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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E
INSTITUCIONAL
Luciana Fogaça Monteiro
ROMPENDO O SILÊNCIO: HOMOFOBIA E HETEROSSEXISMO NAS
TRAJETÓRIAS DE VIDA DE MULHERES.
Porto Alegre
2009
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2
Luciana Fogaça Monteiro
ROMPENDO O SILÊNCIO: HOMOFOBIA E HETEROSSEXISMO NAS
TRAJETÓRIAS DE VIDA DE MULHERES.
Dissertação apresentada como requisito parcial para
obtenção do grau de Mestre em Psicologia Social e
Institucional. Programa de s graduação em
Psicologia Social e institucional. Instituto de
Psicologia. Universidade Federal de Rio Grande do
Sul.
Orientador Henrique Caetano Nardi
Porto Alegre
2009
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3
Dedico este trabalho às mulheres que fizeram parte desta pesquisa.
4
AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente a UFGRS, na figura do Programa de Pós-graduação em Psicologia
Social e Institucional, que acolheu a mim como pesquisadora e a este trabalho.
Meus mais emocionados agradecimentos ao meu orientador Henrique Caetano Nardi, não
somente por ter acolhido esta pesquisa, mas por ter pacientemente suportado todas as minhas incertezas,
atrasos e ansiedades. Por ter também me “apertado” na hora que precisava. Por todos os insights durante a
escrita. Enfim, para ele o meu mais profundo agradecimento.
Para todos os meus companheiros de “Rompa”, com os quais foi possível vislumbrar outro mundo
e os quais, a despeito de eu mesma, nunca deixaram de acreditar em mim: Fernando Pocahy, sem o qual
talvez eu nunca tivesse pensado em entrar em um programa de mestrado, um amigo que palavra nenhuma
poderia definir; à Cecília Froemming, minha grande incentivadora e companheira inseparável de todas as
horas; à Simone Vasconcelos e Cláudia Ávila, as quais me mostraram que é possível trabalhar a favor de
seus ideais, sem perder a ternura, o bom humor e principalmente “as calças”; à minha querida Manoela
Carpenedo, nossa “formiga atômica”, que tornou a frase “deu uma de manú” um “must” que todos
gostariam de receber.
Aos meus outros companheiros do Nuances: Perseu Pereira, pessoa linda que tornava sempre tudo
mais colorido e cheio de vida “todos querem ser que nem ele, mas ele é naturalmente”; Glademir Lorensi,
cuja retidão de caráter e doçura me inspiram; à Célio Golin, cuja trajetória militante faz admirar.
À amiga Silvia Silveira, sempre disposta a me ajudar e me apoiar, mesmo quando eu fugia.
Aos meus colegas de mestrado; principalmente à Lia” Quartieiro, Lisandra Espíndola, Janete
Schubert e Paula Marques, que tornaram tudo o mais instigante e divertido. As colegas de núcleo
Priscila e Daiane, e também Lissandra Soares, pelo apoio técnico na reta final do trabalho.
Aos meus pais e à Ana Xavier, cujo suporte emocional (e algumas vezes financeiro!) foi
imprescindível neste momento e aos quais também dedico este trabalho.
Às minhas irmãs Andréa, Marília e Alice, as quais amo incondicionalmente. “Juntas somos a
ALMA do negócio”!
Ao meu querido namorado Leandro Baségio, cujo apoio e presença foram imprescindíveis e me
deram a força necessária para terminar esta etapa.
5
As mulheres participantes desta pesquisa, por sua coragem e disposição. Seus ricos relatos não são
mera ilustração; eles constroem as possibilidades neste trabalho.
6
RESUMO
Esta pesquisa busca compreender os modos de subjetivação de mulheres com práticas
homoeróticas que apresentaram denúncias relacionadas à homofobia. Ela parte de uma
intervenção realizada pela ONG Nuances - grupo pela livre expressão sexual conveniada ao
Programa Brasil Sem Homofobia. Através de entrevistas baseadas na abordagem biográfica,
busquei verificar a forma como elas constroem uma experiência de si, no cruzamento entre a
sustentação da matriz heterossexista e a emergência de políticas governamentais de combate a
discriminação. O material permitiu compreender que elas percebem a discriminação e o
preconceito como resultado de uma extrapolação dos limites das convenções de gênero. Desta
forma, elas acreditam que a homossexualidade masculina e mulheres que possuem estilos “mais
masculinos” estão mais propensos/as a sofrer discriminações, por acreditarem que são mais
visíveis. Assim, a perspectiva de uma maior “aceitação” das relações homoeróticas entre
mulheres é percebida na articulação entre estilos mais próximos dos padrões de femininos, bem
como por uma apropriação do homoerotismo feminino por parte do fetiche masculino. Outro
achado foi à evocação de saberes psi nos conflitos familiares. Quanto às estratégias de
enfrentamento, foram encontradas tanto formas de manter identidades discretas quanto modos
mais combativos, baseados no que chamo de subjetivação militante. De modo geral, estas
mulheres consideram os tempos atuais melhores, relacionando-os mais a atuação do movimento
social do que aos aparelhos de proteção e políticas públicas estatais. Este fato pode ter algumas
razões: a própria estratégia de enfrentamento formulada pelo Brasil Sem Homofobia (fomento a
atores do movimento) e a timidez governamental em adotar estratégias de visibilidade de massa,
provavelmente provocada pela oposição que o tema da diversidade sexual enfrenta frente a
bancadas religiosas.
Palavras chave: homofobia; mulheres; Brasil Sem Homofobia.
7
ABSTRACT
This research seeks to understand the modes of subjectivation of women with homoerotic
practices that have filed complaints related to homophobia. This research had its starting
point in an intervention conducted by the NGO Nuances - group for free sexual expression,
convening the BRAZIL WITHOUT HOMOPHOBIA Program. Through interviews based on
the biographical approach, I tried to see how these women construct a self-experience, at the
junction between the prevailing heterosexist matrix and the emergence of government
policies to combat discrimination. The material allowed to find that they understand
discrimination and prejudice as a result of an extrapolation of the limits of gender
conventions. Following this logic, they believe that male homosexuality and women who
have more "masculine" styles are more likely to be discriminated against, on the basis that
they are “more visible”. The prospect of greater "acceptance" of homoerotic relationships
between women is perceived by these women, and it is related to standard female
performances, as well as an appropriation of female homoeroticism by the male fetish.
Another finding was the evocation of psychological knowledge in family disputes. The
coping strategies were found both in ways that maintain discrete identities as in more openly-
combative styles, based on what I call “militant subjectivity”. In general, these women
consider the actual times better to homosexuals, relating this fact more to the work of social
movement than to the apparatus of protection and state public policies. This fact may have
some reasons: the coping strategy formulated by Brasil Sem Homofobia (encouraging the
movement actors) and government timidity in adopting strategies of mass visibility, probably
caused by the opposition that sexual diversity is facing by religious political parties.
Keywords: homophobia; women; Brazil Without Homophobia National Program.
8
SUMÁRIO
1. Apresentação de uma trajetória de pesquisa...................................................................................10
1.1 Trajetória da pesquisadora..................................................................................................12
1.2 Trajetórias teóricas.............................................................................................................17
1.2.1 Processos de Subjetivação e a noção de resistência...............................................18
1.2.2 A Heteronormatividade e a produção de identidades desviantes...........................23
1.2.3 Heterossexismo, homofobia, lesbofobia os nomes da opressão..........................29
2. Da abordagem metodológica..........................................................................................................35
2.1 A perspectiva genealógica..................................................................................................35
2.2 Trajetórias de vida o que esta em questão quando alguém fala de si?............................37
2.3 A construção da análise......................................................................................................41
3. A constituição do campo................................................................................................................42
3.1 Trajetórias em movimento: o movimento homossexual no Brasil.....................................43
3.2 O Nuances Grupo pela livre Expressão Sexual...............................................................57
3.3 O Brasil Sem Homofobia...................................................................................................62
3.4 O Centro de referência no combate e prevenção à homofobia...........................................65
3.5 Os sujeitos da pesquisa: as mulheres..................................................................................72
3.5.1 Critérios e forma de seleção da amostra................................................................77
3.5.2 Implicações éticas na apresentação das participantes.............................................78
3.5.3 Apresentação das participantes...............................................................................79
4 Vivendo num mundo heteronormativo: experiências e percepções do
heterossexismo/homofobia.............................................................................................................90
4.1 Homofobia e o heterossexismo: guardando as fronteiras
do gênero..................................................................................................................................90
9
4.2 Maior “aceitabilidade” das relações homoeróticas entre mulheres: mais aceita ou
mais invisibilizada?..................................................................................................................97
4.3 A invocação dos saberes psi como forma de restabelecer a
norma nas relações com a família..........................................................................................101
5 Estratégias de enfrentamento “do “armário à armadura”:
A guisa de conclusão....................................................................................................................106
5.1 Discrição: silêncio, segredo e dissimulação.........................................................106
5.2 “Bancando o meu lugar”.......................................................................................109
5.3 Sou lésbica, e daí?” modos “militantes” de enfrentamento ...............................110
5.4 “Hoje em dia é melhor”: o difícil, mas possível encontro com os mecanismos
estatais de proteção...........................................................................................................112
6 Referências Bibliográficas............................................................................................................116
10
1. Apresentação de uma trajetória de pesquisa
Esta pesquisa busca apresentar e compreender as trajetórias de vida de mulheres com
práticas homoeróticas que, vítimas da discriminação e/ou violência homofóbica/heterossexista,
decidiram romper o silêncio e denunciar estas violações. Ela toma como ponto de partida uma
intervenção na área dos Direitos Humanos realizada pela ONG Nuances - grupo pela livre
expressão sexual, em convênio com a Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência
da República, o projeto “Rompa o Silêncio” Centro de Referência em Direitos Humanos de
Combate e Prevenção a Homofobia (CRDH), local procurado por estas mulheres na busca de
auxílio e encaminhamento de suas denúncias. Este centro vincula-se a um programa nacional de
Direitos Humanos para a chamada população LGBTT
1
, Brasil Sem Homofobia. Foi, também,
local onde eu pela primeira vez exerci minha atividade profissional como psicóloga.
A emergência do dispositivo da sexualidade na sociedade ocidental, com sua lógica
normalizadora (FOUCAULT, 1998), tem produzido um enquadramento das expressões do desejo
e do sexo, transformando práticas em identidades profundamente conectadas a sua sexualidade.
Parto do princípio que estas mulheres estão posicionadas em um complexo campo discursivo que
toma os sujeitos através de suas diferentes expressões de sexualidade e de gênero, criando
condições de possibilidade para determinadas experiência de si e formas de enunciação.
A partir disto, busquei analisar - através de entrevistas baseadas na abordagem biográfica
- a forma como estas mulheres vem se constituindo como sujeitos, no cruzamento entre a
sustentação da matriz heterossexista de compreensão do humano e a emergência de
possibilidades combate a sua opressão . O fortalecimento e a expansão do movimento
homossexual brasileiro, sua crescente articulação com o Estado, bem como o surgimento de
conceitos que denunciam a opressão heterossexista e seus efeitos, tem possibilitado a
reivindicação e criação de políticas públicas de enfrentamento destas desigualdades. Políticas
que, se antes permaneciam cegas a determinadas violações, hoje voltam seu olhar ao
enfrentamento e a prevenção da discriminação e violência contra LGBTTs , ou como se
convencionou chamar, homofobia.
1
Sigla para Gays, Lésbicas, bissexuais, travestis e transgêneros que pode conter variações
acrescentando ou reduzindo as letras (pode incluir, por exemplo: „Q‟ de Queer e „I‟ de Intersexual).
11
Como parte deste processo, interessei-me compreender as formas como estas mulheres
têm experimentado a violência e a discriminação, como elas a percebem e que sentidos produzem
em suas vidas. Associados a estes objetivos, foi também importante analisar as formas pelas
quais elas têm enfrentado e contestado os significados estigmatizantes associados a suas práticas
eróticas/afetos com outras mulheres. Se escolho estas mulheres - que fizeram denúncias - é
porque imagino que este enfrentamento de certa forma já exista.
Preferi, ao convocar estas mulheres, fazer um recorte não identitário. Isto eu enuncio ao
falar em mulheres com práticas homoeróticas ao invés de evocar identidades, como seria se
optasse por usar a categoria “lésbica”. Faço isso apesar de compreender a importância que a
“identidade” tem tido no processo de reivindicação de direitos e equiparações, tanto por parte do
movimento homossexual, quanto na elaboração de políticas públicas.
Tive algumas razões para deixar em suspenso a forma como estas mulheres se auto-
identificam. Uma delas é o fato de que o foco desta pesquisa se na experiência de
discriminação que, embora possa estar relacionada com questões identitárias, evidencia que estas
mulheres avançaram os limites impostos pelas normas de gênero e pela heterossexualidade
compulsória (RICH, 1999). Preferi deixar que a categoria identidade, se fosse o caso, entrasse na
forma de análise de suas possíveis relações com o heterossexismo/homofobia e as formas de
confrontação elaboradas pelas participantes desta pesquisa. Colocar em suspenso a questão da
identidade também foi uma forma de escapar a captura identitária que se observa tanto nas
reivindicações políticas do movimento homossexual quanto nas políticas voltadas a este
segmento, bem como na segmentação de um mercado “GLS
2
.
Tendo feito esta primeira exposição, inicio o relato desta pesquisa traçando minha
trajetória como pesquisadora-aprendiz e minha implicação com a temática da pesquisa. Logo
após, exponho os parâmetros teóricos que guiam esta analise, conduzindo o leitor a compreensão
de conceitos importantes para, na seqüência, expor a abordagem metodológica. Mais adiante,
dedico um capítulo a construção do campo da pesquisa, iniciado pela trajetória do movimento
homossexual brasileiro e do grupo Nuances, seguido pela descrição do Programa Brasil Sem
Homofobia e do CRDH Rompa o Silêncio. No mesmo capítulo, faço a apresentação das
2
Sigla para Gays, Lésbicas e Simpatizantes.
12
participantes desta pesquisa. Os dois últimos capítulos são dedicados a análise do material
produzido nas entrevistas..
1.1 Trajetória da Pesquisadora e sua implicação com o tema
“Toda a escolha tem uma história, melhor seria talvez dizer que toda a escolha é uma história, porque ela é
produzida por um conjunto de forças que faz irromper, em um dado momento, a si mesma como escolha.”
(Barros, 2007, p. 317)
Para iniciar o relato desta pesquisa que versa sobre as trajetórias de vida de mulheres que
escolheram romper com o silêncio imposto pelas normas de gênero, pelo heterossexismo e pela
homofobia, julgo ser necessário tentar situar o olhar que vai conduzir a/o leitor/a por estas
trajetórias, pois é no contato com este olhar que estas mesmas trajetórias vão sendo produzidas e
(re)inventadas.
A história desta escolha não pode se furtar à trajetória desta pesquisadora aprendiz e de
sua trajetória profissional e pessoal. Se a epígrafe com a qual iniciei este capítulo está correta, a
escolha por um tema de pesquisa não se dá de forma alheia ao sujeito que escolhe e aos
locais/espaços de formação presentes em sua trajetória, ou seja, mulher, psicóloga e, mais
recentemente, pesquisadora.
Assim, situar meu olhar de pesquisadora sobre o campo não somente poderá esclarecer
acerca de parte das condições de emergência deste estudo como também o próprio horizonte
ético-estético no qual ele é produzido. Esta é uma pesquisa realizada por uma mulher; uma
mulher que, em um determinado momento de sua experiência, se perguntou o que vinha a ser este
“ser mulher”, a que implicações o termo remetia e, principalmente, que limitações objetivas e
subjetivas o acompanhavam. Das muitas vezes em que me lembro ter sido interpelada pelas
normas de gênero e pela heteronormatividade lembro-me de uma, vivida na infância.
Vasculhando entre os livros de minha casa, encontrei uma conhecida revista masculina que
mostrava uma rie de famosas mulheres nuas. Não era a primeira vez em que eu e minhas irmãs
encontrávamos um destes exemplares em casa e o folheávamos escondidas, curiosas e excitadas.
Logo fui ao encontro de minha irmã mais velha partilhar o “achado”. Para meu “azar” minha
irmã (que tinha por volta de doze anos na época) estava conversando com uma amiga e,
13
constrangida e furiosa com minha oferta de ver a revista, logo desferiu um sai daqui sua
lésbica!”. Eu já conhecia a carga negativa que aquele termo carregava - a “lésbica”, a feia antítese
daquilo que as normas de gênero delineavam como “mulher normal” ou mesmo como “mulher”,
assombrava nosso mundo de meninas. Naquela tarde, envergonhada, aprendi, através da dura
pedagogia do insulto, quais eram os limites que a norma impunha aos sujeitos e seus corpos aos
pequenos corpos de mulher que éramos eu e minha irmã. Experiência mais dura e intrigante
ainda, porque éramos naquela época filhas de uma mulher que não somente havia ousado
atravessar os limites normativos de seu sexo: separada, trabalhando “fora” para sustentar suas
filhas, ela também “ousava” ao se relacionar afetiva e sexualmente com outras mulheres.
Da mesma forma, retrospectivamente, percebo que aquela entre tantas outras lições - mais
ou menos impactantes - que fui absorvendo ou quando possível repudiando, o somente me
ensinaram os limites do que era socialmente considerado certo ou errado a respeito do que um
corpo/sujeito do sexo feminino poderia fazer e desejar; elas também me ajudaram a constituir a
mulher que hoje sou, bem como ajudaram a produzir os questionamentos que me fizeram
enveredar para os estudos de gênero e sexualidade numa perspectiva pós-estruturalista. Aqui
reafirmo a célebre frase de Beauvoir não se nasce mulher, torna-se mulher”; não somente por
enfatizar o caráter fabricado destes sujeitos mulheres, como também pelo fato de evocar, ao
pensar num sujeito que se produz e é produzido na experiência, seu caráter contingente, histórico,
local, contraditório e, portanto, não universal, mas múltiplo.
Pode parecer um tanto óbvio que minhas experiências enquanto mulher - e por tanto
sujeita às normatizações que incidem sobre os corpos tidos como femininos - de certa forma
delineiem as escolhas temáticas que ora faço. No entanto, elas deixaram marcas que
possibilitaram que mais tarde, através dos encontros que fui tendo na minha vida acadêmica e
profissional, eu desenvolvesse uma postura mais crítica a respeito de como somos e fomos
levados/as, no ocidente, a procurar descobrir a verdade sobre nós mesmos na verdade de nosso
sexo (Foucault, 1998). Levaram-me, também, a pensar a cerca dos processos sociais que tornam
vidas mais ou menos válidas (BUTLER, 2005; 2001).
14
Neste sentido, minha aproximação com o grupo Nuances grupo pela livre expressão
sexual
3
, foi de extrema importância, tanto para meu ingresso no programa de Pós-Graduação em
Psicologia Social quanto no processo de elaboração desta pesquisa. Esta foi uma aproximação
gradativa, que se iniciou no ano de 2005, participando de maneira variada (por um período fui
observadora, co-coordenadora por dois meses e depois como professora) do projeto
GURIZADA
4
, que era coordenado e idealizado por um grande amigo e companheiro de formação
em psicologia, na época membro do nuances.
Foi no ano de 2006 que minha participação no grupo se tornou mais constante. Naquele
ano o grupo iniciava o projeto “Rompa o silêncio” Centro de Referência em Direitos Humanos
de Combate e Prevenção a Homofobia (CRDH Rompa o Silêncio), cuja equipe técnica integrei
como psicóloga.
Como veremos em capítulo posterior, o nuances é uma organização social que, dentro do
cenário do movimento LGBT brasileiro, se caracteriza por realizar fortes críticas quanto aos
saberes psi e médicos, denunciando-os, muitas vezes, como campos de saber que legislam sobre a
sexualidade, os sujeitos e seus corpos. Desta forma, as vivências e os conflitos do dia a dia na
rotina do centro, com nossas/os usuárias/os e, principalmente, com a militância, me levaram a
repensar minha formação como psicóloga bem como indagar a cerca das possibilidades da prática
em um contexto como este.
Neste sentido, pensando sobre minha formação enquanto psicóloga, encontrei-me naquilo
que hoje de forma um pouco cômica chamo de “entreveiro”. Isto porque nada ou muito pouco na
minha formação parecia indicar como conduzir meu trabalho naquele campo. Pelo contrário, às
vezes parecia atrapalhar. Meu receio, a todo o momento, era o de que uma atuação ou uma visão
muito psicologizante e individualista dos casos e sofrimentos trazidos por nossas/os usuárias/os
pudesse esvaziar o conteúdo social e político da intervenção. Havia em mim e em meus/minhas
companheiras/os de trabalho uma forte recusa em tratar nossas/os usuárias/os como vítimas
passivas das convenções sociais (apesar de terem sido vitimadas/os). Se nos procuravam, era
3
No segundo capítulo desta dissertação, discorrerei sobre a trajetória do grupo, suas ações e seu ideário.
4
Sobre esta intervenção ver POCAHY, Fernando. A Pesquisa fora do armário: ensaio de uma
heterotopia queer. Dissertação de mestrado, Instituto de Psicologia, UFRGS, Porto Alegre/RS, 2006 e também
POCAHY & NARDI (2007).
15
porque justamente também eles/as contestavam os significados atribuídos a sua condição de
gênero e de orientação sexual, e nisto não tinham nada de passivas/os. A linha que separa a
concepção da homossexualidade como patologia da concepção da homossexualidade como uma
espécie de forma dada de vitimização era muito nue, e meu medo era o de ao tratar nossas/os
usuários/as como vítimas passivas, iria colaborar para um deslocamento da patologização da
homossexualidade: de doentes por serem homossexuais a eternas vítimas por serem
homossexuais.
Esta visão, creio, atravessa também este trabalho. Apesar de trabalhar com os enunciados
que se referem às formas de violência e discriminação como vividas por minhas entrevistadas,
foi-me também importantíssimo que percebesse suas falas não somente a partir do viés da
vitimização, mas também das lutas, das formas como resistem e contestam estas discriminações e
violências e que aparatos discursivos utilizavam para falar de si. De suas dores bem como de suas
delícias, para parafrasear Caetano Veloso.
Assim, ao constituir-me pesquisadora, bem como ao constituir-me enquanto psicóloga no
movimento social e junto à militância, foi-me quase impossível desvincular um “viés militante”
da minha prática profissional e de pesquisadora. Estranho? Nem tanto. Concordo com a frase de
Félix Guattari (1981) “militar é agir” pelas várias implicações que reflete. A ação supõe práticas,
que supõe discursos. Os discursos (que na concepção foucaultiana são práticas) corroboram ou
negam determinadas ações, portanto nunca são neutros. Neste sentido a diferença reside em
assumir este viés; ao fazê-lo, no entanto é preciso estar consciente tanto de suas benesses como
de seus riscos.
Minha aproximação e meu interesse pelas trajetórias das mulheres que nos buscavam foi
se dando de forma gradativa, ao longo dos dois anos anteriores a minha entrada no programa de
pós-graduação. Apesar de acolhermos as denúncias de toda uma gama de indivíduos, aquelas
feitas pelas mulheres homossexuais e bissexuais provocaram minha curiosidade pesquisadora. E
talvez esta tenha sido a mais forte das motivações: a curiosidade. Curiosidade e vontade de
pensar diferente ou ao menos lançar um olhar mais focado sobre estas mulheres. Talvez aqui
a questão fosse “separar-me de mim mesma”. Na verdade, creio que este exercício, naquele
momento, era indispensável para mim, e talvez para a própria instituição na qual eu me
encontrava e que, como tal, também tinha lá suas cristalizações e suas linhas duras.
16
“Existem momentos na vida onde a questão de saber se se pode pensar diferentemente do que se pensa ,
perceber diferentemente do que se vê, é indispensável para continuar a olhar ou a refletir” (Foucault,
2001a, p. 13).
Sentia que o estávamos tão preparadas/os para trabalharmos com “elas” no caso
mulheres biológicas
5
não heterossexuais. Isso se expressava não tanto pelo fato de não termos
nenhuma lésbica militante no grupo
6
, mas também, pelo fato mesmo do grupo ter historicamente
produzido mais intervenções e estudos no campo das homossexualidades masculinas, o que nos
deixava, de certa forma, mais confortáveis em trabalhar com eles” do que com “elas”.
Ao final do ano de 2006, estas mulheres constituíam 30% do total de casos atendidos. Os
números referentes ao ano de 2007 também mantiveram-se por volta desta faixa. Esta diferença
entre lésbicas e homens homossexuais na incidência das denúncias suscitou uma série de
questionamentos: Por que o número menor de denúncias de mulheres homossexuais? Estariam
elas menos sujeitas a atos de homofobia que os homossexuais masculinos ou, por outro lado,
estariam menos dispostas a denunciar tais violações? Este número menor estaria ligado à
invisibilidade social das relações afetivo-sexuais entre mulheres, ainda pouco enfocadas nas
políticas públicas e nos estudos sobre as homossexualidades? Ao mesmo tempo, especialmente
motivada pelo caso das mulheres, passei a pensar nas intersecções entre homofobia/lesbofobia, o
heterossexismo e o sexismo e como isso se dava na experiência mulheres.
Estas e outras questões foram me levando a formular meu problema de pesquisa. Qual
seriam as formas que a homofobia talvez uma pista da especificidade da lesbofobia - toma na
experiência narrada destas mulheres? Que maneiras elas tem encontrado para enfrentá-la? Em
suma, de que formas confrontam, contestam os significados estigmatizastes que lhe são
atribuídos e, ao mesmo tempo: como a ela estão sujeitadas, pensando também na possibilidade de
uma sujeição homonormativa? A questão aqui se coloca a cerca dos modos de subjetivação que
atravessam a vida destas mulheres, as quais, também, tornaram-se alvo de políticas públicas
voltadas à diversidade sexual?
5
Uso o termo “mulheres biológicas” para diferenciá-las das mulheres transexuais. Tratarei mais deste
assunto no item 3.
6
O que na verdade não seria um problema em si, visto que o nuances faz uma crítica a representação
identitária buscando uma da desconstrução desta categoria, vista como normativa e exclusiva.
17
Penso que analisar as trajetórias de vida destas mulheres, nas formas como experimentam
e confrontam a homofobia e o heterossexismo na articulação com as diferentes discursividades
que materializam o dispositivo da sexualidade na atualidade, possa esclarecer tanto a cerca de
seus processos de subjetivação destas mulheres objetivo desta dissertação como ajudar a
orientar possíveis ações no campo das políticas públicas.
Talvez, pelas exigências ou limitações da escrita, eu tenha feito parecer que minha
trajetória como pesquisadora - como pesquisadora na área do gênero e da sexualidade - tenha sido
de certa forma linear e inequívoca. Ledo engano... Minha trajetória, bem como a desta pesquisa,
está permeada por ressignificações, idas e vindas, bloqueios e alterações que certamente
produzem efeitos na pesquisadora e em sua pesquisa.
1.2 Trajetórias Teóricas
Apesar de tentar manter o horizonte teórico o mais aberto possível para que pudesse
abarcar os fragmentos enunciativos dos relatos de minhas entrevistadas, escolhas e neste caso,
não somente escolhas teóricas, mas políticas e estéticas - tiveram de ser feitas. Estas escolhas
também fazem parte da construção desta pesquisa e de seu objeto (as trajetórias das mulheres),
que podem indicar os caminhos os quais a trilhar ou não, sua amplitude e, conseqüentemente,
seus limites. Desta forma, as análises desta pesquisa bem como a própria forma de pesquisar
se aliam às perspectivas teóricas de Michel Foucault e de Judith Butler, na medida em que estes
autores buscam uma forma de pensar a desconstrução da naturalização da matriz binária de
compreensão do humano. Matriz esta que tem sustentado noções hegemônicas sobre o que é
normal e anormal e do gênero como uma categoria evidente baseada nas diferenças anatômicas
dos corpos masculinos e femininos. Na construção de seus pensamentos, estes dois autores têm
desafiado as idéias de normalidade que estão na base de instituições e práticas (WEDDON,
1999). Acima de tudo, os escolho pelo potencial que suas perspectivas têm de, ao questionar o
familiar e o auto-evidente, abrir a possibilidade de uma reflexão crítica sobre o presente, que
possa provocar tensionamentos que desestabilizem os dispositivos de normalização autoritários.
18
No entanto, na seqüência deste item, apresento de forma breve alguns conceitos caros a
esta dissertação e importantes para a compreensão da/o leitora/o. Eles estão apresentados aqui
somente como forma de facilitar a leitura e a compreensão do “que se quer dizer” quando
anuncio termos como, processos de subjetivação, heteronormatividade, homofobia,
heterossexismo.
1.2.1 Processos de subjetivação e a noção de resistência
Ao abordar a maneira como os sujeitos se constituem em diferentes contextos sócio-
históricos, Foucault analisa como as práticas sociais constituem domínios de saber que, além de
constituírem novos objetos, novas técnicas, novos conceitos, fazem também surgir novas formas
de sujeitos. Para ele, “o próprio sujeito tem uma história, a relação do sujeito com o objeto (...), a
própria verdade tem uma história” (FOUCAULT, 1999, p. 8).
Conforme Revel (2005), Foucault propõe que modos de subjetivação ou processos de
subjetivação correspondem a dois tipos de análise. Por um lado, os modos de subjetivação
expressam a maneira pela qual o sujeito é formado por um processo de objetivação, na qual ele
mesmo torna-se objeto de conhecimento em uma variedade de discursos. Os processos de
subjetivação, por outro lado, implicam operações que os sujeitos aplicam a si mesmos, através da
relação consigo, e que permitem que eles/as se reconheça como sujeitos de sua própria vida.
Nardi (2006) acentua a intrínseca correlação entre modos de subjetivação e processos de
subjetivação. O primeiro conceito refere-se à forma predominante a qual um indivíduo é exposto
ao regime de verdades de sua época, a forma como se relaciona com a norma e como se
obrigado/instigado a cumpri-la. O segundo, a maneira singular como cada indivíduo se apropria
dos regimes de verdade, a maneira como faz a experiência de si dentro do conjunto de regras e
normalizações no qual esta situada sua trajetória de vida.
Cada sociedade constrói seus regimes e jogos de verdades, os quais Foucault (2007b)
entende como;
19
“Os tipos de discursos que elas acolhem e fazem funcionar como verdadeiros; os mecanismos e instâncias
que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como uns e outros são
sancionados; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção de verdade; o estatuto
daqueles que têm o poder de dizer quilo que funciona como verdadeiro (FOUCAULT, 2007a, p. 12)”.
Poder-se-ia pensar os modos de subjetivação como formas de subjetivação sugeridas,
propostas e/ou impostas pela cultura através de discursos que atuam dentro de um esquema de
saber-poder e que tomam o sujeito como objeto de conhecimento. Ao mesmo tempo, como
sugere Foucault (2004), devemos compreender que o sujeito produz-se também de maneira ativa,
através de práticas de si que não são, de toda forma, por ele inventados: são, antes, esquemas que
ele encontra na cultura em que se insere.
Para Butler (2003; 2005; 2001) a assunção de um “sexo”, ou a assunção de um “gênero” é
uma das operações fundamentais para o surgimento do sujeito, visto que ninguém chega a existir
sem que assuma um de seus termos: o masculino ou o feminino. Para ela, o gênero constitui uma
modalidade de regulação específica que tem efeitos produtivos na subjetividade. As regras que
governam sujeitos inteligíveis são parcialmente estruturadas a partir de uma matriz que
estabelece uma hierarquia entre o masculino e o feminino e a heterossexualidade compulsória.
Portanto, o gênero não é nem a expressão de uma essência interna (sexo), nem uma simples
construção social (gênero), como se poderia observar nos argumentos essencialistas e
construtivistas respectivamente. O próprio gênero é uma norma (Butler, 2004). Ou seja, a
univocidade do sexo, a coerência interna do gênero e a estrutura binária para o sexo e o gênero
são sempre consideradas como ficções reguladoras que consolidam e naturalizam regimes de
poder convergentes de opressão masculina e heterossexista.
A matriz heterossexual parece ser aquilo que regula tanto a coerência interna do sistema
sexo-gênero-sexualidade (a idéia de que um corpo masculino deveria expressar um gênero
masculino e um desejo pelo sexo feminino e vice versa) quanto os pares dicotômicos
homem/mulher, feminino/masculino, heterossexual/homossexual.
No entanto, para que a heterossexualidade e a coerência interna do gênero ganhem seu
caráter de naturalidade, são necessárias estratégias repetitivas que funcionem cotidianamente nas
intuições escolares, na família, na medicina, na mídia (Louro, 2005; Butler 2005, 2001). Esta
norma precisa ser reiterada, repetida para “reafirmar o princípio de que os seres humanos nascem
20
como macho ou fêmea (...) e que seu sexo vai indicar um de dois gêneros possíveis (...) e
conduzirá a uma única forma de desejo, que é o desejo pelo sexo/gênero oposto”. (Louro, 2005,
p.5)
Como afirma Butler (2001), a norma heterossexual exige, em contraposição, a criação do
campo da anormalidade, pois o imperativo heterossexual possibilita certas identificações
sexuadas e impede outras, numa operação de exclusão que forma um exterior constitutivo da
norma, constituindo um domínio de vidas consideradas como menos válidas,
“(..).esta matriz excludente pela qual os sujeitos são formados exige, pois, a produção simultânea de um
domínio de seres abjetos, aqueles que ainda não são “sujeitos”, mas que formam o exterior constitutivo
relativamente ao domínio do sujeito. O abjeto significa aqui precisamente aquelas zonas inóspitas e
inabitáveis da vida social, que são, não obstante, densamente povoadas por aqueles que não gozam do
status de sujeito.” (BUTLER, 2001, p. 155).
