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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA
POLÍTICA
KARINE PEREIRA GOSS
RETÓRICAS EM DISPUTA: O DEBATE ENTRE
INTELECTUAIS EM RELAÇÃO ÀS POLÍTICAS DE AÇÃO
AFIRMATIVA PARA ESTUDANTES NEGROS NO BRASIL
FLORIANÓPOLIS
2008
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KARINE PEREIRA GOSS
RETÓRICAS EM DISPUTA: O DEBATE ENTRE
INTELECTUAIS EM RELAÇÃO ÀS POLÍTICAS DE AÇÃO
AFIRMATIVA PARA ESTUDANTES NEGROS NO BRASIL
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Sociologia Política da
Universidade Federal de Santa Catarina, como
requisito final para a obtenção do título de
Doutora em Sociologia Política. Linha de
Pesquisa: Movimentos sociais, participação e
democracia. Sob a orientação da Professsora
Doutora Ilse Scherer-Warren.
FLORIANÓPOLIS
2008
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KARINE PEREIRA GOSS
RETÓRICAS EM DISPUTA: O DEBATE ENTRE
INTELECTUAIS EM RELAÇÃO ÀS POLÍTICAS DE AÇÃO
AFIRMATIVA PARA ESTUDANTES NEGROS NO BRASIL
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da
Universidade Federal de Santa Catarina, como requisito final para a obtenção do
título de Doutora em Sociologia Política.
Aprovada pela Comissão Examinadora em:
Florianópolis, 18 de março de 2007.
___________________________________
Profª. Drª. Ilse Scherer-Warren (UFSC – Orientadora)
_______________________________________
Prof. Dr. José Jorge de Carvalho (UnB – Examinador)
___________________________________
Profª. Drª. Ângela Randolpho Paiva (PUC/RJ – Examinadora)
___________________________________________
Profª. Drª. Vânia Beatriz Monteiro da Silva (UFSC – Examinadora)
_________________________________________
Prof. Dr. Julian Borba (UFSC – Examinador)
É isso que eu chamo de chance. Quando Max
Weber fala em chance, é no sentido de
oportunidade. E o que é oportunidade? A
“capacidade de uma pessoa enfeitar o seu
destino”, como diz Thomas Mann, é uma coisa
que depende de oportunidade. Se a pessoa
nunca tem oportunidade, não enfeita o seu
destino. Na minha pesquisa sobre os negros
descobri homens de muito talento, mulheres
inteligentíssimas, mas que nunca tiveram
oportunidade. Essas pessoas não podiam
enfeitar o seu destino: só podiam sofrer a
miséria, as dificuldades. Eram talentos
perdidos (FERNANDES, 1995, p. 06).
Dedico
à vó Dada (In memorium)
aos meus pais: Tana e Matroá
ao meu companheiro Fernando
à minha filha Luisa
AGRADECIMENTOS
Já faz algum tempo que eu venho agradecendo a todas as pessoas que me
ajudaram a concluir esta tese. Apesar de o trabalho acadêmico ser solitário, seu
produto não se concretizaria sem o auxílio de uma rede de pessoas. É a estas
pessoas que manifesto meu mais profundo agradecimento. O que tenho a oferecer
nesse momento são palavras.
À minha muito amada filha Luisa, pelo carinho, pelos abraços nas horas
certas, por sua paciência, por aceitar as ausências e por todas as alegrias que têm
proporcionado desde que nasceu.
Ao Fernando, pelo companheirismo, que por ser jornalista sempre foi
solicitado a revisar os textos, os trabalhos, a tese, pela paciência com meus
momentos de impaciência, por sua dedicação e amor.
Aos meus pais Tana e Matroá, pelo apoio constante, por terem me ajudado a
chegar até aqui, pelo cuidado de uma vida inteira que as palavras são insuficientes
para demonstrar toda a gratidão.
À minha querida irmã Cátia, por sua amizade, por estar sempre disposta a
ajudar, pelos conselhos em momentos difíceis e por ter me presenteado com dois
sobrinhos adoráveis: o Felipe, meu afilhado, companheiro de supermercado, de
piqueniques na frente da televisão e de conversas sobre super-heróis e o Theo, que
agora é o “nosso” bebê.
Ao meu cunhado Sérgio, pela alegria nas festas, por sua cuidadosa revisão,
pelas consultas gramaticais em horas impróprias, pela correção “vivenciada” da tese
e comentada em conversas telefônicas.
À minha amiga Raquel Mombelli, por uma amizade longa e sincera, por todos
os momentos nos quais compartilhamos as angústias do doutorado, pelas conversas
e dicas, por ter me auxiliado, a partir de sua sensibilidade e conhecimento, a
compreender melhor a situação da população negra neste país, pela dedicação e
apoio que nunca foram negados.
Ao estimado primo Romário Antunes da Silva, por sua valiosa e
imprescindível contribuição na normalização da tese, pelos constantes telefonemas
atendidos com precisão e boa vontade, por sua dedicação carinhosa.
Ao querido amigo Luis Cardoso, pelo companheirismo e amizade que vieram
de longe e que certamente jamais serão esquecidos.
À minha sobrinha Fernanda de Melo Goss, uma amiga prestativa e
competente, consultora para o inglês e para as dúvidas jurídicas que porventura
surgiram durante a elaboração da tese.
Ao amigo João Luiz Dornelles Bastos, pelas trocas de idéias acerca de
nossos temas de pesquisa, por sua disponibilidade, pela leitura atenta da tese, pela
amizade inesperada e enriquecedora.
À amiga Viviane Ribeiro Corrêa, companheira de trabalho no Núcleo de
Pesquisa em Movimentos Sociais (NPMS), por todos os muitos bons e maus
momentos vividos.
À amiga e colega Marivone Piana, pelos caminhos que percorremos juntas
durante o curso: os trabalhos elaborados em conjunto, as longa conversas, as
viagens, por sua animação e força de vontade que inspiram quem está ao seu lado.
Ao amigo Fernando Taques, pelas críticas mordazes, pelos cafés
acompanhados de teoria e de terapia, pelo senso de humor maravilhoso.
À amiga Viviane Teixeira, pelo apoio em horas incertas, pelas conversas e
conselhos virtuais, por sua amizade.
Às queridas amigas que mesmo distantes, são sempre lembradas: Kelly
Prudencio e Wivian Weller.
Há pessoas que mesmo não tendo colaborado diretamente com o trabalho
são significativas: tia Vânia, que de longe sempre manifesta seu carinho e tia Mariza,
com sua vivacidade contagiante.
Às primas e amigas Cibele da Silva Biscaíno, Sinara Antunes da Silva e
Simone Antunes da Silva, pelos agradáveis momentos passados na infância e
prolongados em nossas memórias.
À Graça Regina da Conceição, por auxiliar na vida doméstica e mantê-la
ordenada para que eu pudesse trabalhar e pela amizade de muitos anos.
À Fátima e à Albertina por constantemente estarem dispostas a ajudar a
organizar as questões burocráticas que devemos cumprir, por anos de uma
convivência amistosa e agradável.
Aos colegas da “Comissão de Política de Ampliação de Oportunidades de
Acesso Socioeconômico e Diversidade Étnico-racial para ingresso na
UFSC/Processo Vestibular”, especialmente à Vânia Beatriz Monteiro da Silva,
incansável batalhadora das trincheiras acadêmicas e militante, e ao Marcelo
Tragtenberg, por sua vontade e determinação em implementar uma política de ação
afirmativa para a UFSC, por sua coragem em enfrentar as adversidades e por nos
animar com sua eterna boa disposição.
Duas professoras são exemplos intelectuais que procurarei perseguir: Ilka
Boaventura Leite, pelo apoio e o respeito concedidos, por ter me incentivado a
seguir trabalhando com esse tema, pelas conversas prolongadas, por suas sábias
palavras. À Tamara Benakouche, por sua leitura lógica e objetiva, por saber apontar
as falhas e os acertos e fazer as perguntas certas, por sua preciosa dedicação e
exemplo de vida.
Ao professor Julian Borba, por suas valiosas indicações bibliográficas e pela
disponibilidade em oferecer sua leitura e comentários sempre que solicitados.
Ao CNPq, pela concessão da bolsa que permitiu minha dedicação exclusiva
ao doutorado.
Finalmente, gostaria de agradecer à minha orientadora, professora Ilse
Scherer-Warren. Com ela compartilhei diferentes momentos da vida acadêmica e
aprendi a cultivar valores e características importantes não somente para a
pesquisa, mas para a vida: a responsabilidade, a dedicação, a perseverança, o
respeito, a confiança, a amizade e a indignação frente a injustiças que parecem
banais. Por tudo isso e porque ela é uma mulher que soube transformar sua
trajetória de vida em um exemplo, eu agradeço muitíssimo.
RESUMO
A implementação de políticas de ação afirmativa para estudantes negros nas
universidades públicas brasileiras gerou um intenso debate em diversos campos
sociais. As discussões sobre as políticas de ação afirmativa mobilizaram não
somente atores organizados da sociedade civil brasileira como também a
intelligentsia nacional. Em paralelo ao debate instalado na mídia a partir de 2002,
iniciou-se também uma disputa acadêmica em torno do tema. Entender o porquê
dessa disputa tão acirrada entre os intelectuais brasileiros sobre a necessidade ou
não de aplicação dessas políticas constitui o objetivo principal da pesquisa. Para
isso, serão analisadas as principais proposições apresentadas por cientistas sociais,
mais especificadamente representantes da antropologia e da sociologia. Há pelo
menos duas posições bem demarcadas nas ciências sociais a respeito do tema: os
intelectuais contrários às políticas de ação afirmativa e aqueles que se posicionam
favoravelmente. Seus argumentos serão analisados a partir de uma tipologia criada
por Albert Hirschman (1992). Os autores que desenvolvem argumentos em oposição
às ações afirmativas são partidários de uma retórica denominada de conservadora,
enquanto os que defendem tais políticas são classificados como partidários de uma
retórica progressista. Hirschman delimita três teses da retórica conservadora que
foram elaboradas por intelectuais, muitos deles cientistas sociais, em diferentes
épocas, em relação a políticas avaliadas como progressistas e/ou reformistas: a tese
da perversidade, a tese da futilidade e a tese de ameaça. Para cada tese da retórica
conservadora, o autor elabora contrapartidas progressistas originando dessa
maneira pares que se contrapõem e se complementam. É possível concluir que as
duas retóricas em embate refletem posturas diferenciadas dos intelectuais em
relação à ciência e à política. Além disso, os partidários das duas retóricas partilham
de concepções diversas a respeito de conceitos importantes utilizados nas ciências
sociais brasileiras, especialmente o de raça e o de mestiçagem. Tanto a vinculação
dos intelectuais com a ciência e com a política quanto as matrizes teóricas que usam
para explicar a nação incidem sobre seus posicionamentos relativos à implantação
de ações afirmativas para estudantes negros no Brasil.
Palavras-chave: Ação afirmativa. Estudantes negros. Intelectuais. Retórica
progressista. Retórica conservadora.
ABSTRACT
The implementation of politics of affirmative action for black students in the Brazilian
public universities generated an intense debate in several social spheres. The
quarrels on the politics of affirmative action had not only mobilized organized actors
of the Brazilian civil society as well as the national intelligentsia. In parallel to the
debate installed in the media from 2002, an academic dispute around the subject
was also initiated. To understand why this dispute so incited between the Brazilian
intellectuals on the necessity or not of application of these politics do not constitute
the main objective of the research. For this, the main proposals presented for social
scientists, more specifically anthropology and sociology representatives will be
analyzed. It has at least two well demarcated positions in social sciences regarding
the subject: contrary intellectuals to the politics of affirmative action and those
favorable. Its arguments will be analyzed from a tipology created for Albert
Hirschman (1992). The authors who develop arguments in opposition to the
affirmative actions are partisan of a called rhetoric of conservative, while the ones
that defend such politics are classified as partisan of a progressive rhetoric.
Hirschman delimits three theses of the rhetorical conservative that had been
elaborated by intellectuals, many of them social scientists, at different times,
evaluating politics as progressive and/or reformist: the thesis of the perversity, the
thesis of the futility and the thesis of threat. For each thesis of the rhetorical
conservative, the author elaborates progressive counterparts, originating pairs that
oppose and complement each other. It is possible to conclude that the two rhetorical
in shock reflect differentiated positions of intellectuals in relation to science and
politics. Moreover, the partisans of the two rhetorical share diverse conceptions
regarding important concepts used in Brazilian social sciences, especially of race and
of mestization. As much as the entailing of the intellectuals to science and politics
than the theoretical matrices that they use to explain the nation happens on its
relative positionings to the implementation of affirmative actions for black students in
Brazil.
Key words: Affirmative action. Black students. Intellectuals. Progressive rhetoric.
Rhetorical conservative.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO .................................................................................................... 13
1.1 PRINCIPAIS ARGUMENTOS CONTRÁRIOS E FAVORÁVEIS À ADOÇÃO DE
POLÍTICAS DE AÇÃO AFIRMATIVA ..................................................................... 18
1.2 CONCEITUAÇÃO E OBJETIVOS DAS POLÍTICAS DE AÇÃO AFIRMATIVA . 20
1.3 BASES JURÍDICO-FILOSÓFICAS DAS AÇÕES AFIRMATIVAS .................... 23
1.4 O CAMINHO ATÉ A APLICAÇÃO DE POLÍTICAS DE AÇÃO AFIRMATIVA NO
BRASIL .................................................................................................................. 25
1.5 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS ......................................................... 30
1.6 ESTRUTURA DA TESE ................................................................................... 31
2 A CONSTITUIÇÃO DO CAMPO CIENTÍFICO E/OU ACADÊMICO, O PAPEL DA
RETÓRICA E A POSIÇÃO DOS INTELECTUAIS ................................................ 33
2.1 A CONSTITUIÇÃO DO CAMPO CIENTÍFICO E O LUGAR DAS CIÊNCIAS
SOCIAIS ................................................................................................................. 34
2.2 CIÊNCIA E RETÓRICA .................................................................................... 40
2.2.1 Retórica ........................................................................................................ 40
2.2.2 A reabilitação da retórica ............................................................................ 42
2.2.3 Ciência como retórica ................................................................................. 45
2.3 OS INTELECTUAIS E AS QUESTÕES POLÍTICAS ........................................ 47
2.4 AS RELAÇÕES ENTRE OS INTELECTUAIS, O CAMPO POLÍTICO E O CAMPO
DA MÍDIA ............................................................................................................... 53
2.5 INTELECTUAL: “A MORALIDADE DO COMPROMISSO” ............................... 56
3 RAÇA, MESTIÇAGEM E NAÇÃO: RECORRENTES TOPOI DAS CIÊNCIAS
SOCIAIS BRASILEIRAS ....................................................................................... 59
3.1 TRAJETÓRIA DO CONCEITO DE RAÇA ........................................................ 62
3.2 A PREOCUPAÇÃO COM A RAÇA, O PROTAGONISMO DA MESTIÇAGEM E A
INCORPORAÇÃO DAS TEORIAS RACIALISTAS PELOS INTELECTUAIS E OS
“HOMENS DE SCIENCIA” NO BRASIL ................................................................. 64
3.3 O BRASIL MESTIÇO: A MISTURA DE RAÇAS ............................................... 72
3.4 AS NARRATIVAS DA NAÇÃO NO BRASIL ..................................................... 83
4 A RETÓRICA CONSERVADORA NO PENSAMENTO ACADÊMICO
BRASILEIRO EM RELAÇÃO ÀS POLÍTICAS DE AÇÃO AFIRMATIVA .............. 92
4.1 A RETÓRICA CONSERVADORA .................................................................... 93
4.1.1 A tese da perversidade relacionada aos três momentos de reação às
políticas progressistas e/ou reformistas............................................................ 95
4.1.2 A tese da futilidade relacionada aos três momentos de reação às políticas
progressistas e/ou reformistas ........................................................................... 97
4.1.3 A tese da ameaça ou do risco relacionada aos três momentos de reação
às políticas progressistas e/ou reformistas ....................................................... 100
4.2 AS TRÊS TESES CONSERVADORAS EM RELAÇÃO À POLÍTICA DE COTAS
............................................................................................................................... 102
4.2.1 A tese da perversidade ............................................................................... 103
4.2.2 A tese da futilidade...................................................................................... 106
4.2.3 A tese da ameaça ........................................................................................ 125
5 A RETÓRICA PROGRESSISTA NO PENSAMENTO ACADÊMICO BRASILEIRO
EM RELAÇÃO ÀS POLÍTICAS DE AÇÃO AFIRMATIVA ..................................... 141
5.1 CONTRAPARTIDA À TESE DA AMEAÇA: O PRINCÍPIO DA SINERGIA OU DO
APOIO MÚTUO ...................................................................................................... 142
5.2 CONTRAPARTIDA À TESE DA FUTILIDADE: O PROGRESSO COM CARÁTER
DE LEI .................................................................................................................... 143
5.3 CONTRAPARTIDA À TESE DA PERVERSIDADE: INVOCAÇÃO DA SITUAÇÃO
DE CRISE DESESPERADORA ............................................................................. 144
5.4 CONTRAPARTIDAS ÀS TESES DA RETÓRICA CONSERVADORA EM
RELAÇÃO ÀS POLÍTICAS DE AÇÃO AFIRMATIVA ............................................. 144
5.4.1 A invocação da crise desesperadora ........................................................ 145
5.4.2 Estamos perdendo o trem da história ....................................................... 147
5.4.3 A eficácia das políticas progressistas e/ou reformistas .......................... 149
5.5 OS LUGARES DA QUANTIDADE E OS LUGARES DA QUALIDADE ............ 152
5.6 MUDAR DE POSIÇÃO: UMA ATITUDE AUTO-SUBVERSIVA OU
REVISIONISTA? .................................................................................................... 154
5.7 CONSELHOS AOS PROGRESSISTAS ........................................................... 161
6 CONCLUSÃO ..................................................................................................... 163
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................... 173
13
1 INTRODUÇÃO
O processo de implementação de ações afirmativas no Brasil, especialmente
o estabelecimento de cotas para estudantes negros no ensino superior público,
provocou uma enorme controvérsia, transformando-se em uma questão polêmica
sobre a qual não se tem consenso e que estimula diferentes posições de diversos
setores da sociedade.
As discussões sobre as políticas de ação afirmativa mobilizaram não somente
atores organizados da sociedade civil brasileira como também a intelligentsia
nacional. Os debates, desde pelo menos o ano de 2003, tornaram-se freqüentes nos
meios de comunicação, nas universidades, na Câmara dos Deputados, no Senado
etc.
Os argumentos que compõem o debate estruturam um conjunto de opiniões e
teses que aparecem periodicamente na mídia, nos depoimentos dos representantes
dos campos sociais produtores de discursos e nas relações cotidianas das pessoas.
Frente a todas essas discussões, um dos questionamentos que pode ser feito é por
que o estabelecimento de políticas de ação afirmativa mexe de forma tão intensa
com tantos campos da vida social?
Uma resposta provisória a essa questão é que o tema coloca em xeque uma
certa “atitude natural”, nos termos de Schütz (1979, p. 81), em relação ao problema
racial no Brasil. O “pensar como sempre”
1
de muitos grupos é questionado, pois
tanto o mito da “democracia racial” quanto a “ideologia da mestiçagem” perdem sua
eficácia política e simbólica no momento em que determinado setor da população
reivindica direitos até então pouco requisitados. Ainda de acordo com Schütz, o
“pensar como sempre” de determinados grupos será mantido enquanto certas
condições estiverem estabelecidas: a vida social permanecer mais ou menos a
mesma, sem maiores alterações; até quando houver possibilidade de confiança nos
diversos tipos de conhecimentos que temos acesso; se mesmo com pouco
conhecimento sobre os acontecimentos podemos controlá-los e, ainda, quando os
códigos de interpretação que possuímos não pertencerem à esfera pessoal de
conhecimento e, da mesma forma, forem aceitos. Num primeiro exame parece que
1
“[...] inclui as suposições ‘óbvias’ relevantes para determinado grupo social, [...] bem como suas
contradições e ambivalências inerentes [...]” (SCHÜTZ, 1979, p. 81).
14
essa “atitude natural” perante a discriminação racial, que já vinha sendo questionada
há algum tempo conforme comprovam vários autores
2
, está definitivamente sendo
colocada à prova.
Em paralelo ao intenso debate instalado na mídia a partir de 2002, iniciou-se
também uma disputa acadêmica em torno do tema. Antropólogos e sociólogos,
principalmente, mas também cientistas políticos, juristas, economistas, historiadores,
entre outros representantes do campo acadêmico, divulgaram argumentos
favoráveis e contrários à aplicação das cotas no ensino superior. Apesar de já
existirem cerca de 51 universidades públicas
3
com algum tipo de política da ação
afirmativa implementada, a área das ciências sociais ainda se encontra
explicitamente dividida entre os intelectuais contrários e os favoráveis a essas
medidas. Entender o porquê dessa disputa tão acirrada entre os intelectuais
brasileiros sobre a necessidade ou não de aplicação dessas políticas constitui o
objetivo principal desta pesquisa. Para isso, serão analisadas as principais
proposições apresentadas pelos representantes das duas posições dentro das
ciências sociais, mais especificamente da antropologia e da sociologia.
Vários autores sinalizam uma divisão de interpretação dos cientistas sociais
brasileiros a respeito da implantação das políticas de ação afirmativa. Sérgio Costa
(2002a), em artigo sobre os dilemas do anti-racismo no Brasil, classifica as duas
principais posições como anti-racismo integracionista e anti-racismo igualitarista. As
posturas integracionista e igualitarista são as duas formas como se estruturou o anti-
racismo no Brasil. Tais posições podem ser encontradas não apenas no campo
acadêmico, mas também no campo político e, inclusive, nos movimentos sociais.
De acordo com a categorização do autor, os igualitaristas acreditam que para
se chegar a uma igualdade substantiva na sociedade brasileira devem ser
explicitadas as hierarquias raciais presentes nas relações sociais. A implantação de
2
Desde a década de 1950, a forma como o racismo e a discriminação racial no Brasil eram
interpretados foram questionados por autores como Florestan Fernandes, Oracy Nogueira, Octavio
Ianni, Fernando Henrique Cardoso e, posteriormente, Carlos Hasenbalg e Nelson do Valle Silva,
entre muitos outros autores.
3
De acordo com levantamento realizado no primeiro semestre de 2008, pelo Laboratório de Políticas
Públicas, responsável pelo Programa Políticas da Cor na Educação Brasileira (PPCor), 51% das
universidades estaduais e 42% das federais desenvolvem algum programa de ação afirmativa. Pelo
menos 50% dessas instituições têm como beneficiários alunos negros, pobres ou oriundos da rede
pública de ensino. A maioria das instituições utiliza a política de cotas. Uma listagem completa das
universidades que adotam algum tipo de ação afirmativa pode ser encontrada na página: www.lpp-
uerj.net/olped/acoesafirmativas/univeridades_com_cotas-asp.
15
políticas de ação afirmativa seria uma das formas de diminuir as desigualdades
étnico-raciais no acesso a direitos de cidadania. Já para os integracionistas, a
dinâmica cultural brasileira é inclusiva e oferece uma convivência efetiva entre os
diferentes grupos de “cor”. Para os adeptos dessa corrente, o combate ao racismo
deve ser feito mantendo-se as identidades fluidas entre os grupos. Ainda dentro
desse entendimento, a realidade racial de cada país precisa ser tratada em seus
próprios termos e não devem ser utilizadas políticas produzidas por outras culturas e
em contexto diverso
4
.
A separação de posições dentro do campo anti-racista não é específica do
Brasil. Wieviorka (1995) assinala uma divisão semelhante no contexto internacional,
classificando dois tipos de anti-racismo: o anti-racismo universalista e o anti-racismo
diferencialista. No primeiro caso, procura-se atingir políticas de caráter universalista
que não comportem qualquer tipo de dimensão identitária, por considerar que
fenômenos como o racismo afetam indivíduos e não grupos. O objetivo é o
estabelecimento de igualdade de direitos individuais. O país que mais se identifica
com essa orientação, ainda segundo o autor, é a França, devido à sua cultura
política integracionista e republicana. A crítica mais contundente ao anti-racismo
4
As noções de raça e etnia se encontram muitas vezes mescladas e são utilizadas indistintamente.
No caso desta pesquisa é necessário salientar que se parte do pressuposto de que a categoria raça
não denota uma hereditariedade biossomática, mas resulta das percepções das diferenças físicas
incidirem nas relações sociais de diferentes grupos. Se raça ainda possui validade enquanto uma
noção sociológica é por que representa um signo importante para as relações sociais. Porém, o
interesse da sociologia seria pelas relações raciais e não pela raça enquanto tal. Na interpretação
de Wade (apud Poutignat e Streiff-Fenart 1998), mesmo considerando-se raça uma constituição
social, acaba-se abordando a variação fenotípica como natural. O que deve ser feito, de acordo
com o autor, é salientar que as diferenciações fenotípicas valorizadas são aquelas salientadas na
expansão colonial européia nos demais continentes. As pesquisas sobre relações raciais, portanto,
são inseparáveis da história de um discurso ocidental e de suas conseqüentes transformações
(POUTIGNAT; STREIFF-FENART 1998).
Já um grupo étnico pode ser definido não a partir de suas características comuns, mas na forma
como produz e mantém suas diferenças em relação a outros grupos. Nesse caso é a “comunicação
das diferenças” (Poutignat e Streiff-Fenart 1998, p. 40) apropriadas pelos indivíduos que estabelece
as fronteiras étnicas.
No caso do Brasil, o contingente negro da população desde o período pós-abolição foi colocado
numa situação não-étnica, o que não ocorreu com os indígenas. Apesar disso, amplas camadas da
população negra produziram uma cultura e um conjunto de valores comuns, que de certa forma as
ajudaram na construção de uma identidade que as mobiliza nas lutas por seus direitos. Segundo
Almeida (2000), este é o momento do aparecimento de uma etnicidade negra no Brasil que até
agora nunca tinha tido tanta visibilidade e que reivindica direitos de pertencimento à ordem político-
econômica ao que ainda resta do Estado-nação.
A expressão grupos de “cor” está relacionada aos estudos efetuados por pesquisadores norte-
americanos da década de 1940 até a década de 1960, os quais percebiam no Brasil a existência de
diferentes grupos de “cor” e não propriamente de diferenças raciais.
Embora as expressões étnico e racial sejam usadas em alguns momentos deste trabalho de forma
não-distinta é preciso deixar claro que todas essas pressuposições são consideradas.
16
universalista é quanto a sua incapacidade de levar em consideração as realidades
identitárias específicas de grupos submetidos a situações de racismo, além de
outras formas de problemas interculturais.
No segundo caso, as políticas anti-racistas apresentam uma dominante
diferencialista, no sentido de que reconhecem a existência de minorias e a
necessidade da execução de medidas específicas que coíbam a discriminação a
esses grupos. O país que melhor exemplifica essa postura é os Estados Unidos,
seguido pelo Reino Unido. São características do anti-racismo diferencialista a
adoção de políticas de ação afirmativa, ação positiva e equal opportunity policies. Os
críticos do anti-racismo diferencialista, de acordo com Wieviorka (1995, p. 367),
apontam o fato de que esses tipos de políticas podem privilegiar certos grupos em
detrimento de outros, além de reforçar um tipo específico de racismo, dos “brancos
pobres”. Em outras palavras, os “brancos pobres” podem se sentir discriminados por
não terem acesso às mesmas medidas que os negros e conseqüentemente
desenvolverem atitudes racistas. Outra crítica é que as políticas de ação afirmativa
podem ter o efeito de racializar a vida política em seus diversos níveis.
Tanto as características dessas duas formas de anti-racismo, como as críticas
que sofrem assemelham-se com o debate atualmente travado no Brasil. A posição
da corrente integracionsita é análoga à do anti-racismo universalista. Aqui, como na
França, há uma forte tradição de integração republicana dos grupos sociais e não de
diferenciação. Já a corrente igualitarista aproxima-se do que Wieviorka qualifica
como anti-racismo diferencialista. Isso não significa, entretanto, que a disputa que
ocorre no Brasil é uma reprodução do que está ocorrendo em nível internacional,
mas apenas indica a ampla ressonância do tema.
A antropóloga Lilia Schwarcz (2005/2006) também propõe uma divisão no
tratamento da exclusão racial no Brasil, mas diferentemente de Costa, ela não situa
essa divisão dentro do que o autor denomina de anti-racismo. De acordo com sua
interpretação, o tema pode ser equacionado a partir de pelo menos duas posições:
uma delas é defendida por aqueles que optam por políticas mais universalistas e
medidas mais igualitárias, ao mesmo tempo em que recuperam uma matriz ibérica
de nação assentada na mestiçagem. Esses intelectuais não aceitam a política de
cotas porque ela representaria uma racialização da sociedade brasileira. A outra
posição é representada por aqueles pesquisadores que, mesmo sabendo dos limites
17
do conceito de raça, o aplicam porque vêem sua inserção efetiva nas práticas
sociais. Nesse caso, as políticas de ação afirmativa seriam uma das formas de
grupos discriminados alcançarem equiparação de oportunidades em relação a
grupos que se encontram historicamente em condições sociais mais favoráveis.
No caso desta pesquisa, também foi realizada uma divisão da posição dos
intelectuais brasileiros em torno da implementação das políticas de ação afirmativa.
Essas duas posições são classificadas, a partir de uma tipologia criada por Albert
Hirschman
5
(1989, 1992), da seguinte forma: os intelectuais contrários às políticas
de ação afirmativa desenvolvem o que Hirschman denomina de uma retórica
conservadora e os intelectuais favoráveis a essas medidas compartilham de uma
retórica caracterizada como progressista.
Feres Júnior (2005)
6
também utiliza a tipologia de Hirschman no exame dos
argumentos de intelectuais contrários às ações afirmativas. Porém, o autor
concentra sua análise apenas na retórica conservadora, restringindo-se às teses da
ameaça e do efeito perverso. Algumas questões apontadas por Feres Júnior serão
retomadas em capítulos posteriores.
Conforme mais adiante será devidamente elucidado, não se está fazendo
uma análise em termos de estilo de pensamento conservador ou progressista, mas
sim em relação às idéias desenvolvidas a respeito de uma determinada política
social. A divisão dos argumentos dos intelectuais nesses dois tipos não significa que
não existam diferenças internas em cada um dos grupos. Porém, há determinados
elementos consensuais utilizados em ambas as retóricas que permitem essa
classificação. Isso não elimina a possibilidade de serem realizadas outras formas de
classificação ou criadas outras tipologias.
5
No estudo efetuado por Hirschman, conforme ficará explicitado nos capítulos 4 e 5, o autor refere-
se, em primeiro lugar, à elaboração de uma retórica conservadora em diferentes períodos
históricos, sempre que importantes políticas progressistas e/ou reformistas foram propostas. Em
seguida, ele propõe antíteses complementares a cada uma das teses da retórica conservadora.
Seu trabalho não se ateve à análise de políticas de ação afirmativa que, no caso desta pesquisa,
estão sendo consideradas políticas de cunho progressista e/ou reformista.
6
O texto de Feres Júnior: Ação afirmativa no Brasil: a política pública entre os movimentos sociais e a
opinião douta, foi apresentado no Seminário Internacional “Ações afirmativas nas políticas
educacionais: o contexto pós Durban”, realizado de 20 a 22 de setembro de 2005, em Brasília. O
paper além de avaliar dois processos de implementação de políticas de ação afirmativa em
universidades, trata da posição dos intelectuais em relação a essas políticas públicas e à sua
presença na mídia. O texto foi gentilmente cedido pelo autor.
18
1.1 PRINCIPAIS ARGUMENTOS CONTRÁRIOS E FAVORÁVEIS À ADOÇÃO DE
POLÍTICAS DE AÇÃO AFIRMATIVA
As políticas de ação afirmativa ganharam visibilidade no Brasil principalmente
a partir do fato de a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e a
Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF) terem adotado cotas para
estudantes negros
7
no vestibular de 2003, em decorrência da aplicação de uma lei
estadual. O acontecimento ganhou evidência imediata nos meios de comunicação
de massa, sendo possível observar uma postura extremamente parcial, num
primeiro momento, tanto nas matérias de jornal quanto nas reportagens de televisão.
Em sua maioria, os meios de comunicação assumiram uma posição visivelmente
contrária ao estabelecimento de cotas para estudantes negros nas universidades.
Apesar desse episódio ter gerado uma maior repercussão, a Universidade de
Brasília (UnB) iniciou em 1999 um processo de discussão a respeito de uma
proposta de cotas, que seria aprovada em 2003, através de uma iniciativa da própria
universidade.
No Brasil, a discussão desse tema, a exemplo do que recentemente
aconteceu nos Estados Unidos, também vem acompanhada de polêmica. No
entanto, lá o debate ocorre depois de pelo menos quatro décadas de implementação
de tais políticas, enquanto aqui a disputa situa-se em termos da necessidade ou não
da sua aplicação. Alguns dos principais argumentos contrários à aplicação de cotas
no ensino superior brasileiro, que podem ser encontrados em publicações
especializadas e nos meios de comunicação, em geral são os seguintes
8
:
7
O estabelecimento de cotas para a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e para a
Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Vargas (UENF) foi regulamentado pela Lei
Estadual 3.524/2000, que em seu artigo 2º reserva 50% das vagas nos cursos de graduação das
duas universidades para candidatos que tenham freqüentado a escola pública durante todo o
período escolar. Já a Lei Estadual 3.708/2001, em seu artigo 1º, reserva 40% de vagas nos cursos
de graduação de ambas as instituições para negros e pardos. Para maiores detalhes sobre o
processo seletivo das duas universidades, consultar: Ciência Hoje, n. 29, onde há um extenso
artigo que trata da questão. Essa lei foi modificada em 14 de agosto de 2003 e atualmente
estabelece que 20% das vagas serão destinadas a estudantes da rede pública de ensino, 20% a
candidatos negros e 5% a estudantes portadores de deficiências físicas e integrantes de minorias
étnicas.
8
A maioria dos autores que trata do tema das ações afirmativas discute sobre a argumentação
contrária à implementação dessas políticas. Entre eles pode-se destacar: CONTINS, Márcia;
SANT’ANA, Luis Carlos (1996), GOMES, Joaquim B. Barbosa (2000) e GUIMARÃES, Antonio
Sérgio (1999), entre muitos outros.
19
A adoção de políticas de ação afirmativa demanda o reconhecimento
das diferenças étnicas e raciais dos brasileiros e isso contraria um
ideário valorizado a respeito da mestiçagem.
As ações afirmativas causarão uma divisão perigosa entre negros e
brancos no Brasil.
A aplicação de políticas de ação afirmativa implica necessariamente a
retomada do conceito de raça, apesar do fato de os defensores dessas
medidas afirmarem que o termo se refere a uma construção social e
não biológica.
A defesa da igualdade de tratamento dos indivíduos de acordo com o
mérito.
A dificuldade de classificação dos sujeitos dessas políticas em
decorrência da existência de uma população mestiça.
A falta de consenso, mesmo dentro da academia, de que as
desigualdades raciais, apesar de correlatas à questão de classe, são
distintas das desigualdades de classe.
O fato de esse tipo de política não beneficiar a população negra em
geral, mas apenas uma pequena parcela dessa população.
A resolução do problema das desigualdades étnicas viria com a
implantação de políticas universalistas e não de políticas
diferencialistas ou focalistas.
Os negros contemplados com a política de cota racial seriam ainda
mais discriminados e estigmatizados.
Alguns dos principais argumentos favoráveis à implementação de cotas no
ensino superior brasileiro, que pretendem justificar a legitimidade desse
procedimento, são
9
:
9
Os argumentos favoráveis à aplicação das políticas de ação afirmativa foram retirados
especialmente das obras de CARVALHO, José Jorge de (2004, 2005a e b); SEGATO Rita Laura
(2005/2006); FERES JÚNIOR, João (2006).
20
Reparação – as cotas funcionam como um mecanismo de justiça
reparatória pelos 300 anos de escravidão. Seriam também uma espécie
de compensação que a comunidade negra reivindica por uma dívida que
a sociedade brasileira como um todo tem para com esse contingente
populacional.
Cobrança de um direito – apesar de a Constituição de 1988 garantir a
todos os cidadãos tratamento igual em relação aos serviços públicos
oferecidos pelo Estado, é imensa a desigualdade de participação da
comunidade negra nas universidades quando comparada à dos brancos.
Nesse sentido, as cotas representariam a concessão de um direito já
previsto constitucionalmente.
Promoção da diversidade étnica e social – a presença de negros e índios
seria uma forma de enriquecer o ambiente acadêmico. Esse argumento
diz respeito à própria dinâmica da instituição universitária, pois a presença
de negros e indígenas diversificaria a produção de saberes e poderia
provocar uma revisão em conteúdos eurocêntricos, além de proporcionar
o contato com a diversidade de culturas, modos de vida, visões de mundo
etc.
Intensificação da luta anti-racista – propor cotas é uma forma de abrir uma
discussão até há pouco tempo muito silenciada sobre o racismo no Brasil.
Essa seria uma das formas de reconhecer que as práticas racistas estão
presentes no ambiente acadêmico e que é preciso discutir sobre isso e
tomar posições.
1.2 CONCEITUAÇÃO E OBJETIVOS DAS POLÍTICAS DE AÇÃO AFIRMATIVA
De acordo com o sociólogo Edward Telles (2003), as políticas sociais do
Brasil que procuram combater o racismo podem ser divididas em dois grupos:
legislação anti-racismo e ação afirmativa. No primeiro caso, as pessoas podem
recorrer à lei após terem sofrido discriminação. Este tipo de legislação existe desde
1951, porém leis mais eficazes só surgiram em 1988, com a nova Constituição. No
21
segundo caso, busca-se prevenir a discriminação e contribuir para o
estabelecimento de uma justiça reparatória. Para isso, as políticas de ação
afirmativa incluem uma ampla série de mecanismos que visam criar oportunidades
iguais e reduzir o racismo. As ações afirmativas podem utilizar cotas numéricas ou
outros tipos de medidas como, por exemplo, pontos de bonificação, entre outras. .
O país com experiência histórica mais prolongada na aplicação de políticas de
ação afirmativa é a Índia
10
. O sistema foi implantado desde 1948, ainda sob domínio
inglês, e após a independência foi ratificado. Um dos exemplos dessas políticas são
as medidas que ampararam os chamados “intocáveis” (dalits) – e lhes garantiram
acesso a empregos públicos e a universidades (CARVALHO, 2005; D’ADESKY,
2001 e FERES JÚNIOR, 2006).
Já nos Estados Unidos as ações afirmativas foram implantadas somente na
década de 1960, em grande parte como resultado da luta da população negra pelos
direitos civis. A expressão affirmative action foi utilizada pela primeira vez em um
documento oficial, a Executive Order nº 10.925, expedida pelo presidente John F.
Kennedy dois meses após assumir a presidência, em 1961. O texto estabelecia a
criação de uma “Comissão Presidencial sobre Desigualdade no Emprego”
(WALTERS, 1995 e MENEZES, 2001).
Apesar de a Índia ter sido o primeiro país a adotar as políticas de ação
afirmativa, a recepção do tema no Brasil veio especialmente dos Estados Unidos.
Feres Júnior (2006) destaca algumas razões para a significativa influência da
experiência norte-americana. A primeira delas refere-se às similitudes históricas
entre os dois países, que se constituem nas maiores colônias européias a utilizarem
o trabalho escravo dos africanos e de seus descendentes. Em segundo lugar, há a
forte influência mundial da cultura norte-americana. Uma terceira razão é que as
formas de luta e mobilização do movimento negro dos Estados Unidos tornaram-se
uma referência muito importante para o movimento negro no Brasil. Em quarto lugar
pode-se citar a dominância do modo norte-americano de tratar com a questão racial
em diferentes organismos e instituições internacionais e a dependência do Brasil em
10
O intelectual indiano Bhimrao Ramji Ambedkar foi líder dos dalits e conseguiu colocar na
Constituição da Índia independente, em 1948, a necessidade de cotas (tratamento preferencial)
para os dalits e outros grupos tribais no sistema educacional e no serviço público.
22
relação a eles. E, por fim, a crescente ascendência de autores norte-americanos na
academia brasileira.
As políticas de ação afirmativa representaram uma mudança drástica na
postura do Estado, que passou a levar em conta em suas decisões fatores como
raça, cor, sexo e origem nacional. O princípio de neutralidade estatal fundamental às
sociedades liberais passou a ser questionado, pois o Estado teve que renunciar a
essa postura e assumir uma posição ativa em defesa de grupos historicamente
subordinados e discriminados.
Num primeiro momento, as ações afirmativas foram definidas como uma
espécie de encorajamento dado pelo Estado a pessoas ou instâncias com certo
poder decisório em áreas públicas, para que considerassem nas decisões
relacionadas à educação e ao mercado de trabalho condões que poderiam
provocar desvantagem a determinados grupos. Posteriormente, por volta da década
de 1960 e início da década de 1970, nos Estados Unidos, em decorrência da
ineficácia dessas medidas tímidas foi desenvolvida a idéia da igualdade de
oportunidades, através da implementação de cotas, com o objetivo de favorecer a
presença de negros e mulheres no mercado de trabalho e em instituições de ensino.
Fica explícita então uma concepção de igualdade que difere da igualdade
liberal. O que se busca é chegar a uma igualdade de fato e não a uma suposta
igualdade em abstrato. Segundo Gomes (2003, p. 20), há uma mudança na
concepção de igualdade, que ultrapassa uma “noção estática ou formal” para chegar
a uma noção “substancial”. O ser humano passa a ser encarado a partir de sua
especificidade. Ainda segundo o autor, quando o Estado adota políticas de ação
afirmativa ou, de acordo com a terminologia do direito europeu, de discriminação
positiva, ele abandona a posição de neutralidade e passa a atuar efetivamente no
sentido de proporcionar a seus cidadãos igualdade jurídica e social. Uma das
definições de ação afirmativa utilizada no Brasil foi formulada por Joaquim Barbosa
Gomes (2003, p. 27), ministro do Superior Tribunal Federal:
23
[...] um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório,
facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate à
discriminação racial, de gênero, por deficiência física e de origem nacional,
bem como para corrigir ou mitigar os efeitos presentes da discriminação
praticada no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal de
efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como a educação e o
emprego.
Ainda de acordo com a interpretação de Gomes (2001, p. 44), muitos
objetivos justificam a implementação de políticas de ação afirmativa. O principal
deles é a “concretização do ideal da igualdade de oportunidades”. Essa política
possibilita a obtenção de uma igualdade concreta, já que o ideal de uma igualdade
formal, presente na maioria das constituições, torna-se difícil de ser alcançado sem
estratégias que favoreçam grupos ou indivíduos que se encontram em situações
desfavoráveis ou desvantajosas perante outros grupos ou segmentos sociais.
Outro objetivo apontado pelo autor é o de induzir a transformações culturais,
pedagógicas e psicológicas nas sociedades em que tais ações são aplicadas, visto
que elas possuem um caráter de exemplaridade. Além disso, as ações afirmativas
visam eliminar as persistentes conseqüências da discriminação, que tendem a se
perpetuar, como também abolir as “barreiras invisíveis” que impedem o
desenvolvimento de determinados grupos discriminados, como por exemplo os
negros e as mulheres.
Gomes também chama a atenção para o fato de que, por meio das ações
afirmativas, é possível implementar uma certa diversidade dos grupos minoritários
em diversos setores, tanto públicos quanto privados. Um último objetivo relevante
para colocar em prática essas ações seria o de criar “personalidades emblemáticas”
que servirão de exemplo e incentivo para as gerações mais jovens.
1.3 BASES JURÍDICO-FILOSÓFICAS DAS AÇÕES AFIRMATIVAS
As ações afirmativas podem ser fundamentadas por diversos postulados
filosóficos e jurídicos. Dois desses princípios se destacam: o da justiça
compensatória e o da justiça distributiva. No caso da justiça compensatória, o
argumento central seria o de corrigir os efeitos de discriminações passadas ou
24
ressarcir danos causados por diferentes agentes – poder público, determinadas
pessoas ou grupos. Dentro dessa visão, a melhor forma de reparar esses danos
seria aumentar as possibilidades das vítimas de obterem melhores condições de
emprego, de acesso à educação e a posições de prestígio. O problema com esse
tipo de fundamentação é que somente os responsáveis pelos atos devem ser
penalizados e apenas as vítimas reais podem ser de alguma forma ressarcidas
(GOMES, 2001; MENEZES, 2001).
O argumento da justiça distributiva é o que melhor fundamenta a aplicação
das ações afirmativas. O pressuposto dessa noção é o de que os indivíduos ou os
grupos sociais têm o direito de reivindicar determinadas vantagens, benefícios ou
direitos, porque as condições em que vivem não possibilitam tal eqüidade em
relação a outros indivíduos ou grupos. A ação afirmativa, nesse caso, permitiria uma
igualdade proporcional “na distribuição de direitos, privilégios e ônus entre os
membros da sociedade” (MENEZES, 2001, p. 38). Ronald Dworkin é um dos autores
que defende a tese distributivista, porém sua argumentação está baseada na
utilidade social. Para esse autor, além do fato de a ação afirmativa favorecer a uma
maior participação de certos grupos na sociedade, ela ainda teria por finalidade
proporcionar a redução das desigualdades sociais para a sociedade como um todo.
Portanto, os custos que teriam que ser suportados, mesmo por aqueles indivíduos
ou grupos não beneficiados por essas políticas, poderiam ser justificados porque
elas acabam se revertendo em um bem maior para toda a comunidade (GOMES,
2001; MENEZES, 2001).
Algumas vertentes do multiculturalismo, especialmente a derivada dos
trabalhos de Charles Taylor, também são utilizadas para justificar as políticas de
ação afirmativa. De acordo com a interpretação de Taylor (1994), os cidadãos com
identidades e etnias diversas das dominantes devem ser representados com
eqüidade perante os Estado e suas instituições. Porém, o que muitas vezes ocorre é
que esses grupos não têm suas especificidades reconhecidas. Tanto o “não
reconhecimento” quanto o “reconhecimento incorreto” podem ser formas de
opressão que alteram o modo de ser dos indivíduos, provocando danos estruturais
em sua personalidade. Essas formas de “não reconhecimento” ou de
reconhecimento precário ou distorcido estão relacionadas à discriminação e ao
preconceito disseminados na sociedade, o que dificulta o alcance de uma sociedade
25
mais igualitária. As ações afirmativas, de acordo com essa interpretação, não visam
somente a concessão de direitos materiais a determinados grupos, mas implicam o
reconhecimento de que “o respeito devido não é um acto de gentileza para com os
outros. É uma necessidade humana vital” (TAYLOR, 1994, p. 46). Nesse sentido, a
utilização de políticas de ação afirmativa pode ser justificada pela adoção do
princípio do reconhecimento das diferenças, considerando que os diversos grupos
presentes em determinada sociedade estão expostos a condições desiguais no
acesso a bens e a direitos materiais ou simbólicos.
1.4 O CAMINHO ATÉ A APLICAÇÃO DE POLÍTICAS DE AÇÃO AFIRMATIVA NO
BRASIL
Apesar de as ações afirmativas se constituírem em uma prática recente e
fomentarem uma ampla discussão no Brasil, é possível assegurar que o contexto
social e histórico para que isso acontecesse estava se configurando desde a década
de 1980. Alguns eventos que aconteceram no Brasil – a partir do processo de
redemocratização – e no exterior colaboraram para que o tema atingisse tamanha
amplitude. Hoje existe uma rede que atua em prol dessas políticas formada por
diversas organizações do movimento negro, por intelectuais, por organismos e
agências nacionais e internacionais que financiam projetos de ação afirmativa, além
de órgãos governamentais. Uma série de acontecimentos ocorridos em um passado
recente contribuíram para que essa rede se tornasse efetiva.
Primeiro, pode-se citar o chamado ressurgimento do movimento negro no
Brasil, que começou em meados dos anos 1970, a exemplo de outros movimentos
sociais. Uma das principais organizações políticas criadas no final da década de
1970 no Brasil foi o Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial
(MNUCDR), que depois se transformaria em Movimento Negro Unificado (MNU).
Outros grupos importantes surgidos nessa época foram os de origem religiosa, como
as Pastorais Negras, as Comissões de Padres Negros e o Grupo União e
Consciência Negra, além de inúmeras Organizações Não-Governamentais (ONGs).
Esse ressurgimento, segundo Hasenbalg e Silva (1993), deve-se principalmente à
formação de uma parcela ascendente e educada da população negra que sentiu
26
dificuldades em seu projeto de mobilidade social devido à discriminação racial. Além
disso, houve o impacto de fatores externos, como a campanha pelos direitos civis
nos Estados Unidos e as lutas pela libertação colonial na África. O movimento, ainda
segundo os autores Hasenbalg e Silva (1993, p. 149), tem como características “a
crítica às visões de mundo eurocêntricas, a recusa do ideal do embranquecimento,
um ‘retorno às raízes’, uma adesão à negritude e uma revalorização da África de
origem”. O movimento negro faz ainda uma crítica contundente ao mito da
democracia racial e ao racismo existente na sociedade brasileira.
Um outro fator que permitiu o aparecimento dessa discussão foi a
reintrodução do quesito cor/raça no censo de 1980, o que possibilitou a elaboração
de indicadores econômicos e sociais relativos à população negra.
No ano de 1985 foi promulgada uma nova lei
11
contra o racismo, que
considera qualquer prática discriminatória como crime inafiançável. Outro momento
importante foi a comemoração do centenário da abolição da escravatura no Brasil,
em 1988. Hanchard (2001) sustenta que esse foi um dos acontecimentos mais
importantes para o movimento negro brasileiro, depois da Segunda Guerra Mundial,
por duas razões. Uma delas é que a comemoração proporcionou que as
desigualdades raciais fossem um dos temas centrais do debate nacional. A outra é
que as comemorações de sociedades multirraciais são geralmente uma
oportunidade dos grupos subalternos contestarem a identidade nacional. Embora os
festejos tenham a intenção de suspender os antagonismos, o que freqüentemente
ocorre é que as relações de desigualdade aparecem com maior nitidez.
