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EDUARDO BENZATTI DO CARMO
SÃO PAULO NOS ANOS VINTE: UM ESTUDO SOBRE AS
TRANSFORMAÇÕES DOS ASPECTOS MATERIAIS E
IMATERIAIS DA CIDADE RECONSTRUÍDA ATRAVÉS DA
OBRA FICCIONAL DO ESCRITOR ANTÓNIO DE
ALCÂNTARA MACHADO
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial
para obtenção do título de MESTRE em Ciências Sociais, sob
orientação do Prof., Doutor Edgard de Assis Carvalho.
PUC - São Paulo - 1997
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Comissão Julgadora:
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RESUMO
São Paulo anos vinte. A cidade está em pleno processo modernizador. Os
modernistas procuram captar o dinamismo dos acontecimentos em sua literatura.
Surge António de Alcântara Machado com seus contos, suas histórias rápidas em
estilo telegráfico e cinematográfico, tão apropriado àquela realidade.
Este estudo procura analisar aspectos e elementos dessas histórias que
retratam as transformações em curso. A obra ficcional de António de Alcântara
Machado é composta por personagens representativos dos novos tipos e grupos
sociais. Falar desta obra é falar desses homens e mulheres atônitos no turbilhão da
modernidade. Perdidos na multidão (ou circulando no espaço urbano em
velocidade condizente com o novo ritmo do cotidiano) são esses tipos e grupos
produtos e agentes das radicais mudanças socioeconômicas no meio paulistano.
Caminhando pelas ruas da área central ou observando o dia-a-dia dos
distantes bairros italianos, esse escritor capturou em suas histórias a nova
espacialização e temporalidade da urbe. António de Alcântara Machado é o
prosador urbano de uma paulicéia já desvairada.
Sua obra, como outros testemunhos da época, é uma fenda no tempo, uma
fresta onde do agora podemos espiar o passado.
Redescobri-la é redescobrir parte da nossa história, da nossa memória.
3
SUMÁRIO
AGRADECIMENTOS........................................................................................................5
APRESENTAÇÃO..............................................................................................................6
CAPÍTULO I - O BONDE PARTIU............................................................................11
A CIDADE...............................................................................................................................12
O ESCRITOR..........................................................................................................................15
O ESCRITOR NA CIDADE...................................................................................................29
CAPÍTULO II - BRÁS, BEXIGA, BARRA FUNDA E OUTROS BAIRROS:
A CIDADE CAPTURADA PELO ESCRITOR........................................................31
OS TIPOS E GRUPOS...........................................................................................................36
A VELOCIDADE....................................................................................................................73
A MULTIDÃO........................................................................................................................97
CAPÍTULO III - O TRADICIONAL E O MODERNO: A COEXISTÊNCIA
DO PASSADO E DO PRESENTE NO ESPAÇO URBANO..............................122
O ESCRITOR ANDARILHO...............................................................................................123
GLOSSÁRIO.....................................................................................................................141
BIBLIOGRAFIA..............................................................................................................145
DO AUTOR (COMENTADA)..............................................................................................145
SOBRE O AUTOR....................................................................................................................................148
GERAL..................................................................................................................................150
REVISTAS E PERIÓDICOS................................................................................................154
4
REFERÊNCIAS VIDEOGRÁFICAS (DOCUMENTÁRIOS)...........................155
LOCAIS DE PESQUISA................................................................................................156
AGRADECIMENTOS
Este estudo é a soma de vários esforços. Agradeço a todos os amigos e
familiares que de diferentes formas contribuíram para a sua realização. Uma
indicação bibliográfica, um artigo de jornal, uma sugestão de foto, a revisão dos
meus originais, a disposição em digitá-los, a confecção da capa, foram muitas as
formas em que a gentileza e a generosidade se materializaram. A todos que nele se
reconhecerem, meu muito obrigado.
Obrigado também aos professores Maura Pardini Bicudo Véras, uma
pensadora da cidade, e Miguel Wady Chaia, um apaixonado pela literatura; nossas
conversas durante e após as aulas foram de extrema validade. Encontrei nos dois,
interlocutores animados e empolgados com o tema do meu estudo.
Um agradecimento especial ao meu orientador Edgard de Assis Carvalho
pela paciência, pela indicação dos caminhos mais seguros e pela confiança. Nossas
reuniões de orientação foram momentos agradáveis, nos quais compartilhamos da
sua inteligência.
Todos vocês, amigos, familiares, professores e mestre atualizam o
pensamento de Simone Weil, para quem a atenção é a maior forma de carinho.
Por fim sou grato ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da
PUC/SP pela oportunidade oferecida e ao Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq) pelo financiamento desta pesquisa, sem o qual
ela não existiria.
São Paulo, agosto de 1997.
5
APRESENTAÇÃO
Os turbulentos anos vinte parecem comportar várias décadas. Este estudo é
um esforço de recuperar do esquecimento a década de vinte, contida e narrada na
obra ficcional do escritor António de Alcântara Machado.
1
Cronista de aguda percepção, este homem viveu e registrou as
transformações econômicas, políticas, sociais e culturais pelas quais passou a
cidade de São Paulo no início deste século. São transformações que introduziram
novos fenômenos no cotidiano da urbe e compuseram o espetáculo da
modernidade.
2
Paralelamente ao seu trabalho jornalístico, António de Alcântara
1
Ao grafar o nome próprio do escritor com acento agudo, oral aberta, respeito sua vontade, pois era assim
que assinava e autografava seus livros. Dizia ele que o seu nome era de origem portuguesa e não fazia sentido
modificar sua grafia e pronúncia.
2
Existe um tipo de experiência vital, afirma Marshall Berman, experiência de tempo e espaço, de si mesmo
e dos outros, das possibilidades e perigos da vida - que é compartilhada por homens e mulheres em todo o mundo,
hoje. Designarei esse conjunto de experiências como “modernidade”. Ser moderno é encontrar-se em um ambiente
que promete aventura, poder, alegria, crescimento, autotransformação e transformação das coisas em redor - mas
ao mesmo tempo ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos. A experiência ambiental
da modernidade anula todas as fronteiras geográficas e raciais, de classe e nacionalidade, de religião e ideologia:
nesse sentido, pode-se dizer que a modernidade une a espécie humana. Porém, é uma unidade paradoxal, uma
unidade de desunidade: ela nos despeja a todos num turbilhão de permanente desintegração e mudança, de luta e
contradição, de ambigüidade e angústia. Ser moderno é fazer parte de um universo no qual, como disse Marx,
“tudo o que é sólido desmancha no ar”. Berman, Tudo que é sólido desmancha no ar, a aventura da modernidade,
p.15. Nesse livro, o autor sugere a possibilidade da recuperação de parte do dinamismo e humanismo presentes na
modernidade e no modernismo do século XIX, para oxigenar o modernismo e a modernidade do século XX.
Conectar o mundo contemporâneo a um passado que possa, com sua energia e vigor, nutrir e renovar nossas forças.
Resgatar uma herança de valor imensurável para que possamos prosseguir com o moderno de hoje rumo ao de
amanhã. Compartilho com esse autor da idéia que a modernidade representa uma dicotomia, na medida que
possibilita uma nova organização da sociedade, mas, paralelamente, sua iminente destruição. Da penicilina à
Auschvitz tudo o que a modernidade criou leva a marca da construção e da destruição. Na necessária e inexorável
caminhada rumo ao futuro, o homem tem feito do presente o exercício constante de negação do passado. Nos últimos
duzentos anos essa tarefa ganhou o nome de modernidade e nela tudo o que é sólido, mas também tudo o que é feito
de sonhos e utopias desaparece no ar. Por modernidade este estudo entende as transformações do mundo material,
concreto e também simbólico. É a sociedade e suas relações, para além da econômica, emaranhando o homem numa
rede de novas sensações. Obrigando-o a novas posturas e impondo-lhe novos padrões de comportamento. A
modernidade, nesse sentido, engendra mudanças tão rápidas e contínuas que não permitem ao homem conformá-las.
6
também produziu uma obra literária singular que representa a reconstituição, no
campo imaginário, daquele momento histórico e cultural.
Através da sua sensibilidade para captar o novo e da sua maestria em narrá-
lo, o escritor criou um conjunto de histórias irônicas e trágicas que retratam
aspectos fundamentais da sociedade paulistana do período. Nessas histórias
perscrutamos aquele dia-a-dia, com suas condutas, hábitos e reações geradas no
turbilhão do processo de metropolização, e compreendemos a origem e o sentido
de algumas das mudanças ocorridas no espaço da cidade e no pensamento dos
homens e mulheres que nela viveram. Mas é necessário reafirmar de qual cidade e
de que tempo este estudo se ocupou.
A historiografia tem se servido com freqüência da literatura como uma das
possibilidades de investigação de uma época ou sociedade. Porém, pretendendo
ratificar seu caráter científico, a historiografia procura sempre considerar os limites
do texto literário para aquisição do conhecimento histórico.
3
O homem da modernidade é o homem do agora e do estranhamento. Por modernismo, a reflexão, a consciência
que desenvolveu o homem de si mesmo, do tempo e do ambiente em que vive e as novas formas de expressão. Essas
nunca são acabadas, estão constantemente se reformulando, pois tentam apreender aquele fenômeno, que como já
disse, não se deixa capturar. Essa reflexão permeia as obras de escritores como: Fiódor Dostoiévsky, Henri Ibsen,
Thomas Mann, Marcel Proust, James Joyce e Franz Kafka, entre outros. Malcolm Bradbury, analisando a literatura
moderna através desses escritores, demonstra a infinidade de temas sugeridos pela experiência da modernidade e as
diferenças de percepção do novo, concluindo sobre a dificuldade em definir de forma clara o que é uma obra
modernista. Esse autor define modernismo como o nome que veio a designar aquela transformação radical sofrida
pelas formas, pelo espírito e pela natureza das artes entre a década de 1870 e o início da Segunda Guerra Mundial.
Bradbury, O mundo moderno, dez grandes escritores, pp.20-1.
3
Uma discussão interessante sobre a relação entre textos literários e pesquisa historiográfica pode ser
encontrada na introdução do livro de Nicolau Sevcenko, Literatura como missão, tensões sociais e criação cultural
na Primeira República. Neste trabalho o autor apresenta um panorama da Belle Époque carioca, centrando sua
análise na obra e vida dos escritores Euclides da Cunha e Lima Barreto. Porém, o autor alerta para os cuidados que o
pesquisador deve observar na utilização da literatura como instrumento para o conhecimento da história: O estudo
da literatura conduzido no interior de uma pesquisa historiográfica, todavia, preenche-se de significados muito
peculiares. Se a literatura moderna é uma fronteira extrema do discurso e o proscênio dos desajustados, mais do
que o testemunho da sociedade, ela deve trazer em si a revelação dos seus focos mais candentes de tensão e a
mágoa dos aflitos. Deve traduzir no seu âmago mais um anseio de mudança do que os mecanismos da permanência.
Sendo um produto do desejo, seu compromisso é maior com a fantasia do que com a realidade. Preocupa-se com
aquilo que poderia ou deveria ser a ordem das coisas, mais do que com o seu estado real. Nesse sentido, enquanto a
historiografia procura o ser das estruturas sociais, a literatura fornece uma expectativa do seu vir-a-ser.(...) Ocupa-
se portanto o historiador da realidade, enquanto que o escritor é atraído pela possibilidade. Eis aí, pois, uma
diferença crucial, a ser devidamente considerada pelo historiador que se serve do material literário. (...) A
literatura portanto fala ao historiador sobre a história que não ocorreu, sobre as possibilidades que não vingaram,
sobre os planos que não se concretizaram. Ela é o testemunho triste, porém sublime, dos homens que foram
vencidos pelos fatos. Mas será que toda a realidade da história se resume aos fatos e ao seu sucesso? (...) Pode-se
portanto pensar numa história dos desejos não consumados, dos possíveis não realizados, das idéias não
consumidas. A produção dessa historiografia teria, por conseqüência, de se vincular aos agrupamentos humanos
que ficaram marginais ao sucesso dos fatos. Estranhos ao êxito mas nem por isso ausentes, eles formaram o fundo
humano de cujo abandono e prostração se alimentou a literatura.(...) Esse é o caminho pelo qual a literatura se
presta como um índice admirável, e em certos momentos mesmo privilegiado, para o estudo da história social.
Sevcenko, Literatura como missão, tensões sociais e criação cultural na Primeira República, pp. 20-2.
7
A obra ficcional de António de Alcântara é uma das possibilidades de
investigação do período. Não busquei nela a representação absoluta de um
processo histórico determinado, mas sim, através dela, entender como o escritor
interagiu com sua sociedade e como percebeu outros homens interagindo com ela.
Partindo da literatura, pesquisei simultaneamente outros testemunhos
históricos, literários e iconográficos sobre o período que ora corroboram, ora
negam a “versão dos fatos” do autor, intencionando reafirmar a multiplicidade de
olhares possíveis sobre um mesmo objeto, olhares que se encontram e divergem,
que constituem a certeza e a miopia de cada um.
A década de vinte, contida nos textos ficcionais desse escritor revela uma
São Paulo ainda com aspectos tradicionais, mas em pleno processo de urbanização.
É um tempo de profundas mudanças sociais e culturais que fixaram o espírito do
novo, do vibrante, da vida que pulsa.
Essa São Paulo é palco, território, topografia, chão, caminhos, ruas e
avenidas. Essa São Paulo é cenário, casario, prédios, fábricas, viadutos e pontes.
Paisagens orientadoras e desorientadoras. Mas a São Paulo daquele decênio,
narrada nas histórias de António de Alcântara, é principalmente o espaço e o
tempo em que homens e mulheres viveram a experiência da modernidade.
Fixando seu olhar nos novos tipos e grupos que circulavam e ocupavam os
espaços da cidade em desenvolvimento, o autor desvela o âmago do processo
modernizador, sua essência contraditória, descontínua e heterogênea.
Essa é, ao meu ver, a maior contribuição do escritor: reconstituiu
ficcionalmente a modernidade paulista, evidenciando toda sua amplitude e
complexidade, pois centrou sua observação nos elementos humanos,
representados por tipos marcantes, e na relação destes com a cidade. Defensor da
“prosa pura”, dizia que esta objetivava retratar o coletivo, ao contrário da poesia
que se preocupava em refletir o individual.
O material para produzir suas histórias extraiu da realidade em que estava
inserido, caminhando pelas ruas, ouvindo conversas nos bondes, observando o
comportamento das pessoas nos cafés e lendo nos jornais sobre os dramas e as
tragédias diárias vividas pela população.
Como já mencionei, além da obra de António de Alcântara também colhi,
sistematizei e analisei informações de outras procedências. Este estudo procurou
na atividade crítica, que pressupõe a organização e reflexão dessas variadas fontes,
configurar seu caráter científico. Mas quando se serviu da literatura esteve, sem
dúvida, mais próximo da compreensão dos desejos, das fantasias, dos sonhos e dos
devaneios daqueles que viveram o fenômeno da modernidade.
4
4
As possíveis referências às áreas do conhecimento como campos distintos foram necessárias por razões de
exposição. Não compartilho de nenhum esforço no sentido de delimitar rigidamente esses campos e seus “próprios”
objetos. Na concepção do trabalho constatei que a tentativa de compreender o ser humano, sua sociedade e seu
8
A procura nessa esfera da criação humana do ritmo e sentido de uma época
traz consigo a certeza que falamos de homens e mulheres com todas as suas
dimensões, e nunca apenas de fatos.
Este estudo é dividido em três capítulos, sendo os dois primeiros
subdivididos em três partes.
No primeiro (“O bonde partiu”) apresento um breve relato histórico,
pontuando os principais fatores socioeconômicos responsáveis pelas vertiginosas
transformações ocorridas na cidade no limiar deste século. São mudanças radicais
no espaço urbano, na temporalidade, no cotidiano e na consciência dos homens e
mulheres que as viveram. Apresento em seguida, uma biobibliografia
5
de António
de Alcântara, ressaltando a sua relação com a cidade, pois este escritor foi um
leitor e tradutor das ruas daquela São Paulo.
No segundo (“Brás, Bexiga, Barra Funda e outros bairros: a cidade
capturada pelo escritor”) analiso temas que considero fundamentais na constituição
da sua obra, uma vez que refletem fenômenos e ambientes singulares da
modernidade: o surgimento de novos tipos e grupos sociais, a velocidade e a
multidão. Estes fenômenos revelam as diferentes formas de inserção do elemento
humano no processo modernizador, desnudando a sua essência contraditória.
No terceiro (“O tradicional e o moderno: a coexistência do passado e do
presente no espaço urbano”) acompanhamos o escritor num passeio pelas ruas
centrais, o famoso Triângulo. Esse roteiro contém vários elementos que sintetizam
a visão de modernidade do escritor e que perpassam seus contos e seu romance
inacabado. Ao final deste capítulo, reproduzo algumas impressões sobre a cidade
registradas aproximadamente dez anos mais tarde pelo antropólogo, na época
professor de Sociologia da Universidade de São Paulo, Claude Lévi-Strauss,
procurando demonstrar a convergência de olhares entre o escritor paulistano e o
pensador francês sobre vários aspectos da cidade em transformação.
Durante toda a pesquisa procurei manter uma postura de respeito às
características gráficas utilizadas nas impressões das primeiras edições. Não tendo
acesso aos originais do autor, elegi as edições princeps como referência. Essa
escolha teve várias conseqüências.
Considero positivo ter utilizado essas edições, pois assim evitei ler e
interpretar textos completamente desfigurados nas edições sucessivas. A cada nova
tempo é um exercício elaborado por diversos “saberes” que perpassam as fronteiras, já nem sempre claras, das
disciplinas sociais e das ciências no seu conjunto.
5
Os dados biográficos aqui contidos foram colhidos no texto “Bibliografia de & sôbre António de Alcântara
Machado”, publicado na segunda edição de Novelas paulistanas e reproduzido nas subseqüentes. Pouco se escreveu
sobre a obra do escritor, menos ainda a respeito de sua vida. Esse texto de Francisco de Assis Barbosa - que aliás
conviveu com o escritor - produzido em 1971, continua sendo uma das raras referências.
9
edição dos contos, às vezes sob uma suposta “atualização ortográfica”, a obra foi
adulterada, chegando ao extremo de substituírem palavras ou suprimirem
fragmentos presentes nas primeiras edições, comprometendo o entendimento e
sentido das histórias. Pelos mais diversos motivos (economia de espaço, erros de
revisão, desleixo na impressão) as reedições, via de regra, são catastróficas.
A obra de António de Alcântara é também uma obra visual. O autor
empregou os mais diferentes tipos (caixa-alta, itálico, negrito, etc.), utilizou efeitos
de claro-escuro, de espaçamento, de pontuação e outros recursos tipográficos
disponíveis na época, ou mesmo por ele testados. Uma análise mais ampla da
importância desses elementos visuais em sua obra ainda está por ser escrita.
Neste estudo procurei, sempre que possível, reproduzir parte desses efeitos,
recriando a diagramação original.
Recuperar a grafia original foi também um trabalho de paciência, afinal
envolveu a consulta de livros e artigos de jornais da década de vinte, trinta e
quarenta já bastante deteriorados pelo tempo e pela má conservação. Foi de grande
ajuda a existência das edições fac-similares de três de seus livros editadas pela
Imprensa Oficial do Estado de São Paulo e a Divisão de Arquivo do Estado de São
Paulo em 1982, sob a direção da Professora Cecília de Lara. Essas reedições são
de inestimável valor histórico.
Fora as primeiras edições e as edições fac-similares, não recomendo para
uma leitura mais crítica quaisquer das restantes.
Optando por não realizar a atualização ortográfica, e quando necessário
recuperando a original, objetivei manter o sabor especial que têm os textos das
décadas em foco, quer pela diferença de acentuaçã o, quer pela própria grafia.
Porém, com essa escolha, também reproduzi as falhas de impressão dessas
edições. Cabe ao leitor acuidade, pois se algumas são claras outras só são
percebidas numa releitura. Assim, qualquer diferença na grafia pode estar
relacionada às situações acima apontadas. Nas citações (e em se tratando de um
estudo da obra ficcional de um escritor é inevitável a existência de inúmeras e às
vezes extensas citações) para destacar sua “voz” utilizei uma fonte diferente, essa
foi a única liberdade que tomei em relação aos seus textos, mesmo por quê não há
tipos disponíveis nos programas atuais que reproduzam com fidelidade a
impressão dos seus livros.
Por último, nessa linha de preservação, decidi reservar o corpo do texto
essencialmente para a “fala” do autor, ou seja, as citações das suas histórias e
outros escritos, e para as minhas análises e interpretações da sua obra. Daí o
número substancial de notas, ora de indicações ou referências bibliográficas, ora
explicativas. Essa opção de estruturação procurou evitar que as citações ficassem
10
diluídas no corpo do texto, tamanha a quantidade de informações que as notas
encerram.
Esse tratamento proporciona uma visão mais clara do estilo literário de
António de Alcântara e uma oportunidade para o leitor deste trabalho deliciar-se
com suas histórias, ou parte delas, magistralmente elaboradas e injustamente
esquecidas.
CAPÍTULO I
O BONDE PARTIU
Anunciou-se que São Paulo ia ter bondes elétricos. Os tímidos veículos puxados a burros, que
cortavam a môrna da cidade provinciana, iam desaparecer para sempre. Não mais veríamos, na
descida da Ladeira de Santo Antônio, frente à nossa casa, o bonde descer sòzinho equilibrado
pelo breque do condutor. E o par de burros seguindo depois.
Uma febre de curiosidade tomou as famílias, as casas, os grupos. Como seriam os novos bondes
que andavam màgicamente, sem impulso exterior? Eu tinha notícia pelo pretinho Lázaro, filho
da cozinheira de minha tia, vinda do Rio, que era muito perigoso êsse negócio de eletricidade.
Quem pusesse os pés nos trilhos ficava ali grudado e seria esmagado fatalmente pelo bonde.
Precisava pular.
(Oswald de Andrade, Um homem sem profissão, sob as ordens de mamãe)
Saint- Paul est le point du Brésil où l’on puisse voir une foule.
(Pierre Denis, 1900)
11
A CIDADE
É recorrente a utilização do trinômio café-ferrovia-imigração para significar
quais foram as bases socioeconômicas do processo de transformação da cidade de
São Paulo no limiar do século XX.
São elementos fundamentais da nossa aventura desenvolvimentista que
foram sendo incorporados à história da cidade após mais de trezentos anos desde
sua fundação. São Paulo dormiu longo sono até que a modernidade a despertasse.
Fundada em 1554, e elevada à vila seis anos depois, São Paulo do
Piratininga permaneceu aproximadamente dois séculos como aldeamento jesuítico,
sem conhecer modificações substanciais.
Local de passagem, abastecimento e descanso de tropeiros que se
aventuravam pelo interior da província e do país, assim como no sentido inverso
rumo ao litoral, a vila, até 1711, e depois elevada à categoria de cidade, sofreu uma
ocupação lenta e o aumento da sua população não era perceptível.
Em 1865, cinqüenta anos após ser nomeada capital da província, foi
inaugurada a primeira estação ferroviária na região da Luz, área da cidade assim
conhecida, pois estava nela localizada a capela de Nossa Senhora da Luz, parte da
estrada de ferro “The São Paulo Railway Company”, que escoava a produção
cafeeira, incrementada aqui após o esgotamento das terras fluminenses, das
fazendas dos planaltos interiores rumo ao porto de Santos. Tal fato marca para
muitos historiadores o início do processo de transfiguraçã o no espaço e no
cotidiano urbano.
Sobre a ligação da cidade à ferrovia, comenta Maria Lúcia Perrone de Faro
Passos:
Em verdade, a ligação ferroviária entre Santos e Jundiaí, proposta pelo barão de Mauá
e projetada e implantada pelos ingleses (1860 a 1867) (...) foi o primeiro corredor de
12
exportação que o Brasil conheceu. Não foi criada como uma ferrovia no interesse direto da
capital da província; no entanto, os impactos desenvolvimentistas a nível urbano e
administrativo foram excepcionais, redundando na criação de um ponto nodal de urbanização
no planalto paulistano.
1
As transformações rápidas e profundas foram financiadas pelos capitais
gerados com a produção, estocagem, especulação e comercialização do café, fruto
que se torna símbolo e alavanca do progresso paulista.
2
Para o trabalho nas grandes fazendas, que se formavam com a implantação e
o desenvolvimento da cafeicultura, a mão-de-obra local não era suficiente e o
estado promoveu, pós-escravatura, a maior entrada de trabalhadores estrangeiros.
3
A transição do século XIX para o século XX, nesse contexto, representou
para a cidade o ingresso na modernidade, ainda que tardia e importada.
Um sinal claro do atraso em que se encontrava São Paulo está na falta de um
sistema de energia elétrica condizente com seu crescimento. Ao contrário de outras
cidades brasileiras que já contavam com usinas hidrelétricas, ruas iluminadas a
eletricidade e transporte de bondes elétricos, São Paulo somente em plena vigência
da Primeira República teve seus serviços públicos incrementados com a instalação
das companhias privadas de capital nacional e, sobretudo, estrangeiro que, com a
concessão do Estado, puderam financiar a realização das grandes obras de infra-
estrutura e exploração dos serviços.
1
Passos, “Apresentação” in Evolução urbana da cidade de São Paulo, 1872/1945, p.10.
2
Ramas de café são representadas nas fachadas das edificações públicas e particulares; nos desenhos dos
vitrais e espelhos; no trabalho em ferro dos portões e gradis e na pintura dos murais, afrescos e paredes. Nas artes
plásticas são motivos de quadros, gravuras e esculturas; temas da literatura, de poesias e de músicas. Culminam por
ser elemento dos brasões da cidade e do estado. Mário de Andrade escreveu o poema Café, tragédia secular para ser
encenado em três atos. Nele, a história do desenvolvimento e das crises pelas quais a cidade passou está relacionada
com a produção cafeeira. Tanto o poema quanto a Concepção melodramática, uma espécie de roteiro para sua
montagem e encenação foram incluídos na obra Poesias completas, de 1955. Cassiano Ricardo, no seu poema Café
expresso também relaciona a cidade à essa bebida estimulante: Café expresso - está escrito na porta. / Entro com
muita pressa. Meio tonto, / por haver acordado tão cêdo... / E prompto! parece um brinquêdo: / cáe o café na
chicara pra gente / maquinalmente. / E eu sinto o gôsto, o aroma, o sangue quente de / S. Paulo / nesta pequena
noite liquida e cheirosa / que é a minha chicara de café. / (...) Mas eu não tenho tempo pra pensar nessas coisas! /
Estou com pressa. Muita pressa! / A manhã já desceu do trigésimo andar / daquelle arranhacéo colorido onde
móra.. / Ouço a vida gritando lá fora! / Duzentos réis, e sáio. A rua é um vozerio. / Sóbe-e-desce de gente que vai
pras fabricas. / Pralapracá de automoveis. Buzinas. Letreiros. / Compro um jornal. O Estado! O Diário Nacional! /
Levanto a góla ao sobretudo, por causa do frio. / E lá me vou pro trabalho, pensando... / Ó meu S. Paulo! / Ó minha
uiára de cabelo vermelho! / Ó cidade dos homens que acordam mais cedo no / mundo! Ricardo, Cassiano. Martim
Cererê, o Brasil dos meninos, dos poetas e dos heróes, pp.117-9.
3
Segundo Sheldon Leslie Maran, estima-se que 3.390.000 imigrantes (...) entraram no Brasil entre 1871 e
1920, sendo que os italianos constituíam mais de 1.373.000. Maran, Anarquistas, imigrantes e o movimento
operário brasileiro, 1890/1920, p.13. A maior parte desses imigrantes entrou no Brasil pelo porto de Santos, rumo
aos cafezais do estado. Trabalhadores que engrossaram as populações das cidades, principalmente da capital, após
cada crise que a economia cafeeira enfrentou, até a derradeira, na década de trinta.
13
A Light tem papel fundamental na implantação dessa infra-estrutura. Sobre
este escreveu Nicolau Sevcenko:
O mais danoso agente especulador, que comprometeu definitivamente o futuro da
cidade, forçando seu desenvolvimento em bolsões desconexos, espaços discriminados, fluxos
saturados e um pavoroso cemitério esparramado de postes e feixes de fios pendurados como
varais por toda a área urbana, foi o monopólio do fornecimento de gás, eletricidade,
transportes urbanos, telefones e mais tarde de água, obtido pela Light and Power, uma empresa
de capital misto canadense-anglo-americano.
4
A paisagem urbana se alterou radicalmente e a região central foi palco
privilegiado do início de urbanização em ritmo vertiginoso. Aspectos da cidade de
tradição colonial-monárquica foram eliminados rapidamente: os traçados
imprecisos das ruas e caminhos foram redesenhados, praças e outras áreas públicas
foram criadas. As antigas construções, predominantemente de “taipa de pilão”,
foram demolidas e surgiram as edificações de tijolos e outros materiais que
possibilitaram a sustentação de mais pavimentos. Os serviços foram ampliados
com novos hotéis e restaurantes e o comércio se diversificou, possibilitando até a
fixação de um comércio de luxo e de artigos importados para atender a aristocracia
cafeeira e a nascente burguesia urbana.
A economia em expansão, alimentada pelo capital gerado e concentrado
aqui, mas fundamentalmente pelos investimentos estrangeiros, proporcionou o
aparecimento das primeiras fábricas, da produção em escala e, com elas, de novas
formações sociais. Surgem o operariado, a burguesia industrial e financeira, além
da classe média que começa a se adensar, tendo como reflexo na ocupação do
espaço a nítida delimitação entre os bairros elegantes e os operários.
A cidade mudou de feições em curtos espaços de tempo e, desde cedo, as
concepções e soluções urbanísticas díspares criaram possibilidades que parecem
não terem sido efetivadas. São Paulo foi remodelada para assemelhar-se ora com
Londres, ora com Paris ou outra cidade européia.
Conforme Janice Theodoro, a readequação da cidade não foi somente
financiada pela aristocracia rural, mas também por ela pensada:
O projeto urbano, ainda que possa parecer paradoxal, é um projeto das oligarquias de
base agrária, que desejavam destruir a tradição colonial presente no espaço da cidade,
substituindo-a por um desenho que aproximasse São Paulo dos referenciais europeus,
4
4
Sevcenko, Orfeu extático na metrópole, São Paulo sociedade e cultura nos frementes anos 20, p.122.
Outras empresas responsáveis pela transformação da cidade podem ser citadas, entre elas: Companhia Cantareira de
Águas e Esgotos, The São Paulo Tramway, Companhia de Viação Paulista, São Paulo Railway Company, City of
São Paulo Improvements e a Empresa de Limpeza Pública.
14
especialmente francês e inglês. O desenho europeu se consolidou ao mesmo tempo que cresciam
os capitais gerados com a exportação do café.
5
O poder público interferiu na remodelação e embelezamento dos seus
aspectos físicos, principalmente no seu perímetro central, constantemente
replanejado. Com argumentos tecno-científicos, como promover a higienização
para controlar as epidemias, o Estado forçou a população pobre do centro a
transferir-se para os bairros que se formavam na periferia da época.
6
Nesse ritmo de mudanças desenfreadas, no anseio do novo e no desejo de
recuperar um tempo perdido, séculos de abandono e pasmatório, foi como a cidade
atravessou as duas primeiras décadas do século e chegou aos anos vinte
consolidando sua vocação de metrópole.
Todo um conjunto de elementos inquestionavelmente urbanos e
metropolitanos, representantes da modernidade de então, recriaram o território da
urbe e forçaram seus habitantes a um novo comportamento e disciplina. Surgiram
novos ambientes, sons, luzes e odores.
Nos anos vinte São Paulo estava preparada para viver o seu desvario. É esse
contexto histórico, social e cultural que interessa, em especial, ao presente
trabalho.
Ao focarmos agora a cidade, com sua paisagem urbana radicalmente
modificada em relação àquela da virada do século, perceberemos que o processo
de modernização deslocou seu eixo e começou a apoiar-se em outras bases: no
incremento e diversificação da produção industrial, com a conseqüente ampliação
do consumo; no aparecimento e desenvolvimento de novos meios de transportes,
5
Theodoro, “Rituais urbanos” in Revista Memória, nº 19, p.52. A construção e reconstrução dos espaços e
seus elementos em tamanha profusão e velocidade criou a impossibilidade de apreensão e sedimentação nos seus
habitantes de uma paisagem urbana estável e contínua. O caso da arquitetura é exemplar. A sobreposição de estilos
arquitetônicos tão díspares, daquele período até hoje na região central é tamanha que não permite a identificação de
uma linha evolutiva ou predominante. Não há um núcleo arquitetônico que nos permita reconhecer uma época, um
sentido histórico com certeza absoluta. “Ecletismo”, na arquitetura paulistana, já foi um estilo; hoje é o termo preciso
para designar todo o conjunto de edificações situado na parte central da cidade. Leonardo Benevolo, apresentando o
estudo de Benedito Lima de Toledo sobre as sucessivas transformações da cidade no período de um século,
observou: As cidades brasileiras crescem muito rapidamente, e, entre elas, São Paulo mais que qualquer outra. A
velocidade é tão grande, a ponto de apagar, no espaço de uma vida humana, o ambiente de uma geração anterior:
os jovens não conhecem a cidade onde, jovens como eles, viveram os adultos. Assim, as lembranças são mais
duradouras que o cenário construído, e não encontram nele um apoio e um reforço. Toledo, São Paulo: três cidades
em um século, p.7.
6
O esforço racionalista do poder público para planejar a expansão urbana de forma organizada e funcional
limitou-se ao centro, a área mais qualificada da cidade, e aos bairros das elites rurais, dos proprietários de fazendas
de café que aqui mantinham residências, e urbanas, os novos industriais. De configuração equilibrada, planejados
para harmonizar vias, vegetação local e postes, e bem equipados, instalados com os melhores serviços e mobiliário
urbano, os bairros burgueses contrastavam com a falta de planejamento e organização dos pobres, onde habitava a
grande maioria dos trabalhadores. O caso das enchentes é emblemático da situação de abandono da periferia pelo
setor público. As enchentes como “fenômenos visuais espetaculares” estão registradas em quadros, fotos, notícias,
depoimentos e literatura do período.
15
principalmente do bonde, que encurtaram as distâncias e introduziram uma nova
temporalidade no cotidiano; e na interação cultural entre o imigrante e a sociedade
paulistana.
Essa rápida troca de signos - da monocultura cafeeira, do transporte
ferroviário, e da imigração para a produção industrial, a modernização do sistema
de transportes e a aculturação recíproca - criou uma atmosfera singular capturada
na obra literária de António de Alcântara.
O ESCRITOR
António Castilho de Alcântara Machado d’Oliveira nasceu em 25 de maio
1901, filho do professor de Direito, político, vereador, deputado e senador
estadual, constituinte em 1933, e escritor, autor do clássico da literatura paulista
Vida e morte do bandeirante, membro das Academias Paulista e Brasileira de
Letras, José de Alcântara Machado d’Oliveira; neto do também professor de
Direito, jurista, jornalista e administrador barão Brasílio Augusto Machado
d’Oliveira; bisneto do brigadeiro José Joaquim Machado d’Oliveira. António de
Alcântara Machado, desde criança aproveitou o ambiente familiar propício e
aproximou-se da literatura.
Estudou no Colégio Stafford (localizado no então elegante bairro paulistano
dos Campos Elíseos. Hoje suas edificações foram tombadas e passaram pelo
processo de restauro para abrigarem a futura sede do museu da Energia de São
Paulo), no Ginásio São Bento e na Faculdade de Direito de São Paulo (nas
“Arcadas” de São Francisco), onde se diplomou em Ciências Jurídicas e Sociais
em 1923. Modernista tardio, não aderiu a Semana de 22. Talvez pelo fato de ser
ele mais moço dez anos em relação aos principais organizadores e participantes do
evento, talvez pela sua formação e tradição familiar mais acadêmica (há relatos
que afirmam ter ido, o então estudante de Direito do Largo São Francisco, ao
Teatro Municipal para vaiar os participantes do evento), talvez pelo seu
temperamento introvertido, responsável por ter conservado sempre uma atitude um
pouco à parte das manifestações mais espalhafatosas dos moços contestadores da
nossa tradição literária, e no fundo, política.
Ainda estudante, publicou sua primeira crítica literária - um artigo sobre o
livro Vultos e livros,
7
de Artur Mota, um dos representantes da literatura acadêmica
7
O artigo Vultos e livros foi publicado no Jornal do Comércio em 19 de setembro de 1921 e reproduzido no
livro “Prosa preparatória & cavaquinho e saxofone” in Obras, vol. II, pp.35-51, organizado por Cecília de Lara e
dirigido por Francisco de Assis Barbosa. Uma interessante análise do texto se encontra em “Quando Antônio de
Alcântara Machado escrevia como os passadistas” in Ponto de referência, pp.121-6, de Broca Brito. Neste, lemos:
Numa página do livro A hora futurista que passou conta Mário Guastini que, num dia de setembro de 1921, foi
procurado por seu amigo de muitos anos, Alcântara Machado. Vinha êle tímido e visìvelmente embaraçado confiar-
16
- no Jornal do Comércio, sucursal de São Paulo (há referências sobre artigos que
teria escrito para o jornal O Norte de Taubaté, mas esses não foram localizados).
Esta colaboração que se inicia em 1921 (com o referido artigo) se estenderá até
1929. Após sua formatura, paralelamente à advocacia, continuou a atividade
jornalística neste órgão escrevendo crítica teatral e literária (na seção “Theatros e
Música” entre 01 de junho de 1923 a 1926 e na página literária “Só aos
Domingos” entre 01 de julho de 1923 a 1924). Constam, também desta época
(1924-26), nos arquivos do IEB (Instituto de Estudos Brasileiros) em São Paulo,
pequenos artigos publicados pelo Jornal do Comércio, denominados “sueltos”.
Ainda escreveu artigos para o Diário da Noite, sucursal do Rio de Janeiro (esta
colaboração que se inicia em 1924 se estenderá até 1935, ano de sua morte) e, após
a fracassada revolução de 1924, liderada pelo general Isodoro Dias Lopes, assumiu
as funções de redator-chefe em caráter interino do Jornal do Comércio. Nesta fase
foram publicados seus primeiros trabalhos, com estilo (e linguagem) mais próximo
ao modernismo.
Em 1925, viajou à Europa e produziu uma série de reportagens narradas em
forma de crônicas e publicadas primeiramente pelo Jornal do Comércio, entre
abril e novembro. Estas impressões do velho continente formaram o material para
lhe o seguinte: “- Meu Antônio vai dar alguma coisa. Ainda agora acaba de produzir trabalho que me parece bom e
que eu desejaria ver publicado. Você o leva e se o julgar publicável, ceda-lhe um pouco de espaço no Jornal do
Comércio”. Guastini, diretor na época dessa fôlha paulista, respondeu logo: “- Mande o trabalho que o lerei com
imenso prazer, depois... de publicado”. Assim, a 9 de setembro de 1921 aparecia no referido jornal o primeiro
artigo de que se tem notícia assinado por Antônio de Alcântara Machado. Dentro de seis meses desencadearia o
movimento modernista, com a famosa “Semana” no Teatro Municipal de São Paulo e já começara na imprensa a
pregação revolucionária.
17
o seu primeiro livro de crônicas, Pathé-Baby,
8
publicado em 1926, ilustrado
magistralmente por Paim Vieira e prefaciado por Oswald de Andrade.
Este livro de estréia foi recebido com entusiasmo pelos escritores da
vanguarda paulista e marca sua integração ao movimento modernista.
Entre 1926 e 1927, ainda no Jornal do Comércio publica suas crônicas sobre
a cidade de São Paulo intituladas inicialmente “Saxofone e depois substituídas
por “Cavaquinho” que, segundo o próprio escritor, combinava melhor com a
8
O livro é composto por vinte e três crônicas. São narrativas dos episódios vividos pelo escritor durante os
oito meses, entre abril e outubro de 1925, passados na Europa. São elas: Las Palmas, Lisboa, De Cherbourg a Paris,
Paris, De Paris a Dives-sur-mer, Londres, Milão, Veneza, Florença, Bolonha, Pisa, Lucca, Sienna, Nápoles,
Perugia, Assis, Roma, Barcelona, Sevilha, Córdoba, Granada, Madrid e Toledo. A viagem interrompeu a publicação
das suas críticas teatrais. Esse espaço foi preenchido pelas crônicas enviadas das cidades visitadas. É interessante
notar que antes da viagem, António de Alcântara já havia publicado, na página literária do Jornal do Comércio,
cinco contos, dos quais três, após algumas modificações, fariam parte de Brás, Bexiga e Barra Funda, notícias de
São Paulo. Podemos crer que a ida à Europa, e na volta a publicação de Pathé- Baby, interromperam seu projeto de
realizar primeiramente um livro de contos. Porém, já neste livro de crônicas, o autor exercitou um estilo que depois
se consolidaria na sua produção literária: o texto claro, direto e plástico; as sentenças breves, reduzidas ao essencial;
as frases incisivas e cortantes; a comicidade, a ironia e a revelação de situações prosaicas. A respeito da montagem
cinematográfica de Pathé-Baby, das suas inovações gráficas e da origem de seu nome, comenta Cecília de Lara: A
edição em livro de 5 de fevereiro de 1926, (...), surgiu cinco meses após a interrupção da publicação dos episódios
no Jornal do Comércio. E apenas três meses após o regresso do autor, que se deu a 2 de novembro de 1925. Nesse
intervalo de apenas três meses, foi realizado todo o trabalho de preparo de originais - com modificações nos textos
que não foram pequenas (...) e ainda a montagem, que não só contou com as ilustrações de Paim, mas com
características de elaboração que até em nossos dias é vista como dificultosa, pelo que tem de artesanal - fugindo
às normas comuns de composição tipográfica. Trabalho que deve ter tido a supervisão do autor. Detalhes que não
são exteriores à obra, constituindo índices que contribuem para a melhor avaliação de Antonio de Alcântara
Machado como artista - num ponto alto de sua produção - quando a criatividade impregna todos os níveis de
elaboração da obra, concretizada num esforço artesanal que se faz digno de admiração permanente. (...)
Ilustrações de Paim marcam o início de cada episódio, imitando a abertura das sessões de cinema à maneira da
época: uma orquestra de 4 figuras, e acima, um croqui da cidade em questão, representada na tela. A originalidade
dessas ilustrações, além de constituir uma visualização jocosa do episódio, está na paulatina diminuição dos
componentes da orquestra, que exaustos, vão desaparecendo. Assim, no início 4 figuras aparecem tocando seus
instrumentos nos episódios de 1 a 6. Do 7 ao 17, o número se reduz a 3 figuras. No final, 18 em diante, só resta um
dos músicos. (...) A montagem da obra, jogando com elementos do universo do cinema, encontra sua gênese a partir
do nome que Antonio de Alcântara Machado deu aos episódios - Pathé-Baby, panoramas internacionais, como se
fosse uma reportagem cinematográfica sobre os locais que visitou. Mas, nada significaria essa ligeira sugestão -
nascida do nome da máquina de filmar - se não houvesse a impregnação na própria maneira de captar a realidade,
reconstituída em flashes, que valorizam os detalhes visuais - e pelos procedimentos de estilo - visando à economia
significativa com eliminação sistemática do supérfluo, do discursivo, preferindo a construção em blocos que se
unem ou se afastam sem liames aparentes: como uma montagem de objetos de perfis bem delineados, sem meios-
tons, de transição. Lara, Comentários e notas à edição fac-similar de Pathé-Baby, pp.17-8 e 21-2. Brito Broca em A
Gazeta, 11 de fevereiro de 1958, escreveu crítica sobre Pathé-Baby intitulada Nosso céu tem mais estrelas: Está
para ser reeditada a obra de ficcionista de Antonio de Alcântara Machado. Mas o que precisa reeditar-se,
igualmente, era o seu livro de viajens Pathé-Baby, hoje raridade bibliográfica. E isso porque esse livro
desempenhou importante papel no Modernismo, não só do ponto de vista literário - por ter constituído a primeira
demonstração da prosa modernista - como do ponto de vista da vida literária - por ter marcado uma posição nova
em nossa maneira de encarar a Europa. Antes, os escritores brasileiros, quando iam à Europa, escreviam quase
somente sobre Paris e era sempre em tom de panegírico que o faziam. Antonio de Alcântara Machado não se
preocupou apenas com Paris, visitou outros países, outras capitais e cidades, e em lugar de se mostrar
deslumbrado, de exaltá-las, procurou ao contrário incidir nos aspectos caricaturais e desfavoráveis. Diríamos que
ele foi realista, enquanto em nossa literatura de viagem vinha prevalecendo, até então, um verdadeiro romantismo,
18
sonoridade brasileira. Em 1927 iniciou também sua colaboração nos Diários
Associados que continuará até 1935.
Retomando o ano de 1926. Publicou seus artigos no O Jornal do Rio de
Janeiro (colaboração que também somente terminará com sua morte em 1935) e
dirigiu com A. C. Couto de Barros a revista modernista Terra Roxa... e Outras
Terras (1926-27, participa da sua fundação ainda Sérgio Milliet), sua primeira
experiência no campo de periódicos neste formato, e dois anos depois, com Raul
Bopp, a Revista de Antropofagia. Tais publicações reafirmavam as idéias contidas
se não houvesse, por vezes, nesse realismo acentuado “parti-pris”. Os viajantes anteriores, com poucas exceções,
como de Nabuco e Nestor Vitor, ficavam na superfície, em sua visão iluminada e decorativa da Europa; Antonio de
Alcântara Machado não saiu também da superfície, quando reduziu tudo a filmes e filmes que (em 1926, não
podíamos fazer o paralelo) pareciam, pela esquematização, desenhos animados de Walt Disney, mas apresentou o
reverso da medalha. É preciso considerar que, em 1925, quando Antonio de Alcântara Machado partiu para a
Europa, não se haviam definido ainda, com precisão, as correntes nacionalistas do Modernismo. Se já lançara
Oswald de Andrade o grito da “Poesia Pau-Brasil”, essa poesia com um sentido propriamente primitivista,
preconizando um “estado de inocência”, a volta a Pero Vaz Caminha, inspira-se diretamente nos movimentos de
vanguarda europeus. Oswald confessava mesmo que fora na Place Clichy, umbigo do mundo, que descobrira a
nova estética. Depois de 1922 dera-se uma verdadeira debandada de modernistas para Paris. E todos procuravam
utilizar-se, mais ou menos, da experiência européia nas pesquisas em que se empenhavam. Até essa época, portanto,
ninguém julgava necessário desdenhar a Europa para ser modernista. Daí o espírito essencialmente revolucionário
dos “filmes” de Antonio de Alcântara Machado. Logo ao passar por Lisboa envia ele uma crônica para o Jornal do
Comércio, focalizando flagrantes pouco lisonjeiros da cidade. Um dos primeiros a protestar foi o gerente da folha,
aliás, um português muito simpático, de nome Matos. Mário Guastini, porém, deu mão forte ao seu redator (Antonio
de Alcântara Machado era então crítico teatral do Jornal do Comércio) e as crônicas enviadas da França, da
Inglaterra, da Itália e da Espanha continuaram a ser publicadas. Guastini confessaria, depois, ter recebido muitas
cartas atrevidas contra esses artigos. “Os autores das epístolas agressivas escondiam-se no anonimato e escreviam
com os pés...” - diz ele no livro A hora futurista que passou. Era natural; constituía um fato quase virgem, se não
inteiramente virgem no Brasil, alguém ir à Europa para só ver o lado mau, as deficiências dos países que percorria.
