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DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Juan Ignacio Siles del Valle
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A política externa da Argentina no quadro da integração regional
2 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
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DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Rafael Bielsa
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A política externa da Argentina no quadro da integração regional
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DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Rafael Bielsa
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*
Ministro das Relações Exteriores, Comércio Internacional e Culto da República Argentina
A política externa
da Argentina
no quadro da
integração regional
Rafael Bielsa
*
E
m um trecho do seu formidável estudo sobre A Condição Humana,
Hannah Arendt afirma: “A grandeza do homérico Aquiles só pode ser
entendida se o virmos como agente de grandes ações e orador de grandes
palavras”.
Para Arendt, a ação é o momento em que os homens desenvolvem aquela
capacidade que lhes é mais própria: a de serem livres. E a liberdade não é dada
pela mera capacidade de optar entre cursos de ação alternativos, mas pela
capacidade de iniciativa, de transcender o que é dado e de começar algo novo. A
ação, recorda-nos a autora, “cria a condição para a lembrança, isto é, para a
história”.
Ação e liberdade levam-nos a uma interpretação do poder. Da perspectiva
que nos oferece Arendt, o poder não é algo que os homens possam exercer
sós, mas sim um atributo relacional – a capacidade de atuar em comum – e a
condição da sua possibilidade é a pluralidade. Assim, o fundamental do poder
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não é a instrumentalização de uma vontade alheia para a consecução dos
próprios fins, mas antes, a formação de uma vontade comum numa
comunicação voltada para o entendimento. Por isso, a política se faz,
fundamentalmente, com palavras.
Que valor tem tais argumentos ao se discorrer acerca da política externa
da Argentina no quadro da integração regional? Creio que, fundamentalmente,
permitem delimitar um campo epistemológico para demarcar a atuação
internacional do país.
Explico-me. Em um mundo em que se acentuaram a incerteza, os riscos
e as assimetrias, mover-nos com seriedade dentro das margens de
autodeterminação existentes requer o fortalecimento da cooperação, da
solidariedade e da harmonização de posições com países com os quais
compartilhamos interesses, valores e visões. Em um espaço global
interdependente, a capacidade de atuar de maneira concertada – de trabalhar
em comum – numa lógica de soma positiva, é um recurso de poder que devemos
ser capazes de aproveitar e maximizar.
A política externa da democracia
Em alguns meios acadêmicos e jornalísticos é comum, ao se analisar a
política externa argentina ao longo da história nacional, ressaltar mais as
rupturas do que as continuidades.
Podemos dizer que as rupturas experimentadas pela política externa
argentina foram as mesmas sofridas pela própria vida do país, quando vítima
das oscilações ditatoriais e que, inversamente, encontramos nos governos
constitucionais – com seus matizes e ênfases – um fio condutor pacifista,
latino-americanista e respeitador do direito internacional, que o governo do
Presidente Néstor Kirchner está empenhado em aprofundar.
Até 1976, o século XX argentino foi marcado pelas lutas do povo em
prol dos seus direitos políticos, sociais e econômicos, canalizadas, sobretudo
pelos grandes partidos políticos e pelos governos populares e obstaculizadas
pelas rupturas constitucionais provocadas pelos golpes de estado. Seria ocioso
assinalar a gravitação que as circunstâncias externas e os sistemas de idéias
dominantes no mundo exerceram sobre os acontecimentos nacionais, não fosse
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a necessidade de ressaltar a influência que a era da Guerra Fria teve nos países
do Cone Sul.
A última ditadura militar – o autoproclamado “Processo de Reorganização
Nacional” (1976-1983) – levou ao paroxismo a promessa de eliminação do
“inimigo ideológico”. A palavra de ordem, “o Processo tem objetivos, mas
não prazos”, rompeu com uma noção subentendida, e até então aceita, de que
os golpes de estado instalavam governos transitórios até uma nova convocação
eleitoral, uma vez imposta a “ordem” desejada. Naquela oportunidade, não se
tratou apenas de subjugar os direitos políticos dos cidadãos, mas de
instrumentar uma deliberada política de extermínio físico. A questão dos direitos
humanos tornou-se, então, bandeira e dor na Argentina.
A Junta Militar, ao mesmo tempo em que eliminava o “inimigo interno”,
exacerbou a existência de potenciais inimigos externos, já não ideológicos,
senão territoriais, lançando mão de um nacionalismo demagógico e anacrônico,
para o qual eram necessárias as hipóteses de conflito bélico com os países
limítrofes. Desse modo, assim como a ditadura arrasou as formas de expressão,
organização e participação da sociedade civil, também desmantelou as políticas
de cooperação com os países vizinhos, características dos governos
constitucionais passados.
A partir de uma péssima leitura da situação e das alianças internacionais,
o governo militar, já debilitado, escolheu uma guerra como meio de tentar se
fortalecer. A derrota das Malvinas escancarou o fosso aberto pelo povo em 30
de março de 1982, quando, depois de anos de opressão e de silêncio forçado,
marchou para a histórica Praça de Maio, reclamando seus direitos.
1
A referência à última ditadura militar permite-nos situar melhor a política
externa argentina da fase democrática e, sobretudo, valorizar os êxitos
alcançados durante essas duas décadas. Juntamente com a plena vigência das
liberdades constitucionais, a Argentina foi incorporando uma série de princípios
ligados à política exterior que hoje sustentamos com orgulho e firmeza.
Refiro-me, particularmente, à afirmação da democracia e do respeito
irrestrito aos direitos humanos como valor essencial; ao compromisso com a
1
Esta foi a primeira mobilização popular maciça contra a ditadura militar, convocada pela CGT e por organismos
de direitos humanos, reclamando “paz, pão e trabalho”.
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paz, a segurança, o desarmamento, a não-proliferação de armas de destruição
em massa e a condenação do narcotráfico e do terrorismo internacional, com
estrito apego às decisões emanadas do Conselho de Segurança das Nações
Unidas; assim, também, à prioridade atribuída à integração regional, em
particular ao Mercosul, que hoje concebemos como um projeto político e
estratégico de vasto alcance, e não apenas como um bloco comercial.
No quadro de uma política exterior comprometida com a paz e o
multilateralismo, quero manifestar a determinação de continuar com os esforços
pacíficos para a recuperação das Ilhas Malvinas, tomando iniciativas
conducentes a preservar e reafirmar os direitos soberanos argentinos sobre as
mesmas e sobre os espaços marítimos circundantes, tanto bilateral como
multilateralmente. A recuperação do exercício pleno da soberania, respeitando
os interesses dos habitantes das Malvinas e em conformidade com o direito
internacional, é um objetivo irrenunciável do povo argentino e uma política de
Estado continuada pelo atual Governo.
Nesse mesmo quadro austral, comprometemo-nos a proteger os
interesses da comunidade internacional na Antártida, assegurando que as
atividades lá desenvolvidas sejam compatíveis com o Tratado Antártico e com
o Protocolo de Madri sobre a preservação do meio ambiente. Nesse sentido,
estamos promovendo ações nos foros correspondentes, para conseguir a
instalação de suas autoridades e o funcionamento da Secretaria do Tratado
Antártico, na sede que lhe foi fixada, na Cidade Autônoma de Buenos Aires.
O atual governo argentino almeja ser condizente com o melhor de nossos
princípios e de nossas tradições de política externa, e fazê-los coerentes com
os interesses da nação. No meu modo de ver, tal coerência se constrói
promovendo, no plano internacional, os mesmos valores de democracia,
liberdade, igualdade, justiça social e participação, que sustentamos no plano
interno, numa espécie de jogo de espelhos.
Assim, a afirmação e a modernização das instituições democráticas
nacionais correspondem ao fortalecimento e à atualização dos organismos
internacionais; ao princípio de igualdade entre os cidadãos, à necessária
igualdade entre os Estados; ao objetivo de alcançar níveis mais altos de bem-
estar e de eqüidade social, ao direito de aceder aos mercados internacionais,
sem subsídios nem competição desleal; à coesão social, à integração regional;
à solidariedade social, à solidariedade latino-americana; à defesa dos direitos
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humanos, à rejeição dos fundamentalismos de qualquer denominação; à
salvaguarda da paz e da segurança internas, à enérgica condenação do
terrorismo, e à consolidação da zona de paz na nossa região.
A posição da Argentina frente à ordem internacional
Atravessamos uma dessas épocas em que a humanidade busca um novo
rumo, uma vez que desapareceram os motivos que a tinham feito adotar o anterior.
Há pouco mais de uma década, a queda do muro de Berlim inaugurava um
pós-Guerra Fria que trazia consigo a promessa de construir uma ordem mundial
mais equilibrada, justa e pluralista. A cooperação entre as nações teria primazia
sobre o conflito, e a atenção à problemática socioeconômica substituiria as
tradicionais questões de defesa e segurança na política internacional. A utopia
do chamado fim da história – apesar das vivas controvérsias que então suscitou
– expressava, de alguma forma, a euforia própria do clima da época, em cujo
quadro geral foi possível a formulação daquela tese. A ordem do pós-Guerra
Fria não se livrou, entretanto, de guerras e conflitos.
Os ataques de 11 de setembro de 2001, por suas dimensões e organização,
deram uma relevância inédita ao perigo terrorista e expuseram a vulnerabilidade
de todos os países que integram a comunidade internacional. A originalidade
da forma de ataque e, certamente, o alvo escolhido confirmaram naquele dia a
verdadeira proporção do perigo, recolocando a agenda da segurança no topo
da política internacional.
Os argentinos experimentaram esse perigo da maneira mais trágica em
1992 e 1994, quando se produziram em Buenos Aires os brutais atentados à
Embaixada de Israel e à Associação Mutual Israelita da Argentina (Amia).
Trabalhadores, comerciantes, crianças a caminho da escola: mortos sem poder
prever, sem poder entender. Poderíamos dizer, como Sören Kierkegaard, que
em nossos peitos se aninhou uma opressão, um temor que adivinhou o terremoto.
No atual cenário internacional, tanto o terrorismo como a violação dos
direitos humanos, os massacres associados ao conflito armado ou à proliferação
de armas de destruição em massa obrigam-nos a manter uma posição ativa e
nunca de indiferença frente a esses flagelos, mas sempre dentro da estrita
observância do direito internacional e dos princípios consagrados nas Cartas
da ONU e da OEA.
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Temos plena consciência de que mudaram os atores e as circunstâncias
que deram origem, depois da Segunda Guerra Mundial, à criação de
organizações internacionais, mas como esquecer o perigo representado por
projetos desmesurados e a opressão que eles implicam para direitos humanos
tão elementares como o direito à vida, a professar uma religião, a expressar
distintas idéias políticas? A grande lição do século XX – e, seria de esperar, o
grande aprendizado – consiste, precisamente, em não esquecer e não repetir
as tragédias que sacudiram a humanidade.
A Argentina reconhece no multilateralismo e na vigência de uma efetiva
cooperação internacional a única possibilidade de construir um mundo mais
pacífico, solidário e racional. Entendemos que, no presente cenário
internacional, não existe um substituto para as Nações Unidas capaz de legitimar
medidas frente a ameaças à paz e à segurança internacionais. Só a ação
concertada da comunidade internacional poderá dar as respostas adequadas.
Só a ação multilateral poderá ser efetiva e sustentada no tempo, porque outorga
legitimidade à resposta e consegue o apoio da opinião pública externa. O
Conselho de Segurança deve cumprir seu papel-chave na adoção de medidas
eficazes em situações que podem evoluir para uma ameaça à paz e à segurança
internacionais. Por isso acreditamos na necessidade de fortalecer o Conselho
de Segurança e achamos necessária sua reforma para torná-lo mais democrático,
eqüitativo, representativo e transparente em seu processo decisório.
Mas nossa visão pressupõe, além disso, a existência de uma dialética
complexa que vincula os problemas da ordem mundial e da segurança com a
possibilidade de aprofundar a democracia, o desenvolvimento e a paz.
Aprendemos da história que os fundamentalismos de diversos tipos e os
projetos hegemônicos acabam por atropelar a liberdade, os direitos humanos
mais elementares e, sobretudo, a paz. Hoje, essa paz não é apenas a antítese do
conflito bélico; é, também, uma ausência para aqueles que sentem terror e
para aqueles que sofrem de fome. Por isso, sustentamos que é preciso fortalecer
a Organização das Nações Unidas para dotá-la de maior efetividade , insistir por
maior eqüidade na Organização Mundial do Comércio, e exigir maior democracia
no Fundo Monetário Internacional.
Frente a tal cenário, a Argentina, junto com os demais países do Mercosul,
está construindo novas relações e alianças. A estratégia baseia-se em criar redes
e associações políticas e econômicas para ampliar o espaço de negociação, e
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enriquecê-lo com novas e viáveis opções de cooperação e desenvolvimento,
contribuindo dessa maneira para o gradual surgimento de um sistema
multipolar. Ampliar a cooperação entre a América Latina e a Ásia é um passo
efetivo nessa direção.
Diferentes razões de caráter histórico, geopolítico e cultural levaram a
Argentina a não prestar a devida atenção ao enorme desenvolvimento alcançado
por muitos países da Ásia, durante as últimas décadas do século XX. Não é
fácil explicar tal conduta. Nós, argentinos, temos tido dificuldade para
interpretar certos processos históricos, econômicos e políticos que, devido à
distância geográfica e cultural, nos têm parecido estranhos. A Argentina,
tradicionalmente, tem privilegiado suas relações com os países do Hemisfério
e com os da Europa Ocidental, deixando dois terços do mundo praticamente
fora da nossa percepção, e sem iniciativas relevantes de nossa parte.
Conhecemos o papel protagônico que a Ásia está conquistando nos assuntos
internacionais, nos quais a China, o Japão e a Índia ocupam um lugar relevante.
Até agora, não temos sido capazes, entretanto, de incorporar esse conhecimento
à formulação e prática da nossa política externa.
Em consonância com esse modo de perceber a realidade mundial, a
Argentina está empenhada em ocupar com posição própria – discreta, mas
sólida, prudente, mas profissional – todas as cadeiras disponíveis no concerto
internacional.
Essa atitude ficou demonstrada, por exemplo, na posição que assumimos,
junto com o Brasil e outros países do G-X, na Quinta Conferência Ministerial
da Organização Mundial do Comércio (OMC), realizada em setembro de 2003,
em Cancún, onde lutamos pela constituição de um sistema mundial de comércio
aberto, sem subsídios, nem barreiras que ponham empecilhos à possibilidade
de os países em desenvolvimento produzirem receitas em condições eqüitativas.
Apesar dos resultados do encontro realizado em Cancún, a Argentina defende
a negociação nesse âmbito e a OMC como um espaço multilateral que, ao
permitir uma participação plural e democrática de todos os seus membros,
constitui-se na via mais propícia ao estabelecimento de acordos equilibrados.
A Conferência Especial sobre Segurança Hemisférica, realizada em
outubro de 2003, no México, ressaltou os méritos dos cenários multilaterais
como espaços adequados para a análise das circunstâncias e dos problemas
que preocupam e afetam seus diferentes membros. Nesse foro, debateu-se,
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extensamente, o conceito de segurança, superando a noção tradicional e estreita
ligada à defesa, para substituí-la por uma percepção multidimensional, que
abrange aspectos relacionados com a pobreza, as doenças, os obstáculos para
alcançar o desenvolvimento, e outros tantos que podemos associar, diretamente,
à segurança e ao bem-estar humanos.
Entendemos a segurança humana como um componente do conceito
de desenvolvimento humano, noção que há duas décadas tem estado no centro
da agenda da cooperação internacional, ainda que não estritamente relacionada
com a “segurança”. O desenvolvimento humano inclui, sem ambigüidades,
nem discussões, aquilo que consideramos essencial: a luta contra a fome, o
analfabetismo, a exclusão, a ignorância, precondições propícias em que se criam
as condições para a proliferação do terrorismo internacional, ou a aparição de
processos violentos e maciços de autênticas migrações nacionais, com seu
conseqüente impacto cultural, social e econômico.
Sabemos com certeza que, na negociação entre um forte e um fraco, a
liberdade sem regras favorece o forte, e que só o direito dá possibilidades ao
fraco. Desse modo, também no plano comercial trabalhamos pelo
fortalecimento de um multilateralismo que se ocupe das assimetrias e da
necessidade de flexibilidade.
Nossa posição não consiste em propor que, do dia para a noite, se
reduzam a zero os subsídios à agricultura dos países mais desenvolvidos, mas
exigimos do mercado que dê os mesmos sinais que exigimos de nós mesmos:
os de que a direção geral é coerente com o crescimento com eqüidade.
Negociações comerciais
Na Chancelaria Argentina, atuamos, simultaneamente, em diversas trilhas
da negociação comercial.
Por um lado, temos enfrentado, como Mercosul, negociações birregionais
com a União Européia e com a Comunidade Andina de Nações, além daquelas
que se desenvolvem dentro do formato 4+1. Por outro, participamos, ativamente,
das negociações hemisféricas que têm o objetivo de constituir a Área de Livre
Comércio das Américas (Alca). Da mesma forma, multilateralmente, continuamos
sendo um negociador ativo e construtivo na OMC. E isso sem descurar das
negociações bilaterais, que perseguem o objetivo de nos permitir o acesso a
mercados potencialmente importantes para as exportações argentinas.
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Antes de mencionar algumas das ações específicas que vimos
desenvolvendo, quero salientar que não participamos dessas instâncias para
reivindicar princípios ou idéias que demandem outros âmbitos, assim como
não concordamos em levar metáforas bélicas ao cenário do comércio
internacional. Nosso objetivo é proteger e promover melhor os interesses
coletivos e obter resultados que nos permitam gerar riqueza; essa riqueza que
deve ser, adequadamente, distribuída para que nossos compatriotas, que hoje
sofrem privações e padecem de necessidades, tenham um futuro no qual confiar,
e voltem a perceber como uma realidade concreta e cotidiana a mobilidade
social ascendente, que caracterizou a Argentina forjada por criollos e imigrantes.
Do nosso ponto de vista, não há quadros de negociação bons ou ruins,
mas, sim, bons ou maus negociadores, que dão às rodadas de comércio o
adjetivo que terminam por merecer. Por essa razão, não acreditamos em
antinomias como “Alca versus Mercosul”. Está claro que nosso paradigma é
integração, porquanto nosso destino é latino-americano e, portanto, temos de
privilegiar o fortalecimento do bloco próximo. Mas isso não significa que
deixemos de negociar na Alca, ou no âmbito da OMC.
No tocante às negociações birregionais, o Mercosul e a União Européia,
no começo de 2003, intercambiamos as respectivas ofertas melhoradas, que
abrangem produtos agrícolas e industriais. A Argentina está disposta a
apresentar, junto com seus parceiros do Mercosul, ofertas em serviços,
investimentos e compras governamentais, que são alguns dos setores que
interessam à União Européia. Nessa negociação, o interesse de nosso país é
melhorar o acesso de seus produtos – particularmente daqueles que enfrentam
barreiras alfandegárias e não alfandegárias, a grande maioria deles no setor
agrícola e agroindustrial – ao mercado da UE e, ao mesmo tempo, firmar-se
como fornecedor de alimentos de alta qualidade.
Nessa mesma área, devemos considerar a assinatura do acordo de livre
comércio entre o Mercosul e a CAN, pela transcendência que terá a constituição
desse novo espaço no âmbito sul-americano.
Quanto à Alca, considero necessário prestar alguns esclarecimentos, dado
o vivo debate público que se desenvolve no hemisfério, e ao qual a sociedade
argentina não está alheia.
Nosso país, de forma coordenada com o Mercosul, participa dessa
negociação com o propósito principal de conseguir para nossas exportações
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uma abertura efetiva dos mercados da região, sem deixar desprotegidos os
setores mais sensíveis da produção nacional.
Aspiramos a estabelecer uma Alca que contemple nossos interesses, e ajude
na busca de um crescimento sustentado para todos os países da região. E, no
nosso entender, se buscamos benefícios concretos para nosso país, temos de
envolver-nos, ativamente, no processo de negociação. Negociar bem não significa
– desnecessário dizer – renunciar ao direito de utilizar políticas públicas, nem
assumir compromissos nocivos em questões prioritárias para o Estado, mas,
sim, defender nossos interesses e fazer valer nossas legítimas reivindicações.
A propósito, quero ressaltar especialmente que, no encontro celebrado
em outubro de 2003, em Buenos Aires, os presidentes da Argentina e do
Brasil concordaram quanto à necessidade de se chegar a um acordo equilibrado,
que respeite os interesses distintos dos participantes, e dê ao processo a
flexibilidade necessária para que a negociação se desenvolva de acordo com a
situação dos países e blocos envolvidos. Nesse mesmo mês, realizou-se, em
Trinidad e Tobago, a XV Reunião do Comitê de Negociações Comerciais da
Alca, na qual os membros do Mercosul apresentamos uma declaração em que
manifestamos nosso interesse em negociar de forma construtiva. Por isso,
felicitamo-nos de que, na reunião de alto nível realizada em Miami em fins de
novembro de 2003, tenha sido possível avançar sobre essas bases.
Quanto à OMC, apesar dos esforços desenvolvidos na última conferência
ministerial, realizada em Cancún, não foi possível avançar de forma substancial
no processo negociador.
O conceito fundamental da Rodada de Doha, cujo quadro estamos negociando,
é o desenvolvimento – e a agricultura é o capítulo central dessas negociações.
A relevância das negociações agrícolas deriva do papel central da
agricultura no bem- estar, e nas perspectivas de crescimento dos países em
desenvolvimento, particularmente dos mais pobres. Basta mencionar que 73%
dos pobres do mundo vivem em zonas rurais, e dependem da agricultura para
subsistir. E que, enquanto vastos setores da população mundial lutam para
sobreviver com menos de dois dólares diários, os países desenvolvidos gastam
quase 1 bilhão de dólares por dia em medidas de apoio à agricultura. Desejaria
acrescentar que, em 2002, os países da Organização para Cooperação e
Desenvolvimento Econômico (OCDE) gastaram na proteção aos seus
agricultores cinco vezes mais do que em ajuda ao desenvolvimento.
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Esta resenha seletiva de algumas das ações desenvolvidas pela nossa
Chancelaria para consolidar a presença do país no mundo e, particularmente,
para colocar os produtos da Argentina nos mercados internacionais, vincula-
se – da mesma forma que os acontecimentos no plano geoestratégico mundial
– à promoção de um modelo de integração internacional que favoreça sistemas
econômicos nacionais e mundiais baseados nos princípios de justiça, eqüidade,
democracia, participação, transparência, responsabilidade e inclusão social.
Nunca antes se haviam agilizado e barateado tanto como agora os transportes
e as comunicações. Nunca antes tinha sido possível um acesso tão amplo à
informação e à difusão do conhecimento por meios eletrônicos. Existe, atualmente,
uma consciência generalizada de que o comércio internacional produz bem-estar
tanto nos países importadores quanto nos exportadores. Ao mesmo tempo, nunca
houve, porém, formas tão sofisticadas de especulação financeira e de medidas
protecionistas, principalmente no tocante ao comércio de produtos agrícolas, que
aprofundam as assimetrias, prejudicam seriamente a eqüidade, e excluem dos
benefícios do progresso material uma boa parte da população mundial.
Hoje, mais do que nunca, a interação com o contexto externo influi sobre
as políticas internas de um país, mas esse fato, verificável e certo, não nos leva
a adotar uma atitude passiva que nos faça voar ao sabor dos ventos. Não
subscrevemos as visões que satanizam a globalização, mas a enfrentamos como
uma nova etapa na evolução do capitalismo, plena de oportunidades para os
países que nela naveguem sem trair o futuro do seu povo e que se esforcem
por conseguir uma diminuição das assimetrias nacionais, a partir da integração
regional e da cooperação multilateral.
Partindo desse posicionamento, nosso país continuará trabalhando, junto
com os demais integrantes do G-X, para avançar na liberalização e na reforma
do comércio agrícola internacional, bem como para conseguir a integração
total desse setor nas normas da OMC. A maioria dos membros desse grupo –
que representa a metade da população humana – reuniu-se em Buenos Aires
durante o mês de outubro de 2003 e reafirmou seu compromisso com o
programa da Rodada do Desenvolvimento, ao mesmo tempo em que lançou
um apelo a todos os membros da OMC para retomarem a negociação com
espírito construtivo, sem enfrentamentos nem barreiras ideológicas, e
propiciarem as convergências que permitam alcançar um resultado justo e
aceitável para todos.
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Sem prejuízo da importância que a Argentina atribui ao G-X, nossa
participação nas negociações comerciais não se esgota nesse grupo. Somos,
também, integrantes ativos do Grupo de Cairns, cujos membros defendem,
firmemente, a abertura e o acesso dos mercados para os produtos agrícolas, a
eliminação dos subsídios às exportações, assim como a redução significativa
das medidas de apoio interno que distorcem o comércio.
Nesse sentido, nossa Chancelaria não considera que o G-X e o Grupo
de Cairns constituam opções excludentes. Pelo contrário, ambos confluem na
defesa de condições mais eqüitativas para o comércio de produtos agrícolas e,
portanto, seus objetivos se reforçam mutuamente.
Visão do Mercosul
O Mercosul, com suas perspectivas de aperfeiçoamento e ampliação,
constitui um dos pilares da política externa da República Argentina. Assim,
consideramos a integração regional como um processo irreversível que requer
e exige ações imediatas e fundamentais para se afirmar.
Apesar da conjuntura complexa que vem atravessando o processo de
integração, os Estados-parte estão dando claras demonstrações da vontade
política de empreender a tarefa de aprofundar a institucionalização do Mercosul.
Particularmente, damo-nos conta de que o fortalecimento dos órgãos do bloco,
a previsibilidade na observância e na aplicação das normas que deles emanam,
e o aperfeiçoamento dos mecanismos para resolver os conflitos comerciais
são todos elementos que, de um lado, apóiam o próprio processo e, de outro,
melhoram a sua credibilidade frente a terceiros países.
Entre os principais progressos que temos realizado recentemente, cabe
assinalar, em primeiro lugar, a aprovação do Protocolo de Olivos para a solução
de controvérsias, que cria o primeiro tribunal permanente do Mercosul. A
Argentina conseguiu a aprovação legislativa desse protocolo apenas sete meses
depois da sua assinatura, o que foi posteriormente feito por Paraguai, Uruguai e
Brasil. Esse mecanismo dará maior segurança jurídica ao intercâmbio de bens e
serviços, e aumentará a confiança do setor privado e dos investidores no Mercosul.
Outro importante avanço na estrutura institucional do processo de
integração foi a criação de um setor de assessoria técnica na Secretaria do
Mercosul, iniciativa levada avante no quadro de uma transformação da Secretaria
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Administrativa em uma Secretaria Técnica. Com a inclusão desse novo setor,
integrado por quatro consultores escolhidos por concurso de antecedentes e
provas, o Mercosul contará com o apoio de um corpo técnico permanente,
convocado para trabalhar no interesse do bloco em seu conjunto, e não no
dos países individualmente considerados.
É, também, particularmente auspiciosa a recente criação da Comissão
de Representantes Permanentes do Mercosul (CRPM), com competência para
assistir o Conselho do Mercado Comum e a Presidência pro-tempore, apresentar
iniciativas ao Conselho do Mercado Comum, e assegurar as relações
econômicas, sociais e parlamentares no Mercosul. Além disso, a CRPM conta
com um presidente com competência para, por mandato do Conselho do
Mercado Comum, representar o bloco em suas relações com terceiros países,
grupos de países e organismos internacionais.
A incorporação das normas do Mercosul aos ordenamentos jurídicos
dos Estados-parte, da qual necessariamente decorrem a vigência e a
operatividade das regras comuns, tem uma importância superlativa para garantir
a segurança jurídica do processo de integração. Atualmente, um dos maiores
problemas que enfrenta o Mercosul é justamente a demora na incorporação
dessas normas, o que não apenas cria assimetrias na sua aplicação, mas também
gera incerteza para os particulares, e incide negativamente sobre as operações
comerciais e as perspectivas dos investidores.
Frente a tal situação, propusemos que se analisasse a possibilidade de
estabelecer um procedimento que permita a aplicação direta das normas do
Mercosul que não requeiram tratamento legislativo nos Estados-parte. No
meu modo de ver, essa tarefa representa um desafio que vale a pena enfrentar
a curto prazo, para garantir a segurança jurídica do processo de integração e a
vigência e observância da norma comum e outorgar aos interessados nos quatro
Estados-parte o mesmo tratamento no tocante aos seus direitos e obrigações
no mercado ampliado.
Finalmente, devemos valorizar o compromisso assumido pelos Estados-
parte de examinar a viabilidade do estabelecimento de um Parlamento do
Mercosul como órgão político de representação democrática, que
comprometeria mais as sociedades com o processo de integração. Assim como,
na ordem interna, o Parlamento é a caixa de ressonância das inquietações
sociais, no processo de integração a existência de uma assembléia ou Parlamento
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permitiria dar maior legitimidade e transparência às decisões adotadas para o
seu desenvolvimento e progresso, fortalecendo-lhe a dimensão política. O
estabelecimento de um Parlamento do Mercosul, que assuma a representação
política e social dos Estados, seria, a meu juízo, um claro sinal de
amadurecimento e consolidação institucional do bloco.
Todos esses avanços contribuirão para adequar a estrutura institucional
do Mercosul, facilitando a coordenação das atividades dos foros técnicos, e
agilizando o processo de tomada de decisões. Não se trata de criar grandes
burocracias, mas, sim, órgãos ágeis de direção, eficientes e profissionalizados.
Como objetivo do momento histórico, o Mercosul deve contribuir para
satisfazer a necessidade de aumentar a capacidade de negociação internacional
de cada um dos países envolvidos, permitindo maior autonomia de decisão. A
atualidade nos adverte de que o desenvolvimento a que aspiramos para nossos
países – entendido como crescimento econômico com eqüidade social –
depende, basicamente, dessa autonomia de decisão, e requer essa valorização
estratégica da integração regional.
Ter uma voz comum nos foros e organismos internacionais é um recurso
de poder que nos permitirá aumentar nossa capacidade de negociação e ação.
Porém, às vezes, nos é necessário que, internamente, o espaço político do
Mercosul seja representativo dos seus cidadãos; que constitua um espaço
catalisador de valores e tradições, com vistas a um futuro compartilhado. Creio
que é importante assinalar isso no momento de construir as instituições funcionais
para tais objetivos: desde os tribunais de solução de controvérsias, de caráter
supranacional, até as instâncias de facilitação do intercâmbio educativo.
O que buscamos não é apenas um bloco comercial; aspiramos a criar
um espaço econômico, político e cultural unificado que – ao gerar um renovado
sentido de lealdade – nos permita crescer como sociedades integradas e
modernas. O Mercosul adquirirá seu valor sociocultural, quando seus efeitos
se fizerem sentir na vida cotidiana dos cidadãos. Não se trata de aspirar a criar
um povo comum, mas uma cidadania comum.
O processo de integração atravessa um momento que merece ser
aproveitado. Encontramo-nos diante de uma oportunidade histórica que não
é sinônimo de desafio histórico. Um desafio histórico depende de alguém que
deseje desafiar, mas uma oportunidade histórica é uma conjunção de estrelas.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Rafael Bielsa
19
As afinidades de pensamento, as visões políticas semelhantes de governos
que pensam em sintonia, que começam suas administrações, criam um cenário
que não poderia ser melhor para que essa ilusão de quinze anos possa recuperar
a dinâmica que lhe permita ser a realidade que necessitamos.
A associação estratégica com o Brasil
Embora o desenvolvimento detalhado da ampla agenda de relações
bilaterais da República Argentina transcenda o propósito deste artigo, gostaria
de fazer uma breve menção ao excelente momento que atravessam as nossas
relações com o Brasil.
Em outubro de 2003, a visita de Estado do presidente Lula da Silva a
Buenos Aires tornou claro o grau de avanço e o aprofundamento de uma
parceria que, pela sua natureza e alcance, só posso qualificar como estratégica
e de profunda fraternidade.
Naquela ocasião, os primeiros mandatários dos dois Estados firmaram
uma declaração conjunta que vale a pena recordar, na qual coincidiram em
assinalar o grau de convergência e entendimento alcançados, num quadro de
confiança e previsibilidade mútuas. Os acordos celebrados abarcaram assuntos
vitais como a cultura, a educação e a integração física, além daqueles
relacionados com a circulação de pessoas, os quais facilitarão a vida cotidiana
dos cidadãos argentinos e brasileiros que se deslocam para estudar, comerciar
e fazer turismo e, particularmente, a de nossos compatriotas que habitam a
zona fronteiriça.
Conseguimos, também acordos importantes ligados ao uso pacífico da
energia nuclear, em especial no campo da medicina. E cabe sublinhar o fato de
se ter acordado uma forma de trabalho e cooperação conjunta, solidária e
inovadora nas tarefas técnicas inerentes aos assentos não permanentes que
nossos países aspiram a ocupar no Conselho de Segurança das Nações Unidas
no período 2004 – 2006.
Esses acordos marcam o amadurecimento de uma parceria estratégica
que crescerá sem tensões, porque está baseada na valorização de nossas
semelhanças, e no respeito de nossas diferenças, e se fundamentam na nossa
determinação comum de trabalhar pela consolidação de uma ordem mundial
A política externa da Argentina no quadro da integração regional
20 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
20
que fortaleça a justiça, estimule o desenvolvimento, combata a falta de eqüidade,
e proteja o meio ambiente, de modo que todas as nações do mundo possam
gozar dos benefícios do progresso material e da paz.
Merece menção especial a importância que ambos os países atribuímos,
no âmbito do subcontinente, ao fortalecimento da qualidade da democracia,
ao respeito dos direitos humanos, ao combate à falta de eqüidade e à pobreza,
bem como à conformação de uma visão cooperativa da segurança regional.
Por isso, considero da maior importância a assinatura do Consenso de
Buenos Aires, por meio do qual nos comprometemos a cooperar, ativamente,
para promover o desenvolvimento econômico sustentado e a distribuição
eqüitativa dos seus benefícios, adotando uma posição comum que nos
propusemos compartilhar com todos os países da América Latina.
À guisa de conclusão
Se a política externa de um país não contribuir para aumentar as
possibilidades de realização coletiva da sua sociedade, suas ações não serão
grandes, e ela não será um veículo que nos permitirá pronunciar grandes palavras.
Do meu ponto de vista, a consecução desse objetivo – como conquista
das lutas democráticas do nosso povo – implica alcançar níveis de bem-estar e
de eqüidade social que permitam a todos os argentinos exercerem seu direito
à plena cidadania.
Recentemente, o “latinobarômetro” assinalava como um fato auspicioso
a alta adesão dos argentinos à democracia. Ao mesmo tempo, sublinhava,
porém, o baixo apreço pelos seus resultados, fazendo referência à percepção
difundida na cidadania de que a democracia não resolve seus problemas, não
se traduz numa melhora da sua qualidade de vida. Vale dizer que uma alta
consideração pelas liberdades pessoais convive com uma consideração muito
baixa pelo respeito dos direitos da cidadania econômica e social.
É uma situação conflitiva, cujos efeitos os argentinos experimentamos
dramaticamente em dezembro de 2001, e que se propaga pela América Latina.
Integrar-nos para resolver esses problemas é uma necessidade nacional,
mas quero ser preciso ao concluir.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Rafael Bielsa
21
Tradução: Luiz Augusto Souto Maior
Erradicar a pobreza, fortalecer, simultaneamente, a inclusão social e a
integração regional e alcançar padrões dignos de qualidade de vida para nossos
cidadãos e habitantes requer, necessariamente, um forte compromisso político.
A vontade política não basta, porém, para sustentar uma democracia abrangente.
Fazem-se necessários Estados eficientes em obter informação; inteligentes
para processá-la; diligentes para articular interesses e criar consensos; eficazes
para dar resposta; e transparentes para favorecer o controle social.
A integração não é uma panacéia que nos permitirá resolver, magicamente,
todos os nossos problemas, mas, sim, uma dinâmica de cultura política, onde
marcham em um equilíbrio difícil, porém auspicioso, o fortalecimento dos
Estados, juntamente com a construção de instituições supranacionais; a defesa
dos interesses econômicos e estratégicos nacionais e sua potencialização dentro
de um quadro de integração regional.
A integração é, ao mesmo tempo, aprendizado, intercâmbio e cumprimento
de acordos. E é, voltando à citação inicial de Arendt, o caminho que poderá
levar-nos a realizar grandes ações e pronunciar grandes palavras.
A Nova Política Externa da Bolívia
22 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004 2004
22
*
Ministro das Relações Exteriores e Culto da República da Bolívia
atual política externa boliviana, à semelhança da dos outros países do
mundo, conflui para um cenário internacional em permanente reconfiguração. As
particularidades do sistema configurado nesse cenário constituem iniludível desafio
para toda a comunidade internacional, particularmente para países em
desenvolvimento, vulneráveis e pobres como a Bolívia. Processos acelerados e
irreversíveis, como a globalização e o regionalismo, apresentam-se como vetores
centrais na estruturação da nova ordem internacional, desenhando o espaço geral
em que as políticas externas devem desenvolver as suas ações, à procura de certas
oportunidades e espaços, para lograr uma melhor inserção internacional e definir
seus objetivos. Fenômenos como a fragilidade do sistema financeiro internacional,
a acelerada mudança tecnológica, a crise de governabilidade, o enfraquecimento
do multilateralismo e do direito internacional, o crime transnacional, o terrorismo,
o narcotráfico e a corrupção, entre outros, configuram o emaranhado de problemas
aos quais países como a Bolívia devem responder e fazer frente, por meio de sua
política externa.
As mudanças que nos escapam ao controle, geradas na última década,
como a acelerada inovação tecnológica no campo das telecomunicações ou da
informática, transformaram as sociedades e o modo como os países da
A nova
política externa
da Bolívia
Juan Ignacio Siles del Valle
*
A
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Juan Ignacio Siles del Valle
23
comunidade internacional interagem e se relacionam. A celeridade do “tempo
internacional”, que não é mais nada que a velocidade com que os efeitos
negativos e positivos dos fatos e acontecimentos produzidos em outras latitudes
são recebidos, por intermédio dos diversos meios tecnológicos, é cada vez
maior. Isso torna obrigatório que as políticas exteriores também possuam um
amplo sentido de oportunidade e eficiência.
O cenário internacional também está sendo configurado a partir das
ações dos países, das diferentes culturas, das religiões, das organizações não-
governamentais, dos organismos multilaterais, particularmente das Nações
Unidas, da Organização dos Estados Americanos (OEA), da Organização
Mundial do Comércio (OMC), do Fundo Monetário Internacional (FMI) ou
do Banco Mundial e, cada vez mais, graças ao papel desempenhado pela
sociedade civil. Esses atores contrapõem seus pontos de vista e interesses e
priorizam os temas da agenda internacional, orientando a atenção das políticas
exteriores para os mesmos. Nesse contexto, para países como a Bolívia, é
importante e, prioritário, atender às iniciativas globais referentes à consolidação
da democracia, à preservação dos direitos humanos, à garantia dos processos
de integração, à cooperação internacional, ao fortalecimento da ONU e de
outros organismos internacionais, à luta contra a pobreza e a exclusão social,
à busca global de maior bem-estar, à proteção do meio ambiente e à solução
pacífica das controvérsias.
Como efeito dessa contraposição de interesses e cosmovisões, a ordem
internacional transita entre dois cenários: i) a imposição de uma ordem unilateral
e hegemônica; ii) o estabelecimento de uma ordem multipolar, na qual os
organismos multilaterais e outros atores seriam convertidos em moderadores
das tensões interestatais. Essas duas tendências visualizam-se e estão presentes
neste momento de reconfiguração do sistema internacional. De qualquer forma,
a consolidação da nova ordem internacional, seja ela unipolar, multipolar ou
as duas coisas ao mesmo tempo, vai depender, em grande medida, do
reconhecimento, por parte dos Estados, de melhores soluções para os
problemas mundiais, mediante cooperação em vez de imposição ou
antagonismo.
Nesse sentido, o surgimento do regionalismo e a consolidação de
processos de integração, como o da União Européia, representam outra opção
que vem despontando, com grande força, no cenário mundial contemporâneo.
A Nova Política Externa da Bolívia
24 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004 2004
24
Não há dúvida alguma de que o regionalismo e a criação de blocos econômicos
e políticos em distintas regiões do mundo foram notavelmente incrementados
nas duas últimas décadas, tendo emergido desse processo três atores
fundamentais: a União Européia, a América do Norte e a região da Ásia-Pacífico.
Neste contexto, a América do Sul também começou a conscientizar-se e
a estruturar-se como um bloco. A integração é um processo que está a se
desenvolver na região há várias décadas e que, nos últimos anos, foi estimulada
pelas negociações da Área de Livre Comércio das Américas (Alca). A integração
sul-americana desenvolveu-se com altos e baixos, mas sempre avançou rumo
à sua consolidação. Desde a criação do Grupo Andino, hoje Comunidade
Andina das Nações (CAN), até a formação do Mercado Comum do Sul
(Mercosul), os países da América do Sul participaram ativamente das distintas
iniciativas de integração regional. Nesse contexto, para países em
desenvolvimento como a Bolívia, as oportunidades reais podem ser
incrementadas significativamente com a ampliação de seus mercados, o
desenvolvimento de sua capacidade de negociação, o aprofundamento dos
processos de interdependência e a criação de novas oportunidades econômicas
e comerciais. É por isso que parte dos esforços e das ações desenvolvidas pela
política externa boliviana está voltada para a consolidação de um novo bloco
político e econômico na América do Sul, visto como um espaço significativo
para enfrentar a integração hemisférica, o diálogo birregional e o processo de
globalização.
Quadro geral da política externa boliviana
Nas duas últimas décadas, a percepção que se tinha da Bolívia no mundo
foi modificada. A democracia boliviana tem 21 anos de vigência contínua, e
demonstrou ser crescentemente participativa, plural e inclusiva. O país
desenvolveu uma economia social de mercado, que procurou dar ênfase aos
setores mais vulneráveis e desfavorecidos, autodefinindo-se,
constitucionalmente, como multiétnico e multicultural.
A Bolívia é um país de múltiplas gravitações, cabeceira de duas das grandes
bacias sul-americanas, um país de contatos, o nó energético do continente e o
centro dos corredores interoceânicos. Sua política externa tenta traduzir em
iniciativas e ações concretas esses dados da realidade. Nesse quadro, a integração
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Juan Ignacio Siles del Valle
25
energética, juntamente com a integração física e a comercial, constituem temas
axiais de sua agenda internacional. Por meio delas, o país está tornando realidade
o postulado geopolítico de “país de contatos e não de antagonismos”,
formulado por diplomatas visionários na década de 30 do século passado.
Dessa perspectiva, a Bolívia tenta desempenhar um papel central no processo
de conformação do espaço sul-americano, concretizando seu desejo de
articulação, harmonia e coesão com os países que a contornam.
Desde a reinstauração dos governos democráticos, sua política externa
teve características de continuidade. As variações sempre foram de estilo, ênfase
e oportunidades. Essa política tem procurado ser versátil, dinâmica e criativa,
adaptando-se às grandes mudanças internas e externas ocorridas nos últimos
anos e tornando clara sua capacidade de proposta e iniciativa. A política externa
é um fenômeno crescentemente complexo. Há cada vez mais países no mundo,
o número de organismos internacionais continua a aumentar, cada dia há mais
temas na agenda e os atores são múltiplos e variados. A informação, ao se
tornar acessível, tornou-se também difícil de gerir.
Na atualidade, é visível a forma como a política doméstica boliviana está
condicionada pela ação externa do país ou vice-versa. A luta contra o narcotráfico,
a questão marítima, o livre comércio ou a exportação de gás natural tornaram-se
temas “interdomésticos”. Possuem um componente interno, mas têm,
igualmente, um importante componente internacional ao qual, com freqüência,
não é dada a devida atenção. Essa nova realidade pauta e condiciona a ação da
diplomacia boliviana, porém a obriga, também, a manter um diálogo mais fluido
e a conciliar temas da agenda internacional com outros da sociedade civil.
Origens da crise boliviana
A Bolívia atravessa momentos difíceis por várias razões. A principal delas
tem a ver com uma situação econômica que se vem arrastando há muitos
anos. A crise internacional, mormente a brasileira e a dramática situação que a
Argentina viveu, exerceram pressão sobre uma economia altamente dependente
e muito vulnerável aos países vizinhos, como a da Bolívia. No plano interno, a
reforma previdenciária gerou um nível de déficit fiscal significativo. Além disso,
o processo de institucionalização da alfândega marcou o nível mais baixo do
contrabando, eliminando um instrumento de liqüidez na economia boliviana.
A Nova Política Externa da Bolívia
26 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004 2004
26
Finalmente, um fator fundamental para explicar essa crise foi o processo de
erradicação da coca excedente, o que significou uma redução muito importante
da receita irregular que alimentava a economia boliviana. Todos esses fatores,
combinados em um período de poucos anos, exerceram enorme pressão na
economia, gerando cinco anos ininterruptos de recessão, aumento do
desemprego e um significativo crescimento do déficit fiscal.
A Bolívia é um país com marcante heterogeneidade estrutural e
significativa diversidade sociocultural, étnica e regional. O país é agora
predominantemente urbano, melhoraram seus indicadores sociais em educação,
saúde e saneamento básico, mas os indicadores de renda, emprego e
produtividade ficaram estagnados. A taxa de crescimento do país nos últimos
anos foi insuficiente para reduzir a pobreza em termos absolutos e relativos. A
crise social em que o país se debate explica-se por esses fatores e pela alta
concentração da renda, desigualdade e exclusão social. É um dos países mais
pobres da América Latina e o mais pobre da América do Sul. Por sua vez, as
zonas que foram o epicentro da crise de outubro, isto é, as denominadas El
Alto e Occidente estão entre suas regiões mais desassistidas. Em conseqüência,
encontram-se entre as mais pobres da América do Sul. Nos últimos anos, os
pobres vivenciaram um processo de deterioração política, econômica e social.
No caso da crise de outubro, é muito ilustrativo lembrar que a maioria das 56
vítimas eram jovens, ou seja, pertenciam a um segmento pobre, sem
expectativas, desempregado e sem oportunidades.
Enfrentar o problema da pobreza é desafio para uma ou duas gerações,
e não simplesmente para o atual governo. A Bolívia é um dos chamados países
HIPC (Highly Indebted Poor Countries) e um dos poucos da comunidade
internacional que internalizou os objetivos de desenvolvimento do milênio como
pauta de sua agenda social. Lamentavelmente, com suas atuais taxas de
crescimento, não logrará diminuir a pobreza à metade em 2015 e terá de
aguardar até 2042 para atingir esse objetivo. Por outro lado, nem sempre se
reconhece no país que as reformas estruturais conseguiram uma série de
avanços nos campos econômico e social. É óbvio que, embora a população
do país tenha melhorado suas condições de vida, os esforços são ainda
insuficientes. Por exemplo, a mortalidade infantil foi reduzida à metade, a
alfabetização entre os adultos cresceu, a esperança de vida também e o produto
interno bruto foi duplicado. Apesar disso, está claro que a Bolívia ainda
permanece na retaguarda do restante da região.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Juan Ignacio Siles del Valle
27
A crise política vivida pela Bolívia está relacionada com a falta de confiança
no sistema político, com a crise de representação e legitimidade dos partidos,
com a falta de credibilidade das instituições, com as dificuldades governamentais
para melhorar as condições sociais e econômicas da população, com a
inexistência de uma cultura democrática e com os níveis intoleráveis de
corrupção. Outros problemas que preocupam crescentemente a sociedade são
o aumento da violência, a criminalidade e a insegurança urbana. Todos esses
fatores enfraquecem a democracia, tornando-a vulnerável a discursos populistas
e autoritários que, baseados em promessas fáceis e demagógicas, oferecem
mudanças que nunca se concretizam.
A crise social, política e econômica que a Bolívia está atravessando afeta
sua credibilidade e imagem externa. As margens de incerteza, insegurança
jurídica e o risco-país têm aumentado, diminuindo o interesse dos investidores
externos, no momento em que a captação de recursos públicos e privados
dirigidos à reativação econômica é indispensável e em que as dívidas interna e
externa continuam a crescer. Esse é um dos motivos pelos quais o governo
boliviano solicita o respaldo da comunidade internacional. Após a crise de
outubro, a incerteza predomina. Além disso, o déficit fiscal, atualmente em
torno de 8%, é insustentável. Os bolivianos devem pagar mais impostos e os
governantes devem reduzir as despesas. O país não pode continuar vivendo
da poupança externa.
O governo tem agradecido as demonstrações de apoio recebidas da
comunidade internacional e comprometeu-se a realizar uma gestão transparente,
e a garantir a institucionalidade democrática, impulsionando o desenvolvimento
econômico e lutando frontalmente contra a corrupção. A manutenção de um
governo democrático e constitucional será fortalecida com o diálogo construtivo,
a participação ativa da sociedade e o apoio de governos amigos e instituições
multilaterais. Em sintonia com esses esforços, estamos trabalhando para a
reconciliação do país, o reforço das instituições democráticas, a defesa do império
da lei e a necessidade de resolver os conflitos sociais por meios constitucionais.
A nova política externa boliviana
Carlos D. Mesa Gisbert recebeu a faixa presidencial e prestou juramento
em 17 de outubro de 2003. Em seu discurso de posse, esboçou as diretrizes
A Nova Política Externa da Bolívia
28 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004 2004
28
centrais de sua gestão. O novo presidente anunciou a convocação de um
referendo para decidir sobre a exportação de gás. Também prometeu modificar
o perfil do país com a convocação de uma Assembléia Constituinte e a
transformação da lei de hidrocarbonetos. Frisou que é necessário preservar a
unidade da Nação, cujo destino e futuro estão em jogo, deixando a porta
aberta para o Congresso revogar seu mandato. Por fim, enfatizou que a luta
contra a corrupção será fortalecida, e os direitos humanos e a vida respeitados.
Posteriormente, o primeiro mandatário pediu que o povo da Bolívia lhe
desse espaço e “um tempo para trabalhar” e solicitou aos setores sociais que
retirassem suas medidas de pressão. Reconheceu que “a situação econômica
do país é delicada”, mas expressou sua confiança no apoio da comunidade
internacional e dos organismos de cooperação. “O Estado não pode dar uma
resposta eficiente e efetiva a todas as reivindicações legítimas do povo”,
ressaltou. Posteriormente, o presidente Carlos Mesa afirmou que tornar a
“apostar na ortodoxia econômica é uma loucura” e admitiu que, no caso de
sua gestão fracassar, a Bolívia corre o risco de um “naufrágio total”.
Os três temas centrais da agenda externa da Bolívia, nas primeiras semanas
de seu governo, foram buscar o reconhecimento pela comunidade internacional,
evitar que a imagem internacional do país continuasse a se deteriorar, e encaminhar
um pedido de assistência e cooperação imediata. A comunidade internacional,
em geral, manifestou seu apoio ao presidente e ao processo de mudança
constitucional que a Bolívia vem empreendendo. Por exemplo, dias depois da
posse, o presidente dos Estados Unidos, George Bush, discutiu com seu
homólogo boliviano a necessidade de continuar a luta contra o cultivo e o tráfico
de droga, a necessidade de se levar a cabo um referendo para decidir sobre a
exportação de gás natural para os Estados Unidos e o México, e reiterou o apoio
de seu país ao processo constitucional da Bolívia e suas instituições democráticas.
A XIII Reunião da Cúpula Ibero-Americana, realizada na cidade de Santa
Cruz de la Sierra, foi uma oportunidade única para a Bolívia reabilitar – em alguma
medida – sua imagem internacional. A realização da XIII Cúpula Ibero-Americana
coincidiu com a etapa posterior à crise de outubro. Conseqüentemente, foi uma
ocasião propícia para o governo da Bolívia solicitar a ajuda da comunidade ibero-
americana e dos organismos internacionais. A Cúpula possibilitou ao governo
boliviano também obter uma série de apoios bilaterais. Nesse sentido, os 21 países
ibero-americanos estabeleceram um plano de emergência para a Bolívia, que deveria
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Juan Ignacio Siles del Valle
29
ser executado no máximo em 45 dias. O acordo, denominado “Ações ibero-
americanas de emergência em prol da Bolívia”, referiu-se a diversas iniciativas
unilaterais, bilaterais e multilaterais. Além disso, os Chefes de Estado e de Governo
da Ibero-América solicitaram dos organismos internacionais e regionais apoio e
cooperação para o desenvolvimento e a concretização dessas ações de emergência.
Os temas centrais da XIII Cúpula Ibero-Americana foram: o Relatório
Cardoso, a inclusão social como motor do desenvolvimento, e o apoio político
e econômico ao governo boliviano.
Os governantes presentes à XIII Cúpula Ibero-Americana assinaram a
Declaração de Santa Cruz de la Sierra, que contém 45 pontos, um anexo sobre
programas de cooperação e 14 comunicados especiais. Algumas das principais
recomendações são: a superação da pobreza, a reforma do sistema do Conselho
de Segurança da ONU e o reconhecimento de que os subsídios desvirtuam o
comércio. A Declaração de Santa Cruz contém, ainda, o reconhecimento de que
a corrupção é uma das maiores ameaças à governabilidade democrática. Os
mandatários ratificaram sua vontade de resolver o problema da dívida externa e
pronunciaram-se contra as leis extraterritoriais e as medidas contrárias ao direito
internacional. Nesse sentido, o governo dos Estados Unidos foi exortado a
eliminar a aplicação da Lei Helms-Burton, e foi destacada a importância do
estabelecimento da Corte Penal Internacional. A apresentação do Relatório
Cardoso permitiu a criação da Secretaria-Geral Ibero-Americana, mas decidiu-
se pela aprovação do seu estatuto na XIV Reunião de Cúpula de 2004, na Costa
Rica. Nessa reunião, também será eleito o Secretário-Geral, bem como a sede
onde funcionará o Organismo. A Secretaria permanente terá a incumbência de
fazer o acompanhamento dos programas criados pelos mandatários e será um
espaço de discussão e representação permanente para a Ibero-América.
O tema marítimo não esteve ausente na XIII Reunião de Cúpula Ibero-
Americana. O Secretário-Geral da ONU, Kofi Annan, manifestou a disposição
de oferecer seus bons ofícios para que a Bolívia e o Chile cheguem a um
entendimento sobre a reivindicação boliviana de uma saída para o Oceano
Pacífico. Da mesma forma, o presidente Mesa discutiu o tema em diversos
encontros bilaterais, e o presidente venezuelano, Hugo Chávez, afirmou que
“a Bolívia já teve mar (...) e eu sonho com, algum dia vir a tomar banho de mar
em uma praia boliviana”. Em todo caso, o encontro entre Ricardo Lagos e
Carlos Mesa foi útil para reorientar a agenda bilateral para a realidade pós-
A Nova Política Externa da Bolívia
30 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004 2004
30
outubro. Ambos os presidentes concordaram na necessidade de “desgasificar”
as relações bilaterais, adiar o diálogo sobre o projeto boliviano e aprofundar o
acordo de complementação econômica.
As primeiras viagens do Presidente da República foram para o Panamá,
Peru e Brasil. Após participar das celebrações dos 100 anos da criação do Panamá,
o presidente boliviano visitou seu homólogo peruano, Alejandro Toledo, com
quem se comprometeu, também, a “desgasificar” as relações bilaterais e a avançar
em outros temas da agenda binacional. O governo boliviano deseja aprofundar
a integração e avançar rumo ao mercado comum. O presidente Carlos Mesa
expôs ao presidente Toledo que não haverá negociações sobre o gás, até os
bolivianos se pronunciarem através de um referendo.
Por sua vez, a relação entre a Bolívia e o Brasil foi definida como uma
aliança estratégica. Para o país, o apoio do Brasil é fundamental para reativar sua
economia, garantir sua estabilidade política e fortalecer a unidade nacional. O
Brasil decidiu perdoar a quase totalidade da dívida pública boliviana e
comprometeu-se a investir 600 milhões de dólares em obras de infra-estrutura
rodoviária. Por fim, convém ressaltar que, ultimamente, o Brasil decidiu ampliar
sua demanda de gás boliviano até 20 milhões de metros cúbicos diários (MMmcd).
Por outro lado, o Presidente Carlos Mesa esteve no encontro semestral do
Mercosul, realizado no Uruguai, em 16 de dezembro de 2003, onde foi decido o
estabelecimento de uma zona de livre comércio entre a CAN e o Mercosul, e o
Peru, nessa ocasião, tornou-se o último país a se associar a este bloco. Além disso,
o primeiro mandatário, autorizado pelo Congresso, participou da Reunião de Cúpula
Extraordinária das Américas, no México, entre 12 e 13 de janeiro de 2004.
No âmbito institucional, durante a atual gestão governamental foram
produzidos avanços muito significativos. Pela primeira vez, 56% do pessoal
do serviço exterior são da carreira diplomática, consolidando-se assim, cada
vez mais, o processo de institucionalização do Ministério das Relações
Exteriores e Culto. Além disso, a administração do presidente Carlos Mesa
comprometeu-se a apresentar, em 2004, a estrutura da carreira diplomática.
Continuidade e mudança na política externa
No que diz respeito a alguns dos principais temas da agenda internacional
da Bolívia, podem ser destacados os seguintes:
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Juan Ignacio Siles del Valle
31
Política com os países vizinhos
Um dos principais objetivos da política externa boliviana é promover a
cooperação, a integração e o entendimento com os países vizinhos. Uma das
grandes aspirações da nação é tornar-se um vínculo de articulação na América
do Sul. O objetivo de sua política de vizinhança é melhorar ou manter as
relações com os 5 países vizinhos, tanto no plano comercial, mediante a
assinatura e implementação dos acordos de integração econômica, quanto em
matéria de integração física, energética e de telecomunicações, por meio do
planejamento e construção de estradas, pontes, dutos ou redes de comunicação.
Da mesma forma, pretende-se estabelecer programas de cooperação no âmbito
fronteiriço, aduaneiro e de migração com todos os países da região.