Seguindo o pensamento de Butler (1997), cabe a reflexão sobre os efeitos da interpelação.
Para a autora, a nomeação interpela e constitui o sujeito. Assim, quando um benasce, ou
mesmo antes seu nascimento, ele é interpelado através da nomeação menino ou menina, ele ou
ela. Esta interpelação, no processo de tornar-se um “eleou “ela”, é repetida e reiterada diversas
vezes durante sua vida.
A maneira corrente de referir-se a mulheres que tem relações homoeróticas com outras
mulheres como sapatão” “machorra” “mulher-macho”, pode ser entendida como uma forma de
interpelação injuriosa. Segundo Butler (1997) a interpelação a injuriosa é uma das primeiras
formas de “ferimento” lingüístico, que assinala a alguém um lugar dentro do espaço social
sexualizado por meio de sua desqualificação, marcando o lugar do abjeto. Portanto, a injúria tanto
marca o lugar do sujeito em um mundo hierarquizado quanto o faz ser o que é.
Ao expor o conceito de abjeção, Butler (2002) afirma que devemos encará-lo como um
processo, sem nos fixarmos a figuras pré-estabelecidas. Para ela, amparada em Foucault, torna-se
importante o lugar que determinado sujeito ocupa no discurso, que “ele habita os corpos”
(BUTLER, 2002, p163.) Assim sendo, a questão da abjeção pode ser vista, como articulada a
questão da localização humana que é um problema de saber que relações de vizinhança, que
tipo de armazenamento, de circulação, de localização, de classificação dos elementos humanos se
21
deve manter, preferentemente em tal ou qual situação para alcançar tal ou qual fim”
(FOUCAULT, 2001b, p.1573)
7
.
Logo, os atravessamentos que tornam uma vida viável ou não, são pertinentes às relações
de enquadramento tais como inserção social, etnia, gênero, geração que conjuntamente e
articuladamente, habitam o sujeito. Tomando nossa observação cotidiana podemos registrar que
alguns lugares ocupados por mulheres não heterossexuais são mais fortemente investidos da
condição de abjeção do que outros.
Percebemos aqui a importância dos discursos na constituição dos sujeitos: trata-se de sua
materialidade, da sua capacidade de produzir os objetos (ou, parafraseando Butler (2002) os
“abjetos”) dos quais fala. Os discursos são perpassados por relações de poder que engendram
campos de saber, fazendo parte de um campo de lutas onde os indivíduos interagem com o
mundo produzindo e sendo produzidos por eles, através de mecanismos que asseguram a
credibilidade e a naturalidade dos discursos. (FOUCAULT, 1998).
Os discursos, portanto, são constituídos por relações de poder que, longe de somente
atuarem oprimindo e dominando sujeitos, operam na sua construção. Portanto, o poder deve ser
entendido como uma relação de forças, que tem as características de incitar, induzir, produzir,
desviar, tornar fácil ou difícil, limitar ampliar, tornar mais ou menos possível” (Foucault, 1995, p.
243). Na perspectiva de Foucault, o poder o é algo que alguém ou um grupo detém, mas algo
que circula, que funciona em rede, fazendo com que o sujeito o seja exterior a ele, mas um de
seus efeitos. Opondo-se a idéia de um poder centralizado e sempre negativo, Foucault estabelece
a interdependência do poder e da liberdade, visto que ele, como ações sobre ações dos outros,
pode ser exercido sobre sujeitos livres”. (FOUCAULT, 1995, p. 243).
É neste sentido que podemos falar de resistência. Para Foucault a resistência se
necessariamente onde existe poder,
“(...) porque ela é inseparável das relações de poder; acontece que ela funda as relações de poder, da mesma
forma que ela é o seu resultado; na medida em que as relações de poder estão em todos os lugares, a
resistência é a possibilidade de cavar os espaços de luta e criar as possibilidades de transformação por todos
os lugares. ”(REVEL, 2002, p. 53)
7
A tradução é da autora.
22
Foucault iniciou sua teorização sobre a resistência em 1970 quando propunha a idéia
resistência como transgressão. Na época, tratava-se de descrever a maneira pela qual um
indivíduo singular, através de um procedimento que é em geral de escrita, chega de maneira
voluntária ou fortuita, a confrontar os mecanismos de identificação, de classificação e de
normalização presentes no discurso (REVEL, 2005).
Neste sentido, sempre a possibilidade de reversão do jogo. Conforme Pocahy (2006),
ao serem interpelados na posição de abjeto, muitos homossexuais se vêem diante de duas
possibilidades: serem assujeitados ou ressignificarem suas vidas. A mesma idéia pode ser
encontrada em Butler:
“Algumas vezes uma concepção normativa de gênero pode desconstruir uma pessoa, minando sua
capacidade de viver uma vida viável. Outras vezes, a experiência de uma restrição normativa pode
desconstruir uma concepção anterior de quem alguém é, para inaugurar um ser relativamente novo, com
maior viabilidade como sua meta”. (BUTLER, 2004, p.1)
8
Portanto, tão importante quanto entender como a norma é instituída e naturalizada, é
definir os momentos em que seu sistema binário é desafiado, onde a coerência das categorias que
institui é posta em questão (BUTLER, 2004). Assim, a autora também atenta para o potencial
transformativo das ações políticas coletivas e das novas produções de saber que, agindo dentro do
campo das estratégias do poder, podem instituir outro campo de verdades que contestem a norma.
Ao centralizar minha proposta de trabalho na forma como as mulheres fazem uma
experiência de si dentro de um campo dinâmico onde verdades a respeito dos sujeitos sexuais são
disputadas, é preciso retomar como o imperativo heterossexual foi sendo constituído no curso da
história. No próximo item, portanto, procuro salientar como as relações de poder, articuladas
através do dispositivo da sexualidade (FOUCAULT, 1998), fazem emergir sujeitos portadores de
uma sexualidade e de uma sexualidade compreendida em termos de normal e anormal. A partir
disso, apresento uma reflexão a cerca da heteronormatividade, um dos conceitos com o qual
opero neste trabalho.
8
A tradução é da autora.
23
1.2.2 A heteronormatividade e a construção de identidades “desviantes”
Ao estudar as trajetórias de vida das mulheres desta pesquisa homossexuais, lésbicas,
bissexuais, entendidas - é preciso compreender a forma como a sexualidade heterossexual foi
erigida como hierarquicamente superior moral e cientificamente que as outras formas de
exercício da sexualidade. Da mesma forma, entender como a partir da idéia de uma sexualidade
inerente aos indivíduos - se produziu uma série de conceitos que transformaram práticas em
identidades, a partir do esquadrinhamento que traçou as linhas divisórias do normal e do
patológico” (NARDI, 2009).
Todavia, penso ser importante salientar que falar da construção do que foi denominado
como homossexualidade feminina não significa dizer que somente a partir de determinado
momento histórico as mulheres passaram a se relacionar sexual e afetivamente com outras
mulheres. Ora, isto seria um borramento da história destas mulheres, visto que desde a Grécia
antiga, pelo menos, pode-se encontrar uma produção cultural sobre as relações afetivas e sexuais
entre mulheres
9
. A questão é de outra ordem: a partir do século XIX as práticas sexuais entre
pessoas do mesmo sexo biológico passam gradativamente a receber uma nova atenção e passam a
expressar uma verdade sobre quem as praticam, dando um novo estatuto a estes sujeitos.
A sexualidade passa a ser o eixo central no qual relações de poder e de saber se inter-
relacionam, na qual se articula a verdade dos sujeitos e sua identidade. Segundo Foucault (1998),
nos séculos XVII e XVIII ocorre uma explosão de discursos sobre este aspecto da vida humana.
Interesses diversos como a expansão colonial, a industrialização e a necessidade de povoação e
de o-de-obra, bem como a organização das cidades e a disputa entre os Estados emergentes se
associaram à produção de diferentes discursos sobre a procriação e a sexualidade. Os discursos
religiosos, filosóficos e médicos passam a ter por alvo a população, as famílias e muito
particularmente as mulheres. Surgem novas ciências como a demografia e a sociologia. No século
XX, de par com os avanços da medicina, da psicologia, da psicanálise, aparece uma nova
disciplina, a sexologia e seus novos especialistas, os sexólogos (e, posteriormente, as sexólogas).
9
A respeito disso ver Falquet (2004) e Swain, (2004)
24
A sexualidade torna-se cada vez mais objeto de saberes e poderes, de análises minuciosas,
pesquisas, estatísticas e classificações (FOUCAULT, 1998).
Recusando a hipótese de um poder repressivo sobre o sexo, Foucault enfatiza a
proliferação das técnicas de poder investidas sobre o sexo que o colocam, então, não em um
princípio de seleção rigorosa, mas, ao contrário, de disseminação, de implantação das
sexualidades polimorfas” (FOUCAULT, 1998, p. 17).
Para Foucault (1998), é a própria sexualidade que passa a ser produzida. Desta forma, ela
não deve ser entendida como um dado da natureza, inerente aos indivíduos desde sempre. A
sexualidade é o nome que se pode dar a um dispositivo histórico” (Foucault, 1998, p. 100).
Foucault chama então de “dispositivo da sexualidade”, a forma como as técnicas de poder passam
a incitar a proliferação de discursiva sobre o sexo. Por dispositivo da sexualidade Foucault
compreende:
“(...) um conjunto heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões
regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas. (...) o dito e o
não dito (...)”. (Foucault, 2007c, p.244)
(...) funciona de acordo com técnicas móveis, polimorfas e conjunturais de poder (...) e que (...) tem como
razão de ser (...) proliferar, inovar, anexar, inventar, penetrar os corpos de maneira cada vez mais detalhada,
controlar as populações de maneira cada vez mais global.” (Foucault, 1998, p. 101).
Este aparato histórico faz parte de uma rede complexa de regulação social que organiza e
modela os corpos e comportamentos individuais. Segundo Weeks (2001) este dispositivo
relaciona-se com o desenvolvimento da sociedade disciplinar, que é característica das formas
modernas de regulação social. O poder não é proibição, mas a forma da administração e do
cultivo da vida” (WEEKS, 2001, p. 51). A sexualidade torna-se o meio de regulação ideal pelo
qual o poder investe os corpos e por onde as tecnologias da gestão da vida se desenvolvem.
Neste contexto, importava observar e controlar a sexualidade das mulheres e das crianças,
os comportamentos procriativos e demarcar as perversões sexuais. É aqui que surge o
“homossexual” e as primeiras definições da “lésbica” como categorias distintas de sujeitos,
marcados pela anomalia, pela patologização e reconhecidos por sua sexualidade. Antes da
afirmação do dispositivo, as relações amorosas e sexuais entre pessoas do mesmo sexo eram
consideradas a partir de práticas como a sodomia, i.e., uma atividade condenável a que, no
25
entanto, qualquer um poderia sucumbir, sem que o sujeito que praticasse tal ato fosse identificado
por ele (FOUCAULT, 1998; LOURO, 2005; WEEKS 2001; WELZER-LANG, 2002).
Weedon (1999) traça um panorama da forma como os sexólogos como Krafft-Ebing,
Forel, Bloch e Havelock Ellis, no princípio do século XX, tiveram um papel crucial na
patologização da homossexualidade de homens e mulheres. A autora, no entanto, centra sua
análise mais na patologização das práticas sexuais entre mulheres e em sua própria produção
discursiva. Segundo ela, estes cientistas identificaram a lésbica o somente como uma forma
específica de indivíduo - diverso de outras mulheres ditas “normais” por uma diferença vista
como biologicamente determinada - mas como um modo de comportamento e uma maneira de
ser que afetava se não minava profundamente a feminilidade da mulher.
Segundo Weedon (1999) Krafft-Ebing afirmava que as mulheres lésbicas, por conta de
sua orientação sexual, não somente rejeitavam as “amarras da feminilidade”, mas eram, na
verdade, incapazes de comportamentos femininos. Esta tendência entendida como
biologicamente determinada - era manifesta em um comportamento masculinizado, que rejeitava
as artes, as indumentárias e adereços femininos. A descrição que este cientista fez da lésbica era
altamente atravessada por julgamentos morais; o que, no entanto, se legitimava no jogo de
verdades que constitui o dispositivo da sexualidade pela via do discurso da ciência
10
.
Para Faederman e Erikson (1995) é importante observar que o aparecimento na Europa
dos estudos dos sexólogos sobre as lésbicas tenha surgido pouco depois do nascimento do
movimento feminista da primeira onda
11
e o aparecimento de maiores oportunidades
educacionais e profissionais para as mulheres. Para elas, o surgimento destas teorias foi uma boa
oportunidade de ataque às feministas.
De fato as relações entre feminismo e a homossexualidade feminina tem sido marcadas
por fortes tensões e rechaços por parte das primeiras o que certamente foi mais forte em tempos
10
Se pensarmos com Foucault, a legitimação da verdade científica depende dos jogos de verdade de cada
época e, neste sentido, não podemos separar o julgamento moral do argumento científico, ele esteve sempre
presente na legitimação e na afirmação do que é „pesquisável‟ e de que forma pode ser pesquisado.
11
As ondas são compreendidas pelas diferentes prioridades que os movimentos dão na defesa dos
direitos das mulheres. A primeira onda se caracterizou pela busca do reconhecimento legal da igualdade de
direitos: direito ao voto, ao trabalho, etc. É um período geralmente associado à primeira metade do século 20.
(NARVAZ e KOLLER, 2006)
26
passados, mas que ainda permanece. Em seu livro O Segundo Sexo, Simone de Beauvoir dedica
todo um capítulo a “lésbicas”. Conforme Swain (1999) inicialmente ela descreve as relações
eróticas entre mulheres de forma quase ideal, onde as desigualdades entre as amantes e a
violência estariam abolidas. Apesar disso, traça um retrato bastante desfavorável da “lésbica”: a
feia, mal amada, temerosa do confronto com seus opositores homens; uma fracassada na arte da
feminilidade que acaba buscando refúgio nos braços de outras mulheres e compensação por sua
feiúra na aquisição de características viris. Neste sentido, mesmo feministas do porte de Beauvoir
não conseguiram escapar uma leitura heteronormativa da homossexualidade feminina e, poderia
se acrescentar, da sexualidade feminina como um todo.
A patologização ou sua bestialização - do lesbianismo foi usada, também, como uma
forma de atribuir descrédito a mulheres com aspirações intelectuais e de independência, além de
reforçar ideologias de domesticidade e maternidade como esferas naturais da vida da mulher.
Portanto, imagens heterossexistas do lesbianismo tornaram-se uma ferramenta de controle sexista
das mulheres e uma forma de manter a instituição da heterossexualidade (WEEDON 1999;
FAEDERMAN & ERIKSON, 1995).
Este último aspecto reforça o argumento de Jackson (2005) quando este afirma a
necessidade de compreendermos melhor as interconexões entre a heterossexualidade (vista aqui
não somente como uma forma de prática erótica, mas em sua imposição enquanto a prática
correta, sua instituição enquanto norma) e o gênero (entendido pelo autor como uma divisão
social fundamental). Ele e outros autores concordam em afirmar que a instituição da
heterossexualidade como forma correta e natural de exercício da sexualidade não somente
estabelece os sujeitos “desviantes”, como também delimita aquilo que cada gênero pode fazer,
parecer, e desejar, sem cair no domínio da anomalia ou do erro (BUTLER, 2003; WELZER-
LANG, 2001; LOURO, 2005).
É importante pensar o quanto à definição do perverso (no caso o homossexual) serviu
como suporte e definição do sujeito considerado normal, o heterossexual. Ao comentar este
processo, Weeks (2001) afirma que uma definição da heterossexualidade como norma foi sendo
constituída através da tentativa de definir a homossexualidade, isto é, a forma anormal da
sexualidade. Esse novo esforço classificador” está aliado a uma tentativa de definir
27
características “verdadeiras” sobre homens e mulheres, fixando e classificando diferentes
características e tipos sexuais. (WEEKS, 2001). Daí sua relação intrínseca com o estabelecimento
dos binarismos de gênero: homem x mulher, homo x hetero, passivo x ativo, entre tantos outros.
Segundo Louro (2005) é este processo que sustentabilidade à heteronormatividade, ou
seja, a suposição de homens ou mulheres deveriam - desde que não houvesse nenhuma falha no
seu desenvolvimento - ser heterossexuais. A instalação da homofobia, ou, no caso específico da
lesbofobia, é uma conseqüência deste processo.
Jackson (2005) como um dos precursores dos estudos sobre a heteronormatividade o
conceito de heterossexualidade compulsória, cunhado por Rich (1999). Para o autor, é importante
preservar o legado deste último sobre o primeiro: o de que a heterossexualidade normativa e
institucionalizada serve tanto para manter a maioria da população dentro de seus limites, quanto
para punir aqueles que avançam suas fronteiras. Desta forma, a norma produz impactos
significativos o somente no outro” homossexual (compreendendo aqui toda a sorte de
identidades sexuais); mas também as performances gendradas de heterossexuais (onde ela
aparece naturalizada).
Circunscrever seu domínio ao dos tidos como “desviantes” poderia nos conduzir a vários
riscos: subestimar sua penetração no tecido social e desconsiderar sua implicação nas identidades
“dentro” da norma (não existe uma forma de ser hetero); não levar em consideração suas
intrínsecas relações com o gênero; por fim deixar-nos conduzir ao erro de que entender que ela se
refere somente ao estudo das sexualidades “desviantes”, restringindo a importância de sua
contestação para o corpo social.
Segundo Butler (2003; 2001), embora a heterossexualidade tenha ganhado o caráter de
“natural” ou “normal”, enquanto forma de viver o erótico, ela se produz nas articulações do
dispositivo de poder tanto quanto as outras formas de experiência o erótico, tais como a
homossexualidade, a bissexualidade ou a transsexualidade (embora, é claro, aqueles/as que se
constituem na heterossexualidade gozem de certos privilégios). Cabe registrar que estas
categorias homossexual, heterossexual, bissexual, transsexual fazem sentido quando
compreendidas dentro do espectro das relações de poder articuladas pelo dispositivo da
28
sexualidade e, portanto, nada tem de essenciais ou naturais aos sujeitos; são antes produtos destas
mesmas articulações. Para Wittig (1992), por exemplo, as próprias categorias “homem” e
“mulher” não podem ser compreendidas se não em relação à matriz heterossexual, porque é a
própria heteronormatividade - entendida como um contrato heterossexual - que reduz os
significantes “mulher” e “homemao par heterossexual, vistos como naturais e biológicos. Para
ela,
“A sociedade heterossexual é a sociedade que não oprime somente lésbicas e homossexuais, ela oprime
muitos diferentes/outros; oprime todas as mulheres e muitas categorias de homens, todas e todos que estão na
posição de serem dominados. Constituir a diferença e controlá-la é um ato de poder, que, essencialmente, este é
um ato normativo.” (WITTIG, 1992, p. 29)
12
Não fosse assim, não seriam necessários investimentos reiterados para garantir a
heterossexualidade seu status de naturalidade e de normalidade. Leia-se que, a partir de Wittig, é
possível compreender que garantir este status a heterossexualidade é também garantir a
estabilidade das normas de gênero, visto que os “homens” e mulheres” tidos como
“verdadeiros” ou “normais” são aqueles que expressam a relação heterossexual. Freqüentemente,
uma atitude ou um trejeito que o corresponda às performances de gênero tidas como aceitáveis
e satisfatórias, é entendida como uma infrão ao gênero que aquele indivíduo “possui”, o que faz
com que, por exemplo, que um menino que não goste de jogar futebol ou que brinque com
bonecas possa ser chamado de “mulherzinha”. Ou que, a propósito desta pesquisa, uma mulher
com filhos, ao reivindicar uma identidade lésbica, passe a ser questionada em sua capacidade de
cuidar do filho.
Visto desta maneira, podemos concluir que a homofobia e o heterossexismo fazem parte
também de uma vasta rede de mecanismos destinados a manter a coerência entre o corpo, o sexo,
o gênero e a sexualidade. No próximo item deste capítulo, desenvolverei mais profundamente os
conceitos de homofobia e heterossexismo, tentando aclarar seu contexto de emergência e a
criação de suas eventuais linhas de especificidade (como a lesbofobia, por exemplo).
12
Tradução da autora.
29
1.2.3 Heterossexismo, homofobia, lesbofobia os nomes da opressão.
Neste item minha intenção não é a de esgotar as possibilidades de análise a que pticas
como o heterossexismo ou a homofobia remetem. No entanto, creio que seu estudo se torna mais
interessante a partir das vivências das entrevistadas. Apesar disso, visto que são termos que tem
diferentes conotações e modificações ao longo do tempo, cabe aqui trazer um pequeno histórico
de sua emergência e do tratamento político que vem recebendo.
De forma sintética, a homofobia seria uma forma de preconceito podendo ou não gerar
discriminação
13
contra homossexuais (RIOS, 2007). O termo emerge nos anos 70, nas
pesquisas do psicólogo norte-americano Weinberg, quando este procurava identificar os traços do
que ele chamou de “personalidade homofóbica” (RIOS, 2007; HEREK, 2004; NARDI, 2009).
Como psicólogo de sua época, Weinberg desenvolveu o conceito de homofobia nos termos de um
medo irracional, de caráter psicológico e que pode deflagrar uma reação de evitamento ou de
agressão, a toda - e contra toda - a situação, comportamento ou pessoa tida como homossexual.
De acordo com ele:
“Eu cunhei o termo homofobia significando a fobia a homossexuais. Era um medo de homossexuais que
parecia estar associado com um medo de contágio, um medo de reduzir as coisas pelas quais a maioria
lutava: o lar e a família” (WEINBERG, apud HEREK, 2004, p. 07)
14
O termo fobia, usado pela psiquiatria e pela psicologia, é por elas definido como um
sintoma psicológico no qual o contato com determinado objeto, situação, animal deflagra uma
reação denico e angústia aparentemente incontrolável pelo indivíduo (CHEMAMA, 2002). No
entanto, as manifestações de ódio e violência contra LGBT‟s não podem ser circunscritas à
categoria psiquiátrica da fobia. Caso esta fosse esta a questão, restaria entender que o “portador”
da homofobia seria alguém em sofrimento que carecesse apenas de tratamento psicológico e
psiquiátrico. As reações e os efeitos relacionados à homofobia vão, certamente, muito além do
medo psicológico. Como define Daniel Borrillo, a homofobia é “uma manifestação arbitrária,
que consiste em designar o outro como contrário, inferior ou anormal. Sua diferença irredutível o
coloca em outro local fora do universo comum dos humanos” (BORRILLO, 2000, p. 3). As
13
O autor entende por preconceito as “percepções mentais negativas em face de indivíduos e
grupos socialmente inferiorizados”. A discriminação é por ele definida pela “materialização, no plano
concreto das relações sociais, de atitudes arbitrárias, comissivas ou omissivas, relacionadas ao
preconceito, que produzem violação dos direitos dos indivíduos e dos grupos.” (RIOS, 2007, P.112)
14
A tradução é da autora.
30
manifestações de homofobia demonstram o ódio e a repulsa, a hierarquização do humano que
podem ser comparadas ao racismo ou a xenofobia. Esta definição é a que sustentamos nesta
pesquisa.
Apesar de sua origem/caráter psicológico, a apropriação do termo pelos movimentos
sociais e sua utilização na denominação de programas governamentais aponta para uma inflexão
do dispositivo da sexualidade na atualidade (NARDI, 2008), ao denunciar a opressão, seus efeitos
políticos e de sofrimento na vida das pessoas - que podem bem ser da ordem do sofrimento
psíquico, mas que certamente vão muito além.
Herek (2004) apontou a importância política e estratégica que o surgimento do termo teve
para as reivindicações de justiça do movimento homossexual, ao difundir a crença de que este
tipo de hostilidade e violência que necessitava de análises mais aprofundadas e intervenção. É
possível reconhecer o papel que a criação do termo (bem como seus correlatos) desempenha na
disputa pública por direitos e por um tratamento igualitário, sendo largamente utilizado em
programas governamentais na área da saúde, da educação e de direitos humanos (evidenciada
pelo próprio Brasil sem Homofobia), bem como em projetos e ações realizados pela sociedade
civil.
Apesar de sua conotação psicológica, para fins deste estudo prefiro utilizar a acepção que
Borrillo (2000; 2009) deu ao termo homofobia: uma prática hostil, uma expressão de ódio e
violência contra homossexuais, que determina lugares aos sujeitos. Neste sentido, tem suas raízes
no heterossexismo, que pode ser definido, segundo Welzer-Lang (2001), como discriminação e
opressão baseadas na distinção feita sobre a orientação sexual.
“O heterossexismo é a promoção incessante, pelas instituições e pelos indivíduos, da superioridade da
heterossexualidade e da subordinação simulada da homossexualidade. O heterossexismo toma como dado
que todo mundo é heterossexual, salvo em opinião contrária”. (Welzer-Lang, 2001, p. 467-468)
Sob este ponto de vista, podemos compreender que a homofobia torna-se quase um
subproduto do heterossexismo e sua diferenciação por vezes não parece muito clara. Isso ocorre
por queo parece possível analisar um termo sem a presença do outro, visto que não ocorre que
haja homofobia sem que o heterossexismo esteja presente. Isto talvez fosse possível se
considerássemos posições “politicamente corretas” a cerca da homofobia, onde se poderia até
“aceitar” a homossexualidade como parte do repertório sexual de alguma sociedade, ainda que
31
débil, precária, e deixar que ela exista ali onde ela esta. No entanto, esta atitude de suposta
“aceitação” não esconderia em si a idéia da supremacia da heterossexualidade sobre as outras
formas de expressão da sexualidade, dando-lhe um tom quase paternalista? Poderíamos
considerar isto ausência de homofobia ou poderíamos considerar isto como mais um mecanismo
de dominação que consiste em “ocultar as práticas discriminatórias advindas do grupo dominante
e evidenciar a idéia de uma deficiência estrutural dos dominados”? (BORRILO, 2009, p. 29)
Outro conceito que é importante analisarmos conjuntamente com o de homofobia é o
sexismo, pois “não se pode pensar a homofobia sem levar em conta as relações sociais entre os
sexos e as sexualidades” (BORRILO, 2009, p.24). Welzer-Lang (2002), ao estudar o processo de
constituição de masculinidades viris, retrata a maneira como homens se constroem social e
historicamente como opostos a feminilidade, entendida e vista como um atributo essencial aos
corpos das fêmeas. No processo que se desencadeia naquilo que o autor chamou de “a casa dos
homens”, toda e qualquer aproximação com atributos tidos como femininos são duramente
rechaçados. Para se ser um “homem de verdade” (leia-se heterossexual) é preciso queo se seja
nunca passivo, sentimental, fraco, feminino, mulher. Qualquer deslize poderia prejudicar esta
identidade de “macho”. Neste sentido, já é possível vislumbrar a conexão existente entre
homofobia e sexismo.
O sexismo seria a atitude discriminatória, misógina em relação aquilo que se
convencionou entender por mulher. É um conceito que se refere às desigualdades entre os
gêneros, para a desvantagem das mulheres. Para Borrillo (2009) o sexismo é uma ideologia que
organiza as relações entre os sexos, premiando o masculino com a esfera pública e política e
relegando o feminino a esfera domestica e íntima. Para ele, o sexismo guarda relações intensas
com a homofobia, no sentido em que subordina o feminino ao masculino bem como os
significados atrelados a estes termos, fundamentando também a hierarquização das sexualidades
e a homofobia.
Desta forma entendidas, homofobia, heterossexismo e sexismo fazem parte de um aparato
que procura delimitar as fronteiras do gênero, circunscrevendo as performances de gênero e as
identidades sexuais. Funcionam a custo do menosprezo e da desumanização do outro, mantendo a
32
supremacia da heterossexualidade: do homem heterossexual sobre a mulher (em todas as
expressões de sua sexualidade), sobre os gays, as/os travestis, as/os transexuais.
Para Borrillo (2000; 2009), nas sociedades marcadas pelo machismo e pela dominação
masculina, a homofobia aparece como componente fundamental de um sistema binário que
sustenta os pares opositores homo/hetero, masculino/feminino, homem/mulher, ativo/passivo,
constituindo-se em uma espécie de “vigilância do gênero”, visto que a virilidade deve se
organizar em torno da negação do feminino e do rechaço a homossexualidade.
Se considerados os sujeitos a quem se destina o sexismo e a homofobia, é possível
indagar que, no caso do primeiro, seu alvo principal sejam as mulheres e no caso do segundo, os
homossexuais em geral. É claro que é possível argumentar o contrário, tendo em vista a
imbricação existente na trama destes conceitos. Neste sentido, heterossexismo me parece um
termo mais amplo, que engloba uma gama diversa de manifestações preconceituosas e
discriminatórias bem como de alvos. Na trama das definições e das identidades, no entanto,
percebem-se cada vez mais reivindicações de especificidades do fenômeno da discriminação e do
preconceito, atreladas as diversas identidades que emergem no cenário das políticas de identidade
(a emergência de uma LGBTTfobia).
Assim surge a Lesbofobia, como uma discriminação e violência dirigida especificamente
às mulheres homossexuais ou bissexuais. Borrillo (2009) explica que esta especificidade pode ser
relacionada ao fato de que as homossexualidades femininas (ou, para usar seu termo, as lésbicas)
sofrerem com uma dupla opressão: aquela que confere a seu gênero um status inferior ao dos
homens, e a uma sexualidade que, como se não bastasse, ainda se coloca como “fora da norma”.
Assim ele interpreta a lesbofobia como “um acúmulo de discriminações” (BORRILLO, 2009, p.
23).
Entretanto, no meu ponto de vista, malgrado as persistentes desigualdades de gênero no
país, a referência a “um acumulo de discriminações deve ser vista com um certo cuidado, pois
pode dar a entender que o simples fato de ser mulher e ter práticas homoeróticas tornaria as
mulheres mais discriminadas e vítimas de homofobia que os homens homossexuais. A idéia do
acúmulo subsume o fato de que as intersecções entre o gênero e a sexualidade ensejam diferentes
dinâmicas de discriminação homofóbica e heterossexista, que se complexificam ao se unirem a
33
outros pertencimentos como classe social, geração, faixa etária, raça/cor. O próprio Borrillo
(2000, 2009) afirma que as relações sociais de gênero dão uma dinâmica diferenciada à
lesbofobia.
No entanto, a experiência no CRDH demonstrou que, ao menos pelos dados obtidos nos
anos de 2007 e 2008, as denúncias de discriminação contra mulheres homo e bissexuais
apareceram sempre em menor número se comparadas as de homens homossexuais e bissexuais. É
claro que os motivos para esta menor incidência podem ser variados, mas certamente se
relacionam também com a forma com que estas mulheres experimentam esta violência e a ela
atribuem valores. A grande maioria de minhas entrevistadas, por exemplo, considera que os
homens homossexuais são mais alvos de discriminação do que as mulheres. Esta impressão das
mulheres pode ser explicada pela experiência recorrente com o sexismo, o que faz com que a
discriminação seja de alguma forma “banalizada” por estas mulheres, tendo em vista as
desigualdades que marcam as relações de gênero: quase como algo com o qual “sempre se
conta”.
No entanto, ainda que a adoção de um estilo mais feminino
15
possa as proteger de
perseguições, fazendo com que sejam menos alvo de declarada discriminação que os gays, isso
não pode ser interpretado como uma maior tolerância e aceitação das relações afetivas e sexuais
entre mulheres. Como o próprio autor afirma, esta aparente “indiferença pode ser sinal de uma
depreciação ainda mais forte” que submete a sexualidade feminina ao desejo masculino, fazendo
com que estas “relações eróticas e afetivas tornem-se impensáveis” (BORRILLO, 2009, p. 23) e ,
eu acrescentaria, podendo torná-las socialmente mais invisíveis.
Os trabalhos de Meinerz (2003) e Aquino (1992) relatam as possibilidades das mulheres
homossexuais e bissexuais, diante dos constrangimentos sociais (como a possibilidade de ser alvo
de preconceito e discriminação), de jogar com a flexibilidade culturalmente construída na relação
entre mulheres. De acordo com Pecheny (2004, p.19) “em um contexto homofóbico, a capacidade
de dissimular constitui um recurso de proteção” (PECHENY, 2004 p.19). Entretanto, nem sempre
15
É importante frisar que adotar um estilo mais ou menos condizente com os valores de feminilidade vigente
pode até proteger da lesbofobia, mas vai muito além disso e se refere a adoção de um estilo, escolhas éticas que se
referem as formas de subjetivação destas mulheres.
34
é possível viver sob este manto de invisibilidade”; nem sempre é isto que se quer pra si. É claro
que toda a mulher que “ousa” dar visibilidade as suas relações homoeróticas e que atravessa os
limites impostos ao seu gênero criando “novas feminilidades” ou mesmo “masculinidades
lésbicas”
16
sabe que pode ser alvo da discriminação e preconceito declarados.
