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Perspectivas do Mercosul
2 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
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DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
Eduardo Duhalde
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Perspectivas do Mercosul
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DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
Eduardo Duhalde
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Perspectivas do
Mercosul
Eduardo Duhalde
*
O
Mercosul é uma das principais conquistas dos últimos anos dos países
da região que o integram, quaisquer que sejam os parâmetros utilizados para
avaliá-lo. Por isso a sua consolidação é hoje uma política de Estado, e sua expansão
e aprofundamento independem das mudanças que possam ocorrer nos governos
dos Estados Partes, em conseqüência dos respectivos processos eleitorais.
De uma perspectiva política, os frutos do Mercosul são indubitáveis,
não só para garantir a vigência dos sistemas de governo democrático e a paz
na região como também para fortalecer os vínculos culturais e progredir na
consolidação de uma “identidade” regional.
Do ponto de vista social, a integração regional, baseada nas coincidências
culturais, geográficas e históricas dos países latino-americanos, traz elementos
mais justos e favoráveis para os povos da região, no contexto dos atuais
processos de continentalização e globalização.
*Ex-presidente da República Argentina
Presidente da Comissão de Representantes Permanentes do Mercosul
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Esse processo constitui, assim, uma ferramenta estratégica para alcançar
a estabilidade política, o crescimento econômico e a justiça social nos países
que o integram, e é o meio que permite que a região tenha uma identidade e
um papel protagônico no cenário mundial.
No presente trabalho parto da premissa de que o Mercosul é um processo
irreversível, que já começou a ampliar-se para abranger o resto dos países sul-
americanos, com fundamento no espírito de união que impregnou a obra dos
nossos libertadores. Por essas razões considero imprescindível analisar as
perspectivas da integração no presente e no futuro imediato, para traçar as
políticas e os instrumentos que consolidem a associação internamente e
permitam liderar uma união de países sul-americanos.
Neste sentido, abordarei na análise que segue a trajetória percorrida até
o presente, fazendo algumas reflexões sobre as perspectivas futuras, levando
em conta uma série de aspectos que considero fundamentais para garantir o
processo de integração e abordar as numerosas negociações externas.
Antecedentes
As profundas modificações havidas no contexto mundial até o fim dos anos
oitenta e princípio da década de 1990 favoreceram a ação das forças integracionistas
na Argentina e no Brasil, países que não tardaram a estimular o interesse do Paraguai
e do Uruguai. A assinatura do Tratado de Assunção, em 1991, constitui um dos
marcos políticos e econômicos mais significativos no passado século XX.
O Mercosul teve início como zona de livre comércio, contando com os
instrumentos necessários para converter-se no curto prazo em uma união
aduaneira, e com a vocação de chegar a ser um mercado comum.
Do ponto de vista econômico, nos primeiros anos de vida da associação o
comércio intrazona aumentou, enquanto o intercâmbio com o resto do mundo
se expandiu, consolidando-se a atração de investimentos para a região. Este
processo contribuiu também para garantir e aprofundar as reformas econômicas
internas, incrementando o grau de complementação industrial e permitindo que
pequenas e médias empresas pudessem participar dos negócios internacionais.
Em 2001, cumpridos dez anos da assinatura do Tratado de Assunção, o
total de exportações entre os sócios havia triplicado: de cinco bilhões de dólares
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em 1991 passou-se a um total de exportações intrazona da ordem de quinze
bilhões de dólares em 2001, tendo-se chegado ao máximo de vinte bilhões de
dólares em 1997.
Por outro lado, a evolução do intercâmbio com os países associados
(Chile e Bolívia) mostrou um desempenho positivo, aumentado em mais de
140%, enquanto o comércio com o resto do mundo cresceu 100%.
Este melhor comportamento do comércio intrazona se observa tanto
no conjunto do Mercosul como na evolução do comércio de cada um dos
sócios, considerados individualmente.
Com respeito aos aspectos institucionais, a princípio se priorizou uma
estrutura pequena mas dinâmica que permitisse completar os objetivos previstos
no Tratado de Assunção, com dois órgãos decisórios, o Conselho do Mercado
Comum e o Grupo Mercado Comum. As principais características dessa
organização foram a intergovernamentabilidade, a ausência de uma sede fixa
para os seus órgãos e a tomada de decisões por consenso.
Em 1994, com a assinatura do Protocolo de Ouro Preto, os Estados Partes
ratificaram a estrutura inicial, definindo melhor sua competência e ampliando o
número de órgãos decisórios (criou-se a Comissão de Comércio). Por outro
lado, foram instituídos maiores compromissos em matéria de obrigatoriedade e
observância da normativa originada nesses órgãos, assim como um mecanismo
para a sua incorporação aos ordenamentos jurídicos nacionais.
A crise regional
O Mercosul tinha nascido em um contexto marcado pela coincidência
de circunstâncias externas e internas muito favoráveis. No entanto, após o
impulso inicial, desde fins dos anos noventa o processo começou a evidenciar
problemas crescentes.
As crises financeiras internacionais que se sucederam a partir da metade
da década de 1990, no México, no Sudeste Asiático, na Rússia, no Brasil e na
Turquia, assim como a queda dos preços dos produtos básicos e a retração do
fluxo de capitais se somaram ao problema dos preços relativos intrazona.
A desvalorização da moeda brasileira, a princípios de 1999, e depois a
crise argentina, em fins de 2001, alteraram notavelmente o preços das trocas
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comerciais no mercado ampliado. De outro lado, a recessão das economias do
grupo provocou uma alteração no comércio entre os sócios, induzindo os
Estados Partes a adotar medidas unilaterais, em muitos casos inconsistentes
com os compromissos assumidos.
A multiplicação das medidas protecionistas gerou também conflitos
comerciais bilaterais, e vários deles precisaram ser resolvidos no contexto do
sistema de solução de controvérsias. Cabe assinalar que entre 1999 e 2003
funcionaram nove Tribunais Arbitrais. Nesse contexto, produziu-se um notório
estancamento nas negociações entre os quatro países membros para aprofundar
tanto a zona de livre comércio como a união aduaneira.
Foram postas em evidência, desta forma, várias falhas no processo de
integração: imperfeições da tarifa externa comum, não cumprimento de normas
pelos Estados Partes, lacunas jurídicas e falta de incorporação da normativa
comum à legislação interna – elementos que eram uma herança inadvertida
dos anos de crescimento comum do comércio intrazona.
No curso de 2000 os Estados Partes concentraram seus esforços no que
ficou conhecido como “Relançamento do Mercosul”, que consistiu na definição
de um programa integral de trabalho tendo por eixos principais a eliminação
de travas ao acesso ao mercado regional, o estabelecimento de disciplinas para
os incentivos à inversão, a produção e a exportação; a revisão da tarifa externa
comum; a reforma institucional e a coordenação de políticas macroeconômicas.
Não obstante, a continuação e o agravamento da situação regional e
internacional impediu que se alcançasse resultados que permitissem falar em
uma mudança qualitativa importante no processo de integração.
Durante o ano de 2001 a situação internacional (pouco dinamismo da
economia mundial, desaparecimento do fluxo de capital para os países
emergentes, queda dos preços dos principais produtos de exportação da região)
traduziu-se em período inédito de crise econômica para os países do Mercosul.
O comércio intrazona seguiu uma tendência de forte contração, com a redução
das exportações da ordem de mais de trinta por cento em 2002 com relação ao
ano anterior.
Coube-me ser protagonista desses momentos difíceis do Mercosul,
quando exerci a presidência do meu país, mas posso dizer que o abandono da
conversibilidade pela Argentina permitiu iniciar um processo de normalização
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das relações intrazona, contribuindo também para a gestação de um novo
cenário mais favorável para resolver problemas de competitividade relativa
dos setores cronicamente mais conflitivos dentro do comércio intra-regional.
Um novo impulso ao Mercosul
Durante o ano de 2002 os governos de todos os Estados Partes nos
concentramos em superar as relações conflitivas dos anos anteriores e, de outro lado,
em encontrar formas que pudessem contribuir para fortalecer o processo de integração.
Nesse quadro foi necessário recolocar o espaço político e institucional
que até certo ponto tinha ficado postergado em conseqüência do êxito comercial
do princípio da década de 1990. Paralelamente, deu-se início a um processo de
eliminação progressiva dos conflitos intrazona, conhecido como “limpeza da
mesa”, mediante uma série de negociações bilaterais entre alguns dos sócios.
Por outro lado, tomou-se consciência de que, na medida em que não
fosse possível reconstruir uma “matriz de interesses comuns”, o sentido
estratégico do Mercosul se iria diluir como política pública regional.
Para projetar essa matriz, começou-se a trabalhar, no curso de 2003, em
uma agenda positiva que incluía não só questões econômicas e comerciais, mas
também a criação de novos vínculos nas áreas política, social, cultural, educativa,
científica e tecnológica, com a finalidade de alcançar a identidade regional.
Por outro lado, o problema das assimetrias entre os Estados membros só a
partir desse ano começou a ser encarado seriamente, e na Cúpula de Assunção os
Presidentes decidiram abordar com firmeza esse tema, dando início a um trabalho
de identificação das medidas que deveriam ser adotadas. Finalmente, em dezembro
de 2003 foram aprovadas uma série de normas destinadas a atender a situação dos
sócios menores, o Paraguai e o Uruguai, as quais possibilitam uma maior flexibilidade
aduaneira. As Cúpulas do ano de 2004 continuaram esse progresso, no ritmo
próprio da diplomacia, para garantir a adoção desse tipo de medidas.
Nesse contexto de mudanças, foram definidas uma série de metas para
o Programa de Trabalho 2004-2006, que tendem a consolidar o processo de
integração com um novo perfil. Esse Programa estabelece objetivos em matéria
econômico-comercial, social, institucional, de relações externas e com respeito
aos novos temas da agenda da integração.
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Perspectivas
Nesta parte do trabalho abordaremos alguns dos temas incluídos nas
várias áreas assinaladas, esboçando algumas breves reflexões sobre as
perspectivas futuras do processo de integração.
O Mercosul econômico-comercial
A consolidação da zona de livre comércio, para chegarmos à união
aduaneira, exige trabalhar nos diferentes campos abrangidos pelas questões
que são tratadas adiante:
• Coordenação macroeconômica
A coordenação macroeconômica, incorporada nas previsões do Tratado
de Assunção, constituía um compromisso de natureza programática e exigia
ações por parte das instituições do Mercosul para torná-la operativa.
As negociações sobre este tema não progrediram com rapidez, devido
às divergências subsistentes entre os Estados Partes, até o ano de 2000, quando
foi aprovada a Declaração sobre Convergência Macroeconômica, que criou
metas e mecanismos de convergência para uma série de variáveis
macroeconômicas. Para a execução desses trabalhos foi criado, no quadro da
Reunião de Ministros de Economia e Presidentes de Bancos Centrais, o Grupo
de Monitoramento Macroeconômico. Para a região é vital avançar na
coordenação das políticas macroeconômicas, de modo a lograr uma inserção
mais eficiente das economias da região nos mercados financeiros internacionais
e garantir a sua estabilidade monetária, gerando assim o aumento dos níveis
de investimento e a redução das taxas de juros.
Lamentavelmente, apesar das condições macroeconômicas dos quatro
sócios terem melhorado de forma notável durante os anos 2004 e 2005, ainda
não foram dados passos importantes nessa direção, sem que fiquem evidentes
as razões políticas que justificam esse atraso em tornar mais crível e sustentável
a longo prazo a coexistência de um esquema cambial. A combinação necessária
de flexibilidade e interdependência nos obriga a realizar esse grande progresso
quantitativo na coordenação macroeconômica!
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Proponho-me assim a trabalhar, com o apoio dos sócios, para a geração
de mecanismos adequados que facilitem tal convergência.
Neste sentido, nossos esforços devem encaminhar-se para a criação de
um Instituto Monetário do Mercosul, como um passo preliminar necessário
para estabelecer as bases da eventual instituição de uma moeda comum.
• A Tarifa Externa Comum
A Tarifa Externa Comum constitui o instrumento essencial de uma união
aduaneira, sendo imprescindível para sustentar uma política comercial externa
comum. Não obstante, essa política precisa apoiar-se em um critério de equidade
que exija o mesmo esforço em igualdade de condições. Como disse, para isso
foram aprovadas, em dezembro de 2003, uma série de normas destinadas a
atender à situação dos sócios menores, o Paraguai e o Uruguai, e que favorecem
uma maior flexibilidade aduaneira, dada a necessidade de um período de ajuste.
Atualmente, a situação da Tarifa Externa Comum obriga a controlar a origem
dos produtos na sua movimentação comercial dentro do bloco, continuando a
existir regimes especiais de importação aplicados unilateralmente por cada país.
Como é imprescindível avançar nos trabalhos tendentes ao estabelecimento
do mercado único, é fundamental nesta etapa eliminar a dupla cobrança de tarifas,
e garantir a livre circulação dos produtos. Assim, proponho-me a trabalhar para
alcançarmos esses objetivos que refletem, no mais elevado nível político, a vontade
comum de avançar nesses aspectos essenciais da união aduaneira.
É conveniente também estabelecer um programa de trabalho para a completa
eliminação das alfândegas interiores, incluindo o relativo à distribuição das rendas
provenientes do comércio com terceiros países. Com o apoio de todos os Estados
Partes vou trabalhar para conseguir esse objetivo de forma definitiva.
• Incentivos
À medida que as tarifas são eliminadas no comércio intrazona, adquirem
importância outras políticas públicas de promoção aplicadas em nível nacional.
As medidas adotadas pelos governos em matéria de incentivos, sobretudo
aquelas destinadas a promover a produção nacional e a atração de investimentos
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estrangeiros, causam um efeito de distorção na distribuição de recursos dentro
do mercado ampliado, dando lugar à chamada “guerra de incentivos”.
Para evitar a adoção indiscriminada dessas medidas em um processo de
integração é necessário estabelecer disciplinas comuns que permitam alcançar
um verdadeiro espaço comum, no qual se equiparem as condições de
competição, levando em conta especialmente as necessidades de promover as
zonas mais desfavorecidas. O mandato dos Presidentes foi claro nesse sentido, e
devo mencionar que, tendo em vista a experiência de outras regiões (como é o
caso da Irlanda dentro da União Européia), não é impossível conseguir resultados
que satisfaçam todas as partes interessadas. Trata-se apenas de pôr a inteligência
e a criatividade a serviço de um desenvolvimento interno equilibrado.
• A integração da produção
Como contribuição para alcançar um maior dinamismo no intercâmbio
comercial, permitindo o ajuste e a expansão do comércio regional, com a
eliminação das causas de novos conflitos setoriais, promoveu-se nos últimos
anos a criação de foros de competitividade. Esses foros constituem uma proposta
de organizar a produção de modo a garantir a plataforma exportadora regional.
Estamos trabalhando intensamente, com a cooperação da SAT, para
complementar o foro da madeira, a exemplo dos que já se encontram em
funcionamento em outros setores como o têxtil, de carnes, couros e suas
manufaturas, entre outros. A possibilidade de acessar novos mercados através
desses mecanismos de integração da produção não só potencializa a capacidade
de exportar da região como representa um meio para vincular os setores
empresariais dos países, enfatizando assim a promoção dos interesses comuns.
• A harmonização tributária
Embora o Tratado de Assunção estabeleça a coordenação das políticas
fiscais e a harmonização das respectivas legislações nacionais, o Mercosul não
progrediu muito nesta matéria.
A substituição dos mercados nacionais por um mercado único exige
progredir também na consideração dos tributos estaduais ou provinciais
(sistema sub-federal), para que seja possível desmantelar a discriminação
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impositiva que incide sobre a movimentação de bens e serviços, a qual gera
conflitos entre as diferentes Partes envolvidas.
Os esquemas avançados de integração exigem uma harmonização
progressiva dos sistemas tributários nacionais, em especial daqueles que incidem
no custo dos bens e serviços. A competição entre os sócios do Mercosul pode
ser distorcida devido a diferenças na estrutura tributária e na carga fiscal, que
afetam sem dúvida o nível e a qualidade do comércio intra-regional. Por isso é
preciso iniciar um trabalho em comum que busque a maior harmonização
tributária, em especial no que ser refere aos impostos indiretos. Este tema foi
incluído no Programa de Trabalho Objetivos 2004-2006. De meu lado,
incorporei essa meta na minha agenda, e me proponho a promovê-la a partir
da Comissão que me cabe presidir.
O Mercosul institucional
A partir de 2002 registrou-se uma mudança no esquema de integração,
plasmado na coincidência de todos os Estados Partes com relação à necessidade
de acompanhar os progressos em matéria econômica, mediante a adequação e
o fortalecimento da estrutura institucional.
Penso que é importante criar as bases de instituições permanentes na
nossa associação, uma vez que só dessa forma poderemos demonstrar o
profundo compromisso que nos convoca. Neste sentido, não posso deixar de
assinalar os importantes progressos concretizados, dentre os quais é possível
contabilizar os citados em seguida.
• O Protocolo de Olivos
O Protocolo de Olivos, aprovado durante o meu mandato presidencial
na Argentina, em fevereiro de 2002, aperfeiçoa o sistema de solução de conflitos
estabelecido pelo Protocolo de Brasília, à luz da experiência obtida com as
diferentes controvérsias suscitadas e os laudos emitidos para resolvê-las. Este
novo instrumento estabelece o primeiro Tribunal Permanente do Mercosul,
sediado na cidade de Assunção, no Paraguai, como instância de revisão jurídica,
e para cuja integração os Estados Partes estão nomeando juristas da maior
competência. Este novo sistema não tem precedente em outros esquemas de
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integração, pois foi planejando especificamente de acordo com as características
e necessidades atuais do Mercosul.
O Protocolo de Olivos constitui um dos progressos mais importantes já
alcançados no processo de integração, pois vai permitir avançar no sentido de
uma interpretação uniforme do conjunto normativo do Mercosul, e de uma
jurisprudência comum, contribuindo para dotar o intercâmbio de bens e
serviços de maior segurança jurídica.
Um aumento da segurança jurídica no processo de integração amplia as
possibilidades de acesso ao mercado, assim como as perspectivas de desenvolver
os fluxos de comércio e de avançar nos objetivos do mercado comum.
• Secretaria Técnica
Começou-se a trabalhar, ultimamente, na transformação da Secretaria
Administrativa do Mercosul, criada pelo Protocolo de Ouro Preto, em uma
Secretaria Técnica. Nesse sentido foram introduzidas modificações na sua
estrutura, com a criação de um setor de Assessoria Técnica, com funções
técnico-jurídicas que hierarquizam a sua função dentro da associação.
A inclusão da Assessoria Técnica constitui um passo fundamental no
processo de transformação da Secretaria, mas devem prosseguir os trabalhos
que permitam o estabelecimento definitivo de uma Secretaria Técnica. Neste
momento do processo de integração é muito importante poder contar com o
apoio de um corpo permanente de especialistas que focalize os problemas
existentes com uma visão de conjunto, e zele pelo interesse do Mercosul como
um todo, e não dos países individualmente.
No entanto, neste ponto também deve-se salientar a necessidade de dotar
de mais recursos esse órgão essencial da nossa estrutura funcional. Um
orçamento de apenas um milhão de dólares, diante dos oito milhões que têm
os nossos irmãos da Comunidade Andina de Nações, mostra nossa dramática
carência para sustentar um processo de integração como o que pretendemos.
• O Parlamento Mercosul
Durante o ano de 2003 os Presidentes dos Estados Partes promoveram
a criação de um Parlamento Mercosul, com fundamento em que, tal como
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acontece na ordem nacional, a existência de uma assembléia ou parlamento no
processo de integração introduz uma dimensão social e política que dá legitimidade
às decisões adotadas, facilitando o desenvolvimento e o progresso do processo.
Desde o início do Mercosul os Estados membros visualizaram a
importância de um órgão com essas características, e ao assinar o Tratado de
Assunção, em 1991, incorporaram à sua estrutura a Comissão Parlamentar
Conjunta (CPC), que no entanto não recebeu competência legislativa.
A criação do Parlamento Mercosul, órgão de representação política e
social dos cidadãos dos Estados membros da associação, dará um sinal claro
de amadurecimento e consolidação do nosso processo de integração.
A partir da Comissão que presido propomos impulsionar todas as iniciativas
neste campo destinadas a ampliar as bases democráticas do processo e a
comprometer o cidadão do Mercosul com o seu desenvolvimento e a sua evolução.
• Aplicação direta das normas Mercosul
As normas comuns emanadas dos órgãos com capacidade decisória
(Decisões, Resoluções e Diretrizes) não se aplicam diretamente à ordem jurídica
interna dos Estados Partes, mas estão sujeitas a um mecanismo denominado de
“vigência simultânea”, criado pelo Artigo 40 do Protocolo de Ouro Preto (POP).
Esse mecanismo, que não tem antecedente em outros acordos de
integração, já demonstrou ser de muito difícil cumprimento, e tem provocado
um dos problemas mais complexos enfrentado pelo processo de integração
para tornar efetivas, nos territórios dos Estados membros, as normas do
Mercosul. Este sistema de incorporação e vigência da normativa Mercosul
tem sido uma fonte de insegurança jurídica, pois não permite que os
administrados dos quatro Estados Partes estejam obrigados ao mesmo tempo
pelos mesmos compromissos.
À luz dessa situação, e com o objetivo de superar tais dificuldades, no
ano passado começou-se a trabalhar no projeto de um sistema que permita a
absorção direta dessas normas pelos ordenamentos jurídicos nacionais, sem
requerer tratamento legislativo nos Estados Parte.
A implementação de um sistema dessa natureza permitirá no futuro
garantir a vigência e efetividade das normas comuns, outorgando aos
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administrados dos quatro Estados Partes o mesmo tratamento com respeito
aos seus direitos e obrigações no mercado ampliado.
Que o Mercosul possa incorporar efetivamente as normas comunitárias
às legislações locais é talvez a maior mostra possível de vocação integradora.
Sem normas comuns o processo de integração não é crível, a despeito de
todos os discursos políticos que manifestem o contrário: não há incentivos ao
investimento, nem segurança para as decisões empresariais de qualquer tipo,
perdendo-se assim a vantagem representada pela sinergia regional.
• A Comissão de Representantes Permanentes do Mercosul
Finalmente, outra medida tendente a fortalecer a estrutura institucional
foi a criação da Comissão de Representantes Permanentes do Mercosul (Crpm),
que tenho a honra de presidir.
Trata-se de um órgão de funcionamento permanente, destinado a cooperar
com as tarefas do Conselho, o órgão decisório máximo do Mercosul, e visa contar
com uma abordagem comunitária em aspectos fundamentais tais como a
consolidação da união aduaneira e a formação do mercado comum, as negociações
externas com outros países e blocos econômicos, os vínculos com o poder legislativo
dos Estados Partes e com o setor privado, além da coordenação política.
Da Presidência da Crpm, e com o mandato recebido dos Senhores
Presidentes dos Estados Partes e Associados, assumi o compromisso de realizar
todos os esforços ao meu alcance para cumprir os altos objetivos para os quais
foi criada a Comissão.
Em particular, adotei como objetivos – além dos de representação
institucional que me sejam confiados – colaborar para que sejam executadas
as decisões comunitárias que por diferentes razões ainda não tenham sido
concretizadas nos nossos países. Um exemplo dessa situação é a chamada
“Cartilha do Cidadão”, pela qual o Presidente Lula tanto se bateu, e que exige
um trabalho constante por parte dos Poderes Executivo e Legislativo, para
que sejam aprovadas as normas que favorecem os cidadãos da região.
Finalmente, quero destacar em especial a transformação da Secretaria
Técnica e a criação da Comissão de Representantes Permanentes porque ambas
refletem claramente as mudanças que estão ocorrendo no Mercosul.
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Os dois órgãos foram criados levando em conta a necessidade de contar
com um enfoque comunitário, que atribua prioridade ao interesse do conjunto
sobre os interesses das partes que o compõem. Pareceria que começamos a
deixar para trás o paradigma das nacionalidades, com suas fronteiras e os
conceitos de soberania, para ingressar em uma etapa de regionalismo e
integração, na qual têm prioridade felizmente a cooperação e a integração.
Relacionamento externo
A partir do fortalecimento do compromisso regional com o Mercosul,
foram promovidos Acordos com terceiros países ou regiões, coordenando
estratégias e propostas técnicas de negociação, com resultados muito positivos
em termos da defesa dos interesses nacionais e regionais, acesso a mercados e
atração de investimentos.
Conforme indiquei acima, a decisão dos Estados Partes de formar uma
União Aduaneira impõe a necessidade de coordenar posições em matéria de
política comercial externa e, em particular, de negociar e assinar acordos
comerciais com terceiros países ou blocos de países, de forma conjunta.
Com o tempo esta atividade se foi tornando cada vez mais complexa,
devido à multiplicidade de relações com terceiros países ou grupos de países,
e à variedade das matérias abordadas em cada acordo; tornou-se necessário
assim criar mecanismos que permitam atender e dinamizar essas relações, e é
com este objetivo, entre outros, que foi criada a Comissão que me cabe presidir.
Nesta matéria cabe destacar os vínculos com os países da América Latina
com os quais negociamos acordos de livre comércio, tais como Chile, Bolívia,
Peru ou a Comunidade Andina de Nações (CAN). Por outro lado, têm caráter
prioritário as negociações com o México, a Índia e a África do Sul, entre outros
países; as negociações no âmbito da Área de Livre Comércio das Américas
(Alca) e com a União Européia (EU). Da mesma forma, o Mercosul tem
desenvolvido uma importante coordenação de posições em foros comerciais
multilaterais, como a Organização Mundial de Comércio (OMC), o Grupo Cairns,
ou ainda em entidades de caráter político, como a OEA, a ONU e a Unctad.
Sem prejuízo disso, considero muito positiva a estratégia de que um dos
países do Mercosul atue como “ponta de lança” para estabelecer novos contatos
os quais permitam que, posteriormente, todo o bloco inicie negociações
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comerciais conjuntas, e trabalharei para estimular essa estratégia. Além do que
me permito lembrar que, como Presidente da República Argentina, iniciei um
relacionamento que hoje se desenvolve com a UMA (União Magreb Árabe), o
qual serve como precedente desta forma de trabalho, e irá tomando forma a
partir dos encontros a serem realizados na histórica Cúpula de Brasília, em
maio de 2005, entre os nossos irmãos árabes e os países da América do Sul.
Essas negociações externas, múltiplas e simultâneas, obrigam o Mercosul
a manter a aprofundar a disciplina da política comercial externa, enquanto se
progride nos compromissos internos que lhe permitam alcançar uma identidade
definida, que potencialize o desenvolvimento dos nossos recursos, tornando-
os atraentes para as inversões internacionais.
Hoje o continente está dividido claramente em quatro regiões:o Acordo
de Livre Comércio da América do Norte (Nafta), O Mercado Comum
Centroamericano (Mcca), a Comunidade Andina de Nações (CAN) e o
Mercosul. No entanto, vivemos em um momento de mudanças, e à medida
que superemos a velha concepção de soberania, priorizando nossos interesses
comuns, vamos progredir no sentido de uma união, estimulada pela
proximidade geográfica. Pessoalmente, acredito que essas quatro regiões
passarão a integrar-se em duas, e mais tarde em uma só. Nesse caminho
avança a Comunidade Sul-Americana de Nações, sobre a qual me detenho
mais adiante.
Durante esses dezoito meses em que atuei como Presidente pude
percorrer um grande número de países, com os quais estabelecemos e
fortificamos nosso relacionamento. Essas viagens me permitiram manter
encontros com os integrantes desses governos que, de seu lado, aumentaram
o meu otimismo. Em especial nos meus encontros com os Representantes
da Comunidade Andina de Nações senti que, a despeito das grandes
dificuldades que atravessam os países daquela região, há neles uma importante
vontade política favorável à integração. Naturalmente, observei também uma
grande vocação para a integração no Brasil, o maior país da América do Sul,
que tem fronteiras com quase todos os países da região e uma lógica inclinação
para a liderança.
Com base nestas experiências, indicarei em seguida meu parecer sobre as
negociações levadas a cabo atualmente pelo Mercosul, e em especial o que representa
o progresso mais importante: a Comunidade Sul-Americana de Nações.
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• Alca
A Alca constituirá uma oportunidade interessante para o bloco, na medida
em que se chegue a um Acordo amplo e equilibrado, que responda aos nossos
interesses, principalmente no que se refere a um acesso efetivo aos mercados,
superando as barreiras que existem atualmente, mediante regras de jogo claras
e estáveis, que favoreçam a não-discriminação entre os países do hemisfério e
contribuam para um crescimento sustentado de nossas economias, e para o
bem-estar dos nossos povos.
No contexto da Alca, o Mercosul está negociando como grupo,
coordenando posições em todas as áreas substantivas da negociação, tanto
políticas como técnicas. Neste sentido, desenvolve uma estratégia de dupla
via: de um lado apresenta uma posição comum, que lhe permita aumentar sua
força negociadora frente aos outros participantes do processo; de outro,
promove a Alca como um instrumento que acelere os prazos internos de
consolidação e aprofundamento do bloco
1
.
Como resultado da Reunião Ministerial de Miami, chegou-se a um
compromisso político destinado a garantir um conjunto comum e equilibrado
de direitos e obrigações, sustentado na flexibilidade necessária para atender às
sensibilidades dos participantes. Os países que desejam assumir compromissos
adicionais, em termos de liberalização e disciplinas, têm em aberto a
possibilidade de negociar acordos plurilaterais.
Como muitas forças atuam simultaneamente nesta negociação, a coordenação
dos interesses de 34 países, para assinar um único acordo, esta tarefa é, na melhor
das hipóteses, extremamente complicada. Por isso, ainda não se chegou a um
consenso sobre um “núcleo de direitos e obrigações” comuns a todas as Partes,
nem se definiu o procedimento aplicável à negociação de Acordos plurilaterais.
É imprescindível alcançar um equilíbrio geral satisfatório nas
negociações, o que implica um tratamento integral do tema agrícola onde,
principalmente, os Estados Unidos deveriam analisar a forma de neutralizar
as distorções causadas ao comércio de produtos agropecuários geradas pela
aplicação de subsídios e práticas de efeito equivalente, tanto internas como à
1
Um terceiro objetivo tem sido reativo, permitindo trabalhar com a União Européia.
Perspectivas do Mercosul
20 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
20
exportação, e onde haja uma reciprocidade palpável dos compromissos a
assumir em matéria de serviços e investimentos.
As quatro diferenças mais importantes registradas polarizaram os países em
torno de quatro temas: acesso a mercados, agricultura, serviços e investimentos.
Não são temas menores, e a sua complexidade se transmite a todo o acordo. Não
obstante, acredito que o processo de negociação vai prosseguir, e a sua chave está
claramente no formato a adotar e nas datas de vigência.
• União Européia
O Mercosul e a União Européia assinaram em 1995 um convênio-quadro
de cooperação que fixou as bases para a negociação de um acordo amplo entre os
dois blocos. O processo se encontra avançado nas áreas de cooperação e diálogo
político; no plano comercial procura-se criar uma Zona de Livre Comércio que
permita ampliar o acesso efetivo aos mercados, conforme as regras da OMC.
Em 2001 foram intercambiadas ofertas de redução tarifária e textos em
matéria de bens, serviços e compras governamentais. Na Cúpula de Madrid, de
maio de 2002, foram acordadas 37 medidas de “Facilitação de Negócios”, e com
base no Programa de Trabalho estabelecido no Rio de Janeiro em junho de 2002
avançou-se substancialmente na apresentação de ofertas em matéria de bens
compatíveis com a OMC (apresentamos à UE uma oferta de bens que abrange
83,5% das tarifas relativas a importações da Europa no último triênio), na solicitação
de melhorias, em ofertas iniciais relativas a serviços e investimentos; além disso,
foram elaborados textos com diferentes níveis de consenso para todas as disciplinas
em negociação. Finalmente, em novembro de 2003 concordou-se com um novo e
ambicioso Programa de Trabalho, que lamentavelmente não foi finalizado em
outubro de 2004, como seria o nosso desejo.
Sem prejuízo dos resultados alcançados, a problemática essencial continua
a ser a negociação em matéria agrícola, já que a oferta da União Européia em
matéria de bens não satisfaz as aspirações do Mercosul.
2
O futuro acordo com a
2
Embora a União Européia nos tenha proposto liberar 91,5% das nossas exportações em um prazo de dez
anos, a porcentagem restante concentra o nosso maior potencial exportador (carnes, cereais, óleos, açúcar e
produtos alimentícios processados). Esses produtos constituem o principal objeto da Política Agrícola Comum
(PAC), cuja reforma de médio prazo foi feita em junho de 2003, sem que se pudesse estabelecer até o momento
o impacto real que terá sobre a liberalização do comércio agrícola.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
Eduardo Duhalde
21
União Européia constitui um pilar importante da inserção do Mercosul no mundo
multipolar, e tem como finalidade constituir uma associação política, econômica
e de cooperação entre os dois blocos. Tudo isso reforça um justificado otimismo
quanto à conclusão exitosa dessa negociação antes do fim de 2005.
• México
Em julho de 2002 foi assinado um Acordo Quadro com o México, que
tem em vista criar uma zona de livre comércio a partir da convergência dos
progressos bilaterais de cada um dos quatro Estados Partes. Nessas negociações
bilaterais foram discutidos aspectos normativos de um futuro acordo, prevendo-
se um intercâmbio de listas de produtos.
O acordo com o México e a evolução das negociações iniciadas com o
Mercado Comum do Caribe (Caricom) e com o Mercado Comum Centro
Americano (Mcca) estabelecerão as bases para expandir a unidade sul-
americana, estendendo-a a toda a América Latina.
• África do Sul
Em 2000 o Mercosul assinou também um Acordo Quadro com a África do
Sul, para a formação de uma zona de livre comércio. A partir desse ponto foi decidido
progredir em acordos de preferências tarifárias fixas, por listas de produtos. A pedido
da África do Sul, foram incorporados a essa negociação os países membros da Sacu
(South African Customs Union), integrada por Lesoto, Suazilândia, Namíbia e Botsuana,
além da África do Sul. Até o momento foram trocadas listas preliminares de produtos
que serão objeto de tratamento em reuniões técnicas a celebrar-se neste semestre.
Esses países constituem a porta de entrada para a África ao Sul do Saara,
que é uma região de riqueza inusitada, e por isso os progressos nesta negociação
têm importância estratégica para o Mercosul.
• Índia
Em junho de 2003 foi assinado um Acordo Quadro com a Índia, e
recentemente foi assinado também o primeiro acordo de preferências (ato
histórico no qual tive a honra de participar pessoalmente). Desde então temos
Perspectivas do Mercosul
22 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
22
avançado paulatinamente na negociação dos anexos desse Acordo, para que
ele comece a ser implementado o mais brevemente possível.
A Comunidade Sul-Americana de Nações
No curso do ano de 2004 houve uma série de acontecimentos históricos
na trajetória inexorável rumo à integração continental.
Antes de mais nada, a assinatura dos convênios comerciais entre todos os
países do Mercosul e a Comunidade Andina de Nações (CAN), no contexto da
Associação Latinoamericana de Integração (Aladi), representou um marco histórico.
O Mercosul e a CAN assinaram um Acordo de Complementação Econômica
(ACE) com o objetivo de formar uma Área de Livre Comércio entre os dois
grupos. Inicialmente foram iniciadas negociações com o Peru, que culminaram
com a assinatura de um acordo de livre comércio, em meados de 2003.
A partir desse momento se acelerou o processo de negociação com a
Colômbia, o Equador e a Venezuela para concretizar uma zona de livre
comércio. Este acordo foi assinado em Montevidéu em dezembro de 2003,
tendo conseguido o objetivo de abranger toda a América do Sul.
Depois desse passo transcendental surgiu entre os nossos Presidentes,
com muita força, a decisão de avançar para um nível superior de integração, o
que se concretizou no mês de dezembro passado, na cidade de Cuzco, onde
dez países decidiram criar a Comunidade Sul-Americana de Nações (CSN).
No momento em que escrevo estas linhas, o grande desafio é o projeto
de convergência entre a CAN, o Mercosul e o Chile, e a criação de uma
engenharia institucional e a tomada de ações de integração que sejam ao mesmo
tempo ambiciosas e possíveis.
A vontade política manifestada pelos Presidentes teve de fato um impacto
importante, que me faz ver com muito otimismo o futuro deste empreendimento
coletivo. Nossas regiões – a CAN e o Mercosul – desenvolveram até o momento
conhecimentos suficientes sobre as possibilidades e restrições do processo de
integração para colocá-las a serviço da CSN. Além disso, há um grande número de
questões que estão a exigir a nossa voz e o nosso esforço comum, para obrigar-
nos a um intenso processo de discussão interna e expressão externa.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
Eduardo Duhalde
23
Projetos para o futuro do Mercosul
A criação da Comunidade Sul-Americana de Nações, e os passos que
começarão a ser dados a partir da próxima Cúpula, em fins de agosto de 2005, no
Brasil, não devem fazer-nos deixar de lado os deveres que ainda estão pendentes
dentro do Mercosul. O lema aqui é: para uma Comunidade Sul-Americana forte
precisamos de um Mercosul forte, o que não é difícil de entender. Com efeito, o
processo de consolidação da CSN não será imediato, e exigirá ações institucionais,
relacionadas com a agenda de integração, com o diálogo interno – em suma, um
exercício tendo por meta etapas superiores de institucionalização.
Disse acima que nossa região primordial, que é o Mercosul, tem muitos
deveres a fazer para cumprir os acordos que lhe deram forma, dos quais dependem,
entre outras coisas, milhares de postos de trabalho. Por isso a agenda que nos
propomos procura cumprir nossos compromissos internos e, ao mesmo tempo,
preparar-nos cada vez mais para ter uma CSN que seja um modelo de integração.
No Mercosul há, como órgãos dependentes do Conselho, as Reuniões
de Ministros, que incluem em suas agendas temáticas todo o universo dos
temas regionais, e permitem que o Mercosul complemente os aspectos
econômicos e comerciais com outros de natureza cultural, jurídica e social,
entre outros. Esses foros incorporam as autoridades máximas nas áreas da
saúde, agricultura, mineração e energia, indústria, turismo, educação, cultura,
justiça, interior, trabalho, meio ambiente e desenvolvimento social.
Embora os trabalhos realizados até hoje tenham sido frutíferos, há uma
série de projetos em algumas dessas áreas que considero interessante aprofundar,
e que como Presidente da CRPM me proponho firmemente a promover.
• Integração física e energética
O desenvolvimento de uma Rede Básica do Mercosul, mediante a
realização de obras que incluam os setores de transporte, energia e
telecomunicações, é imprescindível para o crescimento da região e para
conseguirmos uma integração física real, que se estenda aos países da CAN e
ao Chile – base da Comunidade Sul-Americana de Nações.
Neste sentido é necessário encontrar um campo de atuação comum para
a iniciativa da Integração da Infra-estrutura Regional Sul-Americana (Iirsa),
Perspectivas do Mercosul
24 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
24
no quadro de um projeto de integração que interconecte a infra-estrutura
preexistente e a dote de um sentido unificador. Essas ações vão exigir um
quadro jurídico claro e estável, e esta será uma das minhas tarefas prioritárias.
A determinação dos eixos e as conexões viárias, ferroviárias e hidroviárias,
a ênfase nos planos de inversão e a promoção de apoio financeiro para os
projetos, de modo a estimular a participação dos investidores privados,
mobilizando assim todos os recursos possíveis (Fonplata, CAF, BID, BM) são
alguns dos trabalhos que poderei abordar no curto prazo.
Por outro lado, no seu conjunto a América Latina é uma região rica em recursos
naturais, sendo lógico aproveitar essa capacidade natural em benefício dos seus
habitantes. Para isso é imprescindível que o Mercosul promova intensamente a
harmonização do contexto local dos setores de gás, petróleo e energia elétrica,
compatibilizando os interesses nacionais com os do setor privado, para viabilizar
empreendimentos energéticos que tragam bem-estar à sociedade civil. Daí será possível
também extrair instituições e experiências para a constituição da CSN.
Para facilitar tanto o intercâmbio de mercadorias como o trânsito de
pessoas, seria conveniente dar prioridade à formação de redes multimodais
para articular o uso das vias terrestres, fluviais, marítimas e aéreas.
Entre 1997 e 2000 havia sido elaborado o projeto sobre a Rede Viária
Básica do Mercosul, mas é necessário um esforço importante para a sua
implementação e vinculação aos objetivos definidos como prioritários por
nossos irmãos andinos e o Chile. Vamos trabalhar assim para realizar essas
tarefas com a maior brevidade possível, pois embora os temas relativos à
regulamentação específica do setor estejam sendo abordados, seria preciso
definir um prazo máximo de um ano para completar esse trabalho.
• Cultura
A área cultural abre um amplo leque de possibilidades. Nesse sentido,
deveriam ser promovidos uma série de atividades e de projetos vinculados
com a investigação científica; a literatura; as artes plásticas; a organização de
exposições de pintores ou escultores e de festivais de cinema nos países do
Mercosul, o que contribui para formar uma identidade sul-americana. Para
isso estamos preparando uma intensa agenda de atividades que, tendo
Montevidéu como base, se projete a todos os países da região.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
Eduardo Duhalde
25
• Turismo
Até o presente os Estados Partes do Mercosul têm competido entre si
para atrair turistas a seus principais centros de atração. O tipo de câmbio adotado
nos últimos anos tem contribuído para aumentar os fluxos turísticos da
extrazona que se dirigem para os países da região.
Neste campo devemos trabalhar na elaboração de estratégias para o maior
e melhor aproveitamento do turismo internacional recebido hoje pela região,
projetando ofertas coordenadas que incluam centros turísticos dos quatro
países, de modo a incrementar e distribuir os recursos auferidos por essa via,
eliminando a competição e transformando-a em um esforço cooperativo que
incremente os benefícios potenciais.
• Facilitação empresarial
Para que o processo de integração se reflita na atividade do setor privado
é recomendável adotar compromissos tendentes a facilitar a atividade
empresarial. Neste sentido proponho-me a levar adiante os seguintes projetos:
Em primeiro lugar, harmonizar as legislações societárias nacionais, com
vistas a facilitar a instalação e o funcionamento de sociedades comerciais
no Mercosul. Isso trará um benefício imediato para as empresas médias
que desejem ter uma projeção internacional.
De outro lado, elaborar um projeto de estatuto legal da “Sociedade
Mercosul”, destinado a criar um novo tipo de sociedade para as empresas
que queiram atuar em mais de um Estado Parte, sujeitando-as a um
único registro regional.
• Criação de um espaço no Mercosul para o Poder Judiciário e os
integrantes da Justiça dos Estados Partes
Uma das primeiras coisas que me chamou a atenção ao observar a estrutura
institucional do Mercosul foi a falta de um espaço de caráter permanente para o
Poder Judiciário e os integrantes da Justiça dos Estados Partes.
Levando em conta a amplitude dos objetivos do processo de integração,
e os trabalhos orientados para o fortalecimento institucional, parece apropriado
Perspectivas do Mercosul
26 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
26
criar um ponto de encontro para o Poder Judiciário dos Estados membros,
complementando assim a estrutura do Mercosul.
A finalidade deste novo âmbito institucional deveria ser a de motivar um
maior vínculo e intercâmbios mais intensos entre os magistrados nacionais de
cada país, e deles com o processo de integração, contribuindo assim para uma
interpretação mais uniforme e uma aplicação harmoniosa das normas comuns
às jurisdições nacionais. Penso que seria importante o intercâmbio de percepções
entre os que têm o dever de aplicar as normas comunitárias a partir do seu nível
mais alto, e me parece imprescindível criar um foro ou reunião de Ministros das
Cortes Supremas ou Tribunais Superiores de Justiça dos Estados Partes.
Por outro lado, considero também conveniente a criação de espaços para
acolher outros atores da Justiça, como por exemplo os Defensores Públicos,
os Magistrados de Tribunais Eleitorais e Fiscais. Para isso são muito satisfatórias
as iniciativas havidas recentemente, e a possibilidade de que em breve contemos
com reuniões especializadas para o desenvolvimento e coordenação de temas
nessas disciplinas.
Estas incorporações à agenda comum são fundamentais porque ampliam
o leque temático da associação, conferindo-lhe maior densidade, e gerando
consensos no quadro de uma sinergia em favor da integração.
• O tratamento das assimetrias
As diferenças existentes entre os países que integram o espaço comum
representam um obstáculo para avançar na consolidação do processo. Por
isso creio firmemente que devemos enfrentar as dificuldades existentes,
trabalhar intensamente para conseguir superá-las e gerar a “matriz de interesses
comuns” que já propus.
Nesse sentido, a Comissão de Representantes Permanentes do Mercosul propôs
com ênfase especial a importância política desta questão, concentrando-nos em
conseguir os recursos necessários para que os países de menor desenvolvimento
relativo possam superar algumas das assimetrias de origem que limitam as suas
possibilidades de crescimento estável, tal como ocorreu na União Européia.
Graças ao apoio que temos recebido dos Governos dos Estados Partes
temos podido progredir neste campo tão importante. Na Cúpula de Ouro
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
Eduardo Duhalde
27
Preto os Presidentes decidiram criar os Fundos Estruturais, cujos detalhes de
implementação esperamos completar antes da próxima Cúpula de Assunção.
Sabemos perfeitamente que não será possível alterar séculos de diferenciação
com a simples assinatura aposta a um documento, mas sabemos igualmente que
estamos dando início a um caminho que precisará ser complementado por um
tratamento estável e previsível dado aos investimentos recebidos pela região, de
modo que os países e as áreas menos desenvolvidas possam beneficiar-se de modo
equilibrado da extensão do mercado ampliado. Nisto, finalmente, consistirá a grande
transformação que estamos pensando para o Mercosul.
• A promoção fronteiriça
Outras das medidas que vamos promover a partir da Crpm são a
promoção, a cooperação fronteiriça e a “Mercosulização” dos acordos bilaterais
como o assinado pelo Brasil e o Uruguai, que cria uma carteira de identidade
e permite aos moradores das zonas fronteiriças residir, trabalhar, acessar
facilidades de educação e saúde, entre outras coisas, nas cidades contíguas do
país vizinho. Isso põe em situação de igualdade as comunidades fronteiriças
dos dois países, evitando que atividades quotidianas sejam realizadas em um
quadro de ilegalidade.
Como já comentei, os conceitos de limite territorial e de soberania perderam
nitidez, e nossos filhos se sentem parte da região, mas nas fronteiras, onde a
jurisdição e a nacionalidade entram em conflito, surgem grandes problemas.
Embora tenham sido feitos no Mercosul vários esforços neste sentido,
ainda falta muito para chegarmos à livre circulação de pessoas. Este é um
tema central no qual devemos colocar nossos maiores esforços para que os
povos da região tomem consciência de que o Mercosul existe, e percebam
plenamente os seus benefícios.
Reflexões finais
O Mercado Comum do Sul tem diante de si uma avenida de possibilidades
infinitas para explorar toda a sua potencialidade, mas é fundamental que as próximas
decisões sejam tomadas com uma concepção abrangente do processo de integração,
que não se limite à cooperação econômica e à liberalização comercial.
Perspectivas do Mercosul
28 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
28
Isso é necessário para que os benefícios do processo de integração se
projetem no conjunto da sociedade dos Estados Partes, porque o Mercosul é
uma “empresa comum” e como tal deve ser compartilhada e “percebida” por
toda a população da região.
É por isso que devemos utilizar toda a nossa experiência para a ação
futura. Precisamos trabalhar arduamente no fortalecimento interno para poder
enfrentar com êxito os desafios e aproveitar as oportunidades apresentadas
pelo novo contexto mundial; devemos também garantir a imagem de um
processo com personalidade e características próprias, acrescentando à sua
identidade elementos políticos e sociais que permitam avançar em iniciativas
comuns, não limitadas aos aspectos comerciais e econômicos.
Isso implica, entre outras coisas, que nos processos decisórios nacionais os
países devem levar em conta especialmente uma visão comum e a implicação que
têm para a região as políticas nacionais. As ações devem garantir um equilíbrio
delicado entre a flexibilidade para adaptar-se à cambiante situação regional e
internacional e a garantia de estabilidade para aumentar a credibilidade da associação,
dotando-a de todos os mecanismos necessários para favorecer os cidadãos da
região e para permitir o desenvolvimento de negócios com projeção de futuro.
Conforme mencionei inicialmente, desenvolvi estas idéias a partir de
uma visão estratégica pessoal do nosso processo de integração, e da definição
de uma agenda positiva que permitirá alcançar os objetivos previstos no Tratado
de Assunção, a partir de uma correta distribuição de custos e benefícios entre
todos os participantes do Mercosul.
Só assim poderemos concretizar o destino manifesto que motiva a nossa
associação, e que já começa a projetar-se a um nível superior, através da
Comunidade Sul-Americana de Nações. Pessoalmente, só assim, deste modo,
poderei sentir-me de acordo com o meu próprio desempenho no alto cargo
com que fui distinguido.
Tradução: Sérgio Bath
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
Fernando Cajías de la Vega
29
Educação e cultura na
Bolívia
Fernando Cajías de la Vega
*
A
Diversidade Cultural na Bolívia
Não há dúvida de que a Bolívia, como todos os países do mundo, tem
muitas características próprias, mas neste ensaio pretendo destacar uma delas:
a diversidade cultural, pela influência que exerce sobre as políticas educacionais
e culturais.
Não se trata de um caso excepcional, pois todos os países latino-
americanos são diferentes, mas é importante reiterar os aspectos comuns e
aqueles que os diferenciam.
Quando os espanhóis chegaram ao nosso continente, o território que
hoje é parte da Bolívia formava parte do Império Inca, como toda a região
andina. Os incas tinham uma política de integração cultural baseada, sobretudo
no uso do idioma quíchua e no reconhecimento da supremacia dos seus deuses.
Durante o século que durou o seu domínio, eles conseguiram expandir
seus parâmetros culturais; assim, por exemplo, até hoje o idioma nativo que
mais se fala na América do Sul é o quíchua. A educação serviu para justificar o
império como um desígnio dos deuses. No entanto, a despeito dessa expansão
Vice-Ministro de Cultura da República da Bolívia
Educação e Cultura na Bolívia
30 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
30
os incas não conseguiram uniformizar a cultura andina: os aimarás e os urus,
entre outros povos, mantiveram a sua língua.
Mais ainda, os povos das regiões amazônica, do Chaco e subtropical
resistiram às tentativas de penetração do império inca e, especialmente a nação
guarani, manteve sua liberdade e identidade.
Por tanto, a Bolívia herdou essa diversidade pré-hispânica que, com as
mudanças próprias de cinco séculos de história, continua em vigor no nosso
país. Nos outros países latino-americanos, a herança pré-hispânica é residual e
minoritária como cultura viva, enquanto na Bolívia ela é majoritária.
À herança pré-hispânica diferente soma-se o legado colonial. Os
espanhóis deixaram sua marca profunda, e formou-se assim a cultura criolla,
descendente da Espanha com um longo processo de desenvolvimento cultural
independente, sob a influência do meio geográfico e dos seus vizinhos nativos
e mestiços, mais do que a influência do sangue.
Por isso, a cultura criolla também não é homogênea, e tem em comum o
idioma castelhano, a religião e certas outras características, mas possui identidades
marcadas pela região andina, a amazônica ou a do Rio da Prata. Isso fez com
que a diversidade étnica se uma a uma diversidade regional na qual se destacam
os “cambas”, criollos e mestiços da zona tropical; os “collas”, criollos e mestiços da
zona andina; os “chapacos”, criollos e mestiços do Sul do país, etc.
É bem verdade que nos países irmãos há também uma diversidade regional,
como a conhecida rivalidade entre costeños e serranos, mas na Bolívia essa diversidade
tem uma influência especial no que tange a formação das políticas públicas.
Devido a uma variedade de fatores, desde os primeiros anos do período
colonial começou a mestiçagem racial e cultural, que hoje caracteriza uma
grande parte da população e suas manifestações culturais. O encontro do
europeu com o nativo transparece na pele, nos costumes e práticas dos
momentos mais importantes da vida, como o nascimento e o matrimônio,
nas manifestações artísticas, no sincretismo religioso, na maneira de viver, na
concepção da vida depois da morte, nos saberes populares. Assim como os
criollos, os mestiços também são diversificados, segundo o meio geográfico, o
sangue e a sua cultura nativa.
Desde os primeiros dias da colonização espanhola chegaram também
os africanos, na condição de escravos; perderam muito da sua identidade, mas
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
Fernando Cajías de la Vega
31
guardaram a sua música, a religiosidade, e desta forma constituem outra das
culturas vivas que conformam o ser latino-americano. Embora seu número
seja reduzido, eles formam parte do ser boliviano.
À diversidade herdada da colônia e da época pré-hispânica se somaram
outros elementos, vindos com a República: as migrações do século dezenove,
procedentes da Europa e da Ásia. Neste caso, diferentemente de outros países
latino-americanos que receberam numerosas correntes migratórias, as quais
influenciaram profundamente a sua identidade, na Bolívia a imigração recebida
foi muito pequena, tanto no século XIX como no século XX.
Em poucos traços, esta é a profunda diversidade boliviana, que constitui
a sua maior riqueza, mas também o seu maior desafio no momento de propor
e executar políticas públicas como as relacionadas com a educação e a cultura.
Visões Históricas da Diversidade
Nem mesmo na época pré-hispânica, e muito menos na Colônia ou na
República, essa diversidade foi assumida em um plano de igualdade.
Lamentavelmente, sobretudo desde a época colonial a diversidade foi motivo
de discriminação, domínio e exclusão.
Na Colônia, ser índio significava ser tributado, trabalhar nas minas, como
mitayo; ser mestiço significava não ter acesso a cargos elevados – políticos, militares
e religiosos. Ser criollo era uma desvantagem diante do peninsular, do espanhol.
A República herdou essas discriminações, que ainda são importantes,
especialmente quando se comprova que em muitas ocasiões a pobreza e a
miséria estão localizadas em grupos culturais concretos. Por isso o objetivo
supremo, que é a unidade na diversidade, tem uma tarefa diante de si: a luta
contra a pobreza.
Antes de se chegar a esta feliz conclusão de assumir plenamente a
diversidade, houve diferentes modos de abordá-la.
Na primeira fase republicana, persistiram os critérios de exclusão da
Colônia, salvo que a dependência da Espanha se transformou em dependência
econômica da Inglaterra e mental da França.
Na segunda época da história republicana (1880-1930), marcada no político
e no econômico pelo modelo liberal, a discriminação aumentou. Assim como
Educação e Cultura na Bolívia
32 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
32
nos Estados Unidos e em muitos países latino-americanos, as políticas públicas
se impregnaram do confronto mal compreendido entre civilização e barbárie.
Em nome da civilização, se justificavam etnocídios como os do século
XVI, ou provavelmente ainda piores. Sobreviveram muitos mais quíchuas e
aimarás do que apaches e araucanos, mas as comunidades andinas perderam
grande parte das suas terras. Habituado a uma economia comunitária, nos
Andes o indígena passou a peão; na região amazônica, passou de livre senhor
do território a trabalhador vinculado à produção da borracha.
De acordo com as idéias de muitos pensadores, o índio e o mestiço -
chamado pejorativamente de cholo – foram considerados a causa mais
importante do atraso da Bolívia.
Nessa época, as políticas públicas emanadas da elite política tinham por
objetivo civilizar e modernizar o país, e para isso era importante copiar o
modelo europeu ou anglo-americano.
Salvo algumas exceções importantes, as expressões artísticas se
apropriaram do neoclássico, do romantismo, do modernismo de ultramar. Desta
forma os principais espaços públicos e privados reconstruíam, em menor escala,
um rincão da velha Europa – às vezes como um espelho simpático, outras
vezes como feia máscara.
A crise do modelo liberal, no fim da década de 1920, o questionamento
e o ativismo em favor de uma mudança radical, por parte de nacionalistas e
socialistas, provocaram o surgimento de uma nova visão sobre a diversidade,
formando novas mentalidades e novas expressões culturais.
O indigenismo se expressou no cinema, na pintura, escultura, arquitetura,
literatura, música. A imagem do Cristo ocidental foi substituída pelo Cristo
aimará do pintor Cecílio Guzmán de Rojas. O edifício central da Universidade
de San Andrés, em La Paz, fundiu a arquitetura vertical funcionalista com a
decoração do signo escalonado que lembra a cultura ancestral de Tiuanaco.
De todos os modos, como afirmam hoje vários intelectuais aimarás, o
indigenismo foi uma aproximação do índio por parte dos criollos. Seria preciso
passar mais quatro décadas para que surgisse o indianismo, a corrente cultural
a favor dos índios originada nos próprios índios.
No campo da educação apareceram também iniciativas importantes,
como a criação das principais escolas indígenas, especialmente a de Uarisata.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
Fernando Cajías de la Vega
33
As vanguardas culturais e educativas se adiantaram à Revolução Nacional
de 1952. Entre as quatro medidas fundamentais – a Reforma Agrária, a
nacionalização das minas, o voto universal – estava precisamente a Reforma
Educacional, que incluiu uma nova política cultural. A Reforma Educacional
adquiriu forma no Código de Educação de 1955. Entre outros princípios
fundamentais, como a educação para todos, a diversidade cultural foi considerada
dentro do objetivo da integração nacional, mediante a incorporação das “maiorias
excluídas: operários, camponeses e classes médias aos benefícios da civilização.
O novo paradigma visava uma cultura nacional capaz de aglutinar todas
as culturas do país, dentro de um amplo espaço de mestiçagem e de
consolidação da nação boliviana. Teve início assim um projeto ambicioso de
resgate do passado pré-hispânico, as expressões mestiças e nativas ganharam
as ruas das cidades, com o seu reconhecimento nas festas populares, nos tecidos
e na religiosidade.
Não obstante, as partes constituintes da nação boliviana sentiram que a
chamada “integração nacional” ainda sustentava hegemonias e exclusões; que
uma cultura dominante absorvia as “culturas subalternas”.
Surgiram assim, a partir da década de 1970, correntes de auto-afirmação
cultural promovidas agora não pela administração estatal, mas por grupos da
sociedade civil. Aos poucos nasceram e cresceram a nação aimará, a assembléia
dos povos guaranis, os centros indígenas do Oriente boliviano, os ayllus, o
movimento afro-boliviano, a nação camba, etc.
Pelo impulso das próprias culturas, as políticas culturais e educacionais
mudaram de paradigma, sobretudo a partir dos anos 1990, e o objetivo da
integração nacional foi substituído pela meta da unidade na diversidade.
Diversidade, Interculturalidade e Globalização.
Não resta dúvida de que é um paradoxo, mas a época da maior importação
de bens culturais de outros países, da busca mais intensa do universal, da maior
influência de outras culturas, do aparente triunfo da globalização é também a
época de maior consolidação do direito à diversidade.
Este é também um fenômeno geral, não só da Bolívia. A prova está na
profunda discussão em torno do “Anteprojeto de Convenção sobre a Proteção
Educação e Cultura na Bolívia
34 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
34
da Diversidade, dos Conteúdos Culturais e das Expressões Artísticas”,
auspiciado pela Unesco.
Nem todos assumiram a diversidade da mesma maneira. A globalização
tem muitos militantes na Bolívia e em todo o mundo, mas os defensores da
diversidade conseguiram que, finalmente, a proteção da diversidade seja uma
política de Estado.
Um dos principais reflexos é o Artigo Primeiro da Constituição Política
do Estado, que define a Bolívia como soberana, independente e pluricultural.
A Reforma Educacional iniciada na década de 1990, e que se encontra
em pleno processo de aplicação, tem como um dos seus princípios básicos o
da educação intercultural.
Os princípios da identidade e diversidade cultural são conceitos que estão
incorporados à educação boliviana atual, nas políticas e práticas da educação
intercultural bilíngüe (EIB), dentro do contexto dos parâmetros estabelecidos
pela vigente Lei da Reforma Educacional, aprovada em 1994.
Na Bolívia, como em outros países latino-americanos, os antecedentes
mais importantes da EIB se encontram na chamada “educación indigenal”, que
teve o desenvolvimento mais importante na primeira metade do século vinte,
e que gerou processos particulares de formação, em especial na área rural
andina. No caso da Bolívia, a experiência mais importante é a da Escola-Ayllu
de Uarisata, fundada em 1928, que representou uma das marcas mais relevantes
da educação boliviana, pela recuperação de formas próprias de gestão e
educação aimarás.
