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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA
CENTRO DE ARTES E LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
RESSONÂNCIAS ÓRFICAS EM
OS QUATRO CANTOS DO TEMPO,
DE DAVID MOURÃO-FERREIRA
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
Gustavo Machado Costa
Santa Maria, RS, Brasil
2008
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RESSONÂNCIAS ÓRFICAS EM OS QUATRO CANTOS DO
TEMPO, DE DAVID MOURÃO-FERREIRA
por
Gustavo Machado Costa
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado do Programa de Pós-
Graduação em Letras, Área de concentração em Estudos Literários, da
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM, RS), como requisito
parcial para a obtenção do grau de
Mestre em Letras
Orientador: Profª. Dr. Sílvia Carneiro Lobato Paraense
Santa Maria, RS, Brasil
2008
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Universidade Federal de Santa Maria
Centro de Artes e Letras
Programa de Pós-Graduação em Letras
AGRADECIMENTOS
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, pela
concessão da bolsa que tornou possível a realização deste trabalho.
Ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Santa
Maria, por viabilizar minha vida estudantil durante a permanência no curso.
À Professora Sílvia Paraense, pela maneira comprometida e generosa com
que acompanhou meu percurso desde a graduação, pelo profissionalismo com que
conduziu as atividades de orientação, apontando erros e caminhos, mostrando-se
disponível e paciente e compreendendo minhas dificuldades e incertezas, e,
sobretudo, pelo exemplo de competência, sensibilidade e coerência.
Ao Professor Fernando Villarraga pelo modo interessado e amigo com que
sempre procurou contribuir para minha formação profissional, colocando-me frente a
problemas e deficiências e incentivando minha incursão nos estudos literários.
Aos demais professores do programa, em especial à Professora Teresa
Cabañas, pelas sugestões e indicações quando do exame de qualificação.
À biblioteca do Centre Culturel Calouste Gulbenkian, na pessoa de sua
diretora, a Senhora Teresa Salgado, por disponibilizar, através de oferta e
empréstimo, títulos de difícil acesso, relevantes para a feitura deste estudo.
À professora Teresa Martins Marques, por, gentilmente, ter-me enviado um
levantamento de suas publicações sobre David Mourão-Ferreira.
A todos que, de alguma forma, participaram desta etapa de minha formação -
colegas, parentes e amigos -, em especial a Márcia Froehlich, Edimara Sartori e
Ivana Ferigolo, pela solicitude e pelas contribuições bibliográficas.
[...] ele [o texto] produz em mim o melhor prazer
quando consegue fazer-se ouvir indiretamente,
quando, ao lê-lo, sou levado a levantar muitas vezes
a cabeça, a ouvir outra coisa.
(Roland Barthes, O prazer do texto)
RESUMO
Dissertação de Mestrado
Programa de Pós-Graduação em Letras
Universidade Federal de Santa Maria
RESSONÂNCIAS ÓRFICAS EM OS QUATRO CANTOS DO TEMPO
DE DAVID MOURÃO-FERREIRA
A
UTOR
:
GUSTAVO
MACHADO
COSTA
O
RIENTADOR
:
SÍLVIA
CARNEIRO
LOBATO
PARAENSE
Data e Local da Defesa: Santa Maria, 27 de junho de 2008.
Este trabalho tem como objetivo analisar as ressonâncias do mito de Orfeu
em Os quatro cantos do tempo, do escritor português David Mourão-Ferreira. O
estudo divide-se em três capítulos. No primeiro, procura-se situar o escritor nas
tendências da poesia portuguesa do século XX, para, em seguida, observar as
considerações da crítica sobre o modo como a poesia davidiana recupera elementos
da tradição clássica. No segundo, apresentam-se os principais aspectos de Os
quatro cantos do tempo, a fim de identificar aqueles que indicariam a recuperação
do mito de Orfeu. Finalmente, o terceiro capítulo aborda as ressonâncias órficas na
obra. Investiga-se, inicialmente, o modo como a magia da palavra seria assimilada
pela lírica ocidental e, conseqüentemente, pelos poemas da obra, para, em seguida,
analisar como a aventura de Orfeu e Eurídice é atualizada no livro.
Palavras-chave: Poesia, Mito de Orfeu, Magia da palavra, Revelação poética
ABSTRACT
Dissertação de Mestrado
Programa de Pós-Graduação em Letras
Universidade Federal de Santa Maria
ORPHIC RESSONANCES IN OS QUATRO CANTOS DO TEMPO BY
DAVID MOURÃO-FERREIRA
AUTHOR:
GUSTAVO
MACHADO
COSTA
ADVISER:
SÍLVIA
CARNEIRO
LOBATO
PARAENSE
Date and Place of Presentation: Santa Maria, 27 de junho de 2008.
This work aims to analyze Orpheu myth’s ressonances in Os quatro cantos
do tempo, by portuguese writer David Mourão-Ferreira. The study is divided into
three chapters. Chapter one intends to discuss the place of David Mourão-Ferreira in
the portuguese contemporary poetry tendency’s. Next, this chapter observe critics
consideration’s about elements of classical tradition in David Mourão-Ferreira
poetry’s. Chapter two describes the principal components of Os quatro cantos do
tempo in order to identify wich relate to Orpheu myth’s. The third chapter discuss the
orphic ressonances in the book. This chapter investigate the assimilation of magic
verb in modern poetry and in Mourão-Ferreira poetry’s. Besides, It searches how
Orpheu and Eurydice adventure’s is figurated in the book.
Key-words: Poetry, Orpheu myth’s, Magic verb; Poetic revelation
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................9
1 DAVID MOURÃO-FERREIRA NO PANORAMA DA POESIA PORTUGUESA
DO SÉCULO XX .......................................................................................................11
1.1 Távola redonda...............................................................................................12
1.2 Herança clássica na poesia davidiana: os juízos da crítica............................20
2 OS QUATRO CANTOS DO TEMPO: ASPECTOS DA OBRA........................29
3 SOB O SIGNO DE ORFEU ............................................................................36
3.1 A magia do citaredo........................................................................................37
3.2 Orfeu e Eurídice .............................................................................................57
3.2.1 A amada como talismã ...................................................................................61
3.2.2 Presença da ausente e catábase à memória .................................................65
CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................68
BIBLIOGRAFIA .........................................................................................................69
1 Obras de David Mourão-Ferreira....................................................................69
2 Entrevista........................................................................................................69
3 Sobre a poesia de David Mourão-Ferreira......................................................70
4 Sobre o contexto histórico-literário português ................................................72
5 Geral...............................................................................................................74
INTRODUÇÃO
Em “Tradição e talento individual”, T. S. Eliot
1
procura, entre outras coisas,
estabelecer um novo lugar para o termo “tradição” no campo das letras inglesas. Ao
constatar sua utilização egua, decorrente da preocupação dos críticos em observar
apenas a singularidade das composições sobre as quais se debruçam estando,
portanto, geralmente relacionada a algum tipo de censura -, Eliot proporá um outro
conceito para o termo, formulado a partir da conjetura de que, muitas vezes, os
“passos mais significativos” da obra de autores contemporâneos “poderão ser
aqueles onde os poetas mortos, seus antepassados, mais vigorosamente afirmam a
sua imortalidade”
2
.
Com isso, não quer o crítico dizer, como se poderia pensar, que o termo
designaria uma mera herança, isto é, uma adoção irrefletida dos procedimentos
instituídos pelas gerações precedentes, que, para ele, a tradição deve ser “obtida
com árduo labor”. O que levaria um escritor a ser considerado tradicional, na visão
de Eliot, corresponde ao fato de ter por horizonte aquilo que o crítico denomina
como “sentido histórico”, ou seja, saber discernir tanto o que é “passado do
passado” quanto o que dele realmente permanece. O sentido histórico levaria o
escritor a “escrever não apenas com a sua própria geração no sangue, mas também
com um sentimento de que toda a literatura européia desde Homero, e nela a
totalidade da literatura de sua pátria, possui uma existência simultânea e compõe
uma ordem simultânea”, tornando-o, inclusive, “mais agudamente consciente do seu
lugar no tempo, da sua própria contemporaneidade”
3
.
Tais considerações vêm a propósito da aproximação, estabelecida por
Fernando J. B. Martinho
4
, entre o conceito de tradição elaborado por Eliot e a poesia
do escritor português David Mourão-Ferreira. Para Martinho, Mourão-Ferreira pode
ser considerado um escritor tradicional, nos termos de Eliot, uma vez que sua obra
poética concilia os valores da tradição aos da modernidade. Nesse sentido, a
1
ELIOT, T. S. Ensaios de doutrina crítica. Lisboa: Guimarães, 1962.
2
Id., p. 22.
3
Id., p. 23.
4
MARTINHO, Fernando J. B. Tendências dominantes da poesia portuguesa da década de 50.
Lisboa: Colibri, 1996.
10
preferência pelas formas tradicionais e a presença, em termos de diálogo
intertextual, da cultura greco-latina, observáveis na poesia desse escritor, o se
fazem, enquanto manifestação da tradição, mera retomada arbitrária de elementos
fixados no campo literário, mas, verdadeiramente, uma atualização refletida,
realizada tendo-se em vista os valores estético-culturais do momento histórico no
qual essa poesia está inserida.
Tomando tal aproximação como premissa, o presente trabalho contrói-se
como uma tentativa de abordagem de uma das publicações em verso do autor, Os
quatro cantos do tempo, por meio das ressonâncias do mito de Orfeu que nela se
fazem presentes. Como hipótese, considera-se que a atualização do mito seria
perpassada por uma tensão característica da postura estética da lírica a partir do
Romantismo, a qual consiste na coexistência entre uma visão mágico-analógica e
uma posição antimágica ou disjuntiva.
O texto que ora se apresenta organiza-se em três capítulos. No primeiro,
procura-se situar o escritor nos principais movimentos que formam o panorama da
poesia portuguesa do século XX, para, em seguida, observar como a crítica tem se
manifestado em relação ao modo pelo qual a poesia davidiana recupera elementos
da tradição clássica.
No segundo, são explicitados os principais elementos presentes na
constituição de Os quatro cantos do tempo, atentando-se, de maneira
concomitante, para as considerações que a crítica tece sobre eles. Com isso,
procura-se mostrar de que forma alguns desses componentes da obra, ao serem
pensados em conjunto, poderiam indiciar a retomada do mito de Orfeu em dois
aspectos: a magia de seu canto e a aventura com (e por) Eurídice.
O terceiro capítulo debruçar-se-á, então, sobre essas duas formas de
ressonância do mito na obra. Para tanto, divide-se em dois momentos. No primeiro,
perquire-se o modo pelo qual o elemento mágico relacionado à figura de Orfeu pode
ser transposto para a lírica ocidental e, conseqüentemente, para os poemas da obra.
No segundo momento, tendo por horizonte alguns dos elementos depreendidos da
primeira discussão, procura-se analisar de que maneira a aventura de Orfeu e
Eurídice é atualizada ao longo do livro.
1 DAVID MOURÃO-FERREIRA NO PANORAMA DA POESIA
PORTUGUESA DO SÉCULO XX
Poeta, ficcionista, tradutor, dramaturgo, ensaísta e cronista, David Mourão-
Ferreira
5
estréia no cenário literário português em 1948, com a publicação de alguns
poemas nas páginas da revista Seara nova. Sua produção, contudo, somente
ganha visibilidade quando de sua participação em Távola redonda, gazeta poética
que editou e dirigiu juntamente com António Manuel Couto Viana e Luiz de Macedo.
É sob a insígnia editorial dessas “folhas de poesia” que o escritor a lume seu
primeiro livro de versos, intitulado A secreta viagem.
Em face da notória importância que apresentam as revistas literárias no
estabelecimento de tendências estéticas na literatura portuguesa contemporânea,
bem como da relevância de vola redonda para a tomada de posição que David
Mourão-Ferreira empreende, pelo menos inicialmente, no campo da poesia, faz-se
necessário deter-se por um momento nessa publicação. Procura-se, com isso,
observar tanto os princípios que a nortearam quanto o lugar que ocupa no cenário
da poesia portuguesa do século XX. Na seqüência, apresentam-se alguns estudos
sobre a poesia de David Mourão-Ferreira que contemplam o aspecto a ser
desenvolvido neste trabalho, a fim de verificar a maneira como a questão vem
sendo abordada pela crítica.
5
Nascido em Lisboa a 24 de fevereiro de 1927, David de Jesus Mourão-Ferreira licenciou-se em
Filologia Românica no ano de 1951, pela Faculdade de Letras de Lisboa. Foi professor nessa mesma
instituição a partir de 1957, ficando responsável, um ano após o seu ingresso, pela cadeira de Teoria
da Literatura, na qual desenvolveu, pioneiramente, estudos sobre o new criticism. Exerceu ainda o
cargo de secretário de Estado da Cultura nos anos de 1976 e 1978. Em 1981, tornou-se diretor do
Serviço de Bibliotecas da Fundação Calouste Gulbenkian, sucedendo, posteriormente, a Jacinto do
Prado Coelho na direção da revista Colóquio Letras, pertencente à referida fundação. Vem a falecer
em sua cidade natal, a 16 de junho de 1996.