Dados obtidos junto à ILGA
17
(2006) sobre uma enquete com mulheres lésbicas na
França, demonstram que 57% das informantes haviam sofrido discriminação lesbofóbica. Os
dados também demonstravam que 43% destes casos haviam sido vivenciados em locais públicos
e 44% dentro de suas famílias. Estes dados, embora oriundos de outro contexto social, podem nos
ajudar a pensar o quanto à discriminação ainda é uma realidade dura enfrentada por mulheres
homossexuais e também refletir sobre e o número alto de violações dentro do âmbito da família.
Em nosso meio, encontramos incidência semelhante às acima referidas. Dados construídos por
pesquisa conduzida na Parada Livre de Porto Alegre (BENEDETTI & KNAUTH, 2004) revelam
que 52% das informantes já haviam sofrido discriminação.
Os estudos estatísticos sobre a incidência da discriminação e violência contra
homossexuais no Brasil são restritos, sendo encontrado um levantamento das Paradas do
„Orgulho Gay‟. Em Porto alegre, a participação de mulheres homossexuais e bissexuais tanto na
parada, quanto na enquête tem se mostrado numericamente inferior aos homens (BENEDETTI &
KNAUTH, 2004).
Por enquanto, deixemos um pouco de lado esta discussão; afinal ela será matéria para a
análise dos enunciados evidenciados nas trajetórias das entrevistadas, onde poderá ser mais
aprofundada.
16
Termo usado por Lacombe (2007) em sua pesquisa etnográfica sobre socializações lésbicas, feita em um botequim no
Rio de Janeiro . Explicitando as autodenominações e das performances corporais, ela buscou desvendar modos alternativos de
construção de masculinidades que tem como suporte o corpo das mulheres.
17
Sigla para „International Lesbian and Gay Association”.
35
2. Da Abordagem Metodológica
A abordagem metodológica empreendida nesta pesquisa se produz em três momentos. O
primeiro, a orientação por uma perspectiva genealógica, embasada no aporte teórico de Michel
Foucault. O segundo refere-se a produção dos dados para a pesquisa, orientados pela perspectiva
de entrevistas baseadas na abordagem das trajetórias de vida. O terceiro refere-se à maneira
como será construída a analise dos dados, orientada pela perspectiva da análise dos enunciados
segundo a Arqueologia do Saber de Michel Foucault.
2.1 A Perspectiva Genealógica
Como afirmado, este trabalho pretende compreender os processos de subjetivação das
mulheres não-heterossexuais que denunciaram situações de violência e discriminação ao Centro
de Referência no Combate e Prevenção da Homofobia “Rompa o Silêncio”. Perseguindo este
objetivo, o estudo busca descrever e analisar a forma como estas mulheres têm se constituído, em
uma determinada relação consigo, a partir da compreensão dos jogos de verdade que têm
balizado a experiência de si, tomando a sexualidade como centro de problematização.
Para Michel Foucault (2004a), problematizar é refletir sobre o conjunto de práticas
discursivas que fazem algo entrar no jogo do verdadeiro e do falso e que o constitui em objeto
para o pensamento (quer seja sob a forma de uma reflexão moral, do conhecimento científico, de
análise política, etc.).
Neste sentido a pesquisa seguirá uma perspectiva genealógica, concebida por Foucault e
descrita por Revel (2005) como um método que pretende desalojar os saberes históricos, como
uma forma de oposição e luta contra o discurso responsável pela norma, no caso desta pesquisa,
da norma da heterossexualidade compulsória. A genealogia o busca no passado apenas os
traços dos acontecimentos singulares, mas busca as condições de possibilidade para os
acontecimentos atuais, permitindo que brote da contingência que nos faz ser o que somos a
possibilidade de não mais ser, fazer ou pensar aquilo que somos fazemos ou pensamos. (REVEL,
2005)
36
Considero a abordagem genealógica como possibilidade de dar visibilidade aos jogos de
verdade que legitimam os discursos e práticas que objetivam as homossexualidades femininas,
prestando especial atenção às possibilidades de ruptura/continuidade com os padrões
estabelecidos pelos dispositivos da sexualidade, enunciados nas trajetórias de vida das
entrevistadas.
Segundo Foucault (2007a), ao genealogista cabe constituir um saber histórico das lutas,
privilegiando a produção de saberes locais, normalmente considerados ilegítimos, desacreditados.
A genealogia, desta forma foge das meta-narrativas totalizantes e lineares da história, buscando
“assinalar a singularidade dos acontecimentos, fora de toda a finalidade monótona” (Foucault,
2007a, p.15). O genealogista busca nas fissuras, nas descontinuidades, a emergência dos saberes
e das práticas que nos constituem como sujeitos do presente.
A genealogia se opõe à pesquisa das “origens”, ela não busca a origem, uma identidade
anterior à experiência, um significado pré-existente. Ela busca estranhar aquilo que nos parece
mais familiar, mais inequívoco, explicitando a forma histórica como os saberes e seus objetos são
constituídos.
“O genealogista não pretende descobrir entidades substanciais (sujeitos, virtudes, forças) nem
revelar suas relações com outras entidades (...). Ele estuda o surgimento de um campo de batalha que define
e esclarece o espaço. Os sujeitos não pré-existem para em seguida estarem em combate e harmonia (...) os
sujeitos emergem num campo de batalha e é somente ai que desempenham seus papéis.” (Dreyfus &
Rabinow, 1995, p. 122).
Assim, proponho, a partir das trajetórias de vida das mulheres que acessaram o CRDH,
compreender como a possibilidade oferecida por uma política pública de denúncia das
discriminações e violências vividas, tensiona ou não o heterossexismo e a homofobia que
marcaram a experiência de si destas mulheres. Nestas trajetórias, contextualizadas em um espaço
político e cultural próprio ao nosso tempo, busquei elementos para a elaboração de uma pesquisa
genealogicamente orientada.
37
2.2 Trajetórias de vida o que está em questão quando alguém fala de si?
Ao buscar compreender os processos de subjetivação de mulheres que buscaram auxílio
junto ao centro de referência, meu objetivo era o de analisar os enunciados referentes à
discriminação contra as práticas homossexuais femininas frente à atual inflexão do dispositivo da
sexualidade (FOUCAULT, 1998; NARDI, 2009), a partir da experiência vivida e relatada por
minhas entrevistadas.
A partir disso, busquei como ferramenta metodológica a reconstrução das trajetórias de
vida dos sujeitos desta pesquisa na forma de entrevistas - como meio de poder acessar os
enunciados que evidenciam os jogos de verdade que balizam a experiência de si destas mulheres,
a forma como se colocam no mundo, como avaliam as formas pelas quais são interpeladas
cotidianamente em sua condição de gênero e orientação sexual.
Assim, procedi fazendo uma seleção dos sujeitos que poderiam fazer parte deste estudo,
feita com o consentimento e o auxílio da ONG nuances. Diante das possibilidades, quis construir
um grupo de mulheres que pudesse de certa forma, “representar” as diferentes inserções de classe
social, etnia, escolaridade e geração, correspondente ao universo de “sujeitas” que buscaram o
CRDH·.
Meu interesse, no entanto, não era o de generalizar as conclusões derivadas da análise das
entrevistas, tal qual em uma pesquisa de cunho positivista. Nem tampouco o de compreender as
falas provenientes das narrativas das entrevistadas como puramente da ordem do individual e
subjetivo. Era preciso encontrar uma ferramenta teórica que condissesse com o horizonte teórico
portanto ético e estético da pesquisa.
A escolha da metodologia da trajetória de vida (abordagem biográfica) para as entrevistas
se fez, pois, através dela é possível abordar o coletivo pelo individual, o que nos permite entrar
em contato com aspectos da vida destas mulheres, facilitando, assim, o estudo das trajetórias a
partir do meio social no qual são constituídas enquanto alvo de saberes que tem como objeto de
estudo e se constitui em uma relação ética consigo mesmas através dos jogos de verdade que
ali se articulam (CABANES, 2000). Deste modo, o relato de si durante a entrevista pode
fornecer elementos sobre como as entrevistadas se colocam diante das condições de sua
constituição como sujeitos.
38
Na abordagem da trajetória de vida é possível compreender as múltiplas especificidades
que perpassam a vida das entrevistadas, assim como os contextos sociais no seio dos quais elas
estão inscritas, pois a narrativa de si é também um relato das práticas de seu grupo social e da
forma como tais práticas contribuem para reproduzir ou transformar tal mundo. Ainda, na
abordagem biográfica, é possível identificar o lugar de onde o sujeito fala e as condições de
possibilidades para que alguns enunciados surjam em exclusão de outros, ou seja, que discursos
tomam forma de verdade numa relação de saber-poder.
Ao buscar justificar o uso da abordagem biográfica como fonte de conhecimento
científico, Ferrarotti (apud BUENO, 2002) argumenta que toda a práxis humana pode revelar as
apropriações que os indivíduos fazem de seu mundo social, incorporando-as e traduzindo-as na
tarefa de narrar sua história. Desta forma, como argumenta Bueno (2002), reconhecer a
subjetividade expressa nos relatos de vida individuais significa compreender que a vida humana
se manifesta como síntese e através de uma história social, a qual é apropriada pelo sujeito, sobre
a qual ele reflete e produz uma estética de vida.
Desta forma, é importante ressaltar que ao utilizar-me de entrevistas, orientadas pela
abordagem biográfica, procuro também afastar o risco de que as trajetórias aqui analisadas sejam
vistas como estudos de casos. Ao contrário disso, o que procuro fazer aqui é, ao levantar os
enunciados provenientes destes relatos, relacioná-los ao contexto histórico e local que faz parte
do contexto de vida das entrevistadas. Não se pode inferir, no entanto, que aqui teremos uma
relação causal entre a história social e a individual. Como propõe Moreira (2008) esta relação é
de total implicação já que, num ponto de vista foucaultiano afirmado nesta pesquisa o sujeito
é produzido socialmente, mas também produz ativamente o campo social.
Pensando no argumento anterior, a escolha por entrevistar mulheres que buscaram auxílio
junto ao centro de referência, se fez, para além dos objetivos propostos na pesquisa, também por
uma delimitação metodológica. Ao selecioná-las, enquadrei-as naquilo que Bertaux (2003)
chamou de categoria de situação, que significa um conjunto de pessoas que se encontra em
determinada situação social. No caso desta pesquisa, a categoria de situação são as mulheres que,
inseridas em um contexto social onde persistem as desigualdades de gênero, onde a maioria das
instituições prescritivas ainda são heteronormativas (escola, família, igreja, direito), tiveram a
possibilidade de apresentar denuncia sobre as discriminações que sofreram utilizando-se de um
39
programa nacional de proteção aos LGBT que promove e financia o centro de referência em
questão (e não outro) realizado pela ONG em questão (e não outra).
Desta forma é possível, através desta ferramenta de pesquisa, analisar um fragmento
particular do contexto sócio-histórico e compreender seu funcionamento e sua transformação,
enfatizando as relações sociais, os mecanismos, os processos, nas lógicas de ão que o
caracterizam. Nesta perspectiva, a pessoa entrevistada é convidada a passar sua experiência por
um filtro, na medida em que se anunciará o assunto do qual se trata esta pesquisa. Neste estudo,
utilizei como fio indutor do relato e ao mesmo tempo como filtro que centraliza a narrativa na
questão principal da pesquisa a pergunta: como a questão do preconceito e da discriminação tem
aparecido na tua vida?
A pergunta inicial teve como objetivo estimular a entrevistada a formular um relato de
sua vida através da perspectiva de sua experiência face ao preconceito e a discriminação,
buscando também levar em consideração os lugares, períodos da vida nas quais estas ocorreram,
as angústias suscitadas e as estratégias de enfrentamento elaboradas.
Apesar da pergunta central, as entrevistas eram abertas e sem uma estrutura fixa; a idéia
era deixar a entrevistada falar o mais livremente possível, pontuando, aqui e ali, pontos que eu
gostaria de abordar ou aprofundar. Por isso me pareceu pertinente, no caso em que o relato não
ocorresse espontaneamente, ter uma espécie de guia dos tópicos que gostaria de abordar, sem
buscar dar uma forma fixa à entrevista. Alguns destes tópicos envolviam os acontecimentos em
torno do momento em que passou a interessar-se eroticamente por outras mulheres, as sensações
e acontecimentos diante de seus familiares, na escola, nas relações de trabalho e de amizade.
Como o foco deste projeto centra-se, também, na perspectiva da denúncia das violações, fez-se
importante também o questionamento acerca das condições que motivaram a entrevistada a
realizar a denúncia e os caminhos pelos quais percorreu até chegar ao CRDH Rompa o Silêncio.
Nem sempre todos os tópicos foram abordados e isso por algumas razões simples: alguns
não faziam muito sentido na trajetória relatada, outros por meu interesse (e também da
entrevistada) em explorar aquilo que julgamos ser mais interessante na narrativa. Assim, as
40
entrevistas não resultaram homogêneas na abordagem dos tópicos o que certamente trouxe
algumas complicações na análise do corpus mas permaneceram ricas e interessantes.
A partir disso, cabe aqui refletir a cerca do que entra em questão quando alguém narra
parte de sua trajetória de vida. No livro Giving an account of oneself (BUTLER, 2005b), Judith
Butler nos algumas pistas. Neste livro, no qual trata sobre ética, Butler argumenta sobre as
condições nas quais um determinado sujeito se encontra para dar um relato de sua vida. Para
tanto, ela parte da seguinte pergunta: a postulação de um sujeito, cujas condições de emergência
nunca podem ser completamente narradas, mina a possibilidade de responsabilidade e, em
particular, as condições para que de um relato de si?
Para Butler (2005b), a demanda para que um sujeito forneça um relato de sua vida a outro,
de forma a justificar suas ões e seu modo de ser, expõe as estruturas de endereçamento que
estão na base de toda a narrativa. O que quer dizer que “eu” ofereço um relato a “você” e „você
me chama a ser “eu mesmo” no próprio ato de reivindicar este relato. Para ela falar é sempre
falar para.
Neste sentido, cabe uma reflexão a cerca da interlocutora a quem as entrevistadas
fornecem seu relato; quem é este sujeito que interpela e para o qual se fala? Estou aqui me
referindo a um sujeito real, que se senta a frente da entrevistada e a ela dirige perguntas: a própria
pesquisadora. Fazer esta reflexão implica em pensar que nesta interlocução se produz algo que
poderia ser diferente caso a pesquisadora fosse outra e tivesse outros pertencimentos
profissionais, sexuais, étnicos.
Assim, não posso deixar de pensar que, no momento da entrevista, não é somente a
pesquisadora que está ali. Para as mulheres entrevistadas estava ali também a psicóloga, a
psicóloga do Centro de Referência, a participante do grupo nuances. A grande maioria das
entrevistadas já havia tido contato comigo no nuances, algumas até mais do que uma vez. Assim,
as falas das entrevistadas também podem estar entrecortadas por estes espaços que ora ocupo. De
fato, quanto ao fato de ser eu psicóloga, acredito que isto tenha sido mais notado porque, por
mais que a intenção o fosse esta, senti que muitas vezes as entrevistas acabavam tendo um viés
confessional, quase clínico, entrecortado por enunciados do tipo “tu como psicólogaou “tu é
psicóloga, tu sabe disso”. Isto não necessariamente “atrapalhou” as entrevistas, mas lhes deu um
41
toque mais confessional, o qual foi considerado na análise como um elemento que integra os
jogos de verdade que constituem as possibilidades de enunciação destas mulheres.
2.3 A construção da análise
Os materiais produzidos para esta pesquisa consistiram nos relatos das entrevistas com as
mulheres, feitas a partir do referencial das trajetórias de vidas. As mesmas foram produzidas e
posteriormente transcritas, de forma a possibilitar sua análise e manuseio. Na análise destes
relatos, o foco principal foi dado aos enunciados que tivessem relação com a forma com a qual
estas mulheres experimentam a discriminação e o preconceito em suas vidas, bem como as
formas com as quais tem enfrentado tais situações. Enunciados que dão sentido à forma como as
participantes deste trabalho percebem a discriminação referente a si próprias e aos outros, às
estratégias de enfrentamento, ao seu encontro com a política pública foram particularmente
importantes para mim.
A análise dos enunciados se fará com base na Arqueologia do Saber (2004b). Nesta obra
Foucault nos esclarece que a análise dos enunciados e das formações discursivas busca o
princípio sobre o qual puderam aparecer os únicos conjuntos significantes que foram enunciados.
Busca estabelecer uma lei de raridade o que compreende que nem tudo é sempre dito, existem
condições de possibilidade para que um enunciado surja, a exclusão de outros.
Seu valor o é compreendido a partir de um significado subjacente que estaria atrás
daquilo que efetivamente foi dito. Portanto, se considera seu valor não pela presença de um
conteúdo secreto, mas pelos lugares que ocupa e sua capacidade de circulação. O domínio
enunciativo está inteiro em sua própria superfície, ocupando um lugar que a ele pertence. A
descrição consiste em pensar sua posição singular, que ramificações no sistema das formações
permitem demarcar sua localização, como ele se isola em sua dispersão geral.
O domínio enunciativo não pode tomar como referência um sujeito individual,
subjetividade transcendental, mas ser descrito como um campo anônimo cuja configuração defina
o possível dos sujeitos. (FISCHER, 1997).
42
A análise dos enunciados na perspectiva arqueológica segue preceitos que não tomam o/a
autor/a como ponto de partida ou origem de um enunciado. Nos discursos, existe um lugar vazio
que pode ser ocupado por diversos indivíduos (FISCHER, 1997). É preciso, desta forma, sempre,
levar em consideração a posição que os sujeitos ocupam na dinâmica discursiva de determinada
época. Na Arqueologia, o discurso é visto como um bem finito, limitado, útil, desejável, que tem
suas regras de aparecimento e também suas condições de apropriação e utilização. A descrição
consiste em pensar a posição singular que ele ocupa. Assim sendo, é fundamental pensar desde
que lugar o sujeito fala, pois o valor dos enunciados, em Foucault, não é definido por sua
„verdade‟ mas caracteriza o lugar deles, sua capacidade de circulação e troca, sua possibilidade
de transformação.
A questão dos jogos de verdade e a substituição progressiva do termo „discurso‟ por
„regimes de verdade‟ aparece posteriormente na obra de Foucault. No entanto, referência à
Arqueologia se mantém, pois é nela que Foucault elabora de forma mais precisa sua forma de
análise dos arquivos e documentos, sendo que aqui o documento é o texto produzido pela
entrevista, assim com a legislação, as políticas públicas e a produção teórica em torno da
temática. Esta utilização das ferramentas propostas por Foucault é sempre uma „utilização‟ cuja
pertinência, acredito, não deve ser julgada pela sua „fidelidade ao autor, mas pela coerência
interna e potência de análise.
3. A Constituição do Campo
O campo desta pesquisa abarca três níveis: a trajetória do movimento homossexual no
Brasil (hoje também chamado movimento LGBTT) e do grupo Nuances, procurando mostrar um
pouco de seu ideário e de sua atuação. O programa nacional de combate à homofobia Brasil Sem
Homofobia e a criação do CRDH “Rompa o Silêncio”, abordando a forma como ele tem
funcionado e apresentando alguns dados referentes às mulheres que acessam este centro. Por fim,
ao introduzir as participantes desta pesquisa, faço primeiramente uma reflexão a respeito da
construção da categoria
Ao apresentar a composição do campo desta pesquisa, é importante ressaltar que
compreendo que os espaços/campos que o compõem não se colocam, de forma alguma,
43
separadamente ou independentemente uns dos outros; pelo contrário, eles estão em constante
inteiração e disputa, produzindo diferenciações e modos de atuação. Acima de tudo, que estes
campos/sujeitos” participam de um processo de disputa de significados/verdades acerca da
sexualidade, produzindo e reproduzindo discursos que tanto podem romper com os processos de
naturalização das identidades sexuais e com os binarismos da norma, bem como reatualizá-los.
A questão aqui, no entanto, não é compreender estas instâncias e os discursos que elas
produzem e reproduzem “em seus conteúdos falsos e verdadeiros, mas em suas funções de saber-
poder” (FOUCAULT, 1990, p. 118). Como tal, produzem efeitos nos processos de subjetivação
dos indivíduos no caso desta pesquisa em específico, as mulheres entrevistadas agenciando os
modos como estes se relacionam consigo mesmos e com os outros, e que podem atravessar as
narrativas que fazem de si mesmos.
3.1 Trajetórias em Movimento: o movimento homossexual no Brasil
“(...)estas reuniões não serviam para resgatar uma fala ou cultura homossexual
longamente reprimida (...) mais do que sendo descoberta, uma identidade homossexual estava sendo
construída (...) aprendia-se a ser “homossexual, ou melhor, “militante homossexual(MACRAE, 1985
apud FACCHINI, 2005 p. 96)
Inicio este sub-item com a citação de MacRae, por acreditar que ela resume parte de
minha intenção ao trazer um apanhado breve sobre a história do movimento homossexual no
Brasil. Ao abordar este movimento como também produtor e reprodutor de discursividades a
cerca dos sujeitos os quais ele representa, encaro que ele, suas formas de atuação, suas palavras
de ordem e suas crenças também operaram e operam na constituição de modos de ser
homossexual, modos de encarar a homossexualidade, bem como modos de agir perante a
sexualidade.
Apesar de utilizar-me, como forma de referência a formação de uma organização política
em defesa dos direitos LGBTT o termo o movimento homossexual”, gostaria de enfatizar que,
apesar dos grupos, ONGs e associações que dele fazem parte poderem ser agrupados por um
objetivo geral mais ou menos comum a busca de visibilidade, justiça e direitos às identidades
não heterossexuais que se colocam como sujeitos deste movimento ele não é encarado, de
forma alguma, como homogêneo. O que se observa é que ele é um campo bastante heterogêneo
44
tanto no que tange as suas formas de organização quanto na diversidade de identidades que o
compõe, cada qual com suas demandas específicas. Principalmente por apresentar diferentes
pontos de vista a cerca das formas de reivindicação política (FACHINNI, 2005). Muito mais do
que uma unidade, existe aqui uma multiplicidade, algumas vezes conflitante.
Muitos estudiosos do movimento homossexual no Brasil apontam o final dos anos 1970
como à época em que os primeiros grupos de ativistas reunidos em torno da causa homossexual
passam a se organizar politicamente
18
. Neste momento o Brasil vive um processo gradual de
abertura política, abrindo caminho para a redemocratização do país, que se efetiva no ano de
1985 com a eleição de Tancredo Neves.
Em escala mundial, entretanto, as condições de possibilidade para a emergência de
movimentos sociais já haviam se imposto. Nos anos 1960 as idéias de libertação sexual, com seus
ideais de “liberação do desejo”, passaram a difundir-se nos movimentos sociais que surgiam na
época - entre eles o movimento hippie, feminista e o emergente movimento homossexual. Estes
movimentos, bem como o ideário a que deram suporte, influenciaram a produção científica a
respeito da sexualidade, provocando efeitos diferenciadores, inclusive, na visão tida sobre a
homossexualidade (um exemplo disso é o interesse direcionado ao estudo da hostilidade contra
homossexuais, a homofobia) (ALMEIDA, 2007). Os ruídos do ativismo homossexual nos
Estados Unidos, principalmente após os acontecimentos associados os protestos de Stonewall
19
,
podiam ser ouvidos no Brasil através da Coluna do Meio de Celso Curi
20
e de intelectuais no
exílio, como João Silvério Trevisan e João Antônio Mascarenhas, que mais tarde vieram a
18
Isso não quer dizer que anteriormente não existissem outras formas de associação de pessoas que
compartilham a homossexualidade como parte de suas vivências. Para saber mais ver GREEN, James. Além do
carnaval: a homossexualidade masculina no Brasil do século XX. São Paulo, Unesp, 2000.
19
A revolta de Stonewall, tradução para “the Stonewall Riots” foram uma série de demonstrações públicas
contra a violenta batida policial que ocorreu nas dependências do pub chamado Stonewall Inn, localizado no bairro
de Greenwich Village em Nova York. É considerado um marco no ativismo homossexual, por ter sido o primeiro
evento de grande porte em que gays, lésbicas e travestis americanos confrontavam um sistema governamental que os
perseguia. Até hoje, em todo o mundo, as “gay prides” ou, paradas do orgulho gay, são comemoradas no dia 28 de
junho, data do inicio dos protestos.
20
Em meados da cada de 70, a coluna do meio, publicada no jornal “A Última Hora”, foi considerada a
primeira coluna gay em um jornal de grande circulação. (MOTT, 1987)
45
compor as primeiras iniciativas de organização do ativismo homossexual no Brasil, como o
Somos - grupo de afirmação homossexual e o jornal Lampião da Esquina (FACCHINI, 2005).
Da mesma forma, em outros cantos da América latina estes ruídos foram ouvidos e
renderam frutos: no início da década de 70 grupos em defesa dos direitos civis de homossexuais
foram criados em países como o México, a Argentina e Porto Rico. Apesar disso, somente no
final desta década formaram se as condições para o surgimento das primeiras iniciativas de
organização do movimento historiografadas no Brasil: os supra citados Somos Grupo de
Afirmação Homossexual (SP) e o jornal O Lampião da Esquina. Eles surgiam nos anos finais da
ditadura militar no país, momento da abertura política, onde se torna possível a emergência de
novas formas de resistência à ditadura: demonstrado pela ascensão do movimento operário no
ABC paulista, pelo movimento estudantil, pelo inicio da organização de mulheres, negros e
homossexuais, que passam a denunciar a opressão sob a qual viviam. Este é o período a que
muitos estudiosos costumam se referir como a primeira fase do movimento (GREEN, 2000;
FACCHINI, 2005, SIMÕES, 2008, ALMEIDA, 2007).
Green (2000a) credita o início mais tardio do movimento homossexual no Brasil - se
comparado com seus vizinhos na América latina - a dureza da ditadura militar no início da
década de 1970. Facchini (2005), entretanto, prefere não identificar apenas os efeitos negativos
que a ditadura teve sobre a organização deste movimento no Brasil. Para ela, é importante
perceber o quanto a repressão vivida nos tempos da ditadura também estimulou a formação de
resistências em vários âmbitos sociais bem como a forte tendência „anti-autoritária” presente
nesta primeira fase do movimento homossexual. Assim, para ela, tanto os anos mais ferrenhos da
ditadura, bem como o clima da “abertura” no qual várias formas de opressão puderam então ser
mais abertamente questionadas, propiciaram as condições de emergência deste movimento.
É importante também dar crédito as transformações culturais que o Brasil vivia a partir da
década de 1970. Como Fry e MacRae (1991) apontam o surgimento de novas figuras no contexto
da música popular brasileira, como Caetano Veloso, Ney Matogrosso e as Dzi Croquetes,
atraíram a atenção por apresentarem uma figura exótica e andrógina para os padrões da época,
embaralhando os papéis sexuais tradicionais. Pairava no ar um clima de contestação, com uma
juventude e intelectuais (principalmente dentro das camadas médias da população) que aderiam à
contracultura e seus valores de liberdade individual e contestação das hierarquias sexuais.
46
Assim, criavam-se as condições para a emergência do movimento de gays e sbicas no
final dos anos 1970. Alguns dos exemplos mais destacados do ativismo homossexual desta
primeira fase têm sido considerados o grupo Somos/SP e o jornal Lampião da Esquina, vigentes,
respectivamente de 1978 a 1983 e o último, de vida mais curta, de 1978 a 1981. Estas duas
iniciativas de certa forma marcaram o início do movimento, seja pela influência que tiveram ao
reunir homossexuais em sua causa, seja porque inspiraram a organização de outros grupos em
torno da causa homossexual, tanto pela dissidência quanto pelo fato de terem sido
(principalmente o SOMOS/SP) alvo de estudos como os de Edward MacRae, João Silvério
Trevisan, James Green (FACCHINI , 2005).
Segundo Simões (2008) Somos/SP e O lampião da Esquina colaboraram entre si
intensamente, embora não se possa dizer que estivessem sempre de acordo. O lampião se
destacou por ser uma das primeiras publicações impressas a atingir um grande número de pessoas
e discutir abertamente temas relativos à homossexualidade, dandolhe um enfoque social e
político. De seu comitê editorial e de seus colaboradores faziam parte intelectuais de prestígio na
época, como Agnaldo Silva e João Antonio Mascarenhas. Tinha um cunho bastante irreverente,
usando a linguagem comumente encontrada no gueto. Embora o foco de discussão do jornal se
centrasse na homossexualidade, era uma política do jornal a formação de alianças com as lutas de
outras minorias, como nos diz Fry e MacRae (1991),
“...editado no Rio de Janeiro por jornalistas, intelectuais e artistas homossexuais que pretendiam
originalmente lidar com a homossexualidade procurando forjar alianças com as demais “minorias”, ou seja os
negros, as feministas, os índios e o movimento ecológico . Embora este projeto de aliança não tenha tido o sucesso
desejado, o jornal certamente foi de grande importância, na medida em que abordava, de forma positiva e não
pejorativa, a questão homossexual nos seus aspectos políticos existenciais e culturais” (FRY e MACRAE, 1991, p.
21)
O Somos grupo de afirmação gay era também formado por intelectuais, profissionais
liberais e um grande número de estudantes que, segundo Simões (2009), pouco correspondiam
aos estereótipos homossexuais da época. Era um grupo misto, do qual faziam parte homens
homossexuais (as “bichas”) e lésbicas
21
, embora estas em número menor. Sua primeira aparição
pública se deu no ano de 1978, em uma semana de debates sobre movimentos de emancipação de
grupos discriminados promovida promovido pela USP, debate este que não somente motivou o
21
È importante ressaltar que as travestis ainda não faziam parte do movimento homossexual na época,
tampouco a categoria transsexual. Estas duas identidades passam a reivindicar seu espaço dentro do movimento a
partir da década de 1990, primeiramente as travestis e mais posteriormente as/os transsexuais. ( FACCHINI, 2005)
47
batismo do grupo com o nome de Somos, como também provocou o surgimento de outros grupos
(FACCHINI, 2005).
O Somos, tanto quanto outros grupos formados na época, centrava-se em promover
formas de representação mais positivas da homossexualidade, visto que na época ( que é ainda
percebido nos dias de hoje) a homossexualidade era vista como uma forma de doença e pecado,
freqüentemente aliada a uma idéia de degeneração da personalidade. A estratégia aqui era a de
dar visibilidade política a homossexualidade; para tanto era necessário que os militantes
estivessem dispostos a dar publicidade tanto a sua orientação sexual e a suas reivindicações. É
importante notar que, ainda no início do movimento, a proliferação de siglas e identidades
sexuais que hoje podem ser nele observadas (exemplo disso é que hoje ele é chamado de
Movimento LGBTTT) ainda eram abrigadas dentro do conceito guarda-chuva de
Homossexualidade.
De forma semelhante ao Lampião, no Somos também se fazia uso político de palavras
comumente usadas de forma depreciativa para designar as “bichas” ou as “lésbicas” como forma
de enfrentamento e afirmação, de forma a esvaziar seu conteúdo pejorativo. Observando-se o
ideário do grupo, vê-se que desde então categorias binárias como os estereótipos passivo/ativo,
masculino/efeminado já eram alvo de crítica, bem como as assimetrias entre os homens e
mulheres. A bissexualidade era por vezes vista como uma identidade de subterfúgio, fortemente
criticada como uma forma de não se assumir. Assim também as travestis e os estereótipos da
lésbica masculinizada e da lésbica mais feminina (muito encontradas nos guetos) eram também
criticados como forma de perpetuação das assimetrias entre os gêneros. No entanto, estas mesmas
identidades eram por vezes glorificadas como formas de subversão tanto a fixidez das identidades
nas práticas (no caso da bissexualidade) quanto dos corpos. O questionamento do modelo de
família vigente e da monogamia também faziam parte de seu ideário, o que parece marcar uma
diferença de uma boa parcela da militância hoje, tendo em vista as reivindicações pelo casamento
gay. (FACCHINI, 2005, SIMÕES, 2008).
Conforme Facchini (2005), uma característica dos movimentos sociais “alternativos” ou
“libertários” que floresceram no período da redemocratização, era seu caráter antiautoritário e
comunitarista. Esta era uma característica bastante presente no Somos, o que não o livrou de uma
série de conflitos que fizeram com que ocorressem vários rachas dentro do grupo. Um dos
48
grandes conflitos certamente esboçava um dos dilemas de uma época ainda muito marcada pelo
autoritarismo da ditadura: o alinhamento com outros movimentos sociais (trabalhadores e grupos
de esquerda) ou a manutenção da autonomia política e organizacional. Deve-se perceber que a
luta para o restabelecimento da democracia era repleta do ideário esquerdista, que considerava a
luta maior a luta contra a exploração e a luta de classes. Dentro deste ideário, a luta por direitos
específicos era vista como uma forma de desmobilização e divisão da luta. Por outro lado, havia a
acusação de muitas mulheres e homossexuais do sexismo e da homofobia contida na esquerda.
Esta polaridade entre militantes mais alinhados com um ideário de esquerda e militantes que
reivindicavam autonomia do movimento homossexual (que inclusive acusavam o grupo de ser
controlado pela esquerda) acabou por contribuir para os diversos rachas dentro do Somos, a
criação de várias dissidências e também o encerramento de suas atividades no ano de 1983
(GREEN, 2000, FACCHINI , 2005).
