberes
produzindo um atravessamento dos mesmos, não em seu interior, mas entre eles. Somos
forçados a pensar a complexidade como o problema das fronteiras dos objetos e dos
saberes.
Esta complexidade comparece na experiência limiar dos modos de se operar na atenção
básica quando percebemos que a clínica no território se exerce em uma condição
minoritária. Fora dos espaços fechados de reclusão e fora de uma lógica manicomial que
força os limites identitários das disciplinas e saberes, vivemos uma experiência preciosa
de deslocalização de uma suposta clínica objetivada, garantida pela previsilidade dos
saberes e resguardada por quatro paredes. Entendemos desta maneira que se uma
localização para a experiência da clínica que queremos aqui afirmar, esta se sempre
no plano de imanência, de produção da existência, o que por sua vez continua a
deslocalizá-la, tendo em vista vivermos neste plano uma experiência de
indiscernibilidade, de inseparabilidade de sujeito e objeto, de mim e do outro.
164
Muitas vezes confundimos a condição minoritária com a qual nos encontramos nesta
experiência com uma condição de menoridade, de uma ‘clínica menor’, e com isto
endurecemos nas passagens que essa experiência pode operar buscando um saber
supostamente capaz de emprestar-nos uma identidade.
Para Deleuze e Guattari (1997a) uma maioria é sempre numerável e supõe um estado de
dominação. A minoria, por sua vez, se define como um conjunto não numerável,
independente do número dos seus elementos. A minoria faz valer a potência do
inumerável, que não se mede por sua capacidade de se impor no sistema majoritário,
mas justamente de fazer valer uma força dos conjuntos não numeráveis. Ela é a fórmula
das multiplicidades, é devir de todo o mundo (Idem, 1997b). “No entanto, é preciso não
confundir ‘minoritário’ enquanto devir ou processo, e ‘minoria’ como conjunto ou
estado” (Deleuze e Guattari, 1997a, p. 88). O minoritário diz daquilo que foge ao padrão
dominante do socius: “todo devir é um devir minoritário” (Idem, p. 87).
que estarmos aqui, atentos a este mal estar da minoridade e uma desatenção com o
que esse modus operandi tem de devir-minoritário: constituir-se numa operação de
desinstitucionalização da própria clínica. Pensar uma micropolítica ativa e viva nos
processos de constituição do cuidado requer de nós uma reversão desta condição de
minoridade para uma potência minoritária.
A experiência de acompanhamento vivida marca-se, muito mais, pelos percursos do
caminhar do que pelos lugares de partida ou de chegada. Atenta às articulações com o
fora, às conexões possíveis e aos planos de consistência que se conquistam, estas nos
parecem ser as pistas para viver este processo de experimentação e acompanhamento
que é sempre de aprendizagem. A clínica trabalha com essa experiência de produção,
sendo ela mesma produtora. Trabalha em um plano de encontro, plano de produção da
vida, no entre-dois, fazendo-se ela mesma como potencializadora de novos encontros.
***
São incríveis os encontros que podem acontecer na experiência do
trânsito, do ir e vir por aquelas ruas, sem ter lugar de partida ou de
chegada. Nossas passadas se cruzaram em uma das andanças pelo
território. Intuíamos ali a feitura de um território que não se constituía
165
apenas como a ‘Rua 02 do bairro de Nova Holanda’. Logo adiante havia
a mercearia de seu Juca, o som estava animado. A música alta e
dançante fazia parecer que era dia de festa. Olívia estava na rua, com
uma muda de saião
77
em suas mãos. Alegrou-se logo em nos ver, com um
sorriso acolhedor e nos disse que estava se cuidando, pois o resfriado
era forte e estava atrapalhando-a a cantar. Explicando-nos o efeito
medicinal do saião demonstrava uma certa aprendizagem afetiva deste
cuidado quando lembrava-se que este ensinamento havia sido
transmitido por pessoas especiais em sua vida. Com a voz ainda rouca,
Olívia ensaiava pequenos versos melódicos. Contava das composições de
músicas que havia feito e que uma delas até havia sido escolhida para
um carnaval de rua. O canto parecia trazer-lhe vida e produzir uma
experiência de cuidado consigo mesma. Sentia-se potente quando
cantava. A equipe de saúde mental lembrava-se de sua música em alguns
momentos que Olívia havia ido às oficinas e emprestado vida a todos
com seu canto.