O ano de 1988 foi significativo, pois além dos eventos comemorativos ao
centenário da abolição houve também a promulgação da Constituição, na qual
consta o artigo 68, que prevê o reconhecimento de propriedade das terras dos
remanescentes das comunidades dos quilombos. Ainda nesse ano foi criada a
Fundação Palmares – vinculada ao Ministério da Cultura – com o objetivo de
formular e implantar políticas públicas voltadas para a população negra. Em 1995,
em comemoração aos 300 anos da morte de Zumbi dos Palmares, os movimentos
negro e sindical, além de diferentes ONGs, organizaram a “Marcha Zumbi dos
Palmares contra o racismo, pela cidadania e a vida”, na cidade de Brasília. Essa foi
11
A Lei Caó – Lei nº 7.437, de 20 de dezembro de 1985, inclui entre as contravenções penais, a
prática de atos resultantes de preconceito de raça, cor, de sexo ou de estado civil.
27
uma das maiores manifestações de rua contra o racismo no Brasil e que não tinha
apenas caráter de protesto, mas reivindicou ações anti-racistas concretas e políticas
públicas específicas para a população negra por parte do Estado.
No ano seguinte, 1996, o então presidente Fernando Henrique Cardoso criou
o Grupo de Trabalho Interministerial, encarregado de pensar e elaborar projetos
direcionados para a melhoria da qualidade de vida da população negra. Também
houve a realização do seminário “Ação afirmativa e multiculturalismo”, organizado
pelo governo brasileiro e com a participação de vários acadêmicos brasileiros e
norte-americanos que se reuniram para discutir as políticas de ação afirmativa para
o Brasil em comparação com as desenvolvidas nos Estados Unidos.
No ano de 2001 ocorreu a “3ª Conferência Mundial Contra o Racismo, a
Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância”, em Durban,
África do Sul. Nela o Brasil assumiu o compromisso de desenvolver políticas de ação
afirmativa para a população negra. Essa conferência constituiu-se em um marco
internacional da luta anti-racista e da promoção de políticas de ação afirmativa.
Em março de 2003 o governo federal criou a Secretaria Especial de Políticas
de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), que tem como competência a
coordenação de políticas de ação afirmativa para a proteção dos direitos de
indivíduos e grupos raciais e étnicos, com ênfase na população negra. Faz parte da
SEPPIR o Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial, constituído por
representantes de entidades e instituições da sociedade civil. Também foi
organizada a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade
(SECAD), que desenvolve políticas públicas e educacionais que visam o acesso e a
permanência de estudantes negros em todos os níveis educacionais. Ainda em
2003, foi sancionada a Lei 10.639, que estabelece a obrigatoriedade do ensino de
história e cultura afro-brasileira na Educação Básica.
A criação e o fortalecimento de programas e núcleos de pesquisas para
estudos relativos às relações raciais nas universidades brasileiras também
contribuem para o estabelecimento de políticas públicas voltadas para a população
negra. Núcleos de Estudos Afro-brasileiros (NEABs) espalhados por várias
universidades do país e o Programa Políticas da Cor (PPCor) – uma rede de
projetos de ações afirmativas que desenvolve pesquisas e projetos e promove a
28
edição de livros e documentos no campo das relações raciais – são exemplos
dessas iniciativas.
A elaboração e a divulgação de pesquisas com dados desagregados com
relação à questão étnico-racial também colaborou para a disseminação de
informações sobre uma parte da realidade até então pouca conhecida. Pode-se citar
como exemplos o número de pessoas afetadas pela AIDS e o registro de homicídios
que passam a levar em consideração a cor. O Departamento Intersindical de
Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE)
12
também realiza estudos sobre a
população negra em mercados de trabalho metropolitanos. O Programa das Nações
Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) lançou o Atlas Racial Brasileiro
13
- um
banco de dados eletrônico que reúne a mais ampla série histórica de indicadores
sociais desagregados por raça/cor já produzida no Brasil. O mérito dessas iniciativas
reside em dar visibilidade e tornar acessíveis informações que, apesar de se
originarem de bases públicas, permaneciam fora do alcance geral. Esse banco de
dados disponibiliza mais de 100 indicadores sociais abertos por raça/cor para o
Brasil e, sempre que possível, desagregados por sexo, por grandes regiões e por
unidades da federação.
De 30 de junho a 2 de julho de 2005 foi realizada a “1ª Conferência Nacional
de Promoção da Igualdade Racial”, com o objetivo de construir um Plano Nacional
de Promoção da Igualdade Racial. Nos dias 28 e 29 de junho, que antecederam a
Conferência, houve a realização de um Painel Internacional sobre “Ações
Afirmativas e os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio”. Os objetivos do milênio
14
são uma proposição internacional coordenada pela Organização das Nações Unidas
(ONU) como forma de acelerar o processo de inclusão social. A finalidade do painel
foi refletir sobre as políticas de ação afirmativa no contexto do Desenvolvimento do
Milênio. Participaram da atividade convidados internacionais, representantes
governamentais e não-governamentais de diversos países, especialmente da África,
da América Latina e do Caribe, o que denota uma atenção internacional relacionada
12
Verificar no endereço www.dieese.org.br os estudos do DIEESE relativos à população negra, como
por exemplo, o Mapa da População Negra no Mercado de Trabalho, A mulher negra no mercado
de trabalho metropolitano: inserção marcada pela dupla discriminação, entre outros.
13
Consultar o seguinte endereço: http://www.pnud.org.br/publicacoes/atlas_racial/index.php.
14
Os objetivos são os seguintes: erradicar a extrema pobreza e a fome, atingir o ensino básico
universal, promover a igualdade entre os sexos e a autonomia das mulheres, reduzir a mortalidade
na infância, melhorar a saúde materna, combater o HIV/AIDS, a malária e outras doenças, garantir
a sustentabilidade ambiental e estabelecer uma parceria mundial para o desenvolvimento.
29
ao tema da inclusão de grupos que sofrem algum tipo de discriminação,
especialmente negros e indígenas.
Estiveram presentes na conferência cerca de 1.100 delegados escolhidos nas
plenárias estaduais anteriores ao encontro nacional, além de 365 convidados. A
conferência representou o compromisso do governo com relação à concessão de
direitos, principalmente às populações negras – já que contou com a presença de
muitos ministros e representantes do governo em suas diferentes instâncias –, além
de demonstrar a articulação de inúmeras organizações participantes do movimento
negro nacional. A presença de Clare Roberts – Presidente da Comissão
Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos
(OEA) e Relator da Relatoria Especial dos Afrodescendentes da OEA – em uma das
mesas da conferência demonstrou que a preocupação com políticas públicas que
atendam os afrodescendentes não é exclusiva do Brasil, mas perpassa o continente
americano.
O Projeto de Lei (PL) 73/99
15
constitui uma matéria que se transformada em lei
vai estabelecer a obrigatoriedade do sistema de cotas para todas as Instituições
Federais de Ensino Superior (IFES). Além desse projeto de lei, há também o
Estatuto da Igualdade Racial, proposto pelo senador Paulo Paim, que se encontra
em tramitação no Congresso Nacional desde o ano de 1998. O objetivo principal do
estatuto é estabelecer critérios para o combate à discriminação racial de cidadãos
afro-brasileiros. O documento contém 85 artigos que abordam os seguintes temas: o
acesso à justiça, a criação de ouvidorias, o funcionamento dos meios de
comunicação, o sistema de cotas raciais, o mercado de trabalho, os direitos dos
quilombolas, os direitos da mulher afro-brasileira, incentivos financeiros, religião,
cultura, esporte e lazer.
15
O projeto, de autoria da deputada Nice Lobão, estabelece que as Instituições Federais de Ensino
Superior (IFES) devem reservar 50% de suas vagas para estudantes oriundos de escolas públicas,
além de respeitar em suas matrículas a propoão de negros e indígenas existente na região da
instituição.
30
1.5 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
A pesquisa foi realizada por meio de análise bibliográfica e teve como objetivo
mapear os principais argumentos elaborados pelos intelectuais brasileiros,
especialmente cientistas sociais, em relação às políticas de ação afirmativa. Foram
utilizados como fontes de pesquisa
16
livros, periódicos de circulação nacional
17
,
revistas e publicações especializadas. Além disso, foram transcritas fitas de
palestras que tratavam sobre o tema em encontros acadêmicos, seminários sobre
ações afirmativas, além de gravações de audiências na Câmara Federal e no
Senado.
Apesar de a pesquisa estar alicerçada basicamente em investigação
documental, foi fundamental a participação da pesquisadora em outras instâncias. O
fato de ter feito parte da “Comissão de Política de Ampliação de Oportunidades de
Acesso Socioeconômico e Diversidade Étnico-racial para ingresso na UFSC
/Processo Vestibular”
18
, possibilitou o acesso a muitas informações relativas à
adoção de políticas de ação afirmativa em várias universidades do país, além da
participação em debates nos mais variados locais como a própria universidade, as
escolas públicas de ensino médio e os Centros Federais de Educação Tecnológica
(CEFETs). Foi possível observar a tentativa de implementação de uma política
pública na prática, as forças atuantes, as dificuldades a serem enfrentadas, entre
muitos outros fatores. Houve também o contato com diferentes atores sociais, desde
16
Os dados foram coletados a partir do ano 2000, embora seja a partir do ano 2003 que a discussão
tenha se tornado mais presente nos meios de comunicação.
17
Os principais jornais utilizados foram: Folha de S. Paulo, O Estado de São Paulo e O Globo.
18
A pesquisadora fez parte da Comissão como representante do Centro de Filosofia e Ciências
Humanas, juntamente com a Professora Ilse Scherer-Warren. A Comissão foi criada pela Portaria
195/GR/2006 de 03/04/2006 com o objetivo de elaborar uma proposta de ação afirmativa para a
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Ela é composta por representantes dos Centros
de Ensino, dos sindicatos dos docentes e técnico-administrativos, dos movimentos negro e
indígena, da Comissão Permanente de Vestibular (COPERVE) e da Secretaria de Estado da
Educação, Ciência e Tecnologia. No dia 10 de julho de 2007 o Conselho Universitário aprovou a
Resolução Normativa nº 008/CUN/2007, que criou o Programa de Ações Afirmativas da UFSC. O
Programa atende especificamente estudantes oriundos de escolas públicas, estudantes negros e
estudantes indígenas. Foi estipulado pelo Programa de Ações Afirmativas que no acesso aos
cursos de graduação será destinado 30% das vagas do vestibular, em cada curso, distribuídas da
seguinte forma: 20% para candidatos que tenham cursado integralmente os ensinos fundamental e
médio em instituições públicas de ensino; 10% para candidatos autodeclarados negros, que
tenham cursado integralmente o ensino fundamental e médio em instituições públicas de ensino.
Aos candidatos pertencentes aos povos indígenas serão criadas cinco vagas complementares,
observando-se o limite de duas vagas por curso. O programa foi aplicado no vestibular de 2008.
31
intelectuais engajados na luta pela implementação de políticas de ação afirmativa,
até profissionais, professores e estudantes do ensino médio público.
1.6 ESTRUTURA DA TESE
No segundo capítulo é analisada inicialmente a constituição do campo
científico, utilizando-se especialmente as concepções de Pierre Bourdieu,
Boaventura de Sousa Santos e Bruno Latour. Em seguida, é examinado o processo
de reabilitação da retórica e sua importância para o entendimento da configuração
do campo científico. Para isso, é utilizada a teoria da “nova retórica” desenvolvida
por Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996), responsáveis pela renovação da retórica e
pela ampliação de seu significado. O uso dessa categoria é importante porque na
compreensão de Santos e Latour a ciência é considerada uma atividade retórica,
pois em última instância visa o convencimento e a persuasão. Em seguida, procede-
se à analise do papel dos intelectuais no interior do campo científico, estabelecendo
sua relação com outros campos como o da política e o da mídia.
Na seqüência, no terceiro capítulo, são escolhidos três temas ou topoi, devido
a sua constante presença nas ciências sociais brasileiras: a raça, a mestiçagem e a
nação. Esses temas terão sua trajetória recuperada no interior das ciências sociais
brasileiras, por meio de alguns autores como Lilia Schwarcz, Thomas Skidmore e
Giralda Seyferth, entre outros. Primeiramente é apresentada uma síntese do
significado do conceito de raça. Logo após, é realizada uma análise de como a
questão racial tornou-se uma fonte de preocupação para a elite intelectual e política
do país. Finalmente, é examinada a utilização dessas categorias no discurso dos
intelectuais contrários e favoráveis às políticas de ação afirmativa.
A retórica conservadora é a temática específica do quarto capítulo.
Inicialmente é demonstrado como esse tipo de retórica se desenvolveu sempre que
políticas avaliadas como progressistas e/ou reformistas foram colocadas em prática
no Ocidente. A partir da análise de Hirschman a respeito de três momentos
específicos da história ocidental: a revolução francesa, o sufrágio universal e o
welfare state, pode-se observar como a retórica conservadora foi organizada, de
forma mais ou menos consciente, em oposição a essas transformações. Esse tipo
32
de retórica, por sua vez, pode ser dividido em três principais teses: a tese da
perversidade, a tese da futilidade e a tese da ameaça. Num segundo momento, a
tipologia criada por Hirschman será utilizada para a análise e a classificação dos
argumentos contrários às cotas para estudantes negros, elaborados pelos cientistas
sociais brasileiros. Nesse caso, serão localizadas e desenvolvidas as três teses
acima citadas em relação aos discursos produzidos pelos intelectuais.
O quinto capítulo tratará especificamente da retórica progressista. Da mesma
forma que no capítulo precedente, em primeiro lugar serão apresentadas as
contrapartidas progressistas criadas pelo autor em contraposição à retórica
conservadora. Para, depois, aplicá-las à retórica progressista desenvolvida pelos
intelectuais brasileiros. É preciso acrescentar que a tipologia de Hirschman foi
parcialmente utilizada, pois foram criadas outras antíteses à retórica conservadora
para a análise dos discursos progressistas sobre as ações afirmativas.
Finalmente, é possível concluir que as duas retóricas em embate refletem
posturas diferenciadas dos intelectuais em relação à ciência e à política. Além disso,
os partidários das duas retóricas partilham de concepções diversas a respeito de
conceitos importantes usados nas ciências sociais brasileiras, especialmente o de
raça e o de mestiçagem. Tanto a vinculação dos intelectuais com a ciência e a
política quanto as matrizes teóricas que usam para explicar a nação, incidem sobre
seus posicionamentos relativos à implementação de ações afirmativas para
estudantes negros no Brasil.
33
2 A CONSTITUIÇÃO DO CAMPO CIENTÍFICO E/OU ACADÊMICO, O PAPEL DA
RETÓRICA E A POSIÇÃO DOS INTELECTUAIS
A noção de campo científico implica o entendimento de que há uma lógica
própria de configuração da ciência, que lhe confere certa autonomia em relação a
outras esferas. No caso desta pesquisa, é relevante a análise da constituição do
campo científico, particularmente o das ciências sociais, pois no debate sobre a
implementação de ações afirmativas no ensino superior no Brasil os intelectuais
contrários e favoráveis a essas medidas sustentam opiniões divergentes tanto em
relação ao papel da ciência quanto de suas posições no interior do campo e fora
dele. Nesse sentido, torna-se importante refletir sobre o campo científico e distinguir
a sua vinculação com outros campos, como o da política e o da mídia.
Uma das principais características do campo científico é o uso da retórica. Ela é
utilizada justamente como um instrumento na luta pelas posições de poder no
interior do campo. Boaventura de Sousa Santos (1989, 2000, 2004 e 2005) e Bruno
Latour (1994 e 2000) afirmam que a ciência é uma atividade retórica porque procura
atingir, em última instância, o convencimento e a persuasão. A delimitação de
elementos da atual configuração do campo científico brasileiro, com ênfase nas
ciências sociais, procurará demonstrar que existem pelo menos duas formas de
retórica em disputa em relação às políticas de ação afirmativa: uma retórica
conservadora e uma retórica progressista.
Ao considerarmos a ciência como uma atividade retórica, é possível perceber
que essas duas retóricas são válidas na medida em que utilizam argumentos e
teorias que visam o convencimento de um determinado auditório
1
, seja acadêmico
ou de um público mais amplo. O que determinará a posição dos intelectuais em cada
lado dessa disputa não serão somente as retóricas desenvolvidas acerca do tema,
mas também sua postura política, que, aliás, dificilmente se desvincula da científica.
1
A noção de auditório será examinada ainda nesse capítulo.
34
1.1.2.1 A CONSTITUIÇÃO DO CAMPO CIENTÍFICO E O LUGAR DAS CIÊNCIAS
SOCIAIS
A discussão sobre a relação entre o conhecimento científico, os valores e as
condições sociais não é recente na sociologia
2
. Merton promoveu uma espécie de
inversão da problemática epistemológica de Max Weber. Enquanto para o segundo
os valores permanecem com um significado epistemológico, o primeiro transfere a
problemática dos valores de um foco epistemológico para um sociológico (MATTEDI,
2004, p. 46-47). Esse deslocamento efetuado por Merton permite que a ciência seja
considerada uma esfera institucionalizada e parcialmente autônoma. Para o autor,
portanto, o que garantiria a autonomia do campo científico seria o respeito dos
cientistas a um conjunto de normas, impedindo que a ciência estivesse
completamente sujeita à política e à economia.
Por outro lado, será o Programa Forte em Sociologia do Conhecimento
3
que
irá dessacralizar a imagem da ciência, demonstrando que o conhecimento científico
está diretamente relacionado com a ordem social. Dessa forma, o Programa Forte
redefine o papel dos fatores sociais na produção do conhecimento científico.
Esse debate terá continuidade com os trabalhos desenvolvidas por Bruno
Latour e Michel Callon na década de 1980, que criaram o conceito de “simetria
generalizada”. O princípio da simetria pressupõe que tanto os enunciados científicos
considerados como “falsos” como aqueles considerados “verdadeiros” assumem
essa qualificação não necessariamente devido a um bom ou a um mau uso do
conhecimento científico, mas devido ao “processo social de convencimento que
possibilitou que eles fossem reconhecidos enquanto tais” (KROPF; FERREIRA,
2
A tradição weberiana procura “alcançar na prática científica uma nítida distinção entre enunciados
factuais e avaliatórios (embora reconhecendo o papel dos valores na orientação da investigação
científica)” (OUTWAITE; Willian, 1996., p. 792). Para Weber, portanto, na interpretação dos autores,
seria possível a separação entre os enunciados científicos e as expressões de valor. Para uma
discussão mais aprofundada sobre a relação entre a objetividade científica, o sentido da
neutralidade axiológica e os juízos de valor, consultar: WEBER, Max. Metodologia das Ciências
Sociais, parte 1. Metodologia das Ciências Sociais, parte 2. São Paulo: Cortez, UNICAMP, 2001.
3
O Programa Forte da Sociologia do Conhecimento foi desenvolvido por David Bloor e Barry Barnes
na década de 1970 e consistiu em “empreender uma análise sociológica dos conteúdos do
conhecimento científico, rompendo assim com a tradição de estudos sociais da ciência restrita à
investigação da relação entre cientistas e dos aspectos institucionais da atividade científica”
(KROPF; FERREIRA, 1998, p. 590).
35
1998, p. 592). As verdades possuindo ou não um caráter científico podem ser
caracterizadas da seguinte forma:
O que é verdade, portanto? Um batalhão móvel de metáforas, metonímias,
antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas, que foram
enfatizadas retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso,
parecem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são
ilusões das quais se esqueceu o que são... (NIETZSCHE, 1974, p. 54-56).
A separação entre “fato, poder e discurso” (Latour, 1994, p. 12) será
definitivamente questionada por esses autores. Para eles, especialmente na visão
de Latour, sociedade e conhecimento científico interagem permanentemente. Ou
seja: ao mesmo tempo em que a sociedade constrói o conhecimento científico, é
também por ele construída. Não há de um lado a ciência e do outro lado a
sociedade, conforme expressa o autor em seu Terceiro Princípio (LATOUR, 2000, p.
423):
Nunca somos postos diante da ciência, da tecnologia e da sociedade, mas
sim diante de uma gama de associações mais fraca e mais forte; portanto,
entender o que são fatos e máquinas é o mesmo que entender o que as
pessoas são.
A sociologia latouriana, portanto, não considera a idéia de que há um campo
científico, nem que ele tenha algum grau de autonomia em relação à sociedade.
Será Pierre Bourdieu um dos principais autores a desenvolver uma teoria que
determina o campo científico enquanto um espaço com relativa autonomia.
Aproximando a teoria dos dois autores, é possível afirmar que ciência e sociedade
participam de uma mesma rede, porém isso não significa que não exista
determinado grau de autonomia no campo científico para que possa se constituir
socialmente.
O conceito de campo tem como referência a sociologia dos campos desenvolvida
por Pierre Bourdieu em diferentes obras (1989, 1996, 1997, 2004). O campo
pode
ser entendido como o espaço em que se revelam as relações de poder estruturadas
a partir da divisão desigual de um “quantum social” (Ortiz, 2003, p. 164), que
determinará as posições dos agentes nele envolvidos.
36
A noção de campo é empregada como um espaço social, com determinado grau
de autonomia, formado pelas relações sociais de poder que se estabelecem entre os
agentes e, ao mesmo tempo, vinculado a outros campos e espaços. O campo é o
locus social onde os agentes se posicionam e travam suas batalhas na aquisição e
distribuição dos diversos tipos de capitais
4.
Para Bourdieu (2003), portanto, o que
está em disputa no campo científico são tanto os monopólios da autoridade, quanto
os da competência científica. A luta entre os agentes dentro do campo se dará em
função da disputa pela legitimidade científica.
Uma das características das práticas científicas é parecer “desinteressada”.
Da mesma forma que o artista tem que manter uma aparência de “desinteresse”, de
isolamento e de que não está disposto a expor-se a influências externas, assim deve
comportar-se o cientista. Ocorre, nesses casos, o que o autor denomina de “mundo
econômico invertido”. Em quaisquer desses campos, aqueles que o compõem
possuem “interesse no desinteresse” (BOURDIEU, 1996, p.245). Se o campo
artístico construiu sua autonomia através da posição da “arte pela arte” ou da “arte
pura”, o campo científico também constituiu a posição da “ciência pela ciência”. É a
crença coletiva no jogo, a ilusio, que permite ao conhecimento científico ser
percebido como um interesse “puro”, desinteressado.
Apesar desse “interesse no desinteresse”, os julgamentos das capacidades
de intelectuais e pesquisadores estará sempre “contaminado” (Bourdieu, 2003, p
114) pelo conhecimento das posições que ocupam na hierarquia acadêmica. Seria
impensável na concepção desse autor tentar isolar o puramente político ou o
científico nas lutas que ocorrem pela dominação do campo.
Uma autêntica ciência das ciências só pode estabelecer-se sob condição
de recusar radicalmente a oposição abstrata (presente na história da arte,
por exemplo) entre uma análise imanente ou interna – que caberia mais à
epistemologia e restituiria a lógica segundo a qual a ciência engendra seus
problemas – e uma análise externa, que relacionaria esses problemas com
as condições sociais de seu surgimento. BOURDIEU (2003, p. 116).
No campo científico encontra-se sempre em jogo a luta para impor uma
determinada definição de ciência, do que seja científico ou de quem seja cientista. E,
4
Segundo Bourdieu (2004), cada campo é um lugar de constituição de um determinado tipo de
capital. O capital científico é um tipo particular de capital simbólico que consiste na atribuição de
reconhecimento pelo conjunto de pares no interior do campo científico.
37
nessa luta, ainda segundo Bourdieu, ninguém é bom juiz o suficiente porque é
sempre parte interessada na disputa.
O grau de autonomia do campo será determinado em função da relação de
maior ou menor dependência com as demandas externas: “[...] reside na relação de
dependência pela aparência de independência” (Bourdieu, 2003, p. 135). Na
interpretação de Bourdieu, as ciências sociais são heterônomas se comparadas às
ciências da natureza, pois elas dispõem de uma “falsa autonomia”. Ou seja, os
problemas exteriores ao campo, especialmente os políticos, se manifestam
diretamente.
O que está em jogo na luta interna pelo poder nas ciências sociais também se
encontra em disputa entre as classes no campo da política: o estabelecimento de
uma representação legítima do mundo social. Por esse motivo,
[...] a idéia de uma ciência neutra é uma ficção interessada que permite
aparentar como científica uma forma neutralizada e eufêmica
(simbolicamente muito eficaz porque particularmente irreconhecível) da
representação dominante do mundo social (BOURDIEU, 2003, p. 137).
Qualquer campo é, portanto, objeto de luta tanto em relação à sua
representação quanto à sua realidade. As estratégias dessas lutas se orientam seja
pela conservação seja pela transformação das estruturas do campo em questão.
Os conflitos intelectuais presentes no campo científico sempre comportam, na
interpretação de Bourdieu (2004), uma dimensão política e uma dimensão científica,
e essas duas dimensões devem ser levadas em conta quando são analisadas as
forças e os agentes em disputa no campo. Portanto, aquelas posições que procuram
manifestar uma ausência de ponto de vista ou, segundo Bourdieu (2004, p. 45),
aparentam uma “pretensão absolutista à objetividade” devem ser situadas e
relacionadas às demais tomadas de posições. Não se pode pensar, portanto, em
termos de uma neutralidade de ações, porque todas as ocorrências indicam uma
série de interesses em jogo.
Bruno Latour (1994, 2000) parte da premissa de que não é possível separar a
ciência da sociedade. No entanto, Latour não utiliza o conceito de campo, mas de
redes sociotécnicas ou tecnocientíficas. Para o autor, não estamos diante de
38
“ciência, tecnologia e sociedade” como esferas separadas, mas de uma série de
associações que podem ser mais fracas ou mais fortes. Não há de um lado o
conhecimento e do outro lado a sociedade, mas relações de força que revelam elos
mais fortes ou mais fracos. Ele distingue dois modelos de entendimento dessa
relação: o modelo de difusão – que vê a ciência e a técnica de um lado e a
sociedade de outro – e o modelo de translação, onde não existe tal distinção, pois
há cadeias heterogêneas de associações que criam pontos de passagem. Latour,
portanto, vê a ciência como parte de uma rede, um empreendimento que tem por
característica multiplicar o número de aliados e formar uma associação poderosa e
concentrada. Contrariamente a Bourdieu, Latour não aceita a diferença entre
ciências naturais e sociais, nem o maior ou menor grau de autonomia que possa
haver em cada uma delas. De acordo com sua interpretação, nenhuma delas deve
ser digna de mais crédito do que a outra, visto que elas não podem sair da rede que
ajudam a construir.
Da mesma forma que Latour, Santos (1989, 2000, 2004, 2005) também
afirma que não faz mais sentido a distinção entre os dois tipos de ciências: sociais e
naturais. Para o autor, as ciências sociais se transformarão em uma espécie de pólo
catalisador para todos os tipos de ciências. Santos argumenta que a concepção de
atraso em relação às ciências naturais ainda vigente na análise sobre as ciências
sociais faz parte do paradigma da ciência moderna, que se encontra em crise. No
modelo pós-moderno de ciência emergente, ela será tanto analógica quanto
tradutora, possibilitando que seus conceitos possam ser utilizados fora de seu local
de origem.
Apesar de Latour e Santos desconsiderarem as diferenciações entre ciências
sociais e naturais, visto que ambas se utilizam da retórica para o convencimento de
um determinado auditório, é preciso acrescentar, de acordo com Coelho (1996), que
o modo analítico de raciocinar foi privilegiado em relação à argumentação. Nesse
sentido, as ciências naturais e as ciências matemáticas foram, de certa forma,
priorizadas dentro de uma concepção que considera “racionais” apenas as
demonstrações e as evidências.
Na interpretação de Bourdieu (2003), as ciências sociais são menos
autônomas que as demais, porque sofrem maiores influências externas. Além disso,
de acordo com Ortiz (2003), a autonomia das ciências sociais está diretamente
39
relacionada com as respectivas sociedades de origem ou de adoção às quais os
intelectuais encontram-se vinculados. Na América Latina, a constituição tardia de
centros de pesquisa e o freqüente engajamento de intelectuais no processo de
constituição de identidades nacionais e de Estados, permitiu uma autonomia frágil
do campo científico.
O pensamento sociológico no Brasil, pelo menos até 1940, de acordo com
Ortiz (2003), se pautava por um contexto em que literatura, filosofia e discurso
político se misturavam, compondo um discurso marcado pelo ensaísmo. Os
assuntos que marcam a produção sobre o Brasil nessa época estão diretamente
vinculados à identidade brasileira. Os principais temas tratados diziam respeito à
cultura indígena, ao folclore e à questão racial.
Apesar de as ciências sociais terem se institucionalizado simultaneamente em
várias regiões do país, o caso da criação da Universidade de São Paulo
5 (
USP) é
exemplar para analisar a constituição do campo sociológico no Brasil. Segundo Ortiz
(2003), foi com a criação da universidade moderna que as ciências sociais
estabeleceram uma relativa autonomia científica. Depois dessa geração de
sociólogos paulistas seria impossível interpretar o Brasil sem considerar as
especificidades do conhecimento científico.
Embora as ciências sociais brasileiras estejam, a partir da década de 1940,
adquirindo uma certa autonomia, sua identidade, especialmente da sociologia e da
antropologia, é ainda “amorfa” (ORTIZ, 2003, p. 185). Esse quadro somente seria
modificado com o processo de profissionalização e de criação de uma política
voltada para a pós-graduação a partir do final da década de 1960
6.
Durante o regime militar, os cientistas sociais brasileiros não escaparam do
esquema repressor do Estado. E, ao mesmo tempo em que se ampliava o mercado
editorial universitário, a produção da área das ciências sociais acabava caindo em
uma posição de reprodutora de uma razão puramente organizacional. A
preocupação com a profissionalização acabava por deixar de lado o diálogo com a
sociedade. Seguindo ainda a interpretação de Ortiz (2003, p. 196), o fato de a
5
A Universidade de São Paulo foi criada em 1934. Para maiores detalhes sobre a Escola Paulista de
Sociologia consultar ORTIZ (2002, 2003) e GUIMARÃES (1999).
6
A partir de 1967 são criados órgãos como a Financiadora de Estudos e Projetos do Ministério da
Ciência e Tecnologia (FINEP), a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior do
Ministério da Educação (CAPES), o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq) e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
40
consolidação das ciências sociais no país ter ocorrido a partir da década de 1960
coincidiu com o momento em que o trabalho intelectual encontrava-se em
transformação. Por esse motivo, segundo o autor: “A política de pós-graduação teve,
portanto, de ser construída sobre uma tradição que ainda não existia”.
1.3.2.2 CIÊNCIA E RETÓRICA
Na compreensão de Santos e de Latour, a ciência é uma atividade
eminentemente retórica. Para Bourdieu (2003, p. 134), a “ciência nunca teve outro
fundamento, senão a crença coletiva em seus fundamentos”. É por meio da retórica
7
que a ciência produz essa “crença coletiva” que lhe dá sustentação. Veremos, a
seguir, em que consiste essa atividade e como ela foi reabilitada
contemporaneamente.
2.2.1 Retórica
A retórica
8
apareceu na filosofia platônica de duas formas. Nos dois diálogos
em que foi abordada, Górgias e Fedro, é estabelecida uma distinção entre duas
formas de retórica. Em Górgias, conforme sugere Grácio (1988), está-se perante
uma retórica perigosa, que tem como finalidade última a manipulação do auditório.
Esse tipo de retórica é identificado por Platão com a sofística. Já em Fedro tem-se a
retórica salvadora, ou seja, aquela que se encaminha para o encontro da verdade e
que pode ser identificada com a vocação da filosofia. No primeiro caso observa-se o
mau uso da retórica, enquanto no segundo ela é utilizada de forma positiva
(verdadeira). Porém, foi o aspecto vulgo da retórica que prevaleceu e influenciou o
seu declínio na filosofia (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 1996).
7
A retórica foi desenvolvida especialmente por filósofos como Aristóteles, Cícero e Quintiliano.
Porém, as idéias mais importantes que prevaleceram acerca dessa teoria do universo discursivo
foram as de Aristóteles.
8
O conceito de retórica é utilizado a partir da revisão que Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996) fazem
da categoria. Os autores criam a “nova retórica”, ampliando o conceito de retórica advindo
principalmente de Aristóteles. A “nova retórica” retoma um importante elemento da retórica antiga, o
auditório, e visa pesquisar uma determinada lógica de juízos de valor, a fim de retirar-lhes do
domínio do irracional.
41
Já para Aristóteles há dois modos básicos de raciocínio: por demonstração
analítica ou pela argumentação dialética. De acordo com Coelho (1996), o que foi
perdido na evolução do pensamento filosófico foi justamente a equiparação entre
esses dois tipos de raciocínio. O conceito de retórica
9
estabelecido por Aristóteles
predominou por muito tempo. Porém, a partir do Renascimento, a retórica decaiu a
tal ponto que quase chegou ao desaparecimento no século XIX.
Conforme assinala Santos (2000), entre diversos outros autores
10
, a retórica é
uma das mais tradicionais artes de persuasão pela argumentação presentes no
pensamento ocidental. Ela atravessou períodos de glória e de exclusão e competiu
diretamente com o conhecimento científico. Os séculos XVI e XVII, marcados pelas
revoluções científicas, representaram um período em que a retórica foi vencida pela
força do método. A retórica, então avaliada como uma forma de persuasão e não de
demonstração de um tipo de saber, foi considerada falsa. Sua trajetória permaneceu
descendente até pelo menos o século XIX, com a preponderância assumida pela
racionalidade científica e seus diferentes tipos de positivismos.
Durante o período de dogmatização da ciência, o conhecimento advindo da
retórica
11
parecia estar completamente superado. A partir da década de 1960, no
entanto, com a reação aos pressupostos positivistas e funcionalistas da ciência,
ocorre a reemergência da retórica, que, na compreensão de Santos (2000, p. 97), “é
parte integrante da crise paradigmática da ciência moderna”.
Santos parte da premissa de que a centralidade da retórica no período de
transição paradigmática pelo qual a ciência moderna está passando
12
pode ser
explicada da seguinte forma: a ciência moderna, apesar de aparentar um
conhecimento evidente e indubitável, é um conhecimento retórico. Essa afirmação,
por sua vez, apresenta duas versões. Uma versão que o autor denomina fraca,
segundo a qual o discurso científico está saturado de referências retóricas, e outra
9
A retórica como a “faculdade de considerar, em qualquer caso, os meios de persuasão disponíveis”
(ARISTÓTELES apud ABBAGNANO, 1988, p. 856).
10
Grácio, (1998), Latour, (1994, 2000), Perelman e Olbrechts-Tyteca, (1996).
11
Segundo Santos (2000, p. 97): “aquele conhecimento provável, resultante de uma argumentação
razoável”.
12
Para maiores detalhes consultar as seguintes obras de Santos:
Conhecimento prudente para uma vida decente: um discurso sobre as ciências revisitado. São
Paulo: Cortez, 2003.
Um discurso sobre as ciências. Coimbra: Edições Afrontamento, 1987
Introdução a uma ciência pós-moderna. Rio de Janeiro: Graal, 1989.
42
versão, denominada forte, a qual considera o conhecimento científico em si como
retórico.
2.2.2 A reabilitação da retórica
Na interpretação de Santos (2000), a natureza retórica do conhecimento
científico moderno vem de pelo menos três fontes intelectuais: uma delas seria a
crítica da epistemologia modernista efetuada desde Friedrich Nietzsche até Michel
Foucault, Paul Feyerabend e Richard Rorty, passando também por Martin Heidegger
e Hans-Georg Gadamer. A outra fonte é o pragmatismo de William James e de John
Dewey e, por último, um novo interesse pela retórica grega e medieval que começa
a partir de 1947 com as publicações de Chaïm Perelman.
Grácio (1988) afirma que uma das características da retórica é o seu
aparecimento em tempos de crise. Tal constatação vem ao encontro da
interpretação de Santos de que a retórica ressurge justamente no período em que se
inicia a desdogmatização do conhecimento científico. Os trabalhos de Perelman e
Olbrechts-Tyteca indicam não só a renovação da retórica como a sua reabilitação,
pois essa noção ficou por muito tempo marginalizada e associada a uma atividade
não-racional.
As inovações de Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996) concentram-se na
reabilitação do discurso argumentativo e na ampliação da idéia de retórica utilizada
na Antigüidade. A “nova retórica” permitiu possibilidades inéditas para o
conhecimento jurídico, pois parte da premissa de que não há interpretações jurídicas
“verdadeiras” (Coelho,1996). Santos e Latour transpõem essa conclusão para a
ciência quando afirmam que essa atividade também se constitui em um processo de
convencimento que utilizará uma série de argumentos e teorias posteriormente
reconhecidos como “científicos”. A “nova retórica” propõe uma racionalidade que não
se esquiva aos debates, do mesmo modo que o modelo de ciência proposto por
Santos.
O objetivo da teoria da argumentação, na visão de Perelman e Olbrechts-
Tyteca (1996, p. 04), “é o estudo das técnicas discursivas que permitem provocar ou
aumentar a adesão dos espíritos às teses que lhes apresentam ao assentimento”.
43
Há pelo menos duas condições que devem ser preenchidas em um processo
concreto de argumentação na análise de Perelman (Santos, 2000): devem existir
determinadas premissas que têm que ser aceitas como pontos de partida e tem que
haver um auditório a persuadir ou convencer. Um outro ponto importante da “nova
retórica”, que não é abordado por Santos, refere-se às relações que a argumentação
mantém com a ação. Com efeito, essas argumentações não ocorrem em um vazio e,
por esse motivo, comprometem aqueles que delas tomam parte (PERELMAN;
OLBRECHTS-TYTECA 1996, p. 65). Apesar de Perelman excluir da retórica as
formas de violência e os afetos, o autor reconhece que muito mais difícil é dela
eliminar as promessas e as ameaças, pois estas fazem parte da linguagem e servem
como meios de obtenção da adesão (SERBENA, 2000).
Ainda de acordo com a interpretação de Santos acerca da teoria desenvolvida
por Perelman e Olbrechts-Tyteca, há dois tipos de proposições: uma delas seriam os
fatos e as verdades e, a outra, os topoi. Os fatos e as verdades são aqueles objetos
de aceitação imediata que não necessitam de argumentação. Porém, esse nível de
aceitação pode diminuir e, por sua vez, os fatos e as verdades convertem-se em
argumentos. Já os topoi ou loci são uma espécie de lugares-comuns, pontos de vista
com aceitação ampla e que facilmente se adaptam a diferentes contextos
argumentativos. Os topoi são de uso indispensável para aqueles que desejam
persuadir um auditório. Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996)
13
ainda citam como
tipos de objetos de acordo, além dos fatos e verdades e dos lugares-comuns
14
, os
valores e as hierarquias. Quanto aos lugares, podem ser divididos em lugares da
quantidade, da qualidade e, ainda, em outros tipos, como os lugares da ordem e os
lugares da essência, entre outros.
Uma importante noção que Perelman e Olbrechts-Tyteca tomam da retórica
antiga é a de auditório. Diferentemente dos raciocínios lógicos – demonstrativos – os
raciocínios argumentativos teriam por especificidade o fato de se dirigirem sempre a
13
Para maiores detalhes verificar PERELMAN;OLBRECHTS-TYTECA (1996).
14
A fim de reforçar a adesão de um determinado auditório pode-se recorrer a certas premissas de
ordem geral denominada de lugares. Os lugares, de acordo com Perelman e Olbrechts-Tyteca
(1996), constituem-se como uma espécie de depósito de argumentos. Aristóteles dividia os lugares
em lugares-comuns, que servem a qualquer ciência, e lugares específicos, próprios de uma ciência
particular. Esses lugares também denominados de topoi são pontos de vista aceitos pela maioria e
adaptáveis com facilidade a diferentes contextos argumentativos. É importante ressaltar que todos
os auditórios levam em conta determinados lugares para justificar suas escolhas.
44
um auditório. Esses tipos de raciocínios não se desenvolvem independentemente
desse auditório, ou seja, do público que desejam convencer. A idéia de auditório é
um dos principais conceitos que Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996) recuperam e
ampliam em relação à retórica antiga. Pois enquanto a retórica clássica limita-se aos
estudos das técnicas dos discursos públicos dirigidas a uma multidão que não é
especializada, a “nova retórica” se interessa pelo diálogo socrático, pela dialética e
pela atitude de atacar um determinado adversário e defender uma tese (SERBENA,
2000). A argumentação é, portanto, sempre relativa ao auditório que se deseja
influenciar. Outra importante característica da relação entre o orador e o auditório, é
que o primeiro sempre se adapta ao auditório ao qual irá se dirigir. Os discursos são,
dessa forma, ajustados aos públicos que se deseja influenciar.
Na retórica clássica, para que os oradores possam convencer um
determinado auditório, uma das condições essenciais é que devem conhecê-lo. Essa
é uma das premissas básicas desenvolvidas e uma das principais inovações de
Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996) em sua “nova retórica”. Inicialmente a retórica
se referia à arte de falar, ao discurso oral. Na perspectiva da “nova retórica”, a idéia
de auditório é significativamente ampliada. Em primeiro lugar, é necessário ressaltar
que o discurso ou a argumentação podem ser tanto oral quanto escrita. Pode-se
delimitar, a partir dessa definição mais ampla, pelo menos três tipos fundamentais de
auditório: aquele constituído pela própria pessoa quando ela pondera a respeito de
suas ações, um auditório formado por um outro interlocutor e, finalmente, uma outra
situação é aquela em que se pretende que o alcance persuasivo do discurso não
abranja apenas as pessoas que estão próximas ou perante nós, mas que se busque
convencer a qualquer pessoa. Nesse caso o auditório é classificado pelos autores
como universal.
O auditório universal, de acordo com Santos (2000), pode potencialmente
representar toda a humanidade. Esse terceiro tipo de auditório terá uma implicação
muito importante para o desenvolvimento da retórica da ciência moderna, conforme
veremos a seguir. Quando tanto o auditório quanto as proposições estiverem
definidas, a argumentação pode ser desencadeada. Porém, a força de um
determinado argumento nunca poderá ser determinada isoladamente, pois depende
do modo como se articula com uma série de outros argumentos. E, se seguirmos a
interpretação de Latour (1994, 2000), os enunciados científicos não só dependerão
45
de uma série de outros argumentos até se tornarem “científicos”, como também dos
contextos contingenciais e específicos de cada momento no qual se estabelece um
determinado campo de forças.
2.2.3 Ciência como retórica
Santos (2000) estabelece três linhas de investigação para as relações entre
ciência e retórica. Uma delas refere-se ao fato de a retórica científica caracterizar-se
pela utilização de topoi gerais, ou seja, fenômenos que podem ser comprovados
através da lógica. Uma das qualidades do conhecimento científico nesse caso é
justamente negar que possua características retóricas.
Uma outra linha estabelece que a investigação científica utiliza métodos e
pressupostos que são aceitos pela comunidade científica como uma espécie de
componentes tácitos do conhecimento. A verdade científica, de acordo com essa
interpretação, é uma “verdade fiduciária” (Santos, 2000, p. 101), que depende
necessariamente da credibilidade dos cientistas e da crença em suas genuínas
motivações.
A terceira linha de investigação citada por Santos é aquela que se refere às
espécies de topoi utilizados na ciência moderna. Essa é uma análise importante
porque permite o estabelecimento de quais são os topoi dominantes em um
determinado tempo, lugar e contexto. Um dos exemplos mencionados por Santos
(2000, p. 102), que possibilita a determinação da importância da retórica para a
ciência moderna, é a luta “entre o topos da quantidade e o da qualidade”. O topos da
quantidade empurrou o topos da qualidade para uma posição desvalorizada e
dominou a retórica científica moderna. É o que Grácio (1998, p. 49) classifica como
“matematização da natureza”. Em outras palavras, as explicações científicas válidas
são aquelas que têm por base a medida, o cálculo e a quantificação.
A proposta de Santos (2000, p. 105-106) é que seja desenvolvida uma
“retórica dialógica”, que significa em termos ideais que a polaridade orador/auditório
seja menos rígida, possibilitando trocas recíprocas. O auditório, nesse sentido, não
será visto como o “outro” estático e sem conhecimento ao qual o orador deve
convencer. Pelo contrário, o auditório está em constante formação, transforma-se
46
em um “processo social”. A concepção de ciência que modela a proposição de
Santos (1997) não é a de autonomia e de desinteresse, bem como, a ciência, nesse
caso, não se constitui na única explicação possível da realidade. Além disso, as
trajetórias individuais e coletivas (das comunidades científicas), assim como as
crenças, os valores etc, também constituem prova do conhecimento. Esse caráter
autobiográfico da ciência, segundo Santos (1997), deve ser plenamente assumido.
Nesse sentido, não se pode simplesmente desligar a ciência das convicções de seus
investigadores. “Retoricizar a ciência” (Grácio, 1998) significa considerá-la como um
campo privilegiado onde ocorre a negociação do sentido.
A verdade é, pois, o efeito de convencimento dos vários discursos de
verdade em presença. A verdade de um discurso não é algo que lhe
pertença inerentemente, acontece-lhe no decurso do discurso em luta
contra outros discursos num auditório de participantes competentes e
razoáveis. Quando tal acontece, o discurso, de subjectivo, passa a
objectivo (SANTOS apud GRÁCIO, 1998).
A visão de Latour (1994, 2000) aproxima-se da de Santos, no sentido de que
o primeiro também vê a ciência como uma retórica suficientemente poderosa que
visa o convencimento. Porém, a análise de Latour não possui o caráter normativo
presente na de Santos. O sociólogo francês não procura estabelecer um outro
estatuto que modifique o funcionamento da ciência e, conseqüentemente, a relação
entre os cientistas e os seus auditórios. Seu objetivo é explicar a ciência como uma
atividade cotidiana que extrai sua ordenação das ações práticas dos agentes, dos
recursos que mobilizam e das associações que realizam, e não a partir de um
processo singular de raciocínio. Conforme esclarecem Kropf e Ferreira (1998, p.
592), ela não se distingue das outras práticas sociais “em função de uma
superioridade cognitiva derivada da racionalidade intrínseca a esta atividade [...] mas
em função de um processo social de convencimento que possibilitou que eles
[atributos científicos] fossem reconhecidos enquanto tais”.
Ainda de acordo com Latour (2000, p. 102), a retórica científica
contemporânea só difere da retórica antiga porque a primeira utiliza muitos aliados
externos, enquanto a segunda utilizava poucos aliados. A retórica científica,
portanto, será mais potente quanto mais recursos e aliados conseguir mobilizar. A
ciência é uma atividade que usa a retórica, além de estratégias textuais e escritas,
“mas de uma nova forma que se conecta ao mesmo tempo à natureza das coisas e
47
ao contexto social, sem contudo reduzir-se nem a uma coisa nem a outra” (LATOUR,
1994, p 11).
É importante salientar que são os diferentes agentes do campo científico –
cientistas, técnicos, intelectuais e pesquisadores, entre outros – que utilizam a
retórica na composição de seus argumentos. A retórica, portanto, torna-se um
instrumento importante de manutenção das posições dentro e fora do campo, na
intenção de atrair aliados e convencer os mais diversificados auditórios. Com efeito,
conforme já tratado inicialmente neste capítulo, o campo científico não está imune à
influência política e os agentes que atuam no campo têm a todo momento que
assumir posições e defender seus pontos de vista, ainda que de forma não explícita,
conforme sugere Bourdieu. A seguir, será brevemente analisada a relação entre os
intelectuais, o campo acadêmico e a política a partir de um contexto mais amplo.
2.3 OS INTELECTUAIS E AS QUESTÕES POLÍTICAS
O intelectual
15
como figura social com relativa autonomia em relação aos
poderes constituídos emergiria no século XVIII e há uma série de fatores que
permitiram o aparecimento desse agente. De acordo com Bastos e Rêgo (1999), a
maior possibilidade de diferenciações e transformações sociais e o surgimento de
um espaço público constituem os principais elementos que possibilitaram a aparição
do intelectual como analista, intérprete e filósofo. Ainda segundo esses autores, um
dos dilemas críticos vividos pelos intelectuais desde seu aparecimento é até que
ponto podem manter uma distância crítica ou ao contrário, envolverem-se com as
sociedades em que estão inseridos. É a tensão permanente entre o lugar de
observação dos fatos e o distanciamento adequado dos fenômenos. Em outras
palavras, os autores colocam em discussão a pretensão de autonomia dos
intelectuais em relação aos poderes estabelecidos.
Há diversos períodos históricos que marcam os diferentes papéis assumidos
pelos intelectuais. Porém, são especialmente nos momentos de crise que o papel ou
15
Está sendo utilizada uma denominação menos restrita de intelectuais considerando-se como tais
“as pessoas envolvidas na esfera da cultura” (Coser, 1996) e na produção de símbolos. Nesse
caso, cientistas sociais, pesquisadores de diversas áreas e jornalistas podem ser classificados de
forma mais ampla como intelectuais.
48
a função do intelectual são colocados à prova. Pode-se demarcar, ainda de acordo
com Bastos e Rêgo (1999), alguns textos produzidos em diferentes momentos de
transformação da sociedade ocidental, que enfocam o papel do intelectual e a sua
função naquele período histórico.
O primeiro deles é A missão do sábio, de Johann Gottlieb Fichte, composto
por cinco lições expostas na Universidade de Jena em 1794. Nesses
pronunciamentos, além de Fichte reafirmar sua convicção na Revolução Francesa,
ele determina aos intelectuais a função de educar a humanidade. Veremos mais
adiante que esse é um papel ainda atribuído aos intelectuais contemporâneos.
Ortega y Gasset
16
é outro intelectual que se manifesta com o texto Velha e
Nova Política. Nessa obra, publicada em 1914, o autor define o papel dos
intelectuais como uma das principais forças organizadoras da sociedade.