Não obstante, de modo geral as experiências feitas não alcançaram as
condições de uma política de Estado, e não tiveram as repercussões e o alcance
necessários. Neste sentido, manteve-se uma situação de desvantagem para os
habitantes originais, tanto na Bolívia como no resto do continente americano.
Em uma posição crítica diante dessa situação, surgem na segunda metade
do século XX, e principalmente a partir dos anos setenta, várias experiências
que procuravam democratizar a educação em todos os seus aspectos, e com
relação a todos os atores sociais. Uma vertente dessa alternativa foram os
primeiros estudos e práticas do que hoje conhecemos de modo geral como
Educação Intercultural Bilíngüe.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
Fernando Cajías de la Vega
35
Como afirma o especialista peruano Luís Enrique López:
“os sistemas educativos latino-americanos cedem à visão
homogeneizadora e uniformizadora com a qual nasceram, para aceitar, cada
vez mais e mesmo contra a vontade, a diversidade sociocultural e
sociolingüística, fato que promove o bilingüismo e a interculturalidade na
educação. Por isso, a educação intercultural bilingüe (EIB) passou a ser uma
parte integral dos atuais sistemas educacionais, de modo geral como resposta
às demandas das organizações indígenas.
No entanto, as interpretações da EIB diferem, e embora de modo geral
a legislação seja muito parecida em todos os países, em certos casos se entende
por EIB, na prática, programas compensatórios orientados para solucionar
algumas das carências dos educandos indígenas, no campo da educação básica;
ou então exclusivamente durante suas fases iniciais de escolaridade; em outros,
recebem a mesma denominação programas educativos que recorrem à língua
e cultura indígenas ao longo de toda a escolaridade da população indígena,
chegando até mesmo a postular a necessidade de uma educação superior
indígena, igualmente bilingüe e intercultural”.
Na Bolívia, os debates ocorrem principalmente depois da recuperação
da democracia, tendo como seus principais promotores a Confederação Sindical
Única de Trabalhadores Camponeses da Bolívia (Csutcb), que apresentou no
Congresso Nacional da Educação, de 1992, uma proposta para incluir a EIB
na reforma educacional boliviana. Simultaneamente, a Conferência Episcopal
da Educação (CEE), da Igreja Católica, e o Projeto de Educação Intercultural
Bilingüe (Peib), desenvolvem experiências concretas nas áreas aimarás, quíchuas
e guaranis, com apoio da Unicef.
Hoje, o ponto de partida mais importante é o primeiro Artigo da
Constituição Política do Estado, que declara que a Bolívia é um país livre,
soberano, multi-étnico e pluricultural. Essa declaração constitui, nas disposições
legais bolivianas, o primeiro reconhecimento da diversidade da nação.
A Lei da Reforma Educacional retoma esses debates e experiência, atribuindo
relevância transcendental à EIB, que considera, juntamente com a participação
popular, os eixos fundamentais para a transformação da educação boliviana.
Nesta perspectiva, a interculturalidade está incorporada às bases da nova
educação boliviana:
Educação e Cultura na Bolívia
36 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
36
“Es intercultural y bilingüe, porque asume la heterogeneidad socio-cultural del país
en un ambiente de respeto entre todos los bolivianos, hombres y mujeres.
Es derecho y deber de todo boliviano, porque se organiza y desarrolla
con la participación de toda la sociedad sin restricciones ni discriminaciones de etnia,
de cultura, de región, de condición física....” (LRE: Art. 1º, inc. 5 y 6).
A interculturalidade é também mencionada como parte dos objetivos da
educação na Bolívia:
“Fortalecer la identidad nacional, exaltando los valores históricos y
culturales de la Nación Boliviana en su enorme y diversa riqueza multicultural y
multiregional” (LRE: Art. 2º, inc. 4).
A meta do sistema educativo nacional é:
“Construir un sistema educativo intercultural y participativo...” (LRE: Art.
3º, inc. 5).
Esses conceitos iniciais estão incorporados em outros aspectos definidos
pela Lei de Reforma Educativa; por exemplo, entre os mecanismos de participação
popular estão incluídos os Conselhos Educativos dos Povos Originários,
organizados em secções aimará, quíchua, guarani e amazônica, os quais “participarão
da formulação de políticas educacionais, e zelarão pela sua adequada execução, em
particular sobre interculturalidade e bilingüismo” (LRE: Art. 6º, inc. 5).
Na Estrutura da Organização Curricular se reitera que, a interculturalidade
é um objetivo para o qual o currículo deve estar orientado. Além disso, nos
diferentes ciclos de educação primária devem ser assumidos “os códigos
culturais próprios da cultura originária dos educandos” (LRE: Art. 11º , inc. 4)
Com relação ao bilingüismo, a organização curricular incorpora duas
modalidades de ensino:
“2. Modalidades de lengua:
- Monolingüe, en lengua castellana con aprendizaje de alguna lengua originaria.
- Bilingüe, en lengua nacional originaria como primera lengua; y en
castellano como segunda lengua” (LRE: Art. 9º).
Estas linhas gerais são retomadas em outros documentos posteriores da
Reforma Educacional.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
Fernando Cajías de la Vega
37
Assim, no Regulamento dos Órgãos de Participação Popular se estabelece
que as juntas escolares devem ser organizadas de acordo com as suas
necessidades e sus prácticas socioculturales.
O desenvolvimento das características dos Conselhos de Educação dos
Povos Originários (Capítulo III) reitera que esses Conselhos devem ser
organizados “conforme as necessidades, os usos, costumes, valores, formas
de organização e práticas sócio-culturais dos seus povos” (OPP: Art. 27 º).
Por outro lado, há uma insistência na sua atribuição de “zelar pela execução
adequada das políticas educativas (...), particularmente no que se refere à
interculturalidade e à educação bilíngüe, assim como à formação de docentes
nos Institutos Superiores Normais Bilíngües” (OPP, Art. 31, inc. 2). Esses
Conselhos estarão representados no Conselho Nacional de Educação.
O Regulamento sobre a Organização Curricular
1
tem início com um
considerando que ressalta o caráter heterogêneo do país e a interculturalidade
como “um recurso e uma vantagem comparativa para promover um
desenvolvimento pessoal e social novo e harmonioso”.
Essa afirmativa caracteriza a nova posição do Estado boliviano, que vê a
interculturalidade não como obstáculo ou problema, conforme antes se
sustentava, mas como um aspecto positivo, que enriquece o processo de formação.
O Capítulo II desse Regulamento, relativo ao currículo, apresenta as
linhas principais a serem seguidas nesse campo. Em primeiro lugar, reitera
que se assume a perspectiva curricular pela qual é estabelecido um tronco
comum de âmbito nacional e ramos complementares que recolhem os
elementos culturais específicos, entre outros. Por outro lado, sustenta que “a
educação bilíngüe persegue a preservação e o desenvolvimento dos idiomas
originários, assim como a universalização do emprego do castelhano.
A gestão educacional incorpora a interculturalidade; assim, por exemplo,
o professor precisa ser um “comunicador intercultural, sensível às diferenças
culturais e lingüísticas dos seus educandos.” (ROC: Art. 89º, inc. 6) e deve
considerar a cultura local como um contexto funcional da aprendizagem. Deste
modo, a interculturalidade abrange a totalidade do sistema educacional.
1
A estrutura curricular do sistema educativo boliviano está dividido em duas áreas: a educação regular e a
educação alternativa. Por sua vez, a educação regular está dividida em quatro níveis: inicial, primário, secundário
e superior. A área de educação alternativa inclui a educação de adultos, educação permanente e educação especial.
Educação e Cultura na Bolívia
38 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
38
Outros documentos posteriores da Reforma Educacional desenvolvem
essas linhas, dentro da área curricular.
O texto da Organização Pedagógica manifesta o caráter global da
perspectiva intercultural no processo educativo, sustentando que “a organização
pedagógica deve adequar-se à diversidade cultural e lingüística da sociedade
boliviana. Tanto a prática do docente como a ambientação da sala, o desenho
dos materiais e os módulos, a disposição da sala, a organização e a avaliação do
aprendizado, a orientação do trabalho dos alunos, o caráter da capacitação docente
e da assessoria pedagógica, a relação entre a escola e a comunidade, etc. devem
levar em conta claramente a perspectiva intercultural que definiu a Reforma
Educacional como base do desenvolvimento da educação nacional” (OP:9)
O mesmo documento desglosa posteriormente a interculturalidade, tanto
no aprendizado como no ensino.
Afirma-se assim que no contexto da diversidade cultural do país o
aprendizado não pode ter uma visão rígida e monocultural da educação
tradicional. Além disso, é preciso considerar o contexto da globalização no
mundo, que obriga a crescer em um clima de abertura e de tolerância cultural
e lingüística. Assim, “o caráter intercultural do aprendizado deve criar na sala
de aula um espaço de diálogo e comunicação entre a cultura dos alunos e os
saberes e conhecimentos próprios de outras culturas; contrastar pontos de
vista e racionalidade diferentes e procurar negociar acordos comunicativos.
(...) O aprendizado deve promover o desenvolvimento de uma dimensão ética:
a valorização e legitimação do outro como referência para a própria prática”
(OP:15-16).
A condição do professor como “mediador intercultural, democrático e
sensível” é igualmente reiterada (OP:25).
Os Novos Programas de Estudo retomam a interculturalidade,
primeiramente dentro das linhas gerais, e depois em cada uma das áreas de
conhecimento no nível primário.
As linhas gerais reconhecem a Bolívia como um dos países com maior
diversidade cultural, onde cada um dos grupos étnicos possui suas
peculiaridades culturais e lingüísticas. Reitera a potencialidade dessa diversidade
e a vê como um desafio para a Reforma da Educação; procura assim fazer
com que a educação seja reconhecida “como um espaço para construir na
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
Fernando Cajías de la Vega
39
prática uma convivência social que supere os preconceitos e favoreça as relações
de compreensão mútua.”.
Isso implica em praticar uma pedagogia que valorize e legitime os
conhecimentos e saberes de cada uma das realidades étnicas, culturais e lingüísticas
que compõem a nossa sociedade, nas quais se podem expressar um conjunto de
valores que são reconhecidos nas culturas indígenas: respeito pela natureza,
solidariedade e reciprocidade comunitária, uma visão cultural integrada, entre
outros. Nessa pedagogia se aspira a que cada ato de ensino e de aprendizagem se
converta em um espaço de convivência, de ajuda e democracia (NPE:7).
De acordo com essa posição, a interculturalidade se converte na
competência transversal do currículo, além do seu eixo, o que “implica a formação
de indivíduos com a capacidade de auto afirmar-se no que lhe compete, e de
compreender e tolerar, na sua relação com os outros, as diferenças no viver e no
agir. Acima de tudo, significa a capacidade de viver no conflito permanente de
compatibilizar uma visão com outra, uma verdade e outra” (NPE:9).
A presença da diversidade na educação intercultural é expressa muito
claramente em um folheto de divulgação da EIB, publicado pelo Ministério da
Educação em 2003:
“Educar na diversidade implica:
Superar e afastar os preconceitos, o racismo e a discriminação.
Criar um ambiente educacional onde ninguém seja excluído ou
discriminado.
Propiciar uma convivência social respeitosa entre pessoas e grupos
com características diferentes.
Promover um diálogo entre diferentes grupos e pessoas.
Reconhecer como legítimos os conhecimentos e valores próprios de
cada região ou grupo cultural.
Reconhecer que o mundo não é homogêneo, e que todos os grupos e
todas as pessoas enriquecem a realidade.
Favorecer as relações de valorização, respeito e enriquecimento entre
pessoas e grupos culturais.
Aceitar com tolerância e respeito a existência de algumas divergências,
e até mesmo conflitos entre diferentes grupos culturais.
Educação e Cultura na Bolívia
40 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
40
Projetar a diversidade como um fator de enriquecimento da qualidade
da educação, que surge por meio da possibilidade de aprender com os
outros e de intercambiar com eles.
Promover o aprendizado e o desenvolvimento das línguas originárias.
Gerar um compromisso entre os diversos grupos sociais, culturais e
étnicos, orientado para a construção de uma sociedade justa, eqüitativa
e respeitosa”.
A educação intercultural é promovida pela sociedade civil, a administração
estatal e a Igreja Católica, mas depois de uma década de aplicação da reforma
da educação comprova-se que houve um grande avanço no discurso e nas
normas, mas não o bastante na realidade; ainda estamos longe de conseguir
que todos os cidadãos bolivianos pratiquem a interculturalidade.
Com efeito, essa interculturalidade deve ter dois braços fundamentais: a
auto-afirmação das identidades culturais e o diálogo entre culturas. Já se pôde
constatar, especialmente depois dos trágicos acontecimentos de outubro de
2003, que a auto-afirmação sem um diálogo pode levar a um fundamentalismo
perigoso, e a vocações feudais que representam um grave risco para a unidade
da Bolívia; mais ainda, ela atrasa qualquer possibilidade de integração latino-
americana.
Por isso, sem retroceder nas políticas educacionais e culturais que auto-
afirmam as identidades e protegem a diversidade, é preciso fazer esforços
especiais em função do diálogo intercultural, que possibilitem a formação de
uma cultura unida na sua diversidade, com vocação de integração latino-
americana e de internacionalização das culturas da Bolívia, entendida como
sua presença necessária no mundo complexo da globalização, como já o
conseguiram a literatura latino-americana, o balé colombiano, os tacos
mexicanos, o tango argentino, a música brasileira e tantas outras manifestações
do nosso continente.
O Novo Desafio da Interculturalidade
Se queremos manter a Bolívia como país e como nação, não basta
fomentar a auto-afirmação. É preciso, paralelamente, fomentar o diálogo e a
confluência de identidades – confluência que compreende as raízes étnicas e a
vinculação com um bairro, uma cidade, uma província.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
Fernando Cajías de la Vega
41
O ser boliviano é uma confluência de identidades, desde a da família a
a do país; naturalmente, nessa confluência tem um papel fundamental a
participação na América Latina e a construção da nação latino-americana. Nada
se exclui, tudo se complementa.
Para esses objetivos são fundamentais as políticas educacionais e culturais.
Os temas da educação intercultural, o diálogo intercultural, a definição da
Bolívia como um país pluricultural e intercultural, a salvaguarda da diversidade
de culturas, a presença da Bolívia no mundo serão temas fundamentais nos
debates do Congresso de Educação, no Foro de Políticas Culturais e, sobretudo,
na Assembléia Constituinte.
Tradução: Sérgio Bath.
Aliança argentino-brasileira
42 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
42
ocupação territorial do Brasil por Portugal se caracterizou, entre outros
aspectos, pelo contínuo ultrapassamento ocidental da linha divisória entre os
dois impérios traçada pelo Tratado de Tordesilhas. Esse ultrapassamento se
tornou mais fácil no período de reunião das duas coroas, de 1580 a 1640. Com
isto, a fronteira habitada, entre os dois impérios, se deslocou para o Prata.
Portugal sempre quis ocupar a margem oriental do rio, pretendendo
dele fazer uma fronteira natural entre as duas possessões. Data de 1680 a
fundação, na Banda Oriental, da colônia portuguesa do Sacramento. Essa
ocupação, tolerada por Madrid, nunca o foi pelos espanhóis da região, que
continuamente tentaram de lá desalojar os portugueses, o que acabaram
conseguindo. Desde esse período, as relações entre o Brasil e o que viria a ser
a Argentina foram sempre muito relevantes, oscilando de fases de rivalidade e
competição, como no caso da colônia do Sacramento, a outras de cooperação
e amizade, de que seria um primeiro exemplo a ação conjunta dos dois reinos
*
Decano Emérito do Instituto de Estudos Políticos e Sociais (Iepes)
Aliança argentino-
brasileira
Hélio Jaguaribe
*
A
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
Hélio Jaguaribe
43
em oposição a Artigas, que pretendia, desde 1821, separar o Uruguai da
Argentina e torná-lo independente.
A vinda de D. João VI para o Brasil, em 1808 – contrastando com a
equivocada permanência de Fernando VII na Europa teve as mais relevantes
conseqüências. O Brasil se tornou a sede do Império Português, concentrando
os recursos do Reino e passou a dispor, no início do século XIX, de condições
muito superiores às de seus vizinhos, divididos entre diversos países, com
freqüentes hostilidades recíprocas. D. João VI se preocupou em alargar a área
territorial brasileira e dotá-la de fronteiras naturais. Daí sua invasão e ocupação
da Banda Oriental e seus intentos, que não chegou a realizar, de ocupar as Guianas.
A reação de Artigas, que para esse efeito passou a ser apoiado pela
Argentina, conduziu, em 1827, a uma guerra com o Brasil, já então Império,
sob o reinado de Pedro I, que sofreu importante derrota na batalha de Ituzaingó.
A mediação inglesa conduziu a uma interrupção da guerra e à formação, entre
Argentina e Brasil, de um Estado tampão independente, o Uruguai, pelo
Tratado de 27-8-1828.
Na Argentina, a ditadura de Rosas, a partir de 1829, terminou suscitando
a reação de Urquiza, que o derrocou em 1852, contando com apoio brasileiro.
Seguiu-se um longo período de bons entendimentos entre Brasil e Argentina,
na seqüência, neste último país, das presidências Urquiza (1853-60), Mitre
(1862-68), Sarmiento (1868-74) e Roca, de 1880 a 86 e, novamente, de 1898-
1904, já então com o Brasil em regime republicano.
Importante momento de estreita cooperação entre os dois países,
juntamente com o Uruguai, será o da guerra do Paraguai, contra o ditador
Solano López, de 1865 a 1870, que pretendia anexar partes dos territórios
argentino e brasileiro. Outra fase de colaboração provirá da atuação do Barão
do Rio Branco como chanceler do Brasil, contornando habilidosamente a
hostilidade pessoal do chanceler Zeballos, levando-o a se demitir em 1908,
Rio Branco estabeleceu um regime de satisfatória cooperação com Argentina
e em 1904 buscou concretizar um acordo ABC- Argentina, Brasil e Chile.
O primeiro governo de Perón, na Argentina (1946-1955) coincidindo
com o segundo governo Vargas (1950-54) no Brasil foi, novamente, uma fase
de estreitamento das relações entre os dois países, a despeito do antiperonismo
predominante no Parlamento brasileiro.
Aliança argentino-brasileira
44 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
44
A década de 1970, entretanto, foi marcada pela controvérsia em torno
do projeto brasileiro, conjuntamente com o Paraguai, de construir a grande
usina hidroelétrica de ltaipu. Esse projeto foi considerado pela Argentina como
alterando, de forma inaceitável para aquele país, o curso das águas que
desembocavam no rio da Prata. O desentendimento chegou a se tornar
preocupante mas, em boa hora, os dois países optaram pela via da negociação,
que conduziu ao Acordo de Itaipu, em 19-10-79, entre Alfonsín e Sarney. Por
esse Acordo foram asseguradas condições de vazamento das águas consideradas
apropriadas pela Argentina.
O Acordo de Itaipu marca o início de um processo de crescente
acercamento entre os dois países, que desembocaria no atual regime de “aliança
estratégica”. Momentos importantes desse processo foram a Declaração de
Itaipu, de 30-11-85, a Ata de Integração, Cooperação Econômica e
Desenvolvimento, de 29-11-88, o Acordo Nuclear de 28-11-90 e, finalmente,
coroando esses esforços integrativos, a constituição de Mercosul, pelo Tratado
de Assunção, de 26-11-91. A cooperação argentino-brasileira, que já incluía o
Uruguai, desde 1987-88, ficou por esse tratado também integrada pelo Paraguai.
A Aliança e seus Problemas
Tornou-se amplamente majoritário, atualmente, na Argentina e no Brasil,
o reconhecimento da conveniência de uma aliança estratégica entre os dois
países. Os novos governos de Lula, no Brasil e Kirchner, na Argentina, são
decididamente favoráveis à consolidação dessa aliança.
Desde ltaipu, o entendimento entre o Brasil e a Argentina se fundou no
reconhecimento, por ambos, de que nada tinham a ganhar com atitudes de
rivalidade e muito com um regime de cooperação. O exemplo dos conflitos
entre a França e a Alemanha era extremamente ilustrativo. Três guerras, a
franco-prussiana de 1870, e as duas guerras mundiais de 1914 e 1939, cobraram
de ambos os países terríveis sacrifícios humanos e materiais, para uma efêmera
incorporação da Alsácia e da Lorena e mais efêmera ainda ocupação do Sarre,
tudo resultando em nada. Ao contrário, a cooperação entre os dois países, a
partir da Comunidade do Carvão e do Aço (1951-67), conduziu à formação
da Comunidade Européia, culminando com a União Européia e a adoção de
uma moeda única para quase todos os membros desta, ou euro.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
Hélio Jaguaribe
45
Não obstante um consenso básico pró-aliança na Argentina e no Brasil,
têm surgido, recentemente, crescentes dificuldades tópicas, decorrentes de
reivindicações da Argentina no sentido de conter o que entende ser excessivo
predomínio de produtos industriais brasileiros no mercado daquele país. As
medidas protecionistas unilateralmente adotadas pela Argentina, embora
compreensíveis do ponto de vista nacional, contrariam as disposições regulatórias
do Mercosul e provocam natural reação por parte dos correspondentes setores
brasileiros. O governo brasileiro, entretanto, considerando a aliança com a
Argentina mais importante que as desavenças tópicas, tem reagido com grande
tolerância e tentado dar à questão um tratamento também tópico.
É manifesta, todavia, a insuficiência de soluções meramente tópicas. O que
está em jogo é a necessidade de uma análise de por que a aliança, mais do que
conveniente, é indispensável e das condições necessárias para que funcione bem.
Aliança Indispensável
O que está em jogo, no relacionamento entre o Brasil e a Argentina, não
é apenas o fato de que uma estreita cooperação entre os dois países lhes seja
extremamente conveniente. O que está em jogo é o fato de que uma sólida,
confiável e estável aliança argentino-brasileira se constituiu, nas presentes
condições do mundo, um requisito sine qua non para a sobrevivência histórica
de ambos os países. Nenhum deles dispõem, presentemente, de condições
para preservar, isoladamente, sua efetiva soberania e assegurar sua identidade
nacional e seu destino histórico. Tal fato constitui uma das inescapáveis
conseqüências do processo de globalização.
Com efeito, o processo de globalização, ora exacerbado pelo
unilateralismo imperial do governo Bush, está suprimindo, drástica e
aceleradamente, o espaço de permissibilidade internacional da maioria dos
países. Mantêm-se os aspectos meramente formais da soberania desses países:
bandeira, hino, exércitos de parada e, quando democráticos, até eleições “livres”
de seus dirigentes. Um conjunto de poderosíssimos constrangimentos, de
caráter financeiro, econômico-tecnológico, cultural, político e, quando
necessário, militar, compele os dirigentes desses países, queiram ou não, a
seguir a orientação do mercado financeiro internacional, das grandes
multinacionais e, em última análise, de Washington.
Aliança argentino-brasileira
46 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
46
O que usualmente se denomina de “Império Americano” não é um
império semelhante aos impérios históricos, do Romano ao Britânico,
caracterizados pela dominação formal da metrópole sobre as províncias ou
colônias, por meio de um pré-cônsul ou vice-rei, com apoio de contingentes
militares e burocráticos da metrópole. O “Império Americano” é um campo,
no sentido análogo ao que empregamos quando falamos de “campo magnético”
ou “gravitacional”. É a área em que são exercidos, sem possibilidade de eficaz
resistência, os constrangimentos precedentemente mencionados.
Os países europeus se salvaram de se converterem em províncias desse
“Império” mediante sua integração na Comunidade, seguida pela União
Européia. Países como China e Índia, de caráter semicontinental e como Rússia,
por causa de seu arsenal nuclear, a despeito do severo declínio sofrido com a
implosão da União Soviética, conseguem preservar sua autonomia interna e
considerável margem de manobra internacional. Um país como o Brasil, se
lograsse manter sua autonomia nacional até alcançar um satisfatório patamar
de desenvolvimento sustentável, também atingiria um nível de apreciável
autonomia interna e influência internacional. O problema do Brasil, entretanto,
como a seguir se verá, consiste no fato de que, isoladamente, só lograria alcançar
esse patamar, na melhor das hipóteses, dentro de um prazo da ordem de 50
anos, enquanto as crescentes restrições que, isoladamente, experimenta seu
espaço de permissibilidade internacional, dentro de uns dez anos tenderão a
convertê-lo em mero segmento do mercado internacional e “província” do
Império.
Por que, nas condições precedentemente indicadas, a aliança argentino-
brasileira é indispensável para ambos os países? No caso da Argentina, o
problema com que se defronta decorre de sua falta de massa crítica, tanto em
termos demográficos, com menos de 40 milhões, como no que se refere a seu
sistema produtivo. Este, por um lado, foi reduzido à produção de artigos
primários, como petróleo, trigo e carne, por um longo e insensato período
neoliberal de deliberada desindustrialização, de Martinez de Hoz a Menem,
tomando o país industrialmente dependente dos países centrais. Por outro
lado, porque essa mesma política neoliberal levou o país a transferir todas as
suas empresas importantes, com relativa exceção no campo agrícola, a grandes
multinacionais, que controlam sua economia e poderosamente influenciam
sua política na direção da satelização internacional.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
Hélio Jaguaribe
47
Por que essa aliança é indispensável para um país como o Brasil? Este
dispõe de satisfatória massa crítica demográfica, com 180 milhões de habitantes,
possui o maior parque industrial do Terceiro Mundo, imensos recursos naturais,
notadamente a maior abundância de água fluvial do mundo devendo, a curto
prazo, atingir auto-satisfação em petróleo, ostentando, ainda, muitos outros
aspectos positivos? A resposta a essa questão decorre da muito baixa taxa de
integração social do país. Algo como 1/3 da população brasileira se encontra
num nível de extrema pobreza ou miséria e total deseducação. Outro terço da
população é extremamente pobre, com rendimentos per capita pouco superior
a dois dólares por dia. Dos 40% de remediados, somente algo como 10%
desfrutam de condições de vida e de educação plenamente satisfatórias.
O país tem se mantido, até agora, em virtude de sua extraordinária taxa
de integração nacional, que figura como uma das mais elevadas do mundo.
Esse estado de coisas, entretanto, não tem durabilidade, se não se der
início, urgentemente, a um grande programa social. Nas presentes condições
sociais em que se encontra, o Brasil tampouco poderá preservar sua efetiva
autonomia por um prazo de mais de dez anos.
A questão da pobreza, na Argentina e no Brasil, requer um breve
esclarecimento. A Argentina logrou, no curso de sua história, muito devendo à
política educacional de Sarmiento, formar uma sociedade equilibrada, consistindo
numa ampla classe média, que se constituiu como a mais educada e civilizada
sociedade da América Latina. Num estudo empírico do sociólogo José Luis de
Imaz, “Los Hundidos”, da década de 60, comprovou-se que a taxa de pobreza
argentina, da ordem de 10% da população, era menor que a dos Estados Unidos.
Atualmente, depois de mais de vinte anos de neoliberalismo, a pobreza argentina
afeta 50% da população. Trata-se, entretanto, do efeito de uma terrível e
prolongada estagnação, gerando correspondente desemprego. Esses “novos
pobres” argentinos são gente basicamente de classe média, habilitada a trabalhos
remunerativos, tão pronto estes voltem a existir. A recuperação econômica da
Argentina, ora em plena e acelerada marcha, poderá restabelecer satisfatório
nível nacional de emprego dentro de algo como cinco anos.
O caso brasileiro é totalmente diferente. Aqui nos deparamos com uma
“pobreza antiga”, semelhante à indiana. Essa pobreza é uma conseqüência
social da forma pela qual se desenvolveu a economia brasileira. O Brasil foi
uma grande fazenda tropical até a década de 1960, operada, até 1888, pelo
Aliança argentino-brasileira
48 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
48
braço escravo e, partir de então, por um campesinato miserável e deseducado.
A acelerada industrialização do país, iniciada, espontaneamente, a partir da
crise de 1930 e, deliberada e sistematicamente, com Vargas e Kubitschek,
modificou drasticamente o regime econômico do país. Isso não obstante, o
Brasil continuou sendo, até a década de 60, um país predominantemente rural.
Da década de 1970 a nossos dias, maciças migrações rurais inundaram as
cidades brasileiras com uma população miserável e totalmente deseducada,
grande contingente da qual não se adotou às condições urbanas de trabalho e
formou gigantescos anéis de marginalidade que cercam todas as grandes
metrópoles. A infiltração de narcotraficantes nessas populações marginais gerou
um nível de criminalidade que está ultrapassando a capacidade de contenção e
repressão da polícia. Criou-se, assim, um gigantesco problema social que requer
programas de recuperação igualmente gigantescos. Esses programas demandam
recursos que não são, presentemente, disponíveis e um prazo para a solução
do problema que ultrapassa, de muito, a estimativa de não mais de dez anos,
precedentemente mencionada.
Significação da Aliança
A aliança argentino-brasileira representa, imediatamente, uma significativa
elevação do status internacional de ambos os países. Ademais, representa um
fator, quase automático, de consolidação de Mercosul e de um sistema sul-
americano de cooperação e livre comércio.
A formação de um sistema de estreito entrosamento das economias
argentina e brasileira, no âmbito de uma orientação internacional comum,
corrige, em ampla medida, as principais debilidades de cada um desses países.
Para a Argentina, esse sistema significa elevar seu mercado, de menos de 40
milhões de pessoas para o nível de 220 milhões. Significa elevar o PIB argentino
de US$ 273 bilhões para US$ l bilhão, o que corresponde a 1/6 do PIE
europeu. Isto significa a decorrente superação da falta de massa crítica.
Para o Brasil, a aliança lhe proporciona um significativo aumento do
tempo de que possa dispor para reduzir suas desigualdades sociais e elevar seu
nível de integração social, acelerando seu desenvolvimento geral.
Ademais dos importantes efeitos positivos imediatamente decorrentes,
para os dois países, de um estreito entrosamento de suas economias e de sua
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
Hélio Jaguaribe
49
política internacional, essa aliança, como precedentemente se mencionou,
acarreta, quase automaticamente, a consolidação de Mercosul. Este sistema,
com efeito, é extremamente favorável para as economias do Paraguai e Uruguai,
absorvendo cerca de 50% de suas exportações. Outros importantes benefícios
decorrerão da medida, como a seguir se indicará, em que se adote uma política
industrial comum para Mercosul e, por extensão, para a América do Sul. Ocorre,
entretanto, que sem uma sólida, confiável e durável aliança argentino-brasileira,
dirigentes ocasionais dos dois outros países, como ocorreu no Uruguai sob a
presidência Battle, podem ser atraídos por políticas aventureiras, jogando com
eventuais rivalidades entre Argentina e Brasil. A aliança entre os dois principais
partícipes do Mercosul elimina esses riscos e exerce sobre os dois outros sócios
um salutar reforço de sua integração no Mercosul. Por via de conseqüência, a
consolidação do Mercosul tende a acarretar a do sistema sul-americano.
É importante, a esse respeito, se levar em conta as duas grandes
alternativas com que se defronta o mundo, ao se iniciar o século XXI. Essas
alternativas correspondem ou bem à consolidação e universalização do
“Império Americano” no curso dos próximos decênios ou, diversamente, à
emergência, até meados do século, de novos centros independentes de poder.
A primeira hipótese tenderá a se concretizar na medida em que, por diversas
razões, não venham a se configurar, no curso da primeira metade do século,
novos centros independentes de poder.
A formação de novos centros de poder resultaria da medida em que a
China logre sustentar suas elevadas taxas de desenvolvimento e seja capaz de
adotar, tempestiva e pacificamente, os reajustamentos institucionais decorrentes
desse desenvolvimento. Isso a conduziria, dentro de algumas décadas, a atingir
um nível de eqüipolência com os EUA, apoiado por satisfatório poder nuclear.
O mesmo cabe dizer da Rússia, na medida em que tenham continuidade as
reformas que vêm sendo introduzidas por Vladimir Putin, o que permitiria
àquele país reassumir, dentro de algumas décadas, a condição de superpotência
de que gozava a União Soviética.
Nesse cenário de um novo multipolarismo tenderia a se configurar um
sistema internacional apresentando três níveis. Na cúpula, estariam as
superpotências: EUA, China e Rússia. Num segundo nível se situariam países
ou grupos de países dotados de condições para atuar como importantes
interlocutores internacionais independentes. Nesse nível tenderia a situar-se a
Aliança argentino-brasileira
50 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
50
Índia. Nesse nível também tenderia a situar-se um sistema sul-americano que
lograsse combinar apropriada integração, com satisfatória elevação de seu
patamar de desenvolvimento. Finalmente, nesse mesmo nível tenderia a se
encontrar um provável subsistema político latino-germânico. Num terceiro
nível ficariam os países dependentes, reduzidos à posição de meros segmentos
do mercado internacional.
A hipótese de um subsistema latino-germânico requer um breve
esclarecimento. Trata-se do fato de que a União Européia, que já não dispunha
de condições para um mínimo de unidade em política internacional antes do
ingresso dos dez novos membros, definitivamente a perdeu com seu
alargamento. Consolidou-se sua condição de gigante econômico e anão político.
Na UE, entretanto, se encontram grandes países, como o Reino Unido, a França
e a Alemanha, que tendem a ter uma política internacional própria. Daí a
tendência a que, sem prejuízo da preservação de sua unidade econômica, a UE
se dividia, politicamente, em dois subsistemas: o atlanticista, sob liderança
britânica, compreendendo os Nórdicos e, eventualmente, a Holanda e o
europeista, sob liderança franco-germânica compreendendo a Espanha pós-
Aznar e a Itália pós-Berlusconi. Os países eslavos terão, face a esses dois
subsistemas, uma evolução difícil de prever. Presentemente, são fortemente
atlanticistas. A mais longo prazo, quando a atual geração anti-soviética for
substituída por uma nova, é provável que exerçam efeitos, sobre esses países,
a influência que alguns deles experimentam da cultura francesa e, outros, da
cultura e da economia alemãs.
Ante essas alternativas, a formação de um sistema sul-americano constitui
a condição necessária para que os países da região tenham uma inserção
satisfatória no sistema internacional da segunda metade do século. Caso se
consolidar o “Império Americano”, um apropriado sistema sul-americano nele
ingressaria como província de primeira classe, à semelhança da Europa.
Isoladamente, esses países teriam uma inserção semelhante à dos países
africanos. Se, ao contrário, como me parece mais provável, vier se constituir
um novo sistema multipolar, uma América do Sul integrada e satisfatoriamente
desenvolvida seria um dos grandes interlocutores internacionais independentes
do novo sistema.
Importa levar em conta, na hipótese de que venha a se formar um novo
sistema multipolar, que as considerações precedentes partem da suposição de
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
Hélio Jaguaribe
51
que o instinto de conservação nesse novo sistema internacional impedirá as
superpotências, como ocorreu no curso da Guerra Fria, de intentar soluções
militares, que tenderiam a conduzir a um suicídio comum, a famosa “mutual
atomic destruction” - MAD.
Requisitos
A consolidação de uma sólida, estável e confiável aliança estratégica
argentino-brasileira, ademais de uma vontade política que já se faz sentir, requer
o apropriado atendimento de diversos requisitos. Tal aliança, mais do que de
acordos políticos, dependerá da medida em que seu funcionamento se revele
reciprocamente vantajoso. A esse respeito, muitas coisas estão em jogo, desde
aspectos psicoculturais a aspectos econômicos e políticos.
Sem dar a essa complexa questão um tratamento mais elaborado
mencione-se, apenas, que o essencial, para a reciprocidade de benefícios,
consiste em se adotar medidas que conduzam a uma significativa redução das
assimetrias atualmente existentes. O êxito da Comunidade Européia decorreu
do fato de a Alemanha, e em menor escala Inglaterra e França, terem
contribuído, assimetricamente, para o desenvolvimento dos sócios mais
atrasados, como os Ibéricos, a Grécia e a Irlanda.
No caso da aliança argentino-brasileira, do Mercosul e da América do
Sul, em geral, a essência de um tratamento compensatório das as simetrias
consiste na adoção de uma política industrial comum. Isto significa, por um
lado, prever-se uma racional e eqüitativa distribuição da capacidade produtiva
de cada partícipe, de tal sorte que todos tenham um satisfatório elenco de
bens e serviços a vender aos demais e que todos efetivamente importem dos
parceiros tais bens e serviços. Isto significa, por outro lado, uma importante
assimetria, sobretudo inicial, da contribuição a ser dada pelos partícipes para o
êxito do sistema. Um país como o Brasil tem de reconhecer a necessidade de
dar uma contribuição maior que a da Argentina e esta, que a dos países menores.
Escaparia às dimensões destas considerações qualquer intento de
discriminar as contribuições a serem feitas por cada partícipe ao sistema.
Mencione-se, apenas, a necessidade de prévia adoção, a nível nacional, de
medidas que permitam significativas inversões públicas e privadas no território
de outros partícipes. Mencione-se, ainda, a necessidade da criação de uma
Aliança argentino-brasileira
52 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
52
importante agência financeira que opere, para o sistema, de forma semelhante
a que o Bndes opera no Brasil. Registre-se, por outro lado, a incompatibilidade
do projeto Alca com esse sistema e sua necessária rejeição por Mercosul.
Argentina e Brasil dispõem de condições para escapar ao destino, a que
isoladamente estariam condenados, de se converterem em meros segmentos de
mercado internacional e em províncias do “Império Americano”. A partir da
formação de uma sólida, estável e confiável aliança, criarão as bases para a
consolidação de Mercosul e da integração sul-americana, se assegurando um
grande destino histórico. Se não o fizerem, renunciarão a sua identidade nacional
e a qualquer protagonismo histórico, convertendo-se em mera geografia.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
Francisco Rojas Aravena
53
umo a uma Comunidade Sul-Americana de Nações
Reunidos em Cuzco, no Peru, os Presidentes Sul-Americanos decidiram,
em 8 de dezembro de 2004, fundar a Comunidade Sul-Americana de Nações
2
.
Essa decisão é o passo inicial para criar uma instituição que formaliza o espaço
sul-americano com identidade própria, a partir do progressivo estabelecimento
e implementação de ações conjuntas, que reforçam a integração nesta parte do
mundo. No âmbito externo se busca a concertação e coordenação de políticas e
da diplomacia com o objetivo de afirmar a América do Sul como um fator
diferenciado, capaz de ser um interlocutor significativo nas relações externas.
Os valores que organizam e que estão na base da Comunidade Sul-
Americana de Nações são, entre outros, a democracia, a solidariedade, os
direitos humanos, a liberdade, a justiça social, o respeito à integridade territorial
*
Secretario General da Faculdade Latinoamericana de Ciências Sociais (Flacso)
1
Neste trabalho atualizo, desenvolvo e amplio os conceitos que expressei no meu trabalho “Segurança
no continente americano”. Briefing Papers, fundación Ebert, 2004.
2
Declaração de Cuzco sobre a Comunidade Sul-Americana de Nações. III Reunião de Cúpula Presidencial
Sul-Americana, 8 de dezembro de 2004, Cuzco, Peru.
Panorama da
segurança na América
do Sul
1
Francisco Rojas Aravena
*
R
Panorama da segurança na América do Sul
54 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
54
e à diversidade, a não discriminação e a afirmação da sua autonomia, a igualdade
soberana dos estados e a solução pacífica das controvérsias. A identificação
desta região com os valores da paz e da segurança internacionais tem por base
a afirmação da vigência do direito internacional e do multilateralismo renovado
e democrático, que integre decididamente e de modo eficaz o desenvolvimento
econômico e social na agenda mundial
3
.
No campo da segurança, o Mercosul, como a Comunidade Andina de
Nações, haviam anteriormente subscrito uma série de declarações com as quais
reafirmam sua vontade de buscar a paz e de evitar a proliferação de armas de
destruição maciça. Entre os principais documentos e declarações assinados
cabe destacar, entre outros, a Declaração do Mercosul, Bolívia e Chile sobre a
Zona de Paz, subscrita em Ushuaia em julho de 1998; a Carta Andina para a
Paz e a Segurança, assinada em Lima em julho de 2002; a Declaração da Zona
de Paz Sul-americana, subscrita em Guayaquil em julho de 2002, no contexto
da Segunda Cúpula Presidencial Sul-Americana; a Declaração da Zona de Paz
Andina e a Declaração de Quito sobre o Estabelecimento e Desenvolvimento
da Zona de Paz Andina, assinadas em 12 de julho de 2004.
Devem ser destacados igualmente os importantes esforços de
coordenação efetuados primeiramente pelos países do ABC (Argentina, Brasil
e Chile) aos quais se somaram, no ano de 2004, o resto dos países sul-
americanos, tendentes a coordenar posições com respeito aos encontros de
Ministros de Defesa das Américas.
Em síntese, podemos destacar que o Sistema Sul-Americano procura
articular-se e manter-se em condições para transformar-se em um ator
internacional relevante. Esta vontade política e estratégica se materializou na
missão das Nações Unidas no Haiti. Nessa missão (Minustah), as tropas da
Argentina, Brasil e Chile constituem o elemento central no programa de
estabilização. O compromisso com o Haiti é um esforço de cooperação e um
comprometimento de curto, médio e longo prazo
4
.
A Declaração de Cuzco, assim como as outras declarações e ações
desenvolvidas, evidenciam um compromisso cada vez mais forte e efetivo -
3
Ibid.
4
Grupo do Rio. XVIII Cúpula. “Declaração do Rio de Janeiro”. 5 de novembro de 2004. Parágrafo 8.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
Francisco Rojas Aravena
55
um compromisso que se vincula cada vez mais a valores e interesses
compartilhados por meio da cooperação entre os países da região. Com o
desenvolvimento dessas políticas de cooperação procura-se mudar a situação
atual, e a do passado, para estabelecer uma nova entidade estratégica, com
identidade própria, capaz de desenvolver um diálogo efetivo com os principais
atores internacionais. Será um processo progressivo, e os objetivos previstos
revelam uma grande desafio à vontade política dos países e à concertação
regional. Será necessário superar importantes obstáculos e resistências derivadas
de inércias históricas, como as diferenças existentes nas posições atuais. Da
mesma forma, será fundamental superar as crônicas desconfianças entre as
elites e as maiores autoridades nacionais. Em especial, será primordial
restabelecer a confiança no relacionamento entre os Presidentes
5
.
Por fim, é preciso enfatizar que a democracia é um valor essencial, que
permite ampliar as oportunidades de cooperação; ao mesmo tempo, é o quadro
conceitual por meio do qual os doze Estados da região podem cooperar, e por
isso constitui o eixo para ampliar a governabilidade e para desenvolver um
espaço sul-americano integrado nos campos político, social, econômico,
ambiental e de infra-estrutura.
Importantes fatos recentes
6
O Conselho de Segurança das Nações Unidas teve que criar uma missão
para impor a paz no Haiti. Em busca do império da lei, o governo brasileiro
decidiu enviar tropas ao Rio de Janeiro, para deter a onda de violência associada
ao narcotráfico, que está empregando armas de guerra. Na Colômbia as
autoridades anunciaram a implementação do “Plano Patriota”, com o objetivo
de recuperar territórios que se encontram em mãos da guerrilha, nos quais há
décadas o estado colombiano perdeu sua jurisdição. Nos vizinhos,
especialmente no Equador, essa decisão provoca o temor de que o conflito se
alastre por meio das fronteiras. No meio da polarização político-social da
Venezuela, o governo deteve quase uma centena de presumíveis para-militares
colombianos, acusados de subverter a ordem nesse país. No princípio de 2005,
5
Alvaro Vargas Llosa, La Fauna política Latinoamerticana. La Tercera/Mondadori; Santiago, 2004.
6
Resenha de alguns dos fatos mais significativos neste campo, no ano de 2004.
Panorama da segurança na América do Sul
56 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
56
as relações entre a Colômbia e a Venezuela se tornaram tensas devido à prisão
de Rodrigo Ganda, tido como o “Chanceler das Farc”, que teria ocorrido em
território venezuelano, mediante pagamentos feitos pela Colômbia. Na Bolívia,
em um contexto de instabilidade, ocorreram sucessivamente fatos que afetam
a governabilidade, desde o aquartelamento das forças armadas e da polícia,
em protesto contra a transferência para a jurisdição civil de um processo contra
militares até a solicitação de autonomia por Santa Cruz. Tudo isso se passa
quando ocorrem mobilizações contra as políticas do Presidente Mesa, que
tem procurado na reivindicação do acesso ao litoral, junto ao Chile, um eixo
para a sua ação internacional, o que se tem traduzido no rompimento do diálogo
entre aquelas nações. Passados alguns meses, surge a esperança de
restabelecimento do diálogo presidencial. A Argentina está imersa em uma
crise energética cujos efeitos se fazem sentir nos países vizinhos. Tudo isso
significou a abertura de um diálogo político-diplomático e técnico sobre o
cumprimento dos contratos e o respeito dos compromissos assumidos. Os
Estados Unidos se colocam como eixo no caso das ameaças à região pelo
narcotráfico, o qual se vincula com organizações criminosas internacionais
que teriam vínculos com organizações extremistas e terroristas do Oriente
Médio. Ao iniciar o seu segundo mandato o Presidente George W. Bush
qualificou Cuba como uma das sete tiranias existentes no mundo.
A situação descrita mostra como na região se entrecruzam as agendas de
segurança e governabilidade, defesa e desenvolvimento, impulsionadas por
um amplo leque de atores e em um contexto de forte relacionamento das
variáveis internas e internacionais. Em síntese, as questões relativas à segurança
e à defesa das Américas demandam novas perspectivas, visões e parâmetros,
que deverão expressar-se em propostas, linhas de conduta e ações no sistema
global, nas Nações Unidas; no âmbito regional, na OEA e nas suas diversas
instituições; e também em cada um dos acordos sub-regionais. O foco de
atenção latino-americano e caribenho é o âmbito hemisférico e sub-regional.
Só o Brasil é percebido como ator global e regional, e por isso promove
iniciativas como o G-3, Bisa (Brasil, Índia e África do Sul) no contexto político
estratégico; iniciativas como o Grupo dos 20, que coordena posições no quadro
das negociações comerciais, ou a vinculação com outros atores regionais, como
o convite para a Cúpula Biregional, entre a América do Sul e os países árabes.
Uma iniciativa na qual investiu um esforço constante e decidido foi precisamente
a criação da Comunidade Sul-Americana de Nações.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
Francisco Rojas Aravena
57
A segurança internacional: como situar a América Latina?
As mudanças provocadas pelos atentados de 11 de setembro de 2001
nos Estados Unidos, e a seqüência de ataques terroristas em diversos países e
regiões, inclusive o do dia 11 de março de 2004 em Madrid, refletem uma
ameaça global do terrorismo transacional, de alcance mundial. Esta é a ameaça
mais comum e mais importante percebida pelo conjunto dos Estados membros
das Nações Unidas. Não obstante, a percepção da proximidade e/ou iminência
desta ameaça varia radicalmente nas diferentes regiões do mundo. Além disso,
do ponto de vista estrutural percebe-se uma política dos Estados Unidos que
procura consolidar a sua hegemonia, estabelecer uma distância de poder material
(hard power) de tal magnitude que no futuro previsível não tenha contrapeso.
7
Esta tem sido uma política sistemática que inclusive afeta as suas possibilidades
de utilizar um instrumento essencial de poder que é a influência - o soft power.
8
Esta re-hierarquização global ocorre fora dos mecanismos institucionais
tradicionais, de caráter multilateral. Os Estados Unidos exercem assim uma
capacidade de controle global não institucionalizada, sobre a base de “coalizões
ad hoc”. Isto se tem traduzido por uma política de unilateralismo radical, que
possui como instrumentos a intervenção e os ataques antecipados.
9
Não está
claro se isso corresponde a uma política de Estado, de longo prazo, ou se essa
definição política expressa apenas a posição de um governo específico, o
governo de George Bush Jr. Ao autorizar a intervenção no Afeganistão, por
intermédio do Conselho de Segurança das Nações Unidas, o sistema
internacional (inclusive a América Latina e o Caribe) concedeu amplos poderes
contra o terrorismo à maior coalizão estatal, liderada pelos Estados Unidos.
No entanto, para o governo Bush isso não foi suficiente: sua obsessão com o
Iraque o levou a romper a coalizão, exercendo seu poder unilateralmente, com
graves conseqüências para a cooperação multilateral, a estabilidade na região e
inclusive a estabilidade do preço do petróleo em nível internacional. Com
7
Philip Bobbitt, “Better than Empire”. En: em Magazine, Londres 13 de março de 2004.
8
Joseph S. Nye Jr. La paradoja del poder norteamericano. Editorial Taurus. Espanha 2003.
9
Francisco Rojas Aravena, “La política de Bush y el unilateralismo radical” em Papeles de Cuestiones
Internacionales, No. 80. Fundación Hogar del Empleado y Centro de Investigación para la Paz. Madrid,
inverno de 2002, pp. 63-72. Claudio Fuentes y Francisco Rojas Aravena, “El patio trasero. Estados Unidos y
América Latina post Irak”. Em Nueva Sociedad , No. 185, Caracas 2003. Flacso-Chile, Paz, crisis regional y
política exterior de Estados Unidos. Informe regional: América Latina. Flacso-Chile. Santiago, 2004.
Panorama da segurança na América do Sul
58 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
58
quase dois anos, o conflito do Iraque mostrou que, por maior que seja o hard
power dos Estados Unidos, para poder alcançar a paz e a estabilidade, tanto
política e econômica como social, é preciso que haja legitimidade, derivada do
multilateralismo institucionalizado.
A América Latina e o Caribe é a área de maior influência dos Estados
Unidos. No entanto, a atenção e a prioridade que atribuem à região é baixa,
embora a sua incidência na trajetória política e estratégica desses países seja
muito importante. Com efeito, a América Latina desempenha um papel
marginal nos assuntos internacionais. Expressado em termos positivos, a região
se define como uma zona de paz,
10
de não proliferação, zona livre de armas
nucleares, vetores e mísseis estratégicos, de armas químicas e biológicas.
11
Além
disso, a América Latina e o Caribe é a área com menor gastos militares em
todo o mundo.
12
No ano de 2002, esses gastos chegaram, na América do Sul,
a US$ 8.160 milhões, o que representou uma porcentagem de 0,97%, menos
de um por cento das despesas militares feitas em todo o mundo. Em relação
com o PIB, a América Latina e o Caribe inverte 1,6% do produto interno
bruto. Ainda em 2002 o contingente sul-americano de homens e mulheres em
armas representou 4,67% do total mundial, com um pouco menos de um
milhão de militares.
13
Pode-se dizer, assim, que a América Latina não constitui uma ameaça
para qualquer ator internacional; pelo contrário, esta é uma região que contribui
para a paz e a segurança internacionais. Por outro lado, a América Latina
contribui de maneira efetiva para a estabilidade global, mediante os homens e
mulheres, cidadãos dos seus países, que participam das diversas operações de
manutenção da paz realizadas pelas Nações Unidas.
A paz não se mantém por si só; um ou mais Estados devem assumir essa
responsabilidade e sustentar o ônus implicado na sua manutenção.
14
No
continente americano, não basta a vontade da América Latina e do Caribe
10
Reunião de Presidentes Sul-Americanos, 2ª. Cúpula. Declaração: Sul-América Zona de Paz. Quito, 2002.
11
Ver lista dos Tratados e Convenções assinados pela América Latina e o Caribe, OEA y ONU.
12
Ver cifras do U.S. ACDA; Military Balance; e SIPRI.
13
Rosendo Fraga, Balance Militar de América del Sur. Nueva Mayoría. Setembro de 2004. www.nuevamayoria.com.
14
Donald Kegan Las causas de la guerra y la preservación de la paz. Fondo de Cultura Económica. Espanha, 2003.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
Francisco Rojas Aravena
59
para preservar a estabilidade e a paz; é preciso também a vontade dos Estados
Unidos. A mudança de orientação na política deste país, no sentido de um
“multilateralismo à la carte”, e um processo de intervenção unilateral fora do
contexto de legitimidade da ONU, impõe uma tensão nas oportunidades para
a cooperação no sentido de preservar a paz. Mais ainda, os Estados Unidos fomenta
associações que fragmentam a região. Por exemplo: ela se dividiu com respeito à
guerra do Iraque, com sete país rejeitando a invasão, sete a apoiando; destes últimos,
quatro enviaram àquele país contingentes militares simbólicos (El Salvador,
Honduras, Nicarágua e República Dominicana). As políticas norte-americanas
com respeito à região são percebidas como um impulso no sentido da militarização
dos conflitos e a “securitização” da agenda.
15
A opção da América Latina frente a
estas tendências, e a incidência externa/interna dos Estados Unidos em cada um
dos países, pode assumir uma das seguintes alternativas: a) fragmentar-se ainda
mais, buscando vantagens tópicas para cada um dos países envolvidos; ou b) criar
mecanismos efetivos de diálogo, com um grau elevado de transparência, para
abordar temas de interesse comum. O processo de integração comercial das
Américas (Alca) não consegue reunir um consenso, e a região se divide entre
recusá-lo ou apoiá-lo, sendo o Brasil a grande voz de resistência.
Ampliar os espaços multilaterais é uma tarefa crucial para os países médios
e pequenos do Sistema Internacional, inclusive os Estados da nossa região.
Esta é uma visão reafirmada permanentemente nos mais diversos foros
internacionais. Assim, a Declaração de San José, da XIV Cúpula Ibero-
americana de Chefes de Estado e de Governo, declara: “Da nossa perspectiva
do mundo, com base na nossa história comum, nosso acervo cultural, e
inspirados pelos princípios e valores que formam a nossa identidade, reiteramos
que só o tratamento multilateral efetivo dos problemas e desafios globais que
enfrentamos nos permitirá formular e executar uma agenda para a promoção
da paz, da democracia e o desenvolvimento com inclusão social.”
16
. Por outro
lado, a XVIII Reunião de Cúpula do Grupo do Rio declarou: “Reafirmamos
que só o tratamento multilateral dos problemas globais e das ameaças à paz e
à segurança internacionais, e o pleno respeito ao Direito Internacional nos
15
Flacso-Chile, Paz, crisis regional y política exterior de Estados Unidos. Informe regional: América Latina.
Flacso-Chile. Santiago, 2004.
16
XIV Cúpula Ibero-Americana de Chefes de Estado e Governo, Declaração de San José, 20 de novembro de 2004.
Panorama da segurança na América do Sul
60 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
60
permitirão alcançar a paz e o desenvolvimento com inclusão social, dentro de
um novo espírito de cooperação internacional. Da mesma forma, reconhecemos
a necessidade urgente de fortalecer o multilateralismo para a solução e o
tratamento efetivo dos temas da agenda global.”
17
.
Com relação ao debate geral sobre a reforma das Nações Unidas, a região
não tem uma posição concertada. São reafirmados os princípios e objetivos,
assinalando-se que as decisões devem ser “mais democráticas” e “mais
participativas”, especialmente as do Conselho de Segurança, o qual precisa ser
“reestruturado para garantir melhor equilíbrio e representatividade”,
18
mas
não são apresentadas propostas concretas.
19
Pelo menos três países - Argentina,
Brasil e México, já se declararam candidatos a um assento permanente, na
hipótese de ampliação do Conselho.
Diante do surgimento de novas ameaças, desterritorializadas e de caráter
assimétrico, como é o terrorismo de alcance global, a América Latina pode
apresentar certas vulnerabilidades. No entanto, não é a base ou o foco a partir
do qual são planejadas ações de terrorismo global, a despeito das alegações
dos Estados Unidos neste sentido.
20
Toda a evidência obtida desde os ataques
de 11 de setembro de 2001 mostram que na América Latina não funcionam
hoje células vinculadas ao terrorismo global – o que no entanto pode mudar
no futuro próximo. Não obstante, este é um tema a respeito do qual é
importante manter a colaboração e o intercâmbio de informações para prevenir
o uso do território latino-americano para atacar os Estados Unidos, a União
Européia ou os seus interesses. A América Latina e o Caribe têm reafirmado
sua vontade e firme compromisso de combater o terrorismo em todas as suas
formas e manifestações, com apoio no Direito Internacional e respeitando os
direitos humanos. A Convenção Interamericana contra o Terrorismo é a
expressão institucional desta perspectiva, e a criação da Comissão Internacional
Contra o Terrorismo (Cicte), no âmbito da OEA, é o espaço para aplicar a
Convenção e promover outras iniciativas visando a coordenação das políticas
nacionais nesta matéria.
17
XVII Cúpula do Grupo do Rio, “Declaração do Rio de Janeiro”, 5 de novembro de 2004, parágrafo 2.
18
Grupo de Rio, “Consenso del Cuzco”. 24 de mayo del 2003.
19
Grupo do Rio. “Declaração do Rio de Janeiro”. Parágrafo 3.
20
Discurso do Chefe do Comando Sul, General James T. Hill, no Congresso dos Estados Unidos. 24 de março de 2004.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
Francisco Rojas Aravena
61
A segurança do Estado no século XXI
O Estado continua sendo o principal ator no sistema internacional, mas
não é o único, e atualmente precisa compartilhar poder e cooperação com atores
não-estatais, organizações da sociedade civil, empresas multinacionais e
transnacionais, e até mesmo com o indivíduo. Esta é uma mudança fundamental
nos relacionamentos regionais e globais. Tradicionalmente a segurança do Estado
estava radicada em torno de dois aspectos fundamentais: a) a coesão interna
para organizar as relações internas de poder, com um governo capaz de aplicar
o império da lei em um território determinado e sobre o conjunto da população;
b) as relações entre Estados soberanos, de competição e cooperação. Esses dois
aspectos mudaram substantivamente no mundo e na América Latina. Em muitos
casos coexistem no mesmo território atores diferentes, competindo entre si e
fragmentando a sociedade; quando as demandas dos povos e das sociedades
não são atendidas pela ação estatal, elas geram vulnerabilidades na segurança
como um todo e na governabilidade. Por outro lado, o foco principal de atenção
nas relações entre os Estados está vinculado à sua capacidade de decisão soberana
na plena integridade do território. E neste último aspecto que se coloca
tradicionalmente o foco da atenção às percepções de ameaças à segurança.
Na América Latina a paz entre os Estados é o seu maior capital, que
precisa ser preservado. Embora ao mesmo tempo as vulnerabilidades internas
constituam na região a principal ameaça à segurança do Estado. A incapacidade
de satisfazer as demandas e necessidades do povo dificulta o estabelecimento
de instituições democráticas efetivas: passar da democracia eleitoral à
democracia cidadã, como propõe o Pnud no seu Relatório sobre a Democracia.
21
A afirmativa de que na América Latina as relações interestatais gozam de
um alto nível de estabilidade, e baixa conflituosidade, é objeto de amplo consenso,
tanto entre os analistas acadêmicos como entre os responsáveis pelas decisões
políticas. Neste terreno têm tido especial importância os progressos havidos na
década de 1990, quando foram resolvidos alguns dos principais contenciosos
interestatais, ou quando se reduziu a competição militar estratégica entre os
principais atores envolvidos.
22
Neste sentido cabe destacar os importantes acordos
21
Pnud La democracia en América Latina. Hacia una democracia de ciudadanas y ciudadanos. PNUD. Lima,
2004. www.pnud.org.
22
Jorge Domínguez (org.) Conflictos territoriales y democracia en América Latina. Siglo XXI Editores. Argentina,
Universidade de Belgrano e Flacso-Chile. Buenos Aires, 2003.
Panorama da segurança na América do Sul
62 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
62
entre os países do Cone Sul, que consolidaram uma estabilidade mais ampla,
tornando possível que a América do Sul se declarasse uma zona de paz. Os
acordos nucleares entre Argentina e Brasil, em meados dos anos oitenta, foram
cruciais nesse processo. Entre os principais contenciosos fronteiriços resolvidos
cabe destacar aqueles entre Argentina e Chile e entre Peru e Equador, assim
como entre El Salvador e Honduras, na América Central.
Cabe salientar que este é um assunto que exige a manutenção de medidas
pró-ativas destinadas a consolidar a paz entre os Estados, as quais exigem uma
atenção constante. Na medida em que os processos de complementação
econômica não se transformam em processos de associação e integração com
grande densidade, será necessário prestar atenção a todos os aspectos vinculados
à soberania territorial, à delimitação de fronteiras e equilíbrio estratégico.