Acredito que nem só os estrangeiros aqui residentes teriam sido autores das cartas anônimas; muitos brasileiros
haviam também de irritar-se com a petulância daquele moço que parecia esforçar-se por desencantar as belezas do
Velho Continente. Bastaria este exemplo: na Itália, onde há tanta maravilha a extasiar-nos, Antonio de Alcântara
Machado fora buscar um detalhe insignificante para forçar o grotesco: a aversão que ali existe pela água em certos
lugares. Isto suscitou muitos protestos. Mas, em 1926, ao comentar o aparecimento de Pathé-Baby, em artigo
incluído no livro a que há pouco nos referimos, A hora futurista que passou, Mário Guastini via na atitude do
jovem modernista, uma espécie de revide aos escritores estrangeiros, para os quais o Brasil até então era o país das
cobras e dos negros descalços. Se a maioria deles insistia em distinguir apenas o que tínhamos de pouco lisonjeiro,
quando não inventavam disparates a nosso respeito, porque não havíamos de permitir a um brasileiro a liberdade
de descrever o que a Europa tinha de ruim? E velhos conhecedores dos países europeus podiam testemunhar que
Antonio de Alcântara Machado não inventava: apenas caricaturava, uma caricatura através da qual se distinguiam
melhor, muitas vezes, as linhas nítidas da verdade. José Maria dos Santos, que residiu longo tempo na França, ante
a “película” da Normandia, perguntou a Mário Guastini - Quem manda a você essas impressões de viagem?” e
ao interar-se da identidade do autor, um rapaz de vinte e quatro anos, observou: “- Pois o diabinho tem talento
como gente grande... A Normandia é isto mesmo: uma fotografia não seria mais perfeita”. Ao publicar o livro em
1926, com uma carta - prefácio de Oswald de Andrade e ilustrações de Paim - Antonio de Alcântara Machado
reproduziu na última página, como moral da fábula, estes versos da “Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias:
“Nosso céu tem mais estrelas - Nossas várzeas têm mais flores - Nossos bosques têm mais vida - Nossa vida mais
amores”. Curioso paradoxo: o realismo revolucionário do modernismo iria justificar-se pelo lirismo de um dos
nossos mais típicos românticos. Pois é preciso reconhecer: desde o romantismo nunca mais nos tínhamos sentido
exilados na Europa, e o “1900” foi justamente o período em que vivíamos melhor, lá do que aqui e em que o
regresso ao Brasil é que constituía, na realidade, um exílio para muita gente. Antonio de Alcântara Machado
revertera a nostalgia de Gonçalves Dias numa atitude polêmica, iniciando a ofensiva contra a Europa, que iria
desencadear-se de 1926 em diante, e teria a sua vanguarda na corrente verde-amarela. Por uma coincidência,
19
no “Manifesto Pau-Brasil” (1924) de Oswald de Andrade e apontavam para
atitudes antiprovincianas e inimigas dos preconceitos dos elementos constitutivos
da nossa identidade cultural. As revistas tiveram vidas efêmeras: a primeira
alcançou seis números, a segunda, onze. A Revista de Antropofagia (da qual foram
produzidos oito mil exemplares) começou a circular em maio de 1928 e marca o
início da projeção do movimento modernista para além das cidades de São Paulo e
do Rio de Janeiro. É importante lembrar também que 1928 é o ano que Mário de
Andrade lança sua obra mais significativa desse período do movimento,
Macunaíma. Na primeira página, do número um, da Revista de Antropofagia,
António de Alcântara apresentou a publicação:
Nós eramos xifópagos. Quási chegamos a ser deródimos. Hoje somos antropófagos. E foi
assim que chegamos á perfeição.
Cada qual com o seu tronco mas ligados pelo gado (o que quer dizer pelo ódio)
marchávamos numa só direcção. Depois houve uma revolta. E para fazer essa revolta nos
unimos ainda mais. Então formamos um só tronco. Depois o estouro: cada um de seu lado.
Viramos canibais.
Aí descobrimos que nunca havíamos sido outra cousa. A geração actual coçou-se:
apareceu o antropófago. O antropófago: nosso pai, principio de tudo.
Não o índio. O indianismo é para nós um prato de muita sustância. Como qualquer
outra escola ou movimento. De ontem, de hoje e de amanhã. Daqui e de fora. O antropófago
come o índio e come o chamado civilizado: só êle fica lambendo os dedos. Pronto para engulir os
irmãos.
Assim a experiência moderna (antes: contra os outros; depois: contra os outros e contra
nós mesmos) acabou despertando em cada conviva o apetite de meter o garfo no vizinho. Já
começou a cordeal mastigação.
Aqui se processará a mortandade (êsse carnaval). Todas as oposições se enfrentarão. Até
1923 havia aliados que eram inimigos. Hoje há inimigos que são aliados. A diferença é enorme.
Milagres do canibalismo.
No fim sobrará um Hans Staden. Êsse Hans Staden contará aquillo de que escapou e
com os dados dêle se fará a arte próxima futura.
É pois aconselhando as maiores precauções que eu apresento ao gentio da terra e de
todas as terras a libérrima REVISTA DE ANTROPOFAGIA.
digna de registro, a viagem do autor de Pathé-Baby realizou-se no mesmo ano de 1925, em que o futebol, o mais
popular dos nossos esportes, o que mais fala alto ao orgulho nacional, exibia-se pela primeira vez, vitorioso, na
Europa. A excursão do Paulistano ao Velho Mundo, com quatro vitórias e apenas uma derrota insignificante na
França e retumbante vitória em Portugal, nessa época em que ainda prevalecia o amadorismo, emocionou o Brasil
e principalmente São Paulo, trazendo nas massas a consciência da nossa superioridade esportiva sobre os
europeus. Superioridade que, por extensão, seria para elas o do próprio Brasil sobre uma Europa decadente. Eis
um detalhe do qual não nos devemos esquecer no sincronismo histórico-social do movimento modernista. Lara,
Comentários e notas à edição fac-similar de Pathé-Baby, pp.57-9.
20
E arreganho a dentuça.
Gente: pode ir pondo o caium a ferve.
9
No número seguinte o escritor saiu em defesa de uma língua portuguesa
diferenciada para o Brasil:
O atraente parteiro, professor, acadêmico e orador doutor Fernando de Magalhães
esteve há dias em São Paulo onde falou sôbre o feminismo, deu uma lição de obstetrícia e
concedeu uma entrevista.
É essa entrevista que merece ser conhecida. O doutor Fernando fêz nela a apologia
entusiasmada da Sociedade Brasileira de Educação. Sociedade benemérita, sociedade utilíssima,
sociedade isto, sociedade aquilo. A prova? Aqui está (palavras textualíssimas): A biblioteca da
Associação - acentuou - é o que há de mais perfeito no gênero, como ordem e como método na
sua organização. Uma de suas secções, por exemplo, a biblioteca infantil, exigiu um trabalho
enorme de paciência e perspicácia. Necessitou-se de um inquérito entre as crianças para se saber
quais os livros preferidos, chegando-se a resultados estupendos. Uma criança de 12 anos, por
exemplo, a qual perguntou-se qual o livro preferido, respondeu, prontamente: Lusiadas de
Camões.
Ora, ora, ora, ora. Que brincadeira é essa? Então o raio do menino com 12 anos de idade
já é assim tão imbecilzinho que prefere Camões a Conan Doyle? E é isso que se chama resultado
estupendo?
O doutor Fernando quiz troçar com a gente. Não tem que ver. Menino que chupa
Camões como se fosse pirolito de abacaxi não é menino: é monstro. Mas que monstro: tôda uma
coleção teratológica. É tambêm para guris dêsse quilate (e não só para os peraltas) que existe
chinelo de sola dura.
Põe a gente triste verificar que um fenômeno assim é como não podia deixar de ser
brasileiro. Já no grupo escolar a molecada indígena ouve da bôca erudita de seus professores que
o Brasil foi descoberto por acaso e Camões é o maior gênio da raça. A molecada cresce certa
dessas duas verdades primarciais. Daí o mal imenso: país descoberto por acaso é justo que
continue entregue ao acaso dos acontecimentos. Mesmo porque a gente não tem tempo para
perder com bobagens: Camões absorve todos os minutos inteligentes.
Êsse antropófago que vem desde o nascimento desta terra (há um testamento de
bandeirante escrito numa folha manuscrita do Os lusíadas) devorando com delícia as gerações
nacionais precisa por sua vez ser deglutido. É urgente pôr boi tão gordo na bôca da sucuri
brasileira. E que sirva de aperitivo a Sociedade Brasileira de Educação. Para rebater, a
sobremesa será o doutor Fernando que é manjar doce e fino.
10
9
Machado, “Abre alas” in Revista de Antropofagia, nº 1, p.1, maio de 1928.
10
Machado, “Incitação aos canibais” in Revista de Antropofagia, nº 2, p.1, junho de 1928.
21
E continua no número seis:
Os portugueses do Rio de Janeiro ofereceram ao ministro brasileiro das Relações
Exteriores uma vasta placa de bronze, Quizeram com isso homenagear o homem que obrigou os
membros de um congresso qualquer a ouvirem discursos no grego de Camões.
Mais uma vez o Brasil defendeu o que em Portugal chamam de patrimônio comum da
raça. Defesa que cabia aos lusitanos. Mas não tendo mais fôrça nem autoridade para isso
arranjaram advogado convencendo-o de que tambêm tinha interesse na causa. De forma que
não pagaram honorários. Contentam-se em dar um presentinho de tempos em tempos.
Está tudo errado. Angua portuguesa não é patrimônio comum da raça. Primeiro
porque não há raça mas raças. Segundo porque não há ngua mas nguas.
O português diz que sim. Préga a unidade e tal. É a cousa de sempre: quando estava de
cima só gritava eu, agora que está por baixo faz questão do nós.
Essa união luso-brasileira é que nem aquela de Mutt e Jeff deante do cinema numa
caricatura de J.Carlos:
- Vamos fazer uma vaca, Jeff ?
- Vamos: você entra com dez tostões e eu entro com você.
Sem tirar nem pôr.
11
Colaboraram com a Revista de Antropofagia, entre outros, Manuel Bandeira
e Carlos Drummond de Andrade.
Em 1929, como colaborador do grupo Diários Associados, António de
Alcântara continuou publicando a Revista de Antropofagia ( dentição) enquanto
suplemento do Diário de São Paulo (1929). Neste colaborou até 1935, mesmo
período em que escreveu para o Diário da Noite, sucursal de São Paulo e para
outra publicação do grupo, a revista O Cruzeiro, entre 1934 e 1935. Sua última
experiência no campo dos periódicos literários aconteceu entre 1931 e 1932 com a
publicação da Revista Nova (1931-32), em parceria com Paulo Prado e Mário de
Andrade. É nesta que o autor (e diretor da revista) publica um dos mais belos
contos da literatura moderna, As cinco panelas de ouro. Segundo pesquisas e
estudos da professora Cecília de Lara, também publicou artigos sobre espetáculos
teatrais na Revista do Brasil (fase modernista, 1927), na Novíssima e na Revista
Movimento (1928), todas essas de São Paulo; e nos jornais Diário Nacional de São
Paulo (na secção “Caixa”, utilizando o pseudônimo de J.J. de Sá, ou seja, Sófocles,
Shakespeare da Silva) e no O Jornal do Rio de Janeiro (este já citado). E outros
artigos na Revista Verde de Cataguazes (1927-28), de Minas Gerais.
Ao mesmo tempo em que desenvolveu essas atividades, o escritor produziu
e publicou seus livros de contos: Brás, Bexiga e Barra Funda, notícias de São
11
Machado, “Vaca” in Revista de Antropofagia, nº 6, p.1, outubro de 1928.
22
Paulo, em 1927, uma descrição sensível do cotidiano dos trabalhadores nos bairros
ítalo-paulistanos e, em 1928, Laranja da China, um retrato bem-humorado da
burguesia quatrocentona, à qual pertencia, e a pequena burguesia ascendente.
Brás, Bexiga e Barra Funda foi saudado por Mário de Andrade nas páginas do
jornal A Manhã de 19 de junho de 1927:
Alguns dessa geração recente já aparecem no entanto bem livres do vício da tese que
desgraçou os modernistas. Alcântara Machado é um deles. Faz pouco chuçou a boiada com um
Pathé-Baby pontudo, impetuosamente original. Agora com Brás, Bexiga e Barra Funda, inda
surpreende mais. Se humaniza, o espírito dele passa de reacionário a contemplativo; caçoa
pouco e aceita bem. E cria a obra mais igual, mais completa em si que a ficção brasileira
produziu de 1920 para cá. Podia dar data mais longe, mas o que interessa aqui é o depois-da-
guerra porém.
12
Nesse mesmo ano publicou a monografia histórica Anchieta na capitania de
São Vicente, que lhe valeu o prêmio da “Sociedade Capistrano de Abreu”. Ainda
hoje o estudo é considerado, ao lado de Cartas, informaçõ es, fragmentos
históricos e sermões de Anchieta, publicado em 1933, referência para qualquer
pesquisa sobre o jesuíta, um dos fundadores da cidade de São Paulo, e sua relação
com a Companhia de Jesus.
Entre setembro de 1929 e junho de 1930, António de Alcântara fez sua
terceira viagem à Europa (marcada por uma nova série de “crônicas de viagem”)
junto com sua companheira Dolores Bicudo, a Lolita e ao retornar deu seqüência
às suas atividades jornalísticas, escrevendo crônicas diárias sobre literatura (a série
“Reportagem Literária”). Em 1931, publicou na revista A Ordem, em números
separados, e depois na Revista Nova, edição de março, um ensaio sobre o avô,
Brazílio Machado ou um operário católico. Escreveu também notas para um
futuro livro sobre a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco que não foi
concretizado. Em 1932, com a eclosão do Movimento Constitucionalista e da
revolução, interrompeu suas atividades culturais e aderiu com paixão à
mobilização do estado de São Paulo contra o poder central e a ditadura Getulista.
António de Alcântara assumiu o cargo de superintendente da Rádio Sociedade
Record e escreveu notícias e comentários de apoio ao movimento revolucionário
(que o locutor César Ladeira transmitia), de julho a outubro.
Tais posturas contribuiram para que fosse escolhido como secretário-geral
da bancada paulista eleita para a Assembléia Nacional Constituinte de 1933/1934,
sob a legenda da “Chapa Única Por São Paulo Unido”. Transferiu-se, então, para o
Rio de Janeiro e, simultaneamente às novas atividades políticas, continuou
12
Andrade, “Alcântara Machado” in A Manhã, 19 de junho de 1927. Citado por Cecília de Lara em
Comentários e notas à edição fac-similar de Brás, Bexiga e Barra Funda, notícias de São Paulo, pp.104-5.
23
exercendo seu trabalho jornalístico, publicando seus artigos de crítica literária nos
Diários Associados, como colaborador; e comentários políticos no Diário da
Noite, assumindo sua direção em 1934 e escrevendo na coluna política da primeira
página.
Promulgada a nova Constituição em 1934, foi eleito deputado federal por
São Paulo pelo Partido Constitucionalista, chefiado na época pelo governador
Armando de Sales Oliveira. Pouco antes de sua morte, ainda visitou, na companhia
de outros escritores, a Argentina e o Uruguai, a convite do jornal Crítica. Antes de
tomar posse na Câmara Federal, faleceu na Casa de Saúde São Sebastião, às
14h25min. do dia 14 de abril de 1935, preste a completar 34 anos, de uma
peritonite infecciosa, contraída após uma operação de apendicite.
Seu corpo foi trasladado para São Paulo e, no dia seguinte, velado e
sepultado no mausoléu da família, no Cemitério da Consolação.
Raimundo de Menezes, em artigo publicado no O Estado de S. Paulo em 19
de dezembro de 1946, intitulado Curiosidades biográficas - Antonio de Alcantara
Machado, reproduz um texto de 1930 que revela a visão da morte do escritor:
Quando da sua derradeira viagem á Europa, Antonio de Alcantara Machado escreveu
significativa pagina, encontrada depois entre os seus guardados. À pagina postuma assim se
iniciava:Não quero morrer na Europa. Quero ir morrer no Brasil, na cidade de São Paulo,
numa manhã bem quente. Sobretudo quero morrer de chapéu na cabeça. Quem morre de chapéu
na cabeça mostra que não tem respeito medroso pela morte. O continuo Serafim costumava
dizer com muita admiração na porta do palacio presidencial este deve ser grosso, entra de
chapéu na cabeça. Os que subindo as escadas já vão tirando o chapéu, esses são pedintes, são
subalternos, vão ser desiludidos ou humilhados. Eu não. Eu na manhã bem quente me
apressarei, sairei de casa andando firme, desejarei bom dia aos conhecidos da rua Ana Cintra,
entrarei no largo de Santa Cecília e em frente da igreja, no meio do largo, subirei no refugio me
encostando no lampeão esgalhado. Nos braços do lampeão verde eu serei amparado quando
chegar o momento. Como já disse: subirei no refugio. Trinta centimetros sobre o nivel dos
paralelepipedos. Porem nesse instante trinta centimetros serão uma altura vertiginosa. Eu me
sentirei no alto, mas muito no alto. São Paulo então não abandonará seu filho. Com cheiro de
gasolina, com fumaça de fabrica, com barulho de bondes, com barulho de carroças, e
automoveis, com barulho de vozes, com cheiro de gente, com latidos, cantos, pipilos e assobios,
com barulho de fonografo, com barulho de radio, campainhas, businadas, com cheiro de feiras,
com cheiro de quitandas, todos os cheiros e tambem barulho da vida, São Paulo encherá o
silencio, da morte. Porque não se deve esperar a morte deitado na cama, de cara amarela, de
olhos fechados, entre remedios e lagrimas. Não é visita de medico. A morte não gosta da morte.
A morte só gosta da vida. A morte chega no momento justo em que o homem vai perder a vida
para não deixar o homem morrer: para dar vida eterna para ele. A morte é que imortaliza. Ela
24
salva o homem que o mundo quer matar. Livra o homem do mundo. Isso é insincero. Eu quero
bem o mundo. Porem quero mais á morte porque eu não conheço nada dela e por isso mesmo
posso esperar tudo dela.
Ainda sobre esse texto é interessante verificar a análise que Luiz Toledo
Machado faz em Solidão e morte em Antônio de Alcântara Machado. Neste, o
autor denomina o escrito de António de Alcântara de meditatio mortis, uma
premonição de sua morte prematura. Diz:
O sentido premonitório do texto está nos próprios elementos expressivos da composição,
ao que parece, escrita num momento de depressão, quando desabrocham as imagens
primordiais e surgem as produções de tipo visionário. A denominação se aplica aos textos,
como o do nosso A., cerrado de imagens arquetípicas, textos proféticos que expressam em
linguagem oblíqua experiências ancestralmente vivenciadas e desvendam verdades situadas
além do conhecimento dito racional. (...).
No trecho citado de sua Meditatio Mortis, Antônio de Alcântara Machado revive, no
mínimo, quatro mitos primordiais que se entrelaçam no mesmo Mistério: 1) o mito do eterno
retorno; 2) o mito do Centro (simbolizado pelo largo de Santa Cecília, pelo meio do largo); 3) o
mito da Cruz (simbolizado pelo lampião esgalhado) e, finalmente, o grande mito da morte do
Deus-Homem.
13
E completa apresentando outro trecho curioso do mesmo texto que revela a
percepção de António de Alcântara em relação à morte/imortalidade, evocando
para isso temas como o da unidade primordial e do tempo cíclico:
Quero passar de um amor menor para um amor maior e sou humano, enfeitando o que
virá com bobagens lugares-comuns. E não há maneira de caminhar sem dar as costas ao que se
deixa. A lembrança do passado não existe porque passado lembrado é passado presente. Não é
passado. Logo, e em rigor, este não existe. Lembrado é presente e se liga ao futuro. Esquecido
não é nada. Dos inumeráveis que eu fui, sucessiva e simultaneamente, cousa nenhuma resta.
No único que eu sou agora (formado por eles) eles desapareceram. E eu sou a fusão depurada de
todos para durar na morte, entrar e permanecer uno na morte.
A gente cai na vida que nem semente na sementeira: para ganhar forma. Desenvolvida é
transportada. Vai florir em outro lugar. Por isso é que se põem flores nos caixões e nos túmulos.
É uma precaução piedosa: poderão servir para o defunto, se os botões dele não vingarem.
Casaca emprestada para o amigo figurar no baile. Dizem para o defunto: Em todo caso, leve
estas para a garantia..
13
Machado, “Solidão e morte em Antônio de Alcântara Machado” in O processo literário, p.69.
25
Em toda obra de Antônio de Alcântara Machado não há uma só referência explícita à
história do pensamento religioso, que pudesse denunciar conhecimento adquirido nessa
matéria. Seu interesse religioso resume-se nesta curiosa frase, em carta dirigida a Tristão de
Ataíde: “Sou um torcedor da Igreja”. As pesquisas que dedicou à vida e obra de Anchieta são
meticulosamente históricas. Não denota, também, em sua obra ficcional, curiosidade especial
pelos processos adotados pelo Surrealismo, Expressionismo e Simbolismo, que operam com a
seqüência imagem, metáfora, símbolo, mito e arquétipo, elementos tanto válidos em termos de
valorização estética como metafísica. Não fosse assim, poderíamos acreditar que o
conhecimento adquirido e reelaborado pela reflexão aparecesse transfundindo na visão
metafísica do seu destino individual e justificasse o aparecimento de imagens universais,
referentes ao destino da criatura humana. É bem verdade, no entanto, que o A. foi encontrar, em
1930, uma Europa desarvorada diante da brusca substituição dos sistemas de valores aceitos
até a Primeira Grande Guerra, pela inutilidade do sacrifício e pelo medo de nova guerra. O
processo de reação espiritualista do pré-guerra continuaria no após-guerra, num desesperado
desejo de fuga à trágica realidade da história, configurando-se na literatura mediante a
revivescência de temas gnósticos.
14
Após sua morte foram publicados alguns de seus artigos e livros.
“Trovadores do Tietê”, artigo inédito que comporia um estudo sobre os trovadores
populares da cidade de São Paulo, intitulado Lira Paulistana, que não fora
publicado antes é divulgado na Revista do Arquivo Municipal de São Paulo (v.
XVII, 1935). Mana Maria, em 1936, romance inacabado. Essa edição foi também
dedicada a reunir contos inéditos e já publicados em revistas e jornais. Em 1940,
seu conjunto de crônicas e artigos da carreira jornalística, de 1926 a 1935,
Cavaquinho e saxofone (solos), coletânea reunida pelos amigos Sérgio Milliet e
Cândido Mota Filho.
Além destas edições póstumas várias outras relançaram a obra de António
de Alcântara; destaco: Brás, Bexiga e Barra Funda, notícias de São Paulo e
Laranja da China, num único volume de 1944, prefaciado por Sérgio Milliet, com
ilustração da capa de Clóvis Graciano. Em 1961, Novelas paulistanas que reuniu
toda a sua obra ficcional, com nota de Francisco de Assis Barbosa e ilustrações de
Poty. Além das belíssimas edições fac-similares de Pathé-Baby, Brás, Bexiga e
Barra Funda, notícias de São Paulo e Laranja da China de 1982, com
comentários e notas de Cecília de Lara.
José Lins do Rego, no ano da morte de António de Alcântara, resumiu assim
a importância da produção literária desse escritor:
14
Id., ibid., p.71.
26
O tal movimento modernista de São Paulo já pode muito bem ser estudado sem paixão,
uma vez que o tempo esfriou os entusiasmos e as prevensões. É verdade que com as torrentes
que ele desencadeou desceu muita porcaria para as várzeas.
Quebraram as chaves de ouro dos sonetos, mas não foi uma rebelião exterior o que os
rapazes paulistas tentaram com tanto sucesso. Eles tinham qualquer coisa de íntimo para dizer
nos versos e na prosa daquele tempo. E a gente tem que confessar que havia ao par das blagues
um interesse humano na força de criação deles. Por mais que procurasse a erudição, Mário de
Andrade era um poeta de alma, com a vibração lírica que o interesse sectário deturpava o seu
bocado. O outro Andrade foi uma espécie de corsário desta guerra, mas um corsário a quem só
interessava o cadáver do adversário para tripudiar sobre o pobre. Matou muita gente com
ferocidade. Aliás, este gosto pelo assassínio não se amorteceu com a idade. Como os bandidos
profissionais, o poeta de Pau-Brasil gosta das coleções de orelhas para o deleite de seus bons
ócios de letrado. A literatura nas mãos dele é sempre um instrumento de suplício para os seus
inimigos. Mas isto já deve estar cansando ao consagrado escritor de Estrela de Absinto. Matar
em literatura não deixa de ser um ofício cruel. Por isto a sua contribuição na rebelião de São
Paulo quase que não interessa hoje. O poeta brincava demais, debochava de tudo. E poesia é
coisa mais séria, vai mais além da blague pela blague. O que não se pode negar é que ninguém,
na hora da luta, foi mais forte do que ele, fazendo o que ninguém podia fazer. Foi assim
admirável na derrubada, mas pouco plantou de grande. E no entanto como ele poucos com a
capacidade de fazer coisas definitivas.
Agora, com Antônio de Alcântara Machado foi diferente. Mais moço que os dois
Andrades, Alcântara foi o mais brasileiro, o mais direto na formação de sua obra. Enquanto
Mário estudava folclore, Alcântara, olhando para a vida, queria ver, sentir como homem. Por
isto os seus contos são mais libertados da vontade de brilhar, do imediato. Com Oswald de
Andrade ele criou o movimento nativista chamado da Antropofagia. Foram por esse tempo
terríveis comedores de carne branca. E muito bispo Sardinha foi devorado em moqueca pela
fome canibalesca dos dois. O programa da Revista de Antropofagia teria muita coisa que os
diretores da Aliança Libertadora poderiam utilizar, com inteligência. No fundo era o
imperialismo o que Alcântara, Oswald e Bopp visavam combater.
É desse tempo o Laranja da China de Alcântara, livro de contos em uma língua
deliciosa. A força de vida dos pobres homens que o escritor captou em suas fontes é desta que
lateja à vista. Mas o que nos espanta neste livro é o achado de sua linguagem. O escritor passou
Macunaíma neste ponto. A língua de Macunaíma é um fabuloso apanhado de modismos que
chega a dar um dicionário. Mas às vezes a erudição embaraça o grande escritor. O entusiasmo
poético, a espontaneidade se perdem. Mário de Andrade subjugou o poeta que ele é. E a língua
se resseca, perde o cheiro e o gosto de terra molhada.
A língua de Alcântara é livre, vem de dentro dos seus personagens, se articula com uma
pureza admirável. Dele poderia ter saído o grande romancista de São Paulo, porque Antônio de
27
Alcântara Machado dispunha como pouca gente do elemento essencial para o romance, que é a
capacidade que tem o escritor de se encontrar em intimidade com a vida e não banalizar a vida.
E é ele justamente que morre com trinta e três anos e com um mundo na frente para
criar.
15
E Alceu Amoroso Lima, em 1951, reafirmava essa importância:
Foi dos que passaram, pela nossa geração, como um meteoro. Mas deixando um rastro
realmente luminoso. Quando morreu, com trinta e poucos anos, já deixara marca em nossa
prosa moderna e me lembro de que, respondendo a um inquérito, na época, sôbre o melhor
prosador modernista, respondi: Antônio de Alcântara Machado.
Conheci-o pouco, pois pouco vinha ao Rio. Foi do grupo paulista da primeira arrancada
e tomou a direção de Terra Roxa e Outras Terras e creio que da Revista de Antropofagia
também. Foi, como se sabe, no conto que deu a medida do seu valor, nesses dois volumes
principalmente do Brás, Bexiga e Barra Funda e Laranja da China, onde há os melhores
contos da nova geração, junto aos de Ribeiro Couto. Estreara com Pathé-Baby, livro de
impressões de viagem, onde lançou a prosa telegráfica e impressionista. Quando escolheu o
conto, encontrou a fórmula exata para exprimir a sua vocação estética. Tinha o estilo rápido,
enxuto, pitoresco, sabendo evocar com graça irresistível os tipos de rua, as situações cômicas e,
ao mesmo tempo, os dramas inseridos no cotidiano. A morte do “Gaetaninho”, por exemplo, é
uma página de antologia.
Na hora em que as primeiras tropas modernistas procuravam sobretudo demolir, êle
chegava logo construindo, com um estilo próprio, com uma facilidade e uma alegria de viver e
de criar que guardou até morrer, tão cedo.
Não foi, pois, um revolucionário como os outros companheiros. Incorporou-se a êles,
naturalmente, sem preocupações de fazer nôvo ou de atacar os velhos. Trazia a sua vocação na
ponta dos dedos e a deixou escoar nesses contos ou nesse esbôço de romance, Mana Maria, que
só viria a lume depois da sua morte e revelava o que poderia ter dado se tivesse vivido mais
tempo.
Simultâneamente com essa alegria de criar e com essa facilidade de inovar, tinha o
gôsto das coisas antigas. Não era filho, em vão, de quem lançou a frase famosa até hoje dos
“paulistas de quatrocentos anos”.
Como todos os companheiros do seu tempo, era profundamente paulista. Mas um
paulista extrovertido, como aliás Mário de Andrade e Oswald de Andrade, os dois
companheiros mais chegados da primeira hora. Ressumava a alegria de viver, como Ronald de
Carvalho. Mais com raízes na terra e nas tradições do passado. Gostava de história. Comentou
a obra de Anchieta, que a Academia publicou por iniciativa de Afrânio Peixoto, de tal maneira
15
Datado de 1935, o artigo foi reproduzido em Gordos e magros, editado pela Casa do Estudante do Brasil,
Rio de Janeiro, em 1944, pp.54-6. Citado por Cecília de Lara em Comentários e notas à edição fac-similar de
Laranja da China, pp.70-1.
28
que muitos julgaram, inclusive eu, que o Alcântara Machado comentador da edição crítica de
escritos jesuíticos era o pai e não êle, tão paradoxal parecia que um jovem lançado em plena
aventura modernista, no auge da luta entre “antigos e modernos” e no meio das ostes mais
aventurosas dos modernos, pudesse ter tanto gôsto e tanta erudição em comentar os mais velhos
escritos coloniais.
Mas é que, no movimento modernista, houve uma profunda intenção nacionalista, ao
menos de início. E Antônio de Alcântara Machado embora começando por um livro de
impressões de viagens pela Europa, foi na gleba paulista, foi na terra roxa que encontrou a sua
expressão estética. E foi uma e outra coisa, com a mesma naturalidade.
Era também uma admirável epistológrafo. Tenho cartas dêle, deliciosas, numa das quais
me dizia, desde 1928, que não era êle próprio um “católico”, mas um “torcedor” e estava
conosco, embora das arquibancadas, no movimento que então se delineava e que Jackson tinha
deflagrado. Lembro-me mesmo que estêve presente, uma tarde, numa das nossas primeiras
sextas-feiras do Centro D. Vital, ainda na Livraria Católica, debaixo da escada, poucas
semanas ou mesmo poucos dias depois da morte de Jackson, quando falei sôbre Bergson e sua
ação sôbre Maritain. Estávamos em 1928, ainda, em dezembro e, poucos anos depois, o nosso
Alcântara, tão jovem como Jackson, ou como Ronald, também ficava à beira do caminho,
enquanto a caravana prosseguia o seu curso, entre os cães que latem e as palmeiras que
abanam os leques ao crepúsculo, no oásis do deserto...
16
O ESCRITOR NA CIDADE
António de Alcântara capturou o tempo, Chrónos, no espaço pulsante das
ruas, avenidas e praças de uma paulicéia já desvairada. Neste trabalho foi mais
andarilho que flâneur. Preocupado em compreender a totalidade sócio-histórica na
qual estava inserido, observava com acuidade as intensas transformações pelas
quais passava a cidade e o efeito dessas na formação e cristalização de novos tipos
e grupos sociais. Produtos, mas também realimentadores das profundas mudanças
econômicas, políticas e culturais em processo desde o final do século passado. Das
caminhadas, do olhar atento e das leituras de tantos dramas registrados nas notícias
dos jornais, retirou a matéria-prima para compor, além das crônicas, seus contos e
personagens.
Nessas histórias encontramos o operário, o funcionário público, o
trabalhador do comércio, o policial, o estudante, a dona-de-casa, o burguês urbano
(novo industrial), a elite cafeeira, que fixa moradia na cidade, e inúmeros outros.
São brasileiros, italianos (o imigrante por excelência retratado), ítalo-brasileiros,
principalmente os ítalo-paulistanos; negros, mulatos, mestiços e brancos; a criança,
16
Lima, Companheiros de viagem, pp.60-2.
29
o ancião, o jovem, vigoroso no trabalho, na torcida do seu time, na vingança do
amor traído, na defesa do hino e símbolos nacionais e na discussão política.
Modernista tardio, António de Alcântara, não participou do movimento nos
seus primórdios; somente em 1926 aproximou-se dos artistas e intelectuais de
vanguarda, com a publicação do livro de crônicas Pathé-Baby, relato bem
humorado também de suas andanças pela Europa. Contudo, desde o início da sua
produção literária, enveredou por um caminho singular. Escritor de espírito crítico
e sensível percebeu no elemento humano o fim e reinício do circuito de toda
energia liberada pelo avassalador processo de modernização.
Enquanto outros modernistas colocaram no centro de suas preocupações a
cidade, com seus aspectos físicos e sociais, procurando evidenciar também as
transmudações coletivas, António de Alcântara voltou suas atenções para os
grupos que habitavam e circulavam na urbe, identificando neles tipos
representativos da nova ordem social.
Nesse sentido, a cidade que apreendeu é aquela da multiplicidade, da
diferença e, sobretudo, da contradição.
Cantar a cidade moderna como um corpus único e homogêneo acaba por
escamotear diferenças essenciais na forma como cada indivíduo viveu aquela
experiência de modernidade, nivelando percepções particulares de uma mesma
realidade e, no extremo, amenizando ou conciliando contradições.
Evidentemente, o surgimento de uma nova fauna urbana não passou
despercebido para outros escritores modernistas, alguns até criaram personagens
memoráveis que tipificavam os novos habitantes da cidade. Porém, no caso de
António de Alcântara, o sentido e a intensidade da presença de homens e mulheres
como protagonistas das histórias são diferentes e muito específicos. Primeiro,
porque não há heróis, seja na concepção clássica ou na moderna, em seus contos.
Os personagens que concebeu são de uma dimensão humana radical e até mesma
absurda se considerarmos o mundo irreal em que vivem. Em segundo, por não
haver um único dos seus personagens que represente o alterego do escritor, mas
sim a infinidade de anônimos aparentemente estáveis ou completamente perdidos
no interior e no fluxo da modernidade.
Mesmo que haja possibilidades de aproximação da obra de António de
Alcântara com a de outros escritores modernos, não houve, com certeza, quem
tenha perseverado tanto nessa forma de observar e descrever a realidade de seu
tempo.
Para entendê-la foi necessário abandonar os espaços privados e ir às ruas.
Observar o ineditismo das formas, cores, sons e odores que a modernidade
instaurara e redescobrir o ambiente urbano vagando pela cidade e sentindo o seu
ritmo.
30
António de Alcântara testemunhou essa nova reordenação do mundo. A sua
obra literária é o retrato da São Paulo e do Brasil que ele presenciou.
31
CAPÍTULO II
BRÁS, BEXIGA, BARRA FUNDA E OUTROS BAIRROS: A CIDADE
CAPTURADA PELO ESCRITOR
Na Rua Barão de Itapetininga
O meu coração não sabe de si,
Não se vê moça que não seja linda,
Minha namorada não passeia aqui.
Na Rua Barão de Itapetininga
Minha aspiração não agüenta mais,
A tarde caindo, a vida foi longa,
Mas a esperança já está no cais.
Na Rua Barão de Itapetininga
Minha devoção quebra duma vez,
Porque a mulher que eu amo está longe,
É ... a princesa do império chinês.
Na Rua Barão de Itapetininga
Noite de São João qualquer mês terá,
Em mil labaredas de fogo e sangue
Bandeira ardente tremulará.
Na Rua Barão de Itapetininga
Minha namorada vem passear.
(Mário de Andrade, Lira paulistana)
32
É realmente um excepcional escritor esse que nos dá, à maneira dos antigos cronistas,
um tratado do Brasil, mas do Brasil novo e diferencial, que se processa nas terras paulistas.
Da violenta e caótica cidade escolheu os bairros bilíngües xipófagos do povo gris
incerto e indeciso, antes do ponto, da queda umbilical do caldeamento.
Na minha tarefa de crítico, no baixo nível que se chama recensão ou o registro da
literatura corrente, sem argúcias psicológicas e sem intenção de expor as correntes doutrinárias
e estéticas do nosso tempo, sempre me fascinou a ousadia dos homens novos que tentaram e
tentam ainda a diferenciação dos nossos métodos de sentir, de pensar e de escrever.
Para mim, a regeneração só se faria a preço da absoluta renúncia dos modelos
europeus, no horror à imitação das fórmulas e das escolas ultramarinas, portuguesas outrora e
depois francesas, recordando como se esqueceu por muito tempo e criminosamente as fontes
legítimas da inspiração nacional.
O livro de Alcântara Machado é um grande exemplo da literatura nova, que entrevejo
triunfante, pelo menos na fase atual das nossas letras.
Que fez Alcântara Machado?
Buscou e achou um veio aurífero na sedimentação progressiva e intensa da
nacionalidade.
Não quis travar o conhecimento do cabloco ou do sertanejo, nem do índio problemático
e absurdo. Não foi e nem era preciso ir longe.
À porta da casa, descobriu o seu tesouro, tão ignorado da gente ignara que passava.
Vivendo numa cidade moderna, trêmula e estuante de vibrações contínuas de
recomposição, descobriu a gente nova que alvorecia, semente de futuros grandes e incertos.
Em São Paulo, que é o seu campo experimental, encontrou a camada nova ainda um
pouco eruptiva e violenta que começa, após uma geração, a sedimentar-se...
É a camada ítalo-brasileira, que repete na América a conquista romana um pouco
civilizada, (...).
O livro de Alcântara Machado dá essa feição nova, tênue, do primeiro quisto, delgado
ainda, do ítalo-brasileiro.
Brás, Bexiga e Barra Funda é bem o livro que nos revela esse interessante mundo,
transparente e ectoplásmico, que sai da ilusão para a realidade.
No seu “artigo de fundo” vem a cantiga, sinal dos novos tempos:
Italiano grita
Brasileiro fala
Viva o Brasil
E a bandeira da Itália.
33
A rima está com o fígado ádvena em caminho de adaptação. Que dizer das histórias que
compõem o livro? São todas magníficas, o Gaetaninho que amassou o bonde. Carmela, a
namorada fútil e acomodatícia, o Tiro de Guerra, ordem do dia paulista; chuva e sol o Amor e
Sangue, que lembra um episódio dos Malavoglia, a Sociedade, página pequena e grande.
Liseta, de graça infantil, Corinthians versus Palestra e um etc. para resumir a enumeração, que
seria fastidiosa por negar e omitir o texto, que é de obrigação civil a toda gente ler.
O livro é dedicado aos ítalos-brasileiros que emergiram da onda imigratória para lustre
da pátria nova.
E não é um livro apenas para gáudio do leitor comum. Interessa ao historiador, ao
etnógrafo, ao lingüista, ao folclorista, que buscam definir os matizes do Brasil novo. E na
literatura, pelo documento indireto, é que se conhece com maior fidelidade a civilização
interna, para dentro das fachadas, do formigueiro humano.
Brás, Bexiga, Barra Funda marcará uma fase da novelística brasileira.
1
Foi com esse entusiasmo que João Ribeiro recebeu o primeiro livro de
contos de António de Alcântara Machado, no Jornal do Brasil, em 4 de maio de
1927.
Além deste, outros críticos e intelectuais contemporâneos do escritor
também perceberam na publicação de Brás, Bexiga e Barra Funda, sua estréia na
literatura ficcional, como o início de uma obra de valor extraordinário para as
letras brasileiras.
2
1
Ribeiro, “Brás, Bexiga e Barra Funda” in Jornal do Brasil, 4 de maio de 1927. Artigo reproduzido em “Os
modernos” in Crítica, Edição da Academia Brasileira de Letras, Rio de Janeiro, 1952, pp.314-6. Citado por Cecília
de Lara em Comentários e notas à edição fac-similar de Brás, Bexiga e Barra Funda, notícias de São Paulo,
pp.102-4.
2
2
Outras críticas comprovam a expectativa em relação ao futuro da carreira de escritor de António de
Alcântara Machado. Stiunirio Gama, pseudônimo de Mário Guastini, em sua coluna Ás segundas”, no Jornal do
Comércio, escreveu em 14 de março de 1927: Antonio de Alcântara Machado é um escriptor que encanta com a sua
prosa clara e incisiva, com a sua observação penetrante e pouco commum em homens de sua idade. Alcântara é um
analysta invejável. Com duas pennadas, traça o perfil phisico, moral e intellectual dos seus typos, que vivem, se
movimentam e conversam com o leitor. (...) Já disse acima que Bráz, Bexiga e Barra Funda é um livro delicioso. E
o é de facto; sem favor. Os contos que reúne em suas páginas são verdadeiras jóias literárias. Qualquer um delles,
ao acaso, agradará. E mesmo que assim não fosse bastaria um, um apenas, para confirmar o indiscutível valor de
Antonio de Alcântara Machado. Corinthians (2) vs. Palestra (1) é uma perfeição. Em quatro páginas e meia, o
leitor assiste a um desses empolgantes jogos de futebol acompanhando todas as peripécias, sem perder uma phrase,
um movimento sequer dos apaixonados torcedores. São quatro páginas e meia vividas, são vinte e dois jogadores
que driblam e marcam pontos para o seu clube, são um mundo de espectadores que escutam o calor e sentem os
gritos, são uma multidão que vibra de enthusiasmo. E para quem é capaz desse prodígio todos os elogios serão
poucos. Martin Damy, no Jornal do Comércio, escreveu em 6 de abril de 1927, em sua coluna “O espírito dos
livros”, crítica intitulada “Brás - Bexiga e Barra Funda de António de Alcântara Machado”: Para mim, Antonio de
Alcântara Machado é um desses escriptores superiores.(...) Essencialmente moderno, não entra comtudo na chimica
das phrases incomprehendidas. É nítido e franco, ágil, elástico, sem escamoteações de lantejoulas cegantes.
Guardando vivacidade, não se apressa nunca. Pára somente após ter esgotado o assumpto. Antes, não. Suas
páginas, em Brás, Bexiga e Barra Funda, são na verdade assim - de notas syncopadas e de pensamentos galopados
em sentenças rápidas. Mas, quanto ao ardor nos seus ardores contidos, quanta agudeza na analyse carinhosamente
34
Brás, Bexiga e Barra Funda é composto por onze contos, sendo que três já
haviam sido publicados anteriormente no Jornal do Comércio: Gaetaninho em 25
de janeiro de 1925; Carmela, e Liseta, 8 de março. Nos dois últimos uma
pequena nota indicava a intenção do escritor em reuni-los em um livro: Para um
possível livro de contos: ÍTALO-PAULISTAS. Essas primeiras versões sofreram
algumas alterações para a inclusão no livro, porém os enredos das histórias foram
mantidos.
Em 1925, António de Alcântara viajou à Europa e retornando ao Brasil
reescreveu as crônicas que compuseram Pathé-Baby, publicado em 1926. Somente
após a publicação dessas crônicas o autor retorna à produção dos contos.
Na apresentação de Brás, Bexiga e Barra Funda, denominada artigo de
fundo, alerta para o fato que o livro não nasceu livro: nasceu jornal, e os contos não
nasceram contos: nasceram notícias. Essa vinculação do livro com o jornal é
constantemente reforçada:
BRÁS, BEXIGA E BARRA FUNDA é o órgão dos ítalo-brasileiros de São Paulo.
(...).
BRÁS, BEXIGA E BARRA FUNDA como membro da livre imprensa que é tenta
fixar tão sómente alguns aspectos da vida trabalhadeira, íntima e quotidiana desses novos
suavizada, quanta mordacidade na ingenuidade atirada em quasi todas as suas páginas. É um reticenciar constante.
Um constante entrelaçar de imagens, um cruzamento ininterrupto de observações. De quando em quando, um apito
estrídulo. E o autor fecha então voluntariamente o trânsito às suas considerações de ambientes para deixar passar
o cortejo das Carmelas, dos Caetaninhos. É então a São Paulo todinha dos italianos que vem até a nossa emoção.
Mais que isso - é toda a Itália immigrada que vem até nós. E em lucta com o meio e dominada por elle, seus braços
se nos abrem amigos. E nós os vencemos, e o italiano fica sendo brasileiro. Não acreditam os senhores? Pois leiam
o livro de Antonio de Alcântara Machado. Rodrigo M. F. de Andrade escreveu no O Jornal, do Rio de Janeiro, em 3
de abril de 1927, crítica intitulada “Antonio de Alcântara Machado - Brás, Bexiga e Barra Funda - Editorial Helios
- S. Paulo, 1927”, em sua coluna “Vida literária”: Em Brás, Bexiga e Barra Funda não há nada supérfluo. É um
livro conciso, como talvez não tenha surgido até hoje nenhum no Brasil. Não tem mais uma nesga de literatura. O
primeiro conto - “Gaetaninho”- por exemplo, desenvolve-se em menos de 100 linhas do typo grande e tem uma
intensidade dramática estupenda. O sr. Antonio de Alcântara Machado não se deixa levar pela história, nem se
perde em incidentes e explicações. Conduz a narrativa com uma segurança magnífica. (...) A forma do sr. Antonio
de Alcântara Machado é sua só. Não se sente nella a influência de ninguém. Neste livro novo mais do que no
anterior seu estylo é preciso, directo, conciso. Não tem a preocupação de ser moderno. E é. Intensamente. (Como
elle diria). (...) Quem pratica muito o sr. Antonio de Alcântara Machado é que corre o risco de acabar escrevendo a
seu modo, brusco, sacudido. Perde insensivelmente a superstição dos períodos cheios, rythmados, sabiamente
equilibrados. Despreocupa-se de todos os effeitos sonoros e “alcantaranisa-se afinal. O autor do Pathé-Baby tem
a força e o feitio dos homens contagiosos de que falava Jean Cocteau. Por isso mesmo não será prudente
recomendar-se à meninada que vá buscar ensinamentos no Brás, Bexiga e Barra Funda. Mas quem tiver dúvidas
ainda sobre a benemerência do movimento modernista no Brasil, leia o volume novo do sr. Antonio de Alcântara
Machado. Brás, Bexiga e Barra Funda não é só um dos mais admiráveis livros de prosa nacional. É também um
dos melhores livros de poesia. Todas essas críticas foram reunidas por Cecília de Lara em Comentários e notas à
edição fac-similar de Brás, Bexiga e Barra Funda, notícias de São Paulo, pp. 89-108. Porém, neste livro a grafia foi
atualizada. Para recuperá-la pesquisei novamente todas as críticas nos periódicos indicados e transcrevi-as na forma
original em que foram publicadas.