Julien Benda ilustra com precisão a crise dos anos 1920, marcada, por um
lado, por inovações e, por outro, pela barbárie. A obra La trahison des clercs,
publicada em 1927, abre um instigante debate sobre o papel dos intelectuais. Os
clérigos, na visão de Benda, têm por função orientar suas reflexões para valores
universais, jamais devem se orientar por valores contingenciais. A identidade do
intelectual nesse caso volta-se para o universal, nunca para as causas particulares.
Dois trabalhos produzidos no período imediato após a Segunda Guerra
também refletem sobre o papel do intelectual. Elio Vittorini, que dirigia a publicação Il
Politécnico, no editorial Una nuova cultura estabelece que os intelectuais devem
constituir-se em forças para a renovação da sociedade nacional. Já o artigo de
Sartre publicado no primeiro número da revista Les Temps Modernes em 1945,
consiste em um manifesto acerca da missão dos intelectuais no período pós-guerra.
O texto não faz referência apenas ao fato do intelectual atuar como agente de
mudança das condições materiais, mas exige uma postura de responsabilidade
moral no sentido do engajamento. Na visão de Sartre, o intelectual deve envolver-se
com o tempo em que vive. Seguindo a linha analítica do filósofo francês, o que o
intelectual escreve sempre o compromete e mesmo que o sentido daquilo que
16
É importante salientar que os textos de Ortega y Gasset inspiraram um dos intelectuais defensores
do Estado Novo, Paulo Augusto Figueiredo. O autor teve muitos de seus textos publicados pela
revista Cultura Política, que se dedicava a fazer propaganda do Estado Novo. Figueiredo cita em
muitos de seus artigos o pensador espanhol, devido à importância que o último estabelecia para os
intelectuais como organizadores da sociedade (BASTOS, 2006).
49
escreva esteja longe da sua intenção original ele está sempre “na jogada” (SARTE,
1999, p. 129).
No período da Guerra Fria, Norberto Bobbio travou um debate sobre o papel
dos intelectuais por meio das revistas Nuovo Argomenti e Rinascita. Nesse debate,
Bobbio convocava aqueles que desejavam construir uma nova sociedade a
conservar os valores mais importantes da tradição intelectual, entre eles o espírito
crítico. O autor italiano propõe inclusive uma tipologia para a relação entre os
intelectuais e as sociedades “em atraso”. Cita como exemplos a Espanha, a Itália e a
Alemanha e observa que uma característica comum desses países é que os
intelectuais desempenham os papéis de autores e de atores. Essa situação faz com
que pensem em si mesmos como uma “classe extraordinária” (BASTOS; RÊGO,
1996, p. 35). Através de seus estudos, Bobbio procura descrever a situação histórica
dos intelectuais, assim como define em um nível normativo uma atitude ética para os
denominados homens de cultura.
A polêmica em torno das funções dos intelectuais permanece. Nos trabalhos
de Salvatore Veca, publicados na década de 1990, prossegue a discussão sobre o
papel político e a autonomia dos intelectuais. Porém, o autor adverte para as
alterações ocorridas no campo político. Se no passado havia uma ligação muito forte
entre os intelectuais e os partidos, atualmente os sujeitos da política transformaram-
se e se reduz cada vez mais a possibilidade do intelectual influenciar nas agendas
das discussões públicas. O papel político dos intelectuais, na interpretação de
Bastos e Rêgo (1996), está reduzido e cada vez mais outras agências têm o poder
de definição das agendas políticas, especialmente a mídia.
No Brasil, os intelectuais também desempenharam um papel fundamental na
formação do Estado e na construção da identidade nacional. Alguns estudos já
demonstram, pelo menos desde a década de 1920, a relação entre a
intelectualidade brasileira e as questões políticas. Os intelectuais brasileiros sempre
estiveram envolvidos com os principais problemas políticos do país, conforme a
pesquisa de Daniel Pécaut (1989)
17
.
17
No final do século XIX, os chamados “homens de sciencia” – “Misto de cientistas e políticos,
pesquisadores e literatos, acadêmicos e missionários” (Schwarcz,1993, p. 18), já procuravam,
através de uma ciência positivista e determinista, encontrar saídas para o futuro da nação.
50
Em um estudo sobre duas gerações de intelectuais brasileiros, de 1920 a
1940
18
e de 1954 a 1964
19
, Pécaut analisa como elas exerceram um papel
imprescindível no cenário político nacional, mesmo que manifestassem muitas vezes
uma negação do político ou, de acordo com a denominação do autor, uma
ambivalência em relação ao fenômeno político. Essa atitude, entretanto, não
passava de pura eloqüência, pois, segundo o autor, os intelectuais brasileiros
sempre se dedicaram às questões políticas.
Os intelectuais dessas duas gerações fizeram opções políticas diferenciadas.
Os da primeira geração foram nitidamente motivados pela tradição autoritária,
enquanto que os da segunda, em sua maioria, assumiram uma posição de esquerda
contrária ao Estado autoritário vigente na época. Mesmo assim, para Pécaut (1989,
p. 14), esses intelectuais mantinham uma “convicção de que lhes competia uma
responsabilidade essencial na construção da nação”. Se os representantes da
primeira geração tiveram sua posição legitimada pelas elites, os da segunda
reivindicavam sua legitimidade ao tentarem se transformar em intérpretes das
massas populares.
Pécaut (1989, p. 08) demonstra que os intelectuais não constituíram uma
“camada social sem vínculos”. Pelo contrário, estavam enredados por uma série de
laços com diferentes grupos sociais, notadamente com as elites das diferentes
épocas. São esses laços, ou em uma denominação mais recente, essas redes das
quais os intelectuais faziam parte, que lhes garantiam recursos que permitiam o
crescimento de seu círculo de influências. Florestan Fernandes é um dos autores da
segunda geração citados por Pécaut (1989, p. 91) que elaborou uma interpretação
correta desse fenômeno: “Ele acentua bem como, até nas correntes de subversão
intelectual, foram numerosos os que se detiveram a meio-caminho em razão de seus
laços com as elites sociais”. Nesse caso, para Fernandes, mesmo a divergência
poderia ser tolerada, pois fazia parte da elite. Nos dois períodos, segundo Pécaut, os
18
Pécaut cita como um dos principais representantes dessa primeira geração: Oliveira Viana, que foi
influenciado pelas idéias de Alberto Torres. Além dele, faz referência a Alceu Amoroso Lima,
Azevedo Amaral e Gilberto Freyre, entre outros.
19
O autor analisa especialmente os intelectuais participantes de algumas instituições que se tornaram
reconhecidas posteriormente pela opção que fizeram pelo engajamento político, destacam-se entre
elas: o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), os Centros Populares de Cultura (CPCs),
um grupo formado dentro do Partido Comunista, o Comando dos Trabalhadores Intelectuais (CTI),
constituídos por nomes como Barbosa Lima Sobrinho, Dias Gomes, Édson Carneiro, Jorge Amado,
Nelson Werneck Sodré e Ênio Silveira, entre outros. Além dessas instituições, há outras ligadas à
Igreja Católica que também tiveram um papel significativo.
51
intelectuais são reconhecidos como parte da elite dirigente, com o privilégio de
situarem-se acima do social.
O autor francês indica ainda que os intelectuais que atuaram a partir da
década de 1920 transformaram-se em agentes políticos no sentido de procurar
formar uma “consciência nacional” (Pécault, 1989, p. 25), bem como promover a
“organização nacional”. Foram os próprios intelectuais que questionaram
permanentemente sua função na sociedade. Duvidando da capacidade do povo para
criar essa consciência a respeito de sua própria identidade, os pensadores atribuíam
a si próprios essa tarefa. Nesse sentido, eles empenhavam-se na configuração de
projetos que levassem a um melhor ordenamento social.
Ainda conforme a análise de Pécaut, os intelectuais da primeira geração não
só embrenhavam-se, por meio de suas obras, nos caminhos da política, como
participavam diretamente da política através de sua filiação em partidos políticos.
Existiam múltiplas interferências entre o campo intelectual e o político, pois da
mesma forma que os intelectuais consideravam que só com a organização de um
Estado forte se poderia promover o desenvolvimento da sociedade brasileira, o
Estado também contava com eles para alcançar uma unidade orgânica da nação. Os
intelectuais não precisavam estar unidos do ponto de vista político, mas mantinham
a mesma perspectiva com relação à realidade nacional.
A geração de 1954 a 1964 difere em relação ao posicionamento político da
outra, mas em outros sentidos mantém uma certa continuidade na forma de atuação.
Uma das principais mudanças que aconteceram na posição assumida pelo
intelectual foi que daquela figura representativa da nação surge o intelectual
“engajado”, posicionado ao lado das classes populares. Mas, apesar disso: “A
problemática da ‘conscientização’, que caracterizava a marcha para o povo,
demonstra também que a onipotência da consciência continua na ordem do dia”
(PÉCAULT, 1989, p. 140). Ou seja, de certa forma, mesmo aliados às classes
populares, os intelectuais permaneceram em uma posição acima do social. A
avaliação de Pécaut sobre os intelectuais do ISEB sintetiza com precisão a
continuidade do papel desempenhado pelos intelectuais nos dois períodos:
52
Lançaram uma ponte entre os pensadores de 1930 e os intelectuais
engajados modernos. Dos primeiros, assimilaram a nostalgia da unidade
social; dos segundos, a convicção de que as marcas da condição social
particular dos intelectuais devem ser apagadas na solidariedade com as
classes fundamentais. Em lugar da organização, colocaram o
desenvolvimento. Substituíram a escolha corporativista pela opção em
favor das forças progressistas. Ao status de elite dirigente, que
conseguiram colocando-se na posição do poder, acrescentaram o de elite
esclarecida, porta-voz do povo. (PÉCAULT, 1989, p. 140).
A partir de 1955, especificamente, Pécaut sugere que, de forma idêntica aos
intelectuais de direita da década de 1930, os intelectuais de cunho nacionalista
também consideravam-se seguros quanto a sua vocação para atuar nas mudanças
sociais e políticas. Portanto, apesar das muitas inversões ocorridas entre as duas
gerações, há certas continuidades como a permanência da nostalgia pela unidade
da nação e a busca por uma “construção racional do Brasil” (PÉCAULT, 1989, p.
106). Uma certa dúvida em relação à capacidade do povo para a consecução
desses objetivos também é mantida.
Elide Rugai Bastos (2006), em um estudo sobre Paulo Augusto Figueiredo –
um dos intelectuais defensores da ditadura do Estado Novo de Vargas –, traz
conclusões semelhantes às de Pécaut. A autora afirma que os intelectuais daquela
época eram vistos como uma elite que seria capaz de salvar o país: “Assim,
intelectuais das mais diversas formações e correntes de pensamento, como
modernistas, positivistas, integralistas, católicos e socialistas, participaram desse
entrelaçamento entre cultura e política que caracterizou os anos 30” (BASTOS,
2006, p. 124).
Da mesma forma que os intelectuais europeus várias vezes arrogaram-se a
missão de organizar a sociedade, os intelectuais brasileiros também assumiam a
função de organizar a cultura do país, auxiliando na formação de um homem novo.
Nesse sentido é que Figueiredo utiliza-se muito dos trabalhos de Ortega y Gasset,
pois o autor espanhol acreditava que cabia aos intelectuais a função de formador
das massas. Bastos conclui seu artigo indagando sobre a necessidade de se
explicar o motivo pelo qual os intelectuais brasileiros sempre ocuparam uma posição
central na vida política do país.
Essa é uma questão que ainda permanece relevante no cenário nacional, pois
a discussão sobre a implementação das cotas vem mais uma vez confirmar a
53
importância das posições dos intelectuais sobre temas relevantes da vida nacional.
Intelectuais contrários e favoráveis às ações afirmativas no ensino superior público
brasileiro assumem posições diferenciadas em relação ao seu papel. Enquanto os
primeiros argumentam que suas opiniões são sustentadas pela ciência e, por esse
motivo, mais isentas; os segundos são questionados pelos primeiros em sua postura
por fazerem alianças com representantes do movimento negro. Ambos os grupos
elaboraram manifestos
20
entregues aos presidentes da Câmara dos Deputados e do
Senado demarcando seus posicionamentos perante a questão das cotas nas
universidades e ao Estatuto da Igualdade Racial.
Além da relação com a política, outra importante esfera que os intelectuais
têm que enfrentar e utilizar é a da mídia. Cada vez mais o universo midiático seduz
os intelectuais e, por outro lado, há pela mídia uma demanda pela opinião
especializada. São essas conexões que serão abordadas a seguir.
1.5.2.4 AS RELAÇÕES ENTRE OS INTELECTUAIS, O CAMPO POLÍTICO E O
CAMPO DA MÍDIA
Conforme a afirmação anterior, o papel político dos intelectuais no mundo
contemporâneo encontra-se reduzido, pois outras instituições detêm o poder de
determinar as agendas políticas, especialmente a mídia. A fim de interferirem de
forma mais objetiva nas questões políticas, os intelectuais, assim como diversos
20
De acordo com Bobbio (1997), o manifesto tem sido uma das principais formas pelas quais os
intelectuais têm assumido publicamente seu engajamento político. No dia 29 de junho de 2006 foi
entregue o manifesto “Todos têm direitos iguais na República Democrática”, (contrário à aplicação
das cotas e à aprovação do Estatuto da Igualdade Racial), no gabinete do então presidente do
Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), a ele e ao presidente da Câmara, Aldo Rebelo (PCdoB-SP),
pela antropóloga Yvonne Maggie, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e
pelo militante negro José Carlos Miranda, do Movimento Negro Socialista (MNS). O texto foi
assinado por 114 pessoas, a maioria pesquisadores e acadêmicos, e foi publicado em vários
jornais e em páginas da internet. Cinco dias após, um outro grupo, favorável às ações afirmativas,
elaborou o “Manifesto em favor das cotas e do Estatuto da Igualdade Racial”. O manifesto foi
redigido por Alexandre do Nascimento – Membro da Coordenação do Movimento Pré-Vestibular
para Negros e Carentes (PVNC), por Frei David Raimundo dos Santos – Diretor Executivo da Rede
de Pré-Vestibulares Comunitários: Educação e Cidadania de Afro-descendentes e Carentes
(EDUCAFRO) e por José Jorge de Carvalho – Professor de Antropologia da UNB e um dos
propositores do projeto de ação afirmativa desta universidade. O manifesto foi entregue para os
mesmos representantes da Câmara Federal e do Senado e assinado por mais de 300 pessoas –
pesquisadores da área de ciências humanas e sociais e representantes de movimentos sociais –
de diversas regiões do país.
54
atores sociais, têm que conquistar a visibilidade na mídia. Com o fenômeno da
globalização e a difusão cada vez mais ampliada das novas tecnologias, a relação
entre o mundo acadêmico e a esfera pública se modificou. O espaço midiático
transformou-se em uma das instâncias mais importantes na orientação da conduta
dos diferentes atores em diversos espaços sociais. A principal razão desse
acontecimento é que o campo da mídia acaba subordinando as demais esferas à
sua lógica específica, mercadológica (ORTIZ, 2003). Se antes os intelectuais podiam
se refugiar nas suas práticas e saberes específicos, nesse momento essa
independência está cada vez mais comprometida.
A perspectiva de Bourdieu (1997), ao escrever Sobre a televisão, aparenta
um certo alarmismo em relação aos poderes dos meios de comunicação. Mas sua
preocupação encaminha-se no sentido de compreender como o campo jornalístico,
profundamente influenciado pelas pressões do mercado, acaba, de certa forma,
modificando as relações de forças no interior dos outros campos.
Observa-se que muitos debates, para serem entendidos por um público mais
amplo, são traduzidos para uma linguagem menos hermética. O capital que provê o
intelectual contemporâneo não vem somente do seu próprio campo. Cada vez mais
os intelectuais participam de programas televisivos, assinam colunas em jornais e
são chamados para debates de acordo com suas especialidades. Na visão de
Bourdieu (1997, p. 16), para muitos intelectuais “ser é ser percebido na televisão”.
Diferentemente de outros campos, o campo jornalístico
21
exerce uma pressão
muito grande sobre os outros campos. Além de estar mais sujeito aos
constrangimentos comerciais, também transmite essa influência para os demais
campos. Na interpretação de Bourdieu, portanto, todos os campos estão sujeitos às
limitações impostas pelo campo jornalístico.
O campo jornalístico, devido a sua característica heterônoma, confere uma
espécie de autoridade àqueles que opinam sobre os mais diversos assuntos. A
autoridade e a competência científicas que antes eram julgadas pelos próprios pares
no interior do campo, passam a ser atravessadas cada vez mais pela visibilidade do
intelectual na mídia. Nesse caso, a consagração na esfera midiática também é
considerada pelas comissões científicas e centros de pesquisa. Na análise de
21
Bourdieu (1997) utiliza a denominação de campo jornalístico, mas considera os meios de
comunicação como um todo, especialmente a televisão.
55
Bourdieu (1997), os critérios de avaliação externos ao campo científico impõem-se
de maneira mais intensa. Não basta somente publicar artigos em periódicos
científicos nacionais e internacionais, participar de congressos, orientar teses etc. É
preciso também participar de programas de debates, publicar matérias em jornais e
aparecer para um auditório mais amplo.
Não é possível analisar a atuação dos intelectuais, do Estado ou de qualquer
grupo organizado da sociedade civil sem avaliar sua articulação como os meios de
comunicação
22
. Conforme Rousiley Maia (2006, p. 157), a sociedade
contemporânea está configurada pela mídia de maneira profunda e irreversível. Isso
não significa, entretanto, simplificar essa relação. Ao analisar o papel da mídia,
deve-se tomar o cuidado de não cair em um dos extremos citados por Maia: vê-la
isolada de um contexto social que pressupõe determinados arranjos institucionais e
configurações políticas, ou, ignorá-la. Ainda conforme a autora, o campo da mídia
detém os instrumentos que servem para a produção da visibilidade, dos quais os
atores participantes de outros campos dependem. O espaço de visibilidade
proporcionado pela mídia atua como uma espécie de “arena” onde ocorrem as
disputas políticas e os “debates cívicos”.
Bourdieu (1997) não deixa de manifestar uma preocupação, um tanto
reducionista, com a atuação da mídia em Sobre a televisão. Na interpretação de
Canclini (2005), o sociólogo francês, além de efetuar uma restrição do campo
midiático ao campo jornalístico, não reconhece as diferentes estratégias utilizadas
pelos meios de comunicação e, tampouco, os diferentes tipos de audiência.
Bourdieu (1997, p. 113) pergunta-se sobre o que fazer diante dessa intromissão do
campo jornalístico nos demais campos, particularmente o científico: demarcar e
restaurar as fronteiras entre os campos ou,
sair da torre de marfim [....] para impor os valores oriundos do retiro na
torre de marfim e servir-se de todos os meios disponíveis, nos campos
especializados ou fora, e no interior do próprio campo jornalístico, para
tentar impor no exterior as contribuições e as conquistas possibilitadas pela
autonomia.
22
No texto já citado de Feres Junior (2005), o autor alerta para a constante presença na mídia de
artigos de intelectuais especialistas no tema das relações raciais argumentando sobre as ações
afirmativas, embora observe que há uma clara proeminência de matérias contrárias às cotas.
56
A resposta a essa questão Bourdieu fornece em Contrafogos 2 (2001), muito
mais do que em sua obra sobre o campo jornalístico. Se nos anos de 1960 e 1970 a
posição do sociólogo francês era de que a política se contrapunha à
institucionalização do campo acadêmico, a partir de Contrafogos 2, a prática política
do intelectual passa, na visão do autor, a ser uma arma e não uma ingerência
externa. Bourdieu retoma a tradição francesa, presente pelo menos desde Zola e
revigorada por Sartre, do intelectual enquanto homem público. “Sair da torre de
marfim” é, portanto, a resposta de Bourdieu. Conforme ressalta Ortiz (2003, p. 29):
Para que os demônios do campo intelectual sejam alimentados, é preciso
sair dos limites da estreita competência técnica e voltar-se para a crítica dos
padrões dominantes da produção cultural, confirmando, uma vez mais e por
outros caminhos, a porosidade das fronteiras nas Ciências Sociais.
Além do movimento de “sair da torre”, o intelectual deve adquirir consciência
de suas próprias coordenadas sociais, porque nunca poderá falar a partir de um
não-lugar. Por esse motivo, conforme prescrição de Canclini (2005), os intelectuais
não podem ser analisados somente a partir de seus enunciados teóricos, mas por
meio de outras formas pelas quais estabelecem a sua argumentação. Nesse caso,
suas relações com instituições, com os movimentos sociais e com a mídia devem
ser motivo de atenção.
1.6.2.5 INTELECTUAL: “A MORALIDADE DO COMPROMISSO”
23
Bourdieu (2001) afirma que os intelectuais, principalmente os especialistas
em ciências sociais, não só podem como devem intervir no mundo político. No
entanto, não é porque o intelectual interfere na política que se transforma
necessariamente em um político. Ele deve agir como alguém que engaja seu
conhecimento específico e os valores relacionados a sua profissão em uma luta
política sem, entretanto, renunciar a sua competência enquanto pesquisador. Porém,
ao assumir tal atitude de intervir no campo político ele pode ser visto por seus pares
como aquele que compromete a neutralidade axiológica, ou, pelos políticos, como
23
Subtítulo inspirado no título do livro de BASTOS, Elide Rugai; RÊGO, Walquíria D. Leão.
Intelectuais e política: a moralidade do compromisso. São Paulo: Olho d’Água, 1999.
57
uma ameaça ao monopólio de sua intervenção. Isso tudo deve ser realizado sem
abandonar um exercício de crítica permanente da autoridade intelectual.
O intelectual contemporâneo, na visão de Bourdieu (2001, p. 39), cumpre
funções negativas e positivas. As funções negativas seriam aquelas de “produzir e
disseminar instrumentos de defesa contra a dominação simbólica”, muitas vezes
produzida pela própria ciência. Sua função positiva seria a de contribuir para a
realização de um trabalho coletivo que vise a criação política. Esse intelectual tem
que deixar de refugiar sua crítica “no pequeno mundo acadêmico” (Bourdieu, 2001,
p. 40), no qual a crítica encanta-se consigo mesma – e o próprio intelectual é por ela
encantado – e preocupar-se com o resto do mundo. Deve criar condições concretas
para a produção de utopias coletivas e realistas.
De acordo com L’Estoile, Neiburg e Signaud (2002), há duas versões
predominantes no mundo acadêmico a respeito das relações entre o universo
científico e o político. De um lado situam-se as posições que consideram a política
enquanto um meio para a ciência. Os cientistas devem, nesse caso, distinguir as
atividades que realizam nas universidades e instituições de pesquisa daquelas que
executam como cidadãos, como quando participam da implementação de políticas
públicas. De outro lado encontram-se as formulações que colocam a ciência a
serviço da política. O conhecimento científico nesse sentido deveria ser utilizado na
resolução dos problemas sociais. No primeiro caso, o público-alvo seriam os
acadêmicos e a pesquisa pura mais valorizada que a pesquisa aplicada. No
segundo caso, o Estado, os movimentos sociais e os militantes seriam o público-alvo
preferencial. Ainda de acordo com os autores, essas duas formas de conceber as
relações entre ciência e política constituem tipos ideais e se apóiam em uma rígida
divisão entre ciência pura e aplicada. Os autores observam que essas relações
variam historicamente e que a autonomia da ciência em relação à política não deve
ser vista como “um valor absoluto” (L’Estoile, Neiburg e Signaud 2002, p. 15), mas
como uma situação produzida em determinadas condições e por grupos e agentes
específicos. Apoiados em Steven Shapin, os autores afirmam que a definição do que
é ciência e do que lhe é exterior é uma construção que varia temporalmente.
Portanto, as disciplinas acadêmicas podem desenvolver determinados graus de
autonomia e, mesmo assim, realizarem alianças como certos setores da
administração pública, movimentos sociais ou pesquisadores estrangeiros.
58
L’Estoile, Neiburg e Signaud (2002) chamam a atenção para o que pode estar
oculto na oposição entre ciência e política. Para eles, tal oposição esconde as
relações entre as práticas científicas, a formação e o modus operandi dos Estados.
Só a análise histórica e comparativa pode, na interpretação dos autores, evidenciar
relações de dependência entre a ação política, a elaboração de políticas estatais e a
produção do conhecimento. Para concluir, segundo aconselham L’Estoile, Neiburg e
Signaud (2002, p. 17) é mais fecunda a abordagem que considera os “produtores de
conhecimento” como partes interessadas nas lutas pela definição do papel do
Estado e das políticas que ele desenvolve, do que concebê-los como situados no
“exterior” dessa instituição.
As relações entre ciência e política aparecem como um pano de fundo
importante no debate sobre as cotas para estudantes negros no Brasil. Investigar em
que termos os intelectuais representantes da retórica conservadora e da retórica
progressista compreendem seus próprios posicionamentos dentro desse debate é
fundamental para um melhor entendimento da disputa, já que em cada um desses
lados encontra-se em jogo formas diferentes de relacionamento com o Estado
brasileiro e as políticas que tem implementado.
No entanto, antes de se examinar os dois tipos de retórica presentes no
campo das ciências sociais brasileiras, verificar-se-á quais os principais temas, ou se
preferirmos a denominação de Perelman e Olbrechts-Tyteca, quais os importantes
topoi que constantemente estimularam as discussões dos intelectuais e que, mais
uma vez, se fazem representar no debate sobre cotas no ensino superior.
59
3 RAÇA, MESTIÇAGEM E NAÇÃO: RECORRENTES TOPOI DAS CIÊNCIAS
SOCIAIS BRASILEIRAS
Os estudos sobre a formação e a identidade nacional nas ciências sociais
brasileiras envolvem certos lugares recorrentes. O significado de raça, o papel da
mestiçagem e as narrativas sobre a nação são lugares
1
que se interconectam
permanentemente tanto nas interpretações teóricas quanto nos discursos do
cotidiano. É indispensável, portanto, analisar a conformação desses topoi,
especialmente porque eles reaparecem de forma significativa nas discussões sobre
a implementação de cotas para estudantes negros no ensino superior. O que se
observa na disputa entre os intelectuais elaboradores da retórica conservadora e da
retórica progressista é o embate em torno desses pontos de vista, que orientam as
posições dos mais diversos auditórios.
As discussões a respeito da temática racial e seus correlatos, como a
mestiçagem, sempre fizeram parte da preocupação da elite intelectual e política do
país, da mesma forma que interferiram nas análises sobre a configuração do estado-
nação brasileiro. O debate sobre ações afirmativas no Brasil reavivou as diferentes
argumentações em torno desses temas. É possível identificar atualmente pelo
menos duas maneiras distintas de se analisar a questão racial e a mestiçagem. Há
cientistas sociais que recuperam a interpretação freyriana e de outros autores e
vêem o Brasil como resultado de um profundo e autêntico processo de
miscigenação, o que gera como conseqüência a formação de uma sociedade com
características cordiais e com um ideal de democracia racial. E, ao mesmo tempo,
há autores que seguem uma linha inversa, resultante de um rompimento explícito
com aquele tipo de interpretação.
Essa ruptura começou a ser realizada na década de 1950, principalmente
com as pesquisas realizadas pela Escola Paulista de Sociologia. No período da
ditadura militar, as discussões sobre raça foram, de certa forma, colocadas de lado e
os governos militares reassumiram o ideário da democracia racial. Na década de
1980, o debate é retomado especialmente por pesquisas de caráter sociológico e
demográfico que comprovam a relação entre discriminação racial e desigualdade
1
Verificar o conceito de lugares no segundo capítulo: página 43, nota 14.
60
social
2
. Ocorre também nessa mesma época, de acordo com Jocélio Teles Santos
(2002), uma espécie de ruptura discursiva em relação à integração cultural dos afro-
brasileiros e uma politização dos estudos sobre as relações raciais. A população
negra não é mais só representada em seu aspecto “cultural” e “performático”, mas
são publicizadas as discriminações que vivencia em múltiplos espaços sociais. Isso
não significa negar a importância da dimensão cultural, mas demonstrar que ela foi a
forma como o Estado brasileiro
3
– em períodos determinados – incorporou a
população negra no imaginário nacional, a partir do mito da democracia racial.
De acordo com a interpretação de Guimarães
4
(2006a), havia um consenso
na sociologia brasileira a respeito do país que foi rompido a partir da década de
1980. Esse antigo consenso assentava-se em quatro pontos: o primeiro deles era a
crença na não existência de raças, o segundo correlacionava as desigualdades
raciais às desigualdades de classe, o terceiro considerava a mestiçagem como
principal fator de unidade da nação brasileira e, finalmente, o quarto era a crença de
que a democracia representativa resolveria os problemas relativos à estabilidade e à
ordem e que as resoluções de conflitos de classes seria realizada através de
partidos, de associações de classe etc. É justamente esse consenso que o sociólogo
afirma não existir mais, sendo substituído por um outro que começou a ser
2
A principal obra que marca uma nova interpretação acerca das relações raciais no Brasil é o livro de
HASENBALG, Carlos. Discriminação e desigualdades raciais no Brasil. Belo Horizonte: Editora da
UFMG/Rio de Janeiro: Editora da IUPERJ, 2ª edição, 2005. No livro, publicado originalmente em
1979, o autor conclui que a discriminação racial presente na sociedade brasileira não é resultado de
resquícios do processo escravista. Demonstra também a desvantagem da população não branca
em relação aos brancos durante o processo de industrialização e urbanização do país, além de
tratar das diferenças inter-raciais no processo de mobilidade social. Em recente análise sobre o
livro, Fry (2005/2006) avalia Discriminação e desigualdades raciais no Brasil como um tipo de
narrativa ideológica tão importante para o movimento negro brasileiro quanto Casa-Grande e
Senzala foi para os modernistas. Porém, o antropólogo afirma que apesar das análises
contundentes contidas no livro, seu impacto foi muito restrito e não abalou o ideal de democracia
racial do Estado brasileiro, que só viria a ser definitivamente questionado a partir de 1995, com o
reconhecimento oficial pelo governo brasileiro da existência de racismo no país.
3
Santos (2002) evidencia que, tendo como pano de fundo a crença na democracia racial, o Estado
brasileiro desenvolveu uma política tanto de condenação da discriminação racial como “princípio
sagrado” do processo de integração racial brasileiro – no governo de Juscelino Kubitschek – como
de integração cultural da população negra no governo de Jânio Quadros. Ele mostra que no
período de Jânio Quadros a cultura afro-brasileira se transformou numa espécie de bem simbólico,
tratada como um assunto de Estado e fazendo parte inclusive da política externa do país. Em
outras palavras, isso significava “cristalizar as manifestações culturais afro-brasileiras através do
discurso de que elas estavam imersas na cultura nacional” (SANTOS, 2002, p. 180). A cultura afro-
brasileira, deste modo, e segundo a avaliação de Santos, é um elemento importante para os
governos desde Jânio Quadros até a chamada Nova República.
4
Palestra realizada na Mesa Redonda promovida pela ABA: “As novas inflexões raciais no Brasil”.
58ª Reunião Anual da SBPC. Sexta-Feira, 21/07/2006 – 16:00 horas – Auditório Laranjeira: Centro
de Cultura e Eventos – UFSC. Transcrição integral da fita feita pela pesquisadora.
61
formulado na década de 1980, mas que atualmente tem adquirido ainda mais força.
Fazem parte das idéias estruturantes do novo consenso:
o fato do racismo e da discriminação racial serem considerados como fatores
responsáveis pelas desigualdades sociais no Brasil;
as raças não são avaliadas como realidades biológicas, mas são
consideradas realidades sociais, que estruturam as oportunidades de vida dos
indivíduos;
a unidade do povo brasileiro já não é mais garantida pela idéia da
mestiçagem, mas pela idéia de cidadania e de garantia dos direitos civis;
a nação brasileira é, a exemplo das demais nações americanas, classificada
como pluriétnica, multirracial e multicultural. Essa mudança deu-se em função
das amplas reformas constitucionais que os países latino-americanos
realizaram, a partir dos anos 1980 e 1990 ;
a democracia é vista muito mais como um exercício de direitos que visa a
garantia da igualdade de oportunidades.
A conclusão de Guimarães de que há uma interpretação bastante
diferenciada sobre o país sendo fomentada nas ciências sociais brasileiras é
totalmente pertinente. O que pode ser questionado é o fato de existir um consenso a
respeito desse novo ideário. O debate entre os intelectuais sobre a aplicação de
políticas afirmativas no ensino superior no Brasil parece demonstrar que há uma
resistência nas ciências sociais brasileiras a esse consenso, e um dos pontos de
discordância concentra-se no fato de muitos cientistas sociais considerarem a
mestiçagem como um importante fator de integração e de identidade nacional.
O objetivo desse capítulo é verificar como a temática envolvendo a questão
étnico-racial no Brasil foi tratada e como os intelectuais elaboradores dos dois tipos
de retórica, conservadora e progressista, se posicionam em relação a ela. Em
primeiro lugar será apresentada uma síntese do significado do conceito de raça e
sua transformação em diferentes períodos históricos. Em seguida, será analisado
como a questão da raça e seus correlatos, a mestiçagem e o branqueamento, se
tornou uma fonte de preocupação para a elite intelectual e política do país.
62
Finalmente, será examinado o impacto desse debate no discurso dos intelectuais
contrários e favoráveis às políticas de ação afirmativa.
3.1 TRAJETÓRIA DO CONCEITO DE RAÇA
As análises sobre a questão racial no Brasil estão presentes desde pelo
menos o final do século XIX. É importante demonstrar como, de uma forma ou de
outra, a retórica da raça constantemente reaparece no cenário brasileiro. A fim de
melhor entender porque estamos enredados por esse signo, é oportuno observar
como ele foi construído no decorrer da história.
De acordo com Marques (1995, p. 40), durante a Idade Média, até pelo
menos o século XVI, a expressão raça tem como referência a idéia de pertencimento
a uma linhagem. Posteriormente, o significado semântico da palavra vai sendo
ampliado até referir-se a povos e a divisões da humanidade. Essa primeira acepção
do conceito, segundo o autor, recebia do passado “o determinismo irredutível da
ascendência e do sangue”.
Com o processo de colonização efetuado pela Europa, os colonizadores
passaram a determinar os outros – povos colonizados – através da raça. O conceito
assume a versão de um pensamento classificatório que determinará uma divisão
entre “os humanos e os não-humanos”. O corpo será então o lugar fornecedor de
critérios para essa nova separação da humanidade.
Marques demonstra que o pensamento racial moderno se constituirá com a
afluência de saberes que se tornavam autônomos, desde a anatomia e a fisiologia,
até a filosofia, a teologia e a história. Ao mesmo tempo em que o outro é descoberto
pelos europeus, o pensamento ocidental empreende seu processo de conhecimento
por meio dos processos de classificação. O pensamento racialista
5
, portanto, segue
estritamente essa regra e pensa a diversidade humana como resultado de uma
correspondência entre o tipo físico e as características mentais. As construções
5
O pensamento racialista pode ser definido como uma “doutrina segundo a qual a raça determina a
cultura, no sentido em que as diferenças entre as raças determinariam as diferenças entre as
aptidões mentais, as atitudes e os costumes. E, ainda: “visão da história ou da evolução social, que
se apresenta como uma teoria explicativa, baseada nesta ou naquela classificação das ‘raças
humanas’ hierarquicamente ordenadas numa escala de valor” (TAGUIEFF, 1997, p. 137).
63
teóricas acerca das raças, ainda segundo o autor, atingem seu apogeu no final do
século XIX. De acordo com essas teorias, as diferenças entre os seres humanos são
detectáveis a partir dos caracteres físicos que podem ser observáveis. Nesse
sentido, o próprio comportamento individual seria determinado pelo pertencimento
racial.
Marques (1995) esclarece que o pensamento científico racialista moderno não
se contentou em estabelecer tipologias e taxonomias, mas demandou também uma
forma de ação política. Nesse momento, o racialismo se junta ao racismo e o que
era teoria dá lugar à prática. Dessa forma, por meio de discursos cientificizantes a
“hegemonia européia, a situação colonial e os sucessivos genocídios e etnocídios”
são legitimados (MARQUES, 1995, p. 43).
O conceito de raça se expande ainda mais e invade a política e a história.
Raça e nação passam a participar do mesmo registro. Segundo Marques (1995, p.
43): “A raça funde-se com a nação, estruturando a emergente ideologia nacionalista
e, paradoxalmente, é utilizada para gerir antigas divisões identitárias no seio dos
próprios Estados”. O pensamento racialista moderno sofreu uma verdadeira
revolução com a apropriação do modelo evolucionista de Darwin pelas ciências
sociais – o darwinismo social. A história das nações seria transformada numa
história natural das raças, que determinaria a sobrevivência das mais aptas.
Veremos adiante que essa vertente do pensamento racialista também se disseminou
no Brasil provocando sérias conseqüências.
Na passagem para o século XX, conforme evidencia Marques (1995, p. 45), o
conceito de raça estava difundido em todos os campos dos saberes, “é uma chave
que fornece inteligibilidade à diversidade, legitimidade à dominação e fundamento à
destruição” Atualmente o conceito possui pelos menos três significados: raça
definida como povo ou grupo lingüístico; raça correspondendo a uma categoria de
subespécie ou variedade, presente no discurso biológico; e por fim, raça como um
conceito analítico, que se refere a um grupo de indivíduos socialmente definido em
função de determinadas marcas físicas. Nesse caso teria o caráter de construção
social. É esse sentido que Guimarães (1999, 2002) dá ao termo em seus estudos.
Uma sociedade racista seria aquela na qual utilizam-se marcadores físicos
como forma de estabelecer distinção entre grupos sociais. Ocorre uma espécie de
naturalização das relações sociais com base no fenótipo físico, em que está
64
subjacente a relação com determinadas características intelectuais, morais ou
comportamentais.
3.2 A PREOCUPAÇÃO COM A RAÇA, O PROTAGONISMO DA MESTIÇAGEM, A
INCORPORAÇÃO DAS TEORIAS RACIALISTAS PELOS INTELECTUAIS E OS
“HOMENS DE SCIENCIA”
6
NO BRASIL
Thomas Skidmore (1990) demonstra que as idéias a respeito de raça faziam
parte da preocupação de uma elite intelectual e política brasileira desde o período
posterior à abolição da escravidão. Até 1870 a discussão predominante entre a elite
do país era sobre a escravidão e não a respeito da raça, pois uma das doutrinas
sociais predominantes era o liberalismo que previa a eliminação de obstáculos à
liberdade individual. A escravidão, por conseguinte, era um desses obstáculos e
deveria ser extinta para que o país pudesse seguir rumo a um desenvolvimento de
caráter liberal. Após a abolição, junto com a preocupação sobre o trabalho livre e a
aquisição de uma mão-de-obra qualificada, chegava da Europa o pensamento
“científico” a respeito das raças que advogava a superioridade da raça branca sobre
as demais, além de condenar enfaticamente a miscigenação. As teorias racialistas
foram recebidas no Brasil com apreensão, pois, a partir desses preceitos, a análise
da composição racial do país comprovava o irremediável comprometimento de seu
desenvolvimento social e econômico.
Havia duas posições estabelecidas entre os intelectuais brasileiros sobre a
questão racial, uma que considerava a miscigenação como degenerescência e outra
que a via como o caminho para o branqueamento. Para Skidmore (1990), as teorias
raciais influenciaram os pensadores brasileiros de diferentes formas. Dentre os
principais expoentes que compartilhavam a posição mais pessimista a respeito da
realidade racial brasileira, de que o país estava condenado pela miscigenação,
estava o médico baiano Nina Rodrigues. No entanto, muitos pensadores situavam-
se na opção que previa o branqueamento como solução para os problemas raciais
brasileiros, pois através da contínua mistura com europeus seria criado um
6
Designação utilizada por SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e
questão racial no Brasil (1870-1930). São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
65
movimento que ia do inferior (negros) até o superior (brancos). Um dos principais
teóricos defensores da tese do branqueamento foi Oliveira Vianna. Para ele, com o
declínio de indígenas e negros haveria um aumento de brancos na população do
país.
Segundo Seyferth (1995, p. 180), a tese do branqueamento
7
da nação por
meio do processo de miscigenação previa que a seleção natural se encarregaria de
eliminar as supostas “raças inferiores”. De acordo com a autora, havia a seguinte
contradição entre os teóricos do racismo: aqueles que defendiam a pureza racial e a
condenação total da mestiçagem, e os darwinistas sociais que estavam convictos da
superioridade da raça branca, mas acreditavam que através do processo de seleção
natural poderiam ser criadas raças puras mesmo em meio à diversidade. Tais
contradições serviram às formulações racistas brasileiras e desse modo
implementou-se com segurança a tese do branqueamento. De acordo com a
interpretação de Seyferth (1995, p. 181):
O dogma racista condena todos os mestiços à extinção progressiva,
criando, assim, uma dificuldade quase incontornável para as ciências das
raças à brasileira, defrontada com uma enorme variedade de mestiços de
todas as matizes. Mas, assim como Gobinaeau conseguiu imaginar algum
tipo de mestiçagem criativa, nossos pensadores inventaram o
branqueamento, dando alguma chance a uns poucos eleitos como
“mestiços superiores”. Ideologias nem sempre precisam de coerência para
serem assumidas como verdades
O ideal de branqueamento estava diretamente relacionado com a
miscigenação. Em outras palavras, a mestiçagem era a solução para um povo que
deveria branquear-se por força dos “brancos superiores” e, com sorte, fazer
desaparecer parte da população nacional formada por negros, índios e mestiços
(SEYFERTH, 1995).
7
De acordo com HOFBAUER (2006, p. 27-28), o ideário do branqueamento pode ser conceituado
como: “[...] a supremacia do branco e, ao mesmo tempo, induz os indivíduos a se aproximarem
desse ideal. Traz em si um potencial de resistência contra qualquer tentativa de ‘essencializar’ os
limites de cor e/ou de raça, uma vez que faz com que os indivíduos tendam a apostar em
negociações pessoais e contextuais das fronteiras identitárias e tendam a rejeitar processo e
mecanismo formais de delimitá-las. Essa prática social tem contribuído para encobrir o teor
discriminatório embutido no esquema ideológico e também para abafar eventuais contra-reações
coletivas”.
66
Na interpretação de Seyferth (1995), os mestiços representam tanto um
empecilho classificatório para os defensores da idéia de raça, como também servem
de prova para reforçar o mito da não existência de preconceito racial no Brasil. É
justamente a idéia de mestiçagem que comprova a tese da ausência de preconceito.
Kabengele Munanga (1999, p. 93) é outro autor que alerta sobre o fato de a
idéia de mestiçagem estar acompanhada do ideal do branqueamento da população.
Ela era vista no século XIX como um dos primeiros degraus que deveriam ser
alcançados na tentativa de “conjurar a ‘ameaça racial’ representada pelos negros”. O
autor demonstra que tanto as relações raciais quanto a mestiçagem constituem uma
das mais importantes tramas pelas quais foi interpretada a história da América
Latina, tecida por autores que previam a formação de uma “nova raça”. Munanga
prossegue indicando que esse modelo além de não democrático, é assimilacionista
– no sentido de inibir as diferentes identidades existentes – e procura integrar os
diversos tipos de resistência que poderiam ser oferecidos a essa construção da
identidade nacional. Ainda de acordo com o autor, o que está por trás da expressão
de que “no Brasil todos são mestiços” é a busca de uma unidade nacional racial e
cultural. Para finalizar sua interpretação acrescenta:
Se a mestiçagem representou o caminho para nivelar todas as diferenças
étnicas, raciais e culturais que prejudicavam a construção do povo
brasileiro, se ela pavimentou o caminho não acabado do branqueamento,
ela ficou e marcou significativamente o inconsciente e o imaginário do povo
brasileiro. O universalismo tão combatido pelos movimentos negros
contemporâneos se recupera justamente através da mestiçagem e da idéia
do sincretismo sempre presentes na retórica oficial (MUNANGA, 1999, p.
126).
Duas intelectuais que também se preocupam com o papel da mestiçagem na
formação da identidade nacional são Iray Carone (2002) e Maria Aparecida Silva
Bento (2002). Elas alertam para o fato de a mestiçagem ter desempenhado uma
missão de extrema importância política, provocando um discurso a respeito do
processo de homogeneização biológica do qual a identidade nacional seria
devedora. Carone (2002) propõe duas possibilidades de entendimento do
branqueamento sempre em relação ao processo de mestiçagem. Ele pode ser
compreendido inicialmente como resultado de um processo intenso de miscigenação
entre negros e brancos desde o período colonial, responsável pelo aumento do
67
número de mestiços na população brasileira. Mas, a ideologia do branqueamento
também pode ser analisada como uma espécie de pressão cultural que os brancos
exercem sobre os negros principalmente após a abolição da escravatura, com o
objetivo de fazer o negro recusar a sua própria condição, ou seja, a si mesmo.
A autora retoma o dilema que se apossou da elite abolicionista diante do
diagnóstico de Arthur Gobineau
8
de que a miscigenação causaria a degeneração,
uma vez que as teorias raciais que ele defendia condenavam o cruzamento inter-
racial. Os juristas e médicos que formavam a maior parte da elite abolicionista
ficaram profundamente divididos entre “condenar a mestiçagem ou adaptar o
discurso racista à realidade social do país” (CARONE, 2002, p 15). A solução para o
problema veio dos juristas positivistas que defendiam argumentos baseados na
teoria elaborada pelo filósofo francês Augusto Comte, de que o caminho para a
positividade nas ciências humanas deveria ser acompanhado da evolução das
instituições. Nesse caso, embora os juristas tivessem um posicionamento
progressista no que se refere à condenação do regime escravocrata, eles defendiam
concepções racialistas, a partir das quais as raças eram definidas tanto por
características físicas comuns como por diferenças mentais transmitidas
hereditariamente. O branqueamento, por conseguinte, tornou-se a solução que
possibilitava uma “postura otimista diante da mestiçagem entre negros e brancos,
índios e brancos, etc.” (CARONE, 2002, p 15).
O branqueamento também era defendido por uma vertente liberal que
desejava a modernização industrial para o Brasil. Além da pressuposta
superioridade racial dos brancos, a vinda de europeus representava, para essa
vertente, uma mão-de-obra de maior produtividade quando comparada a dos
negros. Nesse sentido, a abolição da escravidão era a forma para o país adaptar-se
mais facilmente à economia industrial capitalista, trazendo uma mão-de-obra já
acostumada a essa condição. A preocupação dos abolicionistas e de parte da elite
brasileira era preparar o país para conformar-se às novas relações advindas com o
8
“O conde Gobineau, autor de Essai sur l’inegalité des races humaines, obra publicada em 1853, era
partidário do determinismo racial absoluto. Ao mesmo tempo compartilhava do darwinismo social,
introduzindo a noção de ‘degeneração da raça, resultado da mistura de espécies humanas
diferentes. [...] Arthur de Gobineau permaneceu no Rio de Janeiro como enviado francês durante
quinze meses. Sua correspondência diplomática com D. Pedro II pode ser encontrada na obra
Arthur de Gobineau et le Brésil. Nos idos de 1869, o diplomata francês analisou a população e a
estrutura política do Brasil. A perspectiva de análise do diplomata francês atravessou o
pensamento de diversos autores nacionais” (ABREU, 2004, p. 07).
68
capitalismo industrial, sem a menor apreensão com o que seria feito dos negros e de
seus descendentes. Os membros dessas elites não procuraram definir qualquer
medida relativa aos negros libertos. Conforme salienta Carone (2002, p. 16):
A ideologia do branqueamento era, portanto, uma espécie de darwinismo
social que apostava na seleção natural em prol da ‘purificação étnica’, na
vitória do elemento branco sobre o negro com a vantagem adicional de
produzir, pelo cruzamento inter-racial um homem ariano plenamente
adaptado às condições brasileiras.
A análise de Carone é confirmada por Edward Telles (2003, p. 45) quando
afirma que as teorias eugenistas desenvolveram-se fortemente no Brasil na virada
do século XIX para o século XX com um grande efeito sobre a política e a ideologia
do país. Os eugenistas brasileiros, é importante frisar, adotaram a linha neo-
lamarckiana, dominante entre os franceses. O argumento principal dessa linha do
eugenismo era de que “as deficiências genéticas poderiam ser superadas em uma
única geração”. O neo-lamarckianismo teve profundas implicações na forma como
se interpretou a idéia de raça nas décadas que se seguiram. Os acadêmicos
defensores dessa linha proclamavam a inferioridade racial do negro e do “mulato”,
mas acreditavam que essa condição poderia ser superada por meio da
miscigenação. O branqueamento, por esse motivo, seria a solução que evitaria a
degeneração através da mistura de brancos e não-brancos. Partindo desse
pressuposto, a política da imigração no Brasil foi sustentada pela idéia do
branqueamento, conforme exposto anteriormente.
Como comprovação dessa política de Estado adotada no país, Telles
assegura que o grau de branqueamento da população brasileira previsto pelos
eugenistas só poderia ser avaliado 50 anos mais tarde, em 1940. Para evitar a
realização dessa avaliação antes do tempo previsto a questão da cor foi omitida do
censo no Brasil em 1900 e 1920 e, em 1910 e 1930, não houve recenseamento.
Apesar do quesito cor não fazer parte do formulário do censo de 1920, conforme
verifica Telles (2003, p. 49), constava no resultado do recenseamento desse ano um
artigo de Oliveira Viana que apregoava a “rápida redução do ‘coeficiente de sangue
inferior’ no pool genético brasileiro”. É importante observar que em 1970 os militares
também retiraram o quesito cor do censo daquele ano. A ausência dos dados
69
relativos à cor foi utilizada várias vezes como uma política de Estado no Brasil, no
intuito de encobrir as diferenças na composição étnico-racial do país.