Somente quando houver uma rede de interdependência poderosa em outras
áreas, em particular na econômica, comercial, financeira e de serviços, com
mecanismos eficazes de resolução de conflitos, e um sistema institucional capaz
de orientar e supervisionar esses processos, será possível afirmar, com maior
segurança, que nenhum conflito particular poderá se agravar de tal modo que
venha a afetar as questões relativas à defesa e à segurança internacional. Neste
sentido, falta ainda um bom caminho a percorrer na América Latina e no Caribe.
Com efeito, persistem ainda um número importante de contenciosos ligados
à soberania territorial. Em um estudo recente sobre a bacia do Caribe foram
identificadas quase quarenta situações de conflito de limites, relacionadas com
reivindicações territoriais e/ou problemas de delimitação marítima ou terrestre.
23
No caso dos países latino-americanos existem ainda pelo menos quinze
contenciosos pendentes. Pode-se afirmar que muitos desses diferendos estão
inativos ou sujeitos a um controle importante. No entanto, a experiência da década
de 1990 demonstra que o recurso à força para procurar resolver contenciosos
vinculados à soberania territorial foi muito freqüente, e que em mais de 25
oportunidades houve manifestações do emprego da força, seja efetivo ou como
demonstração do propósito de usá-la.
24
No caso da disputa entre Equador e Peru,
em 1995, houve mesmo hostilidades explícitas, que exigiram uma ativa mediação
23
Ivelaw Griffith. Caribbean Security in the Age of Terror. Ian Randle Publisher. Jamáica 2004.
24
David Mares, “Conflictos limítrofes en el hemisf erio occidental: análisis de su relación con la estabilidad
democrática, la integración económica y el bienestar social”. Em Jorge Domínguez, op.cit
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
Francisco Rojas Aravena
63
internacional, com a participação dos principais atores hemisféricos. Em todas as
sub-regiões podemos identificar contenciosos limítrofes, com reivindicações
territoriais e/ou marítimas. Entre as situações que estão ativas cabe destacar as
seguintes: Belize-Guatemala; Bolívia-Chile; Peru-Chile; Honduras-Nicarágua;
Colômbia-Nicarágua; Costa Rica-Nicarágua; Colômbia-Venezuela; Venezuela-
Guiana; Argentina-Grã Bretanha; Estados Unidos-Cuba.
Levando em conta esses fatos, é necessário criar mecanismos específicos
tanto para reconhecer as disputas como para propor alternativas de solução e
desenvolver medidas efetivas que promovam um clima de estabilidade e confiança
em toda a região. No primeiro caso, o tratamento institucional é insuficiente;
não existe um reconhecimento sistemático das disputas com respeito à
demarcação de limites, áreas de fronteira ou reclamações territoriais, que possa
agir com presteza na condição de elemento de alerta. Já no campo relativo às
medidas de fomento da confiança e da segurança houve progressos importantes,
por meio dos quais se avançou no intercâmbio entre países, desde medidas
protocolares até manobras militares, em um processo que já tem mais de uma
década de implementação.
25
Não obstante, a informação recolhida no ano de
2004 foi pobre, e só oito países forneceram dados: Canadá, El Salvador, Honduras,
Guatemala, Argentina, Brasil, Chile e Peru. Ora, se o acordado não é cumprido
de forma adequada, com o fornecimento da informação correspondente, será
muito difícil aperfeiçoar os mecanismos estabelecidos.
26
Por outro lado, um grupo importante de países da região desenvolveu
políticas de caráter unilateral associadas à explicitação das suas políticas de
defesa e segurança, por meio dos livros de defesa.
27
Esta é uma área que sugere
a continuação de iniciativas, tanto nos níveis básicos como em medidas de
confiança e segurança, de segunda e terceira geração.
Por outro lado aumentou também a transparência das despesas militares,
sobre a base de fontes nacionais e com uma metodologia padronizada.
28
25
Jorge M. Eastman. “Informe sobre inventario de medidas de fomento de la confianza y seguridad aplicadas
por los Estados miembros de la OEA”. Miami, 3 de fevereiro de 2003.
26
JID, Estado Mayor Interamericano, “Informe Borrador sobre Inventario de MFCYS, aplicadas en el año
2003”. Julho de 2004.
27
Argentina, Chile, Equador e Guatemala publicaram livros de defesa; o Brasil publicou suas diretrizes.
28
Cepal Metodología estandarizada común para la medición de los gastos de defensa. Santiago, novembro de 2001.
Panorama da segurança na América do Sul
64 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
64
Novamente, este é um campo no qual as possibilidades de expansão em nível
regional são muito grandes. Desenvolvê-las significaria ampliar as
oportunidades de um melhor conhecimento, desde que se reduzam as
desconfianças geradas em torno das despesas militares e dos processos de
aquisição de meios bélicos. Resdal e SER-2000 desenvolveram uma linha de
trabalho relacionada com os gastos militares e o papel do Parlamento nos
temas de defesa, dando uma contribuição ao melhor conhecimento do
assunto.
29
Por outro lado, a revista Fuerzas Armadas y Sociedad exerceu um papel
importante nos debates e nas propostas surgidas neste campo.
30
A principal percepção de ameaça deixou de basear-se nas disputas entre
Estados. Atualmente adquire muita força o fator transacional, e o crime
organizado transacional é um elemento fundamental na emergência de novas
ameaças. Esta percepção de novos atores, em um contexto distinto do da
conflituosidade interestatal, leva ao desenvolvimento de uma perspectiva na
qual mudaram também as formas assumidas pelos conflitos armados, onde
predominam hoje as “novas guerras”.
31
As tensões entre os Estados, em um
contexto de aumento do acesso a armamentos ligeiros
32
torna possível a
diferentes grupos vinculados ao crime organizado promover essas chamadas
“novas guerras”. Precisamos analisar as situações pós-conflito para resolver o
problema da transferência de armas provocada por essas situações. Em outras
palavras, uma ação efetiva para pacificar um Estado e a sua sociedade consiste
em retirar da circulação o maior número possível de armas, criar um controle
eficaz sobre a sua oferta e restituir ao Estado o monopólio da violência.
Na América Latina e no Caribe a violência urbana causa mais mortes do
que os conflitos abertos: a taxa de homicídios nessa região é de 25,1 por cem
mil habitantes, que supera a de todas as outras áreas do mundo. Mais de cem
mil pessoas são assassinadas cada ano, sem considerar outros delitos como
seqüestros e roubos. Devemos destacar, além disso, que existem grandes
diferenças de gênero e entre países. Em sua maioria as pessoas assassinadas
são homens jovens. Na área centro-americana e na Colômbia as taxas são
29
www.resdal.org.
30
www.fasoc.cl.
31
Mary Kaldor Las nuevas guerras. Violencia organizada en la era global. Editores Kriterios TusQuets. Barcelona, 2001.
32
Small Arms Survey 2002. Counting the Human Cost. Oxford, 2002.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
Francisco Rojas Aravena
65
muito altas. No primeiro caso, em conseqüência das guerras dos anos 1980 e
dos choques entre bandos juvenis transnacionalizados, as maras. No segundo, a
atual guerra intestina, que se arrasta há cinqüenta anos. No Brasil tem havido
um aumento significativo da violência, mas dois países apresentam taxas muito
baixas, inferiores a 4,6%: o Chile e o Uruguai. Em termos econômicos, o custo
dessas mortes para a região tem sido estimadas pelo BID em 14,2% do PIB.
A principal vulnerabilidade da América Latina: a
(in)governabilidade
Se analisarmos a situação da defesa e segurança da América Latina neste
momento podemos concluir que as principais ameaças não estão radicadas
nas vinculações intersetarias. Com efeito, na América Latina e no Caribe as
principais situações de risco, em cada um dos países da região, estão associadas
à governabilidade democrática – ao elemento intra-estatal. A evidência dos
quinze últimos anos mostra um alto grau de instabilidade regional, que dificulta
a estabilidade e os intercâmbios. Em muitos casos, a influência dos conflitos
nacionais nas áreas circundantes gera condições para que temas intersetarias
possam ressurgir e aumentar de importância.
A instabilidade se transformou em uma característica persistente na
América Latina e no Caribe, reflexo de uma série de crises políticas e
econômicas, com convulsões sociais que provocaram a renúncia de chefes de
Estado, a designação de mandatários pelo Congresso, crises e tensões militares,
em um contexto de graves iniqüidades, crescimento econômico muito reduzido
e desemprego elevado. Na década de 1990 houve mais de vinte situações de
crise institucional na América Latina, e os casos mais emblemáticos foram os
do Paraguai, Haiti e Peru. No entanto, no princípio desta nova década surgiram
novos focos de tensão, como na Argentina e na Venezuela, e uma recidiva da
crise haitiana.
O quadro seguinte apresenta graficamente as crises político-institucionais
ocorridas na América Latina a partir de 1990, considerando três variáveis:
renúncia de Presidentes, golpes de Estado e crises político-militares.
Como se pode observar no quadro, nos últimos quinze anos as crises
político-institucionais têm sido recorrentes. Na primeira metade dos anos
noventa essas crises estiveram associadas essencialmente a levantes ou tensões
Panorama da segurança na América do Sul
66 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
66
militares, em quatro dos cinco golpes de Estado. Nos últimos quatro anos as
crises institucionais se manifestaram principalmente na renúncia de três
Presidentes. Isto nos mostra a necessidade de criar e ativar mecanismos de
prevenção de crises. Têm importância especial a concepção e estabelecimento
de um plano de governabilidade democrática nas Américas, que permita superar
as instabilidades com fundamento na cooperação, e que possibilite a
consolidação da paz.
33
Fonte: Elaborado por Flacso-Chile com base em informações veiculadas pela imprensa.
Golpes de Estado
Levante ou tensão militar
Destituição/renúncia do Presidente
Neste sentido, se fazem necessárias ações tendentes a fortalecer os
sistemas democráticos, pondo em execução os mecanismos de apoio previstos
na Carta Democrática das Américas. Os níveis de insatisfação com a democracia
33
Ver a Declaração da Assembléia Geral da OEA sobre a governabilidade. Santiago, 2003.
Crises político-institucionais na América Latina 1990-2004
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
Francisco Rojas Aravena
67
são muito altos na região
34
, tendo chegado a 66% no ano de 2003; da mesma
forma, é necessário encontrar alternativas nacionais e regionais para reduzir a
pobreza e as diferenças sociais.
A segurança humana: segurança para os indivíduos e
as comunidades
O conceito de segurança humana surgiu no panorama mundial em meados
da década dos anos noventa, em um contexto de busca de novos paradigmas
para explicar o sistema internacional e de um crescente debate teórico e prático
em torno dos conceitos tradicionais de segurança que inspiraram a ação dos
países durante boa parte do século passado. A partir do mundo acadêmico e
da parte de algumas organizações internacionais, e inclusive Estados, foi
promovida a idéia de segurança humana como uma definição que ajudaria a
captar melhor os novos desafios em matéria de segurança, tendo como eixo
principal as pessoas.
No seu Relatório de 1994, Novas Dimensões da Segurança Humana
35
o
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) enfatiza que “a
segurança humana está centralizada no ser humano”. Segurança humana
significa que as pessoas podem exercer suas opções de forma segura, livremente,
e que podem ter uma relativa confiança em que as oportunidades que têm
hoje não irão desaparecer completamente no dia seguinte. Com respeito ao
vínculo entre desenvolvimento humano e segurança humana, assinala-se que
o primeiro consiste na ampliação das oportunidades das pessoas, enquanto a
segurança humana diz respeito à possibilidade de desfrutar de maneira estável,
ou seja, “que as oportunidades hoje existentes não se desvaneçam com o
tempo.”
Em maio de 2003 foi apresentado o relatório Segurança Humana: Agora
36
.
Nele encontramos a seguinte definição conceitual: “a segurança humana significa
34
Ver LATINOBAROMETRO 2003 e 2004.
35
Pnud, “Nuevas Dimensiones de la Seguridad Humana”, Relatório do Pnud, Nova York, 1994.
36
Commission on Human Security, Human Security Now, Nova York, maio de 2003. A apresentação da versão em
espanhol desse livro foi feita no contexto do Seminário Internacional sobre a Segurança Internacional Contemporânea:
Conseqüências para a Segurança Humana na América Latina, em agosto de 2003, no Flacso, Chile.
Panorama da segurança na América do Sul
68 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
68
proteger as liberdades vitais. Significa proteger as pessoas expostas a ameaças
e a determinadas situações, robustecendo a sua força e as suas aspirações.
Significa também criar sistemas que proporcionem às pessoas os elementos
fundamentais de sobrevivência, dignidade e meios de vida. A segurança humana
vincula diferentes tipos de liberdade: liberdade diante das privações, diante do
medo e liberdade para agir em seu próprio nome.” O relatório destaca que,
para o objetivo proposto anteriormente, há duas estratégias gerais: a proteção
e a atribuição de poder aos indivíduos, a sua potencialização. A proteção isola
as pessoas dos perigos. Requer um esforço para elaborar normas, e exige que
os processos e as instituições se ocupem sistematicamente das causas de
insegurança. O respeito aos direitos humanos constitui o núcleo de proteção
da segurança humana. A potencialização (empowerment) permite às pessoas
participar plenamente da tomada de decisões.
O Relatório enfatiza que o fomento dos princípios democráticos constitui
um passo relevante para alcançar a segurança humana e o desenvolvimento:
permite às pessoas participar das estruturas de governabilidade e fazer com
que a sua voz seja ouvida. Além disso, assinala a necessidade de criar instituições
sólidas, no contexto do Estado de Direito, que atribuam poder às pessoas. A
segurança humana aparece assim, de um lado, como um conceito complementar
da noção de segurança territorial do Estado; de outro como uma noção que
contraria a chamada “doutrina da segurança nacional”. As noções de segurança
humana incorporaram a perspectiva multidimensional.
A VI Conferência de Ministros de Defesa das Américas, em novembro
de 2004, registrou o seguinte: “A segurança constitui uma condição
multidimensional do desenvolvimento e do progresso das nossas nações. A
segurança se fortalece quando aprofundamos a sua dimensão humana. As
condições da segurança humana melhoram com o pleno respeito da dignidade,
dos direitos humanos e das liberdades fundamentais das pessoas, no quadro
do Estado de direito, assim como também mediante a promoção do
desenvolvimento econômico e social, a educação e a luta contra a pobreza, as
doenças e a fome”.
37
37
VI Conferência de Ministros de Defesa das Américas. “Declaração de Quito”. San Francisco de Quito,
novembro de 2004.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
Francisco Rojas Aravena
69
Segurança regional: definindo as ameaças e os novos
conceitos
Na última década foi feito nas Américas um grande esforço para definir
um conceito comum sobre a segurança, com base em valores compartilhados
e que possibilitasse o estabelecimento de compromissos efetivos para a
execução de iniciativas nessa área.
As Cúpulas Presidenciais das Américas ressaltaram sempre os temas
principais, sugerindo ações específicas nos planos de ação. Esse longo processo
culminou na Conferência Especial de Segurança.
38
Na sua Declaração a Conferência
mencionou o novo conceito de segurança, que relaciona de modo claro as
percepções de ameaça em um novo contexto, e estabelece os compromissos de
ação para superar tais ameaças, preocupações e riscos no âmbito da segurança.
Delimitando as ameaças: o peso do sub-regional
No trabalho preparatório da Conferência foi possível delimitar e
estabelecer o quadro de ameaças de caráter sub-regional, assim como a
perspectiva de segurança nas Américas. A percepção de ameaças por sub-
região torna possível visualizar uma forte posição comum em torno dos temas
principais, que representam as preocupações fundamentais: narcotráfico,
terrorismo, tráfico de armas, crime organizado, meio ambiente e desastres
naturais, pobreza e carências sociais, guerrilha e grupos subversivos.
Ao analisar o posicionamento nacional das percepções de ameaça
constatamos que em todas as intervenções as autoridades destacaram o
narcotráfico e o terrorismo como ameaças. Em segundo lugar estão a pobreza e
as carências sociais. Em terceiro lugar, o crime organizado, embora este pudesse
ser associado tanto ao tráfico de armas como ao terrorismo e ao narcotráfico.
Finalmente, aparecem a guerrilha e os grupos subversivos. No entanto, quando
analisamos a percepção de ameaças por sub-região vemos que, depois das
primeiras ameaças comuns, há variações nas prioridades, e aqui a pobreza emerge
com força, juntamente com os desastres naturais. O caso dos países andinos é o
único em que a guerrilha ocupa um lugar medianamente importante; nas outras
três sub-regiões ela aparece em último lugar.
38
OEA/Ser.K/XXXVIII. Declaração sobre Segurança nas Américas. Outubro de 2003.
Panorama da segurança na América do Sul
70 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
70
Percepção de ameaças priorizada por sub-região
Fonte: elaboração própria, com base nos discursos dos Ministros de Defesa na V Conferência Ministerial de
Defesa, Santiago, 2002, e nas respostas enviadas pelos países à Comissão de Segurança Hemisférica da OEA.
As tendências reveladas no quadro coincidem com os discursos dos representantes nacionais na Conferência
Especial de Segurança, realizada em 2003.
A Conferência Especial de Segurança se deu conta desta situação quando
na Seção II, número 4, a respeito das abordagens comuns, a letra “m” estabelece
as novas ameaças, preocupações e desafios de vária natureza que afetam o
Hemisfério. A Declaração destaca:
“m) A segurança dos Estados do Hemisfério se vê afetada de diferentes
formas, por ameaças tradicionais e pelas seguintes novas ameaças, preocupações
e outros desafios, de vária natureza:
• o terrorismo, a delinqüência organizada transacional, o problema
mundial das drogas, a corrupção, a lavagem de valores, o tráfico ilícito
de armas e as conexões entre eles;
a pobreza extrema e a exclusão social de amplos setores da população,
que afetam igualmente a estabilidade e a democracia. A pobreza extrema
corrói a coesão social e vulnera a segurança dos Estados;
os desastres naturais e desastres provocados pelo homem, o VIH/Sida e
outras enfermidades, outros riscos à saúde e a deterioração do meio ambiente;
o tráfico ilícito de pessoas;
• os ataques à segurança cibernética;
• a possibilidade de que ocorra um dano em caso de acidente ou incidente
durante o transporte marítimo de materiais potencialmente perigosos,
incluindo petróleo, material radioativo e resíduos tóxicos; e
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
Francisco Rojas Aravena
71
• a possibilidade de acesso, posse e uso de armas de destruição em massa
e seus sistemas de vetores por terroristas.
Corresponde aos foros especializados da OEA, interamericanos e
internacionais promover a cooperação para enfrentar estas novas ameaças,
preocupações e outros desafios, com base nos instrumentos e mecanismos
aplicáveis”.
Na Seção III, Compromissos e Ações de Cooperação, a Declaração sobre
Segurança nas Américas estabelece 36 compromissos. Destes, pelo menos a
metade está dirigida para a solução das preocupações e desafios da lista
mencionada acima. Assim, diante do primeiro conjunto de novas ameaças, na
parte correspondente aos compromissos, destaca-se a luta contra o terrorismo
(parágrafo 22), o papel do Cicte (parágrafo 23), ações contra o crime
transacional (parágrafo 25), a cooperação na luta contra as drogas (parágrafo
27), a cooperação relativa à produção e o tráfico ilícitos de armas (parágrafos
28 e 29), a lavagem de dinheiro e de ativos (parágrafo 30). Em outros casos,
como no da segurança cibernética, há um parágrafo específico, o 26. Desta
forma, acertadamente a Declaração mostra de um lado as ameaças e de outro
define os compromissos para a sua eliminação.
Formando um novo conceito
A Declaração sobre Segurança nas Américas estabeleceu uma ampla
conceituação da segurança, fundamentada em um conceito articulador: a
multidimensionalidade. Esse fator permite ampliar o conceito e as abordagens
tradicionais para abranger as novas ameaças além das tradicionais, que incluem
aspectos políticos, econômicos, sociais, sanitários e ambientais.
Assim, o novo conceito fica definido em dois parágrafos. Na Seção II,
números 2 e 3, destacam-se tanto a nova concepção como os valores centrais
que a inspiram, assim como a necessidade de uma nova arquitetura da segurança.
Com efeito, a Declaração assinala:
“2. Nossa nova concepção de segurança no Hemisfério tem alcance
multidimensional, inclui as ameaças tradicionais e as novas ameaças, preocupações
e outros desafios à segurança dos Estados do hemisfério, incorpora as prioridades
de cada Estado, contribui para a consolidação da paz, para o desenvolvimento
Panorama da segurança na América do Sul
72 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
72
integral e a justiça social, baseando-se em valores democráticos, no respeito, na
promoção e defesa dos direitos humanos, a solidariedade, a cooperação e/o
respeito à soberania nacional.
3. A paz é um valor e um princípio em si mesmo, que se baseia na
democracia, na justiça, o respeito aos direitos humanos, a solidariedade, a
segurança e o respeito ao direito internacional. Nossa arquitetura de segurança
contribuirá para preservá-la por meio do fortalecimento dos mecanismos de
cooperação entre nossos Estados para enfrentar as ameaças tradicionais, as
novas ameaças, as preocupações e outros desafios diante do nosso Hemisfério”.
Esta definição conceitual é reafirmada por 26 abordagens comuns, uma das
quais é particularmente significativa, devido à sua vinculação aos novos conceitos:
“e) No nosso hemisfério, na nossa condição de Estados democráticos
comprometidos com os princípios da Carta das Nações Unidas e da Carta da
OEA, reafirmamos que o fundamento e a razão de ser da segurança é a proteção
da pessoa humana. A segurança se fortalece quando aprofundamos a sua
dimensão humana. As condições da segurança humana melhoram mediante o
pleno respeito da dignidade, dos direitos humanos e das liberdades
fundamentais das pessoas, assim como por meio da promoção do
desenvolvimento econômico e social, a inclusão social, a educação e a luta
contra a pobreza, as enfermidades e a fome”.
Este novo conceito de segurança, de caráter amplo, possibilitou o
consenso na Conferência Especial de Segurança, abrangendo todas as
preocupações de todos os atores envolvidos, desde a superpotência até os
micro Estados caribenhos. Mais ainda, os Estados Unidos facilitou a aprovação
do acordo ao aceitar dois parágrafos, indicando em uma nota sua diferença de
interpretação, no caso das minas terrestres e das mudanças climáticas. A
elaboração deste consenso significa que temos um conceito muito amplo, o
que dificulta a sua operacionalização. A idéia de abranger simultaneamente as
agendas de segurança, defesa, meio ambiente e saúde, juntamente com a do
desenvolvimento, é tão ampla que torna altamente improvável a fixação de
um plano de atividades. No entanto, dada a satisfação dos atores estatais que
subscreveram o documento, pode-se pensar que em cada âmbito sub-regional,
e em cada um dos regimes sub-regionais, seja possível preparar planos de ação
mais relacionados com as demandas e percepções de ameaças específicas.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
Francisco Rojas Aravena
73
Os principais atores
O México teve um papel central na articulação dos acordos, conseguindo
- depois de uma postergação - levar a Conferência adiante, e alcançar um
consenso na Declaração. O Chile e o Canadá propuseram uma série de
sugestões onde o conceito de segurança humana ocupava um lugar importante.
Os Estados Unidos acompanharam os trabalhos com muita atenção, sem
promover ou propor inclusões específicas. O Brasil focalizou o tema da pobreza.
Os países caribenhos insistiram nas preocupações dos pequenos Estados
insulares, e a América Central procurou salientar o seu modelo de segurança
democrática. Nos debates sobre segurança e defesa nos países da região
ocorrem diferenças burocráticas entre os diversos estamentos governamentais.
Participaram da Conferência delegações que incluíam representantes dos
Ministérios das Relações Exteriores e da Defesa, assim como representantes
das forças armadas. Cabe destacar que, no caso dos países da América do Sul,
com a exceção do Peru estiveram presentes todos os Ministros ou Vice-
Ministros da Defesa, juntamente com os Chanceleres. Em três casos, todos
do Caribe de língua inglesa, o chefe da delegação era um militar. Sessenta por
cento das delegações dos países que possuem forças armadas incorporavam
militares.
A Declaração reconheceu a importância das Conferências Ministeriais
de Defesa e a necessidade de coordenar programas de trabalho com esse tipo
de foros. Por outro lado, embora a participação das Organizações da Sociedade
Civil (OSCs) nesta matéria seja reduzida, as recomendações que fizeram foram
incluídas no texto; em termos comparativos, essas inclusões foram superiores
às de outras áreas. Dois parágrafos da Declaração (33 e 47) fazem menção
expressa às OSCs.
Com esta constelação de atores é possível perceber que o
desenvolvimento da cooperação se expressará bilateralmente e sub-
regionalmente, como bases essenciais da segurança das Américas. É necessário
registrar que um bilateralismo marcante, sobretudo entre atores assimétricos,
tende a formar um “multilateralismo à la carte” e fragmenta as respostas. Por
isso, uma arquitetura de segurança fundada e desenvolvida a partir do sub-
regional será fundamental para a aplicação do processo no continente
americano.
Panorama da segurança na América do Sul
74 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
74
Uma arquitetura de segurança flexível
Esse caráter flexível foi definido na Declaração dos Ministros de Defesa
de Santiago do Chile, de novembro de 2002,
39
porque “a região está
transitando paulatinamente para um sistema de segurança complexo, formado
por uma rede de novas e velhas instituições e regimes de segurança, tanto
coletivos como cooperativos, de alcance hemisférico, regional, sub-regional
e bilateral.
No Consenso de Miami
40
ficou registrado que “o desenvolvimento das
medidas de fomento da confiança e de segurança é parte da emergência de
uma nova arquitetura flexível de segurança nas Américas, já que constituem
um componente substancial e insubstituível de uma rede de acordos de
cooperação bilaterais, sub-regionais, regionais e hemisféricos, que têm sido
desenvolvidos de forma complementar às instituições de segurança forjadas
pelo sistema interamericano.”
Com a Declaração sobre Segurança nas Américas
41
, por meio da formação
de consensos entre os Estados, estes reconheceram e formalizaram uma série
de instrumentos que dão origem à construção de uma nova arquitetura de
segurança no continente americano:
Os princípios gerais que regem a segurança hemisférica são os
contemplados na Carta da Organização das Nações Unidas e na Carta
da Organização dos Estados Americanos;
Os principais Instrumentos para a prevenção e resolução de conflitos
e a solução pacífica de controvérsias são o Tiar e o Pacto de Bogotá,
ainda que haja a necessidade imperiosa de revisá-los e adequá-los às
atuais necessidades de segurança;
As instituições e processos que funcionam ativamente nesta matéria
são a Organização dos Estados Americanos e a sua Comissão de
Segurança Hemisférica, as Cúpulas das Américas e as Conferências de
Ministros de Defesa; e
39
V Conferência de Ministros de Defesa das Américas. Dezembro de 2002.
40
OEA/Ser.K/XXIX. Declaração dos Expertos sobre Medidas de Fomento da Confiança e Segurança.
Recomendações para a Conferência Especial de Segurança. Fevereiro de 2003.
41
OEA/Ser.K/XXXVIII. Declaração sobre Segurança nas Américas. Outubro de 2003.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
Francisco Rojas Aravena
75
Dentro do sistema Interamericano os órgãos relacionados são a Junta
Interamericana de Defesa (JID), a Comissão Interamericana para o
Controle do Abuso de Drogas (Cicad), o Comitê Interamericano contra
o Terrorismo (Cicte) e o Comitê Interamericano para a Redução dos
Desastres Naturais (Cirdn). Adicionalmente, a Corte Interamericana
de Direitos Humanos.
Para concluir: a trilogia da segurança
Na última década os países e as sociedades latino-americanas estão
imersos em um profundo processo de reflexão e reformulação dos conceitos
de segurança. Pode-se observar uma transição conceitual, expressa em ações
motivadas por um Estado, e com forte peso militar, para outra etapa, da pós-
guerra fria, na qual as ameaças são difusas, e onde a presença dos fatores
militares tradicionais se reduziu; muitas dessas ameaças parecem desligadas
dos atores estatais, e são transnacionais.
Um dos principais desafios, tanto intelectual como institucional, é a forma
como ligar e estabelecer uma concatenação conceitual entre a segurança humana e
a segurança internacional, passando pela segurança estatal
42
. O modo como se vai
estabelecer essa relação permitirá satisfazer de modo simultâneo as necessidades
de segurança global, nacional e das pessoas e povos. Por outro lado, permitirá
operacionalizar e implementar da melhor forma a agenda da segurança.
A característica primordial dos novos conflitos internacionais, centralizada
nos problemas entre os Estados, evidencia a necessidade de definir de maneira
mais adequada a inter-relação desses três níveis; ainda mais devido ao impacto
da globalização. As novas ameaças têm um caráter transnacional e delas
participam atores e agentes que na maioria das vezes não representam uma
nação, nem se posicionam em um território estatal claramente delimitado. Os
riscos e vulnerabilidades que afetam a segurança de uma nação incidem ao
mesmo tempo, no contexto da globalização e da interdependência, em mais
de um Estado, e em conseqüência não podem ser resolvidos dentro de
42
Francisco Rojas Aravena, “Seguridad Humana: concepto emergente de la seguridad del siglo XXI” em
Francisco Rojas Aravena y Moufida Goucha , Seguridad Humana, Prevención de Conflictos y Paz,Flacso-
Chile/Unesco, maio de 2002
Panorama da segurança na América do Sul
76 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
76
determinadas fronteiras. As redes ilegais criaram antes dos Estados um
sofisticado sistema transnacional ilícito.
43
As guerras também mudaram radicalmente. Em sua maioria já não
ocorrem entre Estados, mas têm um caráter intra-estatal, com conseqüências
internas nos Estados. Suas origens e motivações apresentam mais comumente
um caráter étnico, ou buscam a autodeterminação, em lugar dos tradicionais
contenciosos fronteiriços ou interesses estatais. Do ponto de vista dos atores,
os não-estatais adquirem maior importância. Aumentam também as demandas
sobre os organismos internacionais intersetarias e não governamentais. Reduz-
se assim a capacidade dos Estados, em especial os de menor poder relativo. A
debilidade ou até mesmo a ausência da presença estatal é o fator principal e o
maior incentivo para que grupos ilegais ocupem parte de um território soberano
e gerem “regiões sem lei”, onde o monopólio da violência legítima do Estado
é questionado e se desenvolvem as condições para que surjam “Estados falidos”.
Na América do Sul esta situação deveria merecer um foco especial de atenção,
pois embora ela só exista em certos pontos é preciso visualizá-la prontamente
e reagir logo que possível. O desenvolvimento de uma visão sul-americana, a
partir da criação da Comunidade, pode favorecer esse tipo de ação.
Na trilogia segurança humana, segurança nacional e segurança internacional a ênfase
sobre qual o fator que tem primazia pode variar conforme o cenário. Na imensa
maioria dos casos em que o Estado tem força e importância, o peso da articulação
recairá na segurança nacional e o seu vínculo com a segurança internacional, o
que reafirma a posição do Estado como o principal ator internacional. Em
algumas regiões, principalmente na África e também no Caribe, a segurança
internacional se reveste de maior peso, juntamente com seus principais atores,
dado a fraqueza ou até mesmo o colapso de alguns Estados. Ou seja, o foco é
posto na capacidade de reação do sistema internacional frente à crise dos Estados
mais frágeis, para gerar estabilidade ou para produzir e promover cooperação e
assistência diante de catástrofes humanitárias ou desastres naturais. É o caso do
Haiti, onde a força multinacional provisória e a missão de estabilização das Nações
Unidas (Minustah) demonstram a solidariedade regional e o papel importante
desempenhado no Haiti pelos países sul-americanos.
43
Eduardo Gamarra, “Drogas y Democracia”. Em: Pnud, La Democracia en América Latina. Op. Cit.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
Francisco Rojas Aravena
77
No caso da América Latina, as principais vulnerabilidades decorrem da
crise de governabilidade que afeta a região, a qual dificulta a promoção da
segurança, tanto humana como estatal e, ao contrário, cria condições de grande
insegurança que se traduzem pelo medo da violência e das muitas necessidades
insatisfeitas. Considerando o nível de baixa conflituosidade interestatal e uma
crise de governabilidade que não atinge o nível de crise humanitária, a atenção
da comunidade internacional diante dos problemas que afetam os países latino-
americanos é reduzida, e por isso a demanda de cooperação e assistência oficial
ao desenvolvimento.
44
Em suma, a América Latina e o Caribe contribuem para a segurança
global com a sua desnuclearização e com o estabelecimento de uma zona de
paz interestatal, mas afetam a segurança global e regional pela sua
ingovernabilidade. A satisfação das condições que dizem respeito à segurança,
em qualquer uma das suas dimensões, só será alcançada de forma simultânea
com as condições de satisfação das outras. Não há dúvida de que uma crise
internacional é ao mesmo tempo uma crise estatal e de segurança humana. Da
mesma forma, uma crise no Estado se transforma em crise humanitária e
internacional. Daí a necessidade de adotar uma perspectiva holística e integrada,
e para isso precisaremos de uma nova terminologia
45
, para elaborar novos
conceitos apropriados a esta era que ainda não sabemos definir - e por isso
usamos qualificativos de pós-guerra fria, pós-onze de setembro, pós-
Conferência de Segurança. A Constituição da Comunidade Sul-Americana de
Nações é um passo importante para esta região e a sua projeção global. A
operacionalização dos acordos firmados definirá, no futuro próximo, o seu
espaço de ação e de relacionamento em um prazo mais longo. Não há dúvida
de que, se operacionalizada, esta decisão dos Chefes de Estado e de Governo
transformará o panorama da segurança na América do Sul.
46
Tradução: Sérgio Bath.
44
XVIII Grupo do Rio. “Declaração do Rio de Janeiro”. Parágrafo 7. Novembro de 2004.
45
Wolf Grabendorff (ed.) La seguridad regional en las Américas. Enfoques críticos y conceptos alternativos.
Friedrich Ebert Stiftung na Colômbia (FESCOL). Fondo Editorial Cerec. Bogotá, 2003.
46
O texto de alguns documentos interamericanos foram traduzidos da sua versão em espanhol.
Drogas, conflito e os Estados Unidos. A Colômbia no princípio do século
78 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
78
Drogas, conflito e os
Estados Unidos. A
Colômbia no princípio
do século
León Valencia
*
A
* Colunista dos jornais “El Tiempo” e “El Colombiano”
1
Entrevista para W emissora da Cadeia Caracol.
extradição para os Estados Unidos de Gilberto Rodríguez Orejuela, um
dos maiores narcotraficantes da Colômbia, nos primeiros dias de dezembro de
2004, fez com que todos os colombianos se lembrassem de uma época, no fim
dos anos 80 e no princípio da década dos 90 do século passado, quando o país
foi estremecido por uma onda do terrorismo praticado pelos narcotraficantes.
Gilberto Rodríguez Orejuela, que é sem dúvida o segundo mais poderoso
narcotraficante já produzido pelo país, depois de Pablo Escobar Gaviria,
recordava em entrevista dada a uma emissora local, antes de ser embarcado
para os Estados Unidos, que em uma campanha que chamou de “Plano Pistola”
Escobar tinha mandado assassinar, um por um, quatrocentos policiais na cidade
de Medelín.
1
Comentava Orejuela que essa ação, levada a cabo por um único
homem, empregando assassinos de aluguel, podia perfeitamente ser incluída
na primeira linha das ações terroristas mundiais.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
León Valencia
79
Em seguida, Rodríguez Orejuela contava que tinha sido o artífice da
morte de Pablo Escobar, que durante vários meses o havia seguido e que tinha
em seu poder gravações de centenas de horas de conversas de Escobar; que
quando viu que a sua presa não tinha escapatória entregou-as às autoridades.
Não é difícil assim admitir que Rodríguez Orejuela não era menos ousado e
perigoso do que Escobar.
No choque entre Escobar e o Estado, e entre Escobar, que comandava
o Cartel de Medelin, e os Rodríguez Orejuela, que chefiavam o Cartel de Cali,
milhares de pessoas morreram nessa época terrível. Em algumas cidades, os
edifícios explodiam em pedaços com a detonação das poderosas bombas dos
narcotraficantes, os aviões eram espaços de medo. Não há neste mundo quem
não se assombre ao saber que quatro candidatos presidenciais, de diferentes
tendências políticas, sucumbiram nesse choque. A sociedade foi toda assediada.
Nessa época foram estabelecidos acordos de paz com cinco grupos
guerrilheiros que tinham conseguido um grande impacto no país, ao longo de
mais de vinte anos de atividade; uma nova Constituição foi promulgada, para
substituir uma Carta Constitucional que tinha mais de cem anos, e a economia
recebeu um impulso com a promoção de uma primeira abertura para o mercado
mundial. Tudo isso porém foi engolido pela grande ofensiva terrorista do
narcotráfico; tudo foi apagado pela escalada de morte e destruição promovida
pelos cartéis das drogas. A tragédia colocou na sombra acontecimentos que
em sociedades tranqüilas teriam significado uma mudança tão radical como
inesquecível na vida nacional.
A sociedade colombiana percebeu então, um fenômeno que tinha crescido
silenciosamente nas suas entranhas, e começou a se dar conta também de que o
cultivo, o processamento e o tráfico de drogas já tinha criado raízes profundas na
vida nacional, gerando o negócio mais lucrativo e que mais dinheiro movimentava
no país. Tinha comprometido milhões de pessoas, introduzindo-se na política
tradicional e nas guerrilhas, gerando grupos armados para proteger o negócio ilegal.
No fim dos anos oitenta a Colômbia se convertera em um caso único no
mundo. No seu território eram cultivadas a coca, a maconha e a papoula. Tudo
começara nos anos setenta, com o plantio da maconha, mas em seguida foi
introduzido o cultivo da coca, deslocando a Bolívia e o Peru. Audaciosamente
logo se começou a cultivar a papoula, que tinha sido um monopólio asiático. O
Relatório do Unodc para 2004, registra 4.100 hectares cultivados de papoula,
Drogas, conflito e os Estados Unidos. A Colômbia no princípio do século
80 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
80
mas pesquisadores como Uribe e Thoumi questionam esses dados, utilizando
várias fontes e trabalhos de campo. Para 1996, quando os números do
Departamento de Estado norte-americano indicavam um pouco mais de 6 mil
hectares plantados com papoula, esses pesquisadores calculavam essa extensão
em 20.400 hectares. Há mais concordância no que respeita a maconha: estima-
se que há vários anos a área semeada é da ordem de cinco a seis mil hectares.
Mas o cultivo da folha de coca, o processamento e tráfico da cocaína
foram as atividades mais importantes no mundo das drogas ilegais. O ano
2000 foi o ponto mais alto dessa atividade, quando a extensão do cultivo atingiu
163 mil hectares, e a remessa de cocaína para o exterior chegou a 700 toneladas
anuais
2
. Assim, a Colômbia controlava cerca de 60 % desse negócio no mundo.
Com o quilo de cocaína valendo em média no atacado trinta mil dólares no
mercado internacional, essas transações ultrapassavam os vinte bilhões de
dólares (US$ 20 bilhões).
No entanto, a característica mais especial não é esta confluência de cultivos
de drogas psicoativas com grande demanda no mundo; o mais dolorosamente
especial é que o narcotráfico veio potencializar outros fenômenos presentes
na vida colombiana: a violência das guerrilhas e dos paramilitares, o clientelismo
e a corrupção, a cultura do jeito e a desinstitucionalização do país. No princípio,
embora houvesse vasos comunicantes, esses fenômenos se mantinham
separados, mas não tardaram a se juntar.
No ano de 1987, um grupo de renomados especialistas convocados pelo
Ministro de Gobierno preparou um relatório sobre as violências, deixando bem
claro que era possível distinguir três tipos de violência: a dos delinqüentes
Departamento de Estado EEUU Sistema Nacional de Monitoreo soportado por UNODC
Fuente Colombia Monitoreo de Cultivos de Coca, Unodc, junio de 2004
2
Relatório do Escritório de Crime e Drogas das Nações Unidas, 2004, Colombia Coca Cultivation Survey.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
León Valencia
81
comuns, a do narcotráfico e a de motivação política, associada às guerrilhas e
a grupos paramilitares.
3
Essas violências ainda tinham dinâmicas separadas,
mas ficou evidente que, no começo da década de 1990 elas começaram a se
articular. Assim, as guerrilhas, especialmente as Farc, passaram a cobrar
impostos dos camponeses, a controlar diretamente plantações e a processar a
folha de coca. Os narcotraficantes se puseram a criar grupos paramilitares
para defender o seu negócio ilegal, juntando-se com os pecuaristas e outros
empresários que se voltavam para essas práticas. Uns e outros, guerrilheiros e
paramilitares, começaram também a subordinar-se a atividades da delinqüência
comum. No caso dos paramilitares isso ficou mais evidente: em Medelin e em
outras cidades eles puseram a seu serviço quadrilhas de delinqüentes que há
algum tempo já operavam ali, mas as Farc também se apoiaram em grupos
desse tipo, sobretudo para cometer seqüestros em todo o país. A associação
de narcotraficantes com guerrilheiros ou paramilitares apossou-se do maior
espaço criminoso, embora subsistissem pequenos cartéis, dotados de uma certa
autonomia: fala-se hoje em oitenta grupos desse tipo.
A guerra mudou de aparência. Com a articulação da violência do
narcotráfico e da delinqüência comum com a violência política, o conflito armado
deu um grande salto, emitindo um claro sinal de que o Estado podia entrar em
colapso. Converteu-se assim em um fator de desestabilização para toda a região
andina e começou a preocupar de modo especial os Estados Unidos.
3
Camacho Guizado, Álvaro, e outros. Colombia: Violencia, democracia y derechos humanos. Editorial Tercer Mundo.
Drogas, conflito e os Estados Unidos. A Colômbia no princípio do século
82 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
82
Por outro lado, a política tradicional também mudou. Em 1994 estourou
em Bogotá o maior escândalo político do século: Andrés Pastrana Arango,
candidato presidencial derrotado, revelou ao público gravações que
comprometiam o candidato vitorioso, Ernesto Samper Pizano, com o
recebimento de dinheiro do narcotráfico para financiar a sua campanha eleitoral.
Com um esforço titânico Samper Pizano conseguiu ser absolvido pela Câmara
de Representantes, à qual coube o julgamento político do caso, demonstrando
que ignorava as tratativas entre os agentes da sua campanha e os
narcotraficantes, embora tivesse ficado provado plenamente que os responsáveis
por esse financiamento tinham recebido aquelas contribuições. Esse processo
evidenciou uma realidade que afetava toda a política colombiana: em não menos
de vinte anos uma parte importante do financiamento dos políticos provinha
de recursos do narcotráfico, o que foi confirmado por Gilberto Rodríguez
Orejuela na entrevista que citamos, ao declarar tranqüilamente: “Durante vinte
anos fiz contribuições”. Mas a sua participação era apenas uma parte do
problema. Com o escândalo se soube que por muito tempo as principais
campanhas locais e nacionais eram apoiadas pelos dólares de todos os cartéis
da droga.
Também no campo da política o terreno estava bem preparado para
receber a influência do narcotráfico. A política colombiana se tinha sustentado,
ao longo do século, no clientelismo, na compra e venda de votos, e o dinheiro
do narcotráfico levara essa prática ao seu apogeu.
O governo dos Estados Unidos reagiu a essas mudanças drásticas da
vida colombiana fazendo uma variação fundamental na sua política com
relação à Colômbia. Há muitos anos a estratégia que seguira diante do
conflito interno e do fenômeno do narcotráfico se baseava na contenção.
Em livro recente, um pesquisador americano, Nasih Richani, consegue
demonstrar que essa atitude estava sustentada por uma visão racional do
Departamento de Estado. Durante muitos anos o State Department adotou
a idéia de que as guerrilhas colombianas não representavam uma ameaça
contundente. Richani cita relatórios desclassificados do Departamento
segundo os quais por esse motivo “o objetivo viável, tanto para o governo
americano como para o colombiano, é a contenção em lugar da eliminação.
A combinação de recursos colombianos e americanos visa alcançar esse
objetivo, enquanto a eliminação exigiria enormes recursos, que seriam
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
León Valencia
83
melhor utilizados para outros fins.”
4
. O modo de enfrentar o narcotráfico
durante a época em que ele não estava associado estreitamente ao conflito
armado consistia em “controlar” e “limitar” o fluxo de drogas para o seu
território.
A mudança de estratégia ficou patenteada com a aprovação do “Plano
Colômbia”, com o qual os Estados Unidos substituíram o objetivo da
“contenção” pela “eliminação”, e para isso multiplicaram os recursos
disponíveis e deram um salto na sua participação no conflito colombiano. Sua
cooperação militar foi ampliada para 700 milhões de dólares por ano, em média;
em quatro anos o número dos funcionários lotados na Embaixada em Bogotá
aumentou de 400 a 2000.
O problema
Constitui um problema para o mundo os treze milhões de pessoas (mais
da metade nos Estados Unidos) que segundo o Escritório de Crime e de Drogas
das Nações Unidas - Unodc - são viciadas em cocaína. Para os Estados Unidos,
são um problema os cinqüenta mil cidadãos que morrem todo ano no seu
território, devido de alguma forma ao tráfico de drogas; e esse país precisa
preocupar-se com o fato de que 80 % da cocaína e 50 % da heroína que ingressa
no seu território provêm da região andina. Mas esta é apenas uma parte da
tragédia. Para países como Colômbia, Peru e Bolívia constitui também um
problema os milhões de camponeses que se vêem obrigados a cultivar a folha de
coca, assim como a guerra contra a droga que se desenrola no seu território e as
conseqüências dessa guerra : mortes, contaminação ambiental, deslocamentos,
fome e instabilidade política e social. Assim, o problema é de todos.
Quando se diz que o auge da área cultivada na Colômbia com folhas de
coca foi de 163 mil hectares no ano 2000, e que a área cultivada em todo o
mundo nunca ultrapassou 300 mil hectares; e quando se afirma que o suprimento
médio de cocaína no mercado mundial, nos últimos quinze anos, foi de 650 mil
kg, poder-se-ia concluir que na verdade o problema não é tão grande. No entanto,
grandes são as repercussões desse consumo e desse comércio.
4
Richani, Nazih. Sistemas de Guerra. La economía política del conflicto en Colombia. Instituto de Estudos
Políticos e Relações Internacionais, IEPRI, Universidade Nacional da Colômbia, 2003.
Drogas, conflito e os Estados Unidos. A Colômbia no princípio do século
84 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
84
Alguns analistas assinalam que embora os problemas de saúde dos
consumidores e a apreensão que gera a cocaína nos seus viciados, com repercussões
no trabalho e nas relações familiares e sociais, constituem um problema importante,
o conflito se agrava com a dura estigmatização a que têm sido submetidos o cultivo,
o tráfico e o consumo de drogas, como também a condição de ilegalidade em que se
desenvolvem essas atividades. A estigmatização e a proibição geram as conseqüências
mais variadas. A primeira delas é a perseguição e a marginalização da sociedade, que
afeta milhares de pessoas. A segunda é o encarecimento inusitado do negócio e a alta
rentabilidade que traz para alguns dos seus agentes. A terceira é a gestação de formas
ilegais e armadas de proteção. A quarta é a corrupção que gera no Estado, nos
partidos políticos e até mesmo na empresa privada. Mas sem dúvida o principal
problema que alimenta o tráfego de drogas na Colômbia é o conflito armado interno.
Na Colômbia essas conseqüências têm características dramáticas. Em
uma nota do seu livro, o pesquisador Richani diz: “Se somarmos os produtores de
coca, os cultivadores de papoula e maconha e os negociantes dos insumos necessários para a
transformação da coca em cocaína, o número se aproximará de um milhão de agricultores,
pequenos camponeses e trabalhadores agrícolas que dependem total ou parcialmente desses
cultivos ilegais.
5
O cálculo é feito citando vários pesquisadores colombianos
que procuraram identificar as repercussões sociais dessa atividade. O número
5
Richani, Nazih. Op. cit.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
León Valencia
85
das pessoas envolvidas aumenta se contarmos as famílias, e aumenta ainda
mais se pensarmos nos milhares de indivíduos que vendem a droga ou
trabalham para os narcotraficantes. Pois bem: essa parte da sociedade, nada
inferior a quatro milhões e meio de pessoas no país, ou seja, 10 % da população,
vê no Estado um inimigo, e foge dele, mas quando pode também o enfrenta,
unindo-se com outros ilegais em busca de proteção.
O caráter ilegal do cultivo, processamento e tráfico da cocaína é sem
dúvida o que multiplica o custo da droga e gera uma alta rentabilidade e o
enriquecimento fácil dos exportadores. Como diz Antonio Caballero, um
perceptivo intelectual colombiano, “se não fosse a proibição a cocaína seria um negócio
com o mesmo rendimento do café.”
6
O risco que correm a liberdade e a vida nesse
6
Caballero, Antonio. “Patadas de Ahorcado”. Entrevista do jornalista Irragorri. Editorial Planeta. 2003.
Drogas, conflito e os Estados Unidos. A Colômbia no princípio do século
86 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
86
trabalho ilegal é cobrado com um rápido crescimento da riqueza. Os grandes
narcotraficantes colombianos chegaram a fazer parte do clube das pessoas
mais ricas do mundo, e ainda hoje os narcotraficantes exibem fortunas que
causam inveja aos empresários legais de grande tradição. Mesmo para os
pequenos plantadores, que recebem uma parte mínima de todo o dinheiro da
droga, é mais rentável cultivar a coca do que outros produtos. Em uma
reportagem impressionante feita no coração da selva colombiana, o jornalista
Carlos Villalón, do National Geographic, descreve assim a situação dos
camponeses: “Por uma boa qualidade, o traficante paga mais ou menos mil dólares por
um quilo de pasta de coca. Depois de comprar provisões e de pagar os seus trabalhadores, o
agricultor pode tirar para si uns 325 dólares.” O que é impossível com produtos
legais.
Esse negócio ilegal que nos seus melhores momentos alcançou um valor
maior do que o resto das exportações colombianas tem razão de atrair tantos
“empresários” e de gerar toda uma trama de proteções e imensas resistências.
Ainda hoje, no fim de 2004, quando o Unodc afirma que a remessa de cocaína
para o exterior caiu para 450 toneladas em conseqüência do “Plano Colômbia”,
se tomarmos como preço médio por atacado os trinta mil dólares, teríamos
13.500 milhões de dólares como valor aproximado dos negócios, enquanto
todas as exportações legais da Colômbia são da ordem de 11.500 milhões no
mesmo período de um ano.
Obviamente nem todo esse dinheiro ingressa no país. Nos últimos anos
o Departamento de Estado norte-americano tem falado em um retorno ao
território colombiano de 5.000 milhões de dólares. Esses cálculos são incertos,
mas há algo certo que indica a grande influência que esse negócio tem tido na
economia do país. Entre 1981 e 1990 o aumento acumulado do Produto Interno
Bruto na América Latina foi de 12,4%, enquanto que na Colômbia foi de
43,6%
7
. Essa inconsistência entre um país e toda a sua região, compartilhando
as mesmas dificuldades, só se pode atribuir a fenômenos extraordinários como
o tráfico de drogas.
Todo negócio ilegal gera uma proteção ilegal, por isso é impensável uma completa
extinção dos paramilitares à margem de um desaparecimento do lucrativo tráfico de drogas”,
7
Dados da Comissão Econômica para América Latina. Cepal.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
León Valencia
87
diz o empresário colombiano Ricardo Avellaneda, que participou da primeira
comissão exploratória nomeada pelo governo para as negociações com as
Autodefesas Unidas da Colômbia.
8
Esta afirmativa de uma pessoa estudiosa
do tráfico de estupefacientes no conflito armado deixa entrever a conexão
íntima que existe entre o fenômeno paramilitar e o negócio das drogas. Em
todo caso, a afirmativa foi bastante confirmada no começo das negociações
com os paramilitares, em meados de 2004. Dos dez chefes nomeados pelos
paramilitares para dirigir a negociação com o governo, seis estavam incluídos
na lista de grandes narcotraficantes dos Estados Unidos.
No entanto, a justificativa imaginária que os paramilitares tinham
conseguido forjar na opinião pública colombiana, nos últimos anos, era a de que
representavam uma resposta política armada aos atropelos da guerrilha. O esforço
feito para implantar essa idéia na sociedade colombiana durou vários anos, mas
teve um momento especialmente importante: o dia 18 de abril de 1997, quando
os paramilitares se reuniram para fundar as Autodefesas Unidas da Colômbia.
Participaram dessa reunião as Autodefesas de Córdoba e Urabá, dos llanos
orientais, de Puerto Boyaca e de Ramón Isaza, que operavam no médio rio
Magdalena. Na ata da reunião podia-se ler, no terceiro ponto: “Definir as Autodefesas
Unidas da Colômbia como um movimento político-militar de caráter subversivo, no exercício do
direito de legítima defesa, que exige transformações do Estado, mas não atenta contra ele.”
9
.
Até mesmo os estudiosos da realidade nacional esqueceram que um grupo
emblemático dos paramilitares, surgido na década de 1980, o chamado MAS,
“Morte aos Seqüestradores”, formou-se para resgatar Marta Nieves Ochoa,
pertencente a uma família vinculada ao Cartel de Medelín. Embora esse
seqüestro fosse perpetrado pelo Movimento 19 de Abril (M19), dificilmente
se pode atribuir à reação dos Ochoa motivação política. Tratava-se de uma
ação orientada para proteger o dinheiro acumulado em um negócio ilegal, de
proteger uma família de narcotraficantes. O mesmo se pode dizer com respeito
à reação da família Castaño Gil ao seqüestro e morte do seu chefe. As Farc
seqüestraram esse camponês, que já tinha riquezas provenientes das atividades
ilícitas de Fidel Castaño, um dos filhos mais velhos. O mito de que os Castaño
se viram movidos pela injustiça das Farc a organizar uma guerra política não
8
Conversa do autor con Ricardo Avellaneda.
9
Castaño, Carlos. Las autodefensas y la paz. Editorial Colombia Libre.
Drogas, conflito e os Estados Unidos. A Colômbia no princípio do século
88 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
88
corresponde inteiramente à verdade. Com efeito, os Castaño já estavam ligados
a Pablo Escobar e já participavam do negócio das drogas, e começaram a
enfrentar a guerrilha para defender a sua fortuna.
Pode ser tão inexato afirmar que o papel fundamental dos paramilitares tem
sido liberar a Colômbia das guerrilhas e proteger a atividade lícita dos empresários
do campo e da cidade como negar que em parte tenham também cumprido essa
missão. Na formação dos paramilitares tiveram também um papel importante os
pecuaristas do país, assim como outros empresários. De modo que, simplificando
um pouco as coisas, podemos dizer agora, quando as negociações estão revelando
tantos segredos, que os paramilitares foram formados para proteger um negócio
ilegal, o tráfico de drogas, assim como um negócio legal, parasitário: a criação
extensiva de gado, atividade que ocupa grande parte do território nacional e emprega
pequenos grupos de trabalhadores em condições miseráveis.
Carlos Castaño, que por muito tempo foi a cabeça visível dos
paramilitares, em uma de muitas entrevistas dadas à imprensa do país
reconheceu que as Autodefesas se financiavam com o narcotráfico em cerca
de 70%. É certo que os líderes do narcotráfico tiveram muito que ver com a
origem dos grupos paramilitares; é verdade, também, que uma parte importante
dos recursos para a compra de armamento e para sustentar os combatentes
provinha dessas atividades, mas a vinculação maciça dos narcotraficantes se
deu no ano de 1999. Depois de realizada uma segunda reunião de ampliação
desse agrupamento, em 16 de maio de 1998, na qual se vincularam a ele outros
grupos dispersos de paramilitares, Carlos Castaño passou a estender sua
influência por todo o país, adotando uma atitude claramente ofensiva. Foram
criadas então estruturas como o Bloco Central Bolívar, o Bloco Catatumbo e
o Bloco Calima. As Autodefesas deram então um enorme salto. Dos seis
combatentes admitidos no momento da sua formação como força nacional,
em 1998, passaram a declarar que tinham treze mil em 2003, quando foram
iniciadas as conversações, e que em 2004, ao começar a desmobilização,
somavam já vinte mil membros.
10
10
Ao longo do ano de 2003 as Autodefesas Unidas da Colômbia mantiveram entendimentos exploratórios
com o Governo para chegar a um acordo visando à sua desmobilização e reinserção na vida civil . Desde Julho
de 2004 iniciaram um processo formal de negociações, e os seus principais dirigentes se instalaram em uma
pequena vila do Departamento de Córdoba chamada Santa Fé Ralito.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
León Valencia
89
O esforço de rápida expansão e o fortalecimento inusitado implicou
uma inversão fabulosa. A vinculação de comandos e combatentes era feita
com a oferta de salários elevados e recompensas: tratava-se de uma contratação
aberta de mercenários, em grande escala. Nos dados que foram divulgados
publicamente chegou-se a falar em salários mensais de 2.500 dólares para um
comandante de nível médio das autodefesas. Havia também sofisticadas
transações nacionais e internacionais para adquirir armamento e infra-estrutura
de primeira qualidade que, conforme se viu, era composta não só por fuzis
mas por peças de artilharia ligeira, frotas de helicópteros, aviões e lanchas.
Obviamente o narcotráfico não era a única fonte de recursos das
Autodefesas. Elas contavam igualmente com o roubo e uso de combustíveis,
o saqueio de bens do Estado e também os seqüestros, que tanto criticavam
nas guerrilhas. Mas no caso das Autodefesas o narcotráfico contribuía não só
para financiar a guerra como servia de principal fonte para o enriquecimento
pessoal. Tanto é assim que Juan Camilo Restrepo, ex-Ministro da Fazenda e
ex-candidato conservador à Presidência da República, referia-se aos chefes
das Autodefesas como “senhores da guerra”, devido à grande acumulação de
terra e de riquezas que estavam em suas mãos
11
.
As Farc também não ficaram atrás na utilização de recursos provenientes
do narcotráfico para financiar a guerra. Com efeito, o grande desenvolvimento
das Farc, em meados dos anos noventa, baseou-se igualmente no ingresso em
larga escala de dinheiro do narcotráfico. Nessa época as Farc duplicaram seu
efetivo e formaram um verdadeiro exército guerrilheiro, que no Sul do país
impôs dezesseis derrotas sucessivas às Forças Militares, entre 1996 e 1998,
12
chegando ao fim do século com não menos de vinte mil combatentes.
Atualmente as Farc participam de vários elos da cadeia. Pouco a pouco passaram
a cobrar impostos, a processar e refinar cocaína, a envolver-se no comércio
das drogas, mas dão preferência à cobrança de impostos, com taxas
significativas. Carlos Villalón, o jornalista que já citamos, publicou no National
Geographic de julho de 2004 uma fotografia de camponeses em uma loja
entregando pasta de coca a um intermediário, que a levaria a um centro de
11
Restrepo, Juan Camilo. Coluna do jornal El Tiempo.
12
Valencia, León. Adiós a la política, Bienvenida la Guerra. Intermedio Editores. 2002.
Drogas, conflito e os Estados Unidos. A Colômbia no princípio do século
90 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
90
produção de cocaína. A foto tem os seguintes dizeres: “Um traficante pesa as
bolsas de base que os agricultores trouxeram a Santa Fé para vender, e as paga com dinheiro
vivo, que tira de um saco que mantém entre as pernas. A seu lado um ajudante anota cada
compra, para que as Farc possam receber seu imposto de 30%.”
O Departamento de Planejamento Nacional da Colômbia estimava que
em 1996 a receita da guerrilha era de $ 1.155.900.000.000 de pesos colombianos,
ou seja, 1,54% do PIB daquele ano - mais de 500 milhões de dólares. De seu
lado, alguns analistas se atrevem a dizer que no caso das Farc, 48% da sua
receita provém do tráfico de drogas, e no caso do ELN, 6%.
13
Há uma diferença entre os paramilitares e as guerrilhas. Os primeiros se
enriquecem individualmente, enquanto as guerrilhas investem tudo na guerra
— exceto casos de corrupção nas suas fileiras. Há também uma outra diferença:
não houve ainda casos devidamente documentados de tráfico de drogas para
o exterior por parte das guerrilhas. Está claro que isso é facilmente explicável
pelos fenômenos de decomposição que podem ocorrer, assim como pelos
riscos de segurança, pois uma das principais preocupações da guerrilha é
conservar suas forças. No seu livro El Império de la Droga, Francisco Thoumi,
um dos mais reputados pesquisadores internacionais no campo das drogas,
salienta essas diferenças, e diz: “Em meados dos anos noventa os principais grupos
revolucionários colombianos dependiam financeiramente do tráfico de drogas ilícitas. Não há
dúvida sobre isso; no entanto, não há evidência de que tivessem redes de comercialização
internacional. Portanto, neste sentido não havia um cartel guerrilheiro
14
.