35
mestiços nacionais e nacionalistas. É um jornal. Mais nada. Noticia. Só. Não tem partido nem
ideal. Não comenta. Não discute. Não aprofunda.
Principalmente não aprofunda. Em suas colunas não se encontra uma única linha de
doutrina. Tudo são factos diversos. Acontecimentos de crónica urbana. Episódios de rua. O
aspecto étnico-social dessa novíssima raça de gigantes encontrará amanhã o seu historiador. E
será então analisado e pesado num livro.
BRÁS, BEXIGA E BARRA FUNDA não é um livro.
3
O livro, de fato reproduz em vários aspectos a forma e a linguagem
jornalística. Os títulos dos contos foram impressos em negrito, caixa alta,
remetendo à idéia dos tipos garrafais das manchetes. O estilo adotado é claro,
direto e ágil, procurando aproximar a escrita do coloquial.
Outros elementos visuais, como os cartazes e anúncios nos bondes, o
réclame, os letreiros de neon das casas comerciais e as cartas, são reproduzidos nas
histórias dando à narrativa maior flexibilidade e aproximando-a dos meios
modernos de comunicação, o cinema, o rádio, o telégrafo e o próprio jornal.
Lembrando ainda que o subtítulo do livro é: notícias de São Paulo; os
contos sucedem-se como reportagens, voltadas a descrever o cotidiano - com suas
alegrias, misérias e contra-tempos - de um grupo particular de moradores da
cidade, os ítalo-brasileiros. Aqueles que o autor denomina os novos mamalucos:
Então os transatlânticos trouxeram da Europa outras raças aventureiras. Entre elas
uma alegre que pisou na terra paulista cantando e na terra brotou e se alastrou como aquela
planta tambêm imigrante que há duzentos anos veiu fundar a riqueza brasileira.
Do consórcio da gente imigrante com o ambiente, do consórcio da gente imigrante com a
indígena nasceram os novos mamalucos.
Nasceram os intalianinhos.
O Gaetaninho.
A Carmela.
Brasileiros e paulistas. Até bandeirantes.
E o colosso continuou rolando (...).
Inscrevendo em sua coluna de honra os nomes de alguns ítalo-brasileiros ilustres êste
jornal rende uma homenagem á força e ás virtudes da nova fornada mamaluca. São nomes de
literatos, jornalistas, cientistas, políticos, esportistas, artistas e industriais. Todos êles figuram
entre os que impulsionam e nobilitam nêste momento a vida espiritual e material de São Paulo.
BRÁS, BEXIGA E BARRA FUNDA não é uma sátira.
A REDACÇÃO
4
3
Machado, Brás, Bexiga e Barra Funda, notícias de São Paulo, p.15 e pp.18-9.
4
Id., ibid., pp.16-7 e p.19.
36
O livro é dedicado, entre outros, à memória de Lemmo Lemmi (Voltolino),
e a Alfredo Mário Guastini, Paulo Menotti Del Picchia, Victor Brecheret, Anita
Malfatti, Conde Francisco Matarazzo Junior e Francisco Mignone. E a citação,
antes da apresentação, é do Conde Francisco Matarazzo em discurso proferido em
1926, saudando o novo Presidente da República, Washington Luís: Esta é a pátria
dos nossos descendentes.
Brás, Bexiga e Barra Funda é enfim um passeio até os distantes bairros
italianos. Foi nesses que António de Alcântara encontrou inspiração para criar
algumas das suas histórias e personagens mais marcantes. Alguns de seus heróis
parecem saídos dos desenhos do caricaturista Voltolino, contemporâneo de
António de Alcântara, cuja obra ele tanto estimava.
OS TIPOS E GRUPOS
O Brás, a Barra Funda e o Bexiga tiveram origens e destinos diferentes. Os
dois primeiros, desde final do século passado, foram ocupados pelas primeiras
fábricas e indústrias. O Bexiga sempre foi mais voltado ao pequeno comércio. Em
comum possuíam as colônias italianas e a distância em relação ao centro da
cidade. Francisco Foot e Victor Leonardi relacionam a topografia da cidade com o
surgimento dos bairros fabris:
No município de São Paulo, a formação dos primeiros bairros operários esteve ligada à
localização das antigas fábricas. Estas, por sua vez, instalaram-se seguindo de perto o traçado
das ferrovias (S. Paulo - Railway e, depois, Sorocabana e Central do Brasil). Este percurso
acompanhou a direção natural dos rios Tamanduateí e Tietê. Foi em torno das várzeas
ribeirinhas que se formaram os primeiros núcleos fabris e proletários. Nestas baixadas, os
bairros industriais descreveram um semicírculo em volta da colina central da cidade, na qual se
instalaram o centro comercial e os bairros burgueses (Higienópolis e Jardins).
5
O Bexiga foi ocupado predominantemente por calabreses. Pesquisando
sobre o desenvolvimento do bairro, Nádia Marzola observa:
O Bexiga foi o bairro dos italianos, na maioria calabreses, que aproveitaram os preços
baixos, as ruas de 60 palmos, íngremes, para recriar ambientes da Itália na cidade que se
5
Foot e Leonardi, História da indústria e do trabalho no Brasil, das origens aos anos vinte, p.195. Ainda
sobre a relação topografia e o surgimento dos bairros operários ver: Fausto, Trabalho urbano e conflito social,
1890-1920, pp.18-9.
37
modificava. Ao se transplantarem para São Paulo, trouxeram consigo toda uma tradição
cultural que foi marcante na paisagem local.
Já em 1902, o aglomerado de casas e barracos, construído por negros libertos e
italianos, tinha o essencial para um núcleo de povoamento: uma padaria, uma mercearia (a
“Basilicata”) e uma santa padroeira (Nossa Sra. de Achiropita), trazida pelos calabreses de
Rossano que chegaram a São Paulo ainda no século XIX, substituindo escravos alforriados.
Em 1914 levantaram a capela dessa Santa, à qual eram dedicadas festas à semelhança
das celebrações populares da Moóca e do Brás. Pela lei 1242, de 26 de dezembro de 1910, o
Bexiga passou a pertencer ao 17º subdistrito do Município de São Paulo, com o nome que
conserva até hoje - Bela Vista.
6
Dedicados a montar seus próprios negócios, esses imigrantes instalaram as
primeiras cantinas, padarias, armazéns, barbearias, sapatarias, marcenarias e outras
pequenas oficinas.
Alguns desses estabelecimentos ficaram famosos por todo o bairro e até
mesmo pela cidade. Na rua Abolição, por exemplo, localizava-se o Armazem
Progresso de São Paulo
7
que, segundo António de Alcântara, era célebre por causa
do seu anúncio:
AVISO ÁS EXCELENSSIMAS MÃES DE FAMÍLIA!
O
ARMAZEM PROGRESSO DE SÃO PAULO
DE
NATALE PIENOTTO
TEM ARTIGOS DE TODAS AS QUALIDADES
DÁ-SE UM CONTO DE RÉIS A QUEM PROVAR O CONTRARIO
N. B. - Jogo de bocce com serviço de restaurante nos fundos.
Isso em letras formidáveis na fachada e em prospectos entregues a domicílio.
8
O crescimento do armazém comprova seu sucesso. Seu Natale e sua esposa
se esfolam de trabalhar, reclamam dos impostos e economizam em silêncio:
O Armazem Progresso de São Paulo começou com uma porta no lado par da rua da
Abolição. Agora tinha quatro no lado impar.
Tambêm o Natale não despregava do balcão de madrugada a madrugada. Trabalhava
como um danado. E dona Bianca suando firme na cozinha e no bocce.
6
Marzola, “Bela Vista” in História dos bairros de São Paulo, pp.63-6.
7
7
Machado, Brás, Bexiga e Barra Funda, notícias de São Paulo, pp.121-9.
8
Id., ibid., p.121.
38
Se não é essa cousa de imposto, puxa vida!
Mas a caderneta da Banca Francese ed Italiana per lAmerica del Sud ria dessa cousa
de imposto.
9
Esse casal, representante dos imigrantes que desejavam ascender
socialmente, mora e trabalha no Bexiga, mas avista e sonha com a avenida
Paulista.
Seu Natale, inspirado em figuras como Rodolfo Crespi, ou até mais míticas
como Francesco Matarazzo,
10
talvez objetivasse deixar o ramo comercial e dedicar-
se à produção industrial. E assim acumular riquezas mais rapidamente.
9
Id., ibid., pp.122-3.
10
Franco Cenni relata a importância dos italianos para a indústria brasileira: Durante certo período a
indústria nacional se caracterizou, portanto, como sendo mera “indústria de substituição” destinada a produzir
artigos que o consumidor não poderia conseguir por dificuldades diversas (guerras, crises etc.). (...) A indústria
têxtil foi uma das que mais se beneficiaram com êsse primeiro surto de industrialização a caráter substitutivo,
atraindo grandes capitais que provocaram sua rápida modernização com processos automáticos. Nesse campo de
atividade destacou-se, desde o início do novo surto industrial, a figura de Rodolfo Crespi. (...), Rodolfo Crespi
chegou a São Paulo na condição de simples empregado na fábrica de seu concidadão Enrico Dell’Acqua, que já
tinha sido pioneiro da indústria algodoeira em Busto Arsizio. Em 1897, com apenas 23 anos, Crespi fundava com
seu sôgro, o florentino Pietro Regoli, na Moóca, uma tecelagem de algodão que logo viria a se impor no mercado
pela melhor qualidade e pela originalidade de seus produtos. Alguns anos mais tarde era fundado o lanifício e
sucessivamente, em Vila Prudente, a fábrica de chapéus, enquanto sua atividade se estendia também ao setor
agrícola, imobiliário e financeiro. De um início modesto, surgiu um complexo industrial destinado a melhorar
sensivelmente o nível da produção paulista em vários setores, pois uma das características do grande industrial era
o desejo de uma contínua renovação técnica. Em relação ao comércio escreve: O italiano Antonio Pontremoli foi o
grande precursor das “Lojas Americanas”. Durante anos seguidos vendeu por duzentos réis qualquer coisa que se
achasse em sua caixa de mascate. Mais tarde montava um armarinho na rua antiga da Imperatriz, não desistindo,
porém, de vender tudo pelo mesmo preço. E ninguém já lhe chamava Antonio, nem Pontremoli, mas apenas
“Duzentos réis”. Cenni, Italianos no Brasil, p.206 e 234. Em relação ao mito criado em torno do comendador
Matarazzo, é interessante observar alguns depoimentos recolhidos por Ecléa Bosi: Os bairros de habitação mais
densa eram o Brás, Belenzinho, Moóca. Depois a Moóca foi avançando, o Brás foi se estendendo e formou-se esses
gigantes, gigantes como Saturno que come seus filhos. Lá moravam os italianos, os espanhóis. A classe alta morava
em Higienópolis, Vila Buarque, Campos Elíseos. Depois se estendeu para o Jardim América, já em 34, 35. Quando
se abriu a avenida Paulista, tinha chácaras de frutas, os moleques iam roubar fruta lá. Os Matarazzo moravam lá,
foram os primeiros. Por falar em Matarazzo posso dar um testemunho, foi o maior trabalhador que o Brasil
conheceu. Ele foi a semente de tudo isso que São Paulo é agora. Eu era menino, já via ele, quando chegava no
escritório, lá no largo da Misericórdia. Percorria a cavalo esse interior comprando porcos e começou vendendo
banha. Talvez foi o maior trabalhador que o Brasil teve. (Lembranças do sr. Antônio); Quando o Brasil entrou na
guerra houve um desfile pela cidade. Nesse dia papai reuniu a família toda, tomamos um bonde com a bandeira
brasileira no peito e fomos bater palma para os reservistas que passavam. Alguns foram pra guerra mas aquela
tropa se formou para ficar aqui. Muitos que foram não chegaram à Europa, quando o navio chegou em Dacar
morreram de gripe. Foi a época da gripe. Aqui em São Paulo parou tudo. Dizem que a única pessoa que enriqueceu
foi o Matarazzo. Ele vendia muita banha e nas latas de banha punha metade de banha e metade água. É versão
popular. (Lembranças de d. Brites); Na Paulista moravam o Marcelino de Carvalho, o Matarazzo que dava bailes,
eu até ganhei uma caneta de ouro numa festa daquelas. Por sinal que aconteceram coisas horrorosas lá. Soube que
um chauffer engraçou-se de uma mulher da família e houve morte. O Matarazzo começou vendendo banha, todos
sabem. Depois lata de banha. E depois fez as garrafas, a Vidraria Santa Marina: quantos meninos ficaram
tuberculosos soprando a areia para virar vidro! (Lembranças do sr. Abel). Bosi, Memória e sociedade, lembranças
de velhos, p.234, 314 e 187, respectivamente.
39
Além do trabalho duro e diário, seu Natale maquina outras possibilidades
menos nobres para alcançar sua meta:
Natale veiu á porta da rua estirar os braços. Em frente a Confeitaria Paiva Couceiro
expunha renques de cebola e a mulher do proprietário grávida com um filhinho no colo. Êsse
espectáculo diário era um goso para o Natale. Cebola era artigo que estava por preço que as
excelentíssimas mães de familia achavam uma beleza de preço. E o mondrongo coitado tinha
um colosso de cebolas galegas empatado na confeitaria. Natale que não perdia tempo calculou
logo quanto poderia oferecer por toda aquela mercadoria (cebolas e o resto) no leilão da
falência: dez contos, talvez sete, quem sabe cinco. O português não aguentaria mesmo o tranco
por mais tempo.
Dona Bianca está chamando o senhor depressa na cozinha.
Resolveu primeiro apertar o homem no vencimento da letra. E acendeu um Castro
Alves.
11
Porém, é dona Bianca quem primeiro vislumbra na especulação o caminho
mais rápido para a ascensão social e topográfica:
Que é?
Bianca quando dava para falar era aquela desgraça.
José Espiridião, o mulato, o do Abastecimento, ora o da Comissão do Abastecimento...
Já sei.
... estava ali no quintal assistindo a uma partida de bocce. Conversando com o Giribello,
o sapateiro, o pai da Genoveva...
Já sei. (...)
O Espiridião falava assim para o Giribello que a crise era um facto, que a cebola por
exemplo ia ficar pela hora da morte. O pessoal da Comissão do Abastecimento andava até...
SEI! (...)
Se não aproveitasse agora nunca mais. O homem que desse em pagamento da letra as...
Dona Bianca! Venha depressa que o Dino quer avançar nas comidas!
Mais um copo, seu doutor.
José Espiridião aceitava o título e a cerveja.
Pois é como estou lhe contando, seu Natale. A tabela vai subir porque a colheita foi
fracota como o diabo. Ai, ai! Coitado de quem é pobre.
Natale abriu outra Antártica.
Cebola até o fim do mês está valendo três vezes mais. Não demora muito temos
cebola aí a cinco mil réis o quilo ou mais. Olhe aqui, amigo Natale: trate de bancar o
11
Id., ibid., p.124.
40
açambarcador. Não seja besta. O pessoal da alta que hoje cospe na cabeça do povo enriqueceu
assim mesmo. Igualzinho.
Natale já sabia disso.
Se o doutor me promete ficar quieto - compreende? - e o negócio dá certo o doutor
leva tambêm as suas vantagens...
Espiridião já sabia disso.
12
Tudo combinado, com a preciosa informação passada pelo funcionário da
Comissão de Alimentação, seu Natale pode efetuar a transação de especulação e ao
final comemorar. Avarento, prefere brindar com uma cerveja nacional, ao invés do
vinho italiano:
Dona Bianca poz o Nino na caminha de ferro. Êle ficou com uma perna fora da coberta.
Toda cheia de feridas.
Então o Natale entrou assobiando a Tosca. A mulher olhou bem para êle. Percebeu
tudo. Perguntou por perguntar:
Arranjou?
Natale segurou-a pelas orelhas, quási encostou o nariz no dela.
Diga se eu tenho cara de trouxa?
Deu na dona Bianca um empurrão contente da vida, deu uma volta sôbre os
calcanhares, deu um sôco na cômoda, saiu e voltou com meio litro de Chianti Ruffino. Parou.
Olhou para a garrafa. Hesitou. Saíu de novo. E trouxe meia Pretinha.
Dona Bianca deitou-se sem apagar a luz. Olhou muito para o Dino que dormia de bôca
aberta. Olhou muito para o Santo Antonio di Padova col Gesù Bambino bem no meio da parede
amarela. Mais uma vez olhou muito para o Dino que mudara de posição. E fechou os olhos
para se ver no palacete mais caro da avenida Paulista.
13
Assim progrediu o armazém e parte de São Paulo. Hoje, segundo Nádia
Marzola, na Rua da Abolição, ninguém se lembra mais do Armazém Progresso de São Paulo e
nem mesmo Ubaldo Manzanno, dono da melhor mercearia da região, ouviu falar de seu patrício
Natale Pienotto.
14
Luís Toledo Machado, analisando o tema da imigração na literatura
ficcional brasileira, destaca que na obra de António de Alcântara está vinculada a
questão da mobilidade social, e conseqüentemente, da espacial. Essa mobilidade
ascendente não seria resultado somente do trabalho, do esforço individual, mas
12
Id., ibid., pp.125-8.
13
Id., ibid., pp.128-9.
14
Marzola, “Bela Vista” in Histórias dos bairros de São Paulo, p.81.
41
traz implícito o problema moral da desonestidade como dado pertinente ao
“progresso” urbano, ou melhor, ao fenômeno geral de implantação de um novo
sistema de relações econômicas, sociais e estéticas (...).
15
Outro conto que aborda o problema da desonestidade é O ingênuo
Dagoberto.
16
O conto é parte do segundo livro de ficção do autor, Laranja da
China
17
, neste seu olhar se desloca da colônia italiana, dos arrabaldes pobres, para
os bairros da pequena burguesia e da elite paulistana, satirizando sobretudo seu
nacionalismo xenófobo.
18
Publicado em 1928, o livro é composto por doze
histórias, sendo que nove já haviam sido publicadas em revistas e jornais, três são
inéditas.
19
15
Machado, António de Alcântara Machado e o modernismo, p.64. A citação também pode ser encontrada
em: Hohlfeldt, Conto brasileiro contemporâneo, p.66.
1
16
Machado, Laranja da China, pp.105-117.
1
17
Tristão de Athayde, pseudônimo de Alceu Amoroso Lima, escreveu sobre Laranja da China: Como todos
sabem, o sr. Alcântara Machado, que é um dos mais moços e mais originais dos nossos contistas modernos, tem um
sabor todo próprio no que escreve. E um senso da realidade extremamente vivo. Pois bem, lendo este último livro
seu, onde há mais pitoresco e mais sátira ligeira do que no “Brás, Bexiga e Barra Funda”, onde a “Morte do
Caetaninho” era pungente a ponto de nos fazer mal, - lendo o “O Revoltado Robespierre”, por exemplo, que é uma
página magistral de espírito, de verdade flagrante, de caráter nosso, a gente se lembra sem querer de Arthur
Azevedo. Nunca, evidentemente, a sua prosa teve a graça lépida e sugestiva, o pitoresco espontâneo e nunca aguado
da prosa do sr. Alcântara Machado. Mas ambos plantam diante da gente, em meia dúzia de traços, um tipo da vida
quotidiana, como poucos são capazes de o fazer. Há neste, aliás, muito mais “intenções” do que havia, na prosa
“amena”, como ele gostava de dizer, do autor dos “contos fora da moda”. No livro do sr. Alcântara Machado não
há apenas aquele realismo fácil do outro, embora perca um pouco por ficar também pela superfície. Mas tem
muitas páginas, extremamente curiosas, como as do “aventureiro Ulisses”, por exemplo. Pois sendo um criador de
pitoresco, de tipos fora do comum, um pouco estranhos, um pouco aluados, é sempre de uma naturalidade flagrante
e extremamente viva. Athayde, “Antonio de Alcântara Machado - Laranja da China. Emp. Gráfica Ltda, S. Paulo,
1928” in Estudos, 3º série, Rio de Janeiro, pp.133-4 e in A Ordem, edição de 1930. Citado por Cecília de Lara em
Comentários e notas à edição fac-similar de Laranja da China, pp.69-70.
18
O próprio nome do livro é uma referência a uma paródia dos acordes iniciais do Hino Nacional, em voga
na época. Mário de Andrade a registrou nos primeiros versos da última estrofe do seu poema O Domador: Laranja
da China, laranja da China, laranja da China! / Abacate, cambucá e tangerina! / Guardate ! Aos aplausos do
esfusiante clown, / heroico sucessor da raça heril dos bandeirantes, / passa galhardo um filho de imigrante, /
loiramente domando um automóvel! Andrade, Paulicea desvairada, p.79.
19
Os contos já publicados anteriormente são: O revoltado Robespierre (Senhor Natanael Robespierre dos
Anjos) em Terra Roxa e Outras Terras, 6, 6 de julho de 1926, e Feira Literária de junho de 1927; O patriota
Washington (Doutor Washington Coelho Penteado) em Feira Literária de junho de 1927; O filósofo Platão
( Senhor Platão Soares) na Revista Verde de Cataguases, 4, de dezembro de 1927 (outra legendária revista do
modernismo brasileiro que destacou para o Brasil a pequena cidade de Minas Gerais. Marcada também pelo bom
humor, o título da revista deixa de ser verde e passa a ser publicado em vermelho, a partir do número cinco, o último
da primeira fase); O inteligente Cícero (Menino Cícero José Melo de Sá Ramos) no Jornal do Comércio, 25 de
dezembro de 1926, com o título Conto de Natal; O mártir Jesus (Senhor Crispiniano B. de Jesus) no Jornal do
Comércio, 26 de fevereiro de 1927, com o título Conto de Carnaval; O lírico Lamartine (Desembargador
Lamartine de Campos) em Feira Literária de junho de 1927; O ingênuo Dagoberto (Seu Dagoberto Piedade) no
Jornal do Comércio, 8 de janeiro de 1927, com o título Mistério de fim de ano; O aventureiro Ulisses (Ulisses
Serapião Rodrigues) na Revista Verde de Cataguases, 2, de outubro de 1927; A piedosa Teresa ( Dona Teresa
42
Em O ingênuo Dagoberto temos a família do interior em passeio pela
capital. Antes da diversão, as compras. O lojista é o primeiro a se aproveitar e
entulhar toda a família, que não é pequena, com suas mercadorias:
Deante da porta da loja pararam. Seu Dagoberto carregava o menorzinho. Silvana a
maleta das fraldas. Nharinha segurava na mão do Polidoro que segurava na mão do
Gaudêncio. Quim tomava conta do pacote de balas. Lázaro Salem veiu correndo do balcão e
obrigou a família a entrar.
Seu Dagoberto queria um paletó de alpaca. A mulher queria um corte de cassa verde ou
então côr-de-rosa. A filha queria uma bolsinha de couro com espelho e lata para o pó de arroz.
O menino de dez anos queria uma bengalinha. O de oito e meio queria um chapéu bem vermelho.
O de sete queria tudo.
É só escolher.
O menorzinho queria mamar.
Leite não tem.
Não há nada como uma piada na hora para pôr a gente toda á vontade. Principalmente
de um negociante como Lázaro Salem. Bateu nas bochechas do Gaudêncio. Deu uma bola de
celuloide para o Quim. Perguntou para Silvana onde arranjou aquêles dentes de ouro tão bem
feitos. Estava se vendo que era ouro de dezoito quilates. Falou. Falou. Não deixou os outros
falarem. Juro por Deus.
Entre marido e mulher houve um entendimento mudo. E a família saiu cheinha de
embrulhos. Em direcção ao Jardim da Luz.
20
Depois a caminhada pelo mais belo jardim da cidade admirando os animais
e transformando o momento da fotografia numa deliciosa seqüência cômica:
O pavão estava só á espera dos visitantes para abrir a cauda. O veadinho quási ficou
com a mão do Gaudêncio. Os macacos exibiram seus melhores exercícios acrobáticos. Quando
araponga inventa de abrir o bico só tapando o ouvido mesmo.
Depois o fotógrafo espanhol se aproximou de chapéu na mão. Seu Dagoberto concordou
logo. Porêm Silvana relutou. Tinha vergonha. Deante de tanta gente. Só se fosse mais longe. O
espanhol demonstrou que o melhor lugar era ali mesmo ao lado da herma de Garibaldi general
italiano muito amigo do Brasil. Já falecido não há dúvida. Acabou-se. Garibaldi sairia tambêm
no retrato. Nem se discute. A família deixou os pacotes no banco e se perfilou deante da
objectiva. Parecia uma escada. O fotógrafo não gostou da posição. Colocou os pais nas pontas.
Ferreira) em Terra Roxa e Outras Terras, 1, 20 de janeiro de 1926, com o título A dança de São Gonçalo. Os
contos A apaixonada Elena (Senhorinha Elena Benedita de Faria), A insígne Cornélia (Dona Cornélia Castro
Freitas) e O tímido José (José Borba) são os inéditos, no sentido de não se conhecer até hoje versão anterior ao
livro. Ver Cecília de Lara em Comentários e notas `a edição fac-similar de Laranja da China, pp. 13-18.
20
Machado, Laranja da China., pp.105-6.
43
Cinco passos atrás. Estudou o efeito. Passou os pais para o meio. Cinco passos atrás. Ótimo.
Enfiou a cabeça debaixo do pano. Magnífico. Ninguêm se mexia. Atenção. Aí Jujú derrubou a
chupeta de bola e soltou o primeiro berro no ouvido paterno. Foi para os braços da mãe. Soltou
o segundo. O fotógrafo quiz acalma-lo com gracinhas. Soltou o terceiro. Polidoro mostrou a
bengalinha. Soltou o quarto. O grupo se desfez. Quinze minutos depois estava firme de novo ás
ordens do artista. O artista solicitou a gentileza de um sorriso artístico. Silvana pôs a mão na
bôca e principiou a rir sincopado. O artista teve a paciência de esperar uns instantes. Pronto.
Cravaram os olhos na objectiva. O fotógrafo pediu o sorriso.
O Jujú tambêm?
Polidoro (o inteligente da família) voou longe com o tabefe nas ventas.
Depois da sexta tentativa o retrato saiu tremido e o espanhol cobrou doze mil réis por
meia dúzia.
21
A cena no bonde, um “caradura”, o da passagem mais barata, único
acessível à população pobre, além de burlesca é insólita. Há um bicho (e não fica
claro de qual tipo, o que incomoda ainda mais nossa tentativa de percepção)
andando pelo corpo de um dos passageiros. A família curiosa e angustiada não
sabe se deve alertá-lo:
A família se aboletou no primeiro banco do caradura. Mas antes o Quim brigou com o
Gaudêncio porque êle é que queria ir sentado. Com o beliscão maternal se conformou e ficou em
pé deante do pai. O bonde partiu. Polidoro quiz passar para a ponta para pagar as passagens.
Mas olhou para o Quim ainda com as pestanas gotejando. Desistiu da idea. E foi seu
Dagoberto mesmo quem pagou.
O bicho saiu de baixo do banco. Ficou uns segundos parado na beirada entre as pernas
do sujeito que ia lendo ao lado de seu Dagoberto. Quim viu o bicho mas ficou quieto. E o bicho
subiu no joelho esquerdo do homem (o homem lendo, Quim espiando). Foi subindo pela perna.
Alcançou a barriga. Foi subindo. Alcançou a manga do paletó. Parou. Levantou as asas. Não
voou. Continuou a escalada. Quim deu uma cotovelada no estomâgo do pai e mostrou o bicho
com os olhos. Seu Dagoberto afastou-se um pouquinho, bateu no braço de Silvana, mostrou o
bicho com a cabeça. Silvana esticou o pescoço (o bicho já estava no ombro), achou graça, falou
baixinho no ouvido do Gaudêncio. Gaudêncio deixou o colo da Nharinha, ficou em pé, custou a
encontrar o bicho, encontrou, puxou o Polidoro pelo braço, apontou com o dedo. Polidoro viu o
bicho bem em cima na gola do paletó do homem, não quiz mais saber de ficar sentado. Então
Nharinha fêz tambêm um esforço e deu com o bicho. Virou o rosto de outro lado e soltou umas
risadinhas nervosas.
Que é que você acha? Aviso?
O homem é capaz de ficar zangado.
É mesmo. Nem fale.
21
Id., ibid., pp.106-8.
44
Na curva da gola o bicho parou outra vez. Nêsse instante o Gaudêncio deu um berro:
É aeroplano!
Todos abaixaram a cabeça para espiar o céu. O ronco passou. Então o Quim falou
assustado:
Desapareceu!
Olharam: tinha desaparecido.
Entrou no homem, papai!
Seu Dagoberto assombrado examinou a cara do homem. Será? Impossível. Começou a
ficar inquieto. Fêz o Quim virar de todos os lados. Não. No Quim não estava.
Olhe em mim.
Não. Nêle tambêm não estava.
veja no Jujú, Silvana.
Não. No Jujú tambêm não estava. Ué. Mas será possível?
O Quim avisou:
Apareceu!
Olharam: apareceu no colarinho do homem. Passeou pelo colarinho. Parou. Eta. Eta.
Passou para o pescoço. O homem deu um tapa ligeiro. Todos sorriram.
Tinham chegado no Parque Antártica.
22
À tarde no Parque Antártica é uma festa. Seu Dagoberto é agora enganado
no troco dos refrigerantes:
Polidoro não queria descer do Balanço. Não queria por bem. Desceu por mal. Em tôrno
da roda-gigante os águias estacionavam com os olhos nas pernas das moças que giravam.
Famílias de roupa branca esmagavam o pedregulho dos caminhos. Nharinha de vez em quando
dava uma grelada para o moço de lenço sulfurino com um cravo na mão. Jujú começou a
implicar com as valsas vienenses da banda. A galinha do caramanchão ficou com os duzentos
réis e não pôs ovo nenhum. Foram tomar gasosa no restaurante. Seu Dagoberto foi roubado no
trôco. O calor punha lenços no pescoço dos portugueses com o elástico da palheta preso na
lapela florida. Quim perdeu-se no mundão que vinha do campo de futebol. O moço de lenço
sulfurino encostou-se em Nharinha. Ela ficou escarlate que nem o cravo que escondeu dentro da
bolsa.
No bonde Silvana disfarçadamente livrou os pés dos sapatos de pelica preta
envernizada com tiras verdes atravessada.
23
À noite após jantar mal servido, o que indica que a família também é lograda
no hotel, seu Dagoberto vai dar um giro até a Estação da Luz; na volta, é vítima do
maior dos embustes. Observemos a negociata:
22
Id., ibid., pp.108-111.
23
Id., ibid., pp.111-2.
45
Depois do jantar (mal servido) seu Dagoberto saiu do Grande Hotel e Pensão do Sol
(Familiar) palitando os dentes caninos. Foi espairecer na Estação da Luz. Assistiu á chegada
de dois trens de Santos. Acendeu um goiano. Atravessou a rua José Paulino. Parou na esquina
da avenida Tiradentes. Sapeando o movimento. Mulatas riam com os soldados de folga. Dois
homens bem trajados e simpáticos lhe pediram fogo. Dagoberto deu.
Muito gratos pela sua gentileza.
Não tem de quê.
Está fazendo um calorzinho danado, não acha?
É. Mas esta noite chove na certa.
Seu Dagoberto ficou sabendo que os homens eram de Itapira. Tinham chegado naquêle
mesmo dia ás onze horas. E deviam voltar logo amanhã cedo e sem falta. Uma pena que
ficassem tão pouco tempo. Seu Dagoberto com muito gôsto lhes mostraria as belezas da cidade.
Conversando desceram lentamente a avenida Tiradentes. Na esquina da Cadeia Pública seu
Dagoberto trocou três camarões de duzentos e mais um relógio com uma corrente e três
medalinhas (duas de ouro) por oito contos de réis. E voltou para o Grande Hotel e Pensão do
Sol (Familiar) que nem uma bala.
24
Dona Silvana, esposa de seu Dagoberto, desponta na história; passa ao
primeiro plano. É ela quem vai escrachar com o marido (este suporta tudo, menos
ser chamado de caipira!), tomar o controle financeiro da família, organizar a
partida, inclusive rompendo qualquer tentativa de resistência da filha mais velha
que já estava se acostumando com a vida da cidade, e responder a indagação irônica do
proprietário do hotel:
A indignação de Silvana não conheceu limites.
Seu bocó! Devia ter contado o dinheiro na frente dos homens! Sua bêsta!
A filharada não dava um pio. Nem seu Dagoberto.
Não merece a mulher que tem! Seu fivela!
Seu Dagoberto custou mas foi perdendo a paciência e tirando o paletó.
Seu burro! Seu caipira!
Aí seu Dagoberto não aguentou mais. Avançou para a mulher mordendo os bigodes.
Nharinha aos gritos se pôs entre os dois de braços abertos. Os meninos correram para o vão da
janela.
Venha, seu pindoba! Venha que eu não tenho medo!
O pindoba se conteve para evitar escândalos. Vestiu o paletó. Fincou o chapéu na testa.
Roncou feio. Só vendo o olhar. Bateu a porta com tôda a força. Tornou a abrir a porta. Pegou o
bengalão que estava em cima da cama. Saiu sem fechar a porta.(...)
24
Id., ibid., pp.112-3.
46
Quando chegou o dinheiro para a conta do hotel e a viajem de volta Silvana pegou numa
nota de cinco mil réis, entregou por muito favor ao marido e escondeu o resto.
Depois chamou Nharinha para ajudar a aprontar as malas. Á voz de aprontar as malas
Nharinha rompeu uma choradeira incrível. Já estava se acostumando com a vida da cidade.
Frisara os cabelos. Arranjara um andarzinho todo rebolado. Vivia passando angua nos
lábios. Comprara o último retrato de Buck Jones. E alimentava uma paixão exaltada pelo turco
da rua Brigadeiro Tobias n. 24-D sobrado. Só porque o turco usava costeletas. Um perigo em
suma.
Mas a mãe pôs as mãos nas cadeiras e fungou forte. Quando Silvana punha as mãos nas
cadeiras e fungava forte a família já ficava avisada: era inútil qualquer resistência. Inútil e
perigosa.
Nharinha perdeu logo a vontade de chorar. Em dois tempos as malas de papel-couro e o
baú côr-de-rosa com passarinhos voando de raminho no bico ficaram prontos.
A família desceu. Silvana pagou a conta. A família estava na porta da rua quando seu
Dagoberto largou o baú no chão e deu de procurar qualquer cousa apalpando-se todo. A família
escancarou os olhos para êle interrogativamente. Seu Dagoberto cada vez mais aflito acelerava
as apalpadelas. De repente abriu a bôca e disparou pela escada acima. Voltou todo pimpão com
um bolo de recortes de jornal e bilhetes de loteria na mão. Silvana compreendeu. Ficou verde de
raiva. Ia se dar qualquer desgraça. Porêm ficou quieta. Fungou só um instantinho. Depois
intimou:
amos!
Aí o proprietário do hotel perguntou limpando as unhas para onde seguia a família. Aí
Silvana não se conteve, desviou a nariz da mão do Jujú e respondeu bem alto para toda a gente
ouvir:
Pro inferno, seu Roque!
Aí seu Roque fêz que sim com a cabeça.
25
Ainda em relação à ocupação, a do Brás foi mais equilibrada. Napolitanos e
polignaneses ocuparam áreas distintas. Suzana Barreto Ribeiro observa:
(...), a ocupação do Brás pelos italianos se deu principalmente em função da sua região
de origem; a cada grupo que chegava, amigos e parentes tratavam de cuidar da acomodação,
na maioria das vezes em locais próximos de onde já estava instalada a colônia. Os bareses
passaram a residir nas imediações do Mercado Central, vizinhos às ruas do Gasômetro, do
Luca, da Alfândega e Álvares de Azevedo.
A tradição agrícola e comercial da cidade de Polignano a Mare na província de Bari,
permitiu que esses imigrantes tivessem o domínio da zona cerealista, o que gradativamente
modificou a rotina do bairro para atender as necessidades exigidas por esse tipo de comércio.
25
Id., ibid., pp.114-7.
47
Os polignaneses destacavam-se também pelo domínio da venda de jornais nas esquinas dos
bairros mais movimentados de São Paulo. Como decorrência desse trabalho, adquiriram
grandes bancas, e, em pouco tempo, passaram a dominar o mercado de distribuição de jornais
da cidade.
Os napolitanos, por sua vez, ocuparam a região das ruas Caetano Pinto, Carneiro Leão,
Piratininga e imediações, e se destacaram pela predileção para com o pequeno comércio de
gêneros alimentícios. Esses italianos quase sempre conheciam um ofício. Possuiam, nesse
sentido, um instrumento objetivo para a ascensão social e se destacaram também como
talentosos artesãos de carpintaria e construção civil, em função das apuradas técnicas que
detinham.
26
Tal divisão explica a devoção a dois santos no bairro. Os napolitanos a
Nossa Senhora de Casaluce e os polignaneses a São Vito Mártir.
Embora também parte dos italianos do Brás tenha procurado montar seu
próprio negócio, a maioria foi absorvida pelas fábricas e indústrias ali
concentradas.
Francisco Foot e Victor Leonardi, analisando a origem da classe operária
brasileira destacam o papel dos italianos, principalmente na cidade de São Paulo:
(...), era enorme o peso de trabalhadores imigrantes na composição da classe operária
nascente no Brasil. (...) Faltam dados para se precisar melhor o peso dos imigrantes na classe
operária brasileira, como um todo: apesar do predomínio de estrangeiros no centro-sul, sabe-se
que sua presença deve ter sido reduzida e pouco significativa nas indústrias de Minas Gerais e
Nordeste em geral. No centro-sul, o peso dos trabalhadores estrangeiros era maior em São
Paulo do que no Rio de Janeiro. Nos estados do Sul, a presença de alemães e eslavos teve maior
significado do que em São Paulo. Nesta última cidade, o grande predomínio foi dos italianos,
seguidos de longe por portugueses e espanhóis. Havia, também, concentração de certas
nacionalidades em alguns setores de trabalho: os italianos eram a grande maioria no setor
têxtil e da construção civil, entre outros; os ibéricos dominavam nos serviços portuários. Os
portugueses constituíam um setor muito típico e expressivo da força de trabalho no setor
vidreiro.
27
Zuleika M. F. Alvim afirma que a falta de dados e estatísticas oficiais sobre
o imigrante que se deslocava do campo para as cidades tinha razões políticas bem
definidas:
O imigrante italiano era requisitado para o trabalho nas fazendas; assim, o grupo
dominante teve o cuidado de sempre enaltecê-los como agricultores, uma posição aliás
26
Ribeiro, Italianos do Brás, imagens e memória, 1920/1930, pp.46-7.
27
Foot e Leonardi, História da indústria e do trabalho no Brasil, das origens aos anos vinte, p.184.
48
compartilhada por muitos analistas. Em contrapartida, dedicou-se pouco esforço ao estudo da
atuação do grupo nas funções de pequeno negociante ou de artesão, já que não se pretendia
atrair imigrantes para tais atividades.
Nesse sentido, a concentração dos italianos nas cidades ficou praticamente esquecida
pelas fontes oficiais. Além disso, chamar a atenção para tal fato significava também demonstrar
o número espantoso dos que abandonavam o campo em busca de um destino melhor.
28
Porém, os poucos dados oficiais existentes não deixam dúvidas sobre a
predominância da mão-de-obra estrangeira no setor industrial.
Antonio Paulo Rezende cita dados de três anos (1907, 1912 e 1920),
abrangendo um período significativo:
(...) Ressalte-se que o Censo Industrial do Brasil indicou, em 1907, a existência de 149
018 operários - mão-de-obra basicamente composta de imigrantes - e 3 258 empresas. Para se
ter uma idéia, em 1912, em São Paulo, 80% dos operários têxteis eram estrangeiros. Mesmo em
1920 os estrangeiros predominavam em São Paulo, constituindo cerca de 52% da população
adulta.
29
E é Boris Fausto, em seu Trabalho urbano e conflito social, 1890/1920 que,
esmiuçando as estatísticas oficiais, nos fornece um quadro mais detalhado da
importância dos imigrantes, dentre eles os italianos, como força de trabalho
industrial:
Vários anos mais tarde, o censo de 1920 arrolou 100 388 pessoas no Estado de São
Paulo, dedicadas a atividades industriais (fábricas e pequenas oficinas), alcançando 51% a
porcentagem de estrangeiros; entre os 13 914 indivíduos ocupados em transporte e
comunicação, a proporção atingia 58%. De um modo geral, embora o vulto da força de
trabalho estrangeira tendesse a decrescer com o correr dos anos, foi majoritária na Capital de
São Paulo, tanto no setor industrial como de serviços em todo o período considerado
(1890-1920). Algumas cifras para ramos específicos chegam a ser surpreendentes. Assim, o
conhecido relatório publicado pelo Departamento Estadual de Trabalho sobre as condições de
trabalho na indústria têxtil (1912), abrangendo 31 fábricas de tecidos da Capital, uma de
Santos e uma de São Bernardo revela que, dos 10 204 operários classificados, apenas 1 843
eram brasileiros natos, isto é 18%. Os trabalhadores de origem italiana somavam 6 044 (59%),
havendo 824 portugueses (8%) e os restantes de outras nacionalidades. (...) Como é sabido, os
italianos predominavam esmagadoramente nos ramos industriais da Capital, havendo maior
28
Alvim, Brava gente!, os italianos em São Paulo, 1870/1920, pp.140-1.
29
Rezende, História do movimento operário no Brasil, p.10.
49
porcentagem de portugueses e espanhóis em serviços pesados braçais, especialmente no porto
de Santos.
30
É interessante observar que, embora a figura do imigrante italiano estivesse
na época associada ao trabalho fabril, não há um só conto de António de Alcântara
onde apareça um operário, de origem italiana, como protagonista da história. O
próprio movimento operário, tão agitado no período com os constantes protestos e
greves e mesmo a divisão política das colônias entre os fascistas e anarquistas, não
são mencionados diretamente. Aliás, não há uma única cena em seus contos que se
passe dentro de uma fábrica ou indústria. Fora sim.
No conto Amor e sangue,
31
identificamos a jovem Grazia como operária
pelas suas entradas e saídas dos turnos da fábrica.
Porém, o tema do conto é outro. Como o título sugere, é sobre ciúme e
morte. E, mais importante, sobre a transformação dos dramas pessoais, anônimos,
em coletivos, em notícia. Essa espetacularização da vida é outro fenômeno da
modernidade, da metropolização das cidades. António de Alcântara provavelmente
encontrou inspiração para esse conto na leitura de alguma notícia sobre um crime
cometido por ciúme; os jornais da época cultivavam certa predileção por esse tipo
de relato. O escritor era um voraz leitor de jornais, lia-os por completo: notícias,
cartas, telegramas, anúncios, classificados, tudo. Sérgio Milliet dizia que António
de Alcântara estava organizando uma coleção curiosa dessas publicações que
refletisse a mentalidade brasileira.
Cidade vertiginosa que contribui para acentuar o tormento de uma alma
desesperada:
Sua impressão: a rua é que andava não êle. Passou entre o verdureiro de grandes bigodes
e a mulher de cabelo despenteado.
Vá roubar no inferno, seu Corrado!
Vá sofrer no inferno, seu Nicolino! Foi o que êle ouviu de si mesmo.
Pronto! Fica por quatrocentão.
Mas é tomate podre, seu Corrado!
Ia indo na manhã. A professora pública estranhou aquêle ar tão triste. As bananas na
porta da QUITANDA TRIPOLI ITALIANA eram de ouro por causa do sol. O Ford
derrapou, maxixou, continuou bamboleando. E as chaminés das fábricas apitavam na rua
brigadeiro Machado.
Não adiantava nada que o céu estivesse azul porque a alma de Nicolino estava negra.
32
30
Fausto, Trabalho urbano e conflito social, 1890/1920, pp.29-31.
31
Machado, Brás, Bexiga e Barra Funda, notícias de São Paulo, pp 61-6.
32
Id., ibid., pp.61-2.
50
O barbeiro Nicolino Fior d’Amore chega para o trabalho. Na sua soturnez,
permanece calado. Nem o assunto, tão a calhar, lhe interessa. Talvez Nicolino já
conhecesse a história do rapaz que cometeu um crime passional. É provável que
Nicolino já estivesse decido a levar às últimas conseqüências o seu amor ferido:
AO BARBEIRO SUBMARINO. BARBA: 300 réis. CABELO: 600 réis. SERVIÇO
GARANTIDO.
Bom dia!
Nicolino Fior dAmore nem deu resposta. Foi entrando, tirando o paletó, enfiando outro
branco, se sentando no fundo á espera dos freguezes. Sem dar confiança. Tambêm seu Salvador
nem ligou.
A navalha ia e vinha no couro esticado.
São Paulo corre hoje! É o cem contos!
O Temistocles da Prefeitura entrou sem colarinho.
Vamos ver essa barba muito bem feita! Ai, ai! Calor pra burro. Você leu no Estado o
crime de ontem, Salvador? Banditismo indecente.
Qual tinha razão nada, seu! Bandido! Drama de amor cousa nenhuma. E amanhã
está solto. Privação de sentidos. Juri indecente, meu Deus do céu! Salvador, Salvador...
cuidado aí que tem uma espinha ... êste país está perdido!
Todos dizem.
Nicolino fingia que não estava escutando. E assobiava a Scugnizza.
33
Nicolino encontra Grazia, a desgraçada (efeito rítmico). Há uma discussão.
Ela ameaça ignorá-lo, negar-lhe a fala. Ele, em matar-se:
As fábricas apitavam.
Quando Grazia deu com êle na calçada abaixou a cabeça e atravessou a rua.
Espera aí, sua fingida.
Não quero mais falar com você.
Não faça mais assim pra mim, Grazia. Deixa que eu vá com você. Estou ficando
louco, Grazia. Escuta. Olha, Grazia! Grazia! Se você não falar mais comigo eu me mato
mesmo. Escuta. Fala alguma cousa por favor.
Me deixa! Pensa que eu sou aquela fedida da rua Cruz Branca?
O que?
É isso mesmo.
E foi almoçar correndo.
Nicolino apertou o fura-bolos entre os dentes.
34
33
Id., ibid., pp.63-4.
3
34
Id., ibid., pp.64-5.
51
Nicolino não comete o suicídio, mas um crime:
As fábricas apitavam.
Grazia ria com a Rosa.
Meu irmão foi e deu uma bruta surra na cara dêle.
Bem feito! Você é uma danada, Rosa. Chi!...
