As ameaças nessa fala macarrônica tão peculiar aos italianos que aqui
residiam não ficam apenas nas palavras.
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A vergonha que Lisetta fez sua mãe
passar não é punida só com os dois beliscões. A pancadaria mesmo acontece em
casa longe dos olhos dos outros, dos estranhos que Dona Mariana tentou evitar:
A entrada de Lisetta em casa marcou época na história dramática da família Garbone.
Logo na porta um safanão. Depois um tabefe. Outro no corredor. Intervalo de dois
minutos. Foi então a vez das chineladas. Para remate. Que não acabava mais.
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Novamente é Franco Cenni, a respeito da influência da língua italiana no cotidiano paulista do início do
século que registra: Um mineiro, ao visitar São Paulo em 1902, não pôde dominar seu espanto, e o historiador
Aureliano Leite assim reproduziu suas impressões: “- Os meus ouvidos e os meus olhos guardam cenas
inesquecíveis. Não sei se a Itália o seria menos em São Paulo. No bonde, no teatro, na rua, na igreja, falava-se mais
o idioma de Dante que o de Camões. Os maiores e mais numerosos comerciantes e industriais eram italianos. Os
operários eram italianos”. Já em 1890 Henrique Raffard afirmara que a população da Paulicéia era geralmente de
origem estrangeira, falando quase tanto o italiano como o português. Muitas tabuletas, em vários edifícios, eram
escritas em italiano, coisa que fazia declarar ao jornalista lusitano Souza Pinto (que, chegando à estação, não tinha
conseguido se fazer entender por vários cocheiros de tílburis, os quais se exprimiam nos mais diversos dialetos
italianos, com predominância do napolitano, falando em largos gestos): “- Encontramo-nos a cogitar se por
estranho fenômeno de letargia, em vez de descer em São Paulo teríamos ido parar à cidade do Vesúvio”. E Gina
Lombroso Ferrero, confirmava: “- Ouve-se falar o italiano mais em São Paulo do que em Turim, em Milão e em
Nápoles, porque entre nós se falam os dialetos e em São Paulo todos os dialetos se fundem sob o influxo dos venetos
e toscanos, que são em maioria”. Cenni, ainda sobre o universo lingüístico do imigrante italiano, escreve: Há
numerosas palavras exatamente iguais nas línguas italiana e portuguêsa, como “cantina”, “caricatura”,
“cascata”, “fiasco”, “calamita”, “bravata”, “ribalta”, “sonata”, “partitura”, “ópera”, “contralto”, “soprano”,
“violino”, “polenta”, “salame”, “favorito”, “mosaico”, “piano”, e “poltrona”; enquanto outras, em sua forma
portuguêsa perderam apenas a consoante dupla, como “loteria”, “dueto”, “opereta”, “violoncelo”, “mortadela”,
“ricota”, “risoto”, “soneto”... De direta origem italiana é “carnaval”, que por sua vez deriva, no italiano, de
“carne”, pois, a partir da têrça-feira gorda a Igreja suprimia (em latim “levare”) o uso da carne. Os italianos
pisanos diziam “carnelevare”, os napolitanos “Karnolevare” e os sicilianos “karnilevari”. O filólogo Stappers
empresta a esta palavra um sentido diferente, fazendo-a provir do latim “carnis levamen”, isto é: prazeres da carne
antes das continências da quaresma. Além das palavras já citadas que se referem a espetáculos, teatros e comidas,
outras há, de origem italiana, que dizem respeito às artes plásticas e militares e à arquitetura, como “colunata”,
“capitel”, “fachada”, “nicho”, “aquarela”, “batalhão”, “capitão”, “corone”, “esquadrão”; algumas de grande
uso comum, como: “pajem”, “parque”, “pastel”, “retrato”, “capricho” e aquêle “nhoque” que vemos escrito nas
tabuletas das casas de lanches nas mais diferentes e fantasiosas das maneiras, “Palhaço”, provém do nome de uma
personagem do teatro popular napolitano que vestia roupas feitas com fazendas usadas para forrar cochões de
palha; “gazeta” vem do veneziano, sendo o nome de uma pequena moeda de cobre com a qual no século XVI
adquiriam-se exemplares de um jornal, que dava notícias das expedições ao Levante... Mas a palavra de origem
italiana mais difundida no Brasil, e particularmente em São Paulo, não consta de nenhum dicionário, muito embora
seja ouvida inúmeras vêzes ao dia, nos mais diferentes lugares e pronunciada também por pessoas que não são de
origem italiana, nem privam habitualmente com italianos. Trata-se daquêle “Ciao”, transformado quase sempre
num arrastado “T’chiau”, cuja origem remonta ao tempo longínquo em que a saudação comum dos venezianos às
pessoas de respeito era “Le sono schiavo”. Na pronúncia veneta, com o passar do tempo, a frase transformou-se
num rápido “...sciavo” que, estendendo-se à vizinha Lombardia, ficou sendo definitivamente “Ciao”, antes de se
espalhar pelo mundo, sôbre os lábios de milhões de emigrantes. Cenni, Italianos no Brasil, pp. 262-3 e 266-7. Esse
macarronismo (no caso, essa linguagem híbrida entre o português e o italiano) foi magistralmente captado e
reinventado na obra literária e jornalística de Juó Bananére, pseudônimo adotado por Alexandre Marcondes
Machado, que registrou numa de suas colunas de jornal, intitulada “O Ritiro”: A artugrafia muderna é una maniera
di scrivê, chi a genti escrive uguali come dice. António de Alcântara Machado, admirador de Juó Bananére,
considerou isso para reproduzir a fala da primeira leva de imigrantes italianos que aqui chegou. Considero a
magnífica obra de Adoniran Barbosa descendente direta dessa linha. Adicionando ainda elementos da fala simples
do caipira, esse compositor criou em suas músicas diálogos saborosos e situações prosaicas que também registram a