***
Noutro dia, Olívia vai ao posto de saúde dizendo que estava muito mal e
que estava pensando em se matar. Pedia para ser internada. Era
paciente psiquiátrica e já tinha passado pela vivência de internação
outras vezes. Chegou naquela comunidade cerca de 04 anos atrás,
perambulava pelas ruas, quando pediu abrigo a Seu José e desde então
vive com ele como sua mulher. A equipe de Saúde Mental vai à casa de
Olívia junto com o médico do PSF e a Agente Comunitária. Olívia
convida todos a entrar. A casa limpa, bem cuidada. Os quadros que
havia pintado nas oficinas estavam expostos na parede. O marido estava
trabalhando, mas havia dito à equipe que eles estavam muito tristes
desde o falecimento da netinha de 11 meses em maio, acometida por
meningite.
77
Planta com propriedades medicinais
166
Olívia ainda não havia contado de sua netinha, mas chora achando que
‘sua doença de cabeça’ havia voltado. No choro lamenta-se dizendo ‘eu
estava tão boa... Não quero mais essa doença’. Estou me sentindo
abandonada. Não consigo escrever mais as letras das músicas, fazer
mais as coisas como antes. Até minha letra está ruim, antes era bonita.
Embora a casa de Olívia estivesse bem cuidada, ela insistia em nos levar
à cozinha, pois ali dizia ela, veríamos como ela está toda desarrumada.
Olívia é aconchegada nos braços de Amanda (profissional da saúde
mental) e depois de instantes começa a dizer que também está assim por
falta de sexo. Queixa-se que o marido não mais ‘no couro’ como
antigamente. Que ela pensa em sexo o tempo todo.
A equipe preocupa-se se Olívia está tomando as medicações
corretamente. Olívia se queixa de alguns sintomas colaterais das
medicações, mas disse que parou de tomar porque o pastor de uma
igreja que estava freqüentando orou por ela e que Jesus ia lhe curar.
Que aquilo era uma bruxaria que tinham feito, mas que podia parar.
acabou piorando. Estava cantando no coral da igreja. Mas se
desentendeu com uma mulher de lá. Diz que essa mulher ficou com
inveja dela porque canta bem. Parou de ir à igreja, mas sente-se triste
porque gosta de cantar. Fica alegre quando canta.
A equipe pergunta sobre outro lugar onde possa cantar, Olívia fala dos
bailes da 3ª Idade. Quando a equipe fala do CAPS, Olívia diz ‘Não gosto
do CAPS. Volto mal humorada de lá. Não volto bem não. vejo gente
pateta, doente. Eu gosto de ver gente sã. Gosto de andar aqui na minha
comunidade. Gosto daqui’
(Diário de Bordo, 03 de outubro de 2008)
De algum modo, na experimentação dos encontros gerados com/no território colhíamos
algumas pistas para o enfrentamento dos desafios que temos vivido no campo da saúde
quando pensamos na produção de práticas de cuidado que inaugurem em nós e em
nosso fazer uma prática ética de cultivo e expansão da vida. Ao longo de nossa viagem,
percebemos que pensar aquilo que se passa na intercessão Saúde Mental e Atenção
167
Básica é, não somente pensarmos a respeito da vida e da saúde que queremos cultivar,
mas em como experimentamos esse cultivo.
Neste como fazer, muitas perguntas acerca de nossa própria saúde nascem e se
desdobram em nós em nossos percursos do dia-a-dia. Quando encontrávamos com
Olívia de mãos entrelaçadas a uma muda de saião, também podíamos intuir que nestes
desdobramentos de nossas perguntas acerca de nossa saúde, de como cuidar de si, há,
sobretudo, uma pergunta pela
‘mistura’, pela melhor composição possível entre nossos corpos e os demais,
sejam estes grandes, pequenos ou minúsculos, sejam eles feitos desta ou
daquela matéria, estejam próximos ou distantes etc. E sabemos quantas vezes
repetimos diferentemente esse tipo de pergunta ao longo das nossas vidas,
pois é comum a experiência de passarmos por bons e maus encontros com
corpos que nos fizeram bem ou mau em diferentes circunstâncias, neste ou
naquele momento. (ORLANDI, 2009, p.02).
