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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC/SP
JUREMA MASCARENHAS PAES
SÃO PAULO EM NOITE DE FESTA:
Experiências culturais dos migrantes nordestinos (1940-1990)
Tese apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, como exigência parcial para a
obtenção do título de Doutora em História
Social.
Orientadora: Profª. Doutora Maria Izilda
Santos de Matos.
SÃO PAULO
2009
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2
BANCA EXAMINADORA
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3
A Pedro Sertanejo em memória
4
Trabalhadores do Metrô
Vivendo na cidade grande
Na força da mocidade
Tinha ofício de armador
Armou do ferro da férrea necessidade
Pontes praças e pilares
Riqueza não desfrutou
Depois de tudo pronto
Tudo feito e arrumado
No bronze que foi lavrado
Só deu nome de doutor
O do prefeito, o do secretariado
E o do grande encarregado
Seu nome não encontrou
Bate zabumba pro povo fazer fuá
Tristeza de catacumba
No forró não pode entrar
Precisaria de uma placa que seria
Bem do tamanho da Bahia
Juazeiro a salvador
Pra que coubesse
O nome de quem merece
De quem vive construindo
Homem, mulher e menino
Que é tudo trabalhador
Bate Zabumba pro povo
Fazer fuá Tristeza de Catacumba
No forró não pode entrar
Zabumba ê.....
(Raimundo Monte Santo/ Walter Marques)
5
AGRADECIMENTOS
A minha gratidão:
À Profa. Dra. Maria Izilda Santos de Matos, pela orientação, pelas
leituras criteriosas e críticas e pelas discussões, das quais resultou este trabalho.
Ao meu companheiro Marcos Vaz, pelas intervenções musicais, por todo
apoio, paciência e carinho.
Aos meus familiares Neuma Mascarenhas Paes, Fábio Paes e Sara Paes,
pelos estímulos intelectuais e afetivos.
Ao Prof. Dr. Amálio Pinheiro, por suas contribuições luminosas sobre
mestiçagem e semiótica da cultura.
Às professoras Ivone Avelino e Maria Antonieta Antonacci, pelos textos
indicados e pela interlocução acadêmica sempre tão produtiva.
Aos meus colegas dos grupos de pesquisas “Comunicação e Cultura:
Barroco e Mestiçagem - PUC/SP e “Núcleo de Estudos de História Social da
Cidade” - NEHSC - PUC/SP, pelas discussões e reflexões.
À CAPES, pela bolsa de estudos de modalidade II.
À banca de qualificação, representada pelo Professor Dr. Adalberto
Paranhos e pela Professora Dra. Ana Bárbara Pederiva, pelas colocações
pertinentes.
Aos filhos de Pedro Sertanejo: Ari Batera e Oswaldinho do Acordeom,
pelas entrevistas concedidas e pelo carinho com que sempre me receberam.
Aos entrevistados: Assis Ângelo, Anastácia, Carmélia Alves, Fúba de
Taperoá, Miltinho Edilberto, Tio Joça, Paulo Rosa, Fábio Paes e Jarbas Mariz.
A Assis Ângelo, Robson Roberto e Guilherme do Museu Gonzagão, por
terem possibilitado acesso às suas discotecas preciosas e pelas conversas sempre
tão enriquecedoras sobre música.
6
RESUMO
Nesta tese analisam-se as experiências e traduções culturais dos migrantes nordestinos
em seus processos de mestiçagens mediante a música, a dança e os espaços de
sociabilidade, na segunda metade do século XX (décadas de 1950 a 1990), na cidade
de São Paulo. Verifica-se a trajetória de sucesso do artista Luiz Gonzaga por meio da
criação da música e do gênero musical baião, da formação instrumental do trio
nordestino e de todo o seu discurso vocal e nico, representativo da região Nordeste,
que se fez no entre-lugar campo-cidade. Articula-se a emersão de Luiz Gonzaga com o
fluxo migratório da década de 1950, destacando-se a cidade de São Paulo e seu
discurso de trabalho e crescimento. Na seqüência, focaliza-se a década de 1960, a
emersão da casa de forró de Pedro Sertanejo, uma das primeiras da cidade de São
Paulo, e da gravadora “Cantagalo”, desdobrando toda a rede social de saberes e
poderes, constatando-se que as manifestações culturais, em seus processos sociais
cotidianos, funcionaram como estratégias de luta por territórios dentro da cidade.
Trata-se de uma tese elaborada sob a perspectiva da História Cultural, permeando as
experiências e estratégias, modos de ser, de expressar e de viver, os processos de
mestiçagens, diversas maneiras de organização, atentando para experiências sociais
compartilhadas e confrontadas, analisando-se mbolos, imagens, mentalidades,
práticas culturais como experiências de poder, dominação, resistência, luta,
negociação, conflitos estéticos e sociais. Para tanto, busca-se trabalhar na intersecção
dos acontecimentos e na articulação das diferenças entre migração, campo e cidade,
cultura popular e indústria cultural, História e música, História Oral, fotografia e
memória, cotidiano e cultura, tudo isso para melhor compreender as imbricações dos
amálgamas mestiços da cultura nordestina na cidade de São Paulo enquanto processos
de negociações e conflitos sociais.
Palavras-chave: História Cultural; Campo e cidade; Música; forró; Cotidiano;
Migração; Mestiçagem.
7
ABSTRACT
In this thesis, the experiences and cultural translations of the northeastern migrants are
analyzed in their processes of miscegenation by means of music, dance and the
sociability spaces, in the second half of the 20
th
century (decades of 1950 to 1990), in
the city of São Paulo. The successful trajectory of the artist Luiz Gonzaga is observed,
by means of the creation of the baião music and music genre, the instrumental
formation of the northeastern trio and all his vocal and scenic speech, representative of
the Northeastern region, which occurred in the in-between field-city. The emersion of
Luiz Gonzaga is articulated with the migratory flow of the 1950s, with highlights for
the city of São Paulo and its work and growth speech. In sequence, the 1960s are
focused, with the emersion of the Pedro Sertanejo forró house, one of the first in the
city of São Paulo, and of the recording studio “Cantagalo”, unfolding the whole social
network of knowledge and power, observing that the cultural manifestations, in their
day-to-day social processes, worked as fighting strategies for territories inside the city.
This is a thesis prepared under the perspective of Cultural History, permeating the
experiences and strategies, ways of life, of expressing and of living, the miscegenation
processes, diverse organization manners, watching for shared and confronted social
experiences, analyzing symbols, images, mentalities, cultural practices, as experiences
of power, domination, resistance, fight, negotiation, aesthetic and social conflicts. For
such, it is sought to work in the intersection of the happenings and in the articulation
of the differences between migration, field and city, popular culture and cultural
industry, History and music, Oral History, photography and memory, day-to-day and
culture, all of this to better understand the imbrications of the half-breed amalgams of
the northeastern culture in the city of São Paulo while processes of negotiations and
social conflicts.
Keywords: Cultural History; Field and city; Music; forró; Day-to-day; Migration;
Miscegenation.
8
SUMÁRIO
LISTA DE FIGURAS........................................................................................10
APRESENTAÇÃO............................................................................................13
CAPÍTULO 1 - A ORDEM AGORA É BAIÃO: RÁDIO, PODER,
LUIZ GONZAGA..............................................................
..
...26
1.1 BAIÃO: SEU REI.....................................................................................27
1.2 ERA DE OURO DO RÁDIO....................................................................34
1.3 MÚSICA E MESTIÇAGEM: VIDA E OBRA.........................................57
1.4 BAIÃO: GÊNERO E FESTA..................................................................
..
70
CAPÍTULO 2 - A CIDADE, O MIGANTE E A SAUDADE.........................85
2.1 PARTIDAS E CHEGADAS: SÃO PAULO..............................................86
2.2 TERRITÓRIO DA SAUDADE...............................................................105
2.3 FORRÓ: FOR AL/FORROBODÓ...........................................................111
2.4 CANTANDO O FORRÓ.........................................................................119
CAPÍTULO 3 - BRÁS COM FRITAS.........................................................
.
.136
3.1 FORRÓ DO PEDRO SERTANEJO........................................................137
3.2 EM CENA: CENÁRIO, FIGURINO E PROTAGONISTAS...........
..
.....153
3.3 CHEIROS E SABORES: COMIDA E BEBIDA..............................
.
.....167
3.4 ENCONTROS, DESENCONTROS, NEGOCIAÇÕES E
CONFLITOS...........................................................................................176
3.5 FORRÓ: PARA TODOS E PARA A FAMÍLIA.................................
..
...187
3.6 FORRÓ: PODER, TENSÕES E SOCIABILIDADES...........................192
9
CAPÍTULO 4 - CANTAGALO: GRAVANDO OS NORDESTES..........
.
.
..
203
4.1 COMEÇANDO: NOVOS DESAFIOS..............................................
.
..
...204
4.2 GRAVANDO NO BRASIL...............................................................
..
.....206
4.3 ELENCO/ GRAVAÇÃO E PRODUÇÃO GRÁFICA.............................211
4.4 DIVULGAÇÃO/ PROGRAMAS DE RÁDIO.................................
..
.....241
4.5 PEDRO SERTANEJO: DISCOGRAFIA................................................248
4.6 IMAGENS DO NORDESTE: CAPAS DOS LP’S.................................256
CONSIDERAÇÕES FINAIS..........................................................................275
FONTES E BILBIOGRAFIA..................................................................
..
.....281
10
LISTA DE FIGURAS
Figuras 1 e 2 - Gonzaga quando músico da rádio.....................................................................30
Figura 3 - Gonzaga vestido de Lampião...................................................................................30
Figuras 4 e 5 - Gonzaga em fotos de divulgação, como artista, com vestimentas
inspiradas nas roupas de vaqueiros (foto da esquerda) e do cangaceiro
Lampião (foto da direita)..................................................................................31
Figura 6 - Participação de Gonzaga no filme “O galo sou eu” (1958), cantando e
dançando o xaxado...................................................................................................82
Figura 7 - Bairro do Brás, São Paulo, início do séc. XX..........................................................98
Figura 8 - A Estação do Norte em 1914..................................................................................102
Figura 9 - A estação Roosevelt reformada em 1950...............................................................103
Figuras 10 e 11 - Jackson do Pandeiro e Almira Castilho em apresentações.........................128
Figura 12 - Capa do LP “Cantando de Norte a Sul”, lançado em 1960..................................128
Figura 13 - Foto que ilustra a capa do LP “Luiz Gonzaga - 50 anos de chão”.......................155
Figura 14 - Capa do LP “Festa no Sertão”, de Dominguinhos, lançado em 1973..................156
Figura 15 - Capa do LP “Forró ao Vivo”, de Abdias, 1969.................................................
.
..157
Figura 16 - Capa do LP “O Dono do Forró”, de Jackson do Pandeiro, 1971.........................157
Figura 17 - Capa do LP “Forró em Família”, de Pedro Sertanejo e Oswaldinho
do Acordeon..........................................................................................................190
Figura 18 - Contracapa do LP “Forró em Família”, de Pedro Sertanejo e Oswaldinho
do Acordeon.........................................................................................................191
Figura 19 - Rótulo da Cantagalo do disco “Recordação”, da artista Carmelita e
Trio Caruaru (sem data)........................................................................................213
Figura 20 - Rótulo da Cantagalo do disco “Meu Ceará”, do artista Tonico do
Juazeiro, 1967.............................................................................................
..
........214
Figura 21 - Capa “Suplica Cearense”, Ary Lobo, Cantagalo, 1966........................................216
Figura 22 - Contracapa LP “Suplica Cearense”, Ary Lobo, Cantagalo, 1966........................217
Figuras 23 e 24 - Capa e contracapa do LP “Fim de Festa”, de Dominguinhos,
lançado pela Cantagalo em 1964................................................................227
Figuras 25 e 26 - Capa e contracapa do LP “Cheinho de Molho”, de Dominguinhos,
lançado pela Cantagalo em 1965................................................................228
11
Figuras 27 e 28 - Capa e contracapa do LP “13 de dezembro”, de Dominguinhos,
lançado pela Cantagalo em 1966.......................................................
..
........228
Figuras 29 e 30 - Capa e contracapa do LP “Lamento Caboclo”, de Dominguinhos,
lançado pela Tropicana, série Cantagalo, em 1973..................................
.
..229
Figura 31 - Capa e contracapa do LP “Festa no Sertão”, de Dominguinhos,
lançado pela Tropicana, série Cantagalo, em 1973.......................................
.
......
.
229
Figuras 32 e 33 - Capa e contracapa do LP “Dominguinhos e seu Acordeon”,
lançado pela Cantagalo em 1974................................................................230
Figura 34 - Capa do LP “A Braza do Norte”, de Jackson do Pandeiro,
lançado pela Cantagalo em 1967..........................................................................231
Figura 35 - Contracapa do LP “A Braza do Norte”, de Jackson do Pandeiro,
lançado pela Cantagalo em 1867..........................................................................232
Figura 36 - Capa do LP “Correndo o Norte”, de Carmélia Alves,
lançado pela Cantagalo, sem data.........................................................................234
Figura 37 - Capa do LP “Falou e disse”, de Zé Calixto, lançado pela Tropicana,
série Cantagalo, em 1972......................................................................................236
Figura 38 - Capa do LP “Vamos ter Arrasta-pé”, de Zé Calixto,
lançado pela Tropicana, série Cantagalo, em 1975...............................................237
Figura 39 - Contracapa do LP “Vamos ter Arrasta-pé”, de Zé Calixto, lançado pela
Tropicana, série Cantagalo, em 1975, com direção de Pedro Sertanejo...............237
Figura 40 - Capa do LP “Verde e Amarelo”, dos Caçulas do Baião, lançado pela
Tropicana, série Cantagalo, em 1973....................................................................239
Figura 41 - Capa do LP “Forró de Latada”, de Zé da Paraíba, lançado pela
Tropicana, seérie Cantagalo, em 1975..................................................................239
Figura 42 - Capa do LP “Meu Ceará”, de Tonico do Juazeiro, lançado pela Cantagalo
em 1967.................................................................................................................242
Figura 43 - Contracapa do LP “Meu Ceará”, de Tonico do Juazeiro, lançado pela
Cantagalo em 1967................................................................................................242
Figura 44 - Contracapa do LP “Festa no Sertão”, de Dominguinhos, lançado pela
Tropicana, série Cantagalo, em 1973....................................................................243
Figura 45 - Foto de Pedro Sertanejo entregando o troféu Chapéu de Couro a Luiz Jacinto
Silva. No outro microfone está Jorge Paulo, o apresentador do programa...........246
Figura 46 - Pedro ao lado de Jorge Paulo no programa “Chapéu de Couro”.........................247
12
Figura 47 - Capa do LP “Sua Majestade - O Rei do Ritmo”, de Jackson do Pandeiro,
gravadora Copacabana, 1960................................................................................259
Figura 48 - Capa do LP “O cabra da peste”, de Jackson do Pandeiro, Continental, 1966...
..
.262
Figura 49 - Capa do LP “Tem Mulher, tô lá”, de Jackson do Pandeiro, CBS, 1973..............264
Figura 50 - Capa do LP “O dono do forró”, de Jackson do Pandeiro, CBS, 1971............
..
....265
Figura 51 - Capa do LP “Poeira do Caminho”, de Marinalva, gravadora
Tropicana, série Cantagalo,1974...........................................................................265
Figura 52 - Capa do LP “Coisas do Norte”, de Marines e sua Gente, RCA Victor, 1963......266
Figura 53 - Capa do LP “Forró Brejeiro”, de Pedro Sertanejo e seus meninos,
Continental, 1975..................................................................................................267
Figura 54 - Capa do LP “Rato Molhado”, de Pedro Sertanejo, Musicolor, 1977...................267
Figura 55 - Capa do LP “Forró Pernambucano”, de Pedro Sertanejo, Cantagalo (196..).......268
Figura 56 - Capa do LP “Forró Alagoano”, de Pedro Sertanejo, Continental, 1969..............269
Figura 57 - Capa do LP “Coração do Norte”, de Pedro Sertanejo, Continental, 1970...........269
Figura 58 - Capa do LP “Caruaru, Minha Terra”, de Pedro Sertanejo, 1977, Continental.
..
..270
Figuras 59 e 60 - Capas dos LP’s de Pedro Sertanejo: “Na Onda do Forró”, Tropicana,
série Cantagalo, 1973, e “Forró na Casa Grande”, Musicolor 1978...........271
Figuras 61e 62 - Capas dos LP’s de Pedro Sertanejo: “Forró do Luna”, Continental,
1978, e “Forró Povão”, Chantecler, 1981....................................................271
Figuras 63 e 64 - Capas dos LP’s de Pedro Sertanejo: “Forró na Capital”, 1982, e “Visite o
Nordeste”, 1973, Musicolor........................................................................272
Figura 65 - Capa do LP de Pedro Sertanejo “Reizado a São José”, 1978, Musicolor............272
Figuras 66 e 67 - Capa do CD “Adeus Jacobina”, de Pedro Sertanejo, produção de
Ari Batera, sem data, e do LP “Sanfoneiro do Norte”, 1973, Continental..273
13
APRESENTAÇÃO
Quarta-feira, cidade de São Paulo, zona Oeste, Av. Brigadeiro Faria
Lima, número 364, bairro Pinheiros, casa de forró “Canto da Ema”. O relógio
marca 22h30min e a noite está começando! O sanfoneiro puxa o fole na
surdina e o salão começa a ferver. No palco encontra-se o “Trio Virgulino”,
formado por Enok Virgulino (sanfona), Adelmo Nascimento (triângulo) e
Roberto Pinheiro (zabumba). Todos migrantes nordestinos, radicados na cidade
de São Paulo.
22 anos, o Trio Virgulino “está na estrada”, tocando o forró
1
conhecido como forró pé-de-serra. Este estilo de forró segue os passos de Luiz
Gonzaga, criador da formão instrumental composta de triângulo, zabumba e
sanfona, que ficou conhecida como trio nordestino.
2
O repertório do Trio
Virgulino é composto de músicas autorais e de composições cujas autorias são
creditadas a Luiz Gonzaga e seus parceiros Humberto Teixeira e Dantas.
Fazem parte de seu repertório ainda músicas cantadas e compostas por Jackson
do Pandeiro, Trio Nordestino, Dominguinhos, Anastácia e muitos outros
compositores e artistas de diversas gerações.
De quarta-feira a domingo os ritmos de conotação nordestina,
principalmente o xote e o baião
3
, tomam conta dos salões
4
, embalam os corpos e
1
A partir de incursões bibliográficas e da pesquisa de campo, resolveu-se compreender o termo
“forró” como gênero musical, ritmo e espaço de sociabilidade.
2
“Tradução de textos criativos será sempre recriação, ou criação paralela, autônoma, porém recíproca.
Quanto mais inçado de dificuldades esse texto, mais sedutor enquanto possibilidade aberta de
recriação. Numa tradução dessa natureza não se traduz apenas o significado, traduz-se o próprio signo,
ou seja, sua fisicalidade, sua materialidade mesma (propriedades sonoras, de imagética visual, enfim
tudo aquilo que forma, segundo Chales Morris, a iconicidade do signo estético, entendido por signo
icônico aquele que de certa maneira é similar àquilo que ele denota).” CAMPOS, Haroldo.
Metalinguagem & outras metas. São Paulo: Perspectiva, 2004. p.35.
3
De todos os ritmos nordestinos, os mais presentes nos forrós universitários são o xote e o baião, por
serem variações rítmicas mais lentas, portanto, mais propícias a melodias românticas, as prediletas
dessa vertente do forró, e aos desdobramentos da dança mediante os volteios e rodopios. Essa
observação é feita tendo como base a análise do repertório tocado nas casas de forró universitário da
cidade de São Paulo, como também do repertório dos CDs produzidos pelos artistas deste gênero
musical.
4
Existem ainda no bairro de Pinheiros algumas casas de forró que seguem esse perfil, como o “Canto
14
animam as noites paulistanas do bairro de Pinheiros, ao som do forró
tradicional
5
, do forró pé-de-serra e do forró universitário. O forró universitário
emergiu entre o final da década de 1990 e o início de 2000, em meio a
estudantes universitários da e na cidade de São Paulo
6
, tendo também como
palco a cidade de Itaúnas, Espírito Santo. Nesta última, situada à beira-mar, os
trios nordestinos tocam nas noites de verão e feriados prolongados para uma
juventude urbana em momentos de fuga da cidade.
O forró pé-de-serra, representado por trios de músicos e artistas
migrantes nordestinos, passou a tocar em novos territórios, dentro e fora da
cidade de São Paulo, para outras platéias formadas não somente de migrantes.
Esse deslocamento resultou na emersão do forró universitário, que veio à tona
tendo o forró pé-de-serra como referência. Em outras palavras, novos
personagens dentro da cidade absorveram aspectos do discurso musical e
estético do migrante nordestino e negociaram temáticas, sotaques, criaram
outros espaços, comportamentos, outras formas de dançar e uma outra vertente
dentro do gênero musical forró existente. O forró universitário aborda as
temáticas do cotidiano de uma geração urbana e é cantado pelos representantes
desta, tendo como referências os ritmos, as músicas e os artistas representantes
do discurso de Nordeste.
da Ema” e o “Remelexo”.
5
“Em meados da década de 1940, surge o forró tradicional, que se caracteriza por ser criação artística
urbana baseada no universo rural do homem sertanejo. Seus instrumentos básicos são a sanfona, a
zabumba e o triângulo. Diferenciando-se no processo sócio-histórico, os artistas que podem ser
identificados como representantes desta categoria de forró sempre estiveram em constante evolução,
tendo alcançado muito destaque e sucesso da mídia até o surgimento da bossa-nova. [...] Os principais
artistas representantes do forró tradicional são Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Carmélia Alves,
Marinês, Abdias, Anastácia, Dominguinhos, Osvaldinho do Acordeon, Pedro Sertanejo, Clemilda,
Cézar do Acordeon, Trio Nordestino, Trio Juazeiro, Os três do nordeste, Zé Calixto, Sivuca, Sebastião
do Rojão, entre outros.” SILVA, Expedito Leandro. Forró no Asfalto: mercado e identidade
sociocultural. São Paulo: Annablume/ Fapesp, 2003. p.90.
6
“Esse movimento, em São Paulo, teve início nas dependências de uma ONG que leva o nome de
Espaço Cultural Projeto Equilíbrio. Sua consagração como casa de forró, concedeu-lhe destaque
integrando-se ao circuito cultural de São Paulo.” “O projeto equilíbrio nasceu com a idéia de mostrar
para a juventude a obra de Luiz Gonzaga e a diversidade do nordeste. O chamado forró universitário
significa para seus idealizadores algo mais profundo do que esse novo gênero que veio para ficar, pois
muito tempo o forró em São Paulo era discriminado, era visto pejorativamente como coisa de
pessoas mais humildes (caminhoneiros, domésticas, etc.).” Ibidem. p.104, 107.
15
Enquanto isso (década de 1990), nas periferias da Zona Norte da cidade,
no CTN
7
(Centro de Tradições Nordestinas), na Zona Sul, no Centro de Lazer
Patativa
8
, na Zona Leste, no Expresso Brasil
9
(Casa de Show especializada em
gêneros populares como funk carioca, pagode e forró), e também na Zona Oeste,
em alguns espaços pequenos, como botecos próximos ao largo da Batata, o
estilo de forró que mais predominava e predomina, que animava e anima os
momentos de lazer era e ainda é o forró eletrônico, juntamente com outros
gêneros populares como o pagode, o axé e o calipso.
Esses centros de lazer e sociabilidade e muitos outros espaços
semelhantes surgiram por iniciativa de empresários migrantes nordestinos, ou
comerciantes que viam no lazer uma possibilidade de negócio e também de
redes sociais. Nesses espaços culturais e de sociabilidade, a trilha sonora era e é
caracterizada por aspectos diferentes das casas de forró da zona Oeste, como o
“Canto da Ema”, o “Remelexo” e outros. Por também tocaram as bandas de
forró universitário (em momentos de sucesso) e bandas de forró pé-de-serra.
Mas o que marcou o território sonoro desses espaços de sociabilidade foram as
bandas do chamado “forró eletrônico” ou oxente music”
10
, uma vertente
7
O Centro de Tradições Nordestinas (CTN) fica localizado no bairro do Limão, zona Norte de São
Paulo, conta com uma emissora de rádio, chamada rádio Atual, voltada para a temática e a cultura
nordestina. O centro foi fundado por José de Abreu, também nordestino, em 1992. O CTN “é um
centro de lazer que é a materialização de um espaço especificamente voltado para a população
migrante nordestina da metrópole, no qual vários atrativos foram aglutinados com o objetivo de trazer
a população até aquele local. A estas estratégias se soma a eficácia de um veículo de comunicação de
massa a Rádio Atual. As tradições da cultura nordestina são ali reelaboradas e funcionam como ponte
de identificação entre o local e seus freqüentadores. Dessa maneira, pessoas oriundas de diferentes
partes do nordeste podem buscar ali o seu reconhecimento como membro deste grupo, além de
poderem rever os amigos e conterrâneos e participar de forrós tão animados, quantos os de seu local de
origem.” RIGAMONTE, Rosani Cristina. Sertanejos Contemporâneos: entre a metrópole e o sertão.
São Paulo: Humanitas/ FFLCH-USP/ Fapesp, 2001. p.32.
8
O centro de Lazer Patativa fica situado na Rua Benedito Fernandes, 169 - Santo Amaro - São Paulo -
SP. Informação disponível em: <http://www.patativa.com.br>. Acesso em: 4 de jan. de 2008.
9
O expresso Brasil fica situado na Av. Aricanduva, 11500 - Jardim Aricanduva - São Paulo - SP.
Informação disponível em: <http://www.obaoba.com.br/expresso-brasil>. Acesso em: 4 de jan. de
2008.
10
“O principal idealizador desse novo forró é o empresário cearense Emanoel Gurgel, proprietário da
gravadora Somzoom, de várias bandas de forró e outros produtos ligados ao gênero. Sua principal
banda, Mastruz com Leite vendeu 4 milhões de discos em nove anos de carreira”. SILVA, Expedito
Leandro. Op. cit., 2003. p.112.
16
estética do forró com influência da lambada, música de duplo sentido em uma
linha mais pornográfica, da música brega e do axé music.
As bandas representantes deste estilo, tais como Mastruz com Leite,
Magníficos, Calcinha Preta, As gatinhas do Forró e o artista Frank Aguiar, são as
mais requisitadas nestes espaços. São bandas que emergiram na década de 1990,
no Estado do Ceará, região Nordeste do Brasil, e fizeram e fazem sucesso nas
zonas periféricas das cidades brasileiras.
11
Geralmente, estas bandas possuem
uma formação instrumental numerosa e mais agressiva nos quesitos volume e
timbre sonoro. No palco, além da base de sanfona, zabumba e triângulo, o que
ecoa são os instrumentos elétricos e eletrônicos: baixo, guitarra, teclados com
ritmos eletrônicos e, muitas vezes, para compor mais peso e agressividade
rítmica, uma bateria. Algumas bandas representantes desse gênero descartaram
os instrumentos de conotação tradicional como sanfona, zabumba e triângulo
–, substituindo-os pelo teclado com ritmos.
Além do aspecto musical, as apresentações dos grupos de forró
eletrônico contam com coreografias executadas por dançarinas e com
iluminação própria voltada para o desdobramento da performance. Esses
elementos fazem com que a apresentação musical se torne um espetáculo,
sobretudo, cênico. Os vocais fazem uso do recurso do canto chorado e soluçado,
de conotação passional. No repertório, em meio aos clássicos repaginados
compostos por Luiz Gonzaga e muitos outros artistas das gerações anteriores,
são acrescentadas músicas de novos compositores, nas quais as temáticas
romântica e da dor de cotovelo predominam.
Na década de 1990, quando ocorreu o boom comercial dos gêneros forró
universitário e forró eletrônico, o forró não ganhou outros espaços, como
também outras gerações passaram a aderi-lo. Ele adquiriu outros sotaques, e
outros segmentos sociais dentro da cidade passaram a praticá-lo e freqüentá-lo.
11
“O sucesso e o reconhecimento desses artistas se deram primeiro junto à classe popular, sobretudo
nas cidades do interior nordestino e nas periferias das grandes cidades (São Paulo e Rio de Janeiro),
17
A busca por esses espaços de sociabilidade e por esses objetos da cultura
musical é uma viagem no tempo, na história da cidade de São Paulo e na história
dos possíveis nordestes territorializados e reterritorializados dentro da urbe. É
também uma incursão pela história da migração nordestina, pela cultura que
esses migrantes trouxeram na bagagem, pelas suas tradições reinventadas
12
em
encontro com a cultura urbana da cidade de São Paulo, em processos de
transformações e permanências.
Na década de 1960, mais precisamente em 1966, na periferia da cidade
de São Paulo, bairro do Belenzinho, Rua Catumbi, Pedro Sertanejo
13
, baiano da
cidade de Euclides da Cunha, abriu um dos primeiros forrós da cidade. Seu
pioneirismo foi considerado e registrado em diversas entrevistas (em jornais,
revistas, televisão), por uma série de artistas e instrumentistas, como
Dominguinhos, Tio Joca (Trio Sabiá) e Fúba de Taperoá, que foram testemunhas
do tempo passado. Lá, apresentaram-se, para um público majoritariamente de
migrantes nordestinos, residentes na vizinhança, importantes artistas da cena
musical representativa do Nordeste, tais como Luiz Gonzaga, Jackson do
Pandeiro e Dominguinhos, além de artistas como Anastácia, Carmélia Alves,
Fúba de Taperoá e muitos outros que começaram suas carreiras artísticas no
Forró de Pedro Sertanejo.
O foco de interesse desta tese é desvendar as estratégias, relações,
encontros e desencontros, manifestações, expressões e deslocamentos sócio-
para depois serem legitimados pela mídia e por toda a sociedade”. Ibidem. p.118.
12
O ‘direito’ de se expressar a partir da periferia do poder e do privilégio autorizados não depende
da persistência da tradição; ele é alimentado pelo poder da tradição de se reinscrever através das
condições de contingência e contraditoriedade que presidem sobre as vidas dos que estão na ‘maioria’.
O reconhecimento que a tradição outorga é uma forma parcial de identificação. Ao reencenar o
passado, este introduz outras temporalidades culturais incomensuráveis na invenção da tradição.”
BHABHA, Homi K. O Local da Cultura. Coleção Humanitas. Tradução de Myriam Ávila. Belo
Horizonte: Ed. UFMG, 1998. p.21.
13
Pedro Sertanejo nascido na região de Canudos, Euclides da Cunha, BA foi um exemplo de
músico baiano, especialista em tocar e compor forrós em concertina, conhecida também como sanfona
pé-de-bode. Pedro também consertava e afinava sanfona e foi responsável pela implantação da
primeira casa de forró que levava seu nome, “Forró do Pedro Sertanejo”, situado à Rua Catumbi,
Belenzinho, São Paulo, na década de 60 do século passado. Segundo depoimento de Oswaldinho do
Acordeon, em entrevista concedida à autora em 20 de jul. de 2004.
18
culturais dos migrantes nordestinos do Nordeste para a cidade de São Paulo, e
dentro da própria cidade de São Paulo, desde a cada de 1950, por meio dos
objetos da cultura
14
e dos espaços de sociabilidade, mais especificamente por
meio da casa de forró de Pedro Sertanejo e de sua gravadora independente.
Pretende-se detectar os possíveis nordestes na cidade de São Paulo, mediante os
traços específicos da cultura, dos costumes, dos gestos, dos cantos, da forma de
celebrar e dançar dos migrantes em seus espaços humanos e materiais.
Diante deste quadro apresentado, emerge a pergunta: faz sentido, assim,
entender a cultura nordestina enquanto híbrida
15
, mestiça
16
?
Nesta tese, buscar-se-ão os objetos da cultura nordestina que se
desenvolveram em campos móveis de concessões e conflitos
17
, não enquanto
essência ou identidade fixa de um grupo social, mas enquanto processos
híbridos, mestiços. Nesse sentido, os conceitos “hibridismo” e “mestiçagem”
serão entendidos como sinônimos, como ferramentas para se trabalhar com os
momentos de transformação, rupturas, absorções e concessões e para se produzir
a análise e construção da narrativa histórica aqui proposta.
Pretende-se aqui analisar os objetos de cultura enquanto constantes
imbricações e transformações de códigos sócio-estéticos que se fazem nos
interstícios.
14
Objetos da cultura serão entendidos nesta tese por textos corpóreo-táteis, lingüísticos e espaciais
como a literatura, música, dança, culinária, poesia, produção acadêmica, o teatro, o cinema.
15
“A articulação social da diferença, da perspectiva da minoria, é uma negociação complexa, em
andamento, que procura conferir autoridade aos hibridismos culturais que emergem em momentos de
transformações históricas.” BHABHA, Homi K. Op. cit., 1998. p.20-1.
16
A mestiçagem resulta da luta entre duas ou mais culturas. “[...] os elementos opostos das culturas em
contato tendem a se excluir mutuamente, eles se enfrentam e se opõem uns aos outros; mas ao mesmo
tempo, tendem a se interpenetrar, a se conjugar, a se identificar. Foi esse enfrentamento que permitiu a
emergência de uma cultura nova mestiça ou mexicana - nascida da interpenetração e da conjugação
dos contrários.” GRUZINSK, Serge. O pensamento Mestiço. Tradução de Rosa Freire de Aguiar. São
Paulo: Companhia das Letras, 2001. p.48.
17
Os embates de fronteira acerca da diferença cultural têm tanta possibilidade de serem consensuais
quanto conflituosos; podem confundir nossas definições de tradição e modernidade, realinhar as
fronteiras habituais entre o público e o privado, o alto e o baixo, assim como desafiar as expectativas
normativas de desenvolvimento e progresso.” BHABHA, Homi K. Op. cit., 1998. p.20.
19
É na emergência dos interstícios - a sobreposição e o
deslocamento de domínios da diferença - que as experiências
intersubjetivas e coletivas de nação [nationness], o interesse
comunitário ou o valor cultural são negociados.
18
Esta é uma tese de história cultural influenciada pela produção
historiográfica que emerge com outras histórias”
19
, mediante as quais se
pretende fazer a história dos sentimentos, dos comportamentos, dos corpos na
“articulação das diferenças culturais”
20
. História do cotidiano que vem à tona
com a ampliação das áreas de investigação, com a Nova história, com a
utilização de metodologias e conceitos renovados, sobretudo com a descoberta
da existência do político no cotidiano
21
e no estético por meio dos micros
poderes.
O cotidiano é aquilo que nos é dado cada dia (ou que nos cabe
em partilha), nos pressiona dia após dia, nos oprime, pois existe
uma opressão do presente. Todo dia pela manhã aquilo que
assumimos, ao despertar, é o peso da vida, a dificuldade de viver
nesta ou noutra condição, com esta fadiga, com este desejo. O
cotidiano é aquilo que nos prende intimamente, a partir do
interior. É uma história a meio-caminho de nós mesmos, quase
18
Ibidem. p.20.
19
“Históra desimpedida de cadeias sistêmicas e de explicações causais, aonde seja possível se criar
possibilidades de articulação e inter-relação, recuperar diferentes verdades e sensações, promover a
descentralização dos sujeitos históricos e a descoberta das ‘histórias de gente sem história’.” MATOS,
Maria Izilda Santos de. Cotidiano e Cultura: história, cidade e trabalho. Bauru, SP: EDUSC, 2002.
p.24.
20
O que é teoricamente inovador e politicamente crucial é a necessidade de passar além das
narrativas de subjetividades originárias e iniciais e de focalizar aqueles momentos ou processos que
são produzidos na articulação de diferenças culturais. Esses ‘entre-lugares’ fornecem o terreno para a
elaboração de estratégias de subjetivação - singular ou coletiva - que dão início a novos signos de
identidade e postos inovadores de colaboração e contestação, no ato de definir a própria idéia de
sociedade.” BHABHA, Homi K. Op. cit., 1998. p.20.
21
“O renascer dos estudos do cotidiano se encontra vinculado a uma redefinição do político, frente ao
deslocamento do campo do poder das instituições públicas do estado para a esfera do privado e do
cotidiano, com uma politização do dia-a-dia. Neste sentido, importantes contribuições foram dadas
pelos estudos da arqueologia dos discursos de Foucault, pela proposta de desconstrução de Derrida,
pela historiografia das mentalidades, além de estudos como os de E. P. Thompson, que trouxeram
luzes sobre o que poderíamos chamar de uma cultura de resistência, em que a luta pela sobrevivência e
a improvisação tomaram feições de atitudes políticas formas de conscientização e manifestações
espontâneas de resistência. A essa politização do cotidiano incorpora-se também a visão do
relativismo pós-moderno, que praticamente destrói a tradicional distinção entre o central e o periférico
na história, contribuindo assim para o desaparecimento progressivo do acontecimento histórico do
fato – como foco central de análise.” MATOS, Maria Izilda Santos de. Op. cit., 2002. p.22-3.
20
em retirada, às vezes velada. Não se deve esquecer este “mundo
memória”, segundo a expressão de Péguy. É um mundo que
amamos profundamente, memória olfativa, memória dos lugares
de infância, memória do corpo, dos gestos de infância, dos
prazeres. [...] O que interessa ao historiador do cotidiano é o
invisível.
22
A presente pesquisa articula os objetos da cultura nordestina com
estratégias cotidianas de vivência e sobrevivência, e estas com instâncias sociais
como a política, a família, a igreja, o estado, a justiça, generalizando a análise
até as causas econômicas e sociais dos deslocamentos geográfico-espaciais e do
segmento social desses migrantes dentro do contexto da cidade, entre o dentro e
o fora, entre o público e o privado.
Utilizam-se diversas fontes: músicas, fotografias, capas de LP’s, história
oral apreendida mediante entrevistas com artistas e produtores culturais,
programas de rádio, imagens de cinema, matérias de jornal. Rastreiam-se nessas
fontes os fatos, as intersemioses e as intertextualidades enquanto processos
históricos.
A investigação centrar-se-á na análise dos interstícios dos espaços
intermediários, no processo de mestiçagem
23
e de circularidade cultural, nos
pontos de interação (negociação ou conflito)
24
, os quais se estabeleceram
22
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 2. Morar, cozinhar. Tradução de Ephraim F. Alves
e Lúcia Endlich Orth. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996. p.31.
23
Conforme coloca Amalio Pinheiro: “O termo mestiço aqui não remete a cor, mas a modos de
estruturação barroco-mestiços que acarretam, pela confluência de matérias em mosaico, bordado e
labirinto, outros métodos e modos de organização do pensamento. Tais modos o binários
desconhecem o dilema entre identidade e oposição; a mestiçagem se constitui como uma trama
relacional, conectiva, cujos componentes não remontam saudosa e solitariamente a instâncias aurorais
perdidas, mas sim festejam o gozo sintático dessa tensão relacional que se mantém como relação
móvel em suspensão. Aquilo que pretende permanecer como diferença, fora das texturas fronteiriças
em trânsito, corre o risco de tranformar-se em homogeneidade carrancuda, repetitiva e totalitária.”
PINHEIRO, Amálio. Comunicação e cultura: barroco e mestiçagem. Campo Grande: Ed. UNDERP,
2006. p.10.
24
Entre os principais conceitos adotados pela tese destaca-se a noção de circularidade cultural, de
Carlo Ginzburg, que supõe uma dinâmica entre a cultura popular e a erudita, segundo a qual não existe
barreira rígida o bastante para impedir a influência mútua entre o popular (ou subalterno) e o erudito
(ou dominante). Importante também para este estudo é o conceito de mestiçagem desenvolvido por
Serge Gruzinski, que inclui tanto a mestiçagem biológica quanto a cultural. Para Gruzinski: “[...] a
mestiçagem resulta da mistura de seres humanos e imaginários. Num corte feito a uma imagem
híbrida, Gruzinski surpreende corpos coexistindo em temporalidades distintas e habitando um
21
subjacentes às expressões dos objetos de cultura e dos espaços de sociabilidade,
que emergiram em forma de discursos, cujos sentidos demonstravam as
impressões da cidade pelo migrante, suas condições de vida, seus códigos
específicos, em interação com outros discursos e diversos códigos existentes no
espaço urbano.
Parte-se do princípio de que, por intermédio dos objetos da cultura e dos
espaços de sociabilidade, os migrantes expressaram outras visões da cidade de
São Paulo, registraram as formas de ver e falar sobre a cidade, que lhes cabia,
que eles habitavam e vivenciavam. Esses discursos revelaram a existência de
outras cidades, não aquela que queria fazer-se vista pelas elites. Eles
desvelaram as desigualdades sócio-econômicas e os conflitos políticos de luta
pelo poder na cidade e, em alguns momentos, absorveram e repetiram os
discursos dominantes da cidade direcionados ao trabalho, à modernidade e ao
desenvolvimento.
Para isso, a baliza cronológica condutora da pesquisa incorpora o
período entre as décadas de 1940, quando emerge Luiz Gonzaga com a música
“Baião”, e 1990, quando morre Pedro Sertanejo. Dentro deste recorte temporal
serão considerados três momentos: no primeiro momento, representado pelos
capítulos um e dois, as temáticas focalizadas são Luiz Gonzaga enquanto um
dos tradutores da discursividade nordestina (décadas de 1940 e 1950), a cidade
de São Paulo, a migração nordestina (década de 1950) e o discurso de nordeste;
no segundo momento (capítulo 3) desdobra-se o processo de emersão e o
cotidiano do Forró do Pedro Sertanejo, um dos primeiros forrós de São Paulo
(décadas de 1960 a 1980); e, por fim, no terceiro momento (capítulo 4) aborda-
se sua gravadora, sua obra e seu cotidiano de festa, trabalho e baião.
25
território composto de múltiplas dimensões, como as fronteiras que separavam os diferentes grupos
étnicos na América Colonial e que continuam a se deslocar até hoje num ciclo quase infinito.”
GRUZINSK, Serge. Op. cit., 2001. Vale conferir também: FANTINI, Marli. “Águas Turvas,
identidades quebradas”. In: ABDALA, Benjamin (Org.). .Margens da cultura: mestiçagem,
hibridismo & outras misturas. São Paulo: Boitempo, 2004. p.173.
25
O foco de atenção recai sobre o artista Pedro Sertanejo pensado como produtor, mediador cultural, e
22
A escolha deste recorte temporal fez-se pela intenção de acompanhar a
trajetória da casa de forró de Pedro Sertanejo e de sua gravadora, focando-se
pelo viés destas as descontinuidades, os movimentos da cultura migrante
nordestina, suas estratégias, seus possíveis discursos, suas transformações e
imbricações, territorializações e reterritorializações dentro da cidade de São
Paulo e também suas possíveis continuidades, afirmações e repetições
discursivas durante a segunda metade do século XX.
O primeiro capítulo, A ordem agora é baião: Rádio, Poder, Luiz
Gonzaga”, aborda a trajetória artística de Luiz Gonzaga, que emergiu em 1949,
por intermédio do rádio (Rio de Janeiro), como um dos primeiros representantes
e tradutores do discurso de Nordeste de forma massiva e que teve no migrante
nordestino público fiel e cativo. Neste capítulo a música em interação com
outras fontes, que dizem respeito à história de vida do artista, compõe o corpus
documental no exercício do ofício da história.
O referido capítulo versa ainda sobre o rádio no Brasil e a sua relação
com o governo de Getúlio Vargas, bem como sobre a intenção de fazer do
suporte radiofônico um meio de condução, divulgação e construção do texto de
“unidade nacional”. Luiz Gonzaga contou e cantou o Nordeste por meio do
rádio em vários programas, entre eles o intitulado “No mundo do baião” (Rádio
Nacional), programa que teve como proposta central passar de forma educativa
para os ouvintes do Brasil, sobretudo dos centros urbanos do Sudeste, como era
a região Nordeste. As letras cantadas por Gonzaga, a teatralização que ele
acoplava à sua performance musical, abordavam: os ritmos, a dança, os
costumes, os festejos, a fauna, a flora e as mentalidades nordestinas. Busca-se
discutir as questões música e mestiçagem
26
, discussão essa que acompanha,
sobre sua arte, entendida como representação de um mundo. Não se trata de uma biografia do artista,
mas de um estudo sobre o comportamento, os hábitos, a memória e a música nordestina na cidade de
São Paulo por intermédio de sua história de vida.
26
A música produzida na América Latina é uma música mestiça, porque é uma música que emerge em
meio a tensões sócio-econômicas e temporais: “A mitigação, quando não diluição, das fronteiras
propiciou uma mobilidade de mosaicos em trânsito aos espaços e textos, anterior e juntamente aos
23
como uma espinha dorsal, todo o processo analítico das fontes oriundas dos
objetos de cultura presentes nesta tese.
O segundo capítulo, A cidade, o migrante e a saudade”, procura
entender a cidade e seus agentes. Para isso, toma-se como foco central a cidade
de São Paulo (1950-1990), suas transformações, as relações que se
estabeleceram com os migrantes nordestinos que para lá se deslocaram, e deles
com a cidade mediante suas estratégias. A migração, a urbanização, a
industrialização e a presença destas de forma concreta nas vidas dos migrantes
recém-chegados a São Paulo são analisadas.
27
Busca-se também entender a cidade de São Paulo em seus diversos
discursos. Tinha-se, por um lado, o discurso oficial hegemônico da cidade, que
representava o progresso, o trabalho e a modernidade, e, por outro, os discursos
que representavam outras vozes, inclusive a dos migrantes. Estas análises
desvelam as polifonias dentro da cidade, possibilitando a desconstrução de
discursos monolíticos e essencialistas, carregados de generalizações e
estereotipias, e desnudam algumas relações de forças e o movimento interativo
dos discursos por possíveis espaços materiais e de sentido dentro da cidade.
Buscando-se entender as relações da cidade com os migrantes, analisam-
se, antes de tudo, as relações de poder e a história da região Nordeste em seus
diferentes aspectos, para se chegar à mentalidade e ao entendimento local dos
múltiplos discursos produzidos, suas estratégias e práticas, rastreando aspectos
que provocaram o êxodo rural de 1950.
O terceiro capítulo, “Brás com Fritas”
28
, busca revelar um pouco da
história do Forró de Pedro Sertanejo e seu cotidiano de festa, trabalho e baião.
variados e irregulares processos de modernização. Por isso que as noções de fragmento,
simultaneidade, brevidade, instabilidade, tão caras a modernidade, já estavam sendo tecidas no âmbito
das culturas urbanas, ao modo de realizações externas como as que deram nascimento, por exemplo ao
tango, ao samba e ao som cubano.” PINHEIRO, Amálio. Op. cit., 2006. p.21.
27
FONTES, Paulo. Um nordeste em São Paulo: trabalhadores migrantes em São Miguel Paulista
(1945-66). Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008. p.13-4.
28
O título do capítulo foi tirado de uma música instrumental composta por Pedro Sertanejo, intitulada
“Brás com Fritas”, gravada no LP “Forró em Família”, gravadora Continental, 1986.
24
Trata-se da emersão de uma história ainda não contada
29
, em que os recursos da
história oral e escrita cruzam-se no sentido de se fazerem outras histórias.
Os acontecimentos abordados nos depoimentos de artistas que viveram a
atmosfera do forró e da gravadora do Pedro Sertanejo constituem-se em
documentos que, agregados às capas dos LP’s, a fontes musicais e a matérias de
jornais, possibilitam o entendimento do cotidiano e das estratégias de
sobrevivência das pessoas que trabalhavam no forró. Além disso, o espaço do
forró é compreendido como um espaço da saudade, de solidariedade,
descontinuidade do cotidiano urbano do trabalho para aqueles que iam em busca
de diversão e espaço de trabalho para aqueles que viviam do forró.
A pesquisa mostra que entre os bairros que mais concentravam a
população nordestina na década de 1960, na cidade de São Paulo, estavam o
Brás e o Belenzinho, justamente o local onde funcionava o Forró do Pedro
Sertanejo. Os depoimentos dos familiares de Pedro trazem uma série de
informações biográficas e do universo do forró (músicos e artistas). Revelam
ainda o universo de migrantes nordestinos e de uma rede social que tinha no
espaço de sociabilidade e na música uma alternativa de sobrevivência ou, muitas
vezes, um meio de diversão, de identificação cultural, no sentido de lembrar das
festas que aconteciam no Nordeste e do pprio Nordeste, que era cantado,
ritualizado e contado por meio das letras e das músicas. Era um processo de
despertar a memória afetiva com o passado que havia sido deixado para trás.
Por fim, o quarto capítulo, “Cantagalo: gravando os nordestes”, aborda o
surgimento das gravadoras no Brasil, os selos multinacionais e os nacionais e a
formação da gravadora independente de Pedro Sertanejo. Analisa o processo de
produção fonográfica dos discos, desde a arregimentação do artista até o produto
29
A história de vida de Pedro Sertanejo, tanto do ponto de vista familiar como do ponto de vista de
suas relações sociais e de trabalho, por meio de sua casa de forró como local de acontecimentos
culturais e de sua gravadora independente (Cantagalo), assim como de sua obra musical, possibilita
expor fragmentos importantes do ambiente de sociabilidade nordestina na cidade de São Paulo e do
processo de produção cultural mediante a música e o espetáculo, tocando assim na história dos
migrantes nordestinos e na história da cidade.
25
final, o disco gravado, prensado e pronto para a distribuição. Neste capítulo
verifica-se como era pensado o processo produtivo comercial da gravadora
independente de Pedro Sertanejo, comparando-o com o processo das outras
gravadoras.
Ademais, destaca-se a discografia de Pedro Sertanejo e a rede social de
saberes e poderes por ele criada, em que estavam incluídas a gravadora
Cantagalo, a casa de forró, os programas de rádio por ele apresentados e a sua
carreira de artista, músico, compositor e diretor artístico. Ainda neste capítulo
analisa-se, mediante as capas e os títulos dos LP’s casados ao seu conteúdo
sonoro, em seus processos de negociação e conflito com as gravadoras, a
produção dos discursos de Nordeste, as generalizações e as particularidades.
Esta tese parte da história da cidade de São Paulo, do migrante
nordestino e da sua cultura como estratégia de luta, representatividade,
expressão e ocupação de territórios dentro da cidade de São Paulo, pelo viés de
uma das primeiras casas de forró de São Paulo, a casa de Pedro Sertanejo, e de
sua gravadora de discos, a Cantagalo.
26
CAPÍTULO 1
A ORDEM AGORA É BAIÃO: RÁDIO, PODER, LUIZ GONZAGA
27
Eu vou mostrar pra vocês
como se dança o baião
e quem quiser aprender
é favor prestar atenção.
30
Este primeiro capítulo tem como intenção analisar o processo criativo
das traduções mestiças de Luiz Gonzaga no processo constitutivo do discurso do
Nordeste, valendo-se, para isso, de sua história de vida associada à sua produção
artística inteirada com o rádio, às transformações tecnológicas e ao respectivo
período histórico.
Discutir-se-ão alguns temas centrais para a proposição desta tese: inicia-
se com a emersão nacional de Luiz Gonzaga com o sucesso do gênero musical
“baião”, apresentado pela música de mesmo nome; na seqüência, aborda-se a
trajetória do rádio em conexão com o sucesso de Gonzaga, o transformando em
um dos primeiros artistas de massa representantes da reg1ião Nordeste em
contexto nacional; e, por fim, envereda-se pela discussão entre música e
mestiçagem, conceito de inestimável utilidade para este trabalho, observando-se
as conexões entre vida e obra, cotidiano, mentalidades e produção artística,
sendo os processos criativos tradutórios de Luiz Gonzaga entendidos como
resultado de negociações e conflitos entre objetos de saberes e poderes no entre-
lugar campo-cidade.
1.1 BAIÃO: SEU REI
Pode-se afirmar que Luiz Gonzaga, juntamente com seus parceiros, foi
um importante tradutor, criador e divulgador da música e do discurso
31
do
Nordeste, por meio do rádio, do disco e do cinema.
30
Baião (Luiz Gonzaga/ Humberto Teixeira, 1946). 78 Rpm. A primeira gravação da música “Baião”
foi feita pelo grupo 4 ases & um coringa, na gravadora Odeon. Luiz Gonzaga gravou a referida música
pela primeira vez em 1949, pela RCA Victor.
31
“O discurso designa, em geral, para Foucault, um conjunto de enunciados que podem pertencer a
campos diferentes, mas que obedecem, apesar de tudo, a regras de funcionamento comuns. Essas
regras o somente lingüísticas ou formais, mas reproduzem um certo número de cisões
28
Penso que é possível afirmar, sem risco de erro, que Luíz
Gonzaga desempenhou [...] o papel nada insignificante de uma
força, anti-desintegradora, atuando na dimensão dos signos - e
em plano de massas - Gonzaga trouxe o universo familiar aos
nordestinos, com suas representações conhecidas e seus
referenciais nítidos [...] contribuiu para a coesão psicológica do
migrante. Para a preservação de formas práticas culturais
nordestinas no contexto migratório. E para a introdução destas
formas e práticas no mundo urbano-industrial.
32
Sua música fez sucesso e influenciou outras gerações de artistas.
Gonzaga tornou-se referência constante para a produção cultural brasileira,
configurou e apresentou aos centros urbanos o gênero musical baião, assim
como os ritmos siridó e xaxado, e ainda criou a formação instrumental do trio
nordestino “sanfona, zabumba e triângulo”. Gonzaga, no entre-lugar campo-
cidade, nomeou, lançou, adaptou e, mediante processos de mestiçagens, tornou
assimiláveis referências rurais ao gosto do público urbano.
Luiz Gonzaga tornou-se um artista muito conhecido, em 1949, com o
sucesso da música “Baião”, composta em parceria com Humberto Teixeira,
amplamente divulgada pelo rádio. A música difundiu a dança e o ritmo do baião,
que virou febre nacional, transformando-se em um acontecimento discursivo
33
marcante na trajetória dos dois compositores. A partir daí, todas as rádios
passaram a tocar baião e nos jornais impressos a notícia era o novo ritmo que
havia conquistado o Brasil:
historicamente determinadas (por exemplo, a grande separação entre razão/ desrazão): a ‘ordem do
discurso’ própria a um período particular possui, portanto, uma função normativa e reguladora e
coloca em funcionamento mecanismos de organização do real por meio de produção de saberes, de
estratégias e de práticas.” REVEL, Judith. Michel Foucault: Conceitos essenciais. Tradução de Maria
do Rosário Gregolin, Nilton Milanez e Carlos Piovesani. São Carlos: Claraluz, 2005. p.37.
32
RISÉRIO, Antônio. “O Solo da sanfona: contextos do Rei do Baião”. Revista USP. n.4. São Paulo,
dez./jan./fev. 1989/90. p.35-40.
33
“Por acontecimento, Foucault entende, antes de tudo de maneira negativa, um fato para o qual
algumas análises históricas se contentam em fornecer a descrição. O método arqueológico
foucaultiano busca, ao contrário, reconstituir atrás do fato toda uma rede de discursos, de poderes, de
estratégias e de práticas.” REVEL, Judith. Op. cit., 2005. p.13.
29
Enquanto o radar anunciava: “a ordem agora é baião -
coqueluche nacional de 1949”, o diário carioca publicava
reportagem na qual afirmava que o baião vem fazendo
estremecer todo o vasto império do samba e agora não se
poderá mais negar a influência decisiva desse nero musical na
predileção do povo. E a revista O Cruzeiro publicava uma
reportagem com fotos para ensinar ao público a dançar baião.
34
A difusão da produção de Gonzaga e de outros artistas nordestinos, como
Jackson do Pandeiro, aconteceu por intermédio do rádio, principal vetor de
divulgação da música e dos artistas nas décadas de 1930 a 1950, período
conhecido como a sua “era de ouro”
35
. O rádio, a circulação e produção nacional
de discos e os cinemas americano e nacional foram meios importantes no
processo produtivo da cultura nativa mestiça.
36
Antes de Gonzaga, na década de 1920, teve-se conhecimento da música
“Caboca de Caxangá” e da toada “Luar do Sertão”, canções de Catulo da Paixão
Cearense.
37
Em 1927, o conjunto pernambucano Turunas da Mauricéia
formado por Augusto Calheiros, cantor; Romualdo Frazão, João Frazão e
Manuel Lima, violonistas; e João Miranda, bandolinista chegou ao Rio de
Janeiro e fez sucesso junto aos cariocas, sobretudo em meio aos compositores da
cidade.
38
O Grupo cantava gêneros musicais do sertão nordestino, como o coco e
a embolada. Seus componentes vestiam-se com roupas inspiradas na
34
DREYFUS, Dominique. Vida do Viajante: a saga de Luiz Gonzaga. São Paulo: Ed. 34, 1996. p.138.
35
“Os anos 30, 40 e 50 são conhecidos como a ‘era de ouro do rádio’ no país, destacando-se as
emissoras do Rio de Janeiro, entre elas a Nacional, que mantinham a sintonia do Brasil com a Capital
Federal. O Rio, além de sede do governo, era identificado como a ‘capital do bom gosto’, um centro
que ditava modas, padrões estéticos, de comportamento e de gênero considerados nacionalmente
urbanos e modernos. [...] As rádios funcionaram como um veículo integrado ao contexto histórico,
utilizando e difundindo padrões de comportamento. O rádio-jornal, a novela, os programas de
auditório envolviam cotidianamente a todos.” MATOS, Maria Izilda Santos de. Dolores Duran:
experiências boêmias em Copacabana nos anos 50. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997. p.63-4
36
“No cenário urbano moderno, a música popular foi dinamizada por novos contatos e pela
intensificação da circulação das canções nas formas mercantis que assume (partitura e disco) e com a
popularização do rádio. As mídias não estão fora das transformações da música popular e dos estados
que a canção assume; ao contrário, são tão determinantes quanto outros elementos poético-musicais e
culturais.” VARGAS, Herom. Hibridismos musicais de Chico Science e Nação Zumbi. Cotia, SP:
Ateliê Editorial, 2007. p.230.
37
SANTOS, José Farias dos. Luiz Gonzaga: A música como expressão do Nordeste. São Paulo:
IBRASA, 2004. p.30.
38
CABRAL, Sérgio. A MPB na era do rádio. Coleção Polêmica. São Paulo: Moderna, 1996. p.22.
30
indumentária dos cangaceiros Sinhô Pereira e Lampião.
39
Esse figurino repetiu-
se com Gonzaga, a partir da década de 1950, em diversos momentos de sua
trajetória artística.
Figuras 1 e 2 - Gonzaga quando músico da rádio.
40
Figura 3 - Gonzaga vestido de Lampião.
41
39
ÂNGELO, Assis. Dicionário Gonzagueano de A a Z. São Paulo: Parma, 2006. p.123.
40
Fonte: http://www.luizluagonzaga.com.br (site dedicado à vida e obra de Luiz Gonzaga).
41
Fonte: http://www.luizluagonzaga.com.br (site dedicado à vida e obra de Luiz Gonzaga).
31
Figuras 4 e 5 - Gonzaga em fotos de divulgação, como artista, com vestimentas inspiradas nas
roupas de vaqueiros (foto da esquerda) e do cangaceiro Lampião (foto da direita).
42
O conjunto Turunas da Mauricéia fez sucesso no Rio de Janeiro, onde as
portas das rádios, das gravadoras, dos clubes e das excursões abriram-se ao
grupo, que chegou a se apresentar inclusive em Buenos Aires, Argentina.
Entretanto, com Gonzaga foi diferente. Seu sucesso alcançou diversos
segmentos sociais, sobretudo os segmentos populares da sociedade, pois o rádio,
na década de 1940, havia se expandido e alcançado popularidade, devido ao
barateamento progressivo do aparelho.
O Rio de Janeiro, então capital da República, por essa sua condição,
atraiu migrantes de diversas regiões do país, o que fez da cidade um epicentro de
efervescência e circularidade cultural
43
, misturando diversas referências e
aspectos tecnológicos, absorvendo e amalgamando diferentes objetos de saberes
42
Fonte: http://www.luizluagonzaga.com.br (site dedicado à vida e obra de Luiz Gonzaga).
43
[...] na primeira metade deste século a cultura musical no Rio de Janeiro era bastante diversificada.
Vários gêneros eram cultivados. De tradição européia existiam as polcas, mazurcas, valsas, xótis,
cançonetas; de origem norte-americana, o ragtime, a cake walk, o foxtrot, o charleston; de tradição
africana, os pontos de macumba e candomblé, as batucadas; de origem rural, as chamadas músicas
regionais, sertanejas ou folclóricas, como cocos, emboladas, as modas de viola caipira (rasqueado);
além de outros gêneros cultivados como a modinha e o lundu, o choro, o maxixe, o samba (tidos como
os primeiros gêneros da música nacional). Além da diversidade de gêneros, a música era cultivada de
diferentes maneiras, em diversos lugares.” VIANNA, Letícia. Bezerra da Silva, produto do morro:
Trajetória e obra de um sambista que não é santo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p.50.
32
que foram se editando e sendo editados pela linguagem de comunicação do rádio
e pela estratégia de homogeneização projetada pelo nacionalismo. Daí foi se
definindo o que significaria urbano, rural, nacional e regional.
Quando Gonzaga surgiu, estava inserido no processo produtivo do rádio,
e pensou o lançamento do baião como uma campanha.
44
Estudou, ao seu modo,
uma possível formatação estética de sua música, para melhor amplificá-la e
torná-la apta a ser tocada pelas rádios. Outro aspecto importante é o fato de o
período de sucesso de Gonzaga ter sido também o período de maior migração
nordestina para a região sudeste, em 1950.
Os migrantes tiveram na música de Gonzaga um referencial afirmativo
do processo migratório (social, econômico, político, cultural e existencial).
Esses sujeitos históricos, em sua dor e em sua alegria, enfrentaram os desafios
do desconhecido nos centros urbanos. Diante disso, pode-se afirmar que
Gonzaga foi um cronista do cotidiano e da cultura nordestina sertaneja migrante.
Ele fez parte do processo de recriação da memória desses sujeitos sociais,
quando ressignificou o Nordeste no entre-lugar campo-cidade. Por meio da
música de Gonzaga, da literatura, do cinema, dos espaços de sociabilidades,
esses personagens entraram em cena. A música de Gonzaga e esses outros
objetos da cultura tornaram-se documentos importantes para o entendimento da
história do migrante nordestino.
Gonzaga intitulou São Paulo de “QG do baião” no momento em que se
tornou um artista de sucesso nacional, mais especificamente na década de 1950.
Nesse sentido, vale conferir a seguir a leitura de Gonzaga sobre a cidade de São
Paulo:
44
“Segundo Humberto Teixeira, a idéia de Luiz Gonzaga era fazer uma grande campanha para lançar
a música do Nordeste nos grandes centros urbanos. Tanto que, ao contrário de outros gêneros musicais
no Brasil (maxixe, choro, samba, música caipira...), que surgiram de repente, sem nenhuma
programação, no caso do baião houve um real planejamento, uma intenção de lançar no sul, e,
portanto, para todo o Brasil, de forma estilizada, ou melhor, amaciada, adaptada ao paladar urbano, a
música nordestina, da qual o ritmo essencial escolhido para essa estilização foi o do baião: e isso tudo
partiu da cabeça de Luiz Gonzaga.” DREYFUS, Dominique. Op. cit., 1996. p.112.
33
Instalei o QG do baião em São Paulo, onde a coisa ia bem, a
colônia nordestina vibrando e dando apoio ao baião. O ponto
fixo era a rádio Record, em contrato permanente. E, de lambuja,
os contratos extraordinários para as cidades do interior e para os
subúrbios distantes da paulicéia. O dinheirão ia correndo. Tanto
no Rio como em São Paulo, entre as quais eu ficava num vai e
vem danado. Nacional no Rio, Record em São Paulo.
45
Gonzaga veio à tona em um período em que o rádio gozava de prestígio,
na década de 1960, com o projeto nacional desenvolvimentista. Sua música
perdeu território na cena nacional e voltou-se para a região Nordeste e para as
periferias nas quais se situava a população de migrantes dos centros urbanos
do sudeste: Rio de Janeiro e São Paulo.
A cidade de São Paulo, mesmo depois de seu sucesso, continuou sendo
seu QG, que os migrantes nordestinos eram blico fiel de Gonzaga. Ainda
sobre a colônia nordestina em São Paulo, pronunciou-se da seguinte forma:
A colônia nordestina não só se divertia. A gente notava que
ouvir o baião para eles era um lenitivo para a saudade da terra
distante. E eu os imitava no linguajar, riam, colaboravam nos
programas. [...] os programas ficavam repletos de nordestinos.
Deles havia que viajavam um dia inteirinho de trem Sorocabana,
Noroeste ou Alta Paulista - pra me ver tocar e dizer aquelas
lorotas, para escutarem a música que falava da terra distante e
perdida, sem embargo encravada no coração.
46
O discurso nordestino de Gonzaga se fez renovado mediante a
linguagem da sua canção (música e letra), o seu gestual, o timbre e as inflexões
da sua voz, a sua indumentária, o seu sotaque carregado de expressões do
português arcaico, específico da zona rural do sertão nordestino, em confluência
com as formas de teatralizar e comunicar do rádio. Este discurso foi gestado em
sua trajetória de experiências fecundas no território da sensibilidade, entre vida e
45
SÁ, Sinval. O sanfoneiro do Riacho da Brígida. Vida e Andanças de Luiz Gonzaga. O Rei do Baião.
6ªed. Coleção Pernambucana 2ª fase. Recife: FUNDARPE, Diretoria de assuntos culturais, 1986. p.55.
46
Ibidem. p.55.
34
obra. Trata-se de uma memória não só de fatos, mas também de gestos, de
pausas e de hábitos que se repetiram e se renovaram.
1.2 ERA DE OURO DO RÁDIO
No início dos anos 30, o Brasil possuía 29 emissoras de rádio,
transmitindo óperas, músicas e textos instrutivos.
47
A partir dessa época, o rádio
passou a ser um dos meios de comunicação de massa que divulgavam notícias
de oportunidades de trabalho no sul, notícias estas que faziam parte de um
projeto intencional do governo e das instituições interessadas na atração de mão-
de-obra para esta região, estimulando a migração interna, assim como os jornais
impressos de circulação nacional e os correios.
48
A força do rádio [...] foi tão abrangente e tão irresistível que o
Brasil inteiro cantou em coro com os astros e estrelas do
microfone. Tudo mudaria: a música do nordeste invadiria o sul,
a sanfona gaúcha seduziria o pernambucano Luiz Gonzaga, o
samba seria conhecido em toda à parte, sertanejos e caipiras
ganhariam seu lugar ao sol. Chegaria, enfim, a vez de todos os
sons.
49
47
A primeira emissora de rádio a transmitir uma programação regular foi a Rádio Sociedade do Rio
de Janeiro, a PRA-A [...]. Nesse mesmo ano surgiram a Rádio Clube do Brasil e a Rádio Clube de
Pernambuco, na qual Luiz Gonzaga se apresentaria muitas vezes, antes de alcançar o sucesso
merecido, no Rio. A rádio clube foi a primeira emissora a contratar o futuro Rei do Baião, em 1941.
Nela, ele se apresentava em vários programas, inclusive no que ele próprio passaria a comandar (Alma
do Sertão), no ano seguinte, em substituição ao titular Antenógenes Silva. Antenógenes era o seu
maior ídolo entre os sanfoneiros. Era chamado de O mago do acordeom.” ÂNGELO, Assis. Op. cit.,
2006. p.55.
48
“A primeira transmissão radiofônica oficial no Brasil, foi o discurso do Presidente Epitácio Pessoa,
no Rio de Janeiro, em comemoração do centenário da Independência do Brasil, no dia 7 de setembro
de 1922. O discurso aconteceu numa exposição, na Praia Vermelha - Rio de Janeiro e o transmissor foi
instalado no alto do Corcovado, pela Westinghouse Electric Co. E em 20 de abril de 1923 Edgard
Roquete Pinto e Henry Morize fundaram a primeira estação de rádio brasileira: Rádio Sociedade do
Rio de Janeiro. Foi que surgiu o conceito de ‘rádio sociedade’ ou ‘rádio clube’, no qual os ouvintes
eram associados e contribuíam com mensalidades para a manutenção da emissora. Ainda neste
momento o rádio não era muito lucrativo.” CABRAL, Sérgio. Op. cit., 1996. p.11.
49
MÁXIMO, João. “A Era do Rádio”. In: SOUZA, Tarik (Org.). Brasil Musical: viagens pelos sons e
ritmos musicais. Rio de Janeiro: Art Bureau Representações e Edições de Arte, 1988. p.180-194.
35
O aparelho de rádio, gradativamente, foi se barateando, se popularizando
e se transformando também em veículo de publicidade. A partir daí, os objetos
da cultura passaram a servir como estratégias de sedução e construção de
discursos de empresas privadas e do próprio Estado.
A primeira gravadora instalada no Brasil, a Casa Edison, estabeleceu-se
no Rio de Janeiro, no começo do século XX. Esta primeira editora discográfica
teve importância histórica na ampliação do mercado musical para músicos
populares, maestros e arranjadores, favorecendo a sua profissionalização.
50
Com
o advento da música gravada e comercializada, tinha-se o registro sonoro
“eternizado”, um documento a mais na constituição do acervo da música
brasileira.
A música enquanto profissão, antes do aparecimento do rádio, das
gravadoras e do cinema, fazia parte de um mercado ainda tímido, voltado à
venda de partituras e aos pianeiros nas casas de instrumentos e salas de cinema
mudo. Ela estava presente na vida das pessoas nos momentos de celebração
religiosa, nos ritos de passagem, como casamentos, batizados, enterros, entre o
sagrado e o profano, no canto de trabalho dos vaqueiros, das lavadeiras, tanto no
campo como na cidade, nas festas populares, nos saraus das elites, nos cabarés,
nos concertos, nos teatros de revista, nas bandas militares.