12
1.1 Távola redonda
Poetas: vamos dar as mãos! De novo
Se escute em nós uma canção de ronda
Poesia – única távola redonda
Com pão e vinho para todo o povo.
(António Manuel Couto Viana, “Távola redonda”)
Surgida em janeiro de 1950, Távola redonda rompe com um silêncio de oito
anos no que respeita a publicações dedicadas preferencialmente à poesia
6
, sendo
precursora de uma efervescência de revistas desse tipo, característica do referido
decênio
7
. Ela será ainda a gazeta poética que sobreviverá por mais tempo,
totalizando vinte fascículos em quatro anos.
Ao contrário do que geralmente ocorre em publicações dessa natureza, não
há, em Távola redonda, a presença de um texto declaradamente programático.
Isso parece estar relacionado à preocupação, manifestada por seus dirigentes, em
tornar essas folhas um espaço eclético, unificado apenas no interesse comum pela
poesia
8
. A participação de poetas das mais variadas posições político-ideológicas
(monarquistas e socialistas, por exemplo) tornaria evidente, segundo Beatriz
Berrini
9
, o espírito democrático que perpassa a revista.
Alguns críticos, porém, defendem a existência, nessa gazeta poética, de
linhas de orientação bem definidas, dedutíveis não a partir das composições,
mas também, e principalmente, dos ensaios publicados. Dessa maneira, impõe-
se observar, mesmo que rapidamente, os aspectos que constituem o cerne
argumentativo de dois deles, veiculados no primeiro fascículo da Távola.
6
É David Mourão-Ferreira quem a conhecer esse aspecto em ensaio em que realiza um balanço
da produção lírica da geração de 50: O fato é tanto mais de assinalar quanto é certo que a Távola
redonda aparecera depois de um longo interregno de oito anos em publicações de tal natureza, visto
o último número da primeira série dos Cadernos de poesia datar de 1942”. Cf. MOURÃO-
FERREIRA, David. Depoimento sobre a poesia da geração de 50. ______. Motim literário. Lisboa:
Verbo, 1962. p. 190.
7
SARAIVA, António José; LOPES, Oscar. História da literatura portuguesa. Porto: Porto, 2005, p.
1131.
8
No fascículo 12, encontra-se uma nota não assinada em que se apresenta a postura dos diretores
acerca da expressão poesia da Távola”, tornada de uso corrente. Ressalta-se que a publicação
não se pretendia uma corrente, na medida em que não havia imposto nenhum tipo de formulário a
seus colaboradores, exigindo apenas “autenticidade” nas composições. No entanto, a reiteração do
termo “autenticidade”, presente no ensaio de Alberto de Lacerda, veiculado no primeiro fascículo da
revista, levará, por exemplo, Jayme Ferreira Bueno a considerá-lo um preceito estético que
deflagraria uma diretriz bem definida.
9
BERRINI, Beatriz. A importância de ser “Távola redonda”. Colóquio/Letras, Lisboa, n. 87, p. 5-19,
set. 1995.
13
O primeiro, de autoria de Alberto de Lacerda e intitulado “Um lugar para a
poesia”, coloca a publicação na esteira da lírica vinda depois do Simbolismo,
acreditando serem necessários a “revolução [...] de técnicas e de temas” e o
afastamento do blico leitor, que caracterizam esta postura estética, sob pena de
uma “cristalização estéril” do poético, que o tornaria menos vivo e autêntico.
Especificamente em relação ao afastamento entre autor e leitor, Lacerda pondera
que, por fim, esses pólos teriam como ponto de encontro a imaginação, elemento
que considera fundamental para se “aproximar da essência fugidia mas real que
está na base do instinto criador”
10
. Para o escritor, a “poesia corpo a essa
essência: se o encontro entre a visão e a expressão for perfeito, o leitor comum
reconhece, na obra de arte, o que só ela é capaz de comunicar” (1989).
Em seguida, Lacerda avalia se a imaginação, por permitir alcançar a
“realidade objetiva, concreta, a que uns chamam Beleza, e outros Vida com V
grande”, levaria o leitor a uma “fuga das realidades de todos os dias, da vida com v
irremediavelmente pequeno”. Lançando mão de excertos das produções de Jo
Régio, Cecília Meireles e Charles Du Bos, irá afirmar que a poesia, quando é
verdadeiramente autêntica, permite atingir o cerne mesmo da existência, tornando
inverídica a oposição entre arte e vida.
Com base nisso, critica as “tendências predominantes” contemporaneamente
tanto por “ignorar[em] ou relegar[em] para segundo plano” a imaginação quanto por
erigirem os problemas sociais como preocupação fundamental da poesia, negando
sua autonomia. Compreende a poesia como “um acontecimento pessoal, o mais
pessoal dos acontecimentos” - visto originar-se do próprio âmago da personalidade -
, considerando-a, “primeiro que tudo, criação ingênua e mágica”. Ademais, ao ter em
vista o ensaio “Europa ou o diálogo que nos falta”, presente em Heterodoxia, de
Eduardo Lourenço, atesta o “fracasso” da tendência social em termos estéticos e
críticos e julga serem alguns poemas de Adolfo Casais Monteiro a melhor realização
das “aspirações da geração que não era a sua”, pelo fato de que não perderiam
de vista as necessidades específicas do poético.
Ao final, além de afirmar que “expressões como ‘formalmente belo’ ou ‘o
fundo é o que mais importa’, não têm sentido [...] para a maioria dos jovens poetas
10
TÁVOLA REDONDA. Lisboa: Contexto, 1989. Não paginado. (Edição fac-similada). As demais
citações dos textos da Távola serão acompanhadas apenas pelo ano de publicação da edição fac-
similada.
14
neste janeiro de 1950” (1989), aponta algumas características que norteariam os
poemas da publicação, sublinhando a ausência de qualquer “intenção programática”
ao inventariá-las. Elas seriam as seguintes:
a conquista do poético sem preconceitos de antigo ou de moderno, de
temas ou de palavras, dentro da liberdade essencial ligada à criação e à
vida da obra de arte; variedade na forma, sabendo, sobretudo, que ela
existe, e desejo consciente de a dominar com beleza; inquietação social
sem desgosto estético; revalorização do mito. (1989)
O segundo texto, intitulado “Lirismo ou haverá outro caminho?” e elaborado
por David Mourão-Ferreira, centra-se, basicamente, na defesa do “Lirismo” como
fulcro do poético: “a Poesia, além de começar por ser rica, o volta sempre a ser,
nos seus mais altos momentos; [...] são líricas não as primeiras, mas também as
melhores manifestações poéticas de um povo, de uma geração ou de um indivíduo”
(1989). A fim de precisar o sentido do termo que título ao ensaio, parte da
assertiva de Valéry de que o Lirismo é o “desenvolvimento de uma exclamação”,
ampliando-a com a seguinte afirmativa: “atitude de quem se espanta, se admira ou
repara – perante, ou em uma – qualquer circunstância, e tende logo a isolá-la, torná-
la independente e memorável” (1989). Sua principal característica, porém, não
corresponderia à natureza mesma dessas circunstâncias, mas ao aspecto
involuntário, em que momentos, circunstâncias, emoções e motivos se apresentam
ao Poeta, [a]o aspecto de excepcionais que eles adquirem e, ainda, de maneira
decisiva, [a]o processo como eles ulteriormente se desenvolvem” (1989).
Nessa involuntariedade, caracterizada ainda por Mourão-Ferreira como
“urgente”, residiria o mistério da Poesia mistério esse que o deve ser tratado de
modo a perturbar “o processo de desenvolvimento dos motivos” e de intervir “nos
aspectos técnicos ou formais”. Isso porque a valorização radical do mistério levaria a
uma atitude tão falaciosa quanto a daqueles que encaram “a criação como atividade
estritamente racional e deliberada”.
Sobre a possível distinção “entre um momento, a-consciente e misterioso, de
imposição de motivos, e os momentos, conscientes e deliberados, do seu
desenvolvimento ulterior”, afirma ser válida apenas no âmbito ensaístico, porquanto
haja “simplesmente uma passagem, uma mudança, um progresso, do escuro ou do
claro-escuro, para o claro” (1989). Dessa maneira, um “motivo, ao impor-se, impõe-
se já com um certo tom e num certo ritmo, que determinam tudo o resto” (1989).
15
À face disso, acredita ser imprópria a divisão, vulgarmente difundida, entre
“forma” e “fundo”, bem como a valorização de um desses elementos em detrimento
do outro. Para Mourão-Ferreira
As grandes épocas do Lirismo são aquelas em que se consegue o
equilíbrio, a coerência ou a proporção, entre os motivos e a técnica, entre os
temas e as formas; são aquelas em que se atinge, entre os diversos
elementos, uma correspondência harmoniosa. (1989)
O esquecimento dessa correspondência e, conseqüentemente, a ruptura
dessa harmonia colocariam o Lirismo necessariamente em situação de perigo.
Manifestações desse perigo haveriam ocorrido, segundo o autor, com a poesia
gongórica, pela desproporção na maneira complicada e exaustiva de desenvolver
motivos insignificantes”, e com a “poesia de alguns pré-românticos“ e a “de certos
românticos de todos os tempos [...], pela sobrecarga de temas e de intenções, que
não obtinham desenvolvimento adequado” (1989).
A essas situações, que equivaleriam, segundo o crítico, a perigos internos”,
somar-se-iam outras, “de ordem externa: ameaças, permanentes e geralmente
aceites, de aproveitamento ilegítimo dos processos próprios do lirismo”. Utilizando-
se de uma circunstância empírica (a ação humana sobre o curso de um regato),
Mourão-Ferreira ilustra metaforicamente as duas posturas que caracterizariam essa
ordem:
Estes perigos partem de quem, vendo e ouvindo um regato (e não sendo
devidamente sensível à musicalidade da corrente; e não entendendo que a
sua nascente foi espontânea e inexplicável; e sem prestar atenção ao papel,
a um tempo gratuito e fundamental, que esse regato desempenha na
paisagem onde está) se decide, por ignorância ou má-vontade, a alterar-
lhe o curso, a torcer-lhe o sentido ou a sobrecarregá-lo de outras águas,
vindas de origens mais voluntárias e destinadas a objetivos mais concretos.
(1989)
Com vistas nisso, faz a ressalva de que não tencionaria expressar, com tal
formulação, “que possa ser frio ou frívolo o regato do lirismo” (1989), uma vez que
essel regato “tem na sua origem, o calor humano da emoção autêntica e sem cálculo
e, como fim, o inteiro e desinteressado conhecimento do homem”. Encerra o texto
destacando ser “graças a essa involuntariedade urgente na origem e à gratuidade
fundamental nos objetivos [...] que toda a Poesia começa por ser lírica”, além de
16
asseverar “que a mínima fuga, desvio ou sabotagem do Lirismo se volve em
negação da própria Poesia” (1989).
Confrontando-se as principais idéias difundidas nos ensaios, torna-se patente,
entre outras coisas, que ambos assumem uma postura de repúdio em face da
preocupação social que fundamenta algumas produções contemporâneas,
vinculadas ao neo-realismo - corrente estética que ocupa posição hegemônica no
panorama literário português a partir do início da década de 40. Isso não significa,
porém, que a postura de Távola redonda seja equivalente à de outra vertente que,
três anos antes da publicação dessas folhas de poesia, se colocava em oposição
aos valores estéticos neo-realistas: o Surrealismo. Apesar de Lacerda, na abertura
de seu texto, defender a necessidade da renovação e da imaginação para a
existência da arte e da poesia, tais aspectos são, ao longo do ensaio, pensados
juntamente com uma idéia de forma ainda atrelada aos paradigmas tradicionais. Ao
desejar dominá-la com beleza, Lacerda manifesta, se bem que em latência, a
correspondência harmoniosa” entre “os motivos e a técnica, entre os temas e as
formas”, defendida por Mourão-Ferreira, afastando-se, nesse sentido, de
concepções que preconizam a ruptura de paradigmas poéticos, tais como a idéia de
escrita automática, que constitui o programa surrealista.
Em termos de orientação prática, a utilização dos modelos formais fixados na
tradição literária portuguesa e ocidental ocupa um lugar preponderante nos poemas
veiculados pela revista, a ponto de Fernando J. B. Martinho, em seu estudo acerca
das principais tendências da poesia na década de 50, considerar a regularidade “no
plano da forma da expressão” como um dos principais elementos de seu
sociocódigo
11
. Martinho enumera, inclusive, os procedimentos que tornariam patente
a importância dada ao princípio da regularidade: preferência pelas estrofes
isométricas, paralelismos, repetições e recurso freqüente à rima, consoante ou
toante
12
.
A isso havia atentado João Gaspar Simões ao afirmar que as composições
da Távola estariam
Na esteira de Fernando Pessoa ele-mesmo, a expressão menos
revolucionária da poesia do mestre de Mensagem, e integrando-se,
11
MARTINHO, 1996, p. 115. O autor utiliza o termo sociocódigo” com base nas considerações de
FOKKEMA, Douwe. História literária – modernismo e pós-modernismo. Lisboa: Veja, [1988].
12
Id., p. 120.
17
portanto, na feição que no Orpheu adquirira contornos clássicos e na
Presença se exprimia através dos poetas da feição tradicional [...].