Nos últimos anos, o desenvolvimento dos temas da agenda bilateral com
a Argentina viu-se afetado pelos acontecimentos registrados em ambos os
países. No plano bilateral, os temas centrais são a migração, o comércio, o
transporte e a energia. Com o Brasil, entre os temas de maior relevância da
agenda bilateral ressaltam, os projetos de integração física e energética. Dois
temas centrais nas relações Bolívia-Chile, nos últimos meses, foram a exportação
de gás para o mercado norte-americano e as negociações para tornar o Acordo
de Cooperação Econômica (ACE 22) em Acordo de Livre Comércio. Com o
Paraguai, os temas mais importantes da agenda bilateral são comércio,
integração física e energia. Com o Peru, por sua vez, sobressaem os temas
energéticos, a revisão dos Acordos da Organização Internacional do Trabalho
(OIT), a questão migratória e os recursos hídricos do Lago Titicaca.
A reintegração marítima
A reintegração marítima é um objetivo fundamental e irrenunciável da
política externa boliviana. Nos últimos meses, as negociações sobre esse tema
foram dirigidas à busca de uma solução que permita não apenas aumentar a
presença e a integração da Bolívia ao Oceano Pacífico, mas também a recuperar
seu status marítimo. Em todo o caso, a administração de Carlos Mesa tem
dado mais ênfase à noção de “reintegração marítima” do que à de “status
marítimo”. A saída para o mar que for determinada para o país deverá ter as
seguintes características: ser livre, útil e soberana. Por outro lado, convém
A Nova Política Externa da Bolívia
32 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004 2004
32
lembrar que, em reiteradas oportunidades, o governo boliviano declarou que
o problema com o Chile possui dimensão bilateral, trilateral e multilateral. Da
mesma forma, o governo da Bolívia agradeceu os pronunciamentos em favor
da centenária causa marítima boliviana e sente-se comprazido com a longa
tradição de apoio a esse tema, com o respaldo da OEA e o oferecimento dos
bons ofícios do Secretário-Geral da ONU, Kofi Annan, fatos que novamente
trouxeram à tona a vigência do mesmo, no âmbito regional e multilateral.
O governo do Chile considera que a mediterraneidade boliviana é assunto
estritamente bilateral. De sua perspectiva, a assinatura do Tratado de Paz e Amizade,
de 1904, selou definitivamente toda e qualquer aspiração boliviana a um acesso útil
e soberano à costa do Oceano Pacífico. Nesse sentido, o governo do país vizinho
tem sustentado uma política invariável. O problema, porém, complicou-se logo
após o ano de 1929, quando o Peru e o Chile, com a assinatura de um tratado e um
protocolo secreto, estabeleceram que não poderiam ceder o território em questão
a um terceiro país, obstando a solução do problema marítimo nas últimas décadas.
Essa situação condicionou a busca de uma solução para o conflito, visto que,
enquanto o Chile possui o cadeado, o Peru tem a chave e, dessa perspectiva, a
solução do problema passa necessariamente por um consenso trilateral.
Para a Bolívia, a reintegração marítima não é apenas um objetivo da política
externa. Além de ser uma necessidade econômica ou uma demanda social, é um
fator psicológico incrustado no imaginário nacional como restrição e
condicionante para atingir um desenvolvimento humano pleno. Desde 1904, a
Bolívia tentou, insistentemente, conseguir do Chile que aceitasse uma negociação,
permitindo concretizar um de seus objetivos mais importantes em política externa.
Um desses esforços foi a obtenção da Resolução 426 da OEA, de 1979, que
estabelece ser a questão marítima um assunto de interesse hemisférico. Desde
então, o país apresenta-se a cada ano naquele Organismo, um dos espaços
multilaterais mais apropriados para buscar uma solução para o impasse, com o
objetivo de lembrar à comunidade interamericana a existência de um problema
pendente, que impede a integração, o desenvolvimento e a paz na região.
Diplomacia e gás natural
Depois da Venezuela, a Bolívia é o país com maiores reservas de gás natural
da América do Sul. Nos últimos anos, o país passou dos 5 trilhões de pés cúbicos
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Juan Ignacio Siles del Valle
33
(TCF) para 54 TCF. O gás é um produto barato e não poluente, favorece a
preservação do meio ambiente e representa um dos melhores substitutos para
os combustíveis tradicionais. Em conseqüência, esse recurso poderá potencializar
a importância estratégica do país na região e no hemisfério ocidental. Por sua
localização geográfica, afastada dos mais importantes conflitos internacionais
contemporâneos, a Bolívia pode tornar-se uma fonte confiável e segura de
abastecimento de gás natural para a costa oeste dos Estados Unidos.
Nos próximos anos, a Bolívia terá de enfrentar três desafios principais:
em primeiro lugar, consolidar seus mercados; em segundo, diversificar seus
destinos de exportação e, em terceiro, dar maior valor agregado a suas
exportações de gás natural. No âmbito das relações econômicas internacionais,
o país poderia utilizar suas reservas de gás natural e líqüido para diversificar
sua agenda com os países da América do Norte, fortalecer suas relações com
os do Cone Sul e marcar maior presença e gravitação no Pacífico. Contudo, as
reservas de gás natural não possuem nenhum valor econômico se não forem
exploradas comercialmente e se permanecerem no subsolo. É por isso que a
abertura de mercados para esse hidrocarboneto constituirá parte central da
política externa e da diplomacia bolivianas nas próximas décadas. As reservas
de gás natural e líqüido descobertas em seu território permitem pensar que o
país se torne o centro de provisão de gás natural na região e uma potência
energética regional emergente.
O setor de hidrocarbonetos foi um dos que mais contribuíram para o
crescimento da economia boliviana nos últimos anos. O atual governo decidiu
convocar um referendo para definir a exportação de gás, a modificação da lei
de hidrocarbonetos e o desenvolvimento de uma campanha de informação
sobre o projeto de exportação desses produtos. A campanha terá dados sobre
o processo de industrialização do gás e detalhes básicos técnicos sobre o
energético. O referendo irá mais adiante, com o propósito de se chegar a
consenso nas diferentes regiões e setores, para a execução desse processo.
Política de integração
A política de integração é muito mais que um instrumento da política
comercial e de promoção das exportações. Está diretamente ligada ao propósito
da política externa de melhorar os termos da inserção do país no mercado
A Nova Política Externa da Bolívia
34 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004 2004
34
internacional, além de ser um instrumento para garantir o crescimento das
exportações e o desenvolvimento econômico do país. A Bolívia está consciente
de que só por meio do fortalecimento econômico e político da região será
possível enfrentar o lado negativo dos processos de globalização, as tendências
protecionistas e o enfraquecimento do multilateralismo. Por isso, em matéria
de comércio e integração, sua política externa busca ampliar seus mercados,
diversificar a oferta de exportações, fortalecer o processo de integração
internacional do país, a atração de investimentos estrangeiros e o aumento de
sua capacidade negociadora, além de contribuir para o seu desenvolvimento
econômico e social.
A inserção da Bolívia na região e no mundo realizar-se-á quando o país
puder desempenhar uma função articuladora no processo de configuração do
espaço sul-americano, tornando realidade sua aspiração de ser um país de
contatos. Para tanto, sua diplomacia propiciou o fortalecimento da CAN e
promoveu um processo de crescente vinculação com o Mercosul. É, ainda,
membro pleno da CAN, tem um acordo de livre comércio com o Mercosul,
apóia os esforços para articular os dois esquemas de integração e participa
ativamente da Iirsa (Iniciativa para a Infra-Estrutura Regional Sul-Americana),
que tem como objetivo desenvolver a infra-estrutura física nos setores de
energia, telecomunicações e transportes.
A Bolívia também está desenvolvendo estratégias de expansão e
vinculação comercial com os países desenvolvidos e vem sendo beneficiada
com o Atpdea (Andean Trade Promotion and Drug Erradication Act) e o
SGP da Europa, mecanismos de acesso preferencial a esses mercados. Com
relação à integração hemisférica, convém destacar que, na última Conferência
Ministerial, realizada em Miami, decidiu-se reorientar as negociações da Alca e
estabelecer um quadro comum de compromissos, no qual cada país avançará
no ritmo que desejar. Sob esse esquema de negociação, colocou-se a
possibilidade de um entendimento multilateral, no âmbito de uma geometria
variável e com velocidades diversas. Todos os temas da agenda serão negociados
por todos os países em um pacote mínimo. Finalmente, cabe destacar que, na
reunião de Miami, o representante do Comércio Exterior dos Estados Unidos,
Robert Zoellick, anunciou o lançamento de negociações bilaterais com vistas
a estabelecer-se um tratado de livre comércio com a Colômbia, o Peru, a Bolívia
e o Equador, as quais avançavam em velocidades diferentes, a partir no segundo
trimestre de 2004.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Juan Ignacio Siles del Valle
35
No âmbito bilateral, a Bolívia tem pendente a negociação de um protocolo
complementar ao ACE 22, assinado com o Chile, com o propósito de diminuir
os desequilíbrios comerciais e as assimetrias existentes entre ambos os países.
Por fim, no âmbito multilateral cabe destacar a participação da Bolívia nas
negociações comerciais multilaterais da OMC e do G-20, que pretende ser um
contrapeso institucional aos Estados Unidos, União Européia e Japão, que
protegem e subsidiam o setor agrícola.
Luta contra o narcotráfico
A Bolívia faz parte da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico
de Entorpecentes, de 1988, da Convenção Única das Nações Unidas sobre
Entorpecentes, de 1961, emendada por seu Protocolo de 1972, e da Convenção
das Nações Unidas sobre Substâncias Psicotrópicas, de 1971. A nível bilateral,
subscreveu diversos instrumentos jurídicos internacionais objetivando a luta
contra o narcotráfico e, no âmbito regional, faz parte do Mecanismo de
Avaliação Multilateral da OEA. Além desses convênios internacionais, convém
ressaltar que com os Estados Unidos, assinou um Tratado de Extradição em
1995, em vigor desde 1996.
Na luta contra o narcotráfico, praticamente todos os países da
comunidade internacional estão envolvidos. Alguns deles são países produtores
de matéria-prima, enquanto outros a transformam, distribuem ou consomem.
Alguns são países de trânsito, enquanto outros enfrentam fenômenos associados
à luta contra as drogas, como a guerrilha, o terrorismo, o crime organizado, o
contrabando, o tráfico de armas ou a lavagem de dinheiro. Essa situação revela
as múltiplas dimensões do problema e os diferentes efeitos políticos,
econômicos e sociais que o narcotráfico pode causar. Nos últimos anos, o
narcotráfico tem sido percebido como uma verdadeira ameaça à segurança
interna dos países, devido a seus efeitos perniciosos sobre a saúde, a família, a
estabilidade das instituições democráticas, o aumento da delinqüência e,
evidentemente, da violência.
O processo de erradicação do cultivo de coca na Bolívia foi iniciado em
1988, com a promulgação da Lei 1008 e dos Decretos Regulamentarios para eliminar
as plantações ilegais de coca e lançar as bases para o desenvolvimento
socioeconômico dessas zonas de plantio. Com tudo isso, houve, nos últimos
A Nova Política Externa da Bolívia
36 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004 2004
36
anos, uma redução expressiva da coca ilegal e foi possível avançar no
desenvolvimento de culturas alternativas. No âmbito de sua Nova Estratégia
de Luta contra o Narcotráfico, e sob o princípio da responsabilidade
compartilhada, o governo boliviano pretende substituir a economia da coca e
fomentar o desenvolvimento alternativo, incorporar milhões de família
bolivianas às atividades lícitas, continuar eliminando a coca ilegal, ainda que
respeitando o consumo tradicional buscar mercados para os produtos
alternativos, e reduzir o consumo interno de drogas.
A co-responsabilidade e a cooperação internacional são essenciais para
fazer frente ao flagelo do narcotráfico. Nesse contexto, o país deve prosseguir
nos seus esforços para sair do circuito coca-cocaína, evitando, assim, consolidar-
se como país de trânsito. Deve, ainda, preocupar-se com a redução do consumo
interno e apoiar, no contexto internacional, a consolidação dos mecanismos
de valorização multilateral. A Bolívia precisa fazer com que o financiamento
para a luta contra o narcotráfico e o desenvolvimento alternativo seja mantido
ou ampliado, a fim de tornar sustentáveis seus esforços, em matéria de
erradicação da coca ilegal e excedente. Da mesma forma, considerando o alto
custo socioeconômico que teve a redução de sua produção de coca-cocaína, o
país tem realizado grandes esforços para solicitar às nações desenvolvidas maior
cooperação, abertura de seus mercados e recursos proporcionais aos esforços
realizados. A Bolívia precisa ser recompensada e alcançar a consolidação dos
mercados dos países industrializados para os produtos do desenvolvimento
alternativo, especialmente se demandam altos índices de mão-de-obra e são
geradores de emprego.
Há pouco tempo, informações via satélite, da Embaixada dos Estados
Unidos, demonstraram que a produção ilegal de coca havia aumentado 26% na
região dos Yungas e diminuído 15% na zona tropical de Cochabamba. Teria
havido um acréscimo de mais de 4.000 hectares, chegando a um total nacional
de 28.450 hectares de cultivo de coca. Nesse sentido, o presidente Carlos Mesa
assinalou que, enquanto o governo não comprovar o relatório dos Estados Unidos
sobre o aumento da coca ilegal, não serão reformuladas as operações de
erradicação em áreas como a dos Yungas. Além disso, afirmou que seria necessário
um “trabalho próprio” para encarar as ações antidrogas do seu governo. Nesse
sentido, uma de suas primeiras iniciativas foi solicitar à ONU informações
fornecidas via satélites, além de iniciar um processo de mensuração ou
levantamento das áreas de plantio. Uma vez obtidas as cifras da “realidade” na
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Juan Ignacio Siles del Valle
37
área dos Yungas, com base na avaliação cadastral, elas teriam de ser cruzadas
com as demais informações via satélite disponíveis. O país deseja agir com
soberania no tema da erradicação da coca e, por isso, planeja criar um sistema
próprio de medição das plantações desse vegetal, com o objetivo de melhorar a
sua margem de negociação sobre o assunto. Sua nova estratégia antidrogas procura
complementar a tradicional, de interdição de plantações ilegais, com ajustes
estruturais nos projetos de desenvolvimento alternativo, e recuperar a importância
do suporte da prevenção e reabilitação social, esquecido no passado. De qualquer
forma, a região dos Yungas, apresenta, desde já, perfil de “zona conflitiva” para
os futuros governos nacionais.
Luta contra o terrorismo
Após os ataques terroristas contra as Torres Gêmeas e o Pentágono, nos
Estados Unidos, em 11 de setembro de 2001, o tema do terrorismo e da
segurança internacional adquiriu novos contornos, além de crescente interesse
e protagonismo na agenda internacional. O terrorismo implica a execução de
atos de violência para amedrontar certos atores sociais ou uma população
determinada ou, ainda, fomentar a desorganização de uma estrutura social,
econômica ou política. Ele costuma expressar com amargura as frustrações de
certos setores da população e utiliza táticas psicológicas para atingir seus
objetivos. O propósito é causar medo para alcançar fins políticos. Na opinião
do governo boliviano, o terrorismo pode ser incubado no narcotráfico e dele
se alimentar. Além disso, o tráfico ilegal de drogas tornou-se, no mundo inteiro,
fonte de financiamento de muitas organizações terroristas.
O objetivo da política boliviana de luta contra o terrorismo é combater
esse flagelo em todas as suas formas e manifestações, em conformidade com
o direito internacional e a Carta das Nações Unidas, e com pleno respeito à lei,
aos direitos humanos e às instituições democráticas. É seu objetivo, também,
reforçar os mecanismos de cooperação política, legal, financeira e operacional,
relativos à luta contra o terrorismo, participar de todos os convênios
internacionais sobre a matéria e realizar um acompanhamento permanente
dos mesmos. Finalmente, convém ressaltar que, nos últimos anos, a Bolívia
ratificou todas as convenções contra o terrorismo e suas diversas manifestações,
aprovadas pelas Nações Unidas e pela Organização dos Estados Americanos,
e subscreveu a Convenção Interamericana contra o Terrorismo, adotada em 3
A Nova Política Externa da Bolívia
38 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004 2004
38
de junho de 2002, na XXXII Assembléia Geral da OEA, realizada em
Bridgetown (Barbados).
Luta contra a corrupção
O governo da Bolívia atribui a maior importância ao tema da luta contra
a corrupção e aos instrumentos jurídicos internacionais existentes sobre a
matéria, especialmente no âmbito da OEA e da ONU. O país tem níveis
preocupantes de corrupção e impunidade, o que causa grande prejuízo
econômico e lesa a moral dos bolivianos. A corrupção, além do mais, é uma
ameaça à governabilidade democrática.
Nesse sentido, o país comprometeu-se a cumprir com suas obrigações
internacionais e a fazer um acompanhamento permanente das ações
empreendidas para o combate ao crime transnacional. Em tal contexto, cabe
destacar que o governo aderiu à Convenção Mundial da ONU contra a Corrupção.
Contudo, para que entre em vigor, necessita ser ratificada por, pelo menos, 30
países. Em todo caso, após registrar sua assinatura em nome da Bolívia, a delegada
presidencial anticorrupção, Lupe Cajías, anunciou que o governo de seu país
espera a pronta ratificação da Convenção no Congresso Nacional.
A luta contra o crime transnacional passa também por um processo de
fortalecimento institucional nos três Poderes – Executivo, Legislativo e
Judiciário. Nesse sentido, cumpre ressaltar os significativos esforços para
combater a corrupção e a impunidade, recuperar a credibilidade na Justiça, no
Fisco e na Polícia, e criar mecanismos mais eficazes de prestação de contas.
Proteção às comunidades bolivianas no exterior
Os abusos e maus tratos a que alguns cidadãos bolivianos têm sido
submetidos em países para onde se viram obrigados a emigrar, tornaram-se,
por infelicidade, práticas recorrentes. Nessa matéria, o Estado boliviano não
conseguiu, até hoje, encontrar soluções satisfatórias. Cabe ao Serviço Consular,
dependente do Ministério das Relações Exteriores e Culto, proteger e colaborar
com os cidadãos bolivianos no exterior, mas não conta com pessoal, nem com
os meios necessários para levar a bom termo essa tarefa.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Juan Ignacio Siles del Valle
39
O Ministério está trabalhando para reforçar e elevar a qualidade dos
serviços prestados pelos Consulados bolivianos – mormente nos países onde
a comunidade é numerosa – com o objetivo de melhorar o atendimento aos
patrícios emigrados. A Chancelaria tem especial interesse em oferecer a maior
assistência possível às comunidades bolivianas ultrafronteiriças. Elas dão
importante contribuição para a nossa economia, por meio de remessa de divisas
aos seus familiares na Bolívia; ademais, projetam uma imagem positiva do
país, por sua honestidade, sua capacidade de trabalho, e já começam a ganhar
importante peso político nos países que as acolheram.
Por essa razão, a Chancelaria está trabalhando num Plano Geral de
Proteção e Atendimento aos Cidadãos Bolivianos Residentes no Exterior, que
começará a ser desenvolvido, inicialmente, nas cidades onde houver um maior
número deles, especialmente os que se encontrarem em situação de
vulnerabilidade. Outra tarefa pendente nessa área é a de conseguir a inclusão,
no quadro das reformas da Constituição Política do Estado, do direito ao voto
desses compatriotas, bem como de lhes facilitar, por meio de acordos bilaterais,
o direito à dupla nacionalidade nos países em que vivem.
À guisa de conclusões
Num contexto internacional que pode ser chamado de transição para a
consolidação de uma ordem uni-multipolar, em que o multilateralismo e o direito
internacional vão-se enfraquecendo, a política externa boliviana é uma expressão
da realidade interna do país, um instrumento de sua vinculação com o mundo e
uma ferramenta para enfrentar o processo de globalização. A Bolívia tem procurado,
permanentemente, uma melhor inserção nos diversos âmbitos da vida internacional,
tanto no contexto global, quanto hemisférico, regional ou sub-regional. Com um
governo democrático, uma economia social de mercado e uma identidade
multicultural e multilíngüe, a Bolívia, há vários anos, vem se esforçando para se
tornar um país de contatos e um centro de distribuição energética sub-regional.
Passa, atualmente, por uma crise social, política e econômica sem precedentes, e o
governo do Presidente Carlos Mesa enfrenta grandes desafios, razão pela qual
necessita do reconhecimento e do apoio da comunidade internacional.
A Bolívia promove a cooperação, o entendimento e a integração com as
nações vizinhas. Nesse quadro, um objetivo irrenunciável de sua política externa
A Nova Política Externa da Bolívia
40 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004 2004
40
Tradução: Luz Maria Montiel
é o de conseguir a sua reintegração marítima às costas do Oceano Pacifico.
Segundo a perspectiva boliviana, este é um tema bilateral, trilateral e multilateral.
Assim, a política de integração procura contribuir para a sua inserção
internacional, seu crescimento e desenvolvimento. Por outro lado, no contexto
de um processo de crescente complexidade do sistema internacional, a política
externa boliviana, pautando-se pelo direito internacional e pelo império da lei,
trata de enfrentar novas ameaças transnacionais, como o crime organizado, o
narcotráfico, o terrorismo e a corrupção. Na nova estratégia antidrogas do
governo, afirma-se que, apesar da crise de outubro, o país continuará lutando
contra o flagelo das drogas e, em consonância com o princípio da
responsabilidade compartilhada, solicitamos a comunidade internacional tem
a obrigação moral de desenvolver esforço proporcional e equivalente ao que
vem sendo realizado pela Bolívia.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Celso Amorim
41
eleição do Presidente Lula ocorreu em um momento de busca de
novas respostas políticas e econômicas para os problemas com que se
defrontam os países da América do Sul. A deterioração de indicadores sociais
na região expunha as limitações do modelo neoliberal, centrado na fé cega na
abertura de mercados – unilateral, em alguns casos – e na retração do papel do
Estado. A natureza ilusória da crença de que tais modelos produziriam
desenvolvimento sustentável ficou patente com as crises sociopolíticas na
região. Por seu compromisso com a democracia, por sua preocupação com a
dimensão social do desenvolvimento, o Presidente Lula passou a simbolizar
não apenas a aspiração de brasileiros por desenvolvimento com justiça social,
mas a de muitos outros em nossa região e além dela.
A ação diplomática do Governo Lula é concebida como instrumento de
apoio ao projeto de desenvolvimento social e econômico do País. Mas ela
possui, também, uma dimensão humanista, que se projeta na promoção da
cooperação internacional para o desenvolvimento e para a paz. Está
profundamente enraizada nos interesses e esperanças do povo brasileiro. É
nacional, sem deixar de ser internacionalista.
Conceitos e estratégias
da diplomacia do
Governo Lula
Celso Amorim
*
*
Ministro das Relações Exteriores da República Federativa do Brasil
A
Conceitos e estratégias da diplomacia do Governo Lula
42 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
42
Fundamenta-se em uma aguda consciência da interdependência entre os
destinos do Brasil e de nossos vizinhos sul-americanos. Ante as amplas afinidades
que nos aproximam e as dificuldades que desejamos superar, a integração da
América do Sul apresenta-se como um imperativo. A questão, na verdade, é
saber que tipo de integração queremos. Ausente uma agenda de crescente
cooperação, com ênfase nos interesses compartilhados e nas oportunidades de
benefícios mútuos, corremos o risco de assistir a uma integração perversa,
promovida pela contaminação recíproca de situações de crise, quando não pelo
crime organizado, pelo contrabando e pelo narcotráfico.
O aprofundamento dos laços entre nossas economias, a convergência
política e o aumento do contato entre as sociedades e os cidadãos da América
do Sul passam por acordos comerciais como os que firmamos entre o Mercosul
e os países da Comunidade Andina. Exigem atenção especial para questões de
infra-estrutura, como transportes, comunicações, energia. Mas requerem,
também, uma aproximação entre os povos e sociedades, por meio da arte, da
cultura, da multiplicação de oportunidades de contato. Aspiramos a conformar
uma Comunidade Sul-Americana de Nações.
Esse projeto de integração deve ser visto, também, como uma mobilização
capaz de potencializar nossas relações com outras nações e grupos de nações.
Acreditamos que um ordenamento global multipolar propicia um ambiente mais
estável e seguro, proporcionando melhores condições de desenvolvimento para
todos. A evolução do cenário internacional parece conduzir a um mundo formado
por grandes blocos, como a União Européia, ou países com peso e tamanho
equivalentes aos de um bloco, como os EUA e a China. Em uma estrutura com
essas características, o poder de influência de países em desenvolvimento, tomados
individualmente – até mesmo dos maiores, como o Brasil – permanece limitado.
O fortalecimento de nossa coesão regional permite que nos façamos melhor
ouvir nas negociações comerciais multilaterais, e que tenhamos maior impacto
sobre o ordenamento internacional, com vistas a torná-lo mais democrático e
eqüitativo. Nosso crescente entendimento com os parceiros do Mercosul e, em
particular, com a Argentina – sócio estratégico privilegiado – tem tornado possível
avançar nessa direção.
Se o conjunto sul-americano aproximar-se de outros países em
desenvolvimento, seu peso e sua capacidade de negociação serão
potencializados. Na esfera comercial multilateral, já estamos nos articulando
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Celso Amorim
43
com outros países em desenvolvimento, em torno de plataformas que aliam –
de forma, talvez, inédita – a promoção da liberalização comercial e da justiça
social. O G-20
1
, criado durante a Conferência Ministerial da Organização
Mundial do Comércio (OMC) em Cancún, situa-se na vanguarda de um
movimento internacional – que conta com o apoio da sociedade civil no próprio
mundo desenvolvido – pela redução das barreiras protecionistas e a eliminação
dos subsídios bilionários, que penalizam exportadores competitivos de produtos
agrícolas do mundo em desenvolvimento.
Ao alterar a tradicional dinâmica das negociações na OMC – onde as
duas principais potências comerciais costumavam estabelecer entre si a direção
e o nível de ambição das negociações – o G-20 contribuiu para “alterar a
geografia do comércio internacional”, conforme a expressão do Presidente
Lula. O G-20 afirma-se como ator indispensável para o progresso das
negociações da Rodada de Doha. Sustentamos que a Rodada só será bem
sucedida à medida que o processo for transparente e capaz de contemplar os
interesses e demandas dos principais atores.
A consolidação do G-20 demonstra que existe um espaço diplomático
que merece ser melhor explorado na interação com outros grandes países e
regiões em desenvolvimento. Por vários séculos, dependemos de percepções
colhidas por observadores europeus e norte-americanos sobre sociedades
geograficamente distantes das nossas, como as da Ásia e do Oriente Médio, e
até mesmo em relação a outras mais próximas, na vizinha África. A
intensificação do diálogo e do intercâmbio direto com essas e outras regiões,
para além da retórica já esgotada do terceiro-mundismo, exige, sobretudo,
vontade política de parte a parte.
O Governo Lula tem procurado demonstrar que os objetivos da
diplomacia brasileira podem ser, a um só tempo, universalistas e firmemente
ancorados em nossa prioridade sul-americana. É este o espírito com que
iniciativas inovadoras têm sido lançadas, como o foro trilateral entre Índia,
Brasil e África do Sul (IBAS), também chamado de G-3, e a proposta de Cúpula
entre os países da América do Sul e os países-membros da Liga Árabe.
1
O G-20 atualmente inclui África do Sul, Argentina, Brasil, Bolívia, Chile, China, Cuba, Egito, Equador,
Filipinas, Índia, Indonésia, México, Nigéria, Paquistão, Paraguai, Tanzânia, Venezuela e Zimbábue.
Conceitos e estratégias da diplomacia do Governo Lula
44 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
44
A África, de onde descende quase a metade dos brasileiros, desperta no
Brasil um crescente interesse político, econômico e cultural. Queremos abrir
um novo capítulo nas relações com nossos irmãos africanos. Com a
intensificação de visitas presidenciais e ministeriais nos dois sentidos, estamos
estabelecendo novas pontes para uma cooperação mais estreita, em sintonia
com as afinidades históricas e geográficas, e em consonância com nossos
esforços internos de promoção da igualdade racial.
Privilegiados os contatos com nosso entorno geográfico, o Governo
Lula distingue-se pela vocação para o diálogo com atores de todos os quadrantes
e níveis de desenvolvimento. A participação do Presidente da República nos
Foros de Porto Alegre e de Davos, em seu primeiro mês de governo, refletiu,
a um só tempo, as convicções democráticas do Governo e o desejo de influir
nos grandes debates internacionais em defesa de uma globalização não-
excludente.
A preocupação com a justiça social e com os direitos humanos também
está na origem da proposta do Presidente Lula de uma ação internacional
voltada para o combate à fome e à pobreza. Enraizados em valores éticos e
humanistas, esses esforços visam chamar atenção para os limites de enfoques
que privilegiam a dimensão militar da segurança internacional, sem levar em
conta os vínculos entre desenvolvimento econômico e social, por um lado, e
paz e segurança internacional, por outro.
Como afirmou o Presidente Lula, durante encontro em Genebra, do
qual participaram o Secretário-Geral da ONU e os Presidentes do Chile e da
França, a fome pode ser considerada a mais mortífera das armas de destruição
em massa.
O estreitamento de nossas relações com o mundo desenvolvido prossegue
com a elevação do diálogo político, tendo presente o interesse na ampliação
dos intercâmbios comerciais, na atração de investimentos e na cooperação
científica e tecnológica. As negociações para a constituição de uma Área de
Livre Comércio das Américas (Alca) representam um desafio do ponto de
vista do eqüacionamento equilibrado de uma pauta complexa, que envolve
não somente a liberalização do comércio de bens e serviços – em que
gostaríamos de nos concentrar – mas também disciplinas relacionadas a
investimentos, propriedade intelectual, compras governamentais, entre outras.
Com a União Européia, está em fase adiantada de negociação um acordo
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Celso Amorim
45
birregional com o Mercosul, que abre perspectivas promissoras de ganhos
comerciais, e pode ser visto como saudável fator de “multipolaridade” para
nossas relações econômico-comerciais com o Norte.
O Brasil tem uma sólida tradição de busca da paz por meios pacíficos,
baseados no diálogo e nos princípios do direito internacional. Acreditamos
que as instâncias multilaterais, por oferecerem um espaço de diálogo para
Estados soberanos, devem ser valorizadas e representam fator de progresso
para o ordenamento internacional.
O consenso internacional que favoreceu ações coletivas de combate ao
terrorismo, após os atentados de 11 de setembro de 2001, fraturou-se com a
intervenção militar contra o Iraque. Os trágicos desdobramentos da crise
iraquiana, entre eles o ataque contra o Escritório da ONU em Bagdá, em que
perdeu a vida o brasileiro Sérgio Vieira de Mello, continuam a desafiar a
sabedoria política da comunidade internacional. A perspectiva de erosão do
sistema de segurança coletiva, consubstanciado na Carta da ONU, levou o
Secretário-Geral Kofi Annan a propor uma reflexão sobre as ameaças
contemporâneas, os modos de enfrentá-las e sobre a correspondente
instrumentalização dos órgãos do sistema onusiano, em particular do Conselho
de Segurança.
Como aponta Kofi Annan, encontramo-nos em uma encruzilhada
histórica. O risco de um retrocesso em direção a ações unilaterais sem respaldo
no direito internacional requer coragem política que permita realizar os ajustes
cabíveis no sistema de segurança coletiva, preservando o papel central do
Conselho de Segurança na legitimação do uso da força. Convencidos de que o
multilateralismo representa, para as relações internacionais, o mesmo avanço
político representado pela democracia, nacionalmente, consideramos
indispensável que o processo de reforma das Nações Unidas contribua para
fortalecer a voz dos países em desenvolvimento – e da América do Sul em
particular – na promoção da paz.
À medida que a situação no Iraque, e mais amplamente no Oriente Médio,
constitui as mais sérias ameaças à estabilidade mundial, não podemos deixar
de assumir nossa parcela de responsabilidade pelo seu encaminhamento. É
certamente este o sentimento do Presidente Lula, cuja atuação, antes da Guerra
do Iraque, preconizava meios diplomáticos para a solução pacífica do impasse.
Hoje, o Governo brasileiro procura manter uma interlocução ativa com os
Conceitos e estratégias da diplomacia do Governo Lula
46 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
46
países de nossa região e outros atores internacionais, com vistas a reverter o
atual quadro de ceticismo e violência no Golfo e no Oriente Médio. A indicação
de um Emissário Especial para o Oriente Médio e as providências já tomadas
para a instalação de uma representação diplomática do Brasil em Ramalá
inscrevem-se nesse contexto.
Nossa região registra um histórico de paz e estabilidade que temos sabido
preservar. A ausência de grandes conflitos e a prevalência de formas
democráticas de governo são conquistas das quais os governos e os povos
latino-americanos devem orgulhar-se. Isso não significa que não possamos ou
não devamos nos interessar pela promoção da paz globalmente; a instabilidade,
ainda que longínqua, acaba gerando custos para todos os participantes do
sistema internacional.
Mais próximo de nós, o Haiti exige um compromisso de longo prazo por
parte da comunidade internacional, em apoio a sua reconstrução econômica e
institucional. Na condição de membro do Conselho de Segurança, o Brasil vem
trabalhando para que as percepções e inquietações dos países do Caribe sejam
levadas em conta nas decisões da ONU sobre o Haiti, e para que os haitianos
voltem a se beneficiar no mais breve prazo, de um ambiente propício à consolidação
de sua democracia. No caso do Haiti, é gratificante ver que estão dadas as condições
para uma operação da ONU, que conta com o consenso político da comunidade
internacional. Esse raciocínio embasou nossa decisão de aceitar o comando da
operação de paz estabelecida pelo Conselho de Segurança.
Nossa participação na Missão da ONU no Haiti, ademais, parte do
princípio de que a paz não é um bem internacional livre: a manutenção da paz
tem um preço. Esse preço é o da participação. Ausentar-se ou eximir-se de
opinar ou agir diante de uma situação de crise pode significar a exclusão do
processo de tomada de decisões, ou, pior, a dependência em relação a outros
países ou regiões.
* * *
Passados quinze meses, a diplomacia do Governo Lula tem um saldo
significativo de realizações a apresentar. O Consenso de Buenos Aires e a Ata
de Copacabana expressam o nível de entendimento sem precedentes alcançados
por Argentina e Brasil. O Mercosul recupera sua coesão interna, associa-se ao
Peru e conclui negociações com os demais membros da CAN. Emergem, aos
poucos, os contornos de uma Comunidade Sul-Americana de Nações.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Celso Amorim
47
Consolidamos importantes alianças na luta por um comércio internacional
mais livre e menos distorcido. O G-20, nascido dos embates que precederam a
Conferência de Cancún, afirma-se como um interlocutor indispensável na
retomada das negociações agrícolas na OMC. A Declaração Ministerial de Miami
contribuiu para reequilibrar as negociações da Alca. Abrem-se perspectivas
promissoras de conquista de novos mercados para o Mercosul, mediante acordos
já negociados, ou em vias de negociação, como o birregional, com a União
Européia, e os que estabelecem preferências fixas no comércio com a União
Aduaneira do Sul da África (SACU) e com a Índia. Em breve, serão iniciados
entendimentos para acordos entre o Mercosul e o Mercado Comum e a
Comunidade do Caribe (Caricom), a China, o México, o Marrocos e outros
países árabes.
Firmam-se os laços de amizade e cooperação com parceiros tradicionais
do mundo desenvolvido e em desenvolvimento. A China afirma-se como um
parceiro estratégico. As relações com a Rússia ganham novo dinamismo.
Começam a frutificar os novos projetos de estreitamento de relações como os
do Foro do IBAS, cuja primeira Comissão Trilateral, em Nova Delhi, em
fevereiro último, estabeleceu um ambicioso programa de cooperação. Brasil,
Índia e África do Sul trabalham juntos, também, em ações que buscam colocar
a questão da fome no topo da agenda internacional; estão criadas as condições
para o início de projetos financiados pelo Fundo do IBAS contra a fome e a
pobreza.
Esses esforços serão levados adiante ao longo de 2004, ano em que o
Brasil voltará a assumir a presidência do Mercosul (no segundo semestre) e
deter a presidência do Grupo do Rio. Em junho, a cidade de São Paulo foi
anfitriã da XI Conferência das Nações Unidas para o Desenvolvimento e o
Comércio (Unctad), ocasião em que foram examinadas a possibilidade de
lançamento de uma nova rodada de negociações comerciais no âmbito do
Sistema Geral de Preferências entre Países em Desenvolvimento (Sgpc) e outras
formas mais ousadas de aproximação entre os mesmos, consolidando vários
esforços já em curso. Em setembro, o Presidente Lula organizará um encontro,
à margem da Assembléia Geral da ONU, destinado a examinar formas de
levantar recursos para o combate à fome e à pobreza.
Se os progressos alcançados nos permitem encarar o cenário internacional
com confiança em nossa capacidade de abrir novas trilhas e influir sobre
Conceitos e estratégias da diplomacia do Governo Lula
48 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
48
processos em curso, não devemos subestimar os obstáculos que continuaremos
enfrentando – na promoção de processos decisórios mais equânimes, na defesa
de maior justiça social de forma global, na retomada de uma efetiva cooperação
internacional para a paz e o desenvolvimento. Em parceria com os países sul-
americanos, o Brasil continuará trabalhando por melhores condições de vida
para seus cidadãos, certo de que contamos com crescente respeito, simpatia e
apoio, aqui e no resto do mundo.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
María Soledad Alvear Valenzuela
49
globalização, como fenômeno que impregna a realidade na qual se
desenvolvem as nações contemporâneas e como forma de compreender as
condições em que se vinculam entre si, tem sido um processo rápido, intenso
e inevitável. A velocidade com que progridem as comunicações e sua influência
na tomada de decisões por governos, pessoas e mercados afetam todos os
aspectos da vida de países e cidadãos.
Esse é o cenário no qual a América Latina tem de se mover – cheio de
incertezas e desafios – no qual os equívocos podem ter custos muito elevados em
termos de desenvolvimento, e dos quais se pode levar anos para se recuperar.
Como disse recentemente o Presidente Lagos, “queremos construir um mundo
melhor, um mundo que possamos deixar como herança às gerações futuras. No
entanto, temos menos certezas do que no passado. Não tememos o Apocalipse,
mas aprendemos que os recursos não são inesgotáveis; que o dano ao meio ambiente
é uma das ameaças para o futuro; que as tensões sociais decorrentes das profundas
desigualdades em algumas de nossas sociedades constituem bombas de ação
retardada”.
1
A política externa
do Chile
no início do milênio
María Soledad Alvear Valenzuela
*
*
Ministra das Relações Exteriores da República do Chile
1
Presidente da República, Ricardo Lagos Escobar, durante a cerimônia de graduação de 2003 dos Alunos da
Academia Diplomática do Chile “Andrés Bello”, 22 de setembro de 2003.
A
A política externa do Chile no início do milênio
50 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
50
Sabemos que devemos avançar em um mundo muito diferente daquele
que historicamente conhecemos e, ao contemplar a experiência vivida, resta-
nos apenas o imperativo de não voltar a cometer os erros do passado e utilizar
ao máximo os recursos do presente e aqueles que antevemos como disponíveis
no futuro.
Frente a esse mundo globalizado, atua-se a partir de um continente, de
uma região. A política externa dos países latino-americanos faz-se a partir
desta região e de sua história e potencialidades. Daí a importância de fortalecer
os acordos regionais e a integração. É necessário avançar em processos de
integração realistas e concretos, já que, de outra maneira, podemos ficar à
margem do desenvolvimento global e transformarmo-nos em meros
espectadores.
A política externa do Chile: uma visão do presente e do futuro
Diretrizes permanentes e programáticas
A política externa do Chile se alimenta de duas fontes básicas: os
princípios permanentes e os objetivos programáticos. O Presidente Ricardo
Lagos os definiu em sua primeira Mensagem à Nação, pouco tempo depois de
assumir o governo, em 2000.
2
Outro elemento essencial para compreendê-la é a recuperação da
democracia, que mudou radicalmente as formas de vinculação entre o país e o
resto do mundo. A reinserção internacional do Chile, iniciada em 1990, deu
início a um período fecundo da nossa história internacional.
Os aspectos permanentes referem-se àqueles conceitos que são parte
substancial da nossa ação diplomática, por constituírem princípios inalteráveis
da visão internacional do país e terem sido seguidos consistentemente durante
nossa história republicana.
Em contraste, os segundos são aqueles elementos que dão forma e
singularizam as próprias aspirações, interesses e projeção internacional que o
2
Mensagem Presidencial, 21 de maio de 2000.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
María Soledad Alvear Valenzuela
51
governo do Presidente Ricardo Lagos impôs à política externa durante o seu
mandato, aqueles que complementam e ampliam os objetivos e êxitos da década
de noventa.
São princípios permanentes: o apego ao direito internacional e,
conseqüentemente, o respeito irrestrito aos tratados; a não-intervenção nos
assuntos de outros Estados; a solução pacífica das controvérsias e a promoção
e defesa dos interesses nacionais.
A aplicação permanente desses princípios tem dado à política externa
chilena uma continuidade histórica que se desenvolve coerentemente em um
quadro de referência estável, o que permite ao país ser um ator previsível e
confiável no contexto internacional.
Com isso se aspira, ao mesmo tempo, que a política exterior se desenvolva
como uma política de Estado, orientando-se para objetivos estratégicos que
promovam o bem-estar do cidadão, o desenvolvimento nacional e a participação
internacional, promovendo os princípios e valores que sustentam esta sociedade.
Da mesma forma, o país aspira a compartilhar os valores e ideais comuns
dos povos latino-americanos, a contribuir para que, de forma conjunta e
coordenada, possamos promover nossos anseios, fazer ouvir nossos pleitos e
expor nossas idéias e as formas como concebemos soluções para os problemas
mundiais, com base em nossa experiência e na percepção desta região do mundo.
O fim de um ciclo
A volta à democracia, em 1990, representou um momento de renovação
da política externa do Chile. Foram dois os grandes objetivos traçados naquela
época: reinserir o país na comunidade internacional e assegurar-lhe uma inserção
econômica internacional equilibrada, que consolidasse nossa abertura nesse
âmbito.
O Chile viveu dezessete anos de isolamento, em um cenário internacional
caracterizado pela divisão ideológica entre dois blocos. Sofreu os efeitos de
um período em que a realidade foi interpretada, modelada e reduzida a projetos
tendenciosos e excludentes. A queda do Muro de Berlim, em fins da década de
oitenta, simbolizou o fim de uma época e o início de um processo de profundas
transformações, que modificaram radicalmente as estruturas políticas, sociais,
A política externa do Chile no início do milênio
52 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
52
econômicas e culturais vigentes desde 1945, dando lugar a uma nova etapa
marcada pelo fenômeno da globalização.
A recuperação da democracia no Chile exigiu uma nova formulação dos
princípios, interesses e objetivos da nossa política externa. Esse foi o contexto
histórico no qual, no começo da década passada, a ação internacional do Chile
passou a se caracterizar pela afirmação da sua vontade democrática, em que
princípios como a defesa dos direitos humanos, a promoção da democracia e
a manutenção da paz e da segurança internacionais transformaram-se em pilares
e condutores das decisões de política externa.
Ao mesmo tempo, a formação de um grande mercado global, os processos
transnacionais, o aumento da interdependência e a instantaneidade das
comunicações confrontaram o país com a necessidade de assumir essas novas
realidades a partir de uma economia aberta ao mundo. Foi assim que o Chile
complementou um processo iniciado de maneira paulatina, com a abertura unilateral
da sua economia, com uma estratégia destinada a conseguir avanços no âmbito
multilateral, e acordos bilaterais com os mercados mais expressivos do mundo.
Nesses anos de democracia, o Chile conseguiu inserir-se plenamente na
comunidade internacional, mostrando-se coerente com os princípios que inspiram
as Nações Unidas e uma ordem mundial baseada no direito internacional e no
multilateralismo. Isso nos permitiu assumir maiores responsabilidades no âmbito
internacional: fomos eleitos, em duas oportunidades, membros não-permanentes
do Conselho de Segurança das Nações Unidas (1996-1997, 2003-2004);
integramos em quatro ocasiões o Conselho Econômico e Social; desde 1992,
participamos da Comissão de Direitos Humanos de forma quase ininterrupta; e
mantemos uma disposição permanente de trabalhar com diversos organismos
multilaterais. Em matéria de diplomacia de cúpulas, promovemos a Cúpula
Mundial sobre Desenvolvimento Social e sediamos reuniões do Grupo do Rio,
da Cúpula Ibero-Americana e da II Cúpula das Américas. No âmbito regional,
acolhemos duas Assembléias Gerais da OEA e promovemos a adoção do
“Compromisso de Santiago”, de 1991, que assentou as bases da Carta
Democrática Interamericana.
Ao mesmo tempo, o Chile alcançou uma acertada integração na economia
global. Começando pela região, e com a experiência adquirida nos primeiros
acordos negociados, o Chile se projetou mais longe, rumo à conquista dos
mercados da Ásia- Pacífico, dos Estados Unidos e da Europa. A identificação
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
María Soledad Alvear Valenzuela
53
desses três eixos resultou em intensas ações diplomáticas que, ao cabo de
vários anos levaram a acordos de comércio transcendentes na história do país.
Com efeito, os acordos comerciais de natureza distinta com os países latino-
americanos, os Tratados de Livre Comércio com o Canadá, México, Estados
Unidos da América e Coréia, bem como o Acordo de Associação com a União
Européia, abrem as portas para mercados que somam cerca de 1,3 bilhão de
habitantes e que, no conjunto, representam mais da metade do produto bruto
mundial.
Em suma, o cumprimento dos objetivos que tínhamos estabelecido há
mais de uma década, nos permite encerrar com êxito um ciclo da política
externa chilena e passar a uma nova etapa, na qual as tarefas têm a ver com a
promoção de condições para que o Chile atinja um desenvolvimento social e
econômico vigoroso, num contexto regional democrático, estável e socialmente
coeso, para – como país e como região – projetar-se vigorosamente para o
resto do mundo, enfrentando as grandes questões do século XXI.
Este é pois, o grande desafio da política externa do Chile, para o que definimos
quatro eixos de ação que nos permitem enfrentá-lo com êxito e que se indicam a
seguir:
1 – Nossa prioridade é a América Latina
No mundo atual, o futuro das nações é interdependente. A globalização
requer que se unam esforços para se ter uma inserção adequada e não se ficar
à margem do progresso. A perspectiva planetária, independentemente da
vontade dos atores participantes, é uma realidade que trará graves conseqüências
se não for percebida, analisada e enfrentada de maneira conjunta e eficaz.
No âmbito político, Estados pequenos ou médios procuram se fazer
ouvir e influir de maneira relevante no processo mundial de tomada de decisões.
Isso implica contar com a disposição de chegar a acordos no quadro regional,
promovendo nossa integração, harmonizando-a com as estratégias próprias
do desenvolvimento, procurando obter os benefícios oriundos das vantagens
competitivas das diferentes áreas da região em relação ao resto do mundo.
Uma das definições-chave da política externa chilena é pertencermos à
América Latina. Projetamo-nos no mundo como região, coordenando posições
A política externa do Chile no início do milênio
54 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
54
para satisfazer interesses que nos são comuns e assim, alcançar conjuntamente
os benefícios do desenvolvimento.
Os países da região, em sua maioria, são pequenos ou de tamanho médio.
Isso deveria induzir-nos a enfatizar a variável regional, tanto no âmbito político
como no econômico, já que a competição comercial e a articulação e defesa de
posições no plano global requerem espaços de integração efetivos que permitam
aproveitar as vantagens das economias de escala e as várias potencialidades
decorrentes do diálogo permanente e da harmonia de idéias.
Para alcançar esse objetivo, o Chile assumiu o compromisso de
desempenhar um papel ativo na busca conjunta de soluções para os problemas
regionais e para ajudar a identificar metas realistas e comuns de integração que
nos permitam progredir, com uma certa ordem, numa direção determinada.
Da mesma forma, redobraremos nossa disposição de compartilhar
experiências e de continuar promovendo programas de cooperação em favor
de um ambiente mais estável, com mais ordem, do ponto de vista
macroeconômico, porém, ao mesmo tempo, com fortes mecanismos que
permitam às economias da região uma luta sustentada contra a pobreza, capazes
de criar um círculo virtuoso entre governabilidade política e progresso social.
O compromisso do Chile com a região, além de político e comercial é,
ao mesmo tempo bilateral e multilateral. Tais dimensões são complementares
e necessárias.
No âmbito político, consideramos necessário continuar realizando
esforços direcionados a encontrar soluções para os problemas existentes e a
identificar elementos, variáveis ou ameaças que possam perturbar a estabilidade
política e social.
Temos pontos de convergência fundamentais. Todos os países
estamos preocupados com os desafios que enfrenta nossa região em matéria
de governabilidade democrática e coesão social. Esse foi o tema da Cúpula
do Grupo do Rio, realizada no Peru, foi também o da Assembléia Geral da
OEA, realizada no Chile, da Cúpula Ibero-Americana, na Bolívia, e da
Cúpula Extraordinária das Américas, em Monterrey. Em outras palavras,
estamos trabalhando juntos na identificação de caminhos de
desenvolvimento e prosperidade para nossos povos e na consolidação de
nossas democracias.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
María Soledad Alvear Valenzuela
55
Nesse sentido, instâncias como o Grupo do Rio, o Mercosul Ampliado
e a Organização dos Estados Americanos, para citar apenas alguns dos foros
nos quais já se conseguiram avanços no âmbito regional, constituem teatros
relevantes nos quais o Chile continuará trabalhando para que sejam abordados
os temas transcendentes para a região.
O Mercosul é o esquema de integração mais relevante da nossa área
geográfica. Desejamos um fortalecimento substantivo da dimensão política
do Mercosul Ampliado como espaço de entendimento sub-regional, para
alcançar uma posição mais relevante na comunidade internacional. Da mesma
forma, interessa-nos aprofundar os laços, tomando como base a ampla gama
de matérias em que se pode avançar, como por exemplo, a coordenação
macroeconômica, a luta contra a pobreza, a defesa, a cultura e a educação,
entre outras.
Também devemos trabalhar para que a Organização dos Estados
Americanos funcione com eficácia, atualizando devidamente a sua agenda,
para que contenha os temas que interessam ao Hemisfério no seu conjunto e
buscando uma agilização dos seus métodos e práticas, a modernização da sua
estrutura e uma coordenação efetiva com o conjunto de organismos do sistema
interamericano.
A perspectiva de integração regional do Chile fundamenta-se na
construção de um sistema realista, que estabeleça metas viáveis e seletivas nos
setores em que se possam lograr progressos concretos, abrindo espaços de
convergência que consigam vincular os diferentes esquemas existentes e a
pluralidade de interesses em jogo.
Ao mesmo tempo, é indispensável avançar na integração nas áreas de
educação, livre circulação de pessoas e capitais, meio ambiente, defesa e segurança.
Um aspecto central de tal agenda é o estabelecimento de um eixo de ação
que promova a governabilidade democrática e a coesão social na América Latina.
Entendemos que é parte do nosso interesse nacional trabalhar pela solidez e
estabilidade dos países do nosso ambiente regional, já que isso cria condições
favoráveis para continuarmos avançando na estratégia comum de
desenvolvimento.
O que precede levou-nos a defender com energia, na Assembléia Geral
da OEA (Santiago, junho de 2003), a proposta de levar adiante uma Agenda
A política externa do Chile no início do milênio
56 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
56
de Governabilidade Democrática para as Américas que articule esforços
nacionais e internacionais, permitindo enfrentar os novos desafios políticos,
econômicos e sociais gerados no contexto atual da globalização e prosseguir
com a tarefa de fortalecer a credibilidade e a confiança do cidadão nas
instituições democráticas.
Por outro lado, o comércio é também um instrumento que,
comprovadamente, facilita os processos de integração. Como já foi assinalado,
o Chile possui uma rede de acordos – de distintas naturezas – com toda a
América Latina, e a região ocupa um lugar preferencial da nossa atenção no
campo econômico. Com efeito, o Hemisfério representa 45% do nosso
comércio internacional e quase a totalidade dos investimentos do Chile no
exterior. Da mesma forma, é principalmente para a região que se destinam
nossos produtos exportáveis com maior valor agregado.
Um tema comercial de interesse comum para a América Latina, em cuja
discussão deveríamos perseverar, é o das negociações para se chegar a uma
Área de Livre Comércio para as Américas (Alca). O Chile sustenta que, além
dos diferentes e legítimos pontos de vista que existem, é necessário que tais
negociações tendam a favorecer todo o continente, sobretudo com a adoção
de normas claras e estáveis para o desenvolvimento de todas as formas de
intercâmbio. Um cenário regional com maior disciplina na área de comércio e
com mecanismos de solução de controvérsias respeitados e legítimos assegura
condições melhores e mais estáveis para as exportações e os investimentos
realizados na região.
No âmbito bilateral, a agenda de trabalho com as nações vizinhas e com
o resto dos países da região é intensa e compreende questões como integração
física, energética, fronteiriça e social. A integração tem um significado muito
mais evidente nas áreas limítrofes, já que lá existe uma rede de interesses
concretos e uma dinâmica de aproximação que nos últimos anos acelerou de
forma substancial a interdependência dos povos.
A vizinhança com a Argentina, o Peru e a Bolívia levou-nos a promover
uma agenda prioritária com esses países, que esperamos aprofundar nos
próximos anos. Estamos realizando um importante trabalho nos mais diversos
campos da relação bilateral, que esperamos seja aprofundado e complementado
com uma integração maior em outros setores e cuja expressão concreta deveria
ser a materialização de alianças, associações estratégicas e plataformas de
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
María Soledad Alvear Valenzuela
57
desenvolvimento compartilhadas em todas as áreas em que existam elementos
comuns.
No mesmo sentido, concordamos com o Brasil na urgência de estabelecer
uma agenda regional que contemple temas tais como: integração econômica;
integração física, em especial a questão dos corredores bioceânicos; o
fortalecimento da institucionalidade democrática; o terrorismo; as crescentes
redes de narcotráfico; e a cooperação nos âmbitos cultural, educacional e
tecnológico, bem como um fortalecimento dos mecanismos de consulta e
coordenação política, com vistas a posições comuns nos foros internacionais.
Como ambos os países somos hoje membros não-permanentes do
Conselho de Segurança das Nações Unidas, continuaremos a nos esforçar
para atuar de maneira coordenada naquele foro. Nossos mandatários
concordaram, igualmente, quanto à necessidade de reformar e revitalizar o
Sistema das Nações Unidas, em particular o Conselho de Segurança, de modo
a torná-lo mais representativo diante das novas realidades mundiais. Nesse
contexto, o Presidente Lagos manifestou ao Presidente Lula que, caso se decida
a ampliação do número de membros permanentes do Conselho de Segurança
da ONU, o Chile reconhecerá o legítimo interesse histórico do Brasil em integrar
essa categoria de membros.
Seguiremos também no propósito de fortalecer nossas relações com a
Colômbia, o Equador e a Venezuela, nações com as quais temos tido
historicamente uma ligação muito próxima.
Uma presença maior na América Central e no Caribe é outro elemento
relevante de nossa política externa na região.
Do mesmo modo, acreditamos que o México constitui um vértice
indispensável de uma política de alianças que potencialize o desenvolvimento
e a presença do Chile na América Latina.
Manteremos com os Estados Unidos e o Canadá uma relação equilibrada
e madura, que projetaremos com vistas à cooperação para a estabilidade do
Hemisfério, bem como ao desenvolvimento de espaços de diálogo, cooperação
e concórdia que permitam ampliar as condições de segurança no continente e
promover a prosperidade para o conjunto das Américas.
Como já foi assinalado, no mundo em que vivemos, ninguém pode bastar-
se a si mesmo, nem sequer as grandes potências. A globalização, a
A política externa do Chile no início do milênio
58 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
58
interdependência e a transnacionalização são correntes que cruzam as fronteiras
e abrem perspectivas planetárias que vão além da vontade dos atores
participantes.
A América Latina deve fazer ouvir sua voz e influir de maneira relevante
no processo mundial de tomada de decisões. Isso requer uma atuação conjunta,
fundada em uma vontade concreta de integração. Por isso, nossa política externa
tem uma inflexão latino-americana, já que é o âmbito geográfico em que
vivemos, e tudo que se passa ao nosso redor nos afeta.
Achamos necessário fomentar entre os países da região um esquema de
diálogo que permita dar forma a eixos funcionais, abertos e flexíveis, em que se
possa concordar em determinados assuntos e dissentir em outros, sem excluir
ninguém. Trata-se de somar forças para construir consensos básicos e levar adiante
sua aplicação prática, promovendo a articulação de espaços que facilitem o impulso
da agenda regional.
2 – Nossa ação global e multilateral: governar a globalização
A globalização tem evidentes vantagens em matéria de investimentos e
de transação de bens, comunicações e aproximações mútuas. Também cria,
porém, desequilíbrios entre os países e afeta elementos básicos do atual sistema
internacional, fundado na existência de Estados independentes e soberanos
em suas decisões, bem como a ordem política, econômica e social estabelecida
na maioria dos países do mundo moderno.
O problema que surge a partir dessa nova etapa é que a ordem vigente
não parece capaz de conduzir a globalização e que se enfraqueceu o consenso
quanto ao respeito a certas normas comuns, aceitas por todos. Isso é favorecido
pelo fato de essa mesma globalização apresentar um elemento novo em relação
a episódios semelhantes da história mundial: falta-lhe um centro nítido que
reúna o poder político e econômico.
Tal situação acentuou o questionamento do multilateralismo atual. As
organizações internacionais surgidas no pós-guerra eram adequadas à situação
existente naquele momento e foram reforçadas pela subseqüente Guerra Fria.
No entanto, as críticas ao seu funcionamento começaram há mais de uma
década, quando se manifestaram os primeiros sintomas de obsolescência em
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
María Soledad Alvear Valenzuela
59
algumas áreas. Isso pode ser apreciado na composição do Conselho de
Segurança das Nações Unidas, na existência de um Conselho de Tutela – quando
faz quase duas décadas que não há territórios sob tutela confiados à sua
supervisão – e na dinâmica do Conselho Econômico e Social.
Nesse debate, surgiram inesperadamente novos atores e novos focos de
discussão. Governar a globalização requer ocupar-se também dos grandes temas
mundiais. Com base nesse grande quadro de referência, surgiu um novo debate
relativo aos “bens públicos mundiais”. São denominados bens públicos porque,
independentemente de quem seja o seu provedor (o setor privado ou o Estado),
a sociedade entende que devem estar ao alcance de todos.