Há dirigentes políticos que se atrevem a dizer que a corrupção é ainda
mais prejudicial do que o próprio conflito armado, e na Colômbia uma parte
importante da corrupção, embora não toda ela, está associada ao tráfico de
drogas. O processo político e judicial desenvolvido contra a campanha política
do Presidente Samper demonstrou como a corrupção do narcotráfico tinha
penetrado profundamente na política colombiana. E logo se pôde ver que
esse não era o único campo atingido pela corrupção. A Justiça mostrou parte
das suas feridas, assim como a empresa privada. No livro que citamos, Thoumi
13
Los Costos de la Guerra. Programa Pela Paz da Companhia de Jesus. 2004.
14
Thoumi, Francisco. El Imperio de la Droga. Narcotráfico, Economía y Sociedad en los Andes. Editorial
Planeta. 2002.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
León Valencia
91
ousa ir ainda mais longe: “O testemunho dos camponeses das regiões de cultivo envolve
também as Forças Armadas no comércio ilegal. A entrega de mais de seiscentas gramas de
cocaína a bordo de avião C-130 da Força Aérea Colombiana em Fort Lauderdale, na
Flórida, em fins de 1998, confirma esses testemunhos.”
Muitos estudiosos do tema das drogas, líderes políticos e religiosos,
podem contradizer com bons argumentos a idéia de que a proibição das drogas
psico-ativas é a causa de todos os males, mas o que não podem negar é que a
ilegalidade e a guerra contra as drogas aumentaram enormemente o problema,
em lugar de resolvê-lo. A proibição se apoia na constatação das graves
disfunções sociais provocadas por essas substâncias, com os seus efeitos sobre
a saúde, o trabalho, as relações interpessoais. Mas a proibição também se
alimenta (e de que maneira!) de um enfoque moralista. Os Estados Unidos
enfatizam essa visão moralista, a partir da qual projetam duras políticas
repressivas. Reprime-se os consumidores, mas concentra-se o esforço principal
sobre os produtores e traficantes. A chamada “guerra contra as drogas” é na
verdade uma batalha que se passa fora das suas fronteiras.
No mundo, e nos próprios Estados Unidos, há muitas críticas a essa
visão que predomina na política norte-americana, mas a variação dessas políticas
está longe. A esse respeito Thoumi observa: “É preciso registrar que nos Estados
Unidos é grande o apoio social e político com que contam as suas políticas atuais, mas ele é
bastante limitado entre os acadêmicos e os analistas. Um estudo recente sobre pontos de vista
entre funcionários do Congresso, acadêmicos, centros de pensamento político (think tanks) e
consultores de Washington verificou um consenso sobre a necessidade de mudar essas políticas
e a impossibilidade de fazê-lo no curto e no médio prazo. Nesse estudo todos os entrevistados
coincidiam em que nenhum político percebe ganhos associados com a promoção da mudança
dessas políticas.”
15
.
O Plano Colômbia
A grande ofensiva contra o cultivo, o processamento e o tráfico de drogas
na Colômbia começou a ser gestada a partir de 1994, quando tiveram início as
fumigações. Desde esse ano até 25 de junho de 2004, quando se celebrou o dia
15
Thoumi, Francisco. Op. cit.
Drogas, conflito e os Estados Unidos. A Colômbia no princípio do século
92 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
92
mundial de luta contra a droga, haviam sido fumigados 621.221 hectares de
plantações de coca. Essa área tinha duplicado, passando de 44.700 hectares
em 1994, para 86.300 em 2004.
16
O período mais intenso de fumigação, e também o de enfrentamento
mais duro de grupos armados ilegais vinculados de alguma forma ao
narcotráfico, começou em 2000, quando foi dada a partida no Plano Colômbia.
Segundo as autoridades, nessa época foi possível reduzir à metade a área
plantada, que como se viu havia alcançado o auge, com 163 mil hectares. Para
conseguir esse resultado, com uma redução de 77 mil hectares, foi necessário
fumigar 365 mil hectares. Em outras palavras, para tirar do mercado a produção
de um hectare de coca é preciso fumigar cinco. As autoridades se orgulham
também de ter diminuído a exportação de cocaína (440 toneladas) em cerca
de 260 toneladas. O custo para os Estados Unidos foi alto: nesses anos foram
investidos 3.300 milhões de dólares, ou seja, metade da assistência militar
destinada à região, e na Colômbia o orçamento do Ministério da Defesa teve
um aumento de cerca de 3% do PIB.
Alguns analistas assinalam que esses resultados não são compatíveis
com o grande esforço feito. O pesquisador Darío Fajardo põe em dúvida os
dados, e observa que mesmo o Relatório do Unodc deixa de registrar uma
redução no consumo e no número de consumidores. Comenta a evidência
16
Unodc. Relatório cit.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
León Valencia
93
de que os cultivadores de coca estão compensando a redução da área plantada
com o desenvolvimento de uma nova variedade de árvore três vezes mais
produtiva. Além disso, fazem plantações menores e as disfarçam em lugares
onde a selva é mais densa, para que não sejam descobertas pelos sistemas de
monitoração.
17
Nos primeiros dois anos do “Plano Colômbia”, quando Andrés Pastrana
Arango era Presidente da República, não se tinha conseguido ainda articular
uma estratégia coerente que respondesse efetivamente à mudança de visão do
conflito colombiano ocorrida nos Estados Unidos. A fumigação foi intensificada,
foram feitas ofensivas pontuais contra as guerrilhas e realizadas algumas ações
contra os paramilitares e os pequenos cartéis da droga, mas não havia um plano
geral orientado para uma mudança fundamental do conflito. Foi com a eleição e
a posse do Presidente Uribe que se começou realmente a desenvolver um projeto
com a mudança de objetivo, da contenção para a eliminação.
Pacificação no norte e Guerra no sul
Não é um exagero dizer que o Presidente Uribe jogou uma pedra pesada
nas águas represadas do debate nacional. Afirmou que a ameaça da insurgência
tinha persistido porque nos últimos cinqüenta anos tinha faltado ao país uma
liderança; porque os altos círculos da política e os intelectuais vinham
contemporizando com as guerrilhas, se levar a sério a dura realidade
representada pelos subversivos. Disse que na Colômbia não se pode falar de
“conflito armado”, mas sim de “ameaça terrorista”; que não se pode continuar
dizendo que há uma guerra, porque não existem motivos para isso. Que a
palavra “reconciliação” não tem cabimento na linguagem colombiana, porque
não se deve aceitar que há uma fratura na sociedade.
Mas não se trata de uma mera mudança de conceitos, mas de uma
transformação drástica nas ações realizadas. Até há poucos anos atrás ninguém
pensaria que se pudesse entabular negociações políticas com os paramilitares,
e Uribe abriu essa porta com tal rapidez e com tanta audácia que surpreendeu
igualmente a comunidade internacional e opinião pública nacional.
17
Fajardo, Darío. Conferência na Fundação Frederich Ebert. Novembro de 2004.
Drogas, conflito e os Estados Unidos. A Colômbia no princípio do século
94 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
94
Os analistas tinham imposto ao país a idéia de que o conflito havia
chegado a uma situação de “empate negativo”, de um “impasse cômodo” no
dizer de Richani, do qual era praticamente impossível sair a não ser por meio
de uma negociação. Nem o Estado tinha condições de derrotar os guerrilheiros
nem os insurgentes tinham condições de tomar Bogotá. Uribe rompeu essa
simetria negativa, lançando-se com todas as forças a por contra a parede e
dobrar a insurgência no Sul do país.
Por outro lado, Uribe afastou um certo pudor que os governantes
colombianos ainda tinham com respeito à participação dos Estados Unidos
no nosso conflito, e aceitou facilmente a idéia que havia sido gerada nos círculos
de Washington de que devia-se passar da meta da contenção para o objetivo
da eliminação. O Presidente chamou de “segurança democrática” a sua
estratégia, constante de duas linhas fundamentais: negociar com os paramilitares
a sua desmobilização e derrotar militarmente as guerrilhas.
Esse modelo de segurança configurado no governo do Presidente Álvaro
Uribe Vélez consistia na pacificação concertada no Norte do país e em guerra
assistida pelos Estados Unidos no Sul, onde se encontra a retaguarda da
guerrilha. É um projeto coerente, ousado e com grande apoio nacional e
internacional. Mesmo assim, ele não conta com qualquer garantia de vitória,
porque as raízes sociais do conflito, assentadas agora em centenas de milhares
de camponeses produtores de coca, são muito profundas; porque nessa
confrontação também interferem, de maneira decisiva, as atitudes dos
opositores; porque os aliados jogam com cartas próprias; porque mesmo entre
as forças do governo há ruídos e dissonâncias muitas vezes incontroláveis. A
euforia que essa nova política provocou é uma parte importante da opinião
pública, e não deixa ver os obstáculos e os seus gravíssimos custos humanitários.
Uma negociação com muitas interrogações
Há três anos os grupos paramilitares garantiam que só deixariam de
atuar quando a guerrilha desaparecesse, e sobre a sua mudança de posição há
várias interpretações. Os próprios dirigentes paramilitares justificam a sua
decisão dizendo que agora temos um presidente com vontade de derrotar a
guerrilha, e isso permite a sua desmobilização. No entanto, se fizermos uma
análise mais profunda podemos chegar a conclusões diferentes. No fim do
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
León Valencia
95
governo de Pastrana Arango, os paramilitares demonstraram que para derrotar
a guerrilha não eram tão eficientes. Eram bastante eficazes quando se tratava
de pressionar a população civil nas regiões do conflito, nos massacres, nos
deslocamentos forçados, e inclusive tinham tido bastante êxito no confronto
com o ELN, que é uma força menos configurada como exército, mais miliciana;
no entanto, no confronto direto com as Farc sofreram grandes derrotas. Perante
a comunidade internacional a ação paramilitar trouxe consigo um custo elevado
em termos de legitimidade. E, algo ainda mais importante, os paramilitares
chegaram ao máximo de acumulação de poder político, de influência social,
de terras e capitais, em um trabalho ilegal ou semilegal, e era urgente encontrar
uma base legal para consolidar esse seu grande poderio.
Não é difícil entender o raciocínio que foi sendo feito por uma parte dos
governantes do país. Havia chegado o momento de tentar recuperar o
monopólio da contra-insurgência, com base no fortalecimento das Forças
Armadas, da recuperação da legitimidade na comunidade internacional e da
conquista, por esse meio, de um apoio político e militar decisivo nos Estados
Unidos e na Europa. Se não tinha sido possível derrotar a insurgência com a
ajuda dos paramilitares, e se eles tinham agora um vôo próprio, se não se
podia esconder a sua vinculação com o narcotráfico, era obrigatório e urgente
experimentar outro caminho.
Abriu-se assim a porta para a negociação, pensando-se talvez, em um primeiro
momento, que a desmobilização poderia ser mais fácil e mais rápida. Quem criou
esta ilusão foi o próprio Carlos Castaño, que chegou a conceber a negociação
como uma “submissão à justiça”.
18
Chegou inclusive a dizer que essa submissão
poderia significar a prisão nos Estados Unidos. Essa idéia tinha amadurecido em
conversações não só com parte das suas próprias forças paramilitares como também
com amplos setores de puros narcotraficantes, que em algum momento lhe
18
A figura da “submissão à Justiça” já foi utilizada na Colômbia em outras ocasiões para desarmar e desmobilizar
grupos de narcotraficantes ou de paramilitares. Consiste em conceder benefícios penais, que podem chegar à
liberdade condicional, em troca da decisão de abandonar o crime. Foi o que se fez em 1991 como parte da
negociação com dois pequenos grupos paramilitares: um no Departamento de Córdoba, o outro na região do
médio Magdalena. Por outro lado, a negociação política tem sido utilizada muitas vezes na Colômbia em busca
de acordos de paz com as guerrilhas. Nessas negociações o objetivo é vincular à vida democrática grupos
políticos que se levantaram em armas contra o Estado. As figuras jurídicas utilizadas no quadro dessas
negociações políticas são as do indulto e da anistia.
Drogas, conflito e os Estados Unidos. A Colômbia no princípio do século
96 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
96
confiaram sua representação para falar diretamente com as autoridades norte-
americanas, tal como foi revelado pela imprensa em 2000.
No entanto, Castaño desapareceu ou morreu em mãos dos seus próprios
companheiros de armas, em ação que muitos interpretam como uma rebelião
contra essa posição de “submissão à Justiça”, e como afirmação da busca de uma
negociação de caráter político, que tendesse tanto a evitar a extradição como a
prisão dentro do país.
As conversações entre o governo e os paramilitares desandaram a partir
de maio de 2004, quando desapareceu aquele que durante vários anos tinha
sido o chefe máximo destes últimos. Depois disso a mesa de negociação passou
a ser o cenário de disputas e acordos entre três posições distintas. De um lado,
os Estados Unidos, cujo principal interesse era não desprezar a possibilidade
de que os chefes paramilitares comprometidos com atividades do narcotráfico
pudessem ser julgados em território americano. Sua idéia da negociação era
em essência uma “submissão à Justiça”. De outro lado, os paramilitares lutavam
por atribuir um sentido puramente político a esses entendimentos. E o esquema
do governo era uma mistura das duas opções: um pouco de negociação política
e até certo ponto a “submissão à Justiça”.
Têm influência também na mesa de negociações a posição das
organizações de direitos humanos e dos organismos internacionais, entidades
que acolhem a voz das vítimas civis e que procuram fazer valer um mínimo de
verdade, justiça e reparação. Elas têm um eco nessas conversações, débil mas
difícil de ignorar.
O fato é que ainda hoje, no fim do ano de 2004, quando começou a
desmobilização de alguns grupos paramilitares, não se sabe quais são os
interesses que vão predominar. Um lugar importante para a resolução das
tensões entre as diferentes posições é, sem dúvida, a aprovação da Lei da
Verdade, Justiça e Reparação, mas sobre ela não há um consenso e a sua
tramitação parlamentar ainda não começou. Portanto, persiste o clima de
incerteza.
Incerteza que não é apenas jurídica, porque o tipo de negociação e o
estilo da pacificação que vierem a ser feitas no Norte do país dependem da
forma como se desenrole a guerra no Sul. A princípio essa equação parecia
muito fácil, e havia no governo a convicção de que o processo de desmobilização
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
León Valencia
97
das Autodefesas poderia ocorrer simultaneamente com a derrota das Farc no
Sul, mas em todo caso o triunfo sobre a guerrilha era mais importante e vinha
em primeiro lugar, e não está claro que essa vitória esteja próxima. O Plano
Patriota, que é sem dúvida a ofensiva mais ambiciosa que já se fez contra a
guerrilha das Farc em toda a história, ainda não teve grandes resultados, e os
guerrilheiros se têm defendido bastante bem.
19
Alguns analistas, como Alfredo
Rangel, começam a dizer que nestas condições vai ser muito difícil para o
governo promover um processo completo de desmobilização e de transferência
das Autodefesas para a vida civil, já que elas podem preferir um acordo recíproco
de desmobilização parcial e formas de cooperação especiais entre a força pública
e os setores provenientes do paramilitarismo.
Na defensiva mas longe da derrota
O Presidente Uribe cumpriu, como nenhum dos seus antecessores, a
promessa que fez de lançar uma ofensiva contra as guerrilhas para procurar
derrotá-las. Nesse esforço criou quatro novas brigadas móveis, quatro novos
batalhões de alta montanha, cerca de seiscentos pelotões de soldados
camponeses e admitiu uns quinze mil carabineiros. O aumento da força
disponível para isso foi de 80 mil homens.
20
Procurou igualmente reforçar o
pessoal militar e os funcionários americanos posicionados em território
colombiano, que chegou a 2 mil pessoas - a maior delegação do mundo em
um solo formalmente não ocupado. Aumentou ainda o orçamento colombiano
da defesa, situando-o acima de cinco por cento do PIB, e conseguiu conservar
uma assistência média da ordem de setecentos milhões de dólares por parte
dos Estados Unidos.
Com essa mobilização de homens e recursos, o governo levou a força
pública a mais de 150 municípios que estavam abandonados, conseguiu
restabelecer o trânsito normal em algumas estradas e reduziu um pouco o
número de homicídios e de seqüestros; o mais importante, porém, foi ter
19
“Plano Patriota” é o nome dado a uma grande ofensiva militar contra a retaguarda das Farc, mobilizando
17.000 soldados, com importante apoio aéreo, tendo por objetivo derrotar a guerrilha nos Departamentos de
Meta, Caquetá, Putumayo e Guaviare.
20
Relatório da Fundação Segurança e Democracia, organização não governamental dirigida por Alfredo Rangel,
que até pouco tempo atrás foi um assessor do Ministério da Defesa.
Drogas, conflito e os Estados Unidos. A Colômbia no princípio do século
98 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
98
criado um ambiente de confiança e uma sensação de segurança que há algum
tempo não havia no país.
A confrontação direta com a guerrilha tem ocorrido de duas formas: a
primeira é a reação pronta aos seus ataques, com a mobilização de reforços e
contra-ataques rápidos e decididos. Desta forma aumentou o custo de qualquer
operação de insurgência, e os movimentos de retirada se tornaram particularmente
penosos. A liberação do Bispo de Zipaquirá, seqüestrado pelas Farc, foi uma das
primeiras surpresas da guerrilha devido a essa nova atitude tática do exército. A
segunda forma consiste em concentrar uma força importante para lançar ofensivas
sobre pontos chave da guerrilha. Há três casos mais notáveis: a comuna 13 de
Medelin, a Operação Liberdade no Departamento de Cundinamarca e a Operação
Patriota, no Sul do país. As duas primeiras trouxeram um resultado favorável ao
governo, com a reconquista de território e a perda de posições importantes
pelos guerrilheiros. A terceira ainda está sendo executada, e é a prova de fogo
que se faz na retaguarda estratégica das Farc.
As Farc e o ELN não só reconheceram nos seus documentos a posição
ofensiva das forças militares como se posicionaram defensivamente, e nesta
posição estão resistindo. O signo defensivo é visto na redução ocorrida dos seus
ataques a instalações policiais e bases militares, da ordem de mais de sessenta
por cento. Em outras palavras, embora continuem a operar de forma tão intensa
como na época de Pastrana, limitam-se a fustigar e atacar as forças governamentais
que os cercam ou perseguem. Perderam cerca de trinta por cento dos seus
combatentes e tiveram algumas estruturas reduzidas ou dissolvidas; deixaram as
zonas periféricas, onde tinham uma presença permanente, assim como algumas
zonas de controle territorial, e chegaram a perder certos comandos médios e
pessoas com grande influência política, como é o caso de Simon Trinidad. Suas
fontes de recursos diminuíram. No entanto, é indiscutível que o núcleo das
guerrilhas ainda não foi atingido. Suas estruturas de comando estão intactas e as
regiões da retaguarda mais profunda ainda não foram vulneradas.
Alguns analistas, como Joaquín Villalobos,
21
já falam de uma “derrota
estratégica” da guerrilha, esquecendo que na guerra é tão importante passar à
21
Joaquín Villalobos foi o principal comandante da Fmln de El Salvador. Depois dos acordos de paz dedicou-
se à análise de temas de segurança e a assessorar os governos em vários países.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
León Valencia
99
ofensiva, quando as circunstâncias o justificam, como organizar a defensiva,
quando as condições o exigem. Pode-se avaliar as forças que estão na ofensiva
pela extensão dos danos causados ao inimigos, e as que estão na defensiva
pelos danos que conseguem evitar, e pela sua capacidade de proteger-se. Mais
ainda: se uma força militar em posição defensiva consegue chegar ao fim sem
sofrer grandes perdas, obtém uma valiosa vitória relativa, e tem grandes
possibilidades de organizar uma boa contra-ofensiva. Villalobos, que dirigiu a
guerrilha do Fmln com um grande espírito ofensivo, e particularmente capaz
nos ataques, não percebe que a grande arte das Farc está na defesa, na
preservação - essa habilidade que lhes permitiu sobreviver durante quarenta
anos, embora lhes tenha impedido aproximar-se efetivamente do triunfo.
Ninguém pode negar que o governo do Presidente Uribe fez um grande
esforço ofensivo, apostando tudo na derrota da guerrilha; e é também
indiscutível que conseguiu algumas vitórias. No entanto, pode-se afirmar que
os resultados alcançados ainda não são proporcionais ao grande empenho
havido na reorganização das forças governamentais, em homens e em recursos.
Em todo caso, a disputa com as forças ilegais não terminou. O Plano Patriota
tem seu objetivo traçado para meados de 2005. As definições orçamentárias
para esse ano mostram que os recursos destinados à defesa aumentaram em
pelo menos meio ponto porcentual do PIB; a força militar vai crescer com a
formação de novas brigadas móveis, batalhões de alta montanha e pelotões de
soldados camponeses. Isto significa que o esforço prosseguirá, e os próximos
dois anos permitirão uma conclusão mais clara.
O ataque às “zonas cinzentas”.
O principal equívoco da política de “Segurança Democrática” talvez seja
o tratamento da população civil. O Presidente Uribe acredita que entre o Estado
e a subversão existem importantes “zonas cinzentas”. Crê que um grande
número de organizações não governamentais, associações de camponeses e
moradores, sindicatos, intelectuais e estudantes ou apoiam as guerrilhas ou
adotam a seu respeito uma atitude complacente. A realidade porém é que esse
vínculo entre a guerrilha e certos setores da sociedade, que na década de 1980
teve alguma importância, agora é quase inexistente. O conflito mudou
radicalmente nos anos 1990. Com a queda do muro de Berlim e as
transformações havidas no mundo, esfumou-se a ilusão de uma insurreição
Drogas, conflito e os Estados Unidos. A Colômbia no princípio do século
100 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
100
triunfante. Nesses anos os ativistas sociais e políticos se afastaram da
insurgência, e as guerrilhas se desenganaram completamente com a pouca
resposta que as classes médias e os trabalhadores haviam dado ao apelo de um
movimento armado. Atualmente as guerrilhas se apoiam em setores marginais
e ilegais da sociedade, nos jovens das favelas deprimidas economicamente,
nos camponeses que cultivam coca, em todos os excluídos sociais. Mas esses
marginais têm a dupla condição de ser vítimas e de fazer vítimas. Participam
de atividades ilegais e atacam a sociedade, mas resumem a tragédia de uma
nação que obriga milhões de pessoas a viver das migalhas de negócios sujos.
São uma grande força social que ataca de fora do Estado e da sociedade
formalmente estabelecida.
Pois bem, os dados sobre mortes, desaparecimentos e prisões publicados
pelas próprias forças governamentais dão conta da enorme pressão aplicada aos
civis e descrevem uma crise humanitária impressionante nestes dois anos de governo.
No balanço feito de dois anos de resultados da força pública, divulgados
pelo Ministério de Defesa Nacional, aparecem estes números: 12.977 indivíduos
capturados dos grupos subversivos, 3.841 mortos e 3.655 desertores, somando
20.473 pessoas.
22
No entanto, dos capturados sobram apenas mil nos cárceres
o que sugere uma alta probabilidade de que os restantes nada tinham que ver
com esses grupos subversivos. Com relação aos mortos a situação é mais
triste: as próprias guerrilhas mencionam 690 no caso das Farc e 170 no caso
do ELN, o que estaria indicando que cerca de 2.800 desses mortos talvez
fossem civis. O número dos presos por narcotráfico chega ao total de 97.670,
e não é preciso uma grande perspicácia para pensar que mais de 90.000 devem
ser camponeses plantadores de coca.
Por outro lado, depois das violações do cessar fogo estabelecido pelas
Autodefesas, a Comissão Colombiana de Juristas
23
chegou ao número
aterrorizante de 1.899 civis mortos ou desaparecidos em mãos das Autodefesas
durante o período de negociação e de interrupção das hostilidades.
22
Ministerio de Defensa Nacional de Colombia. Viceministerio de Gestión Institucional. Resultados de la Fuerza
Pública contra la violencia, criminalidad y terrorismo. Balance de 24 meses del gobierno del presidente Uribe.
23
Comisión Colombiana de Juristas. Relatório dessa organização não governamental baseado em informações
colhidas em diversos jornais nacionais e regionais, assim como nas denúncias de vítimas, apresentadas a
organismos de defesa dos direitos humanos.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
León Valencia
101
24
O “Intercâmbio Humanitário” é uma figura que se tem utilizado para designar uma possível negociação
entre as Farc e o Governo nacional, orientada para liberar os seqüestrados e prisioneiros de guerra da guerrilha,
como também os guerrilheiros presos pelas forças governamentais.
25
Andes 2020. Una nueva estrategia ante los retos que enfrentan Colombia y la región andina. Fundação Friedrich Ebert
Stiftung e Council On Foreign Relations. Bogotá 2004.
Os seqüestrados e os prisioneiros de guerra ficaram presos no meio do
cabo de guerra entre as Farc e o governo. Não foi possível promover o
intercâmbio humanitário
24
porque as duas partes não quiseram fazer a menor
concessão política ou militar. Sempre que ocorre um mínimo de intercâmbio
é porque uma pesquisa revela forte opinião favorável ou então porque surge
um clamor da opinião pública ou da comunidade internacional. No entanto,
logo que termina o eco do protesto as partes retornam ao seu mutismo.
Diante de um provável fracasso
As vozes possivelmente mais críticas à política norte-americana com relação
à Colômbia e à Região Andina foram levantadas em Washington. O Council on
Foreign Relations, um centro influente do pensamento americano, criou uma
comissão independente que em 2003 esteve na Colômbia, fazendo consultas
com as fontes mais diversas, tendo publicado um relatório sobre a situação
aconselhando uma mudança da política do governo dos Estados Unidos. Para
essa comissão a Colômbia é o país chave da crise vivida pela região.
O Relatório diz claramente que a região caminha para o colapso, que a
democracia está seriamente ameaçada e que a política do governo dos Estados
Unidos é míope, sendo necessária uma mudança radical e urgente para deter a
deterioração do quadro existente na região. “A política dos Estados Unidos nos Andes
chegou a um ponto difícil. Ao longo dos últimos vinte anos foram gastos mais de 25 bilhões de
dólares nesse cenário, principalmente em uma guerra contra as drogas orientada para a erradicação
e interceptação da oferta; mas esse esforço não se fez acompanhar de um interesse equivalente pelo
desenvolvimento, o fortalecimento institucional e a implantação de reformas necessárias nos setores
público e privado da região, bem como de uma estratégia integral e multilateral por parte dos países
consumidores de drogas, para reduzir a sua demanda. É preciso urgentemente que os Estados
Unidos, a comunidade internacional e os atores locais desenvolvam uma estratégia regional enérgica
e integral que vá além das drogas e canalize recursos para um desenvolvimento amplo das zonas
rurais e fronteiriças, assim como reformas judiciais e de segurança; e que mobilize o compromisso
e o capital das elites locais, assim como recursos americanos e internacionais.”
25
Drogas, conflito e os Estados Unidos. A Colômbia no princípio do século
102 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
102
O Relatório é minucioso e preciso nas suas recomendações. Poderíamos
dizer que o seu enfoque é o de “dissolver o conflito”. Ou seja: mantém a
idéia de reprimir a produção, o tráfico e o consumo de drogas e os grupos
armados que se sustentam na região, mas enfatiza a superação das causas
econômicas e sociais que estão no fundo do conflito. “Dissolução do
conflito”, em lugar de “eliminação dos atores” seria uma forma de mostrar
a diferença entre essa proposta e a atual política norte-americana. O ponto
de partida é a consideração de que a Colômbia e de modo geral a região
Andina necessitam tanto de uma “assistência dura” como de “assistência
branda”, e critica fato de que a ajuda norte-americana se concentrou na
primeira. Assinala como um sério erro o fato de que a ênfase da luta anti-
drogas se oriente para a oferta, e ataque principalmente o cultivo. Propõe
que haja um equilíbrio entre os esforços destinados a combater o cultivo e o
tráfico de drogas e, de outro lado, os recursos e esforços orientados para a
redução do consumo. E também que a estratégia de ataques à oferta dê
prioridade aos “níveis mais altos da indústria do narcotráfico, dos narcotraficantes e
pequenos cartéis”, deixando a fumigação como uma ação complementar e não
predominante.
Indica claramente a necessidade de uma política especial do Fundo
Monetário Internacional e do Banco Mundial, assim como dos países
consumidores, para cooperar em larga escala com o desenvolvimento desses
países; menciona a urgência de uma profunda reforma agrária e a importância
de um Tratado de Livre Comércio com preferências e garantias para os países
andinos.
Mostra que um ponto decisivo para apoiar as negociações é a paz na
Colômbia e a obrigação de preparar para o pós-conflito.
A nova estratégia sugerida pelo Relatório do Council on Foreign Relations é
sem dúvida mil vezes mais realista, inteligente e generosa do que a política
hoje dominante em Washington, mas não questiona a base proibicionista da
política norte-americana nem coloca no centro da superação do conflito um
projeto de reconciliação nacional na Colômbia.
Por outro lado, é muito pouco provável que essa proposta seja acolhida
em Washington. A reeleição de Bush deixa muito pouco espaço para recolocar
a política norte-americana. O próprio Bush, ao passar pela Colômbia em
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
León Valencia
103
novembro de 2004, confirmou a posição de dar continuidade ao Plano
Colômbia e de financiar uma segunda fase a partir de 2005, quando termina a
primeira fase. O mais provável é que o conflito tenda a escalar e que o cultivo,
processamento e tráfico de drogas se coloque mais ainda no centro dessa
guerra. Na medida em que persistam os atores armados ilegais, que os
camponeses plantadores de coca se radicalizem contra as fumigações, que o
dinheiro continue fluindo para os narcotraficantes, e que os Estados da região
andina mostram sinais de colapso, os Estados Unidos serão obrigados a
aprofundar a sua intervenção, chegando inclusive a formas típicas de ocupação
territorial, como aconteceu no Afeganistão, nosso irmão na desgraça das drogas,
e que monopoliza o mercado da heroína.
A idéia de dissolver o conflito em vez de eliminar os seus atores, de
atacar as causas fundamentais que o motivam e de considerar propostas de
negociação é sem dúvida um caminho mais provável para a solução. No entanto,
essa trajetória perde de vista algumas coisas. Assim, a guerrilha é anterior ao
auge dos cultivos ilícitos; a colonização é anterior a eles, como a marginalização
política e social de amplos setores camponeses e urbanos. Há na Colômbia
um conflito com raízes históricas profundas. O que há vinte anos o Presidente
Belisario Betancur chamou de “causas subjetivas”, ou seja, a disposição e
constância com que grupos de colombianos se levantaram em armas, na busca
do seu reconhecimento e inclusão, tem um papel fundamental no conflito, e
terá sem dúvida um papel principal na superação da guerra. Para falar com
toda clareza, o caminho mais certo para por fim à guerra é a negociação política
e a inclusão.
A reconciliação dos colombianos é o nome desse projeto. A negociação
é central, não é lateral. Tentar a eliminação dos atores é a catástrofe. Tentar
dissolver o conflito é uma política mais benévola e pode dar alguns resultados,
mas o caminho da reconciliação é o que pode trazer melhor rendimento para
a democracia, abreviando o tempo da confrontação.
No entanto, a reconciliação implica em explorar fórmulas como um
governo de transição, do qual participem todos os atores do conflito. É buscar
uma forma concertada de superar o cultivo, o processamento e o tráfico de
drogas, oferecendo verdadeiros programas de desenvolvimento que gerem
alternativas de vida distintas. É por em marcha um processo de
reindustrialização do país e um projeto de reformas sociais profundas, tal como
Drogas, conflito e os Estados Unidos. A Colômbia no princípio do século
104 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
104
está sendo tentado no Sul do continente, sob a liderança do Presidente Lula. E
é também atrever-se a procurar a flexibilização das políticas proibitivas das
drogas, adotando formas persuasivas de reduzir o seu consumo.
Tradução: Sérgio Bath.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
Guillaume Fontaine
105
Amazônia é uma área onde, desde os fins da década de 60, se concentra
a maior parte das atividades petroleiras no Equador. Os impactos sociais e
ambientais dessas atividades foram conhecidos a partir dos anos 80 e deram
lugar a múltiplos conflitos ambientais nas décadas seguintes. Neste sentido, a
política petroleira equatoriana determinará em grande medida a sorte da região
amazônica a curto e médio prazos. Neste artigo, recordamos em primeiro
lugar a evolução da política petroleira; em seguida, analisamos os problemas
pendentes na região amazônica em relação com as atividades no setor.
A política petroleira numa perspectiva histórica
Os primeiros contratos de concessão petroleira no Equador foram assinados
em 1878, com a empresa M. G. Mier, e em 1909, com a família Medina Pérez, para
A política petroleira e o
futuro da Amazônia
Equatoriana
1
Guillaume Fontaine
*
A
*
Professor Pesquisador da Faculdade Latinoamericana de Ciências Sociais (Flacso), sede Equador
1
Uma versão preliminar deste texto foi apresentado no seminário “Perspectivas e enfoques ambientais no
Equador”, organizado pela Universidade Internacional SEK, Quito, 14-17/12/2004.
Mesa redonda “Interdisciplinaridade da gestão ambiental no Equador”
A política petroleira e o futuro da Amazônia Equatoriana
106 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
106
a pesquisa e a exploração econômica do litoral. Em 1919, a Anglo Ecuadorian Oil
Fields, filial da Royal Dutch Shell, fez uma descoberta na península de Santa Elena,
que explorou até o seu esgotamento, deixando o Equador com uma parte ínfima
dos ganhos. Em 1937, a Shell adquiriu as concessões da Leonard Exploration Co.
(filial da Standard Oil of New Jersey), sobre dez milhões de hectares, e realizou os
primeiros trabalhos de exploração na região amazônica. A Standard Oil transferiu
suas atividades para o Peru, antes de voltar ao Equador, com o nome de Esso, para
associar-se à Shell em 1948. Um ano depois, este consórcio retirou-se da região, o
que levou o Presidente Galo Plaza a fazer o seu famoso comentário: “O Oriente é
um mito”. Quinze anos depois, firmou-se um novo acordo de concessão, com o
consórcio Texaco-Gulf, que antecedeu as descobertas do norte da região amazônica,
em 1967. Estas inaugurariam uma primeira “corrida para o ouro negro”: em 1970,
umas trinta concessões tinham sido atribuídas, abrangendo mais de dez milhões
de hectares na região. (Fontaine, 2003, a:99).
O choque do petróleo de 1973 abriu uma era de prosperidade que significou
um aumento médio do PIB de 9% ao ano na década de 70, com picos de 25,3%
em 1973 e de 9,2% em 1976. Esse crescimento diminuiu, entretanto, na década
de 80, voltando a cair para uma média de 2,1% ao ano. Os primeiros anos de
bonança foram marcados pela crescente influência do Estado na indústria, entre
outras coisas com a criação da Cepe (Corporação Estatal Petroleira do Equador),
em 1971, que, em 1989, se converteria na Petroecuador. Em 1969, o governo
começou a renegociar o contrato de concessão no Oriente e, em setembro de
1971, o Congresso adotou uma lei não retroativa, que reformou a de 1937,
regulamentando as atividades petroleiras. O governo militar de Rodriguez Lara,
chegado ao poder em fevereiro de 1972, através de um golpe de Estado, decidiu-
se então pela nacionalização do setor petroleiro, em particular sob a iniciativa do
Ministro de Recursos Naturais, Gustavo Jarrín Ampudia. (Ibid.: 95).
A primeira medida tomada pelo novo governo foi ordenar a renegociação
dos contratos de concessão anteriores ao ano de 1971, pelo decreto 430, de 12
de junho de 1972. No mesmo momento, o consórcio Texaco-Gulf Oil concluía
a construção do Sistema de Oleodutos Trans-Equatoriano (Sote), com uma
capacidade de transporte de 250.000 b/d (barris por dia)
2
. Em agosto de 1973,
2
Recordamos que 1 barril =158,98 litros, medidos a 15,5
o
. Celsius ao nível do mar.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
Guillaume Fontaine
107
foi firmado um acordo segundo o qual a Texaco e a Gulf perdiam a maior
parte da concessão, mas guardariam o controle até 1992.
Até 1976, a situação não mudou para as empresas associadas, cuja produção
continuava limitada a 210.000 b/d, enquanto a CEPE tinha conseguido o direito
de comercializar 25% da produção. Em dezembro de 1976, a junta militar chegada
ao poder em janeiro do mesmo ano concluiu um novo acordo segundo o qual a
Cepe assumia o controle da Gulf no Equador e se tornava acionista majoritária
do consórcio, com 62,5% das participações. No entanto, a Texaco continuava
controlando as operações de produção. (Philip. 1982: 280-282).
A bonança petroleira deu origem a um crescente desequilíbrio entre as
importações, que se multiplicaram por sete entre 1971 e 1980, enquanto as
exportações de produtos não petroleiros multiplicavam-se por quatro. A
participação do petróleo nas exportações passou de 18,5% a 62% entre 1972
e 1980 e em 1985 alcançava 62,4% do PIB. Por outro lado, o crescimento da
dívida externa teve como conseqüência a liquidação do excedente comercial.
Essa tendência não pode ser revertida nos anos 80, quando os preços
mundiais do petróleo começaram a cair de forma constante. Em 1984, o
governo começou a negociar as condições do reembolso da dívida e a pôr em
prática uma política de ajuste estrutural sob a tutela do FMI. O fracasso desta
política teria conseqüências duradouras, cujos efeitos se fariam sentir no ano
2000, com a dolarização completa da economia equatoriana, de fato sustentada
pela produção e pelas exportações de petróleo.
As reformas do regime de contratação nos anos 90
A Cepe perdeu o monopólio da comercialização em conseqüência da lei
101, de 1982, que restringiu suas atividades à produção e ao refino. Até a
adoção da Lei Especial no. 45, da Petroecuador, em setembro de 1989, a lei de
hidrocarbonetos foi modificada mais três vezes: pelo Decreto Executivo no.
958 e a Lei nº. 08, de junho e setembro de 1985, seguida do Decreto Lei no.
24, de maio de 1986. Entre 1983 e 1993, realizaram-se seis rodadas de licitações
sob a forma de contratos de prestação de serviço, semelhantes ao contrato de
associação então vigente na Colômbia (Caballero, 2003: 188).
A criação da Petroecuador e suas três filiais – Petroproducción,
Petroindustrial e Petrocomercial – seguiu-se à restituição dos campos da Texpet
A política petroleira e o futuro da Amazônia Equatoriana
108 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
108
ao Estado equatoriano e à abertura ao setor privado. A lei de hidrocarbonetos
foi novamente modificada pela Lei nº. 44 (em novembro de 1993), que criou
os contratos de participação na produção, além dos contratos de prestação de
serviços. Seguiram-se três outras reformas: em dezembro de 1993 (Lei no.
49), setembro de 1994 (Lei SN) e agosto de 1998 (Lei Especial 98-09). Assim
foram convocadas a sétima e a oitava rodadas de licitações petroleiras.
Teoricamente, nos contratos de participação, Petroecuador e a empresa
associada assumem conjuntamente os riscos da exploração, enquanto que,
nos contratos de prestação de serviços, os riscos ligados à exploração ficam
totalmente a cargo do sócio, que recebe uma indenização (fixada
antecipadamente) no momento da declaração de comercialização da descoberta.
(Vários autores, 1990: 22-23). As reformas introduzidas pela Lei nº. 44 foram,
porém, mais longe na abertura ao capital privado.
Fizeram que as empresas sócias pudessem ser pagas em mercadoria (por
exemplo, com petróleo cru), segundo uma porcentagem fixada no momento
da assinatura do contrato de exploração, e dispor à vontade do petróleo que
lhes correspondesse. Ao mesmo tempo, os impostos sobre a renda foram
reduzidos e o controle de câmbio, flexibilizado. Também se abriu a indústria
downstream, até então reservada a Petroecuador, e autorizou-se a livre importação
de produtos petroleiros. Naturalmente, o preço desses produtos no mercado
interno foi calculado com base nos preços internacionais, embora tenha ficado
estabelecido por decreto presidencial, e as margens de lucro em relação ao
preço de produção, submetidas a restrições.
Por outro lado, aumentou-se o controle estatal sobre o funcionamento
da Petroecuador, ao destinar ao Ministério das Finanças os 10% da produção
que antes eram entregues ao Fundo de Investimentos Petroleiros. Esta
destinação, que tinha como objetivo compensar o déficit do orçamento do
Estado, afetou os investimentos no âmbito da exploração e a manutenção da
infraestrutura. Os ganhos da empresa estatal (calculados a partir da receita
bruta, depois de deduzidos os direitos pagos e outros gastos da empresa e de
suas filiais) eram totalmente entregues ao Banco Central, concretamente para
pagar a dívida externa. (Campodónico, 1996: 162-172).
Enquanto isso, o Estado procurava ampliar ao máximo a capacidade de
produção, abandonando a estratégia “conservadora” dos anos 70 e 80. Em
1992, o Equador saiu da Opep e abandonou a política de quotas, o que preparou
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
Guillaume Fontaine
109
o aumento da produção de 321 mil para 378 mil b/d entre 1992 e 1997. (EIA,
1997). Foi feita uma série de adaptações com vistas a facilitar o desenvolvimento
dos investimentos em exploração, como suspender a obrigação de perfurar
poços durante a fase de pesquisa, ampliar para 400 mil hectares a área dos
blocos licitados e reduzir a superfície devolvida ao Estado no caso de uma
descoberta comercializável.
Por outro lado, a ampliação da capacidade de transporte e a construção
de um novo oleoduto tornaram-se prioridades para o Estado. Este projeto foi
adiado até 2001, já que o Equador não dispunha dos recursos necessários para
aquele investimento e não se chegou a um acordo nacional sobre as modalidades
de associação com empresas privadas. Em novembro de 2000, foi finalmente
expedido o decreto presidencial pelo qual se determinava a construção de um
oleoduto de crus pesados (OCP), com uma capacidade de transporte de 410
mil b/d, de Lago Agrio (Sucumbíos) a Balao (Esmeraldas). Sua construção,
concluída em 2003, foi realizada pela Techint, atual sócia do consórcio, junto
com Agip Oil, Encana, Occidental, Perenco, Petrobrás e Repsol-YPF.
Em 2004, o governo apresentou mais um projeto de reforma, que contemplava
novas modalidades contratuais, particularmente para aumentar a produtividade ou a
reabertura de poços operados pela Petroecuador. Haviam sido criados contratos de
alianças estratégicas pelo Decreto no. 799, de 2000, e contratos de alianças operativas,
em 2001, por acordo entre o Ministério de Energia e Minas e o Ministério das
Finanças. No entanto, a legalidade de ambos foi questionada por alguns especialistas,
embora eles continuem em vigor até hoje. (Araúz, 2004: 62).
Situação atual da indústria petroleira no Equador
Oficialmente, as reservas equatorianas comprovadas alcançavam, em
2002, 4.630 milhões de barris, isto é, o quarto lugar na América Latina, depois
da Venezuela (77.923 milhões), México (22.419 milhões) e Brasil (8.485
milhões). A capacidade de produção limita-se, entretanto, a 407 mil b/d (sexto
lugar na América Latina) e a capacidade de refino a 177 mil b/d (sétimo lugar).
As reservas comprovadas e a produção de gás natural ainda são marginais, em
comparação com os demais países da região. (Olade, 2002).
A produção de óleo cru equatoriano concentra-se na região amazônica,
com 32 blocos, mais os antigos campos da Texpet, dos quais 11 ainda estão
A política petroleira e o futuro da Amazônia Equatoriana
110 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
110
por licitar
3
, além do campo ITT (Ishpingo, Tiputini, Tambococha). A
Petroecuador explora os antigos campos da Texpet e concluíu alianças
operacionais com Dygoil (nos blocos Atacapi, Pacachuacu e VHR) e
estratégicas com Sipetrol-Enap (nos blocos MDC, Paraíso, Biguno e
Huachito). As operações nos campos marginais de Petroecuador são
compartilhadas com Tecnie-Bellwether (Chapara), Rio Alto Exploración
(Tigüino), Petrosud-Petroriva (Pindo, Yuca Sur e Palanda) e Tecpecuador
(Bermejo). No mais, as principais empresas multinacionais atualmente
presentes na região amazônica são: Occidental (blocos 15, Limoncocha e
Eden-Yuturi), AEC e Encana (Tarapoa, blocos 14, 17 e 27), Agip Oil (bloco
10), Repsol-YPF (bloco 16), Petrobrás (blocos 18 e 31), Perenco (blocos 7 e
21), CGC (bloco 23), Burlington (bloco 24), Tripetrol (28) e Cnpc-Amazon
(bloco 11). A pesquisa e a exploração off-shore limitam-se aos blocos 1, 2 e 3
(operados em 2004 por Canada Grande, Pacifpetrol e EDC), restando quatro
blocos por licitar.
4
(Vários autores, 2004b).
Ao fim e ao cabo, depois de oito rodadas nas quais foram licitados 16
blocos petrolíferos, cerca de 90% da produção é feita por sete empresas: em
2003, Petroecuador produziu 48,5% do volume total, à frente da AEC (10,
6%), Petroecuador-Occidental (8%), Repsol-YPF (7,7%), Agip Oil (7,2%),
Occidental (4,6%) e Ecuador TLC (2,5%). No mesmo ano, a receita petroleira
do governo central alcançou 1.555 milhões de dólares e o volume das
exportações petroleiras somou 2.606 milhões de dólares. As receitas petroleiras
representam cerca de 33% do orçamento do Estado e entre 40% e 43% das
exportações. (Vários autores, 2004
a).
Em fins de 1999, os contratos de prestação de serviços entregavam ao
Estado 11,84% da sua renda, enquanto o resto era reservado para as empresas
associadas, entre as quais figuravam Occidental, Elf Aquitaine, Oryx, Tripetrol
e Repsol-YPF. Esses contratos foram renegociados em 1999 e, atualmente, o
único em vigor é o da Agip Oil Ecuador, operadora do bloco 10, no qual o
Estado recebe 54% da renda, mas deve cobrir todos os gastos operacionais.
(Araúz, 2004: 59).
3
Estão por ser licitados os blocos 30, 34, 37 e 41, além de sete blocos não licitados (25, 26, 32, 33, 35, 36 e 38)
4
Estão por ser licitados os blocos 4, 39 e 40.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
Guillaume Fontaine
111
Em comparação, a participação do Estado nos contratos de participação
redefinidos pelas leis no. 44 e 49 é determinada pelo volume de produção: a um
maior volume corresponde menor porcentagem de participação do Estado. Assim,
a renda estatal pode situar-se em torno de 20%, como no bloco 31 (adquirido por
Perez Companc na 8
a
. rodada), ou oscilar entre 21% e 50% no bloco 27 (adquirido
pela City na 7
a
. rodada). Depois de terem sido reformados por decreto, estes
contratos, em fins de 2003, fixaram a participação do Estado equatoriano em
torno de 20%, com variações entre 12% e 13% nos blocos 14 e 17 (operados pela
Vintage, depois AEC), 15% no bloco 15 (Occidental), 18% no bloco 16 (Repsol-
YPF), 20% nos blocos 7 e 21 (Perenco), 23,5% no bloco 27 (City, depois Encana)
e 33% no bloco 18 (Ecuador TLC, depois Petrobrás). (Ibid.: 61).
No caso dos contratos de participação para a exploração conjunta, a
participação de Petroecuador é calculada em volume de óleo cru. Esta pode
situar-se em torno de 20%, como nos campos Bogui-Capirón, operado com
Repsol-YPF, e Eden-Yuturi, operado com AEC, depois Occidental. Pode,
porém, superar os 60%, como em Limoncocha, operado com a Occidental.
Finalmente, na exploração dos campos marginais, a renda estatal acumulada
alcança 66,8%. (Ibid.: 61-62).
O futuro da região amazônica
Perspectivas futuras do setor petroleiro
Desde o início da década de 90, a perspectiva do esgotamento, a curto
ou médio prazos, das reservas petroleiras do Equador abriu um debate sobre
a viabilidade econômica da política para o setor. (Vários autores, 1997; Doryan
López, 1992; Acosta, 1991). A hipótese mais provável é que, levando em conta
seu grau de dependência em relação ao petróleo, o Estado equatoriano deverá
intensificar os esforços no campo da pesquisa e da exploração, a fim de diminuir
o risco de esgotamento das reservas comprovadas. Dada a importância da
dívida externa
5
, falta a este país a autonomia financeira necessária para atribuir
ao Estado um papel predominante nos investimentos. Acrescenta-se a isso a
5
Em 2003, a dívida externa pública do Equador chegava a 11.483 milhões de dólares, isto é, 64,4% do PIB
(Vários autores, 2004 a).
A política petroleira e o futuro da Amazônia Equatoriana
112 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
112
necessidade de modernizar equipamentos obsoletos, não apenas para aumentar
a produtividade do setor petroleiro, mas também para prevenir danos ecológicos
devidos a acidentes, como a ruptura de oleodutos ou de estações de
bombeamento. Portanto, qualquer que seja, a médio prazo, o cenário da política
petroleira equatoriana, o mais provável é que os governos no poder busquem
cada vez mais atrair os investimentos estrangeiros privados e, conseqüentemente,
prossigam com a liberalização inaugurada na década de 80.
Se a privatização da empresa nacional não estava ainda na ordem do dia
no ano 2000, a criação de contratos de alianças operacionais e estratégicas
significa uma privatização parcial de facto da indústria. (EIA, 03/2000). Esta
estratégia do Estado equatoriano segue as recomendações do Banco Mundial,
que insistiu, em um informe entregue em abril de 2003, na necessidade de
“abrir” o capital da empresa estatal para contra-restar a diminuição da produção
e pôr em prática a reforma do setor petroleiro
6
. De fato, calculou-se em 127,5
milhões de dólares o investimento necessário para aumentar a produção de
5.000 b/d no campo de Shushufindi, de 15 mil b/d em Sacha, 10 mil b/d em
Auca e 12 mil b/d em Libertador
7
.
Em outubro de 2003, o Presidente Lucio Gutiérrez anunciou que seu
governo realizaria a licitação dos principais campos operados pela
Petroproducción – inclusive os marginais – das refinarias La Libertad e
Esmeraldas, do poliduto Pascuales, seguidos dos campos de Pañacocha e ITT
(Ishpingo-Tambococha-Tiputini) e, em seguida, dois blocos situados no sul
da região amazônica. Em 4 de novembro de 2003, ofereceram à licitação os
campos Shushufindi, Lago Agrio, Auca e Yuca-Yulebra, na forma de contrato
de associação, com uma participação do Estado de no mínimo 35% do aumento
marginal de produção, mais direitos e tributos. Esta oferta seduziu as empresas
chinesas, resultantes da reestruturação da Cnpc (China National Petroleum
Corporation), mas não foi considerada muito atraente pelo setor privado
(devido à incerteza jurídica do momento). Além disso, suscitou fortes críticas
no Equador, alimentando no Congresso o debate sobre a reforma da lei de
hidrocarbonetos, e foi finalmente descartada pelo governo.
6
Cf. o diário “Hoy”, 10/04/2003.
7
Cf. o diário “Hoy”, 08/07/2003.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
Guillaume Fontaine
113
Impactos sócio-ambientais do petróleo
Uma das conseqüências da liberalização do setor petroleiro é por em relação
cada vez mais direta as empresas privadas e as comunidades locais, cujas lógicas
racionais são bastante discrepantes. Neste contexto, o Estado deveria
desempenhar um papel-chave. Por um lado, ao promover um quadro legal que
permitisse evitar que essa confrontação degenerasse em conflito; por outro, ao
assumir o papel de mediador para a institucionalização destas relações, de tal
modo que as populações afetadas ficassem ao abrigo de uma deterioração do
seu meio ambiente. Essa missão inscreve-se, entretanto, num contexto de crise
de governabilidade – que se reflete na instabilidade política no Equador e na
multiplicação dos conflitos ambientais – que deriva em grande parte dos impactos
sócio-ambientais evidenciados nos anos 90. (Fontaine, 2003 a: 479-496).
Os impactos sócio-ambientais das atividades petroleiras permaneceram
ignorados pela população equatoriana até princípios da década de 90, isto é,
quando terminou o contrato da Texaco. Na primeira investigação sistemática
realizada no Equador sobre este tema, indica-se que, entre 1972 e 1992, os trinta
vazamentos mais graves do Sote resultaram na perda de 403 mil barris, aos quais
se somaram 456 mil barris de cru
8
e 450 milhões de barris de águas de formação
lançados no meio ambiente, bem como 6.667 milhões de metros cúbicos de gás
incinerados ao ar livre (Kimerling, 1991; Vários autores, 1996: 139). Em outro
informe independente, afirma-se que as populações que vivem em zonas
contaminadas, onde operava a Texaco até 1992, expõem-se a concentrações de
hidrocarbonetos policíclicos aromáticos e de componentes orgânicos voláteis
muito acima das normas sanitárias americanas e européias, que causam diversas
enfermidades desde as infecções secundárias – como fungos cutâneos, verrugas
ou eczemas – a cânceres de pele, do sangue ou do esôfago, passando pelas
pneumonias e os abortos espontâneos. (Jochnick et al., 1994). Outras pesquisas
evidenciaram que, embora a taxa de mulheres grávidas fosse menor em zonas
contaminadas, como San Carlos (Orellana), a taxa de abortos espontâneos com
menos de 28 semanas era maior naquelas regiões. (San Sebastián,2000). Lá existe,
além disso, uma grande diversidade de tipos de câncer (estômago, vesícula, laringe,
fígado, sangue, etc) e uma alta taxa de mortalidade entre as pessoas expostas a
essas enfermidades. (San Sebastián e Hurtig, 2002).
8
A comparar com as perdas provocadas pelo naufrágio do Exxon Valdez no Alasca, que chegaram a 259 mil barris.
A política petroleira e o futuro da Amazônia Equatoriana
114 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
114
Historicamente, esta região periférica serviu de substituto para as reformas
agrárias dos anos 60 e 70. A população amazônica elevou-se de 74.913 para 546.602
entre 1962 e 2001, enquanto se previa que somente alcançaria 353.612, segundo as
projeções de 1962, o que confirma a correlação entre o desenvolvimento das
atividades petroleiras e a colonização agrícola. A produção amazônica continua a
depender do petróleo numa proporção de 74%, muito mais do que das atividades
agropecuárias e dos serviços de comércio e transporte. A curva de correlação
entre desflorestamento e o número de poços perfurados entre 1986 e 1996 mostra
que, nos cantões onde se perfuraram poços, a taxa de desflorestamento é superior
a 50%, podendo mesmo alcançar 100%. (Arteaga, 2003).
Por último, em 1992, depois de vinte anos de exploração petroleira em
Sucumbíos (onde se concentra a metade do PIB regional), todos os indicadores
sócio-econômicos ficavam abaixo das respectivas médias nacionais: a expectativa
de vida era um ano abaixo da média do país (63 contra 64); o pessoal de saúde
representava apenas 11, 3%, contra 30% a nível nacional; a taxa de mortalidade
infantil chegava a 62,6%, contra 53,2% para o conjunto do país; e o analfabetismo
funcional superava os 30%, contra 25% para o país. Por outro lado, menos de
9% das residências tinham acesso a uma rede de esgotos, contra 39,5% para o
país; menos de 40% tinham acesso ao serviço elétrico, contra 77,7%; e só 5,5%
dos lares dispunham de água encanada, contra 38,2%.
9
(Fontaine, 2003 b).
Dez anos depois, a situação não melhorou muito, segundo o diagnóstico
realizado entre 2000 e 2002 (pelas juntas paroquiais, organizações comunitárias,
municípios, instituições e organismos provinciais etc) para o “Plano
participativo estratégico da província de Sucumbíos”.
10
A má qualidade da
educação, o baixo rendimento educativo, o fraco desenvolvimento educativo
e cultural da província encontram paralelo na ineficiência do sistema de saúde
por falta de coordenação, insuficiência e baixa qualidade dos serviços (o que se
traduz, por exemplo, por alta taxa de enfermidade e de mortalidade materno-
infantil). As deficiências dos serviços de energia elétrica, de comunicações, das
redes comerciais e da infra-estrutura básica continuam sendo preocupantes,
9
Dados calculados a partir do Sistema Integrado de Indicadores Sociais (Siise) 2000 e do Infoplan 1999.
10
H. Conselho Provincial de Sucumbíos, “Plano participativo de desenvolvimento estratégicoda província de
Sucumbíos 2002-2012”, Nueva Loja, 2002.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
Guillaume Fontaine
115
bem como os problemas de segurança da cidadania (anteriores ao Plano
Colômbia), que se manifestam pela corrupção institucionalizada, pela impunidade
e, naturalmente, pela fraca capacidade de resposta em casos de desastres.
Os conflitos ambientais decorrentes do petróleo na
Amazônia
Já em fins dos anos 80, eclodiu uma série de conflitos em torno da
pesquisa e da exploração do petróleo na região amazônica, em particular no
Parque Yasuní, na Reserva Cuyabeno e na província Pastaza. A divulgação de
informações sobre os impactos das atividades petroleiras levou a uma crescente
confrontação das organizações ecológicas, indígenas e camponesas com o
Estado equatoriano e as empresas da região.
O conflito com maior repercussão nos meios internacionais de comunicação
foi sem dúvida o processo contra a Texaco, que começou em 1993 com uma ação
movida em nome de 30 mil pessoas perante o Tribunal do Distrito Sul de Nova
York. A fim de agrupar as reivindicações individuais e obter reparações coletivas, o
processo tomou a forma de uma “ação de classe”, que reivindicava indenizações e
juros compensatórios pelos danos pessoais e patrimoniais provocados pela
contaminação do meio ambiente. Os postulantes alegaram negligência e ofensa
intencional, por ação ou omissão, que tinham acarretado danos individuais e coletivos,
entre os quais o aumento do risco de câncer e outras enfermidades, bem como
degradação e destruição ambientais.
11
Em agosto de 2002, o caso foi devolvido pela
Corte de Apelação ao Equador, onde ainda está tramitando. (Fontaine, 2003 b).
Existe, entretanto, um grande número de conflitos, divididos por uma
ampla gama de categorias, que compreende a negociação de indenizações e
compensações por contaminação entre as comunidades setentrionais e
Petroecuador, e a oposição radical de grupos e organizações indígenas nas
províncias do centro e sul da região. Este é o caso dos shuar e achuar de
Transcutucú contra a Burlington (no bloco 24) e dos quíchua de Sarayacu
contra a CGC San Jorge (no bloco 23). Estes atores defendem uma moratória
11
No conjunto, a ação incluía sete alegações: negligência, prejuízo público, prejuízo privado, estrita confiabilidade,
acompanhamento médico, falecimento, “conspiração civil” e violação do Ato de Queixa contra Atos Ilícitos
(Alien Tort Claim Act, Atca).
A política petroleira e o futuro da Amazônia Equatoriana
116 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
116
das atividades petroleiras no centro e no sul da região amazônica, reivindicada
há quinze anos pela Opip (Organização dos Povos Indígenas de Pastaza).
Esta, juntamente com a evolução da legislação ambiental na última década, é
uma das questões mais importantes para a política petroleira equatoriana.
As primeiras medidas legais para proteger o meio ambiente no Equador
foram tomadas em 1976, com a promulgação da lei de prevenção e controle da
contaminação ambiental. No entanto, essa lei ficou sem efeito durante quinze
anos, por falta dos regulamentos correspondentes. O tema é tratado de maneira
específica na Lei Florestal e de conservação de áreas naturais e da vida silvestre,
de agosto de 1981, em vários regulamentos referentes à água (1989), ao ar (1991)
e ao solo (1992), assim como em um grande número de normas contidas na
legislação sobre regiões e sobre assuntos específicos (Narváez, 2004:366-374).