O rádio, o disco e o cinema trouxeram a possibilidade de expansão do
mercado de atuação dos profissionais da música, como também normatizaram as
práticas artísticas de músicos, compositores, cantores e atores enquanto
profissão. O rádio foi elemento de desenvolvimento do mercado da música
brasileira e, conseqüentemente, da cultura, invenção e reinvenção das tradições.
50
“Além da Casa Edison, outras empresas entraram no ramo da produção de discos no Brasil; entre
elas a Columbia Phonograph, a Victor Record, a Favorite Record, a Grand Record Brasil, Discos
Phoenix, Disco gaúcho etc.” CABRAL, Sérgio. Op. cit., 1996. p.8.
36
A música enquanto processo celebrativo, criativo e produtivo teve
deslocado o seu campo de ação dentro do contexto social. Ela foi incorporada à
sociedade de consumo
51
, passando a ser um produto e a agregar valor a marcas,
como Coca-Cola e fermento Royal, por meio de locuções e jingles. Além disso,
foi apropriada também pelo Estado Novo (1937 -1945), que a utilizou como um
meio simbólico para a construção da imagem do nacionalismo populista e a
difusão do ideário Varguista.
Getúlio Vargas
52
, que já havia percebido a força da música e o seu
potencial de catalisar popularidade, tentou fazer dela um meio nacional-
popular
53
de produção de significados afirmativos da unidade e identidade
nacional, com destaque para a exaltação da natureza brasileira, da cultura oral e
dos inúmeros aspectos positivos do país e seu povo. Sendo assim:
51
Através do rádio e da indústria fonográfica, a música popular brasileira foi incorporada à sociedade
de consumo, com sua utilização primeiramente pelo disco, depois pelo rádio, até que os dois - o disco
e o rádio - estabeleceram uma espécie de parceria em que um dependia muito do outro. Ibidem. p.5.
52
“Getúlio Vargas, quando ainda era deputado, em 1928, fez uma lei, conhecida como Lei Getúlio
Vargas, regulamentando o uso da música nos lugares públicos e defendendo os direitos autorais dos
compositores. Antes mesmo que se fosse um grande assunto, que se falasse muito nisso, ele estava
se antecipando. Em 1931, Vargas lança o primeiro decreto que vai regulamentar as normas técnicas
para a concessão de emissoras. Em seguida, em 32, lança um decreto regulamentando a publicidade no
rádio, que não era permitida. A partir disso, é que o dio realmente ganha força porque descobre que
não pode viver só da contribuição dos sócios, que pagavam uma quantia de 5 mil Réis na época. E vão
buscar, no mercado publicitário, patrocínios para as rádios poderem sobreviver e pagar algum tipo de
cachê aos seus artistas.” SAROLDI, Luís Carlos; MOREIRA, Sônia Virginia. Rádio Nacional: O
Brasil em sintonia. ed. Rio de Janeiro: Martins Fontes/ Funarte/ Instituto Nacional de Música/
Divisão de Música Popular, 1988. p.60.
53
Bobbio afirma que o “termo nacionalismo designa a ideologia nacional, a ideologia de determinado
grupo político, o estado nacional que se sobrepõe às ideologias dos partidos, absorvendo-as em
perspectiva”. BOBBIO, Norberto; MATTENCI, Nicola; PASQUINO, Geanfranco. Dicionário de
Política. 7ªed. vol.2. Brasilia: UnB, 1995. p.798.
O nacional-popular pode ser entendido da seguinte forma: “como o conjunto de categorias e
representações simbólicas que formam tanto um campo contíguo, articulando normas, valores e
comportamentos, como um substrato da vida política institucional organizando a arena de conflitos.
Em certas circunstâncias matrizes simbólicas de uma cultura política podem migrar da esquerda para a
direita e vice-versa (por exemplo, o nacionalismo)”. NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção:
engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969). São Paulo: Annablume; Fapesp, 2001.
p.12.
“[...] o nacional-popular é essa unidade que destrói as diferenças culturais e impede a identificação do
indivíduo à sua classe, raça e etnia.” NOVAES, Adauto. “Apresentação”. In: WISNIK, José Miguel;
SQUEFF, Ênio (Orgs.). O nacional e o popular na cultura brasileira. São Paulo: Editora Brasiliense,
1982. p.10.
37
Nesse processo, as músicas, seja erudita, seja popular, deviam
divulgar as noções de civismo, fé, trabalho, hierarquia, noções
indispensáveis à construção de uma nação civilizada.
54
Nesse contexto emergiu o chamado “samba-exaltação” e toda a tentativa
de neutralizar a temática da malandragem que cerceava a atmosfera do samba.
55
Diante disso, para estabelecer a ordem, a censura se fez presente desde o
primeiro momento em que o governo passou a atentar para a importância do
rádio enquanto veículo de informação e entretenimento.
Valendo-se desses mecanismos, Vargas
56
fechou seu plano de
propaganda política estatizando, em 1936, a Rádio Nacional, adotando um
discurso unificador. O rádio aproximou as regiões brasileiras separadas por
longas distâncias, e à Rádio Nacional, como braço do governo, foi impresso um
discurso nacionalista em prol do Estado Novo.
Lourival Fontes, então diretor-geral do Departamento de Imprensa e
Propaganda - DIP
57
, em discurso de inauguração dos novos estúdios da Rádio
Nacional, colocou em destaque o rádio como meio de aproximação e de
54
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. 1ªed. São
Paulo: Cortez, 1999. p.153.
55
“[...] a música é percebida como lugar estratégico na relação do estado com as maiorias iletradas do
país, lugar a ser ocupado pelas concentrações corais, pela prática disciplinadora cívico artística do
orfeão escolar, pelo samba da legitimidade (que, desmentindo toda a sua tradição, exalta as virtudes do
trabalho e não da malandragem).” WISNIK, José Miguel. “Getúlio da Paixão Cearense (Vila-Lobos e
o Estado Novo)”. In: WISNIK, José Miguel; SQUEFF, Ênio (Orgs.). Op. cit., 1982. p.134.
56
Seu primeiro governo se estendeu de 1930 a 1945, passando por várias crises que culminaram com
o estabelecimento do Estado Novo (1937), fortalecido pela repressão e pela censura. Esse governo
teve grande interferência na música popular, por encorajar a introdução da ideologia nacionalista nas
letras das canções.” RAMALHO, Elba Braga. Luiz Gonzaga: a síntese poética e musical do sertão.
São Paulo: Terceira Margem, 2000. p.24-5.
57
O DIP vigorou entre 1939 e 1945. Foi criado formalmente em 27 de dezembro de 1939 e entrou em
atividade em 1940. Foi extinto no bojo do processo de “redemocratização”, em 1945. PARANHOS,
Adalberto de Paula. Os desafinados: Sambas e bambas no “Estado Novo”. Tese (Doutorado em
História), PUC/SP, São Paulo, 2005. p.20.
“O Departamento de Imprensa e Propaganda foi criado em outubro de 1939 por meio de um decreto
presidencial, tendo o propósito de difundir e popularizar a ideologia do Estado Novo nos diferentes
38
informação. Desse modo, deixou clara a consciência dos representantes políticos
do Estado Novo em relação à importância do rádio enquanto difusor de
informação e fomentador de redes discursivas:
As distâncias foram sempre um dos inimigos eficientes do nosso
progresso. Durante longos anos os brasileiros, espalhados por
todas as latitudes, que trabalhavam pela grandeza nacional,
viveram um pouco esquecidos, à mingua de contatos, com o
rádio pôde o Brasil desvanecer essas dificuldades, vencendo seu
pior inimigo.
58
O DIP funcionou como órgão de propaganda e censura do Governo
Vargas, interferindo diretamente na programação e gravação das músicas
produzidas no Brasil. Foi diante deste cenário político que se processou o
projeto que buscava constituir uma possível “identidade nacional” e se iniciou o
debate acerca dos parâmetros em que a música brasileira deveria ser composta.
A sensibilidade nacionalista, com toda a estrutura de poder que a
sustenta, investe numa mudança de gosto, não só por parte das
camadas populares, mas também por parte das elites e da classe
média, num novo conceito de belo em que a produção “nacional
e popular” fosse valorizada. A década de trinta marcara a
busca de um som nacional no campo da música erudita, com os
modernistas defendendo a criação de uma teia de significantes
representativos da música brasileira, em suas especificidades
rítmicas, melódicas, timbrais e formais. Uma música que
remetesse à identidade nacional e ao seu “povo”, que fosse
buscar nas canções populares sua matéria prima, já que essas são
vistas como reservas de brasilidade; como elemento de reação à
produção de uma música atrelada a padrões estrangeiros.
59
segmentos sociais da população brasileira.” SANTOS, José Farias dos. Op. cit., 2004. p.160.
58
SAROLDI, Luís Carlos; MOREIRA, Sônia Virginia. Op. cit., 1988. p.1.
59
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Op. cit., 1999. p.153.
39
Fazendo coro com as acepções de “nacional” e “nacionalismo
60
de
Mário de Andrade
61
, Guerra Peixe fez a seguinte colocação:
Os conceitos de arte nacional e arte nacionalista são melhor
definidos por Mário de Andrade no Banquete. através do
diálogo mantido entre o compositor Janjão e Pastor Fido (dois
dos personagens criados por Mario), é possível perceber com
transparência a distinção feita por Mario: “Não sou nacionalista
Pastor Fido... Sou simplesmente nacional. Nacionalismo é uma
teoria política, mesmo em arte perigosa para a sociedade,
precária como inteligência.”
62
O pretendido nacionalismo brasileiro encontrava-se envolvido por uma
atmosfera política de ambigüidade, mas não se pode deixar de pensar na
importância dos compositores e artistas que viveram nessa época enquanto
negociadores de códigos, individualidades de territórios do nacional.
Desde a década de 1930, as rádios tocavam muita música
estrangeira
63
, mas, no período pré e pós-Segunda Guerra Mundial, essa difusão
tornou-se preponderante nas emissoras, sobretudo depois que se instalou o pan-
americanismo, pautado na política de boa vizinhança entre Brasil e Estados
Unidos.
60
“[...] a realidade do nacionalismo é ampla; comporta na discussão da sua ambigüidade, tanto
Napoleão quanto Wagner, passando por todas as variações possíveis, da guerra à música. [...] No
Brasil continua-se a discutir o nacionalismo: tanto falam dele os que escancaram as portas do país às
multinacionais como os que pretendem que o nacionalismo suponha algumas soluções de caráter
nasserista, ou francamente fascista. [...] A questão do nacionalismo é ambígua, não porque muitos se
proclamem nacionalistas tendo soluções antagônicas; mas porque a verdadeira solução não coloca o
problema do nacionalismo como uma prioridade abstrata.” SQUEFF, Enio. “Reflexões sobre um
mesmo tema. História da música brasileira isso existe?” In: WISNIK, José Miguel; SQUEFF, Ênio
(Orgs.). Op. cit., 1982. p.17.
61
Mario de Andrade foi diretor do Departamento de Cultura no governo do Estado Novo.
62
FARIA, Antonio Guerreiro de. “Modalismo e forma na obra de Guerra-Peixe”. In: FARIA, Antonio
Guerreiro de; BARROS, Luitgarde Oliveira Cavalcanti; SERRÃO, Ruth (Orgs.). Guerra Peixe. Um
músico Brasileiro. Rio de Janeiro: Lumiar, 2007. p.40.
63
“Em 1938, os produtos americanos representavam 24,2% do total das importações brasileiras, mas
eram superados pelos produtos alemães, que chegavam bem perto dos 25%. Ao longo da segunda
metade da década de 1930, os Estados Unidos intensificaram a tese da defesa conjunta do continente.”
SAROLDI, Luís Carlos; MOREIRA, Sônia Virginia. Op. cit., 1988. p.72.
40
Os compositores nacionais, dentro desse contexto, experienciaram
estratégias do processo de hibridização e de mestiçagem na prática nacional. A
orquestra brasileira de Radamés Gnatalli, músico instrumentista e compositor
que trabalhou durante 30 anos na Rádio Nacional, passou por transformações e
ganhou estilo americano semelhante ao da orquestra de Benny Goodman,
tocando música popular de diferentes estilos e localidades.
64
Vargas, interessado no poder e na penetração do rádio como instrumento
de propaganda do Estado Novo, definiu que os lucros auferidos pela Rádio
Nacional com publicidade fossem aplicados na melhoria da estrutura da
emissora e de seus artistas. Isso permitiu que a rádio mantivesse o melhor elenco
de músicos, cantores e radioatores da época, além da constante atualização e
melhoria de suas instalações e equipamentos.
A partir de 1940, o rádio viveu seu período áureo. No início dos anos 30,
as emissoras eram mantidas por ouvintes associados, funcionando, nesse
aspecto, como uma espécie de clube. Neste primeiro momento, somente 10%
dos anúncios tinham fins publicitários, mas sem obedecer a um formato próprio
e sendo transmitidos fora de intervalo comercial.
Somente em 1931, o governo Vargas lançou o primeiro decreto de
normas técnicas para concessão de emissora. No ano seguinte, lançou outro
decreto de fundamental importância para o desenvolvimento do rádio,
regulamentando a publicidade nas emissoras, que até então não era permitida.
Em 1932, o Decreto Lei n.21.111 permitiu anúncios populares e
a concessão de canais a particulares. Abriu-se espaço para uma
maior audiência, vindo a favorecer, entre outras coisas, a
divulgação da música popular, pois auditórios foram construídos
para abrigar os famosos “programas de auditório”, que tiveram
início em 1935.
65
64
Ibidem. p.30.
65
RAMALHO, Elba Braga. Op. cit., 2000. p.24.
41
A publicidade entrou em cena e passou a ser a principal financiadora dos
programas radialísticos. Tornou-se, assim, um componente econômico
importante e preponderante no processo de profissionalização e fortalecimento
do mercado musical e artístico. Desse modo, as emissoras de rádio
proporcionaram trabalho a diversos artistas, músicos e arranjadores.
Ser artista ou cantor de dio era desejo de milhares de pessoas,
especialmente dos jovens. Pertencer ao elenco de uma emissora como a Rádio
Nacional era suficiente para que o artista conseguisse obter projeção, destaque e
prestígio em todo o país. Foi o que aconteceu com Luiz Gonzaga, que alcançou
sucesso nacional em 1948, dentro do período áureo da rádio Nacional do Rio de
Janeiro (1940-1950), com o sucesso do nero musical baião”. Além disso,
nesse mesmo período, arranjadores e orquestradores, como Pixinguinha,
Radamés Gnatalli, Guerra Peixe e muitos outros, adquiriram experiência na
técnica de criar arranjos para a música popular.
66
No mesmo ambiente passaram a conviver músicos e arranjadores de
segmentos sociais e regiões diferentes do país, propiciando, dessa forma, um
ambiente rico em troca de saberes.
67
As rádios foram alguns dos tantos outros
territórios pelos quais Gonzaga circulou, ambiente onde a sua percepção musical
e comercial foi sendo aguçada e lapidada, desenvolvendo e direcionando, ainda
mais, a sua musicalidade à busca do seu reconhecimento. O primeiro contato
que Gonzaga teve com o rádio foi nos programas de calouros, criados em
meados dos anos 30. Desse modo:
66
As dios brasileiras da época forneceram elementos enriquecedores na arte do arranjo ou
orquestração, “[...] possuindo uma estrutura profissional bastante sólida, constando de figuras
essenciais à realização musical como: arranjadores, copistas, orquestras e regentes - regidas
freqüentemente pelos próprios arranjadores”. FARIA, Antonio Guerreiro de. Op. cit., 2007. p.16.
67
“Foucault distingue nitidamente o ‘saber’ do ‘conhecimento’: enquanto o conhecimento corresponde
à constituição de discursos sobre classes de objetos julgados cognoscíveis, isto é, à construção de um
processo complexo de racionalização, de identificação e de classificação dos objetos
independentemente do sujeito que os apreende, o saber designa, ao contrário, o processo pelo qual o
sujeito do conhecimento, ao invés de ser fixo, sofre uma modificação durante o trabalho que ele efetua
na atividade de conhecer.” REVEL, Judith. Op. cit., 2005. p.77.
42
Gonzaga começou a freqüentar os programas de Renato Murce e
Ary Barroso. No primeiro imitava Augusto Calheiros,
Antenógenos Silva, Carlos Gardel. No segundo, tocava uma
valsinha, um tango, um chorinho, ou até mesmo um samba.
Nunca era gongado. Tinha técnica suficiente para chegar até o
final da música que apresentava. Mas a nota que tirava jamais
passava de um 3. Ary Barroso concluía a apresentação com um
daqueles implacáveis sarcasmos e a coisa ficava por isso
mesmo.
68
Gonzaga chegou ao Rio de Janeiro em 1939
69
e começou a se apresentar
tocando sanfona na zona do Mangue (zona de prostituição). Para inserir-se no
gosto musical urbano local, precisou aprender a tocar um repertório novo,
recheado de sucessos internacionais: fados, valsas, tangos, polcas, blues,
mazurcas, foxtrotes.
70
Até que um dia, em um dos bares da zona do Mangue,
um grupo de cearenses desafiou o sanfoneiro a tocar alguma música que não
fosse estrangeira. Eles queriam ouvir as músicas do Nordeste brasileiro.
Gonzaga, desprevenido, ficou encabulado de cantar as músicas do “Pé de
serra”
71
e prometeu que em uma próxima vez faria uma surpresa ao grupo de
estudantes cearenses que o abordou.
Até então Gonzaga não tinha pensado em apresentar as músicas de sua
referência de infância e adolescência, aquelas que havia aprendido com o seu
pai, Januário, que nas horas vagas costumava tocar acordeão.
72
Acreditava que
essas músicas não teriam aceitação do público e que seria mais garantido fazer
68
DREYFUS, Dominique. Op. cit., 1996. p.81.
69
Gonzaga, “No começo do ano baixa do exército e segue para o Rio de Janeiro, depois de passar
por São Paulo e adquirir uma sanfona branca, de 120 baixos. Setembro: explode a segunda guerra e o
Brasil é invadido pela música norte-americana”. ÂNGELO, Assis. Op. cit., 2006. p.37.
70
“A música dos Estados Unidos fazia-se presente com o foxtrote, o ritmo da moda em todo o mundo.
Os cantores gravavam versões, em português, dos originais norte-americanos ou foxtrotes compostos
por brasileiros (vale lembrar que já era grande a importação de discos estrangeiros, principalmente dos
Estados Unidos. Da Argentina também se importava uma grande quantidade de discos, pois o tango
gozava grande prestígio no mundo inteiro desde o início do século).” CABRAL, Sérgio. Op. cit., 1996.
p.27.
71
“Pé de serra” era a forma carinhosa pela qual Gonzaga chamava a região Nordeste, principalmente a
região do Araripe, exatamente o vilarejo do Exu, local onde ele nasceu.
72
“[...] pegou a sanfona e começou a pensar nas músicas que tocava com o pai. Polcas, mazurcas,
quadrilhas, valsas, chorinhos, coisas que existiam por todo o Brasil, mas que, no sertão, eram tocadas
com o ‘sotaque’ local.” DREYFUS, Dominique. Op. cit., 1996. p.82.
43
aquilo que se tinha costume na cidade do Rio de Janeiro. A princípio,
Gonzaga estava preocupado em se inserir no contexto musical da cidade e, para
isso, dedicou-se a apreender os códigos, o sotaque, o gestual, o vestuário e os
gostos dos cariocas.
Ninguém sabia que eu era nordestino. Eu era um malandro,
me atirava no meio dos crioulos, vestido igual a eles, até cantava
samba nas gafieiras. Eu tinha interesse em me adaptar ao
sotaque carioca. Sotaque nordestino, havia muito tempo que
havia perdido. Também havia saído do nordeste mais de
nove anos. Quando dei baixa no exército e saí de Minas Gerais,
já estava ficando mineiro.
73
depois, em meados da década de 1940, Gonzaga foi percebendo que
as referências culturais que trazia da região onde nasceu poderiam ser o seu
diferencial, em fecunda relação com tudo de novo que ele havia absorvido e
apreendido tanto no Brasil (toadas sertanejas, milongas gchas, chorinhos,
sambas) como fora dele (fados, tangos, valsas, polcas, mazurcas, blues,
foxtrotes), referências rurais e urbanas, brasileiras e estrangeiras. O sotaque da
sanfona de Gonzaga trazia um balanço diferente, percussivo, dançante àquele
instrumento, tocado em outras culturas de maneira menos sincopada.
74
Foi justamente por causa da sua sanfona percussiva, da sua música
característica do sertão nordestino, do “pé de serra”, do Vira e Mexe
75
que
Gonzaga tirou nota máxima no programa do Ary Barroso e ganhou um prêmio
em dinheiro. Não demorou muito para Gonzaga conseguir um emprego como
73
Ibidem. p.81.
74
“Um nítido exemplo da dinâmica híbrida das músicas do continente, já bastante discutida nos
últimos anos, é o traço da síncope, presente em vários gêneros latino-americanos. Os dicionários de
música, normalmente baseados no padrão ocidental, são quase unânimes em determinar a síncope
como elemento estranho e desordenador da métrica regular e recorrente, um tipo de ‘deslocamento do
acento rítmico esperado’. Esse efeito é visto pela lógica binária como negação, um desvio da
regularidade fundada pela escrita ocidental. Tal visão revela, com nitidez, os condicionamentos
culturais da música e seu conseqüente etnocentrismo: neste caso, evidencia a dificuldade da tradição
ocidental em entender as polirritmias das músicas africanas presentes nas sínteses de vários gêneros
latino-americanos.” VARGAS, Herom. Op. cit., 2007. p.210.
75
Gonzaga gravou a música “Vira e mexe” em 1941, pela Rca Victor, em 78 Rpm. O ritmo ele definiu
como xamego.
44
instrumentista ou “sanfonista” da rádio Transmissora (futura Globo) no Rio de
Janeiro, em um programa de temática sertaneja.
As temáticas sertanejas das músicas apresentadas no programa
correspondiam exatamente ao que Gonzaga conhecia muito
bem. Ele conhecia bem o repertório regional paulista, mineiro,
nordestino, evidentemente, e até o gaúcho.
76
O conhecimento de Gonzaga de todas essas referências foi
aproximando-o de uma mescla autoral, e o compositor passou a denotar uma
música regional significante do Nordeste (região onde ele nasceu), mas, ao
mesmo tempo, amalgamada a uma série de novas referências urbanas e rurais de
diversas partes do Brasil. Gonzaga chegou a uma intersecção musical entre
diversos territórios, o que culminou com o seu sucesso no Rio de Janeiro, que,
por sua condição de Capital Federal, era ativa no processo de edição da cultura
nacional. O baião de Gonzaga passou a ser um dos ritmos conhecidos
nacionalmente, assim como o samba.
Quando Luiz Gonzaga apareceu, por intermédio do rádio, com o sucesso
da música intitulada “Baião”, vivia-se um momento político de transição
democrática, com o fim do Estado Novo e o empossamento do novo presidente,
o General Eurico Gaspar Dutra. Este, entretanto, deu continuidade ao processo
iniciado por Vargas no quesito político-cultural nacional.
Gonzaga sonhava em dar uma virada e começou a pensar em arranjar
parceiros, sempre preocupado em abordar as temáticas do sertão, do Nordeste.
Além das parcerias, Gonzaga também aspirava tornar-se cantor. Todavia, em
ambas as tarefas, encontrou resistência de colegas e profissionais das rádios e
gravadoras, pois achavam a voz dele estranha, nasalada, médio-aguda, bem
diferente das vozes médio-graves, bem trabalhadas e aveludadas dos cantores da
época. Opondo-se à voz de Gonzaga, os diretores chegaram a proibir que ele
76
DREYFUS, Dominique. Op. cit., 1996. p.87.
45
cantasse. “Mandaram afixar nos quadros da emissora um cartaz com a seguinte
mensagem: Luiz Gonzaga está proibido de usar microfone de lapela.”
77
Esse processo foi revertido porque uma das suas primeiras gravações
vocais caiu no gosto popular. Gonzaga passou a ser novidade, inclusive sua voz
diferente representava mudança de padrões estéticos, no sentido de estar mais
próxima da fala e da maneira natural de expressão do nordestino. Observa-se
que os avanços de Gonzaga foram fruto de muita persistência e insistência; ele
negociou cada transformação e cada patamar novo por ele alcançado.
Foi no cotidiano de músico, tocando nas orquestras e nos regionais
78
do
rádio, acompanhando artistas, que Gonzaga formatou o discurso estético de sua
música e teve a idéia de montar uma formação instrumental típica que
representasse a música do Nordeste, o trio nordestino. Ainda em 1941, inventou
o rótulo de “xamego” para as suas composições, que, a rigor, poderiam ser
classificadas como choros ou tangos
79
; o xamego foi a sua primeira tentativa de
emplacar um nero musical. Com seu parceiro Humberto Teixeira (Gonzaga,
música; Teixeira, letra), criou a música que levou à frente sua estratégia de fazer
campanha em prol do lançamento do baião e que o projetou nacionalmente
como artista popular, comercial e de sucesso.
A cidade era condição na música de Gonzaga, mesmo quando em
referência à zona rural. O campo muitas vezes foi tema; contudo, a forma
musical pressupunha a cidade o músico e compositor treinado, o público que
as cidades constituíam, a linguagem do rádio, a indústria cultural.
As várias canções que emergem no universo criativo de Gonzaga junto
aos seus parceiros possuem referências de fertilidade urbana. Até mesmo o
campo é referenciado, mitologicamente, como lugar de origem, “essência”, raiz
77
SANTOS, José Farias dos. Op. cit., 2004. p.40.
78
“Aos ‘cantores de samba’ restava a companhia do inevitável regional, formação de instrumentos de
corda, percussão e sopro sempre pronta a preencher qualquer lacuna na programação.” SAROLDI,
Luís Carlos; MOREIRA, Sônia Virginia. Op. cit., 1988. p.12.
79
VIANNA, Letícia. Op. cit., 1998. p.51.
46
da nação, espaço da saudade, lugar de permanências, da tradição, contraste do
espaço urbano em sua velocidade, seus ruídos.
Essa visão mitológica do campo, tido como paradigma de pureza, paz e
simplicidade, é também uma construção idílica da cidade.
80
Pode-se constatar
esse raciocínio por meio de um trecho do programa de rádio “No Mundo do
Baião” (série Cancioneiro Royal)
81
, transmitido pela dio Nacional e
patrocinado pelos Produtos Royal. O programa era produzido por Humberto
Teixeira e Dantas e apresentado por Paulo Roberto em companhia de Luiz
Gonzaga e seus parceiros. A programação focalizava o baião, ritmo nordestino
que na época fez sucesso em todas as regiões do Brasil, inclusive no sudeste.
Estava presente na atração, além de Luiz Gonzaga, o próprio Zé Dantas, autor de
inúmeros baiões famosos e exímio contador de casos. Vários outros artistas do
elenco da emissora fizeram participações neste programa exclusivamente
dedicado ao baião e outros ritmos nordestinos.
Destarte, vale conferir o supracitado trecho do programa:
Locutor: De que modo Paulo Roberto apresentará
no mundo do baião?
Ele começará com certeza focalizando o sertão
Brasileiro, o céu azul, o luar de prata, as cantigas e
os carracais do nordeste brasileiro.
80
“No limite, visto da cidade, o campo é o exótico nacional: no campo, a literatura encontra o
diferente, um território quase estrangeiro, aventuresco e mesmo heróico, tudo ao alcance da mão. Ou
ainda um espaço de mitos culturais, onde se pode inventar tradições a partir de uma bricolagem de
elementos separados de sua origem camponesa. O campo é ao mesmo tempo o passado imediato e o
radicalmente outro da cidade: portanto um espaço propício ao exotismo. [...] A cidade é um lugar de
produção formal e mitológica: a cultura de massas, a política, a moda, o boato, os rumores, as paixões
e as astúcias da cidade formam a matéria da literatura. Quando visita o campo, a literatura o faz com o
saber urbano que lhe permite encontrar ali a écloga, a lenda, o ‘bom selvagem’ ou, ainda, a ocasião de
paródia que acompanha a narrativa urbana, apoderando-se das vozes rurais. A cidade produz os
gêneros e o trabalho sobre os gêneros (inclusive sobre os gêneros de origem rural).” SARLO, Beatriz.
Jorge Luis Borges, um escritor da periferia. São Paulo: Iluminuras, 2008. p.26, 28.
81
Informação obtida em documentação digitalizada conseguida junto à Biblioteca Nacional do Rio de
Janeiro. No Mundo do Baião 1 - Restaurado.Programas dos dias 10.10.50 e 17.10.50 - Orquestra
regida por Ercole Vareto. Números musicais: Asa branca (Luiz Gonzaga) - Respeita Januário (Luiz
Gonzaga) - Dezessete légua e meia (Luiz Gonzaga) - Baião (4 Azes e l Coringa) - Paraíba (Emilinha
Borba) - Vem morena (Luiz Gonzaga) - Baião (Luiz Gonzaga) - Piririco tico-tico (Zé Dantas) - Qui
nem jiló (Marlene) - Derramaro o gai (4 Azes e 1 Coringa) - Juazeiro (Luiz Gonzaga).
47
Apresentador Paulo Roberto: Na na não, nada
disso. Para dar início ao programa No Mundo do
Baião eu imaginei o seguinte cenário de som:
Este! (Surge então o ruído de carros, buzinas,
bondes, sons que se referenciam ao cenário urbano).
Atenção ouvintes do interior!
Começaremos por apanhar dentro da agitação das
grandes capitais, do homem da cidade.
Você carioca! você mesmo que escapou de morrer
ainda agorinha debaixo daquele ônibus.
Preste atenção carioca, o que é que você está
ouvindo além dos ruídos dos automóveis?
Carioca:Buzina dos ônibus.
Apresentador Paulo Roberto: E além da buzina
dos ônibus?
Carioca: A campainha dos bondes.
Apresentador Paulo Roberto: Mais além, mais
além. Além de todos esses violentos ruídos urbanos.
Você não ouve mais nada?
Carioca: Não, não ouço.
Apresentador Paulo Roberto: Pois além, mais
além, muito além desses rumores, passando aquelas
serras, vencido aquele rio, depois daquele vale, há
um homem simples, tocando uma sanfoninha de oito
baixos, e há outro homem simples cantando (neste
momento surge uma trilha de sanfona ao fundo da
narrativa).
E esse sanfoneiro existe de verdade, chama-se
Januário e é pai de Luiz, e o cantor existe mesmo é
Luiz Gonzaga, filho de Januário.
Luiz, sanfoneiro famoso olha sorrindo a sanfoninha
de oito baixos do velho.
Nisso entra em cena um personagem novo: É Zé
Dantas, o destabocado Zé Dantas, ele quebra o
chapéu na testa e diz: Luiz! Respeita os oito baixo
de seu pai. Não olha assim de banda a sanfoninha
dele não, foi com essa sanfoninha de oito baixos que
Januário tocando em tudo quanto foi canto do sertão
ganhou dinheiro, pra ir na venda, pra comprar
farinha, pra fazer paçoca, pra criar nove filhos.
Respeita Januário.
Luiz então responde: Tô respeitando.
48
Zé Dantas: Respeita os oito baixo do seu pai Luiz.
(Daí Luiz Gonzaga começa a cantar a música
Respeita Januário)
Quando eu voltei lá no sertão
Eu quis mangar [zombar] de Januário
Com meu fole prateado
Só de baixo, cento e vinte, botão preto bem juntinho
Como nêgo empareado
Mas antes de fazer bonito de passagem por Granito
Foram logo me dizendo: “De Itaboca à Rancharia,
de Salgueiro à Bodocó,
Januário é o maior!”
E foi aí que me falou mei zangado o véi Jacó
“Luí” respeita Januário
“Luí” respeita Januário
“Luí”, tu pode ser famoso, mas teu pai é mais
tinhoso
E com ele ninguém vai, “Luí”, “Luí”.
Respeita os oito baixo do teu pai!
Respeita os oito baixo do teu pai!
Nesse momento, Luiz Gonzaga continuou a música com o seguinte
enredo, teatralizando um sujeito do sertão do Exu, localidade em que ele nasceu:
Sujeito do sertão: Eita com seiscentos milhões,
mas já se viu! Dispois que esse fi de Januário
vortô do sul. Tem sido um arvorosso da peste lá
pra banda do Novo Exu.
Todo mundo vai ver o diabo do nego.
Eu também fui, mas não gostei.
O nego tá muito mudificado.
Nem parece aquele mulequim que saiu daqui em
1930.
Era malero, bochudo, cabeça-de-papagaio,
zambeta, feeei pa peste!
Qual o quê! O nêgo agora tá gordo que parece um
major!
É uma casemira lascada! O nego ta até mais
branco.
Um dinheiro danado! Enricou! Tá rico!
Pelos cálculos que eu fiz, ele deve possuir pra
mais de 10 contos de réis! Safonona grande
danada 120 baixos! É muito baixo!
Eu nem sei pra que tanto baixo!
Porque arreparando bem ele só toca em 2.
49
Januário não!
O fole de Januário tem 8 baixos, mas ele toca em
todos 8.
Sabe de uma coisa?
Luiz tá com muito cartaz!
É um cartaz da peste!
Mas ele precisa respeitar os 8 baixos do pai dele.
E é por isso que eu canto assim:
“Luí” respeita Januário
“Luí” respeita Januário
“Luí”, tu pode ser famoso, mas teu pai é mais
tinhoso
E com ele ninguém vai, “Luí”
Respeita os oito baixo do teu pai!
Respeita os oito baixo do teu pai!
Respeita os oito baixo do teu pai!
82
Como se pode observar nesse trecho do programa, o apresentador
produziu, por intermédio de cenários de som, um discurso comparativo entre
campo e cidade. A cidade foi entendida como lugar perigoso, território da
velocidade, de ruídos violentos, local no qual o homem precisava estar atento
aos carros, bondes e ônibus para não ser atropelado, uma verdadeira falta de paz.
Em contraste com esse cenário, o apresentador deslocou-se para o sertão
nordestino, depois de rios, serras e vales, interior brasileiro, onde nasceu Luiz
Gonzaga, ambientando discursivamente um cenário idílico e lúdico do ponto de
vista urbano.
Perante o cenário campestre, o apresentador situou o som de uma
sanfona de oito baixos, um sanfoneiro e um cantador. Além disso, procurou
produzir um quadro comparativo entre os dois discursos, que, embora diferentes,
complementavam-se e compunham o mesmo cenário. No final, constatou, de
acordo com aquilo que se queria ver (ponto de vista urbano), que o cenário
campestre era um cenário de simplicidade e de alegria, recheado de histórias,
festas, tradições e música, em contraposição ao cenário ruidoso e violento da
cidade.
82
Trecho transcrito do programa no “Mundo do Baião”, Rádio Nacional (1950), acessado na
Biblioteca Nacional - Rio de Janeiro. No Mundo do Baião 1 - Restaurado. Programas dos dias
50
O processo comparativo permaneceu em todo o trecho transcrito do
programa. No enredo do roteiro, Luiz Gonzaga foi ao sertão visitar seu pai,
levando uma sanfona de 120 baixos adquirida na cidade. A problemática do
programa passou a girar em torno da comparação entre a sanfona de Luiz e a
sanfona de Januário, seu pai.
A sanfona de oito baixos de Januário simbolizava a referência primeira
de Gonzaga, sua infância e adolescência, no sertão, portanto, toda a sua vivência
rural e com a tradição. A sanfona de oito baixos tem uma peculiaridade em
relação à de cento e vinte baixos: a escala musical é controlada no abrir e fechar
do fole. O controle das notas é feito nas mãos, no balanceio do instrumentista, e,
geralmente, as músicas tocadas em pé de bode ou oito baixos são mântricas. Em
outras palavras, a melodia se repete circularmente, possibilitando entrar em uma
outra música sem precisar interromper a anterior.
Também no referido programa percebe-se, mediante a teatralidade
encenada por Gonzaga e Dantas, a linguagem com sotaque inspirada na
cultura oral, o modo de contar a história e as entoações, vários aspectos dos
costumes, das mentalidades, das relações sociais, dos espaços de saber e poder
sertanejos. No bojo da música Respeita Januário”, em que Luiz Gonzaga
representa um personagem sertanejo, os aspectos de comportamento social e as
maneiras de pensar o econômico e o político naquela sociedade rural
transparecem.
O personagem encarnado por Gonzaga reagiu ao processo de
urbanização e ascensão social que ele próprio havia experienciado. Manifestou-
se nessa relação uma resistência aos objetos de saber da cidade, que Luiz havia
assimilado enquanto hábitos, códigos estéticos e materiais. A sanfona de cento e
vinte baixos, comparada à de oito baixos, caracterizou-se como um exemplo
material de referência urbana. Questionava-se a quantidade de baixos da sanfona
de Gonzaga; o discurso chegou até mesmo a exprimir um tom de gozação,
10.10.50 e 17.10.50.
51
quando a sanfona de Luiz foi comparada à de Januário, como se pode observar
no seguinte fragmento da canção: “Eu nem sei pra que tanto baixo! Porque
arreparando bem ele toca em 2. Januário não! O fole de Januário tem 8
baixos, mas ele toca em todos 8.”
Segundo o sertanejo, Luiz estava muito modificado, gordo, parecendo
um major rico. Chegou até mesmo a dizer que estava “quase branco”, deixando
escapar, no deslize da fala, uma materialidade discursiva que expôs questões
raciais existentes nesta geografia, contrapondo-se, portanto, às transformações
sócio-culturais e, sobretudo, econômicas que a cidade havia oferecido ao
migrante, no caso Luiz Gonzaga.
O Nordeste aceitou Gonzaga rejeitando-o. Luiz ganhou dinheiro,
ascendeu socialmente, adquiriu o gestual e o polimento de um território mais
formal, deslocamento esse complexo para o entendimento de uma região onde as
relações de poder giravam em torno das questões da terra e do compadrio das
oligarquias familiares. Todas essas questões estavam representadas no discurso
de Gonzaga. Ele expôs complexas relações em um rico diálogo, exagerando no
sotaque sertanejo, de forma caricatural e jocosa, no qual o corpo e a oralidade
expressaram as relações de negociação e conflito na luta pelos deslocamentos,
por territórios de poder.
Dentro dessa lógica, a música de Gonzaga fez-se em meio aos contrastes,
como arquétipo nacional da autenticidade rural do sertão nordestino, como
território da tradição. Veio à tona por intermédio do olhar da cidade para o
campo, referenciando este como espaço da saudade, das raízes, da essência e das
permanências.
Gonzaga, durante toda a sua trajetória, teve uma postura política próxima
daquela adotada por quem estivesse no poder. Humberto Teixeira, seu parceiro,
se candidatou a deputado Federal pelo Ceará, e Gonzaga, desde então, passou a
ter um envolvimento ainda mais direto com a política. Em 1950, fez campanha
para as eleições presidenciais de Getúlio, que retornaria ao poder. Gonzaga era
52
constantemente convidado pelo general Ângelo Mendes Moraes, prefeito da
cidade do Rio de Janeiro nomeado por Dutra, a cantar no Maracanã.
83
Condizente com a visão populista que dominava a política
brasileira neste momento e muito próximo da visão tradicional
da política na região, Gonzaga se coloca como o intermediário
entre o “povo do nordeste” e o estado, que deseja saber quais
são os problemas deste povo, cabendo ao artista torná-los
visíveis. A seca surge como o único grande problema do espaço
nordestino. Para chamar atenção para este fato, ele compõe em
1950, com Humberto Teixeira, Asa Branca, que chamou mais
tarde de música de protesto cristão. Durante a seca de 1953,
compõe, com Dantas, Vozes da Seca, na qual cobra proteção
e providência por parte do estado, sugerindo inclusive soluções
a serem dadas para o problema, agenciando claramente
enunciados e imagens do já quase secular discurso da seca.
84
Por meio da música Vozes da Seca, Luiz Gonzaga, em parceria com
Dantas, fez um levantamento da situação difícil em que se encontrava o
Nordeste com a seca de 1953, e, antes de começar a cantá-la, registrou uma fala
significativa com acompanhamento musical:
O deputado do povo, bradou do parlamento nacional.
Seu presidente!
Esse baião de Gonzaga e Zé Dantas, vale mais do que
cem discursos.
E tenho dito! E agora eu louvo bem alto!
Seu doutô os nordestino têm muita gratidão
Pelo auxílio dos sulista nessa seca do sertão
Mas doutô uma esmola a um homem que é são
Ou lhe mata de vergonha ou vicia o cidadão
É por isso que pedimos proteção a vos micê
Homi por nós escoído para as rédias do poder
Pois doutô dos vinte estados temos oito sem chove
Veja bem, quase a metade do Brasil tá sem cume
Dê serviço a nosso povo, encha os rio de barragem
Dê comida a preço bão, não esqueça a açudagem
Livre assim nós da esmola, que no fim dessa estiagem
Lhe pagamos inté os juros sem gastar nossa coragem
Si o doutô fizer assim salva o povo do sertão
Quando um dia a chuva vim, que riqueza pra nação
83
DREYFUS, Dominique. Op. cit., 1996. p.146.
84
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Op. cit., 1999. p.159.
53
Nunca mais nós pensa em seca, vai dá tudo nesse chão
Como vê, nossos destino mercê tem na vossa mão.
85
Na letra da música, Gonzaga expôs os problemas referentes à seca que
assolava a região Nordeste e, com uma postura sempre entre a humildade e a
dignidade, tentou colocar também alguns aspectos para a solução do problema.
Em contrapartida, ele não tocou no assunto dos latifúndios, na questão da terra
que era monopolizada por oligarquias patriarcais. Gonzaga criou um discurso
afirmativo para o fomento da chamada “indústria da seca”, que por muito tempo
levantou verbas do governo federal, devido aos problemas naturais e climáticos
do Nordeste.
Até a década de 1960, em muitas de suas letras, Luiz Gonzaga
apresentou o Nordeste como uma região com problemas naturais que precisava
ser salva, e não como um espaço a se modernizar, se desenvolver por meio de
um pensamento econômico igualitário, com proposta de reforma agrária.
Luís também fez músicas de encomenda (jingles) para divulgar os
projetos do governo e chegou a registrar em disco essas canções de campanha.
Em 1955, compôs e cantou uma música em homenagem à barragem de Paulo
Afonso, obra realizada pelo governo Federal:
Delmiro deu a idéia
Apolônio aproveitou
Getúlio fez o decreto
E Dutra realizou
O presidente café
Agora inaugurou
E graças a esse peito
De homens que tem valor
Meu Paulo Afonso foi sonho
Que já se concretizou
Olhando pra Paulo Afonso
Eu louvo nosso engenheiro
Louvo nosso cassaco
Caboco bem verdadeiro
Pois vejo o nordeste
85
Vozes da Sêca (Luiz Gonzaga/ Zé Dantas, 1953), toada, 78 rpm, RCA Victor.
54
Erguendo a bandeira
De ordem e progresso
À nação brasileira
vejo a indústria
gerando riqueza
findando a seca
salvando a pobreza
Pulsa a usina
feliz mensageira
Dizendo na força
da cachoeira
O Brasil vai
vai, vai, vai
O Brasil vai
vai, vai, vai
[fala]: Oi! Há!
Ora se vai.
86
Em 1959, foi chamado para compor, em parceria com Humberto
Teixeira, uma música de propaganda para a Petrobrás, o que mais uma vez
ilustra a relação de proximidade que o artista teve, em rios momentos de sua
trajetória, com as forças políticas representantes do universo público e do
universo privado.
Brasil, meu Brasil
Tu vais prosperar, tu vai
Vais crescer inda mais
Com a Petrobrás
Agora a coisa vai mudar
O sangue da terra vai jorrar
Porque o nacional monopólio
Nos deu o nosso rico petróleo
Somos assim donos de um grande país
Um povo forte
E bem feliz
Petroleiros conduzindo pelo mar
O ouro negro para o Brasil refinar
Brasil, meu Brasil
Tu vais prosperar
Assim, Mataripe e Cubatão
O óleo do Brasil destilarão
Candeias, Maceió e Nova Olinda
Os campos de nossa riqueza infinda
86
Paulo Afonso (Luiz Gonzaga/ Zé Dantas, jun.1955), baião, 12’’, RCA Victor.
55
Terão de dar produção para o Brasil
E nossa terra não... Anil
No conselho mundial, entre as nações
Nós brasileiros temos de ser campeões
Brasil meu Brasil
Petrobrás!
87
A relação que Gonzaga desenvolveu com a política durante toda a sua
trajetória parecia repetir as suas primeiras referências com as redes de poder que
havia vivenciado em sua infância e adolescência com as oligarquias familiares
do Exú, cidade onde nasceu. Nestas relações de poder, enquanto filho de
pequeno proprietário rural, Gonzaga muitas vezes procurou estabelecer laços de
cordialidade, negociação, aproximão, em convivência com os conflitos. A
cordialidade foi uma das estratégias de Gonzaga para se relacionar com as
adversidades. A respeito de seus posicionamentos e práticas políticas:
Luiz Gonzaga, hoje, mora no Rio de Janeiro, na ilha do
governador, tranqüilo, aposentado, com uma consciência
espetacular a respeito de todas as coisas que foram significativas
na música brasileira. Estive com ele no natal do ano passado,
por acaso. Ele, inclusive, comentou a propósito dessa coisa
nova. Como ele entendia o significado da Bossa-Nova, da
cultura urbana, do universitarismo da busca de maior
aprimoramento cultural por parte dos novos compositores.
Falando de procissão
88
, ele dizia: Puxa, Gil, como eu gostaria de
ter feito essa música. Agora, você sabe, nego, uma coisa, eu não
tive nem o curso primário. Você é um cara formado, você pode
dizer essas coisas. Eu queria dizer essas coisas, mas não sabia,
eu não tinha estudo, eu não sabia jogar com as idéias. E tinha
uma outra coisa. Vocês hoje reclamam, vocês falam da miséria
que tem no nordeste, da falta de condições humanas. Eu não
podia, eu falava veladamente, eu era muito comprometido,
87
Marcha da Petrobrás (Luiz Gonzaga/ N. Barbalho/ J. Augusto, abr.1959), 12’’, RCA Victor.
88
Procissão” é uma composição de Gilberto Gil que apresenta a seguinte letra: “Olha lá vai passando
a procissão/ Se arrastando que nem cobra pelo chão/ As pessoas que nela vão passando/ Acreditam nas
coisas do céu/ As mulheres cantando tiram versos/ Os homens escutando tiram o chapéu/ Eles
vivem penando aqui na terra/ Esperando o que Jesus prometeu/ E Jesus prometeu vida melhor/ Pra
quem vive nesse mundo sem amor/ depois de entregar o corpo ao chão/ depois de morrer neste
sertão/ Eu também tô do lado de Jesus/ Só que acho que ele se esqueceu/ De dizer que na terra a gente
tem/ De arranjar um jeitinho pra viver/ Muita gente se arvora a ser Deus/ E promete tanta coisa pro
sertão/ Que vai dar um vestido pra Maria/ E promete um roçado pro João/ Entra ano, sai ano, e nada
vem/ Meu sertão continua ao deus-dará/ Mas se existe Jesus no firmamento/ na terra isto tem que
se acabar”.
56
muito ligado à igreja no nordeste. Eu tinha compromissos com
os coronéis, com os donos de fazenda, que patrocinavam minhas
apresentações. Eles eram meu sustento. Eu não podia falar mal
deles.
89
Fica registrada nesse depoimento a consciência que Luiz Gonzaga tinha
em relação ao posicionamento cordial que estabeleceu com as representações
conservadoras e tradicionais do poder no Nordeste, como a igreja e os coronéis,
ou seja, com o sistema oligárquico patriarcal, em que famílias disputavam poder
e terras. À população restava a negociação ou o conflito no fogo cruzado entre a
desigualdade e o mandonismo.
Na adolescência, fugindo de uma surra que havia levado de sua mãe,
Dona Santana, Luiz Gonzaga serviu ao exército, e por esse motivo costumava
dizer que simpatizava muito com os militares, com a disciplina que ele havia
experienciado naquela época. O exército foi, nesse período, uma das alternativas
para aquelas pessoas que vinham de segmentos sociais mais humildes e não
possuíam muitas oportunidades.
Gonzaga era representante de um discurso regionalista, tradicionalista;
entretanto, no quesito musical-simbólico, no discurso vocal e cênico,
acrescentou aspectos em direção à modernidade, atualizando a música
nordestina com as referências apreendidas por ele nos centros urbanos.
Enquanto artista, ele se deslocou sócio-economicamente de filho de pequeno
proprietário rural para operário da música no centro urbano e de operário a
artista. Experimentou o sucesso e o ostracismo no movimento de sístole e
diástole, em meio à luta de forças entre o mercado da música, interesses
políticos nacionais e regionais, suas práticas e estratégias de sobrevivência.
89
No final da década de 1960, Augusto de Campos e Torquato Neto, em “Conversa com Gilberto
Gil”, trazem à tona questões esclarecedoras sobre a trajetória de Gonzaga. Cf.: CAMPOS, Augusto de.
Balanço da Bossa e outras bossas. São Paulo: Perspectiva, 2003. p.191-2.
57
1.3 MÚSICA E MESTIÇAGEM: VIDA E OBRA
É possível ser Tupi - portanto índio no Brasil - e tocar um
instrumento europeu tão antigo, tão refinado como o alaúde.
Nada é inconciliável, nada é incompatível, mesmo se a mistura é
por vezes dolorosa, como lembra Macunaíma. Não é porque o
alaúde e os tupis pertencem a histórias diferentes que eles não
podem se encontrar na pena de um poeta ou no meio de uma
aldeia indígena administrada pelos jesuítas.
90
Luiz Gonzaga, no ano de 1972, em encarte de disco de bolso do
Pasquim, registrou depoimento-síntese de momentos-chave da sua trajetória
artística: “Eu toquei em assustado. Fui sanfoneiro, Rei do Baião, quase sumi
na poeira; agora sou lúdico, autêntico, virei um tal de folclore.”
91
Percebe-se que a sua trajetória não foi marcada apenas por momentos de
sucesso. A trajetória do artista, a sua vida cotidiana, suas experiências,
estratégias e traduções criativas
92
foram marcadas por tensões, relaxamentos,
negociações e conflitos. Para Gonzaga
93
, a cordialidade, entre outros aspectos,
foi uma estratégia de sobrevivência. Vida e obra se entrelaçaram e seus discursos
e enunciados foram construídos e enredados às suas estratégias de
sobrevivência.
90
GRUZINSKI, Serge. O pensamento mestiço. Tradução de Rosa Freire de Aguiar. São Paulo:
Companhia das Letras, 2001. p.28.
91
Encarte da série Disco de bolso” do Pasquim, Ano 1 Número 2, 1972. Cf.: ÂNGELO, Assis. Op.
cit., 2006.
92
“Relevar-se-á de passagem que a tarefa do tradutor, confinada no duelo das línguas [...], lugar
somente ao esforço criador, e quando o tradutor ‘cria’, é como um pintor ‘copia’ sem ‘modelo’. O
retorno da palavra ‘tarefa’ é bastante notável, em todo o caso, por todas as significações que ele tece
em rede, e é sempre a mesma interpretação avaliadora: dever, dívida, taxa, contribuição, imposto,
despesa de herança e sucessão nobre obrigação, mas labor a meio caminho da criação, tarefa infinita,
não acabamento essencial, como se o presumido criador do original não estivesse, ele também,
endividado, taxado, obrigado por um outro texto a priori tradutor.” DERRIDA, Jacques. Torres de
Babel. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. p.62.
93
“Seu nome se inscreve na galeria dos grandes inventores da música popular brasileira, como aquele
que, graças a uma imaginativa e inteligente utilização de células rítmicas extraídas do pipocar dos
fogos, de moléculas melódicas tiradas da cantoria lúdica ou religiosa do povo catingueiro, de corpos
narrativos vislumbrados na paisagem natural, biológica e psicológica do seu meio, e, sobretudo, da
alquímica associação com o talento poético e musical de alguns nativos nordestinos emigrantes como
ele, veio a inventar um gênero musical, o baião. O baião que, à frente de toda uma família de
derivados, não só do Nordeste como de outras regiões do país, passa a se constituir no principal gênero
da nossa música popular, depois do samba.” DREYFUS, Dominique. Op. cit., 1996. p.9.
58
Por meio da canção (letra e música) ele expressou alegria, tristeza,
frustração, mandou recado, falou da fauna, da flora, dos costumes e das relações
humanas no campo e na cidade. As canções de Gonzaga exprimiam a
manifestação direta das coisas, pessoas, pássaros, natureza, sapos, a cultura
oral dos vaqueiros, cangaceiros, padres e coronéis, o roçado, o cavalo, a sanfona,
as memórias. As letras se encaixavam perfeitamente dentro das divisões
rítmicas, nas quais consoantes e vogais eram colocadas de forma percussiva e
melódica, dando liga ao processo dançante, de celebração ou de protesto,
proposto por sua música, que circulava entre o sagrado e o profano.
Luiz fez da sua tradução um discurso oral-táctil representante da região
rural nordestina. Tal discurso foi um daqueles percebidos e escolhidos, dentro do
processo de unidade nacional proposto pelo Estado, para representar o Brasil
nacional rural, que passou a simbolizar a tradição e as permanências, que tinha
como ponto de confluência em sua emersão a maior migração nordestina na
década de 1950.
Mas foi com indignação que Gonzaga finalizou a frase “agora sou
lúdico, autêntico, virei um tal de folclore”. O tempo agregou novos valores e
significados à produção do passado, mudou e ressignificou artista e obra.
94
Luiz
Gonzaga foi artista de sucesso em 1950, passou por momentos de ostracismo na
década seguinte e em 1970 voltou a ser lembrado enquanto “matriz”, autêntico,
raiz, essência, lúdico, folclore.
95
Gonzaga foi um artista que “bebeu no folclore”
96
e o adaptou aos
padrões e gostos urbanos da época em que viveu de forma dinâmica. Ou melhor,
94
“Depois de estabelecidos, os gêneros são forçadamente tornados ‘clássicos’, esquecendo-se de que
eles próprios, no turbilhão cultural latino-americano, reivindicam para si outros moldes e outras
experiências, alterações provocadas, em boa medida, pelo improviso, pelo dia-a-dia do trabalho, pela
festa, pela fala como experiência corporal e performática e pela criatividade solicitada nos processos
de sobrevivência.” VARGAS, Herom. Op. cit., 2007. p.228.
95
[...] classificamos como ‘folclorização’ o movimento histórico através do qual uma estrutura social
ou uma forma de discurso perde progressivamente sua função!” ZUMTHOR, Paul. Introdução à
poesia oral. Tradução de Jerusa Pires Ferreira, Maria Lúcia Diniz Pochat e Maria Inês de Almeida.
São Paulo: Hucitec, 1997. p.22-3.
96
Conforme o Dicionário do Folclore Brasileiro, folclore “é a cultura do popular, tornada normativa
59
ele, em sua tradução, ressignificou o folclore e a tradição
97
, por intermédio do
rádio, em convivência com novas formas de expressão musical e tecnológica.
Do processo de ebulição criativa até a tradução dos gêneros e de outros objetos
de criação, o cotidiano do artista foi dinâmico na luta pela sobrevivência e na
formatação das suas estratégias e práticas. Como colocou Gilberto Gil:
Luís Gonzaga fez com a música nordestina que era até então
folclore, coisas das feiras, dos cantadores, ao vel da cultura
popular não massificada, não industrializada - exatamente o que
João Gilberto fez com o samba. [...]
98
Em outras palavras, Gilberto Gil quis dizer que Luiz Gonzaga renovou,
transformou, modernizou a música “nordestina”, amplificando-a pelo rádio,
ampliando o seu campo de memória. Dando continuidade ao seu depoimento,
Gilberto Gil aborda a qualidade de artista da cultura de massa
99
atribuída a
Gonzaga:
Uma coisa bacana no Luíz Gonzaga [...] foi o reconhecimento
de que Luís Gonzaga foi também possivelmente, a primeira
pela tradição. Compreende técnicas e processos utilitários que se valorizam numa ampliação
emocional, além do funcionamento racional [...]. Qualquer objeto que projete interesse humano, além
de sua finalidade imediata, material e lógica, é folclórico [...] não apenas contos e cantos, mas a
maquinaria faz nascer hábitos, costumes, gestos, superstições, alimentação, indumentária, sátiras,
lirismo assimilados nos grupos sociais participantes. Aonde tiver um homem ai viverá uma fonte de
criação e divulgação folclórica. O folclore estuda a solução popular na vida em sociedade.”
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. 3ªed. Brasília: Instituto Nacional do
Livro, 1972. p.383.
Para este trabalho entender-se-á folclore pelo ponto de vista de Paul Zumthor, enquanto dinâmico e
descontínuo, embora se relacionando com a tradição. ZUMTHOR, Paul. Op. cit., 1997.
97
Tradição aqui é pensada como “[...] um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras
tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos
valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma
continuidade em relação ao passado. Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade
com um passado histórico apropriado [...]. Consideramos que a invenção das tradições é
essencialmente um processo de formalização e ritualização, caracterizado por referir-se ao passado”.
HOBSBAWM, Eric; RANGER, T. (Orgs.). A Invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1984.
98
No final da década de 1960, Augusto de Campos e Torquato Neto, em “Conversa com Gilberto
Gil”, trazem à tona questões esclarecedoras sobre a trajetória de Gonzaga. Cf.: CAMPOS, Augusto de.
Op. cit., 2003. p.191-2.
99
“Cultura de massa é aqui entendida como complexo de práticas e representações relacionadas à
produção e ao consumo em larga escala.” VIANNA, Letícia. Op. cit., 1998. p.149-50.
60
coisa significativa do ponto de vista da cultura de massa no
Brasil, talvez o primeiro grande artista ligado à cultura de
massa, tendo a sua atuação vinculada a um trabalho de
propaganda, de promoção. Nos idos de 51-52, ele fez um
contrato fabuloso, de alto nível promocional, com o colírio
Moura Brasil, que organizou excursões de Ls Gonzaga por
todo o Brasil.
100
Gilberto Gil desdobrou de uma maneira muito clara o processo de
urbanização e modernização por que a música nordestina passou mediante a
tradução de Gonzaga e o processo de capitalização dessa música. As próprias
palavras de Gonzaga permitem entender mais um pouco a sua relação com o
“folclore” e a sua adaptação à cultura de massa:
Aproveitei muito do folclore nordestino. Mas não se deve
tropeçar, deve ter cuidado de dar uma nova vestimenta,
aproveitando aquilo que a gente sente que foi feito com a
imagem do povo. Se você quer dar uma vestimenta digna e
lançar como produto seu, não acontece nada com você. É muito
comum o pessoal falar: “Ah, mas esse sucesso de fulano eu
conheço desde menino”. Isso existia mesmo, mas, e o resto? A
nova letra? Ao mesmo tempo é necessário que se faça um
trabalho sério em torno disto. A pessoa não deve matar o tema,
deve melhorá-lo. “Asa Branca” era folclore. Eu toquei isso
quando era menino com meu pai. Mas ai chega Humberto
Teixeira e coloca: “Quando olhei a terra ardendo/ qual fogueira
de São João...” e se conclui um trabalho sobre “Asa Branca”.
Agora depois disso eu vou colocar “tema popular”? Ou
“recolhido”, “pesquisado” por Humberto Teixeira e Luiz
Gonzaga? Ai tudo quanto é vagabundo vai ser dono também?
Não cantando nossa letra, mas cantando com uma letra fajuta,
pra pegar sucesso. Ai faz mal pra música. Ai nós pegamos o
tema Humberto e eu.
101
A sua produção artística pode ser entendida dentro da perspectiva de
tradição inventada e reinventada. Gonzaga foi produto típico da mestiçagem
brasileira, negociante de símbolos, códigos e territórios. Um mulato
100
No final da década de 1960, Augusto de Campos e Torquato Neto, em “Conversa com Gilberto
Gil”, trazem à tona questões esclarecedoras sobre a trajetória de Gonzaga. Cf.: CAMPOS, Augusto de.
Op. cit., 2003. p.191-2.
101
DREYFUS, Dominique. Op. cit., 1996. p.121.
61
pernambucano de ascendência cabocla e rural, criado entre o som da sanfona de
oito baixos de seu pai, Januário, que também consertava e afinava o
instrumento, e as novenas de sua mãe, Santana, em meio aos repentistas nas
feiras do interior, ao aboio dos vaqueiros, nos sambas de latada e cocos, nas
festas juninas, ouvindo cantos de trabalho, as bandas de pifes, o som do trotar de
cavalos e mulas, os sapos no brejo, o canto dos pássaros, os fogos de São João,
sem falar da literatura de cordel ouvida em recital nas feiras do Nordeste e de
toda a cultura oral que circulava no território rural de onde ele veio.
Sua música tem uma ligação com a ancestralidade. Na geografia rural
brasileira, Gonzaga foi se estabelecendo como dono de um discurso produtivo
tradicionalista e, como tal, foi sendo tratado enquanto manifestação folclórica,
porque estava próximo das permanências do passado colonial. Luiz Gonzaga
amoldou signos rítmicos, melódicos, harmônicos, lingüísticos, vocais e
corpóreo-táteis no movimento fecundo entre referências da cultura oral
nordestina, referências urbanas e a referência nacional-popular estatal e
tecnológica do rádio e do disco.
O rádio foi vetor fundamental para a expansão musical do sanfoneiro
como artista de massa, e por causa dele Gonzaga homogeneizou o seu discurso
plural do Nordeste em formato de enunciados focados no regionalismo, dentro
do contexto legítimo da linguagem que representava os grupos do poder da
época que tinham no rádio e no discurso nacional-popular suas estratégias de
exercício de poder.
102
Por meio de seus enunciados, Gonzaga emergiu mediante
um texto de unidade. As particularidades da sua música e das conexões e
102
A cultura de massa pode ser entendida por um viés negativo ou apocalíptico, como abordado por
Umberto Eco, que “acentua o caráter planetário e homogeneizante da cultura de massa e o
solapamento de toda expressão cultural diferenciada e genuína de cada contexto cultural”. O autor
acredita na manipulação das massas pela indústria cultural. Por outro lado, a essa concepção foram
feitas críticas. Uma crítica antropológica a tal perspectiva pode ser construída a partir da mera
observação de que a cultura de massa pode ser hegemônica nos centros urbanos como modo de vida,
mas é extremamente heterogênea como realização cultural. [...] Alguns autores, como Hoggart, de
Certeau e Hermano Viana, chamam a atenção para o uso diversificado e criativo das mercadorias
produzidas e distribuídas em escala massiva. E nesses termos a cultura de massa não é a única
experiência cultural global.” VIANNA, Letícia. Op. cit., 1998. p.149-50.
62
deslocamentos simbólicos desta foram desconsideradas para comunicar melhor
por intermédio do rádio. A sua ligação com as permanências do passado mestiço
se encaixou ao momento político referenciado, pois relacionou a sua produção
artística ao projeto cultural de unidade e identidade nacional. Daí advém o
argumento de que a sua música representava uma possível raiz ou essência
103
nacional.
104
Ainda no que se refere ao depoimento de Gonzaga, cabe notar que ele
falou do período antes do sucesso, quando tocava em assustado
105
(rodas de
choro, arrasta-pés), bem como do período em que foi músico sanfoneiro do
rádio. Na seqüência, na época áurea do rádio (final da década de 1940), fez
sucesso e foi coroado “Rei do Baião” pelos paulistas:
Paulista, repito, é povo bom. De São Paulo guardo as mais
gratas recordações, inclusive meu nome de “Rei do Baião”. [...]
O nordestino tem certas frase para expressar admiração. O
cearense tem seu “pai-dégua” insubstituível. O Pernambucano
gosta de um “espritado” talvez tão expressivo como o pai-dégua
dos cearenses. Por isso mesmo, diziam, meu sucesso em São
Paulo era “espritado”, era “pai-dégua”. O povo fazia onda para
me ver tocar e cantar. Meus espetáculos estavam sempre
repletos. Paulistas de quatrocentos anos se juntavam aos
arigós
106
, pra me ouvir. Eu me orgulhava disso. E enchiam os
olhos, pois os nordestinos colaboravam com os meus programas,
103
“Nas condições latino-americanas, é difícil determinar o que realmente são as essências da cultura e
das manifestações corpóreas e musicais criadas, exceto seu metabolismo mutante e híbrido. Não
como identificar origens e raízes com exatidão cirúrgica; no máximo aponta-se para tendências que,
despregadas do processo sócio-cultural e semiótico da gênese da canção, redundam em esterilidades
teóricas. Se o processo dinâmico é de construção de triagens, combinações e adaptações, as tais
origens existiriam enquanto discurso teórico, em parte para legitimar na cultura e na linguagem
certas ideologias representativas de grupos de poder.” VARGAS, Herom. Op. cit., 2007. p.229.
104
“Ao longo de 49 anos de atividade artística do Rei do Baião, desenvolvida de março de 1940 a
agosto de 1989, percebe-se a presença da relação existente entre os contextos cultural e sócio-político
brasileiro e o desenvolvimento dessa trajetória artística. Essa relação, aliada a outros fatores culturais,
está presente nos períodos do nacionalismo de Getúlio Vargas, no contexto de mudança do governo
Juscelino Kubitschek, e, finalmente, no governo militar.” SANTOS, José Farias dos. Op. cit., 2004.
p.22.
105
Em “Dicionário do Folclore Brasileiro”, o verbete “assustado” tem o seguinte significado: “[...]
Choro é denominação de certos bailaricos populares também conhecidos como assustados ou arrasta-
pés. Choro é um nome genérico com várias aplicações.” CASCUDO, Luís da Câmara. Op. cit., 1972.
p.257.
106
Era uma entre tantas formas engraçadas que Gonzaga tinha de se referir aos seus conterrâneos do
Nordeste.
63
às vezes tomavam conta dele com o seus palavreados,
estimulavam aquelas minhas tiradas malucas. E paulista
começou a valorizar também o baião, a prestigiar minhas
apresentações.
107
Observa-se no discurso de Gonzaga sua gratidão em relação aos
paulistas. Em São Paulo o artista desfrutou seu período áureo de sucesso
nacional e foi aclamado. Todavia, em 1960, nota-se, mediante a letra de Meu
Pageú, que a sua satisfação em relação aos paulistas tornara-se amgua.
Já faz mais de um ano que eu deixei meu Pageú
Com tanta felicidade, vim penar aqui no sul
Ai hum hum
Ai meu Deus
O que é que eu vou fazer
Longe do meu Pageú não poderei viver
São Paulo tem muito ouro
Corre pratas pelo chão
O dinheiro corre tanto
Que eu não posso pegar não
Ai hum hum
Ai meu Deus
O que é que eu vou fazer
Longe do meu Pageú não poderei viver
Paulista é gente boa
Mas é de lascar o cano
Eu nasci no Pageú
E só me chamam de baiano
Ai hum hum
Ai meu Deus
O que é que eu vou fazer
Longe do meu Pageú não poderei viver
No dia que eu voltar
Eu vou fazer uma seresta
Vou rezar uma novena
A bom Jesus da fuloresta
Ai hum hum
Ai meu Deus
O que é que eu vou fazer
Longe do meu Pageú não poderei viver.
108
107
SÁ, Sinval. Op. cit., 1986. p.161.
108
Meu Pageú (Luiz Gonzaga/ Raimundo Grangeiro, 1957), toada, 78 rpm. Essa música entrou em
uma compilação da gravadora RCA Victor com o nome de “O Reino do Baião”.
64
Nesta letra, gravada em 1957, Gonzaga evidenciava sua postura entre a
concessão e o conflito em relação aos paulistas, que nesse momento faziam
uso do termo “baiano” de forma generalizante e pejorativa como sinônimo de
nordestino: “Paulista é gente boa, mas é de lascar o cano, eu nasci no Pageú e só
me chamam de baiano”. Ele brinca com o discurso dominante de velocidade,
desenvolvimento e progresso da cidade ao enunciar São Paulo tem muito ouro/
Corre pratas pelo chão/ O dinheiro corre tanto/ Que eu não posso pegar não”,
destacando a dificuldade do nordestino em inserir-se e ganhar o capital em São
Paulo.
Foram muitas as possibilidades que se abriram a Gonzaga a partir do
momento em que o artista chegou ao Rio de Janeiro, em 1939, e essa gama de
possibilidades foi sendo apreendida e absorvida por ele. Mas Gonzaga trazia
consigo da região Nordeste outras marcas que ele mesmo apresentou na letra da
música Pau de Arara
109
, composta em parceria com Guio de Moraes, na qual
descreve os elementos da cultura nordestina que ele trouxe na bagagem:
Quando eu vim do sertão,
seu môço, do meu Bodocó
A malota era um saco
e o cadeado era um nó
Só trazia a coragem e a cara
Viajando num pau-de-arara
Eu penei, mas aqui cheguei
Trouxe um triângulo, no matolão
Trouxe um gonguê, no matolão
Trouxe um zabumba dentro do matolão
Xóte, maracatu e baião
Tudo isso eu trouxe no meu matolão.
A linguagem poética da letra da canção mostra-se contagiada pela
vivência humana. O compositor descreve na letra o drama de milhares de
sertanejos que migraram para os centros urbanos nos caminhões paus-de-arara,
transporte que se popularizou na década de 1950, momento de maior movimento
109
Pau de Arara (Luiz Gonzaga/ Guio de Moraes, 12/05/1952), Maracatu, RCA Victor.
65
migratório nordestino. Embora a letra esteja na primeira pessoa, Gonzaga não
viajou de pau-de-arara para o Rio de Janeiro. Ele chegou à então Capital Federal
de navio, ainda em 1939. Desse modo, fica clara a intenção da composição de se
referir ao migrante nordestino da década de 1950, quando a música foi gravada
com o intuito de falar da vida desses migrantes, para esses migrantes.