Para aquela mulher a mistura de seu corpo orgânico com a planta lhe trazia a confiança
de que a garganta melhoraria, de que a voz rouca e atrapalhada pelo resfriado se
recuperaria. Por certo, aparecia também a desconfiança da capacidade de obter
melhorias em sua saúde com o uso de psicotrópicos quando dizia que alguns deles lhe
causavam diversos efeitos colaterais. Nessa experiência do cuidar de si, como nos
aponta Orlandi (2009) somos, constantemente levados a nos perguntar a respeito do que
pode afetar nossa saúde corporal e mental impondo-se em nós uma espécie de estado de
alerta. Para nomear este estado de alerta ao qual nos vemos engajados quando nos
misturamos com outros corpos, Orlandi, empregando duas palavras usadas por Deleuze,
nos fala da confiança e da desconfiança
não apenas em relação à variabilidade das afecções que nos atingem, não
apenas em relação à potência vital que sentimos variar em nós, não apenas
em relação às forças que julgamos possuir a cada momento, mas também em
relação ao próprio “mundo”, em relação ao conjunto dos nossos encontros, ao
conjunto dos dispositivos, institucionais ou não, que enredam, cada qual a seu
modo, as possibilidades do nosso bem-estar e do nosso mal-estar (...) A
pergunta se impõe, justamente porque somos feitos dessas misturas
168
disparatadas, somos feitos dos nossos bons e maus encontros. (ORLANDI,
2009, p.02)
Se por vezes parecemos estar condenados a experiência desse estado de alerta, a de
pensarmos em nossa constituição numa oscilação intermitente entre boas e más
expectativas e que, por vários momentos, se manifestam como ‘dilacerantes curtos-
circuitos’, Orlandi nos traz uma preciosa contribuição ao afirmar a possibilidade de
interferirmos nestas oscilações do confiar e do desconfiar
E para serenidade do nosso ânimo, geralmente preferimos procedimentos que
julgamos serem capazes de tornar mais duradoura a confiança, simplesmente
porque é muito enervante permanecermos em constante desconfiança.
(ORLANDI, 2009, p.06)
Marcados em nossos encontros pela problemática da saúde mental e corporal, como
então podemos tornar a confiança mais duradoura?
O caminho que viemos empreendendo até o momento juntamente com Foucault ao
estudar o pensamento grego, nos permite pensar que a preocupação com um cuidado de
si, com a maneira pela qual nos conduzimos, implica-nos também na constituição de
nós mesmos como sujeitos éticos. É possível, pois falarmos de práticas de si, de modos
de subjetivação quando, neste movimento de cuidado de si, nos constituímos como
sujeitos de uma prática. Nos gregos, Foucault nos aponta que esta prática não se orienta
para a constituição de um quadro de prescrições ou para uma codificação dos atos, mas
para uma “estilização da atitude e uma estética da existência”. (Foucault, 1984, p.85).
Se em todos os momentos da vida havia sempre um exercício que poderia ser realizado,
muitas vezes acompanhados de algumas recomendações, regras de prudência e
sugestões sobre a maneira como realizá-los, Foucault, também insiste em apontar que
essas referências não funcionam como regras prescritivas a serem seguidas. Havia uma
liberdade tanto na escolha das práticas quanto na regularidade, porque o que estava em
questão não era seguir uma regra de vida, mas constituir uma arte de viver.
Parece-nos que a saída também apontada por Orlandi (2009), a respeito de como tornar
a confiança mais duradoura, reside também na construção de uma estética da existência.
169
Para o autor, promovemos neste movimento de transformar-se, a construção de uma
prudência, de uma postura ética que nos permite lidar com os acontecimentos da vida.
