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A Argentina, rumo a outra dimensão de país
2 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
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DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Roberto Lavagna
3
A Argentina, rumo a outra dimensão de país
4 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
4
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Roberto Lavagna
5
A Argentina, rumo a
outra dimensão de país
Roberto Lavagna
*
N
o verão de 2001-2002 a República Argentina atingiu o ponto mais
baixo da sua história, de modo dramático. Não se tratava apenas de mais um
fracasso, continuando a sucessão de fracassos dos 27 anos precedentes, mas
de um desastre tão grande que deixou a sociedade argentina devastada.
Esse colapso foi a conseqüência de muitos anos de políticas equivocadas,
que foram gerando ilusões esporádicas de prosperidade, as conhecidas “bolhas”,
depois das quais sobrevinham invariavelmente crises severas.
Por fim, em dezembro de 2001 o país passou por uma asfixia econômica,
depois de quatro anos de recessão; asfixia financeira, com o fechamento de
todos os mercados e a impossibilidade de cumprir seus compromissos; asfixia
institucional, com a queda do governo e a sucessão de vários presidentes em
uma única semana; e asfixia social, posto que mais da metade da população
mergulhou abaixo da linha de pobreza.
* Ministro da Fazenda da República Argentina
A Argentina, rumo a outra dimensão de país
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6
O resultado da década de 1990 é conhecido de todos: desestruturação
do sistema produtivo e do sistema de emprego; déficit acumulado de conta
corrente, de 90 bilhões de dólares; déficit comercial de 23 bilhões de dólares,
e duplicação pura e simples da dívida externa.
Em abril de 2002, com quase 110 bilhões de dólares de dívida em
inadimplência (de uma dívida total de 144 bilhões, sendo que 35 bilhões com
organismos internacionais), a economia paralisada, o emprego nos níveis mais
baixos, prognósticos quase unânimes de hiperinflação, o dinheiro do público
preso no “corralito” e o “corralón”, com nada menos de 14 moedas circulando
no país. Para a sociedade argentina, conquistada pelo desespero e a descrença
nos seus homens públicos, só restava um caminho: reagir e iniciar um processo
de normalização, no qual o Estado cumprisse um papel fundamental, no
momento de definir a necessária distribuição das perdas.
O governo se voltou então para uma gestão imediata, com base nos
seguintes elementos:
• rejeitar as demandas corporativas no sentido de transferir todo o peso
da crise para o Estado e o conjunto da sociedade;
• propor soluções “voluntárias” ao programa inquietante do “corralito” e
do “corralón”, quando a proposta do sistema financeiro nacional e
internacional era no sentido de fazê-lo de forma compulsiva; e
• abordar a gestão de novos acordos com os organismos financeiros
internacionais, e depois com os credores privados, priorizando nessa
negociação a necessidade irrenunciável da recuperação social, o
crescimento e a capacidade real de pagamento do país.
Somente assim poderia a sociedade argentina começar a adotar o único
remédio aconselhável e eficaz para curar os males que atingem um país: o
crescimento. Caso contrário, só havia a dissolução à sua frente.
Por isso foram negados os pedidos de aumento das tarifas dos serviços
públicos, então injustificados; o ajuste dos saldos pelo índice inflacionário,
com a conseqüente redução do imposto sobre ganhos; a eliminação da retenção
das exportações, enquanto a crise não se resolvia; a manutenção do pagamento
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em dólares do fator de convergência, vantagem que tinha sido concedida aos
exportadores durante o ano de 2001; a aplicação de um seguro cambial para
ajudar as empresas endividadas no exterior; o pagamento no vencimento de
uma dívida que tivesse abortado o processo de recuperação; o pedido de um
setor do sistema financeiro de voltar a emprestar em dólares aos clientes que
ganhavam em pesos; a compensar as entidades financeiras por medidas
judiciárias não baseadas em uma sentença firme e a aplicar ajustes fiscais,
mesmo a risco de não progredir rapidamente em um acordo com o Fundo
Monetário Internacional.
Se todas essas “exigências”, ou algumas delas, tivessem sido aceitas teria
havido a repetição da saída das crises de 1982 e 1989-1990, em que o Estado
atuou como “sócio tolo”, ficando com as perdas, que nos dois casos foi de
milhares de milhões de dólares.
A normalização e o crescimento
Passaram-se três anos e poucos meses do colapso, e o resultado do “Plano
de Normalização e Crescimento” é visível; nesse período a recuperação do
Produto Bruto foi de 26%, e se sustenta por mais de 12 trimestres de
crescimento contínuo, fortemente impulsionado pela produção industrial, que
aumentou em 38,5% no mesmo período. Desnecessário dizer que esses índices
constituem um recorde histórico na Argentina.
Os demais indicadores macroeconômicos também apresentam recordes:
a preços correntes o investimento chegou a 21 por cento do PIB no quarto
trimestre de 2004; as exportações chegaram a US$35 bilhões; o setor fiscal
mostrou um superávit de 5%, incluídas as províncias. O consumo interno
cresceu 9,4% no ano passado. A Argentina passa por um processo de
reindustrialização, do qual participam ativamente numerosas empresas,
especialmente pequenas e médias empresas industriais e agro-industriais,
responsáveis por quase 100% da recuperação do emprego.
Em todo esse período foram criados 2,5 milhões novos postos de
trabalho, não só pelo crescimento econômico sustentado mas também porque
o atual padrão de desenvolvimento com justiça social está gerando mais
empregos por unidade do PIB, o que resulta da maior atenção às pequenas e
médias empresas e às economias regionais, da expansão do mercado interno e
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das exportações competitivas. Isso tem permitido também que cerca de 5,2
milhões de argentinos saíssem da situação de pobreza.
Este ano conseguiu-se finalmente reestruturar a dívida, depois de uma
negociação difícil e prolongada, devido às características desse passivo, representado
por 152 títulos, em 6 moedas e 8 jurisdições legais. Neste sentido a lógica de
negociação usada pela Argentina – de que sem crescimento com inclusão social
não há capacidade de pagamento que seja durável – está começando a ser aceita
em nível internacional, ficando assim possivelmente como a maior contribuição
dada pelo nosso país à estabilidade dos mercados financeiros.
O tempo da consolidação
A sociedade argentina tem agora as condições necessárias – embora
talvez não as suficientes – para consolidar as tendências atuais de crescimento
e evitar os clássicos stop and go da economia do país, que sofremos em cada
uma das três décadas passadas.
O objetivo agora é consolidar um crescimento sustentável e garantir a
equidade, tendo o investimento e o consumo internos como motores, uma
vez que o consumo é a variável da demanda agregada que assegura uma
reabsorção mais rápida do hiato entre o produto potencial e o produto real do
país.
Para ser preciso, o consumo não poderia ter crescido nestes três anos se
a massa salarial não tivesse crescido como aconteceu, mediante aumentos que
ocorreram devido à maior produtividade da economia, seja por decretos como
por numerosos acordos, no quadro de convenções coletivas setoriais ou pela
negociação entre empresas e seus empregados, assim como os recursos
destinados pelo Estado aos necessários planos sociais, que com o tempo convirá
reconverter em planos para a inclusão no mercado de trabalho.
No entanto, nada do que se conseguiu poderá ser consolidado se não se
mantiver a disciplina do superávit fiscal, que deu ao governo a independência
necessária para estabelecer suas políticas, incluindo a que fundamentou uma
negociação vigorosa da dívida externa. Isso vale tanto para a nação como para
as províncias, que neste período fizeram também um grande esforço de
reordenamento para alcançar o superávit nacional. Está claro que o federalismo
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é inexistente – ou não passa de um estranho federalismo – se as províncias
dependem do tesouro da nação para pagar salários e despesas ordinárias. Hoje,
porém, elas podem suportar suas despesas comuns e projetar e desenvolver
seus próprios projetos de infra-estrutura.
No comércio exterior a Argentina está evidenciando também mudanças
estruturais que deverão consolidar-se, uma vez que tanto a exportação como a
importação estão crescendo com saldos positivos, dando como resultado saldos
superavitários que contribuem de forma significativa com divisas genuínas
para o processo de industrialização e o cumprimento dos compromissos
externos da nação, empenhada no firme propósito de libertação do seu
endividamento.
Essa conduta se manifesta na exportação, por meio da diversificação de
produtos e mercados, e na importação, por intermédio do componente
predominante de bens de capital, peças e componentes de equipamentos, que
integram as compras feitas no exterior, como parte de um processo de
investimento associado à necessidade que têm as empresas de equipar-se ou
atualizar as suas fábricas, tendo em vista satisfazer a maior demanda do mercado
interno e também da exportação.
Neste sentido a ação desenvolvida pelo governo nos últimos três anos
inclui uma gestão de balizamento destinada a favorecer as condições para a
fixação ou permanência de indústrias no país, e as atividades do comércio
exterior, mas está claro que é a iniciativa privada que define os resultados
alcançados pelo setor. Além das gestões realizadas dentro da região, o governo
está firmemente comprometido, individualmente, com uma participação que
o país antes não tinha em negociações internacionais para levantar barreiras
comerciais junto com o Mercosul ou com o Grupo dos Vinte, realizadas com
diferentes blocos e com a Organização Mundial de Comércio (OMC). As
mais relevantes são as da Rodada Doha, no quadro da OMC, e a negociação
Sul-Sul, proposta pela Argentina na atual gestão.
Como é natural, ainda falta muito por fazer, especialmente com respeito
à dívida social. O ideal, que não está dissociado do possível – desde que se
tome a decisão apropriada a cada caso – é conseguir a estabilidade estrutural
do sistema e duplicar o produto bruto do país a cada quinze anos. Para isso é
preciso trabalhar em conjunto no plano das idéias e da ação, assumindo certas
definições indissolúveis como um conjunto irrenunciável de idéias, a saber:
A Argentina, rumo a outra dimensão de país
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• “o pensamento único” foi um fator fundamentalíssimo do fracasso e,
por oposição, a tolerância, a abertura ao diálogo, a dissidência honesta,
enriquecem;
• a integração ao mundo moderno, aberto, flexível e democrático é
irrevogável, mediante a abertura ao investimento direto estrangeiro e o
comércio exterior;
• o desenvolvimento em ciência e tecnologia é impostergável, e
• a inclusão social e a luta contra a pobreza são condições que não devem
ser abandonadas enquanto houver um só argentino que precise do apoio
do Estado.
As condições necessárias com que conta a Argentina para conseguir
consolidar uma recuperação e crescimento consistentes são as tendências
claramente favoráveis de todos os seus indicadores econômicos, assim como
a riqueza tanto dos seus recursos naturais como humanos. Como o país é rico
nesses recursos, suas estratégias devem basear-se em um desenvolvimento
que combine o uso extensivo dos recursos naturais e o emprego intensivo dos
seus recursos humanos.
A Argentina deve aproveitar em todos os aspectos as suas vantagens naturais
em matéria agrícola e pecuária, pesca, mineração e energia. Em vários desses
setores as vantagens naturais lhe permitiram suportar circunstâncias econômicas
adversas melhor do que outros. Seu papel principal deve ser a geração de
excedentes de divisas, a ocupação do território nacional e a preservação de certos
aspectos da identidade nacional.
O limite desse grupo de atividade econômica reside hoje em um
processamento ainda insuficiente, e em valores agregados relativamente baixos.
Em parte isso pode ser corrigido por políticas mistas, privadas e públicas, de
estímulo à diferenciação.
Por outro lado, a despeito do retrocesso social e educacional havido nos
últimos vinte e cinco anos, e em especial na década de 90, ainda se poderia
dizer que dentro do mundo em desenvolvimento a Argentina guarda uma
vantagem comparativa em matéria de recursos humanos.
Essa vantagem pode mobilizar setores como o turismo, o desenho, a
arte e a moda; os meios de divulgação, a publicidade e o cinema; a produção
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editorial, para o rádio e a televisão; os serviços educativos; a medicina, os
serviços sociais e pessoais; a biotecnologia, a genética animal e humana; as
indústrias nuclear e espacial; o desenvolvimento aeronáutico e seus serviços; a
engenharia de produtos; os bens de capital associados ao campo e aos alimentos;
o software e a informática em geral, as comunicações; as tecnologias do gás, da
química e petroquímica; os produtos para a construção ligados à mineração; a
indústria farmacêutica em geral, e em particular a produção de genéricos;
programas integrais do tipo Remediar, etc.
Também nesse sentido o governo tem contribuído com sua ação para
abrir caminhos que devem ser percorridos pelo setor privado, como a Lei do
Software, o programa MiPC voltado para reduzir o hiato digital, o Plano
Nacional de Nanotecnologia, o projeto de Lei de Biotecnologia, o plano de
radarização, os acordos de satélites do Invap com a Nasa – todos esses
empreendimentos muito pouco midiáticos, mas que constituirão a base de
uma Argentina com outra dimensão de país.
Essa dimensão pode e deve começar a ser atingida na presente década,
para estar plenamente consolidada em 2016, quando a Argentina celebrar o
bicentenário da sua Independência. Para alcançar esse objetivo é preciso não só
olhar para frente, mas também revisar de quando em quando a nossa experiência,
mostrando que o caminho fácil nem sempre é o mais adequado; que as “bolhas”
econômicas têm um só destino, que é estourar, e que atrás de cada reconstrução
há o esforço de toda uma sociedade, investimento e tempo.
Tradução: Sérgio Bath.
Os movimentos indígenas na Bolívia
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Bolívia é um dos países de maior densidade demográfica indígena em
toda a América Latina. Nascida como 1825 como república, com uma porcentagem
de indígenas perto de 90% (excluídos por isso dos direitos de cidadania), atualmente
cerca de 62% dos habitantes com mais de 15 anos se identificam como pertencentes
a um dos povos indígenas, e pouco mais de 40% falam um idioma materno
ameríndio. Dos 38 povos indígenas originais, os dois mais importantes são os
quêchuas, que correspondem a 30% da população total, e os aimarás, que
correspondem a 25%.
1
Os quêchuas estão localizados principalmente nos vales,
enquanto os aimarás ocupam o altiplano, nas zonas rurais e urbanas. Assim, El
Alto, a terceira cidade mais importante do país, é majoritariamente indígena. Os
outros 35 povos indígenas, localizados sobretudo nas terras baixas, chegam a 6%
da população total. Como veremos adiante, essas diferenças na demografia e na
localização geográfica ajudam a entender certas características da ação coletiva e
dos pronunciamentos dos movimentos indígenas contemporâneos.
Os movimentos
indígenas na Bolívia
Álvaro García Linera
*
A
*
Matemático e Sociólogo – Universidade Maior de San Andrés, La Paz, Bolivia
1
Cf. Instituto Nacional de estadísticas, Censo de Población y vivienda 2001, La Paz, 2002.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Álvaro García Linera
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Embora a história dos povos indígenas do continente americano seja
marcada por ciclos de extermínio, de insurgência, de pactos e de inclusão
social na estrutura predominante da sociedade, no processo de assimilação e
mestiçagem cultural do último século esses movimentos não conseguiram
dissolver ou mesmo atenuar as profundas diferenças socioeconômicas da
população. Isso se deu não só devido à capacidade de resistência dos povos
indígenas como principalmente pelo caráter limitado, parcial e muitas vezes
simulado dos processos de inclusão e homogeneização social impulsionados
pelo Estado. A despeito dos direitos de cidadania que lhe foram concedidos a
partir de meados do século XX, da redistribuição de terras nos vales e no
altiplano, do aceso à educação gratuita nas últimas décadas, e de outras medidas
de reforma, todas elas vieram acompanhadas por uma renovação dos
mecanismos de exclusão e desvalorização social e simbólica da procedência e
da identidade indígena, que ao longo do tempo revitalizaram o surgimento de
movimentos de reivindicação étnica. Assim, apesar da igualdade diante da lei,
na vida quotidiana e na vida pública a origem étnica, o idioma falado, o
sobrenome ou a cor indígena são motivos de desvalorização em termos práticos
de exercício de direitos. Assim, com o tempo recriou-se uma segmentação
cultural da estrutura de oportunidades e de mobilidade social que é visível na
segmentação étnica do mercado de trabalho.
Uma investigação realizada pela Universidade Católica, com dados do
último censo da população e moradia, mostrou que na Bolívia 67% dos
empregos vulneráveis estão em mãos de setores indígenas, assim como 28%
dos empregos semiqualificados e 5% dos empregos qualificados. A mesma
pesquisa incluiu também um levantamento sobre a remuneração salarial em
função da procedência étnica, descobrindo que em média os indígenas recebem
30% do salário de um não-indígena que exerça a mesma função.
Em termos de condições de vida, o índice de necessidades básicas
insatisfeitas (NBI), que é uma norma internacional utilizada para estudar a
qualidade de vida das pessoas, se tem mantido invariável no caso dos municípios
com auto-identificação indígena, especialmente no campo, embora tenha
diminuído percentualmente nas últimas décadas. Na Bolívia a pobreza é
proporcional ao caráter indígena da população.
2
2
J. Arreaño, Pueblos originarios o indígenas en Bolivia, Viceministerio de asuntos indígenas y agropecuarios, La
Paz, 2003.
Os movimentos indígenas na Bolívia
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Assim, no nosso país a pobreza e o bem-estar, a exclusão e a ascensão
social têm um importante componente étnico, cultural e lingüístico. Do ponto
de vista estatal há portanto etnias válidas e etnias desvalorizadas, culturas
punidas socialmente e prejudicadas em termos de ascensão social e outras
que são socialmente aptas, premiadas pelo reconhecimento da sociedade. Pode-
se dizer assim que em sentido estrito na Bolívia a etnia desempenha o papel de
um capital – é o capital étnico que vem a ser um valor social, um bem desejável,
monopolizável e facilitador da ascensão na sociedade. Neste sentido pode-se
dizer que na Bolívia, juntamente com o capital econômico e o capital cultural
(os diplomas, etc.), o capital étnico
3
é mais um componente, como vício da
cultura nacional, que permite estruturar o movimento para cima e para baixo
na escala social, a inclusão e a exclusão, a hierarquia e a classificação sociais.
Portanto, não é de estranhar que nas últimas décadas os movimentos
sociais indígenas tenham recobrado uma vitalidade política que não pode ser
criticada; e que, no caso da Bolívia, tenham acumulado um capital político –
parlamentar e extraparlamentar – que as convertem nas principais forças sociais
de interpelação do Estado, de governabilidade sociopolítica, inclusive de
reforma institucional, com razoáveis possibilidades de no futuro virem a
conquistar o governo por via democrática. Com efeito, nas últimas eleições
presidenciais, de 2002, uma das candidaturas indígenas chegou a se distanciar
em apenas um por cento do total de votos obtidos pelo candidato eleito, que
um ano depois foi afastado por uma sublevação social.
Os vários movimentos sociais indígenas
Devido à diversidade histórica dos povos indígenas, não há na Bolívia
um único movimento indígena que tenha incursionado em lutas sociais e
políticas; existem vários movimentos, que diferem entre si de forma notável
nas suas reivindicações, na atitude assumida diante do Estado, nos repertórios
de mobilização, na sua identidade e base social. Entre os movimentos indígenas
mais importante podemos mencionar os seguintes:
3
A. García Linera, “Espacio social y estructuras simbólicas. Clase, dominación simbólica y etnicidad en la obra
de P. Bourdieu”, em Bourdieu Leído Desde el Sur, Alianza Francesa / Embajada de España/ Instituto Goethe /
Plural, La Paz, 2000.
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Álvaro García Linera
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1.- O movimento indígena aimará, localizado na zona do Altiplano e
articulado em torno da Federación Sindical Unica de Trabajadores Campesinos de La
Paz “Tupac Katari” (Fsutclp-TK) afiliada à Confederación Sindical Única de
Trabajadores Campesinos de Bolivia (Csutcb). Esta última se intitulada um sindicato
mas na realidade está composta por comunidades camponesas indígenas, e é a
estrutura indígena mais antiga deste novo ciclo de representação dos interesses
indígenas, iniciado há trinta anos entre os aimarás urbanos e rurais. Embora a
princípio a Csutcb articulasse comunidades indígenas aimarás e quêchuas, nos
últimos anos ela se dividiu em duas, sendo a quêchua, de Román Loayza, a de
maior extensão geográfica, enquanto a aimará, de Felipe Quispe, a mais
politizada e de maior capacidade de pressão. Os aimarás vivem no
Departamento de Laz Paz e Oruro, têm maior coesão social e maior força de
mobilização (nessa região ocorrem os bloqueios de estradas mais importantes),
além de maior consciência da sua identidade étnica, devido à presença de uma
ampla e influente intelectualidade, que nas últimas décadas recriou uma narrativa
histórica baseada na autonomia da nação aimará. Embora no interior desse
movimento haja muitas tendências distintas e várias formas organizadas de
mobilização social (partidos políticos, agrupamentos culturais, locais, etc.), a
Csutcb, que agrupa todas as comunidades camponesas organizadas em torno
de fidelidades tradicionais, é a força sociopolítica mais importante e compacta,
cujas reivindicações estão orientadas exclusivamente para o Estado. Detentora
de uma clara identidade indígena, em confronto com o Estado, que qualifica
de “colonial”, a Csutcb combina reivindicações econômicas (estradas, saúde,
educação, tratores, apoio econômico) com exigências sociopolíticas
(nacionalização dos hidrocarbonetos, novo modelo econômico, autonomia
indígena). Com esse fim uniu a sublevação com a negociação, visando obter
reconhecimento, e tem transitado para um tipo de nacionalismo aimará com
crescentes demandas de auto-governo. Na última década sua pregação envolveu
setores indígenas urbanos e outros movimentos indígenas do país,
especialmente na Fejuce de El Alto, onde a maioria dos repertórios de
mobilização camponesa foram readaptados ao seu emprego no mundo urbano.
2.- A Confederación Indígena del Oriente Boliviano (Cidob) e a Coordinadora de
Pueblos Étnicos de Santa Cruz (Cpesc), reúnem dezenas de pequenos povos
indígenas das terras baixas, da Amazônia e do Chaco, regiões onde o latifúndio
é importante. Fundadas em fins da década de 1980, essas organizações indígenas
conseguiram articular muitas etnias que durante um longo período eram
Os movimentos indígenas na Bolívia
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invisíveis devido à sua baixa densidade demográfica. Auto-assumidos como
indígenas, as suas demandas, às vezes contra o Estado, por vezes contra os
fazendeiros e empresários agrícolas da região, têm caráter mais reivindicativo
(títulos de propriedade comunitária, projetos de desenvolvimento, educação
bilíngüe, etc.). Diferentemente dos movimentos indígenas das terras altas, que
enfrentam as autoridades bloqueando estradas, as organizações indígenas da
zona oriental da Bolívia recorrem preferentemente às marchas e se inclinam
mais à negociação, ao seu reconhecimento e a acordos firmados com o Governo.
3.- Federaciones de Productores de hoja de coca de los Yungas y el Chapare, integradas
pelas comunidades indígenas e camponesas dos vales Inter-andinos e do trópico
boliviano. Composta por pouco mais de 50.000 famílias, a identidade dessa
organização mudou nas últimas décadas, passando de uma auto-identificação
camponesa para camponesa-indígena. Em sua maior parte essas comunidades
estão integradas por aimarás (no caso dos chamados “yungas”, centenária zona
tradicional de cultivo de folha de coca), e por camponeses quêchuas e ex-
trabalhadores que perderam o emprego no Chapare, região de expansão do cultivo
da coca nas três últimas décadas. Embora nessas duas regiões tenha havido uma
rápida adoção de uma identidade indígena, as demandas do movimento dos
cultivadores de coca (os “cocaleros”) se inscrevem no âmbito de reivindicações
moderadas de camponeses. Na medida em que o cultivo da folha de coca pode
proporcionar uma renda média quatro vezes ou mais superior à de qualquer
camponês típico (600 dólares por ano), essa atividade tem sido uma das poucas
beneficiadas pelo livre comércio para promover uma mobilidade social ascendente.
Paradoxalmente, em um cenário de predomínio ideológico do mercado livre, foram
os governos locais e a pressão norte-americana que limitaram coercitivamente o
negócio da folha de coca (destinado ao consumo tradicional lícito e à sua
industrialização ilícita), obrigando o movimento a endurecer os métodos de
mobilização em defesa do seu cultivo, até convertê-lo em um dos mais radicais em
termos de pressão social. Deste modo, sobre demandas relativamente moderadas,
os “cocaleros” tiveram que implementar meios de mobilização de força coletiva que
provocaram em varias oportunidades a paralisia das principais rotas de trânsito
econômico do país, como a rodovia Santa Cruz-La Paz.
Nos últimos quatro anos, com a emergência da força dos vários
movimentos indígenas em todo o país, o movimento de defesa da coca adotou
estratégias de alianças regionais e nacionais que deram lugar à formação de
um “instrumento político” eleitoral que lhes permitiu conquistar o segundo
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Álvaro García Linera
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lugar na votação nacional no ano de 2002, com uma diferença de só um ponto
percentual com respeito ao partido vitorioso, o MNR. Mais do que um partido,
esse “instrumento político”, denominado Movimento ao Socialismo (MAS), é
uma coalizão flexível de muitos movimentos sociais indígenas ou não, rurais e
urbanos, trabalhistas, associativos, camponeses, que expandiram no âmbito
parlamentar seus estruturas de mobilização. Estritamente, hoje o MAS, cujo
dirigente máximo é o líder indígena Evo Morales, é a força política eleitoral
que está construindo um conjunto de oportunidades que pode possibilitar a
médio prazo o acesso à presidência do primeiro indígena em toda a sua história
política. Para isso, porém, Evo Morales teve que modificar a sua linguagem de
modo a integrar-se no mundo urbano com maiores graus de mestiçagem
cultural. Pode-se dizer assim que hoje o líder indígena Evo Morales dirige um
movimento político e apresenta uma proposta política com claro conteúdo de
mestiçagem social, semelhante às reivindicações feitas, algumas décadas atrás,
por outras agremiações políticas de classe média mestiça, com a diferença de
que agora essa proposta é dirigida por um indígena.
4.- A Federación de Juntas de Vecinos de El Alto (Fejuve) é uma entidade que
congrega as associações urbanas de bairro da cidade de El Alto. Formada em
1954, quando El Alto não passava de um simples aglomerado de bairros semi-
urbanos. A Fejuve agrupa a maioria dos 700.000 moradores,
predominantemente indígenas (80%) e de recente migração rural, que vivem
hoje naquela cidade. Suas células são comunidades urbanas de tipo territorial
(as “juntas de vecinos”) – o único “seguro social” autônomo com que contam os
migrantes para construir suas casas, calçar as ruas, instalar serviços básicos ou
regulamentar a segurança local. Nos últimos anos as juntas de vecinos de El Alto
têm desempenhado um papel protagônico, em função da crescente politização
das suas exigências, focalizadas na desprivatização dos serviços urbanos básicos
(água, luz, transporte), sua participação na rebelião social que destituiu o
Presidente Sánchez Losada, em 2003, e na campanha pela nacionalização dos
hidrocarbonetos, nos meses de maio e junho de 2005. Com uma proporção
elevada de operários (cerca de 40%) e forte presença discursiva da ideologia
indianista na sua estrutura de bairros, as juntas vecinales constituem a expressão
mais nítida de um tipo de movimento social que combina a antiga experiência
sindical operária com o discurso e as práticas indígenas urbanas aimarás.
O surgimento do protagonismo político das juntas de vecinos é um
fenômeno que foi sendo gestado nos últimos cinco anos. Rompendo as redes
Os movimentos indígenas na Bolívia
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18
de clientela que uniam as juntas ao partido governista nacional e municipal, o
primeiro momento de autonomia política da Fejuve surgiu com a participação
na demanda de uma universidade pública apresentada pela cidade de El Alto.
Essa mobilização durou dois anos (2001-2003), o que permitiu o fortalecimento
das redes de bairros e um crescente processo de politização. Em agosto de
2003 as juntas vecinales promoveram uma suspensão de atividades por 48 horas,
em protesto contra um formulário municipal; alguns meses depois, em
setembro e outubro de 2003, mobilizaram as “postas”, e influíram na
mobilização indígena iniciada pelos camponeses aimarás do altiplano contra a
venda de gás ao Chile, com uma insurreição sem armas que, provocando 69
mortes, culminou com a fuga do Presidente Sánchez de Losada. Em janeiro
de 2005, uma nova mobilização da Fejuve conseguiu terminar o contrato de
gestão da água potável com a empresa francesa Águas del Illimani. Finalmente,
em maio e junho, as juntas lideraram um novo ciclo de protestos com a
interrupção das atividades durante três semanas, com a exigência da
nacionalização dos hidrocarbonetos que culminou com a renúncia do Presidente
Carlos Mesa.
A Fejuve se converteu hoje no movimento social mais forte do país,
com reivindicações nacionais e estatais que a levou a propor o tema do poder
político governamental para conseguir alcançar os seus objetivos, que se voltam
para a estruturação de um novo sistema político e de um novo regime
econômico.
O movimento indianista contemporâneo
Embora existam na atualidade uma ampla variedade de movimentos e
lideranças indígenas na Bolívia, o cenário cultural comum que os unifica é um
conjunto de propostas, interpretações e projetos de emancipação elaborados
coletivamente ao longo das últimas décadas. Seja na sua versão mais pacifista
e de defesa dos direitos de “minoria” (movimentos indígenas das terras baixas)
ou na versão de “maioria” indígena, com a tomada do poder (movimento
indígena aimará), pode-se falar em uma plataforma de reivindicações, discursiva
e de identidade indianista na qual cada liderança e cada organização prioriza
determinados elementos e contribui de seu lado para ampliar um universo
discurso em expansão.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Álvaro García Linera
19
O indianismo
O voto universal, a reforma agrária que extinguiu o latifúndio no altiplano e
nos vales e a educação universal e gratuita fizeram do ideário do nacionalismo
revolucionário um horizonte de época que se apossou de boa parte do imaginário
das comunidades camponesas, que encontraram nesta forma de aquisição da
cidadania, de reconhecimento e mobilidade social uma convocação para a
nacionalização, culturalmente homogeneizadora, capaz de deslocar e diluir o
programa nacional étnico de resistência de algumas décadas passadas. Foram
momentos de um crescente afastamento étnico do discurso e do ideário camponês,
uma aposta na inclusão concebida no projeto de coesão cultural mestiça irradiada
a partir do Estado e da conversão dos incipientes sindicatos camponeses na base
de apoio do Estado nacionalista, tanto na sua fase democrática de massas (1952-
1964) como na primeira etapa da fase ditatorial (1964-1974).
A sustentação material desse período de hegemonia nacional-estatal no
campo será a crescente diferenciação social, que permitirá a criação de
mecanismos de mobilidade interna, através dos mercados, e a ampliação da base
mercantil da economia rural, o acelerado processo de urbanização que levará a
um rápido crescimento das cidades grandes e médias e à flexibilidade do mercado
de trabalho urbano; que habilitará a crença em uma mobilidade exitosa do campo
para a cidade, mediante o acesso ao trabalho assalariado estável e o acesso à
educação superior como modos de ascensão social. Os primeiros fracassos desse
projeto de modernização econômica e de nacionalização da sociedade começaram
a se manifestar na década de 1970, quando a natureza étnica, revelada pelo nome,
o idioma e a cor da pele, voltará a ser atualizada pelas elites dominantes como
mais um dos mecanismos de seleção para a mobilidade social, renovando a
velha lógica colonial da classificação e desclassificação social, que conferia à
etnia, juntamente com as redes sociais e a capacidade econômica, o caráter dos
meios principais de ascensão e de rebaixamento na escala social.
Somado à limitação do mercado de trabalho moderno, incapaz de acolher
a migração crescente, isso habilitará um espaço de nascente disponibilidade
para o ressurgimento da nova visão do mundo indianista, que nos últimos 34
anos passou por vários períodos: a fase formativa, a fase de cooptação estatal e o
período da sua conversão em estratégia de poder.
A primeira parte dos anos 70 é a da gestação do indianismo enquanto
construção discursiva, política e cultural, formadora de fronteiras culturais
Os movimentos indígenas na Bolívia
20 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
20
como modo de tornar visíveis as exclusões e hierarquias sociais. Inicialmente,
o indianismo surge como discurso político que começa a re-significar de modo
sistemático a história, a língua e a cultura. Em alguns casos, essa formação
discursiva revisará a história colonial e republicana para exibir as injustiças,
usurpações e discriminações de que serão objeto os povos indígenas na gestão
das riquezas e dos poderes sociais. Em outros casos, serão denunciadas as travas
existentes nos processos de aquisição da cidadania e de ascensão social oferecido
pelo projeto mestiço nacionalista iniciado em 1952. Nas duas vertentes
complementares tratava-se de um discurso de denúncia e interpelação, o qual,
baseado na revisão da história, evidencia a impossibilidade de cumprir os
compromissos de cidadania, de mestiçagem, de igualdade política e cultural com
que, a partir de 1952, o nacionalismo se aproximou do mundo indígena e camponês.
Isso vai acontecer, desde os anos setenta, em plena vigência do modelo
estatal centralista e produtor, e vai desenvolver-se por meio da atividade de
uma intelectualidade aimará migrante, temporária ou permanente, que
atravessou processos de escolarização superior e de vida urbana, mantendo
porém seus vínculos com as comunidades rurais e seus sistemas de autoridade
sindical. Esses intelectuais, em círculos políticos autônomos ou em pequenos
empreendimentos culturais (no futebol, em programas radiofônicos, discursos
em praça pública, etc.
4
) vão construindo redes de comunicação e de releitura
da história, da língua e da etnia entre dirigentes de sindicatos agrários, os quais
começam a rejeitar a legitimidade dos discursos dirigidos aos camponeses com
que o Estado e a esquerda convocavam o mundo indígena.
A contribuição fundamental desse período e a reinvenção da condição
indígena, porém não mais como um estigma mas como um sujeito de
emancipação, como desígnio histórico, é um projeto político. Trata-se de
autêntico renascimento discursivo do índio por intermédio da reivindicação, e
reinvenção da sua história, do seu passado, suas práticas culturais; das suas
virtudes, suas penúrias, que precisam ter um efeito prático na formação da
auto-identificação e nas formas organizativas.
Nesta primeira etapa do período formativo se destacará a obra de Fausto
Reinaga, que pode ser considerado o intelectual mais relevante e influente do
indianismo em todo esse período histórico. Sua obra está dirigida à construção
4
Hurtado, Javier, El Katarismo, Hisbol, La Paz, 1985.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Álvaro García Linera
21
de uma identidade e, na medida em que inexiste uma identidade coletiva que
se possa construir inicialmente, sem que se afirme frente a outras identidades,
e contra elas, nessa época o indianismo não só se diferenciaria da “outra”
Bolívia – mestiça e colonial – mas também da esquerda operária, fortemente
associada ao projeto homogenizador e modernista do Estado nacionalista.
Desde o início, o indianismo se choca com o marxismo, ideologia
predominante na esquerda universitária e operária, enfrentando-o com a mesma
veemência com que critica outra ideologia vigorosa da época – o cristianismo
– considerando ambas como os principais componentes ideológicos da
dominação colonial contemporânea. Para essa desqualificação indianista do
marxismo como projeto emancipador deveria contribuir a atitude dos partidos
de esquerda, que continuavam a tratar o camponês como subalterno frente
aos operários, opondo-se à consideração da temática indígena como um
problema a ser resolvido e, como hoje fazem as classes altas, consideram
qualquer referência a um projeto de emancipação sustentado pela potencialidade
comunitária da sociedade agrária como um retrocesso histórico.
A partir desse fortalecimento em oposição, em fins dos anos 1970 o discurso
indianista se dividiu em quatro grandes vertentes: a primeira, sindical, daria lugar
à formação da Confederação Sindical Única de Trabalhadores Camponeses da
Bolívia (Csutcb), que de algum modo marca simbolicamente a ruptura do
movimento dos sindicatos do campo com o Estado nacionalista e, em particular,
com o pacto militar-camponês que inaugurara uma tutela militar sobre a
organização dos camponeses. Dessa estratégia de massas surgiriam
posteriormente, com suas próprias autonomias discursivas, as organizações
regionais das terras baixas (Cidob, Cpesc). A outra vertente seria a política
partidária, não apenas com a formação do Partido Índio (PI), em fins da década
de 1960, mas do Movimento Revolucionário Tupac Katari (Mitka) e do
Movimento Revolucionário Tupac Katari (MRTK), que de um modo frustrado
se incorporariam em vários distritos eleitorais, até fins dos anos 1980. A terceira
vertente, ao lado da política e da sindical, era a acadêmica, historiográfica e de
pesquisa sociológica. Já se disse que todo nacionalismo é no fundo um
revisionismo histórico e, por isso, não é raro que uma ampla geração de migrantes
aimarás, ingressada no mundo universitário entre os anos 1970 e 1980, se dedicasse
precisamente a promover, de forma rigorosa, este revisionismo histórico,
mediante o estudo de episódios de rebeldia, de caudilhos, de reivindicações
indígenas, desde o período colonial até os nossos dias.
Os movimentos indígenas na Bolívia
22 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
22
Atualmente, embora haja várias correntes, a força do movimento
indianista está centralizada na Csutcb, mas como em toda identidade dos
subalternos, essa força de mobilização não vai deixar de apresentar a trama de
muitos níveis estratégicos na interpelação do Estado. Assim, embora de um
lado seja possível encontrar nos discursos dos dirigentes uma vigorosa retórica
étnica, na simbologia usada para identificar-se (os retratos dos líderes indígenas,
a wiphala), de outro, no que diz respeito aos fatos, a força discursiva mobilizável
da Csutcb deve centrar-se basicamente em reivindicações de tipo classista e
econômico, como as que deram lugar ao primeiro grande bloqueio de estradas
pela brilhante liderança sindical de Genaro Flores, em dezembro de 1979. As
mobilizações da Csutcb, com predomínio das reivindicações estritamente
camponesas, só ocorrerão com as rebeliões dos anos 2000, 2001 e 2003.
Um segundo momento deste período de formação discursiva e de elite
da identidade aimará vai acontecer quando, a partir dos primeiros anos da
década de 1980, haverá uma lenta mas crescente descentralização do discurso;
começam a fragmentar-se de modo notável os ideólogos e os ativistas do
indianismo-katarismo, com a formação de três grandes correntes. A culturalista
se refugiaria no âmbito da música, da religiosidade, sendo hoje chamada de
corrente dos “pachamámicos”. Basicamente é um discurso que perdeu a carga
política inicial e tem um forte conteúdo de folclore da condição indígena.
Uma segunda vertente, menos urbana do que a precedente, será a que se
qualificou em termos de discursos políticos “integracionistas”, na medida em
que apresenta uma reivindicação do ser indígena como força de pressão para
obter certo reconhecimento na ordem estatal vigente. Trata-se de uma formação
discursiva do indígena enquanto sujeito disputante, a exigir reconhecimento
por parte do Estado para incorporar-se à organização estatal e à cidadania
vigentes, mas sem perder suas particulares culturais. A ala katarista do
movimento de reinvenção da condição indígena é a que dará corpo a essa
posição. Aqui, o indígena é a ausência de igualdade perante o Estado por parte
de uma identidade cultural (aimará, quêchua), que se torna assim um signo
identificador de carência de direitos (a igualdade), de um porvir (a cidadania
plena) e de uma identidade distinta (o multiculturalismo).
Esse discurso constrói seu imaginário através da denúncia da existência
de dois tipos de cidadania: a de “primeira classe”, monopolizada pelos q’aras;
e a de “segunda classe”, para os indígenas. Mediante essa hierarquização dos
níveis de cidadania dentro da sociedade boliviana, o que esse discurso faz é
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Álvaro García Linera
23
lutar pelo reconhecimento da diferença, mas também pela sua supressão, sua
igualdade e homogeneização, pelo menos política, no nível do que se considera
como “cidadania de primeira classe”.
Neste caso, a diferença não é apresentada como portadora de direitos, o
que exigiria pensar em uma cidadania multicultural ou na reivindicação de
direitos políticos coletivos, cidadanias diferenciadas e estruturas político-
institucionais plurais, mas com as mesmas prerrogativas políticas diante do
Estado. A diferença é assim um passo intermediário com respeito à nivelação,
pelo que o horizonte político com que o katarismo projeta o indígena continua
a ser o da cidadania estatal exibida há décadas pelas elites dominantes. De
certo modo, a distância do discurso modernizador do nacionalismo
revolucionário não reside neste destino final do que se entenderá por cidadania,
e do quadro institucional para exercê-la, mas no reconhecimento da pluralidade
cultural para poder acessá-la, que será precisamente a contribuição do moderno
discurso liberal diante da problemática dos “povos” e das “etnias”. Portanto,
não será raro que muitas das personagens do katarismo, elaboradoras desse
discurso, colaborem depois com propostas modernizantes e multiculturalistas
do antigo partido nacionalista que chegará ao governo em 1993.
Paralelamente, nos anos 1980 esta corrente ideológica, mais vinculada
ao sindicalismo camponês, será a mais propensa a aproximar-se das correntes
marxistas, e ao ainda predominante movimento operário organizado em torno
da COB. Por exemplo: nas eleições de 1980 Genaro Flores conseguiu montar
alianças com a frente esquerdista UDP, e alguns dos seus militantes se
incorporaram à gestão do governo de Siles Zuazo.
Em anos posteriores, dirigentes dessa facção katarista procuraram
modificar por dentro a composição orgânica da representação social da COB,
dando lugar a uma das mais importantes interpelações da esquerda operária
pelos indígenas. Uma terceira variante discursiva desse movimento indigenista
será a vertente indígena estritamente nacional. Exibida de forma intuitiva
inicialmente entre militantes, ativistas e teóricos indianistas, influenciados por
Fausto Reynaga
5
, defendendo a formação de uma república indígena. Trata-se
de um discurso no qual não se pede ao Estado o direito à cidadania, mas o que
se propõe é que devem ser os próprios indígenas a governar o Estado que,
5
Reinaga, Fausto, La revolución India, La Paz, 1970; La razón y el indio, La Paz, 1978.
Os movimentos indígenas na Bolívia
24 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
24
precisamente devido a essa presença indígena, terá que ser outro Estado, outra
República, na medida em que a instituição republicana contemporânea é uma
estrutura de poder baseada na exclusão e no extermínio do indígena.
Sob esse ponto de vista, o indígena aparece como um sujeito de poder,
de mando, de soberania. A própria narrativa histórica do indígena que elabora
esse discurso ultrapassa a denúncia das exclusões, das carências ou os
sofrimentos que caracteriza a reconstrução culturalista; é uma narrativa heróica,
até certo ponto guerreira, marcada por sublevações, pela resistência, por
contribuições, por grandezas reconstruídas ciclicamente de várias formas e
que algum dia deveriam restabelecer-se de forma definitiva, mediante a
“revolução indígena”.
Neste caso o índio é apresentado como projeto de poder político e social,
substitutivo do regime republicano de elites q’aras (brancos-mestiços), que
serão consideradas desnecessárias no modelo de sociedade proposto. Na sua
etapa inicial, este discurso assumirá a forma de um pan-indigenismo, na medida
em que se referia a uma mesma identidade indígenas, que se estendia ao longo
de todo o continente, com pequenas variantes regionais. Essa perspectiva
transnacional da estrutura civilizatória indígena pode ser considerada
imaginariamente como expansiva, na medida em que supera o localismo clássico
da demanda indígena, mas ao mesmo tempo apresentava uma certa debilidade,
na medida em que minimizava as próprias diferenças entre os indígenas e as
diferentes estratégias de integração, dissolução ou resistência escolhida por
cada uma das nacionalidades indígenas, dentro dos múltiplos regimes
republicanos instaurados desde o século dezenove.
Por isso, em uma segunda etapa uma corrente no interior dessa vertente
indianista liderada por Felipe Quispe e a organização Ayllus Rojos
6
, fornecerá
duas novas contribuições ao que foi herdado por Reinaga. De um lado, o
reconhecimento de uma identidade popular boliviana resultante dos séculos
de mestiçagem cultural e de trabalho mutilada, em diversas regiões urbanas e
rurais. O que será importante porque na ótica inicial do indianismo, o
“boliviano” era apenas uma invenção de reduzidíssima elite estrangeira, cujo
papel consistia em retirar-se para seus países de origem, na Europa. Sob esta
nova perspectiva, as formas de identidade popular boliviana, como a operária
6
Quispe, Felipe. Tupac Katari vive y vuelve carajo, La Paz, 1989.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
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25
– e até certo ponto a camponesa, em determinadas regiões – aparecem como
sujeitos coletivos, com os quais é preciso traçar políticas de aliança, acordos
de reconhecimento mútuo, etc. Este será o significado político da chamada
“teoria das duas Bolívias”.
A segunda contribuição desse discurso é o caráter específico da identidade
aimará. Embora haja um esforço para inscrever no universo indígena muitos
setores urbanos e rurais, há uma leitura mais precisa e efetiva dessa construção
de uma identidade com respeito ao universo aimará, não apenas a partir da
politização do idioma e do território mas também das suas formas de
organização social, da sua história – distinta da dos outros povos indígenas.
Deste modo, o índio aimará é o que aparece de maneira mais nítida como
identidade coletiva e como sujeito político, destinado ao autogoverno, à
autodeterminação. Trata-se certamente de uma articulação peculiar entre as
leituras da tradição histórica das lutas indígenas por autonomia com as
modernas leituras sobre a autodeterminação das nações, desenvolvida pelo
marxismo crítico, e cuja importância consiste em permitir centralizar o discurso
em âmbitos territoriais específicos, em massas demográficas verificáveis e em
sistemas institucionais de poder e mobilização mais compactos e efetivos do
que os do pan-indianismo. Pode-se afirmar assim que a partir dessa formação
discursiva o índio e o indianismo se tornam um discurso estritamente nacional
– o da nação indígena aimará. Essas duas contribuições do indianismo como
estratégia de poder tiram de foco a inimizade dessa corrente ideológica com
algumas vertentes marxistas, dando lugar a um diálogo, certamente tenso, entre
essa corrente indianista e as correntes intelectuais críticas marxistas emergentes,
que ajudaram a definir de modo muito mais preciso a direção da luta e a
construção de um poder político nessa estratégia indianista.
O segundo período da construção do discurso nacional indígena é o da
cooptação estatal, que tem início no fim da década de 1980, nos momentos
em que os intelectuais e ativistas do movimento indianista sofrem uma forte
frustração política, na medida em que as suas tentativas de converter a força
da massa indígena sindicalizada em votos na disputa eleitoral não dá os
resultados esperados. Isso vai provocar uma fragmentação acelerada de
correntes aparentemente inconciliáveis dentro do movimento indianista, sem
que nenhuma delas lograsse articular hegemonicamente as demais. A integração
e a competição dentro das estruturas de poder republicanas liberais (sistema
de partidos, delegação da vontade política, etc.) serão alguns dos limites
Os movimentos indígenas na Bolívia
26 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
26
estruturais da interpretação integracionista e pactual do indianismo katarista.
É também uma época em que ao lado da maior permeabilidade da sociedade
nesse discurso, ocorrem as primeiras tentativas de reelaboração de tais propostas
pelos partidos de esquerda e pelos intelectuais bolivianos, mas não com o
propósito de entender essa proposta, mas simplesmente de instrumentá-la em
busca de apoio eleitoral e de financiamento estrangeiro.
Enquanto toda a sociedade, inclusive os partidos da esquerda, assistem
ao desmoronamento brutal da identidade e da força da massa operária
organizada sindicalmente, a adoção e reelaboração de um discurso étnico se
apresenta como uma opção de mudança dos sujeitos susceptíveis de serem
convocados. Desta forma, a estrutura conceitual com que essa esquerda em
decadência se aproximará da construção do discurso indígena não vai recuperar
o conjunto da estrutura lógica dessa proposta, o que teria exigido a
desmontagem da armação colonial e vanguardista que caracterizava o
esquerdismo da época.
Curiosamente, este também é um momento de confronto, no interior
da Csutcb, entre o discurso étnico-camponês katarista-indianista e o discurso
esquerdista com um componente étnico frugal. A derrota de Gênero Flores
no Congresso de 1988 encerrará um ciclo de hegemonia discursiva do
katarismo-indianismo na Csutcb, dando lugar a uma longa década de
predomínio de versões culturalistas e despolitizadas da identidade indígena,
muitas vezes emitidas diretamente pelo Estado ou por instituições não
governamentais. Paralelamente a esse retorno sindical, e a essa frustração
eleitoral, uma parte da militância indianista adotará posições mais radicais,
formando o Exército Guerrilheiro Tupaj Katari, onde a proposta teórica de
autogoverno aimará e a sustentação de estruturas militarizadas nas comunidades
do altiplano começam a criar raízes, influindo, quinze anos depois, nas
características da organização e do discurso das rebeliões indígenas no Norte
do altiplano, no século XXI.
O MNR foi o partido político que mais claramente percebeu o significado
da formação discursiva de um nacionalismo indígena visto como um perigo, assim
como das debilidades sofridas pelo movimento indígena. Por meio da aliança com
Victor Hugo Cárdenas e uma série de intelectuais e ativistas do movimento indígena,
o MRE converteu em política de Estado o reconhecimento retórico da situação
multicultural da Bolívia, enquanto a Lei de Participação Popular habilitaria
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Álvaro García Linera
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mecanismos de ascensão social capazes de compensar o discurso e a ação de uma
boa parte da intelectualidade indígena, cada vez mais descontente.
Embora tenha contribuído algumas vezes para um notável fortalecimento
das organizações sindicais locais, que conseguiram projetar-se eleitoralmente
no âmbito nacional, a Lei de Participação Popular, de 1994, que descentraliza
municipalmente funções administrativas do Estado, também pode ser vista
como um instrumento bastante sofisticado de cooptação de líderes e ativistas
locais, que vão começar a conduzir suas lutas e a aplicar suas formas de organização
nos municípios e nas instâncias indigenistas criados expressamente pelo Estado.
Isso inaugurará um espaço de fragmentação étnica, na medida em que também se
vai fomentar o ressurgimento e a invenção de elementos étnicos locais, de ayllus e
de associações indígenas, separadas umas das outras mas vinculadas verticalmente
a uma economia de demandas e concessões com o Estado. Desse modo, à
identidade indígena autônoma e assentada na estrutura organizativa dos
“sindicatos”, formada desde os anos 1970, vai-se contrapor uma fragmentação
caleidoscópica de identidades de ayllus, de municípios e de etnias.
Será o momento de reacomodação das forças e correntes internas do
movimento indígena, de uma rápida adaptação dos discursos de identidade
indígena aos parâmetros emitidos pelo Estado liberal, de desorganização social
e de escassa mobilização de massas indígenas. Com a exceção da grande marcha
de 1996 contra da lei Inra, o protagonismo social das lutas sociais se deslocará
do altiplano aimará para as zonas produtoras de coca do Chapare, onde vai
predominar um discurso do tipo camponês, complementado por alguns
componentes culturais indígenas que com o tempo se irão fortalecendo.
O terceiro período desse novo ciclo indianista pode ser qualificado como
de estratégia de poder, e ocorre em fins da década de 1990 e no princípio do
século XXI. É o momento em que o indianismo deixa de ser uma ideologia
que resiste nos resquícios da dominação e se expande como uma concepção
do mundo proto-hegemônica, tentando disputar a capacidade de orientação
cultural e política da sociedade com a ideologia neoliberal que havia prevalecido
nos últimos dezoito anos. Com efeito, hoje pode-se dizer que a concepção
emancipativa do mundo mais importante e mais influente na atual vida política
do país é o indianismo, núcleo discursivo e organizativo do que hoje podemos
chamar de “nova esquerda”.
Independentemente dos atores desta reconstrução do eixo político
contemporâneo aceitarem ou não a denominação de esquerda como sua
Os movimentos indígenas na Bolívia
28 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
28
identidade,
7
em termos de classificação sociológica os movimentos sociais
indígenas, em primeiro lugar, e os partidos políticos por eles gerados, criaram
uma “relação de antagonismo entre partes contrapostas”
8
no universo político,
representável precisamente por uma dicotomia espacial como a de “esquerdas
e direitas”, o que não significa que, como antes, seja uma identidade, pois
agora elas se aproximam mais do lado da autodefinição do ser indígena (aimarás,
quéchuas), da sua situação originária (“nações ancestrais”) ou trabalhista (o
“povo simples e trabalhador”).
A base material desse posicionamento histórico do indianismo será a
capacidade de sublevação da comunidade, com a qual as comunidades indígenas
responderão a um crescente processo de deterioração e decadência das
estruturas camponesas e dos mecanismos de mobilidade social cidade-campo.