Ainda segundo Telles (2003, p. 49), no ano de 1920, com a redução
considerável da imigração européia, a preocupação com a miscigenação
reapareceu. Nessa época surge uma nova geração de eugenistas que desafia os
neo-lamarckianos. Na Primeira Conferência Eugênica Brasileira, em 1929, houve um
intenso debate sobre se o processo de mescla com negros poderia ou não levar à
degeneração. Edgar Roquette-Pinto argumentou que a miscigenação era “normal e
saudável” e, portanto, não-degenerativa. Nesse período no Brasil, segundo análise
de Stepan (Stepan apud. Telles, 2003), diferente da Alemanha por exemplo, a
variante da eugenia que predominou estava relacionada à higiene pública, que era
compatível com a mistura de raças e com a democracia racial. Logo, grande parte
da elite e dos eugenistas brasileiros exaltam as virtudes da miscigenação.
A publicação de Casa-Grande e Senzala de Gilberto Freyre, na década de
1930, além de transformar definitivamente o conceito de miscigenação em algo
positivo, em contraposição às teorias racialistas até então vigentes, popularizou a
idéia de democracia racial. Porém, o conceito de miscigenação de Freyre
permaneceu atrelado ao branqueamento
9
, pois ele reconhecia que a miscigenação
só pôde acontecer nos tempos modernos em virtude da “crença popular na ideologia
(da supremacia branca) do branqueamento” (TELLES, 2003, p. 51). Sua atitude
preconceituosa favorável ao branqueamento pode ser avaliada na seguinte frase
citada por Telles: “os negros estão desaparecendo rapidamente no Brasil, fundindo-
se com o estoque branco” (FREYRE apud TELLES, p. 51). Bento (2002) corrobora a
identificação de Freyre com o ideal de branqueamento e cita uma frase em que o
autor pernambucano assegura que “o problema do negro está simplificado no Brasil
pelo amplo processo de miscigenação que atingiu a maior parte da sociedade, só
não abarcando uns poucos quilombos ou algum grupo branco mais ‘intransigente’”
(FREYRE apud BENTO, 2002, p. 48). Para ela, o branqueamento também
representou uma reação da elite branca ao medo provocado pelo negro, ou seja, o
medo que as elites tinham da população negra no período próximo ao episódio da
abolição da escravidão, conforme demonstrado na obra de Azevedo (2004a).
9
Verificar a esse respeito a análise de HOFBAUER (2006).
70
No final do século XIX, o Brasil era considerado como um caso singular de
miscigenação racial. A imagem de um país mestiço não se restringia ao debate
interno, mas estava presente na interpretação que diversos viajantes e naturalistas
construíram sobre o país.
Conforme assinala Schwarcz (1993), as teorias raciais apesar de terem
chegado tardiamente ao país, quando comparada à época em que fizeram sucesso
na Europa, em meados de 1800, foram acolhidas com bastante entusiasmo. A
recepção positiva dessas teorias está vinculada a outros acontecimentos, pois, os
anos 1870 podem ser entendidos como um marco na história das idéias no Brasil.
Além da entrada de todo um repertório positivista e evolucionista, do qual as teorias
raciais constituem um dos principais exemplos, há, concomitantemente, o
fortalecimento de alguns centros de ensino nacionais.
O argumento racial foi construído e utilizado de forma política e histórica, da
mesma forma que o conceito de raça. Mas, o que importa ressaltar, na interpretação
de Schwarcz, é justamente a forma como as elites intelectuais não só se
apropriaram dessas teorias, como as utilizaram de maneira original. As teorias
raciais serviram para justificar o estabelecimento de critérios diferenciados de
cidadania no país. Mas, ao mesmo tempo, na medida em que interpretavam a
mestiçagem de maneira pessimista, acabavam por tornar inviável um projeto de
nação. A solução encontrada pelos intelectuais foi a adoção do darwinismo social
que estabelecia a diferença hierárquica entre as raças. As implicações negativas da
miscigenação, por sua vez, não foram problematizadas. Se o darwinismo social
instituía uma determinada hierarquia, a teoria evolucionista preconizava que as
raças humanas encontravam-se em constante aperfeiçoamento. Desse modo,
acreditava-se que o Brasil poderia ter um futuro. A autora chama a atenção para a
originalidade com que as teorias raciais foram adaptadas ao contexto brasileiro.
Atualizou-se o que combinava com as características nacionais e descartou-se o que
era considerado problemático.
A origem da humanidade até meados do século XIX era explicada por duas
vertentes. A visão monogenista acreditava que os seres humanos tinham uma
origem comum. Essa interpretação que partia dos escritos bíblicos, defendia a idéia
de uma humanidade una. Surge, porém, uma interpretação divergente, a poligenista,
em que os autores compartilhavam a crença de que teria havido vários centros de
71
criação, aos quais correspondiam as diferenças raciais. Essa versão permitiu que os
comportamentos humanos fossem analisados a partir de uma interpretação
biológica. A mistura de raças, de acordo com essa visão, apontava para os mestiços
como sinônimo de degeneração.
A forma como a questão racial e o próprio conceito de raça foram tratados no
Brasil por diferentes setores, como os “homens de direito” e da “medicina”
(Schwarcz, 1993, p. 238), foi essencial na definição dos caminhos do país. Pode-se
afirmar, portanto, que as teorias raciais européias foram introduzidas no Brasil de
maneira crítica e também seletiva e transformaram-se em um instrumento
conservador para a compreensão da identidade nacional. O argumento racial além
de justificar cientificamente as diferenças e a sua hierarquização, também servia
para respaldar a discussão sobre quem teria direito à cidadania.
Apesar dessa visão racial ter origem nos estabelecimentos científicos, ela
também se fez presente nas relações interpessoais e no convívio cotidiano. Tal
interpretação considerava a miscigenação como a característica que singularizava a
nação brasileira. A temática racial possui presença constante na análise da
constituição do país, apesar de interpretada diferentemente pelos diversos modelos
teóricos.
O ponto crucial para o qual Skidmore, Seyferth e Schwarcz chamam a
atenção, e que pode ser observado com clareza no estudo de Azevedo
10
(2004a), é
que as teorias racistas advindas da Europa e adaptadas à realidade brasileira
influenciaram o planejamento do país. As teorias consideradas científicas a respeito
das raças serviram de justificativa para a adoção de políticas de Estado no Brasil. O
principal exemplo disso é a política de Estado de incentivo à imigração européia,
aprovada por intelectuais e políticos, inclusive muitos abolicionistas, com o objetivo
de substituir a mão-de-obra escrava e a incidência de negros e mestiços na
população.
Conforme revela Skidmore (1990), ao mesmo tempo que divulga uma imagem
positiva de um país onde não há preconceito racial, o Estado brasileiro, em 1921,
nega sistematicamente visto de entrada para negros norte-americanos assim como
restringe a imigração japonesa.
10
Azevedo, Celia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites
século XIX. São Paulo: Annablume, 2004a.
72
Azevedo (2004a) demonstra que no período anterior à abolição da escravidão
havia um profundo medo da elite branca em relação tanto a vinda de escravos de
outras partes do país para São Paulo, pelo acréscimo que produziria na população
negra
11
, quanto do significativo aumento das reações dos escravos na forma de
motins, assassinatos, fugas etc. As teorias raciais e, conseqüentemente, a
interpretação que dela fizeram os pensadores nacionais, vieram para legitimar a
opção pela mão-de-obra branca européia. A autora evidencia como a forma de
adesão ao projeto imigrantista aumentava à medida em que as reações negras se
acumulavam. Aliado às teorias racistas, o ideário liberal confirmava o estágio
atrasado do país e conclamava a mudanças urgentes para que o Brasil entrasse nos
trilhos do desenvolvimento.
As idéias sobre raça perpassaram o pensamento social brasileiro e de
diversos países latino-americanos desde o século XIX até consolidarem uma
ideologia adequada à realidade local. Somente em 1930 as teorias racistas serão
definitivamente questionadas e a mestiçagem transformada de fator biológico em
cultural. Quem opera essa transmutação é Gilberto Freyre. Esse autor vai redefinir a
identidade nacional ao fornecer o modelo de uma sociedade formada por três raças.
3.3 O BRASIL MESTIÇO: A MISTURA DE RAÇAS
Gilberto Freyre desenvolveu a idéia da construção do país não estar
fundamentada numa formação racial homogênea mas sim numa “brasilidade
mestiça” (COSTA, 2002b). O autor pernambucano, ao contestar as teses do
determinismo biológico, constrói o ideal de mestiçagem de forma exemplar em suas
obras clássicas Casa Grande e Senzala e Sobrados e Mocambos. Entre as
conclusões a que chega em seus estudos, nos quais elabora representações não-
conflitivas das relações raciais, está a de que, embora nossa estrutura social tenha
evoluído para um certo “aristocratismo político” (Guimarães, 2000), aqui se
estabeleceu a democratização das relações raciais, ao contrário dos Estados
Unidos. Nas palavras de Freyre (1995, p. 52):
11
Skidmore, Thomas. Racial ideas and social policy in Brazil 1870-1940. In: GRAHAM, Richard. The
Idea of race in Latin América, 1870-1940. Austin: University of Texas Press, 1990. Skidmore afirma
que no ano de 1870 somente 38% da população era listada como branca.
73
Talvez em parte alguma se esteja verificando com igual liberalidade o
encontro, a intercomunicação e até a fusão harmoniosa de tradições
diversas, ou antes, antagônicas, de cultura, como no Brasil. [...] o regime
brasileiro, em vários sentidos sociais um dos mais democráticos, flexíveis e
plásticos.
Em várias obras posteriores a Casa Grande e Senzala, Freyre confirma sua
teoria. Assim o autor se manifesta em Novo mundo nos trópicos (2000, p. 140):
Mas com todas as suas imperfeições de base econômica e de formas
políticas de convivência democrática, o Brasil impõe-se hoje como uma
comunidade cuja experiência social pode servir de exemplo e estímulo a
outras comunidades modernas. Decerto não existe nenhuma outra
comunidade moderna da complexidade étnica da brasileira, onde os
problemas das relações sociais entre homens de origens étnicas diversas
estejam recebendo solução mais democrática ou mais cristã que na
América Portuguesa.
Essa idéia freyriana da “brasilidade mestiça”, forjada a partir de uma
convivência democrática, obteve, segundo Costa (2002b), correspondência política
na campanha de nacionalização realizada pelo governo Vargas a partir de 1937.
Pois a construção de uma nação brasileira que estaria acima das diferenças étnicas
torna-se, dos anos 1940 em diante, não mais um objetivo a ser alcançado e sim a
própria descrição da nação. Criou-se dessa forma a ideologia da mestiçagem
12
, na
interpenetração entre as idéias de Freyre e a política desenvolvida por Vargas. Tal
ideologia reinventou o país por meio de uma visão de mundo que revelava “a
possibilidade de convivência dos diferentes grupos socioculturais” (COSTA, 2002a,
p.116).
A mistura de raças também é analisada por John Norvell (2002) a partir de
alguns autores importantes que refletiram sobre a formação nacional. O autor
demonstra que na tradição da interpretação histórica sobre o Brasil há um papel
12
O conceito de ideologia está sendo utilizado a partir da definição do sociólogo inglês John B.
Thompson: “A análise da ideologia [...] está primeiramente interessada com as maneiras como as
formas simbólicas se intrecruzam com relações de poder. Ela está interessada nas maneiras como
o sentido é mobilizado, no mundo social, e serve, por isso, para reforçar pessoas e grupos que
ocupam posições de poder. [...] Se fenômenos simbólicos servem, ou não, para estabelecer e
sustentar relações de dominação, é uma questão que pode ser respondida somente quando se
examina a interação de sentido e poder em circunstâncias particulares – somente ao examinar
como as formas simbólicas são empregadas, transmitidas e compreendidas por pessoas situadas
em contextos sociais estruturados. (THOMPSON, 1990, p. 75-76). Conforme esclarece Silva
(2002), nesse conceito ideologia não significa a mistificação, nem o encobrimento ou, ainda, a
inversão da realidade. Sua especificidade é construída não em oposição à verdade, “mas em
função das relações de poder” (THOMPSON, 1990, p. 117).
74
retórico básico da mistura das raças que permanece o mesmo. Ao analisar as obras
dos intelectuais denominados de “inventores do Brasil”
13
, o autor mostra como
Gilberto Freyre, Paulo Prado e Sérgio Buarque de Holanda trataram do futuro do
Brasil através da evocação do passado. Esses autores, clássicos da literatura social
brasileira, procuraram algo da brasilidade que explicasse o dilema brasileiro de uma
sociedade em vias de modernização, mas que ao mesmo tempo mantinha uma série
de peculiaridades. Uma das explicações encontradas foi a da mistura das raças, que
ainda hoje se faz presente nas elucubrações sobre a nação brasileira.
Norvell afirma que Prado, no livro Retratos do Brasil (1936), ainda se debate
com o dilema de como conciliar a mistura racial com as sombrias previsões do
racismo científico para as sociedades misturadas. Assim como outros autores,
apesar de reconhecer a contribuição de africanos e indígenas, Prado manifesta sua
solução, segundo Norvell, na crença no branqueamento. Só que em Prado a noção
de brancura já está miscigenada. Em outras palavras, de acordo com a interpretação
de Norvell (2002, p. 253), tanto os não-brancos estavam se tornado mais mesclados
(processo de branqueamento), como os brancos estavam mais misturados. A nação
brasileira, por conseguinte, seria profundamente marcada pela miscigenação.
É dentro dessa lógica que se encontra também a obra de Freyre, pois a visão
que os dois autores têm da mescla racial é semelhante. Em Freyre, de acordo com
Norvell (2002, p. 254), predomina a imagem da nação brasileira como de uma “alma
branca, curiosamente ‘marcada’ por uma espécie de persistente passividade da
parte do outro de pele escura, não-europeu”. Cada cultura formadora do Brasil seria
responsável por determinadas características da formação cultural da sociedade
brasileira: “A mediação africana no Brasil aproximou os extremos, que sem ela
dificilmente se teriam entendido tão bem, da cultura européia e da cultura ameríndia,
estranhas e antagônicas em muitas de suas tendências” (FREYRE, 1995, p. 53).
Outro autor analisado por Norvell, Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do
Brasil, não tem como preocupação central a mistura das raças. Mesmo assim,
demonstra interesse pelo tema quando mostra que a mistura já estava presente no
13
Consultar a respeito na revista Novos Estudos Cebrap, nº 18, setembro, 1997, os textos sobre
Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Jr. Paulo Prado é analisado por Norvell,
porém não é citado na publicação como um dos “inventores do Brasil”.
75
sangue de nossos colonizadores. De acordo com as palavras de Holanda (1976. p.
22):
A isso cumpre acrescentar outra face bem típica de sua extraordinária
plasticidade social: a ausência completa, ou praticamente completa, entre
eles [portugueses], de qualquer orgulho de raça. Ao menos do orgulho
obstinado e inimigo dos compromissos, que caracteriza os povos do Norte.
Essa modalidade de seu caráter, que os aproxima das outras nações de
extirpe latina e, mais do que delas, dos muçulmanos da África, explica-se
muito pelo fato de serem os portugueses, em parte, e já ao tempo do
descobrimento do Brasil, um povo de mestiços .
Apesar da mescla das raças não ter sido objetivo principal dessa obra de
Holanda, ela aparece como uma preocupação demarcada pelo autor, principalmente
na comparação entre a colonização portuguesa e a espanhola. Pois, pare ele,
Portugal já apresentava um maior grau de miscigenação do que a Espanha, por
exemplo.
As produções subseqüentes de história e de sociologia no Brasil indicam a
permanência dessa lógica que, segundo Norvell (2002, p. 255), elege a mistura das
raças como uma espécie de momento fundador do Brasil e, ao mesmo tempo,
permanente em nossa sociedade. Só que, em determinado momento muitos
autores, defensores da idéia de miscigenação, substituem esse sujeito miscigenado
formador da nação brasileira por um “sujeito branco, não-miscigenado”. Essa é uma
lógica contraditória constante nas interpretações sobre a nação, ainda segundo a
análise desenvolvida por Norvell.
A leitura do Brasil como o lugar no qual não existem singularmente nem
indígenas, nem africanos, nem europeus será retomada mais recentemente por
Darcy Ribeiro. O antropólogo, assim como os demais autores analisados por Norvell,
também apresenta uma interpretação que parte da posição contraditória de
intelectual branco referindo-se à mistura das raças. De acordo com Ribeiro: “Nós
somos melhores, porque lavados em sangue negro, em sangue índio, melhorado,
tropical” (RIBEIRO apud. NORVELL, p. 256). Fica explícita a idéia de que é o sujeito
branco europeu quem se misturou, embora o ideal de Ribeiro esteja mais
representado pela “morenidade” do que propriamente pelo branqueamento.
Norvell conclui seu trabalho afirmando que os textos por ele analisados
possuem em comum pelo menos duas afirmações contraditórias entre si. A primeira
76
delas é que a nação brasileira (a raça ou o povo) é o resultado da mescla das três
raças: indígena, negra e européia (branca). A segunda, é que esses autores afirmam
que o brasileiro é produto da mistura de europeus com índios e negros, não se diz
que índios e negros se misturaram com europeus. Nas palavras do autor:
O “brasileiro” é, portanto, um paradoxo genealógico que, em uma
construção lingüística, é uma mescla, um produto de três raças diferentes;
como sujeito gramatical ativo, porém, mistura-se com duas dessas raças,
mas não com a terceira, a européia, porque há, neste caso, uma suposta
continuidade [...]. O momento originário em que as raças fundadoras se
unem para formar o Brasil mostra-se paradoxal, pois é um momento que
nunca poderia ter ocorrido, por um lado, porque, pergunta-se: em que
ponto do passado as raças existiram como entidades puras? Por outro
lado, o momento originário não pode ter terminado, porque é a ‘mistura de
raças’ que define a identidade nacional brasileira no presente (NORVELL,
2002, p. 257).
Almeida (2000) também aponta em seu trabalho, reportando-se entre outros
autores a Peter Wade, que a exaltação da mestiçagem é muitas vezes definida pela
oposição à cor negra. Para o autor, a linguagem da cor branca é adotada, mesmo
quando se autodefine como mestiça. É essa ligação latente da mestiçagem com o
branqueamento que Norvell encontrou em sua apreciação das obras dos intelectuais
brasileiros.
Além de seus aspectos assimilacionista e invisibilizador, é preciso considerar
ainda que a mestiçagem, ou de acordo com a denominação proposta por Lourdez
Martinez-Echazábal, o “ideologema
14
da mestiçagem” (1996), não é uma doutrina
restrita aos limites nacionais. Pelo contrário, a autora demonstra como a mestiçagem
é um ideal espraiado por toda a América Latina, principalmente a partir dos anos
1920. Segundo suas palavras:
14
A autora utiliza o termo “ideologema” e não ideologia, para enfatizar a recorrência da mestiçagem
como uma das unidades básica de análise na interpretação dos processos de identidade da
América Latina (MARTINEZ-ECHAZÁBAL, Lourdez, 1996, p. 108).
77
Entre os vários paradigmas culturais baseados no ideologema da
mestiçagem que abrem novos horizontes interpretativos da cultura latino-
americana a partir dos anos 20, podemos citar os seguintes: a
‘antropofagia’ no Brasil na década de 20; a ‘raça cósmica’, miolo da utopia
tropicalista do mexicano José Vasconcelos (1925) [...]; a ‘cor cubana’,
metáfora através da qual o poeta cubano Nicolás Guillén textualiza e
teoriza em 1931 a idéia de mestiçagem cultural [..]; a transculturação,
contrapartida teórica da noção de ‘aculturação’, teoria desenvolvida pelo
sociólogo cubano Fernando Ortiz em 1941 [...]; o ‘real maravilhoso’,
paradigma elaborado pelo novelista e ensaísta cubano Alejo Carpentier [..]
(MARTINEZ-ECHAZÁBAL, 1996, p. 112).
Martinez-Echazábal (1996, p. 112), comprova como esses modelos
interpretativos reivindicam a mestiçagem como uma espécie de elemento fundante e
diferenciador, funcionando como um suporte para interpretações culturalistas. Eles
postulam ainda a cultura latino-americana como aquele “cadinho de raças” do qual
proviria uma cultura que eliminaria o conflito entre os opostos. Ela conclui que todos
esses modelos trazem implícitos um “ideal de raça biológica travestida em etnicidade
ou em classe social” (MARTINEZ-ECHAZÁBAL, 1996, p. 112). Ocorre também em
todos eles uma “culturalização da raça e uma racialização da cultura”.
Freyre manobrou com maestria a ambigüidade da relação entre raça e
cultura, tanto que o impacto de sua teoria revela-se ainda hoje com força no
argumento de muitos intelectuais e no próprio imaginário popular. O autor
simultaneamente rompe com os discursos racialistas de sua época, mas mantém em
sua argumentação uma lógica racial, porém culturalizada. Segundo Martinez-
Echazábal (1996, p. 118). a “(...) obra de Freyre, nega a cor (física) como elemento
endêmico da noção de raça, colocando em seu lugar a noção de cor espiritual,
corporificada nos conceitos de cultura afro-brasileira e classe social”.
A dissociação entre raça e cultura que se opera a partir de 1930 representa
muito mais um deslocamento no interior do discurso da mestiçagem do que
propriamente uma mudança de discurso (MARTINEZ-ECHAZÁBAl, 1996, p. 121). E,
embora esse deslocamento tenha sido puramente retórico, ele influenciou
profundamente a percepção das relações étnicas e raciais na América Latina como
um todo, o Brasil sendo apenas um exemplo de como atuou essa transformação.
As elites políticas e intelectuais colombianas e da América Latina em geral
também viam como sua a tarefa de criar e definir uma nação moderna. O ponto
central em relação ao dilema da representação das nações emergentes latino-
78
americanas era, de acordo com Wade (1995), o reconhecimento da mistura racial e,
ao mesmo tempo, a conotação branca do progresso e da modernidade. Muitos
autores colombianos que escreveram já no século XX também previram a imigração
branca como solução para o problema da raça na Colômbia. Ainda segundo a
análise de Wade, era possível observar nos discursos nacionalistas sobre mistura
racial tanto a celebração dessa mistura quanto a discriminação contra negros e
índios. Há, para o autor, uma contradição entre a coexistência da mestiçagem e da
discriminação. A mestiçagem, portanto, possui uma forte conotação moral, pois não
se constitui em uma mistura neutra, mas em um movimento hierarquizado.
A idéia de mestiçagem representa, portanto, tanto em países da América
Latina como do Caribe, um poderoso mito de construção das identidades nacionais.
Um dos problemas dessas “retóricas da mistura” (MARCON, 2005, p. 80), é que
sugerem o encontro de tipos puros ou fixos na formação das nações. Essa
característica é marcante nas obras de Freyre, pois cada grupo formador do Brasil
possui determinados traços que se complementam a outros.
Além de nominar as sociedades formadas pela mistura (Marcon, 2005), a
mestiçagem serve também para manter a dominação portuguesa, através da teoria
do luso-tropicalismo
15
. Pois, de acordo com a interpretação que Cláudia Castelo
(2000, p. 02) faz da teoria de Gilberto Freyre, “no mundo criado pelo português, as
afinidades de sentimento e de cultura sobrepunham-se às questões de soberania,
portanto, a comunidade luso-tropical continuaria a existir depois da independência
das colônias portuguesas”. Esse modo de estar no mundo específico dos
portugueses se refere a características como a plasticidade, a tolerância e a
fraternidade, que fizeram com que eles assimilassem outras culturas de forma não-
violenta e não-segregacionista.
Na interpretação de Almeida (2000, p. 191), os discursos sobre mestiçagem
evidenciam uma tendência de mascaramento de relações desiguais de poder e de
dominação. O autor adverte que antes de relacionar a miscigenação com o ideal de
tolerância que a ela está ligado, deve-se verificar que miscigenação é essa e como e
15
Conforme Almeida (2007), um dos aspectos mais interessantes das idéias elaboradas por Freyre a
respeito do Brasil é que elas foram utilizadas pelo regime colonial português, entre 1950 e 1970,
como forma de justificar a presença portuguesa na África já na época da descolonização. O regime
português usou o Brasil como exemplo de um colonialismo miscigenador, universalista e
humanista.
79
com quem ela é feita. Além disso, na América Latina um dos pontos centrais das
diferentes identidades nacionais foi “o compromisso perante o dilema da natureza
mista das populações versus as conotações brancas do progresso e da
modernidade”. O compromisso, ainda segundo o autor, foi a celebração da
mestiçagem. Nesse sentido, as elites latino-americanas adaptaram as teorias
racialistas desacentuando o determinismo biológico que previa a mistura como
degenerescência das raças. “Todavia, debaixo do discurso democrático da
mestiçagem, está latente o discurso hierárquico do branqueamento” (Almeida, 2000,
p. 09.). Almeida demonstra ainda que a miscigenação e a mestiçagem permanecem
como importantes “nós discursivos”, que contagiam de ambigüidade a materialização
das práticas emancipatórias de determinados grupos.
A partir de estudos sobre a Colômbia, Wade (2005) observa dois usos para o
conceito de mestiçagem. Um deles atuaria como uma espécie de ideologia dos
estados-nação no sentido de produzir um discurso inclusivo para os diferentes
grupos, mas que na prática se concretiza como um processo excludente para as
populações negras e indígenas. O outro está relacionado à crescente atenção que
atualmente nos Estados Unidos e na Europa tem sido dada aos processos de
mistura racial e cultural, os quais são denominados por diferentes termos, tais como:
hibridismo, sincretismo, mètissage, mèlange e crioulização. Para muitos autores,
freqüentemente relacionados aos estudos pós-coloniais
16
, os processo de
hibridização e de mistura possuem conotações positivas que enfatizam um potencial
subversivo. O autor adverte porém, que o uso subversivo desses termos não parece
servir para o caso da América Latina. Isso indica que teorias produzidas em
determinados contextos pós-coloniais não podem ser facilmente transferidas para
outros.
No entanto, apesar do comentário de Wade, é justamente o potencial
subversivo da mestiçagem que Hermano Vianna enfatiza em um artigo publicado no
jornal Folha de S. Paulo (VIANNA, 2004, p. 06):
16
Wade cita vários autores, entre eles: Homi Bhabha, Gloria Anzaldúa, Paul Gilroy e Stuart Hall, entre
outros.
80
Em todos os novos pensadores da mestiçagem pop ou acadêmica há a
ênfase na mistura não como produto, mas como processo – “o estado
permanente de crioulização” advogado por um herdeiro pós-moderno e
pró-identidade-fractal de Ortiz, o também cubano Antonio Benitez Rojo –, e
também no caráter não-sintético do mestiço (ou crioulo ou híbrido), no qual
as diferenças não se desfazem, mas enriquecem o todo por permanecerem
diferentes ocupando o mesmo espaço [...].
[...] Como já dizia, há tanto tempo, o autor “proibido” Gilberto Freyre: a
mestiçagem é um precário equilíbrio de antagonismos. Ou, mais
recentemente, Agostinho da Silva (...): “Essa vontade de ser sinceramente
todas as coisas...”. Há algo muito subversivo nessas palavras. Que a
subversão mestiça continue viva em outras praias, praias caribenhas! […].
Vianna ainda cita em seu artigo um seminário (Créolité and Creolization) e um
manifesto (“Elogio da Crioulidade”), ambos realizados na França, que comprovam o
quanto o “elogio da mistura” está em alta internacionalmente. Para o autor, portanto,
quando vários lugares do mundo voltam-se para a potencialidade criativa e
subversiva da mestiçagem, o Brasil que sempre foi mestiço, quer se
desmiscigenar
17
, ou seja, demonstrar as suas diferenças.
Há, ainda, uma outra interpretação acerca da mestiçagem que pode ser
encontrada em Hale (2002, p 524). O autor assevera que um discurso “oficial” sobre
a mestiçagem pode ser substituído por uma outra noção de “mestizaje frow bellow”,
recriada por feministas chicanas como Gloria Anzaldúa (2005) e Chela Sandoval.
Essa espécie de nova consciência mestiça é flexível. Caracteriza-se pelo movimento
e pelo pensamento divergente. Além disso, desenvolve uma atitude de tolerância em
relação às ambigüidades e às contradições e encontra-se sempre entre ou a
ultrapassar fronteiras
18
.
É possível observar portanto que de uma crítica contumaz feita por vários
estudiosos sobre a mestiçagem e seu papel assimilacionista e encobridor das
diferenças, alguns autores estão recuperando o conceito e concedendo a ele uma
significação aliada à positividade. Em outras palavras, o conceito de mestiçagem é
17
A respeito do processo de desmicigenação consultar na revista Veja, edição de domingo, 1º de
abril de 2007, o artigo: “Eles querem desmiscigenar o Brasil”, que trata de uma política “explosiva”
de desmicigenação desenvolvida pelo Estado que orientaria, inclusive, os critérios para a reforma
agrária no país.
18
É possível fazer um paralelo entre a categoria de “consciência mestiça” ou de “mestizaje frow
bellow”, com a idéia desenvolvida por Gilroy – especialmente na obra Entre Campos: nações,
cultura e o fascínio da raça (2007) – das identidades formadas na diáspora. De acordo com o
autor, o conceito de diáspora consegue problematizar a mecânica cultural e histórica do
pertencimento, demonstra a importância dos processos e das formas interculturais e transculturais,
além de abrir espaços para relações menos estáveis e mais ambivalentes.
81
interpretado como a representação do não-essencialismo das identidades, a
possibilidade de movimento e de não-fixação. Encontram-se em embate, nesse
caso, formas diferentes de utilização de determinados conceitos e teorias.
É o discurso que explica a formação do país por meio de um processo de
mestiçagem que os intelectuais partidários da retórica conservadora estão
retomando em seus argumentos contrários às políticas de ação afirmativa. O uso da
palavra mestiçagem possivelmente esteja associado a esse processo de re-
significação positivado aludido por Hale, porém essa transmutação no sentido do
termo não parece desfazer os aspectos assimilacionista e invibilizador apontados
por Martinez-Echazábal e Almeida, entre outros autores.
Na perspectiva dos partidários da retórica conservadora, a mestiçagem é
avaliada como um conjunto de práticas e valores que são internalizados pelas
pessoas de forma legítima e estão fortemente enraizados na cultura e na história
brasileira. A revisão que Fry (2005, p. 163) faz de seu artigo Feijoada e soul food,
publicado pela primeira vez em 1976, demonstra com nitidez esse posicionamento:
Creio que a grande diferença entre os autores que citei e meu próprio
trabalho mais recente, por um lado, e “Feijoada ...”, por outro, está na
maneira de lidar com a “mestiçagem” cultural e biológica no Brasil. Em
“Feijoada...”, a mistura e a ideologia do não-racialismo são tratados como
mentiras que “ocultam” uma realidade mais concreta. Nos trabalhos dos
autores que citei e nos meus trabalhos mais recentes, os ideais de mistura
e de não-racialismo são tão concretos e reais quanto os desejos de pureza
e racismo.
Na continuidade de seu pensamento, o autor conclui:
Os ideais de não-racialismo e da libertação do indivíduo de qualquer
determinação “racial”, que no Brasil se tornaram a ideologia oficial por
muitos anos e que formam a visão de mundo de muitos brasileiros até hoje,
são valores cada vez mais raros no mundo contemporâneo. Contra as
obsessões étnicas e raciais que têm produzido os mais terríveis conflitos e
a maior mortandade humana na história recente, vale a pena levar esses
ideais a sério (FRY, 2005, p. 165).
Por outro lado, os autores produtores da retórica progressista vêem na
ideologia da mestiçagem e no mito da democracia racial artifícios que o Estado
82
brasileiro e as elites dominantes, entre elas os intelectuais, desenvolveram para
tentar alcançar uma unidade nacional. Guimarães (2002) destaca a mestiçagem
como uma teoria de extrema importância na formação da ideologia nacional, que
possui um pressuposto racial. O autor avalia que a identidade nacional está se
movendo do paradigma de “nação mestiça”, advindo principalmente das idéias
freyrianas, para um outro internacionalista de “nação multirracial”. Para o sociólogo,
as ciências sociais brasileiras, mais do que negar a categoria raça, devem ser
capazes:
[...] de nomear as construções que tal idéia suscita, referindo-as pelo nome
que devem ter, ainda que não sejam polidos ou estejam interditos por
tabus: ‘raciais’ e ‘raça’, esses são os nomes que descrevem sua verdadeira
natureza social. Afinal a linguagem da ciência deve justamente ser capaz
de desvendar e revelar o que o senso comum escondeu (GUIMARÃES,
2002, p. 56).
No debate sobre as cotas revelam-se pressupostos teóricos antagônicos. Os
autores contrários à política afirmam que conceder direitos às pessoas negras é uma
forma de essencializar identidades. O reconhecimento de uma determinada
identidade em função da concessão de direitos implicaria, necessariamente, em um
processo de essencialização que pode levar a conseqüências desastrosas, senão
terríveis, como foi o caso do nazismo. A solução ideal é esquecer as identidades,
inclusive o conceito, substituindo-o pelo de mistura, pelo de hibridização, pelo de
diáspora, por aquilo que não tem definição ou por “todas as coisas”
19
. Ao invés do
reconhecimento de direitos levar à essencialização identitária, o que se observa é
que esses autores essencializam o conceito de identidade e desejam, inclusive,
livrar-se dele, desconsiderando desse modo o papel da memória, dos saberes
tradicionais, do sofrimento e das lutas como fontes que conferem aos grupos o aval
de pertencimento a uma cultura (LEITE, 2007, p 06). Nesse caso, não haveria
sujeitos de direito para as políticas de ação afirmativa e a polêmica chegaria a um
final.
Com relação ao uso da categoria raça, os pensadores contrários à
implementação das cotas acusaram algumas universidades de utilizarem métodos
inadequados para evitar fraudes no processo seletivo dos candidatos O fato de
19
A expressão é utilizada por Hermano Vianna no artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, cuja
citação encontra-se na página 80 deste capítulo.
83
serem tiradas fotos e feitas entrevistas como formas de comprovação da identidade
étnico-racial dos pretendentes à reserva de vagas é visto por muitos pesquisadores
como a reedição das teorias racialistas do final do século XIX, que comprovavam a
raça das pessoas por processos tipológicos de classificação racial através da
seleção de determinadas características, como índice cefálico, cor da pele e
capacidade craniana, entre outros procedimentos
20
.
Os defensores da política de cotas afirmam que o termo raça não é usado no
sentido formulado pelos teóricos do século XIX, mas sim como uma categoria
analítica indispensável na revelação das discriminações e das desigualdades
existentes no país. A pele de cor negra nesse sentido deve ser lida como um signo
diacrítico que demonstra o pertencimento a um determinado grupo social
subalternizado em função de uma história de conquista, colonização e escravização.
Ser negro é ser, portanto, marcado racialmente por “uma inferioridade
historicamente herdada e cuidadosamente ocultada no fundo do baú dos melhores
famílias” (SEGATO, 2005, p. 278). O critério racial aplicado às políticas de ação
afirmativa estaria estritamente relacionado à cor e ao fenótipo, como forma de dar
suporte a tais políticas e não como um fundamento racializante. A história brasileira,
segundo Segato, demonstra que certos signos fenotípicos remetem a significados
relacionados à exclusão, à guerra e ao sofrimento. O impacto visual desses signos,
portanto, está profundamente influenciado por esse processo histórico
21
.
3.4 AS NARRATIVAS DA NAÇÃO NO BRASIL
A questão racial, a mestiçagem e o branqueamento são elementos centrais
para a reflexão sobre a constituição do Brasil enquanto nação, pois formam um
conjunto de representações que embasaram a construção da identidade nacional.
A importância de doutrinas culturais e do uso de linguagens simbólicas para a
criação das nações modernas é um ponto central na análise que Smith (1997) faz
em seu estudo sobre a formação das identidades nacionais. Os mitos e os símbolos
criados pelos diferentes nacionalismos incluem sentimentos e linguagens específicos
20
Essa questão será detidamente analisada no próximo capítulo.
21
A análise a respeito desse ponto será retomada no quinto capítulo.
84
que tornam a identidade nacional uma das mais fortes identidades coletivas
contemporâneas. Nesse sentido, a identidade nacional tem por função socializar os
membros de uma nação como nacionais e como cidadãos:
À nação é também exigido que estabeleça um elo social entre indivíduos e
classes, através do fornecimento de todo um repertório de tradições,
símbolos e valores partilhados. Através da utilização dos símbolos –
bandeiras, moedas, hinos, uniformes, monumentos e cerimônias – os
membros recordam a sua herança comum e as suas características
culturais, sentindo-se fortalecidos e exaltados pela sensação de identidade
e pertenças comuns. A nação torna-se uma ‘obra de fé’, capaz de
ultrapassar obstáculos e adversidades (SMITH, 1997, p. 31).
No processo de formação das nações modernas, muitos direitos civis e de
minorias étnicas foram menosprezados. Do mesmo modo, a busca de um ideal de
nação provocou muita confusão, instabilidade, discórdia e violências em todo o
mundo. Certamente, alguns valores simbólicos da nacionalidade brasileira, como a
mestiçagem, a sociedade não-conflitiva e solidária, ainda fortemente arraigados,
estão sendo questionados quando se coloca em pauta a discussão sobre as ações
afirmativas.
O procedimento de construção da identidade nacional brasileira é muito
semelhante ao que ocorreu na América Latina em geral. Um ponto em comum entre
as narrativas da nacionalidade latino-americanas é a recusa do passado colonial. O
não reconhecimento do passado fez com que se institucionalizasse também uma
desmemória em relação aos grupos étnico-raciais formadores dessas nações. As
elites latino-americanas viveram o impasse de representarem-se como mestiças,
mas interiormente considerarem-se brancas.
A noção de nação no Brasil orienta-se a partir de um ideal para o futuro e não
à romantização do passado. A nação brasileira, principalmente a partir de 1930, tem
como objetivo comum a construção de um futuro próspero – “O Brasil é o país do
futuro”. O passado, nesse caso, deveria ser preferencialmente esquecido ou pelo
menos reinventado. Na interpretação de Costa (2002b), é o desejo de justapor a
força do progresso a um passado opressor e não a ênfase em uma suposta
ancestralidade comum que marcam a nação brasileira. Mesmo antes de 1930, a
chance de formação de uma nação moderna no Brasil já estava no futuro, pois,
através de um permanente processo de miscigenação ocorreria o branqueamento da
85
população e o passado povoado de negros, indígenas e mestiços poderia ser
finalmente esquecido. Conforme comprova Seyferth (1996), a miscigenação foi um
assunto privilegiado do discurso nacionalista brasileiro desde 1850 e era vista como
um dos mecanismos de formação da nação desde a colônia, bem como a base para
uma futura “raça” ou tipo nacional.
Um dos mitos presentes em nossa narrativa das origens nacionais, segundo
Guimarães (2002) e José Murilo Carvalho (1990), é a de paraíso original. Dentro
dessa mitologia, os índios, por exemplo, não representam uma civilização inimiga,
mas se encontram em um estágio pré-civilizado. Eles não são uma nação nem um
grupo étnico, pois o descobrimento é representado pelos portugueses chegando em
uma terra nova “virgem de nacionalidades” (GUIMARÃES, 2002, p. 114). Ainda de
acordo com esses autores, o descobrimento é representado através da “integração e
da comunhão social de todos na fé católica”. É preciso atentar para o aspecto
harmônico de tais representações que valorizam a integração, a ordem e o
equilíbrio.
Azevedo (2004a) também faz referência a essa construção do Brasil como
paraíso, nesse caso, racial. Ela assegura que a justificativa política para a vinda de
imigrantes é de que provocaria o equilíbrio entre o contingente de população branco
e negro no Brasil. Era a hora, segundo alguns pensadores, entre eles muitos
abolicionistas, de se encarar as relações raciais de forma mais otimista. As imagens
que surgem dessa previsão são a de um país povoado predominantemente por
descendentes de europeus, onde a miscigenação embranquecedora seguiria
ocorrendo no intuito de formar uma espécie de paraíso racial. Viajantes estrangeiros
que passaram pelo país e intelectuais se encarregaram de construir uma visão
paradisíaca do Brasil, mostrando que aqui as relações raciais eram isentas de
preconceitos e não havia conflito racial. Essa imagem ajudava também na
propaganda do país na Europa, direcionadas àqueles “brancos” que desejassem um
lugar tranqüilo para emigrar. Conforme sintetiza a autora: “A imagem de paraíso
racial brasileiro aparece em vários escritos abolicionistas, embora, conforme
veremos adiante, isto seja colocado mais como uma possibilidade futura, uma vez
alcançada a abolição” (AZEVEDO, 2004, p. 65). É importante observar que essa
imagem de “paraíso racial” está relacionada à importação de imigrantes brancos,
com o objetivo de provocar a equiparação no número de brancos, negros e
86
mestiços. Pois antes disso o sentimento predominante era o “medo branco” de que
uma “onda negra” engolisse o país, mais especificamente nesse caso a cidade de
São Paulo.
Foi tendo como componente fundamental do imaginário nacional o Brasil
como um paraíso terrestre, avesso a conflitos e comungando coletivamente na fé
católica, que a partir de 1930 o país ganharia um povo e construiria para si uma
tradição. Enquanto havia um número maior de negros e mestiços na população,
devido à pouca imigração européia, o país era visto pelas elites como uma nação
sem povo e sem cultura.
Quando a imigração européia tornou-se mais intensa – nas últimas décadas
do século XIX e nas primeiras do século XX – ainda predominava o medo de não se
alcançar uma unidade nacional, pois essa só seria obtida por meio da construção de
um tipo brasileiro. Tal elemento, segundo Seyferth (1996), seria conseguido por meio
do clareamento da pele do brasileiro, visto que já havia cultura, língua e religião. Até
mesmo os imigrantes alemães, inicialmente vistos como ideais, passaram a ser
considerados inconvenientes devido a sua dificuldade de integração. Esses temores,
como demonstram Guimarães (2002) e Seyferth (1996) estão baseados em crenças
raciais. Seria somente na década de 1930 que a ideologia da mestiçagem –
anteriormente já formulada – adquiriria seu conteúdo cultural e os problemas
relativos à constituição de um povo brasileiro seriam, pelo menos naquele momento,
solucionados. Por meio da teoria freyriana da democracia racial e sua conseqüente
defesa da mestiçagem, da incorporação política desse ideário na política varguista e
nas artes por artistas e escritores modernistas e regionalistas, solucionaria-se no
Brasil a questão nacional, mantendo em sua origem uma forte preocupação com a
questão racial.
A partir desse período histórico, o povo brasileiro é definido não como branco,
negro ou indígena. Nem mesmo como uma raça, mas como um “povo mestiço”
22
.
22
Freyre se referia ao brasileiro como uma metarraça: “Conceito – o de metarraça – a que se liga o
de morenidade, como resposta brasileira – acima de ideologismos sectários ou de racismos
arcaicos – a branquitudes, negritudes e amerlitudes. O uso cada dia mais generalizado, no Brasil,
da palavra moreno e a valorização cada dia maior, entre os brasileiros, da condição ou da
aparência também morena, que o diga. Nossos mais expressivos exemplos atuais de beleza de
mulher são biologicamente morenos como a tão encantadora Sônia Braga, ou ecologicamente
amorenados ou bronzeados pelo sol do trópico, como as louras Vera Fischer e Bruna Lombardi.
Qual loura brasileira não se faz amorenar pelos sóis das Copacabanas?” [...]. “Ao brasileiro típico
de hoje [...] já não preocupa identificar [...] sua origem ou situação racial: ele é um tipo nacional de
87
Nenhum desses grupos formadores do Brasil existe sem estar assentado em um
processo de mestiçagem. Conforme Guimarães (2002, p. 121):
[..] Os negros e índios, na política republicana, são apropriados como
objetos culturais, símbolos e marcos fundadores de uma civilização
brasileira, mas têm negado o direito a uma existência singular plena como
membros de grupos étnicos. Estes são marcos da fronteira da civilização
brasileira, remanescentes dos antepassados que criaram a nação, restos e
vestígios das origens.
Guimarães evidencia que os negros e os índios não tiveram direito a uma
“existência singular” no processo de constituição da nação brasileira. No mesmo
sentido, Katherine Verdery (2003), ao tratar da relação entre etnicidade,
nacionalismo, formação de Estados e homogeneização cultural, exemplifica
exatamente esse procedimento de exclusão que os Estados nacionais realizaram
com o objetivo de se constituírem enquanto tais. A autora, a partir da análise de
Brackette Willians (Willians apud Verdery, 2003), mostra que a construção de mitos
de homogeneidade é crucial na constituição e manutenção dos Estados-nação
modernos. No caso brasileiro, a idéia de mestiçagem foi essencial para a edificação
da imagem de um povo brasileiro. No entanto, como demonstram as autoras,
institucionalizar uma “comunalidade” requer uma “pressão implacável” (Verdery,
2003, p. 60) para atingir a homogeneidade, o que leva necessariamente à exclusão.
É essa política de homogeneização que cria a nação:
[...] constituída por todos aqueles que o Estado deve governar, pois todos
eles aparentemente ‘têm algo em comum’. Os súbditos do Estado são
freqüentemente incentivados a terem ‘em comum’ uma cultura e/ou uma
origem ‘étnica’ partilhadas para além de seu governo (VERDERY, 2003, p
59).
Verdery chama atenção para o fato de que a intensidade dos esforços que
visam a homogeneização varia de um Estado para outro, dependendo do poder
exercido pelas elites e da resistência por elas encontrada. É interessante verificar
homem metarracial [...] seria esforço sociologicamente insignificante e falsamente científico limitar
[...] pigmentações caracteristicamente raciais a duas ou três ou quatro, e estas de todo arbitrárias”
(FREYRE apud HOFBAUER, 2006, p. 252).
88
que até hoje no Brasil esse esforço de homogeneização é recorrente, embora não
seja mais hegemônico.
Ainda segundo a autora, com o advento do multiculturalismo um outro
processo encontra-se em curso. Agora a ênfase não se encontra mais na
uniformidade cultural, mas na diferença. Isso provocaria o fim de projetos
homogeneizadores, bem como uma diminuição dos símbolos nacionais. O
desenvolvimento mais radical dessa política da diferença pode ser observado nos
“novos essencialismos”, conforme acontece atualmente nos Estados Unidos. Nesse
caso, as identidades das pessoas se tornam praticamente irrevogáveis e
imperativas. No entendimento de Verdery esse é o maior problema criado pela
ênfase exagerada nas políticas de identidade.
Porém, conforme questiona a antropóloga, mesmo que o essencialismo seja
muitas vezes visto como mal orientado, levando em consideração a forma que essas
políticas assumiram em alguns locais, fica claro que tais políticas também podem
conferir mais poder a alguns grupos historicamente desfavorecidos.
É preciso acrescentar ainda que a análise do caso brasileiro deve ater-se ao
processo específico de formação do Estado, que não é igual ao norte-americano. Ou
seja, é necessário observar as diferenças existentes nas formações de cada Estado
e não generalizá-las. No Brasil, o mito da homogeneidade chegou a tal ponto que
não era admissível fazer referências a grupos sociais distintos. Para melhor
analisarmos esse ponto é preciso, seguindo sugestão da autora, atentar para a
relação da etnicidade com a raça.
O modelo brasileiro mostra como a referência aos negros se aliou à questão
da raça a partir do século XIX. E é possível verificar que até hoje essa conexão
ainda permanece. Como a ideologia nacional brasileira se diz a-racialista, a própria
referência a determinado grupo como negro sinaliza sua racialização. Esse grupo
não é visto como um grupo étnico ou como um grupo que sofre um processo de
discriminação, mas como uma raça. Em outras palavras, diferentemente do que
ocorre com os índios, referir-se a negros no Brasil é automaticamente aludir à raça.
Talvez esse fenômeno possa ser explicado, como demonstra Verdery, pela
conjunção que se operou no Brasil, assim como em outros lugares, da etnicidade
com a raça.
89
O que está acontecendo no Brasil é a perda de consenso de uma visão
praticamente hegemônica a respeito da sociedade brasileira – como não-
preconceituosa e não-discriminatória –, para outra que identifica profundas
desigualdades, não apenas decorrentes de diferenças de classe mas também em
função de pertencimentos distintos, sejam eles étnicos, culturais e/ou sociais. O que
se pretende com essa alteração de perspectiva analítica, além das transformações
teóricas logicamente decorrentes, é expor as conseqüências práticas desse tipo de
pensamento, que ao homogeneizar e abafar as diferenças resultou na não-
identificação de determinados setores da população historicamente excluídos de
direitos básicos de cidadania.
Verdery adverte que as teorias também participam de todos esses artifícios que
relacionam etnicidade, nacionalismo e homogeneização. No Brasil do século XIX, as
teorias produziram raças e logo depois embasaram a necessidade de
branqueamento da população. Na década de 1930 elas formaram a imagem de um
país mestiço sem conflitos étnicos. Contemporaneamente, encontram-se em disputa
nas ciências sociais brasileiras pelos menos duas formas de interpretação que
invocam visões antagônicas de nação. A retórica conservadora que aposta nos
argumentos da mestiçagem, da miscigenação e da mistura, da cientificidade e da
possibilidade do conflito, no caso da aplicação de políticas de ação afirmativa, como
forma de sustentar a falta de necessidade de políticas públicas para determinados
grupos. E a retórica progressista, que parte da interpretação de que o Brasil é um
país multicultural e que determinados grupos foram excluídos dentro de um processo
que os Estados nacionais realizaram com o objetivo de se constituírem enquanto
tais.
Há pelo menos duas representações distintas sobre o processo de formação
da nação brasileira se levarmos em consideração os argumentos da retórica
conservadora e da retórica progressista. No primeiro caso, autores como Peter Fry
acreditam que o viés racial do modelo de nacionalidade foi rompido quando Gilberto
Freyre, em Casa Grande e Senzala, mostra a colonização brasileira como um
“empreendimento notável” e a mistura de raças como um processo de síntese
original, resultante da combinação das melhores características dos povos
formadores do Brasil: índios, portugueses e negros. Segundo Fry, Freyre
proporciona uma outra leitura do país, na qual a “brasilidade mestiça” é algo
90
extremamente positivo. A sociedade nacional torna-se o resultado da hibridação
cultural. No segundo caso, autores como Antônio Sérgio Guimarães advogam que
Freyre rompe com a idéia biologicista de raça, mas não com o conceito de raça, que
a partir desse momento torna-se cultural. Em outras palavras, as características
biológicas imputadas às três raças formadoras da nação transmutam-se em traços
culturais que, da mesma forma, as hierarquizam, conforme aponta também Martinez-
Echazábal.