Um dos primeiros rachas dentro do Somos ocorreu com as mulheres lésbicas participantes
do grupo; talvez um prenúncio das dificuldades então já encontradas pelo ativismo lésbico dentro
de grupos mistos e de seu desejo de autonomia do movimento homossexual (predominantemente
mais masculino). Esta tendência aparecia dentro do grupo quando elas formam os subgrupos
de identificação exclusivamente de mulheres, preocupadas em levar uma contribuição das
lésbicas ao movimento. Uma série de conflitos, que incluem a acusação de machismo por parte
dos integrantes masculinos da organização bem como a vontade de busca de autonomia do
movimento para as lésbicas, provoca a separação de um grande número de sbicas do grupo,
formando o Grupo sbico feminista, posteriormente chamado GALF (Grupo de Ação Lésbico
Feminista), um dos únicos grupos, aliás, a atravessar a difícil década de 1980 e chegar a década
de 1990, sob o nome de Rede de Informação Um Outro Olhar.
Buscando enfatizar as dificuldades de articulação política do ativismo lésbico, Jagose
(1996) afirma que elas sofrem efeitos do relacionamento conturbado que articulou tanto com o
movimento feminista quanto com o movimento homossexual. No que tange ao movimento
feminista, a autora diz que se podem encontrar posições como as de Rich (1999), que buscam a
articulação das lésbicas ao movimento feminista, ao sobrepor a categoria gênero a de
sexualidade. Do lado do movimento homossexual, a autora aponta para a posição de Monique
49
Wittig
22
, que enfatiza a necessidade da união entre ativismo lésbico e ativismo homossexual, por
entender que a questão da homossexualidade estaria para além do gênero, onde masculino e
feminino só podem ser pensados como categorias referentes ao esquema heterossexual.
Fry & MacRae (1991) abordam como este difícil relacionamento ocorreu no Brasil. Para
eles as barreiras encontradas na aliança das lésbicas com o movimento feminista estavam
baseadas na estranheza ou mesmo na repulsa que as sbicas causavam nas feministas
heterossexuais, embora muitas vezes as primeiras vivessem em consonância com os ideais de
autonomia pregados pelo movimento. Algumas feministas como Betty Friedan chegavam a
alegar que era necessário preservar a imagem das feministas. Por outro lado, os mesmos autores
encontram nas diferenças de performances de gênero as dificuldades de inserção das lésbicas no
ativismo homossexual (predominantemente masculino). Diferenças como o caráter gendrado do
arranjo da sexualidade lésbica (mais privado, doméstico e construído em torno de uma erótica
mais amorosa e conjugal) em oposição ao arranjo da sexualidade do homossexual masculino
(mais público, com encontros eróticos centrados no corpo, no anonimato e no consumo sexual)
teriam dificultado a integração das lésbicas aos movimentos homossexuais. Estas diferenças, no
entanto, não impediram que as ativistas lésbicas se aproximassem de ambos os movimentos,
alcançando também uma progressiva autonomização a partir dos anos 90, fazendo com que
Almeida (2005; 2008) refira-se a ele como Movimento de Lésbicas.
Fato é que no inicio da década de 1980, outros grupos haviam sido criados em várias
cidades e estados do país. Datam do inicio da década os primeiros encontros de ativistas
homossexuais: O I EGHO (Encontro de grupos homossexuais organizados) e o EBHO (Encontro
Brasileiro de Homossexuais). Facchini (2005) enfatiza, ao analisar os documentos resultantes dos
encontros nacionais deste período, que muitas das temáticas ainda hoje presentes no movimento,
como a luta pela despatologização da homossexualidade e por legislação antidiscriminatória,
começam a ser introduzidas. Entretanto, este é um período muito mais marcado pelo inicio da
organização política e do ideário do movimento do que por iniciativas mais pragmáticas no
sentido de conquistas de direitos civis. Simões credita este fato à “incerta situação política da
abertura”, ainda marcada pela repressão policial e por um Estado que ainda se mantinha de
22
Monique Wittig (1935-2003) foi uma feminista francesa, reconhecida por encabeçar o chamado
“Feminismo Lésbico”. Era particularmente interessada na superação do gênero e do contrato heterossexual.
Um de seus importantes trabalhos chama-se The straight mind and other essays, publicado em 1992.
(LESSA, 2007)
50
costas” para os movimentos sociais, muito embora os vários grupos emergentes na época (entre
eles o Somos e o Lampião) “se esforçassem na criação de uma pauta de reivindicações que
visavam combater discriminações sofridas por homossexuais na vida civil em geral(SIMÕES,
2008, p. 5).
A década de 1980, bem como o clima da abertura política parece ter sido um momento de
acontecimentos importantes dentro do campo dos movimentos sociais, mas para o movimento
homossexual marcou tanto o seu florescimento quanto também, a partir do final da primeira
metade da década, um declínio no número de grupos e organizações formados em seu início.
Vários grupos que se reuniram no início da década tiveram vida curta e alguns se extinguiram
antes de meados da década. Tais são os casos do próprio Somos e do Lampião da Esquina,
extintos, respectivamente, em 1983 e 1981.
Segundo Green (2000) se em 1980-81 o movimento contava com 20 grupos, em 1984
restavam apenas 7. O autor, que define este período do ativismo homossexual como de “declínio”
e “marasmo”, apontou algumas razões para a diminuição drástica no número de grupos em
atividade naquele momento. Entre elas a precária estruturação dos grupos, tanto em termos de
formação de novos militantes como de recursos financeiros; desestimulo de alguns dirigentes;
dificuldades em adequar-se aos novos tempos (que demandavam também novas formas de
estruturação política e organizacional); por fim, com o fim da ditadura, a sensação de que, com a
democracia restituida, a conquista de direitos seria alcançada sem muitas dificuldades. Esta “falsa
idéia” (GREEN, 2000) era, entre tantas coisas, sustentada pela disseminação, através da mídia, de
imagens mais positivas da homossexualidade, pela expansão do mercado de consumo gay e dos
locais de homossociabilidade.
Além das razões apontadas acima, Facchini (2005) também reconhece a chegada da
epidemia da AIDS como um dos fatores de desmobilização das idéias de liberação sexual. A
epidemia certamente ressuscitou os moralismos sexuais e preconceitos, aumentando mais ainda a
desconfiança e o descrédito quanto ao estilo de vida de muitos homossexuais. A repercussão da
então chamada, peste gay, fez com que, inclusive, aumentassem as perseguições e os crimes
violentos contra gays e travestis (SIMÔES, 2008). Muitos dos militantes da época acabaram por
voltar seus esforços ao combate a aids, criando as primeiras organizações civis em resposta a
epidemia.
51
Na contramão da definição deste período como de “declínio” ou de “marasmo” Facchini
(2005) prefere nomeá-lo como um período de transformações”, onde aparece uma redefinição
do papel dos grupos e dos estilos de militância. A autora aponta que as organizações que se
mantiveram ativas neste período eram menos refratarias a institucionalização e menos marcadas
por posições ideológicas de esquerda. Alguns grupos preocuparam-se, por exemplo, em obter
registro legal para suas organizações. Um prenúncio, por certo, do processo de “onguização” que
viria a ocorrer no movimento na década seguinte.
Desta forma, estes grupos tinham como característica formarem organizações de caráter
mais formal e punham seus esforços na conquista de direitos e na valorização da diferença
(direito à diferença). Mais identificados com uma proposta mais autonomista” do movimento,
estes grupos entendiam que a causa gay deveria vir em primeiro lugar e para isto procuram
também estabelecer mais relações com o movimento em nível internacional (SIMOES, 2008;
FACCHINI, 2005).
De certa forma, este período marca uma diminuição no número de grupos, mas também
uma mudança de orientações políticas, como visto no parágrafo anterior. Menos grupos
formaram-se, mas estes eram mais coesos e reuniam-se em torno de lideranças bem articuladas e
que possuíam recursos simbólicos e materiais para levar em frente seus ideais. São exemplos
destes grupos o Grupo Gay da Bahia (GGB), vigente até este momento e o grupo Triangulo Rosa,
fundado por João Antônio Mascarenhas (ex- Lampião) e extinto em 1988.
Este período foi marcado por um maior pragmatismo, demonstrado por campanhas
importantes, como a de retirada da homossexualidade do código de classificação de doenças do
INAMPS, encabeçada pelo GGB, que foi sancionada pelo Conselho Federal de Medicina em
1985. Segundo Simões (2008) esta campanha foi importante, pois questionava a velha associação
entre homossexualidade e doença e atingia um nos nichos de poder onde a homossexualidade era
oficialmente discriminada.
Outro fator que me parece bastante importante, foi o enfoque dado a denúncia das
violências, o que era uma preocupação desde o início do movimento. O GGB, por exemplo,
passou a arquivar informações sobre violências sofridas por homossexuais, inclusive registros de
assassinatos e que foram divulgados através de dossiês, principalmente a partir da década de
52
1990. Segundo Ramos (2009), isto ajudou a opinião pública a reconhecer a existência de um tipo
de violência e preconceito com uma “natureza específica” , e que mais tarde veio a ser chamada
de “homofobia”.
“A preocupação com a elaboração de um arquivo e a divulgação de relatórios contabilizando casos de
assassinatos de homossexuais contribuiu fortemente para estabelecer uma das prioridades da agenda do
movimento, a denúncia da “violência contra homossexuais” e da “homofobia”. (RAMOS, 2008, p. 5)
Entretanto, segundo Ramos (2008), o enfoque na violência letal e a reiteração da tragédia
não vieram acompanhados de uma postura mais propositiva dos ativistas sobre o tema da
violência contra homossexuais, permanecendo sem propostas para a segurança pública afins da
década de 1990, quando da criação do Disque Defesa Homossexual pela Secretaria de Segurança
Pública da cidade do Rio de Janeiro.
E se no meio do caminho, tinha uma epidemia, seus efeitos foram o estrondosos para o
movimento quanto paradoxais. Com o advento da AIDS acentua-se a produção discursiva a
respeito da homossexualidade. A AIDS trouxe consigo, além do acirramento do julgamento
moral sobre a sexualidade e a estigmatização da homossexualidade, também uma enorme
discussão da sexualidade, “favorecendo a emergência de manifestações políticas de sexualidades
diversas da heterossexual” (ALMEIDA, 2008, p. 5). Segundo Simões (2008) a epidemia
impulsionou também uma inusitada aproximação entre ativistas homossexuais e a categoria
médica.
A epidemia também produziu uma inusitada articulação entre setores governamentais e
entidades provenientes da sociedade civil que, no caso dos grupos homossexuais e lésbicos já não
eram mais tão refratários a moldes institucionais mais formais. Desta forma, mesmo que de
início a epidemia tenha contribuído para uma relativa diminuição nos grupos e entidades que
faziam parte do movimento homossexual na metade dos anos 1980, a partir do final de sua
segunda metade e ao longo dos anos 1990, o tipo de resposta a ela dada favoreceu uma grande
expansão e segmentação deste movimento.
Como assinala Almeida (2005; 2008), também o clima político do final dos anos 1980,
com a ascensão de governos de cunho neo-liberal, que tem por característica transferirem parte da
execução de políticas sociais a sociedade civil, favorece a proliferação das ONGs. Se nos anos
1970 e 1980 o conceito de sociedade civil e de movimentos sociais se produzia por sua oposição
53
ao Estado, já no limiar da década de 1990 esta relação se transforma: os atores da sociedade civil
passam a ser corresponsabilizados e convocados a tarefa de transformação das condições sociais,
o que intensifica o surgimento das ONGs (STEIL, 1993). É claro que isto o significa menos
controle Estatal, mas transforma a forma como o Estado intervém e a maneira como este e
sociedade civil se relacionam. Esta nova forma de articulação vai fomentar a expansão e
diversificação do movimento homossexual brasileiro, principalmente através das parcerias feitas
entre Estado e movimento e também através de financiamentos de projetos voltados ao combate e
prevenção de DST/AIDS.
No entanto, houve a imposição de um controle e uma atenção maior à homossexualidade
masculina, que entre as lésbicas parecia inexistir o risco de contaminação. Este fato deu
condições para que surgisse uma maior produção de conhecimento em torno das
homossexualidades masculinas e, como afirma Terto Jr. (1996), ao fortalecimento da militância
política homossexual. Para Pecheny (2004) a epidemia da AIDS também acelerou o ingresso do
tema da discriminação e dos direitos sexuais na pauta pública. No caso das mulheres lésbicas e
bissexuais, não parece ter ocorrido fenômeno semelhante no que tange a pesquisas sobre práticas
sexuais, vulnerabilidade e saúde de mulheres não-heterossexuais, se comparados aquelas
produzidas sobre as homossexualidades masculinas (FACCHINI e BARBOSA, 2005).
Entretanto, como afirma Almeida (2005; 2008), o estabelecimento de interlocuções entre
ativistas e ONGs lésbicas e Estado, principalmente via Ministério da Saúde através do Programa
Nacional de Combate à AIDS, viriam a se tornar estratégicos para a expansão e fortalecimento do
ativismo lésbico. Foi através de recursos negociados com o Ministério da Saúde que se tornou
possível a organização do primeiro SENALE (Seminário nacional de Lésbicas) no ano de 1996.
Segundo a autora, o SENALE - que agora estão em sua 6ª edição - foi muito importante para a
formação de um discurso comum entre as ativistas lésbicas e bissexuais, onde foi possível
discutir as diretrizes e o foco do ativismo lésbico, a constituição de fóruns de debate e projetos
educativos. A data do primeiro SENALE realizado no dia 29 de agosto- passou a marcar o Dia
da Visibilidade Lésbica.
As mudanças ocorridas no final da década de 1980 possibilitaram o reflorescimento do
movimento homossexual no Brasil, período a que Facchini (2005) chama de segunda onda do
54
Movimento Homossexual Brasileiro. Este período se caracteriza por sua expansão
23
e pela
proliferação de organizações de caráter mais formal, inspiradas no modelo ONG; por uma relação
mais próxima com setores governamentais através do estabelecimento de convênios e parecerias;
uma maior conexão com o movimento internacional e com fundações de fomento internacional;
pela segmentação do movimento, caracterizado pela construção e ascensão de novos atores que
reivindicam especificidades nas suas demandas; o aumento dos encontros regionais e nacionais
do movimento
24
, inclusive com seminários e encontros destinados a discutir demandas de
identidades específicas
25
.
Para Ramos e Carrara (2006) além da multiplicação das entidades e dos processos listados
acima, uma série de outras características heterogêneas será responsável pelo quadro de
mudanças que resultarão em maior visibilidade para as questões da homossexualidade. A
primeira delas seriam as iniciativas no campo Legislativo e Judiciário, que objetivam a coibição
da discriminação e a ampliação de direitos. Apesar da Constituição de 1988 não ter incluído o
termo orientação sexual no artigo que versa sobre a discriminação por origem, raça, sexo, cor e
idade, em diversos municípios e estados já possuem alguma legislação protetivas contra a
discriminação por orientação sexual. O estado do Rio Grande do Sul, por exemplo, sancionou em
2002 a lei n 11.887 que dispõe sobre a promoção e o reconhecimento da liberdade de orientação,
prática, manifestação, identidade e preferência sexual (VIANNA e LACERDA, 2004). Outra
iniciativa importante é o projeto de alteração do Código penal e da Lei n 7.716 que tramita no
congresso e visa incluir punição por preconceito e discriminação de gênero e orientação sexual
aos inclusos cor ou raça. No entanto, este projeto enfrenta fortes resistências a sua aprovação,
principalmente ligadas a autoridades religiosas cristãs que vêem em sua aprovão um
impedimento da liberdade de expressão (de expressão de sua reprovação das condutas
homossexuais). Esta certamente não é a primeira demanda legal do movimento que encontra
barreiras poderosas. Este é o caso do projeto de união civil de autoria da então deputada Marta
Suplicy em 1995, que foi alterado diversas vezes e por fim, não chegou a ser levado à votação.
23
A ABGLT (Associação Brasileira de Gays Lésbicas e Travestis), fundada em 1995, conta hoje com 220
entidades associadas, segundo dados do site www. abglt.org
24
Como por exemplo, os Encontros Nacionais de Gays e Lésbicas e o 17ª conferência internacional da ILGA
(Internacional Gay and Lesbian Association)
25
São exemplos os SENALEs (Seminário Nacional de Lésbicas) e os ENTLAIDS (Encontros de Travestis e
Transsexuais que atuam na Luta e Prevenção da AIDS).
55
O segundo destes processos se encontra na expansão e consolidação de um mercado de
serviços e bens destinados a homossexuais com o aumento de bares, boates, saunas e também
sites, revistas, mostras de cinema gay entre outras. Estas iniciativas vão compor um aumento nos
espaços de sociabilidades
O terceiro processo diz respeito à adoção de estratégias de visibilidade de massa, como as
paradas do orgulho gay, que ocorrem geralmente no mês de junho em várias cidades e metrópoles
no país. A primeira delas, a Parada do Orgulho Gay de São Paulo, contou, em 2009 com a
presença de por volta de três milhões de participantes, entre gays, lésbicas, bissexuais, travestis,
transexuais e os “simpatizantes”. Muitas destas manifestações contam com financiamento da
União (via Ministério da Cultura e Ministério da Saúde) estados e municípios. È importante
também ressaltar a crescente aproximação entre a iniciativa privada e a organização das paradas,
como é o caso da parada de São Paulo.
Cada vez mais as relações entre Estado e movimento tem se tornado mais estreita,
produzido ferramentas interessantes na busca e afirmação de direitos voltados às categorias
LGBTT. Isto pode ser exemplificado pelo lançamento o Programa Brasil Sem Homofobia em
2004 e, no ano de 2008 o lançamento da I Conferencia Nacional LGBT, convocada pelo governo
federal. Isto certamente se deve a força que o movimento tem adquirido, mas também aos
compromissos com as agendas de direitos humanos internacionais de que o país é signatário
(VIANNA e LACERDA, 2004).
A interpenetração entre o movimento e o Estado tem se mostrado importante na luta por
justiça e equidade de direitos; no entanto ela guarda alguns riscos. Como apontam Carrara (2008)
e Simões (2008), se por um lado o fortalecimento dos laços entre a sociedade civil e o Estado
possibilita uma expansão das organizações e a abertura de maiores possibilidades de pressão por
parte do movimento, ele também pode desenvolver relações clientelistas que podem diminuir o
potencial crítico do movimento em relação aquilo que se está produzindo em termos de projetos e
políticas públicas. Nas palavras de Carrara, “se o imperativo da visibilidade no nível das políticas
públicas fortalece certas identidades ou grupos, também os expõe a um controle mais minucioso
por parte de instâncias de poder estatal” (CARRARA, 2008, p. 17) Pode-se acrescentar também
que o imperativo pela visibilidade a disputa por recursos tem se tornado um fator digno de
reflexão.
56
Outra característica das transformações que o movimento vem sofrendo ao longo de seus
trinta anos, já mencionada anteriormente, é sua segmentação e a expansão das categorias
identitárias que vão compor os/as sujeitos políticos deste movimento. Este processo fica claro ao
se pensar na transformação das siglas que vão se compondo ao nome do movimento, gerando
uma verdadeira “sopa de letrinhas”
26
. De movimento de gays e lésbicas no início dos anos 1980
hoje temos o LGBTT
27
. Este processo, no entanto, se relaciona a diversos fatores de elaboração
de identidades internas e externas ao movimento: a política de representação identitária que ele
veio assumindo; as relações com o movimento internacional; a necessidade de diferenciar
demandas específicas a cada identidade; as políticas adotadas por agências estatais (tanto no
controle da epidemia da AIDS quanto, mais recentemente, aquelas destinadas ao combate à
homofobia); a atuação por projetos financiados, que muitas vezes exigem uma clara definição do
público alvo; ao desenvolvimento de um mercado segmentado. Para Facchini (2005) estes dois
últimos fatores têm contribuído fortemente para “a adesão a um sistema classificatório
segregacionista”.
Neste sentido, é possível compreender a importância que a política identitária tem para o
movimento ao dar visibilidade a diversos sujeitos antes acomodados sob o conceito guarda-chuva
de “homossexualidade”. No que tange as especificidades e vulnerabilidades, sabemos o quão
importante tem sido reconhecer que existem diferenças nas formas como os sujeitos vivem ,
praticam sua sexualidade e seu gênero, que estas questões se associam de diferentes formas a
outros fatores como raça, etnia, geração, classe social e que todos estes fatores tem impactos
diferentes na vida das pessoas. No entanto, parece ser igualmente importante reconhecer que nem
todos aqueles que podem vir a sofrer discriminação homofóbica se encaixam facilmente nos
esquemas identitários sugeridos pelas letras LGBTT, ainda que se adicionem mais identidades as
siglas.
A popularização das identidades que expressam os sujeitos políticos inseridos no
movimento deu ensejo ao uso, por parte do movimento social como das políticas públicas, do
26
A alusão a “sopa de letrinhasé feita por Facchini (2005) ao pesquisar em sua dissertação de mestrado os
processos de elaboração e reelaboração de identidades dentro do Movimento Homossexual Brasileiro.
27
A referencia a sigla LGBTT, ao invés do antigamente usado GLBTT, remete-se a recente formulação
aprovada na I Conferência nacional de Gays, Lésbicas. Bissexuais, Travestis e Transsexuais. Pode-se compreender
tal referência no contexto de uma tendência a segmentação e diferenciação que tem se estabelecido no movimento
desde a década de 1990. Para saber mais ver FACCHINI, 2005.
57
termo “diversidade sexual”. Seu uso vem se insere dentro de um panorama de valorização da
singularidade e da multiplicidade de expressões sexuais, e se tornou opção ao termo diferente”,
visto como fazendo referência a norma. No entanto, como sugere Ávila (2003), para não
tomarmos o termo como dado”, é necessário que reflitamos. Parece haver o perigo de que se
associe o termo “diversidade” ao jogo identitário - onde diversidade” passe a significar as
categorias identitárias descritas na sigla LGBT. Existe sim o risco da captura identitária; e este
risco está na reificação e essencialização das identidades descritas, caindo-se assim na armadilha
binária onde existem os “diversos” em contraposição aos “não-diversos e onde se perca de vista
o caráter performático de cada uma destas identidades. Ao se abordar as identidades sexuais
como estanques, portadoras de determinadas “condições”, corre-se o risco de produzir tanto
“inclusões” como “exclusões”.
Tentei aqui traçar, o mais brevemente possível, a trajetória de trinta anos do Movimento
homossexual Brasileiro. Como vimos, colocar 30 anos em algumas páginas nos cobra bastante
capacidade de síntese, mas espero ter abordado os pontos mais importantes desta trajetória.
Introduzo agora o grupo nuances.
3.2 O Nuances Grupo Pela Livre Expressão Sexual
Fazendo parte do cenário gaúcho há 18 anos, o Nuances grupo pela livre expressão
sexual surge como parte da “segunda onda” do movimento homossexual brasileiro que, como
visto antes, corresponde ao momento de sua expansão, alcance de maior visibilidade, da luta
contra a AIDS e do crescimento da interlocução entre Estado e sociedade civil (FACCHINI,
2003). O Grupo, que atua principalmente na cidade de Porto Alegre, existe informalmente desde
1991; foi somente em 1993 que ganhou existência legal (registro de estatuto), tento então
assumido o status legal de organização não governamental.
Em termos gerais, sua proposta é defender e trabalhar pela cidadania e garantia de direitos
as homossexualidades em geral - entendendo-se que ai pode estar incluído diversas categorias
identitárias, como expressa pela sigla LGBTT, mas podendo circunstancialmente ir além da
representatividade desta sigla (ao menos idealmente).
58
Perseguindo este objetivo, o Nuances vem atuando junto a esferas públicas e da sociedade
civil na proposição de leis
28
, na denuncia e, muitas vezes, no acolhimento de denúncias de
discriminação e a violência homofóbica por parte tanto de órgãos do Estado
29
, como também de
estabelecimentos privados e de indivíduos. É também uma forte característica do grupo “colocar
a cara na rua”, como muitas vezes é dito dentro do grupo, e participar e organizar protestos e
manifestações públicas, que não se vinculam somente a questão do preconceito e das
homossexualidades, mas que se relacionam com luta contra injustiças de toda a forma e com a
busca da democracia plena a “todos” os cidadãos
30
.
Para além da proposição de leis e da denúncia, o nuances também vem atuando através
de projetos - que vão desde a prevenção/combate as DST‟s/AIDS até a formação e capacitação
em Direitos humanos e Diversidade sexual a diversos atores - que realiza em parceira com esferas
municipais, estaduais e federais, organizações da sociedade civil e mesmo organizações de
fomento internacionais
31
.
Alguns dos exemplos destes trabalhos são o Projeto POA Homens, que foi realizado de
1995 a 2000 com o financiamento do Programa nacional de DST/Aids e da Unesco e cujo desafio
era reduzir a infecção de HIV entre homossexuais masculinos. Foram feitas pesquisas sobre o
comportamento do público alvo e o mapeamento de locais de freqüência com o objetivo de obter
intervenções mais eficazes. Este foi o primeiro projeto a ser realizado com estes fins em Porto
Alegre. Além da pesquisas e intervenção corpo-a-corpo, o projeto também desenvolveu uma
cartilha contendo discussões sobre sexo seguro e textos sobre a epidemia (NUANCES, 2000).
Outro exemplo do trabalho do grupo foi o projeto Olhares: Ação para a visibilidade
lésbica em Porto alegre ( 2004), realizado em parceira com a Liga Brasileira de Lésbicas. O
objetivo do projeto era o de criar espaços para a construção de visibilidade e o fortalecimento da
identidade e autonomia das mulheres lésbicas. (NUANCES, 2005)
28
Como é o caso da alteração na Lei Orgânica Municipal, no artigo 150, que inclui a não discriminação por
orientação sexual em instituições privadas e públicas.
29
Em 1999 o nuances apresentou denúncia junto ao Ministério Público Federal, solicitando a equiparação dos
direitos previdenciários das relações homo as heterossexuais.
30
O nuances tem participado da Marcha dos Sem, de manifestações do movimento negro e de mulheres entre
tantas outras.
31
Como, entre outros, o Ministério da Saúde, através do Programa Nacional de DST/AIDS, a Secretaria
Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, a UNESCO, a Anistia Internacional, Fundação Ford e
organizações não governamentais do segmento LGBTT como, por exemplo, a Associação de Travestis do Rio
grande do sul Igualdade RS e a Liga Brasileira de sbicas.
59
O Nuances, em parceria com organizações governamentais e da sociedade civil organizou
e realizou diversos cursos de formação em Direitos Humanos e Diversidade sexual. Exemplos
desta atuação são o curso Multiplicadores de Cidadania (destinado a pessoas ligadas a
universidades, segurança pública, escolas e prefeituras) e as Aulas de Direitos Humanos para
Policiais, realizadas em parceria coma Secretaria de Justiça e Segurança do RS (NUANCES,
2005). Outra importante ação de formação foi realizada recentemente em parceria e com verba do
Ministério da Educação e Cultura: o curso “Educando para a Diversidade”. Este curso foi
realizado em 4 edições, e formou mais de 300 professores da rede pública estadual e municipal
Outras realizações de grande vulto do grupo são a organização, desde 1997, das
“Paradas Livres”
32
( eventos que marcam dia do orgulho gay”), e o “Jornal do Nuances”
33
,
periódico trimestral que busca levar informação sobre direitos humanos a comunidade em geral.
O grupo atua, desta forma, como articulador e agregador de diferentes atores sociais e da rede
local dos direitos humanos no campo da orientação sexual. Esta ação, entre as diversas
possibilidades a ela intrínsecas, contribui nas estratégias de visibilidade das ações do grupo e de
seus parceiros no enfrentamento à homofobia e na efetivação das propostas nas políticas públicas
que se relacionam com o campo dos direitos humanos.
O currículo da organização é extenso e envolve diversos tipos de ações, que são realizadas
muitas vezes a revelia do apoio ou financiamento externos. Entretanto, estas ações estão sempre
voltadas a promover e discutir junto à sociedade os impasses e enormes prejuízos que a
discriminação e a violência heterossexista representam em uma sociedade que busca a conquista
da democracia plena.
Para além de suas ações, é importante ressaltar o ideário do grupo, que marca sua posição
política frente à sociedade em geral, ao Estado e ao movimento homossexual brasileiro. Seria
errado supor que as idéias que mostrarei a seguir são absolutamente homogêneas no grupo; na
verdade, a maioria dos posicionamentos que o grupo vem tomando (ao menos desde me inseri
nele) são acompanhados de discussões, discordâncias, concordâncias, que por vezes levam a
32
Em suas duas últimas edições, a Parada Livre reuniu um blico estimado em 200.000 pessoas entre a população
LGBTT e comunidade em geral. A opção pela nomeação “Parada Livre” em detrimento de “Parada do Orgulho Gay” ou
“Parada do orgulho GLBT” é feita como uma crítica a uma certa forma de fazer política que fixa os sujeitos a formas
identitárias, e faz parte do fazer político do grupo, como se verá mais adiante.
33
O Jornal do Nuances, que possui mais de 40 edões, foi objeto de tese de doutoramento de Fernando
Luiz Alves Barroso, defendida na UNISINOS no ano de 2007, intitulada Jornal do Nuances: a prática midiática de
uma ONG de Porto Alegre para o confronto político entre o “gay classe média e a “bicha bafona”.
60
alguns rachas dentro do próprio grupo. As idéias que apresentarei aqui são, de certa forma,
aquelas mais aceitas pelo grupo e que acredito, são aquelas que lhe conferem sua singularidade.
De modo geral, o grupo busca sua independência frente ao Estado, que pode ser
representada por uma fala recorrente dentro do grupo: “não somos meros prestadores de serviço
do governo”. Longe disto, o grupo busca sua independência das demandas estatais procurando
manter um potencial crítico sobre as ões deste ator, no sentido de poder delas discordar. Este
posicionamento advém da crença de que denominar-se movimento social é fazer parte de uma
rede de significados na qual a crítica tem lugar privilegiado. Desta forma, a reivindicação de
independência tem ai sua razão. Manter este posicionamento, entretanto, custa caro, muitas vezes
acarretando indisposições com gestores estatais e com o próprio movimento, bem como maiores
dificuldades na busca de financiamento para suas ações.
“(...)faz parte de nossa política estabelecermos parcerias com outros movimentos sociais e
instituições igualmente preocupadas com a luta contra a violência e o preconceito. Tendo clareza do papel
que ocupamos enquanto movimento social, defendemos nossa independência frente a parceiros como o
Ministério da Saúde, a UNESCO, universidades e ONG‟s. “(NUANCES, 2005, p 3)
O Nuances também procura estabelecer uma relação critica com os rumos do movimento
social, em especial, ao movimento homossexual brasileiro, através da qual marca seu
posicionamento e diferenciação. Esta crítica relaciona-se, prioritariamente, a política identitária
que cada vez mais este movimento vem assumido claro que existem exceções) e a cooptação
político-partidária apresentada algumas entidades do movimento. Este último aspecto é entendido
como um posicionamento que permite um maior acesso a recursos (caso os partidos aos quais se
vinculam estejam em posição para tal), mas que também coloca tais entidades em uma posição
subordinada as necessidades políticas de tais partidos.
É compreendido por política identitária um tipo de operacionalização política baseada na
representação de sujeitos políticos (no caso, os LGBTT‟s), os quais é necessário dar visibilidade.
No entanto, para conferir visibilidade a estes sujeitos é preciso que se delimitem os sujeitos os
quais são representados. Ou seja, para almejar visibilidade - para com isto angariar direitos e
equiparações - é preciso delimitar o “quem” ao qual a política se refere e aos quais se fará justiça.
Não é preciso ir muito longe para compreender que o quem” que acaba por ser produzido
34
é
34
E não é demais enfatizar, a despeito da compreensão de sujeito defendida neste trabalho, que estes sujeitos
são produzidos (históricos e contingenciais). Apesar disto, suas identidades são muitas vezes vividas e vistas como
essenciais, o que pode não ser um grande problema na trajetória de um indivíduo mas que pode se tornar
problemático do ponto de vista da reivindicação política e da produção de políticas públicas.
61
constituido a exclusão de “outros quems”. A crítica que o grupo faz se dá pelo caráter excludente
de tal forma de operação política, muito embora se reconheça os ganhos que ela teve e de certa
forma ainda tem. Para o grupo é necessário superá-la para o avanço na democracia. È claro que
isto não é tarefa fácil, visto que o próprio Estado acaba por encampar/produzir a “identidade” na
elaboração de políticas públicas e programas governamentais.
Outro aspecto que se apresenta no ideário do grupo é a crítica a “normalização”, a
“domesticação”, e a “medicalização” da homossexualidade. A normalização” e “domesticação”
são entendidas como a incorporação, por parte das “bichas” e das “sapas”
35
de um estilo de vida
“politicamente correto”, discreto, assimilável a valores heterossexuais e de classe média, o que
corresponderia a uma certa “moral do escravo”, na qual que a busca de reconhecimento
signifique desejar subordinação aquilo que é entendido, pelos padrões morais vigentes, como o
“correto” (SEFFNER, 2006; POCAHY, 2006).
A “medicalização” é entendida como o contrário da concepção de sexualidade que o
grupo afirma:o como um campo do diagnóstico e da intervenção médica, mas como um campo
de expressão e construção de estilo de vida, ético e político. Para o grupo, o fato da sexualidade
ser um campo de normatização e da intervenção dos saberes médicos/psicológicos, jurídicos e
estatais, torna a sexualidade uma questão política (ANJOS, 2000).