Desde os anos 1970 já se manifestam as reformas neoliberais da economia,
que incidirão de forma dramática no sistema de preços do intercâmbio
econômico entre a cidade e o campo. Com o estancamento da produtividade
agrária tradicional e a abertura da livre importação de produtos, os termos de
intercâmbio, secularmente desfavoráveis à economia do campo se agravarão
drasticamente,
9
reduzindo a capacidade de compra, de poupança e de consumo
das famílias camponesas. A isso se somará um maior estreitamento do mercado
de trabalho urbano e uma queda no nível de renda das poucas atividades urbanas
com as que as famílias camponesas complementam periodicamente sua renda,
restringindo a complementação de trabalho urbano-rural com que as famílias
camponesas adotam sua estratégia de reprodução coletiva.
Bloqueados os mecanismos de mobilidade social das comunidades,
internos e externos, com a migração para as cidades acelerada nos últimos
anos, mas com uma ampliação da migração de dupla residência das populações
pertencentes a zonas rurais com condições de relativa sustentação produtiva
(que no longo prazo serão as zonas de maior mobilização indígena camponesa),
o ponto de início das sublevações e de expansão da ideologia indianista surgirá
no momento em que as reformas de liberalização da economia tocarem as
7
Com efeito, o indianismo mais forte nunca aceitou ser qualificado como de esquerda, pois a esquerda tradicional
reproduzia os critérios anti-indigenistas e colonialistas da direita. .
8
Bobbio, Norberto, Derecha e izquierda, Taurus, Espanha, 1998.
9
Perez, Mamerto, Apertura comercial y sector agrícola campesino, CEDLA, La Paz, 2004.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
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29
condições básicas de reprodução das estruturas comunitárias agrárias e semi-
urbanas (água e terra). Diferentemente do estudado por Bourdieu na Argélia,
10
onde a deterioração da sociedade tradicional deu lugar a um subproletariado
desorganizado, preso por redes de clientela e carente de autonomia política,
na Bolívia a deterioração crescente da estrutura econômica tradicional da
sociedade rural e urbana deu lugar a um fortalecimento dos laços comunitários
como mecanismos de segurança primária e reprodução coletiva. No meio desse
processo, e do esvaziamento ideológico provocado por essa ausência de um
futuro modernizante, a ideologia indianista pôde expandir-se, sendo capaz de
suprir uma razão do drama coletivo a partir da articulação política precisamente
das experiências quotidianas de exclusão social, discriminação étnica e memória
social comunitária de camponeses indígenas abandonados à sua sorte por um
Estado empresário dedicado exclusivamente a potencializar os diminutos
enclaves de modernidade transnacional da economia. A politização da cultura,
do idioma, da história e da cor da pele pelo indianismo – elementos utilizados
precisamente pela “modernidade” urbana para bloquear a legitimar a contração
dos mecanismos de inclusão e mobilidade social, serão os componentes
palpáveis de uma ideologia comunitarista de emancipação que erodirá
rapidamente a ideologia neoliberal, já então provocadora de frustrações devido
à inflação excessiva de ofertas feitas no momento da sua consagração.
Paralelamente, esse indianismo trará a coesão de uma força de massa
mobilizável, insurrecional e eleitoralmente, logrando polarizar o campo político
discursivo, consolidando-se como uma ideologia de projeção estatal.
Este indianismo como estratégia de poder apresenta atualmente duas vertentes:
uma moderada (MAS-Ipsp), outra radical (MIP-Csutcb). A primeira se articula
em torno dos sindicatos camponeses do Chapare, mobilizados pelas políticas
de erradicação das plantações de coca. Sobre um discurso mais voltando para
os camponeses, que nos últimos anos vem adquirindo conotações mais étnicas,
os sindicatos dos “cocaleros” têm conseguido montar todo um leque de alianças
plurais e flexíveis, em função de um “instrumento político eleitoral” que
permitiu a esses sindicatos, especialmente agrários, ocupar postos no governo
local e manter uma brigada parlamentar significativa. Reivindicando um projeto
10
Bourdieu, Pierre, Algerie 60. Structures economiques et structures temporelles, Les Editions de Minuit, Paris,
1977.
Os movimentos indígenas na Bolívia
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30
de inclusão dos povos indígenas nas estruturas de poder e dando mais ênfase
a uma postura antiimperialista, esta vertente pode ser definida como “indianista
de esquerda”, pelo sua capacidade de recolher a memória nacional-popular,
marxista e esquerdista formada nas décadas anteriores, o que lhe tem permitido
uma maior receptividade urbana, multissetorial e pluri-regional à sua
convocação, tornando-a a principal força política parlamentar da esquerda e a
principal força eleitoral do país no âmbito municipal.
De seu lado, a corrente indianista radical segue um projeto de indianização
total das estruturas de poder político, segundo o qual, de acordo com a sua
liderança, sua forma de inclusão no Estado deveria ser negociada pelos
“mestiços”, como minorias incorporadas em condições de igualdade política
e cultural, no meio das maiorias indígenas. Embora a temática camponesa
figure sempre no repertório discursivo desse indianismo, todos os elementos
reivindicativos estão ordenados e direcionados pela identidade étnica (“nações
originárias aimará-quêchuas”). Trata-se portanto de uma proposta política que
se enquadra perfeitamente no núcleo duro do pensamento indianista do período
formativo (Reinaga), e herda assim a crítica à antiga esquerda marxista e à sua
cultura, que ainda influencia passivamente setores sociais urbanos mestiços.
Por esta razão trata-se de uma corrente que só se consolidou no universo
estritamente aimará, urbano e rural, e por isso pode ser considerada um tipo
de indianismo nacional aimará.
A despeito das suas notáveis diferenças e pontos de discordância, as
duas correntes compartilham uma trajetória política similar: a) ambas têm
como base social organizativa os sindicatos e as comunidades agrárias indígenas;
b) os “partidos” ou “instrumentos políticos parlamentares” resultam de coalizões
negociadas de sindicatos camponeses; no caso do MAS, entidades urbano-
populares, que se unem para alcançar uma representação parlamentar, com o
que a dualidade “sindicato-massa/partido”, tão característica da antiga esquerda,
é deixada de lado por uma leitura do “partido” como uma projeção parlamentar
do sindicato; c) sua liderança e grande parte da sua intelectualidade e do grupo
mais importante (sobretudo no MIP) se compõe de indígenas aimarás ou
quêchuas e de produtores diretos, com o que sua incursão na política assume a
forma de uma auto-representação simultânea de classe e étnica. A identidade
étnica, integracionista em alguns casos e em outros autodeterminativa, é a base
discursiva do projeto político, com a qual enfrentam o Estado e interpelam o
resto da sociedade, inclusive o mundo operário assalariado; d) embora o cenário
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Álvaro García Linera
31
das suas reivindicações seja a democracia, existe uma proposta de ampliar essa
democracia, tornando-a mais complexa, a partir do exercício de lógica organizativa
não liberal, assim como a proposição de um projeto de poder em torno de um
tipo de co-governo de nações e povos.
Diante dessa manifestação diferenciada do pensamento indianista resta
saber se ele será uma concepção do mundo que tome a forma de uma concepção
dominante de Estado, o que exigiria a conversão das forças sociais e das
lideranças que a propõem em forças de soberania política na direção do Estado,
ou se será a ideologia de alguns atores políticos para regular os excessos de
soberania estatal exercida pelos atores políticos e as classes sociais que têm
ocupado costumeiramente o poder, como parecem insinuar as debilidades
organizativas, os erros políticos e o facciosismo interno das coletividades que
a reivindicam.
Tradução: Sérgio Bath.
Vinte anos de democracia
32 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
32
Vinte anos de
democracia
José Sarney
*
E
ste ano completam-se 20 anos da redemocratização do Brasil. Várias
solenidades foram programadas para celebrar o aniversário daquele período
que marcou a retomada do amadurecimento das instituições brasileiras. Mas
há vinte anos atrás as mudanças profundas não se restringiam ao Brasil. Em
um dos eventos organizados tive o privilégio de reencontrar os Presidentes
Raúl Alfonsín e Júlio Maria Sanguinetti e juntos recordarmos nossas
experiências compartilhadas e que alteraram a História de nossa região.
O primeiro sentimento é o de felicidade em constatar que nossos sonhos,
plantados naquele passado, que parece hoje longínquo, frutificaram e continuam
vivos na alma de nossos povos.
Os chineses têm um provérbio que é de uma sabedoria milenar. Dizem
que “quando vamos beber água num poço devemos sempre recordar quem
abriu o poço”.
* Senador da República Federativa do Brasil
Ex-Presidente da República Federativa do Brasil
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
José Sarney
33
Uma das características do tempo em que vivemos é, sem dúvida alguma,
a compressão do tempo. Como nos chips dos computadores muitos
acontecimentos ali são acumulados numa coisa tão pequenina, também hoje
temos todos os acontecimentos que ocorrem na sociedade de comunicação
de tal maneira, com tal velocidade, com conhecimento de todos, que se cristaliza
a impressão de que já são muito remotos.
Mas no ano de 1985 estávamos ainda na Guerra Fria. Na América do Sul
a história se contorcia. Os homens públicos muitas vezes não governam o tempo
em que governam. Por vezes se governa tempos de bonança. Por vezes se governa
em tempos em que é possível apenas corrigir rumos. Mas, nos momentos em
que a história se contorce, há um desafio para os homens públicos, que têm que
dirigir suas ações em ambientes turvos, com a consciência de que suas decisões,
muitas vezes graves, podem mudar rumos ou implicar retrocessos.
Em 1985 o Brasil se preparava para encerrar um período de regime militar e
dar posse a um Presidente civil. Cabia-me a tarefa de ser Vice-Presidente de
Tancredo Neves e para tal havia me preparado lendo tudo que sobre a Vice-
Presidência da República a literatura americana tinha publicado. Fixei-me, sobretudo,
num trabalho de Walter Mondale, que havia dito ao Presidente Carter como ele
achava que a Vice-Presidência devia ser de absoluta discrição e que devia se preparar
apenas para ajudar o Presidente a enfrentar crises quando elas surgissem.
Em conversa com Tancredo Neves, já Presidente-eleito, afirmara que
meu desejo era apenas o de ser um Vice-Presidente fraco de um Presidente
forte. Mantive uma discrição absoluta. Não participei da formação do Governo,
não participei da formação do programa de Governo, não acompanhei
pessoalmente – até porque achava que aquilo podia ser uma interferência –
nenhum dos atos que significam a construção de um governo.
Subitamente, naquela noite de 14 de março de 1985, aconteceu o
inesperado absoluto. Tancredo adoecia e dava entrada no hospital sem que
nenhum de nós, políticos brasileiros, tivéssemos na cabeça como enfrentar
aquela situação, como iríamos atravessar aquele momento. Hoje é certamente
difícil aquilatar o que foram aqueles instantes e momentos delicados.
Tivemos apenas três ou quatro horas para decidirmos todos aqueles
problemas, que eram de natureza política, de natureza institucional, de natureza
logística e construir uma solução. Solução essa que acabou por recair sobre
meus ombros.
Vinte anos de democracia
34 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
34
Foi uma noite insone. Quando surgiu o problema jurídico da sucessão,
pedi licença para me retirar, já que eu estava em causa, e disse que não desejava
assumir a Presidência senão com o Presidente Tancredo. Fui para minha casa.
Às três horas da madrugada, o General Leônidas Pires Gonçalves, Ministro
designado do Exército e meu velho amigo, telefona e diz: - “Sarney, todos os
problemas constitucionais e políticos foram resolvidos, o Supremo Tribunal
reuniu-se informalmente nessa madrugada, considerou que o Vice-Presidente
tem que assumir, os políticos se acertaram, e você vai assumir a Presidência às
10 horas da manhã”.
Não era o que desejava. Achava que seria uma grande frustração nacional
se, no dia em que a Nação se preparava para receber a presença de Tancredo
Neves, a posse fosse dada ao Vice-Presidente. Contra os argumentos que
levantei o General Leônidas apenas retrucou: - “Sarney, nós já temos muitos
problemas. Boa noite, Presidente”.
Não conhecia nem o cerimonial que deveria ser cumprido. Tinha sido
informado apenas sobre o cerimonial para ser Vice-Presidente, protocolo este
peculiar, pois o Presidente Figueiredo afirmara que não queria defrontar-se
com seu Vice, Aureliano Chaves, em nenhum momento. O Itamaraty, com
sua sabedoria, havia preparado uma solenidade em que o Vice-Presidente
entrava por um lado, o Presidente entrava pelo outro, afastados por todo o
Palácio do Planalto, um ia por trás, outro pela frente, de modo que não se
cruzavam em nenhum momento.
Atrás dos Presidentes, o que saía e o que chegava, dava-se um espaço de
dois metros e botava-se uma cadeira solitária onde eu devia sentar, atrás de
Aureliano Chaves.
Tudo isto foi desmontado naquela noite. A imaginação que funcionara e
o trabalho que dera foram inteiramente perdidos naquele momento.
Na transição, deve-se distinguir duas fases. Primeiro, a fase do martírio
de Tancredo. Não passava na cabeça de ninguém que Tancredo fosse morrer.
Pensava que Tancredo, dentro de uma semana, estaria pronto para reassumir
o Governo. Talvez essa minha vontade tivesse me resguardado para enfrentar
aqueles dias. Devo ressaltar que na noite da posse quis cancelar a festa que o
Brasil ia dar. Dona Risoleta Neves, em nome da família de Tancredo, disse: -
“Não, senhor. Não vamos cancelar nada. Vamos fazer a festa e prosseguir
tudo como se Tancredo estivesse à frente desta solenidade.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
José Sarney
35
A família comportou-se de maneira extraordinária - porque não é fácil
uma família perder o que era Tancredo Neves naquele momento e ter a conduta
que tiveram.
Nos dias que se seguem Tancredo Neves piora. Cada vez mais se
aproximava a perspectiva de sua morte. Minhas responsabilidades iam
aumentando de maneira exponencial.
Quando a tragédia se consuma com a morte de Tancredo, deparava-me
com a realidade de assumir a Presidência de um país com a complexidade do
Brasil daquele momento, sem conhecer o programa de governo, os
compromissos que Tancredo havia assumido e sem conhecer praticamente a
metade do ministério.
Vinha de um Estado pequeno, de um Estado pobre, de um Estado que
não tinha facilidade de acesso à inteligência nacional. Levei para o Palácio
apenas o meu genro, para me ajudar nas pequenas coisas.
Sabia o que havia sido necessário para construir a transição democrática
e compreendia o significado dos anos que vinham pela frente.
Nesse processo preliminar deve-se também distinguir duas partes: uma
primeira que foi a pregação pela necessidade da restauração democrática, do
despertar da consciência nacional. Nessa fase tivemos a experiência solar de
Ulysses Guimarães. O homem que, à frente de todo esse movimento, foi capaz
de movimentar a opinião pública, a consciência nacional, os políticos em torno
dessa necessidade, e congregar todas essas forças em torno desse ideal.
Do outro lado a construção política, a engenharia política da transição,
nos moldes em que o Brasil sempre tinha exercido em momentos de crise.
Essa capacidade de encontrar um terreno comum em que todos nos
entendemos e evitamos as rupturas e as soluções violentas.
Assim foi na Independência, quando o gênio brasileiro pegou um Rei
português e transformou em Rei brasileiro. Dom Pedro I abdica, pegamos seu
filho, mantemos no Brasil, damos-lhe tutores brasileiros. Vem a República.
Faz-se sem povo. Republicanos e monarquistas se unem e o País prossegue
nessa determinação de conciliação. E é esse espírito de conciliação que se
encarna em Tancredo Neves. Ele mesmo afirmava: - “Meu ídolo é Honório
Hermeto Carneiro Leão, o Marquês do Paraná”, que foi o Presidente do
Ministério da Conciliação no tempo do Império.
Vinte anos de democracia
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36
Tancredo era então o homem que a História tinha preparado para aquele
momento. Era um conciliador nato. Inspirava confiança a todas as forças. Ele
inspirava confiança à direita, inspirava confiança à esquerda, inspirava confiança
nos militares. Tinha, enfim, uma ampla capacidade de formular fidelidades.
Nesse trabalho excepcional, ele consegue montar a vitória no Colégio
Eleitoral. Convoca forças para se unirem a ele, entre as quais eu me encontrava,
e consegue a travessia do regime autoritário para o regime democrático sem
que tivéssemos rupturas mais profundas. Foi ele o construtor de tudo aquilo.
A História tinha preparado Tancredo Neves. Ele sabia como lidar com
crises. Dois casos são exemplares. Quando Getúlio se suicida, Tancredo, seu
Ministro da Justiça, vai a São Borja e fala na beira do túmulo. Naquele momento
de comoção nacional suas palavras são: - “Que o sangue de Getúlio, o martírio
de Getúlio não sirva para dividir o País.” Sua mensagem não é de incitamento.
É uma mensagem de chamamento à conciliação nacional.
Com a renúncia de Jânio Quadros e a crise da posse do Vice João Goulart,
Tancredo Neves é o homem que consegue, com sua habilidade, imobilizar os
militares, afirmando que seria dada uma solução política. Os militares perdem
a iniciativa e Tancredo começa a articular a volta de Jango com um regime
chamado naquela época de parlamentarista. Na verdade não era um regime
parlamentarista. Era apenas uma solução de compromisso.
Esse era Tancredo Neves, que nos deixava sem que tivéssemos uma
diretriz clara para conduzir a situação.
No Brasil tivemos alguns Presidentes que foram escolhidos e marcados
para serem depostos. Alguns efetivamente foram. Outros tiveram a capacidade
de sobreviver e de se legitimar.
Arthur Bernardes lutou contra revoltas militares, cartas falsas, mas
atravessou com mão firme. Manteve o País sob Estado de Sítio, com decisões
muito duras que teve tomar, mas não deixou que a Democracia, o processo
republicano se truncasse nas suas mãos. Ele adiou o rompimento. A Revolução
de 30 começou em 22, na Presidência de Bernardes, mas ele resistiu e ela só
veio a se consumar depois.
Outro Presidente que estava pronto para ser deposto foi Getúlio, no
segundo mandato. A campanha da UDN de Carlos Lacerda contra Vargas. As
forças militares também conjugadas contra ele. E Getúlio, que mostrara muita
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
José Sarney
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habilidade durante os 15 anos em que governou de forma ditatorial, provou-se
incapaz de governar num sistema aberto. Começa a cometer erros, de tal modo
que é emparedado e se salva, pelo seu gênio político, metendo um tiro no peito.
Se Getúlio não tivesse se suicidado naquele momento, teria saído como um dos
homens mais impopulares da História do Brasil. Mas, nesse momento,
passionalmente, a História se transforma e ele nela ressurge. Está mesmo na sua
carta-testamento: “Eu saio da vida para entrar para a História”. Ele sabia que
não estava na História. Deu realmente sua vida para buscar esse caminho.
João Goulart também assumiu para ser deposto. Tinha muito pouca
sustentação. Seu partido era muito frágil. Eram várias esquerdas tentando
sustentá-lo. Os militares contrários. Os ânimos se acirram com a Revolta dos
Sargentos e a Revolta dos Cabos. Termina sendo realmente deposto.
No meu caso, eu não tinha partido político, não tinha ministério, não
tinha sustentação popular. Meu destino parecia realmente predeterminado.
Tinha então que traçar uma estratégia e o curso que segui foi o da legitimação.
Essa legitimação passava por fazer imediatamente uma abertura democrática
maior que todas. Tancredo podia retardar as providências: convocar a
Constituinte, legalizar partidos clandestinos. Podia adiar tudo. Eu não tinha
essa alternativa.
Minha opção foi abrir todos os espaços, de modo a que as forças
contrárias não se organizassem para depor o Presidente, mas que ocupassem
seus espaços dentro da sociedade.
Demos fim às eleições indiretas; iniciamos o processo que se chamava
“acabar com o lixo autoritário”; convocamos eleições para as Capitais naquele
ano mesmo. Era um gesto ousado mas imperioso para que as forças que durante
20 anos tinham estado represadas tivessem capacidade para se manifestar.
O problema maior era efetivamente a Democracia. Não podia permitir
que o processo democrático se truncasse nas minhas mãos.
Juscelino Kubitscheck, exemplo de um governo que, materialmente, fez
tudo no país, em suas memórias, confessa: - “A grande obra que tive foi a de
evitar que a democracia se truncasse nas minhas mãos.” Ele também foi um
daqueles condenados a ser deposto e que conseguiu sobreviver. Não tinha
nada. As forças militares contra. Carlos Lacerda pregando no Congresso o
golpe. Mas Juscelino, com sua habilidade política, sua determinação
Vinte anos de democracia
38 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
38
democrática, faz como D. João VI, que saiu de Portugal fugindo do General
Junot: sai do Rio de Janeiro e vai para Brasília. Fez frente a duas rebeliões
militares, a de Aragarças e a de Jacareacanga, e a tudo isso venceu e transmitiu
a Presidência a seu sucessor.
Tive também essa determinação de evitar que o processo democrático
morresse em minhas mãos.
Logo após minha posse imediatamente começaram os movimentos:
“Eleição Já”, “Temos que tirar”. Os partidos políticos pedindo. Sabia que se
isso ocorresse teríamos um retrocesso, porque não tínhamos organização
política capaz de resistir a um processo dessa natureza.
Em relação aos militares, estabeleci duas regras, que se mostraram
fundamentais. Afirmei aos ministros militares que iria governar com duas
diretrizes. Primeiramente, a transição seria feita com os militares e não contra
os militares. Cumpríamos o compromisso de Tancredo de que não haveria
revanchismo. Em segundo lugar, como Comandante-em-Chefe das Forças
Armadas meu dever era o de zelar por meus comandados. Se houvesse,
portanto, alguma reivindicação a ser feita não era preciso recorrer a nenhuma
manifestação, pois o próprio Presidente seria o primeiro a defendê-la.
Foram essas regras que imediatamente tranqüilizaram o País. As Forças
Armadas voltaram aos quartéis, ficaram sujeitas às suas relações profissionais
e abandonaram o militarismo. Fenômeno este que a América Latina conheceu
tão bem: a agregação de poder político ao poder militar.
A área social era também uma questão premente. Criei imediatamente o
vale-transporte, o vale-alimentação, as farmácias-básicas. Estendi ao
funcionalismo público o décimo-terceiro salário. Com essas medidas começou-
se a romper os bolsões de pobreza.
Era também preciso naquele momento mudar e legitimar o Brasil e o
Presidente do Brasil no plano internacional com um programa que fosse
concretamente importante para o País.
Tinha plena consciência de que nossas relações com a Argentina eram
de conflito. Herdáramos uma briga que vinha da Península Ibérica entre
Portugal e Espanha. Tínhamos a idéia de que quem dominasse o Prata dominava
o coração da América. Essa era a origem de uma rivalidade alimentada pela
História mas que não possuía base concreta na realidade. Na verdade nossa
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
José Sarney
39
relação com a Argentina estava calcada na frase do Presidente Sáeñz Peña: -
“Nada nos separa, tudo nos une.
Nossas economias são complementares. Portanto, já em julho de 1985
chamo o então Chanceler Olavo Setúbal, e peço-lhe que vá a Buenos Aires, para
negociar com o Ministério do Exterior da Argentina imediatamente uma mudança
no tipo de relação entre os nossos dois países. Tínhamos que construir algo
novo. Marcamos com o Presidente Alfonsín uma reunião para novembro em
Foz do Iguaçu. O registro desse encontro é a histórica fotografia dos Presidentes
da Argentina e do Brasil à frente do vertedouro da Usina de Itaipu. Itaipu era
um tema de extrema sensibilidade na Argentina, mas Alfonsín, com sua visão de
grande estadista, teve a coragem de enfrentá-lo. Naquele momento acertamos
que iríamos mudar a história das relações entre os países no Cone Sul.
Já em agosto tinha visitado Montevidéu a convite do Presidente
Sanguinetti, em quem descobrimos um parceiro extraordinário. O Uruguai é
um país pequeno em sua geografia mas quando Sanguinetti o representa o
País se expande e cresce de forma exponencial.
No imaginário de nossos países ficamos, Alfonsín, Sanguinetti e eu, como
os “Três Mosqueteiros” dessa grande causa da integração.
Nossos primeiros passos foram o de desmontar os pontos de atrito entre
os nossos países.
O primeiro deles era a desconfiança na área nuclear. Na verdade, os
militares argentinos queriam fazer a bomba atômica e os militares brasileiros
tinham o mesmo sonho.
Nossa primeira providência foi incluir na Ata de Iguazu um acordo para
que o problema nuclear fosse totalmente resolvido. Temos aí a grande e
extraordinária figura do estadista Raul Alfonsín, esse grande homem das Américas.
Ele me convida para ir visitar a usina atômica de Pilcaniyeu. Não sozinho,
mas acompanhado de todos nossos técnicos nucleares, para conhecer o que lá
estava sendo feito. Isso era inédito no mundo. Quando mencionei esse fato
em meu discurso nas Nações Unidas as reações foram de espanto e de
incredulidade. Mas isso efetivamente aconteceu na América do Sul.
Em retribuição a esse gesto convidei o Presidente Alfonsín para visitar a
usina da Marinha em Aramar, na qual nós brasileiros estávamos, secretamente,
desenvolvendo um processo de centrifugação pelo qual iríamos enriquecer o
Vinte anos de democracia
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40
urânio. A placa comemorativa até hoje está lá: “Esta Usina foi inaugurada pelo
Presidente da Argentina, Raul Alfonsín.” Naquele momento, não restava mais
qualquer dúvida de que as dificuldades entre os nossos dois países nesse campo
tinham desaparecido.
Começamos a construir o que era o nosso ideal de um Mercado Comum.
Sonhávamos com um Mercado Comum nos moldes do europeu. Não meramente
uma área de livre comércio mas sim um projeto muito mais amplo e profundo
no qual nos dedicaríamos à integração política, econômica, física e cultural.
Um banco de compensação, uma moeda comum. Eram objetivos que
foram incluídos no Tratado de Buenos Aires. Chamamos uma comissão dos
parlamentos para acompanhar os processos de integração. O sonho começou
a se fazer realidade.
Ao constatar os problemas que o Mercosul apresenta hoje surge a
indagação de onde nasceram essas dificuldades. Nossa concepção original era
de avançarmos numa integração por setores. Previa-se tempo e espaço para
que as assimetrias fossem eliminadas e que o processo como um todo evoluísse
de forma gradual e segura. Os governos posteriores, contudo, resolveram
abandonar essa estratégia e concentrarem-se apenas numa área de livre
comércio. O projeto foi reduzido a uma mera competição comercial. A palavra
de ordem passou a ser a “tarifa zero”. A desorganização resultante gerou os
entraves hoje percebidos.
O Presidente Lula e o Presidente Kirchner concordaram em retomar a
idéia inicial. Isso nos dá a esperança de que o processo de integração resgate
sua concepção original e a garantia que as dificuldades comerciais serão apenas
empecilhos conjunturais momentâneos.
Nossa integração é uma idéia tão grande, tão generosa e tão necessária
que vai caminhar, independente de todos nós, de todas as dificuldades, e terá
o mesmo destino que teve a Europa. Dentro de alguns anos vamos ter esse
espaço comum da América do Sul.
A mídia brasileira cristalizou a expressão que os anos 80 foram a década
perdida. Os avanços políticos, institucionais e sociais que tivemos naqueles
anos seriam suficientes para mostrar que esta visão é resultado de uma
perspectiva estreita e equivocada. Se os indicadores econômicos forem
analisados com menos preconceito alguns fatos serão ressaltados.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
José Sarney
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Quando deixei a Presidência da República, a taxa de desemprego era de
2,36%. Foi o índice mais baixo jamais registrado na História do Brasil. A média
durante os cinco anos de meu governo foi de 3,25%.
O PIB brasileiro, em dólares, teve um crescimento de 119% naqueles
cinco anos. Tivemos uma média de 17% por ano. O Brasil não teve recessão.
Esse foi um dos pontos pelos quais mais me bati. O governo não se sustentaria
se tivéssemos um processo recessivo. Foi uma tarefa árdua e com custos mas
não houve recessão no Brasil naquele período.
A balança comercial foi deixada com um saldo de 67,2 bilhões de dólares.
Só voltou a ser superavitária de uns poucos anos para cá.
A renda per capita teve um crescimento de 99%. Um dado que merece
ser destacado: em 1989, no final do governo, a renda per capita registrada foi de
2.923 dólares. Hoje é de 2.789 dólares.
São os números daquele tempo. São as estatísticas apresentadas pela
Fundação Getúlio Vargas e estão disponíveis na Internet.
Como, portanto, é possível afirmar que a década em que se restaurou a
Democracia, que viu nascer a integração regional e cujos números econômicos
ainda não foram repetidos, foi uma década perdida?
Evidentemente cometi muitos erros. Mas quem governa sabe das
circunstâncias em que se governa. Procura-se sempre o melhor.
Há vinte anos assumi a Presidência da República olhando para o futuro,
tentando vislumbrar o que viria pela frente. Hoje estou com os olhos no passado
vendo o que aconteceu nessas duas décadas. A Democracia se consolidou. O
Mercosul é uma realidade e uma esperança. A América Latina se afirma como
uma região de paz.
Perspectivas eleitorais no Chile. Rumo a um quarto governo da “Concertación”?
42 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
42
Perspectivas eleitorais
no Chile. Rumo a um
quarto governo
da “Concertación”?
Carlos Huneeus
*
P
ela quarta vez desde o triunfo da Oposição no plebiscito de 1988, que
abriu caminho para o fim do regime militar do General Augusto Pinochet (1973-
1990) e a transição para a democracia, no próximo mês de dezembro os chilenos
votarão para eleger um novo Presidente. Nas três eleições presidenciais e nas
quatro eleições parlamentares realizadas desde então, a Concertação (Concertación
de Partidos por la Democracia) obteve a maioria dos votos, elegendo Patrício Aylwin
(PDC, 1990-1994), Eduardo Frei Ruiz-Tagle (PDC, 1994-2000) e Ricardo Lagos
(PS/PPD, 2000-2006). No entanto, não conseguiu fazer a maioria no Senado,
porque tem uma composição mista imposta pelo regime anterior, com Senadores
nomeados, a maioria dos quais têm atuado em bloco junto à Oposição.
As eleições presidenciais serão realizadas simultaneamente com as
parlamentares, como aconteceu antes, em 1989 e 1993, sendo renovados todos
* Professor, Instituto de Estudos Internacionais, Universidade do Chile.
Diretor-Executivo do Centro de Estudos da Realidade Contemporânea (Cerc)
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Carlos Huneeus
43
os membros da Câmara de Deputados e a metade dos Senadores eleitos. Essa
simultaneidade impõe aos partidos políticos a necessidade de coordenar as
campanhas para as duas eleições, sendo o seu principal desafio a nomeação do
candidato presidencial. A Oposição designou Joaquín Lavín, a mesma
candidatura das eleições precedentes, nas quais teve um excelente resultado, já
que esteve perto de derrotar o candidato da Concertação, faltando para isso só
30.000 votos, e obrigando Lagos, o vencedor da disputa, a um segundo turno.
A Concertação tem duas pré-candidatas, Michelle Bachelet (PS) e Soledad
Alvear (PDC), ex-Ministras de Defesa e Relações Exteriores, respectivamente,
do atual governo, uma das quais deverá ser contemplada com a escolha comum.
Haverá também um terceiro candidato, dos comunistas, movimentos ecológicos
e humanistas, estimulados pelo bom resultado alcançado nas eleições municipais
de 31 de outubro de 2004, quando obtiveram 9,4% dos votos.
O presente artigo analisa o cenário político chileno com relação a essas
eleições, no contexto geral do desenvolvimento político do país, e consta de
três partes. Na primeira, fazemos uma breve apresentação dos sistemas
partidário e eleitoral do Chile; em seguida, são analisadas as particularidades
do processo político, especialmente as vantagens e os desafios de uma coalizão
que se mantém no governo com três presidentes, consecutivamente, com
políticas que têm continuidade, como a de direitos humanos; na terceira parte
são analisadas as perspectivas da próxima competição eleitoral.
Um sistema partidário de pluralismo moderado
Quando a democracia foi restabelecida, em 1990, os partidos que
ingressaram no Congresso Nacional expressaram ao mesmo tempo
continuidade e mudança com relação ao sistema que havia até o golpe militar
de 1973.
1
Três deles eram partidos históricos – o Partido Democrata Cristão
(PDC), fundado em 1938 como Falange Nacional; o Partido Radical, que
1
Timothy R. Scully, “Reconstituting Party Politics in Chile” no livro que compilou juntamente com Scott Mainwaring,
Building Democratic Institutions (Stanford: Stanford University Press, 1995), pp. 100-137. Para uma análise histórica dos
partidos, vide Samuel J. Valenzuela, “Orígenes y transformaciones del sistema de partidos en Chile”, Estudios
Públicos Nr.58, outono de 1995, pp.5-77. Sobre a continuidade das preferências eleitorais e dos partidos, vide
Samuel J. Valenzuela y Timothy R. Scully, “Electoral Choices and the Party System in Chile: Continuities and
Changes at the Recovery of Democracy”, Comparative Politics, 29: 4 (julho de 1997), pp.511-27.
Perspectivas eleitorais no Chile. Rumo a um quarto governo da “Concertación”?
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44
mudou de nome para Partido Radical Social Democrático (PRSD), surgido
em fins do século dezenove; e o Partido Socialista, fundado em 1933. Além
disso apareceram novas agremiações: uma de centro-esquerda, o Partido pela
Democracia (PPD), fundado com caráter instrumental em 1987, para enfrentar
o plebiscito, e duas de direita: a União Democrática Independente (UDI) e a
Renovação Nacional (RN), fundadas ambas em 1983.
Uma mudança foi o fato de que o Partido Comunista (PC) não conseguiu
nenhum assento. Antes do golpe esse partido tinha recebido um importante apoio
eleitoral, chegando a obter 16,2% dos votos nas eleições parlamentares de março
de 1973, e teve uma participação destacada no processo político que levou a esquerda
ao poder em 1970, com o Presidente Salvador Allende.
2
Tinha sido o terceiro
maior partido comunista do Ocidente, depois do PC da Itália e da França.
A continuidade dos partidos históricos foi possível devido a importantes
mudanças programáticas, de estratégia política e de dirigentes. O PDC
abandonou a sua política de “caminho próprio”, que lhe permitiu alcançar o
poder mas que o isolou dos outros, porque não buscou alianças que lhe teriam
permitido governar em coalizão durante o governo de Eduardo Frei Montalva
(1964-1970). A partir da sua oposição ao autoritarismo, optou por uma
estratégia de cooperação com outros partidos do centro e da esquerda, que
manteve durante o regime democrático.
3
O PS passou por um importante processo de renovação programática,
abandonando o marxismo e adotando uma orientação baseada na social
democracia, próxima do socialismo espanhol. Algumas das suas personalidades
mais destacadas, que estiveram no Parlamento ou no Ministério eram dirigentes
que pertenciam a pequenos grupos esquerdistas surgidos no fim da década de
1960, com a divisão do PDC e do PR.
2
O PC perdeu o apoio popular porque na oposição ao autoritarismo escolheu a via da violência, que foi
rejeitada pela oposição democrática por ser funcional para Pinochet, e além disso não propôs a votação do
Não no plebiscito de 1988. Nenhum partido convidou o PC a ingressar na Concertação, e o partido está
excluído do Parlamento, além de tudo por que o sistema binomial lhe impõe uma barreira muito alta para
conseguir um assento.
3
Huneeus, Carlos, “A Highly Institutionalized Political Party: Christian Democracy in Chile”, em Scott
Mainwaring e Timothy S. Scully (eds.) Christian Democracy in Latin America (Stanford: Stanford University Press,
2003). pp.121-161.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Carlos Huneeus
45
Embora com diferentes partidos, a direita retomou o seu bipartidarismo
histórico, que se estendeu desde meados do século dezenove até 1965,
4
quando
liberais e conservadores se dissolveram, em conseqüência da derrota eleitoral
nas eleições presidenciais de 1964 e parlamentares de 1965, fundando no ano
seguinte o Partido Nacional, que se dissolveu imediatamente depois do golpe
militar.
A UDI foi fundada pelos dirigentes do Movimiento Gremial, conhecidos
como “gremialistas”, criado em 1965 na Universidade Católica, por iniciativa
do estudante de Direito Jaime Guzmán, que chegou a contar com grande
apoio no movimento estudantil. Esse movimento desenvolveu uma oposição
ativa ao Governo Allende, e apoiou os novos governantes de 1973, assumindo
cargos de direção em diversos órgãos do governo central, e servindo como
prefeitos em muitos municípios. Guzmán foi o principal colaborador civil do
General Pinochet, e teve uma participação ativa no preparo da Constituição
de 1980.
5
Esses fatores de poder converteram os “gremialistas” no principal
grupo de poder civil durante o regime autoritário, fornecendo-lhe as bases
para formar um partido que contou com dirigentes e militantes em todo o
país. Na fase democrática os “gremialistas” defenderam o regime militar e a
continuação de Pinochet como Comandante em Chefe do Exército, mantendo
cerrada oposição até a metade do terceiro governo civil, e adotando, a partir
do fim da década de 1990, uma política de confrontação com o PDC, visando
tirar-lhe votos. Foi o único partido chileno que conseguiu ampliar o seu apoio
eleitoral, de 14,5% em 1989 a 25,1% em 2001, o que lhe permitiu converter-se
no principal do país nas eleições parlamentares de 2001, deslocando o PDC.
Mas não conseguiu repetir esse resultado nas eleições municipais de 2004,
quando o PDC pôde amenizar seu enfraquecimento eleitoral, confirmando-se
como o primeiro entre os partidos políticos, que já o tinha sido desde as eleições
municipais de 1963.
4
Valenzuela, “Orígenes y transformaciones del sistema de partidos en Chile”.
5
Vide uma análise do papel de Guzmán e do “gremialismo” no regime autoritário em Huneeus, Carlos,
El régimen de Pinochet (Santiago: Editorial Sudamericana, 2000), cap.7.
Perspectivas eleitorais no Chile. Rumo a um quarto governo da “Concertación”?
46 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
46
Quadro 1: Resultados das eleições parlamentares, votos para Deputados,
1989-2001.
Fonte: Calculado com base na informação fornecida pela Diretoria do Registro Eleitoral, complementada com
informações da imprensa, para identificar o partido dos candidatos independentes nas eleições de 1989.
A RN foi fundada por personalidades que tinham pertencido ao PN e que
tiveram uma participação menos ativa no regime militar, muitas das quais
estiveram na semi-oposição.
6
Embora tenha apoiado o “Sim” no plebiscito de
1988, diferenciou-se da UDI, que reconheceu imediatamente a vitória do “Não”
na noite dramática de 5 de outubro, antes mesmo das autoridades governamentais,
e quando a UDI se mantinha em silêncio. A partir da inauguração do regime
democrático adotou uma política de claro apoio à consolidação da democracia,
criticou as violações dos direitos humanos e apoiou o governo em algumas
importantes iniciativas legais, como a reforma tributária de 1991, que lhe permitiu
ter recursos para financiar uma ativa política social, dirigida contra a pobreza
extrema. Embora tenha integrado uma lista comum com a UDI na Aliança pelo
Chile, a competição entre os dois tem sido muito intensa – conseqüência das
diferenças políticas e de biografia entre os dirigentes das duas coletividades.
6
Linz, Juan J., “Opposition to and under an Authoritarian Regime: Spain”, em Robert A. Dahl (ed.)
Regimes and Oppositions, (New Haven: Yale University Press, 1973), pp. 171-260.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Carlos Huneeus
47
UDI e RN partiram em condições melhores do que as do PN, antes da queda da
democracia, pois em 1989 alcançaram 34,2% dos votos, muito mais do que os 21,1%
recebidos pelo PN nas últimas eleições antes do fim do regime democrático.
A existência de cinco partidos e meio com representação parlamentar,
competência eleitoral com tendência para posições centristas, abandono de
posições programáticas maximalistas e a disposição para negociar e transigir,
por parte dos seus dirigentes, criou as condições para criar um sistema de
partidos de pluralismo moderado.
7
O sistema eleitoral e o seu impacto sobre o sistema político.
O sistema político está dominado por duas alianças políticas, a Concertação
e a Aliança pelo Chile,
8
que competem nas eleições presidenciais, parlamentares
e locais, contando com 85% dos votos nos pleitos municipais e mais de 90% nas
eleições parlamentares. Nestas duas últimas eleições o PS e o PPD fizeram um
pacto, impedindo a competição entre os seus candidatos. O PDC apresentou-se
em separado, e os seus candidatos competiram com os do PS/PPD.
A existência das coalizões não pode ser deduzida do sistema eleitoral,
mas sim das condições do desenvolvimento político chileno, que desde antes
do regime autoritário não pode ser reduzido às coalizões, caracterizando-se
pela grande polarização e o confronto que levou à derrubada da democracia e
às condições em que se desenvolveu o regime militar, o qual dividiu o país
entre amigos e inimigos, incluindo todos os opositores neste último grupo.
A Concertação tem uma longa história comum, que começa com a defesa
dos presos políticos, poucos dias depois do golpe militar, e prossegue através
de várias organizações, que permitiram aos seus dirigentes criar vínculos de
confiança política, úteis para superar suas diferenças.
9
A presidência confere
incentivos institucionais importantes à coalizão, com presidentes que gozam
de um apoio superior ao recebido pelo próprio governo.
7
Sartori, Giovanni, Partidos y sistemas de partidos, (Madrid, Alianza Editorial, 1980).
8
O nome Alianza por Chile foi adotado nas eleições presidenciais de 1999. Nos pleitos anteriores a directa se
apresentou com outros nomes.
9
As principais organizações foram o Grupo de Estudos Constitucionais, conhecido como “Grupo dos 24”,
em 1978; a Aliança Democrática, em 1983; e a Concertação de Partidos pela Democracia, no começo de 1988.
Perspectivas eleitorais no Chile. Rumo a um quarto governo da “Concertación”?
48 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
48
Quanto à Aliança pelo Chile, possui também antecedentes históricos. Seus
dirigentes e parlamentares participaram do regime militar – 93% dos deputados
da UDI eleitos de 1989 e 68% dos da RN tinham ocupado cargos políticos
naquele regime.
Embora os dois partidos tenham visões distintas sobre as violações dos
direitos humanos (criticadas pela RN), coincidem na defesa das suas reformas
econômicas, e têm igualmente uma longa experiência comum de confrontação
com o PDC e com os partidos da esquerda, apoiada na longa tradição
anticomunista da direita.
Em conseqüência, o binominalismo apenas facilita as coalizões de
governo e oposição, mas não constitui a sua causa.
O Congresso chileno é bicameral. A Câmara de Deputados tem 120
membros, eleitos por quatro anos, dois por distrito eleitoral, havendo 60 distritos
eleitorais. O Senado tem uma composição mista: 38 Senadores são eleitos,
sendo dois por distrito (os distritos são 19, e na Constituição de 1980 eram 13,
tendo sido ampliado esse número na reforma constitucional de 1989). Nove
Senadores, chamados “institucionais” ou “designados” não são eleitos; quatro
deles são nomeados pelo Conselho de Segurança Nacional, três pela Corte
Suprema, em escolhas separadas, e dois pelo Presidente da República. Há um
Senador vitalício, que é o ex-Presidente Frei Ruiz-Tagle.
10
Os Senadores eleitos
têm um mandato de oito anos, sendo renovados metade deles a cada quatro
anos, em eleições simultâneas com as dos Deputados.
Diferentemente da Constituição de 1925, que permitia a eleição de um
presidente com minoria de votos se a eleição fosse ratificada pelo plenário do
Congresso,
11
a Constituição atual, de 1980, exige a maioria absoluta, havendo
uma ballotage – ou seja, um novo escrutínio – se isso ocorrer. Nas duas primeiras
eleições a Concertação saiu vitoriosa no primeiro turno, com Patrício Aylwin
10
Há um projeto de reforma constitucional negociado entre a Concertação e a Aliança pelo Chile destinado a
suprimir os Senadores designados e vitalícios, para fazer com que o Senado seja composto exclusivamente por
membros eleitos.
11
Isto aconteceu em quatro das nove eleições presidenciais, desde o fim da ditadura de Ibáñez, em 1931 - em
1946, 1952, 1958 e 1970. Neste último ano o vitorioso foi Salvador Allende (PS), candidato da Unidade
Popular, eleito com os votos do PDC depois de assinado um Estatuto de Garantias Democráticas, que implicou
uma reforma da Constituição destinada a fortalecer a autonomia das instituições políticas e dos militares.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
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49
(PDC), em 1989, que recebeu 53,8% dos votos, e Eduardo Frei Ruiz-Tagle
(PDC), em 1993, com 54,8%. Como dissemos, na terceira eleição, em 1999,
Ricardo Lagos ganhou no segundo turno, com 50,27%. Todos esses presidentes
tiveram uma alta aprovação por parte do eleitorado, o que é extraordinário
porque a coalizão está no governo há quinze anos. O apoio recebido pelo
Presidente Lagos é excepcional, pois está aumentando no final do seu mandato,
e quebra assim a tendência natural para que o Chefe do Executivo tenha um
menor apoio no fim do seu governo.
A opinião sobre os Presidentes Patrício Aylwin / Eduardo Frei / Ricardo Lagos*,
1990 2004.
P: Gostaria de saber qual a sua opinião sobre o Presidente Patricio Aylwin / Eduardo Frei Ruiz-Tagle / Ricardo Lagos.
*Soma de boa e muito boa; má e má.
Fonte: BARÔMETRO CERC, dezembro de 2004.
Nas duas primeiras eleições presidenciais a Oposição ficou dividida, e
só na de 1999 conseguiu participar com um candidato único, que deu um
grande impulso à campanha eleitoral, em um momento especialmente adverso
para a coalizão oficial.
O sistema eleitoral é binominal, com dois assentos por distrito, e foi estabelecido
pelo regime autoritário, eliminando o sistema de representação proporcional que
Perspectivas eleitorais no Chile. Rumo a um quarto governo da “Concertación”?
50 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
50
existiu até o golpe militar, adotado porque era o que melhor correspondia às
divisões da sociedade e ao multipartidarismo. Nos anos 1960 havia seis partidos
relevantes, embora com tendências centrífugas, que o converteram em um
exemplo de pluralismo polarizado, segundo a tipologia de Sartori.
12
O binominalismo foi regulamentado depois do plebiscito de 1988, quando
ficou evidente que a direita seria minoritária nas eleições presidenciais e
parlamentares de 1989, com o objetivo de atenuar o seu enfraquecimento
eleitoral. Por isso favorece a primeira minoria, que com 33,5% dos votos pode
obter a metade dos cargos disputados. É preciso 67% dos votos para que uma
lista obtenha os dois assentos.
13
Não pode portanto ser classificado entre os
sistemas majoritários, porque não privilegia a maioria; ao contrário, a prejudica,
porque com 66% dos votos o partido majoritário teria apenas a metade dos
cargos submetidos à eleição. E também não pode ser considerado como um
critério proporcional, porque distorce a representação política, embora isto
não seja fatal, porque os efeitos dos sistemas eleitorais são determinados
preferentemente por certos fatores do sistema político, assim como pelas
divisões existentes no país.
14
O sistema binominal é defendido pela Oposição porque seria um fator
importante a contribuir para a governabilidade do país, criando duas grandes
coalizões, uma no Governo, a outra na Oposição, facilitando assim a tomada
de decisões. No entanto, esta afirmativa é um equívoco, porque a Concertação
precede o estabelecimento deste sistema eleitoral. Portanto, a governabilidade
foi conseguida a despeito do binominalismo, criticado severamente por vários
motivos.
Em primeiro lugar, ele obriga os partidos a competir formando coalizões
amplas, para poder conquistar um cargo eletivo. Isto impediu que o Partido
Comunista obtivesse qualquer assento, embora até 1973 tenha sido um partido
12
Sartori, Partidos e Sistemas de Partidos.
13
Nas eleições de 2001 a direita elegeu os dois candidatos em um distrito, correspondente ao setor de melhor
nível econômico de Santiago (Las Condes, Vitacura y Barnechea) e a Concertação teve o mesmo êxito em
quatro distritos. Com relação ao Senado, nestas eleições a Concertação conseguiu eleger os dois candidatos em
um único distrito, na VIII Região.
14
Nohlen, Dieter, Sistemas electorales y partidos políticos (México: Fondo de Cultura Económica, 1994).
15
Dahl, Robert A., Polyarchy. (New Haven: Yale University Press, 1971), apêndice B, tabela A-3.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Carlos Huneeus
51
importante, e apesar de ter conseguido nas eleições 5% e 5% dos votos, o que
não o impediu de ser excluído da vida parlamentar. O sistema não permite
também o ingresso de novos partidos, que poderiam integrar no sistema político
eleitores que não estão representados pelas agremiações existentes, e portanto
não participam das eleições.
Em segundo lugar, como cada lista só pode conseguir um assento, não
há uma competição entre as coalizões e os partidos que são adversários, mas
apenas dentro de cada lista, entre os candidatos de partidos aliados. É uma
competição que cria grandes tensões em cada aliança, e que tem provocado
incidentes, pondo em perigo a sua unidade. Nas eleições de 1997, para derrotar
o candidato da RN, a UDI promoveu uma estratégia eleitoral espetacular,
acusando constitucionalmente o Presidente da Corte Suprema de consumir
drogas. Provocou assim um fato político que causou enorme comoção em
todo o país e deixou em segundo plano o outro candidato da lista. Logrou
assim alcançar o seu objetivo, mas pressionando ao máximo as relações com a
RN, e provocando um dano no tribunal supremo da nação, considerado pouco
confiável pela cidadania.
Para evitar a repetição de incidentes de gravidade, como este, nas eleições
para o Senado de 2001 os partidos da direita renunciaram à competição em
sete dos nove distritos onde haveria votação, concordando com os nomes
escolhidos para Senador e garantindo o resultado pretendido mediante a
inscrição de um único candidato ou fazendo-o acompanhar por um competidor
de pouco peso eleitoral, quando não era possível fechar um acordo naquele
sentido. É o que provavelmente voltará a acontecer em vários distritos nas
eleições parlamentares deste ano, para alcançar a unidade da coalizão de modo
a enfrentar adequadamente a eleição presidencial.
Trata-se de uma solução muito negativa para o sistema político, porque
implica em negar a competição eleitoral, prejudicando a confiança no sistema
democrático e transformando as eleições em meros atos de ratificação das
pessoas previamente designadas para integrar o Congresso.
Em terceiro lugar, o sistema binominal dá um poder excessivo aos
dirigentes dos partidos, que ao preparar a lista dos candidatos podem definir o
nome dos eleitos. Como não há uma competição genuína, em muitos distritos
os cidadãos têm pouco interesse em votar, porque neles o resultado das urnas
Perspectivas eleitorais no Chile. Rumo a um quarto governo da “Concertación”?
52 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
52
é conhecido de antemão, e em muitos casos o eleitor não tem um candidato do
seu partido, mas da coalizão.
É um sistema que não poderá prevalecer indefinidamente, porque prejudica
os partidos e dificulta uma competição eleitoral sadia. No entanto, será muito
difícil eliminá-lo, porque isso implicaria uma reforma eleitoral com enormes
repercussões, obrigando os partidos a entrar em uma competição autêntica.
Esta perspectiva cria uma sombra de incerteza entre os dirigentes políticos, o
que os leva a não alterar a situação. Além disso, a mudança é de realização
complexa, porque requer uma reforma constitucional para modificar o sistema
de composição do Senado, que está inscrito na Carta fundamental.
Os problemas da participação eleitoral.
No regime democrático, anterior a inscrição no registro eleitoral, foi
obrigatória a partir de uma reforma eleitoral realizada em 1962. O voto era
obrigatório, embora não houvesse punição séria para os que não votassem. O
comparecimento dos eleitores era limitado, porque a cidadania só foi concedida
aos analfabetos com a reforma constitucional de 1970, permitindo-lhes votar
pela primeira vez nas eleições municipais de 1971. Portanto, o acesso à
democracia de massa foi muito tardio, ao contrário do que aconteceu na
Argentina e no Uruguai, o que levou Dahl a definir o Chile como uma poliarquia
plenamente inclusiva, considerando-o um “caso especial”, juntamente com a
Suíça e os Estados Unidos da América.