Neste caso
a prudência opera tanto na escolha de cuidados destinadas à vida mais
saudável, a um bem viver, quanto na sobreposição da confiança sobre a
desconfiança relativa a esses cuidados. Em conseqüência, intervalando-se
entre a confiança e a desconfiança no sentido de uma durável preponderância
daquela em relação a esta, a prudência ajuda a reduzir o tempo do nosso estar
à deriva dos curtos circuitos desse jogo que simplesmente nos adoece ainda
mais. (ORLANDI, 2009, p. 10)
De algum modo, quando nos havemos com a produção de práticas de cuidado no campo
da saúde e suas problemáticas, parece-nos que nossas perguntas necessitam passar pela
constituição de uma prudência que não se esgota no cuidado fisiológico de si ou de
nossa própria saúde atual. A prudência deve constituir-se como prática de acesso e
cuidado para além de nosso corpo orgânico, ligando-se ao que Orlandi (2009) denomina
como ‘algo forte demais’ que poderá potencializar a capacidade de reinvenção e criação
de um corpo que aqui chamamos de estético. Neste sentido, o autor nos indica que
o critério de seleção daquilo a que convém abrir meu corpo orgânico vem a ser sua
participação favorável no movimento pelo qual minha força de trabalho se compõe com
esse algo forte demais que sinto ser capaz de aliciar maximamente minha potência de
vida. É esse movimento em prol do meu envolvimento com algo forte demais que me
lança para além do princípio dos prazeres imediatos da minha vida, da minha saúde em
sua cotidiana atualidade. (ORLANDI, 2009, p.14)
De algum modo, podemos dizer que para o deslocamento de uma prudência, ao qual nos
referíamos do ponto de vista da vida em sua saudável imediatidade, é necessário ficar à
espreita deste algo forte demais, dos encontros que perturbam os contornos de nossos
modos de subjetivação atuais para a constituição de uma prudência que, enquanto arte,
está envolvida com as intensificações de uma vida. Nesta construção nos dedicamos à
produção de práticas de cuidado que não estejam simplesmente tomadas pela “forma
170
organismo que ‘cola no corpo’” (Orlandi, 2009, p.17), mas, sobretudo, à espreita dos
encontros como prática de cultivo da relação que torna possível uma vida, relação esta
que se passa
entre intensificações e o plano (ou planos) em que elas ganham uma
consistência co-determinada por elas mesmas. [...] Os cuidados com essa
relação fazem da prudência a arte de nos agenciar com aquilo que intensifica
nossa participação criativa e consistente no enfrentamento do caos.
(ORLANDI, 2009, p. 20)
Compreendemos, portanto, que nosso campo de experiências com acontecimentos sofre
aberturas não apenas à vida orgânica, mas também à vida não orgânica, de tal modo,
que algo mais pode nos acontecer que não apenas vivermos a vida engendrada nos e
pelos estratos. Cabe-nos então o cultivo de uma prática à espreita “não de outra vida no
além, mas de encontros intensivos que povoam uma vida a que temos acesso de quando
em quando” (Orlandi, 2009, p. 20)
Parece-nos que a pergunta com a qual nos deparamos na construção de práticas de
cuidado no campo da saúde segue, pois a interferir nos encontros com Olívia pelo
trânsito deambulante no/com o território, quando nos indagamos: Que vida cultivamos?
O que em nós queremos cuidar? Do que Olívia parecia se ocupar quando, de mãos
entrelaçadas àquela muda de saião, insistia em cuidar de seu resfriado?
De algum modo, Olívia já nos dava algumas pistas da importância deste cuidado
quando dizia que o resfriado estava atrapalhando-a cantar. Mas, o que seria este canto?
Aqui tomamos nota
78
de uma distinção feita por um músico de nosso tempo chamado
Olivier Messiaen
79
entre quatro tipos de canto de pássaros. O músico percebe que na
78
Para maior aprofundamento das conexões que aqui fazemos das contribuições deste músico, indicamos
ao leitor o estudo da aula – Corpo Orgânico e Corpo histérico do filósofo e professor Claudio Ulpiano.
Disponível em: http://www.claudioulpiano.org.br/aulas_040195.html. Acesso em 24.04.09.
79
Compositor, organista e professor francês, Olivier Eugène Prosper Charles Messiaen nasceu a 10 de
Dezembro de 1908, em Avignon, França. Apaixonado pelo canto dos pássaros e após um meticuloso
estudo ornitológico criou obras musicais complexas inspiradas nas sonoridades das aves, como Le Réveil
des Oiseaux (1953), Oiseaux Exotiques (1956) e Catalogue des Oiseaux (1959).
Disponível na www: <URL:
http://www.infopedia.pt/$olivier-messiaen>. Acesso em 24.04.09.