13
Com essa observação, Simões toca igualmente em outro aspecto que
Fernando Martinho arrola entre os elementos norteadores da poesia da Távola: o
diálogo intertextual com a tradição literária ocidental e portuguesa, que se daria tanto
no “plano da forma da expressão”, como se mencionou, quanto no “plano da forma
do conteúdo”
14
. Essa tradição, em termos de cultura portuguesa, não estaria limitada
apenas ao âmbito erudito, passando também pelo folclore, como indica a utilização
de formas populares, tais como a cantiga-de-roda, a xácara e o rimance.
No que tange ao diálogo das composições da revista com a obra de Fernando
Pessoa, Fernando Martinho
15
irá dizer, em estudo em que observa a influência do
autor de Mensagem na poesia da primeira metade do século XX, que os poemas da
Távola retomariam não o tradicionalismo formal presente na produção do
ortônimo, como observa Simões, mas também, algumas vezes, aquele que se
apresenta nos poemas do heterônimo Ricardo Reis. Haveria, contudo, certa
divergência entre a atmosfera presente nas peças da Távola e nas composições
desse heterônimo, porquanto os textos, por exemplo, de Miguel de Castro em que
a sombra de Reis far-se-ia, segundo Martinho, mais evidente - seriam perpassados
igualmente por uma imagística simbolista e decadente
16
.
Quanto à ligação da revista ao movimento de Presença - tendência estética
preponderante no quadro literário português ao longo dos anos 30 do século
passado -, a maior parte dos estudiosos que sobre Távola m se debruçado afirma
ser essa aproximação mais estreita do que a observada por Simões, que se limita
apenas à paridade no uso de procedimentos formais. Tanto para Martinho quanto
para Jayme Ferreira Bueno
17
, autor do único estudo dedicado exclusivamente à
revista, poder-se-ia observar uma proximidade entre as referidas publicações desde
os ideais expostos nos ensaios até a postura assumida pelos sujeitos das peças
13
SIMÔES, João Gaspar. História da poesia portuguesa do século XX. Lisboa: Empresa Nacional
de Publicidade, 1959. p. 774.
14
O levantamento dos principais temas e motivos evocados na poesia da Távola, efetuado por
Marília Regina Brito, evidencia a preponderância de imagens da tradição grego-latina nos poemas
elaborados por Mourão-Ferreira. Cf. BRITO, Marília Regina. O amor em David Mourão-Ferreira: da
vida à poesia. Porto: Universidade Fernando Pessoa, 2002.
15
MARTINHO, Fernando J. B. Pessoa e a moderna poesia portuguesa: do Orpheu a 1960. Lisboa:
Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1991.
16
Id., p. 114.
17
BUENO, Jayme Ferreira. Távola redonda: uma experiência lírica. Curitiba: EDUCA, 1983.
18
poemáticas. Segundo Bueno, o conceito de autenticidade, referido de maneira direta
por Alberto de Lacerda e de maneira indireta por David Mourão-Ferreira, estaria
latente na idéia de “literatura viva”, defendida por José Régio, um dos principais
críticos e poetas da Presença. Para Fernando Martinho, tanto o centramento no
“eu”
18
, perceptível nas composições da revista, quanto a relevância dada à solidão,
enquanto meio propiciador da “revelação do ‘Poeta’ a si mesmo”
19
, também teriam
suas raízes na postura estética presencista.
Os mesmos autores apontam, contudo, algumas dissonânias no concernente
à tomada de posição dos periódicos. Para Martinho, não se faria presente na poesia
de vola a confissão, o desnudamento do eu, a abertura da alma que caracterizam
as composições presencistas. Os sujeitos poéticos manifestos nas peças elaboradas
pelos tavoleiros tenderiam, contrariamente, “ao ‘silêncio’, à preservação do que
de ‘segredo’ em ‘cada verso’ ou à dissimulação”
20
. Bueno parece atentar para o
mesmo aspecto ao dizer que a idéia de autenticidade, erigida por ele como o fulcro
da proposta teórico-poética dedutível dos ensaios aqui referidos, apresentar-se-ia
esvaziada do sentimentalismo e do confessionalismo atrelados ao princípio da
sinceridade, defendido pela Presença juntamente com o conceito de originalidade.
Quanto à visão do mundo que perpassaria os poemas da Távola, Fernando
Martinho observa que a gazeta poética, ao contrário das produções neo-realistas,
cuja postura se baseia em ideais de confiança e de esperança em face do devir,
assumiria uma visão calcada no ceticismo em relação aos projetos coletivos e na
descrença relativamente ao futuro. A manifestação dessa postura dar-se-ia, o mais
das vezes, pela idéia de inanidade da ação que se depreende da atitude resignada
assumida pelos sujeitos dos poemas da gazeta poética. Em alguns casos, inclusive,
esse sentimento de inutilidade desembocaria, segundo o crítico, em uma
consciência do nada. Assim, tendo em vista a denominação que Maria da Glória
Padrão utiliza para classificar o movimento neo-realista - “geração da euforia” -, o
18
Martinho não quer dizer, com isso, que a poesia de Távola não manifestaria nenhuma “inquietação
social”. Para o crítico a inquietação manifestada na gazeta assumiria uma feição diferente do que se
apresenta nas produções neo-realistas, uma vez que abrange toda a espécie humana e não apenas
as camadas vítimas das desigualdades sociais” (MARTINHO, 1996, p. 117). É certamente com vistas
nisso que Fernando Guimarães afirma haver entre Távola redonda e Árvore periódico surgido em
195, que busca conciliar os valores neo-realistas com as tendências estéticas européias - um
“denominador comum de inspiração humanista [...]. conquanto tenha sido perspectivado a partir de
pressupostos diferentes”. Cf. GUIMARÃES, Fermando. Simbolismo, Modernismo e vanguardas.
Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 2004. p. 146 (nota 8)
19
MARTINHO, 1996, p. 117.
20
Id., p. 118.
19
crítico cognomina Távola redonda de geração disfórica, por sua visão pessimista da
realidade
21
.
Vistos até aqui os principais elementos que caracterizam a postura estética de
Távola redonda, caberia finalizar essa breve apresentação da revista, atentando-se
para a maneira como ela tem sido considerada em relação ao panorama da poesia
portuguesa do culo XX. Sobre esse aspecto, é possível afirmar que a gazeta
poética tem suscitado posições divergentes. Para Ernesto Manuel de Melo e Castro,
em estudo em que aborda os movimentos de vanguarda na lírica portuguesa dos
novecentos
22
, Távola redonda, ao assumir a teoria da neutralidade da arte
defendida por Presença, faria apenas a manutenção do bipolarismo que dominava a
“pacóvia vida cultural de Lisboa”
23
. Ficaria a cargo do movimento surrealista e de
Árvore a integração ativa da poesia portuguesa nas tendências européias
contemporâneas.
Contrariamente a esse poeta e crítico português, Beatriz Berrini, em ensaio
publicado na revista Colóquio Letras e intitulado “A importância de ser Távola
redonda
24
, manifestará uma posição favorável à revista, afirmando que, “no
concerto poético da década de 50, o instrumento que primeiro e melhor se fez ouvir,
e por mais tempo, o que efetivamente representou as múltiplas tonalidades
expressivas daquela geração [...], é sem dúvida Távola redonda
25
. A postura da
autora baseia-se no fato de que, para ela, não haveria diferenças consideráveis
entre as composições da Távola e as de Árvore, na medida em que, por um lado,
eram, muitas vezes, realizações dos mesmos poetas e, por outro, apresentavam-se,
ambas, dentro dos moldes tradicionais.
Berrini arrola, ainda, outros aspectos que justificariam sua postura: a
assunção da revista como exclusivamente periódica; sua inserção na linha evolutiva
do lirismo português ao aproximar-se dos valores estéticos de Presença; o
acolhimento dado a poetas das mais variadas ideologias e tendências; a valorização
da produção feminina poética e ensaística; e, por fim, a presença de colaboradores
brasileiros, consagrados ou não, e de um desconhecido poeta africano.
21
MARTINHO, 1996, p. 116.
22
MELO E CASTRO, Ernesto Manuel de. Vanguardas na poesia portuguesa do século XX.
Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1987.
23
Id., p. 65-66.
24
BERRINI, 1985.
25
Id., p. 15-16.
20
A maior parte dos críticos que se posiciona a respeito da revista parece
assumir, contudo, postura semelhante a de Melo e Castro. Para Guimarães
26
, em
ensaio em que elabora uma revisão da poesia portuguesa contemporânea, os
poetas da Távola, ao regressarem à tradição do lirismo, acabariam, por vezes,
“enredando-se [...] numa versificação e numa imagística que as gerações anteriores
tinham já alcançado ou deixado adivinhar [...]”
27
.
Mais atualmente, Fernando Martinho
28
manifesta uma avaliação afim a que se
apresenta no texto de Guimarães. Conquanto modalize sua posição, reservando-a
apenas aos poetas menores que integravam a gazeta poética, o autor também
considera que o tradicionalismo (ou “classicismo”, como ele denomina) da Távola
“nem sempre significa a integração numa tradição viva como se pretendeu,
correspondendo antes [...] ao empalhamento dessa mesma tradição”
29
.
Poder-se-ia dizer, em face disso, que a polêmica em torno do lugar de vola
redonda no panorama da poesia portuguesa do culo XX reside basicamente no
fato de compreender a modernidade em poesia mais em termos de equilíbrio, de
thesaurus, do que de ruptura
30
. Resta saber, agora, se semelhante polêmica se
estende também à poesia de David Mourão-Ferreira.
1.2 Herança clássica na poesia davidiana: os juízos da crítica
Parecerá “medido” a quem não conhecer a sua íntima
desmesura.
(David Mourão-Ferreira, Jogo de Espelhos)
Considerado um dos mais significativos poetas revelados por Távola
redonda, David Mourão-Ferreira perpetua, de certo modo, o ideal estético dessas
folhas de poesia ao demonstrar preferência tanto pela utilização de recursos formais
e estilísticos fixados tradicionalmente quanto pelo diálogo com a herança clássica,
no concernente ao imaginário da cultura greco-latina. Tal como ocorre em relação à
gazeta poética, essas escolhas parecem ocasionar certa polêmica no respeitante à
26
GUIMARÃES, Fernando. Revisão da moderna poesia portuguesa. Colóquio/Letras, Lisboa, n. 1,
p. 34-44, mar. 1971.
27
Id., p. 41.
28
MARTINHO, 1991.
29
Id., p. 113.
30
MARTINHO, 1996, p. 103
21
singularidade de tal produção e, conseqüentemente, à sua importância no panorama
da poesia portuguesa contemporânea.
Conquanto não se apresente de maneira explícita, a referida polêmica é
indiciada pela preocupação de alguns estudos em rebater a idéia de que a retomada
desses aspectos dar-se-ia arbitrariamente, como simples elementos ornamentais,
sem nenhuma relação orgânica com a esfera semântica. Diferentemente das
primeiras recensões sobre o assunto, que o abordam de modo meramente
constatativo e apologético, esses estudos, surgidos a partir da cada de 1970,
defendem a necessidade de se observar os referidos procedimentos enquanto
atualização que responde a uma sensibilidade estética e a uma visão do mundo
fundamentalmente contemporâneas.
O primeiro a tecer considerações nesse sentido - sem contudo, dar indícios
da polêmica que cerca a poesia de Mourão-ferreira - é Fernando Guimarães, em
ensaio em que estabelece um panorama da poesia portuguesa do século XX
31
. Após
dar a conhecer sua postura em relação à Távola redonda, mencionada
anteriormente, o crítico faz algumas ressalvas acerca da obra individual de dois dos
principais componentes da revista: Alberto de Lacerda e David Mourão-Ferreira.
Para Guimarães, as composições desses poetas apresentariam outras
preocupações afora o regresso à “tradição do lirismo”, sendo a do último
caracterizada “por uma metaforização bem contida num mundo imaginário em que
as tradições culturais e os mitos clássicos se cruzam com as fronteiras de um
quotidiano não abandonado”
32
.
Postura mais incisiva assumirá Vasco Graça Moura, primeiro crítico a dedicar
um livro de ensaios à poesia do autor de Matura idade. Em O Amor e o Ocidente,
último ensaio de David Mourão-Ferreira ou a mestria de Eros
33
, o crítico afirma,
ao tratar de algumas apreciações que se detêm nos aspectos formais dos poemas
de Mourão-Ferreira
34
, que essas, apesar de sua propriedade, dão margem a juízos
depreciativos, baseados “numa idéia de ‘formalismo’ empobrecida e distorcida”
35
,
haja vista seu caráter mais descritivo que interpretativo. Realizar levantamentos com
31
GUIMARÃES, 1971.
32
Id., p. 41.
33
MOURA, Vasco Graça. David Mourão-Ferreira ou a mestria de Eros. Porto: Brasília, 1978.
34
a saber, a recensão crítica de Oscar Lopes ao livro Do tempo ao coração, publicada no jornal O
Comércio do Porto, de 27 de junho de 1967, e ao ensaio David Mourão-Ferreira, mestre de poesia,
elaborado por Gastão Cruz e publicado em A poesia portuguesa hoje, em 1973.
35
MOURA, 1978, p. 66.