15
O regime militar alterou esses mecanismos. A inscrição eleitoral é
voluntária, e o registro se encerra três meses antes de cada eleição, reabrindo
trinta depois do tribunal certificador das eleições sancionar os respectivos
resultados.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Carlos Huneeus
53
Quadro 2. Os eleitores no regime democrático anterior, 1952 - 1973
O regime autoritário ordenou a preparação de um novo registro eleitoral
porque o existente no anterior regime democrático foi queimado depois do
golpe de 1973, porque os novos governantes consideraram que tinha sido
manipulado pelos partidos da Unidade Popular. As inscrições foram abertas
em fevereiro de 1987, com a finalidade de atender ao plebiscito sucessório. O
governo não promoveu uma campanha para estimular as inscrições por
considerar que os seus partidários teriam muito interesse em fazê-la, e uma
inscrição ampla beneficiaria a Oposição. Com efeito, foram os partidos da
oposição democrática que fizeram uma campanha ativa em favor das inscrições,
a qual no entanto precisou vencer as desconfianças dos que acreditavam que o
plebiscito sucessório não tinha sentido, porque os resultados seriam
manipulados pelos militares. A campanha teve êxito, porque se conseguiu uma
taxa de inscrição muito alta, chegando a atingir 92,2% dos inscritos potenciais
– porcentagem muito superior à alcançada no fim do antigo regime
democrático.
Perspectivas eleitorais no Chile. Rumo a um quarto governo da “Concertación”?
54 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
54
Quadro 3. Os eleitores no novo regime democrático, 1988 - 2001
(1) Estadísticas Demográficas, INE 2001. http:// www.ine.cl/chile_cifras/f_chile_cifras.htm. Os eleitores
potenciais representam a população maior de 18 anos.
(2) Estadísticas de Inscripciones Habiles y Mesas Receptoras de Sufragios, Serviço Eleitoral, 29 de Outubro de 2000.
Fonte: Marta Lagos, a mesma do quadro anterior.
Desde a grande mobilização eleitoral, por ocasião do plebiscito de 1988,
o ritmo das inscrições se deteve, porque os jovens não se aproximam dos
postos de registro eleitoral. A tramitação dessas inscrições é uma exigência
anacrônica e injusta para com os jovens, pois há uma inscrição automática
para o serviço militar obrigatório mas não para adquirir a plena cidadania,
com a obtenção do título eleitoral.
A marginalização dos jovens tem provocado uma diminuição cada vez
maior da porcentagem dos inscritos com relação ao número potencial de
eleitores. Para as eleições presidenciais de 1999 havia 81,2% inscritos, mas
para as eleições municipais de 2004 esse índice caiu para 77% dos eleitores
potenciais, revelando a ausência nas urnas de dez e meio milhões de chilenos,
que poderiam exercer a sua cidadania.
No entanto, em todas as eleições a participação eleitoral dos inscritos
tem sido muito elevada (superior a 85%), com a exceção das eleições
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Carlos Huneeus
55
parlamentares de 1997. O crescente envelhecimento do corpo eleitoral cria
problemas cuja solução é inevitável para que as eleições cumpram as funções
que lhes correspondem em uma democracia.
19
Quadro 4. Evolução da participação eleitoral, 1988 - 2004
(1) Os eleitores potenciais representam a população maior de 18 anos. Estadísticas Demográficas, INE 2001.
http://www.ine.cl/chile_cifras/f_chile_cifras.htm
(2) Estadísticas de Inscripciones Hábiles y Mesas Receptoras de Sufragios, Servicio Electoral, 29 de outubro de 2000
(3) y (4) Servicio Electoral: Escrutinio Elección senadores 1993, 1997. Escrutinio Elección diputados 1993, 1997.
Escrutinio Elecciones presidenciales 1989, 1993 y 2000. (3) y (4). Elecciones municipales, Elección de concejales, 28 de junio
1992. Escrutinio General. Servicio Electoral de Chile. Elección de concejales, Servicio Electoral 1996. Escrutinio Elecciones
Municipales 1992.Fonte: A mesma do Quadro anterior, Quadro 4.
19
Em 2004 o governo do Presidente Lagos apresentou ao Congresso um projeto de Lei visando criar a
inscrição automática no registro eleitoral e o voto voluntário. Nos partidos da Concertação não há consenso
sobre o voto voluntário, por temer-se que possa debilitar a participação dos eleitores e beneficie a direita,
provocando uma maior influência do poder econômico nas campanhas, como mostra a experiência comparada.
A oposição rejeita a isncrição automática e apoia o voto voluntário. Os argumentos contra o voto voluntário
foram expostos recentemente por Lijphart, Arend, em “Unequal Participation: Democracy´s Unresolved
Dilemma. Presidential Address, American Political Science Association, 1996", American Political Science
Review, vol. 91, Nr.1, Março de 1997, pp. 1-14.
Perspectivas eleitorais no Chile. Rumo a um quarto governo da “Concertación”?
56 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
56
As vantagens da continuidade dos governos.
O desenvolvimento político a partir de 1990 significou terminar com a
instabilidade governamental que caracterizou a evolução política do país entre
1946 e 1973, quando depois de cada eleição ocupava o palácio de La Moneda
um presidente de diferente posição, com novos planos para melhorar as
condições econômicas e sociais, introduzindo mudanças nas políticas, nem
sempre em uma direção apropriada.
20
A continuidade representada por três presidentes pertencentes a uma mesma
coalizão tem sido um fator favorável ao desenvolvimento político e econômico do
Chile, possibilitando a estabilidade das políticas de modernização econômica
promovidas pelos governos da Concertação, as quais têm levado a modificações
institucionais de importância nas medidas adotadas pelo regime precedente.
Três governos dos mesmos partidos não conduziram a uma perda de
renovação das políticas, nem produziram uma elite governante limitada a um
número reduzido de pessoas que tivessem permanecido nos seus cargos durante
muitos anos, o que teria enfraquecido a iniciativa política e a capacidade inovadora
da coalizão. Não ocorreram esses efeitos negativos porque cada presidente nomeou
novos ministros, subsecretários, embaixadores, intendentes e governadores.
Nenhuma pessoa continuou no mesmo cargo em dois governos, e os que exerceram
dois cargos diferentes em dois governos constituem uma exceção.
21
Houve continuidade na orientação da economia de mercado, tendo a empresa
privada e a abertura da economia como os traços mais importantes, o que permitiu
lançar as bases de uma economia que cresceu fortemente entre 1985 e 1997,
alcançando um crescimento médio anual de 7%, que se reduziu fortemente devido
à crise asiática de 1997-1998 e às medidas adotadas pelo Banco Central para enfrentá-
la, voltando só depois de alguns anos ao ritmo inicial, com 5% de crescimento em
2004 e previsões entre 5% e 6% para 2005. A abertura da economia teve um
20
Vide uma boa apresentação do desenvolvimento político e econômico em Collier, Simon e Sater, William F.
Historia de Chile, 1808-1994.(Cambridge: Cambridge University Press, 1998) y Angell, Alan, Chile de Alessandri a
Pinochet: en Busca de la Utopía (Santiago: Editorial Andrés Bello, 1993).
21
O caso mais destacado é o de José Miguel Insulza, que foi Ministro de Relações Exteriores e Ministro
Secretário Peral do Presidente Frei, e Ministro do Interior de Lagos. Ele participou também dos Governos de
Frei y Lagos .
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Carlos Huneeus
57
impulso considerável, com vários tratados de livre comércio assinados com outros
países, a começar com o México, seguido pelos Estados Unidos e a União Européia,
o que não teria sido possível com um regime militar.
Os governos da Concertação aplicaram medidas severas contra a inflação
elevada que caracterizou o regime militar, e que nos seus últimos anos foi
motivada por medidas populistas visando preparar o plebiscito sucessório de
1988 e as eleições presidenciais de 1989, tendo chegado naquele ano a 27%.
Depois disso a inflação caiu de forma sistemática, chegando em 1994 a um só
algarismo, e se estabilizou mais tarde em torno de 2% ao ano. Houve também
uma política decidida de combate à pobreza, que conseguiu reduzir à metade
o número de pobres existente no fim do regime Pinochet.
22
A política de tratamento das violações dos direitos humanos cometidos
durante o período autoritário tem sido uma constante dos três governos da
Concertação, dada a amplitude da coerção aplicada pelo regime de Pinochet,
representada em larga medida pela própria pessoa do General. Como ele
permaneceu como Comandante em Chefe do Exercito até 10 de março de
1988, e nesses anos não colaborou com a consolidação da democracia, mas ao
contrário dificultou esse processo, isso contribuiu para manter viva a lembrança
do seu governo, e quando deixou a chefia do exército foram iniciados vários
processos contra ele. O General Pinochet ajudou a manter vivo o passado, e
sua viagem à Inglaterra, em outubro daquele ano, provocou uma humilhante
prisão em Londres, devido a uma decisão da Justiça espanhola, executada
eficazmente pela polícia britânica. Após um ano e meio preso em Londres,
23
Pinochet foi autorizado a retornar ao Chile para ser processado pela Corte
Suprema, em agosto de 2000. A Justiça chilena não o condenou porque os
seus advogados recorreram a um recurso legal extremo: declarar que não se
encontrava no gozo de boa saúde mental. Mais tarde, a memória do General
demonstrou estar ainda mais prejudicada quando da denúncia feita pelo Senado
dos Estados Unidos, em junho de 2004, revelando a existência de contas
milionárias em dólares, em um banco da capital norte-americana. A imagem
22
O melhor estudo das políticas econômicas dos governos da transição é o de French-Davis, Ricardo, Entre el Neoliberalismo y el
Crecimiento con Equidad. Tres Décadas de Política Económica en Chile (Santiago: J.C. Saez Editor, 2003), 3ª edição atualizada.
23
Seus efeitos na política chilena foram analisados em Carlos Huneeus, “The consequences of the Pinochet
case for Chilean politics”, em Madeleine Davis (ed.) The Pinochet Case. Origins, Progress and Implications (Londres:
Institute of Latin American Studies, 2003), pp. 169-188.
Perspectivas eleitorais no Chile. Rumo a um quarto governo da “Concertación”?
58 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
58
do estadista que só se preocupava com o bem do seu país foi derrubada
violentamente, e Pinochet terminará sua vida perseguido pelo Serviço de
Impostos Internos por não ter pago impostos sobre esses rendimentos.
A importância do problema dos direitos humanos foi ressaltada desde o
princípio pelo Presidente Aylwin, que considerou ser uma necessidade ética e política
conhecer a verdade sobre os abusos cometidos e “na medida do possível”, fazer
justiça a respeito dos crimes cometidos. O que era muito difícil, porque dependia
de um sistema legal herdado, com uma lei de anistia de 1978 aplicável a todos os
excessos cometidos desde o golpe militar, e também porque não se esperava uma
colaboração por parte dos tribunais, que tinham tolerado esses excessos.
Os direitos humanos e o desenvolvimento da democracia.
Os principais marcos da política de averiguação dos excessos cometidos
pelo regime militar foram, em primeiro lugar, o relatório preparado pela
Comissão de Verdade e Reconciliação convocada pelo Presidente Aylwin, logo
que assumiu a presidência, integrada por personalidades que defenderam os
direitos humanos, advogados e acadêmicos, a qual ficou conhecida como
“Comissão”.
24
Apoiando-se na documentação reunida pelo Vigário da
Solidariedade do Arcebispado de Santiago, criado pelo Cardeal Arcebispo Raúl
Silva Henríquez para defender os detidos, pôde relatar os casos de repressão
que terminaram com a morte de 2279 pessoas.
25
Esse trabalho foi rejeitado
pelos militares, especialmente pelo General Pinochet, que era então o
Comandante em Chefe do exército, porque os fatos denunciados tinham sido
provocados por agitadores da extrema esquerda.
O segundo marco foi a Mesa de Diálogo, criada por iniciativa do Ministro
de Defesa Edmundo Pérez (PDC), no fim do governo do Presidente Frei, quando
24
Seu presidente foi Raúl Rettig, conhecido político radical, que foi Deputado, Senador e serviu como
Embaixador do Presidente Allende no Brasil.
25
Este dado é mais elevado, conforme a estimativa feita pela Corporação Nacional de Reparação e Reconciliação,
criada pela Comissão Rettig, chegando a 3.197 pessoas mortas, número admitido pelo Estado com respeito às
políticas de reivindicação política e econômica. Mais da metade das mortes ocorreram em 1973, mas um
grande número de pessoas perderam a vida nos três anos seguintes, conforme analisamos em Huneeus, El
régimen de Pinochet, caps.1 e 2.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Carlos Huneeus
59
Pinochet estava preso em Londres por decisão da Justiça espanhola, que o processava
por crimes cometidos contra cidadãos dessa nacionalidade. Participaram da Mesa
do Diálogo representantes dos Comandantes dos três ramos das Forças Armadas,
personalidades da comunidade dos direitos humanos e da sociedade civil, em um
trabalho concluído quando Lagos ocupava a presidência. Foi subscrito um documento
em que os representantes militares reconheceram e admitiram ter feito desaparecer
cadáveres, que foram lançados ao mar.
O terceiro marco foi a Comissão Nacional sobre Prisão Política e a Tortura,
constituída pelo Presidente Lagos em 2003, e formada por personalidades do
mundo dos direitos humanos e da sociedade civil, a qual ficou conhecida como
“Comissão Valech”, por ter sido presidida por Monsenhor Sergio Valech, que
tinha sido Vigário da Solidariedade. Sua tarefa consistia em examinar os casos
de tortura ocorridos durante o regime autoritário, receber denúncias das pessoas
afetadas e propor ao Presidente uma política de reparação. O Relatório contendo
os resultados desse trabalho, divulgado pelo Presidente Lagos em fins de
novembro,
26
retratou uma realidade dramática, com base nas declarações de
milhares de pessoas, homens e mulheres, que submeteram o seu caso à Comissão.
Estimou-se que mais de trinta mil pessoas estiveram presas nos numerosos
centros preparados para esse fim, e uma proporção significativa desses indivíduos
foram torturados.
Nos últimos anos os tribunais levaram adiante vários processos contra
militares que participaram das violações dos direitos humanos, e esses processos
têm permitido constatar os fatos denunciados, embora tenham demorado em
condená-los. O primeiro processo nesse sentido foi iniciado contra o General
reformado Manuel Contreras, que tinha exercido a chefia da Diretoria de
Inteligência Nacional (Dina), a principal organização repressiva, que perpetrou
ações terroristas no Chile e no exterior,
27
pela sua responsabilidade no atentado
que em 1976 tirou a vida de Orlando Letelier, ex-Embaixador do Governo
26
Tivemos a oportnidade de analisar esse documento em Carlos Huneeus,”El Informe Valech y su aporte al
fortalecimiento de la democracia”, Mensaje, Janeiro de 2005.
27
Os outros casos mais emblemáticos foram o atentado cometido em Buenos Aires, em 30 de setembro de 1974, que
custou a vida ao ex-Comandande em Chefe do Exército Carlos Prats, que foi Ministro do Interior do Presidente
Allende e da sua esposa, e contra Bernardo Leighton e sua esposa, em setembro de 1975, que os deixou gravemente
feridos. Bernardo Leighton era uma das pesonalidades mais prestigiosas da Democracia Cristã, havendo sido um
dos seus fundadores, em 1938, e foi Ministro do Interior do governo de Eduardo Frei Montalva (1964-1970).
Anteriormente tinha sido Deputado, Ministro do Trabalho (1937-1938) e da Educação (1950-1952).
Perspectivas eleitorais no Chile. Rumo a um quarto governo da “Concertación”?
60 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
60
Allende em Washington, e Ministro da Defesa durante alguns meses em 1973,
assim como de uma cidadã norte-americana, único fato mantido fora da lei de
anistia de 1978. Contreras foi condenado a oito anos de prisão.
28
A imagem negativa dos tribunais, pela sua falta de empenho na defesa dos
direitos individuais durante o regime militar foi um fator que influiu na aprovação
de uma reforma do Judiciário e uma ambiciosa reforma do direito processual
pena, que mudou completamente o sistema vigente desde o século dezenove, e
que constitui um progresso importante no aprofundamento da ordem pluralista.
29
Essas reformas consistiram em um grande número de iniciativas, desde a criação
de uma Academia Judiciária, para capacitar os juízes de ministros das cortes de
apelação até a mudança do procedimento de designação dos ministros da Corte
Suprema. Com essa reforma os ministros passaram a ser nomeados pelo Senado,
com os votos de dois terços dos seus membros, para garantir o consenso da
Oposição, mediante proposta do Presidente da República com base em cinco
nomes indicados pelo tribunal mais elevado, o que impede que os seus membros
sejam escolhidos por determinação presidencial. Foi aumentado o número de
ministros, de 16 para 21, não só para haver mais magistrados, que possam atender
às tarefas do tribunal mas também para poder incorporar profissionais procedentes
de fora da carreira judiciária, como advogados e acadêmicos destacados, que têm
uma visão distinta da dos magistrados de carreira. Procurou-se criar um processo
de renovação dos ministros do tribunal superior da nação, estabelecendo a idade
máxima de 75 anos, aplicável igualmene aos ministros da corte de apelação.
A reforma processual penal significou terminar o sistema vigente no país desde
a promulgação do Código de Processo Penal, no século dezenove, em que o juíz
tinha a dupla função de investigar e sentenciar. Para substitui-lo foi criado um
procedimento penal a ser desenvolvido com uma duração razoável, com garantias
para todos os interessados, “no quadro de um processo oral público, concentrado,
contraditório e oportuno.”
30
A reforma criou uma nova instituição, o Ministério
28
Mais tarde, enquanto cumpria a sua pena Contreras foi processado e condenado por outros delitos e atualmente
se encontra preso, por ter sido condenado por um deles.
29
Sobre a reforma judicial, Jorge Correa, “Cenicienta se queda en la fiesta. El poder judicial chileno en la década
de los 90”, en: Drake e Jaksic El modelo Chileno, pp. 281-315 y Blanco, Rafael, “El programa de justicia del
Gobierno de Eduardo Frei”, en: Muñoz–Stefoni (eds.) El Período del Presidente Frei Ruiz-Tagle, pp. 187-220.
30
A melhor análise da reforma judicial é a feita por Blanco, Rafael, “El programa de justicia del Gobierno de
Eduardo Frei”, en: Muñoz, Oscar–Stefoni, Carolina (eds.) El Período del Presidente Frei Ruiz-Tagle (Santiago:
FLACSO-Editorial Universitária, 2003), pp. 187-220, a citação é da p 202.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Carlos Huneeus
61
Público, composto por fiscais independentes, incumbidos da investigação, de modo
que os juízes podem dedicar-se à tarefa que lhes é própria: com suas sentenças,
decidir os conflitos que chegam ao conhecimento dos tribunais. Além disso, o processo
penal foi simplificado, com um procedimento oral que acelera a sua conclusão,
procurando superar a lentidão que caracterizava o antigo procedimento.
Finalmente, a política de direitos humanos também contribuiu para a
modernização de um poder do Estado cujo trabalho é indispensável em uma
democracia moderna e em uma economia dinâmica.
A memória histórica e a cultura cívica.
Para compreendermos as perspectivas eleitorais não podemos deixar de
levar em conta o impacto sobre os chilenos da memória histórica a respeito do
regime militar, que é muito relevante apesar do tempo transcorrido. Os eleitores
dos diferentes partidos não se distinguem pelo apoio dado às principais políticas
públicas, em parte porque com a modernização econômica as posições dos
partidos se aproximaram. O que caracteriza o eleitor é a sua opinião sobre o
regime militar, o desempenho do General Pinochet e as violações dos direitos
humanos. Por ocasião dos trinta anos do golpe militar, os meios de comunicação
prepararam reportagens sobre esse acontecimento que marcou o destino do
país, em resposta ao interesse da população, e essas matérias divulgaram
informações sobre esses acontecimentos dolorosos àqueles que não os viveram
ou não os conheceram, para que formassem uma opinião a esse respeito.
31
Há opiniões diferentes sobre o golpe de estado de 1973. Um terço das
pessoas consultadas concorda com a alternativa “salvou o país do comunismo”,
porcentagem que se eleva a 76% entre os partidários da UDI e a 52% entre os
favoráveis à RN. Por outro lado, 52% respaldam a opção “destruiu a
democracia”, que aumenta para 80% entre os eleitores dos partidos da
Concentração.
32
Os jovens têm opiniões mais críticas do que a população em
geral, pois 62% opinam que o golpe destruiu a democracia, porcentagem que
cai para 44% entre os que têm mais de 60 anos.
31
Analisamos o impacto do passado em Carlos Huneeus, Chile, un País Dividido (Santiago: Catalonia, 2003).
32
Resultados de pesquisas de opinião com amostras nacionais urbanas, em 1200 casos, do Barômetro CERC,
em dezembro de 2004.
Perspectivas eleitorais no Chile. Rumo a um quarto governo da “Concertación”?
62 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
62
Cerca de 35% dos chilenos acreditam que os militares tinham razão em
dar um golpe, e essa proporção sobe para 68% na UDI e para 67% na RN,
baixando para 21% no PDC e para 22% entre os socialistas. Enquanto 20%
da população faz uma avaliação positiva dos dezessete anos de regime militar,
essa apreciação é a mesma de 68% dos eleitores da UDI, mas só de 22% entre
os eleitores da RN. O que denota uma clara diferença de opinião entre os dois
partidos no referente aos direitos humanos, conforme já observamos. No PDC
só 4% dos inquiridos têm uma opinião positiva, e entre os socialistas apenas
3%, dados que não são relevantes.
Há também diferenças de opinião a respeito do General Pinochet. Nas
numerosas pesquisas realizadas pela Cerc desde a inauguração do regime
democrático, Pinochet contou com um apoio estável e relativamente alto.
Aproximadamente 23% opinam que ele passará à história como um dos
melhores governantes do Chile no século XX, e uma porcentagem equivalente
rejeita a afirmativa de que passará à história como um ditador. Outros 24%
pensam que o General passará para a história como um homem bem
intencionado que não sabia o que estavam fazendo os seus colaboradores”
(63% recusaram essa afirmativa) e 51% pensam que ele será lembrado como o
homem que impulsionou e modernizou a economia” (rejeição de 35%).
Essa continuidade das opiniões sobre o passado se deu pela transmissão
de pai a filho, da socialização familiar, da educação, dos amigos, do ambiente
de trabalho e dos meios de comunicação, em uma sociedade que na década de
1960 era muito politizada, em conseqüência da modernização social e política
muito tardia, com reformas estruturais que foram traumáticas para os
latifundiários e para a direita, e que se converteu à democracia de massa também
muito tarde, pois só a partir de 1970 os analfabetos puderam votar.
As perspectivas eleitorais.
A Oposição concorre nas próximas eleições presidenciais com o mesmo
candidato apresentado anteriormente, Joaquín Lavín, e a Concertação deve
escolher o seu candidato entre Michelle Bachelet (PS), apoiada pelo PPD, e
Soledad Alvear (PDC). Esta última é advogada, membro do gabinete deste
1990, havendo organizado o Serviço Nacional da Mulher (Sernam) no primeiro
governo democrático. Depois foi Ministra da Justiça do Presidente Frei,
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Carlos Huneeus
63
implantando a profunda reforma judicial e processual penal. No governo de Lagos
foi Ministra das Relações Exteriores.
33
Médica de profissão, no governo de Frei
Michelle Bachelet desempenhou funções do Ministério da Saúde; foi assessora do
Ministro da Defesa no governo de Frei, Ministra da Saúde nos dois primeiros
anos do governo de Lagos, tendo sido depois nomeada Ministra da Defesa. Sua
vida reflete o dramático passado chileno: seu pai foi general da Força Aérea e
ocupou um cargo importante no governo do Presidente Allende, quando ele
recorreu aos militares para enfrentar a difícil situação econômica do país. Depois
do golpe de 1973 foi preso e morreu em conseqüência das torturas sofridas. Como
Ministra da Defesa, este fato deu a Michelle Bachelet uma enorme visibilidade,
especialmente por ocasião dos trinta anos do golpe. Na pesquisa realizada em
setembro de 2003 ela superou Soledad Alvear como “um dos cinco políticos
com mais futuro”, tendo mais tarde consolidado a sua posição.
34
Diferentemente de 1999, a coalizão governista tem uma alta possibilidade
de ganhar a próxima eleição, mas isso vai depender de que a escolha do seu
candidato seja o menos conflitiva possível. Em 1999 a Concertação teve uma
má experiência na designação de um candidato comum, com a disputa, nas
primárias, entre o indicado pelo PDC, o Senador Andrés Zaldívar, e o preferido
do PS/PPR, Ricardo Lagos. O primeiro, que ocupava uma posição muito
menos favorável nas pesquisas de opinião, fez uma campanha incisiva contra
o seu competidor, lembrando a insegurança criada por um candidato
esquerdista. Essa campanha prejudicou a Concertação, porque levou um certo
número de eleitores da DC a votar em Lavín.
A campanha anterior se desenrolou quando o General Pinochet estava
preso em Londres. Em uma decisão que foi criticada por um setor de dirigentes
do PS, o governo chileno reagiu à decisão britânica e espanhola, por considerar
que ela feria a soberania nacional, exigindo o retorno do General ao Chile
porque havia processos em andamento contra ele. Por isso algumas
personalidades da comunidade dos direitos humanos e da esquerda
extraparlamentar criticaram o governo, acusando-o de querer ajudar Pinochet.
35
33
O seu prestigio a levou a ser designada para chefiar a campanha de Lagos no surpreendente segundo turno.
34
Barômetro CERC, Setembro de 2003.
35
Vide Madeleine Davis (ed.) The Pinochet Case. Origins, Progress and Implications (Londres: Institute of Latin
American Studies, 2003). Piom-Berlin, David, “The Pinochet Case and Human Rights Progress in Chile: Was
Europe a Catalyst, Cause or Inconsequential?”, Journal of Latin American Studies, vol.36, Nr.3, Agosto de
2004, pp. 481-505.
Perspectivas eleitorais no Chile. Rumo a um quarto governo da “Concertación”?
64 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
64
A situação econômica futura do país e pessoal, 1988-2004
Diferença entre melhor e pior
P. Acredita que, de modo geral, nos próximos anos a situação econômica do país será melhor, igual ou pior do
que a atual? P. Acredita que nos próximos anos a sua situação econômica, e da sua família, será melhor, igual
ou pior do que a atual?
Fonte: BARÔMETRO CERC, dezembro de 2004
Na disputa eleitoral precedente a imagem geral do país era adversa, com o
aumento constante das pessoas que afirmavam que o Chile estava em decadência,
e a diminuição persistente das que opinavam que o país estava progredindo.
A partir de 2001 a situação se inverteu, com um aumento sustentado
dos que acreditam que o país está progredindo, que são a maioria, chegando a
64% na pesquisa de dezembro de 2004.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Carlos Huneeus
65
Imagem da evolução geral do país 1988-2004
P: Você diria que este país está progredindo, está parado ou em decadência?
Fonte: BARÔMETRO CERC, dezembro de 2004.
Desta vez o governo do Presidente Lagos comparece às eleições muito
bem avaliado, com a aprovação de mais de 60% dos chilenos, e em uma situação
econômica e política muito superior à das eleições presidenciais anteriores,
com o aumento das expectativas sobre a economia nacional e pessoal. Em
1998-1999 houve uma queda nas expectativas econômicas do país e também
nas pessoais, que só melhoraram, no calor da campanha presidencial porque
os partidários da Oposição acreditavam que com Lavín a economia nacional e
a das pessoas melhorariam. Agora porém a campanha presidencial tem início
com os indicadores subjetivos muito positivos.
Por outro lado, o candidato da Oposição, Joaquín Lavín, que foi Prefeito
de Santiago entre 2000 e 2004, não exerce a mesma atração de 1999. Não fez
uma boa administração, não renovou o seu discurso e os partidos que o apóiam
participaram de conflitos que não o ajudaram. Lavín cometeu um erro
estratégico ao converter as eleições municipais em uma primária das eleições
presidenciais de 2005. Isso implicou em politizar uma competição que se define
tradicionalmente por temas locais, dando-lhe um caráter nacional, o que
também contraria a sua natureza, e previu um grande crescimento da Oposição,
que lhe permitiria reduzir a distância de dez pontos em seu desfavor, podendo
inclusive chegar a um empate. Promoveu uma ativa campanha de apoio aos
candidatos a Prefeito, em todo o país, criticando duramente o governo, o que
Perspectivas eleitorais no Chile. Rumo a um quarto governo da “Concertación”?
66 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
66
levou o Presidente Lagos a solicitar apoio aos candidatos da Concertação.
36
Seus ministros participaram de alguns atos eleitorais, apoiando os candidatos
governistas, destacando o entusiasmo provocado pelas Ministras Alvear e
Bachelet. Um mês antes das eleições, o presidente reformou o gabinete, e as
duas deixaram seus cargos para dedicar-se inteiramente à campanha.
A Oposição não conseguiu o objetivo assinalado, pois a Concertação
manteve a distância de dez pontos com relação à direita, obtendo 47,91% dos
votos na eleição dos vereadores, enquanto a Aliança alcançou 37,66%. Em
terceiro lugar, com 9,14%, ficou a coalizão da esquerda “Juntos Podemos”,
formada por candidatos do Partido Comunista e grupos ecologistas. Na Aliança,
a UDI foi confirmada amplamente como o principal partido opositor, com
18,8% dos votos, enquanto a RN obteve 15,09%.
Esse resultado eleitoral prejudicou Lavín, que perdeu parte do seu apoio
eleitoral. Em uma pesquisa realizada em fins de novembro e começo de dezembro,
pela primeira vez desde maio de 2000, Lavín deixou de ser o político “com mais
futuro”, com 42%, caindo 16 pontos em relação a setembro, sendo superado por
Michelle Bachelet (PS), que alcançou 51%, subindo só 3%. Na pergunta em aberto
sobre a imagem de triunfo com relação à eleição presidencial,
37
Lavín apresenta
uma forte queda, de 12 pontos, em comparação com setembro de 2004, obtendo
32% de menções; Michelle Bachelet (PS) recebeu 30% das indicações, um aumento
importante, de 13 pontos; e Soledad Alvear, 8%, situação semelhante à da pesquisa
precedente. Nas duas perguntas fechadas, Lavín perde para um candidato único da
Concertação. Na hipótese desse candidato ser Soledad Alvear, Lavín recebeu 37%
das respostas, uma queda de 13 pontos com relação a setembro de 2003, enquanto
Alvear tem 49%, um aumento de 10 pontos. Diante de Michelle Bachelet, Lavín
sofre uma derrota ainda maior, recebendo 39% das respostas, uma queda de 12
pontos, enquanto sua opositora, enquanto candidata única da Concertação, recebeu
53%, um aumento de 10 pontos.
É muito provável que as duas pré-candidatas evitem uma competição desse
tipo, porque têm muito boas relações pessoais. Se a coalização governista nomear
36
Os prefeitos eram eleitos separadamente, com candidatos comuns por listas, e os vereadores mediante listas
de partidos separadas. Para efeito do apoio às coalizões, foram considerados os votos para vereadores.
37
A pergunta é aberta, com a seguinte formulação: “Na sua opinião quem será o próximo Presidente da
República?”
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Carlos Huneeus
67
sua candidata mediante um procedimento que não é traumático para o partido
que ceder seu lugar, ela deverá vencer as eleições. Se o resultado for esse, a
novidade seria não só o fato de um mulher ascender à presidência da república
pela primeira vez no Chile e na América do Sul, mas também a circunstância de
uma coalizão se manter no governo pelo quarto mandato consecutivo, algo sem
precedentes na região.
Tradução: Sérgio Bath.
O verdadeiro desafio do atual processo de paz na Colômbia: a aplicação da lei de verdade,
justiça e reparação
68 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
68
O verdadeiro desafio do
atual processo de paz na
Colômbia: a aplicação
da lei de verdade, justiça
e reparação
Marta Lucia Ramirez de Rincón
*
A
tualmente, o grande objetivo da Colômbia é alcançar a paz. A delicada
situação de ordem pública interna que o país enfrenta por causa dos atos violentos
e terroristas cometidos pelos grupos armados à margem da lei com base em
nosso território é bem conhecida em todo o mundo, da mesma forma que o
esforço do Estado colombiano para erradicar definitivamente este flagelo
mediante uma estratégia que, de um lado, fortaleça a ação do Estado e sua proteção
à população, e de outro, abra espaço para uma solução política do conflito.
*
Ex-Ministra da Defesa da República da Colômbia
Presidente da Ramírez & Orozco International Strategy Consultants
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Marta Lucia Ramirez de Rincón
69
O Presidente Uribe, desde o início de seu governo, abriu as portas para a
negociação com todos aqueles grupos armados ilegais que desejassem reincorporar-
se à vida civil, com a condição de que declarassem uma trégua nas hostilidades que
assegurasse a diminuição da violência e o respeito aos direitos humanos em todo o
território nacional. Com o objetivo de alcançar a tão desejada paz mediante a
desarticulação dos grupos armados ilegais, da autoridade ilegal que exercem em
algumas regiões do país e a erradicação do narcotráfico, que constitui sua principal
fonte de financiamento, tive a oportunidade de dirigir, em minha posição de Ministra
da Defesa, a concepção e a redação da Política de Segurança Democrática, de
acordo com a orientação e as diretrizes do Senhor Presidente. Tal política tem
como principal objetivo garantir os direitos constitucionais à segurança e à paz a
todos os colombianos, seja pela via do diálogo, seja pelo uso legítimo da força,
mediante o reforço do Estado nos âmbitos local e nacional, o fortalecimento das
instituições e autoridades democráticas, bem como a aplicação eficaz da lei.
A combinação da Política de Segurança Democrática e da vontade de
alcançar a paz conseguiu um êxito indiscutível: não somente se conseguiu
diminuir substancialmente os índices de criminalidade e violência e progredir
no respeito aos direitos humanos, mas também se conseguiu desmobilizar
5.230 membros de grupos armados ilegais, por meio de desmobilizações
individuais, e 5.895 por meio das desmobilizações em massa que as Autodefesas
vêm realizando, o que constitui fato sem precedente na história das
desmobilizações na Colômbia.
Tanto os processos com o M-19, o Quintín Lame, o EPL, a Corriente de
Renovación Socialista, como as desmobilizações individuais que têm sido levadas
a cabo até hoje, foram conseguidas graças à legislação vigente em matéria de
indulto e anistia, que prevê a possibilidade de o Estado conceder perdão a quem
cometeu o delito de organizar grupos armados ilegais. Particularmente, a Lei
789, de 2002, foi o quadro jurídico que regeu, durante o atual governo, todas as
desmobilizações de pessoas às quais se imputa o delito de fazer parte desses
grupos com o propósito de afetar o regime constitucional vigente.
Apesar disso, os progressos internacionais da justiça penal, que
impedem conceder o benefício de anistia e indulto a quem cometeu delitos
graves outros que os de rebelião, sedição, motim ou formação de quadrilha
1
,
1
Delitos políticos e conexos tipificados no Código Penal colombiano e para os quais a legislação internacional
considera admissíveis o indulto ou a anistia.
O verdadeiro desafio do atual processo de paz na Colômbia: a aplicação da lei de verdade,
justiça e reparação
70 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
70
tornaram evidentes a lacuna da Lei 782, de 2002, e portanto, a necessidade
de estabelecer um quadro jurídico que regulasse as futuras desmobilizações
individuais ou coletivas dos membros de grupos armados à margem da lei
que sejam responsáveis por delitos que possam ser objeto de anistia ou
indulto.
Foi com esse objetivo que o Governo Nacional submeteu à consideração
do Congresso uma iniciativa que contemplava a investigação, o julgamento e a
condenação para os responsáveis por delitos dessa natureza e a concessão do
benefício de suspensão condicional da pena àqueles que, em cumprimento do
disposto no projeto de lei, contribuíssem para a consolidação da paz.
Como era de se esperar, o projeto de iniciativa do governo suscitou
intenso debate em nível nacional e internacional, o que levou ao surgimento
de vários projetos no Congresso, cada qual com penas e condições distintas.
Frente à falta de consenso no tocante ao tratamento que deveriam receber
os autores de delitos não suscetíveis de anistia ou indulto, o governo assumiu
a liderança da discussão no Congresso e conseguiu que as várias forças
políticas e todo o país se pusessem de acordo na busca de uma fórmula de
equilíbrio entre justiça e paz, que permitisse satisfazer os interesses da primeira
ao mesmo tempo em que permitisse avançar de forma efetiva no sentido da
superação dos problemas de violência e terrorismo, que tanto sofrimento
causaram ao país.
Foi assim que, depois de um longo debate no âmbito do legislativo e de
duras críticas nacionais, bem como da comunidade internacional, o projeto de
lei de verdade, justiça e reparação, que complementa a Lei 789, de 2002, (cujos
benefícios só podem ser concedidos aos responsáveis por delitos que possam
ser objeto de anistia ou indulto) pode ser aprovado pelo Congresso Nacional,
em 21 de junho deste ano.
Conforme antecipado, a lei é um equilíbrio aceitável – e sobretudo realista
– entre a necessidade de fazer justiça, própria de um Estado de direito, e a
necessidade de paz, ao estabelecer que os membros de grupos armados à
margem da lei, aos quais a Lei 789, de 2002, não seja aplicável, deverão
responder judicialmente por suas ações, mas poderão gozar de certos benefícios
como recompensa por seu esforço para consolidar a convivência pacífica.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Marta Lucia Ramirez de Rincón
71
Conteúdo da Lei
A lei aprovada pelo Congresso da República da Colômbia oferece um
quadro jurídico e institucional para a desmobilização
2
de pessoas vinculadas a
grupos armados à margem da lei que tenham decidido contribuir decisivamente
para a reconciliação nacional
3
. Com efeito, seu objetivo é facilitar os processos
de paz através da reincorporação individual ou coletiva de membros de grupos
armados à margem da lei, garantindo o direito das vítimas à verdade, à justiça
e à reparação, donde o nome pelo qual é conhecida
4
.
Âmbito de aplicação e interpretação
Regula o referente à investigação, ao processo, à sanção e aos benefícios
judiciais a que podem ter acesso as pessoas ligadas a grupos armados à margem
da lei que decidam desmobilizar-se. O âmbito de aplicação da lei restringe-se,
entretanto, aos delitos cometidos pelas pessoas, como autores ou cúmplices,
durante e em decorrência de sua participação nesses grupos, excluindo-se
aqueles cometidos antes de elas pertencerem ao grupo e aqueles praticados
durante o período em que a ele estavam vinculados, mas que não tenham
relação com tal circunstância.
Com o objetivo de reconhecer os tratados internacionais ratificados pela
Colômbia, a Lei determina expressamente que tanto a aplicação como a
interpretação da Lei deverão dar-se de conformidade com aqueles Tratados
5
.
Em particular, a Lei incorpora a Convenção das Nações Unidas sobre o Tráfico
de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas, de 1988.
2
Segundo o artigo 9 da Lei de Verdade, Justiça e Reparação, entende-se por desmobilização o ato individual ou
coletivo de depor as armas e abandonar o grupo armado organizado à margem da lei, realizado perante autoridade
competente.
3
Artigo 2 da Lei de Verdade, Justiça e Reparação.
4
Artigo 1 da Lei de Verdade, Justiça e Reparação.
5
Os tratados internacionais relacionados com os direitos humanos constituem o Bloco de Constitucionalidade,
cujo principal efeito consiste em que os referidos instrumentos se incorporam à Constituição Política da
Colômbia, pelo que prevalecem sobre outras leis de hierarquia inferior.
O verdadeiro desafio do atual processo de paz na Colômbia: a aplicação da lei de verdade,
justiça e reparação
72 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
72
Beneficiários
A Lei não qualifica os eventuais beneficiários, de modo que os benefícios
nela estabelecidos para quem se desmobilize e cumpra com as condições por
ela exigidas, serão aplicáveis tanto aos membros de grupos guerrilheiros, como
as Farc e o ELN, como aos de grupos paramilitares, as Autodefesas Unidas da
Colômbia.
Pena alternativa
O benefício da pena alternativa que a Lei estabelece consiste em suspender
a execução daquela determinada pelo juiz em sua sentença, substituindo-a por
uma alternativa, que oscila entre cinco e oito anos
6
, caso o membro do grupo
armado à margem da lei cumpra com os seguintes requisitos:
• Contribuição do beneficiário para a consecução da paz nacional
• Colaboração com a Justiça
• Reparação às vítimas
• Ressocialização adequada, por intermédio do trabalho, estudo ou ensino
durante o tempo em que permaneça privado de liberdade
• Promover a desmobilização do grupo armado à margem da lei ao qual
pertenceu
7
.
Uma vez que cumpra a pena imposta pela sentença, o beneficiário gozará
de liberdade condicional durante a metade do tempo fixado para a pena.
Durante esse período, compromete-se a não reincidir nos delitos pelos quais
6
O artigo 30 da Lei de Verdade, Justiça e Reparação estabelece que a pena será fixada de acordo com a
gravidade dos delitos cometidos pelo desmobilizado e sua colaboração efetiva no esclarecimento dos mesmos.
Estabelece também que tal pena não é passível de redução por bom comportamento nem por trabalho ou
estudo.
7
Artigo 3 da Lei de Verdade, Justiça e Reparação.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Marta Lucia Ramirez de Rincón
73
foi condenado, a apresentar-se periodicamente ao Tribunal Superior do Distrito
Judicial correspondente e a informar qualquer mudança de residência.
Terminado esse prazo, a pena principal será declarada extinta. Em sentido
contrário, na hipótese de não cumprimento de tais obrigações, a liberdade
condicional será revogada, devendo cumprir-se a pena inicialmente
determinada
8
.
No tocante ao estabelecimento no qual a pena deve ser cumprida, a Lei
estabelece que cabe ao Governo determinar os estabelecimentos, os quais
devem reunir as condições de segurança e austeridade próprias daqueles
administrados pelo Instituto Nacional Penitenciário e Carcerário. Além disso,
estabelece que a pena poderá ser cumprida no exterior, o que abre a possibilidade
de extradição de qualquer beneficiário da Lei.
Canais de Acesso ao benefício da pena alternativa e
condições de elegilbilidade
8
Artigo 30 da Lei de Verdade, Justiça e Reparação.
9
Artigo 10 da Lei de Verdade, Justiça e Reparação.
10
Artigo 11 da Lei de Verdade, Justiça e Reparação.
11
Artigos 60, 61 e 62 da Lei de Verdade, Justiça e Reparação.
12
Os menores de idade que integrem as fieiras do grupo à margem da lei devem ser entregues ao Instituto
Colombianodo Bem-Estar Familiar, que se encarregará da sua reincorporação e ressocialização.
O verdadeiro desafio do atual processo de paz na Colômbia: a aplicação da lei de verdade,
justiça e reparação
74 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
74
Direitos das vítimas
Além dos direitos de acesso à administração da justiça e daqueles próprios
do processo penal, especialmente o direito de proteção à segurança, ao bem-
estar físico e psicológico, à dignidade e à vida privada
13
, a Lei reconhece às
vítimas os seguintes:
• Verdade: A Lei reconhece o direito inalienável, pleno e efetivo de
conhecer a verdade sobre os delitos cometidos por grupos organizados
à margem da lei e sobre o paradeiro das vítimas de seqüestro e
desaparição forçada de que gozam a sociedade e, particularmente, as
vítimas. Com efeito, a Lei estabelece expressamente que as investigações
e processos judiciais devem promover a investigação do ocorrido com
as vítimas e informar seus familiares.
De acordo com o anterior, a aplicação da Lei não impede a utilização
futura de outros mecanismos não judiciais de reconstrução da verdade, tais
como comissões de investigação e comissões de verdade
14
.
Finalmente, para assegurar o direito à verdade que têm a sociedade e as
vítimas, a Lei estabelece o dever do Estado de preservar a memória histórica
15
,
para o que prevê a obrigação de manter o conhecimento da história, causas,
desenvolvimento e conseqüências da ação dos grupos armados organizados à
margem da lei, mediante a preservação de arquivos
16
e, como regra geral, o
livre acesso aos mesmos
17
.
13
Artigos 38 e 39 da Lei de Verdade, Justiça e Reparação.
14
Artigo 7 da Lei de Verdade, Justiça e Reparação.
15
Artigo 57 da Lei de Verdade, Justiça e Reparação.
16
O artigo 58 da Lei de Verdade, Justiça e Reparação estabelece as medidas de preservação dos arquivos, para
o que dispõe que os órgãos judiciais deles encarregados e a Procuradoria Geral da Nação deverão adotar as
medidas para impedir a subtração, a destruição ou a falsificação dos arquivos, que pretendam impor a impunidade.
17
Embora o artigo 59 da Lei de Verdade, Justiça e Reparação consagre como regra geral o livre acesso ao
arquivos, o acesso pode ser restringido para sua custódia e adequada manutenção e para resguardar o direito à
intimidade das vítimas de violência sexual e das meninas, meninos e adolescentes vítimas dos grupos armados
à margem da lei, e para não causar mais danos desnecessários à vítima, às testemunhas ou outras pessoas, nem
criar perigo para a sua segurança.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Marta Lucia Ramirez de Rincón
75
• Justiça: O Estado tem o dever de realizar uma investigação efetiva que
conduza à identificação, captura e sanção das pessoas responsáveis por
delitos cometidos pelos membros dos grupos armados organizados à
margem da lei, o que inclui assegurar às vítimas o acesso a recursos
eficazes, que reparem o dano infligido, e a adoção de medidas destinadas
a evitar a repetição de tais violações
18
.
• Reparação: Além da reparação material ou indenização, a Lei estabelece
a necessidade de promover ações tendentes à restituição, reabilitação,
satisfação e garantia de não repetição das condutas
19
.
Dentro do processo penal, a reparação tramitará como um incidente
com a intervenção da vítima ou de seu representante legal ou advogado de
ofício, para que expresse de maneira concreta a forma de reparação que pretende
e indique as provas que fará valer para fundamentar suas pretensões
20
.
Como se tinha antecipado, os membros de grupos armados à margem
da lei que sejam elegíveis como beneficiários potenciais da Lei devem reparar
as vítimas mediante;
• Entrega ao Estado, para a reparação, de bens obtidos ilicitamente
• Declaração Pública que restabeleça a dignidade das vítimas
• Reconhecimento público de ter causado dano às vítimas, declaração
pública de arrependimento, pedido de perdão dirigido às vítimas e
promessa de não repetição dos atos
• Colaboração eficaz para a localização de pessoas seqüestradas ou
desaparecidas e localização dos cadáveres das vítimas
• Busca dos desaparecidos e dos restos de pessoas mortas, ajuda para
identifica-los e tornar a inuma-los, conforme as tradições familiares e
comunitárias.
21
18
Artigo 6 da Lei de Verdade, Justiça e Reparação.
19
Artigo 8 da Lei de Verdade, Justiça e Reparação.
20
Artigo 23 da Lei de Verdade, Justiça e Reparação.
21
Artigo 45 da Lei de Verdade, Justiça e Reparação.
O verdadeiro desafio do atual processo de paz na Colômbia: a aplicação da lei de verdade,
justiça e reparação
76 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
76
Como garantia para a devida reparação às vítimas, introduz, como
inovação jurídica, a possibilidade de se realizar uma reparação coletiva que
consiste na reconstrução psicossocial das populações afetadas pela violência e
a execução de um programa que inclua ações tendentes à recuperação da
institucionalidade, particularmente em zonas afetadas pela violência, a
recuperação e promoção dos direitos dos cidadãos afetados pela violência e o
reconhecimento e dignificação das vítimas
22
.
Por outro lado, a lei consagra a figura da reparação simbólica, que consiste
em toda prestação realizada em favor das vítimas ou da comunidade em geral
que tenda a assegurar a preservação da memória histórica, a não repetição dos
fatos nocivos às vítimas, a aceitação pública dos fatos, o perdão público e o
restabelecimento da dignidade das vítimas
23
.
Em princípio, tanto na reparação individual como na coletiva, o
responsável da obrigação é o membro do grupo armado organizado à margem
da lei que seja beneficiário da pena alternativa. Apesar disso, no caso de que,
durante a investigação, não se tenha conseguido individualizar o sujeito ativo
do delito, mas sim um dano e nexo causal do dano com as atividades do
grupo, quem deverá reparação às vítimas será o Fundo de Reparação às Vítimas,
criado pela Lei com tal objetivo
24
.
Além disso, a Lei cria a Comissão Nacional de Reparação e Reconciliação,
que se incumbirá de assegurar às vítimas sua participação nos processos judiciais
de esclarecimento dos fatos; de apresentar informes públicos sobre o
surgimento e a evolução dos grupos armados ilegais; de acompanhar e verificar
os processos de reincorporação; de acompanhar a reparação; de recomendar
os critérios para as reparações; de coordenar as atividades das Comissões
Regionais para a Restituição de Bens; e promover ações nacionais de
reconciliação tendentes a impedir a reaparição de novos atos de violência que
perturbem a paz nacional
25
.
22
Artigos 8 e 50 da Lei de Verdade, Justiça e Reparação.
23
Artigo 8 da Lei de Verdade, Justiça e Reparação.
24
Artigos 43 e 55 da Lei de Verdade, Justiça e Reparação.
25
Artigo 51 da Lei de Verdade, Justiça e Reparação.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Marta Lucia Ramirez de Rincón
77
Princípios processuais
A Lei consagra a oralidade e a celeridade como princípios que devem reger
todo o processo
26
. Ademais, a Lei reconhece o direito de defesa do processado, a
qual ficará a cargo do defensor de confiança livremente designado pelo imputado
ou, na sua falta, daquele designado pelo Sistema Nacional de Defensoria Pública
27
.
Procedimento para investigação e julgamento
26
Artigos 12 e 13 da Lei de Verdade, Justiça e Reparação.
27
Artigo 14 da Lei de Verdade, Justiça e Reparação.
O verdadeiro desafio do atual processo de paz na Colômbia: a aplicação da lei de verdade,
justiça e reparação
78 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
78
Fatos conhecidos posteriormente à sentença
Os delitos cometidos durante a participação no grupo e em decorrência dela,
antes da desmobilização ou da vigência da Lei, que sejam conhecidos depois do
cumprimento da pena alternativa por não terem sido confessados pelo beneficiário
serão investigados pela autoridade competente de acordo com a lei vigente no
momento em que os atos tenham sido cometidos e não serão objeto de qualquer
benefício. Apesar disso, no caso em que colabore eficazmente no esclarecimento ou
aceite, oralmente ou por escrito, de maneira livre, voluntária, expressa e espontânea,
haver participado de sua realização e desde que a omissão não haja sido intencional,
o condenado será beneficiário da pena alternativa, para o que se procederá à
acumulação jurídica das penas alternativas, sem exceder os limites máximos
estabelecidos na presente lei. Levando em conta a gravidade dos novos fatos julgados,
a autoridade judicial imporá uma ampliação de 20% da pena alternativa imposta e
uma ampliação semelhante do tempo de liberdade condicional
28
.
Redução de penas
Para as pessoas que estavam cumprindo pena no momento da entrada
em vigor da Lei, esta prevê o direito de ter a respectiva pena reduzida em um
décimo, com exceção dos condenados por delitos contra a liberdade, a
integridade e a formação sexuais, lesa-humanidade e narcotráfico
29
.
Sedição
Com o objetivo de dar apoio jurídico às pessoas ligadas a grupos armados
à margem da lei, que não tenham cometido crimes hediondos, tipifica-se a
conduta desses grupos como uma modalidade do crime de sedição, o que
implica que, com sua atuação, interferem com o funcionamento normal da
ordem constitucional e legal
30
. Com isso, busca-se atuar de acordo com o
28
Artigo 25 da Lei de Verdade, Justiça e Reparação.
29
Artigo 71 da Lei de Verdade, Justiça e Reparação.
30
Artigo 72 da Lei de Verdade, Justiça e Reparação.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Marta Lucia Ramirez de Rincón
79
sistema penal colombiano, que só permite o indulto aos responsáveis por delitos
políticos. Tal como estabelecem a Convenção de Viena e os Tratados
Internacionais, a Lei não permite qualificar como conexos ao delito político
os crimes hediondos ou o narcotráfico.
Conclusões
Embora seja certo que a lei aprovada pelo Congresso não é perfeita e que
suas falhas certamente serão descobertas à medida em que seja aplicada, não se
pode desconhecer que é um instrumento muito valioso, que seguramente
contribuirá para que se consigam maiores desmobilizações de membros de grupos
armados à margem da lei, que estando comprometidos em delitos não suscetíveis
de indulto, mostrem o propósito legítimo de progredir no caminho da paz.
Apesar disso, a Lei recentemente aprovada foi objeto de todo tipo de
críticas de organismos internacionais, mas principalmente da parte de
organizações não-governamentais
31
, que sustentam que a Lei encoraja a
impunidade e concede benefícios extremamente generosos aos membros dos
grupos armados, em detrimento da justiça. Várias das críticas recebidas pela Lei
revelam um profundo desconhecimento por parte da comunidade internacional,
porquanto um estudo judicioso da Lei torna evidente ser a primeira vez que, na
Colômbia, incorporam-se a justiça e a reparação à legislação de paz e que ela é
muito mais dura do que aquela que tem sido aplicada em outros processos de
paz na Colômbia e em todo o mundo. Não favorece a impunidade, como se tem
afirmado, pois não há perdão para quem tenha cometido crimes hediondos nem
contraria os compromissos internacionais assumidos pela Colômbia, já que, por
um lado, permite a extradição e, por outro, impede considerar os crimes hediondos
e o narcotráfico como conexos a delitos políticos.