Na letra, o compositor enumera os instrumentos musicais percussivos
(triângulo, gonguê e zabumba) trazidos na bagagem do migrante e presentes na
formação instrumental que Gonzaga apresentou ao Brasil: o trio nordestino.
Cabe notar ainda que tais instrumentos são fundamentais para a concepção
sonora das células rítmicas características dos ritmos a que ele, na seqüência, faz
referência: xote, maracatu e baião.
Os instrumentos percussivos e os ritmos citados são uma amostra da
música nordestina gestada na conexão entre o passado e o momento de êxodo
das populações rurais para os centros urbanos, representando o caminho que a
música popular do Nordeste percorreu do campo para a cidade, onde o processo
histórico anunciou o entre-lugar entre tempos e espaços enquanto territórios de
emersões simbólicas, portanto, espaços de saberes e poderes.
A música de Gonzaga está envolvida por todas as suas vivências entre o
campo e a cidade, em um processo fecundo
110
e imprevisível
111
. Podem-se
entender as traduções de Gonzaga sob a lógica dinâmica em que formas
110
“[...] se os contatos variados e a dinâmica cultural de propensão tradutória foram características
importantes na formação dos principais ritmos e gêneros musicais do continente, de seus instrumentos
e das formas de tocá-los e combiná-los, atualmente as tecnologias de produção e reprodução musicais
reforçam ainda mais esse caráter híbrido. Em outras palavras, as formas de metabolismo mestiço na
música popular favoreceram continuamente a atividade criativa de amalgamar elementos em fusões,
justaposições, recuperações e intercâmbios nos mais diversos sentidos.” VARGAS, Herom. Op. cit.,
2007. p.188.
111
“A complexidade das mestiçagens e a desconfiança que provocam talvez decorram dessa ‘natureza’
caprichosa que, com freqüência, transforma seus inventores em verdadeiros aprendizes de feiticeiros
arrastados para os caminhos mais imprevisíveis. Fenômenos sociais e políticos, as mestiçagens
manobram, na verdade, com tal número de variáveis que confundem o jogo habitual dos poderes e das
tradições, escapolem das mãos do historiador que as persegue. [...] Essa complexidade tamm tem
relação com os limites que a mistura cruza num determinado momento de sua história, ou porque se
transforma em realidade nova, ou porque adquire uma autonomia imprevista.” GRUZINSKI, Serge.
Op. cit., 2001. p.304.
66
mestiças foram se apropriando do processo estético musical, assim como
ocorreu em outras regiões e momentos, desde o período colonial.
112
A música, assim como os outros objetos da cultura que se desenvolveram
no Brasil
113
, possui um caráter híbrido
114
, mestiço, e a música de Gonzaga não
poderia ser entendida de forma diferente ou fora desse raciocínio. A mestiçagem
cultural questiona conceitos e instituições trazidos de outras tradições,
especialmente a racionalista européia, com:
[...] a multiplicidade artística, a relação ímpar entre
modernidades e tradicionalismos, os sincretismos étnicos e
religiosos, as políticas de favorecimento pessoal, as apropriações
privadas dos espaços e serviços públicos, a instabilidade
democrática, a complexidade das estruturas sociais, a
permissividade ética, uma moral constantemente flexibilizada e
pluralizada, a prática cultural da tradução, a criatividade, as
rítmicas musicais inusitadas com acentos deslocados, os
personagens de perfil mutante das narrativas, as “identidades”
constantemente em xeque, os perfis culturais indefinidos, as
adaptações dos padrões teórico-científicos e das ideologias e
muitas outras formas denominadas híbridas.
115
Esse potencial híbrido e mestiço
116
, às vezes questionador e caótico, às
vezes apaziguador e cordial, esteve presente em muitas manifestações e também
112
“Num primeiro momento, a cultura indígena é varrida ou sepultada, pelo menos aparentemente, e
importa-se a cultura européia como única válida. Porém, desde o próprio século da conquista
começam a entremear-se o indígena e o ibérico, elementos aos quais se vem somar o africano. [...] Dir-
se-ia que outro espírito governa agora as velhas formas, um espírito travesso [...]: muda-se o tom de
uma toada; [...] confundem-se sistematicamente tempos binários e os ternários ou introduzem-se sub-
repticiamente velhos instrumentos que serviam aos cultos pagãos, enquanto se inventam e se
transformam em outros. Nada parece estar no seu lugar: o que era alegre é agora triste; o que era
aristocrático é agora plebeu; o que era solene, torna-se porventura dionisíaco.” ACOSTA, Leonardo.
Musica e descolonizasion. Havana: Arte y literatura, 1982. p.162-4.
113
“[...] na América Latina ocorre algo semelhante na medida em que vivemos na época das tradições
que não se foram, da modernidade que não se acaba de chegar e do questionamento pós-moderno dos
projetos evolucionistas que se tornaram hegemônicos neste século.” CANCLINI, Néstor Garcia. “La
Modernidad Después de la Posmodernidad”. In: BELLUZZO, A. M. M. (Org.). Modernidade:
Vanguardas Artísticas na América Latina. São Paulo: Memorial/ Unesp, 1990. p.234.
114
Rigorosamente todas as sociedades são híbridas, em algum grau e de alguma maneira, já que são
formas em estado dinâmico pelos contatos com elementos distintos daqueles identificados como
propriamente seus.” VARGAS, Herom. Op. cit., 2007. p.186.
115
Ibidem. p.186.
116
“Mestiçagem e hibridação dizem respeito tanto a processos objetivos, observáveis em fontes
variadas, como à consciência que têm deles os atores do passado, podendo essa consciência se
67
na música. Perceber o caráter híbrido e mestiço da música é atentar para o
processo histórico-cultural da formação dessa música, para os movimentos de
junção, atritos e mesclas das linguagens, e não apenas para os elementos que a
constituíram. É atentar para a dinâmica, a relação, as conexões entre as forças,
as estratégias que estiveram subjacentes às características estéticas e simbólicas
dos discursos construídos.
É a partir da análise destas relações que se pode afirmar que a música de
Gonzaga, embora muito próxima da visão tradicionalista e política da região
onde ele nasceu, a região Nordeste, no sentido discursivo, se fez e emergiu
enquanto linguagem estética, enquanto forma no entre-lugar campo-cidade,
enredada às estratégias de sobrevivência de milhares de migrantes. Portanto,
mesmo permeada de saudade, permanências e resistências perante a mudança,
ela foi móvel e movediça, pois se fez no campo da vivência, entre concessões e
atritos, se transformando de acordo com a lógica embrionária fluida, não-linear,
da mestiçagem.
117
A construção musical-simlica de Gonzaga não foi resultante de uma
sobreposição, quando situações periféricas invadem os centros, ou quando
formas não-clássicas destronam as clássicas, mas de “estruturas internas e
externas [que] se fecundam mutuamente”
118
. Sua música é fruto dessa relação
fecunda entre o dentro (os variados tipos de música que entroncam tradições e
contemporaneidades nos instrumentos, nas letras, na voz, na dança, no
cotidiano) e o fora (diálogos entre os corpos e as séries culturais em
acontecimentos urbanos e rurais), entre o campo e a cidade
119
, entre o arcaico e
expressar tanto nas manipulações a que eles se dedicam, como nas construções que elaboram ou nos
discursos e condenações que formulam.” GRUZINSKI, Serge. Op. cit., 2001. p.62.
117
“Complexidade, imprevisto e aleatório parecem, pois, inerentes às misturas e às mestiçagens.
Partiremos da hitese de que possuem, como vários outros fenômenos sociais ou naturais, uma
dimensão caótica. Por isso é que nossas ferramentas intelectuais herdadas da ciência aristotélica e
elaboradas no século XIX, não nos preparam a enfrentá-los. Assim, a questão da mestiçagem não é
uma questão de objeto: as mestiçagens existem? O estudo das mestiçagens também envolve, antes de
mais nada, um problema de instrumental intelectual: como pensar a mistura?” Ibidem. p.61.
118
Prólogo: Amálio Pinheiro. In: VARGAS, Herom. Op. cit., 2007. p.13.
119
“Por fim, a cidade é onde se disseminam os encontros para as festas populares, perpassadas pela
68
o moderno, entre o periférico e o hegemônico, entre as inter-regionalidades. É
fecunda às relações de negociações e conflitos, de atrito e fluidez que
permearam a sua existência e sua vida cotidiana, cheia de contradições.
Na década de 1960, Gonzaga perdeu território nos veículos de
comunicação do rádio. O compositor, que costumava registrar suas angústias e
alegrias em canções, não deixou de fazê-lo nesse momento em que o seu fluxo
de trabalho diminuiu, demonstrando sua agonia na canção Pronde tu vai baião:
Pra onde Tu vai baião
Eu vou sair por ai
Mas porque baião
Ninguém me quer mais aqui
Sou dono do cavalo
De garupa monto não
Eu vou pro meu pé de serra
Levando o meu matulão
Lá nos forrós sou o tal
E sou o rei do sertão
Nos clubes e nas boates
Não me deixam mais entrar
É só twiste, bolero, rock e tcha tcha tcha.
120
Nesta letra Luiz Gonzaga evidenciava o seu entendimento de que a sua
música perdera espaço para o twiste, o bolero, o rock e o tcha tcha tcha, ou seja,
ele atribuía o seu momento de dificuldade ao despontamento da música
internacional e do ieieie, que estavam dominando a cena comercial da música.
Nas décadas de 1970 e 1980, suas canções foram gravadas por jovens
artistas da MPB
121
, como Caetano Veloso, Gal Costa e Gilberto Gil, enquanto
dança, pela sujeição dos corpos à síncope dos novos ritmos, por vozes e instrumentos, sejam eles os
percussivos provenientes das tradições africanas, os harmônicos e melódicos europeus [...]. A
importância da festa está em contrabalançar o ritmo intenso do trabalho, ocupar as funções do lazer e
marcar as apropriações de objetos e códigos do mundo ao seu redor. E a música é um dos principais
produtos da cultura em que se dão essas apropriações, conexões e mesclas. VARGAS, Herom. Op.
cit., 2007. p.231.
120
Pronde tu vai baião (João do Vale/ Sebastião Rodrigues, 1963), Título do LP: Pisa no Milho (Festa
do Milho), RCA Victor.
121
“Por volta de 1965, houve uma redefinição do que se entendia como Música Popular Brasileira,
aglutinando uma série de tendências e estilos musicais que tinham em comum a vontade de “atualizar”
a expressão musical do país, fundindo elementos tradicionais e técnicas e estilos inspirados na bossa
69
uma das “matrizes” da música nacional popular brasileira. Gonzaga, por
intermédio de suas músicas, foi reconhecido como a voz do Nordeste”, do povo
nordestino, chamando atenção para os seus problemas, para as suas tradições e
cantando suas coisas positivas.
122
Ele fez isso ao seu modo, de acordo com as
suas possibilidades, referências e visões de mundo.
O que levou a música de Gonzaga a se afastar dos meios massivos de
comunicação não foi a sua origem popular, nem a sua linguagem musical,
tampouco a sua forma estética, mas sim o seu discurso regionalista representante
do Nordeste.
123
Não creditaram a ele a qualidade estética dinâmica e variada da
sua música, afinal, ele mesmo, ao significar-se, ajudou a construir um discurso
homogêneo, às vezes estereotipado, do nordestino e da sua região de origem. O
mesmo discurso que o levou à glória gerou o seu ostracismo.
Gonzaga foi um dos primeiros artistas de massa da era do rádio e, como
tal, marcou a história da música brasileira pela genialidade com que fez
conexões em circularidade entre cultura popular, erudita, cultura massiva e
tecnologia. Ele criou enunciados discursivos em torno do regionalismo, mas a
sua música não foi homogênea em nenhum momento da sua trajetória, o que se
pode comprovar analisando a variedade de gêneros musicais que compunham o
seu repertório e as conexões simbólicas do seu texto oral-táctil musical. Ele
gravou choros, valsas, tangos, mazurcas, sambas.
Gonzaga foi inventor de uma obra dinâmica em constante mutação,
porque:
nova, surgida em 1959. Este processo que redimensionou e consagrou a sigla MPB - Música Popular
Brasileira pode ser visto como parcialmente determinado pelas intervenções culturais que tentaram
equacionar os impasses surgidos em torno do nacional-popular, tomado aqui como uma cultura
política.” NAPOLITANO, Marcos. Op. cit., 2001.
122
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes.ed.
Recife; São Paulo: Fundaj/ Massangana/ Cortez, 2001. p.157.
123
[...] ter se identificado como música regional, como expressão de uma região que era vista como o
espaço atrasado, fora da moda, do país; região marginalizada pela própria forma como se desenvolveu
a economia do país e como foi gestada discursivamente.” Ibidem. p.159.
70
[...] a música de Gonzaga, ao trazer à tona a experiência desse
povo pobre, ao buscar afirmar o que considera “uma cultura
marginalizada”, mas do que reproduzir a visão tradicional
camponesa, ajuda essa cultura a se atualizar, reafirmar-se em
outro nível. Longe de ser uma visão do passado, é uma visão do
presente, de um grupo social e regional marginalizado, que
resiste à destruição completa de seus territórios tradicionais, mas
que para isto tem de construir novos territórios que,
imaginariamente, continuam os anteriores. Mas do que um
fenômeno de resistência cultural, a música de Gonzaga participa
da atualização de todo o arquivo cultural do migrante diante das
novas condições sociais que enfrenta nas grandes cidades. O
nordeste de Gonzaga é criado para realimentar a memória do
migrante.
124
Ele, então, com o sarcasmo da frase virei um tal de folclore”,
reivindicava o seu posto de artista-migrante que encontrou nos centros urbanos
uma alternativa de se recriar, se refazer e, portanto, sobreviver. Um artista, um
sujeito que encontrou uma saída criativa para a sua situação de migrante e que
não se conformou em de repente ser descartado pelos meios construtores do
discurso hegemônico das elites e do Estado Nacional.
1.4 BAIÃO: GÊNERO E FESTA
Dentre aqueles gêneros diretamente criados a partir da matriz
folclórica, está o baião e toda a sua família. E da Família do
Baião Luiz Gonzaga foi o pai.
125
Cabe ressaltar que a música “Baião”, que deu nome ao ritmo que
emergiu em 1949, composta em parceria com Humberto Teixeira
126
, foi lançada
124
Ibidem. p.159.
125
Prefácio: Gilberto Gil. In: DREYFUS, Dominique. Op. cit., 1996. p. 9.
126
“Cearense de Iguatu, nascido em 1915, Humberto Teixeira vivia no Rio de Janeiro desde 1930.
Começara a estudar medicina, mas, finalmente, se formara em Direito em 1943. Paralelamente a
advocacia, tinha uma intensa atividade musical, iniciada com estudo de flauta e do bandolim na
infância. Depois, em 1934, participara do concurso de músicas carnavalescas promovido pela revista
O Malho, tirando o primeiro lugar com a música ‘Meu Pedacinho’. Quando conheceu Luiz Gonzaga
em agosto de 1945, Humberto Teixeira já era um músico conceituado. Tinha muitas músicas gravadas,
cuja maioria, no entanto - valsas, cantigas, sambas, modinhas, toadas -, nada tinha de especificamente
nordestino. Com seu cunhado-parceiro Lauro Maia, fizera a ‘marcha do balanceio’, numa tentativa
fracassada de promover um novo ritmo nordestino.” DREYFUS, Dominique. Op. cit., 1996. p.109.
71
primeiramente em outubro de 1946 pelo conjunto “Quatro ases e um coringa”,
gravada pela Odeon, em 78 rotações, contando apenas com o acompanhamento
de Gonzaga na sanfona.
127
Foi essa gravação que consagrou Luiz Gonzaga na
música brasileira, concedendo-lhe o tulo de Rei do Baião” e o transformando
em artista conhecido nacionalmente. Já Humberto Teixeira recebeu o título de
“Bacharel do Baião”, distinção que o ajudou a ser eleito deputado federal pelo
Ceará. No exercício do mandato, conseguiu a aprovação pelo Congresso
Nacional da Lei Humberto Teixeira, que autorizava a formão de caravanas
artísticas com o intuito de divulgar a música popular brasileira no exterior.
Gonzaga deixou registrado, em 1950, na letra da música Dança da
Moda
128
, o sucesso que o baião vinha fazendo no Rio de Janeiro e, portanto, a
nível nacional:
No Rio tá tudo mudado
Nas noites de São João
Em vez de polca e rancheira
O povo só pede e só dança o baião
No meio da rua
Inda é balão
Inda é fogueira
É fogo de vista
Mas dentro da pista
O povo só pede e só dança o baião
Ai, ai, ai, ai, São João
Ai, ai, ai, ai, São João
É a dança da moda
Pois em toda a roda
O povo só pede só dança o baião.
129
127
“O sucesso da música por todo o país foi tal, que Gonzaga teve que esperar três anos, antes de
poder gravar sua própria versão de Baião.” Ibidem. p.113.
128
A Dança da moda (Luiz Gonzaga/ Zé Dantas, 1950), 78 rpm.
129
Sobre a importância da música enquanto documento histórico: “[...] a produção musical se
apresenta como um corpo documental particularmente instigante, já que por muito tempo constitui um
dos poucos documentos sobre certos setores relegados ao silêncio, centrando-se na expressão de
sentimentos e abordando temáticas tão raras em outros documentos. Trata-se de uma documentação
muito rica e pouco explorada pela análise histórica, com grande potencial para revelação do cotidiano,
das sensibilidades e das paixões.” MATOS, Maria Izilda Santos de. Dolores Duran: Experiências
boêmias em Copacabana nos anos 50. 2ªed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005. p.29-30.
72
Pode-se verificar que, nesta letra, ele citou a polca e a rancheira, ritmos
que eram costumeiramente tocados nas festas de São João
130
de todo o Brasil,
mas que, com o sucesso do baião, foram colocados em segundo plano.
As festas juninas são exemplo de tradição renovada por Luiz Gonzaga.
Sua música e os gêneros musicais lançados e divulgados por ele passaram a
fazer parte da trilha sonora das quermesses de todo o Brasil, principalmente do
interior do Nordeste. Todo mês de junho se esperava o lançamento do novo
disco de Gonzaga, com os novos sucessos que animariam a festa sinônimo de
louvor, fartura e fertilidade das zonas rurais nordestinas e tamm de todo o
Brasil.
Os símbolos da Festa de São João, como os jogos, a fogueira
131
, a
quadrilha, adquiriram outros significados com o passar dos tempos, com as
misturas étnicas e de ordens diversas. As características desta festa popular se
confirmam nas letras das músicas cantadas por diversos artistas que
ressignificaram o Nordeste, como Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Pedro
Sertanejo e muitos outros.
130
A Festa de São João é uma festa antiga que tem raízes nas tradições dos povos bárbaros da Europa,
em sincretismo com o Cristianismo. Dessa fusão emergiu o nome da festa em homenagem ao Santo
Católico São João. Ela era e ainda é comemorada na véspera de todo dia 24 de junho, principalmente
no interior do país. Foi trazida para o Brasil pelos ibéricos portugueses no período colonial,
disseminada pelos jesuítas, caiu facilmente no gosto dos índios e foi absorvendo, com o passar do
tempo, dentro dos rituais existentes, outras características em diferentes localidades do Brasil, a
depender das formas em que as mesclas foram se dando no interagir das matizes de cultura européia,
ameríndia e africana. “Na Península Ibérica o culto a São João é um dos mais antigos e populares,
Portugal possui no espírito de sua população todas as superstições, adivinhações crendices e agouros
amalgamados na noite de 23 de junho, convergência de vários cultos desaparecidos e de práticas
inumeráveis, confundidos e mantidos sob a égide de um Santo Católico. São Jo [...] primo de Jesus
Cristo, nascido a 24 de junho, degolado no castelo de Macheros, Palestina a 29 de agosto do ano de
31. Pregador de alta moral, áspero, intolerante, ascético, São João é festejado com as alegrias
transbordantes de um deus amável e dionisíaco, com farta alimentação, músicas, danças, bebidas e
uma marcada tendência sexual nas comemorações populares, adivinhações para casamento, banhos
coletivos pela madrugada, prognósticos de futuro [...].” CASCUDO, Luís da Câmera. Op. cit., 1972.
131
“No Brasil a fogueira de São João é de iniciativa familiar e posta diante de cada residência. Não há
vestígios de ação terapêutica sobre homens e animais e a acepção religiosa reduz-se a idéia de uma
homenagem a São João Batista. [...] As festas juninas realizam-se no interior das casas. No sertão do
Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco, uma cena interessante é ‘tomar a fogueira’.” Ibidem.
p.406-7.
73
Ainda em referência à música Dança da moda”, cabe ressaltar que seus
compositores, Luiz Gonzaga e Zé Dantas, reforçaram na sua letra algumas
permanências da festa junina os rituais da fogueira e do balão , mas, em
contrapartida, chamaram atenção para a mudança do ritmo que passara a
embalar a festividade no Rio de Janeiro: o baião. A festa de São João da cidade
carioca havia aderido ao ritmo do baião traduzido por Gonzaga enquanto
representante do Nordeste. Na letra, então, eles afirmavam: “[...] mas dentro da
pista o povo pede e dança o baião.” Em outras palavras, a trilha sonora da
festa passou a ser outra, passou a ser o baião, um ritmo nascente da fecunda
mestiçagem brasileira, traduzida e ressignificada.
As festas populares e a música no Brasil foram sendo gestadas desde o
período colonial, quando cantos ritualísticos indígenas, batuques africanos e
músicas portuguesas, francesas e espanholas (sacras e de liturgia, como o canto
gregoriano) passaram a negociar territórios, gestos, sons, melodias, ritmos e
modos musicais. Muitos foram os ritmos e gêneros musicais no Brasil que foram
criados dentro do contexto coletivo, em festas e festejos, ao sabor da bebida e do
erotismo, dos corpos no movimento da dança, abrindo espaço para o improviso
do músico como estratégia para fazer a música dar liga ao movimento dos
corpos, em um processo interativo e comunicativo.
O universo da música formal, escrita, representada pelas partituras, era,
em geral, subvertido em meio aos bailes e as danças no salão, na rua, nas praças,
em ambientes fechados ou abertos. A música era envolvida e se recriava por
meio da dança em ambientes festivos, e a dança se refazia por meio da música.
O improviso se fazia presente nas melodias, harmonias e ritmos. “Ponha-se uma
mulata a movimentar seus quadris ao alcance coreográfico de um dançarino, e
todos os presentes produzirão os ritmos adequados, com as mãos, em caixote,
em uma porta, na parede.”
132
132
CARPENTIER, Alejo. La musica em Cuba. 3ªed. La Habana: Letras Cubanas, 1988. p.221.
74
A polca
133
é uma dança e um ritmo que chegou ao Brasil pelo viés do
colonizador, para entreter as classes mais favorecidas. Aos poucos, foi sendo
absorvida pelas classes menos abastadas (levada pelos homens da elite para os
cabarés), sofreu modificações, incorporou outros sotaques, sonoridades, formas
de tocar, acentos rítmicos, geografias, segmentos sociais, e às vezes se
transformou em outros ritmos e gêneros, num processo epistemológico móvel e
não-cumulativo.
134
Paulatinamente, esse e outros ritmos trazidos pelos
colonizadores europeus começaram a se misturar e tomar novas formas e
nomenclaturas.
Pixinguinha, por sua vez, falando ao Museu da Imagem e do
Som, confirmou: “Quando eu fiz o Carinhoso (por volta de 1916
ou 1917), era uma polca. Polca lenta. Naquele tempo, tudo era
polca, qualquer que fosse o andamento.” O velho chorão
Alexandre Gonçalves Pinto, no livro “O Choro”, de 1935,
juntou sua voz popular ao coro: “A polca é como o samba - uma
tradição brasileira. A polca é a única dança que encerra nossos
costumes, a única que tem brasilidade.” Esses elogios
encontravam razão de ser na fusão dos elementos da polca com
os afro-brasileiros do lundu, e na aceitação da rítmica daí
resultante pelos conjuntos populares de flauta, cavaquinho e
violão, gerando gêneros como o tango (brasileiro), o maxixe e,
posteriormente, o próprio choro. Essa aceitação chegou a atingir
o meio rural, criando um tipo de polca sertaneja, cujo caráter
melódico e rítmico se afasta do original estrangeiro, e um outro
tipo denominado puladinho.
135
133
Dança de salão em compasso binário, geralmente em tom maior e andamento alegreto, originária
da Boêmia (parte do império austro-húngaro, depois Thecoslováquia e atualmente República Tcheca).
Chegou a Paris em meados dos anos de 30 do século XIX, difundindo-se daí para todo o mundo
ocidental e tornando-se nele a principal dança de salão. Chegou ao Brasil na noite de 3 de julho de
1845, quando foi mostrada pela primeira vez no teatro São Pedro (atual João Caetano), no Rio de
Janeiro, pelos casais Felipe e Carolina Catton e de Vecchi e Farina.” INSTITUTO CULTURAL
CRAVO ALBIN. Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira. Rio de Janeiro: Faperj,
Ministério da Cultura, Fundação Biblioteca Nacional, PUC-Rio. Disponível em: <http://www.
dicionariompb.com.br>.
134
A cultura não pode ser vista como um projeto cumulativo na direção de um coroamento linear no
futuro, mas como uma rede de conexões entre séries, cuja força de fricção e engaste ressalta a noção
de processos dentro de sua estrutura. Daí a importância de se mostrar como certos processos
civilizatórios têm o seu modo de conhecimento fundado numa especial relação material entre séries
culturais concretas que constituem, ao mesmo tempo, relações entre sistemas e subsistemas de signos.
PINHEIRO, Amálio. Comunicação e Cultura: Barroco e Mestiçagem. Disponível em: <http://barroco-
mestico.blogspot.com>.
135
OLIVEIRA, Arthur de. “Polca”. In: INSTITUTO CULTURAL CRAVO ALBIN. Op. cit.
75
No desdobrar da dinâmica da mestiçagem, pode-se observar como a
fusão foi acontecendo naturalmente no encontro de diversas referências:
Como todas as criações deste misturadíssimo povo, o maxixe se
formou musical e coreograficamente pela fusão e adaptação de
elementos provenientes de várias fontes. Segundo o que os
estudiosos puderam apurar até agora, a polca européia lhes
forneceu o movimento, a habbanera cubana lhe deu a rítmica, a
música popular brasileira concorreu com a nossa sincope
característica, e o brasileiro em geral lhe deu a essência da sua
originalidade.
136
Essa lógica também funcionou com o xamego
137
, o baião e o forró,
gêneros polêmicos em seus processos criativos, em suas emersões e em suas
definições estético-textuais, assim como com muitos outros gêneros musicais
brasileiros. O mundo do forró, do baião, da música que se denominou
nordestina, mais do que informação lúdica, festiva, entretenimento e folclore, foi
luta por territórios simbólicos, por espaços de saber e de poder. O baião, assim
como tantos outros gêneros musicais brasileiros, teve e continua tendo por
definição o movimento, os descentramentos, a mestiçagem, a fusão e a
adaptação de elementos provenientes de várias fontes. Pode-se notar a
continuidade desse movimento:
Quando eu falo de baião, eu ponho todas as tendências que têm
em volta do baião. Tem que modernizar. Luiz Gonzaga tem
uma música: Qui nem Jiló. Tem uma harmonia, os acordes que
ele fazia naquele tempo. E o baião... Se Luiz Gonzaga estivesse
aqui presente, ele tocaria moderno. Quando cheguei a São
Paulo, eu era apelidado pejorativamente como um cara que
tocava baião. eu falei para os músicos que hoje querem tocar
baião, mas não sabem porque não quiseram aprender, por
preconceito: o baião é a música do futuro, porque nos dá a
oportunidade de usar várias tendências em volta dele.
138
136
ALVARENGA, Oneyda. Música popular brasileira. 2ªed. São Paulo: Duas cidades, 1982. p.335-6.
137
O xamego foi o primeiro gênero intitulado e apresentado por Gonzaga em disco, na tentativa de
criar o diferencial.
138
Depoimento prestado ao jornalista Assis Ângelo, na presença de Carmélia Alves. Foi levado ao ar
parcialmente no programa “Tão Brasil”, da al TV, na noite de 25 de outubro de 2006, e repetido no dia
seguinte. Cf.: ÂNGELO, Assis. Op. cit., 2006. p.171.
76
Pode-se observar o processo constitutivo da cultura mestiça como
originário de um processo em “contaminação” atravessado pela memória do
passado, ressignificando o presente daqueles que, inseridos dentro de seus
processos, traduziram e recriaram novos elementos, de acordo com novas
possibilidades e necessidades. Dentro dessa lógica podem-se traçar as
genealogias
139
do baião, do forró, do xaxado, do siridó, do trio nordestino, da
zabumba e de uma série de objetos da cultura. Essas genealogias não são
lineares, elas se encontram dentro da trajetória entre vida e arte, entre regional e
nacional, entre colonial e pós-colonial, entre campo e cidade, entre dança e
música e festa, entre o sagrado e o profano, trajetória esta em que a concessão e
o conflito são fatores predominantes.
O baião, durante o século XIX, no norte brasileiro, podia ser considerado
uma dança, que tamm era chamada ou entendida como sinônimo de baiano ou
rojão.
Dança popular muito preferida durante o século XIX no
nordeste do Brasil. Falando sobre as danças escreveu Rodrigues
de Carvalho: “No norte do Brasil ciranda, são Gonçalo,
maracatu, rolinha-doce-doce, o baião, que é o mais comum entre
a canalha e toma diversas modalidades coreográficas”. O mesmo
que baiano. O mesmo que rojão. Pequeno trecho musical
executado pelas violas nos intervalos do canto no desafio.
140
E essa dança tinha a seguinte performance:
Bateu rente no terreiro com as mãos para trás, recuou, atrás,
pé adiante, pisou duro, estirou os braços para frente, com a
cabeça curvada e estalando as castanholas nos seus dedos rijos
fez uma roda de galo que arrasta asa e tira uma dama. Esta sai
139
“A genealogia é uma pesquisa histórica que se opõe ao ‘desdobramento meta-histórico das
significações ideais e das indefinidas teologias, que se opõe à unicidade da narrativa histórica e à
busca da origem, e que procura, ao contrário, a singularidade dos acontecimentos fora de qualquer
finalidade monótona.” A genealogia trabalha, portanto, a partir da diversidade e da dispersão, do acaso
dos começos e dos acidentes: ela não pretende voltar no tempo para restabelecer a continuidade da
história, mas procura, ao contrário, restituir os acontecimentos em sua singularidade. REVEL, Judith.
Op. cit., 2005. p.52.
140
CASCUDO, Luís da Câmera. Op. cit., 1972. p.110.
77
empinada para adiante, dando castanholas para os lados. Outro
dançador, dizendo que o baião precisa ser de quatro junta-se
àquela e tira uma dama. Os dois pares executam volteados,
trocam de damas e repetem as figuras.
141
Humberto Teixeira citou algumas das referências do “baião urbano”
142
,
criado ou reinventado por ele e Gonzaga: “Estrofes de Rogaciano Leite... O
balanceio de Lauro Maia... A viola do cego Aderaldo...”
143
Ou seja, o baião
estilizado por ele e Gonzaga é uma amalgamação que teve como referências a
poesia de cordel, o balanceio (ritmo)
144
e a batida da viola executada pelos
cantadores repentistas nos momentos de intervalo do canto, batida esta em que o
ponteado da viola preenchia o espaço entre uma estrofe e outra, cuja forma de
cantar era recitativa e monocórdia, sendo o baião a única seqüência rítmica e
melódica dentro do repente.
Luiz Gonzaga fez a seguinte colocação sobre o processo criativo do
baião junto a Humberto Teixeira:
Quando toquei um baião pra ele. Saiu a idéia de um novo
gênero. Mas o baião existia como coisa do folclore. Eu tirei
do bojo da viola do cantador, quando faz o tempero para entrar
na cantoria e aquela batida, aquela cadência no bojo da viola.
A palavra também existia. Uns dizem que vem do baiano.
Outros que vem da baía grande. Daí o baiano saiu cantando pelo
sertão deixou a batida e os cantadores do nordeste ficaram
com a cadência. O que não existia era uma música que
caracterizasse o baião como ritmo. Era uma coisa que se falava:
um baião ai... Tinha o tempero, que era o prelúdio da
cantoria. É aquilo que o cantador faz, quando começa a
pontilhar a viola, esperando a inspiração.
145
141
ÂNGELO, Assis. Op. cit., 2006. p.9.
142
Tinhorão utiliza o termo baião urbano para se referir ao baião estilizado por Gonzaga e Humberto.
TINHORÃO, José Ramos. Pequena história da música popular. São Paulo: Círculo do livro, s/d.
p.210
143
Ibidem. p.210.
144
“O balanceio, a partir do próprio nome - que não consta sequer dos dicionários -, era uma adaptação
do balanço rítmico da música, da dança produzida pelos conjuntos da zabumba, sanfona, pífaros e
triângulos do nordeste.” Ibidem. p.210.
145
“O eterno Rei do Baião”. Veja. São Paulo, 15 de março de 1972. Apud: Ibidem. p.210.
78
Gonzaga, em letra de música, reconheceu também a relação do baião
com o balanceio:
Uma peixeira, um gibão, um chapéu de couro
vale um tesouro
vale um tesouro
Mas o gemer de uma sanfona num balanceio
Então isso é baião
E baião por si só é tesouro e meio
Oi, baião, faz a gente lembrar e esquecer
Oi, baião, traz saudade gostosa de ter
Um triângulo, uma sanfona, um zabumba
Uma cabrocha baionando num balanceio
Quanto vale?
Tesouro e meio
146
Gonzaga, durante toda a sua trajetória, teve como referência, absorveu e
até mesmo se apropriou de elementos do folclore rural e da cultura oral,
misturando-os a elementos urbanos. Em sua tradução criativa, ele percebeu a
riqueza do trecho musical da viola no repente (ritmo e melodia) e o transpôs
para a sanfona. Na sanfona de 120 baixos, a melodia minimalista feita pelo
tocador na viola ganhou harmonia, volume e uma dimensão rítmica mais
chacoalhada e dançante.
Dessas intertextualidades em contaminação emergiram outros textos
sonoros que ele batizou como xamego, baião, forró, entre outros, textos estes
que considerou como ritmos e gêneros musicais.
O baião, que era o dedilhado da viola ou a marcação rítmica
feita em seu bojo pelos cantadores de desafio entre um verso e
outro, também conhecido como baiano, vai ser fundido com
elementos de samba carioca e de outros ritmos urbanos que
Gonzaga tocava anteriormente. Ele vem atender à necessidade
de uma música nacional para dançar, que substituísse todas
aquelas de origem estrangeira. D sua enorme acolhida num
momento de nacionalismo intenso, fazendo-o freqüentar os
salões mais sofisticados em curto espaço de tempo. O baião será
a “música do nordeste” por ser a primeira que fala e canta em
146
Baião tesouro e meio, lançado em disco gravado pela RCA Victor, em 1951. Cf.: Ibidem. p.210.
79
nome dessa região. Usando o rádio como o meio e os migrantes
nordestinos como público, a identificação do baião com o
nordeste é toda uma estratégia de conquista de mercado e, ao
mesmo tempo, é fruto desta sensibilidade regional que havia
emergido nas décadas anteriores.
147
Em referência específica à trajetória da música baião, lançada por
Gonzaga e Humberto, e suas possíveis mesclas, coloca-se:
[...] “Baião” apresenta o ritmo, com forte ênfase da síncope do
segundo tempo, e ensina como dançá-lo, ao mesmo tempo em
que convida o ouvinte a aderir à novidade, tudo isso sobre uma
melodia cheia de sétimas maiores, semelhante às cantigas de
cantadores do nordeste. A bemolização da sétima nota do acorde
apresentaria o devaneio de um possível elo entre o baião e o
blues, mas na verdade remete ao ancestral mouro da música
nordestina. A nostalgia, a possibilidade de improviso, a
tendência constante de caminhar em busca da tônica e de
bemolizar as terças, a quinta e a sétima, estão presentes no
blues, nas cantigas nordestinas e no canto da Andaluzia.
148
Em relação ao baião de Gonzaga, cabe frisar que mais importante não é
saber de onde ele vem, ou melhor, a sua origem. O mais precioso é observar as
inúmeras possibilidades e conexões na construção dos discursos verificados
nesse ritmo. Igualmente relevante é notar as semelhanças entre o blues, as
cantigas nordestinas, o canto da Andaluzia e o baião. A origem do baião estaria
no território mourisco, que teria atravessado fronteiras e marcado presença na
música de Gonzaga, ou no blues americano?
Afirmar a influência em uma trajetória de mestiçagem não faz sentido,
pois o sentido está justamente nas inúmeras possibilidades em contaminação, e
não em sua origem certeira.
Como Gonzaga foi influenciado por diversas referências, quem
perceba também no baião a presença de células rítmicas e melódicas do coco:
147
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Op. cit., 1999. p.155.
148
SEVERIANO, Jairo. A canção no tempo: 85 anos de músicas brasileiras. São Paulo: Ed. 34, 1997.
80
O baião vitorioso em todo o Brasil, conserva células rítmicas e
melódicas visíveis dos cocos, a rítmica da percussão, com a
unidade de compasso exclusivamente par.
149
Percussivo e dançante: estas eram fortes marcas do baião. Sua indicação
como dança ficou registrada na letra da música “Baião”:
Eu vou mostrar pra vocês
Como se dança o baião
E quem quiser aprender
É favor prestar atenção
Morena chega pra cá
Bem junto ao meu coração
Agora é só me seguir
Pois eu vou dançar o baião
Eu já dancei balance
Xamego, samba e xerém
Mas o baião tem um quê
Que as outras danças não têm
Oi quem quiser é só dizer
Pois eu com satisfação
Vou dançar cantando o baião
Eu já cantei no Pará
Toquei sanfona em Belém
Cantei lá no Ceará
E sei o que me convém
Por isso eu quero afirmar
Com toda convicção
Que sou doido pelo baião
150
No corpo da letra, os autores enumeraram outros ritmos dançantes o
balancê, o xamego, o samba e o xerém –, mas concluíram a frase privilegiando o
baião e induzindo o ouvinte a inferir que este era o melhor deles. Reforçando o
mesmo raciocínio, os compositores destacaram os diversos lugares em que o
baião havia sito tocado, para consignar com mais propriedade que, em
qualquer geografia, em qualquer território, o ritmo mais marcante era baião. Na
p.245.
149
CASCUDO, Luís da Câmera. Op. cit., 1972. p.110.
150
Baião (Luiz Gonzaga/ Humberto Teixeira, 1949), 78 rpm, RCA Victor.
81
condução subjetivada do discurso, fica confirmada uma autopromoção do ritmo
pelos compositores enquanto estratégia de sucesso.
O baião e o forró são gêneros musicais que vieram da cultura oral
popular (significante e significado) e foram traduzidos, negociados por Luiz e
outros tradutores em territórios diversos. Com o sucesso desses gêneros, a sua
conquista concreta e material de territórios geográficos, sociais, espaciais e
econômicos, dos centros urbanos aos sertões periféricos do Nordeste, passou a
ser impressionante.
Num primeiro momento, o baião, o forró, o trio nordestino, a figura de
Gonzaga vestido metade vaqueiro, metade cangaceiro, gesticulando, dançando
xote, xaxado e baião e utilizando expressões regionais do português arcaico
funcionaram para apresentar, criar e recriar um Brasil que, por dimensão
continental, ainda não se conhecia.
Na seqüência do baião, Gonzaga lançou outros ritmos, como o siridó e o
xaxado, sendo que para sustentar todas essas sucessivas criações rítmicas, em
campanha para estabelecer um espaço nacional para a música do Nordeste, ele
acabou lançando uma orquestração própria: o famoso trio nordestino (formado
pela sanfona
151
, zabumba e triângulo). O que se percebe quando se escuta um
trio nordestino é o evidente grau de equilíbrio acústico entre as freqüências
grave, média e aguda da instrumentação escolhida. Gonzaga queria uma
orquestração própria para representar a sua música, assim como existiam os
regionais das rádios.
151
“Acordeon, gaita de foles (no Brasil velho), realejo, fole (nome idêntico no norte de Portugal),
harmônica. Diz-se gaita no Rio Grande do Sul que, no nordeste e norte, corresponde ao pífano e
flautas rudimentares e rústicas. Verdadeira orquestra nos bailes populares. Acompanha cantos. O
dicionário de Larousse informa ter sido a acordeona inventada em 1827 por ‘um facteur nommé C.
Buffet’. Sua introdução no norte brasileiro é ao redor da guerra do Paraguai, 1864-1870. A gaita
parece ter aparecido anteriormente nas regiões meridionais.” CASCUDO, Luís da Câmera. Op. cit.,
1972. p.781.
82
Figura 6 - Participação de Gonzaga no filme “O galo sou eu” (1958),
cantando e dançando o xaxado.
152
Além dos aspectos musicais, Gonzaga valeu-se de aspectos visuais e
cênicos como mbolos tradutores de seu discurso.
153
No que diz respeito ao
aspecto visual, teve influências de Pedro Raimundo:
Ele tinha me influenciado porque sendo gaúcho ele fazia tudo de
lá, então eu tinha que fazer tudo ao contrário dele. Mas uma vez
ele me serviu, porque usava bombacha, botas, chapéu gaúcho,
guaiaca e chicote. Então, eu achei que Pedro Raimundo era
minha base, comecei a pensar que tipo eu podia fazer, porque o
carioca tinha a sua camisa listada, o baiano tinha o chapéu de
palha, o sulista era aquela roupa do Pedro. Mas e o nordestino?
Eu tinha a oportunidade de criar sua característica e única coisa
que me vinha a cabeça era Lampião... Telegrafei para a minha
mãe, pedindo que me enviasse um chapéu de couro bonito,
lembrando Lampião.
154
Gonzaga, tomando como referência o gaúcho Pedro Raimundo, foi
compondo o seu “personagem”, pautado nas figuras mais populares do Nordeste
na época: o cangaceiro Lampião, bandido à margem da sociedade; e os
152
Fonte: http://www.luizluagonzaga.com.br, acesso em 17/01/2008.
153
O discurso tem fundamental importância para este trabalho enquanto fonte de “análise da relação
que existe entre os tipos de discurso e as condições históricas, as condições econômicas, as condições
políticas de seu aparecimento e de sua formação”. REVEL, Judith. Op. cit., 2005. p.37.
154
DREYFUS, Dominique. Op. cit., 1996. p.134.
83
vaqueiros tangedores de gado ambos personagens representantes dos
populares. A partir de então, ele assumiria a imagem de um artista regional,
dentro do contexto nacional, sobretudo porque criou um personagem com sua a
indumentária.
No figurino ele usou como referência o gibão de couro dos vaqueiros e
boiadeiros que tangiam o gado nas campinas nordestinas; na cabeça, chapéu
semelhante ao do cangaceiro Lampião. Gonzaga chegou a apresentar o xaxado,
ritmo e dança divulgado por Lampião no filme “O Galo Sou Eu” (1958). No
sotaque, a emissão da sua voz, o seu gestual e a sua dança, assim como a sua
música, traduziriam o Nordeste, com sua geografia simbólica, que emergiu,
enquanto mosaico, de um Brasil mestiço.
O discurso vocal de Gonzaga, assim como suas composições, foi
moldado com base na expressão proveniente da lida diária de vaqueiros
tangendo o gado, no canto de trabalho no qual a voz de peito com freqüência
aguda era projetada volumosamente na imensidão dos campos nordestinos, em
sons de vogais imitando o mugido do gado, na comunicação com o mundo
animal –, em conexão com o polimento da voz radiofônica médio-grave e de
volume controlado, porque emitida por meio do microfone, em um espaço
textual em que as consoantes, principalmente os Rs, eram fundamentais para a
clareza da comunicação.
Nesse interstício entre o cotidiano do canto de trabalho e o do canto de
festejo, em conexão com os mecanismos de comunicações vocais da mídia
rádio, Luiz Gonzaga construiu um discurso vocal particular e que se estabeleceu
como o cantar do Nordeste. Fez-se o espaço vocal de Luiz Gonzaga e, portanto,
o espaço vocal representativo do discurso do Nordeste.
Por intermédio do rádio, ele entrou para a história como instaurador da
discursividade do baião urbano e do trio nordestino. Ele foi o primeiro a fazer
uso do trio nordestino e o popularizou no sudeste brasileiro. Também foi o
primeiro a divulgar o baião, cabendo lembrar que, obviamente, o baião de
84
Gonzaga não é o mesmo que o baião do século XIX. Ele fez uso do enunciado e
deu a ele novos códigos estéticos e outras possibilidades enquanto gênero.
A música de Gonzaga e a sua projeção nacional foram fundamentais para
os migrantes que vieram viver nos centros urbanos do sudeste e enfrentar o
desconhecido, convivendo com os novos códigos urbanos. Com o fluxo
migratório da década de 1950, muitos sanfoneiros, ritmistas, zabumbeiros,
repentistas migraram para o sudeste, trazendo na bagagem xote, maracatu e
baião”, inundando de alegria, arte e saudade as praças públicas, como se fossem
feiras do Nordeste; de cordel, desafio e concertinas, que varavam as noites
paulistanas com forró, lembrando os arrasta-pés das estradas enluaradas do
sertão, delimitando, por meio dos hábitos culturais, os espaços da saudade e
sociabilidade, demarcando territórios dentro da cidade.
85
CAPÍTULO 2
A CIDADE, O MIGANTE E A SAUDADE
86
Neste capítulo pretende-se focalizar a cidade de São Paulo (1950-1980) e
seus agentes, suas transformações, bem como as relações que se estabeleceram
com os migrantes nordestinos que para se deslocaram e deles com a cidade
mediante suas estratégias de inserção e de luta. Os espaços de sociabilidade e os
objetos da cultura serão entendidos como processos mestiços de ressignificação
da vida para os migrantes em adaptação ao novo ambiente.
2.1 PARTIDAS E CHEGADAS: SÃO PAULO
Eu Desci pra São Paulo em 1947. Foi rápido [risos]. Foi 51 dias
justinhos. Foi caminhão, conheci toda a Bahia, Minas Gerais e
uma parte do Rio de Janeiro até chegar a São Paulo. São Paulo,
automaticamente, naquela época, ainda era o início de uma
cidade, uma taperazinha, depois de 50, 51, 52, ai, o Pau de Arara
como se chamam né! Começou a chegar em peso. Chegou em
peso e construíram São Paulo. Hoje você São Paulo, quem
conheceu como eu conhecia é uma diferença tremenda.
155
Falar da cidade de São Paulo é falar de muitas cidades em uma. É a
cidade-ímã, “a cidade que mais cresce”, a cidade moderna, a cidade dos
contrastes, das polifonias, das paisagens sonoras”, a cidade das recordações,
das memórias
156
e da falta delas, da arquitetura, dos monumentos, das maneiras
de morar, de trabalhar, de se divertir, dos objetos da cultura, dos movimentos
migratórios, do cotidiano das pessoas pelas ruas.
157
A cidade emerge da interação dos diversos grupos que nela habitam.
Desse modo, pesquisar a cidade é, sobretudo, observar as teias de relações entre
155
Fragmento de entrevista concedida por Pedro Sertanejo ao Programa Canto da Terra, da Rádio
Educadora Salvador, Bahia, em 1981. Documento conseguido junto ao arquivo da Rádio Educadora de
Salvador, Bahia.
156
“A memória é redundante: repete os símbolos para que a cidade comece a existir.” CALVINO,
Ítalo. Cidades Invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p.23.
157
Grande parte dos estudos sobre São Paulo centrou sua análise nas relações de poder, valorizando
temáticas do trabalho, industrialização, progresso e desenvolvimentos urbanos, contribuindo para a
construção-invenção de São Paulo enquanto cidade-progresso, cidade-trabalho, cidade que mais cresce
no mundo.” MATOS, Maria Izilda Santos de. A cidade, a noite e o cronista: São Paulo e Adoniran
Barbosa. Bauru, SP: EDUSC, 2007. p.44.
87
o social, o político, o econômico, o cultural, entre o abstrato e o concreto.
158
Também é rastrear, observar, analisar, constatar e questionar a construção e
emersão dos símbolos, dos diversos discursos e das subjetividades, as relações
de poder, as tensões sociais, as delimitações objetivas e subjetivas dos
territórios,
159
“as múltiplas experiências cotidianas de homens e mulheres no
palco urbano”
160
.
A epígrafe que inicia este subcapítulo é aqui tomada o apenas como
ilustração, mas também para se adentrar o universo da cidade de São Paulo no
final da década de 1940 por intermédio da memória de um migrante que acabara
de chegar do Nordeste, Pedro Sertanejo.
Pedro, nesse fragmento de entrevista, descreveu a viagem que o levou
para São Paulo no final da década 1940, mais especificamente no ano de 1947,
e teve como ponto de partida a cidade de Euclides da Cunha (BA). Ele relatou
com humor que a viagem durou 51 dias “justinhos”. O tempo prolongado devia-
se às condições das estradas na época, que somente a partir de 1950 as
rodovias brasileiras começaram a ser pavimentadas; até então suas condições
eram péssimas.
Na ocasião em que Pedro Sertanejo fez essa viagem, o caminhão ainda
não era meio freqüente no sistema de transportes, o que se pode verificar pelos
registros do Departamento de Imigração e Colonização, os quais consignam que,
na década de 1940, o traslado do Nordeste para o Sudeste era
158
“A cidade é feita entre as medidas de seu espaço e os acontecimentos do passado: a distância do
solo até um lampião e os s pendentes de um usurpador enforcado. [...] A cidade se embebe como
uma esponja, dessa onda que reflui das recordações e se dilata. [...] A cidade não conta o seu passado,
ela o contém como as linhas da mão, escrito nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos
corrimões das escadas, nas antenas dos pára-raios, nos mastros das bandeiras, cada segmento riscado
por arranhões, serradelas, entalhas e esfoladuras.” CALVINO, Ítalo. Op. cit., 1991. p.14-5.
159
Em seu processo de transformação, a cidade tanto pode ser registro como agente histórico. Nesse
sentido, destaca-se a noção de territorialidade, identificando o espaço em conformidade com
experiências individuais e coletivas, em que a rua, a praça, a praia, o bairro, os percursos estão plenos
de lembrança, experiências e memórias. Lugares que, além de sua existência material, são codificados
num sistema de representação que deve ser focalizado pelo pesquisador, num trabalho de investigação
sobre os múltiplos processos de territorialização, desterritorialização e reterritorialização.” MATOS,
Maria Izilda Santos de. Op. cit., 2007. p.26.
160
Ibidem. p.44.
88
predominantemente feito por intermédio de outros meios de transportes,
conforme se pode constatar a seguir:
O Departamento de Imigração e Colonização, registrou a
entrada de 45.886 trabalhadores nacionais no estado de São
Paulo; desse total, 38.090 haviam utilizado a via ferrovia para o
seu deslocamento, enquanto 7.796 pessoas utilizavam a via
marítima.
161
Sabe-se que o trem e o navio marcaram o início das migrações entre as
duas regiões (Nordeste-Sudeste), ainda na década de 1930
162
, e que o caminhão
(pau-de-arara)
163
passou a ser o transporte mais freqüente a partir da década de
1950, com a abertura da estrada asfaltada Rio-Bahia e com a melhoria de
estradas secundárias como a Transnordestina, ligando Salvador a Fortaleza. O
próprio Pedro, neste fragmento de entrevista, relatou que “depois de 50, 51, 52 o
Pau de Arara como se chamam né! Começou a chegar em peso [...] e
construíram São Paulo”.
Encontra-se subjacente ao entusiasmo da fala de Pedro a idéia de que os
migrantes nordestinos ergueram a cidade de São Paulo. Dessa forma, Pedro
assume uma posição de sujeito que assimilou parte do discurso
desenvolvimentista da cidade “de progresso e modernidade”, da “cidade do
trabalho”, discurso esse que foi se construindo ao passar das décadas do século
XX e cuja formação e emersão atravessaram, afirmaram e circularam por outros
discursos e sujeitos sociais.
164
161
BOSCO, S. H.; JORDÃO NETTO, A. Migrações. São Paulo: SEAGRI, 1967. p.146.
162
“Na evolução das conduções utilizadas pelos nordestinos, trem e navio foram os mais usuais nos
anos iniciais da emigração nordeste/ São Paulo. Ainda em 1930, o navio é o meio mais normal.”
JACQZ, Irene. Integração dos Imigrantes Nordestinos em São Paulo: Assimilação ou não.
Dissertação (Mestrado em História), São Paulo, Janeiro de 1982. p.55. Dissertação consultada no
Centro de Estudos Migratórios de São Paulo.
163
“O pau-de-arara resulta de uma carroceria de caminhão abrigada do sol por uma coberta de lona, o
encerado. As pessoas viajam sentadas em pranchas colocadas transversalmente, enquanto no sentido
longitudinal, nos lados e no centro, agarram-se nas madeiras que servem de suporte à improvisada
capota. Daí provém o adjetivo da incômoda condução, que lembra um poleiro onde as criaturas
humanas desenvolvem prodígios de equilíbrio para manterem-se apoiadas.” Cf.: Ibidem. p.56.
164
“A modernidade trouxe transformações culturais, sendo possível reconhecer um campo de
89
Por outro ângulo, percebe-se na fala de Pedro a consciência da presença
da mão-de-obra migrante nordestina no processo de urbanização e
industrialização da cidade a partir da década de 1940, intensificando-se em
1950. São Paulo também absorveu traços culturais dos migrantes, que foram
peças constitutivas da dinâmica de construção das estruturas e engrenagens
sociais da cidade, por meio de suas redes sociais e na formação do que se
tornaria o operariado e seus comportamentos, suas estratégias de luta, adaptação
e resistência, na negociação de seus códigos e hábitos culturais. Os migrantes
faziam-se presentes nas missas, nos estádios e nas torcidas de futebol, nos
sindicatos, nos botecos, nas casas de forró, nos centros comunitários, sempre
negociando espaços, poderes e saberes nesses territórios.
A migração nordestina para o Estado de São Paulo passou a ser
estimulada de forma oficial a partir de 1930, sobretudo porque haviam
diminuído a entrada de imigrantes estrangeiros e, por conseguinte, a oferta de
mão-de-obra para as lavouras de café:
Em 1935, o então governador paulista, Armando Salles de
Oliveira, iniciou gestões e contratos com empresas particulares
que começaram a atuar no norte de Minas Gerais e no Nordeste
agenciando e promovendo a vinda de trabalhadores rurais para
São Paulo. A antiga política de subsídios à migração foi
retomada e redirecionada aos trabalhadores nacionais, como
eram genericamente chamados os migrantes mineiros e
nordestinos.
165
Nos anos 50
166
, a imagem da cidade de São Paulo foi associada ao
crescimento urbano e demográfico proveniente da migração interna. Calcula-se
experiências em comum entre os sujeitos históricos que as vivenciavam. Estabelecia-se uma tendência,
uma espécie de vetor homogeneizador, que criava a impressão de que os elementos da modernidade
predominavam de modo absoluto. Não que todos compulsoriamente tivessem passado a viver de
acordo com esses padrões e absorvido essas perspectivas, mas as imagens desse novo ideal de vida
não deixaram de ser sonhadas, desejadas e incorporadas por uns e refutadas por outros.” MATOS,
Maria Izilda Santos de. Op. cit., 2007. p.67.
165
FONTES, Paulo. Um nordeste em São Paulo: trabalhadores migrantes em São Miguel Paulista
(1945-66). Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008. p.44.
166
“No período do segundo governo Vargas uma avalanche migratória deslocou um grande número de
90
que 24% da população rural brasileira, cerca de oito milhões de pessoas,
migraram para as cidades.
167
Esses migrantes, em sua maioria, dirigiram-se aos
centros urbanos, principalmente à cidade de São Paulo, que vinha divulgando,
por intermédio da imprensa impressa e do rádio, uma imagem de crescimento e
progresso.
Ocorreu, então, a convergência de fatores de atração para a cidade de
São Paulo e de fatores de repulsão que estimularam o processo migratório
interno
168
da região Nordeste para a região Sudeste. Foi registrado nessa década
o maior êxodo rural de nordestinos para a cidade de São Paulo, diretamente para
as regiões periféricas e para as regiões em expansão industrial.
169
O processo migratório em si era uma prática corrente para parte da
população nordestina, que fazia migrações sazonais para trabalhar na colheita de
cana, migrações temporárias para pequenas cidades e entre as próprias cidades
do Nordeste e até mesmo migrações para as zonas dos seringais na região
amazônica. Os problemas climáticos e os conflitos sócio-econômicos em torno
das questões da terra, que ficava concentrada nas mãos das oligarquias
latifundiárias, levaram a população menos favorecida do Nordeste a
caracterizar-se como itinerante.
Com a pavimentação das estradas ligando o Norte e o Nordeste ao
Sudeste (Rodovia Rio-Bahia, inaugurada em 1949), ficou mais fácil chegar a
migrantes nordestinos para São Paulo. Superando todos os valores registrados sobre a migração
nordestina até o momento. Os maiores valores foram registrados, mais especificamente, nos anos de
1951, 1952 e 1953, marcando assim o segundo governo Vargas como o período de grande migração
nordestina.” FERRARI, Monia de Melo. A Migração Nordestina para São Paulo (1951-1954) - seca e
desigualdades regionais. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais), UFSCAR, São Carlos, 2005.
p.165.
167
MELLO, João Manuel Cardoso de; NOVAIS, Fernando A. “Capitalismo tardio e sociabilidade
moderna”. In: SCHWARCZ, Lílian M. (Org.). História da Vida Privada no Brasil. vol.4. São Paulo:
Cia. das Letras, 1998. p.581.
168
“Pode-se afirmar que os deslocamentos em nosso país estão claramente relacionados, entre outros
fatores, com o processo de desenvolvimento das relações capitalistas, com a questão do crescimento
econômico, a urbanização e as desigualdades regionais.” ESTRELA, Ely Souza. Os Sampauleiros:
cotidiano e representações. São Paulo: Humanitas; FFLCH-USP; PUC/SP, 2003. p.240.
169
Se, no princípio do século, era estrangeiro o território popular e genuinamente brasileiro o centro
da cidade, hoje a periferia é nordestina. Quanto mais distante e precária, mais negra, mulata,
migrante.” ROLNIK, Raquel. São Paulo. 2ªed. São Paulo: Publifilha, 2003. p.45.
91
São Paulo, cidade que passava por um processo de industrialização e
urbanização. Na década de 1950, teve início o fenômeno de “desconcentração”
do parque industrial de São Paulo, que começou a ser transferido para outros
municípios da Região Metropolitana (ABCD, Osasco, Guarulhos, Santo Amaro)
e para o interior do Estado (Campinas, São José dos Campos, Sorocaba), regiões
atrativas enquanto pólos de emprego. Nessas regiões constatou-se forte
concentração da população nordestina.
No início da década de 50, São Paulo registrava população de cerca de
2,2 milhões de habitantes, entre eles mais de 500 mil mineiros e 400 mil
nordestinos, dos quais aproximadamente 190 mil eram baianos, 63 mil
pernambucanos, 57 mil alagoanos e 30 mil cearenses.
170
Portanto, esse
contingente correspondia a quase metade da população paulistana, na sua
maioria descendente de imigrantes italianos e negros filhos de ex-escravos.
171
Nesse momento, São Paulo absorveu a mão-de-obra migrante
nordestina, que projetava grandes expectativas em torno da vida na cidade:
Para além dos salários, a expectativa de receber direitos
trabalhistas, ausentes nas relações de trabalho na zona rural, foi
outro fator considerado importante pelos migrantes.
Entrevistado em São Paulo no início dos anos de 1950, um
trabalhador baiano resumia as diferenças entre o trabalho em sua
terra natal e em São Paulo. Trabalhar para os outros [na
Bahia] não é bom, porque a gente não tem garantia como aqui
[em São Paulo]. Aqui o ordenado é melhor e o patrão cumpre a
obrigação.”
172
Entre os fatores que favoreceram o êxodo rural podem-se citar: a
intensificação da seca e da fome na região Nordeste; e os crescentes problemas e
conflitos de ordem sócio-econômica e política nas regiões rurais envolvendo as
questões da terra.
170
NOSSO SÉCULO. vol.8. São Paulo: Abril Cultural, 1980. p.160.
171
ROCHA, Francisco. Adoniran Barbosa: O poeta da cidade. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002.
p.183.
172
FONTES, Paulo. Op. cit., 2008. p.47.
92
Os paus-de-arara, caminhões adaptados para o transporte de passageiros,
foram bastante utilizados durante o êxodo de nordestinos para o Sul do país,
sobretudo para o Estado de São Paulo, a partir da década de 50. Os donos dos
caminhões eram verdadeiros agenciadores dos trabalhadores nordestinos.
Contavam maravilhas da cidade e do seu mercado de trabalho, cooptando os
migrantes para a viagem, sendo que “muitos chegaram a trabalhar diretamente
para fazendeiros, industriais ou agências especializadas em São Paulo”
173
.
A popularidade desses caminhões foi tanta que os migrantes nordestinos
chegaram até mesmo a receber, em geral pejorativamente, a alcunha de “paus-
de-arara”, por causa desse meio precário de transporte e das condições materiais
e psicológicas de pobreza em que se encontravam esses migrantes. O “pau-de-
arara” virou motivo de piada ainda na década de 1950.
Cabe lembrar que existia também o conhecido e apelidado “trem
baiano”, que parava na “Estação do Norte”:
A chegada do famoso “trem baiano” com o desembarque de
centenas de migrantes tornou-se cena corriqueira na estação
Roosevelt, a “estação do norte”, no bairro do Brás. Um
cinegrafista da TV Tupi captou uma dessas chegadas em 1960.
As imagens mostram um trem muito lotado e o desembarque de
homens, mulheres e crianças carregando característicos sacos e
malas de papelão.
174
As condições das viagens tanto de trem como de ônibus eram precárias
e, pode-se dizer, desumanas. Na década de 1960, o transporte de passageiros em
caminhões passou a ser proibido, desaparecendo, por fim, entre as décadas de 60
e 70, quando começou a concorrência das companhias de ônibus.
A década de 50 é a grande época do infeliz pau-de-arara, mal
necessário para completar as insuficiências do trem: o trem não
penetra em todas as regiões, os migrantes devem percorrer
longos caminhos para chegar aos terminais e o trem é também
173
Ibidem. p.51.
174
Ibidem. p.50.
93
caro para as precárias disponibilidades financeiras da maioria
dos migrantes. [...] Já em 1960 os paus-de-araras estão proibidos
e fiscalizados nas “correntes”, pontos de fiscalização nos limites
entre estados e pontos obrigatórios de passagem (e a multa é
mais um meio para o motorista tirar mais dinheiro dos
passageiros). Mas, de fato, o pau-de-arara vai desaparecer pouco
a pouco, principalmente por causa da concorrência das
companhias de ônibus que vão se multiplicando nesta década de
1960-70.
175
Na entrevista citada anteriormente, Pedro afirmou também que a
primeira impressão que teve ao chegar à cidade de São Paulo, em 1947, foi a de
estar diante de uma “taperazinha”. Isso porque São Paulo, da década de 1940
para a década de 1980, sofreu uma série de mudanças na sua estrutura, em
decorrência da modernização da cidade.
Deve-se entender a expressão “taperazinha”, utilizada naquele contexto,
como uma metáfora de efeito comparativo temporal, passando, obviamente, pela
experiência pessoal do depoente. São Paulo passou por intensas transformações
no período compreendido entre o momento em que Pedro ingressou na cidade,
em 1947, e o momento em que concedeu a supracitada entrevista, em 1981. Ou
seja, a cidade que ele conheceu em 1947 não era a mesma cidade em que ele
viveu na década de 1960, quando abriu a sua primeira casa de forró, mais
precisamente em 1966, que também o era a mesma cidade de São Paulo da
década de 1980, quando ele mudou a sua casa de forró para o Bairro de São
Matheus.
Em 1947 a cidade de São Paulo assentava os frutos das
transformações provenientes do processo de urbanização e industrialização, que
tiveram início entre as décadas de 1920 e 1930, intensificando-se em 1950 e
1960. A partir da década de 1950, “A cidade de São Paulo, que naquele
momento já era o centro industrial mais importante do país, passou tamm a ser
o centro financeiro e a maior cidade brasileira, suplantando o Rio de Janeiro”
176
.
175
JACQZ, Irene. Op. cit., 1982. p.56.
176
ROLNIK, Raquel. Op. cit., 2003. p.43.
94
Nos anos 50, o Plano de Metas do governo de Juscelino Kubitschek (JK)
tinha como prioridade fazer o Brasil crescer 50 anos em apenas 5 anos,
promovendo, dessa forma, a modernização e o desenvolvimento do país. A
prioridade econômica do governo era produzir no Brasil artigos industrializados.
Para isso, JK facilitou a entrada das multinacionais no país, com o propósito de
investirem capital internacional sobretudo no setor industrial. Desse modo, São
Paulo passou a receber e assentar o processo pesado de industrialização no
contexto nacional.
Constava também do Plano de Metas do governo JK a construção de
uma nova Capital Federal na região central do país. No cumprimento dessa
meta, Brasília foi construída, e, com isso, a Capital Federal, que até então
funcionava no Rio de Janeiro, foi transferida para o Planalto Central (região
centro-oeste) do país.
No século XX, a população da cidade de São Paulo, progressivamente,
foi dobrando de quinze em quinze anos.
177
Esse crescimento populacional foi
acompanhado pelo incremento de construções na cidade, que passou por um
processo de verticalização, ganhou novas avenidas, novas estradas ligando-a a
outras cidades, hospitais, serviços de higiene e saúde pública, programas de
serviço social, bibliotecas e facilidades culturais, laboratórios de pesquisa,
escolas e instituições superiores de ensino técnico, científico e humanístico.
Nos anos de 1930 e 1940, as inversões no setor imobiliário
ganharam impulso possibilitando novas edificações, tornando
São Paulo “a cidade de um edifício por hora”. As aplicações dos
lucros e capitais excedentes de diferentes atividades dirigiam-se
para os investimentos imobiliários, com destaque para a
construção civil. Se, em 1920, eram 1875 novas construções, em
1930, eram 3.922; em 1940, atingiu 12.490; em 1950,
chegaram a 21.600 construções. Essa febre de empreendimentos
tornou a cidade um perpétuo vir a ser, caracterizado pelo
binômio demolição-construção, levando a um estranhamento
177
MORSE, Richard McGee. Formação histórica de São Paulo: da comunidade à metrópole. São
Paulo: Difel, 1970.
95
contínuo e gerando sentimentos de nostalgia em seus
habitantes.
178
Durante o período compreendido entre os anos de 1920 e 1930, São
Paulo passou por um intenso crescimento e processo de urbanização e
industrialização, transformando-se em uma metrópole moderna e cheia de
contrastes sociais, econômicos e culturais.
Novas áreas em expansão, os projetos da companhia City, os
Jardins (Europa, Paulista, América) traziam a moderna maneira
de se viver, também nas novas periferias, a cidade crescia sem
parar, a relação centro periferia estava em constante construção.
Muita novidade, o mercado novo (1933), O Estádio do
Pacaembu (1935/38), os viadutos do Chá, major Quedinho,
Martinho Prado, a Avenida Nove de Julho e a Biblioteca. As
construções cresciam, nordestinos migravam e ajudavam a
erguer a cidade, contribuindo para a mistura que se caracterizava
pelos contrastes, ambigüidades, incorporações desiguais e
combinações inquietantes, um mosaico de grupos étnicos e seus
descendentes que simultaneamente desejavam se incorporar e
diferenciar e davam novas sonoridades à cidade impregnando-a
de múltiplos sotaques.
179
Ainda nesse mesmo período, deu-se início à transformação da capital
conhecida como do café para a metrópole industrial.
180
Mas, obviamente, essa
modernização não atendeu à cidade toda; um seguimento da população menos
favorecida foi sendo empurrado para as margens da cidade. Portanto, já se
faziam presentes as diferenças sócio-econômicas e urbanísticas
181
e os contrastes
178
MATOS, Maria Izilda Santos de. Op. cit., 2007. p.62.
179
Ibidem. p.264.
180
“Desde os finais do século 19 e inícios do século 20, uma das primeiras vias a delinear a cidade
como uma questão foi a higiênico sanitarista. O olhar médico conjugado à ação/ observação/
transformação do engenheiro e à política de intervenção de um estado planejador/ reformador
pretendiam de todas as formas neutralizar o espaço. [...] Procurava-se dar ao espaço uma qualidade
manipulável, através da ‘racionalidade e objetividade’ da ciência, que passou a ter função chave na sua
luta contra o arcaico pela ‘ordem e progresso’; caminhava-se conjuntamente ao desejo generalizado de
‘ser moderno’, em que a cidade aparecia como sinônimo de progresso em oposição ao campo.”
Ibidem. p.24.
181
“Em 1907, 78% da população brasileira residia no campo. Menos de um século depois, cerca de
80% da população brasileira vive em cidades, dessa forma, a questão urbana se impõe. São Paulo, com
seus milhões de habitantes, é por si só uma cidade-questão, um desafio de pesquisa e intervenção, uma
cidade de contrastes entre miséria e riqueza, alta tecnologia e estratégias de sobrevivência.” Ibidem.
96
já se desenhavam na escolha dos territórios. A elite buscava os lugares mais altos
e com melhor infra-estrutura para morar:
Nas Zonas Oeste e Sul (vetor sudoeste), buscando áreas mais
altas, a elite foi ocupando bairros com infra-estrutura como
Campos Elísios/ Higienópolis, atingindo os altos da avenida
paulista e que depois se completaria com os loteamentos da
Companhia City nos jardins. Eram erguidos palacetes réplicas
dos Europeus, surgiam novos loteamentos, novas maneiras de
morar e viver que incorporavam mudanças de hábito associadas
às noções de civilização, luxo e elegância. Os velhos casarões de
taipas foram demolidos, construía-se uma nova cidade em
colinas arejadas e iluminadas, num processo mais espontâneo do
que organizado.