Nicolino deu um pulo monstro.
Você não quer mesmo mais falar comigo, sua desgraçada?
Desista!
Mas você me paga, sua desgraçada!
NÃ-Ã-O!
A punhalada derrubou-a
Pega! PEGA! PEGA!
35
O acontecido não se transforma só em notícia, manchete. Cai na boca do
povo como música:
Eu matei ela porque estava louco, seu delegado!
Todos os jornais registraram essa frase que foi dita chorando.
Eu estava louco,
Seu delegado! BIS
Matei por isso,
Sou um desgraçado
O estribilho do ASSASSSINO POR AMOR (Canção da actualidade para ser cantada
com a música do FUBÁ, letra de Spartaco Novais Panini) causou furor na zona.
36
As crianças ocupam lugar importante na obra de António de Alcântara. Há
vários contos onde estão presentes como personagens centrais. Em Brás, Bexiga e
Barra Funda são elas, enquanto descendentes brasileiros, que formam um dos elos
de ligação mais forte do imigrante com a cultura local.
Para as crianças, a forma de inserção no processo modernizador também
está ligada à origem da classe a qual pertencem. O local e os tipos de brincadeiras,
a forma de educação que recebem, os desejos e sonhos que cultivam e até seus
35
Id., ibid., p.65.
36
Id., ibid., p.66.
52
nomes hipocorísticos, tudo está relacionado ao lugar que ocupa sua família na
sociedade, ao papel que desempenha sua classe no processo de urbanização.
Os contos Notas biográficas do novo deputado
37
e Lisetta
38
são exemplos de
histórias diferentes vividas por duas crianças, filhos de italianos pobres.
Lisetta é e provavelmente continuará pobre. Seu desejo é simples: um
brinquedo. A menina quer um urso de pelúcia, mas sua mãe não pode comprar. O
encontro com o bicho acontece em uma viagem de bonde. A história se desenvolve
quase toda em um desses veículos. Nesse conto o bonde representa o espaço onde
classes diferentes podem transitoriamente se encontrar.
Entremos nele também:
Quando Lisetta subiu no bonde (o conductor ajudou) viu logo o urso. Felpudo, felpudo.
E amarelo. Tão engraçadinho.
Dona Mariana sentou-se, colocou a filha em pé deante dela.
Lisetta começou a namorar o bicho. Poz o pirolito de abacaxi na bôca. Poz mas não
chupou. Olhava o urso. O urso não ligava. Seus olhinhos de vidro não diziam absolutamente
nada. No colo da menina de pulseira de ouro e meias de seda parecia um urso importante e
feliz.
Olha o ursinho que lindo, mamãe!
Stai zitta!
A menina rica viu o enlevo e a inveja da Lisetta. E deu de brincar com o urso. Mexeu-
lhe com o toquinho do rabo: e a cabeça do bicho virou para a esquerda, depois para a direita,
olhou para cima, depois para baixo. Lisetta acompanhava a manobra. Sorrindo fascinada. E
com um ardor nos olhos! O pirolito perdeu definitivamente toda a importância.
Agora são as pernas que sobem e descem, cumprimentam, se cruzam, batem umas nas
outras.
As patas tambêm mexem, mamãe. Olha lá!
Stai ferma!
39
O urso que encanta Lisetta pertence a uma menina rica. A crueldade infantil
é revelada na maneira como esta manipula o urso para que Lisetta sinta ainda mais
inveja do brinquedo que não pode ter e nem ao menos tocar.
O que mais fascina Lisetta não é a cor, a felpa ou os olhos de vidro do urso,
mas seus movimentos. O urso tem um mecanismo que possibilita movimentar sua
cabeça e suas patas. O brinquedo é uma inovação, um produto da tecnologia da
época. Como um brinquedo moderno, custou caro
40
:
37
Id., ibid., pp.99-110.
38
Id., ibid., pp.79-86.
39
Id., ibid., pp.81-2.
4
53
Lisetta sentia um desejo louco de tocar no ursinho. Geitosamente procurou alcança-lo. A
menina rica percebeu, encarou a coitada com raiva, fez uma careta horrível e apertou contra o
peito o bichinho que custara cincoenta mil réis na Casa São Nicolau.
Deixa pegar um pouquinho, um pouquinho só nêle, deixa!
Ah!
Scusi, senhora. Desculpe por favor. A senhora sabe, essas crianças são muito
levadas. Scusi. Desculpe.
A mãe da menina rica não respondeu. Ageitou o chapéuzinho da filha, sorriu para o
bicho, fez uma carícia na cabeça dêle, abriu a bolsa e olhou o espelho.
Dona Mariana, escalarte de vergonha, murmurou no ouvido da filha:
In casa me lo pagherai!
E pespegou por conta um beliscão no bracinho magro. Um beliscão daquêles.
Lisetta então perdeu toda a compostura de uma vez. Chorou. Soluçou. Falando sempre.
Ahn! Ahn! Ahn! Ahn! Eu que...ro o ur...so! O ur...so! Ai, mamãe! Ai, mamãe! Eu
que...ro o ...o ... o ... Ahn! Ahn!
Stai ferma o ti amazzo parola donore!
Um pou...qui...nho só! Ahn! E ... ahn! E...ahn! Um pou...qui...
Senti, Lisetta. Non ti porterò più in città! Mai più!
Um escândalo. E logo na banco da frente. O bonde inteiro testemunhou o feio que
Lisetta fez.
O urso recomeçou a mexer com a cabeça. Da esquerda para a direita, para cima e para
baixo.
Non piangere più adesso!
Impossível.
O urso lá se fôra nos braços da dona. E a dona só de má antes de entrar no palacete
estilo empreiteiro português voltou-se e agitou no ar o bichinho. Para Lisetta ver. E Lisetta
viu.
Den-den! O bonde deu um solavanco, sacudiu os passageiros, deslisou, rolou, seguiu.
Den-den!
Olha á direita!
Lisetta como compensação quiz sentar-se no banco. Dona Mariana (havia pago uma
passagem só) opôs-se com energia e outro beliscão.
41
40
É interessante observar que na primeira versão do conto, publicado no Jornal do Comércio em 8 de março
de 1925, o autor apontava que o mesmo urso custava Quarenta mil réis! Na Casa Fuchs!. Ou seja, em dois anos o
urso valorizou dez mil réis. Na versão em livro também ele passa a ser vendido em uma outra loja, cujo nome nos
faz lembrar o Natal, reforçando a idéia de um presente especial: Casa São Nicolau.
41
Id., ibid., pp.82-4.
54
As ameaças nessa fala macarrônica tão peculiar aos italianos que aqui
residiam não ficam apenas nas palavras.
42
A vergonha que Lisetta fez sua mãe
passar não é punida só com os dois beliscões. A pancadaria mesmo acontece em
casa longe dos olhos dos outros, dos estranhos que Dona Mariana tentou evitar:
A entrada de Lisetta em casa marcou época na história dramática da família Garbone.
Logo na porta um safanão. Depois um tabefe. Outro no corredor. Intervalo de dois
minutos. Foi então a vez das chineladas. Para remate. Que não acabava mais.
42
Novamente é Franco Cenni, a respeito da influência da língua italiana no cotidiano paulista do início do
século que registra: Um mineiro, ao visitar São Paulo em 1902, não pôde dominar seu espanto, e o historiador
Aureliano Leite assim reproduziu suas impressões: “- Os meus ouvidos e os meus olhos guardam cenas
inesquecíveis. Não sei se a Itália o seria menos em São Paulo. No bonde, no teatro, na rua, na igreja, falava-se mais
o idioma de Dante que o de Camões. Os maiores e mais numerosos comerciantes e industriais eram italianos. Os
operários eram italianos”. Já em 1890 Henrique Raffard afirmara que a população da Paulicéia era geralmente de
origem estrangeira, falando quase tanto o italiano como o português. Muitas tabuletas, em vários edifícios, eram
escritas em italiano, coisa que fazia declarar ao jornalista lusitano Souza Pinto (que, chegando à estação, não tinha
conseguido se fazer entender por vários cocheiros de tílburis, os quais se exprimiam nos mais diversos dialetos
italianos, com predominância do napolitano, falando em largos gestos): “- Encontramo-nos a cogitar se por
estranho fenômeno de letargia, em vez de descer em São Paulo teríamos ido parar à cidade do Vesúvio”. E Gina
Lombroso Ferrero, confirmava: “- Ouve-se falar o italiano mais em São Paulo do que em Turim, em Milão e em
Nápoles, porque entre nós se falam os dialetos e em São Paulo todos os dialetos se fundem sob o influxo dos venetos
e toscanos, que são em maioria”. Cenni, ainda sobre o universo lingüístico do imigrante italiano, escreve: Há
numerosas palavras exatamente iguais nas línguas italiana e portuguêsa, como “cantina”, “caricatura”,
“cascata”, “fiasco”, “calamita”, bravata”, “ribalta”, “sonata”, “partitura”, ópera”, contralto”, “soprano”,
“violino”, “polenta”, “salame”, “favorito”, “mosaico”, “piano”, e “poltrona”; enquanto outras, em sua forma
portuguêsa perderam apenas a consoante dupla, como “loteria”, “dueto”, “opereta”,violoncelo”, “mortadela”,
“ricota”, “risoto”, “soneto”... De direta origem italiana é “carnaval”, que por sua vez deriva, no italiano, de
“carne”, pois, a partir da têrça-feira gorda a Igreja suprimia (em latim “levare”) o uso da carne. Os italianos
pisanos diziam “carnelevare”, os napolitanos “Karnolevare” e os sicilianos “karnilevari”. O filólogo Stappers
empresta a esta palavra um sentido diferente, fazendo-a provir do latim “carnis levamen, isto é: prazeres da carne
antes das continências da quaresma. Além das palavras já citadas que se referem a espetáculos, teatros e comidas,
outras há, de origem italiana, que dizem respeito às artes plásticas e militares e à arquitetura, como colunata”,
“capitel”, “fachada”, “nicho”, “aquarela”, “batalhão”, “capitão”, “corone”, “esquadrão”; algumas de grande
uso comum, como: “pajem”, “parque”, “pastel”, “retrato”, “capricho” e aquêle “nhoque” que vemos escrito nas
tabuletas das casas de lanches nas mais diferentes e fantasiosas das maneiras, “Palhaço”, provém do nome de uma
personagem do teatro popular napolitano que vestia roupas feitas com fazendas usadas para forrar cochões de
palha; “gazeta” vem do veneziano, sendo o nome de uma pequena moeda de cobre com a qual no século XVI
adquiriam-se exemplares de um jornal, que dava notícias das expedições ao Levante... Mas a palavra de origem
italiana mais difundida no Brasil, e particularmente em São Paulo, não consta de nenhum dicionário, muito embora
seja ouvida inúmeras vêzes ao dia, nos mais diferentes lugares e pronunciada também por pessoas que não são de
origem italiana, nem privam habitualmente com italianos. Trata-se daquêle “Ciao”, transformado quase sempre
num arrastado “T’chiau”, cuja origem remonta ao tempo longínquo em que a saudação comum dos venezianos às
pessoas de respeito era Le sono schiavo”. Na pronúncia veneta, com o passar do tempo, a frase transformou-se
num rápido “...sciavo” que, estendendo-se à vizinha Lombardia, ficou sendo definitivamente “Ciao”, antes de se
espalhar pelo mundo, sôbre os lábios de milhões de emigrantes. Cenni, Italianos no Brasil, pp. 262-3 e 266-7. Esse
macarronismo (no caso, essa linguagem híbrida entre o português e o italiano) foi magistralmente captado e
reinventado na obra literária e jornalística de Juó Bananére, pseudônimo adotado por Alexandre Marcondes
Machado, que registrou numa de suas colunas de jornal, intitulada “O Ritiro”: A artugrafia muderna é una maniera
di scrivê, chi a genti escrive uguali come dice. António de Alcântara Machado, admirador de Juó Bananére,
considerou isso para reproduzir a fala da primeira leva de imigrantes italianos que aqui chegou. Considero a
magnífica obra de Adoniran Barbosa descendente direta dessa linha. Adicionando ainda elementos da fala simples
do caipira, esse compositor criou em suas músicas diálogos saborosos e situações prosaicas que também registram a
55
O resto da gurisada (narizes escorrendo, pernas arranhadas, suspensórios de barbante)
reunido na sala de jantar sapeava de longe.
Mas o Ugo chegou da oficina.
Você assim machuca a menina, mamãe! Coitadinha dela!
Tambêm Lisetta já não aguentava mais.
43
No final, como consolo, Lisetta também ganha um urso de lata,
provavelmente feito pelo próprio irmão. Mas um urso simples, pobre como sua
família
44
Toma pra você. Mas não escache.
Lisetta deu um pulo contente. Pequerrucho. Pequerrucho e de lata. Do tamanho de um
passarinho. Mas urso.
Os irmãos chegaram-se para admirar. O Pasqualino quiz logo pegar no bichinho. Quiz
mesmo toma-lo á força. Lisetta berrou como uma desesperada:
Êle é meu! O Ugo me deu!
Correu para o quarto. Fechou-se por dentro.
45
Em Notas biográficas do novo deputado, a criança se chama Gennarinho e
seu destino, apesar da mesma origem, será bem diferente do de Lisetta.
Tudo começa com a morte do seu pai, João Intaliano, compadre do coronel
Juca Peixoto de Faria, que resolve adotar o afilhado.
O órfão Gennarinho, que reside na fazenda de café do coronel, onde seu pai
trabalhava, é então enviado para a cidade onde irá morar com os padrinhos.
Logo na primeira cena em que o menino aparece, percebemos que deverá
ser reeducado para conviver com sua nova família:
Gennarinho desceu na estação da Sorocabana com o nariz escorrendo. Todo chibante.
De chapéu vermelho. Bengalinha na mão. Rebocado pelo filho mais velho do administrador. E
com uma carta para o coronel J. Peixoto de Faria.
evolução urbana da cidade de São Paulo.
43
Id., ibid., p.85.
44
Também na primeira versão do conto, a que já nos referimos, o autor termina a história descrevendo o que
se passou na casa da outra menina: O urso de quarenta mil réis, esse o lulu da Pomerania., n. 1, que a menina rica
beijava sempre no focinho, encontrou largado num canto, naquella mesma noite, e estraçalhou em dois tempos.
Não apanhou por isso. Essa versão reforça a idéia de destinos diferentes, não somente das crianças, mas também
dos seus brinquedos.
4
45
Id., ibid., p.86.
56
Tomou o coche Hudson que estava á sua espera. Veiu desde a estação até a avenida
Higienópolis com a cabeça para fora do automovel soltando cusparadas. Apertou o dedo no
portão. Disse uma palavra feia. Subiu as escadas berrando.
Tire o chapéu.
Tirou.
Diga boa noite.
Disse.
Beije a mão dos padrinhos.
Beijou.
Limpe o nariz.
Limpou com o chapéu.
46
Dona Nequinha, esposa do coronel, relata à sua amiga Nhanzinha, sobre a
chegada do menino. Escutando essa conversa telefônica, ficamos sabendo um
pouco da sua origem pobre e também que o nome de procedência italiana não soa
bem nos ouvidos da burguesia paulistana:
Pronto, Nhanzinha. A telefonista cortou. Chegou ante-ontem. Espertinho como êle
só. Nem você imagina. Tem nove anos. É sim. Crescidinho. Juca ficou com dó dêle. Pois é.
Coitadinho. Imagine. Pois é. Faz de conta que é um filho. Já estou querendo bem mesmo.
Gennarinho. O que? É sim. Nome meio exquisito. Tambêm acho. O Juca está que não pode mais
de satisfeito. Êle que sempre desejou ter tanto um filho, não é? Pois então. Nasceu no Brás. O
pai era não sei o quê. Estava na fazenda há cinco annos já. Bom, Nhanzinha. O Juca está me
chamando. Beijos na Marianinha. Obrigada. O mesmo. Até amanhã. Ah! Ah! Ah! Imagine!
Nesta idade!... Até amanhã, Nhanzinha. Que é que você queria, Juca?
Agora é tarde. Você não sabe o que perdeu.
O Gennarinho, é?
Diabinho de menino! Querendo á toda força levantar a saia da Atsué.
Mas isso não está direito, Juca. Vou já e já...
É. Direito não está mesmo. Mas é engraçado.
...dar uns tapas nêle.
Não faça isso, ora essa! Dar á toa no menino!
Não é á toa, Juca.
Bom. Então dê. Olhe aqui: eu mesmo dou, sabe? Eu tenho mais geito.
47
Gennarinho nasceu no Brás. É filho de um dos tantos italianos que lá
moravam. Mas agora, por um acaso, mora em Higienópolis, tem uma nova família.
46
Id., ibid., pp.103-4.
47
Id., ibid., pp.104-5.
57
Seu nome não condiz com a nova classe a qual pertence. Não é um nome brasileiro
e, sobretudo, não é um nome de futuro deputado:
Um dia na mesa o coronel implicou:
Êsse negócio de Gennarinho não está certo. Gennarinho não é nome de gente. Você
agora passa a se chamar Januário que é a tradução. Eu já indaguei. Ouviu? Eta menino
impossível! Sente-se já aí direito! Você passa a se chamar Januário. Ouviu?
Ouvi.
Não é assim que se responde. Diga sem se mexer na cadeira: Ouvi, sim senhor.
Ouvi, sim senhor coronel!
Dona Nequinha riu como uma perdida. Da resposta e da continência.
48
O futuro do menino é planejado:
Uma noite na cama dona Nequinha perguntou:
Juca: você já pensou no futuro do menino?
O coronel estava dorme não dorme. Respondeu bocejando:
Já-á-á!...
Que é que você resolveu?
O coronel levou um susto.
O que? Resolveu o que?
O futuro do menino, homem de Deus!
Ahn!...
Responda.
O coronel coçou primeiro o pescoço.
Para falar a verdade, Nequinha, ainda não resolvi nada.
O suspiro desanimado da consorte foi um protesto contra tamanha indecisão.
Mas você não há de querer que êle cresça um vagabundo, eu espero.
Pois está visto que não quero. (...)
Eu acho que a primeira cousa que se deve fazer é meter o menino num colégio.
Num colégio de padres.
É.
Eu sou católica. Você tambêm é. O Januário tambêm será.
Muito bem...
49
E, matriculado no Ginásio de São Bento, inicia seus estudos. Agora, o nome
do menino o liga definitivamente à família Peixoto de Faria. Januário será o
herdeiro:
48
Id., ibid., p.106.
49
Id., ibid., 106-8.
58
Até o coronel ajudou a aprontar o Januário. Foi quem poz ordem na cabelada côr de
abóbora. Na terceira tentativa fez uma risca bem no meio da cabeça.
Agora só falta a merenda.
Dona Nequinha preparou logo. Pão francês. Goiabada Pesqueira. Queijo Palmira.
Diga pro Inácio tirar o automóvel. O fechado.
A comoção era geral. Dona Nequinha apertou uma vez a gravata azul do Januário. O
coronel deu uma escovadela pensativa no gorro. Januário fez uma cara de vítima.
Vamos indo que está na hora.
Dona Nequinha (o coronel já se achava no meio da escadaria de mármore carregando a
pasta collegial) beijou mais uma vez a testa do menino. Chuchurreadamente. Maternalmente.
Vá, meu filhinho. E tenha muito juizo, sim? Seja muito respeitador. Vá.
Todo compenetrado, de pescoço duro e passo duro, Januário alcançou o coronel.
A meninada entrava no Ginásio de São Bento em silêncio e beijava a mão do senhor
reitor. Depois disparava pelos corredores jogando os chapéus no ar. As aulas de portas abertas
esperavam de carteiras vasias. O berreiro sufocava o apito dos vigilantes.
Cumprimente o senhor reitor.
D. Estanislau deu uma palmadinhas na nuca do Januário. Januário tremeu.
Crescidinho já. Muito bem. Muito bem. Como se chama?
Januário não respondeu.
Diga o seu nome para o senhor reitor.
Januário.
Ah! Muito bem. Januário. Muito bem. Januário de quê?
Januário estava louco para ir para o recreio. Nem ouviu.
Diga o seu nome todo, menino!
Com os olhos no coronel:
Januário Peixoto de Faria.
O porteiro apareceu com uma sineta na mão. Dlin-dlin! Dlin-dlin! Dlin-dlin!
O coronel seguiu para o São Paulo Clube pensando em fazer testamento.
50
Há ainda outro conto em que uma criança é o personagem central: O
inteligente Cícero
51
. Neste é focalizada uma família da ascendente burguesia
industrial. Logo no início o autor apresenta ao leitor a origem social do menino:
50
Id., ibid., pp.108-110.
5
51
Machado, Laranja da China, pp.53-66.
59
Dois dias depois da chegada de Cícero ao mundo (garoava) o DIÁRIO POPULAR
escreveu: Acha-se em festas o venturoso lar do nosso amigo senhor major Manuel José de Sá
Ramos, conhecido fabricante do môlho João Bull e da pasta dentifrícia Japonesa, e de sua
gentilíssima consorte dona Francisca Melo de Sá Ramos, com o nascimento de uma esperta
criança do sexo masculino que receberá na pia batismal o nome de Cícero. Felicitamos muito
cordialmente os carinhosos pais. O major foi pessoalmente á redacção levar os agradecimentos
dos carinhosos pais e no dia seguinte o órgão da opinião pública registrou a visita referindo-se
mais uma vez á esperteza congênita de Cícero.
Quando o pequeno fêz dois anos passou a ser robusto. Quando fêz quatro foi promovido
pelo DIÁRIO POPULAR a inteligente e mui promissor menino.
52
Na cena seguinte temos Cícero José Melo de Sá Ramos já com cinco anos e,
sendo véspera de Natal, sua mãe ao colocá-lo para dormir lhe diz:
Olha aqui, meu filhinho. Tire o dedo do nariz. Olha aqui. Você agora vai pôr seu
sapatinho atrás da porta (compreendeu?) para São Nicolau esta noite deixar nêle um brinquedo
para o meu benzinho.
Cícero obedeceu correndo.
Bom. Agora reze com mamãe para Nossa Senhora proteger sempre você.
Rezou sem discutir.
Assim sim que é bonito. Não meta o dedo no nariz que é feio. E durma bem
direitinho para São Nicolau poder deixar um brinquedo bem bonito.
Cícero no escuro deu de pensar no presente de São Nicolau. E resolveu indicar ao santo
o brinquedo que queria por causa das dúvidas. Não confiava no gôsto do santo não. Na sua
cabeça os soldados vistos de manhã marchavam com a banda na frente. E disse baixinho:
São Nicolau deixe uma espingardinha.
Virou do lado direito e dormiu de bôca aberta.
Ás sete da manhã encontrou um brinquedo de armar atrás da porta. Ficou danado. Deu
um pontapé no brinquedo. E chorou na cama apertando o dedão do pé.
53
No ano seguinte, o pedido a São Nicolau é finalmente atendido:
Fique quietinho, meu filho que é para São Nicolau trazer um brinquedo para você.
Não quiz ouvir mais nada. Arrancou os sapatos e foi mais que depressa deixar atrás da
porta. Mas depois ficou algum tanto macambúzio. Coçando a barriga e tal.
Que é que você tem? Mostre a ngua.
Com má vontade mas mostrou. Dona Francisca verificou seu aspeto saudável.
Vá. Diga para sua mamãe que é que você tem.
52
.Id., ibid., pp.55-6.
53
Id., ibid., pp.57-8.
60
Como o da outra vez eu não quero mesmo.
Não quer o quê?
O brinquedo...
Dona Francisca riu muito. Beijou a cabecinha do Cícero. Foi buscar um lenço. Encostou
no nariz do filho.
Assõe. Com bastante força. Assim. De novo. Está bem. Agora me diga direitinho que
brinquedo você quer que São Nicolau traga.
Não.
Diga sim, minha flor, para mamãe tambêm pedir.
Não.
Então mamãe apaga a luz e vai embora. Depois que ela sair o meu filhinho ajoelha
na cama e diz bem alto o presente que êle quer para São Nicolau poder ouvir lá do céu. Dê um
beijinho na mamãe.
Não ajoelhou não. Ficou em pé em cima do travesseiro, ergueu o rosto para o teto e
berrou:
Eu quero um tamborzinho, São Nicolau! Ouviu? Tambêm um chicotinho e uma
cornetinha? Ouviu?
Dona Francisca ouviu. E o major logo de manhãzinha levou uma cornetada no ouvido.
Pulou da cama indignadíssimo. Porêm o tambor já ia rolando pelo corredor. O chicotinho foi
reservado para o Biscoito.
54
Porém, com sete anos, o pedido de Cícero adquire outra proporção:
Você já pôz os sapatos atrás da porta?
Cícero fêz-se de desentendido.
Eu sou paulista mas ... de Taubaté?
Dona Francisca não podia compreender.
Não cabe o quê?
O que eu quero.
Que é que você quer?
Cícero começou a contar nos dedos.
Um, dois, feijão com arroz! Três-quatro...
Responda! (...)
Dona Francisca apertou os braços do menino.
Assim machuca, mamãe! Eu quero um automóvel igual ao de titio, pronto!
Que é isso, Cícero? Um Ford? Pra quê? Você é muito pequeno ainda para ter um
Ford.
Mas eu quero, pronto!
54
Id., ibid., pp.58-60.
61
Dona Francisca deixou o filho muito preocupada e foi confabular com o major. Mas o
major (premiado com um estojo Gillette no concurso charadístico do MALHO) achou logo a
solução do problema.
Tenho uma idea genial.
55
Cícero não acha a idéia nada genial:
Ás sete horas da manhã Cícero sem sair da cama encompridou o pescoço para examinar
um automóvel dêste tamanhinho parado no meio do quarto. Meio tonto ainda deu um pulo e
foi ver o negócio de perto. Em cima do volante um bilhete escrito á máquina: Meu querido
Cícero. Dentro de meu cesto não cabia um automóvel grande como você pediu. Por isso deixo
êste que é a mesma cousa. Tenha sempre muito juízo e seja bonzinho para seus pais. (a)
S.Nicolau.
Não vê. Cícero soltou dois ou três berros que levantaram no travesseiro os cabelos
cortados de dona Francisca. O major enfiou os pés no chinelos e foi ver o que havia. Cícero
pulava de ódio.
Mas você não viu o bilhete, meu filhinho? Quer que eu leia para você?
Eu não quero essa porcaria!
O major encabulou e se ofendeu mesmo. Dona Francisca veiu tambêm saber da gritaria.
Mas então, Cícero? Não chore assim. Você chorando São Nicolau nunca mais traz
um presente para você.
Eu não preciso de nada!
56
Os pais tentam explicar ao menino a dificuldade que tem o santo para trazer
o presente desejado:
Do lado de lá da cama o Cícero desesperado da vida. Do lado de cá os carinhosos pais
falando alternadamente. Sôbre a cama (já com um farol espatifado) o pomo da discórdia.
São Nicolau é velhinho, não pode carregar um cesto muito grande...
E depois por grandão que fosse não podia caber um Ford de verdade dentro dêle...
É. E se cabesse...
Se coubesse, Francisca!
...se coubesse São Nicolau não aguentaria com o pêso...
Está cansado, não tem mais força.
Cícero foi retendo a choradeira. Levantou a camisola para enxugar as lágrimas.
Não fique assim descomposto!
Os últimos soluços foram os mais doídos para engulir. Mas parecia convencido.
55
Id., ibid., pp.61-2.
56
Id., ibid., pp.63-4.
62
Então? Não chora mais?
57
Na resposta de Cícero é revelada, pelo menos para os seus pais, sua suposta
inteligência:
Assumiu uns ares meditabundos. Em seguida pôs as mãos na cintura. Ergueu o côco.
Pregou os olhos no pai (o major sem querer estremeceu). Disse num repente:
Se êle não podia com o pêso porque não deixou o dinheiro para eu comprar o
Fordinho então?
Nem o major nem dona Francisca tiveram resposta. Ficaram abobados. Berganharam
olhares de bôca aberta. O major piscava e piscava. Sorrindo. Procurou alcançar o filho
contornando a cama. Cicero farejou uns cocres e foi se meter entre o armário e a janela.
Fazendo beicinho. Tremendo encolhido.
Não dê em mim, papai, não dê em mim!
Mas o major levantou-o nos braços. Sentou-se na beirada da cama com êle no colo.
Cícero. Apertou-lhe comovidamente a cabeça contra o peito. Olhando para a mulher traçou com
a mão direita três círculos pouco acima da própria testa. Depois mordeu o beiço de baixo e
esbugalhou os olhos para o teto. Cícero. Dona Francisca sorriu apertando os olhos:
Veja você, Neco!
Estou vendo! E palavra que tenho medo!
Dona Francisca não entendeu. E o major então começou a explicar.
58
A atenç ão que António de Alcântara dedica às crianças em seus contos é um
dos pontos analisados por Mário de Andrade na crítica a que já nos referimos,
publicada em A Manhã de 19 de junho de 1927. Nela lemos:
A. M. atinge essa realidade subjetiva com uma pontaria sóbria mas certeira. Os tipos
dele são totais e encostam de verdade na gente. Um descuido como aquele dos sete anos de
Lisetta falarem que “as patas também mexem”, nem chega a ser defeito é descuido e exemplo
único. Perigo mais guassú é a propensão prá antítese fácil. A. M. comparado com Victor Hugo
e com Castro Alves parece enormidade. Pois está certo. Brás, Bexiga e Barra Funda é um
milharal de antíteses. Em Lisetta isso alcança valor real com o finzinho mais que gostoso.
Porém temos o delito grave daquela frase “Não adiantava nada que o céu estivesse azul porque
a alma de Nicolino estava negra”. Isso nem como ironia vale mais e sarapanta que a autocrítica
sem sono de A. M. derrapasse tanto. De 11 contos, a antítese dá fundamento prá 4, Gaetaninho,
Sociedade, Corínthians, vs. Palestra e Nacionalidade. Cuidado! Em todos eles a antítese é fácil.
E percebida no começo logo. Menos no Gaetaninho que apesar disso é o de antítese mais fácil,
quase desaforada. Gaetaninho é pobre e não pode andar de carro. Um dia morre e... anda de
carro. Palavra de honra que isso dava um daqueles poemas parnasianos a Catulle Mendes ou
57
Id., ibid., pp.64-5.
58
Id., ibid., pp.65-6.
63
então aquela boniteza do Estudante Alsaciano. Até já estou sentindo os alexandrinos rimados
em parelhas, dois graves, dois agudos e “A França está aqui”. A gente batia no peito com um
entusiasmo, puxa!... Gaetaninho, uma delícia de texto, perde muito com o entrecho.
E agora peço desculpa prá A. M. por insistir numa pergunta que me enfernizou quando
estudei Pathé-Baby. Com Brás, Bexiga e Barra Funda a criança adquire direitos de
personalidade na ficção nacional. Tem um grupo escolar inteirinho no livro. E também é
incontestável que A. M. se afirma e progride nestes contos. Ora o fato simples do moço de vida
bem vida baixar os olhos prá piazada quê demonstra senão aquela realidade de ternura interior
que inventou Chama da Saudade, a página mais forte de Pathé-Baby? Essa ternura, aliás,
longe de ser peguenta e melada, aparece frequente agora. Não na dicção está claro, já falei que
não é peguenta, porém na escolha dos assuntos. Inda persevera o preceito com que o autor
botava um pingo vermelho na ondulação mançada duma imagem que nem aquele espantoso “A
tarde (a bola da criança bate na careca do pastor) cai como uma folha” (Pathé-Baby p.82). O
autor não tem coragem da própria sensibilidade. Ou não é bem isso não... A personalidade
psicológica de A. M. me parece das mais interessantes. Prá mim se dá nele uma espécie de
seqüestro de ternura, porque não lhe convém sentir nem desenvolver ternura. A. M. é indivíduo
seguro da vida e de si. Um organizado com vontade. O que no linguajar dos bananas se chama
um egoísta. Quer vencer e vencerá mesmo. Homem feito prá vencer. Acho lindo isso embora
seja tal o ímpeto vitorioso dele que torna-se até escandaloso. Brás, Bexiga e Barra Funda é um
livro irritantemente excelente. Não mostra tentativas. Não se percebe trabalho. O que quer dizer
que A. M. soluciona os problemas que se dá. Um vitorioso assim. Os livros dele são todos uma
espécie de obras-primas porque ele sempre realiza integralmente o que pretendeu. É um
exemplo típico de tiro-e-queda. Não divaga nunca na experiência. Possui certeza matemática de
resolver as próprias intenções. A gente pode discutir a excelência da intenção porém nunca a
solução dela. Por isso que falei serem os livros de A. M. “uma espécie” de obras-primas.
Contas que estão certas. E Brás, Bexiga e Barra Funda é uma conta mais elevada que Pathé-
Baby.
59
Cecília de Lara, no mesmo estudo em que registra a crítica de Mário,
publica também um trecho da carta de António de Alcântara a Prudente de
Moraes, neto, datada de 24 de junho de 1927, na qual o autor, referindo-se à
crítica, comenta:
Já tinha lido o artigo de Mário. Está bom. Muito bom mesmo.
E como autor que sou acrescentarei: menos nas partes incriminadas.
Com aquele negócio da antítese por exemplo eu não me conformo. Já tivemos a respeito
uma discussão. Paulo Prado, Mário e eu. O primeiro e o terceiro contra o segundo. Mário
59
Lara, Comentários e notas à edição fac-similar de Brás, Bexiga e Barra Funda, notícias de São Paulo,
pp.106-7.
64
acabou dizendo que Albalat esclarece bem o assunto. Diante disso capitulei. Paulo Prado
também.
Se a história de Gaetaninho é antítese tudo é antítese. Você está com pressa de chegar
ao seu escritório. Toma o ônibus. O ônibus chega atrasado à cidade. Antítese.
Você tem vontade de tomar um refresco. Toma o refresco lhe faz mal aos intestinos.
Antítese.
Sociedade, Corínthians v.s Palestra (este então!) e Nacionalidade também são antíteses
para Mário.
Não entendo. Ou melhor: entendo mas não concordo.
A frase Não ad. nada que o céu est. as. pqe. a alma de nic. est. negra sim.
Minha autocrítica pulou (ao contrário do que pensa Mário). Pulou de raiva. Mas eu conservei
a frase. Porque exprime um pensamento de Nicolino. E Nicolino não tem autocrítica moderna.
Mário não viu isso.
As patas também mexem Antes de mais nada Lisetta não tem sete anos. Eu é que sei a
idade dela. E não conto porque idade de mulher é segredo. Depois juro sobre a cabeça do
glorioso João R. Barros e sobre as virtudes bandeirantes de dona Margarida que criança de S.
Paulo diz pata em vez de pé. Diz uma à outra: Tira a pata daí!
No que Mário acerta é na descoberta da minha ternura. Aí sim. Acerta
assombrosamente.
60
Cada conto de Laranja da China apresenta um tipo diferente, cujo traço de
personalidade mais marcante é revelado no adjetivo que acompanha o nome do
protagonista no título.
Em O filósofo Platã o
61
temos o senhor Platão Soares em constante busca por
um emprego. Procurando aparentar o que não é, finge que só anda de ônibus da
Light, quando na verdade só tem dinheiro para o bonde. Vivendo no mundo da
fantasia, está sempre adiando a entrevista no Departamento de Saúde Pública,
evitando assim que tenha de passar para o mundo do trabalho
62
:
(...) Abriu a porta. Fechou. Vinha vindo um bonde a duzentos metros. Esperou. Agora
o ónibus. Esperou. Agora um automóvel do lado contrário. Esperou. Olhou bem de um lado.
Olhou bem de outro. Certificou-se das condições atmosféricas de nariz para o ar. Marcialmente
atravessou a rua.
60
Id., ibid., pp.107-8.
6
61
Machado, Laranja da China, pp.31-42.
6
62
E é, sobretudo, um distraído: o que escorrega na rua, o que não consegue abrir o guarda-sol, o que
despenca da escada, atropelando os que passavam na calçada. Todas estas cenas cômicas acabam surgindo do
disparate entre uma inteligência de filósofo, dada a elocubrações de toda ordem e um comportamento desastrado,
conseqüência da mais absoluta falta de espírito prático. Este passageiro filósofo circula pela cidade flagrado
naquilo que comicamente ostenta, mas não tem. Gotlib, “Paisagens paulistanas” in Revista Memória, nº 2, p.38.
65
O poste cintado esperava os bondes com gente em volta. Platão quando ia chegando
escorregou numa casca de laranja. Todos olharam. Platão equilibrou-se que nem japonês.
Encarou os presentes vitoriosamente. Na lata, seus cretinos. Esfregou a sola do sapato na
calçada e foi esperar em outro poste. Chegou de cabeça baixa.
Boa tarde, Platão.
O mesmo, Argemiro, como vai você?
Aqui nêste solão esperando o maldito 19 que não chega!
Platão cavou um arzinho risonho. Acendeu um cigarro. Disse sem olhar:
Eu espero o ónibus da Light.
Milionário é assim.
Primeiro deu um puxão nos punhos postiços. Depois respondeu:
Nem tanto...
O 19 passou abarrotado. Argemiro não falava. Platão sim de vez em quando:
Êsse é um dos motivos porque eu prefiro o ónibus da Light apesar do preço. Tem
sempre lugar. Depois é um Patek.
Mas era só para moer.
Argemiro deu um adeuzinho e aboletou-se á larga num 19 vasio. Então Platão soltou
um suspiro e pongou o 13 que vinha atrás.
Ficou no estribo. Agarrado no balaustre. Imaginando desastres medonhos. Por exemplo:
cabeçada num poste. Escapando do primeiro no segundo. Impossível evitar. Era fatal. Uma
sacudidela do bonde e pronto. Miolos á mostra. E será que a Nhana casaria de novo?
O senhor dá licença?
Tôda.
Não tinha visto o lugar. Pois a mulher viu. Que danada. Toda a gente passava na frente
dêle. Triste sina. Tomava cocaína. Ora que bobagem.
Ó seu Platãozinho!
A voz do Argemiro. Enfiou o rosto dentro do bonde.
Ó seu pândego!
O cavaleiro do balaustre foi amável:
Parece que é com o senhor.
Olá, Argemiro, como vai você?
Te gozando, Platãozinho querido!
Resolveu a situação descendo.
Não tem nada de extraordinário, Argemiro. Não precisava fazer tanto escândalo.
Homessa! Então eu sou obrigado a andar de ónibus só? E ainda por cima da Light? E não
tendo dinheiro trocado no bolso? Homessa agora! Homessa agora!
Até outra vez, seu bocó!
Profunda humilhação com o sol assando as costas.
66
Mas não é que tinha de descer ali mesmo? Praça da República, rua do Ipiranga, Serviço
Sanitário. Esta agora é de primeiríssima ordem. Argemiro sem querer fêz um favor. Um grande?
Um grandérrimo.
63
A saída para o mundo real é para Platão sempre uma aventura arriscada:
atravessar a rua movimentada, disputar um espaço com a multidão no bonde,
equilibrar-se no estribo e caminhar através de áreas suspeitas. Tudo conspira para
que decida não aceitar o emprego no Serviço Sanitário:
Rua do Ipiranga. Eta zona perigosa. Platão não tirava os olhos das venezianas. Só
mulatas. Eta zona estragada.
Entra, cheiroso!
Sai, fedida!
Que resposta mais na hora, Nossa Senhora. É longe como o diabo êsse tal de Serviço
Sanitário. Pensando bem.
Boa tarde, seu Platão, como vai o senhor?
Ó dona Euridice, como vai passando a senho...ora que se fomente!
Olhou para trás. Não ouviu. Que ouvisse. Parou deante da placa dourada. Sem saber se
entrava ou não. Não será melhor não? Tanta escada para subir, meu Deus.
O tição fardado chegou na porta contando dinheiro.
O doutor director já terá chegado?
Parece que ainda não chegou, não senhor.
Aí resolveu subir.
O doutor director ainda não chegou?
O cabeça-chata custou para responder.
Chegou, sim senhor. Quer falar com êle?
Ah, chegou?
O cabeça-chata papou uma pastilha de hortelã-pimenta e falou:
Agora é que eu estou reparando... o seu Platão Soares... Sim senhor, seu Platão.
Desta vez o senhor teve sorte mesmo: encontrou o homem. Vá se sentando que o bicho hoje
atende.
Platão deu uma espiada na sala.
Paciência, não é?
Platão se abanava com o chapéu côco. Triste. Triste. Triste.
Que é que você está chupando?
Eu? Eunãoestouchupandonadanãosenhor!
Platão deu um balanço na cabeça.
Sabe de uma cousa? Aai!... Eu volto amanhã...
63
Machado, Laranja da China, pp.35-7.
67
O senhor dá licença de um aparte, seu Platão? Eu se fosse o senhor não deixava para
amanhã não. O senhor já veiu aqui umas dez vezes?
Não tem importância. Eu volto amanhã.
Admiro o senhor, seu Platão. O senhor é um FI-LÓ-SO-FO, seu Platão, um grande
FI-LÓ-SO-FO!
Até amanhã.
Se Deus quizer.
Desceu a escada devagarzinho. Tirando a sorte. Pé direito: volto. Pé esquerdo: não
volto. Foi descendo. Volto, não volto, volto, não volto, vol...to, não vol...to, VOL...TO! Parou.
Virou-se. Mediu a escada. Virou-se. Olhou a rua. É verdade: e o degrau da soleira da porta?
Mais um não-volto. Mais um. Porêm para chegar até êle justamente um passo: volto. Aí está.
Azar. O que se chama azar. Platão retesou os músculos armando o pulo. Deu. De costas na
calçada. A mocinha que ia chegando com a velhinha suspendeu o chapéu. A velhinha suspendeu
o guarda-sol. O chôfer do outro lado da rua suspendeu o olhar. Platão Soares finalmente
suspendeu o corpo. Ficou tudo suspenso. Até que Platão muito dígno pegou o chapéu.
Agradeceu. Ia pegando o guarda-sol. A velhinha quiz fecha-lo primeiro.
Não, minha senhora! Prefiro assim mesmo aberto, por favor. Muito agradecido.
Muito agradecido.
De guarda-sol em punho deu uns tapinhas nas calças. Depois atravessou a rua. Parou
deante do chofer. Cousa mais interessante ver mudar um pneumático.
E não demorou muito:
Eu se fosse o senhor levantava um pouquinho mais o macaco, não acredita?
64
O tema do nacionalismo xenófobo está presente nos contos de António de
Alcântara Machado desde Brás, Bexiga e Barra Funda. Em Nacionalidade
65
ele
aparece representado na personagem Tranquillo Zampinetti. Este italiano vai
transitar entre os extremos dos sentimentos nacionalistas italiano e brasileiro:
O barbeiro Tranquillo Zampinetti da rua do gasómetro n. 224-B entre um cabelo e uma
barba lia sempre os comunicados de guerra do FANFULLA. Muitas vezes em voz alta até. De
puro entusiasmo. (...)
Comunicava ao Giacomo engraxate (SALÃO MUNDIAL) a nova vitória e entoava:
Tripoli sarà italiana,
sarà italiana a rombo di cannone!
64
Id., ibid., pp.38-42.
6
65
Machado, Brás, Bexiga e Barra Funda, notícias de São Paulo, pp. 133-141.
68
Nêsses dias memoráveis deante dos freguezes assustados brandia a navalha como uma
espada:
Caramba, come dicono gli spagnuoli!
Mas tinha um desgosto. Desgosto patriótico e doméstico. Tanto o Lorenzo como o
Bruno (Russinho para a saparia do Brás) não queriam saber de falar italiano. Nem brincando.
O Lorenzo era até irritante.
Lorenzo! Tua madre ti chiama!
Nada.
Tua madre ti chiama, ti dico!
Inútil.
Per lultima volta, Lorenzo! Tua madre ti chiama, hai capito?
Que o que.
Stai attento que ti rompo la faccia, figlio dun cane sozzaglione, che non sei altro!
Pode ofender que eu não entendo! Mamãe! Mamãe! MAMÃE!
Cada surra que só vendo.
66
A medida em que Tranquillo enriquece, torna-se proprietário de vários
terrenos, e decide envolver-se com a política local:
Um dia o Ferrucio candidato do governo a terceiro juiz de paz do distrito veiu cabalar o
voto do Tranquillo. Falou. Falou. Tranquillo escanhoando o rosto do político só escutava.
Siamo intesi?
No. Non sono elettore.
Non è elettore? Ma perchè?
Perchè sono italiano, mio caro signore.
Ma che centra la nazionalità, Dio Santo? Pure io sono italiano e farò il giudice!
Stà bene, stà bene. Penserò.
E votou com outra caderneta.
Depois gostou. Alistou-se eleitor. E deu até para cabalar.
A guerra europea encontrou Tranquillo Zampinetti proprietário de quatro prédios na
rua do Gasómetro, dois na rua Piratininga, cabo influente do Partido Republicano Paulista e
dilecto compadre do primeiro sub-delegado do Brás; o Lorenzo interessado da firma Vanzinello
& Cia. e noivo da filha mais velha do major António Del Piccolo, membro do directório
governista do Bom Retiro; o Bruno vice-presidente da Associação Atlética Ping-Pong e
primeiro anista do Ginásio do Estado.
66
Id., ibid., pp.133-5.
69
Tranquillo agitou-se todo. Comprou um mapa das operações com as respectivas
bandeirinhas. Colocou no salão o retrato da família real. Enfeitou o lustre com papel de seda
tricolor.
Questa volta Guglielmone avrà il suo!
Lorenzo noivava. Bruno caçoava.
Dona Clementina pouco ligava. Mas no dia em que o marido resolveu influenciado pelo
Carlino subscrever para o empréstimo de guerra protestou indignada. Tranquillo deu dois gritos
patrióticos. Dona Emilia deu três econômicos. Tranquilo cedeu. E mostrou ao Carlino como
explicação a sua caderneta de eleitor.
Aos poucos mesmo foi se desinteressando da guerra.
67
O amor exacerbado pela Itália vai sendo substituído pelo amor ao que é
brasileiro. O nome do novo negócio reforça a transmutação, passa pelo acesso de
um dos filhos a universidade e é coroada com a intenção de ser enterrado no
Brasil:
Proprietário de mais dois prédios á rua Santa Cruz da Figueira Tranquillo Zampinetti
fechou o salão (a mão já lhe tremia um pouquinho) e entrou para sócio comanditário da
Perfumaria Santos Dumont.
Então já dizia em conversa no Centro Político do Brás:
Do que a gente bisogna no Brasil, bisogna mesmo, é dun buono governo mais nada!
E o único trabalho que tinha era fiscalizar todos os dias a construcção da capela da
família no cemitério do Araça.
Quando o Bruno bacharel em ciências jurídicas e sociais pela Faculdade de Direito de
São Paulo ao sair do salão nobre no dia da formatura caiu nos seus braços Tranquillo
Zampinelli chorou como uma criança.
No pátio a banda da Força Pública (gentilmente cedida pelo doutor secretário da
Justiça) terminava o hino acadêmico. A estudantada gritava para os visitantes:
Chapéu! Chapéu-péu-péu!
E maxixava sob as arcadas.