Pois bem, olhando para além das críticas que tem recebido o quadro
legal que regerá o atual processo de paz que o Governo vem adiantando com
as Autodefesas, bem como os futuros processos que se venham a adiantar
com os grupos guerrilheiros, o certo é que a Lei possibilita que o Estado
colombiano conserve seu poder de distribuir justiça, cumpra com sua obrigação
de extradição decorrente de acordos internacionais, garanta às vítimas uma
31
- Uma das maiores críticas recebidas pela Lei veio da Anistia Internacional e da Human Rights Watch.
O verdadeiro desafio do atual processo de paz na Colômbia: a aplicação da lei de verdade,
justiça e reparação
80 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
80
reparação que vá além de uma simples indenização e, o mais importante, indica
o objetivo de conseguir a paz anelada por todos os colombianos. Portanto, o
verdadeiro desafio começa agora e consiste em aplicar a lei para conseguir
realizar as próximas desmobilizações no total respeito a este quadro jurídico e
poder reincorporar à vida civil todos os desmobilizados, mediante projetos
produtivos sustentáveis.
O debate internacional de que a Lei tem sido objeto é, pois, bem-vindo,
mas o que se requer da comunidade internacional é objetividade, prudência e,
sobretudo, cooperação e solidariedade para com o Estado colombiano e suas
instituições, que sempre cumpriram com suas obrigações internacionais. No
momento, o que se requer é que a comunidade internacional, longe de pôr em
dúvida o resultado do processo, contribua com suas luzes e experiência para o
cumprimento da lei e para alcançar os resultados que os verdadeiros amigos
da Colômbia querem ao fim do processo, como a consolidação da paz e do
Estado de direito no país. Portanto, é da maior importância a iniciativa do
Presidente da República ao propor, em sua recente visita à Europa, que a
comunidade internacional acompanhe o processo de aplicação da lei por meio
da constituição de uma comissão de verificação que assegure a transparência e
a efetividade da norma quando comece a ser aplicada.
Tradução: Luiz A. P. Souto Maior
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Osvaldo Hurtado
81
Os problemas de
governabilidade da
democracia equatoriana
Osvaldo Hurtado
*
T
odos os que visitam o Equador se surpreendem com a prodigiosa
diversidade que tem a natureza na pequena área geográfica ocupada pelo país.
Seus picos nevados, belos e numerosos, não se repetem em outro país latino-
americano. A geologia das Ilhas Galápagos e sua fauna assombrosa são únicas
no mundo. O Equador é um dos doze países com o maior número de espécies
vegetais e animais. A riqueza artística de Quito, sua capital colonial, é das mais
importantes do continente. Em apenas quatro horas de automóvel ou trinta
minutos de avião, pode-se alcançar praias tropicais, montanhas de neves perpétuas
ou a floresta úmida da Amazônia. Durante todo o ano, o país produz uma
variedade surpreendente de alimentos, e só o trigo é importado. As quedas das
águas que baixam das montanhas andinas permitiriam abastecer todos os seus
habitantes de energia barata. Se a tantas riquezas se somam os abundantes recursos
naturais e um clima sem temperaturas extremas, poder-se-ia pensar que nada
falta ao Equador para garantir à sua população um bem-estar generalizado.
* Ex-Presidente do Equador
Presidente da Cordes (Corporação de Estudos para o Desenvolvimento), Quito.
Os problemas de governabilidade da democracia equatoriana
82 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
82
O país nunca foi governado por tiranos sanguinários e, embora tenha
sofrido muitas ditaduras, algumas do século XX foram na verdade progressistas
e tolerantes. Muito cedo, no alvorecer do século XX, a Revolução Liberal
introduziu a liberdade de consciência e o Estado leigo, e pôs fim à clausura em
que durante séculos o país tinha vivido. Contribuiu para isso também a abertura
do Canal de Panamá, em 1914. Os equatorianos não sofreram os flagelos da
guerrilha e do narcotráfico que prejudicaram os seus vizinhos, e por isso chegou-
se a dizer que era uma ilha de paz na convulsionada América Latina dos anos
1980. Foi o primeiro país da região a recuperar a democracia (1977-79),
mediante um acordo entre civis e militares, modelo de transição pacífica seguido
depois por outros países da América Latina.
Por que razão um país com riqueza e virtualidades tão importantes foi
um dos mais atrasados do continente, condição de que começou a sair só em
1972, e não pelo seu esforço, mas pelo surgimento milagroso do petróleo?
Por que motivo uma democracia, inaugurada só dois anos depois da
espanhola, durante um longo quarto de século não se desenvolveu, enquanto
a Espanha conseguiu um prodigioso progresso econômico, social e político?
A resposta é sempre a mesma, no referente ao século XIX, o período
anterior a 1989 e os últimos vinte e cinco anos: o país não progrediu e os
equatorianos não melhoraram suas condições de vida, como teria sido possível,
por causas originadas no campo da política.
Desde que se instituiu a República, em 1830, até 1979, os governos
ditatoriais superaram em número os democráticos, e no seu conjunto tiveram
uma duração média de menos de dois anos. No período atual, embora o país
não tenha tido ditaduras, mas apenas governos presididos por autocratas que
atropelaram a Constituição ou por presidentes que assumiram o cargo mediante
golpes “constitucionais”, a duração média desses governos foi de pouco mais
de dois anos.
Em condições de instabilidade política tão extrema, resultado de conflitos
crônicos e insolúveis, da natureza mais variada, seria impossível para o Equador
desenvolver-se. Enquanto os países que progrediram tiveram governos que
perseveraram ao longo de décadas na busca de determinados objetivos,
especialmente nos campos da economia e da educação, não são poucos os
presidentes equatorianos que inauguraram o seu mandato com a promessa de
“refundar” a República – ilusão que os levou inclusive a mudar o que de bom
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Osvaldo Hurtado
83
tinham feito os seus predecessores. Diferentemente do país mais próspero do
mundo, que durante mais de duzentos anos conservou uma única Constituição,
sempre respeitada por presidentes e congressistas, o Equador já teve tantas
Constituições (dezenove) que com esses volumes se poderia preencher uma
prateleira de biblioteca. Mas foram Constituições que pouca importância
tiveram na vida quotidiana da democracia do Equador, quando esta existiu.
Resultados da democracia
Em 2004, a democracia equatoriana completou vinte e cinco anos, que
constituem o mais longo período constitucional da história do país. Nesse quarto
de século, ela trouxe contribuições importantes ao progresso do Equador e à
melhoria do bem-estar coletivo, graças em parte aos recursos gerados pelo petróleo.
O analfabetismo foi reduzido a 8%; a mortalidade infantil e geral diminuiu
de forma significativa; a expectativa de vida aumentou para 70 anos; a cobertura
dos serviços de educação e saúde foi ampliada de modo a abranger quase toda a
população; o povo indígena recuperou a sua identidade e conseguiu uma
participação importante na vida pública; nas escolas, nos colégios e nas
universidades, o número de mulheres se equiparou ao dos homens; graças à
descentralização, as cidades registraram um progresso notável; foi resolvido o
problema territorial atávico que manteve a segurança do Equador sob um risco
permanente e foi tão penoso para a economia e o desenvolvimento nacional.
Graças à democracia, os direitos humanos foram protegidos, e o povo
tem podido desfrutar de um ambiente de tolerância e liberdade, participar da
eleição das autoridades, mediante sufrágio, e expressar suas opiniões por
intermédio dos meios de comunicação, de manifestações públicas, partidos
políticos e organizações da sociedade civil. Não obstante, como instituição, a
democracia tem sido afetada por uma extrema fragilidade, particularmente
nos últimos dez anos, durante os quais conseguiu sobreviver com a aceitação,
sob a forma de fait accompli, de abusos de poder, violações constitucionais e
rompimento do Estado de Direito por governos e congressos.
Apesar dos progressos alcançados, a democracia fracassou na sua missão
de desenvolver o país e de constituir uma sociedade eqüitativa, que oferecesse
igualdade de oportunidades para todos. O crescimento econômico foi apenas
superior ao da população; as porcentagens de pobreza continuaram altas e na
Os problemas de governabilidade da democracia equatoriana
84 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
84
verdade pioraram nos anos das crises econômica recorrentes. Deteriorou-se a
qualidade dos serviços oferecidos pelo Estado, particularmente a educação
pública, acessível a crianças e jovens das classes sociais com menos recursos.
A injusta distribuição da riqueza não mudou e, ao não perseverar na busca da
estabilidade e do crescimento econômico, o país se atrasou em relação a outros
do continente que há vinte e cinco anos estavam situados no mesmo nível.
Para esses resultados negativos contribuíram causas estranhas ao país, como
a deterioração do valor das suas exportações, as crises mundiais, os conflitos
havidos na fronteira meridional, terremotos, inundações, secas e pragas que
trouxeram importantes prejuízos econômicos. Ocorrências infelizes, cujas
conseqüências, contudo, devem ser vistas em perspectiva, porque essas catástrofes
e as dificuldades internacionais foram ocasionais e transitórias, o conflito de
fronteira foi resolvido em 1998 e, na verdade em alguns anos o Equador desfrutou
de bons preços nos seus produtos de exportação, como no caso do petróleo.
A razão principal desses resultados esteve situada no terreno da política e
manifestou-se no fato de que os governos não puderam sustentar políticas que
garantissem uma estabilidade macroeconômica e assegurassem um crescimento
suficiente e sustentado da economia, do que dependiam a diminuição da pobreza
e a melhoria do nível de vida. Limitações da gestão governamental, originadas em
problemas de governabilidade: problemas que afetaram a democracia equatoriana
nos cinco lustros passados e não foi possível resolver, a despeito das importantes
reformas políticas realizadas em 1979, mediante um referendo, e em 1998, por
meio de uma Assembléia Constituinte, incluídas nas Constituições daqueles anos.
Por serem estruturais, os problemas de governabilidade da democracia
equatoriana conspiraram contra todos os governos, qualquer que fosse sua
ideologia e orientação política. A eles se deve o fracasso de programas de
estabilização macroeconômica, a interrupção de promissores processos de
crescimento, o desperdício de oportunidades oferecidas pela economia
internacional, a resposta deficiente a crises mundiais, a pouca atenção dada a
programas destinados a melhorar a qualidade da educação, a continuação da
pobreza, a permanência da desigualdade social, o atraso do país em comparação
com outros do continente, a vulnerabilidade das suas instituições democráticas
e a frustração sofrida pelo povo equatoriano nos anos fatídicos do fim de século.
São oito os problemas estruturais apresentados pela governabilidade da
democracia equatoriana, aos quais se deve o fato de que o bom governo tenha
sido um acontecimento excepcional no período da presente análise.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Osvaldo Hurtado
85
Fragmentação política
Nos quinze anos transcorridos o número de partidos representados no
Congresso Nacional tem-se aproximado de uma dúzia, e aqueles que
desapareceram, ou perderam força, foram substituídos por novas agremiações
fundadas por políticos empenhados em participar das eleições presidenciais.
Dos onze presidentes que teve o país só dois pertenciam à mesma organização
política (DP), e nenhuma delas conseguiu sair vitoriosa em mais de uma eleição
presidencial. Em todos os períodos legislativos foram formados blocos
parlamentares “independentes”, integrados por deputados que abandonaram
os partidos pelos quais foram eleitos para colocar-se a serviço do governo, em
troca de vantagens. Os partidos que em diversos anos foram majoritários nunca
chegaram a representar 50% do eleitorado nacional.
As instituições criadas pela Constituição em 1979 e em 1998, com as
quais se procurou corrigir esta fragmentação do sistema partidário, mediante
a exigência de um mínimo de 5% dos votos – requisito necessário para a sua
sobrevivência – não funcionaram. Com efeito, em diversas oportunidades os
partidos que se encontravam ameaçados de extinção conseguiram que o
Congresso revogasse aquela norma, que a Corte Suprema a declarasse
inconstitucional ou o Tribunal Supremo Eleitoral não a aplicasse. Algo
semelhante aconteceu com a regra da Lei Eleitoral que procurava controlar os
gastos com as campanhas, em vigor desde 1979, declarada inconstitucional
em 1983 a pedido dos meios de comunicação e de um candidato presidencial,
para ser depois revivida pela Constituição de 1998.
Outro incentivo à fragmentação política é o comportamento volátil dos
cidadãos, e a sua tendência a dispersar os votos por muitos candidatos nas eleições
presidenciais e legislativas. A isso se somou o discurso interesseiro em favor das
“minorias”, ainda que não representativas, sem levar em conta que as democracias
estáveis e bem- sucedidas têm por base sólidos partidos majoritários.
Por esses motivos, não produziram efeitos as reformas constitucionais e
legais com que se procurou promover um sistema partidário simples e
representativo, que fortalecesse o sistema democrático, garantisse a estabilidade
política, propiciasse a continuidade econômica, conferisse segurança jurídica,
possibilitasse a condução de políticas de Estado e liderasse as mudanças de
que o país precisava para adaptar-se às novas realidades e desafios do mundo
globalizado. E também não foi possível fazer com que os governos contassem
Os problemas de governabilidade da democracia equatoriana
86 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
86
com uma maioria legislativa que respaldasse as suas iniciativas e moderasse a
oposição desestabilizadora que os presidentes sofrem habitualmente no
Congresso Nacional.
Conflitividade
A democracia é um sistema político em que o diálogo e a negociação
permitem aproximar posições, chegar a acordos, facilitar decisões e promover
iniciativas de interesse nacional, práticas que costumam ser inerentes a uma sociedade
democrática e que em um país politicamente fragmentado, sem partidos
majoritários, constituem uma necessidade absoluta. A capacidade que tem um
sistema político para promover consensos depende não só da boa qualidade das
instituições e dos incentivos que ofereçam para que esses consensos sejam
alcançados, como também da forma como atuam os atores políticos,
comportamento que no Equador não tem sido compatível. A presença influente
na vida pública de líderes dogmáticos e apaixonados, empenhados em impor suas
posições, incapazes de atribuir valor ao ponto de vista dos adversários e inclinados
à violência verbal fechou as portas ao diálogo construtivo e interpôs obstáculos de
todo tipo à negociação política. Tão conflitiva e mesquinha tem sido a vida pública
equatoriana que políticos e partidos que, na oposição, criticaram e combateram a
política econômica executada pelo governo, ao ganhar as eleições aplicaram a mesma
política sem modificações, ou apenas com pequenas mudanças.
Essas relações políticas conflitivas foram prejudiciais à institucionalidade
democrática e ao desenvolvimento do país. Não foi possível a formação de
alianças duráveis que fortalecessem a ação dos governos, permitissem a adoção
de políticas de Estado e facilitassem a sua execução no longo prazo, por meio
de administrações sucessivas. Os que pretenderam alcançar o poder fizeram
uma oposição intransigente e desleal, sem levar em conta que o progresso do
país dependia do Presidente da República. No debate sobre os assuntos
públicos, não se tentou esclarecê-los mediante um intercâmbio razoável de
pontos de vista e a sustentação técnica das discrepâncias existentes; em seu
lugar, buscou-se liquidar o debate e invalidar iniciativas, desacreditando o
adversário com ataques pessoais.
Tão conflitivas foram as relações políticas que nos últimos vinte e cinco
anos, ao concluir os seus mandatos, os presidentes entregaram a economia
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Osvaldo Hurtado
87
desestabilizada – houve apenas duas exceções. Um desses presidentes chegou
a dizer que não via razão para deixar “a casa em ordem”; outro tomou decisões
maliciosas com o propósito deliberado de agravar os problemas econômicos e
assim prejudicar a gestão do seu sucessor. Conflitos políticos insolúveis,
provocados por civis, converteram os militares em fator de decisão, como
aconteceu com três presidentes afastados do cargo quando o Congresso tomou
essa decisão depois de ser notificado pelas Forças Armadas de que elas lhes
tinham “retirado o seu apoio”. Há poucos meses, com uma moção
inconstitucional promovida no Congresso no sentido de processar o presidente
da República, dois ex-presidentes desencadearam o conflito que levou à
destituição arbitrária da Corte Suprema de Justiça, fazendo com que, pela
terceira vez, um chefe de Estado não pudesse terminar o seu mandato.
Ilegalidade
Governos, congressos, partidos, organizações sociais, setores econômicos
e muitos cidadãos, em vez de enquadrar suas atividades diárias e o exercício
das suas funções dentro do âmbito estabelecido pelas normas jurídicas, tendem
a interpretá-las maliciosamente ou simplesmente a ignorá-las. Por este motivo,
e não por falta de normas, não há no Equador o império da Lei, elemento do
qual depende o correto funcionamento das instituições democráticas, a
possibilidade de propiciar iguais oportunidades aos cidadãos, a segurança
jurídica que é tão importante para os agentes econômicos e a confiança em
que se sustenta o progresso das sociedades contemporâneas.
Três presidentes tiveram seu cargo cassado sem que os procedimentos
constitucionais fossem seguidos. Para preservar a estabilidade fiscal, introduziu-
se na Constituição de 1998 um artigo que reservava ao Presidente da República,
de maneira exclusiva, a iniciativa dos projetos que lei que implicassem a criação
de despesas públicas. Essa disposição foi em muitas ocasiões violada pelo
Congresso, descumprimento avalizado paradoxalmente pelos três últimos
presidentes, temerosos de perder a simpatia dos que se tinham beneficiado
com as novas dotações orçamentárias. Nos últimos meses, o Congresso
destituiu a Corte Suprema de Justiça, nomeando outra para substituí-la; por
sua vez, a nova Corte deixou de funcionar e incumbiu organizações da sociedade
civil de nomear uma terceira, sem que nesses quatro casos o órgão legislativo
tivesse a faculdade constitucional de agir assim.
Os problemas de governabilidade da democracia equatoriana
88 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
88
A conduta da população não é diferente, sendo comum o
descumprimento de leis e contratos, o desconhecimento de acordos formais e
o não pagamento de dívidas contraídas, como também a violação quotidiana
das normas de trânsito pelos motoristas e pedestres, nas ruas e estradas, assim
como o hábito que têm os estudantes de “colar” nos seus exames e tarefas.
Acrescente-se a presença de uma Justiça pouco confiável, tanto nos julgamentos
e nos tribunais como nas instâncias administrativas do Estado, de modo que
nem sempre os direitos das pessoas e das sociedades são reconhecidos e as
suas obrigações são estabelecidas.
Populismo
Talvez não haja na América Latina um país com uma cultura populista tão
arraigada no homem da rua como a do Equador, manifesta no fato de que os
líderes políticos mais influentes da segunda metade do século XX foram
populistas. É tal a força do populismo que a sua retórica e as suas práticas marcam
não só a conduta de partidos que se confessam populistas (PSC, PRE, Prian e
MPD), como a de outras entidades políticas e de boa parte dos dirigentes políticos
equatorianos contemporâneos. Assim é óbvia a conclusão de que essa tendência
populista dos partidos é uma reação a sentimentos e demandas dos eleitores,
pois no presente período democrático os partidos citados, e outros que os
antecederam, têm conseguido uma votação que margeia os 50% do eleitorado.
O dispendioso gasto público de governos, congressos e municípios populistas,
especialmente em períodos eleitorais, sua reticência com respeito às decisões
“impopulares” necessárias para restabelecer a estabilidade fiscal, a oposição a leis e
medidas convenientes para preservar a saúde da economia e para promover o
crescimento, assim como o desperdício de recursos em programas assistenciais,
impediram o país de ter uma administração ordenada da economia e, no longo
prazo, terminaram provocando crises econômicas e sociais devastadoras, em que
os mais prejudicados foram justamente os pobres, cujos interesses os líderes
populistas diziam defender. Seu desinteresse por programas de longo prazo
orientados para melhorar os cuidados com a saúde e a qualidade da educação
tornou impossível a redução da pobreza e da desigualdade social.
Dois fatos recentes ilustram o caráter populista da sociedade equatoriana.
Deputados, líderes políticos, jornalistas e organizações da sociedade civil
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Osvaldo Hurtado
89
discutiram um aumento dos proventos de aposentadoria, solicitado pelos
interessados, que foi por fim aprovado pelo Congresso e pelo Governo, levando
em conta exclusivamente a perspectiva das justas necessidades dos aposentados,
mas sem tomar em consideração o financiamento necessário e os efeitos sobre
a economia futura do Seguro Social. Os mesmos atores apoiaram com
entusiasmo uma lei, aprovada unanimemente pelo Congresso, que ordenava a
restituição dos fundos de reserva depositados pelos trabalhadores e empregados
na seguridade social, embora implicasse a eliminação do seguro médico para
os beneficiários ou seus cônjuges e filhos com menos de seis anos, a redução
à metade das pensões dos futuros aposentados e o fim do seguro de
aposentadoria, com o argumento de que o que importava era atender hoje as
necessidades das pessoas, porque pelas necessidades de amanhã podiam esperar
e de alguma forma podiam solucionar no futuro.
Os partidos populistas também são responsáveis pela constante
degradação das instituições democráticas. Seu exercício clientelístico do poder
os têm levado a colocar a seu serviço as instituições públicas, a multiplicar
uma burocracia desnecessária, a baixar seu nível de competência e, com isso, a
criar condições para que prospere a corrupção. Finalmente, suas prédicas
paternalistas e sua demagogia incontinente impediram o povo de adquirir
consciência das suas responsabilidades, bloqueando assim a construção da
cidadania, requisito do qual depende a operação correta das instituições
democráticas e o progresso das nações.
Exclusão social
A porcentagem elevada de pobreza e de indigência, as chocantes injustiças
sociais, a presença abusiva de privilégios e a ausência de oportunidades iguais,
particularmente para os delas mais necessitados, têm provocado um sentimento
de exclusão social que levou os setores que se consideram preteridos a questionar
o sistema democrático e a desqualificar a política econômica de estabilidade e
crescimento. Sentimentos exacerbados, devido à modéstia dos resultados
oferecidos pelos governos democráticos, em especial no fim do século XX,
quando as desvalorizações e as altas taxas de inflação foram acompanhadas por
ajustes dolorosos, um círculo vicioso que o país não conseguiu romper e que se
inclina a recorrer, mais uma vez, em conseqüência das decisões tomadas em
matéria fiscal pelo Governo e de seguridade social pelo Congresso.
Os problemas de governabilidade da democracia equatoriana
90 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
90
Nos anos oitenta, os sentimentos de exclusão e reivindicação social foram
liderados por organizações de trabalhadores agrupadas na FUT, que com suas
greves de caráter nacional puseram em xeque os governos da época. Papel
que, pela perda de adesões e de representatividade do movimento sindical,
nos últimos quinze anos foi assumido por indígenas reunidos na Conaie e no
partido Pachakutik, cujos protestos se expressaram sob a forma de levantamientos
que paralisaram províncias inteiras, assim como tomas da capital. Com essas
mobilizações conseguiram frear ou desvirtuar decisões que os governos deviam
tomar para preservar a estabilidade macroeconômica, para reativar o
crescimento, modernizar o Estado, abrir a economia à competição e recuperar
a credibilidade internacional. Muitas vezes desqualificaram a democracia e
conspiraram contra a sua permanência, como ocorreu no ano 2000, quando a
Conaie, juntamente com militares insubordinados, desconheceu o governo
constitucional, organizando e proclamando uma ditadura.
Patrimonialismo
Em amplos setores da sociedade, e não só entre os políticos e funcionários
do Estado, predomina uma atitude permissiva com relação aos bens públicos,
pois quando se trata de seus benefícios os cidadãos, as empresas, organizações
sociais e grupos da sociedade civil tendem a subordinar o interesse geral ao
interesse particular. Como os limites do público e do privado são
freqüentemente confundidos, o Estado e a autoridade não são vistos como
instâncias às quais corresponde proteger o patrimônio nacional, exigir o
cumprimento de obrigações, defender o bem comum e atender aos direitos
legítimos, mas como instrumentos por meio dos quais pessoas e grupos podem
obter favores, receber vantagens, defender privilégios e até mesmo enriquecer.
Não são poucos os que têm atitudes distintas com relação aos bens e valores
de particulares e do Estado, considerando que os primeiros têm dono, mas os
segundos não pertencem a ninguém.
Essa ausência de uma cultura ética virtuosa em amplos setores da
população explica a razão por que não se conseguiu eliminar a corrupção,
apesar das leis promulgadas para persegui-la, os organismos criados para
controlá-la, a ação punitiva de certas autoridades e as promessas de extingui-
la. Promessas feitas, em várias ocasiões, pela dezena de partidos que se
alternaram no poder. Nessa débil cultura da honestidade, encontramos a
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Osvaldo Hurtado
91
explicação do fato de que o Equador figura, há vários anos, no grupo de
países mais corruptos do mundo, conforme o índice elaborado pela organização
Transparência Internacional.
Entre os muitos exemplos que podem ser citados, cabe mencionar a
aliança de particulares, políticos e funcionários públicos para o contrabando
de todo tipo de bens, e o roubo, mediante ligações fraudulentas, de energia
elétrica, serviço de telefone, água potável e petróleo, delitos que nunca foi
possível extirpar devido à espessa rede de interesses tecida ao seu redor. Para
uma ampla maioria, o fato de alguém cumprir com a sua obrigação de pagar
impostos é uma candura infantil; são poucos os que o consideram o
compromisso mais importante do cidadão com o país. Há partidos políticos
que não só estão a serviço de interesses particulares como, além disso, atuam
como verdadeiras máfias (PSC e PRE), conduta que parece não importar a
seus numerosos seguidores, já que em cada eleição voltam a confiar-lhes
generosamente os seus votos. A degradação que tem sofrido o conceito de
interesse público chegou a tal ponto que, para defendê-lo, em certas
oportunidades foi preciso a intervenção do FMI, do Banco Mundial e do BID
para, com a sua condicionalidade, frear condições lesivas que governos e
congressos se preparavam para adotar.
Esquerdismo
Enquanto na Europa e em outros países da América Latina o pensamento
tradicional da esquerda vem perdendo vigor, influência e eleitores, e os partidos
comunistas que governam a China, o Vietnã e Cuba o modificaram para adaptá-
lo às novas realidades econômicas e políticas do mundo, que emergiram depois
da queda do muro de Berlim, no Equador ele continua sendo fonte de inspiração
dos partidos, organizações sociais e sindicatos, assim como do movimento
indigenista. Embora o sistema político e o modelo econômico elaborados por
Lenin, Mao e seus seguidores tenha deixado de existir nos países que os
adotaram, os movimentos de liberação do Terceiro Mundo tenham abandonado
suas idéias revolucionárias e os partidos de esquerda que governam o Chile, o
Brasil e o Uruguai tenham assumido a economia de mercado e redefinido o
papel do Estado, aqueles partidos e organizações, inclusive os que se qualificam
como de centro-esquerda, menosprezam a estabilidade macroeconômica,
opõem-se ao investimento estrangeiro, criticam a abertura internacional,
Os problemas de governabilidade da democracia equatoriana
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desprezam o mercado e se empenham em manter as responsabilidades que o
Estado tinha na exploração de recursos nacionais e na administração de serviços
públicos.
Devido a essas rígidas posições ideológicas, a partir do Governo, do
Congresso ou das ruas, as citadas organizações políticas e sociais têm afastado,
e obstaculizado, a execução de políticas econômicas voltadas para manter o
equilíbrio fiscal, reformar empresas públicas ineficientes, subsidiadas e
corruptas, e suplementar com capital estrangeiro a insuficiente poupança
nacional. Políticas que, se fossem implementadas, teriam redundado na redução
da inflação, em maiores taxas de crescimento econômico, aumento do número
de postos de trabalho e redução da pobreza. Nem mesmo o fato de que, no
atual período democrático, um desses partidos (ID) exibe os piores resultados
sociais (em termos de salário real, despesas sociais e pobreza), devido aos
desequilíbrios econômicos que não conseguiu corrigir na sua administração,
serviu para que a conservadora esquerda equatoriana tomasse consciência do
equívoco das suas posições. Os indígenas da Conaie têm combatido aquelas
políticas, embora se tenham beneficiado com a diminuição da pobreza que a
estabilidade e o crescimento econômico trouxeram consigo nos últimos anos.
Regionalismo
O conflito centenário entre Quito e Guaiaquil tem sido utilizado pelos
dirigentes do PSC e das câmaras da produção, como também por jornalistas e
articulistas, para promover os interesses econômicos de pessoas e grupos com
os quais estão relacionados. Alegando um suposto prejuízo por parte de
Guaiaquil, têm impedido que o Congresso aprove reformas legais de interesse
nacional, e que os governos tomem providências para proteger o interesse
público, e o bem do país, ou têm conseguido que leis e resoluções sejam
aprovadas para favorecer interesses econômicos particulares de seus protegidos.
Por esse motivo, o país não tem podido contar com os instrumentos jurídicos
que seriam necessários para impulsionar o desenvolvimento nacional, e o
Estado tem sido obrigado a incorrer em importantes gastos fiscais, que
provocaram crises econômicas e terminaram sendo pagos pelos contribuintes.
Reformas que procuravam moralizar a alfândega e perseguir o
contrabando foram arquivadas com o argumento, levantado por líderes políticos
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
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ligados a esses interesses, de que “queriam transferir a alfândega para Quito”.
Na crise financeira dos anos 1998 e 1999, quando 70% do sistema bancário
quebrou, usando argumentos regionalistas, aqueles setores neutralizaram a ação
do Governo, e dos que propunham a adoção de medidas contra bancos
insolventes, cujos administradores tinham cometido fraudes importantes, tendo
por conseqüência a elevação dos custos da crise bancária. Com a alegação de
que “centralistas de Quito” se propunham a “acabar com o sistema bancário
de Guaiaquil”, conseguiram evitar o fechamento de bancos quebrados,
contaminando instituições que teria sido possível salvar, e conseguiram manter
nos seus postos banqueiros corruptos, com o tempo necessário para concluir
suas fraudes e destruir as provas dos delitos cometidos. Foram omissões, que
além de tudo, provocaram uma multiplicação do número de depositantes
prejudicados, jogando sobre as costas do Estado um custo aproximado de
quatro bilhões de dólares – o equivalente a 25% do PIB do ano 2000.
Em conclusão
Esta franca exposição das debilidades e limitações políticas atribuíveis
às idéias e condutas dos cidadãos procura chamar atenção para a necessidade
imperiosa de que os equatorianos – os pobres, os ricos e os de patrimônio
intermediário – tomem consciência dos seus erros e omissões, corrijam
condutas inconvenientes e assumam as suas responsabilidades.
Os equatorianos não podem continuar procurando “nos outros”, ou
fora das fronteiras nacionais, bodes expiatórios de culpas individuais e coletivas,
quando a outrora influente teoria da dependência não é mais defendida nem
mesmo pelos seus criadores. Os países que mais progridem são os que se
acham integrados no mundo internacional e já se demonstrou que o progresso
das nações é o resultado do esforço constante dos seus cidadãos.
Com exceção da fragmentação dos partidos, os problemas da política
equatoriana assinalados nas páginas precedentes não poderão ser resolvidos
mediante reformas institucionais se não houver mudanças na maneira de ser e
de pensar dos cidadãos – ou seja, nos seus costumes, idéias, atitudes e
comportamentos.
Enquanto não forem modificados os valores culturais nacionais, mudança
que vai depender da ação para esse fim das autoridades, dos educadores, líderes
Os problemas de governabilidade da democracia equatoriana
94 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
94
e comunicadores, as reformas das instituições políticas continuarão tendo
resultados limitados, e o desenvolvimento do país continuará a se atrasar.
A responsabilidade dos partidos pelo relativo fracasso da democracia
equatoriana, na sua missão de administrar de forma eficaz o desenvolvimento
nacional e a melhoria constante do bem-estar das pessoas, cabe de forma
conjunta aos setores econômicos, sociais e midiáticos, assim como aos cidadãos
de todas as condições sociais.
Assim como em outros países latino-americanos, no Equador é freqüente
atribuir aos partidos políticos todos os males nacionais, sem levar em conta
que os políticos são apenas o espelho que retrata os povos, com todas as suas
virtudes e os seus defeitos.
Embora a análise feita nestas páginas se refira ao Equador, algumas
reflexões podem ser pertinentes a outros países da América Latina, nos quais,
mutatis mutandis, se repetem os problemas políticos estruturais, as limitações
ideológicas e os hábitos culturais da natureza indicada.
Nota: O presente ensaio, escrito para a revista Diplomacia, Estratégia e Política (DEP), contém uma versão
corrigida, ampliada e atualizada de artigo publicado no número especial da revista Carta Económica, de Cordes,
e no jornal Hoy, em setembro de 2004, a propósito dos 25 anos da democracia equatoriana.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Christopher Ram
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Guiana: entre a história
e a realidade
Christopher Ram
*
A
Guiana está situada no extremo setentrional da América do Sul, com o
seu litoral norte banhado pelo Oceano Atlântico, defrontando as Índias Ocidentais
Britânicas, com as quais o país compartilha laços comuns de história, cultura, leis,
linguagem, esporte e todos os outros ingredientes que criam vínculo entre os
povos separados pelo espaço geográfico. Por outro lado, devido a um acidente
histórico, a Guiana, o Brasil, a Guiana Francesa, o Suriname e a Venezuela, todos
situados no norte da América do Sul, representam as cinco potências européias
que deixaram a sua marca colonial no continente. Suas fronteiras contíguas são
compartilhadas com o Brasil, país com o qual foi solucionada em 1904 uma disputa
fronteiriça, com o Suriname e com a Venezuela, com os quais tem antigas e
perturbadoras disputas fronteiriças que ressurgem de tempos em tempos, por
vezes de forma dramática.
Sócio-Diretor da Ram & McRae Contadores
ramc@networksgy.com
Guiana: entre a história e a realidade
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96
A Guiana é não só o terceiro menor país da América do Sul, depois do
Suriname e do Uruguai, mas também um dos que têm menor densidade
demográfica: 3,5 pessoas por hectare. Sua população está concentrada quase
inteiramente na costa atlântica, o que torna abertas e vulneráveis suas fronteiras
com o Brasil (1.119 km), Suriname (600 km) e Venezuela (743 km), no sul,
leste e oeste, respectivamente. É o único país na América do Sul, e na verdade
em todo o Hemisfério Ocidental, onde a maioria da população (52%) tem
suas origens na Índia, sendo 36% de origem africana. O resto é uma mistura
de ameríndios (10%), que constituem a maioria nas regiões do interior, e
descendentes de portugueses, de outros europeus e de chineses. Daí o lema
que ostenta: “uma nação de seis povos”.
O fato de que a Guiana é o único país de língua inglesa da região explica
a razão por que mesmo antes da independência, alcançada em 1966, sucessivos
governos se esforçaram por formar alianças fronteiriças voltadas sobretudo
para o norte, para as antigas colônias britânicas no Caribe, e não para os países
sul-americanos. No entanto, a população das cidades fronteiriças, como Lethem
e Corriverton, têm uma atitude bem mais prática, e seus contatos e atividades
através das fronteiras são freqüentes e importantes. Ocasionalmente, políticos
e acadêmicos guianenses falam do “destino continental” do país e da
necessidade de desenvolver laços econômicos e culturais mais fortes com os
países sul-americanos. Mais recentemente, o país se uniu a algumas das muitas
iniciativas e agrupamentos regionais, inclusive o Grupo do Rio e a Comunidade
Sul-Americana de Nações (CSN). Sem uma história comum, com uma barreira
lingüística, um comércio insignificante e contatos culturais na melhor das
hipóteses tênues, as perspectivas de um “destino meridional”, com amplos
mercados para bens e serviços, recursos compartilhados e o desenvolvimento
da infra-estrutura é ao mesmo tempo uma atração e um desafio.
A Guiana é bem dotada de recursos naturais, dispõe de terras férteis para
uso agrícola, tem reservas minerais diversificadas e uma grande extensão de florestas
tropicais. Sua economia se baseia fortemente na agricultura primária, com o açúcar
e o arroz, a bauxita, o ouro e a madeira representando a maior parte da produção.
O potencial hidrelétrico é imenso, mas ainda está longe de ser desenvolvido. A
despeito dos seus abundantes recursos, é o segundo país mais pobre do Hemisfério
Ocidental, com uma renda per capita de US$850 em 2004.
A Guiana compartilha também com seus vizinhos do continente desafios
e ameaças comuns, inclusive o narcotráfico, a degradação ambiental – como o
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Christopher Ram
97
deflorestamento e a poluição da água –, novos padrões e regras de comércio e o
nervosismo da única superpotência mundial com seus vizinhos meridionais,
que não demonstram grande entusiasmo com a sua agenda e a sua liderança.
Embora seja um país relativamente novo, a Guiana comunga com muitos outros
países do continente a experiência da interferência dos Estados Unidos na
mudança do regime do esquerdista radical Dr. Cheddi Jagan, na década de 1960.
A história
Na sua terceira viagem à América, em 1498, Cristóvão Colombo navegou
ao longo da costa da Guiana, mas só quase cem anos depois o país adquiriu
uma certa preeminência, sendo associado ao “El Dorado”, a fabulosa cidade
do ouro procurada por Sir Walter Raleigh em 1595. Em 1616, os holandeses
criaram sua primeira colônia, e em pouco tempo os colonos holandeses se
voltaram para o açúcar, o que foi acompanhado pela sua herança mais duradoura
deixada na Guiana – a recuperação de terras litorâneas e a construção de
represas e sistemas de drenagem para manter afastado o poderoso oceano.
Em 1746, os holandeses abriram a imigrantes ingleses a área perto do
rio Demerara, e eles passaram a constituir a maioria da população. Em 1781,
explodiu uma guerra entre a Holanda e a Inglaterra e, como resultado, os
ingleses ocuparam Berbice, Essequibo e Demerara. Meses mais tarde os
franceses, juntamente com os holandeses, retomaram essas colônias. Depois
disso elas mudaram de mãos várias vezes até 1814, quando foram formalmente
cedidas à Grã-Bretanha. Em 1831, Berbice e a colônia unida de Demerara e
Essequibo foram unificadas como Guiana Inglesa.
Em 1953, a Inglaterra concedeu autogoverno interno à colônia, mas a
constituição foi logo suspensa devido à tendência comunista do Premier Dr.Cheddi
Jagan. A Guiana se tornou independente em 1966, e em 1971 passou a ser uma
República dentro da Comunidade Britânica de Nações, o Commonwealth.
O Governo
A Guiana combina o modelo parlamentar britânico, conhecido como
Sistema de Westminster, com uma constituição escrita e o sistema
presidencialista americano, sem uma separação estrita dos poderes. Pela
Guiana: entre a história e a realidade
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98
Constituição, o presidente tem considerável poder executivo, mas não é membro
da Assembléia Nacional: é escolhido em eleições gerais, que coincidem com
eleições nacionais e regionais, e pode ter no máximo dois mandatos de cinco
anos. Há uma única legislatura, com 65 membros eleitos mediante uma
combinação de representação proporcional e eleição regional direta, com base
no sistema de listas partidárias.
O sistema legal
Como a Guiana já foi administrada por três potências coloniais, entre
1616 e 1814, não surpreende que o sistema legal do país não seja facilmente
classificável dentro de uma única tradição jurídica. Como é natural, as potências
européias implantaram o seu sistema legal nas colônias do continente americano.
Assim, quando os holandeses se estabeleceram no país, em 1616, trouxeram
consigo o direito romano e o holandês, que era em si mesmo uma mistura de
outras leis. A common law inglesa foi introduzida em diversas fases, e ao longo dos
séculos substituiu a lei holandesa. Entre 1846 e 1924, quase todos os ramos do
direito seguiram a tradição da common law, com exceção da propriedade imobiliária.
Assim, atualmente, a common law inglesa representa o sistema legal e a
tradição jurídica dominantes na Guiana, com determinadas exceções, relacionadas
com a propriedade, o matrimônio e a sucessão. Não obstante, o sistema ainda é
descrito pelos acadêmicos e teóricos do direito como um sistema híbrido.
A economia
Na época da sua independência, em 1966, a Guiana era um dos países
mais desenvolvidos do Caribe. A economia continuou a crescer durante cerca
de uma década depois disso, mas uma combinação de capitalismo estatal,
políticas socialistas e administração crescentemente ditatorial teve um impacto
devastador no país, o que provocou um declínio dramático no padrão de vida,
nos serviços sociais e na infra-estrutura, exacerbando uma emigração que
começou nos anos 1960 e continua até hoje.
Em 1998, um Programa de Recuperação Econômica, orientado pelo
Fundo Monetário Internacional, marcou o princípio da transição do país de
um regime socialista para uma economia de mercado, sob um sistema
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
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99
democrático. A partir de uma situação econômica difícil, o Programa garantiu
taxas de crescimento impressionantes, com a média de 7,1% ao ano durante o
período 1991-1997. No entanto, a partir de 1998, o rendimento da economia
decaiu consideravelmente, a despeito de ampla privatização, da liberalização
da economia e do dólar guianense, e de um alívio muito generoso oferecido ao
endividamento externo.
Depois da completa liberalização do comércio, do mercado financeiro e
da moeda, a economia da Guiana é vista muitas vezes como uma das mais
abertas da região do Caricom. No entanto, essa abertura tem seus riscos, e em
2004 o valor dos produtos exportados correspondeu a menos de 50% do
valor da importação. As políticas e os esforços adotados para estimular a
manufatura para a exportação fora da área tradicional não tiveram os resultados
esperados. Uma pesquisa recente mostrou que, de quarenta empresas, só três
tinham exportado para a América do Sul ou a América Central.
Os obstáculos mais importantes incluem o transporte irregular e caro,
as barreiras lingüísticas, a falta de familiaridade com os mercados e seus
procedimentos, o pouco volume disponível para a exportação dirigida aos
países do continente e a informação inadequada disponível às empresas ou
nas embaixadas.
Como o comércio é um processo de mão e contramão, as mesmas razões
que inibem as exportações guianenses para os mercados do continente militam
contra as exportações dirigidas à Guiana. Geralmente os poucos produtos dos
países sul-americanos encontrados nas prateleiras dos supermercados na capital
guianense derivam do contrabando fronteiriço ou são importados via Miami!
Há também limitações importantes ao desenvolvimento das relações
comerciais com o Caricom, que tem uma população de menos de cinco milhões
e um PNB combinado de aproximadamente 32 bilhões de dólares.
O problema que se apresenta para a Guiana é como perseguir um destino
continental e quais as principais dificuldades a serem enfrentadas. Pode o país
atuar sozinho, e deve fazê-lo, ou será preferível unir-se a uma iniciativa mais
ampla do Caricom? Embora a Guiana não tenha participado da infeliz
Federação das Índias Ocidentais, foi parte da formação da sua sucessora, a
Área de Livre Comércio do Caribe (Carifta), que deverá em breve evoluir para
a Economia e Mercado Unidos do Caribe (Caribbean Single Market and Economy).
Portanto, a Guiana é parte integrante do Caricom, e a sua decisão de unir-se à
Guiana: entre a história e a realidade
100 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
100
CSN, que em si mesma é uma área de livre comércio de âmbito continental,
unindo duas organizações de livre comércio, tem provocado dúvidas sobre a
compatibilidade com o papel que exerce no Caricom.
Só em 1990 a Guiana ingressou na Organização dos Estados Americanos,
após uma emenda que eliminou o dispositivo de exclusão existente na
Constituição da OEA. Sua experiência com os problemas da região tem sido
mista. No entanto, a própria Caricom já expressou o desejo de manter um
relacionamento mais intenso com a região, e também com a Associação dos
Estados do Caribe, sediada em Port-of-Spain, Trinidad. A Associação teve sua
origem no documento Time for Action, da Caricom, enquanto o Relatório da
Comissão das Índias Ocidentais recomendou que a Caricom “eliminasse o
hiato entre os seus membros e o resto do Caribe e a América Latina”.
Um destino continental
Se a Guiana decidir-se por um destino continental, fora do contexto da
Caricom, poderá descobrir que estará competindo com outros países membros
da Caricom que têm aspirações semelhantes. Na verdade, Trinidad e Tobago
– uma nação muito mais rica – revelou seu desejo de tornar-se uma sociedade
bilíngüe, e uma ponte para a América do Sul. Nas palavras de Sir Shridath
Ramphal, a Guiana tem conseguido bons resultados no cenário internacional,
o que ele atribuía à “memória do que os nossos ancestrais enfrentaram e
superaram”. Com efeito, a Guiana participou duas vezes do Conselho de
Segurança das Nações Unidas e hospedou reuniões importantes do Movimento
dos Não Alinhados, assim como abriga a sede da Caricom.
No entanto, a Guiana não deixa de ter sérios problemas, e na condição
de Estado pequeno e multiétnico, enfrenta ameaças internas e também externas.
Com efeito, há um temor muitas vezes manifestado de que as difíceis condições
econômicas e sociais do país e as divisões étnicas e políticas aumentem sua
vulnerabilidade às ameaças externas.
Essas ameaças são talvez menos visíveis, porém mais perigosas, e incluem
incursões no seu território por mineradores ilegais, soldados estrangeiros,
madeireiros e narcotraficantes. A reação a essas penetrações é inadequada,
dada a inexistência de recursos. No entanto, merecem atenção especial as
pretensões territoriais da Venezuela e do Suriname.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
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101
As ameaças fronteiriças
Venezuela
Desde a independência, a Guiana tem sofrido disputas e controvérsias a
respeito das fronteiras, que têm ameaçado a sua própria existência. Havia no
país a percepção de que essas questões tinham sido resolvidas já no fim do
século XIX, mas acredita-se que o temor de um governo esquerdista provocou
o ressurgimento de antigas controvérsias. A disputa mais importante é com a
Venezuela, que pretende dois terços do território guianense, a despeito da
decisão de um tribunal internacional de que a Venezuela não participou
diretamente, mas onde esteve representada pelos Estados Unidos da América.
Com relutância, a Guiana concordou em submeter essa controvérsia às
Nações Unidas, e em novembro de 1989, teve início um processo de acordo
com o Artigo 33 da Carta da ONU, destinado a ajudar as duas partes a resolver
a disputa pacificamente. Entrementes, as tentativas feitas pela Guiana de
promover o desenvolvimento econômico da área controvertida não foram
aceitas pela Venezuela, que em 2000 objetou a um acordo entre o Governo da
Guiana e a empresa Beal Aerospace de instalar uma estação de lançamento de
satélites nas margens do rio Waini, assim como a presença de duas plataformas
de exploração de petróleo nas águas territoriais guianenses.
O Presidente Hugo Chávez da Venezuela já declarou publicamente que
não haveria objeção do seu país ao desenvolvimento da infra-estrutura, como
estradas, suprimento de água e de energia elétrica, com o objetivo de melhorar
diretamente a vida dos habitantes da região, mas que os projetos sensíveis
deviam ser discutidos no quadro da Comissão Bilateral Guiana-Venezuela de
Alto Nível, sugestão que foi rejeitada pelo Governo guianense.
Suriname
O Suriname tem duas reivindicações territoriais com relação à Guiana.
A primeira diz respeito ao território marítimo da Guiana que resultou
originalmente de acordos informais entre os governadores das antigas
colônias holandesas de Berbice e Suriname, então adjacentes. A controvérsia
entre a Guiana e o Suriname teve início em 1962, depois de proposta feita
pela Holanda de redefinir a fronteira, que teria resultado na transferência de
uma grande área do território para o Suriname – proposta que foi rejeitada
pela Inglaterra.
Guiana: entre a história e a realidade
102 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
102
Uma segunda controvérsia diz respeito ao baixo rio Corentyne, onde a
Holanda procurou fazer com que a Guiana aceitasse a margem guianense
como fronteira territorial, o que teria significado que o rio pertenceria
efetivamente ao Suriname. A Guiana recorreu ao Tribunal Internacional das
Nações Unidas sobre a Lei do Mar, depois que, em junho de 2000, a Marinha
do Suriname expulsou, à força, de águas guianenses, uma plataforma de
exploração petrolífera da empresa canadense CGX, após o fracasso de longas
consultas, em vários foros.
O Presidente da Guiana expressou a esperança de que as disputas e
controvérsias com os países vizinhos não tardarão a ser resolvidas, pois elas
prejudicam o desenvolvimento do pais e a sua “capacidade de melhorar os
padrões de vida de todo o nosso povo”. Em um contexto mais amplo, essas
disputas limitam severamente o êxito das aspirações a qualquer destino
continental que a Guiana possa guardar.
Mapa da Guiana mostrando as áreas reivindicadas pela Venezuela e pelo Suriname
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Christopher Ram
103
Brasil: ameaça ou oportunidade?
Ao contrário do Suriname e da Venezuela, as relações com o Brasil se
têm desenvolvido ao longo dos anos, e recentemente foram fortalecidas com
a assinatura do Acordo de Comércio Guiana-Brasil, que prevê o acesso
preferencial dos produtos dos dois países nos respectivos mercados. O interesse
brasileiro no desenvolvimento das suas relações com a Guiana ultrapassa de
muito a livre movimentação de bens, ou o interesse guianense: inclui uma
proposta ligação rodoviária a partir do estado de Roraima, através da Guiana,
unindo os estados setentrionais do Brasil em um grande arco através das
Guianas, para facilitar o acesso comercial ao Atlântico Norte, ao Caribe, à
América Central e Setentrional e à Europa. Na verdade, uma matéria publicada
em 2004 na Gazeta Mercantil, um influente jornal brasileiro, resumiu esse
esquema ambicioso indicando que, por meio do canal do Panamá, a ligação
rodoviária através da Guiana poderia facilmente ligar o Brasil ao Pacífico.
Assim, o desafio enfrentado pela Guiana é se, com uma política
independente, ela pode negociar em termos de igualdade com uma potência
mundial emergente, preocupação real e perpétua de todos os pequenos Estados.
No seu relacionamento com a Guiana, os brasileiros têm feito uma ofensiva
de boa vontade e se têm beneficiado da admiração e identificação dos guianenses
com o Presidente Lula. O Governo brasileiro tem demonstrado grande interesse
na construção de uma rodovia entre Georgetown, a capital da Guiana, e Lethem,
situada na fronteira do Brasil, do outro lado da cidade de Bonfim. Enquanto a
presença brasileira tem sido comum nas comunidades do interior, e mais
especialmente na importante cidade fronteiriça de Lethem, existe agora uma
preocupação crescente com os garimpeiros brasileiros que operam abertamente
no país, de forma ilegal.
Os guianenses não devem esquecer que a história do Brasil não deixa de
exibir certas tendências hegemônicas, e precisam atentar para o perigo de que
o seu país passe a ser apenas um posto avançado do Brasil. E não podem
também ignorar as alegadas violações dos direitos humanos de minorias étnicas,
bem como as massas de camponeses sem terra, a disparidade de renda e
distribuição de riqueza prevalecentes no Brasil – uma sociedade que os
guianenses não aceitariam sem pelo menos algumas reservas.
Guiana: entre a história e a realidade
104 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
104
As perspectivas
Embora possa parecer atraente, aceitar um destino continental para a
Guiana, o que até certo ponto é inevitável, implica alguns riscos. Separada
pelo mar do Caribe dos seus vizinhos tradicionais e políticos e dos parceiros
comerciais da Caricom, comparativamente minúsculos, os guianenses poderiam
achar o tamanho do Brasil irresistível. No entanto, seria um erro que o
fortalecimento dos vínculos do país com a América do Sul fosse feito às custas
do seu relacionamento com os parceiros da Caricom. Na verdade, de um lado
a Guiana não deve jamais abandonar o seu direito de manter relações bilaterais,
mas as relações multilaterais oferecem vantagens e segurança.
Em última análise, a Guiana precisa cuidar dos seus interesses, como fez o
Brasil no recente desafio, juntamente com dois outros países, contra o regime
do tratamento do açúcar pela União Européia, do qual a Guiana é um importante
beneficiário. O Brasil não podia ignorar as duras conseqüências que essa decisão
teria para a Guiana, mas está claro que os brasileiros puseram o seu interesse
nacional à frente de qualquer preocupação com a Guiana. Na verdade, as
dificuldades a serem enfrentadas pela indústria açucareira da Guiana como
resultado da ação tomada pelo Brasil não deveria levar à busca de soluções
rápidas à custa dos seus interesses de longo prazo. Por outro lado, o Brasil precisa
reconhecer que em quase todas as oportunidades a Guiana o apoiou em vários
foros internacionais, e esperaria assim uma certa reciprocidade – que o Brasil
fosse mais sensível ao interesse dos países menores e mais pobres.