171
primavera, quase todos os pássaros fazem o canto do amor. Este canto, geralmente feito
pelos machos, é um tipo de canto de sedução que tem uma função específica: serve à
espécie porque o amor permite a reprodução; e isso acontece em todas as primaveras, é
realmente um canto da primavera. Um outro tipo de canto indicado por Messiaen, é o
grito de alarme, entendido por todo e qualquer pássaro através do gorjeio servindo à
preservação da espécie contra os perigos que ameaçam a sua existência.
O músico também nos fala de um terceiro canto que alguns pássaros fazem para o
crepúsculo - no anoitecer e na alvorada - quando uma claridade frouxa precede a
escuridão da noite ou o clarão do dia, quando o dia é marcado pela mistura de seu início
e de seu fim. Segundo o músico este é um canto gratuito de infinita beleza produzido
pelo pássaro, não importa os perigos que ele corra. Parece notar também, que quanto
mais forte for o crepúsculo, quanto mais se espalhar a cor violeta e quanto mais bonita
for a aurora; mais esplendoroso é o canto do pássaro.
Os diferentes cantos do Tordo
80
nos ajudam a habitar uma certa experimentação no
encontro com Olívia quando temos tensionada uma importante discussão acerca da vida
que queremos cuidar e cultivar nas práticas de saúde que produzimos. O canto da
primavera e o grito de alarme marcam claramente a existência de um corpo orgânico,
que parece estar sempre a serviço da espécie e da conservação da vida. Estes cantos nos
aproximam das muitas práticas de cuidado que pomos a funcionar, quando também
entendemos que nos processos de produção de saúde um corpo orgânico que
acessamos e que pretendemos conservar. Mas se afirmamos aqui a necessidade de
produzirmos um cuidado para além e aquém de nosso corpo orgânico, podemos
experimentar no canto gratuito do pássaro a dimensão de constituição de um corpo
estético: um canto que não possui nenhum objetivo orgânico que não presta nenhum
serviço ao organismo ou à espécie. Numa atitude de espreita, os pássaros têm a
construção de um corpo estético quando tocados, de tal forma, pelas luzes da claridade e
80
O nome do ssaro em português é TORDO e em francês “GRIVE”. Para nossa discussão trazemos os
quatro tipos de canto: o da primavera, o grito de alarme, o canto territorializante e canto gratuito também
conhecido como canto do crepúsculo.
172
das cores que o crepúsculo e a aurora produzem que seu canto emite ondas rítmicas que
se encontram com as forças da natureza em suas luzes e coloridos.
Um quarto canto também estudado por Messiaen chamado de canto territorializante
também nos ajuda a pensar na constituição de práticas de cuidado no próprio território
quando entendemos que aquilo que constitui o que chamamos de território é também a
própria vida movente em nós e no outro. Para o músico, este canto está presente em
muitas óperas famosas e destina-se a marcar a construção de um território. Mais bonitos
e mais fortes do que os cantos do amor primaveril, acontecem em meio a uma espécie
de torneio dos pássaros não havendo críticos entre eles. O canto do território abre a
possibilidade dos pássaros cultivarem consigo e com o outro uma relação ética onde
aquele que canta com mais beleza fica com o território e ali faz seu ninho, sua morada.
Parece-nos que é do canto gratuito e do canto territorializante que Olívia nos fala
quando insiste em cuidar de sua voz. A vida parece ficar triste e sem sentido quando
não consegue escrever suas músicas, quando até mesmo sua letra parece estar ficando
feia. De algum modo, percebemos com Olívia que aquilo que nos move na feitura de
nós mesmos, de nossa vida e dos modos como nos cultivamos na relação com o outro
não se passa apenas pelo prudente enfrentamento de um problema de resfriado imediato.