Tranquillo empurrou o filho com fraque e tudo para dentro de um automóvel no largo de
São Francisco e mandou tocar a toda para casa.
Dona Emilia estava mexendo na cozinha quando o filho do Lorenzo gritou no corredor:
Vovó! Vovó! Venha ver o tio Bruno de cartola!
Tremeu inteirinha. E veiu ao encontro do filho amparada pelo Lorenzo e pela nora.
Benedetto pupo mio!
Vendo os cinco chorando abraçados o filho do Lorenzo abriu tambêm a bôca.
68
67
Id., ibid., pp.136-8.
68
Id., ibid., 139-141.
70
Ao final, o abrasileirar-se inclui até a troca de nacionalidade:
O primeiro serviço profissional do Bruno foi requerer ao exmo. snr. dr. Ministro da
Justiça e Negócios Interiores do Brasil a naturalização de Tranquillo Zampinetti, cidadão
italiano residente em São Paulo.
69
Esses retratos, essas caricaturas da pequena burguesia, da aristocracia
cafeeira em decadência e dos comerciantes em ascensão revelam que os efeitos do
processo modernizador são vividos por cada classe, grupo ou indivíduo de maneira
diferenciada.
A VELOCIDADE
Nos contos/crônicas de António de Alcântara encontramos toda uma
população interagindo, tecendo um conjunto de relações concretas e simbólicas
constituintes da história paulistana no início do século.
A relação entre esses elementos (gente, ambiente, novas tecnologias)
possibilitou o surgimento de fenômenos típicos da modernidade, até então
desconhecidos. A velocidade é um exemplo dessa realidade.
A São Paulo dos anos vinte implementou uma série de modificações na sua
estrutura urbana com o objetivo de tentar organizar o caos resultante do
desenvolvimento abrupto e incessante.
Tais modificações foram incrementadas, essencialmente, pela lógica e
pressão da especulação imobiliária. Com a compra de imensas áreas inabitadas,
sua retificação topográfica, a rápida implantação dos serviços básicos de infra-
estrutura, feita em parceria com o poder municipal, bairros inteiros foram
projetados e construídos dentro dos padrões europeus. Como resultado de um
investimento desse porte, as empresas envolvidas nessas operações obtiveram
incalculável retorno financeiro e também político. O caso da Light and Power Co.
Ltd. é o exemplo mais cristalino. Empresa monopolizadora do fornecimento dos
serviços públicos fundamentais, seu papel foi determinante em operações de
valorização do solo urbano.
70
69
Id., ibid., p.141.
70
A Light, naturalmente, era a peça decisiva no modo de expansão da cidade. Localizando as paradas
finais de suas linhas em pontos extremos e de população rarefeita - Penha, Lapa, Santana, Ipiranga, Vila Mariana,
Pinheiros - , ela gerou fluxos irradiados de valorização imobiliária que, seguindo as direções de seus trilhos,
suscitavam a criação de loteamentos em áreas remotas. Essas áreas, ao obterem os serviços básicos de transporte,
eletrificação e gás, fornecidos pela própria Light, geravam zonas intermediárias entre esses locais já dotados de
infra-estrutura e o centro da cidade, tornadas automaticamente supervalorizadas, o que elevava os preços dos
terrenos e aluguéis em níveis exponenciais. O resultado dessa prática sistemática era o surgimento de bairros
71
Assim, todo o conjunto de intervenções adotadas na ordenação do fluxo de
carros e pedestres na área central objetivou desafogar o tráfego de veículos,
favorecendo o recurso da aceleração.
O conselheiro Antônio Prado, prefeito da cidade entre 1899 e 1910, merece
ser lembrado, pois foram seus os primeiros esforços para a criação das vias que
interligaram o famoso Triângulo, formado pelas ruas Direita, São Bento e XV de
Novembro, às outras partes do centro, criando um entorno mais amplo naquele
perímetro e facilitando o trânsito na região.
Por essas e outras realizações, como a inauguração de praças e parques em
áreas de potencial valor imobiliário, a administração de Antônio Prado foi um
período de constantes embates com os representantes da especulação fundiária
urbana, especialmente com a Light. A população o tinha como herói, nosso “herói
civilizador”.
Com as obras na parte central da cidade, somadas àquelas realizadas
posteriormente em suas vias de acesso (consideradas importantes na ligação dos
bairros ao centro, como a rua Brigadeiro Luís Antônio) e mesmo em outras tão
longínquas no período, como a avenida Paulista, ficaram desobstruídos e alargados
os caminhos por onde os bondes elétricos e os automóveis, contraponto moderno
aos carros de tração animal, atravancadores do fluxo rápido e contínuo, puderam
desenvolver velocidade até então desconhecida.
A importância desses fatos não passa despercebida por António de
Alcântara. Em seu primeiro livro de contos, Brás, Bexiga e Barra Funda
encontramos em nove contos, dentre os onze que o compõem, referências a esses
tipos de transporte.
Em certas histórias são os veículos o próprio cenário de toda ou parte da
ação. Há ainda o trânsito, que assusta e mata, como fato importante e sinalizador
das profundas mudanças no espaço e tempo da cidade.
É precisamente no conto de abertura desse livro, Gaetaninho,
71
que
encontramos todo um conjunto de elementos urbanos e modernos em interação
dinâmica,e descritos com dramaticidade.
Ao transformar a rua, espaço de circulação dos veículos, em campo de
futebol, Gaetaninho e seus colegas ficam expostos ao perigo do atropelamento.
Logo na primeira aparição do personagem principal, um carro tipo Ford, veículo
puxado a cavalos, quase o derruba, pois o garoto tão concentrado na jogada,
inteiros completamente desconectados entre si, uma heterogeneidade de arruamentos desencontrados, além da
escassez drástica de praças, espaços públicos e amenidades. Essa anarquia especulativa era o oposto mesmo de
qualquer idéia de planejamento ou princípio de urbanismo. Sevcenko, Orfeu extático na metrópole, São Paulo
sociedade e cultura nos frementes anos 20, pp.123-4.
71
Machado, Brás, Bexiga e Barra Funda, notícias de São Paulo, pp.21-9.
72
preocupado em conduzir a bola com seus dribles, não vê o carro, nem ouve o seu
condutor:
O carroceiro disse um palavrão e êle não ouviu o palavrão.
72
Gaetaninho deseja mesmo é andar de automóvel ou carro, porém, pobre,
sabe que isso somente será possível em dias de casamento ou enterro.
Acontecimentos especiais que veneram a vida e a morte:
Ali na rua Oriente a ralé quando muito andava de bonde. De automóvel ou carro só
mesmo em dia de entêrro. De entêrro ou de casamento. Por isso mesmo o sonho de Gaetaninho
era de realização muito difícil. Um sonho.
73
A noite o garoto sonha que anda de carro, na boléia de um lindo modelo,
com a roupa patriótica de marinheiro, e o gorro branco onde se lia: Encouraçado São
Paulo, levando com sua família, tia Filomena rumo ao cemitério:
Que beleza, rapaz! Na frente quatro cavalos pretos empenachados levavam a tia
Filomena para o cemitério. (...) Muita gente nas calçadas, nas portas e nas janelas dos
palacetes, vendo o entêrro. Sobretudo admirando o Gaetaninho.
74
Pela manhã, tia Filomena, viva e cantante, o desperta. Ele, louco de ódio,
chora. A tia sabendo da história do sonho tem um ataque de nervos, Gaetaninho,
com remorso, rapidamente a substitui por outro defunto: seu Rubinho, acendedor
de lampiões da Cia. de Gás, que um dia lhe deu um cascudo.
Os irmãos do garoto não perdem tempo, interpretam o sonho e resolvem
apostar no bicho:
Os irmãos (êsses) quando souberam da história resolveram arriscar de sociedade
quinhentão no elefante. Deu a vaca. E êles ficaram loucos de raiva por não haverem logo
adivinhado que não podia deixar de dar a vaca mesmo.
75
Na outra cena temos o retorno dos meninos à rua/campo agora para uma
partida de vida ou morte.
Gaetaninho, excitado com a notícia sobre a morte do pai de um dos colegas,
parece nem ligar muito para o jogo. Sua preocupação é participar do enterro:
72
Id., ibid., p.23.
7
73
Id., ibid., p.24.
74
Id., ibid., p.25.
7
75
Id., ibid., p.26.
73
Você conhecia o pai do Afonso, Beppino?
Meu pai deu uma vez na cara dêle.
Então você não vai amanhã no enterro. Eu vou!
O Vicente protestou, indignado:
Assim não jogo mais! O Gaetaninho está atrapalhando!
Gaetaninho voltou para o seu posto de guardião. Tão cheio de responsabilidades.
76
Beppino então chuta forte e a bola vai longe. O palestrino, reclamando do
tiro incerto, sai em disparada pelo meio da rua. Não retorna a cancha:
Gaetaninho saiu correndo. Antes de alcançar a bola um bonde o pegou. Pegou e matou.
No bonde vinha o pai de Gaetaninho.
77
Nesse momento, no clímax do conto, é importante relembrar do início,
quando Gaetaninho, com gingado de atacante, escapa do carro, representante do
passado que não assusta mais e passa sem ser notado. Na paulicéia da
modernidade, da aceleração urbana, o carro é apropriado somente para o passo
cadenciado dos enterros e o ritmo lento da marcha fúnebre. No caso, o responsável
pela morte da criança será o bonde, veículo coletivo facultado ao trabalhador
pobre, que desliza pelos trilhos na velocidade condizente com a pulsação da cidade
que se pretende metrópole.
No final trágico e irônico, Gaetaninho andará de carro, participando de um
enterro, como sonhara. Só que será o seu:
Ás dezeseis horas do dia seguinte saiu um entêrro da rua do Oriente e Gaetaninho não
ia na boléia de nenhum dos carros do acompanhamento. Ia no da frente dentro de um caixão
fechado com flores pobres por cima. Vestia a roupa marinheira, tinha as ligas, mas não levava a
palhetinha.
Quem na boléia de um dos carros do cortejo mirim exibia soberbo terno vermelho que
feria a vista da gente era o Beppino.
78
Na obra literária de António de Alcântara o carro particular e,
principalmente, o automóvel são retratados como bens burgueses que simbolizam
status, poder e progresso.
76
Id., ibid., p.27.
77
Id., ibid., p.28.
7
78
Id., ibid., pp.28-9.
74
No conto Carmela
79
encontramos a moça bonita, costureira em uma das
tantas oficinas de costura localizadas na turbulenta rua Barão de Itapetininga, via
importante da chamada “cidade nova”, saindo do trabalho com sua amiga Bianca:
80
Dezoito horas e meia. Nem mais um minuto porque a madama respeita as horas de
trabalho. Carmela sai da oficina. Bianca vem ao seu lado.
A rua barão de Itapetininga é um depósito sarapintado de automóveis gritadores. As
casas de modas (AO CHIC PARISIENSE, SÃO PAULO - PARIS, PARIS ELEGANTE)
despejam nas calçadas as costureirinhas que riem, falam alto, balançam os quadris como
gangorras.
Espia se êle está na esquina.
Não está.
Então está na praça da República. Aqui tem muita gente mesmo.
Que fiteiro!
O vestido de Carmela coladinho no corpo é de organdi verde. Braços nús, colo nú, joelhos
de fora. Sapatinhos verdes. Bago de uva Marengo maduro para os lábios dos mamadores.
Ai que rico corpinho!
Não se enxerga, seu cafageste? Português sem educação!
Abre a bolsa e espreita o espelhinho quebrado que reflete a boca reluzente de carmim
primeiro, depois o nariz chumbeava, depois os fiapos de sobrancelha, por último as bolas de
metal branco na ponta das orelhas descobertas.
Bianca por ser estrábica e feia é a sentinela da companheira.
Olha o automóvel do outro dia.
O caixa dóculos?
Com uma bruta luva vermelha.
O caixa dóculos pára o Buick de propósito na esquina da praça.
Pode passar.
Muito obrigada.
Passa na pontinha dos pés. Cabeça baixa. Toda nervosa.
79
Id., ibid., pp.31-43.
80
As oficinas de costura empregavam grande número de crianças, moças e senhoras na São Paulo do início
do século. Com jornadas extenuantes de 10, até 12 horas de trabalho, a saída desses turnos era uma festa. Mário de
Andrade, no poema Sambinha, flagra uma dessas cenas: Vêm duas costureirinhas pela rua das Palmeiras./ Afobadas
braços dados depressinha/ Bonitas, Senhor! Que até dão vontade pros homens da rua./ As costureirinhas vão
explorando perigos.../ Vestido é de seda./ Roupa-branca é de morim./ Falando conversas fiadas/ As duas
costureirinhas passam por mim./ - Você vai?/ - Não vou não!/ Parece que a rua parou pra escuta-las./ Nem os
trilhos sapecas/ jogam mais bondes um pro outro./ E o Sol da tardinha de abril/ Espia entre as palpebras
sapiroquentas de duas nuvens./ As nuvens são vermelhas./ A tardinha é cor-de-rosa./ Fiquei querendo bem aquelas
duas costureirinhas.../ Fizeram-me peito batendo/ Tão bonitas, tão modernas tão brasileiras!/ Isto é.../ Uma era
ítalo-brasileira./ Outra era Áfrico-brasileira./ Uma era branca,./ Outra era preta. Andrade, Poesias completas,
p.175.
75
Não vira para trás, Bianca. Escandalosa!
81
Carmela já tem um noivo, como ela de origem italiana, também pobre, que
trabalha de entregador na Casa Clark e o resto do tempo a vigia:
Deante de Álvares de Azevedo (ou Fagundes Varela) o Angelo Cuoco de sapatos
vermelhos de ponta afilada, meias brancas, gravatinha dêste tamanhinho, chapéu á Rodolfo
Valentino, paletó de um botão só, espera há muito com os olhos escangalhados de inspeccionar
a rua barão de Itapetininga.
O Angelo!
Dê o fora.
Bianca retarda o passo.
Carmela continua no mesmo. Como se não houvesse nada. E o Angelo junta-se a ela.
Tambêm como se não houvesse nada. Só que sorri.
Já acabou o romance?
A madama não deixa a gente ler na oficina.
É? Sei. Amanhã tem baile na Sociedade.
Que bruta novidade, Angelo! Tem todo domingo. Não segura no braço!
Enjoada!
Na rua do Arouche o Buick de novo. Passa. Repassa. Torna a passar.
Quem é aquêle cara?
Como é que eu hei de saber?
Você dá confiança para qualquer um. Nunca vi, puxa! Não olha pra êle que eu armo
já uma encrenca!
82
A vida de Carmela é dura e ela procura nos folhetins uma fuga:
Antes de se estender ao lado da irmãzinha na cama de ferro Carmela abre o romance á
luz da lâmpada de 16 velas: Joana a desgraçada ou A odisseia de uma virgem, fascículo 2º.
Percorre logo as gravuras. Umas teteias. A capa então é linda mesmo. No fundo o
imponente castelo. No primeiro plano a íngreme ladeira que conduz as castelo. Descendo a
ladeira numa disparada louca o fogoso ginete. Montado no ginete o apaixonado caçula do
castelão inimigo de capacete prateado com plumas brancas. E atravessada no cachaço do ginete
a formosa donzela desmaiada entregando ao vento os cabelos cor de carambola.
Quando Carmela reparando bem começa a verificar que o castelo não é mais um castelo
mas uma igreja o tripeiro Giuseppe Santini berra no corredor:
spegni la luce! Subito! Mi vuole proprio rovinare questa principessa!
81
Id., ibid., pp.33-4.
82
Id., ibid., pp.35-6.
76
E ráatá uma cusparada daquelas.
83
Carmela sonha ascender socialmente casando com o jovem rico, proprietário
do Buick, que somente interessado em seduzi-la utiliza os atributos do automóvel,
já que parecem lhe faltar os pessoais.
O encontro é marcado em lugar discreto, longe da agitação e burburinho das
ruas centrais e principalmente do noivo de Carmela. O local pacato fica atrás da
igreja de Santa Cecília:
Eu só vou até a esquina da alameda Glette. Já vou avisando.
Trouxa. Que tem?
No largo Santa Cecília atrás da igreja o caixa dóculos sem tirar as mãos do volante
insiste pela segunda vez:
Uma voltinha de cinco minutos só... Ninguêm nos verá. Você verá. Não seja má.
Suba aqui.
Carmela olha primeiro a ponta do sapato esquerdo, depois a do direito, depois a do
esquerdo de novo, depois a do direito outra vez, levantando e descendo a cinta. Bianca roe as
unhas.
84
Carmela não se faz de fácil; vacila em aceitar; e só o faz impondo a presença
de Bianca:
Só com a Bianca...
Não. Para quê? Venha você sózinha.
Sem a Bianca não vou.
Está bem. Não vale a pena brigar por isso. Você vem aqui na frente comigo. A
Bianca senta atrás.
Mas cinco minuto só. O senhor falou...
Não precisa me chamar de senhor. Entrem depressa.
Depressa o Buick sobe a rua Viridiana.
Só pára no Jardim América.
85
No próximo encontro não haverá mais lugar para Bianca, no Buick:
Bianca no domingo seguinte encontra Carmela raspando a penugenzinha que lhe une as
sobrancelhas com a navalha denticulada do tripeiro Giuseppe Santini.
83
Id., ibid., pp.39-40.
84
Id., ibid., pp.40-1.
8
85
Id., ibid., p.41.
77
Chi, quanta cousa pra ficar bonita!
Ah! Bianca, eu quero dizer uma cousa pra você.
Que é?
Você hoje não vai com a gente no automóvel. Foi êle que disse.
Pirata!
Pirata porque? Você está ficando boba, Bianca.
É. Eu sei porque. Piratão. E você, Carmela, sim senhora! Por isso é que o Angelo me
disse que você está ficando mesmo uma vaca.
Êle disse assim? Eu quebro a cara dêle, hein? Não me conhece.
Pode ser, não é? Mas namorado de máquina não dá certo mesmo.
(...).
Depois que os seus olhos cheios de estrabismo e despeito veem a lanterninha trazeira do
Buick desaparecer Bianca resolve dar um giro pelo bairro. Imaginando cousas. Roendo as
unhas. Nervosíssima.
Logo encontra a Ernestina. Conta tudo á Ernestina.
E o Angelo, Bianca?
O Angelo? O Angelo é outra cousa. É pra casar.
Ahn!..
86
No conto A Sociedade
87
temos o playboy, filho do industrial italiano,
tentando impressionar a filha do conselheiro, buzinando e acelerando seu Lancia.
Não somente o título honorífico do império indica a decadência da família, mas
ações do cotidiano como pechinchar os preços com os vendedores. Porém, a união
encontra resistência por parte da mãe da moça:
Filha minha não casa com filho de carcamano!
A esposa do conselheiro José Bonifácio de Matos e Arruda disse isso e foi brigar com o
italiano das batatas. Teresa Rita misturou lágrimas com gemidos e entrou no seu quarto
batendo a porta. O conselheiro José Bonifácio limpou as unhas com o palito, suspirou e saiu de
casa abotoando o fraque.
O esperado grito do cláxon fechou o livro de Henri Ardel e trouxe Teresa Rita do
escritório para o terraço.
O Lancia passou como quem não quer. Quási parando. A mão enluvada cumprimentou
com o chapéu Borsalino. Uiiiiia - uiiiiia! Adriano Melli calcou o acelerador. Na primeira
esquina fez a curva. Veiu voltando. Passou de novo. Continuou. Mais duzentos metros. Outra
86
Id., ibid., pp.41-3.
8
87
Id., ibid., pp.67-77.
78
curva. Sempre na mesma rua. Gostava dela. Era a rua da Liberdade. Pouco antes do número
259-C já sabe: uiiiii-uiiiii!
88
Em seguida, numa seqüência de cortes rápidos, num jogo de imagens
simultâneas, próprio do cinema, diversão moderna, temos o desfecho da cena:
Lancia Lambda, vermelhinho, resplendente, pompeando na rua. Vestido do Camilo,
verde, grudado á pele, serpejando no terraço.
Entre já para dentro ou eu falo com seu pai quando êle chegar!
Ah meu Deus, meu Deus, que vida, meu Deus!
Adriano Melli passou outras vezes ainda. Estranhou. Desapontou. Tocou para a
Avenida Paulista.
89
Embora haja resistência, Salvatore Melli, pai do rapaz, vem propor dois
interessantes negócios:
Olhe aqui, Bonifácio: se êsse carcamano vem pedir a mão de Teresa para o filho você
aponte o olho da rua para êle, compreendeu?
Já sei, mulher, já sei.
Mas era cousa muito diversa.
O cav. uff. Salvatore Melli alinhou algarismos torcendo a bigodeira. Falou como homem
de negócios que enxerga longe. Demonstrou cabalmente as vantagens econômicas de sua
proposta.
O doutor...
Eu não sou doutor, senhor Melli.
Parlo assim para facilitar. Non é para ofender. Primo o doutor pense bem. E poi me
dê a sua resposta. Domani, dopo domani, na outra semana, quando quizer. Io resto á sua
disposição. Ma pense bem!
Renovou a proposta e repetiu os argumentos pró. O conselheiro possuia uns terrenos em
São Caetano. Cousas de herança. Não lhe davam renda alguma. O cav. uff. tinha a sua fábrica
ao lado. 1.200 teares. 36.000 fusos. Constituiam uma sociedade. O conselheiro entrava com os
terrenos. O cav. uff. com o capital. Arruavam os trinta alqueires e vendiam logo grande parte
para os operários da fábrica. Lucro certo, mais que certo, garantidíssimo.
É. Eu já pensei nisso. Mas sem capital o senhor compreende é impossível...
90
88
Id., ibid., pp.69-70.
8
89
Id., ibid., p.70.
90
Id., ibid., pp.73-4.
79
A resposta do italiano representa claramente a ascensão do imigrante. Esse
não tem somente a comenda da coroa italiana, cavaliere ufficciale, mas é a própria
personificação do capital:
Per Bacco, doutor! Mas io tenho o capital. O capital sono io. O doutor entra com o
terreno mais nada. E o lucro se divide no meio.
O capital acendeu um charuto. O conselheiro coçou os joelhos disfarçando a emoção. A
negra de broche serviu o café.
Doppo o doutor me dá a resposta. Io só digo isto: pense bem.
O capital levantou-se. Deu dois passos. Parou. Meio embaraçado. Apontou para um
quadro.
Bonita pintura.
Pensou que fosse obra de italiano. Mas era de francês.
Francese? Não é feio non. Serve.
91
O segundo negócio é então proposto, a “sociedade” é concretizada:
Embatucou. Tinha qualquer cousa. Tirou o charuto da bôca, ficou olhando para a ponta
acesa. Deu um balanço no corpo. Decidiu-se.
Ia dimenticando de dizer. O meu filho fará o gerente da sociedade... Sob a minha
direcção si capisce.
Sei, sei... O seu filho?
Si. O Adriano. O doutor... mi pare... mi pare que conhece êle?
O silêncio do conselheiro desviou os olhos do cav. uff. na direcção da porta.
Repito unaltra vez: o doutor pense bem.
O Isotta Fraschini esperava-o todo iluminado.
92
O interesse pela união do capital italiano ascendente (industrial), com o
capital da aristocracia paulistana decadente supera os preconceitos étnicos:
E então? O que devo responder ao homem?
Faça como entender, Bonifácio...
Eu acho que devo aceitar.
Pois aceite...
E puxou o lençol.
(...).
91
Id., ibid., pp.74-5.
92
Id., ibid., p.75.
80
No chá do noivado o cav. uff. Adriano Melli na frente de toda a gente recordou á mãe
de sua futura nora os bons tempinhos em que lhe vendia cebolas e batatas, Olio di Lucca e
bacalhau português quási sempre fiado e até sem caderneta.
93
Para os trabalhadores, carros e automóveis simbolizam bens inacessíveis, na
medida em que lhes é permitido o contato com essas máquinas somente nos dias
de festas ou de luto, como vimos. Contato fugaz, mas possível.
A polaridade negativa desse ícone da modernidade em relação aos pobres
vai além, afinal, representa até uma ameaça à vida do transeunte
94
. Em O monstro
93
Id., ibid., pp.76-7.
9
94
A respeito da associação entre o automóvel, o poder da elite e os atropelamentos de pedestres,
principalmente na região central da cidade, Nicolau Sevecenko comenta: Desde o início, dado os seus custos de
compra, importação e manutenção, o automóvel era identificado como o último grau da ostentação. Pouco viável
no seu uso, em vista do estado deplorável da maior parte das ruas suburbanas e estradas, num contexto em que o
transporte era maciçamente baseado nos trens, bondes, carroças, charretes, cavalos e mulas, ele sempre foi
encarado como um “brinquedo de ricos”. Depois da Guerra e com sua incorporação ao serviço de táxis urbanos,
os automóveis vão ter o seu boom ao longo da década de 20, bloqueando com seu volume os estreitos espaços de
circulação da área central e transformando a cidade num autêntico inferno. Dada sua forma de introdução súbita e
peculiar na cidade, duplamente aureolado pelo prestígio da mais moderna tecnologia européia e do mais vistoso
objeto do consumo conspícuo, o automóvel passou a ser usado de forma a acentuar a sua mística e se impor como
uma moldura mecânica sofisticada do poder, mesmo na mão de choferes e empregados de companhias. O
equipamento indiferente à sua utilidade ou a quem o dirigia, sucumbira ao símbolo. Desde cedo os mais jovens
passaram a dispensar os choferes para porem à prova o desempenho máximo dos veículos. Em qualquer
circunstância, em qualquer lugar, o tempo todo, o imperativo era a máxima aceleração e o uso incessante da
buzina. Os atropelamentos são diários e múltiplos, especialmente envolvendo anciãos e crianças. Como o
crescimento da cidade era um fenômeno recente, os carros eram um fato novo, o grosso da população não tinha
qualquer representação na Câmara Municipal ou outros órgãos políticos e os motoristas ou eram ou estavam a
serviço dos ricos e poderosos, não havia qualquer regulamentação do trânsito e os atropelamentos, mesmo com
mortes, ficavam impunes, exceto por uma pequena multa. O que aumentava ainda mais o prestígio dos automóveis e
a ousadia sem limites dos motoristas, mantendo a população pedestre acuada sob um clima de terror. O automóvel
herdou assim o estigma proveniente do recente passado escravista. Que associava necessariamente as posições de
poder com o exercício da brutalidade. E provavelmente teve um papel decisivo em manter e difundir o mais
amplamente possível essa associação funesta, de modo que, com o avolumar-se das formas de transporte urbano, o
padrão de utilização de todas elas, inclusive bicicletas, motocicletas, bondes e carroças passou a ser aquele
prestigiosamente afirmado pelos automóveis. Salvo os clamores quase que diários pela imprensa, sobretudo nas
seções de cartas dos leitores, nenhuma reação defensiva da população era assumida pelas autoridades. Às vezes
eram os próprios motoristas que se acidentavam ou feriam uns aos outros, mas era parte do jogo. (...) Eis um tipo
de carta corriqueira na imprensa: No dia 31 de dezembro, às vinte horas, pouco menos, achava-me na Praça da
República e dirigia-me para a Rua Sete de Abril. Quase ao entrar nesta, percebi que em minha direção se
encaminhava um automóvel, com bastante velocidade, todo descoberto, conduzindo diversas senhoras. Tratei de
desviar-me, mas em vão, pois por todos os lados para que me encaminhava, era perseguido pelo automóvel e, por
um requinte de perversidade, o chauffeur não diminuía a marcha da máquina. Vi-me por isso forçado a correr
até galgar o passeio da praça, escapando de ser colhido pelo automóvel por verdadeiro milagre. Quantos
desastres desses não se dão nesta cidade a todo momento e que são atribuídos ao acaso, quando muitos se dão de
caso pensado, por perversidade dos chauffeurs. O exemplo desse cavalheiro vítima e testemunha anônima depondo
em nome da classe dos transeuntes, no esclarecer que situações aflitivas como essas se tornam a própria textura do
cotidiano para aqueles que circulam pela cidade, o que os forçava a desenvolver, em contra partida, uma agilidade
mecânica correspondente à ameaça que os sobressaltava, como recurso compensatório e medida de defesa, quando
já não de sobrevivência. Sevecenko, Orfeu extático na metrópole, São Paulo sociedade e cultura nos frementes anos
20, pp.73-5.
81
de rodas,
95
embora não seja descrito o momento do atropelamento da menina,
ficamos sabendo, através das conversas no velório, que fora provocado por um
filho de rico, logo imune à lei:
O Nino apareceu na porta. Teve um arrepio. Levantou a gola do paletó.
Ei, Pepino! Escuta só o frio!
Na sala discutiam agora a hora do enterro. A Aida achava que de tarde ficava melhor.
Era mais bonito. Com o filho dormindo no colo dona Mariangela achava tambêm. A fumaça do
cachimbo do marido ia dançar bem em cima do caixão.
Ai, Nossa Senhora! Ai, Nossa Senhora!
Dona Nunzia descabelada enfiava o lenço na bôca.
Ai, Nossa Senhora! Ai, Nossa Senhora!
Sentada no chão a mulata oferecia o copo de água de flor de laranja.
Leva ela pra dentro!
Não! Eu não quero! Eu... não... quero!
Mas o marido e o irmão a arrancaram da cadeira e ela foi gritando para o quarto.
Enxugaram-se lágrimas de dó.
Coitada da dona Nunzia!
A negra de sandalia sem meia principiou a segunda volta do terço.
Ave Maria, cheia de graça, o Senhor...
Carrocinhas de padeiro derrapavam nos paralelepípedos da rua Sousa Lima. Passavam
cestas para a feira do largo do Arouche. Garoava na madrugada roxa.
...da nossa morte. Amen. Padre Nosso que estais no céu...
O soldado espiou da porta. Seu Chiarini começou a roncar muito forte. Um bocejo. Dois
bocejos. Três. Quatro.
...de todo o mal. Amen.
A Aida levantou-se e foi espantar as moscas do rosto do anjinho.
Cinco. Seis.
O violão e a flauta recolhendo da farra emudeceram respeitosamente na calçada.
Na sala de jantar Pepino bebia cerveja em companhia do Américo Zamponi (SALÃO
PALESTRA ITÁLIA - Engraxa-se na perfeição a 200 réis) e o Tibúrcio (- O Tibúrcio... - O
mulato? Quem mais há de ser?).
Quero só ver daqui a pouco a notícia do Fanfulla. Deve cascar o almofadinha.
Chi, Pepino! Você é ainda muito criança. Tu é ingenuo, rapaz. Não conhece a
podridão da nossa imprensa. Que o quê, meu nego. Filho de rico manda nesta terra que nem a
Light. Pode matar sem medo. É ou não é, seu Zamponi?
9
95
Machado, Brás, Bexiga e Barra Funda, notícias de São Paulo, pp.111-8.
82
Seu Américo Zamponi soltou um palavrão, cuspiu, soltou outro palavrão, bebeu, soltou
mais outro palavrão, cuspiu.
É isso mesmo, seu Zamponi, é isso mesmo!
96
Na seqüência acompanhamos, à pé, o cortejo fúnebre da Barra Funda até o
Cemitério do Araçá. Espetáculo capaz de comover a multidão, mas não de deter o
trânsito:
O caixãozinho côr de rosa com listas prateadas (dona Nunzia gritava) surgiu deante dos
olhos assanhados da vizinhança reunida na calçada (a molecada pulava) nas mãos da Aida, da
Josefina, da Margarida e da Linda.
Não precisa ir depressa para as moças não ficarem escangalhadas.
A Josefina na mão livre sustentava um ramo de flores. Do outro lado a Linda tinha a
sombrinha verde aberta. Vestidos engomados, armados, um branco, um amarelo, um creme, um
azul. O enterro seguiu.
O pessoal feminino da reserva carregava dálias e palmas de São José. E na calçada os
homens caminhavam descobertos.
O Nino quiz fechar com o Pepino uma aposta de quinhentão.
A gente vai contando os trouxas que tiram o chapéu até a gente chegar no Araça.
Mais de cincoenta você ganha. Menos, eu.
Mas o Pepino não quiz. E pegaram uma discussão sôbre qual dos dois era o melhor:
Friedenreich ou Feitiço.
Deixa eu carregar agora, Josefina?
Puxa, que fiteira! Só porque a gente está chegando na avenida Angélica. Que mania
de se mostrar que você tem!
O grilo fez continência. Automóveis disparavam para o corso com mulheres de pernas
cruzadas mostrando tudo. Chapéus cumprimentavam dos ónibus, dos bondes. Sinais da santa
cruz. Gente parada.
97
O drama familiar torna-se momentaneamente uma comoção pública. A
oportunidade é aproveitada politicamente pelos membros da comunidade de olhos
nas próximas eleições:
Na praça Buenos Aires Tibúrcio já havia arranjado tres votos para as próximas eleições
municipais.
Mamãe, mamãe! Venha ver um entêrro, mamãe!
98
96
Id., ibid., pp.113-5.
97
Id., ibid., pp.116-7.
98
Id., ibid., p.117.
83
Essas tragédias do cotidiano moderno, na época já sem importância para o
ritmo da vida metropolitana, são recuperadas pelo autor em toda sua dimensão
humana. A dor do drama familiar comove-lhe sensivelmente, seu relato torna-se
então melancólico:
Ainda voltou com a chave do caixão presa num lacinho de fita. Encontrou dona Nunzia
sentada na beira da cama olhando o retrato que a Gazeta publicara. Sozinha. Chorando.
Que linda que era ela!
Não vale a pena pensar mais nisso, dona Nunzia...
O pai tinha ido conversar com o advogado.
99
O trabalhador também tem seus meios de transporte: ônibus e bonde. No
ônibus,
100
o rapaz Aristodemo Guggiani, protagonista do conto Tiro de guerra
35,
101
é o cobrador que, trabalhando na linha praça do Patriarca - Lapa, arranja uma
namorada, moradora no fim da rua das Palmeiras, itinerário do seu carro.
Acompanhemos parte da sua vida:
No Grupo Escolar da Barra Funda Aristodemo Guggiani aprendeu em três anos roubar
com perfeição no jôgo de bolinhas (garantindo o tostão para o sorvete) e ficou sabendo na ponta
da língua que o Brasil foi descoberto sem querer e é o país maior, mais belo e mais rico do
mundo. O professor seu Serafim todos os dias ao encerrar as aulas limpava os ouvidos com o
canivete (brinde do Chalé da Boa Sorte) e dizia olhando o relógio:
Antes de nos separarmos, meus jovens discentes, meditemos uns instantes no porvir
da nossa idolatrada pátria.
Depois regia o hino nacional. Em seguida o da bandeira. O pessoal entoava os dois
engolindo metade das estrofes. Aristodemo era a melhor voz da classe. Berrando puxava o côro.
A campainha tocava. E o pessoal desembestava pela rua Albuquerque Lins vaiando seu
Serafim.
(...).
9
99
Id., ibid., p.117-8.
1
100
Pesquisando sobre o transporte coletivo constata-se que o papel do ônibus, conhecido também como
auto-ônibus e auto-bus, no sistema de transporte urbano foi confuso. Em 1925, começaram a circular os primeiros
ônibus particulares, iniciando uma política que será ora de incentivo ora de desestímulo a esse transporte. Com a
posse de Washington Luís no governo federal, em 1926, impulsionou-se um plano no sentido de substituir o
transporte coletivo movido à eletricidade pelo ao derivados de petróleo. Com avanços e reversos tal projeto alcança
total êxito somente na década de 60, decênio que marca a extinção por completo dos bondes nas principais cidades
brasileiras.
101
Machado, Brás, Bexiga e Barra Funda, notícias de São Paulo, pp.45-57.
84
Então brigou com o cunhado. E passou a ser cobrador da Companhia Auto-Viação
Gabrielle dAnnunzio. De farda amarela e polainas vermelhas.
Sua linha: Praça do Patriarcha-Lapa. Arranjou logo uma pequena. No fim da rua das
Palmeiras. Ela vinha á janela ver o Aristodemo passar. O Evaristo era quem avisava por
camaradagem tocando o cláxon do ónibus verde. Aristodemo ficava olhando para trás até o
largo das Perdizes.
102
Aristodemo se alista no Tiro de Guerra:
Companhia! Per...filar!
No largo Municipal o pessoal evoluia entre as cadeiras do bar e as costas protofônicas
de Carlos Gomes para divertimento dos desocupados parados aos montinhos aqui, ali, á direita,
á esquerda, lá, atrapalhando.
Meia volta! Vol...ver!
O sargento cearense clarinava as ordens de comando. Puxando pela rapaziada.
Não está bom não! Vamos repetir isso sem avexame!
De novo não prestou.
Firme!
Pareciam estacas.
Meia volta!
Tremeram.
Vol...ver!
Volveram.
Abém!
Aristodemo era o base da segunda esquadra.
Sargento Aristóteles Camarão de Medeiros, natural de São Pedro do Cariri, quando
falava em honra da farda, deveres do soldado e grandeza da pátria arrebatava qualquer um.
Aristodemo só de ouvi-lo ficou brasileiro jacobino. Aristóteles escolheu-o para seu
ajudante de ordens. Uma espécie de.
Você conhece o hino nacional, criatura?
Puxa se conheço, seu sargento!
Então você não esquece não? Traz amanhã umas cópias dêle para o pessoal ensaiar
para o sete de setembro? Abóm.
103
A transformação xenofobista desse ítalo-paulista o impele a defender o Hino
Nacional contra qualquer provocação:
Aristodemo deu folga no serviço. Tambêm levou um colosso de cópias.
E o primeiro ensaio foi logo á noite.
102
Id., ibid., pp.47-9.
103
Id., ibid., pp.51-2.
85
Ou-viram do I-piranga as margens plá-cidas...
Parem que assim não presta não! Falta patriotismo. Vocês nem parecem brasileiros.
Vamos!
Ou-viram do I-piranga as margens plá-cidas
Da Inde-pendência o brado re-tumbante!
Não é assim não. Retumbante tem que estalar, criaturas, tem que retumbar! É
palavra... como é que se diz mesmo?... é palavra... ah!... onomatopaica: RETUMBANTE!
E o hino rolou ribombando:
da Inde-pendência o brado re-TUMBAN-
te!
E o sol da li-berdade em raios ful...
De repente um barulho na segunda esquadra.
Que isbregue é êsse aí, criaturas?
Isbregue danado. O alemãozinho levou um tabefe de estilo. Onde entrou todo mundo de
que poude dispor na hora o Aristodemo.
Está suspenso o ensaio. Podem debandar.
Eu dei mesmo na cara dêle, seu sargento. Por Deus do céu! Um bruto tapa mesmo. O
desgraçado estava escachando com o hino do Brasil!
Que é que você está me dizendo, Aristodemo?
Escachando, seu sargento. Pode perguntar para qualquer um da esquadra. Em vez
de cantar êle dava risada da gente. Eu fui me deixando ficar com raiva e disse pra êle que êle
tinha obrigação de cantar junto com a gente tambêm. Êle foi e respondeu que não cantava
porque não era brasileiro. Eu fui e disse que se êle não era brasileiro é porque era... um... eu
chamei êle de... eu ofendi a mãe dêle, seu sargento! Ofendi mesmo. Por Deus do céu. Então êle
disse que a mãe dêle não era brasileira para êle ser... o que eu disse. Então eu fui, seu sargento,
achei que era demais e estraguei com a cara do desgraçado! Ali na hora.
Vou ouvir as testemunhas do facto, Aristodemo. Depois procederei como for de
justiça. Fiat justitia como dizem os antigos romanos. Confie nela, Aristodemo.
104
104
Id., ibid., pp.52-5.
86
Aristodemo é absolvido, mas deixa o Tiro de Guerra e retorna ao trabalho de
cobrador, só que agora em uma empresa concorrente e, sobretudo, nacional:
Aristodemo Guggiani logo depois apresentou sua demissão do cargo de cobrador da
Companhia Auto-Viação Gabrielle dAnnuzio. Sob aplausos e a conselho do sargento
Aristóteles Camarão de Medeiros. Trabalha agora na Sociedade de Transportes Rui Barbosa,
Ltda.
Na mesma linha: Praça do Patriarca-Lapa.
105
Dentro dos bondes desenrolam-se histórias inteiras repletas de referências a
sua estrutura, acomodação, estabilidade, itinerário, pontualidade (ou não), preço
das tarifas, atendimento, até mesmo a publicidade neles afixadas. Aliás, o
desenvolvimento da publicidade é outro aspecto da modernidade observado e
registrado por António de Alcântara em seus contos. A concentração do capital, o
surgimento da produção em escala industrial, o crescimento do comércio, a criação
de um mercado interno provocam a necessidade de atrair o novo consumidor.
Novos elementos são incorporados à paisagem urbana: o anúncio, o réclame, a
propaganda de diversos produtos. É a publicidade incipiente, mas já eficiente,
ocupando todos os espaços e suportes possíveis: o cartaz de rua, o anúncio nos
bondes, o néon, o luminoso nos telhados dos prédios.
É importante lembrar que falamos de uma cidade iluminada pela energia
elétrica, logo o dia não mais finda com a chegada da noite. O comércio pode estar
fechado, mas os produtos continuam sendo anunciados e vendidos. Somam-se ao
fato, os novos avanços da mecânica e o conseqüente desenvolvimento da área
gráfica e editorial. Revistas, jornais, folhetos, prospectos tornam-se meios de
veiculação das mensagens publicitárias.
Todo esse conjunto de textos e imagens contribui de forma significativa na
mudança do comportamento das pessoas que habitam a cidade. A publicidade
influencia na formação de novas atitudes, no gosto, na moda e no modo de vida de
muita gente. Inclusive os próprios modernistas utilizaram-se das técnicas e da
linguagem publicitária para divulgar suas idéias, assim como para a concepção
gráfica de vários livros e manifestos do movimento.
Ainda em Brás, Bexiga e Barra Funda, temos o conto Lisetta, que se passa
dentro de um bonde, como já referido. Mas é no conto O revoltado Robespierre
(Senhor Natanael Robespierre dos Anjos)
106
que conhecemos a mais acabada
descrição de uma viagem de bonde. Nele acompanhamos Natanael Robespierre,
105
Id., ibid., p.57.
106
Machado, Laranja da China, pp.9-16.
87
indo para o trabalho e revoltado com tudo e todos que o cerca: o condutor (que era
quem cobrava as passagens nos bondes), o motorneiro (quem os conduzia),
imigrantes,
107
anúncios, governo, etc. Mesmo sendo uma pessoa deselegante e
desagradável, o personagem reclama até do raio de italiano que fala alto, reforçando
aliás esse estereótipo. O caminho habitual do senhor Robespierre é um interessante
roteiro pela região central:
Todos os dias úteis ás dez e meia toma o bonde no largo de Santa Cecília encrencando
com o motorneiro.
Quando a gente levanta o guarda-chuva é para você parar essa joça! Ouviu, sua
besta?
Gosta de todos aquêles olhares fixos nêle. Tira o chapéu. Passa a mão pela cabeleira
leonina. Enche as bochechas e dá um sôpro comprido. Paga a passagem com dez mil réis. Exige
o trôco imediatamente.
107
A maciça presença do imigrante na sociedade paulista do início do século gerou as mais diversas reações.
Da interação, da troca, passando pela integração forçada até as tentativas de anulação dos aspectos significativos das
culturas estrangeiras pela cultura local, vários foram os episódios envolvendo o “de fora” e o “do lugar”. Em
acontecimentos excepcionais como greves, manifestações, revoltas, revoluções e no caso extremo da Grande Guerra,
a desconfiança e a perseguição ao imigrante tornavam-se mais agudas. A violenta repressão da greve de 1917, que
paralisou São Paulo, de fato basicamente organizada pelos anarquistas italianos e espanhóis, e os constantes
bombardeios aos bairros operários pelas tropas governamentais durante a revolução de 1924 são exemplos cristalinos
dessa perseguição. Afora os momentos de crise, no próprio dia-a-dia verificava-se uma latente ou explícita aversão
ao imigrante, tanto pobre quanto rico. Sobre essas reações xenófobas discorre Nicolau Sevecenko: De um lado havia
a ascensão irrefreável de membros das colônias estrangeiras, envolvidos principalmente com indústrias e comércio
de gêneros básicos, cuja solidez, confiabilidade e tendência ao predomínio eram monitoradas pelo consulado inglês
na cidade, aconselhando as autoridades e súditos da coroa britânica a orientarem para esses elementos seus
capitais, sociedades e interesses. Do outro lado havia a massa dos proletários, eternamente inconformados com as
extensas jornadas de trabalho, a insuficiência dos salários e a precariedade de suas condições de vida, excitados
por pregações radicais, em estado de guerra ingente. Era sob esse clima que se formulava a chamada “Reação
Nacionalista” em São Paulo, e um de seus líderes, o dr. Sampaio Dória, em discurso de campanha, alertava: Os
brasileiros estão ameaçados de passar, por imprudência, de senhores da terra a colonos dos estrangeiros, que
vencem.” Um outro publicista, Bruno Ferraz do Amaral, clamando quanto à demora de uma reação, se perguntava
alarmado: De fato, quando frutificar o nacionalismo, que restará brasileiro em São Paulo? Capitais,
estrangeiros; indústria dita nacional, estrangeira; colonos, estrangeiros; fazendeiros, estrangeiros; proprietários,
estrangeiros...”. (...) A prática do estímulo à imigração maciça era um mecanismo de estabilização das tensões e
achatamento dos salários, dominada desde muito cedo pelos dirigentes e cafeicultores paulistas. Na tentativa de
defender seus interesses e fazer valer seus direitos, líderes operários, representantes comunitários e autoridades do
consulado italiano procuravam deter ou restringir ao máximo a vinda de seus conterrâneos ao Brasil. Diante das
drásticas condições locais, muitos imigrantes viam espontaneamente na evasão uma das poucas alternativas
eficazes de protesto que ainda lhes restavam. Dos mais de 1 milhão de imigrantes introduzidos no estado de São
Paulo no curto período de 1884 a 1914, cerca da metade deixaria o país em busca de outro e melhor destino. De
forma que, quando em meio à aguda dificuldade de obtenção de trabalhadores estrangeiros, em inícios de 1922, La
Fanfulla se posicionou contra a imigração, comparando o tratamento dado aos imigrantes àquele antes reservado
aos escravos negros, a reação foi explosiva. Fundou-se no mesmo instante a Liga Defensiva Brasileira, encabeçada
por uma lista com os nomes dos duzentos maiores fazendeiros de São Paulo, com uma ameaça aberta “aos
indesejáveis e ao jornal italiano Fanfulla, que tomarão severas medidas (...) se o mesmo continuar as repelentes
infâmias de pasquineiro ignóbil contra nós e nossa terra...”. Sevecenko, Orfeu extático na metrópole, São Paulo
sociedade e cultura nos frementes anos 20, pp.138-140.
88
Não quero saber de conversa, seu galego. Passe já o trôco. E dinheiro limpo,
entendeu? Bom.
Retem o condutor com um gesto e verifica sossegadamente o trôco.
O quê? Retrato de Artur Bernardes? Deus me livre e guarde! Arranje outra nota.