Deve ser extremamente desconfortável operar em uma atmosfera gerada
pelo que a Guiana considera reivindicações territoriais injustas por dois dos
seus vizinhos. Embora não exista uma disputa semelhante com o Brasil, a
relação bilateral claramente não se dá entre iguais, e a Guiana precisará garantir
não só a sua integridade territorial e seus interesses políticos, sociais e
econômicos, como a adoção de instrumentos que lhe tragam benefícios justos
desse relacionamento.
Bibliografia e Reconhecimento
A Time to Choose: Caribbean Development in the 21st. Century, documento do
Banco Mundial, 26 de abril de 2005.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Christopher Ram
105
Integrate or Perish. Seleção de discursos pelos líderes do Movimento de
Integração do Caribe, edit. Kenneth O. Hall. Um projeto UWI Caricom,
Georgetown, Guiana, 2000.
Guyana Review. outubro de 1999, outubro de 1996, janeiro/fevereiro de
2004, março de 2004, março de 2005, setembro de 2004, abril de 2004 e julho
de 2004.
Facing the Challenges. Clement J. Rohee, Ministro do Comércio Externo e
Cooperação Internacional da Guiana, ex-ministro do Exterior da Guiana.
Tradução: Sérgio Bath.
Objetivos e desafios da economia paraguaia
106 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
106
Objetivos e desafios da
economia paraguaia
Ernst Ferdinand Bergen Schmidt
*
N
os últimos anos o Paraguai atravessou uma complexa crise política e
econômica, da qual hoje se está recuperando. Durante o governo anterior os
problemas de governabilidade aprofundaram as dificuldades financeiras do fisco e
a queda da produção aumentou a deterioração do quadro social. O país caminhava
para uma iminente interrupção de seus pagamentos, processo que foi revertido
pelo governo atual, mediante medidas oportunas adotadas com o objetivo de
equilibrar as finanças públicas, incluindo uma reforma do sistema tributário.
Depois de superada a crise fiscal, os esforços do Governo estão agora
dirigidos para a promoção do desenvolvimento econômico, com políticas claras
que contribuam de forma decisiva para o bem-estar do povo mediante a melhoria
dos investimentos, do emprego e da renda da população. Embora se tenha
conseguido alcançar a estabilidade macroeconômica, que proporciona um
ambiente favorável para os negócios, as condições sociais só registrarão uma
melhoria significativa quando for possível um desenvolvimento sustentável.
*
Ministro da Fazenda da República do Paraguay
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Ernst Ferdinand Bergen Schmidt
107
O propósito do Governo é estreitar vínculos com o setor privado. Temos
consciência de que esse esforço conjunto é fundamental para alcançar o
desenvolvimento.
Para isso, estamos trabalhando de modo a criar condições favoráveis ao
investimento nacional, a servir de exemplo e provocar o interesse dos investidores
estrangeiros.
Estratégias de desenvolvimento
O Governo paraguaio define sua estratégia de desenvolvimento, de
forma breve e concisa, mediante as seguintes metas:
• recuperação da confiança nas instituições públicas, por meio de uma
luta constante contra a corrupção, e a modernização da administração
pública;
• crescimento econômico sustentado, baseado no desenvolvimento da
agroindústria e das exportações com valor agregado;
• aumento do capital humano, mediante um maior investimento em saúde e
educação, assim como políticas que aumentem a eqüidade e o acesso a
esses serviços.
Nesse contexto, considera-se fundamental a participação nos efeitos
benéficos da globalização, como o livre intercâmbio comercial e a aquisição
de inversões de capital.
A política econômica atual
Um passo importante dado pelo Governo foi melhorar a governabilidade
e conseguir que as políticas públicas sejam previsíveis, graças a uma agenda de
reformas e projetos de lei orientados para a sustentabilidade fiscal, o acesso ao
crédito por parte dos setores produtivos, a modernização da gestão pública e do
setor financeiro.
Objetivos e desafios da economia paraguaia
108 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
108
Chegou-se assim a um acordo político entre o Poder Executivo, o
Parlamento, os partidos políticos e o setor privado, para aprovar uma agenda
de reformas orientadas para esses objetivos. Das sete leis propostas em 2003
pelo Poder Executivo, até agora cinco já foram aprovadas: a reforma da Caixa
de Aposentadorias e Pensões Públicas, a Reforma Tributária, um novo Código
Aduaneiro, a Lei de Garantia de Depósitos e da Reprogramação da Dívida
Pública. A reforma do banco público, fundamental para o crédito aos pequenos
e médios produtores, encontra-se em processo de aprovação parlamentar, assim
como o projeto de lei de reforma dos bancos privados.
O Poder Executivo encaminhou igualmente ao Congresso outros projetos
de lei relacionados com reformas econômicas, buscando criar regras mais claras
no mercado. Neste sentido pode-se citar a Lei de Biocombustíveis, a Lei de
Defesa da Competição e a Lei de Combustíveis, que visam a liberalização
desses produtos no mercado.
Na área das empresas públicas, o Governo do Paraguai está comprometido
com um processo de aprimoramento substancial da eficiência dessas empresas,
para o que deu início a um processo de auditorias financeiras e de gestão, após o
qual serão preparados plano de negócios para cada uma delas.
Participação social no desenvolvimento
O Governo atual se encontra em um exercício permanente de diálogo e
harmonização com as forças políticas e a sociedade civil, para levar adiante as
reformas econômicas necessárias e estruturar políticas de Estado de médio e
longo prazo. Juntos, o Governo, os empresários e os representantes da sociedade
civil formularam recentemente o Plano de Crescimento com Eqüidade 2005-
2011, baseado em quatro pilares de desenvolvimento para o país:
1) a melhoria do ambiente de negócios e da competitividade;
2) o aumento da diversificação produtiva e das exportações;
3) a melhor distribuição da terra, para aumentar a produção agropecuária;
4) a redução da pobreza e da desigualdade social.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Ernst Ferdinand Bergen Schmidt
109
O Governo paraguaio está convencido da necessidade de incluir o fator
social em todas as suas atividades. Os programas sociais específicos que estão
sendo aplicados contribuirão de forma decisiva para reduzir a pobreza e as
desigualdades, para que toda a população tenha maior acesso a uma alimentação
adequada e a cuidados médicos, além da criação e proteção do emprego.
Temos consciência de que o desenvolvimento do indivíduo passa pela
igualdade de oportunidades, que lhe permita desenvolver as suas capacidades.
Política de estabilidade macroeconômica
Outro passo importante tem sido a recuperação da estabilidade
macroeconômica, para restituir confiança aos agentes econômicos. Depois de
seis anos de recessão, o PIB voltou a crescer e a inflação foi contida, registrando
o índice mais baixo em trinta anos.
Depois de experimentar em 2002 um déficit fiscal histórico, de 3% do
PIB, o Estado paraguaio conseguiu reduzi-lo em 2003 a 0,6% do Produto
Interno Bruto. No ano seguinte o Governo transformou esse déficit em um
resultado positivo, de 1,5% em fins de 2004, pela primeira vez após dez anos
de deterioração das contas fiscais. As taxas de juros aplicadas aos créditos em
moeda local diminuíram, e foi adotada uma política compatível com o processo
de reativação da economia. Não há atraso nos pagamentos da dívida pública
interna e externa, e em 2004 as reservas internacionais quase dobraram com
respeito ao ano anterior.
Ainda mais importante foi evitar a suspensão dos pagamentos em 2003,
mediante uma reprogramação da dívida externa negociada com bancos
privados, ao que se somou o pagamento dos débitos em atraso da dívida externa.
Esses resultados foram parte das ações incluídas no acordo de stand by com o
Fundo Monetário Internacional, que por sua vez permitiu a obtenção de
empréstimos de ajuste estrutural do BID e do Banco Mundial.
A conjuntura econômica internacional contribuiu também para esses
resultados. Assim, em 2004 a economia dos países membros do Mercosul
aumentou em mais de 5%.
Os produtos básicos exportados pelo país obtiveram preços adequados,
e o nível das taxas de juros internacionais se mantiveram baixos. O cenário
Objetivos e desafios da economia paraguaia
110 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
110
financeiro mundial foi propício ao fluxo de capitais dirigido para a região, o
que, entre outros fatores, permitiu o fortalecimento das reservas internacionais.
A reativação da economia teve um impacto favorável sobre o balanço
comercial do país. A partir de 2003, a oferta exportável do Paraguai rompeu
seu nível histórico de exaustão. As exportações aumentaram em cerca de 32%,
elevando-se ainda mais em fins de 2004, apresentando um aumento cumulativo
de 55% sobre a sua média histórica. Tudo isso contribuiu para uma redução
contínua do déficit do balanço comercial do Paraguai, sem que as importações
perdessem o seu dinamismo.
Quadro 1: Intercâmbio comercial do Paraguai
Para o ano de 2005 o Paraguai prevê um crescimento do PIB com superávit
fiscal, baixa inflação e um tipo de câmbio estável; a redução continuada do déficit
comercial e um aumento das reservas internacionais.
Redução da dívida pública externa
No seu Plano 2003-2008, o Governo paraguaio não descarta tomar novos
empréstimos, mas afirma a importância de analisar perfeitamente a
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Ernst Ferdinand Bergen Schmidt
111
conveniência e pertinência desses mútuos. Ao mesmo tempo, o Governo
prossegue com a sua política conseqüente de reduzir o saldo das obrigações
externas, com o que o Paraguai aumenta o nível de confiança de que goza
internacionalmente e contribui para a estabilidade macroeconômica do país.
Desde o fim do ano de 2003, a dívida pública externa diminuiu em 4%, o que
corresponde a quase 100 milhões de dólares
Quadro 2: Dívida pública externa do Paraguai
Confiabilidade das instituições públicas
A prevenção da corrupção e a luta contra esse problema é essencial para criar
um clima favorável aos negócios, que promova os investimentos privados e o
crescimento econômico. É o que tem entendido o Governo paraguaio, agindo com
presteza para debelar esse flagelo que afeta tanto o setor público como o privado.
Dentro da administração pública, o combate à corrupção, para recuperar
a confiança nas instituições públicas e a sua credibilidade teve como principal
resultado o aumento substancial da receita tributária entre 2003 e 2004, da
ordem de mais de 40%. Outro resultado importante foi a economia de trinta
por cento para o Estado nas compras governamentais, atribuível a ações
realizadas pela nova Diretoria Geral de Contratações Públicas.
Objetivos e desafios da economia paraguaia
112 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
112
O reconhecimento externo
Entre as avaliações imparciais da situação econômica do Paraguai e os
progressos havidos pode-se mencionar organizações privadas como Standard &
Poor e o Grupo PRS, que acompanham permanentemente os dados do país.
Sem negar os desafios ainda existentes no Paraguai, nos rankings
publicados periodicamente as duas instituições fizeram referência a melhorias
havidas no risco de crédito e de investimento.
Com relação ao risco de créditos, Standard & Poor atribuiu ao Paraguai,
em julho de 2004, a classificação “B” para créditos de longo prazo, tanto em
moeda nacional como em moeda estrangeira. Isso significa um grande
progresso em comparação com classificações precedentes (“SD” para créditos
em divisas e “CCC” para créditos nacionais).
Na lista de riscos de investimento, publicada pelo Grupo PRS, em dois
anos o Paraguai melhorou sua posição de 60,3 para 66,0 pontos (considerando
100 pontos como o máximo teórico). Com esse progresso, o Paraguai figura
entre os vinte países de melhor desenvolvimento relativo em nível global.
Planos e programas setoriais prioritários.
O setor agropecuário
O Paraguai conta com um amplo espectro de produtos agrícolas: frutas,
verduras, legumes e oleaginosas. Não obstante, atualmente sua atividade agrícola
está concentrada no cultivo da soja e do algodão. Para o atual período
governamental o Ministério de Agricultura e Pecuária define assim a sua missão:
Promover a competitividade da cadeia produtiva agropecuária e florestal no Paraguai
em condições de livre mercado, eqüidade social e sustentabilidade ambiental, no quadro
político de um sistema de governo democrático, representativo, participativo e pluralista.”
Com o objetivo de diversificar a produção agrícola e melhorar as
possibilidades de renda nas zonas rurais, o Ministério está promovendo uma
série de projetos específicos para fortalecer determinados produtos, entre os
quais podemos mencionar programas relacionados com a estévia, o sésamo, o
rícino, a mandioca, as hortaliças e as frutas.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Ernst Ferdinand Bergen Schmidt
113
A produção orgânica e seu fomento adquirem uma importância crescente
na política agrícola do país. Em 2004, o Paraguai foi o líder mundial da
exportação de açúcar orgânico.
Neste contexto, o Ministério se volta para a reativação da agricultura
familiar, com o objetivo de reduzir a pobreza na população rural de menos
recursos.
Mediante o Programa Nacional do Algodão 2004/5-2008/9, o Ministério
promove projetos destinados a melhorar o rendimento e a qualidade do algodão
em nível nacional.
No Paraguai a pecuária goza de alta produtividade, e as carnes procedentes
do nosso país são exportadas para o Brasil, a Rússia, o Chile e o Oriente Médio.
Desde 2004, o Paraguai goza da situação de país “livre de febre aftosa com vacina”,
que beneficia, de forma muito significativa, a conquista de novos mercados.
Atualmente, o Paraguai dispõe de aproximadamente duas cabeças de
gado por habitante. Como o clima e a vegetação permitem uma alimentação e
manutenção natural do gado durante todo o ano, a carne tem uma qualidade
muito apreciada. Para diversificar a produção de carnes, o Ministério conta
com programas nacionais para o fomento da criação de aves, de porcos e a
piscicultura, havendo crescente demanda no exterior para produtos como o
frango congelado.
Com o Serviço Nacional de Qualidade e Segurança Animal foram
unificados todos os serviços veterinários oficiais, reunindo assim em uma única
entidade tudo o que se relaciona com a saúde animal, a qualidade e a higidez
dos alimentos de origem animal e o comércio internacional de animais e
produtos animais, o que permite a supervisão e o controle efetivo de todas as
etapas da cadeia produtiva.
O setor industrial
A estratégia de desenvolvimento do Paraguai está orientada para o
crescimento econômico baseado na agroindústria e na exportação de bens
com valor agregado. Para isso, o Governo nacional se dedica a criar condições
favoráveis para a expansão dessas indústrias, mediante um programa de
instrumentos e incentivos para a produção e exportação.
Objetivos e desafios da economia paraguaia
114 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
114
No setor agroindustrial estão sendo feitos estudos setoriais sobre a cadeia
algodão-têxteis-confecções, madeira-móveis, rações e laticínios.
Além da agroindústria, o setor metalúrgico adquire crescente importância.
Dispondo de uma alta oferta de energia e contando nesse campo com mão de
obra qualificada o Paraguai oferece condições apropriadas para toda atividade
ligada ao processamento de metais. Nos foros de competitividade “metal-
mecânica” e “automotriz-duas rodas” estão sendo elaboradas estratégias
destinadas a otimizar a associação dos diferentes participantes do setor produtivo.
Um êxito industrial importante é a produção de motocicletas “made in
Paraguay”. Em 2004, mais de 35.000 desses veículos foram fabricados no nosso
país.
A política comercial do Paraguai
Em matéria de política aduaneira, o Paraguai vem aplicando tarifas baixas
e uniformes. A média ponderada dos direitos de importação aplicados a
mercadorias originárias de extrazona do Mercosul vem diminuindo, e passou
de 5,9% em 1995 a 4,1% em 2003. Deste modo, tem-se mantido a trajetória
histórica de uma economia aberta à comunidade internacional.
Têm sido fundamentais para essa política os acordos de exceção, assinados
no âmbito do Mercosul, que permitem manter direitos aduaneiros diferentes
dos previstos pela Tarifa Externa Comum do Mercosul.
As melhorias implementadas na estrutura aduaneira possibilitam um claro
progresso nos processos alfandegários, formando um sistema de controle
cruzado, informático, juntamente com os países de trânsito – instrumento de
suma importância considerando que o Paraguai é um país sem litoral marítimo.
No relativo aos regulamentos e procedimentos comerciais, melhorou a
transparência e diminuiu a complexidade do seu regime comercial. Para esse
fim, o Paraguai conseguiu intensificar o esforço para acelerar o despacho
aduaneiro das mercadorias, inclusive adotando procedimentos eletrônicos e
modernizando as técnicas de análise de riscos, de conformidade com normas
internacionais. Deu-se também maior divulgação às medidas sanitárias e aos
regulamentos técnicos. Neste sentido, atualmente está sendo implementado o
Balcão Único do Exportador, instância incumbida de reformar e simplificar
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Ernst Ferdinand Bergen Schmidt
115
os procedimentos e outros requisitos burocráticos. Esse trabalho permitirá
reduzir os custos de transação das operações do comércio exterior.
Não obstante, o comércio desleal e as distorções econômicas continuam
a prejudicar os interesses exportadores do nosso país, especialmente no setor
agrícola. Essas práticas obrigaram o Paraguai a defender seus interesses
comerciais por intermédio dos mecanismos multilaterais consignados nos
Acordos da Organização Mundial do Comércio.
No referente à agricultura e à pecuária, os principais itens de produção e
exportação, o Governo paraguaio está levando adiante um processo de mudança
na estrutura organizacional e funcional do Ministério responsável por essa
área. Como parte desse processo foram criadas recentemente duas novas
agências: o Serviço Nacional de Qualidade e Segurança Animal (Senacsa) e o
Serviço Nacional de Segurança Vegetal (Senave), ambos com personalidade
jurídica de direito público, autárquicos e com patrimônio próprio. Esses órgãos
têm a missão de aumentar a eficiência no cumprimento dessas funções básicas,
e de enfrentar a realidade dos cenários atuais e emergentes no setor
agropecuário.
Instrumentos e incentivos para a produção e exportação.
Mecanismos de Promoção dos Investimentos.
No quadro de uma política destinada a promover a competitividade do
setor produtivo nacional, decisões importantes foram tomadas em matéria de
abertura comercial para os bens produzidos por setores chave do
desenvolvimento naquele campo. Reduziu-se assim consideravelmente a
proteção aduaneira aos bens de capital, de informática e de telecomunicações,
para citar os mais importantes.
No que respeita a produção de carne, conseguiu-se o maior crescimento
da exportação dos últimos tempos, obtendo-se a certificação internacional de
País Livre de Febre Aftosa com Vacina, o que permitiu recuperar importantes
mercados tradicionais e conquistar outros.
O Paraguai promove o ingresso da Inversão Direta Estrangeira com
diferentes leis e mecanismos promocionais, como a Lei 60/90 – instrumentos
que concedem exoneração tributária para projetos de inversão, e a Lei de
Objetivos e desafios da economia paraguaia
116 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
116
Maquila. Esta última concede ampla isenção fiscal para a produção destinada
à exportação, sempre que o produto exportado contenha um mínimo de 40
por cento de insumos de procedência nacional. Esses insumos podem
representar tanto o valor material como o do custo do trabalho resultante do
processo de manufatura.
Em termos técnicos, no Paraguai o Estado oferece um serviço de
assessoria aos investidores, canalizado principalmente por duas instituições:
• ProParaguay, uma dependência do Ministério de Relações Exteriores,
que se incumbe primordialmente da representação do país no exterior.
• Rediex (Red de Inversiones y Exportaciones), entidade ligada ao Ministério
de Indústria e Comércio, que se ocupa em primeiro lugar do
assessoramento do investidor dentro do país.
Essas duas instituições fornecem informações úteis sobre oportunidades
de investimento, e orientam os interessados a respeito das exigências e dos
incentivos governamentais.
O apoio às exportações
Como o crescimento da economia paraguaia depende em larga medida
do aumento das exportações – tanto em valor como em volume – o fomento
dessas vendas ao exterior representa um instrumento fundamental da política
econômica. O Governo busca a competitividade imediata da atividade produtiva
nacional, e por isso os subsídios diretos não constituem um elemento dessa
política de promoção. Em seu lugar a administração pública adota os seguintes
enfoques:
• facilitação dos trâmites de exportação: Com a criação do Balcão Único
do Exportador (VUE) são simplificados os procedimentos burocráticos
dos exportadores, de tal forma que, uma vez instalado o sistema, eles
precisam recorrer exclusivamente a um único guichê do setor público
para cada exportação efetuada. O VUE começará a funcionar de forma
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Ernst Ferdinand Bergen Schmidt
117
modular, e este ano a habilitação pública do primeiro módulo já se
encontra em plena vigência;
• assessoramento do marketing externo de produtos paraguaios:
instituições como o Ministério de Indústria e Comércio, Rediex,
ProParaguay e outros promovem viagens comerciais aos principais
mercados externos. Com relação a certos eventos faz-se com freqüência
uma convocação aberta ou seletiva, convidando empresários para que
tenham a possibilidade de promover os seus produtos. Esses eventos
podem ser feiras, visitas oficiais, encontros de negócios, etc;
• negociações político-diplomáticas com o objetivo de abrir novos
mercados para o produtor paraguaio e de facilitar o acesso aos mercados
existentes. Por exemplo: a negociação de acordos bilaterais de
preferências, ou a intervenção da Organização Mundial do Comércio
em favor de um maior cumprimento dos critérios do livre comércio
em determinados países industrializados.
Assistência às micro, pequenas e médias empresas
As micro, pequenas e médias empresas representam a maioria absoluta
dos postos de trabalho em todo o país. Portanto, a solução do problema do
desemprego tem a ver com elas. Com freqüência um pequeno empresário tem
um potencial muito importante para a manufatura de um produto ou a prestação
de um serviço, mas encontra obstáculos representados por determinados
requisitos como os do marketing profissional, a contabilidade ou a formalização
da sua empresa. Nesse sentido, o Estado paraguaio pretende apoiar essas
empresas da melhor forma possível, respeitando sempre a exigência da sua
auto-sustentabilidade.
Neste sentido o Centro Paraguaio de Apoio às Empresas (Cepae)
assessora os empresários, tanto de forma particular como mediante cursos de
capacitação. Entre os seus programas de capacitação destaca o PR100, destinado
a aumentar a competitividade da produção nacional. Nos “Foros de
Competitividade” trabalha-se de forma interativa na determinação dos pontos
fortes, obstáculos, desafios e ameaças de um produto ou de uma cadeia produtiva.
A meta consiste em integrar os diferentes elos de uma cadeia produtiva, de
modo que um produto possa ser elaborado com a maior eficiência possível.
Objetivos e desafios da economia paraguaia
118 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
118
Propriedade Intelectual, registro de Marcas e Patentes
Intensificou-se o combate à pirataria, à falsificação e ao contrabando,
mediante o estabelecimento de uma unidade técnica especializada constituída
pelos Ministérios de Indústria e Comércio, Fazenda, Interior, Defesa e outras
instituições do Poder Executivo, em coordenação com o Ministério Público.
Essa agência tem por finalidade reunir inteligência para o combate ao flagelo
da informalidade e da ilegalidade.
Nesse quadro de transparência e coordenação foram multiplicadas por
seis as atividades de repressão, persuasão, prevenção e manutenção, atacando
em várias frentes, entre as quais se destaca a da importação, produção e
comercialização, assim como as organizações criminosas em si mesmas.
Como reconhecimento por esse esforço recebemos os aplausos do
Congresso dos Estados Unidos e da IFPI (o órgão internacional de proteção
fonográfica), bem como o prêmio outorgado pela Imaging Supplies Coalition,
pelos nossos esforços dirigidos para o combate à falsificação.
Em matéria de propriedade intelectual, a Lei de Patentes abriu a
possibilidade de conceder patentes de invenção a setores que antes não gozavam
de qualquer proteção, como os produtos farmacêuticos. No concernente à
defesa comercial, a legislação paraguaia que regula as medidas anti-dumping, as
subvenções e medidas compensatórias homologa os compromissos
multilaterais. Desde a sua adesão à OMC, o Paraguai considerou necessário
aprimorar essas normas, com o objetivo de impedir a sua utilização com fins
protecionistas.
Em suma, o governo do Paraguai está comprometido e empenhado na
construção de um novo modelo de desenvolvimento baseado em uma
economia de mercado com responsabilidade social e fiscal, e na estabilidade
macroeconômica, com uma combinação adequada de mercado e intervenção
estatal. Com o fortalecimento das instituições públicas, do bom governo e da
formalização será possível alcançar uma economia mais produtiva, competitiva
e diversificada, de modo a atingir o objetivo final de ter um país agradável a
Deus, que traga bem-estar a toda a população.
Tradução: Sérgio Bath.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Enrique Cornejo Ramírez
119
A economia peruana:
balanço, perspectivas
e propostas
Enrique Cornejo Ramírez
*
A
economia peruana evoluiu favoravelmente nos últimos anos, segundo
vários indicadores macroeconômicos. Alcançar taxas positivas de crescimento
do produto interno bruto (PIB) durante um período relativamente longo (mais
de quarenta meses consecutivos) e um nível de inflação anual inferior a um
dígito, deu à economia peruana uma grande estabilidade e previsibilidade para
a tomada de decisões.
O Peru conta com um considerável estoque de reservas internacionais
para o tamanho de sua economia; ter em reservas o equivalente a mais de
quinze meses de importações normais dá uma grande tranqüilidade ao mercado
cambial, além de revelar um bom comportamento do setor externo, com
exportações crescentes de bens e serviços e um balanço em contas correntes
significativamente positivo. A gestão de um déficit do setor público decrescente
e algumas medidas recentes em matéria de transparência e responsabilidade
* Economista. Profesor da Universidade de São Marcos, Lima
Ex-Presidente do Instituto de Comércio Exterior do Perú
A economia peruana: balanço, perspectivas e propostas
120 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
120
fiscal, como a reforma constitucional relativa ao sistema nacional de pensões,
criam também indicações positivas para os analistas internacionais e os
investidores potenciais.
No entanto, o principal problema enfrentado pela economia peruana é
que os frutos desse crescimento e os bons indicadores mencionados ainda não
se traduzem em melhoras concretas do nível de vida da população, da qual 54%
vivem, de acordo com os indicadores do Banco Mundial, em estado de pobreza.
Em outras palavras, a economia parece ir bem, mas as pessoas sentem que vai
mal e isso gera grande preocupação e ceticismo nas camadas mais pobres da
população, o que cria conflitos sociais e problemas para a governabilidade
democrática. Como adequadamente assinala o Embaixador Allan Wagner,
Secretário Geral da Comunidade Andina, no projeto estratégico que a sub-região
se traçou, é necessário promover “a globalização com integração, a integração
com inclusão social e a inclusão social com governabilidade democrática.
1
No Peru, aqueles que têm um emprego adequado alcançam apenas 40%
da força de trabalho. O problema principal do país é o subemprego crescente (a
taxa de desemprego aberto fica em torno de 10%), o que está associado à também
crescente informalidade dos agentes econômicos (estimada em cerca de 65% da
atividade produtiva). Em tais circunstâncias, o crescimento econômico verificado
não é suficiente para criar um número adequado de postos de trabalho produtivos
e as medidas de política econômica tomadas não têm os resultados que se esperam
porque são concebidas para uma economia formal, que é reduzida.
Por outro lado, a economia e a política parecem seguir caminhos distintos. A
estabilidade econômica contrasta com as dificuldades que encontra o Presidente
Toledo – e de modo geral toda a classe política (Congresso, partidos políticos etc.) –
para sintonizar-se com as principais preocupações da população. Diariamente, os
meios de comunicação dedicam espaço importante a uma série de denúncias e
escândalos políticos, enquanto os principais temas da agenda do desenvolvimento
parecem não ter a mesma importância. Como diria um analista que há pouco chegou
ao país: “Parece que a economia peruana está no ‘piloto automático’
2
, apesar do
1
Ver a respeito documentos incluídos no site da Comunidade Andina: www.comunidadandina.org.
2
Comentário feito por um alto funcionários do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) durante a
realização, em Lima, da Assembléia de Governadores do Banco, no verão de 2004.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Enrique Cornejo Ramírez
121
ambiente político bastante quente” (em abril de 2006 haverá eleições gerais para
mudança do governo e do Congresso e a campanha eleitoral já está começando).
Do nosso ponto de vista, a explicação do que acontece na economia peruana
exige uma análise mais profunda, que tentaremos fazer no presente artigo.
2. Situação e perspectivas da economia peruana, com base
nos principais indicadores macroeconômicos: 2004 e 2005
Como assinalamos anteriormente, os principais indicadores macroeconômicos
mostram uma evolução bastante favorável, que ajuda a estabilidade e contribui para
criar um clima adequado aos investimentos. A seguir, mostraremos as estimativas
para o encerramento do ano de 2004 e as previsões para o de 2005 de alguns desses
indicadores, segundo fontes oficiais como o Ministério de Economia e Finanças e o
Banco Central de Reserva del Peru, bem com estimativas próprias.
Quadro nº. 1
Principais indicadores macroeconômicos: projeções para 2005
Indicador/Instituição BCR MEF Nueva Economia
3
PIB (taxa de crescimento %) 4,5% 4,5% 3,5%-4,0%
Inflação (taxa anual %) 2,3% 2,5% 3,0%
Tipo de câmbio ($ por US$) 3,40 3,48 3,35
Exportações de bens (milhões US$) 12.000 11.912 12.000
Importações de bens (milhões US$) 10.500 9.898 10.000
Déficit Econômico Setor Púbico (%PIB) 1,0 1,0 1,1
Fonte: Elaboração do autor com base em projeções oficiais do Banco Central de Reserva del Peru (BCR) de
fevereiro de 2005; do Marco Macroeconómico Multianual 2005-2007 elaborado pelo Ministério de Economia
y Finanzas (MEF) (Ver em: www.mef.gob.pe) e estimativas da Associação privada Nueva Economia, que o
autor preside e que se dedica a estudos de economia com justiça social (Ver em: www.nueva-economia.org).
3
A Asociación Nueva Economia é uma instituição privada peruana sem fins lucrativos que se dedica ao estudo
do desenvolvimento com justiça social em países em desenvolvimento e muito especialmente na América Latina,
analisando com ênfase especial as características das diversas economias que coexistem em nossos países. A
Nueva Economia é presidida pelo economista Enrique Cornejo, autor deste artigo (www.nueva-economia.org).
A economia peruana: balanço, perspectivas e propostas
122 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
122
O valor do produto interno bruto (PIB) ao encerrar-se o ano de 2004 é
estimado em 248,3 bilhões de novos sóis ou seu equivalente de cerca de
US$70.000 milhões. Este produto, como dizíamos, tem crescido nos últimos
anos a uma taxa de cerca de 4,5%, o que, embora positivo, é insuficiente, já
que se deveria crescer a pelo menos 7% para absorver a nova força de trabalho
e buscar uma solução cabal ao problema do subemprego. Para conseguir isso
é preciso pelo menos duplicar os níveis atuais de investimento, o que não
parece tarefa simples no contexto descrito; no entanto, o potencial existe.
No fechamento do ano de 2004, a inflação foi de 3,5% (maior do que a
meta oficial, que era inicialmente de 2,5%) e a moeda nacional se valorizou em
5%. Este fenômeno de fortalecimento do novo sol peruano deve-se a três
fatores: a) o importante aumento das receitas de exportação de bens e serviços
e das remessas de peruanos no exterior; b) o excedente estrutural de dólares
americanos que existe no mercado local (reforçada pelos dólares provenientes
do narcotráfico); e c) o debilitamento do dólar americano em relação ao euro
e a outras moedas fortes.
O aproveitamento do Acuerdo de Preferências Arancelarias Andinas y
Erradicación de la Droga (conhecido por sua sigla em inglês Aptdea),
especialmente no que se refere a produtos têxteis e confecções, assim como a
produtos agroindustriais, e a manutenção de bons preços internacionais dos
principais produtos básicos de exportação (especialmente os metais), devido
ao bom desempenho das economias industrializadas e especialmente da China,
foram os fatores que explicaram o crescimento do comércio exterior
(exportações mais importações) que, só no tocante a bens, superou os
US$20.000 milhões.
A população peruana, no ano 2004, foi estimada em 28 milhões de pessoas
com uma renda média per capita de US$ 2.400. Esta cifra, entretanto, deve ser
tomada com cautela porque não reflete as profundas desigualdades que existem
no país, que tem a distribuição de renda mais desigual da região depois do Haiti.
No Peru, embora esteja em andamento um processo de regionalização
que visa a fortalecer a capacidade de gestão das regiões e dos municípios,
ainda há uma grande concentração econômica em Lima e algumas poucas
cidades principais. Na capital, concentram-se mais de 80% das transações
financeiras ativas e passivas; lá se encontram 70% dos estabelecimentos
industriais registrados e vive um terço da população. Em Lima praticam sua
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Enrique Cornejo Ramírez
123
profissão nove de cada dez cardiologistas e a inflação do país ainda se mede
pelo comportamento dos preços ao consumidor na Lima metropolitana.
O Estado administra um orçamento anual de cerca de US$ 12.000
milhões, mas diante da ausência de uma adequada reforma do Estado, tais
recursos ainda são gastos de maneira ineficiente e pouco transparente. O Estado
peruano é o maior comprador de bens e serviços no país, mas não utiliza seu
grande poder de compra, com os efeitos negativos daí decorrentes. A
importância da informalidade existente leva a uma arrecadação tributária muito
baixa. Apenas 1,8% das principais empresas contribuintes respondem por mais
de 84% da arrecadação, havendo grande evasão e muitas exonerações. A carga
tributária é de apenas 13%.
Para cobrir as necessidades de financiamento público, diferentes governos
vêm recorrendo crescentemente ao endividamento público, que já chega a
cerca de US$ 30.000 milhões (equivalente a 42% do PIB). A dívida pública
externa total eleva-se a pouco mais de US$ 24.000 milhões (34% do PIB) e,
nos últimos quatro anos, aumentou consideravelmente a dívida pública interna
(basicamente através da emissão de títulos soberanos), que já se aproxima dos
US$ 6.000 milhões (em torno de 8% do PIB).
A dívida pública externa está contratada principalmente com organismos
multilaterais e governos, ficando uma quinta parte dela vinculada a detentores
de bônus Brady e outros tipos de bônus. O problema da dívida pública nos
próximos anos não é tanto de estoque como de fluxo. Será necessário, portanto,
utilizar vários mecanismos de mercado para mudar o perfil do serviço futuro
da dívida, com vistas a tornar mais manejável o seu pagamento, sobretudo em
termos do orçamento do setor público.
Para o ano de 2005, como mostra o Quadro no. 1, espera-se um crescimento
entre 3,5% e 4,5% e uma diminuição da inflação em relação a 2004. No tipo de
câmbio, não se esperam maiores mudanças, de modo que – de nosso ponto de
vista – continuará o enfraquecimento do dólar americano e a apreciação da
moeda peruana. No que diz respeito ao manejo das finanças públicas – embora
nos encontremos em um período pré-eleitoral – espera-se o cumprimento da
meta de reduzir o déficit econômico do setor público a 1% do PIB.
Com relação ao setor externo, espera-se um comportamento igualmente
favorável dos preços internacionais, ao mesmo tempo em que a ratificação de
vários tratados de livre comércio – especialmente com os EUA – poderia
A economia peruana: balanço, perspectivas e propostas
124 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
124
significar um impulso importante para os investimentos e para o
desenvolvimento exportador, principalmente em produtos têxteis e
agroindustriais. Estima-se que as exportações de bens superarão os US$ 22.000
milhões. Um projeto de grande importância, cuja execução se iniciará em 2005,
é a terceira etapa do gás de Camisea, que permitirá exportar aquele produto
para o mercado norte-americano.
Se tudo isso se realizar, parece que 2005 será outro ano de bons
indicadores macroeconômicos e de grande “calor político”, enquanto os temas
sociais continuarão esperando a definição do próximo governo. Quem quer
que assuma a chefia do governo terá diante de si um desafio muito difícil,
pouca margem de manobra e grande expectativa social. Será preciso, portanto,
atuar com visão de Estado e com grande prudência e transparência fiscal.
Como já mencionamos, não se dispõe de cifras confiáveis de pobreza,
mas tudo faz crer que ela cresceu, sobretudo no campo e nas cidades mais
afastadas da capital. Diversas constatações que fazemos diariamente na rua ou
no campo mostram-nos que há maior desigualdade e também maior concentração
econômica do que antes. A informalidade, que cresceu fortemente, tem um
papel decisivo na explicação do que ocorre na economia peruana.
Trataremos de explicar o que acontece, introduzindo duas hipóteses de
trabalho: a primeira assinala que a política econômica que se pretende aplicar
no país pressupõe a existência de uma única economia, quando na prática
coexistem diferentes tipos de economia, cada uma com sua dinâmica própria.
A segunda hipótese que propomos afirma que existe um Estado formal e
legal que, no entanto, só chega a uma minoria da população, enquanto há
outro Estado informal – ou talvez outros Estados – que atua em paralelo e no
qual há direitos e deveres reconhecidos e do qual a população se sente parte.
3. A economia peruana ou a economia da diversidade e
suas implicações para a política econômica
Freqüentemente se questiona a eficácia das políticas econômicas que
normalmente se aplicam em nossos países. O crescimento – quando se produz
– não vem acompanhado de emprego produtivo suficiente; as políticas de
estabilização privilegiam a luta contra a inflação, mas descuidam o crescimento
produtivo e o estímulo ao investimento; a busca da competitividade costuma
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Enrique Cornejo Ramírez
125
basear-se na redução de custos e benefícios trabalhistas, mas descura o aumento
da produtividade do capital ou a melhora da infra-estrutura básica. A economia
é freqüentemente avaliada apenas pelo comportamento de alguns indicadores
macroeconômicos, sem a devida atenção ao que ocorre com os indicadores
sociais, que têm a ver com o nível de vida da população, o qual, ao fim e ao
cabo, é a razão essencial da política econômica.
Essa discussão é antiga. Partindo da existência de recursos escassos e de
necessidades crescentes a serem satisfeitas, sempre se estão, em política
econômica, adotando decisões que têm um alto custo de oportunidade. Crescer
com estabillidade; integrar-nos ao mundo com competitividade; buscar um
desenvolvimento com justiça social; conseguir que a inclusão social se faça com
governabilidade democrática são alguns dos objetivos, em princípio conflitantes,
cuja consecução devemos assumir como um desafio para a política econômica.
Nada disso é, tampouco, um problema que ocorra somente nos países
pobres e pequenos. Também se apresenta nas economias industrializadas,
embora com outras dimensões e diferentes pontos de partida. Do nosso ponto
de vista, nos países pobres como o Peru, o problema não é que as políticas
econômicas expostas não sejam aplicáveis (Milton Friedman já discutiu este
tema nas primeiras décadas do século passado, distinguindo entre “realismo
das suposições” e “poder de previsão das hipóteses”), mas, sim, que são
aplicadas no entendimento equivocado de que a economia já está num estágio
avançado de desenvolvimento ou, pelo menos, tem um comportamento
“normal” de competição, transparência e livre mobilidade de fatores.
Esse problema já foi estudado de diferentes perspectivas. Victor Raúl
Haya de la Torre sustentava que economias como a peruana “tinham duas
velocidades”
4
, uma rápida, vinculada aos setores modernos da economia, e
outra mais lenta, relacionada com os setores pobres e tecnologicamente
atrasados; um carro que tem tal variação de velocidades – e de forma simultânea
– não pode ter uma marcha (crescimento) normal.
Na década de setenta do século XX, autores como McKinnon, Shaw e
Galbis introduziram a tese da “repressão financeira”
5
para tratar de explicar o
4
Ver a respeito: Haya de la Torre, Victor Raúl, “El Plan Económico del Aprismo”; discurso pronunciado em
Lima, em 9 de outubro de 1945, em Obras Completas, Tomo V, pág. 369.
5
Ver a respeito: Cornejo Ramírez, Enrique, Tasas de Interés: teoria y política, Lima, 1978, Universidad de Lima.
A economia peruana: balanço, perspectivas e propostas
126 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
126
comportamento das pequenas empresas em relação ao acesso ao crédito formal.
Desde as teorias do desenvolvimento, também se apresentaram hipóteses como o
dualismo estrutural e autores como Adolfo Figueroa
6
criticam o modelo neoclássico
de crescimento (base das chamadas políticas neoliberais) por não considerar o
“ponto de partida” dos diferentes países no momento de aplicar tais políticas (em
cada país é diferente) e tampouco considerar fatores não econômicos, como os
culturais, que podem ser altamente explicativos da eficácia ou ineficácia das mesmas.
Na nossa opinião coexistem no Peru pelo menos quatro tipos de economia:
a) uma economia de auto-sustento, ligada sobretudo aos setores rurais
extremamente pobres, com um desenvolvimento tecnológico quase nulo e onde
se mantém o escambo; b) uma economia informal e urbana, com baixos níveis
de produtividade, mas grande absorção de mão de obra, que não paga impostos;
c) uma economia moderna e industrial, basicamente relacionada com a
agroindústria e outros setores manufatureiros que se dedicam à exportação, que
entende os mercados internacionais e aplica estratégias competitivas; e d) uma
economia pós-moderna do conhecimento e dos serviços, na qual coexistem
empresas transnacionais da informação e serviços diversos com tecnologia de
última geração e dezenas de milhares de cabines públicas de Internet, criação
peruana, bem como pequenas empresas exportadoras de software.
Quadro nº. 2
Os quatro tipos de economia que coexistem no Peru
A:
Economia de auto-sustento, que inclui setores rurais de extrema pobreza,
grande parte da qual não tem acesso ao mercado; tecnologias rudimentares;
baixos níveis educacionais e nutricionais; economia de escambo.
B:
Economia informal urbana, explica cerca de 70% da atividade produtiva;
grande absorção de mão de obra, mas baixos níveis de produtividade; paga
altos custos de financiamento no mercado paralelo; em geral, não paga impostos
diretos e está voltada para o mercado interno.
6
Ver a respeito: Figueroa, Adolfo, Sobre la Desigualdad de las Naciones, ensaio publicado em Libro Memoria de
la XIV Conferencia de la Asociación de Facultades, Escuelas e Institutos de Economia de América Latina
– AFEIEAL, 2000; Tegucigalpa, Honduras, 2000, páginas 255-272.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Enrique Cornejo Ramírez
127
C: Economia moderna e industrial, agroindústria, setores manufatureiros que
se dedicam à exportação, como confecções ou metal-mecânica; entendem os
mercados internacionais; têm organizações modernas, aplicam estratégias
competitivas e se preocupam com a produtividade; pagam seus impostos e
normalmente estão expostos a sobrecustos pelo fato de serem formais.
D:
Economia do conhecimento e serviços, ainda não muito importante em
tamanho relativo, porém de grande crescimento. Nela coexistem empresas
transnacionais de informação, com dezenas de milhares de cabines públicas
da Internet – criação peruana –, bem como algumas pequenas empresas
exportadoras de software. Há criação de conhecimento novo – em
biodiversidade, por exemplo – e grande dinamismo da atividade turística em
diferentes segmentos (natureza, aventura, histórico-cultural, gastronômico etc.).
Fonte: Elaborado pelo autor.
O problema é que as quatro categorias de economia coexistem. Em
termos da população envolvida e de níveis de pobreza, a) e b) são majoritárias;
em termos de contribuição para a geração do PIB, geração de divisas,
pagamento de impostos e contacto com o mundo externo, c) e d) são as mais
importantes, embora minoritárias em termos de população. Em tais
circunstâncias, que política econômica aplicar? Como incorporar o elemento
mestiçagem ou diferenciação no momento de tomar as decisões de política?
Que prioridades adotar e em que prazos?
São perguntas-chave que, na nossa opinião, merecem um debate sério e
profundo. As políticas econômicas que normalmente se propõem não
consideram a coexistência de realidades econômicas e sociais distintas; há uma
primeira etapa, na qual é necessário criar as condições para que a economia
seja mais homogênea e com menos desigualdades sociais.
4. O Estado legal e o Estado paralelo
O tamanho do Estado peruano é grande ou pequeno? Um Estado cujo
orçamento do setor público é de US$ 12.000 milhões contra um PIB de cerca
de US$70.000 milhões (ou seja, que representa 17% do PIB) não parece ser de
A economia peruana: balanço, perspectivas e propostas
128 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
128
tamanho exagerado (de fato, é de um tamanho médio na América Latina), porém
esses recursos são mal gastos, são gastos de maneira ainda muito centralizada e
com pouca transparência, o que faz que nem sempre se alcance adequadamente
a população alvo.
Faz-se necessária uma profunda reforma do Estado, que trate de aproximá-
lo da população e, portanto, lhe permita ganhar representatividade e legitimidade.
Da mesma forma, a reforma também deve visar à modernização da administração
pública, a transparência do seu funcionamento, a prestação de contas, a vigilância
por parte da população organizada, a desconcentração de suas atividades, o que,
no conjunto, redundará em maior eficiência e em menor corrupção. Também é
necessário reestruturar o atual orçamento do setor público, do qual 64% se
destinam ao pagamento de pessoal, pensões, bens e serviços, 25% ao serviço da
dívida pública e apenas 11% a projetos de investimento público. A reestruturação
deve ser no sentido de transferir recursos de gastos correntes para programas
sociais e gastos de investimento, sobretudo em infra-estrutura básica.
Então, estamos falando sempre de reformar o Estado e suas instituições,
mas qual é o Estado que queremos reformar? A primeira pergunta que surge
é: precisa-se reformar o Estado? A resposta é afirmativa. Diversas situações
indicam-nos que o Estado atual entrou em colapso e necessita uma profunda
transformação. A ausência ou incapacidade do Estado manifesta-se, por
exemplo, em temas como segurança do cidadão, trabalho de inteligência, saúde,
seguridade social, educação básica, tributação, infra-estrutura, manejo do
território, política de fronteiras, corrupção etc.
O problema é, porém, mais grave do que parece. Não se trata – como
pretendem alguns, de um ponto de vista neoliberal – de reduzir o tamanho do
Estado e transferir para o setor privado a maior quantidade de funções e instituições.
Num país como o Peru – com tanta pobreza e desigualdade – discutir o tamanho
do Estado é um assunto muito relativo. Mesmo, porém, que possa haver, em
alguns setores, um certo superdimensionamento ou excesso de burocracia, o
problema principal, como já dissemos, é que os escassos recursos públicos são
muito mal utilizados, de forma ineficaz, sem transparência e de maneira concentrada.
Porém, mesmo que corrigíssemos tudo isso, seria insuficiente.
O problema principal, que todos devemos aceitar e entender é que aquilo
que reconhecemos como Estado – com suas instituições, suas leis e seus
funcionários públicos – só representa em torno de 10% dos peruanos. Em outras
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Enrique Cornejo Ramírez
129
palavras, nove de cada dez peruanos não se sentem representados no Estado atual
– e sua percepção não os trai, pois não estão representados no Estado atual!
Algumas constatações e perguntas simples para explicar essa “situação
de exclusão” no Estado peruano:
a) Mais de 80% das unidades econômicas empresariais no país são de
tamanho micro ou pequeno (Mepes) e a maioria, informais. Quem,
no Estado, se preocupa em entender e atender os micronegócios em
suas principais necessidades e preocupações?
b) Dos produtores agrícolas no Peru, 90% são minifundiários, com menos
de 10 hectares cada um. Qual é a pessoa ou instituição que, no Setor
Agricultura, se preocupa com a realidade específica desses pequenos
produtores?
c) Milhares de crianças e jovens no Peru abandonaram a escola; os que
assistem as aulas têm sérios problemas em seu processo de
aprendizagem, com matérias que não lhes servem para nada; faltam
professores nos povoados do interior do país; nossos estudantes
universitários não fazem pesquisa e milhares de jovens passam horas
a fio em “grupos de conversação” na Internet, perdendo um tempo
valioso e, inclusive, esquecendo o bom uso do seu idioma. Frente a tal
situação, que faz o Estado em matéria de educação?
d) Face à corrupção crescente, só se vê ineficiência na administração da
justiça e impunidade. Que faz o Estado que não promove uma
verdadeira reforma do Poder Judicial?
e) É crescente a insegurança do cidadão nas ruas e no campo. Em muitos
bairros urbanos e em povoados do interior do país, a população,
cansada do abuso e da inação do Estado, decidiu fazer justiça com
suas próprias mãos e dotar-se da segurança que o Estado não lhe
oferece. Os recentes episódios ocorridos em Andahuaylas não são
uma demonstração da total inoperância do Estado?
f) Os micronegócios precisam de crédito e de assistência técnica, que
são oferecidos por Edpymes, Cajas Rurales e Cajas Municipales, mas
o Estado – representado pela Superintendência de Banca y Seguros –
parece só estar preparado para regular e apoiar o trabalho dos grandes
bancos (bancos múltiplos e outras instituições financeiras).
A economia peruana: balanço, perspectivas e propostas
130 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
130
Poderíamos continuar dando muitos exemplos da ausência ou má gestão
do Estado. O principal objetivo de uma reforma integral do Estado deve ser,
pois, conseguir que a maioria ou a totalidade dos cidadãos nele seja incluída ou
representada. No Peru atual, há um Estado legal, formal, constitucional, que é
ineficiente e, lamentavelmente, só se preocupa ou tem influência sobre 10%
dos peruanos. Ao mesmo tempo, há um Estado paralelo e informal, mas que
funciona e ao qual estão vinculados 90% dos peruanos. É neste Estado paralelo
e informal que atuam e criam suas próprias regras de jogo milhões de
microempresários, pequenos produtores, auto-empregados, informais,
mototaxistas, comunidades, organizações não-governamentais, associações
diversas etc.
Este Estado paralelo, sim, funciona; seus integrantes traçam suas próprias
regras e procedimentos e os cumprem, têm valores, metas, objetivos e
compromissos assumidos. Há uma vinculação a este Estado informal; há
confiança nas suas lideranças e, portanto, há participação, compromisso e até
sacrifício. Enquanto isso, aqueles que nos encontramos no Estado legal e formal
não entendemos o que se passa e continuamos falando e legislando para 10%
da população.
5. Dez propostas para uma Agenda de Consenso
Com o intuito de aproximar o Estado paralelo do Estado formal,
propomos uma agenda de dez pontos para convertê-los em objetivos de
consenso:
1) Investimento com emprego digno, o que supõe esforçar-nos por
incrementar os níveis de investimento para gerar crescimento com
emprego produtivo. Crescer a taxas de 7% ou 8% ao ano por um
período prolongado e em setores intensivos em mão de obra é uma
prioridade.
2) Justiça social com responsabilidade fiscal. Não há desenvolvimento
sem justiça social; a principal responsabilidade do Estado é garantir
essa justiça social, mas ela deve ser alcançada com transparência e
responsabilidade no uso dos escassos recursos do setor público.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Enrique Cornejo Ramírez
131
3) Engenharia social para conseguir o consenso, o que implica desenvolver
esforços pluridisciplinares para aproximar as posições e os interesses
dos investidores e os da população que vive na zona de influência do
projeto de investimento correspondente; é buscar mecanismos de
harmonização, esforçando-se por entender as preocupações das
comunidades e propiciar uma gestão socialmente responsável por parte
das empresas.
4) Descentralização produtiva, que significa passar da atual regionalização
apoiada no funcional e no burocrático para uma descentralização
produtiva, que favoreça a formação de macroregiões e crie as condições
para que seja atraente investir e gerar emprego local no interior do
país.
5) Agricultura rentável e com segurança alimentar, o que implica
transformar e modernizar o setor agrário no Peru, organizando os
produtores, concedendo crédito com assistência técnica, propiciando
a constituição de cadeias produtivas, desenvolvendo infra-estrutura
de irrigação e criando canais de comercialização. Mas implica também
assegurar a alimentação e a nutrição adequada, especialmente das mães
e crianças do Peru.
6) Educação de qualidade e para o trabalho, que eleve o nível de
escolaridade do atual sexto grau para o nível superior, que melhore a
qualidade dos programas educativos e que estimule no aluno os valores
da solidariedade, a produtividade e a competitividade.
7) Ciência e tecnologia para a mudança, na convicção de que sem pesquisa
científica e mudança tecnológica não há desenvolvimento nem
participação adequada no contexto global e competitivo.
8) Associatividade para a exportação, de modo que milhares de micro e
pequenas empresas possam alcançar o volume de negócios adequado,
tenham acesso ao crédito e possam beneficiar-se da cooperação técnica
e financeira, orientando seus esforços para o mercado interno e para a
exportação.
9) Gestão para a justiça social, o que implica preparar funcionários
públicos nas diferentes tarefas do Estado, para que trabalhem com
competência e dedicação ao serviço, sempre conscientes de que seu
A economia peruana: balanço, perspectivas e propostas
132 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
132
objetivo final é satisfazer as demandas dos cidadãos e agir com eficiência
e transparência.