A expressão irrompeu nas discussões internacionais como um novo elemento
de análise; sua descrição encontra-se ainda em uma fase de delimitação conceitual
e, embora a idéia seja objeto de atualização recente, isso não impediu que fosse
lançada como um tema de reflexão e de interesse na aplicação de algumas políticas
globais.
Essa discussão é complementada pelo interesse em dinamizar e dar
conteúdo ao “novo” multilateralismo, reclamado por muitos países com o
objetivo de conviver em um mundo global, que apresenta oportunidades, mas
também ameaças, especialmente para as sociedades e povos mais vulneráveis.
Como já foi assinalado, o que é multilateral será, cada vez mais,
considerado como um tema doméstico, e a maneira de se atuar nesse cenário
pode chegar a se converter, aos olhos do cidadão comum, em uma tarefa tão
importante quanto qualquer tópico de nossas políticas nacionais.
Por isso, uma renovação do multilateralismo também é importante desse
ponto de vista, já que o grau de independência de que os Estados disporão no
futuro dependerá, em grande parte, da sua estrutura e distribuição de poderes.
São necessárias estruturas renovadas para abordar os problemas da
macroeconomia mundial, a regulamentação das transações econômicas e a
estabilidade financeira, bem como o meio ambiente, a justiça internacional, os
direitos humanos, a luta contra as epidemias mundiais, a diversidade cultural,
o conhecimento e o uso de bens comuns. Precisamos de um sistema multilateral
diferente se quisermos coesão social em escala planetária e de um mundo com
regras claras e oportunidades para todos, porque onde não há um direito comum
predomina a lei do mais forte.
A política externa do Chile no início do milênio
60 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
60
Para o Chile, o multilateralismo e o direito internacional constituem meios
imprescindíveis de promover e defender adequadamente seus interesses, daí
nossos esforços em fortalecê-los e em construir uma ordem internacional
baseada em princípios e na legalidade.
Por isso, nossa ação global e multilateral segue orientações baseadas em
princípios e valores permanentes, fundados na profunda convicção democrática
que inspira o país, na valorização das relações internacionais, no respeito entre
as nações e na busca das mais elevadas condições de convivência internacional.
Entre essas, cabe mencionar:
(a) Promoveremos uma participação ativa do Chile nas instâncias criadas
pela comunidade internacional para tratar desses temas (como, por exemplo, o
Grupo de Trabalho das Nações Unidas sobre Bens Públicos Globais, dirigido
pela Suécia e pela França). Da mesma forma, nossa participação no Conselho
de Segurança durante 2004, como membro não-permanente, é uma oportunidade
significativa para fazer valer nossas considerações sobre essas matérias. Nesse
sentido, as questões a serem abordadas referem-se ao aumento da participação
da comunidade internacional na consolidação da paz e do progresso no sentido
da renovação e do fortalecimento das Nações Unidas, apoiando o trabalho do
Comitê de Sábios e acompanhando o Secretário-Geral nesse esforço.
(b) Aprofundaremos nosso trabalho de promoção da democracia e dos
direitos humanos como base de uma convivência civilizada e como característica
de nossa política externa (Agenda de Governabilidade Hemisférica,
Comunidade de Democracias, sistema de proteção dos direitos humanos).
No caso da Comunidade das Democracias, teremos a responsabilidade
de organizar seu encontro no primeiro trimestre de 2005.
Depois do 11 de setembro de 2001, a luta contra o terrorismo e o controle
das armas de destruição em massa adquiriram uma importância capital. O Chile
considera que esses temas devem ser assumidos pelo conjunto da comunidade
internacional, nos foros e regimes multilaterais adequados e, no caso do combate
ao flagelo do terrorismo, cuidando sempre do pleno respeito aos direitos humanos.
(c) Continuaremos a colaborar em operações de manutenção da paz
das Nações Unidas e a trabalhar no sentido de dar acesso ao ser humano às
noções de segurança (Rede de Segurança Humana). Da mesma forma,
continuaremos desenvolvendo com os países vizinhos, e na região, o novo
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
María Soledad Alvear Valenzuela
61
enfoque de medidas de confiança mútua, e trabalhando em novas metodologias
que tornem transparentes nossos propósitos e os recursos destinados à defesa.
(d) Contribuiremos para o desenvolvimento de uma agenda social para a
governabilidade da globalização, trazendo nossa capacidade e experiência em
matérias como saúde, educação, luta contra a discriminação, desenvolvimento
indígena, sociedade da informação e ciência e tecnologia.
(e) O Chile é um país profundamente comprometido com a agenda do
desenvolvimento sustentável, estreitamente ligada ao futuro do nosso país,
que depende, em grande medida, do aproveitamento sustentável de seus
recursos naturais. Por isso, manteremos nossa participação ativa nos principais
foros em que se debate essa temática, nas diversas negociações ambientais
multilaterais e nos foros internacionais que definem políticas de
desenvolvimento sustentável.
(f) Em matéria de certos regimes especiais, o Chile, como signatário do
Tratado Antártico, continuará participando diligentemente do aperfeiçoamento
do regime aplicável a essa zona e apoiará de forma ativa o trabalho da Secretaria
criada sob os seus auspícios. Em matéria marítima, desenvolveremos uma política
ativa que combinará os enfoques global e regional (CPPS), particularmente no
tocante à conservação de recursos e às normas sobre o transporte marítimo de
substâncias perigosas. No âmbito espacial e de aeronáutica, tentaremos facilitar
o acesso nacional às mais modernas tecnologias, apoiar as empresas nacionais
para que melhorem sua inserção no mercado aeronáutico internacional e fortalecer
nossa capacidade de observação astronômica.
Em março de 2004 realizamos o Primeiro Foro Mundial de Biotecnologia,
congregando numerosos especialistas para a discussão deste tema de crescente
importância para a humanidade.
3 – Abertura comercial e aplicação dos acordos e tratados
de livre comércio
Dado o tamanho de nossa economia, o desenvolvimento nacional
depende significativamente do livre comércio e de sua plena inserção no mundo.
O aumento a produtividade, as escalas de produção e o acesso a mercados
mais amplos são o curso mais efetivo para melhorar as perspectivas de emprego
A política externa do Chile no início do milênio
62 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
62
no país e para manter altas taxas de crescimento, inovação tecnológica e eficácia
na alocação de recursos.
Pretendemos alcançar uma inserção mundial múltipla e flexível. Uma
participação que nos permita envolver-nos ativamente nos processos de
integração regional e bilateral e dê segurança legal e econômica aos exportadores
e importadores chilenos.
A estratégia econômica internacional adotada pelo Chile no contexto
do chamado “regionalismo aberto” consagra três grandes instrumentos ou
vias complementares para aprofundar seu objetivo de livre comércio: a
abertura unilateral, as negociações comerciais multilaterais e a abertura
comercial negociada bilateral e regionalmente. Assim, num futuro próximo,
mais de 75% do comércio do Chile estará livre de tarifas aduaneiras, o que,
além de favorecer nossa eficiência econômica, estimulará o aumento e a
diversificação das exportações para produtos com maior valor agregado e
para serviços.
Um desafio relevante para o país é aproveitar plenamente as vantagens e
potencialidades que nos são abertas pelos Tratados de Livre Comércio que
firmamos, consolidando o trabalho conjunto dos setores público e privado.
Isso envolve um trabalho de alta complexidade, próprio da administração de
tais acordos, o que implica, entre outras coisas, prevenir qualquer problema
que se possa suscitar e adiantar-se a ele, respondendo de maneira permanente
com padrões internacionais de qualidade.
Desde 1º de fevereiro de 2003, 85% das exportações para a União Européia,
principal parceiro comercial do Chile, têm ingressado sem tarifas. Ao mesmo
tempo, esse mercado é a principal fonte de investimentos estrangeiros e a principal
origem da cooperação internacional recebida pelo país.
O acordo com a UE cria condições para elevar a oferta e a qualidade de
emprego, melhorar a competitividade e modernizar a estrutura empresarial e
produtiva. Em especial, é um incentivo renovado ao desenvolvimento das
exportações, diversificando produtos, particularmente nas regiões do Chile.
Por outro lado, o tratado firmado com os Estados Unidos cria uma
sólida e profunda zona de livre comércio entre os dois países, constituindo um
acordo equilibrado e integral, que inclui todos os aspectos da relação econômica
bilateral, tais como o comércio de bens, os contratos públicos, a promoção e
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
María Soledad Alvear Valenzuela
63
proteção dos investimentos estrangeiros, os serviços transfronteiriços e a
proteção dos direitos de propriedade intelectual. Também incorpora temas
próprios da nova economia, como o comércio eletrônico e as telecomunicações,
bem como questões ambientais e trabalhistas.
Além disso, a possibilidade de participar de licitações públicas e de
outras oportunidades abertas pelos tratados de livre comércio obriga-nos
a dispor de instrumentos que permitam nos beneficiarmos devidamente
delas. Da mesma forma, é indispensável adequar as instituições públicas
aos desafios de uma economia aberta e global, promover uma “imagem-
país” e articular estrategicamente os atores públicos e privados em torno
de objetivos comuns.
O ingresso em mercados tão exigentes como os Estados Unidos e a
União Européia fez-nos reforçar nosso trabalho em matéria de prevenção.
Procuraremos antecipar-nos a qualquer problema que possa surgir,
respondendo de maneira permanente com padrões internacionais de qualidade.
Isso permitirá aos exportadores nacionais posicionarem-se frente a seus
competidores. Só assim poderemos desfrutar dos benefícios comerciais dos
acordos, das oportunidades de investimento e de ganhos intangíveis, como a
certeza jurídica que faz de um país um parceiro confiável.
Por outro lado, nossa participação na Organização Mundial de Comércio
(OMC) tem relação direta com nossa determinação de contar com um sistema
multilateral de comércio fortalecido, dotado de plena legitimidade e que
estabeleça princípios e regras claras para o intercâmbio comercial.
Nesse contexto, o êxito das negociações da Rodada de Doha, da OMC,
é fundamental para nosso país, já que é esse foro que estabelece as disciplinas
comerciais mundiais e, assim, assegura que um país aberto e pequeno como o
nosso possa contar com um sistema de comércio internacional justo.
Assinalamos muito claramente ter chegado o momento de os países
industrializados porem fim a uma competição desleal, cuja contrapartida é mais
pobreza nos países em desenvolvimento. Devemos transformar a retórica que
acompanhou o lançamento da Rodada de Doha em uma real vontade política
de resolver nossos problemas e de dar cumprimento àquilo que acordamos.
O Chile continuará fazendo esforços para reativar as negociações da
Rodada de Doha, por meio da busca de pontes e encontros entre as posições
A política externa do Chile no início do milênio
64 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
64
dos diversos países-membros, sempre resguardando devidamente os interesses
nacionais.
4 – Ásia-Pacífico: Ano APEC Chile 2004
Se a América Latina é o nosso ambiente natural, a região da Ásia-Pacífico
tem especial relevância para nosso país. O Chile é banhado pelo Pacífico e tem
mantido com os países dessa bacia vínculos que, em alguns casos, vêm desde
os primórdios da nossa nação.
Desde 1990, a política posta em prática em relação àquela área adquiriu
uma dimensão multilateral que levou à nossa participação no Foro de
Cooperação Econômica da Ásia-Pacífico (APEC). Esse foro foi criado em
1989 e constitui o principal esquema de integração comercial do planeta,
porquanto as economias que o integram representam mais de 50% do PIB
mundial e são responsáveis por 47% do comércio internacional.
Nesse sentido, a celebração no Chile da Cúpula dos Líderes da APEC e do
Ano APEC Chile 2004 constitui, em seu conjunto, o maior desafio de gestão
multilateral enfrentado pela política externa do país e o maior acontecimento
político-diplomático já assumido por ele perante a comunidade internacional.
A Cúpula permitirá promover entre as economias da Ásia-Pacífico os
objetivos da política exterior do Chile em relação à área, constituindo uma
oportunidade para consolidar nossa condição de ponte entre o Pacífico asiático
e a América Latina. Desse ponto de vista, a prioridade que atribuímos à América
Latina será reforçada pela vinculação entre os dois espaços no quadro do Ano
APEC Chile 2004, particularmente no caso do Peru e do México, em sua
qualidade de países da APEC.
Um dos principais marcos da história da APEC são as chamadas “metas
de Bogor”, pelas quais os países desenvolvidos se comprometeram – e entre
eles o Chile se incluiu voluntariamente – a liberalizar totalmente suas
economias até o ano 2010, enquanto as economias menos desenvolvidas o
farão até 2020.
Três estratégias foram oficialmente adotadas para alcançar tais metas. A
primeira tem a ver com os chamados Planos Individuais de Ação (IAP); a
segunda, com a Liberalização Setorial Antecipada (EVSL); e a terceira, com a
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
María Soledad Alvear Valenzuela
65
coordenação e compromisso para a ação multilateral nas negociações comerciais
no quadro da OMC.
Também foram três as áreas em que se resolveu trabalhar, com vistas a
alcançar o objetivo do livre comércio: liberalização do comércio e dos
investimentos (eliminação de barreiras alfandegárias e não-alfandegárias);
facilitação do comércio (redução do custo de transações comerciais e melhora
do acesso à informação); e cooperação econômica e técnica (para criar a
capacidade que lhes permita aceder ao livre comércio).
Depois de um processo de consultas com todas as economias da APEC, o
Chile elaborou uma agenda temática para o ano 2004, com base em três aspectos
fundamentais: a agenda permanente do Foro; os interesses comuns das economias
da APEC; e a agenda governamental do Chile e sua projeção no Foro:
(a) a APEC como catalisador do sistema internacional de comércio:
espera-se que possa contribuir para desemperrar o processo de negociações
na OMC, que se encontra paralisado desde a reunião ministerial de Cancún;
(b) institucionalização dos acordos de livre comércio e dos acordos regionais
de comércio: a APEC pode contribuir para dar a este tipo de acordos um quadro
adequado, com vistas a aprofundar o processo de liberalização comercial;
(c) promoção Comercial e Segurança: na APEC 2004, promover-se-á o
desenvolvimento de um plano de ação que permita pôr em prática os
compromissos das economias em matéria de segurança;
(d) desenvolvimento das PMEs: incentivo à formação e apoio decidido do
setor público à criação e ao desenvolvimento da pequena e média empresa (PME);
(e) inglês como língua de trabalho para negócios: melhorar as práticas
educativas destinadas a aprofundar o uso desse idioma no Chile, ao mesmo tempo
em que se tratará de estabelecer um plano de ação de longo prazo que permita
alcançar a meta de usar o inglês como idioma de trabalho e negócios nas economias.
Conclusão
A consistência e a coerência da política exterior do Chile apóiam-se na
permanência e no apego aos valores e princípios que o país historicamente
tem acautelado, defendido e respeitado, tais como a estrita observância do
A política externa do Chile no início do milênio
66 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
66
Tradução: Luiz Augusto Souto Maior.
direito internacional, a não-intervenção nos assuntos de outros Estados e a
intangibilidade dos tratados.
Os esforços que o Chile tem realizado desde seu reencontro com a
democracia têm dado seus frutos, e isso nos coloca desafios inerentes e
proporcionais aos resultados alcançados.
Por isso, continuidade e mudança inspiram nossa política externa neste
novo ciclo. Continuidade na defesa e promoção dos interesses tradicionais do
Chile; continuidade também na busca e promoção de modelos de convivência
internacional baseados em uma coesão social maior e no aprofundamento da
ordem democrática. Mudança, porém, na maneira como nos apresentamos
diante dos processos de globalização em andamento, diante da irrupção do
avanço tecnológico e diante da chamada “sociedade do conhecimento”, com
as insuspeitadas dimensões de suas novas áreas.
Esta fase histórica que atravessamos apresenta-nos mais perguntas do
que certezas, mais desafios do que respostas. Tudo isso implica um estímulo
poderoso para usar a criatividade e projetar vigorosamente nossas
potencialidades, na perspectiva de alcançar o desenvolvimento, aproveitando
as oportunidades que nos oferece um mundo no qual os países se inserem a
partir de suas realidades nacionais e regionais.
A América Latina é o pilar prioritário de nossa política externa. É nesse
espaço geográfico, político, econômico e cultural que nós e nossos descendentes
vivemos e viveremos. Estamos convencidos de que as fronteiras e os países
são espaços de intercâmbio, de integração, de diálogo frutífero, por meio dos
quais podemos lançar pontes que vão em benefício de nossos povos.
O Chile aspira ao desenvolvimento para o conjunto da América Latina.
Nossa ação internacional reconhece a região como âmbito fundamental, como
lugar de onde o Chile se abre para o mundo, para assumir com força as
oportunidades oferecidas pela globalização, utilizando todos os espaços e
ferramentas ao nosso alcance.
Da habilidade para identificar os temas do futuro dependerá o
cumprimento satisfatório dos objetivos de nossa política externa.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Carolina Barco
67
A
política exterior de um país é determinada pela conjunção da realidade
internacional e da sua conjuntura interna. A dinâmica irreversível da globalização
e os fenômenos transnacionais que a caracterizam aumentam esta
interdependência.
O mundo de hoje oferece novas e múltiplas oportunidades, que precisam
ser aproveitadas, mas que implicam também em ameaças de caráter global,
que atentam contra a própria estrutura das sociedades nacionais e a
governabilidade democrática dos Estados.
A conjuntura histórica atravessada pela Colômbia evidencia com crueza
esta realidade. A violência e a insegurança geradas pelo terrorismo e financiadas
com força especial no país pelo negócio transnacional das drogas ilícitas – e os
delitos a elas relacionados: o desvio de precursores químicos, a lavagem de
dinheiro e o tráfico ilícito de armas, munições e explosivos – assim como por
outras atividades criminosas, tais como o seqüestro e a extorsão, comprometem
A política exterior
da Colômbia:
governabilidade democrática,
responsabilidade compartilhada
e solidariedade
Carolina Barco
*
Ministra das Relações Exteriores da República da Colômbia
A política exterior da Colômbia
68 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
68
o desenvolvimento econômico e social da nação, vulneram o estado de direito,
debilitam as instituições democráticas e afetam a população civil.
Não será possível interromper esse ciclo se não se juntar aos esforços e
sacrifícios do Governo e do povo colombianos o firme e decidido compromisso
da comunidade internacional.
A política exterior colombiana não pode ignorar este contexto. Por isso,
além dos propósitos tradicionais que caracterizam a gestão internacional de
um país em desenvolvimento, ela deve servir de apoio e complemento aos
esforços internos dirigidos a atender os desafios da realidade nacional.
Reconfiguração da ordem mundial
A ordem mundial se encontra em processo de reconfiguração,
manifestado na evidente tensão, dentro da comunidade internacional, causada
pelo conflito entre atuações de caráter unilateral e a necessidade de fortalecer
o multilateralismo e a Organização das Nações Unidas, para que esta possa
cumprir o seu objetivo de preservar a paz e a segurança internacionais.
Nas palavras do Secretário-Geral da ONU, Kofi Annan, o mundo
enfrenta “velhas ameaças em novas e perigosas combinações”. As novas formas
de terrorismo, financiadas com o dinheiro da droga, a proliferação das armas
de destruição em massa, a expansão dos conflitos internos e o tráfico ilícito de
armas ligeiras são alguns dos desafios enfrentados pelo sistema internacional.
É preciso mencionar também as chamadas “ameaças não-armadas”,
como a persistência da pobreza extrema, a ampliação do hiato entre países
ricos e pobres e o aumento da exclusão dentro das sociedades nacionais. Esses
fenômenos são fatores de instabilidade que não devem ser menosprezados.
A consolidação da luta contra o terrorismo, como um dos eixos mais
importantes das relações internacionais, e o conseqüente fortalecimento do
vínculo entre política exterior e política de segurança não prejudicaram a
aspiração de uma ordem global baseada na cooperação, na solidariedade, no
diálogo e na negociação.
Tendência que coincide com as convocações em favor da coesão social
e o desenvolvimento econômico como bases de uma globalização mais humana,
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Carolina Barco
69
que favoreça a governabilidade e consolide a democracia, garantia de um sistema
internacional mais justo e seguro para todos.
A política externa colombiana não ignora o caráter complementar dessas
duas visões, e tem buscado uma participação ativa do país na construção da
nova ordem mundial – melhorando a inserção na comunidade internacional e
sua capacidade negociadora – sem esquecer a defesa dos interesses nacionais
e a melhoria das condições de vida dos nossos cidadãos.
I. Conceitos básicos
A política externa colombiana é uma política de Estado cuja pedra
angular é o respeito aos princípios e normas do direito internacional
consagrados na Constituição Política e na Carta das Nações Unidas. Entre
estes pode-se destacar a igualdade soberana, a não-intervenção nos assuntos
internos dos outros Estados, a boa fé no cumprimento das obrigações
internacionais, a solução pacífica de controvérsias e a abstenção do emprego
da ameaça ou da força. Sua gestão se inspira, além disso, nos seguintes
conceitos fundamentais:
1. Governabilidade democrática
É necessário defender e preservar a governabilidade democrática no
âmbito nacional. Neste sentido, o governo se comprometeu com o
fortalecimento do estado de direito e o restabelecimento do império da lei em
todo o território nacional. A política de segurança democrática busca restituir
aos colombianos a segurança e a ordem, garantindo o pleno exercício da
democracia, assim como os direitos e liberdades fundamentais, em um contexto
de pluralismo político e participação da cidadania no quadro de um
compromisso absoluto com os direitos humanos e o direito internacional
humanitário.
Esse esforço foi complementado por um trabalho responsável em matéria
econômica, orientado principalmente para o ajuste das finanças do Estado, a
reativação da economia, a geração de emprego e a recuperação essencial do
investimento social.
A política exterior da Colômbia
70 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
70
Progride-se também na reforma da administração pública, com o objetivo
de adequar as instituições às necessidades do país e de otimizar a eficiência
estatal, sem abandonar o firme compromisso na luta contra a corrupção e o
desperdício dos recursos públicos.
Com o objetivo de contribuir para o cumprimento dessas metas, a política
exterior desenvolve um trabalho orientado para a obtenção de apoio político e
o aproveitamento de oportunidades comerciais, e a realização de projetos de
cooperação econômica e financeira. Pretende-se também projetar, no âmbito
internacional, os objetivos do Governo em matéria de eqüidade, redução de
desigualdades e proteção das populações vulneráveis.
Atualmente, o maior desafio enfrentado pela política externa colombiana
consiste em transmitir de modo efetivo a mensagem de que a Colômbia está
fortalecendo a democracia e a governabilidade em todo o território nacional,
promovendo o desenvolvimento com eqüidade; que continua lutando contra
o terrorismo e persevera no compromisso indeclinável de combater as drogas.
Mas esse esforço não é suficiente, e são necessárias ações concretas, decididas
e imediatas da comunidade internacional.
2. Responsabilidade compartilhada
A política externa colombiana reconhece e valoriza a responsabilidade
compartilhada pela comunidade internacional frente ao problema mundial das
drogas e aos delitos a ela relacionados, e diante da luta contra o terrorismo e suas
fontes de financiamento. Essa responsabilidade supõe acrescentar à ação do governo
colombiano o firme compromisso por parte de outros Estados e de todos os
atores internacionais que podem contribuir para a erradicação desses flagelos.
Quem aceitar a responsabilidade compartilhada aceita a natureza integral
dos problemas de caráter global e, finalmente, a necessidade de enfrentar de
modo equilibrado todas as etapas da cadeia criminosa, sem deixar de lado as
crises humanitárias que possam derivar desses fenômenos. Por isso, é prioritário
para a política exterior promover compromissos internacionais para combater
o desvio de precursores químicos, a lavagem de dinheiro, o tráfico de armas,
munições e explosivos, assim como o seqüestro, a extorsão e a exploração
ilícita de recursos naturais, parte substancial das fontes de financiamento das
redes de terrorismo.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Carolina Barco
71
À luz do princípio da responsabilidade compartilhada, a Colômbia apoia
e promove todos os esforços internacionais destinados a combater as
atividades que ameaçam a governabilidade democrática e fomentam o
terrorismo e a violência, em todas as latitudes.
3. Solidariedade
A Colômbia solicitou apoio mundial para derrotar o terrorismo em todas
as suas formas e manifestações, e é solidária com a luta mundial contra este
fenômeno. Isso implica promover um combate frontal contra suas fontes de
financiamento, estreitamente vinculadas com o negócio criminoso das drogas
ilícitas e crimes conexos.
A solidariedade internacional deve traduzir-se em programas e projetos
que complementem os esforços do governo em matéria econômica e social, e
ajudem a compensar os efeitos da violência e da deterioração do tecido
socioeconômico, especialmente nas áreas onde há cultivos ilícitos. Dessa forma,
a gestão da política exterior procura dar apoio ao investimento social e aos
planos de luta contra a pobreza, favorecer a geração de emprego e gestionar a
ampliação e aprofundamento dos programas de assistência humanitária.
II. Objetivos estratégicos
A política exterior da Colômbia está orientada para os seguintes objetivos:
1. Defender a soberania nacional e promover o
desenvolvimento integral das fronteiras
Garantir a integridade do território e promover o desenvolvimento
concertado das zonas fronteiriças são propósitos que refletem os mais altos
interesses da Nação. Para o seu cumprimento, e sob a direção do Presidente
da República, o Ministério das Relações Exteriores lidera atualmente uma dupla
estratégia que visa, em primeiro lugar, defender e garantir a jurisdição da
Colômbia nos espaços da sua soberania marítima e terrestre, de acordo com
os princípios e normas do direito internacional. Há uma ênfase particular na
A política exterior da Colômbia
72 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
72
salvaguarda dos direitos e interesses da Colômbia frente à demanda apresentada
pela Nicarágua à Corte Internacional de Justiça, ao mesmo tempo em que se
fortalecem os vínculos com os países limítrofes.
Entre eles cabe ressaltar os espaços de integração, como as comissões
de vizinhança e as comissões binacionais, assim como mecanismos tais como
a Comissão Presidencial Negociadora Colombiano-Venezuelana.
Em segundo lugar há a Comissão Inter-Setorial de Integração e
Desenvolvimento Fronteiriço, que promove a melhoria da infra-estrutura, a
execução de projetos produtivos, com participação local e regional e, de modo
geral, o desenvolvimento de políticas públicas orientadas para melhorar as
condições de vida nas regiões fronteiriças.
No contexto da Comunidade Andina está sendo desenvolvida uma
política externa comum e uma política comum de segurança, para coordenar
as estratégias nacionais em temas como o combate às drogas, o terrorismo e a
segurança nas fronteiras. Por outro lado, progride a implementação de ações
que gerem benefícios para a população das regiões fronteiriças nos campos
trabalhista, social e de proteção do meio ambiente.
2. Consolidar as relações estratégicas bilaterais
As relações da Colômbia com outros países e grupos de países devem
ser entendidas como parte de uma estratégia integral visando cumprir os
objetivos de política externa e as metas do Plano Nacional de Desenvolvimento.
Essa estratégia inclui:
• o fortalecimento dos vínculos com a América Latina e o Caribe, dando
ênfase às relações com os países vizinhos;
• a consolidação de uma relação estratégica com os Estados Unidos e a
aproximação com o Canadá;
• a consolidação e o desenvolvimento de uma agenda integral com a
Europa;
• a ampliação e o aprofundamento das relações com a Ásia e o Pacífico;
• o impulso ao diálogo político e ao intercâmbio com a África e o Oriente
Médio.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Carolina Barco
73
3. Defender e promover os interesses nacionais no cenário
multilateral
A política exterior da Colômbia caracteriza-se pelo firme compromisso
com o multilateralismo, refletido em uma participação ativa nos foros
internacionais, em particular naqueles que se ocupam dos temas da agenda
global pertinentes à realidade colombiana.
Procura-se, assim, promover ações internacionais em temas relacionados
com a situação do país, e obter apoio para os esforços destinados a impulsionar
o desenvolvimento econômico e social.
No âmbito global são prioritários:
o fortalecimento do multilateralismo;
• a defesa e promoção dos direitos humanos e o direito internacional
humanitário;
• a eqüidade social e o desenvolvimento humano;
• o tratamento do problema mundial das drogas e a luta contra o
terrorismo, a corrupção e o crime organizado;
• a proteção e preservação do meio ambiente;
• a cooperação internacional;
• o relacionamento com as organizações não-governamentais e com
outros atores da sociedade civil.
4. Apoiar as políticas do Plano Nacional de Desenvolvimento
no âmbito internacional
O Plano Nacional de Desenvolvimento definiu quatro objetivos
fundamentais que orientam a ação governamental: manter a segurança
democrática, promover o crescimento econômico sustentável e a geração de
emprego, construir eqüidade social e incrementar a transparência e eficiência
do Estado. A política exterior está voltada para dar apoio ao cumprimento
desses objetivos.
Em matéria de segurança democrática, busca-se o apoio global na luta
contra o terrorismo e as drogas, com esforços tendentes a melhorar a
compreensão da realidade do país por parte da comunidade internacional.
A política exterior da Colômbia
74 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
74
O crescimento econômico sustentável é promovido mediante gestões
internacionais dirigidas para a obtenção de recursos financeiros e a
harmonização de acordos preferenciais de comércio e investimento com países
ou regiões que tenham especial importância para a Colômbia. O apoio político
do Ministério das Relações Exteriores nas negociações de caráter econômico
e comercial da Colômbia é um componente importante desse esforços.
No que se refere à eqüidade social e ao desenvolvimento humano, o objetivo
são programas de assistência técnica e projetos de cooperação em áreas estratégicas
para o desenvolvimento econômico e social. O Ministério se ocupa também do
acompanhamento dos acordos internacionais assinados pela Colômbia nesse
campo, bem como da gestão de programas de assistência humanitária.
Finalmente, o Ministério está trabalhando com a Vice-Presidência da
República na luta contra a corrupção e a politicagem, e a favor da transparência
e eficiência do Estado.
5. Melhorar a compreensão da realidade do país no exterior
As percepções limitadas ou parciais da realidade do país constituem um
obstáculo para o pleno desenvolvimento das relações políticas, econômicas e
comerciais com outros Estados, dificultando, inclusive, a gestão da Colômbia
nos organismos internacionais e nos foros de caráter regional ou hemisférico,
complicando a comunicação com as organizações não-governamentais e com
outros atores da sociedade civil.
Por isso a procura de um melhor entendimento da situação da Colômbia
por parte da comunidade internacional, através das correções desses erros de
percepção, é um objetivo principal da política exterior.
A realização deste objetivo implica uma estratégia de comunicação,
coordenada com a Presidência da República. Implica, outrossim, o
reconhecimento e a potencialização do trabalho de empresários, cientistas,
artistas, desportistas e outros compatriotas que participam da presença
colombiana no exterior e ajudam a promover a imagem do país.
É necessário também um esforço efetivo por parte das embaixadas e
consulados, em aspectos como a promoção da nossa biodiversidade, a difusão
e aproveitamento da riqueza cultural da Colômbia, a criação de áreas de
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Carolina Barco
75
interlocução com a sociedade civil e o impulso para a formação de grupos de
estudos sobre a realidade colombiana.
6. Fortalecer os vínculos com as comunidades colombianas
no exterior
Atualmente, cerca de quatro milhões e meio de colombianos – dez por
cento da população – vivem fora do país. O governo está empenhado em
fortalecer os vínculos com nossas comunidades no exterior, estabelecendo
com elas uma comunicação de mão dupla, em benefício mútuo. Deseja
reconhecê-las como parte vital da nação, abrangendo-as nas políticas públicas.
Com este objetivo estão sendo preparados programas tendentes a
melhorar as condições de vida de nossos compatriotas nos diferentes países
onde residem, assim como o seu processo de inserção nas sociedades locais.
Os caminhos explorados pelo governo para alcançar esse objetivo incluem a
assinatura de acordos trabalhistas, de migração, educacionais e de seguridade
social com os países que recebem imigrantes colombianos, a promoção da
poupança programada para a aquisição de moradia na Colômbia, a possibilidade
de que esses imigrantes tenham acesso ao crédito hipotecário do país e se
beneficiem com a redução do custo das remessas bancárias.
O Ministério das Relações Exteriores está consciente da necessidade de
fortalecer a assistência consular em assuntos jurídicos e sociais, e de informar
nossos compatriotas sobre seus direitos e obrigações como migrantes.
Não se pode negar a importância do trabalho desempenhado pelos
membros da comunidade colombiana no exterior, especialmente aqueles que
se organizaram em associações. Por essa razão se propicia a formação de redes
temáticas e geográficas, com iniciativas que permitam abrangê-los no
planejamento, desenvolvimento e inclusive no financiamento de programas e
projetos sociais ou produtivos para o país.
Da mesma forma procura-se aproveitar o potencial representado por
empresários, criadores ou pesquisadores colombianos cujos trabalhos contem
com reconhecimento internacional, para que contribuam em favor do
desenvolvimento econômico, cultural e científico da nação, tendo em vista a
experiência adquirida em outros países.
A política exterior da Colômbia
76 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
76
Embora o governo não possa dar todas as soluções, tem a responsabilidade
e o dever de facilitar o encontro dessas soluções, de propiciar seu encaminhamento
e, no que compete ao Ministério das Relações Exteriores, de produzir respostas
efetivas.
III. Linhas de ação
A política exterior colombiana está organizada, de um lado, de acordo
com linhas de ação temáticas, de outro, por áreas geográficas. As linhas de
ação temáticas correspondem, em sua maioria, a temas da agenda global tratados
principalmente em âmbito multilateral, mas que também fazem parte integral
da estratégia de política exterior no âmbito bilateral. As linhas de ação por
áreas geográficas versam sobre os temas de uma perspectiva regional.
A. Linhas de ação temáticas
1. Fortalecimento do multilateralismo e sua ação na Colômbia
A política exterior busca promover uma participação ativa nos foros
internacionais governamentais e não-governamentais, bem como nos espaços
em que são debatidos temas de interesse para o país. Procura-se desta forma a
consolidação das relações com os organismos internacionais, suas agências e
órgãos, em particular com os que desempenham um papel importante na
definição ou implementação de programas na Colômbia.
Considera-se igualmente vital o fortalecimento das instâncias multilaterais
com o propósito de contribuir para que os processos de tomada de decisão no
contexto internacional sejam mais democráticos e equilibrados. Neste sentido,
são adotadas estratégias de participação em foros de entendimento como o
Movimento de Países Não-Alinhados e o Grupo dos 77.
A Organização das Nações Unidas
A Colômbia enfatiza e defende o papel preponderante que corresponde
à Organização das Nações Unidas na preservação e construção da paz e
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Carolina Barco
77
segurança internacionais, na promoção do desenvolvimento econômico e social
dos povos e no fomento da cooperação internacional.
Seu compromisso continuado com o fortalecimento da Organização é
refletido, por exemplo, no apoio às iniciativas destinadas a adequar o seu sistema
operativo às novas realidades internacionais. Tornou-se também evidente na
sua atuação mais recente como membro não-permanente do Conselho de
Segurança, quando teve a oportunidade de promover no Conselho a discussão
de temas de interesse para o país, como o tráfico de armas ligeiras e a proteção
da população civil no contexto de conflitos armados.
De seu lado, as Nações Unidas mantêm um relacionamento especial
com a Colômbia baseado, sobretudo no apoio da Organização e suas agências
especializadas aos esforços para recuperar a paz e a governabilidade
democrática. Neste sentido, o trabalho conjunto com a Secretaria da
Organização, e em especial com o Secretário-Geral, se reveste de caráter
prioritário para o país. O Governo da Colômbia tem solicitado, valoriza e
apóia os bons ofícios do Secretário-Geral para explorar os caminhos da paz
com os grupos armados ilegais, com base na cessação efetiva das hostilidades.
Merece também destaque especial o trabalho dos fundos e agências do
Sistema das Nações Unidas, na busca de soluções para a problemática
humanitária vivida pelo país. O Ministério das Relações Exteriores trabalha
com essas instituições na coordenação e acompanhamento dos programas de
cooperação e assistência, em benefício das pessoas afetadas pelas diferentes
manifestações de violência, em particular as populações deslocadas.
Por último, a decisão de estender por quatro anos o mandato do Escritório
do Alto Comissário dos Direitos Humanos na Colômbia foi tomada dentro
do espírito que orienta o governo a promover a política de segurança
democrática, no quadro do respeito estrito aos direitos humanos e ao direito
internacional humanitário, e reflete o ânimo de colaboração e aproximação
que orienta o relacionamento com o Sistema das Nações Unidas e suas agências.
A OEA e o Sistema Interamericano
A Organização dos Estados Americanos, cenário privilegiado da política
exterior colombiana, desempenha hoje um papel principal na manutenção da
A política exterior da Colômbia
78 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
78
ordem democrática e na segurança hemisféricas, assim como na implementação
dos acordos feitos no contexto da Cúpula das Américas e na consolidação da
Área de Livre Comércio das Américas (Alca). Por outro lado, a OEA poderá
vir a ter um papel importante na construção da paz em nosso país.
A política exterior da Colômbia apóia o trabalho da Organização, visando
ao mesmo tempo:
• o fortalecimento da Unidade para a Promoção da Democracia, orientado
no sentido do cumprimento dos propósitos contemplados na Carta
Democrática Interamericana;
• o progresso nos trabalhos tendentes a reforçar o sistema de segurança
coletiva no hemisfério e o Comitê Interamericano contra o Terrorismo
(Cicte);
• o fortalecimento e a consolidação do Sistema Interamericano de Direitos
Humanos;
• a promoção da Convenção Interamericana Contra a Fabricação e o Tráfico
de Armas de Fogo, Munições, Explosivos e Outros Materiais Relacionados
(Cifta);
• a ampliação do papel da Organização no processo de acompanhamento
da Cúpula das Américas; e
• o progresso na implementação do mecanismo de avaliação multilateral
na luta contra as drogas.
Outros organismos e mecanismos multilaterais regionais
A participação da Colômbia nos organismos e mecanismos de diálogo e
integração hemisféricos e regionais é fundamental para a gestão da política
exterior, e responde ao mandato constitucional que compromete o país com o
processo de integração regional.
A Chancelaria colombiana continuará privilegiando cenários e foros
regionais, tais como a Comunidade Andina, o Grupo do Rio, o Grupo dos
Três, o Tratado de Cooperação Amazônica, a Associação dos Estados do
Caribe, o Caricom, a Cúpula Ibero-americana e a Cúpula das Américas, tendo
em vista promover estratégias conjuntas nas respectivas áreas, destinadas a
promover o desenvolvimento econômico e social, a democracia e a
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Carolina Barco
79
governabilidade. Nesses cenários procurar-se-á igualmente avançar na luta
contra as drogas ilícitas, o tráfico de armas, munições e explosivos, a lavagem
de dinheiro, o terrorismo, a corrupção e o crime organizado.
2. Defesa e promoção dos direitos humanos e do direito
internacional humanitário
A violência derivada das drogas e a ameaça crescente representada pelo
terrorismo recaem principalmente sobre a população civil, e por esta razão o
governo se comprometeu com uma política de promoção e proteção dos
direitos humanos e de defesa do direito internacional humanitário, a qual precisa
ter o apoio da comunidade internacional para aumentar a sua efetividade.
Para prevenir as violações e combater a impunidade é preciso desenvolver
ações tais como a prevenção do deslocamento forçado; a implementação de
medidas de apoio ao direito internacional humanitário; o fortalecimento da
administração da Justiça, especialmente nos casos relacionados com os direitos
humanos, e – não menos importante – o fortalecimento e modernização das
instituições interessadas.
No quadro da Comissão Inter-setorial de Direitos Humanos e Direito
Internacional Humanitário, o Estado mantém uma interlocução permanente
com os organismos internacionais, o que contribui para a implementação dos
principais instrumentos internacionais de direitos humanos, no contexto do
Sistema Interamericano e do Sistema das Nações Unidas.
A participação em foros multilaterais especializados é outro caminho
que a Chancelaria colombiana está explorando, na sua busca ativa de apoio e
cooperação dos que possam contribuir para solucionar a situação humanitária.
Por outro lado, pretende-se coordenar os doadores e as agências internacionais
que colaboram nessa busca.
O deslocamento interno é um dos fenômenos sociais que mais
preocupam o governo e a comunidade internacional, de forma que, além de
gestionar recursos e de coordenar atividades com países e organizações que
concedem assistência humanitária, assim como com a sociedade civil, de modo
geral, procura-se consolidar estatísticas confiáveis que facilitem o planejamento
de soluções apropriadas às populações afetadas.
A política exterior da Colômbia
80 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
80
3. Eqüidade social e desenvolvimento humano
A crise econômica e a problemática derivada da violência e do tráfico de
drogas ilícitas na Colômbia têm gerado uma forte deterioração dos indicadores
sociais e de desenvolvimento humano, especialmente em certas regiões e em
determinados grupos da população. Tendo em vista este panorama, o governo
precisou enfrentar três grandes desafios: aumentar a eficiência dos gastos sociais,
levar esses recursos aos mais necessitados e consolidar um sistema de proteção
e assistência social para aliviar as conseqüências da crise econômica e do ajuste
fiscal.
O Ministério das Relações Exteriores tem um compromisso com a
construção da eqüidade social e do desenvolvimento humano – objetivo
explícito do Plano de Desenvolvimento – de forma que uma das metas da
política exterior é promover internacionalmente essa agenda. Para esse fim há
uma participação ativa nos foros internacionais que se interessam por temas
como o desenvolvimento social; a eliminação da discriminação contra a mulher
e seu papel na manutenção da paz e da segurança; os direitos dos meninos,
meninas e adolescentes; a aids; o envelhecimento; os direitos dos imigrantes e
a proteção das comunidades indígenas e de outras minorias.
É parte integrante da gestão da política exterior coordenar a posição da
Colômbia nessas reuniões, com entidades governamentais e organizações da
sociedade civil; o acompanhamento dos compromissos assumidos pelo país no
quadro das assembléias especiais e das conferências mundiais realizadas sobre
esses temas – entre as quais se destaca a Cúpula do Milênio das Nações Unidas –
e o desenvolvimento de atividades que divulguem no país os acordos alcançados e
promovam o seu cumprimento.
4. A luta contra o problema mundial das drogas e o terrorismo
Assim como em outras latitudes o comércio ilegal de diamantes, madeiras
e outros recursos naturais nutre conflitos armados, na Colômbia o negócio
das drogas ilícitas e os delitos relacionados com esse negócio lesionam a
governabilidade democrática, à medida que contribuem para a degradação da
situação política, a deterioração da economia, o enfraquecimento das instituições
e a destruição do tecido social. São essas as causas da violência e uma das
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Carolina Barco
81
principais fontes do seu financiamento; juntamente com a captura de excedentes
na indústria do petróleo e derivados, elas alimentam o terrorismo que atinge a
população civil e o conjunto da sociedade.
O Ministério das Relações Exteriores solicita enfaticamente o apoio
internacional às políticas governamentais destinadas a erradicar as drogas e vencer
o terrorismo, mediante projetos de cooperação e assistência técnica nas áreas militar
e policial, assim como por meio de acordos internacionais que fortaleçam as
atividades de assistência judicial e a promoção de projetos de desenvolvimento
alternativo.
O Ministério das Relações Exteriores promove também a implementação
dos convênios internacionais existentes sobre o terrorismo, assim como a
aprovação daqueles de que a Colômbia ainda não é parte, além da negociação
de novos instrumentos, tanto no Hemisfério como na área andina.
Por outro lado, o Ministério promove a iniciativa da comunidade
internacional para a redução da demanda de drogas e o controle do comércio
de precursores químicos e a lavagem de dinheiro. Trata ainda da adoção de
medidas que ajudem a combater o seqüestro e a extorsão, fontes de
financiamento de grupos terroristas.
A política externa colombiana está particularmente comprometida com
o tema do controle do tráfico de armas ligeiras, de cuja discussão a Colômbia
tem participado, tanto na Assembléia Geral e no Conselho de Segurança das
Nações Unidas como na Organização dos Estados Americanos. Cabe destacar,
igualmente, o compromisso do país com a implementação dos acordos
internacionais relativos à proibição das minas antipessoais.
5. A proteção e preservação do meio ambiente
A Colômbia é, em todo o mundo, um dos cinco países dotados de maior
biodiversidade, o que fortalece as posições assumidas pelo país em diferentes
espaços de negociação, e implica também uma responsabilidade internacional.
A política exterior colombiana reivindica, no âmbito internacional, o
princípio da responsabilidade comum, mas diferenciada, em virtude do qual
os países desenvolvidos devem assumir a liderança no tratamento de problemas
tão graves quanto o da mudança climática e seus efeitos adversos, prestando
A política exterior da Colômbia
82 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
82
assistência financeira nesse campo aos países em desenvolvimento. Da mesma
forma, nosso país tem defendido a abordagem cuidadosa estabelecida no princípio
15 da Declaração do Rio de Janeiro sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento,
como eixo principal dos acordos multilaterais sobre o ambiente.
A estratégia internacional da Colômbia neste campo inclui sua
participação nas negociações internacionais de caráter bilateral e multilateral,
especialmente as realizadas no quadro do Programa das Nações Unidas para o
Meio Ambiente, como o Convênio de Diversidade Biológica, o Foro das Nações
Unidas para as Florestas, a Organização Internacional de Madeiras Tropicais e
a Convenção das Nações Unidas sobre Mudança Climática e o Protocolo de
Kyoto – inclusive o acompanhamento da aplicação desses acordos.
Além das iniciativas derivadas da agenda ambiental colombiana, a política
exterior do país busca apoiar programas de cooperação que complementem a
estratégia nacional baseada nos três pilares do desenvolvimento sustentável: o
social, o econômico e o ambiental. A inter-relação entre meio ambiente e
desenvolvimento ocupou um lugar principal nas conclusões da Cúpula Mundial
de Desenvolvimento Sustentável, realizada em Joanesburgo, assim como nas
decisões das convenções ambientais das Nações Unidas.
6. Cooperação internacional
Com a sua rede de representações diplomáticas, o Ministério das Relações
Exteriores funciona como o eixo central do esforço destinado a materializar o
compromisso da comunidade internacional com a execução do Plano Nacional
de Desenvolvimento, com base na idéia de que a cooperação internacional
não pode mais ser concebida do ponto de vista tradicional da ajuda ao
desenvolvimento, mas sim como um instrumento integral.
Desta perspectiva, procurou-se, de um lado, uma aproximação política
bilateral com diferentes países e, de outro, realizar uma Mesa de Coordenação
e Cooperação Internacional, proposta como um espaço de negociação aberta,
bilateral e multilateral, que canalize a assistência oficial ao desenvolvimento,
concedida pela comunidade internacional e pelo setor privado nacional e
internacional, para seis áreas prioritárias:
• governabilidade democrática;
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Carolina Barco
83
• atenção às pessoas deslocadas e programas de assistência humanitária;
• desmobilização e reinserção social de membros dos grupos armados;
• programas regionais de desenvolvimento e paz;
• desenvolvimento produtivo;
• preservação e proteção das florestas.
A cooperação internacional pode e deve ser um instrumento para
fortalecer as relações da Colômbia com outros países do Terceiro Mundo,
razão pela qual se deu importância especial à cooperação horizontal, que
pretende aproveitar nossa experiência para encontrar a solução de problemas
comuns no mundo em desenvolvimento e para fortalecer a capacidade técnica
das instituições nacionais.
7. Relações com a sociedade civil
A política exterior colombiana reconhece a importância crescente dos atores
não- estatais no contexto internacional, e valoriza a independência e o sentido
crítico que desenvolvem na sua tarefa de analisar, fazer sugestões e acompanhar
a agenda internacional. Para isso, o Ministério das Relações Exteriores procura
consolidar com as organizações não-governamentais e com outras entidades da
sociedade civil (como os partidos políticos, as fundações e os centros de reflexão)
um relacionamento baseado na transparência e no respeito mútuo.
Relacionamento que favoreça o debate aberto sobre a gestão internacional e os
temas da agenda mundial que tenham valor estratégico para o país.
B. Linhas de ação por áreas geográficas
1. América Latina e Caribe
A América Latina e o Caribe são o entorno geográfico e cultural da
Colômbia e as relações com os países desta região constituem uma prioridade
natural da política exterior colombiana.
A consolidação dessas relações tem dois objetivos: de um lado, o reforço
dos vínculos bilaterais, o fortalecimento do diálogo político sobre temas de
interesse comum e a promoção do intercâmbio comercial; a integração
A política exterior da Colômbia
84 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
84
econômica, o fluxo de investimentos e a cooperação internacional; de outro, a
defesa dos interesses nacionais, começando pela nossa soberania.
Com os países vizinhos busca-se promover programas de segurança
fronteiriça e de desenvolvimento integral das zonas de fronteira, bem como
avançar no tratamento dos diferentes temas da agenda binacional, próprios
das comissões de vizinhança – mecanismo que continua a mostrar sua utilidade
como espaço para o diálogo e a integração. Além dessas comissões, contamos
com as comissões bilaterais, que são o meio apropriado para estreitar os vínculos
com aqueles países a que nos unem laços de irmandade e coincidências regionais
e temáticas que é preciso preservar e fortalecer, e com comissões mistas de
cooperação, que oferecem outro espaço de trabalho para consolidar as relações
com os países da região.
A política exterior colombiana pretende dinamizar a projeção do país no
grande Caribe, e exercer uma liderança nos foros de integração e harmonização
da área, especialmente na Associação de Estados do Caribe e no Grupo dos
Três.
2. Integração e harmonização regional
Na Colômbia a integração com a América Latina e o Caribe é um mandato
constitucional, em cumprimento do qual o Ministério das Relações Exteriores
atua simultaneamente em diferentes cenários de integração, com objetivos
econômicos, políticos, sociais e culturais.
Na Comunidade Andina, visa-se uma integração multidimensional que
fortaleça o mercado comunitário e facilite a negociação de acordos com outros
países e grupos regionais.
Por meio da política exterior comum procura-se revitalizar a agenda
andina, com os seguintes objetivos principais:
• consolidação da democracia;
• fortalecimento da paz e da segurança;
• luta contra as drogas, o terrorismo e a corrupção;
• erradicação da pobreza;
• desenvolvimento sustentável e integração econômica.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Carolina Barco
85
Avança-se, igualmente, na consolidação de uma política comum andina
de segurança, com o objetivo de chegar a compromissos e de realizar ações
conjuntas que permitam enfrentar eficazmente problemas como a delinqüência
e o crime organizado, as drogas ilícitas e o terrorismo.
A política exterior colombiana pretende aprofundar os processos de
integração em curso – como o Grupo dos Três – manter os processos existentes
com outros países (Chile, por exemplo) e estreitar as relações econômicas,
comerciais e políticas com regiões fundamentais para o país – como a América
Central, o Cone Sul e o Caricom.
Os esforços desenvolvidos no contexto do Grupo do Rio continuam
sendo vitais para a harmonização latino-americana, que se mantém vigente
na agenda da política exterior colombiana. Esse foro representa para a
Colômbia não só um espaço de reflexão, consulta e construção de
posições regionais comuns em torno dos grandes temas internacionais,
mas também um mecanismo que favorece e reforça a capacidade de
interlocução com outros países e grupos de países: Canadá, China, Rússia,
Japão, União Européia, Comunidade de Estados Independentes e Asean,
entre outros.
As cúpulas ibero-americanas e as cúpulas birregionais são foros adicionais
para a celebração de acordos de integração e cooperação, assim como para o
fortalecimento do diálogo político.
Finalmente, a participação ativa da Colômbia no desenvolvimento do
Tratado de Cooperação Amazônica busca pôr em marcha programas destinados
ao manejo e desenvolvimento da Amazônia colombiana, o aproveitamento da
biodiversidade e a ampliação e melhoria da infra-estrutura.
3. Estados Unidos e Canadá
A Colômbia tem mantido um relacionamento estratégico com os Estados
Unidos, o qual se tem aprofundado e ampliado nas últimas décadas, devido à
luta comum contra as drogas ilícitas e os delitos a elas relacionados; mais
recentemente, essa relação se reforçou à sombra da cooperação entre os dois
países na luta contra o terrorismo. O governo se propôs a fortalecer esses
canais de interlocução, a ampliar e consolidar a cooperação existente.
A política exterior da Colômbia
86 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
86
Os Estados Unidos são o principal parceiro comercial da Colômbia, e
uma das fontes mais importantes de investimento. Além disso, o apoio
proporcionado pelo governo de Washington, por intermédio dos organismos
multilaterais de crédito, é um fator importante na busca da estabilidade
macroeconômica, no financiamento e expansão da economia colombiana.
A política exterior da Colômbia procura fortalecer a cooperação
econômica com os Estados Unidos, ampliar e diversificar as relações comerciais,
promover o aproveitamento das vantagens da Lei de Preferências Aduaneiras
Andinas e de Erradicação de Drogas (Atpdea), promovendo novos
investimentos, acordos de cooperação e assistência técnica e financeira
Com esse objetivo avançou-se na negociação de um acordo de livre
comércio bilateral, simultaneamente com o processo de negociação da Área
de Livre Comércio das Américas (Alca).
Por outro lado, continua-se a insistir no trabalho de promoção da adoção do
status de proteção temporária para os colombianos que residem nos Estados Unidos.
O fortalecimento dos vínculos com o Canadá é também um objetivo
prioritário da política exterior: a Colômbia vem construindo com a nação
canadense uma relação de proximidade baseada nos interesses comuns dos
dois países, dentre os quais se pode destacar o fortalecimento do
multilateralismo como caminho para uma ordem internacional justa e solidária,
e a necessidade de promover a agenda hemisférica no quadro da Cúpula das
Américas.
O Ministério das Relações Exteriores quer desenvolver na agenda comum
com o Canadá temas como o aprofundamento do diálogo político, a assinatura
de um tratado bilateral de comércio e a elaboração de projetos de cooperação
em direitos humanos e direito internacional humanitário, em benefício das
populações afetadas pela violência. Busca-se também promover a preservação
da diversidade cultural e a agenda do relacionamento bilateral.
4. Europa
A União Européia é uma aliada estratégica da Colômbia no plano bilateral,
no contexto da Comunidade Andina e no quadro da Cúpula Birregional União
Européia – América Latina e Caribe.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Carolina Barco
87
Com relação à política externa colombiana, a Europa está dirigida para o
enriquecimento do diálogo político e o aprofundamento das relações
econômicas e comerciais, procurando preservar, na medida do possível, as
preferências andinas. Por outro lado, há um esforço para atrair investimentos
europeus e promover a adoção de uma política de imigração mais flexível para
os colombianos.
Na perspectiva da Comunidade Andina tem sido formado um
relacionamento sólido com a União Européia, que se fortalecerá com a
assinatura do Acordo de Diálogo Político e Cooperação. Esse acordo permitirá
aprofundar temas de interesse recíproco, em especial aqueles relacionados com
a defesa e com o fortalecimento das instituições e princípios democráticos, a
governabilidade, a justiça social, os direitos humanos, o desenvolvimento
sustentável, a luta contra a pobreza, a prevenção e solução de conflitos e a
integração das duas regiões. Não menos importantes são a melhoria do acesso
comercial ao mercado europeu e o combate ao terrorismo e à corrupção, o
problema mundial das drogas e o crime transnacional organizado.
Igualmente, procura-se concretizar o apoio europeu aos programas
prioritários do governo colombiano, como os relacionados com o
desenvolvimento alternativo e o microcrédito. Ao mesmo tempo, tem-se
querido fortalecer a cooperação em matéria de direitos humanos e a
solidariedade dos países da União Européia no tema humanitário, em particular
no que se refere ao fenômeno do deslocamento das populações mais afetadas
pela violência.
5. Ásia e a região do Pacífico
Com relação à Ásia e à região do Pacífico, a política exterior colombiana
procura ampliar os espaços de cooperação política, promover os interesses
econômicos e comerciais da Colômbia nessa região do mundo, atrair fontes
de investimento e promover novos projetos de assistência, em especial nos
campos científico e tecnológico.
A ação do Ministério das Relações Exteriores pretende lograr uma
inserção efetiva da Colômbia na bacia do Pacífico, maximizando o trabalho
das embaixadas regionais e insistindo no empenho em promover a participação
colombiana nos organismos de cooperação do Pacífico: o Conselho de
A política exterior da Colômbia
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88
Cooperação Econômica do Pacífico (PECC), o Conselho Econômico da Bacia
do Pacífico (PBEC), o Foro de Cooperação da América Latina e da Ásia do
Leste (FOCALAE). Outro objetivo é concretizar o ingresso da Colômbia no
Foro de Cooperação da Ásia e do Pacífico (APEC).
6. África e Oriente Médio
Entre outros objetivos, a Colômbia compartilha com muitos países dessa
região o de construir um sistema internacional mais justo e equilibrado. Estamos
unidos a eles não só pelos laços de solidariedade mas pelas preocupações
próprias dos países que padecem de conflitos internos, com a problemática
humanitária deles derivada, além da reflexão em torno dos dilemas sociais
próprios de todos os países em desenvolvimento.
A política exterior colombiana promove de forma ativa o fortalecimento
das relações políticas, econômicas e de cooperação com a África e o Oriente Médio,
tanto no âmbito bilateral como através de foros e organismos internacionais.
IV. Fortalecimento institucional do Ministério das
Relações Exteriores
O desenvolvimento da política exterior requer uma gestão mais efetiva
do Ministério das Relações Exteriores, produto da profissionalização e
modernização do serviço exterior e da implementação de mecanismos de
coordenação, monitoramento e prestação de contas do trabalho diplomático.
Esse processo pôde avançar, tendo como objetivo prioritário apoiar a gestão
econômica, comercial e financeira do governo, e dando ênfase ao
desenvolvimento da capacitação nas áreas de negociação internacional e na
formação de canais eficientes de comunicação entre as missões no exterior e a
sede da Chancelaria, em Bogotá.
Assim, para fazer com que a gestão das embaixadas e postos diplomáticos
no exterior seja eficaz e consistente com as políticas governamentais,
sistematizou-se a remessa a esses postos de informação sobre os temas
estratégicos do governo, para unificar o discurso das repartições
governamentais, assim como o envio, pelas embaixadas, de informação analítica
sobre a percepção do país no exterior e outros temas de interesse para o
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Carolina Barco
89
planejamento da política externa. Por outro lado, estão sendo avaliados os
resultados de cada posto com base no plano de ação anual por eles elaborado.