182
À população menos favorecida restavam as localidades mais distantes do
centro, ou seja, as partes mais baixas da cidade. Para essa população não havia
oportunidade de escolha: ela era afastada para as zonas menos valorizadas da
urbe.
Nas partes baixas, úmidas e pantanosas (mais para a zona leste),
a cidade se expandiu abrigando precariamente a massa de
imigrantes, operários e despossuídos convivendo com a miséria,
desemprego e analfabetismo, dificuldades com a moradia e a
carestia. Ao longo da ferrovia, nas áreas alagadiças dos rios
Tiête e Tamanduateí, zonas desvalorizadas, constituíram-se
bairros operários e industriais, áreas ausentes de planejamento e
atenção das autoridades. Acompanhando as linhas dos trens,
surgiam e se desenvolviam os bairros da Mooca, Brás, Pari,
Belém, Belenzinho, Tatuapé (junto à central do Brasil), de um
outro lado (junto a Santos-Jundiaí), Bom Retiro, Barra Funda,
Água Branca e Lapa.
183
p.44.
182
Ibidem. p.47.
183
Ibidem. p.48.
97
As periferias da cidade viviam em um outro “tempo social”. Por não
chegavam nem a modernidade, nem o lazer, nem o luxo dos bairros de elite,
tampouco o processo de urbanização e o saneamento básico.
Os migrantes nordestinos (de diversos Estados do Nordeste), ao
chegarem à cidade de São Paulo, desde a década de 1930, em que ocorreu o
primeiro surto migratório interno, foram habitar, em sua maioria, as regiões
periféricas da cidade, que abrigavam bairros industriais e bairros de
imigrantes
184
como o Bexiga, o Belenzinho, o Brás
185
, bem como os municípios
da região metropolitana do ABC, a sudeste do município, e a região de Osasco, a
oeste, que, seguindo os mesmos eixos ferroviários, haviam entrado em cena
no primeiro surto industrial, verificado na década de 1920.
186
Na década de 1940, com a pavimentação da via Dutra e a implantação da
via Anchieta, a região metropolitana do ABC (ao longo da via Anchieta) passou
por uma segunda expansão industrial. “O processo se intensificou nos anos
1950, com a instalação da cadeia automotiva e a indústria petroquímica
representando a inserção definitiva da cidade no circuito da grande produção
industrial multinacional.
187
184
“A cidade na virada do século já contava com uma população de 250 mil habitantes, dos quais mais
de 150 mil eram estrangeiros. O último grande grupo de estrangeiro a entrar foi o japonês,
principalmente a partir da segunda década do século 20. Nesse momento de intensos surtos
imigratórios a cidade viveu seu primeiro surto industrial, baseado principalmente nas indústrias têxteis
e alimentícias que ocuparam as várzeas por onde passavam as ferrovias, constituindo as grandes
regiões operárias de São Paulo: as orlas ferroviárias no leste, oeste e sudeste. Nesses bairros - Lapa,
Bom Retiro, Brás, Pari, Belém, Mooca, Ipiranga - se formaram as primeiras colônias de imigrantes.”
ROLNILK, Raquel. Op. cit., p.16
185
“O cenário do Brás, Mooca, Belém de então, onde a vida girava e torno dos ‘apitos das fábricas de
tecido’, caracterizava-se pela concentração de moradias operárias na proximidade dos locais de
trabalho.” CAMARGO, Cândido Procópio Ferreira de; et. al. São Paulo 1975 - Crescimento e
Pobreza. São Paulo: Edições Loyola, 1976. p.25.
186
“Esse momento correspondeu também ao primeiro grande surto de ‘urbanidade’ na cidade, quando
se implantaram os serviços de água encanada, o transporte por bondes elétricos, a iluminação pública,
a pavimentação das vias. A política de implantação desses ‘melhoramentos’ desde logo foi distinta em
cada um dos espaços da cidade.” ROLNILK, Raquel. Op. cit., 2003. p.17.
187
Ibidem. p.43.
98
Figura 7 - Bairro do Brás, São Paulo, início do séc. XX.
188
A década de 40 foi marcada por uma intervenção urbana sem
precedentes na história da cidade de São Paulo. “É neste período de intensa
urbanização que São Paulo passa a ser representada como a cidade do trabalho,
aquela que não pode parar, voltada para o progresso e para o futuro.”
189
Então, a
cidade começou a vivenciar mudanças em seu cotidiano, decorrentes da
efervescente transformação urbana e no seu viver moderno:
Buscava tanto o progresso material e econômico quanto o
cultural e intelectual. A cidade, em seu novo papel de pólo da
cultura e do entretenimento, assumia o status e tamanho de
metrópole e abandonava, ao menos aparentemente, seus
aspectos mais provincianos, como vida pacata e sem grandes
perigos.
190
Ainda na década de 1940, o prefeito Prestes Maia implementou o “Plano
de Avenidas”
191
, realizando amplos investimentos no sistema viário. Foi nessa
188
Fonte: www.arquivo.ael.ifch.unicamp.br. Acesso em: 11 abr. 2007.
189
ROCHA, Francisco. Op. cit., 2002. p.32.
190
SILVA, Marcos Virgílio da. “Mitos persistentes: O aniversário de São Paulo e a herança do IV
Centenário”. Revista Histórica. Publicação trimestral do Arquivo do Estado de São Paulo e da
Imprensa Oficial do Estado. n.13. São Paulo, jan./fev./mar. 2004. p.4-8.
191
“Com sua política urbana de modernização da cidade, Prestes Maia, ao longo de sua gestão,
empreendeu as obras de alargamento da faixa carroçável sobreposta ao antigo córrego do Anhangabaú.
Gradativamente, tal qual o que ocorreu na área central de São Paulo, a área verde do parque projetado
99
época que a avenida São João e a avenida Ipiranga sofreram transformações no
sentido de fazer o trânsito fluir, numa tentativa de tornar a cidade mais veloz e
com vias mais propícias à circulação de automóveis e meios de transporte
coletivos. Estes transportes circulavam no “centro novo” da cidade, limitando os
espaços de sociabilidade dos freqüentadores da noite paulistana.
Antes dos anos 50, São Paulo apresentava profundos contrastes sócio-
econômicos. A imagem da cidade, desde os anos 1930, estava atrelada a da
modernidade, em prol da exaltação do progresso. Era uma urbe que vinha se
remodelando com o passar das décadas, mediante a verticalização, a substituição
no transporte coletivo do bonde pelo ônibus
192
, o crescimento do número de
veículos, proveniente da implantação da indústria automobilística em território
nacional.
A preocupação com o espaço urbano visava, basicamente, a abrir
caminho para os automóveis e atender aos interesses deste setor, que se instalou
em São Paulo em 1956. Simultaneamente, a cidade cresceu de forma
desordenada em direção à periferia, gerando uma grave crise de habitação, na
mesma proporção em que as regiões centrais se valorizavam, servindo à
especulação imobiliária.
Em São Paulo, devido ao crescimento econômico, as manifestações
culturais e artísticas para as classes mais favorecidas passaram a ser sinônimo de
modernidade. Com trens, bondes, automóveis, eletricidade, telefone, velocidade,
a cidade cresceu, agigantou-se e recebeu melhoramentos urbanos, como
pelo arquiteto francês Bouvard foi sendo ‘remodelado’ através dos ‘planos de melhoramentos’. As
obras realizadas por Prestes Maia transformavam lugares públicos utilizados para lazer e encontros
sociais em pistas para circulação de vculos motorizados.” DIÊGOLI, Leila Regina. Desenhos e
Riscos de São Paulo: A estética dos espaços públicos do centro da capital paulista entre os anos de 40
e 60 do século XX. Tese (Doutorado em História), PUC/SP, São Paulo, 2001. p.69.
192
“O uso de ônibus a diesel tornaria acessíveis - em termos de transportes - os bairros da periferia. A
flexibilidade do serviço de ônibus, ao contrário dos bondes e trens, cujo raio de influência era limitado
pela distância entre estações, combinada com um modelo de expansão horizontal, trazia a solução para
a crise da moradia com a autoconstrução em loteamentos na periferia. O modelo das casas
autoconstruídas na periferia desequipada evitava a desvalorização das regiões centrais, ao mesmo
tempo que tirava o peso do pagamento do aluguel do custo de vida dos trabalhadores.” ROLNILK,
Raquel. Op. cit., 2003. p.33.
100
calçamentos, praças, viadutos, parques e os primeiros arranha-céus, bibliotecas,
rádios, cinemas e teatros, livrarias e cafés.
a década de 1960 foi marcada pela gestão Faria Lima, prefeito que
administrou a cidade entre os anos de 1965 e 1969, adotando uma política de
intervenção urbana enquadrada nos moldes econômicos do regime militar.
A partir de 1965, São Paulo passou a ser objeto de intensos
investimentos que remodelaram o espaço urbano de maneira
radical. Expressão disso é o conjunto de políticas colocadas em
prática a partir da administração Faria Lima (1965-1969), que
originou inúmeras linhas expressas, pontes, viadutos,
alargamentos e abertura de novas avenidas, destinado a criar um
sistema viário capaz de receber uma frota que aumentou, num
período de 30 anos de 160 mil veículos na capital em 1960 para
mais de 3,6 milhões.
193
Nessa época, a capital paulista tornou-se sede do “Milagre Brasileiro”,
política implantada pelo governo militar voltada para a maximização do lucro,
política essa que causou uma enorme segregação social em muitos setores da
população.
Em 1960, eram 3.259.087 habitantes envoltos em profundas
desigualdades sociais, vivendo e convivendo nacionais,
imigrantes, migrantes, sobretudo nordestinos, homens e
mulheres, brancos e negros envoltos em ltiplas tensões
urbanas, experiências fragmentadas e diversificadas, o que
contrasta com as representações urbanas em que a cidade é
apresentada como unidade.
194
Foi no bairro do Brás, então periferia da cidade, onde havia fábricas,
residências de operários, vilas e cortiços, que Pedro Sertanejo estabeleceu a sua
primeira casa de forró mais especificamente na rua Catumbi , no ano de
1966, em uma localização, portanto, estratégica. Bairro fabril e operário, o Brás
193
KOWARICK, Lúcio; BONDUKI, Nabil. “Espaço urbano e espaço político: do populismo à
redemocratização”. In: KOWARICK, Lúcio (Org.). São Paulo Passado e Presente: As lutas sociais e
a cidade. 2ªed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999. p.159.
194
MATOS, Maria Izilda Santos de. Op. cit., 2007. p.69.
101
era habitado, em sua maioria, por migrantes nordestinos; em suas imediações
localizavam-se as estações de trem Roosevelt (antiga “Estação do Norte”)
195
e
de ônibus Glicério, pontos importantes de chegada e de circulação de
migrantes
196
nordestinos.
197
Este bairro é uma das áreas de grande concentração de
nordestinos em São Paulo. Explica-se, tal fato, por representar o
Brás historicamente, a primeira porta de entrada da cidade: é
que se encontra a Estação do Norte (atualmente estação
Roosevelt), bem como a antiga hospedaria do Imigrante - que a
partir da década de 1930 passou a receber em maior número os
migrantes nacionais, conforme determinavam as políticas
migratórias. Posteriormente, foi a influência exercida pela
proximidade da também antiga rodoviária da capital paulista,
que passa a receber os grandes fluxos de migrantes
nordestinos.
198
A indústria e as estações de trem e de ônibus foram fatores determinantes
no processo de formação dos bairros periféricos, como o Brás, o Belenzinho e a
Mooca, e de toda a rede de bairros que emergiram ao redor das linhas
ferroviárias, que percorriam toda a zona leste da cidade.
195
“A Estação do Norte foi aberta pela E. F. do Norte em 1875, ao lado da estação Brás da São Paulo
Railway, onde se juntavam esta e a Central do Brasil. Em 1924, a então Estação do Norte, ‘no Braz, é
ponto de embarque e desembarque para os trens mistos para o Rio de Janeiro e para os subúrbios do
Norte de S. Paulo, servidos pela E. F. Central do Brasil’ (SILVA, Jacintho; LOBATO, Monteiro
(Orgs.). Cidade de São Paulo - Guia Ilustrado do Viajante. São Paulo, 1924). O mesmo guia indicava
que os trens de passageiros de São Paulo para o Rio de Janeiro saíam da Estação da Luz. Depois de
uma reforma geral que mudou toda a estrutura do prédio nos anos 1940, dando-lhe estilo art déco, o
prédio foi novamente reformado em sua parte exterior anos mais tarde. Seu nome foi alterado em 1945
para Estação Roosevelt, em homenagem ao presidente americano morto nesse ano.” GIESBRECHT,
Ralph Mennucci. Roosevelt (antiga Estação do Norte). Disponível em: <http://www.estacoes
ferroviarias.com.br/r/roosevelt.htm>. Acesso: 21 de abril de 2008.
196
“Eles chegam de trem na estação Central Roosevelt, de ônibus na estação do Glicério (ou durante
alguns meses na estação clandestina da Rua Conselheiro, onde chegavam em 1978 diariamente 35
ônibus de MG, da Ba e do NE em geral), eles chegam ainda de caminhão em qualquer ponto da
cidade: Para todos o primeiro problema a enfrentar é aonde ir e como.” Revista “O Migrante”, apud:
JACQZ, Irene. Op. cit., 1982. p.65.
197
“Na estação Roosevelt, à plataforma da estação corresponde o corredor que leva diretamente à
saída para as conduções dos bairros periféricos, ou para outros trens que vão no interior. Portanto,
nesta etapa, alguns continuam a viagem para o interior e São Paulo não é mais do que um ponto de
trânsito.” Ibidem. p.65.
198
GOMES, Sueli de Castro. “Na rede do Comércio de retalhos”. Revista do migrante. Ano XIV, n.40.
102
As transformações ocorridas na Estação Roosevelt (Estação do Norte)
representam um pouco do espírito de transformação incessante que acompanhou
a trajetória urbana da cidade de São Paulo durante o século XX. Entre as
inúmeras modificações pelas quais passou a cidade, pode-se observar nas
fotografias apresentadas a seguir a Estação do Norte em 1910 e a mesma estação
em 1950, quando ganhou uma nova fachada e passou a se chamar Estação
Roosevelt.
199
Figura 8 - A Estação do Norte em 1914.
200
São Paulo, mai.-ago. 2001.
199
Aos poucos, a estação Roosevelt foi se confundindo com a estação do Brás. Mais tarde, com a
construção da estação Brás do metrô, em 1979, as três estações acabaram praticamente se fundindo
num único espaço e, mais uma vez, a estação passou por transformões.
200
Fonte: http://www.estacoesferroviarias.com.br/r/roosevelt.htm. Acesso em: 21 abr. 2008.
103
Figura 9 - A estação Roosevelt reformada em 1950.
201
Antes de abrir a casa de forró situada à Rua Catumbi, entre os bairros do
Brás e do Belenzinho, Pedro Sertanejo analisou as probabilidades de seu
estabelecimento obter sucesso. O Forró do Pedro tornou-se espaço de uma rede
social da comunidade migrante nordestina, espaço de trabalho, território da
saudade e da sociabilidade. Foi, assim, adquirindo penetração em meio à
comunidade migrante e alcançando projeção dentro da cidade, despertando, em
meados da década de 1970, a curiosidade de outros seguimentos sociais mais
favorecidos, turistas e artistas, que faziam deste espaço território de contato com
a cultura dos populares na cidade de São Paulo.
O referido forró funcionou no bairro do Brás desde o final da década de
1960, passando pela década de 1970, até o final dos anos 80. Logo, ele esteve
presente durante todo o processo político da ditadura militar, vivido pelo país até
o final da década de 1980, quando o Brasil passou pelo movimento das “Diretas
Já”. Nessa nova fase, a casa de forró do Pedro mudou-se para o bairro de São
Matheus, mais precisamente em 1988, momento em que o Brás passou a ter um
perfil comercial.
Na década de 1970, o centro de consumo se deslocou do centro histórico
para a avenida Paulista e o bairro dos Jardins.
201
Fonte: http://www.estacoesferroviarias.com.br/r/roosevelt.htm. Acesso em: 21 abr. 2008.
104
Até essa data a São Paulo metropolitana contava com um único
centro, feito de duas partes: o “centro tradicional” (região do
triângulo), constituído durante a primeira industrialização (1910-
40), e o “Centro Novo” (da Praça Ramos à Praça da República),
que se desenvolveu no Pós-guerra (1940-1960). A vida cultural,
econômica e política de todos os grupos sociais da metrópole
compartilhava um espaço que abrigava simultaneamente a boca
do lixo e a do luxo, a sede das grandes empresas e uma multidão
de vendedores ambulantes, engraxates, pastores e pregadores do
fim dos tempos, homens-sanduíche e os magazines elegantes da
rua Barão de Itapetininga, os apartamentos luxuosos da avenida
São Luis e os chamados treme-treme feitos de Kitchenettes
super povoadas na baixada do Glicério e na Bela Vista. A
formação de um novo centro só acontece durante o milagre
brasileiro (1968-73), quando um importante subcentro se
implanta em torno da avenida Paulista.
202
Com o crescimento da cidade, o Brás da década de 1980 passou a ser um
bairro mais valorizado que nas décadas anteriores, de forma que ficou
economicamente inviável para Pedro Sertanejo manter a sua casa de forró nesta
localidade, que o imóvel era alugado. A casa de forró foi então empurrada
para mais distante do centro, para uma nova periferia da cidade, agora em um
terreno próprio, comprado pelo Pedro.
203
Nessa época, espalhados por toda a cidade, existiam espaços de
sociabilidade como casas de forró, centros de tradição, bodegas e feiras típicas
que, assim como o Forró do Pedro, aglutinavam a comunidade migrante
nordestina em torno da celebração e da saudade, repetindo os rituais festivos do
Nordeste envolvendo a religiosidade cristã católica, as datas festivas, a música, a
dança e a culinária.
Portanto, a cidade de São Paulo, durante o século XX, viveu
intensamente o binômio demolição/ construção. Todo um texto oficial da cidade
foi gestado em torno do propósito de progresso, trabalho e desenvolvimento.
Esse discurso passou a fazer parte da imagem e do inconsciente coletivo da
202
ROLNILK, Raquel. Op. cit., 2003. p.45-6.
203
Segundo depoimento de Oswaldinho do Acordeon, em entrevista concedida à autora em 20 de jul.
de 2004.
105
cidade de São Paulo, agindo diretamente no cotidiano das pessoas, no trabalho e
no lazer. Em contrapartida, múltiplos discursos não-oficiais coexistiram
enredados a este discurso ou desestabilizando-o, em posição de reação, às vezes,
de resistência e negociação, representando a luta por territórios e pelo poder
dentro da cidade, sobretudo entre o público e o privado, o incluído e o excluído.
2.2 TERRITÓRIO DA SAUDADE
O Nordeste é filho da ruína da antiga geografia do país,
segmentada entre “Norte” e “Sul”. No início dos anos vinte, a
percepção do intelectual que desembarca no Recife, vindo dos
Estados Unidos, é de que a própria paisagem, o próprio físico da
região, altera-se profundamente. Seria outra, a sua crosta. Outra,
a fisionomia. Seu olhar que entrara em contato com o mundo
moderno é obrigado a admitir que a paisagem perdera o ar
ingênuo dos flagrantes de Koster e de Henderson para adquirir o
das modernas fotografias de usinas e avenidas novas. O espaço
“natural” do antigo Norte cedera lugar a um espaço artificial, a
uma nova região, o Nordeste, prenunciada nos engenhos
ciclópicos usados nas obras contra as secas, no final da década
anterior.
204
As localidades, cidades, regiões e nações são compostas por experiências
variadas de vida, histórias, hábitos e costumes. Entretanto, essa variedade é
editada em torno de discursos identitários predominantes ou dominantes. Essa
edição é, portanto, fruto da concessão e do conflito de saberes e poderes,
mediante a arte de fazer e dizer, sendo influenciada pelas circunstâncias
históricas e econômicas do país. No que se refere às regiões Nordeste e Sudeste
do Brasil, fatos importantes foram a decadência econômica do açúcar na região
Nordeste e a ascensão do café e, posteriormente, da industrialização na região
Sudeste.
O Nordeste enquanto região foi uma invenção que emergiu a partir da
década de 1920, e o discurso de Nordeste estava enredado a uma trama de
204
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do nordeste e outras artes. 1ªed. o
Paulo: Cortez, 1999. p.39.
106
construções textuais e imagéticas, nas quais se verificavam narrativas cujos
sentidos encontravam-se em diversas materialidades, em processos de
significação diversos política, jornalismo, música, literatura, artes plásticas e
cinema –, em que a matéria significante interferiu no gesto de interpretação.
“Falar ou ver a nação ou a região não é, a rigor, espelhar estas realidades,
mas criá-las.”
205
Foi no “fazer fazendo” da literatura, do cinema, das artes
plásticas, da música, da dança que os discurso foram se criando, se instaurando e
se transformando em múltiplas linguagens.
As análises dos discursos de Nordeste e de Sudeste, em seus possíveis
ângulos, emergiram e foram sendo entendidas e formadas dialogicamente
206
como objetos de saberes e poderes, armas de luta pela afirmação, resistência e
concessão cultural das regiões.
Desde o momento em que se pode analisar o saber em termos de
região, de domínio, de implantação, de deslocamento, de
transferência, pode-se aprender o processo pelo qual o saber
funciona como um poder e reproduz os seus efeitos. Existe uma
administração do saber, uma política do saber, relações de poder
que passam pelo saber que naturalmente, quando se quer
descrevê-las, remetem àquelas formas de dominação a que se
referem noções como campo, posição, região, território. E o
termo político-estratégico indica como o militar e o
administrativo efetivamente se inscrevem em um solo ou em
formas de discurso.
207
As regiões do Brasil ainda não se conheciam no início do século. Os
meios de comunicação e de transporte eram deficientes e, por esse motivo, o
205
Ibidem. p.27.
206
Segundo Bakhtin, a língua, em sua ‘totalidade concreta, viva’, em seu discurso, tem a propriedade
de ser dialógica. Essas relações dialógicas não se circunscrevem ao quadro estreito do diálogo face a
face. Ao contrário, existe uma dialogização interna da palavra, que é perpassada sempre pela palavra
do outro. Isso quer dizer que o enunciador, para constituir um discurso, leva em conta o discurso de
outrem, que está presente no seu. [...] Esse dialogismo mostra-se na bivocalidade, na polifonia, no
discurso direto e indireto livre.” FIORIN, José Luiz. “Bakhtin e a concepção dialógica da linguagem”.
In: ABDALA, Benjamin (Org.). Margens da cultura: mestiçagem, hibridismo & outras misturas. São
Paulo: Boitempo, 2004. p.37.
207
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 18ªed. São Paulo: Graal, 2003. p.158.
107
processo de migração entre Norte e Sul ainda não tinha marca quantitativa
representativa.
Pensar a construção dos discursos de Nordeste que foram pautados na
saudade e na tradição de um espaço em decadência econômica é pensar a
história discursiva dessa região e da criação dos seus discursos produtivos. Os
discursos de Nordeste ocorreram e emergiram no interstício entre campo e
cidade, resultantes dos processos de migração interna, enredados ao discurso de
Sudeste
208
, e nesse entre-lugar negociaram-se saberes e poderes tanto para o bem
como para o mal.
As ferrovias e estradas de rodagem aproximaram as regiões, e as
emersões tecnológicas nos meios impressos de comunicação e no rádio
propagaram os discursos inter-regionais. Em meio a essas emersões, veio à tona
uma discussão sobre o que seria regional
209
e nacional, fazendo emergir, então,
uma curiosidade inter-regional e uma necessidade de se pensar o nacional:
Uma identidade nacional, uma raça nacional, do caráter
nacional, trazendo, ainda, a necessidade de se pensar uma
cultura nacional, capaz de incorporar os diferentes espaços do
país. [...] O nacionalismo vai acentuar, na década de vinte, as
práticas que visavam o conhecimento do país, de suas
particularidade regionais. Cogita-se, nesse momento, da
publicação até de uma enciclopédia Brasileira que reunisse
informações acerca de nossas diversas realidades como ponto de
partida para se pensar uma política de nacionalização, de
208
“[...] com a concepção dialógica da linguagem, a análise histórica de um texto deixa de ser uma
descrição da época em que o texto foi produzido e passa a ser uma fina e sutil análise semântica, que
leva em conta confrontos sêmicos, deslizamentos de sentido, apagamentos de significados,
interincompreenssões etc. Em síntese, a história não é algo exterior ao discurso, mas é interior a ele,
pois o sentido é histórico. Por isso para perceber claramente o sentido, é preciso situar o texto em seu
espaço, em seu campo e em seu universo discursivo e apreender os confrontos sêmicos que geram os
sentidos. Enfim, captar o dialogismo que o permeia.” FIORIN, José Luiz. Op. cit., 2004. p.65.
209
“Sinteticamente, o regionalismo é a expressão política de grupos numa região, que se mobilizam
em defesa de interesses específicos frente a outras regiões ou ao próprio Estado. Esse é um movimento
político, porém vinculado à identidade territorial. Se eliminarmos do conceito a idéia purista de defesa
de interesses da ‘região’, percebemos que se trata, na realidade, de uma mobilização política em torno
de questões e interesses de base regional, embora sua idéia-força possa ser, e quase sempre é,
explicitada como defesa da sociedade regional.” CASTRO, Iná de. Visibilidade da região e
regionalismo”. In: LAVINAS, Lena; et. al. Integração, região e regionalismo. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1994. p.163.
108
unificação, de superação dessas distâncias que impediam a
emergência da nação. Os regionalismos são sempre pensados
como um entrave a esse processo, embora se acentuem à
medida que a constituição da nação não era um processo neutro,
mas um processo politicamente orientado, que significava a
hegemonia de uns espaços sobre outros.
210
Na década de 1930 e mais intensamente na década de 1950, vieram para
a cidade de São Paulo nordestinos de diversos estados brasileiros, de diversas
cidades, sobretudo das regiões rurais. Toda essa diversidade passou a ser
formatada e recombinada dentro da cidade de o Paulo, às vezes afirmando os
discursos de Nordeste, que se faziam desde a década de vinte, e às vezes os
transformando.
Na cidade, por um lado, tinha-se a construção do discurso da
paulistaneidade e, em condição paralela, o discurso de Nordeste. Monumentos
como o tio do Colégio marcaram a fundação da cidade enquanto ícones da
“invenção da paulistaneidade”. Em contrapartida, as casas de forró, as feiras
típicas nordestinas e os centros de tradição ocuparam espaços simbólicos dentro
da cidade como ícones da “invenção de nordestinidade”
211
, materializando a
presença nordestina na urbe e representando outros marcos e ícones de
resistência e negociação entre as diversas correntes sócio-políticas.
Pedro Sertanejo, em parceria com o cantor e compositor baiano Fábio
Paes, registrou, na letra da canção Forró de Jaboatão, o espaço simbólico da
saudade que o forró ocupava dentro do contexto da cidade de São Paulo e,
conseqüentemente, da vida dos migrantes nordestinos que o freqüentavam.
210
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Op. cit., 1999. p.40, 42.
211
“A categoria invenção está aqui posta no sentido de questionar a existência de uma essência
identitária, subentendendo um processo de criação cultural, pleno de sentidos, disputas e tramas de
poder. O complexo processo de construção contém múltiplas variações, através dos tempos, nos
diferentes espaços, com composições, trajetórias e objetivos variados, cabendo destacar que se
considera não invenção, mas as invenções com toda a pluralidade de significados. No caso de São
Paulo esse processo se forjou na perspectiva das noções de progresso, modernidade e trabalho,
construindo e reproduzindo signos da metrópole industrial nas engrenagens e chaminés.” MATOS,
Maria Izilda Santos de. Op. cit., 2007. p.71-2.
109
O sanfoneiro puxa o fole na surdina
O mundo tomou vacina
Para entrar lá no forró
São Paulo minha gente
Numa noite de luar
Pra amanhecer nessa noite de alegria
Quero o cheiro de uma rosa
No pescoço de Maria
Quero dançar como um príncipe feiticeiro
Passear pelo espaço
Percorrer o mundo inteiro
E espalhar muitas festas e farturas
Muitos beijos e doçuras
Solte o fole pelo ar
Eu quero ver o forró de Jaboatão
Montar num cavalo russo e parar no
sertão.
212
“O sanfoneiro puxa o fole na surdina” ou, em outras palavras, “o
sanfoneiro entoa a sanfona cuidadosamente, quase silenciosamente”, com o
intuito de não incomodar, de ir sentindo o território do desconhecido para poder
inserir-se nele. Com o cuidado de não gerar uma reação de espanto,
estranhamento e repulsa em relação à sua cultura no território do outro, do
desconhecido, esse migrante e sua cultura vão inserir-se homeopaticamente ou,
como coloca o compositor, como uma vacina.
Depois desse intróito cuidadoso e sua possível aceitabilidade ou não, o
forró passou a desempenhar uma função de religação com a memória, uma
função lúdica, de saudade e recordação para os migrantes. A canção de Fábio
Paes e Pedro Sertanejo fazia o migrante lembrar o cheiro de uma rosa no
pescoço de Maria, dançar como um príncipe feiticeiro e sentir-se especial e
humano. Destarte, sua memória corporal, tátil, olfativa, auditiva entrava em
contato com as recordações da terra de origem e seus códigos natais. Por
intermédio da dança, da música e dos cheiros, o migrante podia ter acesso à
memória de forma fantástica, como se fosse possível montar em um cavalo
212
Forró de Jaboatão (Fábio Paes/ Pedro Sertanejo, 1984), Disco “Pensando na Alegria”, do cantor e
compositor Fábio Paes.
110
russo imaginário e, de repente, ir parar no sertão, em uma viagem virtual em que
tudo é possível.
O Forró do Pedro foi espaço da saudade, do lúdico, da festa, quebrava a
rotina do trabalhador. No Forró do Pedro os códigos foram recriados no entre-
lugar campo-cidade. Nele as pessoas vivenciavam momentos nos quais se
sentiam especiais, conversavam, encontravam outras pessoas ao som da música
que embalava a memória e as lembranças, enchendo a vida de esperança e
reativando as forças vitais para continuar a labuta cotidiana. Freqüentavam o
forró migrantes empregados e desempregados, inseridos e marginalizados;
faiscavam conflitos de toda ordem em meio ao salão.
Os migrantes nordestinos constituíram outras cidades na cidade de São
Paulo, feitas de contrates, de múltiplas realidades e discursos, de memórias
peculiares, diferenciadas e multifacetadas, com múltiplos sons, diferentes vozes,
idiomas, sotaques e canções que se constituíram enquanto “paisagens
sonoras”
213
. A investigação do passado desses migrantes e a compreensão da
cidade de São Paulo pelo viés do discurso simbólico, das experiências e
vivências, tornaram-se questões fundamentais para o entendimento do processo
histórico desses personagens na luta por territórios materiais e imateriais.
A música nordestina, tendo como base tradicional a sanfona, a zabumba
e o triângulo ou o ponteado da viola e a voz do caboclo mestiço repentista,
emergiu em meio às “paisagens sonoras” da cidade nos dias de feira, nos
parques, nas ruas em meio ao ruído dos carros, das fábricas, dos trens, em meio
ao barulho dos feirantes e dos passantes, marcando a presença de outros
personagens na urbe. A sonoridade nordestina na voz do caboclo furou e ecoou,
alegrando as noites paulistanas, enchendo as periferias da cidade de saudade,
enchendo a vida de sentido e esperança, devolvendo o sentimento de
213
MATOS, Maria Izilda Santos de. Op. cit., 2007. p.164.
111
humanidade que a cidade e o universo disciplinar do trabalho urbano roubavam
em seu cotidiano repetitivo.
2.3 FORRÓ: FOR AL/FORROBODÓ
O candeeiro se apagou
O sanfoneiro cochilou
A sanfona não parou
E o forró continuou
214
O significado da palavra “forró” é polêmico, mas tem como
característica marcante o movimento. Pode-se dizer que é uma palavra mestiça e
que, como tal, foi se transformando e acoplando novos significados com o
passar dos tempos. Sua emersão divide intelectuais, instrumentistas, artistas e
estudiosos do tema. Alguns dizem que a palavra é uma corruptela de
“forrobodó” (festa chinfrim, um arrasta-pé de ponta de rua), outros acreditam
que é um anglicismo de “for all”.
Forrobodó: Divertimento, pagodeiro, festança [...]. Forrobodó
ou forrobodança é um baile mais aristocrático que o chorão do
Rio de Janeiro, obrigado a violão, sanfona, reco-reco e
aguardente. Nele tomam parte indivíduos de baixa esfera social,
a ralé... A sociedade que toma parte no nosso forrobodó ou
forrobodança é mesclada; de tudo. Várias vezes verificam-se
turras ou banzés, sem que haja morte ou ferimentos. Alberto
Bessa consigna o vocábulo como brasileiro, com as expressões
de baile ordinário, sem etiqueta; e Baurepaire Roha, como
privativamente do Rio de Janeiro, com as de baile, sarau
chinfrim. O termo tem curso no Ceará, para designar os bailes
da canalha, como escreve Rodrigues de Carvalho, e entre nós,
porém, desde muito, e antes mesmo do aparecimento do livro de
Rohan, em 1889, como se destes trechos: “um arremedo de
folhetim cheirando a forrobodó” (América Ilustrada, número 25,
de 1882). “Ao ator Guilherme, na noite de seu forrobodó” (O
Mefístoles, número 15, de 1833). O termo, portanto, quer
originário do Rio de Janeiro quer não, tem entre nós os seus
cajus (Pereira da Costa, vocabulário Pernambucano, 349-350).
Usa-se em Natal, na imprensa anterior a 1930, como sinônimo
de baile popular, pagode, samba movimentado, entre o povo,
214
Forró no escuro (Luiz Gonzaga, abril de 1958), 78 rpm.
112
Carlos Betencourt e Luis Peixoto escreveram uma revista teatral,
“Forrobodó”, que foi muito representada e aplaudida por todo o
Brasil (1917-19).
215
Segundo o sanfoneiro e compositor Sivuca, antes da emersão nacional de
artistas como Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro, as expressões “forró”,
“samba”, samba de latada”
216
e “torrado”
217
eram pejorativas, até mesmo no
Nordeste, porque a elas atribuía-se o significado de festa ou festejo dos menos
favorecidos. Depois da popularização da música nordestina no Sudeste, ocorrida
por intermédio do rádio (1940-1950), dos jornais, do cinema e da televisão, as
festas envolvendo essas manifestações culturais passaram a ser chamadas
abertamente de “bailes de forró”
218
. Assim, o forró foi conquistando espaços,
diluindo preconceitos e ocupando territórios dentro dos centros urbanos.
Encontra-se também a palavra “forrobodó” na definição de samba:
215
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. 6ªed. Belo Horizonte; Itatiaia -
SP: Editora da Universidade de São Paulo, 1988. p.345.
216
“O forró é um manto sob o qual se abriga uma grande variedade de ritmos, estilos, gêneros,
inclusive o samba. Aliás, antigamente, no Nordeste, forró e samba tinham o mesmo significado. O
forró e o samba eram a festa em que se tocava do baião ao chorinho. Depois que o samba carioca foi
alçado a música da nacionalidade foi que o samba passou a designar um gênero musical. No Nordeste
ele foi adaptado para a sanfona, o triângulo, a zabumba, mais violões, banjo, instrumentos de sopro.
Era chamado ‘samba de matuto’, ou ‘samba de latada’. A latada, no caso, era uma extensão da casa,
ou ‘puxada’, coberta por folhas de flandres, onde aconteciam os forrós, ou sambas. O samba de latada
teve como um dos maiores intérpretes o sanfoneiro Abdias, seguido pelo paraense Osvaldo Oliveira.”
TELES, José. Texto sobre o CD “Samba de Latada”, de Josildo e Paulo Moura. Disponível em:
<http://www.josildosa.com.br/novidade.php?id_novidade=n>. Acesso em: 21/01/2009.
217
“Torrado. Rapé, tabaco em para aspirar, tabaco de caco. Dança Pernambucana que Pereira da
Costa (Vocabulário Pernambucano, 713) descreveu, popular no Recife em 1915, citando o Diário de
Pernambuco, número 204: ‘Este torrado é uma cousa pavorosa. É mais do que um frevo. Pra dança-lo
(gente afeita a samba e seus compostos) todos se reúnem, homens e mulheres, em lugar mais ou
menos escasso às vistas de gente séria [...]. Faz-se uma gritaria confusa, que obedece a uma toada
interminável, seguida por meneios e gestos obscenos de que constitui uma numerosa roda. Como no
samba, umbigadas e outros passos obrigatórios. O Torrado, porém, se diferencia do samba pelo
passado da pitada. É por isso que pode ser dançado por pessoas do chuá.” CASCUDO, Luís da
Câmara. Op. cit., 1988.
218
Segundo depoimento de Sivuca no documentário “Viva São João”, realizado por Gilberto Gil e
Andrucha Waddington, em 2002. Conspiração Filmes/ Gege Produções.
113
Samba. Baile popular urbano e rural, sinônimo de pagode,
função, fobó, arrasta-pé, balança-flandre (Alagoas), forrobodó,
fugangá. Dança popular em todo o Brasil.
219
Entretanto, para alguns o termo é um anglicismo, mais precisamente uma
corruptela da expressão “for all (para todos), que teria sido incorporada ao
português no início do século XX, quando engenheiros britânicos instalaram-se
em Pernambuco para construir a ferrovia Great Western. Nessa oportunidade, os
estrangeiros promoviam festas para os peões em comemoração a trechos
finalizados da obra
220
, de modo que era só os trabalhadores checarem o painel de
recados do canteiro de obras, e se estivesse escrito “for all”, o baile estaria
aberto para todos.
Nesse sentido, Oswaldinho do Acordeon afirma:
A origem da palavra é inglesa “for all” (festa para todos -
promovida pelos engenheiros para operários da malha
ferroviária brasileira). O ritmo é derivado do xaxado, gênero
musical divulgado por Lampião quando promovia festa para o
seu bando. O Forró é mais rápido que o baião, semelhança só no
compasso 2/4 na pauta musical. O que conhecemos como forró
tem influência do baião, xote, xaxado, do maracatu, do samba de
roda, do arrasta-pé e da ciranda. Meu pai popularizou os gêneros
musicais nordestinos, intitulando como sendo forró por ser uma
palavra fácil de falar e que identificava o encontro de
nordestinos nos bailes populares. Quem divulgou o baião foi
Gonzaga, forró foi Jackson do Pandeiro e o forró pé-de-serra foi
Pedro Sertanejo. O baião é lento, forró suingado e o pé-de-serra
ou arrasta-pé acelerado.
221
Para Oswaldinho, do ponto de vista rítmico, o forró é um amálgama de
diversos ritmos, inclusive o xaxado. O xaxado tratava-se de uma:
219
CASCUDO, Luís da Câmara. Op. cit., 1988. p.689.
220
MOURA, Fernando. Jackson do Pandeiro: O rei do ritmo. Coleção todos os cantos. São Paulo: Ed.
34, 2001. p.201.
221
Segundo depoimento de Oswaldinho do Acordeon, em entrevista concedida a Antônio Carlos
Fonseca Barbosa em 01 de set. de 2003. Disponível em: <www.ritmomelodia.mus.br/entrevistas>.
Acesso em: 12/03/2009.
114
Dança exclusivamente masculina, originária do alto sertão de
Pernambuco, divulgada até o interior da Bahia pelo cangaceiro
Lampião e os cabras do seu grupo. Dançam-na em círculo, fila
indiana, um atrás do outro, sem volteio, avançando o direito
em três e quatro movimentos laterais e puxando o esquerdo,
num rápido e deslizado sapateado. Os cangaceiros executavam o
xaxado marcando a queda da dominante com uma pancada do
coice do fuzil. Xaxado é onomatopéia do rumor xá-xá-xá das
alpercatas, arrastadas no solo. Passou como uma originalidade
coreográfica, revelada por Lampião, para os palcos-estúdio das
estações emissoras de rádio, televisão, cinema e revistas teatrais,
mas falhou como dança de salão porque não é possível atuação
feminina. “O rifle é a dama”, disse-me Luís Gonzaga, o grande
cantor sanfoneiro, sabedor do assunto. A letra é
caracteristicamente agressiva, contundente, belicosa, satírica e
um xaxado lírico é a contrafração e artificialidade
irresponsáveis. A música é simples, contagiante como toda
melodia popular feita para a memorização inconsciente, sem que
possua elementos típicos, e parece provir do baião de viola,
constando de quadra e refrão, repetidos em uníssono pelo bando.
Não acompanhamento instrumental. a voz humana.
Mulher não dança xaxado como homem não dança Milindô.
222
Mediante essas colocações, pode-se afirmar que mais uma vez a figura
de Lampião
223
aparece em meio aos objetos da cultura que formataram os
discursos e as estereotipias da região Nordeste e dos nordestinos enquanto
valentes, violentos, cabras-machos, desde a primeira metade do século XX.
No discurso de Oswaldinho fica evidente que o que diferencia o forró do
baião é o andamento musical, sendo o primeiro mais rápido que o segundo. Ele
também afirma que o forró possui outras possíveis referências: o xote, o xaxado,
o maracatu, o samba de roda, o arrasta-pé e a ciranda. Ou seja, o for está
rodeado por uma diversidade de referências rítmicas, em um processo fecundo
de contaminação.
222
CASCUDO, Luís da Câmara. Op. cit., 1988. p.802.
223
“O ponto sico a respeito dos bandidos sociais é que são proscritos rurais, encarados como
criminosos pelo senhor e pelo estado, mas que continuam a fazer parte da sociedade camponesa, e são
considerados por sua gente como heróis, como campeões, vingadores, paladinos da justiça, talvez até
mesmo como líderes da libertação e, sempre, como homens a serem admirados, ajudados e
sustentados. E essa ligação entre o camponês comum e o rebelde, o proscrito e o ladrão que torna o
banditismo social interessante e significativo.” HOBSBAWM, Eric. Bandidos. Rio de Janeiro: Forense
115
O forró são variedades de ritmos que se denominam forró. Entra
o xote, o baião, entra a toada, entra o coco de roda, entra o
maculelê, tudo isso denomina-se forró. Porque se você vai em
um forró é pra ouvir toda essa variedade de ritmos. Apesar do
forró ser um ritmo mais acelerado, quer dizer, estar tudo dentro
do contexto. Essa é a definição correta e exata de forró.
224
No entendimento de Oswaldinho, Luiz Gonzaga teve a sua imagem
relacionada à divulgação do baião, Jackson do Padeiro à divulgação do forró e
Pedro Sertanejo à divulgação do forró pé-de-serra. Isso se confirma quando se
analisam as obras e as trajetórias desses três artistas.
Gonzaga veio à tona nacionalmente com a música “Baião” (via rádio),
Jackson com a canção “Forró em Limoeiro” (via rádio) e Pedro, tocador de
sanfona de oito baixos, compositor e mediador cultural, tornou-se conhecido por
meio do forró pé-de-serra (via fonogramas, via rádio
225
, via a sua casa de forró e
a sua gravadora). Pedro, como dono de uma das primeiras e mais representativas
casas de forró da cidade de São Paulo, manteve vivo o forró pé-de-serra
(sanfona, zabumba e triângulo) dentro do salão, mesmo sem maiores
divulgações nos meios hegemônicos de comunicação. Nos momentos em que o
forró saiu da cena nacional, sua iniciativa segurou por muito tempo a
possibilidade de existência e sobrevivência não do forró pé-de-serra, mas
também de muitos artistas migrantes do Nordeste.
Pedro Sertanejo criou uma rede social paralela às redes sociais
hegemônicas do rádio, da TV e do cinema. O forró ficou fora dos meios de
comunicação hegemônicos em determinados momentos, mas esteve dentro do
seu salão, dentro da sua gravadora e dentro dos programas de rádio que Pedro
realizou.
Na trajetória artística e discursiva de Gonzaga, o forró não se tornou foco
principal do seu enunciado. A imagem artística de Gonzaga não foi instaurada
Universitária, 1975. p.11.
224
Depoimento de Oswaldinho do Acordeon, em entrevista concedida à autora em 30 de jun. de 2006.
225
Segundo depoimento de familiares, os programas de dio realizados por Pedro eram transmitidos
116
em torno desse ritmo, mas em torno do baião enquanto dança e gênero musical.
O sucesso de Jackson com “Forró em Limoeiro” fez com que ele se tornasse
conhecido como artista do gênero forró, embora fizessem parte do seu
repertório, assim como do repertório de Luiz Gonzaga, ritmos e gêneros de toda
ordem.
Em 1953, Jackson do Pandeiro emplacou diversos sucessos
nacionalmente, com um repertório rico ritmicamente, o que rendeu a ele o título
de “Rei do ritmo”, além do título de “Rei do forró”. Sua multiplicidade rítmica
dificultava o trabalho dos jornalistas, que precisavam de um texto mais direto
para traçar o seu perfil, definir a sua imagem para o mercado consumidor, afinal,
a música tornara-se um produto.
Luiz Gonzaga, com o sucesso da música “Baião”, ficou conhecido como
o “Rei do baião”, e Jackson do Pandeiro, com o sucesso da música “Forró em
Limoeiro”, foi rotulado como o Rei do forró” e, na seqüência, como o “Rei do
ritmo”. Ele, durante a sua trajetória, foi provando que sua obra seria definida de
forma mais adequada se caracterizada por sua multiplicidade rítmica.
Ainda no que se refere à polêmica sobre a possível origem do forró,
Guerra Peixe colocou:
A origem da palavra forró, nordestina, é o forrobodó do sul,
carioca famoso e apresentado como Revista musical, que
disputavam no seu entendimento, qual dos dois eventos
populares teria aparecido antes; ou, então, o encontro das escalas
modais em Aparecida do Norte - São Paulo - o que poderia
contrariar o característico privilégio nordestino, usado e abusado
por muitos músicos brasileiros.
226
Nessa colocação destaca-se mais uma vez a polêmica a respeito da
emersão da palavra “forró” como nero e espaço de sociabilidade, como
nos horários da madrugada ou de manhã muito cedo, ou seja, em horários pouco concorridos.
226
Alceu Bocchhino, falando sobre as questões insuspeitas levantadas pelo Maestro Guerra Peixe.
BARROS, Luitgarde Oliveira Cavalcante. Guerra Peixe, um músico brasileiro. Rio de Janeiro:
Lumiar, 2007. p.187.
117
significante e significado do Nordeste, como uma construção histórica resultante
do processo migratório e da ebulição da confluência e troca de saberes dentro do
Brasil, por meio do pólo político e econômico do Sudeste – Rio de Janeiro e São
Paulo –, na segunda metade do século XX.
Pode-se notar mediante as diversas citações que o significante/
significado lingüístico de forró” possuiu uma trajetória que foi sendo
construída, inventada, reconstruída e afirmada em um processo de contaminação
da língua (fala) que migrou para a dança, para o ritmo, para o gênero e para os
espaços de sociabilidades, que se imbricaram com a vida cotidiana, em interação
com a indústria do disco, o rádio, o cinema e a TV, subjetivando a região
Nordeste no entre-lugar campo-cidade.
No processo de mestiçagem fica difícil afirmar exatamente em que
ordem os objetos foram se contaminando até chegar ao que hoje a palavra
significa. A palavra e seus significados foram se disseminando de forma oral e
corpóreo-tátil por seus próprios representantes na interação de um discurso
enredado à vida cotidiana, à arte e a outros discursos midiáticos, imagéticos e
históricos.
Em um ponto, entretanto, de existir concordância: atualmente, não
como falar sobre forró, o ritmo, o gênero e o espaço de sociabilidade, sem
mencionar Luiz Gonzaga, Dantas, Jackson do Pandeiro e Pedro Sertanejo,
figuras marcantes para a tradução da discursividade presente no forenquanto
representativo do Nordeste.
Os forrós como espaços que envolvem a música e a dança surgiram nos
centros urbanos, na segunda metade do século XX, como uma alternativa de
diversão para as camadas mais populares:
Surgidos durante a segunda metade da década de 1950, quando a
migração de nordestinos para o Rio de Janeiro, São Paulo e
Brasília tinha chegado ao seu auge, na esteira da eufórica
construção da nova capital e da corrida imobiliária paralela à
explosão industrial na região centro-sul, os forrós constituíram
118
um curioso exemplo de acomodação de interesses e expectativas
culturais no âmbito das camadas mais humildes daquelas
cidades.
227
O forró tornou-se linguagem da dança e da música populares num
contexto urbano industrial, na maioria dos territórios em que penetrou, e pode
significar espaço de sociabilidade, baile ou festa, gênero musical e dança
nordestina.
A partir da segunda metade do século XX, o forró popularizou-se,
tornou-se parte das generalizações dos discursos representantes de Nordeste e
oscilou entre a posição de nacional e regional.
O forró participa, junto com outros elementos (como a comida, a
literatura e a farmacopéia), do sentido de comunidade tanto para
os que migraram, quantos para os que permaneceram na região
Nordeste; e também para os “outros”, pois seus apreciadores não
estão exclusiva e diretamente relacionados com a cultura
nordestina. O forró, como o samba, é cultura de massa, e, como
tal, desafia fronteiras sociais tradicionalmente instituídas em
função de um lócus bem definido. O forró é a música que
representa o Nordeste, em contraste com outros tipos de música
de identidade regional (como a música baiana), nacional (como
o samba) e transnacional (como o rock).
228
Pode-se dizer que esse formato de forró, como cultura de massa, que se
tem hoje é fruto de um somatório de fatores, fenômeno semelhante ao que
ocorreu com o samba, que passou de ritmo marginal para os salões nacionais,
sempre transitando, de algum modo, entre estas duas territorialidades subjetivas
de poderes. O forró, assim como o baião, o xote, o coco e uma série de outros
ritmos que passaram a representar o Nordeste, veio à tona no contexto nacional
por meio dos processos de afirmação cultural dos nordestinos em êxodo do
campo para os grandes centros, em conexão com os meios de comunicação, que
227
TINHORÃO, José Ramos. Os sons que vêm da rua. São Paulo: Ed. 34, 2005. p.199.
228
VIANNA, Letícia C. R. Bezerra da Silva, Produto do Morro: Trajetória e obra de um sambista que
não e santo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p.46.
119
instauraram discursos e símbolos que adquiriram cargas históricas e novos
significados.
Gonzaga, por ter sido o primeiro artista nordestino de sucesso no
contexto nacional, foi fundamental catalisador no processo constitutivo do
discurso de Nordeste e do espaço de sociabilidade “forró” enquanto espaço da
saudade. Saudade da terra deixada, da cultura, dos hábitos, dos gestos, das
relações sociais, da natureza, enfim, saudade de um tempo perdido que ficou
para trás.
2.4 CANTANDO O FORRÓ
Observa-se que a primeira vez que a palavra “forró” apareceu de forma
discursiva na letra de uma canção
229
cantada e gravada por Luiz Gonzaga foi em
“Forró de Mané Vito”
230
, música composta em parceria com Zé Dantas.
Seu delegado, digo a vossa senhoria
Eu sou fio de uma famia
Que não gosta de fuá
Mas tresantontem
No forró de Mané Vito
Tive que fazer bonito
A razão vou lhe explicar
Bitola no Ganzá
Preá no reco-reco
Na sanfona Zé Marreco
Se danaram pra tocar
Praqui, prali, pra lá
Dançava com Rosinha
Quando Zefa de Sianinha
Me proibiu de dançar
Seu delegado, sem encrenca
229
“As canções são consideradas uma documentação com grande potencial para a revelação de
subjetivação de sentimentos. Se, por um lado, o compositor captava, reproduzia e explorava
representações que circulavam elementos de uma experiência social vivida, por outro, o seu público
incorporava, rejeitava, resistia a certas idéias, sentimentos e ressentimentos expressos pelo compositor.
O cantar estabelecia uma troca, uma cumplicidade, uma certa sintonia melódica entre o público e o
autor.” MATOS, Maria Izilda dos. Âncora de Emoções: corpos, subjetividades e sensibilidades.
Bauru, SP: Edusc, 2005. p.92.
230
Forró de Mané Vito (Zé Dantas/ Luiz Gonzaga, 1949), 78 rpm.
120
Eu não brigo
Se ninguém bulir comigo
Num sou homem pra brigar
Mas nessa festa
Seu dotô, perdi a carma
Tive que pegar nas arma
Pois não gosto de apanhar
Pra Zeca se assombrar
Mandei parar o fole
Mas o cabra num é mole
Quis partir pra me pegar
Puxei do meu punhá
Soprei o candieiro
Botei tudo pro terreiro
Fiz o samba se acabar
A letra da música “Forró de Mané Vito” se estrutura em formato de
depoimento policial. O conteúdo da letra preenche o contínuo movimento
rítmico e repetitivo da embolada
231
(canto improvisado e declamado)
232
,
passando a idéia de um diálogo no qual o narrador não sede a seu interlocutor o
turno de fala
233
. Nesse desafio, o cantador, assumindo o lugar de narrador, ao ser
abordado pelo delegado, defende-se fazendo um relato em um fôlego da
confusão que se deu no forró de Mané Vito.
No repertório de Luiz Gonzaga, vale atentar para as temáticas
trabalhadas nas letras e para alguns aspectos estilísticos que ele utiliza para
enfatizar o conteúdo abordado: a rima, o jogo de palavras, as vogais e
consoantes, suas sonoridades e seus significados. A melodia parece nascer da
231
“Embolada. Canto, improvisado ou não, comum às praias e sertão do Brasil. A característica, além
da sextilha, é o refrão típico. Quando dançada diz-se coco de embolada. Mulher casada que duvida do
marido/ Leva mão no pé do ouvido/ pra deixar de duvidá/ rapaz solteiro, namorou mulher casada, Está
com a vida atrapalhada/ Na ponta do meu punha/ Óia os peixe do má! Baliá/ Óia os peixe do mar a
samba!” CASCUDO, Luís da Câmara. Op. cit., 1988.
232
[...] há uma próxima ligação entre entoação da melodia e a própria fala. Digo até praticamente um
canto declamado! [...] se refere à melodia embrionária, contida no idioma falado, que se revela no
âmbito da música daqueles compositores mais espontâneos: sua música nasce geralmente do ritmo e
do conteúdo dos versos.” RAMALHO, Elba Braga. Luíz Gonzaga. A síntese poética e musical do
sertão. São Paulo: Terceira Margem, 2000. p.59.
233
Conforme Paulo de Tarso Galembeck, o turno de fala trata-se da alternância de papéis que os
interlocutores assumem quando participam de um diálogo, de modo que ora são falantes, ora são
ouvintes. GALEMBECK, Paulo Tarso de. “O turno conversacional”. In: PRETI, Dino (Org.). Análises
de textos orais.ed. São Paulo: Humanitas, 2001.
121
musicalidade da fala
234
e a sonoridade das palavras se encaixa ao ritmo da
música de forma percussiva, formando um casamento perfeito entre melodia,
letra e ritmo.
O compositor finaliza a letra dizendo que fez o samba se acabar. Falando
em samba dentro de um forró, Gonzaga confirma a proximidade entre essas duas
manifestações culturais em seu processo de contaminação, de troca de saberes,
evidenciando que no processo de mestiçagem não ocorre separação, mas sim
aglutinação, incorporação.
A narrativa é ambígua, um misto de tragédia e comédia. Desde então,
muitas músicas que abordam o forró em suas letras transitaram pela construção
de um discurso do forró como espaço de música, diversão, do riso
235
, da
sensualidade, mas também da confusão, do conflito, de tensões, relacionando
quase sempre a imagem do nordestino à violência.
Verifica-se que Zé Dantas fez com o forró o mesmo que Humberto
Teixeira fez com o baião:
Arguto observador das facetas lúdicas e áridas do Nordeste, o
pernambucano de Carnaíba das Flores, Zé Dantas - ou Zédantas,
o médico da cidade grande que não deixou escapar o sertão
dentro de si, baseou-se na tradição popular para ressuscitar e
massificar, via indústria cultural, a concepção de forró como um
ambiente festivo cheio de sonoridade, sensualidade e valentia.
Locais que parecem sempre ter existido pelos terreiros
nordestinos. Ele e Luiz Gonzaga usam o mote para descrever o
234
“Tendo em vista que a forma não se descola do conteúdo, mas reforça e colabora na expressão, ou
seja, tendo cada artifício discursivo, cada palavra empenhado, lugar pertinente e estratégico.”
GODOY, Márcio Honório. Dom Sebastião no Brasil: Das oralidades tradicionais à mídia. Tese
(Doutorado em Comunicação e Semiótica), PUC/SP, São Paulo, 2007. p.26.
235
“O riso partilha, com entidades como o jogo, a arte, o inconsciente etc., o espaço do indizível, do
impensado, necessário para que o pensamento sério se desprenda de seus limites. Em alguns casos,
mais do que compartilhar desse espaço, o riso torna-se o carro-chefe de um movimento de redenção do
pensamento, como se a filosofia não pudesse se estabelecer fora dele.” ALBERTI, Verena. O riso e o
risível na história do pensamento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. p.11.
122
“Forró de Mané Vito”, uma mistura de xote e baião mais
acelerado, de 1949, que marca o princípio de uma das mais ricas
parcerias da música brasileira.
236
Entende-se que, para se analisar a letra de “Forró de Mané Vito”, é
preciso falar um pouco do compositor Dantas, que ficou muito conhecido
não por suas letras, mas também pela construção melódica de muitas
composições. Dantas foi tradutor e criador de boa parte do discurso de Nordeste
e do nordestino, por meio das letras cantadas por Gonzaga, Jackson do Pandeiro
e muitos outros artistas. Ele foi fundamental para o desdobramento dos discursos
em múltiplas linguagens. Suas letras mantêm uma forte relação com a tradição
oral, trazem o sotaque e a musicalidade da região Nordeste, amalgamando, por
intermédio da linguagem poética, formas de pensar da região, seu
funcionamento e seus códigos específicos, de modo que letra e música se
imbricam para formar um saber dizer que se encontra ajustado ao seu objeto.
Dantas era, sobretudo, um contador de causos; era um poeta que
conhecia a fundo o processo constitutivo da cultura nordestina, na sua
interioridade e em suas combinações e recombinações; era um criador/ recriador.
Percebe-se em suas letras uma intertextualidade
237
com a literatura de cordel e
com o Romance regional de 1930
238
, espaço no qual se afirmava o Nordeste
como uma região tradicionalista e em crise
239
, e a figura do nordestino era
236
MOURA, Fernando. Op. cit., 2001. p.201.
237
“Entende-se aqui por intertextualidade ao conjunto de textos ou de referências culturais
organizadas, que interferem no sentido ou na elaboração de uma obra.” FERREIRA, Jerusa Pires.
Cavalaria em Cordel. O passo das águas mortas. São Paulo: Hucitec, 1993. p.2.
238
“Os regionalistas típicos esquivaram-se aos problemas universais, concentrando-se na estilização
de seus pequenos mundos de província, cujo passado continuava virgem para a literatura Brasileira.
Foi no conto e na novela que melhor se ajustaram aqueles narradores de casos da vida rural, amantes
de quadros animados e de cenas idílicas ou dramáticas.” BOSI, Alfredo. A Literatura Brasileira. vol.V
- O pré-modernismo. São Paulo: Cultrix, s/d. p.56.
239
“Mesmo a produção literária feita pelas elites do nascente nordeste vão se dedicar a desenhar vidas
épicas e heróicas, no mesmo instante em que o cotidiano da sociedade burguesa vai se instaurando
com o cinza de sua rotina, seus códigos, seus costumes, suas regras e leis. O nordeste desenhado como
território de revolta, como território do homem insubmisso, brigão e orgulhoso, mesmo na miséria,
parece ser um contraponto imaginário para o lugar de submissão e impotência que a região ocupa cada
vez mais no país.” ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. “‘Quem é froxo não se mete’:
violência e masculinidade como elementos constitutivos da imagem do nordestino”. Projeto história.
123
centrada em uma imagem de masculinidade, virilidade e violência. São
inúmeros os personagens trazidos à tona por intermédio das letras das músicas
dele e de suas histórias. Do cordel pode-se observar a seguinte influência:
[...] Na análise do discurso da literatura de cordel, uma das
poucas formas populares de narrativa de que temos acervos,
notaremos a presença constante de imagens de violência. A
violência é neste discurso um componente da sociabilidade no
nordeste, uma característica da própria forma de ser do
nordestino e, mais acentuadamente, um dos elementos que
comporiam os atributos da masculinidade nesta região. Ser
“cabra macho” requer ser destemido, forte, valente, corajoso.
Nesta sociedade, o frouxo não se mete, não lugar para
homens fracos e covardes. Há, pois, uma tradição de narrar
atitudes de violência na produção cultural popular. O crime do
pobre parece exercer um fascínio sobre a massa de homens
dominados e submetidos a relações de poder as mais
discricionárias possíveis; a virilidade do dominado é
reafirmada.
240
Essa característica mostra-se presente em grande parte das produções
musicais de artistas como Gonzaga, Jackson e muitos outros. Observa-se, por
exemplo, que, em 1953, Jackson do Pandeiro chegou ao Sudeste, mais
especificamente ao Rio de Janeiro, com o sucesso das músicas “Forró em
Limoeiro”
241
e “Sebastiana”
242
.
Forró em Limoeiro
Eu fui pra limoeiro
E gostei do forró de lá
Eu vi um caboclo brejeiro
Tocando a sanfona, entrei no forró
No meio do forró
Houve um tereré
Disse o Mano Zé, agüenta o pagode
vol.19. São Paulo, 1999. p.188.
240
Ibidem. p.188.
241
“Forró em Limoeiro” (Edgar Ferreira), coco, música gravada por Jackson do Pandeiro (1953,
Copacabana).
242
“Sebastiana” (Rosil Cavalcanti), rojão em 78 rpm.
124
Todo mundo pode, gritou o Teixeira
Quem não tem peixeira briga no pé
Foi quando eu vi a dona Zezé
A mulher que é, diz que topa parada
De saia amarrada, fazer cocó
E dizer eu brigo com cabra canalha
Puxou a navalha e entrou no forró
Eu que sou do morro, não choro, não corro
Não peço socorro, quando há chuá
Gosto de sambar na ponta da faca
Sou nego de raça e não quero apanhar
Assim como no “Forró de Mané Vito”, gravado por Gonzaga, no “Forró
em Limoeiro” o autor Edgard Ferreira repetia a mesma temática colocada por Zé
Dantas, ou seja, o forró enquanto espaço de sociabilidade no qual estavam
presentes a dança, a música, o riso, muita sensualidade, pessoas de todos os
gêneros, etnias e segmentos sociais.
Verifica-se nessas letras uma regularidade discursiva subjacente ao dito,
cuja interdiscursividade localiza-se de imediato em Euclides da Cunha (Os
Sertões), ou seja, a formação imaginária de que o nordestino, que é também um
sertanejo, ou antes de tudo um forte, é valente, enfrenta qualquer parada.
Somando-se a isso, emerge uma mentalidade de que no Nordeste “o fraco não
tem vez”, independentemente da condição econômica e social do sujeito. Isso
ocorre como estratégia que se faz dentro das redes sócio-econômicas e de poder
estabelecidas no Nordeste, uma sociedade hierarquizada com hábitos residuais
escravistas, em que os coronéis se apossavam das terras, dos pequenos
proprietários, dos menos favorecidos, homens e mulheres aos quais a violência e
os agentes da vingança, a exemplo dos cangaceiros, representavam estratégias
de luta.
243
243
“O banditismo social é um protesto, sim, mas modesto e não revolucionário, que se coloca não
contra o fato de que os camponeses sejam pobres e oprimidos, mas contra o fato de que às vezes os
sejam excessivamente. Não se espera que os heróis bandidos construam um mundo de igualdade. Eles
podem reparar as injustiças e mostrar que o processo de opressão é reversível. [...] A função prática
do bandido é, no máximo, impor certos limites à opressão tradicional numa sociedade tradicional, ao
125
No meio do forró “houve um tereré” (uma briga) envolvendo todos os
presentes. Fica evidente na letra da música “Forró em Limoeiro” que o discurso
construído em torno do feminino faz da mulher um simulacro
244
do homem, ou
seja, quando ela entra no forró, espaço restrito aos homens, precisa ser valente,
brigar, puxar a navalha, ou seja, ela deve incorporar o comportamento
masculino, o seu gestual; ela perde a existência moral e adquire a existência
estética.
Nesse sentido, cabe notar que na poesia de cordel observa-se fenômeno
semelhante:
No cordel, a mulher não faz a história, mas a sofre. Quase
sempre ela é o pretexto para o desenrolar de uma trama que põe
frente a frente os homens. A mulher é o pretexto, não o texto da
história. Isto fica mais explícito quando tomamos os poucos
folhetos em que as mulheres são as protagonistas. Nestes
folhetos, embora sejam mulheres na genitália, as imagens
presentes nas histórias são imagens ligadas ao masculino, são
imagens da mulher-macho, exploradas até hoje pela mídia
nacional. As mulheres nordestinas que se destacam socialmente,
que ocupam postos antes ocupados pelos homens, são
necessariamente mulheres-machos, descendentes da estirpe de
Maria Bonita e Dadá.
245
Portanto, para a mulher entrar no forró foi preciso equiparar-se aos
homens; a mulher inverteu o seu papel, enquanto estratégia para subverter a sua
condição. O mesmo se verifica em “Sebastiana” e em muitas outras letras que
revelam essa temática.
preço da desordem, do assassinato e da extorsão. E nem essa função ele a cumpre bem... Afora isso,
ele é apenas um sonho de como seria maravilhoso se os tempos fossem sempre bons. É um sonho
poderoso razão dos mitos que se formam sobre os grandes bandidos, emprestando-lhes poderes sobre-
humanos e a imortalidade desfrutada pelos grandes reis justos do passado, que não morreram
realmente, mas estão adormecidos e um dia voltarão.” HOBSBAWM, Eric. Rebeldes Primitivos.
Estudos de formas Arcaicas de Movimentos Sociais nos culos XIX e XX. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1978. p.33.
244
Para Gilles Deleuze, enquanto a cópia é uma imagem dotada de semelhança, o simulacro é uma
imagem sem semelhança. DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 2006.
245
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Op. cit., 1999.
126
A condição do negro, outra minoria presente no forró, também é
retratada na música “Forró em Limoeiro”. Diz-se que quando o negro cai no
forró, mostra que convive com o indeterminado, com o improviso, é malandro e
sabe se virar, negociar espaços de poderes e subverter a ordem mediante objetos
de saberes, como, por exemplo, sambar na ponta da faca ou, em outras palavras,
manipular o objeto da violência no entre-lugar da dança e da luta.
Portanto, fica subentendido na letra que o forró é um espaço de exercício
de poder, negociação, espaço antidisciplinar, local onde é subjetivada a liberdade
ou a luta pela liberdade por meio dos corpos na dança, ou na luta de fato, sendo
até possível um desfecho violento e fatal. O forró, conforme a letra da música, é
um espaço onde todos podem se expressar, independentemente do gênero, da
etnia ou da posição social: “Todo mundo pode, gritou o Teixeira, quem não tem
peixeira briga no pé.” Nesse momento, o corpo entra em sua gestualidade
enquanto possibilidade de arma, enquanto estratégia de luta propriamente dita.
No forró venceria aquele que fosse o mais forte.
na letra de “Sebastiana” a mulher é o foco desafiador e desagregador
do símbolo da masculinidade, representado pela dança do xaxado, dança
masculina e bélica que teve em Lampião seu maior divulgador.
Sebastiana
Convidei a comadre Sebastiana
Pra cantar e xaxar na Paraíba
Ela veio com uma dança diferente
E pulava que só uma guariba
E gritava: a, e, i, o, u, y
Já cansada no meio da brincadeira
E dançando fora do compasso
Segurei Sebastiana pelo braço
E gritei, não faça sujeira
O xaxado esquentou na gafieira
E Sebastiana não deu mais fracasso
Mas gritava: a, e, i, o, u, y
127
Sebastiana, com sua dança que sugeria uma umbigada, avacalha com o
xaxado, dança quase “sagrada” do universo masculino no Nordeste, símbolo do
ritual da guerra e da virilidade. Ela erotiza, traz o elemento jocoso para um
universo masculino. Por fim, o xaxado esquenta e vira uma gafieira, e então
Sebastiana não decepciona.
Sebastiana, com a sua dança, tenta negociar o espaço do feminino dentro
do xaxado. No final, ela consegue vencer o universo masculino e traz à tona a
trilha sonora da gafieira
246
, dança que se em pares e em que a mulher e o
erotismo são o foco principal.
As músicas que Jackson interpreta trazem um elemento cômico. Suas
apresentações, além de musicais, eram cênicas e bem-humoradas.
247
Antes do
sucesso no Rio de Janeiro, ele trabalhou em emissoras de rádio de Campina
Grande, no regional como instrumentista e humorista, fazendo parte da dupla
“Café com Leite”, com Rosil Cavalcante, em 1947, e na Rádio Tabajara.
248
Em
Recife, trabalhou na Rádio Jornal do Comércio.
Em 1956, se apresentando como artista solo, conheceu Almira
Castilho, passando a se apresentar com ela.
249
O humor era característica
marcante das apresentações dos dois, que inclusive interpretavam, entre tantos
outros personagens, o casal Matuto, como se pode ver em fotos e em muitas
246
“O mesmo que baile. Mário de Andrade cita informação ouvida por ele no Rio de Janeiro: Baile
muito ordinário.” ANDRADE, Mário de. Dicionário Musical Brasileiro. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 1989.