Levanta-se para dar um geito na cinta, chupa o cigarro (Sudan Ovais por causa dos
cheques), examina todos os bancos, vira que vira, começa:
Isto até parece serviço do governo!
Pausa. Sacudidela na cabeleira leonina. Conclue:
O que vale é que os homens um dia voltam...
Primeiro sorriso aparentemente sibilino. Passeio da mão direita na barba escanhoada.
Será espinha? Tira o espelhinho do bolso. É espinha sim. Porcaria. Segundo sorriso mais ou
menos sibilino. Cara de nojo.
Não sei que raio de cheiro tem êste largo do Arouche, safa!
Vira a aliança no seu-vizinho. Essa operação deixa-o meditabundo por uns instantes.
Finca o olhar de sobrancelhas unidas no cavalheiro da esquerda. Esperando. O cavalheiro
afinal percebe a insistência. É agora:
Perdão. O senhor leu a última tabela do Matadouro? Viu o preço da carne de leitão
por exemplo? Cinco ou seis ou não sei quantos mil réis o quilo!
Não espera resposta. Não precisa de resposta. Berra no ouvido do velho da direita:
É como estou lhe contando: o quilo!
Quási despenca do bonde para ver uma costureirinha na rua do Arouche. As pernas
magras encolhem-se assustadas.
O cavalheiro queira ter a bondade de me desculpar. São os malditos solavancos desta
geringonça. Um dia cai aos pedaços.
Dá um tabefe no queixo mas que dê mosca? Tira um palito do bolso, raspa o primeiro
molar superior direito (se duvidarem muito é fibra de manga), olha a ponta do palito, chupa o
dente com a ponta da ngua (tó! tó!), um a um percorre os anúncios do bonde. Ritmando a
leitura com a cabeça. Aplicadamente. Raio de italiano para falar alto. Falta de educação é
cousa que a gente percebe logo. Não tem que ver. O do ODOL já leu. Estava começando o da
CASA VENCEDORA. Isso de preço do custo só engana os trouxas.
Ó estupidez! O senhor já reparou naquêle anúncio ali? Bem em cima da mulher de
chapéu verde. CONCERTA-SE QUINAS DE ESCREVER. ConcerTA-SE máquinaSSS!
Fan-tás-tico! Eu não pretendo por duzentos réis condução e ainda por cima trechos selectos de
Camilo ou outro qualquer autor de pêso, é verdade... Mas enfim...
É preciso um fêcho erudito e interessante ao mesmo tempo.
Mas enfim...
A mão procura inutilmente no ar dando voltinhas.
Mas enfim... seu Serafin...
89
Fica nisso mesmo. Acerta o cebolão com o relógio do largo Municipal. Esfrega as mãos.
O guarda-chuva cai. Ergue-o sem geito. Enfia a cartolinha lutando com as melenas. Previne os
vizinhos:
Êste viaduto é uma fábrica de constipações. De constipações só? De pneumonias
mesmo. Duplas!
Silêncio. Mas eloquente. Palito de fósforo é bom para limpar o ouvido. Descobre-se
deante da Igreja de Santo António.
Não está vendo, seu animal, que a mulher não se sentou ainda? Aprenda a tratar
melhor os passageiros! Tenha educação!
Cumprimenta rasgadamente o doutor Indalécio Filho, sub-inspector das bombas de
gasolina, que passa no seu Marmon oficial e não vê. Depois anota apressadamente o número do
automóvel no verso de uma cautela do Monte de Socôrro do Estado.
O povo que sue para pagar o luxo dos afilhados do governo! Aproveite, pessoal! Vá
mamando no Tesouro enquanto o povo não se levanta e manda vocês todos... nada! Mas isto
um dia acaba.
Terceiro sorriso nada sibilino. Passa para a ponta. Confirma para os escritórios da
I.R.F. Matarazzo:
Ora se acaba!
108
Ao final da viagem descobrimos que o senhor Robespierre é um funcionário
do governo que tanto critica:
Outro cigarro. Apalpa todos os bolsos. Acende-o no do vizinho. E dá de limpar as unhas
com o canivete de madrepérola. Na esquina da rua Anchieta por pouco não arrebenta o cordão
da campainha. Estende a dextra espalmada para o companheiro de viajem:
Natanael Robespierre dos Anjos, um seu criado.
Desce no largo do Tesouro. Faz a sua fezinha no CHALET PRESIDENCIAL
(centenas invertidas). Atravessa de guarda-chuva feito espingarda no largo do Palácio.
E todos os dias úteis ás onze horas menos cinco minutos entra com o pé direito na
Secretaria dos Negócios de Agricultura e Comércio onde há vinte e dois anos ajuda a
administrar o Estado (essa nação dentro da nação) com as suas luzes de terceiro escriturário por
concurso não falando na carta de um republicano histórico.
109
Retornando ao tema da velocidade como signo do moderno, temos o conto
O patriota Washington (Doutor Washington Coelho Penteado)
110
. Nele o
108
Id., ibid., pp.11-5.
109
Machado, Laranja da China, pp.15-6.
110
Id., ibid., pp.17-30.
90
protagonista e sua família comemoram os trinta e oito anos da República com um
passeio até a longínqua Mogi das Cruzes. A odisséia, marcadamente nacionalista,
é de uma ufania risível (outra característica do escritor é explorar o ridículo do
comportamento humano) e começa logo pela manhã:
Muitíssimo bem. Agora segue de Chevrolet aberto para Mogi das Cruzes. Algum dia no
mundo já se viu uma manhã tão linda assim?
Eta Brasil.
Eta.
Na lapela uma bandeirinha nacional. Conservada ali desde a entrada do Brasil na
grande conflagração. Ou bem que somos ou bem que não somos. O doutor é de facto: brasileiro
graças a Deus. Onde desejava nascer? No Brasil está claro.
111
Antes de sair da cidade é necessário uma passada pelo centro onde mesmo
nos feriados a multidão se concentra:
O capitão Melo me afirmou que não há parque europeu que se compare com êste do
Anhangabaú.
Exagêro...
vem você com a sua eterna mania de avacalhar o que é nosso! Pois fique
sabendo...
Fique sabendo, dona Balbina. Fique a senhora sabendo que o que é nosso é nosso. E vale
muito. E vale mais que tudo. Vá escutando. Vá escutando em silêncio. E convença-se de uma
vez para não dizer mais bobagens.
Veja o movimento. E hoje é feriado, heim! Não se esqueça! Paris que é Paris não tem
movimento igual. Nem parecido.
Você nunca foi a Paris...
Isso tambêm é demais. O melhor é não responder. Homem: o melhor é estourar.
Meu Deus do céu! Não fui mas sei! Toda a gente sabe! Os próprios franceses
confessam! Mas você já sabe: é a única pessoa no mundo que não reconhece nada, não sabe
nada!
Guiados pelo fura-bolos do doutor todos os olhares se fixam na catedral em começo.
Vai ser a maior do mundo! E gótica, compreenderam? Catedral gótica!
Na cabeça.
112
111
Id., ibid., pp.19-20.
112
Id., ibid., pp.21-2.
91
Descem a ladeira do Carmo, passam pelo parque D. Pedro II e atravessam o
Brás, bairro operário e de imigrantes. Não há elogios reservados a esse bairro,
acostumado a reproduzir falas estereotipadas, nosso personagem não diz nada
porque não tem nada mesmo de original a dizer:
O vento desvia as palavras do doutor dos ouvidos da família. O Chevrolet não respeita
bonde nem nada. Pomba só levanta o vôo quando o automóvel parece que já está em cima dela.
Êste Brás! Êste Brás! Não lhes digo nada!
Dez fósforos para acender um cigarro.
113
A viagem (em velocidade vertiginosa!) continua repleta de indicadores do
desenvolvimento inexorável da cidade, até nos seus arrabaldes:
Dona Balbina olha a paineira. Mesma cousa que não olhasse. Juquinha vê um negócio
verde. Washington nior um negócio alto. O doutor mais uma prova da punjança primeira-do-
mundo da natureza pátria.
Interjeição admirativa. Depois:
Reparem só no quantidade de automóveis. Dez desde São Miguel! E nenhum carro
de boi!
60 por hora.
O Chevrolet perde-se na poeira. Dona Balbina se queixa. Juquinha coça os olhos.
Pó quer dizer progresso!
Palavras assim são ditas para gente saborear baixinho repetindo muitas vezes. Pó quer
dizer progresso. Logo surge uma variante: Pó, meus senhores, quer dizer tão simplesmente
progresso. (...)
Velocidade.
O Brasil é um gigante que se levanta.
Dentro em breve...
Era uma vez um pneumático.
114
Localizado o Leprosário de Santo Ângelo, inicia-se um longo discurso sobre
a ação do governo visando à erradicação da morféia, o mal de Hansen:
(...) Amanhã não haverá mais leprosos no Brasil. Por enquanto ainda há mas isso de ter
morfea não é privilégio brasileiro. Não pensem não. O mundo inteiro tem. A Argentina então
113
Id., ibid., p.23.
114
Id., ibid., pp.23-5.
92
nem se fala. Morfético até debaixo dágua. E não cuida seriamente do problema não. Está se
desleixando. É. Está. Daqui a pouco não há mais brasileiro morfético. Só argentino. Povo
muito antipático. Invejoso, meu Deus. Não se meta que se arrepende. Em dois tempo... Bom.
Bom. Bom. Silêncio que a espionagem é brava.
115
Em Mogi, uma parada na confeitaria e um refresco. Depois ver a igreja e
admirar o progresso local. Na volta para São Paulo, o doutor tem a idéia de
telegrafar ao Presidente da República, relatando, entre os efusivos cumprimentos
pela data especial, que a viagem entre a capital e a adeantada cidade foi realizada em
uma hora e dezessete minutos, em magnífica rodovia. Os inúmeros buracos não são,
evidentemente, citados.
No meio da volta o doutor de repente fica amuado até chegar em casa, e só
lá ficamos sabendo do motivo:
Esqueci-me de pôr o endereço para a resposta!...
I-DI-O-TA!
Olhem só o gôzo das crianças.
116
Os bondes
117
não somente transportavam as pessoas para seus trabalhos, mas
também para o lazer. No conto Corinthians (2) vs. Palestra (1)
118
são eles que
levam e trazem os torcedores de futebol e se transformam em extensão das
arquibancadas, onde as torcidas, vencedora e derrotada, continuam com seus gritos
de guerra e provocação. Esse conto será analisado no próximo tópico: a multidão.
A possibilidade de vencer as mesmas distâncias em intervalo de tempo
menor justifica o recurso da velocidade.
Com as máquinas, o automóvel em especial, o homem potencializou sua
capacidade inata de deslocamento e modificou sua relação com o espaço
percorrido. Através da velocidade o longe torna-se perto, o demorado torna-se
imediato e o concreto torna-se fantasmagórico. Essa experiência de
instantaneidade e dissolução dos elementos constituintes de um lugar, de uma
paisagem é tipicamente moderna e irá compor o próprio conceito de arte moderna.
António de Alcântara para registrar o dinamismo não só do novo fluxo das
ruas, dos automóveis, dos bondes e das pessoas, mas também das próprias relações
115
Id., ibid., pp.25-6.
116
Id., ibid., p.30.
117
Considero emblemático o fato dos primeiros bondes elétricos terem iniciado suas operações na capital
em 7 de maio de 1900. A chegada do novo século trouxe consigo um meio de transporte rápido, adequado àquela, na
época, definida por muitos jornais como “a cidade que mais cresce no mundo”.
118
Machado, Brás, Bexiga e Barra Funda, notícias de São Paulo, pp.87-98.
93
pessoais e da fala das ruas, desenvolveu um estilo apropriado: buliçoso, saltitante e
de extrema vivacidade, que é a tradução literária da nova movimentação e do caos
urbano que começa a se instalar. As frases curtas, a constante utilização de verbos
que indicam ação, deslocamento, as onomatopéias que reproduzem sons das novas
máquinas, a colagem de imagens são recursos dos quais lançou mão o autor para
capturar a rapidez das transformações em curso.
A MULTIDÃO
A multidão é um dos fenômenos mais significativos da modernidade.
119
A
São Paulo do início do século também tem suas ruas tomadas pela turba. Com o
desenvolvimento econômico, com a restruturação urbana, a população se adensa,
homens e mulheres se concentram em um mesmo espaço, a multidão se forma.
120
António de Alcântara percebe a importância dessa movimentação, desse
deslocamento maciço de pessoas como um fato novo, representativo do momento
histórico. Em seu conto Corinthians (2) vs Palestra (1), a multidão se condensa no
estádio do time da colônia italiana para assistir a disputa entre os dois grandes
rivais.
121
O futebol já aparece como o esporte instigador de energias irracionais.
119
Na Londres e Paris da segunda metade do século passado, esse aspecto da modernidade fascina a
escritores, poetas e pintores. Alguns contos de Edgard Allan Poe são referências obrigatórias sobre o tema da
multidão, em especial L’homme des foules. Assim como alguns poemas de Baudelaire, em especial A une passante.
Walter Benjamin, no seu clássico ensaio sobre o flâneur, escreveu: Baudelaire amava a solidão; mas ele a queria
bem no meio da multidão. Nesse estudo o filósofo alemão contrapõe os escritos de Baudelaire, Poe e Victor Hugo
criando um interessante quadro sobre a relação multidão versus indivíduo. Não conheço texto mais belo sobre o
assunto. Ver Flávio R. Kothe, “Walter Benjamin” in Coleção Grandes Cientistas Sociais, nº 50, pp.65-72.
120
A população da capital paulista entre o último quarto do século passado e as primeiras quatro décadas
deste, cresceu extraordinariamente. Em 1872, a cidade tinha 31.385 habitantes; em 1890, 64.934; em 1900, 239.820;
em 1920, 579.033 e em 1940 chegou a 1.326.261. Logo entre 1872 e 1920 (início da década que interessa
especialmente a este estudo) a população aumentou 18 vezes (!) O equilíbrio entre os sexos sempre foi constante: em
1872, 15.728 eram homens e 15.657, mulheres; em 1920, 294.007, homens e 285.026, mulheres. No início da década
de quarenta a população feminina ultrapassou a masculina: homens, 655.673; mulheres, 670.588. Outro dado
interessante: em 1872, da população total, 28.926 eram brasileiros natos e somente 2.459, estrangeiros, ou seja 7,8%;
em 1920, 372.376 eram brasileiros e 206.657, estrangeiros, que representavam 35,7% da população total. Fonte:
Censo Demográfico de de IX de 1940, série regional, parte XVII, São Paulo, tomo 2. Com mais de 1/3 da
população de imigrantes fazem sentido as campanhas de resgate da brasilidade detonadas pelas classes dirigentes,
políticos e intelectuais. A busca de um “Brasil autêntico”, a incitação ao nacionalismo no combate ao que era
importado foram questões presentes, em maior ou menor grau, nas diversas correntes do próprio movimento
modernista.
121
A primeira partida de futebol foi disputada em São Paulo em 14 de abril de 1895, por iniciativa do
inglês Charles Miller que um ano antes desembarcara no Brasil com duas bolas, dois uniformes, uma bomba e um
enfiador, além de grande entusiasmo pelo esporte bretão. Ao chegar ao campo de jôgo, o primeiro trabalho dos
participantes à partida foi enxotar os animais que ali estavam pastando. Em seguida se alinharam os quadros do
“The Team do Gaz”, integrado por empregados daquela companhia e “The S. P. Railway Team” constituído de
funcionários desta emprêsa. Venceu por 4 a 2 o quadro do S. P. R. e pouco depois o futebol era oficialmente
incorporado às atividades do club inglês São Paulo Athletic”. Mais tarde, outro quadro se formava entre os
94
Acompanhemos o dinamismo da partida e as reações da massa de
torcedores:
Prrrrii!
Aí, Heitor!
A bola foi parar na extrema esquerda. Melle desembestou com ela.
A arquibancada pôs-se em pé. Conteve a respiração. Suspirou:
Aaaah!
Miquelina cravava as unhas no braço gordo da Iolanda. Em torno do trapésio verde a
ânsia de vinte mil pessoas. De olhos ávidos. De nervos elétricos. De preto. De branco. De azul.
De vermelho.
Delírio futebolístico no Parque Antártica.
Camisas verdes e calções negros corriam, pulavam, chocavam-se, embaralhavam-se,
caíam, contorcionavam-se, esfalfavam-se, brigavam. Por causa da bola de couro amarelo que
não parava, que não parava um minuto, um segundo. Não parava.
Neco! Neco!
Parecia um louco. Driblou. Escorregou. Driblou. Correu. Parou. Chutou.
Gooool! Gooool!
Miquelina ficou abobada com o olhar parado. Arquejando. Achando aquilo um desafôro,
um absurdo.
Alegoá-goá-goá! Alegoá-goá-goá! Urrá-urrá! Corinthians!
alunos do “Mackenzie College e aquele esporte começa a atrair as atenções populares. As várzeas foram se
povoando de jogadores e começou-se a realizar encontros internacionais com times inglêses , uruguaios, argentinos
e até sudafricanos. Foi em 1914, que apareceram os primeiros jogadores provenientes da Itália, a esquadra do
“Torino F. B. C.” que no campo do Parque Antártica, então pertencente ao S. C. Germânia, ganhou de uma seleção
formada por jogadores da Liga Paulista de Foot-Ball. Pode-se afirmar com segurança que esta e outras vitórias
conquistadas pelos jogadores grenás do “Torino” despertaram o entusiasmo da numerosa coletividade italiana por
um esporte que muitos italianos já praticavam com sucesso, em clubes locais. A idéia de fundar uma sociedade de
nome italiano e com jogadores italianos, ao lado das outras sociedades de caráter patriótico, assistencial ou
cultural, tomou vulto. Num primeiro tempo tinha-se pensado em criar uma secção de futebol no Club Espéria que
contava, além de uma ótima sede, com terrenos apropriados, mas, não sendo possível chegar a um acôrdo, certo dia
(pela história: 13 de agôsto de 1914), Vicente Ragognetti enviava ao “Fanfulla uma carta em que pedia
hospitalidade para expor o desejo de conhecidos jogadores de futebol italianos, de fundar um clube de
peninsulares, ao lado dos já existentes, sociedades alemães, inglêsas, portuguêsas e nacionais. Cinco dias depois, o
mesmo jornal publicava o comunicado da formação de uma sociedade que se chamaria “Palestra Itália” e que,
além de uma secção esportiva e de um time de futebol formado exclusivamente por italianos, contaria também com
uma secção filodramática e recreativa. Na noite de de setembro, no Salão Alhambra da praça Marechal
Deodoro, 37 pessoas, em sua maioria estudantes e comerciários, se reuniam sob a presidência de Ezequiel Simoni,
para concretizar o grande sonho. (...) A estréia dos “palestrinos” foi contra o “S. C. Savóia”, de Sorocaba, e
constituiu a primeira de uma série de gloriosas vitórias. O craque alvi-verde que sacodiu as rêdes adversárias com
o primeiro “penalty” foi certo Bianco, que se tornou imortal na história do clube. (...) Por fôrça das circunstâncias
decorrentes da segunda guerra mundial, o nome da sociedade foi mudado em “Palmeiras”, mas em ocasião de sua
visita ao Brasil, o presidente Gronchi descobriu a targa que dava a seu majestoso estádio o nome tradicional do
grêmio: “Palestra Itália”. Os 37 que fundaram, hoje são algumas dezenas de milhares em cujas veias corre, em
grande parte, sangue italiano. Cenni, Italianos no Brasil, pp.242-3.
95
Palhetas subiram no ar. Com os gritos. Entusiasmos rugiam. Pulavam. Dançavam. E as
mãos batendo nas bôcas:
Go-o-o-o-o-o-ol!
Miquelina fechou os olhos de ódio.
Corinthians! Corinthians!
Tapou os ouvidos.
Já me estou deixando ficar com raiva!
A exaltação decresceu como um trovão.
122
Intervalo. A descrição simultânea das cenas demonstra a percepção visual
aguda do autor:
O campo ficou vazio.
O...lha gasosa!
Moças comiam amendoim torrado sentadas nas capotas dos automóveis. A sombra
avançava no gramado maltratado. Mulatas de vestidos azues ganhavam beliscões. E riam.
Torcedores discutiam com gestos.
O...lha gasosa!
Um aeroplano passeou sôbre o campo.
Miquelina mandou pelo irmão um recado ao Rocco.
Diga pra êle quebrar o Biagio que é o perigo do Corinthians.
Filipino mergulhou na multidão.
123
A multidão se agita para além dos limites preestabelecidos. A polícia está de
prontidão:
Palmas saudaram os jogadores de cabelos molhados.
Prrrrii!
O Rocco disse pra você ficar sossegada.
Amilcar deu uma cabeçada. A bola foi bater em Tedesco que saiu correndo com ela. E a
linha toda avançou.
Costura, macacada!
Mas o juiz marcou um impedimento.
Vendido! Bandido! Assassino!
Turumbamba na arquibancada. O refle do sargento subiu a escada.
Não pode! Põe pra fora! Não pode!
Turumbamba na geral. A cavalaria movimentou-se.
122
Machado, Brás, Bexiga e Barra Funda, notícias de São Paulo, pp.89-90.
123
Id., ibid., pp.92-3.
96
Miquelina teve medo. O sargento prendeu o palestrino. Miquelina protestou baixinho:
Nem torcer a gente pode mais! Nunca vi!
124
Empate. A tensão aumenta, o final do jogo se aproxima. Então, para os
palestrinos, a catástrofe:
Quantos minutos ainda?
Oito.
Biagio alcançou a bola. Aí, Biagio! Foi levando, foi levando. Assim Biagio! Driblou
um. Isso! Fugiu de outro. Isso! Avançava para a vitória. Salame nêle, Biagio! Arremeteu.
Chute agora! Parou. Disparou. Parou. Aí! Reparou. Exitou. Biagio! Biagio! Calculou. Agora!
Preparou-se. Olha o Rocco! É agora. ! Olha o Rocco! Caiu.
CA-VA-LO!
Prrrrii!
Penalti!
Miquelina pôs a mão no coração. Depois fechou os olhos. Depois perguntou:
Quem é que vai bater, Iolanda?
O Biagio mesmo.
Desgraçado.
O medo fez silêncio.
Prrrrii!
Pan!
Go-o-o-o-ol! Corinthians!
Quantos minutos ainda?
Pri-pri-pri!
—Acabou, Nossa Senhora!
Acabou.
125
Fim de jogo a multidão se esparrama pelo campo e pelas ruas; a massa se
dissolve. Os torcedores retornam às suas casas:
As arvores da geral derrubaram gente.
Abra porteira! Rá! Fecha porteira! Prá!
O entusiasmo invadiu o campo e levantou o Biagio nos braços.
Solto rojão! Fiú! Rebenta bomba! Pum! CORINTHIANS!
124
Id., ibid., pp.93-4.
125
Id., ibid., 94-6.
97
O ruido dos automoveis festejava a vitória. O campo foi-se esvaziando como um tanque.
Miquelina murchou dentro de sua tristeza.
Que é que é? É jacaré? Não é! Miquelina nem sentia os empurrões.
Que é - que é? É tubarão? Não é! Miquelina não sentia nada.
Então que é? CORINTHIANS!
Miquelina não vivia.
Na avenida Agua-Branca os bondes formando cordão esperavam campainhando o zé-
pereira.
Aqui, Miquelina.
Os três espremeram-se no banco onde já havia tres. E gente no estribo. E gente na
coberta. E gente nas plataformas. E gente do lado da entrevia.
A alegria dos vitoriosos demandou a cidade. Berrando, assobiando e cantando. O
mulato com a mão no guindaste é quem puchava a ladainha:
O Palestra levou na testa!
E o pessoal entoava:
Ora pro nobis!
Ao lado de Miquelina o gordo de lenço no pescoço desabafou:
Tudo culpa daquela besta do Rocco!
Ouviu, não é Miquelina? Você ouviu?
Não liga pra êsses trouxas, Miquelina.
Como não liga?
O Palestra levou na testa!
Cretinos!
Ora pro nobis!
Só a tiro.
126
Em O Mártir Jesus (Senhor Crispiniano B. de Jesus)
127
o protagonista é
convencido por sua esposa, Dona Sinhara, a levar a família para acompanhar o
corso que seguia pela rua Vergueiro. Com isso a mãe procura dissuadir as filhas da
idéia de participarem do carnaval no Brás:
As meninas iam fazer o corso no automóvel das odaliscas. Idea do Mário Zanetti
pequeno da Fifi e primogênito louro do seu Nicola da farmácia onde Crispiniano já tinha duas
contas atrasadas (varizes da Sinhara e estômago do Aristides).
Dona Sinhara veiu logo com uma das suas:
No Brás eu não admito que vocês vão.
126
Id., ibid., pp.97-8.
127
Machado, Laranja da China, pp.83-96.
98
Que é que tem demais? No carnaval tudo é permitido...
Ah! é? Eta falta de vergonha, minha Nossa Senhora!
Maria José (segunda secretária da Congregação das Virgens de Maria da paróquia)
arriscou uma piada pronominal:
Minha ou nossa?
Não seja cretina!
Jogou a fantasia no chão e foi para outra sala soluçando.
Totónio gozou esmurrando o teclado.
(...).
Auxiliado pela Elvira o Totónio tanta malcriação fêz, abrindo a bôca, pulando, batendo
o pé, que convenceu dona Sinhara.
Crispiniano, não há outro remédio mesmo: vamos dar uma volta com as crianças.
Nem que me paguem!
O Totónio fantasiado de caçador de esmeraldas (sugestão nacionalista do doutor
Andrade que se formara em Coimbra) e a Elvira de rosa-chá ameaçaram pôr a casa abaixo.
Desataram num chôro sentido quebrando a resistência comodista (pijama de linho gostoso) de
Crispiniano.
Está bem. Não é preciso chorar mais. Vamos embora. Mas só até o largo do
Paraiso.
128
A multidão agora tem a alegria das festas. O colorido da cena é captado pelo
autor:
Na rua Vergueiro Elvira de ventarola japonesa na mão quiz ir para os braços do pai.
Faça a vontade da menina, Crispiniano.
Domingo carnavalesco. Serpentinas nos fios da Light. Negras de confeti na carapinha
bisnagando carpinteiros portugueses no ôlho. O único alegre era o gordo vestido de mulher.
Pernas dependuradas da capota dos automóveis de escapamento aberto. Italianinhas de braço
dado com a irmã casada atrás. O sorriso agradecido das meninas feias bisnagadas. Fileira de
bondes vasios. Isso é que é alegria? Carnaval paulista.
Crispiniano amaldiçoava tudo. Uma esguichada de lança-perfume dentro do ouvido
direito deixou o Totónio desesperado.
Vamos voltar, Sinhara?
Não. Deixe as crianças se divertirem mais um bocadinho só.
Elvira quiz ir para o chão. Foi. Grupos parados diziam besteiras. Crispiniano com o
tranco do toureiro quási caiu de quatro. E a bisnaga do Totónio estourou no seu bolso.
Crispiniano ficou fulo. Totónio abriu a bôca. Elvira sumiu.
Procura que procura. Procura que procura.
128
Id., ibid., pp.88-9 e 90-1.
99
Tem uma menina chorando ali adeante.
Sob o chorão a chorona.
O negrinho tirou a minha ventarola.
Voltaram para casa chispando.
129
A multidão não somente está nas ruas, como indica a admiração do senhor
Washington, ao vê-la ocupando o centro em pleno feriado (O patriota
Washington), ou como indica o burburinho nas saídas das costureirinhas das
oficinas na rua Barão de Itapetininga (Carmela) onde não podendo mais ocupar o
passeio público, transborda da calçada e se esparrama pelas ruas, dividindo o
espaço com o automóvel e criando momentos de tensão e perigo. A multidão
também pode estar espremida, condensada em lugares fechados, comprimida em
espaços pequenos como indica a descrição dos bondes que passam pelo ponto
onde se encontra o sr. Platão (O filósofo Platão).
Em outros dois contos de António de Alcântara, a multidão aparece assim
configurada. Estes contos, publicados em livro somente após a sua morte, flagram
a multidão em outras cidades. O crescimento contínuo da população não era um
fenômeno verificado somente na capital paulista. Em Miss Corisco,
130
a multidão
ocupa o cine-teatro de Paraíba do Sul:
O Cine-Teatro Esmeralda estourava de tão cheio. No palco atrás do júri a Corporação
Musical C. Gomes-G. Puccini tocava dobrados. De minuto em minuto a assistência
entusiasmada erguia vivas ao Brasil e á raça. As candidatas desfilaram vestidas com apurado
gôsto. Os juízes eram cinco: um brasileiro, dois italianos, um filho de italiano e um português.
Predominava nêles o espírito nacionalista. Queriam escolher um tipo bem brasileiro. O doutor
Noé Cavalheiro desenhou em dois traços incisivos o tipo-padrão: bôca grande e olhos ternos.
Miss Corisco foi eleita Miss Paraíba do Sul por quatro votos.
Ouviu então o primeiro discurso que foi proferido com emoção que lhe embargava a voz
e lenço de seda na mão, pelo doutor Noé Cavalheiro, segundo promotor público. Principiou êste
fazendo o elogio da beleza notadamente da beleza feminina. Falou do culto que na antiga
Grécia se votava á formosura sica. Acentuou depois a desvantagem de uma mens sana desde
que não seja num corpore sano. Disse que a beleza da mulher se tem provocado guerras e
catástrofes tem tambêm mais de uma vez contribuido para o progresso geral dos povos, citando
vários exemplos históricos. Prosseguiu afirmando que o Brasil deveu muito do amor que lhe
dedicou d. Pedro I á influência benéfica da marquesa de Santos. Referiu-se á competência do
júri, á sua isenção de ânimo e confessou que a única nota dissonante tinha sido êle orador, o que
provocou os protestos unânimes da assistência. Perorando entoou um hino inflamado á
129
Id., ibid., pp.91-2.
130
Machado, Mana Maria, pp.177-188.
100
peregrina formosura de Miss Corisco. Disse então: Unindo á beleza clássica da Venus de Milo
a sedução estonteante da lendária rainha de Ninive, Miss Paraíba do Sul, maior do que Beatriz
e mais feliz do que Natércia, conquistou o coração de toda uma região! A Pátria não é sómente,
como soem pensar certos espíritos embuídos de materialismo, ou a lei que garante a propriedade
privada! A Pátria é mais alguma cousa, alguma cousa de sublime e divino! A Pátria é a estrela
que nos contempla do céu e a mulher que nos santifica o lar! A Pátria sois vós, Miss Paraíba do
Sul, são os vossos olhos onde se espelham todas as fôrças viris da nacionalidade! Para nós,
patriotas conscientes e eternos enamorados da Beleza, Miss Paraíba do Sul é neste momento o
Brasil! (Aplausos prolongados. O orador é vivamente cumprimentado. Vozes sinceras gritam:
Bis! Bis!).
131
Mas é no conto Apólogo brasileiro sem véu de alegoria que a multidão, a
turba ignara, ocupante do trem que segue de Magoarí até Belém, explodirá. O motivo
da revolta será a falta de luz nos vagões que transportam os trabalhadores do
matadouro. O líder do motim é surpreendentemente um cego politizado, que tem a
consciência/luz que a falta da luz/eletricidade é uma afronta aos direitos dos
usuários daquele transporte e um desrespeito ao progresso da humanidade. Essa
situação do cego que exige a luz para todos provoca uma série de diálogos non-
sens, deliciosos.
O conto merece ser transcrito na sua íntegra:
O trenzinho recebeu em Magoarí o pessoal do matadouro e tocou para Belém. era
noite. Só se sentia o cheiro doce do sangue. As manchas na roupa dos passageiros ninguem via
porque não havia luz. De vez em quando passava uma fagulha que a chaminé da locomotiva
botava. E os vagões no escuro.
Trem misterioso. Noite fóra noite dentro. O chefe vinha recolher os bilhetes de cigarro na
bôca. Chegava a passagem bem perto da ponta acesa e dava uma chupada para fazer mais luz.
Via mal e mal a data e ia guardando no bolso. Havia sempre uns que gritavam:
Vá pisar no inferno!
Êle pedia perdão (ou não pedia) e continuava seu caminho. Os vagões sacolejando.
O trenzinho seguia danado para Belém porque o maquinista não tinha jantado até
aquela hora. Os que não dormiam aproveitando a escuridão conversavam e até gesticulavam por
fôrça do habito brasileiro. Ou então cantavam, assobiavam. Só as mulheres se encolhiam com
mêdo de algum desrespeito.
Noite sem lua nem nada. Os fósforos é que alumiavam um instante as caras cansadas e
a pretidão feia caía de novo. Ninguêm estranhava. Era assim mesmo todos os dias. O pessoasl
(sic) do matadouro já estava acostumado. Parecia trem de carga o trem de Magoarí.
_______________
131
Id. Ibid.,181-2.
101
Porêm aconteceu que no dia 6 de maio viajava no penúltimo banco do lado direito do
segundo vagão um cego de óculos azuis. Cego baiano das margens do Verde de Baixo. Flautista
de profissão dera um concêrto em Bragança. Parára em Magoarí. Voltava para Belém com
setenta e quatrocento no bolso. O taioca guia dêle só dava uma folga no bocejo para cuspir.
Baiano velho estava contente. Primeiro deu uma cotovelada no secretário e puxou
conversa. Puxou á toa porque não veiu nada. Então principiou a assobiar. Assobiou uma valsa
(dessas que vão subindo, vão subindo e depois descendo, vêm descendo), uma polca, um pedaço
do Trovador. Ficou quieto uns tempos. De repente deu uma cousa nêle. Perguntou para o
rapaz:
O jornal não dá nada sôbre a sucessão presidencial?
O rapaz respondeu:
Não sei: nós estamos no escuro.
No escuro?
É.
Ficou matutando calado. Clarissimo que não compreendia bem. Perguntou de novo:
Não tem luz?
Bocejo.
Não tem.
Cuspada.
Matutou mais um pouco. Perguntou de novo:
O vagão está no escuro?
Está.
De tanta indignação bateu com o porrete no soalho. E principiou a gritar dêle assim:
Não pode ser! Estrada relaxada! Que é que faz que não acende? Não se pode viver
sem luz! A luz é necessária! A luz é o maior dom da natureza! Luz! Luz! Luz!
E a luz não foi feita. Continuou berrando:
Luz! Luz! Luz!
Só a escuridão respondia.
Baiano velho estava fulo. Urrava. Vozes perguntaram dentro da noite:
Que é que há?
Baiano velho trovejou:
Não tem luz!
Vozes concordaram:
Pois não tem mesmo.
*
Foi preciso explicar que era um desafôro. Homem não é bicho. Viver nas trevas é cuspir
no progresso da humanidade. Depois a gente tem a obrigação de reagir contra os exploradores
102
do povo. No preço da passagem está incluida a luz. O govêrno não toma providências? Não
toma? A turba ignara fará valer seus direitos sem êle. Contra êle se necessário. Brasileiro é bom,
é amigo da paz. É tudo quanto quizerem: mas bobo não. Chega um dia e a cousa pega fogo.
Todos gritavam discutindo com calor e palavrões. Um mulato propôs que se matasse o
chefe do trem. Mas João Virgulino lembrou:
Êle é pobre como a gente.
Outro sugeriu uma grande passeata em Belém com banda de musica e discursos.
Foguetes tambêm?
Foguetes tambêm.
Be-le-za!
Mas João Virgulino observou:
Isso custa dinheiro.
Que é que se vai fazer então? Ninguem sabia. Isto é: João Virgulino sabia.
Magarefe-chefe do matadouro de Magoarí, tirou a faca da cinta e começou a esquartejar o
banco de palhinha. Com todas as regras do oficio. Cortou um pedaço, jogou pela janella e disse:
Dois quilos de lombo!
Cortou outro e disse:
Quilo e meio de toicinho!
Todos os passageiros magarefes e auxiliares imitaram o chefe. Os instintos carniceiros se
satisfizeram plenamente. A indignação virou alegria. Era cortar e jogar pelas janellas. Parecia
um serviço organizado. Ordens partiam de todos os lados. Com piadas, risadas, gargalhadas.
Quantas reses, Zé Bento?
Eu estou na quarta, Zé Bento!
Baiano velho quando percebeu a história pulou de contente. O chefe do trem correu
quasi que chorando.
Que é isso? Que é isso? É por causa da luz?
Baiano velho respondeu:
É por causa das trevas!
O chefe do trem suplicava:
Calma! Calma! Eu arranjo umas velinhas.
João Virgulino percorria os vagões apalpando os bancos.
Aqui ainda tem uns três quilos de colchão mole!
O chefe do trem foi para o cubículo dêle e se fechou por dentro rezando. Belém já estava
perto. Dos bancos só restava a armação de ferro. Os passageiros de pé contavam façanhas.
Baiano velho tocava a marcha de sua lavra chamada As armas cidadãos! O taioquinha
embrulhava no jornal a faca surripiada na confusão.
Tocando a sineta o trem de Magoarí fundou na estação de Belém. Em dois tempos os
vagões se esvasiaram. O ultimo a sair, foi o chefe muito pálido.
103
*
Belém vibrou com a história. Os jornais afixaram cartazes. Era assim o título de um: Os
passageiros no trem de Magoarí amotinaram-se jogando os assentos ao leito da estrada. Mas foi
substituido porque se prestava a interpretações que feriam de frente o decôro das familias.
Deante do Teatro da Paz houve um conflito sangrento entre populares.
Dada a queixa á polícia foi iniciado o inquerito para apurar as responsabilidades.
Perante grande número de advogados, representantes da imprensa, curiosos e pessoas gradas, o
delegado ouviu vários passageiros. Todos se mantiveram na negativa menos um que se declarou
protestante e trazia um exemplar da Bíblia no bolso. O delegado perguntou:
Qual a causa verdadeira do motim?
O homem respondeu:
A causa verdadeira do motim foi a falta de luz nos vagões.
O delegado olhou firme nos olhos do passageiro e continuou:
Quem encabeçou o movimento?
Em meio da ansiosa expectativa dos presentes o homem revelou:
Quem encabeçou o movimento foi um cego!
Quis jurar sôbre a Bíblia mas foi imediatamente recolhido ao xadrez porque com a autoridade
não se brinca.
132
Outro aspecto interessante que o escritor captou das ruas é o contraponto da
multidão: a solidão de quem vaga à noite pela cidade. Na multidão o singular de
cada indivíduo torna-se plural; o sujeito torna-se coletivo e a população torna-se
massa. Ao findar o dia as ruas se esvaziam, ficam desertas; caminhar por elas é
uma possibilidade de resgatar o individual. Acompanhemos José, O tímido José,
133
não totalmente sozinho, mas dividindo com poucos personagens as ruas do centro
da cidade:
Estava ali esperando o bonde. O último bonde que ia para a Lapa. A garoa descia
brincando no ar. Levantou a gola do paletó, desceu a aba do chapéu, enfiou as mãos nos bolsos
das calças. O sujeito ao lado falou: O nevoeiro já tomou conta do Anhangabaú. Começou a
bater com os pés no asfalto molhado. Olhou o relógio: dez para as duas. A sensação sem
propósito de estar sozinho, sozinho, sem ninguêm é que o desanimava. Não podia ficar quieto.
Precisava fazer qualquer cousa. Pensou numa. Olhou o relógio: sete para as duas. Tarde. A
Lapa é longe. De vez em quando ia até o meio dos trilhos para ver se via as luzinhas do bonde.
O sujeito ao lado falou: É bem capaz de já ter passado. Medindo os passos foi até o refúgio.
Alguêm atravessou a praça. Vinha ao encontro dêle. Uma mulher. Uma mulher com uma pele
132
Id., ibid., pp.199-208.
1
133
Machado, Laranja da China, pp.143-150.
104
no pescoço. Tinha certeza que ia acontecer alguma cousa. A mulher parou a dois metros se
tanto. Olhou para êle. Desviou os olhos, puxou o relógio.
Pode me dizer que horas são?
Duas. Duas menos três minutos.
Agradeceu e sorriu. Se o Anísio estivesse ali diria logo que era um gado e atracaria o
gado. Êle se afastou. Disfarçadamente examinava a mulher. Aquilo era fácil. O Anísio? O
Anísio já teria dado um geito. Na bôca é que a gente conhece a senvergonhice da mulher.
Parecia nervosa. Abriu a bolsa, mexeu na bolsa, fechou a bolsa. E caminhou na direcção dêle.
Êle ficou frio sem saber que fazer. Passou ralando sem um olhar. Tomou o viaduto. O bonde
vinha vindo. O nevoeiro atrapalhava a vista mas parece que ela olhou para trás. Mais uns
segundos perdia o bonde. O último bonde que ia para a Lapa. Achou que era uma besteira não
ir dormir. Resolveu ir. O bonde parou deante do refúgio. Seguiu. Correndo um bocadinho ainda
pegava. Agora não pegava mais nem que disparasse. Ficar com raiva de si mesmo é a cousa peor
dêste mundo. Pôs um cigarro na bôca. Não tinha fósforos. Virando o cigarro nos dedos seguiu
pelo viaduto. Apressou o passo. Não se enxergava nada. De repente era capaz de esbarrar com
a mulher. Tomou a outra calçada. Esbarrar não. Mas precisava encontrar. Afinal de contas
estava fazendo papel de trouxa.
134
José não quer estar só e o encontro de madrugada com aquela mulher
misteriosa o incomoda. José está dividido: quer ir para casa, mora longe, mas
também sente a obrigação (ou desejo?) de segui-la, de abordá-la:
Quem sabe se seguiu pela rua barão de Itapetininga? Mais depressa não podia andar.
Garoar garoava sempre. Mas ali o nevoeiro já não era tanto felizmente. Decidiu. Iria indo no
caminho da Lapa. Se encontrasse a mulher bem. Se não encontrasse paciência. Não iria
procurar. Iria para casa. Afinal de contas era mesmo um trouxa. Quando podia não quiz.
Agora que era difícil queria.
Estava parada na esquina. E virada para o lado dêle. Foi diminuindo o andar. Ficou
atrás do poste. Procurava ver sem ser visto. Alguma cousa lhe dizia que era âquele o momento.
Porêm não se decidia e pensava no bonde da Lapa que já ia longe. Para sair dali esperava que
ela andasse. Impacientava-se. BARBEARIA BRILHANTE. Dezoito letras. Se continuava
parada é que esperava alguêm. Se fosse êle era uma boa massada. Sua esperança estava na
varredeira da Limpeza Pública que vinha chegando. A poeira a afugentaria. Nem se lembrava
de que estava garoando. Pôs o lenço no rosto.
135
O cenário é particularmente intrigante: garoa e neblina. Como o fog londrino
que impossibilita a visibilidade nas histórias detetivescas. O cenário e o clima
134
Id., ibid., pp.143-5.
135
Id., ibid., pp.145-6.
105
lembram aqueles do romance policial. Um outro tipo estranho se junta à
perseguição:
A mulher recomeçou a andar. Até que enfim. E êle tambêm rente aos prédios. Agora já
tinha desistido. Viu as horas: duas e um quarto. Antes das três e meia não chegaria na Lapa.
Talvez caminhando bem depressa. Precisava desviar da mulher senão era capaz de parar de
novo e pronto. Daria a volta na praça. Ela tinha tomado a rua do meio. Então reparou que
outro tambêm começara a seguir a sujeita. Um tipo de capa batendo nos calcanhares e parecia
velho. Primeiro teve curiosidade. Curiosidade má. Depois uma espécie de despeito, de ciume, de
orgulho ferido, qualquer cousa assim. Nem êle nem ninguêm. Cada vez apressava mais o passo.
O tipo parou para acender o cigarro. Era velho mesmo, tinha bigodes caídos, usava galochas e
se via na cara a satisfação. Não. Isso é que não. Nem êle nem o velho nem ninguêm. Nem que
tivesse de brigar. Mas porque não êle mesmo? Resolveu: seria êle mesmo.
Via a ponta da pele caída nas costas. De repente ela parou e sentou-se num banco.
Sentia o velho rente. E agora? Fêz um esforço para que as pernas não parassem. A mulher
virou o rosto na direcção dêle. Quem é que estava olhando? O velho? Mas a sujeita endireitou
logo o rosto, abaixou a cabeça. Vai ver que olhava sem ver. Passou como um ladrão, o coração
batendo forte e sentou-se dois bancos adeante. Prova de audácia sim. Mas não podia ser de
outro modo. O velho tambêm passou, passou devagarzinho, depois de passar ainda se virou mas
não parou. Tinha receio de suportar o olhar do velho. Começou a passar o lenço no rosto. era
pavor mesmo. Por isso tremia. O velho continuou. Dava uns passos, virava para trás, andava
mais um pouquinho, virava de novo. No fim da praça ficou encostado numa árvore.
A sujeita se levantou, deu um geito na pele, veiu vindo. Com toda a coragem a fixava.
Impossível que deixasse escapar de novo a ocasião. Bastaria um sorrisozinho. Mas nem um
olhar quanto mais um sorriso. Mulher é assim mesmo: facilita, facilita até demais e depois
nada. Só dando mesmo pancada como recommendava o Anísio. Bombeiro é que sabe tratar
mulher. estava ali mesmo: seguiu-a. O velho estava esperando com todo o cinismo. O gôzo
dêle foi que quando ela ia chegando pegou outra rua do jardim e o velho ficou no ora veja. Vá
ser cínico na praia. Não é que o raio da sujeita apressou o passo? Melhor. Quanto mais longe
melhor. Preferia assim porque no fundo era um trouxa mesmo. Reconhecia.
Ela esperou que o automóvel passasse (tinha mulheres dentro cantando) para depois
atravessar a rua correndo e desaparecer na esquina. Então êle quási que corria tambêm. Dobrou
a esquina. Um homem sem chapéu e sem paletó (naquela humidade) gritava palavrões na cara
da sujeita que chorava. Á primeira vista pensou até que não fosse ela. Mas era. Dando com êle
o homem segurou-a por um braço (ela dizia que estava doendo) e com um safanão jogou-a para
dentro do portão. E fechou o portão immediatamente. Uma janela se iluminou na cazinha
cinzenta. Ficou ali de olhos esbugalhados. Alguêm dobrou a esquina. Era o velho. Maldito
velho. Então seguiu. E o outro atrás.
136
136
Id., ibid., pp.146-9.
106
A mulher chega ao seu destino. A sua espera um homem. Este a coloca
dentro de casa à força. Xinga, bate nela. Nosso personagem assiste a tudo e retoma
o seu caminho de casa. Está sozinho novamente, mas agora quer mesmo a solidão
e repudia a companhia do estranho que tenta aproximar-se. A caminhada até a
Lapa será longa e solitária:
Nem tinha tempo de pensar em nada. Lapa. Lapa. Puxou o relógio: vinte e cinco para
as três. Um quarto para as quatro em casa. E que frio. E o velho atrás. Virou-se
estupidamente. O velho fêz-lhe um sinal. O quê? Não queria conversa. Não falava com quem
não conhecia. Cada pé dentro de um quadrado no cimento da calçada. Assim era obrigado a
caminhar ligeiro.