10) Integração competitiva, que supõe reafirmar nossa vocação
integracionista em suas diferentes formas: sub-regional, regional e
hemisférica, buscando na integração uma forma de atuar juntos para
alcançar a competitividade e a conseqüente elevação dos níveis de
vida da população.
Não achamos que essa agenda esteja completa; de fato, existem outros
temas importantes que podem ser incluídos, mas o que deve ocorrer de toda
maneira é que se eleve o nível do debate e que avancemos na busca de pontos
de consenso e de políticas de Estado.
6. É possível buscar a justiça social com responsabilidade
fiscal?
Do nosso ponto de vista, a criatura humana deve ser a prioridade fundamental
de uma estratégia de desenvolvimento. Portanto, devemos dar atenção tanto aos
indicadores econômicos, que contribuem para a estabilidade, como aos indicadores
sociais, que asseguram inclusão e governabilidade democrática.
Nesse sentido, a principal tarefa do Estado deve ser a de contribuir para
um desenvolvimento com justiça social. Isso significa entender que a criação
de emprego e a diminuição da pobreza e da desigualdade só podem concretizar-
se com um crescimento econômico sustentado, o qual, por sua vez, requer
investimentos privados e públicos. Como promover tal investimento nos níveis
necessários? Como fazer que esse investimento e o crescimento dele resultante
sejam sustentáveis? Como conseguir que esse crescimento venha acompanhado
da criação de emprego produtivo? Como fazer que esse crescimento se produza
com eqüidade? Como melhorar a eficiência dos investimentos públicos, para
melhor aproveitar os escassos recursos orçamentários? Essas são algumas das
perguntas que é preciso responder com inteligência e responsabilidade.
A criação de emprego virá então basicamente da participação dos
investimentos privados em novos projetos de desenvolvimento. A tarefa do Estado
será criar o clima propício para que esses investimentos se possam dar em condições
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Enrique Cornejo Ramírez
133
adequadas de rentabilidade e estabilidade. O Estado também deve cuidar de oferecer
a infra-estrutura básica com vistas à integração do país e à competitividade.
Setores importantes na criação de emprego e na luta contra a pobreza,
como a agricultura, devem ter prioridade. O agro tem de ser rentável – e isso
supõe agir sobre custos e preços. Compensar os produtores agrícolas pelos
alimentos importados com subsídio, mediante a utilização de faixas de preços, é
uma medida adequada; planificar cultivos e estabelecer zonas para a sua prática,
de modo a evitar situações de superprodução, é outra tarefa importante;
estabelecer uma política tributária ad hoc para o campo e diminuir os sobrecustos
que afetam o agricultor também é importante. O agro precisa de promoção e de
assistência técnica, de crédito, de apoio para a criação da infra-estrutura de
irrigação e armazenamento, de respaldo para a organização dos produtores, entre
outras medidas. Assim como no caso do agro, também é preciso estabelecer
políticas setoriais para a indústria manufatureira, a construção, o turismo etc.
Mas não basta crescer, mesmo criando emprego. A tarefa de fomentar a
justiça social implica trabalhar por uma educação de qualidade, em que se privilegie
a pesquisa científica e o desenvolvimento de novas tecnologias; implica também
lutar por uma seguridade social universal e pelo acesso de toda a população aos
serviços básicos de saúde. A justiça social passa também pela luta contra a pobreza
e a desigualdade, bem como pela busca da descentralização produtiva.
Esse esforço pela justiça social requer um financiamento saudável. Ele não
virá de maior endividamento e, menos ainda, da emissão desordenada ou do
aumento do déficit público; os recursos terão de vir da reestruturação dos gastos
públicos, de modo que, com modernidade, transparência e ação descentralizada,
os recursos sejam reorientados do gasto corrente burocrático para o gasto de
investimento e para o financiamento dos programas sociais. Para isso será necessária
uma autêntica reforma tributária, que se apóie em poucos impostos, mas que
todos paguemos, buscando uma efetiva ampliação da base tributária.
7. A reforma tributária necessária: cidadania e tributação
Se, como dissemos, a principal tarefa do Estado é garantir a justiça social,
os gastos públicos têm de ser financiados de forma responsável. Durante as
últimas décadas, os diferentes governos cobriram o déficit fiscal com
endividamento – e essa alternativa não funciona mais. A dívida pública já
representa mais da metade do valor PIB anual.
A economia peruana: balanço, perspectivas e propostas
134 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
134
Em termos do que se tem de pagar anualmente a título de serviço da
dívida, quatro de cada dez dólares que entram como receita de exportação
destinam-se a tal pagamento, o que significa – visto de outro ângulo – 25% do
orçamento público. E essa cifra continuará a crescer enquanto não se fizer
uma reestruturação ou uma mudança do perfil de tal serviço. Só durante a
gestão do Presidente Toledo, criou-se uma dívida pública adicional (externa e
interna) de cerca de US$5.000 milhões.
Para financiar o gasto público (fundamental para assegurar a justiça social)
só resta aumentar a arrecadação tributária ou promover economias nos gastos
públicos. É preciso entender e aceitar isso. Acabou-se a era do endividamento.
No Peru, arrecadam-se anualmente em torno de US$ 7.700 milhões com
impostos de vários tipos. Não é uma arrecadação muito alta para as necessidades
do orçamento público (que requer, como já dissemos, cerca de US$ 12.000
milhões por ano) e tampouco é uma arrecadação elevada se consideram os
altos níveis de evasão e de elisão tributária, contrabando, subvaloração, pirataria
e as exonerações existentes. Como, então, ampliar a arrecadação?
Consideramos que se deve fazer uma verdadeira reforma tributária. O
termo “reforma tributária” desprestigiou-se ultimamente com a criação de
impostos antitécnicos, como o imposto sobre transações financeiras (ITF), a
cobrança de impostos adiantadamente e a ênfase na fiscalização dos que já
pagam seus impostos em vez de identificar e cercear aqueles que não o fazem.
Uma reforma tributária séria deve buscar, na nossa opinião, quatro
objetivos fundamentais: a) ampliar a base tributária; b) tornar progressiva a
estrutura tributária; c) simplificar a tributação e procurar torna-la neutra; e d)
criar nos peruanos uma consciência tributária.
Quadro nº. 3
Os quatro objetivos da reforma tributária
1. Ampliar a base tributária.
2. Tornar progressiva a estrutura tributária.
3. Simplificar a tributação e buscar sua neutralidade.
4. Criar em cada peruano a consciência tributária.
Elaboração: o autor
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Enrique Cornejo Ramírez
135
Deve-se tratar de ampliar a base tributária fazendo exatamente o contrário
do que atualmente faz o governo, isto é, identificando e fiscalizando os que
hoje não pagam – grandes e pequenos – e não elevando alíquotas ou criando
novos impostos. Não é possível que 84% da receita tributária sejam pagos por
apenas 0,6% dos contribuintes, denominados Pricos. Também não é possível
que o imposto de renda arrecade tão pouco.
A atual estrutura tributária é muito regressiva. Dos impostos arrecadados,
75% correspondem à tributação indireta (pagamo-los todos no preço do que
consumimos, independentemente da nossa renda ou de termos ou não emprego),
enquanto apenas 25% correspondem a impostos sobre a renda ou o patrimônio.
Isso é injusto e deve mudar. Deveríamos estabelecer como meta que o peso dos
impostos diretos se eleve a – pelo menos – 50% da arrecadação total.
Também devemos ver que seja fácil tributar. Três ou quatro impostos
deveriam permanecer (Renda, IGV, ISC e Tarifas Alfandegárias), enquanto os
demais deveriam ser gradualmente eliminados. Além disso, a tributação deve
ser neutra, isto é, não deve criar situações de exceção ou de privilégio ou
reduzir a competitividade das empresas. As atuais exonerações tributárias, de
caráter setorial ou regional, deveriam ir diminuindo de forma gradual e
concertada. Finalmente, precisamos criar em cada peruano a consciência da
importância de pagar os impostos que lhe correspondam, de forma pontual e
adequada; a escola tem um papel-chave nesse aspecto.
Se administrarmos o gasto com responsabilidade e transparência,
recuperaremos a credibilidade dos peruanos e poderemos incentivá-los a
cumprir com suas obrigações tributárias. Nestes tempos de globalização, em
que os Estados não podem renunciar ao seu objetivo de garantir a justiça
social, a única forma de obter receitas seguras é tributando. Em certo sentido,
os peruanos devem pagar seus impostos para poderem exercer plenamente
sua condição de cidadãos.
8. Buscando uma inserção produtiva no mundo, com
gradualismo e bom senso
Que sentido devemos atribuir às importantes mudanças que se vêm dando
na economia mundial? Como inserir-nos produtivamente na economia global
A economia peruana: balanço, perspectivas e propostas
136 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
136
e competitiva? Ser moderno significa abandonar objetivos nacionais e perder
identidade como país? Que estratégias devemos adotar?
Algumas das respostas que comumente se dão a essas perguntas
costumam afirmar que o mais conveniente é abrir rapidamente as economias
nacionais, inclusive unilateralmente, isto é, sem qualquer negociação, pois se
obterão ganhos natural e rapidamente. Na nossa opinião, esta é uma
interpretação simplista do que vem ocorrendo – e a carga ideológica neoliberal
que geralmente a acompanha costuma dar a ela um tom fundamentalista.
É claro que as mudanças que vêm ocorrendo na economia mundial são
substanciais, mas acreditamos que é preciso entender a natureza de tais mudanças
para poder traçar as estratégias adequadas De um ponto de vista estritamente
teórico, uma economia de tamanho pequeno como a peruana precisa participar
ativamente da economia internacional, precisamente para contra-restar as
desvantagens de uma participação tão pequena na “torta mundial”.
Em termos alfandegários, os diferentes países – os industrializados e os
pobres – abriram substancialmente suas economias nos últimos cinqüenta
anos. No caso dos países industrializados, a tarifa alfandegária média baixou
de 25% a menos de 5% nesse período. Por outro lado, a proliferação de acordos
de livre comércio, entre países ou entre blocos regionais, reduziu a zero boa
parte do universo alfandegário, a tal ponto que muitos pensam que as tarifas
alfandegárias desapareceram no tempo.
No entanto, embora haja uma maior abertura do lado alfandegário, há
também maior protecionismo do lado das chamadas “barreiras para-
alfandegárias” e, neste aspecto, são os países industrializados que mais adotam
políticas de competição desleal no comércio internacional.
Assim, por exemplo, europeus e americanos subsidiam abertamente seus
produtos agrícolas de exportação; o mesmo fazem australianos e neozelandeses
em relação a seus laticínios e a seu gado; são também conhecidas as quotas ou
“contingentes alfandegários” impostos pelos Estados Unidos a suas
importações de produtos têxteis e confecções ou as severas “exigências
administrativas” estabelecidas para autorizar a entrada de nossos produtos de
exportação nas economias industrializadas. As “licitações vinculadas”
completam o quadro do lado dos serviços. No caso dos países em
desenvolvimento – especialmente asiáticos – são freqüentes as práticas de
subsídio, dumping (exportar a preços abaixo do custo) e de subvaloração.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Enrique Cornejo Ramírez
137
Tudo que foi dito indica que, embora se tenha avançado substancialmente
na abertura comercial pelo lado alfandegário, retrocedeu-se bastante no que se
refere a barreiras para-alfandegárias. O livre comércio como tal ainda não existe.
E este é um problema conhecido a nível mundial, que se discute permanentemente
no quadro da Organização Mundial de Comércio (OMC) e, inclusive, países em
desenvolvimento liderados pela Índia e pelo Brasil formaram o chamado Grupo
do G21 para incluir na agenda de negociação esta preocupação de desmantelar
as “barreiras para-alfandegárias” contra as exportações dos países pobres.
No caso peruano, a tarifa nominal média está próxima de 10%; as
importações de matérias primas estão sujeitas a uma tarifa de 4% e os bens de
capital são importados com tarifa zero. Isto significa que já fizemos um
importante esforço de abertura comercial – em boa parte sem negociar nada
em troca – e, na nossa opinião, as negociações comerciais que se desenvolvam
daqui em diante devem visar a uma abertura gradual e a um adequado equilíbrio
entre os objetivos de acesso aos mercados para as nossas exportações, a
promoção dos investimentos e o cuidado necessário que devemos dar à
produção nacional, quando ela se veja afetada por importações subsidiadas ou
pelo dumping. Se nos vendem produtos subsidiados, temos de compensar nossos
produtores. Enquanto houver a prática da competição desleal no comércio
internacional, teremos de adotar políticas de defesa comercial permitidas pela
OMC, isto é, temos de agir com muito pragmatismo e bom senso.
9. O Peru: um país de grandes contradições, mas também
de grandes oportunidades
Às vezes nos temos perguntado, como definir o Peru? Diversos autores
tentaram uma resposta. Na nossa opinião, trata-se de um país de grandes
contradições, mas também de imensas oportunidades. Esta ambivalência explica
boa parte do que temos feito ou do que não temos feito em matéria de
desenvolvimento econômico e social.
As contradições
Poderíamos escrever todo um livro sobre as contradições que ocorrem
no Peru, mas mencionemos apenas algumas delas. Dispõe-se de abundantes
recursos naturais, porém com baixos níveis de crescimento e com mais de
A economia peruana: balanço, perspectivas e propostas
138 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
138
metade da população em condições de pobreza. Em contraste, um país como
o Japão, quase sem recursos naturais, é uma potência mundial. O Peru é um
dos países com maior potencial hídrico do mundo, mas dele só utilizamos
cerca de 3%; em contraste, nos Vales da Costa, que têm pouca água, ainda se
cultivam produtos usando sistemas extensivos de irrigação e até hoje não se
tem uma Lei de Águas, que regule este recurso escasso.
Os antigos peruanos organizaram-se territorialmente seguindo a bacia
do rio. Nossa atual organização territorial é caótica. Há províncias de um mesmo
distrito que não se podem comunicar entre si; seus habitantes devem descer à
Costa e tornar a subir para chegar à província irmã. Os antigos peruanos
deram à humanidade, entre outras coisas, a organização e a tecnologia agrícola
em terreno inclinado, com plataformas (ou terraços agrícolas) que, em certa
época, chegaram a cobrir cerca de 900.000 hectares; atualmente, não usamos
essa tecnologia e mantemos as plataformas abandonadas ou apenas como
eventual atração turística em algumas zonas.
Produz-se milho e batata, mas a dieta básica dos peruanos inclui pão e massas
preparados com trigo, que não produzimos. Em contraste, mexicanos e centro-
americanos de todas as classes sociais consomem suas tortilhas feitas com milho
que, sim, produzem em suas terras. O Peru é o maior produtor mundial de farinha
de peixe, mas o consumo per capita de peixe no nosso país é extremamente baixo.
Temos proteína (farinha de peixe) e fibras (cana de açúcar) para fazer uma boa
alimentação equilibrada para os animais, mas não temos gado. Em contraste, Cuba
não tem proteína (importa farinha do Peru), mas nos vende gado.
Nas melhores terras da costa peruana, produz-se com baixos níveis de
produtividade. Em contraste, o Chile, em um território não maior do que Piura
(um distrito situado na costa norte do país), exporta quase dez vezes mais em
produtos agrícolas. Taiwan, em um território não maior do que o departamento
de Ica (na costa sul do país), exporta sessenta vezes mais do que o Peru. Temos
recursos escassos, mas eles são desperdiçados porque não se planifica. Não é
um problema de território, de recursos naturais ou mesmo de recursos financeiros,
é um problema de estratégia, de organização e de mentalidade.
As oportunidades
No entanto, ao mesmo tempo em que experimentamos tão flagrantes
contradições, temos grandes oportunidades que apresentam também grandes
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Enrique Cornejo Ramírez
139
desafios. A variedade de microclimas e ecossistemas deveria colocar-nos na
vanguarda mundial da exportação competitiva no setor agroindustrial em diversas
frutas, colorantes naturais e legumes. A diversidade geográfica, cultural e social
de nosso país deveria converter-se em uma força e não numa debilidade. Por
exemplo, os Estados Unidos baseiam sua força não na uniformidade de seu
território, mas sim, na diversidade de sua população, majoritariamente imigrante.
O peruano está acostumado a viver em situações de escassez, é engenhoso
e tem uma capacidade biológica invejável para adaptar-se rapidamente a diversos
ecossistemas. Em lugar de aproveitar essas capacidades, exportamos peruanos
que vão a outros países desenvolver suas habilidades.
Como vimos anteriormente, a maioria de nossas empresas, no campo e
na cidade, são micro e pequenas. Há um grande potencial para associar
produtores, consorcia-los e melhorar os níveis de produtividade. De tão
pequenos que atualmente somos no contexto mundial (menos de 0,2% do
comércio internacional) podemos, se quisermos, crescer significativamente
em nossas exportações. Como temos as matérias primas, o território e o fator
humano, podemos construir cadeias produtivas muito competitivas.
Os acordos de livre comércio com os Estados Unidos ou a União
Européia podem tornar-se muito boas oportunidades. A integração andina e
com o Mercosul podem ser muito benéficas; uma relação econômica mais
estreita com a China e outros países asiáticos podem ser de grande proveito.
Para que essas oportunidades se convertam em emprego e renda para a
população, precisamos pôr-nos de acordo sobre o fundamental, em uma
estratégia de desenvolvimento que busque também a justiça social. É um
assunto que os peruanos devemos resolver – e quanto antes melhor.
10. Reflexões finais
Ao longo deste ensaio apresentamos as principais características exibidas
pela economia peruana em fins de 2004, suas projeções para 2005 frente ao
período eleitoral que se aproxima e que culminará quando, em abril de 2006,
os peruanos elejamos um novo governo nacional e um novo Congresso. O
que mais sobressai nessa análise é a contradição que existe entre alguns
indicadores econômicos, que demonstram estabilidade, e alguns indicadores
sociais, que pioraram e dificultam a governabilidade democrática. Observa-se
A economia peruana: balanço, perspectivas e propostas
140 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
140
também que o importante crescimento, que já dura quarenta meses, não se traduz
em emprego produtivo suficiente, de modo que as pessoas “não sentem” que
sua economia familiar esteja melhorando.
Tratamos de explicar as razões dessa contradição, em razão da qual “a
economia está bem, mas o povo está mal”, através de duas colocações centrais:
a) as políticas econômicas que se propõem cometem o erro de considerar que
suas medidas se aplicarão a uma só economia homogênea, quando sustentamos
que na realidade há até quatro tipos distintos de economia que coexistem no
país; e b) há um Estado legal e formal que, no entanto, só representa, entende
e influi em uma minoria da população, enquanto existe um Estado paralelo e
informal que funciona, mas que segue seu caminho imune ao vai-e-vem da
política econômica e da política em geral.
Considerando estas duas colocações, propusemos uma agenda de dez
pontos que consideramos fundamentais para alcançar o desenvolvimento com
base no consenso; afirmamos que a justiça social é a principal tarefa do Estado
e que, para alcançá-la, é preciso atuar com responsabilidade fiscal. Traçamos
as principais características que – do nosso ponto de vista – deve ter uma
reforma tributária integral e propusemos associar o requisito da tributação à
categoria de cidadão.
Referimo-nos em seguida a como inserir-nos produtivamente no mundo
e a como faze-lo com gradualismo e bastante senso comum. Finalmente, fizemos
uma reflexão sobre as possibilidades do Peru, que definimos como um país de
contradições e oportunidades. Esperamos que este artigo sirva para que o leitor
conheça o fundamental da economia peruana, assim como os diferentes aspectos
da sua problemática, e que as colocações que fizemos contribuam para encontrar
saídas viáveis para um desenvolvimento com justiça social.
Nas décadas de setenta e oitenta do século XX, o Peru adotou o modelo
de substituição de importações, em conseqüência do qual se criou uma certa
base industrial; nos anos noventa, no quadro do modelo neoliberal de abertura,
o Peru ganhou em competitividade nos setores modernos e de exportação, mas
aumentou a pobreza, a desigualdade, a informalidade e, nos anos seguintes, o
crescimento alcançado não se fez acompanhar de emprego produtivo suficiente.
Nos primeiros anos do século XXI, enfrentamos desafios simultâneos:
crescer de forma sustentada e com emprego, promover o investimento,
diversificar as exportações, descentralizar produtivamente, ganhar produtividade
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Enrique Cornejo Ramírez
141
e competitividade e diminuir a pobreza e a desigualdade. No entanto, o principal
desafio é, sem dúvida, entender que as soluções fundamentais não virão “de
fora” e, menos ainda, de forma espontânea; necessita-se um projeto estratégico
e um mínimo de consenso. Por isso, há neste ensaio várias sugestões e propostas
de política econômica que esperamos contribuam para o debate.
Tradução: Sérgio Bath.
As relações entre o Brasil e o Suriname: ponto de vista de um empresário
142 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
142
As relações entre o Brasil
e o Suriname: ponto de
vista de um empresário
Robert J. Bromet
*
O
Senhor Ricardo Viana de Carvalho, Embaixador da República
Federativa do Brasil no Suriname, convidou-me a apresentar meu ponto de
vista sobre as relações entre o Brasil e o Suriname. Lembrando os esforços
contínuos feitos pelo meu pai para intensificar as relações entre os dois países,
sinto-me feliz e honrado em aceitar esse convite, já que, seguindo os passos
dados por ele, venho me dedicando a essa causa em todos os campos possíveis.
1. Um levantamento da história
Antes dos primeiros esforços feitos pelo meu pai, as relações entre o
Brasil e o Suriname eram inexistentes, embora os dois países compartilhem
uma fronteira comum.
*
Empresário
bromet@sr.net
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Robert J. Bromet
143
A inexistência desse relacionamento era uma conseqüência direta das
políticas das potências coloniais européias, que não tinham interesse na
integração dos países deste Hemisfério.
Os primeiros contatos com o Suriname, que era então uma colônia holandesa,
só ocorreram depois da expulsão dos holandeses do Nordeste brasileiro As duas
nações se mantiveram quase completamente separadas, e até a Segunda Guerra
Mundial o Suriname permaneceu isolado do resto da América do Sul.
No concernente às relações comerciais e culturais, e o desenvolvimento
de modo geral, o Suriname sempre teve o seu foco de visão deslocado da América
do Sul para a Europa, especialmente a Holanda, e os Estados Unidos da América.
A influência da Holanda, como potência colonial, tem sido predominante em
todos os campos, e foi devido ao isolamento da Holanda, durante a Segunda Guerra
Mundial, que as relações com os Estados Unidos começaram a se desenvolver com
vigor. Foi esse relacionamento que transformou o Suriname, de um país totalmente
dependente, na condição de colônia, em um aliado importante, contribuindo para o
esforço de guerra com o fornecimento de bauxita para a produção de alumínio.
Com essa mudança súbita e fundamental, William J. Bromet, meu pai, foi
obrigado a identificar a potencialidade do Brasil como um excelente supridor de
bens de consumo para o Suriname, uma vez que a realidade representada pelas
exigências da guerra tinham cortado de súbito as linhas de suprimento desses
produtos para o Suriname. Com orgulho posso afirmar que ele pode ser considerado
o verdadeiro pioneiro no estabelecimento de relações entre esses dois países –
não só relações comerciais, conforme indiquei, mas também culturais.
Assim, os surinamenses se lembram dele não só como a pessoa que
durante muitos anos promoveu o intercâmbio de times de futebol dos dois
países mas também como um bom jogador desse esporte.
Durante a guerra, desenvolver as relações comerciais entre os dois países
não era uma tarefa simples ou fácil. Com a exceção de uma conexão aérea
limitada, pela Pan American World Airways, não havia uma infra-estrutura básica
de transporte entre o Basil e o Suriname. O transporte marítimo de carga era
inexistente ou muito limitado, tendo em vista inclusive a ação dos submarinos
alemães nas águas costeiras desta parte da América do Sul, que atacavam as
embarcações de bandeira holandesa ou norte-americana.
A despeito de todas essas dificuldades, William Bromet conseguiu
comercializar no Suriname produtos brasileiros muito conhecidos, como a
As relações entre o Brasil e o Suriname: ponto de vista de um empresário
144 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
144
cerveja Brahma, os biscoitos Aimoré, utensílios de vidro, etc., vendidos na sua
loja, a Casa Brasil, localizada no principal edifício dos negócios da família.
Embarcações ligeiras do norte do Brasil, feitas de madeira, transportavam
essas mercadorias até o Suriname, navegando em águas litorâneas de pouca
profundidade, para escapar dos submarinos do Eixo. Foi assim que começaram
as relações de comércio entre os dois países, ciujo volume se reduziu de forma
significativa depois da guerra.
Somente na década de 50 houve um aumento desse comércio, com
Paramaribo atuando como um porto livre para os comerciantes brasileiros, mas
nenhum produto manfaturado no Brasil voltou a ser comercialzado, dada a
ressurgência da capacidade de suprimento da Europa, dos Estados Unidos e do
Japão. A indústria brasileira de máquinas industriais e de bens de consumo tinham
uma capacidade de suprimento limitada, e só nos anos 60 a estrutura industrial
brasileira tornou possível voltar a desenvolver as relações bilaterais de comércio.
Meus esforços para interessar as empresas Cruzeiro do Sul, Varig e Lóide
Brasileiro em incluir o Suriname na sua rede, criando assim a infra-estrutura
de transporte necessária para a retomada das relações comerciais, tiveram êxito,
até que as mudanças políticas ocorridas no Suriname na década de 1980
inviabilizaram essa intra-estrutura, tão importante para sustentar o comércio.
O negócio familiar dos Bromet pode ser consideado o catalizador e o
líder da reativação das relações comerciais, nos anos sessenta e setenta, que
resultou em aumento substancial dos produtos manufaturados brasileiros
importados por várias firmas surinamenses.
2. O que significa realmente desenvolver relações
importantes?
Normalmente um relacionamento desse tipo entre nações abrange não só
o comércio, mas também o intercâmbio cultural, científico e de outra natureza.
Para uma nação como o Brasil, o maior país e a maior potência econômica da
América do Sul, os países pequenos como Suriname, inclusive os estados insulares
do Caricom, terão sempre um interesse econômico limitado. As relações de
comércio consistirão principalmente do fornecimento de bens manufaturados e
de alguns produtos agrícolas brasileiros para esses pequenos mercados.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Robert J. Bromet
145
Países como o Suriname podem beneficiar-se das facilidades de educação
superior, pesquisa e desenvolvimento agrícola, das soluções energéticas, de
mineração e outros setores que o Brasil implantou e desenvolveu tão bem nos
últimos anos, adaptando todos esses recursos ao nível específico e à capacidade
do seu povo.
A este propósito gostaria de elogiar o Brasil pela oportunidade criada
para os estudantes do Suriname, permitindo-lhes estudar nas universidades
federais de todo o Brasil, num momento em que essa oportunidade era muito
limitada ou mesmo inexistente. O Brasil não só ajudou o Suriname a formar
uma parte importante dos seus atuais profissionais, que podem ser considerados
líderes nas suas respectivas profissões, como esta é a melhor maneira de criar
a percepção e o conhecimento da cultura do Brasil e do seu povo, levando a
desenvolver laços mais fortes entre as duas nações.
Naturalmente, criar relações vigorosas entre o Brasil e o Suriname tem
resultados vantajosos para os dois países nos foros regionais e internacionais,
e para a salvaguarda dos interesses nacionais específicos unir forças é
especialmente importante no mundo contemporâneo, marcado pela
globalização e a formação de blocos.
É também interesante que a integração do Suriname na América do Sul
possa ser realizada em estreita cooperação com o Brasil e com a sua assistência,
seja ou não na condição de membro do Caricom, com a exceção do tamanho,
as duas nações têm mais semelhanças do que se poderia pensar ou esperar.
A composição multi-étnica da população, seu modo de vida e sua natureza
exuberante são semelhanças, que existem separadas apenas por duas línguas
oficiais diferentes.
No entanto, os surinamenses têm o dom de aprender línguas estrangeiras
com facilidade, fato que melhora sem dúvida a possibilidade de manterem
melhores relações pessoais com os brasileiros.
Uma posição muito positiva do Brasil, neste terreno, foi a criação do
Centro Cultural de Estudos Brasileiros em Paramaribo, onde os surinamenses
têm a possibilidade de estudar o português do Brasil, em vários níveis. Iniciativas
como essa precisam ser fortalecidas, de modo a criar vínculos mais robustos.
Para desenvolver relações firmes entre o Brasil e o Suriname tem a maior
importância que o Brasil se aproxime desses países menores, ajudando-os,
As relações entre o Brasil e o Suriname: ponto de vista de um empresário
146 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
146
cooperando com eles e guiando-os, na condição de nação mais importante e
mais forte do continente sul-americano.
Esse papel de liderança exercido pelo Brasil criará automaticamente
relações legais e confiáveis sob todos os aspectos.
3. As relações atuais
Em reuniões recentes a liderança política dos dois países tem
demonstrado um interesse renovado em fazer com que o seu relacionamento
volte a ocupar um lugar importante.
O Brasil tem interesse em integrar o Suriname na família sul-americana
de nações, o que foi demonstrado pelo Presidente Lula ao comparecer ao
encontro dos líderes do Caricom em Paramaribo, a convite do Presidente
Venetiaan, ocasião em que fez um pronunciamento dirigido a esse conclave.
As relações bilaterais estão sendo intensificadas mediante a cooperação
em foros regionais e internacionais, e vários acordos foram assinados, em
diferentes campos da cooperação e assistência. .
Algumas atividades comerciais estão sendo promovidas, mas a
inexistência de uma infra-estrutura eficiente de transporte e comunicação entre
os dois países constitui uma barreira para desenvolver esse relacionamento na
medida do seu potencial máximo.
Contribui para essa falha, naturalmente, a disparidade de tamanho das
duas economias. As dimensões do Brasil e o seu potencial como fornecedor
de matérias-primas e produtos manufaturados faz com que o Suriname não
tenha grande interesse como parceiro comercial. Precisamos trabalhar em
conjunto em outros terrenos para fortalecer o vínculo entre as duas nações.
A integração do Suriname na família sul-americana de nações será
reforçada se os dois países puderem tomar a decisão de construir um laço
com o coração do Brasil, integrando sua rede rodoviária com uma conexão
Norte-Sul à rede viária brasileira. Essa ligação ajudará também a superar as
limitações atuais causada pela falta de uma infra-estrutura adequada de
transporte aéreo e martítimo, devido à pequena dimensão da economia
surinamense, beneficiando outras áreas, como as relações culturais.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Robert J. Bromet
147
4. Desenvolvendo futuras relações mais intensas
Como já dissemos, a integração do Suriname na América do Sul
certamente criará um relacionamento mais intenso entre os dois países. Uma
infra-estrutura de transporte mais eficiente é uma contribuição para isso, e o
Brasil já está mostrando o caminho a seguir, ao colaborar com Venezuela,
Guiana e outros países no financiamento da construção de pontes e estradas
para ligar o Setentrião brasileiro e o seu centro industrial e agrícola, mais para
o Sul, com pontos do Caribe.
Quero aproveitar esta oportunidade para indicar aqui algumas áreas onde,
na minha opinião, as relações entre os dois países podem ser rapidamente
fortalecidas e intensificadas.
Ajudar a educar e profissionalizar os surinamenses, para formar futuros
quadros, é a área mais importante a ser desenvolvida – e já com resultados
comprovados, devido à decisão tomada pelo Brasil no passado de permitir o
acesso às universidades federais, em todo o Brasil, a jovens surinamenses
graduados no nível secundário: jovens que aprendiam a respeito do Brasil, da
sua população, a sua cultura e o seu potencial. Não há melhor forma de
desenvolver um relacionamento duradouro.
Além disso, a séria carência de capacidade institucional hoje existente
deverá ser reduzida no futuro, criando certamente laços mais firmes entre as
nações e os seus povos. O Suriname se beneficiará também com a experiência
brasileira de profissionalizar a sua população em tantos campos.
As relações comerciais precisam ser desenvolvidas pelo setor privado
dos dois países. No passado alguns erros sérios foram cometidos, da perspectiva
dos homens de negócios, como quando se decidiu que com o financiamento
das exportações, solicitado pelo governo do Suriname, haveria o suprimento
espontâneo de bens e serviços brasileiros.
Na verdade, um relacionamento comercial mais vigoroso, desenvolvido pelos
respectivos setores privados, e baseado em princípios corretos de desenvolvimento
comercial, deve receber forte apoio dos dois governos, cuja função é facilitá-lo e
promovê-lo. O desenvolvimento dessas relações no setor da produção, e
preferentemente na produção destinada à exportação, requer uma prioridade muito
alta. Os governos e as suas instituições devem apenas exercer um efeito catalítico
na implementação dessas atividades no setor produtivo.
As relações entre o Brasil e o Suriname: ponto de vista de um empresário
148 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
148
As melhoras de longo prazo nas relações entre os países, os fortes laços
existentes entre os seus povos, assim como o possível desenvolvimento
econômico do sócio menor devem apresentar resultados que terão proporções
desconhecidas no passado e, o que é mais importante, serão resultados
permanentes.
Quero relacionar aqui algumas áreas com um potencial de curto prazo
para o desenvolvimento dessas relações, trazendo benefícios para as duas Partes:
a) O desenvolvimento de recursos energéticos
Tenho a certeza de que em um desenvolvimento público-privado entre
o Governo do Suriname e o setor privado brasileiro seria possível promover
relações comericais no curto prazo, no setor hidrelétrico do Suriname Ocidental,
cujos estudos preliminares já foram feitos pelo Governo surinamense. Esse
desenvolvimento constituiria a base para maior desenvolvimento econômico
no campo da produção. O setor privado brasileiro está na melhor posição
para participar desse projeto, que atende a todos os critérios para fortalecer as
relações bilaterais, antes mencionados.
b) A exploração de petróleo e gás natural está sendo feita off-shore por
companhias petrolíferas multi-nacionais, em associação com a Companhia
Petrolífera Nacional, governamental, com base em um levantamento publicado
pelo U.S. Geological Service, segundo o qual há recursos inexplorados nessa área,
no sentido do Oeste.
Com a sua ampla experiencia de alta qualidade no campo da exploração
off-shore a Petrobrás seria um parceiro ideal para um desenvolvimento petrolífero
nesse campo.
As duas possibilidades de desenvolvimento no setor energético aqui
mencionadas teriam efeitos positivos para as empresas de pequeno e médio
porte, com enorme efeito multiplicador no Suriname em termos de criação de
emprego e formação de pessoal capacitado.
Esse complexo industrial moderno e atualizado seria uma força
estimulante, gerando benefícios para o Brasil.
c) A cooperação e extensão ao Suriname do sistema de vigilância da
Amazônia que está sendo implantado pelo Brasil, como um instrumento
moderno para proteger o território da bacia do rio Amazonas, mediante
patrulhamento e policiamento, com recursos muito atualizados, para combater
atividades ilegais.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Robert J. Bromet
149
A luta contra as atividades de tráfico, o desmatamento ilegal da floresta e
em favor da proteção da floresta nacional são áreas em que o Suriname precisa
de toda assistência e cooperação disponíveis. O Brasil já dispõe de um sistema
básico em funcionamento, e a sua extensão é um ponto em que podem ser
instituídas relações permanentes.
d) O Brasil tornou-se uma força importante, em escala global, na área da
produção agrícola. Na base dessa realização há um trabalho de pesquisa e
desenvolvimento de alta qualidade, adaptado a condições muito parecidas com
as existentes no Suriname. Um relacionamento permanente e vigoroso pode
ser criado nesse terreno, concentrado em apenas algumas areas do Suriname
que podem ser desenvolvidas. O apoio, o intercâmbio e os investimentos dos
setores privados na agricultura serão muito benéficos para o Suriname e a sua
população.
Este sumário não menciona todas as áreas em que as relações bilaterais
poderiam ser fortalecidas. Um esforço sério por parte das entidades mencionadas,
tanto no Brasil como no Suriname, levará certamente a excelentes resultados
para a futura construção de melhores relações entre os dois países.
Tradução: Sérgio Bath.
Uruguai: critérios básicos para uma proposta de esquerda
150 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
150
Uruguai: critérios
básicos para uma
proposta de esquerda
Alberto Couriel
*
A
instalação de um governo de esquerda a partir de 2005 torna imperativo
estabelecer os critérios básicos nos quais se assentarão as propostas a serem
implementadas.
A fim de facilitar o esboço e a compreensão de tais critérios básicos, o
presente trabalho se divide em cinco seções: os problemas centrais a enfrentar,
os critérios da proposta, os principais instrumentos, as bases de um novo
relacionamento internacional e a análise de alguns temas específicos.
I - Problemas centrais a enfrentar
A. Principais dificuldades de caráter nacional
No quadro da grave crise vivida durante os últimos anos, nosso país
apresenta grandes dificuldades, de caráter social, financeiro, econômico-
produtivo e institucional.
* Senador da República Oriental do Uruguai
acouriel@parlamento.gub.uy
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Alberto Couriel
151
No âmbito social, identificam-se altos níveis de pobreza, especialmente
infantil, elevados níveis de desemprego aberto, subemprego, precariedade e
informalidade, elementos de fragmentação social originados pelos novos
problemas de emprego, um pronunciado aumento da desigualdade e novos
elementos subjetivos na sociedade uruguaia, tais como a desesperança e a
frustração, os quais, aliados ao desemprego, dão origem a fortes correntes
emigratórias que afetam as possibilidades de desenvolvimento futuro.
A isso se acrescentam problemas demográficos: “A atual dinâmica
demográfica uruguaia se caracteriza pelo lento crescimento da população,
aprofundamento do processo de envelhecimento, transformação da estrutura
dos lares, redistribuição espacial da população no território, persistente
emigração internacional e crescente importância das camadas mais pobres na
reprodução da população (...). A descrição demográfica indica claramente que
a população infantil é a mais afetada” (Calvo, 2003).
As dificuldades de caráter financeiro se manifestam mediante um elevadíssimo
endividamento externo e interno em moeda estrangeira, que gera altos
pagamentos de juros em divisas, os quais afetam a conta corrente do balanço de
pagamentos e absorvem uma proporção muito significativa dos gastos do Estado.
A isso se juntam um elevado nível de dolarização, um avultado déficit fiscal que
se arrasta desde 1999 e o acordo com o FMI (Fundo Monetário Internacional),
que exige alto superávit primário (antes do pagamento dos juros), o que limita
consideravelmente o gasto social, o investimento público e os salários dos
funcionários públicos. Além disso, existe uma elevada proporção de carteiras
inadimplentes nas instituições financeiras, que afetam a retomada do crédito.
Nesse quadro, verificam-se situações que tornam mais agudas as preocupações
ligadas ao sistema financeiro: a situação dos bancos do Estado, especialmente a
do Banco da República, é preocupante em um contexto em que predominam as
empresas transnacionais no sistema bancário instalado no país.
As dificuldades de caráter econômico-produtivo se manifestam em um
parco coeficiente de investimentos, inclusive abaixo dos níveis de depreciação;
em uma queda acumulada do produto bruto interno da ordem de 20% desde
1998 e na existência de alta capacidade ociosa; em uma elevada heterogeneidade
estrutural, com diferenças marcantes no desenvolvimento tecnológico e
produtivo nas diferentes atividades de produção; e no baixo nível de integração
produtiva em conseqüência do elevado coeficiente de importações.
Uruguai: critérios básicos para uma proposta de esquerda
152 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
152
No que se refere aos problemas de caráter institucional, destacam-se o elevado
número de funcionários públicos – fruto da política de clientela dos partidos
tradicionais – e a baixa qualidade de gestão nas instituições estatais; a dificuldade
de acesso à informação sobre a situação real de algumas delas, como o Banco da
República e a Ancap (Administração Nacional de Combustíveis Alcoól e Portland)
e o esvaziamento do pessoal técnico qualificado nas principais instituições do Estado.
No âmbito político, sobressai uma atitude beligerante de alguns setores e líderes
políticos que não são capazes de aceitar um possível governo de esquerda.
B. O novo cenário regional
A nova situação regional se apresenta favorável à Frente Ampla devido à
proximidade ideológica e política dos governos da Argentina e do Brasil. Isso
proporciona possibilidades de dinamização do processo de integração regional,
especialmente o Mercosul, assim como sua ampliação por meio de novos
acordos no interior da região.
Por outro lado, tornam-se mais viáveis as ações conjuntas e propostas
comuns na negociação com os países desenvolvidos e com algumas instituições
vinculadas ao comércio e às finanças internacionais.
C. As dificuldades de caráter internacional
O cenário mundial se caracteriza pela hegemonia dos Estados Unidos
nos planos militar, financeiro, ideológico e de comunicação. Junta-se a isso a
forte presença de organismos financeiros internacionais que, por meio das
condicionalidades exigidas em seus empréstimos, têm enorme influência sobre
os modelos econômicos e sobre a implementação da política econômica de
cada um dos países da região. Por sua vez, o governo dos Estados Unidos
exerce elevada influência sobre a orientação e a política desses organismos.
Soma-se a esse panorama a ampla presença de empresas transnacionais nas
atividades produtivas, comerciais e financeiras internacionais.
D. Hierarquia dos problemas a enfrentar
Um governo de esquerda deverá dar prioridade máxima à solução dos
problemas vinculados às condições e à qualidade de vida da sociedade uruguaia
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Alberto Couriel
153
e, portanto, aos problemas sociais, tais como a pobreza, o desemprego, a
fragmentação social e a desigualdade.
O maior obstáculo para sua solução é a questão da dívida externa e
interna em moeda estrangeira e o conseqüente acordo vigente com o FMI.
As prioridades deverão dirigir-se para a consecução do crescimento com
justiça social. Será preciso vencer obstáculos, como o baixo coeficiente de
investimentos e a precária qualificação dos organismos estatais, para cumprir
com eficácia suas principais funções. Os acordos sociais e uma ampla aliança
social são indispensáveis para atingir esses objetivos.
II. Critérios básicos da proposta: objetivos e estratégia
Os objetivos centrais de um governo de esquerda são estabelecidos a
partir dos fundamentos da identidade da esquerda, baseados na igualdade e na
justiça social, condição sine qua non do desenvolvimento humano. A consecução
desses objetivos exige mudanças no modelo econômico e social prevalecente,
a fim de garantir os princípios básicos da democracia. Portanto, o objetivo
central deverá ser o crescimento com justiça social, baseado na especificidade
do Uruguai dentro do regime capitalista e como participante do processo de
integração da América Latina.
A. O crescimento
1. A estratégia para o crescimento se baseia no dinamismo das exportações,
complementado por uma eficiente substituição de importações e pelo aumento
da demanda interna. Isso significa também que, a médio prazo, o setor
produtivo e o social tenham prioridade mais alta do que o campo financeiro.
A gestão adequada dos recursos naturais, como fonte de competitividade
e negociações ativas para a crescente abertura de mercados para nossos
produtos, sustentarão o crescimento das exportações durante a primeira fase
do processo. Os mesmos recursos naturais, vinculados ao setor turismo,
deveriam também ser fonte de dinamismo.
A médio prazo, é imprescindível maximizar o valor agregado da atual
pauta de exportação e iniciar processo para novas rubricas, baseadas na
qualificação dos recursos humanos e nos atuais avanços tecnológicos. Para
Uruguai: critérios básicos para uma proposta de esquerda
154 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
154
essas novas rubricas, que podem também estar vinculadas aos serviços, os
quais são dinamizadores das exportações – ao contrário das que são baseadas
nos recursos naturais – são necessários apoios e estímulos estatais e
aproveitamento dos processos de integração regional. A exportação de novos
produtos pode melhorar a evolução dos termos de troca.
2. A integração regional e a ênfase nos acordos de complementaridade
produtiva são elementos centrais para as exportações de produtos
manufaturados e de serviços. Em um estratégia de médio prazo, pode-se manter
a exportação, ao mundo desenvolvido, dos produtos derivados de recursos
naturais, à medida que os novos produtos, de maior dinamismo, comecem a
integrar-se às cadeias produtivas que surjam da integração regional, para alcançar
a competitividade necessária no panorama internacional.
O aumento dessas exportações se baseia na concepção de vantagens
comparativas dinâmicas e adquiridas, em que o apoio do Estado será vital,
porque o ponto de partida é o conceito de que a competitividade é de caráter
sistêmico, no qual a educação e a tecnologia desempenham papel central.
3. A estratégia de médio prazo deve contemplar as possibilidades de
uma eficiente substituição de importações, apoiada na proteção proporcionada
por uma política cambial centrada na competitividade, na complementaridade
produtiva derivada do processo de integração regional e na própria
competitividade sistêmica. Nesses casos, é preciso levar em conta a boa
experiência dos países do sudeste asiático e não repetir os erros cometidos na
América Latina durante o auge do processo de substituição de importações,
quando se recorreu a uma elevada e indiscriminada proteção aduaneira.
4. O dinamismo da demanda interna é um fator complementar da
estratégia, mas é central para atender aos problemas do emprego. Nisso influem
os seguintes fatores:
i ) A necessidade de elaborar linhas estratégicas que permitam conformar
uma estrutura produtiva dinâmica que atenda simultaneamente à
competitividade e ao emprego. Isso exige um estudo especial dos setores
produtivos, que permitiria a aplicação de estímulos fiscais e creditícios
aos setores que apareçam com maiores prioridades. O conteúdo do
crescimento surgido dessa nova estrutura produtiva é um elemento
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Alberto Couriel
155
central para a elaboração de programas de emprego, com estímulo às
rubricas e aos setores capazes de gerar, direta e indiretamente, emprego
produtivo. A melhoria do emprego é um elemento-chave.
ii) A política salarial, baseada na formação de convênios coletivos, deve
atender ao poder de compra dos trabalhadores e zelar para que
recebam, com eqüidade, os benefícios derivados dos aumentos da
produtividade. As melhorias salariais são outro fator-chave para o
dinamismo da demanda interna.
iii) O investimento público, especialmente na infra-estrutura física e social,
é um fator relevante para a reativação do setor da construção,
fundamental para a geração de empregos.
iv) As políticas sociais e de redistribuição da renda, especialmente na
atenção à pobreza, também ajudam a atingir o dinamismo da demanda
interna. Essas políticas sociais e a própria ênfase no investimento
público dependem, no curto prazo, da resolução dos problemas da
dívida em moeda estrangeira e do conseqüente déficit fiscal.
v) O crédito é também fator central para a realização desse objetivo. Para
isso, é vital que a política monetária atenda às demandas do crescimento
e não somente aos objetivos de estabilização.
5. O modelo vigente prioriza o campo financeiro de preferência frente
ao setor produtivo e ao social. No curto prazo, dada a gravidade da problemática
financeira, a estratégia a ser seguida poderia dar prioridade semelhante ao setor
produtivo e ao aspecto social. Mas, a médio prazo, é indispensável que o campo
financeiro se subordine às exigências produtivas e sociais, que interagem
mutuamente e devem ter prioridades semelhantes. Não há crescimento sem
competitividade, e como esta é sistêmica, não há competitividade sem educação
e sem desenvolvimento tecnológico. Por outro lado, o emprego depende do
crescimento e de seu conteúdo, e se os problemas do emprego não forem
resolvidos, será muito difícil poder atender aos problemas e às carências sociais
que afetam nossa sociedade. Em essência, o emprego é simultaneamente um
problema econômico e social.
6. A estratégia geral de um governo de esquerda não contempla
nacionalizações, nem estatizações, nem expropriações e nem privatizações.
Uruguai: critérios básicos para uma proposta de esquerda
156 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
156
Isso não significa que, diante de situações inevitáveis e pontuais, não venham
a ser necessárias soluções dessa natureza. No caso de tratar-se de monopólios
naturais ligados a setores ou rubricas estratégicas, é muito mais conveniente
um monopólio estatal que um privado. A estratégia deve basear-se no respeito
à livre competição, a qual é válida tanto para os meios de comunicação como
para os diversos serviços públicos.
B. A justiça social
1. A estratégia de eqüidade de justiça social deve ser traçada de forma a
atender aos principais problemas sociais, como os derivados do emprego, da
pobreza, da fragmentação social e das desigualdades.
2. A atenção aos problemas do emprego – desemprego ostensivo,
subemprego, precariedade e informalidade – é considerada vital para a estratégia
de um governo de esquerda, porque é o mecanismo básico para atender aos
problemas de pobreza, de heterogeneidade estrutural, de fragmentação social
e de desigualdades. A profundidade dessa problemática impede sua solução
em prazos breves. É preciso montar uma estratégia de prazo médio que
identifique os problemas de maior gravidade que exijam medidas de emergência
a serem executadas em curtíssimo prazo.
a) Os problemas do emprego derivam fundamentalmente das limitações
e debilidades da demanda de mão-de-obra e, em determinadas ocasiões,
se devem ao próprio avanço da tecnologia. Portanto, o crescimento
econômico e seu conteúdo, no que se refere à conformação da estrutura
produtiva, são condição necessária e imprescindível para atender a
essa situação. Os programas de emprego são fundamentais na medida
em que o mercado não está em condições de atender a essa
problemática. Desses programas, devem surgir as rubricas e setores
de atividade econômica capazes de maior geração direta e indireta de
emprego, para que recebam os maiores estímulos, incluindo, além disso,
as pequenas e médias empresas. Esses programas, por sua vez, deverão
abranger formas de complementaridade entre atividades formais e
informais, que as ajudem a modernizar-se e melhorar seus níveis de
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Alberto Couriel
157
produtividade e de renda. Os instrumentos fiscais, creditícios e
tecnológicos são fundamentais para alcançar esses resultados.
b) A atenção aos problemas do emprego exige também ação a partir da
oferta de mão-de-obra. A atual situação de pobreza produz círculos
viciosos, na medida em que os mais desfavorecidos não recebem a
educação necessária para trabalhar nos setores modernos da eocnomia.
Deve-se melhorar a formação dos recursos humanos, especialmente
nos setores de maiores carências, e criar mecanismos de educação
permanente para adequar a qualificação da mão-de-obra às exigências
impostas pela velocidade da revolução tecnológica.
3. A eqüidade exige melhorias substantivas nos problemas da pobreza,
que apresenta causas e conseqüências econômicas, sociais, políticas e de
localização territorial.
a) A realidade econômica da pobreza provém da problemática do
emprego. Enquanto esta última não for resolvida, continuarão a existir
as características estruturais da pobreza. No curto prazo, são necessárias
soluções assistenciais que permitam o avanço progressivo na solução
das carências alimentares, educativas, de saúde e de moradia. A ação
do Estado e das organizações sociais, aliada à solidariedade da sociedade
uruguaia, pode contribuir para relativa melhora da situação.
b) Os problemas sociais exigem atenção imediata para resolver a necessidade
mais básica, que é a alimentação. Paralelamente, devem ser encontrados
mecanismos para assegurar a educação das crianças – setor em que foram
realizados alguns avanços nos últimos anos – e a formação adequada
dos jovens para que possam ingressar com êxito no mercado de trabalho.
c) A cobertura de saúde é também uma necessidade básica a ser resolvida,
e deve ser abordada com novas propostas para atender aos mais
desfavorecidos.
d) Os temas de moradia e de localização territorial exigem atenção muito
especial. O Uruguai de hoje em dia vai-se “latinoamericanizando” à
base de “guetos de pobres” e “guetos de ricos”. A escola primária,
fator preponderante de integração social e de igualdade entre os
Uruguai: critérios básicos para uma proposta de esquerda
158 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
158
uruguaios no passado, já não desempenha esse papel, na medida em
que os setores de maior pobreza se relacionam quase que
exclusivamente entre si e freqüentam os mesmos centros educativos
estabelecidos pela nova relocalização territorial. Os “guetos”
aprofundam a fragmentação social e as desigualdades porque impedem
o relacionamento que, no passado, promovia melhoras de integração
e mobilidade social entre pessoas de origens diversas. A superação
dessa situação exige necessariamente políticas de moradia que atendam
a essa problemática (Cecilio, M. e Couriel, J., 2004).
As políticas sociais são de extraordinária importância em uma proposta
de esquerda. As propostas para educação, em seus distintos níveis, e para saúde
e moradia, são vitais, mas não estão incluídas neste trabalho.
e) Os problemas políticos da pobreza derivam de suas bases de poder e,
portanto é fundamental a organização e participação dos setores mais
desfavorecidos para a solução de seus problemas. Esses setores deverão
alcançar poder de cidadania e analisar a forma de desenvolvimento de
sua identidade, de construção de sua visão do mundo, de
conscientização de seus direitos e da importância da participação, e da
formulação de propostas e estratégias (Pnud, 2004). Para abordar esses
aspectos, a participação de diversas organizações da sociedade civil,
atuando de forma complementar e coordenada com as ações do Estado,
é vital para melhorar a atual situação de pobreza.