247
“Através do humor, o residual podia ser recuperado, o estranhamento era colocado diante do
emergente e/ou moderno, o antigo torna-se arcaico, a inversão possibilita dizer o não dito ou o
repetido que circula no cotidiano, fazendo surgir os anti-heróis, os trocadilhos, as paródias,
personagens tragicômicos e outros elementos, levando os criadores a construírem conexões com os
ouvintes.” MATOS, Maria Izilda Santos de. Op. cit., 2005. p.103.
248
MARCONDES, Marcos Antônio (Org.). Enciclopédia da música brasileira - erudita, folclórica e
popular. 2ªed. São Paulo: Arte Editora; Publifolha, 1998. p.390.
249
“No Recife, conhece Almira Castilho, que viria a se tornar sua esposa em 1957, uma ex-professora
que cantava mambo e dançava rumba. Jackson e Almira fizeram uma dupla de sucesso, ele cantando e
ela dançando ao seu lado. Desde o início se preocupavam com o visual e com as performances de
palco. Ela, sensual com um belo jogo de cintura e ele, com sua impressionante musicalidade,
combinando uma explosão de ritmos e improvisações vocais.”
PARTIDO DA CAUSA OPERÁRIA.
“Jackson do Pandeiro, um virtuoso do ritmo”. Casa operária Online. 23 de ago. de 2007. Disponível
em: <http://www.pco.org.br/conoticias/cultura_2007/23ago_jackson.html>.
128
capas de LP’s como na capa de “Cantando de Norte a Sul”, uma produção da
Gravadora Philips, 1960.
Figuras 10 e 11 - Jackson do Pandeiro e Almira Castilho em apresentações.
250
Figura 12 - Capa do LP “Cantando de Norte a Sul”, lançado em 1960.
250
Foto da esquerda - Fonte: MOURA, Fernando. Op. cit., 2001. p.157.
Foto da direita - Fonte: http://www.liaa.ufcg.edu.br/jacksondopandeiro/musicas.html. Acesso em:
13/02/2008.
129
Nas letras aqui analisadas, assim como no cordel, a violência emerge
como função estratégica no processo de conquista pela liberdade e subversão na
dinâmica das relações de poder tanto no campo como na cidade, seja por
intermédio da violência propriamente dita ou da representação desta por meio
das linguagens, do imaginário, dos objetos da cultura. Assim, nota-se que a
história se vive e se faz mediante o corpo, nas formas de dançar, de andar, de
tomar banho, de comer, de falar, de escrever e até mesmo de brigar.
O corpo tornou-se um tema-questão de diferentes disciplinas e
áreas do conhecimento. Na historiografia, tais inquietações
emergem com a abertura da história para “outras histórias”,
focalizando novos objetos e abordagens. Os sujeitos históricos
adquiriram corporeidade e o corpo tornou-se sujeito da história,
podendo-se observar que a construção do corpo tem uma
historicidade que vem desafiando as reflexões dos
pesquisadores. [...] Assim, não se pode isolar o corpo da cultura.
Sem abstrair fatos (como nascimento, crescimento, alimentação,
práticas sexuais e reprodutivas, doenças, dor, emoções,
movimentos, trabalho, aprendizagem, vestuário, morte)
elementos que compõem a vida e seu ordenamento social, pode-
se perceber a construção do corpo como sustentáculo de
princípios éticos (contenção, abstinência, moderação, disciplina,
frugalidade, persistência) sobre os quais foram erguidos
princípios estéticos (como bom gosto, elegância, beleza, saúde,
limpeza, moral, higiene, sexualidade, prazer, erotismo e
naturalidade).
251
O forró enquanto espaço de sociabilidade metaforiza e desconstrói as
tensões do cotidiano disciplinar do trabalho, criando um espaço de
subjetividade
252
com outras regras, espaço este em que os códigos e as
estratégias passam a ser outros.
251
MATOS, Maria Izilda Santos de. Op. cit., 2005. p.39, 41.
252
“A subjetividade está em circulação nos conjuntos sociais de diferentes tamanhos: ela é
essencialmente social, e assumida e vivida por indivíduos em suas existências particulares. O modo
pelo qual os indivíduos vivem essa subjetividade oscila entre dois extremos: uma relação de alienação
e opressão, na qual o indivíduo se submete à subjetividade tal como a recebe, ou uma relação de
expressão e de criação, na qual o indivíduo se reapropria dos componentes da subjetividade,
produzindo um processo que eu chamaria de singularizarão. Se aceitamos essa hipótese, vemos que a
circunscrição dos antagonismos sociais aos campos econômicos e políticos - a circunscrição do alvo
de luta à reapropriação dos meios de produção ou dos meios de expansão política encontra-se
130
A cultura articula conflitos e volta e meia legitima, desloca ou
controla a razão do mais forte. Ela se desenvolve no elemento de
tensões, e muitas vezes de violências, a quem fornece equilíbrios
simbólicos, contratos de compatibilidade e compromissos mais
ou menos temporários. As práticas do consumo, engenhosidade
do fraco para tirar partido do forte, vão desembocar então em
uma politização das práticas cotidianas.
253
No forró, os conflitos sociais emergiam em meio ao salão, na catarse da
dança e da bebida, na disputa com o gênero oposto por espaços e poderes ou na
luta pela liberdade de poder expressar desejo ou insatisfação, violência ou o que
estivesse guardado, reprimido, recalcado. É a politização do gesto no espaço de
sociabilidade. O forró não era o contrário do cotidiano do trabalho, ele era a sua
continuação; não era estado de alienação, de esquecimento, nem válvula de
escape; era momento de subversão, espaço da utopia
254
, simbolizava força
vivida, coletiva e ritualmente.
Outro aspecto que se observa no contexto da letra “Forró em Limoeiro”
é que o compositor, ao narrar um episódio ocorrido no forró, estabelece um
interlocutor para guiar as ações no espaço do forró, cuja função é segurar o
pagode, manter o controle, evitar a invasão de elementos estranhos que viessem
quebrar os códigos padrões morais mantidos naquele espaço. Daí surge um outro
interlocutor, que, numa atitude afirmativa, declara ser do morro, ambiente
urbano, ou seja, território do samba. Fica claro neste instante que o forró de fato
era território da mistura, do mestiço no entre-lugar campo-cidade, onde
aconteciam negociações e conflitos de códigos, onde a arte de fazer estava
amalgamada à arte de viver.
superada. É preciso adentrar o campo da economia subjetiva e não mais restringir-se ao da economia
política.” GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: Cartografias do desejo. Petrópolis, RJ:
Vozes, 1986. p.33.
253
CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano. 1 - Artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.
p.45.
254
A utopia irá sempre expressar desejos coletivos ou individuais (estes últimos depois tendem a cair
nas malhas do coletivo se assim tiverem forças e estiverem de acordo com o repertório de determinado
grupo) de perfeição, guardando, em alguns casos, uma lembrança de uma possível situação primordial
da humanidade à qual se deseja voltar.” GODOY, rcio Honório. Dom Sebastião no Brasil: Das
oralidades tradicionais à Mídia. Tese (Doutorado em Semiótica), PUC/SP, São Paulo, 2007.
131
“O Forró em Limoeiro” fez sucesso com Jackson do Pandeiro. Naquele
momento, Dantas, oportunamente, aproveitou e mostrou a Jackson a
composição que estava em andamento: “Forró de Caruaru”
255
.
No forró de Sá Joaninha
No Caruaru
Cumpade Mané Bento
Só fartava tu
Nunca vi meu cumpade
Forgansa tão boa
Tão cheia de brinquedo,
De animação
Bebendo na função
Nós dansemo sem pará
Num galope de matá
Mas arta madrugada
Pro mode uma danada
Qui vei de Tacaratú
Matemo dois sordado
Quato cabo e um sargento
Cumpade Mané Bento
Só fartava tú
Meu irmão Jisuino
Grudô numa nega
Chamego dum sujeito
valente e brigão
Eu vi qui a confusão
Não tardava cumeçá
Pois o cabra de punhá
Cum cara de assassino
Partiu prá Jisuino
Tava feito o sururú
Matemo dois sordado
Quato cabo e um sargento
Cumpade Mané Bento
Só fartava tú
Pro Dotô Delegado
Que veio trombudo
Eu disse que naquela
grande confusão
Só hove uns arranhão
Mas o cabra morredô
Nesse tempo de calô
Tem a carne reimosa
O véi zombô da prosa
255
MOURA, Fernando. Op. cit., 2001. p.201.
132
Fugi do Caruarú
Matemo dois sordado
Quato cabo e um sargento
Cumpade mané Bento
Só fartava tú
Assim como o “Forró de Mané Vito” e o “Forró em Limoeiro”, o “Forró
em Caruaru” reafirma a temática do forró em torno da alegria, da sensualidade,
da valentia e da violência no salão. A mulher, nessa letra, como em muitas
outras, é vista como elemento que desencadeia confusão. Sua presença no forró
funciona como um fator desagregador.
Fica evidente nessas letras que a mulher, ao sair do espaço privado e
buscar um lugar no espaço público, até então restrito ao homem, quebra as
regras morais da sociedade, provocando uma espécie de desequilíbrio que
resulta sempre em desordem e confusão.
Na letra, a briga, que se mistura ou até mesmo se confunde com a
animação no contexto do forró, mostra outros elementos desagregadores, como,
por exemplo, a presença da polícia, que, nesse caso, para manter a ordem,
desencadeia um processo de violência ainda maior. As relações habitam o entre-
lugar ordem, desordem, bem e mal.
Verifica-se que subjacente a esse discurso encontra-se um outro discurso
sem corpo, que está no imaginário, que traduz a relação do cangaceiro com a
polícia, uma relação de valentia, desconfiança, de confronto, de ódio, um misto
de medo e fascínio, escárnio, sedução e vingança, em meio à confusão, que
começou com um cabra valentão com cara de assassino e em que cabos e
sargentos foram mortos.
No momento da desforra, em que todos são iguais, matar elementos da
polícia comprova mais ainda a capacidade de superação e a premissa de que no
salão o que imperava era a lei dos mais fortes, ou seja, de quem tinha a melhor
estratégia dentro do conflito.
133
O enfrentamento pessoal parece ser uma constante nesta
sociedade onde o monopólio da violência ainda não estaria com
o estado. A atuação precária deste, o privilegiamento por parte
de seus agentes das pessoas influentes ou ricas, abriria espaço e
tornaria uma necessidade que o homem pobre resolvesse com a
sua atuação direta as injustiças de que fosse vítima.
256
Os responsáveis pela confusão, ao serem questionados pelo delegado a
respeito do fato ocorrido que resultou na morte de quatro cabos e um sargento,
tentam se justificar dizendo que não tiveram culpa e, de maneira malandra,
afirmam a fraqueza dos adversários: “Eram cabras morredores, e nesse tempo de
calor, tinham a carne remosa”, ou seja, não possuíam uma natureza cicatrizante
eficiente. Mas o delegado retruca fazendo uso de uma subjetividade carregada
de simbolismo: dizendo ter “fugido do Caruaru”. Em outras palavras, ele
também era nordestino, conhecia muito bem os códigos da valentia e ainda sabia
ser sarcástico, sabia fazer uso da violência verbal.
A letra, composta em uma linguagem oral, evidencia um padrão o-
culto da língua. Nela se acentuam os aspectos fonológicos, marcando, assim,
uma posição de um sujeito hierarquicamente sem o domínio da cultura formal,
como estratégia para expor melhor os sentidos e o segmento social por ele
ocupados, aproximando, destarte, a projeção da música ao seu público receptor.
Além disso, aponta discursivamente para as relações de poder que se
estabelecem entre o cidadão comum e a polícia, sendo que a última, na condição
de representante do Estado, defensora então do patrimônio das elites, cuja
função seria vigiar e punir, desperta a desconfiança do cidadão comum, que não
acredita nas suas práticas, sente-se injustiçado, sem direito a defesa perante as
arbitrariedades encobertas pelo poder.
O avanço da governamentalização do Estado fez com que este penetrasse
paulatinamente no cotidiano do homem pobre, vigiando suas condutas, punindo
256
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Op. cit., 1999. p.173.
134
as suas violências, reprimindo a sua rebeldia por meio de estratégias sofisticadas
de contenção da violência, indo em suas origens.
Se a violência se coloca como um tema para a história, não é por
esta garantir que ela desapareceu, mas é para entendê-la em suas
diferentes formas de manifestação. A história é uma forma de
lidarmos com a violência, inclusive com a nossa própria,
enquanto indivíduos. Da mesma forma, tornar a violência
imaginária, ou seja, aquilo que os homens chamam de real e de
seus problemas reais é possível ser pensado e formulado a
partir de um estoque de imagens, enunciados, conceitos e regras
de enunciação que Foucault chamou de formação discursiva,
presentes numa dada época.
257
Entender a violência expressa dentro do discurso de Nordeste é ponto
nevrálgico, sobretudo porque esse seria um dos aspectos contidos no processo
preconceituoso que se desenvolveu nos centros urbanos em torno do migrante
nordestino, que em muitos momentos passou a ser chamado, de forma negativa e
generalizante, na cidade de São Paulo, de “baiano” e, na cidade do Rio de
Janeiro, de “paraíba”.
Os termos “baiano” e “paraíba” passaram a ser símbolos de mal-gosto,
má-educação e rusticidade. A forma de expressar a violência presente nos
enunciados dos seus objetos de cultura, nas subjetividades dos gestos, nos
lugares utópicos e nas atitudes reais desses migrantes levou a um entendimento
superficial distorcido e estereotipado dos nordestinos, entendimento esse
intrinsecamente relacionado a desníveis sociais, como se a violência não
estivesse de forma ambígua presente na base de toda instituição e estruturação
social.
Assim sendo, o trabalho de observação do processo histórico da
construção dos discursos no cotidiano é ferramenta importante para o processo
de desconstrução destes em suas superficialidades e generalizações, que geram
posturas discriminatórias e de exclusão.
257
Ibidem. p.173.
135
Foi por intermédio do baião, do forró, do trio nordestino, do repente, da
poesia de cordel, de expressões, provérbios e hábitos culturais que os migrantes
registraram memórias, particularidades, mentalidades, ocuparam, perderam e
construíram territórios dentro da cidade, negociaram e absorveram hábitos e
códigos culturais, deslocaram-se socialmente e se fizeram Nordeste.
O forró era e ainda é espaço de sociabilidade. Emergiu como baile e
também como ritmo e dança, e firmou-se enquanto discurso de Nordeste no
entre-lugar campo-cidade. No forró, as músicas eram apreciadas e dançadas,
traduziam o universo migrante: a relação com a cidade e seus estranhamentos; as
trocas de códigos culturais; a revolta, os hábitos, os costumes e as tradições; a
saudade; a forma de dançar e expressar seus sentimentos de alegria e angústia; e
também a forma de entender, interagir e absorver discursos dominantes por meio
da produção de vitimizações, estereotipias e generalizações.
136
CAPÍTULO 3
BRÁS COM FRITAS
137
Este capítulo aborda, por meio da história oral e de fontes musicais, o
processo de emersão da casa de forró de Pedro Sertanejo, seu cotidiano de
trabalho e sociabilidade, suas práticas e estratégias de luta, suas trocas de
saberes e poderes no entre-lugar campo-cidade.
3.1 FORRÓ DO PEDRO SERTANEJO
Eu vou no Forró do Pedro
Eu vou, eu vou
Vou dançar a noite inteira
Eu vou, eu vou
É forró animado
Vem gente de todo o Estado
Para olhar a brincadeira
Eu vou, eu vou
258
Pedro de Almeida e Silva, artisticamente conhecido como Pedro
Sertanejo, nasceu em Euclides da Cunha, Bahia, em 27 de abril de 1927. Seu pai
se chamava Aureliano e era tocador e afinador de sanfona pé-de-bode. Foi com
ele que Pedro Sertanejo aprendeu o ofício de afinar e tocar o instrumento.
Em 1947, Pedro, aos vinte anos de idade, migrou para São Paulo,
chegando à cidade de caminhão, depois de 51 dias de viagem.
259
Nessa cidade
foi guarda civil e montaneiro de bonde.
260
Para inserir-se no mercado da música,
fez um longo percurso: primeiro, veio para São Paulo, em 1947; depois, seguiu
em direção ao Rio de Janeiro, ao lado de sua esposa, dona Noêmia
261
, uma
alagoana de Palmeira Divina. Para sobreviver, exerceu muitas funções no campo
da música e em outras áreas.
258
Reportagem “Dançam Polka, Baião e xaxado. É um Forró”, publicada no Jornal da Tarde, em 30 de
março de 1970. In: TINHORÃO, José Ramos. Os sons que vêm da rua. São Paulo: Ed. 34, 2005.
259
Depoimento de Pedro Sertanejo, em entrevista concedida ao Programa “Canto da Terra”, da Rádio
Educadora, Salvador - Bahia, em 1981.
260
Segundo depoimento de Ari Batera, em entrevista concedida à autora em 25 de nov. de 2009.
261
Segundo depoimento de Oswaldinho do Acordeon, em entrevista concedida à autora em 30 de jun.
de 2006.
138
Ele veio na década de 40 e pouco e ele foi ser policial, ele
pertenceu à guarda militar e depois ele foi trabalhar na casa
Bandolim de Ouro como afinador de instrumento, ele afinava
piano e afinava sanfona, na Rua da Carioca. Ele era mais
operário. Apesar de ele fazer vários programas de rádio tocando
oito baixos, ele era empregado do Chacrinha e do Paulo
Gracindo e ele trabalhou muito na Rádio Nacional no Rio, na
rádio Tupy. Assim, ele acompanhava os calouros nos programas
do Chacrinha, inclusive Chacrinha chamava ele de Pererinha, e
fazia afinação de instrumentos ao mesmo tempo, mas depois
eu acho que não deu certo. Era emprego, digamos assim... free
lance. Ele dava murro em qualquer coisa, pra criar a gente. Ele
veio pra São Paulo, porque o irmão dele morava aqui,
Constantino. Convidou ele pra vir pra e botou na cabeça dele
que aqui era um campo aberto pra o forró, pra montar um baile
porque aqui tinha muito nordestino. Aí ele veio pesquisar e
trouxe a gente na década de 60 e 62.
262
Constata-se que a inserção social e a sobrevivência dos migrantes
nordestinos nos grandes centros urbanos eram experiências de luta constante. O
ingresso na guarda militar ou no exército era uma saída entre tão poucas
oportunidades oferecidas ao migrante sem escolaridade.
Nesse ínterim, Jackson do Pandeiro, na música Meu Enxoval
263
, de
Gordurinha e José Gomes, abordou a temática da dificuldade de inserção do
migrante nordestino nos centros urbanos:
Eu fui para São Paulo procurar trabalho
E não me dei com o frio
Tive que voltar outra vez para o Rio
Mas aqui no Distrito Federá
O calor é de lascar
E veja o meu azar:
Comprei o “Jornal do Brasil”
Emprego tinha mais de mil
E eu não arranjei um só...
Telegrafei para a vovó
Ela tem uma bodega em Recife, Pernambuco
Eu disse pra ela que estou quase maluco
E que não tenho nem onde morar, o quê que há?
262
Depoimento de Oswaldinho do Acordeon, em entrevista concedida à autora em 30 de jun. de 2006.
263
Meu Enxoval (Gordurinha e José Gomes, 1958), ritmo samba coco, 78 rpm, Copacabana.
139
Estou dormindo ao relento, valei-me nossa Senhora!
O meu travesseiro é um “Diário da Noite”
E o resto do corpo fica na “Última Hora”.
Mas se eu voltar, aquela turma lá do Norte me arrasa
Principalmente o povo lá de casa
Vai perguntar por que é que eu fui embora.
Por isso eu vou ficando
Dormindo aqui na porta do Municipal
Com quatro mil-réis eu compro o enxoval:
“Diário da Noite” e a “Última Hora”
Nesta letra encontra-se materializado o momento histórico da década de
1950, quando o Rio de Janeiro era, ainda, o Distrito Federal.
264
Essa cada foi
um marco na história da migração interna brasileira, o período em que grande
parte do contingente populacional que habitava a região Nordeste deslocou-se
para a região Sudeste.
Outro aspecto que se destaca na letra dessa canção é o fato de que as
cidades do Sudeste atraíam os migrantes, mas eram cenários de contrastes
econômicos, uma vez que as desigualdades sociais se faziam cada vez mais
presentes. Mesmo assim, o migrante preferia passar pelas dificuldades materiais
impostas pela cidade do que retornar ao seu ponto de origem. Ele não queria
passar pelo constrangimento de voltar para o local de onde viera sem ter
adquirido o sucesso material almejado, tendo, inclusive, de explicar aos seus
amigos e familiares o motivo do retorno.
Depreende-se da letra dessa canção a imagem que se tinha em relação às
cidades do Sudeste, um eldorado de oportunidades. O sujeito da música
descreve na canção a condição econômica de seus familiares: em Pernambuco,
sua avó era dona de uma bodega, de modo que, se estivesse, não estaria
passando necessidades, sem ter o que comer, nem onde morar, privações que lhe
264
Em 21 de abril de 1960, a cidade do Rio de Janeiro deixou de ser Distrito Federal e a Capital do
Brasil foi transferida para Brasília.
140
foram impostas pelo Rio de Janeiro. Embora no Nordeste ele fizesse parte de um
segmento social menos favorecido, as condições humanas lá eram melhores que
aquelas que tivera de enfrentar no Rio de Janeiro.
A maioria dos migrantes vinha de um processo de êxodo rural e o
tinha formação, nem qualificação específica, o que diminuía a possibilidade de
obter empregos bem remunerados. Mas, como observa a letra da música,
existiam pessoas que já vinham de uma experiência urbana anterior.
Pedro Sertanejo sabia tocar e afinar sanfona, habilidades que aprendeu
com seu pai. Tinha, portanto, um diferencial, uma possibilidade a mais. Podia
atuar como instrumentista, afinador de sanfona ou até mesmo tornar-se um
artista de sucesso como Luiz Gonzaga, o que lhe proporcionaria um
deslocamento sócio-econômico.
Em 1960 Pedro retornou para São Paulo com o intuito de abrir uma casa
de forró, idéia de seu irmão Constantino, que morava na cidade. Os primeiros
locais públicos em que se apresentou como tocador de sanfona foram em casas
de famílias, armazéns de conterrâneos conhecidos, clubes e circos.
265
Foi aí que
Pedro percebeu que abrir uma casa de forró poderia ser um bom negócio:
Quando o velho percebeu esse público, que a própria elite não
percebia, quer dizer todo mundo ali sem o seu chão. Todo
mundo aí está fora da sua terra, essa é a visão do velho né?
ele percebia que cada aniversário de uma criança, que ele ia
tocar juntava bastante gente, aí ele pensou:
Pô esse negócio aqui dá dinheiro.
Parte daí a luta do Pedrão em provar para os nordestinos que
eles não precisavam arrastar a faca nem perder a cabeça lá
dando tiro com as mentalidades de Canudos de conseguir as
coisas na bala e que tinham outras formas de atirar e você
conseguir muito mais, porque aí foi o mesmo que dizer, olha
265
Segundo depoimento de Ari Batera, em entrevista concedida à autora em 25 de nov. de 2009.
141
vocês têm outra forma de ganhar dinheiro, eu vou provar como
se ganha dinheiro e depois vocês podem vir como figurantes.
Daí é que começa um monte de nordestinos se interessar pelo
que é deles, que antes nem eles mesmo se interessavam.
266
Percebe-se nas palavras dos filhos de Pedro Sertanejo Oswaldinho do
Acordeon e Ari Batera – uma preocupação em lembrar
267
e relacionar a figura do
pai a uma imagem de homem que, além de ter sido um empresário com tino
comercial, foi também um lutador pela causa nordestina na cidade de São Paulo,
no sentido de reverter a imagem e o discurso que vinham sendo construídos em
torno do nordestino e que o caracterizavam como desqualificado, rústico e
violento. Eles buscam, por intermédio da memória
268
do pai, afirmar que o For
do Pedro Sertanejo foi um negócio, mas ao mesmo tempo foi também um
espaço comunitário no qual se praticava a solidariedade e se aprendia a valorizar
a cultura nordestina. Ademais, evidenciam ainda que, devido ao trabalho
coletivo de muitos, os nordestinos passaram a ocupar territórios dentro da cidade
como operários, por intermédio de seus objetos de cultura e espaços de
sociabilidade.
Ari Batera, em depoimento, destaca as habilidades de Pedro Sertanejo,
principalmente sua capacidade de percepção dos códigos urbanos. Procurando
assimilar e se adequar aos novos códigos, deixou de lado os códigos rurais,
como aquele de querer conseguir as coisas na bala, com a mentalidade de
266
Depoimento de Ari Batera, em entrevista concedida à autora em 25 de nov. de 2009.
267
A Função da lembrança é conservar o passado do indivíduo na forma que é mais apropriada a ele.
O material indiferente é descartado, o desagradável, alterado, o pouco claro ou confuso simplifica-se
por uma delimitação nítida, o trivial é elevado à hierarquia do insólito; e no fim formou-se um quadro
total, novo, sem o menor desejo consciente de falsificá-lo.” W. Stern. Apud: BOSI, Ecléa. Memória e
sociedade - lembranças de velhos. 3ªed. São Paulo: Cia. das Letras, 1994. p.68.
268
“Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e
idéias de hoje, as experiências do passado. A memória o é sonho, é trabalho. Se assim é, deve-se
duvidar da sobrevivência do passado, ‘tal como foi’, e que se daria no inconsciente de cada sujeito. A
lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão, agora, à nossa disposição, no conjunto
de representações que povoam nossa consciência atual. Por mais nítida que nos pareça a lembrança de
um fato antigo, ela não é a mesma imagem que experimentamos na infância, porque nós não somos os
mesmos de então e porque nossa percepção alterou-se e, com ela, nossas idéias, nossos juízos de
realidade e de valor. O simples fato de lembrar o passado, no presente, exclui a identidade entre as
imagens de um e de outro, e propõe a sua diferença em termos de ponto de vista.” Ibidem. p.55.
142
Canudos”
269
. Em outras palavras, ele quis dizer que Pedro notou que a violência
não seria estratégia eficiente na cidade, e sim a negociação dos códigos, a
qualificação.
270
Não que na cidade não houvesse violência, que esta se fazia
presente em todo lugar, mas na cidade a presença do Estado redesenhava os
códigos de violência.
Pedro, conforme o depoimento oral
271
de Ari Batera, entendeu que a
música era a sua moeda de troca, o seu diferencial. Observando a comunidade
nordestina que estava vivendo na cidade de São Paulo, percebeu na música uma
possibilidade de sobrevivência e inserção; tratava-se, portanto, de uma saída
possível e criativa.
Nos depoimentos é possível perceber a existência de uma carga de
sentido emocional muito presente nas lembranças, bem como uma necessidade
de justificar e atualizar o significado da memória do pai ao tempo presente, às
vezes enaltecendo a sua trajetória, às vezes denotando afeto, respeito e orgulho.
“A memória poderá ser conservação ou elaboração do passado, mesmo porque o
seu lugar na vida do homem acha-se a meio caminho entre o instinto, que se
repete sempre, e a inteligência, que é capaz de inovar.”
272
Nesse sentido, Ari Batera vem escrevendo a história de vida do Pedro
Sertanejo e do forró, denotando sua preocupação com a memória
273
e com a obra
deixada pelo pai. Segundo ele,
269
Quando Ari Batera faz uso da frase “mentalidade de Canudos”, ele está abordando metaforicamente
a existência de uma cultura rural, na qual os menos favorecidos, diante das injustiças sociais e
desigualdades no campo, faziam justiça com as próprias mãos, referindo-se à cultura da violência
direta e corporal que se trazia do campo para a cidade.
270
Essa “qualificação” não se refere a uma preparação escolar formal culta, mas a uma qualificação
sutil das capacitações intelectuais do homem, fosse por meio da música ou do forró enquanto um
negócio em si.
271
“Fontes orais, contam-nos não apenas o que o povo fez, mas o que queria fazer, o que acreditava
estar fazendo e o que agora pensa que fez.” PORTELLI, Alessandro. “O que faz a história oral
diferente”. Projeto História. Revista do Programa de Estudos Pós-graduados em História e do
Departamento de História da PUC/SP. n.14. São Paulo, 1981. p.31.
272
W. Stern. Apud: BOSI, Ecléa. Op. cit., 1994. p.68.
273
“Há um modo de viver os fatos da história, um modo de sofrê-los na carne que os torna indeléveis e
os mistura com o cotidiano, a tal ponto que já não seria fácil distinguir a memória histórica da
memória familiar e pessoal.” Ibidem. p.464.
143
Pedro Sertanejo não queria ser confundido e nem concordava
com a imagem de violência, atribuída aos nortistas e
nordestinos, mesmo porque a sua forma de fazer amizade era
com a sanfona de oito baixos e a violência era uma herança
deixada por nossos invasores carinhosamente chamados de
colonizadores que chegaram com suas tropas nos sertões
nordestinos. É primeiro desafio eliminar esse estigma. Chegava
aqui em 1947 pelos dedos de Pedro o forró pé-de-serra, com a
sanfona de oito baixos, ganhando aos poucos a simpatia dos
sulistas.
274
Reforçando o pensamento de exclusão em torno do migrante em São
Paulo, os representantes das elites urbanas caracterizavam os nordestinos como
violentos e o Nordeste como região em “crise e decadente”, sem, no entanto,
aprofundar a análise do processo de desigualdade social sofrido por esses
sujeitos, considerando que eles eram subjugados na sua própria região pelas
elites rurais.
Ari Batera, em seu discurso, correlaciona a memória
275
de Pedro à luta
pela desconstrução da imagem de violência relacionada ao migrante nordestino.
Ele destaca que foi por intermédio da música que Pedro encontrou uma forma de
fazer amizades.
Guardadas as devidas proporções em relação aos depoimentos aqui
colocados, pretende-se observar a trajetória de Pedro e da emersão de sua casa
de forró não enquanto uma estratégia elaborada cartesianamente, mas enquanto
um processo cotidiano no qual tentativas experimentadas mediante a arte de
fazer foram dando corpo à sua história de vida, às suas conquistas materiais e de
poder.
274
Trecho dos escritos de Ari Batera, filho de Pedro Sertanejo, que têm como proposta virar um livro
sobre a vida de Pedro Sertanejo. Trecho concedido por ele para utilização neste trabalho. Data:
25/11/2006.
275
“Mas o realmente importante é não ser a memória apenas um depositário passivo de fatos, mas
também um processo ativo de criação de significações. Assim, a utilidade específica das fontes orais
para o historiador repousa não tanto em suas habilidades de preservar o passado quanto nas muitas
mudanças forjadas pela memória. Estas modificações revelam o esforço dos narradores em buscar
sentido no passado e dar forma às suas vidas, e colocar a entrevista e a narração em seu contexto
histórico.” PORTELLI, Alessandro. Op. cit., 1981. p.33.
144
Aspectos externos coletivos também contribuíram com o processo
individual de Pedro. Os migrantes que chegavam à cidade ainda não tinham,
naquele momento histórico, espaços de lazer, sobretudo espaços que os
conectassem aos seus sentimentos e às suas sensibilidades. O território da cidade
ainda era algo novo e a idéia de abrir um forró contou com esse aspecto em
potencial a seu favor, afinal, Mudar é perder uma parte de si mesmo; é deixar
para trás lembranças que precisam desse ambiente para sobreviver”.
276
A princípio, os migrantes que estavam nos centros urbanos tinham
acesso à música produzida por Luiz Gonzaga e outros artistas representantes do
Nordeste por meio dos auto-falantes públicos e dos circos que acampavam nas
regiões periféricas das cidades ou nas praças, onde também costumavam rever
amigos e pedir notícias de parentes.
277
Primeiramente, Pedro tocou em festas realizadas por nordestinos em
casas de família, no bairro da Vila Sônia, e na garagem do Pedro, seu
conterrâneo. Na seqüência, por volta de 1963, ele realizou um outro forró na
União Mútua, na Vila Carioca, tocou em circos e clubes e, ao mesmo tempo, se
tornou dono da gravadora independente “Cantagalo”.
Em 1966, Pedro abriu o seu mais bem sucedido e conhecido forró, o qual
ficou famoso com o nome de Forró do Pedro, situado à Rua Catumbi, número
183, no Brás:
Ele começa na Vila Sônia, na casa de amigos, depois ele vem
pra Vila carioca aonde ele começa a fazer o forró de quinze em
quinze dias e enquanto isso ele procurava esse espaço definitivo
que termina sendo o da catumbi. Então assim o forró era uma
vez a cada... [ele gesticula falando com o pensamento, buscando
a informação na memória] E o público toda vez que ele fazia,
entrava na fila. Então, que isso tinha que ser contínuo. Só que
o maluco que era dono da casa, do clube, pensou: achei a mina
de ouro! Aí, pé no traseiro de seu Pedro Sertanejo. que ele se
esqueceu que Pedro Sertanejo levou a sanfoninha com ele, e o
cara tentou fazer o forró lá. que o público cadê? Nenhuma
276
BOSI, Ecléa. Op. cit., 1994. p.436.
277
TINHORÃO, José Ramos. Op. cit., 2005. p.219.
145
alma no outro dia. Quem gosta do forró, gosta do forró, quem é
nordestino sabe. É quem vai ouvir a língua deles. Pedrão,
através de um programa de Rádio que ele tinha na época, ele
então convida o pessoal. foi um abraço, em menos de um
mês tinha mais de trezentos forrós em São Paulo. A Catumbi
foi a sede do forró.
278
Pedro, na sua trajetória de tentativas de sobrevivência, abriu a sua casa
de forró contando apenas com o espaço de divulgação de um programa de rádio
que fazia (na rádio ABC). O sucesso do forró foi tanto que inúmeros outros
espaços de música nordestina, em suas possíveis multiplicidades, começaram a
surgir na cidade, configurando lugares das metáforas e dos símbolos, lugares de
convergências de culturas diversas.
279
Revelando o sucesso do Forró de Pedro Sertanejo, a partir da
segunda metade da década de 1960, foram surgindo novos
salões de danças para nordestinos, já então aproveitando-se de
um fator inesperado: a ampliação da venda de aparelhos de
televisão pelo crediário, garantindo às famílias da baixa classe
média a conquista de diversão em casa, esvaziou-se os cinemas
de bairro, levando seus proprietários a alugá-los para forró,
capazes de abrigar mais de dois mil freqüentadores por noite.
Espalhados pelos bairros proletários de São Paulo, exatamente
onde se concentra a população de nordestinos, os forrós se
multiplicaram em poucos anos, e ao iniciar-se o ano de 1974
passavam de meia centena.
280
Abrir um forró e dar continuidade ao negócio, contudo, não eram tarefas
fáceis, porque exigiam competência administrativa, que Pedro foi adquirindo no
dia-a-dia, vencendo as dificuldades que porventura fossem surgindo:
Nós abríamos o salão que cabia 4000 pares, na Rua Catumbi.
Então nós tínhamos que pedir alvará. que eles não davam
alvará, eles dificultavam. Qualquer acidente que houvesse
278
Depoimento de Ari Batera, em entrevista concedida à autora em 25 de nov. de 2009.
279
[...] as fronteiras entre países e as grandes cidades são contextos que condicionam o modo como a
hibridização se processa, podendo ocorrer de modo não planejado ou como resultado do imprevisto de
processos migratórios, turísticos e de intercâmbio econômico ou comunicacional.” CANCLINI, Nestor
G. Culturas híbridas. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2003.
280
TINHORÃO, José Ramos. Op. cit., 2005. p.221.
146
150 metros do salão era o baiano quem pagava então meu pai
toda segunda-feira era intimado em uma delegacia pra responder
inquérito. Eles achavam que dois baianos juntos dava briga,
dava morte, era na época de lampião, risca faca. E três baianos
juntos era pior. Eles mandavam até o exército pro nosso salão.
281
Portanto, manter o forró foi uma batalha conquistada com o tempo e com
persistência. Negociando e ganhando aos poucos a confiança dos representantes
do Estado e dos policiais, Pedro conseguiu legalizar a sua casa de forró em meio
a preconceitos e inquéritos.
O Forró do Pedro funcionava nos finais de semana, sendo que aos
sábados abria às dez da noite e fechava às quatro da manhã, e aos domingos
começava às dezessete horas e encerrava as atividades mais cedo, por volta das
vinte horas. Pode ser considerado como a primeira casa do gênero aberta na
cidade de São Paulo. Depois, muitos outros forrós foram surgindo, criando
opções e possibilidades de diversão e expressão para o migrante nordestino.
Como esses forrós, porém, comportavam sica de dança,
cantadores de desafios, interessados também na clientela de
conterrâneos, passaram a procurar os bares das proximidades
desses salões para fazer suas cantorias. Em São Paulo esse
encontro de cantadores se deu, desde o início da década de 1970,
no chamado Recanto dos Poetas Repentistas, um bar do Largo
da Concórdia, cujo proprietário, o Espanhol Henrique Romero,
funcionava desde os primeiros anos de 1960 como uma espécie
de protetor da cultura nordestina em São Paulo.
282
Os acordos para a realização dos shows no Forró do Pedro se davam de
maneira verbal: “Não existia caneta na conversa”, ou seja, não havia contratos.
“Era por telefone, vou tal dia, viu Pedro? meu pai anunciava. Nunca houve
furo.”
283
Verifica-se, destarte, o grande valor ético que era atribuído à palavra
naquele momento.
281
Depoimento de Oswaldinho do Acordeon, em entrevista concedida à autora em 30 de jun. de 2006.
282
TINHORÃO, José Ramos. Op. cit., 2005. p.221.
283
Depoimento de Oswaldinho do Acordeon, em entrevista concedida à autora em 30 de jun. de 2006.
147
Paulatinamente, os migrantes ocuparam territórios
284
na cidade de São
Paulo, tais como: o bairro do Brás, o Largo da Concórdia, a região do ABC
Paulista, o bairro de Santo Amaro. Todos esses locais foram cedendo espaços
para a germinação da semente desses sujeitos históricos e suas experiências.
Segundo depoimento, Pedro, quando abriu o forró, pensou nos mínimos
detalhes, de modo que o bairro onde foi instalado ficava estrategicamente bem
situado na cidade: nas imediações da estação de trem do Norte, próximo à
Hospedaria dos Migrantes e ao Largo da Concórdia. Além disso, o Brás
285
era
um bairro de circulação, de chegada e de moradia de muitos migrantes
nordestinos.
As mudanças no bairro refletem diferentes etapas do processo
capitalista no Brasil, processos que moldaram o espaço urbano e
se representaram por diferentes configurações. Até os anos 20
deste século, bairro de imigrantes notadamente italianos, com
suas habitações operárias, cortiços, hábitos peculiares. Nas
décadas de 30 e 40 passou por grande apogeu comercial. Seu
esvaziamento e a chamada “deterioração” datam da década de
50, por efeito da metrópole industrial, das alterações dos seus
sistemas viários, e pelos fluxos migratórios nacionais, que
marcaram o começo da nordestinação. Com a implantação do
metrô, nos meados da década de 70, o bairro se descaracteriza,
recrudesce o encortiçamento e seu feitio cultural é nordestino,
com suas feiras, seus ambulantes.
286
284
“O território é sempre um reordenamento do espaço a partir de um trabalho realizado pelo homem e
de sua cultura.” VIDAL, Rodrigo. “A cidade e seu território através do ordenamento urbano em
Santiago do Chile”. Projeto História. Revista do Programa de Estudos Pós-graduados em História e do
Departamento de História da PUC/SP. n.14. São Paulo, 1997. p.14.
285
“O bairro desde o final do século XIX possuía um histórico com populações migrantes, Portugueses
e Italianos. Na década de 1950 o bairro passa então ser habitado e vivenciado pelos novos migrantes,
os nordestinos. Desde então foi um bairro onde os menos favorecidos em luta pela inserção e ascensão
social viveram parte de suas histórias na cidade de São Paulo. Um bairro que transitou entre o lazer e o
trabalho.” GOMES, Sueli de Castro. Do comércio de retalhos à feira de sul anca. Uma inserção dos
migrantes em São Paulo. Dissertação (Mestrado em Geografia), USP, São Paulo, 2002.
286
VÉRAS, Maura Pardini Bicudo. “Cortiços no Brás: Velhas e novas formas de habitação popular na
São Paulo industrial”. Análise Social. Revista do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de
Lisboa. vol.XXIX (127). Lisboa, Portugal, 1994. p.600. Disponível em: <http://analisesocial.ics.ul.pt/
documentos/1223377243L0wKS5ni5Kg92VT1.pdf>. Acesso em: 10/03/2009.
148
O Brás tratava-se de uma região com grande concentração de fábricas
287
e empresas que utilizavam a mão-de-obra desses migrantes.
288
Pedro, conforme
seu filho Oswaldinho do Acordeon, teve a sagacidade de perceber as vantagens
que esse bairro oferecia para o funcionamento de sua casa de forró.
Meu pai tinha uma visão na qual ele escolheu o ponto certo para
se colocar o forró. Primeiro ponto, ele tinha que botar perto de
operário, então todo forró do meu pai era perto de fábrica. Era
perto de fábrica ele ia pra lá. Os músicos que meu pai tinha
contratado da casa, eram 28 artistas, entre eles Dominguinhos,
Jackson do Pandeiro, Genival Lacerda, Luiz Gonzaga que de 15
em 15 dias ele ia tocar lá, ele era praticamente empregado de
meu pai. Teve uma época que o forró, que o próprio Luiz
Gonzaga ficou em baixa e meu pai sustentou muito essa onda
dele. Então tem coisas a ser reveladas aqui que não vem ao caso,
mas meu pai foi assim um berço de trabalho pra todo esse
pessoal filho de Januário, Gonzaga que era irmão dele, então
toda mundo foi sobreviver no forró do meu pai.
289
Desse modo, observa-se que no momento em que Luiz Gonzaga estava
sendo referenciado por artistas como Gilberto Gil pelos idos da década de
1970 , algum tempo havia perdido espaço no mercado de música
nacional
290
e não atuava com o mesmo sucesso da década de 1950. Então, a
partir de 1966, ele teve no Forró do Pedro Sertanejo local de trabalho constante
na cidade de São Paulo.
287
Sobre o bairro do Brás: “Quando não havia festa, as ruas do bairro mais populoso da cidade
mostravam as suas chaminés gigantescas’, revelando sua condição de bairro industrial e operário.”
GONÇALVES, Camila Koshiba. Música em 78 rotações. “Discos a todos os preços” na São Paulo dos
anos 30. Dissertação (Mestrado em História Social), USP, São Paulo, 2006. p.100.
288
Ver: MACHADO, Antônio de Alcântara. Brás, Bexiga e Barra Funda. Disponível em:
<http://www.biblio.com.br/defaultz.asp?link=http://www.biblio.com.br/conteudo/alcantaramachado/br
asbexigabarrafunda.htm>. Acesso em: 10/02/2009.
289
Depoimento de Oswaldinho do Acordeon, em entrevista concedida à autora em 30 de jun. de 2006.
290
“O Ostracismos de Luiz Gonzaga se restringiam à mídia e à classe média. Porém o ‘povão’
continuava firme em sua adoração pelo sanfoneiro. Dominguinhos sempre esteve ao lado de Luiz
Gonzaga. Como uma gangorra, sua carreira passou a se ressentir dos altos e baixos. Dominguinhos
relembra: Subia e descia. Aí ele ameaçava parar. Mas no dia seguinte estava indo para o Nordeste para
tocar. Fazia isso constantemente.” ECHEVERRIA, Regina. Gonzaguinha e Gonzagão. Rio de Janeiro:
Ediouro, 2006. p.126.
149
[...] dentro de um carro Open Rallye, num dia de chuviscar,
desses de agosto paulista, frio, andando pelas ruas do Brás,
voltando de um forró no salão do Pedro Sertanejo, Luís Gonzaga
está conversando com quem dirige. No banco de trás estão sua
sanfona e um troféu que acaba de ganhar no forró pelos 30 anos
de atividade. Luís o aparenta os 59 anos que tinha no ano
passado - embora estivesse cansado: tocou durante umas três
horas. A imagem é preto e branco bem contrastado e cheia de
grão. É meia-noite e meia. A câmera vai pegando em segundo
plano imagens da rua, passando em frente a estação do norte, o
largo da concórdia, até entrar numa travessa mal iluminada,
calçada de paralelepípedos. O carro pára na frente de um hotel
modesto.
Gonzaga então fala:
- Eu quando venho a São Paulo sozinho eu fico sempre nesse
hotel no Brás, que aqui meu povo... Eu como farinha... E
quando vem a família é que eu fico na cidade, Othon Palace...
291
Luiz Gonzaga era muito próximo de Pedro Sertanejo
292
e apresentava-se
sempre na sua casa de forró. Havia nessa amizade possibilidades de ganho para
ambas as partes. Ambos tinham como perspectiva e pontos em comum a luta
pela sobrevivência e a afirmação da cultura nordestina por intermédio da
música. Eles acreditavam na música enquanto estratégia de inserção, enquanto
território movediço, enquanto brecha social.
No fragmento supracitado nota-se que se faz referência à região do Brás,
à Estação do Norte, ao Largo da Concórdia, territórios dentro da cidade que
foram ganhando perfil nordestino, sendo impregnados por sua cultura e por seus
sujeitos. Gonzaga chegou a declarar a necessidade de ficar junto aos seus
conterrâneos. Quando vinha sozinho para São Paulo, hospedava-se em um hotel
291
Bondinho. n.34. São Paulo: Arte e Comunicação, 3/2 a 16/2 de 1972. Revista consultada no Museu
de Imagem e Som do Rio de Janeiro. Essa matéria conta o encontro entre Luiz Gonzaga, Gilberto Gil e
o poeta Capinam.
292
Pedro seguia os passos de Luiz Gonzaga na afirmação da cultura nordestina. E o que se coloca a
respeito das canções de Luiz Gonzaga também serve para as músicas de Pedro Sertanejo, para o seu
forró e sua gravadora: “O espaço desenhado por suas canções e quase sempre o nordeste e, no
nordeste o do sertão. Este espaço abstrato surge abordado por seus temas e imagens já catalisadas,
ligados a própria produção cultural popular: a seca, as retiradas, as experiências de chuva, a devoção
aos santos, o cangaço a valentia popular, a questão da honra, as cidades de onde vieram e as festas
populares. [...] O tema da saudade é constante em sua música. Saudade da terra, do lugar, dos amores,
da família, dos animais, do roçado. O nordeste parece sempre estar no passado, na memória, evocado
saudosamente.” ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras
150
simples no Brás, porque ali se sentia em casa, estava próximo aos códigos do
Nordeste: ouvia o sotaque, saboreava a culinária, principalmente a farinha de
mandioca, alimento imprescindível na mesa de um nordestino.
Quando o Forró do Pedro foi inaugurado, a cena da música nordestina
vinha passando por momentos contidos dentro do mercado nacional. Nesse
momento, encontrava repercussão nas comunidades das quais um dia ascendeu,
no Nordeste e nas periferias das cidades.
Luiz Gonzaga e seus seguidores, que tinham feito parte do cast
das grandes emissoras nacionais, e cantado para os públicos de
todas as classes sociais, agora encontravam espaço restrito
nas rádios temáticas, junto a uma determinada audiência.
293
Esse acontecimento foi interpretado por artistas como Luiz Gonzaga,
Jackson do Pandeiro e muitos outros como conseqüência do surgimento de
novas vertentes musicais no cenário nacional, como a Bossa Nova e a Jovem
Guarda, que trouxeram novos fatos à cena hegemônica dos meios de
comunicação brasileiros.
A segunda fase da música popular brasileira começa com o
surgimento da bossa-nova, em 1958, e se estende ao final da era
dos festivais, em 1972, passando pelo tropicalismo e outras
tendências. É uma fase de renovação e modernização, que
introduz novos estilos de composição, harmonização e
interpretação.
294
Aspectos de modernidade passaram a ser incorporados pelos centros
urbanos e por segmentos sociais dentro da cidade que não tinham tanta
identificação com a música produzida pelos artistas nordestinos e com os temas
“regionais” de suas canções, que denotavam o campo e, portanto, o
artes. São Paulo: Cortez, 1999. p.160-1.
293
DREYFUS, Dominique. Vida do viajante: A saga de Luiz Gonzaga. São Paulo: Ed. 34, 1996.
p.229.
294
MELLO, Zuza Homem de; SEVERIANO, Jairo. A Canção no tempo - 85 anos de músicas
brasileiras. vol.2 - 1958-1985. São Paulo: Ed. 34, 2006. p.15.
151
regionalismo, o atraso e o antiquado. Nas letras de canções e nas capas de
discos, os artistas registraram suas interpretações, suas angústias e suas
insatisfações, que, ao mesmo tempo, configuravam tentativas de diálogo com os
novos gêneros e com as mudanças do período histórico.
Em 1966, Jackson do Pandeiro gravou a música “Forró Quentinho”,
lançada no disco “O cabra da Peste” (pela gravadora Continental), em cuja letra
ele fez um comparativo entre o forró e a bossa nova, dizendo que o Forró
Quentinho equivalia à bossa nova no sertão. Ele situa o território do forró,
enquanto rural e periférico, no contexto nacional neste período histórico.
Forró quentinho
Se perguntar quem é que está chamando
Faço o favor de ficar bem quentinho
Chama Maria, Chama Rita e Chica
Pra dançar comigo o Forró quentinho
Forró quentinho, forró quentinho
Forró quentinho, forró quentinho
Toque mais um bocadinho
Forró quentinho que dança gostosa
É Bossa Nova lá no meu sertão
Ele é parente da Rumba e do mambo
E é bem parecido com samba e baião
Em 1967, Gonzaga gravou o “Xote dos cabeludos” (José Clementino e
Luiz Gonzaga), lançado no disco “Oi Eu Aqui de Novo” (pela gravadora RCA),
expressando seus sentimentos com relação à juventude urbana, ou seja,
demonstrando sua insatisfação, que acreditava que era essa nova juventude
que não mais queria escutar as suas músicas. Nessa letra Gonzaga mostrava seu
estranhamento e o choque cultural em relação ao comportamento da juventude
das décadas de 1960 e 1970.
Xote dos cabeludos
Cabra do cabelo grande
Cinturinha de pilão
152
Calça justa bem cintada
Custeleta bem fechada
Salto alto, fivelão
Cabra que usa pulseira
No pescoço medalhão
Cabra com esse jeitinho
No sertão de meu padrinho
Cabra assim não tem vez não.
No sertão de cabra macho
quem brigou com Lampião
brigou contra Silvino
quem enfrenta batalhão
amansa burro bravo
pega cobra com a mão
trabalha sol a sol
de noite vai pro sermão
rezar pra Padre Ciço
falar com Frei Damião
No sertão de gente assim
No sertão de gente assim
Cabeludo tem vez não
Em 1968, Luiz Gonzaga, no disco intitulado “Canaã” (lançado pela
RCA), gravou Canto Sem Protesto” (Luiz Queiroga e Luiz Gonzaga). Canaã”
foi um disco recheado de insatisfações nas letras e em que Gonzaga deixou
transparecer críticas às mudanças pelas quais a sociedade e a cena musical
vinham passando, demonstrando ser um sertanejo conservador. Ele dizia que a
sua música não era de protesto, mas sim feita para alegrar. Em contrapartida,
nessa época, as músicas de protesto estavam fazendo muito sucesso.
Canto sem protesto
Pode dizer que eu não presto
Que não presta o meu cantar
Meu canto não tem protesto
Meu canto é pra alegrar
Quem tem ódio é que não canta
E nem quer ouvir cantar
Muita vez a raiva é tanta
Que não pode nem falar
Eu por mim sou diferente
Tenho alegre o coração
Por isso canto contente
153
Meu canto é de louvação
Pode dizer que eu não presto
Que não presta o meu cantar
Meu canto não tem protesto
Meu canto é pra alegrar
Desde o tempo de Pilatos
Que Jesus já protestava
Só que ele não cantava
Falava as multidões
Desde lá tem coisa errada
Que é preciso protestar
Mas não na minha toada
Meu canto é pra alegrar
Foi nesse cenário de desencantamento por parte dos artistas nordestinos,
a exemplo de Gonzaga, que Pedro Sertanejo iniciou sua batalha para abrir seu
forró na cidade de São Paulo, junto à comunidade migrante nordestina, no bairro
do Brás.
3.2 EM CENA: CENÁRIO, FIGURINO E PROTAGONISTAS
Além de escolher uma localização dentro da cidade para a instalação do
seu Forró, Pedro Sertanejo aclimatou o ambiente do salão e foi percebendo na
prática cotidiana estratégias para estabelecer um melhor controle do público no
baile, público esse que no auge do forró, na década de 1970, chegou a registrar
quatro mil pessoas.
Como tinha um preconceito de que muito nordestino junto podia
sair uma briga e podia sair morte, então meu pai não colocava
luz negra naquela época, ele colocava luz fluorescente. Não
ficava escuro não. Era pra ficar bem claro pra não ter briga, pra
poder ver todo mundo e saber quem tava brigando. E outra coisa
os nordestinos estavam acostumados com isso. Com luz clara.
Tanto que quando chegava onze horas da noite, meia noite eles
chegavam de óculos escuros, era muito engraçado, chegavam
pra constar. Abriu muita ótica na rua Catumbi eles adoravam um
óculos escuro, venderam muito óculos escuro era o Green Paul,
camisa florida, calça vermelha e óculos Ray Ban. era tudo
feito às claras. Além de não correr o perigo de não ocorrer muita
briga. Sempre saía uma brigazinha, mas também eles não
154
estavam acostumados com esse negócio de luz negra, não. Luz
negra era para os playboyzinhos da época, então meu pai
deixava bem à vontade.
295
Nesse depoimento
296
Oswaldinho do Acordeon aborda a questão da
estratégia de controle da violência no salão, relatando que o ambiente era
iluminado com lâmpadas fluorescentes, para que se tivesse uma boa visibilidade
de tudo que se passava: o atrito dos corpos na dança, os excessos de bebidas, até
mesmo os possíveis conflitos, etc. Segundo ele, não era espaço para luz
negra”, muito comum na época nos espaços de dança freqüentados por jovens
inseridos nos seguimentos urbanos da cidade, “os playboyzinhos”. A “luz
negra”, além de ser mais dispendiosa, poderia causar estranhamento, que os
migrantes não estavam acostumados a freqüentar locais pouco iluminados, e
ainda dificultar o controle do ambiente.
Oswaldinho aborda também aspectos relacionados ao comportamento e
ao gosto do migrante nordestino, mencionando que costumava usar acessórios
como óculos escuros Ray Ban (falsificados, haja vista seu baixo poder de
compra), mesmo durante a noite. Usavam também camisas floridas e calças
coloridas. Essa era a moda no salão, a forma encontrada pelos migrantes de
recombinar os padrões de consumo em seus momentos festivos.
O forró funcionava como uma vitrine, na qual os nordestinos exibiam os
bens de consumo que haviam conseguido adquirir. Dessa forma, os
consumidores reinventavam maneiras de usar os produtos comprados nas lojas
de departamentos ou supermercados.
297
295
Depoimento de Oswaldinho do Acordeon, em entrevista concedida à autora em 30 de jun. de 2006.
296
“A responsabilidade pela interpretação, é óbvio, não chega a reivindicar, para nossas interpretações,
acesso completo e exclusivo de verdade. Tem sido praxe, desde o início, na história oral, reproduzir as
palavras textuais das fontes [...] Assim sejam quais forem as intenções que tivermos, o trabalho que
realizamos adquire uma dimensão dialógica intrínseca, na qual nossas interpretações e explicações
(expressamente claras) coexistem com as interpretações que os leitores delas fazem.” PORTELLI,
Alessandro. “Tentando aprender um pouquinho - Algumas reflexões sobre a ética na história oral”.
Projeto História. Revista do Programa de Estudos Pós-graduados em História e do Departamento de
História da PUC/SP. n.15. São Paulo, 1997. p.27.
297
“Onde a filosofia consumista via consumo passivo de produtos industrializados, volumes de
compras que deviam crescer ou partes do mercado a deslocar-se de uma marca para a outra, onde o
155
Na capa da coletânea pós-morte “Luiz Gonzaga, 50 anos de chão - de
1947 a 1987”, lançada em 1988, pela gravadora RCA, observa-se uma imagem
do artista usando chapéu de cangaceiro, inspirado no chapéu de Lampião, e
óculos Ray Ban, contrastando tradição e modernidade. Em “Festa no Sertão”,
LP de Dominguinhos, produzido pela Cantagalo, o sanfoneiro aparece na capa
com camisa florida, que era moda na cidade entre os trabalhadores que haviam
migrado do campo, moda essa que imperava no Forró do Pedro.
Desse modo, as imagens das capas e seus enunciados estão voltados para
uma representação dos artistas e carregados de sentidos e estratégias. A capa
gerava uma identificação no receptor, que via naquele artista uma pessoa
semelhante, sobretudo nos gostos.
Figura 13 - Foto que ilustra a capa do LP “Luiz Gonzaga - 50 anos de chão”.
vocabulário Marxista falava em termos de exploração, de comportamentos e produtos impostos, de
massificação e uniformização, Michel de Certeau propunha como primeiro postulado a atividade
criadora dos praticantes do ordinário, encarregando-se, para a pesquisa em curso, de pôr em evidência
‘as maneiras de fazer’ e de lhes elaborar uma primeira formalização teórica, coisa que ele dava o nome
de ‘formalidade’ das práticas.” CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano. Morar, Cozinhar.
156
Figura 14 - Capa do LP “Festa no Sertão”, de Dominguinhos, lançado em 1973.
Abdias, no disco “Forró ao Vivo”, produzido, em 1969, pela CBS, e
Jackson do Pandeiro, em “O dono do Forró”, de 1971, também CBS,
estamparam em suas capas imagens de forrós, justamente no período histórico
(1960 e 1970) da emersão de inúmeras casas de forró na cidade de São Paulo.
Nestas capas podem-se observar casais dançando, denotando movimento.
Ratificando as afirmações de Oswaldinho do Acordeon, nota-se que o ambiente
era bastante iluminado, possibilitando visualizar muito bem as pessoas
dançando, o vestuário e o gestual no salão.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2003. p.18.
157
Figura 15 - Capa do LP “Forró ao Vivo”, de Abdias, 1969.
Figura 16 - Capa do LP “O Dono do Forró”, de Jackson do Pandeiro, 1971.
Ainda no que diz respeito ao cenário, ao figurino e ao comportamento
das pessoas nas casas de forró, esses dados e mais alguns podem ser
confirmados e desdobrados também em se considerando uma composição de
158
Dominguinhos
298
com parceria de Anastácia em apresentação no Programa
“Ensaio”, da TV Cultura
299
:
Pirurimpurim purim purim, Pirurimpurim purim purim.
[A sanfona ao fundo fazendo o acompanhamento instrumental da trilha
sonora para a história que Dominguinhos começaria a contar]
Essa musiquinha chama-se enchendo o saco.
O sanfoneirinho fica a noite todinha nessa pisada.
Não adianta ele inventar, que se ele inventar tá desempregado!
E ele fica ali no forrozinho de Pedro Sertanejo, ganhando os oitenta mil reis
dele. Pedro!
Pedro paga mal que só o diabo.
Até hoje!
[Imita Pedro]. Ê fio não dá!
“Enchendo o Saco” foi o título dado por Dominguinhos e Anastácia a
uma narrativa musicada que se passava no Forró do Pedro Sertanejo, na cidade
de São Paulo, narrativa essa em que os compositores faziam referência a uma
forma peculiar de se controlar o movimento das pessoas em um salão. Em uma
casa de forró repleta de nordestinos, o ritmo também era uma forma de controle.
Um fraseado instrumental executado na sanfona, sem variação, repetindo uma
linha melódica o tempo todo, obrigava os dançarinos a manterem o passo, ou
seja, não possibilitava que fizessem variações na dança. A essa prática de ajuste
entre música e dança Dominguinhos chamou na composição de “Enchendo o
saco”.
Em relação a isso, Oswaldinho colocou:
É a visão de quem toca no salão. O termômetro é tocar pra
dançar, então não pode tocar nem rápido nem lento, é uma coisa
que não importava quem estivesse cantando no forró do meu
pai. Então a nossa visão era praticamente essa, tocar pra dançar.
298
“Dominguinhos tinha saído do trio nordestino, e agora estava trabalhando com o rei do Baião. Era
seu chofer e a segunda sanfona no palco. Foi durante essa turnê que Dominguinhos e Anastácia se
conheceram, dando início a uma história de amor e de parceria que iria fornecer bom repertório a
muitos cantores nordestinos ou não, entre os quais Luiz Gonzaga que, no LP Sertão 70, integrou o seu
repertório, como primeira parceria do casal, ‘Já vou mãe’.” DREYFUS, Dominique. Op. cit., 1996.
p.246.
299
Programa “Ensaio”, gravado pela TV Cultura, em 1990 - acervo particular de Dominguinhos.
159
O nordestino, ele queria dançar, então não importava quem
estivesse cantando não. E procurar fazer, também trazer artistas
do gosto deles. Eu me lembro que na época o ídolo deles era
Waldique Soriano. parava a rua pra ele chegar, eles
choravam. E nós que tínhamos uma escola de baile, que é
diferente de hoje, que eu observo. Quando saía briga nós não
podíamos parar de tocar. Porque se você parar de tocar todo
mundo briga, todo mundo tirava uma casquinha. Então nós não
parávamos de tocar, porque o pessoal que estava dançando
não estava nem pra quem estava brigando. Porque se vo
parar porque brigando todo mundo vai bater naquele cara.
E generaliza, vira uma briga violenta. Isso uma certa feita os
caras não tinham experiência, foi em um forró na Mooca, o
cara foi parar de tocar, virou uma briga generalizada, saiu até
morte. Então meu pai tinha essa visão. Quando o pessoal está
dançando, principalmente nordestino, eles não estão nem aí, a
briga não é com eles mesmo! Era proibido parar de tocar, até dar
tempo de chegar os seguranças e separar.
300
Destarte, evidencia-se que o fazer cotidiano dos músicos na casa de forró
levou à constatação de alguns métodos de controle da violência no salão por
intermédio da música, que não podia ser nem rápida demais, nem lenta demais.
Eram músicos que tinham a vivência do baile, de tocar para a dança. Quando
ocorria uma briga, a regra era não parar de tocar, pois se a música parasse o foco
deixaria de ser a dança e passaria a ser a briga, o que transformaria o salão em
um verdadeiro campo de batalha.
Às vezes o Forró do Pedro convidava artistas com que o público gostava
de cantar junto, como Waldique Soriano e Ângela Maria.
301
Entretanto, em geral,
o perfil musical do forró era pautado em repertório para se dançar. O repertório
era constituído, ordinariamente, de forró pé-de-serra instrumental e cantado.
Só quem fazia o instrumental era eu, meu pai e um músico
chamado Léo Nedy que tocava Sax, Zezinho um sanfoneiro
pernambucano e Toco Preto que tocava cavaquinho, esses eram
os instrumentais da casa. Agora todo mundo que chegava era
cantado.
302
300
Depoimento de Oswaldinho do Acordeon, em entrevista concedida à autora em 30 de jun. de 2006.
301
Segundo depoimento de Oswaldinho do Acordeon, em entrevista concedida à autora em 30 de jun.
de 2006.
302
Depoimento de Oswaldinho do Acordeon, em entrevista concedida à autora em 30 de jun. de 2006.
160
Apresentavam-se no forró artistas conhecidos do público, como Luiz
Gonzaga e Jackson do Pandeiro, e também artistas que faziam parte do elenco
da gravadora Cantagalo.
Em “Enchendo o Saco”, Dominguinhos descreveu, na apresentação
transcrita, também gravada em disco pelo compositor, o ambiente do Forró do
Pedro Sertanejo, suas polifonias, simulando ângulos diversos do espaço do forró
e seus possíveis personagens: o dono da casa de forró, o sanfoneiro, o público e
suas especificidades, o feminino e o masculino. Fica evidente em sua fala que a
repetição da melodia era algo maçante para o sanfoneiro, que gostaria de
mostrar sua virtuosidade por meio do improviso, que metaforiza a liberdade de
execução do instrumento. Contudo, no ambiente do baile o improviso não cabia
enquanto finalidade musical.
Na rotina das apresentações no palco da casa de forró, o sanfoneiro tinha
de tocar aquilo que as pessoas já estavam acostumadas a ouvir, aquilo que
agradava ao público freqüentador da casa. O ofício consistia em tocar para as
pessoas dançarem, caso contrário, o sanfoneiro poderia aperder o emprego.
Isso é colocado por Dominguinhos de forma cômica, satírica.
De certa forma, essa condição de pouca liberdade criativa remete à
condição do instrumentista enquanto “operário da música”. O momento não era
para ser inventivo, nem de expansão musical para o tocador; aquele era o
momento de tocar conforme as regras do baile. Em tom de brincadeira,
Dominguinhos separa o lugar do sanfoneiro e o lugar do dono da casa de forró,
que, conforme ele mesmo afirmou, não pagava muito bem.
Tomam-se as colocações de Dominguinhos como uma brincadeira, até
porque ele era muito amigo de Pedro Sertanejo, que o tinha como filho. Mas, de
todo modo, as contradições ficam postas na fala do narrador, que, por meio do
161
riso
303
e da música, diz livremente o que sente. O compositor faz uso do recurso
cômico naquilo que ele tem de contraditório e ambíguo para revelar a realidade,
criar uma quebra, uma crítica às condições que estavam ali impostas. Entra
nesse momento da narrativa uma queixa a respeito do cotidiano do trabalho
árduo e do processo de negociação que existia naquele espaço pelas partes que
compunham o jogo: o tocador, portanto, o trabalhador; e o dono da casa de
forró.
Então, do palco a narrativa passava para o salão, para a figura do público
que freqüentava o forró, em sua maioria composto por nordestinos. Nesse
momento, abria-se um parêntese para comentar a condição do cotidiano do
trabalho desse migrante, que passava a semana toda quebrando pedra”,
“cavando buraco”, ou seja, trabalhando na construção civil e em outros trabalhos
pesados, que traziam uma conotação do universo opressor e disciplinar do
trabalho.
E o sanfoneiro lá enchendo o saco!
E o nordestino em São Paulo, quebrando pedra, furando buraco
que Tatu a semana toda. Quando chega no fim de semana ele
pensa no forrozinho de Pedro. ele se arruma todo, fica
todo fiota, bota um sapato tipo aquele Luiz 15, bem alto, que ele
é baixinho, torado no grosso, aquela calcinha bem apertada que
não cabe nem os documento. E ele chega sai pisando durinho.
não bota o óculos Ray Bam, porque é de noite. Ele gosta.
Bota uma calça Lilás, bem vistosa, camisa verde, toda florida,
eita!
Chega sai danado. Só se sentindo mesmo o tal, viu.
No Forró do Pedro o migrante quebrava a rotina disciplinar e se
conectava a um universo lúdico, erótico, humano, um universo de estímulos
sonoros, visuais, olfativos, corporais. O forró era um espaço-tempo em que se
303
Para Rabelais, Rabelais o pensador, o riso é a liberação dos sentimentos que mascaram o
conhecimento da vida. O riso testemunha uma vida espiritual clara, ele origem a essa vida. O
sentido do cômico e a razão são os dois atributos da natureza humana. Sorridente, a própria verdade se
abre ao homem quando ele se encontra num estado de alegria despreocupada.BAKHTIN, Mikhail. A
cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de Fraçois Rabelais. São Paulo:
Hucitec, 1999. p.121.
162
podiam encontrar os conterrâneos, era uma estratégia de territorialização
304
da
cidade para o migrante, para que ele não se sentisse completamente
desterritorializado, afinal, as mudanças para ele eram muitas. Os migrantes
vinham, em sua maioria, de um processo de êxodo rural e possuíam uma relação
com o espaço do campo e da natureza muito forte; eles trabalhavam na lavoura,
na pecuária. Somavam-se a isso as relações de poder paternalistas e hierárquicas
com os proprietários de terra.
Esses homens e mulheres mudavam-se para longe da terra, da natureza, e
experienciavam o cotidiano urbano industrial, no qual até mesmo a distância
social e emotiva entre os homens tornava-se maior. O forró era território
305
onde
os seus códigos poderiam ser relembrados e revividos, por meio do espaço de
sociabilidade, da música, da dança, da culinária e até mesmo da violência.
Num certo momento da narrativa de Dominguinhos e Anastácia, foi feita
uma descrição do modo de se vestir do migrante na cidade, abordando as formas
de recombinar os objetos de consumo de forma própria. Dominguinhos, que
também é nordestino, na posição de narrador da história musicada, abordou o
processo com tom de gozação, achando graça das recombinações chamativas e
coloridas de seus conterrâneos.
Em seguida, continuou a narrativa afirmando que as roupas, os sapatos e
os óculos elevavam a estima do sujeito observado, ou seja, depois de todo
arrumado, o migrante saía para o forró se sentindo mesmo o tal. Ele se sentia
especial e importante, o que completava a quebra da condição cotidiana do
trabalhador dentro da cidade, em que ele era mais um dentro das engrenagens.
304
“Em termos de ação, o território é uma transformação-apropriação do espaço terrestre. Uma
construção e destruição que procede seguindo os processos de domesticação (transformação material
do espaço) e de simulação (representação a priori desta transformação). Assim territorializar o espaço
terrestre significa apropriar-se dele concreta ou abstratamente, transformá-lo em função de um sistema
cultural e de objetivos bem precisos.” VIDAL, Rodrigo. Op. cit., 1997. p.185.
305
O território é produzido por um sistema cultural, vale dizer, que é a projeção de uma cultura sobre
o espaço terrestre. Enquanto projeção de uma cultura, o território constitui uma gravação concreta,
abstrata ou mental dos signos culturais e da forma de organização de uma sociedade sobre o espaço
terrestre.” Ibidem. p.184.