22
certa superficialidade de catálogo faria esquecer, segundo Graça Moura, que os
recursos formais devem ser entendidos “como necessidade imposta pela complexa
matéria a que se aplicam”, gerando o risco de se confundir “grande poesia com a
fadeur do virtuosismo de academia”.
Especificamente em relação às imagens da cultura greco-latina, Graça Moura
se utiliza da ressalva estabelecida por Fernando Guimarães, afirmando que a
herança clássica funcionaria tanto como modo de “mitificar um discurso
desmitificante” quanto como “projeto moderno”
36
, já que as imagens de que se
constitui não correspondem a “‘cômodas metáforas’”, mas exprimem “as inquietantes
relações do que somos com o que nos rodeia”
37
. O crítico considera que os poemas
do autor de A secreta viagem empreenderiam um diálogo com o patrimônio cultural
greco-latino, uma “ansiosa interrogação especular”
38
que utilizaria a tradição como
contraponto à sensibilidade estética do sujeito contemporâneo, Nesse sentido,
Mourão-Ferreira tornaria os elementos da herança clássica modernamente
atuantesem suas composições, “descobrindo-lhes relações novas, dando-lhes um
sentido novo pelo uso criador que deles é feito”
39
.
Ainda que Graça Moura não demonstre sua proposta de leitura, já que atenta,
nos três primeiros ensaios, apenas para os aspectos temáticos da poesia do autor
em questão, o crítico fornece um importante subsídio no respeitante à compreensão
do nível estrutural dos poemas, na medida em que apresenta determinada assertiva
que parece ser a raiz das posições estabelecidas posteriormente. Trata-se da
afirmação utilizada para fundamentar a idéia de que a obra poética do autor
comporia uma resposta positiva à questão empreendida pelo próprio Mourão-
Ferreira sobre uma possível unidade Européia. Para Graça Moura, tal poesia
permitiria observar, tanto no que respeita à sua relação com a cultura européia,
quanto no que se refere aos níveis estilístico e lingüístico, a idéia de que “o
progresso não consiste em encontrar a síntese das antinomias, mas o seu equilíbrio,
incessantemente instável e variável [...] o qual não nasce de uma síntese entre dois
termos, mas da sua ação recíproca”
40
.
36
Id., p. 62.
37
Id., p. 61.
38
Id., p. 71.
39
Id., p. 61.
40
MOURA, 1978, p. 58.
23
Dois anos após a publicação do estudo de Graça Moura, José Martins
Garcia
41
lança um livro de ensaios que compreende toda a produção de Mourão-
Ferreira (poesia, ficção narrativa e drama –, ensaio e crônica) até o início do
decênio. No primeiro ensaio do capítulo referente à poesia, intitulado “A poesia do
poético”, o crítico demonstra também a intenção de rebater certo juízo sobre ela - no
caso, a avaliação feita por Jorge de Sena em uma nota aos poemas selecionados
para a 3ª série de Líricas Portuguesas.
Para Sena, ainda que Mourão-Ferreira possua “uma mestria cnica e uma
desenvoltura irônica” que destacam sua poesia, “tradicionalisticamente erótica”,
“pelo fino sentido de uma modernidade discreta, em que o cotidiano e a fantasia se
equilibram numa grande segurança de tom”, o poeta não apresenta uma
personalidade tão “vincada” quanto a de Antônio Manuel Couto Viana ou de
Fernanda Botelho, seus companheiros de Távola
42
. Segundo Garcia, o fato de Sena
qualificar a fase inicial da poesia de Mourão-Ferreira por meio de um aspecto que
pertence mais ao âmbito das relações humanas (personalidade “vincada” =
personalidade inconfundível), do que dos estudos literários, seria indício de uma
“crise mimética”
43
ainda latente na vida social e cultural portuguesa, cujo esforço
estaria em apagar a diferença específicade cada poeta através da imposição do
ser como”, do nivelamento. Considerando de antemão que todo o escritor é
inconfundível e que, por isso, essa categoria não seria pertinente para se definir a
especificidade do objeto literário, o crítico passa a defender a idéia de que a
compreensão plena da poesia de Mourão-Ferreira dependeria de uma “avaliação da
especificidade que o poético assume ao longo da sua obra”
44
.
Essa avaliação, contudo, não corresponderia apenas à enumeração exaustiva
de recursos estilísticos presentes nas composições, mas deveria também
compreender as implicações semânticas desses recursos. Nesse sentido, considera
acertadas as afirmações de Vasco Graça Moura sobre as recensões críticas de
Óscar Lopes e Gastão Cruz, atestando que Moura desfaria em seu ensaio um duplo
equívoco: “por um lado, o de que a ‘maestria técnica seria incompatível com a
41
GARCIA, José Martins. David Mourão-Ferreira: a obra e o homem. Lisboa: Arcádia, 1980.
42
SENA, Jorge de. Líricas portuguesas. série. Lisboa: Portugália, 1958 apud GARCIA, 1980, p.
45.
43
O termo é utilizado com base em GIRARD, René. Des choses cachées depuis la fondation du
monde. Paris: Grasset, 1978.
44
GARCIA, op. cit., p. 56.
24
‘personalidade’ poética inconfundível (ou ‘vincada’); por outro lado, o de que a
‘maestria técnica’ bastaria para guindar um autor aos cumes da poesia”
45
.
Na seqüência do ensaio, o crítico procura demonstrar seu ponto de vista,
estabelecendo uma leitura baseada na idéia de que haveria, na poesia do autor de
Infinito pessoal, uma “regularidade entre a estrutura semântica de base e a
ordenação rítmica em superfície”
46
, que assenta sobre o número quatro. Para
Garcia, as composições do escritor residiriam sob uma “estrutura basilar de modelo
quiasmático”
47
, proveniente da expansão de um núcleo dual, dedutível da esfera
semântica: eu/outrem, ser/não-ser, espaço figé/tempo devorador etc. Ao mesmo
tempo, o crítico observa, por meio da análise do poema “A secreta viagem”, que o
ritmo dos versos repousa sobre quatro acentos, o que redobraria a estrutura basilar
que dele se depreende.
Nesse sentido, pode-se dizer que Garcia desenvolve um aspecto que se
encontrava em latência nas considerações de Graça Moura. Conquanto não
mencione seu débito para com ele, o crítico somente torna plausível a idéia de uma
estrutura em quiasmo tendo por horizonte as oposições observadas por Graça
Moura.
No ano seguinte, Eugénio Lisboa
48
manifesta posição semelhante à dos
autores acima referidos. Em ensaio intitulado “Uma claridade de sombras e de luzes:
a Obra poética de David Mourão-Ferreira”, o crítico pondera que “a solaridade, a
precisão, a harmonia, o saber poético [...], do ponto de vista oficinal, [e] a [...]
clareza” dedutíveis da poesia do autor de Infinito pessoal acabariam servindo de
“pretexto para que uma certa crítica o situe na categoria de poeta tradicionalizante,
assim lhe reduzindo o teor de modernidade para índice discreto”
49
.
Para Lisboa, contudo, a “clareza” e a “pureza” geralmente atribuídas às
composições de Mourão-Ferreira seriam ilusórias, na medida em que haveria um
contraponto entre o “facial tranqüilo” gerado pela forma e a profundidade inquietante
observável no âmbito do conteúdo. Tal espessura residiria na dicotomia “mistério/luz
ou, preferindo-se, claridade/obscuridade” que perpassa a poesia do autor de Órfico
45
GARCIA, 1980, p. 57.
46
Id., p. 65.
47
Id., p. 58
48
LISBOA, Eugénio. Uma claridade de sombras e de luzes: a “Obra poética” de David Mourão-
Ferreira. Colóquio/Letras, Lisboa, n. 61, p. 60-62, mai. 1981.
49
LISBOA, 1981, p. 61.
25
ofício e que não corresponde a “uma inequívoca antítese porque é a própria luz que
[...] se revela misteriosa e, portanto, de algum modo obscura”
50
.
O crítico ressalta que esse deslizar de claro-escuro observado por ele nos
poemas de Mourão-Ferreira se faria presente nas considerações de Vasco Graça
Moura. Se bem que Graça Moura não se refira de modo específico ao aspecto
referido, haja vista estar abordando uma questão mais geral, o crítico atentaria
para ele, ao mencionar a existência de um “equilíbrio, incessantemente instável e
variável”, proveniente “não da síntese entre dois termos, mas de sua ação
recíproca”
51
.
Com vistas aos apontamentos de Eugénio Lisboa, pode-se dizer que o crítico
aborda um elemento para o qual não atenta Garcia, apesar de, tal como aquele,
estabelecer suas posições na esteira da postura assumida por Graça Moura. Esse
elemento corresponde à oposição - aparente, segundo Lisboa - entre a “clareza”.
decorrente da regularidade formal e a “obscuridade” oriunda das antinomias.
Em ensaio publicado também na revista Colóquio Letras, Fernando Pinto do
Amaral
52
aborda, já no primeiro parágrafo, a problemática em questão. Com o intuito
de corrigir a pejorativa designação de “clássica” atribuída à poesia de Mourão-
Ferreira, o crítico considera que o engano provém de uma errônea avaliação de
certos recursos retóricos nela presentes, os quais, a seu ver, seriam suas
qualidades estilísticas. Isso porque, segundo Amaral, a recorrência de rimas toantes,
bem como a persistência de certas metáforas, por exemplo, não destitui essa poesia
de uma capacidade de emocionar ou surpreender”, ou seja, não faz restar do seu
contato apenas uma “veneração intelectual”, mas indicia “uma consciência estética e
um efeito de depuração verbal que lhe conferem um profundo equilíbrio”
53
,
aproximando-a dos preceitos de Valéry sobre a literatura.
No entanto, as composições de Mourão-Ferreira não se caracterizam, como
se poderia pensar, por uma polaridade entre escrita “pura” e outra “manchada de
sinais do mundo ou corrompida pelas paixões dos homens”, na medida em que,
como afirma Valéry, “todo o classicismo supõe um romantismo anterior” (apud
AMARAL, 1989, p. 61), ou seja, na medida em que o constituídas pelos dois
50
Id., p. 60.
51
Id., p. 58.
52
AMARAL, Fernando Pinto do. A poesia de David Mourão-Ferreira: um percurso “do tempo ao
coração”. Colóquio/Letras, Lisboa, n. 107, p. 60-61, jan./fev. 1989.
53
AMARAL, 1989, p. 61.
26
aspectos em igual medida. Nesse sentido, o equilíbrio alcançado por essa poesia
não seria, em absoluto, algo estático, mas, ao contrário, dotado de um caráter
dinâmico, “instável e sempre em movimento, gerador de complexos campos
magnéticos” (p. 61-62), o que o torna elemento fundamental para a compreensão da
obra do poeta. Iria ao encontro dessa proposição uma assertiva apresentada pelo
próprio autor de A secreta viagem em “decálogo” aplicado à sua obra em prosa e
estendida por Amaral à sua poesia: “Escrever sempre em estado de sonho. /
Reescrever sempre em estado de vigília” (apud AMARAL, 1989, p. 61).
No decorrer do ensaio, essa idéia de equilíbrio dinâmico torna-se equivalente
à que se apresenta no estudo de Lisboa. Isso porque à dicotomia sonho/vigília o
autor acrescenta as oposições cativeiro/ liberdade, água/ fogo, eterno/ efêmero, uno/
múltiplo, afirmando que elas, tal como a primeira, não chegam a se resolver.
Mais atualmente, dois estudiosos voltam a tratar da presença da herança
clássica na poesia de Mourão-Ferreira. José Ribeiro Ferreira é o primeiro a retomá-
la, comentando, em três artigos
54
, a alusão a figuras ou temas da cultura greco-latina
que se apresentam na poesia do autor de A secreta viagem
55
. A abordagem do
crítico, contudo, limita-se a observar a modulação da figura ou da temática nas
peças de maneira isolada, não estabelecendo relação com a forma poemática em
que se apresenta o poema, nem com a obra na qual a peça está inserida.
Em ensaio publicado na revista Colóquio Letras, Maria Helena da Rocha
Pereira
56
, com base na idéia, defendida pelo próprio Mourão-Ferreira em prefácio a
Imagens da poesia européia
57
, de que haveria uma “dialética entre o antigo e o
novo em que se move o legado poético europeu”
58
, aborda as composições do
escritor que a tornariam evidente. Das considerações da autora, depreendem-se
maneiras distintas de realização dessa permanência da herança clássica na poesia
de Mourão-Ferreira.
54
FERREIRA. José Ribeiro. Permanência da cultura clássica: Apolo e Dionísio na poesia portuguesa
contemporânea. Máthesis, Viseu, n. 3, p. 43-63, 1994.;Id. O mito de Ulisses em dois poemas de
David Mourão-Ferreira. Boletim de estudos clássicos, n. 24.; Id. O tema do labirinto em David
Mourão-Ferreira e em Sophia de Mello Breyner Andresen. Boletim de estudos clássicos, n. 25.
55
A saber, a alusão às figuras de Ulisses e Apolo e ao tema do labirinto.
56
PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Permanência clássica na poesia de David Mourão-Ferreira.
Colóquio/Letras, Lisboa, n. 145/146, p. 231-246, jul. /dez. 1997b.