Aquilo que nos move, é também o que move o canto gratuito do pássaro mesmo que
ainda corra riscos. Aquilo que nos move na produção de um canto belo que cultive
nossa existência como construção de moradas. Aquilo que nos força a ocupar o tempo
que ganhamos, quando nos precavemos de ações prudentes que possam cuidar de nosso
corpo orgânico, mas que interroguem em nós o quanto produzimos em nossos cantos
uma vida tecida em sua complexidade como potência singular de ação e reinvenção de
nós mesmos. É que sabemos que uma prudência pouco preocupada com a constituição
de um corpo estético, de uma arte de viver é, muitas vezes,
capaz de mediocrizar a existência, de reduzir nossas forças vitais a uma
medíocre contenção do nosso desejo ou de promover nossa adequação a uma
esfera de prazeres duvidosos do ponto de vista de uma vida envolvida com a
complexidade de sua própria potência. [Há, portanto, que nos perguntarmos]
que possibilidades de escolhas e ações prudentes estão ou podem ser abertas
em meu campo de experiências? Que fazer do tempo porventura ganho ao
longo desses cuidados? (ORLANDI, 2009, p.11)
173
***
Aceitara então, participar de uma oficina com a saúde mental no posto
anexo da Rua 03, logo ao lado de sua casa. Era tarde de quinta feira
quando Olívia aparece para compor o grupo que ali se construía com
outros moradores de Nova Holanda, trabalhadores daquele posto e a
equipe de saúde mental. Os flashs de sua casa toda arrumada e a
insistência de Olívia em nos mostrar a cozinha por ser o lugar
‘desorganizado’ de sua habitação, nos arrepia a pele. É que Olívia
trazia o corpo perfumado, enfeitado por batom e rouge avermelhados e
carregado de muita inquietação. Um descompasso sentido pelas pernas
que insistiam em balançar para todos os lados trazendo as marcas de
seu desassossego. Dividida entre ficar e partir, de arrumar e desarrumar
a casa e a si mesma, Olívia começa a cantar. O grupo a acompanha na
melodia e todos os que ali estavam, não parecem divididos em seus
‘problemas’, suas funções... As divisões se desfazem e nesse movimento
também se dissolve o desassossego de Olívia. O corpo podia ficar ali
quando experimenta no canto um sentido para sua existência, para fazer-
se como morada.
Na experimentação desta viagem percebemos que a construção de práticas de cuidado
que possam fazer da existência uma arte de viver, sustenta-se no cultivo de uma prática
ética onde o cuidado consigo, com o outro e com o mundo se faz quando cuidamos da
dimensão coletiva e relacional de nossa existência.
174
CONSIDERAÇÕES FINAIS
"Nossos trilhos podem nos conduzir absolutamente por
toda parte. E se encontramos, às vezes, uma velha
ramificação do tempo de nossa avó, muito bem, a
tomamos para ver onde ela nos levará. E, palavra de honra,
entra ano sai ano nós acabaremos descendo o Mississipi de
barco, muito que tenho vontade. Já estamos cansados
das estradas à nossa frente, para preencher o tempo de uma
vida, e é justamente o tempo de uma vida que quero
aproveitar para terminar minha viagem"
(Bradbury apud Deleuze, G; Parnet, C. 1998, p. 119).
A epígrafe que escolhemos para abrir as últimas considerações deste trabalho nos parece
um bom tom para afirmar não somente o fim do texto, mas a aposta que nele e com ele
fazemos: como aproveitar o tempo de uma vida? Como cuidar da vida, de nós e do que
fazemos juntos? Como produzir práticas de cuidado que expandam à vida em sua
capacidade de invenção e transformação?
De algum modo, ao tomar nota deste texto de Bradbury em seu livro Diálogos, Deleuze
(1998) já trabalhava com a idéia de interferência acreditando que toda e qualquer
‘entrada é boa, desde que as saídas sejam múltiplas’. Por certo, as apostas e aspirações
que nos moveram nesta viagem, à tecedura dos encontros entre Saúde Mental e Atenção
Básica, puderam ser sustentadas na medida em que o próprio pensamento pôde ser
construído nas interferências e ressonâncias que este encontro opera em nós e em nossas
práticas.