De modo geral, não houve, porém, até um período recente, qualquer
preocupação particular com a proteção do meio ambiente contra os impactos
negativos dos hidrocarbonetos. Na realidade, foi somente depois da reforma
da Constituição, em 1998, que o direito ambiental foi estruturado de tal maneira
que pudesse ter efeito nesse terreno. A principal mudança que, a esse respeito,
se introduziu na Constituição foi o artigo 86, que consagra o direito da
população de viver em um ambiente sadio e livre de contaminação. Ele é
complementado sobretudo pelos artigos 87-90, referentes às responsabilidades
ambientais, à participação das comunidades, aos objetivos da política pública
em matéria ambiental e à responsabilidade por danos ao meio ambiente.
Em seguimento à reforma constitucional, foi promulgada, em julho de
1999, a lei de gestão ambiental, que atribui ao ministério competente a
responsabilidade de promover o desenvolvimento sustentável, juntamente com
os organismos encarregados da descentralização da gestão ambiental. Entre
os instrumentos mencionados pela lei, figuram o planejamento, os estudos de
impacto e o monitoramento ou controle ambiental, bem como diversos
mecanismos de participação social.
Por último, o Presidente Gustavo Noboa expediu por decreto dois
regulamentos, cujo alcance ainda deve ser submetido a avaliação, mas que,
indubitavelmente, terão um impacto decisivo sobre as atividades petroleiras nas
próximas décadas. Trata-se, em primeiro lugar, do regulamento substitutivo do
regulamento ambiental para as operações hidrocarboníferas no Equador
(expedido em janeiro de 2001) e do regulamento de consulta e participação para
a realização de atividades hidrocarboníferas (expedido em dezembro de 2000).
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
Guillaume Fontaine
117
Se o primeiro não suscitou muitas discussões públicas, o segundo continua sendo
objeto de fortes resistências, que não são alheias à oposição dos movimentos
ecologistas e indígenas à expansão das atividades petroleiras na Amazônia.
De conformidade com este regulamento, uma primeira consulta prévia foi
levada a efeito no ano 2003, antes da licitação dos blocos 20 e 29. (Izko, 2004).
Embora o resultado das consultas fosse favorável ao início das atividades de
exploração naqueles blocos, esta deu lugar a uma campanha encabeçada por
comunidades quíchua do Napo e do Pastaza e apoiada por várias ONG ecologistas.
(Vários autores, 2004 c). O alvo dessas denúncias são os procedimentos e a
legitimidade do processo, em particular devido à falta de consenso, até hoje, no
tocante ao próprio Regulamento. Esta situação permite pensar que, tanto no
Equador como em outros países amazônicos, as condições para a solução duradoura
e eqüitativa dos conflitos ambientais dificilmente poderão ser encontradas no âmbito
meramente legal, nas técnicas empresariais de relações comunitárias e, menos ainda,
nos mecanismos de solução alternativa de controvérsias, devendo situar-se em
uma discussão mais ampla sobre a governabilidade democrática.
Conclusão
O que está em jogo para o Equador na sua política petroleira vai além do
âmbito econômico e energético. Em primeiro lugar, esta política deve enfrentar
o desafio de uma abertura controlada, isto é, que garanta uma participação do
Estado na renda petroleira ao mesmo tempo que a modernização do setor e a
ampliação das reservas comprovadas. Em segundo lugar, deve ser acompanhada
da correção dos impactos ambientais e da consolidação do quadro jurídico para
a proteção do meio ambiente. Finalmente, é necessário assegurar a participação
da sociedade civil na definição do modelo de desenvolvimento, especialmente
para assegurar a representação dos interesses da população amazônica.
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Tradução: Luiz A. P. Souto Maior.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
David de Caires
119
Uma odisséia
constitucional
David de Caires
*
T
*
Editor-Chefe, Stabroek News
erminada a Segunda Guerra Mundial um grande número de colônias
ganhou sua independência, herdando muitas vezes formas de governo
modeladas na antiga potência imperial. As elites locais incluíam muitas pessoas
que tinham vivido algum tempo na “pátria mãe”, enquanto estudavam direito
ou medicina; assim, estavam familiarizadas com o seu sistema e com freqüência
admiravam muitos dos seus aspectos.
A Guiana, uma antiga colônia britânica, ficou independente em 1966, e
adotou da Inglaterra o sistema de governo parlamentar de Westminster, no
qual o Primeiro Ministro, como Chefe de Governo, e o seu Gabinete participam
do Parlamento e são responsáveis diretamente pelas suas políticas e ações
perante os partidos da Oposição e o povo. O sistema estava incorporado em
uma Constituição escrita, bastante longa, que a Inglaterra em si mesma não
possuía. Essa tradição de Constituição escrita para as ex-colônias começou
em 1948, com a Birmânia, e em 1950 com a Índia, quando esses países se
Uma odisséia constitucional
120 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
120
tornaram independentes, e o modelo tem sido seguido ao longo da dissolução
gradual do Império Britânico.
O “welfare state” liberal democrático em que a Inglaterra se transformara
era, naturalmente, uma forma de governo avançada e progressista desenvolvida
durante várias centenas de anos, período que incluiu uma guerra civil e uma
disputa prolongada entre o Rei e o Parlamento. Um aspecto desse sistema era
a presença de um Chefe de Estado cerimonial ou simbólico – o Rei ou a
Rainha –, com certos poderes residuais.
O sistema de Westminster e a Constituição que o incorpora foram
modificados substancialmente na Guiana, a partir da independência. Pode-se
dizer que em várias outras antigas colônias britânicas, inclusive algumas do
Caribe, o sistema de Westminster parece ter funcionado bem, e não havia
pressão para mudá-lo. O presente artigo examinará brevemente a transição
havida na Guiana, de colônia para Estado independente, e as mudanças
constitucionais desde a independência, para sabermos quais as lições que podem
ser aprendidas com o que aconteceu.
A Independência, em 1966
Em 1966 a Guiana obteve a sua independência do Reino Unido na base
de uma Constituição escrita,
1
em cuja redação os seus líderes políticos tiveram
um certo papel mas que se baseava essencialmente no modelo de Westminster
de governo parlamentar. O Primeiro Ministro, como Chefe de Governo, era
membro da legislatura, e o Chefe de Estado cerimonial continuava a ser a
Rainha da Inglaterra, atuando através de um Governador-Geral, até a Guiana
passar a ser uma república, em 1970, quando para substitui-la foi designado
um Presidente não-executivo.
Pode ser útil examinar brevemente os mecanismos para a transferência
da soberania, assim como a Constituição de 1966. No dia 12 de maio de 1966
o Parlamento Britânico aprovou uma lei para “que a Guiana Britânica obtenha
o status de plena responsabilidade dentro da Comunidade”. O Artigo 1(1)
dessa Lei dispunha que “em 26 de maio de 1966, ou depois dessa data, o
1
The Constitution of Guyana and Related Constitutional Instruments, maio de 1966.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
David de Caires
121
Governo de Sua Majestade no Reino Unido deixará de ser responsável pelo
governo do território que no dia imediato anterior constitui a Colônia da Guiana
Britânica, e que naquele dia, ou depois dele, será chamado de Guiana”. Seguem
disposições relacionadas com a nacionalidade britânica: excetuados alguns casos
especiais os guianenses deixariam de ser cidadãos do Reino Unido e Colônias.
A Rainha foi autorizada a fornecer uma Constituição para a Guiana, mediante
uma Ordem em Conselho.
No dia 16 de maio de 1966, a Rainha emitiu uma Ordem em Conselho
no Palácio de Buckingham – a “Guyana Independence Order 1966” –, a qual
determinou, inter alia, que as leis existentes permaneceriam em vigor depois
da Independência, no dia 26 de maio, e que os ministros, membros da
Assembléia e funcionários públicos permaneceriam nos seus postos.
Anexada à Ordem como “Schedule 2”, a Constituição declarava ser a lei
suprema, e que qualquer lei que fosse inconsistente com ela seria nula, na
medida dessa inconsistência. O Artigo 73 da Constituição estabelecia
determinadas disposições e determinava que elas não poderiam ser modificadas
exceto por uma lei aprovada pela maioria de dois terços de todos os membros
eleitos, e em alguns casos também por um referendum, mediante aprovação
pela maioria dos eleitores. Pode-se observar que no Reino Unido o princípio
da soberania parlamentar, que permite ao Parlamento aprovar ou rejeitar
quaisquer leis, anularia efetivamente essas tentativas de proteger os direitos
estabelecidos limitando o poder do Parlamento.
O Capítulo 11 da Constituição se intitulava “Proteção dos Direitos e
Liberdades Fundamentais do Indivíduo.” Sob essa rubrica, dezoito Artigos
estabeleciam os direitos humanos tradicionais, inclusive o direito à vida e à
liberdade pessoal, a proteção contra o trabalho forçado e o tratamento
desumano, a proteção contra a perda de propriedade, a proteção contra a
busca ou ingresso arbitrários, a liberdade de consciência, liberdade de expressão,
liberdade de reunião e associação, liberdade de movimentos e proteção contra
a discriminação. Na Inglaterra não há um “Bill of Rights” escrito. Os cidadãos
britânicos derivam suas liberdades da common law (as decisões dos tribunais) e
leis ordinárias, embora essa posição tenha mudado um pouco em conseqüência
da Convenção Européia sobre os Direitos Humanos, subscrita pela Inglaterra.
A Guiana e outras ex-colônias devem essas disposições sobre os direitos
humanos constantes das suas Constituições aos líderes políticos da Índia que,
Uma odisséia constitucional
122 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
122
na assembléia constituinte que precedeu a Independência indiana, insistiram,
a despeito de uma certa resistência inicial britânica, em que a Constituição dos
Estados Unidos fosse usada como modelo para os Artigos sobre direitos
fundamentais constantes da sua Constituição. Em 1960, a Nigéria solicitou a inclusão
de dispositivos da Convenção Européia sobre Direitos Humanos e esse precedente
influenciou muitas constituições subseqüentes, inclusive a da Guiana.
A Constituição estabelecia um Gabinete, no estilo britânico, chefiado
pelo Primeiro Ministro. Os Ministros eram todos membros da Assembléia
Nacional, embora houvesse espaço para quatro ministros tecnocráticos que
não eram membros eleitos da assembléia nacional. No entanto, se nomeados
eles não podiam votar. Havia a disposição de que o Líder da Oposição
convencionalmente gozavam de certos privilégios. O Artigo 68 criava uma
Comissão Eleitoral incumbida de supervisionar o registro dos eleitores e a
condução das eleições. O Chanceler do Judiciário e o Presidente do Tribunal
Superior seriam nomeados pelo Governador Geral, com base em
recomendação do Primeiro Ministro, após consulta com o Líder da Oposição.
Outros juízes seriam nomeados por uma Comissão do Serviço Judiciário. Os
juízes não poderiam ser removidos dos seus cargos exceto por um
procedimento especial. Os funcionários públicos seriam nomeados por uma
Comissão do Serviço Público. Havia várias outras disposições que, como a
acima, eram mais ou menos padronizadas em uma democracia parlamentar
moderna, embora com certas variações, relacionadas com a nomeação de certas
autoridades como o Diretor da Promotoria Pública e o Auditor-Geral.
É essencial fazer uma breve digressão para considerar nossa história
política moderna. As eleições de 1957 e 1961 foram vencidas por um governo
de esquerda chefiado por Cheddi Jagan, mas a pedido dos americanos a
Inglaterra atrasou a independência, a despeito do seu compromisso anterior.
Depois do que aconteceu em Cuba em 1959, o Governo do Presidente Kennedy
estava preocupado com outros governos marxistas na região. Conforme
documentos confidenciais mais tarde liberados nos Estados Unidos, houve
uma conspiração contra o governo Jagan. A subversão interna foi apoiada, o
sistema de votação que concedia a vitória ao candidato com maior número de
votos foi modificado, com a introdução da representação proporcional, porque
se pensava que Jagan não conseguiria uma maioria dos votos, e nas eleições de
1964 ele perdeu para um governo de coalizão liderado por L.F.S. Burnham.
Assim, Burnham, que representava a minoria afroguianense, detinha o poder
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
David de Caires
123
no momento da independência. Para manter no poder o seu partido, ele fraudou
as eleições de 1968, dando início a um longo processo de erosão do sistema
democrático formal na Guiana. O processo de votação para o referendum foi
também fraudado, e o resultado líqüido de todas essas manobras foi
comprometer efetivamente a Constituição herdada em 1966. Alguns Artigos
deixaram de requerer um referendum para que fossem modificados, e com a
sua maioria de dois terços, conseguida mediante eleições fraudadas Burnham
tinha o poder de alterar por lei ordinária quase todas as disposições
constitucionais, inclusive os Artigos referentes aos direitos fundamentais.
Esses acontecimentos deixaram claro aos guianenses que nas mãos de
um político implacável a Constituição é apenas um pedaço de papel. O povo
começou a compreender que a democracia é sustentada não apenas por uma
Constituição escrita, mas pelas instituições subjacentes como a imprensa livre,
um poder judiciário independente e corajoso, partidos políticos vibrantes, igrejas
fortes, uma sociedade civil robusta e uma cultura política desenvolvida, baseada
na liberdade, moderação, na negociação e na honestidade.
Usando seus novos poderes, o Sr. Burnham prorrogou a vida do
Parlamento além do período constitucional de cinco anos, e anunciou sua
intenção de introduzir uma nova Constituição que criaria o cargo de Presidente
Executivo, que não fosse membro da Assembléia Nacional. Depois de uma
consulta sem sentido, uma nova Constituição foi aprovada em fevereiro de
1980, baseada quase que palavra por palavra no projeto apresentado à
Assembléia Constituinte pelo Partido do Congresso Nacional do Povo, do Sr.
Burnham. É o que em seguida vamos considerar brevemente.
A Constituição de 1980
2
inspirada – em alguns aspectos literalmente –
em vários Estados socialistas unipartidários, começa afirmando que a Guiana
é um Estado democrático secular, no curso da transição do capitalismo para o
socialismo. O Artigo 13 estabelecia como principal objetivo do sistema político
a ampliação da democracia socialista, com oportunidades crescentes para a
participação dos cidadãos no processo decisório e administrativo do Estado.
O Artigo 15 determinava que, para alcançar a independência econômica o
Estado revolucionaria a economia nacional, baseando-a na propriedade social
2
Constituição da República Cooperativa da Guiana (1980).
Uma odisséia constitucional
124 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
124
dos meios de produção e na abolição eventual dos arranjos e relacionamentos
internos que permitem a exploração do homem pelo homem. O planejamento
econômico nacional seria o princípio básico do desenvolvimento e
gerenciamento da economia. O Artigo 16 estabelecia que a cooperação seria
na prática o princípio dinâmico da transformação socialista, infundindo e
transformando todas as relações na sociedade. Assim, o país passou a ser
chamado de República Cooperativa da Guiana.
O Artigo 17 estabelecia que a existência de empresas econômicas de
propriedade privada seria reconhecida, mas elas precisariam satisfazer as
necessidades sociais e funcionar dentro do contexto de regulamentação da
política nacional. O Artigo 18 afirmava o uso social da terra, que deveria
pertencer ao lavrador. O Artigo 22 fazia referência ao trabalho como um direito
e um dever. Todas essas fórmulas retóricas constavam do Capítulo 11, intitulado
“Princípios e Bases do Sistema Político, Social e Econômico”.
O Parlamento foi mantido, embora o Presidente Executivo, Chefe do
Governo, não participasse dele. Estava prevista a nomeação de Vice-Presidentes
para assistir o Presidente no cumprimento das suas funções, e com efeito
vários Vice-Presidentes foram nomeados. As disposições sobre os direitos
fundamentais foram mantidas, embora tenham sido anuladas na prática pela
maioria de dois terços alcançada nas eleições. Está claro que os formuladores
da Constituição original nunca imaginaram que um partido pudesse conseguir
dois terços dos votos. Se tivessem pensado nisso, teriam protegido melhor os
Artigos referentes a esses direitos.
O Presidente passou a ter ampla imunidade de processos legais, e os
Artigos 179 e 180 tornavam extremamente difícil removê-lo do cargo. Note-
se também que o Artigo 70 dava ao Presidente o poder de dissolver o
Parlamento por simples proclamação.
Na verdade, uma Presidência Executiva foi enxertada ao sistema
parlamentar existente, de certa forma emasculado. Já se fez uma analogia entre
esse governo híbrido e a Constituição francesa. No entanto, para a maioria
dos guianenses essa nova Constituição representou o fim da soberania da lei e
foi um mero disfarce para um regime autocrático. Burnham tinha destruído o
processo eleitoral e criado uma Constituição que lhe dava um poder esmagador.
A situação política resultante lembrava a de certos Estados de partido único,
dos quais se tinha derivado toda a retórica socialista, embora ostensivamente a
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
David de Caires
125
Guiana fosse ainda uma democracia multipartidária. No entanto, dado o nível
elevado de militarização que tinha ocorrido (com o fortalecimento do exército
e a criação de corpos para-militares) e o controle completo do mecanismo
eleitoral, não havia um procedimento legítimo que possibilitasse a mudança
de governo. Podia-se dizer que pagando um tributo formal à idéia do
constitucionalismo, ou da soberania da lei, com suas disposições drásticas na
verdade a Constituição contradizia esse ideal.
Forbes Burnham morreu em 1985. Em eleições fraudadas, realizadas
em dezembro daquele ano, Desmonde Hoyte, seu sucessor, conseguiu uma
porcentagem ainda mais elevada dos votos. No entanto, Hoyte começou a
demonstrar uma tendência liberal. Em 1990, com o fim da Guerra Fria os
americanos deixaram de se interessar pela manutenção de Jagan fora do poder.
Reagindo a pressões, inclusive dos Estados Unidos, Hoyte rejeitou algumas das
leis que tinham sido aprovadas para facilitar a fraude nas eleições, e em 1992, em
eleições imperfeitas, mas justas, saiu vitorioso o Partido Progressista do Povo
(PPP), liderado por Jagan. Assim, Jagan voltou ao poder depois de 28 anos.
No entanto, a situação estava longe de ser estável, e depois das eleições
seguintes, em 1997, vencidas pelo PPP, liderado agora por Janet Jagan, viúva
do Dr. Jagan, houve protestos violentos organizados pelo partido de oposição,
do Sr. Hoyte, que ameaçavam escapar a qualquer controle. A Comunidade
Caribenha (Caricom) enviou à Guiana um grupo incumbido de negociar alguma
forma de acordo, e ajudou a elaborar o documento intitulado “Medidas para
Resolver os Problemas Correntes”, conhecido popularmente como Acordo
Herdmanston. Essas medidas incluem a designação de uma Comissão de
Reforma Constitucional,
3
com amplo mandato e uma composição
representando os partidos políticos, o movimento sindical, organizações
religiosas, o setor privado, a juventude e outros parceiros sociais. Pela primeira
vez, depois de muitas experiências negativas, uma ampla amostragem da
população guianense se empenhava diretamente em um exercício destinado a
examinar a sua Constituição e fazer recomendações pertinentes.
A Comissão recebeu 4.601 propostas, que foram discutidas em amplos
debates no nível de comitê e plenário, tendo recebido também as opiniões de
3
Relatório da Comissão de Reforma Constitucional à Assembléia Nacional da Guiana, em 17 de julho de 1999.
Uma odisséia constitucional
126 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
126
sete expertos estrangeiros e sete guianenses. Foi um exercício valioso e, para
citar o Presidente, Sr. Ralph Ramkarran, “Speaker” da Assembléia, no relatório
feito ao Presidente da Comissão Especial do Parlamento que tratou do assunto.
“Nossos debates foram longos, intensos, francos e estimulantes. Os
membros da Comissão buscaram efetivamente todas as oportunidades para
resolver suas diferenças por meio do debate e da discussão, caracterizados
sempre pelo respeito recíproco e uma atmosfera de cordialidade. A Comissão
identificou um extenso campo comum, sempre que foi possível refletir sobre
assuntos fora das sessões plenárias, e com esse processo os seus membros
criaram laços prendendo-os a um objetivo único, e reuniram um acervo
significativo de compreensão recíproca para constituir o fundamento do ponto
de vista que ainda não acharam possível apoiar.”
Os Termos de Referência dados à Comissão para abordar uma série de
temas incluíam “melhorar as relações entre raças e promover a segurança étnica e
a igualdade de oportunidades”, assim como “medidas para garantir que sejam
levados em consideração os pontos de vista das minorias no processo decisório e
na condução do Governo”. Tendo em vista a significação pelo menos potencial
desse exercício de emenda constitucional, pode ser desejável indicar o que foi feito
fazendo uma longa citação do relatório dessa Comissão, que tocou no tema do
compartilhamento do poder executivo e de uma governança mais inclusiva:
“Muitos queriam ver uma maior participação da Oposição no processo
decisório, de forma que uma parte do povo não se sentisse inteiramente excluída.
Houve sugestões para que se encontrasse um mecanismo destinado a compartilhar
o poder, com a distribuição de pastas ministeriais à Oposição. Deveria haver
dispositivos constitucionais para criar ‘Shadow Ministers’ da Oposição, e os
opositores deveriam receber facilidades adequadas para exercer o seu mandato de
modo efetivo. O Líder da Minoria devia ser qualificado como Líder da Oposição.
Comissões Parlamentares especiais chefiadas por membros da Oposição, mas sem
ter Ministros como membros, deviam ser criadas como órgãos de supervisão dos
vários Ministérios, e para assuntos pertinentes que surgissem. Uma dessas
Comissões deveria ser responsável pelas nomeações para certos cargos vitais, tais
como os de juiz, Diretor da Promotoria Pública e Auditor Geral.
“Por outro lado foram apresentadas propostas favorecendo manter a
forma atual da Assembléia Nacional, mas com a eleição de todos os membros.
Houve também propostas sugerindo uma forma federativa de governo.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
David de Caires
127
“Com respeito à Presidência, alguns sugeriram a manutenção de uma
Presidência Executiva, enquanto outros opinaram que se deveria voltar a ter
um Chefe de Estado cerimonial. Neste último caso, o Chefe de Governo seria
o Primeiro Ministro. Muitas propostas foram feitas sugerindo uma redução
dos poderes e imunidades do Presidente, caso se mantivesse o cargo de
Presidente Executivo.
Dimensões consideradas pela comissão
A Comissão expressou seu ponto de vista de que, considerando o seu
mandato e as circunstâncias que provocaram a sua criação, havia a necessidade
de uma mudança na cultura política do país, mudança que precisava ser facilitada
por instituições que impusessem certos padrões de conduta, afim de formar
uma nação coesa. A este propósito, foi sugerido que a Comissão tentasse
encontrar um sistema de governo no qual o poder fosse usado de tal forma
que todo o povo se sentisse satisfeito, e não houvesse pessoas excluídas
enquanto outras tivessem todo o poder, e pudessem fazer tudo o que quisessem.
Esse fator precisava ser levado em consideração contra o pano de fundo das
tensões e inseguranças raciais existentes, as quais a Comissão recebeu a
incumbência de abordar. Ao que parece neste momento o puro estilo de
governo de Westminster não seria apropriado para a Guiana. A decisão sobre
se se deveria adotar um novo sistema exige a identificação das principais
características do sistema considerado. Por exemplo: deveria uma dessas
características ser a possibilidade de que o cidadão comum pudesse iniciar o
processo legislativo? Deveria o setor privado, na condição de motor do
crescimento, ser levado mais a sério nos insumos orçamentários? Na verdade,
deveria o sistema de governo procurar delegar mais aos cidadãos? Seria preciso
também considerar os aspectos funcionais do sistema de govenro, ou seja,
decidir se deveria ser mantido o sistema de separação dos poderes? Em caso
afirmativo, a questão passaria a ser como detalhar as disposições relativas às
funções específicas desses três ramos do governo.
“Com relação ao Presidente, as questões têm a ver principalmente com
a relação entre ele, o Executivo e a Assembléia Nacional. Deveria haver uma
eleição separada para o Presidente, que passaria assim a ter poderes para criar
o Executivo? Caso esta hipótese fosse aceita, deveria haver uma definição
clara dos poderes do Presidente com relação à Assembléia Nacional? O papel
Uma odisséia constitucional
128 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
128
do Primeiro Ministro, no contexto de um sistema presidencialista, devia merecer
uma análise mais ampla. Por outro lado, seria necessário examinar os poderes
presidenciais conforme existem atualmente. Outra questão é se devemos ter
um Presidente que, sob certo ponto de vista, simbolize o espírito e as relações
que deveriam ser desenvolvidas pelo povo da Guiana. No contexto nacional, é
preciso considerar se devemos empregar uma combinação das características de
uma Presidência que não seja nem tipicamente executiva nem titular. Essa
proposta deveria ser comparada com outra, a saber, se o Presidente não deveria
ser o Chefe de Governo, e que houvesse um Chefe de Governo membro do
Parlamento e portanto responsável, enquanto o Presidente seria meramente titular.
A legislatura bicameral
“Foi proposta a criação de um sistema legislativo bi-cameral, com a
Câmera Alta incluindo a sociedade civil entre os seus membros. Conforme se
argumentou, isso ajudaria a promover a participação nacional no processo
parlamentar, pela inclusão de vários grupos de eleitores fora da estrutura dos
partidos políticos. Aumentaria também a participação no processo decisório e
proporia um mecanismo para lidar com a política étnica. Haveria a presença
de dez representantes regionais. Esse sistema de governo teria função
supervisora sobre a Câmera Baixa. No entanto, considerando a reintrodução
desse sistema de governo, seria preciso examinar a questão da sua relevância
para a Guiana nesta fase histórica.
“Tornar o Parlamento mais efetivo: a Comissão discutiu também os
poderes do Parlamento com respeito ao Gabinete e ao Executivo, assim como
mecanismos que permitissem ao Parlamento fazer mais do que pode fazer
hoje com relação às decisões do Executivo e do Gabinete. Sugeriu-se que o
conceito de um Executivo que compartilhasse os seus poderes devia ser
examinado, assim como o sistema de governo pelo qual todos os partidos
fossem representados nos Ministérios. No entanto, observou-se que isso
significaria na verdade a inexistência de uma Oposição; e que, embora não
fosse o melhor modelo possível, poderia ser usado em uma situação de sério
conflito. A questão é saber se na Guiana há essa percepção de um conflito
sério. A atenção da Comissão focalizou o modelo da Suíça, e também o de
Fiji, que tem problemas étnicos semelhantes aos da Guiana. Com respeito à
definição do trabalho parlamentar, deveria ser examinada a possibilidade de
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
David de Caires
129
que os tratados, os acordos e a regulamentação legal com respeito às instituições
financeiras internacionais entrassem na sua agenda. Por outro lado, duas
questões relevantes para essas deliberações são: em primeiro lugar, em que
medida o Parlamento, conforme hoje composto, é inefetivo? Em segundo
lugar, como esse problema pode ser abordado adequadamente em termos
constitucionais, e não administrativos? Como corolário, pode-se perguntar que
dimensões devem ser focalizadas e, em particular, que aspectos fundamentais
deveriam ser mudados para que determinações constitucionais aumentassem a
efetividade do Parlamento. O problema citado, quando se trata dessas questões,
é encontrar um meio de forçar a assunção de responsabilidade pelo sistema
parlamentar. Foi sugerido o retorno ao sistema anterior, com certas modificações,
como um meio de tornar os parlamentares mais responsáveis, especialmente
junto a um eleitorado que quer ter representantes que ele possa identificar. Um
sistema legislativo bi-cameral poderia também tratar desta questão.
“Comissões: foi observado que o Parlamento poderia ser reformado sem
uma mudança na Constituição, pois a reforma podia ser feita através de ‘Standing
Orders’. No entanto, o principal partido de Oposição no Parlamento tinha
declarado preferir que um procedimento para isso fosse incluído na Constituição,
pois de outra forma seria deixar o assunto para ser decidido pelo governo ou o
partido governista. O desafio, portanto, consiste em tornar possível uma tal
reforma de modo holístico. A responsabilidade da Comissão era abordar temas
tais como a instituição e o funcionamento de um sistema de Comissões. As
Comissões de Legislação e de Orçamento são consideradas duas das mais
importantes. Sugeriu-se que todas as Comissões fossem presididas por um
parlamentar da Oposição e que os Ministros não pudessem participar. Finalmente,
um número substancial de reformas constitucionais foram recomendadas, lidando
com a restrição dos poderes presidenciais e impondo ao Presidente o limite de
dois mandatos; a nomeação de Comissões parlamentares que tivessem o poder
de supervisionar o funcionamento do Poder Executivo, como acontece na
Inglaterra e nos Estados Unidos; a nomeação de magistrados; a designação de
uma Comissão de Relações Étnicas, que pudesse investigar a alegada
discriminação étnica nas áreas do emprego, da moradia, etc., e outras Comissões
incluindo as relativas aos povos indígenas e aos direitos das crianças. No entanto,
não houve uma recomendação para compartilhar o poder, já que nenhum dos
dois principais partidos apoiavam a idéia. Subseqüentemente o Congresso
Nacional do Povo, partido oposicionista, mudou sua posição e apresentou uma
Uma odisséia constitucional
130 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
130
proposta detalhada para compartilhar o poder com o partido governista. Este
respondeu que as mudanças constitucionais objeto de concordância, incluindo
as novas Comissões parlamentares, já representavam um passo importante para
uma governança mais inclusiva. E argumentaram também que para compartilhar
o poder era necessário um nível elevado de confiança entre os partidos, o que
atualmente não existia, e a questão permaneceu neste ponto.”
De modo geral, esse exercício em revisão e emenda constitucional foi
útil, e familiarizou mais os guianenses com a sua Constituição, tendo feito
várias mudanças úteis. No entanto, algumas pessoas expressaram desagrado
com a manutenção do sistema presidencialista, expressando preferência pelo
sistema parlamentarista pleno, no qual o Chefe de Governo participa do
Parlamento, perante o qual é responsável. Uma opinião nesse sentido foi
formulada em editorial de um jornal diário, o “Stabroek News”:
4
“Por que
uma presidência executiva? Os cientistas políticos têm observado que o sistema
parlamentarista é mais flexível do que o presidencialista. Além disso, o
Presidente combina duas funções: como Chefe de Estado ele representa toda
a nação; na sua outra capacidade ele é chefe de um partido político. Em artigo
intitulado ‘Os Perigos do Presidencialismo’, publicado no ‘Journal of
Democracy’, edição de Inverno de 1990, Juan Linz argumenta que ‘O
presidencialismo é inelutavelmente problemático porque funciona com base
na regra de que ‘o vencedor-ganha-tudo’, arranjo que tende a tornar a política
democrática um jogo de soma zero, com todo o potencial para o conflito que
têm esses jogos ... O perigo das eleições presidenciais de soma zero é a rigidez
do mandato presidencial de prazo fixo. Os vencedores e perdedores são
definidos claramente por todo o período do mandato presidencial. Não há
esperança de mudança nas alianças, de expandir a base de apoio governista
mediante um esforço de união nacional ou uma coalizão ampla que permita
responder a emergências, novas eleições em reação a eventos importantes, etc.
Em vez disso, os perdedores precisam esperar pelo menos quatro ou cinco
anos sem qualquer acesso ao poder executivo. Nos regimes presidencialistas o
jogo de soma zero aumenta a importância do risco incorrido na eleição do
Presidente, e inevitavelmente exacerba a sua tensão e polarização.”
4
Editorial datado de 27 de julho de 1999. O “Stabroek News“ é um diário guianense.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
David de Caires
131
Três anos depois, no mesmo jornal, em artigo intitulado “América Latina:
Presidencialismo em Crise”, um seu colega observou que embora a América
Latina emulasse a Europa, inventando seus próprios sistemas eleitoral e
judiciário, modelava sua forma de governo conforme o padrão norte-americano,
“fazendo das Américas o centro por excelência do presidencialismo”. E
continuava dizendo que “o presidencialismo só teve êxito nos Estados Unidos.
Muitos fatores contribuíram para consolidar ali um regime baseado na separação
dos poderes, inclusive o desenvolvimento da Corte Suprema como um árbitro
entre os dois outros poderes, a firme tradição do controle dos militares pelos
civis e a prática do federalismo (que por gerações centralizou o poder nos
estados, e não no nível da nação). A despeito desses fatores, é duvidoso que o
presidencialismo teria tido êxito nos Estados Unidos não fosse por algo que
os fundadores do país não previram, a saber, o desenvolvimento de distintas
agremiações políticas organizadas sob a forma bipartidária.” Ele poderia ter
comentado também que a América Latina representa uma tradição européia
específica, a da Espanha e Portugal, e reflete mais a cultura política desses
países na época da conquista e mais tarde – católica romana, corporativa e
semifeudal – e não as instituições inglesas ou francesas.
Em outros territórios na comunidade do Caribe o sistema de Westminster
continua virtualmente intacto, e tem funcionado bastante bem. Tem havido aí
mudanças de governo pacíficas, e uma considerável estabilidade política. Na
Guiana, em parte devido à sua mistura étnica, mas também devido à política
radical que fez com que o país se deixasse envolver pela Guerra Fria, tem
havido conflitos, que começaram nos anos 1950 e persistem até hoje.
O preparo de Constituições tem estado na moda nos tempos recentes.
Em um estudo apresentado no Centro Nacional da Europa,
5
J. Ford comentou
que quase 60 por cento dos países membros das Nações Unidas promoveram
emendas importantes na sua Constituição na década 1989-1999, e 70 por cento
deles adotaram uma Constituição inteiramente nova. Conforme explica Ford,
em parte isto se deve à conexão entre reforma política e os temas de governança
e desenvolvimento econômico, especialmente a atração de investimentos
internacionais.
5
J. Ford, The Age of Constitutions? National Europe Centre Paper 132.
Uma odisséia constitucional
132 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
132
Ressurgiu a fé na Constituição como elemento essencial para o
desenvolvimento político e econômico, pacífico e estável. Da mesma forma,
embora menos evidente, há também uma crença renovada no processo político
e legal de criar uma Constituição (ou seja, não a Constituição vista como um
documento ou instituição), como forma de reconciliação nacional, propiciando
uma arena focalizada e estruturada para a negociação e o acordo político nas
sociedades em transição e pós-conflito.
Idealmente as Constituições deveriam fluir das circunstâncias do país e
gozar uma ampla medida de apoio popular. “The Federalist”, que consiste em
cerca de 85 artigos ou ensaios publicados em vários jornais de Nova York,
entre o outono de 1787 e a primavera de 1788, fundamentalmente obra de
Alexander Hamilton e James Madison, teve o objetivo de persuadir o Estado
de Nova York a ratificar a Constituição elaborada pela Convenção. É um
exemplo clássico da tentativa de obter aprovação popular e aceitação de uma
Constituição – que precisa atender às necessidades do povo. E este precisa ter
conhecimento político e a capacidade de fazê-la funcionar.
No seu livro “On Revolution” Hannah Arendt atribui o sucesso da
Revolução Americana e a Constituição federal redigida subseqüentemente ao
fato de que o povo que a adotou tinha considerável experiência em assumir a
sua própria administração por meio de acordos de autogoverno, situação que
não tinha contrapartida na Europa. Ela encontra as raízes dessa situação nos
“Pilgrim Fathers”, e observa que essa tradição de governo em muitos níveis
persistiu durante o domínio inglês e estava viva quando os americanos venceram
a Guerra da Independência contra a Inglaterra. Assim, ao reconhecer que o
poder se originava no povo, eles aceitavam que a autoridade precisava ser
instituída em órgãos estáveis de governo. Em contraste, as Revoluções Francesa
e Russa não geraram nem estabilidade nem Constituições confiáveis.
A Constituição fornece um contexto geral. Nas condições de
subdesenvolvimento e de baixo nível educacional é preciso questionar, porém,
em que medida ela é importante por si mesma. As palavras incorporam idéias
que exigem instituições para dar-lhes forma e sentido. Os hábitos de apoio, as
convenções, um espírito de tolerância e negociação – nada disso pode ser
incluído nas Constituições: são costumes que se desenvolvem a longo do tempo
e às vezes depois de experiências infelizes. A forma da Constituição dos Estados
Unidos lhe foi dada por pessoas que queriam um governo forte, mas contido
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
David de Caires
133
pelas leis, e aceitavam o conceito da divisão de poderes. Sem uma experiência
formadora e sem cultura política as Constituições são sempre frágeis.
Novas Constituições foram adotadas no Afeganistão e no Iraque,
redigidas com uma certa pressa, e nenhum desses países tem uma história de
forte constitucionalismo. A África do Sul exemplificou o valor de um processo
constitucional compreensivo. Nas palavras de Ford, “Em primeiro lugar o
processo de criação de uma Constituição é tão importante quanto o documento
legal dele resultante: não importa quão democráticos sejam o seu conteúdo ou
as instituições criadas, pois uma Constituição não vai adquirir a legitimidade
crucial para o seu funcionamento corrente e a sua sobrevivência sem um
processo cuidadoso de redação e adoção, e sem levar em conta adequadamente
as tradições, a cultura e a história locais. O processo de elaborar uma
Constituição pode por si mesmo ser transformativo, proporcionar um espaço
aberto político e servir para criar uma nação. Medidas interinas de transição
funcionam bem e permitem uma mudança suficientemente visível de uma
ordenação anterior. O processo de redatar uma Constituição pode atuar como
veículo para o diálogo e a reconciliação nacional, fazendo com que perspectivas
e pretensões distintas dentro da sociedade pós-guerra sejam ventiladas e
incorporadas. O exemplo da África do Sul mostra que o debate constitucional
manteve a abertura do espaço político, estruturando os parâmetros da ação
política possível durante o período de transformação.”
Problemas de democracia de múltiplos partidos existem na África, na
Ásia e na América Latina. Em Fiji fez-se uma experiência com “governo
consocional”, que foi incluído na Constituição: a experiência não deu resultado.
À medida que os países se desenvolvem e surgem pressões para a mudança,
para a democracia, para mais liberdade, haverá também pressões para mudar a
Constituição, de forma a refletir esses desenvolvimentos.
Inevitavelmente as Constituições se inspiram nos modelos existentes, e
na verdade já se sugeriu que é possível perceber no campo internacional a
emergência gradual de uma série de formas de governo com ampla aceitação.
No entanto, para que sejam duradouras elas precisam surgir de
desenvolvimentos políticos e sociais internos. Alguns questionam se certos
tipos de problemas políticos, como as divisões étnicas ou geográficas, podem
ser resolvidos por meio de uma “solução” essencialmente legalística – uma
alteração constitucional. Essas pessoas argumentam que uma cultura política
Uma odisséia constitucional
134 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
134
válida precisa evoluir gradualmente a partir da experiência. Por outro lado, por
si mesmas as “boas” Constituições não garantem a promoção do
desenvolvimento econômico ou da democracia. No entanto, embora isso seja
em parte verdade, um processo estruturado de mudança constitucional pode
ajudar a ventilar temas e, o que é mais importante, pode ajudar a desenvolver
o respeito pela regra da lei incorporada nas Constituições, o que contribui
eventualmente para a estabilidade política.
As Constituições devem ser vistas como “obra em progresso”, suscetíveis
de mudanças conforme as circunstâncias. Por outro lado, como lei fundamental
da terra, elas não devem ser submetidas a mudanças frívolas, ou muito
freqüentes, que tendem a diminuir o seu status e o seu valor.
Devemos ensinar nas escolas a importância das Constituições, seu sentido e
suas implicações. É importante que o cidadão comum tenha alguma familiaridade
com elas, para que melhore o nível de consciência do público a este respeito.
Na Guiana, na época da independência houve o que poderíamos descrever
retrospectivamente como uma certa “inocência constitucional”. Sem experiência
real em autogovernar-se, os problemas políticos da governança simplesmente não
eram compreendidos. Os acontecimentos a partir de 1966 podem ser considerados
como parte de uma curva de aprendizado. Seria apropriado dizer, por exemplo,
que a nossa odisséia constitucional ainda não chegou a um porto seguro, onde
houvesse ampla confiança em que a Constituição que alcançamos, em grande
parte graças aos nossos próprios esforços, representa uma solução satisfatória
para os muitos problemas enfrentados por este jovem Estado nacional multi-
étnico. Embora o principal partido de Oposição tenha participado plenamente
do recente processo de reforma constitucional, ele continua a expressar seu
desacordo com o resultado desse processo, em parte sem dúvida devido à sua
percepção de que, dados os padrões étnicos da votação, existe o perigo de que,
representando um grupo étnico minoritário, poderá ter dificuldade em vencer
uma eleição. Haverá uma solução constitucional para esse problema? A resposta
estará em uma forma de poder compartilhado? São questões ainda não resolvidas,
enquanto a Guiana procura atingir os objetivos até aqui fugidios da estabilidade e do
desenvolvimento.
Tradução: Sérgio Bath.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
Carlos Mateo Balmelli
135
A bidimensionalidade da análise política:
A norma contra a normalidade?”
Herman Heller
epois de quase trinta anos do restabelecimento da democracia na região,
surge a necessidade analítica de refletir criticamente sobre o Estado da
democracia e as possibilidades que a política oferece no cenário da democracia
pós-transição.
A inquietude conceitual que será apresentada neste ensaio é a de indagar
analiticamente se o que ocorre na região é uma “crise da democracia” ou se,
ao contrário, se trata “do fracasso da política” no quadro da democracia.
Essa diferença nos permitirá delimitar o objeto de nosso estudo. Depois
de havê-lo definido, nossa análise tratará de buscar as causas das dificuldades
da democracia em duas hipóteses: no primeiro momento, indagar se as razões
da crise se encontram no quadro institucional que formaliza a dominação
política, ou ao contrário, se elas encontram explicação no estilo de gestão
política que favorece um processo político que, de forma recorrente, transcende
e inibe a institucionalidade democrática.
*
Senador da República do Paraguai
O fracasso da política
na democracia e a
marca da realidade
Carlos Mateo Balmelli
*
D
O fracasso da política na democracia e a marca da realidade
136 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
136
Trazer a consideração a variável institucional nos afastará da tentação de
interpretar a realidade sociopolítica a partir e por meio da visão estreita segundo
a qual o factual reduz a sua expressão mínima a incidência das instituições em
sua dimensão formal.
O enfoque que dimensiona as instituições em termos formais nos
facilitará a elaboração de um esquema analítico no qual se estabelece uma
relação de interdependência entre o fator institucional e o comportamento
dos atores.
A importância de separar analiticamente a variável institucional da
realidade social nos proporciona uma visão dinâmica da sociedade política e
nos permite compreender a atividade política como a ação social central, que
expressa e cria as instituições.
As noções preliminares que tão sumariamente foram aqui abordadas
permitem propor o debate do estudo da democracia a partir de um paradigma
que reconheça a dimensão normativa e a factual como dois caminhos que se
bifurcam, mas que não seguem por trilhas paralelas, antes se cruzam e se
intersectam. Este enfoque permite que se indague e se busque as causas da
decadência política na análise intrínseca dos arranjos institucionais, na
racionalidade que motiva e dá sentido à atuação dos atores ou à utilização
combinada de ambas as variáveis; em outras palavras, uma visão integral que
considere a vontade dos atores e o quadro institucional numa relação dinâmica
e interdependente.
Redescobrindo o institucional
A tradição analítica que predominou na região ignorou a incidência do
fator institucional como variável que per se influi nas expectativas dos atores
sociopolíticos. A subestimação do elemento institucional supôs por muito
tempo a valorização da democracia como instrumento das políticas de
transformação social e não como fim em si mesmo. A democracia como meio
e não como fim significou em décadas passadas uma prática política que se
inspirava em uma racionalidade que contradizia e restringia a vocação
democrática dos processos políticos. Por isso se compreende que a decisão
dos atores fizesse que o processo político esgotasse os recursos institucionais,
provocando crises terminais recorrentes nas quais a realidade política se
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
Carlos Mateo Balmelli
137
impunha ao quadro institucional. A modalidade de gestão e a dinâmica dos
processos políticos mitigavam a legitimidade das instituições, o que supunha
o exercício de uma prática política que confrontava e superava legalidade
existente. O aspecto confrontacional da política debilitava a capacidade
ordenadora das instituições.
Em tais circunstâncias, a “crise da democracia” expressava e representava um
comportamento dos atores que não se coadunava com a dominação democrática.
Se a democracia representa a forma superlativa de organizar e exercer o
poder político, é então que o seu funcionamento requer que se estabeleça um
sistema de comportamento social e político compatível com aquele de que se
dispõe institucionalmente e que o complemente.
No passado, a democracia na região dispunha dos recursos institucionais
necessários, mas, apesar disso, não dispunha de um sistema de atores políticos
e sociais comprometidos com a viabilidade e com a possibilidade de
aprofundamento da democracia. Acontecia na região aquilo que alguns
denunciaram na República de Weimar, “a democracia sem democratas”.
Chile: Quando a tensão existente entre a normatividade
e o factual se resolve a favor deste último
Um caso regional assemelhável a outros, que exemplifica uma situação
em que a estabilidade da democracia se tornou insustentável porque os atores
não atuaram de acordo com os recursos institucionais previstos, é representado
pela história política chilena anterior a setembro de 1973. Um número
considerável de autores coincide em que a política pré-autoritária no Chile
caracterizava-se por ser antagônica, confrontativa e excludente. A
intencionalidade política dos atores tomava a forma de uma prática que entendia
a política como uma relação amigo-inimigo.
A pretensão de querer realizar projetos radicais de transformação social
que não consideravam nem reuniam a aprovação dos outros atores sociais
transformou o sistema político no local onde todo tipo de conflito encontrava
sua expressão e seu lugar.
Rompeu-se a estabilidade democrática porque o comportamento dos
atores desconheceu os interesses dos demais e se criaram maiorias que exerciam
O fracasso da política na democracia e a marca da realidade
138 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
138
o poder negando ao resto do sistema de atores o direito de reivindicar e de
realizar suas pretensões e expectativas.
A força normativa da Constituição chilena de 1925 encontrava suas
limitações no propósito e na conduta dos atores políticos. As restrições impostas
pela realidade encontravam-se definidas na finalidade perseguida pelos
protagonistas dos processos políticos. Para que a democracia possa manter-se
estável, a racionalidade dos atores deve estar orientada para objetivos que
possam ser alcançados com os recursos institucionais previstos. Esta é a pré-
condição que devem satisfazer nos processos em que a mudança social seja
predizível e demarcada pela legalidade vigente.
Para evitar que a transformação social seja violenta e transcenda o quadro
institucional existente, os atores devem tentar realizar projetos de mudanças
sociais dentro dos arranjos institucionais previstos. Se as reivindicações dos
atores se elevarem acima do horizonte institucional estabelecido, provocar-se-
á uma crise de legitimidade, já que as instituições existentes não poderão elaborar
todas as demandas do processo social e político. Se a acumulação de exigências
supera a capacidade instalada da sociedade política, corre-se o risco de que,
nesse contexto, qualquer demanda social possa converter-se numa ameaça
que solape a estabilidade política.
O sistema pré-autoritário de 1973, configurava um regime presidencialista
com um sistema multipartidário integrado por partidos políticos que advogavam
valores divisionistas num ambiente de polarização social.
A vontade dos atores políticos e sociais orientava-se para a realização de
projetos de sociedade que, se realizados, suporiam uma profunda transformação
das estruturas sociais. Devido ao alto grau de ideologização, os atores não
levaram em conta que mudanças tão profundas só poderiam ser processadas
no contexto institucional existente se contassem com um alto grau de aceitação.
O projeto que quis levar adiante a unidade popular antes da ruptura não contava
com o necessário consenso. Cabe recordar que o Presidente Salvador Allende
era triplicemente minoritário: no seu partido, na cidadania e no Congresso. A
exacerbação política trouxe como conseqüência o abandono das posições
favoráveis à conciliação, abandonando-se o diálogo como instrumento político
válido na democracia. A fragmentação política tornou evidente a incapacidade
de buscar soluções ou compromissos dentro do contexto constitucional, o
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
Carlos Mateo Balmelli
139
que encorajou as condutas extralegais que pretendiam encontrar solução para
o confronto na abolição do regime democrático.
O poder como comunicação e fenômeno de relação, em
contraste com a noção weberiana de opor uma vontade a outra.
O quadro institucional do controle democrático, se não encontrar apoio
na vontade dos detentores e destinatários das relações de poder, tenderá a
perecer.
Observar o poder como fenômeno de relação e comunicação permite
compreender as mutações a que estão sujeitas as instituições. Com esta visão,
consolida-se o paradigma que considera as instituições como derivação das
relações de poder e das pautas de comportamento histórico da sociedade. Por
isso, o mais apropriado para os fins deste ensaio é referir “o fracasso da política”
na democracia e não falar de “crise da democracia”. Essas afirmações
fundamentam-se na comprovação de que, quando os atores não ajustam sua
conduta e racionalidade a padrões políticos funcionais e complementares às
instituições existentes, não se dispõe dos pré-requisitos para potencializar as
capacidades oferecidas por um modelo institucional aberto, igualitário e
competitivo.
“Ninguém quer aceitar que a história simplesmente se desenvolve,
independente de uma direção determinada, de um objetivo”.
E. M. Ciorán
Na democracia, o processo histórico pode ser linear ou evolutivo, circular
ou de represamento e regressivo ou decadente. Entende-se pelo primeiro a
situação em que se identificam razão e evolução, história e desenvolvimento,
decisão e esforço coletivo que dirigem o progresso para níveis mais elevados
de convivência social; o segundo ocorre quando o progresso histórico reproduz
situações de represamento provenientes das mesmas causas, isto é, quando a
concomitância dos mesmos fatos reproduz circunstâncias similares. Pode-se
denominar tal situação como sendo prisioneiros do mesmo tempo. Por último,
a terceira opção explica o acerto de prever a decadência política se a decisão
O fracasso da política na democracia e a marca da realidade
140 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
140
política dos líderes não se coaduna com a racionalidade e a ética. Sustenta-se
que, se o processo político é conduzido pela irracionalidade ou pela cegueira
de envolver-se na realização de sonhos impossíveis, o resultado que se pode
esperar é despertar na sociedade as forças atávicas que levam ao predomínio
do passado sobre o futuro.
A regressão ou o represamento não devem ser excluídos como
possibilidades do processo histórico. A história abre as portas para que todas
as possibilidades se convertam em realidade. Por isso, a reflexão política e a
teoria social da mudança devem afastar-se do otimismo que supõe o simplismo
de unir o destino dos povos ao desenvolvimento. Da mesma forma, é mister
afastar-se daqueles pessimistas que identificam o destino histórico de uma
nação como uma fatalidade. Neste ensaio, enfatiza-se que, para esboçar uma
estratégia de desenvolvimento político, deve-se colocar como resultados
prováveis do processo político as perspectivas lineares e evolutivas do progresso
com a hipótese da decadência e do represamento.
A utopia tende a garantir o homogêneo, o típico, a repetição e a
ortodoxia”.
E. M. Ciorán
O discurso que reivindica a utopia como objetivo imediato da atividade
política transforma a conduta que tende ao consenso em uma atitude que
predispõe ao conflito, tomando-o como único motor do processo histórico.
Quando o processo político é conduzido de tal maneira que acabe ou diminua
as possibilidades de conciliação, cria-se uma situação na qual os atores
pretendem maximizar seus benefícios, superestimulando assim o aspecto
competitivo da política.
O componente utópico deve ser deixado de lado no processo de
construção institucional. É legítimo e coerente suspeitar da fecundidade da
utopia na história. O utópico desperta a ilusão de favorecer projetos de
sociedade que contradizem a natureza humana e leva a esquecer a realidade. A
liderança política comprometida com a ordem democrática não pode divagar
na busca da Idade de Ouro. A melhora da democracia requer uma atuação
política que reconheça o caráter inesgotável da realidade.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
Carlos Mateo Balmelli
141
A democracia significa a identificação entre governantes e
governados”.
Carl Schmitt
Cabe assinalar que alcançar o consenso não pressupõe a unanimidade
entre todos aqueles que integram a vontade política. Os consensos são o
resultado do acordo alcançado dentro do sistema de atores e no qual se
satisfazem parcialmente os interesses e expectativas desses atores. Para serem
estáveis, os consensos devem responder a uma coalizão de atores capazes de
impor as conseqüências do acordado. Os consensos se impõem como qualquer
outra conseqüência da dominação política. Falando sem eufemismos, toda
dominação política se impõe e é necessária. Primeiro, porque não há dominação
sem coação e, segundo, porque a dominação é a resposta à ausência de harmonia
social. A dominação resulta da necessidade de dar solução aos conflitos sociais.
Os consensos são viáveis a partir do momento em que a hegemonia se constrói
sobre a base da maioria. A vocação democrática da coalizão hegemônica se
garante com a integração plural do sistema de atores. Não havendo pluralidade
no sistema de atores que integra a coalizão hegemônica, dar-se-á a perda da
qualidade democrática desta última, já que se assimilará o princípio da
hegemonia ao da maioria que exclui as minorias. Da mesma forma, se
pretenderá identificar os governantes com os governados, o que terá como
conseqüência pôr fim à dicotomia oposição-governo.
O sistema democrático oferece mais oportunidades num ambiente em
que a relação governo-oposição se mantém contraditória. O sistema
democrático se mantém virtuoso na medida em que a relação do governo
com a oposição transcorre nos termos e dentro da lógica que reconhece os
benefícios de contar com um sistema de atores plural e diferenciado.
Democracia autoritária versus democracia liberal
O modus vivendi dentro do sistema democrático pode transformar-se de
acordo com os critérios que se tenha para delimitar, em cada momento político,
o estilo e o conteúdo da gestão pública, segundo os quais se exercerão as
funções governativas e de oposição. Nesse sentido, o modus operandi dos atores
não deve desconhecer que a controvérsia é inerente à democracia, tanto na
O fracasso da política na democracia e a marca da realidade
142 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
142
sua fase eleitoral como no período de governo. A democracia é contraditória,
já que trata de estabelecer uma relação tensa e dicotômica entre opostos que
tratam de superar-se ou negar-se através da afirmação de cada um deles. A
organização democrática do poder e a sociedade devem basear-se e constituir-
se a partir do conhecimento da heterogeneidade da vontade política. A negação
da pluralidade da vontade política leva a construir um modelo democrático
que se funda no paradigma que opõe o conceito de democracia ao de
liberalismo. Segundo esse raciocínio, a segurança da democracia exige
inexoravelmente a negação do liberalismo.
Dentro deste enfoque, a democracia é ameaçada e vulnerada pela
diversidade e pelo elemento competitivo que o liberalismo incorpora na
sociedade política. Por isso, e contrariando a lógica liberal que tende a garantir
a identidade e a capacidade de expressão de um sistema heterogêneo de atores,
levanta-se esta visão que pretende abolir a diversidade para impor a
homogeneidade.
Esta teoria da política propõe a funcionalidade e a vigência da democracia
na medida em que desapareça o componente individual da vontade política e
esta tenda a homogeneizar-se, isto é, destruir a heterogeneidade.
A partir dessa visão dogmática da democracia, anula-se o componente
liberal, tornando-se supérfluas as instituições que dele se originem. O dogma
da soberania popular homogênea converte-se em “verdade indiscutível”, que
deslegitima a construção institucional que se inspira na filosofia do contrato.
Esta última se baseia no princípio da reciprocidade, da igualdade e da liberdade
dos atores. O contratualismo, como filosofia justificativa do poder político e
da sua institucionalização, requer para sua vigência um sistema de atores diversos
no axiológico e em suas expectativas materiais.
Mas o questionamento que mais desqualifica essa perspectiva antiliberal
e autoritária da democracia é o de supervalorizar a unanimidade da soberania
popular como verdade política inquestionável. Neste paradigma, ignora-se que
a luta pela liberdade consistiu e consiste em conciliar o valor da soberania
popular com o constitucionalismo clássico. O perigo que se corre quando se
reivindica a soberania em detrimento das instituições é que a constituição e
tudo que ela abrange em limitação, garantias e direitos ficam absorvidos pela
soberania. Que vazio institucional, que ausência de proteção jurídica, quando
a constituição é abolida para ampliar os efeitos da soberania popular!
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
Carlos Mateo Balmelli
143
“Non Veritas Sed Voluntas Facit Legem”
“Não é a verdade, mas a vontade, que faz a lei”
T. Hobbes
A referência à conduta dos atores permite-nos entender a gravitação
que, para a estabilidade democrática, pressupõe o compromisso e a lealdade
dos protagonistas do processo político para com as instituições destinadas a
ordenar a convivência social.
A proposta consiste em aprofundar ao máximo a análise, até chegar a
constatar o fato de que a vigência das instituições depende de que os atores as
considerem desejáveis e da modalidade de solução das controvérsias originadas
das disputas pelo poder. Este último aspecto faz recordar que, em certo sentido,
as instituições resultam das relações de poder e que a distribuição deste último
nas sociedades é assimétrica.
O que queremos assinalar é que a democracia – não como forma de
convivência social, mas como organização e exercício do poder político –
depende mais do caráter da política do que das variáveis econômicas e sociais.
Pode-se inferir dessa última afirmação que o conflito social de caráter
distributivo que, qualquer que seja sua intensidade, não expressa luta pelo
poder, condiciona mas não determina a viabilidade da democracia.
Por muito tempo a argumentação política dependia do econômico ou
do sociológico. Considerava-se o fato político como um dado posterior a
processos externos a ele. O dado da política era um subproduto da penetração
capitalista ou da luta de classes. Tais enfoques desconheciam a autonomia da
política e a submetiam ao mandato do econômico e do social. Nós não
queremos ignorar a incidência desses fatores sobre a política, o que queremos
é situar a política como a atividade social que responde às constantes da busca
do poder e da necessidade de ordenar a sociedade.
As fases de transição estão sujeitas a regras diferentes daquelas
que governam o princípio e o fim dos Estados”.
Y. Dror
O fracasso da política na democracia e a marca da realidade
144 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
144
As transições da ditadura à democracia foram levadas a cabo num contexto
macroeconômico recessivo, de aprofundamento e aceleração da inserção dos
países da região nos processos transnacionais de penetração capitalista, de
acumulação de capital, de liberalização dos mercados financeiros, de reformas
econômicas, de postergação e exclusão social, de aumento do desemprego, de
anomia etc. As adversidades socioeconômicas não nos permitem, entretanto,
concluir que esses escolhos se converteram em impedimento para o
desenvolvimento democrático, o que não significa desconhecer que a falta de
condicionantes favoráveis vulnera a estabilidade democrática na região.
Apesar de um ambiente social e econômico que em alguns casos chega a
ser desolador, a região conhece hoje um período democrático cuja longa duração
permite afirmar que a transição chegou ao fim e que se entrou no estágio da
consolidação democrática.
Isso não quer dizer que se possa qualificar a democracia de satisfatória. Na
maioria dos países, a qualificação que se lhe pode atribuir é de insuficiente. Essa
situação é definida por alguns como “democracia de baixa intensidade”; pelas
mesmas razões outros a denominam de “democracia sem cidadania” etc.
Afirmar que a democracia na região encontra-se no estágio de consolidação
não significa que uma regressão autoritária deva ser excluída como impossível.
Quando se diz que a democracia se encontra em um período de consolidação,
afirma-se que ela é aceita e desejada como um valor superior pelos atores que têm
um papel protagônico no processo político e por amplas maiorias na sociedade.
Da mesma forma, aceitando o aumento da complexidade da tarefa de
governar, deve-se insistir em assinalar que é imperiosa a incorporação de
padrões de gestão política que reconheçam que os governos se estão
convertendo em algo qualitativamente mais importante e que gozam de
considerável independência para tomar decisões críticas, o que os converte
em importantes objetivos de reformas.
Essas considerações obrigam que se contemplem políticas que fortaleçam
a capacidade dos governos nacionais, já que estes continuam a desempenhar
um papel preponderante no cumprimento dos novos e difíceis encargos que
decorrem da direção tomada pelas sociedades. Neste tipo de empreendimento
será reservada aos governos a função de qualificar os valores perseguidos e
avaliar a efetividade dos instrumentos postos a serviço das metas que se
pretende sejam alcançadas.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
Carlos Mateo Balmelli
145
“É preciso alentar e ampliar uma liderança executiva forte, sempre
sujeita a salvaguardas”.
Y. Dror
Das considerações aqui apresentadas até agora, infere-se a necessidade
analítica de reconhecer a autonomia da política como a atividade que deve
contar com a capacidade para liderar os processos sociais. Liderança significa
a capacidade de induzir a ação coletiva rumo a determinadas metas.