Desde o seu princípio, o grupo tem tido como prática acolher denúncias de discriminação
e violência homofóbica/heterossexista, oferecendo assistência jurídica gratuita em alguns casos e
em outros, acompanhando a vítima até a delegacia de polícia. Esta prática era realizada por
advogados ligados ao grupo, que ofereciam seu trabalho de forma voluntária. A necessidade de
acompanhar as vítimas até a delegacia tem sido cada vez menos freqüente ou até inexistente.
Felizmente, as vitimas de discriminação e violência homofóbica tem recorrido às delegacias de
polícia por conta própria, sem temer represálias ou o descaso policial. A utilização cada vez mais
freqüente deste direito demonstra uma mudança na percepção, tanto das vítimas quanto dos
operadores da justiça, da legitimidade destes direitos.
Decorre disso que o acolhimento e encaminhamento de denúncias era uma prática
reconhecida e levada a cabo pelo grupo, mesmo antes da criação do CRDH Rompa o Silêncio e
35
A opção por usar termos comumente usados de forma pejorativa para se referir a homossexuais , faz parte
da estratégia política do grupo, que busca esvaziar o sentido pejorativo nelas contido e usá-los de forma a afirmar um
posicionamento contra a normalização. Estas categorias são usadas, principalmente, em contraposição a
denominação homossexual (uma categoria associada à medicalização e patologização) e gay (vista como associada a
uma assimilação estrangeira e do mercado “pink”).
62
de seu financiamento pelo Programa Brasil Sem Homofobia, temas dos próximos itens. No
entanto, esta aliança com o Estado representou uma possibilidade de qualificação desta atenção.
3.3 O Brasil sem Homofobia
A preocupação com a aids juntamente com o ativismo feminista e homossexual criaram as
condições de possibilidade para a emergência daquilo que se constituiu como uma das formas de dar
visibilidade oficial à questão da diversidade sexual: a inserção dos chamados Direitos Sexuais na
pauta dos Direitos Humanos na cena política brasileira. No país, este tema tem se organizado na
confluência entre questões reprodutivas/aborto, das DST´s /aids e de diversidade sexual. (CARRARA
e VIANNA, 2004).
Se hoje existe a possibilidade da denúncia e de suporte governamental para a luta no combate
à discriminação, esta se fez por força dos vários movimentos sociais (Feminista e LGBTT) que tem se
consolidado no Brasil desde a década de 1980. Estes movimentos, a duras penas, colocaram o
combate a discriminação, o preconceito e as desigualdades sociais motivadas por orientação sexual e
gênero na pauta da luta mais ampla pelo respeito aos direitos humanos.
Conforme Rios (2005), o Brasil está entre os países com maior grau de ordenamento jurídico
para a proteção de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transgêneros. Não obstante o fato de
historicamente o país não possuir lei anti-sodomitas desde o século XIX, hoje existem medidas
positivas de proteção e reconhecimento das homossexualidades, como é o caso do Programa Brasil
sem Homofobia. Entretanto, a garantia destes direitos é constantemente ameaçada pela influência de
setores conservadores e religiosos que dificultam a confirmação da laicidade do Estado e manm as
enormes desigualdades sociais e econômicas de milhões de pessoas. (CARRARA & VIANNA, 2004;
RIOS, 2005, 2007).
Diversos autores, entre eles Rios (2005; 2007), Correia (2004), alertam para a necessidade de
descolagem da tradicional ligação entre direitos reprodutivos e direitos sexuais do campo da saúde
sob pena de que se continue a colocar o exercício livre da sexualidade sob os auspícios da ciência
biomédica. Para Rios (2005) é fundamental que os Direitos sexuais sejam guiados por princípios dos
Direitos humanos.
63
Sem querer aqui entrar no jogo da defesa ou da condenação, me parece que ao situar os
direitos relacionados à liberdade sexual no campo dos direitos humanos indica um movimento de
descolamento da legitimidade desta discussão amarrada exclusivamente até pouco ao campo da
saúde. Este descolamento é representado, principalmente, pelo programa Brasil sem Homofobia
(BSH).
Na luta contra a discriminação e o preconceito, a formulação de políticas públicas tem
sido uma importante ferramenta na tentativa superação destas desigualdades, como é o caso, por
exemplo, das políticas voltadas à defesa dos direitos das mulheres, que tem buscado a superação
das desigualdades de gênero e da violência contra as mulheres. Na esteira destas reivindicações,
uma das vitórias da luta das mulheres organizadas foi a promulgação da lei Maria da Penha ( lei
n. 11.340 de 7 de agosto de 2006 ), que inclui na agenda pública a criminalização da violência
contra a mulher, independente de raça, renda, classe social, orientação sexual, cultura, idade,
nível de educação e religião. Outra vitória pode ser a criação em 2003 da Secretaria Especial de
políticas para Mulher, que tem como objetivo produzir e implementar políticas blicas que
melhorem as condições de vida das mulheres e promovam a igualdade de gênero, independente
de raça/cor, religião, deficiência, classe social e orientação sexual. No Segundo Plano de Políticas
Públicas para as Mulheres a inclusão da perspectiva da orientação sexual foi aprofundada, em
atenção às reivindicações dos movimentos de mulheres lésbicas.
Um ano após a criação da Secretaria Especial de políticas para as mulheres, foi criada a
Secretaria Especial de Direitos humanos da Presidência da República, secretaria esta responsável
pela implementação de políticas públicas de combate à discriminação e violência contra
LGBTTs, através da criação e implementação do Programa Brasil Sem Homofobia, tema desta
sessão.
Como consta em seu material de divulgação, o programa BSH foi construído com ampla
participação do movimento LGBTT. Esta articulação, entretanto, vinha se construindo desde
meados da década de 1990, mas direcionado as políticas de combate e prevenção de DST/AIDS.
Em 1996, a partir de consulta e articulação com o movimento, que o quesito “discriminação por
orientação sexual” passa a incorporar a pauta federal de Direitos Humanos, com a criação do
primeiro Plano Nacional de Direitos Humanos. Os PNDH (o primeiro criado em 1996, e o
segundo, em 2002) representaram um marco na incorporação da pauta dos Direitos Humanos no
64
Brasil, que firmava compromissos com tratados internacionais da pauta de direitos humanos
desde o final da ditadura militar. Na Conferência Mundial de Durban conferencia mundial de
combate ao racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata partiu da comitiva
brasileira a iniciativa da inclusão da perspectiva da o discriminação por orientação sexual.
Infelizmente esta proposta não foi incorporada ao texto resultante desta conferência. (LACERDA
e VIANNA, 2004).
O segundo PNDH aprofundou os pontos referidos à orientação sexual, inclusive propondo
a emenda a Constituição Federal favorecendo a garantia do direito a livre expressão sexual e
proibição da discriminação por orientação sexual, o que na verdade ainda o foi efetivado. Os
PNDHs são programas, portanto não se impõem como leis, mas fornecem diretrizes que devem
orientar a produção de novas leis e programas governamentais (VIANNA e LACERDA, 2004).
Desta forma, eles, juntamente com as recomendações provenientes da Conferência de Durban,
geraram condições para a criação Conselho Nacional de Combate à Discriminação em 2001.
Representantes da sociedade civil que integram o Movimento Homossexual Brasileiro (hoje
LGBTT) passaram a integrar esta comissão que em 2003 criou um grupo de trabalho para a
elaboração do hoje chamado Programa Brasil sem Homofobia.
Anunciado no ano de 2004, o Programa de Combate à Violência e à Discriminação contra
GLBT e de Promoção de Cidadania Homossexual: Brasil sem Homofobia. O programa propõe
ações 53 ações destinadas a: 1) apoiar projetos de fortalecimento de instituições públicas e não-
governamentais que atuam na promoção da cidadania homossexual ou no combate à homofobia;
2) capacitar profissionais e representantes do movimento homossexual que atuam na defesa dos
direitos humanos; 3)disseminar informações sobre direitos e de promoção da autonomia
homossexual; 4) incentivar a denúncia de violações dos direitos humanos no segmento LGBTT.
(Conselho Nacional do Combate a Discriminação, 2004)
O programa define como seu objetivo “promover a cidadania de gays, lésbicas, travestis,
transgêneros e bissexuais a partir da equiparação de direitos e do combate a discriminação e
violência homofóbicas, respeitando a especificidade de cada um destes segmentos populacionais”
(CONSELHO NACIONAL DE COMBATE Á DISCRIMINAÇÃO, 2004). Para alcançar tal
objetivo, o programa propõe a articulação de Ministérios e Secretarias em âmbito federal para a
65
construção de ões nos campos da saúde, educação, trabalho, segurança, cultura, as políticas
para as mulheres, juventude e contra o racismo.
A implantação de centros de referência no combate e prevenção à homofobia com
diretrizes similares, mas com diferentes formatos segundo especificidade local, é um dos
objetivos implementados deste programa. No momento, existem 27 centros implantados nas
várias regiões do Brasil e mais outros 17 em processo de implantação
36
·. É importante ressaltar
que nem todos os centros foram instalados em ONGs do movimento social: alguns dos projetos
aprovados pela SEDH foram instalados em equipamentos públicos de nível estatal e municipal.
Esta característica, entre outras, confere heterogeneidade aos centros de referência e
possivelmente, diferentes formas de atuação e de “identificação” com sua população alvo.
3.4 O Centro de Referência em Direitos Humanos na Prevenção e no Combate a
Homofobia: Projeto Rompa o Silêncio (CRDH Rompa o Silêncio).
No ano de 2005, a Secretaria Especial de Direitos Humanos lançou seu primeiro edital
para a seleção de projetos de implementação de Centros de Referência em Direitos Humanos de
Combate e Prevenção à Homofobia em todo o Brasil. com um histórico de acolhimento de
denúncias de violações dos direitos humanos de gays, lésbicas, bissexuais, transexuais e travestis,
o Nuances encaminhou sua proposta de trabalho, tendo sido um dos 11 projetos que na época
foram aprovados para implementação. A assinatura do convênio entre o Nuances e a Secretaria
Especial de Direitos Humanos da Presidência da República se deu no ano de 2006, ano de
lançamento do projeto. Este convênio foi renovado no ano de 2007 e, no final de 2008, recebeu
um aditamento deste convênio por mais seis meses quando em junho de 2009 foram encerradas
as atividades do Centro de Referência.
O CDRH Rompa o Silêncio teve como objetivos combater as discriminações e violências
de cunho homofóbico e heterossexista, bem como a busca da equiparação de direitos para a
população LGBTT. Para tanto, desenvolvemos varias ações, tais como: o acolhimento e
encaminhamento das denúncias; o oferecimento de orientação, através assistência jurídica e
36
Dados retirados de www.presidencia.gov.br/sedh
66
psicossocial; a divulgação de material informativo sobre direitos e lugares onde realizar
denúncias, bem como oferecer cursos de formação em Direitos Humanos e Diversidade Sexual
para atores do direito e da saúde.
Na busca de maior sustentabilidade às ações promovidas pelo projeto, foi imprescindível
reunir esforços na formação e articulação de redes institucionais de mútuo apoio. Para tanto, foi
buscada a cooperação política e técno-científica em instituições do poder público, universidades e
organizações da sociedade civil locais. No lançamento do projeto, no ano de 2006, foi firmado
protocolo de intenções com nove instituições: a Associação de Travestis e Transexuais do Rio
Grande do Sul Igualdade, a Associação de juízes do Rio Grande do Sul AJURIS, a Secretaria
Municipal de Direitos Humanos e Segurança Pública da Prefeitura Municipal de Porto Alegre, a
Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembléia legislativa do RS, O Ministério
Público do Trabalho (Procuradoria Regional do Trabalho da Região), a UNISC (Universidade
de Santa Cruz do Sul), a UNISINOS (Universidade do Vale do Rio dos Sinos) e o Instituto de
Acesso à Justiça (IAJ).
O CDRH contou com a atuação de ativistas do Nuances, profissionais do direito,
psicologia e serviço social, bem como estagiários de direito e psicologia. Procuramos trabalhar
de forma a integrar os campos disciplinares que estão envolvidos em nossa interveão (direito,
psicologia, serviço social, ativismo) de forma interdisciplinar, no qual cada campo esta imbricado
ao outro no momento da intervenção. Para além da interdisciplinaridade, foi sempre uma
preocupação do grupo problematizar as implicações destes campos disciplinares tanto na
produção da homossexualidade como desvio, quanto como uma marca indelével de
“vulnerabilidade”. Desta forma, acreditamos que cada um de nós era capaz de acolher uma
denúncia, o que na maioria das vezes fazíamos em conjunto. É importante também ressaltar que,
neste processo que envolvia tomada de decisões e atitudes, o usuário do serviço contribuía na
busca de soluções de seu caso.
Outra grande preocupação era a de tomar cada intervenção não como um caso isolado e
individual. Nas palavras de Golin, presidente do nuances:
67
O que se objetiva é, dando atenção às demandas individuais, compreender melhor a homofobia
em suas manifestações públicas e privadas, de modo a provocar respostas mais condizentes, maduras e
menos preconceituosas por parte dos órgãos estatais e das instituições privadas(GOLIN, 2007, P. 9)
Entre muitos, alguns dos resultados concretos obtidos nesta intervenção que se pode citar
foram duas capacitações para estudantes de direito e das áreas da saúde. Contamos também com
a produção de duas publicações: o Guia de Direitos Humanos, e a coletânea de artigos
“Rompendo o Silêncio: Homofobia e Heterossexismo na Sociedade Contemporânea”
37
. Talvez
o mais importante, foram acolhidas diversas denúncias e produzido um banco de dados contendo
o perfil dos/as usuários/as e das discriminações sofridas, o que certamente poderá servir de
subsídio tanto para pesquisas futuras quanto para a elaboração de políticas e programas voltados
ao combate das desigualdades, da homofobia e do heterossexismo.
Como esta pesquisa refere-se às mulheres que acessaram o CDRH Rompa o Silêncio
gostaria de apresentar aqui alguns dados quantitativos recolhidos em nosso trabalho a cerca do
perfil destas usuárias, as demandas recebidas, bem como das formas de discriminação e violência
sofridas. Ressalto, no entanto, que os dados que apresento aqui se referem ao período de vigência
de 2007. Estes dados serão importantes, também, como forma de acrescentar as análises das
trajetórias de vida das participantes da pesquisa.
No ano de 2007, os dados são referentes a 75 homens e mulheres que responderam a ficha
de atendimento do CDRH Rompa o Silêncio
38
. Destes, 25.3% referiam-se a casos de mulheres
homo ou bissexuais. Apesar do percentual aparentemente baixo, se compararmos este dado aos
obtidos em 2006, no qual as mulheres homo e bissexuais perfaziam um total de 19% da amostra,
percebemos que existe um crescimento. Este dado, portanto, pode nos revelar diferenças no
acesso entre homens e mulheres, o que pode estar relacionado a diversos fatores, como estigmas
relacionados as desigualdades de gênero (POCAHY, 2007) e mesmo uma menor identificação
do grupo nuances ao universo de mulheres homo e bissexuais. No entanto, é possível também
perceber que o acesso das mulheres vem se consolidando.
37
POCAHY, Fernando A. (org). Rompendo o Silêncio: homofobia e heterossexismo na sociedade
contemporânea.Porto Alegre, Nuances, 2007.
38
Nem todos os casos atendidos puderam ser contabilizados na amostra de 2007-2008, basicamente porque
em alguns casos não foi possível a obtenção dos dados ou por que a denúncia e a orientação foram feitas por via
eletrônica (email) ou telefônica, o que impossibilitou o contato direto com a/o usuário/a, ou porque a/o usuário/a se
recusasse a responder a ficha, preferindo manter-se anônimo/a.
68
Quanto ao local de moradia, 71,4% das mulheres eram residentes em Porto Alegre, outras
19% eram residentes na Grande Porto Alegre e ainda 9,5% residiam em cidades fora da região
metropolitana.
No quesito faixa etária, 47,4% das mulheres estavam na faixa entre os 20 e 30 anos,
seguido pelas de 15 a 20 anos, que perfaziam um total de 21,1%, as mulheres com idade entre 30
e 40 anos perfizeram um total de 15,8%; o mesmo percentual foi encontrado para as mulheres
com idade superior a 40 anos. Nenhuma mulher com mais de 45 anos procurou o serviço, o que
desde já indica uma marca geracional nas possibilidades de levar a cabo uma denúncia.
Em relação à remuneração das usuárias, os dados apontam para desafios por vir na
obtenção de acesso à justiça as mulheres com renda inferior a 1 salário nimo. 31,3 % das
mulheres recebem entre 1 e 3 salários mínimos, número igualado aquelas que recebem entre 4 e 7
salários. 25% das mulheres referiram não possuir renda, ou dependerem da renda familiar (o que
pode estar relacionado às dificuldades de inserção no mundo do trabalho).
O baixo percentual para mulheres com remuneração maior que 7 salários mínimos (6,3%)
pode indicar também que estas podem buscar recursos privados para acessar seus direitos, assim
como pode indicar uma certa “proteção” ligada à remuneração no que tange à discriminação.
Obviamente este tipo de dado não tem alto poder explicativo, ele deve ser entendido somente
como mais um elemento que ajuda a construir hipóteses sobre os fatores que facilitam e ou
bloqueiam as possibilidades das mulheres homossexuais e bissexuais para fazer valer seus
69
direitos, ou mesmo para acessar este tipo de serviço marcado características bastante específicas
(imagem pública da ong, local, características de seus funcionamento) .
Aos dados relacionados à remuneração podemos adicionar aqueles referentes à
escolarização. Podemos observar no gráfico abaixo que o maior percentual de mulheres que
acessaram o CDRH está entre as mulheres que possuem o ensino médio completo, seguido
daquelas que possuem educação superior incompleta.
Pode-se relacionar este percentual com o fato da escolaridade ser um fator importante no
acesso à informação e à compreensão das possibilidades de ter acesso aos direitos associados à
cidadania. O baixo percentual encontrado de mulheres com ensino fundamental completo e
incompleto demonstra por outro lado que a baixa escolaridade pode se constituir em um bloqueio
na busca de fazer respeitar os direitos pelas mesmas razões indicadas acima. Isto pode estar
associado a diversos fatores que não poderiam ser especificados neste estudo. Entretanto, pode-se
inferir que entre eles estão às dificuldades no acesso a informações sobre direitos e, acima de
tudo, a dificuldade das instituições em alcançar tais sujeitos.
O gráfico abaixo demonstra o perfil auto-atribuído de identidade etno-racial das mulheres
que acessaram o centro no ano de 2007. Chama a atenção o alto percentual de mulheres que se
auto-declararam brancas, em relação aquelas que se auto declararam negras ou pardas. Se
inclusos todos os sujeitos que acessaram o CDRH na vigência de 2007, encontramos ainda um
70
alto percentual de pessoas que se auto-delcararam brancas (70,4%). Percebemos aqui o quanto
estigmas ligados a raça e a etnia em sua associação com o gênero, se colocam como fatores
importantes e que dificultam o acesso a justiça destas mulheres.
Quanto à identidade sexual, a ficha oferecia uma série de categorias identitárias para as
quais se solicitava que os sujeitos apontassem com qual delas mais se auto-identificava. Foram
oferecidas as categorias demonstradas no gráfico abaixo, sendo que o espaço outro” foi dado
como possibilidade para quaisquer formas identitárias que não se apresentassem na ficha
39
Não
raro, este era um momento de reflexão e dúvidas, tanto geradas por dificuldades em
enquadrarem-se em uma categoria quando poderiam se identificar também com outra, quanto
pelo fato de não compreenderem a diferença entre algumas como, por exemplo, entre denominar-
se gay ou homossexual, ou gay ou lésbica. No entanto, cada uma das categorias poderia expressar
diferentes posicionamentos dos sujeitos diante de sua sexualidade bem como diferentes estilos e
formas de se expressarem no mundo.
39
È importante ressaltar que as “identidades” expressas na ficha não são consideradas nem por
este trabalho, nem pelo grupo nuances, como “identidades” que expressariam uma essência interna a um
sujeito ou grupo de sujeitos. Elas são, antes, formas culturalmente sugeridas aos sujeitos, criadas e
incorporadas em intensa negociação entre os sujeitos ou grupos e o campo social e histórico no qual
estão inseridos. Desta forma, estão em constante processo de elaboração e reelaboração.
71
Assim encontramos que a maioria das mulheres (66,7%) se auto-identificaram como
lésbicas; 14,3% como homossexual, 14,3% como bissexual e 4,8 % como gay. É possível que o
elevado percentual de mulheres que se identifiquem como lésbicas se relacione com o
crescimento e a maior visibilidade do movimento de mulheres lésbicas no Brasil
40
Quanto ao tipo de consulta, fazíamos uma diferenciação a respeito de demandas
relacionadas às discriminações e violências propriamente ditas e outras relacionadas à busca de
informações, que chamávamos “consulta para a cidadania”, que totalizaram 15,4% das consultas
e relacionavam-se basicamente a consultas sobre direito previdenciário e sobre como proceder
para fazer registro de união estável com a companheira.
Entretanto, podemos perceber que uma parcela muito significativa (84,6 %) das demandas
esta vinculada a discriminação e outras formas de violência. Dentro destas, a maior parcela dos
40
Para saber mais sobre o Movimento de mulheres lésbicas no Brasil ver Almeida, Gláucia (2005)
72
casos (42,5%) envolviam a violência psicológica/moral, seguido de 30,3% a agressão verbal e 15,
2% a agressão física. Estes dados podem se tornar mais significativos ao voltarmos nosso olhar
para os locais onde estas violências ocorreram.
No gráfico acima, podemos perceber que um número significativo das denúncias referiu-
se a situações vividas no ambiente de trabalho e na própria residência das usuárias e estas se
revestiam de formas de assédio moral no trabalho, uma violência psíquica que transforma o
ambiente de trabalho em um tormento cotidiano, mas nem sempre explicitado na forma de
agressão verbal. Na residência, ao contrário, a agressão verbal, física e ameaças por parte de
vizinhos/as e família, por vezes obrigou as denunciantes a trocar de local de moradia.
3.5 Sujeitos da pesquisa: as mulheres
Após ter feito um percurso o tão breve sobre a emergência no movimento homossexual
brasileiro, hoje LGBT, apresentar o grupo nuances e traçar um breve panorama do Programa
Brasil sem Homofobia do Centro de Referência, venho então apresentar as participantes desta
pesquisa, nove mulheres que buscaram aulio no centro de referência do grupo nuances.
Ao anunciar, de forma genérica, os sujeitos inclusos nesta pesquisa - as “mulheres -
considero ser importante refletir acerca da própria categoria „mulheres”. Afinal, o que quero eu
dizer com o termo “mulher”? Será esta categoria tão auto-evidente? Buscando esta reflexão,
procuro também evidenciar a forma plástica com a qual compreendo que os sujeitos constroem
suas identidades de gênero, na arena da disputa por verdades onde concorrem diversos discursos
73
sobre o gênero, o corpo e a sexualidade. No antagonismo das lutas, regimes de verdade que
estabelecem a produção e a circulação de enunciados sobre o sentido do termo „mulheres‟.
Em momento anterior desta escrita, anunciei que minhas entrevistadas seriam “mulheres
biológicas”, como forma de diferenciá-las das mulheres transexuais
41
, que não fazem parte do
escopo desta pesquisa. Para o/a leitor/a desavisado/a, falar em mulheres biológicas pode parecer
redundância. No entanto, fazer esta ressalva, neste ponto, é importante, pois apesar de abordar as
mulheres como uma categoria, compreendo gênero a partir de Butler como o “efeito de uma
prática reguladora” (BUTLER, 2003 p.57); ou seja, a univocidade do sexo, sua coerência interna
e estrutura binária são sempre consideradas como ficções reguladoras que consolidam e
naturalizam regimes de poder convergentes de opressão masculina e heterossexista. A partir deste
ponto de vista, compreendo também que a junção dos enunciados “mulheres” e “biologia” faz
também parte de um regime de verdades que faz ver na anatomia o gênero, e no gênero, a
anatomia
42
.
Segundo Haraway (2004) o conceito de gênero, em seu sentido político e crítico, foi
progressivamente articulado e teorizado no contexto dos movimentos de mulheres e feministas do
pós-guerra. Para a autora, embora se possam encontrar diferenciações importantes em seus
desenvolvimentos posteriores dentro da militância e da teoria feminista, as conceituações da
categoria gênero modernas podem ser vistas como tributárias da observação de Simone de
Beauvoir em seu livro O Segundo Sexo” qual seja, de que “não se nasce mulher”. A frase,
certamente fazia alusão à idéia do gênero como uma construção social e histórica baseada nas
diferenças historicamente percebidas entre os sexos. Neste contexto, a palavra gênero enfatizava
a historicidade e contingência das identidades homem e mulher e não se refere a um ou outro
sexo, mas as relações que são socialmente construídas entre e sobre eles. Assim, ela também
possibilitava a contestação dos regimes de poder e hierarquia entre os sexos visto que, ao
41
É importante frisar que não se trata de buscar dizer que as mulheres transexuais não são mulheres, mas sim
estabelecer um recorte de pesquisa, uma vez que abrir o leque das entrevistadas para aquelas que se situam no campo
da transexualidade abriria por demais as possibilidades de análise.
42
Embora possamos dizer que este jogo de verdades possa estar sendo, nos dias de hoje, alvo de contestação
tanto na pesquisa de cunho pós estruturalista no campo do gênero e sexualidade quanto pelos próprios sujeitos, como
acontece, por exemplo, no caso dos sujeitos transsexuais (onde a identidade de gênero se descola da matriz biológica,
ainda que haja uma espécie de reivindicação do estabelecimento da coerência entre corpo biológico e identidade de
gênero através do imperativo da cirurgia de trasngenitalização) e das travestis onde a identidade de gênero se descola
do corpo biológico.
74
descolar se a identidade de gênero de um determinismo biológico foi possível também questionar
a presumida universalidade e supremacia dos homens e a opressão das mulheres. Assim, o
conceito tornou-se ferramenta chave na luta política feminista. Como enfatiza Nicholson (2000)
as feministas do final da década de 60 construíram o conceito de gênero (como uma construção
social) como forma de opor a maneira dominante das sociedades ocidentais de perceber a
distinção entre masculino e feminino como causadas por fatos biológicos. O conceito de “sexo”
como uma base biológica que determinava diferenças culturais e de poder entre homens e
mulheres colaborava, portanto, com uma idéia de imutabilidade das diferenças que desmobilizava
tentativas de mudanças. Pode-se perceber, assim, a importância estratégica da construção do
conceito de gênero na luta pelas assimetrias nas relações entre homens e mulheres.
Entretanto, segundo Nicholson (2000), o termo “gênero” tem sido usado no contexto do
movimento de mulheres e feministas de maneira um tanto contraditória. Por um lado, ele é usado
em oposição ao sexo como forma de descrever o que é socialmente construído, portanto, pensado
como um atributo da personalidade e do comportamento em oposição ao corpo. Por outro, o
termo é usado não somente como forma de contextualizar aquilo que é socialmente construído
(personalidade), mas também as formas como a diferença sexual é percebida: ou seja, como o
corpo é compreendido e significado na cultura. Esta segunda forma de ver o gênero, segundo ela,
é própria da concepção de Scott (1995), que estabelece que o gênero é a “organização social da
diferença sexual”; no entanto, isso o significa que ele produza diferenças físicas ou biológicas
nos corpos de homens e mulheres, mas lhe atribui significados. Também podemos aproximar esta
segunda concepção do sistema sexo/gênero teorizado por Rubin (1993) onde esta afirma ser este
o “conjunto de disposições pela qual uma sociedade transforma a sexualidade biológica em
produtos da atividade humana” (Rubin, 1993, p. 97).
A concepção do gênero como uma construção social representou um ganho importante
para o movimento feminista ao possibilitar um distanciamento do determinismo biológico para
explicação das diferenças entre homens e mulheres, vigente a então. Entretanto, Nicholson
(2000) argumenta que a teoria feminista não deixou de pensar o sexo” (corpo) como um apriori
cultural, ou seja, algo que fica fora da cultura e da história e, portanto, não implicado em relações
de poder.
75
“... o interessante é que o “gênero”, naquela época não era visto pela maioria como um substituto
para “sexo”, mas como um meio de minar as pretensões de abrangência do “sexo”. A maioria das feministas
do final dos anos 60 e inicio dos anos 70 aceitaram a premissa da existência de femenos biológicos reais a
diferenciar mulheres de homens (...) Assim, o conceito de gênero” foi introduzido para suplementar o de
“sexo” , não para substituí-lo. Mais do que isso, , não o nero” não era visto como um substituto de
“sexo” como também “sexo parecia essencial a elaboração do próprio conceito de nero”. (Nicholson,
2000, p.11)
Desta forma, ao tentar desvincular-se da biologia, a teoria feminista da época acabou por
restabelecer um lugar para o “sexo” (corpo) fora das relações de poder e da história; ele ficou
sendo o “lugar”, um “cabide” “investido” pelo gênero. O “gênero” estaria para a cultura como o
“sexo” para a natureza (BUTLER, 2003). Desta forma, um sistema binário não deixa de ser
reinvestido, pois se o sexo não deixa de ser a base na qual se constrói o “gênero”, então “sexo”
nunca deixou de ser sinônimo de “gênero” e o “gênero” nunca deixou de ser sinônimo de “sexo”.
Pois, como questiona Butler (2003) “se o sexo é, ele próprio, uma categoria tomada em seu
gênero, o faz sentido definir o gênero como uma interpretação cultural do sexo” (BUTLER,
2003).
Laqueur (2001) nos fornece condições de questionar este estatuto de apriori histórico e
cultural dado ao “sexo”; ou, talvez fosse melhor definir, o “sexo” como “dado”. Para ele, a idéia
de que existem dois sexos anatomicamente diferentes em que distinguem dois tipos diferentes de
sujeitos, machos ou fêmeas, nasce somente a partir do sec. XVIII; antes disso vigorava a idéia do
sexo uno, onde os órgãos sexuais da mulher eram entendidos pelo modelo do dos homens, apenas
de forma invertida. Esta última idéia era tributária ao modelo grego, em que as “diferenças”
morfológicas hoje percebidas, eram concebidas enquanto “semelhanças”, ou seja, homens e
mulheres não eram concebidos como dois corpos biologicamente diferenciados, embora o gênero
se apresentasse em duas possibilidades. A distinção entre homem e mulher não era então
percebida em termos de uma natureza intrínseca, mas em grau de perfeição, onde a mulher ficava
em desvantagem.
É a partir do século XVIII que a idéia de dois corpos (masculino e feminino) vistos como
pertencentes a naturezas e morfologias distintas passa a progressivamente emergir no cenário
ocidental. A partir deste momento, o olhar sobre a anatomia, o entendimento de que havia duas
genitálias morfológica e fisiologicamente distintas passa a determinar a que gênero cada
indivíduo pertence. Assim que, apesar da tentativa de separar-se da temida natureza”, boa
parte da teoria feminista acabou por invocar os mesmos binarismos que mantinham intactas as
76
dicotomias entre corpo/mente, sexo/gênero, natureza/cultura. Mas é também no interior do
próprio feminismo, através de teóricas aliadas ao pensamento pós-estruturalista e as idéias
apresentadas por Foucault, que uma crítica a pré-discursividade do sexo (ou do sexo/natureza
como um apriori histórico) emerge. Estes estudos, juntamente com o de Laqueur (2001),
demonstraram que o próprio sexo tem uma história, que ele próprio é resultado de uma
discursividade.
Para Judith Butler (2003) o sexo como pré-discursivo não deixa também de ser efeito de
uma norma regulatória. Para ela, não identidade de gênero ou “sexo” que sejam anteriores a
cultura; “não identidade de gênero por traz das expressões de gênero” (BUTLER, 2003, p.48).
Decorre daí que o gênero é o meio discursivo através do qual uma “natureza sexuada”, um “sexo-
real” se produz. E lança a questão: aceitando-se o argumento da imutabilidade do sexo e da
construção do gênero, “porque deveria-se supor que a construção de homens aplique-se
exclusivamente a corpos masculinos?” (BUTLER, 2003, p.24). Para ela o construcionismo social,
desta forma, o conseguiu problematizar as relações de poder que constituem corpos-
identidades.
Desta forma, o gênero não é simplesmente uma construção social por sobre o sexo, mas
sim uma norma cujos efeitos performáticos produzem tanto a estabilidade do sexo quanto a
coerência entre sexo-nero-desejo. São estas mesmas normas que acabam por materializar a
diferença sexual e que consolidam o imperativo de que, por exemplo, um corpo, visto como
feminino, deveria expressar o gênero “mulher” e que teria uma predisposição “natural” a se
interessar sexualmente pelo sexo oposto.
Ao tratar o gênero como uma norma que opera sobre os corpos que supostamente
descreve, Butler (2003) inverte a questão: não é o sexo quem dita o gênero, mas a própria
reiteração da norma que articula gênero e heterossexualidade que produz efeitos que se
materializam nos corpos e que determinam trajetórias sexuadas. Estas normas operam de forma
performática, em um processo temporal, que opera através de sua constante citação e reiteração.
E um dos efeitos desta reiteração é o de dissimular ou ocultar as normas as quais reitera,
produzindo um efeito de fronteira, naturalidade e fixidez. Assim, tornar-se homem ou mulher não
é apenas um fato dado, mas sim uma construção ideal materializada através do tempo”
(BUTLER, 2003, p.18). Que um homem deva se interessar por uma mulher, também.