4. A estratégia de eqüidade deve ser traçada, necessariamente, a partir de
políticas de redistribuição da renda. Os programas de emprego, as políticas
salariais e a atenção à pobreza, já mencionados, formam parte dessas políticas.
A história do Uruguai mostra elementos de eqüidade resultantes da atividade
da escola pública e do sistema educativo em geral, dos mecanismos de proteção
social postos em prática desde cedo, especialmente por meio da segurança
social, e essencialmente da ação redistribuidora do gasto público. Portanto, a
política fiscal é fundamental para uma estratégia de eqüidade, por via de uma
reforma tributária baseada na criação de um imposto sobre a renda das pessoas
físicas, em especial, por meio de mudanças na estrutura do gasto, privilegiando
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Alberto Couriel
159
as despesas de caráter social. Esse é um instrumento imprescindível, que hoje
se encontra afetado pelo serviço da dívida pública e pelo clientelismo dos
partidos tradicionais, que elevaram o gasto público com finalidades eleitorais.
Trata-se de um grande desafio para um governo progressista.
5. A estratégia de eqüidade deve visar ao crescimento simultaneamente
com melhoras na distribuição da renda, e não esperar o crescimento para
depois efetivar a redistribuição. Isso significa que o campo social deve ter
prioridade semelhante ao da esfera produtiva. Nesse contexto, deve-se
considerar a criação de um Ministério do Desenvolvimento Social com a mesma
importância do de Economia e Finanças.
C. Análise de curto prazo
1. Na estratégia de curto prazo, avultam os problemas financeiros – entre
os quais se destacam a inflação e a dívida em moeda estrangeira, junto com o
déficit fiscal – e as dificuldades que possam ocorrer no balanço de pagamentos.
2. No que toca à inflação – excetuando possíveis influências da campanha
eleitoral – pode-se considerar que esteja relativamente controlada. Para isso, é
muito importante considerar os elementos de custos, como a taxa de câmbio,
a taxa de juros e as tarifas dos serviços públicos (considera-se que em 2004
não haverá modificações relevantes em matéria tributária e salarial). Além disso,
deve-se levar em conta as expectativas e a credibilidade dos agentes econômicos
sobre a situação, como fatores que dão origem a processos inflacionários. Na
economia uruguaia, os fatores de custos e de expectativas costumam ser mais
relevantes do que os fatores de demanda. Se houver controle da inflação, a
estratégia de curto prazo pode atender simultaneamente à estabilização, ao
crescimento e à distribuição da renda.
3. É de esperar-se que o processo eleitoral não influa sobre as variáveis
do balanço de pagamentos, e em especial que não ocorram processos de fuga
de capitais. As demais variáveis estarão condicionadas aos problemas da dívida
em moeda estrangeira.
4. A dívida externa e interna em moeda estrangeira e as negociações
com o FMI são os problemas políticos e econômicos mais relevantes, no curto
prazo, para um governo progressista. O governo dos Estados Unidos e o
Departamento do Tesouro exercem forte influência sobre as decisões do FMI.
Uruguai: critérios básicos para uma proposta de esquerda
160 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
160
A negociação é com as autoridades do governo dos Estados Unidos. A evolução
das negociações da Argentina e do Brasil, durante 2004 e princípio de 2005,
será muito importante para a que será realizada pelo novo governo do Uruguai.
Dada a notória assimetria na relação de forças, o governo da Frente Ampla
deveria apresentar-se acompanhado pelos governos do Brasil e da Argentina,
e se possível por integrantes de outros países da região, a fim de lograr uma
negociação eqüitativa que atenda aos interesses de ambas as partes. É
importante, além disso, levar em conta o resultado das eleições nos Estados
Unidos, que se realizaram em novembro de 2004. Também poderia ser útil
iniciar processos de negociações globais dos países da América Latina com os
Estados Unidos, aspecto que analisaremos mais abaixo.
Os elementos centrais de uma negociação com o FMI devem levar em
conta os seguintes temas:
i) renegociação da dívida com os organismos multilaterais;
ii) o déficit fiscal e o superávit primário não deverão afetar os níveis de
crescimento, nem limitar as políticas sociais, nem debilitar a eqüidade.
Além disso, deverão permitir uma margem de manobra suficiente para
atender aos problemas sociais que afetam o país no momento do início
de governo, dadas as demandas sociais que manifestar-se-ão;
iii) os organismos financeiros internacionais, e nesse caso o FMI, deverão
aceitar as propostas alternativas elaboradas com o maior grau de
realismo pelos próprios países, com ênfase no crescimento, na geração
de empregos e na atenção prioritária aos problemas sociais;
iv) considera-se relevante alcançar os equilíbrios macroeconômicos, porém
não somente os de caráter financeiro. Esses equilíbrios devem incorporar
variáveis reais ou produtivas, para que sejam compatíveis com as
exigências de investimento produtivo, competitividade e emprego.
III. Principais instrumentos
A. De caráter econômico
1. Um dos problemas centrais reside na relação mercado-Estado. O
mercado é insubstituível como indicador de resultados e define a quantidade e
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Alberto Couriel
161
qualidade dos bens e serviços. No entanto, o mercado não possui horizonte
social, nem temporal e nem ambiental. Por isso, considera-se necessária a
intervenção do Estado na alocação de recursos. As linhas estratégicas e a
definição flexível da estrutura produtiva influirão sobre o que produzir, para
que, como, onde e quando, assim como fizeram os atuais países desenvolvidos
durante todo o século XX.
A fórmula mais adequada poderia ser tanto mercado quanto seja possível
e tanto Estado quanto seja necessário, combinando lógicas de mercado com
lógicas do Estado (Cepal, 2000
a).
2. O Estado é necessário para conduzir a sociedade, para resolver conflitos
de maneira democrática, para garantir a proteção, a integração e a coesão social,
para a redistribuição da renda e para que a democracia prime sobre a economia.
Para cumprir essas funções básicas, é imprescindível a transformação do Estado,
com pessoal qualificado, e assim conseguir uma gestão eficiente. Esse Estado
eficiente é necessário para os seguintes objetivos:
i) melhorar os níveis de eqüidade e igualdade;
ii) negociar no plano regional, atendendo aos interesses nacionais no
processo de integração, e para a negociação internacional com o
mundo desenvolvido e os organismos internacionais;
iii) levar adiante a condução estratégica de um novo modelo de desenvolvimento
que exige definir linhas estratégicas e moldar a estrutura produtiva,
atendendo aos critérios de competitividade e emprego, que sirvam de base
para o uso dos diferentes instrumentos de política econômica;
iv) corrigir os efeitos negativos da globalização e das ações do mercado
sobre o desenvolvimento nacional;
v) dinamizar a inserção internacional;
vi) adaptar, incorporar e desenvolver tecnologia vital para a
competitividade sistêmica;
vii) implementar programas de emprego produtivo;
viii) efetivar as políticas sociais;
ix) levar adiante acordos sociais e, em função destes, implementar políticas
sociais, ativas e seletivas, com as correspondentes contrapartidas.
Uruguai: critérios básicos para uma proposta de esquerda
162 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
162
3. Os critérios básicos para o uso dos diferentes instrumentos de política
econômica serão os seguintes:
a) A política cambial deve hierarquizar o objetivo da competitividade
que permita aos exportadores suficiente horizonte temporal, a fim de
levar adiante seus investimentos e negócios. A competitividade deve
sobrepor-se à utilização da âncora cambial com objetivos
antiinflacionários e ao uso desse instrumento para o fomento da entrada
de capitais. Essa é uma variável fundamental para o país produtivo
preconizado pela Frente Ampla.
b) A política monetária deve atender, simultaneamente, à estabilidade de
preços e ao crescimento, como, por exemplo, faz a Reserva Federal
(Banco Central) nos Estados Unidos. A autonomia do Banco Central,
ao estilo europeu, com prioridade exclusiva para objetivos
antiinflacionários, não é considerada conveniente para essa proposta
alternativa (Stiglitz, 2004). Estima-se importante orientar o crédito
em função das linhas estratégicas e regular as taxas de juros para que
sejam compatíveis com as necessidades de entrada de capitais e com
as exigências dos setores produtivos. A regulamentação do Banco
Central é indispensável, também, para fomentar a poupança nacional
e lograr menor dependência da entrada de capitais.
c) É importante que exista um sistema financeiro capaz de melhorar o mercado
de capitais de prazo médio e longo, que atenda às exigências creditícias
dos setores produtivos e que avance no processo de desdolarização. É
necessário o fortalecimento da banca estatal e ação ativa do Banco Central
na regulamentação, orientação e controle do sistema financeiro.
d) Em matéria de política fiscal, após a negociação da dívida em moeda
estrangeira, é imprescindível uma política anticíclica para atender aos
setores produtivos e sociais. Faz-se indispensável uma reforma
tributária baseada no imposto de renda das pessoas físicas e a
implementação de modificações na estrutura dos gastos para dar maior
prioridade às despesas sociais.
e) A política de tarifas dos serviços públicos pode ser inscrita no âmbito
das linhas estratégicas, com a finalidade de estimular os setores produtivos
mais prioritários e inclusive outorgar subsídios claramente delimitados
a setores sociais mais desfavorecidos. A eficiência na gestão das empresas
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Alberto Couriel
163
públicas é um objetivo central que deverá permitir baixar os custos e,
portanto as tarifas. Hoje ela é utililizada apenas com objetivos fiscalistas.
f) A política aduaneira se inscreve nas negociações do Mercosul e pode
sofrer modificações em função dos critérios de complementaridade
produtiva que possam ser negociados nesse âmbito.
g) A política salarial deve estar baseada em convênios coletivos, na atenção
ao poder de compra dos trabalhadores e na distribuição eqüitativa dos
aumentos de produtividade.
B. De caráter social e político
1. Os acordos sociais e políticos são elementos imprescindíveis para o melhor
funcionamento econômico e social. Nos acordos sociais, junto ao Estado, é
fundamental a participação dos setores empresariais – em especial, os que têm
possibilidade de acordos permanentes, como os exportadores, os produtores rurais,
os industriais, o setor da construção e o do turismo – e as organizações sociais
vinculadas aos trabalhadores e outros setores populares (Couriel, 1989 b).
Os acordos sociais são de extraordinária importância para um governo
de esquerda, que possui os instrumentos necessários para poder implementá-
los. Desde a abertura democrática, os partidos tradicionais propõem acordos
sociais que nunca chegaram a concretizar. Os próprios acordos sociais podem
facilitar a existência de novos e dinâmicos atores sociais, tão necessários em
todo processo de desenvolvimento.
2. A participação ativa de organizações sociais oriundas da sociedade
civil, algumas já existentes e outras cuja criação será necessário promover e
apoiar, é um dos elementos centrais para efetivar as políticas sociais. Sua ação
nas primeiras instâncias do novo governo será particularmente importante na
medida em que serão insuficientes os recursos financeiros à disposição do
Estado diante das demandas derivadas das profundas carências sofridas nos
últimos anos. Deve-se ter presente que a própria fragmentação social derivada
da precariedade, do subemprego e da informalidade gera volatilidade de
interesses, o que afeta a participação nas organizações e movimentos sociais
(Faletto e Baño, 1992). Devem ser encontrados mecanismos de participação
complementares e funcionais à necessária ação estatal nesses campos. As
organizações sociais desempenham papel fundamental na identificação dos
Uruguai: critérios básicos para uma proposta de esquerda
164 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
164
problemas da sociedade e na configuração de demandas coletivas, porém, devido
a seu caráter específico, conservam sua autonomia e não podem substituir nem
os partidos políticos e nem o Estado, como muitas vezes sugere a ideologia
neoliberal. Não se deve contrapor a sociedade civil às instituições básicas da
democracia. Um governo de esquerda deve implementar formas de participação
para que a sociedade civil amplie o espaço público e aumente a consciência
social de seus direitos. Deve-se assinalar que, entre os objetivos centrais de um
governo de esquerda, está a consolidação dos processos democráticos, o que
engloba a expansão dos direitos civis, políticos e sociais dos cidadãos.
3. Dado o grau de transformações necessárias para que o Uruguai saia de
sua crise, são imprescindíveis as mais amplas alianças sociais, o que por sua vez
exigirá acordos políticos indispensáveis para efetivar adequadamente o
funcionamento do modelo. Isso significa abrir espaços para incorporar os
técnicos mais qualificados à função de governo, sem importar suas origens
políticas. É essencial criar poder democrático para viabilizar o modelo
alternativo. Nesse sentido se orientam também os necessários acordos com as
Forças Armadas, com os proprietários dos meios de comunicação e com os
bancos transnacionais instalados no país.
4. O conjunto dessas transformações procura modificar significativamente
a subjetividade da sociedade uruguaia, gerando expectativas favoráveis e maior
esperança no futuro do país, requisito indispensável para o funcionamento do
novo modelo. As melhoras econômicas, as ações do Estado com prioridade
para os aspectos sociais, a democratização dos meios de comunicação, impondo
a livre conmpetição, e o fortalecimento das organizações da sociedade civil,
serão o sustentáculo dessas transformações.
IV. Um novo relacionamento internacional
1. Conforme se analisou, a proposta alternativa de esquerda exige
mudanças políticas, transformações do modelo econômico, mudanças sociais e
institucionais. Junto a essas mudanças, é preciso construir novas formas de
relacionamento com o campo internacional. A política de protecionismo e
subsídios do mundo desenvolvido, e em especial dos Estados Unidos – por via
aduaneira, para-aduaneira, subsídios e acesso preferencial a seus mercados –
determina a especialização da inserção internacional dos países da periferia. Essa
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Alberto Couriel
165
especialização produtiva, derivada das relações comerciais, determina a própria
estrutura produtiva que se pretende corrigir com o modelo alternativo. Essa
estrutura produtiva inadequada é ajudada pelas condicionalidades dos organismos
internacionais baseadas no Consenso de Washington, que definem as políticas de
médio e longo prazo. Por sua vez, as políticas de curto prazo estão demasiadamente
ligadas aos ajustes exigidos pelo FMI, que são recessivos, dão prioridade aos
objetivos financeiros e aprofundam os problemas econômicos e sociais. Por isso,
é vital um novo relacionamento internacional a fim de aplicar com maior eficácia
o modelo alternativo.
2. No plano regional são fundamentais os acordos de integração de caráter
comercial, financeiro, produtivo, tecnológico e social. Faz-se preciso
compatibilizar e coordenar as linhas estratégicas dos diferentes países, como
formas de integração ativa, superando a integração passiva baseada
exclusivamente no mercado (Couriel, 1991 b). São necessários, também,
elementos de complementaridade produtiva, com especialização em
determinadas rubricas ou em partes de processos produtivos.
O processo de integração econômica deverá facilitar a passagem de uma
inserção econômica internacional baseada em vantagens comparativas estáticas
(recursos naturais e mão-de-obra não qualificada e barata, como as maquiladoras)
para uma inserção ativa à base de vantagens comparativas dinâmicas ou
adquiridas, por meio das quais se possa penetrar nos aspectos mais dinâmicos
do mercado internacional, em função de conteúdo tecnológico, maior valor
agregado inclusive nos próprios recursos naturais, e um inter-relacionamento
retroativo e pró-ativo das rubricas de exportação.
3. Em um mundo de blocos, é indispensável avançar em direção à unidade
e cooperação política dos países da região, com o objetivo de enfrentar em
melhores condições os grupos de países desenvolvidos e assim ganhar poder
de negociação à base de propostas unitárias e comuns para construir o próprio
desenvolvimento regional. É preciso buscar novos aliados para negociar com
o mundo desenvolvido, tais como poderão ser, para determinados temas, a
China, a Índia e a África do Sul. Mas, além disso, é necessário aproveitar os
interstícios e disputas entre os próprios blocos do mundo desenvolvido para
encontrar novas alianças em cada uma das negociações, sem descartar acordos
com os Estados Unidos a fim de enfrentar os subsídios da União Européia,
ou com esta e o sudeste asiático, para negociar com os Estados Unidos a
necessidade de regulamentar os movimentos de capitais a curto prazo.
Uruguai: critérios básicos para uma proposta de esquerda
166 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
166
Os avanços da unidade entre os países da região exigem um maior grau de
consciência e de identidade regional em suas sociedades e entre os principais
atores, o que deve ser estimulado pelos meios de comunicação e pelos sistemas
educativos correspondentes.
4. O mundo internacional mostra um claro predomínio dos Estados
Unidos, inclusive formas hegemômicas no campo militar, financeiro e de
comunicações, e enorme predomínio político. No Governo Bush instalou-se
um verdadeiro poder revolucionário de extrema direita. Por outro lado, a Europa
perdeu poder militar, econômico e político, e as potências emergentes, como
a China, buscam acordar com a potência hegemômica no que seja possível.
Nesse mundo internacional têm peso muito significativo os organismos
financeiros internacionais que implementaram o modelo neoliberal na região.
Os Estados Unidos têm muita influência sobre esses organismos, e
especialmente sobre o FMI. Nesse contexto, os países da América Latina
necessitam negociações globais com o mundo desenvolvido e especialmente
com os Estados Unidos.
5. É imprescindível um maior grau de unidade e cooperação política na
região. Hoje, esse processo é liderado pelos atuais governos de Lula e Kirchner,
aos quais poderia vir a unir-se um futuro governo da Frente Ampla. Para uma
negociação global, deve-se avançar em propostas comuns de parte dos países
da região. É necessário governar a globalização. Os conteúdos básicos da
negociação seriam:
A) No plano político:
i) redefinir o papel das Nações Unidas, reformular seu Conselho de
Segurança, e uma maior participação dos países da região.
ii) formar núcleos de poder com outras regiões do mundo, que permitam
maior participação nas decisões internacionais, inclusive formas de
participação no Grupo dos Oito.
iii) definir novo papel para as Forças Armadas no âmbito regional e sua
vinculação com os Estados Unidos;
iv) rechaçar os certificados unilaterais dos Estados Unidos sobre drogas
e narcotráfico;
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Alberto Couriel
167
v) encontrar formas de democratização da globalização das comunicações,
a fim de atender à igualdade de oportunidades;
vi) os problemas específicos que fazem com que alguns países da região se
enfrentem com os Estados Unidos, como Cuba e a Venezuela de Chávez.;
vii) considerar os problemas migratórios, já que os países desenvolvidos
propõem a livre mobilidade de capitais e mercadorias, porém não
existe livre movimentação de pessoas, o que afeta os países da região.
B) No plano comercial:
i) unidade e propostas comuns nas negociações na Organização Mundial
do Comércio, na Alca (Área de Livre Comércio das Américas) e com
a União Européia;
ii) modificar as assimetrias comerciais atuais e enfrentar o protecionismo
e os subsídios dos países desenvolvidos;
iii) avançar na exportação de manufaturas ao mundo desenvolvido, com
negociações que permitam um tratamento especial e diferenciado, e
tentar melhorar os termos de troca, na medida em que são afetados
pelas políticas dos países desenvolvidos.
C) No plano financeiro:
i) modificar substantivamente as condicionalidades dos organismos
financeiros internacionais;
ii) negociar a dívida externa com o conjunto dos países da região.;
iii) regulamentar os movimentos de capitais de curto prazo.
D) No plano produtivo:
i) negociar com as empresas transnacionais para compatibilizar seus
objetivos de rentabilidade e de segurança com os objetivos nacionais
relacionados com os estilos de desenvolvimento e conformação da
estrutura produtiva;
Uruguai: critérios básicos para uma proposta de esquerda
168 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
168
ii) combater o potencial Acordo Multilateral de Investimentos, que afeta
a autonomia da política econômica dos países destinatários dos
investimentos estrangeiros diretos.
V. Alguns temas específicos
A. Algumas reflexões sobre o Estado
1. O predomínio do modelo da direita, implementado pelos partidos
tradicionais a partir da abertura democrática, aprofundou a crise do Estado.
As funções básicas por ele exercidas durante boa parte do século XX, como a
de integração social, de agente de desenvolvimento e redistribuidor da renda,
viram-se afetas pela politização e partidarização do Estado. As políticas de
clientela, as rendas, as promoções e os cargos de direção segundo as posições
políticas, a exagerada burocracia e as baixas remunerações caracterizam a inépcia
e mentalidade inadequada dos funcionários para cumprir suas funções como
verdadeiros servidors públicos. Cabe relativizar essa generalização, já que em
muitas instituições do Estado existem funcionários capazes e comprometidos
que permitiram seu funcionamento.
A crise do Estado aprofundou-se com a aplicação do modelo neoliberal,
que busca substituir diversas funções do Estado em favor do setor privado e
em prol do livre funcionamento do mercado. A ideologia neoliberal propõe
que toda ação do Estado é viciosa e que, ao contrário, toda ação do mercado
e do setor privado é virtuosa. Evidentemente, esse mundo em branco e preto
não existe na realidade. O mundo é muito mais cinzento. Há coisas que o
Estado não deve fazer, mas há outras em que sua presença é imprescindível.
Há coisas que o setor privado realiza muito bem e outras que realiza muito
mal, como ficou demonstrado no sistema financeiro uruguaio. Isso afeta
também a credibilidade do sistema político e dos partidos. Porém, se tudo o
que faz o Estado é vicioso, e se isso é transmitido explícita ou implicitamente
pelos principais meios de comunicação, o Estado perde credibilidade, e portanto
a perdem também a política e os partidos, cuja função é utilizar o aparelho do
Estado para atender às demandas sociais da população.
A ideologia antiestatista influi na descrença da população em relação à
política, mas sem dúvida os partidos que ganham eleições com um programa,
mas governam com outro, e os fenômenos de corrupção, afetam a credibilidade
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Alberto Couriel
169
da política. Com a aplicação desse modelo, por parte dos governos dos partidos
políticos tradicionais, o Estado se mostrou forte para determinadas funções e
muito débil para outras. Fez-se forte para tentar privatizar, para liberalizar,
para desregular, para defender a praça financeira, para efetuar os ajustes
estruturais; por outro lado, debilitou-se para atender às demandas sociais e as
necessidades dos setores produtivos.
No Pnud 2004, afirma-se que, com Estados débeis e mínimos, somente se
pode conservar a democracia eleitoral. Debilitou-se a centralidade do Estado como
instância privilegiada de coordenação e representação social. Que tipo de Estado
encontrará o novo governo? Instituições sólidas ou com grandes desequilíbrios?
Com a capacidade necessária e suficiente para cumprir os novos papéis?
Não existem Estados ideais. Os Estados refletem a estrutura de poder,
as diferentes relações de forças, onde cada vez mais têm importância as relações
internacionais e a influência dos organismos financeiros internacionais, que
muitas vezes retiram dos Estados instrumentos vitais, mas que lhes exigem
resolver a coesão social. A transformação do Estado significa modificações
nas relações de forças, nas relações de poder, o que deve necessariamente
começar por uma mudança política, com o acesso de um governo de esquerda
ao poder. Isso deveria permitir o surgimento de um Estado com certo grau de
autonomia relativa, porém basicamente representativo de novas e amplas
alianças sociais portadoras das mudanças imprescindíveis para a realização de
sociedades dinâmicas e eqüitativas (Couriel, 1991 a).
2. Em um governo de esquerda é preciso que o Estado seja capaz de
conduzir a sociedade, resolver conflitos de forma democrática, exercer
novamente funções de integração social e redistribuição da renda, garantindo
a necessária proteção social e a preeminência da democracia, como princípio
de organização social, sobre a economia. Não existe democracia sem Estado,
nem desenvolvinmento democrático sem um Estado capaz de garantir e
promover universalmente a cidadania e seus principais direitos. Especialmente,
um Estado que conduza uma gestão estratégica (Ilpes, 1998).
Mas esses Estados devem proporcionar os espaços necessários para a
participação da sociedade civil, para ampliar o espaço público de seus direitos
e de sua consciência social. Para um governo de esquerda, essa participação e
os necessários acordos sociais são vitais para o melhor funcionamento do
modelo alternativo. A participação do Estado é central para o melhoramento
Uruguai: critérios básicos para uma proposta de esquerda
170 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
170
da eqüidade e da igualdade, para a negociação regional e com o mundo
desenvolvido, para as linhas estratégicas que orientem o processo econômico,
facilitem uma inserção internacional dinâmica e a conformação de uma
estrutura produtiva que atenda à competitividade e ao emprego, para a
incorporação, adaptação e criação tecnológicas, para assegurar a integração e a
coesão social. A democracia de cidadania exige um Estado que assegure a
universalidade dos direitos. É preciso um Estado para a democracia, que aplique
o mandato eleitoral, que represente a diversidade de culturas, religiões, etnias e
gêneros. A transformação do Estado é necessária para que se torne transparente,
responsável, que tenha a necessária qualidade institucional e preste contas de
maneira adequada (Pnud, 2004).
A intervenção do Estado deve ser seletiva, eficiente, de custo e tempo
conhecidos, periodicamente avaliada e publicamente informada (Ilpes, 1998).
São necessárias mudanças substantivas no aparelho do Estado a fim de
aperfeiçoar os níveis de gestão. Isso significa melhorar a eficiência técnico-
administrativa por meio da capacitação permanente dos funcionários, da
remuneração e das promoções mediante concursos, para acabar com as políticas
de clientela e produzir a necessária mentalidade de servidores públicos. Significa
também poder econômico e financeiro para exercer eficazmente suas funções e
capacidade política para dirigir, baseada em princípios de democráticos. Para isso,
deve-se atentar para a transparência, a capacitação, a descentralização e a participação.
A gestão das empresas públicas é um dos grandes desafios para um
governo de esquerda. Além da aplicação dos princípios gerais já listados, a
direção política dessas empresas deve ser compatível com os conhecimentos
técnicos indispensáveis para o cumprimento de suas funções. Isso exige
mudanças significativas na atual gestão, baseada em quotas políticas com acesso
de diretores que não possuem a qualificação mínima para exercer suas
responsabilidades. As empresas públicas devem preparar-se para competir,
para reduzir os custos afetados pela burocratização vinculada à política de
clientela dos patidos tradicionais e para o fornecimento adequado de bens e
serviços públicos. As posições de gerência devem ser ocupadas pelos mais
capazes, pelos mais aptos, independentemente de suas origens politico-
partidárias. Um bom funcionamento das empresas públicas ajudará a retomar
a indispensável credibilidade na ação do Estado. A função de regulamentação
do Estado merece especial consideração. Deve orientar-se no sentido de zelar
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Alberto Couriel
171
pelas regras da competição, controlar a ação distorsiva dos monopólios naturais,
promover a proteção, informação e participação dos usuários e garantir a
qualidade do serviço (Ilpes, 1998).
B. Algumas reflexões para uma reforma tributária
#
1. No contexto das propostas formuladas anteriormente apresentam-se
as características básicas de uma reforma tributária.
Um breve diagnóstico revela as seguintes singularidades:
a) A pressão tributária não é elevada, se comparada com o quadro
internacional. No Uruguai, chega a 29%, sem incluir os municípios, enquanto
nos países desenvolvidos é de 32,3%. Em nove países da Europa Ocidental, a
pressão tributária é superior a 40%. Esses países são a Suécia (50%), a Dinamatrca
(49,3%), a Bélgica (45,4%), a França (43,6%), a Áustria (43,5%), a Holanda e a
Itália (42,9%) e a Noruega (41,5%). Esses países europeus apresentam altos
índices de pressão tributária, que se explica pela grande proteção social.
b) A estrutura tributária do Uruguai mostra que, do total da arrecadação,
o governo central recolhe 65%, as contribuições para segurança social
representam 27% e os municípios 8%.
c) O imposto sobre valor agregado (IVA), o imposto específico interno
(Imesi) e o imposto sobre retribuições pessoais (IRP) representam 70% da
arrecadação do governo central. Os impostos sobre consumo de bens e serviços
chegam a 63%.
d) Mediante a comparação internacional, verifica-se a regressividade da
estrutura tributária. No Uruguai, os impostos sobre lucros e ganhos alcançam
20%, enquanto nos países desenvolvidos representam 67,1% e nos Estados Unidos
90,1%. Por outro lado, os impostos sobre consumo de bens e serviços chegam a
62% no Uruguai, enquanto nos países desenvolvidos representam somente 26,7%
(Lagomarsino e Grau, 2002).
#
O presente texto é uma breve resenha da conferência pronunciada nas XVI Jornadas de Contabilidade e
Orçamento Público realizadas em Montevidéu em 20 e 21 de novembro de 2002, pela Asucyp (Associação
Uruguaia de Contabilidade e Orçamento Público), para cuja preparação contou-se com a colaboração do Cr.
Gustavo Samacoltz.
Uruguai: critérios básicos para uma proposta de esquerda
172 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
172
e) O imposto sobre retribuições pessoais, salários e proventos de
aposentadoria abarca no máximo 70% das rendas familiares. Isso mostra a
possibilidade de ampliação da base impositiva, sem esquecer a subestimação
dos setores de rendimentos mais elevados e os problemas de informação
(Lagomarsino e Grau, 2002).
f) A análise do IVA denota sua regressividade. Os bens isentos não
mostram grandes diferenças de entre os diferentes decís de rendas. Mas é
muito significativo que o decil de menores rendimentos paga, a título de IVA,
9,1% de suas rendas, enquanto o de maiores rendimentos somente paga 6,7%
das suas (Lagomarsino e Grau, 2002).
g) Existe uma incapacidade quase estrutural para reduzir a evasão e,
conseqüentemente, para arrecadar os recursos necessários e suficientes para
cumprir adequadamente os objetivos da política fiscal. As principais dificuldades
são a falta de vontade política, o clientelismo, a profissionalização deficiente e
a falta de coordenação entre os diferentes organismos arrecadadores. A isso
se alia o sigilo bancário, que impede a eliminação do sigilo tributário.
2. O papel de impulsionador do crescimento econômico com justiça
social, que cabe ao Estado, impõe um exigente esforço fiscal cuja finalidade é
o aumento da receita pública, maior progressividade do sistema tributário e
reorientação do gasto público (Ilpes, 1998). Os objetivos da política fiscal
visam melhorar a redistribuição da renda para progredir em direção à justiça
social. Para alcançar esse objetivom os efeitos redistribuidores do gasto público
são mais relevantes do que os derivados de uma reforma tributária. O Estado
de bem-estar do battlismo
*
do princípio do século se baseava fundamentalmente
nos efeitos do gasto público sobre a eqüidade. A geração de emprego produtivo
e os efeitos do gasto público são os elementos centrais que contribuem para
atender ao objetivo da redistribuição da renda.
A política tributária deve melhorar a atual regressividade da estrutura
tributária e equilibrar os objetivos finalistas e fiscalistas.
* Alusão ao grupo político do Presidente José Battle y Ordoñez e de seu sobrinho, Luis Battle Berres, que
dominou o Partido Colorado (N. do T.)
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
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173
Os objetivos finalistas se obtêm outorgando estímulos fiscais às atividades
produtivas surgidas das diretrizes estratégicas que conformam uma estrutura
produtiva que priorize a competitividade e o emprego.
Os objetivos fiscalistas buscam aperfeiçoar e aumentar a arrecadação
para atender às necessidades do gasto público. A comparação internacional
não mostra uma elevada pressão tributária, mas é imprescindível acabar com a
política de clientela e realizar o pleno cumprimento dos programas.
É importante assinalar a necessidade de uma política fiscal anticíclica
para enfrentar os processos recessivos.
Conforme já analisado em outros capítulos, devem-se desmistificar as
conseqüências atribuídas ao déficit fiscal, especialmente por parte dos
organismos financeiros internacionais, do modelo noliberal e das próprias
agências classificadoras de risco.
3. As principais propostas da reforma tributária são:
a) Criação do imposto de renda das pessoas físicas, que deve ser global –
incorporando todos os rendimentos – progressivo e tendente a aumentar a
base tributável, abarcando os 30% dos lares que hoje estão isentos. A crise dos
bancos de 2002 debilitou a praça bancária, uma das bandeiras do modelo
implementado pelos partidos tradicionais, que limitava a criação desse imposto
devido ao temor de afugentar os depositantes estrangeiros.
b) O imposto sobre os rendimentos da empresas deve cumprir objetivos
finalistas, especialmente de caráter setorial, atendendo aos critérios oriundos
das diretrizes estratégicas, analisados anteriormente.
c) No caso do imposto sobre valor agregado (IVA), sugerem-se
modificações baseadas nos seguintes critérios:
i) atenuar a regressividade, modificando as isenções;
ii) ampliar a base impositiva com uma taxa estatística que não influa
sobre os preços, com o objetivo de generalizá-la e de proporcionar
controle tributário, permitindo deduzir o IVA da compra;
iii) reduzir a carga impositiva baixando as taxas máxima e mínima;
Uruguai: critérios básicos para uma proposta de esquerda
174 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
174
iv) reduzir o IVA utilizando um critério geral para lograr a melhoria da
competitividade, ao não exportar impostos.
d) É importante eliminar uma série de impostos de muito baixa
arrecadação e que afetam o melhor funcionamento administrativo. Entre eles,
há mais de vinte tributos cuja arrecadação não supera 6% da receita.
e) Em matéria de tarifas aduaneiras, as decisões dependerão dos avanços
nos acordos do Mercosul. Não se justificam reduções de tarifas para com o
resto do mundo, como as que se produziram no início da década de 1990,
especialmente quando os países desenvolvidos continuam a manter fortes
medidas protecionistas sobre as exportações dos países da região.
f) As contribuições para segurança social devem ser mantidas com base na
participação do Estado, das empresas e dos trabalhadores. As isenções factíveis
terão objetivos finalistas com base nas exigências das diretrizes estratégicas. Vale
recordar que o financiamento da segurança social depende, em última instância,
da geração de emprego produtivo em setores formais ou modernos.
Em essência, a reforma tributária deve atender a objetivos fiscalistas
para financiar a redistribuição que se obtém com o gasto público; objetivos
finalistas, junto com outros instrumentos de política econômica, para atender
às prioridades nas atividades produtivas. A eficácia da administração tributária
é fundamental para melhorar a arrecadação.
Por último, deve-se mencionar que a criação do imposto de renda das
pessoas físicas tem objetivos de eqüidade e, junto com as reduções do IVA,
atenuam a atual regressividade, embora não signifiquem grandes mudanças na
estrutura tributária.
C. Algumas reflexões sobre os meios de comunicação
##
A presença dos meios de comunicação e sua extraordinária expansão
estão ligadas à revolução da informática. Esses fenômenos chegaram para
permanecer, e somente tendem a evoluir. Todos já sabem que, se alguma coisa
##
O presente texto é uma síntese de uma conferência pronunciada em novembro de 2003 no Centro de
Estudos Estratégicos 1815.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Alberto Couriel
175
não aparecer na mídia, isso significa que não existe. Sabem disso os “avisadores”,
os publicistas, os artistas e os jornalistas, e também o sabem os políticos.
Por outro lado, os meios de comunicação executam tarefas culturais,
educativas e de formação, que colaboram com a identidade nacional e sobre ela
incidem, assim como sobre os valores básicos da nacionalidade e da democracia.
A mídia se vincula aos partidos políticos e ao poder econômico. No
nível internacional, não apenas se vincula, e sim constitui um grande poder
econômico, com grandes fusões e grande concentração da propriedade.
Esses grupos econômicos planetários se ocupam de todos os meios de
comunicação tradicionais (imprensa, rádio, televisão), mas além disso tratam
de todas as atividades pertinentes ao que poderíamos denominar setores de
cultura de massas (com objetivos mercantís e comerciais), comunicação
(marketing e propaganda) e informação (agências de notícias, imprensa, boletins
de rádio e televisão) (Ramonet, 2003).
No Pnud 2004, há uma análise sobre uma pesquisa em 18 países da
região, que reflete uma consulta sobre o poder dos diferentes setores nas
sociedades latino-americanas. O resultado mostra que os poderes econômicos,
empresariais – sobretudo o poder financeiro – são vistos como detentores da
maior parcela de poder nas sociedades, seguidos pelos meios de comunicação
– 65% – enquanto os partidos políticos detêm cerca de 30%. Nesse relatório
se informa que os meios de comunicação possuem mais poder do que os
partidos políticos, as Forças Armadas e inclusive, em muitos casos, os próprios
presidentes eleitos democraticamente.
Ainda que detenha um imenso poder, a mídia não assume a
responsabilidade por sua importância. É um poder sem controle, em nível tanto
nacional quanto internacional (Ramonet, 2003). Em nível local e diante da aguda
crise econômica por que passa nosso país, que afeta vários setores da sociedade,
os meios de comunicação se vêem afetados ao receber menos publicidade privada
e ver consideravelmente reduzida a publicidade oficial, da qual sobreviveram
nos últimos anos, colocando em perigo a rentabilidade dessas empresas.
Por outro lado, a forma pela qual são outorgadas as autorizações e
concessões às rádios e à televisão geral e a cabo não responde a critérios
objetivos que permitam a igualdade de oportunidades. Em conseqüência, em
muitas ocasiões, os beneficiários são correligionários políticos e financiadores
de campanhas eleitorais, chegando a exisitir uma quantidade desproporcional
Uruguai: critérios básicos para uma proposta de esquerda
176 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
176
de concessões – como é o caso em algumas cidades do interior do país – sem a
aplicação de critérios adequados, o que incide sobre sua manutenção,
dificultando-a. As concessões são precárias, gratuitas e revogáveis, sendo
discutível em nosso país a autoridade para outorgá-las.
Outro aspecto que se deve assinalar é a existência de monopólios e
oligopólios, o que afeta a livre competição e a igualdade de opoetunidades.
Existe uma grande concentração de concessionários ou distribuidores, e
verifica-se uma centralização de produtores de conteúdo, cuja conseqüência é
a geração de enorme poder.
O risco que apresentam os monopólios se reflete na Declaração de
Princípios sobre Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de
Direitos Humanos, que diz: “os monopólios e oligopólios na propriedade e
controle dos meios de comunicação devem estar sujeitos a leis antimonopolistas
porque conspiram contra a democracia, ao restringir a pluralidade e a diversidade
que asseguram pleno exercício do direito dos cidadãos à informação”.
Enfrentar esses monopólios e oligopólios e alcançar a livre competição
se torna tema central como forma de democratização, como mecanismo para
o acesso aos meios de comunicação em igualdade de oportunidades para os
diferentes setores da sociedade uruguaia.
A falta de competição afeta a qualidade, a produção de novos conteúdos
e a veracidade da informação, que são direitos básicos dos cidadãos. Aliada à
existência de uma porcentagem de produção nacional, a competição ajudaria
a melhorar os conteúdos, permitindo um maior grau de participação aos artistas
e técnicos de nosso país.
Os meios de comunicação determinam a agenda e têm tanto poder que
os debates políticos se tornam mais relevantes quando se realizam pela televisão
do que quando ocorrem no próprio Parlamento.
Hoje em dia, para um político, é mais importante aparecer um minuto
na televisão do que fazer um discurso de uma hora no Parlamento.
Os partidos políticos e os meios de comunicação competem para atrair a
opinião pública: a mídia pode chegar a criar e a destruir líderes políticos e influi
na imagem de determinado regime político. Em muitos casos, os jornalistas se
transformam em verdadeiros operadores políticos e deixam de ser objetivos,
prejudicando o exercício do direito do conjunto da sociedade à informação.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Alberto Couriel
177
Os meios de comunicação devem democratizar-se; para isso, é necessária
igualdade de oportunidades, diversidade cultural e livre competição. A igualdade
de oportunidades políticas e sociais pode ser obtida modificando-se as características
das concessões, das outorgas e das autorizações de onda e freqüências.
A liberdade de imprensa tem enorme valor, mas exige a livre concorrência.
E para que esta se concretize, a regulamentação estatal é imprescindível.
A ação do setor público é vital para alcançar esses objetivos nos meios de
comunicação. O Estado age como proprietário de mídia e regula a atividade mediante
políticas ativas. Entendemos ser necessário fortalecer o setor público em qualidade,
conteúdo e recursos, para que possa competir eficientemente com o setor privado
em igualdade de direitos, e não permaneça complementar ou subordinado àquele.
Por outro lado, devem-se encontrar mecanismos de transmissão da informação sem
temor a sanções econômicas, políticas, judiciárias, empresariais ou estatais.
Deve haver políticas ativas, entre as quais se destacam:
i) necessidade de um quadro jurídico, sistemático e articulado, sobre os
meios de comunicação;
ii) defesa da produção nacional e da identidade cultural, fixando-se
porcentagens de produção nacional e estrangeira;
iii) embora os proprietários dos meios de comunicação não possam ser
estrangeiros, utilizam-se testas de ferro que contrariam os dispositivos
legais. Contraditoriamente, a própria programação pode efetivamente
ser estrangeira;
iv) defesa da livre concorrência, que é um dos princípios vitais da
democratização da mídia. Isso significa enfrentar os monopólios e
oligopólios de concessionários e de produtores de conteúdo.
A ação reguladora deve basear-se na fixação de critérios básicos para as
autorizações e concessões, com acesso justo e transparente para alcançar a
igualdade de oportunidades. Devem ser proporcionados os estímulos
necessários a novos produtores de conteúdo para que possam competir
adequadamente e de maneira justa. Outro elemento regulatório é a exigência
de programas de serviço à comunidade ao conceder as autorizações.
Tradução: Sérgio Duarte.
178 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
178
O regime democrático pode ser imposto?
O regime democrático
pode ser imposto?
Alfredo Toro Hardy
*
A
resposta à indagação proposta pelo título do presente trabalho tem a
ver com Washington e a política exterior do Governo Bush. Assim, será preciso
situar-nos no contexto apropriado.
George Bush Jr. tomou a decisão de abandonar as duas grandes vertentes
da política exterior surgidas na época de Truman. As doutrinas da contenção
e da dissuasão foram formalmente afastadas, em função de uma nova doutrina,
que postula a predominância militar incontestável dos Estados Unidos e a sua
disposição de atuar preventiva e unilateralmente contra qualquer ameaça real
ou potencial. Isso, por extensão, retira a sustentação efetiva de qualquer política
de alianças, já que estas adquirem um caráter ad hoc, muito mais circunstancial.
Por outro lado, o atual Governo Republicano se tem inclinado a
desconhecer ou a dissociar-se de qualquer compromisso multilateral que imponha
limites à sua soberania ou à liberdade de ação exigida pela sua hegemonia. Assim,
* Diplomata e Acadêmico Venezuelano. Embaixador no Reino Unido e Ex-Embaixador nos Estados Unidos,
Brasil e Chile.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
179
Alfredo Toro Hardy
o Conselho de Segurança das Nações Unidas passa a perder todo sentido além
do de convalidar decisões tomadas previamente pelo poder hegemônico. Como
assinalava John Bolton, Embaixador designado dos Estados Unidos junto às
Nações Unidas, “se quisesse refletir o verdadeiro equilíbrio do poder internacional,
o Conselho de Segurança deveria ter um único membro: os Estados Unidos”.
1
Os herdeiros do establishment
Os gestores intelectuais de todo o processo anterior são os chamados
neoconservadores, que se vêem como herdeiros do antigo establishment. Em
outras palavras, é o grupo de pessoas que, reunidas no Conselho de Relações
Exteriores, de Nova York, definiu as bases conceituais e instrumentais da
política externa norte-americana do pós-guerra. Tais bases iriam evidenciar
uma extraordinária longevidade, sobrevivendo em mais de uma década até
mesmo ao fim da Guerra Fria. Figuras como George Kennan, Dean Acheson,
James Forrestal, Averell Harriman, Robert Lovett, John McCloy, Charles Bohlen
ou Paul Nitze foram, na verdade, os encarregados de articular, no fim da
Segunda Guerra Mundial, as linhas que a ação externa norte-americana deveria
seguir nas décadas subseqüentes. Não foi em vão que Dean Acheson, Secretário
de Estado do Presidente Truman, se referiu a esse período como “a Criação”.
Admitindo que estão esgotadas as premissas que justificaram a política
exterior do pós-guerra, os neoconservadores se consideram como os
responsáveis por uma “segunda Criação”. De acordo com William Kristol e
Robert Kagan, dois dos seus expoentes mais destacados, “em outras palavras o
nosso país presenciou uma criação semelhante à que Dean Acheson viu emergir
depois da Segunda Guerra Mundial. Pela primeira vez na história, os Estados
Unidos tiveram a oportunidade de modelar o sistema internacional de uma forma
que intensificasse a sua segurança e expandisse os seus princípios, sem qualquer
oposição de um adversário poderoso e determinado”.
2
Conforme assinalamos,
dentro desse contexto, postula-se a incontestável preeminência militar desse país
e a sua disposição de atuar preventiva e unilateralmente, assim como o
desconhecimento de qualquer limite à sua liberdade de ação hegemônica. O que
1
L’Express, Paris, 28 março/3 abril 2005.
2
Stelzer, Irwing, ed., “National Interest and Global Responsibility”, Neoconservatism, Londres, Atlantic 2004, p. 57.
180 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
180
O regime democrático pode ser imposto?
é ainda mais significativo, afirma-se o caráter universal das concepções norte-
americanas de liberdade e democracia e, por fim, a sua responsabilidade de
difundir essas concepções pelo mundo, propiciando mudanças de regime em
governos de natureza diferente. Daí a expressão “imperialistas democráticos”
com que são qualificados os neoconservadores.
Quem são os neoconservadores?
Essencialmente, os neoconservadores enfatizam a importância do
voluntarismo político, a partir de três premissas básicas. Em primeiro lugar,
aquilo que o cientista político neoconservador Charles Krauthammer batizou
de “momento unipolar”, ou seja, a expressão da força incontrastada dos Estados
Unidos e das suas imensas possibilidades de definir um contexto internacional
em seus próprios termos. Em segundo lugar, em função daquelas visões que
poderiam ser enquadradas dentro do que se tem qualificado como “novo
wilsonismo” (lembrando Woodrow Wilson), que atribuem um papel messiânico
à política exterior norte-americana, encomendando-lhe a difusão da democracia
pelo mundo. Em terceiro lugar, respondendo ao “excepcionalismo” norte-
americano, conceito baseado na convicção da superioridade do seu modelo de
sociedade e dos princípios que o sustentam. Estas duas últimas premissas
estão associadas de forma indissolúvel.
Como bem se entende do prefixo “neo”, estamos em presença de “novos”
conservadores. Isto é, são liberais desagradados com os excessos contestatários
dos anos 60 e 70, que evoluíram para posições de direita. Diferentemente dos
conservadores clássicos, eles não estão interessados em preservar modelos de
vida e parâmetros tradicionais, mas sim em abalar estruturas e efetuar mudanças.
Os neoconservadores se agrupam em torno de um conjunto de think-tanks
e órgãos de comunicação. Entre os primeiros, estão o American Enterprise Institute e
o Project for the New American Century. Entre os segundos, The Weekly Standard, The
Public Interest e Commentary. As figuras mais importantes do grupo incluem Irving
Kristol, Robert Kagan, Richard Perle, Paul Wolfowitz, Eliot Cohen, Elliott Abrams,
Norman Podhoretz, James Wilson e Charles Krauthammer.
Dentro do Governo Bush o único setor cuja influência pode rivalizar
com a dos neoconservadores é a chamada Direita Cristã. Enquanto esta tem
uma gigantesca força eleitoral, os neoconservadores não passam de um grupo
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
181
Alfredo Toro Hardy
de intelectuais, que conta com o poder das suas idéias. Considerando-se
herdeiros do antigo establishment, pelo menos no que se refere à sua
transcendência – mas não com respeito às suas idéias –, esse grupo tem podido
reformular substancialmente a política exterior herdada. Só com o passar do
tempo saberemos se a nova bagagem intelectual que imprimiu à política exterior
norte-americana se tornará irreversível ou se, ao contrário, não passará de um
produto da moda, efêmero. A única coisa certa é que, devido às suas políticas,
poucas vezes antes na história, os Estados Unidos alcançaram um nível de
tamanha impopularidade internacional.
Grande parte do mundo coincide com George Soros, um dos patriarcas
do mundo financeiro norte-americano, quando ele afirma: “Os princípios
fundamentais da agenda política podem ser resumidos da seguinte forma: As
relações internacionais são relações de poder, não legais; o poder prevalece e a
lei confere legitimidade ao que prevalece. Os Estados Unidos são um poder
inquestionável no pós-Guerra Fria, e por isso estão em posição de impor ao
mundo seus pontos de vista, interesses e valores. Esta visão da política
internacional é parte de uma ideologia ampla conhecida habitualmente como
neoconservadorismo, mas prefiro descrevê-la como uma forma crua de
darwinismo. Considero-a crua porque ignora o papel da cooperação na
sobrevivência dos mais aptos e põe toda a sua ênfase na competição nas relações
internacionais, o que conduz à busca da supremacia americana”.
3
Na verdade, os neoconservadores nunca foram populares, o que decorre do
fanatismo que caracteriza a sua condição de convertidos. O seu mentor intelectual,
Leo Strauss, reputado professor de política da Universidade de Chicago, emigrado
da Alemanha nazista, não os preparou para isso. Antes de mais nada, ensinou-lhes,
que em política, o valor do compromisso consistia na busca de absolutos, rejeitando
assim qualquer manifestação de relativismo e de pragmatismo. Ao mesmo tempo,
convenceu-os de que, para superar a decadência moral manifestada pelos Estados
Unidos, era necessário valorizar mitos nacionais com capacidade unificadora. Pouco
importava se esses mitos correspondiam à verdade. Como bem assinala Mary
Wakefield, editora assistente do Spectator, citada por Kenneth R. Weinstein, “Strauss
era um campeão da ‘nobre mentira’ – a idéia de que é praticamente um dever
mentir às massas, porque só uma pequena elite tem a inteligência suficiente para
3
The Bubble of American Supremacy , Public Affairs 2004, New York, pp. 3,4.
182 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
182
O regime democrático pode ser imposto?
conhecer a verdade”. Dizia: “Os políticos devem dissimular seus pontos de vista
por duas razões: para não ofender os sentimentos das pessoas e para proteger as
elites de possíveis represálias”.
4
Para Strauss, elitista por antonomásia, era
fundamental controlar a “maioria sem inteligência”.
Desde o princípio, os neoconservadores ostentaram um maquiavelismo
sem paralelo, em que os fins justificavam qualquer meio. Mais ainda, como
bons seguidores de Strauss, chegaram a assumir a desonestidade intelectual
como prova da intensidade das suas convicções e, por fim, como algo que não
justifica a vergonha. Essa desonestidade se manifestou algumas vezes na
manipulação de fatores e na difusão do engano. Um documentário esclarecedor
da BBC 2 do Reino Unido, em três capítulos, apresentado nos dias 18, 19 e 20
de janeiro de 2005, sob o título The Power of Nightmares (O Poder dos Pesadelos)
elucidava bastante bem essa questão. Mostrava como, ao longo das três últimas
décadas, os neoconservadores torceram a verdade que tinham à sua frente,
para justificar a implementação da sua agenda.
Roosevelt versus Wilson
Conforme assinalamos, o tema da difusão da democracia e,
implicitamente, da mudança de regime, constitui uma das partes centrais da
agenda neoconservador. O discurso feito por Bush ao tomar posse pela segunda
vez na Presidência representou em si mesmo um verdadeiro manifesto desse
movimento. Nesse discurso, foram declaradas algumas das suas idéias essenciais:
a universalidade dos valores norte-americanos e a responsabilidade pela sua
difusão pelo mundo, no meio de um processo implícito de mudança de regime
nos governos de outra natureza. Não em vão a palavra “liberdade” foi
pronunciada quarenta e nove vezes nesse discurso.
Para compreender as raízes desse espírito missionário precisamos fazer
um pouco de história. No seu livro Diplomacy, Henry Kissinger mostra como a
emergência dos Estados Unidos no cenário internacional, no princípio do
século XX, foi trazida por duas posições diametralmente opostas
5
. De um
4
“Philosophic Roots: The Role of Leo Strauss and the War on Iraq”, Neoconservatism, Londres, Atlantic 2004, p. 203.
5
New York, Simon & Schuster, 1994, pp.29-55.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
183
Alfredo Toro Hardy
lado, havia a posição assumida por Theodore Roosevelt, com base no realismo
político, no equilíbrio do poder e no interesse nacional. De outro, a de Woodrow
Wilson, sustentada pela concepção messiânica de difundir pelo mundo os
valores democráticos que fazem dos Estados Unidos uma nação “excepcional”.
Em outras palavras, as responsabilidades históricas implícitas na sua condição
de “Nova Jerusalém”, de “Cidade sobre a colina”. Durante boa parte da Guerra
Fria, e com ênfase especial durante a presidência de Richard Nixon, prevaleceu
a vertente Roosevelt. Em várias fases da Guerra Fria, e especialmente durante
o Governo Bush, prevaleceu o “wilsonismo”.