Foucault também nos ajuda a pensar que aqui se trata de uma aposta ético-política
quando pretendemos não refletirmos sobre o que queremos cuidar em nós, mas na
inseparabilidade da ação, também produzirmo-nos de outros modos. De alguma
maneira, já intuíamos que o sentimento de cansaço, falta de fôlego e de se estar só, com
os quais nos havemos constantemente em nossas inúmeras viagens, e aqui destacamos
as do campo da saúde, parecem ser mais intensos à medida que nos perdemos de uma
prática de cultivo ético da relação entre nós e os outros. Neste sentido, nos distanciamos
também de um cultivo da liberdade frente a tudo o que nos acontece sofrendo por uma
visão bifocal e presente nos modos hegemônicos de conhecimento na modernidade que
175
ora acreditam na existência de um mundo real separado ou/e de um sujeito real
separado. De certo modo, isto nos leva a interrogar não o modo como cuidamos, mas
também como conhecemos, quando nosso fazer perde-se do próprio movimento
processual e múltiplo no qual a vida se constitui. E é que também vivenciamos uma
prática de cuidado que em muito objetifica a nós e ao outro, produzindo uma vida
individualizada e distanciada de sua capacidade de invenção e transformação. Bem
sabemos que a produção de práticas de cuidado que apostem na construção de uma vida
compartilhada e solidária se faz no acesso e cultivo da dimensão coletiva e relacional
que constitui tanto nossa existência quando o mundo que construímos para nós. Esta
parece ser a aposta que também fazemos ao longo de todo o trabalho para pensarmos a
interface Saúde Mental e Atenção Básica em nosso contemporâneo.
Foucault já nos ajuda neste entendimento, quando percebemos que o autor busca na
antiguidade inspiração para os estudos da subjetivação e de uma outra relação com o
outro e com a vida que implique a liberdade. Ao notar que o cuidado de si é sempre
acompanhado de uma prática que possibilite, de forma cotidiana, uma desaprendizagem,
o abandono de hábitos tanto arraigados em nossos modos de vida para uma
transformação do ser; Foucault também nos mostra a possibilidade de pensarmos que a
prática de si nos auxilia não somente na construção de um outro modo de ser, mas,
principalmente, a compreendermos o processo de produção do ser, a conhecermos
nossos funcionamentos.
O início de nossa viagem parece ser marcado por um impasse quando percebemos que
para fazê-la, haveríamos de construir, ao longo do caminho, um modo de fazer a
viagem. com o conto Kafkaniano intuíamos que o caminho seria o da
(des)aprendizagem cujo exercício de construção fazia-se duplo, quando marcado pelo
desapego de metas prévias ou provisões para a produção de um modo de fazer, de uma
prática ética (ethos) onde o cuidado de nós mesmos e do que fazemos juntos pudesse
nos sustentar nesta experiência. E parece-nos que é nesta prática de (des)aprendizagem
que também podemos construir um caminho ético para a feitura de um modo de fazer o
processo de produção de saúde na interface Saúde Mental e Atenção Básica, que assuma
riscos, que viva na experiência o não saber apostando na invenção e na construção de
práticas que não nos aprisionem ao terreno da normatização.
176
Certamente, cabe-nos aí um exercício ético-estético e político de abrirmos mão de
concepções apriorísticas e essencialistas que fixam as práticas e os processos sociais de
forma dicotômica exigindo de nós e em nós, tanto nas cavalgadas pelo campo de
pesquisa como nas caminhadas pelo território da atenção básica com/no qual
trabalhamos; a criação de um modo de fazer os percursos que nos permitam acolher os
movimentos instituintes que emergem no campo. Afirmamos, pois, um ethos que coloca
como exigência dos/nos processos de produção de saúde o cultivo de nossas relações,
quando percebemos a necessidade de acessarmos esta dimensão coletiva da vida e de
nossa existência, em nossas práticas no campo da saúde. Parece-nos que é neste cultivo
que também reside o renovo de nosso fôlego, do ânimo e de uma maior leveza em
nossas lutas, quando experimentamos neste cuidado de si e do outro, o cuidado dos
próprios processos pelos quais somos constituídos.
De algum modo, sabemos que este modo de operar, implica-nos com a produção e
ativação deste plano coletivo, cujo desafio de colocar em análise os processos de
institucionalização vividos no próprio campo da saúde nos convoca, cotidianamente, a
habitarmos o plano paradoxal de constituição do próprio SUS. Ao vivermos esta
experimentação de viagem neste trabalho, buscando pensar o que se passa entre Saúde
Mental e Atenção Básica, não estaríamos buscando um transcendente como algo que
nos remetesse a coordenadas espaço-temporais ou pontos fixos de referência que
explicassem toda e qualquer variação de nossos percursos.