77
Ao mesmo tempo, falar em performatividade não significa dizer que um sujeito, em um
ato deliberado, assuma uma ou outra identidade sexuada. Nem mesmo um ato singular. Este “eu”
não se sustenta fora da matriz de normas éticas e dos enquadramentos morais de sua época, que
muitas vezes são conflitantes. “De uma forma importante, esta matriz é também a condição de
emergência deste eu”, mesmo que este eu não seja totalmente induzido por estas normas.”
(BUTLER, 2005b, p. 7). Assim, o sujeito nasce em meio a uma rede de poderes que o constrange.
Retomando o início deste tópico, ao chamar as mulheres desta pesquisa como “mulheres
biológicas”, reconheço que estou de certa forma, reiterando uma norma: a de que o termo mulher
deveria naturalmente decorrer de um corpo visto como feminino. Mas a norma falha, e por vezes
no processo de sua reiteração, que não necessariamente significa repetição, volta-se contra si e
expõe seu caráter forjado. Desta forma, diferenciar “mulheres biológicas” de “mulheres não-
biológicas” é, ao mesmo tempo, citar uma norma e perverte-la. Necessitar explicitar que as
mulheres desta pesquisa são “biológicassignifica dizer “existem mulheres que não o são”; o
mesmo vale ao dizer que existem homens que não são biológicos. Para manter-me fiel a este
princípio que para mim tomou a forma de um dilema ético - foi necessário, por exemplo,
excluir desta pesquisa um homem que biológica ou morfologicamente era uma “mulher”, apesar
de primeiramente, -lo convidado a participar e de ele aceito. Mas como eu poderia, em uma
pesquisa que trata de trajetória de vida de “mulheres” ter incluído alguém que não se identifica
enquanto tal? Talvez esta seja uma boa questão para se pensar fora dos domínios deste trabalho, e
talvez fique como uma boa questão para a/o leitora/o.
3.5.1 Critérios e forma de seleção das entrevistadas
As mulheres foram selecionadas a partir de uma listagem das mulheres que haviam
acessado o Centro de Referência em 2007. A partir disto foi feito contato telefônico (aquelas que
dispunham), por email (aquelas que o dispunham de telefone atualizado, mas que dispunham
de endereço eletrônico) e também, quando não era possível fazer contato telefônico ou por email,
por alguma entidade ou pessoa de referência. Após algumas semanas de tentativas, nove
mulheres aceitaram participar da pesquisa.
78
Tinha por objetivo alcançar mulheres com diferentes perfis de escolaridade, remuneração,
cor e idade. Apesar desta prerrogativa, mulheres com escolaridade abaixo do ensino médio, ou
que se declararam negras ou pardas, bem como as com idade inferior a vinte anos acabaram por
não fazer parte desta pesquisa, basicamente pela dificuldade em contatá-las (ou não dispunham
de telefone ou email, ou o foi possível estabelecer contato através da pessoa ou entidade de
referência). È importante frisar, no entanto, que mulheres com escolaridade abaixo do ensino
médio completo totalizaram 10.6% do total de mulheres que acessaram o serviço naquele
período, sendo que o restante tinha escolaridade igual ou acima desta faixa. Menos de 30% das
mulheres que responderam a ficha de entrada ao centro declararam-se pardas ou negras, o
restante 76% declarou-se branca. Os dados relativos à faixa etária das usuárias, infelizmente, não
haviam sido compilados na época, porém em uma pesquisa nas fichas das usuárias, verifiquei que
a faixa de maior incidência estava entre os 20 e 40 anos como foi apresentado nos gráficos
anteriormente apresentados. Apesar de não ter conseguido uma amostra apresentando maior
diversidade nos quesitos que acima mencionei, creio que ela represente o perfil de mulheres que
mais acessaram o centro. Resta-nos questionarmos as razões pelas quais as mulheres com nível
de escolaridade inferior ao ensino médio completo e que se auto-identificam como negras ou
pardas acessaram o Centro de Referência em menor número; uma questão que fica para pesquisas
posteriores.
3.5.2 Implicações éticas na apresentação das participantes
Nesta seção, prosseguirei com uma apresentação das participantes desta pesquisa,
procurando relatar as impressões que tive de cada uma durante a entrevista e também relatando
de forma breve as razões que as levaram a buscar orientação no Centro de Referência.
Antes de proceder à apresentação, cabe ressaltar que a pesquisa foi aprovada pelo Comitê
de Ética em Pesquisa do Instituto de Psicologia da UFRGS e que as participantes assinaram o
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Os nomes das participantes, bem como outros que
aparecem em seus relatos foram substituídos. Referências aos locais de trabalho, moradia,
instituições de ensino ou, quando fosse o caso, o local onde sofreram discriminação foram feitas
79
procurando manter o máximo de sigilo possível quanto a nomes e localidades, mas mantendo
algumas características gerais, quando acreditava ser importante para caracterizar o contexto
social no qual estão inseridas as participantes e, quando fosse o caso, o contexto no qual ocorreu
a discriminação. Este último ponto parece importante, no sentido de que os contextos em foram
vivenciadas as discriminações possam determinar diferentes impactos na vida das participantes,
nas formas de percepção do episódio de discriminação e no tipo de resposta dada ao episódio.
Desta forma, chega a hora de apresentar as participantes desta pesquisa.
3.5.3 Apresentação das participantes.
Participante: Vanessa.
Vanessa é uma jovem de 23 anos, moradora de um bairro classe média de Porto Alegre. A
impressão que me causa é a de Vanessa é uma “moça”, no sentido romântico da palavra. Sua
aparência impecável e tímida logo me deu a impressão que estava ali diante de uma mulher que,
de certa forma, exprimia os padrões de feminilidade de uma “moça de família”: delicadeza,
fragilidade, discrição, beleza, timidez faziam parte daquela figura de mulher que ora se
apresentava. Seus olhos claros, sua pele branca também de alguma forma lhe davam uma aura
angelical. A própria forma como Vanessa se expressa e se descreve coincide com a impressão
que me causa:
Até eu começar a namorar a Paula, sempre fui.... tinha os cabelos compridos, andava
de saltinho sabe a minha auto-imagem sempre foi muito feminina... para os outros também sabe,
para as outras pessoas”(VANESSA).
Atualmente Vanessa vive com sua mãe e suas irmãs mais novas. Os pais estão separados
pouco tempo e o pai reside em outro lugar. Vanessa não esta trabalhando seu primeiro e
único emprego foi como recepcionista em uma estética, pouco antes de prestar vestibular e
tornar-se estudante de psicologia. Segundo seu relato, Paula (nome fictício) foi sua primeira e
única namorada mulher; antes disso teve outros namorados, mas este parece ter sido seu
relacionamento mais duradouro. Por conta do relacionamento que teve com Paula, Vanessa
passou a mais freqüentemente a questionar suas posições e suas preferências sexuais, o que
muitas vezes a levou a questionar sua identidade
80
“. .. bom, me sinto atraída mesmo por ela... Mas foi uma coisa que não foi... foi aos
poucos assim. Eu acho que até por isso me assusta um pouco. Ah tá, agora eu gosto muito de
mulheres... Antes não era assim. Parece que é como se eu não me reconhecesse, sabe? não me
reconheço. As vezes eu paro e me lembro de mim no passado e eu tenho sabe, sou eu? Quem eu
sou?” (VANESSA)
Decidiu realizar a entrevista na sala disponibilizada por meu orientador na UFRGS; o
ambiente universitário provavelmente a faz sentir mais segura, o que ela expressa em muitos
momentos da entrevista: “... aqui na faculdade e também em outros ambientes da universidade a
gente até tinha mais liberdade” (VANESSA). Entretanto, foi neste ambiente onde se sentia mais
livre e, de certa forma, protegida em que ocorreu o fato que a levou ela e sua namorada- a
procurarem o nuances e serem atendidas pelo CRDH. O ocorrido, em suas palavras:
Eu e a Paula namoramos por bastante tempo e bom, aqui nesse ambiente da
Universidade, a gente estava andando bastante de mãos dadas ou abraçadas. E um dia no
“Restaurante Universitário a gente estava na fila e estávamos meio abraçadas, assim com uns
carinhos. Sei lá eu acho que eu tinha falado alguma coisa no ouvido dela, não sei, alguma coisa
assim. E daí o segurança do restaurante veio nos abordar, dizer que a gente estava
desrespeitando... sei lá, não sei exatamente agora o que ele falou. E então, primeiro eu levei
um choque, nem soube assim responder para ele. Então logo depois a gente já tinha entrado, a
gente foi até ali onde tem o setor no restaurante pra fazer uma reclamação. Daí quando a gente
estava lá ele entrou na sala, falou várias coisas, nos ofendendo, dizendo que... eu respondi no
final para ele, ele estava... foi uma ameaça assim... falou “ah, depois a gente vai resolver isso”.
(Vanessa)
Vanessa e sua namorada chegaram ao nuances, aconselhadas por colegas de faculdade -
que já conheciam a entidade por desenvolverem pesquisas relacionadas ao grupo - e aconselhadas
por professores da universidade, a quem pediram providencias. Quando chegaram ao nuances
haviam trilhado um bom percurso a fim de encaminhar a queixa contra o comportamento do
segurança (funcionário da universidade) e apurar responsabilidades: uma reclamação feita junto à
chefia do restaurante universitário; a apresentação de queixa junto à universidade; a realização de
boletim de ocorrência junto à delegacia da mulher.
Participante: Simone
Simone é uma mulher branca, de 30 anos, moradora de um bairro de classe operária de
uma importante cidade da Grande Porto Alegre, onde nasceu. Simone mora com sua companheira
e seu irmão em uma casa simples de alvenaria, pertencente a sua família. O pai é falecido e,
81
segundo ela, nunca residiu com sua mãe, Possui o ensino médio completo, que concluiu em um
programa de Educação de Jovens e Adultos em uma escola pública, em seus vinte e poucos
anos. Já trabalhou de “carteira assinada”, mas hoje em dia vive de pequenos serviços que oferece:
é tatuadora, artesã, faz faxina. Nas suas palavras:
Eu não gosto de ter que estar naquela rotina de ser submissa, alguém te mandando.
Então eu tento driblar isso.” (SIMONE)
Nosso primeiro contato foi por telefone. Nesta primeira impressão, Simone se mostrou
bastante solícita em interessada em contribuir para com a pesquisa, dizendo achar que o tema é
importante e merecedor de maior atenção. Combinamos de realizar a entrevista em sua
residência. Simone veste-se de forma bastante despojada: camiseta, uma saia simples e chinelos.
Em suas pernas e braços várias tatuagens. Simone se diz punk embora como ela mesmo diga o
adote totalmente “o visual”. Outra de suas referências é o “anarco-feminismo” que ela explica
como sendo
...O feminismo junto com o anarquismo que é a medida contra o governo. ..O feminismo
é a parte da libertação da mulher contra o patriarcado, Estado... E o anarquismo também... E o
feminismo que eu luto não é aquele feminismo que execra os homens .... a gente quer a
libertação, quer a emancipação da mulher, mas não tirando o homem disso, porque acaba sendo
preconceito também”. (SIMONE)
Estas características revelaram uma auto-definição como contestadora e questionadora,
que foi se revelando ainda mais durante a entrevista. Patrícia (companheira de Simone) foi sua
primeira relação homossexual, antes disso relacionava-se exclusivamente com homens embora,
como ela mesma diz eu nunca tive preconceito contra isso. Freqüentava as Paradas, mas nunca
tinha tido vontade de ficar com uma mulher”. Revelou não ter tido muitos dilemas ao assumir sua
relação com Patrícia: “eu cheguei abalando”. Diz ser lésbica, mas encara sua sexualidade com
certo sentido de fluidez.
Junto com sua companheira, procurou o nuances por sentir-se discriminada por sua ex-
cunhada que, segundo ela, após Simone ter assumido sua relação com Patrícia, passou a não
permitir que ela convivesse com a sobrinha de 7 anos, problema que, a o momento da
entrevista, permanecia. O estopim teria sido um email que a ex-cunhada teria enviado ao irmão
de Simone, onde aquela proferia ofensas contra Simone e sua companheira. Havia registrado
ocorrência policial antes de chegar ao nuances.
82
Participantes: Heloisa e Vivian
Decidi-me por apresentar Heloisa e Vivian juntas não somente por formarem um casal,
mas por terem assim se apresentado para a entrevista, realizado-a juntas. As duas - Heloisa uma
mulher clara de origem alemã e Vivian, clara e longos cabelos loiros - moram juntas em um
bairro da zona central de Porto Alegre. Heloisa é professora de educação física e Vivian é técnica
em nutrição e trabalha como secretária.
Heloisa vem de uma cidade de colonização alemã no interior do Rio Grande do Sul,
cidade que deixou quando tinha 15 anos por determinação da família, que tinha intenção de
separá-la da então namorada. Vivian vem de uma cidade da região metropolitana de Porto
Alegre. Ela e suas irmãs foram criadas pelos avôs maternos, sua mãe faleceu quando tinha nove
anos. Deixou a casa dos avôs para ir viver com Heloisa, que sua família não permitia que se
relacionasse com mulheres.
O contato telefônico foi feito com Heloisa, que mostrou-se bastante interessada em
participar da pesquisa e desde o principio demonstrou a vontade que eu entrevistasse também
Vivian. No entanto, a presença de Vivian chegou como uma surpresa para mim: havia,
primeiramente, combinado a entrevista com Heloisa. Afinal, havia sido ela quem tinha ido buscar
orientação no nuances, portanto, era o contato de Heloisa que eu dispunha. Mesmo que ela não
houvesse ido até o nuances havia cogitado a possibilidade de entrevistar Vivian, afinal de contas
a razão pela qual Heloisa nos procurou tinha sido uma discriminação que as duas experimentaram
enquanto um “casal”.
Por decisão de Heloisa, acabamos por nos encontrarmos em um café no centro da cidade.
Eu cheguei primeiro; aos poucos, fui avistando um casal de os dadas de longe e pensei tratar-
se de um casal heterossexual. À medida que se aproximavam, com certa surpresa, percebi que se
tratava de Heloisa e Vivian. Minha surpresa deveu-se não somente por eu não estar esperando um
casal, mas pelo fato de ter achado que se tratava de um casal heterossexual. Heloisa não se utiliza
dos padrões de feminilidade ao se vestir: usa cabelos bem curtos, já bem grisalhos, usa tênis,
abrigo e camiseta, aproximando-se mais de um estilo mais masculino da “fancha”,
“caminhoneira”, como se costuma falar na gíria lésbica. Vivian se apresenta em um padrão
83
mais próximo do feminino tradicional: longos cabelos loiros, calça jeans justa, bota de salto,
brincos, pulseiras. O casal aproxima-se do estilo “fancha‟ e “lady”.
Ao longo da entrevista percebi o quanto a configuração “casal” tinha importância e fazia
sentido para as duas entrevistadas. Uma dos primeiros assuntos que conversamos foi a respeito da
possibilidade da oficialização de sua união com um registro de união estável. Heloisa era uma
“gentle(wo)man” : preocupava-se em deixar Vivian a vontade, em dar espaço de fala a
companheira, tratava-a por apelidos carinhosos como “bebê”. Percebi que a conjugalidade era
bastante valorizada, em uma forma a reiteração de uma lógica romântica.
Outro fator que observei foi à grande diferença de idade entre as duas: Heloisa tinha 42 e
Vivian, 19. Para além dos números, esta diferença aparecia em sua relação como casal. Havia
uma relação de cuidado de Heloisa para com Vivian, um cuidado por vezes quase parental
expresso, por exemplo, na preocupação de Heloisa em não “judiar” da companheira: tratá-la com
respeito, ser fiel a ela, não fazê-la sofrer.
Apesar de apontar a importância dada ao relacionamento por ambas entrevistadas,
reconheço que existia uma outra razão para que a entrevista fosse feita ao mesmo tempo: O fato
de que o motivo que os levou a procurar o nuances foi uma discriminação vivida pelas duas
enquanto casal. A queixa relacionava-se ao proprietário do apartamento que locavam e do qual,
segundo elas, decidiram sair para evitar mais transtornos. Segundo elas, o conflito (que algumas
vezes incluiu a invasão de seu apartamento por parte do proprietário, bem como agressões
verbais) teria se iniciado quando Vívian mudou-se para o apartamento de Heloisa.
Participante: Imara
Imara é uma mulher de 44 anos, natural de uma cidade da Serra Gaúcha onde a maior
atividade econômica é a agropecuária. É caçula de uma família de 8 irmãos. É morena clara e
mora em uma área verde em um bairro da periferia de Porto Alegre, onde vive com a
companheira e o filho, menor de idade, fruto de seu casamento anterior com um homem. Tem
também uma filha, maior de idade, mas com quem não tem contato freqüente, segundo ela por
esta filha não aceitar seu relacionamento com outra mulher. Tem o ensino médio completo.
84
Imara procurou o nuances com intenção de obter auxílio em uma questão que envolvia
seu ex-marido, que vinha lhe perseguindo desde que esta se separou dele para viver com outra
mulher, ameaçando-a de tirar-lhe a guarda do filho mais novo. Segundo ela, desde que se separou
vem sendo importunada por seu ex marido, que reclama questões a cerca das visitações e da
forma como cria seu filho. Várias vezes foi chamada em tribunal para responder a cerca disto,
mas em nenhuma das vezes teve a tutela do filho contestada. Para ela a razão de todos estes
problemas com seu ex-marido reside ao fato de ela-lo deixado e decidido viver sua vida “como
queria”, ou seja, passar a se relacionar com mulheres. Ao ser perguntada se o marido alguma vez
havia explicitado este motivo, revelou alguns momentos sem muitos detalhes, mas atribuindo os
problemas ao fato do ex-marido “não se conformar, não aceitar” (IMARA) o fato de ela estar
vivendo com uma mulher.
Ela foi uma das primeiras mulheres que contatei e a primeira a ser entrevistada. No inicio
mostrou-se um pouco reticente quanto a conceder a entrevista, tendo me ligado posteriormente
aceitando a participação. Entretanto, mais tarde falou que se sentia “honrada” com o convite, ao
mesmo tempo em que sentia que tinha “uma história bonita” e que valia a pena ser ouvida. Não
quis que a entrevista fosse realizada em sua casa. Por escolha sua acabamos realizando a
entrevista em um restaurante.
Imara parecia à vontade; falou bastante. No entanto, por vezes senti que desviava de
alguns assuntos, principalmente com relação à família e seu casamento. Lembro-me que, no
encontro no nuances, havia nos dito que havia tomado uma surra de um familiar para que parasse
de jogar futebol, segundo ela “porque futebol não era coisa de mulher”. Na entrevista, embora
tivesse mencionado o fato, disse preferir não nomear a pessoa, que isto “eram coisas do passado e
que as pessoas mudam”. Talvez o quisesse ver seus familiares enquadrados; afinal de
contas, além de pesquisadora, eu ali representava algm a quem se fazia uma denúncia, por
minha ligação com o nuances, o que pode -la deixado um tanto desconfortável para exprimir
maiores detalhes. Após a entrevista disse que em casa todos sabem de sua relação com mulheres
e que todos a respeitam, embora diga que os visita pouco.
Ao falar de seu desejo por mulheres, diz sempre ter sabido que gostava delas. Notava que,
desde cedo se sentia atraída por elas, mas que nunca pode expor isto a ninguém, por medo da
discriminação. Diz que preferiu sempre esconder, tendo inclusive se casado por isso. O
85
casamento ela qualifica como “ter tomado o rumo errado”. No entanto, somente seis anos
Imara diz ter assumidolevantado sua bandeira(IMARA) como gosta de dizer. Segundo ela,
tinha-se cansado de viver para os outros e que, aos 38 anos e queria viver um pouco para si.
Participante: Odila
Odila é uma mulher de 40 anos, branca, proveniente de uma cidade de colonização ale
da região metropolitana de Porto Alegre. Mudou-se para Porto Alegre por motivo de trabalho.
Possui o ensino médio completo e trabalha em uma companhia de ônibus intermunicipais em
Porto Alegre.
Mostrou-se solicita quanto à entrevista, aceitando sem problemas. Preferiu marcar a
entrevista no seu local de trabalho, em um momento de folga. Apesar de achar que realizar a
entrevista em seu local de trabalho fosse trazer alguns inconvenientes como barulho e falta de
privacidade, concordei com sua sugestão. Ela estava uniformizada e percebi que trabalhava em
meio a muitos homens; de fato, ela me relatou que quatro mulheres realizavam a função que
exerce, as outras trabalham basicamente vendendo passagens. Mais uma vez expliquei a pesquisa
para ela, que talvez tratássemos de assuntos que ela achasse íntimos para aquele ambiente, ao que
ela respondeu que não havia problemas.
No inicio da entrevista Odila me disse queo fazia questão de falar para as pessoas que é
lésbica (como se auto-identifica), a o ser que lhe perguntassem. Mas ao longo da entrevista
percebi que escondia bastante sua orientação sexual, principalmente no ambiente do trabalho, o
que me causou certo espanto, tendo visto o lugar escolhido para a entrevista. Isto me remeteu a
idéia da homossexualidade como uma espécie de segredo. De modo geral utiliza-se de certa
forma de discrição, aproveitando-se do fato de que não se apresente fisicamente masculinizada, o
que, para ela tornaria sua orientação sexual mais evidente. Quando sua namorada a visita no
trabalho, diz para seus colegas que é uma prima”. Talvez por isso dissesse que vive em “dois
mundos”. Tendo em vista que trabalha em um ambiente predominantemente masculino e,
segundo ela, machista, a discrição e a manipulação da informação a cerca de sua sexualidade
parecem ser um recurso para ela importante para evitar a discriminação e proteger seu emprego.
86
Odila procurou o nuances por ter problemas com a proprietária do imóvel em que
morava. Segundo ela a proprietária, uma senhora idosa e que mora sozinha, vinha lhe
importunando e ofendendo em função de sua orientação sexual, inclusive cortando sua água e
colocando creolina nesta para que ela não pudesse usá-la. Diz ela que tudo começou quando sua
namorada passou a freqüentar sua casa. Antes mesmo de tomar providencias maiores, tratou de
mudar-se para outra casa e evitar mais transtornos, mas não desistiu de levar sua denuncia
adiante. Quando chegou ao nuances tinha registrado cinco ocorrências policiais contra o
comportamento da proprietária. Sua intenção era a de processar a agressora e exigir indenização
por danos morais; o que de fato foi encaminhado e para o qual obteve ganho de causa.
Participante: Cláudia
Cláudia é uma mulher branca, de 30 anos, nascida em Porto Alegre. Reside em um bairro
de classe média da mesma cidade, em um apartamento que herdou da mãe, hoje falecida, e o qual
divide com uma amiga. A entrevista foi feita em seu apartamento, uma construção ampla e antiga
e com ar de “república estudantil”: móveis já meio gastos e muitos livros espalhados.
Cláudia é professora de educação física da rede pública. Parece ter muita clareza de sua
função de educadora: o meu objetivo é que as crianças vivenciem um maior número de
oportunidades que eu possa oferecer dentro do trabalho de habilidades motoras... ganhar ou
perder não é o mais importante para mim.” (CLÁUDIA). Em suas aulas gosta de desenvolver
temas relacionados a gênero e sexualidade, temas que tem sido seu interesse desde seus tempos
de faculdade. Demonstra ter desenvoltura com estes temas e questiona a maneira como eles são
abordados na escola: “... é a velha fala de que sexualidade tem que ser discutida na sétima série
com a professora de ciências.” (CLÁUDIA) Embora, como ela mesma mencione, os temas de
gênero e sexualidade estejam contemplados nos parâmetros curriculares nacionais, compreende
as dificuldades de abordar temas a cerca da sexualidade e do gênero na escola fora do viés da
heterossexualidade, nem da reprodução e nem da saúde (CLÁUDIA). Apesar destas
dificuldades, Cláudia encara como sendo parte de sua função abordar estas temáticas com seus
alunos, procurando problematizar(CLÀUDIA) questões como o preconceito, e a construção
social das diferenças entre os gêneros.
87
Cláudia me pareceu uma pessoa bastante corajosa e direta. Sua fala e as atitudes que
relata demonstram que busca enfrentar de frente o preconceito e a discriminação homofóbica
(palavra que utiliza). Se auto-identifica como sbica, segundo ela, “porque assim se constitui”.
Isto ela relaciona tanto ao fato de não ter a feminilidade padrão, ter este corte de cabelo e usar
esse tipo de roupa que não é da feminilidade padrão(CLÁUDIA) quanto ao fato de relacionar-
se exclusivamente com mulheres. Acredita que dizer-se sbica também se relaciona a um
“posicionamento político, histórico e social” (CLÁUDIA). Ao dizer isto, demonstra compreender
a sexualidade e o gênero como construtos sociais e históricos, o que denota uma familiaridade
com concepções construcionistas de gênero e sexualidade. De fato, Cláudia tem se interessado
pela temática e participou, inclusive, de um curso de formação para professores da rede pública
oferecido pelo Nuances, o “Educando para a Diversidade”
43
.
Cláudia procurou o Nuances por acreditar estar sendo vítima da perseguição da direção da
escola na qual trabalhava, localizada em um município da região metropolitana de Porto Alegre,
de colonização alemã. Esta perseguição teria se iniciado pelo fato de alguns de seus alunos
reclamarem para a direção da escola que Cláudia falasse demais de sexo em aula. Segundo ela,
como era seu hábito em outras escolas, sempre abordava os temas da sexualidade e do gênero em
suas aulas embora, segundo o que ela informa das práticas didáticas daquela escola, esta fosse
uma atribuição dos professores de ciências na sétima série do fundamental e não contasse com o
apoio da direção da escola. A partir disso, foi chamada diversas vezes para conversar com a
direção da escola, a qual exigia que ela parasse de abordar estes temas em sala de aula, sob pena
de ter seu caso levado a secretaria de educação do município, onde poderia sofrer uma
sindicância. Credita esta perseguição também ao preconceito contra sua orientação sexual que,
segundo ela, nunca a escondeu dos colegas de trabalho. Acabou não levando adiante uma ação
judicial, pois acabou deixando a escola e o município para assumir o cargo de professora em
outro município.
Participante 8: Lúcia
Lúcia é uma mulher branca de 26 anos, proveniente de uma cidade do interior do estado.
Embora não seja adepta, cresceu em uma família de religião Evangélica. Concluiu o ensino
43
O curso “Educando para a Diversidade”, já mencionado anteriormente no item em que traço a
trajetória do grupo Nuances.
88
médio em uma escola adventista e veio para Porto Alegre, segundo ela, para poder viver mais
livremente e por maiores opções de trabalho. É artesã e comercializa seu trabalho em Porto
Alegre, reside em um bairro classe média com sua namorada Patrícia, também informante desta
pesquisa. Apesar das duas formarem um casal e terem feito denúncia ao nuances pelo mesmo
motivo, optei por apresentá-las separadamente, uma vez que as entrevistas foram feitas
individualmente e, portanto, em condições diferentes.
Combinamos de nos encontrar em um café na rua da República pertencente a uma
conhecida sua, onde existe uma grande freqüência do chamado grupo “GLS. Lúcia me pareceu
bastante tímida; falava baixo s vezes quase inaudível) embora o caestivesse completamente
vazio. Parecia querer manter-se bastante discreta. Lucia é bastante bonita, cabelos negros
compridos; veste-se de forma esportiva, mas fazendo um tipo bem feminino.
Chorou um pouco durante a entrevista, principalmente quando abordávamos questões
referentes à sua relação com sua família. Por serem evangélicos, sua família considera a
homossexualidade, “pecado” (nas suas palavras) e associam-na a doença, o que lhe causa grande
desconforto.
Ela e sua namorada procuraram o nuances por terem sido impedidas de utilizar o banheiro
de um conhecido e bastante freqüentado centro comercial de Porto Alegre; conhecido, inclusive,
por polêmicas que envolvem acusações de cerceamento e intimidação de jovens LGBTT.
Segundo seu relato, embora outras mulheres estivessem utilizando o banheiro, o segurança lhes
impediu de usá-lo. Creditou esta atitude do segurança ao fato de ele, por estarem de mãos dadas e
com algumas “frescurinhas”, ter percebido que se tratava de duas mulheres homossexuais. Por
iniciativa de sua namorada, a brigada foi chamada ao local. Luciao acompanhou sua namorada
até a Delegacia da Mulher, onde esta registrou a ocorrência. Posteriormente, por indicação de
amigas, procuraram o nuances para receber orientação e encaminhar um processo por danos
morais, que ainda esta tramitando.
Participante 9: Patrícia
Patrícia é uma mulher branca de 29 anos. Mora em Porto Alegre em apartamento próprio,
com sua namorada Lúcia (entrevistada 8). Professora de ciências biológicas da rede pública de
89
uma cidade da Região metropolitana de Porto Alegre, Patrícia procura abordar, em suas aulas,
temas relativos a gênero e sexualidade, segundo seu relato, para o que encontra apoio de alguns
colegas e direção da escola. Participou de um curso realizado pelo Nuances chamado “Educando
Para a Diversidade”
44
, destinado a prover formação em Direitos Humanos e Diversidade Sexual
para professores da rede pública.
Combinamos de nos encontrar em um café no bairro cidade baixa. Entretanto, havia muito
barulho, o que acabou sendo desconfortável para a entrevista. O dia estava ensolarado, então
Patrícia sugeriu que fossemos para o parque Farroupilha, onde nos sentamos de baixo da sombra
de uma árvore, a uma boa distância de outras pessoas que freqüentavam o parque. Patrícia é uma
mulher bonita, sensual e também do tipo “que não leva desaforo pra casa”. Faz um estilo mulher
independente, que sabe o que quer e que sabe usar de seu poder de sedução quando quer: como se
estivesse sempre no controle das situações. De fato, isso foi ficando claro ao longo de nossa
conversa; a necessidade de estar no controle das situações, de não “ficar calada diante de uma
injustiça”, o que o se relaciona somente ao fato de ser discriminada por sua orientação sexual,
mas em qualquer outra situação onde se sinta lesada. Apesar disso teme que, ao declarar
abertamente uma identidade sexual fora da heterossexualidade, principalmente em determinados
lugares (como no trabalho), possa lhe trazer transtornos. Diz ser “naturalmente discreta”, e a isto
relaciona ao fato de não ser afeita a demonstrações públicas de afeto com sua namorada e ao fato
de ser “feminina” e “não aparentar”, fazendo uma contraposição a mulheres que se apresentam de
forma mais “masculinizada” . Apesar de demonstrar que “ser discreta” faz parte de seu estilo de
ser, isto também funciona como uma espécie de estratégia de evitação do estigma associado à
homossexualidade:
“Eu sou uma pessoa discreta... Eu não tenho necessidade de sair na rua de mão dada e
ficar se beijando. Claro, tem situações... que tu gostaria de estar mais próxima da pessoa,de
beijar, de ficar mais a vontade...Mas eu naturalmente não tenho esta necessidade de que saibam
que eu sou gay....mas confesso que se tivessem rumores, eu não negaria mas eu ficaria em cima
do muro, entende? Eu não sinto essa necessidade, mas se alguém desconfiasse , eu acho que eu
seria um pouco covarde sim. Por medo do ódio , da discriminação, de ser olhada diferente,
entende?”(PATRICIA)
44
O curso “Educando para a Diversidade”, já mencionado anteriormente no item em que traço a trajetória do
grupo Nuances
90
A situação que levou patrícia a procurar respaldo no Nuances foi à mesma da entrevistada
Lúcia (ver entrevistada 8), a diferença reside na quantidade de detalhes que cada uma deu a
história e no posicionamento que cada uma tomou diante do fato. Lúcia ofereceu menos detalhes,
relatando mais as atitudes da namorada diante do fato, e assumindo um papel mais
“coadjuvante”. Patrícia , no entanto, parece ter tomado “o controle” da situação: relatou vários
detalhes de sua discussão com o segurança do centro comercial e partiu dela a iniciativa de
chamar a brigada e registrar a ocorrência policial.
4. Vivendo num mundo heteronormativo: experiências e percepções da
homofobia/heterossexismo
Neste capítulo em que se inicia mais propriamente a análise do material coletado
abordarei as formas como as mulheres desta pesquisa vem tendo a experiência da discriminação e
violência homofóbica/heterossexista e a forma como elas as compreendem como relacionada a
convenções de gênero. Neste contexto, subdividi o capítulo em três partes. No primeiro, tomo
como tema a homofobia e a maneira como ela é compreendida pelas mulheres. No segundo,
abordo uma suposta “aceitabilidade‟ percebida por minhas entrevistadas nas relações
homoeróticas entre mulheres e como esta “aceitabilidade‟ se articula com uma espécie de
“visibilidade invisível” frente à apropriação do homoerotismo feminino pelo fetiche
heterossexual masculino. No terceiro, abordo a invocação dos saberes psi diante dos conflitos
vivenciados com as famílias, que articulam juventude/sexualidade em redes de poder.
4.1 A homofobia/heterossexismo como guardiãs das fronteiras de gênero.
O que um homem ou uma mulher podemfazer? O que “devemsentir? Qual a maneira
“correta” de expressarem seus gostos, suas preferências sexuais, seus estilos? Esta parece ser
uma pergunta que nos parece constantemente recolocada, principalmente quando “a pluralidade
de identidades e de práticas amorosas e sexuais parece, hoje, mais visível” (LOURO, 2008, p.