Paralelamente, o Ministério das Relações Exteriores está reforçando a
coordenação inter-setorial nos temas da agenda internacional, e fortalecendo
o seu papel como entidade executora da política.
Por outro lado, espera-se consolidar a Academia Diplomática colombiana
como órgão de formação e capacitação para o serviço exterior, assim como um
centro de reflexão que contribua para fazer diagnósticos e formular estratégias.
E ainda, dando seguimento às políticas de austeridade, procurou-se
racionalizar as despesas governamentais, impondo a eficiência, economia e
celeridade com base nos critérios de proporcionalidade e de prioridade do interesse
nacional. Nesse sentido, alguns consulados e embaixadas foram fechados,
progredindo-se na implementação do conceito de embaixada cumulativa, para
atender às exigências da política exterior em certas regiões, como o Caribe.
Mecanismos de apoio, divulgação e acompanhamento da
política exterior
A coordenação, divulgação e acompanhamento efetivo das metas
propostas são necessários para garantir o cumprimento dessas metas e o
estabelecimento das prioridades da política exterior. Tendo isso em mente,
estão sendo desenvolvidas as seguintes ações:
1. Estratégia de divulgação. A divulgação e o acompanhamento da gestão
internacional se fazem com base em uma diplomacia pública que difunda na
Colômbia e no exterior as políticas de governo e os diversos aspectos da complexa
realidade nacional através de seminários, colóquios acadêmicos e outras atividades
que favoreçam o necessário intercâmbio entre governo e sociedade civil,
mantendo a opinião pública informada sobre o desenvolvimento da política
externa colombiana.
Nas embaixadas, consulados e missões colombianas no exterior, enfatizou-
se a importância das comunicações. O programa radiofônico “Colômbia no
Mundo” está sendo transmitido e melhorou a cobertura pela imprensa das
atividades da Chancelaria, mediante a emissão de boletins de imprensa, boletins
culturais e comunicados. Por outro lado, são celebradas periodicamente reuniões
A política exterior da Colômbia
90 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
90
de trabalho com os meios de comunicação, com o propósito de facilitar a
cobertura objetiva e a divulgação veraz e oportuna dos temas relacionados com
a política exterior do país. Finalmente, a página do Ministério das Relações
Exteriores na Internet,
http://www.minrelext.gov.co/Noticias é atualizada
diariamente com notícias sobre a gestão internacional da diplomacia colombiana.
2. Apoio a empresários e investidores. O Ministério das Relações Exteriores
está comprometido com o apoio a empresários e investidores colombianos
que buscam abrir mercados no exterior ou consolidar relações comerciais ou
de investimento já existentes. Para isso está trabalhando de forma coordenada
com o Ministério do Comércio, Proexport e Coinvertir, no desenvolvimento de
mecanismos que otimizem o trabalho realizado neste campo e sirvam de apoio
e complemento ao trabalho desenvolvido pelas embaixadas e consulados.
3. Interação com embaixadas e missões diplomáticas acreditadas na Colômbia. Para
a administração adequada da política exterior é necessário manter um contato
permanente com o corpo diplomático residente no país, razão pela qual o
Ministério das Relações Exteriores fornece constantemente às embaixadas e
aos consulados acreditados junto ao governo colombiano informações sobre
temas estratégicos do governo nacional, realizando periodicamente reuniões
de trabalho que favoreçam a análise e a compreensão da realidade nacional.
4. Gestão cultural. Conscientes de que a política cultural praticada no exterior
é indispensável para melhorar a percepção do país no contexto internacional,
quisemos não só facilitar a participação na vida cultural do país de artistas e
intelectuais colombianos residentes no exterior, como também melhorar a
projeção da cultura colombiana fora do país – particularmente no que possa
contribuir para promover a imagem da Colômbia – e promover sua participação
em projetos culturais e educativos de impacto regional e global. Tem-se enfatizado
igualmente a busca de novos recursos para por em prática a política cultural do
governo, enriquecendo e divulgando a nossa grande diversidade cultural.
5. Interlocução com a sociedade civil e a comunidade acadêmica. O gerenciamento
participativo da política exterior exige um intercâmbio permanente e frutífero
sobre a gestão internacional com a comunidade acadêmica e a sociedade civil,
e para isso estão sendo ampliados os espaços de discussão e análise mediante
seminários, colóquios e publicações. A Academia Diplomática será parte
fundamental desse esforço.
Tradução: Luiz Augusto Souto Maior
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Patricio Zuquilanda-Duque
91
que se deve entender por política externa ou política internacional de
um Estado?
Segundo Arturo Lecaro, Política Internacional “é o conjunto de princípios,
de normas de ação, executado por um Estado mediante sua diplomacia, para
a consecução dos objetivos fundamentais permanentes, dentro do contexto
de suas relações com outros países e organizações internacionais”.
Miguel A. Vasco, no seu Diccionario de Derecho Internacional Público afirma
que Política Externa é aquela “que o Estado desenvolve para atingir, no plano
internacional, seus objetivos políticos fundamentais”, cuja determinação
corresponde ao Chefe de Estado, em estreita associação com o Ministro das
Relações Exteriores e organismos afins; e a sua execução, aos agentes diplomáticos
credenciados junto aos governos com os quais são mantidas relações, mediante
negociação diplomática”.
Jorge W. Villacrés, em sua obra La Política Económica Internacional de los
Estados Hispanoamericanos, expressa que “desde a sua criação o Equador (...)
tem contribuído com esforços para robustecer as bases fundamentais de todo
movimento que, inspirados nos supremos ideais de solidariedade e cooperação
A Política
Externa
do Equador
Patricio Zuquilanda-Duque
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*
Ministro das Relações Exteriores da República do Equador
O
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continental, tenderam a estreitar os vínculos culturais, jurídicos, comerciais e,
eventualmente, políticos entre as Repúblicas Americanas.
Podemos dizer, então, que os elementos distintivos do conceito de política
externa são: primeiramente, princípios ou normas básicas que regulam e orientam
o comportamento do Estado nessa matéria; outro elemento substantivo são os
objetivos e os propósitos fundamentais que o próprio Estado se propõe a atingir
em uma determinada etapa histórica e que, por isso mesmo, podem ser
permanentes ou conjunturais. Um terceiro componente refere-se aos destinatários
ou sujeitos da ação internacional, isto é, os outros países e, em geral, os organismos
internacionais. E, finalmente, um instrumento ou meio para implementar essas
políticas ou objetivos, considerando esses princípios diretores e o contexto em
que essa ação é desenvolvida, que vem a ser, justamente, o Serviço Exterior.
Campo de ação: princípios e normas fundamentais.
Objetivos da política externa. O contexto internacional
O quadro jurídico e as bases da política externa do Equador constam
dos princípios da Constituição Política do Estado, os quais, do ponto de vista
estritamente programático e conceitual, podem ser divididos em duas categorias.
De um lado, estão os princípios tradicionais que emanam do direito
interamericano e das Nações Unidas, com os quais se proclamam a paz, a
cooperação como sistema de convivência e igualdade jurídica dos Estados, a
condenação do uso ou ameaça da força como meio de solução de conflitos, e
a predação bélica como fonte de direito. Ao mesmo tempo, há aqueles princípios
segundo os quais se preconiza que é o direito internacional que rege a conduta
dos Estados em suas relações recíprocas, e que promovem a solução de
controvérsias de forma jurídica e pacificamente, propiciando o desenvolvimento
da comunidade internacional, a estabilidade e o fortalecimento de seus
Organismos; repudiando toda forma de colonialismo, de neocolonialismo, de
discriminação ou segregação; reconhecendo o direito dos povos à
autodeterminação e à libertação de sistemas opressivos.
De outro lado, estão os princípios e normas de ação concebidos e
desenvolvidos, particularmente nas últimas três décadas, os quais têm relação
com os problemas que o país precisa enfrentar devido à sua realidade social,
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Patricio Zuquilanda-Duque
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econômica, política e de segurança, quais sejam: o desenvolvimento sustentável,
a justiça social, a luta contra a corrupção, os direitos econômicos dos povos,
os Direitos Humanos e a integração econômica, especialmente a andina e a
latino-americana, como postulados fundamentais e elementos-chave da ação
internacional do Estado equatoriano, cujo traçado e definição, por determinação
da carta magna, compete ao Presidente da República.
Sem se afastar desses luminosos conceitos que, ao longo da história
republicana, o Equador tem enaltecido e colocado na vanguarda de sua ação
internacional, uma vez superado, principalmente, o antigo litígio territorial
com o Peru, o país considera que, no momento atual, tais princípios são, em
boa medida, os elementos condicionantes e indutores da sua política externa.
Nesse sentido, observamos que desde a sua criação, em 1830, o Equador
é um país democrático e republicano, que sempre privilegiou os valores da
democracia, e que a busca de sua consolidação e aperfeiçoamento tem sido
uma constante na vida do país.
Se um fator em particular caracteriza a história nacional, tem sido o
progressivo aperfeiçoamento das instituições democráticas e a permanente
busca de um consenso nacional em torno dos valores centrais que lhe conferem
vigência e validade: o respeito às liberdades fundamentais, a necessidade de
consolidar o estado de direito e a busca de uma maior participação social
dentro desse quadro democrático.
Como todo país em desenvolvimento, o Equador viveu momentos críticos
na sua história. Contudo, mesmo antes da consolidação das sucessões
presidenciais democráticas, a partir de 1979, o respeito às liberdades fundamentais
e aos direitos humanos teve alto índice de consistência. Existe no Equador uma
tradição de respeito aos direitos humanos e muito poucos conflitos sociais –
deveras muito poucos, em comparação com outros países do continente.
O Equador teve de enfrentar dois desafios consideráveis em sua história,
com significativas implicações na condução de sua política externa: o país
praticamente nasceu com uma disputa territorial com um dos seus vizinhos que,
ao longo do século XIX e grande parte do século XX, representou um desafio
constante à sua segurança e exigiu vultosos recursos de um reduzido erário fiscal.
O país tem diante de si aproximadamente os mesmos obstáculos
econômicos e sociais da maioria das nações latino-americanas: uma excessiva
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concentração da propriedade e da renda, pouca permeabilidade social, falta de
conexão com as redes do comércio mundial, baixo índice de acumulação de
capital e industrialização, problemas de acesso à tecnologia, escasso
investimento estrangeiro e crônico endividamento externo, entre outros.
Os referidos obstáculos tiveram dimensão histórica, em toda a extensão
da palavra. Grande parte das dificuldades surgidas da vida nacional são
explicadas pela luta para superar tais obstáculos. Nesse percurso houve avanços
fundamentais, mas resta ainda muita estrada a percorrer.
O Equador está consciente de que os obstáculos internos resultam, em
boa parte, de fatores endógenos, que a sociedade equatoriana reconhece e aos
quais o Estado tenta responder. Mas existem também sérias dificuldades
decorrentes de situações internacionais, alheias ao controle do país, como as
referentes aos problemas de segurança, à estrutura da economia e ao comércio
internacional.
Eis o principal desafio da política exterior equatoriana: contribuir para
resolver os fatores externos que afetam as oportunidades de desenvolvimento
interno, social e econômico do país.
A atenção aos desafios internacionais do Equador requer uma política exterior
que espelhe os princípios internos do país e atenda às suas necessidades externas.
Direitos humanos
Em matéria de direitos humanos, a política exterior do Equador tem
refletido o compromisso do Estado com a promoção e a proteção das garantias
fundamentais da pessoa e dos direitos coletivos de grupos vulneráveis dentro
do país e com o fortalecimento do direito internacional, dos direitos humanos
e suas instituições em escala universal.
A proteção dos direitos humanos em nosso país apóia-se na própria
Constituição da República, cujo artigo 3.2 dispõe que é um dever primordial
do Estado “assegurar a vigência dos direitos humanos, as liberdades
fundamentais das mulheres e dos homens e a segurança social”. Este princípio
básico é complementado com o artigo 16 da Carta Magna, que estipula que “o
mais alto dever do Estado consiste em respeitar e fazer respeitar os direitos
humanos que esta Constituição garante”.
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O Equador subscreveu a Declaração Universal de 1948 e é Parte dos sete
principais convênios internacionais de direitos humanos das Nações Unidas. No
final do ano 2000, o Equador tornou-se o primeiro país da América Latina a
assinar todos os tratados internacionais que têm sido adotados dentro da ONU e
no âmbito da Organização dos Estados Americanos sobre os direitos humanos.
Esses instrumentos têm força de lei dentro do país e podem ser invocados nas
cortes nacionais. O artigo 18 da Carta Magna assinala que “os direitos e garantias
determinados nesta Constituição e nos instrumentos internacionais em vigor serão
direta e imediatamente aplicáveis diante ou por qualquer juiz, tribunal ou autoridade”.
Na década de 80, o ex-Presidente equatoriano Jaime Roldós Aguilera
propôs um princípio que é a doutrina de aceitação universal: a supervisão
internacional relativamente à proteção dos direitos humanos em cada país não
se opõe ao princípio da “não-intervenção” nos assuntos internos dos Estados.
Fiel a esse princípio, o Equador comunicou oficialmente sua adesão aos órgãos
de vigilância dos tratados de direitos humanos, estendeu um convite aberto e
permanente aos mecanismos especializados da Comissão de Direitos Humanos
da ONU e sempre cumpriu e cumpre com suas obrigações junto à Comissão
e à Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Além da adesão equatoriana ao direito internacional que rege os direitos
humanos, a política externa do Equador promove a ativa participação do país
nos foros internacionais e nos organismos especializados naqueles direitos. O
Equador foi membro da Comissão de Direitos Humanos em repetidas
oportunidades, e peritos equatorianos, como os embaixadores Luis Valencia
Rodríguez, Julio Prado Vallejo, Jaime Marchán Romero e o doutor Hernán
Salgado, fizeram parte de organismos internacionais e interamericanos
especializados. Entre os equatorianos que tiveram vínculos com as instituições
internacionais de promoção dos direitos humanos, cabe destacar, de maneira
particular, o ex-Chanceler José Ayala Lasso, que foi, em 1994, o primeiro Alto
Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos.
Assim a política externa do Equador gerou avanços positivos dentro do seu
próprio território em matéria de direitos humanos. A ação internacional do país
fez com que o Estado equatoriano promovesse, como corolário dessa ação
internacional, o progresso da legislação e das instituições internas voltadas para a
proteção desses direitos. Ponto culminante desse processo foi a adoção do Plano
Nacional de Direitos Humanos como política de Estado, em junho de 1998.
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Para a aplicação de uma recomendação da Conferência Internacional de
Direitos Humanos de Viena (1993), e após amplo processo de consulta e
debate promovidos pela Chancelaria, do qual participaram instituições
governamentais e da sociedade civil, o Presidente da República adotou o
mencionado Plano Nacional, mediante decreto ejecutivo. Atualmente, o Plano
Nacional está no seu quinto ano de vida e proporciona apoio a uma crescente
atividade em tomo de programas e projetos que atendem a distintas facetas
dos direitos humanos.
No âmbito sub-regional, o Equador procurou também contribuir para a
extensão e o enriquecimento do direito internacional. A Carta Andina para a
Promoção e Proteção dos Direitos Humanos foi assinada pelos cinco
presidentes dos países andinos na cidade de Guayaquil, em 26 de julho de
2002, por ocasião da II Reunião de Presidentes Sul-Americanos. A Carta Andina
foi preparada e impulsionada por iniciativa do Governo e da Chancelaria do
Equador, havendo-se tornado uma realidade como fruto da coordenação dos
Governos e Chancelarias andinas, por meio de um processo do qual
participaram representantes da sociedade civil e organizações defensoras dos
direitos humanos dos cinco países andinos.
Com a adoção da Carta Andina de Direitos Humanos foi incorporado à
política comum da Comunidade Andina um instrumento inovador, que abrange,
inclusive, os chamados direitos humanos de última geração. A Carta Andina
foi concebida a partir da perspectiva específica da realidade andina, constituindo
uma contribuição original ao desenvolvimento do direito internacional com
vigência sobre os direitos humanos. Em matéria de direitos humanos, a Carta
estabelece prioridades para a Comunidade Andina, como os direitos dos povos
indígenas e das comunidades de afrodescendentes, os direitos econômicos,
sociais e culturais, e o direito ao desenvolvimento.
Ênfase especial é dada à proteção dos direitos humanos dos grupos
vulneráveis que necessitam de garantias sociais e jurídicas especiais: crianças,
mulheres, migrantes, deficientes físicos, idosos, pessoas marginalizadas,
refugiados, minorias sexuais, pessoas privadas da liberdade, etc.
Mesmo nos casos que transcendem o campo restrito dos direitos
humanos, é importante lembrar, devido às suas repercussões na matéria, que
o Equador ratificou, em 2002, o Tratado de Roma sobre o Estatuto da Corte
Penal Internacional, de julho de 1998.
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O Equador considera que a vigência do Estatuto de Roma, da Corte
Penal Internacional, constitui um dos maiores avanços da comunidade
internacional logo após a adoção da Declaração Universal dos Direitos
Humanos. Um dos objetivos fundamentais da política exterior equatoriana no
âmbito multilateral consiste em propiciar maior cooperação internacional com
a Corte Penal, apoiando, assim, a materialização do princípio da jurisdição
universal, consagrada no Estatuto de Roma.
Segurança nacional e política exterior
Circunstâncias históricas determinaram que, uma vez resolvido o
centenário conflito com o Peru, após a assinatura dos Acordos de Brasília de
1998, o Equador deveria enfrentar, quase imediatamente, uma ameaça inédita
derivada do agravamento do conflito interno da Colômbia.
Esse conflito constitui, dessa maneira, um fator significativo que afeta a
segurança do país, entendida em sua noção abrangente: segurança militar,
policial, econômica e social.
Por volta do final da década de noventa, o sudeste da Colômbia tornara-se
uma zona de conflito civil, com uma crescente população camponesa deslocada
pela guerra e pela fumigação de milhares de hectares de plantações ilícitas. O
denominado Plano Colômbia tentava anular dois fatores de instabilidade no
país vizinho: a insurgência guerrilheira e a violência paramilitar, e o cultivo e
tráfico de drogas. Independentemente de seus resultados na Colômbia, que não
cabe ao Equador julgar, nosso país precisou enfrentar desafios muito concretos
dentro de suas fronteiras, decorrentes do Plano mencionado:
• aumento do fluxo de pessoas e famílias que são acolhidas pelo estatuto
de refugiados (mais de 14 mil pessoas até o momento);
• aumento do fluxo de cidadãos colombianos que migraram
irregularmente para o Equador (estima-se que aproximadamente 100
mil pessoas não possuam documentação em ordem; além disso,
aproximadamente 150 mil colombianos residem legalmente no país);
• esse crescimento, especialmente nas províncias equatorianas fronteiriças
com a Colômbia, representa significativos desafios em matéria de
segurança e prestação de serviços públicos para o Estado equatoriano
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(que já tem graves dificuldades orçamentárias para atender às
necessidades de sua própria população);
• as atividades militares e os conflitos verificados na Colômbia exigiram
o reforço da presença militar equatoriana na fronteira.
Embora o conflito colombiano se desenvolva em território de outro
país, sobre o qual o Equador, naturalmente, não tem controle algum, e menos
ainda jurisdição, e, embora não possa intervir nessa
crise interna, de acordo
com o direito internacional público, o Equador teve de tomar providências
em seu território, com o objetivo de prever qualquer ameaça à sua segurança.
Assim, o Equador deslocou mais de sete mil efetivos militares e mil e duzentos
policiais até as províncias limítrofes com a Colômbia. Esse esforço militar implica
a mobilização de importante parte dos efetivos do exército e da polícia nacional,
cujo custo de mobilização e operação é considerável. Além disso, tal concentração
de forças policiais reduz a presença de efetivos em outros pontos do país, fazendo
com que a segurança civil fique vulnerável no território nacional em geral.
O peso para o erário público, os problemas de segurança, a demanda de
serviços públicos e, em geral, os esforços do Estado equatoriano são
significativos como resultado dos efeitos indiretos da crise colombiana.
A política externa equatoriana diante do conflito da Colômbia tem
reflexos no país inteiro, embora se trate de um problema interno de outra
nação. Fiel aos princípios do direito internacional, o Equador não pode intervir
em qualquer conflito interno além das suas fronteiras.
Aliás, a não-ingerência nos assuntos internos da Colômbia não impede
que o Equador colabore nos esforços internacionais de combate ao tráfico de
drogas, com vínculos nesse país. O narcotráfico é uma atividade à margem da
lei e, visto que redes de narcotraficantes operam em escala internacional, o
Equador colabora decididamente na luta policial e judicial contra esse flagelo.
As convenções internacionais e os acordos de colaboração policial e judicial,
juntamente com outros países, exigem a participação equatoriana nesse esforço.
O Equador deseja que o conflito colombiano seja resolvido pela lei
colombiana e respalda todos os esforços internacionais envidados para apoiar
a pacificação do país vizinho.
Deseja, ainda, que a comunidade internacional lhe ofereça apoio para
enfrentar os efeitos indiretos gerados pelo conflito colombiano em seu
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território. Nesse sentido, colabora estreitamente com o Alto Comissariado
das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur), no atendimento aos refugiados
de origem colombiana, e aspira à cooperação internacional para resolver o
grave impacto econômico que sofrem, particularmente, as províncias da zona
norte do país, contíguas à Colômbia.
O Equador espera permanecer incólume diante dos males da violência e
do crime organizado. A sustentação da trama social, que garante seu
desenvolvimento e gera as condições propícias para o trabalho fecundo e
criativo se baseia na segurança, a segurança pessoal, a segurança nas suas diversas
manifestações, começando por aquela que proporciona confiabilidade e
garantia, principalmente para o desenvolvimento das atividades econômicas,
produtivas, intelectuais etc; preserva a integridade das pessoas e do seu
patrimônio e garante o império da lei e o acesso, por todos os cidadãos, a uma
justiça eficaz e oportuna, bem como o direito ao devido processo.
A segurança no âmbito hemisférico
Conforme o Equador expressou por ocasião da Conferência Especial de
Segurança, realizada no México, após as grandes mudanças experimentadas no
mundo com o fim da Guerra Fria, o contexto histórico é hoje radicalmente diferente.
A nossa América precisa atualizar seus desafios e redefinir conceitos,
objetivos e prioridades do que significa “segurança hemisférica”.
É preciso identificar e determinar os mecanismos da cooperação coletiva,
de tal forma que abranjam com equilíbrio os interesses dos povos e as
preocupações dos Estados, tendo em mente os aspectos políticos, econômicos,
sociais, de saúde e ambientais, alem das preocupações meramente defensivas
ou de caráter militar.
Nesse campo em que ainda estamos imersos num processo de reflexão e
análise, já se reconhece e se concede ao tema da segurança um caráter e alcance
multidimensional, sendo que, quando estiver definido e estruturado, passará a
constituir uma fonte matriz do moderno direito internacional americano.
Neste aspecto, acreditamos em um enfoque multidimensional da segurança,
inovador e não-convencional, baseado no pleno respeito ao direito internacional
e na promoção e observância dos direitos humanos, bem como das normas e
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princípios da Carta da OEA e da Carta das Nações Unidas, que responda aos
novos princípios e conceitos históricos e sociais professados no Hemisfério.
Um exemplo ilustrativo da dimensão dessa agenda é o fenômeno da
deterioração do meio ambiente, problema que, como nenhum outro, possui
múltiplas faces, porquanto transcende as fronteiras, os limites convencionais
que separam os países, para se tornar no que realmente representa: uma ameaça
globalizada.
É por isso que, na sua política externa, o Equador concebe que esse fenômeno,
junto com o terrorismo, a delinqüência organizada transnacional, o narcotráfico, a
corrupção, os desastres naturais, o drama humano da pobreza extrema, a doença e
a exclusão social, constituem vulnerabilidades e graves desafios para a segurança
coletiva, sendo também graves e inaceitáveis flagelos da humanidade.
O Equador apresentou uma proposta para que a Declaração do México
dedicasse um parágrafo especial à Segurança Econômica dos Estados, no
conteúdo do artigo 37 da Carta da Organização dos Estados Americanos. Da
mesma forma, contribuiu com entusiasmo para a adoção dos parágrafos sobre
a retirada de minas, a não-proliferação de armas nucleares, o vínculo jurídico-
institucional da Junta Interamericana de Defesa como organismo técnico assessor
de caráter militar, não-operacional da OEA. Apoiou igualmente a assistência
mútua em caso de desastres naturais, e apresentou ainda uma proposta sobre o
acesso e o direito que os nossos povos devem ter a um meio ambiente saudável,
livre de contaminação, em consonância com a Constituição Política do Equador.
A reforma da ONU
O Equador é um dos países fundadores da ONU e, como tal, assume os
princípios fundamentais que guiam a Organização e o comportamento
internacional de seus Estados-Membros. Como membro da OEA, o Equador
postula também, em escala regional, os princípios da Organização.
A cooperação com outros países em desenvolvimento nos foros
internacionais é materializada também pela adesão do país ao Movimento dos
Não-Alinhados e ao Grupo dos 77.
O Equador considera que o sistema de segurança coletiva, em escala
planetária, não perdeu vigência, mas certamente concebe a necessidade de
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uma reforma institucional para atualizar a Organização das Nações Unidas
com relação às novas demandas internacionais. Não apenas o Conselho de
Segurança, mas também a Assembléia Geral e o Conselho Econômico e Social
(Ecosoc), entre outros órgãos do sistema, precisam ajustar aos novos tempos
suas estruturas, procedimentos e políticas.
A representação geográfica eqüitativa, a maior transparência nos
trabalhos, a eficácia de suas decisões, o dinamismo de seus procedimentos e
uma ONU com ação mais decidida e eficaz para resolver os problemas dos
países em desenvolvimento, isto é, da maior parte da humanidade, são facetas
que, em uma reforma não podem ser deixadas de lado nem ser abordadas
parcialmente, se de fato se deseja dotar a Organização de uma voz representativa
e efetiva no novo milênio.
O Equador respalda os objetivos da Declaração do Milênio, tanto as
suas metas políticas e de segurança como as referentes ao desenvolvimento
humano. Somente uma Organização capaz de reformar sua estrutura
institucional de acordo com as exigências dos novos tempos poderá cumprir
sua parte ao impulsionar, a partir do âmbito multilateral, os elogiáveis
objetivos da Declaração do Milênio.
A crise financeira. A emigração. A luta contra a corrupção
O Equador sofreu, em 1999, uma das crises financeiras mais graves de
sua história, como resultado de um conjunto de fatores que convergiram para
uma súbita movimentação dos depósitos bancários. Esse fato, por sua vez,
gerou a falta de liqüidez e, em alguns casos, a falência de várias instituições
financeiras, com o conseqüente prejuízo tanto para o Estado – que por
intermédio do Banco Central tinha concedido linhas de crédito de última
instância – quanto para os depositantes em geral.
Ao desequilíbrio financeiro juntaram-se a queda da receita petroleira,
o aumento das despesas devido às pressões políticas e gastos adicionais para
a aquisição de armamentos e para enfrentar o fenômeno “El Niño” Tudo
isso gerou taxas de juros demasiadamente altas, em conseqüência da grande
desconfiança na economia. As altas taxas deterioraram a situação dos
devedores, que não conseguiram cumprir com suas obrigações junto aos
A Política Externa do Equador
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bancos. O impacto sobre a infra-estrutura provocado por El Niño, a queda das
exportações, devido a uma baixa nos preços internacionais, além de uma
contração dos mercados produziu a descapitalização ou o excessivo
endividamento generalizado do setor empresarial, uma hiperinflação superior
a 500% e, finalmente, o congelamento dos depósitos.
As implicações dessa crise foram devastadoras para a economia nacional,
para a máquina produtiva e para a sociedade, especialmente em seu segmento
mais vulnerável. Como conseqüência do fechamento de empresas houve perda
de milhares de empregos, falta de liqüidez, recessão, hiperinflação e forte
desvalorização da moeda. Com a adoção do dólar americano a partir de 2000,
configurou-se um novo cenário econômico, com a redução da inflação e o
aumento do investimento público.
Na atual conjuntura, o Governo se propõe a sustentar uma reativação
produtiva por meio da manutenção da dolarização, da gestão responsável da
economia e das finanças públicas e da melhora contínua da competitividade.
Devido ao enorme número de equatorianos que saíram dos limites pátrios
e se dedicaram a procurar no exterior os meios para sua subsistência e de seus
familiares (cerca de 2 milhões nos últimos dois anos), as conseqüências no
campo social continuam a ser preocupantes.
Por meio da política externa, o Estado equatoriano busca a proteção do
emigrante, para tentar legitimar a sua permanência nos países de destino, com
o objetivo de que possa exercer seus direitos como cidadão residente, com os
direitos e deveres previstos nas leis de cada país, orienta a obtenção de emprego
e protege o exercício e cumprimento dos direitos humanos.
Nesse aspecto, a política do Estado é dirigida para a proteção da família
do emigrante, por meio de um trabalho de assistência social e assessoria
econômica, e para a articulação de ações conducentes a um desenvolvimento
econômico e social equilibrado e ao melhoramento das condições físicas,
econômicas e sociais dos setores de maior impacto nas correntes migratórias
do país.
Em função das estratégias estabelecidas, diversos instrumentos foram
subscritos. Um deles, com a Espanha, relacionado com a regulação e
ordenação dos fluxos migratórios; com a Organização Internacional para as
Migrações, destinado a prestar assistência técnica e a cuidar do funcionamento
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da Unidade de Triagem de Migrantes no âmbito da execução de Acordos
sobre Fluxos Migratórios.
É fato conhecido que, com o surgimento da crise financeira, um grupo
de banqueiros burlou a fé pública e prejudicou abertamente tanto o Estado
quanto os depositantes, em circunstâncias em que o primeiro havia acudido
em auxílio das instituições financeiras, comprometendo vultosos recursos e
colocando em jogo as próprias bases institucionais, a seriedade e a estabilidade
monetária e cambial do país.
Devido a esses antecedentes e interpretando o sentimento do povo
equatoriano, adquire especial importância, constituindo um dos mais caros
postulados e objetivos do Governo Nacional, utilizar todos os expedientes e
meios legais disponíveis, tanto em nível interno quanto internacionalmente,
para que os recursos pertencentes à sociedade sejam recuperados e colocados
a serviço do seu desenvolvimento e bem-estar; e que os responsáveis pela sua
apropriação indevida sejam colocados à disposição dos juizes competentes
para receber uma punição legítima e exemplar — ato de estrita Justiça,
muito esperado.
Nesse quadro de reflexões, e por convicção pessoal, o senhor Presidente
da República Engenheiro Lucio Gutiérrez, quando da próxima realização da
XXXIV Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos, em 2004,
na cidade de Quito, interpretando o sentimento do povo equatoriano e fiel a
suas promessas de campanha, decidiu que o tema central a ser desenvolvido
no âmbito desse importante encontro continental será “A luta hemisférica
contra a corrupção”.
Com isso espera-se contribuir decididamente para a criação, o
desenvolvimento e a consolidação de um novo, porém eficaz e solidário enfoque
interamericano no combate e na eliminação desse indesejável fenômeno, que
representa uma das principais causas – para não dizer a principal – do descalabro
e atraso das estruturas sociais e políticas do continente.
A cooperação internacional.
No âmbito internacional, a política externa equatoriana tem enfoque e
inspiração muito precisos: o Equador é partidário da cooperação internacional,
A Política Externa do Equador
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tanto como sistema de segurança coletiva quanto como ferramenta para o
desenvolvimento econômico e social dos povos.
A inserção do Equador na economia global
O artigo 4º da Constituição em vigor enumera os princípios que regem
as relações do Equador com a comunidade internacional e, em seu item 3,
afirma que o direito internacional é norma de conduta dos Estados em suas
relações recíprocas. O item 5 do mesmo artigo defende a integração, de maneira
especial a integração andina e a latino-americana.
Por sua vez, o artigo 171 da Carta Magna define as atribuições e deveres
do presidente da República. O item 12 outorga ao Chefe de Estado o poder
de definir a política externa, de dirigir as relações internacionais do país, e de
celebrar e ratificar tratados e convênios internacionais mediante prévia
aprovação do Congresso Nacional, quando a Constituição assim o exigir.
Finalmente, o artigo 163 da Constituição estabelece que as normas
contidas nos tratados e convênios internacionais, uma vez publicadas no Registro
Oficial farão parte do ordenamento jurídico da República e terão prevalência
sobre as leis e outras normas de menor hierarquia.
Os artigos 2 e 3 da Carta enumeram os propósitos e princípios que
regem essa organização, entre os quais, o de promover, por meio da ação
cooperativa, o desenvolvimento econômico, social e cultural. Enunciam que o
direito internacional é norma de conduta dos Estados em suas relações
recíprocas e que a cooperação econômica é essencial para o bem-estar e a
prosperidade comuns dos povos do continente.
O desenvolvimento econômico do país constitui a base da sustentabilidade
social. A superação dos males crônicos da economia nacional exige um grande
esforço de ação internacional. Por isso a política externa do Equador confere às
relações econômicas um papel delicado e transcendente ao processo das
mudanças estruturais e conjunturais que devem ser desenvolvidas nesse campo.
Em harmonia com as decisões adotadas na XIV Reunião do Conselho
Presidencial Andino, o Equador respalda uma visão estratégica na preservação
do patrimônio comum construído nos 34 anos de integração andina, a fim de
avançar para uma segunda geração de políticas.
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O acordo de Cartagena
O Acordo de Cartagena é a norma básica e fundamental da integração
andina e confere à Comunidade desses países personalidade jurídica
internacional, como Organização sub-regional. Foi assinado em 26 de maio
de 1969 por Bolívia, Colômbia, Chile, Equador e Peru. Em 1973, a Venezuela
aderiu ao processo e, em 1976, o Chile retirou-se do mesmo.
Em seu preâmbulo, o Acordo enuncia que a integração constitui um
mandato histórico, político, econômico, social e cultural de seus países, com o
objetivo de preservar sua soberania e independência. O artigo 16 estabelece que
corresponde ao Conselho Andino de Ministros das Relações Exteriores, com a
concordância dos Ministros das Relações Exteriores dos Países-Membros do
Acordo de Cartagena, entre outras tarefas, formular a Política Exterior dos Países-
Membros em assuntos de interesse sub-regional, bem como orientar e coordenar
a ação externa dos diversos órgãos e instituições do Sistema Andino de Integração.
Por outro lado, o artigo 22 do Acordo estabelece que corresponde à
Comissão da Comunidade Andina, constituída por representantes
plenipotenciários de cada um dos Governos dos Países-Membros, função
atualmente exercida pelos Ministros do Comércio Exterior, formular, executar
e avaliar a política de integração sub-regional andina em matéria de comércio
e investimentos e, quando for o caso, em coordenação com o Conselho Andino
de Ministros das Relações Exteriores.
Em outro âmbito, pelo Tratado de Montevidéu de 1980 as Partes
contratantes obrigaram-se a dar andamento ao processo de integração voltado
para a promoção do desenvolvimento econômico-social, harmonioso e
equilibrado da região; para tanto, instituíram a Associação Latino-Americana
de Integração (Aladi), com sede na cidade de Montevidéu. São signatários do
Tratado de Montevidéu Argentina, Bolívia, Brasil, Colômbia, Chile, Cuba,
Equador, México, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela.
Ao assinarem o Tratado, seus membros consideraram que a integração
econômica regional constitui um dos principais meios para os países da América
Latina acelerarem seu processo de desenvolvimento econômico e social, a fim
de garantir um melhor nível de vida para seus povos. Esse processo terá como
objetivo, a longo prazo, o estabelecimento, de forma gradual, de um mercado
comum latino-americano.
A Política Externa do Equador
106 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
106
Em matéria de integração, os objetivos da política externa do Equador são
os enunciados, primeiramente de maneira geral, pela Constituição Política do
Estado, em seus artigos 4 e 5, ao estabelecer que em suas relações com a
comunidade internacional, o país luta pela integração, de maneira especial a andina
e a latino-americana, e que poderá formar associações com um ou mais Estados
para a promoção e a defesa dos interesses nacionais e comunitários.
Em segundo lugar, em conseqüência da referência constitucional aos
tratados internacionais assinados pelo Equador em matéria de integração, está
o Acordo de Cartagena, o qual enuncia em seu artigo 1º, como um dos seus
objetivos, promover o desenvolvimento equilibrado e harmonioso dos países-
membros em condições de eqüidade, mediante a integração e a cooperação
econômica e social; acelerar seu crescimento e a geração de empregos; e facilitar
sua participação no processo de integração regional com vistas à formação
gradual de um mercado comum latino-americano.
São objetivos do Acordo, ainda, tentar diminuir a vulnerabilidade externa
e melhorar a posição dos países-membros no contexto econômico internacional;
fortalecer a solidariedade sub-regional; e reduzir as diferenças de desenvolvimento
existentes entre os países-membros. Esses objetivos têm a finalidade de buscar
uma melhoria duradoura no nível de vida dos habitantes da sub-região.
O Equador tem sido um dos maiores propulsores da integração andina,
desde sua gênese. Esses objetivos, que têm sido permanentes, têm procurado
acima de tudo impulsionar o relacionamento externo da Comunidade Andina
em matéria política e comercial com o Mercosul, os Estados Unidos da América,
o Canadá, a União Européia, a China, a Rússia e o Japão, entre os mais
expressivos. Da mesma forma, junto com seus parceiros andinos, o Equador
tem procurado desenvolver a Agenda Social, com a aprovação de um Plano
Integrado de Desenvolvimento Social e tenta igualmente ampliar a participação
da sociedade civil. Do mesmo modo, o Equador tem defendido
permanentemente a cooperação política intra-sub-regional em matéria de
segurança, de combate às drogas ilícitas e delitos afins e da ampla temática do
desenvolvimento sustentável, incluindo a promoção e defesa da biodiversidade.
Em matéria de política comunitária de integração e desenvolvimento fronteiriço,
o país tem buscado o desenvolvimento das zonas de integração fronteiriça e a
criação de centros binacionais de atendimento em tais regiões. Juntamente
com seus parceiros andinos, aprovou uma Política Comunitária de Integração
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Patricio Zuquilanda-Duque
107
e Desenvolvimento Fronteiriço, marco geral dos objetivos voltados para o
desenvolvimento dessa temática.
Finalmente, um dos seus principais objetivos tem sido promover a
elaboração de diretrizes que permitam criar novas instituições andinas, levando
em consideração que, no futuro, como acontece nos processos de integração
mais avançados, delas será exigido abordar setorialmente os novos desafios e
temas do projeto comunitário andino.
O Equador assumiu a Presidência da Comunidade Andina em 28 de
junho de 2003, pelo período de um ano. Ao assumi-la, concentrou esforços na
consolidação da união de seus membros, visando a que os Chefes de Estado
dos países andinos empenhassem seu apoio político para reforçar novamente
a União Aduaneira, a fim de aceder ao Mercado Comum, para o cumprimento
da normativa andina e o reestabelecimento do Sistema Andino de Integração.
Isso com a finalidade de resolver, em curto prazo, os óbices surgidos.
Esse objetivo fundamentou-se no fato de que o principal valor da
Comunidade Andina consiste em dar força aos seus membros, como um bloco,
nas negociações com terceiros. O Equador estimulou também a inclusão de
temas sociais como eixos básicos, antes não priorizados, a serem considerados
na integração andina.
Da mesma forma, propôs diretrizes estratégico-políticas relacionadas
com a dimensão econômica, o mercado comum andino, a relação com terceiros,
a participação da sociedade civil e as instituições sub-regionais. Na dimensão
econômica, o Equador conseguiu unificar os critérios dos países-membros
em torno da necessidade de aprofundar as políticas macroeconômicas, de forma
que elas possam contribuir para a estabilidade cambial e a possível aplicação
de uma salvaguarda também do câmbio, porquanto esses aspectos se refletem
nos fluxos comerciais andinos.
Em relação ao tema do mercado comum andino, foi ressaltada a
importância de se consolidar a união aduaneira, o estado atual da tarifa externa
comum e o mecanismo de estabilização de preços no setor agrícola. Nessa
matéria, foi enfatizada aos países-membros a adoção em futuro próximo de
uma política agropecuária comum.
Na relação com terceiros, a participação do Equador foi crucial para
demonstrar a necessidade de se chegar, antes de 31 de dezembro de 2003, à
A Política Externa do Equador
108 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
108
conclusão das negociações entre a Comunidade Andina e o Mercosul, a fim de
criar uma zona de livre comércio entre os dois blocos, fazendo frente, em
conjunto, tanto aos desafios que a Alca representa quanto às relações com a
União Européia, como às possíveis negociações comerciais e políticas com os
Estados Unidos e o Canadá.
Por empenho do Equador, na participação da sociedade civil, os países
andinos adotarão um Plano Integrado de Desenvolvimento Social que permitirá
não apenas o acompanhamento das políticas nacionais de combate à pobreza,
mas também a inserção de setores marginalizados, como as populações
indígenas e os consumidores.
Como corolário da posição equatoriana, foram consideradas
fundamentais a criação do Conselho Eleitoral Andino e a consolidação do
Tribunal Andino de Justiça. Insistiu-se igualmente na necessidade de que os
países-membros, que ainda não o fizeram, elegessem diretamente os
parlamentares andinos, processo observado apenas na Venezuela e no Equador.
Esses mesmos objetivos tinha em mente o Equador, em matéria de
integração latino-americana, ao assinar em 1980 o Tratado de Montevidéu.
Objetivos que persistem quando o país negocia, só ou em parceria com os
países andinos, acordos comerciais ou políticos com contrapartidas individuais
ou conjuntas; no contexto atual, é o caso de mencionar especialmente a Alca
e os tratados de livre comércio com o Mercosul, Estados Unidos e Comunidade
Européia – este último, a ser negociado proximamente.
No momento histórico atual, deve-se levar em conta a iminência das
negociações econômicas bilaterais para a eventual assinatura dos
correspondentes Tratados de Livre Comércio entre Equador e Estados Unidos,
e Equador e União Européia, com vistas a aprofundar e institucionalizar o
relacionamento comercial, econômico e político entre as partes.
Com esse propósito, pelas implicações que devem ter essas negociações,
não só no âmbito comercial mas também, e principalmente, para toda a
economia nacional e, decerto, no contexto das relações econômicas
internacionais do país, o Equador prepara-se para adotar políticas de amplo
alcance que fortaleçam a participação efetiva do setor privado, assim como de
outros importantes segmentos da sociedade civil, tais como o sindical e o
acadêmico, de modo a garantir a coordenação e o trabalho harmonioso das
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Patricio Zuquilanda-Duque
109
diferentes instituições nacionais, cujas competências e áreas de atividade têm
relação direta com os temas envolvidos nas negociações.
Para cumprir esse importante objetivo é preciso definir rigorosamente
os interesses e posições nacionais quanto aos principais temas, a fim de conciliar,
da maneira mais eqüitativa possível, as aspirações e necessidades dos diversos
setores da economia, assim como aquelas resultantes de objetivos permanentes,
como a luta contra a pobreza, a justiça social, a adequada proteção do meio
ambiente, a preservação dos direitos humanos e a diversidade cultural, ecológica
e produtiva.
Meio ambiente
O território equatoriano figura entre os de maior diversidade biológica
do planeta, e é obrigação básica do Estado cuidar de seu desenvolvimento
sustentável e da preservação do seu meio ambiente. Dessa perspectiva, em
consonância com os postulados do Plano de Ação de Joanesburgo – parágrafo
44 – o país luta pelo desenvolvimento sustentável na erradicação da pobreza.
Para tanto, orienta as suas políticas para garantir a gestão sustentável dos
recursos naturais e da sua diversidade biológica, evitando a tendência atual de
degradação dos mesmos.
Pelas mesmas considerações, o Equador promove iniciativas destinadas
a mitigar as mudanças climáticas – geradoras de riscos globais cada vez maiores
– e suas conseqüências adversas, mormente nos países em desenvolvimento,
vulneráveis sobretudo em suas economias; e fomenta igualmente políticas e
ações para a prevenção e luta contra a desertificação, buscando suavizar os
efeitos da seca, à luz do parágrafo 41 do Plano de Ação de Joanesburgo.
Para atingir os referidos objetivos, o Equador propõe uma participação
ativa nas convenções internacionais em matéria de meio ambiente e
desenvolvimento sustentável; vale citar, particularmente, a Convenção de
Diversidade Biológica, a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças
Climáticas, a Convenção da Luta contra a Desertificação e a Seca, a Convenção
sobre o Comércio Internacional das Espécies da Fauna e da Flora Selvagens
Ameaçadas de Extinção (CITES), sobre o comércio de espécies ameaçadas, e a
Convenção Ramsar (Irã), sobre as terras úmidas, de importância internacional,
entre vários outros acordos multilaterais dos quais o país é signatário.
A Política Externa do Equador
110 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
110
Propõe, igualmente, estabelecer cooperação com instituições nacionais
vinculadas ao desenvolvimento sustentável e ao meio ambiente e com organismos
da sociedade civil, com vistas ao aproveitamento de experiências e conhecimentos
como insumos para sua participação em reuniões internacionais.
O Equador defende também a criação de mecanismos para concertar
posições comuns com outras nações e grupos de países em convenções
internacionais sobre desenvolvimento sustentável e meio ambiente, em
particular no âmbito da Comunidade Andina de Nações, da região da América
Latina e do Caribe, do Grupo dos 77 e da China; procura ainda, suscitar
mecanismos para a formação de negociadores equatorianos no contexto de
convenções internacionais sobre desenvolvimento sustentável.
Com o objetivo de concretizar a aplicação das referidas estratégias, o
Equador, na órbita da Convenção de Diversidade Biológica, lidera a preparação
de posições nacionais para a sua participação na mesma e, especificamente, na
reunião do Órgão Subsidiário de Assessoramento Científico, Técnico e
Tecnológico da Convenção de Diversidade Biológica (SBSTTA), bem como na
Conferência das Partes (COP7) dessa convenção (Kuala Lumpur, de 9 a 20 de
fevereiro de 2004), com destaque para assuntos como ecossistemas de montanha,
áreas protegidas e transferência de tecnologia e cooperação tecnológica.
No que diz respeito ao tema Áreas de Preservação Ambiental, que
constituirá o ponto central da Conferência das Partes, o Equador elabora uma
estratégia sobre a base das conclusões às quais se chegou durante o “Congresso
Nacional sobre Áreas Protegidas”, organizado pelo Ministério do Ambiente.
Em conjunto com o Comitê Nacional do Clima, a Chancelaria coordenará
a aplicação dos resultados da IX Conferência das Partes da Convenção de
Mudanças Climáticas, realizada em Milão, que foi de grande importância para
a entrada em vigor do Protocolo de Quioto, assim como pelos importantes
temas para os países em desenvolvimento, entre eles a diminuição dos efeitos
de mudanças climáticas; adaptação às mesmas; comunicações nacionais;
capacitação; transferência de tecnologia; fundo especial para mudanças
climáticas; mecanismo de desenvolvimento sem poluição, entre outros.
Na mesma ordem de idéias, o Equador apóia a continuidade do Projeto
“Mudança Climática”, ECU/99/G31, a atualização do Inventário Nacional
de Gases de Efeito Estufa, a promoção de medidas de adaptação à mudança
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Patricio Zuquilanda-Duque
111
Tradução: Sérgio Bath
climática, a consolidação do trabalho do Comitê Nacional de Clima e o fomento
de políticas energéticas, assim como do uso da terra (agrícola e florestal), que
contribuem para reduzir a emissão de gases de efeito estufa.
Em termos gerais destacam-se como eixos temáticos da política externa em
matéria de desenvolvimento sustentável e meio ambiente temas como a água e seu
uso racional, áreas de preservação, florestas, desenvolvimento sustentável das
montanhas, acesso a recursos genéticos e distribuição justa de benefícios,
biossegurança, entre outros. Merecendo atenção prioritária do Estado equatoriano
e da Chancelaria, figura a conservação do Parque Nacional e da Reserva Marítima
de Galápagos.
Destaquei neste artigo os temas de maior relevância e prioridade para a
política externa do país e as diretrizes conducentes à sua realização.
O presente trabalho demonstra as múltiplas conexões existentes entre a
ação internacional do país e o seu dia-a-dia; entre a política exterior e as políticas
internas, como segurança, desenvolvimento humano, proteção do meio
ambiente, direitos humanos, entre outras.
A inter-relação citada deixa claro o conceito de que o Estado equatoriano
tem na política externa uma ferramenta a mais na sua atividade geral em favor
da promoção do desenvolvimento social e econômico do país. Ela é um
instrumento primordial, visto que estabelece e mantém o contato do país com
a comunidade das nações, marcada pela dinâmica da globalização, pois a política
exterior reafirma a presença do país na vida internacional, estreitando ao mesmo
tempo os laços da cooperação entre os povos. Finalmente, a política externa
propicia a oportunidade de que o Estado e o povo equatorianos contribuam
para a construção de um mundo mais harmônico e fraterno.
A política externa da Guiana: respostas a um contexto mundial em transformação
112 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
112
ara começar, pode ser útil relacionar os principais objetivos da política
exterior da Nação, que, em resumo, são os seguintes:
a) preservar a soberania, integridade territorial e independência da Guiana;
b) promover o desenvolvimento econômico e social do país;
c) promover laços mais estreitos com a diáspora guianense;
d) manter relações de amizade com as nações do mundo;
e) garantir que os interesses da Guiana sejam difundidos e promovidos
na comunidade internacional; e
f) defender os objetivos e princípios da Carta das Nações Unidas.
Os anos pós-coloniais
Desde a independência do país, em 1966, esses objetivos influenciaram
o processo decisório e a adoção da política exterior da Guiana, mantendo-se
firmes e constantes, com a adaptação da estratégia e da diplomacia, na medida
A política externa
da Guiana:
respostas a um contexto mundial
em transformação
Samuel Rudolph Insannally
*
*
Ministro de Assuntos Exteriores da República Cooperativista da Guiana
P
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Samuel Rudolph Insannally
113
do necessário, às novas circunstâncias e desafios. As preocupações mais
importantes têm sido com a segurança e o desenvolvimento econômico, fins
essenciais à sobrevivência e à prosperidade da nação. Ao mesmo tempo, a despeito
das suas limitações em termos de tamanho e recursos, o país tem procurado
exercer um papel ativo e influente nas relações internacionais. Papel que tem
prestado bons serviços ao país, pois lhe trouxe não só prestígio e respeito, mas
também, o que é muito importante, um apoio valioso aos principais objetivos da
sua política externa.
Como tantos outros países nascidos de um passado colonial, a Guiana não
tardou a ser envolvida na luta contra o imperialismo e o racismo. Nas Nações
Unidas, à qual se apressou a integrar depois de alcançar a independência, em 1966,
tornou-se uma defensora ardente da autodeterminação dos povos, da promoção
da paz e estabilidade mundiais, assim como da instituição de uma nova ordem
econômica internacional mais eqüitativa. Assumiu um compromisso com o não-
alinhamento, acreditando que isso lhe daria maior autonomia na formulação da
política exterior. Da mesma forma, quis participar do Grupo dos 77, juntando-se
à causa comum dos outros países em desenvolvimento na busca de maior progresso
econômico e social. Em qualquer foro, a Guiana sempre exerceu posições de
liderança, que usou para tornar o ambiente internacional mais voltado para suas
preocupações e necessidades.
Embora ativas e ambiciosas, as opções de política externa da Guiana eram
limitadas por uma persistente controvérsia fronteiriça com a Venezuela, seu vizinho
ocidental. Tendo aceito as fronteiras vigentes por mais de sessenta anos, subitamente
a Venezuela passou a reclamar cinco oitavos do território nacional guianense como
seus. Depois de ocupar a parte guianense da ilha Ankoko, a Venezuela instigou
uma rebelião na zona de Rupununi e anexou áreas marítimas no Essequibo.
Conseguiu impedir a participação da Guiana em vários órgãos hemisféricos
importantes, recorrendo à coação econômica para frustar o desenvolvimento da
área contestada. Não surpreende que essa controvérsia, juntamente com uma
disputa do lado do Suriname, tenha prejudicado seriamente a perspectiva de
desenvolvimento e estabilidade do país. No entanto, a Guiana está decidida a
encontrar soluções pacíficas para esses problemas, conforme prescreve a Carta
das Nações Unidas (art. 33).
Sem capacidade militar significativa para resistir à agressão, a Guiana
precisa basear-se na persuasão moral e diplomática para proteger sua soberania
A política externa da Guiana: respostas a um contexto mundial em transformação
114 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
114
e integridade territorial. Assim, como uma diretriz política, procurou conquistar
simpatia e apoio à sua posição, cultivando boas relações com todos os Estados
amigos e amantes da paz, e insistindo no pleno respeito ao direito internacional
e aos princípios e objetivos das Nações Unidas. No nível bilateral, a Guiana
sempre foi favorável ao diálogo com a Venezuela e o Suriname, no interesse
de manter boas relações de vizinhança. Promoveu, também, a cooperação
econômica e técnica como uma forma de superar as dificuldades imediatas e
alcançar um patamar mais elevado de coexistência e colaboração pacíficas. No
campo multilateral, a Guiana montou uma ofensiva diplomática para rejeitar a
tentativa de expansão venezuelana. Embora as relações com esses dois países
sejam bastante cordiais, os problemas subjacentes permanecem sem solução,
testando os recursos e a habilidade diplomática do país.
O período pós-Guerra Fria
As mudanças ocorridas no mundo no fim da Guerra Fria causaram uma
importante reorientação da política externa de países de todos os quadrantes.
Desapareceu a “estabilidade” propiciada pelo equilíbrio das forças ideológicas entre
Leste e Oeste, e, com ela, a posição estratégica que desde muito beneficiava os
países em desenvolvimento, situados entre os dois titãs e recebendo de ambos
vantagens políticas e econômicas. Subitamente, com a distensão global, posições
antigas e cômodas como a neutralidade e o não-alinhamento foram sacudidas nas
suas bases, à medida que os Estados eram obrigados a se adaptarem a uma nova
ordem mundial.
Agora, o Ocidente triunfante combinou-se com o Leste derrotado para
formar um Norte dominante, com capacidade ainda maior de exercer controle
político e econômico sobre um Sul debilitado. Os países em desenvolvimento,
como a Guiana, não podem mais sustentar sua autonomia de ação, pois a
posição estratégica que mantinham com êxito durante a Guerra Fria lhes foi
subitamente subtraída de sob seus pés. A nova concentração de ideologia
política, de política econômica e poder militar tem pouca tolerância com relação
aos desvios, exigindo, ao contrário, uma anuência certa e completa. A maior
parte dos países em desenvolvimento, em especial os Estados pequenos e
vulneráveis, não tem outra opção senão aceitar e seguir os princípios neoliberais
do livre mercado, conhecidos popularmente como Consenso de Washington.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Samuel Rudolph Insannally
115
Chegou a era da globalização, desafiando todos os Estados a se liberalizarem
ou perecerem. Para que a Guiana ocupe um lugar na economia global, sua
política externa precisa, necessariamente, reorientar-se e levar em conta esses
novos desenvolvimentos.
Os novos desafios à paz e ao desenvolvimento
A experiência tem demonstrado que os ventos da globalização, ao tempo
em que impulsionaram as economias mais desenvolvidas, levando-as ao ápice
da maior prosperidade, deixaram as economias débeis, como as do Caribe, em
maior estagnação. Conforme a conclusão de estudos realizados pelo
Secretariado da Commonwealth e pelo Banco Mundial, os países do Caribe
continuam sujeitos a riscos tais como desastres naturais, preços flutuantes dos
produtos de exportação, volatilidade de renda, infra-estrutura insuficiente e
produtividade limitada. A pandemia do HIV/Aids, também, onera pesadamente
os recursos humanos e financeiros desses países. Somam-se a essas
desvantagens as novas ameaças à segurança, derivadas do tráfico de armas e
drogas, que fomenta o crime além das fronteiras nacionais. Os países pequenos,
como o nosso, não estão bem equipados para lidar com essa agressão sofisticada
e não podem evitar os perigos a que ela submete suas sociedades. Assim, a
grande prioridade é o fortalecimento da capacidade do conjunto do nosso
sistema legal e de implementação da lei, como forma de proteger a sociedade
desses males. A segurança, no sentido mais amplo, tornou-se assim uma
preocupação fundamental na agenda da política exterior.
A situação financeira do país tem, igualmente, um impacto indiscutível
na sua capacidade de sustentar políticas, tanto internas como a externa.
Beneficiária da iniciativa Highly Indebted Poor Countries (HIPC), só recentemente
a Guiana completou o processo que lhe permitiria recorrer a esses recursos.
Uma ODA ampliada continua a ser indispensável para o desenvolvimento
nacional, até que uma infra-estrutura adequada possa ser construída. Outro
desafio é a atração dos investimentos, que se tornaram escassos e competitivos.
Além disso, por depender dos produtos de base para o grosso da sua receita
de exportação, a Guiana torna-se muito vulnerável às vicissitudes da economia
global. A ameaça dessa marginalização é ampliada pelo progresso meteórico
que está sendo alcançado no campo da ciência e tecnologia, que vem
A política externa da Guiana: respostas a um contexto mundial em transformação
116 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
116
aumentando rapidamente o hiato entre os países em desenvolvimento e os
desenvolvidos, entre o Norte industrializado e o Sul em grande parte agrário e
subdesenvolvido.
O cataclismo de 11 de setembro
Como se os desafios enfrentados pela política externa já não fossem
suficientes, esse desastre complicou ainda mais o cenário internacional. Nas
palavras usadas naquela ocasião pela revista The Economist, ele não só alterou,
indelevelmente, a silhueta de Manhattan como mudou para sempre a natureza
das relações entre os Estados. Todos os países, e especialmente os pequenos,
foram lembrados da sua vulnerabilidade a agressões imprevistas cometidas
contra a sua segurança e da necessidade de reagir condignamente a essas
ameaças. Na condição de membros da família das Nações Unidas, os Estados
do Caribe condenaram o terrorismo internacional, e procuraram organizar a
defesa coletiva contra qualquer ataque à sua integridade. No entanto, essas
medidas de proteção representaram um custo financeiro significativo para as
suas economias, que já tinham sido prejudicadas pelos efeitos do desastre de
11 de setembro.