A retórica conservadora tem como uma de suas matrizes mais importantes,
no que se refere à formação da nação no Brasil, a idéia freyriana do
assimilacionismo português. A partir dessa interpretação, atualmente retomada por
Fry (2005), no Brasil assim como em outras colônias portuguesas na África, houve
um processo de assimilação dos diferentes grupos por parte dos portugueses, ao
contrário da colonização britânica. Para Fry (2005, p. 46), há uma tensão
permanente presente no empreendimento colonial “(...) entre os ideais de
‘assimilação’ e ‘segregação’. Classicamente, o dogma colonial português favorecia o
primeiro e o dogma inglês, o segundo”.
A semelhança da colonização portuguesa na África e no Brasil pode ser
observada, segundo Fry, na convivência entre os diferentes grupos sociais nos
mesmos espaços. Assim o autor se refere à chegada a um bar em Moçambique em
1985:
Quando paramos na Vila Pery (atual Chimoio) para lanchar, ficamos ainda
mais surpresos ao constatar que as fronteiras entre as próprias pessoas
também eram imprecisas. Africanos, europeus e mestiços encontravam-se
no mesmo bar em aparente fraternidade (FRY, 2005, p. 48).
É possível concluir, a partir da análise do antropólogo, que os portugueses
utilizaram um modo de colonizar que – apesar de incentivar a assimilação por meio
de medidas concretas, respeitava os valores da cultura local – contribuiu na
formação de nações que até hoje preservam o ideal de uma convivência fraterna.
Tais matrizes interpretativas sobre a constituição da nação brasileira auxiliam
na criação de um imaginário em que a formação do país aparece como um processo
não-conflitivo, no qual, como informa Almeida, as desigualdades são reinterpretadas
de maneira positiva. Segundo os autores solidários a esse pensamento, as ações
afirmativas afetariam diretamente esses princípios de convivência fraterna e
91
provocariam conflitos entre os diferentes grupos étnico-raciais, fato que para eles
anteriormente não ocorria.
A análise de Almeida (2000, p. 197) a respeito da colonização portuguesa no
Brasil difere substancialmente da de Fry. O antropólogo português assinala que:
a etnogênese brasileira e portuguesa fazem-se em termos de uma
reinterpretação positiva de processo de profunda desigualdade através da
representação neutral de uma idéia de miscigenação, separada, de forma
forçada, das relações socioeconômicas racializadas.
Após essa incursão aos relevantes topoi que permeiam as ciências sociais
brasileiras, no próximo capítulo tratar-se-á especificamente da retórica conservadora
e dos argumentos elaborados pelos intelectuais partidários desse tipo de retórica a
respeito das ações afirmativas. No capítulo seguinte, será realizada a análise das
contrapartidas das teses da retórica conservadora, as antíteses progressistas em
relação às cotas para estudantes negros no Brasil.
92
4 A RETÓRICA CONSERVADORA NO PENSAMENTO ACADÊMICO
BRASILEIRO EM RELAÇÃO ÀS POLÍTICAS DE AÇÃO AFIRMATIVA
As políticas de ação afirmativa, especialmente as cotas para estudantes
negros no ensino superior público brasileiro, geraram uma explícita bipolarização do
campo acadêmico em relação ao assunto. A polêmica se tornou ainda mais intensa
a partir de 2006, com a perspectiva de votação do Projeto de Lei (PL) 73/99, que
prevê cotas para estudantes oriundos de escolas públicas, negros e indígenas nas
universidades públicas federais, além da possibilidade de aprovação do Estatuto da
Igualdade Racial, proposto pelo senador Paulo Paim. Foram entregues, inclusive,
dois manifestos de ambas as partes para os presidentes da Câmara dos Deputados
e do Senado Federal.
No caso desta pesquisa, os argumentos dos intelectuais brasileiros a respeito
do tema serão divididos em dois tipos, de acordo com a tipologia de Hirschman. Os
intelectuais contrários às cotas tendem a utilizar uma retórica, que à luz dessa
teorização, será classificada como conservadora e os que apresentam uma posição
favorável ao estabelecimento dessas políticas se apóiam em uma retórica
denominada progressista.
Neste capítulo serão analisados somente os argumentos do tipo conservador
e procurar-se-á evidenciar como determinadas características desse tipo de retórica
são utilizadas no debate sobre a implementação da política de cotas nas
universidades brasileiras. É necessário esclarecer que não se pretende realizar um
inventário sobre a história do pensamento conservador
1
, tampouco sobre o
1
Aqui está sendo utilizada a denominação “retórica conservadora” justamente porque não é interesse
realizar um estudo aprofundado do pensamento conservador. Esse objetivo seria demasiado amplo
para o escopo desta tese. Além disso, a análise refere-se aos argumentos dos intelectuais
relacionados especificamente às políticas de ação afirmativa. No entanto, há determinadas
características do pensamento conservador que se fazem presentes de forma marcante na “retórica
conservadora”. De acordo com Crowter (1996, p. 132), um dos principais traços do pensamento
conservador é sua aversão à mudança. Segundo o autor: “A aversão instintiva à mudança e a
correspondente ligação às coisas tais como elas são, constituem sentimentos dos quais poucos
seres humanos já estiveram totalmente isentos. E sentimentos foi tudo que o conservadorismo
reuniu, durante boa parte da história humana”. Karl Manheim (1963) em seu estudo sobre o
pensamento conservador também destaca algumas características que fazem parte da “retórica
conservadora”. Para Garcia (1993) um dos principais pressupostos do trabalho de Mannheim é de
que as elaborações teóricas possuem ligações com interesses de poder e com determinadas
situações sociais. Os tipos de pensamentos ou “estilos de pensamento”, na designação de
Mannheim, também fazem parte dos processos históricos. Para ele, não há como não estabelecer
93
pensamento social brasileiro. O que importa aqui é delimitar algumas características
da retórica conservadora desenvolvida pelos intelectuais contrários às ações
afirmativas, no momento em que o Estado brasileiro adota uma visão multicultural
para o país e que grupos sociais até então “invisíveis”
para a sociedade requerem
alguns de seus direitos.
4.1 A RETÓRICA CONSERVADORA
Um dos mais importantes estudos sobre o desenvolvimento da retórica
conservadora foi realizado por Hirschman (1992). O autor examinou como os
argumentos caracterizados como reacionários foram elaborados de forma muito
semelhante em diferentes períodos históricos e em relação a três momentos em que
ocorreram avanços avaliados como progressistas. A primeira reação conservadora
foi o movimento que se opôs à Revolução Francesa. A segunda resposta reacionária
viria com a oposição ao sufrágio universal. E, por fim, na seqüência indicada por
Hirschman, encontra-se a crítica reacionária ao Welfare State. O objetivo do seu
estudo foi delinear os tipos de argumentos utilizados por aqueles que de alguma
conexões entre a existência dos grupos sociais e determinados “estilos de pensamento”. Nesse
sentido, os intelectuais, por realizarem estudos sobre temas determinados, não estão isentos
dessas influências, já que não se constituem em uma classe ou em um estrato que “flutua
livremente” ou que se encontra acima das demais classes. Eles também estão condicionados
socialmente. Uma das pressuposições básicas no raciocínio de Mannheim é a impossibilidade de
fazer uma distinção completa entre política e filosofia, considerando apenas a primeira como
socialmente determinada. Assim como o pensamento político possui fundamentos filosóficos, na
base de qualquer filosofia também estão implícitos certos pontos de vista políticos e formas de ver o
mundo. O autor não quer dizer com isso que todo o intelectual é conscientemente “um
propagandista político” (MANNHEIM, 1963, p. 95). O filósofo pode, inclusive, ignorar as implicações
políticas de suas teorias, mas isso não significa, entretanto, que elas não tenham conseqüências
políticas. Um outro ponto importante na análise do sociólogo alemão, que auxilia no entendimento
das opiniões dos intelectuais brasileiros a respeito das ações afirmativas, é que para ele uma “ação
conservadora” (Mannheim, 1963,. p. 107) depende de um “conjunto concreto de circunstâncias”
(MANNHEIM, 1963, p. 95). O aparecimento de um estilo de pensamento conservador, portanto,
está diretamente relacionado a acontecimentos concretos. Ainda segundo Mannheim (1963, p.
108), não se podem fazer “deduciones a priori de los principios del conservadurismo”, justamente
porque eles dependem dos indivíduos que colocam em prática esses princípios e os incorporam em
suas ações, bem como de condições históricas e conjunturais específicas.
De acordo com Bonazzi (1986, p. 242), o termo conservadorismo na ciência política designa idéias
que visam manter o sistema político vigente, apresentando-se como contrapartida às forças
inovadoras. Ainda segundo o autor, o conservadorismo deve ser visto sempre em contrapartida
com um outro termo, que Bonazzzi denomina de progressismo. Nesse caso o conservadorismo
existiria justamente em função de uma posição progressista. Daí a tendência dos conservadores
em não sistematizarem o próprio pensamento, visto que esse é alternativo ao progressismo e deve
acompanhar de perto essa tendência.
94
forma desejavam se opor e, inclusive, derrubar políticas e/ou medidas de caráter
progressista, reformista ou revolucionário.
O principal expoente da posição contra-revolucionária foi Edmund Burke com
seu livro escrito em 1790, Reflexões sobre a Revolução na França. O discurso de
Burke foi tão emblemático que estabeleceu as bases para a posição conservadora
moderna, sendo esse autor considerado um dos mais importantes representantes do
pensamento conservador. Enquanto essa reação à Revolução Francesa e à
Declaração dos Direitos do Homem foi conscientemente contra-revolucionária, o
segundo movimento reacionário que se opôs ao sufrágio universal não era tão
consciente de seu caráter contra-revolucionário ou contra-reformista, conforme a
visão de Hirschman. Mesmo assim, do final do século XIX até a Primeira Guerra
Mundial e mesmo depois dela, houve uma onda reacionária representada por uma
vasta literatura que incorporava diversas áreas: a filosofia, a psicologia e a política
entre outras. Tal literatura precavia contra os perigos que ameaçavam as sociedades
como resultados do processo de democratização (Hirschman, 1989). As críticas
contemporâneas ao Welfare State formam a última onda conservadora estudada por
Hirschman.
Por meio desses estudos, Hirschman questiona a trajetória de
“desenvolvimento da cidadania” no Ocidente, elaborada por T. H. Marshall. Esse
último distingue três dimensões da cidadania que foram alcançadas pelas
sociedades humanas “mais ilustradas” (Hirschman, 1992, p. 11). De acordo com o
esquema de Marshall, em primeiro lugar teriam ocorrido, no século XVIII, as batalhas
para o estabelecimento da cidadania civil. Durante o século XIX foram conquistados
os aspectos políticos relativos à cidadania. Finalmente, no século XX, com a
ascensão do Welfare State, as dimensões sociais e econômicas da cidadania seriam
reconhecidas. Hirschman coloca em dúvida justamente o fato de que essas
tentativas de alcançar a cidadania não tenham sofrido contra-investidas que
levaram, inclusive, a recuos de programas progressistas. O autor constata que o
desenvolvimento da cidadania não foi alcançado por meio de um progresso “suave e
constante”, mas de forma ambivalente, permeada de conflitos e de contra-reações.
A polêmica instalada no campo acadêmico brasileiro a respeito do tema das
cotas raciais – demarcando uma divisão entre opositores e defensores – e a
semelhança dos argumentos desenvolvidos em cada um desses pólos com aqueles
95
encontrados no estudo efetuado por Hirschman justificam a utilização da proposta
analítica do cientista político. Com isso, deseja-se demonstrar que no campo
acadêmico brasileiro está presente uma potente retórica conservadora que se opõe
às ações afirmativas, mais especificamente à política de cotas para estudantes
negros no ensino superior. O autor delimita três teses da retórica conservadora que
foram elaboradas por intelectuais, muitos deles cientistas sociais, nessas diferentes
épocas: a tese da perversidade, a tese da futilidade e a tese da ameaça. O objetivo
deste capítulo é analisar os argumentos elaborados por intelectuais brasileiros que
se opõem à política de cotas, a partir da tipologia criada por Hirschman. No entanto,
antes disso é necessário verificar como cada uma dessas teses foi usada nos três
momentos demarcados pelo autor de reação a políticas progressistas, pois dessa
maneira será possível estabelecer um paralelo com a contra-reação contemporânea
no Brasil ao estabelecimento de políticas de ação afirmativa. É preciso ainda levar
em consideração um outro ponto para o qual Hirschman chama a atenção, que é a
presença de certas “invariantes” que permanecem na argumentação da retórica
conservadora, apesar da distância temporal que as separa.
4.1.1 A tese da perversidade relacionada aos três momentos de reação às
políticas progressistas e/ou reformistas
A tese da perversidade consiste na afirmação de que a ação desenvolvida
produzirá o exato oposto do objetivo que se almeja alcançar. Essa mesma forma de
raciocínio se repete nos três momentos de reação a medidas revolucionárias e/ou
progressistas analisadas por Hirschman.
Revolução Francesa
O discurso que se opunha à revolução se recusava a admitir qualquer
aspecto positivo como conseqüência do processo revolucionário. Na previsão de
Edmund Burke, as tentativas de se alcançar a liberdade foram “por meio de uma
cadeia de conseqüências não-intencionais” (Burke apud Hirschman, 1992, p. 18)
transformadas em tirania. De acordo com a análise de Hirschman (1989, 1992), a
formulação do “efeito perverso” apresenta uma procedência intelectual: o
96
pensamento iluminista escocês que enfatiza os efeitos não-intencionais das ações
humanas. No caso da Revolução Francesa, esse pensamento foi retomado, pois
quando a luta pela liberdade transformou-se em terror, os críticos da revolução
observaram que havia uma assimetria entre as intenções proclamadas e as
conseqüências sociais. Uma das características básicas da tese da perversidade é
de que os homens estão condenados ao ridículo, pois ao dedicarem-se a melhorar o
mundo, obtêm exatamente o contrário.
Sufrágio Universal
Em relação a essa medida, os argumentos se repetiram com raciocínios
idênticos. Nesse caso, as ciências sociais emergentes na época encarregaram-se de
prever o desfecho perverso da ampliação do direito ao voto. Conforme sugere
Hirschman (1992, p. 26), o clima intelectual da época em relação às massas era de
profundo desprezo, que depois se transformou em temor
2
. A participação das
massas na política, por meio do sufrágio universal, pareceu às elites européias do
século XIX uma idéia “aberrante e potencialmente perigosa”. Quanto mais o direito
ao sufrágio universal se estendia pelo continente europeu, mais vozes se
levantavam contra ele. Se, até a metade do século XIX o avanço das políticas
democráticas foi recebido com ceticismo e hostilidade, no final desse mesmo século
esse clima foi reforçado por meio das teorias científicas que demonstravam o caráter
irracional do comportamento humano. Uma das críticas mais influentes foi feita por
Gustave Le Bon na sua obra Psicologia das Multidões. O livro de Le Bon está
baseado em uma teoria que separa o indivíduo da multidão. De acordo com essa
acepção, o indivíduo seria portador de racionalidade, enquanto que a multidão
representa o irracional, aquilo que pode ser facilmente manipulável. A teoria
desenvolvida por Le Bon teve implicações políticas evidentes em um contexto em
2
Em relação à incapacidade de participação política das massas e, conseqüentemente, de decidirem
os rumos de uma determinada nação, é oportuno citar a avaliação que o cientista político Bolívar
Lamounier fez de uma pesquisa realizada pelo Instituto Datafolha em julho de 2006 a respeito das
cotas para estudantes negros. De acordo com os resultados da pesquisa, à medida que cresce a
grau de escolaridade dos entrevistados aumenta a rejeição ao sistema de cotas. Lamounier
interpretou o resultado a partir da idéia de que as pessoas mais escolarizadas conseguem avaliar
melhor questões que exigem "uma reflexão conceitual" e sabem que a adoção de cotas pode trazer
implicações graves para o futuro do país. A mesma falta da capacidade das massas (os menos
escolarizados) é constatada pelo cientista político, demonstrando que é uma elite intelectualizada,
que possui condições de tomar decisões e fazer mensurações corretas acerca da realidade (Folha
de S. Paulo, 23 de julho de 2006).
97
que as medidas democráticas, especialmente o sufrágio universal, estavam se
expandindo para um número maior de países. Na visão dos autores analisados por
Hirschman (1995, p. 29), novamente os ingênuos que desejam melhorar o mundo se
dão mal e acabam por piorá-lo. Podem ser qualificados na denominação de
Hirschman de “pioradores do mundo”.
Welfare State
O ataque às políticas econômicas do moderno Welfare Sate consistem na
terceira fase reacionária abordada por Hirschman. Repete-se a tese do efeito
perverso de que qualquer tentativa humana no sentido de melhorar ou aperfeiçoar a
sociedade só faz as coisas piorarem. Segundo a análise de Hirschman, um dos
primeiros ataques à política de bem-estar social foi escrito por Jay W. Forrester.
Nesse artigo, o autor adverte aos leitores que é muito difícil entender sociedade,
visto que ela é formada por sistemas altamente complexos. Por esse motivo, só os
especialistas estariam aptos a compreendê-la. As conclusões do estudo de Forrester
revelam, então, que alguns programas causam o efeito inverso do desejado. Assim o
autor se manifesta em relação às políticas urbanas de habitação e criação de
empregos: “[essas políticas] vão do ineficaz ao nocivo, se analisadas do ponto de
vista de seus efeitos sobre a saúde econômica das cidades ou pelos seus efeitos a
longo prazo sobre a população de baixa renda” (FORRESTER apud HIRSCHMAN,
1995, p. 34). Nesse caso, previa-se que os pobres iriam tornar-se preguiçosos pela
facilidade proporcionada por determinadas medidas, como o seguro-desemprego,
por exemplo.
4.1.2 A tese da futilidade relacionada aos três momentos de reação às políticas
progressistas e/ou reformistas
Esse segundo argumento conservador difere do anterior em um ponto e
assemelha-se em outro. De acordo com Hirschman (1992), ele não tem o caráter
ardente do primeiro. Ao contrário, sua característica é a frieza. Em comum com a
tese da perversidade é a sua simplicidade. A tese da futilidade ao invés de prever
resultados contrários àqueles que se procura alcançar, diz que a tentativa de
98
mudança não resultará em nada. A lei do movimento é substituída por uma lei do
não-movimento. Essa lei está bem representada nas palavras do Barão de
Lampedusa em seu romance Leopardo (1959), citadas por Hirschman (1989, p.
106): “tudo tem que mudar aqui para continuar o mesmo”.
Revolução Francesa:
No caso da Revolução Francesa, seguindo o caminho analítico proposto por
Hirschman, o argumento da futilidade foi posterior ao da perversidade. Foi
necessário o desaparecimento da geração revolucionária para que os efeitos
“catastróficos” da revolução pudessem ser esquecidos. Um dos precursores na
apresentação da tese da futilidade com relação à Revolução Francesa foi
Tocqueville. O autor apresentou uma tese em seu livro O antigo regime e a
revolução, mostrando que a revolução havia provocado menos rupturas do que se
esperava com o antigo regime. Apoiado em pesquisas de arquivo, Tocqueville
demonstrou que algumas conquistas bastante alardeadas da revolução já existiam
antes de sua deflagração. Na concepção desse autor francês, as mudanças
introduzidas pela revolução foram “cosméticas”, visto que não modificaram a
essência da sociedade.
Sufrágio Universal
A ampliação de direito ao voto e à participação das massas no sistema
político ocorreu de maneira gradual e inicialmente pouco eficaz nos países
europeus. Alguns analistas previram um desastre total para a participação das
massas, enquanto outros, mais “frios”, optaram pela tese da futilidade,
ridicularizando as ilusões dos progressistas acerca das supostas mudanças
benéficas advindas do sufrágio universal. A fim de defender essa tese, Gaetano
Mosca e Vilfredo Pareto elaboraram máximas científicas de que toda a sociedade
encontra-se sempre dividida entre governantes e governados, independentemente
da forma como se apresente “na superfície”. Desse modo, os estudiosos podiam
argumentar que os reformadores estavam ignorando uma espécie de “fato científico”
quando propunham essa medida.
99
A intenção de Mosca era provar que as instituições democráticas constituíam
uma espécie de “simulacro” (HIRSCHMAN, 1992, p. 51). Para o autor, a base de
qualquer sistema político que aceite as massas na sua representação não passa de
uma “mentira” (MOSCA apud HIRSCHMAN, p. 51). Tal conclusão era obtida pela
observação de que as sociedades organizadas são formadas por uma maioria sem
poder e por uma minoria que detém o poder. Essa seria a essência de qualquer
sociedade. A fim de verificarmos as diferenças entre a tese da futilidade preconizada
por Mosca e a da perversidade elaborada por Le Bon é útil comparar seus
argumentos em relação ao tema do sufrágio universal. Enquanto Mosca vê as
instituições democráticas como exercícios fúteis e inúteis, dignos de desprezo, Le
Bon observa essas instituições como perigosas, já que elas poderão reforçar o poder
das massas.
A teoria de Pareto assemelha-se à de Mosca na forma polêmica como pode
ser utilizada. Pareto deseja demonstrar que a democracia pode ser tão “espoliativa”
(Hirschman, 1992, p. 53) do povo quanto qualquer outro regime. Ele vai ainda mais
longe em sua análise quando afirma que o recrutamento da elite por meio das
eleições contém possibilidades de espoliação ainda maiores que aqueles feitos por
via hereditária ou por cooptação. Nesse sentido, a única conclusão possível é que o
sufrágio universal não pode trazer mudanças políticas reais. Pode-se observar
então, concordando com Hirschman, que a contribuição desses autores,
especificamente das ciências sociais italianas, foram fundamentais para o
desenvolvimento da tese da futilidade.
Welfare State
A principal crítica às políticas de bem-estar social concentra-se nos efeitos
nocivos que podem provocar. As acusações são de que por mais bem-intencionadas
que sejam essas políticas elas induzem à preguiça e à acomodação. No entanto,
para que esse efeito perverso se concretize, ele necessita que o pagamento
realmente chegue aos pobres para que essas conseqüências venham a ocorrer.
Porém, como assinala Hirschman (1992), antes disso uma outra crítica pode ser
feita: de que as transferências de benefícios nunca cheguem aos pobres, que sejam
desviadas. Esse argumento da futilidade cumpriu um papel importante no sentido de
criticar a aplicação de programas sociais nos Estados Unidos. Na época do governo
100
Lindon Johnson, por exemplo, Hirschman (1992) afirma que eram feitas acusações
de que os programas assistenciais serviam muito mais para assegurar os empregos
a um determinado grupo de administradores do que para ajudar os pobres.
4.1.3 A tese da ameaça ou do risco relacionada aos três momentos de reação
às políticas progressistas e/ou reformistas
De acordo com a proposta analítica de Hirschman (1989, 1992), as teses da
futilidade e do efeito perverso, apesar de suas variações, apresentam em comum a
simplicidade de seus argumentos. Ao contrário delas, a tese da ameaça apresenta-
se muitas vezes de forma mais moderada, mas não menos efetiva, assegurando que
as mudanças propostas, embora muitas vezes necessárias e desejáveis, acarretarão
conseqüências inadmissíveis. Esse argumento pode ser historicamente mais
fundamentado do que os outros dois. No caso da tese da ameaça, o autor vai se
concentrar em um outro exemplo histórico: os Reform Bills realizados na Inglaterra
em 1832 e 1867.
Os Reform Bills
A “ampliação do direito de voto para todos os chefes de família do sexo
masculino que vivessem em prédios urbanos (...) taxados anualmente em dez libras
esterlinas ou mais” (Hirschman, 1992, p. 79), foi proposta pelo Reform Bill de 1832.
Apesar dessa legislação excluir mais de 90% da população inglesa, mesmo assim
era a primeira vez que se dava direito de voto às classes altas profissionais,
comerciais e industriais. Mas uma questão importante observada por Hirschman em
relação à aprovação dessa lei é de que tanto os liberais aristocráticos quanto os
conservadores eram contrários a qualquer forma de ampliação adicional do direito
ao voto. Em outras palavras, ambos os grupos eram hostis à possibilidade de um
sistema democrático que ampliasse a participação das pessoas. Uma das
justificativas para o Reform Bill de 1832 foi que as restrições impostas ao sufrágio
constituíam-se em características “permanentes da ordem constitucional”
(HIRSCHMAN, 1992, p. 81). Esse seria portanto o limite até onde poderia ir a
democracia. Entretanto, esse limite não perdurou por muito tempo. Em 1867, a
101
Câmara dos Comuns aprovou o Second Reform Act, que finalmente começou a
processo de ampliação da democracia. O ato estendeu o direito de voto a todos os
chefes de família que morassem na cidade por um ano ou mais. À medida que a
ampliação do direito ao voto avançava, mais os oponentes da reforma desenvolviam
argumentos relacionados à retórica da ameaça. A democracia era vista como uma
forma de destruição das sólidas instituições inglesas e, nas palavras de um de seus
mais ferrenhos oponentes, as medidas democráticas foram calculadas:
[...] para destruir uma após outras as instituições que garantiram para a
Inglaterra um tanto de felicidade e prosperidade que nenhum outro país
jamais alcançou, ou tem qualquer probabilidade de alcançar. Com certeza
a obra heróica de tantos séculos, as incomparáveis realizações de tantas
cabeças sábias e mãos fortes merecem uma consumação mais nobre que
a de serem sacrificadas no altar da paixão revolucionária, ou pelo
entusiasmo sentimental da humanidade (LOWE apud HIRSCHMAN, 1992,
p. 82).
O argumento básico desse e de outros autores e legisladores da época era
que a extensão de voto para a classe trabalhadora poderia levar à formação de uma
maioria que chegaria ao ponto de expropriar os ricos, por meio de taxações
excessivas que violariam um direito básico de liberdade, o de acumular
propriedades.
Welfare State
No caso do Welfare State, a principal alegação contrária é que ele colocaria
em perigo tanto as liberdades individuais quanto o governo democrático. Em 1960, a
afirmação de que o Welfare State representava uma ameaça à liberdade e à
democracia não foi bem aceita, pois nas primeiras décadas após a Segunda Guerra,
grande parte da opinião pública ocidental estava convencida dos benefícios da
legislação de assistência social. Essa situação se modificou a partir de alguns
acontecimentos, como as revoltas estudantis, a guerra do Vietnã e os choques do
petróleo, entre outros. Argumentava-se, nessa época, que o Welfare State
ameaçaria o crescimento econômico, devido ao aumento de gastos públicos. O
aumento dos gastos com saúde, educação e assistência social provocaria um
aumento também nas atividades governamentais, que por sua vez influenciariam na
102
diminuição da autoridade, o que acarretaria em uma “crise de governabilidade”
(HIRSCHMAN, 1992, p. 101). Essa tese foi defendida particularmente por Samuel
Huntington em seu livro A crise da democracia, publicado em 1975.
É possível verificar a partir das análises de Hirschman sobre esses diferentes
momentos em que se desenvolveu a retórica conservadora como a base
argumentativa é a mesma, apesar da diferença dos acontecimentos e dos períodos
históricos. São justamente essas “invariantes” da retórica conservadora que
aparecerão no discurso dos intelectuais brasileiros contrários às cotas. É esse tópico
que será destacado a partir de agora.
4.2 AS TRÊS TESES CONSERVADORAS EM RELAÇÃO À POLÍTICA DE COTAS
Apesar do debate entre os acadêmicos ter como alvo preferencial as cotas
raciais nas universidades públicas federais, esse fato não pode ser visto isolado de
outras discussões que estão acontecendo no país. Não é somente das
universidades que estão sendo exigidos determinados direitos, há também uma
crescente demanda pela titulação de terras de comunidades quilombolas
3
desde a
promulgação da Constituição de 1988. Em 2003 foi sancionada a Lei 10.639, que
estabelece a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira na
Educação Básica e estão sendo desenvolvidos programas do Ministério da Saúde
que contemplam especificamente a população negra. Pode-se observar que a luta
por esse conjunto de direitos leva à emergência de identidades que até então eram
pouco visíveis no repertório político nacional. É dentro desse contexto, portanto, que
está ocorrendo a disputa entre os intelectuais brasileiros com relação às políticas de
ação afirmativa.
É preciso salientar ainda, conforme adverte Sérgio Costa (2006), que a
discussão sobre o racismo e as formas de combatê-lo, no caso das ações
3
Decreto 4887, de 2003, que regulamenta o artigo 68 do Ato das Disposições Transitórias da
Constituição Federal (ADTC) de 1988. E, atualmente, o Decreto 6040/2007, que institui a Política
Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais – PNPCT. O
artigo 68 faz parte das Disposições Transitórias da Constituição de 1988 e prevê “o
reconhecimento da propriedade das terras ‘dos remanescentes das comunidades dos quilombos’”
(LEITE, 2000). Para maiores informações, consultar também SILVA, Dimas Salustiano. Boletim
Informativo NUER, vol. 1, n. 1, 1997.
103
afirmativas, não fazem parte somente de uma agenda nacional, pois esse debate
ultrapassa as fronteiras locais e se dissemina transnacionalmente
4
. As organizações
e movimentos da sociedade civil, assim como o Estado brasileiro e os intelectuais
que ocupam as posições antagônicas, estão ligados a redes de movimentos, de
organizações institucionais e acadêmicas internacionais.
O debate travado entre os intelectuais brasileiros com respeito às ações
afirmativas tem ocorrido em diversas instâncias. Um dos aspectos importantes a
sublinhar nesse caso é justamente o fato da discussão ter ultrapassado os limites da
academia e das universidades e ter adentrado a esfera pública, especialmente nos
meios de comunicação, além de audiências públicas na Câmara dos Deputados e
no Senado Federal.
Inúmeros intelectuais brasileiros escreveram e se pronunciaram sobre o tema
desde o início desta pesquisa. Porém, alguns nomes se destacam, especialmente na
antropologia brasileira, sendo, alguns deles, em oposição às ações afirmativas e/ou
pelo menos na forma como essas vêm sendo encaminhadas no país. Entre os
autores que se opõem às cotas para estudantes negros pode-se citar o antropólogo
Peter Fry (UFRJ), a antropóloga Yvonne Maggie (UFRJ), a antropóloga Eunice
Durham (USP), a antropóloga Lilia Schwarcz (USP), o cientista político Marcos Chor
Maio (Fundação Oswaldo Cruz), o antropólogo Ricardo Ventura Santos (UFRJ e
Fundação Oswaldo Cruz), a historiadora Celia Maria Marinho de Azevedo
(UNICAMP), a historiadora Mônica Grim (UFRJ), o historiador Manolo Fiorentino
(UFRJ) e o articulista do jornal Folha de S. Paulo e geógrafo Demétrio Magnoli, entre
outros. Essa pesquisa foi realizada através da análise de artigos publicados em
periódicos de circulação nacional, revistas científicas e livros, além de gravações de
conferências, mesas redondas e audiências públicas, desde o ano de 2000.
4.2.1 A tese da perversidade
Com relação à tese da perversidade, seus defensores afirmam que as
mudanças advindas de medidas visando algum tipo de transformação na sociedade,
4
A ONU lançou em 2005 um plano para o “Desenvolvimento do Milênio”, estabelecendo “Os objetivos
do milênio”, que consistem numa proposição internacional como forma de acelerar o processo de
desenvolvimento da inclusão social.
104
em vez de levar a sociedade em determinada direção, levarão exatamente na
direção contrária. A ação produzida gera uma “cadeia de conseqüências”
“imprevisíveis” e “não-intencionais” que provocam o oposto do que se deseja
alcançar. Esse argumento, segundo a avaliação de Hirschman, é bastante eficaz
para o convencimento do público em geral. A invocação dessa tese é uma das
principais características da retórica conservadora. O efeito perverso representa um
ato extremo do que Hirschman classifica de “conseqüências involuntárias” (1995, p.
37). Tais “conseqüências involuntárias” tiveram seu sentido deslocado, pois, se
inicialmente elas denotavam o significado de “imprevistas”, passaram a adquirir um
sentido negativo de, em última instância, indesejáveis.
No caso das políticas de cotas, a tese da perversidade tem sido
constantemente repetida. Entre os autores que utilizam essa tese, afirma-se que as
cotas em vez de contribuírem para a eliminação do racismo vão incitar mais racismo
ainda. Essa é a opinião expressa por Peter Fry (O Globo, 21 de março de 2003):
Todos nós gostaríamos de ver as universidades públicas cada vez mais
multicoloridas (as privadas já são). Também acredito que a maioria quer
que o Brasil elimine o racismo de tal jeito que a discriminação racial e o
medo dela deixem de ferir tanto. Mas a “solução” das cotas vai aumentar
os problemas e não diminuí-los. Alguém realmente acredita que é possível
corrigir as desigualdades raciais grosseiras a custo zero aos cofres
públicos? O Verdadeiro custo será a consolidação do racialismo, não o
fim do racismo (grifo meu).
Nessa mesma direção se encontra o argumento de Yvonne Maggie, também
publicado no jornal O Globo. A autora assim se manifesta em relação à política de
cotas adotada pela Universidade de Brasília (UnB): “Esse critério da UnB é
estarrecedor porque institui o racismo para combater o racismo” (O Globo, 19 de
março de 2004). Em um artigo acessado na página do Observa
5
, um site que
apresenta diversas informações e opiniões sobre ações afirmativas nas
universidades brasileiras, a antropóloga recorre novamente ao “efeito perverso”
quando se refere à sentença de um Juiz Federal Substituto que indefere o pedido de
5
Endereço da página: http://www.observa.ifcs.ufrj.br/index.htm
105
liminar impetrado por uma vestibulanda de Medicina da Universidade Federal do
Paraná
6
. A sentença do juiz começa assim:
[..] é chegada a hora do todos nós, brancos e aquinhoados pela vida em
abundância, repartirmos o valor da dívida com o povo negro, que pela sua
escravidão, contribuiu significativamente para a construção das bases do
nosso país. Você está pagando por
ele agora. Meus filhos certamente
pagarão. E é possível que meus netos também o paguem. Mas não é
possível negar essa dívida ou retribuir-lhes com a ingratidão ou o egoísmo
[...].
Em um diálogo ocorrido entre a leitora e Maggie no Observa, a respeito da
sentença do juiz, o artigo de Maggie assim foi respondido: “A primeira coisa que eu
gostaria de comentar é a imensa alegria em ler a sentença de juiz consciente e
sensível. Ele disse o que eu gostaria de ter dito”. Yvonne Maggie responde então, da
seguinte forma à leitora:
Mas de fato, o juiz está colocando sobre os ombros dos jovens estudantes
o peso e a responsabilidade de resolver algo errado, triste e que
caracteriza a nossa sociedade, a injustiça, o racismo e as desigualdades
[...] Será que a jovem estudante que não teve a sua vaga reservada era
mesmo rica e bem aquinhoada pela fortuna e herança educacional ou era
uma estudante pobre e que não se definiu como negra e se esforçou muito
junto com sua família para ter um lugar hoje na universidade? Essas
dúvidas me assolam quando vejo um juiz decidir sobre a vida dos
brasileiros. [...] Será ainda que, o juiz não estará de fato contribuindo
para acirrar o preconceito e o racismo? (grifo meu).
Conforme a análise de Hirschman, o “efeito perverso tem vários apelos
intelectuais” e se constituiu em um tipo de percepção sociológica acerca da
sociedade. Se a noção de “efeitos involuntários” utilizava argumentos metafísicos
relacionados à divina providência, no final do século XVIII muitos autores deixaram
de usar esse tipo de apelo à divina providência, substituindo-o por explicações de
caráter não-religioso. Essa particularidade também pode ser observada no caso
brasileiro. Pois o acirramento do racismo, por exemplo, é considerado por muitos
intelectuais como uma conseqüência indesejada da política de cotas, ainda que tal
política seja elaborada com as melhores intenções.
6
O mesmo exemplo foi citado pela autora na mesa redonda organizada pela ABA “As novas inflexões
raciais no Brasil” na 58ª Reunião Anual da SBPC, realizada em Florianópolis, no dia 21 de julho de
2006.
106
O historiador Francisco Martinho (2007), apesar de não ser um dos principais
autores destacados na pesquisa, também centra sua opinião no efeito perverso e
em como aqueles que defendem as cotas detêm uma visão deturpada sobre a
sociedade brasileira. Segundo suas palavras:
O que mais me assusta nessa história toda é a crença. Para aqueles que
acham que o Brasil é um país racista, de que as cotas contribuirão para o
enfrentamento do preconceito. É exatamente o contrário. Na medida em
que políticas públicas começam a induzir pessoas a declarar sua “cor” para
fins de emprego ou acesso à universidade, será difícil conter o racismo
(MARTINHO, p. 181-182).
Uma outra característica daqueles que preconizam a tese da perversidade é a
manifestação de uma espécie de superioridade intelectual, pois demonstram para
aqueles que não enxergam – mesmo que sejam especialistas – o quanto podem ser
perspicazes ao preverem essa conseqüência para uma ação que, em princípio,
poderia ser considerada positiva.
O efeito da perversidade não apareceu com tanta freqüência quanto os outros
nos discursos dos intelectuais contrários às cotas. Esse fato pode ser explicado
recorrendo-se mais uma vez a Hirschman (1992). Para ele, a tese da ameaça
geralmente é alegada logo que uma política é proposta ou adotada de forma oficial.
Seguindo seu raciocínio, o argumento da perversidade só aparecerá quando alguns
resultados desfavoráveis da nova política surgirem. A tese da futilidade tende a
ocorrer ainda mais tarde, porque é necessária uma certa distância dos
acontecimentos. Dentro da lógica proposta pelo autor é provável que os argumentos
contrários a uma determinada reforma mantenham a seguinte seqüência: ameaça,
perversidade e futilidade.
4.2.2 A tese da futilidade
A tese da futilidade difere da anterior, pois nesse caso não se antevê um
retrocesso ou um efeito devastador para a sociedade como um todo, mas a
mudança é considerada puramente cosmética, de fachada, pois não ataca as
estruturas profundas da sociedade.
107
Apesar de os argumentos da tese da futilidade parecerem, de acordo com
Hirschman, mais amenos do que os da tese da perversidade, eles são mais
insultuosos. No primeiro caso, se critica a direção que determinada ação tomará e
sempre resta a esperança de que seja obtida a direção adequada, porém, no
segundo, quando se demonstra que a medida não terá eficácia alguma, está-se
desmoralizando os defensores da mudança e subestimando as possibilidades de
transformação. A tese da futilidade representa portanto uma crítica à própria
intenção de mudança, justamente porque não se pode mudar aquilo que não pode
ser mudado. É nesse ponto que a tese difere bastante da tese da perversidade.
Pois, no caso desta última, o mundo é visto como sujeito a mudanças, “volátil”, um
determinado movimento levará conseqüentemente a efeitos imprevistos e a
“contramovimentos insuspeitados” (HIRSCHMAN, 1992, p. 65). Já no caso da tese
da futilidade o mundo é visto como uma estrutura que evolui segundo determinadas
leis que as ações humanas são incapazes de alterar. Nas palavras de Hirschman
(1992, p. 65), é uma atitude de “refutação desdenhosa” que se assume em relação à
sugestão de que a realidade pode ser passível de algum tipo de mudança.
Novamente os argumentos citados por vários autores das ciências sociais
brasileiras e por outros especialistas podem ser lidos por meio da tipologia criada por
Hirschman. As cotas são vistas como algo que não vai alterar a realidade da
educação no país, pois o problema não está na educação superior e sim no ensino
básico. Deve-se ir à raiz do problema e não atacá-lo no final. As cotas são avaliadas
como medidas paliativas, que não resolvem o principal problema da educação
brasileira: uma boa escola pública que proporcione a todos a oportunidade de
concorrer a vagas para o ensino superior. Além disso, essa medida incide, de acordo
com a antropóloga Eunice Durham, “sobre uma das conseqüências da discriminação
racial e da desigualdade educacional sem que estas, em si mesmas sejam
corrigidas” (Durham, 2003, p. 04). A melhor qualidade do ensino básico seria uma
das soluções apontadas por Celia Maria Marinho de Azevedo (2004b, p. 63) para
combater o racismo no Brasil e não a adoção de cotas:
É possível lutar contra o racismo no Brasil, ignorando-se a dimensão do
problema do analfabetismo e baixos níveis de escolaridade da população
brasileira? Não seria preciso concentrar forças na recuperação das escolas
públicas de ensino fundamental, bem como na sua expansão para toda a
população brasileira?
108
A posição de Yvonne Maggie (2006) também se situa no horizonte de que as
cotas não vão resolver problema algum. Em reposta a uma entrevista concedida ao
Jornal Folha de S. Paulo ela se refere ao aumento de vagas como forma de resolver
o problema do acesso ao ensino superior.
Nós temos, nas universidades públicas, um grande potencial de abertura e
de ampliação dos cursos. Por que não abrimos mais vagas? Temos
professores e temos salas de aula suficientes para termos mais alunos. O
problema não é colocar pessoas para dentro da universidade, é fazer elas
se formarem. Estabelecer cotas é trocar seis por meia dúzia (grifo meu)
(Folha de S. Paulo, 23 de julho de 2006).
Conforme já explicitado anteriormente, a tese da futilidade é mais insultuosa que
a da perversidade justamente porque desacredita completamente os defensores da
mudança. Seus detratores chegam ao ponto de ridicularizar e desqualificar os
“eternos ingênuos progressistas” (Hirschman, 1992, p. 49). A desqualificação dos
argumentos dos intelectuais que apóiam as cotas é uma constante nos discursos
daqueles contrários a essa política. Um dos autores que mais utiliza esse artifício é
Peter Fry. Em uma entrevista ao jornal O Liberal (2006), ele assim se refere aos
apoiadores das cotas raciais:
Ninguém está sugerindo que as pessoas não podem se identificar com
“raças” (se quiserem) na sua vida particular, mesmo se eu pessoalmente
não tenho o mínimo interesse em organizar a minha vida em torno do fato
de ser branco. Estamos preocupados com a interferência do Estado nesse
processo. É como se os defensores das cotas desconhecessem o país
(grifo meu).
Outra importante característica da tese da futilidade é conceder caráter científico
aos seus argumentos. Tal feito foi realizado por alguns cientistas sociais italianos,
como Pareto, por exemplo. Segundo Hirschman, esse autor concedeu aos seus
achados estatísticos a respeito da distribuição de renda um caráter de lei natural.
Sua conclusão foi que seria inútil, senão fútil, tentar modificar um aspecto básico e
invariante da economia, como é o caso da distribuição de renda, por meio de
taxação, expropriação ou qualquer tipo de legislação de bem-estar social. A maneira
correta de melhorar as condições de vida da população mais pobre seria, portanto,
109
aumentar a riqueza total
7
. No caso do debate sobre cotas, não se recorre a uma lei
para comprovar a ineficácia da política, mas se apela à ciência como se esta fosse o
tribunal dos tribunais e que por ser detentora de um exercício disciplinar e neutro,
seria capaz de decidir os melhores rumos para a sociedade brasileira.
A análise de um dossiê publicado sobre a questão das cotas raciais
implantadas na Universidade de Brasília (UnB) ajuda a explicitar melhor a relação
entre o papel da ciência e a posição política dos intelectuais em relação a uma
determinada política pública. No primeiro semestre de 2005, a revista do Programa
de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (UFRGS) publicou o referido dossiê. O texto principal é um artigo de Marcos
Chor Maio e Ricardo Ventura Santos
8
, no qual os autores criticam o processo de
implementação de cotas raciais na UnB por ingresso através de vestibular
9
, devido à
utilização de análises de fotografias como forma de evitar fraudes e comprovar a
identidade racial dos candidatos. Foram convidados 25 intelectuais que já haviam
tratado do tema em alguma instância acadêmica ou com a publicação de artigos em
jornais e/ou periódicos científicos, para comentar o artigo. O resultado foi que 18
intelectuais aceitaram o convite e se pronunciaram em relação ao texto. Maio e
Santos afirmam que essa maneira de buscar parâmetros considerados objetivos
10
para delimitar a identidade racial dos estudantes assemelha-se aos processos
utilizados no século XIX para a aferição das raças.
O principal argumento dos autores é que o uso de fotografias remete ao
renascimento da “antropologia das raças”, que volta a considerar a raça – por meio
da análise de atributos físicos e traços fenotípicos – como elemento classificador
7
Esse argumento assemelha-se a um outro utilizado pelos intelectuais contrários às cotas raciais.
Alguns estudiosos afirmam que antes de estabelecer cotas para determinados grupos, a solução
seria aumentar o número de vagas nas universidades. De acordo com estudo de Tragtenberg et. al.
(2006), realizado na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), através de simulações,
constatou-se que políticas de ampliação de vagas e de reserva de vagas para estudantes oriundos
de escolas públicas manterão as desigualdades raciais, não garantindo, portanto, a diversidade
étnico-racial.
8
MAIO, Marcos Chor e SANTOS, Ricardo Ventura. Política de cotas raciais. Os “olhos da sociedade”
e os usos e abusos da antropologia: o caso do vestibular da Universidade de Brasília (UnB).
Cientistas de diversas áreas de conhecimento foram convidados a comentar o artigo dos dois
autores.
9
O vestibular da UnB na época foi qualificado pela mídia de “tribunal racial”.
10
Os parâmetros objetivos estariam assentados em uma visão de ciência considerada “ordinária” por
Maio e Santos. Essa visão está relacionada aos velhos esquemas taxonômicos utilizados no final
do século XIX como forma de classificação das pessoas. Segundo os autores, muitos atores
envolvidos no debate sobre as cotas apelam para esse tipo de “ciência” como forma de
identificação dos beneficiários dessas políticas.
110
dentro da sociedade brasileira, a exemplo do que ocorreu no século XIX, conforme
apontado anteriormente. Ressurge a questão da raça como um dos principais topoi
das ciências sociais brasileiras e de nosso espectro político.
É preciso acrescentar que além dessa crítica, os dois autores repudiam
também o papel do antropólogo que participou da comissão
11
de avaliação, por
considerá-lo como um tipo de especialista que iria, através de sua especialidade,
identificar “cientificamente” os candidatos negros beneficiários do sistema de cotas.
Os autores realizam uma crítica severa a esse papel dos antropólogos que atuam
como peritos
12
e as conseqüências éticas desse procedimento. O paralelo que Maio
e Santos fazem do desempenho do antropólogo na comissão da UnB com a de
outros antropólogos que atuaram como peritos, é que em ambos os casos esses
profissionais estão participando em processos que visam a produção de identidades.
No caso da UnB, de uma identidade racial negra.
Todos os autores que responderam ao texto de Maio e Santos recriminaram o
uso de fotos como forma de classificação dos candidatos, inclusive os antropólogos
propositores do sistema de cotas raciais na UnB, José Jorge de Carvalho e Rita
Segato. A utilização de fotografias como uma possível forma de evitar fraudes traz
uma série de conseqüências que não foram devidamente avaliadas pela burocracia
acadêmica
13
.
O que chama a atenção, conforme assinala Guimarães (2005), é que a
estratégia discursiva utilizada pelos autores – ao colocar a UnB como representante
de um caso exemplar da política de cotas no país – acaba por induzir à conclusão
de que a política de cotas como um todo é equivocada, e não somente um aspecto
do processo adotado pela UnB.
11
A comissão responsável pela homologação das candidaturas foi composta por seis pessoas; um
estudante, um sociólogo, um antropólogo, além de três representantes de entidades sociais. Para
maiores detalhes sobre o primeiro vestibular da UNB que contemplou as cotas raciais consultar
além do dossiê da revista Horizontes Antropológicos, o livro de CARVALHO, José Jorge de.
Inclusão étnica e racial no Brasil: a questão das cotas no ensino superior. São Paulo: Attar
Editorial, 2005a.
12
Os antropólogos brasileiros têm atuado freqüentemente como peritos em processos judiciais e/ou
administrativos que envolvem terras indígenas e/ou quilombolas.
13
Atualmente não está sendo utilizada a comprovação de identidade dos estudantes cotistas via
fotografia, o candidato
deverá assinar declaração específica relativa aos requisitos exigidos pelo Edital para
concorrer pelo sistema de cotas. Após entrevista pessoal, o pedido de inscrição será analisado por uma
banca, que decidirá pela homologação ou não da inscrição do candidato cotista. Para maiores informações
consultar: www.unb.br
111
O que emerge desse confronto entre os intelectuais contrários às cotas e
aqueles favoráveis a essa medida é a maneira como os dois grupos enxergam a
ciência e a sua relação com a política. É possível observar no texto de Maio e
Santos (2005) que eles citam várias instituições acadêmicas e/ou a pesquisadores
renomados para fazerem valer sua crítica. Recorrem à Associação Brasileira de
Antropologia (ABA)
14
, à autoridade discursiva da genética molecular e à posição da
Academia Brasileira de Ciências (ABC). Torna-se então explícito que suas opiniões
não são opiniões quaisquer, mas estão alicerçadas em importantes fontes
científicas. A posição emitida pela Comissão de Relações Étnicas e Raciais da
Associação Brasileira de Antropologia (Crer-ABA), em relação aos procedimentos
adotados pela UnB é avaliada da seguinte maneira pelos dois autores:
O documento da Crer – ABA pode ser interpretado como uma
manifestação que, em nome de uma comunidade composta de
antropólogos com variadas especialidades (há referência à antropologia
social e à antropologia biológica), problematiza fontes e loci da
autoridade/competência científica [...]. Dado que congrega centenas de
profissionais da área de antropologia no Brasil, portanto revestindo-se de
espessa camada de legitimidade para se manifestar em assuntos
científicos ligados à raça, com o capital simbólico transferido a partir de sua
instância geradora (...), o posicionamento da Crer é uma peça
argumentativa que procura solapar a base de autoridade/competência
científica da comissão da UnB, já que “desconsidera o arcabouço
conceitual das ciências sociais” (MAIO e SANTOS, 2005, p. 203).
