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central nessa definição interpretativa é a fórmula da consagração
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. No sacrifício, a
consagração modifica o estado das coisas, passa-se do profano para o sagrado, ocorrendo
também o inverso. Nesse processo, a vítima é mediadora entre o ser humano e a divindade, é
o elo entre as duas instâncias, é quem possibilita o contato entre os dois mundos. Para os
autores, num ritual de sacrifício, é necessário que a vítima sacrificial não seja vingável
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, isso
para que o rito não traga conseqüências funestas aos participantes.
Para Mauss e Hubert, tais práticas estabeleciam comunicação entre o mundo sagrado
e o mundo profano por intermédio de uma vítima, isto é, de algo destruído no curso da
cerimônia. Acreditavam que os sacrifícios não eram ritos primários na história, mas um
produto tardio da evolução religiosa. Segundo eles, os seres humanos deveriam ter uma
concepção mais precisa e personificada dos seres sobrenaturais, aos quais eram oferecidos
sacrifícios. A concepção dos atos rituais deveria passar, necessariamente, pela idéia de
satisfação, prazer ou necessidade do sagrado sobrenatural para com tais atos, especialmente
quando se tratam de sacrifícios humanos.
As práticas sacrificiais são inúmeras e extremamente variadas, assim como os
objetivos e seus meios. Contudo, embora muitas das interpretações sociológicas e
antropológicas tenham aproximações com a nossa pesquisa, tentaremos não reproduzir uma
espécie de esquema interpretativo a partir das análises já consagradas no mundo ocidental.
Acreditamos que a forma de se interpretar o mundo, bem como os rituais subjacentes à
cosmovisão mesoamericana, possuem singularidade. Nessa perspectiva, acreditamos que a
concepção de mundo dos povos mencionados não pode ser avaliada ou interpretada a partir de
um esquema, já que possui suas próprias construções cosmogónicas, muito distintas do
mundo e do pensamento ocidental.
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“[...] a consagração ultrapassa a coisa consagrada. Neste sentido, este algo consagrado intermedia a relação
sacrificante x divindade. A vítima do sacrifício possibilita o contato entre dois mundos, o sagrado e o profano. É
fundamental que esta vítima seja destruída pela consagração, o que confere um caráter sacrificial mesmo aos
rituais “não-sangrantes” como o caso de oferendas vegetais, libações de vinho ou leite. O objeto assim destruído
é a vítima sacrificial.” (MAUSS, HUBERT, 2005).
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A teoria apresentada por Hubert e Mauss, de que o elemento a ser sacrificado não pode ser vingável, não
confere com o que se conhece sobre os rituais de sacrifícios e antropofagia entre os tupinambás. A identidade
cultural dos tupinambás encontrava-se imbricada com a noção de uma vingança, a qual gerava a guerra, a
captura de prisioneiros, culminando nos rituais de sacrifício e antropofagia. Nesse processo de guerra e vingança
a um parente morto, perpetuava-se a idéia de captura do inimigo, o qual faz parte da lógica da vingança. O
sacrifício e antropofagia era, para os tupinambás, uma forma de restituir o parente que havia sido capturado e
morto, dentro do mesmo processo ritual, pelos seus inimigos. Na prática antropofágica, os tupinambás
beneficiavam-se mais das substâncias do parente que havia sido morto e servido em um ritual de sacrifício e
antropofagia pelos inimigos, do que pelo próprio inimigo que era morto e servia de alimento ritual. Assim, os
tupinambás buscavam, com a antropofagia, uma reapropriação de um parente morto. Mais que isso, seria esta
uma forma de recuperação da integridade da coletividade.