Uma estratégia para a sobrevivência
Diante dessas dificuldades, um Estado pequeno como a Guiana se vê
forçado a reconhecer a sua situação e a conceber uma estratégia de
sobrevivência. Juntamente com outros países do Mercado Comum e
Comunidade do Caribe (Caricom), a Guiana procurou repensar e redefinir as
suas políticas internas e externa, para conseguir uma melhor integração à
economia de mercado global. Nos últimos três anos, o Conselho de Relações
Externas e Comunitárias do Caricom tem procurado formular uma nova visão
e uma nova estratégia para a orientação geral das relações externas da
Comunidade. Em suma, a estratégia contempla uma cooperação regional
ampliada com vistas a satisfazer interesses e preocupações comuns. Mediante
um reforço do trabalho de consulta e coordenação, o Caricom espera minimizar
o impacto deletério das forças externas e maximizar a sua capacidade
diplomática.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Samuel Rudolph Insannally
117
Fundamental para essa política externa é a criação de uma Economia e
Mercado Único do Caribe como instrumento para fortalecer a competitividade
da região na economia mundial. Com o Tratado de Chaguaramas revisto, e
seus protocolos, espera-se que haja um processo mais harmônico de
liberalização econômica, uma convergência maior no sentido de um quadro
regulador moderno e de crescente racionalização e fortalecimento das
instituições regionais, em apoio ao esforço de integração. Essa política deve
levar ao aumento da competição, à redefinição da complementaridade de
produção e exportação e, finalmente, a um mercado unificado.
Países independentes e orgulhosos, os membros do Caricom prefeririam
recorrer ao comércio a receber assistência para o desenvolvimento. No entanto,
o que acontece é que, devido à sua libertação do colonialismo, relativamente
recente, e às conseqüentes limitações que precisam enfrentar, infelizmente ainda
são muito fracos para poderem enfrentar as principais forças da globalização.
Para os países pequenos e vulneráveis do Caribe, inclusive, a Guiana, só o acesso
ao mercado não os ajudará a melhorar a sua capacidade de exportação. Sem
assistência para desenvolver a infra-estrutura necessária e outras facilidades, eles
não podem beneficiar-se da globalização e da liberalização comercial. Para
aproveitar as oportunidades oferecidas por uma área de livre comércio das
Américas, por exemplo, os países do Caricom precisam receber um tratamento
especial e diferenciado às suas exportações, bem como o acesso a um Fundo
Regional de Desenvolvimento, semelhante ao criado pela União Européia para
eliminar as disparidades regionais, e elevar todos os países-membros a um nível
razoável de atuação. Portanto, esses são objetivos fundamentais na negociação
dos novos arranjos de parceira com a União Européia e com a Organização
Mundial de Comércio, depois da rodada de negociações de Doha.
Outro importante objetivo político da Guiana e do Caricom é preservar
o ambiente para o desenvolvimento sustentável. O ecossistema da região é
tão frágil que, se não for insulado, tanto quanto possível, de desastres naturais
ou causados pelo homem, será facilmente comprometido. O Caricom
continua muito preocupado com a transferência de resíduos nucleares
perigosos, entre navios no Caribe, realizada por alguns países desenvolvidos.
Essas preocupações levaram a região a promover nas Nações Unidas, com
outros países vizinhos, o conceito do Mar do Caribe como uma Área Especial
no contexto do desenvolvimento sustentável. Por outro lado, situada na Bacia
Amazônica, a Guiana tem interesse especial na exploração sustentável de
A política externa da Guiana: respostas a um contexto mundial em transformação
118 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
118
nossos ricos recursos florestais. Nesse contexto, apóia plenamente a iniciativa
latino-americana e caribenha, endossada pela Cúpula Mundial sobre
Desenvolvimento Sustentável reunida em Joanesburgo, na África do Sul,
entre 26 de agosto e 4 de setembro de 2002.
No discurso de abertura pronunciado na Conferência dos Chefes de
Governo do Caricom, realizada em Georgetown em julho de 2002, o Presidente
Jagdeo, conduzindo os trabalhos, anunciou vários objetivos políticos que a Guiana
considera que devem levar ao progresso regional. Entre eles estão: a formulação
de uma Política Agrícola Comum, a criação de um regime multilateral de pesca
cooperativa, uma abordagem comum dos problemas do crime e da insegurança
na região, maior democratização dos países-membros, maior participação da
sociedade civil na formação de políticas, uma revisão e, quando apropriado, uma
reforma das instituições regionais existentes e, por fim, a promoção de uma área
caribenha mais ampla de cooperação. Na busca deste último objetivo, e levando
em conta que o Secretariado do Caricom está situado em Georgetown, a Guiana
promulgou o conceito de “Gateway”, um portal que lhe permitirá atuar como
ponte política, econômica e social entre o Caribe e os países da América do Sul.
Guiana: um portal do Caribe para a América do Sul
A Guiana acredita ter chegado o momento de olhar para além da sua
vizinhança imediata e do seu relacionamento histórico com as metrópoles do
Norte, voltando-se para o vasto espaço político e econômico que se encontra ao
Sul e também ao Leste e ao Oeste. O rápido desenvolvimento das suas relações
com o Brasil, seu gigantesco vizinho, e particularmente com os Estados
setentrionais, mostrou a promessa de uma parceira compensadora que, com o
planejamento apropriado, pode oferecer à Guiana maiores vantagens econômicas
e maior estabilidade política. Com a abertura do interior e a criação de novas
rotas de transporte, as oportunidades comerciais e econômicas vão florescer.
As relações da Guiana com o Brasil já demonstraram a potencialidade
desse conceito. Desde a participação do Presidente Jagdeo na Cúpula Sul-
Americana, realizada há dois anos em Brasília, passos concretos foram dados
para desenvolver relações mais estreitas entre os nossos países. Além de um
Acordo Comercial de Âmbito Parcial negociado no ano passado, há vários
outros projetos em andamento, particularmente na área de infra-estrutura,
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Samuel Rudolph Insannally
119
como ligações aéreas e rodoviárias que aumentarão nossa proximidade,
multiplicando as oportunidades para o comércio e a cooperação econômica.
Como parte do processo de integração hemisférica, o Comitê para a Integração
da Infra-Estrutura Regional na América do Sul (Iirsa) aprovou uma conexão
rodoviária entre a Guiana e o Brasil, a ser financiado pelo Banco Interamericano
de Desenvolvimento e por outras fontes.
Além disso, contribuindo para esse processo de integração, vários outros
empreendimentos poderiam ser iniciados, inclusive a instalação de um parque
industrial em Lethem, perto da fronteira com o Brasil, que poderia então ser
transformado em uma Zona Livre, permitindo o comércio com a Guiana e o
Caricom, e ensejando ao Brasil a oportunidade de “abrir uma loja” naquela
cidade fronteiriça. Poderia ser criado um regime de incentivos para estimular
empreendimentos conjuntos, reunindo firmas da Guiana, dos países do
Caricom e do Brasil. Essas empresas não deixarão de perceber as vantagens
de se estabelecer em Lethem, para ganhar um melhor acesso aos seus
respectivos mercados. Dessa forma, poderia ser instituída uma conexão mais
direta entre os países do Caricom, do Pacto Andino e do Mercosul, abrindo
novas perspectivas para o comércio inter-regional.
Não se pode ignorar a importância da infra-estrutura física para criar um
relacionamento mais próximo e mais dinâmico entre o Caricom e os países
latino-americanos. Na Cúpula do Sul realizada em Havana, em abril de 2000, a
Guiana e o Brasil assinaram a Declaração e o Programa de Ação voltados para
promover laços entre suas economias. Mais recentemente, nas duas Cúpulas
Sul-Americanas, realizadas respectivamente em Brasília e em Guayaquil, no
Equador, assim como na Cúpula do Grupo do Rio, reunida no Peru, em maio,
a Guiana reiterou o seu compromisso com os elevados ideais de cooperação e
integração hemisférica. É imperativo procurarmos agora traduzir em realidade
algumas das propostas concretas contidas naqueles documentos.
Com a iminência da instalação da Área de Livre Comércio das Américas,
o “Portal” para a América do Sul passa a ser não apenas um objetivo político,
mas também uma necessidade econômica. Só se poderá garantir uma
participação significativa da Guiana nesse novo esquema comercial se ela se
articular com outros grupos hemisféricos. Sem essa articulação, o poder de
barganha da Guiana pode não ser suficiente para garantir a preservação dos
seus interesses; em conseqüência, o país pode ser marginalizado das vantagens
A política externa da Guiana: respostas a um contexto mundial em transformação
120 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
120
de uma associação mais ampla. Portanto, para nós, é desejável o fortalecimento
da nossa conexão não só com o Caricom, mas também com a Associação dos
Estados do Caribe, o Pacto Andino e o Mercosul. Não é difícil perceber a
rationale dessa política: diante da globalização, os Estados pequenos, como o
nosso, serão varridos pelas ondas crescentes de competição, a não ser que o
regionalismo seja reforçado.
No entanto, não basta focalizar só a infra-estrutura física, pois sem um
contato cultural, o relacionamento Caricom-América Latina não vai prosperar
plenamente. Portanto, devemos tentar desenvolver um sentido de afinidade entre
nossos povos que, embora geograficamente próximos uns dos outros, foram
mantidos apartados pelas forças da história, da língua e da cultura. A existência
separada que tem sido o destino histórico dos países de língua inglesa do Caribe
pode agora ser modificada, mediante um esforço consciente para derrubar aquelas
barreiras. A expansão dos institutos culturais e lingüísticos por toda a região,
seguramente, melhorará a comunicação entre os nossos países e promoverá a
sua integração econômica e social. Uma recomendação concreta que poderia
facilitar esse processo de integração seria a criação de vínculos entre as nossas
universidades e outras instituições educacionais dentro da região.
Relações com o resto do mundo
Além da América Latina e do Caribe, a Guiana espera ampliar suas
relações de cooperação com os Estados Unidos e o Canadá, no Hemisfério
Ocidental; com o Reino Unido e outros membros da União Européia; e com
a Federação Russa, a China, a Índia, o Japão e outros Estados da Ásia e da
África, continente com o qual a região do Caribe tem forte afinidade. Por
motivos históricos e geográficos, os laços com os Estados Unidos, o Canadá
e o Reino Unido têm sido especialmente fortes e continuam a ser importantes,
em termos tanto políticos quanto econômicos. A migração de guianenses para
esses destinos tem sido um fator importante no desenvolvimento da forte
associação entre os respectivos governos e povos. Enquanto essas relações
tradicionais se expandem de forma natural, o Governo está empenhado em
diversificar a sua cooperação para receber todos os países que queiram
estabelecer vínculos diplomáticos, na base da amizade e do respeito mútuo.
A Guiana está empenhada também em valorizar seus laços com essa
diáspora. Na verdade, com tantos cidadãos residindo no exterior, muitas vezes
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Samuel Rudolph Insannally
121
em centros com importantes funções decisórias, ela tem muito a ganhar com
o apoio que essas pessoas possam dar a seus objetivos de política exterior.
Como um país pequeno, sem os recursos humanos e financeiros adequados
para sustentar um lobby nos países mais importantes, devemos invocar o espírito
de patriotismo desses emigrantes para a defesa das nossas causas perante a
direção política da sua terra adotiva. Foram desenvolvidos assim uma estratégia
e um programa destinados a cultivar esse recurso até aqui subutilizado.
O ideal do multilateralismo
Esses compromissos bilaterais são fortalecidos por uma obrigação
abrangente com o multilateralismo. Na condição de um pequeno Estado dentro
da comunidade internacional, a Guiana está convencida do valor e da virtude
do multilateralismo como princípio orientador das relações internacionais. Na
verdade, em grande medida o país deve a sua liberdade e independência à
ampla campanha de descolonização promovida pelas Nações Unidas logo
depois da sua criação. Não surpreende, pois, que uma das primeiras decisões
tomadas pelo governo da Guiana, após alcançar a sua independência, foi a de
participar da ONU, instalando uma missão em Nova York. Desde então, o
país tem trabalhado com a comunidade internacional para expandir as agendas
em favor da paz e do desenvolvimento.
Na opinião da Guiana, a Organização das Nações Unidas não só serve
como escudo para proteger a soberania conquistada, como também oferece
diferentes possibilidades de contribuir para o seu desenvolvimento social e
econômico. As Nações Unidas proporcionam também um fórum no qual o
país pode relacionar-se com outros Estados, sobre uma base de igualdade, e a
partir do qual pode projetar sua imagem e influência de modo fácil e efetivo.
De fato, a Guiana já serviu nos conselhos mais importantes das Nações Unidas,
na Presidência da Assembléia Geral e como membro do Conselho de
Segurança, na Corte Internacional de Justiça, no Conselho Econômico e Social,
no Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) e em outros
órgãos ancilares. Nessas várias funções, o país tem desempenhado um papel
de liderança desproporcional à limitação do seu tamanho e dos seus recursos
e, a seu modo, ajudou a promover o multilateralismo.
Ao lado da sua presença diplomática em determinadas posições
estratégicas, a representação externa da Guiana opera, em grande parte, dentro
A política externa da Guiana: respostas a um contexto mundial em transformação
122 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
122
do contexto das Nações Unidas e mediante a participação em órgãos e grupos
regionais e sub-regionais, como o Caricom, a Commonwealth, a Associação de
Pequenos Estados Insulares, a Organização da Conferência Islâmica, o
Movimento dos Não-Alinhados e o Grupo dos 77. O argumento de que essas
duas últimas organizações se tornaram anacrônicas e irrelevantes não é válido,
pois elas continuam a oferecer aos seus membros uma moldura política útil e
contrabalançam outros interesses poderosos. Os seus críticos parecem temer
o potencial desses grupos, pois não são ouvidos apelos análogos pregando a
abolição de outras criações da Guerra Fria, como a Organização do Tratado
do Atlântico Norte (OTAN). Contudo, a Guiana pensa que tanto o Movimento
dos Não-Alinhados, como o Grupo dos 77, deveriam ser reformados e
orientados para se tornarem mais competentes e eficazes. No entanto, adaptação
é algo bem diferente de abandono.
A despeito das muitas falhas e fracassos das Nações Unidas, a Guiana
continua otimista com respeito ao futuro do multilateralismo. Não se pode
negar que desde a sua criação, em 1945, a organização mundial tem dado
muitas contribuições significativas à preservação e à promoção da paz e da
cooperação internacional. De forma mais significativa, a ONU conseguiu
impedir uma Terceira Guerra Mundial, e catalisou o progresso social e
econômico nos países em desenvolvimento. A Guiana está convencida de que,
no mundo atual, globalizado e interdependente, precisamos evitar a anarquia
e garantir a estabilidade internacional, e para isso não há alternativa para as
Nações Unidas. Assim, continuará a participar do esforço de reforma e
reestruturação da ONU, símbolo do multilateralismo, para torná-la mais apta
a lidar com as circunstâncias modificadas da atualidade.
Na área da paz e da segurança, o objetivo comum deve ser o
desenvolvimento do sistema coletivo, visto pela Carta das Nações Unidas para
tratar com a ameaça ou o emprego da força nas relações internacionais.
Projetado, imediatamente, após a conclusão da Segunda Guerra Mundial, o
Conselho de Segurança demonstrou ser incapaz de desempenhar
adequadamente as responsabilidades que lhe são atribuídas pela Carta para a
manutenção da paz e da segurança internacionais. Para ser efetivo, precisa
tornar-se mais aberto, dinâmico e representativo. Compreende-se que isso
não tem sido fácil, pois o poder e os interesses consolidados não cedem terreno
com facilidade. No entanto, após cerca de uma década de discussão, várias
opções úteis já estão disponíveis, inclusive com o aumento do número de
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Samuel Rudolph Insannally
123
membros nas categorias permanente e não-permanente, a restrição ao recurso
ao veto e a revisão periódica da composição e das funções do Conselho, para
garantir que ele esteja adequado às necessidades predominantes. A Guiana
está preparada para apoiar a reforma ao longo dessas linhas.
O impulso em favor da reforma deve penetrar, também, as instituições
do sistema internacional empenhadas no desenvolvimento econômico e social.
Têm-se verificado alguns aperfeiçoamentos no funcionamento das agências
internacionais como o Pnud e a Unicef, na série de Conferências de Cúpula
que têm sido realizadas ao longo da última década sobre temas críticos, incluindo
a situação das crianças e das mulheres, desenvolvimento social, desenvolvimento
sustentável, meio ambiente, metas para o milênio e financiamento do
desenvolvimento. Existe agora um amplo consenso internacional sobre o que
é necessário fazer para estender ao máximo o progresso econômico e social
global. No entanto, o processo decisório sobre o desenvolvimento é mantido,
em grande medida, fora das Nações Unidas, mas antes, dentro da competência
das instituições financeiras multilaterais, deixando, infelizmente, pouca
participação aos países em desenvolvimento.
De uma forma imediata, os princípios e objetivos do multilateralismo
podem ser mais bem atendidos mediante a revitalização da Assembléia Geral,
o mais representativo dos órgãos da ONU. Hoje, a Assembléia Geral é uma
pálida versão do que pretendiam seus membros fundadores. Com o virtual
desaparecimento da rivalidade entre as grandes potências, rivalidade que a
manietou durante a Guerra Fria, a Assembléia está pronta para preencher
mais plenamente o papel que lhe foi atribuído pela Carta. Mesmo nas atuais
condições, sem esperar por uma reforma importante, a Assembléia pode ter
um papel mais importante a respeito dos temas relativos à paz, segurança e
desenvolvimento. Basta lembrar a forma como os pequenos Estados do
Caricom puderam usá-la para promover debates sobre temas como a África
do Sul e o Haiti, influindo por fim nas deliberações do Conselho de Segurança.
Uma Assembléia Geral mais pró-ativa ajudaria decerto a democratizar e, de
modo geral, a aprimorar as relações internacionais.
Em última análise, o sucesso do multilateralismo depende do respeito
absoluto ao princípio da igualdade soberana dos Estados: princípio entesourado
primeiro na Carta da Liga das Nações e, mais tarde, na das Nações Unidas. Vale
lembrar que a Liga fracassou pela incapacidade de proteger da agressão um dos
A política externa da Guiana: respostas a um contexto mundial em transformação
124 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
124
seus membros, a Etiópia. O grito de ira lançado na ocasião pelo governante
etíope Haile Selassie ainda pode ser ouvido através do tempo: “Fora do Reino
do Senhor, nenhuma Nação é maior do que qualquer outra! Deus e a História se
lembrarão do vosso julgamento”. Com efeito, aquela decisão não deve ser
esquecida, se quisermos ter a garantia de que as Nações Unidas, sucessora da
Liga, não sofrerá um destino semelhante. Portanto, a comunidade internacional
deve fazer todo o possível para salvaguardar os princípios e objetivos da Carta
da ONU, que são o fundamento do multilateralismo, e que, para pequenos
Estados como a Guiana, constituem a principal defesa contra as ameaças à sua
paz, à sua segurança e ao seu desenvolvimento.
É tal o nosso compromisso com o internacionalismo, que decidimos
promover o conceito da Nova Ordem Humana Global, uma idéia do falecido
presidente Cheddi Jagan, que percebeu a necessidade de um sistema
internacional mais justo e eqüitativo, que garantisse a paz e a segurança, assim
como o desenvolvimento econômico e social de que os povos do mundo
precisam, e que desejam tão desesperadamente. Proposta a princípio na Cúpula
Mundial sobre o Desenvolvimento Social, realizada em Copenhague, na
Dinamarca, a idéia tem sido adotada por um grande número de países, inclusive
pelo Caricom, estando registrada nas declarações de órgãos tais como o Grupo
do Rio, o Movimento dos Não-Alinhados e o Grupo dos 77. Outra Resolução
das Nações Unidas sobre esse conceito foi adotada recentemente, por
unanimidade, pela Assembléia Geral, contando com o co-patrocínio de cerca
de quarenta países. Com um esforço adicional e o apoio da comunidade
internacional, a idéia poderá transformar-se em realidade.
Embora pequena e ainda economicamente débil, a Guiana acredita que
pode dar uma contribuição importante ao bem-estar da comunidade internacional.
As idéias não constituem uma prerrogativa especial dos Estados grandes e
poderosos; qualquer país, independentemente do tamanho e da situação, pode
exercer o poder que têm as idéias para influenciar o pensamento global a respeito
do bem coletivo. Os recursos mais valiosos na política exterior de um pequeno
Estado como a Guiana são o prestígio e a influência que pode ter
internacionalmente. Convicta disso, a Guiana continuará a desempenhar um
papel ativo na vida internacional.
Tradução: Sérgio Bath.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Leila Rachid
125
ara poder interpretar mais cabalmente o alcance da atual política
exterior do Paraguai, é indispensável antes, fazer menção ao nosso passado
histórico, a fim de se compreender a necessidade de converter a política exterior
numa atividade criativa, ágil e dinâmica.
A história, “vero testis temporum”, verdadeira testemunha dos tempos,
constitui a fonte inesgotável a que todos devemos recorrer no nosso empenho
em nos projetar para o futuro de maneira renovada e proveitosa.
Quadro histórico
Depois de sua independência, e ao longo do século XIX e de parte do
século XX, o Paraguai teve de enfrentar diversos conflitos internacionais que
levaram o país a um grande atraso, tendo sua política externa devido focalizar
muito especialmente a defesa de sua soberania e de sua integridade territorial.
O longo regime autoritário que o país sofreu de 1954 até 1989 levou
novamente a Nação paraguaia a uma fase de isolamento. A democracia chegou ao
Paraguai, curiosamente, no mesmo ano em que se derrubava o Muro de Berlim.
A Política Externa
da República
do Paraguai
Leila Rachid
*
*
Ministra das Relações Exteriores da República do Paraguai
P
A Política Externa da República do Paraguai
126 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
126
Os paraguaios sentiram que chegara a hora de se incorporar novamente
ao processo da civilização universal, em consonância com o que ocorria na
região. Enquanto o mundo tentava livrar-se do ressaibo da Guerra Fria, sem
encontrar exatamente seus novos paradigmas, os cidadãos da nação recém
liberada dedicaram muito dos seus esforços à recriação de um Paraguai em
condições de enfrentar os novos desafios.
Nesses anos de transição, ao assentarem-se as bases da institucionalidade
democrática em sua Carta Magna de 1992, incorporou-se entre seus preceitos
a possibilidade de o país unir-se a processos de integração, sempre que os
mesmos “garantam a vigência dos direitos humanos, da paz, da justiça, da
cooperação e do desenvolvimento político, econômico, social e cultural”.
Por outro lado, os altos e baixos políticos internos ocorridos durante a
década de 90 obrigaram o país a se concentrar na defesa da institucionalidade
incipiente, dedicando grande parte dos seus esforços à busca do apoio dos
países amigos à consolidação do seu processo democrático.
Momento de renascimento
A realidade política sofreu uma notória virada a partir das últimas eleições,
em 27 de abril de 2003. Um candidato presidencial, o Doutor Nicanor Duarte
Frutos, obteve um triunfo eleitoral indiscutível e não questionado, que lhe
valeu não apenas o apoio imediato da comunidade internacional, mas também
a plena aceitação da classe política do país.
A legitimidade de origem do atual Presidente da República, seu decidido
compromisso de tornar transparente a gestão pública e sua capacidade de
construir consensos em nível político e institucional constituem hoje a principal
carta de apresentação do novo Paraguai perante o mundo.
O novo governo soube estruturar acordos com os setores mais
representativos e influentes da sociedade paraguaia para obter o apoio
necessário aos seus planos e ações de curto e longo prazo, com vistas a
estabilizar a economia e criar as condições para um maior crescimento
econômico. Assim, o Poder Executivo firmou um Acordo Político com os
principais líderes partidários e parlamentares para que apoiassem a agenda de
projetos de leis econômicas do país. Da mesma forma, firmou-se um acordo
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Leila Rachid
127
entre o Poder Executivo e as associações empresariais para levar adiante a Lei
de Reforma Tributária e para apoiar sua aprovação pelo Congresso Nacional.
Em apenas quatro meses, os êxitos do novo governo foram significativos
em termos de estabilização econômica e de combate à informalidade e à
corrupção, o que permitiu seu reconhecimento nacional e internacional no tocante
à seriedade de suas intenções e a sua capacidade de obter resultados. O trabalho
do novo governo permitiu reduzir o déficit fiscal de 3,5%, em fins de 2002, para
1%, em fins de 2003, e a taxa de inflação de 15% para 9%. Além disso, as
reservas internacionais aumentaram para US$850 milhões, depois de se situarem
em menos de US$600 milhões em fins de 2002, conseguindo-se reduzir
igualmente a pressão da dívida pública. Tudo isso foi acompanhado de um
crescimento de 2% do PIB, devido, principalmente, a um bom ano agrícola e ao
aumento da produtividade da soja, principal item de exportação do país.
Depois de 45 anos, o Paraguai acertou com o Fundo Monetário
Internacional (FMI) um empréstimo stand by de caráter acautelatório (US$70
milhões), que imediatamente possibilitou dois créditos de emergência do Banco
Mundial e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), de US$30
milhões cada um, destinados a fazer frente aos vencimentos da dívida pública
e aos impactos sociais das medidas de ajuste a serem adotadas para recuperar
a estabilidade econômica do país.
As perspectivas para o ano 2004 são promissoras, com uma projeção de
crescimento do PIB de aproximadamente 3%, com superávit fiscal, taxa
inflacionária de um dígito, manutenção do nível de reservas internacionais e
redução da pressão da dívida pública.
Cabe ressaltar também a reforma judicial iniciada pelo novo governo,
que contribui para o fortalecimento da democracia imperante no país,
reafirmando a presença do Paraguai dentro da comunidade internacional.
As mudanças ocorridas recentemente na Corte Suprema de Justiça, órgão
máximo do Poder Judiciário, realizadas com igualdade de critérios entre os
Poderes Executivo e Legislativo, asseguraram que o resultado alcançado através
do procedimento estabelecido na Carta Magna da República influa
positivamente na nossa política exterior.
Com efeito, é de todos sabido que a segurança jurídica é um elemento
indispensável para a credibilidade de um país que deseja refletir seriedade e o
A Política Externa da República do Paraguai
128 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
128
compromisso do Estado com suas obrigações internacionais, criando assim, a
possibilidade de investimentos estrangeiros e, ao mesmo tempo, fortalecendo
o posicionamento do Paraguai nas negociações internacionais.
Por outro lado, merece consideração especial a ênfase dada pelo primeiro
mandatário às ações tendentes a formalizar a economia nacional, a legalizar o
comércio e a enfrentar a corrupção em todas as áreas em que ela se apresente.
“O crime organizado será castigado e desmantelado. A máfia já não
encontrará lugar no Paraguai. Combateremos sistematicamente o contrabando,
a pirataria e o narcotráfico, sem importar quem os pratica e se enriquece com
essas ilicitudes que empobrecem os cofres públicos”, afirmou o Presidente
em seu discurso de posse, em 15 de agosto de 2003.
“Nosso governo, disse, quer ser um marco, um momento de renascimento
da nossa República, um momento que retome o mais sagrado e genuíno do
nosso povo: sua fé em Deus e sua perene confiança na vontade livre de
determinar seu próprio destino”.
A chegada do doutor Duarte Frutos à Presidência marcou o ponto final
da longa etapa de transição democrática e alcançou, assim, a consolidação da
institucionalidade.
Ante as diversas transformações internas promovidas pela atual
administração, também a política externa enfrenta hoje, na República do
Paraguai, mudanças e adaptações, com vistas a enfrentar com maior firmeza
os numerosos desafios do futuro.
Com efeito, num mundo globalizado e integrado por sociedades pós-
modernas, buscamos promover uma política exterior pró-ativa, que propugne
pela criação de oportunidades resultantes em vantagens e benefícios para o
país – uma política exterior também articuladora dos acontecimentos
internacionais e da pronta resposta nacional.
Enfim, uma política exterior que imponha à diplomacia paraguaia um
constante desafio.
A nova política exterior
Entendemos que a internacionalização do Paraguai não é apenas
necessária, mas inevitável.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Leila Rachid
129
A complexidade do sistema internacional, a conseqüente ampliação da
sua agenda, o surgimento de um conjunto de atores não-tradicionais nas relações
internacionais e a crescente interdependência entre os distintos interesses e
agentes que dele participam, afetaram substancialmente nossa comunidade
internacional. Para a República do Paraguai, tais mudanças não passaram
despercebidas e o país não permaneceu alheio a essas transformações. O desafio
com que se defronta a atual administração é buscar – com transparência,
eficiência e responsabilidade social – um novo posicionamento do Paraguai
neste contexto internacional.
Entendemos que os objetivos da política exterior não devem resumir-se
em um só, mas devem constituir um leque de possibilidades, que focalizem
essencialmente a construção do novo modelo de desenvolvimento econômico
e social sustentável.
Além disso, essa política exterior deve ser objeto de debate e de consenso
entre os diferentes setores nacionais, a fim de deixar claro o compromisso de
todos com a sua continuidade através do tempo, fazendo dela uma política de
Estado e não apenas uma série de decisões conjunturais de uma administração
governamental.
Dentro deste quadro, adotamos uma política exterior tendente a
diversificar nossas relações e a fortalecer nossos vínculos com grupos de países
com os quais o relacionamento pode trazer benefícios concretos mútuos,
embora geograficamente distantes do Paraguai.
As prioridades
Nesse contexto, seria importante mencionar alguns dos eixos centrais da
nossa política exterior, elaborados com base numa análise prospectiva, mas ligados
todos à presente realidade nacional e internacional, tanto imediata como mediata:
1) a defesa da soberania nacional em seus diversos aspectos: territorial,
de segurança, ambiental, cultural, de recursos naturais, fronteiriço,
migratório, entre outros;
2) a promoção da democracia e dos direitos humanos;
3) o aprofundamento dos processos de integração como instrumento
destinado a superar a pobreza e alcançar o desenvolvimento sustentável;
A Política Externa da República do Paraguai
130 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
130
4) a concessão, em todos os foros internacionais correspondentes, de
tratamento especial e diferenciado ao Paraguai, em virtude da sua
condição de país sem litoral;
5) a ampliação do nosso horizonte internacional aos países do Oriente
Médio, da Ásia e do Pacífico;
6) o papel estratégico do Paraguai, como ponto de encontro das rotas
que unem o Atlântico ao Pacífico;
7) a consolidação do Paraguai como primeiro país exportador de energia
hidroelétrica do mundo;
8) a luta frontal contra a corrupção, o terrorismo, o narcotráfico e outros
crimes transnacionais;
9) a identificação do Paraguai com o “Mundo Guarani”;
10) a reafirmação dos princípios do multilateralismo, em âmbito universal
e regional, como instrumento para a cooperação, a paz e a segurança
internacionais.
Nas páginas seguintes, analisarei alguns aspectos particularmente
marcantes no campo de ação da política exterior do Paraguai.
A integração e a política exterior paraguaia – o Mercosul
Os processos de integração ocupam o centro de nossa atenção,
convencidos que estamos de que nossa região vive uma época em que, para
superar a pobreza e alcançar o desenvolvimento sustentável, é necessária a
união de políticas planejadas e não mais de políticas individuais, como tentamos
em vão durante o século passado.
Por isso, a incorporação do Paraguai ao Mercosul representa, na
perspectiva histórica, uma mudança coperniana na história da República. A
partir daí, o Paraguai se projeta para o mundo com os seus vizinhos, numa
aliança que não tem características militares, significando, antes, a atuação
conjunta de quatro nações que compartilham o ideal democrático posto a
serviço de seus habitantes, sem distinção de nacionalidades, sem barreiras
migratórias e aberto ao mundo.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Leila Rachid
131
O Princípio das Assimetrias
Todo processo de integração repousa sobre determinados princípios
fundamentais, recíprocos e coadjuvantes: a abertura do mercado como elemento
central, mas ao mesmo tempo, o reconhecimento pleno de que ela não é
condição suficiente para o progresso, devido às assimetrias entre as partes.
Tais assimetrias devem ser adequadamente compensadas para que a abertura
não as aprofunde e as potencialidades individuais tenham no mercado espaço para
o êxito. Da mesma forma, a abertura recíproca não deve implicar um novo
protecionismo, mas antes, a construção de um grande espaço continental latino-
americano, competitivo no âmbito mundial. Fundamentam-se essencialmente nessa
concepção o reconhecimento contratual da disparidade no desenvolvimento
econômico e, entre outras, as desvantagens econômicas da mediterraneidade.
Durante o ano de 2003, a República do Paraguai defendeu de maneira
sistemática a reivindicação do princípio das assimetrias como um fio condutor
das suas negociações, tanto no quadro do Mercosul como nas relações deste
bloco com terceiros.
Mais do que nunca, o Paraguai, em razão de uma longa crise
econômica nacional acentuada, ademais, por outras originadas na região,
viu-se na necessidade imperiosa de alcançar níveis mais altos de
competitividade para conseguir uma efetiva inserção no Mercosul. Suas
limitações estruturais são de tal forma que não bastaram seus próprios
recursos para a consecução de tal objetivo. Os indicadores econômicos e
sociais de meu país deixam claro que o Paraguai é a economia de menor
desenvolvimento dentro do bloco, sendo evidente que a tarefa de reduzir
esse hiato não era apenas um desafio nacional.
Deste ponto de vista, é importante destacar o estabelecido na
Declaração de Presidentes na XXIV Reunião de Cúpula do Mercosul,
realizada em Assunção, em junho de 2003, cujo parágrafo 10 expressa
claramente: “Avaliaram positivamente a proposta do Paraguai relacionada
ao tratamento das assimetrias entre os Estados-parte do Mercosul, como
uma contribuição importante para a consolidação do processo de integração
regional e reconheceram a necessidade de adotar políticas e medidas concretas
para abordar a questão, conforme o acordado na reunião de Ministros das
Relações Exteriores realizada em Montevidéu. Nesse sentido, instruíram os
A Política Externa da República do Paraguai
132 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
132
órgãos competentes a adotarem no próximo semestre as medidas necessárias
para sua definição e implementação”.
A XXV Reunião de Cúpula do Mercosul, ocorrida em 16 de dezembro,
em Montevidéu, revestiu-se de características particulares que justificam
qualificá-la de “histórica”, da mesma forma que a de Las Leñas (Argentina,
junho de 1992) e a de Ouro Preto (Brasil, dezembro de 1994).
Qualificamo-la de histórica, principalmente por dois motivos: o primeiro
está relacionado à plena entrada em vigor da solidariedade como pilar sobre o
qual se constrói um processo de integração que alcançou sua expressão máxima
entre os Estados-Membros; o segundo tem a ver com o relacionamento externo
do Mercosul, concretizando a união de toda a América do Sul, graças à
assinatura do acordo com a Comunidade Andina de Nações.
Com efeito, é importante recordar que, em 1991, o Tratado de Assunção
fundou-se sobre o princípio da “reciprocidade” de direitos e obrigações, apenas
matizado pelo conceito de “flexibilidade”, que permitiu conceder vantagens
limitadas aos sócios menores, sob a forma de prazos maiores para o
cumprimento de certas obrigações. De acordo com o novo enfoque, o Paraguai
e o Uruguai receberão um conjunto de benefícios destinados a compensar a
diferença de tamanho de seus mercados e de suas economias. Entre eles, tem
particular relevância o estabelecimento de “fundos estruturais”, que poderão
orientar-se no sentido de prover a infra-estrutura de que necessitam e de
promover a adequação de suas indústrias para que sejam mais competitivas.
Outrossim, no quadro do conjunto de medidas adotadas durante a reunião
de cúpula acima mencionada, decidiu-se que os outros parceiros do Mercosul
defenderão, em todas as “negociações externas” que se realizem, a concessão
de vantagens adicionais ao Paraguai. Isto poderá traduzir-se em desgravações
imediatas, ou em prazos menores, para os produtos de interesse do Paraguai,
na concessão de quotas adicionais, em prazos mais longos, para a abertura do
mercado paraguaio a produtos sensíveis, etc.
Por outro lado, o Paraguai receberá um “regime de origem especial”
destinado a contribuir ao seu esforço para criar as condições para a sua
industrialização. A partir de 2004 e até 2008, os bens que se produzirem no
Paraguai precisarão ter apenas 40% de conteúdo regional. Os 60% restantes
poderão ser provenientes de fora da zona. Dessa forma, as empresas e o capital
estrangeiros terão um incentivo para investir e produzir no Paraguai, já que a
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Leila Rachid
133
maior parte dos componentes poderão provir de regiões com nível mais alto
de tecnologia, enquanto a mão-de-obra, a energia e peças menores poderão
compor os 40% que se exige para sua entrada no Mercosul.
Naturalmente, o sentido desta concessão está na sua temporariedade, já
que, paulatinamente, as empresas deverão ir ajustando sua produção aos níveis
normais do Mercosul. Isso significa que, a partir de 2009, o conteúdo regional
obrigatório aumentará para 50% do produto e, finalmente, em 2014, ou seja,
dentro de dez anos, o Paraguai voltará a se identificar com seus parceiros no
que se refere a regras de origem.
O Paraguai poderá manter também um conjunto de exceções à “Tarifa
Externa Comum”. A importância deste regime especial, adotado no quadro
do tratamento das assimetrias, consiste em permitir ao Paraguai dispor de
certa margem para ajustar suas tarifas a suas necessidades.
Finalmente, o Paraguai conseguiu um “regime especial para a importação
de matérias-primas”, de modo que sua indústria e sua produção agropecuária
possam manter-se competitivas. Em virtude de um compromisso assumido
no Mercosul, este tipo de instrumento deveria ser disciplinado, ou seja,
submetido a regras comuns, em 2005. Em decorrência das decisões adotadas
no quadro do tratamento das assimetrias, esse regime especial foi prorrogado
para o Paraguai até 2010, o que nos permitirá organizar melhor a produção, de
modo a ficarmos em condições mais adequadas de integrar nosso regime àquele
prevalecente dentro do bloco.
Âmbito institucional
Da mesma forma, o campo institucional se fortaleceu e aprofundou
com a criação do Conselho de Representantes Permanentes (Coreper), sob a
presidência do Doutor Eduardo Duhalde, ex-Presidente da República
Argentina, que dará ao Mercosul a possibilidade de ampliar seu campo de
ação em matéria de política internacional e, de se constituir em instrumento
para a obtenção de financiamento para seus projetos. Ao mesmo tempo, com
a instalação da Secretaria Técnica, separa-se o campo de ação das delegações
nacionais daquele que é privativo dos funcionários do Mercosul. Haverá,
portanto, duas vertentes na administração do Mercosul – a política, a cargo do
Coreper, e a técnica, a cargo da Secretaria do Mercosul.
A Política Externa da República do Paraguai
134 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
134
Por outro lado, com a entrada em vigor, em 2 de janeiro de 2004, do
Protocolo de Olivos sobre a Solução de Controvérsias, o Mercosul iniciou
uma nova etapa em sua existência jurídico-institucional. Assim, ao disporem
nossos países de um sistema moderno e pragmático para dirimir os conflitos
suscitados pela aplicação do Tratado de Assunção e suas disposições
complementares, os agentes econômicos da região e de fora da zona terão
segurança jurídica bastante para desenvolver a produção e investir no Mercosul.
O Tribunal Permanente terá sua sede na cidade de Assunção, e estamos
muito satisfeitos com a confiança demonstrada pelos demais membros do
Mercosul, ao outorgar-nos tal responsabilidade e privilégio.
O Paraguai deseja que, com a instalação desse Tribunal Permanente, se
marque o início da condição de Assunção como capital jurídica do Mercosul.
Por isso, estamos também satisfeitos com a decisão de estabelecer, junto com
esse Tribunal, o “Centro Mercosul de Promoção do Estado de Direito”, com
o objetivo de abrir um espaço para a pesquisa e a formulação de iniciativas
destinadas ao desenvolvimento do Direito Comunitário do Mercosul. O Centro
poderá constituir-se também em um veículo para a promoção da democracia
e dos valores da cidadania, de tal maneira que toda a região seja não apenas
uma zona de paz, mas também um exemplo de convivência democrática.
Relações Externas
A agenda externa tem hoje uma significação transcendente para o Mercosul.
Mais do que uma forma de se relacionar com a comunidade internacional e de
participar de seus diversos foros de negociações econômicas, representa o futuro
dos seus Estados-Membros, já que da capacidade do Mercosul de abrir mercados
e posicionar-se no comércio mundial dependerá o êxito das políticas internas de
cada um de nossos países. Sem comércio externo, todos os nossos esforços para
criar o ambiente adequado para o investimento e o trabalho serão insuficientes.
Durante o ano de 2003, o Mercosul, como nunca antes, dedicou grande
parte dos seus esforços à promoção de acordos bilaterais (com o Peru) e
plurilaterais de caráter comercial, tal como aconteceu com a Comunidade
Andina de Nações. Também por isso, esta XXV Reunião de Cúpula do
Mercosul foi histórica, porquanto, com esse acordo, concretizávamos o sonho
de tantos próceres latino-americanos de ver unida toda a América do Sul.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Leila Rachid
135
O Paraguai tem a convicção de que este é o caminho correto porque,
embora não seja fácil medir com precisão os benefícios e os riscos de um
acordo comercial, a experiência tem demonstrado que o resultado é sempre
positivo, quando comparado à alternativa de permanecer no isolamento.
Assim, como parte de nossa política exterior, estamos também decididos
a continuar avançando na direção de acordos de associação com a União
Européia, a Área de Livre Comércio das Américas (Alca), com a Índia, com a
África do Sul, entre outros.
Nesse sentido, acreditamos dever prosseguir no Mercosul, não só
ampliando nossa agenda externa, mas também alcançando uma influência cada
vez maior nos foros de negociações internacionais. O Mercosul é hoje um
ponto de referência iniludível nos complexos cenários em que se processa o
futuro econômico das nações do mundo.
Estamos certos de que devemos continuar trabalhando juntos para manter
e ampliar essa gravitação, porque é a principal garantia de que nossos interesses
como bloco terão maior impacto na hora de moldar os instrumentos que consagrem
os direitos e deveres pelos quais se regem as relações econômicas mundiais.
Paraguai, país estratégico na união do Atlântico com o Pacífico
O Paraguai, como país sem litoral, mas consciente de sua localização
geográfica estratégica, procura ser o centro das rotas que unam o Atlântico
com o Pacífico. Para tanto, nossa carência de uma costa marítima transforma-
se no instrumento para a integração física de nosso continente.
Considerando sua situação geográfica e seu afastamento dos principais
mercados internacionais, com a conseqüente incidência negativa sobre a
competitividade dos produtos paraguaios, a integração física é, sem qualquer
dúvida, de vital importância para o Paraguai. O desenvolvimento econômico
do país depende essencialmente da modernização e do crescimento da infra-
estrutura de transporte, comunicações e energia.
Nesse sentido, estamos participando ativamente de todos os foros onde
se discutem as estratégias de interconexão regional, tais como o projeto
Iniciativa de Integração Regional Sul-Americana (Iirsa), os corredores
bioceânicos, a Hidrovia Paraguai-Paraná, entre outros.
A Política Externa da República do Paraguai
136 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
136
A diplomacia cultural: o mundo guarani
Estamos desenvolvendo uma estratégia para a apresentação do programa
“Mundo Guarani”, que procura contribuir para o desenvolvimento social e
econômico sustentável de uma região específica do Cone Sul, que inclui
Argentina, Brasil, Bolívia, Paraguai e Uruguai, através de um circuito de turismo
cultural, ecológico e de aventura, baseado na preservação da herança cultural e
do meio ambiente, assegurando a participação dos guaranis e de outras
comunidades locais estabelecidas na área.
Nos países da região guarani, numerosas áreas, que representam uma
porcentagem elevada dos respectivos territórios nacionais e onde a riqueza
em biodiversidade é de grande importância, foram declaradas protegidas. Este
fato, combinado à herança das Missões e cidades jesuítas, fazem dessa região
algo único no mundo.
Nos principais sítios arqueológicos e cidades originadas nas Missões
Jesuítas, estão sendo realizados, há mais de vinte anos, importantes trabalhos
de recuperação e valorização, com o apoio de diversas instituições
internacionais. A idéia de criar um circuito ou rota dentro do mundo guarani
pode chegar a representar uma intensa e exclusiva aventura cultural e ecológica,
já que alguns dos mais importantes desses sítios (reduções) foram declarados
pela Unesco patrimônio universal da humanidade.
Além disso, é importante assinalar que a região conta com outras atrações
complementares, tais como centros artesanais, museus e fazendas, além de
parques e atrações naturais, como as cataratas de Iguaçu, os alagados do Chaco
e do Pantanal ou a Mata e Costa Atlântica.
Com tudo isso, buscamos pôr o Paraguai novamente de pé perante o
mundo, mas com uma concepção renovada, conscientes de que a realidade
atual nos convoca ao trabalho conjunto com todos os membros da comunidade
internacional.
Finalmente, quero ressaltar que, com vontade política e a colaboração
dos diferentes setores de nossa sociedade, poderemos estabelecer políticas de
Estado para este novo século, com as quais fazer face aos permanentes desafios
que nosso país enfrenta, para alcançar o desenvolvimento e a prosperidade do
Paraguai, pelos quais tanto ansiamos.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Leila Rachid
137
Tradução: Luiz Augusto Souto Maior
Estamos convencidos de que, mediante a consecução dos objetivos que
traçamos em matéria de política exterior, contribuiremos não apenas para a
formação de um novo Paraguai, mas também para a construção de um mundo
mais fraterno e mais humano, de um mundo que seja um “lar seguro e livre”
para todos os homens e mulheres que o habitamos.
A Política Exterior do Peru: uma opção nacional no processo global
138 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
138
globalização ainda não criou um mercado integrado em escala mundial.
Este processo se está gestando através de expressões regionais de liberalização
do comércio e das regras multilaterais da OMC. Embora a internacionalização
dos fluxos de capital esteja mais avançada do que a liberalização do comércio,
a globalização encontra-se ainda em fase de transição. Os mercados não
substituíram os Estados e as sociedades nacionais, independentemente do fato
de que, no âmbito macroeconômico, a governança mundial tenha limitado a
margem de decisão autônoma das economias nacionais.
É certo, como assinala Otávio Ianni
1
, que o processo global está modificando
os cenários locais, regionais, nacionais e internacionais em que atuam os Estados.
Interpretar e assimilar essas mudanças às exigências das políticas exteriores é,
conseqüentemente, um requisito essencial da diplomacia de nossos dias. No entanto,
os interesses que se promovem, se concertam ou se contrapõem na política
internacional continuam sendo representativos do Estado nacional. Mesmo na
globalização, as políticas exteriores não se concebem apenas para viabilizar mercados,
mas principalmente para viabilizar Estados e sociedades nacionais.
A Política
Exterior do Peru:
uma opção nacional no
processo global
Manuel Rodríguez Cuadros
*
A
*
Ministro das Relações Exteriores do Peru
1
Cf. Otávio Ianni, “La Era del Globalismo”, Siglo XXI Editores, 1999.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Manuel Rodríguez Cuadros
139
A globalização vem reduzindo as barreiras naturais do tempo e do espaço
para a economia, mas também para a política, para as relações sociais e,
certamente, para as correlações militares e estratégicas. Do ponto de vista
econômico, os componentes essenciais da globalização são a liberalização dos
fluxos financeiros, o processo de liberalização do comércio a partir de esquemas
regionais, a mobilidade da produção de manufaturas e serviços e a expansão
mundial dos efeitos da inovação científico-tecnológica no campo das
comunicações e da informação. A força dinâmica mais importante é um sistema
global de produção baseado na ação de 65 mil empresas multinacionais com
850 mil companhias afiliadas no exterior.
No caso do comércio, produziu-se uma expansão importante nas últimas
duas décadas. O intercâmbio de bens certamente cresceu mais rapidamente
do que o produto bruto mundial. No entanto, nem todos os países do mundo
viram crescer suas exportações e suas dinâmicas de comércio com a
globalização. Segundo dados da Unctad e do Banco Mundial, na maioria dos
países em desenvolvimento, não se produziu uma expansão importante do
comércio. Pelo contrário, os países menos adiantados enfrentam uma queda
acentuada de sua participação no intercâmbio mundial.
Apenas doze economias em desenvolvimento tiveram um crescimento
claramente da perceptível sua participação no comércio mundial. China, que
concentra 13,2% da expansão do comércio de produtos manufaturados dos
países em desenvolvimento; Coréia, 11,7%, Taiwan, 11,2%; Singapura,
9,4%;México, 7,0%; Malásia, 5,0%; Tailândia, 4,0%, Hong Kong, 3,0%; Brasil,
2,8%; Índia, 2,8%; Indonésia, 2,4%;e Turquia, 1,8%
2
.
Os outros, mais de 167 países, compartem apenas 26% do comércio de
manufaturados do mundo em desenvolvimento. Se essas cifras fossem ajustadas
de modo a introduzir o grau de transformação das exportações, o caráter
desigual do processo de globalização se revelaria muito mais acentuado.
Desde 1980, o investimento estrangeiro aumentou de maneira sem
precedentes. Também desde aquela data, estabeleceram-se quadros normativos
que liberalizaram as condições de admissão dos investimentos externos. Em 2000,
mais de cem países tinham liberalizado amplamente seus regimes de tratamento
do capital estrangeiro.
2
Cf. Informe da Comissão Mundial sobre os efeitos da globalização, OIT, 2004.
A Política Exterior do Peru: uma opção nacional no processo global
140 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
140
Ao mesmo tempo, de forma semelhante ao ocorrido com o comércio,
produziu-se uma concentração do investimento estrangeiro em um
determinado número de países em desenvolvimento. A China captou, desde
1990, 23% do investimento estrangeiro em países em desenvolvimento; o Brasil,
8,3%; o México, 8,1%; a Argentina, 5,6%; Bermudas, 2,7%; Chile, 2,7%;
Tailândia, 2,2%; Coréia, 2,1%; e Venezuela, 1,7%
3
.
A globalização avançou no campo do financiamento mais do que em
qualquer outro, tanto no que se refere ao sistema multilateral quanto no tocante
aos empréstimos bancários. Os bônus internacionais em circulação dos países
em desenvolvimento passaram de 25 bilhões de dólares em 1982, para 500
bilhões em 2002.
A inovação tecnológica está concentrada no mundo industrializado.
Exceto países como China, Índia e alguns outros, a revolução tecnológica não
foi assimilada em termos produtivos pelos países em desenvolvimento, ainda
que eles tenham fácil acesso ao consumo das altas tecnologias, especialmente
no campo das comunicações, da informação via internet, do correio eletrônico,
da televisão digital, da televisão por cabo e dos serviços telefônicos, que
baixaram suas tarifas a níveis extraordinários em todo o mundo.
Além dos efeitos positivos da globalização, nos mercados e no consumo,
suas repercussões sobre as relações sociais, no interior dos Estados e sobre as
relações entre Estados, longe de diminuir as diferenças de renda, as estão
aumentando. Está se produzindo no mundo uma multiplicação das
desigualdades. Nas duas últimas décadas, conforme os estudos empíricos mais
recentes, só 16 países em desenvolvimento cresceram a uma média de 3%,
entre 1985 e 2000, 55 cresceram até 2% e 23 tiveram crescimento negativo.
Em todo o mundo, o emprego aumentou em termos globais e a pobreza
absoluta diminuiu. De 1.237 milhões de pobres e miseráveis, em 1990, passou-se
a 1.100 milhões em 2000. A diminuição da pobreza na China, explica o decréscimo
global do desemprego. De 361 milhões de pobres que havia na China em princípios
dos anos 90, a cifra baixou para 204 milhões. Mas tais números não se aplicam às
demais regiões em desenvolvimento, onde as taxas de desemprego e de pobreza
aumentaram. É o caso da América Latina e do Caribe.
3
Idem.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Manuel Rodríguez Cuadros
141
Os componentes econômicos e sociais do processo global devem ser
interpretados de forma congruente com as tendências políticas e estratégicas
do atual sistema internacional em transição. É um dado histórico que os Estados
Unidos, integrando as diversas variáveis do poder nacional, são a única
superpotência atual. Vivemos num mundo de base unilateral, desigual e
fragmentado. A unilateralidade como fato real não tem, necessariamente,
viabilidade como fato político. A governança mundial já não responde a sistemas
passivos de equilíbrio de poder ou de exercício unilateral do poder. Requer
necessariamente legitimidade. No plano interno e no plano internacional. E
só se pode obter isso através de sistemas de equilíbrio com componentes
descentralizados, isto é, multipolares, ainda que sejam relativos.
A política exterior no processo global: mudanças e
continuidades
O sistema internacional global está modificando o cenário em que atuam
os Estados, e as políticas exteriores devem estabelecer as correlações necessárias
entre as solicitações internas da sociedade ou do Estado nacional e as tendências
da globalização, tanto em seus componentes econômicos como nos sociais,
políticos e estratégicos.
Para os países em desenvolvimento de renda média, como é o caso do
Peru, trata-se de definir políticas exteriores que integrem adequadamente as
agendas interna e externa. Políticas que atuem no sistema internacional para
maximizar as tendências que incidam positivamente em suas variáveis de
desenvolvimento interno e que minimizem ou neutralizem aquelas que possam
ter um efeito negativo. Simultaneamente, as políticas exteriores, para incrementar
a capacidade de negociação dos países pequenos e médios, devem estar orientadas
no sentido de somar forças sobre bases regionais ou de coalizões de idéias afins,
para influir na governança mundial ou regional da globalização.
Não há uma receita geral. Cada inserção externa tem elementos de
especificidade derivados do peso da agenda interna e da “competitividade
externa” de cada Estado. Por isso, as coalizões são mais difíceis – mas ao
mesmo tempo, indispensáveis – na época da globalização.
A competitividade, conforme já assinalado, não corresponde apenas às
empresas, mas também aos Estados, o que obriga a uma definição menos
A Política Exterior do Peru: uma opção nacional no processo global
142 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
142
abstrata e mais precisa dos interesses nacionais, que inclua uma visão
descentralizada da elaboração e execução da política exterior.
O paradigma estritamente estatal de elaboração da política exterior está
em crise e é inadequado para representar os interesses nacionais e sociais no
mundo atual. O Estado já não pode atuar sozinho, em função das necessidades
governamentais, deve articular consensos nacionais e sociais com os atores
não estatais, especialmente com as empresas, os partidos e as forças políticas
e uma multiplicidade de instituições da sociedade civil. De outra forma, a
política exterior corre o risco de não ter apoio social interno e externo.
Bases conceituais da política exterior peruana
Dentro deste quadro teórico, a política exterior do Peru apóia-se numa
interpretação do desenvolvimento histórico da sociedade e do Estado no Peru,
que reconhece um processo de acumulação de experiências internas e externas,
que afirmaram a identidade e autonomia do Estado nacional e que encontram
na democracia, no estado de direito, no respeito e na proteção aos direitos
humanos, na coesão social com eqüidade e no regionalismo aberto, valores
amplamente compartilhados pelos diversos setores nacionais.
Estes consensos básicos permitem conceituar a política exterior do Peru
como uma política de Estado, na qual, independentemente das orientações
conjunturais que correspondam a cada governo, se possam consolidar
continuidades que lhe outorguem a estabilidade e a coerência necessárias para
que se converta em um fator de competitividade frente aos desafios da
globalização.
Afirmar a identidade nacional para uma melhor inserção
externa
O fundamento histórico da diplomacia peruana é a opção por reafirmar a
identidade e a autonomia nacionais no quadro da abertura econômica e da
participação ativa do país nos processos globais. Isto significa uma interpretação
do sistema internacional global em termos compatíveis com a realização nacional
da sociedade e do Estado peruanos. Implica revalorizar a identidade e a autonomia
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Manuel Rodríguez Cuadros
143
nacionais e os valores da diversidade cultural e étnica do Peru, como a base sobre
a qual se deve fortalecer a coesão social e nacional. Supõe assumir a vigência dos
valores nacionais no contexto da globalização e uma concepção não-estatista da
pátria, na qual esta não se identifica exclusivamente com o Estado e, menos ainda,
com o Estado centralista, mas com a sociedade peruana, que inclui a sociedade
política e a sociedade civil, e que reivindica uma gestão descentralizada dos interesses
nacionais
4
.
A partir desse posicionamento nacional no contexto da globalização, a
diplomacia peruana orienta-se por alguns princípios essenciais: 1) autonomia
e afirmação dos pontos de referência nacionais e sociais da política exterior,
cuja aplicação corresponde à dinâmica globalização-afirmação nacional-coesão
social; 2) a preservação da soberania nacional e da integridade do Estado; 3) a
solução pacífica das controvérsias; 4) a promoção dos valores da democracia e
do respeito aos direitos humanos; 5) o regionalismo aberto, a integração andino-
sul-americana e a identidade latino-americana; a abertura às correntes universais
do processo global, o respeito ao direito internacional e a promoção do
multilateralismo; 7) proteção e promoção dos nacionais e de seus interesses
no exterior; e 8) unidade, coerência e caráter descentralizado da política exterior.
O Peru é um país com atributos nacionais que influenciam sua
competitividade internacional. Sua posição geográfica, no centro da América
do Sul, frente ao Pacífico, com uma projeção longitudinal no território andino
e uma inserção transversal na bacia amazônica; sua alta diversidade, uma das
mais altas do mundo, que conta com a existência de 84 zonas de vida e 17 em
transição, das 104 que existem no mundo; e a pluralidade e antigüidade de sua
cultura. Ao mesmo tempo, a política exterior está intimamente vinculada à
realidade nacional, especialmente à situação de pobreza em que ainda se
encontra uma alta porcentagem da sua população, e incorpora a luta contra a
pobreza como um projeto nacional permanente.
O objetivo geral de longo prazo da diplomacia peruana é assegurar, no
contexto do sistema internacional global, o exercício autônomo da soberania
nacional, resguardar a segurança da nação e de seus habitantes, consolidar o
processo de afirmação democrática, contribuir para o desenvolvimento
4
Para uma visão da identidade nacional peruanano contexto regional e internacional, cf. Jorge Basadre, “Mentira
o factibilidad Del Peru” in Apertura Lima, 1978.
A Política Exterior do Peru: uma opção nacional no processo global
144 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
144
econômico e social com eqüidade, posicionar o Peru, na região e no mundo,
como um país democrático, estável, respeitoso do estado de direito, com uma
inserção estratégica na América do Sul, com relações bilaterais e multilaterais
orientadas no sentido de valorizar seus interesses econômicos e sociais, e
comprometido com a manutenção da paz e da segurança regionais e
internacionais, com base numa governança mundial multilateral, respeitosa
do direito internacional e mais justa.