163
No Forró do Pedro ele poderia ser ele mesmo, sentir-se humano, ser diferente
recombinando sua maneira de vestir de acordo com seu gosto.
Chegando ao forró, o migrante pagou o ingresso e foi revistado.
Dominguinhos relata nesse momento as estratégias e os rituais do forró em torno
do controle da violência desde a porta de entrada, fazendo referência aos
códigos de segurança da cidade sendo absorvidos, em circularidade cultural,
pelo espaço de sociabilidade representativo da cultura rural nordestina,
processando-se no entre-lugar campo-cidade.
E risca no forrozinho de Pedro. É logo corrido pra ver se está
com uma faquinha.
Nordestino acho tem fama né? De andar com uma 12 polegadas,
24. Mas ele diz que não é pra furar ninguém não. Só pra fazer
palito.
O narrador então comenta a fama que o nordestino tinha de andar
armado, de ser violento: Nordestino acho que tem fama né? De andar com uma
12 polegadas, 24.” O narrador ensaia um questionamento das identidades
cristalizadas do nordestino, mas, por fim, mediante recurso cômico, assume o
lugar da estereotipia, caracterizando um momento afirmativo do discurso do
nordestino enquanto figura viril, valente e violenta.
O discurso do nordestino atrelado à violência permeava diversas
narrativas, romances, literatura de cordel, o cinema e as letras das músicas,
como se tem observado. Ele completa o pensamento com a máxima : “E ele diz
que não é pra furar ninguém não, é pra fazer palito.” Ou seja, em um tom
engraçado e ambíguo, ele explicita a forma como o nordestino via a violência e
interagia com ela:
Não podemos explicar a violência apenas pela existência de
desníveis sociais, da miséria, do desemprego, senão
terminaríamos por repetir o discurso das elites do século XIX
acerca das classes perigosas, discurso que identificava pobreza e
violência, pobreza e criminalidade. O discurso do cordel nos
164
permite mapear outras relações sociais de que a violência é um
componente, que, como diz Freud, a amizade e a guerra, em
sua ambivalência, estão na base de toda instituição, de toda
estruturação social.
306
Na seqüência, a narrativa versa sobre o comportamento do gênero
masculino dentro do salão. O sujeito em cena vai para a porta do banheiro para
paquerar as moças e escolher alguma para dançar
307
.
E ele chega no Forró de Pedro emburaca, paga a entradinha.
Vai pra porta do banheiro, porque ele sabe que é que está
aquelas neguinha cheirosa.
E o sanfoneiro lá! Pirurimpurim purim purim, Pirurimpurim
purim purim. Enchendo o saco!
E ele fica por ali tomando alguma cervejinha quente, aquela que
fica com gosto de guarda-chuva na boca e fica ali azucrinando
as neguinhas, beliscão numa, beliscão noutra. abufelou uma.
Saiu uma daquelas torada no grosso, como ele queria 18 por 24,
saiu aquela neguinha cheirosa, aí ele abocanhou e disse:
vamos dançar?
Ela responde:
se for agora (com aquela cara. Com aquela cara de pidona.
Nordestina também né? vive com a mão estirada pedindo.
Quando não pede aqui é no nordeste. Reza, reza, reza. Quando é
chuva demais, quando não é. Quando é seca demais. sempre
com a mão estirada o nordestino)
O homem é representado na história musicada como aquele que escolhe
o seu par para a dança, que dá as regras do jogo.
Tradicionalmente, costuma-se atribuir a condução da dança ao
homem, pois cabe a ele decidir quais variações de passos serão
incluídas e à mulher deixa-se conduzir, estando atenta às
solicitações de movimento de seu parceiro.
308
306
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. “‘Quem é froxo não se mete’: violência e
masculinidade como elementos constitutivos da imagem do nordestino”. Projeto História. Revista do
Programa de Estudos Pós-graduados em História e do Departamento de História da PUC/SP. n.19. São
Paulo, 1999. p.11.
307
“Nessa perspectiva, pode-se propor a dança de salão como sendo um fenômeno composto de
elementos lúdicos, eróticos, sonoros e corpóreos, todos miscigenados, complexos, em permanente
transformação.” RODRIGUES, Vagner. Fora da Mídia e dentro do Salão: Samba-Rock e mestiçagem.
Dissertação (Mestrado em Comunicação e Semiótica), PUC/SP, São Paulo, 2006. p.22.
308
Ibidem. p.10.
165
A todo instante, a narrativa é preenchida por momentos teatrais, em que
o narrador chega até mesmo a incorporar os personagens da cena, imitando o
tom de voz e até a respiração. Detalhes são descritos, como no trecho em que
fala sobre as moças cheirosas na porta do banheiro, denotando o gosto pelo uso
de perfume, ou naquele em que expressa a presença da cervejinha, ou seja, da
bebida alcoólica.
O personagem convida uma moça para dançar e o narrador comenta que
ela fez uma cara de pidona e que, como “toda nordestina” – ele então generaliza
–, vive com a mão estirada pedindo. Dominguinhos representa por meio da
figura feminina a postura do Nordeste pedinte, descriminado, frágil e vencido. A
representação da valentia e coragem seria o Nordeste masculino. “É na sua
própria locução que esta região é encenada, produzida e pressuposta. Ela é parte
da topografia do discurso, da sua instituição.”
309
Subjacente ao texto percebe-se todo um discurso sexista perante a
mulher, que é apresentada como singela, o “sexo frágil”, um objeto de desejo do
homem. Quando a mulher não encarna esse papel, cabe a ela então o local de
“mulher macho sim senhor” .
Em meio à dança, o casal dialoga, e nesse momento é feita uma
referência direta ao ato sexual, ao erotismo. Ou seja, por meio da dança o
homem mais uma vez afirma a sua masculinidade, expõe o seu desejo
abertamente, beliscões na moça, a conduz ao salão e tempera a aproximação
entre os corpos. Já as moças se expressam de forma mais contida e recatada; seu
desejo deve ser romântico, amoroso, espiritual.
E ele lá. Abofelou essa neguinha, saiu ajeitando umas coisas,
bota uma banda, passa pra outra, centraliza, chega vai com a
cara de besta, sereno.
menina, ali ele esquece do preço do feijão, da carne e do
arroz, que ele ver o cheiro de tudo. Ele vai lembrar pra
309
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. As malvadezas da identidade. Disponível em:
<http://www.cchla.ufrn.br/ppgh/docentes/durval/artigos/segunda_remessa/malvadezas_identidade.pdf
>. p.3.
166
segunda-feira, mas ainda está meio bêbado, deixa pra lá. E
agarrado com a neguinha dele, arrisca:
Tais gostando do baile? Aquele fuzuê danado, triângulo,
zabumba, comendo no centro, ele lá.
Tais gostando do baile?
E ela com aquela carinha de pidona. Mais ou menos.
E o sanfoneiro lá. Pirurimpurim purim purim, Pirurimpurim
purim purim. Enchendo o saco!
Ele dá uma butada mais e pergunta e agora?
Miorou.
Fica ali naquela safadeza.
Destaca-se também que no forró o sujeito esquece do preço do feijão, da
carne, do arroz, ou seja, das preocupações opressoras do ritual cotidiano do
trabalho e da sobrevivência, em meio ao espaço de lazer, ao beber, ao dançar e
ao namorar. O forró é colocado enquanto espaço do sonho, da utopia, da
rebeldia, da sexualidade, do desejo e da felicidade.
Três horas da manhã o sanfoneiro já está até improvisando.
Ele então improvisa na sanfona.
E ele esquece tudo.
Por fim, o foco da narrativa volta para o sanfoneiro, que no final da noite
se o direito de improvisar, porque a jornada de trabalho está
praticamente cumprida. Então, improvisando, ele esquece do mundo, se
humaniza, se realiza e se sente especial.
O sanfoneiro era figura fundamental no forró, tanto que são inúmeras as
letras que abordam a função e o comportamento do tocador nos salões. Existe
até mesmo uma máxima melódica que faz o desenho da frase falada o tocador
quer beber”. A música, como foi posto, era para se dançar, mas, seguindo a
máxima da dança, podia-se arriscar um improviso ou algo diferente, conforme
Oswaldinho do Acordeon, que testava seus números instrumentais mais
sofisticados no Forró do Pedro:
167
Eu tinha que experimentar né? Porque o importante era
dançar. de repente eles paravam e diziam: O que é isso que
nós estamos dançando? Tanto que a sinfonia de Bethoven, era
chamada de a sanfoninha de Bethoven.
Ô Oswaldinho toca a sanfoninha de Bethoven aí.
Eu fazia o teste lá dentro do forró, porque lá valia tudo.
O pessoal não se importava com o que você tocasse contanto
que desse pra você dançar.
O negócio era dançar.
Não importava se você cantasse em inglês, alemão, japonês, se
estivesse dançando, eles só vinham perceber depois:
Que música estranha não é, tem três horas que a gente
dançando não é? Agora se não fosse o que eles queriam, a
vaia comia no centro. E se parasse o forró era briga na certa.
310
Oswaldinho destaca mais uma vez a música relacionada à dança e
possíveis trocadilhos que emergiam em meio à circularidade cultural no salão,
como quando o público chamava a “sinfonia de Bethoven” de “sanfoninha de
Bethoven”. Os migrantes relacionavam o tulo da música à sanfona virtuosa de
Oswaldinho, talvez por não terem conhecimento da palavra sinfonia”, pois não
estava presente no cotidiano cultural dos migrantes.
3.3 CHEIROS E SABORES: COMIDA E BEBIDA
Toda a existência humana decorre
do binômio Estômago e sexo.
A fome e o amor dominam o
mundo, afirmava Schiller.
311
310
Depoimento de Oswaldinho do Acordeon, em entrevista concedida à autora em 30 de jun. de 2006.
311
CASCUDO, Luís da Câmara. História da alimentação no Brasil. São Paulo: Global, 2004. p.17.
168
Outra questão presente no Forró do Pedro é a simbologia do beber
312
e
comer
313
, que tinha conotações diferentes para o homem que vinha do campo e
para o homem da cidade:
Sim tinha. Tinha sempre um barzinho pra beber, era sempre uma
visão que meu pai tinha. O Forró do Pedro deu certo, porque o
nordestino gostava de gastar. Então quando ele conquistava uma
mulher lá, queria mostrar que tinha dinheiro. Aí gastava todo
o dinheiro lá... da semana, na cerveja, no conhaque, na cachaça.
E quando ele fazia bailinho pra boyzinho, era uma Coca-Cola
pra quinze, então não se gastava muito.
Então com o nordestino era o contrário.
Era pra demonstrar fartura, eu posso mais...
Nós tínhamos o bar que ficava dentro, em cima do salão, minha
mãe que tomava conta e a comida era da minha mãe, tinha os
tira-gostos.
Nordestino não toma cachaça sem comer alguma coisa.
E era assim a noite toda. Tinha mesa pra sentar, cadeiras do
lado do salão. Cadeira pra sentar na mesa e no salão. Mas a
maioria ia pra dançar.
314
Oswaldinho destaca o tino para os negócios de Pedro Sertanejo, que
faturava ao comercializar comida e bebida no bar do forró, mesmo sendo os
focos principais do baile a dança e a música. Ele chegou a afirmar que foram
esses detalhes que fizeram do Forró do Pedro um bom negócio, porque os
freqüentadores do salão não eram econômicos com a comida e a bebida. Comer
e beber fazia parte do ritual social de seu sistema cultural e simbólico.
312
Um outro significado cultural fundamental do alimento é a capacidade de alguns produtos
alimentarem não apenas o corpo como também o espírito: os alimentos-drogas. Um alimento-droga é
um alimento que possui efeito psicoativo, tal como os álcoois, os excitantes possuidores de cafeína,
sedativos como ópio [...] Todos foram considerados alimentos sagrados e divinizados em diversas
religiões.” CARNEIRO, Henrique Soares. “Comida e Sociedade. Significados sociais na história da
alimentação”. História: Questões e debates. Revista da Universidade Federal do Paraná. n.42.
Curitiba: Editora UFPR, 2005. p.74.
313
“Comer não é um ato solitário ou autônomo do ser humano, ao contrário, é a origem da
socialização, pois, nas formas coletivas de se obter comida, a espécie humana desenvolveu utensílios
culturais diversos, talvez até mesmo a própria linguagem.” Ibidem. p.71.
314
Depoimento de Oswaldinho do Acordeon, em entrevista concedida à autora em 30 de jun. de 2006.
169
O costume alimentar pode revelar de uma civilização desde a
sua eficiência produtiva e reprodutiva, na obtenção, conservação
e transporte dos gêneros de primeira necessidade e os de luxo,
até a natureza de suas representações políticas, religiosas e
estéticas. Os critérios morais, a organização da vida cotidiana, o
sistema de parentesco, os tabus religiosos, entr outros aspectos,
podem estar relacionados com os costumes alimentares.
315
O bar do Forró do Pedro era no terceiro andar, acima do salão de dança,
e a cozinha ficava sob a responsabilidade da sua esposa. Observa-se a presença
do trabalho feminino nesta área, aspecto que é reforçado por Luiz Gonzaga na
letra da música “Baião de dois”
316
:
Abdom que moda é essa
Deixa quente a cuié?
Home num vai pra cozinha
Que é lugá só de muié.
Vou juntá feijão de corda
Numa panela de arroz
Abdom vai já pra sala
Que hoje tem baião de dois.
Ai, ai, baião de dois
Baião, que bom tu sois
O baião é bom sozinho
Que dirá baião de dois.
A letra dessa música destaca um prato muito conhecido no Nordeste
brasileiro, o baião de dois, que tem como base a junção do arroz com o feijão e o
toucinho:
Baião-de-dois: Prato popular no ceará. “Aos domingos,
fazíamos ali um almoço, ajantarado, de lamber o beiço;
delicioso baião-de-dois com toucinho, isto é, arroz e feijão
cozinhados juntos”. (Liceu do Ceará, 123, Rio de Janeiro,
1940)
317
315
CARNEIRO, Henrique Soares. Op. cit., 2005. p.72.
316
Baião de dois (Luiz Gonzaga/ Humberto Teixeira), ritmo baião, 78 rpm.
317
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. 6ªed. Belo Horizonte; Itatiaia -
SP: Editora da Universidade de São Paulo, 1988. p.97.
170
Percebe-se mais uma vez a emersão da palavra “baião”, agora fazendo
referência à comida, confirmando o processo mestiço
318
de contaminação entre
os objetos da cultura. O baião era um gênero musical, mas também era uma
dança e ainda uma comida fruto da junção do feijão com o arroz, alimentos
básicos e muito importantes na história da alimentação brasileira. Batizou-se
essa junção de baião de dois. Na letra o compositor chegou a brincar com o
triplo sentido do baião, mas sem cogitá-lo como gênero musical – comida, dança
e sexualidade.
Conforme a letra, a cozinha é um espaço feminino e a sala espaço em
que o homem aguardaria a comida ser servida. Assim, ficam registrados nesta
canção espaços de saberes e poderes de homens e de mulheres em uma casa,
espaços esses que tamm se davam na casa de forró do Pedro Sertanejo.
O cardápio do forró apresentava uma série de tira-gostos práticos e
rápidos da culinária nordestina, como a carne do sol e o aipim frito, mas também
eram servidas porções de batata frita e de polenta
319
, referência alimentar das
regiões rurais do Sul e Sudeste e dos centro urbanos. Na cozinha do forró
elaboravam-se misturas, aspecto presente em todo o processo de formação da
cultura brasileira.
Para o nordestino, a bebida e a comida conforme colocação de
Oswaldinho e confirmação realizada mediante observação do processo de
formação dos objetos da cultura simbolizavam fartura, fertilidade, ritual,
comemoração pela colheita, as festas juninas e religiosas. Por meio da letra da
318
“Pode-se indicar uma espécie de cartografia básica, roteiro móvel e incompleto da mestiçagem,
variável de objeto para objeto, de região para região e de época para época: - Pesquisa dos materiais
naturais (ouro, prata, pedra, vegetal etc.) que, reverberando na água e luz solares, propiciam aos
artesãos, ourives, doceiros, músicos, bailarinos e poetas desdobrarem uma ciência de bordados e
engastes, distribuída por todas as séries culturais (mercados, festas, igrejas etc.), de que mais tarde se
aproveitariam as telas do cinema e vídeo e as páginas dos periódicos. [...] - Pesquisa sobre modos de
constituição sígnica do continente, com ênfase na proliferação oral, visual e tátil, que abalroa e revira
as palavras, trazendo-as de volta ao corpo e à paisagem.” PINHEIRO, Amálio. Comunicação e
cultura: Barroco e mestiçagem. Campo Grande: Ed. UNDERP, 2006. p.11.
319
Segundo depoimento de Oswaldinho do Acordeon, em entrevista concedida à autora em 30 de jun.
de 2006.
171
música “Liforme Instravagante”
320
, cantada por Luiz Gonzaga, pode-se observar
a infinidade de alimentos apreciados no Nordeste brasileiro no período das
festas juninas:
Liforme Instravagante
Mandei fazer um linforme,
como toda a preparação,
para botar no arraiá,
na noite de São João.
Chapéu de arroz doce
forrado com tapioca
As fitas de alfinim
e as fivelas de paçoca
a camisa de nata
e os botões de pipoca.
A ceroula de soro
e as calças de coalhada
O cinturão de manteiga
e o buquê de carne assada
sapato de pirão
e ezertilhão de escada.
As meias de angu
presilhas de amendoim
charuto de biscoito
e os anelões de bolinho
os óculos de ovos fritos
e as luvas de toucinho.
O colete de banana
e a gravata de tripa
o paletó de ensopado
e o lenço de canjica
carteira de pamonha
e a bengala de lingüiça.
Vai ser um grande sucesso
no baile da Prefeitura
a pulseira de queijo
e o relógio de rapadura
quem tem um linforme deste
pode contar em fartura.
320
Liforme Instravagante (Raimundo Grangeiro, 1963), folclore.
172
Além da fartura, o comer e o beber, para o nordestino vindo do campo,
tinham uma relação direta com a produção do alimento, conforme se pode
contatar também pela letra da música “Penerô xerém
321
.
Oi pisa o milho
Penerô xerem
Oi pisa o milho
Penerô xerem
Eu não vou criar galinha
Pra dá pinto pra ninguém
Na minha terra dá de tudo que plantar
O Brasil dá tanta coisa que eu nem
posso decorar
Dona Chiquinha bota o milho pra pilar
Pro angú, pra canjiquinha, pro xerem, pro mugunzá
Só passa fome quem não sabe trabalhar
Essa vida é muito boa pra quem sabe aproveitar
Pego na peneira, me dá na saculejada
De um lado fica o xerem de outro sai o fubá
Saculeja, saculeja, saculeja
Penerô xerem
Saculeja, saculeja, saculeja ja
Nessa letra, que tem conotação de canto de trabalho, destaca-se o milho,
alimento básico, assim como a farinha de mandioca e o feijão. Para o migrante
que vinha do campo, tanto do Nordeste como também do Sul e Sudeste, a
imagem do trabalho relacionava-se à produção direta do alimento, que, por sua
vez, tinha relação com a religiosidade e ainda com a sexualidade.
A comida e o sexo são duas fontes dos mais intensos prazeres
carnais, sendo que o primeiro é indispensável na vida diária de
todo o ser humano [...] Na economia libidinal, esses dois
prazeres são aproximados de muitas maneiras, tanto na fase
infantil, em que o seio materno é a fonte do máximo prazer,
como nas práticas eróticas orais, tais como o beijo, em que o
mesmo órgão da nutrição produz gratificação sensual. Nas
representações de inúmeras culturas, associa-se sempre o sexo à
comida e o verbo comer costuma possuir duplo sentido.
322
321
Penerô xerém (Luiz Gonzaga/ M. Lima, 1945).
322
CARNEIRO, Henrique Soares. Op. cit., 2005. p.73.
173
Em contrapartida, fazia parte do universo urbano a economia, o controle
social, a disciplina, idéia que Oswaldinho do Acordeon ratifica ao relacionar em
seu discurso o homem urbano à figura do “playboyzinho” que gastava pouco e
que levava uma vida mais regrada no comer e beber.
O processo de urbanização e industrialização emergente trazia a
preocupação com a ordem e o trabalho. Criava-se a necessidade
de diferenciar o espaço do trabalho de outros espaços,
estabelecendo-se uma divisão cada vez mais clara no urbano. O
controle social passou a atingir diferentes esferas do cotidiano,
em particular das camadas populares, tendia-se a ordenar as
situações de trabalho e de lazer, crescendo a vigilância sobre os
espaços de lazer popular como o botequim, território
majoritariamente masculino, no qual, em momentos de
descanso, a conversa informal em torno do balcão ou da mesa,
tomando alguma bebida: Cachaça e cerveja. O discurso médico
acompanhou tais mudanças apresentando o bar, cabaré,
botequim, em contraposição à fábrica, à oficina e ao escritório,
espaços do trabalho e espaços do lar.
323
Percebem-se então as diferenças culturais em choque no entre-lugar
campo-cidade. Muitas foram as vezes que o migrante comparou os seus códigos
com os da cidade. No forró podiam-se reviver aspectos sócio-culturais do campo
no entre-lugar campo-cidade, com cenários, gestos, cheiros e sabores.
Na direção contrária dos códigos de sociabilidade do forró, destacam-se
estratégias de controle hegemônico da cidade em torno do discurso médico, que
apontava os perigos do consumo de bebidas alcoólicas e, portanto, dos espaços
de sociabilidade.
324
Para os homens nordestinos que freqüentavam os forrós,
comer e beber eram atos sociais, representavam poder e fartura e,
conseqüentemente, eram referência de masculinidade. Em contrapartida, na
323
MATOS, Maria Izilda Santos de. Âncora de emoções: Corpos, subjetividades e sensibilidades.
Bauru, SP: EDUSC, 2005. p.85.
324
Os discursos em questão reiteradamente associavam o alcoolismo ao jogo, ao fumo,
vagabundagem, boêmia e mendicância. Todos esses males eram provocados pela ociosidade, que era
considerada incompatível com uma ‘sociedade moderna e civilizadadirecionada para a ‘ordem e o
progresso’.” Ibidem. p.65.
174
cidade, todo um discurso disciplinar era elaborado pelo discurso médico
representante do Estado no combate ao alcoolismo.
Contudo, mesmo com todas as campanhas, o ato de beber não perdeu a
sua auréola
325
. No forró a bebida fazia parte do ritual, principalmente a
cervejinha, a pinga (bebida tipicamente brasileira) com limão e o conhaque, que
embalavam os corpos na dança e na paquera, mas também acirravam os vícios e
os conflitos.
Era uma profusão de cheiros e sabores dentro do salão. A comida, a
bebida, os corpos perfumados e suados enchiam o salão e permaneciam nas
memórias olfativas. Homens e mulheres muito perfumados eram atrativos na
tática da paquera. Muitas são as letras que falam do perfume das moças, entre as
quais a letra da música “O Cheiro da Carolina”
326
.
Carolina foi pro samba
Carolina
Pra dançá o xenhenhen
Carolina
Todo mundo é caidinho
Carolina
Pelo cheiro que ela tem
Carolina
Hum, hum, hum
Carolina, hum, hum, hum
Carolina, hum, hum, hum
Carolina
Pelo cheiro que ela tem
Carolina
Gente que nunca dançou
Carolina
Nesse dia quis dançá
325
“O toxicômano, o glutão, o galã confidente, o valentão teórico, o exibicionista irresistível, o técnico
adulatório, o pessimista irradiante, o gênio incompreendido, o preterido profissional, têm críticos
inapeláveis e teimosos. Para o bebedor ainda resiste um halo de tolerância, simpatia e vaga
solidariedade. O anedotário da embriaguez inclui as glórias literárias de todos os países. A tradição
dos boêmios bebedores obstinados, figura em cada localidade numa espécie de orgulho, notória
recordação das façanhas espirituosas, respostas felizes, atitudes cheias de humor [...] As campanhas
ruidosas antialcoólicas, visando evidenciar a degradação e bestialidade do embriagado, não
conseguem retirar-lhe uma auréola de popularidade universal.” CASCUDO, Luís da Câmara. Op. cit.,
1988. p.30.
326
O Cheiro da Carolina (Zé Dantas e Luiz Gonzaga, 1983). Disco “Os Grandes Momentos de Luiz
Gonzaga”, vol. 2.
175
Carolina
Só por causa do cheirinho
Carolina
Todo mundo tava lá
Carolina
Hum, hum, hum
Carolina, hum, hum, hum
Carolina, hum, hum, hum
Carolina
Todo mundo tava lá
Carolina
Foi chegando o Delegado
Pra oiá os que dançava
Carolina
O Xerife entrou na dança
Carolina
E no fim também cheirava
Carolina
Hum, hum, hum
Carolina, hum, hum, hum
Carolina, hum, hum, hum
Carolina
E no fim também cheirava
Carolina
Falando:
Aí chegou dono da casa
O dono da casa chegou com a mulesta
Chamou atenção de D. Carolina e:
- D. Carolina venha cá. O povo anda falando aí
que a senhora tem um cheiro diferente, é verdade?
- Moço, sei disso não, é invenção do povo.
- Ah, é invenção do povo, não é?
- É sim senhor
- Então dá licença
Hum, hum, hum
Carolina, hum, hum, hum
Carolina
Eu quisera está por lá
Carolina
Pra dançar contigo o xote
Carolina
Pra também dá um cheirinho
Carolina
E fungar no teu cangote
Carolina
Hum, hum, hum
Carolina, hum, hum, hum
Carolina, hum, hum, hum
Carolina
E fungá no teu cangote
Carolina
176
O cheiro de Carolina envolveu a todos no forró. Mais uma vez o
elemento cômico acompanha a trama da letra musicada e polemiza o ambiente
do forró, dessa vez fazendo-se presente por meio do olfato, da figura feminina e
da paquera. Na letra se faz uso do som produzido pelo ato de cheirar, ou, na
linguagem coloquial nordestina, pelo ato de fungar no pescoço da moça,
mediante a expressão onomatopéica “hum, hum, hum”. Gonzaga encaixa
perfeitamente na divisão rítmica do xote a expressão citada.
3.4 ENCONTROS, DESENCONTROS, NEGOCIAÇÕES E CONFLITOS
Pode-se considerar que o Forró do Pedro Sertanejo foi um espaço da
saudade e da circularidade, uma vez que funcionou como ponto de encontro,
como rede social de contatos, de assistência e de referência para muitos
nordestinos estabelecidos ou em trânsito na cidade.
O forró virou um quartel general, de nordestino, vamos dizer
assim, na época quem quisesse encontrar uma família de alguém
aqui em São Paulo que morasse no Nordeste ia pro forró do
meu pai, numa determinada hora, parava-se o baile pra meu pai
sortear a carta de quem chegava:
Quem é fulano de tal? Chegou aqui uma carta que é de fulano de
tal que é de Alagoas. Aí a pessoa ia pegar a carta.
Então cartas de quem quisesse encontrar parentes que não se
sabia endereço ou por não ter endereço fixo ainda na cidade de
São Paulo, tudo era lá no forró do meu pai.
327
Observa-se que Oswaldinho do Acordeon expressa um orgulho natural
ao falar do espaço do forró como um lugar que acolhia os migrantes adaptados
ou ainda em processo de adaptação na cidade de São Paulo, um espaço de
solidariedade, um ponto de apoio.
A memória pode constituir um elemento importante para o
reconhecimento e a valorização de indivíduos ou grupos. Com
327
Depoimento de Oswaldinho do Acordeon, em entrevista concedida à autora em 30 de jun. de 2006.
177
esses objetivos, mesmo a memória constituída efetua um
trabalho de manutenção, de renovação de coerência, de unidade,
de continuidade, de organização.
328
O for foi ponto de encontro, espaço de lazer, de troca de saberes e
poderes.
vem o macumbeiro, não tem onde colocar os atabaques: - Ta
aí meu filho.
- Ah eu não tenho como lhe explicar isso, mas tenho um amigo
que dança aqui no forró, aquele chinês, que pode lhe explicar.
Então você não precisava ter dinheiro, vosaía do buraco no
Forró do Pedro Sertanejo. Você entrava pedreiro e saía artista.
Então o Forró do Pedro é isso, parece uma coisa feita pelo
grande senhor, entendeu?
Que você fala assim, porra queria abrir uma firma de prego,
não tem onde correr, aí vem aqui pra tomar uma direção.
Qual é a do sistema dessa casa aqui? Qual é o sistema de Pedro
Sertanejo?
É vosonhar e ir realizar, porque os amigos que tinha em
prol de ver você bem que também era nordestino, todos juntos
faziam você dar certo.
Então ninguém ficava sem, não faltava pra ninguém.
329
O depoimento de Ari Batera vem carregado de emoções. A cada palavra
ele rememora o passado; seus gestos e expressões trazem uma carga histórica de
dores e delícias. O forró significou para Ari uma atmosfera vital de experiências
fortes e singelas, radicais e lúdicas. Ele viveu intensamente o cotidiano do
trabalho, sempre ao lado do seu pai, Pedro Sertanejo, afirmando as estruturas
para que tudo funcionasse.
Observa-se nesse depoimento de Ari que o trabalho no forró não se dava
somente nos momentos de apresentação, ou seja, nas noites de sábado e
domingo, mas era constante para quem estava envolvido na estrutura da casa e
em sua organização. O trabalho e o lazer estavam amalgamados, assim como o
328
FERREIRA, Marieta de Moraes. “História Oral, Comemorações e ética”. Projeto História. Revista
do Programa de Estudos Pós-graduados em História e do Departamento de História da PUC/SP. n.15.
São Paulo, 1997. p.158.
329
Depoimento de Ari Batera, em entrevista concedida à autora em 25 de nov. de 2009.
178
espaço de sociabilidade, de troca de saberes e favores, também fazia parte do
processo constitutivo das relações de poder dentro do forró.
Foi no Forró do Pedro Sertanejo que Jackson do Pandeiro conheceu sua
segunda esposa, Neuza, ao fazer uma participação especial no show do Ary
Lobo, artista de Belém do Pará, que se apresentava constantemente no forró e
fazia parte do elenco de artistas da gravadora Cantagalo e da casa.
Neuza era uma migrante nordestina, mas foi criada na cidade de Marília,
interior de São Paulo, onde dividia o tempo entre o trabalho na roça e os estudos
básicos nessa cidade apenas concluiu a alfabetização. Neuza mudou-se com
seus pais e mais seis irmãos para a cidade de São Paulo e, aos 25 anos, quando
conheceu Jackson do Pandeiro trabalhava na fábrica de autopeças Rossi.
Como muitas migrantes nordestinas, suas grandes diversões eram ouvir
rádio e freqüentar aos sábados e domingos as diversas casas de forró que
existiam na cidade de São Paulo. Neuza era de Jackson do Pandeiro e de
Almira Castilho, mulher de Jackson que sempre se apresentava junto com ele,
mas que vinha realizando as últimas apresentações ao lado do artista porque
estavam se separando. Então, após o show, Neuza se aproximou da mesa em que
se encontravam Jackson do Pandeiro e Almira, se apresentou e se disse da
dupla.
Neuza fica com a imagem de ambos guardada na retina. Sorri
feliz. Remói o encontro por algum tempo, troca algumas
palavras com Toinho, um conhecido seu fotógrafo, e decide ir
embora. Já estava perto da meia noite e lembra-se que logo cedo
teria batente trabalho na fábrica. Quando vai descendo a escada,
Ary alcança-a antes e dispara a queima roupa: “Ô Morena,
Jackson quer falar com você”.
330
Estava selado então o romance que findaria em casamento. Conforme
supracitado, Neuza trocou algumas palavras com Toinho, um fotógrafo
330
MOURA, Fernando. Jackson do Pandeiro: O rei do ritmo. Coleção “Todos os Cantos”. São Paulo:
Ed. 34, 2001. p.298-9.
179
conhecido seu, que fazia parte da equipe técnica da gravadora Cantagalo e tinha
seu laboratório fotográfico na própria casa de forró, que também era a sede da
gravadora. Forró e gravadora eram locais de irmandade, solidariedade,
negociação e conflito, locais de territorialidade, vivência para uns, sobrevivência
e resistência para outros.
331
O Forró do Pedro teve seu período de ápice a partir da década de 1970,
estendendo-se aos anos 80. Em 1970, o forró foi muito freqüentado por artistas
dessa geração, que iam até lá para assistir a Jackson do Pandeiro, Luiz Gonzaga
e muitos outros. Outro aspecto importante foi que o local atraiu a atenção de Tvs
internacionais, deslocando o território do forró para novas geografias.
Teve uma época em que os Novos Baianos foram lá. Pepeu e
Baby. Na época em que eu tocava com o Moraes.
Olha a gente vai fazer o teatro São Pedro em São Paulo e nós
vamos pro Forró do Pedro depois.
Eles se convidavam e iam lá.
começou a acontecer também muita filmagem de fora, muita
gente ia lá filmar o forró.
Todo o pessoal que fazia teatro aqui em São Paulo na época dos
novos baianos. Na época Moraes, A Cor do Som, todo mundo ia
pro forró lá do meu pai, dar uma canja e ficavam até as quatro, e
também faziam contato com os artistas da época em que eles
eram livres né, e não tinham mais. Então eles encontravam lá no
forró Jackson do Pandeiro.
Freqüentava japonês, alemão, paulista, carioca. Chegou uma
época que virou curiosidade lá.
Todo mundo queria conhecer, TV francesa pra filmar o forró do
meu pai, uma TV alemã pra fazer um documentário sobre o
forró, essa aglomeração de gente dançando. Porque é
novidade e aqui também era novidade.
332
Assim, Oswaldinho afirma que o forró de seu pai, além de conquistar
outras gerações e segmentos sociais, estava conquistando também novas
331
Segundo depoimento de Oswaldinho do Acordeon e Ari Batera, em entrevistas concedidas à autora
em 30 de jun. de 2006 e 03 jul. de 2004.
332
Depoimento de Oswaldinho do Acordeon, em entrevista concedida à autora em 30
de jun. de 2006.
180
territorialidades, inclusive internacionais. O For do Pedro, portanto, foi se
afirmando dentro do contexto da cidade e granjeando públicos diferentes.
No mesmo sentido, Ari Batera
333
conta que a casa era freqüentada por
nordestinos, mas também por japoneses, italianos e turcos. O Brás, desde a
transição do século XIX para o século XX, tinha como característica marcante
ser um bairro periférico e de migrantes.
As agitadas ruas do Brás também contavam com restaurantes,
cantinas, pizzarias e confeitarias, cinemas e teatros, várias lojas
de calçados e de armarinhos e duas lojas de departamentos.
Havia ainda estabelecimentos que vendiam armas, artigos para
caça e pesca, duas lojas que vendiam discos, gramofones,
instrumentos e partituras musicais, o bairro contava também
com lojas de tecidos, de roupas feitas, de louças e cristais. O
comércio se disseminava pelos quarteirões, tornando os
habitantes do Brás independentes da cidade de São Paulo em
quase tudo. O bairro do Brás se formou e se desenvolveu
segregado do restante da cidade sobre os pântanos que se
estendiam a leste de São Paulo.
334
Quando os nordestinos chegaram ao Brás, em 1950, muitas eram as
permanências de atividades culturais e de etnias nesse bairro, que, com suas
lojas de discos, promovia audições coletivas por meio de alto-falantes.
335
Os
espaços das calçadas eram negociados entre o trabalho e essas audições
públicas.
Os italianos tinham em comum com os nordestinos a cultura da sanfona,
instrumento fundamental para o forró. Em São Paulo, os professores que
ensinavam a tocar esse instrumento, conforme Oswaldinho, eram na maioria
italianos.
336
333
Depoimento de Ari Batera, em entrevista concedida à autora em 03 de jul. de 2004.
334
GONÇALVES, Camila Koshiba. Op. cit., 2006. p.110.
335
“A rua de um bairro popular é um local de encontro, uma extensão da casa e não apenas local de
passagem de carro e de pessoas. As crianças, os jovens, os idosos e os adultos se encontram na rua. A
conversa o bate-papo, o futebol, a fofoca, a brincadeira, a paquera, etc., acontecem de maneira
freqüente neste espaço. A socialização de costumes passa por esse ambiente.” RODRIGUES, Vagner.
Op. cit., 2006.
336
Segundo depoimento de Oswaldinho do Acordeon, em entrevista concedida à autora em 20 de jul.
181
Ainda segundo Ari, a casa de forró contava também com apresentações
musicais de outros gêneros além daqueles do Nordeste. Tocaram por lá italianos,
grupos de choro, de samba e até de rock.
337
Oswaldinho do Acordeon observa que começou a expandir o seu
conhecimento musical com um professor de sanfona italiano:
Tudo na década de 60 e 70 que meu pai passava essas
informações. E eu entrei na escola pra aprender música, com um
italiano, chamado Dante Dalonso. Fui levado por um sanfoneiro
que tocava no Forró do meu pai que tinha conhecimento com ele
e daí foi que eu vim descobrir que o meu instrumento não era
um instrumento limitado e sim ilimitado, e aí, por causa das
agressões, das humilhações e do preconceito, eu resolvi fazer do
meu instrumento cavalo de batalha e provar um monte de coisa
que hoje eu estou muito agradecido a esse professor de ter me
aberto a mente e graças a todas essas coisas contra eu consegui
criar a minha família e ter um certo respeito no Brasil e no
mundo. Isso me ajudou muito.
338
Dessa forma, Oswaldinho comenta sobre o preconceito contra quem
tocava sanfona que se tinha nesse período, e Dominguinhos reforçou:
Realmente na década de 1960, o acordeão saiu de cena. Entrou o
violão e órgão de igreja. Entrou a Bossa Nova. todo mundo
queria violãozinho que é leve... E a sanfona foi pra debaixo da
cama. Toda mocinha tocava. Mário Mascarenhas
339
tinhas as
academias. Faziam concertos com quinhentos, “mil acordeões”
no Maracanazinho. Era uma febre. A sanfona, o acordeom virou
cafona.
340
de 2004: “A primeira sanfona ou acordeão que chegou no Brasil, provavelmente, tenha chegado nas
caravelas de Cabral e era chamada de concertina (Acordeom cromático de botão com 120 baixos). O
acordeom se tornou popular principalmente no Nordeste, Centro-Oeste e Sul do Brasil. Os primeiros
gêneros (Fado, Valsa, Polca, e etc) retratavam o folclore dos imigrantes portugueses, alemãs, italianos,
franceses e espanhóis. Nos cassinos da década de quarenta os sanfoneiros tocavam tango, polca e
valsa. Até então Gonzaga só tocava sanfona com influência nordestina para estudantes nordestinos que
tinham saudade da sua origem. Ari Barroso incentivou Gonzaga a defender o gênero musical da sua
terra no rádio.”
337
Depoimento de Ari Batera, em entrevista concedida à autora em 03 de jul. de 2004.
338
Depoimento de Oswaldinho do Acordeon, em entrevista concedida à autora em 30 de jun. de 2006.
339
Mário Mascarenhas foi um professor de música que criou um método para se tocar sanfona.
340
ECHEVERRIA, Regina. Op. cit., 2006. p.123.
182
Mas a sanfona permanecia nos bairros periféricos, sobretudo no Brás,
fazendo-se presente nas músicas nordestina e italiana. A atmosfera musical do
Brás sempre foi variada e polifônica: tangos, fados, maxixes, choros, valsas,
foxes. E pelas ruas da cidade também se falava dos poetas trágicos
341
, que, com
violão ou sanfona em punho, cantarolavam suas modinhas, abordando temáticas
de violência e tragédia, que permeavam suas canções.
Nessa época, outros instrumentistas paulistanos foram muito importantes
enquanto referências musicais para diversos sanfoneiros, como Caçulinha e
Mário Zan.
Eu fui autodidata até os 12 anos, com 12, 13 anos de idade
que entrei no conservatório pra conhecer meu instrumento, pra
estudar música, pra poder expandir mais, porque assim naquela
época tinha muito preconceito com a sanfona. O preconceito era
enorme, se você andasse com uma caixa de sanfona, você
recebia pedrada, era uma coisa muito violenta, na verdade.
E veio o interesse de expandir o meu lado musical, isso porque
na época um paulista chamado Caçulinha, que hoje trabalha no
Faustão, ele era o único cara que tocava acordeom e eu
observava que ele fazia, outros gêneros também não é?
O Gênero da bossa nova no acordeom.
Então eu comecei a perceber que o acordeom não era pra
forró, ou música regional, então aquilo me chamou atenção.
que na época não existia professor de acordeom, então que é
que aconteceu?
O Caçulinha gravava muito na gravadora do meu pai
acompanhando os artistas.
E o meu contato com o Caçulinha foi desde pequeno, apesar de
o Caçulinha ser autodidata e tal, mas ele tinha uma outra
performance no instrumento que ele não batalhou pelo lado
da sanfona, mas pelo lado da zabumba também.
Ele foi o único cara que usava zabumba como surdo em
programas importantes, como o programa da Elizete Cardoso,
da Elis Regina e tal.
depois é que eu vim conhecer, ouvi falar do Sivuca, que
nessa época ele morava nos Estados Unidos.
342
341
“Acompanhadas ‘ao violão ou à sanfona’, ‘de modo desajeitado, sem muita inspiração e técnica’, as
letras das modinhas se popularizavam através de anônimos cantores de rua, através das serenatas, e
também pelas liras e capadócios, vendidodos a 200 reis.” GONÇALVES, Camila Koshiba. Op. cit.,
2006. p.82.
342
Depoimento de Oswaldinho do Acordeon, em entrevista concedida à autora em 30 de jul. de 2006.
183
Houve identificação cultural e troca de saberes entre nordestinos,
sulistas, músicos brasileiros da vertente sertaneja e italianos por intermédio da
sanfona, instrumento marcante em diversas culturas, amalgamando a música dos
migrantes nordestinos no entre-lugar campo-cidade em processos de
mestiçagens.
343
Os italianos que, ao contrário do que se diz, foi os que mais
ajudaram o forró, inclusive a música caipira aqui deve-se muito
a eles, que assim são duas classes a boa e a ruim. Então a parte
boa italiana era assim muito fã do velho, com aquela idéia
porque a sanfoninha lembrava eles na Itália e eles não tinham
aquele acesso, o Mário Zan por exemplo, que era o rei da cocada
preta, naquela época. O mais próximo que eles tinham da terra
deles era no forró, então ali ele tinha o som da sanfona,
entendeu? Que é a originalidade de uma terra.
344
O Brás, por ser bairro operário e abrigar diversas fábricas e cortiços, era
movimentado durante o dia pela atmosfera do trabalho e durante as noites de
lazer pela música e pelas festas. Era um local festivo e muito conhecido, desde o
início do século, enquanto território de efervescência cultural. Na cada de
1950, negociando espaços em meio a italianos, japoneses e turcos, os
nordestinos contribuíram para a história desse bairro e, por extensão, da cidade
de São Paulo e sua personalidade.
Em meio às misturas e polifonias do bairro do Brás, curiosidades e fatos
inusitados aconteceram no Forró do Pedro, mediante essa profusão de culturas e
misturas. Outras expressões artísticas tentavam negociar espaços dentro do
forró, como foi o caso do mágico:
Teve dois casos muito engraçados. Um cara chegou e botou
na cabeça do meu pai: - Rapaz bota um mágico aí.
Meu pai falou: - Rapaz, esse negócio não vai dar certo. Não!
343
“Povos diferentes realizam experiências, que circulam e promovem contaminações. As diferenças
não se desfazem, ao contrário, elas enriquecem o processo de contágio que regula os fluxos de
informação entre corpos e seus ambientes. O resultado desse processo é a mestiçagem.” KATZ,
Helena T. apud RODRIGUES, Vagner. Op. cit., 2006.
344
Depoimento de Ari Batera, em entrevista concedia à autora em 03 de jul. de 2004.
184
- Bota um mágico aí que é uma novidade....
me pai falou: - Bom, é responsabilidade sua, eu vou pro
outro lado da rua, não quero nem saber.
me convida esse tal de mágico, um cara com uma rosa na
lapela do paletó, combina com o apresentador de meu pai: -
Você põe... (naquela época um real era muita grana) o dinheiro
enrolado no cigarro e coisa e tal (ele combinando com o cara,
veja só!). Quando eu falar “Eu quero alguém aqui no palco que
eu vou tirar um dinheiro em um maço de cigarro”, aí eu te
chamo logo.
E o cara nunca tinha participado do circo, do espetáculo,
naquela época, era o ajudante do meu pai, pra você ter uma
idéia. Chegou ele ficou no meio do povo. Nesse dia soltaram
um cara que só arrumava confusão no forró do meu pai. Que era
um tal de Jacaré. E nesse dia a cadeia soltou ele, e ele ia pra o
forró pra brigar mais né?
vai o mágico. A hora do mágico. O forró parado e todo
mundo olhando pra cara dele, com a dama do lado esperando
que música que o cara ia cantar. Pra você ter uma idéia da noção
do povo como era.
- Eu vou tirar um dinheiro do cigarro de qualquer um de vocês
aqui, quem quer vir aqui?
Todo mundo levantou a mão, o ajudante de meu pai que
estava combinado levantou a mão, e Jacaré imediatamente
abaixou a mão dele e disse: - Eu vou no seu lugar.
E o mágico chamando ele. E Jacaré tinha comprado um maço de
cigarro, tava fechadinho. Ele fez a conta, vinte cigarros, vinte
mil.
Aí o mágico disse: - Não, é aquele que levantou a mão primeiro,
apontando para o ajudante do meu pai.
meu pai falou: - Bom, vou para o outro lado da rua. [muitos
risos]
345
Os depoimentos de Oswaldinho são sempre muito leves, divertidos e
positivos. A história por ele narrada evidencia que a tentativa de inovação no
forró, por meio da inserção de uma outra linguagem de espetáculo, no caso, a
apresentação de um mágico, poderia não terminar muito bem. No forró, música
e dança representavam um ritual controlável, afinal, existiam códigos para o seu
funcionamento em um ambiente freqüentado por trabalhadores, desempregados,
bandidos, policiais, enfim, uma diversidade de segmentos sociais.
345
Depoimento de Oswaldinho do Acordeon, em entrevista concedida à autora em 30 de jun. de 2006.
185
No forró se conheciam mais ou menos os seus freqüentadores, o seu
público, tanto que Oswaldinho fala do Jacaré, um sujeito que era marginal e
era famoso por arranjar confusão dentro e fora do salão. Ele era um sujeito
conhecido, em linguagem coloquial, era uma figurinha carimbada.
A violência é assunto freqüentemente abordado pelos depoentes, o que
denota a necessidade de se falar sobre o assunto. Oswaldinho do Acordeon e Ari
Batera direcionam seus discursos no sentido de desestigmatizar o texto da
violência em torno do Forró do Pedro Sertanejo e, por conseqüência, em torno
do nordestino. Muitas foram as vezes que Ari Batera abordou e destacou o forró
como um ambiente familiar.
Em relação a essa questão da violência, Oswaldinho faz um comparativo
do forró com outros tipos de bailes que existiam na noite paulistana.
Porque aqui os bailinhos que existiam na época pra competir
com o forró, eram aqueles bailes de roqueiro que eu tocava
antigamente e acabava tudo em corrente, soco inglês, cabo de
aço e altas drogas né? LSD, cocaína, década perigosa né?
E no forró do meu pai se saía briga não era por causa de droga,
era por causa que às vezes a mulher ia no banheiro, e o outro se
engraçava: - Já vai meu amor, volta logo.
Aí o outro não gostava, tirava a faca e brigava.
346
Oswaldinho, nesse momento, destaca que a violência não era uma
exclusividade do Forró do Pedro, ou seja, não era apenas uma característica do
migrante nordestino, que também estava presente em outros ambientes
urbanos. Ele compara a violência que ocorria no salão do forró e a que se dava
nos bailinhos de roqueiros, que muitas vezes terminavam em briga. Destarte,
comenta que a causa da briga nos bailes de rock eram as drogas utilizadas pelos
grupos que freqüentavam esses ambientes, e que no caso do forró as brigas se
davam por causa do álcool ou do gênero feminino, direcionando o seu discurso
para um aspecto examinado anteriormente neste estudo, quando foram
346
Depoimento de Oswaldinho do Acordeon, em entrevista concedida à autora em 30 de jun. de 2006.
186
analisadas canções interpretadas por Jackson, Luiz Gonzaga e Dominguinhos
(ver Capítulo 2). Nos bailinhos de rock a briga era o centro do acontecimento, se
dançava brigando; no forró, podia ser que ocorresse briga, assim como podia
ser que não.
Segundo Oswaldinho, a mulher no forró seria o elemento desagregador
em um ambiente regado a bebidas alcoólicas, e nos bailes de rock os confrontos
seriam provocados pelas drogas e por uma intenção de violência pré-
estabelecida. Constata-se que a violência em meio a manifestações culturais
coletivas compõe a cena, cabendo observar que tais manifestações são
estratégias de luta por territórios materiais e psicológicos.
A mulher não era motivo de briga no forró; muitas vezes elas
próprias brigavam:
E tinha mulher que brigava bem, mas do que homem lá.
Teve mulher que desarmou três policial armado.
Porque quando tinha briga a polícia, ao invés de tirar numa boa,
a própria polícia puxava a arma, pra criar um auê. Então teve
uma mulher que deu tanto rabo de arraia em delegado, em nego
lá.
Tinha umas mulher que diziam pra meu pai: - Eu desarmo esse
cara.
Meu pai: - Que nada!
De repente a briga rolava e ói ela no meio, e desarmava, deixava
o cara caído no chão e dava a arma a meu pai e ia dançar.
Dizia: - Tá aqui Pedro.
E nessa época nego se aproveitava disso pra manchar o nome do
nordestino e o forró do pai. Daí, vai meu pai comprar
delegado. - Olha, não aconteceu nada disso, não sei que, não sei
que.
Convidava muito jornalista pra ir ao forró e criar o outro
discurso do forró.
Nós levamos um tempo pra conquistar confiança dos
paulistanos, nós levamos um tempo, mas meu pai conseguiu.
E tinha um quartinho que era de polícia. De polícia não, a gente
colocava o cara lá pra ele esfriar a cabeça, mas se ele não
esfriasse de lá, era recolhido.
E mesmo naquele quartinho, o cara algemado, o cara ainda
enfrentava a polícia.
O cara chegava lá: - Ê rapaz você é valente.
187
Ele respondia: - Você me batendo porque eu estou algemado,
tire isso aqui.
E tinhas uns cara que era valente mesmo e mulher mesmo.
347
O depoente procura destacar que os conflitos ocorridos no forró eram
contornados por Pedro, que buscava ter boas relações com o seu público, assim
como com os artistas, os jornalistas e os policiais, negociando com eles. Aos
poucos, conquistou a confiança dos paulistanos, conforme colocado. Convidava
jornalistas para divulgar a imagem de forró de forma positiva, nem que fosse no
boca a boca.
No forró também se observava o comportamento das pessoas no salão e
informações eram trocadas com os policiais. Pode-se confirmar esse aspecto na
figura do freqüentador do forró chamado de Jacaré, que, no episódio do mágico,
causou toda a confusão. No forró tinha-se a informação do ocorrido com ele, ou
seja, sabia-se que ele havia sido preso. As informações corriam no salão sobre e
entre seus freqüentadores, e Pedro negociava espaços e poderes, saberes e
informações de diversas ordens.
3.5 FORRÓ: PARA TODOS E PARA A FAMÍLIA
Ari, um dos filhos de Pedro Sertanejo, trabalhou junto ao pai, na casa de
forró e na Gravadora, até os últimos momentos da vida deste. Além disso, assim
como Oswaldinho do Acordeon, ele tem um trabalho autoral no qual campo e
cidade se amalgamam por meio dos ritmos nordestinos e do rock.
Ari Batera desdobra o que o forró significou e significa para ele:
O pai trouxe a gente pra São Paulo e ficou os baianinho da
Catumbi, no final das contas. Esse movimento do forró, quando
eu falo assim movimento do forró é pra falar do movimento da
347
Depoimento de Oswaldinho do Acordeon, em entrevista concedida à autora em 30 de jun. de 2006.
188
família nordestina. É assim que eu encaro o forró, não é assim o
gênero só. É uma filosofia mesmo de vida, os anseios.
348
O instrumento principal de Ari Batera é a bateria, embora tenha uma
formação musical abrangente ele toca também zabumba, triângulo e outros
instrumentos. A música chegou para ele, assim como para seus irmãos
Oswaldinho do Acordeon e Ariceçone da Zabumba, por meio do ambiente
familiar e do cotidiano. Vale destacar que os três irmãos ganharam sobrenomes
de acordo com os instrumentos que tocavam. Para eles, a música, o forró e a
gravadora estão correlacionados e impregnados de memória afetiva:
A minha primeira referência com a música foi o fole do Pedrão.
E pra não ficar fazendo bagunça dentro de casa ele apresentou
pra agente os instrumentos, apresentou o triângulo, o zabumba e
passou os primeiros passos de cada instrumento pra gente tocar.
Isso pra gente ficar ensaiando em casa, isso era a nossa forma de
brincar.
349
A música fazia parte dos momentos de brincadeira, que para eles
estavam conectados a momentos de trabalho, pois desde de muito cedo os filhos
de Pedro começaram a trabalhar no forró vida e arte estavam entrelaçadas.
Assim como Ari Batera, Oswaldinho do Acordeon iniciou-se musicalmente em
seu ambiente familiar. O Forró do Pedro, sua casa e sua gravadora foram
espaços de formação de músicos, de troca de saberes.
Eu nasci em 05/06/1954 e sou filho de Pedro Sertanejo, que era
sanfoneiro e afinador desse instrumento. O mesmo baiano de
Euclides da Cunha me passou o ensinamento do acordeom desde
cedo. Eu sou carioca e meus quatro irmãos e dois nasceram em
São Paulo. Na minha casa sempre se encontravam os
sanfoneiros para tocar ou trocar informações. Os mais
freqüentes eram Luiz Gonzaga, Sivuca, Gonzaga e muitos
outros. O meu pai me presenteou com uma sanfona de quatro
baixos quando eu tinha sete meses de vida. Fui crescendo e meu
pai me presenteando com novas sanfonas (de 40, 80 e 120
348
Depoimento de Ari Batera, em entrevista concedida à autora em 25 de nov. de 2006.
349
Depoimento de Ari Batera, em entrevista concedida à autora em 25 de nov. de 2006.
189
baixos). Meu pai participou de programas de TV como
Chacrinha, Coronel Nascizinho e era contratado da Rádio
Nacional. Fui autodidata até os 12 anos de idade, ouvindo e
tocando músicas de Gonzaga, Dominguinhos (aos 15 anos de
idade foi morar na nossa casa), Manoel Silveira, Sivuca e outros
sanfoneiros. Em São Paulo (para onde a família se mudou)
procurei escola de acordeom, mas não encontrei e tive que
estudar piano uns seis anos. Aos 16 anos, conheci o italiano
Dante, que foi meu professor de música clássica e acordeom até
o mesmo voltar para a Itália e passou incumbência aos
ensinamentos de outro professor italiano, Paulo Fiola.
350
Esse trecho de entrevista revela que a iniciação musical de muitos
sanfoneiros se deu por meio da oralidade, da arte de observar, imitar e fazer,
tradicionalmente passada de pai para filho, e do processo de observação e
repetição. Oswaldinho, filho de Pedro, teve em seu cotidiano a presença de
alguns dos mestres do acordeom, como Luiz Gonzaga, Sivuca e Dominguinhos,
que chegou a morar em sua casa. Foi no cotidiano familiar que Oswaldinho teve
os seus primeiros contatos com a música e aperfeiçoou sua relação com a
sanfona.
Pedro Sertanejo aprendeu com o seu pai, Aureliano, em Euclides da
Cunha, e passou seu conhecimento a Oswaldinho do Acordeon, seu filho. A
convivência de Oswaldinho com muitos outros sanfoneiros de diferentes
localidades do Brasil expandiu suas referências musicais. Ao estudar piano com
um italiano, também professor de acordeom, aprimorou seus conhecimentos,
expandiu a sua musicalidade e se transformou em um dos grandes sanfoneiros
do Brasil e do mundo, transcendendo até mesmo os gêneros musicais que
aprendeu em família.
O mesmo aconteceu com Pedro Sertanejo e também com Luiz Gonzaga,
que tiveram sua referência primeira em seus pais, respectivamente Aureliano e
Januário, recombinando seus pontos de partida com diversos momentos de suas
trajetórias entre campo e cidade. Assim, como na maioria dos casos referentes à
350
Depoimento de Oswaldinho do Acordeon, em entrevista concedida a Antonio Carlos da Fonseca
Barbosa em 01 de set. de 2003. Disponível em: <www.ritmomelodia.mus.br/entrevistas>.
190
cultura popular, a sanfona foi um instrumento aprendido por muitos
instrumentistas em um ambiente familiar, comunitário e mestiço.
Em 1986, Oswaldinho gravou um disco com Pedro Sertanejo intitulado
“Forró em Família” (Phonodisc), no qual o estilo de tocar de pai e filho se
expressa em suas particularidades, simbolizando duas gerações diferentes de
acordeonistas e suas respectivas ligações com a música, em seus processos
particulares de reinvenção da tradição passada de pai para filho. Oswaldinho faz
interpretações mais modernizadas, com arranjos flexíveis em relação às novas
tendências apreendidas (tendências tecnológicas, música de concerto, rock
progressivo e jazz), e Pedro Sertanejo se manteve na tradição da música aos
moldes do apreendido com o seu pai, Aureliano, centrado no forró pé-de-serra,
ou seja, num forró mais próximo da referência rural, antes de conectar-se com a
cidade, tendo na base instrumental a sanfona pé-de-bode, o zabumba e o
triângulo.
Figura 17 - Capa do LP “Forró em Família”, de Pedro Sertanejo e Oswaldinho do Acordeon.
191
Figura 18 - Contracapa do LP “Forró em Família”, de Pedro Sertanejo
e Oswaldinho do Acordeon.
A música de Pedro possui uma característica repetitiva, como uma
oração entoada com firmeza. A capa do LP tem ao fundo o palco do Forró do
Pedro Sertanejo, cujo cenário remetia à geografia discursiva do sertão
nordestino, com imagens de trios nordestinos e da vegetação árida. É um disco
de forrós (com composições de Oswaldinho do Acordeon e de Pedro
Sertanejo), como se observa tanto nos títulos das músicas que aparecem na
contracapa, como também em seu conteúdo instrumental e musical. Nos títulos
das músicas destaca-se o processo de mestiçagem, no qual as coisas, as palavras,
a culinária, as sensibilidades, a sexualidade, a geografia, a natureza se
contaminam e se amalgamam.
Na primeira canção do disco, “Forró no Bráz”, Pedro Sertanejo destaca o
bairro paulistano em que se situava o seu forró; em Forró com Fritas”
Oswaldinho anuncia a mistura entre o forró, representante do discurso de
Nordeste, e um prato tipicamente urbano e rápido, a batata frita. Na seqüência
vêm “Forró Alagoano”, Forró na Cachoeira”, “Forró de de Serra”, “Forró
192
Atrivido”, “Forró em Aracajú”, “Forró Brejeiro”, “Forró do Luna”, “Forró no
Riachão”, “Forró in Concert” e “Forró no Cariri”. Vários destes títulos fazem
alusão a estados e cidades do Nordeste, destacando-se uma possível diferença
entre essas localidades na forma de sentir e fazer música, denotando diversidade.
Alguns se referem à natureza, como “Forró na Cachoeira” e “Forró de de
Serra”, este último enquanto significado de tradição. Já o “Forró in Concert” traz
à tona a contribuição de Oswaldinho do Acordeon no universo moderno e pop,
quando ele agrega ao título um enunciado metade em português, metade em
inglês.
3.6 FORRÓ: PODER, TENSÕES E SOCIABILIDADES
O poder da mídia do forró a queima
roupa é fantástico,
se você abrir uma sanfona aqui agora,
junta gente.
351
A política permeia a vida em toda a
sua extensão e intensidade.
352
O forró pode ser visto como espaço da cultura, do cotidiano e também
como espaço do político, pois foi local em que inúmeros migrantes de origem
humilde vindos do Nordeste para os grandes centros efetuaram experiências
populares de lazer e luta, experimentaram novas condições de vida, enfrentaram
as dificuldades da inserção econômica, de entendimento dos códigos urbanos e
da superação do preconceito. Adentrar-se-á nessa temática pelo discurso de Ari
Batera, que toca nas generalizações e estereotipias que se fizeram pelo e em
torno do nordestino nos centros urbanos do Sudeste.
351
Depoimento de Ari Batera, em entrevista concedida à autora em 25 de nov. de 2009.
352
SADER, Eder. Quando novos personagens entraram em cena. Experiências, falas e lutas de
trabalhadores da grande São Paulo (1970-1980). 2ªed. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1998. p.15.
193
O sulista ele confunde por exemplo pernambucano, baiano, quer
dizer pra eles em São Paulo é tudo baiano, no Rio de Janeiro é
tudo paraibano, então ele não diferencia a cultura do forró de
Pernambuco que teve suas lutas, enquanto que a Bahia teve
um outro tipo de invasão e tem uma outra mentalidade, por
exemplo o italiano de São Paulo já não parece com o italiano
que veio de lá, é outra cabeça. Falando por exemplo da
musicalidade eu sinto assim, falando do forró, dos dois pé-de-
serra, do de Januário, e do de Pedro Sertanejo você sente a
diferença cultural, nos dedos, na forma de tocar. É o suar da
coisa, é o sentimento de uma terra que faz você falar através
daquele instrumento. Então a Bahia teve uma outra agressão,
vamos dizer assim no tempo da colonização, um outro tipo de
anseio, um outro tipo de problema, isso tudo gera na
musicalidade aquilo né, você não pode gritar, então você toca ou
canta.
353
Ari termina a sua colocação falando que, em sua compreensão, cantar e
tocar são linguagens que expressam pensamentos, sentimentos de alegria,
angústia, revolta, estratégias. Fala ainda que cada artista traz especificidades no
sentir que estão expressas nas nuances, nos detalhes, na forma de tocar, de pegar
no instrumento, nas inflexões do canto, no sotaque, especificidades essas que
estão intrinsecamente relacionadas ao processo histórico pessoal em conexão
com o processo histórico coletivo do lugar de onde cada um veio.
Ele chama a atenção para as particularidades e multiplicidades culturais
existentes nas diversas localidades do Nordeste brasileiro, que, no entre-lugar
campo-cidade, foram editadas em torno da unidade da região Nordeste.
354
Para
ele, cada localidade apresenta aspectos culturais diferentes, e, quando se
generaliza, focaliza-se apenas o discurso dominante, aquele que emergiu e
instaurou-se. Ele observa o político por intermédio da linguagem artística com a
353
Depoimento de Ari Batera, em entrevista concedida à autora em 25 de nov. de 2009.
354
“A região não é uma unidade que contém uma diversidade, mas é produto de uma operação de
homogeneização, que se dá na luta com as forças que dominam outros espaços regionais, por isso ela é
aberta, móvel atravessada por diferentes relações de poder. Suas fronteiras são móveis e o Estado pode
ser chamado ou não a colaborar na sua sedimentação. O Estado é, na verdade, um campo de luta
privilegiado para as disputas regionais. Ele não demarca os limites político-institucionais das regiões,
mas pode vir a legitimar ou não estas demarcações que emergem nas lutas sociais.” ALBUQUERQUE
JÚNIOR, Durval Muniz de. Op. cit., 1999. p.26.
194
frase “você não pode gritar, então você toca e canta”. Ou seja, o político
355
, para
Ari Batera, também se encontra na linguagem musical e corporal, nos objetos da
cultura e na estética.
Todavia, cabe notar que a generalização do discurso e suas estereotipias
não se fazem apenas de fora para dentro; elas são também uma construção de
dentro para fora do próprio discurso do migrante. Em meio às misturas e à
interação entre o particular e o que se torna hegemônico em cada momento,
dentro do mercado musical, criaram-se discursos generalizantes que, portanto,
não representavam as diversidades artísticas que estavam presentes nas nuances
dos objetos da cultura.
A confusão começa no próprio Luiz Gonzaga, até os próprios
amigos que vivem da carreira, às vezes numa resposta rápida
respondem o que fica pra sempre, por isso o perigo que é esse
negócio do microfone, que a gente tem como arma ou o
instrumento. É que você vai falar, é que você vai invadir a
casa do sujeito, começa a confusão pelo pernambucano e pelo
baiano, só que nordestinos nem sempre nasceram na mesma
terra.
356
Ari destaca o processo de construção do discurso do artista por meio do
rádio, metaforizando a função do microfone, que ele associa à função de uma
arma, atribuindo-lhe a conotação de uma estratégia de luta. Ele traz consigo a
visão da arte como meio transformador, como estratégia política enquanto arte
de ocupar espaços de saber e poder.
355
“Por outro lado, a esfera do público não deve ser simplesmente identificada com a esfera de poder e
da autoridade. As redefinições do político, frente ao deslocamento do campo do poder das instituições
públicas e do Estado para a esfera do privado e do cotidiano, a politização do privado e a privatização
do público são novas propostas colocadas à interpretação crítica do historiador e permite a ampliação
de questões metodológicas importantes, sem desconsiderar a abstração do engajamento político do
sujeito do conhecimento.” MATOS, Maria Izilda Santos de. A cidade, a noite e o cronista: São Paulo
e Adoniran Barbosa. Bauru, SP: EDUSC, 2007. p.29.
356
Depoimento de Ari Batera, em entrevista concedida à autora em 25 de nov. de 2009.
195
O microfone é o meio de comunicação, ou seja, o rádio, o show são
meios pelos quais o discurso do artista vai sendo formado e cristalizado na
interação entre o emissor e o receptor, de modo que, para Ari Batera, a
consciência dessa força é que faz a diferença na construção do discurso. Na fala
de Ari Batera observa-se que ele não é apenas narrador, mas faz parte da
narrativa. Ele está dentro dela, ele é parte dessa história, ele foi um dos agentes
históricos do Forró do Pedro Sertanejo e da Gravadora Cantagalo e, portanto, ele
também procura editar sua narrativa conforme as suas necessidades atuais.
Sabe-se que Gonzaga, com o sucesso alcançado por meio do rádio,
tornou-se representante de um discurso hegemônico de Nordeste perante outros
artistas dessa região, de modo que ele passou a ser referência e a influenciar
esteticamente. Muitos foram os artistas que passaram a tê-lo como modelo
estético, a usar o chapéu de cangaceiro e as roupas de vaqueiro, a fazer uso do
sotaque carregado, de provérbios e de expressões populares para comunicar-se
por intermédio do rádio e em apresentações ao vivo.
Em meio a um conjunto de símbolos que compunham a homogeneização
da região Nordeste para a visualização nacional, se faziam presentes as
particularidades, as exceções e as diversidades dos diferentes estados e
localidades nordestinos, entre campo, vila, cidade, litoral e sertão, em estado de
atrito, de negociações e conflitos na luta por um deslocamento de poder, na
conquista de espaços que se estabelecem em movimento.
Depois de Luiz Gonzaga emergiram outros artistas que conquistaram
espaço na cena nordestina nacional, como Jackson do Pandeiro e também Pedro
Sertanejo. Observa-se que cada um contou, em suas trajetórias de deslocamento,
com estratégias diferentes em contextos históricos, em tempos e em espaços
também diferentes. Para Ari Batera, artistas como Luiz Gonzaga e Pedro
Sertanejo levaram, mediante suas trajetórias, a compreensão para a comunidade
nordestina e também para a comunidade brasileira de que seria possível reverter
as condições de pobreza:
196
Eles ensinaram às pessoas do nada a ser alguma coisa, isso é o
forró, isso é a filosofia do forró.
E o que era o Forró do Pedro Sertanejo? Não teve nenhum
maestro, nenhuma faculdade, nenhum doutorado, teve os amigos
que sabiam de uma informação a mais que passava pro outro e
assim iam criando.
357
Neste depoimento percebe-se, na carga emocional da fala de Ari Batera,
uma certa angústia e um rancor ao rememorar e falar do passado, um passado
que é revivido no presente. Ele critica a falta de oportunidades iguais e
questiona, cobra subjetivamente a função do estado em equilibrar as
necessidades da sociedade. Em seu discurso, ele destaca ainda que, mesmo sem
grandes oportunidades, sem ter acesso à educação formal, ou seja, aos meios
formais de inserção, algumas pessoas emergiram e se deslocaram socialmente,
como Gonzaga e Pedro Sertanejo.
Vale ressaltar que Luiz Gonzaga veio à tona especialmente por
intermédio do poder do rádio enquanto meio fomentador do populismo,
enquanto estratégia política do governo, bem como que Pedro Sertanejo emergiu
em meio ao suporte de sua casa de forró, da comunidade migrante sem espaços
de lazer, da sua gravadora, de programas de rádio e de sua trajetória artística. Ele
criou suas oportunidades e uma rede de poderes que legitimou seu deslocamento
paralelamente aos meios de comunicação dominantes.
O Forró do Pedro Sertanejo funcionou diretamente como um negócio e
indiretamente como uma forma não-institucional de organização comunitária
que tinha como focos a música e a dança. Era espaço de sociabilidade, de
solidariedade, de troca de saberes e favores, atendendo a interesses individuais e
a um grande número de pessoas em sua maioria desfavorecidas, sem maiores
oportunidades e que se encontravam na cidade de São Paulo enquanto migrantes
em diversos contextos diferentes. O forró era espaço de sociabilidade e, como
357
Depoimento de Ari Batera, em entrevista concedida à autora em 25 de nov. de 2009.
197
tal, era também espaço do político, no qual relações eram estabelecidas e
negociadas com os representantes do estado para que ele continuasse existindo.
