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Éliphas Lévi
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quando afirma que “aos cantos de Orfeu abrandam-se os rochedos,
desraigam-se os carvalhos, e os animais selvagens submetem-se ao homem”.
Tendo em vista a incerta filiação de Orfeu no respeitante à paternidade, não
parece descabido vincular a origem do poder mágico de seu canto inteiramente ao
lado materno, ou seja, às Musas. Nesse sentido, convém discorrer aqui também
sobre o papel e a importância que essas figuras apresentam em seu berço cultural, a
Grécia, tomando como fontes principais a Teogonia e o estudo que Jaa Torrano
elabora sobre esse texto. A escolha pelo poema de Hesíodo deve-se, basicamente,
ao fato de manter um forte vínculo com uma visão do mundo arcaica, própria da
poesia oral – e a partir da qual se origina a figura de Orfeu -, ainda que sua
composição já se dê por meio do código escrito
94
.
Filhas de Zeus, “pai dos Deuses e dos homens”, e de Mnemósina, divindade
que personifica a Memória, perfazem, segundo Hesíodo, um total de nove, que é o
número de noites consecutivas que o “Pai Cronida” partilhou o leito dessa que é
“rainha nas colinas de Eleutera”
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. Cada Musa apresenta-se ligada a uma função
específica: “Calíope preside à poesia épica; Clio, à história; Polímnia, à retórica;
Euterpe, à música; Terpsícore, à dança; Érato, à lírica coral; Melpômene, à tragédia;
Tália, à comédia; Urânia, à astronomia”
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. Irmana-as, porém, o fato de, na morada
divina, cantarem a vitória dos Olímpicos, e, por conseqüência, a realeza paterna, a
fim de aprazer a Zeus e aos outros imortais: “[...] elas a Zeus pai / hineando alegram
o grande espírito no Olimpo / dizendo o presente, o futuro e o passado”
97
. Igualam-
se, ainda, por concederem aos aflitos o esquecimento de seus pesares através da
escuta dessas glórias divinas, entoadas por aedos que cantam sob seu patrocínio.
Se, como afirma Jaa Torrano, a propósito da Teogonia, “a descendência é
sempre uma explicação do ser próprio e profundo da Divindade genitora”
98
, uma
compreensão mais aguda do sentido atribuído às Musas no poema de Hesíodo
torna necessário que se atente para o modo pelo qual participam da natureza de
Zeus e Mnemósina, divindades de que descendem. Filho de Cronos e Réia, Zeus é
o último e definitivo soberano divino. Conquista sua realeza ao subjugar o pai e os
93
LÉVI, Éliphas. História da magia. São Paulo: Pensamento, 2006. p. 80.
94
Cf. TORRANO, 2006, p. 15 e VERNANT, Jean-Pierre. Mito e sociedade na Grécia antiga. Rio de
Janeiro: José Olympio; Brasília: UnB, 1992. p. 184.
95
HESÍODO, 2006, p. 105.
96
BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega. Petrópolis: Vozes, 2004. V. 1. p. 203.
97
HESÍODO, 2006, p. 105.
98
TORRANO, 2006, p. 31.