O Peru concebe o conjunto de suas relações externas a partir de uma
inserção estratégica na América do Sul e, dentro desta, afirma sua participação
na Comunidade Andina, promove a construção de uma relação estratégica
com o Brasil e vínculos de associação preferencial com os países fronteiriços.
A partir dessa inserção sul-americana, defende uma revalorização do processo
de integração e unidade latino-americana. Entende os vínculos com seus
principais parceiros comerciais e econômicos, os Estados Unidos e a União
Européia, como relações de associação com autonomia. Os diversos níveis e
graus de ação concertada de que o Peru participa em âmbito multilateral
respondem a essa visão estratégica de sua política exterior e a uma disposição
permanente de articular tais ações com países afins, sobre a base de valores
compartilhados, como a preservação e a defesa da democracia, o respeito dos
direitos humanos, a luta contra a pobreza, o fortalecimento do multilateralismo
e a melhora das condições e das regras que regem as relações econômicas
internacionais, aí incluídos os sistemas de comércio e financiamento.
O quadro jurídico da ação externa do Estado peruano é dado pelas
disposições constitucionais pertinentes e pelos diversos tratados que obrigam
a nação, que são complementados pelos consensos multipartidários, reforçados
pelos da sociedade civil, que se estabeleceram no quadro do Acordo Nacional,
que constitui um compromisso assumido pelos partidos políticos, pelos
governos regionais, pelos representantes das entidades empresariais, pelas
direções de sindicatos trabalhistas e pelas instituições nacionais mais
representativas.
A agenda prioritária da política exterior peruana
Nesse contexto e de conformidade com as disposições da Constituição
do Estado, o Acordo Nacional e as necessidades externas do desenvolvimento
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Manuel Rodríguez Cuadros
145
e da segurança nacional, a política exterior peruana é posta em prática em
função de uma agenda prioritária, que vem sendo cumprida dentro de um
enfoque integrado.
1. Diplomacia para a preservação e afirmação da soberania
nacional.
A globalização não substituiu os Estados nacionais pelos mercados. E
embora hajam surgido novos atores nas relações internacionais, a política
externa continua sendo um conjunto de interações entre Estados nacionais,
independentemente da desigualdade de poder econômico e político existente.
A questão nacional não desaparece com a globalização; antes tende a
revalorizar-se, embora em cenários muito mais complexos e descentralizados.
Da mesma forma que as empresas, os Estados podem ser mais ou menos
competitivos, e um traço essencial dessa competitividade é o seu grau de coesão
e de consciência nacional.
Para a política exterior do Peru, como já se indicou, a afirmação do
ponto de referência nacional é um componente essencial do princípio de
preservação e do exercício da soberania nacional. Dentro de uma vocação de
abertura econômica e de inserção no processo global é indispensável fortalecer
ao mesmo tempo não apenas o caráter nacional da política exterior, mas também
o caráter nacional da sociedade peruana. A frase de José Carlos Mariátegui,
“peruanizemos o Peru”, é mais válida do que nunca na globalização. A
afirmação nacional da diplomacia peruana é um princípio que se deve expressar
em todos os atos da política exterior e deve resolver-se, ao mesmo tempo, de
maneira compatível com a abertura que significa o regionalismo aberto.
A defesa da soberania nacional e a integridade territorial do Estado, com
pleno respeito aos tratados de limites, constitui uma função permanente da política
exterior.
Dentro dessa prioridade de preservação da soberania nacional, têm lugar
preeminente na diplomacia peruana de hoje, as ações que visam a assegurar os
direitos de soberania e jurisdição sobre as atividades econômicas e os recursos
naturais até as 200 milhas. Isso implica, evidentemente, a opção de assegurar
aos direitos de soberania e de jurisdição do Estado até as 200 milhas a proteção
A Política Exterior do Peru: uma opção nacional no processo global
146 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
146
jurídica que, no contexto do direito internacional atual, só se pode conseguir
com a adesão à Convenção do Mar.
Ocupa também um lugar preeminente na diplomacia peruana relativa à
afirmação da soberania nacional a questão, ainda pendente, do limite marítimo
entre o Peru e o Chile. Em 1952, Peru, Chile e Equador firmaram a Declaração
de Santiago. Este instrumento vinculante estabeleceu os títulos jurídicos do Peru
e do Chile sobre seus espaços marítimos em relação a sua projeção até uma
distância mínima de 200 milhas. Como os direitos dos dois países a tais espaços
se superpõem, pela adjacência de suas costas, é indispensável proceder à operação
de delimitação, conforme as regras do direito internacional, para obter um limite
através de uma linha média que assegure eqüidade nos resultados.
A diplomacia peruana toma as medidas necessárias para concretizar este
objetivo nacional, que possibilitará, adicionalmente, dar um caráter mais estável
às importantíssimas relações com o Chile e às interações de associação com
aquele país, potencializando, dessa forma, a cooperação e a complementação.
O Peru não tem problemas de delimitação ou de demarcação de suas
fronteiras terrestres. Todas são juridicamente perfeitas e não existem assuntos
pendentes. Isso permite uma transformação dos enfoques tradicionais relativos
às linhas da fronteira terrestre. É claro que a fronteira continua sendo uma
linha que limita o exercício da soberania frente aos Estados vizinhos, mas, ao
mesmo tempo, o conceito de zona de fronteira, que põe ênfase na boa
vizinhança e na articulação de zonas de integração fronteiriça, permite pôr em
prática estratégias de desenvolvimento compartilhado.
A aplicação de uma política de desenvolvimento e cooperação fronteiriços,
que supere a visão tradicional da fronteira, como linha ou separação, e afirme
a visão mais moderna da fronteira como zona ou área de integração, de criação
de mercados inter-regionais e de desenvolvimento econômico e social, orienta
as relações bilaterais fronteiriças do Peru com Brasil, Colômbia, Equador,
Bolívia e Chile.
A integração fronteiriça é o meio idôneo de interconectar os mercados
transfronteiriços através de obras de infra-estrutura física, projetos de
desenvolvimento econômico e social e investimentos conjuntos. É também
uma opção para elevar o nível de emprego e de atenção social à população.
Mostrou ser também o veículo mais eficaz para criar uma cultura de paz,
amizade e fomento da confiança.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Manuel Rodríguez Cuadros
147
O Plano Binacional de Desenvolvimento da Região Fronteiriça Peru-
Equador é uma estratégia conjunta, traçada pelo Peru e pelo Equador, com a
finalidade de desenvolver atividades e executar projetos que permitam integrar
economicamente a região, acelerar seu desenvolvimento produtivo e social, e
superar a situação de atraso em relação ao resto dos territórios dos dois países.
A execução do Plano Binacional está prevista para um prazo de dez anos
(2000-2009). Segundo se estimou em 1998, sua concretização requer um
investimento de US$3 bilhões, que se espera conseguir através de contribuições
dos governos do Peru e do Equador, da cooperação internacional e do setor
privado. O investimento foi programado e vem sendo realizado no quadro de
quatro programas: Programa Binacional de Projetos de Infra-estrutura Social
e Produtiva, num valor estimado de US$ 1,498 bilhão; programas nacionais,
peruano e equatoriano, de construção e melhoramento da infra-estrutura
produtiva das regiões fronteiriças, com um custo de US$ 400 milhões; programas
nacionais de construção e melhoramento da infra-estrutura social e aspectos
ambientais nas regiões fronteiriças, da ordem de US$ 500 milhões; e programas de
promoção do investimento privado, calculado em US$ 602 milhões. Entre os
projetos que vêm sendo executados, dentro do referido Plano, estão os relativos
ao reordenamento e manejo da bacia binacional Catamayo-Chira; o manejo da
bacia binacional Puyango-Tumbes; o Eixo Viário nº. 1 Huaquillas-Águas Verdes e
o projeto de saúde e desenvolvimento rural, financiados pela Espanha, pelo Banco
Mundial, pela União Européia e pela Itália.
A estratégia de desenvolvimento e integração fronteiriça, na fronteira
norte e nordeste do Peru, complementa-se com os programas de integração e
cooperação fronteiriça com a Colômbia e com o Brasil. No caso da Colômbia,
destaca-se especialmente o projeto binacional de desenvolvimento da bacia
do rio Putumayo, que abrange uma extensão de 160.500 quilômetros quadrados
e se destina ao manejo compartilhado das atividades pesqueiras e dos bosques
Tarapacá e Flor de Agosto, com o objetivo de criar trabalho produtivo e
sustentável em benefício das populações fronteiriças. No caso do Brasil, a
partir de projetos de interligação rodoviária, fluvial e aérea, procura-se dinamizar
os mercados inter-regionais fronteiriços dos Estados do Amazonas, Acre,
Rondônia e Mato Grosso, com as regiões do norte e do sul do Peru, bem
como com as regiões de Loreto e Ucayali. O enfoque adotado põe ênfase na
participação dos governadores e presidentes regionais nos processos de
negociação e na execução dos acordos, bem como numa associação dinâmica
A Política Exterior do Peru: uma opção nacional no processo global
148 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
148
entre os empresários regionais e locais. A interconexão física e dos mercados
inter-regionais, através de três eixos bioceânicos, é um fator determinante na
criação das áreas de desenvolvimento compartilhado.
No sul, a estratégia de desenvolvimento da zona de fronteira visa à
complementação econômica do ocidente boliviano, do sul do Peru e do norte
do Chile. Os arranjos fronteiriços e o Acordo de Complementação Econômica
entre o Peru e o Chile, bem como a integração física e a negociação em curso
de um tratado para a criação de um mercado comum com a Bolívia, são os
instrumentos desse processo, que tem enormes potencialidades no tocante à
interconexão elétrica e à integração energética.
2. Diplomacia para uma inserção estratégica na América
do Sul
A política exterior peruana define como cenário imediato da ação do
Estado o subcontinente sul-americano. Por motivos de caráter geográfico,
histórico, cultural e de densidade dos interesses compartilhados, a América do
Sul é o espaço social, econômico, político e estratégico mais imediato da
proteção externa do Peru. Os espaços amazônico, andino e do mar adjacente
a suas costas articulam o território peruano com o espaço sul-americano e a
bacia do Pacífico. A América do Sul é o eixo da projeção regional e mundial
das relações externas do Peru. Nela se resolveu e se resolve grande parte da
sua história.
O Peru concebe sua inserção estratégica na sub-região a partir da sua
posição de membro da Comunidade Andina e de um entendimento estratégico
com o Brasil. Defende a criação e consolidação de um espaço sul-americano
concebido de maneira funcional, com as identidades e os processos de
coordenação de alcance latino-americano, como o Grupo do Rio e outras
expressões institucionais da política regional. A diplomacia peruana propicia a
criação e consolidação, de forma progressiva, de um espaço sul-americano
integrado, através das seguintes iniciativas:
a. O aperfeiçoamento da zona de livre comércio na Comunidade Andina
e a aplicação de uma nova estratégia, baseada na revalorização das variáveis do
desenvolvimento e em uma articulação funcional entre os compromissos
comerciais no âmbito andino e a conclusão de tratados de livre comércio com
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Manuel Rodríguez Cuadros
149
países e grupos de países de fora da área, com a finalidade de obter um mercado
maior.
b. A negociação e assinatura de um tratado de mercado comum entre o
Peru e a Bolívia.
c. A convergência da Comunidade Andina e do Mercosul, através dos
acordos de livre comércio recentemente firmados, com o objetivo de
progredir na direção de uma área de livre comércio sul-americana.
d. A participação ativa do Peru como país associado do Mercosul.
e. A integração física da América do Sul, especialmente em torno dos
mercados regionais transfronteiriços, através da construção dos eixos
definidos pela Iniciativa para a Infra-estrutura Sul-Americana (Iirsa).
f. Elevar os compromissos de executar as obras de infra-estrutura
assumidos no âmbito da Iirsa ao nível de um Tratado de Interconexão
Física Sul-Americana.
g. Transformação do processo de Cúpulas Sul-Americanas em uma
Comunidade Sul-Americana de Nações, com uma institucionalidade
flexível, multissetorial e multifuncional, dotada de coordenação e
diálogo político dinâmicos.
A América do Sul, apesar da transformação produtiva ocorrida em alguns
países e em alguns setores, continua dependente basicamente da exportação
de matérias primas , especialmente petróleo, cobre, ouro, ferro, soja café,
banana, estanho. As exportações de recursos naturais continuam representando
mais de 40% das vendas totais da região ao exterior. Por isso é indispensável
aprofundar a transformação produtiva da região e aumentar a competitividade
das economias nacionais e das empresas. Segundo os indicadores de
competitividade da Universidade de Harvard e do Foro Econômico Mundial,
de 75 países selecionados, a competitividade média das economias sul-
americanas ficaria em 59
o
lugar. Ao mesmo tempo, o índice de desigualdade
de renda na região é dos maiores do mundo em desenvolvimento. Os 5%
mais ricos detêm 26% da renda sul-americana.
Para superar tal situação, a América do Sul deve crescer de forma
persistente, a taxas de 6% ou 7%, e seu crescimento demográfico anual não
deve exceder 1,5%. Uma estratégia de desenvolvimento com coesão social é a
A Política Exterior do Peru: uma opção nacional no processo global
150 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
150
mais apta a alcançar tais objetivos. Para tanto, especialmente para dar
sustentabilidade ao crescimento econômico, com base não apenas em fatores
externos, mas também na própria dinâmica produtiva da região, é indispensável
superar alguns obstáculos e fazer progressos substantivos em matéria de
competitividade.
O acesso aos mercados dentro da América do Sul enfrenta claros
obstáculos físicos. A superfície da região cobre 17.819.100 quilômetros
quadrados, a distância entre suas principais cidades e os centros de consumo
mundial é relativamente grande e a integração dos mercados nacionais, regionais
e mundiais enfrenta enormes obstáculos naturais, como os Andes, a Amazônia
e vastas bacias fluviais e pântanos. A iniciativa para a integração da infra-
estrutura regional sul-americana procura estabelecer mecanismos para superar
tais obstáculos e promover o desenvolvimento econômico da região, mediante
inovações metodológicas e financeiras, para o estabelecimento de ligações de
transporte, energia e telecomunicações entre mercados e áreas com alto
potencial de crescimento, com padrões técnicos compatíveis e condições de
operação conhecidas e confiáveis.
Para o Peru, a Iirsa constitui uma alternativa de integração regional
descentralizada e uma opção capaz de valorizar sua situação geográfica, a mesma
que coloca o Peru como uma opção viável para a interconexão bioceânica da
região. É, além disso, um componente essencial para o desenvolvimento
regional no Peru, através do aproveitamento dos mercados interfronteiriços
da região. O Peru tem um interesse primordial nos seguintes eixos da Iirsa. O
eixo intermodal do Amazonas, projetado para interconectar o norte do Peru e
o leste do Brasil, dos portos de Paita e Bayóvar, no oceano Pacífico, até Belém
do Pará e Macapá, na costa atlântica brasileira. O eixo transoceânico central,
que liga a macrorregião sul do Peru com os Estados do Acre e de Rondônia,
no Brasil. Esses Estados brasileiros estão mais distantes de São Paulo do que
dos mercados regionais peruanos. O eixo transoceânico pode favorecer o acesso
das exportações daqueles Estados à bacia do Pacífico, através dos portos
peruanos de Ilo e Matarani. O eixo interoceânico do sul, que vincula a
macrorregião meridional do Peru aos Estados de Mato Grosso do Sul, São
Paulo e Rio de Janeiro, a partir da costa peruana do Pacífico. Este eixo também
interconecta o Peru com a Bolívia e o Paraguai; e abre, entre este último país e
o Peru, a possibilidade de uma ligação interoceânica entre os portos de Ilo e
Matarani e os de Villeta e Concepción, na hidrovia do Paraná.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Manuel Rodríguez Cuadros
151
Os eixos de integração da Iirsa devem ser complementados pelos esforços
de integração viária e dos mercados nacionais. Todos esses esforços requerem,
entretanto, investimentos vultosos. Levando em conta que a situação fiscal na
região não permite grandes investimentos, o governo do Peru propôs dois
mecanismos que podem ajudar no financiamento das obras de infra-estrutura
física e, subsidiariamente, aumentar o emprego e diminuir a pobreza. Em
primeiro lugar, a adoção de mecanismos inovadores por parte da comunidade
financeira internacional. Especialmente, uma mudança na contabilidade
utilizada pelo Fundo Monetário Internacional para calcular o déficit fiscal, de
maneira que se faça uma diferença entre os gastos correntes e os de
investimento, o que permitiria liberar recursos do teto de endividamento para
investi-los na infra-estrutura física. Por outro lado, a criação de uma autoridade
sul-americana para a infra-estrutura.
Como espaço de integração física e econômica e como identidade política,
a América do Sul tem níveis adequados de densidade dos fluxos populacionais
transfronteiriços, comerciais, de investimentos e de interações sociais e políticas,
necessários para projetar um grau relativamente homogêneo de coordenação
política nos assuntos regionais e mundiais. Ao mesmo tempo, o projeto sul-
americano pode fortalecer a identidade latino-americana, através da
convergência com outras unidades sub-regionais que fizeram progressos
interessantes no mesmo sentido, a América Central e o Caribe.
3. Diplomacia econômica
O Peru é um país em desenvolvimento, de renda média, com potencial
produtivo, uma considerável riqueza em recursos naturais e um setor empresarial
que começa a adquirir competitividade. Ao mesmo tempo, seus indicadores
sociais mostram uma alta porcentagem da população – cerca de 50% - em
situação de pobreza, e 22% em extrema pobreza. A possibilidade de derrotar
a pobreza está diretamente ligada ao crescimento e à maior competitividade
das empresas, como fatores geradores de trabalho digno.
A diplomacia peruana, consciente dessa realidade, deve ter um viés
essencialmente econômico e social em uma área bastante ampla de suas relações
externas. Os indicadores macroeconômicos nacionais são estáveis e auspiciosos.
O governo do Presidente Toledo recebeu o país com uma taxa de crescimento
A Política Exterior do Peru: uma opção nacional no processo global
152 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
152
real de 0,3% no ano de 2001. Desde essa data o peru tem crescido a uma taxa
média superior a 4,2% e as projeções para 2004 e 2005 ficam em torno ou
acima de 4,5%. A inflação do ano de 2002 foi de 1,5%, a de 2003 foi de
2,48%e a projeção para 2004 chega a 2,5%. Os níveis de risco do país baixaram
consideravelmente, situando-se, em 2003, numa média de 429 pontos. As
reservas internacionais têm aumentado de forma sistemática, passando de 8.613
milhões de dólares, em 2001, para 11 mil milhões de dólares em 2004. O
endividamento externo em relação ao produto interno bruto passou de 45,7%
no ano 2000, para 45,45% em 2003, com projeções de continuada diminuição,
em 2004 e 2005, para 45% e 43,2%, respectivamente.
Essa estabilidade da situação macroeconômica do Peru está criando as
condições para uma maior atividade das empresas e um aumento do emprego, que
ainda é incipiente. As exportações, que no ano de 2001 alcançaram 6.900 milhões de
dólares, aumentaram de maneira evidente, chegando no ano de 2003 a mais de 8 mil
milhões. Para 2004, prevê-se uma cifra de 10 mil milhões de dólares, o que faz
presumir que se atingirá o objetivo de chegar ao ano de 2005 com um montante de
13 mil milhões. A estrutura das exportações peruanas é bastante diversificada: 25,79%
destina-se ao mercado norte-americano; 29,2% o Nafta, que inclui, além dos Estados
Unidos, o Canadá e o México; destinam-se à União Européia 25,5% do total das
exportações; cerca de 19% à Ásia; e 10% à América do Sul.
O Peru é um país com um mercado interno relativamente pequeno e
concentrado na costa, mais especificamente na cidade de Lima. Por isso, a estratégia
nacional de desenvolvimento põe ênfase no mercado externo e busca assegurar-se
mercados amplos, de 800 milhões ou mais de consumidores. O Peru tem uma
área de livre comércio praticamente completa com a Comunidade Andina, firmou
um acordo de livre comércio com o Mercosul e iniciou a negociação de outro com
os Estados Unidos. O processo que deve culminar com negociações com vistas
ao livre comércio entre a Comunidade Andina e a União Européia iniciou-se logo
depois da Cúpula Europa-América Latina, realizada em Guadalajara. Vêm-se
realizando também negociações para a conclusão de um tratado de livre comércio
com a Tailândia e progressivamente se iniciarão outras, provavelmente com o
Marrocos e países latino-americanos que não fazem parte dos processos multilaterais
regionais de liberalização do comércio.
A estratégia nacional de expansão do comércio e da atividade produtiva
atribui também prioridade a negociações eqüitativas na rodada de Doha, na
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Manuel Rodríguez Cuadros
153
qual o Peru considera que se devem obter resultados concretos em matéria de
acesso ao mercado e de comércio agrícola, inclusive a progressiva eliminação
dos subsídios e das ajudas à agricultura e à exportação de produtos agrícolas,
a aceitação de uma cláusula de salvaguarda mais efetiva dos países em
desenvolvimento, bem como listas de produtos sensíveis que favoreçam a
progressiva competitividade de seus agricultores.
No que se refere à atividade específica das embaixadas e consulados do
Peru no exterior, atribuiu-se a todas elas tarefas específicas em matéria de
promoção das exportações, dos investimentos e do turismo, com um enfoque
integrado que procura superar as dispersões e o fracionamento setorial que
prevaleceu no passado. Procura-se integrar muito ativamente o setor privado
nessa estratégia e decidiu-se uma especialização prática dos funcionários
diplomáticos na promoção econômica, tendo-se designado um conselheiro
comercial do serviço diplomático para cada missão no exterior, em caráter
complementar aos adidos especializados que exercem suas funções nas
embaixadas sediadas nos mercados mais dinâmicos para o Peru.
4. Diplomacia social
A política exterior peruana favorece uma nova agenda do
desenvolvimento para a governança mundial, convencida da importância da
ação multilateral para estabelecer um sistema econômico internacional mais
justo, inclusivo e eqüitativo. Todos os países, desenvolvidos e em
desenvolvimento, devem ter acesso aos benefícios da expansão do comércio e
dos investimentos e ao fortalecimento da coesão social.
Estima-se que existem atualmente, nos países em desenvolvimento,
1.2 bilhão de pessoas em estado de extrema pobreza, que vivem com menos
de um dólar por dia, e das quais 826 milhões passam fome, 114 milhões de
crianças não recebem educação primária e, delas, 63 milhões são meninas,
11 milhões de crianças com menos de cinco anos de idade morrem
anualmente de enfermidades que poderiam ser prevenidas. A cada minuto
morre no mundo uma mulher, por motivos relacionados com a gravidez. 42
milhões de pessoas estão infectadas com o HIV/Aids, um bilhão de pessoas
não têm acesso à água potável, 2,4 Bilhões de pessoas não têm acesso ao
saneamento básico.
A Política Exterior do Peru: uma opção nacional no processo global
154 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
154
No Peru, o índice de desenvolvimento humano manteve-se estacionário
entre os anos de 2002 e 2003, situando-se na 82
a
posição, abaixo de Chile,
Costa Rica, Colômbia, Venezuela, Hungria e Romênia, e acima de Equador,
Paraguai, Honduras e Marrocos. As tarefas internas ligadas ao desenvolvimento
econômico e social e à luta contra a pobreza são prioritárias na estratégia
nacional de desenvolvimento. Coerentemente, a política exterior incluiu a
diplomacia social entre suas prioridades.
Superar a condição de pobreza de 52% da população é um interesse e
um objetivo nacional prioritário. Por isso, a diplomacia peruana incorporou a
variável social à sua estratégia de ação. A criação de emprego digno, o
melhoramento e a ampliação da cobertura dada à assistência à saúde, educação,
moradia, segurança alimentar e atenção adequada à maternidade e à infância
constituem metas para cujo cumprimento a política exterior deve contribuir.
A diplomacia social pode ser definida como o esforço de mobilizar vários
recursos disponíveis no contexto da projeção internacional do Peru na execução
da sua política exterior, para progredir no sentido de um desenvolvimento
nacional eqüitativo, democrático e orientado para o aumento da nossa
competitividade.
No quadro de um cenário global e nacional em transformação, o Peru
enfrenta o desafio constante de redefinir as coordenadas de sua projeção para
o exterior. As implicações desse exercício são de tal magnitude que preparam
uma reformulação do modo como o Peru se percebe a si mesmo. Assim, o
conceito de diplomacia social abre auspiciosas possibilidades de criar uma
concordância da nossa projeção externa com a interna. O conceito de
diplomacia social resume uma das dimensões estratégicas que devem
caracterizar a política exterior do Peru. Tal conceito dá conta da vontade política
do governo de estabelecer uma sintonia entre, de um lado, as urgências e
carências do seu desenvolvimento interno e, de outro, a ação em foros
multilaterais e outras realidades surgidas no contexto da globalização. Tal
sintonia é agora imperativa porquanto a globalização converteu as fronteiras e
a soberania nacional em categorias porosas, intensificando a comunicação –
quando não a indistinguibilidade – entre o interno e o internacional, de tal
maneira que, por exemplo, as políticas nacionais de luta contra a pobreza não
podem ignorar os efeitos causados pelas migrações ou pelo comércio
internacionais.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Manuel Rodríguez Cuadros
155
A diplomacia social representa o esforço de articular a política exterior
peruana com os objetivos nacionais prioritários de reduzir drasticamente a
pobreza, a desnutrição e a incidência de enfermidades infecto-contagiosas a
elas associadas; e de favorecer a maximização dos benefícios nacionais, sociais
e pessoais criados ao longo do processo de emigração. Ela se desenvolve em
três campos: a ação multilateral, principalmente em torno dos Objetivos de
Desenvolvimento do Milênio; a canalização de ajuda oficial ao desenvolvimento
para o nosso país; e a mobilização das comunidades de emigrados peruanos
em torno dos objetivos nacionais de desenvolvimento, que incluem a proteção
desses emigrados e a promoção dos seus interesses.
Um aspecto positivo do multilateralismo na época atual é a globalização da
agenda social, baseada no reconhecimento de que muitos fenômenos sociais
contemporâneos se replicam universalmente ou geram conseqüências que
transcendem as fronteiras nacionais: a luta contra a pobreza e contra os flagelos
infecto-contagiosos contemporâneos, por exemplo, não pode ficar circunscrita à
competência exclusiva dos Estados nacionais e requerem respostas multilaterais
ou supranacionais.
A globalização da agenda social, entendida como a projeção à escala
mundial das políticas sociais, é particularmente evidente para um país como o
Peru, no qual a eclosão de problemas estruturais não resolvidos deu origem
nas últimas décadas a processos de emigração muito intensos – chame-se-os,
em grande medida, de exportação da pobreza – em conseqüência dos quais
cerca de 10% dos peruanos vivem atualmente fora do território nacional.
A globalização da agenda social tem também uma significação estratégica,
pelo menos por três razões. Primeiro, frente às crescentes assimetrias que marcam
o cenário internacional. O Secretário Geral das Nações Unidas, Kofi Annan
assinalou em “Nosotros los Pueblos”, seu relatório para a Cúpula do Milênio:
“Em primeiro lugar, os benefícios e oportunidades oferecidos pela
mundialização continuam muito concentrados em um número relativamente
pequeno de países e se distribuem neles de maneira desigual. Em segundo
lugar, surgiu nas últimas décadas um desequilíbrio, porquanto se elaboraram
normas sólidas, de cumprimento seguro, que facilitam a expansão dos mercados
mundiais, mas não houve um apoio comparável a objetivos sociais igualmente
válidos, sejam normas trabalhistas, para o meio ambiente, para os direitos
humanos ou para a redução da pobreza”.
A Política Exterior do Peru: uma opção nacional no processo global
156 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
156
Por isso, a globalização da agenda social representa uma contestação
dessas assimetrias – que afetam muito substancialmente o Peru e os outros
países em desenvolvimento – e dá expressão a um clamor universal que procura
construir um mundo mais eqüitativo. Segundo, a globalização da agenda social
procura dar coerência e sustentabilidade ao cenário mundial emergente. É o
que também assinala o Secretário Geral das Nações Unidas no mesmo
documento:
“[...] a mundialização deve supor algo mais do que a criação de maiores
mercados. Não se pode separar a esfera econômica da teia mais complexa da
vida social e política e deixar que siga sua própria trajetória. Para sobreviver e
prosperar, uma economia mundial deve estar mais solidamente cimentada nos
valores compartilhados e nas práticas institucionais: deve promover objetivos
sociais mais amplos e que dêem mais espaço para todos”.
Terceiro, porque os processos sociais internos do Peru estão
significativamente condicionados por variáveis extranacionais. Exemplo disso
são os efeitos que o fenômeno do aquecimento global provavelmente está tendo
sobre as alterações dos ciclos climáticos usuais na maioria das regiões mais pobres
de nosso país, cuja ocorrência reforça as condições de pobreza e falta de eqüidade
pré-existentes; ou os efeitos distintos que a assinatura de tratado de livre comércio
com os Estados Unidos terá para o Peru; ou a súbita alteração dos circuitos
comerciais internacionais de carnes devido a surtos pandêmicos, que cria
oportunidades não planejadas nem aproveitadas por nosso país.
Seguindo o impulso dado pela globalização da agenda social, a diplomacia
social baseia-se em que as premissas da eqüidade social, no desenvolvimento
sociocultural e no desenvolvimento econômico, constituem um só processo e
são concebidas de maneira integral e coerente e que os processos de integração
política e econômica devem estar orientados no sentido de conseguir a melhora
permanente das condições de vida dos habitantes da região e de contribuírem
para o fortalecimento do exercício dos seus direitos e deveres econômicos e
sociais, como reconheceram altas autoridades em políticas de desenvolvimento
social do nosso continente na recente Declaração de Santa Clara sobre Coesão
Social na América Latina e no Caribe. Dentro desse quadro, a política exterior
peruana, orientada para ser o veículo do desenvolvimento nacional, deve
reconhecer o caráter fundamental deste na inserção internacional do país e
projetá-lo para o exterior na multiplicidade de dimensões que lhe é inerente. A
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Manuel Rodríguez Cuadros
157
diplomacia social, procura assim, projetar os interesses nacionais do Peru de
modo pró-ativo no processo de definição e execução da agenda social global,
entendendo-a como aporte da comunidade internacional para enfrentar os
desafios do nosso próprio desenvolvimento, ao mesmo tempo em que procura
afirmar a liderança do nosso país na promoção de melhores condições
internacionais de eqüidade.
Com essa finalidade, a chancelaria peruana definiu e vem executando
uma diplomacia social que atua em três âmbitos de ação prioritária.
Participação ativa, em função das exigências do Plano Nacional de Luta
contra a Pobreza, nas negociações internacionais sobre a agenda social.
Especialmente em relação com a luta contra a pobreza e a fome, a erradicação do
analfabetismo, o tratamento daquelas enfermidades que mais afetam os peruanos
e peruanas, entre elas as de caráter endêmico (como a tuberculose, a febre amarela
e a malária), a superação do déficit de vivendas, especialmente nos setores rurais e
urbanos mais desfavorecidos, os programas de segurança alimentar, a criação de
emprego digno, o desenvolvimento rural, as condições de trabalho de crianças e
mulheres e os assuntos relativos às políticas populacionais.
No conjunto desses processos internacionais, têm prioridade as ações
nacionais e internacionais voltadas para a realização no Peru das metas globais
contidas na Declaração do Milênio da ONU. Especialmente as que se referem
ao cumprimento dos objetivos básicos de desenvolvimento. reduzir à metade,
até 2015, a porcentagem de pessoas cujas rendas sejam inferiores a um dólar por
dia e que sofram fome; evitar a deserção escolar para alcançar a meta de que
todas as crianças do país terminem, pelo menos, o ciclo completo do ensino
primário; eliminar as desigualdades entre gêneros no ensino primário e secundário,
de preferência já no ano 2005; e em todos os níveis de ensino antes do fim de
2015; reduzir em dois terços, até 2015, a mortalidade de crianças de menos de
cinco anos; reduzir em três quartos, até 2015, a mortalidade materna; ter detido
e começado a reduzir, até 2015, a propagação do HIV/Aids; ter detido e
começado a reduzir, também até 2015, a incidência da febre amarela, da
tuberculose e da malária; reduzir à metade, até 2015, a porcentagem de pessoas
que não têm acesso regular à água potável e a melhores serviços de saneamento.
Esses objetivos do milênio, aplicados à realidade peruana, são metas da
política nacional de desenvolvimento e da diplomacia social. Para alcançá-las,
os esforços internos são complementados pelas atividades de cooperação para
A Política Exterior do Peru: uma opção nacional no processo global
158 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
158
o desenvolvimento do sistema das Nações Unidas. Os princípios dessas
atividades são, entre outros, seu caráter universal, voluntário e de doação,
neutralidade e multilateralismo, e se realizarem em benefício das populações-
alvo, de conformidade com as políticas nacionais de desenvolvimento.
As principais agências de cooperação técnica e financeira da Organização
das Nações Unidas, como o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
(Pnud), o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), o Fundo de População
das Nações Unidas (Unfpa) e o Programa Mundial de Alimentos, com sede em
Roma, realizam no Peru programas destinados ao alívio da pobreza e à criação de
capacidade produtiva nos setores sociais mais vulneráveis.
O programa de cooperação atualmente vigente do Pnud com o Peru
(2001-2005) é um dos mais extensos da região, considerando-se a mobilização
de recursos num total geral de US$ 311.783.000. Tais recursos destinam-se a
apoiar os programas sociais de alívio da pobreza, bem como a apoiar os esforços
do país para melhorar a gestão do Estado e reforçar os níveis de participação
democrática dos governos e populações locais, como formas de reforçar a
governabilidade democrática.
Finalmente, a diplomacia social procura aplicar um programa ainda em
elaboração, denominado Solidariedade. Através dele identificar-se-ão anualmente
entre sessenta e oitenta microprojetos de impacto social direto. Desde a construção
de pequenas escolas, o estabelecimento de padarias nos clubes de mães ou do
copo de leite, até programas de atendimento médico ou de instalação de pequenos
postos de saúde. Cada missão diplomática ou consular ficará incumbida de um a
três projetos, a fim de que obtenha cooperação sob a forma de doações ou de
financiamento não reembolsável. A gestão dos projetos será feita pelas próprias
populações beneficiadas, através de suas organizações de base.
5. Diplomacia para a defesa da democracia e a
modernização do sistema interamericano
Nos últimos anos fizeram-se progressos de grande transcendência na
definição de uma agenda para a governança interamericana. A Carta
Democrática Interamericana, iniciativa do Peru, aperfeiçoou a institucionalidade
jurídica e política da democracia e o estado de direito na região.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Manuel Rodríguez Cuadros
159
Hoje, no sistema interamericano, a democracia é, sem dúvida, não apenas
um bem protegido, mas também uma obrigação para todos os Estados que
fazem parte da OEA. A Carta Interamericana foi projetada para que em outros
continentes se progrida no mesmo sentido, aumentando-se a aprovação de
cláusulas democráticas. Estimulou também as Nações Unidas para que, pela
primeira vez, avance na busca de um consenso sobre os elementos que definem
ou contribuem para a existência de um regime democrático.
5
Na região, ainda não conseguimos, entretanto, um consenso sobre a
utilidade e conveniência de aplicar a carta nas situações de crise da
institucionalidade democrática. O caso do Haiti é representativo. Se a Carta
tivesse sido aplicada oportunamente, talvez a evolução da crise houvesse sido
menos lesiva às instituições democráticas. Temos um déficit de sentido prático
na defesa da institucionalidade democrática.
São também progressos importantes na redefinição da agenda
interamericana a Convenção contra a Corrupção, as decisões adotadas, por
ocasião do 11 de setembro, em relação ao combate ao terrorismo, a experiência
na aplicação do Mecanismo de Avaliação Multilateral, no âmbito da luta contra
as drogas, os resultados da Cúpula Extraordinária das Américas sobre as
questões econômicas, sociais e financeiras, os consensos sobre uma visão
pluralista e democrática da segurança continental, que se aprovaram na
Conferência Ministerial do México, bem como o fortalecimento do sistema
interamericano de proteção e promoção dos direitos humanos.
Tudo isso ainda é, porém, insuficiente, como também o é o fato de que
até agora se mantenha uma visão de compartimentos estanques no diálogo
interamericano, onde os temas de paz e segurança não são, na prática, ligados
aos de manutenção da democracia ou aos da luta contra o narcotráfico e à
agenda social.
É necessário continuar aperfeiçoando o sistema em bases consensuais.
Os desafios da globalização e sua articulação com as agendas internas e sub-
regionais requerem um sistema interamericano atualizado, moderno, baseado
na igualdade jurídica dos Estados, com respostas para os problemas reais que
5
Cf. Manuel Rodríguez Cuadros, “La Carta Democrática Interamericana, in Carta Democrática Interamericana,
documentos e interpretaciones, OEA, Washington, DC, 2003.
A Política Exterior do Peru: uma opção nacional no processo global
160 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
160
enfrentam nossos cidadãos, especialmente os mais pobres e excluídos. Para
isso é preciso aperfeiçoar uma agenda da governança interamericana, centrada
nos temas e prioridades que incidem sobre a vida quotidiana das pessoas. O
Peru considera que são os seguintes os elementos principais dessa agenda:
a. Defesa e preservação da institucionalidade democrática. É necessária
uma vontade política definida para aplicar a Carta Democrática
Interamericana, especialmente em seus aspectos preventivos, e assumir
que a democracia na região joga seu futuro na própria capacidade ou
incapacidade de resolver as legítimas demandas de trabalho digno para
a maioria da população.
b. Meios de assegurar uma governabilidade que não exponha a democracia
a questionamentos sociais, pela impossibilidade ou pelas suas limitações
para resolver os problemas de uma grande quantidade de gente, que sofre
diariamente porque não tem trabalho, porque recebe um salário que não
lhe permite viver decentemente, porque sofre de uma enfermidade que
não pode ser curada ou porque vê seus filhos abandonarem a escola primária
ou secundária por falta de meios econômicos. Essa é a agenda real,
quotidiana, da governabilidade democrática.
c. As questões relativas ao crescimento econômico com eqüidade, tarefas
do desenvolvimento e as questões sociais. Essa é a agenda social e
econômica que não pode continuar a ser minimizada ou contornada.
É urgente revaloriza-la, dando ao Conselho Permanente a faculdade
de assumir o debate econômico e do desenvolvimento regional.
d. É necessário abordar também os assuntos da paz e da segurança
regionais dentro de um enfoque pró-ativo , que procure aplicar as
conclusões da Conferência do México. É necessário que a OEA se
envolva mais em tarefas urgentes: institucionalizar uma visão
democrática e cooperativa da segurança, desencorajar qualquer
possibilidade de corridas armamentistas, que somente comprometeriam
a viabilidade do crescimento econômico e poderiam reativar tensões
nacionais felizmente já superadas. Deve-se dar sentido prático ao
registro regional de aquisição de armas como uma medida de fomento
da confiança, que previna o armamentismo e os desequilíbrios sub-
regionais. E a Organização deveria comprometer-se mais com a
eliminação das minas antipessoal.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Manuel Rodríguez Cuadros
161
e. A questão do narcotráfico e do terrorismo. É necessário avançar com
mais decisão na luta contra o narcotráfico e o terrorismo, que tendem
cada vez mais a inter-relacionar-se. É imperativo consolidar um enfoque
integral contra o narcotráfico, que ataque simultaneamente a procura e a
oferta. Nesse sentido, são relevantes os bons resultados da aplicação do
mecanismo de avaliação multilateral sobre os progressos na substituição
ou erradicação de plantações. Mas é necessário, introduzir nas avaliações
do mecanismo os avanços que se possam identificar nos países
maiormente afetados pelo consumo em relação com as medidas adotadas
para reduzir a demanda.
f.A luta contra a corrupção. A corrupção corrói a institucionalidade
democrática e abre as portas para o narcotráfico, a lavagem de ativos e
o tráfico de armas. A corrupção é antinômica do bom governo. O
Peru considera indispensável reforçar os mecanismos anticorrupção e
criar novos instrumentos de solidariedade e cooperação judicial que
permitam a extradição dos altos funcionários de governo responsáveis
por atos corruptos, entre eles a negociação e assinatura de um tratado
multilateral de extradição exclusivamente para casos de corrupção.
g. O aperfeiçoamento do sistema interamericano de direitos humanos.
Abrir a possibilidade de que as pessoas físicas possam recorrer
diretamente à Corte Interamericana de Direitos Humanos é outra tarefa
indispensável, bem como dotar a Corte de funções permanentes.
A diplomacia peruana postula também a realização de algumas mudanças
na estrutura institucional da Organização, para adequá-la às demandas da agenda
da governança regional. A diplomacia preventiva é uma necessidade urgente,
especialmente no tocante a situações que possam provocar uma crise da
institucionalidade democrática. Isso requer a existência de uma unidade
diretamente responsável pelos assuntos políticos da Organização. Da mesma
forma, as questões relativas à paz e à segurança, especialmente aquelas vinculadas
à prevenção de corridas armamentistas, à efetividade do registro de aquisição de
armas, a aplicação de medidas de fomento da confiança e uma política pró-ativa
para concretizar uma visão compartilhada da segurança democrática comum,
requerem uma instância de competência institucional específica.
Um estudo apresentado pelo Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento sobre a democracia na América Latina mostra alguns
A Política Exterior do Peru: uma opção nacional no processo global
162 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
162
indicadores inquietantes. Uma grande porcentagem da população se sente
frustrada pelos resultados da democracia, e uma porcentagem importante indica
que poderia optar por um regime autoritário se este resolvesse seus problemas
de subsistência. Isso é uma advertência a todas as consciências democráticas do
hemisfério. Não é um indicador real da vontade democrática de nossos povos.
Se alguma pesquisa de opinião perguntasse à população se estaria de acordo
com uma democracia que lhes desse liberdade, que assegurasse seus direitos e
lhes outorgasse trabalho digno e que satisfizesse suas necessidades mínimas de
trabalho, saúde e moradia, o resultado previsível é que a pesquisa teria 90% ou
mais de adesão.
6. Diplomacia pela paz e a segurança internacionais, a
vigência do direito internacional, o fortalecimento e
reforma positiva das Nações Unidas e a afirmação das
correntes a favor do desarmamento e da limitação de
armamentos
A reforma das Nações Unidas é uma necessidade para fortalecer o
multilateralismo e para dotá-la de maior efetividade e eficácia.
O imperativo da reforma foi reconhecido em diferentes resoluções da
Assembléia Geral, em especial na Declaração do Milênio (Resolução 55/2),
aprovada em setembro de 2000, pela qual os Chefes de Estado e de Governo
dos países membros decidiram “reafirmar o papel central que recai sobre a
Assembléia Geral, em sua qualidade de principal órgão de deliberação, adoção
de políticas e representação, e capacitá-la para que possa desempenhar esse
papel com eficácia; redobrar os esforços para reformar amplamente o Conselho
de Segurança em todos os seus aspectos; fortalecer o Conselho Econômico e
Social; e fortalecer a Corte Internacional de Justiça a fim de que prevaleçam a
justiça e o império do direito nos assuntos internacionais.
Posteriormente, diante do sentido de urgência produzido pela crise de
legitimidade ocorrida em 2003 com o conflito no Iraque, o Secretário Geral
das Nações Unidas, Kofi Annan, em seu relatório à Assembléia Geral A/58/
323, de 2 de setembro de 2003, insistiu em chamar os Estados-Membros a
examinarem a fundo a “arquitetura” atual das instituições internacionais,
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Manuel Rodríguez Cuadros
163
sugerindo que a Assembléia Geral de 2005 seja a data limite para se chegar a
um acordo sobre as mudanças de que se precisa.
O Peru apóia o processo de reforma das Nações Unidas para conseguir
enfrentar de maneira solidária as novas e velhas exigências em matéria de paz,
segurança e desenvolvimento. O Peru defende que a Assembléia Geral cumpra
de maneira efetiva e eficiente as suas responsabilidades, inclusive nas questões
relacionadas com a paz e a segurança internacionais, que o Conselho de
Segurança seja mais representativo e democrático, mediante sua ampliação a
novos membros e, especialmente, através de uma modificação razoável do
seu processo de tomada de decisões, que deveria pelo menos limitar as matérias
sujeitas a veto. Com o objetivo de contribuir para esse processo, o governo do
Peru se associou ao Grupo de Amigos da Reforma das Nações Unidas.
Da mesma forma, o Peru apóia o objetivo de continuar melhorando a
capacidade de resposta das Nações Unidas nas áreas da prevenção de conflitos
de conflitos armados e das operações de manutenção da paz. O governo tomou
a decisão de ampliar sua participação nas operações de manutenção da paz,
sempre e quando elas se enquadrem nas disposições do capítulo VII da Carta. O
Peru participa desses esforços com observadores militares nas missões de
manutenção da paz na República Democrática do Congo (MONUC, desde 2000),
na Eritréa-Etiópia (UNMEE, desde 2001) e Libéria (UNOL, desde 2003).
Em novembro de 2003, o governo do Peru ampliou seu compromisso
político com as operações de manutenção da paz através de um Memorando
de Entendimento do Sistema de Acordos de Reserva das Nações Unidas,
firmado em Lima entre o Senhor Presidente Alejandro Toledo e o Secretário
Geral Kofi Annan. Esse documento detalha a oferta do Peru para as operações
de manutenção da paz, a qual inclui um batalhão de infantaria de 640 homens,
duas companhias de infantaria da marinha, num total de 212 homens, e um
batalhão de infantaria das forças especiais, de 91 homens, bem como diversos
helicópteros, aviões de combate, equipes especializadas e uma fragata equipada
com mísseis. Nesse quadro, é provável a participação do Peru com uma
companhia aerotransportada na operação de manutenção da paz no Haiti.
No campo dos direitos humanos, o Peru apóia a proposta do
Secretário Geral denominada “Fortalecimento das Nações Unidas: um
programa para aprofundar a mudança”, que inclui medidas para reformar
os órgãos criados em virtude de tratados sobre direitos humanos, para
A Política Exterior do Peru: uma opção nacional no processo global
164 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
164
melhorar o cumprimento dos compromissos assumidos pelos Estados e
fortalecer as relações das Nações Unidas com o setor privado e a sociedade
civil. Favorece igualmente uma maior transparência e objetividade nos trabalhos
da Comissão de Direitos Humanos e um reforço do enfoque cooperativo dos
órgãos de proteção dos direitos humanos derivados da Carta, bem como
daqueles de base convencional. A proteção dos direitos humanos é uma função
essencial das Nações Unidas, que deve ser exercida sem elementos
discriminatórios nem politicamente seletivos.
O Peru está convencido de que só uma ordem internacional, baseada no
multilateralismo e no respeito a normas jurídicas claras e previsíveis, que permitam
atuar com firmeza, eficácia e legitimidade, constitui a garantia de um sistema
internacional estável, capaz de assegurar a paz e a segurança internacionais, com
base no direito internacional e na legitimidade de amplos consensos.
O Peru condena todo ato, método e prática de terrorismo em todas as
suas formas e manifestações, onde quer que se produzam e quem quer que os
cometa. Por isso o Peru faz parte da ação internacional desenvolvida pelas
Nações Unidas para dar uma resposta sistemática, sustentada e eficiente ao
terrorismo e que considere todos os aspectos desse flagelo. O Peru é signatário
dos doze tratados internacionais sobre a luta contra o terrorismo, que foram
firmados no quadro das Nações Unidas. É também parte do Comitê Especial
da Assembléia Geral, estabelecido pela resolução A/Res/51/210, e do Grupo
de Trabalho da Sexta Comissão, estabelecido em virtude da resolução A/RES/
57/27, que atualmente negociam um projeto de Convênio Geral sobre o
Terrorismo Internacional e um projeto de Convênio Internacional para a
Repressão dos Atos de Terrorismo Nuclear.
No âmbito das questões relativas ao desarmamento, o Peru considera que
a ameaça de proliferação nuclear estatal continua sendo um perigo. Por isso, luta
pela cessação da corrida armamentista e pelo desarmamento no campo nuclear,
pela prevenção da guerra nuclear, pela conclusão de acordos internacionais
eficazes, que dêem garantias aos Estados que não possuem armas nucleares
contra o emprego ou ameaça de emprego dessas armas, o controle internacional
dos novos tipos de armas de destruição em massa e dos novos sistemas de tais
armas, como as armas radiológicas, o controle das armas convencionais no âmbito
regional e sub-regional, a transparência e a limitação da aquisição de armamentos
em bases mundiais, regionais e sub-regionais e a adoção por parte das Nações
Unidas de um programa abrangente de desarmamento.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Manuel Rodríguez Cuadros
165
A diplomacia peruana põe ênfase na eliminação das armas antipessoal, na
adoção de regulamentações internacionais, regionais e sub-regionais para o
controle das armas pequenas e leves, bem como de regimes de proibição do uso
e transferência de armas químicas e biológicas. No âmbito da Comunidade Andina
de Nações, o Peru propôs e obteve a aprovação da Carta Andina para a Paz e a
Segurança, Limitação e Controle dos Gastos destinados à Defesa Externa. Nela
se estabelece o compromisso de adotar uma política comunitária de segurança
andina, instaurar uma zona de paz na sub-região, assumir compromissos para a
limitação dos gastos de defesa externa, estabelecer acordos para o controle das
armas convencionais e a transparência, bem como o acordo tendente a conseguir
que a América Latina seja declarada uma zona livre de mísseis ar-ar que vão
além do alcance visual e de mísseis estratégicos de médio e longo alcance.
A Carta Andina acrescenta a esses compromissos outros destinados a
consolidar os regimes de proscrição das armas químicas e biológicas, e de
erradicação do tráfico ilícito de armas de fogo, munições, explosivos e outros
materiais a eles relacionados.
Complementarmente a essas iniciativas, o Peru apoiou na Assembléia
Geral das Nações Unidas várias iniciativas no sentido de a sub-região andina e
a América do Sul serem declaradas zonas de paz.
No âmbito de suas relações com países limítrofes, o Peru favorece
medidas de fomento da confiança de nova geração, entre as quais o
estabelecimento de zonas de confiança mútua ou de segurança nas áreas
de fronteira, adequando o número e a força das unidades e destacamentos
militares às necessidades de uma relação de paz e de segurança cooperativa.
Ao mesmo tempo, a diplomacia peruana está comprometida com as
iniciativas de limitação de armamentos em bases multilaterais, sub-regionais
ou regionais, com o estabelecimento de metodologias padronizadas para a
medição dos gastos de defesa e com a proscrição de qualquer modalidade
de corrida armamentista na região.
7. Política de reforma dos serviços consulares e proteção
dos peruanos e peruanas no exterior
A política consular e de proteção às comunidades peruanas no exterior vem
experimentando uma melhora geral. Tal mudança é uma resposta à profunda
A Política Exterior do Peru: uma opção nacional no processo global
166 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
166
transformação ocorrida, durante as últimas, décadas na composição e configuração
das comunidades peruanas no exterior. Coincidindo com as correntes globais de
movimentos migratórios dos países em desenvolvimento, as comunidades peruanas
experimentaram um alto crescimento e se concentram fundamentalmente nas
grandes cidades de nações desenvolvidas e de países vizinhos. Nessa ordem de
idéias, o antigo paradigma de funcionamento da atividade consular denominado
“Cônsul-Prefeito” tornou-se obsoleto e disfuncional. Em seu lugar, a política
exterior do Estado democrático tratou de criar um regime de atuação consular
baseado no paradigma do “Cônsul-Servidor Público”.
O fenômeno migratório global adquiriu características singulares nas
relações internacionais contemporâneas. O progresso das comunicações e a
mundialização das tendências econômicas e culturais encurtaram as distâncias
geográficas. Estima-se que, em 1965, 10 milhões de pessoas no mundo viviam
fora de seus países de origem; dez anos depois, essa cifra tinha-se elevado para
84 milhões , passando para 105 milhões em 1985 e alcançando 120 milhões
em 1990. Por volta do ano 2000, o número de migrantes internacionais era
estimado em 150 milhões, aí incluídos os migrantes voluntários e os refugiados
6
.
O Peru não ficou alheio a essa tendência global do movimento
populacional. De fato, nosso país – como notam várias pesquisas
7
– acelerou
o ritmo da emigração nas últimas décadas. Aproximadamente 7% da população
é migrante. Isto significa que, segundo os dados de 2002, 1,87 milhões dos
26,75 milhões de habitantes do país mora fora de suas fronteiras
8
.
Na ordem global, os problemas suscitados pelas migrações podem
resumir-se nos seguintes pontos:
a. Situação ou status legal dos migrantes no país que os acolhe.
b. Tráfico ilegal de pessoas.
c. Respeito aos direitos humanos dos migrantes, tendo em conta as
manifestações de xenofobia e discriminação nos países que os recebem.
6
Cf. Altamirano, Teófilo e Cardenas, Gerardo, “Migracón Peruana al Exterior, Resumen Ejecutivo de los
trabajos de investigaciónpor encargo de la Organización Internacional de las Migraciones (OIM)”, Lima,
março de 2003.
7
Altamirano, op. cit., pág. 3.
8
INEI, Compendio Estadístico, Peru 2002.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Manuel Rodríguez Cuadros
167
d. Inserção dos migrantes no mercado de trabalho e no processo
produtivo das sociedades que os recebem.
e. Choque cultural resultante do encontro, através da migração, dos
distintos sistemas de valores das sociedades de origem e de acolhimento.
f. Revinculação dos migrantes com seus países de origem.
No tocante ao impacto econômico da migração, segundo dados do Banco
Interamericano de Desenvolvimento (BID), estima-se que, no ano 2002, as remessas
das comunidades da América Latina e do Caribe aos seus países de origem equivaleu
a US$ 32.044 milhões. Tal cifra foi praticamente igual à dos ingressos de capital na
região, no mesmo ano, a título de investimento estrangeiro direto. Esses ingressos
ultrapassaram também amplamente a ajuda externa recebida sob a forma de
assistência oficial para o desenvolvimento. As remessas do exterior, segundo a
mesma fonte, representam pelo menos 10% do PIB em seis países: Nicarágua
(29%), Haiti (24,2%), Guiana (16,6%), El Salvador (15,1%), Jamaica (12,2%), e
Honduras (11,5%). Se as remessas para a América Latina e o Caribe continuarem
crescendo a uma taxa muito conservadora, de 7% ao ano, o BID considera que
elas alcançarão, em 2010, uma cifra total de US$ 400.000 milhões
9
.
O antigo paradigma do Cônsul-Prefeito tornou-se disfuncional no tocante
aos deveres do Estado para com seus nacionais. A partir daí, surge a necessidade
de substituí-lo pelo paradigma do “Cônsul-Servidor Publico”, apoiado numa
nova política exterior de proteção aos nacionais que residem no exterior. Nesse
novo esquema, que se completa a partir do restabelecimento do estado de
direito e do regime democrático, o funcionário consular deve à cidadania e
tem diante de si, como tarefas fundamentais:
• Dar proteção e assistência aos peruanos no exterior.
• Prestar serviços de maneira eficiente e oportuna, através da reforma consular.
• Ser um agente de ligação cultural e econômica dos peruanos com seu
país, em geral, e com suas comunidades de origem, em particular.
A criação da Subsecretaria de Comunidades Peruanas no Exterior foi o
ponto de partida na modificação estrutural da política exterior consular e no
9
Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), “An International Comparison of Remittances Markets”,
fevereiro de 2003.
A Política Exterior do Peru: uma opção nacional no processo global
168 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
168
estabelecimento, pela primeira vez na história do Peru, de uma ação de Estado
destinada diretamente a proteger e articular construtivamente os conacionais
residentes fora do Peru. É nessa ordem de idéias que a chancelaria dá prioridade
à reestruturação dos serviços consulares e à ação consular destinada a vincular
e a assistir as comunidades peruanas no exterior.
No novo esquema de política exterior, o essencial do trabalho consular é
a proteção e a promoção dos interesses e dos direitos dos peruanos no
estrangeiro. Da mesma forma, a ação consular deve promover a vinculação
dos conacionais com seu país de origem, enfatizando a canalização adequada
de recursos para o desenvolvimento do Peru. Isso supõe um novo modelo de
gestão dos serviços consulares, no qual os peruanos no exterior devem estar
associados com o Estado na elaboração e na execução das políticas que
diretamente lhes dizem respeito. Em outras palavras, a gestão consular do
Estado democrático no Peru deve ter como um de seus elementos centrais a
participação ativa dos peruanos no exterior.
A nova política de reforma consular e proteção de peruanos e peruanas
no exterior se executa através de sete programas: de reforma consular e
simplificação administrativa; de proteção legal; de assistência humanitária; de
apoio à inserção produtiva, legal e respeitosa dos direitos humanos dos
migrantes nas sociedades que os recebem; de promoção da revinculação cultural
e nacional com o Peru a partir do reconhecimento da realidade multiétnica e
pluricultural do país; de revinculação produtiva e econômica com o Peru; e de
promoção cidadã e participação democrática, tanto na vida política do Peru
quanto na das sociedades que os acolhem.
8) Rumo a um modelo integrado da gestão externa do
Estado peruano e a um enfoque descentralizado da
aplicação da política exterior
Um dos problemas mais complexos que afetaram a eficácia das políticas
exteriores latino-americanas foi e é o que Marcel Merle denomina “o
desmembramento do executivo”
10
, isto é, o processo de fragmentação da gestão
10
Cf. Marcel Merle, “La politique étrangère”, Paris, 1984.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Manuel Rodríguez Cuadros
169
da política exterior. Isso se deve à crescente competição de setores estranhos
ao Ministério das Relações Exteriores em diversos processos das relações
externas do Estado. A conseqüência prática desse processo de setorialização
da política exterior é, em muitos casos, a falta de coerência e consistência na
condução dos assuntos externos. Para evitar e superar esse problema está-se
fazendo um esforço de efetiva coordenação e harmonização das políticas
setoriais no âmbito externo, com a finalidade de conseguir um enfoque e uma
prática integrada da gestão externa do Estado.