Faz favor, seu!
Favor nada. Mas o velho o alcançou. Não podia deixar de ser um canalha.
Diga uma cousa: conhece aquêle chaveco?
Fechou a cara. Continuou como se não tivesse ouvido. Mas o homem parecia que estava
disposto a acompanha-lo. Parou. Perguntou desesperado:
Que é que o senhor quer?
Por mais um pouco chorava.
Onde é que ela mora?
Não sei! Não sei de nada!
O velho começou a entrar em detalhes indecentes. Não aguentou mais, fêz um gesto com
a mão e disparou. Ouvia o velho dizer: Que é que há? Que é que há? Corria com as mãos
fechando a gola do paletó. Só depois de muito tempo pegou no passo de novo. Porque estava
ofegante a garganta doia com o ar da madrugada. Lapa. Lapa. E pensava: A esta hora é capaz
de ainda estar apanhando.
137
137
Id., ibid., pp.149-150.
107
Outro que busca a solidão das ruas desertas é Joaquim Pereira, pai de Mana
Maria,
138
a heroína do romance inacabado de António de Alcântara.
Acompanhemos sua caminhada noturna que também será importunada:
Felizmente para Joaquim o doutor Samuel logo depois da saída de mana Maria retirou-
se tambêm. Não se justificava mais a presença dêle, não havia mais conversa que pegasse, tio
Laerte propôs que se jogasse bridge, doutor Samuel não jogava, tio Laerte por delicadeza
retirou a proposta, êle compreendeu:
Eu peço licença para me retirar.
Foi uma despedida fria, remate rápido de um aborrecimento. Joaquim se sentiu aliviado,
readquiriu a fala, pediu para a cunhada tocar, desafiou os campeões presentes para um bridge
bravo. Estava por ora livre do que êle mais detestava no mundo: uma explicação. E no caso
eram duas. Mas a filha estaria dormindo quando êle chegasse em casa e o dr. Samuel ficaria
para o dia seguinte. Com certeza êle o procuraria no Serviço Sanitário. E seria uma conversa
desagradavel. Paciencia. Até lá o homem se acalmaria, se convenceria de que malhava em ferro
frio. E quanto á filha, êle a conhecia. Só falaria se provocada. O pai não tocando no assunto,
ela tambêm não tocaria.
O licôr aumentou seu bem-estar. Já meia-noite passada tomou o caminho de casa. A pé
para fazer um pouco de exercício. Se fosse ver a Zoraide? Não. Sem telefonar primeiro era
arriscado.
1
138
Sérgio Milliet em artigo publicado no O Estado de S.Paulo em 28 de novembro de 1937, intitulado O
moderno romance brasileiro analisa a situação desse gênero literário em meados da década de trinta e cita Mana
Maria: “Mana Maria”, a obra póstuma de Antonio de Alcantara Machado, é uma das melhores manifestações do
espírito que desejaríamos ver reinar no nosso romance, na nossa prosa, despida de preconceitos, inclusive do
preconceito modernista. (...) Com Antonio de Alcantara Machado é o regionalismo que florece. Seus contos versam
assumptos exclusivamente paulistas e reflectem a vida da capital de São Paulo, a mentalidade do immigrante novo-
rico, a incultura alegre e a malicia do citadino. Alcântara Silveira também o definiu como um regionalista urbano.
Ainda a respeito da promessa não cumprida de ser António de Alcântara um dos maiores romancistas modernistas e
Mana Maria, com sua maturação estilística, grande romance paulista, Edgard Cavalheiro em artigo publicado no O
Estado de S.Paulo em 1940, intitulado Antonio de Alcantara Machado, constata: Em se tratando do prosador, um
facto é indiscutivel, ao virarmos a ultima pagina de “Mana Maria”: além do “conteur”, chronista, crítico ou
historiador, perdemos com a sua morte, um poderoso romancista. “Mana Maria”, embora incompleto, revela-nos
alguem que não tacteava no genero mas que, pelo contrario era senhor absoluto do terreno, dominador
incontestavel do assumpto. O livro deslizaria até a ultima pagina sem decahidas (...) A prova está neste “Mana
Maria” com as suas cento e poucas paginas promptas. Compunha-o lentamente, é certo (corrigia sempre e com
muita paciencia os seus trabalhos), e talvez a política o estivesse prejudicando, atrazando fatura da obra, mas
jamais o annularia de uma vez para sempre, roubando-o ás letras. Numa carta a Mario de Andrade, a proposito de
“Mana Maria”, que entre as folgas da politica e do jornalismo, contava: “Mana Maria” vae indo. Tem soffrido
tanto, coitada. (...). O desenvolvimento do espirito de Antonio de Alcantara Machado encaminhara-o, logicamente,
para o romance. Chegou mesmo a escrever a primeira e a ultima parte de “Capitão Bernini”. Sem explicações, não
chegou a concluil-o, preferindo dedicar-se á Mana Maria”, que a morte não lhe permittiu levar a termo. Num
romance, o seu contacto com os personagens seria, forçosamente, mais demorado e mais intimo. Talvez esteja ahi o
segredo dessa demora em escrevel-o. (...) Tudo faz crêr que “Mana Maria” fosse até a ultima pagina. Com muito
soffrimento, muita tortura, soffrimento e tortura que o escriptor já não consegue disfarçar e que tão claramente
transparece no olhar duro de Mana Maria ou no olhar silencioso de Theresa. Já não vemos aquella mordacidade,
aquelle sorriso encapuçado das obras anteriores.
108
Táxi, doutor?
Não.
Dobrou a esquina. Ninguem. É bom surpreender assim as ruas desertas no silêncio
noturno. De dia a atenção se perde no bonde que passa, na casca de banana, no pregão dos
vendedores ambulantes, nuns olhos, num palavrão, num anúncio. A gente vê perto e vê baixo.
Das casas só tem importancia a vitrina das de comércio, o número das de moradia. De noite,
tudo muda. Não há perigo de esbarros, de atropelamentos. A vista se alonga desembaraçada. É
possível parar, erguer a cabeça, embasbacar, cismar, examinar, não há respeito humano. É a
rua: postes, arvores, jardins, fachadas. Os homens dormem: a rua vela. Ele não saberia exprimir
(não era literato, graças a Deus) a sensação gostosa que lhe davam essas voltas a pé para casa
noite alta. Mas era evidente que se sentia mais forte, mais homem, o único homem. De dia se
anulava na multidão, era ninguem. De noite ganhava outro relêvo na sua solidão, uma certeza
mais grata de sua realidade. Ouvia os proprios passos, via a propria sombra.
Dobrou a esquina. Ninguem. Era como se a rua dissesse: Póde passar, trânsito livre.
Depois na noite vasia, silenciosa, o cheiro dos jardins é mais forte, a feitura das casas mais
branda, as calçadas mais largas, as esquinas mais misteriosas. A imaginação tem campo livre.
Os homens são prisioneiros das casas, tranca na porta, cadeado no portão. Está reintegrada a
rua na posse de si mesma, no gôzo de sua liberdade. Tal como é e não como a fazem e sujam os
homens, a desfiguram os homens de dia. Deserta a cêna, vive o cenário. Através das venezianas
no terceiro andar da casa de apartamento se escôa uma luz vermelha. Se êle fosse ver a
Zoraide? Quasi uma hora. Tarde demais.
Dobrou a esquina. Alguem. Ainda distante, na mesma calçada, cambaleando.
Embriagado. Melhor atravessar a rua. Detestava bebados, tinha pavor de bebados. O vulto
colou-se á arvore. Depois se equilibrou na guia do passeio, pesadamente desceu ao leito da rua.
Joaquim resolveu não mudar de calçada. Agora o bebado olhava o céu. Lua cheia. Tirou a
palheta. Era o Platão de Castro. Joaquim apressou o passo.
Ó Pereirinha!
Como vai, Platão?
Não parou.
Espere ai um pouco!
Não posso. Estou com pressa!
Platão berrou:
Es-pe-re, seu canalha!
Quis correr, estatelou-se nos paralelepípedos. Joaquim se voltou, teve pena, foi erguer o
bebado.
Não precisa me ajudar! Eu me levanto sózinho.
Mas Joaquim ajudou.
Depois ergueu a palheta.
Vá dormir, Platão!
109
Não. Quero propôr uma coisa para você.
Agora não tenho tempo.
Fique ai, seu! Está vendo a lua? Responda. Está vendo a lua?
Estou.
Não tem pena dela, não? Responda.
Segurou o braço de Joaquim.
Tenho.
Então vamos latir para ela pensar que é cachorro.
Joaquim puxou o braço, empurrou o bebado, quasi o derrubou, saiu na disparada. Platão
gritava:
Pereirinha, você não é poeta, Pereirinha! Seu animal! Seu bandido! Seu bebado!
Dobrou a esquina. Três varredeiras da Prefeitura. A poeira subia em caracol, se
esborrachava nas arvores, nos postes, nas fachadas. Joaquim tapou com o lenço nariz e bôca,
furou a nuvem de olhos fechados. A moreninha do 79 suicidou-se três dias antes com lisol. O
que ela tinha de mais bonito era o andar. Coisa mais provocante. Imaginem aquela perfeição
debaixo da terra apodrecendo. Que horror. De Purezinha então só podiam restar ossos. Para
que pensar nessas coisas? Mas pensava sempre, era um sofrimento.
Dobrou a esquina. Ninguem. A magnolia plantada por Purezinha estendia um ramo
sôbre a calçada. Pensando bem, não ha nada como ter uma casa: a casa da gente. Pátria, podem
falar o que quiserem, pátria, bobagem. Ele não pegaria em armas para defender a pátria. Mas
atacassem a casa dêle para ver. Nunca imaginou que pudesse haver porão fedido como o da
viuva do médico italiano. Um cheiro de gato impossível. Empestava a calçada. Atravessou a
rua pensando que a noite não estava assim tão quente. E sentiu em toda a sua plenitude essa
delícia que é chegar.
139
139
Id., ibid., pp.96-101.
110
O dia traz consigo a movimentação nas ruas: vendedores ambulantes com
seus pregões,
140
caminhões entregando toda sorte de mercadorias, as manchetes dos
matutinos. É a vida ocupando novamente o espaço público:
Adelaide, portuguesa peituda, cantava lavando o terraço. A corneta do tripeiro soou na
esquina, insistiu inutilmente deante do 52 (Adelaide não deu importancia), foi soar em outra
freguezia.
Estado! Fanfulla! Fôôôlha!
O caminhão da Antartica passou sacudindo as casas. Cosinheiras iam e voltavam da
feira carregando cêstas, os chinelos estalavam nas calçadas.
É a sorte de hoje! É o cavalo com 43!
140
Vários pregões de vendedores ambulantes e mascates que circulavam pelo centro e bairros da cidade
foram recolhidos por Ecléa Bosi no seu estudo sobre a função social da memória. Transcrevo aqui alguns: O italiano
tinha um baú de ferro de onde tirava umas batatas enorme que vendia a duzentos réis cada uma. Não. Era duas um
tostão. E aquilo comia a família inteira. Depois tinha: “Pipoca. Amendoim torrado. Olha a pipoca. Tá torradinho.
Pipoca, iaiá...”. Depois vinha o sorvete: Survetinho, survetón, survetinho de limón, quem não tem o dez tostão
não toma sorvete não, sorvete, iaiá! (Lembranças do sr. Abel); Na minha rua passava cantando o sorveteiro:
Sorvetinho, sorvetão, sorvetinho de ilusão, quem não toma o meu sorvete, não sabe o que é bão.”. O português
empurrava a carroça e tinha um pretinho magro que ajudava, com um pezinho meio pendurado. Era o pretinho que
cantava: “Sorvete, iaiá, é de creme abacaxi, sinhá. Fui andando numa rua escorreguei mas não cai, é por causa
do sorvete que é de creme abacaxi.”. O italiano que vendia verdura na carroça com um toldo, cantava: Ma que
bela tomata da chacra mia!”. Um vassoureiro português cantava como um baixo: Vassouras, espanadores!”. E
tinha ainda o italiano que trazia um baú a tiracolo, forrado com um lençol muito branquinho cheio de batatas:
Batata assata al forno!”. Até 1940 ainda passava na porta de nossa casa um pretinho que vendia batata assada
na brasa; tão comprido era o pregão dele que não lembro mais. Havia o turco que vendia armarinhos na porta. Ele
carregava um bauzinho nas costas preso num X de madeira com duas correias. Batia matraca. Mamãe comprava do
Abraão as faixas para nossos vestidos brancos de lese, faixa cor-de-rosa, sempre. Eu gostava muito do Abraão, que
me dava um pedacinho de fita 1 para amarrar no cabelo. (Lembranças de d. Brites); O pasteleiro vendia assim
dois pastéis quentes por um tostão: A dois cem réis pastéis, a dois cem réis pastéis. O pipoqueiro mulato tinha
vindo da construção da Alta Sorocabana (diziam que levavam os mulatos para lá porque as onças preferiam os
mulatos para comer): Pipocamendoim torradolha pipoca.”. O calabrês vendia pimenta: Ó pimenta!”. Um
sorveteiro de Foggia gritava: Surveta, surveta!”. Tinha um que era sargento da Força, também italiano: A
tostón o pedaço! Melanzia barata! Come, bebe e lava a cara.”. O sorveteiro vinha de longe gritando fininho:
Zzzzzzsurviete!”. Vinha um, com um animal, e vendia sapato, chinelo, tudo, e apregoava assim:
Sapateééééééro. (...) O vassoureiro era célebre em São Paulo com seu pregão em francês que não lembro mais.
(Nota da autora: Recolhi este pregão: Liberté, egalité, fraternité, vassourê! ). Tinha o pai do Salerno, colega meu
do grupo escolar: Batata assata al forno, batata assata al forno.”. Outro, que era acendedor de lampiões da
Companhia de Gás (naquele tempo São Paulo era iluminada a gás), vendia espigas quentes, e diziam que virava
lobisomem: “Ei, espiga cávida! (Nota da autora: Esse pregão, baixo e soturno, talvez impressionasse as crianças,
justificando a fama de lobisomem do apregoador. Cávida vem de calida em italiano.). Cada bairro tinha seus
apregoadores. (Lembranças do sr. Antônio). Algumas dessas recordações de pregões foram registradas com
transcrição musical de José Miguel Wisnik, que explica: Freqüentemente é difícil transcrever os pregões segundo a
notação musical tradicional, porque neles os perfis das melodias tonais (ou modais) misturam-se com as entonações
da fala (...) Vale lembrar a situação em que se reproduzem. Temas curtos e chamativos, sempre contendo um
imprevisto sonoro, infinitamente repetidos no tempo como uma idéia fixa, mas ambulantes em seu contínuo
deslocamento pelo espaço das ruas, ora parecendo alegres flauteadas, ora dolorosos lamentos, os pregões expõem
a mercadoria mas cantam também o mercador, o trabalhador solitário que vaga pela cidade, sem paradeiro. O
pregão leva essa aura: alguém canta, esse canto de trabalho está longe e perto, e, talvez por isso, fale diretamente à
nossa memória. Bosi, Memória e sociedade, lembranças de velhos, p.185, pp.299-300 e 229-231, respectivamente.
111
Adelaide largou escova, balde e pano, correu para dentro de casa.
Garrafeiro! Garrafa vasia! Garrafeiro!
A viuva de quimôno curto veiu mostrar as pernas gordas na calçada. A carroça com a
mudança pobre rodava devagarzinho. No meio da rua. O italiano de preto tapou o sol com um
maço de bilhetes para ver o aeroplano. A sereia da Assistência uivou numa rua próxima.
É a Paulista com 100 contos! Ultimo inteiro para hoje!
Adelaide desceu depressa a escada de mármore, entregou para o italiano dos bilhetes
dusentos réis embrulhados num papelzinho. De sandálias sem meia, acompanhados pela criada
vesga, passaram os quatro filhos menores impúberes, uma escadinha, do doutor Laurindo de Sá.
Um mulato de palheta com uma carta na mão, olhava o número das casas. Escorregou na casca
de banana, se equilibrou, riu de seu quasi tombo, entregou para Adelaide espiando no portão o
envelope cor do céu.
Tem resposta?
Ele não me disse para esperar é porque não tem. Até logo.
Mana Maria lia no Estado o crime passional que agitara o bairro da Moóca enlutando
dois lares húngaros, quando Adelaide lhe entregou a carta. Conheceu logo sem nenhuma
surpresa a letra esparramada do dr. Samuel, a letra das receitas: tome de duas em duas horas
diluido em cálice de agua. E de novo a indecisão como acontecera com o livro: lia não lia, lia
não lia. Mana Maria disse para si mesma que não era assim. Essa maldita história, é que a
estava deixando hesitante. Pensar isso foi o suficiente para deliberar logo abrir o envelope.
Sabia o que estava dentro. Mas tambêm podia ser que não fosse o que pensava. Quando menina
tinha absoluta certeza da soma que o cofre continha. Contava todos os dias, escondia a chave
debaixo do colchão. E todos os dias o abria, contava os níqueis com uma esperançazinha louca
de que tivesse mais.
141
Mana Maria decide ir ao centro. Nessa primeira cena, novamente a
descrição de um local totalmente ocupado. A mais nova diversão, o cinema,
retirando das ruas parte da multidão:
Levantou-se ás mesmas horas do costume. Qualquer hora em que dormisse por mais
tardia acordava sempre bem cedo. Não eram ainda oito horas e ela já tinha o livro embrulhado.
Com um cartão entre a capa e o frontespício: Maria H. Pereira, agradecida, devolve o romance
Le mariage dHuguette que leu com interesse. Mandou leval-o logo depois do almoço. E avisou
a copeira que não estava em casa para o dr. Samuel Pinto. Nem que fosse para falar no
telefone.
Naquela tarde precisava falar com o advogado por causa de um inquilino atrasado.
Eram três horas quando ela perguntou para o empregado:
O dr. Tobias está?
141
Machado, Mana Maria, pp.101-3.
112
Não estava, só voltava ás cinco. Saiu. Em frente, o Cine-Universal engulia um homem
de fraque. Olhou o cartaz: Greta Garbo em Mulher Vendida. Detestava vampiros. Hesitou
entre o cinema e uma volta vagabunda pela cidade. Cinema. A indicadora mostrou com uma
lampada o único lugar vasio. Pescadores barbudos decepavam com um só golpe certeiro a cabeça
dos peixes prateados.
E a orquestra tocava a Serenata de Toselli. Luz. O cavalheiro á sua esquerda
murmurou: Perdão! E puxou a aba do fraque. Mana Maria se sentara na aba do fraque. O
homem do fraque. Usava pencinê. No cabaré fumarento Greta Garbo deante de um calice vazio
cismava com o olhar distante. E uma sujeita de boina fazia o possível para desviar a atenção
do companheiro daquele olhar distante. Mana Maria percebeu a agitação do homem do fraque
se remexendo na poltrona. Justo no momento em que o olhar distante como que por acaso se
cruzou com o do seu admirador a mão do homem do fraque se pousou com hesitação na perna de
mana Maria. Um pulo, um começo de escândalo e mana Maria precipitadamente demandou a
saída. Na rua se perguntou se fizera bem em não esbofetear o imundo. E se respondeu que sim.
Fizera bem. O que sentia era um misto de indignação e de nojo. Uma vontade de bater. Mas
fôra melhor assim. Cachorro. Um táxi passou. Tomou-o e mandou tocar para casa. O advogado
ficava para outro dia. Fechou-se no quarto pensando que devia ter esbofeteado o cachorro.
142
A última cena que António de Alcântara escreveu de Mana Maria é quase
premonitória. Mana Maria fugindo da agitação não somente das ruas, mas também
das relações e dos pensamentos que lhe atormentavam decide ir visitar o túmulo de
sua mãe no cemitério da Consolação. A descrição do autor tem pormenores que
indicam seu conhecimento do local. Talvez também procurasse o local para
desanuviar ou meditar. É lá que seu avô já estava enterrado. Observemos o
comportamento de mana Maria na sua solidão orgulhosa:
Pediu um táxi fechado. Seu Manuel cortava periquitos perto do portão, ela sem olhar
mal respondeu ao cumprimento respeitoso dêle, finjiu pressa, ainda fóra do automovel deu o
endereço para o chôfer:
Consolação.
Cemitério?
É.
Dentro do vasto quadrilátero de muros altos, nenhum ar triste e sim frio de limpeza e
ordem. Ali cada um se despede do atropêlo e da confusão da vida, tem seu lugar na morte.
Sobrepostos, lado a lado, apodrecendo jazem. Como areia das ruas retas, a pedra dos tumulos
alveja sob o sol que murcha as flores. Os ciprestes montam guarda, o verde escuro dêles acaba
oscilando em ponta, ao vento. Troncos partidos, anjos em prece, cruzes, as sepulturas ricas, as
sepulturas bonitas, as sepulturas pobres, as sepulturas feias, bem tratadas, mal tratadas, não
há igualdade. Os ruidos da rua atravessam o silêncio de arquivo, bibliotéca, depósito, silêncio
142
Id., ibid., pp.44-6.
113
de morte. Os que passam lá fóra tiram o chapéu, os que entram pisam de leve, a atitude não é
propriamente de respeito mas de cerimonia. Tambêm acanhamento.
Mana Maria ia notando os túmulos novos. Aquêle de esfinge deve ser de sírio. Não
disse? Família Yasi. A italiana de papoula no chapéu preto parou tambêm, admirou,
perguntou:
É um leão?
Informou de má vontade:
Não: esfinge.
Ah sei! Finge de leão. É belo!
Não teve vontade de rir. Nem de sorrir. Prosseguiu de rosto fechado. Quebrou á direita,
quebrou á esquerda, estacou. Pôs as flores nos dois vasos de marmore, ajoelhou-se, apoiou os
cotovelos na lápide, juntou as mãos, nelas encostou a testa, ficou pensando. Padre Raimundo
dizia: A melhor oração é a que o coração improvisa. Ajudada pela enfermeira, ela vestira o
corpo magro da mãe ouvindo as marteladas dos homens da empreza funerária na sala de
visitas. Não chorara. Não. Quando todos se puseram de joelhos no quarto mal alumiado e só ela
de pé, debruçada sôbre o leito, sustinha entre os dedos da que morria a vela acesa da agonia lhe
veiu a decisão de não chorar. E não chorou. Nem quando o caixão florido se fechou, nem
quando êle saiu pela porta do terraço, nem quando o pai voltou (êle sim chorando) e lhe deu a
chave prêsa numa fita roxa para guardar:
Minha filha!
Coragem, papai, vá descançar.
Ela tinha coragem e não precisava de descanço. Ela era a forte, a dominadora, a
incorruptivel. A que resistia contra tudo, contra todos, contra ela mesma. A serviço do quê? De
sua memória, mamãe.
Levantou-se. Era falso. Não: era verdadeiro. Ela substituia a mãe naquela casa,
naquela familia que dona Purezinha dirigia sem oposição. Por isso não podia casar. Por isso
tinha de ser dura, só pensar na missão a cumprir. Grandes palavras. Sentiu-se ridicula.
Ajoelhou-se. Em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo. Amem. Ave Maria, cheia de
graça...
Alguem parou junto dela.
Ia justamente procurar o senhor. Tem agua no regador? Ponha nos vasos.
O homem levou a mão no chapéu, fez o que ela mandou. ... e na hora da nossa morte,
Amem. Em nome do Padre, do Filho, do Espírito Santo. Amem.
Está satisfeita com o meu serviço? É um túmulo de que não descuido.
Estou. Eu lhe devo um mês?
Ia amanhã á sua casa buscar o dinheiro.
Eu pago já.
O homem agradeceu (quem pagaria para tratarem o túmulo quando ela morresse?), mana
Maria foi andando devagar. Olhou o relogio: 11 horas. Na área principal deu com um enterro
114
que chegava. Atráz do caixão um velho caminhava, o lenço nos olhos, amparado por dois moços
tambem chorosos. O padre com o livro de orações protegia a vista contra o sol forte. Pouca
gente. O sino da capela tocou. Mana Maria deu 400 réis para a negra velha. Não costumava
dar esmolas não. Mas sentiu que alí devia dar. Estava um pouquinho comovida. No entêrro
dela não viria ninguem. Era capaz até de faltar gente para carregar o caixão. Morreria num
hospital. Para não dar trabalho para ninguem. Foi descendo a rua da Consolação ao longo do
muro do cemitério. Na frente dela duas meninas de sandália carregavam um cesta de lavadeira.
Como um caixão. Uma de cada lado segurando na alça. Apressou o passo, na esquina tomou um
taxi. Do automovel ainda viu as meninas que haviam pousado a cesta na calçada, descansavam
alegres.
.......................................................................................................................................................
.......................................................................................................................................................
..
143
Dias depois António de Alcântara seria sepultado nesse mesmo lugar. Tão
próximo e tão diferente da agitação das ruas desta cidade. No artigo, já citado, de
Raimundo Menezes, publicado no jornal O Estado de S. Paulo, em 1946, lemos:
O livreiro-editor José Olimpio encarregara a Jaime de Barros de dar um recado a
Antonio de Alcantara Machado. Sabia que ele estava escrevendo um romance e queria edita-lo.
Ainda ontem trabalhei nele... foi a resposta do autor de “Mana Maria”, quando
dois dias depois lhe falou o amigo. Era uma segunda-feira. No domingo seguinte adoeceu. No
outro viajaram juntos para S. Paulo. “Ele ia fechado num caixão negro, pesado, inteiramente
liso...”.
CAPÍTULO III
O TRADICIONAL E O MODERNO:
A COEXISTÊNCIA DO PASSADO E DO PRESENTE NO ESPAÇO
URBANO
143
Id., ibid., pp.108-112.
115
A cidade se embebe como uma esponja dessa onda que reflui das recordações e se dilata. Uma
descrição de Zaíra como é atualmente deveria conter todo o passado de Zaíra. Mas a cidade
não conta o seu passado, ela o contém como as linhas da mão, escrito nos ângulos das ruas, nas
grades das janelas, nos corrimãos das escadas, nas antenas dos pára-raios, nos mastros das
bandeiras, cada segmento riscado por arranhões, serradelas, entalhes, esfoladuras.
(Italo Calvino, As cidades invisíveis)
O ESCRITOR ANDARILHO
As vistas panorâmicas das grandes cidades nos atraem. A possibilidade de
abarcarmos todo um conjunto infinito de prédios, casas, avenidas e viadutos faz
com que nos tornemos poderosos, agigantados como a paisagem que apreendemos.
Mas, paradoxalmente, sentimos o quanto somos pequenos diante de tanto trabalho
116
humano reunido, condensado, amalgamado.
1
Experiência contraditória, talvez por
isso, sedutora.
Observar qualquer grande cidade de um ponto elevado nos impele a tentar
reconhecer na paisagem circunjacente lugares familiares, referências que permitam
que nos situemos em meio à desordem própria do urbano.
Porém, do alto das grandes cidades nada aprendemos sobre elas. Uma
cidade só se desvela àquele que se propõe a atravessá-la, entrar em contato com o
movimento de suas ruas.
António de Alcântara bem o sabia. Andarilho, nos revelou cenários e tipos
singulares e representativos do processo de modernização. Cronista do seu tempo
viveu e registrou fatos que tornam possível a reconstrução de parte da atmosfera
dos anos vinte em São Paulo. Criou situações e personagens pitorescos, onde o
trágico e o patético encontram-se retratados em contos agridoces, pelos quais se
realiza a sua crítica da realidade e da cultura brasileira.
Exemplo disso é O centro da cidade de São Paulo,
2
crônica de 1926, na qual
António de Alcântara nos leva a um passeio pela região central, pelo famoso
Triângulo, cujos lados formados pelas ruas Direita, XV de Novembro e São Bento
constituíram o núcleo inicial da urbanização de São Paulo.
Texto saboroso é um exemplo da maestria literária do autor:
O centro da capital paulista tem a fórma de um triangulo mais ou menos rectangulo,
cujos tres lados são: a rua Direita, a rua 15 de Novembro e a rua S. Bento.
1
Wiltold Rybczynski, arquiteto escocês, radicado nos Estados Unidos, define as cidades como sendo
gigantescos artefatos que o trabalho humano produziu e representam verdadeiramente as grandes conquistas
humanas, pois podem ser vistas quase que por inteiras, num só olhar: Daí por que as vistas panorâmicas sejam tão
emocionantes, quer de Paris esparramada sob as escadas do Sacré Coeur, ou da baixa Manhattan vista do barco de
Staten Island, ou da apinhada ilha de Hong Kong vista de Kowloon (...). Rybczynski, Vida nas cidades, expectativas
urbanas no novo mundo, p.33.
2
Essa crônica foi publicada primeiramente no Diário da Noite, em 27 de junho de 1926 e reproduzida em
Cavaquinho e saxofone (solos), 1926/1935, pp.3-6. Utilizo a edição em jornal na minha análise, pois como já afirmei
na “Apresentação”, não tendo acesso aos originais, procurei utilizar sempre as edições princeps. A crônica nasceu de
um convite feito a António de Alcântara por seu amigo Di Cavalcanti. Este foi encarregado pelos editores do jornal
“Diário da Noite” de convencer alguns escritores modernistas, residentes na capital, a dar suas impressões sobre o
centro da cidade. António de Alcântara de pronto aceitou. Na resposta, anexada na crônica, enviou ao seu amigo um
bilhete explicando que a proposta o remeteu aos tempos do Ginásio de São Bento, às aulas de gramática e aos
exercícios de composição: Você, Di Cavalcanti, me pede agora cousa parecida. Quer que eu dê a minha
impressão sobre o centro da cidade. Você chegou tarde. No meu tempo de ginasial isso seria fácil para mim. Hoje
já perdi o geito. Vamos tentar porém uma cousa. Eu faço de conta que sou seu aluno e você faz de conta que é
meu professor. Assim eu volto atraz alguns anos. Não sem gostosa emoção. E vou procurar descrever o que você
quer como faria aí por 1914. Além do estilo direto e bem humorado, característico do autor, o tom utilizado para
descrever o espaço percorrido é de caráter didático, ao mesmo tempo lúdico. Conhecer o contexto da sua produção é
importante, pois assim entendemos não só o motivo do tema, o centro da cidade, mas também a inflexão utilizada
pelo escritor.
117
A mais bonita é a rua 15 de Novembro onde existe o cinema Triângulo que funciona
durante o dia e se acham instalados em prédios cotubas os grandes bancos. De tarde ficam
muitos italianos nas calçadas impedindo o trânsito, o que é um desaforo porque a gente quer
passar e não pode. Ouvi dizer que a italianada se reune ali para vigiar o dinheiro que possue na
Banca Francese ed Italiana per l’America del Sud e eu acredito que seja verdade.
Nos detenhamos neste parágrafo inicial. O autor nos apresenta o espaço que
representava o centro da capital paulista em 1926. Encontramos a idéia, imprecisa
hoje, que a cidade tem um centro. Talvez, mesmo para a década de vinte fosse
mais preciso dizer que a região central da cidade tinha um centro. O centro do
centro é o já conhecido Triângulo, formado pelas três principais ruas da época.
Embora, realmente, se trate de um triângulo imperfeito, mais ou menos rectangulo.
Apesar da agitação das ruas o centro ainda aparece com um lugar de passeio e de
estar e não só como se transformou, de passagem.
Nosso passeio em companhia de António de Alcântara começa pela rua XV
de Novembro, primeiramente chamada rua do Rosário - referência à antiga Igreja
do Rosário de onde a rua partia - depois rua da Imperatriz e finalmente, com a
Proclamação da República, recebeu o atual nome. Nela encontramos os grandes
bancos, com seus prédios suntuosos, mas também a diversão, o cinema Triângulo,
localizado nas proximidades do antigo largo do Tesouro. Essa sala inovou a forma
de exibição dos filmes inaugurando as matinês em dias úteis.
O cinema, um dos signos da modernidade, está presente em muitos textos
ficcionais do escritor, seja nos enredos de suas histórias ou inspirando com sua
técnica os recursos de linguagem por ele desenvolvidos, e até nos projetos e
soluções gráficas empregadas em seus livros.
No início da nossa caminhada encontramos os ruidosos italianos, cuja
ascensão social é representada pelo dinheiro depositado nos bancos.
Encontramos aqui alguns temas caros ao escritor: a imigração, o processo de
interação imigrante/cidade, o cinema (a arte da imagem, do corte e da montagem)
e o trânsito, atravancado pela multidão que ocupa além do passeio, a rua.
O tom do texto é didático e às vezes parece desmistificar a suposta
grandiosidade do espaço e de certos elementos que compõem a cidade. Neste
sentido, ao invés de uma visão atônita, estupefata diante das forças e impulsos
desencadeados pelo processo modernizador, encontramos um olhar já
familiarizado com aquela realidade.
Ao descrever o crescimento incessante e acelerado da cidade, o autor aponta
as descontinuidades, fissuras, hiatos particulares de um processo abrupto,
importado, implantado com objetivos econômicos e políticos de antemão
definidos. A idéia da existência de tensões, choques entre forças diametralmente
118
opostas é colocada, reiterada e simultaneamente esvaziada, na medida que a cidade
revelada aparece como o espaço onde a convivê ncia do presente moderno e do
passado tradicional parece possível. Vestígios físicos e comportamentais de uma
São Paulo colonial-monárquica coexistem com elementos de uma modernidade
avassaladora. Como conseqüência paira a dúvida do quão moderno foi essa
modernidade, do quão progressista foi esse progresso.
Continuemos o passeio:
A praça António Prado fica no fim da rua 15. Antigamente se chamava largo do
Rosário. Tinha a confeitaria Castelões onde a gente comia quatro empadinhas de camarão
muito gostosas e só pagava duas porque a gente não era trouxa. Hoje existe a Brasserie
Paulista onde as famílias não podem ir á tarde porque é mal frequentada. Há tambêm o Correio
Paulistano que é um jornal muito velho e que elogia certas pessoas só durante quatro anos e o
Estado de S.Paulo que aos domingos dá trinta e duas paginas e até mais com bonitos anúncios
de automóveis e cinemas mostrando bem o progresso de S.Paulo.
Paremos agora na praça Antônio Prado, antigo largo do Rosário. Este espaço
foi reurbanizado na gestão do conselheiro Antônio Prado, prefeito do município na
primeira década deste século. Na ocasião da reurbanização a antiga Igreja do
Rosário foi demolida para ampliação do largo objetivando desafogar o trânsito de
veículos e pedestres.
Homem empreendedor promoveu no centro o primeiro tratamento
urbanístico da cidade. Aliás, foi em sua gestão que se deu a ampliação do
perímetro urbano da região central, interligando-a às outras áreas da cidade, como
já mencionado.
Na praça encontramos a famosa confeitaria Castelões, a cervejaria Paulista e
também as sedes de dois importantes jornais, o “Correio Paulistano” e o “Estado
de S. Paulo” (sic). O primeiro, para além de conservador, oportunista; o segundo,
de tiragem dominical especial, em que os bonitos anúncios de automóveis e cinemas
comprovam a modernidade da capital.
O desenvolvimento da publicidade, associado às modernas técnicas de
impressão e aos novos meios de comunicação e o automóvel, outro poderoso signo
da modernidade, são outros temas centrais da obra de António de Alcântara
presentes na crônica.
Nesse fragmento, a ironia do autor recai sobre os dois distintos órgãos da
imprensa. Convivendo na mesma praça temos o quase centenário Correio Paulistano
e, do outro lado, o moderno Estado de S.Paulo que, como a cidade, deixou de ser
“Província”. O “Estadão” daquele tempo tem tantos anúncios das coisas modernas
que é o próprio retrato do progresso de S.Paulo. Retrato de um progresso real ou
119
apenas de uma modernidade impressa em anúncios e reclames? Provavelmente
ambas as situações.
Entremos agora na rua São Bento:
Depois vem a rua S. Bento. Esta rua é bastante simpática, asfaltada, com o prédio do
Crespi que tem nove andares. O que hoje não é nada porque há no centro da cidade e fóra dele
mesmo construções que têm dez, doze e quinze andares, de forma que S. Paulo continuando
assim é capaz de bater a própria Nova-York.
A rua S. Bento começa na estátua de José Bonifácio e acaba no relógio de S. Bento. No
largo desse relógio fica todas as tardes uma porção de criadas que é mesmo uma vergonha. Tem
tambêm muitos automóveis de luxo, mas os chôfers são uns aguias e a policia nem se incomoda.
A rua S. Bento pega de um lado a praça do Patriarca onde existe no meio uma coluna
que é mesmo uma indecencia! A maior atração dessa praça são os grilos a cavalo. Pára gente o
dia inteiro só para ver a pôse engraçada deles.
Olhando meio de lado para o viaducto do Chá encontra-se o prédio da Casa Mappin
Stores. Em frente dele há sempre almofadinhas de varias idades que tomam sol horas a fio só
para dizerem piadas ás moças que passam desacompanhadas. São os elegantes da cidade na
maioria tão cretinos que até a gente fica com pena deles.
Agora, na rua São Bento (denominada no período colonial rua Direita de
São Bento, pois era desta direção que a rua partia da antiga Igreja de São Bento)
nem a sensação de encolhimento provoca estranhamento. Se o prédio do Crespi
tem nove andares, há na cidade outras construções que têm dez, doze e quinze andares
sempre nos lembrando da possibilidade de ultrapassarmos Nova York, pelo menos
na superação das escalas arquitetônicas.
Demarcando o início e o fim da rua São Bento, bastante simpática, asfaltada, o
autor destaca dois elementos da paisagem central cuja importância, como pontos
de referência, não pode ser negada. O primeiro é a estátua do paulista José
Bonifácio de Andrada e Silva, patriarca do processo de independência do Brasil,
figura sempre reverenciada pela burguesia quatrocentona, da qual, aliás o escritor
fazia parte. A estátua encontra-se ainda hoje próxima do local descrito, mesmo
após tantas intervenções urbanísticas, com seu ar tranqüilo, contrastando com o da
população que pelo centro circula ligeira, indiferente àquele homem de casaca,
perdido no meio de tantas edificações, placas, carros e gente.
Quem hoje marcaria um encontro na praça do Patriarca? Quem encontraria
quem naquele ambiente caótico mais propício ao desencontro? Naquela época
porém parecia haver mais que encontros marcados ou fortuitos na praça do
Patriarca. O que acontecia no meio, na coluna, que é mesmo uma indecencia? Não
importa, o relevante aqui é o tom indignado a alguns comportamentos assumidos
no espaço público.
120
A modernidade, para além de representar uma mudança radical na vida
material, introduzida pelas novas tecnologias, representou a ruptura das antigas e
seculares formas de relações, destruindo e recompondo hierarquias, laços e
comprometimentos. O quanto esse turbilhão arrasou e simultaneamente recriou,
fazendo surgir novos hábitos, posturas, comportamentos e valores é algo ainda não
totalmente aquilatado. Nem todos os homens e mulheres diante do novo estado de
coisas se conformaram àquelas mudanças abruptas de condutas, atitudes e reações.
Alguns se entregaram por inteiro, outros se adaptaram, mas muitos não cederam e
resistiram com a mesma ferocidade que o novo tentava se impor.
António de Alcântara, com sua ironia peculiar, incorpora, ou melhor, se
transveste em certos momentos de alguns desses homens que, por um lado,
percebem, legitimam e se orgulham do desenvolvimento econômico e material da
cidade: o prédio do Crespi que tem nove andares. O que hoje não é nada porque há no centro
da cidade e fóra dele mesmo construções que têm dez, doze e quinze andares, de forma que S.
Paulo continuando assim é capaz de bater a própria Nova-York, entretanto, por outro, são
refratários às mudanças comportamentais, se enchem de indignação com a pletora
de posturas ousadas que invadem os lugares públicos.
O autor se coloca no papel dos homens divididos, repartidos entre dois
mundos irreconciliáveis: de um passado recente, cujos vestígios e ruínas se
espalham ainda pela cidade, nas memórias e nos espíritos e do presente que a cada
novo dia se impõe, rearticulando e recriando as relações dos habitantes com a
cidade e entre eles próprios.
A operação reflete bem a crise que a modernidade instaura no mundo.
Processo tenso e contraditório gera indivíduos à sua imagem. A riqueza dessa nova
realidade não pára por aí. Ao olhar ingênuo, domesticado, indiferente, venerador e
indignado, outros serão somados até o final do passeio. A cidade sempre inspira
vários olhares sobre ela mesma.
Seguindo até o final da rua, chegando no largo São Bento, encontraremos
outro ponto de referência que marcava a paisagem central, o relógio público de
três faces. Este desapareceu, restando hoje um exemplar tipo de Níchile situado no
início da avenida São João, com a rua São Bento. Através dos registros
iconográficos do período podemos compreender sua importância.
3
Marcador do tempo e, em vários sentidos, de um novo tempo, era para ele
que os olhares apressados e inquietos convergiam. Como toda metrópole moderna,
São Paulo desejava marcar seu tempo coletivo com precisão.
3
Existem várias fotografias que retratam o Largo São Bento na década de vinte e nelas o relógio aparece,
quase sempre, como o objeto central. O registro mais real e emocionante daquele e de outros espaços da cidade é o
documentário silencioso “São Paulo, a symphonia da metrópole”, filmado em 1929 pelos húngaros Adalberto
Kemeny e Rodolpho Rex Lusting. O filme, restaurado recentemente pela Cinemateca Brasileira, mostra o já
completo frenesi na região central. Em pelo menos um dos planos o Largo São Bento com o relógio é focalizado.
121
O relógio foi plantado no meio do largo que funcionava como uma rotunda.
Os automóveis o circulavam em alta velocidade: Tem tambêm muitos automóveis de
luxo, mas os chôfers são uns aguias e a policia nem se incomoda. Não só para acompanhar a
nova temporalidade instaurada no espaço urbano, mas para impressionar a porção de
criadas, outro grupo destacado pelo autor, que além dos choferes, ocupava o largo.
As mesmas pessoas que paravam no largo São Bento para ver o tempo
passar, paravam na praça do Patriarca para ver a pose engraçada dos guardas de
trânsito. O que provocava graça naquele povo desabituado até às novas posturas,
aos novos posicionamentos dos corpos? Talvez a posição endurecida dos guardas,
movimentando única e mecanicamente as mãos na tentativa de controlar o fluxo de
gente, carros, automóveis, carroças e bondes.
Em frente ao prédio da elegante Casa Mappin Stores ficava o grupo dos
desocupados, os playboys, os janotas, os elegantes da cidade, no flerte diário e também
nas investidas junto ás moças que passam desacompanhadas. Esse grupo tão elegante
tornava-se nessa atitude tão vulgar e fútil que merece do autor pena e compaixão.
Por fim viremos a esquina e nos encontraremos em plena rua Direita:
Por último vem a rua direita completamente torta. É a mais chique da cidade. Nela as
meninas que querem casar e as mulheres que querem outra cousa se exibem principalmente aos
sabados. Então os moços ficam parados á beira das calçadas e elas vão da Casa Mappin á Casa
Lebre e depois voltam. Isso a tarde inteira sem parar. Parece que em Paris tambêm é assim e é
por isso que a policia não leva os tais e as tais direitinho para o xadrez. Mas que mereciam,
mereciam mesmo.
Na rua Direita é que está a Casa Alemã. No último andar desse estabelecimento
comercial é que está o salão de chá que desbancou o da Casa Mappin. É muito limpo, mas o
pessoal que vai lá só quer saber de se mostrar e namorar. Uma espécie de corso da avenida
Paulista parado e fechado com direito a comidas e bebidas. Pelo menos tem o mesmo fim.
Ainda nessa rua Direita ficam reunidas em grupo as pessoas que falam mal da vida
alheia. São muitas e quási todas de bonita posição. Tudo que dizem é inventado mas não faz
mal porque dá prazer e faz efeito. Para esses sujeitos todas as mulheres de S. Paulo enganam os
maridos quási sempre com eles mesmos sujeitos. E aí é que está o goso. Parece que todo paulista
já nasce com esse costume feio de inventar e contar escandalos da sociedade. É só para isso que
existem o Automóvel Clube, a porta do Jornal do Comércio, os salões de barbeiro, o refúgio da
praça do Patriarca e outros lugares.
A rua Direita, antiga rua Direita de Santo Antônio (seu nome original
remonta à sua localização em relação à Igreja de Santo Antônio) foi a passarela da
moda na cidade. Nela também rapazes e mulheres se exibiam e se lançavam às
conquistas ligeiras, tal qual em Paris.
122
Além das Casas Mappin e Lebre, estabelecimentos comerciais de artigos
chiques, a rua abrigava outras elegantes casas do comércio varejista, como as
Casas Lemke e Paiva. Na Casa Alemã encontrava-se o deslumbrante salão de chá
que o autor compara àqueles desfiles de carros e automóveis da avenida Paulista, o
corso. Mas um corso parado, contido naquele ambiente de aparências.
A ruidosa rua Direita, completamente torta, foi principalmente a rua do
mexerico, da bisbilhotice da vida alheia e é nisso que reside, segundo o autor, um
traço de caráter fundamental do paulista, sempre exercitado nos lugares públicos e
privados: Parece que todo paulista já nasce com esse costume feio de inventar e contar
escandalos da sociedade.
Assim completamos o passeio no Triângulo, porém o autor ainda prossegue
descrevendo as suas adjacências:
Fóra do Triangulo há ainda ruas e praças importantes como a rua bero Badaró que já
foi muito pandega, mas agora tomou juizo e se alargou; a praça da Sé com uma catedral que se
acabar será a primeira da América do Sul de tão alta e larga, uma espécie de garage ao ar livre e
vários pausinhos pintados de branco e vermelho para o carioca pensar que S. Paulo é uma
cidade de formidavel movimento e morrer de inveja; o largo de S. Francisco em que fica a
Faculdade de Direito de onde saíram a Abolição e a República e hoje saem funcionários
públicos; o largo do Palácio, lugar muito histórico porque foi nele que o padre Anchieta fundou
a cidade sem prever o monumento da fundação porque se previsse não fundava nada; a avenida
São João muito querida dos vendedores ambulantes e dos senhores membros da Camara
Municipal; a rua da Boa Vista que de repente pára porque o viaducto não há meio de sair mas
é muito necessario, pois encurtará a distancia que separa o hotel dOeste, onde se hospedam os
directórios do interior, do palácio do exmo. Governo, e assim por diante.
Eu embirro solenemente com o centro da minha cidade natal. Por isso, se fosse a policia,
mandava fechar o Triangulo e prendia toda a gente que vive nele, menos o vassoureiro que
apregoa em francês, o velhinho das castanhas sêcas, o Bródo, o cego da travessa do Grande
Hotel e uma pessoa que eu não digo, porque essas são creaturas inocentes que não têm culpa do
progresso de S. Paulo e dos seus fóros de cultura e civilização.
António de Alcântara Machado
Alguns locais mereceriam ser incluídos no roteiro, pois revelam outros
ambientes pitorescos. Observemos a praça da Sé, espaço que por muito tempo
desempenhou a função de garagem de carros e depois automóveis, e de canteiro
das obras de uma catedral cuja construção demorou décadas e o autor não viu
concluída, pois faleceu vinte anos antes da sua inauguração.