57
O livro reúne parte das palestras e traduções apresentadas em programa televisivo de mesmo
nome.
58
PEREIRA, op. cit., p. 235.
27
A primeira refere-se, basicamente, a uma “atualização irônica de velhos
mitos”, apontando, assim, para uma confrontação entre mundo antigo e
contemporaneidade. Exemplos patentes desse procedimento seriam “Canto
secular”, de Os quatro cantos do tempo, e In memoriam memoriae, que ela julga
“especialmente significativas no conjunto da obra e, talvez por isso mesmo das
mais difíceis de interpretar”
59
. Isso porque, admitindo a contigüidade observada por
João Palma-Ferreira
60
entre os textos, Pereira considera que se daria, em ambos, a
preparação e o desenvolvimento de “um topos eminentemente moderno [a idéia de
destruição total, de fim apocalíptico] [...] a partir de um tema liminarmente clássico”
61
.
Poderiam ainda ser relacionados a esse modo de recuperação da cultura greco-
latina, com algumas diferenças em relação aos textos acima referidos, “Os cavalos”,
também de Os quatro cantos do tempo, e “Teseu, ao telefone”, de Infinito
pessoal.
A segunda residiria na irrupção do elemento clássico “num contexto
aparentemente oposto”
62
. Nesse caso, o aspecto recuperado é, muitas vezes,
aludido de forma direta apenas no título do poema, ficando sugerido, ao longo do
texto, pelo “emprego metafórico de palavras que convocam na memória do leitor a
história tradicional”. O poema “Penélope”, de Os quatro cantos do tempo, tornaria
flagrante essa outra possibilidade de se recuperar a herança clássica.
A exploração dos temas e histórias da mitologia greco-latina de maneira mais
afim ao texto de origem constituir-se-ia em um terceiro modo de dialogar com essa
tradição. O poema “Ulisses a Nausícaa” tornar-se-ia exemplar desse procedimento,
uma vez que nele são recuperados de maneira clara os dados presentes no canto VI
d’A Odisséia.
Uma última possibilidade de alusão à cultura da Antiguidade Clássica na
poesia de David Mourão-Ferreira diria respeito aos poemas que figuram o
deslocamento do sujeito lírico pelos lugares onde ela floresceu. “Itinerário grego”, de
Do tempo ao coração, e a seção “Os lúcidos lugares”, de Órfico ofício, tornariam
evidente tal possibilidade, sendo considerados pela crítica, inclusive, como
representação poética das viagens realizadas pelo autor a tais lugares.
59
id., p. 231.
60
PALMA-FERREIRA. Quatro relances sobre o itinerário poético de David Mourão-Ferreira. In:
_____. Pretérito imperfeito. Lisboa: Estúdios Cor, 1974.
61
PEREIRA, op. cit., p. 235.
62
Id., p. 236
28
Com essa sistematização, Pereira parece dar conta das diferentes maneiras
como os elementos da tradição clássica o figurados nas composições do autor de
Infinito pessoal. A única ressalva a ser feita em relação aos apontamentos da
crítica diz respeito ao fato de ela abordar isoladamente “canto secular”, última parte
de Os quatro cantos do tempo, fazendo parecer que apenas esse momento do
livro apresenta “raízes clássicas bem profundas”
63
. Isso porque, como se procurará
demonstrar em momento oportuno, o poema parece ser a culminância de um
percurso que apresenta pontos de contato com um mito que é praticamente
silenciado ao longo da obra: o mito de Orfeu.
63
PEREIRA, 1997, p. 231.
2 OS QUATRO CANTOS DO TEMPO: ASPECTOS DA OBRA
Terceiro livro de versos de David Mourão-Ferreira, Os quatro cantos do
tempo
64
é composto por quarenta e quatro peças poemáticas, dispostas em cinco
partes. As quatro primeiras, designadas pelo vocábulo “Canto”, acompanhado por
algarismos romanos que indicam sua posição no livro, apresentam, respectivamente,
onze, nove, doze e onze poemas; a última, intitulada “Canto secular”, é constituída,
diferentemente, apenas por uma única peça.
Essa disparidade presente na distribuição das peças acentua-se no
concernente aos tipos poemáticos que a elas dão forma. Sua procedência, que vai
do popular ao erudito, passando pelo versilibrismo, faz coexistirem no livro tanto
poemas elaborados a partir de modelos fixados tradicionalmente - tais como o
soneto, a alba, a balada, o romance quanto textos que se caracterizam por uma
liberdade em sua elaboração e que apresentam, algumas vezes, uma disposição
gráfica dotada de caráter funcional, semelhante ao que pode ser observado no
experimentalismo de vanguarda.
Variedade similar encontra-se nos metros e combinações métricas utilizadas
na elaboração dos versos. Do alexandrino ao trissílabo, comparecem com maior
freqüência o decassílabo, seguido do redondilho maior e do octassílabo. Isso marca
uma oscilação entre as heranças popular e erudita, observada no aspecto
supracitado, a qual pode ser identificada ainda nas rimas externas, presentes na
quase totalidade dos poemas, uma vez que ora são toantes ora, consoantes.
A ausência de uniformidade que caracteriza a distribuição e as escolhas
formais o significa, contudo, que o livro o apresente um princípio unificador.
Este é sugerido pela designação das quatro partes iniciais, que responde
diretamente ao título da obra, bem como por certa homologia existente no número
de peças que compõem cada uma delas. Nesse sentido, pode-se supor, na esteira
das considerações de Fernando J. B. Martinho
65
, que o livro se estrutura mais
propriamente em um Poema dividido em quatro cantos (e encerrado por um
epílogo), do que em uma mera reunião de poemas. Contribuem para essa leitura as
reflexões do próprio autor acerca de sua produção poética, expressas em entrevista
64
MOURÃO-FERREIRA, David. Obra poética (1948-1988). Lisboa: Presença, 1997. p. 85-149.
65
MARTINHO, 1996. p. 150.
30
concedida a Graziana Somai: “Em geral, um livro de poesia não é para mim um
amontoado, uma soma de poemas: tem de ter uma estrutura, ou, dizendo doutra
maneira, tem de ser um organismo em que as diversas composições respondam
umas às outras”
66
.
Reforça ainda tal hipótese a ocorrência, em cada um dos quatro primeiros
cantos, de um poema igualmente constituído por quatro textos o que aumenta o
número total de peças para cinqüenta e seis. Isso porque o redobramento da
organização macrotextual em âmbito microtextual, ao indicar uma simetria entre
diferentes níveis, permite deduzir a existência de um caráter meditado na elaboração
do livro.
Fornece subsídio ao estabelecimento de sentidos possíveis para o aspecto
organizacional da obra a presença, na abertura de cada “Canto”, de um poema cujo
título refere, uma a uma, as estações do ano. Apesar de não concretizarem a função
de dedicatória ou de invocação sugerida pelo uso, em seus títulos, de combinação
ou de crase entre a preposição “a” e um artigo definido, esses poemas acabam por
“indiciar a atmosfera dos respectivos cantos”
67
, prefigurando, assim, sua unidade
temática.
Duas são as interpretações propostas pela crítica para a correspondência
entre a divisão do livro e o modelo quaternário das estações. Elas não excluem uma
à outra, podendo ser consideradas, inclusive, como intercambiáveis. A primeira é
estabelecida por João Palma-Ferreira em um dos textos fundadores da crítica de Os
quatro cantos do tempo
68
. O estudioso afirma que
tanto podem esses quatro cantos constituir uma alusão às quatro estações
do ano, como pode ser o tempo um elemento de extração psicológica ligado
ainda ao tempo das estações, porque a cada uma corresponderá um
elemento de formação do eu no seio de uma medida-tipo de tempo agora
considerado como idade.
69
Apresentada no fragmento apenas como hipótese, a idéia de que a alusão às
estações seria dotada de um caráter conotativo referente às idades, às fases da vida
do homem é, depois, fundamentada a partir de uma correspondência possível entre
66
MOURÃO-FERREIRA, David. “É que eu gosto de muita coisa, sabe?!”. Lisboa, mar./jul. 1993.
Colóquio/Letras, Lisboa, n. 145/146, p. 9-80, jul./dez. 1997. Entrevista concedida a Graziana Somai.
p. 27.
67
MARTINHO, 1996, p. 150
68
PALMA-FERREIRA, 1974.
69
Ibid., p. 106-107. (Os grifos são do autor)
31
o livro e o poema ”Tálamo, Templo”, presente no Canto II. Para o crítico, a peça,
organizada igualmente em quatro momentos, anteciparia os símbolos centrais de
cada canto (a saber, o fogo, a terra, o ar e a água, respectivamente), relacionando-
os às quatro etapas da vida humana, materializadas nas situações evocadas pelo
sujeito lírico. Destarte, a constelação simbólica apresentar-se-ia da seguinte
maneira: primavera fogo juventude pré-nupcialismo; verão terra segunda
juventude – nupcialismo procriação; outono ar – vida adulta saciedade –
memória; inverno - água – renúncia – morte
70
.
Em outro momento, Palma-Ferreira detém-se mais demoradamente em cada
um dos cantos, marcando outros elementos relativos ao viés temático e à feição
estilística. No “Canto I, um dos aspectos mais explorados seria, segundo o crítico, o
tema do desequilíbrio, figurado exemplarmente no poema “Haikai”. A Primavera far-
se-ia a mais “inquietante estação do ano”, na medida em que “desperta e
descontrola os sentidos” ao facultar a irrupção de “um fantasma que é um misto de
pureza e de maldição, de equilíbrio e de desequilíbrio”
71
. Compreendida,
inicialmente, como princípio criador, a imagem da estação passaria por
metamorfoses sucessivas, transmudando-se, por fim, em “corrosão sensual”, da qual
se podem entrever apenas os “despojos humanos queimados pelo fogo do desejo”.
Dois outros temas, segundo Palma-Ferreira, seriam ainda explorados no
Canto da Primavera: o tema da morte e do paraíso perdido. O primeiro tornar-se-ia
também fundamental para a encenação erótica que caracteriza esse canto,
comparecendo exemplarmente em “Canção primaveril”. O segundo, presente no que
o crítico denomina “a estrutura moral da obra”, tomaria forma nas idéias de renúncia
e demissão figuradas em alguns poemas.
No tocante ao Canto II, o crítico não tece considerações gerais como as que
estabelece para o primeiro, centrando seu comentário apenas em dois poemas:
“Xácara dos campos de Elvas” e “Romance das mulheres de Lisboa no regresso das
praias”. Aquele, por seu caráter memorial, daria concreção à temática do passado,
estabelecendo também uma união “[d]a infância e [d]a telemaquia à juventude”, o
que permitiria considerá-lo o verdadeiro fechamento do ciclo “Tálamo, templo”. O
outro, poema crepuscular semelhante a “O sentimento de um ocidental”, de Cesário
Verde, daria relevo ao “caráter profundamente figurativo e dramático da poesia de
70
PALMA-FERREIRA, 1974, p. 108.
71
Ibid., p. 107.
32
David Mourão-Ferreira, que sabe explorar, em alguns poemas, a sugestão mímica
do quadro de ballet”
72
Em relação ao “Canto III”, o crítico retorna às considerações de ordem geral,
afirmando que nele se estabeleceria o “penúltimo passo no progresso da derrota
humana, um quase ‘ocasodos sentidos”
73
, sugerido, desde a abertura, pelo poema
“Ao Outono”. Dessa maneira, perpassaria o canto “um sabor vagamente
decadentista”, indiciado principalmente pelo caráter dominante que assume o tema
da morte, fazendo diminuírem as incursões na temática amorosa.
Canto da água, o “Canto IV” veicularia, segundo o crítico, os melhores
poemas da lírica davidiana até aquele momento. No respeitante às temáticas,
figurariam o referido tema do paraíso perdido e da renúncia em “Anjo descido ao
mar” e “Os cavalos”, bem como o tema do apocalipsismo em “Bombardeiro no
crepúsculo” e em “Grinalda para o próximo terramoto de Lisboa”.
Alguns elementos dessa leitura podem ser, contudo, postos em causa. Com
relação ao paralelo estabelecido entre a peça e a estrutura da obra, parece evidente
que a primeira não dá concreção, em suas partes, à totalidade de situações
vivenciais e de “símbolos” enumerados por Palma-Ferreira para as unidades
macrotextuais. Quanto à sistematização dessas macrounidades, observa-se que as
peças dos três primeiros cantos não apresentam elementos suficientes que
permitam considerá-las sintetizadas pelos “símbolos” do fogo, da terra e do ar, como
ocorre no “Canto IV”, em relação ao da água. Outrossim, alguns dos elementos
apresentados no esquema inicial não são retomados e desenvolvidos no comentário
reservado a cada canto, o que gera algumas incongruências, como a observada em
relação à predominância da temática da morte, que, no esquema, ocorreria no Canto
IV e, no comentário, caracterizaria o Canto III.
Apesar disso, importa assinalar a pertinência do sentido metafórico proposto
para a alusão às estações, o qual é retomado, inclusive, por outros críticos, tais
como o citado Fernando Martinho e Maria de Fátima Marinho
74
. Esta irá defender
a hipótese de que os quatro primeiros livros do autor poderiam ser igualmente lidos a
partir dessas quatro idades, figuradas diretamente no modelo quaternário das
estações trazido à cena pela obra em questão. Para tanto, elabora também uma
72
PALMA-FERREIRA, 1974, p. 109.