Na seqüência do texto, os autores complementam sua intenção:
14
A Comissão de Relações Étnicas e Raciais da Associação Brasileira de Antropologia (Crer – ABA),
em junho de 2004, emitiu o seguinte parecer a respeito dos procedimentos adotados pela UnB:
A pretensa objetividade dos mecanismos adotados pela UnB constitui, de fato, um constrangimento
ao direito individual, notadamente ao da livre auto-identificação. Além disso, desconsidera o
arcabouço conceitual das ciências sociais, e, em particular, da antropologia social e da antropologia
biológica. A Crer – ABA entende que a adoção do sistema de cotas raciais nas universidades
públicas é uma medida de caráter político que não deve se submeter, tampouco, submeter aqueles
aos quais visa beneficiar, a critérios autoritários, sob pena de se abrir caminho para novas
modalidades de exceção atentatórias à livre manifestação das pessoas [...] a [Crer – ABA] externa
a sua preocupação não somente com os fundamentos que norteiam o sistema classificatório dos
candidatos, como também com as repercussões negativas que o sistema implantado pela UnB
poderá produzir (Crer – ABA apud MAIO e SANTOS, 2005, p. 202).
112
Não foi somente a ABA que utilizou seu capital de prestígio e de
reconhecimento na disputa sobre o monopólio quanto à (in) determinação
de quem é “negro” no Brasil. Para ilustrar esse ponto, exploraremos
brevemente o conteúdo do artigo dos geneticistas Sérgio Pena e Maria
Catira Bortolini, com o provocativo título “Pode a genética definir quem
deve se beneficiar das cotas universitárias e demais ações afirmativas?”
(MAIO; SANTOS, 2005, p. 203).
A assimetria entre um texto e/ou artigo elaborado por um especialista e outro
produzido por um militante ou por um intelectual “engajado”, por exemplo, é
observada por Feres Júnior (2005). Na visão do autor, é muito mais fácil para o
pesquisador se colocar como elemento desinteressado, ou seja, “destituído de
interesse próprio na questão, e, portanto, capaz de olhar mais longe, mais além,
para o interesse comum da sociedade” (FERES JÚNIOR, 2005, p. 07). Quanto maior
for seu reconhecimento e das instituições nas quais participa, seu argumento
ganhará uma força ainda mais expressiva. No caso de um militante, um “não-
especialista”, deve sempre realizar um esforço extra para que seu argumento tenha
validade e não seja apenas identificado com interesses de grupos.
O antropólogo José Carlos dos Anjos (2005a), em resposta ao artigo de Maio
e Santos, afirma que em determinados momentos há necessidade de se falar
politicamente. Anjos parte do pressuposto elaborado por Bruno Latour (2004), de
que mesmo os cientistas devem assumir os riscos da fala política e que a ciência
“deve assegurar lugares de porta-vozes, quaisquer que sejam as controvérsias
sobre a fidelidade, a importância, a multiplicidade de seus representados” (Latour
apud. Anjos, 2005a, p. 234). Segundo Latour (2004), mesmo que a palavra política
suscite um certo mal-estar quando “julgada pela razão pensante” (2004, p. 33), às
vezes não há como escapar da fala política. Na análise de Anjos (2005a, p. 235),
Maio e Santos distorcem o que ocorreu na UnB:
Falar de raças num cenário de correção de injustiças raciais e apontando
para a desracialização a um certo prazo deveria ser entendido como
diferente de fazer apologia das raças num contexto de promoção da
superioridade de uma delas. Mas é como se sistematicamente uma parte
desse enunciado ficasse fixa num único termo – raça – cujos efeitos se
supõem que sempre escapariam das intenções de justiça social dos
homens que a carregam e seriam automaticamente sempre nazistas.
Anjos afirma ainda que se a racialização no Brasil teve conseqüências
práticas e não apenas efeitos de representação, por conseguinte a desracialização
113
não pode ser apenas discursiva, ela tem que ser efetivada por medidas práticas. Por
esse motivo, a elaboração de mecanismos que visem a correção dessas injustiças
pertence ao âmbito da ação política e demanda, portanto, que os cientistas
assumam posições políticas em defesa de seus próprios parâmetros de correção de
injustiças que, nesse caso, são raciais. O autor defende uma visão de ciência que
não é superior às demais formas de conhecimento e que está tão enredada com os
outros domínios da realidade como qualquer outra atividade. Nesse sentido, as
posições dos cientistas não são isentas de valores.
O antropólogo demonstra que Maio e Santos assumem o lugar de cientistas –
pensando a ciência como se fosse o tribunal dos tribunais – para criticarem o
episódio da UNB. Dessa forma, os autores camuflam suas opiniões com argumentos
estritamente científicos, pois em nenhum momento eles assumem explicitamente
uma posição contrária ou favorável às políticas de cotas raciais. Rita Segato (2005)
também compartilha dessa avaliação ao afirmar que os dois autores utilizam
“citações de textos autorais ou institucionais” como uma “cortina de fumaça” (2005,
p. 274) que visa ocultar suas opiniões sobre a política de cotas nas universidades
públicas. Segundo a antropóloga, as apreciações de Maio e Santos a respeito da
adoção de um sistema de cotas nas universidades públicas não podem ser
substituídas “pelo que é apresentado como um exercício puramente disciplinar e
neutro”.
Além do papel da ciência, também está em jogo nesse debate a relação entre
os “lugares de enunciação do cientista e do político-militante” (ANJOS, 2005b, p.
232). Nesse sentido, questiona-se até que ponto é possível ser científico e não
escorregar para posições políticas, mesmo quando se toma a isenção como regra.
Foi possível observar que as teorias científicas sobre raças – “neutras e isentas de
valores” – elaboradas no século XIX, serviram de justificativa ao colonialismo
europeu, à escravidão e a muitas formas de etnocídio e genocídio. Atualmente,
novamente alguns cientistas – “neutros e isentos de valores” – denunciam que as
políticas de cotas podem exercer efeitos racializadores na sociedade ao longo do
tempo (FRY, 2005, p. 271).
A historiadora Celia Maria Marinho de Azevedo (2005) em sua resposta ao
texto de Maio e Santos assegura que os pesquisadores e os professores de História
são receptivos aos apelos político-militantes para a reconstrução de uma história das
114
raças, uma reescrita da história que toma como principal proposição a história de
afirmação das identidades. Para ela, esses cientistas pecam ao imporem suas
próprias fronteiras militantes à pesquisa histórica.
Como historiadora eu diria que, tal como no caso dos antropólogos
analisado por Maio e Santos, também os professores e pesquisadores de
história não escapam hoje aos apelos político-militantes para que eles se
tornem especialistas em raça. A defesa de uma reescrita da história, o que
não seria nenhuma novidade entre historiadores que se formaram sob a
dupla herança da escola dos Annales e da teoria crítica marxista, assume
feições devastadoras quando se reduz à proposição de uma história das
identidades.
Nessas histórias em separado, ou seja, a história do negro, história do
branco, história do índio, etc., ganha a cena a visão autoritária de quem
pretende que as suas próprias fronteiras militantes se imponham na
pesquisa história, cegando o pesquisador para quaisquer possibilidades
que não as identidades primordiais, fixas e imutáveis inventadas pelos
velhos teóricos das raças e, hoje, tristemente ressuscitadas por uma
corrente do anti-racismo (AZEVEDO, 2005, p. 224).
A crítica da historiadora assemelha-se àquela que Peter Fry (2005) faz aos
autores que defendem a política de cotas. Para o antropólogo, a visão desses
intelectuais se deve não somente à influência de pesquisadores norte-americanos,
mas ao vínculo entre militantes do movimento negro e pesquisadores acadêmicos.
Segundo análise de Fry, Florestan Fernandes articulou essa aproximação ao utilizar
os termos “branco” e “negro” para atender aos desejos de militantes negros que
eram seus informantes.
Fry vai ainda mais longe em sua crítica ao acusar a “sociologia quantitativa”
de fortalecer um tipo de interpretação acerca do Brasil que se vincula à perspectiva
de grande parte dos ativistas do movimento negro. Essa forma de interpretação é
inaugurada, segundo o autor, a partir da publicação do livro de Hasenbalg,
Discriminação e Desigualdades Sociais no Brasil, no final da década de 1970, e vem
sendo consideravelmente ampliada desde então. A fim de responder à pergunta
“Qual a relação entre a sociologia quantitativa e a política ‘racial no Brasil?” (Fry,
2005/2006, p. 186), o antropólogo assim se manifesta:
115
Descrevendo a população em duas categorias “raciais”, os sociólogos
deram cientificidade à vontade dos ativistas de incluir todos os “não-
brancos” numa única identidade negra. Explicando a fraca “consciência
racial” em termos do “mito da democracia racial”, os sociólogos deram
ainda mais peso à ideologia dos ativistas que entenderam que a
democracia racial era responsável pelas desigualdades raciais, por
disfarçar o racismo e por dificultar o alargamento de seu próprio
movimento.
A controvérsia entre os intelectuais brasileiros a respeito das cotas e do papel
que diferentes atores sociais deveriam assumir em relação a ela não deixa de
representar uma espécie de continuidade de discussões sempre presentes no
cenário nacional. Essa continuidade histórica fica explícita quando Guimarães (2002)
refere-se à reação de Gilberto Freyre tanto à influência de estrangeiros sobre os
negros brasileiros, especialmente por meio do conceito de “negritude”
15
, quanto à
“solidariedade” que diplomatas, políticos e jornalistas mantinham com o que o Freyre
denominava de “afrorracistas”:
Meus agradecimentos a quantos, pela sua presença, participam esse ano
no Rio de Janeiro, da comemoração do Dia de Camões, vindo ouvir a
palavra de quem, adepto da ‘vária cor’’ camoneana, tanto se opõe à mística
da ‘negritude’ como ao mito da ‘branquitude’: dos extremos sectários que
contrariam a já brasileiríssima prática da democracia racial através da
mestiçagem: uma prática que nos impõem deveres de particular
solidariedade com outros povos mestiços. Sobretudo com os do Oriente e
os das Áfricas Portuguesas. Principalmente com os das Áfricas negras e
mestiças marcadas pela presença lusitana (FREYRE apud GUIMARÃES,
2002, p. 153)
16
.
Em outro momento do mesmo ano Freyre assim se pronuncia:
15
Conceito criado e utilizado por diferentes autores como Aimé Cesaire, Leopold Senghor e Franz
Fanon, entre outros, posteriormente reelaborado por Abdias Nascimento e Guerreiro Ramos
(GUIMARÃES, 2002, p. 152).
16
O discurso de Freyre foi proferido no Gabinete Português de Leitura, em 1962.
116
Palavras que ferindo o que Angola tem de mais democrático – a sua
democracia social através daquela mestiçagem que vem sendo praticada
por numerosos luso-angolanos, ao modo brasileiro – fere o Brasil; e torna
ridícula – supremamente ridícula – a solidariedade que certos diplomatas,
certos políticos e certos jornalistas do Brasil de hoje pretendem, alguns do
alto de responsabilidades oficiais, que parta de uma população em grande
parte mestiça, como a brasileira, a favor de afroracistas. Que afinidades
com esses afroracistas, cruamente hostis ao mais precioso valor
democrático que vem sendo desenvolvido pela gente brasileira – a
democracia racial – pode haver da parte do Brasil? Tais diplomatas
políticos e jornalistas, assim procedendo, ou estão sendo mistificados
quanto ao afroracismo, fantasiado de movimento democrático e de causa
liberal, ou estão sendo eles próprios mistificadores dos demais brasileiros.
Nós, brasileiros, não podemos ser, como brasileiros, senão um povo por
excelência, anti-segregacionista: quer o segregacionismo siga a mística da
‘branquitude’, quer siga o mito da ‘negritude’. Ou da ‘amarelitude’”
(FREYRE apud GUIMARÃES, 2002, p. 154).
É interessante observar que, tanto no caso de Azevedo como no de Fry e no
de Maio e Santos, o lugar de enunciação dos discursos é somente ciência. Dessa
forma, eles não têm a pretensão de defender pontos de vista políticos, não fazem
alianças e não produzem teorias comprometidas com qualquer projeto político
preexistente, apenas fazem “ciência”. Esse tipo de discurso induz ao
questionamento sobre qual posição ideológica e, portanto, política, esses
intelectuais estão assumindo.
Anjos (2005b, p. 108) afirma que a ciência deve assumir uma perspectiva
pragmática. O autor preconiza a idéia de que a ciência pode contribuir no sentido de
alargar “o espaço de representação política”, a fim de abarcar grupos que se
encontram de alguma forma excluídos de espaços de representação e de direitos
sociais. Ele reconhece a existência de uma disputa entre o conhecimento científico e
o não-científico e admite que as fronteiras entre esses espaços está sujeita a
complexos jogos de negociação. No entanto, não se pode simplesmente admitir que
as ciências sociais se acomodem em uma posição epistemológica imune à influência
militante e aos grupos que não possuem representação nos debates das “grandes
arenas” (2005b, p. 111).
Da mesma forma que Hirschman (1992) constatou uma explícita relação entre a
tese da futilidade com algumas concepções científicas correntes nas diferentes
épocas que pesquisou, ou seja, de que certas mudanças propostas não poderiam
ser realizadas porque contrariavam alguma lei da ciência, na discussão sobre as
cotas os autores contrários a esse tipo de política também utilizam a ciência como
117
base para sustentar seus argumentos, justificando seus posicionamentos. O embate
entre os intelectuais contrários às cotas e aqueles favoráveis tem como um de seus
epicentros o desacordo sobre o papel desempenhado pela ciência e,
conseqüentemente, pelos cientistas/intelectuais em torno da aplicação dessas
políticas. Nesse sentido, esse é um dos pontos privilegiados na pesquisa, porque
mobilizou de forma incisiva a comunidade acadêmica.
Conforme já ressaltado no segundo capítulo, o papel da ciência e da política e
a posição dos intelectuais em relação a esses campos é fundamental na discussão
sobre o estabelecimento de políticas de ação afirmativa. O episódio da
implementação de cotas raciais na UnB gerou um debate epistêmico que sempre
esteve presente no meio acadêmico a respeito do estatuto da ciência.
Recentemente esse debate voltou à tona, com as chamadas “guerras das ciências”
17
que eclodiram nos anos 1990, especialmente na Inglaterra e Estados Unidos, e que
posteriormente expandiram-se para outros países. Na disputa entre cientistas de
diferentes especialidades encontra-se, pelo menos, duas posições bem demarcadas:
uma delas defende a capacidade da ciência de produzir um conhecimento
verdadeiro, objetivo e autônomo acerca do mundo e a outra vê a ciência como uma
atividade socialmente produzida, emaranhada a outros tipos de conhecimentos e
dependente de contextos econômicos e políticos para se realizar. Esse debate sobre
a “guerra das ciências”, aqui tratado de forma breve, ajuda a inserir a questão da
aplicação de políticas de ação afirmativa no Brasil na discussão sobre o papel da
ciência, notadamente das ciências sociais, e sua interferência para a implementação
de um tipo de política pública.
Com o objetivo de compreender melhor a posição assumida pelos intelectuais
contrários e favoráveis às políticas de ação afirmativa, é necessário levar em
consideração o debate epistemológico proposto por Santos (2004). Esse debate
complementa as teorias de Bourdieu, Santos e Latour tratadas no segundo capítulo,
17
Para maiores detalhes acerca das “guerras das ciências” consultar especialmente a introdução do
livro organizado por SANTOS, Boaventura de Sousa. Conhecimento prudente para uma vida
decente: “Um discurso sobre as ciências” revisitado. São Paulo: Cortez, 2004. A publicação
representa uma resposta do sociólogo português à crítica feita por Antônio Manuel Baptista à sua
obra: Um discurso sobre as ciências. Nela, Santos desenvolve algumas reflexões sobre a validade
do conhecimento científico, as novas perspectivas sobre as relações entre ciências naturais e
sociais, entre outros aspectos referentes ao debate epistemológico. A publicação organizada por
Santos conta com uma diversidade de autores de diferentes formações e nacionalidades que
desenvolvem reflexões sobre o conhecimento científico tendo como pano de fundo os temas por
ele abordado em Um discurso sobre as ciências.
118
no sentido de apresentar outras interpretações acerca da ciência e de sua relação
com a política e com outros tipos de conhecimento.
Na obra organizada por Santos (2004), Isabelle Stengers participa dessa
discussão questionando sobre a possibilidade de mudar a concepção de uma
suposta autonomia dos saberes científicos em relação aos interesses sociais.
Stengers (2004) parte da interpretação de Latour (1997, 2000) de que a ciência é
uma atividade cotidiana que não extrai sua lógica de um raciocínio específico, mas a
constrói diariamente na forma como cientistas, engenheiros, intelectuais e demais
agentes fazem ciência. Ela não é uma atividade desinteressada, mas depende de
financiamento e de uma infinidade de redes para entrar em ação. A atividade
científica, de acordo com essa interpretação, relaciona-se com a política e não está
acima ou desligada dela.
Nas duas principais posturas localizadas na “guerra das ciências”, uma delas
defende que os valores não possuem papel algum dentro do campo científico
(LACEY, 2004). Apesar de nenhum dos autores anteriormente citados, como Maio e
Santos, Azevedo e Fry, compartilhar dessa visão ingênua a respeito dos atributos
científicos, parece ser justamente o papel da ciência como axiologicamente neutra
que reivindicam no debate sobre cotas. É importante observar que eles acusam os
pesquisadores favoráveis às ações afirmativas e as universidades que adotaram
essa política, no caso a UnB, de terem sua posição e prática científicas
comprometidas pela aliança com setores organizados da sociedade, como os
militantes do movimento negro. É ainda interessante atentar para a auto-atribuição
de uma pretensa isenção em relação aos valores, presente na postura desses
cientistas. A solução proposta por Lacey (2004, p. 484) é de que os valores não
sejam “camuflados” na “aceitação ou rejeição de teorias” e que as controvérsias a
respeito dos valores possam fazer parte do debate mais amplo dentro da
comunidade científica.
Arturo Escobar (2004, p. 642) vai ainda mais longe nessa discussão ao
sugerir que as ciências humanas devem produzir um “conhecimento crítico
intersubjetivo” e, para isso, o contato permanente com o ambiente e os atores extra-
acadêmicos é fundamental. Para o autor, a academia deve considerar os ativistas de
movimentos sociais também como produtores de conhecimento:
119
Já não estamos na situação em que alguns produzem conhecimento
(universitários, intelectuais) para outros aplicarem (movimentos sociais).
Actualmente, essas fronteiras estão completamente em ruptura à medida
que os movimentos sociais se transformam em produtores de
conhecimento e os intelectuais são chamados a envolverem-se cada vez
mais no activismo (ESCOBAR, 2004, p. 652-653).
Na visão de Escobar, o papel dos intelectuais é orientar o seu conhecimento
para projetos de emancipação e de apoio aos movimentos sociais. O autor não
demonstra em maiores detalhes como se dará essa atuação, mas é possível concluir
que, para ele, ativistas e intelectuais cada vez mais se tornarão interlocutores. Anjos
(2005b, p. 111) não propõe exatamente essa solução, mas aponta para o caráter
complexo e em permanente processo de disputa característico da relação entre
ciência e política:
Entre a causa da ciência e a causa das comunidades não-científicas,
cumpre entender que tanto a causa científica como os interesses
alienígenas a esse espaço estão em processo de formação e disputa, e
que a própria fronteira é o lugar de convites a jogos complexos de
identidades e nomadismos.
Peter Wagner (2004) não acredita em um conhecimento que possa estar
diretamente comprometido com a emancipação, pois mesmo entre aqueles que
defendem tal posição haverá diferenças de perspectivas. Para o autor, não é a
criação de um novo paradigma que mudará os pressupostos modernos do
conhecimento científico ocidental, mas sim “uma forma que situe as práticas
científicas num lugar neste mundo, relativizando as suas reivindicações de certeza
epistêmica ao fazê-las comunicar com outras formas de envolvimento com o mundo”
(WAGNER, 2004, p. 120).
Além da relação ente fato científico e valor, outro aspecto para o qual alguns
estudiosos do campo científico, como Walter D. Mignolo (2004, p. 668), chamam a
atenção é de que a revolução científica iniciada na Europa no século XVI
representou um modo particular de “colonialidade”. Essa forma de colonialismo
exerceu uma espécie de “opressão epistêmica”, que silenciou os saberes não-
ocidentais, negando, dessa forma, a essa parcela da humanidade o próprio “direito
de pensar” (MIGNOLO, 2004, p. 670). O autor demonstra que o processo de
racialização que a Europa impôs às suas colônias não foi apenas de caráter cultural,
120
mas foi também epistêmico. Ou seja, impedindo que os conhecimentos produzidos
fora de seus limites fossem reconhecidos enquanto tais. Ele alerta para um tipo de
“epistemologia da cegueira”, assim descrita:
A incapacidade dos historiógrafos para perceber que a epistemologia
ocidental era ao mesmo tempo a história das realizações modernas e dos
adiamentos e negações coloniais, pode parecer surpreendente se
presumirmos que essa historiografia se apóia na razão, e não na fé. A fé
sobre a qual foi construída uma parte significativa da historiografia
ocidental, incluindo a da epistemologia, foi descrita por Santos como a
‘epistemologia da cegueira’ (MIGNOLO, 2004, p. 675).
O debate sobre as cotas no país ajudou a desnaturalizar uma situação até
então tomada como natural, mesmo pelos cientistas sociais: o fato de existirem
pouquíssimos profissionais negros no ensino superior brasileiro, bem como um
reduzido número de estudantes negros. As teorias produzidas nesses ambientes
estão de certa forma comprometidas com essa realidade, pois ajudaram a formar
representações sobre o país, sobre a sua formação e o seu desenvolvimento
18
.
É inevitável traçar um paralelo entre a posição desses intelectuais e aqueles
estudados por Pécaut
19
, pois, para alguns deles, permanece uma atitude
ambivalente em relação à política. No caso dos partidários da retórica conservadora,
a ciência é traduzida em seus discursos como uma prática isenta de valores e
detentora da palavra final. No entanto, diferentemente dos intelectuais da segunda
geração (1954-1964) da pesquisa de Pécaut, que, apesar de aliarem-se às classes
populares não deixavam de colocar-se acima delas. Nesse momento, intelectuais
como Anjos, Guimarães, Carvalho e Escobar, entre outros, apontam para a
necessidade da constante interlocução entre os acadêmicos e os atores de
movimentos sociais ou de outras formas de organização. Essa interlocução não se
18
João Baptista Borges Pereira (1981) mostra que, de meados da década de 1960 até o início da
década de 1980 foram escassos os estudos sobre os negros no Brasil nas principais universidades
do país e afirma que esse campo de estudos carecia de condições favoráveis para se
institucionalizar. O autor cita a falta de apoio institucional como uma das causas para a
marginalização desse tema. Já Carvalho (2005a) expõe que, além das dificuldades materiais,
encontra-se o fato de que há um número muito reduzido de professores e pesquisadores negros
atuando nas universidades brasileiras e isso influencia diretamente nessa produção intelectual. A
denúncia de Arthur Ramos, na década de 1930, de que havia uma “conspiração do silêncio” a
respeito dos estudos raciais e de negros no Brasil parece só agora estar tendo eco (PEREIRA,
1981).
19
Consultar capítulo 2, item 2.3.
121
dá somente fora da academia, pois esses atores, quando se fazem presentes nesse
espaço, também acabam questionando o establishment acadêmico.
A acusação de comprometimento político dos intelectuais favoráveis às cotas é
descrita da seguinte forma reducionista por Fry em entrevista ao Jornal “Liberal”
(2006): “Não é todo mundo que pensa o Brasil como um país dividido nessas duas
categorias [negros e brancos]. Essa noção é, sobretudo de certos intelectuais e
militantes do movimento negro”. No Livro A persistência da raça (2005), o autor
também faz referência ao “crescimento paralelo de um movimento negro articulado
que, em geral, tem-se aliado fortemente aos pesquisadores acadêmicos” (FRY,
2005, p. 223).
A denúncia de Fry a respeito da aliança de alguns pesquisadores com o
movimento negro está alicerçada em sua pressuposta posição de acadêmico, pois
não considera como política a sua postura. Seu pronunciamento na 58ª Reunião
Anual da SBPC
20
em Florianópolis é exemplar:
Eu não vou bater pé sobre nenhuma plataforma política, Deus me livre, eu
sou universitário, tenho as minhas convicções que vêm da minha
antropologia e apenas gostaria de terminar dizendo que eu tenho uma
posição duvidosa em relação a isso, duvidosa porque eu não tenho certeza
de nada (...) Tenho pavor de certeza, da agressão, da agressividade, da
desqualificação, tenho pavor disso, porque sou acadêmico, eu não
sou político (grifo meu).
O antropólogo, apesar de ter ajudado a formular um manifesto contra esse tipo
de política pública, que foi entregue ao presidente da Câmara Federal e do Senado,
não avalia a sua atitude como um ato político, mas acadêmico, pois suas convicções
não são suas e sim, da “sua antropologia”. Sua retórica é justamente desvencilhar-
se de um comprometimento político e apelar para sua condição de intelectual e
acadêmico.
Um último ponto referente à relação entre pesquisadores e militantes de
movimentos sociais é que, apesar de muitos intelectuais signatários do manifesto
contrário às cotas questionarem a legitimidade dos argumentos daqueles que se
20
Transcrição integral da fita – feita pela pesquisadora – da Mesa Redonda promovida pela ABA: “As
novas inflexões raciais no Brasil”. 58ª Reunião Anual da SBPC. Sexta-feira, 21/07/2006 – 16:00
horas – Auditório Laranjeira: Centro de Cultura e Eventos – UFSC.
122
posicionam favoravelmente, porque eles estão influenciados por agentes externos à
academia, no ato de entrega do manifesto ao então presidente do Senado, Renan
Calheiros, eles se fizeram acompanhar de um militante do Movimento Negro
Socialista (MNS), José Carlos Miranda, assumindo uma posição contraditória em
relação à retórica que utilizam.
Ainda em relação à tese da futilidade, uma última característica revelada por
Hirschman se refere à possibilidade de conjunção de argumentos “radicais” e
conservadores. De acordo com a proposição de Hirschman (1992), pessoas que
utilizam argumentos “radicais” ou marxistas muitas vezes censuram aqueles
caracterizados como progressistas ou reformistas por ignorarem as estruturas
básicas da sociedade. Ainda seguindo o raciocínio de Hirschman (1992, p. 59):
Mas não seria a primeira vez que os ódios compartilhados forjam estranhas
camaradagens. O ódio compartilhado, neste caso, é dirigido contra a
tentativa de reformar alguns aspectos negativos ou injustos do sistema
capitalista, por meio da intervenção e programas públicos. Na extrema
esquerda, tais programas são criticados por temor de que qualquer
sucesso que venham a ter diminua o zelo revolucionário. Na direita, eles
são submetidos a zombaria e críticas porque qualquer intervenção do
Estado (...), é considerada uma interferência nociva ou fútil em um sistema
que supostamente se auto-equilibra.
Alguns intelectuais que se consideram de esquerda, bem como certos setores
da sociedade – como algumas vertentes da esquerda e da extrema esquerda – são
contrários à aplicação de políticas de cotas justamente porque não atacam as
estruturas sociais básicas, que, segundo suas avaliações, estão intrincadas no
sistema de exploração capitalista. De acordo com essa visão, o principal problema
do Brasil seria a desigualdade social, analisada através de uma perspectiva de
classe. Resolvendo-se essa questão, não haveria necessidade de políticas
específicas voltadas para a população negra. Essa é a posição do geógrafo
Demétrio Magnoli, que vem se pronunciando periodicamente na mídia a respeito da
política de cotas:
123
[...] Os movimentos negros parecem satisfeitos com benesses para uma pequena parcela da
classe média negra. Porto Alegre do PT e a Bahia de ACM, pioneiros das cotas, mostram o
caminho: conceder empregos públicos ou vagas nas universidades para um punhado de
negros custa pouco e faz barulho. A política de cotas destina-se a adiar para um futuro
incerto os investimentos maciços em saúde, educação e emprego que interessam de fato aos
negros (e brancos) pobres (MAGNOLI, 2003, p. 03).
Em entrevista ao jornalista Alexandre Garcia no dia 30 de agosto de 2006, em
um programa da Globonews, o representante do “Movimento Negro Socialista
21
”,
José Carlos Miranda utiliza-se da mesma lógica argumentativa de Magnoli. Em seu
pronunciamento, a “estranha camaradagem” a qual Hirschman faz referência torna-
se explícita. A retórica conservadora une-se à retórica de esquerda em oposição à
implementação das cotas e do Estatuto da Igualdade Racial. A seguir, seguem
trechos da entrevista:
[...] a maioria do movimento negro apóia as cotas, abandonou a luta por
uma sociedade igual, igualitária.
[...] o sistema de cotas. Isso só levaria a uma situação de conflito e de
oposição entre negros e brancos. A entrega do nosso manifesto, a
participação do “Movimento Negro Socialista” (...) escancarou essa
situação para toda a sociedade.
[...] Eu enquanto militante negro digo o seguinte: ele vai pegar [o sistema
de cotas] os negros mais preparados, os que têm mais sorte, os mais
cultos, inclusive, alçar eles, em vez de preparar a luta do nosso povo para
que melhore todo o povo negro e pobre e os brancos também, em vez de
liderar esse movimento, ele [o negro] vai ser alçado a morar em Moema, a
ser integrado pelo sistema, não combatendo a desigualdade.
A posição de Miranda está ancorada em um discurso que avalia as políticas
de ação afirmativa enquanto políticas restritas a grupos específicos e que, por esse
motivo, restringem o caráter universal das lutas de classes.
Em um outro momento, Miranda (2007, p. 321) revela o elo existente entre as
políticas de ação afirmativa e o capitalismo. Para ele, uma conspiração quase fatal.
21
É instigante o fato de o Movimento Negro Socialista (MNS) ter sido criado no dia 13 de maio de
2006 e que o manifesto contrário às cotas tenha sido entregue no dia 29 de junho do mesmo ano.
Além disso, não pode passar despercebida a data de 13 de maio (Abolição da Escravidão),
questionada por praticamente todas as organizações do movimento negro brasileiro, pelo menos a
partir de sua reestruturação no final da década de 1970, que preferem ressaltar o dia 20 de maio –
data da morte de Zumbi dos Palmares – transformado no “Dia da Consciência Negra”, para a
criação desse recentíssimo movimento social. Para maiores detalhes sobre a organização
consultar a página http://www.otrabalho.org.br/mov_negro.htm
124
Realmente, é uma idéia genial dos capitalistas [as ações afirmativas] para
avançar em seus planos. É impressionante como gente que se diz de
esquerda apóia essa manipulação antidemocrática. Afinal, com essas
políticas afirmativas o governo continua alimentando o superávit primário
para pagar a dívida interna e externa, não cria mais vaga alguma, não cria
mais empregos, não melhora o serviço público e ainda por cima cria as
condições de “guerra” entre os oprimidos.
No mesmo livro, Divisões perigosas (2007), o cientista político César
Benjamin, que em 2006 concorreu ao cargo de vice-presidente da República no
Brasil, na chapa de Heloisa Helena, do Partido Socialista e Liberdade (PSOL),
também se manifesta contrário à implantação desse tipo de medidas. De acordo
com sua interpretação:
Como resultado [do processo de miscigenação]. Não somos nem brancos
nem negros – somos mestiços. Biológica e culturalmente mestiços. Aqui,
mais do que em qualquer outro lugar, a tentativa de construir uma
identidade baseada na “raça” é especialmente reacionária. A afirmação,
que tantas vezes ouvi, de que o Brasil é o país mais racista do mundo é
uma patética manifestação de nosso esporte favorito – falar mal de nós
mesmos (BENJAMIN, 2007, p. 33).
Raymond Plant (1997) afirma em seu texto sobre cidadania e mudança
política, que há uma tensão entre um projeto de esquerda que está ancorado em
uma idéia de “identidade comum” e o reconhecimento da importância da diferença
nas sociedades. Para o autor, não há como partir da abordagem marxista tradicional
para resolver esse dilema. Se o “universalismo pós-iluminista” (Hall, 2000, p. 77) e
liberal pode ser contestado porque se forjou por meio de uma idéia de “integridade
cultural da nação” (Hall, 2000, p. 53), ou seja, a partir da imagem de “uma
homogeneidade cultural ampla entre os governados” (Hall, 2000, p. 77), o projeto
político da esquerda também pode ser questionado ao presumir uma identidade
comum entre as pessoas fundamentada em questões materiais e econômicas como
principais fontes de opressões.
Esse pensamento que identifica apenas uma forma de opressão ainda
predomina em alguns setores da esquerda e acaba por promover um processo de
supressão de outras formas “particulares” de opressão, se utilizarmos a linguagem
marxista. Pensar, portanto, no reconhecimento das múltiplas identidades e formas
de opressão presentes em sociedades multiculturais, implica em um questionamento
tanto do universalismo liberal quanto da crítica marxista tradicional, que vê como
125
único obstáculo à emancipação humana a infra-estrutura de exploração
característica do capitalismo.
A idéia de que as reivindicações por reconhecimento de direitos relacionados
à identidade étnica acabam por solapar um projeto de igualdade que provém das
esquerdas
22
é difundida por pensadores importantes como, por exemplo, Eric
Hobsbawn (1996). O autor questiona o uso de identidades como forma de luta
política e considera a emergência de identidades um problema para o projeto
universal da esquerda. Essa identidade comum, base do projeto da esquerda, é
fissurada pela questão da diferença manifesta nas múltiplas formas pelas quais as
pessoas definem suas identidades. As identidades plurais dividem em termos
particulares uma pressuposta condição comum de luta contra a exploração. Além
disso, o autor considera essas “identidades” como “peças de roupas”
intercambiáveis, destituindo, dessa forma, a dimensão política presente nessas
outras formas de identificação que não aspiram a uma vocação universal. Ainda de
acordo com sua interpretação, os grupos identitários nunca foram centrais para a
esquerda, pois ela não pode estar ancorada em identidades políticas mais
específicas, visto que sua agenda é muito mais ampla. Finalmente, o autor
argumenta que no momento em que as pessoas têm que assumir somente uma
identidade, isso acaba dividindo-as e tornando-as isoladas das demais.
É possível perceber que os discursos de uma parte da esquerda e o
conservador se conjugam em alguns pontos no debate sobre ações afirmativas.
Essa configuração encontrada por Hirschman se repete em um local e em um tempo
histórico bastante diferenciados daqueles pesquisados pelo autor, ou seja, o
contexto brasileiro e a discussão acerca das políticas de ação afirmativa no ensino
superior público.
4.2.3 A tese da ameaça
A última tese pertencente à retórica conservadora é a da ameaça. É também
aquela que mais aparece nos depoimentos e artigos dos intelectuais contrários às
ações afirmativas. Essa terceira forma discursiva assegura que a mudança, mesmo
22
Uma abordagem semelhante a essa é feita por PIERUCCI, Antônio Flávio, no livro Ciladas da
diferença. São Paulo: Editora 34, 1999.
126
que desejável, terá custos e/ou conseqüências que não podem ser aceitos. Há
componentes perigosos que inevitavelmente surgirão com a aplicação de certas
medidas. No caso das cotas, alguns autores como Peter Fry e Yvonne Maggie
apontam que essa é uma política de alto risco, porque irá instituir, em âmbito federal,
o negro como figura jurídica. Com isso, ao invés de se ignorar a raça como critério
de classificação e de concessão de direitos, o Estado vai “entronizar” a raça como
forma de definição social, provocando a divisão do país em grupos raciais distintos.
Conforme os dois autores, esse tipo de ação traz mais dor do que alívio aos
problemas que pretende resolver. Essa é também a apreciação de Eunice Durham
(2003, p. 07), conforme se pode observar na citação a seguir:
Um novo apartheid, mesmo que mais favorável aos afrodescendentes do
que a situação atual, pode perfeitamente incentivar o preconceito e criar
situações permanentes de conflito étnico. Não creio que essa seja uma
solução factível e nem aceita pelo conjunto da população que reconhece
sua ascendência africana [...]
23
.
Posturas como a da antropóloga Eunice Durham não são novas entre os
intelectuais brasileiros. Guimarães (1999) chama a atenção para uma carta aberta
da escritora Rachel de Queiroz, publicada no jornal Diários Associados em 1968, e
endereçada ao então ministro do Trabalho, Jarbas Passarinho. Essa carta
demonstra a indignação da escritora em relação ao comentário de técnicos do
Ministério do Trabalho a uma reportagem sobre discriminação racial no mercado de
trabalho. Os técnicos apresentavam uma posição favorável ao estabelecimento de
uma lei em que as empresas consignassem determinado percentual de pessoas de
cor em seus quadros. Assim se expressa a escritora:
23
Em oposição à opinião expressa por Durham, o Instituto Datafolha realizou uma pesquisa – que
ouviu 6.264 eleitores, a partir de 16 anos de idade, nos dias 17 e 18 de julho, em 272 municípios –
cujos resultados demonstraram que a maioria do eleitorado brasileiro – (65%) – é a favor de que
20% das vagas em universidades públicas e particulares sejam reservadas para pessoas negras e
seus descendentes.
127
Pois na verdade o que não pode, Sr. Ministro, é pactuar com o crime,
discutir com a discriminação, reconhecer a existência da discriminação [...]
E eu digo mais: é preferível que continue a existir discriminação encoberta
e ilegal, mesmo em larga escala, do que vê-la reconhecida oficialmente
pelo governo – já que qualquer regulamentação importaria num
reconhecimento [...]. Como é que a gente iria distinguir entre nós quem é
negro e quem não é? Nos Estados Unidos, na África do Sul, há uma rígida
linha de cor: nesses lugares se considera negro quem não é cem por cento
branco. Aqui, a tendência é considerar branca toda a pessoa que não for
ostensivamente de cor. A maioria esmagadora de nossa população é
constituída de mestiços: somos realmente um país de mestiços. E esses
mestiços todos, como é que seriam enquadrados? (QUEIROZ apud
GUIMARÃES, 1999, p. 167-68).
Há inúmeras citações dos intelectuais críticos às ações afirmativas que
desejam mostrar seu efeito perigoso para a sociedade como um todo. Fry e Maggie
(2006) assumem a seguinte postura:
Esses projetos também são projetos distintos de nação. Um é o ovo da
serpente de uma nação pautada nas diferenças “étnico-raciais”. O outro
aposta em uma nação de cidadãos iguais quanto a direitos,
independentemente de “raça”, “etnia”, gênero, orientação sexual etc. [...]
(grifo meu) (FRY e MAGGIE, jornal O Globo, 11 de abril de 2006).
Demétrio Magnoli, na audiência pública realizada na Câmara dos Deputados no
dia 25 de abril de 2006
24
, utiliza a mesma expressão “ovo da serpente” ao se referir
às mudanças que as cotas e o Estatuto da Igualdade Racial podem provocar na
sociedade brasileira:
No Brasil nós estamos assistindo ao início desse processo [construção de
identidades], é o ovo da serpente (grifo meu), o Estado brasileiro adotou
uma ideologia racial, decidiu que vai classificar os cidadãos em todos os
seus documentos (...). decidiu que a partir de agora os brasileiros se
identificarão por raças inventadas de cima para baixo.
O historiador Manolo Fiorentino, em entrevista ao Jornal Folha de São Paulo,
também alerta para o perigo iminente das ações afirmativas para um país como o
Brasil:
24
Depoimento proferido em Audiência Pública na Câmara dos Deputados, realizada com o objetivo
de discutir a reserva de vagas no ensino público superior federal, em 25 de abril de 2006.
Gravação em fita VHS enviada pela Assessoria de Comunicação da Câmara dos Deputados.
128
Mas o que está se agravando nesse ambiente histérico, é uma coisa que já
alertamos há muito tempo: cuidado, porque, ao criar um Brasil bicolor, você
vai acabar exacerbando ódio onde não existe. O Brasil é um país racista,
mas o ódio racial está sendo implementado com essa discussão meio
enviesada realizada por diversos segmentos, inclusive pelo Estado
brasileiro. Essa coisa estranha que chamam de afro-brasileiro, coisa que
eu nunca vi. Nunca vi um afro-brasileiro. Eu conheço brasileiro (Folha de S.
Paulo, 17 de abril de 2005).
As ações afirmativas não dariam certo no Brasil, segundo as avaliações desses
estudiosos, devido a particularidades específicas do nosso país, como o fato de que
no Brasil não teria havido discriminação do ponto de vista legal ou de que aqui
nunca teria havido ódio ou conflito racial. De acordo com essa visão, o Brasil é um
país mestiço, híbrido e não “feito de grupos étnicos estanques” (Fry, 2005).
Essa interpretação vai ao encontro do último ponto referente à tese da ameaça:
ela geralmente encontra-se associada “com imagens mentais fortemente
enraizadas” (Hirschman, 1992, p. 104), que envolvem de maneira intensa um
imaginário social há muito tempo instituído. A tese da ameaça, “requer como pano
de fundo um cenário no qual exista a memória viva de realizações anteriores
altamente apreciadas” (HIRSCHMAN, 1992, p. 107). No debate sobre as cotas no
Brasil toca-se especialmente em uma imagem de nação até então considerada
altamente positiva. A implementação de políticas de ação afirmativa implica colocar
em dúvida o discurso harmonioso a respeito da formação do Brasil. Muitas matrizes
interpretativas sobre a formação da nação brasileira – como, por exemplo, a obra de
Gilberto Freyre e, mais recentemente, a retomada que Peter Fry faz das idéias do
sociólogo pernambucano –, auxiliaram na criação e manutenção de um imaginário
em que a constituição do país aparece como um processo não-conflitivo, no qual as
desigualdades são reinterpretadas de maneira positiva. Segundo os autores
solidários a esse pensamento, as ações afirmativas afetariam diretamente esses
princípios de convivência fraterna e provocariam conflitos entre os diferentes grupos
étnico-raciais, fato que para eles não ocorria anteriormente. É o que demonstra a
citação a seguir:
129
As medidas pós-Durban, ao proporem ações afirmativas em prol da
“população negra”, rompem não só com o a-racismo e o anti-racismo
tradicionais, mas também com a forte ideologia que define o Brasil como
o país da mistura, ou, como preferia Gilberto Freyre, do hibridismo.
Ações afirmativas implicam, evidentemente, imaginar o Brasil composto
não de infinitas misturas, mas de grupos estanques: os que têm e os que
não têm direito à ação afirmativa, no caso em questão, “negros” e
“brancos”... (grifo meu) (MAGGIE e FRY, 2004, p. 68).
O tipo de discurso que apela a um imaginário social há muito tempo instituído
e sobre o qual há um relativo consenso, também pode ser classificado dentro dos
tratados de retórica como epidíctico. Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996) asseveram
que ele tem por principal função aumentar a adesão do auditório a determinados
valores que já são comuns e sobre os quais há uma certa concordância. O discurso
epidíctico, portanto, visa especificamente um aumento na adesão àquilo que já é
aceito. Por esse motivo, os argumentos daqueles que introduzem alguma
dissonância a respeito desses valores serem qualificados como abusivos.
Uma característica sumamente apreciada pelos partidários da retórica
conservadora e que possui um relativo apelo em relação a determinadas parcelas da
população é a formação mestiça do povo brasileiro. Uma das matérias mais
ilustrativas sobre o precioso valor da mestiçagem para o Brasil foi publicada no
Caderno Mais do jornal Folha de S. Paulo
25
. O texto de autoria do antropólogo
Hermano Vianna tem o seguinte título: “Mestiçagem fora do lugar”. Depois de narrar
sua experiência nos Estados Unidos e dar a entender ao leitor que houve um certo
exagero nas políticas de ação afirmativa naquele país, Vianna passa a tratar do
principal tema da matéria. Ele demonstra como a mestiçagem é um dos atributos
que mais deveria ser valorizado no país, pois além de constituir uma arma do anti-
racismo, é uma das qualidades que nos diferencia das demais nações.
25
Apesar de a matéria principal tratar da mestiçagem, a capa contém o temeroso título: “Cotas da
discórdia: o risco da reserva de vagas nas universidades do Brasil”. Percebe-se, portanto, que a
tese da ameaça é uma estratégia constantemente utilizada tanto pelos intelectuais contrários às
cotas quanto pela mídia em geral. O título da matéria já anuncia uma posição contrária à reserva
de vagas. Além disso, a foto da capa mostra pessoas negras acorrentadas com a seguinte legenda
em caracteres pequenos: “Manifestação a favor da política de cotas para negros no vestibular, em
SP”. O que chama a atenção, no entanto, é que o olhar do leitor capta primeiramente as correntes
e, logo abaixo, a frase em caixa alta e letras coloridas: “COTAS DA DISCÓRDIA” (Caderno Mais,
jornal Folha de S. Paulo, 27 de junho de 2004).
130
Mesmo assim devo confessar, talvez pela última vez, minha diferença
fundamental em relação aos advogados das cotas. É a confissão de algo
que no ambiente político atual está se transformando em pecado: gosto de
mestiçagem, gosto também da idéia de que até agora o melhor do Brasil foi
produzido sobretudo pela valorização da mestiçagem. Nunca achei que
valorizar a mestiçagem fosse sinônimo de defender a idéia de que vivemos
numa democracia racial. Entendo até que o elogio da mestiçagem possa
ser usado ou tenha sido usado por algum ignorante (entre eles não estava
Gilberto Freyre) que queria provar a inexistência de racismo no Brasil. Mas
nunca foi a maneira como lidei com o assunto: para mim a valorização da
mestiçagem é uma das armas mais poderosas para serem usadas no
combate anti-racista, no Brasil ou fora do Brasil (VIANNA, 2004, p. 06).
Vianna (2004, p. 06) prossegue seu argumento mostrando como estamos
prestes a colocar a melhor virtude brasileira no lixo:
Se adotarmos, aqui embaixo, como já aparentemente adotamos, o “branco
é branco, preto é preto”, classificando pardos (e a tal da mulata) como
pretos, certamente perderá força uma alternativa “indefinida” para o mundo.
Talvez essa alternativa indefinida, mesmo ainda mais radicalizada para
ficar absolutamente clara sua postura anti-racista, seja menos eficaz – no
combate contra o racismo – que o caminho proposto pela experiência
norte-americana. Mas quem pode saber com certeza? E se estamos
jogando no lixo a melhor alternativa, como se fosse fácil demais ser
mestiço quando – repito – não é e nem nunca foi, pois para o pensamento
dominante ocidental é muito mais fácil ser “definido?”
Os discursos eloqüentes relacionados à mestiçagem como uma das
características que confere originalidade, distinção e identificação ao Brasil, são
reproduzidos numa variedade de publicações posteriores. No livro Divisões
perigosas: Políticas raciais no Brasil contemporâneo (2007), organizado por Fry,
Maggie, Maio, Monteiro e Santos, há um conjunto de citações de vários autores que
se referem à transformação e/ou destruição de concepções sumamente enraizados
ao imaginário nacional. A publicação como um todo demonstra com nitidez a opção
dos autores pela retórica da ameaça. O título da obra não poderia ser mais
ilustrativo. Já no preâmbulo do livro, Bila Sorj, José Carlos Miranda e Yvonne Maggie
(2007, p. 14) alertam para o perigo contido nas políticas de ação afirmativa. Em
relação à entrega do manifesto, assim se pronunciam:
131
A repercussão da entrega da carta gerou um intenso debate sobre os dois
projetos na medida em que falam sobre o país que queremos ter e mexem
com concepções caras ao povo brasileiro. Os projetos pretendem, em
suma, transformar a nação brasileira em uma nação dividida em duas
metades – uma feita de brancos e a outra, de negros. Trata-se de uma
proposta de engenharia social que torna a racialização da sociedade legal
e obrigatória (grifo meu).
O problema com relação ao projeto que estabelece cotas para as
universidades federais e com o Estatuto da Igualdade Racial, segundo esses
mesmos autores, é que eles acabariam com uma determinada visão de realidade:
Todavia, basta olhar o metrô lotado da hora o rush, nas turmas das escolas
públicas e nas favelas, para ver que brasileiros de todos os tons de pele,
de negros retintos a loiros de olhos azuis, se misturam. Na periferia, negros
e brancos pobres tomam cerveja juntos, trabalham juntos, batem uma bola
juntos, “brigam” juntos, brincam juntos, vivem juntos em famílias em que há
brancos, negros e toda a sorte de misturas (SORJ, Bila; MIRANDA;
MAGGIE, 2007, p. 14).
Aliás, a alusão à amistosa convivência entre negros e brancos em botecos é
bastante comum entre os autores que partilham da retórica conservadora. O
jornalista econômico Luis Nassif (2007, p. 175) também se refere a essa situação na
mesma obra supracitada:
Freqüento botecos em que convivem brancos, pardos e negros, em que
posso chamar o Almeida de negão sem ser acusado de racismo, assim
como ele pode me chamar de turco. Tenho liberdade para lhe dizer que
negão só faz besteira; ele de me ameaçar com um navio branqueiro
quando tomar o poder, sem precisar dar satisfação de nossa amizade e
nossas brincadeiras a nenhum centurião do politicamente correto.
Peter Fry narra no livro A persistência da raça (2005, p. 201), que após ele e
um amigo negro terem sofrido uma “batida” policial, ele havia “ficado arrasado por ter
escrito um artigo apelando para as virtudes da democracia racial!” Porém, após o
triste incidente, ocorreu um outro fato que o tranqüilizou, fazendo com que não se
arrependesse do que havia escrito:
132
De volta à cidade, entramos em um botequim. Um botequim cheio de gente
de todas as aparências possíveis, velhos e moços, mulheres e homens de
todas as cores possíveis. O ambiente de convivência bem-humorada foi o
mais perfeito antídoto para a batida policial (FRY, 2005, p. 201).