De uma perspectiva intelectual, o próprio Kissinger encarna a
manifestação mais destacada do realismo político, enquanto os
neoconservadores simbolizam a maior expressão messiânica, justificando-se
assim a profunda rivalidade existente entre as duas correntes. O atual inquilino
da Casa Branca passou a identificar-se com a visão neoconservadora, a partir
de uma percepção providencialista do seu próprio papel como presidente.
Nisso, Bush filho se distingue diametralmente do pai, expoente do realismo
na política exterior, e a forma como os dois trataram o tema do Iraque é uma
expressão cabal dessa dicotomia.
Como nos mostra Nicholas Guyatt, referindo-se à política seguida no
Iraque, definida por Bush pai e mantida por Clinton, “os responsáveis por
implementar as políticas norte-americanas estão mais assustados com o
fundamentalismo xiita ou o nacionalismo curdo e, por isso, decidiram manter
Saddam no poder, embora advertido constantemente de que estava cercado,
mediante sanções e ataques militares. Os porta-vozes do Departamento de
Estado gostam de jactar-se do fato de que a ‘contenção’ dos Estados Unidos
evita que o Iraque ameace os seus vizinhos da região. Na verdade, os Estados
Unidos temem que as tensões internas do Iraque transformem a aparência do
Oriente Médio, e por isso a política norte-americana se preocupa não com a
expansão do Iraque, mas com a sua implosão.”
6
.A frase precedente reflete a
plenitude da vertente realista herdada de Roosevelt. Conquistado pelas idéias
neoconservadoras e pela visão “wilsoniana” que lhe é própria, Bush filho
preferiu lançar-se em uma cruzada democratizadora do Oriente Médio,
adotando o Iraque como ponto de partida.
6
Another American Century, Londres, Zed Books 2000, p. 143.
184 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
184
O regime democrático pode ser imposto?
Democracia e mudança de regime
Com efeito, o atual Governo se empenhou em uma operação ambiciosa
de mudança de regime. O objetivo era democratizar o Iraque, apresentando-o
como uma vitrine para o mundo árabe e muçulmano. Do ponto de vista
neoconservador, isso poderia desencadear um poderoso efeito dominó em
toda a região. Além do argumento da existência de armas de destruição em
massa, contaminado desde o princípio com o seu estilo peculiar, o objetivo de
fundo parecia ser enfrentar ideologicamente o islamismo, com a implantação
da democracia, como demonstra a insistência neste ponto, por parte de
Wolfowitz e Perle, no debate que precedeu a invasão do Iraque dentro do
Governo Bush. Debate que seria vencido precisamente pelos neoconservadores,
determinando o curso da ação a seguir.
Desse modo, assim como Kennedy escolheu o Vietnã como o ponto no
mapa para enfrentar o comunismo, os neoconservadores escolheram o Iraque
como o lugar adequado para confrontar ideologicamente o islamismo. Em
vez de conformar-se com uma luta demorada, sistemática e pouco espetacular
para derrotar o terrorismo islâmico por via policial e de inteligência, decidiram
atacar agressivamente o cerne do problema. Ou seja, a atração do
fundamentalismo islâmico nas ruas do mundo muçulmano. Para isso se contaria
com o poder demiúrgico da democracia. Em outras palavras, em lugar de lutar
pacientemente contra os mosquitos se faria uma operação em larga escala para
secar os pântanos onde os mosquitos se reproduziam. Em termos de ambição
de metas, era um objetivo só comparável aos esforços de reconfiguração
internacional propostos por Wilson e Truman, após as duas guerras mundiais.
No entanto, diferentemente deles, esse processo não seria o resultado de guerras
indesejadas e de países devastados, mas a expressão de um voluntarismo capaz
de operar secamente e com um cálculo absolutamente frio.
Conforme comentava The Economist, na sua coluna Lexington, a figura
intelectual de maior influência na Casa Branca, junto aos neoconservadores, é o
israelense Natan Sharansky. “A mensagem do Sr. Sharansky se resume a três
pontos. Primeiro, a Realpolitik está em bancarrota. Os Estados Unidos não
podem continuar alimentando regimes tiranos como o da Arábia Saudita, porque
esses regimes invariavelmente procuram comprar a estabilidade na sua própria
casa com a exportação do ódio ao estrangeiro. Em segundo lugar, a democracia
é o melhor seguro contra a agressão. Em terceiro lugar, o mundo está realmente
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
185
Alfredo Toro Hardy
dividido entre o Bem e o Mal. O Sr. Sharansky só vê o mundo em branco e
negro – o Bem contra o Mal, as sociedades livres versus as ‘sociedades vilãs’, com
um grupo de ‘realistas” indecisos entre os dois extremos.”
7
No entanto, além do messianismo desabrido de que se orgulham os
neoconservadores, o realismo político que eles e o seu acólito Sharansky tanto
desprezam exige respostas concretas a numerosas perguntas, entre elas as que se
seguem:
Que fazer com as diferenças culturais?
O iceberg submerso
Ouçamos o que diz a esse respeito o reputado internacionalista norte-
americano Michael Mandelbaum: “Tanto a cultura política islâmica do Oriente
Médio como a cultura política confuciana do Leste da Ásia contêm elementos
não-liberais. Eles enfatizam a coesão e a solidariedade, mais do que a liberdade
individual, e mais do que o livre debate, privilegiam a aplicação da ortodoxia.
Por outro lado, o mandatário é mais um pai autoritário, um chefe de família,
do que um concidadão escolhido pelo seu povo para desempenhar certos
deveres limitados. Tanto na tradição islâmica como na confuciana, os cidadãos
podem fazer pedidos ao seu mandatário, mas não os elegem. Os mandatários
estão obrigados, por um compromisso moral, a conduzir-se corretamente,
mas não há limitações constitucionais ao seu poder. Na Idade Moderna,
tanto o Oriente Médio como a China consideram os países liberais do
Ocidente como perigosos, agressivos, invasivos, adversários – razão pela
qual se inclinam a resistir aos valores políticos do Ocidente, como parte da
sua luta contra o domínio ocidental.
8
Recaímos assim dentro do “choque
das civilizações” mencionado por Samuel Huntington: uma área minada de
significados políticos e históricos profundos, que nunca pode ser administrada
de modo superficial.
7
5 de fevereiro de 2005.
8
The Ideas that Conquered the World, New York, Public Affairs, 2003, pp. 253,254.
186 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
186
O regime democrático pode ser imposto?
Michelle LeBaron e Jarle Croker simbolizaram a cultura com a metáfora
de um iceberg sob a água. Isto é, como uma trama não visível de significados,
crenças e convicções.
9
Sendo assim, a interconexão entre os seres humanos de
diferentes latitudes, induzida pela globalização, se desenvolveria exclusivamente
no nível do topo do iceberg, acima da superfície da água. Esta ponta do iceberg
conformaria símbolos e valores de projeção planetária – do McDonald’s ao
Nike, da língua inglesa à Microsoft, dos organismos financeiros internacionais
a Wall Street, da economia de mercado à democracia. Em outras palavras, o
reino da “homogeneização mundial” proclamada por Fukuyama. No entanto,
debaixo dessa ponta se encontraria o corpo gigantesco do iceberg submerso,
feito de identidades de raiz: é o lugar onde surge a diversidade dificilmente
conciliável de culturas a que aludia Huntington. Tentar uniformizar o planeta
com os paradigmas da ponta do iceberg será sempre uma operação superficial
e frágil, como o próprio Fukuyama terminou por reconhecer. Procurar deslocar
a trama profunda das identidades ancestrais recorrendo à ponta do iceberg
traz como resultado um curso de ação digno do Titanic.
Como fazer para evitar que, ao perseguir os anjos possamos
cair na terra dos demônios?
Entre anjos e demônios
O Iraque pôs em evidência como, ao buscar a democracia, se pode recair
na violência, no caos social e no risco do desmembramento do Estado. É
também um bom exemplo do que poderia chegar a acontecer em grande escala
em uma região dominada por fronteiras artificiais, disputas de território,
populações e etnias irredentas e a presença de um Islã radical, militante e
ideologizado. Como assinalavam Roula Khalaf e Steve Negus no Financial
Times, “os resultados sugerem que os iraquianos votaram principalmente de
acordo com linhas étnicas e sectárias, agrupando-se em partidos religiosos
xiitas e curdos, deixando para trás os partidos nacionalistas e multiétnicos. A
marginalização das minorias sunitas é o principal dilema enfrentado pela
Assembléia Nacional, encarregada de eleger o próximo governo e de preparar
9
Harvard International Review, Outono de 2000.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
187
Alfredo Toro Hardy
a Constituição permanente do Iraque”.
10
Um editorial do Financial Times
mencionava o seguinte: “A Assembléia Constituinte eleita no dia 30 de janeiro
foi juramentada, mas os dois grandes blocos que a compõem – a ‘lista xiita’
vitoriosa e os curdos – ainda não chegaram a um acordo sobre a formação de
um governo provisório. A razão fundamental disso é Kirkuk, um microcosmo
formado por quase todas as etnias, religiões, tribos, tensões e agrupamentos
que ameaçam combinar-se e explodir, destruindo assim o futuro do Iraque”.
11
Ao fundamentar toda a complexa equação da reconstrução nacional e
viabilização democrática no presumido espírito de amplitude de um Aiatolá
octogenário e enfermo, os neoconservadores esquecem a combinação fatídica
de ressentimento sunita, revanchismo xiita e aspiração curda de um vôo
independente. Tudo isso diante da situação explosiva de Kirkuk e no meio da
interação de poderosas forças regionais, de uma insurgência que não pode ser
controlada militarmente e de um ódio generalizado e profundo dirigido contra
as tropas norte-americanas.
O Oriente Médio, ponto focal da atenção dos neoconservadores, na sua
grande cruzada democratizadora, constitui sem dúvida a região mais difícil do
planeta para uma operação de grande escala como essa. As gigantescas
complexidades enfrentadas no Iraque em função desse objetivo deveriam servir
de alarme com respeito aos riscos enfrentados. Riscos que deveriam aconselhar
prudência, compreensão dos limites e a maturação dessa experiência, antes de
multiplicar os cenários de experimentação. Como acontece habitualmente
quando o esforço é dirigido por uma ideologia, e não pelo senso comum, os
neoconservadores decidiram manter o pé no acelerador, e as pressões que
exercem estão obrigando a abrir comportas políticas em toda a região, com
conseqüências imprevisíveis. Para começar, não encontraram melhor âmbito
geográfico para testar as suas teorias do que a zona que abriga a maior parte
das reservas dessa seiva vital da economia do mundo: o petróleo.
Na política externa, de modo geral, e no Oriente Médio de modo muito
particular, os equilíbrios se assemelham muito ao equilíbrio dos ecossistemas.
Eis um só exemplo: a campanha de erradicação dos ratos levada a cabo na Índia
há algumas décadas teve como conseqüência um crescimento exponencial do
10
14 de fevereiro de 2005.
11
21 de março de 2005.
188 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
188
O regime democrático pode ser imposto?
número de serpentes. O enfraquecimento das opções seculares gera o
fortalecimento do islamismo; a debilitação do centralismo ou dos partidos
multiétnicos pode levar ao desmembramento de Estados; a alteração das
fronteiras ou da correlação de forças religiosas fundamentais, estimula a ameaça
de uma reação em cadeia regional, e assim sucessivamente. Não obstante, o
Governo Bush se introduziu no meio desses equilíbrios instáveis com a sutileza
de um elefante solto em uma loja de cristais.
Como se pode garantir que a democracia traga consigo
regimes com os quais os Estados Unidos possam conviver?
Democracia e islamismo
Os neoconservadores parecem confundir o poder derivado dos seus
imensos recursos econômicos e militares com o poder necessário para implantar
a democracia em culturas diferentes da sua, alterando equilíbrios regionais
complexos e a despeito da sua imensa impopularidade. O cálculo das
probabilidades de que o resultado final seja indesejável tem um valor gigantesco.
Segundo The Economist, a última pesquisa do Pew Research Center sobre a
popularidade dos Estados Unidos no mundo comentava que “o antiamericanismo
é agora mais amplo e mais profundo do que em qualquer outro momento da
história”.
12
Assim, de acordo com essa mesma pesquisa, em nenhum outro
lugar a impopularidade norte-americana atinge os extremos evidenciados no
Oriente Médio, onde os Estados Unidos é associado a Israel e identificado
como inimigo dos palestinos e do Islã. Outra vez, o senso comum mais
elementar aconselharia a não usar essas credenciais como base para uma
operação maciça de mudança de regimes. Como bem disse Harvey Morris,
correspondente do Financial Times em Jerusalém, em um artigo publicado
naquele jornal, os eleitores escolherão “a opção que melhor desafie o status
quo”.
13
. E como esse status quo está associado até a medula com os Estados Unidos,
12
19 de fevereiro de 2005.
13
6 de março de 2005.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
189
Alfredo Toro Hardy
é fácil antecipar o que vai acontecer quando o povo das ruas seja convocado
para as urnas eleitorais.
Segundo Harvey Morris, em boa parte do Oriente Médio a escolha das
ruas é claramente o islamismo. No Egito, a oposição com opção de poder é
a Irmandade Muçulmana; no Líbano, a Hezbollah; na Palestina, Hamas. Em
outras palavras, movimentos qualificados por Washington como terroristas.
Conforme sustentava um editorial do Financial Times, “a democracia é
complicada em qualquer parte, mas no Oriente Médio é muito mais
complicada. O Iraque, por exemplo, ao dar o poder à maioria xiita, pôs em
movimento um processo telúrico, encorajando-a no meio de uma região
sobressaltada. Em Washington, alguns setores já começaram a refletir o
pânico dos seus clientes árabes sunitas. Na Palestina e no Líbano, assim
como no Iraque, as eleições favorecem os partidos islamistas como Hamas,
Hezbollah e Da’wa. As variedades islamistas teriam êxito também em outras
partes: os tiranos só deixaram aos seus opositores um único lugar de encontro:
as mesquitas”.
14
E o que acontecerá quando o islamismo ameace apossar-se do poder
por via eleitoral? Como aconteceu na Argélia em 1992 optar-se-á pelo golpe
de Estado como mal menor? Assim, do ponto de vista do interesse nacional
dos Estados Unidos, que sentido tem favorecer a desestabilização das suas
alianças regionais para navegar, sem um mapa, por mares estranhos?
Com que base é preciso julgar o tipo de democracia desejável?
Qual democracia?
De acordo com Raymond Aron, “repetimos sempre que o poder vem do
povo, e que no povo reside a soberania. Sendo assim, o que importa antes de
tudo é a modalidade institucional que permita traduzir melhor o princípio
democrático”.
15
Em outras palavras, não se pode falar de “democracia”, no
singular, pois o termo implica formas tão variadas quanto as diferentes
14
5/6 de março de 2005.
15
Démocratie et Totalitarisme, Paris, Gallimard, 1975, p. 98.
190 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
190
O regime democrático pode ser imposto?
possibilidades de “traduzir o princípio democrático.” Assim como o
capitalismo contempla múltiplas variáveis, que vão desde a economia de
mercado anglo-saxônica até os modelos renano, gaulês ou asiático, também
em matéria de democracia as opções variam. Entre a democracia cabalmente
representativa e a claramente participativa, há um amplo espectro de
possibilidades. O problema consiste em que, para os Estados Unidos, falar
de “democracia” implica falar de um modelo particular de democracia,
surgido à luz de uma experiência histórica muito particular. A pluralidade
de opções mencionada por Raymond Aron não tem cabimento no
pensamento político norte-americano, e muito menos no dos seus
neoconservadores.
Os “Pais Fundadores” dos Estados Unidos sempre alertaram contra
a chamada “tirania da maioria” – visão que provinha de Locke e dos liberais
ingleses da sua época. Nos Estados Unidos, desde a gestação da vida
independente se foi delineando uma concepção alternativa à simples regra
da maioria, fundamentada na idéia de uma sociedade conformada por
grupos e interesses contrapostos. A essência do governo consistia,
precisamente, em arbitrar essas diferenças, consideradas como base
primordial da vida em sociedade. Essa noção “antimajoritária” da
democracia se viu consolidada a partir de meados do século XX, com a
chamada “teoria das elites”, que tem como ponto de partida Joseph
Schumpeter. Os representantes dessa escola de pensamento estabeleceram
uma distinção entre “democracia de massas” e “democracia liberal”, vendo
a primeira como uma ameaça à verdadeira democracia. Assim se
compreende hoje a democracia nos Estados Unidos, como uma proliferação
de minorias, simbolizadas pelos grupos de interesses, cuja proteção é tarefa
do Estado, resguardando-as do impulso das maiorias.
Não obstante, assim como para os estrangeiros é tão difícil compreender
a “ditadura das minorias” existente nos Estados Unidos, diante das parcelas
gigantescas de poder político detidas pelos seus grupos de pressão, seus
“triângulos de ferro” e seus “barris de porco”, os norte-americanos deveriam
compreender a legitimidade de outras opções. Mas não é o que acontece,
especialmente para os neoconservadores, que sempre tiveram um profundo
desprezo pela “maioria sem inteligência”. O risco concreto que se corre,
portanto, é que Washington procure não só implantar a democracia no Oriente
Médio, mas que pretenda implantar a “sua democracia”. Isso em um contexto
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
191
Alfredo Toro Hardy
caracterizado tradicionalmente pelas lideranças carismáticas, baseadas na força
das massas.
O perigo das fantasias
O curioso nesses “neowilsonianos” é que ignorem tão claramente duas
das premissas fundamentais do pensamento de Woodrow Wilson. São elas,
em primeiro lugar, a importância do multilateralismo cooperativo, que se
transforma em uma espécie de projeção natural dos governos democráticos;
em segundo lugar, a contradição existente entre o princípio de
autodeterminação nacional, próprio da democracia, e a realidade imperial. Os
neoconservadores não só desprezam o multilateralismo cooperativo como
procuram impor a autodeterminação democrática por vias abertamente
imperiais, a ponto de considerar-se como “imperialistas democráticos”. Não
obstante, além das inconsistências com o pensamento wilsoniano, seu maior
defeito estaria no afastamento do realismo político próprio da tradição
rooseveltiana. Isso os coloca em uma sorte de dimensão metapolítica,
desenhada à imagem e semelhança das suas fantasias. Em outras circunstâncias,
não mereceriam sequer ser levados a sério. Lamentavelmente, porém, o seu
poder extraordinário os transforma em um ponto de referência fundamental
da geopolítica mundial.
Ao terminar o século XX, os Estados Unidos tinham alcançado uma
posição inédita. Nunca antes na história uma potência imperial conseguira
transcender de tal forma os limites do poder coercitivo, para gerar um consenso
internacional em torno dos seus valores e lograr projetá-los como essência de
uma ordem e de uma cultura com aspirações de universalidade. No fim dos
anos 90, os Estados Unidos tinham formado uma coalizão global integrada
por via de mercados, instituições multilaterais e sistemas de aliança. Mais
ainda, enfatizando seu “poder suave”, tinham conseguido que a globalização
levasse aos mais remotos rincões do planeta a essência das suas crenças, do
seu estilo de vida e cultura peculiar. Definitivamente, o novo milênio começou
com um quadro de governabilidade mundial sem paralelos, no qual os Estados
Unidos exerciam uma hegemonia incontestada, mas não agressiva. Em cinco
anos, os neoconservadores se encarregaram de derrubar todo esse quadro,
gerando níveis de antipatia nunca antes vistos para com o seu país e tudo o
que ele representa. Seguindo esse caminho, desfizeram alianças, desbancando
192 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
192
O regime democrático pode ser imposto?
Tradução: Sérgio Bath.
instituições internacionais, fomentaram paranóias que se traduzem na busca de
armamento nuclear e radicalizaram regimes que teriam preferido estender sua
amizade a Washington. É uma maneira curiosa de promover a difusão pelo
mundo dos seus valores.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Roberto Lavagna
193
Documentos:
Carta dos Presidentes
Hugo Chávez e Tabaré
Vázquez aos Presidentes dos
países da América de Sul
Montevidéu, Agosto de 2005
Senhor Presidente
Estimado Presidente e Amigo,
Os Presidentes pro tempore da Comunidade Andina (CAN) e do Mercosul
reuniram-se em Montevidéu, em 10 de agosto de 2005, em virtude de um
compromisso ineludível e de uma esperança concreta.
O compromisso é com a própria história forjada pelos nossos povos e,
também, com o espírito e a letra dos mandatos de unidade recolhidos nas
respectivas plataformas de integração regional e na Declaração de Cuzco de 8
de dezembro de 2004. A esperança reside em que contamos hoje com a
inescusável oportunidade histórica para que a unidade se materialize em função
dos desejos, necessidades e direitos dos povos latino-americanos.
Hoje, mais do que nunca, a urgência de construir o nosso próprio caminho
nos une e convoca. Urgência determinada historicamente pelo insustentável
ônus da dívida social: estamos obrigados a atuar, a passar das palavras para os
A Argentina, rumo a outra dimensão de país
194 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
194
fatos. São inaceitáveis a desigualdade, a exclusão e o desamparo social. O
pagamento dessa dívida não pode continuar esperando e deve ocupar o
primeiríssimo lugar em uma nova agenda de integração que caminha rumo à
unidade. Se queremos ser fiéis ao legado dos nossos Libertadores, essa é a primeira
responsabilidade dos que conduzimos as nações da América Latina.
A unidade sul-americana continua sendo uma tarefa histórica pendente
para nossas nações e nossos povos. Por isso, é necessário voltar-nos para a gesta
emancipadora a fim de reencontrarmos o caminho lavrado. Para retornar à senda,
estamos obrigados a maximizar a memória e a minimizar o esquecimento.
Depois do triunfo de Ayacucho, coroado pelas forças patrióticas no
glorioso 9 de dezembro de 1824, a independência foi conquistada, mas
poderosos interesses internos e externos frustraram o grande projeto unitário
que estava associado indissoluvelmente à emancipação. “Arei no mar” –
expressou em uma frase estarrecedora o Libertador Simón Bolívar, antes de
morrer em Santa Marta. Foi a profecia trágica dos tempos que se avizinhavam;
tempos que estariam sob o signo da balcanização. Não obstante, durante todo
o século XIX, a corrente unitária não deixou de exibir sua presença e de lutar.
Cremos, querido Amigo, que chegou o momento de síntese desses grandes
esforços. A hora da unidade continental está soando em todos os relógios: temos
de insistir na construção de um caminho que seja o nosso caminho. Palpitam
ainda as palavras iluminadoras do General José Artigas: “Nada podemos esperar
senão de nós mesmos.” Seguramente de nada serviram os modelos impostos ou
reproduzidos acriticamente, de forma que o que vivemos como resultado de um
modelo alheio é também nossa responsabilidade.
Estamos obrigados a acelerar o processo de integração regional para dar
uma resposta às necessidades e para respeitar os direitos dos povos do Sul. É,
por isso, Senhor Presidente, que estamos fazendo este chamado à reflexão e à
ação – que consideramos tão pertinente como urgente – de modo a impulsionar
conjuntamente a recém criada Comunidade Sul-Americana de Nações.
O que desejamos propor-lhe, Amigo Presidente, é o ingresso definitivo
em uma etapa real e verdadeiramente nova no nosso processo integrador.
Acreditamos que está ao nosso alcance uma proposta histórica e inovadora e,
por isso, a submetemos à sua consideração: criar uma Comissão Sul, incumbida
de estudar e propor um Plano Estratégico 2005-2010 para a verdadeira
integração sul-americana.
Documentos
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Roberto Lavagna
195
Em Brasília, nos dias 29 e 30 de setembro de 2005, durante a Cúpula
Sul-Americana, formalizaríamos essa Comissão, que teria o encargo de estudar
e elaborar os seguintes temas:
1. Corresponderia à Comissão propor o nome que defina nosso processo de
integração. Conasul poderia servir como ponto de partida, pois enfatiza a idéia de
comunidade e exemplifica, assim, a proximidade fraterna de povos que se sabem
parte de uma mesma identidade, e que soberanamente decidem caminhar juntos.
2. Seriam responsabilidades da Comissão considerar e apreciar o tipo de
organização sobre a qual deveria fundamentar-se a unidade sul-americana. Em
um mundo construído com a base de Estados nacionais, Senhor Presidente, a
integração regional é um dos desafios políticos mais relevantes e mais árduos.
Contamos com uma vantagem: a memória histórica coletiva entre nossos povos
precedeu, há muito tempo, a unidade política e econômica ainda em construção.
Por isso, a fim de aplainar o caminho na busca do tipo de estrutura da Conasul, a
Comissão, orientada pela premissa de que não é possível transformar sem criar,
estudaria mecanismos para incorporar a institucionalidade própria de uma integração
de Estados soberanos, fundamentada no princípio da igualdade entre as Nações.
3. A Comissão poderia ser um espaço comum de reflexão a respeito dos
conteúdos da integração sul-americana em termos de objetivos concretos de
curto, médio e longo prazo, com a distribuição de responsabilidades, meios
para execução e capacidade de avaliação do seu cumprimento. Dentro desse
quadro, e sem prejuízo de reconhecer a plena vigência dos processos de
integração sub-regional em andamento, a Comissão Sul estudaria a
harmonização dos âmbitos políticos e econômicos existentes, a integração de
setores estratégicos, a cooperação e a unidade a respeito de outros países e
blocos, o respeito comum de nossas identidades e o cuidado profundo da
nossa riqueza ecológica. O processo de integração tem de ser um processo
democrático, participativo, protagônico e de construção de cidadania: para
constituir uma Comunidade integrada harmonicamente é necessário liberar-
se de todas as formas de exclusão de que sofrem nossos Povos.
4. A Comissão trabalharia para combater a pobreza, integrando recursos
e esforços em um Plano de Emergência Social que, a partir de um Fundo
específico, ajude a construção de uma autêntica cidadania sul-americana;
5. A Comissão proposta exploraria as possibilidades de consolidar uma
aliança estratégica que permita aproveitar todos os recursos disponíveis. Nesse
aspecto, a Petrosul marca um início auspicioso.
Carta dos Presidentes Hugo Chávez e Tabaré Vázquez aos Presidentes dos países da
América de Sul
A Argentina, rumo a outra dimensão de país
196 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
196
A América do Sul deve integrar-se com base em um conceito de
comunidade organizada, e é preciso contribuir para esse processo com toda a
inteligência e vontade que tal objetivo requer, sendo necessária, para isso, a plena
vigência das instituições democráticas.
Queremos reafirmar, com ênfase, que a nossa proposta não é produto de
particularidade alguma: ela procura simplesmente recolher o ensinamento da
história, projetando-a para o futuro, reconhecendo a necessidade de superar
assimetrias estruturais existentes na região e assumindo uma estratégia de
cooperação e complementação entre nossos países, condição ineludível para
que as relações econômicas sejam benéficas para todos.
Não partimos do zero. Possuímos saberes e experiências que devemos
compartilhar. Dessa perspectiva, a Comissão Sul seria, além de tudo, um âmbito
para sistematizar iniciativas, tais como Programas Sociais, Desenvolvimentos e
Transferências Científico-Tecnológicas em uma Universidade do Sul, Telesul,
uma Rede de Radioemissoras do Sul etc.
Por último, e sem pretender esgotar a lista de temas a considerar, a Comissão
estudaria os passos para a criação de um Banco do Sul, com capacidade para financiar
projetos de investimento econômico e social nas condições mais vantajosas, em
especial para apoiar as pequenas e médias empresas e as cooperativas.
Com a humildade que deve sempre nos acompanhar, mas também com a
certeza de estar respondendo ao desafio da unidade assinalado pelos
Libertadores, queremos reivindicar as palavras de Bolívar ao convocar o Tratado
de União, Liga e Confederação Perpétua, quando propôs para o continente “um
pacto perpétuo de amizade firme e inviolável, e de união íntima e estreita com
todas e cada uma das partes referidas. É esse o espírito que nos animou a dirigir-
nos a Vossa Excelência. É esse o espírito que fala pela voz de milhões de
compatriotas da nossa América do Sul.
Por tudo isso, pedimos aos Presidentes da América do Sul, pedimos a Vossa
Excelência que acompanhe o impulso construtivo e criativo recolhido nesta carta e
apóie a criação da Comissão Sul, para que continue a semeadura da nossa
impostergável unidade, que nossos povos estão reclamando com a força de séculos.
Receba uma saudação fraternal,
Hugo Chávez Tabaré Vazquez
Documentos
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Roberto Lavagna
197
A reinvenção do real
Ferreira Gullar
*
João Câmara é um exemplo único de pintor para quem a realidade se
articula, se pronuncia e se manifesta numa série ilimitada de imagens, como
está evidente sobretudo no álbum intitulado “Originais, modelos, réplicas”,
onde faz uso do computador para ainda mais amplamente violentar as
formas e explorar a virtualidade das imagens.
* Poeta e Jornalista
Mas, já antes, ele lançou mãos do mesmo recurso ficcional - mas em
outro nível - nas obras concebidas em séries, como “Cenas da vida brasileira”
Beco da Alfândega
A reinvenção do real
198 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
198
e “Dez cenas de amor e uma pintura de Câmara”, nas quais explora temas
diversos e com eles, por isso mesmo, constrói universos de motivos e fatos
pictóricos inesperados. A primeira destas séries inspira-se nos anos do governo
Vargas (1930 a 1945) e, por isto, enfoca personagens da vida política brasileira,
enquanto na segunda, de caráter intimista, não se interessa pela representação
ou caracterização de personagens mas, sim, pela exploração pictórica da
situação erótica sugerida. O fato de se tratarem de séries e não de obras isoladas
já lhes imprime um tom peculiar, característico da pintura de Câmara, além de
outros recursos usados pelo pintor, como a inserção, na primeira das séries, de
objetos domésticos como vasos sanitários, pias ou ferro de engomar de mistura
com personagens históricos. Tal intenção, evidentemente sarcástica e
desmistificadora, não se encontra na outra série - “As Dez cenas de amor” -
onde o propósito do artista não é desmistificar mas, antes, mitificar, ou seja,
gerar uma atmosfera de envolvimento e cumplicidade por parte do espectador.
Vale a pena, no entanto, tentar entender a presença daqueles objetos na
série histórica de João Câmara. Detenho-me a considerá-los na sua fascinante
e metálica “realidade” de coisa representada: os detalhes do moedor de café,
da prensa, da máquina de costura. Revelar-nos o fascínio do objeto e a sua
estranheza é parte, sem dúvida, das intenções de João Câmara, mesmo porque,
se bem se observa, ele é mestre em desvelar a estranheza das formas,
especialmente das formas humanas. O realismo objetivista de sua linguagem
pictórica é mera aparência: aprendeu com os surrealistas a se valer dele para
tornar mais verídica a ilusão, a violentação da objetividade.
O quadro estampado na capa deste número da DEP (“Beco da
Alfândega”) pertence a uma terceira série - Duas Cidades – cujos temas
inspiradores são Recife e Olinda. A figura deste homem de bengala e chapéu-
de-palha está impregnada de nostalgia e arcaísmo, como aliás todos os demais
elementos – igrejas, pontes, paisagens, praças e ruas - que constituem esta
série, bem distinta das anteriores; distinção que se é basicamente temática,
expressa-se também na atmosfera psicológica e nos variados suportes de que
lança mão o artista.
Dois traços caracterizam basicamente, no meu entender, a obra de João
Câmara Filho: uma linguagem figurativa tecnicamente sofisticada e uma
elaboração intelectual intensa presente do início ao fim do processo criador.
Esses dois fatores determinam, por sua vez, a particularidade de sua pintura e
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Roberto Lavagna
199
a situam de modo inconfundível no âmbito da arte brasileira. Se é verdade que
ele, como parte da geração que surgiu nos anos 60, possui traços característicos
dessa geração, não é menos certo que, em sua obra, esses traços ganharam
função e significação peculiares: o retorno à linguagem figurativa, por exemplo,
tem em João Câmara desdobramentos e conseqüências que não vejo em
nenhum outro artista contemporâneo.
Podem-se definir os pintores de variadas maneiras e cada uma delas
corresponderá certamente às características específicas de cada um deles. Em
termos gerais, os dividimos hoje em figurativos e abstratos. Desnecessário dizer
que a linguagem abstrata da pintura não corresponde às necessidades imaginativas
de João Câmara, para quem pintar é expressar-se através de figuras, isto é, da
imagem das coisas, dos objetos, dos animais, das pessoas, mas também de entes
fictícios como anjos ou demônios. Pode-se dizer, aliás, que para João Câmara, o
pintor, essa distinção é secundária, uma vez que a realidade da pintura é
constituída de imagens e, assim, tanto faz que sejam imagem de seres reais ou
inventados. E aqui chegamos a um ponto nodal para o entendimento da arte de
Câmara, pintor da pintura, metapintor, que dialoga com o mundo não através
das coisas reais, mas das imagens que as representam e não apenas como
aparência, mas como essência. Entendido, porém, que João Câmara age como
uma espécie de taumaturgo no universo das imagens, mas também como um
prestidigitador (e prestidigitalizador...) que nos surpreende com as
desconsertantes aparições que provoca. O que torna inevitável indagar se ele
efetivamente nos mostra a essência do real ou arbitrariamente a inventa.
Ferreira Gullar
A reinvenção do real
200 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
200
Construtora
Norberto Odebrecht
As exportações de serviços de engenharia e a
integração sul-americana
A
capacidade de gerenciar um empreendimento qualifica uma empresa
exportadora de serviços de engenharia como uma estruturadora de negócios. Para a melhor
compreensão desta atividade, pode-se tomar como exemplo uma licitação
internacional para a construção de uma usina hidrelétrica no exterior. Para estar em
condições concretas de disputar a concorrência, as empresas de engenharia devem
ser capazes de entregar uma usina hidrelétrica pronta para entrar em operação. Isto
vai muito além da construção, pois engloba não apenas as obras civis com a barragem,
mas também a compra, instalação e montagem dos equipamentos de geração e
transmissão de energia, além do projeto em si – de arquitetura e engenharia consultiva
– e dos estudos auxiliares, dentre os quais os de viabilidade e de inventário, por
exemplo. Caso a viabilização econômico-financeira do projeto, que pode chegar a
casa do bilhão de dólares, também faça parte do processo licitatório, a empresa
deverá também negociar as melhores condições de financiamentos e garantias junto
às instituições financeiras para apresentar ao licitante.
www.odebrecht.com.br
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Roberto Lavagna
201
Em razão das suas atividades, as empresas de exportação de serviços de
engenharia precisam estar em contato com os setores público e privado dos países
onde os empreendimentos são executados. Assim, pelo fato de estarem associadas à
melhoria das condições de infra-estrutura, contribuem para a aproximação entre os
países e consolidação de alianças. Torna-se claro, então, que esta integração bi ou
multilateral é estratégica uma vez que promove fluxo de informação e intercâmbio
cultural por conseqüência da necessidade de entendimento dos contextos social,
político e econômico das regiões, antes e durante a execução das obras, atingindo a
sua plenitude quando da utilização das mesmas.
O mercado mundial de serviços de engenharia movimenta cerca de US$
400 bi anuais e as exportações correspondem a 30% desse mercado. As
empresas oriundas da América do Sul, por sua vez, possuem participação de
apenas 1% no mercado mundial e, seguindo a mesma lógica, de somente 5%
do seu próprio mercado. Em termos comparativos, a participação das empresas
européias e americanas no mercado mundial é de 58% e 21%, respectivamente.
Na América Latina, as empresas européias têm 48% do mercado, enquanto as
norte-americanas possuem cerca de 38%. As asiáticas vêm em terceiro lugar,
com 18% do mercado mundial e 9% do mercado latino-americano.
Usina Hidrelétrica de Pichi Picún Leufú
A Argentina, rumo a outra dimensão de país
202 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
202
No período de 1980 a 2002, por exemplo, entre 30 a 40 países tiveram
empresas listadas no ranking das 225 maiores empresas exportadoras de serviços
de engenharia da publicação norte-americana Engineering News Record, principal
referência do setor em todo o mundo. Em 2002, especificamente, foram 34
países. Entretanto, o mercado é altamente concentrado. Neste ano, apenas as
empresas norte-americanas, francesas e alemãs foram responsáveis por 43%
das exportações totais. Somando-se as exportações das empresas suecas,
japonesas e britânicas, chega-se a 70% do total. A situação não é diferente no
segmento de arquitetura e engenharia consultiva: apenas as empresas norte-
americanas, britânicas e canadenses representaram 67% das exportações totais.
Parte do predomínio de empresas européias, norte-americanas e asiáticas
se explica pelo fato do mercado de serviços de engenharia ser bastante
regionalizado. Empresas européias têm na própria Europa seu principal
mercado de exportação, empresas asiáticas são muito atuantes na própria Ásia,
e assim por diante. Muito embora as empresas da América Latina concentrem
seu foco na própria região, sua penetração ainda é bastante tímida.
Sistema Viário e Ponte Mista sobre o Rio Orinoco
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Roberto Lavagna
203
Além de possuir uma pequena base, a América do Sul ainda tem perdido
participação no mercado de exportação de serviços de engenharia. Em 1991,
seis das 225 maiores empresas exportadoras eram da região, sendo cinco
brasileiras. Em 2002, eram quatro empresas, sendo duas brasileiras, uma
venezuelana e uma equatoriana, que juntas exportaram cerca de US$ 1 bilhão.
Não obstante, cabe destacar o papel do setor no desenvolvimento da
Iniciativa para a Integração da Infra-Estrutura Regional na América do Sul
(Iirsa), programa sob coordenação operacional do BID, CAF, Bndes e Fonplata,
que tem como objetivo integrar fisicamente os doze países do continente sul-
americano através de projetos nas áreas de transportes, energia e comunicações.
Para disputar os contratos, as construtoras estrangeiras oferecem aos países
que realizam o investimento em infra-estrutura um crédito à exportação. Este
crédito se destina ao financiamento dos bens e serviços exportados para o projeto
e, dessa forma, complementa os recursos totais necessários para o investimento.
No que tange às garantias, e pelo fato dos países desenvolvidos serem dotados
de um sistema financeiro com maior capacidade de crédito, o Convênio de
Créditos Recíprocos (CCR) aparece como um instrumento estratégico regional
de nivelamento das condições de competição para os países sul-americanos.
O CCR funciona como uma combinação de um mecanismo de clearing
somado a um mecanismo de garantias mútuas. No Convênio, os bancos centrais
dos doze países participantes (Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia,
Equador, México, Paraguai, Peru, República Dominicana, Uruguai, Venezuela)
se comprometem a aceitar, irrevogavelmente, débitos provenientes de
operações de importação e exportação cursadas dentro do mesmo. Os débitos
e créditos de todos os países são compensados multilateralmente a cada
quadrimestre, de forma que só são transferidos os saldos resultantes, tendo
como conseqüência direta a menor necessidade de transferência de divisas.
Em 1966, ano em que o convênio foi criado, a importação de produtos na
região não atingia nem 1 bilhão de dólares. Hoje, já chega a US$ 45 bilhões.
No entanto, o valor poderia ser ainda maior caso as restrições atuais ao CCR
fossem revistas e suas vantagens mais fortemente exploradas.
O auge do funcionamento desse sistema ocorreu na década de 80. Em
1989, 91% do total das importações sul-americanas foram feitos através do
CCR, que atingiu US$ 10 bilhões. Já em 1996, início do período de grande
liquidez internacional, com incremento dos fluxos de capitais destinados aos
A Argentina, rumo a outra dimensão de país
204 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
204
países da América do Sul, essas operações diminuíram drasticamente, o que foi
influenciado pelo fim de sua obrigatoriedade. A movimentação ao longo de
2003, de apenas US$ 1,4 bilhão, comprova a queda brusca. Para a consecução
dos objetivos relacionados à integração regional, no entanto, o CCR precisa
voltar a receber adesão constante dos 12 países da Aladi. Operado com
transparência, ele pode atrair cada vez mais recursos do mercado e, assim,
voltar a ser um produto financeiro de grande utilidade estratégica.
Por fim, cabe ressaltar que a importância do convênio torna-se ainda mais
evidente em momentos de retração do mercado financeiro internacional, pois
fortalece a cooperação multilateral entre os bancos centrais. Para melhor
compreensão dessa função do CCR, torna-se válida a comparação com um
antigo sistema europeu. Antes da Comunidade Européia, em 1950, foi criada a
União Européia de Pagamentos. O formato e os objetivos de ambos se
assemelham. Ao representarem um meio de pagamento das operações de
comércio exterior intrabloco, eles cumprem a função de uma moeda comum.
Contribuindo para a estabilidade entre as moedas dos diferentes países, o convênio
reduz a sua vulnerabilidade diante da valorização do dólar. Desse modo, o CCR
favorece a condição dos países sul-americanos de competir com as nações
desenvolvidas por meio do fortalecimento dos sistemas financeiros dos Estados
conveniados, da expansão do comércio regional e da viabilização de projetos de
infra-estrutura no âmbito da integração física da América do Sul. Esse
fortalecimento é vital, especialmente neste momento em que o mundo caminha
para a formação de grandes blocos econômicos regionais.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - ABRIL/JUNHO 2005
Roberto Lavagna
205
Grupo
Andrade Gutierrez
Uma epopéia nos confins do mundo
A história da rodovia erguida sobre
as águas, em plena floresta
U
ma obra de contornos épicos, erguida sob as condições ambientais e logísticas
mais terríveis, e que consolidou o atestado de maturidade da engenharia brasileira no
enfrentamento de situações adversas. Este pode ser o resumo breve do que foi a
construção da rodovia Manaus-Porto Velho, a obra monumental realizada pela
Construtora Andrade Gutierrez nas entranhas da floresta amazônica, de julho de 1968
a dezembro de 1975. Muito mais que uma obra de engenharia, por mais diferenciada
que esta tenha sido, a execução da BR-319 carrega o signo da grande aventura humana
que é transformar a terra para torná-la apropriada aos seus sonhos e projetos.
É difícil imaginar outro cenário mais desafiador: o coração da selva
amazônica, desconhecido e inacessível, completamente alagado por chuvas
www.agsa.com.br
A Argentina, rumo a outra dimensão de país
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206
diárias, castigado por um calor sufocante e fértil em doenças como malária e
febre amarela. Ali, as árvores gigantes reduziram os homens, atolados até os
joelhos, abandonados pelo mundo civilizado, longe dos amigos, sem televisão,
sem rádio, sem qualquer acesso imediato à vida à qual conheceram. Pois em tais
condições se deu a construção desta estrada que cortava pântanos e matas para
ligar as capitais do Amazonas e de Rondônia.
As décadas de 60 e 70 marcaram o projeto brasileiro de abertura de novas
fronteiras. No esforço de promover a interiorização do país e a integração da
Amazônia, o que implicava em construir estradas e ocupar largos espaços do território
nacional, a Andrade Gutierrez conseguiu se antecipar tornando-se uma pioneira nas
obras da região. A empresa participou das obras da Belém-Brasília, com
acampamentos nos municípios de Estrela do Norte e Vista Alegre, no Pará. Mas
havia uma enorme diferença entre os estados amazônicos. No Pará, ainda se via, ao
longo da estrada, os sinais da permanência do homem, tais como serrarias e
hospedagens. No Amazonas, só a solidão e o isolamento. O vazio e o imponderável.
Lição de vida
Os números envolvidos na BR-319
impressionam. A começar pelos 874 km
de pista pavimentada, construídos
praticamente sobre as águas, em terreno
invariavelmente plano, com áreas de
pântanos e alagadiços. O projeto
envolveu 17 obras de artes especiais,
20,8 milhões de m
3
de terraplenagem,
18,1 milhões de m
3
de compactação
controlada, 1,1 milhão de m
2
de sub-
base de solo estabilizado e 855 mil m
3
de base estabilizada de solos lateríticos.
Para fazer tudo isso não bastava ser
apenas uma boa construtora, de performance comprovada em obras de engenharia
complexa. A execução de tal projeto exigiu bem mais, homens preparados para
enfrentar o inferno das adversidades, maturidade no gerenciamento de equipes,
criatividade para encontrar as soluções técnicas e operacionais aos desafios cotidianos,
perfeita organização e domínio absoluto dos aspectos logísticos.
Construção da BR-319 Manaus-Porto Velho
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Sob tantas condicionantes, a Manaus-Porto Velho tornou-se uma escola
sem precedentes, uma lição tanto de engenharia quanto de estrutura
administrativa. A questão logística apresentou-se como a mais delicada. Como
não houve qualquer estrutura de apoio ao longo do trajeto, foi necessário se
preocupar não só com os aspectos de engenharia, mas também com o
suprimento de centenas de funcionários e suas famílias, isolados na maior
floresta do mundo.
Todas as provisões, alimentos, peças de reposição de máquinas,
equipamentos, eram levadas de barco ou de avião. Os equipamentos mais
pesados demoravam até oito dias para chegar ao seu destino, transportados ao
longo dos rios por grandes barcaças. “Esta obra foi a mais completa tradução
de nossas ambições e de nossa capacidade de realização”, lembra um engenheiro
que viveu o dia-a-dia dos trabalhos.
As dificuldades pareciam não ter fim e foi preciso reunir conhecimentos
variados. Para aqueles homens enfronhados na mata e mesmo para os que
ficaram nos escritórios de apoio, aquela foi uma das mais difíceis obras já
executadas pela engenharia brasileira. Realizá-la exigiu tecnologia, logística,
capacidade gerencial e muita coragem para enfrentar o desconhecido e a força
bruta da natureza. De um lado, a selva se desenhando como o fim do mundo,
um mistério e um perigo. Do outro, a adaptação da equipe ao ambiente hostil,
a costumes diferentes, tais como a alimentação, quase que exclusivamente à
base de peixe e farinha.
A invenção da terra
O aspecto mais preocupante da BR-319 estava na quantidade de chuva.
O trabalho de terraplenagem, na região que registra o maior índice
pluviométrico do mundo, foi arrastado, lento, com interrupções freqüentes e
bastante oneroso. Uma verdadeira prova de fogo para engenheiros,
encarregados, mestres-de-obra, tratoristas e, principalmente, para os homens
de linha de frente que tiveram que abrir picadas, derrubar árvores, criar clareiras
onde puderam montar os acampamentos. O que se construía num dia, a chuva
destruía na manhã seguinte.
A obra foi organizada em duas frentes: uma, saiu de Porto Velho em
direção a Manaus. Outra, no sentido oposto. Ambas viveram momentos difíceis,
em função das áreas de alagadiço puro. Do quilômetro 25 ao 40, a partir de
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Manaus, tudo ficava sob água no período das cheias. Do km 40 ao 100,
alternavam-se os trechos inundados.
Diante de tanta água, foi preciso literalmente inventar uma terra firme
onde foi construída a estrada. Assim, no período da seca, escavou-se as laterais
da estrada e a terra foi jogada na pista. Na época das chuvas, esses buracos se
enchiam de água e transformavam-se em enormes piscinas de até 10 metros
de profundidade. Foram comuns os acidentes com carros que saíam da estrada
e caíam nessas piscinas às suas margens.
Nos registros de memória oral coletados ao longo da obra, um chefe de
manutenção assim descreveu a situação inusitada: “na época das chuvas, a
gente não andava na estrada...em cima dela, não! Era de barco, ao lado, porque
a água enchia dos dois lados ao longo de 80 quilômetros. Então, em vez de
andar de carro na estrada, a gente ia de barco...”.
A criatividade das equipes de obra foi essencial para superar os problemas.
Soluções técnicas e novos equipamentos foram desenvolvidos, tais como
veículos adaptados com grandes pneus de baixa pressão para flutuar na lama e
secadores a diesel que eliminavam o excesso de umidade do solo, antes da
mistura com cimento. Ou até uma máquina que desenrolava um plástico
enorme para cobrir a pista ao menor sinal, dado por um funcionário no alto
de uma árvore de 30 metros, de aproximação das chuvas.
Para complicar ainda mais este quadro de dificuldades, até as pedras
essenciais para fazer a sub-base do pavimento estavam a 420 quilômetros de
distância, numa pedreira que ficava sob as águas por um bom período do
ano. Na época da seca, a brita era retirada, colocada nas barcaças e transportada
até a obra, num trabalho que se estendia por vários dias.
Solidariedade e coragem
As precárias condições de vida e a responsabilidade de executar, neste
contexto adverso, um projeto de importância estratégica para o país ajudaram
a moldar um comportamento exemplar em toda a equipe, no qual sobressaíram
o companheirismo e a solidariedade. Aos poucos foi disseminada a certeza de
que se lutou por algo maior que a sobrevivência. Lutou-se contra os próprios
limites para deixar uma marca inequívoca da superioridade humana.
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O início das obras foi terrível. As casas eram barracas feitas de palha de
coqueiro, construídas com a ajuda dos caboclos da região. O chão, de terra
batida, sem piso. O acampamento mais parecia uma aldeia de índios. Algumas
carretas foram adaptadas como apartamentos para engenheiros e como cozinha
e administração.
Difícil é imaginar a vida assim, com mais um agravante: a ausência de
luz elétrica inviabilizava o uso da geladeira e tornava o estoque um problema
sério, dificultando o suprimento de alimento da equipe. Era comum uma
seqüência de dias nos quais a comida se resumia a salsicha e palmito em lata.
A carne bovina era trazida de
avião e atirada do alto para o
acampamento, e imediatamente cozida
para durar de dois a três dias. Os
ribeirinhos passaram a fazer negócios
com a empresa, trazendo, em seus
pequenos barcos, bois e peixes. Naquele
ermo, não é de se estranhar que muita
gente tenha demorado a saber que o
Brasil havia conquistado o
tricampeonato mundial de futebol...
Com o passar do tempo, à
proporção que a estrada foi impondo
seu trajeto entre os intermináveis caminhos de água, saindo da região mais
alagada, o trabalho ficou mais fácil, voltou à normalidade. As equipes
subsequentes encontraram condições de vida mais adequadas. As casas de
capim foram substituídas por outras de metalón. A eletricidade chegou pelo
acostamento e foi possível a instalação de chuveiro, geladeira e televisão.
Mesmo assim, o isolamento ainda era grande e persistiam as dificuldades
ambientais, emocionais e técnicas. Para neutralizar essas pressões, só mesmo
muita energia, fé e disposição de todos que estiveram na empreitada.
Um aprendizado completo
A inserção da Andrade Gutierrez no seleto grupo das maiores
construtoras do mundo se deve sobremaneira a esta obra. O pioneirismo do
Rodovia finalizada: obra da Andrade no Congo
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projeto, as dimensões exageradas de tudo o que precisou ser feito, as mudanças
estruturais que a empresa foi obrigada a incorporar e a formação do perfil
psicológico e profissional das pessoas que trabalharam na obra tornaram-se
uma lição de vida. A Manaus-Porto Velho foi o grande laboratório que moldou
a construtora experiente e capacitada dos anos seguintes.
A combinação de garra e profissionalismo, característica da empresa desde
o seu nascimento, foi duramente colocada à prova. Talvez a mais importante
de toda a sua história. Graças a essa energia e a esse extraordinário trabalho, a
Andrade Gutierrez se tornou não apenas especializada em trabalhos na
Amazônia, mas a empresa dos grandes desafios.
A empresa atravessou os anos 70 com forte presença no Norte, em
especial no Amazonas, Pará e Rondônia. Obras como a de Porto Trombetas,
Perimetral Norte e diversos trabalhos na capital amazonense construíram um
cardápio de realizações sem paralelo no país, criando as condições de know-
how e de excelência que asseguraram o passaporte para obras no Exterior.
Foi justamente esta experiência que credenciou a empresa a atuar na
África, na construção da estratégica rodovia Epena-Impfondo-Dongou, no
Congo. Autoridades e técnicos daquele país vistoriaram a Manaus-Porto Velho
no começo dos anos 80, conferindo as condições similares e a capacidade da
Andrade Gutierrez de superá-las. O contrato com o governo congolês foi
assinado em 1983, em clima de grande expectativa. Afinal, até então, esta obra
havia sido tentada, sem sucesso, por diversas empresas européias.
O desafio era enorme. Foi preciso superar a floresta densa e os pântanos,
em lugar isolado, distante 900 km da capital do país e só acessível por barco e
avião. Chuvas intensas e endemias tropicais eram ameaças constantes. Neste
território inóspito trabalharam duas mil pessoas, em mais uma grande epopéia.
Inaugurada em 1988, a rodovia de 134 km continua essencial para escoar as
riquezas e fomentar o desenvolvimento no norte do Congo.
Esta é a Andrade Gutierrez. A coragem para assumir obras consideradas
impossíveis, o aprendizado com culturas diversas, a capacidade de adaptação a
condições adversas e a confiança e experiência para superar obstáculos técnicos,
operacionais, logísticos e humanos, consolidaram o perfil de empresa
diferenciada e especialmente apta a transformar, em realidade, projetos
considerados impossíveis.
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