73
Ibid., p. 109.
74
MARINHO, Maria de Fátima. O mito do eterno retorno na poesia de David Mourão-Ferreira. In:
_____. A poesia portuguesa nos meados do século XX. Lisboa: Caminho, 1989, p. 195-200.
33
sistematização com o objetivo de definir os aspectos que caracterizariam cada uma
dessas etapas existenciais.
Ademais, é Maria de Fátima Marinho quem estabelece a segunda
possibilidade de compreensão para o aspecto discutido. Conforme a crítica, a alusão
às estações estaria relacionada ainda a um elemento que perpassaria a totalidade
da produção lírica de David Mourão-Ferreira, tornando-se patente em Os quatro
cantos do tempo: o mito do eterno retorno. Ao ter como cerne uma imagem cíclica
do tempo, em que se estabelece a idéia de renovação periódica da vida, o mito
possibilitaria ultrapassar, pela vitória contra o envelhecimento e a morte, a angústia e
o desespero existenciais resultantes da visão linear de tempo
75
.
Interpretação semelhante elaboram também Fernando Pinto do Amaral
76
e
Fernando Martinho
77
. O primeiro, retomando explicitamente a formulação de
Marinho, considera efetivo na rica davidiana o desenvolvimento do conceito de
tempo circular como forma de reação à ameaça decorrente da imagem temporal
linear. Daí que, para o autor, o poema “Ao Inverno” signifique “o prenúncio de uma
nova Primavera que nascerá do seio do próprio Inverno, como se a constelação de
Peixes [...] triunfasse da do saturniano capricórnio que domina o Zodíaco à entrada
do Inverno”
78
.
Fernando Martinho, por sua vez, reitera a mesma idéia, matizando, contudo,
sua significação. Para o crítico, as referências constantes ao mito do eterno retorno
não desfariam, na rica davidiana, a consciência do caráter irreversível do
“Tempo”
79
. Nesse sentido, as considerações de Martinho acabam por sugerir que a
o apelo ao mito não aboliria de todo a angústia e o tormento gerados no sujeito lírico
pela significação negativa atribuída ao devir, como querem Marinho e Amaral.
Conquanto não se pretenda abordar diretamente as conotações implicadas na
recuperação dessa imagem temporal cíclica, faz-se relevante para a proposta que se
intenta aqui desenvolver, marcar, desde já, certa discordância com a leitura de
Marinho. Apesar de a referência às estações evocar a renovação contínua que
fundamenta o mito do eterno retorno, o sentido que esse renascimento assume no
75
Idem, p. 200.
76
AMARAL, Fernando Pinto. A “tinta cinzenta” da melancolia na poesia de David Mourão-Ferreira.
Colóquio/Letras, Lisboa, n. 145/146, p. 218-226, jul./dez. 1997.
77
MARTINHO, Fernando J. B. Para um retrato do poeta quando jovem: Eros, tempo, poesia.
Colóquio/Letras, Lisboa, n. 145/146, p. 159-172, jul./dez. 1997.
78
AMARAL, op. cit., p. 225.
79
MARTINHO, op. cit., p. 169.
34
texto não parece remeter à obtenção, na viragem do ciclo, da plenitude de um tempo
primevo, observada por Mircea Eliade
80
. Ao termo do percurso existencial implícito
nas etapas que as estações simbolizam, o caráter circular do tempo parece assumir
para o sujeito a feição labiríntica de que fala Helena Malheiro
81
.
Afora os elementos mencionados acima, os críticos têm atentado ainda para
dois outros aspectos, que caracterizam o modo de expressão de Os quatro cantos
do tempo. O primeiro corresponde à presença de recursos de ordem nica na
maior parte das composições do livro. Ainda que sua utilização se faça notar
desde as primeiras recolhas poéticas de David Mourão-Ferreira, o procedimento
compareceria com maior intensidade somente a partir do livro em questão, como
observa José Carlos Seabra Pereira
82
. Defendendo opinião equivalente, Fernando
Martinho atribui a densidade das correspondências nicas nesse livro ao fato de
que “se tornam particularmente notadas como forma de realizar, segundo a famosa
formulação jakobsoniana, a projeção do princípio da equivalência na seqüência”
83
.
Nesse sentido, o procedimento teria como funções possíveis tanto o
estabelecimento da musicalidade, ao qual é geralmente relacionado, quanto a
ligação entre som e sentido, compreendida sob o ponto de vista de Roman
Jakobson
84
.
O outro aspecto diz respeito à ocorrência de alusões que evocam mitos e
figuras da cultura greco-latina. João Palma-Ferreira
85
é o primeiro a observá-la,
mencionando algumas das referências mais evidentes, tais como o mito de
Perséfone em “À Primavera” e o mito de Prometeu em “Canto Secular”. Maria
Helena da Rocha Pereira
86
irá completar esse inventário, salientando a adaptação,
em “À Primavera”, de uma cena do canto IV das Geórgicas, de Virgílio, bem como a
menção direta de figuras como as “Anfitrites”, Circe e Ícaro, em “Romance das
mulheres de Lisboa no regresso das praias”, “Ícaro” e “O prédio”, respectivamente.
80
ELIADE, Mircea. Mito e realidade. Trad. Póla Civelli. São Paulo: perspectiva, 2002.
81
MALHEIRO, Helena. David Mourão-Ferreira ou “a secreta viagem”. Lisboa: Oficina do Livro,
2001. p. 34-35.
82
PEREIRA, José Carlos Seabra. Indagação do fluido: duvidávida. Colóquio/Letras, Lisboa, n.
145/146, p. 127-156, jul./dez. 1997a. p. 155.
83
MARTINHO, 1996, p. 151.
84
JAKOBSON, Roman. Lingüística e poética. In: _____. Lingüística e comunicação. Trad. Izidoro
Blikstein e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1990. p. 118-162.
85
PALMA-FERREIRA, 1974, p. 110.
86
PEREIRA, 1997b.
35
Em face dessa apresentação sintética dos elementos da mitologia greco-
latina encontrados por Palma-Ferreira e Pereira, pode-se constatar a ausência
quase total de alusões à figura ou ao mito de Orfeu na obra em questão. Afora a
cena do canto IV das Geórgicas recuperada e transfigurada em “À Primavera”, a
qual corresponde à morte de Eurídice pela picada de uma serpente, não outras
referências às personagens ou aos acontecimentos dessa história mitológica.
Do que aqui foi exposto, três aspectos servirão de base para fundamentar a
hipótese de que há, em diferentes níveis, ressonâncias do mito de Orfeu em Os
quatro cantos do tempo. O primeiro diz respeito aos recursos de ordem fônica. Sua
dupla funcionalidade melódica e semântica leva a pensar em uma relação possível
com o componente mágico-poético-musical geralmente atrelado à figura de Orfeu.
Os outros dois correspondem à figuração das etapas da vida humana pela
referência às estações e à alusão, no poema que abre o primeiro canto e o livro
mesmo, da cena que inicia a narração da história de Orfeu e Eurídice nas
Geórgicas. Pensados em conjunto, esses elementos podem indiciar a existência de
um percurso que, de maneira subjacente, retomaria algumas das unidades
constitutivas do mito materializado por Virgílio.
3 SOB O SIGNO DE ORFEU
[...] Ao menos aprendamos
que é sempre Orfeu quem canta.[...]
(Rainer Maria Rilke, Sonetos a Orfeu)
No respeitante à feição literária do mito, duas são as histórias de que participa
Orfeu: a aventura com os argonautas e a busca por Eurídice na mansão de Hades.
A primeira, cuja versão inicial se apresenta nas Píticas, de Píndaro (século VI a.C.),
toma sua forma mais conhecida apenas nos textos de Apolônio de Rodes no século
III a.C., de Valerius Flaccus no primeiro século e dos Argonáuticos de Orfeu no
século IV d.C. É com essas versões que se dá a conhecer a importância de Orfeu na
empresa chefiada por Jasão. Sua ação como citaredo torna-se fundamental para
transpor três dos obstáculos que se apresentam à busca do velo de ouro: a
construção do navio Argo, a passagem pelas Simplégades e a resistência ao canto
das Sereias
87
.
Quanto à segunda, essa assume a versão que se propalou pela cultura
ocidental apenas com as Geórgicas, de Virgílio, e as Metamorfoses, de Ovídio. As
poucas referências existentes sobre ela em textos anteriores, tais como em Alceste,
de Eurípides, ainda não apresentam a esposa de Orfeu com nome pelo qual ficaria
conhecida tradicionalmente, denominando-a Agríope
88
.
Das duas histórias, a segunda é certamente a mais retomada pelos textos
que compõem o cânone literário ocidental. O infortúnio do herói que desce aos
infernos à procura da amada e que a perde pela segunda vez por romper a condição
imposta pelos deuses, terminando, por fim, brutalmente assassinado pelas bacantes,
apresenta ressonâncias nas produções de Vitor Hugo, Nerval, Paul Valery, Rilke,
Apollinaire, Coteau, Anouilh, Camus e Sartre
89
. Nom entanto, a maior parte dessas
recuperações não perde de vista o elemento que permite a Orfeu tanto contribuir
para o sucesso da empresa argonáutica quanto sensibilizar as divindades do mundo
inferior a restituírem-lhe Eurídice: a magia de seu canto.
87
Cf. BRUNEL, Pierre. Orfeu. In: _____ (org). Dicionário de mitos literários. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1998. p. 767.
88
Id., p. 768.
89
FACHIN, Lídia. Introdução (I). In: CARVALHO, Sílvia Maria S (org.). Orfeu, orfismo e viagens a
mundos paralelos. São Paulo: Universidade Estadual Paulista, 1990. p. 9-10.
37
Com vistas à importância que o elemento mágico-poético-musical adquire
tanto na feição primeira do mito quanto em sua atualização em obras do cânone
literário do Ocidente, parece adequado iniciar a análise das ressonâncias órficas em
Os quatro cantos do tempo pela discussão particularizada desse aspecto. A
abordagem do outro elemento que, conforme a aproximação estabelecida no
capítulo anterior, seria retomado pela obra – a aventura desditosa de Orfeu e
Eurídice -, dar-se-á, portanto, em momento posterior, tendo por horizonte os
elementos provenientes dessa primeira discussão.
3.1 A magia do citaredo
Mais o empolga uma por vezes onírica obediência aos
poderes mágicos da linguagem que o propósito de
acordadamente os domesticar.
(David Mourão-Ferreira, Jogo de espelhos)
A fim de compreender com maior profundidade a ligação de Orfeu à esfera
mágico-poético-musical, faz-se necessário recuperar os principais elementos
relacionados à caracterização dessa personagem mítica pela cultura greco-latina.
Pretende-se, com isso, rastrear indícios que possam apresentar alguma relevância
para fundamentar a análise aqui pretendida. Segundo Junito de Souza Brandão
90
, a
versão mais difundida da origem de Orfeu apresenta-o como fruto do consórcio entre
Calíope, considerada a mais gloriosa das Musas
91
, e o rei Eagro. Em outra versão,
sua paternidade é transferida para Apolo, com quem é geralmente identificado por,
igualmente, tanger a lira. Em qualquer uma delas, Orfeu es sempre ligado ao
universo da música e da poesia, sendo considerado hábil na lira ou na cítara, da
qual, se não é o inventor, torna-se, ao menos, o modificador, que haveria
aumentado o seu número de cordas de sete para nove, em homenagem às Musas.
A maestria nesses instrumentos, aliada à suavidade da voz herança,
decerto, da mãe, cujo nome significa justamente “Belavoz
92
-, faz com que Orfeu
seja capaz de encantar seres dos três reinos: animal, vegetal e mineral. A isso alude
90
BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega. Petrópolis: Vozes, 1998. V. 2. p. 141.
91
Cf. HESÍODO.Teogonia. São Paulo: Iluminuras, 2006. p. 107.
92
Cf. TORRANO, Jaa. O mundo como função de musas. In: HESÍODO, 2006, p. 35
38
Éliphas Lévi
93
quando afirma que “aos cantos de Orfeu abrandam-se os rochedos,
desraigam-se os carvalhos, e os animais selvagens submetem-se ao homem”.
Tendo em vista a incerta filiação de Orfeu no respeitante à paternidade, não
parece descabido vincular a origem do poder mágico de seu canto inteiramente ao
lado materno, ou seja, às Musas. Nesse sentido, convém discorrer aqui também
sobre o papel e a importância que essas figuras apresentam em seu berço cultural, a
Grécia, tomando como fontes principais a Teogonia e o estudo que Jaa Torrano
elabora sobre esse texto. A escolha pelo poema de Hesíodo deve-se, basicamente,
ao fato de manter um forte vínculo com uma visão do mundo arcaica, própria da
poesia oral – e a partir da qual se origina a figura de Orfeu -, ainda que sua
composição já se dê por meio do código escrito
94
.