87). De forma mais marcante ainda, se levarmos em conta o horizonte normativo no qual estamos
91
imersos, estas questões nos colocam a viabilidade de determinados sujeitos e de determinadas
práticas no interior de uma cena coerciva (BUTLER, 2004).
No caso das mulheres, a que sorte de convenções sociais estamos submetidas? O que
torna a vida de uma mulher mais ou menos viável no interior de uma sociedade onde a
heterossexualidade ainda é a referência? As histórias que ouvi nesta pesquisa falam de mulheres
que romperam com aquilo que delas era esperado e que sofreram as conseqüências desta
“transgressão”. As falas de Cláudia e Simone evidenciam aquilo que acreditam ser esperado de
uma mulher de “verdade”:
“Porque as pessoas educam, esperam e querem conviver com os padrões sociais. Mulher tem
que ser feminina, tem que usar brinco, tem que usar roupa justa, tem que usar saia, é a
feminilidade padrão. E as pessoas não aceitam, o que é estranho incomoda”. (CLÁUDIA)
“A gente é criada para ser queridinha, para ser educada, para ser meiga, para obedecer, pra
casar e ter filhos, sabe?” (SIMONE)
“Era pra eu parar de jogar futebol, guria não joga futebol, ne....ou seja tu não é homem...as
pessoas não aceitavam... a própria família, as outras pessoas, imagina, na própria família? E as
pessoas te cobrando, porque então tu tem que casar, quando é que tu vai casar...aquelas
cobranças todas, que é normal até para quem gosta de homem....só que eu cresci assim,
gostando de mulher e tendo que me esconder, não tinha família pra me abrir, não tinha amigos
porque tinha medo, não tinha ninguém. Na verdade era eu e eu, no meu mundo.”(IMARA)
As histórias destas mulheres, portanto, evidenciaram as dificuldades em se atravessar às
fronteiras daquilo que é socialmente estabelecido, mais “aceito” ou reconhecido para o gênero ao
qual pertencem. Ao atravessarem estas fronteiras, pelas escolhas que fizeram no decorrer de suas
vidas e de suas trajetórias sexuais, sofreram sanções. Sanções estas que lhes recolocam a questão
do que é esperado de uma mulher para que se torne um sujeito mais ou menos viável, mais ou
menos inteligível. Portanto proponho aqui, juntamente com outros autores (WELZER-LANG,
2001; BORRILO, 2000-2009) que a homofobia (ou a lesbofobia), é um mecanismo implícito à
norma que reatualiza esta questão, servido como uma espécie de guardiã dos limites que a norma
impõe.
“No início do relacionamento minha família não sabia e era uma coisa mais escondida,
mas na rua a gente andava de mão dada e tava junto sempre. A gente com o tempo foi ficando
mais retraída, mais com medo. Porque tu está na rua, daí vem uns fiascos, e gritam coisas que
começam a dar medo de agressões. E a gente começa a ouvir várias histórias de pessoas que
são agredidas. Em casa também quando a minha família descobriu não foi legal. Foi bem difícil
92
e eu acho que isso é uma coisa que fez com que eu na rua me comportasse de forma diferente.
Porque a minha mãe, “ai se tu não faz isso por ti, faz por mim”. Ela sente vergonha, então eu
fico pensando, bom será que eu posso fazer isso? Porque não é eu, envolve outras pessoas
que vão estar se chateando, se magoando. Então começa várias coisas que fizeram com que a
gente não ficasse mais confortável na rua.” (VANESSA)
Qual é o espaço que a gente tem sabe? Porque na rua não dá, porque na rua eu já me
sinto mal. na minha casa não dá. Quais são os espaços que a gente tem sabe? Isso é um
problema que torna bem complicada a relação, a falta de espaço.” (Vanessa)
“A minha filha fez uma carta, que eu não contei para ela, mas isso ela tinha dez anos de
idade. Como ela nunca conviveu com essa situação, talvez ela não entendesse ou talvez saísse
contando pra todo mundo, achando uma coisa diferente. E talvez os vizinhos da volta também
pudessem tratar mal sem necessidade, porque todos me conheciam, mas é como se fosse um
filho ladrão. Descobrir que teu filho é bom, mas ele é ladrão já muda de figura.”‟ (ODILA)
Os relatos de Vanessa e Odila nos mostram o quanto um ato de homofobia (ou mesmo sua
previsão) determina lugares e posições para uma vida ou, melhor dizendo, determina que lugar o
sujeito tem dentro de um espaço desde sexualizado: o lugar da vergonha, da precariedade, da
doença, do engodo, da trapaça: o lugar da abjeção (BUTLER, 2005a). Elas, assim como todas as
participantes desta pesquisa, compreendem que suas escolhas/desejos afetivo-sexuais por outras
mulheres as estigmatizam, colocando-as em posição de desvantagem no contexto social. Ao
longo se suas vidas, mesmo que nem sempre tenham se relacionado ou tido desejo sexual por
outras mulheres elas aprenderam isso. Isto porque a matriz heteronormativa na qual se
constituíram enquanto sujeitos de uma sexualidade (Foucault, 1998), apesar de ser social e
historicamente produzida, as precedeu. Pois, como afirma Butler (2005b; 2004) os sujeitos se
produzem e são produzidos dentro de esquemas de reconhecimento (jogos de verdade) que estão
presentes no contexto de seu surgimento. Apesar de muitos sujeitos homossexuais hoje em dia
terem a possibilidade de dar visibilidade as suas escolhas/desejos sexuais, eles (e todos nós) ainda
estão submetidos a determinados jogos de verdade que permitem que certos sujeitos sejam
“reconhecidos” como mais legítimos, em detrimento de outros para os quais o „reconhecimento‟
ou é subtraído ou se faz pela via da abjeção (BUTLER, 2004), como podemos perceber, por
exemplo, no relato de Lúcia.
“Aí ele escrachou, ele é evangélico também, a minha família é toda evangélica. São
fanáticos. E daí ele me xingou, “sua lésbica, machorra”, e eu, “mas que exemplo tu vai dar para
o teu filho quando tu tiver teu filho”, que ele recém tinha casado, “que exemplo tu vai dar
quando tu ter um filho se tu é desse jeito”. E ele falou, “E tu que nunca vai ter, sua lésbica,
machorra.”(LUCIA).
93
O que está em questão aqui é o reconhecimento (ou não reconhecimento) de Lúcia
enquanto fazendo parte do gênero (ou categoria) mulher. Como afirma Gross (1999) palavras
como “lésbica e machorra” (usadas de forma injuriosa) servem para manter todas as mulheres “na
linha”. Assim, quando uma mulher ouve esta palavra, ela sabe que cruzou a barreira de seu
gênero. É claro que esta posição está aqui mais marcada pelo fato de Lúcia pertencer a uma
família de forte crença religiosa, onde as posições masculinas e femininas estão fortemente
atreladas aos papéis que eles devem desempenhar dentro da família: a mulher mãe, submissa aos
filhos e ao marido; o homem pai, provedor.
De forma geral, no entanto, as mulheres desta pesquisa percebem que o que está em
questão em um ato de homofobia é o atravessamento das convenções estabelecidas para cada
gênero. Isto fica patente quando frases como “não aparentar” aparecem nas falas, o que
demonstra que elas interpretam que quando estes atravessamentos ficam “aparentes” é que ocorre
a possibilidade de serem vítimas de discriminação ou preconceito.
É difícil a gente ser descriminada... Porque a gente não aparenta ser ... àquela hora a
gente tava com afetos e carinho, de mão dada e com frescurinha, sabe?! E a gente tava vendo os
cartazes, não tava nem ai naquele momento. Então quando o cara disse que a gente não podia
entrar no banheiro e a Pati quis saber por quê, o cara não dizia... E as senhoras passavam e
entravam, então é uma situação bem constrangedora. Bem ruim mesmo.” (LÚCIA)
“fora estes dois momentos eu não sinto discriminação ... talvez ... certamente porque
eu não aparento, não tenho um comportamento que chocaria as pessoas. Com certeza as
meninas que tem um fenótipo mais masculinizado já demonstram mais....com certeza, pelo fato
de eu ser feminina, só quem conhece que sabe, nunca me vê com um namorado que pode
desconfiar. E não acho isso uma coisa boa ou uma coisa ruim pra mim, sinceramente, é
indiferente.” (PATRÍCIA)
As entrevistadas interpretam que aquelas mulheres que apresentam atributos corporais ou
de estilo mais distanciado de um padrão feminino, e que se aproximam de padrões e estilos
masculinos sofrem mais preconceito e discriminação. Como afirma Pecheny (2004), a
homossexualidade aparece como um segredo fundante da identidade e das relações pessoas de
homossexuais; ao mesmo tempo, constitui um motivo de estigmatização e exclusão. Entretanto,
salvo indivíduos que adotam marcas e trejeitos corporais, ela não é aparente aos olhos dos
demais. Neste sentido, adotar um estilo que se distancie de padrões de feminilidade ou, no caso
dos homens, de masculinidade, é interpretado como algo que “torna aparente” e “denuncia” a
94
homossexualidade. Aquelas/es que não o fazem, como se vena fala de Odila, chegam a ganhar
o “benefício da dúvida”. Para as entrevistadas, tanto as mulheres “mais masculinizadas” como
“homens mais afeminados” tornam-se mais evidentes, portanto mais alvo de discriminações,
como vemos na fala de Simone e Odila:
Acho que as que tem o visual mas masculino sofrem mais. Até em termos de conseguir
emprego. Se a pessoa olha está na cara que é lésbica. Então se a pessoa é mais feminina
olha é mulher né. Agora se tu aparece mais masculina na frente das pessoas, olha „é lésbica,
não vamos contratar”, já risca né, amassa o currículo e pá, põe fora. Eu sei por causa da minha
companheira. Ela tem um visu mais masculino. Não gosta de ser comparada com homens, mas
ela tem um visu mais masculino. E ela sofre brutalmente . (SIMONE)
os meninos são mais a vontade, são mais debochados e as meninas algumas, outras
são mais tranqüilas, mais calmas. Para trabalhar eu acho os meninos se mostram mais, os
homens mostram bem mais. Tu até aqui, tu olha de longe tu jura que ele é hetero, ai começa
a falar tu vê que não é, se denuncia. E as mulheres não, é mais fácil de ficar na dúvida. É eu
acho que os homens sofrem mais, eu acho que é mais difícil para eles, porque eles não têm
como esconder tanto quanto a gente. Alguns até levam jeito de falar, outros não. Mas quando o
amigo sabe que ele é, mais dia já não deixa mais de ser tão amigo e vira colega. Se saia bastante
junto deixa de sair. O que eu já vi de coisas assim ?! E nas mulheres eu acho bem mais
difícil acontecer.” (ODILA)
Demonstrar mais, sofrer mais; demonstrar menos, sofrer menos. Isso é o que fica
evidenciado nas falas acima. A preocupação em “não aparentar”, “não chocar” (Patrícia) e ficar
num limite de certa “tolerabilidade” perante os outros nos demonstra as formas como a norma é
incorporada e percebida entre algumas das entrevistadas, principalmente aquelas que se
consideram mais “discretas” ou mais “femininas”. Neste sentido, estar mais pra lá, ou mais pra cá
da norma produz diferenciações entre as mulheres com práticas homoeróticas, onde aquelas que
se afastam mais são entendidas como rompendo com seu gênero, tentando aparentar o que o
se é” (como nas falas de Odila e Lúcia) ou “estando num corpo errado” (Patrícia). O corpo, nestas
falas, aparece como sítio fundamental de onde deveria “emergir” o gênero, o qual deveria estar
em consonância com este “corpo/sexo”. Porém, deve-se compreender este dado como fazendo
parte de um discurso que assume a legitimidade de uma verdade, o qual é apropriado por parte
das entrevistadas e que procura explicar a natureza” dos fenômenos através de dados biológicos
(como visto na sessão anterior).
Em sua pesquisa de mestrado sobre a construção e manutenção de identidades lésbicas,
Aquino (1992) usa o termo “dar bandeira” para se referir ao receio de algumas de suas
95
participantes em revelar uma identidade lésbica em determinados contextos sociais, pela
potencialidade de se verem expostas ao preconceito. Estar “aparente”, ou dar bandeira” (para
utilizar a expressão de AQUINO, 1992) é também compreendido por parte das participantes de
minha pesquisa, como algo que as exporia a discriminação e ao preconceito, como vemos no
relato de Vanessa:
Várias pessoas, meus amigos mais próximos todos sabiam que eu namorava ela a gente
estava sempre mais ou menos junto. Mas quando aconteceu, até eu acho que um dos motivos de
acontecer esse incidente e foi porque a gente estava progressivamente assumindo mais,
demonstrando mais publicamente”. (Vanessa)
A demonstração pública ou a revelação pública de uma identidade estigmatizada - “estar
aparente” - é visto por grande parte das participantes de minha pesquisa como algo que as exporia
à homofobia. Em contrapartida, este “estar ou não aparente” que significa ser mais ou não visível,
é algo que elas também relacionam com as formas com as quais a homofobia “aparece” em suas
vidas. Elas compreendem que há formas sutis de preconceito e discriminação, que nem sempre se
expressam através da injúria ou da agressão física, mas antes, através de coerções, perseguições,
afastamentos que nem sempre expõem claramente sua razão.
“ É raro acontecer essas situações. Às vezes as pessoas até pensam coisas, mas elas não
falam. É tudo assim pisando em ovos, faz de conta, tem muito faz de conta. Esse mundo é lindo
e que tudo é aceito. Eu acho que isso te impede até de tu falares realmente alguma coisa. Tu
pode fazer tudo, tu pode ser o que tu quiser, mas fica na tua.... As coisas ficam lá... Tudo é bonito
mas cada um no seu canto. A gente não vai criticar, ninguém vai demonstrar preconceito desde
que as pessoas fiquem na sua”. (Vanessa)
Relembrando os dados apresentados sobre as mulheres e suas denúncias (item 2),
percebe-se que a maior parte dos casos denunciados revelava situações que envolviam assédios
morais/psicológicos (42,5%). Estes dados nos revelam que existem manifestações de
discriminação sutis, que também procuram “não se expor”, que podem estar relacionadas ao
ambiente onde ocorrem, como locais públicos, como bares e instituições públicas ou o próprio
ambiente de trabalho (como nos casos de Patrícia, Lúcia e Cláudia). Manifestações como esta nos
indicam que, apesar ocorrerem de forma implícita, pode existir o receio, por parte dos
agressores/as, de sofrerem sanções caso as agressões sejam mais explícitas. A homofobia então
toma a forma de uma agressão velada ou de uma constante reafirmação da heterossexualidade
como norma (heterossexismo). Uma discriminação “politicamente correta” (se é que se pode falar
assim) que é percebida pelas entrevistadas como uma discriminação velada.
96
Como visto anteriormente nesta dissertação é necessário perceber que as diversas formas
pelas quais as expressões de gênero e da sexualidade se entrecruzam com outros conjuntos de
pertencimentos dos sujeitos, que caracterizam o lugar no qual estão posicionadas no interior dos
discursos. Apoiada em Crewshaw (2002), Oliveira (2007) propõe o conceito de
interseccionalidade, evidenciando a forma como identidades sexuais se relacionam a outras
identidades (pertencimentos) produzindo intersecções que podem contribuir ou não a uma maior
vulnerabilidade dos sujeitos.
Proponho também, que o posicionamento dos sujeitos tem efeitos nas formas como as
participantes desta pesquisa vivenciam e dão sentido as manifestações de discriminação e
preconceito que foram vítimas. Todas minhas entrevistadas são brancas, tem no mínimo o ensino
médio completo e possuem, fora alguns casos, ou uma inserção formal no mercado de trabalho ou
uma boa perspectiva. Algumas delas tem um posicionamento mais próximo da militância ou, por
suas inserções profissionais ou estudantis, tiveram contato mais próximo com perspectivas que
desconstroem paradigmas essencialistas do gênero e da heterossexualidade.
Assim, em alguns dos casos, expressões de homofobia ou heterossexismo direcionadas às
entrevistadas são atribuídas às diferentes manifestações de sexualidade e gênero, sem que elas
relacionem estas manifestações a outros fatores, como raça/cor, classe social, entre outros. A
discriminação aqui, mas também nos outros casos, produz uma identificação hiperbólica com a
sexualidade que faz com que outros pertencimentos ou identificações fiquem subsumidos à
identidade sexual. Em alguns casos isso se torna razão de descontentamento.
“Eles pensam na gente como um sexo e não como um ser. E a gente é um ser, a gente
tem sexualidade, mas a gente é um ser humano. E eles não vem isso, eles vem a sexualidade e
ainda pejorativamente.” (Heloisa)
teve um episódio que minha mãe tentou se matar e meu pai chegou em casa e a Paula
estava. E ele mandou a Paula embora dizendo que ia chamar a polícia se ela não fosse
embora E depois ele disse para mim, “ah viu tua mãe tentou se matar porque tu estás com
uma menina”. É difícil assim, porque eu me torno vulnerável, é motivo para as pessoas
colocarem culpa.” (VANESSA)
Em outros casos, principalmente onde a experiência da discriminação estava relacionada
também a outros fatores ou por um posicionamento mais “militante” e não necessariamente por
97
sua própria experiência, as mulheres puderam relacionar estas manifestações a outros fatores,
como pertencimento a classes sociais desprivilegiadas, diferenças geracionais e de faixa etária.
4.2 A “maior aceitabilidade” das relações homoeróticas entre mulheres: mais “aceita”
ou mais invisibilizada?
Quem é homossexual aceito? Homossexual certinho, quietinho, que não incomoda.
Não a bicha que é espalhafatosa e nem a bicha pobre... E a mesma coisa das mulheres. Quem
é a lésbica aceita? Eu além de ser lésbica, me constituir assim e me posicionar e me assumir, eu
não baixo minha cabeça.” (Cláudia)
Um enunciado recorrente entre o material coletado me pareceu interessante: o fato de que
todas as mulheres entrevistadas acreditassem que “a” homossexualidade feminina era mais
“aceita” do que a” homossexualidade nos homens. Que significados, ou melhor, que
discursividades estão por traz desta afirmação? Que (para parafrasear Cláudia) homossexualidade
feminina é “aceita‟? E de que forma?
A primeira discussão que gostaria de trazer a tona se relaciona com o termo usado
“aceitação”. Segundo o dicionário Aurélio, podemos encontrar 8 diferentes significados para a
palavra “aceitar”, destes retive aqueles que mais se aproximavam às formas como as mulheres
davam sentido a esta palavra. Assim encontrei “consentir em”, conformar-se com”, “admitir,
tolerar, suportar”.
Alguém tolera, consente, suporta ou conforma-se com alguma coisa. Ao se tolerar, tolera-
se algo que não está de acordo com os princípios da pessoa que tolera, ou algo que ela não
admitiria para si. Alguém suporta uma situação ruim ou um fardo. Em todos os casos, quem
“consente”, „tolera”, “suporta” ou “aceita” está em uma relação de assimetria para a situação,
pessoa ou coisa a ser aceita, onde quem aceita determina o que deve ser aceito ou não e talvez
imponha certas regras. O que aqui quero explicitar é que as relações de poder que a perspectiva
da aceitação implica, guardam uma relação implícita com a heteronormatividade. Como afirma
98
Oliveira (2007), as relações de gênero e sexualidade engendram relações de poder que se
manifestam, por vezes, com “infinita sutileza”
No intuito de coletar informações referentes à forma como as mulheres desta pesquisa
percebiam a experiência de discriminação e preconceito homofóbicos, fui levada a indagar como
elas qualificavam estas discriminações em comparação com outros sujeitos, como no caso os
homens homossexuais. Os resultados foram instigantes, como veremos abaixo.
“Não sei, eu pensei bastante sobre isso. Porque por um lado, eu acho que também tem
muito a questão da mulher mesmo sofrer mais preconceitos. por tu ser mulher vai sofrer
mais preconceito. Ao mesmo tempo tem essa coisa dos homens em geral assim tolerarem mais
mulheres homossexuais do que homens homossexuais. Não sei... Mas me parecem sempre mais
confortáveis. Eu estou pensando na minha situação, porque eu acho que com as meninas mais
masculinizadas o negócio é mais difícil. Daí de repente a aceitação é bem menor.” (Vanessa)
Após a leitura das falas de Simone e Vanessa, cabe-nos indagar o que faz com que elas
entendam que a homossexualidade feminina é “mais aceita”. Uma primeira pergunta talvez seja:
quem aceita? Uma segunda: aceita quem? Podemos encontrar a reposta para estas perguntas nas
duas falas: homens heterossexuais e mulheres homossexuais com o estilo mais próximo do
feminino padrão. E será que são aceitas? Segundo o relato de Simone, poderíamos dizer que elas
são até mesmo desejadas.
Segundo Portinari (1989) o silêncio em torno das homossexualidades femininas toma
sentido quando contrastado com o ruído que as homossexualidades masculinas produzem.
Podemos relacionar esta ausência de ruído de certas perfomances homossexuais femininas a sua
colagem em uma performance de gênero mais próxima do feminino padrão. Ao adotarem um
estilo mais próximo do feminino, podem se tornar mais “invisíveis”. Louro (2001; 2005) aponta
que, em nosso contexto social, a homossexualidade feminina pode ser menos percebida, pois, em
nossa cultura, as expressões afetivas entre mulheres parecem possuir um leque mais amplo que as
relações entre homens. Trocas de carinho, de confidências e até mesmo a possibilidade de amigas
dormirem juntas, de alguma forma, podem borrar os limites entre a simples amizade e a relação
amorosa. Falar em “homossexualidade feminina”, no entanto, pode também borrar uma
infinidade de performances e estilos que não necessariamente se encaixam em um modelo único.
99
Segundo Muniz (1992), existe uma dificuldade de colocar as homossexualidades
femininas (em todas as suas variantes e performances de gênero) em discurso; de forma geral,
esta experiência se fixou no discurso dominante na figura da lésbica masculinizada, da
caminhoneira, da sapatão. Pode-se afirmar que este discurso continua presente, e se reatualiza no
cotidiano no qual as mulheres desta pesquisa se inserem. No entanto, basta ligar a televisão a
cabo e passear por canais ditos “adultos”, como a Playboy TV, para encontrar cenas bastante
eróticas entre mulheres, todas elas femininas, lindas e “saradas”. Práticas homoeróticas entre
mulheres parecem povoar o imaginário erótico masculino (e quem sabe o feminino!).
Uma reclamação que eu tenho, acho que a Paula também, é dos homens se
aproximarem e achar que não precisa respeitar uma relação de casal porque é duas mulheres.
Quer dizer, se fosse uma mulher com um namorado, se fosse um casal heterossexual, não ia
chegar o homem e dar em cima na frente da outra. Não tem o reconhecimento. E eu acho que
embora não tenha um preconceito em relação a pessoa, não tem o reconhecimento.” (Vanessa)
Neste mesmo sentido, para Oliveira (2002) e Swain (2007), cenas de sexo entre mulheres
são bastante comuns para gerar a excitação masculina. Desta forma, as relações homoeróticas
entre mulheres são freqüentemente vistas mais como uma forma de seduzir os homens do que
como uma prática que não os requeira ou o os diga respeito. Assim, o que aparece é que a
norma heterossexual/sexista apropria-se do erotismo homossexual feminino, esvaziando-o de
sentido para torná-lo mais um elemento do fetiche masculino. Neste caso, talvez a melhor palavra
não fosse “invisibilidade”; talvez fosse mais interessante indagar que tipos de visibilidade as
relações homoeróticas entre mulheres tomam, pois neste caso as homossexualidades femininas
podem até ser visibilizadas, porém sendo “obscurecidas ou negadas enquanto prática ligada ao
humano” (SWAIN, 2007, p. 10).
Portanto, “aceitar” aqui significa estar submetida aos esquemas de compreensão de um
pensamento heterocentrado. É possível evocar aqui o trabalho de Monique Wittig (1992) sobre o
“pensamento hetero”. Para ela a sociedade heteronormativa desenvolveu uma interpretação
totalizante da cultura e da história. Segundo a autora, o pensamento hetero não consegue
conceber uma cultura onde a heterossexualidade não ordene as relações humanas e a produção de
sentidos. Assim, segundo ela para o pensamento heterossexual, a homossexualidade não passa
de heterossexualidade” (WITTIG, 1992, P.28)
100
“Mas de uma maneira geral eu acho que os homossexuais masculinos sofrem mais do que
as mulheres. As mulheres também tem mais aquela questão do sentimento “ai , duas
mulheres...pode ser uma fase”, os homens acham bonito , interessante, gostam. Mas homem não,
ainda mais aqui no sul, isso mexe com o machismo, que é bem forte aqui. (Patrícia)
É claro que muitas mulheres podem adotar identidades mais fluidas, que podem ser
expressas pela fórmula “ser ou estar homossexual” (HEILBORN, 1996). No entanto, “poder ser
uma fase” evoca também a apropriação e domesticação da sexualidade feminina pelo discurso
masculino. Segundo Foucault (1998), um dos domínios através dos quais o dispositivo da
sexualidade se instalou no final do século XVIII foi na “histerização do corpo da mulher”. Um
corpo revistado, “qualificado e desqualificado como corpo saturado de sexualidade, pela qual este
corpo foi integrado sob o efeito de uma patologia que lhe seria intrínseca(FOUCAULT, 1998,
p. 99). Um corpo transbordante de uma sexualidade indirecionada que deveria ser avaliado e
adestrado. Ao realizar estudos históricos na área da sexologia Katz (1996) argumenta que
antes de sua fixação em categorias distintas de sujeitos, a homossexualidade e a
heterossexualidade eram utilizadas para descrever “excessos sexuais”. Neste sentido a mulher era
qualificada como possuindo uma natureza “menos heterossexual”, portanto mais suscetível a
“deslizes”.
Para além das posições colocadas por teóricos como Borrilo (2000;2009), talvez seja
neste sentido que podemos então evocar uma especificidade no preconceito e discriminação
vivenciados nas homossexualidades das mulheres: a tentativa de subordinação de suas expressões
sexuais ao erotismo masculino e sua conseqüente invisibilização como uma forma legítima de
expressão que não requeira a interferência e a ordenação masculina.
Mas estar “invisível” desta forma é necessariamente uma desvantagem? Como diz Butler
(2004), os esquemas de reconhecimento disponíveis podem desconstruir alguém tanto num ato de
reconhecimento como na sua negação. Neste ponto, estar ou não visível, receber ou não
“reconhecimento” torna-se um lócus de poder através do qual o humano é diferencialmente
produzido. Uma pista para se responder a esta questão pode ser encontrada na fala de Simone:
Com certeza os olhares das pessoas... é brutal, mas quanto a s, mulheres, é mais
aceitável perante a sociedade do que os homens. Se sai um casal de gay no meio da rua é capaz
de ser espancado . Nós não, as mulheres é mais aceitável. Mas eu acho que é machismo. Porque
duas mulheres eles acham bonito. Se eles pudessem, eles até estavam no meio. Mas só que para o
101
homem aceitar o homem ser gay, é difícil por causa do machismo. A gente até é privilegiada
porque para a mulher eles falam pelas costas.” (SIMONE)
4.3 A invocação do saber psi como forma de restabelecer a norma nas relações com a
família.
Entre os aspectos encontrados na análise das trajetórias de vida das participantes desta
pesquisa, foram encontrados os impasses vivenciados por boa parte das entrevistadas dentro das
relações familiares quando a homossexualidade de suas filhas era revelada ou descoberta. Na
verdade, na maioria dos casos esta revelação nunca partiu de uma intenção deliberada da
participante em revelar sua orientação sexual para a família; nestes casos, o medo da rejeição ou
de estar fazendo algo que “desrespeitasse” o núcleo familiar fazia com que estas mulheres
preferissem manter este aspecto de sua vida em segredo.
Na maior parte dos casos as participantes revelaram ter tido conflitos com sua família de
origem: pais, es e avós, o que algumas vezes as levou a romper parcialmente ou
temporariamente com os laços familiares. No caso das mulheres que chegaram a formar sua
própria família ou ter filhos (como no caso de Imara e Odila) os conflitos gerados levaram ao
rompimento de laços com o ex cônjuge e sua família, bem como com os filhos, que não se
conformaram com a escolha destas mulheres (nestes dois casos mais tardias) em buscarem
relacionamentos sexuais ou amorosos com outras mulheres.
No que diz respeito às relações com o grupo familiar primário, quando este “segredo”
tornou-se aparente, não raro tornou-se motivo de conflitos e descontentamentos dentro do núcleo
familiar. A intensidade destes conflitos tendeu a aumentar de acordo com o grau de
independência - articulando a possibilidade de manter financeiramente seus projetos de vida e
faixa etária - que participante tinha de sua família na época em que ocorreram os conflitos.
Os conflitos familiares mais severos, portanto, se deram na articulação de poderes que
convergem sobre os corpos juvenis destas mulheres e sua sexualidade. Este corpo juvenil de
mulher que, como assinala Foucault (1998), foi e é alvo da inspeção e da regulamentação
102
discursiva. Produzido e classificado como um corpo que transborda de uma sexualidade
intrínseca e “no limite”; corpo que “adolesce” “sob o ímpeto dos hormônios” e que deve então
ser administrado para que se desenvolva corretamente ou de forma “sadia”. Alvo da intervenção
médica, pedagógica e psicológica este corpo foi transformado em adolescência: “período de
conflitos identitários”; período de descobertas sexuais. Longe de condenar ou afirmar estes
campos de saber, o que busco é demonstrar a maneira como estes campos confluem na produção
e atribuição de determinadas características aos corpos/sujeitos jovens.
E foi nesta articulação que os saberes psi foram invocados por parte das famílias, que em
dois casos chegaram a submeter suas filhas a tratamentos psicológicos, mesmo à revelia de sua
vontade. Mas o que subjaz a este apelo a psicologia? Pelo que o material que a pesquisa revelou,
a tentativa do restabelecimento da ordem, no caso, a norma heterossexual, pois nos jogos de
verdade que articulam juventude, gênero e sexualidade, a família também é convocada a exercer
vigilância sobre sua prole.
“No início minha me colocou em psicóloga, me prendeu em casa. Fiquei seis meses
sem sair de casa. Eu tinha horário para chegar em casa, eu tinha horário para sair para escola.
Se eu chegasse cinco minutos atrasada o portão estava chaveado e eu tinha que pular o portão.
Eu sofri muita coisa, foi horrível. A psicóloga que me tratava na época, foi a que me tratou
quando eu era criança. Então a minha me colocou nela de novo, porque ela sabia tudo.
Porque minha vó até então acreditava que era uma doença, porque eu perdi minha mãe cedo e
era uma carência de mãe. Todas as namoradas que eu tive enquanto eu fazia tratamento, ela
dizia, mas tu não acha que ela é parecida com a tua mãe, tu não acha que ela tem isso da tua
mãe? Ela tentava sempre a me induzir a terminar com as meninas, em função que eu estava com
uma mulher por causa que era carência da minha mãe. E na verdade não era. (Vivian)
“A minha mãe entrou em depressão numa época em função da separação dos meus pais.
E teve um dia que meu pai, eu nunca falei com todas as letras, mas ele sabia. ele me
colocou num psiquiatra. Eu estava realmente deprimida, mas eu acho que o motivador maior
foi “ela está tão mal que ela ficou com uma mulher”. (Vanessa)
“Teve uma época que eu tive muitos problemas com a Paula. Daí eu comecei a ficar mal,
aconteceu um monte de coisas, a gente começou a brigar muito. E a minha família começou a
me assistir definhar. Eu fique tão mal na época que eu comecei a emagrecer muito. Daí já foi um
motivo bom... virou mais um motivo para não se permitir isso, porque me fazia mal, porque
não era saudável. (Vanessa)
Entretanto, a noção da homossexualidade enquanto doença ou desvio no desenvolvimento
do indivíduo foi alvo de contestação do movimento homossexual e de parte da comunidade
103
médica. Os resultados disso foram a retirada do item “homossexualismo” do DSM em 1973. No
Brasil a mesma decisão foi tomada por parte do Conselho Federal de Medicina em 1985, com a
retirada da homossexualidade do código de classificação de doenças do INAMPS.
Complementando estas medidas, em data não tão longínqua, o Conselho Federal de Psicologia
publicou em março de 1999 a resolução CFP n. 001/99 na qual indica que a sexualidade não
constitui doença, nem distúrbio, nem perversão” e que o psicólogo deve atuar e “contribuir para o
esclarecimento sobre as questões da sexualidade, permitindo a superação de preconceitos e
discriminações” (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, RESOLUÇÃO CFP n. 001/99).
Se estas questões estão postas, então porque a psicologia esta sendo interpelada no sentido de
restabelecer uma ordem?