Na interpretação desses autores, a suposta cordialidade existente no Brasil
advém do processo de miscigenação existente no país desde a sua colonização. A
miscigenação – a mistura, a mestiçagem – é a principal herança que confere
positividade ao nosso passado, ao presente e, quiçá, ao futuro. Ela também é
responsável pelo processo não-conflituoso de integração nacional. É importante
assinalar que os autores não recorrem mais ao conceito de democracia racial como
forma de aludir ao sistema flexível de classificação e de relações raciais atuante no
país, tal conceito é substituído pelo de mestiçagem. Assim se pronuncia Góes (2007,
p. 59): “O Brasil pode vir a se tornar um país dividido entre negros e brancos, sim,
trocando a valorização da mestiçagem pelo orgulho racial”.
E Fiorentino:
Gilberto de Mello Freyre é autor da mais revolucionária tese produzida pelo
pensamento social brasileiro no século XX – a de que somos o resultado
da mistura “vitoriosa e quase livre” entre o aborígene despreparado para
resistir ao contato dissolvente com o europeu, o português mestiço e
plástico antes mesmo da aventura atlântica e o africano escravizado, este o
molde mais perene da nossa civilização mestiça (FIORENTINO, 2007, p.
93).
Mais adiante o autor complementa:
Por meio da prosa desconcertante e bela de Gilberto Freyre, de
abastardante a miscigenação virou elemento civilizacional positivo e
válido. E além de válido, valioso (grifo meu) (FIORENTINO, 2007, p. 93).
O antropólogo George Zarur
26
(2007, p. 129-130) também faz referência ao
valor positivo da miscigenação:
26
George Zarur é antropólogo, professor adjunto do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e
Tecnologia e consultor legislativo da Câmara dos Deputados.
133
O Brasil nega sua identidade ao abandonar a miscigenação como valor
central à sua cultura (...). Assim, em vez de resgatar nossa identidade de
nação brasileira – barco do qual somos todos passageiros e tripulantes –,
querem acabar com nosso projeto cultural de muitos séculos e
construir nações separadas de negros e de brancos, como acontece
nos Estados Unidos (grifo meu).
Na opinião de Bernando Sorj (2007, p. 274): “Na atualidade, essa visão de
criação de uma ‘nova civilização tropical’, orientada para o futuro e integradora das
diversas tradições culturais, está sendo colocada em xeque”.
O autor complementa seu raciocínio afirmando:
Sem entrar em detalhes sobre problemas práticos de implementação
destas políticas em uma população majoritariamente miscigenada,
interessa aqui notar o potencial destrutivo que elas podem ter em
relação ao mito nacional construído no século XX (grifo meu) (SORJ,
2007, p. 274).
E, para finalizar:
A cultura brasileira absorveu abertamente componentes africanos, de
forma que, no limite, todos os brasileiros podem clamar um pertencimento
afro-brasileiro. A miscigenação, que se inicia bem antes do fim da
escravidão, é um fenômeno de longa duração que deu origem a uma
sociedade em que a maioria da população possui ancestrais negros, índios
e europeus. Somente ela explica a integração profunda de padrões de
sociabilidade africana na sociabilidade brasileira (grifo meu) (SORJ,
2007, p. 275).
É preciso analisar o ambiente acadêmico em que a visão de um Brasil
mestiço foi e continua sendo produzida. A discussão de políticas de ação afirmativa
nas universidades, mais especificamente das cotas para estudantes negros, de
acordo com a antropóloga Rita Segato (2006, p. 233), demonstra a dificuldade de
aceitação dentro do ambiente acadêmico de que “dissidências de ordem ética e
política” não se resumem a “problemas de etiqueta”. Ou seja, da mesma forma que a
teoria da mestiçagem evita o afloramento de identidades étnicas e políticas distintas,
de disputas entre projetos diferentes de nação, também se tenta evitar no meio
acadêmico o afloramento de visões e projetos de mundo antagônicos, de diferenças
entre valores e sensibilidades éticas em relação aos problemas vivenciados no país.
134
Conforme a conclusão de Segato (2006, p. 233): “Teme-se e evita-se a discussão do
projeto de cotas no meio acadêmico brasileiro porque se trata de um campo de
discussões apaixonadas que expõem claramente a persistência de oposições
irredutíveis a respeito do que é positivo para a nação”.
Pelo que foi possível constatar a partir das citações anteriores, a idéia de
mestiçagem não se apresenta, para os representantes da retórica conservadora,
compatível com situações conflituosas. Pelo contrário, foi ela que proporcionou a
existência de uma convivência amistosa entre os “diferentes” no Brasil. Esse é um
dos motivos da não-aceitação das cotas por parte de muitos cientistas sociais. O
principal argumento por eles utilizado é de que as cotas trarão o conflito, que
anteriormente não existia. A possibilidade de conflito provoca uma espécie de curto-
circuito na forma de interpretação das relações sociais no Brasil.
O incitamento a situações de conflitos
27
não diz respeito exclusivamente a
esse tipo de ação afirmativa, pois a mesma argumentação é utilizada com relação à
27
É isso que podemos observar na citação abaixo, feita em uma audiência pública organizada pelas
Comissões de Constituição e Justiça e de Finanças e Tributação da Assembléia Legislativa para
discutir sobre os impactos e reflexos gerados na economia do Estado de Santa Catarina em virtude
do impasse gerado pelos quilombos, realizada no dia 8 de março de 2007, às 18 horas, no
município de Campos Novos. No caso em questão, a Associação Quilombola da Invernada dos
Negros está solicitando ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – SC (Incra/SC) a
regularização e a titulação das suas terras em conformidade com o Decreto 4887, de 2003, que
prevê a identificação, regularização e titulação de terras de comunidades remanescentes de
quilombos. O Incra/SC iniciou o processo de regularização dessas terras em 2006. Mas o processo
tem provocado o acirramento de conflitos em torno do reconhecimento do direito a terras coletivas
dessa comunidade no contexto local.
O Sr. Presidente (deputado Romildo Titon) - Primeiramente fará o uso da palavra o senhor Luiz
Carlos Manica, presidente da Associação dos Legítimos Proprietários de Terras da Antiga Fazenda
São João, por até 10 minutos.
O Sr. Luiz Carlos Manica – Boa tarde a todos. Gostaria de agradecer aos deputados essa aula de
cidadania. Santa Catarina está dando um exemplo muito grande, e gostaria que todos os estados o
seguissem. Gostaria de entregar ao deputado Romildo um abaixo-assinado com mais de seis mil
assinaturas, colhidas pelos nossos associados, reclamando o nosso direto à propriedade privada, o
direito de ir e vir, um tratamento igual, como disse muito bem o procurador federal aqui presente.(O
senhor Luiz Carlos Manica faz a entrega de vários documentos ao deputado Romildo Titon,
presidente da audiência pública e da Comissão de Constituição e Justiça.). Quero entregar
também algumas cartas que recebi de diversas entidades aqui de Campos Novos manifestando-se
favoráveis à nossa associação: Rotary Clube de Campos Novos; Associação Rural e Cultural
Camponovense; Cocam; Sindicatos de Produtores Rurais de Campos Novos; Lions Clube Campos
Novos; Lions Clube Centenário; Câmara de Dirigentes Lojistas de Campos Novos; ARLS Silêncio e
Fraternidade; Cooperativa de Campo Novos, a CooperCampos. Por fim, agrega-se a esses
documentos todos uma nota de esclarecimento vinda dos Sindicatos dos Trabalhadores das
Indústrias de Construção e Imobiliário de Campos Novos. Hoje estamos aqui não por vontade
própria, estamos aqui porque fomos colocados nessa situação. Nós estávamos muito tranqüilos
trabalhando em nossas propriedades (grifo meu), e hoje estamos aqui vendo o nosso direito de
propriedade privada... São 192 escrituras que serão anuladas, ou melhor, desapropriadas. Onde
está o direito à propriedade privada das pessoas aqui presentes? Vocês gostariam que entrassem
em suas casas e dissessem "meu amigo, saia daqui porque agora tem outro dono, e vou te pagar o
135
titulação de terras de comunidades quilombolas no país
28
. Por isso, não é possível
analisar, conforme fazem alguns autores, as cotas como uma política independente
das demais. Há um processo em curso no país em que grupos que até então
estavam excluídos de muitos direitos de cidadania estão reivindicando esses
direitos. Tais reivindicações afetam muitos interesses, não só dentro das
universidades, mas em vários lugares, posições e segmentos da sociedade.
É possível concluir que a mesma interpretação, ou seja, de que as mudanças
proporcionadas pela implementação de ações afirmativas podem causar conflitos, é
usada tanto por intelectuais quanto por setores que vêem seus interesses usurpados
nesse processo
29
.
A percepção sobre o conflito dos intelectuais contrários às ações afirmativas é
de algo perturbador da ordem social. Ele possui um caráter de patologia social,
conforme determinam os teóricos funcionalistas e estrutural-funcionalistas.
Entretanto, o conflito
30
também pode conter um papel construtivo dentro da teoria
que eu quiser"? Vocês não gostariam. Nem o pessoal da Associação da Invernada dos Negros
gostaria. (...) Onde está o direito da nossa igualdade de tratamento?! Quero dizer a vocês que até
hoje todos viveram de forma pacífica e se trataram muito bem. Não há registros de conflito com o
pessoal da Invernada dos Negros nem com o nosso pessoal de associação. Porque agora a nossa
associação só existe a partir de outubro de 2006 (grifo meu).
28
Em Santa Catarina os estudos realizados para dar suporte ao processo de titulação de terras de
comunidades quilombolas foram realizados através de convênio firmado entre Núcleo de Estudos
sobre Identidade e Relações Interétnicas – NUER (UFSC) e o Incra/SC, para compor o Relatório
Técnico de Identificação (RTI) em conformidade com o Decreto 4887 de 2003 ITR. Para maiores
informações consultar: MOMBELLI, Raquel. Relatórios Antropológicos. Invernada dos Negros.
Boletim Informativo NUER, Florianópolis, vol. 03, n. 03, 2006.
29
Um elemento importante no debate sobre as ações afirmativas é a constatação de que os mesmos
argumentos contrários e favoráveis a essa política utilizados pelos intelectuais porta-vozes na
mídia das duas posições, também são usados por outros grupos presentes na universidade e fora
dela. Depois de uma pesquisa informal realizada com estudantes da UFSC nos dois semestres de
2006. foi possível verificar a existência de uma espécie de circulação discursiva a respeito do tema.
O estudo exploratório foi realizado em algumas turmas dos seguintes cursos: curso de Educação
Física (duas turmas), curso de Odontologia (uma turma), curso de Ciências Contábeis (uma turma)
e curso de Biblioteconomia (uma turma). O procedimento utilizado foi fazer uma breve exposição
sobre o tema para, em seguida, debater com os estudantes. Percebe- se que há uma expressiva
recepção por parte dos estudantes da argumentação contrária às cotas. Isso não significa,
entretanto, que eles estejam se posicionando dessa forma apenas porque a grande mídia divulga
mais sistematicamente esse tipo de argumentação. Mas sim, que os discursos contrários vão ao
encontro de um tipo de pensamento que resiste a esse tipo de medida. Em outras palavras, a
adoção por parte dos estudantes de uma posição contrária ao estabelecimento de uma política de
cotas demonstra o enraizamento de um pensamento que reproduz algumas idéias correntes sobre
o país, relacionadas à mestiçagem, à integração igualitária dos diferentes grupos na sociedade e à
ausência de conflitos sociais, entre outras. No estudo exploratório verificou-se que os discursos
dos estudantes da UFSC muitas vezes são retoricamente menos elaborados, mas em seu cerne
mantêm o mesmo significado que aqueles produzidos pelos intelectuais.
30
Os conflitos, na conceituação de Pasquino (1996), consistem em elementos não-elimináveis e que
conduzem a mudanças sociais. Eles poderão ser desviados, sufocados, mas dificilmente serão
totalmente suprimidos. Os instrumentos políticos dos sistemas contemporâneos procuram
136
sociológica e se constitui em uma das principais formas de interação social. De
acordo com a periodização proposta por Hirschman (1995), a primeira contribuição
acerca do conflito como um fator positivo veio de Heráclito, que afirmava: “o combate
é pai de todas as coisas” (HERÁCLITO apud HIRSCHMAN, 1995, p. 36). Depois
prossegue com Maquiavel, para quem “a desunião entre Plebe e Senado tornou a
República [Romana] livre e poderosa” (MAQUIAVEL apud HIRSCHMAN, 1995, p.
37). Porém, um dos principais autores que tratou sobre a função positiva do conflito
foi Georg Simmel
31
.
Para Simmel (1983), o conflito teria como finalidade a possibilidade de
resolução de “dualismos divergentes”. Nesse caso, ele não é considerado uma
patologia ou algo nocivo à vida social. Pelo contrário, é necessário como uma das
formas de manter o consenso e a coesão sociais. Na interpretação de Simmel,
qualquer sociedade necessita de fatores positivos e negativos para se manter, e a
interação desses fatores resultará em algo positivo. É claro que o autor reconhece
que alguns tipos de conflitos são totalmente excludentes e aniquiladores. No
entanto, se houver qualquer condição de limite à violência, já existe, na visão de
Simmel (1983, p. 132) “um fator socializante”.
A idéia de conflito como fator positivo para a manutenção da coesão social
evoluiu para a noção de que a democracia não necessita de consensos prévios para
existir (HIRSCHMAN, 1995). Em outras palavras, o consenso existente em um
determinado Estado não resulta de acordos preliminares em torno de alguns valores,
e sim da própria atividade política. Segundo Hirschman (1995, p. 38), inspirado na
compreensão de Dankwart Rustow:
[...] a democracia se constitui, de modo geral, não porque as pessoas
desejassem tal forma de governo, ou porque tivessem alcançado um amplo
consenso sobre “valores básicos”, mas sim porque vários grupos estiveram
na garganta um do outro por tempo suficiente para reconhecer, finalmente,
sua incapacidade mútua para dominar um ao outro e a necessidade de
acomodação.
justamente atenuar os conflitos. O que ocorre freqüentemente é o processo de regulamentação
dos conflitos, por meio de formulação de regras aceitas pelos participantes, que determinam limites
aos conflitos.
31
Há uma pluralidade de autores que utilizam a categoria de conflito, desde os funcionalistas e
estruturais funcionalistas, passando pelos liberais, até os marxistas. O objetivo desta pesquisa não
é realizar uma exaustiva abordagem da teoria do conflito e de seus intérpretes, mas apenas indicar
sua importância para o tema em estudo.
137
O conflito é uma característica típica das sociedades de mercado pluralistas.
Eles surgem em decorrência de uma variedade de fatores. É essa produção
sistemática de conflitos que deve ser administrada que singulariza esses tipos de
sociedades. Pois se elas possuem a capacidade de gerar conflitos um após o outro,
não podem desejar estabelecer uma ordem permanente de harmonia. O que podem
aspirar, ainda de acordo com Hirschman (1995, p. 41), é “atravessar” “um conflito
após o outro”.
Hirschman propõe uma classificação para as formas de conflitos vivenciadas
pelas sociedades contemporâneas. Existem os conflitos característicos das
sociedades de mercado pluralistas, que ele denomina de “conflitos divisíveis”. Esses
tipos de conflitos dizem respeito especialmente à distribuição de recursos e do
produto social entre diferentes classes, regiões ou setores. Nesse caso, são conflitos
em que podem ser obtidos resultados do tipo mais-ou-menos. Em contraposição, há
os conflitos denominados de “indivisíveis”. Nesses conflitos, classificados pelo autor
em termos de ou/ou, apenas uma das partes sairá vencedora. Esses últimos
aparecem em sociedades divididas por questões étnicas, religiosas e lingüísticas.
Apesar da sistematização proposta pelo autor, isso não significa que as sociedades
de mercado não possam abarcar essas outras formas de conflito.
Os conflitos de tipo mais-ou-menos são mais fáceis de resolver na concepção
de Hirschman, enquanto que aqueles de tipo ou/ou são mais difíceis, porque as
soluções que visam o compromisso mútuo são menos praticáveis. Ao realizar essa
divisão entre dois tipos de conflitos, o cientista político não quer dizer que ela seja
um paradigma definitivo para refletir sobre o tema. A fim de não cairmos nessa
armadilha, o autor aconselha que os conflitos sejam trazidos “à terra”, ou seja, que
se verifique em que contextos sociais específicos eles estão se desenvolvendo.
Deve-se admitir que muitas sociedades ocidentais e não-ocidentais estão
enfrentando tanto conflitos “divisíveis” quanto “indivisíveis”. Os conflitos “indivisíveis”
estão cada vez mais presentes nas sociedades pluralistas de mercado. No caso da
disputa sobre as ações afirmativas no Brasil, pode-se classificar, num primeiro
momento, esse tipo de conflito como ou/ou, por envolver questões de
reconhecimento de direitos relacionados a identidades étnico-raciais. Porém, ao
mesmo tempo, o que está sendo questionado é a desigual distribuição de recursos
dentro de uma sociedade marcada por inúmeras clivagens. O que se pode concluir,
138
inicialmente, é que as sociedades estão enfrentando essas formas de conflitos
concomitantemente.
Uma crítica que pode ser feita ao esquema de Hirschman é que ele parte do
princípio de que os conflitos “indivisíveis” ocorrem somente em sociedades que não
possuem uma configuração democrática e pluralista. Se utilizarmos a classificação
de Kymlicka (1996), a maioria dos países americanos são multinacionais e
poliétnicos, assim como a maioria dos países do mundo. O que acontece é que
grande parte desses países não admite essa realidade
32
.
Um último ponto que merece destaque é a relação entre a retórica
conservadora e a mídia. Conforme já enfatizado no segundo capítulo, as posições
dos intelectuais contrários e favoráveis às ações afirmativas possuem a mídia como
uma das principais caixas de ressonância. No caso da América Latina, os meios de
comunicação, de acordo com Costa e Avritzer (2006), ocupam um importante papel
na constituição da esfera pública, além de ser o local onde ocorrem as mediações
sociais. Apesar de espaços alternativos de comunicação estarem sendo
estabelecidos através das novas tecnologias, os meios de comunicação tradicionais
ainda possuem forte apelo relativo ao público em geral. Por isso sua importância no
que diz respeito a discussões cruciais sobre políticas públicas no Brasil,
especialmente às ações afirmativas.
Não se está utilizando uma abordagem que privilegia a visão do meio de
comunicação e que avalia os espectadores como agentes incapazes de formular
opiniões próprias. Mas, pretende-se argüir que os meios de comunicação além de
representarem um locus indispensável aos discursos dos diferentes atores sociais,
inclusive os cientistas sociais, não possuem uma posição neutra perante suas
diferentes pautas. Em relação às políticas de ação afirmativa, uma pesquisa
realizada por Ana Elisa Carli dos Santos (2007)
33
, nos jornais Folha de S. Paulo e O
32
No caso do Brasil, Kymlicka (1996) assevera que o país insistia na afirmação de que não possuía
minorias étnicas quando se referia às populações indígenas. É justamente a condição das
populações indígenas e das comunidades quilombolas que seria transformada pela Constituição de
1988, através da concessão de direitos até então negados. Em relação aos afro-amercianos em
geral, o autor os considera em posição pouco usual, pois eles não foram integrados à cultura
dominante e, tampouco, lhes foi permitido manter suas línguas e culturas originais. O autor
manifesta a necessidade, nesse caso, de um novo modelo de integração que respeite as
diferenças.
33
Foram analisadas 635 matérias e/ou artigos que versavam direta ou indiretamente sobre as ações
afirmativas, 466 notícias que tratavam diretamente do tema e 174 artigos. Um dos resultados
importantes da pesquisa mostrou que, em relação a uma das variáveis utilizadas pela
139
Estado de São Paulo entre os anos de 1995 e 2002, comprovou que houve um
processo conflituoso na cobertura do tema por cada um dos jornais, marcado por um
viés desfavorável especialmente no que se refere à implantação de políticas
específicas: as cotas para estudantes negros. A autora conclui que a postura dos
jornais é delimitada por uma posição conservadora relativa às políticas específicas.
Além disso, alerta para os termos em que o processo de reconhecimento de
diferentes identidades adquire no interior do campo jornalístico, o que pode resultar
em prejuízo para a população negra.
É significativo o fato de que o perfil dos meios de comunicação no Brasil
caracterize-se pelo seu alto grau de concentração nas mãos de poucos grupos
empresariais. Um dos livros de grande repercussão durante esse debate foi
exatamente Não somos racistas: uma reação aos que querem nos transformar numa
nação bicolor, lançado em 2006. O autor do livro, prefaciado por Yvonne Maggie, é
Ali Kamel, diretor de jornalismo da maior emissora de televisão do país, a TV Globo.
O livro foi elaborado a partir de artigos que o autor escreveu quinzenalmente para o
jornal O Globo, desde o ano de 2003. Não se pode negar que o diretor de jornalismo
da maior empresa de comunicação do país tenha maiores condições de divulgar sua
obra, assim como de manifestar sua opinião de maneira muito mais ampla que, por
exemplo, os intelectuais e jornalistas que assumem um posicionamento contrário ao
do autor. Essa assimetria de poder ainda permanece como um peso decisivo para o
qual pende a balança democrática, embora Kamel afirme nos agradecimentos do
livro que, tanto o jornal O Globo quanto a TV Globo concedam espaços iguais
àqueles que pensam o oposto às suas idéias.
Este capítulo procurou demonstrar não somente a existência de uma retórica
conservadora utilizada por alguns intelectuais brasileiros contrários às políticas de
ação afirmativa, como também que há processos de mudança em curso, alguns já
irreversíveis. Tais processos afetam não somente a estrutura material da sociedade,
mas todo um ideário de como o estado-nação brasileiro foi configurado. Conforme as
palavras de Sérgio Costa (2006, p. 150):
pesquisadora – freqüência de notícia e palavra-captura – 66% dos textos publicados fazem
referência negativa ao termo “cota para negros”. Para maiores detalhes, além desse trabalho,
consultar também: SANTOS, Ana Elisa de Carli. Ação afirmativa e cotas: um percurso pela
imprensa brasileira (de 1995 a 2002). Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais na
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), 2005.
140
Enquanto outros tipos de política anti-racista adotados até então (promoção
da cultura afro-brasileira, leis anti-racistas, etc) apresentavam-se como
corretivos do modelo estabelecido, sem confrontar diretamente o discurso
da mestiçagem tolerante, as políticas de ação afirmativa implicam admitir
que afro-descendentes foram sistematicamente desfavorecidos e mais,
implicam o reconhecimento de que não há saída possível para combater o
racismo no interior da gramática que apresenta a nação como “cadinho de
raças”.
O episódio das cotas traz para as ciências sociais brasileiras um desafio
inédito marcado por uma crise de representação, segundo a análise de José Jorge
de Carvalho (2005/2006, p. 102). Para o autor, as ciências sociais brasileiras estão
vivenciando uma “crise da desneutralização racial do campo acadêmico”. Ainda de
acordo com a interpretação de Carvalho, os cientistas sociais brasileiros sempre
expressaram forte rejeição ao racismo existente na sociedade, mas nunca
questionaram o ambiente acadêmico de “confinamento racial” no qual eles próprios
estavam inseridos. Em outras palavras, o autor chama a atenção para os espaços
institucionais brancos em que se transformaram as universidades brasileiras sem
que houvesse protestos ou pelo menos estranhamento dos cientistas sociais
encarregados de elaborar explicações sobre o Brasil. Ele coloca em xeque, enfim, as
interpretações feitas pelos cientistas sociais brasileiros brancos e a sua pretensa
neutralidade axiológica. A principal conseqüência da discussão sobre a
implementação de cotas nas universidades federais do país “é a inevitabilidade dos
posicionamentos” (Carvalho, 2005/2006) de cientistas sociais a partir de seus locais
de produção de conhecimento.
141
5 A RETÓRICA PROGRESSISTA NO PENSAMENTO ACADÊMICO BRASILEIRO EM
RELAÇÃO ÀS POLÍTICAS DE AÇÃO AFIRMATIVA
A idéia inicial de Hirschman, quando começou a escrever seu livro sobre a retórica
conservadora era dedicar-se exclusivamente à critica conservadora feita às políticas
progressistas e/ou reformistas. O que o moveu nesse intento foi justamente um espírito
combativo contra posições neoconservadoras que estavam se consolidando durante a
era Bush-Reagan nos Estados Unidos, em oposição à implementação de políticas sociais
e econômicas. Somente depois de escrever a primeira parte do livro, que trata
exclusivamente da retórica conservadora, veio a inesperada intenção de delinear
argumentos progressistas como contrapartidas aos argumentos conservadores, numa
atitude que o próprio autor classifica como auto-subversiva (1996).
Essa direção inesperada tomada pela obra de Hirschman explica o motivo da
segunda parte do livro ser menos ilustrada de exemplos e as teses menos trabalhadas
teoricamente. Na presente tese algo semelhante também aconteceu. Inicialmente, não
havia preocupação com a avaliação dos argumentos progressistas mas, depois, tal
apreciação se tornou necessária, não no sentido de procurar conferir um tom imparcial ao
trabalho, o que foi uma das justificativas utilizadas por Hirschman, mas para conceder o
benefício da comparação, tanto à pesquisadora quanto aos leitores. Em virtude dessa
não ser uma intenção planejada, há uma grande diferença na profundidade da análise,
assim como na quantidade de dados disponíveis nos dois capítulos que compreendem a
análise da retórica conservadora e da retórica progressista a respeito das ações
afirmativas. Mesmo assim, optou-se por seguir utilizando-se parte da tipologia de
Hirschman, ainda que com algumas ressalvas e modificações.
Para cada tese da retórica conservadora, Hirschman elabora contrapartidas
progressistas
1
, originando dessa maneira pares que se contrapõem e se complementam.
1
O significado de progressista está diretamente relacionado ao de progresso, como algo que denota um
movimento em direção a um objetivo positivo e desejável. De acordo com Bonazzi (in Bobbio1986, p. 244),
o progressismo se constituiu no decorrer do século XX, a partir de três hipóteses: a científica, que tornou
as ciências naturais como modelos para as ciências humanas; a democrática, “que viu na extensão do
poder de decisão política a todos os indivíduos o melhor resultado a que se poderia chegar”, e a histórico-
materialista, que considera a luta de classes como um pré-requisito ao progresso humano. Hirschman não
define o conceito de progressista, ele utiliza essa denominação como oposta à de conservador. A
expressão não se refere tanto à possibilidade de melhoria do mundo, mas relaciona-se muito mais a um
tipo de discurso e atitude que visam à ação e à mudança, em contraposição a aversão à mudança
presente nos discursos e atitudes dos partidários da retórica conservadora.
142
Inicialmente, examinar-se-á a proposta original de Hirschman
2
, para, em seguida, aplicá-
la aos discursos dos cientistas sociais brasileiros a respeito das ações afirmativas.
5.1 CONTRAPARTIDA À TESE DA AMEAÇA: O PRINCÍPIO DA SINERGIA OU DO
APOIO MÚTUO
Enquanto os defensores da tese da ameaça afirmam que uma nova reforma
provocará um conflito em relação a realizações anteriores, os progressistas argúem que
entre uma reforma antiga e uma nova haverá uma interação positiva e não negativa. De
acordo com a análise de Hirschman (1992, p. 126), os progressistas estão sempre
convencidos de que “todas as coisas boas vêm juntas”. Assim como os conservadores
exageram os danos que qualquer reforma ou intervenção poderá causar à sociedade, os
progressistas têm um excesso de otimismo e confiança naquilo que o autor classifica de
“principio da sinergia”.
Um outro fator que ocorre muitas vezes em relação à tese da ameaça é que ela é
virada do avesso, ou seja, em vez de a mudança provocar conseqüências negativas, não
realizar determinada reforma seria mais perigoso do que realizá-la. Como exemplo, pode-
se citar que após a Segunda Guerra Mundial o perigo do comunismo tenha sido muitas
vezes cogitado como justificativa para redistribuição de renda e de riqueza dos países
mais ricos para os países mais pobres. Nesse caso, os propositores de uma dada política
ao invés de a defenderem em função de seu caráter justo, alegam que ela é necessária
em relação a um desastre que poderá ocorrer caso não seja estabelecida. Tal argumento
é denominado por Hirschman de “tese do perigo iminente”. Esse argumento tem duas
características em comum com seu oposto, a tese da ameaça. Em primeiro lugar, ambos
os campos observam somente uma categoria de perigo quando uma determinada política
é discutida: os partidários da tese da ameaça preocupam-se com os perigos da ação
enquanto que os propugnadores da tese do perigo iminente alertam para os problemas
advindos da falta de ação, da inação. Em segundo lugar, tanto os defensores da tese da
2
É necessário acrescentar, ainda, que no caso da retórica progressista, o autor não analisou diferentes
momentos históricos em que os argumentos foram utilizados, tampouco fez uma exaustiva seleção de
autores que usaram esse tipo de retórica, conforme havia realizado no caso da retórica conservadora.
143
ameaça quanto os da tese do perigo iminente apresentam um cenário de danos
inevitáveis provocados seja pela ação ou pela falta dela.
5.2 CONTRAPARTIDA À TESE DA FUTILIDADE: O PROGRESSO COM CARÁTER DE
LEI
A essência da tese da futilidade é que as mudanças propostas estão fadadas ao
fracasso em virtude de se chocarem com leis que regem o mundo. Essas leis ocultam
uma regularidade que confere certa estabilidade ao mundo social. Se, portanto, é a
invariância a principal característica da tese da futilidade, no caso de sua antítese, será
justamente a certeza de um movimento para a frente que irá caracterizá-la. Como
exemplo desse caráter inevitável de movimento ascendente, Hirschman cita o marxismo.
De acordo com o autor, o marxismo foi uma das formas de pensamento que declarou
com maior confiança o caráter de um movimento inevitável para a frente na história da
humanidade. Além do marxismo, qualquer teoria ou proposição de que as sociedades
passam por determinadas etapas ascendentes de desenvolvimento pode ser considerada
como contrapartida à tese da futilidade. Em ambos os casos, no da tese da futilidade e no
da crença no “progresso” atuam leis que determinam ou a estabilidade ou a confiança no
movimento histórico.
Apesar de Hirschman concentrar-se numa crítica ao marxismo, é necessário
salientar que doutrinas ou teorias que acreditam em um sentido de “marcha para o
universo” (Binetti, 1996, p. 1010) existem desde Lucrécio, que foi o primeiro a utilizar um
termo nesse sentido. Para os primeiros cristãos, a história do universo também tinha uma
direção previsível. Seria na Renascença, entretanto, que surgiria um ambiente favorável à
idéia de progresso. Pode-se concluir, por conseguinte, que a crença em um
desenvolvimento gradual e positivo para as sociedades humanas é bastante antiga e
continuou sendo reproduzida por inúmeras teorias e estudiosos, sendo o marxismo
apenas uma delas e, talvez, não a principal.
144
5.3 CONTRAPARTIDA À TESE DA PERVERSIDADE: INVOCAÇÃO DA SITUAÇÃO DE
CRISE DESESPERADORA
A antítese à tese da perversidade é proclamar que não há o que preservar das
instituições ou da situação anterior, e que, portanto, não há por que ter cautela quanto a
reformas, conforme desejam os conservadores. Nesse caso, os progressistas
desconsideram o conceito de conseqüências involuntárias das ações humanas e
acreditam em sua própria capacidade de controle. De acordo com Hirschman (1992), em
muitas situações em que há um recrudescimento do discurso conservador, ocorre, em
contrapartida, um aumento de escritos considerados radicais. Como exemplo o autor cita
a crítica de Burke à Revolução Francesa, pois de tanto insistir na perfeição das
instituições existentes como forma de se opor às mudanças, ele acabou contribuindo para
o aparecimento de escritos radicais que demonstravam que a situação de determinado
país estava fadada desde sempre ao desespero. Em outras palavras, a reverência que
Burke fazia ao passado não servia a todos os países e dizia respeito muito mais ao
imaginário de um povo em relação a sua condição, do que à sua “realidade objetiva”.
Desse modo, os progressistas podiam recorrer à situação de crise desesperadora em que
se encontrava a maioria do povo como justificativa para as mudanças. Conseguindo,
dessa forma, invalidar os argumentos do efeito perverso.
5.4 CONTRAPARTIDAS ÀS TESES DA RETÓRICA CONSERVADORA EM RELAÇÃO
ÀS POLÍTICAS DE AÇÃO AFIRMATIVA
Podem-se citar no campo da retórica progressista vários intelectuais que se
pronunciaram sobre o tema em diferentes espaços: o antropólogo José Jorge de
Carvalho (UnB), a antropóloga Rita Segato (UnB), o antropólogo José Carlos Gomes dos
Anjos (UFGRS), o sociólogo Antonio Sérgio Alfredo Guimarães (USP) e o economista
Marcelo Paixão (UFRJ) como os nomes de maior destaque em nível nacional. Porém,
outros cientistas sociais e pesquisadores de outras áreas também podem ser ressaltados,
embora suas publicações não sejam aqui analisadas, como a socióloga Ilse Scherer-
Warren (UFSC), a antropóloga Ilka Boaventura Leite (UFSC), o físico Marcelo
145
Tragtenberg
3
(UFSC), a pedagoga Vânia Beatriz Monteiro da Silva (UFSC), a
Procuradora da Universidade Federal do Paraná, Dora Lúcia Bertúlio, entre outros.
É importante esclarecer que nesta pesquisa não foram encontradas, nas
publicações e palestras dos autores pesquisados, todas as contrapartidas da retórica
conservadora. Nesse caso, o esquema elaborado por Hirschman foi utilizado com
algumas alterações.
5.4.1 A invocação da crise desesperadora
A antítese que apareceu com maior freqüência entre os autores que compartilham a
retórica progressista é a contrapartida à tese da perversidade: a “invocação da situação
de crise desesperadora”. De acordo com o “Manifesto em favor da Lei de Cotas e do
Estatuto da Igualdade Racial“ (2006) entregue aos deputados e senadores do Congresso
Brasileiro, o sistema universitário brasileiro já é segregado o suficiente e não há mais o
que piorar quando comparado a outros:
Colocando o sistema acadêmico brasileiro em uma perspectiva
internacional, concluímos que nosso quadro de exclusão racial no ensino
superior é um dos mais extremos do mundo. [...] a porcentagem de
professores negros nas universidades sul-africanas, ainda na época do
apartheid, era muito maior que a porcentagem dos professores negros nas
nossas universidades públicas nos dias de hoje. A porcentagem média de
docentes nas universidades públicas brasileiras não chega a 1%, em um
país onde os negros conformam 45,6% do total da população. Se os
Deputados e Senadores, no seu papel de traduzir as demandas da
sociedade brasileira em políticas de Estado não intervierem aprovando o
PL 73/99 e o Estatuto, os mecanismos de exclusão racial embutidos no
suposto universalismo do estado republicano provavelmente
nos levarão a
atravessar todo o século XXI como um dos sistemas universitários mais
segregados étnica e racialmente do planeta! E, pior ainda, estaremos
condenando mais uma geração inteira de secundaristas negros a ficar fora
das universidades, pois, segundo estudos do IPEA, serão necessários 30
anos para que a população negra alcance a escolaridade média dos
brancos de hoje, caso nenhuma política específica de promoção da
igualdade racial na educação seja adotada.
3
TRAGTENBERG, Marcelo Henrique Romano ; BASTOS, João Luiz Dornelles ; NOMURA, Lincon ;
PERES, M. A. Como aumentar a proporção de estudantes negros na universidade?. Cadernos de
Pesquisa (Fundação Carlos Chagas), vol. 36, p. 473-495, 2006.
146
Isso também é o que ocorre com a população negra como um todo no que se refere
ao acesso à educação. A crise, portanto, já está em seu limite, qualquer medida ainda
pode ser considerada pouco satisfatória. Nas palavras de Marcelo Paixão (2006, p. 87):
Esse conjunto de indicadores expressa um sistema educacional
discriminatório e pouco atraente aos afro-descendentes. Ao fechar os olhos
para a realidade singular dos alunos e alunas negros, o sistema de ensino
não reconhece que esses enfrentam uma série de problemas especialmente
típicos desse grupo: i) a entrada precoce no mercado de trabalho; ii) a baixa
qualidade do ensino público, onde se concentra a maioria dos estudantes
afro-descendentes, que não contribui para promover a construção do
conhecimento; iii) imposição de um conteúdo programático que não valoriza
o universo dos afro-descendentes e, portanto, não estimula a elevação de
sua auto-estima; iv) a presença do racismo e do preconceito em sala de
aula e no ambiente escolar que reduz o estímulo à continuidade dos
estudos; v) a falta relativa de bons exemplos no mercado de trabalho que
possam sinalizar melhores perspectivas de retorno profissional financeiro
mediante o esforço em prol da continuidade dos estudos.
E, com respeito ao acesso da população negra ao ensino superior:
O acesso ao ensino superior vem sendo um dos principais pontos de tensão
no debate sobre as relações raciais no Brasil Os indicadores existentes
sobre o acesso à universidade mostram que isso não ocorre sem motivos.
Segundo o Atlas do Desenvolvimento Humano, entre 1991 e 2000, a taxa
bruta de freqüência ao terceiro grau da população brasileira cresceu 72,9%,
passando de 10,1% para 17,5%. Já a taxa líquida de freqüência ao terceiro
grau passou de 4,36% para 7,5%. [...]. Entre os negros , a taxa bruta de
freqüência ao terceiro grau passou de 6,96% para 7,1%, ao passo que a
taxa líquida de escolaridade passou de 1,37% para 2,4%. Em números
absolutos, representa cerca de 800 mil estudantes negros em um universo
de 5,9 milhões de universitários. Esses dados indicam que a ampliação do
número de vagas no ensino superior, ocorrida na última década, beneficiou
mais os brancos que os negros (PAIXÃO, 2006, p. 88).
A manutenção das desigualdades raciais no país comprova a necessidade de
adoção de políticas de ação afirmativa. Segundo Guimarães (1999, p. 184):
[...] Em termos de valores e de sentimentos, não acredito que ninguém
considere inadequado o imaginário anti-racista brasileiro. O problema está
na perpetuação de enormes desigualdades de origem racial, que ocorrem,
apesar dos bons sentimentos, com a anuência ativa da sociedade.
Prossegue o sociólogo:
147
Deve-se reconhecer que, por um lado, a sociedade brasileira tem sido
incapaz de garantir o acesso universal à educação, à saúde, ao emprego, à
habitação, etc., e, por outro, tem discriminado os negros, de modo que eles
têm sido mais limitados que outros grupos raciais e étnicos no acesso a
bens e direitos (GUIMARÃES, 1999, P. 184).
O antropólogo José Carlos dos Anjos (2007, p. 01) também cita a péssima situação
em que se encontra a população negra quando comparada à branca no Brasil,
demonstrando a insustentabilidade dessa realidade:
Dizem especialistas que fazendo um cruzamento sistemático entre a
pertença racial e os indicadores econômicos de renda, emprego,
escolaridade, classe social, idade, situação familiar e região ao longo de
mais de 70 anos, desde 1929, chega-se à conclusão de que no Brasil, a
condição racial constitui um fato de privilégio para brancos e de exclusão e
desvantagem para os não-brancos. Do total dos universitários, 97% são
brancos, sobre 2% de negros e 1% de descendentes de orientais. Sobre 22
milhões de brasileiros que vivem abaixo da linha de pobreza, 70% deles são
negros. Sobre 53 milhões de brasileiros que vivem na pobreza, 63% deles
são negros.
Pode-se concluir, portanto, que todos esses autores invocam uma péssima situação
de vida da população negra em relação a diferentes situações como forma de comprovar
a necessidade de aplicação de políticas de ação afirmativa.
5.4.2 Estamos perdendo o trem da história
As outras antíteses elaboradas por Hirschman como contrapartidas à tese da
ameaça e à tese da futilidade, ou seja, “a ilusão da sinergia” e “a tese do perigo iminente”,
não foram localizadas nos argumentos dos intelectuais favoráveis às ações afirmativas
selecionados para a análise. No entanto, uma outra antítese à retórica conservadora foi
observada e pode ser acrescentada ao esquema proposto pelo autor: a de que “estamos
perdendo o trem da história”. Ela assemelha-se à invocação da crise desesperadora, ao
apontar as péssimas condições em que se encontra o país no que se refere às
desigualdades raciais, mas difere um pouco dela no sentido de adotar muito mais uma
perspectiva comparativa, do que propriamente de desastre. Também se pode considerá-
148
la similar à contrapartida à tese da futilidade de “ter a história do nosso lado”, visto que os
autores favoráveis às ações afirmativas mostram como outros países
4
conseguiram atingir
um maior nível de integração racial no sistema universitário por acionarem políticas de
ação afirmativa. Nesse sentido, pode-se concluir que “estamos perdendo o trem da
história” por não adotarmos tais políticas. E, simultaneamente, que a história está do lado
daqueles que implementaram tais medidas.
No caso do ensino universitário brasileiro, fica explícito o quanto estamos distantes,
em termos democráticos e de integração racial, em relação a outros países. Assim se
expressa José Jorge de Carvalho (2006) em um seminário organizado pela UFSC
5
para
discutir o tema das ações afirmativas:
Nós demoramos demais para intervir em nosso sistema universitário, para
integrá-lo racialmente. Nós perdemos décadas inteiras, em que teria sido
mais fácil de fazê-lo e com resultados melhores. Nós estamos chegando
tarde e talvez sejamos um dos únicos países do planeta multirraciais numa
proporção tão alta, que deixamos passar um século de exclusão racial sem
abrir a boca sobre isso praticamente, tô falando de dentro da academia.
Não que o movimento negro não tenha colocado isso inúmeras vezes ao
longo do século. Mas dentro do mundo acadêmico, um assunto silenciado o
tempo todo.
No “Manifesto em favor da Lei de Cotas e do Estatuto da Igualdade Racial“ (2006)
também está presente a idéia de que o sistema universitário brasileiro precisa ser
modificado, a fim de não ficar para trás quando comparado aos de outros países com
composição multiétnica:
4
Carvalho (2005a) cita os Estados Unidos, a África do Sul, a Índia e a Malásia como países que
utilizaram políticas de ação afirmativa com o objetivo de obter uma maior integração étnico-racial no
ensino superior e em outros setores da sociedade.
5
O Seminário sobre “Cotas e Ações Afirmativas na UFSC” foi organizado pela “Comissão de Política
de Ampliação de Oportunidades de Acesso Socioeconômico e Diversidade Étnico-racial para
ingresso na UFSC/Processo Vestibular” e realizado no dia 1º de junho de 2006. O seminário contou
com a participação de vários convidados externos e teve como objetivo conhecer as experiências
de implementação de políticas de ação afirmativa de outras universidades. O antropólogo José
Jorge de Carvalho se pronunciou na mesa de abertura. A transcrição parcial da fita foi realizada
pela pesquisadora.
149
Lembremos aqui que as ações afirmativas para minorias étnicas e raciais já
são realidade em inúmeros países multiétnicos e multirraciais como o Brasil.
Foram incluídas na Constituição da Índia, em 1949; adotadas pelo Estado
da Malásia desde 1968; implementadas nos Estados Unidos desde 1972;
na África do Sul, após a queda do regime de apartheid, em 1994; e desde
então no Canadá, na Austrália, na Nova Zelândia, na Colômbia e no
México. Existe uma forte expectativa internacional de que o Estado
brasileiro finalmente implemente políticas consistentes de ações afirmativas,
inclusive porque o país conta com a segunda maior população negra do
planeta e deve reparar as assimetrias promovidas pela intervenção do
Estado da Primeira República com leis que outorgaram benefícios especiais
aos europeus recém chegados, negando explicitamente os mesmos
benefícios à população afro-brasileira.
Pode-se observar nas citações anteriores que o Brasil é comparado a outros
países que já adotaram medidas de ação afirmativa e que conseguiram alcançar um
nível satisfatório de integração étnico-racial nas universidades. Nesse sentido, a
cada dia que passa mais o país se distancia da possibilidade de obter eqüidade nas
instituições de ensino superior.
5.4.3 A eficácia das políticas progressistas e/ou reformistas
Da mesma forma que Hirschman pressupõe uma seqüência cronológica para o
aparecimento das teses constituintes da retórica conservadora, pode-se pensar numa
lógica própria para o surgimento das teses da retórica progressista. A primeira tese
conservadora usada contra a implementação de determinadas políticas públicas, na
interpretação de Hirschman, é a da ameaça, porque não necessita de tempo para que a
política se concretize, ou seja, a política pode ser imediatamente atacada sem levar em
consideração seus efeitos. Além disso, a tese da ameaça pode prever cenários perigosos,
que, na maioria das vezes, não se concretizarão. No caso da retórica progressista a
respeito das cotas, muitos autores favoráveis à medida ressaltam seu caráter benéfico e
transformador da realidade social. Essa seria então uma primeira tese que surgiria no
caso da retórica progressista.
O fato de os autores partidários da retórica progressista caracterizarem as políticas
de ação afirmativa como algo que trará benefícios à sociedade não deixa de assemelhar-se
com o otimismo presente na antítese à tese da futilidade de “termos a história ao nosso
lado”. Não seria exatamente acreditar em um processo histórico ascendente e teleológico
150
que ocorrerá como se fosse decorrente de uma lei, mas se trata de acreditar que uma
determinada política pode trazer efeitos benéficos para a sociedade como um todo.
Conforme Hirschman (1996, p 77) aconselha, os progressistas devem defender as políticas
por eles propostas não em função de imaginarem cenários desastrosos, caso a política não
seja aplicada, mas porque elas são “corretas e justas”. Há uma explicação bastante
razoável para esse tipo de discurso otimista em relação ao futuro, pois, no primeiro
momento de implantação de uma política, torna-se necessário um processo de
convencimento que passa obrigatoriamente pelo fato de apontar suas características
positivas. Está implícita nessa iniciativa a crença na eficácia das medidas. A antropóloga
Rita Segato, por exemplo, elaborou 10 argumentos que corroboram a eficácia das cotas
para estudantes negros nas universidades brasileiras
6
.
Eficácia reparadora – instauração de um mecanismo para compensar, pelo menos em
parte, as perdas que o componente negro da nação brasileira sofreu.
Eficácia corretiva – redirecionam o futuro de uma sociedade e corrigem os rumos dessa
história, estimulando a confiança da população negra nas instituições e no Estado.
Eficácia educativa imediata – garantem o acesso à população negra ao ensino superior em
função de seu mérito medido de forma eqüitativa ao levar em consideração as
desvantagens dos estudantes negros em todos os níveis do sistema educativo.
Eficácia experimental
– vantagem de permitir o monitoramento regular com o objetivo de
avaliar o impacto da medida na vida universitária em particular e no sistema de ensino
como um todo.
Eficácia pedagógica
– uma sala de aula onde convivem estudantes de diversas origens
étnicas, regionais, raciais, nacionais ou outras está mais apta para o aprendizado, pois a
convivência plural cumpre um papel importante na formação profissional porque oferece
uma experiência mais rica e permite o acesso a uma realidade mais complexa.
Eficácia educativa de espectro ampliado – crianças e adolescentes negros encontrarão
estímulo vendo que adultos da sua cor são seus professores. A medida estimula que
estudantes negros da educação pública demandem da escola e de seus professores um
6
Uma primeira versão desses argumentos constituiu parte da proposta de cotas para a UnB elaborada por
Rita Segato e José Jorge de Carvalho, que contava com oito tipos de eficácia. Uma segunda versão foi
publicada na Revista da USP, n. 68, p. 76-87, dez./fev. de 2005/2006 e consta de 10 tipos de eficácia.
151
melhor nível de ensino para melhorar suas chances de aproveitar a cota. A medida também
desafia os professores a empenhar-se em melhorar a performance de seus alunos negros.
Eficácia política – a nação aceita a responsabilidade pela prática sistemática de racismo ao
longo da história. Acata, dessa forma, a denúncia da existência da discriminação racial na
sociedade brasileira. As cotas, ao convocarem a discussão sobre o tema, o tornam visível
para aqueles que jamais o enxergaram como um problema.
Eficácia formadora de cidadania – a implantação das cotas revela para a sociedade que ela
tem capacidade para escolher rumos novos. Além disso, esse tipo de intervenção
planejada em relação aos estudantes negros pode tornar-se emblemática para outras
formas de intervenções.
Eficácia comunicativa – a introdução do signo da pele de cor negra modificará as formas
com que as pessoas olham a paisagem humana nos ambientes sociais, já que esse é um
signo ausente de cenários associados ao poder, à autoridade e ao prestígio.
Eficácia propriamente transformadora – ao sacudir os signos relacionados à hierarquia
social que determina o local para negros e brancos, é possível desestabilizar essa forma de
reprodução histórica. Porém, não basta somente esse processo de desestabilização e a
circulação de signos negros em espaços diversificados, até então pouco usuais. Há
necessidade de formulação de conceitos que se inscrevam na forma da lei, da moral e do
costume (“narrativas mestras do sistema”).
No momento inicial de aplicação das políticas é crucial o processo de
convencimento dos diversos tipos de auditórios. Nesse sentido, pode ser explicado o
porquê dos elaboradores de uma política progressista e/ou reformista ressaltarem
enfaticamente seus aspectos positivos. Isso não significa, entretanto, que devem ser
ingênuos quanto às conseqüências da política e não poder, por exemplo, reformulá-la
e/ou avaliar seus resultados. De acordo com a análise de Feres Júnior (2005), as políticas
de ação afirmativa, assim como todas as políticas públicas, são conseqüencialistas. Em
outras palavras, são ações orientadas para o futuro, e, por conseguinte, suas
conseqüências não coincidirão imediatamente com seus objetivos. Segundo o autor, não
é possível prever todas as conseqüências de uma ação e “controlar todas as variáveis
envolvidas para que essas conseqüências concordem plenamente com os objetivos”
(FERES JÚNIOR, 2005, p. 10). Por esse motivo as políticas públicas, como as ações
afirmativas, devem estar sempre abertas a avaliações e a reformulações.