Filhas de Zeus, “pai dos Deuses e dos homens”, e de Mnemósina, divindade
que personifica a Memória, perfazem, segundo Hesíodo, um total de nove, que é o
número de noites consecutivas que o “Pai Cronida” partilhou o leito dessa que é
“rainha nas colinas de Eleutera”
95
. Cada Musa apresenta-se ligada a uma função
específica: Calíope preside à poesia épica; Clio, à história; Polímnia, à retórica;
Euterpe, à música; Terpsícore, à dança; Érato, à lírica coral; Melpômene, à tragédia;
Tália, à comédia; Urânia, à astronomia”
96
. Irmana-as, porém, o fato de, na morada
divina, cantarem a vitória dos Olímpicos, e, por conseqüência, a realeza paterna, a
fim de aprazer a Zeus e aos outros imortais: “[...] elas a Zeus pai / hineando alegram
o grande espírito no Olimpo / dizendo o presente, o futuro e o passado”
97
. Igualam-
se, ainda, por concederem aos aflitos o esquecimento de seus pesares através da
escuta dessas glórias divinas, entoadas por aedos que cantam sob seu patrocínio.
Se, como afirma Jaa Torrano, a propósito da Teogonia, “a descendência é
sempre uma explicação do ser próprio e profundo da Divindade genitora”
98
, uma
compreensão mais aguda do sentido atribuído às Musas no poema de Hesíodo
torna necessário que se atente para o modo pelo qual participam da natureza de
Zeus e Mnemósina, divindades de que descendem. Filho de Cronos e Réia, Zeus é
o último e definitivo soberano divino. Conquista sua realeza ao subjugar o pai e os
93
LÉVI, Éliphas. História da magia. São Paulo: Pensamento, 2006. p. 80.
94
Cf. TORRANO, 2006, p. 15 e VERNANT, Jean-Pierre. Mito e sociedade na Grécia antiga. Rio de
Janeiro: José Olympio; Brasília: UnB, 1992. p. 184.
95
HESÍODO, 2006, p. 105.
96
BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega. Petrópolis: Vozes, 2004. V. 1. p. 203.
97
HESÍODO, 2006, p. 105.
98
TORRANO, 2006, p. 31.
39
demais Titãs, sobrelevando a terceira geração de deuses, a dos Olímpicos, da qual
é um dos integrantes. De acordo com Torrano, o Cronida faz-se a “expressão
suprema do exercício de poder”
99
, uma vez que, com sua assunção, redistribui
honrarias e encargos, tornando-se o responsável pela manutenção da ordem e da
justiça.
Seu domínio sobre o raio, o relâmpago e o trovão, armas fornecidas a ele
pelos Ciclopes como retribuição por tê-los libertado do Tártaro
100
, aponta também
para isso, acrescendo, em termos simbólicos, outras implicações a esse aspecto.
Em seu Dicionário de símbolos, Chevalier e Gheerbrant afirmam que “o raio
manifesta as vontades e o poder infinito do deus supremo
101
, podendo gerar ou
destruir. Tal ambivalência simbólica torna-se mais evidente a partir dos sentidos
geralmente atrelados aos outros dois fenômenos físicos, que a ele se seguem.
Em seu valor positivo, o relâmpago e o trovão funcionam como instrumento
de revelação de uma verdade maior, isto é, de um conhecimento de ordem
transcendente, distinguindo-se apenas por apelarem, cada qual, a um sentido
humano específico: a visão e a audição, respectivamente. Outrossim, o relâmpago,
enquanto lampejo, conota ainda uma espécie de poder fertilizante, podendo ser
relacionado ao princípio masculino que age no momento de (pro)criação
102
. Isso
permite depreender um caráter isomórfico entre o simbolismo dessas imagens e o
da palavra, pois que essa, na condição de Verbo, funciona analogamente como
elemento de gênese e de manifestação da essência do Ser.
Quanto a seu valor negativo, os fenômenos” comparecem como forma
repentina e violenta do deus interpor sua autoridade. Nesse caso, têm como
principal função infligir castigo aos que cometem alguma falta, desestabilizando, com
isso, a ordem cósmica. Especificamente em relação à figura de Zeus, Chevalier e
Gheerbrant asseveram que a utilização dessas armas se para aniquilar “a
impetuosidade dos desejos insatisfeitos e desordenados representados pelos
Titãs”
103
.
99
TORRANO, 2006, p. 31.
100
HESÍODO, 2006, p. 129.
101
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José
Olympio, 2006. p. 765. (Os grifos são dos autores)
102
Id., p. 776.
103
Id., p. 777. A formulação é apresentada no verbete referente ao “relâmpago”, mas parece poder
ser igualmente estendida para o outro elemento.
40
Pertencente à primeira geração de deuses, Mnemósina é uma das seis
titânidas nascidas da união de Urano e Géia. Ela fixa os acontecimentos de outrora,
podendo lançar sobre eles a luz da revelação ou mantê-los à sombra do oblívio. Em
ensaio cujo cerne reside justamente na caracterização da memória para a cultura
grega, Jean-Pierre Vernant
104
faz a ressalva de que o tempo retido por Mnemósina
não se constitui de fatos ligados ao passado individual ou coletivo do homem
comum. Estando plenamente dissociados do presente, tais acontecimentos não
apresentariam qualquer sentido para ele ao serem, porventura, evocados.
Mnemósina preserva, de fato, uma idade primordial, composta, sobretudo, por ações
cujos protagonistas são deuses ou heróis e que assumem um papel de grande
relevância na criação e organização do cosmo, tornando-se a fonte mesma do
presente. Em síntese, “a rememoração [possibilitada por Mnemósina] não procura
situar os acontecimentos em um quadro temporal, mas atingir o fundo do ser,
descobrir o original, a realidade primordial da qual saiu o cosmo e que permite
compreender o devir em seu conjunto”
105
.
O “passado” de que Memória tem a onisciência não é, nesse sentido,
recuperado como algo que o mais existe e que, por isso, está fora da realidade.
Encontra-se, com efeito, em outra esfera desta mesma realidade, tornando-se
ausente apenas em relação ao campo do visível, que permanece como
fundamento inabalável do cosmo. Trazer o passado ao presente nada mais é, então,
do que des-velar, ou seja, afastar o véu que cobre o mundo “do além ao qual retorna
tudo o que deixou a luz do sol”
106
e que o faz imperceptível ao espaço dos vivos.
Isto posto, torna-se possível retomar parte dos aspectos referidos
anteriormente acerca das Musas, estendendo-lhes algumas das implicações
depreendidas dos elementos examinados há pouco. Ao serem capazes de cantar as
ações divinas ocorridas in illo tempore, as Musas dividem com a Memória o poder de
desvelamento de realidades inacessíveis às criaturas mortais. Torna possível tal
desocultação a potência numinosa de seu instrumento, a palavra, proveniente,
decerto, de Zeus, como leva a crer o isomorfismo, comentado anteriormente, entre o
Verbo e as insígnias do Pai Cronida. Entoando a história dos acontecimentos
primordiais, as Musas tornam o mundo e o tempo à matriz original, restabelecendo
104
VERNANT, Jean-Pierre. Aspectos míticos da memória. In: _____. Mito e pensamento entre os
gregos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. p. 107-131.
105
VERNANT, 1990, p. 112.
106
Id., p. 113.
41
neles “o rigor, a perfeição e a opulência de vida com que vieram à luz pela primeira
vez”
107
.
Ao descender de uma das principais Musas, Orfeu torna-se a representação
exemplar do aedo. Sob o patrocínio de Calíope, terá seu canto gerado e dirigido por
ela, possuindo, na palavra entoada, o mesmo poder de revelação/ presentificação
que a Musa herda de seu pai, Zeus. Por sua genealogia, desfruta também de “uma
experiência imediata [das] épocas passadas”
108
, como a que é reservada a Calíope
por sua mãe, Memória.
O tipo de conhecimento que tem Orfeu do tempo primevo difere, nesse
sentido, daquele que possui o homem simples. Ao contrário deste, não adquire tal
saber por meio do testemunho de outrem, mas sim através de uma visão direta,
como a dos deuses, o que o torna o principal mediador entre o homem comum e
essa esfera outra do real. Entregue à inspiração, “tem na palavra cantada o poder de
ultrapassar e superar todos os bloqueios e distâncias espaciais e temporais”
109
,
fazendo desaguar no presente a fonte mesma do passado. Por meio dessa
capacidade de presentificação, o canto de Orfeu aos seus ouvintes a
possibilidade de romper, mesmo que momentaneamente, os limites impostos por
sua condição humana, vislumbrando figuras e fatos que, de outro modo, tornar-se-
iam imperceptíveis. Desse modo, “a Voz múltipla e uníssona das Musas encarnada
na voz [de Orfeu], mais do que ouvida é percebida: é vivida e vista na arcaica
concretude em que se reúnem e se con-fundem o nome e a coisa nomeada”
110
.
Com vistas a essa imbricação entre a palavra entoada pelo aedo-Orfeu e a
realidade / essência que ela nomeia, pensar o modo pelo qual o elemento mágico-
poético-musical presente no mito seria atualizado em Os quatro cantos do tempo
implica perquirir os liames entre magia e poesia lírica no Ocidente. Para tanto,
convém retomar as reflexões de estudiosos que têm atentado para a questão, a fim
de, por seu intermédio, lançar alguma luz sobre ela.
Antes, porém, cumpre elucidar um aspecto que, à primeira vista, tornaria
problemática a aproximação pouco referida. Conforme Jaa Torrano
111
, o
surgimento da lírica na Grécia contribui, de par com a elaboração da prosa por
107
TORRANO, 2006, p. 19.
108
VERNANT, 1990, p. 109.
109
TORRANO, 2006, p. 16.
110
Id., p. 90.
111
Id., p. 15-16.
42
pensadores jônicos e logógrafos, para o processo de racionalização que a
linguagem (e, conseentemente, o pensamento) começa a sofrer a partir da criação
do alfabeto. O poeta lírico, ao priorizar, em termos de representação, fatos
contemporâneos e, principalmente, sentimentos, atitudes e valores individuais,
passa a utilizar a linguagem não mais como meio de revelação e presentificação do
tempo original (mythos), isto é, como forma de manifestação do sagrado, mas sim
enquanto instrumento de análise da realidade mundana e humana (logos). Nesse
sentido, impõe-se evidenciar os fatores que levariam essa manifestação literária a
ser, no Ocidente, caracterizada por um elemento que ela, em seu nascedouro,
contribui para dirimir.
Se bem que o se possa determinar com precisão que fator(es) fez(izeram)
com que esse aspecto passasse a compor o rol de características do gênero, alguns
dados, colhidos à história do desenvolvimento artístico-cultural no Ocidente,
permitem estabelecer hipóteses que tornam essa incorporação compreensível. O
primeiro diz respeito à ocorrência, na era moderna, de uma identificação entre lírica
e poesia. Como bem observa José Guilherme Merquior
112
, se, em sua origem, o
vocábulo “lírica” referia apenas uma das modalidades em que se materializava a
atividade artística designada pelo termo “poesia”, com o ocaso dos outros dois tipos
de composição em verso, o epos e a tragédia, acaba sendo assimilado a este último,
já que ambos concernem a uma mesma forma de manifestação literária.
Em vista disso, a poesia lírica torna-se o último elo entre fato literário e canto.
Mesmo com o divórcio definitivo entre a letra e a pauta musical, ocorrido a partir do
Renascimento, essa modalidade literária parece preservar, modernamente, a aliança
entre palavra e som que a caracterizava em sua origem - salvaguardadas as
diferenças de sua concreção em cada época. A importância que, a partir do
Romantismo, poetas-críticos começam a atribuir ao aspecto musical da lírica faz-se
um forte indício dessa permanência. A título de exemplo, pode-se referir aqui uma
passagem de “O princípio poético”, em que Edgar Allan Poe, escritor que antecipa,
em suas reflexões, alguns dos princípios norteadores da lírica moderna
113
, considera
o elemento musical uma das propriedades constitutivas da poesia:
112
MERQUIOR, José Guilherme. Natureza da lírica. In: _____. A astúcia da mimese. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1972. p. 3.
113
Cf. FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna. São Paulo: Duas Cidades, 1978.
43
[...] a Música, em seus vários modos de metro, ritmo e rima, é de tão grande
importância na Poesia que nunca poderá ser sabiamente rejeitada, é o
vitalmente auxiliar dela que se torna simplesmente tolo quem declina de sua
assistência [...] É na música, talvez, que mais de perto a alma atinge o
grande fim pelo qual luta, quando inspirada pelo Sentimento Poético a
criação da suprema Beleza. [...] E assim pouca dúvida pode existir de que,
na união da Poesia com a Música [...] encontra-se o mais vasto campo para
o desenvolvimento poético.