O forró não era um ambiente sem conflitos. O trabalho de Pedro
Sertanejo se dava justamente em meio ao contexto do conflito. Pedro trabalhava
diretamente com ele, dentro dele, negociando espaços, criando estratégias e
persistindo em sua luta, às vezes ganhando, outras perdendo, avançando e
recuando, concordando e enfrentando.
Nós não inventamos o forró na calcinha da bunda da menina,
nós inventamos o forró pra você com a sua mulher, com a sua
filha. Nós inventamos o forró aonde o bandido e a polícia se
encontram e os dois se respeitam. Pode se matar fora, mas
aqui dentro não. Uma época aonde dois podiam estar
conversando na esquina e era motivo para a repressão chegar
e matar, o velho conseguiu botar o preto, o nordestino, o ladrão,
a polícia, a elite, dentro de um ambiente fechado, onde não se
tinha... [ele se emociona muito nesse trecho do depoimento]
358
O forró é colocado como um território onde as diferenças conviviam e
que fazia parte da luta do migrante nordestino pela sua inserção. É afirmado
ainda enquanto espaço simbólico de troca e luta por poder. Esta é a interpretação
de Ari Batera acerca do forró enquanto estrutura material e imaterial. Ele fala
então do período da ditadura militar e a emoção vem à tona; momentos turvos e
de tensão emergem nas suas memórias.
O Forró do Pedro Sertanejo funcionou e teve seu ápice por todo o
período da ditadura militar, desde 1964, momento em que a censura e o clima de
terror estavam estabelecidos e, ao mesmo tempo, momento em que novos
personagens entraram em cena:
A extensão e as características de movimentos populares nos
bairros de periferia da grande São Paulo, a formação do
chamado “movimento do custo de vida”, o crescimento de
correntes sindicais contestadoras da estrutura ministerial tutelar,
358
Depoimento de Ari Batera, em entrevista concedida à autora em 25 de nov. de 2009.
198
o aparecimento das comunidades de base, as greves a partir de
1978, a formação dos partidos dos trabalhadores seriam
manifestações de um comportamento coletivo de contestação da
ordem social vigente.359
Nas décadas de 1960 e 1970, os migrantes nordestinos eram pensados
pelas esquerdas como forças motrizes
360
importantes para as transformações nos
campos da política e da cultura, o que eclodiu com a emersão do sindicalismo de
massa e a participação dos populares e trabalhadores nos partidos emergentes de
esquerda.
O sujeito básico, agente das transformações nesse nacional-
popular, era o camponês nordestino; de preferência o retirante,
os pescadores naquelas canções praieiras todas. Supunha-se que
a aliança retirante-favelado seria a grande força motriz da
história. [...] Não era o pessoal do CPC. Existia isso
posto
no conjunto da sociedade. Esses temas invadiram toda
arte, toda cultura.
361
Subjetividades, situações complexas e antagônicas vêm à tona na trama
de poderes deste período, por meio do depoimento de Ari:
Sinto muito pra os grandões aí, você deve a sua cultura não é a
política não, mas a esses homens aí, enquanto meia dúzia de
lutadores tinham uma certa causa e não sabiam nada da vida,
estou falando do Gil e do outro que foram exilados.
Pra você ver a educação dos nordestinos que tanto a gente julga
errado como o Pedrão, o Gonzagão porque nasceram no mato.
Enquanto eles estavam fora [Gilberto Gil e o outro], expulsos. A
mesma repressão que expulsou eles, mantinha nós ali como
359
SADER, Eder. Op. cit., 1998. p.30.
360
“O romantismo das esquerdas não era um simples volta ao passado, mas também modernizador.
Ele buscava no passado elementos para a construção da utopia do futuro. Não era, pois um
romantismo no sentido da perspectiva anticapitalista prisioneira do passado, geradora de uma utopia
irrealizável na prática. Tratava-se do romantismo, sim, mas revolucionário. De fato, visava-se resgatar
um encantamento da vida, uma comunidade inspirada no homem do povo, cuja essência estaria no
espírito do camponês e do migrante favelado a trabalhar nas cidades - como fica claro nas palavras do
cineasta Nelson Pereira dos santos: Naquela época a favela era um ambiente semi-rural. As pessoas
estavam reproduzindo condições de existência que tinham no campo, fora da cidade.” RIDENTI,
Marcelo. Em busca do povo brasileiro. Rio de Janeiro: Record, 2000. p.25.
361
Depoimento de Alípio Freire, em entrevista concedida a Marcelo Ridenti. Cf.: Ibidem. p.21.
199
exemplo de família, não fechavam o nosso forró porque o
capitão que era nordestino... [volta a se emocionar muito].
Não ali eu posso levar a minha família, não fecha ali não.
Muitos receberam abaixo-assinados da vizinhança, da elite
xarope que vivia em volta da gente e botava zero porque era
importante pra eles, inclusive como governo, ter uma referência
familiar de ver acontecer na Catumbi.
Então funcionou mais de vinte e cinco anos o Forró de Pedro
Sertanejo, em uma instituição cristã, aonde dentro depois do
forró ele abria para uma igreja evangélica, eu só estou
continuando, vocês estão estranhando? Sempre foi assim.
362
Nesse depoimento, Ari Batera revela que o forró era mantido pela
relação estreita que Pedro Sertanejo foi construindo e mantendo com a polícia,
ou seja, com os representantes do Estado. Ele chega a comentar
metaforicamente que a mesma repressão que exilara Gilberto Gil e Caetano
Veloso mantinha o forró aberto, porque, segundo ele, o forró era freqüentado
pelo capitão, pelos representantes da polícia, que viam no forró uma
possibilidade de diversão para eles próprios, uma referência familiar. Observa-se
atravessando o discurso de Ari Batera, mesmo que de forma subliminar e
inconsciente, uma expressão típica do pensamento dos militares da época em
torno da defesa da tradição, da família e da propriedade privada.
Percebem-se na fala de Ari Batera questões conflituosas e complexas que
envolviam a negociação da continuidade do funcionamento do espaço do forró.
Percebem-se também lembranças do momento político de repressão que estava
instalado no país, que vivia a ditadura militar, momento esse em que os
trabalhadores estavam se movimentando, tomando consciência das atitudes
políticas, articulando estratégias de luta e reivindicando melhores condições de
vida.
362
Depoimento de Ari Batera, em entrevista concedida à autora em 25 de nov. de 2009.
200
Destaca-se que o procedimento do Estado em relação à existência de
espaços públicos de expressão popular era radicalmente de controle de possíveis
reivindicações e contestações críticas.
Na experiência cotidiana dos trabalhadores nesse período esteve
presente uma desarticulação de espaços públicos de expressão
popular e sua paciente refeitura por caminhos que prenunciam a
eclosão dos movimentos sociais. Assistimos tanto ao
fechamento de espaços públicos de manifestação política quanto
ao fechamento de espaços públicos de convivência social, por
onde se coletivizavam experiências sem incidência direta na
institucionalidade política.
363
Além do fechamento dos espaços de sociabilidade que sinalizassem
aspectos de manifestações políticas, o controle tornou-se intenso no setor da
indústria cultural:
Houve uma notável expansão da indústria cultural no período
pós 1964, registrada no extraordinário crescimento da venda de
revistas e jornais e sobretudo, no aparecimento e êxito de séries
de livros de popularização científica. Essa expansão se deu ao
lado de um mais rígido controle sobre seus produtos. Tratou-se
de apagar a presença de debates, contestações, críticas, sendo o
controle mais gido nos meios de maior impacto, como a
televisão e o rádio.
364
Diante dessas circunstâncias, torna-se compreensível que o
funcionamento da casa de forró se manteve, conforme Ari Batera apontou
anteriormente em depoimento, em função do espaço de negociação com os
setores repressivos da sociedade criado por Pedro Sertanejo naquele momento.
Ari destaca em sua fala que no salão do forró conviviam o trabalhador, o
policial e também o marginal, revelando então a possibilidade de conflitos de
diversas ordens em meio ao ambiente do Forró do Pedro.
363
SADER, Eder. Op. cit., 1998. p.115.
364
Ibidem.
201
Nesse período, o Brás era um bairro tipicamente operário e nordestino,
conhecido como parte dos distritos do centro histórico, onde existia uma enorme
concentração de moradores vivendo em cortiços. Acolhia uma população
flutuante de trabalhadores – bancários, balconistas, garçons, empregados de
escritórios e serviços de limpeza, engraxates, zeladores, vendedores ambulantes
e os passantes em conexão entre casa e trabalho
365
, configurando um ambiente
propício inclusive para possíveis articulações políticas de esquerda.
O forró foi compreendido por Ari Batera como espaço em que
imperavam outros códigos de convivência; conforme o depoente, as diferenças
eram deixadas do lado de fora, não se admitia conflitos dentro do salão.
Percebe-se que na casa de forró existiam códigos específicos de convivência que
reproduziam às vezes o comportamento e a mentalidade trazidos com os
migrantes do campo para a cidade. A convivência era estabelecida entre
diferentes segmentos sociais, mas trabalhava-se para a manutenção desses
códigos, ou seja, toda uma outra história de trabalho e de negociações se dava
paralelamente ao espaço do lazer e fora do salão, história essa que nem sempre
era de alegrias e satisfações.
Eu tive um outro caminho que os meus outros irmãos já não
tiveram. Eu tava tocando bateria, se tivesse qualquer cisquinho
de briga eu ia pra não aparecer a briga, porque assim a gente
não admitia, a gente tava dentro feliz, de repente um maluco
vinha dar um tapa na cara do outro e sua mãe ali dentro ver
aquilo, não tinha sentido. Se passasse disso aí sim, aí tinha
repressão com a gente. Tinha um quartinho pra os cabra valente
lá, que a gente trabalhou, com gente da garra, da civil, do dops
[ele sussurra nesse momento]. teve um efeito político muito
grande que eu não posso nem abrir aqui talvez agora, mas muita
casa caiu através do Forró do Pedro Sertanejo, tudo o que não
foi pra mídia, tudo o que não na mídia, tudo o que ficou ali
morreu em particular, quem viu viu. Agora pra eu abrir as
estorinhas claro que você vai ligar uma coisa com a outra, você
vai ter um filme na
sua cabeça. Então tem coisas do forró que são as fotografias,
tem coisa que a gente não concorda politicamente e que a gente
365
Ibidem. p.127.
202
teve que ficar quieto porque muita gente se daria mal, porque a
gente não concorda. Olha, a gente saber, por exemplo, uma das
coisas ruins por exemplo que o forró, porque assim, o forró era a
mídia do povo, que na época da televisão, em que a televisão
chega no Brasil com dez anos de diferença, ela chega em 1950.
No Brasil em 1960, até lá não tinha nada de televisão, a partir do
forró que começa a se apresentar alguma coisa familiar. Agora
quem fazia televisão tinha parte, os seus donos eram a elite, e a
população? Ainda não chegava para a população. Então a única
mídia, a única forma que o cidadão tinha de ver o artista que ele
gostava, era no Forró do Pedro, era a televisão direta, ao povo, a
queima roupa. Tanto é que os camarada acontecia, faziam
sucesso na televisão, mas o forró é que tinha que passar, ou
então era boaite e gafieira. Agora casa familiar não, era o forró.
começa o Rock and roll gostar da idéia fazer a casa do rock,
começou a dividir as tribos. O sambão, o caipiródromo veio
acontecer em 70 sei lá quase 80.
366
Em geral, os conflitos que se davam no salão eram de ordem social, mas
Ari Batera não descarta a possibilidade de no forró terem ocorrido também
conflitos de ordem política. Ari frisa que tinham coisas que aconteciam no forró
com que eles não concordavam, mas tinham de negociar. Parece ficar guardado
no ato falho da memória e da sua fala, sobretudo no modo de expressão
sussurrado, em seu tom de voz, que concessões foram feitas para que a casa de
forró permanecesse ativa.
Outro aspecto abordado por Ari Batera é o surgimento e a expansão da
televisão e ainda a sua precária popularidade, porque ainda não fazia parte da
vida dos segmentos sociais menos favorecidos. Ele então compara o Forró a
uma mídia direta, o que denota um poder extra ao forró não como espaço de
sociabilidade, mas também como espaço de formação de gostos e
comportamentos.
O forró contava com o suporte recíproco da gravadora Cantagalo, que
funcionava no mesmo espaço do forró e de seus programas de rádio. Pedro criou
um circuito de atividades que se autofortaleciam e negociavam espaços de
saberes e poderes.
366
Depoimento de Ari Batera, em entrevista concedida à autora em 25 de nov. de 2009.
203
CAPÍTULO 4
CANTAGALO: GRAVANDO OS NORDESTES
204
Este capítulo analisa, por meio da história oral, de fontes musicais
(letras), rótulos, capas de LP’s e fotografias, o processo de constituição da
Gravadora Cantagalo, sua relação com a casa de forró de Pedro Sertanejo e seus
programas de rádio. Abordam-se também aspectos do seu cotidiano de trabalho,
os artistas que fizeram parte de seu elenco e o processo de produção do disco até
o seu resultado final. Destacar-se-á ainda a discografia de Pedro Sertanejo e de
artistas de gêneros nordestinos em outras gravadoras – os múltiplos nordestes.
4.1 COMEÇANDO: NOVOS DESAFIOS
Em 1964, Pedro Sertanejo montou uma sala com o intuito de gerenciar a
carreira de outros artistas. Com o tempo, o negócio foi ganhando corpo, força e
maiores proporções econômicas, devido à quantidade de artistas migrantes que
estavam começando e não tinham oportunidades com as gravadoras já existentes
e outros que estavam no mercado da música sem contrato com a indústria do
disco.
A Cantagalo começou na rua Juréia na Vila Mariana. Era junto
da casa da gente. Ela tinha uma sala só, era bem complicado.
depois a Cantagalo passou a ser dentro do salão, meu pai
montou um estúdio de gravação, e embaixo, como o salão era
enorme e tinha várias salas, ele botou o estoque da Cantagalo
lá. Final de semana era o forró e durante a semana estúdio de
gravação, gravadora e estoque ao mesmo tempo.
367
Um dos fatores que possibilitou o desenvolvimento da gravadora
Cantagalo foi a presença de um grande público consumidor de migrantes
nordestinos habitando as periferias de São Paulo. Nesse processo de interação
367
Depoimento de Oswaldinho do Acordeon, em entrevista concedida à autora em 30 de jun. de 2006.
205
com o novo ambiente, a figura dos artistas, as músicas compostas e interpretadas
por eles e os espaços de sociabilidade foram fundamentais elos entre esses
migrantes e o seu universo simlico entre o campo e a cidade. Eles tinham nas
músicas e nos artistas nordestinos, que também eram migrantes e, em muitos
casos, estavam passando pelos mesmos processos, uma tentativa de adaptação e
inserção no contexto urbano, uma representação afirmativa daquele momento
histórico que estavam vivendo.
Nos espaços de sociabilidade, na interação entre música e dança, nos
forrós ou ainda no processo musical auditivo e reflexivo das cantorias e dos
repentes, eles podiam viver tempos e ambientes semelhantes aos vivenciados no
Nordeste. Eles experienciavam, por intermédio do corpo e da memória afetiva,
hábitos remotos no comer, dançar, tocar, festejar, ouvir, cantar e ritualizar em um
espaço lúdico e virtual que representava o passado, que havia sido deixado para
trás, mas permanecia no imaginário.
368
A “Cantagalo” antecedeu o Forró que funcionava na Rua Catumbi, era
um selo independente e, como tal, foi sendo montada e articulada conforme as
possibilidades econômicas de Pedro Sertanejo, que criou uma rede de atividades
e contatos sociais interligados sua casa de forró, seus programas de rádio, sua
atuação como instrumentista, artista, compositor e produtor artístico.
A gravadora funcionava dentro do forró e tinha um escritório de
representação no Largo da Concórdia, no Brás. Ele era
representante dos artistas do Nordeste, pra poder divulgar os
amigos né? Acontece que o público, a demanda era maior do
que a idéia dele, a aceitação. Então virou uma gravadora, o
espaço não podia mais ser uma salinha dessas, que era uma
salinha dessas.
369
368
“O migrante nordestino, vindo do meio rural, era geralmente familiarizado com a prática musical.
Esta era pra eles mais muscular’ que ‘auditiva’, ou seja, eles não estavam acostumados a parar para
ouvir música, mas para fazer ou dançar música. Tocar violão, sanfona, pandeiro, zabumba,
instrumentos de bandas marciais, era uma prática generalizada, abandonada ou restringida pelo contato
com a sociedade urbano-industrial, cuja música se torna cada vez mais recebida que praticada.”
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo:
Cortez, 1999. p.156.
369
Depoimento de Ari Batera, em entrevista concedida à autora em 25 de nov. de 2009.
206
A princípio, conforme depoimento de Ari Batera, a Cantagalo era apenas
uma sala de representação, ou seja, Pedro tentava negociar com gravadoras
existentes a possibilidade de artistas conhecidos ingressarem nos seus elencos,
transacionando as etapas do processo produtivo do disco, como a produção, a
gravação, a prensagem e a distribuição.
Quando Pedro abriu a Cantagalo, ele possuía familiaridade com
algumas etapas do processo de produção de um disco, afinal, ele já havia atuado
como artista em diversas gravadoras (Copacabana, Todamérica, Continental
370
,
Caboclo e Sabiá). Pedro, em sua experiência pessoal e artística, foi tomando
contato com o funcionamento interno das gravadoras, até abrir a sua, a
Cantagalo, que foi instalada na sua casa de forró, no Brás, que funcionava num
prédio de três andares alugado.
A possibilidade de conglomerar várias atividades em um único espaço
revela o tino comercial de Pedro enquanto empreendedor. No mesmo espaço ele
acomodou a sede do forró, a sede da Gravadora Cantagalo, um estúdio de
gravação, escritório de representação e estoque.
4.2 GRAVANDO NO BRASIL
A lâmpada vermelha acendia para o chefe da orquestra dar
início à música e permanecia durante toda a execução. Ao
terminar, na expectativa de a luz apagar e o silêncio poder ser
quebrado, um segundo sinal da campainha aumentava a atenção
dos músicos. Era o engenheiro de som, na sala ao lado,
transmitindo pelo alto-falante o resultado da gravação para a
revisão da prova.
371
370
“A Continental chamou-se a princípio Columbia, nome do selo norte-americano que representou no
Brasil até 1943, quando este selo estabeleceu filial nacional própria; em 1994 a continental foi
comprada por outro gigante norte-americano, a Warner. Os selos Todamérica e Chantecler, a princípio
independentes, com o tempo foram englobados pela Continental. Vários selos pequenos, como CEME/
Premier, Fermata e Som Maior (ex- Àudio Fidelity), incorporaram-se à RGE no anos 1960 e 1970; por
sua vez a RGE terminou engolida pela Som Livre 1999/ 2000.” MUGNAINI JUNIOR, Ayrton.
Adoniran. Dá Licença de contar. SãoPaulo: Ed. 34, 2002. p.201.
371
FRANCESCHI, Humberto M. A Casa Edison e seu tempo. Rio de Janeiro: Sarapuí, 2002. p.209.
207
Esta epígrafe revela como se dava o processo de gravação de um disco.
Sabe-se que uma das primeiras gravadoras a instalar sua fábrica no Brasil foi a
Odeon
372
, em 1913:
A instalação da fábrica constituiu um marco sob vários aspectos.
Partindo-se do ponto de vista industrial, foi a primeira fábrica
com tecnologia específica e nova para a época. O aspecto mais
importante, no entanto, foi estabelecer bases de controle no
processo de cultura popular através da música - o grande
elemento de força no sub-consciente coletivo - e que cresceu,
com métodos requintados, até chegar aos níveis devastadores
que hoje conhecemos.
373
A Odeon foi fruto de um contrato empresarial entre Frederico Finger
374
(Casa Edison)
375
e a sociedade internacional Talking Machine Co., uma indústria
alemã que enviara o projeto para ser implantado no Brasil.
A fábrica, prevista para a produção de 1.500.000 discos por ano,
podia ser considerada de grande porte para a época. Envolvia
tecnologia toda nova. Abrangia desde o primeiro tratamento da
cera gravada protetora da camada de grafite, até a produção dos
chamados “biscuits”, que eram discos antes de ser prensados.
Além da linha de produção industrial, incluía todo o processo de
controle de qualidade e percepção de mercado, através do
lançamento de amostras de novas gravações. Essas amostras,
para avaliar a reação do público nas lojas distribuidoras, eram
apresentadas com etiquetas manuscritas, à tinta, contendo o
título, o intérprete e, às vezes, o número do disco. Faziam-se,
também, edições de folhetos e catálogos, além de anúncios em
jornais.
376
372
“Os discos produzidos por ela, hoje conhecidos como da Casa Edison, seriam, também, Odeon.”
Ibidem. p.196.
373
Ibidem. p.198.
374
Frederico Figner era um austríaco naturalizado norte-americano que introduziu o fonógrafo no país
e abriu a Casa Edison. GONÇALVES, Camila Koshiba. Música em 78 rotações. Discos a todos os
preços na São Paulo dos anos 30. Dissertação (Mestrado em História Social), USP, São Paulo, 2006.
375
“O contrato a ele vinculado exemplifica como o domínio do capital internacional, já naquela época,
se processava de maneira sutil mas extremamente enérgica.” FRANCESCHI, Humberto M. Op. cit.,
2002. p.200.
376
Ibidem. p.198.
208
Os primeiros discos fabricados no Brasil foram feitos por meio do
sistema manual de prensagem.
377
Inicialmente, as gravações não obtinham bons
resultados sonoros, porque os processos de captação e reprodução eram
mecânicos. A qualidade começou a melhorar a partir da década de 1920, com o
desenvolvimento do sistema de gravação elétrica
378
e do microfone
379
, que
revolucionaram o processo de captação sonora.
No que diz respeito à reprodução do som, a passagem da tecnologia
mecânica para a elétrica foi gradativa e conectada aos avanços tecnológicos
relativos à transmissão da música por meio do rádio. Após o gramofone veio a
vitrola
380
, que ainda funcionava de maneira mecânica, e, por fim, na relação
377
A fábrica Odeon era composta por onze departamentos e tinha auto-suficiência industrial. Com
uma equipe de 150 operários, operava com trinta prensas manuais de precisão capazes de produzir
125.000 discos por mês. Para um dia de trabalho, previam-se serem feitos, em média, 4166 discos, o
que daria 13 discos por hora de prensa, numa jornada de 12 horas, com um disco a cada minuto.
Ibidem. p.203.
378
Ao longo da primeira metade do século XX, houve mudanças na organização da fonografia no país.
Os cilindros foram substituídos definitivamente pelos discos, o fonógrafo pelo gramofone. O número
de gravações aumentou, uma fábrica de discos foi instalada no Rio de Janeiro e artistas da cidade de
São Paulo e do Rio Grande do Sul passaram, timidamente, a fazer parte do repertório dos
companheiros fonográficos. Em seguida, nos anos 20, a tecnologia mecânica de gravação de discos
deu lugar à tecnologia elétrica, e o gramofone foi substituído pela vitrola. A cidade de São Paulo
passou a abrigar estúdios de gravação permanentes, e o repertório tornou-se mais variado. Nas décadas
seguintes, a história da fonografia brasileira é mais conhecida, não apenas porque mereceu mais
estudos, mais também porque criou um modelo de atuação muito semelhante àqueles dos anos 70 e 80,
quando popularizou o formato do LP e, em seguida, nos anos 90, quando inaugurou o formato de CD
GONÇALVES, Camila Koshiba. Op. cit., 2006. p.10.
379
“Nas primeiras gravações elétricas pelo processo elétrico, foram levantadas questões quanto a
possibilidade de serem alterados níveis de execução; suposições geradas pelo desconhecimento do
novo processo. No entanto, o clima no estúdio de gravação era o mesmo a troca do cone metálico das
gravações mecânicas pelo microfone foi a única mudança visível.” FRANCESCHI, Humberto M. Op.
cit., p.209.
380
Veio a gravação elétrica (em 1925) e cada marca adotou um nome comercial. A Victor lançou a
Ortophonic Recording, a Columbia a Viva Tonal, a Odeon a Veroton. No mesmo ano a velocidade da
gravação foi uniformizada mundialmente em 78 rpm. Os gramofones ainda eram acústicos (sem
amplificadores), apesar de serem montados em móveis com a corneta embutida e compartimentos
para armazenar discos. Um dado curioso: todo aparelho de corneta embutida tinha o sufixo “ola” na
marca. Assim o aparelho de Edison que reproduzia os cilindros de amberol era a “Amberola”, da
Columbia era a “Grafonola”, da Odeon era a “Odeonola”, da Victor era a “Victrola”. O nome Victrola
era utilizado para designar o “top” de linha da Victor. No selo “Victrola” gravaram Caruso, Schipa,
Heifetz e Paderewsky, entre outros. Vulgarmente, os aparelhos de corneta embutida passaram a ser
conhecidos como vitrolas ortofônicas, que nada mais eram que gramofones montados em móveis. A
qualidade de reprodução era melhor, mas ainda deixava a desejar. Ainda em 1925, a Radio
Corporation of America (RCA) lançou o “Radiola 104”, um alto-falante para rádios desenvolvido pela
General Electric Co., que daria o impulso necessário ao surgimento da máquina falante elétrica.
ALMEIDA, Marcelo de. A evolução do registro sonoro. 03/07/2003. Disponível em:
209
entre o binômio gravadora-rádio, emergiu a radiola. Foi esta que proporcionou o
acesso a uma melhor qualidade de audição; a princípio, era uma tecnologia
destinada a servir às transmissões de rádio, e posteriormente foi popularizada.
Para além das mudanças do formato (cilindro ou disco) e da
qualidade do registro, talvez o aspecto mais relevante do
“progresso definitivo” gerado pela gravação elétrica tenha sido
ampliar o lugar da escuta da música, ao permitir que o amador
da música comum, possuidor de algum dinheiro, incorporasse a
máquina falante ao mobiliário doméstico.
381
Alguns selos coexistiram com o da Casa Edison durante as primeiras
décadas do século XX; eram eles:
Columbia Fonograma e Victor RCA, além de outros cinco, que
incluíam selos nacionais e estrangeiros: Gran Record Brasil,
Gaúcho, Popular/ Jurity, Faulhaber/ Favorite Record e
Imperador.
382
Com a fase da gravação elétrica (1927 e 1932) surgiram outros selos.
[...] quatro selos estrangeiros e três nacionais implantaram suas
fábricas e estúdios no Brasil; a partir de 1932 restaram no
mercado brasileiro apenas três selos estrangeiros: Columbia,
Victor e Odeon.
383
Na década de 1950, entre as companhias internacionais de disco que
atuavam no Brasil estavam a Odeon, Sinter, Copacabana
384
, RCA e a
Continental
385
.
<http://www.construindoosom.com.br/linha_do_tempo/som/evolucao_do_registro_sonoro.htm>.
Acesso em: 16/03/2009.
381
GONÇALVES, Camila Koshiba. Op. cit., 2006. p.49.
382
Ibidem. p.47.
383
Ibidem. p.47.
384
Em 1956, Pedro Sertanejo gravou seu primeiro disco em 78 rotações, pela Copacabana, no Rio de
Janeiro.
385
MIDANI, André. Música, ídolos e poder. Do Vinil ao Download. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2008. p.66.
210
Na cidade de São Paulo, desde a primeira metade do século XX, mais
especificamente da cada de 1930 em diante, instalaram-se estúdios de
gravação permanentes e fábricas de discos com a tecnologia elétrica.
386
Nesse
ínterim, emergiram pequenos selos cujos discos foram gravados e difundidos no
Brás, levando a sonoridade das músicas produzidas nas ruas do bairro para as
gravações.
O bairro do Brás, no início do século XX, acomodava principalmente
parte da população migrante italiana. Seu cotidiano tinha um rico fluxo social,
aspecto que se tornou uma permanência desse bairro. Durante a semana, lojas de
discos deixavam soar a música rua afora, causando discussões e investidas legais
para o impedimento de tal procedimento. Era assim que os comerciantes das
lojas de disco procuravam atrair seus consumidores.
As calçadas, as ruas, os ambientes públicos do bairro tiveram uma
importância muito grande no processo de divulgação e de circularidade cultural
no Brás, por ser local onde convergiam moradia, comércio, trabalho e lazer. As
músicas eram tocadas pelos auto-falantes das lojas, mas o seu processo de
disseminação se dava também mediante métodos antigos, mais especificamente
mediante a oralidade dos violeiros e sanfoneiros.
387
O ouvir estava ainda muito
relacionado ao corpo todo, e não só ao ouvido; ouvir era também fazer a música,
tocar um instrumento, cantar e dançar.
[...] O bairro é o espaço de uma relação com o outro como ser
social, exigindo um tratamento especial. Sair de casa, andar pela
rua, é efetuar de tudo um ato cultural, não arbitrário: inscreve o
habitante em uma rede de sinais sociais que lhe são
preexistentes (os vizinhos, a configuração dos lugares etc.). A
relação entrada/ saída, dentro/ fora penetra outras relações (casa/
386
Gagliarde registrou sua fábrica de discos para gramofone, marca Ouvidor, na Junta Comercial do
estado de São Paulo, em 1
o
de abril de 1931, investindo um capital de 200:000$000 no
empreendimento. Naquele ano, a brica contava com seis operários e algumas máquinas, que
produziam discos com os selos Arte-Fone e Ouvidor. O estúdio de gravação ficava na então distante
rua da Mooca, longe do burburinho das ruas e dos sons dos automóveis e dos trens.” GONÇALVES,
Camila Koshiba. Op. cit., 2006. p.113.
387
Ibidem. p.88.
211
trabalho, conhecido/ desconhecido, calor/ frio, tempo úmido/
tempo seco, atividade/ passividade, masculino/ feminino). É
sempre uma relação entre o mundo físico e social.
388
A noite do Brás era marcada pela boêmia e o bairro era conhecido
enquanto moradia de bons músicos populares.
389
A chegada dos nordestinos, a
partir de 1950, deu continuidade ao processo de mestiçagem
390
e aglutinação de
culturas que já se verificava no bairro.
Quando Pedro Sertanejo abriu a sua gravadora no Brás, ele contou com
essa atmosfera existente no bairro, local de negociações e conflitos, lugar
movediço, ambiente que possuía brechas de controle por parte do Estado,
portanto, ambiente propício para se colocar um forró.
4.3 ELENCO/ GRAVAÇÃO E PRODUÇÃO GRÁFICA
Neste subcapítulo busca-se entender alguns detalhes da estrutura de uma
gravadora, como o seu processo de produção, aspectos técnicos de gravação,
distribuição, divulgação e a sua atuação na escolha dos artistas e na relação com
eles:
Para além do registro sonoro propriamente dito, as gravadoras
tinham suas estratégias de atuação frente ao ouvinte e ao artista,
e diversificavam ainda mais suas atividades quando se
responsabilizavam também pelo fabrico e pela distribuição dos
discos. As empresas fonográficas possuíam um campo de
atuação bastante amplo, que envolvia desde o desenvolvimento
da tecnologia para obter um som “puro” e “sem chiados”, até a
388
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 2. Morar, cozinhar. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996.
p.43.
389
GONÇALVES, Camila Koshiba. Op. cit., 2006. p.89.
390
“Há estudos que se dedicam a pesquisar as misturas culturais como um tipo de relação ente culturas
distintas e, também, dentro de uma mesma cultura, ou seja, refletir como e porque uma cultura se
apropria de outras que lhe são anteriores, ou como as informações culturais circulam e se transformam
dentro de uma mesma cultura. Segundo alguns destes estudos, o nome que se ao processo que
promove tais misturas é justamente mestiçagem.” RODRIGUES, Vagner. Fora da mídia e dentro do
salão. Samba Rock e mestiçagem. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Semiótica), PUC/SP,
São Paulo, 2006. p.17.
212
venda de discos ao ouvinte. Elas que elaboravam catálogos
periodicamente e distribuíam folhetos com as “últimas
novidades” em discos, faziam publicidade nos periódicos,
financiavam a instalação de emissoras radiofônicas, que
reservavam uma parte de sua programação para as “horas de
disco”. Para a confecção do fonograma, elas importavam o
maquinário e matéria prima necessários, empregavam certo
número de operários, negociavam as concessões e as áreas de
comercialização dos discos com suas matrizes na Europa e nos
Estados Unidos, além de registrar patentes junto aos órgãos
oficiais competentes. Eram também as gravadoras que
selecionavam artistas e com eles definiam o repertório.
391
No caso da Cantagalo, a logística funcionava da seguinte forma: atrás do
palco do forró ficavam as salas com o estúdio de gravação
392
e a técnica
393
. No
andar debaixo do salão ficavam as salas do estoque e a parte administrativa da
gravadora. Pedro, desde a década de 1950, foi aprendendo e formando em sua
trajetória uma maneira de fazer e de produzir os discos no entre-lugar entre
música, comércio e entretenimento. Ele tentou acompanhar os processos
atualizados de gravação, adquirindo equipamentos.
394
As únicas etapas da produção do disco que a gravadora Cantagalo não
realizava eram a prensagem do vinil e a reprodução gráfica das capas, o que se
pode constatar nos rótulos e capas dos LP’s produzidos, que levavam a
indicação das empresas responsáveis por essas tarefas. Alguns discos foram
prensados no Rio de Janeiro pela Companhia Industrial do disco, situada à rua
23 de Julho n
o
153, e outros em São Paulo pela Gravações elétricas S.A.,
empresa localizada na Avenida do Estado n
o
4755.
391
GONÇALVES, Camila Koshiba. Op. cit., 2006. p.11.
392
Sala acusticamente isolada na qual o som é captado.
393
É onde se encontram os equipamentos de gravação.
394
Fábio Paes recorda que, quando visitou o estúdio da Cantagalo, em 1970, viu na técnica do estúdio
uma mesa moderna de gravação que ele acreditava ser de quatro ou de oito canais e uma máquina
analógica de gravação. Ele disse não ter certeza do número de canais que a mesa possuía, mas que o
equipamento era de ponta para a época. Outro aspecto apontado por ele diz respeito ao processo de
gravação dos discos da Cantagalo: em um dia se gravavam todos os instrumentos e vozes, se fazia a
mixagem e se tirava a foto na anti-sala em que havia um cenário, e a produção do disco estava
pronta. Depoimento do compositor e historiador Fábio Paes, em entrevista concedida à autora em 13
de fev. de 2009.
213
Os rótulos dos discos produzidos pela Cantagalo tinham fundo azul e
exibiam a logomarca da gravadora, um galo cantando em cima de um vinil,
traçado em tinta prateada. Ainda no rótulo vinham impressos, também em tinta
prateada, o título do disco, o nome do artista, os títulos das músicas, seus
respectivos compositores, o ritmo e às vezes a data, o número do disco e os
dados da empresa responsável pela reprodução no rótulo.
Até a década de 1960, esses rótulos eram imprescindíveis no processo de
divulgação do LP e da marca da gravadora, já que até então os discos eram de 78
rotações e ainda não vinham envolvidos com capas de papelão. A partir de 1960,
emergiu o chamado LP
395
e as artes das capas passaram a ser mais importantes
que os rótulos. Destarte, abriu-se uma gama de possibilidades para divulgar a
imagem do artista, por intermédio de fotos, pinturas, desenhos, e a gravadora,
que passou a dar maior destaque à sua logomarca e a listar os artistas de seu
catálogo, cujos nomes muitas vezes apareciam nas contracapas dos LP’s.
Figura 19 - Rótulo da Cantagalo do disco “Recordação”, da artista
Carmelita e Trio Caruaru (sem data).
395
“No caso Brasileiro, durante os anos 60 e 70, a indústria fonográfica lançou mão de um novo
formato (o LP), em substituição aos discos de 78 rotações, que, aliado à atuação do estado brasileiro
no sentido de desenvolver uma ‘integração nacional via mercado’ proporcionou enormes ganhos à
indústria.” GONÇALVES, Camila Koshiba. Op. cit., 2006. p.28.
214
Figura 20 - Rótulo da Cantagalo do disco “Meu Ceará”, do artista Tonico do Juazeiro, 1967.
Comentando sobre as capas dos LP’s, Oswaldinho do Acordeon destacou
que na Cantagalo havia profissionais contratados para fazer a fotografia, a arte
gráfica e o fotolito de cada álbum, que eram enviados para a gráfica finalizar a
impressão, o corte e a colagem das embalagens. Por fim, a montagem dos LP’s
era realizada na sede da gravadora, onde funcionários encaixavam os vinis nas
capas. Em seguida, iniciava-se o processo de distribuição dos discos nas lojas
em que seriam comercializados.
A sonoridade dos discos produzidos pela Cantagalo seguia os padrões
tecnológicos da época. Inicialmente, fazia-se uma gravação analógica em fita,
que depois era reproduzida para os vinis e para as fitas cassetes, muito utilizadas
a partir da década de 1970, popularizando-se na década de 1980 com o
surgimento do toca-fitas.
215
Um dos artistas que mais obtiveram sucesso por meio da gravadora
Cantagalo foi Ary Lobo, de Belém do Pará
396
, que possuía um repertório
diversificado ritmicamente, flertando com o universo do samba e do baião.
Percebe-se em sua trajetória artística que ele abraçou instintivamente o entre-
lugar campo-cidade em suas possibilidades e recombinações rítmicas. Ele
mostrou, mediante seu repertório e sua forma de cantar, que de fato o samba e o
baião eram próximos territorialmente, ou melhor, tinham em comum o fato de
terem emergido em processos tensivos nas periferias dos centros urbanos,
habitadas por uma população em contínua mestiçagem.
quem compare seu estilo ao de Jackson do Pandeiro. Sabe-se que
ambos interpretavam músicas do compositor baiano Gordurinha, que compunha
sambas típicos do Recôncavo baiano, e também que eram exímios cantores de
cocos, os conhecidos sambas rurais. Mesmo com esses aspectos semelhantes, a
igualação desses dois artistas não passa de mais uma generalização entre tantas
dentro do processo mercadológico e competitivo do ambiente musical.
Ary foi um dos artistas mais importantes do elenco da Cantagalo e quem
mais se destacou nos quesitos popularidade e vendagem de discos, gerando um
bom retorno econômico para a gravadora. Ademais, seu disco intitulado
“Suplica Cearense”, lançado em 1966, propiciou a Pedro Sertanejo um prêmio
pela sua produção artística.
397
Destaca-se na capa desse LP um selinho com a
mensagem “Série Super Luxo”, registrando que o disco tinha um formato
sofisticado, nos arranjos e na capa.
396
Nascido em 1930, no Pará, Ary Lobo iniciou sua carreira de músico ainda como soldado da
aeronáutica. Contemporâneo e amigo de Jackson do Pandeiro, fizeram shows juntos. MULAMBADA.
Blog. Ary Lobo. 17/06/2007. Disponível em: <http://mulambada.blogspot.com/2007/06/ary-lobo.
html>. Acesso em: 05/03/2009.
397
Segundo depoimento de Oswaldinho do Acordeon, em entrevista concedida à autora em 30 de jun.
de 2006.
216
Figura 21 - Capa “Suplica Cearense”, Ary Lobo, Cantagalo,1966.
A arte da capa era um meio de representação do artista e do conteúdo do
disco, uma maneira de apresentar e tornar conhecida a imagem do cantor, além
de um atrativo ao público consumidor. Observa-se que a maioria das capas da
Cantagalo apresentava a fotografia do artista. Destaca-se nesta capa em especial,
da Série Super Luxo, os seguintes aspectos simbólicos
398
: o retrato é pintado em
fundo prateado, tonalidade que remete ao metal de mesmo nome, dando uma
aparência luxuosa ao disco; e o artista aparece com um sorriso simpático e
vestido de forma elegante, de gravata, neutralizando qualquer possibilidade de
regionalização visual. Sobre o retrato pintado vêm o nome do artista, a marca da
Cantagalo e o título do disco, “Suplica Cearense”, que é também o título de uma
398
“Acredito ter descoberto como ler retratos, não como um especialista em arte, atento às pinceladas
que revelam a mão do artista individual, mas como um historiador da cultura, para quem o retrato é
um sistema de signos. [...] Os meios utilizados nessa arte de auto-representação incluem gesto,
postura, expressão facial e uso de acessórios como roupas, mobiliário e outros itens importantes, como
livros, cães e criados.” BURKE, Peter. “A Arte de ler retratos”. Folha de São Paulo. Caderno Mais.
São Paulo, 29 de nov. de 1998. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/
fs29119803.htm>. Acesso em: 17/03/2009.
217
composição do baiano Gordurinha, que abre o Lado A do disco, uma toada que
aborda a questão da seca nordestina.
Figura 22 - Contracapa LP “Suplica Cearense”, Ary Lobo, Cantagalo,1966.
A linguagem fotográfica
399
é uma produção social. Portanto, falar das
fotos destacadas nas capas é também falar do tempo e espaço do uso desta
linguagem. A fotografia revela como os sujeitos querem ser vistos e, em conexão
com o suporte “capa de disco”, revela a imagem e o discurso artístico musical
presente no LP.
A Cantagalo tinha um fotógrafo contratado que era o responsável pelo
setor visual da gravadora, ou seja, ele fotografava e revelava as fotos que
399
“Como a fotografia é contingência pura e pode ser isso sempre alguma coisa que é
representada) - ao contrário do texto que, pela ação repentina de uma única palavra, pode fazer uma
frase passar da descrição à reflexão, ela fornece de imediato esses detalhes que constituem o próprio
material de saber etnográfico.” BARTHES, Roland. A Câmara Clara: Nota sobre a fotografia. Rio de
218
vinham nas capas dos LP’s. Na sede da Cantagalo havia uma salinha dele;
sabe-se que era funcionário presente tanto no forró como na gravadora.
Chamava-se Toninho Moreira e, curiosamente, era deficiente físico. Sobre isso,
Oswaldinho do Acordeon comentou:
Era o Toninho Moreira, ele não tinha braços nem pernas.
E o laboratório dele era lá dentro do salão também. Era numa
salinha pra ele. Ele fazia tudo. Com o queixo e com os
cotoquinhos pra segurar ali o negócio. Até hoje pra mim é um
mistério.
Ele batia as fotos e Luiz Gonzaga dizia “mete os cotoco meu
fio”.
Gonzaga falava isso.
Gonzaga fazia pose e dizia: “Mete os cotoco”. todo mundo
ria.
Ele era fixo na gravadora.
É aquilo que eu falei se meu pai gostasse da pessoa era
contratado eternamente. Não tinha essa.
400
Toninho foi o responsável pela produção fotográfica de inúmeras capas
da gravadora Cantagalo. Seu nome vinha ao lado da direção artística de Pedro
Sertanejo, como se pode comprovar observando a contracapa do LP de Ary
Lobo. Neste disco de Ary Lobo e no disco “Braza do Norte”, de Jackson do
Pandeiro, ele usou a técnica do retrato pintado.
As tendências estilísticas na fotografia, assim como em outras
manifestações artísticas, correspondem à época e ao contexto do
desenvolvimento e divulgação de novas técnicas. A prática de
pintar fotografias surge no final do século XIX, quando ainda
não existia o filme colorido. Como alternativa para os retratistas
aproximarem a imagem à realidade do mundo, retocando as
fotografias delicadamente com coloração de aquarela, anilina e
óleo.
401
Janeiro: Nova Fronteira, 1984. p.49.
400
Depoimento de Oswaldinho do Acordeon, em entrevista concedida à autora em 30 de jun. de 2006.
401
DAMASCENO, Cristina. A fotografia na Bienal do recôncavo”. Revista Ohun. Ano 4. Salvador,
dez. 2008. p.272.
219
Com o passar do tempo, essa técnica de pintura sob fotografia passou a
ser muito usada também em alguns processos de recuperação e restauração de
fotos. Neste tipo de técnica observa-se a interferência direta do fotógrafo ou do
profissional capacitado para a realização do trabalho de recriação da foto, dando
a ela status de obra de arte.
A contracapa trazia informações sobre o conteúdo do disco, o repertório
do lado A e do lado B, com os respectivos compositores das músicas e os ritmos.
Destaca-se neste disco a presença da toada, do baião, do coco e do samba.
Outro aspecto de grande relevância são os arranjos inusitados executados
por Saraiva e seu Conjunto, que fizeram o acompanhamento instrumental das
canções interpretadas por Ary Lobo no LP em comento. Foi utilizada uma base
instrumental de choro, com violão de sete cordas, cavaquinho e percussão, e,
aplicados a essa base, instrumentos solos como o órgão, o sax soprano e a
sanfona. O diferencial dos arranjos nesse disco está no uso desses instrumentos
para as introduções melódicas, os especiais que fazem a ponte da parte A da
música para a parte B e as finalizações. Cada faixa focalizava um desses
instrumentos, criando uma atmosfera musical original, diferente dos arranjos
que até então vinham sendo realizados para a gama de gêneros musicais
propostos em seu repertório.
Ary, em suas recombinações instrumentais, mostra as infinitas
possibilidades que as misturas podem proporcionar, explorando outros timbres e
criando deslocamentos particulares dentro das cargas históricas que carregam as
sonoridades instauradas. Ele, mediante a recombinação do órgão com uma base
rítmica de choro, universaliza uma música de temática regional, como “Suplica
Cearense”
402
. Isso demonstra como os instrumentos, os timbres e a sonoridade
402
“Logo se vê que as interpretações, quaisquer que sejam elas, são sempre portadoras de sentido. Isso
coloca, a todo instante, problemas de ordem metodológica. Do meu ponto de vista, interpretar implica
também compor. Inevitavelmente quando alguém canta e/ou apresenta uma música sob essa ou aquela
roupagem instrumental, atua igualmente, num determinado sentido, como compositor, O agente opera,
em maior ou menor medida, na perspectiva de decompor e/ou recompor uma composição.”
PARANHOS, Adalberto. “A música popular e a dança dos sentidos: distintas faces dos mesmos”.
220
iam fazendo parte de discursos que simbolizam geografias, territórios, etnias,
segmentos sociais, mentalidades enquanto construções históricas.
A escolha dos artistas e o processo de gravação eram feitos por Pedro.
Em alguns casos, era um processo pessoal e emotivo; em outros, a escolha era
pensada como um negócio, um investimento com possibilidades de lucro. A sua
gravadora, diferente das grandes editoras discográficas internacionais, não
possuía um planejamento estudado administrativamente, não fazia pesquisa de
mercado. Não faziam parte das práticas cotidianas da Cantagalo certas
dinâmicas racionalistas, o processo era intuitivo. O que estava em jogo era o
gosto e o tino comercial de Pedro: se ele gostasse do som e da pessoa, esta era
contratada e virava artista.
Meu pai era muito doido nessa época, ele ia muito pelo lado da
emoção.
Uma vez chegou um tal de Val do oito baixos com a camisa toda
manchada de sangue, parece que ele tinha furado um cara no
bar. E aí ele foi se esconder no forró do meu pai.
Aí meu pai falou: - O que é isso rapaz?
- Não seu Pedro, é que eu precisava de um dinheiro pra eu voltar
pro norte.
- Mas o que é que você andou aprontando?
- Não, um cara mexeu comigo aí, aconteceu isso, e eu to
precisando de um dinheiro pra comprar uma camisa e viajar.
- O que você faz?
- Eu toco sanfona de oito baixos.
- Vai comprar uma camisa e segunda-feira você grava um disco
aqui.
Aí o sujeito virava artista mesmo, meu pai não tinha essa.
Chegou ali dentro e os caras respeitavam muito ele por causa
disso.
Quando o cara chegava fazendo fofoca:
- Olha Pedro, Jackson falou assim assim, assim.
Ele depois chegava para o Jackson e dizia:
- Olha, chegou um cabra aqui que falou isso e isso de você. Por
ele ter tido coragem de ter falado isso eu vou gravar três discos
com ele.
Aí depois ele botava os dois juntos pra ficar amigo de novo.
- Guarda a faca e não sei que.
Revista Artcultura. n.9. Uberlândia, Universidade Federal de Uberlândia, Instituto de História, 2004.
p.25.
221
Neste episódio relembrado por Oswaldinho, nota-se o comportamento
solidário de Pedro. Por outro lado, entra em jogo a perspectiva de uma postura
paternalista enquanto estratégia de poder, baseada na troca de favores. Ele
oferecia proteção e ajuda, mas, em contrapartida, teria um aliado em potencial.
Pedro inclusive fazia uso do seu poder para conciliar, aproximar pessoas e
dissipar intrigas pessoais, mesmo quando ele era o alvo de ataque; isso denota
toda a sua perspicácia em se relacionar com as pessoas. O mais importante para
ele era a realização de seus negócios.
Entre tantos episódios do processo de formação do elenco de artistas da
Cantagalo, destaca-se o caso de Fúba de Taperoá. Em 1964
403
, Fúba veio para
São Paulo em cima de um caminhão de sal e, chegando à cidade, começou a
trabalhar como pedreiro. Fúba nasceu em Taperoá, onde também nasceram
Abdias e Zito Borburema, ambos artistas que gravaram pela Cantagalo. Com
Fúba de Taperoá
404
a possibilidade de gravar pela Cantagalo foi uma troca de
favor.
Um certo dia, Pedro Sertanejo descobriu que o pedreiro que estava
trabalhando na sua casa, Fúba, era um excelente pandeirista e zabumbeiro.
Desde então, Fúba começou a atuar na sua casa de forró como instrumentista e a
tocar com os artistas da Cantagalo, fazendo o acompanhamento musical destes
em canções que fariam parte de discos coletâneas da gravadora. Entre os discos
que contaram com a participação de Fúba estão aqueles da coleção “O Fino do
403
Às vésperas do golpe militar de 1964, Fúba desembarcava no Rio de Janeiro, descendo do topo de
uma carga de sal onde pegou carona. “Era uma bagunça danada na cidade - lembra ele -, aviões no ar,
exército nas ruas, e eu dentro do barraco do meu tio ouvindo a toda hora avisos para que a gente não
saísse de casa.” No final da década de 60, início dos anos 70, era mais um nordestino dos milhares
dos nossos integrados à vida paulistana. FÚBA DE TAPEROÁ. Site Oficial. Disponível em:
<http://www.fubadetaperoa.com>.
404
Juberlino Martins Levino nasceu em Taperoá - PB em 03/11/1942, mesma cidade onde nasceram
Abdias e Zito Borborema. Foi pedreiro, agricultor, começou sua carreira aos 12 anos, empunhando a
zabumba e tocando com o velho Abdias, foi para o Rio de Janeiro com Zito Borborema e no Sudeste
recomeçou com Pedro Sertanejo cantando em seu forró. Gravou seis discos e participou de vários LP’s
“Paus de sebo”, da gravadora Cantagalo, de Pedro Sertanejo. Chegou ao Rio de Janeiro na década de
60 em cima de um caminhão de sal. Foram treze dias de viagem, literalmente à água e sal. Em São
Paulo, ao chegar, chegou a dormir em bancos da Praça da Sé. Ibidem.
222
Pau de Sebo”
405
, que todo ano tinha o lançamento de um LP no período
junino.
406
Em 1981, Fúba gravou três discos autorais pela Cantagalo em troca do
serviço de pedreiro para uma obra na casa de Pedro Sertanejo. Os discos foram
gravados pela Cantagalo em uma parceria com a gravadora Chantecler.
Eu vendi um terreno para gravar meu primeiro disco. E falei
com Pedro Sertanejo que tinha a gravadora Canta Galo. Eu já
tinha feito uns serviços para ele. Então no momento ele tinha
uma reforma na casa para fazer (o valor da reforma era no valor
de três discos), fizemos um acordo e fiz a reforma e ele gravou o
primeiro disco: Lembrança de Taperoá, com meu nome de
batismo: Juberlino.
407
Fúba freqüentava o Forró do Pedro Sertanejo e a pensão de uma
alagoana que se chamava dona Biu, no Brás. Nesta pensão ficava hospedada a
maioria dos artistas que se apresentavam no Forró do Pedro.
Fúba lembra que uma revoada desses artistas vinham a cada
final de semana do Rio de Janeiro para a imperdível festança na
pensão de D. Biu. aparecia o rei do Baião, o rei do Ritmo,
Jackson do Pandeiro, e mais uma leva de artistas cobras criadas
da nossa música regional.
408
Antes de Fúba de Taperoá, na gravadora Cantagalo gravaram seus
conterrâneos Zito Borborema, também pandeirista e esposo de Chiquinha do
Acordeon, e Abdias, tocador de sanfona de oito baixos. Zito gravou pela
Cantagalo mais de um LP, na década de 1960. No disco “Forró Paraibano” ele
405
Na gravadora do mesmo Pedro Sertanejo, Fúba gravou suas primeiras músicas em disco pau-de-
sebo (vários cantores). Seguiram-se outras participações em outros discos gravados coletivamente, até
chegar a oportunidade de gravar o primeiro LP, “Lembrança de Taperoá” (1981). Ibidem.
406
Segundo depoimento de Ari Batera, em entrevista concedida à autora em 25 de nov. de 2009.
407
Depoimento de Fúba de Taperoá, em entrevista concedida a Antonio Carlos da Fonseca Barbosa
em 01/05/2001. Disponível em:
<http://www.ritmomelodia.mus.br/entrevistas/entrevista2001/05fuba_de_
taperoa/fuba_de_taperoa.htm>.
408
FÚBA DE TAPEROÁ. Op. cit.
223
aparece na capa caracterizado como vaqueiro, com chapéu, bolsa e jaleco de
coro, e com a mão esquerda segura um pandeiro.
Observa-se que muitos artistas seguiram os passos de Luiz Gonzaga
representante hegemônico do discurso musical de Nordeste no vestuário, mas
inúmeras são as suas diferenças em relação ao Rei do Baião, particularmente no
que se refere às suas músicas. Cabe notar que Zito Borborema também registra o
seu diferencial no título do disco “Forró Paraibano”, frisando o seu estado de
origem. Mediante as imagens das capas de LP’s, pode-se chegar a uma história
dos gostos, das modas, dos tecidos, dos acessórios, mesmo com toda a
caracterização personificada que os artistas nordestinos imprimiam às suas
imagens artísticas.
Sobre Pedro Sertanejo e sua gravadora, Dominguinhos registrou
depoimento histórico:
Pedro Sertanejo, pioneiro do forró em São Paulo, um dos
lançadores do forem São Paulo, pai de Oswaldinho. Amigo
velho. Foi quem me lançou em disco em 1964. Era afinador de
sanfona no Rio e eu vivia na casa dele, vendo Oswaldinho
pequinininho, que a gente chamava mais de frango d’água
porque o pescoço era maior do que ele, magrinho que parece
que nem comia, mas vivia com a sanfona nos peito. Se ele
não tocasse hoje eu dizia: é porque não da mermo, que o
bichinho gostava de uma sanfona, sanfoninha vermelhinha
pequenininha. Então Pedro foi quem me lançou em disco, aliás
grande tocador de oito baixos.
Um dia ele chegou pra mim e disse: - Domingos! Rapaz vamos
gravar, eu tenho uma gravadora agora.
Resposta de Dominguinhos: - Quero nada Pedro, eu toco em
boate agora, em regional.
ele disse: - Que nada rapaz! Quem tocou baião nunca
esquece.
Me trouxe.
A gravadora Cantagalo, aqui sediada em São Paulo.
na gravadora Cantagalo, quem não gravou foi Luís
Gonzaga e Marinês da música nordestina, porque Jackson do
Pandeiro. Todo mundo gravou. Até o nosso queridíssimo e
veteraníssimo Moreira da Silva, também gravou lá. Carlos
Nobre um cantor que cantava muito parecido com Nelson
Gonçalves, Carmem Silva, começou lá, foi lançada lá. Então
tem uma de gente, Ary Lobo, o finado Ary Lobo. Que eu me
224
lembro que a primeira gravação que eu fiz na Cantagalo foi
acompanhando Ary Lobo.
Dominguinhos destaca em sua fala o pioneirismo de Pedro Sertanejo em
abrir um forró em São Paulo e o convite que recebeu dele para gravar seu
primeiro disco solo. Naquela ocasião, Dominguinhos sobrevivia como músico
no Rio de Janeiro, tocava em regionais e não queria investir em uma carreira em
torno de gêneros nordestinos, talvez pela recessão que estes vinham sofrendo
dentro do contexto nacional, o que provavelmente fez ele ficar com receio de
tornar-se estigmatizado enquanto um instrumentista regional e de perder as
oportunidades de emprego que estavam vingando no momento.
Dominguinhos também abordou sutilmente aspectos de competição entre
os músicos na cidade de São Paulo, no exercício do ofício e no processo de
gravação da Cantagalo.
Carlinho Matazolli era o sanfoneiro que acompanhava todo
mundo aqui e ele já naquela época, já estava fazendo play back.
Botava o órgão e Ary gravava, Suplica Cearense, ele botava o
órgão e depois colocava a sanfona. Ai Pedro. Eu tava sentado no
estúdio e o Carlinhos tocando órgão, aí o Pedro disse:
- Eu to achando que ta meia vazia essa gravação, ta precisando
de uma sanfona não é não? Oh Dominguinhos, pega a sanfona
aí.
Eu digo: - Não, eu não trouxe não, tá no hotel Pedro.
Aí ele disse: - E a de Carlinho não ta ai?
(E a sanfona de Carlinho, tava no cadeado né? Que ele abria
pra ele tocar)
ele tirou a sanfona com uma vontade da peste. Quase não
tirava a sanfona.
E eu toquei na sanfona dele, era uma super 6, né?
E ele ficou encucado comigo né? Ficou com ciúme.
- Ah esses músicos do Rio estão vindo pra cá, pra tomar
conta, pra mode tirar o trabalho da gente.
Eu sei que nós ficamos amigos depois passados os tempo, eu
emprestei sanfona pra ele gravar, também. Hoje em dia, bem,
com saúde. A gente se encontra de vez em quando e é aquele
abraço.
Quer dizer, a vida tem dessas coisas e foi que eu comecei a
gravar na Cantagalo. Primeiro disco justamente na Cantagalo foi
o Fim de Festa. Eu gravei uma música de do Baião, em
225
gratidão, que eu fiz questão de homenagear o Zé que é um
lutador da música nordestina. Que nunca teve grandes
oportunidades, mas que luta aí pela música nordestina.
409
Carlinhos Matazolli, tocando acordeom e órgão, acompanhou muitos
artistas da gravadora Cantagalo. Destaca-se na fala de Dominguinhos o receio
por parte do músico de perder o lugar, ou de repartir as oportunidades de
trabalho com um outro instrumentista.
Dominguinhos fez parte do elenco da Cantagalo como artista e como
instrumentista acompanhante, gravou seis LP’s autorais por essa gravadora e
acompanhou a gravação de inúmeros artistas do mesmo selo. Em 1964 lançou o
LP “Fim de Festa”, em 1965 “Cheinho de Molho”, em 1966 “13 de Dezembro”,
parou de lançar discos durante sete anos e voltou novamente a gravar, lançando,
ainda pela Cantagalo, dois discos em 1973, “Lamento de Caboclo” e “Festa no
Sertão”, e “Dominguinhos e seu Acordeom”, em 1974.
Vale destacar que todos os discos gravados por Dominguinhos pela
Cantagalo são compostos por faixas instrumentais. Nessa época, ele ainda não
explorava o seu lado cantor, nem o seu lado letrista, de modo que os discos
supracitados registram a sua trajetória enquanto instrumentista. Ele estava
focado em sua carreira de instrumentista solo e ainda não havia tido a
experiência de ser um artista com músicas de sucesso.
Sabe-se que Gonzaga atribuiu a Dominguinhos a modernização da
música nordestina
410
, com o uso de outras harmonizações no instrumento. A
respeito do seu diferencial musical, Dominguinhos desdobra:
409
Depoimento de Dominguinhos, em entrevista exibida no Programa “Ensaio” - material conseguido
junto à TV Educativa.
410
“Dominguinhos veio com uma técnica muito avançada, com harmonias modernas, coisas que não
amarram o público simples. Dominguinhos urbanizou o forró, levou-o para todas as classes, nos
grandes centros urbanos que é onde ele se apresenta.” DREYFUS, Dominique. Vida do viajante: a
Saga de Luís Gonzaga. São Paulo: Ed. 34, 1996. p.275.
226
As pessoas dizem que eu urbanizei o forró, mas na verdade, na
minha opinião, quem fez isso foi o Luiz Gonzaga. Ou melhor,
primeiro o baião, porque o forró veio muito depois. Ele que
urbanizou tudo, foi ele quem ficou no Rio e em São Paulo
martelando, passando pelas cidades, brigando pra colocar a
música dele. No meu caso, o que aconteceu foi que eu comecei a
fazer forró como que fazia choro, eu só mudei o ritmo entendeu?
Em vez de eu tocar choro como choro, como eu tinha a zabumba
e triângulo me acompanhando, se virasse choro, ficava de
quebrado, não tem apoio pra você tocar choro com zabumba e
com triângulo. Eu tocava até Tico-Tico no Fubá e Brasileirinho
em ritmo de baião, e forró como se fosse choro, improvisando
em cima do que campo pra isso. os meninos, iam ouvindo
aquilo e se apegando e aprendendo.
411
Sabe-se ainda que Gonzaga foi forte referência para inúmeros artistas e
instrumentistas migrantes do Nordeste, sobretudo em seu processo de tradução
mestiça, mas na fala de Dominguinhos observa-se também que diversas foram
as suas contribuições para a expansão da música em si. Cada artista, cada
músico possuía um estilo particular e gerava uma contribuição diferente
condensada nas suas recombinações e justaposições musicais entre mesclas de
pequenas células rítmicas, harmonia, melodia, timbres, “refuncionalização de
instrumentos, relações criativas entre sonoridades e gêneros”
412
. Ademais,
Dominguinhos frisa muito bem um aspecto importante dentro do processo
criativo de mestiçagem musical por ele vivenciado: o espaço de liberdade
criativa experimentado pelo músico no momento do improviso
413
dentro da
música.
411
Depoimento de Dominguinhos, em agosto de 2003. Cf.: DEL NERY, Angélica O Brasil da
Sanfona. São Paulo: Myriam Taubkin Produções Artísticas, 2003. p.102.
412
Estes termos foram apropriados de: VARGAS, Herom. Hibridismos musicais de Chico Science e
Nação Zumbi. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2007. p.134.
413
“A forma de improviso demonstra um corte na tradição ocidental tanto nos aspectos da diacronia
melódica e harmônica das canções como nas letras e seu caráter narrativo e de organização semântica
interna.” Ibidem. p.223.
227
Figuras 23 e 24 - Capa e contracapa do LP “Fim de Festa”, de Dominguinhos,
lançado pela Cantagalo em 1964.
A foto da capa do primeiro LP de Dominguinhos, gravado pela
Cantagalo, tem ao fundo cenário do Forró do Pedro, onde as paredes do palco e
das laterais do salão de dança eram decoradas com pinturas que remetiam à
fauna e à vegetação nordestina, apresentando cactos e chão seco e rachado, entre
outros elementos, na tentativa de fazer toda uma ambientação lúdica de retorno
ao Nordeste. Muitas capas da gravadora Cantagalo exibiam cenários como este
ao fundo, sobretudo quando o artista tinha um repertório e um perfil musical que
aludia ao Nordeste.
Na maioria das capas de seus LP’s lançados pela Cantagalo,
Dominguinhos aparecia com a sanfona, denotando, dessa forma, que ele era um
sanfoneiro. E a ambientação cênica das fotos trazia a idéia da sua relação com a
sanfona e também com a sua região de origem, o Nordeste, embora em seu
repertório houvesse diversos gêneros musicais, como choros, polcas, valsas,
tangos, frevos, etc.
228
Constavam de seu repertório músicas para serem ouvidas durante todo o
ano e por diversos públicos, como tangos e valsas, assim como músicas voltadas
para o público migrante, com ritmos nordestinos, e para períodos festivos, como
São João e carnaval.
Figuras 25 e 26 - Capa e contracapa do LP “Cheinho de Molho”, de Dominguinhos,
lançado pela Cantagalo em 1965.
Figuras 27 e 28 - Capa e contracapa do LP “13 de dezembro”, de Dominguinhos,
lançado pela Cantagalo em 1966.
229
Figuras 29 e 30 - Capa e contracapa do LP “Lamento Caboclo”, de Dominguinhos,
lançado pela Tropicana, série Cantagalo, em 1973.
Figura 31 - Capa e contracapa do LP “Festa no Sertão”, de Dominguinhos,
lançado pela Tropicana, série Cantagalo, em 1973.
230
Figuras 32 e 33 - Capa e contracapa do LP “Dominguinhos e seu Acordeon”,
lançado pela Cantagalo em 1974.
Assim como Dominguinhos, Jackson do Pandeiro se apresentou várias
vezes no Forró do Pedro Sertanejo. Em 1967, como estava sem contrato com
gravadora, lançou pela Cantagalo um compacto duplo, intitulado “A Dança do
Xenhenhé” (1967), um compacto simples, Ralabucho” (1967), outro compacto
duplo, com o nome “Gravadora Cantagalo” (1967), e, por fim, um LP, “A Braza
do Norte” (1967), dirigido por Pedro Sertanejo. Cabe notar que o título “A Braza
do Norte” era uma forma de satirizar a Jovem Guarda:
Braza do Norte - a despeito da associação com o mais famoso
grito de guerra dos arautos do Iê hei hei (“É uma brasa mora!”) -
chegara ao mercado como um disco de resistência ao avanço do
estrangeirismo na música brasileira. Propositadamente, incluíra,
no repertório xotes, toadas, sambas, baiões, balanços e choros.
Em janeiro de 1968, Jackson percebera que a euforia do ciclo
anterior esgotara-se. Encara os novos tempos com a resignação
de quem vem do nada e consquistara o país. Ele dizia: “Não fui
acostumado a comer faisão, então fiquei no meu feijão.
Qualquer coisa que viesse para mim tava bom. Podia era passar
sem a recompensa material do sucesso. Não podia era ficar sem
cantar e tocar.”
414
414
MOURA, Fernando. Jackson do Pandeiro: O rei do ritmo. Coleção “Todos os Cantos”. São Paulo:
Ed. 34, 2001. p.298-9.
231
Figura 34 - Capa do LP “A Braza do Norte”, de Jackson do Pandeiro,
lançado pela Cantagalo em 1967.
Observa-se que nesta capa foi novamente utilizada a técnica do retrato
pintado. Este foi um dos últimos discos gravados por Jackson em companhia de
Almira Castilho. Destaca-se a imagem do casal de matutos” que eles
construíram durante sua trajetória artística.
232
Figura 35 - Contracapa do LP “A Braza do Norte”, de Jackson do Pandeiro,
lançado pela Cantagalo em 1867.
Muitas vezes, a insatisfação dos artistas migrantes nordestinos, como
Jackson do Pandeiro e Luiz Gonzaga, com relação aos momentos em que
perderam espaço nos meios hegemônicos de comunicação da época ficou
registrada em suas obras, por meio das letras das músicas, dos arranjos
radicalmente regionais, dos títulos dos LP’s e da configuração visual de suas
capas. Tal insatisfação ora se expressava como uma queixa, ora como um
lamento, ora como um sarcasmo num trocadilho de duplo sentido. Podia emergir
233
ainda num arranjo modernizado com baixo e guitarra, ou até mesmo no uso de
uma dissonância aqui ou ali. Em 1969, Jackson lançou LP, pela Philips,
intitulado “O fino da Roça”, parodiando o programa apresentado por Elis Regina
e Jair Rodrigues chamado “O Fino da Bossa”.
Em 1968, Jackson participou de uma das coletâneas produzidas
pela Cantagalo para os períodos juninos, coletânea essa com o título
“Suplemento de São João vol.1”.
A gravadora Cantagalo produziu uma centena de LP’s de artistas, em sua
grande maioria nordestinos e atuantes no campo da música direcionada ao
migrante do Nordeste. Foi alternativa para diversos artistas que estavam
começando uma carreira autoral, entre eles Dominguinhos, Fúba de Taperoá e
até mesmo Oswaldinho do Acordeon, filho de Pedro Sertanejo, dono da
gravadora. E também para outros que, embora houvessem lançado LP’s, se
viram sem contrato com gravadora em algum momento de sua trajetória, como
foi o caso de Jackson do Pandeiro, Carmélia Alves (cantora carioca filha de
cearenses que foi batizada por Luiz Gonzaga como a “Rainha do Baião), Ary
Lobo e muitos outros.
234
Figura 36 - Capa do LP “Correndo o Norte”, de Carmélia Alves,
lançado pela Cantagalo, sem data.
Embora a gravadora tivesse como foco principal a produção de artistas
nordestinos, gravaram pela Cantagalo representantes da música caipira
415
e
também do samba. Fizeram parte do seu elenco muitos artistas: Zenilton, Nilo
Alves, Jota Fonseca, Mário e Marinho, Duo Brazil Moreno, Gemano Mathias,
Zito Borborema, Jackson do Pandeiro, Pedro Sertanejo, Aluísio Gomes, Teddy
Jones, Luizito, Nelson Guimarães, Edna Fagundes, Geraldo Marcondes, Edy
Fernandes, Tunico de Juazeiro, Gilberto Montenegro, Carmélia Alves,
Carmelita, Marinalva, Juventino Cavalcante, Luiz Wanderley, Neuza Lima,
Curió e Canarinho, Gonzaga, Dênio Santos, Ary Lobo, Mário Zan
416
, Trio
415
O uso do termo caipira era muitas vezes usado pejorativamente, como indicativo de certa rudeza,
ingenuidade, que supostamente caracterizaria as populações do interior. Contudo cabe observá-lo
como uma cultura do interior do estado de São Paulo, presente no cotidiano e momentos de
sociabilidade dessas populações, na vida, festas, bailes, rasta-pé, danças e folguedos, trabalho e lazer,
práticas e celebrações religiosas e laicas, na forma de improviso, toada e moda de viola.” MATOS,
Maria Izilda Santos de. A cidade, a noite e o cronista: São Paulo e Adoniran Barbosa. Bauru, SP:
EDUSC, 2007. p.113.