Da praça da Sé ao largo de São Francisco, onde situa-se a Faculdade de
Direito, verdadeiro reduto da vanguarda intelectual e política, símbolo de lutas e
123
resistências históricas, mas que já no período retratado apresentava mudanças e se
transformava em fornecedora de funcionários para a burocracia do Estado.
De um largo ao outro chegamos ao do Palácio, no pátio do Colégio, sede do
Governo do Estado. Local da construção do primeiro colégio dos jesuítas e do
monumento que comemora a fundação da cidade, que por sinal não agradava
muito ao escritor.
Avenida São João, rua Líbero do Badaró e rua Boa Vista são outros
logradouros que guardam fatos importantes da formação e desenvolvimento
histórico da cidade.
Até as mazelas da política local são lembradas e relacionadas aos aspectos
físicos e às edificações: a rua da Boa Vista que de repente pára porque o viaducto não há
meio de sair mas é muito necessario, pois encurtará a distancia que separa o hotel dOeste, onde
se hospedam os directórios do interior, do palácio do exmo. Governo, e assim por diante.
É no último parágrafo da crônica que encontramos uma das chaves para a
compreensão da visão de modernidade de António de Alcântara.
Após antipatizar com inúmeros lugares, aspectos, ângulos, e com várias
situações, acontecimentos e episódios do centro da cidade, o autor desvia seu olhar
dos grupos que povoam a região, alguns dos quais inclusive para ele deveriam
estar presos, e o lança para certos tipos peculiares que transitavam pela área
central ocupados com seus trabalhos desqualificados, defendendo com suor suas
vidas. Esse olhar é agora de ternura.
Intelectual preocupado com as mudanças do seu tempo, integrou-se àqueles
acontecimentos e testemunhou as transformações da sua sociedade. A
configuração das novas formas de existência mereceu especial atenção de António
de Alcântara.
O processo de modernização foi avassalador pelo modo como se sucedeu,
assim como nos efeitos e resultados que produziu. Neste sentido, é impossível
falar de desenvolvimento ou progresso como bem geral, vivido e desfrutado
coletivamente.
Cada homem e cada mulher, na conversa em um salão de chá, no desfile
ostentatório pela rua mais chique da cidade ou simplesmente no trabalho
doméstico e velado, na dureza do comércio das ruas viveram situações
radicalmente diferentes e conflituosas dentro da mesma realidade.
António de Alcântara procurou observar e narrar esses dramas do cotidiano
apesar da barreira social e ideológica que separava sua classe das camadas
populares.
4
São essas criaturas inocentes que não têm culpa do progresso de S. Paulo e dos
4
Já vimos que na apresentação de Brás, Bexiga e Barra Funda, notícias de São Paulo, António de
Alcântara alerta: BRÁS, BEXIGA E BARRA FUNDA como membro da livre imprensa que é tenta fixar tão
sómente alguns aspectos da vida trabalhadeira, íntima e quotidiana desses novos mestiços nacionais e
124
seus foros de cultura e civilização, são o vassoureiro que apregoa em francês, o velhinho das
castanhas sêcas, o Bródo e o cego da travessa do Grande Hotel, com suas vestes simples e
brados inesquecíveis, que merecem ficar no centro do centro da cidade que o
escritor tanto amou.
Em 1935, mesmo ano em que António de Alcântara faleceu, chega à São
Paulo uma missão universitária francesa contratada pela burguesia local para que
nacionalistas (grifo meu). É um jornal. Mais nada. Noticia. Só. Não tem partido nem ideal. Não comenta. Não
discute. Não aprofunda. Principalmente não aprofunda. Em suas colunas não se encontra uma única linha de
doutrina. Tudo são factos diversos. Acontecimentos de crónica urbana. Episódios de rua. O aspecto étnico-
social dessa novíssima raça de gigantes encontrará amanhã o seu historiador. E será então analisado e pesado
num livro. É importante retermos essa proposta do autor de registrar em seu livro, e por extensão em sua obra,
alguns detalhes do dia-a-dia das colônias italianas. Não pretendeu assim captar a essência da vida e da cultura desses
bairros. Menos ainda ser o historiador (engajado) do aspecto étnico-social dessa novíssima raça, dessa gente. Com
suas intenções claramente expostas, as críticas que a ele foram feitas, de ser um aristocrata que observava o povo
com um olhar distante, uma atitude irônica, mais de divertissement, ou seja, sem se identificar com o sofrimento da
população mais pobre e trabalhadora, no meu entendimento são infundadas. António de Alcântara se reconhecia um
aristocrata, fiel às tradições e a história paulista, mas mesmo assim ansiava por transformações (na gramática
portuguesa, passando pelo estilo literário e até a estrutura política, econômica e cultural do país). António de
Alcântara Machado era um homem cindido entre a tradição e a modernização. O crítico e professor de literatura
Alfredo Bosi vê no seu estilo e na sua temática, um populismo literário ambíguo. E a respeito de Brás, Bexiga e
Barra Funda, notícias de São Paulo escreveu: Nelas (nas páginas dos contos de António de Alcântara), uma análise
ideo-estilística mais rigorosa não constata nenhuma identificação coerente com o imigrante, “pitoresco” no
máximo, patético porque criança (o conto célebre do Gaetaninho), mas, em geral, ambicioso, petulante, quando
capaz de competir com as famílias tradicionais em declínio. O populismo literário é ambíguo: sentimental mas
intimamente distante (...) Antônio de Alcântara Machado era tão filho e neto de mestres das Arcadas quanto
entusiasta da primeira hora dos desvairistas e primitivistas: foi, assim, uma inclinação liberal e literária pelo
“pitoresco” e pelo “anedótico” que o fêz tomar por matéria dos seus contos a vida difícil do imigrante ou a sua
embaraçosa ascensão. Creio que êsses dados de base ajudem a entender os limites do realismo do escritor, visíveis
mesmo nos contos melhores, onde o sentimental ou o cômico fácil, mimético, acabam por empanar uma visão mais
profunda e dinâmica das relações humanas que pretendem configurar. Bosi, “O prosador do modernismo paulista:
Antônio de Alcântara Machado” in História concisa da literatura brasileira, pp.420-2. Não concordo que o
escritor pretendia configurar uma visão mais profunda e dinâmica das relações humanas. O que de fato pretendia, e
o fez com bastante brilhantismo, foi nos dar um retrato, não só fisionômico, mas também do comportamento, da
gestualidade e da fala dos novos tipos e demonstrar a posição diferenciada que cada um ocupava no meio paulistano
em transformação. Nesse sentido sua obra foi cinemática, pois se preocupou somente em descrever os movimentos
desencadeados pelo processo modernizador, sem se ocupar em apontar as forças responsáveis pelas novas relações
em curso. Não procurou as razões, não julgou, não denunciou, não tomou partido, enfim, não foi o crítico social e
engajado que alguns esperavam, embora seus textos deixem entrever uma comoção diante da existência sofrida de
grande parte da população, em especial dos distritos italianos. O humor tão apreciado pelos modernistas
manifestava-se de diferentes formas: na piada, na paródia, na auto-referência. Digo isso, pois há um escrito de
António de Alcântara, parte de uma peça de teatro inacabada (o autor não foi além do primeiro ato), intitulada O
nortista, em que dois revisores travam o seguinte diálogo: O chefe da revisão sai. Hércules vai ao fundo tira o
chapéu e o paletó do cabide, põe o chapéu e vem vestindo o paletó na direção de Benedito sentado, com os
cotovelos na mesa, mãos aparando o rosto. RCULES Que tristeza é essa moço? BENEDITO Ah!
Seu Hércules, você é meu amigo? HÉRCULES Muito. Mas você viu: o aumento só no mês que vem...
BENEDITO Não é isso não. É coisa muito diferente. RCULES Que é que há? BENEDITO
125
seus membros lecionassem nos departamentos da área de ciências humanas da
recém fundada Universidade de São Paulo. Para a cadeira de sociologia foi
designado um jovem professor de vinte e sete anos chamado Claude Lévi-Strauss.
No grupo, além deste, sua esposa Dina, o historiador Fernand Braudel, o geógrafo
Pierre Monbeig, o filósofo Jean Maugüé, entre outros. Todos obscuros professores
secundários em liceus franceses promovidos a professores universitários pela
missão.
Esses jovens desembarcaram em São Paulo em pleno carnaval, como
relembra Lévi-Strauss:
Meus colegas e eu havíamos chegado a São Paulo em pleno Carnaval. Na mesma noite
saímos em exploração através da cidade. Num bairro popular, uma casa baixa com janelas
abertas deixava ouvir uma música tonitruante e viam-se pessoas dançando. Aproximamo-nos,
um negro alto que guardava a porta disse que podíamos entrar para dançar, mas não para
olhar. Dançamos portanto com aplicação, receio que sem a menor habilidade, e causando
muitos incômodos às mulheres jovens, negras também, que, numa total indiferença, aceitavam
nossos convites.
5
A permanência necessária de Lévi-Strauss na cidade até 1937, quando se
lança em viagem de exploração pelo interior do Brasil, até Mato Grosso, e realiza
suas pesquisas entre os grupos indígenas Bororo, Nambiquara e Cadiveo, relatadas
no clássico Tristes Trópicos, associada a sua curiosidade, seu olhar perspicaz e
seus conhecimentos socioló gicos o estimula a percorrer constantemente as ruas da
cidade. Tudo lhe fascina: a diversidade das paisagens e vegetação, a língua, os
costumes e o clima tropical. Sobre essas andanças relata:
(...) Aqueles entre meus ex-alunos que lançarem os olhos sobre estas linhas se lembrarão
talvez da importância que tinha a cidade em meu ensino. À guisa de trabalhos práticos, eu lhes
propunha a rua onde moravam, o mercado ou o cruzamento mais próximo, cabendo-lhes
Ah! Hércules, eu tenho um sentimento de ser preto... RCULES Ora essa! No Brasil não há preconceito
de raças. Os nossos sentimentos de humanidade... BENEDITO Discurso, Hércules. Eu queria ter nascido
branco nem que fosse para ser italiano... RCULES For-mi-dá-vel! Machado, Novelas paulistanas,
pp.315-6. Os originais desse texto estão na biblioteca de Guita e José Mindlin. Não sabemos a data precisa de sua
produção (há uma carta de Rodrigo de Mello Franco, a quem o escritor enviara uma cópia da peça inacabada datada
de 15 de dezembro de 1931), mas sim que o texto aparece publicado a primeira vez no suplemento “Autores e
Livros” do jornal A Manhã (RJ) de 16 de maio de 1943. Por esse tipo de humor (irônico, às vezes, ácido) presente
em O Nortista, António de Alcântara também foi acusado de preconceituoso. Outras críticas à postura do autor
frente aos imigrantes podem ser encontradas nos seguintes artigos de Maria Alice de Oliveira Faria: Brás, Bexiga e
Barra Funda, uma anti-homenagem, no Correio do Povo, Porto Alegre, 17 de fevereiro de 1963; Antônio de
Alcântara Machado e o imigrante no O Estado de S. Paulo, São Paulo, 5 e 12 de novembro de 1966. Por outro lado,
há outros autores (Múcio Leão, por exemplo) que também defendem uma visão mais generosa de sua obra em
relação aos imigrantes. Esta é uma rica discussão que deve ser retomada em novos trabalhos sobre o escritor.
5
Lévi-Strauss, Saudades de São Paulo, p.43.
126
observar e descrever a repetição no espaço do tipo de habitação, das categorias sociais e
econômicas, das atividades profissionais etc. Talvez alguns desses trabalhos ainda existam.
Em São Paulo, ao interesse de nossas pesquisas era acrescido o fato de a geografia local
impor coerções de outro tipo. Poucas cidades foram construídas num terreno tão acidentado,
ou, mais exatamente num terreno que as obras públicas, no momento em que lá me encontrava,
não haviam ainda modificado substancialmente. Num olhar de relance percebia-se que a cidade
se estendia sobre as elevações e as encostas de um planalto que vários cursos d’água tinham
escavado. Donde um perfil inverso ao do Rio de Janeiro, e que explica que nesta última as
habitações mais pobres se situassem nos morros desfavorecidos pela falta d’água, enquanto em
São Paulo se situavam nos baixios, pela razão inversa de que os riachos engrossados pelas
chuvas constituíam ali um sério inconveniente. As coerções geográficas e as coerções
sociológicas se combinavam, ora adicionando e ora opondo suas forças para engendrar
situações completas que nos dedicávamos a deslindar.
(...) Mas o que eu gostaria de sublinhar aqui é que minhas especulações não teriam sido
possíveis se o simples fato de viver em São Paulo, de percorrer a cidade a pé em longos
passeios, não me tivesse exercitado em considerar o plano de uma cidade e todos os seus
aspectos concretos como um texto que, para compreendê-lo, é preciso saber ler e analisar.
Pois, naquele tempo, podia-se flanar em São Paulo. Não como em Paris ou em Londres,
diante de lojas de antiguidades. Se estou bem lembrado, São Paulo possuia apenas uma, que se
chamava, creio, Corte Leal. Em vez de cerâmicas pré-colombianas e dos objetos indígenas que
se esperava ver, na vitrine havia somente uma louça cabila, aliás quebrada. Comprei para
minha casa da rua Cincinato Braga quatro ou cinco móveis brasileiros do fim do século
passado, em jacarandá maciço, como se viam ainda em algumas fazendas, e fora de moda na
cidade. Mas, justamente, não era preciso pedir à cidade outros objetos de contemplação e de
reflexão senão ela mesma: imensa desordem em que se misturavam numa confusão aparente
igrejas e prédios públicos da época colonial, casebres, edifícios do século XIX e outros,
contemporâneos, cuja raça mais vigorosa tomava progressivamente a dianteira. (...)
O encanto da cidade, o interesse que ela suscitava vinha primeiro de sua diversidade.
Ruas provincianas onde o gado retardava a marcha dos bondes; bairros deteriorados que
sucediam sem transição às mais ricas residências; perspectivas imprevistas sobre vastas
paisagens urbanas: o relevo acidentado da cidade e as defasagens no tempo, que tornavam
perceptíveis os estilos arquitetônicos, cumulavam seus efeitos para criar dia após dia
espetáculos novos. Bairros nasciam. Assim, ao norte do cemitério do Araçá, as colinas do
Pacaembu mal começavam a se urbanizar e painéis publicitários propunham terrenos à venda.
Aqui e ali na cidade, cartazes evocavam atividades industriais ou políticas. Um outro enaltecia
os sucesso da imigração japonesa, então em pleno desenvolvimento.
6
6
Id., ibid., pp.14-7 e p.69.
127
As rápidas transformações pelas quais a cidade atravessava lhe chamavam a
atenção:
Um espírito malicioso definiu a América como sendo uma terra que passou da barbárie
à decadência sem conhecer a civilização. Poderíamos, com muita razão, aplicar essa fórmula às
cidades do Novo Mundo: vão da frescura à decrepitude sem se deterem na Antiguidade. (...) A
passagem dos séculos representa uma promoção para as cidades européias; para as
americanas, a simples passagem dos anos é uma degradação. Porque elas não estão apenas
construídas de fresca data: são construídas para poderem renovar-se com a mesma velocidade
com que foram erguidas, isto é, mal. No instante em que se ergueram os novos bairros, quase
não chegam a ser elementos urbanos: são demasiado novos, brilhantes e alegres para o serem.
Assemelham-se mais a uma feira, a uma exposição internacional construída para durar alguns
meses. Passado este período de tempo, acaba a festa e essas bugiganas (sic) gigantescas
definham: as fachadas estalam, a chuva e o fumo enchem-nas de sulcos, o estilo passa de moda,
a ordenação arquitectônica primitiva desaparece com as demolições que são exigidas, e
também por uma nova impaciência.
(...), ao chegar a São Paulo em 1935, não foi portanto a novidade o que primeiro me
espantou, mas sim a precocidade dos estragos causados pelo tempo. (...)
Em 1935 os paulistas vangloriavam-se por se construir na sua cidade, em média, uma
casa por hora. Tratava-se nessa altura de vivendas; garantem-me agora que o ritmo se
conservou com respeito aos prédios de andares. A cidade desenvolve-se com tal rapidez que é
impossível seguir um plano: seria necessário reeditá-lo todas as semanas. Dizem mesmo que se
nos dirigirmos de táxi a uma entrevista marcada com algumas semanas de antecedência
arriscamo-nos a chegar com a antecipação de um dia a construção do quarteirão. Nestas
condições, a evocação de recordações com 20 anos de idade é semelhante à contemplação
duma fotografia amarelecida. Quando muito pode ter um interesse documental; despejo o fundo
das minhas gavetas da memória nos arquivos municipais.
São Paulo era descrita nessa época como sendo uma cidade feia. (...)
E todavia São Paulo nunca me pareceu feia: era uma cidade selvagem.
7
Essa cidade com aspectos de metrópole, mas com traços de um passado
colonial evidenciava contrastes que também já haviam sido apontados por António
de Alcântara, na crônica datada de 1926. Passados dez anos, essa cidade indômita
ainda não se deixa capturar por inteiro. Acompanhemos Lévi-Strauss num passeio
pelas ruas da cidade, saindo de sua casa, na região da avenida Paulista:
Eu alugava na rua Cincinato Braga uma casa térrea construída provavelmente no início
do século e cujo número, não sei por quê, mudou várias vezes durante minha estadia. Era um
bairro antiquado, tranqüilo, embora bem mais próximo do centro que os Jardins Paulista,
7
Lévi-Strauss, Tristes Trópicos, pp.89-91.
128
América —, onde meus colegas, cedendo à moda, haviam escolhido residir. Das janelas de
minha casa, situada quase na esquina com a rua Carlos Sampaio, percebia-se através das
ramagens um muro que corria ao longo da rua Cincinato Braga, encerrando jardins.
Paralela à avenida Paulista, em nível um pouco inferior, a rua Cincinato Braga situava-
se ainda nas elevações de onde, a alguma distância, descortinava-se o vasto panorama de um
bairro em plena desordem. Eu perambulava com freqüência por essa região, fascinado pelos
contrastes entre construções muito modernas, avenidas ainda provincianas, colinas quase
rústicas e uma parte da cidade que conservava um aspecto de aldeia. (...)
Para ir da rua Cincinato Braga ao centro da cidade, distante dois ou três quilômetros,
eu descia, na maior parte das vezes a pé, a avenida Brigadeiro Luís Antônio, de aspecto
suburbano, geralmente atravancada de transeuntes e de bondes. Chegava-se a seguir ao vale do
Anhangabaú, atravessado pelo viaduto do Chá, que une os dois centros, antigo e novo, da
cidade. (...)
Bem abaixo dos importantes prédios que cercavam o vale e dominada por eles, uma rua
popular e margeada de casa baixas e quitandas oferecia a imagem de uma São Paulo que se
pressentia desapareceria em breve.
8
(...) Por exemplo, a saída de duas ruas divergentes que vão em direcção ao mar
desembocamos à beira da ravina por onde corre o rio Anhangabahu, franqueado por uma ponte
que é uma das artérias principais da cidade. A parte de baixo está ocupada por um parque em
estilo inglês: relvados ornados de estátuas e quiosques; enquanto que pelas vertentes acima, se
erguem os principais edifícios: o Teatro Municipal, o Hotel Esplanada, o Automóvel Clube, os
escritórios da companhia canadense que se encarrega da iluminação e dos transportes. Os seus
volumes heteróclitos enfrentam-se no meio de uma desordem estática. Esses edifícios em
posição de combate fazem lembrar grandes rebanhos de mamíferos reunidos no fim da tarde à
volta dum bebedouro, imóveis e hesitantes durante alguns instantes; estão condenados, por uma
necessidade mais premente do que o receio, a misturar temporariamente as suas espécies
antagónicas. A evolução animal realiza-se segundo fases mais lentas do que as da vida urbana;
se eu contemplasse hoje o mesmo local, talvez verificasse o desaparecimento do rebanho
híbrido, esmagado por uma raça mais vigorosa e mais homogénea de arranha-céus,
implantados nessas margens fossilizadas pelo asfalto duma auto-estrada.
9
O roteiro inclui também o Triângulo, ainda o centro dos negócios da cidade:
(...) Logo por trás ficava o centro de negócios, fiel ao estilo e aspirações da Exposição
de 1889: a Praça da Sé, praça da catedral que podia considerar-se a meio caminho entre o
estaleiro e a ruína. E a seguir o famoso Triângulo, de que São Paulo se orgulhava tanto como
Chicago se orgulhava do seu Loop: uma zona de comércio formada pela intersecção das ruas
8
Lévi-Strauss, Saudades de São Paulo, p.49 e 61.
9
9
Lévi-Strauss, Tristes Trópicos, pp.93-4.
129
Direita, S. Bento e 15 de Novembro, vias atulhadas de letreiros, pejadas duma multidão de
comerciantes e empregados que proclamavam pelos seus fatos escuros a sua adesão aos valores
europeus ou norte americanos, juntamente com o seu orgulho dos 800 metros de altitude que os
libertava dos relentos do trópico — que todavia atravessava em cheio a cidade.
(...) Avenida S. João, artéria com vários quilómetros de comprimento que começara a
ser traçada paralelamente ao Tiete, seguindo o percurso da velha estrada do Norte em direcção
a Ytu, Sorocaba e das ricas plantações de Campinas. A avenida, presa pela ponta à extremidade
do esporão, precipitava-se por entre os escombros de bairros antigos. À direita deixava
primeiro para trás a Rua Florêncio de Abreu, que levava à estação por entre os bazares sírios
que forneciam de bugigangas o interior inteiro e por entre pacíficas oficinas de seleiros e
estofadores nos quais prosseguia sabe-se lá por quanto tempo mais? o fabrico das altas
selas de couro trabalhado, das mantas dos cavalos feitas de grandes tranças de algodão e dos
arreios, com decorações em prata com relevos para utilização dos plantadores e peões do mato
vizinho. A seguir, a avenida passava junto de um arranha-céus, nessa altura único e inacabado
— o rosado Prédio Martinelli.
10
(...) em 1935 ele era ao mesmo tempo um referencial e um símbolo.
Único arranha-céu de toda a cidade, aos olhos dos paulistanos simbolizava a ambição
de que esta se tornasse a Chicago do hemisfério sul. Ambição que se realizou desde então, e foi
além...
O prédio Martinelli era também um referencial cuja silhueta dominava todos os outros
prédios. Era visto de quase toda a parte, mesmo do fundo dos barrancos escarpados que
desciam das elevações onde corria a avenida Paulista. Ainda entregues à natureza, esses
barrancos abrigavam as habitações mais pobres, com os riachos, à guisa de esgotos,
transformados em torrentes quando chovia.
Mas o arranha-céu impunha sua presença majestosa sobretudo no início da avenida São
João, artéria nova cuja abertura não estava ainda terminada. Descendo a pé a avenida em
direção ao oeste, ficava-se obsedado por sua massa rosada que se percebia toda vez que se
olhava para trás. Mesmo à distância, ela obstruía o horizonte, tanto de dia como ao anoitecer,
quando as ornamentações feitas para o Carnaval se iluminavam.
11
Seguimos na direção oeste:
(...), e enfiava-se pelos Campos Elísios, outrora passeio dos ricos, onde, em jardins de
eucaliptos e mangueiras, caíam em ruínas vivendas de madeira pintada; e chegava-se à popular
Santa Ifigênia, rodeada por um bairro reservado de mansões com sobrelojas elevadas de cujas
janelas as raparigas chamavam os transeuntes. Finalmente, nas orlas da cidade iam
10
Id., ibid., pp.91-2.
1
11
Lévi-Strauss, Saudades de São Paulo, p.23.
130
aumentando os arruamentos pequeno-burgueses de Perdizes e de Água Branca, que se fundiam
a sudoeste com a colina verdejante e mais aristocrática de Pacaembu.
12
Para retornar a região da avenida Paulista:
Para o sul (...) avenidas modestas que são unidas no cume, verdadeira espinha dorsal de
relevo, pela Avenida Paulista, que ladeia as vivendas outrora faustosas dos milionários do meio
século já decorrido, em estilo de cassino e vila termal. Mesmo na ponta, a leste, a avenida
domina a planície que se estende abaixo do bairro novo Pacaembu, no qual as vivendas cúbicas
se erguem desordenadamente, ao longo de avenidas sinuosas, salpicadas pelo verde-violeta dos
jacarandás em flor entre taludes relvados e aterros de terra ocre. Mas os milionários
abandonaram a Avenida Paulista. Acompanhando a expansão da cidade, desceram com ela o
lado sul da colina em direcção de quarteirões tranquilos de ruas sinuosas. As suas moradias de
inspiração californiana, construídas em cimento revestido de mica com balaústres em ferro
forjado, avistam-se ao fundo de parques talhados nos bosques rústicos em que estão
implantados esses talhões para ricos.
Pastagens para vacas estendem-se junto de edifícios de betão, um bairro surge como
uma miragem, avenidas ladeadas por residências luxuosas são interrompidas de ambos os lados
por ravinas nas quais corre, por entre bananeiras, uma torrente lamacenta que serve ao mesmo
tempo de nascente e de esgoto a casebres feitos de argamassa com estrutura de bambu, nos
quais se pode ver a mesma população negra que, no Rio, acampava no cume dos morros. As
cabras correm ao longo das vertentes. Certos locais privilegiados da cidade conseguem
acumular todos estes aspectos.
13
No prefácio de Saudades de São Paulo, Lévi-Strauss tenta descrever esse
sentimento de fugacidade do tempo, das coisas, dos lugares, das cidades:
A palavra saudade seria intraduzível, dizem os brasileiros; e os japoneses dizem o
mesmo de uma palavra de sua língua, aware. É curioso que essas palavras tenham algo em
comum: seríamos tentados a dar a ambas um sentido próximo de nostalgia. No entanto, nos
enganaríamos, já que nostalgia existe em português e o japonês forjou um sinônimo tirado do
inglês homesick. Os sentidos não são portanto os mesmos.
De acordo com a etimologia, nostalgia refere-se ao passado ou ao longínquo, ao passo
que, parece-me, saudade e aware traduzem uma experiência atual. Seja pela percepção ou pela
rememoração, seres, coisas, lugares são o objeto de uma tomada de consciência impregnada do
sentimento agudo de sua fugacidade.
Se, no título de um livro recente, apliquei ao Brasil (e a São Paulo) o termo saudade,
não foi por lamento de não mais estar lá. De nada me serviria lamentar o que após tantos anos
12
Lévi-Strauss, Tristes Trópicos, p.92.
13
Id., ibid., p.93.
131
não reencontraria. Eu evocava antes aquele aperto no coração que sentimos quando, ao
relembrar ou rever certos lugares, somos penetrados pela evidência de que não há nada no
mundo de permanente nem de estável em que possamos nos apoiar.
14
A efemeridade das paisagens, dos ambientes, das ruas, e das casas já haviam
tocado António de Alcântara. No fragmento inédito de um possível romance,
localizado por Cecília de Lara em abril de 1981, na Seção de obras raras da
Biblioteca Municipal Mário de Andrade e publicado na edição de 1988 de Novelas
paulistanas com o título de Fragmento de Capitão Bernini, que, segundo a autora,
tudo indica tratar-se de um escrito elaborado após 1927, lemos:
Era no tempo das amoras. Cada quinze minutos uma carroça vinha e descarregava no
terreno baldio o lixo de prédios demolidos. Fazia mais um montinho: terra, cacos de telha, de
tijolos, de ladrilho vermelho, pedaços de parede azul, restos podres de vigamento, cimento.
Adriano vulgo Russinho pegava uma pedrinha, punha no estilingue, fazia pontaria com um
olho só, matava as baratas. Sentado numa lata velha. Ou então catava carrapicho, se escondia
atrás da touceira perto da rua e ia carimbando quem passava. De preferência as negras que
voltavam da feira. Até que uma carroça chegou, despejou o que tinha que despejar, o carroceiro
desatrelou o burro, deu milho para ele, a carroça virou os varais para o céu. Este sem nuvens. O
homem sentou ali perto de pernas abertas, o embrulho do almoço entre as pernas, começou a
comer com o canivete. Portanto já eram onze horas.
Então Russinho pegou nos livros, foi até o fundo, pôs os livros no chão e subiu na
árvore. Ficou logo com os lábios e os dedos roxos papando amora. Só desceu da árvore quando o
pretinho Ananias que bancava o carregador nos dias de feira apareceu com a sua cesta já dando
o prego. Ananias desafiou Russinho para um joguinho de parede. Mas Russinho não tinha
dinheiro. E a leite de pato não tinha graça. Deitados na sombra, falaram de futebol. A
conversa esquentou: trocaram palavrões. Ananias se levantou, enfiou o braço na cesta, se
afastou vinte passos, soltou o palavrão mais pesado e fugiu correndo. Russinho gritou: É você!
E ficou olhando o burro cada vez mais perto dele. ouviu um assobio.
Era o Tó que vinha do Grupo junto com o Nicolau, o Afonso e o Alfredo irmão dele.
Toda a saparia da Vila Rosa. Russinho pós os livros debaixo do braço, Nicolau tirou a bolinha
de meia do bolso e os cincos desceram chutando a rua da Barra Funda.
Tó falou:
Você está desgraçado, Russinho.
Era por causa da vadiagem. fazia dez dias que Russinho cabulava as aulas. Saía de
casa com a História do Brasil, o Primeiro Livro de Leitura e a Aritmética Elementar,
vagabundava pelas ruas, ficava uma porção de tempo vendo ferrar cavalo na alameda Glette,
conversava com um, conversava com outro, entrava nas igrejas, parava na porta das vendas, às
vezes tinha sorte e assistia a uma prisão, esperava o carro de presos, sempre rente, não
14
Lévi-Strauss, Saudades de São Paulo, p.7.
132
perdendo uma palavra, um gesto, bulia com a louca da rua Ana Cintra, por fim ia esperar os
companheiros no terreno baldio da avenida São João para chegarem juntos em casa.
15
Ao caminharmos hoje por essas mesmas ruas, ou o que ainda restou delas
(tanto trabalho humano abandonado!), pouco, ou quase nada, identificamos dessas
décadas. Em algumas edificações daquela época usava-se indicar, normalmente em
um frontão, o ano da sua construção. Algumas dessas casa e prédios, em geral
bastante descaracterizados, ainda resistem teimosamente. Essas ruínas, esses
vestígios são como uma fresta pelas quais podemos expiar um tempo passado,
certificando-nos que somos a continuidade de uma longa história. Parte desta está
registrada na obra desse escritor, desse prosador urbano, António de Alcântara
Machado.
GLOSSÁRIO
1
CAPÍTULO II - BRÁS, BEXIGA, BARRA FUNDA E OUTROS BAIRROS: A CIDADE
CAPTURADA PELO ESCRITOR
Amassou - Amarrotar. Mistura de “amassar”, em português, com “amazzare”, em italiano.
15
Machado, Novelas paulistanas, pp. 320-1.
1
Glossário parcialmente reproduzido da “Atualização ortográfica e notas” in Comentários e notas à edição
fac-similar de Brás, Bexiga e Barra Funda, notícias de São Paulo, pp.75-86, e in Comentários e notas à edição fac-
similar de Laranja da China, pp.51-61, de Cecília de Lara. A esses acrescentei outros vocábulos e significados.
133
Beppino - Apelido italiano de Giuseppe (José).
Bocce - Jogo com bolas pesadas; bocha.
Boléia - Assento do cocheiro.
Buck Jones - Ator americano, famoso na época.
Cachaço - Parte posterior do pescoço.
“Caixa-d’óculos” - Expressão aplicada de modo depreciativo a quem usava óculos.
Camilo Castelo Branco - Escritor português.
Caradura - Bondes reservados aos operários e à população mais pobre. O nome se refere aos
bancos dispostos um em frente ao outro, que obrigava os passageiros a se encararem.
Carcamano - Alcunha jocosa que se dá aos italianos.
Carro - Veículo puxado por cavalos. Quem o dirigia era um cocheiro. “Automóvel” era a
palavra aplicada em lugar do carro, na acepção atual.
Cebolão - Relógio de bolso.
Chaveco - Coisa ou pessoa de pouco ou nenhum valor. Também grafada “xaveco”.
Chibante - Orgulhoso; soberbo; altivo.
Chuchurreadamente - Forma de beijo ruidoso e demorado.
Chumbeava - Forma de nariz arrebitado.
Cícero - Escritor, político, brilhante orador romano.
Cláxon - Buzina. Também grafada “Clácson” ou “Klacson”(do francês). “Klaxon” foi o nome de
uma revista modernista de 1922.
Conto de réis - Unidade monetária equivalente a mil mil réis.
Driblar - Enganar o adversário negaceando com o corpo e mantendo o controle da bola a fim de
ultrapassá-lo. Fintar.
Escangalhado - Arrebentado.
134
Eta - Interjeição que exprime alegria, surpresa, espanto. Usada pelos modernistas que a
aplicavam a si mesmos na expressão: “Eta nós”.
Fagundes Varella - Luís Nicolau Fagundes Varella (1841-1875) poeta romântico.
Fanfulla - Jornal da colônia italiana de São Paulo, partidário do fascismo.
Feitiço - Jogador de futebol famoso na década de 20.
Fiteira - Que faz fita; fingida.
Friendenreich - Jogador de futebol famoso na década de 20.
Gaetaninho - Diminutivo do prenome italiano Gaetano (Caetano).
Galego - Alcunha depreciativa de português.
Gasosa - Refrigerante.
Ginete - Cavalo de raça.
Grelada - De “grelar”, olhar fixamente para uma mulher; paquerada.
Henri Ardel - Escritor francês.
Impedimento - No futebol é a situação em que o jogador se encontra sem nenhum adversário
pela frente antes de a bola lhe ser lançada de trás, o que constitui uma infração.
Intalianinho - Italianinho. Reprodução da fala popular.
Isbregue - Confusão. A forma dicionarizada é “esbregue”.
Lancia Lambda - Marca de carro de luxo.
Mamaluco - Variante de “mameluco”, ou seja, produto do cruzamento do índio com o negro. No
texto tem o sentido da mescla do italiano com o brasileiro.
Marmon - Marca de carro.
Meia-Pretinha - Meia garrafa de cerveja preta.
Moer - Chatear; cacetear (gíria).
Mondrongo - Alcunha depreciativa de português.
135
“Na lata” - Certeiro (expressão).
Organdi - Tecido transparente, usado para roupas femininas.
Palestrino - Torcedor do Palestra, atual Palmeiras.
Palheta - Chapéu de palha.
Pindoba - Nome de um tipo de palmeira. No texto tem o sentido de “bocó”; tolo.
Professora pública - Professora primária da rede oficial.
Quatrocentão - Moeda de 400 réis.
Quinhentão - Moeda de 500 réis.
Ramenzoni - Marca de chapéu.
Refle - Sabre. Baioneta usada por forças policiais.
Salame - No futebol drible; movimento do corpo para se desviar do adversário.
Spartaco Novais Panini - Cantor ítalo-paulista de rapsódias.
Sudan ovaes - Marca de cigarro.
Tiro de Guerra - Uma das formas de prestar serviço militar obrigatório.
Tripeiro - Vendedor de tripa; bucheiro.
Varredeira - Máquinas utilizadas na limpeza pública que varriam as ruas de madrugada.
Washington - Washington Luís Pereira de Souza, presidente do Estado de São Paulo de 1920 a
1924, e da República de 1926 a 1930, quando foi deposto. É autor da frase: “Governar é abrir
estradas”.
CAPÍTULO III - O TRADICIONAL E O MODERNO: A COEXISTÊNCIA DO
PASSADO E DO PRESENTE NO ESPAÇO URBANO
Almofadinha - Homem que se veste com excessivo apuro. Casquilho; exagerado; janota;
elegante.
136
Corso - Desfile de carros e carruagens, inclusive em passeio. Atualmente só se aplica aos
desfiles carnavalescos.
Cotuba - Não foi encontrado dicionarizada nessa forma, foi encontrado “cutuba”, do tupi Ku’tu
bae (o que fere); adjetivo conhecido no Norte e em São Paulo: muito inteligente; muito bom,
bonito, belo; importante; poderoso; valentão.
Grilo - Guardas de trânsito, em São Paulo.
Pândega - Folguedo; festa, ruidoso e alegre; brincadeira; folgança; folia; extravagância.
BIBLIOGRAFIA
DO AUTOR (COMENTADA)
Pathé-Baby. São Paulo: Edição do autor, 1926. Editorial Hélios Limitada. Com
prefácio de Oswald de Andrade de dezembro de 1925 e ilustrações de Antonio
Paim.
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1927. Editorial Hélios Limitada.
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Capistrano de Abreu (separata do tomo 105, vol. 159 - de 1929 - da Revista do
Instituto Histórico e Geographico Brasileiro), outubro de 1929. Vencedor do
prêmio da Sociedade Capistrano de Abreu.
Comemoração de Brasílio Machado. São Paulo: Edição do autor, 1929. Discurso
pronunciado na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco em 14 de
novembro de 1928 e publicado em separata da revista acadêmica O onze de agosto
em março de 1929.
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Anchieta, s.j.(1554/1594). Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira (Coleção
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Notas sobre a vida do padre José de Anchieta realizado pelo escritor em julho de
1933. Há uma segunda edição realizada pela Editora Itatiaia de Belo Horizonte em
1988.
Edições Póstumas
Lira Paulistana. São Paulo: Revista do Arquivo Municipal de São Paulo, outubro
de 1935. Estudo sobre o cancioneiro urbano da cidade de São Paulo com antologia
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saxofone in Obras, vol. 1. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira (em
convênio com o Instituto Nacional do Livro e a Fundação Nacional Pró-Memória),
1983. Organização de Cecília de Lara e direção de Francisco de Assis Barbosa.
Rapsodos do Tietê. São Paulo: Revista do Arquivo Municipal de São Paulo,
novembro de 1935. Estudo sobre o cancioneiro urbano da cidade de São Paulo
com antologia de peças. Há uma segunda edição incluída em Prosa preparatória
& cavaquinho e saxofone in Obras, vol. 1. Rio de Janeiro: Editora Civilização
Brasileira (em convênio com o Instituto Nacional do Livro e a Fundação Nacional
Pró-Memória), 1983. Organização de Cecília de Lara e direção de Francisco de
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Editôra, 1940. Seleção de crônicas e artigos de jornais referentes a diversos temas
e assuntos coletados e selecionados por Sérgio Milliet e Cândido Mota Filho e
prefácio do pai do escritor José de Alcântara Machado.
Braz (sic, na capa; na página de rosto está grafado: Brás), Bexiga e Barra Funda /
Laranja da China. São Paulo: Livraria Martins Editôra, 1944. Introdução de
Sérgio Milliet e capa de Clóvis Graciano.
Novelas paulistanas: I - Brás, Bexiga e Barra Funda, notícias de São Paulo; II -
Laranja da China; III - Mana Maria; IV - Contos avulsos (As cinco panelas de
ouro, Miss Corisco, Guerra civil e Apólogo brasileiro sem véu de alegoria). Rio
de Janeiro: Livraria José Olympio Editôra, 1961. Organizaç ão e Introdução de
Francisco de Assis Barbosa e capa e ilustrações de Poty. O título “Novelas
Paulistanas” foi dado por Francisco de Assis Barbosa e refere-se à toda obra de
ficção do autor. A Livraria Jose Olympio Editôra publicou seis edições de Novelas
Paulistanas. A Editora Itatiaia, de Belo Horizonte, passou a editá-la em 1988
acrescida das pesquisas sobre o escritor e dos inéditos encontrados por Cecília de
Lara.
Novelas paulistanas: I - Brás, Bexiga e Barra Funda, notícias de São Paulo; II -
Laranja da China; III - Mana Maria; IV - Contos avulsos (As cinco panelas de
ouro, Miss Corisco, Guerra civil e Apólogo brasileiro sem véu de alegoria); V -
Inéditos em livro (O mistério da rua general de Paiva - conto, Três milagres de
Anchieta - crônica, Um inédito - sem título - de António de Alcântara Machado, O
nortista primeiro ato de uma peça teatral inacabada, Fragmento de Capitão
Bernini romance inacabado). São Paulo: Itatiaia e Editora da Universidade de
São Paulo (EDUSP), 1988. Introdução de Francisco de Assis Barbosa e capa e
ilustrações de Poty. Esta versão ampliada foi reeditada em 1994 pela Livraria
Garnier do Rio de Janeiro e Belo Horizonte.
A rendição de São Paulo In “Apêndice” de António de Alcântara Machado e o
modernismo obra de Luís Toledo Machado, volume 146 da coleção Documentos
Brasileiros. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editôra, 1970. Documento
jornalístico inacabado.
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Brás, Bexiga e Barra Funda, notícias de São Paulo. São Paulo: Imprensa Oficial
do Estado de São Paulo (IMESP) e Divisão de Arquivo do Estado de São Paulo
(DAESP), 1982. Prefácio de Francisco de Assis Barbosa e comentários e notas de
Cecília de Lara. Edição fac-similar, livro e comentários e notas separados.
Pathé-Baby. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo (IMESP) e
Divisão de Arquivo do Estado de São Paulo (DAESP), 1982. Prefácio de
Francisco de Assis Barbosa e comentários e notas de Cecília de Lara. Edição fac-
similar, livro e comentários e notas separados e acondicionados em estojo.
Laranja da China. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo (IMESP) e
Divisão de Arquivo do Estado de São Paulo (DAESP), 1982. Prefácio de
Francisco de Assis Barbosa e comentários e notas de Cecília de Lara. Edição fac-
similar, livro e comentários e notas separados.
Brás, Bexiga e Barra Funda, notícias de São Paulo. São Paulo: Imprensa Oficial
do Estado de São Paulo (IMESP) e Divisão de Arquivo do Estado de São Paulo
(DAESP), 1983. Apresentação Audálio Dantas. Prefácio de Francisco de Assis
Barbosa e comentários e notas de Cecília de Lara. Edição fac-similar, livro e
comentários e notas condensados em uma única publicação. A última reedição (de
1994) é creditada somente à IMESP.
Prosa preparatória & cavaquinho e saxofone in Obras, vol. 1. Rio de Janeiro:
Editora Civilização Brasileira (em convênio com o Instituto Nacional do Livro e a
Fundação Nacional Pró-Memória), 1983. Organização de Cecília de Lara e direção
de Francisco de Assis Barbosa.
Pathé-Baby; Prosa Turística: o viajante europeu e platino in Obras, vol. 2. Rio de
Janeiro: Editora Civilização Brasileira (em convênio com o Instituto Nacional do
Livro e a Fundação Nacional Pró-Memória), 1983. Organização de Cecília de Lara
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Janeiro: Villa Rica Editoras Reunidas, s/d. Nota biográfica de Francisco de Assis
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Brás, Bexiga e Barra Funda, notícias de São Paulo e outros contos (O mártir
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de Campos. Cia. Lithographica Ypiranga, SP.
Jornal do Comércio. 1921, 1925 e 1927, SP.
Diário da Noite. 1926, SP.
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Correio do Povo. 1963, POA.
O Estado de S. Paulo. 1937, 1940, 1946 e 1966, SP.
Diário Popular. 1940, SP.
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Acaba de chegar ao Brasil... Blaise Cendrars - Direção: Carlos Augusto Calil, SP,
1971. 45min.
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Artes plásticas e arquitetura: os anos 20 (partes I e II) - Palestra do Professor
Agnaldo Farias - Direção: Instituto Cultural Itaú, SP, 1992. 60min. (parte I) e
120min. (parte II).
Aspectos da Cultura Brasileira: viajando pelo modernismo - Direção: Roberto
Moreira, SP, 1993. 17min.
Belmonte - Direção: Ivo Branco, SP, 1981. 19 min.
Cem Oswald anos - Direção: Adilson Ruiz, SP, 1990. 57min.
Centenário Lasar Segall - Direção: Denise Vieira Pinto, SP, 1991. 20min.
Leitura de poemas: os anos 20 - Direção: Instituto Cultural Itaú, SP, 1992.
120min.
Mário...um homem desinfeliz - Direção: Adilson Ruiz, SP, 1993. 26min.
Oswald, um homem de profissão - Direção: Marcia Meirelles, SP, 1990. 25min.
Panorama Histórico Brasileiro: modernismo, os anos 20 - Direção: Roberto
Moreira, SP, 1992. 18min.
Panorama Histórico Brasileiro: os anos 20 (partes I e II) - Palestra do Professor
Renato Janine Ribeiro - Direção: Instituto Cultural Itaú, SP, 1992. 60min (cada).
Panorama Histórico Brasileiro: século XX, primeiros tempos - Direção: Fernando
Severo, SP, 1993. 15min.
São Paulo antiga, uma encomenda da modernidade - Direção: Adilson Ruiz, SP,
1995. 10min.
Warchavchik - Direção: Joatan Vilela Berbel, RJ, 1986. 42min.
LOCAIS DE PESQUISA
Centro Cultural São Paulo
Biblioteca Sérgio Milliet (coleção geral)
148
Biblioteca Alfredo Volpi (artes)
Microfilmes
Rua Vergueiro, 1000 - Paraíso
Biblioteca Mário de Andrade
Seção de obras raras e especiais (sala Paulo Prado)
Coleção geral (sala Herculano de Freitas)
Setor de mapoteca
Seção de multimeios
Rua da Consolação, 94 - Centro
Biblioteca Reitora Nadir Gouvêa Kfouri (Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo)
Bibliotecas geral e pós-graduação
Rua Monte Alegre, 984 - Perdizes
Instituto de Estudos Brasileiros
Biblioteca
Arquivo
Avenida Prof. Mello Moraes, 140 - Travessa 8 - Cidade Universitária
Instituto Itaú Cultural
Banco de dados culturais/informatizado
Videoteca
Avenida Paulista, 149 - Paraíso
Arquivo do Estado
Biblioteca
Hemeroteca
Rua Voluntários da Pátria, 596 - Santana
Centro Histórico do Imigrante (atual Museu da Imigração)
Setor de arquivos
Rua Visconde de Parnaíba, 1316 – Brás
Instituto Moreira Salles
Acervo documental
Rua Piauí, 844 - Higienópolis
Casa Mário de Andrade (atual Oficina da Palavra)
Rua Lopes Chaves, 546 - Barra Funda
149
Departamento de Patrimônio Histórico da Eletropaulo
Acervo fotográfico
Periódicos
Rua Cel. Xavier de Toledo, 23 - Centro
Arquivo Histórico Municipal Washington Luís
Arquivo fotográfico
Rua Roberto Simonsen, 136-B - Pátio do Colégio
Casa da Memória Paulistana
Biblioteca
Praça Coronel Fernando Prestes, 152 - Luz
150
Licença:
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TRANSFORMA&#199;&#213;ES DOS ASPECTOS MATERIAIS E IMATERIAIS DA CIDADE
RECONSTRU&#205;DA ATRAV&#201;S DA OBRA FICCIONAL DO ESCRITOR ANT&#211;NIO DE
ALC&#194;NTARA MACHADO</span> by <span xmlns:cc="http://creativecommons.org/ns#"
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