Caso se insiste na necessidade de lideranças é porque se reconhece o
fato de que a história, por si própria, não leva a cabo as transformações sociais
quando estas são necessárias. A realização dos projetos que definem um modelo
de sociedade não se tornam realidade por geração espontânea. As mutações
sociais, quando necessárias, são o resultado da decisão e destreza dos atores
que exercem a liderança. A história, como processo que tem dinâmica própria
e características particulares, sugere o estudo casuístico que debilita a capacidade
de generalizar das outras ciências sociais. O raciocínio casuístico dos processos
históricos encontra explicação na peculiaridade dos atores. Quando a pretensão
intelectual investiga a conduta dos atores, encontrará a explicação causal do
acontecimento e, por outro lado, se a pesquisa se inclina em favor dos fatores
exógenos ao processo em questão, se estará construindo um sistema de
raciocínio no qual, às vezes, a explicação pode ceder lugar à justificação, para
que dessa maneira se possam legitimar determinadas situações históricas. Por
isso, quando na análise se atribui à história tanta sagacidade, obtém-se um
objetivo não pretendido: o de caricaturizar os atores.
O reconhecimento da importância dos atores e do seu protagonismo
não significa desconhecer que as expectativas dos atores são estabelecidas
pelas instituições e que o ativismo dos primeiros deve ser sensibilizado com
estímulos funcionais à matriz institucional (entidade principal e geradora de
outras) dentro da qual estão obrigados a operar.
“Dentro das elites deve assegurar-se pelo menos alguma rotatividade,
devendo a entrada nelas basear-se nas eleições e no mérito”.
Y. Dror
O fracasso da política na democracia e a marca da realidade
146 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
146
A análise torna-se mais complexa quando se aborda o debate da
democracia passando em revista o sistema de atores e a distribuição do papel
que corresponde a cada um. Se, depois de ter revisado o elenco disponível, o
observador percebe deficiências no sistema de atores e deformações em seus
padrões de comportamento, será possível avaliar a qualidade da sociedade
política de uma perspectiva que não trata de buscar a causa da crise na
democracia e focaliza a inquietude analítica no conteúdo e nos termos do
exercício da atividade política. Se a disfuncionalidade do sistema tem suas
raízes na modalidade de gestão política dos atores, é fácil compreender que a
crise na região não é da democracia, mas da política na democracia. Sendo
este o caso, a solução está mais na melhora da qualidade da política do que na
engenharia institucional. Quando se pede mais qualidade à política, o que se
procura é dota-la de maior capacidade na atuação política.
Ao equiparar como sinônimos baixa qualidade e falta de capacidade,
estamos denunciando o fato de que a atividade política não esgota todo o
potencial que lhe oferece a sociedade democrática. Por exemplo: Que
capacidade para a mudança pode ter um sistema democrático se não conta
com lideranças no governo ou nos partidos políticos comprometidos com a
realização das transformações necessárias? Que capacidade de governo pode
ter uma democracia se os atores estratégicos não contam com uma visão clara
de para onde deve avançar o processo histórico? Que capacidade de decisão
possui um sistema político no qual a decisão dos atores é instável? Que duração
no tempo terão as políticas públicas se não estão baseadas em acordos a que se
devem subordinar as pretensões singulares de cada ator? Que tipo de continuidade
institucional se assegura quando a satisfação das pretensões de um ator exige
que não se atenda à demanda dos demais? Que tipo de conteúdo institucional
terá a convivência se a afirmação da identidade de um ator exige a negação dos
outros? Que capacidade de construir poder político existe numa sociedade em
que a confrontação anula ou debilita a capacidade de decisão de que dispõe o
governo? A resposta a essas interrogações desloca o foco da análise para o
ativismo político e demonstra que o estudo da democracia, para ser frutífero,
deve transcender o campo formal e levar a discussão para o da política.
Tais considerações nos levam a redescobrir o papel central da política. Não
se deve reinventar a política – o que cabe fazer é, no momento de criar a matriz
institucional principal, outorgar-lhe o lugar que merece como instância capaz de
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
Carlos Mateo Balmelli
147
vincular, através de suas decisões, todos os integrantes da sociedade. Através da
política se promove e orienta o processo de formalização institucional que visa a
converter o real em legal. Esta última circunstância é inerente a todo processo de
modernização social. A sociedade moderna se caracteriza por capacitar os processos
de transformação que convertem a normalidade em normatividade.
As instituições formais e informais
A visão que reconhece o fracasso da política na democracia deve admitir
a existência de instituições formais e informais. As primeiras são aquelas que
se expressam e formalizam por meio do direito. As segundas são as regras de
convivência que não se formalizam no direito e cuja vigência e validade não é
imposta por nenhum aparato coercitivo externo, capaz de impor sanções pelo
não cumprimento das mesmas.
Compreender a dimensão formal e informal das instituições serve para
relativizar a capacidade que se atribui às mudanças institucionais formais nos
processos sociais. Esta afirmação nos permite comparar os êxitos obtidos à
luz das reformas realizadas. Depois de mais de duas décadas desde que se
iniciaram inúmeras mudanças que afetam as instituições em seu aspecto formal
e avaliando esse período de tempo, pode-se dizer que a reforma institucional
per se não é suficiente para evitar a deterioração da democracia.
Elaboraram-se novas constituições, reformaram-se os sistemas eleitorais,
dotaram-se os governos locais de maiores competências, mas apesar disso,
não se pode afirmar que esse conjunto de reformas tenha assegurado a melhora
da qualidade institucional dos processos sociopolíticos na região. A agenda
reformista deve entender as limitações da engenharia institucional. Deve-se
prescindir dos enfoques que tendem para o fetichismo institucional e não se
desligar da obrigação de acabar com as muralhas que se elevam para impedir o
aprendizado institucional coletivo. Por esse motivo, as mudanças institucionais
não devem ser consideradas produto unilateral da vontade legislativa – devem-
se criar os mecanismos para que o processo social de aprendizado institucional
esteja vinculado ao processo de formalização das instituições.
Seria um erro esperar resultados imediatos de qualquer reforma
institucional que apenas responda a um ato formal do Estado ou à expressão
isolada e voluntarista dos detentores do poder. A região viveu da ilusão de
O fracasso da política na democracia e a marca da realidade
148 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
148
que, mediante a transformação das instituições formais, se lograriam
imediatamente as mudanças necessárias. A realidade provou ser um obstáculo
capaz de fazer fracassar qualquer tentativa de reforma institucional que não
atribua o devido peso à dimensão informal das instituições. A proposta que
tenda a querer superar o fracasso da política na democracia deve considerar a
inter-relação que existe entre as instituições formais e informais.
“O tempo é a luz dos desenganos”.
F. Quevedo
No início da década de 90, quando se mencionava a necessidade de
governabilidade democrática, dava-se preeminência na agenda política à
construção institucional, com o objetivo de impedir o retrocesso do processo
político a formas autoritárias anteriores.
Naquela época, a teoria buscava todas as garantias institucionais para evitar
que o processo político retrocedesse ao autoritarismo de anos anteriores. A
possibilidade do retrocesso autoritário estava diretamente relacionada com o
desejo e a capacidade que podia existir dentro da sociedade de reinstalar as formas
autoritárias de governo. Era nessa época que, quando se exigia mais participação,
isso se fazia depois de fortalecer a vocação democrática do processo político.
Decorrido um tempo desde o restabelecimento da democracia, percebem-se na
região novas características do processo político. Superou-se a situação política
pendular pela qual costumavam passar os países da região, de governos civis a
militares, de democracias a ditaduras. Atualmente, a instabilidade política indica
uma crise cujos espasmos expressam as desavenças derivadas da luta pelo poder
e dos conflitos sociais não resolvidos. O fracasso da política na democracia
evidencia-se na incapacidade de construir poder e dominação política. O dilema
da governabilidade democrática consiste em que o processo político erode o
processo de criar e manter estruturas institucionais que garantam a ordem
democrática e a possibilidade de estabelecer condições políticas para o
funcionamento do governo. Não se pode desconhecer que a deterioração da
qualidade de vida é provocada pelo debilitamento da eficácia do governo. Nessa
conjuntura, o esforço político deve orientar-se no sentido de garantir a
continuidade institucional, aumentar a capacidade instalada do Estado e melhorar
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
Carlos Mateo Balmelli
149
a qualidade da política. Os processos políticos ajustados a critérios de
governabilidade democrática devem responder a uma racionalidade que conceba
a necessidade de criar poder político. É preciso incorporar à política os recursos
que impeçam o processo político de erodir as bases da dominação. Dentro deste
enfoque pode-se ir elaborando uma agenda político-institucional que permita
criar poder para facilitar e apoiar a política de governabilidade democrática que
leve a melhorar a qualidade do processo de governo.
Democracia versus democracia eleitoral
Na região, pode-se observar a realização de processos eleitorais que têm
como resultado uma determinada maioria que se mostra incapaz de criar as
condições para governar. Realizaram-se processos eleitorais num ambiente de
liberdade e igualdade de condições; deles emergiram maiorias que expressam
genuinamente a preferência do eleitorado. No entanto, os processos eleitorais
foram insuficientes para criar governos capazes de governar. São vários e
diversos os casos de governantes que surgiram de eleições inquestionáveis e
que não puderam terminar seus mandatos eleitorais. Várias são as ocasiões
nas quais a sucessão do presidente deposto se fez de maneira heterodoxa do
ponto de vista constitucional. Esta nova situação de contar com governos
eleitos – legitimados em sua origem, porém desqualificados em sua função de
governo – põe em evidência a situação de tensão que pode chegar a existir
entre a democracia e os processos eleitorais. Dá-se uma incongruência entre a
maioria eleitoral e a incapacidade de consolidar uma maioria política para
governar. O raciocínio político deve buscar a solução para a tensão e a
incongruência que existem entre o resultado eleitoral e a transformação deste
em habilidade para governar.
A saúde da democracia, qualquer que seja o seu tipo e grau,
depende de um mísero detalhe técnico: o procedimento eleitoral”
Ortega y Gasset
Se confrontarmos essa afirmação com a realidade sociopolítica da região,
perceber-se-á que, embora os processos eleitorais se ajustem ao direito e os
O fracasso da política na democracia e a marca da realidade
150 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
150
resultados sejam fiáveis, isso não implicou uma melhora qualitativa da
legitimidade do exercício da política. A deterioração das condições da
estabilidade democrática não corresponde ao desajuste dos processos eleitorais,
mas estão, sim, intimamente relacionados a padrões políticos obsoletos e
insuficientes para tornar possível governar a nova complexidade social.
Se o exercício da política não se ajusta a novos padrões de
comportamento, a incapacidade da política na democracia vai converter-se
num fenômeno recorrente, cujo ponto de partida não serão os processos
eleitorais, mas o comportamento político inadequado, distante dos padrões de
bom governo e da realidade.
Cumpre ter presente que a incidência do fator eleitoral depende da
sociedade e, em especial, da cultura às quais está integrada.
“Os excessos de uma virtude matam mais do que os de um vício”.
E. M. Ciorán
Ao criarem-se certas instituições, pode-se visar a um objetivo nobre,
mas o resultado obtido pode chegar a ser aquilo que não se buscou com a
decisão que lhe deu origem. O processo de elaboração institucional é, muitas
vezes, concebido em abstrato, sem contrasta-lo com o factual, o que leva a
criar instituições que não são compatíveis com a realidade dentro da qual têm
de provar validade e vigência. Portanto, a funcionalidade das instituições está
condicionada pelo seu contexto social, econômico e cultural.
A importância de se ressaltar a validade e a vigência das instituições
deve-se a que os processos de criação institucional, por motivos de valor,
criam instituições a partir do “verdadeiro”, daí deduzindo arranjos institucionais
que negam as possibilidades a realidade oferece.
Os processos políticos de criação institucional devem ter uma visão que
distinga o “verdadeiro” da realidade. A vontade política que está determinada
a criar instituições deve estabelecer uma relação na qual o ideal e o real
convirjam. Se essa relação de convergência não existir, estar-se-ão construindo
instituições defasadas da realidade. Por isso deve-se atentar para que a
construção de instituições responda a uma combinação de fatores: a
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
Carlos Mateo Balmelli
151
contingência histórica, a luta pelo poder e as pautas do comportamento histórico
prevalecente numa sociedade.
O fator ideológico é um dado chave que deve ser decifrado nos processos
de criação institucional. Dos padrões ideológicos inferem-se tipos de instituições
que podem negar ou contradizer a realidade. As instituições derivadas do
“mundo do verdadeiro” são concebidas com o objetivo de contradizer o mundo
real. O presunçosamente verdadeiro é na realidade um mundo aparente, por
não ser mais do que uma ilusão de ótica ideológica. O processo de criação
institucional deve ter os ouvidos abertos para escutar a voz da realidade quando
esta reclama seus direitos.
Reiteramos insistentemente a necessidade de recuperar a realidade para
o processo decisório e para o de criação institucional. Recuperar a realidade é
algo impostergável nos processos políticos em que se busca a construção de
um ordenamento social superlativo. Deve-se “refletir sobre a razão que há na
realidade”, o razoável deve ser encontrado na realidade e não naquilo que nós
mesmos acreditamos que é razoável.
A tentação de instalar o Leviatã não é a resposta à
incerteza e à insegurança
As circunstâncias atuais na região, caracterizadas pelo aumento da
insegurança cidadã e do ativismo delituoso, ameaçam superar a capacidade
instalada dos organismos de segurança do governo. Tais circunstâncias tornam
mais urgente a elaboração de leis que punam com mais rigor as condutas
criminosas e ampliem a capacidade de atuação preventiva das instituições
encarregadas de proteger o direito à vida e à liberdade.
Atualmente, a democracia é desqualificada por várias razões. Algumas
delas estão ligadas à insatisfação social decorrente do baixo rendimento do
sistema econômico nacional; outras, à incapacidade demonstrada pelas
instituições judiciais e políticas de prover justiça e segurança aos cidadãos,
como um bem comum acessível e assegurado a todos. Na atual conjuntura, a
vida e a liberdade da população amedrontada estão ameaçadas, arrebatadas
por grupos criminosos que, organizados ou não, atuam à margem da lei, sem
inibições nem temor, por não perceberem a possibilidade de serem presos e
punidos com penas mais severas.
O fracasso da política na democracia e a marca da realidade
152 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
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A teoria democrática não pode colocar o dilema de ter de escolher entre
dois bens jurídicos, a disjuntiva entre a liberdade pessoal e a segurança coletiva.
A proposta oferecida pela corrente democrática liberal adere ao axioma
que reconhece a liberdade, convertendo-a em mãe da ordem social, e a
segurança, como condição prévia, sem a qual a comunidade fica juridicamente
desprotegida. Segundo essa noção, os dois termos, liberdade e segurança,
conduzem um ao outro.
O poder político deve garantir a vigência desses bens jurídicos no Estado de
direito, o que significa que a liberdade não se exerce em um ambiente de insegurança
e que a segurança não pode ser imposta pela abolição do direito à liberdade.
A tarefa de elaborar instituições em que dois bens jurídicos superiores
podem ser apresentados como contraditórios é, porém, complexa. Por isso, a
modificação das instituições que se propõe levar a cabo deve responder à
racionalidade jurídica que reconhece a vigência simultânea de ambos como
condição iniludível para a existência do Estado Democrático de Direito.
O conteúdo da proposta de reforma estatal deve contemplar quatro aspectos:
1. Punir com maior vigor a conduta delituosa por meio da elevação das
penas;
2. Ampliar a capacidade de atuação preventiva dos órgãos de segurança
e dos jurisdicionais;
3. Induzir os órgãos de segurança a tomar iniciativas, o que diminui a
possibilidade de que tenham de excusar-se ou de justificar sua inação;
4. Respeitar a esfera privada e o direito à privacidade, exigindo a
intervenção judicial para cada caso em que o poder público peça
informação ou a colaboração de particulares. Desta maneira, impede-
se a invasão e a arbitrariedade do poder público na sociedade.
A Classe Política: Existem duas classes de pessoas, a dos
governantes e a dos governados. A primeira é sempre menos numerosa
e monopoliza o poder. Portanto, a segunda, mais numerosa, é dirigida
e regulamentada pela primeira.
G. Mosca
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
Carlos Mateo Balmelli
153
O reconhecimento da existência das elites, grupo dirigente, classe
governante, ou como se as queira chamar, desagrada, já que significa enfraquecer
o princípio da igualdade reivindicado pela teoria da democracia.
A existência das elites, além de ser um dado da realidade, representa uma
necessidade para a condução do processo político. Das circunstâncias que
implicam sua seleção, sua composição, sua rotação, sua coesão e organização
etc. dependerão as características e os resultados do processo político.
A formação de grupos decididos a assumir a condução do regime político
ou do sistema social é inerente a todo e qualquer destes. Na transição de uma
época para outra ou de um sistema para outro, não se modifica o fato de que
haja uma classe dirigente, o que muda é a elite e os critérios para sua composição,
seu recrutamento, seu funcionamento etc.
Os sistemas políticos e os sociais estão submetidos a “leis constantes”
que regulam a emergência e o ocaso dos Estados, dos regimes e das lideranças.
De acordo com o pensamento que distingue critérios permanentes para
entender a criação e a degradação dos sistemas institucionais, pode-se
estabelecer um vínculo de correspondência entre a qualidade da elite e a
eficiência e a eficácia com que funciona um determinado sistema.
A decisão de aproximar da análise à categoria das elites permite um estudo
das instituições do ponto de vista do grupo de pessoas que detêm o poder.
Deve-se assinalar que as instituições são percebidas através das atitudes
dos encarregados da sua direção. Para o conjunto dos representados as
instituições são abstrações que se evidenciam quando são encarnadas pelos
grupos humanos que lhes dão vigência e as representam. É por isso que se
deve ter em conta que a qualidade institucional está tão condicionada pelo
comportamento dos que exercem as responsabilidades institucionais quanto
pela estrutura institucional em si, ou talvez mais.
Foi a partir desse raciocínio que se decidiu chamar de “fracasso da política
na democracia” aquilo que outros chamam de crise da democracia.
Não queremos terminar numa discussão de palavras, que gire em torno
da designação do objeto de estudo em questão e não chega a penetrar a
profundidade do debate: que o real venha à superfície!
Sustentar que a democracia está em crise talvez não nos permita
compreender que o desencanto não é em relação à institucionalidade
O fracasso da política na democracia e a marca da realidade
154 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
154
democrática, mas que, ao contrário, o descrédito atinge as práticas viciosas e
transgressoras levadas a efeito dentro do quadro institucional democrático.
No entanto, a noção do fracasso da política na democracia sugere a necessidade
de que a classe política assuma sua responsabilidade institucional, encarnando
os valores superiores que a democracia significa.
Infere-se da conseqüência lógica deste pensamento a necessidade
inadiável e insubstituível de que os sistemas de governo democráticos contem
com elites abertas ao pluralismo, evitem a arrogância e se sintam
comprometidos com os mandatos da democracia e subordinados a eles. A
dificuldade dos regimes democráticos deriva da ingenuidade dos mesmos em
considerar que as eleições igualitárias, competitivas e livres são uma via que
assegura a possibilidade de escolher e encontrar os políticos mais adequados.
Por isso, a teoria política ainda não chegou à elaboração de fórmulas que
combinem os princípios da maioria com um sistema de seleção de valores que
facilite a consolidação de lideranças baseadas no mérito e no apoio popular.
Cabe alertar para as implicações nefastas de contar com elites de governo sem
ética atuando num ambiente de cultura política destituída de sensibilidade ética.
Em tal situação, a debilidade da elite é magnificada pela deficiência social,
fazendo que a vida política em muitos países seja cada vez mais amoral e
mesmo imoral.
Cabe à política e à sociedade impor critérios que obriguem os integrantes
das elites a esmerar-se na aquisição de virtudes essenciais para melhorar a
capacidade do governo.
Observando o passado, encontra-se na história romana, nos tempos da
república e do império, que um dos deveres reconhecidos aos governantes era
o de buscar sucessores capazes e prepará-los para as tarefas de governo.
A direção política não pode eximir-se da obrigação de recrutar e assegurar
o rodízio dos integrantes das elites, já que, como estas tomam a maior parte
das decisões que afetam os rumos futuros, sua qualidade é decisiva.
Devem-se elevar os padrões de seleção e formar elites com qualidades
morais, psicológicas e intelectuais para assumir a missão de governar. Em
termos psicológicos, virtudes como inteireza, paciência, persistência, seriedade
e compromisso, resolução, moderação e prudência são necessárias para bem
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
Carlos Mateo Balmelli
155
se desempenharem frente a dificuldades e oportunidades. Para desenvolver
tais qualidades é mister traçar novas formas de seleção e promover as exigências
de níveis éticos mais elevados. Deve-se converter em doutrina fundamental
do Estado Democrático de Direito a idéia de que os políticos eleitos e os
funcionários de alto nível têm de ser superiores em virtude e moralidade. Isto
também inclui o fato de que a classe governante seja capaz de desenvolver
uma lógica comum que lhe permita, na função de governo, atuar coletivamente
e pensar em termos históricos.
Anotações finais que não pretendem oferecer um final
Ao longo deste ensaio, tratamos de demonstrar que as razões que
explicam a crise dependem do estilo e conteúdo da gestão política e não do
modelo democrático de governo. Daí que em nenhum momento nos referimos
à crise da democracia, mas sim às deficiências do exercício e do compromisso
político na democracia.
Todos os argumentos esgrimidos servem-nos para rejeitar aquilo que
Nitsche descrevia como o “moderno misraquismo”, que equivale à
“idiosincrasia democrática oposta a tudo que domina e quer dominar”.
Nem o Leviatan nem as utopias de inspiração anarquista que querem
abolir a dominação política oferecem modelos alternativos válidos para resolver
a problemática atual.
Deve-se robustecer o poder das instituições a partir de uma prática política
comprometida e capaz de ter uma noção criativa da sociedade e do indivíduo.
A situação pede respostas urgentes que reconheçam inexoravelmente a
necessidade de uma atuação política superior que obtenha como primeiro
resultado a configuração de uma “Nova Estatalidade”.
A partir da política e com as ferramentas que ela vá criando, dever-se-á
enfrentar a maior complexidade que implica governar em um mundo
globalizado. Deve-se praticar uma política que seja, ao mesmo tempo, destrutiva
e construtiva. O que não merece existir deve perecer para potencializar tudo
aquilo que deve ganhar vida.
Num mundo com forças arrebatadoras, os governos convertem-se em
atores estratégicos na missão histórica nacional de construir nossa própria
O fracasso da política na democracia e a marca da realidade
156 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
156
identidade. A qualidade da política e dos processos governamentais é decisiva
para superar dificuldades e aproveitar as oportunidades num mundo global.
Portanto, de nada serve perguntar que sentido têm as necessidades que se
sofrem. A política comprometida com a visão do futuro deve dedicar-se a
buscar na realidade as respostas aos problemas. Esta última mostra-se
interminável e tem mais poder de transformação do que qualquer utopia que
seduz com a promessa da idade de ouro.
Sem compartilhar o otimismo socrático de acreditar que “o conhecimento
cura a ferida da existência”, consideramos que não se pode governar de costas
para o conhecimento e que as elites envolvidas nas funções de governo validam
suas decisões na medida em que estas estejam fundadas na seriedade e no
rigor do conhecimento.
Quando se fala de elevar os padrões da classe governante faz-se alusão
ao seu aperfeiçoamento moral e técnico-administrativo baseado na aquisição
de conhecimento.
No desenvolvimento deste ensaio expôs-se a tensão, já descrita por
Maquiavel, que existe entre a política e a ética.
Mais do que nunca deve-se entender que, numa democracia, a tarefa de
governar apoia-se em valores.
A democracia não é amoral – exige, para seu bom funcionamento, padrões
de conduta que combinem a ética com a política. O desafio intelectual consiste
em que, a partir de uma visão realista da política, se elabore uma teoria que
fundamente e justifique o poder a partir de uma valorização ética do indivíduo
e da convivência. O desafio imposto ao realismo político consiste em combinar
táticas e estratégias severas com os objetivos éticos, em circunstâncias
complexas e originais.
Finalmente, defendemos o real porque a força do que existe está na
realidade. De nenhuma forma somos ou seremos partidários de uma ideologia
que identifique grosseiramente o poder com a força.
Tradução: Luiz A. P. Souto Maior
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
Allan Wagner Tizón
157
*
Secretário Geral da Comunidade Andina
Ex-Ministro das Relações Exteriores do Peru
Comunidade Andina:
integração para o
desenvolvimento na
globalização
Allan Wagner Tizón
*
A
Comunidade Andina está integrada pela Bolívia, Colômbia, Equador,
Peru e Venezuela e é regida pelo Acordo de Integração Sub-regional (Acordo
de Cartagena) subscrito em 26 de maio de 1969, posteriormente modificado e
ampliado, mediante o Instrumento Adicional ao Acordo de Cartagena, para a
Adesão da Venezuela e pelos Protocolos de Lima (subscrito em 30 de outubro
de 1976), de Arequipa (assinado em 21 de abril de 1978), de Quito (assinado
em 11 de maio de 1987), de Trujillo (subscrito em 10 de março de 1996) e o de
Sucre (assinado em 25 de junho de 1997).
Essa experiência de integração, que está para completar seus 35 anos de
vigência, não é um fim em si mesma nem se refere exclusivamente ao âmbito
comercial. É um instrumento que contribui e reforça os projetos de
desenvolvimento nacional dos países andinos, envolvendo as esferas social,
política e econômica.
Comunidade Andina: rumo a um novo modelo estratégico
158 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
158
Ao longo de sua vigência, a integração andina passou por períodos de
auge e de crises recorrentes, e teve de se adaptar à realidade de seus Países
Membros e da economia internacional.
Diante do século XXI, a Comunidade Andina tem grandes tarefas a
cumprir. Os objetivos gerais da agenda da integração andina são complexos e
acompanham o esforço de transformação, desenvolvimento e modernização
nos Países Membros. Nesse contexto, a Comunidade Andina continuará a
desempenhar um papel fundamental na integração regional, hemisférica e
mundial, participando com dinamismo e criatividade do processo internacional
de globalização.
Adequar integração para o desenvolvimento com inclusão social e
inserção internacional competitiva permitirá fortalecer a Comunidade Andina
como pólo de atração na América Latina, para captar investimentos e
desenvolver novos projetos em matéria de produção de bens e serviços. O
fortalecimento do sistema democrático, da segurança regional e da cooperação
política dentro da Comunidade criará um quadro de estabilidade política e de
confiança interna e externa. Além disso, a sua projeção política e institucional
permitirá uma participação crescente e mais ampla dos cidadãos andinos na
formulação e execução dos programas da integração, tornando-a um processo
mais próximo dos povos da nossa sub-região.
Da mesma forma, a Comunidade Andina constitui um elemento de
coesão e desenvolvimento da capacidade competitiva dos países para abordar
com êxito as negociações comerciais internacionais em andamento. Neste
contexto, o grande desafio enfrentado agora pelo nosso processo consiste em
converter a integração no eixo articulador de uma agenda interna de
desenvolvimento e superação da pobreza, a qual, hoje mais do que nunca, é
inadiável, assim como em uma agenda externa na qual está em jogo muito
mais do que o livre comércio: um modelo de inserção internacional que deve
representar oportunidade para o desenvolvimento das nossas nações, com
inclusão social.
Nas páginas seguintes, apresentaremos, em primeiro lugar, uma breve
resenha da situação atual da instrumentação dos mecanismos do Acordo de
Cartagena e, em um segundo parágrafo, as perspectivas do processo de
integração andino, baseado em uma profunda convicção da sua importância e
a necessidade de se produzir um novo ponto de inflexão, para colocar os nossos
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
Allan Wagner Tizón
159
países na posição de poder competir nas correntes globais e levar benefícios
tangíveis e reais a seus povos.
I Situação do processo de Integração
A Comunidade Andina, em seus 34 anos de existência, conseguiu
estabelecer as bases para um Mercado Comum e, ainda, logrou expandir o
panorama da integração comunitária além do âmbito comercial, mostrando
uma identidade no concerto internacional e multiplicando, no seu interior, os
canais de participação em diversas áreas.
A direção política assumida pelo Conselho Presidencial Andino desde
1989 tem representado uma contribuição valiosa à consolidação e expansão
do processo de integração. Foram alcançados progressos significativos com o
objetivo de consolidar o projeto de integração, no quadro das normas vigentes,
justamente a partir das diretrizes presidenciais.
Avanços para o Mercado Ampliado
Até há pouco tempo, os esforços substanciais para o aprofundamento
da integração andina concentraram-se, inicialmente, no terreno comercial. Isso
permitiu que a Comunidade Andina contasse com uma nutrida normativa
supranacional, a qual propiciou desenvolvimentos na construção do mercado
ampliado comunitário. Entre estes podemos citar:
Livre comércio de bens
Os primeiros vinte anos da marcha da integração andina (1969-1989)
não mostraram incremento significativo das correntes comerciais dentro da
sub-região, nem qualquer importante diversificação dos bens transacionados.
Foi recentemente, a partir de 1989, quando os Presidentes andinos decidiram
tomar as rédeas para a condução do processo, que foi observado um
crescimento exponencial do intercâmbio comercial dentro do mercado andino,
assim como sua diversificação e incorporação de valor agregado sub-regional.
Tanto é assim que, por exemplo, as exportações intracomunitárias passaram
de 111 milhões de dólares em 1970, para 1,039 milhões de dólares em 1989,
Comunidade Andina: rumo a um novo modelo estratégico
160 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
160
crescendo somente 9 vezes em 19 anos, enquanto que, em 2003, chegaram a
4,94 bilhões de dólares, multiplicando-se 44 vezes entre 1970 e 2003. Outrossim,
a composição das transações dentro da sub-região passou de 48% de produtos
manufaturados, em 1969, para 90% dos mesmos em 2003. Na atualidade, as
manufaturas de alto valor agregado representam 58% do intercâmbio entre os
países andinos. Essas últimas cifras mostram, além disso, a contribuição da
integração para a industrialização. Em 2004 as exportações intracomunitárias
alcançaram uma cifra recorde, ascendendo ao valor histórico de 7,766 milhões
de dólares, o que representa um aumento de 59% com relação ao ano de 2003.
A zona de livre comércio andina foi aperfeiçoada em 1992, para a Bolívia,
Colômbia, Equador e Venezuela, sendo que o mesmo ocorrerá com o Peru
em 2005. Hoje, o comércio do universo tarifário entre a Bolívia, a Colômbia,
o Equador e a Venezuela – e mais de 90% para o Peru – é feito inteiramente
livre de gravames e restrições. Além disso, os Países Membros contam com
uma normativa complementar que permite o funcionamento do mercado de
bens, tais como as medidas para harmonização sanitária, as normas e
regulamentos técnicos, as normas aduaneiras, as regras de origem e as normas
sobre propriedade intelectual e transporte.
Contudo, ainda ficam pendentes diversas definições para o
aperfeiçoamento do mercado ampliado, entre as quais podemos citar: a adoção
de uma Política Agropecuária Comum; o reconhecimento mútuo de registros
sanitários e certificações técnicas; a agilização e simplificação dos procedimentos
aduaneiros; fluidez do trânsito fronteiriço para o transporte rodoviário de carga
e a atualização da normativa em matéria de competência, entre outros.
A tarefa de convergência para o livre comércio, tanto dentro do nosso
âmbito como perante terceiros, através da consolidação do mercado comum e
o desenvolvimento conjunto das capacidades competitivas, será um elemento
decisivo da coesão andina durante os próximos anos.
Tarifa Externa Comum
A Tarifa Externa Comum entrou em vigor em 1995. Este mecanismo –
que compromete Bolívia, Colômbia, Equador e Venezuela – tem imperfeições,
porque entre esses países existem algumas diferenças. A Bolívia mantém uma
estrutura própria, embora sujeita à administração comunitária, e o Equador
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
Allan Wagner Tizón
161
conta com exceções. As maiores coincidências ocorrem nas tarifas da Colômbia
e da Venezuela (aproximadamente 87%). O Peru não participou no mecanismo
estabelecido inicialmente.
Na busca do mercado comum andino, foram impulsionadas ações para
conformar uma União Aduaneira que envolvesse os cinco Países Membros. O
resultado foi a adoção de uma nova TEC, em outubro de 2002, por meio da
Decisão 535, para 62% dos itens do universo tarifário, equivalentes,
aproximadamente, a 40% do comércio sub-regional. Entretanto, em dezembro
de 2003, a Comissão da Comunidade Andina decidiu protelar sua aplicação,
devido às dificuldades de alguns Países Membros para adotar o novo
instrumento e em maio de 2004 esse prazo foi estendido até 10 de maio de
2005, mediante a Decisão 580.
Finalmente, por ocasião da XV Cúpula Presidencial Andina, realizada
em Quito, no Equador, em julho de 2004, os Chefes de Estado instruíram
os Ministros do Comércio a levar a cabo “ ... um debate amplo e franco em
torno da tarifa externa mais apropriada para progredir no processo de
integração andina. Nesse sentido será preparado, adotado e executado, com
o apoio da Secretaria Geral, um cronograma e plano de trabalho com o
objetivo de alcançar uma posição comum sobre a Tarifa Externa Comum e
suas possíveis modalidades, a qual deverá ser adotada o mais tardar no dia
10 de maio de 2005.
Livre comércio de serviços
A Comunidade Andina conta com o quadro normativo para a
liberalização do comércio de serviços, bem como com um inventário de
restrições, que reflete e consolida o nível de abertura real nos diferentes setores
de serviços e modos de prestação. Na atualidade, a Comunidade Andina vem
desenvolvendo um programa de trabalho para avançar no processo de
liberalização das restrições remanescentes.
Do ponto de vista setorial, foram produzidos alguns avanços pontuais
em matéria de transporte, turismo e telecomunicações. Trabalha-se em
aspectos que permitiriam avançar na liberalização de serviços financeiros
mediante normas prudenciais, profissionais (direito de estabelecimento e
reconhecimento de títulos).
Comunidade Andina: rumo a um novo modelo estratégico
162 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
162
Livre circulação de pessoas
Com o propósito de garantir a livre circulação e o estabelecimento dos
trabalhadores para a conformação de um mercado andino de trabalho, foram
adotadas as Decisões 545 (Instrumento Andino de Migração Trabalhista), 546
(Instrumento Andino de Seguridade Social) e 546 (Instrumento Andino de
Segurança e Saúde no Trabalho), que constituem normas comunitárias muito
avançadas em seu gênero.
Igualmente, no período 2002-2004, o Equador, Peru e Bolívia ratificaram
o Protocolo Substitutivo do Convênio Simón Rodríguez, que estabelecerá um
fórum tripartite e paritário para definir e coordenar as políticas sócio trabalhistas
da Comunidade Andina.
Em 2002, foi adotado a eliminação de vistos e o reconhecimento dos
documentos nacionais de identidade como documento de viagem, facilitando,
assim, a livre circulação de turistas na sub-região. Esse fato tornou-se uma
realidade emblemática que deu à integração uma nova dimensão de coesão e
construção da confiança entre os cidadãos e os empresários andinos.
Metas macroeconômicas para a convergência
Sob a direção dos Ministros de Economia, Presidentes de Bancos Centrais
e Ministros de Planejamento, foram autodeterminadas metas macroeconômicas,
contando com um Grupo Técnico Permanente (GTP), encarregado do
acompanhamento de três indicadores básicos: endividamento, déficit fiscal e
taxa de inflação, que se tornam variáveis centrais da atual convergência dos
países para a estabilidade econômica como condição de um melhor
desempenho em sua agenda social.
Não obstante, é preciso avançar no processo de harmonização de políticas
macroeconômicas que facilitem a expansão do comércio e investimentos sub-
regionais. A estabilidade macroeconômica da sub-região contribui para limitar
o impacto dos desequilíbrios de um país para outro.
Por ocasião da Cúpula de Quito, em julho de 2004, foi dado um passo
importante em matéria de integração financeira, tendo sido aprovadas duas
Decisões importantes: a Decisão 599, sobre “Harmonização de aspectos
substantivos e processuais dos impostos do tipo Valor Agregado” e a Decisão
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
Allan Wagner Tizón
163
600, sobre “Harmonização dos impostos de consumo de tipo Seletivo”, que
respondem a um objetivo de integração profunda.
Ações em outras áreas essenciais para o fortalecimento da
integração andina
A Comunidade Andina impulsionou ações e obteve sucesso em outras
importantes áreas que contribuem para robustecer o processo, dar-lhe
identidade, gerar confiança e projetar fortalezas compartilhadas.
Política Exterior Comum e Cooperação Política
A Comunidade Andina é percebida, cada vez mais, como um bloco.
Essa percepção da Comunidade internacional vem sendo produzida por meio
das atuações conjuntas dos países andinos em diversas frentes e momentos.
As “Diretrizes da Política Exterior Comum da Comunidade Andina
(PEC)”, Decisão 458, permitem uma maior presença comunitária e influência
internacional, e, sob sua égide, foram desenvolvidas coordenações e posições
concertadas em fóruns internacionais e negociações conjuntas com diversos
países e agrupamentos.
No área comercial a Comunidade Andina adotou diversas formas de
negociação conjunta ou coordenada: na Alca, com o Mercosul, nas gestões
que deram lugar às prorrogações do SGP Andino com a União Européia e a
Lei de Preferências Comerciais Andinas com os Estados Unidos, bem como
nas negociações do Tratado de Livre Comércio com os Estados Unidos e as
que serão iniciadas proximamente com a União Européia.
A formação da Comunidade Sul-Americana de Nações, no quadro da
Terceira Reunião de Presidentes da América do Sul, realizada em Cuzco, no
Peru, em 8 de dezembro de 2004, reflete a vontade política comum dos países
da região em “desenvolver um espaço sul-americano integrado no político,
social, econômico, ambiental e de infra-estrutura; que fortaleça a identidade
própria da América do Sul e contribua, a partir de uma perspectiva sub-regional
e em articulação com outras experiências de integração regional, para o
fortalecimento da América Latina e do Caribe, dando-lhe uma maior gravitação
e representação nos foros internacionais.”
Comunidade Andina: rumo a um novo modelo estratégico
164 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
164
Como decorre da vontade expressa dos Presidente, a Comunidade Sul-
Americana será construída mediante a convergência progressiva da CAN, do
Mercosul e do Chile, com a participação da Guiana e do Suriname, e aspira à
consolidação de um projeto político e de desenvolvimento de ampla
envergadura no espaço sul-americano.
Na agenda política, a Comunidade Andina conta com elementos
compartilhados que lhe permitem ter uma posição comum para atuar em
matéria de drogas, direitos humanos, democracia e segurança, cujas principais
ações são registradas a seguir:
• Luta contra as drogas ilícitas
Ações comunitárias em matéria de luta contra as drogas, mediante a
Decisão 505 “
Plano Andino de Cooperação para a Luta contra as Drogas
Ilícitas e Delitos Conexos” de junho de 2001. Neste âmbito, os Países Membros
propuseram uma posição conjunta diante do Diálogo Especializado sobre
Drogas com a União Européia, assim como no âmbito da Comissão de
Entorpecentes das Nações Unidas.
• Democracia e Direitos Humanos
Foi dado impulso à vigência dos direitos humanos através da Carta Andina
de Direitos Humanos, subscrita em 26 de julho de 2002, em Guayaquil. Para
contribuir com o fortalecimento e aprofundamento da democracia, o Conselho
Andino de Ministros de Relações Exteriores pronunciou-se em diversas
ocasiões em torno das situações de instabilidade política produzidas na região
e as autoridades comunitárias realizaram gestões para facilitar sua solução.
• Segurança e fomento da confiança
Em 17 de junho de 2002, em Lima, foi adotado o “Compromisso de Lima
– Carta Andina para a Paz e a Segurança – Limitação e Controle dos Gastos
destinados à Defesa Externa” por parte do Conselho Andino de Ministros de
Relações Exteriores, em reunião ampliada com os Ministros de Defesa.
Como um desenvolvimento deste Compromisso foi adotado o Plano
Andino para Combater o Tráfico de Armas Pequenas e Ligeiras. Na Cúpula
de Quito, de julho de 2004, foi aprovada a Decisão 587, “Linhas Gerais da
Política de Segurança Externa Comum Andina”, que estabelece um quadro
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
Allan Wagner Tizón
165
avançado de concertação e esforço conjunto neste campo. Trabalha-se também
em uma aproximação para definir um Plano de Cooperação Andino Antiterrorista.
• Migrações
Foi adotada a Decisão 548 “Mecanismo Andino de Cooperação em matéria
de Assistência e Proteção Consular e Assuntos Migratórios” mediante a qual, os
cônsules de qualquer uma das repúblicas contratantes, residentes em uma outra,
podem fazer uso de suas atribuições em favor dos indivíduos das outras repúblicas
contratantes que não tiverem cônsul no mesmo local, com o que, além do mais,
tenta-se estabelecer vínculos com os migrantes andinos para manter sua
identidade e aspiração de retorno ordenado a seus países de origem.
Adicionalmente, foi adotado o Passaporte Andino, o qual proporcionará
uma maior identidade aos nacionais andinos que viajarem a terceiros países.
Esse documento, por suas normas de segurança e nomenclatura, dará maior
segurança aos países visitados em relação ao portador.
Agenda Social
Mediante a Decisão 601, adotada pelo Conselho Andino de Ministros de
Relações Exteriores em 21 de setembro de 2004, foi aprovado o Plano Integrado
de Desenvolvimento Social (Pids), principal instrumento para promover a
dimensão social da integração andina, orientado para promover o
desenvolvimento social e abordar comunitariamente a pobreza, a exclusão e a
desigualdade na sub-região. O Pids compreende a execução de 19 projetos no
âmbito social andino, que estão a cargo do Conselho Andino de Ministros de
Desenvolvimento Social, instância criada em Quito no XV Conselho Presidencial.
Outros progressos na agenda social andina incluem a promulgação dos
instrumentos sociotrabalhistas sobre migração trabalhista, seguridade social,
segurança e saúde no trabalho (Decisões 545, 583 e 584, respectivamente); a bem
sucedida negociação conduzida pelos Ministros de Saúde da CAN, além do Chile,
no âmbito do Organismo Andino de Saúde Convênio Hipólito Unanue, que
permitiu alcançar uma redução de até 72% nos preços dos medicamentos contra
retrovírus, para o tratamento da Aids; a realização da Conferência Regional Andina
sobre o Emprego, com sua primeira edição em Lima, em novembro de 2004,
estando a segunda já programada para a Bolívia em 2005 (nos dois casos com a
participação ativa da Organização Internacional do Trabalho); a promulgação da
Comunidade Andina: rumo a um novo modelo estratégico
166 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
166
Decisão 594, visando introduzir conteúdos de integração nos currículos escolares
e a celebração, em Lima, do II Encontro de Escolares da Comunidade Andina
(Cenit Internacional); a participação, cada vez mais dinâmica, dos Conselhos
Consultivos Empresarial e Trabalhista no processo de integração e a prática desse
trabalho conjunto que esses órgãos consultivos desenvolveram e que, entre outros
resultados concretos, facilitará o próximo início do funcionamento do Observatório
Trabalhista Andino; e a criação de outras instâncias de participação da sociedade
civil no processo de integração, tais como a Mesa Indígena e a Mesa para a Defesa
dos Direitos do Consumidor (Decisões 524 e 539, respectivamente).
Meio Ambiente
A Estratégia Regional de Biodiversidade para os países do trópico andino,
aprovada em julho de 2002, constitui a realização mais importante registrada
nesta matéria em nível comunitário. Além disso, conseguiu-se a adoção, em
2001, das “Diretrizes para a Gestão Ambiental e o Desenvolvimento
Sustentável na Comunidade Andina” e, em maio de 2003, os Ministros do
Meio Ambiente decidiram adotar um plano andino de acompanhamento para
Reunião de Cúpula de Joanesburgo, baseado em três temas: mudanças
climáticas, biodiversidade e água e saneamento.
Desenvolvimento e Integração fronteiriça
Um conjunto de normas visa a cobrir as fronteiras e a integração física
por seu caráter estratégico na dinâmica do processo de integração. A Política
Comunitária para a Integração e o Desenvolvimento Fronteiriço estabelece as
diretrizes de política Comum sobre o tema e institucionaliza o Grupo de
Trabalho de Alto Nível para a Integração e Desenvolvimento Fronteiriço. A
Decisão sobre Zonas de Integração Fronteiriça (ZIFs), que impulsionou
trabalhos binacionais na definição oficial de suas primeiras ZIFs, dando impulso,
ainda, aos Centros Binacionais de Atendimento em Fronteiras (Cebaf),
estabelece um âmbito comunitário para as passagens terrestres de fronteira.
Energia
A reunião da Comissão Ampliada, com a participação dos Ministros de
Energia, aprovou, em dezembro de 2002, o marco jurídico necessário para a
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
Allan Wagner Tizón
167
interconexão elétrica e o intercâmbio intracomunitário de energia elétrica. Essa
norma teve resultados imediatos no fornecimento de energia da Colômbia para
o Equador, com benefícios, em preços, para os usuários de ambos os países.
Com o estabelecimento, em junho de 2003, do Conselho de Ministros
de Energia, Eletricidade, Hidrocarbonetos e Minas da Comunidade Andina, e
a realização da primeira reunião ordinária desse Conselho, em janeiro de 2004,
foram iniciadas as ações comunitárias para a efetiva integração dos mercados
energéticos regionais, especialmente daqueles baseados em redes de transporte
(energia elétrica e gás natural), que contribuam na geração de novas
oportunidades de negócios, investimentos e crescimento econômico. Houve
avanços, ainda, no desenvolvimento de clusters energéticos, nos serviços de
energia dentro do âmbito da OMC e nos critérios de segurança energética no
âmbito das negociações hemisféricas.
Foram potencializadas, por sua vez, as vantagens competitivas dos países
da região, ao tornar mais eficiente, mais seguro e menos caro o fornecimento
de energia para suas populações.
Institucionalidade
A Comunidade Andina conta com um acervo institucional e normativo
que pode ser considerado como um dos mais desenvolvidos em seu gênero.
Dentro da estrutura institucional é preciso ressaltar o trabalho do Tribunal
de Justiça da Comunidade Andina, cuja gestão de controle jurisdicional, com
apoio da Secretaria Geral encarregada de vigiar o cumprimento dos
compromissos, busca oferecer a segurança jurídica necessária ao processo.
Igualmente, é reconhecida a eficiente gestão da Corporação Andina de Fomento,
através do financiamento de importantes projetos de alcance nacional, sub-
regional e regional.
Os órgãos intergovernamentais de decisão, o Conselho de Ministros das
Relações Exteriores e a Comissão, adotaram normas para fortalecer a integração
nas mais diversas áreas, como foi descrito nas seções anteriores. A Comissão,
em formato ampliado com Ministros setoriais, tem agora a capacidade de
abordar e legislar sobre temas de energia, transporte, agricultura, economia e
telecomunicações, entre outros.
Comunidade Andina: rumo a um novo modelo estratégico
168 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
168
A setorização dos órgãos comunitários e intergovernamentais convoca
a participação de diversos atores na integração. Foi assim como se deu a
vinculação progressiva de diversos representantes dos setores trabalhista,
empresarial, energético, ambiental, financeiro, acadêmico e educacional, entre
outros, muitos dos quais têm a faculdade de fazer recomendações aos órgãos
decisórios por meio dos diversos Conselhos e Comitês que foram estabelecidos.
II Perspectivas
Atualmente, a globalização apresenta, para os países andinos, um cenário e
desafios radicalmente diferentes daqueles de há 35 anos, quando foi subscrito o
Acordo de Cartagena. Chegou o momento de assimilar a mudança a fim de permitir
uma “Integração para o desenvolvimento e a globalização” que torne possível a
adequada articulação entre a agenda interna do desenvolvimento e a superação da
pobreza, e a agenda externa da inserção internacional competitiva dos países.
Nessa etapa de novos desafios, a Comunidade Andina deve trabalhar
para obter acesso a mercados cada vez mais sofisticados, nos quais se compete
com o conhecimento; evitar que essa nova inserção global faça com que as
sociedades andinas se tornem ainda mais desiguais e fragmentadas; aproveitar
as oportunidades que a Sociedade da Informação apresenta; e acautelar os
nossos direitos sobre os bens públicos regionais; e participar conjuntamente
com o Mercosul na construção da nova Comunidade Sul-Americana de Nações.
Um novo Modelo Estratégico de integração Andina
Após ter enriquecido o nosso processo de integração mediante uma
agenda multidimensional, é preciso, agora, focalizar as ações em um novo
Modelo Estratégico, para o qual a Secretaria-Geral propôs as seguintes linhas
de ação prioritárias:
O aprofundamento da integração comercial e a inserção internacional
É fato que as tarifas tendem a ser cada vez menos relevantes na
perspectiva do livre comércio. É importante lembrar que o atual nível e a
estrutura tarifária nos Países Membros é baixa e pouco dispersa, comparada
com as que existiam nas décadas de setenta e oitenta, quando havia desde
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
Allan Wagner Tizón
169
tarifas infinitas, pela então existente proibição de importações, licenças
prévias, orçamento de divisas e outras práticas de administração do comércio,
incluindo níveis tarifários médios bastante superiores a 40 %. Basta lembrar,
como exemplo, que a primeira proposta de TEC apresentada pela então
Junta do Acordo de Cartagena aos Países Membros, em 1975, contemplava
uma tarifa de 15 níveis, com uma média aritmética de 35 % e uma dispersão
tarifária entre 0 e 75 %; e que para os Programas Setoriais de
Desenvolvimento Industrial foram propostas tarifas médias de 52 % para o
setor de metalmecânica, de 30 % para o petroquímico, de 65 % para o
automotivo e de 24%para o siderúrgico.
Hoje, quando os Países Membros têm tarifas com médias próximas de
10 %, são mais importantes, nas relações comerciais internacionais, as políticas
de competência, a propriedade intelectual, as normas técnicas, as regras de
origem e as compras governamentais. Igualmente, os subsídios agrícolas e
não-agrícolas, as barreiras não-tarifárias, a proteção disfarçada de medidas
antidumping, a falta de um sistema de comércio internacional estável e previsível
e a ausência de uma cooperação internacional habilitadora do comércio e o
desenvolvimento.
Impõe-se, além de tudo, uma luta frontal contra o contrabando que,
na atualidade, adquire formas de crime organizado por sua dimensão e os
métodos que utiliza. Ele constitui um delito que prejudica a produção sub-
regional, afeta o emprego e impede o aproveitamento das vantagens da
integração comercial.
No âmbito andino, o transporte continua sendo crítico para o livre
comércio, e se não for abordado com decisão, tornar-se-á um grave obstáculo
para a inserção internacional das economias andinas.
Também devemos nos concentrar em impulsionar o livre movimento de capitais
e aprofundar o livre comércio de serviços, onde os países andinos têm um importante
potencial, como é o caso dos serviços financeiros, turísticos e profissionais.
Em conseqüência, a normatividade andina deve ser revisada em
profundidade, com o objetivo de tornar realidade entre os Países Membros um
esquema de mercado comum, que consista no livre comércio de bens e serviços
e uma normativa comunitária nas disciplinas incluídas na moderna agenda
comercial internacional, bem como a livre circulação de capitais e pessoas.
Comunidade Andina: rumo a um novo modelo estratégico
170 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
170
Paralelamente, será preciso impulsionar o desenvolvimento das
exportações, para permitir a criação de sinergias, promover o conhecimento
de mercados e técnicas de exportação, e apoiar a geração de uma oferta
exportável de alto valor agregado geradora de empregos. As pequenas e médias
empresas exportadoras andinas deverão desempenhar um papel preponderante
nesse empreendimento.
O desenvolvimento da competitividade
Para aproveitar de forma efetiva as oportunidades que as negociações
comerciais internacionais oferecerão, é indispensável, para os países da
Comunidade Andina, o desenvolvimento de suas capacidades competitivas.
Em caso contrário, não será possível estabelecer uma auto-estrada de mão
dupla com os nossos parceiros comerciais. É por isso que a competitividade
deve se tornar um tema central no novo Modelo Estratégico.
A partir das estratégias nacionais de competitividade, é preciso identificar
as áreas nas quais o processo de integração poderá aportar uma plataforma de
trabalho conjunto, particularmente em temas tais como o desenvolvimento
da infra-estrutura física, políticas educacionais, capacitação no trabalho,clusters
e cadeias produtivas, infra-estrutura industrial e política ambiental.
Nesse contexto, é preciso dar uma importância especial ao
desenvolvimento da competitividade nas chamadas “regiões ativas” e macro -
regiões andinas, especialmente, naquelas vinculadas aos grandes eixos de
integração e desenvolvimento da Iniciativa para a Integração da Infra-estrutura
Regional Sul-Americana (Iirsa).
Transcendência especial têm aquelas ações que podem ser aportadas a
partir da integração para o desenvolvimento competitivo das pequenas e médias
empresas, as quais constituem agentes da primeira ordem no propósito de uma
inserção mais inclusiva dos nossos países no cenário global. Nessa perspectiva,
será favorecida a reativação do Comitê Sub-Regional das PMEs, como um cenário
que permitirá a construção de consensos em nossos países em torno da execução
de “políticas ativas” que façam possível o fortalecimento destas unidades
produtivas para obter o máximo aproveitamento da abertura de mercados.
No tocante ao tema agrícola, o novo modelo estratégico do processo de
integração deveria abordá-lo da perspectiva do “desenvolvimento rural e
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
Allan Wagner Tizón
171
competitividade agrícola”. Assim, numa concepção ampla, o objetivo final
de uma estratégia de desenvolvimento rural seria, no âmbito das orientações
estratégicas descritas, contribuir para a melhora das condições de vida dos
habitantes do campo, promover as condições para conseguir um crescimento
econômico sustentado e garantir o uso sustentável da base de recursos
naturais. Na atualidade, a Comunidade Andina está trabalhando na elaboração
de uma estratégia específica para colaborar na melhora da competitividade
das cadeias de valor associadas à atividade agrícola, o desenvolvimento de
uma estratégia de segurança alimentar que incorpore ativamente as próprias
comunidades camponesas, o fortalecimento da institucionalidade no campo,
a conservação e uso sustentável dos recursos naturais, a promoção de
atividades rurais não-agrícolas e o incremento da integração econômica das
regiões rurais com as urbanas. Tudo isso, por certo, outorgando plena atenção
e consideração à milenária relação cultural e social que existe entre o homem
andino e a terra.
A Comunidade Andina deverá dar especial prioridade, por outro lado,
ao desenvolvimento da ciência e a tecnologia, com a finalidade de sustentar
seu processo de desenvolvimento em uma crescente capacidade de inovação
tecnológica. Para tanto, será preciso adotar um programa de ação específico,
que permita impulsionar os níveis da inversão pública e da privada nesta área
crucial para o nosso desenvolvimento.
Os novos temas estratégicos
Para acentuar o trabalho na integração real e, ao mesmo tempo, continuar
a desenvolver a normativa legal andina, é preciso abordar novas áreas estratégicas
de ação - a partir das vantagens comparativas dos Países Membros - que
fortaleçam sua capacidade para ingressar nos novos cenários da globalização.
Por exemplo, em matéria de energia, os países andinos deveriam
desenvolver uma aliança energética sub-regional, considerando que 52% das
exportações totais andinas para o mundo consistem em produtos desse setor
(petróleo, carvão e gás); que os países andinos possuem quatro vezes as reservas
de petróleo dos Estados Unidos e oito vezes as do Mercosul; além de 74% das
reservas de gás da América Latina e 75% da produção de carvão da região
latino-americana.
Comunidade Andina: rumo a um novo modelo estratégico
172 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
172
Isso permitirá impulsionar sua inserção nos mercados internacionais de
hidrocarbonetos, em um contexto de segurança energética; a promoção do
desenvolvimento de “clusters” energéticos; a negociação internacional de
serviços de energia de alto valor agregado; e a construção de mercados
integrados de energia (eletricidade e gás) mediante redes físicas e quadros
regulatórios harmonizados.
O meio ambiente deve se tornar, também, um tema estratégico da
integração andina, sobre a base dos avanços realizados nos últimos anos, por
meio da Estratégia Regional de Biodiversidade e a Gestão Ambiental para o
Desenvolvimento Sustentável, e do fato de que os países da Comunidade
Andina possuem 25% da biodiversidade mundial e 20% da água doce do
planeta.
Especial atenção deve ser dada aos efeitos da mudança climática sobre a
sub-região andina, especialmente o agravamento do Fenômeno de El Niño e
o degelo dos glaciares da Cordilheira dos Andes que ameaça o ecossistema de
montanha. Nesse contexto, os países andinos deverão trabalhar juntos para
implementar, o mais breve possível, o mecanismo de desenvolvimento limpo
previsto no Protocolo de Quioto, através dos denominados “bônus de
carbono”.
Pelas razões acima expostas, ênfase especial deve dar-se, também, à
cooperação andina em matéria de recursos hídricos e à gestão estratégica
internacional deste crítico recurso, cuja abundância na região andina faz com
que a Comunidade Andina se torne um ator internacional especialmente
relevante.
Os países andinos deverão assumir também uma liderança, dentro do
grupo de países megadiversos afins, para a negociação de um regime
internacional vinculante que regule o acesso aos recursos genéticos, impeça a
biopirataria e proteja o conhecimento tradicional dos povos indígenas.
As novas tarefas políticas e sociais
O novo Modelo Estratégico deve incluir, ainda, novas tarefas políticas
para a integração. Por exemplo, a Comunidade Andina deverá aprofundar ações
em matéria de luta contra as drogas, o terrorismo e a corrupção, e desenvolver
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
Allan Wagner Tizón
173
esquemas de segurança cooperativa, nos planos sub-regional, sul-americano e
hemisférico, que permitam reduzir os gastos militares para dedicar esses
recursos às tarefas do desenvolvimento.
Para executar esse novo Modelo Estratégico será indispensável, também,
fortalecer a cooperação política andina em favor da democracia, o Estado de
direito, os direitos humanos e a governabilidade.
Entretanto, não haverá governabilidade democrática, a não ser que os
nossos países possam avançar na solução da pobreza, a exclusão social e a
desigualdade. Nesse sentido, a Agenda Social Andina deve ocupar um papel
central nos afazeres comunitários.
O desenvolvimento social não é apenas um imperativo ético e um fator
consubstancial do desenvolvimento econômico que busca o processo de
integração, mas é, ao mesmo tempo, um fator de legitimação do projeto sub-
regional perante os povos andinos.
O desafio que a integração enfrenta agora para contribuir na eliminação
do profundo hiato interno dos países é identificar seu “valor agregado” para
atuar sobre os problemas de pobreza, desigualdade e exclusão, através da
mobilização de atores regionais e mundiais em torno das metas da Cúpula do
Milênio na Comunidade Andina; a construção de um espaço comum para as
agendas nacionais; o enfoque espacial das ações – informalidade urbana e
áreas fronteiriças – e bem como o desenvolvimento de ações concretas que
permitam aumentar o nível de legitimidade do processo diante do “cidadão
que está a pé”.
Isso, sem deixar de lado o desenvolvimento da Política Exterior Comum,
a qual deve, entre outros pontos, enriquecer as agendas de relações comunitárias
com os dois parceiros principais da Comunidade Andina, isto é, com os Estados
Unidos e a União Européia; e deve fortalecer a projeção dos países andinos na
direção da Bacia do Pacífico.
Rumo à construção da Comunidade Sul-Americana de Nações
O tema fundamental da Política Exterior Comum dos países andinos é a
recente formação da Comunidade Sul-Americana de Nações na Cúpula de
Cuzco de dezembro de 2004.
Comunidade Andina: rumo a um novo modelo estratégico
174 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
174
A Comunidade Sul-Americana de Nações é sobretudo um grande
programa político e de desenvolvimento regional descentralizado, e uma
oportunidade para corrigir desequilíbrios e assimetrias no interior dos países
dos subcontinente e entre eles, levando bem-estar às regiões mais afastadas
dos nossos países. É um esforço para integrar a América do Sul em torno de
três eixos fundamentais: a cooperação política, a integração econômica e o
desenvolvimento da infra-estrutura.
Quanto à cooperação política, terá como temas centrais a democracia,
os direitos humanos e o desenvolvimento social, além da adoção de posições
conjuntas em temas importantes da agenda internacional.
No concernente à integração econômica, estamos partindo da existência
dos dois processos de integração da região (CAN e Mercosul), cada um com
seus sucessos e seus problemas, aos quais se somam os acordos de livre
comércio assinados recentemente entre os dois blocos. É preciso por em vigor
esses acordos, homologá-los em um único acordo sul-americano e aprofundá-
los para incorporar-lhes elementos mais substantivos da atual agenda comercial.