Ao mesmo tempo, promove-se no Peru um enfoque descentralizado da
política exterior em dois níveis. Por um lado, no âmbito dos atores internos,
favorecendo a participação dos diversos poderes do Estado, o legislativo e o
judiciário, bem como da sociedade civil e dos governos regionais e locais nos
processos de elaboração e execução da política exterior. Por outro, está-se
aplicando uma visão descentralizada na identificação dos interlocutores da
diplomacia peruana no exterior. Isso implica não apenas uma relação Estado-
Estado, mas também a opção complementar de estabelecer relações entre o
Estado peruano e as unidades políticas descentralizadas de outros Estados.
No caso do Brasil, por exemplo, está-se estabelecendo uma relação direta com
os governadores estaduais vizinhos da fronteira peruana.
A título de encerramento
Jorge Basadre, ao analisar a história das relações externas do Peru, teve
uma frase que é válida para o passado. Disse Basadre que as relações externas
do Peru e a diplomacia peruana foram o resultado, nem sempre encontrado,
de suas tensões internas e externas. A partir dessa constatação histórica, a
política exterior do Peru procura estabelecer um equilíbrio entre o
desenvolvimento e a consolidação da nação, a afirmação de sua identidade e
personalidade histórica e cultural e uma inserção no processo global que viabilize
o desenvolvimento com coesão social, a partir de sua situação como parte da
Comunidade Andina e do espaço sul-americano. Esse equilíbrio quer expressar-
se na estabilidade que antes não existiu entre os fatores externos e internos da
política peruana. Parafraseando Jorge Basadre, a política nacional, no contexto da
globalização, trabalha para que a inter-relação entre as variáveis externas e internas
já não seja um desencontro marcado por contínuas tensões, mas um processo de
A Política Exterior do Peru: uma opção nacional no processo global
170 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
170
articulação de interesses que dê estabilidade à institucionalidade democrática
e a um modelo de desenvolvimento baseado na competitividade e na coesão
social.
Tradutor: Luiz Augusto Souto Maior.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Maria Levens
171
a formulação e execução da política externa da República do Suriname,
merece atenção prioritária a realização das metas nacionais de desenvolvimento.
Nesse particular, as relações existentes nos níveis bilateral, regional e multilateral
que podem contribuir de forma significativa para a realização dessas metas
recebem atenção primordial, enquanto a identificação e a implantação de
relações potenciais, do ponto de vista político e econômico, são igualmente
parte da estratégia surinamense de política externa.
Na implementação da política externa da República do Suriname,
consideração especial é dada, também, aos valores, normas e padrões usuais
de caráter internacional que devem orientar as relações entre os Estados.
Assim, deve-se ter como referência, entre outras coisas:
• o respeito pelo Estado constitucional e pelos princípios democráticos
internacionalmente aplicáveis;
• a não-interferência nos assuntos internos dos outros Estados, ou o
respeito mútuo pela soberania nacional;
A Política externa
da República
do Suriname
Maria Levens
*
*
Ministra das Relações Exteriores da República do Suriname
N
A Política externa da República do Suriname
172 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
172
• a promoção de harmonia, paz, estabilidade e cooperação com nossos
vizinhos, os países de origem dos nossos povos e todos os outros países
do mundo;
• a observância dos direitos humanos;
• a proteção do meio ambiente e a implementação do desenvolvimento
sustentável.
Por meio da intensificação das relações bilaterais, regionais e multilaterais,
são empreendidos esforços para alcançar objetivos mútuos, tendo como
elementos fundamentais as vantagens decorrentes do desenvolvimento
econômico e social, assim como as aspirações do povo surinamense.
No que tange às relações bilaterais, tendo tudo isso em vista, a política
externa da República do Suriname busca fortalecer a cooperação já existente,
bem como promover, expandir e desenvolver novas relações entre o Suriname
e outras Nações amigas. Deve também ser considerada, dentro desse contexto,
a participação em organizações internacionais e em processos sub-regionais,
regionais e multilaterais de integração, nos quais a promoção de temas de
interesse recíproco sejam fundamentais.
A diversificação das nossas relações constitui também um dos principais
objetivos da política externa do Suriname, tendo em vista os desenvolvimentos
internacionais ocorridos nas últimas décadas, que representam outro desafio para a
sobrevivência das pequenas economias na atual constelação econômica internacional.
Em conseqüência, a intensificação da cooperação bilateral e regional
entre o Suriname e os países amigos e sócios estratégicos se estende
primordialmente aos países do continente sul-americano, a todo o Hemisfério
Ocidental e aos países da Europa e da Ásia.
Se focalizarmos nossa atenção no Hemisfério Ocidental, cabe uma
referência especial às relações entre o Suriname e a República Federativa do
Brasil, a República Bolivariana da Venezuela, a Guiana, os Estados Unidos da
América, o Canadá e o México. O Suriname mantém vínculos especiais com
esses países para fortalecer a sua economia, cooperar no campo do
desenvolvimento técnico e alcançar objetivos comuns de natureza variada.
Com respeito ao relacionamento entre o Suriname e o Brasil, vale a pena
mencionar os resultados positivos já evidenciados devido à intensificação das
relações bilaterais entre os dois países.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Maria Levens
173
Nesse contexto, deve-se fazer menção especial ao vínculo comercial hoje
florescente devido à linha de navegação direta criada entre o Suriname e o
Brasil, que tem facilitado a exportação de produtos agrícolas para o mercado
brasileiro setentrional.
Como resultado da intensificação das relações bilaterais com o Brasil, os
dois países têm trabalhado de forma conjunta em outras áreas tais como, por
exemplo, educação, luta contra o crime transfronteiriço, justiça, proteção à saúde
e desenvolvimento sustentável, enquanto, no aspecto político, essa cooperação
está refletida no apoio dado pelo Suriname aos esforços do Brasil para se tornar
um membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas.
Na região do Caribe, as relações com os países do Mercado Comum e
da Comunidade do Caribe (Caricom) e da Associação de Estados Caribenhos
(AEC) merecem também uma atenção especial, quando se leva em conta a
intensidade da cooperação e o processo de integração sub-regional.
A presença do Suriname no Caricom deve ser vista no contexto dos seus
esforços para promover o desenvolvimento econômico mediante parcerias
estratégicas com países como Cuba e a República Dominicana. Um acordo
econômico e de livre comércio com a Costa Rica está igualmente sob
consideração.
Na condição de membro do Caricom, o Suriname está procurando
também aumentar a sua presença internacional e o seu envolvimento com
organizações internacionais para, entre outras coisas, expressar de forma efetiva
a sua visão sobre os temas relevantes.
Quanto aos países europeus, podemos salientar as relações entre o
Suriname e o Reino Unido, a Bélgica, a França, a Itália, a Federação Russa, a
Alemanha e os Países Baixos.
Levando em conta a importância do continente asiático na economia
mundial, o Suriname pretende fortalecer o seu relacionamento com vários
países daquele continente. Entre seus parceiros asiáticos prioritários incluem-
se China, Japão, Índia, Indonésia, Malásia e Coréia do Sul. São mantidas relações
bilaterais com esses parceiros nos campos financeiro, econômico, comercial,
político e, especialmente, técnico e cultural, processadas por meio de contatos
bilaterais ou dos tratados existentes, assim como por intermédio do Caricom
e da AEC (Associação dos Estados Caribenhos), da qual o Suriname é membro.
A Política externa da República do Suriname
174 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
174
A participação do Suriname nos níveis regional e sub-regional deve ser
considerada com base no fato de que, até hoje, tendo em vista os
acontecimentos globais, nenhum país conseguiu escapar das conseqüências
dos eventos do passado recente.
A esse propósito, precisamos referir-nos à erosão do tratamento especial
e preferencial das pequenas economias, assim como às negociações e aos
acontecimentos comerciais internacionais, que já criaram blocos reunindo países
geograficamente próximos, como por exemplo, o Nafta, o Mercosul, a União
Européia e o Caricom.
Tendo em mente esses fatos, a política externa da República do Suriname,
em especial sua abordagem econômica dos processos de integração regional,
foi ajustada aos desenvolvimentos mais recentes, para que os desafios causados
pela formação desses blocos possam ser enfrentados adequadamente.
A participação do Suriname em outros processos de integração se estende
ainda ao Tratado de Cooperação Amazônica, o que se deve considerar como
reflexo do nosso compromisso com a proteção do ambiente, a promoção do
desenvolvimento sustentável e a segurança econômica e social da população.
Além disso, a política de integração do nosso governo tem por meta
ajustar os contatos com o Mercosul a essa nova realidade de formação de
blocos, para firmar relações de cooperação e atribuir uma nova dimensão ao
relacionamento com os países-membros do Mercosul, especialmente o Brasil,
uma vez que intensificar esse relacionamento significa criar novas possibilidades
para o comércio e os investimentos.
A assinatura do Memorando de Entendimento entre o Suriname e o
Mercosul, no ano 2000, foi um primeiro passo nessa direção.
Instituir vínculos entre os processos de integração existentes é outro
objetivo da política surinamense de integração.
Tendo isso em vista e considerando as possibilidades e oportunidades
vantajosas que devem emergir dos esforços de integração com os países da
região, o Suriname enfatiza a importância de desenvolver e fortalecer as relações
com os países que participam do projeto Arco Norte, assim como os que
estão empenhados ativamente no projeto Iirsa para integração da infra-estrutura
física e dos setores de energia e comunicação.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Maria Levens
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Considerando sua localização geográfica, ao norte da América do Sul, e
sua presença no Caricom, o Suriname tem por objetivo criar um vínculo entre
a região do Caribe e o resto do continente sul-americano, assim como entre o
Caribe, a América do Norte e a Europa, para facilitar as correntes comerciais
entre essas regiões.
Os esforços do nosso governo para promover sua integração física com
o continente sul-americano devem ser considerados também da perspectiva
da expansão de suas relações comerciais.
No entanto, o Suriname considera a eliminação das desigualdades
econômicas entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos, bem como um
melhor acesso aos mercados e às fontes financeiras e de tecnologia, requisitos
básicos para que, especialmente os países em desenvolvimento, possam
beneficiar-se da sua maior participação nos processos de integração.
A participação do Suriname nas negociações da Alca, em conexão com
o Caricom, reflete nossos esforços para não ficarmos isolados por
acontecimentos que trazem conseqüências das quais nenhum país jamais pôde
se livrar. Nesse particular, o Suriname, juntamente com os países do Caricom
e da AEC, dedica atenção especial aos efeitos de acontecimentos recentes
sobre a economia nacional, sobretudo as conseqüências econômicas e sociais
da globalização. Assim, proteger as economias pequenas e vulneráveis será o
fator fundamental para minimizar esses efeitos negativos.
A participação do Suriname em várias organizações internacionais,
nosso compromisso com vários tratados e acordos internacionais e a
intensificação das relações com países de fora da região devem ser vistos no
contexto do processo de globalização que caracteriza atualmente a arena
internacional e que reflete também a crescente interdependência dos Estados,
como resultado de eventos a que a política externa da República do Suriname
precisa responder, ou seja, a movimentação incontrolável de pessoas, a
interdependência econômica e as atividades através das fronteiras, só para
citar alguns deles.
No plano da ACP, esforços estão sendo feitos para salvaguardar interesses
econômicos evidenciados, inter alia, na cooperação para o desenvolvimento
existente entre a ACP e a União Européia, mediante cooperação entre países
da África, do Caribe e do Pacífico.
A Política externa da República do Suriname
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No quadro das relações entre ACP e União Européia, a política externa
do governo surinamense procura também utilizar as vantagens decorrentes da
EPA em benefício do controle da pobreza por meio da cooperação comercial e
econômica.
Os laços entre o Suriname e o continente africano se manifestam sob a
forma de cooperação multilateral no nível do Grupo dos 77 e das relações bilaterais.
O Suriname participa também ativamente das Nações Unidas e da OEA,
organizações que abordam toda uma gama de temas globais e regionais,
mediante esforços conjuntos.
Por meio da sua participação nesses organismos, o Suriname busca
alcançar vários objetivos que têm importância nacional, incluindo:
• proteção dos direitos humanos (racismo, discriminação, gênero, proteção
à criança);
• desenvolvimento sustentável e proteção ambiental;
• controle da pobreza;
• controle do terrorismo e manutenção da paz e segurança;
• salvaguarda da democracia e do Estado constitucional.
A proteção e a promoção dos Direitos Humanos Fundamentais, assim
como a garantia dos direitos socioeconômicos, políticos e civis, integram
também os objetivos do Governo surinamense. Isso fica evidente a partir do
nosso compromisso de proteger os direitos das mulheres e das crianças, na
perspectiva do tratamento pelas Nações Unidas do trabalho infantil, do tráfico
de crianças, da prostituição infantil e da desigualdade dos direitos das mulheres.
Assim, o Suriname participa também da Convenção Interamericana sobre
a Prevenção, Punição e Erradicação da Violência contra as Mulheres (Cedaw)
e do Tratado de Belém do Pará, o que revela nosso compromisso com a
proteção dos direitos humanos e a busca da igualdade em todo o mundo.
Associado diretamente à proteção dos direitos humanos está o controle
da pobreza – fonte, muitas vezes, da violação dos direitos humanos.
Portanto, a política de desenvolvimento social do Governo surinamense
tem como objetivo promover na sociedade o bem-estar social, por meio da
participação no nível multilateral e em organizações internacionais mediante
programas de cooperação internacional.
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A atuação do Suriname no Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (Pnud) deve ser vista no contexto acima.
A assinatura, pelo Suriname, da Declaração do Milênio sobre o
desenvolvimento, controle e a completa erradicação da pobreza, demonstra
nosso compromisso com esse tema global, que representa um obstáculo ao
desenvolvimento de muitos países.
Com respeito ao meio ambiente, o Suriname não só participa do Tratado
de Cooperação Amazônica como assinou a Convenção de Estocolmo sobre
Poluentes Orgânicos Persistentes.
Ao promover gestões em favor do desenvolvimento e do bem-estar do
nosso país, cuidamos de que esses objetivos não sejam alcançados a custa do
meio ambiente, mas que o crescimento econômico se realize levando em conta
as condições naturais, ambientais e sociais. Nesse particular, a presença e o
papel das organizações internacionais, inclusive das não-governamentais, não
podem ser subestimados.
Com referência à paz e à segurança, sabe-se perfeitamente que a segurança
e a estabilidade são requisitos necessários para o desenvolvimento continuado
e a estabilidade socioeconômica.
Portanto, um dos objetivos da política externa é contribuir para a
promoção da paz e da estabilidade mundiais, no nível da ONU e da OEA, o
que fica claro no exame da questão fronteiriça entre o Suriname e a Guiana,
em que se busca uma solução pacífica.
Com respeito à manutenção da paz e da segurança no mundo, o Suriname
apóia todos os países comprometidos com o controle do terrorismo e da
violência internacional, os quais representam uma ameaça genuína não só para
os países onde essas atividades têm lugar fisicamente, mas também à segurança
nacional dos países que são mais ou menos envolvidos pelas redes do terrorismo
internacional, em função do cruzamento das suas fronteiras.
Por esse motivo, o Suriname participa do Tratado Internacional sobre o
Terrorismo, da Convenção sobre Proibição do Uso, Armazenagem, Produção
e Transferência de Minas Terrestres Antipessoal e sua Destruição, assim como
da Convenção Interamericana contra o Terrorismo. São instrumentos
legislativos sobre o controle do terrorismo e a manutenção da paz e da segurança
no Hemisfério Ocidental e no mundo.
A Política externa da República do Suriname
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Quanto às atividades terroristas, o Suriname está tomando providências
para ajustar as suas leis aos regulamentos internacionais que visam tornar mais
rigoroso o controle financeiro, especialmente a inspeção de transações incomuns
de finanças, nacionais e internacionais, assim como o controle fronteiriço.
Com respeito a esse tema, vale notar que essas medidas têm por base a
observação de que atualmente a segurança internacional é afetada não só por
ameaças militares, mas sobretudo pelo tráfico de narcóticos, atividades
criminosas, o crime transnacional organizado, a migração mais intensa, etc, o
que salienta a necessidade de se instituir um enfoque comum mais amplo para
a manutenção da paz e da segurança no mundo.
O Suriname é da opinião de que, diante do caráter multidimensional,
internacional e transfronteiriço do crime, a cooperação entre todos os países
do mundo é vital para que esse problema seja tratado de forma adequada.
No que diz respeito à proteção e à promoção da democracia e da boa
governança, o Suriname preenche suas obrigações, no quadro da OEA, ao
aceitar e executar os pontos de ação estabelecidos pela Carta Democrática
Interamericana.
A aceitação, pelo Suriname, da Carta da Sociedade Civil da Comunidade
do Caribe, em 1997, relativa à promoção da boa governança e à observância
dos direitos reconhecidos internacionalmente e da democracia representativa,
deve ser vista sob essa luz.
Para o nosso país, é um fato que o fortalecimento e a preservação da
democracia e da ordem legal democrática são essenciais para a formação de
uma sociedade pacífica e estável, em que as possibilidades de desenvolvimento
sejam melhor atendidas.
O compromisso do Suriname com o enfrentamento dos temas e ameaças
globais não deve ser subestimado. Entretanto, diante dos inevitáveis desafios
surgidos em decorrência, por exemplo, do processo de globalização, é da maior
importância que as pequenas economias tenham a oportunidade de se
beneficiarem do aumento da renda e da riqueza globais, merecendo menção
especial o fato de que a comunidade internacional deve exercer uma função de
apoio no exame dos efeitos prejudiciais da globalização.
A efetiva existência de uma comunidade internacional que apóie os
esforços de crescimento e as necessidades dos países em desenvolvimento,
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Tradução: Sérgio Bath.
contribuindo para criar uma atmosfera internacional de cooperação, é
fundamental para enfrentar de modo consiste os desafios surgidos em
conseqüência da maior movimentação de capital, pessoas e bens, e as ameaças
da pobreza, do terrorismo internacional, etc.
A Política Exterior do Uruguai
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primeira anotação que se impõe fazer é assinalar que esta contribuição
estará referida à política exterior do meu país no presente, sendo evidente que
qualquer tentativa de abranger a sua evolução histórica exigiria um esforço
muito mais amplo, não compatível com o objetivo e a extensão do presente
estudo.
De outro lado, é notório que se o que se busca é contar com uma espécie
de visão atualizada das grandes diretrizes da política exterior é mais razoável
começar com elas, esclarecendo se necessário certas referências ao passado.
A fortiori, o leitor desculpará o caráter sintético desta comunicação, a
qual, não obstante, procurará transmitir os conteúdos essenciais de uma política
baseada nos princípios fundamentais, objetivos, cenários, estratégias e atores
sobre os quais focalizaremos o nosso enfoque, não a partir de uma perspectiva
teórica ou abstrata, mas, para os primeiros daqueles princípios, uma visão
normativa, e no caso dos restantes associada aos próprios temas, sem prejuízo
da ênfase nas estratégias adotadas.
Da mesma forma, exporemos nossos pontos de vista sobre a atualidade
internacional, com plena consciência dos objetivos centrais desta publicação e
sem perder de vista que da nossa posição como Chanceler da República, o que
A Política Exterior
do Uruguai
1
Didier Opertti Badán
*
A
1
Nota do autor: resumir em 20 páginas a política exterior e a inserção externa do Uruguai implica um esforço
de síntese e o risco do reducionismo, submetendo-me neste sentido ao julgamento do leitor.
* Ministro das Relações Exteriores da República Oriental do Uruguai
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aqui se consigne repousará na linha política assumida pelo Governo, em particular
pelo Senhor Presidente, atuando com o Ministro das Relações Exteriores (Art.
168, introdução) da Constituição uruguaia e exposta reiteradamente no Parlamento
(2000-2004).
Neste sentido, temas como a integração, o Mercosul, sua convergência com
a Comunidade Andina e o possível papel da Aladi não poderiam ficar ausentes.
Da mesma forma, embora possivelmente com perspectivas distintas, as
negociações externas como as do Mercosul com a União Européia e mesmo
as da Alca, continuam a ocupar, pelo menos de imediato, um papel significativo
na nossa política exterior, sem prejuízo das relações bilaterais.
A atual Rodada de Doha implica sem dúvida um capítulo importante da
política exterior uruguaia, tanto pelo conteúdo e o alcance desse disciplinamento
do comércio internacional sobre bases mais justas, equilibradas e equitativas,
como também pelo que representa como afirmação do multilateralismo, que
mesmo sem entrar em detalhes voltou a ter na OMC, em Genebra, uma
importância indiscutível.
O presente processo de revisão eventual das Nações Unidas, a cargo de
um grupo de personalidades seleccionadas pelo Secretário Geral Kofi Annan,
provoca de nossa parte uma atenção especial, particularmente no que se refere
aos membros do Conselho de Segurança, como também com respeito às
relações desse órgão com os outros componentes da Organização, tais como
a Assembléia Geral e o Conselho Eonômico e Social, e a destes órgãos com o
próprio Secretário Geral e igualmente com os Estados que cooperam com as
Operações de Manutenção da Paz (OMP).
Regionalismo e universalidade, globalismo e integração constituem
termos por vezes antinômicos, de cuja conciliação deve ocupar-se a comunidade
internacional em seus diferentes cenários e, por meio dos seus próprios
instrumentos.
Capítulo I. Princípios Básicos da Política Exterior Uruguaia.
1) Nossa política exterior se baseia na Constituição da República de 1967,
modificada em 1996, a qual consagra certos princípios gerais e fundamentais,
produto, essencialmente, de consensos históricos e políticos alcançados
A Política Exterior do Uruguai
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laboriosamente, sustentados pelo princípio superior da Soberania, radicada na
Nação (Artigo 4) e com pleno apego ao Estado de Direito (Seção II, Direitos,
Deveres e Garantias); a nação adota, por sua vez, como forma de Governo, a
“forma democrática republicana”, com exercício direto do “corpo eleitoral
nos casos de eleição, iniciativa e referendo, e indiretamente, pelos poderes
representativos estabelecidos pela Constituição; sempre de acordo com as regras
expressas na mesma” (Artigo 82)
2) Têm força igualmente de normas integrantes do núcleo Nação e
Soberania princípios básicos como a cláusula de que “todas as diferenças
surgidas entre as partes contratantes serão decididas pela arbitragem ou por
outros meios pacíficos.
3) Juntamente com esse preceito se situa um mandato que, no presente,
alcança irrefutável vigência política: “A República buscará a integração social
e econômica dos Estados Latinoamericanos, especialmente no que se refere à
defesa comum dos seus produtos e matérias primas. Por outro lado, procurará
a complementação efetiva dos seus serviços públicos” (Artigo 6).
4) Naturalmente, quanto aos direitos, deveres e garantias, verdadeiro
núcleo central da Constituição, o Uruguai, como Estado de direito, marca sua
presença na comunidade internacional a partir dos princípios das liberdades
pública e privada, sem outra distinção entre as pessoas a não ser seus “talentos
e virtudes” (Artigo 8): freio de efetividade eloquente a qualquer tipo de
discriminação.
5) Em suma, portanto, a política exterior do Uruguai não se pode afastar
desses princípios, e embora isso possa parecer um pronunciamento por vezes
teórico, ou excessivamente retórico, longe disso a política exterior cumpre um
papel insubstituível de diretriz e orientação que converte nossa conduta externa
em atos da nação e dela fazem uma política de Estado, o que implica em
compromisso de toda a comunidade política, com esses princípios.
6) Tudo isso, naturalmente, não tem qualquer efeito inibitório sobre uma
interpretação correta da realidade, seja regional ou sub-regional, hemisférica
ou mundial, mas, ao mesmo tempo, sem perder de vista a história da formação
do nosso país autônomo e independente, ao longo de praticamente todo o
século dezenove. É a época, também, do traçado de limites soberanos e de
fronteiras políticas definidas com respeito especialmente aos nossos vizinhos,
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a Argentina e o Brasil, com os quais teríamos de construir o tecido de um
relacionamento mais denso e profundo, no quadro de prioridades necessárias
e irrefutáveis, ativadas pelo processo de integração.
7) Naturalmente, o princípio da independência implica o da igualdade
soberana dos Estados, com todas as suas conseqüências.
Com certeza nenhum desses princípios pode ser desprezado, ou deixado
de lado, pois isso significaria um afastamento do mandato constitucional e um
rompimento do mais caro ativo histórico da República, pondo em crise a
chamada política exterior do Estado. A este propósito, é oportuno levar em
conta que esse compromisso foi estabelecido e consolidado depois do período
de quebra das instituições democráticas (1973-1984).
Os compromissos internacionais assumidos livremente pelo Uruguai, no
sistema das Nações Unidas, em especial na sua Carta, assim como dentro do
sistema interamericano, com a Carta de Bogotá da Organização dos Estados
Americanos (OEA), e com outros instrumentos básicos, não fazem senão
reafirmar os referidos princípios, que em escala internacional se manifestam de
forma expressiva na não-intervenção e na autodeterminação com pleno respeito
do Direito Internacional.
8) Poderíamos dizer, assim, que em matéria de princípios básicos da
política exterior uruguaia existe um corpo consolidado de preceitos e mandatos
de cuja observância são responsáveis, respectivamente, o Poder Executivo, no
que respeita a sua administração e tomada de decisões, e o Poder Legislativo,
enquanto controle político e, de forma específica, quanto a “Decretar a guerra
e aprovar ou reprovar, por maioria absoluta de votos do total de membros da
cada Câmara, os tratados de paz, aliança, comércio e as convenções e contratos
de qualquer natureza celebrados pelo Poder Executivo com potências
estrangeiras.” (Art. 85).
9) As competências mencionadas foram matéria de legislação
complementar, na qual se destaca a Lei do Serviço Exterior da República
(Num. 14.206), voltada basicamente para a organização desse Serviço, em
especial no que se refere aos cargos de maior confiança (Art. 168, 2).
Seguramente não se trata de desenvolver aqui em detalhes esse ponto,
embora sua menção seja necessária como afirmação do critério de
profissionalismo da carreira diplomática, garantia de um serviço exterior
A Política Exterior do Uruguai
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moderno e eficiente, e de uma continuidade essencial no trato dos assuntos
internacionais.
Com respeito às palavras introdutórias, abordemos diretamente os temas
concretos da nossa atual política exterior.
Capítulo II. Temas Centrais da nossa Política Exterior.
I. O Uruguai no Mercosul
10) A abordagem deste ponto exige certas indicações básicas.
a) O Uruguai com a assinatura do Tratado de Assunção e seus Protocolos
básicos posteriores (incluídos Ouro Preto, Brasília e Olivos), deu cumprimento
ao mandato constitucional do pré-citado Artigo 6 da Constituição uruguaia.
b) Dentro do mesmo mandato constitucional estão situados os acordos
com a Comunidade Andina celebrados pelo Mercosul em dezembro de 2003,
que abrange os “Estados Latino-americanos”.
c) A Constituição contemplou a “integração social e econômica”, e por
isso outras dimensões, como por exemplo a integração política, demandarão a
prévia reforma do texto constitucional.
Sobre este ponto, não se trata de abrir um debate técnico, mas,
essencialmente, de advertir que o pacto político fundacional registrado pela
Constituição nacional – e, de modo geral, por várias das Constituições – não
pode extraviar-se no caminho dos desenvolvimentos institucionais ou
orgânicos, ainda que derivem dos órgãos do Mercosul ou entidades similares.
É o caso, neste sentido paradigmático, do possível Parlamento, seja latino-
americano, sul-americano ou do Mercosul, se realmente se procurasse criar
um novo órgão com atribuições supranacionais, superiores às normas legais
do nosso Parlamento, com fundamento seja no princípio da competência seja
no da hierarquia, os quais, juntamente com o da derrogação, constituem
fundamentos básicos de qualquer ordem jurídica.
Além da denominação a escolher (sem dúvida um tema importante), os
projetos apresentados pelos países sócios do Mercosul, em particular a
Argentina e o Brasil, nos despertam a maior atenção, particularmente enquanto
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podem dar uma resposta adequada ao fundamento de opinião pública em que
se procura repousar o Mercosul. Neste sentido, o aprimoramento da
competência e do funcionamento da Comissão Parlamentar Conjunta nos
parece adequado, sobretudo se levarmos em conta as faculdades que lhe outorga
o Protocolo de Ouro Preto, ao incumbi-la, por sua determinação, de “acelerar
os procedimentos internos correspondentes nos Estados-parte para a pronta
entrada em vigor das normas emanadas dos órgãos do Mercosul” de coadjuvar
a “harmonização legislativa” e examinar “temas prioritários”, mediante
incumbência do Conselho (sobre este ponto foi assinado um acordo de
cooperação entre os dois órgãos). São todas elas faculdades consagradas pelo
Artigo 25 do Protocolo de Ouro Preto, além da competência para fazer
“Recomendações ao Conselho do Mercado Comum, por intermédio do Grupo
Mercado Comum” (Artigo 26).
Assim, deveríamos prosseguir com o exercício de análise deste tema
sem acrescentar-lhe conteúdos e qualificações que possam dificultar a obtenção
do devido consenso, regra de ouro sobre a qual se apoia toda a arquitetura
institucional do Mercosul.
11) Embora ainda não tenha atingido o nível de uma proposta formal,
constante de projeto articulado, a idéia de uma nova entidade latinoamericana
que apareça com projeção externa maior do que a do Mercosul, e que abarcaria
em especial os países da América do Sul tem estado e está presente no discurso
público dos Chefes de Estado dos países associados, ganhando assim
importância significativa.
É preciso reconhecer que embora represente um modelo socioeconômico,
com ênfase comercial, a integração latino-americana se manifesta atualmente
dentro de uma dinâmica em essência política, transcendente, a cuja consideração
não nos podemos esquivar, embora saibamos que essa questão abre um debate
mais amplo, que tocaria questões fundamentais como a própria preparação desse
debate, o alcance político e institucional da idéia, o cenário da sua análise e
consideração, as consultas de opinião pública imprescindíveis para decisões dessa
magnitude, o tempo necessário para decantar o alcance e os conteúdos, tendo
em conta o caráter “fundacional” da iniciativa, em si mesma permanente e não
conjuntural, por si mesma não tanto ideológica como histórica.
12) A isso se acrescenta, como lembrete, o fato de que a América do Sul,
mais Cuba e México, contam com a Aladi, única entidade de integração que abarca
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o Mercosul e a Comunidade Andina, mais o Chile, Cuba e México. A Aladi pode
servir para promover uma articulação intra-regional que compreenda comércio,
serviços e infra-estrutura, cooperação científica e tecnológica, integração
sociocultural, convocatória e serviço a outros agentes ativos da integração (como
trabalhadores, empresários, etc.), sem incorrer no risco sempre presente da inflação
institucional.
Nesse quadro de referência, impõe-se levar em conta aqui o projeto Iirsa
(Integração da Infra-estrutura Regional Sul-Americana): um projeto concreto
que abrange comunicações, transporte, energia., etc. O Uruguai tem grande
interesse por ele, com propostas específicas, e todos os seus participantes
esperam resultados muito tangíveis.
13) Nossa política exterior não ignora, certamente, nem a oportunidade
nem a magnitude desses temas, e por isso estima-se que um exame
circunstanciado dos níveis de concertação implicados, em caráter prévio, seria
imprescindível enquanto avance o processo.
Cenários como o do próprio Mercosul, per se e ampliado, e em
coordenação com a CAN, no contexto mais amplo da integração regional
(Aladi) mostram-se adequados para o referido exercício, desde que o
instrumento institucional já exista, não sendo necessário criá-lo.
14) Desde a criação do Mercosul, até o presente, a política exterior do
Uruguai tem privilegiado, sem solução de continuidade, o fortalecimento
institucional, que é um dos seus objetivos prioritários, conforme ficou claro na
participação ativa assumida pelo país em Assunção, Ouro Preto e ultimamente
na discussão e elaboração do Protocolo de Olivos, culminadas felizmente com a
instalação oficial em Assunção, nestes dias, do Tribunal Permanente de Revisão
do Mercosul (em 13 de agosto de 2004). Sem omitir, decerto, a transformação
da Secretaria Administrativa (Decr. 30/02), antiga SAM, em Secretaria Técnica
ou simplesmente Secretaria do Mercosul, cuja competência e perspectivas
constam do excelente trabalho por ela preparado para o primeiro semestre de
2004, sob o título “Um Foco para o Processo de Integração Regional”
(Montevidéu, julho de 2004).
15) Trabalhamos também na recente criação do Coreper (Decr. 11/03,
de 6 de outubro de 2003), atribuindo a seu Presidente um importante papel
coadjuvante no desenvolvimento da integração regional e ao próprio órgão o
valor de um foco diplomático, de natureza política, que hierarquiza a
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representação diplomática dos Estados-parte no funcionamento regular da
entidade Mercosul, em coordenação com os outros órgãos às quais está
articulado.
16) Quanto aos aspectos comerciais, para comprovar o compromisso
do Uruguai com o Mercosul basta ver nossa atitude permanente de busca de
fórmulas de acordo sobre os temas mais variados.
Como exemplo mais recente, mencionaria os acordos da CAN, de
dezembro de 2003, a defesa clara e sustentada da necessidade de responder às
assimetrias dos Estados sócios do Mercosul, e a posição que assumimos em
Puerto Iguazú., em julho de 2004, em favor da Livre Circulação de Mercadorias
e de Processos Produtivos, resoluções ainda não aprovadas pelos quatro sócios,
com um amplo conjunto de soluções constante do repertório normativo
adotado pela Secretaria.
17) No que se refere aos inadiáveis alinhamentos macroeconômicos com
a participação dos Ministérios de Economia e Finanças, assim como dos Bancos
Centrais, o Uruguai tem levantado idéias e propostas, constituindo uma linha
da nossa política exterior promover o processo de integração, ao preservá-lo
de variantes traumáticas sobre as quais já existem antecedentes notórios na
região.
18) Em suma, o Mercosul representa para o Uruguai um instrumento de
integração com o qual o país está comprometido por mandato constitucional
vigente, o que significa uma participação ativa em todos os seus órgãos, e uma
atitude séria e responsável tanto no nível da negociação e da tomada de decisões
como na ampliação do número de Estados associados.
Com respeito a este último ponto, constitui um dado relevante a
associação do Peru e da Venezuela, assim como o propósito revelado pelo
Governo mexicano, na recente Cúpula de Puerto Iguazú.
O corpus juris do Mercosul inclui, além da normativa econômica e
fundamentalmente comercial-aduaneira, definições de natureza política tais
como a do Protocolo de Ushuaia, em matéria de compromisso democrático.
A esse compromisso, que adquiriu projeção em certas situações vividas por
alguns dos Estados-parte, o Uruguai atribui a maior importância.
Cabe mencionar, por outro lado, que esse compromisso institucional
configura uma valiosa identificação internacional, na medida em que marca a
A Política Exterior do Uruguai
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maturidade política do Mercosul, colocando-o em pé de igualdade com
organizações tais como a União Européia, por exemplo, em linha com o Tratado
de Madrid, de 1994.
19) Finalmente, a Chancelaria uruguaia mantém fundadas expectativas a
respeito da necessidade de uma oportuna revisão do Protocolo de Ouro Preto,
e nesse sentido reitera a sua disposição de cooperar para que se concretize o
que em Puerto Iguazú se chamou de Ouro Preto II, convocado tendo em
vista não só os primeiros dez anos do Protocolo como a ocasião mais propícia
para legitimar e qualificar em nível superior determinadas criações feitas através
de Resoluções ou Decisões, talvez não suficientemente sustentadas pelo Direito,
introduzindo por certo os novos elementos que sejam necessários para dotar
o Mercosul de um melhor instrumental jurídico, assim como de um enfoque
político e institucional mais realista.
Atualmente, a nossa Chancelaria trabalha sobre esse tema, e dentro de
algum tempo terá condições de propor as suas idéias sobre ele.
II. O Mercosul e seu Relacionamento Externo
20) Dentro deste capítulo sintético passo a mencionar os seguintes exercícios:
1) Com a União Européia: essas negociações levam vários anos, e embora
se possa dizer que não abandonaram o objetivo de alcançar um acordo de
liberação comercial, a realidade mostra dramaticamente certas dificuldades
importantes.
Dentre elas, a nosso juízo, há uma fundamental: a situação de “sociedade
de bem-estar” alcançada pelos países europeus (embora esteja limitada aos
Quinze), com uma forte sustentação no protecionismo, especialmente em
matéria agrícola, representa para esses países um capital quase imodificável,
ou intocável, enquanto os países do Mercosul estamos empenhados,
fundamentalmente, em recuperar ou alcançar graus de dignidade vital básicos,
através do meio mais legítimo que é o de colocar no mercado nossas
exportações, em termos de qualidade e competição. Esta é simplesmente a
situação que enfrentamos.
Não obstante, há alguns fatores remanescentes que deverão incidir no
resultado final da negociação, se ela tiver sucesso. Esses fatores são os seguintes:
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
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a) Um evidente esgotamento do modelo protecionista europeu, suportado
internamente pelo consumidor e o contribuinte, e externamente pelos
recentes progressos da Rodada de Doha, em nível do Conselho Geral
da Organização Mundial do Comércio – tema ao qual retornaremos;
b) O impacto ainda não suficientemente dimensionado da renda dos
novos sócios da União Européia.
c) A partir de uma visão positiva, os resultados – pelo menos em termos
declarativos – da Cúpula de Guadalajara de maio deste ano, a primeira
da União Européia dos 25, com a América Latina e o Caribe (33
Estados), que impulsionam um fundo comum de valores e de
cooperação diferenciado dos anteriores, na medida em que nem todos
os europeus que se sentaram à mesa das negociação são países ricos, e
o diálogo se torna assim mais equilibrado.
Isto, sem prejuízo de reconhecer que a ampliação, as expectativas e os
direitos dos novos sócios da União Européia podem transformar-se em
processos de negociação não precisamente favoráveis ao Mercosul e à América
Latina, que são afetados seriamente pela marginalidade e a pobreza.
d) A iminência do fim do mandato dos atuais Comissários da Comissão
Européia, que acrescenta ao deadline do mês de outubro deste ano o
termo da negociação inter-regional, um elemento não só pessoal, mas
de encerramento de etapa sem dúvida relevante.
e) O melhor conhecimento das demandas e ofertas, produto não só do
tempo transcorrido e das negociações realizadas, mas também de uma
aproximação progressiva, capaz de identificar com rigor os termos do
que pode ou não ser negociado Sobre este ponto, o Uruguai reconhece
que as maiores economias do Mercosul – em particular o Brasil e a
Argentina –, pagarão o preço mais alto pela abertura dos seus mercados
aos produtos industriais e aos serviços oferecidos pela UE.
Isso, também, não significa ignorar que, sendo a Europa o maior
investidor estrangeiro na América Latina (mais de 222 bilhões de euros em
2003), é inteiramente lógico que se procure melhorar a condição econômica
dos nossos países como prêmio e garantia de estabilidade social e política,
sendo notório o papel que nesse sentido terá a abertura dos mercados europeus
a nossa produção exportável.
A Política Exterior do Uruguai
190 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
190
De qualquer forma, o crescimento do comércio intra-regional,
sensivelmente maior na União Européia do que na América Latina – e portanto
no Mercosul – continuará sendo um dos objetivos sobre os quais devemos
continuar trabalhando. Só 33% do que foi exportado pelo Uruguai em 2003
teve por destino o Mercosul, enquanto a Nafta e a UE passaram de 24% a 42%.
Esse último valor habilita o montante agregado que atribuímos à convergência
Mercosul – Comunidade Andina.
Por fim, estimamos que de uma e outra parte existem interesses políticos
e econômicos que nos induzem a pensar que, no final das contas, esse já
demasiado extenso processo de negociação será concluído.
2) Com a Comunidade Andina: após vários anos de negociação foi
possível chegar a um acordo comercial, sem esquecer o alcançado em nível
institucional, com a aceitação da Venezuela na condição de Estado Associado,
a indicação de Colômbia e Equador para que sejam aceitos, quando solicitem
o respectivo ingresso e, fora da CAN, o convite para que o México participe
nas reuniões até a assinatura dos respectivos acordos comerciais.
No relativo às negociações comerciais com a CAN, elas começaram em
16 de abril de 1998 com a assinatura de um Acordo Quadro entre os dois
blocos, formalizando o compromisso de negociar una Zona de Livre Comércio.
Após um longo processo negociador, por ocasião da Cúpula de Brasília,
em dezembro de 2002, chegou-se à assinatura de um novo Acordo Quadro
Mercosul-Comunidade Andina, com o objetivo de concluir as negociações
tendentes a alcançar um acordo de livre comércio em 31 de dezembro de
2003, meta alcançada no dia 16 de dezembro daquele ano, em Montevidéu.
Surgiu então, neste contexto, a iniciativa de um Espaço de Livre Comércio na
Aladi, com base nos trabalhos de um grupo informal integrado por todas as delegações.
Em 4 de agosto foi realizada reunião de Ministros, na cidade de
Montevidéu, à qual se conseguiu trazer um impulso político fundamental,
cristalizado com êxito na assinatura do ACE 59 entre o Mercosul, de um lado,
e de outros Colômbia, Equador e Venezuela, países membros da CAN (no dia
16 de dezembro de 2003).
De seu lado, o Uruguai concluiu a negociação de todos os seus temas que se
encontravam inconclusos, e o mesmo aconteceu com todas as Partes, com exceção
do Paraguai e do Equador, entre si: até o presente esses países continuam negociando.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Didier Opertti Badán
191
No dia 12 de agosto, as delegações das respectivas presidências pro
tempore (Brasil e Venezuela) passaram uma Nota à Secretaria Geral da Aladi
solicitando o início do processo de protocolização do Acordo.
Vale mencionar que as delegações se comprometeram a prorrogar os
acordos bilaterais vigentes, enquanto não entre em vigor a ACE 50 Mercosul-
CAN.
3) No âmbito da Alca: Desde a reunião de Miami de fins do ano passado
pouco aconteceu no nível da negociação global, sem prejuízo de que fossem
notados progressos ocorridos em nível bilateral, e mesmo em grupos de países,
entre os Estados Unidos da América e países latino-americanos.
No que diz respeito strictu sensu ao Mercosul, não se registram novos
capítulos de concertação nesse cenário inteiramente marcado, entre outros
fatores, pelo processo eleitoral em curso nos Estados Unidos. Mas os progressos
da Rodada de Doha e os eventuais resultados da negociação entre o Mercosul
e a UE devem produzir alguns efeitos sobre todos os aspectos da negociação
comercial externa da nossa região, inclusive na Alca.
4) Mercosul e terceiros Estados: âmbito bilateral:
É importante mencionar os diferentes campos de negociação, adiante
relacionados:
A) Mercosul – Bolívia
No que diz respeito essa negociação, o Uruguai aceitou a iniciativa de
acelerar e aprofundar os cronogramas de desgravação hoje vigentes (ACE
36), desde que tenham caráter recíproco.
B) Mercosul – Chile
Na LIV Reunião do GMC, o Uruguai se comprometeu a fazer esforços
tendentes à aprovação interna do Protocolo de Solução de Controvérsias. .
Por outro lado, cabe assinalar que está prevista uma reunião da Comissão
Administradora do ACE 35 (Mercosul-Chile) para o mês de setembro.
C) Mercosul – Peru
Em relação com o ACE Mercosul-Peru, falta apenas finalizar o anexo
do Uruguai relativo ao Programa de Liberação Comercial (PLC) para proceder
à sua protocolização na Aladi.
A Política Exterior do Uruguai
192 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
192
De seu lado, os acordos bilaterais do Peru com cada um dos países do
Mercosul foram prorrogados até o dia 30 de setembro de 2004.
D) Mercosul – Índia
(Acordo de Preferências Fixas Tarifárias)
Em 25 de janeiro de 2004 foi assinado em Nova Delhi, o Acordo de
Preferências Fixas Tarifarias, em processo de negociação. Por outro lado, foi
assinada uma side letter mediante a qual se concordou em completar em 30 de
junho do corrente ano a negociação dos capítulos restantes (lista de produtos,
regras de origem, salvaguardas e solução de controvérsias).
Na reunião negociadora celebrada em Nova Delhi entre 24 e 26 de junho,
continuaram a ser analisados os textos normativos referentes aos anexos sobre
Regras de Origem, Salvaguardas e Solução de Controvérsias. Outrossim, houve
uma troca de listas de produtos entre o Mercosul (205) e a Índia (352).
Com respeito a Zonas Francas, o tema foi considerado na última Reunião
do Grupo Mercado Comum, celebrada em Buenos Aires. A esse respeito, as
Delegações concordaram nessa oportunidade em que “em um prazo de dez
dias, o Mercosul identificará os setores cuja produção, originária das Zonas
Francas de Manaus e a da área aduaneira especial da Terra do Fogo poderão
beneficiar-se das previsões do Acordo. Acordou-se em solicitar à Índia a mesma
identificação com respeito a suas Zonas Francas. Nestes dias será realizada
uma videoconferência (em 20 de agosto), precedida nos dias 18 e 19 de uma
reunião interna do Mercosul, a qual abordará as relações extra-regionais de
modo geral (Índia, SACU, Marrocos, China, CCG, etc.) assim como uma nova
reunião negociadora no mês de setembro de 2004, no Brasil.
E) Mercosul – Sacu
No dia 16 de junho do corrente ano foi realizada em São Paulo, por
ocasião da conferência da Unctad, a I Reunião Técnica Mercosul-Sacu, durante
a qual a Delegação do Uruguai apresentou sua posição obre Zonas Francas,
que foi incluída no texto do Acordo Preferencial de Comércio em negociação.
F) Mercosul – China
Nos dias 30 de junho e primeiro de julho de 2004 foi realizada a reunião
entre o Mercosul e a China, intitulada: “V Diálogo Mercosul-China. Nela foram
desenvolvidos os seguintes pontos centrais:
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Didier Opertti Badán
193
• A insistência do Governo da China na necessidade do reconhecimento
da República Popular da China por parte do Paraguai.
• Foram criados Grupos de Ligação.
• Proposta do Mercosul para a negociação de um Acordo de Preferências
Fixas, não aceita pela China.
Proposta Chinesa para celebrar uma Cúpula Mercosul-China no mês de
novembro do corrente ano.
G) Mercosul – Coréia
No dia 4 de junho de 2004, realizou-se em Buenos Aires a V Reunião de
Alto Nível Mercosul-Coréia. Nessa oportunidade as duas partes decidiram
emitir um Comunicado de Imprensa Conjunto.
Por outro lado, coincidindo com essa reunião, foi realizado um seminário
sobre o tema “Novas Perspectivas das Relações Comerciais e de Investimento
entre a Coréia e o Mercosul”.
Atualmente está sendo tratada em nível do GMC a proposta coreana de
realizar um estudo de factibilidade de um acordo comercial, incluindo a
possibilidade de um acordo de livre comércio que permita o incremento das
relações comerciais e econômicas entre o Mercosul e a Coréia.
I) Mercosul – Egito
Data de 5 de janeiro de 2004 a proposta de um Acordo Quadro para
criar uma Área de Livre Comércio entre o MERCOSUL e a República Árabe
do Egito.
Na oportunidade da XXVI Reunião do Conselho do Mercado Comum,
em 7 de julho de 2004, foi assinado em Puerto Iguazú o Acordo Quadro
Mercosul-Egito.
J) Mercosul-Japão
Em 9 de outubro de 2002 teve lugar a V Reunião de Alto Nível Mercosul-
Japão. Nesse encontro houve um intercâmbio de informações a respeito da
situação económica das duas partes, as perspectivas comerciais Japão-Mercosul,
a posição do Mercosul e do Japão a respeito dos Acordos de Livre Comércio
e das negociações multilaterais na OMC, assim como das relações de comércio
e de investimento entre o Mercosul e o Japão.
A Política Exterior do Uruguai
194 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
194
Com respeito aos mecanismos destinados a estimular o comércio entre
o Mercosul e o Japão, mencionou-se a possibilidade de criar um Centro de
Promoção do Mercosul no Japão, assim como a possível realização de missão
comercial conjunta a este país. Por outro lado, foi realizada uma apresentação
por representante da Iirsa (Iniciativa de Infra-estrutura da América do Sul)
sobre as oportunidades que a região oferece às empresas japonesas.
A VI Reunião de Consulta de Alto Nível Mercosul-Japão foi celebrada
em Tóquio nos dias 28 e 29 de julho de 2004.
K) Mercosul – Conselho de Cooperação do Golfo (Ccg)
Existe atualmente em consideração pelos Estados-parte do Mercosul
uma proposta de “Acordo Quadro” de Cooperação entre o Mercosul e o CCG,
a qual tem despertado reações positivas.
L) Mercosul – União Magreb Árabe (UMA)
Em abril de 2003, durante a visita ao Reino de Marrocos do Doutor
Eduardo Duhalde, Presidente da Comissão de Representantes Permanentes
do Mercosul (Coreper) foi apresentada, em nome do Mercosul, uma mensagem
no sentido da boa disposição para estabelecer os primeiros contatos com a
UMA afim de definir as possibilidades de chegar posteriormente a algum tipo
de acordo entre os dois blocos.
M) Mercosul-Cingapura
Em março de 2004 foi recebida iniciativa de Cingapura de iniciar contatos
para a assinatura de um Acordo de Livre Comércio com o Mercosul, concretizada,
em 3 de junho, com uma proposta para o início dessas negociações, denominada
“Entendimento de Cooperação em Matéria de Comércio e de Investimentos.
Durante a LIV Reunião do GMC foi decidido fazer contra-proposta de
um Memorando de Entendimento entre o Mercosul e Cingapura.
N) Mercosul-Caricom
As tentativas de aproximação entre Mercosul-Mcca e Mercosul-Caricom
datam de 1998 e até o momento não puderam adquirir forma concreta.
O) Mercosul-México
No último dia 21 de abril de 2004, por ocasião da visita à Argentina do
Dr. Luis Ernesto Debes Batista, Secretário de Relações Exteriores do México,
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Didier Opertti Badán
195
o México anunciou oficialmente a intenção desse país de incorporar-se ao
Mercosul, a qual recebeu a melhor reação por parte do bloco.
P) Mercosul-Apec
Há um convite feito ao Mercosul para assistir, durante o mês de novembro
do presente ano, ao “APEC Joint Ministerial Meeting”, a ser realizado em
Santiago do Chile.
Q) Mercosul-Marrocos
Com expressões de conformidade os Estados-parte do Mercosul
receberam o interesse do Reino de Marrocos em subscrever um Acordo de
Preferências Fixas com o Mercosul.
Capítulo III: O Uruguai na Rodada Doha
21) Os 147 membros da Organização Mundial de Comércio chegaram
no Conselho Geral da OMC, em 31 de julho corrente, a um acordo sobre as
negociações comerciais da Rodada de Doha, ao qual a política externa do
Uruguai reconhece, além de seus detalhes e perfectibilidade, um valor
relevante do ponto de vista político. Isto, em primeiro lugar, especialmente
quando se põe em contexto a situação remanescente depois da reunião de
Cancún.
É preciso reconhecer, igualmente, que os esforços feitos em Cancún
pelos que promoveram a negociação – em particular a Presidente do Conselho
e o próprio Governo sede –, somados aos esforços realizados em Genebra,
nos meses que se seguiram, assim como, na etapa final, a uma atuação decisiva
do chamado Grupo dos Cinco Países Interessados (Estados Unidos, União
Européia, Brasil, Índia e Austrália) culminaram com um instrumento quadro
que respeita a estrutura do documento original de Cancún, e propõe um
acordo para as bases da eliminação dos subsídios à exportação de produtos
agrícolas, bem como para uma redução substantiva da ajuda interna prestada
pelos países desenvolvidos, a qual produz efeitos distorcivos no comércio
internacional.
Vale recordar, como dado muito concreto, que no primeiro ano do futuro
acordo, o conjunto dessa ajuda deverá ser reduzido em pelo menos vinte por
cento.
A Política Exterior do Uruguai
196 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
196
Em outros dos pilares da negociação – acesso ao mercado, que incluirá
os produtos não agrícolas e os serviços – será preciso continuar negociando
vigorosamente.
Neste sentido, é preciso salientar que três dos quatro sócios do Mercosul
estiveram presentes na aludida sessão de 31 de julho, o que deixa clara a
importância que a política exterior do Uruguai e do Mercosul atribui a esse
exercício multilateral. Nele cabe destacar o papel desempenhado pelo Chanceler
brasileiro, Celso Amorim, que foi reconhecido internacionalmente, e muito em
especial a nível regional.
Tudo o que foi exposto até aqui não nos impede de advertir que, ao
serem retomados os seus trabalhos, em setembro de 2004, o Conselho da
OMC terá diante de si uma árdua tarefa, que inclui a atribuição de efeito
vinculante a um nível de compromisso que tem em seu favor a força do
consenso.
O Uruguai continuará prestando sua cooperação a esses trabalhos no
mais alto nível técnico, diplomático e político.
Capítulo IV: O Uruguai nas Nações Unidas
23) Membro fundador das Nações Unidas, o Uruguai acompanha com
preocupação a agenda e as decisões da Organização responsável pela paz e
segurança da comunidade internacional, hoje severamente prejudicada por
conflitos armados, que respondem a uma variedade de razões, mas que têm
em comum o sofrimento aparentemente sem fim de povos e nações.
A política exterior do Uruguai é importante com respeito aos temas
principais das Nações Unidas pelo que representa de multilateralismo e
universalidade, e pelo seu caráter a nosso ver insubstituível no seu mandato
superior de proteção da comunidade internacional no seu conjunto.
Por esta razão, continuaremos participando daquelas instâncias que
impliquem seja o aperfeiçoamento do Sistema das Nações Unidas, seja a
adoção de compromissos certos e sérios como o do combate à fome, levado
à frente pelo Governo brasileiro, e em particular pelo seu Presidente, Senhor
Luiz Inácio Lula da Silva. Dela participará, pessoalmente, o Presidente do
Uruguai, Doutor Jorge Battle Ibañez.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Didier Opertti Badán
197
24) O Uruguai deseja conhecer, logo que possível, os trabalhos preparados
pelo grupo de personalidades nomeado pelo Secretário Geral para expor suas
idéias e experiências a respeito do possível aperfeiçoamento das Nações Unidas,
com a atenção focalizada sempre nos melhores critérios de equidade para um
funcionamento harmônico dos seus diferentes corpos de decisão e recomendação.
25) O Uruguai apoia os trabalhos da Unctad, como ilustra a sua
participação na última Conferência desta Organização, realizada em São Paulo
com a presença do Presidente Battle e da sua delegação, por entender que um
desenvolvimento com eqüidade é a melhor garantia da paz.
26) O Uruguai apóia, também, os trabalhos da Cepal, cuja difusão procura
contribuir de forma responsável, utilizando-os com proveito.
27) No âmbito jurídico, e de acordo com as melhores tradições do país,
a política exterior uruguaia dá atenção particular aos trabalhos de codificação
e desenvolvimento progressivo do Direito Internacional, realizados pelas
Nações Unidas no âmbito da Comissão de Direito Internacional – que
integramos pessoalmente –, assim como pela Sexta Comissão da Assembléia
Geral, levando em conta de forma especial o tema dos aqüíferos, dentro do
tema dos “Recursos Naturais Compartilhados” (que abrange também o gás e
o petróleo). Neste sentido, é preciso lembrar que o Uruguai apresentou ao
Mercosul, e difundiu fora dessa entidade, um projeto relativo ao Aqüífero
Guarani, o qual reafirma o princípio da soberania dos Estados em cujo solo
está localizado o recurso água, sem prejuízo da observância de critérios
elementares de racionalidade concertada para o seu emprego a nível do
Mercosul, já que esse recurso se encontra localizado no subsolo dos Estados-
parte.
É preciso reconhecer o apoio que essa iniciativa recebeu por parte dos
países associados do Mercosul, em cujo âmbito ela está sendo considerada
por um Grupo Especial de Alto Nível.
28) O temário do Ecosoc exige, igualmente, atenção especial da nossa
política exterior, assim como os outros trabalhos que as Nações Unidas
desenvolvem em outros âmbitos, tais como o Meio Ambiente, a Luta contra o
Narcotráfico, o Combate ao Terrorismo, a Igualdade de Gênero e a rejeição
de qualquer tipo de discriminação, os Direitos Humanos, o Tribunal Penal
Internacional e muitos outros temas, que seria, materialmente, excessivo
mencionar aqui.
A Política Exterior do Uruguai
198 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
198
O contato e a colaboração com o Alto Comissariado para os Direitos
Humanos é uma linha operacional da nossa política exterior.
Em suma, a reafirmação do multilateralismo e do papel das Nações
Unidas constituem pedra angular da política exterior do Uruguai.
A ampla participação do Uruguai nas chamadas Operações de
Manutenção da Paz (OMP), medida em número de participantes e em nível de
responsabilidade, exemplifica a convicção uruguaia com respeito a esse
mecanismo e à sua eficácia, onde quer que seja acionado (bastará mencionar a
presença de militares uruguaios: 1.824 na República Democrática do Congo, e
576 no Haiti).
Capítulo V: O Uruguai na OEA
29) O Uruguai acredita no regionalismo, refletido, sem dúvida, pela
Organização dos Estados Americanos e por sua vez tem plena consciência do
papel que cabe ao Sistema Interamericano com respeito a uma extensa e variada
agenda política e social.
Sustentamos que regionalismo e a integração constituem alternativas
seguras para o globalismo ou a mundialização, e nesse sentido apreciamos em
especial o trabalho desenvolvido pela OEA na defesa do sistema democrático,
através da Carta Democrática Interamericana, com a qual o Secretário Geral
César Gaviria concluiu toda uma década de gestão. Ele contará sempre com o
nosso apoio, o mesmo que o meu Governo tem prestado, e continuará
prestando ao recém eleito Secretário Geral Dom Miguel Angel Rodríguez, ex-
Presidente da República irmã da Costa Rica.
Meu governo acredita que já se esgotaram os tempos históricos em que
o papel da OEA não lhe permitia afirmar a sua própria identidade e
independência, em um contexto condicionado pela Guerra Fria.
Atualmente, o papel da OEA – por exemplo, nos processos eleitorais de
nossos países e na seriedade do seu compromisso democrático – constituem
sem dúvida um ativo regional para cuja construção todos contribuímos, e
todos devemos defender e proteger.