A convocação de um modo de fazer esta intercessão que oxigene o SUS em seus
movimentos instituintes e revigorem a dimensão pública de todo processo de saúde,
exige de nós e em nós, o desprendimento de modelos pré-definidos que tendem a se
tornar limitadores para a ação prática implicando-nos, necessariamente, em ultrapassar
as fronteiras, muitas vezes rígidas, dos diferentes núcleos de saber/poder que se ocupam
da produção da vida ativando em nosso dia a dia, um processo contínuo de contratação e
pactuação dos diversos atores envolvidos no processo de produção de saúde.
Falarmos deste processo contínuo de pactuação implica-nos em estarmos atentos ao
debate que neste trabalho também pudemos experimentar quando apostamos que a
produção do cuidado no campo da saúde efetiva-se com/na tessitura de redes instituintes
aquecidas nos/pelos encontros-agenciamentos que fazemos. Cabe-nos, pois, pensarmos
177
em uma prática ética de produção de cuidado que nos coloca o desafio de aquecermos
as redes instituídas no campo da saúde, naquilo que nelas e através delas produz
movimentos de expansão e afirmação do cultivo de uma vida democrática e solidária.
De algum modo, na experimentação dos encontros gerados com/no território colhíamos
pistas para o enfrentamento dos desafios que temos vivido no campo da saúde, quando
também, reconhecemos a necessidade de respeitarmos e apoiarmos a existência de
outras redes que se constituem cotidianamente para além e aquém do campo da saúde.
Redes afetivas de solidariedade e partilha que sustentam a produção de uma vida no
território como potência de ação, reinvenção e luta frente aos processos de exclusão,
miséria e abandono produzidos pelo capitalismo, e contra os quais também estamos em
constante enfrentamento quando pensamos na produção de práticas de saúde. Neste
sentido, podemos também afirmar a necessidade de habitarmos o plano de constituição
da atenção básica realizando uma aposta protagonista da ação no território. De algum
modo, somos convocados nesta aposta, ao questionamento e reinvenção do modo de
organização do sistema de saúde e sua lógica de processo de trabalho; afirmando como
básico em nossas ações pensar a inseparabilidade entre produção de saúde, produção de
subjetividade e produção de territórios afetivos; entendendo, pois que a produção de
cuidado no território se faz na contra-mão dos processos de privatização da vida, de
autoritarismo e violação dos direitos humanos.
Se na interface Saúde Mental e Atenção Básica temos feito um aposta da ação no
território tomando-o em sua complexidade e capacidade de produzir-se como território
de encontros, entendemos que esta complexidade também se estende às equipes da
Estratégia de Saúde da Família e, de modo especial, ao Agente Comunitário de Saúde.
Neste sentido, afirmamos a importância de considerarmos o cuidado deste profissional
como um segmento privilegiado do processo de produção de saúde, e que nesta
interface – Saúde Mental e Atenção Básica – também precisamos cuidar.
Vivermos esta prática de cuidado implica-nos em uma experimentação da clínica como
uma atitude, como um êthos, já que percebemos que sua ampliação já não mais pertence
a um espaço determinado, a uma prática específica; mas nos exige que toquemos
naquilo que parece sem vida, que vejamos saídas onde ainda não parece haver. que
se trabalhar nesta intercessão e no próprio cuidado do ACS, acolhendo seus processos
178
de institucionalização, suas objetivações, tentando, através de um cultivo ético, ampliar
nosso grau de visão a fim de acessar esse plano relacional, de co-emergência, dos
processos de subjetividade que nos produzem.
Pensarmos esta interface na articulação desenvolvida entre equipes de Saúde Mental e
da Estratégia da Saúde da Família no município de Macaé nos fez de fato entender que,
no que pese a importância da ESF nesta intercessão, esta deve ser tomada como um dos
dispositivos na constituição da atenção básica, mas que, de modo algum pode substituir
a própria atenção básica. A aposta, que então fazemos no cuidado do ACS deve se
manter sempre atenta aos perigos de estarmos engendrando práticas de cuidado que
apontem para a regulamentação e higienização da vida e da saúde. É que se sabemos
que o capital tem privilegiado os processos de cuidado e sua gestão, em sua dimensão
relacional, como campo de ação para sua lógica acumulativa; também compreendemos
que é neste paradoxo que se constitui nossa luta.
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