Em outras palavras, devemos avançar no sentido de um acordo de terceira ou
quarta geração.
Finalmente, com relação ao desenvolvimento da infra-estrutura, cabe
assinalar que em dezembro de 2004 terminou a primeira etapa do programa
Iirsa, com a criação de 10 eixos e 350 projetos, entre eles 32 que foram
considerados prioritários, para serem executados nos próximos cinco anos.
Para que esses eixos sejam de desenvolvimento, e não meros canais de trânsito
de mercadorias, teremos que começar a trabalhar os chamados processos
setoriais, ou seja, tudo o que torne possível a geração de economias regionais
descentralizadas nas áreas de influência desses eixos.
É importante levar em conta o conceito tradicional da Comunidade Sul-
Americana de Nações estabelecido claramente na Declaração de Cuzco, a saber,
que a Comunidade Sul-Americana será construída a partir da convergência
progressiva entre a CAN, o Mercosul e o Chile. Este conceito fundacional é
muito importante, porque indica que não estamos partindo do zero mas de
algo que já existe, e que expressa uma vontade política madura.
Finalmente, quero assinalar que a “integração para o desenvolvimento
na globalização só será possível se os países se comprometerem a desenvolver
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
Allan Wagner Tizón
175
uma rede de normas, relações e mecanismos que transformem esse processo
em uma realidade. Para isso será indispensável incorporar a reflexão sobre o
processo andino e sul-americano ao mundo acadêmico, às organizações
empresariais, aos trabalhadores, aos cidadãos – em suma, à sociedade civil de
modo geral. Só assim a integração poderá ser realmente um instrumento eficaz
para o desenvolvimento dos nossos povos.
Tradução: Luz Maria Montiel e Sérgio Bath.
O sistema eleitoral da República do Suriname
176 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
176
m 25 de novembro de 1975, o Suriname proclamou a sua independência
e a bandeira da Holanda foi substituída pela bandeira surinamense. A
Constituição da Monarquia, que criou uma relação comunitária entre o Suriname
e os Países Baixos, e que durante os últimos vinte e um anos tinha regido o
povo surinamense, deixou de existir, e o Reino do Suriname se transformou
em uma república independente e soberana. No seu Preâmbulo, a nova
Constituição declarava: “Nós, o povo do Suriname ... solenemente... nos damos
a seguinte Constituição.”
“Nós, o povo do Suriname” éramos e continuamos sendo descendentes
de ameríndios, colonizadores brancos, senhores coloniais, seus dependentes e
seus exércitos, escravos negros, judeus portugueses, imigrantes vindos da China,
da Índia britânica (conhecida agora como República da Indonésia), de todas
as ilhas agora conhecidas como Caribe. Em conjunto, esses povos formam o
arco-íris surinamense.
*
Ex-Diretor do Conselho Eleitoral Independente
O sistema eleitoral da
República do Suriname
Samuel Polanen
*
E
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
Samuel Polanen
177
Em 1987, uma nova Constituição foi promulgada, depois da sua adoção
mediante um referendum. Essa Constituição declarava que o Suriname seria um
Estado democrático, unitário e descentralizado, com uma Legislatura nacional
unicameral consistindo de 51 (cinqüenta e um) membros. Denominada
Assembléia Nacional, a nova Legislatura era considerada o órgão mais elevado
da hierarquia constitucional. Foi incluído um capítulo específico lidando com
o tema da democracia política. O Artigo 52 da Constituição utiliza a seguinte
linguagem: “(1) Todo o poder político emana do povo, e deve ser exercido de
acordo com a Constituição. (2) A democracia política se caracteriza pela
participação e representação do povo surinamense, que se expressará por meio
da participação do povo no estabelecimento de um sistema político
democrático, assim como pela sua participação na legislação e administração
tendo por objetivo a manutenção e expansão desse sistema. A democracia
política criará, ademais, as condições para a participação do povo em geral,
mediante eleições livres por meio de voto secreto, para a composição dos
órgãos representativos e do Governo.” As palavras fundamentais desse Artigo
são a participação e a representação do povo.
Participação
O sufrágio universal só foi introduzido no Suriname em 1948. Antes disso
os possíveis eleitores eram impedidos de votar pelas cláusulas censitária (critério
tributário), de capacidade (critério educacional) e de gênero, constantes das leis e
estatutos eleitorais; por isso, o número de eleitores era reduzido. Na mesma
época (em 1948) foram criados partidos políticos autênticos, substituindo os
grupos de apoio dos candidatos, instituídos imediatamente antes de cada eleição,
os quais em seguida desapareciam ou permaneciam dormentes.
Foi a Constituição de 1987 que modificou o regime eleitoral,
estabelecendo no seu Artigo 54 que o Governo estava obrigado “ ... a registrar
todos os eleitores e a notificá-los para que participem das eleições”. O registro
compulsório resultou na emissão de um Título Eleitoral conferido a todos os
cidadãos com mais de dezesseis anos, e a criar um sistema apropriado de
registro dos eleitores, para facilitar o processo eleitoral previsto pelo Artigo
53.” Esse Artigo reconhece “o direito dos cidadãos de estabelecer organizações
políticas, dentro dos limites da Lei.” O sistema é complementado por uma lei
especial sobre organizações políticas (ou seja, partidos políticos), a qual
O sistema eleitoral da República do Suriname
178 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
178
estabelece e determina os critérios aplicados a qualquer entidade para que
tenha esse status legal, sem o que as autoridades eleitorais podem negar-lhe
acesso às eleições.
Representação
Democracia significa governo para o povo e pelo povo. No entanto,
como não é mais possível que todo o povo governe o Estado, como acontecia
na Antigüidade, têm sido criados sistemas para que o povo seja representado
no Governo de forma apropriada e legítima. Neste sentido, foi concebido o
Artigo 55, juntamente com o Artigo 52 da Constituição. A linguagem utilizada
é a seguinte: “A Assembléia Nacional representa o povo da República do
Suriname, e expressará a vontade soberana da nação. A Assembléia Nacional
é a mais alta instituição do Estado.” Além desse nível nacional de representação,
a Constituição criou dois outros níveis, a saber o local e o distrital. Para esse
fim o país foi dividido em dez distritos eleitorais, e estes por sua vez estão
divididos em subdistritos eleitorais. Os distritos eleitorais coincidem com os
distritos administrativos e geográficos. Nesses distritos e subdistritos são
organizadas eleições diretas. Os 51 membros da Assembléia Nacional são eleitos
por dez distritos eleitorais específicos. O seu número varia segundo o distrito,
de acordo com determinados critérios constitucionais. Por outro lado, os
membros dos Conselhos Locais, chamados “Ressortraden”, são eleitos pelos
habitantes desses subdistritos, quando registrados devidamente. Com base
nos resultados das eleições dos diferentes partidos políticos, em todos os
Conselhos Locais de um Distrito um certo número de assentos são concedidos
a esses partidos, nos Conselhos de Distrito separados, e o seu número está
sujeito a uma distribuição proporcional.
Para os eleitores credenciados é muito importante saber de que distrito
ou subdistrito específico são considerados habitantes ou residentes. Para este
fim o Governo emite um cartão de votação para todos os eleitores, e a lista
dos que vão votar é feita com base nesta informação específica.
O cartão de votação contém também informação por meio da qual o
eleitor pode orientar-se com respeito à sua seção eleitoral, o lugar onde se
supõe que exerça o direito de voto, e onde o seu nome deve aparecer na lista
dos eleitores. Se o seu nome não consta dessa lista ele não poderá votar, mesmo
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
Samuel Polanen
179
que esteja de posse de todos os documentos exigidos. Um eleitor pode ser
identificado desta forma: se é um cidadão da República do Suriname, tem
mais de dezoito anos, possui uma carteira de identidade e um cartão de votação;
ou se reside em um dos distritos eleitorais e aparece na lista oficial dos eleitores
publicada pelo Governo. A votação dos ausentes, a votação prévia e o voto
compulsório não são praticados no país.
Os partidos políticos servem como catalisadores do processo político,
mobilizando, organizando os eleitores, recrutando e elegendo das suas fileiras
candidatos para os vários órgãos representativos. Os programas políticos e
eleitorais são concebidos pelas direções partidárias.
No dia das eleições, elas são confiadas a um corpo independente e
autônomo de autoridades eleitorais. Em qualquer distrito ou subdistrito eleitoral
há pelo menos uma seção eleitoral. Em todos os distritos eleitorais existe uma
estação eleitoral supervisionando e coordenando as atividades e funcionando
como agência central dos processos de todas as diferentes estações de votação
na sua jurisdição. Uma estação central de apuração funciona como escritório
nacional de apuração, tabulando os resultados de todo o país. Finalmente, a
Constituição criou um Conselho Eleitoral Independente, supervisor das eleições
em todo o território nacional, e o órgão que declara que os resultados têm
valor legal obrigatório.
Os métodos eleitorais a serem usados são: para o nível nacional, um
sistema proporcional baseado na maior média e com votos prioritários; para o
nível local o critério da maioria simples, o prêmio para o candidato que obtém
o maior número de votos. Todos os membros de todos os órgãos legislativos,
uma vez devidamente eleitos e admitidos, são também membros do Conselho
do Povo Unido - o quarto nível de representação.
Desde 1987, o Suriname vem convidando organizações internacionais
para observar as suas eleições. A Organização dos Estados Americanos, a
União Européia e o Caricom têm aceito essa função, e até o presente momento
todos declararam que o nosso processo eleitoral e as eleições propriamente,
são livres, adequados e transparentes.
De acordo com a linguagem constitucional, o Suriname adotou um
sistema de governo do tipo presidencialista. A Assembléia Nacional exerce a
função de colégio eleitoral. No máximo em dois turnos consecutivos, ela deve
eleger o Presidente e o Vice-Presidente da República. Se não conseguir, há um
O sistema eleitoral da República do Suriname
180 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
180
recurso para o Conselho Unido do Povo. Diferentemente da votação na
Assembléia Nacional, que requer uma maioria de dois terços, o Conselho funciona
com o critério da maioria simples. O Presidente dirige o Governo, enquanto o
Vice-Presidente dirige o Conselho de Ministros. O Governo é constituído pelo
Presidente, o Vice-Presidente e o Conselho de Ministros. O Presidente, em todas
as suas funções, e o Governo, considerado como um corpo, são responsáveis
politicamente perante a Assembléia Nacional. O mandato presidencial, assim
como o mandato dos membros da Assembléia Nacional, é de cinco anos. Nem
a Assembléia Nacional nem o Governo podem remover o outro prematuramente;
como dizem os franceses, aqui o princípio diretor é a “coabitação”.
O panorama político
No ano eleitoral de 2000, um total de 39 partidos políticos foram
registrados, e 21 deles participaram das eleições. Saiu vitoriosa uma
combinação de partidos, conhecida como Nova Frente. Os partidos coligados
são o Partido Nacional do Suriname (NPS), o Partido Unido Reformado
(VHP), o Partido Trabalhista do Suriname (SPA) e o Pertjaha Luhur (PL) -
vinculado à secção indonésia da sociedade surinamense. A coligação
conquistou 32 assentos, de um total de 51. O Presidente e o Vice-Presidente
foram propostos entre os seus membros, e eleitos pela Assembléia Nacional.
A Oposição não se opôs aos candidatos propostos. Desta forma foi eleito
como Presidente o Senhor Ronaldo Venetiaan, que nomeou os membros do
Gabinete. Os outros partidos eram o Partido Nacional Democrático (NDP),
o Partido Nacional Democrático 2000 (DNP-2000), a União dos
Trabalhadores e Agricultores Progressistas (Palu) e a ala política da Federação
de Agricultores e Trabalhadores (PF-FAL). Esses partidos conquistaram 19
dos 51 assentos disponíveis na Assembléia.
Como na nossa história recente nenhum partido político já conseguiu
conquistar a maioria absoluta, os partidos precisam formar coalizões. As
características (as chamadas desvantagens) de um sistema proporcional os
obriga também a trabalhar de forma cooperativa, pois a diferença aritmética
de um pequeno número de votos pode fazer uma diferença considerável na
distribuição proporcional dos assentos. Com respeito às decisões constitucionais
importantes, de que é exemplo preeminente a eleição do Presidente e do Vice-
Presidente, a própria Constituição exige uma maioria de dois terços.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
Samuel Polanen
181
A sociedade colonial segmentada e construída de que se origina a
República do Suriname, criou partidos políticos baseados em valores étnicos,
e não primordialmente em ideologias. Atualmente, pode-se observar uma
mudança nessa atitude e uma mudança de conceituação. Com as eleições no
próximo dia 25 de maio, novos partidos políticos estão sendo instituídos, e
novas combinações de partidos estão sendo formadas. O mundo globalizado,
a atmosfera continental na América Latina e nossa participação no Caricom
são fatores que criam desafios para que o país participe de uma ordem
internacional baseada em princípios democráticos, na solidariedade e no
desenvolvimento para todos, em lugar da etnicidade e de uma política partidária
fechada. As eleições podem preparar o caminho para isso.
No dia 25 de novembro de 2005 a República do Suriname vai celebrar
seu trigésimo aniversário. Que o nosso sistema possa ser fortalecido pela nossa
percepção da democracia e com as lições aprendidas da história.
Tradutor: Sérgio Bath
Uruguai integrado
182 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
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migas e amigos
Ao longo de toda uma semana, durante várias semanas, abordamos os
capítulos mais importantes da proposta programática e dos compromissos do
governo do Encontro Progressista/Frente Ampla/Nova Maioria para
concretizar um projeto nacional de desenvolvimento produtivo sustentável.
Dentro desse ciclo falamos do “Uruguai Produtivo”, da produção e do
trabalho como chaves para o desenvolvimento econômico sadio.
Falamos também do “Uruguai Social”, porque o maior patrimônio de
um país é a sua gente, e a principal responsabilidade de um governo é protegê-
la promovendo o seu direito a uma vida digna.
*
Presidente da República Oriental do Uruguai
Uruguai integrado
Tabaré Vázquez
*
A
A edição de uma revista sul-americana sobre temas de diplomacia, estratégia e política é uma boa notícia.
E se tal iniciativa se emoldura num projeto que leva o nome de Raúl Prebisch, além de uma boa
notícia é um impulso e um desafio
A Revista DEP reúne essas características. Por isso, tendo em vista o convite dos seus Editores, e o
interesse que terão seguramente os seus leitores, apresentamos em seguida uma intervenção feita no dia 4 de
outubro próximo passado pelo atual Presidente eleito da República Oriental do Uruguai, Dr. Tabaré Vázquez,
no contexto da campanha eleitoral.
O seu pronunciamento aborda aspectos da integração regional e a inserção internacional do Uruguai,
da perspectiva do governo que assumirá suas funções no próximo dia primeiro de março.
A vontade expressa pela cidadania uruguaia, na eleição nacional realizada poucas semanas após essa
exposição, confere um significado especial ao seu conteúdo. Essas propostas são agora compromissos de governo.
Dr. Gonzalo Fernández, Secretário (designado) da Presidência da República
janeiro de 2005
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Tabaré Vázquez
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Por outro lado, abordamos o “Uruguai Inovador”, baseado na educação e na
nossa potencialidade para o desenvolvimento da ciência, da tecnologia e da inovação.
E nos referimos também ao “Uruguai Democrático”, à necessidade de
democratizar ainda mais a democracia uruguaia em termos de cidadania,
transparência e eficiência do Estado, ética na gestão governamental.
Sem prejuízo de outros aspectos pendentes, queremos nesta jornada
compartilhar com vocês algumas reflexões, propostas e compromissos com
referência a outro aspecto fundamental do nosso projeto de país: um aspecto
que dialoga com os anteriores, e que chamamos de “Uruguai Integrado”.
“Uruguai Integrado” enquanto estratégia de inserção internacional na
região e no mundo; o que atualmente não é fácil para um país com território
pequeno e pouca população, como é o nosso: desafio que precisamos encarar
com coerência, imaginação e sentido de nação.
Amigas e amigos:
Sabemos todos que a Banda Oriental se transformou na República
Oriental do Uruguai no meio de complexas circunstâncias regionais e
internacionais: primeiro a luta entre Espanha e Portugal, depois entre as
Províncias Unidas e o Império do Brasil, na disputa pelo controle do Rio da
Prata e do que hoje é o nosso território. E como pano de fundo dessas pugnas
(embora na realidade nem tanto pano nem de fundo ...) a presença ativa do
então dominante e onipresente Império Britânico.
Essas circunstâncias determinaram que a dimensão internacional esteja
presente nas próprias origens do Uruguai, na sua formação como país
independente, sua afirmação e consolidação como Estado; as suas possibilidades
de desenvolvimento estão ligadas indissoluvelmente à sua inserção internacional.
Em outras palavras, a viabilidade do Uruguai como nação está ligada
estreitamente ao lugar que ele ocupa na região e no mundo.
Daí a necessidade sempre presente nos discursos oficiais, mas que nem
sempre é devidamente atendida na prática pelos que fazem esses discursos, de
acordar, planejar e instrumentar uma política exterior independente, de Estado,
baseada em grandes valores e princípios.
Política independente porque deve ser elaborada e aplicada pelo governo
nacional sem influências ou pressões de qualquer tipo.
Uruguai integrado
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De Estado, ou nacional, porque precisa basear-se nos mais amplos
consensos políticos e sociais.
E fundamentada em grandes valores e princípios, tais como:
1. O compromisso decidido com a paz, a soberania, a democracia e a
solidariedade;
2. O firme repúdio a todo tipo de terrorismo, violência e discriminação;
3. O direito inalienável dos países de ter fronteiras estáveis e seguras, e de
exercer da forma mais livre sua soberania e autodeterminação;
4. O respeito ao Direito Internacional, entendendo que as normas que
ordenam e regulam as relações entre os Estados constituem a melhor
forma de garantia da convivência pacífica e do respeito aos direitos
soberanos dos povos;
5. O não alinhamento, ou seja, a independência com respeito a alianças
políticas e militares sob a hegemonia de grandes potências, procurando
apoiar todas as iniciativas tendentes ao fortalecimento da paz e ao
estabelecimento de uma ordem mundial mais justa e eqüitativa .
6. A não intervenção nos assuntos internos de outros países, como
expressão do máximo respeito pela soberania de cada povo;
7. A reafirmação do multilateralismo como forma de fortalecer o Direito
Internacional, hierarquizando o papel das Nações Unidas (o que implica
na promoção das formas necessárias para que as suas decisões sejam
mais democráticas e eficazes); e
8. O reconhecimento da indivisibilidade de todos os direitos humanos -
políticos, sociais, econômicos, civis ou culturais – incluídos os direitos
coletivos, tais como o direito ao desenvolvimento e a um meio ambiente
saudável, já adotados pelas normas internacionais.
Amigas e amigos:
Assim como as pessoas, os países começam a relacionar-se, abrindo as
suas portas, a partir da sua realidade mais imediata: os seus vizinhos.
Profundas realidades históricas, políticas, econômicas, sociais e culturais
nos unem com a Argentina e o Brasil.
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O relacionamento do Uruguai com esses países irmãos é fundamental
para manter a nossa estabilidade política e o nosso desenvolvimento econômico:
metade do comércio exterior do Uruguai é representado pelo Brasil e a Argentina;
há importantes fluxos de capital e investimentos com os nossos vizinhos; em
termos demográficos, Buenos Aires é a segunda cidade uruguaia; e a população
total do nosso país equivale à de um bairro de São Paulo. Por outro lado, a
imensa maioria dos turistas que nos visitam cada ano se originam na região.
Nenhum projeto de inserção internacional do Uruguai pode ser executado
ignorando esta realidade ou prescindindo dos nossos irmãos e vizinhos.
Lamentavelmente, estes últimos cinco anos têm testemunhado a
deterioração do relacionamento do governo uruguaio com eles.
Além das tristemente famosas declarações do atual Presidente da
República, que tanto prejudicaram os vínculos com a Argentina e o Brasil, a
política exterior promovida pela coalizão governista sacrificou no altar de uma
inserção unilateral e irresponsável do Uruguai no âmbito internacional, e de
uma relação supostamente privilegiada com a maior potência do mundo atual
1
,
a relação com os nossos vizinhos e a participação convicta e comprometida
do Uruguai no processo de integração regional.
Permitam-me dizer aqui, diante de todos vocês, representantes de
governos amigos e de povos irmãos do Uruguai, dirigentes políticos, agentes
econômicos, líderes sociais e comunicadores que nos acompanham: o governo
progressista vai trabalhar incansavelmente para fortalecer as relações do Uruguai
com os seus vizinhos.
Em conseqüência, quero anunciar que se os cidadãos nos confiarem a
responsabilidade pelo governo nacional nossa primeira missão oficial ao exterior
será, precisamente, para visitar nossos irmãos e abordar com eles esta ampla
agenda de temas comuns.
Iremos ao Brasil e à Argentina, mas também ao Paraguai heróico e
hospitaleiro, esse país irmão com o qual os uruguaios temos uma dívida histórica
que precisamos honrar, além de interesses comuns na construção da integração
regional.
1
Em matéria de Relações Internacionais não precisamos de privilégios, mas sim de respeito, justiça e
solidariedade.
Uruguai integrado
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Como governantes vamos reiterar a nossos irmãos e vizinhos o que já
lhes expressamos como oposição, mas como principal força política deste
país: que aqui existe um Uruguai que quer mais diálogo, maior cooperação,
mais cultura, mais relações entre as respectivas sociedades civis, mais
investimentos e mais comércio com seus vizinhos; e, naturalmente, que há
aqui um Uruguai fortemente comprometido com o processo de integração
regional.
Integração concebida, a partir das nossas fronteiras, não como linhas
divisórias mas como âmbitos de encontro e união para o desenvolvimento
conjunto das zonas fronteiriças, até o Mercosul, como um processo
imprescindível de integração regional em um mundo complexo, caracterizado
pela presença hegemônica de uma grande superpotência e a existência de blocos
políticos e econômicos em permanente interação.
Enfim, vamos dizer a nossos irmãos argentinos, brasileiros e paraguaios
que as mulheres e os homens deste país queremos mais Mercosul, e melhor;
que queremos ser não apenas sócios do Mercosul, mas protagonistas deste
processo de integração regional.
O desenvolvimento das relações bilaterais com os países da região é o
melhor fundamento sobre o qual podemos apoiar a renovação do nosso
compromisso com o Mercosul.
Amigas e amigos:
O processo de integração regional começou com a aproximação histórica
entre o Brasil e a Argentina, no fim dos anos oitenta e no princípio da década
dos noventa.
O Uruguai se integrou a esse processo tardiamente e mal. Não podia ter
sido de outra forma, pois os responsáveis pelos seus sucessivos governos
continuam apegados à fantasia do Uruguai como uma linda casinha em um
ambiente feio, apostam em uma inserção internacional solitária e unilateral,
confundem pragmatismo com incoerência e acreditam nos acordos comerciais,
mas não na integração.
Para conduzir politicamente os processos de integração é necessário ter
coerência: é preciso acreditar nela e assumi-la em todas as suas dimensões,
porque o relacionamento entre os povos e os países é muito mais profundo do
que uma simples relação mercantil.
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A crise que feriu a região, a debilidade dos mecanismos institucionais
comuns e a falta de coordenação das políticas macroeconômicas afetaram
severamente o funcionamento do Mercosul. E seguramente pouco
contribuíram para fortalecer o Mercosul a já mencionada falta de convicção
no processo de integração, por parte dos sucessivos governos uruguaios, como
a sua também já mencionada atitude unilateralista.
No entanto, a história não está predeterminada, ela nem sempre se repete,
e hoje o Mercosul está iniciando novamente um processo de consolidação que
encontrará no governo progressista do Uruguai um aliado e um protagonista.
Permitam-me reiterar: queremos mais Mercosul, e um Mercosul melhor,
e vamos trabalhar para alcançar esse objetivo.
Trabalharemos em uma completa reforma institucional do Mercosul,
que concebemos como um assunto substancialmente político e que implica,
entre outras tarefas, o fortalecimento de todos aqueles setores que nos unem
e que vão cimentando uma prática e um direito comuns para a região.
A construção de instâncias supranacionais representa um desafio
inescapável se pretendemos planejar e implementar eficazmente as políticas
comuns. É preciso pensar e agir na perspectiva do Mercosul.
De acordo com o exposto, promoveremos:
1. A rápida incorporação das normas comuns ao direito nacional dos
países membros;
2. A potencialização da Secretaria do Mercosul de modo que seja um
órgão competente para promover iniciativas, e com a capacidade
operacional necessária para concretizar essas iniciativas;
3. A hierarquização do Tribunal Arbitral Permanente e a da Comissão
do Comércio;
4. O fortalecimento do Foro Consultivo Econômico Social enquanto
representação da sociedade civil;
5. Uma menção especial merecem o Parlamento do Mercosul e a Rede
de Mercocidades;
6. Esta última já é uma realidade. A Rede de Mercocidades recebeu o
impulso de numerosos governos locais da região, entre eles o que
hoje nos está recebendo;
Uruguai integrado
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7. Uma nova instituição do Mercosul precisa recolher essa experiência,
criando-se um Foro de Cidades do Mercosul, para que ali se expresse
toda a criatividade e potencialidade dessas gestões locais, e para que
o Mercosul se potencialize com o alto nível de integração que as
cidades da região já alcançaram;
8. Com relação a este tema quero dizer-lhes que Montevidéu não só
deseja ser a melhor casa de todos que nela vivem, ou a visitam, mas
também quer ser a casa do Mercosul;
9. A estratégia da ação de capital desenvolvida pelo governo municipal
de Montevidéu nos últimos anos terá escala nacional em um governo
progressista do Uruguai;
10. O Parlamento do Mercosul implica uma decisão política fundamental
que deve ser discutida em profundidade para viabilizar a articulação
das agendas sociais, econômicas e políticas presentes no complexo
processo de integração em curso, garantindo a transparência e
democratização das decisões tomadas; e
11. Reconhecemos a complexidade deste processo e admitimos a
necessidade de desenvolvê-lo em etapas, mas nada disso nos faz
renunciar à transcendência estratégica do objetivo proposto.
Amigas e amigos:
A agenda do Mercosul não se esgota nos aspectos institucionais.
Trabalhar por mais Mercosul, e um Mercosul melhor, significa também
trabalhar em outras áreas, e sem pretender esgotar a lista, ou estabelecer uma
ordem taxativa, mencionaremos as seguintes:
1. Complementação da produção. E um tópico substancial no conceito de
integração, pois esta, quando é genuína, implica generosidade e solidariedade
entre os seus membros.
Aspiramos a uma maior integração das cadeias produtivas na região, de
modo a conseguir melhorias efetivas na nossa competitividade, através da
especialização e a complementação dentro do bloco. As bases da posição
competitiva do nosso país e dos nossos sócios do Mercosul não deveriam restringir-
se a questões de custo de mão de obra e disponibilidade de recursos naturais.
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Uma política comum de competitividade, baseada no estímulo à
complementação e especialização das cadeias produtivas, deveria orientar-se
para reduzir a diferença de produtividade com respeito aos países desenvolvidos
e, ao mesmo tempo, contribuir para a redução das assimetrias entre os países
sócios do Mercosul.
Nesta perspectiva, os Foros de Competitividade são um instrumento formidável
de articulação, pois ajudam a explicitar as demandas e necessidades dos diferentes
setores produtivos, assim como a facilitar o planejamento dos negócios.
2. Instrumentos financeiros comuns. A política monetária comum é condição
indispensável de um processo de integração regional, mas além disso devem
ser criadas as bases (pois existem possibilidades reais neste campo) de
instrumentos e instituições financeiras regionais que captem as poupanças
nacionais e as apliquem em atividades produtivas da região, gerando assim um
crédito que hoje é quase inexistente, e regulando também outros pontos, como
o ingresso na região de capitais especulativos e voláteis.
3. Complementação física e de comunicações. Não podemos continuar
condenados à solidão. A integração exige uma rede física que nos una.
Embora seja óbvio, isto requer também planos coordenados para
aproveitar nossos rios e cursos d’água navegáveis, nossas atividades portuárias,
nosso espaço aéreo, nossas estradas, etc.
4. Integração energética. Este é um aspecto fundamental para o Uruguai,
porque embora o país sofra de freqüentes crises de energia, as uruguaias e os
uruguaios temos debaixo dos nossos pés dois dos principais aqüíferos do
mundo, e vivemos em uma região rica em reservas de petróleo e gás, com
enorme potencialidade em termos de fontes energéticas limpas (eólica, solar).
5. Execução de planos de desenvolvimento conjuntos. Embora os processos de
integração não possam ser clonados, para termos uma idéia da importância
deste ponto basta lembrar que a hoje pujante União Européia começou a ser
edificada, entre os escombros da Segunda Guerra Mundial, como uma
comunidade de carvão e aço.
Felizmente nós não partimos de situação semelhante mas, como
observamos há pouco, temos muito que construir em matéria de
complementaridade produtiva, de infra-estrutura física que nos permita a
intercomunicação, de matriz energética, etc.
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6. Complementação científica e tecnológica. Devemos integrar nossa inteligência
e nossos conhecimentos como forma de otimizar recursos, trocar experiências
e técnicos, reduzir custos e inovar.
Precisamos fortalecer e desenvolver capacidades que permitam reduzir
o hiato que nos separa dos países mais desenvolvidos.
Não temos por que nos resignarmos a correr eternamente atrás do
desenvolvimento, quando há a possibilidade de caminhar com ele.
7. Complementação cultural. O governo progressista de uma nação moderna
deve gestionar a multiculturalidade em uma perspectiva de integração regional
e inserção planetária.
Mais ainda: o êxito definitivo e perdurável de uma integração regional genuína
e eficaz se decide na dimensão profunda e íntima da cultura e suas pontes.
Só haverá uma identidade regional se os nossos povos começarem a
reconhecer-se como partes de uma única e dinâmica unidade que compartilharam
no passado, que os vincula no presente e que os projeta para o futuro.
8. Complementação no campo dos direitos trabalhistas e da seguridade social. Uma
integração que responda efetivamente às necessidades e esperanças dos nossos
povos deverá implementar políticas coordenadas de promoção de emprego
decente, que respeite os convênios-quatro e as recomendações da Organização
Internacional do Trabalho e a liberdade sindical dos trabalhadores, assim como
a livre circulação das pessoas no âmbito regional.
9. Articulação em matéria de defesa. No mundo atual, e na perspectiva do projeto
nacional de desenvolvimento produtivo sustentável que o Encontro Progressista-
Frente Ampla-Nova Maioria propõe como estratégia nacional, mais e melhor
Mercosul significa também avançar nos processos de coordenação e cooperação
das Forças Armadas da República com suas congêneres da região, sobre bases de
subordinação ao Comando Superior estabelecido na nossa Constituição,
qualificação profissional, impulso tecnológico e reestruturação orçamentária.
Amigas e amigos:
A história é mais do que cronologia, mas o devenir histórico reconhece
a importância de algumas datas.
Na breve história do Mercosul já existem algumas datas importantes.
De uma delas nos separam pouco mais de dez semanas, setenta dias: com
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efeito, no próximo dia 17 de dezembro se realizará em Ouro Preto uma nova
Reunião de Cúpula Presidencial do Mercosul.
Nessa reunião serão considerados assuntos importantes relativos às
instituições e ao futuro do Mercosul.
Que posições assumirá o governo do Uruguai nessa Reunião? Qual será
a sua atitude diante do governo nacional já eleito, que assumirá no dia primeiro
de março de 2005? Não cabe a nós responder a essas perguntas.
Isso não significa porém que não se façam essas indagações .... Está
claro que elas existem!
Por isso, e diante da perspectiva de que os cidadãos confiem ao Encontro
Progressista-Frente Ampla-Nova Maioria as responsabilidades do governo da
nação, quero manifestar-lhes o nosso compromisso de fazer os maiores esforços
no sentido dos objetivos propostos, e a nossa disposição de fazê-lo o mais
cedo possível, sem invadir competências alheias mas sem renunciar às nossas.
Por outro lado, também não estamos dispostos a manter uma atitude de
indiferença com respeito à inclusão, claramente precipitada, de temas
transcendentais e complexos no fim de uma gestão de governo, os quais
comprometem não apenas o próximo governo como - ainda mais importante -
o futuro das uruguaias e dos uruguaios.
Refiro-me concretamente ao Acordo de Investimentos assinado
recentemente pelo Ministro de Economia do atual governo da República com
o governo dos Estados Unidos, o qual ainda depende da tramitação parlamentar
estabelecida pela Constituição da República.
Quero ser bem claro: o Encontro Progressista-Frente Ampla-Nova
Maioria não foi consultado sobre o conteúdo desse acordo, nem o conhece.
Esta situação nos preocupa, e por razões de elementar responsabilidade
política advertimos que estamos alertas à evolução do assunto em todos os
campos da ação política de que participamos.
Consideramos importante dizê-lo aqui porque um acordo desse tipo,
negociado unilateralmente, significa um desconhecimento do Mercosul e da
necessidade de abordar esses temas do ponto de vista regional. Com efeito,
longe de ser uma fortaleza fechada em si mesma, o Mercosul é uma plataforma
para integrar a nossa região no mundo.
Uruguai integrado
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Unidos teremos um longo caminho para percorrer; sozinhos, nos faltarão
um rumo e um destino...
Amigas e amigos:
Não queremos continuar sozinhos como país ou como Mercosul.
Neste sentido, cabe destacar a prioridade que se deve atribuir às relações
com os outros Estados Associados (Bolívia, Chile e Peru), à ampliação do
Mercosul e à sua interação com outros processos de integração que se
desenvolvem na nossa região.
Estamos conscientes da realidade latino-americana e não ignoramos a
complexidade dos empreendimentos propostos, mas não renunciamos ao
trabalho em prol do que o nosso pai Artigas chama de “sistema americano”.
Um Mercosul ampliado, fortalecido e consolidado deverá reforçar o seu
papel nas negociações da Alca, com a União Européia, com a Índia e a China,
com outros processos de integração e áreas de livre comércio, assim como no
âmbito multilateral, como na Organização Mundial do Comércio.
Nosso compromisso com o Mercosul decorre de uma convicção, por
isso ele é ao mesmo tempo permanente e quotidiano.
No entanto, dentro dessa permanência há momentos que colocam
desafios especiais ao compromissos assumidos.
Quero anunciar-lhes, assim, que atribuímos especial importância à
Presidência pro tempore do Mercosul que o Uruguai vai exercer durante o segundo
semestre de 2005.
Se os cidadãos nos confiarem as responsabilidades do governo nacional
trabalharemos para que essa Presidência seja a que merecem o Mercosul e o
Uruguai.
Amigas e amigos:
O compromisso e a participação do Uruguai no Mercosul não contradizem
uma política ativa de inserção do nosso país no cenário internacional: pelo
contrário, ambas atuam de forma complementar, apoiando-se reciprocamente.
Neste sentido, consideramos que o nosso país deve desenvolver
ativamente suas relações com todos os outros países da América Latina, entorno
imediato do Mercosul e vocação natural e histórica dos nossos povos.
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E ao dizer “todos os países da América Latina” quero significar
precisamente isto: todos, sem qualquer exceção. Porque nos sentimos irmãos
de todos, e com todos nos sentimos solidários, pela razão fundamental de
sermos latino-americanos. Portanto, isso inclui Cuba.
No âmbito interamericano devemos assumir posições e empreender ações
que façam da Organização dos Estados Americanos um instrumento de
afirmação e aprofundamento da democracia na região.
Consideramos importante também dar um novo impulso às Cúpulas
Ibero- Americanas, que constituem um foro privilegiado para fortalecer os
vínculos entre a América Latina e a Península Ibérica e, por meio dela, com o
resto da Europa.
Mas para que esses laços sejam frutíferos, e a comunidade ibero-americana
tenha uma participação efetiva na realidade internacional, devemos passar das
fotos de família aos acordos concretos, das declarações de princípios e valores
compartilhados às ações que desenhem claramente o perfil da ação internacional
dessa comunidade.
A esse respeito, vamos propor um claro compromisso da Cúpula Ibero-
americana com a Iniciativa contra a Fome a Pobreza, e com a abertura dos
mercados dos países industrializados aos produtos provenientes do mundo
em desenvolvimento, como uma forma efetiva de contribuir para a redução
do hiato Norte-Sul e para uma maior justiça internacional.
Esses compromissos deverão efetivar-se em programas de cooperação,
ações coordenadas nos foros internacionais e, especialmente naquelas
negociações relativas ao comércio, tais como a Rodada de Doha, à qual todos
devemos contribuir com inteligência e esforços para que seja uma autêntica
Rodada do desenvolvimento.
Outro capítulo em que o Uruguai precisa desempenhar um papel
protagônico é o relativo ao desenvolvimento da cooperação Sul-Sul. A África
e a Ásia oferecem enormes oportunidades para a promoção das relações de
cooperação técnica e econômico-comerciais mutuamente benéficas.
Amigas e amigos:
O acesso aos mercados, e em particular a agricultura, a eliminação dos
subsídios à exportação e a redução da proteção interna por parte dos países
Uruguai integrado
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desenvolvidos são objetivos fundamentais da nossa política exterior. Para
alcançá-los não podemos estar alheios aos esforços realizados no mesmo
sentido pelos nossos sócios do Mercosul e por outros países em
desenvolvimento.
Inexplicavelmente - melhor dito, por razões que não acolhemos - o Uruguai
se marginalizou do chamado Grupo dos 20, onde devia ter estado desde o
princípio para defender, com os outros membros do Mercosul, condições de
comércio mais eqüitativas, que nos permitam vender os nossos produtos.
O governo progressista tomará medidas para reverter essa situação, e o
Uruguai estará presente em todas aquelas instâncias bilaterais, regionais ou
multilaterais de concertação e negociação que sejam necessárias para alcançar
os nossos objetivos.
Sem arrogância ou provocações.
Mas com convicção e energia.
A integração do país ao mundo também não pode esquecer a relação
com os organismos financeiros internacionais. Também neste terreno, a partir
do cumprimento das obrigações contraídas pelo país promoveremos um
relacionamento de mútuo respeito que leve em conta as necessidades e o direito
ao desenvolvimento do conjunto da sociedade uruguaia.
Amigas e amigos:
A política do governo progressista se nutrirá das melhores tradições que
fizeram do Uruguai, no passado, um país respeitado pela comunidade
internacional.
Respeitado não pela força dos seus exércitos ou pelo poder das suas
empresas, mas pela sua atitude de vanguarda e pela coerência na afirmação de
princípios éticos, de direito e de justiça na relação entre as nações.
O governo progressista resgatará esse legado, e dará prioridade às Nações
Unidas como âmbito de afirmação da vigência do direito internacional e do
multilateralismo diante da força e do unilateralismo nas relações internacionais.
Em um mundo ferido pela fome e a desigualdade, comprometemos todos
os nossos esforços para que a Agenda do Desenvolvimento, que tem como
um dos seus fundamentos mais importantes a Declaração do Milênio, das
Nações Unidas, mantenha sua preeminência frente à Agenda da Segurança.
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Sem desconhecer a importância da luta contra o flagelo do terrorismo,
acreditamos que a gravíssima situação em que se encontram hoje milhões de
pessoas em todo o planeta, nossos semelhantes, não poucos deles nossos
compatriotas, exige uma intervenção urgente da comunidade internacional,
para que esse problema seja resolvido.
Neste sentido comprometemos nosso apoio e a nossa participação ativa na
Iniciativa contra a Fome e a Pobreza, promovida pelo Brasil, Chile, Espanha e França,
com o apoio das Nações Unidas, recentemente anunciada na sede da ONU.
Amigas e amigos:
Permitam-me retornar agora a um conceito que já enunciei, para
desenvolvê-lo brevemente: a defesa e a promoção ativa dos Direitos Humanos,
que será outro signo característico da ação internacional do Uruguai
progressista.
Acreditamos que a realidade do mundo atual, em que a Agenda de
Segurança parece impor restrições crescentes às garantias e aos direitos
individuais, requer uma ação decidida da comunidade internacional para a defesa
e afirmação dos Direitos Humanos.
Como explicar e justificar a existência de presos sem julgamento, privados
dos seus direitos mais elementares? Podemos agora ficar impassíveis diante da
prática da tortura, como se ela não fosse suficientemente aberrante, privatizada
e fotografada?
Esses fatos ferem profundamente a dignidade humana (não só a dos
que sofrem essas práticas mas também , e fundamentalmente, dos que as
aplicam, ordenam que sejam aplicadas ou simplesmente as toleram) e reclamam
a promoção de iniciativas que afirmem a vigência e a defesa dos Direitos
Humanos nos vários foros multilaterais e regionais associados ao tema,
juntamente com os governos e as sociedades civis de diferentes países.
Apoiaremos essas iniciativas.
Vamos recuperar as melhores tradições nacionais deste país quanto ao
desenvolvimento e vigência do Direito Internacional e, em conseqüência,
daremos nosso estímulo e cooperação ao Tribunal Penal Internacional.
Outra tradição da política exterior uruguaia que vamos também recuperar
é a defesa, o desenvolvimento e a promoção dos direitos dos trabalhadores e
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dos sistemas de previdência social. Promoveremos ações no seio da
Organização Internacional do Trabalho para assegurar a defesa desses direitos
e para combater a precariedade nas relações trabalhistas e o desemprego que a
pretendida flexibilidade dessas relações, impulsionada pelo neoliberalismo,
tornou crônicos amplos setores sociais.
A essas tradições acrescentaremos das linhas de ação específicas:
1) Uma firme política de proteção do meio ambiente e uma participação
ativa nas iniciativas tendentes a assegurar o desenvolvimento sustentável,
prevenir e mitigar os efeitos das mudanças climáticas, promover mecanismos
de desenvolvimento limpo e prevenir a movimentação de substâncias tóxicas,
entre outros pontos.
Neste sentido, lutaremos por uma política internacional de proteção dos
recursos naturais do país, em especial aqueles que têm um valor estratégico e
econômico.
2) A manutenção dos tratados e convenções internacionais que
contenham progressos na equidade de gênero, apoiando especificamente as
decisões da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento
(Cairo, 1994) e a Conferência Mundial sobre a Mulher (Beijing, 1995).
Isto supõe também incorporar a dimensão do gêneros às diferentes
instâncias institucionais do Mercosul já existentes, assim como nas linhas de
trabalho a programar para o aprofundamento da integração.
Amigas e amigos:
Para terminar esta intervenção, farei duas precisões de natureza mais interna:
A primeira é a seguinte: para construir uma nação, para levar adiante um
projeto nacional de desenvolvimento produtivo sustentável e para implementar
uma estratégia de inserção internacional consentânea com os fins e objetivos
do país, é necessário requalificar esse instrumento chamado Ministério das
Relações Exteriores.
A ênfase na palavra “instrumento” não é casual. Já o dissemos
anteriormente, e vamos repeti-lo agora: assim como não concebemos um
governo progressista que seja palaciano, assim como não concebemos políticas
sociais para que os pobres continuem pobres, também não conceberíamos
um Ministério das Relações Exteriores fechado em si mesmo, cativo de ouropéis
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
Tabaré Vázquez
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do século dezenove (para não dizer do século dezoito), afastado da realidade,
dos objetivos e das possibilidades do país.
Conforme já anunciamos para outras áreas da administração do Estado,
também no Serviço Exterior vamos promover a sua adequação aos grandes
objetivos nacionais.
Nesta matéria reconhecemos que nem tudo o que existe é ruim; que
certamente não há razão para dilapidar experiências e recursos humanos
valiosos, mas que é preciso também reconhecer que muitas coisas podem ser
aperfeiçoadas, e que algumas exigem muitos aprimoramentos...
A segunda precisão final é a seguinte: a inserção internacional do país,
no quadro de uma autêntica estratégia nacional de desenvolvimento, deve
abarcar também políticas demográficas.
Políticas para que as uruguaias e os uruguaios vivam no seu país. Política
para que as uruguaias e os uruguaios que por diferentes razões não moram
neste país se sintam partes dele.
Políticas de diáspora, mas também, e fundamentalmente, políticas para
evitar a diáspora.
Porque os países são, substancialmente, a sua gente. E na vida da gente
estão as raízes, porque são necessárias.
Amigas e amigos:
Como dissemos no princípio, durante várias semanas compartilhamos
reflexões, opiniões, propostas e compromissos sobre o Uruguai social, o Uruguai
produtivo, o Uruguai inovador, o Uruguai democrático e o Uruguai integrado.
Naturalmente existem outros Uruguais: o Uruguai cultural, o Uruguai
da diversidade étnica, o Uruguai da equidade de gênero, o Uruguai dos jovens,
o Uruguai dos adultos, o Uruguai dos idosos. Mas todos eles, como as diferentes
faces de um poliedro, formam um só país: o Uruguai que nos impulsiona e
nos convoca.
Viemos desse Uruguai, e para ele vamos.
Muito obrigado.
Tradução: Sérgio Bath.
Venezuela: de um sistema político a outro
198 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
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série de acontecimentos políticos desencadeados na Venezuela a partir
dos anos oitenta do século passado, têm chamado a atenção de diversos
analistas, autoridades e acadêmicos. Com efeito, quando o que era considerado
um sistema político estável começou a gerar sinais de instabilidade, a
comunidade internacional tomou consciência de um processo que não só se
havia definido como “saudável”, comparado aos padrões da América Latina,
como também se projetava como modelo a seguir no nosso continente.
A bibliografia da época mostra que para analisar a política na Venezuela
se impôs um paradigma, uma maneira de ver as coisas que situava as suas
coordenadas na tese de que os venezuelanos desfrutavam de um sistema
populista baseado na conciliação das elites. Era um caso clássico de
“pactualismo”, conhecido como “Pacto de Ponto Fixo”, que refletia o consenso
entre as elites para desenvolver uma forma de democracia representativa, com
um capitalismo misto e com o papel preponderante do Estado, dada a natureza
*
Professor Titular da Universidade Central da Venezuela
Venezuela:
de um sistema
político a outro
Carlos A. Romero
*
A
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
Carlos A. Romero
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petrolífera da economia, sob a idéia de que o desenvolvimento econômico
garantia uma mobilidade social sustentada (Kornblith e Romero, 2004).
Três “escolas” criticaram essa explicação dominante. Para alguns analistas
de inspiração liberal não era verdade que o sistema populista de conciliação de
elites tivesse a sua chave no papel de primus inter pares desempenhado pelos
dois grandes partidos políticos - o social-democrático AD e o social-cristão
Copei -, em uma coalizão com a qual todos obtinham ganhos, embora alguns
mais, outros menos. Na verdade, considerava-se que a democracia venezuelana
estava seqüestrada por um Estado capturado por elites separadas de uma
maioria que não se beneficiava com o poder, e que não tinha acesso às decisões
públicas. Para outros analistas, de inspiração marxista, a Venezuela não passava
de um elo, e não o mais frágil, de uma expansão capitalista, onde o país e os
seus governantes tinham um papel dependente. Uma terceira visão propunha
que a chave para compreender as mudanças políticas ocorridas na Venezuela
era a riqueza petrolífera do país.
Este artigo avalia a forma como as origens, o desenvolvimento e as
projeções do sistema político atual foram analisadas com base no sistema anterior
e levando em conta duas premissas: em primeiro lugar, o fato de que é discutível
a validade de observar a política venezuelana exclusivamente da perspectiva
histórica dos acontecimentos, sem levar em conta o importante debate ocorrido
entre as diferentes interpretações que ela levantado no mundo acadêmico. Em
segundo lugar, o fato de que falar de “um sistema político venezuelano” cobrindo
o período de 1958 até os nossos dias, pode não ser adequado.
Quanto ao primeiro aspecto, faz-se referência ao “pactualismo” entendido
como um modelo sob forma de rede, o “middle way” imposto para interpretar
o chamado “êxito democrático venezuelano”, o qual, a partir desse ponto,
provocou a elaboração de um discurso que ocultava grandes dúvidas propostas
por um país que havia atingido a modernidade nas mãos da indústria petrolífera,
com recursos fiscais abundantes, mas que apresentava um enorme déficit social
e de produção.
No entanto, esta visão ideal da política se fazia acompanhar por fatos de
sinalização contrária, dado o desenvolvimento de redes de clientela, uma despesa
pública que crescia a cada ano, uma dívida externa importante (a partir da
década de 1980) e uma série de desajustes institucionais. Isso fazia da democracia
venezuelana não propriamente a “darling” (dentro da concepção de que era
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um caso sui generis), apresentada como um exemplo a seguir nos textos sobre
política comparada da América Latina, mas sobretudo como um modelo, que
a despeito dos arranjos superficiais e dos recursos petrolíferos, não se tinha
institucionalizado, nem havia convencido a maioria dos venezuelanos das
vantagens que apresentava.
Neste contexto, o hiato que se abriu a partir de 1989 não manifestava algo
súbito, produto de um raio inesperado, mas a umidade lenta e persistente que
corroía um processo que estava chegando aos seus limites, no meio de fenômenos
atribuíveis ao resto da América Latina, e que até esse momento pareciam muito
distantes para ser levados em conta no caso da Venezuela: inflação, crises militares,
escândalos de corrupção, crítica popular, mobilizações e abstenção eleitoral.
No seu segundo governo (1989-1993), Carlos Andrés Pérez prometeu
deter a crise do sistema recorrendo à orientação geral do chamado Consenso
de Washington. O efeito de choque aplicado a um país adormecido na
estabilidade imaginária (idéia reforçada pela tese do “pactualismo”) provocou
uma resposta de violência social e desavença política, fazendo com que a
Venezuela passasse a preocupar a Comunidade Hemisférica, com tentativas
de golpe de estado em 1992, a crise constitucional, a saída do Presidente Pérez,
destituído em 1993 e uma situação geral marcada por numerosas dificuldades
políticas (Kornblith e Romero, 2004).
Na sua segunda presidência (1994-1999), Rafael Caldera tentou outra
“receita” para eliminar as causas da crise, calculando que o sistema populista
de conciliação de elites não estava propriamente esgotado, mas apenas
desvirtuado, e que a estabilidade perdida seria recuperada com o retorno aos
“cânones” originais.
Hugo Chávez, líder de um dos distúrbios militares de 1992, oficial
reformado do exército venezuelano, venceu as eleições de dezembro de 1998,
e o agora Presidente Chávez começou a aplicar a sua oferta eleitoral rompendo
com o passado e dividindo a fase democrática da Venezuela em duas etapas:
de 1958 a 1999, definida como a Quarta República, e a partir de 1999 como a
Quinta República. Esse processo passou por uma Assembléia Constituinte,
uma nova Constituição e um novo relacionamento entre o poder político do
Estado e as elites venezuelanas, onde prevalecem, desde então, um claro
desacordo, com massas iludidas e divididas, o aprofundamento do clientelismo,
uma maioria governista instalada em todos os segmentos do poder político e
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uma série de vitórias eleitorais oficiais acompanhadas por abstenção elevada
(vide quadros na página 228).
Transcorridos seis anos do governo de Chávez, o país se mostra aos
olhos da comunidade internacional de forma contraditória. A democracia não
foi abandonada, mas a tese “chavista” de promover uma “democracia
participativa” (tentativa de democracia direta) não conseguiu proporcionar
estabilidade ao país. Continuamos sendo uma nação petrolífera porém, agora
mais do que nunca, e a caminho de ser um “país energético”, aumentou a
pobreza, a classe média foi depreciada, a inflação passou a ser um risco
permanente, e a moeda do país continua a se enfraquecer, a despeito de um
mercado de petróleo estável e de uma receita pública significativa.
Voltamos agora contudo a uma pergunta inicial: Que aconteceu com a
Venezuela? Na realidade, essa pergunta deve transformar-se na seguinte: Que
está acontecendo na Venezuela? O país aparentemente está submerso em
uma crise sem solução, embora três “receitas” salvadoras já tenham sido
aplicadas, uma após a outra.
Quanto à segunda premissa, devemos lembrar que do ponto de vista
constitucional a Venezuela apresenta duas etapas na formação da sua vida
política moderna, embora não tenha havido uma interrupção do processo
democrático na sua herança histórica recente. A primeira etapa vai de 1958 a
1999, se baseava na Constituição de 1961; a segunda começa em 1999, com
base na Constituição daquele ano, e se estende até os nossos dias.
Nossa principal conjectura repousa sobre a idéia de que as mudanças
constitucionais observadas refletem por sua vez diferenças profundas no
estabelecimento da política venezuelana, dentro do quadro dessas duas etapas
- 1958-1999 e de 1999 até o presente (Combellas, 2002).
Para poder explorar as premissas que orientam o presente trabalho, vamos
analisar primeiramente o debate havido sobre a forma de interpretar a política
venezuelana no passado e hoje.
As visões do sistema político venezuelano
Como dissemos na introdução deste artigo, no estudo do sistema político
da Venezuela predominou uma visão funcionalista que situava as suas
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coordenadas na tese de que o povo venezuelano desfrutava de um sistema
populista de conciliação de elites.
Dentro desse quadro, há duas variantes principais que seguiram a mesma
direção: o enfoque procedente do campo histórico-político, que enfatizou o
papel dos partidos políticos e dos dirigentes políticos democráticos na
fundamentação do sistema político, que chamaremos de visão Martz, fazendo
referência ao autor mais representativo dessa corrente, o falecido especialista
norte-americano na Venezuela John D. Martz. Nesta perspectiva, o SPV
(Sistema Político Venezuelano) era visto como o produto da competição
eleitoral de partidos de diferentes ideologias, com a hegemonia do partido
Ação Democrática, de tendência social-democrática e, em menor medida, do
partido Copei, de tendência social-cristã.
Dessa visão decorrem quatro raciocínios de caráter geral: 1) o venezuelano
se identificou politicamente por meio dos partidos e dos seus líderes; 2) os
critérios de associação do cidadão venezuelano eram fundamentalmente
seculares; 3) não havia no país classes definidas ou diferenças étnicas
significativas; 4) portanto, a Venezuela era um país homogêneo e integrado
(Martz, 1977).
Um segundo enfoque de caráter político e institucional acentuou o papel
das elites na criação do SPV: é o que chamaremos de visão Rey, fazendo
referência a seu principal expositor, o cientista político venezuelano Juan Carlos
Rey. Esse enfoque foi o mais utilizado entre os autores venezuelanos dedicados
ao estudo do SPV, e fundamentou a sua análise sobre a idéia de que o SPV foi
o produto de um pacto, no quadro de um sistema populista de conciliação de
elites. Com essa perspectiva chegamos aos seguintes raciocínios: na Venezuela
o sujeito da política não eram nem os partidos nem o povo, mas as elites; e
estas conseguiram alcançar um consenso capaz de dar estabilidade à vida
política, por meio do usufruto da receita pública e da sua distribuição eqüitativa;
por isso, o importante era analisar os critérios racionais que permitiam esse
consenso e o apoio do povo. O que supunha: 1) uma alta capacidade
negociadora; 2) um estilo conciliador de negociação; 3) uma alta desmobilização
social, devida principalmente ao controle das massas por meio de organizações
confiáveis. Para Rey e seus seguidores, o SPV entrou em crise no fim dos anos
oitenta do século passado, já que o consenso inter-elites havia falhado, e não
se gerava na população a confiança na democracia dos partidos (Rey, 1991).
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Carlos A. Romero
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Que têm em comum essas visões? Em termos gerais, o que as une é a
preocupação em analisar os mecanismos explícitos e racionais que dão forma
a um determinado perfil do sistema político venezuelano.
Como adiantamos na introdução deste artigo, três escolas disputaram a
explicação predominante sobre essa estabilidade. Para alguns analistas de
inspiração liberal assumia-se que o SPV estava esgotado, e precisaria ser
suplantado pela liderança da sociedade civil frente ao Estado, e por uma
descentralização política, enfatizando o papel do cidadão na política e
observando uma crítica aos partidos e às outras organizações corporativas.
Chamaremos essa abordagem de visão Copre, uma vez que foi a Comissão
Presidencial para a Reforma do Estado que produziu um maior número de
publicações orientadas em um sentido neoliberal – embora se deva reconhecer
igualmente a contribuição da Cedice, organização venezuelana de tendência
liberal (Kornblith, 1996).
Para uma segunda escola, de inspiração marxista, a Venezuela não passa
de um elo da expansão capitalista, no qual o país e seus governantes têm um
papel dependente. Este enfoque teve um embasamento de natureza
economicista, resultado da tradição marxista existente no país, e indicava o
caráter dependente da sociedade venezuelana, assim como o critério classista
da elite dominante. Nós o chamaremos de visão Cendes, tomando como
referência o instituto universitário desse nome, que publicou pesquisas
importantes com essa orientação. Essa perspectiva enfatizava os processos
socioeconômicos como chave para compreender a política venezuelana, em
sintonia com conceitos tais como a violência política, a marginalidade e a
pobreza, a despesa pública, o papel desempenhado pelo Estado na economia
e na distribuição da renda (Kelly e Romero, 2002).
Essa perspectiva levava a quatro raciocínios derivados: 1) na Venezuela
havia uma grande diferença entre as conquistas da democracia e a vida
econômica do cidadão venezuelano; 2) a Venezuela era um país dependente
dos Estados Unidos; 3) na Venezuela os sujeitos políticos são não apenas os
partidos, mas também o povo; 4) na Venezuela o Estado controla a vida política.
Nesse contexto, há uma terceira escola contrária à tese do “pactualismo”,
que enfatizou a idéia de que para entender o funcionamento do sistema político
e as chaves da sua estabilidade era importante levar em conta a variável
representada pela receita do petróleo, que fazia da Venezuela um caso único
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dentro da América Latina, em termos comparativos. Assim, a estabilidade política
não era o resultado de um consenso entre elites, de uma massa que exercia a
cultura política democrática, ou ainda de uma liderança dependente que dominava
o Estado: era a conseqüência de um modelo econômico rentista (Karl, 1997).
Para afinar os elementos que compõem esta terceira escola seria útil
analisar duas publicações importantes, de autores que queriam relacionar o
SPV com a condição rentista específica da Venezuela, para observar mais
claramente os vínculos existentes no país entre política e petróleo, dentro do
contexto internacional.
O primeiro exemplo desta corrente intelectual que vamos analisar é o
livro de Diego Bautista Urbaneja intitulado Pueblo y Petróleo en la Política Venezolana
del Siglo XX (Urbaneja, 1991), no qual o autor se pergunta inicialmente o que
pensam as elites sobre o povo, e como cada uma das correntes ideológicas
presentes na história das idéias na Venezuela (liberal, positivista, marxista e
democrática) reagem a esse tema. Em segundo lugar, Urbaneja propõe a idéia
de que na Venezuela existe um Estado rentista que não tem uma missão
redistributiva, já que não extrai recursos da sociedade, as ao contrário distribui
uma riqueza que não é produzida pela sociedade, no quadro de um rentismo
sociológico que impulsiona uma maior autonomia do Estado (Urbaneja, 1991).
Em 1997, Terry S. Karl publicou um excelente livro intitulado The Paradox
of Plenty: Oil Booms and Petro-State (Karl, 1997). Karl aceita várias das teses
apresentadas previamente por Urbaneja, mas contribui para colocá-las em uma
perspectiva comparativa, uma vez que o caso venezuelano é observado
juntamente com outros países de economia petrolífera (Karl, 1997).
No começo do livro, Karl se pergunta por que os países subdesenvolvidos
petrolíferos experimentaram uma forma quase igual de deterioração econômica
e incerteza política, a despeito das diferenças no contexto geopolítico,
apresentando idênticas estratégias de desenvolvimento e trajetórias semelhantes,
com resultados perversos (Karl, 1997: XV).
Neste contexto, Karl discute dois problemas centrais desse tipo de
economia: 1) os efeitos perversos da chamada “enfermidade holandesa” – o
processo mediante o qual um crescimento exponencial de um determinado
setor da economia deprime os demais, o que leva, no longo prazo, a um
estancamento geral da economia. Neste sentido, os países subdesenvolvidos
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exportadores de petróleo exacerbam a dependência de um único produto. 2)
Em segundo lugar, para a autora a origem das receitas públicas influi na
conformação das instituições públicas: o Estado, o Regime, o Governo. O
Estado (a burocracia e as instituições) é uma estrutura organizacional
permanente; o Regime determina as estratégias a seguir para a tomada de
decisões; e o Governo consiste nos atores (políticos representando os partidos,
administradores civis e militares) que ocupam posições dominantes dentro do
Regime, em determinado momento (Karl, 1997: 14). Por isso, o centro de
acumulação beneficiado pela renda do petróleo é o Estado, e não o setor
privado, o que produz um comportamento rentista da sociedade, levando à:
1) importância do tema petrolífero na política: 2) resistência às mudanças por
parte da maioria de uma sociedade protegida e subsidiada; e 3) expansão
desmedida do Estado.