416
“Talvez o sanfoneiro aqui do Sudeste que maior destaque teve no Brasil todo seja o Mário Zan.
Italiano de nascimento, nasceu em Veneza, em 1920, e com quatro anos de idade veio para o Brasil,
235
Campana, Sebastião do Rojão, Ênio Fernandes, Oswaldinho do Acordeon,
Abdias, Zé Calixto, Val dos oito Baixos, Azulão e outros mais.
A Cantagalo foi responsável pelo lançamento de inúmeros sanfoneiros de
oito baixos ou ainda da sanfoninha de de bode
417
. Dominguinhos comenta
sobre os sanfoneiros que tocavam junto com ele, ou seja, que com ele
compunham o quadro de artistas da Cantagalo:
Tinham outros sanfoneiros que tocavam comigo. O Adolfinho,
que tocava oito baixos, tinha rato branco, que tocava oito baixos,
Zé Henrique, o Geraldo Correa, um paraibano que ainda vive lá,
Calixto, o Bastinho Calixto, irmão do , todos tocadores de
sanfona de oito baixos. Tinha o sanfoneiro Guido, Noca do
Acordeom, que era o mais famosos deles todos. Cada um com
seu estilo, todos solistas, nenhum cantava. Esse povo todo
gravava na gravadora Cantagalo.
418
No que diz respeito à distribuição dos LP’s nas lojas, o processo
inicialmente era realizado pela própria Cantagalo. Muitas foram as capas que
estamparam como única logomarca a sua, indicando que era a responsável
exclusiva pela produção e distribuição dos LP’s. Nestes casos, a Cantagalo
bancava todo o processo de gravação, o pagamento dos cachês dos músicos, a
prensagem dos vinis e a sua distribuição.
indo morar em Santa Adélia, região de Cantaduva, interior do estado de São Paulo. [...] Esse homem
tem mais de 300 discos de 78 rotações naquele tempo, gravava-se um por mês’ - e mais de 115
discos de vinil, somando ao todo mais de 850 músicas gravadas, e agora já o são poucos os CDS
lançados e relançados. Algumas músicas suas são gravadas no mundo todo como Os homens o
devem chorar (Mário Zan e J. M. Alves), gravada por Roberto Carlos e Júlio Iglesias, entre outros.
Chalana a rainha do Matogrosso também é dele em parceria com Palmeira. Sem falar dos clássicos
juninos, como Festa na Roça, Bicho Carpinteiro, Serelepe e o grande sucesso que o projetou no Brasil
todo, Quarto Centenário, em homenagem a São Paulo.” Depoimento de Toninho Ferragute, em
outubro de 2003. Cf.: DEL NERY, Angélica. Op. cit., 2003. p.104.
417
Há uma diferença entre a sanfona e o oito baixos. A gente chama o oito baixos lá no Nordeste, e é
uma referência muito engraçada, de “pé de bode”. Por que é pé de bode? Porque é um instrumento que
não tem recursos, é quase um brinquedo de criança, né? Tem alguns que eles falam que são afinados
em si bemois mas eles são tão loucos, os caras que concertam harmônica, que quando eles tocam a
sanfona, eles bolam uma afinação da cabeça deles, então não tem um padrão.” Depoimento de
Hermeto Pascoal, em setembro de 2003. Cf.: DEL NERY, Angélica. Op. cit., 2003. p.107.
418
Depoimento de Dominguinhos, em agosto de 2003. Cf.: Ibidem. p.103.
236
Todavia, na década de 1970, a Cantagalo fez uma parceria com a
gravadora Tropicana, que passou a responder por todas as etapas da produção,
gravação, prensagem e distribuição dos discos. Pedro entrava com a direção
artística e o aluguel do estúdio de gravação. A partir de então, as capas dos LP’s
começaram a exibir as duas marcas, a da Cantagalo e a da Tropicana. Esses
discos ficaram conhecidos como da gravadora Tropicana, série Cantagalo. A
Tropicana inclusive prensou os discos da década de 1960, produzidos pela
Cantagalo, em uma nova edição. Observam-se os LP’s “Falou e disse”, de 1972,
e “Vamos ter Arrasta-Pé”, de 1975, ambos de Zé Calixto:
Figura 37 - Capa do LP “Falou e disse”, de Zé Calixto,
lançado pela Tropicana, série Cantagalo, em 1972.
237
Figura 38 - Capa do LP “Vamos ter Arrasta-pé”, de Zé Calixto,
lançado pela Tropicana, série Cantagalo, em 1975.
Figura 39 - Contracapa do LP “Vamos ter Arrasta-pé”, de Zé Calixto, lançado pela
Tropicana, série Cantagalo, em 1975, com direção de Pedro Sertanejo.
238
Antes de lançar estes álbuns, Calixto havia gravado pela Philips e
pela Fontana. Seus discos, assim como os de Pedro Sertanejo, são instrumentais,
com músicas, na maioria das vezes, seguindo a vertente do forró pé-de-serra.
Destaca-se nestas capas a presença das logomarcas da gravadora Tropicana e da
Cantagalo juntas, confirmando a parceria comercial entre ambas. Na contracapa
segue o nome de Pedro Sertanejo como diretor artístico. Outro aspecto relevante
é a apresentação, junto aos selos, da palavra “Stereo”, indicando a presença da
estereofonia
419
.
Calixto era um sanfoneiro de sanfona de bode. Em suas capas
verifica-se que sempre está acompanhado de sua sanfona, bem como que sua
caracterização artística é feita aos moldes dos artistas nordestinos, que tinham
como referência hegemônica a imagem de Luiz Gonzaga, fazendo uso do
chapéu de vaqueiro e de camisa florida.
Diversos discos foram produzidos na cada de 1970 por esta parceria
Cantagalo-Tropicana, destacando-se a produção de LP’s de artistas migrantes
nordestinos, como Os Caçulas do Baião, com o disco “Verde e Amarelo” (1973),
fazendo menção às cores da bandeira do Brasil, e o disco “Forró de Latada”
(1975), do artista Zé Paraíba, que trazia no nome o estado de sua procedência.
419
“Em acústica, estereofonia, ou simplesmente estéreo, ou ainda stereo, do inglês, consiste num
sistema de reprodução de áudio que utiliza dois canais de som monaurais distintos (direito e esquerdo)
sincronizados no tempo.” WIKIPÉDIA. A enciclopédia livre. Estereofonia. Disponível em:
<http://pt.wikipedia.org/wiki/Estereofonia>. Acesso em: 10/03/2009.
239
Figura 40 - Capa do LP “Verde e Amarelo”, dos Caçulas do Baião,
lançado pela Tropicana, série Cantagalo, em 1973.
Figura 41 - Capa do LP “Forró de Latada”, de Zé da Paraíba,
lançado pela Tropicana, série Cantagalo, em 1975.
“Os Caçulas do Baião” era um trio nordestino cujos integrantes podem
ser vistos na capa do disco “Verde e Amarelo”. Eles estão vestidos com chapéus
e jalecos de vaqueiro, simbolizando os homens que tangiam o gado pelos sertões
nordestinos, e ao fundo, como cenário, aparecem pinturas que faziam parte dos
240
painéis artísticos inseridos na ambientação do Forró do Pedro Sertanejo, painéis
estes que, conforme já salientado, estamparam muitas capas da Cantagalo.
Sobre o disco “Forró de Latada”, de da Paraíba, cabe notar que seu
titulo faz alusão ao forró conhecido como “forró sambado”, um forró na linha
daquele produzido e tocado pelo paraibano Jackson do Pandeiro e pelo paraense
Ary Lobo, forró esse que também pode ser chamado de “rojão”, tendo como
referência rítmica o samba coco em mistura com a sanfona, fazendo as linhas
melódicas introdutórias e a base chacoalhada percussiva junto com os outros
instrumentos. Neste disco as músicas são todas instrumentais e, nessa direção,
sua capa focaliza uma sanfona, tomando toda a arte visual.
Sabe-se que inúmeros foram os artistas lançados por diversas
gravadoras, nas décadas de 1970 e 1980, com o nome “Zé da Paraíba”
420
.
Jackson do Pandeiro havia gravado, em 1962, a música “Como tem na
Paraíba”, de Manezinho Araújo e Catulo de Paula, no LP intitulado “A alegria da
Casa” (Philips). Nessa música é destacado o nome “Zé” como algo recorrente no
estado da Paraíba.
Vige como tem Zé
Zé de baixo, Zé de riba
Desconjuro com tanto Zé
Como tem Zé lá na Paraíba.
Lá na feira é só Zé que faz fervura
Tem mais Zé do que coco catolé
Só de Zé tem uns cem na Prefeitura
Outros cem no comércio tem de Zé
Tanto Zé desse jeito é um estrago
Eu só sei que tem Zé de dar com o pé
Faz lembrar a gagueira de um gago
Que aqui se danou a dizer Zé.
Num forró que eu fui em Cajazeira
O cacete cantou e fêz banzé
Pois um bebo no meio da bebedeira
420
“Zé Paraíba, esse é um nome que foi usado por alguns sanfoneiros, nas décadas de 1970 e 1980,
cada gravadora lançou seu próprio Zé Paraíba.” FORRÓ EM VINIL. Um pequeno apanhado da
música nordestina em vinil. Disponível em: <http://www.forroemvinil.com>. Acesso em: 16/03/2009.
241
Falou mal e xingou a mãe dum Zé
Como tinha só Zé nesse zunzum
Houve logo tamanho rapapé
Mãe de Zé era a mãe de cada um
No salão brigou tudo que era Zé...
É Zé João, Zé Pilão e Zé Maleta
Zé Negão, Zé da Cota, Zé Quelé
Todo mundo só tem uma receita
Quando quer ter um filho só tem Zé
E com essa franqueza que eu uso
Eu repito e se zangue quem quiser
Tanto Zé desse jeito é um abuso
Mas o diabo é que eu me chamo Zé.
Essa música, escolhida e interpretada por Jackson, traz à tona mais uma
vez uma estratégia que permeou toda a sua trajetória artística, a utilização do
humor, ferramenta recorrente nos programas de rádio da época desde a sua era
de ouro. O humor foi estratégia freqüente na trajetória de inúmeros artistas,
como Luiz Gonzaga, Dominguinhos, Pedro Sertanejo, Anastácia e muitos
outros.
4.4 DIVULGAÇÃO/ PROGRAMAS DE RÁDIO
Em geral, as contracapas da Cantagalo, assim como das outras
gravadoras das décadas de 1960 e 1970, traziam impressas as imagens de outros
discos produzidos pela empresa, como se pode notar na contracapa do LP Meu
Juazeiro”, lançado em 1967, de Tonico do Juazeiro, e em muitos outros discos.
Em alguns casos apresentavam também a listagem dos artistas que compunham
o elenco da gravadora, que aproveitava o próprio disco como meio de
divulgação. Os discos da Cantagalo não possuíam encartes informativos com as
letras das músicas e as suas formações instrumentais, e essas informações
também não vinham na contracapa.
242
Figura 42 - Capa do LP “Meu Ceará”, de Tonico do Juazeiro, lançado pela Cantagalo,
em 1967.
Figura 43 - Contracapa do LP “Meu Ceará”, de Tonico do Juazeiro,
lançado pela Cantagalo em 1967.
243
Observa-se que este disco foi totalmente realizado pela Cantagalo, bem
como que em sua contracapa aparecem, além do repertório dos lados A e B, os
compositores de cada canção, os seus ritmos e ainda outras capas de LP’s de
artistas do elenco da gravadora. Portanto, a contracapa era utilizada como meio
de divulgação, uma estratégia que foi usada por diversos selos e gravadoras.
Na década de 1970, quando Pedro Sertanejo efetivou a parceria com a
gravadora Tropicana, essa estratégia de utilizar a contracapa como meio de
divulgação se repetiu, como se pode notar no LP de Dominguinhos intitulado
“Festa no Sertão”, de 1973. A contracapa da gravadora Tropicana apresentava
uma diversidade enorme de gêneros musicais, passando pelo fado, tango, música
caipira, gaúcha, música folclórica portuguesa e muito mais.
Figura 44 - Contracapa do LP “Festa no Sertão”, de Dominguinhos,
lançado pela Tropicana, série Cantagalo, em 1973.
244
As gravadoras atuavam como um meio de comunicação junto às
emissoras de rádio, e por muito tempo foram as grandes difusoras da música
popular no Brasil. Pedro Sertanejo fez uso desse mecanismo, cabendo lembrar
ainda que estavam conectados à sua gravadora, enquanto meios de comunicação,
o seu salão de forró e os programas de rádio que apresentava. Eram por estes
meios que os artistas da Cantagalo eram divulgados e, portanto, faziam a
gravadora girar economicamente.
Pedro atuou em diversos programas de rádio
421
como instrumentista e
teve seu próprio programa, chamado “Coração do Norte”, apresentado aos
domingos, na Rádio Clube Santo André e na rádio ABC
422
, desde 1963, em
parceria com Toninho do trio Nordestino Paulista (pai da esposa de Oswaldinho
do Acordeon, seu filho) e com Azulão. Nesse programa recebeu artistas como
Luiz Gonzaga, Marinês, Abdias, Jackson do Pandeiro, Ary Lobo,
Dominguinhos, Zenilton, Marivalda e muitos outros. Dentro dessa mesma
atração ele criou um quadro de calouros intitulado “Cuidado com o Jegue”:
E esse forró da rádio ABC, era justamente pra poder resgatar a
música nordestina que não tinha espaço em lugar nenhum, então
meu pai trazia Luiz Gonzaga, trazia Marinês, o próprio trio
nordestino do Rio, Jackson do Pandeiro. Vinha primeiro pra essa
rádio, porque vinha muita caravana pra essa rádio, era um
cinema e essa rádio era transmitida aqui. A rádio ABC de Santo
André, era transmitida, dentro desse cinema. Era ao vivo. O
cinema era enorme. Tudo era feito ao vivo, nada de dublado.
421
Nos seus últimos anos de vida, apresentou um programa na rádio Atual, tendo a cantora Marivalda,
que também gravou pela Cantagalo, como colega de emissora.
422
“Ele teve, também, um programa durante 16 anos na Rádio ABC e outros 15 anos na rádio Clube
de Santo André.” Depoimento de Oswaldinho do Acordeon, em setembro de 2003. Cf.: DEL NERY,
Angélica. Op. cit., 2003. p.105.
245
Até que ele lançou dentro do programa da rádio ABC, o cuidado
com o Jegue, que era um programa de calouros, programa que
ele criou pra dar oportunidade aos novos. no Nordeste ele
gravou em uma fita, o relinchado de um Jegue, passou pra 58
rotações o que tornou-se o Gongo do programa. Na hora que o
cara cantava mal aí o Jegue entrava. Era “Cuidado com o Jegue”
o nome do programa.
423
O prêmio do programa para os calouros vencedores era a gravação de
um disco pela Cantagalo, além de possíveis apresentações no Forró do Pedro.
Em 1964, Pedro Sertanejo participou algumas vezes do programa de
Jorge Paulo, chamado “Chapéu de Couro”, transmitido pela rádio Atual, um
programa que fez muito sucesso. Jorge Paulo era radialista e amigo de Pedro
desde a época em que este tentou emplacar, na garagem do Pedro, o seu
primeiro forró em São Paulo. Antes de ter o programa “Chapéu de Couro”, Jorge
Paulo era gerente da rádio ABC.
O sucesso de seu programa foi tanto que Jorge Paulo criou o troféu
“Chapéu de Couro”, que era entregue aos artistas nordestinos, anualmente, em
uma festa realizada no Ginásio Lauro Gomes, em São Caetano. O mesmo
programa depois passou a ser exibido pela TV Bandeirantes e até virou filme.
423
Depoimento de Oswaldinho do Acordeon, em entrevista concedida à autora em 30 de jun. de 2006.
246
Figura 45 - Foto de Pedro Sertanejo entregando o troféu Chapéu de Couro a Luiz Jacinto
Silva. No outro microfone está Jorge Paulo, o apresentador do programa.
Esta foto foi tirada na festa do troféu Chapéu de Couro, no Ginásio
Lauro Gomes, em São Caetano do Sul, em dezembro de 1964
424
. Nela vê-se
Pedro entregando o troféu ao coronel Ludogero, personagem humorístico
interpretado por Luiz Jacinto Silva. Na foto subseqüente Pedro aparece tocando
na Rádio ao lado de Jorge Paulo, o radialista e idealizador do programa.
424
FORRÓ EM VINIL. Op. cit.
247
Figura 46 - Pedro ao lado de Jorge Paulo no programa “Chapéu de Couro”.
Cabe notar que Pedro Sertanejo estava de paletó e gravata no momento
da entrega do troféu, demonstrando a seriedade da ocasião. Entrava em cena não
só o artista, mas também o empresário, o produtor artístico, o dono da Cantagalo
e o comunicador. Era uma forma de legitimar a premiação e de reverenciar o
premiado. Já na segunda foto ele aparece com o típico chapéu de cangaceiro,
encarnando o papel de artista e acordeonista nordestino, ao lado do radialista e
também cantor, poeta, compositor e ator Jorge Paulo
425
, que foi seu parceiro em
uma música com o mesmo nome do programa
426
.
Pedro Sertanejo, em seu cotidiano de festa e trabalho, mediante sua casa
de forró, sua gravadora e os programas de rádio em que atuou, foi construindo
redes sociais, afetivas e comerciais que possibilitaram trocas de saberes e
poderes.
425
CASA DOS VIOLEIROS. Jorge Paulo. Disponível em: <http://www.casadosvioleiros.com/
convidados/jorgepaulo/jorgepaulo.htm>.
426
Música intitulada “Chapéu de couro”, de Pedro Sertanejo e Jorge Paulo, gravada no LP Rato
Molhado”, de Pedro Sertanejo, em 1977.
248
4.5 PEDRO SERTANEJO: DISCOGRAFIA
Adeus Jacobina
Hoje mesmo eu vou embora
Vou embora pra o sertão
Meus colegas me deixaram
Sozinho com o fole na mão
Também deixo o meu amor
Ai que dor no coração
Adeus jacobina
Até quando eu voltar
Hoje eu vou embora não posso mais ficar
Adeus Jacobina
Até quando eu voltar
427
Pedro Sertanejo foi instrumentista, compositor, artista, radialista,
empresário, produtor, diretor artístico e mediador cultural. Fez dezenas de
gravações por diversas gravadoras e selos diferentes (Copacabana, Todamérica,
Continental, Caboclo, Cantagalo, Sabiá, Musicolor), a partir da década de 1950.
Além disso, tocou, foi produtor e diretor artístico de uma série de discos de
outros artistas.
Sua obra contabiliza mais de 700 músicas
428
, em sua maioria
composições instrumentais autorais e em parceria com Gonzaga, Pedrinho,
Bernardo Lima, J. Luna, Milton Cristofani, Alcina Maria e muitos outros.
Destacam-se também as interpretações de músicas de amigos compositores,
como Nadim Correia Marques, Luiz Gonzaga, Zé Dantas, Zenilton e outros.
Suas músicas têm como característica o forró pé-de-serra centrado na
formação instrumental do trio nordestino, tradução estilística de Luiz Gonzaga.
Eram indispensáveis em seus discos a sanfona de oito baixos ou de bode, o
zabumba e o triângulo. Observa-se nas composições de Pedro Sertanejo e em
427
Adeus Jacobina (Valente, 1973), disco “Visite o Nordeste”.
428
INSTITUTO CULTURAL CRAVO ALBIN. Dicionário Cravo Albin da Música Popular
Brasileira. Rio de Janeiro: Faperj, Ministério da Cultura, Fundação Biblioteca Nacional, PUC-Rio.
Disponível em: <http://www.dicionariompb.com.br/detalhe.asp?nome=Pedro+Sertanejo&tabela=
T_FORM_A&qdetalhe=art>. Acesso em: 18/03/2009.
249
sua sanfona uma expressão musical autêntica, expressão essa diversa, portanto,
daquela verificada na sanfona de Luiz Gonzaga e de seu pai, Januário, diferindo-
se na sua divisão rítmica e em suas linhas melódicas.
Luiz Gonzaga foi representante hegemônico dos gêneros musicais
nomeados de nordestinos, sobretudo por causa do seu sucesso, e, como tal, foi
referência para inúmeros artistas, que tentavam seguir o seu rastro como modelo
bem-sucedido. Mas foi nos detalhes, no sotaque, nas melodias, no raciocínio da
rítmica, na pegada do instrumento, nos arranjos, nas combinações instrumentais
que vieram à tona as particularidades e a personalidade de cada artista e,
portanto, os diversos nordestes.
Pedro fez a sua primeira gravação, em disco de 78 rotações, em 1956,
pela gravadora Copacabana. Nessa ocasião, gravou o xote “Roseira do Norte”,
tema instrumental criado em parceria com Gonzaga (irmão de Luiz
Gonzaga), e a polca “Zé Passinho na Festa”, de sua autoria.
Observar-se-á que seu repertório foi marcado pelos seguintes ritmos:
forró, xote, baião, polca, rancheira, valsa, choro. A música de Pedro que teve
maior projeção, considerando-se toda a sua trajetória artística, foi “Roseira do
Norte”, e sua carreira contou com a gravação de aproximadamente 52 discos
429
.
Em levantamento realizado junto à Discoteca Oneyda Alvarenga
430
, foi
possível identificar as seguintes canções de Pedro gravadas em discos de 78
rotações:
- Roseira do Norte/ Zé Passinho na festa (1956), Copacabana
- Festa em Geremoabo/ Coqueiro seco (1956), Copacabana
- Balaio do Norte/ Forró brejeiro (1958), Todamérica
429
Segundo depoimento de Oswaldinho do Acordeon, em entrevista concedida à autora em 30 de jun.
de 2006.
430
Biblioteca do Centro Cultural São Paulo. Vale observar que se fez um comparativo dos discos
levantados nesta discoteca com alguns discos citados pelo Dicionário Cravo Albim, de modo que os
250
- O rei do sertão/ Quadrilha do Norte (1958), Todamérica
- Forró nordestino/ Euclides da Cunha (1959), Todamérica
- Campo formoso/ Caipirinha (1959), Todamérica
- Diabo no forró/ Saudade de Jacobina (1959), Todamérica
- Boa Esperança/ Ladeira do sabão (1959), Todamérica
- Rancho velho/ Forró de Aracajú (1960), Todamérica
- Festa na fazenda/ Arco-verde (1960), Todamérica
- Festa na fazenda/ Arco-verde (1961), Continental
- Diabo no forró/ Saudade de Jacobina (1961), Continental
- Boa Esperança/ Ladeira do sabão (1961), Continental
- Balaio do Norte/ Forró brejeiro (1961), Continental
- Forró nordestino/ Euclides da Cunha (1961), Continental
- Campo formoso/ Caipirinha (1961), Continental
- O rei do sertão/ Quadrilha do Norte (1961), Continental
- Bela vista/ Forró pernambucano (1961), Continental
- Forró alagoano/ Azulão (1962), Caboclo
- Sanfoneiro do Norte/ Limeirinha (1962), Caboclo
- Festa de São João/ Coração do Norte (1962), Caboclo
- Sete punhá/ Chuliado da vovó (1963), Continental
- Roseira do Norte/ Zé Passinho na festa (1963), Sabiá
- Festa em Geremoabo/ Coqueiro seco (1963), Sabiá
Sabe-se que os discos de 78 rotações contavam apenas com uma música
de cada lado, bem como que muitos artistas gravavam mensalmente um disco,
provavelmente de acordo com a sua saída comercial.
Observa-se que Pedro começou a gravar em 1956, quando ainda morava
no Rio de Janeiro, lançando dois discos pela gravadora Copacabana. Em 1957
dados se completaram no encontro entre estas duas fontes.
251
ficou sem gravar, e em 1958 gravou dois discos pela Todamérica. Em 1959 sua
produção aumentou para quatro discos, lançados ainda pela Todamérica.
Em 1960 Pedro mudou para a Continental e gravou mais dois discos. No
ano seguinte lançou sete discos, por essa mesma gravadora, o que revela que seu
trabalho estava tendo uma boa saída comercial. Cabe notar que nesse momento
Pedro havia se mudado para São Paulo e dado início à suas tentativas de
estabelecer um forró. Desse modo, vinha tocando em uma maior quantidade de
espaços – principalmente circos, casas de conterrâneos – e, portanto, divulgando
mais a sua música e provavelmente vendendo mais discos.
Em 1962 gravou três discos pela Caboclo, e em 1963 mudou de
gravadora mais uma vez, gravando mais três discos pela Sabiá. Observa-se que
Pedro lançou ao menos dois discos por ano em toda a sua trajetória,
demonstrando uma boa produtividade.
Algumas músicas do seu repertório contavam com participações
especiais de narradores de histórias e quadrilhas, que empolgavam as canções
com suas narrativas. Entre elas destacam-se “Diabo no Forró”, composta por
Pedro em parceria com Alcina Maria, que inclusive entoava a locução da
história na gravação, e “Quadrilha na fazenda”. A primeira conta a história da
presença do diabo no forró, e a segunda é a narrativa de uma quadrilha.
O Diabo no forró
Quem aí de vocês não é casado?
Todo mundo aqui é casado?
No padre e no civi?
É porque se não for casado no padre e no civi
Não pode dançar o forró não
Acontece isso viu!
Quem for mancebado não pode dançar não
Eu vou contar pra vos mercê uma história
Ataca aí cumpade Pedro Sertanejo.
Não é mentira não visse
Uma vez lá em Maragugipe
O cumpade Pedro Sertanejo estava tocando na casa
Da cumade lá
252
Ahhh mais o forró estava animado
De repentemente
Entrou um cavalheiro boniiiito
E foi logo pegando a fia da cumade pra dançar
Nós estranhemo
Nunca vimo ele por aquelas banda
Bastava um tiquinho pra meia noite
O fio da cumade, menino buchudo
Que estava agachado no canto da parede
Garrou olhar pro cavalheiro
Puxou a saia da cumade e disse:
- Oi mãe.
O pé do cavalheiro bonito é chato
Tem uns unhão grande
A cumade garrou a oia
E disse:
- Cruz credo ave Maria três vez
Menino! Subiu um cheiro de pólvora
Danado
Só se ouviu o papoco
Menino!
Não é que o diabo estava dançando forró
Eu descobri que a cumade era mancebada
Mas continua cumpade Pedro
Nós tamo bem
Nós somos gente descente
Vocês escutem o meu conselho
Só dancem no forró se for casado no padre e no civil
Mas nós vamos dançar porque nós temo
Gente descente
Ataca cumpade Pedro
Nessa narrativa são levantadas, pelo viés do humor, questões morais
dentro do forró. Discutem-se o casamento e o amancebamento, ou seja, a união
sem o registro formal pelo civil ou pelo religioso. A brincadeira gira em torno do
aparecimento do diabo em forrós em que pessoas que não são oficialmente
casadas querem dançar. A brincadeira é uma metáfora, por ser o forró uma dança
que se dá em casais, e, portanto, a presença da sensualidade dos corpos faz parte
do jogo. De acordo com esse raciocínio, a dança poderia incitar desejos e, por
conseguinte, desagregar as relações dos casais que não eram casados
oficialmente perante a lei dos homens e perante a lei Deus.
253
Em “Quadrilha na fazenda” destaca-se a narrativa dos paços da dança
coletiva, que é uma permanência cultural mestiça. Sob o comando do locutor a
dança era regida.
Quadrilha na Fazenda
E Viva São João
Viva!
Pedro Sertanejo toca a quadrilha!
Alevantur
Eu falei pra levantar um levantou dois
E nem é pra levantar
Anarrier
Cavalheiros pro lado da direita
As damas, pra esquerda
Meia a volta
Meia volta para direita
Volta e meia para a esquerda
Oxente!
Eu falei volta e meia pra esquerda
E cês tão vortando tudo pra direita
Caminho da roça
A passagem da ponte
Não vai passar porque a ponte caiu
Volta pra casa
Balancê
As damas de um lado
Cavalheiros do outro
Não pode ser por dentro
Por dentro não
Por dentro não dá certo
Cavalheiro por fora
E as dama também
Volta a esquerda
Da outra volta a direita
Vamos em frente
Damas com as mãos na cintura
Olha a cobrinha!
Cavalheiro vortando com a esquerda
Balancê
Caminho da roça
Anda pessoal!
E esse home da venta grande aí minha gente
Não o braço não é a venta mesmo
Vixe Maria é seu gaduzinho
Frente da passagem da ponte
Troca de par
Anarrier
254
O levantamento da discografia de Pedro Sertanejo foi fruto de uma
garimpagem realizada em acervos particulares e públicos. Contudo, mesmo
assim ficaram faltando discos para completar a lista com todos os LP’s da
carreira do artista. Entre os LP’s catalogados podem-se destacar os seguintes:
- Forró Pernambucano (196..), Cantagalo
- Meu Pé de Serra (196..), Cantagalo
- Forró Alagoano (1969), Continental
- Coração do Norte (1970), Continental
- Na onda do forró (1972), Tropicana
- Visite o Nordeste (1973), Musicolor
- Sanfoneiro do Norte (1973), Continental
- Forró brejeiro (1975), Continental
- Coletânea Fino de Pau de sebo vol. 4 (1976), Musicolor
- Caruaru, Pedro Sertanejo e seus meninos (1977), Continental
- Rato molhado (1977), Musicolor
- Forró na Casa Grande (1978), Musicolor
- Forró do Luna (1978), Continental
- Forró na Gafieira (1979), sem informação
- Forró na Casa Grande (sem data), Musicolor
- Meu sabiá (sem data), Musicolor
- Sertão brasileiro (sem data), Continental
- Reizado a São José, Pedro Sertanejo e seus meninos (1978), Musicolor
- Forró Povão (1981), Chantecler
- Forró na Capital (1982), sem informação
- Pedro Sertanejo e Oswaldinho - Forró em Família (1986), Phonodisc
255
Sabe-se que em 1964 Pedro Sertanejo inaugurou a Cantagalo, que na
época era apenas uma sala de representação, e, conforme a sua discografia aqui
levantada, ele lançou pela sua gravadora, na década de 1960, dois discos: “Forró
Pernambucano” e “Meu de Serra”. Ambos os discos estão com seus rótulos
deteriorados e com as datas ilegíveis, mas foi possível perceber que foram
lançados nos anos 60, provavelmente entre 1964 e 1968.
Em 1969, Pedro gravou um disco pela Continental, o “Forró Alagoano”,
o que prova que, mesmo com a existência da Cantagalo, ele gravava por meio de
outras editoras discográficas. Durante as décadas de 1970 e 1980, Pedro gravou
por diversas companhias Continental, Musicolor, Tropicana, Chantecler
(gravadora especializada no gênero sertanejo) e Phoodisc.
Pedro Sertanejo faleceu em 1996, devido a um problema
cardiovascular.
431
Mediante sua discografia, verifica-se que ele teve uma
trajetória artística bastante produtiva. Além dos discos de 78 rotações e dos LP’s
arrolados anteriormente, durante a busca por suas obras foram encontrados uma
fita cassete e um CD intitulado “Adeus Jacobina”. A reprodução em cassete
passou a ser realizada a partir da década de 1980, com a popularização dos toca-
fitas ou leitores de cassete.
Destaca-se que, em algumas de suas capas, relacionado ao seu nome vem
o do grupo que o acompanhava, que era chamado de seu conjunto” ou de seus
meninos”. Eram músicos que pertenciam à família da esposa de Pedro Sertanejo
ou considerados como da família.
Na verdade era o irmão, meu tio, o irmão da minha mãe, um
Padrinho de Crisma meu que marido da irmã da minha mãe. Era
praticamente em família, mas eram outras pessoas e o
formiga que era meu irmão de criação. Que morreu inclusive
tocando.
432
431
Segundo depoimento de Oswaldinho do Acordeon, em entrevista concedida à autora em 30 de jun.
de 2006.
432
Depoimento de Oswaldinho do Acordeon, em entrevista concedida à autora em 30 de jun. de 2006.
256
4.6 IMAGENS DO NORDESTE: CAPAS DOS LP’S
Desde a primeira metade do século XX, o discurso de Nordeste
(visibilidade e dezibilidade)
433
foi sendo gestado como um discurso que
simbolizava o espaço da saudade, um território em crise, com problemas
naturais e sociais, suas tradições e seu regionalismo enquanto identidade,
essência cultural e raiz de uma região. Observa-se que a construção foi sendo
tecida no entre-lugar
434
campo/cidade, Sudeste/Nordeste, sertão/litoral mediante
a confluência de múltiplos discursos em processo de contaminação.
Entre tais discursos podem-se citar a literatura regional de 1930
435
, a
literatura de cordel, as artes plásticas, os discursos dos políticos e das elites, dos
jornais, do cinema e, pode-se incluir também neste campo de força cultural, a
emersão de artistas como Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro, as letras das
canções, as canções propriamente ditas e as capas dos LP’s
436
, que traziam a
imagem
437
que se queria fazer do artista e da música por ele produzida em
433
“A instituição do Nordeste como espaço da tradição, da saudade, não se faz apenas pelo discurso
sociológico, literário. Dela também participa, por exemplo a pintura, que procura realizar
plasticamente essa visibilidade do Nordeste. Ela é fundamental na transformação em formas visuais
das imagens produzidas pelo romance de trinta e pala sociologia tradicionalista e regionalista.”
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Op. cit., 1999. p.160-1.
434
“A expressão ‘entre-lugares’ traduz uma abordagem advinda de necessidades históricas de focalizar
aqueles momentos ou processos que são produzidos na articulação de diferenças culturais.”
BHABHA, Homi. O local da Cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998. p.20.
435
“O discurso monológico presente no romance de trinta permite ser este um discurso identitário,
preocupado em elaborar personagens simbólicos, dotados de uma individualidade coerente garantida
pela ação; personagens que viessem exatamente suprimir esse dilaceramento das identidades sofrido
nesse momento por seus autores. São personagens que querem garantir, na espessura do texto, a
manutenção de uma essência e eliminar qualquer virtualidade. Os personagens do romance de trinta
são típicos, tipos fixos que mesmo diante de todos os conflitos internos e dos dissabores externos que
enfrentam ao longo da trama, nunca chegam a se negar a si mesmos; eles m a garantia da
continuidade de ‘um modo de ser’, de ‘um modo de pensar’, de ‘um modo de agir’ regional.”
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Op. cit., 1999. p.110.
436
Em 1955 “Havia muitos 78 rpm e poucos LP’s, com capas horríveis e todos de dez polegadas”.
MIDANI, André. Op. cit., 2008 . p.69.
437
“O primeiro princípio essencial é provavelmente, a nosso ver, que o que se chama ‘imagem’ é
heterogêneo. Isto é, reúne e coordena dentro de um quadro (ou limite) diferentes categorias de signos:
‘imagens’ no sentido teórico do termo, signos icônicos, analógicos, mas também signos plásticos
(cores, formas, composição interna, textura) e o mais importante também signos lingüísticos
(linguagem verbal). E sua relação, sua interação, que produz o sentido que aprendemos a decifrar mais
ou menos conscientemente.” JOLY, Martine. Introdução à análise da imagem. 11ªed. São Paulo:
257
interação com o público receptor, às vezes de forma fabricada, às vezes de forma
espontânea.
O ponto comum da palavra “imagem” (imagens visuais/
imagens mentais/ imagens virtuais) parece ser, antes de mais
nada o da analogia. Material ou imaterial, visual ou não, natural
ou fabricada, uma “imagem” é antes de mais nada algo que se
assemelha a outra coisa. [...] Mesmo quando não se trata de
imagem concreta, mas mental, unicamente o critério de
semelhança a define: ora se parece com a visão natural das
coisas (o sonho, a fantasia), ora se constrói a partir de um
paralelismo qualitativo (metáfora verbal, imagem de si, imagem
da marca).
438
As capas (arte visual) dos discos não podem ser analisadas como um
produto apenas do artista, compositor, intérprete ou executante, ou como padrão
sonoro de uma época. O disco é também um produto da gravadora, cuja
intervenção foi decisiva no processo de produção e difusão da música ao longo
do século XX, levando em consideração que era uma produção voltada para um
público receptor. Em contrapartida, é preciso também relativizar a intervenção
das gravadoras no processo de produção e divulgação de seus artistas, pois elas
viveram seus processos históricos particulares em interação com o contexto
histórico e do país enquanto empresas e, como tais, tiveram momentos de
desenvolvimentos e recessões, acompanharam as transformações políticas e
econômicas, que às vezes eram positivas para os artistas, às vezes não.
O produto final do disco produção musical (as músicas) e visual (a
capa) pode ser entendido como resultado de um processo de negociações das
partes em jogo: artista, gravadora, público-alvo, o momento histórico e
processos políticos e econômicos globalizados em interação com as questões
nacionais e regionais.
Papirus, 1996. p.38.
438
Ibidem. p.38.
258
Outro aspecto a se notar é a coexistência de gravadoras como a
Cantagalo, a Chantecler e muitas outras com o poder econômico de gravadoras
internacionais, em um processo de absorção e resistência, gravadoras essas que
em muito dificultaram o desenvolvimento daquelas.
Como já foi dito, nas capas de seus primeiros LP’s, Luiz Gonzaga
aparecia fazendo uso de indumentária semelhante à do cangaceiro Lampião e à
dos vaqueiros, para caracterizar sua áurea artística. Assim, ele fez da negociação
e do conflito social estética. Ele tornou-se famoso com a música baião, voltada
para o universo da dança.
A imagem de Jackson, assim como a de Gonzaga, foi sendo construída
em paralelo à divulgação de um ritmo, que no caso de Jackson foi o forró. Nas
letras das músicas, nas capas dos LP’s, nos programas de televisão e no cinema
falava-se dos ritmos, da dança e do comportamento de homens e mulheres
migrantes nos ambientes de sociabilidade chamados de forró. Nesse sentido, em
algumas apresentações de rádio, no cinema e na TV, investiu-se na generalização
do nordestino valente, cabra macho, fazendo uso da indumentária sinalizada
por Gonzaga, pautada nas figuras do cangaceiro Lampião e do vaqueiro, em
mistura com as recombinações que os nordestinos urbanizados vinham
fazendo nas cidades – camisas floridas e calças coloridas.
Inúmeras foram as capas em que os artistas apareceram caracterizados
com roupas e acessórios como chapéus, alpercatas, jalecos de coro utilizados
pelos vaqueiros, bornais (bolsas utilizadas pelos cangaceiros), punhal e
revolveres na cintura, amalgamados a instrumentos musicais como a sanfona, o
pandeiro, o triângulo, o zabumba, a viola, assim como também ao cenário a
rede, a esteira, a vegetação, os cactos e a terra seca do sertão nordestino.
Outro aspecto característico é a presença da mulher simbolizando poder
e status. O Nordeste aparecia às vezes sertanejo, às vezes praieiro e brejeiro,
reforçando o seu discurso generalizante de um espaço cultural do passado.
259
Na capa do LP Sua Majestade - o Rei do Ritmo”, de 1960, Copacabana,
destacam-se alguns desses objetos citados.
Figura 47 - Capa do LP “Sua Majestade - O Rei do Ritmo”, de Jackson do Pandeiro,
gravadora Copacabana, 1960.
Nessa capa Jackson aparece com um chapéu de cangaceiro sem maiores
detalhes ou adornos, como as estrelas de seis pontas que compunham o chapéu
de Lampião. Na cintura ele carrega um punhal, trazendo a simbologia da
valentia, e sua roupa estava mais próxima daquela usada pelo trabalhador urbano
campesino.
Ele vem acompanhado por Almira Castilho, sua esposa, que cantava,
dançava e encenava. Almira vem vestida em chita, representando uma moça
matuta da roça. A imagem sugere movimento, a foto parece ter sido tirada em
meio à encenação da dança, que, aliada ao enunciado de “Rei do Ritmo”,
completa a informão de que o conteúdo do disco está recheado de músicas
feitas para dançar.
Ao fundo, compondo a cena, é ilustrado o trio nordestino acrescido de
violão, simbolizando a linguagem musical de Jackson, com alguns aspectos
260
diferentes na formação instrumental quando comparada à música de Luiz
Gonzaga.
439
O violão remetia à formação instrumental do regional, que denotava
o território do samba e do choro, e o trio nordestino referenciava o baião de
Gonzaga. Desse modo, ele visava a afirmar que não importava o ritmo, ele
estava dentro.
A versatilidade de Jackson transitava por diversos territórios. Ele cantava
sambas, fazia carnavais, festas juninas e atuava no campo do humor. Ele mesmo
deixa isso claro na música A ordem é samba”
440
, gravada no LP “Cabra da
Peste”, de 1966, pela Continental:
É samba que eles querem
Eu tenho
É samba que eles querem
Lá vai
É samba que eles querem
Eu canto
É samba que eles querem
Nada mais
No Rio de Janeiro
Todo mundo vai de samba
A pedida é sempre samba
E eu também vou castigar
Lá vai, lá vou eu de samba
Somente samba
A ordem é samba
E nada mais
Jackson também investia em outra imagem composta de chapéu praieiro
e pandeiro, remetendo sua figura ao território do nordeste praieiro. Destarte,
figurava uma imagem litorânea, que passou a ser representativa do coco
441
, uma
439
Luiz Gonzaga em muitas gravações fez uso do violão sete cordas, mas ele tentava centrar a sua
imagem em torno do trio nordestino.
440
A ordem é samba (Jackson do Pandeiro e Severino Ramos, 1966), LP “O Cabra da Peste”,
Gravadora Continental.
441
“Coco, dança popular nordestina, cantado em coro o refrão que responde aos versos do tirador de
coco ou coqueiro, quadras, emboladas, sextilhas e décimas. É canto dança das praias do sertão. A
influência africana é visível, mas sabemos que a disposição coreográfica coincide com as preferências
dos bailados indígenas, especialmente dos tupis da costa. As modificações e variedades são
incontáveis. Na Paraíba e Rio Grande do Norte o comum é a roda de homens e mulheres com o solista
no centro, cantando e fazendo passos figurados até que se despede convidando o substituto com uma
261
espécie de samba rural que Jackson havia aprendido com sua mãe, cantadora
exímia que ganhava a vida na lavoura e animando as festas do interior da
Paraíba.
Referindo-se à inserção do samba coco em ambiente urbano, Jackson
cantou “Coco Social”
442
:
Coco social
Ele é Pernambucano do canavial
Veio pro salão é social
Madame na boate fica solfejado
Ao som da champanhota
Diz o coco é bom
O musicista toca sem sair do tom
Toda gente vem ficar admirando
Diz o criminalista, esse coco mata
É super bizantino diz o general
Jacinto de Thormes na pena não dorme
E diz o coco é bom, é social
Ele é Pernambucano do canavial
Veio pro salão é social
O diplomata canta baixo na surdina
O financista gosta e faz anotação
Pandeiro financia pois vale um milhão
Diz a dama de preto é dança grafina
Jurista de renome aconselha o coco
O almirante diz ele é nacional
Ibrahim Sued disposto Mamede
E diz o coco é bom é social
A indumentária de Jackson e sua música situavam-se entre cidade, sertão
e mar. Ele transitava entre o malandro do morro e o cangaceiro sertanejo,
personalidades com diferenças tênues quando se pensa no êxodo rural de
milhares de nordestinos para as periferias das cidades grandes. A presença de
umbigada ou vênia ou mesmo simples batida de pé.” CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do
Folclore Brasileiro.ed. Belo Horizonte; Itatiaia - SP: Editora da Universidade de São Paulo, 1988.
442
Coco social (Rosil Cavalcanti, 1960), LP “Sua Majestade o Rei do Ritmo”, Copacabana.
262
migrantes nordestinos nos morros cariocas e nas regiões dos pântanos paulistas,
ou seja, nas periferias de São Paulo, era um fato, de forma que eram partícipes
diretos do processo de formação cultural desses territórios.
Mediante a análise das capas de LP’s, pode-se chegar a diversas
compreensões dos processos constitutivos dos discursos em suas dinâmicas de
contaminação, das trajetórias dos artistas, da construção das suas imagens e dos
seus momentos históricos. As imagens são polissêmicas, podem ser
interpretadas de muitas formas. Aqui elas entram no processo de construção do
discurso de Nordeste em suas generalizações e particularidades.
Em 1966, Jackson lançou o disco “O Cabra da Peste” (Continental),
cujo título vem simbolizando o nordestino enquanto viril, corajoso, cabra
macho, portanto, cabra da peste:
Figura 48 - Capa do LP “O cabra da peste”, de Jackson do Pandeiro, Continental, 1966.
Suas capas estavam sempre recheadas de senso de humor; ele tinha um
estilo irreverente. O gênero feminino muitas vezes vinha compor a cena como
acompanhamento. Em suas primeiras capas, ele contava com a companhia de
Almira Castilho, que era sua companheira na vida conjugal e também sua
companheira de cena – ela cantava, dançava e teatralizava. Quando eles se
263
separaram, em 1967, Jackson então passou a se apresentar sozinho e a aparecer
nas capas dos LP’s sem Almira, mas volta e meia a figura feminina estava
presente em suas letras de música e também em suas capas.
Com Almira Castilho da década de 1950 até 1967 nas capas de
Jackson a figura da mulher aparecia compondo um cenário mais recatado e
matuto, com vestidos comportados e brejeiros. De todo modo, quando se
analisam as imagens em cinema de Almira dançando com Jackson do Pandeiro,
se percebe em seu comportamento e em seu gestual na dança um aspecto
contraventor, debochado e erotizante, revelando certa negociação por espaços
igualitários entre os gêneros.
Com a separação, Jackson continuou a aparecer em capas acompanhado
pela figura feminina, como no disco lançado em 1973, pela CBS, “Tem mulher
to lá”. Todavia, a figura feminina aparecia enquanto atrativo comercial e como
símbolo de poder, prestígio, sinal de que o artista estava bem economicamente.
Nessa capa, Jackson é visto em meio a muitas mulheres sensuais. Logo à
frente, de cabelo curto, está a sua segunda mulher, sua companheira à época,
chamada Neuza, que ele conheceu no Forró do Pedro Sertanejo. Jackson aparece
na foto abraçado a duas garotas com a barriga de fora, simbolizando
sensualidade, o que se pode considerar como resposta às transformações que a
cidade havia trazido para a mulher.
443
443
Os homens que antes viviam soltos, fora de casa, podendo se aventurar por diferentes lugares, se
vêm cada vez mais presos à rotina do trabalho. A mulher que antes estava presa ao lar, à vida
doméstica, quando não à camarinha e a cozinha, dependendo da sua condição social, ia tomando as
rédeas de suas vidas nas mãos, já respiravam novos ares, saiam à rua para o estudo ou para o
trabalho, mesmo que fosse nos mesmos lugares que para os homens pareciam ser prisões, mas que
para elas eram indícios de liberdade.” ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. “Limites do
mando, limites do mundo: A relação entre identidades de gêneros e identidades espaciais no Nordeste
do começo do século”. História: Questões e Debates. Revista da Universidade Federal do Paraná.
264
Figura 49 - Capa do LP “Tem Mulher, tô lá”, de Jackson do Pandeiro, CBS, 1973.
Além de “O Rei do Ritmo”, outra designação que acompanhou as capas
de Jackson do Pandeiro foi a de “Dono do Forró”, relacionando a imagem do
artista ao seu sucesso nesse gênero. Os enunciados vinculados ao material
iconográfico e a programação visual das capas dos LP’s embalavam o produto
musical, criando discursos às vezes fechados que poderiam causar a ruína do
artista no próximo passo de sua trajetória.
Em 1971, Jackson lançou disco com o enunciado que trouxe o seu
sucesso na década de 1950, “O Dono do Forró” (CBS). Esse título se deu
sobretudo pelo crescente número de casas de forrós que, nesse período, vinham
surgindo na cidade de São Paulo, justificando o emprego de um enunciado que
fazia alusão a umblico concreto.
Na foto da capa do disco o dono do Forró, Jackson aparece no meio do
público no forró, denotando sua intimidade e domínio sobre aquele espaço.
n.34. Curitiba: Editora UFPR, 2001. p.8.
265
Figura 50 - Capa do Lp “O dono do forró”, de Jackson do Pandeiro, CBS, 1971.
Cabe notar que o meio musical era muito masculino. Partindo desse
princípio, as mulheres nordestinas que resolveram encarar a carreira artística
divulgaram suas imagens muitas vezes como simulacros dos homens, vestindo-
se como cangaceiros ou como mulheres de cangaceiros, como se pode observar
nos discos das cantoras Marinalva e Marinês.
Figura 51 - Capa do LP “Poeira do Caminho”, de Marinalva,
gravadora Tropicana, série Cantagalo,1974.
266
Figura 52 - Capa do LP “Coisas do Norte”, de Marines e sua Gente, RCA Victor, 1963.
As capas completam, afirmam e compõem as diversas temáticas
constantes do repertório dos álbuns. Ademais, subjetivam a negociação do artista
com o meio que fomentou a produção artística do disco ou seja, as gravadoras
–, bem como o momento histórico e o público receptor.
As capas dos LP’s de Pedro Sertanejo e de inúmeros artistas da cena
nordestina seguiram o modelo das capas dos artífices que viraram referência
pelo sucesso alcançado como Luiz Gonzaga, considerado o mais importante
deles. As capas de Pedro, assim como as de Gonzaga, ora estão focadas na
temática sertaneja da vegetação árida, do trio nordestino e da figura do
cangaceiro Lampião, dos vaqueiros, ora referenciam o fato de ele ser um
sanfoneiro de oito baixos do estado da Bahia, diferente de Luiz Gonzaga e seu
pai, Januário, que eram pernambucanos.
Em referência ao estado da Bahia, ele fez uso da imagem do Farol da
Barra no LP “Rato Molhado”, bem como da palavra “brejeiro” no LP “Forró
Brejeiro”. Aliás, em diversos títulos de discos e músicas Pedro fez alusão à
praia.
267
Figura 53 - Capa do LP “Forró Brejeiro”, de Pedro Sertanejo e seus meninos, Continental ,
1975.
Figura 54 - Capa do LP “Rato Molhado”, de Pedro Sertanejo, Musicolor, 1977.
Verifica-se que em “Forró Brejeiro” Pedro Sertanejo não está
caracterizado como um artista representante do discurso de Nordeste, aos
moldes de Luiz Gonzaga. Ele deixou de lado a indumentária do cangaço e
neutralizou a sua imagem com uma roupa imparcial.
a capa do LP Rato Molhado” traz uma fotografia de um dos “cartões
postais” da cidade de Salvador (Bahia), o Farol da Barra, sinalizando a diferença
regional da música de Pedro dentro do contexto do Nordeste e revelando o
268
aspecto tensivo que se tinha inter-regionalmente entre os diferentes estados
dessa região.
No disco “Forró Pernambucano”, mesmo contrariando o título de apelo
regional, Pedro aparece mais uma vez destoando do discurso predominante e
generalizante de Nordeste. Ele surge vestido de paletó e gravata, muito elegante
com a sua sanfona. A arte da capa remete a uma estética neutra e moderna, aos
moldes dos discos de Jazz e Bossa Nova, o que seria a antítese estética do
território do forró.
Pedro abriu a gravadora Cantagalo na década de 1960, e o disco em
questão foi lançado nesse período. Talvez ele estivesse querendo construir uma
imagem de respeito e seriedade com esta capa.
Figura 55 - Capa do LP “Forró Pernambucano”, de Pedro Sertanejo, Cantagalo (196..).
Outro aspecto que marcou a trajetória artística de Pedro Sertanejo foram
os títulos das capas e das músicas que faziam referência a estados, cidades, vilas
e as regiões do Norte e Nordeste, como os discos “Forró Pernambucano” (19..)
mencionado acima, Forró Alagoano” (1969), Caruaru minha terra”, “O
Coração do Norte” (1970), “Sanfoneiro do Norte” e o CD “Adeus Jacobina”,
269
que eram também títulos de músicas que estavam no repertório dos discos.
Conforme Oswaldinho, essa era uma forma do artista prestigiar o Nordeste em
suas particularidades.
444
Figura 56 - Capa do LP “Forró Alagoano”, de Pedro Sertanejo, Continental, 1969.
Figura 57 - Capa do LP “Coração do Norte”, de Pedro Sertanejo, Continental, 1970.
444
Depoimento de Oswaldinho do Acordeon, em entrevista concedida à autora em 30 de jun. de 2006.
270
Figura 58 - Capa do LP “Caruaru, Minha Terra”, de Pedro Sertanejo, 1977, Continental.
Nestes discos e em muitos outros, Pedro apareceu caracterizado dentro
do discurso hegemônico do Nordeste com chapéu de cangaceiro, camisas
floridas, a vegetação característica do sertão, o trio nordestino –, seguindo a
fórmula característica do sucesso emplacado por Luiz Gonzaga. Podem-se
observar tais elementos também nos discos “Na onda do forró” (Tropicana e
Cantagalo), de 1973, “Sanfoneiro do Norte”, de 1973, “Forró na Casa Grande”
(Musicolor), de 1978, “Forró do Luna”, “Forró povão”, “Forró na capital”,
“Visite o Nordeste” e “Reizado a São José”.
271
Figuras 59 e 60 - Capas dos LP’s de Pedro Sertanejo: “Na Onda do Forró”, Tropicana, série
Cantagalo, 1973, e “Forró na Casa Grande”, Musicolor 1978.
Figuras 61e 62 - Capas dos LP’s de Pedro Sertanejo: “Forró do Luna”, Continental,
1978, e “Forró Povão”, Chantecler, 1981.
272
Figuras 63 e 64 - Capas dos LP’s de Pedro Sertanejo: “Forró na Capital”,
1982, e “Visite o Nordeste”, 1973, Musicolor.
Figura 65 - Capa do LP de Pedro Sertanejo “Reizado a São José”, 1978, Musicolor.
Pode-se notar especialmente no disco “Sanfoneiro do Norte” e no CD
“Adeus Jacobina” que os objetos bornais, alpercatas, chapéu de cangaceiro e
jaleco de couro são o foco das capas, destacando o processo de contaminação
simbólico dos objetos e discursos.
273
Figuras 66 e 67 - Capa do Cd “Adeus Jacobina”, de Pedro Sertanejo, produção de Ari Batera,
sem data, e do LP “Sanfoneiro do Norte”, 1973 , Continental.
Pedro Sertanejo condensou em sua trajetória artística múltiplas trocas de
saberes e poderes, que ficaram registrados na sua história de vida, no seu forró,
na sua gravadora, nos seus programas de rádio, nas suas músicas, nas capas dos
seus discos e em suas mediações e produções culturais.
Percebe-se, portanto, que a trama discursiva de unidade de Nordeste
constituiu-se por meio de múltiplas ações particulares, múltiplos sujeitos e, logo,
construções coletivas de muitos nordestes. Focalizando-se os processos que são
produzidos na articulação das diferenças culturais, compreende-se que os
objetos da cultura se fazem enquanto processos de mestiçagem, que emergem
amalgamados aos conflitos e concessões em movimento de tensão e
relaxamento, em uma quebra de braço entre saberes e poderes, e não apenas em
meio a processos sociais cordiais e harmônicos.
Os corpos e os objetos das culturas assumem “configurações,
plasticidades, significados, sentidos em seus universos culturais”
445
e se
deslocam em meio ao contexto social. A leitura desses códigos culturais e de
suas linguagens em processos de contaminação, absorção, transformação,
445
ANTONACCI, Maria Antonieta. “Corpos sem fronteiras”. Projeto História. Revista do Programa
de Estudos Pós-graduados em História e do Departamento de História da PUC/SP. n.25. São Paulo,
dez. 2002. p.147.
274
resistência e deslocamento possibilita a desconstrução dos discursos
homogêneos e monolíticos.
275
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A questão inicial que moveu esta tese foi a história dos migrantes
nordestinos na cidade de São Paulo pelo viés de suas manifestações culturais
reveladas nos espaços de sociabilidade e nos objetos da cultura. Desse modo,
tomou-se como ponto de partida a trajetória, a vida e a obra de Luiz Gonzaga,
primeiro artista nordestino a fazer sucesso nacionalmente via rádio. Buscaram-
se, na articulação tradutória de sua obra, os momentos de concessões e conflitos,
pois se constatou que vida e obra estavam amalgamadas com o cotidiano e,
portanto, os processos criativos funcionaram como estratégias de luta por
saberes e poderes.
Luiz Gonzaga foi referência direta em seu modo de se comunicar, de se
vestir, em suas traduções criativas para inúmeros outros artistas migrantes e não-
migrantes que, muitas vezes, absorveram a sua simbologia artística enquanto
referência de sucesso. A sua imagem, a sua música, o seu gestual passaram a
fazer parte do discurso de Nordeste.
Focalizou-se São Paulo, tendo como perspectiva acompanhar o
movimento e as inter-relações que envolveram o deslocamento do migrante e de
suas experiências culturais na cidade. Focalizou-se ainda a interlocução das
regiões Sudeste e Nordeste, durante as décadas de 50 a 90 do século XX,
preenchendo um vácuo marcado pelo espaço de saudade e sociabilidade
daqueles que se deslocaram em busca da sobrevivência ou de ter uma
experiência com a modernidade e o progresso do centro urbano.
Constatou-se que a cultura nordestina desenvolveu-se, transformou-se,
inventou-se e reinventou-se no interstício campo-cidade, e foi nesse “entre-
lugar” que se proliferaram as experiências sociais mestiças, experiências estas
que foram traduzidas em gêneros musicais, ritmos, danças, modos de falar, de se
vestir e de comer e que, por conseguinte, estão condensadas nos objetos da
cultura.
276
Na pesquisa acerca do cotidiano do Forró do Pedro Sertanejo e da
trajetória da gravadora Cantagalo, revelaram-se estratégias de resistência, luta e
sobrevivência não da história de vida de Pedro, mas também da história
coletiva dos migrantes nordestinos na cidade, suas interpretações e
posicionamentos diante das relações de poder existentes na urbe e os
deslocamentos conquistados dentro dela. Estratégias que foram observadas:
entre o público e o privado, o feminino e o masculino no salão, os corpos, a
dança, os gestos, a forma de se vestir, os hábitos alimentares, afetivos, os
múltiplos sujeitos e a significação do político no âmbito do cotidiano e do lazer.
Esta pesquisa se fez mediante os corpos, os gostos e as mentes das
pessoas que freqüentavam os espaços de sociabilidade e faziam o cotidiano do
trabalho e da festa. Percebeu-se que os migrantes atuaram como sujeitos de sua
própria história, ocupando territórios e negociando códigos culturais materiais e
imateriais.
O Forró do Pedro e a sua gravadora deram suporte a muitos artistas que
estavam iniciando ou dando continuidade às suas carreiras. Ele criou uma rede
social de troca de saberes e poderes em que estavam conglomerados o forró, a
gravadora, os programas de rádio por ele apresentados e a sua atuação como
artista e diretor artístico de inúmeros discos. Foi uma trajetória de mais de 22
anos de permanência do forró pé-de-serra, registrada em centenas de discos
autorais e de artistas que gravaram pela Cantagalo.
Foi possível, examinando-se os discos gravados pela Cantagalo,
constatar as diferenças culturais entre as diversas regiões do Nordeste, por meio
da estética musical de diferentes artistas que eram compreendidos dentro do
rótulo generalizante de nordestinos.
Emergiram, por intermédio do Forró do Pedro e de sua gravadora,
muitos Nordestes, o Alagoano, o Pernambucano, o Baiano, o Paraibano, o
Nordeste do sertão e do litoral, da vila e da cidade, enfim, observaram-se
particularidades em meio às generalizações.
277
Em 1988, o Forró do Pedro Sertanejo (precursor das casas de forró em
São Paulo) no bairro do Brás fechou e se mudou para o bairro de São Matheus,
nova periferia da cidade de São Paulo, funcionando nesse local até 1996, ano em
que Pedro faleceu. Atualmente, no mesmo espaço atua uma ONG, dirigida por
um de seus filhos, Ari Batera, cujo foco principal não é mais o forró. Agora é um
espaço cultural com aulas de música e local para apresentação de shows da
comunidade; e, ao mesmo tempo, o espaço é alugado para cultos de uma Igreja
Evangélica.
O tema aqui proposto, entretanto, não se esgota com a apresentação desta
tese; ele deixa em aberto ainda muitos aspectos e questionamentos a serem
explorados e aprofundados. São muitas as possibilidades de desdobramentos
desta pesquisa, sobretudo no que tange a uma cartografia do processo de
contaminação e mestiçagem dos objetos da cultura e espaços de sociabilidade
nordestina na cidade de São Paulo.
Sabe-se que na década de 1970 existiam inúmeras casas de forró como a
de Pedro, voltadas para o público migrante, delimitando o território cultural
deste dentro da cidade. Na década de 1990, as casas de forró deslocaram-se da
zona leste para as zonas norte e oeste da cidade, e, no decorrer da pesquisa de
campo, verificou-se que houve um desmembramento da categoria forró, que fez
com que surgisse uma série de outras leituras desse gênero musical na cidade de
São Paulo, com outras configurações, que ficaram conhecidas como “Forró pé-
de-serra”, “Forró de duplo sentido”, “Forró universitário”, “Forró eletrônico”,
segmentos que passaram a ocupar outros espaços de sociabilidade. Nesse
processo, o que se entendia por periférico, na década de 1960, sofreu um
deslocamento na década de 1990, revelando, dessa forma, o processo de
contaminação da música nordestina na cidade, além de permanências e
transformações.
278
O forró universitário teve como referências o forró tradicional, do trio
nordestino, nos moldes de Luiz Gonzaga e da música popular brasileira da
década de 1970, realizada por artistas como Alceu Valença, Zé Ramalho, Fagner,
Geraldo Azevedo, Elba Ramalho, Gonzaguinha e muitos outros. Os artistas
adeptos desse estilo de forró misturaram a música tradicional com elementos do
rock, reggae, valendo-se de uma instrumentação eletrificada, com uma formação
composta de baixo elétrico, guitarra, bateria, violão amplificado e às vezes
saxofone.
O “Canto da Ema” foi uma entre tantas casas de forró inauguradas na
cidade de São Paulo em meados das décadas de 1990 e do ano 2000, com a
proliferação do forró universitário. Espaços como este e o KVA (centro cultural
onde se realizavam shows de forró e aulas de dança), que hoje se encontra
fechado, atendiam a um público muito diferente daquele com o qual o forró
estava familiarizado nas décadas de 1960 a 1980, na periferia da cidade, nos
bairros do Brás e em São Matheus, público esse que era em sua maioria formado
por migrantes nordestinos.
O forró pé-de-serra e o forró universitário são vertentes estéticas que
dizem seguir a tradição do forró nos moldes do forró pé-de-serra divulgado por
Luiz Gonzaga e Pedro Sertanejo. Já o forró representativo da periferia da cidade,
na década de 1990, procurou dar continuidade a seus antecessores, sobretudo
Luiz Gonzaga, mas sem maiores apegos tradicionalistas. Eles absorveram tanto
referências internacionais como nacionais e regionais, incorporaram
equipamentos tecnológicos como teclados com ritmos e computadores,
causando uma verdadeira avalanche estética no gênero musical forró e, mais
uma vez, o tornando um fenômeno periférico e provocando mal-estar às classes
mais favorecidas.
O forró que, nas décadas de 1960 a 1980, habitava a periferia se
reterritorializa e passa a habitar outros bairros da cidade, agora com o prestígio
cultural de clássico e tradicional. O tempo oferece à produção periférica do
279
passado a qualificação de referência clássica. Enquanto isso, a produção
periférica do presente permanece ocupando o território do tosco e do brega.
A essa diversidade estético-social, desdobrada em suas emersões e
conexões epistemológicas cotidianas, alinhou-se o objeto de estudo desta
pesquisa, na direção hipotética de que os objetos da cultura possuem território,
etnia e recortes sociais distintos. Eles são objetos de saberes e, portanto,
ferramentas estratégicas de sobrevivência e luta por territórios e poderes. Esses
objetos, ao serem recombinados, levando-se em consideração o cotidiano, a
vivência comunitária e a coexistência de tempos sociais diferentes, vão se
transformando, absorvendo influências e influenciando, gerando mesclas
culturais mestiças diversas, atingindo territórios e recortes sociais diferentes
dentro da geografia da cidade.
Estes aspectos convergem para um ponto afirmativo importante: a
inexistência de baixa e alta cultura. Não existe cultura melhor nem pior, existe a
cultura que é produzida de acordo com as possibilidades sócio-culturais e
econômicas de cada sujeito, com aquilo que se vive e que se pensa, de acordo
com aquilo que se é e o que se tem em tempos sociais diferentes.
A cultura produzida por cada um, dentro da comunidade, passa a
representar um grupo social, seja de migrantes, seja de uma juventude
universitária urbana, e seu repertório de referências culturais. Ela passa, então, a
ser uma arma de luta por espaços, saberes e poderes nos deslocamentos e
descentramentos dentro da cidade, dentro do país e até mesmo dentro do planeta.
Os objetos da cultura são expressões e manifestações diretas da vida,
enredados a diversos tecidos constitutivos da sociedade, que às vezes manifesta
os anseios e necessidades do coletivo. Toda e qualquer tentativa de hierarquizar
a cultura ou emitir valores comparativos sobre níveis culturais em relação a este
ou aquele objeto de cultura pode soar como ação de exclusão ou ainda como
falta de entendimento dos conflitos culturais, das desigualdades sócio-culturais e
de todo o processo histórico da constituição sócio-política do Brasil.
280
Sabe-se que as elites política e econômica brasileiras poucas vezes se
preocuparam em realizar projetos sócio-econômicos para a população menos
favorecida. Mas, mesmo sem muitas oportunidades e projetos do mundo oficial
e das instituições de poder, os populares inventaram, ao seu modo, a “estética
dos vencidos”, suas tradições e sua cultura, e, algumas vezes, se deslocaram,
ascenderam dentro do contexto social, mesmo com todas as tentativas de
controle das elites. Esta tese foi justamente atrás das brechas sociais que
escaparam do controle e que revelaram os sujeitos, suas práticas, estratégias de
sobrevivência e de luta, suas vitórias e derrotas pelo viés da circularidade
cultural.
Foi fundamental, durante todo o processo da pesquisa, a compreensão da
trajetória dos migrantes e sua emersão simbólica nos objetos da cultura enquanto
um processo epistemológico, cotidiano, lento, tenso e histórico. Essa
consciência em relação à construção do sentido histórico do objeto foco da
pesquisa foi imprescindível para a desconstrução das generalizações históricas
construídas em torno da temática, detectando os momentos e os porquês da
construção dos estereótipos e das generalizações acerca da migração nordestina
e do Nordeste. Observou-se, inclusive, que os próprios nordestinos se
“nordestinizaram”, ou melhor, ajudaram a construir o discurso da estereotipia.
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Programas de rádio e Vídeos
Programa Canto da Terra, com Oswaldinho do Acordeon. Cassete digitalizada.
Rádio Educadora. Salvador, Bahia, 1981.
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Programa Canto da Terra, com Dominguinhos. Cassete digitalizada. Rádio
Educadora. Salvador, Bahia, 1981.
Programa Canto da Terra, com Pedro Sertanejo. Cassete digitalizada. Rádio
Educadora. Salvador, Bahia, 1981.
Programa Ensaio, Vídeo Dominguinhos. Arquivo da Tv Cultura. São Paulo, s/d.
Programa No Mundo do Baião, Rádio Nacional, com Luiz Gonzaga, Humberto
Teixeira e Zé Dantas. CD digitalizado. São Paulo, 1950.
Filmes
O Galo sou Eu. Cena de Luiz Gonzaga cantando e dançando o xaxado. 1957.
Cala Boca Etelvino. Cena de Jackson do Pandeiro cantando e dançando o baião.
1958.
Entrevistas
- Ari Batera. Filho de Pedro Seratnejo. São Paulo, Espaço Cultural Pedro
Sertanejo.
- Oswaldinho do Acordeon. Sanfoneiro, filho de Pedro Sertanejo. São Paulo.
- Ângelo Assis. Jornalista e escritor. São Paulo.
- Jarbas Mariz. Cantor e compositor paraibano. São Paulo.
- Tio Joca. Sanfoneiro do trio sabiá e irmão de Pedro Sertanejo. São Paulo.
- Anastácia. Cantora e compositora, parceira de Dominguinhos. São Paulo.
305
- Carmélia Alves. Cantora e Compositora. São Paulo.
- Miltinho Edilberto. Cantor, compositor, um dos criadores do forró
universitário. São Paulo.
- Paulo Rosa. Produtor da casa de forró Canto da Ema. São Paulo.
- Fúba de Taperoá. Pandeirista e cantor. São Paulo.
Bibliotecas, arquivos e acervos particulares
Biblioteca do Memorial da América Latina. São Paulo.
Biblioteca do Centro de Estudos Migratórios (CEM). São Paulo.
Biblioteca da Escola de Comunicação e Artes (ECA), USP. São Paulo.
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro.
Biblioteca Nadir Gouvêa Kfouri, PUC-SP. São Paulo.
Museu da Imagem e do Som de São Paulo (MIS). São Paulo.
Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro (MIS). Rio de Janeiro.
Arquivo fonográfico da Rádio Educadora (IRDEB). Salvador, Bahia.
Acervo particular da família de Pedro Sertanejo.
Acervo particular do radialista Assis Ângelo.
Acervo particular do historiador Fábio Paes.
Acervo particular do fotógrafo Robson Roberto.
Acervo de Guilherme (museu Gonzagão). Cidade de Serrinha, Salvador, Bahia.
Discoteca Oneyda Alvarenga, Centro Cultural São Paulo. São Paulo.
Livros Grátis
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