152
5.5 OS LUGARES DA QUANTIDADE E OS LUGARES DA QUALIDADE
Conforme já assinalado no segundo capítulo, toda a retórica é sempre destinada a
algum tipo específico de auditório e, por sua vez, todo o auditório leva em consideração
determinados “lugares” a fim de estabelecer seu posicionamento. Esse é um ponto
relacionado à retórica progressista e, conseqüentemente, à conservadora, que não foi
tratado por Hirschman, mas que vale a pena mencionar em relação aos discursos sobre
as ações afirmativas.
Os “lugares da quantidade” são aqueles “lugares-comuns” que constituem sua
premissa maior exatamente na quantidade, mesmo que essa às vezes fique
subentendida (PERELMAN E OLBRECHTS-TYTECA, 1996). Esses “lugares da
quantidade” conseguem fazer facilmente a passagem do normal, daquilo que é
estabelecido por uma freqüência, à norma, a qual especifica que tal freqüência é
favorável e que se deve conformar-se a ela. Os “lugares” que procuram demonstrar a
eficácia de um meio podem ser considerados “lugares da quantidade”.
Os “lugares da qualidade” aparecerão na discussão exatamente no momento em
que se desconfia da virtude do número. O “lugar da qualidade”, portanto, pressupõe a
“valorização do único” (PERELMAN E OLBRECHTS-TYTECA, 1996, p. 101). É a
singularidade que o torna precioso. O único é também o original, aquilo que distingue e
que pode, até mesmo, agradar as multidões. O único é o valor originário e raro e a sua
perda poderá ser irremediável.
A discussão entre os “lugares da quantidade” e os “lugares da qualidade” ilustra com
precisão a disputa entre a retórica conservadora e a retórica progressista no debate sobre
as ações afirmativas. A retórica progressista ganhou fôlego, mais recentemente no Brasil,
recorrendo especialmente aos “lugares da quantidade”. No final da década de 1970, os
estudos que recolocaram a questão da discriminação racial como uma das importantes
chaves para o entendimento das desigualdades sociais foram aqueles que apresentaram
levantamentos estatísticos a respeito de desigualdades raciais entre brancos e não-
brancos nas áreas educacionais, ocupacionais, em relação à renda, entre outras
variáveis. Exatamente os estudos que desconsideraram o aspecto singular da cultura
brasileira – mista/cordial/morena – foram aqueles que conseguiram impulsionar a crítica a
153
uma situação social totalmente desfavorável a uma parcela significativa da população. De
acordo com Rita Segato
7:
Quando o IPEA começa a trabalhar os indicadores de subdesenvolvimento
nota que eles são absolutamente, realmente alucinantes. Foi um susto
brutal! Eles não tinham nada a ver com a versão apresentada sobre a
cultura brasileira. Então, por isso que é mais fácil convencer um engenheiro
a falar sobre cotas do que um professor de Antropologia, por quê? Porque a
sociologia e a antropologia foram as disciplinas encarregadas pela elite a
preparar uma sociedade cordial, uma imagem gilbertofreyreana,
robertodamattaniana que nós reproduzimos nos nossos departamentos, isso
se quebra quando Fernando Henrique Cardoso solicita as informações do
IPEA, pois não tinha nada a ver com a visão histórica da sociologia e da
antropologia.
O importante papel que as ciências humanas em geral deveriam ter assumido em
relação à exclusão racial não só na sociedade, mas no contexto acadêmico brasileiro,
não foi cumprido. José Jorge de Carvalho
8
(2006) resume bem essa situação pouco
confortável:
Os principais responsáveis por essas taxas de exclusão racial nas
universidades são os acadêmicos das áreas de ciências sociais,
humanidades e educação. Porque não é possível. No início dos anos 50,
60, iriam perguntar o que que a gente faz, sobre a questão. Não iriam
perguntar aos engenheiros, não iriam perguntar aos médicos, mas
facilmente iriam perguntar às pessoas que formariam a ideologia: Fernando
de Azevedo... Quero dizer que os antropólogos, sociólogos, historiadores,
educadores, deram respostas erradas ao que estava acontecendo. Então
nós vimos essa barbárie crescer década após década e tivemos um enorme
aparato discursivo para dizer que estava tudo muito bem. Então, se em
algum momento, esse assunto chega de fato a uma espécie de crise no
interior das próprias associações disciplinares, quase percebendo que isso
pode acontecer e deve acontecer. Então nós temos que chamar às falas as
pessoas que assinaram essas idéias de que tava tudo andando muito bem.
A classe acadêmica brasileira (...) todo mundo foi aos Estados Unidos nos
anos 60, anos 70, viu a revolução da inclusão racial que existiu nesse país e
também foi na Europa e continua indo lá. E quando vão à França, como diz
Luis Felipe Alencastro, ele tem mais alunos negros em Paris hoje, do que
jamais teve em 25 anos na UNICAMP .
7
Transcrição da fita da qualificação do projeto de mestrado de Ernandes Barboza Melchior: Não
deixando a cor passar em branco: o processo de implementação de cotas para estudantes negros
na Universidade de Brasília. Sob orientação da professora Drª Wivian Weller no Programa de Pós-
Graduação em Sociologia da Universidade de Brasília (UnB).
8
Verificar nota n. 4 neste capítulo.
154
Esse embate obviamente não se resume à disputa entre a quantidade e a
qualidade
9
, mas demonstra uma importante cisão nas ciências sociais brasileiras em que
provavelmente um dos lados terá mais a perder do que o outro, ou, pelo menos, terá que
incorporar alguns argumentos do outro. Em outras palavras, no confronto entre a retórica
conservadora e a retórica progressista possivelmente uma delas conquistará mais
auditórios e formará uma rede mais poderosa, o que permitirá algumas vantagens em
relação à outra.
Uma outra questão relativa à retórica progressista, que também não foi mencionada
na análise de Hirschman, se refere à eventual mudança de posicionamento dos
intelectuais em relação ao uso das retóricas e à implementação de determinadas políticas
sociais.
5.6 MUDAR DE POSIÇÃO: UMA ATITUDE AUTO-SUBVERSIVA OU REVISIONISTA?
Hirschman não trata das possíveis mudanças de posições que podem ocorrer na
disputa entre as duas retóricas. O autor avalia os partidários de uma retórica sempre
utilizando os mesmos argumentos e permanecendo no mesmo lado. No entanto, assim
como para ele, o desenvolvimento de antíteses à retórica conservadora apareceu como
um resultado inesperado de sua obra. No caso desta pesquisa, a mudança de posição de
um intelectual também surgiu como um resultado inesperado, exatamente no final da
pesquisa. Esse caso merece especial atenção.
A mudança de posição pode tomar direções diferenciadas e opostas: pode ser
revisionista, retornando a posições anteriores; conservadora, revendo posturas
precedentes através de uma retórica mais cautelosa em relação à mudança e, ainda, ser
mais radical, no sentido de acirrar a retórica pela transformação.
Durante todo o tempo em que a pesquisa foi realizada, um dos autores que assumiu
de forma categórica a retórica progressista foi o sociólogo Antonio Sérgio Alfredo
Guimarães. Em um de seus livros – Racismo e anti-racismo no Brasil –, publicado em
9
Nas inúmeras reuniões e seminários promovidos pela “Comissão de Política de Ampliação de
Oportunidades de Acesso Socioeconômico e Diversidade Étnico-racial” da UFSC, uma das conclusões a
que foi possível chegar é que diante de auditórios especializados os números constituem a linguagem
mais convincente quando se deseja justificar a necessidade de aplicação de políticas de ação afirmativa.
Pesquisas de cunho estatístico que comprovam as desigualdades étnico-raciais entre negros e brancos
convencem mais do que mil palavras. Embora os números também possam ser questionados.
155
1999, o título da terceira parte da obra é: “Tomando partido”. O autor posiciona-se
claramente a favor das ações afirmativas, desconstrói os principais argumentos contrários
à sua aplicação no Brasil e demonstra o que se pode ganhar com uma agenda integrada
do anti-racismo em termos internacionais. Em obras posteriores o sociólogo mantém esse
mesmo posicionamento. Porém, já foi possível observar um certo distanciamento dessa
postura desde a mesa redonda ocorrida na Reunião Anual da SBPC
10.
Houve um
momento do debate aberto ao público em que os ânimos se acirraram entre a platéia e
uma das expositoras, a antropóloga Yvonne Maggie. Assim Guimarães conclui sua
intervenção no debate:
Quero reafirmar somente uma coisa, que como Peter, como a Yvonne e
como boa parte dessa platéia, realmente eu sou um acadêmico também, e a
única coisa que eu gostaria de dizer é algo que tem me chamado um pouco
a atenção e tem me deixado realmente com medo, quando na luta pela
inclusão, na luta pelas cotas ou pelo bônus, pelas várias formas de inclusão,
a gente nunca deve perder a idéia de que nós somos acadêmicos, temos
a obrigação de pensar e o antiintelectualismo não pode de jeito
nenhum ser misturado pela luta de inclusão nas universidades. Era só
isso (grifo meu).
Apesar de Guimarães não explicar o que entende por antiintelectualismo, presume-
se que seja adotar uma posição contrária aos intelectuais. O que o autor demonstra por
meio dessa intervenção é que os intelectuais têm “a obrigação de pensar”, como se esse
ato oferecesse uma pretensa neutralidade e/ou objetividade. Parte do público que se
manifestou contra a posição de Maggie, muitos deles representantes de movimentos
sociais, foi desqualificada por ter assumido uma posição antiintelectual na crítica feita à
antropóloga. Dessa forma, há duas posturas contrastantes: uma expressa pela ciência,
como discurso racional e razoável acerca da realidade; e, outra, inferior em relação à
ciência, representada pela expressão política, uma forma de enunciação “sempre
marcada pela proibição” (Latour apud. Anjos, 2005a, p. 233) e, talvez, pela
irracionalidade. Uma outra interpretação para a atitude de Guimarães – na mesa ele
estava entre seus pares e na platéia havia especialistas no tema – é ele ter assumido um
discurso de defesa corporativa em relação aos seus colegas. Nesse caso, aplica-se
perfeitamente a idéia de auditório desenvolvida mais detidamente no segundo capítulo.
10
Verificar nota n. 20 no capítulo 4.
156
Os autores utilizam retóricas diferenciadas dependendo dos tipos de auditórios com os
quais se deparam.
O problema aqui situado não está no fato de o intelectual modificar sua posição
anterior favorável à aplicação das políticas de ação afirmativa para uma outra, em que
manifesta dúvida quanto a elas, mas em assumir um lugar privilegiado nessa arena
pública de debates, desconsiderando a contribuição que os “não-intelectuais”, “aqueles
que não possuem o capital lingüístico e político para se impor no campo político” (Anjos,
2005b, p. 108), podem dar. Se, no texto abaixo, Guimarães (1999, p. 13) assume uma
posição de engajamento, a partir de sua fala na SBPC, em 2007, o autor sustenta seu
discurso em sua identidade de cientista.
É precisamente à busca dessa convergência que me movo nos três últimos
capítulos. Escritos com o propósito declarado de defender uma certa
concepção de política pública (grifo meu), eles oferecem, ao mesmo tempo,
a oportunidade de adensar a compreensão crítica da moderna tradição
nacional, ou, melhor dizendo, da sociabilidade brasileira tradicional. Por
serem tão contrárias a essa tradição, políticas públicas como a ação
afirmativa (ou como a nova Lei de Diretrizes de Bases da Educação, que
não analisarei aqui), ao possibilitarem a obtenção de diplomas, através de
uma regulamentação diferente do mérito, permitem ao sociólogo desvendar
todo um mundo de valores e interesses que estava “naturalizado” ou, para
ser preciso, fazia parte dos pressupostos de uma certa sociabilidade. O
debate político produz, portanto, um material documental, seja de escritos,
de falas ou de atitudes, que torna possível, a um só tempo, tanto o
desvendamento de pressupostos atuais, como a análise da constituição de
pressupostos futuros. Os textos engajados, como os meus, terão talvez o
defeito de se preocuparem exclusivamente com a crítica do que Florestan
Fernandes chamou de “persistência do passado”. Mas não poderia ser de
outro modo, posto que, quanto mais radical for a crítica, mais chances terá
de impedir que se reproduzam as velhas hierarquias.
O que vai caracterizar ainda mais a mudança na maneira de pensar do sociólogo,
além da atitude demarcada na reunião anual da SBPC, é um texto publicado na Revista
Tempo Social
11,
no qual, além de descaracterizar muito de suas posturas teóricas
anteriores, ele duvida da legitimidade das políticas de ação afirmativa.
Utilizando-se de autores como Charles Tilly (2003), Charles Hale (2002) e Dona Lee
Van Cott (2000), Guimarães (2006) parece adequar-se à convicção de que o
multiculturalismo foi muito mais um meio das elites políticas readquirirem legitimidade, do
que, propriamente, fornecer direitos a grupos sociais até então excluídos dos principais
11
Verificar GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Depois da democracia racial Tempo Social, vol.18,
n.2, p. 269-287, nov. 2006.
157
direitos democráticos. Conceder direitos a minorias negras e indígenas seria, portanto,
uma forma de não atender a demandas mais radicais. Nesse sentido, ele cita uma
interpretação de Christian Gross, segundo a qual o “multiculturalismo está para o
neoliberalismo assim como a democracia racial esteve para o nacional–
desenvolvimentismo” (GUIMARÃES, 2006, p. 276).
Apesar do termo multiculturalismo ser contestado tanto por liberais quanto pela
direita, conforme afirmação de Hall (2003), ainda há algo no multiculturalismo que vale a
pena buscar, que são as formas de manifestar a importância da diversidade cultural e de
integrar “contribuições das pessoas de cor ao tecido da sociedade” (WALLACE apud
HALL, 2003, p. 54). O multiculturalismo, nesse caso, não pode ser visto apenas como
uma opção dentro do neoliberalismo e nem como uma produção “das entranhas do
comércio pós-moderno” (GILROY, 2007, p. 123). Ele se refere às estratégias e às
políticas utilizadas para governar e administrar problemas advindos de sociedades
multiculturais. O termo é utilizado geralmente no singular, significando a doutrina que dá
base às estratégias multiculturais de governabilidade. Autores como Kymlicka (1996, p.
34) preferem utilizar as denominações multinacional e poliétnico ao fazerem referência às
formas de pluralismo cultural. Um país pode ser multinacional, como resultado de
processos de colonização ou de “confederação de comunidades nacionais” e/ou
poliétnico, resultando, nesse caso, de imigrações individuais e/ou familiares. Para o autor,
a maioria dos países do mundo possui essas características, embora muitos não estejam
preparados para enfrentar essa realidade.
Aparenta haver um certo consenso entre os analistas norte-americanos destacados
por Guimarães (Hale, Tilly, Van Cott e Hooker, entre outros), de que as políticas
multiculturais adotadas a partir da década de 1990 na América Latina não foram
executadas com o objetivo de resolver as demandas dos movimentos indígenas e
afrodescendentes. O que esses autores concluem é que tais procedimentos resultaram
de decisões das elites nacionais para incrementar a transição democrática dos períodos
autoritários anteriores. A adoção da diversidade étnica nas constituições latino-
americanas, seguindo o esquema argumentativo expresso por Van Cott e reproduzido por
Hooker (2006), seria uma das formas pelas quais os Estados nacionais poderiam manter
a unidade nacional e, ao mesmo tempo, chamar a atenção para importantes valores
democráticos como a participação, a inclusão e a tolerância.
158
Se considerarmos o caso brasileiro, estaríamos substituindo a mestiçagem como
mito integrador pelo da diversidade étnica, igualmente como forma de integrar uma
sociedade subjugada ao padrão neoliberal. O que chama atenção nesse tipo de análise é
a discrepância entre o que as diferentes constituições concederam a determinados
grupos e a efetivação desses direitos. No caso do Brasil, por exemplo, a concessão de
direitos às populações negras e indígenas não está ocorrendo sem uma forte resistência.
Além disso, se a elite política elegeu esse novo pacto integrador, dentro da própria elite
não parece existir consenso sobre ele. A resistência que há no país à política de cotas
nas universidades, à implementação da Lei 10.639 e à concessão de terras para
comunidades quilombolas evidencia esse desacordo.
A idéia de pensar o multiculturalismo como um tapa-buraco para o capitalismo é bem
próxima daquela veiculada por Miranda
12
. Nesse sentido, as políticas atentas à diferença
e ao reconhecimento são apenas uma das formas de o capitalismo, ou de determinados
Estados dentro do sistema global, reorganizarem a temática dos direitos e dos sujeitos de
direitos.
Em publicação recente, Guimarães (2006, p. 280) critica a corrente de opinião, da
qual ele fazia parte, que avalia as ações afirmativas como políticas que visam o reforço
de identidades.
No Brasil atual, ganha força a corrente de opinião que defende que as
desigualdades raciais, ou as desigualdades sociais atribuíveis à idéia de
raça e à forma como as pessoas se classificam e são classificadas
racialmente, só podem ser combatidas com ações e políticas que reforcem
essas identidades raciais. Ou seja, as políticas de ações afirmativas
requereriam políticas de identidade.
A citação acima difere substancialmente da posição assumida pelo intelectual em
um livro publicado em 2002, no qual o sociólogo critica de forma incisiva os cientistas
sociais adversários das políticas de ação afirmativa:
12
Verificar páginas 123 e 124 do capítulo 4.
159
A discussão de políticas de ação afirmativa para a população negra, por
exemplo, conta, entre seus adversários, com os melhores e mais
renomadas cientistas sociais do país. Esses argumentam que tais políticas
contrariam os valores liberais (Reis, 1997) e ferem a inteligência nacional
(DaMatta, 1997; Fry, 2000). Para eles, a idéia de adotar tais políticas é
equivocada e simplista . Equivocada porque reforça identidades étnicas e
raciais, que reificam o racismo; simplista porque contraria a nossa tradição
cultural. Os intelectuais que defendem políticas antipobreza mais radicais,
que levem em conta a discriminação racial e de gênero, seriam, portanto, ou
pouco refinados para entender a complexidades da cultura brasileira, ou
estariam contaminados ideologicamente pelo seu envolvimento com o
movimento negro (GUIMARÃES 2002, p. 71).
E, na seqüência de seu pensamento:
O que esses autores ignoram ou omitem é que o povo brasileiro não rejeita
as políticas de ação afirmativa, inclusive em sua forma extrema de cotas,
tal como sugerem. Quem as rejeita são as classes médias e as elites,
inclusive intelectuais. Em 1995, a já citada pesquisa do DataFolha sobre
racismo detectou que os mais pobres e os menos escolarizados seriam
favoráveis a tais políticas, posição que se inverte à medida que se
perscrutam as camadas mais educadas e mais favorecidas (...). Seria isso
refinamento intelectual e cultural ou pura defesa de privilégios de classe?
(GUIMARÃES, 2002, p. 71-72).
Pode-se depreender da análise dos discursos do autor em diferentes épocas que ele
efetuou uma transição de uma retórica mais progressista – demarcada de forma explícita
em vários livros e artigos (1999, 2000, 2002) – para uma outra, de caráter mais
conservador. Tal transição pode ser observada em uma publicação mais recente, na qual
Guimarães (2006, p. 283), alicerçado na interpretação de Tilly, se pronuncia da seguinte
forma sobre as categorias raciais e as políticas de ação afirmativa:
Acionadas para resolver uma forma de desigualdade. As categorias raciais
não parecem ter o dom de desfazer as desigualdades sociais e mesmo
raciais, mas apenas de estabelecer certo equilíbrio de forças entre os
grupos que lutam, seja para impor um monopólio (o caso inicial da
colonização), seja para escapar de um destino imposto por essas mesmas
categorias em algum momento anterior de tempo (o caso pré-colonial).
Guimarães (2006, p. 283-284) conclui a argumentação desenvolvida no artigo:
160
Resta, finalmente, tocar num ponto crucial do modelo explicativo de Tilly.
Mesmo que possamos descartá-lo para a análise do modo como as
desigualdades sociais no Brasil passaram a ser percebidas pelos “negros”,
e mesmo que possamos argumentar convincentemente que as categorias
raciais ‘impostas” pelas políticas públicas eram secularmente atuantes na
sociedade brasileira, precisamos responder à implicação maior do modelo,
qual seja, as políticas públicas racializadas, ou multiculturais, não superam
ou suprimem as desigualdades por si só, mas apenas as reproduzem num
quadro mais claro e preciso. Ou seja, regulamentam o conflito distributivo
em novas bases, sem pôr em risco a reprodução do sistema como um
todo.
Nesse aspecto, Tilly parece ter razão: não há por que esperar que a nova
forma de organização dos atores políticos (em bases étnicas, raciais ou
culturais) seja necessariamente mais eficiente para impedir a reprodução
das desigualdades sociais.
O que se pode concluir comparando essas duas citações é que de uma
interpretação que considerava a questão étnico-racial como uma variável importante para
a compreensão das desigualdades sociais no Brasil e as políticas de ação afirmativa
como necessárias para repará-las, Guimarães acata a visão de que esse tipo de política
não impede as desigualdades sociais e se constitui apenas em uma forma de o
capitalismo mais uma vez se regularizar. Ao trazer à cena essas interpretações, o autor
atesta ter descoberto em recentes teorias científicas a resposta correta para os
problemas enfrentados pelo país, avaliando que políticas de caráter multicultural não
superam as desvantagens entre diferentes grupos sociais, mas, apenas, as reproduzem
de forma mais explícita. O que Guimarães não leva em conta ao considerar essas teorias
é que os grupos que estão lutando por reconhecimento, estão também exigindo ser
escutados em seus próprios termos, por suas próprias vozes. Conforme Anee Philips
(2003, p. 265):
Opressed or subordinated groups have to the able to find their own voice, to
speak for themselves, to be recognized as active participants. They can no
longer be treated as a ‘problem’ for some other social group to resolve. This
is a profoundly democratic vision, and it is in my view democracy (rather
than what Charles Taylor has theorized as the loss of more secure and
unquestioned forms of identity) that fuels the struggles for recognition
explores in this book. It is not so much political movements have come to
identity a layer of more ’cultural’ injustices flourishing alongside the
economic injustices that were the staple of an earlier socialist politics.
Struggles for recognition are and have been very much struggles for
political voice.
161
5.7 CONSELHOS AOS PROGRESSISTAS
Para finalizar, retomemos alguns conselhos de Hirschman aos progressistas como
forma de precaução. O autor (1996) afirma que com a introdução da retórica progressista
pôde dar à conclusão de seu livro um caráter mais construtivo do que polêmico. Pois se
ele tivesse se contentado apenas em abordar a retórica conservadora, teria que concluir
seu pensamento advertindo os conservadores sobre o quanto eles deveriam ser mais
originais, refinados e comedidos em suas críticas. Entretanto, o que acabou acontecendo
foi a demonstração de que a discussão entre conservadores e progressistas pode
transformar-se em um “diálogo de surdos”. Daí o título do livro: A retórica da
intransigência. O autor propõe então que em um regime democrático a solução é levar o
debate a público, construindo um diálogo que envolveria diferentes setores da sociedade.
Conforme o cientista político demonstra nos fatos que analisou, um dos lados
partidários da discussão acaba sempre saindo vencedor e se encarrega de colocar um
fim às disputas. Embora a retórica conservadora tenha se armado fortemente contra o
sufrágio universal, esse acabou prevalecendo. Quanto ao estado de bem-estar social já
não se pode chegar à mesma conclusão, embora tenha alcançado um longo período de
êxito. Mas, além do desfecho sugerido por Hirschman, de uma necessária disposição
para o diálogo, talvez um outro possa ser oferecido em relação às cotas para estudantes
negros nas universidades: dificilmente as pessoas poderão ficar neutras em relação a
esse debate. Ou, em outras palavras, não é fácil encontrar um meio termo que possa
agradar a ambas as partes.
Hirschman, inclusive, não se exime em assumir um posicionamento claramente a
favor dos progressistas ao aconselhá-los a não seguirem as mesmas estratégias
simplistas dos conservadores se quiserem atingir seus objetivos. Esses conselhos são
apresentados em Auto-subversão (1996), onde o autor reproduz um texto de uma
conferência em que foi especificado que falasse do sexto capítulo de seu livro
13.
Os
organizadores queriam justamente ouvi-lo falar das “retóricas da intransigência” que
deveriam ser evitadas na proposição de políticas públicas.
13
O sexto capítulo do livro A retórica da intransigência é aquele em que o autor trata da retórica
progressista e denomina-se: “Da retórica reacionária à retórica progressista”.
162
Um dos objetivos deste capítulo foi examinar, a partir da tipologia criada por
Hirschman, a retórica acadêmica progressista sobre as políticas de ação afirmativa, da
mesma forma que a retórica conservadora foi explorada no capítulo anterior. Nesse
sentido, pode-se, inclusive, verificar o que é possível aprender com os erros da retórica
progressista por ele investigada. O autor concede então alguns conselhos aos
progressistas e/ou reformistas.
O primeiro deles adverte que os propositores e/ou defensores de políticas
reformistas devem ter conhecimento dos argumentos conservadores mais importantes e,
de certo modo, levá-los a sério. O autor alerta que sondagens à procura de objeções
quando políticas públicas são implantadas são bastante comuns atualmente. Os
reformistas, portanto, devem estar atentos a possíveis efeitos danosos de determinadas
políticas. No entanto, não devem eles próprios se transformar em procuradores
incansáveis de efeitos perversos, porque podem ficar pouco alertas para alguns
obstáculos recém-surgidos.
O segundo diz respeito ao fato de os reformistas se absterem de afirmar que se uma
determinada reforma não for adotada poderá ocorrer algum desastre. De acordo com o
autor, desde o colapso do comunismo esse tipo de argumento deixou de ser persuasivo.
Por fim, um último conselho se refere à tese da sinergia, segundo a qual não existem
conflitos entre diferentes tipos de reformas, pois se acredita que as reformas apóiam-se
umas às outras. Na interpretação de Hirschman, essa tese, no mínimo, desconsidera o
alto grau de complexidade das sociedades contemporâneas.
Após a retomada das contrapartidas às teses conservadoras e de sua correlação
com o discurso progressista a respeito das ações afirmativas, serão realizadas algumas
considerações finais a respeito desse debate que tem mobilizado intensamente a
comunidade acadêmica brasileira.
163
6 CONCLUSÃO
No prefácio de seu livro, Hirschman (1992, p. 10) conta uma história sobre como as
sociedades democráticas podem chegar ao ponto de que grupos com opiniões diferentes
se fechem até que em um determinado momento cada grupo pergunta acerca do outro:
“Como foi que eles chegaram a ser assim”. É justamente com essa incompatibilidade de
posições que se está lidando e, mesmo em uma sociedade democrática, ela não é fácil
de resolver.
A discussão sobre a implementação de cotas no Brasil provocou uma polêmica que
desafiou de forma inusitada o campo acadêmico. Daí a necessidade de compreender
melhor o funcionamento desse campo e a posição dos agentes que dele fazem parte.
Apesar do campo científico possuir determinado grau de autonomia, percebe-se que as
questões políticas o afetam diretamente, o que se torna ainda mais evidente nas ciências
sociais. Intelectuais e cientistas utilizam-se da retórica como uma forma discursiva de
obter a adesão e o convencimento de diversos tipos de auditórios especializados ou não.
No campo acadêmico brasileiro convivem pelos menos dois tipos de retórica a
respeito das ações afirmativas: uma retórica conservadora que vê essas políticas como
instrumentos que visam racializar a sociedade e provocar conflitos entre os diferentes
grupos; e uma retórica progressista que aposta nessas medidas como forma de conceder
direitos a grupos até então subordinados no repertório da cidadania nacional.
Percebeu-se por meio desta pesquisa que os autores partidários das duas retóricas
utilizaram seus argumentos tendo em vista diferentes auditórios. Apesar de haver uma
disputa acadêmica em torno do tema, a discussão ultrapassou o espaço acadêmico e os
intelectuais foram chamados a dar seus pareceres especializados em diversas instâncias
da esfera pública, desde os meios de comunicação até às audiências públicas na Câmara
dos Deputados e no Senado Federal. Daí a importância, conforme ressalta Canclini
(2005), de analisar os discursos dos intelectuais a partir de diferentes lugares de
enunciação.
Alguns elementos (topoi) presentes nas ciências sociais brasileiras reaparecem de
forma enfática nesse debate. Partidários da retórica conservadora e da retórica
progressista avaliam de maneira distinta a questão da raça, da mestiçagem e o ideário da
formação nacional. Intelectuais contrários às cotas condenam de maneira contundente o
164
uso da categoria raça por representar tanto a retomada de um conceito prescrito pela
biologia e pela antropologia quanto por estimular a essencialização de identidades.
Cientistas sociais favoráveis às ações afirmativas avaliam que a utilização do conceito
raça é necessária porque representa um signo pelo qual as pessoas se classificam e que
possui um permanente trânsito social. Para eles o signo raça não pode ser tratado como
inexistente, porque opera diariamente em processos classificatórios e discricionários. Se,
conforme afirma Hofbauer (2006), o fato de afirmar que raça é uma construção social não
purifica o conceito. Em complemento à sua interpretação, tratar o conceito como não
existente também não elimina sua eficácia no mundo social.
Para os autores partidários da retórica conservadora a mestiçagem é um
importante fator que favorece a integração nacional e que deve se preservado como uma
característica que demarca a singularidade brasileira. Já os autores que compartilham da
retórica progressista analisam a mestiçagem como uma teoria e uma ideologia que
ajudou na formação do estado-nação brasileiro e, ao mesmo tempo, provocou a
invisibilidade de grupos étnicos que permaneceram sem acesso aos principais direitos de
cidadania. Foi possível observar, no terceiro e quarto capítulos, que a mestiçagem
inicialmente apareceu como um problema para os intelectuais e os políticos do país, para
depois ser transformada em uma retórica positiva que iria conferir identidade à nação.
Atualmente esse é um tema central na controvérsia sobre as cotas, conforme comprovam
as distintas análises da retórica conservadora e da retórica progressista.
A formação da nação também é narrada diferentemente pelos dois grupos. Aqueles
que utilizam a retórica conservadora mantêm a crença de que o colonialismo português
foi assimilacionista e não segregacionista – quando comparado ao inglês – e isso
favoreceu que não fossem criados impedimentos legais para a ascensão e a integração
dos negros na sociedade brasileira, além da não-generalização de conflitos entre negros
e brancos. Os defensores da retórica progressista declaram que, apesar de não terem
havido mecanismos legais de discriminação contra a população negra, no Brasil também
se formaram ambientes segregados e um dos principais exemplos são as universidades.
O antagonismo entre a retórica conservadora e a retórica progressista foi
representado por diversas teses e antíteses. No caso da retórica conservadora
predominou a tese da ameaça, que prevê cenários assustadores para o Brasil caso as
políticas de ação afirmativa se concretizem. De acordo com essas previsões, o país seria
dividido entre negros e brancos, um Brasil racializado substituiria a nação morena tão
165
acalentada por Gilberto Freyre e seus seguidores. Quanto à retórica progressista, a tese
que apareceu com maior freqüência foi a da situação de crise desesperadora, apontada
pela maioria dos autores, que faz referência à péssima situação social da população
negra no país em relação à branca, especialmente quanto ao acesso ao ensino superior.
O problema é que não se encontram em jogo apenas opiniões diferentes sobre um
assunto, mas o quanto essas opiniões afetam a possibilidade de efetiva aplicação de
políticas sociais que atendam às demandas de determinados grupos. O debate travado
entre os intelectuais não pode ser descolado de um forte movimento de resistência às
ações afirmativas em várias esferas sociais, versus outro, de defesa contundente das
cotas para estudantes negros, desenvolvido especialmente por setores da sociedade civil
organizada. A maioria das universidades que adotou o sistema de cotas, especialmente
para estudantes negros, enfrentou inúmeras ações judiciais propostas por instituições,
estudantes que alegam terem sido prejudicados pela medida, procuradores etc. No caso
da UFSC, ao menos 45 liminares contrárias ao sistema de cotas haviam sido ajuizadas
até a finalização da pesquisa. O que esse cenário revela, além de uma resistência
renhida de alguns setores da sociedade a essas políticas e, em contrapartida, sua defesa
realizada por movimentos sociais e intelectuais, entre outros atores, é que o impasse está
se desenvolvendo também no campo jurídico. São, portanto, as “narrativas mestras” da
sociedade que estão sendo atingidas. O debate na esfera judicial pode obstruir ou
promover as mudanças. O processo de transferência da disputa do campo político para o
jurídico sinaliza a importância de reconhecimento legal como forma de dar um fim ao
debate. Embora esse final possa ser infinitamente postergado por meio dos trâmites
jurídicos.
Três importantes conclusões podem ser retiradas do embate entre os intelectuais
brasileiros a respeito das ações afirmativas. Uma delas é que está ocorrendo uma cisão
nas ciências sociais brasileiras, que indica uma forte disputa entre discursos díspares
sobre a formação da nação, seus mitos integradores e as possibilidades práticas e
teóricas para o futuro do país. Uma outra diz respeito ao papel do intelectual com
referência às questões políticas e à adoção de políticas sociais. E, por fim, a terceira, é
que a postura dos intelectuais contrários às cotas, muito mais que uma posição racista
(afinal todos os autores que tratam do tema denominam-se anti-racistas) demonstra uma
resistência à mudança da atual configuração do campo acadêmico brasileiro e sobre um
ideário de nação e de suas implicações na implementação de determinadas políticas
166
públicas, como as cotas. É o medo (real ou imaginário) das “conseqüências
involuntárias”, que caracteriza a rejeição às mudanças e consolida uma posição
conservadora.
Em relação à primeira conclusão, a cisão das ciências sociais brasileiras torna-se
explícita na classificação feita por Sérgio Costa (2006)
1
. Para o autor, o anti-racismo no
Brasil compreende principalmente duas posturas acadêmicas: aquela representada pelo
que ele classifica de “estudos raciais” e, a outra, constituída pelos seus críticos, em sua
maioria antropólogos. Apesar da interpretação de Costa ter servido como um ponto de
partida para a classificação das principais posições dos intelectuais, ela não parece ser
suficiente para explicar o que está acontecendo dentro do campo acadêmico,
especialmente em relação às ciências sociais.
De acordo com a classificação proposta pelo autor, os “estudos raciais”,
influenciados por pesquisadores norte-americanos e por brasileiros que estudaram nos
Estados Unidos caracterizam-se pela centralidade conferida à categoria raça e pela
adoção de uma perspectiva analítica que introduz o evolucionismo na análise
comparativa entre a organização política dos negros no Brasil e nos Estados Unidos.
Dessa forma, os padrões de relações entre brancos e negros no Brasil apareceriam como
atrasados tanto cultural quanto cronologicamente em relação aos norte-americanos. Os
principais instrumentos na luta anti-racista para os pesquisadores dos “estudos raciais”
seriam, naturalmente, as ações afirmativas.
Os críticos aos “estudos raciais” se opõem à imagem de uma sociedade dividida
entre brancos e negros, procuram mostrar que no Brasil predomina uma cultura inclusiva,
além de uma história que tem por base a assimilação e não a segregação. Esses críticos
concentram-se especialmente na antropologia e se opõem às ações afirmativas porque
essas medidas, além de enfatizarem a consciência racial, desestabilizam a noção de uma
cidadania universal que seria a melhor referência à integração dos brasileiros.
A análise de Costa (2006) possui pelos menos dois pontos questionáveis. Em
primeiro lugar, ele não chega a nominar exatamente os autores dos estudos raciais. Ele
cita alguns pesquisadores norte-americanos
2
e outros brasileiros
3
que realizaram estudos
1
Verificar uma outra classificação proposta pelo autor na Introdução.
2
Hanchard (1994) e French (2000).
3
SOARES, José F.; ALVES, M. Teresa G. Desigualdades raciais no sistema brasileiro de educação
básica.Educação & Pesquisa, vol. 29, n. 01, 2003. E: OLIVEIRA, Dijaci D, de; SANTOS, Ricardo B. A
cor do medo: o medo da cor. In: OLIVEIRA, Dijaci (org.). A cor do medo. Goiânia: Editora UFG, 1998.
167
sobre as desigualdades étnico-raciais, mas não chega a demarcar as suas áreas
específicas de estudos. Por isso a análise que realiza é muito generalista no que se
refere a três pontos por ele destacados: uso que se faz da categoria raça, a influência do
padrão norte-americano e a leitura evolucionista que compara a organização do
movimento negro no Brasil e nos Estados Unidos.
O outro ponto questionável é em relação aos críticos aos “estudos raciais”, pois o
autor, apesar de concentrar seus exemplos na antropologia, citando autores como Peter
Fry e Yvonne Maggie, entre ouros, desconsidera as contribuições de importantes
antropólogos como José Jorge de Carvalho, Rita Segato e José Carlos dos Anjos, que
elaboraram análises completamente distintas daquelas citadas por Costa. A impressão
deixada pela leitura de Costa é que a antropologia como um todo tem a mesma avaliação
sobre as melhores formas de combate ao racismo e sobre o modo como se estabelecem
as relações étnico-raciais no Brasil
4
. O que está acontecendo é que estudiosos como
Costa e Hofbauer privilegiam determinados autores e opiniões dentro da antropologia,
desconsiderando outros.
Ainda em relação ao processo de ruptura na academia brasileira, pode-se afirmar,
junto com Bourdieu (2003), que nas ciências sociais está havendo uma disputa entre
aqueles que aspiram a manutenção das “estratégias de conservação” com a finalidade de
perpetuar a ordem científica da forma como ela se encontra e aqueles que se orientam
por “estratégias de subversão”. Bourdieu denomina esses dois grupos – que concorrem
em um campo de luta desigual – de “dominantes” e “novatos”. Talvez não seja essa a
denominação adequada para o caso aqui tratado, mas é possível constatar que está
havendo um rompimento explícito com discursos de autores clássicos do pensamento
social brasileiro que pensava-se que estavam consolidados. A recorrência a matrizes
teóricas que enfatizam a mestiçagem, a afetividade nas relações sociais e a exaltação do
equilíbrio entre diferentes estão definitivamente sendo colocados à prova. Tais discursos
4
Um artigo de Reinaldo Azevedo, publicado na edição de 5 de novembro de 2007 da revista Veja,
classifica um tipo de antropologia, defensora da “cultura de periferia”, de “antropologia da maldade”.
Sem citar nomes de qualquer antropólogo o autor desqualifica a antropologia que se preocupa com
o “outro”, especialmente os favelados, os pobres e os indígenas, designados pelo autor por gente
“’sem fé, sem lei e sem rei’, sem esperança, sem estado e sem governo” (2007, p. 117). Os valores
do morro e da periferia, na interpretação de Azevedo, não passam de “manifestação de uma utopia
regressiva” (AZEVEDO, 2007, p. 117). Novamente é ressaltada na matéria a tese da ameaça, de
que estamos diante de um novo apartheid criado pelos antropólogos da maldade. Possivelmente os
antropólogos aos quais o autor faz referência sejam àqueles não citados por Sérgio Costa, que
defendem a implementação de ações afirmativas para as populações indígenas e negras no Brasil.
168
estão sendo desestabilizados e em seu lugar surgem novas interpretações,
possivelmente provenientes de uma “ordem científica herética” que rompeu com acordos
tacitamente aceitos no campo científico até então. É exatamente esse golpe de força que
se encontra em andamento e que afeta não apenas o ambiente acadêmico, mas se
expande para outros domínios.
Alguns autores questionam e, outros, até mesmo “lamentam” (Hofbauer, 2006), o
recrudescimento de posições entre os contrários ou os favoráveis às ações afirmativas.
Ou, se quisermos utilizar as palavras do autor, a divisão entre uma posição que defende
um “ethos” singular próprio aos brasileiros e, uma outra, que defende a demarcação de
identidades específicas. Seria mais proveitoso, se seguirmos os conselhos de Schwarcz
(2005/2006), ao invés de ficar discutindo entre o sim e o não, apelar para o talvez e,
ainda, conforme sugere a autora, por meio de Deleuze, é melhor ficar com algumas
dúvidas do que com um monte de certezas. Sérgio Costa (2006) é outro autor que
reclama de um posicionamento da sociologia que ultrapasse a dicotomia citada por ele e
por Hofbauer. O que esses autores não questionam é justamente o fato de por que se
instalou essa divisão nas ciências sociais brasileiras
Foi possível demonstrar por meio desta pesquisa que os posicionamentos já
existem, inclusive foram elaborados dois manifestos demarcando duas posições
antagônicas que foram aqui denominadas de retórica conservadora e de retórica
progressista. O que pode ser inquirido é sobre onde pode ser encontrada a posição
requerida por Costa, que tem o poder de ultrapassar as dicotomias e estabelecer alguma
forma de “verdade”? Parece que os autores que criticam a divisão estabelecida no campo
acadêmico desejam evitar uma discussão ou a tomada de uma posição que está
acontecendo em diferentes lugares da sociedade. Talvez a reflexão mais importante a ser
feita seja sobre o futuro das ciências sociais no Brasil. O que está explícito nessa cisão
das ciências sociais é que há projetos antagônicos de futuro para o país que avaliam a
questão da diversidade de forma diferenciada. E, mais uma vez, as ciências sociais têm
um papel fundamental em relação a esses projetos, quer os cientistas sociais queiram ou
não.
Pode-se responder a esses questionamentos afirmando, segundo os termos de
Bourdieu (2004), que está ocorrendo uma luta pelo poder de impor no interior do campo
científico brasileiro, especialmente no das ciências sociais, uma nova definição de ciência
e do que seja científico. Nesse sentido, são utilizadas estratégias diferentes pelos dois
169
grupos em disputa. Enquanto os partidários da retórica conservadora partem da posição
de uma ausência de ponto de vista, visando uma pretensa objetividade, ou seja, uma
atitude de distanciamento e de uma preservada neutralidade; os autores que
compartilham da retórica progressista não disfarçam seu engajamento político e sua
aliança com setores organizados da sociedade civil, como as organizações do movimento
negro.
Quanto à segunda conclusão, o que se destaca é uma antiga discussão a respeito
do papel dos intelectuais e de sua relação com a política. Pôde-se observar no segundo
capítulo que a intelectualidade brasileira sempre se posicionou em relação aos temas
importantes relacionados aos rumos do país. E isso mais uma vez é confirmado. Porém,
a forma como esses posicionamentos estão sendo assumidos pelos estudiosos
partidários das duas retóricas é diferente. No caso da retórica conservadora é mantida
uma estratégia discursiva que disfarça os comprometimentos políticos, aquilo que
Bourdieu denomina de uma posição “desinteressada”, o “interesse no desinteresse”. Já
no caso da retórica progressista o caráter político da discussão é a todo o momento
resgatado. Presume-se portanto que há pelos menos duas concepções de ciência
defendidas pelos dois grupos.
Uma delas, relacionada à retórica conservadora, parte do pressuposto de que a
racionalidade científica ainda pode regular a sociedade a partir de seus princípios
cognitivos, sem levar em conta o que pensam os diferentes auditórios afetados pelas
suas formas de racionalidade. Conforme Boaventura Santos (2000, p. 84): “a
consagração da ciência moderna nestes últimos quatrocentos anos naturalizou a
explicação do real, a ponto de não o podermos conceber senão nos termos por ela
propostos”. A outra perspectiva, adotada pelos intelectuais que compartilham a retórica
progressista, parte da prerrogativa de que a ciência deve executar uma transição
paradigmática que vise a construção daquilo que Santos denomina de “conhecimento-
emancipação”, o qual deve ser elaborado a partir de tradições até então marginalizadas
da ciência moderna ocidental. Nesse sentido, o autor sugere que a retórica pela qual o
campo científico se comunica com seus auditórios deve ser radicalmente reconstruída.
Nessa “novíssima retórica” o que deverá ser intensificado é, especificamente, sua
dimensão “dialógica”. A polaridade existente entre o orador e o auditório deve
transformar-se em uma seqüência de posições em que possam efetivamente ocorrer
trocas recíprocas. O resultado dessa transformação será um processo de “intercâmbio
170
argumentativo verdadeiramente inacabado” (Santos, 2000, p. 105), visto que, tanto o
orador pode transformar-se em auditório, quanto o auditório em orador. Nesse caso, o
convencimento será sempre “contingente” e “reversível”.
Em relação á terceira conclusão, que aborda a resistência de uns intelectuais ou o
apoio de outros à adoção de políticas de ação afirmativa, pode-se afirmar que ela está
relacionada à forma pela qual trata-se a questão racial na academia. Conforme comprova
Carvalho (2005/2006), essa questão é invariavelmente postergada nas discussões,
silenciada e, muitas vezes, quando o tema aparece se instaura uma censura discursiva
ou um disfarce para que posicionamentos claros sejam evitados e para que a tensão não
venha à tona. A temática racial não é bem-vinda e quando discutida é preferível que se
faça referência à realidade além dos muros universitários. O problema da não-
modificação do ambiente acadêmico brasileiro e do não-tratamento adequado da
discriminação racial é que permanecerá sendo reproduzido um modus operandi racista. O
racismo aqui entendido não somente como aquele sistema que violenta e discrimina o
outro, mas que mantém o privilégio de um grupo sobre o outro, indeterminadamente.
Nesse sentido, a partir da análise de Bento (2002)
5
, a discriminação racial pode originar-
se no desejo de manter determinados privilégios e não somente em processos que
recorrem diretamente ao preconceito. Em relação à aplicação de cotas nas universidades,
parece predominar a discriminação racial baseada no interesse com o objetivo de manter
um privilégio, embora o preconceito esteja obviamente presente. A idéia recorrente é que
as vagas universitárias já estão pré-estabelecidas, principalmente naqueles cursos
considerados de alto prestígio, para estudantes cujas famílias – de maioria branca e de
classes sociais economicamente privilegiadas – têm como horizonte a formação dos
filhos em universidades federais. O fato de se promover uma política de democratização
das vagas para a inclusão de estudantes oriundos de escolas públicas e, principalmente,
de estudantes negros e indígenas, provoca uma fissura em um círculo que há muito
tempo se repete.
Hofbauer aconselha que não se devem desclassificar as vozes que previnem sobre
o perigo da essencialização das identidades raciais, no caso da adoção das políticas de
ação afirmativa. Mas pode-se inverter essa equação e questionar se não há problemas
5
BENTO, Maria Aparecida Silva. Branqueamento e branquitude no Brasil. In: CARONE, Iray;
BENTO, Maria Aparecida Silva. Psicologia social do racismo: estudos sobre branquitude e
branqueamento no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2002.
171
em desqualificar e deslegitimar as vozes daqueles que desejam ver seus direitos
reconhecidos. É repudiada a atitude que desconsidera os avisos de intelectuais
especialistas no tema sobre a possibilidade de essencialização de identidades e,
inclusive, do acirramento de conflitos raciais. No entanto, pode ser descaracterizada a
reivindicação daqueles que enfrentam diariamente inúmeras formas de discriminação e
opressão. A possibilidade de construção de uma retórica dialógica escapa a essa forma
de interpretação. A carta aberta de Anjos (2007) aos professores e pesquisadores
contrários à aprovação da política de cotas para a UFRGS responde com precisão a tais
questionamentos:
Meu caro divino, mas de onde você está falando, cara-pálida? Que lugar
inacessível é esse que te permite definir os objetos do meu mundo apesar
de mim, os objetos do teu mundo apesar das tuas estatísticas? Como
decides sem mim as fronteiras entre mim e ti, quando elas existem e
quando não existem? O que te permite partir e repartir o mundo em
crenças paranóicas e racistas de um conjunto de movimentos sociais
negros e a verdade subjetiva de todo o resto supostamente não
racializado? Apenas o olhar arrogante da tua bela ciência? O que te
permite definir quando o que o “nativo” diz deve ser levado em conta e,
sobretudo, quem é o “nativo” que merece teu crédito? Esse lugar de
enunciação que supõe acesso tão privilegiado ao real, que vos permite
dizer que não existe o racismo que sobre meu corpo insiste, não é o sinal
mais flagrante de vossa branquitude?
O que as palavras de Anjos exprimem e o debate atualmente exige é o direito à
escuta de grupos sociais marginalizados historicamente que estão solicitando sua
presença na arena das lutas políticas, não apenas como espectadores. Esses novos
sujeitos não visam atualizar o racismo ou racializar a sociedade, mas recusam-se a
esquecer as marcas da exclusão. Essas marcas estão assinaladas prioritariamente pelo
não acesso aos territórios e à escolaridade (Leite, 2007). Por outro lado, cada um
envolvido nesse debate deve observar seu lugar de enunciação e responder por que um
lugar deve ser mais reconhecido que o outro. Não podem ser utilizados critérios
diferentes de legitimidade quando todos os atores, afinal de contas, participam na mesma
luta política. A assimetria entre intelectuais/especialistas/cientistas e ativistas de
movimentos sociais/comunidades quilombolas/estudantes negros permanecerá enquanto
a fala dos primeiros for considerada superior à daqueles que não possuem o acesso às
mesmas estratégias discursivas e retóricas marcadas pela crítica especializada e
racional.
172
Apesar de já haver 51 universidades públicas que adotam medidas de ação
afirmativa e da cisão ocorrida nas ciências sociais brasileiras, predomina ainda uma
retórica conservadora a respeito do tema, que está disponível nos meios de
comunicação, nas liminares judiciais propostas contras as cotas nas universidades, nas
ações de inconstitucionalidade contra o Decreto 4887/03, que estabelece a demarcação
de terras de comunidades quilombolas, nos discursos cotidianos de estudantes e
professores universitários e no arcabouço retórico de parte da intelectualidade brasileira.
No entanto, a retórica progressista encontra-se em expansão e, além de tornar possível a
alteração de representações sobre as identidades sociais de sujeitos até então
invisibilizados, permite que essas pessoas vislumbrem possibilidades mais justas de
acesso às universidades. As transformações ocorridas no meio acadêmico afetam outros
setores sociais e vice-versa. Se encontra em andamento uma mudança, ainda lenta, mais
significativa, da realidade social e das formas de interpretá-la.
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