De outro lado, a autora se opõe à tese do caráter excepcional da situação
venezuelana, com base nas premissas adotadas por Martz e Rey (eleições periódicas,
pactualismo, partidos políticos, elites e consenso). Segundo Karl, essa visão é
incompleta, pois não leva em conta o problema do acesso à renda do petróleo. Por
outro lado, esta “Venezuela de pactos” reforçou a renda petrolífera desde 1958,
dando lugar a uma “democracia sem perdedores” (Karl, 1997:111).
Vale lembrar que o caso venezuelano foi difícil de incluir de modo
satisfatório nas classificações gerais comparativas dos regimes políticos da
região (Levine, 1973; Romero C., 1992). Durante muito tempo o SPV, modelo
político venezuelano, foi considerado um exemplo para as propostas de
transição do autoritarismo para as democracias pactuadas, embora alguns dos
seus elementos fossem objeto de críticas, feitas de diferentes ângulos.
Visto de uma perspectiva racional, o SPV teve alguns pressupostos
básicos. Era um modelo de democracia presidencialista, com uma economia
mista, um sistema de partidos, eleições periódicas e liberdade política. Por
outro lado, três tendências socioeconômicas se destacavam: a importância da
receita petrolífera, a limitada distribuição da renda, o papel central do Estado
na vida econômica do país. Em terceiro lugar, foi mantido um grupo de “mitos”
políticos que sustentaram o modelo: o mito do progresso da população, pelo
fato de viver em um país petrolífero; o mito de que o venezuelano é
essencialmente democrático e o mito da estabilidade política (Van Der Dijs,
1993; Capriles, 1993).
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206
De um sistema a outro
Período 1958-1999
Em fins da década de 1980, o SPV passou por uma grande crise. No
entanto, não houve uma mudança significativa nas suas estruturas, embora
nos últimos anos dois dos seus indicadores mais importantes – o crescimento
econômico e o apego dos partidos à democracia - caíram por terra com o
surgimento de uma inflação significativa e do desencanto político manifestado
em uma elevada abstenção eleitoral, assim como no apoio circunstancial a
dois candidatos vitoriosos contrários ao sistema, com tendências autoritárias:
Caldera em 1993, e Chávez em 1998 (Rey, 1980; Romero, 1992).
A partir desse momento houve uma produção heterogênea de livros e
artigos sobre a política venezuelana, procurando compreender as mudanças
políticas havidas no país desde os acontecimentos de fevereiro de 1989, a
eclosão de violência social denominada “el Caracazo”. Essas contribuições fazem
um esforço para analisar a razão pela qual o sistema político venezuelano,
baseado na Constituição de 1961 e no pacto entre as elites, cedeu lugar, em
apenas nove anos, a um regime semi-autoritário, com uma nova Constituição
que se afastava do projeto liberal democrático, adotando a tese da democracia
participativa e protagônica, e da presença militar. Neste quadro, a personalidade
do Presidente Chávez, a mudança nas relações entre civis e militares, que
formam as bases para uma democracia tutelada, o conteúdo da nova
Constituição de 1999, o deslocamento do poder eleitoral por parte dos partidos
tradicionais e o retorno a políticas econômicas de tendência protecionista
chamavam atenção sobre o que se considera como um novo regime, e para
outros é na verdade um novo projeto nacional: a “Revolução Bolivariana”
(Gómez Calcaño, 2000; Álvarez 2000; Urbaneja, 2000; Salamanca, 1997).
No entanto, que teria ocorrido para explicar essa mudança? Cabe lembrar
que a partir da queda do ditador Marcos Pérez Jiménez, em 1958, os
venezuelanos criaram um sistema político democrático, que pôde desenvolver-
se por mais de duas décadas sem maiores contratempos. Os partidos
majoritários - Ação Democrática, de tendência social-democrática, e Copei,
de inclinação social-cristã, se alternaram no Poder Executivo, e quase sempre
controlavam também o Poder Legislativo e o Judiciário. Desta forma, diversos
analistas estrangeiros e locais coincidiram em que o modelo venezuelano podia
ser classificado como um sistema de partidos, alternativo e com tolerância das
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
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minorias, no quadro de um pacto entre elites, onde a direção impulsionada
pelos partidos prevalecia sobre os demais fatores políticos.
Neste contexto, a Constituição de 1961 determinou as regras do jogo e o
quadro jurídico-institucional para estabilizar um sistema que até 1999 se manteve,
segundo a tese pactualista, sobre bases sólidas: sete períodos presidenciais
constitucionais, um capitalismo misto com papel predominante por parte do
setor público, dadas as receitas do petróleo e a capacidade de gasto do Estado;
controle dos sindicatos e dos movimentos sociais, por parte dos partidos
majoritários; relações estáveis entre civis e militares, sob controle civil; um
empresariado privado leal a um sistema que lhe concedeu créditos, proteção e
estímulos fiscais, com base em um modelo de crescimento voltado para dentro;
uma população beneficiada por um constante crescimento econômico e de
situação de emprego estável; um valor favorável e fixo da moeda local, em relação
ao dólar (4,30 bolívares para um dólar americano), uma inflação moderada, de
menos de dois dígitos, e amplas oportunidades de ascensão social.
A despeito da presença de movimentos de guerrilha urbana e rural, de
importância mediana, entre 1961 e 1967, duas tentativas de golpe de Estado,
em 1962, e a existência de setores radicais marxistas, nacionalistas e
conservadores, minoritários, que criticavam a “democracia limitada” e a
“economia concentrada no Estado”, a democracia venezuelana conseguiu
superar seus obstáculos iniciais, convertendo-se em “exemplo” para a América
Latina, por ter evitado o rompimento da ordem democrática e uma crise
econômica generalizada. Desta maneira se formou um “petro-estado” dotado
de um sistema político de partidos, com pouca participação da sociedade civil
e com uma população que cada cinco anos votava em sua maioria nos
candidatos dos dois principais partidos do centro, AD e Copei, em eleições
gerais, legislativas e presidenciais.
Embora no princípio certos aspectos negativos fossem considerados
como anomalias passageiras, a ineficiência de alguns governos, a corrupção
administrativa, a falta de canais de participação para os setores emergentes, o
fracasso das políticas sociais, o aumento da abstenção eleitoral e os indícios de
uma crise econômica levaram nos anos 1980 à percepção de que o sistema
político venezuelano estava em crise, e que seria necessário reformá-lo. Para
uma parte da elite política essa reforma poderia ser feita dentro dos limites da
Constituição de 1961, com uma mudança interna do Estado; para outros, a
Venezuela: de um sistema político a outro
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208
alternativa ao sistema existente tinha por base a proposta de um processo
constituinte, com a mudança radical das estruturas políticas do país. Para um
terceiro setor, as falhas registradas eram apenas conjunturais, e podiam ser
reparadas na medidas em que fossem mantidas ou ampliadas as receitas fiscais
e a capacidade de contrair empréstimos no exterior.
A verdade é que o país começou a perceber que a riqueza petrolífera
tinha seus limites, que o grande complexo clientelístico reunindo Estado e
sociedade não se sustentava mais, que surgia o problema do pagamento da
dívida externa, devido ao seu montante e ao desperdício desses recursos em
gastos correntes e em megaprojetos; que a moeda começava a se desvalorizar
e que a legitimidade do sistema diminuía gradualmente, à medida que cresciam
os protestos sociais, a incerteza econômica, a corrupção administrativa e a
pouca eficiência de um setor público excessivo.
Neste contexto, quando o então Tenente Coronel Hugo Chávez Frias decidiu
participar da tentativa de golpe militar contra o governo democrático de Caracas,
em 1992, ele nunca pensou que a história lhe daria a oportunidade de dirigir o país
por outros meios. Com efeito, Chávez e os seus seguidores se tinham preparado
para tomar pela força um poder que consideravam “seqüestrado” por uma liderança
partidária que tinha fracassado, deixando de levar a felicidade aos venezuelanos.
Embora a tentativa de golpe tenha fracassado militarmente, ela despertou uma
sociedade que desde então passou, em sua maioria, a simpatizar com uma causa
que, apesar de ter uma mensagem confusa, indicava um propósito: era preciso
mudar a história da nação (Gómez Calcaño, 2000).
Com efeito, um país com um nível elevado de divisas, produto da receita
petrolífera, que tinha podido instituir um modelo democrático, que havia
disciplinado as Forças Armadas dentro do quadro civilista, e que contava com
sólido prestígio internacional, em poucos anos se viu envolvido em um processo
de desintegração. Lamentavelmente, tinham sido perdidas várias oportunidades
para reformar o sistema e adequá-lo às novas realidades internacionais e nacionais
(Cardozo de Silva, 1998; Romero, 1992; Urbaneja, 1991; Oropeza, 2000).
No cárcere, depois de ser preso pela participação na tentativa de golpe,
Hugo Chávez compreendeu que a vitória, em 1993, de Rafael Caldera, um ex-
Presidente da República que tinha rompido com o partido que ele mesmo
fundara em 1946, o partido Copei e a aliança heterogênea que o havia apoiado,
era - juntamente com outras manifestações eleitorais e sociais, como a
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
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insurreição popular de fevereiro de 1989 e vários outros protestos - o indício
de que o país se estava afastando da influência do passado, e procurava encontrar
algo diferente. Não obstante, a aura que cercava Chávez, pela sua prisão, não o
fez abandonar a ilusão de poder conquistar o poder pela força. Só em 1994,
quando é solto, vai percorrer o país e aceitar a possibilidade de vencer as
eleições presidenciais de 1998 (Gómez Calcaño, 2000; Alvarez, 2000).
A partir desse momento, Chávez comandou a formação de uma aliança
política formada por três grandes setores - o militar, que o acompanhava desde
1992, e mesmo antes. O revolucionário tradicional, uma esquerda que o viu
como uma figura providencial; e grupos culturais, empresariais e sociais que de
algum modo se tinham afastado da política tradicional, não vinham participando
da luta política, estavam marginalizados do poder, provinham da derrota da
Luta Armada na Venezuela dos anos 1960, ou que simplesmente viam com
olhos oportunistas a tendência do processo político nacional (Álvarez, 2000).
A aposta deu resultado. O maior partido do país, a Ação Democrática,
de tendência social-democrática, se dividiu e escolheu um candidato presidencial
pouco atraente, Luis Alfaro Ucero, que era o seu Secretário Geral. O partido
social-cristão Copei apoiou a candidatura independente de uma ex-Miss
Universo, Irene Sáez. Setores independentes viram na figura do ex-governador
do Estado de Carabobo, Henrique Salas Römer (que contava com o apoio do
seu partido, Projeto Venezuela, e que era um defensor do processo de
descentralização), uma solução anti-partido não radical. Nesse contexto, Chávez
rompeu a qualificação de candidato da esquerda e golpista, em que os
adversários queriam situá-lo, e recebeu o apoio de muitos setores, como o
Movimento Quinta República MVR, fundado em 1997, que era o seu próprio
partido, e outras agremiações do centro e da esquerda, além de setores sociais,
culturais e empresariais. Diga-se de passagem que no último momento os
partidos AD e Copei abandonaram seus candidatos para apoiar Salas Römer,
numa tentativa desesperada de derrotar Chávez nas eleições presidenciais de
1998 (Gómez Calcaño, 2000).
Período 1999-…
Desde que Hugo Chávez conquistou a presidência da República, em
dezembro de 1998, com 56% dos votos, ele reforçou suas colocações eleitorais
Venezuela: de um sistema político a outro
210 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
210
e avisou que o seu mandato não seria apenas mais um governo do que chamava
de “Quarta República” (o período compreendido entre 1958 e 1999). Sua
pretensão era fundar a “Quinta República”, que começou em 1999, e nesse
sentido promoveu a convocação de uma Assembléia Constituinte, que redigiu
uma nova Constituição “feita sob medida”, incorporando a extensão do período
presidencial para seis anos, com a possibilidade de reeleição imediata (a
Constituição de 1961 não contemplava a reeleição imediata, e o mandato
presidencial era de cinco anos).
Em matéria de política exterior, Chávez se afastou da política pró-
ocidental equilibrada, que tinha caracterizado os governos anteriores, e começou
a definir uma ação externa mais “progressista” - ativa, contraditória e
acompanhada fortemente por gestos terceiromundistas. No campo da
economia, o governo de Chávez sustentou, em quase seis anos, a política mista
Estado e mercado do governo anterior, mas com traços populistas em matéria
de distribuição de recursos por meio de planos sociais de assistência direta,
aprofundando ao mesmo tempo o caráter petrolífero da nação.
Isto foi acompanhado por um deslocamento das elites políticas
tradicionais, afastadas das instituições públicas. O Ministério, a estrutura
organizacional do Estado, os membros da Assembléia Constituinte e da
Assembléia Nacional, os governadores e prefeitos são em sua maioria
representantes de uma nova equipe cívico-militar de dirigentes que chegou ao
poder pela mão de Chávez (Alvarez, 2000; Kelly e Romero, 2002).
Transcorridos seis anos de governo (o primeiro ano sob a Constituição
de 1961 e os cinco seguintes sob a Constituição de 1999), a Venezuela se
encontra hoje diante de uma encruzilhada. A convocação da Assembléia
Constituinte, a promulgação de uma nova constituição (em dezembro de 1999),
o início de um novo período presidencial de seis anos a partir de janeiro de
2001 (vale lembrar que em julho de 2000 houve novas eleições presidenciais,
sob a vigência da Constituição de 1999, e Chávez saiu vitorioso com 57% dos
votos), a instalação do novo poder legislativo: a Assembléia Nacional, que
substituiu o Congresso bicameral previsto na Constituição de 1961, e o próprio
exercício do governo mostram que houve no país uma mudança fundamental.
A partir de 1999, a Venezuela se movimenta politicamente dentro das
seguintes coordenadas: nota-se um alto grau de presidencialismo e personalismo
na figura de Chávez, e o apoio popular à sua figura ainda se mantém, como se
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
Carlos A. Romero
211
viu no processo de relegitimação eleitoral do Poder Executivo e do Poder
Legislativo nas eleições do mês de julho de 2000 e no referendum revocatório
presidencial de agosto de 2004. Embora a oposição tenha sido reduzida,
institucional e eleitoralmente, conta com grande projeção na mídia, e o setor
militar adquire prerrogativas e mandatos nunca vistos desde 1958, observando-
se porém divergências internas na instituição militar.
Do ponto de vista econômico, a elevação dos preços do barril de petróleo
a níveis que já tinham sido esquecidos permitiu a Chávez o disfarce de uma
estabilidade monetária, cambial e da inflação, promovendo a despesa pública
e comprometendo-se a um endividamento interno sustentado. Desde 2002
tem havido desvalorizações sucessivas da moeda venezuelana, o Bolívar, e
uma tímida inflação (Astorga, 2000).
Não se pode esquecer, finalmente, o fato histórico de que a esquerda
venezuelana, com seus diferentes matizes e distintos níveis partidários e
intelectuais, encontrou na figura de Hugo Chávez uma plataforma político-
eleitoral para a conquista do poder. Com efeito, Chávez reviveu e implantou
no governo e no país uma visão econômica estruturalista e anticapitalista
baseada nas idéias do fortalecimento do Estado como instrumento central do
desenvolvimento e do protecionismo à indústria nacional, formando assim
um pacote ideológico “antiocidental” configurado em uma cosmovisão
antiimperialista (Kelly e Romero, 2002).
Findo o ano de 2001, surgiam na Venezuela algumas tendências que
indicavam que o ano seguinte seria decisivo para a sustentação do regime
chavista. Em primeiro lugar, a própria imagem presidencial tinha feito do
Presidente Chávez uma figura pouco formal, que em seus movimentos, oratória,
formas de comunicar-se e colocações políticas expressava e expressa uma
personalidade complexa. Isso o afastou de setores da classe média e também,
embora em menor medida, de alguns setores populares. Em segundo lugar,
notava-se uma deterioração da legitimidade do Presidente, já que a
personalização do processo de mudança afetava também sua legitimidade como
Chefe de Estado.
Observou-se também, para esse ano de 2001, uma deterioração da
situação política, na medida em que ao já indicado juntava-se o ressurgimento
de uma oposição estruturada, que atuava por meio de instituições como
Fedecâmaras e CTV, além de algumas organizações não governamentais. Essa
Venezuela: de um sistema político a outro
212 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
212
divergências tiveram um ponto de inflexão no dia 15 de dezembro de 2001,
quando a Confederação de Trabalhadores da Venezuela (CTV), o órgão sindical
máximo, controlado pela Oposição, e Fedecâmaras, promoveram uma greve
nacional de doze horas contra as políticas governamentais. Juntou-se a isso o
ritmo crescente da oposição dos meios de comunicação social – a imprensa, o
rádio e a televisão – com acusações levantadas por Chávez de uma suposta
conspiração para derrubá-lo, o que gerava um clima de instabilidade política.
Assim, no ano de 2002 houve mais greves, uma greve geral, outros
conflitos e surtos de violência urbana e de delinqüência, que se fizeram
acompanhar por uma maior oposição ao governo por parte dos meios de
comunicação social de propriedade particular, provocando ameaças de controle
ou de fechamento desses órgãos por parte do governo.
Não podemos deixar de mencionar as causas da rebelião cívico-militar
de quinta-feira, 11 de abril de 2002, e dos dias que se seguiram, que ficou
conhecida como “El Carmonazo”. Em primeiro lugar, o descontentamento da
classe média, dos empresários e de parte dos trabalhadores, com a forma como
Chávez vinha conduzindo o país, disposto a dividir a Venezuela em duas
metades. Em segundo lugar, a fragmentação política das Forças Armadas,
onde coexistem vários grupos, havendo divisões ideológicas e rivalidade entre
as forças singulares. Em terceiro lugar, o cansaço geral pelos conflitos
provocados por Chávez contra a Igreja, a Pdvsa (a empresa petrolífera estatal,
onde foram despedidos mais de 18 mil trabalhadores que fizeram uma greve
em março de 2002 e em janeiro e fevereiro de 2003) e os meios de comunicação
social. Apesar disso, o Presidente Chávez reassumiu o poder no dia 14 de abril
de 2002, devido em primeiro lugar ao apoio popular e militar que recebeu,
mas também às rivalidades internas militares dentro do grupo conspirador e o
sectarismo de alguns governantes provisórios que tentaram governar de facto
eliminando os poderes públicos (Kornblith e Romero, 2004).
Depois do golpe militar de abril de 2002, da greve nacional de dezembro
do mesmo ano e de janeiro de 2003, e da greve petrolífera de janeiro e fevereiro
de 2003, o Presidente Chávez se manteve em controle da situação, com o
apoio da maioria dos oficiais das Forças Armadas. Para Chávez (e os seus
seguidores mais próximos) quem quer derrubá-lo do poder são os setores
ligados à indústria mundial do petróleo e aos Estados Unidos, que pretendem
“castigá-lo” por governar para os pobres, e também pelos preços elevados do
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
Carlos A. Romero
213
petróleo, que ele há dois anos de certo modo ajudou a aumentar com a política
de reduzir a produção adotada pela Opep. Em segundo lugar, o Presidente
Chávez sabe que há uma conspiração da mídia, que pretende desprestigiá-lo
internacionalmente, e que tem ramificações mundiais.
De outro lado, como resultado do trabalho da OEA, do Centro Carter e
de um “Grupo de Amigos da OEA”, no contexto da crise venezuelana, foi
criada em maio de 2002, uma Mesa de Negociação e Acordos, que em um
esforço de quatro meses deu solidez à necessidade de procurar uma solução
pacífica e democrática para a crise da Venezuela. No entanto, a ausência de
um acordo e de resultados concretos desesperou a maior parte da população
opositora, pondo em dúvida o trabalho sistemático dos dirigentes dentro da
Coordenação Democrática que trabalharam de boa fé nessa direção.
Do ponto de vista internacional, apesar das tentativas feitas pela oposição
de denunciar Chávez em algumas chancelarias ocidentais e em organismos
multilaterais, o governo da Venezuela continuou a manter relações diplomáticas
e comerciais com todos os países com que se relacionava em novembro de
2002, e o que se nota, na verdade, é uma redução das pressões internacionais.
Em novembro de 2002, entidades opositoras do governo de Chávez,
que formavam um grupo importante, criaram a Coordenação Democrática,
para reunir os esforços contrários ao governo promovidos por esses setores.
Seu objetivo inicial era organizar um referendum consultivo, conforme a
Constituição de 1999, para obrigar à renúncia do Presidente Chávez. Mais de
dois milhões de pessoas assinaram essa petição, mas em janeiro de 2003 a
Secção Eleitoral do Supremo Tribunal de Justiça deu uma sentença declarando
imprópria essa petição. No entanto, a Coordenação Democrática teve outra
iniciativa: o chamado “Firmazo”, processo mediante o qual se conseguiu o
número suficiente de assinaturas para convocar um referendum revocatório
presidencial (RVP). Em agosto de 2003, mais de três milhões de assinaturas
foram depositadas junto ao Conselho Eleitoral Nacional, e em setembro o
Conselho determinou, por maioria qualificada, que havia omissões e problemas
técnicos nessas assinaturas (Kornblith e Romero, 2004).
A Coordenação Democrática insistiu em recolher novamente outras
assinaturas (processo que ficou conhecido como “El Reafirmazo”) para convocar
um referendum revocatório presidencial, conforme previsto na Constituição
de 1999, depositando junto ao Conselho Eleitoral Nacional quase três milhões
Venezuela: de um sistema político a outro
214 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
214
e meio de assinaturas, número superior ao de votos obtidos pelo candidato
presidencial opositor Henrique Salas Römer, em 1998, e pelo candidato opositor
Francisco Arias no ano de 2000. Mais uma vez o Conselho Eleitoral Nacional
manifestou reservas sobre essas assinaturas, mas concordou com a sua
“reparação”, o que foi feito, e desta forma em 15 de agosto de 2004, o
referendum teve que ser aceito como uma solução pacífica e constitucional
para a crise da Venezuela.
O desenvolvimento político no sentido do referendum revocatório
presidencial manifestou uma enorme falta de confiança das partes interessadas.
Embora tivesse aceito o referendum, o governo se via confrontado por uma
crise de legitimidade, devido aos escândalos de corrupção no mundo do petróleo,
à duvidosa campanha de inscrição no Registro Eleitoral Permanente (REP), as
reservas a respeito do processo de automatização do referendum e a politização
da administração pública. Por parte da oposição observou-se um atraso no
preparo da organização dos votantes, e a discussão desnecessária sobre o processo
de transição (cujo tema era o que fazer caso Chávez deixasse a presidência), que
desviou a atenção do objetivo fundamental: conseguir a vitória no referendum.
Com efeito, a Coordenação Democrática não pôde superar seus problemas
internos, e não concretizou um comando eleitoral eficaz e uma linha política
clara e homogênea para opor-se a Chávez e seus seguidores.
Faltando três semanas para o dia 15 de agosto de 2004, a Venezuela
ingressava em uma segunda fase do referendum, que se caracterizou pela
aparente estabilidade e o compromisso dos atores envolvidos, para garantir
que o processo ocorresse sem contratempos, mediante a aceitação do resultado.
No entanto, em um país dividido, em que o governo ampliava a despesa pública
mas havia um desemprego da ordem de 21% (que está agora em 17%), com o
preço do barril de petróleo a 34 dólares, mas com um déficit de caixa na Pdvsa
de cerca de cinco milhões de dólares, e uma inflação de 11% pelo que faltava
do ano, a mais elevada em toda a América Latina.
Os resultados do referendum revocatório foram: 60% para o NÃO e 40%
para o SIM, o que provocou um grande choque na oposição, que pensava ter
ganho a disputa. No meio da derrota sofrida em 15 de agosto, a liderança da
oposição adotou uma dupla estratégia, aprofundando as denúncias sobre a fraude
presumivelmente cometida e começando os preparativos para participar das eleições
para governadores e prefeitos, marcadas para o dia 31 de outubro daquele ano.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
Carlos A. Romero
215
Na realidade, a Coordenação Democrática quis fazer “barulho” sobre a
fraude presumida para não assumir a sua derrota, para não aceitar a necessidade
de uma auto-crítica pela má administração da sua campanha, e por procurar
chamar a atenção da comunidade internacional que, segundo a Coordenação
Democrática, tinha assumido uma posição excessivamente passiva diante da
vitória do “NÃO”, que seria um produto de várias fraudes, de manipulações
eleitorais e de uso indevido de recursos públicos.
Some-se a isso o fato de que o governo e o oficialismo tinham a primeira
opção para vencer as eleições para governadores e prefeitos, marcadas para o dia
31 de outubro de 2004. A derrota do referendum revocatório, a divisão com
respeito ao lançamento de candidatos únicos, o desgaste de estar em oposição
ao governo, as manipulações governistas e a abstenção projetada dos eleitores
oposicionistas prejudicaram a pretendida recuperação das forças antigovernistas.
Com respeito a este último ponto, cabe destacar que estamos falando de
setores que tinham participado da campanha do referendum, e que agora
pensavam que nada de pacífico havia para fazer com relação ao governo, e que
não se deveria participar das eleições regionais e municipais. Paralelamente, havia
outros setores minoritários de caráter radical, que insistiam em uma solução
violenta. As pesquisas de opinião mostravam que mais de sessenta por cento
dos eleitores que se identificavam como oposicionistas afirmavam que não iriam
votar, e só 25% dos eleitores favoráveis ao governo diziam o mesmo. Assim, no
total cerca de 55% dos eleitores afirmavam que não iriam votar.
Ao lado dessas considerações é preciso levar em conta o debate ocorrido
no seio da oposição a respeito de participar ou não das eleições de 31 de
outubro, bem como a negativa da OEA e do Centro Carter de atuar como
observadores nessas eleições. Quanto ao primeiro ponto, havia na oposição
três grupos: um deles queria denunciar todo o processo eleitoral, e fazer pressão,
nas ruas, para cancelar a data de 31 de outubro, postergando-se as eleições
para depois de alcançado um consenso sobre a depuração do Registro Eleitoral
Permanente (REP) e a regularidade do processo. Um segundo grupo defendia
a tese de que não se deveria pressionar para cancelar a data, mas simplesmente
participar da eleição e deixar o processo eleitoral e mãos dos governistas, para
que ganhassem todos os cargos. Um terceiro grupo defendia a tese de que, a
despeito da tendência favorável ao governo no concernente às eleições para
governador, prefeito e deputado regional, a oposição devia participar da eleição.
Venezuela: de um sistema político a outro
216 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
216
Os resultados do processo eleitoral de 31 de outubro de 2004, ratificaram
os prognósticos sobre a abstenção elevada: 54,7%, com uma maior presença
governista entre governadores e prefeitos. De acordo com os resultados
alcançados e oficializados pelo CNE, os governistas têm agora 20 governadores
sob seu controle, dos quais 9 são militares reformados, além de 236 prefeituras,
cabendo à oposição só dois governadores, de Nueva Esparta e Zulia, e 98
prefeituras.
Mas o tema mais importante com respeito a essas eleições é a abstenção
muito alta, que prejudica tanto o governo como a oposição, e mostra que o
povo venezuelano está cansado de tanta politização, e desconfia cada vez mais
das instituições eleitorais.
Por outro lado, os resultados obtidos em 31 de outubro de 2004 revelam
uma grave crise de governabilidade na maioria das regiões, pois os governistas
saíram vitoriosos com uma margem de votos muito pequena, em um contexto
de grande abstenção do eleitorado. Em outras palavras, sua base de apoio
político é fraca, e eles precisarão satisfazer demandas sociais muito vultosas.
Essas expectativas poderiam fraturar a base de apoio do governismo em
nível nacional, que repousa fundamentalmente no mecanismo utilitário da
despesa pública. E é precisamente nesse aspecto que se pode ver a maior
vulnerabilidade do governo: como satisfazer as demandas acumuladas este
ano, quando se vislumbram restrições financeiras para o próximo ano?
(Magallanes, 2004).
Em síntese, seria possível dizer que a partir de 1999 observamos três
sub-etapas na experiência chavista. A primeira vai de 1999 a 2000, considerada
como uma fase de consolidação de um novo sistema político (a Assembléia
Constituinte, uma nova Constituição, o deslocamento de elites e uma nova
eleição presidencial em 2000). A segunda sub-etapa, entre 2000 e 2004 (crise
do novo sistema, o golpe de 2002, a greve geral e a greve petrolífera de 2002-
2003, o controle das Forças Armadas e a erradicação de focos de oposição na
administração pública e na Pdvsa). E uma terceira sub-etapa a partir do
referendum revocatório presidencial e das eleições para governador e prefeito,
em 2004, com o perigo de recorrer à coerção no caso de falharem os
mecanismos utilitários e de legitimidade, no quadro da transformação de uma
economia que está deixando de ser petrolífera e passa a ser energética, com o
aumento da produção de gás natural e de petróleo pesado e extrapesado.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
Carlos A. Romero
217
Conclusões
As mudanças globais afetaram o processo democrático mundial, na medida
em que as instituições fundamentais da democracia moderna, os partidos políticos
e os sindicatos, assim como o Estado de Direito, perdem a sua capacidade de
resposta. Por isso surge com muita força o debate sobre a interdependência
econômica, a relação entre governantes e governados e entre a democracia direta
e a democracia representativa, a judicialização da política, as limitações da
economia neoliberal e seus efeitos sociais, a internacionalização da política, o
processo migratório, a falta de confiança no destino da economia, a exportação
de capitais e as transformações no relacionamento entre civis e militares.
Nesse quadro, os temas da agenda política dos nossos países se tornaram
mais complexos, enquanto os temas da agenda mundial, como a incerteza dos
mercados financeiros, a dívida externa, os direitos humanos, o meio ambiente
e perfectibilidade do sistema democrático se impõem como sendo de “alta
política”, ao lado dos temas tradicionais de segurança e diplomacia. No meio
disso, surgem sérias interrogações sobre as diferenças entre as democracias
minimalistas focalizadas no plano institucional-eleitoral e as democracias
maximalistas com conteúdo social. Este último tipo de democracia está
focalizado no plano sócio-econômico, além do plano político.
Este debate adquire uma relevância especial no momento em que se
propõe a redução do Estado do bem-estar social, as transformações da
democracia representativa e o impacto das atividades da sociedade civil e a
reforma do Estado com bases privatizadoras, uma economia de mercado e
um ajuste econômico.
Nesse contexto, a América Latina apresenta uma série de “cadeados” que
não tem podido abrir, e que adquirem força com as transformações globais. A
tensão entre as idéias liberais e o caudilhismo, a tensão entre civis e militares,
entre a institucionalização e a informalidade, entre elites fechadas, a redução da
classe média e o número cada vez maior de pobres, a relação traumática com os
Estados Unidos e o debate sobre o reformismo, os posicionamentos populistas
e as teses revolucionárias conformam uma contradição permanente entre as
aspirações de desenvolvimento político e econômico e assimetrias crescentes.
Por essa razão, ao lado de alguns problemas estruturais que identificam
a América Latina (como por exemplo a dúvida sobre como resolver as
Venezuela: de um sistema político a outro
218 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
218
contradições entre a difusão e a concentração do poder, o papel das classes
médias na estabilidade dos nossos países, as limitações ao crescimento
econômico e o clientelismo), se impõem temas “novos”, derivados da
globalização. A combinação desses dois macroprocessos se converte em uma
interrogação importante para os que aspiram a compreender as nossas
realidades, o que por sua vez permite formular as seguintes perguntas: 1) Qual
a variável mais importante para analisar a situação atual? 2) Podem os governos
democráticos alcançar o crescimento econômico? 3) Como se distribuem os
custos originados pelas transações entre capital, trabalho e outros fatores
econômicos? 4) Se as teses do mercado livre, do pacto social, os regimes
militares e comunistas já não servem, e se a América Latina experimentou
todos esses caminhos, que outro existiria para aplicar?
A Venezuela não foge a essa realidade. Em uma época que tem derrubado
vários paradigmas, teorias, escolas e abordagens explicativas que pretendiam
explicar nossas circunstâncias, o caso da Venezuela dá origem a vários
questionamentos, na medida em que alguém se pergunta o que acontece com
um modelo de democracia que mudou por dentro, sem romper a ordem
constituída, mas que sofreu transformações profundas no seio da sua realidade
política recente.
Com efeito, a crítica à democracia representativa e ao modelo “misto”
de economia afetou o caso venezuelano de três modos. De um lado, enquanto
isso significou a perda da condição sui generis atribuída ao país em comparação
com os outros países latino-americanos. Por outro lado, com referência à
resposta dada ao problema do desenvolvimento, ou seja, a proposta de uma
democracia representativa de perfil petrolífero. Finalmente, enquanto isso
permitia repensar a experiência venezuelana com base em novas propostas
teóricas, que contribuíram para superar a tese do “pactualismo”, assim como
a tese “petrolífera”.
Recordemos duas colocações gerais sobre a política latino-americana:
em primeiro lugar, a análise da política regional tem repousado
fundamentalmente em um ciclo dicotômico e oscilante entre uma vertente
pessimista e outra otimista. Em segundo lugar, essa perspectiva não tem levado
em conta, ou em alguns casos não tem privilegiado a presença de elementos
irracionais na política, e se o fez foi através da sua consideração como “desvios”
do modelo racional-legal.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
Carlos A. Romero
219
No contexto de todas essas reflexões, como se poderia colocar o caso
venezuelano? Como se pode conhecer verdadeiramente a política da Venezuela?
Estamos falando de uma mudança do Sistema Político Venezuelano ocorrida
desde 1999?
As abordagens Martz, Cendes, Rey e Copre insistiram no negativo para
o SPV do Estado rentista. Pelo contrário, sustentamos que o Estado rentista é
a razão de ser do SPV no período 1958-1999, e também no período atual. Ao
mesmo tempo, em conseqüência da crise política vivida nos anos 1992, 1993,
1999 e 2002, ampliou-se a crença de que o SPV experimentou grandes
transformações no sentido da participação e da descentralização. Suspeitamos,
ao contrário, que desde 1980 o processo político venezuelano demonstrou
seu caráter estatizante e autoritário, no meio de um baixo crescimento
econômico, com inflação moderada – o contrário do que aconteceu no período
1958-1979 (Karl, 1997; Gómez Calcaño, 2000; Alvarez, 2000; Puente, 2003).
Com base nas considerações precedentes podemos dizer que são duas
as chaves para entender o “caráter” do SPV: de um lado, o estatismo e o
clientelismo; de outro, a dependência da receita petrolífera em que se encontra
a despesa pública. Neste sentido, vale a pena explorar quais são as chaves para
entender a razão por que o SPV foi substituído totalmente por um regime
militar ou revolucionário. Dois elementos são sugeridos: 1) o paradoxo de
haver maior estabilidade do sistema, e por sua vez um refluxo do apego à
política por parte dos venezuelanos, e em menor medida da adesão à
democracia; 2) “a Venezuela é uma bilheteria”, como exclamou sabiamente
um ex-Presidente da República, em um momento de angústia. O que significa
que a despesa pública nunca deixará de crescer, enquanto se mantiver a receita
do petróleo e uma rede clientelística.
Tudo isso nos leva a insistir na necessidade de empregar neste caso um
modelo diferente de análise. Esse modelo alternativo tem que incluir nos seus
pressupostos alguns dos elementos já citados, assim como outros novos. Deste
modo, teremos uma visão panorâmica mais nítida do SPV que se vem consolidando
desde o ano de 1999, assim como uma maior força teórica e metodológica para
abordá-lo. Poderemos assim compreender a resposta dada pela Venezuela às
transformações globais, sobretudo depois da vitória do Presidente Hugo Chávez
nas eleições presidenciais de 1999, o desenvolvimento do processo da Assembléia
Constituinte e a promulgação da nova Constituição, em 1999.
Venezuela: de um sistema político a outro
220 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
220
Em princípio, esse modelo alternativo precisa “desconstruir” a tendência
cronológica linear que tem dominado no nosso país a análise histórica
contemporânea, a qual acentua, de um lado, que o sistema democrático é uma
etapa superior ao passado ditatorial, e de outro, a tendência a unificar as
ocorrências históricas por meio dos períodos presidenciais, deixando de lado a
possibilidade de abranger diversos eventos, nem causais nem necessariamente
homogêneos. Ao mesmo tempo, é necessário aceitar a propriedade de dividir
analiticamente o processo político venezuelano em duas partes: em primeiro
lugar, o período de 1958 a 1999, no quadro de um sistema político de democracia
representativa, com base na Constituição de 1961; e um segundo período, a
partir do ano de 1999, no quadro de um sistema político de democracia
representativa, com base na Constituição de 1999 (Magallanes, 2004).
Diante disso, novas correntes teóricas permitiriam ampliar a faixa de
conhecimento e compreensão da realidade venezuelana, que experimentou a
criação, a sustentação e as imperfeições de uma ordem democrática, dentro de
processo de uma “crise sem solução”, com um crescimento sem
desenvolvimento, no meio de um boom energético. Da mesma forma, surgem
como espaços analíticos a aprofundar o deslocamento das elites a partir de
1999, a ausência de um consenso generalizado (tese pactualista) e os efeitos
nocivos da “enfermidade holandesa” (tese petrolífera).
Para explicar a crise venezuelana surgem, a título de exploração, as
contribuições da economia a respeito da “tomada” do Estado venezuelano
por grupos específicos e das conseqüências da inflação e da política cambial.
É preciso incluir também as propostas dos estudos culturais para o
conhecimento das características da violência social no país, o
redimensionamento de uma cultura política democrática e a falta de apego a
ela. E também os elementos provenientes da abordagem jurídica, quanto ao
estudo dos problemas da justiça distributiva e do conceito de eqüidade; as
contribuições dos estudos sobre a globalização, com respeito ao fenômeno
migratório e à presença de organismos internacionais na dinâmica interna; e
dos estudos sobre a segurança e as relações entre civis e militares, tendo em
vista a importância do setor militar na atual vida política venezuelana (López
Maya, Smilde e Stephan, 2002; Combellas, 2002; Puente, 2003).
A combinação das abordagens tradicionais com esses novos enfoques
poderia mostrar o caminho para compreender um caso que no princípio da
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
Carlos A. Romero
221
década de 1960 parecia “diferente” do restante da América Latina, e que agora
mostra uma incerteza intrínseca.
Apêndice
Abstenção eleitoral na Venezuela porcentagem (%)
Eleições presidenciais
Eleições Regionais e Municipais
Venezuela: de um sistema político a outro
222 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
222
Referenda
Fuente: CONSEJO SUPREMO ELECTORAL/CONSEJO NACIONAL ELECTORAL DE VENEZUELA.
SÉRIES ESTATÍSTICAS).
Tradução: Sérgio Bath.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
José Bedoya Sáenz
223
Gil Imaná Garrón
José Bedoya Sáenz
*
*
Diretor da Academia Nacional de Bellas Artes H. Siles
“Rostros eternos como mar congelado
rígidos mantos color de suelo
ojos cerrados mirando desde dentro
manos de raíz petrificada”
Yolanda Bedregal
A vida de Gil Imaná e a sua obra estão marcadas por dois fatores
extraordinários: o apego à terra e a vivência de um riquíssimo contexto social
Tormenta en los Andes, 1986
Gil Imaná Garrón
224 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
224
e histórico, que deu forma à Bolívia atual, rica em diversidade cultural e em
processos interculturais. Esses dois fatores se fundem no crisol de uma
sensibilidade extraordinária, capaz de modelar de forma surpreendente a
paisagem andina e a alma dos homens e mulheres que a habitam, mediante
expressão vigorosa que lhes dá uma presença universal.
Tempo de crescer
Nascido em 1933, na capital histórica do país e no contexto em que a
Bolívia enfrentava a Guerra do Chaco - conflagração bélica que deixou uma
ferida profunda, pois questionou os próprios fundamentos da nacionalidade,
dando origem a uma fase de grande debate intelectual, em que os tema da arte
e da estética não estiveram ausentes. Nesse cenário, em que as idéias se
mesclavam com as aspirações e os sonhos, em que se gestavam as mudanças
sociais mais profundas da história do país, formou-se o menino e depois o
jovem artista, em um ambiente familiar cheio de estímulos e de afetos.
Os debates sobre o indigenismo e o academicismo, e entre esse último e
a modernidade, tiveram um papel preponderante na formação do artista que
com treze anos já chamava a atenção dos seus professores pela destreza com
que desenhava. O mestre lituano Juan Rimsa, um dos maiores expoentes do
indigenismo, grande conhecedor da técnica e da cor, selecionou um grupo de
jovens estudantes da Academia Zacarias Benavides, de Sucre, e criou uma
oficina de formação na qual se destacaram os irmãos Jorge e Gil Imaná Garrón.
Entre a terra e o homem
Em 1950, um grupo de jovens intelectuais e artistas, comprometidos
com as reivindicações sociais dos trabalhadores, reuniu-se sob a denominação
de “Anteo”, tomando como referência a personagem mitológica que recebeu
da terra a sua força. Desse grupo participam, além de Gil Imaná e do seu
irmão Jorge, os pintores Walter Solón Romero e Lorgio Vaca, que adotam o
mural como meio de expressão, dentro da linha do muralismo social, realizando
um número importante de obras em colégios, universidades e instituições
públicas, primeiramente na sua cidade, e depois no resto do país.
No dia 9 de abril de 1952, um levante popular instituiu o governo da
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
José Bedoya Sáenz
225
chamada Revolução Nacional, presidido pelo Dr. Victor Paz Estensoro. Esse
governo levou a cabo medidas de profundo conteúdo social, como a
nacionalização das minas, a reforma agrária e o voto universal, entre outras; e
além disso promoveu o desenvolvimento das artes, o que abriu uma
oportunidade para a criação desses pintores, que plasmaram nos seus murais
um sentimento nacionalista e de reivindicação social, passando a ser conhecidos
como os “pintores da Revolução”, parte da chamada “geração de 52”, que
marcou os caminhos da arte boliviana da segunda metade do século XX.
Caminhar no tempo
A obra de Imaná é seguramente uma das mais representativas da arte
latino-americana. A sua força expressiva, característica da região andina, e o
desenvolvimento dos elementos plásticos que emprega em composições
sóbrias, nas quais as formas geométricas lembram a trama dos tecidos artesanais
andinos, as formações pétreas da montanha, ou a cruz andina de Tiuanaco,
geram ritmos muito controlados em que a cor da paleta de tom terroso nos
lembra a solidão da paisagem do altiplano boliviano, do qual emergem como
montanhas as suas mulheres, rigorosas e austeras no tratamento formal, mas
cheias de uma ternura que só a firmeza do gesto e o sentimento do artista
podem transmitir.
Com o passar do tempo, o seu trabalho identifica-se por uma busca
constante, rica em contrastes, oscilando entre o mental controlado e o gestual
espontâneo. Embora o desenho domine a sua primeira etapa, logo abre caminho
para a cor, que sustenta e maneja com maestria. Emprega acentos de alto
contraste tonal e de ousadia ao introduzir o traço negro, espaços brancos e
toques rubros. Finalmente, os limites da pintura e do desenho se diluem em
uma etapa onde as formas alcançam uma síntese surpreendente, a gestualidade
do traço e da pincelada lhe atribui grande força expressiva.
De qualquer forma, a obra de Imaná tem uma poesia simples, que traduz
com considerável fidelidade os sentimentos mais profundos das populações
da região andina, conseguindo comover o espectador com uma economia de
elementos que surpreendente e transcende fronteiras, sendo reconhecido como
um dos expoentes mais importantes da arte latino-americana.
Tradutor: Sérgio Bath
Gil Imaná Garrón
226 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
226
Construtora
Norberto Odebrecht
Construtora Norberto Odebrecht foi fundada em 1944, em Salvador, Bahia,
por Norberto Odebrecht, dando origem à Organização Odebrecht. Com
planejamento, disciplina e inovações, a empresa promoveu grandes transformações
nos métodos construtivos tradicionais nos anos 40 e, ao longo da década seguinte,
consolidou sua presença no mercado baiano.
Nos anos 60, a Odebrecht expandiu sua atuação para o Nordeste,
acompanhando o desenvolvimento da infra-estrutura industrial da região,
estimulado pela ação da Sudene. Ainda no final dessa década, a Construtora
Norberto Odebrecht iniciou sua expansão para o Sul e Sudeste do país. Na época,
os desafios no campo da engenharia eram as obras de tecnologia especial, como
metrôs, usinas nucleares, emissários submarinos, aeroportos e grandes pontes.
A Odebrecht teve atuação expressiva nesse período ao conquistar contratos
para empreendimentos de grande porte, como o Aeroporto Internacional do
Galeão, o Campus da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, a Usina Nuclear
de Angra dos Reis e o Edifício-Sede da Petrobras, no Rio de Janeiro, bem como
a Ponte Colombo Salles, em Santa Catarina. Assim, em meados da década de 70,
a Odebrecht tinha se tornado uma empresa com presença nacional.
A
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
José Bedoya Sáenz
227
A internacionalização da Construtora Norberto Odebrecht começou há 25
anos. Já nessa época, obras importantes desempenharam papel pioneiro em prol da
integração da América do Sul. Em 1979, com a construção da Hidrelétrica Charcani
V, no Peru, e as obras de desvio do Rio Maule, no Chile, para a construção da
Hidrelétrica Colbún-Machicura, iniciava-se uma longa trajetória de aprendizado e
atuação em projetos de impacto para o desenvolvimento subcontinental.
Em 1980, a Odebrecht incorporou a Companhia Brasileira de Projetos e
Obras - CBPO, hoje CBPO Engenharia Ltda., empresa paulista fundada em 1931
pelo engenheiro Oscar Americano da Costa, fortalecendo sua qualificação na área
de construção pesada. A CBPO era uma das maiores construtoras brasileiras, com
um corpo técnico de alto nível e uma extensa lista de obras realizadas no sul do
país: as usinas de Itaipu, Xavantes, Capivara, Nova Avanhandava, além das rodovias
dos Imigrantes, dos Trabalhadores e Castelo Branco, entre outras.
Em 1984 estabeleceu-se na África austral, também na construção de
infra-estruturas. Destacou-se em Angola, em consórcio com a
Tecnopromoexport - TPE, uma empresa da extinta União Soviética, no projeto
e construção da hidrelétrica de Capanda, a 400 km de Luanda, fundamental
para o desenvolvimento econômico de toda a região.
Em 1986, com a compra da Tenenge - Técnica Nacional de Engenharia, a
Odebrecht ganhou força no segmento de construção industrial. Fundada em
1955, por Antonio Maurício da Rocha, a Tenenge já tinha participado da
montagem de cerca de 40% de todo o complexo siderúrgico e da instalação de
mais de um terço do parque hidrelétrico do Brasil.
Neste mesmo ano, a Odebrecht inicia sua atuação na Argentina, com a
construção da Hidrelétrica de Pichi-Picún-Leufú, na Patagônia. No ano
seguinte, em 1987, inicia sua atuação no Equador, com a construção da primeira
etapa do Sistema de Irrigação Santa Elena, na região de Guayaquil.
A experiência dos primeiros anos em outros países, inclusive aquela adquirida
pelas equipes da CBPO e da Tenenge, possibilitou o início de uma nova etapa de
atuação internacional, caracterizada pela integração de empresas locais e pelo
renovado aprendizado de distintas realidades culturais e mercadológicas.
Essa nova fase começa em 1988, com a aquisição da empresa portuguesa
José Bento Pedroso & Filhos, rebatizada de Bento Pedroso Construções S.A.
– BPC. Integrada à Odebrecht, a BPC vem participando de empreendimentos
Gil Imaná Garrón
228 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
228
decisivos para a modernização da infra-estrutura portuguesa, como a ampliação
da Auto-Estrada Nacional 1, a Ponte Vasco da Gama, a Via Infante Dom
Henrique, no Algarve, e trechos e estações do Metrô de Lisboa.
Essa fase continua em 1991, com a incorporação da SLP Engineering,
empresa do Reino Unido especializada na construção de módulos de
acomodação para plataformas offshore. Também neste ano, a Odebrecht
ingressou no mais competitivo mercado mundial: os Estados Unidos. Vencendo
a concorrência para a ampliação do Metromover, metrô de superfície que serve
à área central de Miami, na Flórida, tornou-se a primeira empresa brasileira a
realizar uma obra pública naquele país. Nos anos seguintes, realizou uma série
de obras em território americano, como a Barragem Seven Oaks, na Califórnia,
concluída em 1999, e o ginásio de esportes American Airlines Arena, em Miami,
inaugurado em 2000. Atualmente, está concluindo o complexo cultural
Performing Arts Center e o Terminal Sul do Aeroporto de Miami.
Em 1992, a Odebrecht iniciou a sua atuação no Uruguai e na Venezuela,
respectivamente, com as obras de saneamento de Montevidéu e a construção
do Centro Comercial Lago Mall, em Maracaibo. Ainda na Venezuela, atualmente,
a empresa é responsável pela construção da Segunda Ponte sobre o Rio Orinoco,
em Porto Ordaz, projeto rodo-ferroviário que faz parte do Eixo do Escudo
Guaianense da IIRSA, a Iniciativa para Integração Regional Sul-Americana.
Também neste ano, a Odebrecht instalou-se no México para a construção da
hidrelétrica de Huites. Um ano depois, na Colômbia, construiu as estações de
bombeamento da British Petroleum e, na Bolívia, executou a pavimentação da
rodovia que liga Santa Cruz de La Sierra à Trinidad, sendo estas as suas primeiras
obras nesses países.
Mais recentemente, em 2003, a empresa conquistou contrato para
execução das obras do Aqueduto Noroeste, na República Dominicana. Neste
mesmo ano, a Odebrecht instalou uma base de operações no Oriente Médio,
nos Emirados Árabes Unidos, por meio da qual também passou a estar presente
em Djibuti, no Leste da África, onde está construindo um terminal portuário.
Durante esse percurso os negócios da Odebrecht sempre souberam
respeitar os assuntos internos de cada país onde a empresa se instalou, pois os
seus integrantes conhecem bem o valor da isenção política e da objetividade
empresarial no mundo contemporâneo. Não obstante, as atividades
internacionais ensinaram à Organização a enfrentar adversidades provocadas
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
José Bedoya Sáenz
229
por convulsões sociais em nações amigas, experiências que a fizeram conhecer
de perto o que tais flagelos representam para suas populações.
Delas veio também o ensinamento de que o progresso só é, de fato,
alcançado quando as obras maximizam a geração de oportunidades reais de
desenvolvimento e integração regionais, ao invés de servirem unicamente como
eixos de ligação entre centros distantes.
A Odebrecht vende principalmente serviços e, assim, promove troca de
conhecimento e tecnologia. Ela leva ao exterior o nome do Brasil associado à
imagem de competência e competitividade. Transporta, portanto, além da
engenharia e da indústria, a cultura nacional. Faz isso no cotidiano da interação
com as comunidades locais por meio da conseqüente compreensão das suas
realidades.
Hoje, as empresas de Engenharia e Construção da Odebrecht estão
presentes em países da América do Sul, América Central e Caribe, América do
Norte, África, Oriente Médio e Europa. Na edição de 2004 do Guia Global da
Construção, da ENR-Engineering News-Record, principal publicação de referência
do setor, a Odebrecht ocupou o 25ª lugar na lista das 225 maiores construtoras
internacionais, reafirmando sua posição de maior empresa de Engenharia e
Construção de origem latino-americana. Além disso, há pelo menos cinco
anos a Odebrecht se destaca entre as 5 maiores construtoras internacionais de
hidrelétricas, tendo liderado a classificação nos anos 2000, 2002 e 2003.
Ao longo dos seus 60 anos, a Construtora Norberto Odebrecht foi
agregando competências para servir mais e melhor aos seus clientes, e já
executou mais de 1.600 obras, em 30 países. Esta trajetória só foi possível
porque, ao longo dos tempos, os integrantes da Odebrecht se empenharam na
materialização dos sonhos desses clientes, baseando suas ações na Tecnologia
Empresarial Odebrecht - TEO, filosofia cujos princípios fundamentais foram
e continuam sendo transmitidos de geração para geração, num processo
educativo permanente. A condição essencial para isso está na dimensão humana
da Organização, ou seja, em pessoas capazes de educar, de aprender e de se
desenvolver, preparadas para enfrentar desafios, capacitadas para liderar equipes,
qualificadas para servir clientes e, principalmente, para formar os seus
sucessores.
Gil Imaná Garrón
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230
Grupo Andrade Gutierrez
compromisso com o desenvolvimento
A
origem dos negócios do Grupo Andrade Gutierrez se deu com a
fundação da Construtora Andrade Gutierrez, em 1948, produto da
determinação e da visão de futuro de três engenheiros: Gabriel Andrade,
Roberto Andrade e Flávio Gutierrez. Começou com uma pequena obra em
Belo Horizonte, alguns operários e um trator, chamado Soberano.
Hoje a holding Andrade Gutierrez é um dos maiores grupos empresariais
do Brasil com atuação em três importantes segmentos da economia: Construção
Pesada, Telecomunicações e Concessões Públicas. Os três negócios são
independentes entre si, entretanto, constituem um Grupo que tem a atuação
pautada em um tripé de valores: paixão, excelência e desempenho econômico.
Em todas as áreas nas quais atua, e em todos os lugares em que esteve
presente nos seus 57 anos de história, o Grupo Andrade Gutierrez sempre
estabeleceu seu trabalho pelos princípios da inovação, qualidade e constante
superação de desafios.
O Grupo AG cresceu e transformou-se em um conjunto de negócios
espalhados em vários países. Sua missão, contudo, continua a mesma: oferecer
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
José Bedoya Sáenz
231
serviços de qualidade, gerenciar negócios complexos, valorizar e desenvolver
a força de trabalho local, satisfazer os clientes, interagir com a comunidade e
comprometer-se com o equilíbrio ambiental.
Mais de 50 anos após a fundação, o currículo do Grupo Andrade
Gutierrez inclui diversos negócios no Brasil e no mundo. Neste ponto, vale
destacar a expertise da AG no mercado internacional. Poucas têm a capacidade
que a Andrade Gutierrez tem de administrar e concluir projetos de grande
complexidade tecnológica e logística. A empresa iniciou trabalhos de construção
no exterior há cerca de 20 anos. Durante este período trabalhou
simultaneamente em mais de 10 países, atingindo quatro continentes.
O Grupo é uma corporação inteiramente adaptada às novas tendências
mundiais, com flexibilidade para estabelecer parcerias, identificar oportunidade
em todos os setores da economia e realizar contratos das mais diversas
modalidades.
No segmento de construção pesada a AG executa obras nas mais diversas
regiões do mundo, entre elas, Amazônia, semi-árido brasileiro, deserto e
florestas da África, ilhas de Portugal, montanhas dos Andes e praias do Caribe.
Na América Latina, atua em países como Argentina, Equador, Peru, Chile e
Colômbia. A empresa também pretende executar projetos na Venezuela. Pela
vivência de suas equipes em diferentes condições e regiões em que trabalham,
a AG agrega vantagens competitivas consolidadas.
Esses contratos podem ir da execução de um projeto para a iniciativa
privada ou para o poder público até o comprometimento mais amplo como
general contractor, quando a empresa se encarrega de todas as etapas: projeto de
viabilidade de engenharia, identificação de investidores, levantamento de
recursos financeiros e gerenciamento da implantação e operação posterior do
empreendimento.
Entre os projetos da Construtora destacamos alguns executados no Brasil
e no exterior nos últimos anos como as usinas de Itaipu e Angra II, as rodovias
Castelo Branco e Bandeirantes, os metrôs de São Paulo e de Lisboa, os
aeroportos de Belo Horizonte e da Ilha da Madeira, o aqueduto Noroeste da
República Dominicana e a ponte sobre o rio Daule, no Equador.
No setor de telecomunicações a AG Telecom é considerada uma das
mais importantes empresas na área no Brasil. Com os trabalhos iniciados em
Gil Imaná Garrón
232 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
232
1993, a companhia busca constantemente novas oportunidades no mercado
de capitais bem como a atração de parceiros estratégicos para o
desenvolvimento dos negócios.
A AG Telecom participa do grupo de controle da Telemar Participações
S/A, holding da Tele Norte Leste Participações S/A (TNL – Telemar), a maior
empresa de telecomunicações brasileira – que reúne a Telemar (TMAR,
operadora de telefonia fixa, com presença em 16 estados), a Oi (primeira
operadora de telefonia móvel com tecnologia GSM do mercado brasileiro) e a
Contax (líder de contact center do Brasil).
Em junho de 2004 a Telemar foi escolhida pelo Anuário Telecom como
a Empresa no Ano, superando outras 160 empresas de 20 segmentos diferentes.
Outros reconhecimentos vieram no Anuário do Jornal Valor Econômico e no
Guia da Revista Exame, dois dos mais importantes veículos de comunicação
do país, como a maior empresa privada nacional.
Em 1993 o Grupo criou a AG Concessões para atuar no segmento de
serviços públicos de infra-estrutura com foco em rodovias, saneamento e
aeroportos. Suas principais atividades são o desenvolvimento de novas
oportunidades de negócios, acompanhamento permanente dos resultados
conquistados pelas concessões das quais o Grupo participa e, ainda, a
viabilização e negociação de financiamentos para os atuais e futuros projetos.
O primeiro projeto da AG Concessões foi criado em 1994 com a
concessão da Ponte Rio-Niterói, no Rio de Janeiro. Desde então a empresa
tem fechado cerca de um grande contrato por ano.
A atuação da AG Concessões é feita atualmente por meio da empresa CCR
– Companhia de Concessões Rodoviárias – e por negócios na área de saneamento.
As concessionárias controladas pela CCR administram cinco das mais importantes
concessões rodoviárias do País: Rodovia Presidente Dutra (NovaDutra); Rodovia
dos Lagos (ligação Rio Bonito-São Pedro da Aldeia, da Via Lagos); Sistema
Anhangüera-Bandeirantes (AutoBan); ligação Curitiba-Ponta Grossa-Apucarana/
Jaguariaíva (Rodonorte); e Ponte Rio- Niterói (Ponte S.A.). A CCR é a maior
empresa deste setor na América Latina com a administração de 1.290 quilômetros
de rodovias e volume de tráfego de cerca de 800 mil veículos por dia.
Recentemente a AG Concessões fechou um contrato de construção e
exploração do novo aeroporto de Quito, no Equador. Esta concessão, com
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - JANEIRO/MARÇO 2005
José Bedoya Sáenz
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investimento de US$ 600 milhões, tem prazo de 35 anos e a conclusão da
obra está prevista para 2008.
Uma outra conquista da AG Concessões foi a compra de 85% do capital
social da Water Port, empresa de saneamento básico que atua no Porto de
Santos. Esta aquisição significa a ampliação dos negócios da empresa na área
de saneamento.
Tanto na AG Concessões quanto nas demais empresas do Grupo as
iniciativas de responsabilidade social são expressas no aprimoramento das
relações com os funcionários, fornecedores, clientes, sociedade e governos,
pela redução do impacto ambiental de seus empreendimentos e pelo potencial
dos benefícios direcionados às comunidades em que atua.
Entre as ações de responsabilidade social destaca-se a certificação dos
seus sistemas de gestão de qualidade, meio ambiente, segurança e saúde
ocupacional pelas normas ISO 9001, ISO 14001 e pela especificação OHSAS
18001, respectivamente. Essas conquistas fizeram da Andrade Gutierrez a
primeira empresa de construção pesada brasileira a obter a certificação de
todos os sistemas que formam a sua gestão integrada.
Todas as atividades que envolvem o Grupo exigiram a criação e o
desenvolvimento constantes de processos, sistemas e tecnologias para atender
aos desafios e demandas específicos de cada negócio e cliente, em cada contrato.
E para isso não faltou empenho e dedicação por parte de todos os envolvidos.
Procurar a excelência é, no mínimo, querer fazer as coisas da melhor maneira
possível. Este é o valor do Grupo Andrade Gutierrez, que em 57 anos teve a
paixão de transformar, criar novos negócios, acreditar e investir no Brasil, na
América Latina e em outros países do mundo.
Gil Imaná Garrón
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