O tratamento de situações difíceis, como a vivida, por exemplo, pela
República do Haiti, membro da OEA, serve para demonstrar a resposta
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Didier Opertti Badán
199
cooperativa do organismo regional e das Nações Unidas, uma vez que o
primeiro não tem suficiente capacidade de intervenção, e a segunda pode
recorrer aos Capítulos VI e VII da Carta de São Francisco.
Nesse contexto, o Uruguai, que é também membro da OEA, participa
das operações de manutenção da paz no Haiti, como indicador eloqüente
da possibilidade de harmonizar os dois cenários, dentro de uma linha
política à qual o país adere plenamente, tendo em vista a reconstrução do
sofrido país irmão.
Capítulo VI: O Uruguai no Mundo
30) É interessante observar que o Uruguai vem desenvolvendo uma política
de presença no continente africano – resposta lógica, de qualquer ponto de vista
–, que se manifesta não só no funcionamento efetivo de Embaixadas em alguns
países daquele continente como, também, de modo muito expressivo, nas visitas
presidenciais levadas a cabo pelo Presidente Battle a Angola, em outubro de
2003, assim como à África do Sul e à República Democrática do Congo, em
abril de 2004.
31) Passamos agora ao plano bilateral. Autorizado pelo Mercosul, de
que é parte (Dec. 32/00, Dec. 37/00 e pelo Acordo de Complementação
Econômica para a Criação de uma Área de Livre Comércio Mercosul-México,
no quadro da Aladi (ACE 54), habilitando os acordos bilaterais do México
com os membros do Mercosul, em 5/7/2002), o Uruguai pôde concluir com
o México um Tratado de Livre Comércio, já em vigor. O Uruguai atribui a
esse instrumento uma grande importância, pois ele abre possibilidades de
acesso ao mercado e aos investimentos com uma economia associada do
Nafta, receptora e fornecedora de bens e serviços.
Novas fórmulas gerais e linhas renovadas de produtos, assim como modos
diferentes de medir cotas de acesso (é o caso dos têxteis, que são agora medidos
por metro linear plano, e não pelo seu valor global em dólares), etc., se destacam
entre outros elementos francamente positivos.
32) O atual processo de negociação de um Convênio de Investimentos
com os Estados Unidos, cuja conclusão está próxima, é mais um dos passos
importantes da nossa política exterior, tendo por objetivo um país que
A Política Exterior do Uruguai
200 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
200
representa atualmente um dos principais mercados para colocar a nossa
produção, especialmente de carne, com tendência a crescer.
Não obstante, essa negociação – auspiciada no encerramento da reunião
de Miami, em 2003 – está inscrita em um contexto de relacionamento político
entre o Uruguai e os Estados Unidos da América, com base no respeito
recíproco e na coincidência de certas causas fundamentais, em particular no
combate ao terrorismo internacional e na defesa dos Direitos Humanos. Este
último tema se reveste da maior sensibilidade para a nossa sociedade
democrática, no qual ela reconhece – reitero – o papel da Comissão de Genebra
e, decerto, da Comissão Interamericana.
33) Em suma: o Uruguai, país que mantém Embaixadas residentes em 43
Estados, e Missões Cumulativas em 57 outros, pratica uma política exterior em
cuja estratégia cabe perfeitamente uma abertura para o mundo sem descuidar da
região.
Nosso comércio dentro e fora da região mostra traços interessantes,
como a inclusão de dois países de fora da região entre os quatro primeiros
mercados de destino: Brasil, Estados Unidos, Argentina e Alemanha. São países
que se somam aos tradicionais mercados vizinhos.
Por outro lado, no plano da concertação política regional, o Grupo do
Rio cumpriu no devido tempo um trabalho amplamente reconhecido, desde a
fase de Contadora, e de Apoio a Contadora, passando finalmente ao Grupo.
Em termos atuais, poder-se-ia pensar que a agenda do Grupo deve ajustar-
se aos novos temas da região, e eventualmente também a temas extra-regionais.
Sem prejuízo disto, se concebermos o Grupo do Rio como uma espécie de
“bancada” regional, ele adquire uma importância significativa – por exemplo,
no nível da Assembléia Geral da ONU, assim como fora das Nações Unidas,
nos diferentes diálogos inter-regionais, com Estados e grupos de Estados,
como a prática o vem demonstrando nestes últimos anos.
Evitar a duplicação das agendas regionais, em particular a da OEA,
constitui sem dúvida um dos limites razoáveis para a atuação do Grupo do
Rio. Neste sentido, a agenda da XXIII Reunião de Chanceleres do Grupo
inclui temas diferenciados, como o dos mecanismos financeiros inovadores
em matéria de investimentos públicas e infra-estrutura, entre outros, assim
como a prestação avançada de informações sobre a reunião dos Chefes de
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Didier Opertti Badán
201
Estado em Nova York, em 20 de setembro, para discutir os temas da fome
e da pobreza. Em todo caso, indicará a utilidade do mecanismo se a região
for capaz de transferir para ele temas de interesse geral, não suficientemente
esgotados em outros cenários.
Em resumo, o Uruguai favorece o funcionamento do Grupo do Rio, que
considera como o interlocutor político da região no âmbito das Nações Unidas.
Capitulo VII: Estratégias da Política Exterior do Uruguai
O simples enunciado dos temas já demonstra as prioridades e diretrizes
da política externa uruguaia; no entanto, para melhor ilustrá-las caberia indicar
o seguinte:
a) O Uruguai é um país independente, e ao mesmo tempo um membro
do Mercosul; este binômio básico deve ser levado em conta em todas aquelas
circunstâncias em que o compromisso do Mercosul, contraído formalmente,
incide sobre as decisões a serem tomadas pelas autoridades nacionais.
b) Desta perspectiva, a estratégia está orientada para a consolidação no
Mercosul de desenvolvimentos institucionais suficientes para garantir o
funcionamento previsível e objetivo dos órgãos do sistema; daí a linha de
projeção e concretização da Secretaria e do Tribunal Permanente de Revisão,
como exemplo desta orientação institucional.
c) O Uruguai não concebe o Mercosul como um bloco fechado e auto-
suficiente, mas como uma plataforma de projeção na inserção externa dos
países; por isso negocia a partir do Mercosul para fora, quando isto é
determinado pelo consenso dos sócios, e o faz de forma individual, por razões
de defesa do interesse nacional, quando isso não colide com qualquer norma
da organização do Mercado Comum do Sul.
d) No tocante às relações dentro do continente, a política exterior do
Uruguai reconhece a existência de um espaço regional ampliado, que se reflete
no seu apoio aos acordos com a Comunidade Andina, sem prejuízo de
reconhecer as características específicas dos integrantes dos dois grupos – o
Mercosul e a CAN –, assim como do espaço ainda voltado para a negociação
bilateral. Seria possível notar uma certa cláusula implícita de subsidiaridade,
ainda não desenvolvida no terreno normativo do Mercosul.
A Política Exterior do Uruguai
202 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
202
e) Nas relações intercontinentais, o binômio valores comuns-interesses
compartilhados é reconhecido como motor da negociação do Mercosul com
a União Européia. A uns e outros a política exterior uruguaia reconhece a
gravitação respectiva, de acordo com a sua natureza.
f) As limitações de recursos constituem um fator restritivo da projeção
de estratégias; não obstante, a presença equilibrada em países centrais de todos
os continentes dota a política exterior do Uruguai de um quadro de
relacionamentos, onde a bilateralidade convive harmonicamente com o
multilateralismo, auspiciando assim níveis de concertação com efeito
multiplicador. A título de exemplo, nossas Missões diplomáticas na África e
na Ásia nos permitem alcançar um melhor conhecimento da realidade
econômica e política, com traços sociais notáveis, uma vez que habilita a
prospecção de mercado, e também exercícios de cooperação internacional,
como a OMP no Congo, dentre outros.
g) A política exterior uruguaia define seus objetivos na respectiva norma
orçamentária, sob a rubrica de produtos estratégicos, e por esse meio se prevê
o planejamento, a gestão e a aplicação de critérios não discricionários, e por
conseguinte de razoável previsibilidade.
h) Finalmente, o apoio profissional do Serviço Exterior permite introduzir
programas e pautas na formação dos diplomatas, em correspondência com os
referidos produtos estratégicos.
É o que refletem os programas aplicados na oportunidade das promoções.
Conclusão
Para finalizar, e com o objetivo de resumir em um único parágrafo a
nota essencial da política exterior do Uruguai, podemos afirmar:
Trata-se de uma política exterior de Estado, de uma gestão de Governo
e de ações administrativas, todas operadas em um plano de compromisso
vigoroso com a integridade soberana do Estado e com a atenção concertada
das novas demandas geradas internamente pela evolução social e política, e
projetadas externamente.
Tradução: Sérgio Bath.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Jesús Arnaldo Pérez
203
á quase quatro anos nosso país iniciou um período de profundas
transformações. Não sejamos ingênuos: todo processo de transformação de
uma sociedade é uma fase difícil, feita de esperança e avanços sociais, de
satisfações e progressos reais, mas também de conflitos, resistências e, por
vezes, de crises. Lembro que quando eu era estudante em Toulouse, a palavra
“crise”, agora corrente na nossa linguagem, era objeto de análises especializadas.
Na América Latina, em particular no Cone Sul, era a época da ausência de
democracia: outro tempo de crise.
Sejamos francos: só as sociedades sujeitas a ditaduras e a regimes
autoritários não vêem seus conflitos aflorar e invadir o debate público, os
meios de comunicação e a vida política. Amartya Sen, Prêmio Nobel de
Economia, analisou esse fenômeno no caso da fome existente no mundo. Na
Venezuela, onde o Governo do Presidente Chávez realizou reformas
consideráveis, todas as sensibilidades se expressam para manifestar apoio ou
reprovação às políticas implementadas, o que é característico de todas as
democracias. O povo venezuelano está construindo uma democracia que, dia
após dia, fundamenta sua legitimidade no direito. Legitimidade adquirida pelo
sufrágio universal, pela vontade do povo, inscrita na Constituição Bolivariana.
E os inimigos da democracia? Estes existem na Venezuela, como em
toda parte! É o destino de todas as democracias jovens como a nossa, em
Os venezuelanos
e a sua democracia
Jesús Arnaldo Pérez
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Ministro das Relações Exteriores da República Bolivariana da Venezuela
H
Os venezuelanos e a sua democracia
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plena crise de adolescência, já que o período democrático vivido pela nossa
geração, de 1958 a 1998 – durante quarenta anos de um pacto político entre o
partido social democrata (Ação Democrática) e o Partido Social-Cristão (Copei)
– era um sucedâneo da democracia. A prova é que os partidos políticos não
foram capazes de responder às aspirações legítimas do povo, que neles confiou.
Muitos são os responsáveis, inclusive os deputados da nova Assembléia
Nacional pertencentes aos partidos “Ação Democrática”, “Copei” e “Primeiro
Justiça”, que não condenaram publicamente o golpe de estado de 11 de abril
de 2003, manifestando assim seu profundo desprezo pela democracia.
O povo venezuelano afirmou de forma clara que não há retrocesso
possível. O movimento antidemocrático, de tendência fascista e retrógrada,
chegou ao seu apogeu naquele dia negro do mês de abril. Creio que na Venezuela
de hoje não há lugar para aventuras golpistas, e atrevo-me a afirmar que na
América Latina não cabem mais ditaduras militares ou violações dos direitos
humanos. Quero crer que uma página foi definitivamente virada na dramática
história da América Latina, e os povos latino-americanos estão abrindo outros
caminhos, com esperança na democracia. Com efeito, esta não é um privilégio
dos países ricos. Também nós temos direito a viver, desenvolver-nos e morrer
em um regime democrático.
Amartya Sen e Hugo Chávez Frías: da teoria à prática
A não ser nos estreitos círculos intelectuais especializados na América
Latina, a situação política venezuelana era quase desconhecida na França. Pouco
antes da brilhante vitória eleitoral do candidato Hugo Chávez Frias, a imprensa
francesa passou a se interessar pelo que ia acontecer, inexoravelmente na
Venezuela – em especial o mensário Le Monde Diplomatique e o diário Le Monde.
Com efeito, uma semana antes das eleições presidenciais de 1998, o Dr. Arturo
Uslar Pietri analisava no Le Monde Diplomatique as razões profundas da mudança
que se aproximava com as eleições de 6 de dezembro. Tratava-se apenas de
uma análise histórica, da qual falava sempre o distinto intelectual venezuelano,
já falecido. O título era “Venezuela a um passo de uma grande mudança. O
fim de um ciclo político”. No entanto, é preciso reconhecer que já em novembro
de 1992, no seu editorial “Les rébellions à venir”, Ignacio Ramonet, diretor de
Le Monde Diplomatique, referiu-se de modo muito acertado aos eventos de 4 de
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fevereiro na Venezuela, como uma resposta e uma busca desesperada de
soluções políticas para a miséria crescente vivida pelos povos do mundo no
quadro da mundialização.
Depois de conhecer o resultado das urnas e a eleição incontestável do
Presidente Hugo Chávez Frías, pela maioria dos venezuelanos, assim como a
aceitação da derrota pela coalizão anti-Chávez, o diário Le Monde publicou em
8 de dezembro de 1998 um artigo comentando a sua vitória. Uma parte da
primeira página do jornal trazia um desenho do rosto do candidato Chávez,
com a frase “o candidato dos pobres”. A mesma edição continha o seu portrait,
ocupando toda uma página central. O jornalista tomou muitos elementos
significativos do discurso do então candidato, contrariamente às notícias da
televisão que o qualificavam de “populista”. O artigo de Le Monde se referia a
Hugo Chávez como “o revolucionário convertido”, explicando como o novo
Presidente soube conjugar a retórica guerreira com um misticismo sincero,
para apresentar-se como o “candidato dos pobres”, com apoio da esquerda e
do centro, contra a oligarquia que mantém o poder no país, apoiada pelos
partidos “Ação Democrática” e “Copei”. Dois dias depois, em 10 de dezembro
de 1998, na mesma página central, Le Monde publicou o portrait de Amartya
Sen, o novo Prêmio Nobel de Economia de 1998, qualificando-o de “O Prêmio
Nobel dos pobres”. Seu livro Development as Freedom
1
foi traduzido para o
espanhol e o francês. Pela primeira vez na história concedia-se o Prêmio Nobel
de Economia a um pesquisador cujo interesse central sempre fora a pobreza e
que nunca se interessara grandemente pelos mercados financeiros.
A coincidência entre o “candidato dos pobres” e o “Prêmio Nobel dos
pobres” é curiosa e muito simbólica, atual e significativa: a guerra contra a
pobreza estava na ordem do dia na Venezuela, juntamente com a mundialização
e a inserção do nosso país no contexto internacional como uma experiência
interessante para a humanidade. Assim, Hugo Chávez Frías, o candidato dos
pobres, se converte desde 1998 no “Presidente dos pobres”, pela vontade da
maioria do povo da Venezuela, que por sua vez encontra-se pobre e excluído.
Mais ainda: muitos dos nossos compatriotas vivem abaixo dos critérios que
definem a pobreza, segundo as estatísticas publicadas. Vários especialistas
1
Desarrollo y Libertad, Amartya Sen, Ed. Planeta, Espanha, maio de 2000. Un Nouveau Modèle
Économique: Développement, Justice, Liber, Ed. Odile Jacob, Paris, agosto de 1999.
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qualificam a Venezuela como “um país pobre e ao mesmo tempo rico em
recursos naturais”, e muito já se falou dessa dicotomia que já foi chamada de
“efeito Venezuela”.
Desse modo, podemos afirmar que o denominador comum entre o
economista Amartya Sen, Prêmio Nobel de Economia de 1998, o teórico, e o
comandante Hugo Chávez Frías, Presidente da Venezuela eleito naquele mesmo
ano, o pragmático, é o interesse que ambos têm demonstrado, cada um à sua
maneira, na defesa dos pobres e excluídos. O Prêmio Nobel e sua equipe de
pesquisadores, com suas análises incisivas e precisas da gênese e da dimensão da
pobreza, contribuíram para o conhecimento do maior flagelo atual da
humanidade; por sua vez, o Presidente da República Bolivariana da Venezuela e
sua equipe de governo, há cinco anos buscam incansavelmente encontrar os
caminhos (FUS – Fundo Único Social, Plano Bolívar 2000, Banco do Povo,
Banco da Mulher, Plan Barrio Adentro, Missão Robinson, Missão Ribas, Missão
Sucre, Missão Vuelvan Caracas etc.) para pôr em prática na Venezuela uma
economia de rosto humano, em que as liberdades fundamentais (saúde, educação,
habitação, trabalho e recreação) não sejam negadas à maioria dos venezuelanos.
A política exterior da República Bolivariana da Venezuela
Os esquemas adotados pelos governos anteriores em matéria
internacional estavam esgotados, e não parecia haver novas áreas de inserção
da Venezuela no mundo. O Presidente Chávez propôs uma nova visão e um
novo estilo, cujo objetivo essencial é abrir novos espaços no mundo para a
Venezuela, em função de novos valores políticos, sociais e éticos, reflexo dos
que animam sua gestão no âmbito interno. Esse modo de abordar e fazer as
coisas rompeu com muitos paradigmas do passado e, obviamente, gerou uma
reação dos que estavam acostumados a outra época. No entanto, estou
convencido de que os frutos dessa atividade internacional, que já podem ser
notados, farão mudar de opinião os que ainda não ousaram se incorporar a
esta nova Venezuela.
A participação decidida da Venezuela nos assuntos mundiais responde à
necessidade de fazer valer cabalmente os interesses do país, em um contexto
internacional cada vez mais competitivo e exigente, e à determinação de
contribuir para a gestação de um mundo multipolar.
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Estamos empenhados em garantir um modelo democrático destinado a
resgatar valores humanos e espirituais, guiados, ao mesmo tempo, pela
determinação de contribuir para o desenvolvimento de uma cooperação
internacional solidária. Nosso desenvolvimento interno em nossa política
exterior, nestes tempos de revolução pacífica e democrática, se fundamenta
em nossa nova Constituição.
Na sua Seção V, a Constituição da República Bolivariana da Venezuela
atribui importância primordial às relações internacionais, ao definir claramente
os objetivos e princípios que devem reger a conduta internacional do país. Nela
se estabelece que as relações internacionais da Venezuela respondem aos fins do
Estado, em função do exercício da soberania e dos interesses do povo, sendo
competência do Poder Público Nacional a política e a atuação internacional da
República, assim como a defesa e a suprema vigilância dos seus interesses gerais.
De outro lado, as linhas gerais da política externa da Venezuela foram
modeladas pelo Plano Nacional de Desenvolvimento 2001/2007, no contexto
do equilíbrio básico intitulado “Fortaleçamos a soberania na integração
multipolar”. Ali, estão estabelecidas as estratégias destinadas a fortalecer a
ação internacional do país, sustentadas nos seguintes objetivos:
• promover a democratização da sociedade internacional, com o objetivo
de estimular a ação concertada dos países em desenvolvimento, assim
como a solidariedade e a cooperação entre os diferentes atores do
sistema internacional;
• promover a integração latino-americana e caribenha, para abordar com
maior eficácia as desigualdades sociais e os altos níveis de pobreza que
afetam os países da região;
• consolidar e diversificar as relações internacionais, fortalecendo a
cooperação Sul – Sul e ampliando as relações com outros países e regiões;
• fortalecer a posição da Venezuela na economia internacional,
contribuindo assim para ampliar nossas exportações não-tradicionais
e acrescentando valor às tradicionais.
De acordo com esses postulados, o Presidente Chávez não tem poupado
esforços para projetar a imagem do país. As visitas oficiais e de trabalho que
tem feito a nações da Ásia, África, do Oriente Médio e da Europa, bem como
a outros países e os numerosos mandatários que têm visitado a Venezuela
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atendem ao objetivo de ampliar soberanamente, com base no pluralismo
internacional, as possibilidades e alternativas de ação da Venezuela nos mais
variados cenários, e com os mais diversos atores. Assim, foram reforçadas as
relações com os nossos amigos tradicionais, e estreitadas com novos pólos de
poder, como Rússia, Irã, China e Índia.
Atualmente, os contatos pessoais entre os Chefes de Estado e de
Governo, de todas as latitudes, são igualmente necessários como contribuição
para a paz mundial, por meio do diálogo e da cooperação. O Presidente Chávez
tornou-se um ator de destaque no âmbito internacional, projetando uma
mensagem de paz e de solidariedade entre todos os povos, posição
compartilhada por outros líderes mundiais.
Hoje em dia, em circunstâncias internacionais tão preocupantes, impõem-
se a reflexão e a ponderação no relacionamento entre todos os governos, para
combater flagelos como o terrorismo internacional. Por razões bem conhecidas,
o terrorismo passou a ocupar o primeiro plano na atenção internacional. A
Venezuela acompanhou a aprovação, por unanimidade, das resoluções da OEA
e do TIAR, adotadas em Washington, que expressam a solidariedade hemisférica
com os Estados Unidos pelos ataques terroristas de que foram alvo, reiterando
a nossa repulsa ao terrorismo e nossa confiança em que não haja uma escalada
de violência que possa afetar a paz e a segurança internacionais e agravar os
problemas da humanidade.
Não obstante, penso que em nenhum momento devem ser subestimados
os grandes e permanentes desafios como o combate conjunto ao atraso e à
pobreza, assim como os esforços em favor do desenvolvimento econômico e
social. Trata-se de uma responsabilidade inescapável de todos os governos do
planeta, a qual a Venezuela, de seu lado, assumiu de forma determinada.
O Governo da Venezuela acredita na integração, na cooperação e no diálogo,
cultivando-os de forma sistemática. Nunca antes houve no país uma atividade tão
intensa para promover a integração regional, não só econômica e comercial, como
também política. São mostras disso a celebração em Caracas, em princípios de
2001, da Cúpula do Grupo dos Três, entre Colômbia, México e Venezuela, um
mecanismo de cooperação com um acordo de livre comércio que não estava à
altura das suas expectativas. Em Caracas, os Presidentes dos três países decidiram
relançar esse importante esquema de cooperação, concordando em intensificar a
consulta política, o intercâmbio comercial e a cooperação entre os seus países.
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Foi realizada, também, com êxito, a Cúpula da Comunidade Andina de
Nações, que culminou com a adoção da Declaração de Carabobo, cujos acordos
estão destinados a promover a agenda social e a integração econômica entre
os países andinos. Assim como o G3, a CAN vinha enfrentando sérias
dificuldades, que impediam a realização dos seus objetivos mais importantes.
Agora, com o renovado impulso presidencial de Valencia, há condições para o
seu cabal desempenho, preparando o caminho para a meta do Mercado Comum
Andino em 2005.
Realizou-se também em Margarita a Reunião de Chefes de Estado e de
Governo da Associação dos Estados do Caribe, com a participação de 25
governantes da região caribenha: acontecimento fundamental para promover
a cooperação entre os países membros da Associação.
Por razões óbvias, dada a nossa solidariedade e vocação pacifista, tudo o
que se relaciona com a nossa região tem prioridade; por isso, nossa decidida
contribuição ao processo de paz colombiano, uma vez que a paz da Colômbia
é claramente, também, a da Venezuela. A assinatura dos acordos de cooperação
energética com os países caribenhos e centro-americanos é uma demonstração
significativa da solidariedade regional que praticamos, sem distinção de qualquer
espécie.
Os temas da democracia e dos direitos humanos têm interesse especial
para a Venezuela; por isso propusemos atribuir importância cada vez maior ao
significado da democracia participativa e protagônica.
Outro aspecto importante da nossa política exterior tem a ver com a
nossa participação ativa nos mecanismos de cooperação e de articulação de
esforços entre países em desenvolvimento, como o Grupo do Rio, o Movimento
dos Não-Alinhados, o Grupo dos 77 e o Grupo dos 15.
A Venezuela exerceu a presidência do Grupo dos 77, de 2002 a 2003, o
que representa um reconhecimento internacional do intenso trabalho
desenvolvido pelo governo venezuelano nas Nações Unidas e nas gestões feitas
pelos países em desenvolvimento diante dos grandes temas econômicos
mundiais.
A Segunda Cúpula dos Chefes de Estado e de Governo da OPEP,
celebrada em Caracas em setembro de 2000, constitui um grande sucesso da
política exterior venezuelana. Nunca antes uma reunião dessa magnitude tinha
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sido realizada na Venezuela, com a presença de importantes líderes da África,
da Ásia e do Oriente Médio, trazendo uma clara mensagem de unidade e
concertação, e demonstrando, além disso, que a OPEP atua como canal de
comunicação entre povos, raças, culturas e religiões de uma extraordinária
diversidade.
Contribuímos, resolutamente, para o fortalecimento da OPEP e nosso
compromisso de continuar oferecendo aos consumidores um fluxo de petróleo
adequado, oportuno e seguro, a preços justos e estáveis, enfatizando o vínculo
entre a segurança, a oferta e a transparência da demanda mundial de petróleo.
Diferentemente do pouco interesse demonstrado por governos anteriores
com relação ao G-15, o Presidente Chávez teve uma participação decisiva
nesse esquema de cooperação Sul-Sul, e por isso assumiu em 2001, a presidência
do Grupo dos Quinze, cuja XII Cúpula foi realizada recentemente em Caracas.
Sete mandatários representando América, África e Ásia, além dos representantes
de alto nível das 19 nações que integram o Grupo aceitaram o convite do
Presidente Chávez, assim como as propostas e medidas formuladas pelo nosso
país, voltadas para a plena utilização do Grupo em benefício de todos os países
em desenvolvimento.
Em um Comunicado Conjunto, os Chefes de Estado e de Governo do
G-15 reafirmaram em Caracas sua vontade política de fortalecer a cooperação
Sul-Sul, de ampliar e intensificar esse diálogo para explorar as suas
potencialidades e para se complementar reciprocamente. Decidiram que a
chamada “Troika (Venezuela, Argélia e Irã) deve assumir uma maior
responsabilidade para garantir que o Grupo empreenda vigorosamente planos,
projetos e programas identificados em conjunto, e para que sejam adotadas
ações efetivas destinadas a dar seguimento às decisões dos Chefes de Estado e
de Governo”.
A XII Cúpula dos Chefes de Estado e de Governo do G-15 culminou
com o firme objetivo de propor novas atividades em áreas de interesse comum,
em temas como energia e desenvolvimento, tecnologias de comunicação e
informação, medicamentos genéricos e saúde pública, assim como a
implementação da cooperação no campo da pesquisa médica e dos programas
de recursos humanos.
Reunidos, os mandatários avaliaram assuntos fundamentais do cenário
internacional e os respectivos efeitos nos seus países. Nas sessões de trabalho
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qualificaram como decisivo o tema da energia e desenvolvimento, ao qual
atribuíram grande importância devido à sua transcendência na economia
mundial e, em particular, nos países em desenvolvimento.
Com respeito ao diálogo Norte-Sul, os membros do G-15
comprometeram-se a manter os esforços para melhorar a interação, e fortalecer
o entendimento recíproco com os países desenvolvidos, dentre eles os
participantes do G-8.
Reiteraram o apoio às disposições contidas no Documento Final da X
Reunião Especial da Assembléia Geral com respeito à relação entre
desarmamento e desenvolvimento, assim como o compromisso de lutar contra
o narcotráfico. Sobre o último ponto insistiram na necessidade de coordenar
esforços para enfrentar esse flagelo através do apego irrestrito aos princípios
do direito internacional. Reconheceram, também, seu firme propósito de
combater o comércio ilícito de armas pequenas e ligeiras.
Na “Declaração de Caracas sobre Energia e Desenvolvimento”,
comprometidos com o combate à pobreza e com a contribuição para o
desenvolvimento econômico e social de cada um dos países membros, os
Chefes de Estado e de Governo do G-15 deram seu apoio ao diálogo
internacional de caráter permanente para propiciar a avaliação detalhada da
situação energética global. Consideraram que para assegurar o desenvolvimento
da área energética, devem valer-se do investimento público e privado
(respeitando as legislações nacionais e as prioridades de desenvolvimento) e
da intensificação do comércio e do intercâmbio de tecnologias para aumentar
a eficiência no uso da energia.
Mediante um processo dinâmico, as Linhas Gerais do Plano Nacional de
Desenvolvimento 2001-2007, primeiro plano da nova era constitucional, estão
destinadas a promover uma crescente interação positiva entre um equilíbrio
macroeconômico sustentado, oportunidades sociais efetivas, uma nova
dinâmica territorial, a ampliação das oportunidades políticas e a diversificação
racional no âmbito internacional.
O Presidente como cabeça visível do Executivo Nacional, deu sua atenção
a todos os aspectos da vida nacional. A prioridade é restituir aos cidadãos os
direitos políticos e civis que lhes foram desrespeitados, e ao mesmo tempo
satisfazer suas necessidades materiais e ampliar o seu acesso ao processo de
tomada de decisões.
Os venezuelanos e a sua democracia
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Quanto à política exterior, propõe-se uma diplomacia sem precedentes
na história do país. O governo nacional amplia suas possibilidades de ação,
multiplicando contatos e gestões para cultivar o diálogo político e conjugar
esforços em diversas áreas de interesse para a Venezuela.
Nesse processo, destinado a projetar um perfil próprio no mundo,
mediante uma diplomacia ativa e eficaz, atua-se de forma resoluta em todos
os cenários e com os mais diferentes atores, com base na autodeterminação
dos povos e no pluralismo internacional, na busca de resultados concretos
que beneficiem o país tanto no campo político como no econômico, comercial,
social e cultural.
Estou convencido de que, em um mundo competitivo e globalizado como
indubitavelmente é o de hoje, torna-se necessário, mais do que nunca, uma
política exterior ativa e dinâmica, que promova cabalmente os interesses
nacionais, e que, ao mesmo tempo, seja um fator coadjuvante na articulação
de esforços destinados a favorecer princípios e propósitos considerados
essenciais pela comunidade internacional de modo geral, e que se convertam,
mediante processos racionais e estruturados, em fontes geradoras de valores
fundamentais para toda a humanidade. Por exemplo: a manutenção da paz
mundial, a felicidade e o bem-estar dos nossos povos, o acesso ao
desenvolvimento e a padrões de vida elevados, como fatores primordiais que
garantam os precedentes.
Pelo que vimos, e porque o nosso país vive um processo intenso de
mudanças políticas e institucionais, a Venezuela tem merecido o interesse da
comunidade internacional, e a sua diplomacia é observada com respeito. O
fato de ser, atualmente, um país imerso em transformações profundas e
significativas confere nossa política exterior uma legitimidade que a nutre com
os mesmos princípios de justiça, equidade e democracia participativa que
sustentam a atuação do governo ao fomentar o desenvolvimento integral do
país, e sua renovação.
Equilíbrio internacional
O mundo contemporâneo enfrenta, como questão de sobrevivência, o
imperativo de superar o modelo da globalização que resulta da projeção do
neoliberalismo no âmbito internacional. Dentro dele abre-se o caminho
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
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alternativo de um modelo democrático e o promover da justiça e do bem-
estar nacional e local, que pretende resgatar valores, humanos e espirituais,
mediante uma cooperação internacional solidária. Pareceria que começa agora
uma fase de liderança da sociedade civil, não comprometida com o grande
poder econômico e político. O respeito à autodeterminação dos povos, o
fortalecimento do diálogo Sul-Sul, o critério da multipolaridade do mundo
atual, a consolidação da presença da Venezuela no âmbito internacional, e o
exercício da diplomacia econômica representam, em conjunto, o norte da nossa
política exterior recente.
Hoje a diplomacia venezuelana é observada com grande interesse e
respeito em toda parte do mundo, pelo seu dinamismo, apego às normas do
direito internacional e disposição de promover um mundo multipolar e solidário.
Na promoção da integração e na revalorização do diálogo, a Venezuela
tem enfatizado, particularmente, sua soberania nacional.
O governo do nosso país começa a colher os frutos do seu esforço de
procurar, desde o primeiro momento da sua gestão, relançar uma diplomacia
ativa e eficiente, comercial, econômica e financeira; a revitalização da política
dos blocos regionais; uma política mais ousada frente a atitudes hegemônicas
internacionais, e a transformação da estrutura interna da Chancelaria,
imprescindível para possibilitar as mudanças propostas.
O relançamento de uma política ativa e eficiente foi posto em prática
com a realização de numerosas viagens internacionais pelo Presidente da
República, que visitou vários continentes, na companhia de delegações
empresariais do setor público e privado, com o objetivo de promover maior
intercâmbio comercial com os países visitados.
Os resultados dessas viagens, e do relançamento comercial da Venezuela
em seus países amigos, permitiu concretizar investimentos que estão sendo
feitos em outras áreas de exploração de petróleo no país. Da mesma forma, o
Brasil ampliou seus investimentos na Venezuela, como exemplifica sua
participação na construção da linha 4 do metrô de Caracas e em uma nova
ponte sobre o rio Orinoco.
Correspondeu à Chancelaria dar início à execução de nova estratégia
diplomática, orientada geograficamente para o que se denominou de quatro
fachadas fundamentais: atlântica, caribenha, andina e amazônica, tendo como
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pontos focais o Brasil, o Caribe, a Colômbia e a Guiana, vizinhos e sócios
naturais da Venezuela.
Nesse contexto, Venezuela e Guiana decidiram criar a Comissão
Binacional de Alto Nível (Coban) e o Conselho Binacional Empresarial, que
propiciam novas iniciativas e atividades voltadas para a expansão, fortalecimento
e avanço dos vínculos entre os dois países, ultrapassando nossas diferenças
limítrofes, o que ficou consolidado na recente visita do Presidente Hugo Chávez
Frías a Georgetown.
Com o Brasil, além do aumento do intercâmbio comercial bilateral, há
interesse venezuelano em intensificar a relação com esse país em todos os
seus aspectos. Promoveu-se, em particular, a busca de maior integração latino-
americana, mediante a aproximação entre a Comunidade Andina de Nações e
o Mercosul, altamente valorizada pela Venezuela.
Muito complexas, nossas relações com a Colômbia, abrangendo
numerosos temas, são hoje mais dignas, mais claras, mais transparentes, por
vezes mais emotivas, mas também mais afetivas. Com a Colômbia tratou-se
cuidadosamente de todos os aspectos desse relacionamento, tão importante
para a Venezuela, pela condição de países historicamente irmãos e vizinhos, e
por ser a Colômbia o nosso segundo parceiro comercial.
A Venezuela tem contribuído ativamente para a paz na Colômbia,
emprestando o seu território às diferentes partes envolvidas na atual situação
do país vizinho, na busca de um entendimento que nos interessa como o país
mais afetado, além daquela nação irmã, e ademais, por sermos ambos países
bolivarianos. A nova política da Venezuela com relação ao Caribe foi fortalecida,
e é de nosso interesse aprofundá-la, propiciando uma posição de solidariedade
com Cuba, a Associação dos Estados do Caribe, o Caricom, e com os países
centroamericanos caribenhos. Uma das manifestações dessa política tem sido
os acordos complementares no setor da energia, através dos quais a Venezuela
fornece a esses países óleo cru e produtos petrolíferos aos mesmos preços de
mercado, mas com facilidades de pagamento, assumindo solidariamente sua
responsabilidade como potência energética da região.
Com respeito aos Estados Unidos, acentuou-se a atitude de amizade e
boa vontade, embora com claras manifestações de independência e autonomia
na elaboração e desenvolvimento da nossa política exterior no plano mundial.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
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A boa vontade e a racionalidade dessa relação, historicamente de grande
relevância para a Venezuela, foi expressa desde o primeiro ano de gestão do
atual governo, através da aprovação, pelo então Congresso da República, do
acordo com os Estados Unidos destinado a evitar a dupla tributação, após um
impulso efetivo por parte do Ministério das Relações Exteriores.
À geração inquieta em busca de novos horizontes
O povo venezuelano vive hoje momentos de intensa emotividade, que
se manifestam em sentimentos profundos, vindos diretamente do coração.
Agora, porém, todos os venezuelanos sabemos que é preciso passar da emoção
à ação.
São momentos propícios para focalizarmos a idéia de uma geração de
homens que, no princípio da década de 70, terminamos os preparatórios, nas
terras altas da Venezuela, tomando diferentes rumos, caminhos distintos. Como
estudantes sonhávamos, amávamos e preparávamos nossa consciência para as
lutas que se avizinhavam. Alguns pensavam diretamente na ação política e nas
formas da futura organização revolucionária do povo. Outros inventávamos
saídas, a partir da ciência e do conhecimento, para superar a exclusão das maiorias,
e para construir alternativas democráticas genuínas, pensando na paisagem, na
música e no ambiente, na natureza e no homem como eixos do que depois
definiríamos como sustentabilidade, condição sine qua non do desenvolvimento
da sociedade.
Era um tempo em que mal podíamos visualizar o futuro, que hoje se abre à
nossa frente como esperança e expectativa real, justamente porque intuímos que
seria possível encontrar saídas para a crise estrutural. E, assim, como nos dias da
Guerra da Independência muitas pessoas das terras altas foram capazes de sacrificar
grandes fortunas e suas vidas pela causa da liberdade, a nossa geração se dedicou
igualmente a essa causa, sob condições diferentes. O desafio era a formação, o
conhecimento, a ciência, a disciplina, os princípios éticos e morais. Nisso nos
empenhamos, e pudemos demonstrar que era possível atravessar o deserto sem
nos vendermos por um copo d’água. Coube a mim um exílio voluntário de alguns
anos na França, anos de afastamento que provocaram um amor mais profundo
por minha gente e por esta sociedade venezuelana com a qual é tão agradável
conviver. Meus professores do Liceu O’Leary contribuíram para forjar nossas
Os venezuelanos e a sua democracia
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convicções democráticas, e inculcaram no nosso espírito o amor pelo trabalho
bem feito.
Agora, essa “geração inquieta em busca de novos horizontes”, que apesar
de tudo pôde formar-se durante o período da democracia representativa, exige
e promove a Democracia Participativa e Protagônica, em nome do princípio
do aprimoramento contínuo.
Demonstramos que valia a pena insistir, mesmo quando o caminho estava
repleto de dificuldades – dificuldades ainda hoje existentes – , entre outras
coisas porque houve quem as ampliasse e se empenhasse em retroceder um
processo que já é irreversível, e que deixou de ser o sonho de um grupo de
jovens entusiastas para se tornar a vontade de todo um povo que compreendeu
esta verdade: quando assamos pão para todos, é preciso que todos participem
do seu preparo.
É impossível esquecer que essa “geração inquieta em busca de novos
horizontes”, à qual pertenço, contou sempre com o apoio determinante dos
seus pais e das suas mães, e, também das famílias, parentes e amigos que nos
orientaram sem descanso, contando com poucos recursos materiais, mas com
bom senso, tratando com dignidade a trajetória profissional e o trabalho criativo:
única possibilidade de ascensão social para pessoas que contam com poucos
recursos.
Estou preocupado porque a democracia escolhida pelos venezuelanos,
no quadro da Constituição Bolivariana, corre perigo. Com efeito, vivemos na
Venezuela uma crise caracterizada pelo déficit de democratas. Quarenta anos
de democracia representativa, que tanta expectativa criou na juventude
venezuelana, não foram suficientes para formar verdadeiros partidos políticos
e dirigentes que ajudassem a superar as grandes dificuldades do nosso povo.
Nos momentos difíceis de abril de 2002, pudemos ver os representantes desses
partidos políticos tradicionais, “defensores da democracia”, alguns deles
deputados e dirigentes da chamada “esquerda”, aplaudindo a morte do regime
democrático, ao lado de um aprendiz fascista.
Enquanto no dia 12 de abril um jornal conhecido da “oposição
inteligente” publicava de modo jocoso em sua primeira página a manchete
Adeus, Huguito!”, em vez de expressar tristemente um adeus à democracia, e
demonstrando assim, seu desprezo pelo povo venezuelano. Que contradição!
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
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Vemos hoje algumas dessas mesmas pessoas atacando o Poder Eleitoral
representado pelo Conselho Nacional Eleitoral. Daí a necessidade de convocar
os venezuelanos para que reconheçam a “geração inquieta em busca de novos
horizontes”; para que ajudem a gestação de uma oposição autêntica, com
convicções e consciência democrática. A pátria precisa disso.
Um novo desafio para a “geração inquieta em busca de novos horizontes”
é a defesa da nossa Constituição, a promoção do seu conteúdo, ou seja, o
desenvolvimento sustentável do país, para que a República Bolivariana da
Venezuela desempenhe um papel preponderante como o desempenhado
durante a época da Independência, com seus recursos humanos, energéticos e
naturais. Os resultados das Missões Robinson I e II, Ribas, Sucre, Mercal e
Barrio Adentro mostram que a saúde, a alimentação e a educação são liberdades
fundamentais e factíveis para o desenvolvimento sustentável venezuelano.
Juntamente com a Missão Vuelvan Caracas nos permitirão erradicar,
progressivamente, a pobreza.
Em todo o mundo, milhares de pessoas pobres nos observam, cada dia
mais, graças à globalização; numerosos líderes de países do Norte, como do Sul,
esperam e desejam o sucesso dos métodos que estamos experimentando na
Venezuela para atingir as metas da Cúpula do Milênio das Nações Unidas, e
compartilham conosco a idéia do Presidente Hugo Chávez de criar um Fundo
Humanitário Internacional que permita lutar de forma eficaz contra a pobreza.
Esses esforços do governo nacional e do povo da Venezuela devem ser difundidos
em todo o mundo; eis o papel que cabe à Chancelaria da República Bolivariana
da Venezuela. Como afirma o Presidente Chávez, creio que optamos em nosso
país pela solução mais difícil, que consiste em ampliar a democracia, e ao mesmo
tempo reduzir a pobreza, mas estamos certos de que conseguiremos fazê-lo.
A FAO foi criada para eliminar a fome, mas vemos, como a despeito dos
progressos, das grandes possibilidades à nossa frente, a fome aumentou no
mundo. Atualmente o Presidente Lula está liderando o projeto Fome Zero.
Ora, o Presidente Chávez está de acordo em que é verdade que a fome tem
que ser zerada, mas a sua visão é muito mais sistêmica: uma visão holística do
que significa a fome: a fome é pobreza. Penso que não só de pão vive o homem,
como é costume dizer, e muitos o repetem. Precisamos, também, saber ler,
escrever; precisamos ter boa saúde; necessitamos cultivar-nos, necessitamos
cultura e etc.
Os venezuelanos e a sua democracia
218 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
218
Aqui na Venezuela, estamos realizando um trabalho metodológico para
poder alcançar as metas fixadas pelos Chefes de Estado nas Nações Unidas, na
Cúpula do Milênio: até o ano 2015, reduzir pela metade a pobreza existente no
mundo, com cada setor reduzindo justamente à metade o número de pessoas
que não dispõem de água potável, entre outras coisas. Os acordos de Dacar, da
Unesco, sobre educação de qualidade para todos, vêm sendo materializados na
Venezuela, dados os diferentes tipos de missão social levados a cabo pelo nosso
governo.
Desenvolvimento sustentável para erradicar a pobreza
Na Cúpula de Joanesburgo, em setembro de 2002, os Chefes de Estado
e de Governo do mundo coincidiram na necessidade urgente de concentrar
os esforços da humanidade na luta contra todas as manifestações da pobreza.
O Presidente Jacques Chirac, em especial, chamou a atenção do mundo, de
forma dramática, ao dizer: “nossa casa está em chamas e olhamos para o
outro lado”. Insistiu em que “a persistência da pobreza das massas é um
escândalo e uma aberração”. Ao mesmo tempo, o Presidente da França
propôs o aumento da assistência pública ao desenvolvimento sustentável,
argumentando que, no entanto, isso não bastava, e concluiu citando a
necessidade de “uma retenção solidária sobre as riquezas consideráveis
produzidas pela mundialização”.
De seu lado, o Presidente Hugo Chávez reafirmou que a Venezuela
assume o caminho do desenvolvimento sustentável. Além disso, propôs, como
o fizera em Monterrey e em Nova York, “a criação de um Fundo Humanitário
Internacional: “(…) um Fundo rigorosamente obrigatório, contando, por
exemplo, com dez por cento dos gastos militares do mundo (…) ao qual
possamos contribuir, por exemplo, com dez por cento da dívida externa que
os países pobres pagamos ao mundo desenvolvido (…) Um Fundo
Humanitário Internacional ao qual se destine uma porcentagem dos grandes
capitais do narcotráfico, dos grandes capitais da corrupção …” Finalmente,
em janeiro de 2004, na recente Cúpula dos países americanos em Monterrey, o
Presidente Chávez insistiu outra vez na necessidade de criar o Fundo
Humanitário Internacional para erradicar a pobreza do continente. Na sua
mensagem de Ano Novo ao Corpo Diplomático sediado em Paris, o Presidente
Chirac anunciou que no segundo semestre de 2004 apresentará as conclusões
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Jesús Arnaldo Pérez
219
do grupo de peritos que designou para buscar novas fontes de financiamento
internacional, examinando em particular, a idéia de impor gravames sobre os
fluxos financeiros mundiais. Notamos, assim, com grata satisfação, que os
Presidentes Chirac e Chávez compartilham as mesmas preocupações com
respeito ao desenvolvimento sustentável, e ao combate urgente e decidido
para a erradicação da pobreza no mundo.
De acordo com todos os programas sociais que estão sendo executados
no país, a diplomacia da República Bolivariana da Venezuela deverá tomar
como referência o contexto do desenvolvimento sustentável.
Com efeito, na última Cúpula da Terra, em Joanesburgo, ficou
demonstrado que não se registrara qualquer progresso nas metas e nos
compromissos assumidos; que, pelo contrário, a situação havia piorado. Ao
referir-se à Cúpula do Milênio, os especialistas concordam em que, a despeito
de todos os esforços que estão sendo feitos pelos países para a erradicação da
pobreza, os objetivos não poderão ser alcançados no tempo previsto.
Tanto a Cúpula do Rio de Janeiro, como a Cúpula do Milênio, tinham
como foco o homem e a luta contra a pobreza. A Venezuela vem trabalhando
com planos e programas de desenvolvimento social, conforme já mencionamos,
os quais representam experimentos metodológicos na luta contra a pobreza,
para poder alcançar as metas adotadas nessas Cúpulas.
Nosso país passou a ser um centro de experimentação da luta contra a
pobreza, e por isso se converteu em foco da atenção mundial: o mundo quer
conhecer a experiência venezuelana, porque há uma crença geral de que a
pobreza resulta de uma fatalidade, e nada se pode fazer para erradicá-la. Ora,
na Venezuela estamos trabalhando com planos concretos para combatê-la.
Por isso, a diplomacia da República Bolivariana da Venezuela está chamada
a transmitir, através das suas Embaixadas, Consulados e Representações
Diplomáticas, os progressos feitos, buscando além disso, a experiência e a
cooperação dos outros países nessa luta contra a pobreza. Os embaixadores
são comunicadores dessa ação – informam e buscam projetos de cooperação
bilateral e multilateral que permitam reforçar o trabalho realizado dentro do
país: cooperação para reforçar a participação da cidadania, novas tecnologias
para a agricultura sustentável, experiências em que a empresa privada e os
empresários ajudem a criar empregos, etc. Programas, enfim, que nos apóiem
no trabalho que vem sendo realizado nesse campo.
Os venezuelanos e a sua democracia
220 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
220
O desenvolvimento sustentável permitirá erradicar a pobreza, mas
significa também uma agenda bilateral e multilateral em matéria de meio
ambiente, que inclua a busca de projetos para tratar os problemas sociais,
novas técnicas em termos de água potável, mudanças climáticas, regulamentação
internacional dos problemas ambientais, na condição de problemas globais.
Como países dotados de fontes energéticas e de grande diversidade, temos
responsabilidades ambientais que podemos compartilhar nos foros
internacionais dos quais participamos, como por exemplo na OPEP, onde
seria conveniente analisar os passivos ambientais criados pela indústria
petrolífera. Poderíamos perguntar-nos como fazer para que se cumpra o
princípio da internalização dos custos ambientais, e a aplicação do princípio
do desenvolvimento sustentável de que “quem contamina paga”.
Outro desses princípios que estamos praticando, com a participação das
comunidades autóctones no desenvolvimento nacional é a administração dos
recursos naturais, das florestas, além da participação ativa da mulher e dos
jovens.
A Venezuela assinou o Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares.
Somos um país pacífico, porque a guerra é contrária ao desenvolvimento
sustentável.
A democracia é, em sua essência, desenvolvimento sustentável, que consta
na Constituição Bolivariana. Daí os grandes esforços que estamos fazendo
para fortalecer as nossas instituições, para formar pessoas responsáveis, que
proponham alternativas ao país e busquem soluções dentro do contexto
democrático, respeitando as leis e a Constituição.
Tudo o que estamos fazendo na Venezuela tem por objetivo fundamental
alcançar as metas fixadas nas Nações Unidas. Estamos preocupados porque
esses objetivos não podem ser alcançados somente através de discursos oficiais,
pois é necessária uma vontade política, como o nosso governo expressou nos
foros internacionais. Vontade política traduzida em planos, programas e missões
sociais efetivamente realizados.
Esse desejo do governo venezuelano manifestou-se reforçando o regime
democrático e ampliando o orçamento para cristalizar os planos de apoio social
e, ao mesmo tempo, obtendo a participação das pessoas como co-responsáveis
pelo seu futuro.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Jesús Arnaldo Pérez
221
A luta contra a pobreza não depende só dos governos, mas deve incluir
a participação das pessoas, para que elas próprias possam procurar as respostas
aos seus problemas; e deve ter, igualmente, a participação da empresa privada.
Estamos chegando a um momento em que já foi demonstrado que o
crescimento dos países desenvolvidos ou subdesenvolvidos não é suficiente para
assegurar o bem-estar da maioria. Ao mesmo tempo, sabemos que a integração
econômica que tenha como centro de interesse a integração dos mercados, e que
é iminente, acarreta a necessária competição entre os povos por mão-de-obra,
pelas facilidades oferecidas às empresas, para captar seus investimentos, pela
supressão de impostos, pela presença de regimes que não respeitem os direitos
sociais dos trabalhadores, etc. Isso nos levaria a uma competição desenfreada,
com baixos salários e pouca proteção social, inclusive ao trabalho infantil e ao
agravamento das condições de trabalho em geral, ou seja, o contrário do
desenvolvimento sustentável. É o que aconteceria com essa iminente integração
do mercado, tendo-o como centro de interesse.
A Venezuela propõe a integração dos povos por intermédio da cultura,
do intercâmbio de informação e da relação direta entre os povos. Só assim
essa integração poderá criar as condições necessárias para que a mundialização
dos mercados tenha um rosto humano.
A ocasião é propícia, já que na Unesco as Nações Unidas vão discutir,
daqui até 2005, a Convenção sobre Diversidade Cultural, em que a cultura e os
povos não serão meros objetos passivos da integração dos mercados.
Educação, saúde e alimentação dos venezuelanos:
liberdades fundamentais para o desenvolvimento
sustentável do país
O Presidente da República Bolivariana da Venezuela pensa que a melhor
forma de eliminar a pobreza como condição indispensável do desenvolvimento
sustentável é dar “poder aos pobres”. Com efeito, desde 2003, depois de ter
enfrentado com êxito as tentativas antidemocráticas de desestabilização, e a
despeito das grandes perdas econômicas ocasionadas, o governo nacional pôs
em prática uma série de ações concretas destinadas a transmitir o poder aos
pobres através da educação, da saúde e da alimentação. Nasceu assim a Missão
Os venezuelanos e a sua democracia
222 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
222
Tradução: Sérgio Bath.
Robinson, a cargo do Ministério da Educação, Cultura e Desporte, cujo objetivo
é erradicar a alta porcentagem de analfabetismo persistente em nosso país,
ajudando mais de um milhão de venezuelanos a obter o certificado de estudos
primários. Em seguida houve a Missão Ribas, a cargo do Ministério de Energia e
Mineração, que pretende ajudar centenas de milhares de jovens a concluir a
escola secundária que, por diferentes razões, não puderam completar. Finalmente,
a Missão Sucre e a criação da Universidade Bolivariana, a cargo do Ministério da
Educação Superior, que tem por objetivo dar a mais de meio milhão de jovens
com diploma do curso secundário, a oportunidade de continuarem seus estudos
até obterem um diploma universitário.
No que concerne à saúde e alimentação, o governo implementou o Plano
Barrio Adentro e a Missão Mercal, a cargo do Ministério da Saúde e Desenvolvimento
Social, do Ministério da Agricultura e Terras e do Ministério da Defesa. A meta
fundamental do primeiro é a melhoria da qualidade de vida dos mais necessitados
nos bairros periféricos das grandes cidades do país. Esse plano consiste em
oferecer uma assistência integral gratuita em matéria de saúde e educação, com
a participação das comunidades organizadas e com a ajuda de pessoal médico
especializado. Ao mesmo tempo, o governo elabora uma rede de saúde pública
com base em postos de saúde e em clínicas populares. Outro plano de impacto
social significativo é a Missão Mercal, que se destina a reforçar as condições de
segurança alimentar no país, tendo por meta formar um sistema logístico para a
aquisição, transporte, armazenagem, distribuição e venda de alimentos e
medicamentos genéricos básicos. Os alimentos e os medicamentos são vendidos
a preços inferiores aos de mercado, permitindo assim a milhões de venezuelanos
exercerem o seu direito à saúde.
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Rafael Bielsa
223
Antonio Berni
Primeiros Passos
Alberto G. Bellucci
*
Berni pinta “Primeiros Passos” em 1937, no mesmo ano em que Picasso
realiza “Guernica”. A associação é arbitrária, mas deliberada. Não apenas
porque se trata de duas obras-primas que nascem sincronicamente unidas na
*
Diretor dos Museus Nacionais de Belas Artes e de Arte Decorativa de Buenos Aires, República Argentina.
Antonio Berni – Primeiros Passos
224 DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
224
longa trajetória dos dois pintores, mas, sobretudo, porque Antonio Berni (1905-
1981) certamente representa para a pintura argentina o que Pablo Picasso foi
para a européia: artistas únicos, ética e esteticamente inquietos, militantes de
uma esquerda freqüentemente utópica, exuberantes em sua criatividade, ávidos
por explorar diversas possibilidades plásticas próprias da figuração e por
denunciar os temas mais instigantes da sociedade do século XX: as crueldades
da guerra, no caso de Picasso; a marginalidade e as injustiças urbanas, no de
Berni.
Em 1930, Berni volta à Argentina, depois de passar cinco anos como
bolsista em Madri e Paris. Tem 25 anos, está recém-casado com Paule Cazenave,
estudante de escultura que conheceu na França, e é o pai ardoroso de Elena,
apelidada Lily. Mãe e filha serão protagonistas de várias de suas obras de fins
da década de trinta e princípios da de quarenta, entre elas esses “Primeiros
anos”, “Paule e Lily” (1941) e “Lily” (1943), obras marcadamente clássicas,
afirmativas da “volta à ordem”, cujas raízes se encontram nas marcas remotas
do pré-renascimento e nas mais próximas da pintura metafísica italiana. É
curioso, embora explicável, que esses retratos familiares, que se situam em
ambientes serenos e quietos, de aparência congelada, tenham nascido
imediatamente depois da poética convulsiva, exacerbada e carregada de
expressionismo com a qual Berni tentou comover a sociedade diante dos efeitos
da crise e da desocupação (“Manifestação” e “Desocupados”, de 1934, “Meia-
noite no mundo”, de 1936/7). Mas já dissemos que houve muitos Berni em
Berni, como houve muitos Picasso em Picasso.
Voltemos a “Primeiros Passos” e detenhamo-nos, também nós, para
participar da sua aparente serenidade. O pintor retratou, ao mesmo tempo, a
fisionomia precisa de sua mulher e de sua filha (Berni foi um exímio retratista
e nunca abandonou essa temática) e a universalidade prototípica de suas atitudes,
extensível a muitas outras pessoas e à humanidade inteira. Esse é um dos
segredos que produzem tão profunda impressão no observador atento e que,
em definitivo, implica a mudança de rumo na compreensão de uma representação
que, à primeira vista, parecia bastante óbvia. A aparência hierática das atitudes,
tanto da menina que dança suspensa no ar, quanto da mãe que, pensativa, pôs
de parte a costura, combina com a imobilidade da arquitetura e a paisagem de
fundo – magnífica por certo – que nos lembra os mestres italianos do século
XIV. As dobras do tecido que cai da mesa e a cortina plissada que prolonga a
DIPLOMACIA, ESTRATÉGIA E POLÍTICA - OUTUBRO/DEZEMBRO 2004
Alberto G. Bellucci
225
blusa da bailarina têm essa mesma presença congelada, imóvel, retida
eternamente no momento em que foram surpreendidas pelo olho do pintor.
Uma calma densa envolve o conjunto. Mas, quando se observa com atenção,
pode-se perceber o pulsar de sentimentos – ilusão reconcentrada na filha,
fuga para suas próprias recordações na mãe – cujas vibrações confluem das
duas figuras laterais para o eixo central do quadro que, por acaso, coincide
com o canto da porta aberta. Essa linha branca marca o eixo de um díptico
virtual em que cada ala corresponde a uma idade da mulher, o dinamismo
desinibido da adolescência frente à resignação da mulher adulta que viu – e
continua vendo – desaparecerem rápido demais essas ilusões.
Nesta grande obra, Berni libera todo um mundo de possíveis memórias,
desde aquelas que alinham distintos picos do realismo figurativo ocidental até
a fronteira de uma geometrização precisa, que se inicia com a caracterização
psicológica. Objetividade e subjetividade, quietude e vibração, linha e cor em
associação mútua: em suma, um diálogo íntimo do qual o espectador é
convidado a participar, de modo a completá-lo.
“Primeiros Passos” foi exposto no XXX Salão Nacional de Belas Artes,
em 1940, onde obteve o primeiro prêmio, e passou imediatamente a fazer
parte do acervo do Museu Nacional de Belas Artes. Cinco anos antes, esse
mesmo Salão Nacional havia recusado “Desocupados”, um monumental
trabalho de Berni, em têmpera sobre aniagem, que hoje está em exibição no
Museu de Arte Latino-Americano de Buenos Aires (Malba), a poucas quadras
do Museu Nacional de Belas Artes. Símbolo claro da proximidade com que se
produzem os triunfos e os fracassos na vida do artista e evidência, também,
do tempo geralmente breve, tomado pela história, para restaurar o necessário
equilíbrio de uma apreciação madura e inteligente.
Tradução: Luiz Augusto Souto Maior
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