Talvez uma das respostas possa ser encontrada na emergência da psicologia enquanto um
campo de produção de saberes sobre o homem. Para Foucault (2002) a psicologia surge ali
onde o homem encontra sua contradição: naquilo que parece fugir a uma regra. Assim, segundo
o mesmo autor, a psicologia escolar vai se ocupar dos problemas de aprendizado; a psicologia do
desenvolvimento, com as descontinuidades no desenvolvimento. Desta forma, a psicologia
nasceu como um campo do conhecimento que busca - naquilo que toma como erro,
adaptação, nas perturbações - as bases daquilo que, em contrapartida, vai ser considerado como
normal. Guardadas as diferenças temporais, Foucault diz a respeito da psicologia o seguinte:
“Sem forçar nenhuma exatidão, pode-se dizer que a psicologia contemporânea é, em sua origem,
uma análise do anormal, do patológico, do conflituoso, uma reflexão das contradições do homem consigo
mesmo. Se ela se tornou uma psicologia do normal, do adaptativo, do organizado, é de um segundo modo,
como que um esforço por dominar estas contradições. “( FOUCAULT, 2002,p. 135 )
Pode-se considerar atual esta relação do normal/anormal com a psicologia. É posto que
podemos encontrá-la em suas práticas mais tradicionais, tais como: testes psicológicos, processos
diagnósticos e na nosologia utilizada como base nestes processos. Para Guareschi e Hüning
(2005), as psicologias tradicionais têm se afirmado constantemente como referência a estas
normas, buscando assim a correção dos sujeitos através da intervenção.
Para Nardi (2008) a sexualidade tem um papel importante nos processos de subjetivação
na atualidade. Desta forma ocupou e ainda ocupa o lugar de objeto privilegiado na psicologia e
nos campos a ela relacionados. Como campo “apto” a argumentar sobre os sujeitos e suas
sexualidades, os saberes psicológicos tem sido utilizados tanto na depreciação da
104
homossexualidade quanto no seu estabelecimento enquanto uma das formas legítimas de
expressão da sexualidade.
Do ponto de vista da sustentação teórica destas transformações discursivo-poticas, os saberes
associados ao campo da psicologia estão invariavelmente presentes. O “aval” da psicologia está presente no
que diz respeito a questões relativas à partilha entre o normal e o patológico relacionados à diversidade de
expressões da sexualidade; assim como na argumentação a favor ou contrária à igualdade de direitos no que
diz respeito à legitimidade de casais do mesmo sexo para adotar crianças ou para fazer uso da reprodução
assistida. (NARDI, 2008, p.7)
Zambrano (2006) nos oferece um panorama das discussões de psicanalistas quando da
aprovação do PACS, que instituiu a união civil de pessoas do mesmo sexo na França. Segundo a
autora, a partir do PACS, várias outras questões afins acabaram por ser discutidas, entre elas a da
homoparentalidade. A discussão que se seguiu alcançou três diferentes posições: a primeira refuta
totalmente a possibilidade da união do casal e da parentalidade, argumentando que este é um caso
de perversão; a segunda o se opõe à homossexualidade e nem suas uniões, mas argumenta que
a percepção da diferença sexual está na base das representações identitárias, portanto a adoção de
uma criança por pais homossexuais acarretaria prejuízo no desenvolvimento desta; a terceira
acredita não ser da alçada da psicanálise expressar julgamentos morais acerca dos novos arranjos
familiares e que a formação da identidade não depende somente da identidade sexual, mas que a
dimensão da alteridade se dá também por outras vias.
Por um lado como visto no parágrafo anterior argumentações psi provenientes de uma
forma de concepção estruturalista da formação da identidade do indivíduo posicionam-se de
maneira contrária à homoparentalidade, portanto, mantendo-se alinhadas com a norma
heterossexual. Por outro, argumentos do campo psi reclamam e referendam ações Estatais, no
sentido de combater os efeitos deletérios da homofobia e da falta de modelos identificatórios
positivos sobre a saúde psíquica dos sujeitos homossexuais (NARDI, 2008). Um exemplo deste
último caso poderia ser facilmente encontrado no âmbito deste trabalho: a convocação de
psicólogos, por parte da política pública, na composição dos quadros técnicos que compõem a
estrutura dos Centros de Referência no Combate e Prevenção à Homofobia.
Assim, a questão colocada neste trabalho não se refere à legitimidade ou não do campo da
psicologia; o que quero demonstrar é que, em se tratando da relação dos sujeitos com sua
sexualidade, e das relações intrínsecas que os saberes psi estabelecem com este campo, a
produção de conhecimentos psicológicos sobre a sexualidade tem efeitos sobre os processos de
105
subjetivação inscritos na atualidade. Desta forma, eles participam dos jogos de verdade a partir
dos quais os sujeitos se posicionam dentro do discurso, produzindo uma determinada forma de se
relacionarem e compreenderem a si mesmos e aos outros. Interpelados e ao mesmo tempo
produzidos nesta relação.
Portanto, é através de um determinado posicionamento no discurso, que a avó de Vivian
associa homossexualidade à doença, esta causada pelo trauma vivido por Vívian ao perder sua
mãe na infância. È talvez de um posicionamento muito parecido com o da família de Vanessa
que, segundo seu relato, acredita que a “causa” do seu interesse por outra mulher resida no fato
de Vanessa “estar mal” psicologicamente.
Assim oh, hoje em dia, vamos partir do princípio, da minha parte, porque eu não
conheci outros casos ali. O pessoal fica sabendo, procuravam esconder a família. Tinham que
deportar ela para qualquer canto. Ou muitos casos que fiquei sabendo que internavam. Hoje o
índice de internação é quase nenhum. E também a questão de esconder, a família não esconde,
bem pelo contrário, usa da psicologia pra tentar agredir falando o problema. Então eu não sei
o que é pior.” (Heloisa)
O código de ética do exercício da psicologia no Brasil impede o psicólogo de cometer
quaisquer atos de discriminação, entre eles por orientação sexual (artigo 2
o
do digo de ética
profissional do psicólogo de Agosto de 2005), sendo aplicadas penas em caso ocorram, o que
considero um avanço. No entanto, cabe às/aos psicólogas/os se interrogarem a respeito de como a
produção de conhecimento a cerca dos sujeitos e sua sexualidade tem contribuído para
invalidação social e subjetiva de determinados sujeitos e a manutenção do status da
heterossexualidade enquanto norma e referência. Não se trata simplesmente de afirmar a
“normalidade” da homossexualidade e os efeitos deletérios da homofobia, mas indagar o quanto,
através de efeitos de poder e saber, a produção de “qualquer” sexualidade toma lugar. A
produção da própria sexualidade enquanto um campo de convergência de relações de poder e
saber é o que está em jogo.
106
5. Estratégias de enfrentamento “do “armário à armadura”: a guisa de conclusão
Neste capítulo final pretendo apresentar algumas das formas postas em prática pelas
mulheres desta pesquisa como forma de “driblar” o estigma relacionado à sua sexualidade até seu
encontro com uma “armadura” possível, representada pela proteção do Estado. Diante da
possibilidade de ser alvo de discriminação ou preconceito, elas desenvolveram formas de viver
sua sexualidade se protegendo de formas diversas da violência associada ao preconceito. Foi no
momento em que estas estratégias falharam e na possibilidade da busca de proteção por
mecanismos vinculados ao Estado, que elas procuraram o CRDH Rompa o Silêncio.
Ao evocar as figuras do “armário” e da “armadura” para descrever estas estratégias, as
faço mais por uma lógica descritiva do que por uma hierarquia de valores ou por suas supostas
eficácias. Esta lógica me permitiu vislumbrar um grupo de estratégias que vão desde a proteção
por um “manto de invisibilidade” associado a uma atitude discreta, até a adoção de uma postura
mais combativa, evidenciada na decisão e possibilidade de “bancar o seu lugar” diante dos
conflitos familiares e na colagem a o que eu poderia chamar de um “modo de subjetivação
militante”. É importante esclarecer que estas estratégias não são apenas criadas individualmente,
mas fazem parte de um repertório (que pode ser ainda maior) ao qual estas mulheres podem
recorrer dependendo de como se posicionam frente a sua sexualidade e da situação em questão.
5.1 Discrição: silêncio, segredo e dissimulação
“Então eu sempre tive esse medo da rejeição, daí resolvi casar e depois tive filhos pelo
fato da aparência. Que nem acontece hoje, muitos casais “se fazem”, ficam um com outro pra
manter a aparência.(Imara)
Manter as aparências, dissimular: tudo isto faz parte de um repertório de estratégias
motivadas pelo medo ou evitação da discriminação. Algumas das estratégias utilizam-se do
silenciamento, evitando-se falar sobre o assunto. Outras chegam a impor o segredo para suas
parceiras; outras ainda inventam situações que produzem um simulacro de relação heterossexual.
Estas estratégias, bem conhecidas pelos estudiosos das homossexualidades (ERIBON, 1999;
107
PECHENEY, 2004), acabam por criar a sensação de se estar vivendo em dois mundos, pois em
alguns espaços torna se possível falar e demonstrar afeto e em outros, sente-se a necessidade de
tornar-se invisível.
meu pai mora coma mulher com a mulher atual dele. E eu tenho duas irmãs
adolescentes. Uma tem 18 e a outra tem 15 anos. Eu nem sei o que fazer, porque elas estão
querendo vir morar aqui. Essa de 18 anos, ta enlouquecida pra vir morar aqui e eu não sei
ainda, eu acho que eu vou ter que contar para ela né. Não vai ter como esconder tanto tempo,
não sei, ela vai ter que guardar segredo, porque eu tenho medo da reação do meu pai.” (Lúcia)
“Eu disse assim: “olha eu realmente não fico falando aos quatro ventos que eu gosto de
mulher” eu não preciso fazer isso, mesmo porque existe a discriminação né, então imagina eu
dentro da turma e os meus colegas vêem que eu gosto de mulher, eles vão ficar chocados no
mínimo” (Imara)
“É e as atitudes também né. Eu não uso de forma alguma, por exemplo, no meu
ambiente de trabalho, de forma alguma eu vou estar fazendo gestos, qualquer coisa em relação
as... Trabalho com mulheres né, então não vou estar me atirando assim pra cima de
qualquer mulher, não é assim né.(Imara)”
“É que na verdade eu apresentei o Flavio para elas e tal. Daí depois eu não me preocupo
mais.Elas falam que eu to encalhada e eu rio e digo que eu tenho meus machos.Mas não do
muita explicação.” (Lúcia)
Como afirma Pecheny (2004), em uma cultura dominada pelos binarismos e pela
naturalização da heterossexualidade, a homossexualidade torna-se um segredo que funda as
formas com as quais os homossexuais se relacionam com os outros e com os espaços. Como
afirma Britzman (1996), a figura do armário é emblemática neste sentido, pois ela se relaciona ao
aprendizado, por parte de homossexuais, das formas com as quais esconder os significantes da
homossexualidade diante da intolerância e, ao mesmo tempo, de como fazê-los notados por quem
tem se o interesse ou participa da mesma rede de significados. Cria-se então a possibilidade de
revelação a partir de pares que “se entendem, como abaixo, no relato de Patrícia.
Tu acha que as pessoas no meu trabalho sabem que eu sou gay? Aliás, duas pessoas
sabem: a minha supervisora e a secretária, que aliás largou do marido pra ficar com a
secretária. E agora elas são minhas amigas e a gente “se entende”, até por que ta tudo no
mesmo saco, né? O resto se me pergunta “ah, e o namorado? Não vai casar?” Eu digo “não,
não tenho namorado, não vou casar”. Até um dia a diretora perguntou “o que tu prefere: casar
primeiro, ou ter filho primeiro?” Eu disse “precisa escolher isso? Prefiro então ter filho
primeiro”. Mas eu sou covarde neste sentido de me assumir...- não teve nenhuma oportunidade
ainda, não se tocou no assunto - mas eu também, a minha aparência por que eu me considero
108
uma mulher feminina e também as pessoas de fora não diriam , se não me conhecem. E como
nesse ambiente de trabalho são quatro horas por dia, então tu entra numa sala de aula, e tu
vê o pessoal só quinze minutos no intervalo, então não tem uma relação mais duradoura,
digamos assim...então eu sou enrustida no ambiente de trabalho (Patrícia)
“Eu prefiro me manter assim se ninguém perguntar, aqui do meu trabalho ninguém sabe,
tem só uma menina que sabe” (Odila)
Os relatos de Patrícia e Odila nos mostram o receio e o medo que a articulação entre
trabalho e revelação da homossexualidade traz para estas entrevistadas. O medo da deterioração
das relações no trabalho, ou mesmo a sua perda, faz com que as estas mulheres usem de recursos
como a dissimulação ou beneficiem-se de uma “heterossexualidade presumida”, que a
referência social para os papeis de homens e mulheres é a heterossexualidade. Ao perceberem
isso e o fato de não apresentarem marcas corporais ou estilos que tornem a homossexualidade
evidente, usam estes recursos de proteção como forma de manterem-se asseguradas.
Entretanto, este esforço de controle das situações de vida, a divisão de amigos/as (aqueles
que podem saber e aqueles que não), as invenções de estratégias para evitar o assunto, as
respostas evasivas, os segredos que tem que manter uma coerência no tempo demandam uma
energia psíquica intensa. A incorporação na norma pela via do assujeitamento apaixonado
descrito por Butler (1997) pode ajudar a entender falas que revelam um sentimento incorporado
de ilegitimidade do afeto e do desejo homossexual.
“A gente evita um pouco... Acho que por isso mesmo. É, esse negócio de mão dada, beijo
e abraço. É mais como se fosse amiga mesmo. Não em locais gays sim, daí agente liberado né.”
(Lúcia)
“E também para pessoas mais de idade que tem mais dificuldade de entender, não
precisa agredir eles, assim, andar de mão ou beijando. E também não preciso mostrar pros
outros que a pessoa que ta comigo é minha, porque não é minha, ninguém tem posse de ninguém,
né?! Então assim, comigo, comigo, confio na pessoa, não preciso abraçar, não preciso
beijar para mostrar que eu sou o que eu sou e nem com quem eu estou.” (Odila)
“Não eu acho que eu seria em qualquer ambiente. Em qualquer ambiente a minha atitude
seria... Eu sou uma pessoa discreta, eu me considero, pelo menos. Eu não tenho necessidade de
sair na rua de mão dada e ficar se beijando. Claro, tem situações, no cinema alguma coisa
assim, ou num bar mesmo, num lugar hetero, que tu gostaria de estar mais próxima da pessoa,
de beijar, enfim, de ficar mais a vontade...Mas eu naturalmente não tenho esta necessidade de
que saibam que eu sou gay....mas confesso que se tivessem rumores, alguma coisa, eu não
negaria mas eu ficaria em cima do muro, entende? Eu não negaria “não eu não sou” mas
também não diria „sim, eu sou”. Porque negar alguma coisa assim eu nunca neguei, sabe? Mas
também fiquei em cima do muro por que negar uma coisa....se alguém me perguntar e eu
109
dissesse não, seria uma coisa que me faria me sentir tão covarde, mas tão covarde....é mais do
que ficar em cima do muro. Seria me agredir, então....” (Patrícia)
5.2 Bancando o meu lugar
Outras estratégias fazem parte do enfrentamento do preconceito. Sair de casa cedo e
garantir uma autonomia financeira se impõe como necessidade imediata, uma vez que a família
costuma ser um primeiros agenciadores da discriminação (ERIBON, 1999). Esta necessidade se
impõe quando os conflitos com familiares ocorrem em um momento da vida da participante em
que ela depende financeiramente da família. No entanto ela poderia ter outra escolha, ficar calada
e submeter-se a ordem familiar ou usar de outros recursos, como a simulação ou benefício de
uma heterossexualidade presumida , assumindo então os encargos absoluto segredo.
E eu me mantenho com o meu dinheiro, sempre foi assim. Ai meu pai ficou um mês
ainda, porque ele não tinha, ele tava com uma pensão dele lá da aposentadoria, uma coisa assim
que não tava recebendo. Então eu tava sustentando ele, quando ele passou a pegar dinheiro ele
achou que eu não deveria mais ficar lá... “Não, se tu queres ter mulher tu vai dar casa para
mulher, não ser na minha casa que tu vai ter mulher.” Eu disse, Não tem problema. Apesar de
eu ser mulher eu sou macho suficiente para bancar minhas coisas e quem ta comigo, se for
preciso e fui embora. E ele ficou junto dentro de casa, olhando pra ver se eu não ia levar alguma
coisa da casa, porque na verdade não tinha nada, era a casa dele e os móveis eram todos
meus, o que tava estragado eu mesma que consertei. Aí eu pedi para me mandar embora, porque
eu tava muito a fim de ir embora para o Leopoldo, porque o salário era muito baixo e eu não
conseguia me manter, eu pesava 70 kg e baixei pra 55 kg. Era de manhã um café preto e meio
dia um miojo, de noite o que tivesse, se tivesse né. Mas vivia bem, vivia feliz, não tinha ninguém
me incomodando, pelo menos eu podia bancar o meu lugar.
quando eu voltei do Chile a minha mãe mandou a Agnes embora e chegou na cara
para mim, oh daqui a trinta dias, de novo, nós estamos indo embora para Caxias. Ah sinto muito,
a senhora fez uma vez isso comigo, duas a senhora não vai fazer. Eu tenho dezoito anos, a
senhora vai para Caxias, me avisa uma semana antes que eu vou tirar minhas coisas. E eu
e a Agnes a gente alugou um apartamento.Tudo aconteceu assim. E desde aí eu fui independente,
desde os meus dezoito anos”.(Heloísa)
Eu estava pronta para fugir, nem a Paula não sabia mesmo. Quando a gente saiu a
Paula disse, amor para onde é que tu vai. Eu disse para onde tu quiser me levar. Ela disse
porque? Porque eu briguei na minha casa e olha aqui minha mochila, para a casa eu não volto
mais. Desde aquele dia eu não voltei nunca mais. (Viviam)
110
No entanto, bancar o seu lugar exige que se tenham possibilidades para tal: ter algum
nível de educação, um mercado de trabalho mais promissor ou, como no caso de Vívian, ter
alguém que sirva como um suporte para tal. Esta estratégia, assim como muitas outras, se
tornam possíveis mediante determinadas condições. Neste caso talvez fatores como
pertencimento a uma classe social mais abastada, nível educacional, pertencimento étnico/racial
sejam relevantes, visto que o mercado de trabalho é restrito para muitos e as possibilidades de
nele se inserir dependem da interlocução entre as possibilidades que o sujeito tem de se
“enquadrar” nos padrões de empregabilidade exigidos por este.
5.3 “Sou lésbica, e d?”: modos militantes de enfrentamento
Outra forma de construir uma vida viável é enfrentar de forma politicamente explícita o
preconceito e a discriminação. Estas formas de viver abertamente a sexualidade passam, no caso
de algumas entrevistadas, por um engajamento militante, que não necessariamente é organizado,
mas requer que o sujeito assuma uma forma de vida que implica em uma determinada forma de
visão de mundo e projeto de sociedade. Estas estratégias por vezes são partilhadas e não
exclusivas, em alguns momentos se alternam, optando pelo silenciamento e/ou pela abertura em
momentos distintos da vida e/ou diferentes contextos de trabalho. A vida militante, seja de forma
organizada ou pela adoção um estilo de vida mais confrontativo para algumas destas mulheres
parece fornecer mais força para o enfrentamento cotidiano do preconceito, pois o vínculo a uma
idéia coletiva produz menos solidão nesta caminhada. É claro que este modelo não vale para
todas e cada uma encontra formas distintas de viver uma vida possível.
E ela foi conversando comigo, foi ....e eu fui colocando pra fora aquilo que eu sentia e me
deixava triste, com depressão até, assim sabe... e...ai, porque na verdade eu tava trancada no
meu mundo, vendo os anos se passarem, a minha vida deixando de lado, ne? So cuidando do em
volta, que era família do meu ex-marido, era família... Então eu decidi dar um basta. Ai teve o
dia em que eu levantei a minha bandeira e seja o que deus quiser. Ai eu entrei num chat, na
época. Hoje é Orkut, tem Orkut, MSN, mas na época não tinha... tinha até o MSN . E ai eu
conheci uma pessoa. Daí comecei a conversar...e outras pessoas quiseram conversar comigo...
e depois de uma conversa num chat tem um telefonema e por aí, . Ai eu comecei a descobrir
que o meu mundinho, que tava trancado, eu podia dividir com alguém, e foi o que eu
fiz....(Imara)”
111
fui, sempre deixei claro para elas que eu era lésbica, que eu sou lésbica, estava na ficha
funcional, nunca omiti.Na época eu tinha uma companheira que também trabalhava no
município. E que muitas pessoas conheciam. E pelo menos nesse espaço com as minhas colegas
de profissão eu me assumo. Em relação às crianças se chegam e perguntam se eu sou, o que até
hoje não perguntaram, mas eu responderia. Para as mais próximas lá, de tanto me perguntarem,
um dia eu cheguei e disse, não eu não tenho namorado eu tenho namorada! Mas é por exemplo,
em conselhos de classe, daquelas velhas conversas, daquelas velhas piadinhas, como por
exemplo, uma vez levantaram que uma menina estava com problemas de aprendizagem e um
professor chegou e falou, ah ela está com namorada. E continuaram argumentando e dando a
entender que estava explicado que ela estava com problema de aprendizagem porque ela estava
com namorada. É comigo ali. E daí eu problematizei, não que gostaria de saber se tem algum
problema de ela estar namorando outra menina. Porque isso não tem nada a ver com problema
de aprendizagem. Porque vocês não questionaram outros casais aqui na escola, casais hetero
(Cláudia)
Apesar de Cláudia não participar formalmente de algum grupo de militância, sua
aproximação de temas relacionados às relações entre gênero e sexualidade no período de
faculdade e através de cursos de formação na área (freqüentou, inclusive, um curso oferecido
pelo nuances) ajudaram-na a posicionar-se de forma combativa frente a imposição da
heterossexualidade como uma obrigação a todos os sujeitos. Reivindicando a retirada da
imposição da homossexualidade como um “problema” que poderia estar afetando a aprendizagem
de uma aluna, ela problematiza e procura desestabilizar o argumento de seus colegas.
“Então, uma série de coisa que antes eu ficava calada e que hoje eu me posiciono
mesmo que seja na brincadeira. É uma construção histórica mesmo, uma reafirmação dia-a-dia.
Vem um curso do Educando, que o primeiro eu não pude participar, mas participei do segundo..
E isso vai te encorajando. E tu vai pensando, eu vou pensando que as coisas se tornam mais
fáceis.”(Cláudia)
Simone seguiu por uma via diferente. Foi no encontro com o movimento Punk e com o
“anarco-feminismo” que ela pode estabelecer uma atitude bastante crítica a respeito do
preconceito e da discriminação. No entanto, preocupando-se pouco em tentar encontrar a razão
para a existência do preconceito. Se o faz, o faz sem fazer recurso a categorias intelectuais ou a
um saber científico. Para ela, é proibido ter preconceito de toda a sorte. Talvez até a proibição
seja um sinal de preconceito.
“A gente não esconde para ninguém. A gente não esconde, se é para andar de mãos
dadas a gente anda, não tem problemas. Até porque eu cresci aqui, todo mundo me conhece.
Então ninguém, até podem falar pelas costas. Mas diretamente nunca, aqui pelo menos. Até sei
112
de algumas coisas... Tem um primo meu que mora aqui que é totalmente homofóbico. Ele é
terrível. Tem a irmã dele que ela é lésbica, só que ela se esconde. Ela não quer aparecer, ela não
quer sair do armário. E eu cheguei abalando assim e eles levaram um baque. Porque até
então eu era casada com home. Eu sempre minha vida inteira, desde que eu me conheço por
gente assim, eu sempre lutei contra o preconceito, por se punk, por estar no meio do pessoal
anarquista e coisa e tal, então eu sempre, eu nunca tive preconceito contra isso.” (Simone)
“Anarco-feminismo é o feminismo junto com o anarquismo, que é a medida contra o
governo. Não queremos, a gente não acredita mais em políticos. E a parte feminista, que não é
aquela feminista que execra os homens. Não é isso. O feminismo que a gente, que eu luto pelo
menos, que ultimamente eu ando sozinha assim, só eu e o meu ex-marido assim. Ele, a gente quer
a libertação, quer a emancipação da mulher, mas não tirando o homem disso, porque acaba
sendo, sendo no caso preconceito também. E eu quero eliminar tudo isso de preconceito, eu tento
não ter preconceito com nada. Porque por mais que a gente não queira fica alguma coisa assim.
Não estou falando de preconceito racial, preconceito de homofobia, não é isso. Às vezes a gente
até, báh aqueles Argentinos, sabe, xenofóbia assim.” (Simone)
Parte deste engajamento passa por estratégias de reversão do estigma, apropriando-se de
termos utilizados para insultar e os transformando em palavras de afirmação positiva. A propósito
de um modo de subjetivação mais militante, esta também foi uma das estratégias que parte do
movimento homossexual e de mulheres sbicas encontraram para buscar a afirmação de uma
identidade positiva: esvaziar o sentido abjeto dos termos usados para acusação e imposição de
limites ao humano e ressignificá-los de forma a produzir a afirmação de uma diferença e de um
“orgulho”. Como nas palavras de Simone:
Eu não me agrido se a pessoa, ah sua sapatona, sou mesmo!Eu não me ofendo se me
chamar de machorra, sapatona, lésbica. Daí eu gritei sou sapatona mesmo e qual é que
é?(Simone)
5.4 “Hoje em dia é melhor”: o possível, mas difícil encontro com os aparelhos de
proteção do Estado.
Não tinha a Nuances na minha época para poder me proteger, para eu poder conversar.
(Heloisa)
113
É unânime entre as entrevistadas que a vida é melhor hoje que no passado. A idéia de uma
vida afetiva e sexual feliz entre mulheres está no horizonte das possibilidades contemporâneas. A
discriminação ainda é generalizada, mas existe uma visibilidade crescente na cultura (mídia, leis,
ONGs, etc.), a qual é percebida pelas entrevistadas, que a relacionam com a possibilidade de
viver suas escolhas/desejos sexuais com mais liberdade e mais proteção. No entanto, noção de
direitos ainda é difusa e o conhecimento de políticas públicas de combate a discriminação
homofóbica ainda é pouco conhecida, exceto nos casos em que estas mulheres tenham mais
proximidade com o movimento social, ou tenham sido por eles atingidas através de suas ações
sociais.
Um panorama social mais propício também se materializa em alguns aparelhos do Estado.
A forma de fazer valer estes direitos, entretanto, ainda passa pela boa vontade de servidores mais
sensíveis (como no caso da delegacia da mulher e da Delegacia Regional do Trabalho) à questão
e ao conhecimento dos caminhos a trilhar para acionar a máquina do estatal. Desta forma,
percebe-se que uma noção difusa dos direitos de homossexuais em geral também é partilhada
pelos atores estatais que estão na ponta dos mecanismos de proteção (como as delegacias de
polícia).
O próprio acesso ao CRDH foi, na maioria dos casos, precedido do recurso à delegacia de
polícia (em alguns casos à delegacia da mulher). Isso demonstra a precedência das políticas de
promoção/proteção dos direitos humanos que primeiramente foram dirigidas às relações de
gênero (pensando em uma mulher heterossexual vítima de um homem) e somente muito
recentemente (como descrito) às questões relativas à diversidade sexual. Apesar de algumas
vezes não terem sido claramente identificadas pelos atores de proteção na ponta das políticas
como detentoras de direitos(como no caso da delegacia da mulher), estas mulheres, pela
identificação com as políticas voltadas a proteção da mulher, identificam-se como possíveis
usuárias destes serviços.
As entrevistadas não identificam claramente uma política pública voltada a diversidade
sexual e sim a atuação protetiva das ONGs (no caso deste trabalho, o Nuances). As estratégias de
visibilidade de massa (como a Parada Livre e o Jornal do Nuances) bem como também a
realização de projetos, estiveram entre os itens mais mencionados como proporcionando uma
identificação positiva destas mulheres e uma maior visibilidade da diversidade sexual. Pode-se
114
atribuir a menor visibilidade da política (se relacionada as entidades que compõem o movimento
social) a própria estratégia elaborada pelo Brasil Sem Homofobia: ou seja, o combate a
homofobia através do fortalecimento a fomentação de atores do movimento social. Este
repertório faz parte de um repertório de ões governamentais cada vez mais associadas a um
estilo neo-liberal, onde as ações de proteção social são deixadas cada vez mais a cargo da
chamada “sociedade civil”. Entretanto, o fortalecimento de atores governamentais quanto à
questão também esta previsto, mas tem encontrado mais dificuldades em ser instaurado.
Pode-se também relacionar esta invisibilidade” da política pública a uma certa timidez‟
governamental em assumir uma postura mais clara na mídia na defesa dos direitos das minorias
sexuais, como faz com relação às mulheres .O que também informa sobre da dificuldade de
aprovar no congresso devido a resistência de deputados/as ligados à bancadas religiosas
contrárias a legitimação das homossexualidades de leis que criminalizem a homofobia e que
equiparem direitos. A idéia difusa de direitos se relaciona também a sua recente implantação no
Brasil e no mundo todo e as dificuldades políticas de sustentar esta questão face à resistência
moral presente na cultura.
“Eu acho que a aproximação assim com o Nuances e com tudo o que o Nuances vem
proporcionando todos esses anos. Tu ir para uma parada livre, tu começar por exemplo a sair
para uma boate, porque eu por exemplo, a primeira vez que eu fui numa boate, que eu decidi ir, é
sempre aquela dúvida, “mais o que eu vou encontrar lá?E daí tu vai construindo até chegar
nesse ponto. E isso vai te encorajando. E tu vai pensando que as coisas se tornam mais fáceis.”
(Cláudia)
“Não, não foram porque tinham medo, como elas eram de menores acabava sendo
chamado um dos responsáveis, aí. Que aliás eu acho que nisso tem um despreparo muito grande
no conselho tutelar e do menor e do adolescente. Porque tem adolescente que é homossexual,
que já tem sua definição, não existe uma visão de apoio ou pelo menos de apaziguar aquela
situação. Bem pelo contrário, tem uma coisa assim que é repressora. E deixa a pessoa mais
insegura e deixa na bobagem de fazer qualquer coisa. Eu acho que deveria ter pessoas mais
preparadas.(Heloísa)”
“Eu até pensei em colocar a Empresa na justiça por aceitar pessoas homofóbicas, mas
hoje não tem uma lei que protege a gente. Até podemos, digamos, processar pessoas por
preconceito né, mas não contra a homofobia. Não tem uma lei ainda. (Simone)”
“Por que eu na verdade assim oh, eu pensava em ir a algum lugar, mas não sabia aonde,
daí a minha namorada é quem disse, “então tu vai a Nuance porque que eles têm advogados
tem tudo que tu precisar eles vão te ajudar, se eles não tiverem eles vão te encaminhar, vai e
115
tenta não custa”. Porque é quem poderia me defender, por que acho que, não que os advogados
de fora dali não quisessem me defender, mas eu acho que através dali, quem ta ali dentro, quem
ta dentro do Nuances é pra ajudar mesmo quem é do meio, então por isso que eu fui ali.”... eu fui
à delegacia, eu tenho cinco ocorrências contra essa senhora. Antes de ir pro Nuances!(Odila)
“É me xingaram, mas não... Que nem eu te digo, me xingaram no sentido, não me
chamando de alguma coisa, porque hoje em dia todo mundo sabe que eu posso te processar se
tu...ousar ter algum preconceito em relação a minha pessoa, então eles tomavam muito cuidado,
mas agente sabia que nas entrelinhas era essa a causa. (Imara)
Muito mais haveria a ser dito sobre as trajetórias destas mulheres e é claro que toda
escrita comporta limites de tempo e de análise. Esta pesquisa é um recorte que fala de um
momento de transição no campo das políticas públicas que buscam, em uma associação do
Estado com os movimentos social, uma inflexão do dispositivo da sexualidade. De um Estado
que majoritariamente durante o século XX buscou classificar, discriminar, dividir, patologizar
comportamento e desejos; vislumbramos neste início de novo século um movimento ainda
tímido, mas visível de ampliar as possibilidades de viver com maior liberdade e respeito a
diversidade de expressões que compõe o espectro da sexualidade. A rede enunciativa
característica do campo se construiu nas transformações dos jogos de verdade que marcam o
dispositivo da sexualidade e buscam legitimidade propondo outras formas de pensar ações e
programas para além das lógicas classificatórias e normalizadoras. Entretanto, a análise
enunciativa das diretrizes das políticas dos movimentos sociais neste campo indica que estes
optaram majoritariamente por políticas identitárias, o que pode produzir novas capturas
assujeitadoras a partir de definições identitárias restritivas das chamadas minorias sexuais. Esta
estratégia produz de qualquer forma um lócus de reconhecimento próximo a ética de diversidade
ao permitir uma existência para além da esfera da abjeção e do insulto.
“Tu chegou a ver a Luciana Gimenez? Teve um negócio, que está na câmara, não sei se
vai ser aprovado ou não, do casamento gay no Rio de Janeiro. Uma coisa que eu acho é que
as pessoas por serem anarquistas tem que se desvincular do sistema estatal, do sistema
patriarcal . Por outro lado tu vive a vida inteira com uma pessoa e se tu é hetero tu consegue,
depois que a pessoa morre ficar pra ti os negócios, mas um casal, gay, lésbicas, não acontece
isso. Tu tem que lutar pelos teus direitos. Tu lutou a vida inteira com a criatura, a pessoa morre
tu fica com uma mão na frente e outra atrás porque a família da pessoa não aceita. Então nesse
sentido eu até acho correto que tenha uma lei para isso, que tenha que ter casamento. Mas
que daí vem aquela história: estou entrando no sistema (Simone) .”
116
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