114
O segundo dado histórico-cultural respeita à homologia que, com o advento
do Romantismo, o discurso poético acaba estabelecendo com o religioso. Sua
origem parece estar estritamente relacionada à falência, no mundo ocidental, da
ontologia judaico-cristã como fonte de explicação para a realidade. Sofrendo um
primeiro grande abalo com os descobrimentos ultramarinos dos séculos XV e XVI,
bem como com os avanços científicos e as novas posturas filosóficas dos séculos
XVI e XVII, as estruturas dessa ontologia caem por terra com o Iluminismo, que
consolida a razão como verdadeiro modo de se obter conhecimento sobre o homem
e o mundo. A razão, contudo, não se estabelecerá como fundamento inabalável sob
o qual poderiam se alicerçar novos sistemas de compreensão da realidade. Como
bem observa Octavio Paz, ao ter como cerne o procedimento crítico, a razão tornar-
se-á “um método cujo princípio é examinar todos os princípios”
115
, uma espécie de
autodestruição inovadora que “acentua, com seu rigor, sua temporalidade, sua
possibilidade iminente de mudança e de variação”
116
.
Isso gera, segundo o crítico mexicano, uma modificação na maneira como o
Ocidente passa a conceber sua imagem temporal. Converte-se a perfeição
consubstancial à eternidade cristã em atributo da história, privilegiando-se, assim, o
futuro, depositário da evolução e do progresso
117
. A transferência de uma promessa
de plenitude do intemporal celeste para a ação terrena tem como conseqüência,
contudo, o surgimento de uma contradição: se, por um lado, o futuro faz-se o lugar
em que se projeta o desejo, isto é, um mundo inimaginável de possíveis, por outro,
passa também a ser o espaço da insatisfação, dos anseios nunca plenamente
satisfeitos. Ao contrário da eternidade cristã que, por ser o termo de um percurso
linear, correspondia à solução de todas as antinomias e tensões, o futuro,
caracterizado pela continuidade ininterrupta, torna-se resolução relativa dos
114
POE, Edgar Allan. Poemas e ensaios. São Paulo: Globo, 1999. p. 81
115
PAZ, Octavio. Os filhos do barro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. p. 46.
116
Id., p. 46-47.
117
Id., p. 49.
44
conflitos: ainda que eles se dissipem em determinada esfera e em um dado
momento, reaparecem, mais tarde, em outros níveis da vida social.
Sofrendo gravemente com as mudanças geradas pela consolidação da
sociedade burguesa - que perde sua função em uma realidade regida por valores
como o utilitarismo e o pragmatismo -, o poeta, entendido aqui não como ser
empírico, mas em sua condição social de artista, torna-se mais sensível às
contradições dessa visão temporal. Ao dirigir seu olhar para os alicerces de sua
época, o mundo pós-Revolução Francesa e Industrial, faz uso da mesma lente que
permitiu à razão enxergar rachaduras nos baluartes do passado – a lente da crítica -,
o que o leva a desconfiar, muito antes que os demais, das promessas de melhoria
projetadas no futuro. A consciência da quimera em que se constitui a crença na
realização plena do ser no transcurso histórico acentua, por conseguinte, o lado
negativo da mudança: a perda de verdades permanentes que possam dar algum
sentido à existência do homem, restando apenas a certeza de sua condição mortal.
Dilacerado pela ausência de justificativa para seu estar no mundo, em termos
tanto sociais quanto humanos, o poeta assume, então, uma postura negativa em
face de sua época, opondo-se a ela de duas maneiras: fazendo de sua palavra uma
revelação ou um ato. Como revelação, a palavra poética intentará desvelar um
conhecimento que ultrapasse a esfera do meramente cotidiano, por provir da
essência mesma do ser. Como ato, apresentará um desejo de mudança semelhante
ao que norteia a revolta histórica, mas que dela se distingue por recuperar valores
opostos aos da sociedade burguesa e, nesse sentido, próprios de um tempo anterior
a ela. Em ambos os casos, pressentem-se finalidades que podem ser equiparadas
às do ritual religioso. Concretizando ou dando apenas a conhecer, os dois
procedimentos recuperam, em última instância, um outro tempo, para além da
temporalidade histórica: o tempo das origens.
Não surpreende, então, que a maior parte das tentativas de aproximar poesia
e magia encontrem-se nas reflexões de poetas que efetuam trabalhos no campo da
crítica. Os escritos de Paz, fundamentais para se compreender o fenômeno poético
em sua manifestação moderna, são um bom exemplo disso, uma vez que
desenvolvem importantes considerações sobre o aspecto.
45
No entender de Paz
118
, a operação poética torna-se homóloga de certos
processos da magia (conjuro, feitiço) pelo fato de estar também fundamentada no
princípio da analogia, isto é, “[na] visão do universo como um sistema de
correspondências e [na] visão da linguagem como o doble do universo”
119
. Nesse
sentido, tanto o universo poderia ser lido como (e através de) um poema quanto o
poema tornar-se-ia a criação de novas bases para o próprio universo. Será, então,
ao assimilar o elemento mágico ao procedimento poético que o poeta poderá
concretizar os dois modos erigidos para fazer frente à realidade que lhe é
contemporânea.
No tocante ao primeiro efeito oriundo da magia” poética, isto é, ao poema
como forma de revelação, Paz irá evidenciar, principalmente, em que medida este se
distingue da experiência religiosa, com a qual apresenta, como se viu, considerável
semelhança. Para o crítico, poesia e religião originam-se de um manancial comum:
colocam o homem frente à sua condição mortal. Diferentemente da experiência do
sagrado, a experiência poética não encobre essa epifania mediante uma
interpretação que redime o homem da morte. Em vez de postular uma existência
eterna que salvaguardaria o ser do acidente da vida terrena, a revelação poética
concilia vida e morte, apresentando-as como elementos complementares.
Concorreria para tal efeito o manejo das potencialidades sonoras e imagéticas
da linguagem, uma vez que, em sua significação última, tais procedimentos apontam
para essa visão conciliadora. Dos recursos sonoros, o ritmo seria, conforme Paz,
aquele que, de maneira privilegiada, daria forma à revelação. Enquanto fluxo que
compreende certa constância, acaba por figurar um caráter ritmado à existência,
sugerindo a idéia de que o viver e o morrer se alternam ininterruptamente. A
imagem, entendida como “toda a forma verbal, frase ou conjunto de frases [...] que
unidas formam o poema”
120
(comparação, metáfora, jogo de palavras, paronomásia,
símbolo, etc.), far-se-ia igualmente relevante para se obter o referido “efeito”. Isso
porque, ao desafiar o princípio da contradição, concorreria, em última instância, para
que os dois elementos desse binômio acabassem por se harmonizar. Dessa
maneira, as modulações de ritmo e imagem tornariam o poema um modo possível
de o homem transcender sua própria condição paradoxal. Àquele que o recria no
118
PAZ, Octavio. O arco e a lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
119
PAZ, 1984, p. 12.
120
PAZ, op. cit., p. 119.
46
momento da leitura, estaria reservada a sensação plena de perceber conciliados
presente e passado, real e imaginário, alto e baixo, comunicável e incomunicável,
somente comparável à indissolúvel unidade dos opostos pressentida com a
experiência amorosa.
Quanto ao segundo efeito, ou seja, ao poema como ato, Paz assevera que
ele implicaria a criação de uma “estética ativa”, em que a possibilidade de intervir
sobre o real se soma às capacidades de contemplação e representação próprias do
poético
121
. Ao considerar que, nessa circunstância, o poema ultrapassa sua natureza
de objeto lingüístico, podendo ocasionar mudanças em uma esfera que lhe é
exterior, o crítico parece estar considerando o modo pelo qual a poesia incorporaria
a vontade de poder que perpassa todo e qualquer procedimento mágico.
Em alguns casos, porém, a rebeldia do mago-poeta culminaria, consoante
Paz
122
, em uma ação mágica estéril, porquanto se faria busca do poder pelo próprio
poder. A obra de Mallarmé seria exemplar nesse sentido. Malgrado o caráter excelso
da linguagem de seus versos permitir considerar as palavras que deles irrompem
carregadas de luminosidade, o efeito que geram não é o do feixe que aquece, mas
daquele que cega ou queima. Esse caráter vertiginoso, contudo, o se tornaria
aspecto a partir do qual fosse possível diminuir a importância de sua poesia. Muito
pelo contrário: ao fazer com que sua obra, concebida como um duplo mágico do
universo, culmine no silêncio, o poeta sabe-a impossibilitada de estabelecer
qualquer espécie de diálogo, isto é, de comunhão com o homem.
Paz postula que o caráter problemático assumido pelo estabelecimento da
magia poética neste e em outros expoentes da lírica moderna provém, decerto, do
fato de o sujeito que se manifesta através do eu da enunciação não poder
desprender-se verdadeiramente de alguns dos valores de sua época. Ao pertencer a
um momento histórico no qual a racionalidade torna-se a lógica preponderante para
a compreensão e organização do real, esse sujeito deixaria transparecer em seus
versos algumas objeções à propriedade da analogia, permitindo deduzir, em última
instância, que ela corresponderia apenas a um recurso combinatório e não a uma
verdadeira ontologia. A essa tendência contrária ao pensamento analógico, que se
paralelamente a ele sem preteri-lo de todo, Paz denomina ironia. Pela ação da
121
PAZ, 1984, p. 86.
122
Id., p. 67.
47
ironia, o concerto das correspondências criado pelo poema parece estar sempre na
iminência de se converter em um “galimatias babélico”
123
.
Como as faces de Jano, analogia e ironia compareceriam, pois, de maneira
conjunta em poemas e obras poéticas, estabelecendo um tenso dialogo entre si.
Tornando-se o denominador comum de grande parte das produções de peso
surgidas a partir do Romantismo, o binômio far-se-ia, segundo o crítico e poeta
mexicano, um dos aspectos que caracterizariam a poesia em sua manifestação
moderna.
Mais recentemente, Thomas Greene retoma a questão da magia poética,
objetivando dar também a ela uma abordagem sistematizada. Em “Poesia e
magia”
124
, conferência em que se apresentam algumas das considerações que
compõem um estudo posteriormente publicado em livro
125
, o crítico procura,
inicialmente, estabelecer os fatores que fundamentariam a lógica da operação
mágica, para, em seguida, tendo por horizonte a progressiva desvalorização dessa
forma de pensamento na cultura ocidental, observar sua manifestação em alguns
poemas.
Para Greene, dois aspectos poderiam ser considerados propriedades
constitutivas do procedimento mágico. O primeiro concerne ao fato de que ele
funciona como instrumento da vontade de poder. A ação gica apelaria para uma
dinâmica invisível entre as coisas, uma espécie de mana disseminado em toda a
parte, que, no momento do rito, estaria condensado no encantamento e em seu
produtor, a fim de induzir determinado efeito sobre a realidade. O segundo respeita
ao princípio representativo que está na base do procedimento. A operação do
feiticeiro nunca se faz diretamente sobre as coisas, mas sim sobre elementos que a
elas estejam ligados por contigüidade ou similaridade. A palavra, nesse sentido,
tornar-se-ia o instrumento por excelência da magia, na medida em que, ao nomear
seres e objetos, carregaria consigo a essência destes.
Com vistas a essa lógica não-disjuntiva que caracterizaria o funcionamento da
palavra mágica, Greene a classifica como hipóstase, manifestando claramente seu
123
PAZ, 1984, p. 101.
124
GREENE, Thomas. Poésie et magie. In: BONNEFOY, Yves; LICHNÉROWICZ, André;
SCHÜTZENBERGER, M.-P. Vérité poétique et vérité scientifique. Paris: Presses Universitaires de
France, 1989. p. 63-81.
125
GREENE, Thomas. Poésie et magie. Paris: Julliard, 1991. O estudo é aqui referido apenas a titulo
de informação, que não foi possível consultá-lo durante a elaboração deste trabalho, não sendo
incluído, desse modo, na bibliografia.
48
débito para com as reflexões de Ernst Cassirer sobre os liames entre linguagem e
mito
126
. Para Cassirer, pensamento mítico e mágico estariam alicerçados sobre um
mesmo princípio, ao qual o filósofo denomina lei da nivelação e extinção das
diferenças específicas. A relação entre elemento representante e elemento
representado poderia ser, dessa maneira, sintetizada pelo axioma pars pro toto, com
a peculiaridade de que cada parte do todo não o representa meramente, mas
condensa sua força imediata, apresentando-se como esse mesmo todo. Em termos
de pensamento mágico, “[q]uem se tenha apoderado de qualquer parte do todo
dispõe também, com isso, [...] do poder sobre o todo”
127
.
No que concerne à assimilação do pensamento mágico à linguagem poética,
parece necessário atentar para um aspecto que, mesmo não sendo abordado de
maneira mais detida pelo crítico, apresenta-se enunciado em alguns momentos do
texto. Trata-se do fato de que, no poema, não são palavra e coisa que se
identificam, mas sim significante e significado, ou, até mesmo, dois significados. Esta
última forma possível de correspondência tornar-se-ia preponderante nas
composições dos séculos XIX e XX. Nesses casos, o significante manteria sua
sedução encantatória, funcionando, porém, apenas como recurso de musicalidade,
utilizado para acompanhar a ação mágica.
Abrandar a ligação entre som e sentido para tornar mais imbricados aspectos
condizentes apenas ao segundo termo do binômio poderia ser compreendido,
segundo o crítico, como um modo de a poesia desse período tentar reagir ao
esvaziamento que a palavra mágica passa a sofrer com a predominância do que
Greene chama de pensamento disjuntivo. Representada de maneira exemplar na
postura assumida por Hermógenes no Crátilo, de Platão, a visão disjuntiva
fundamenta-se na idéia de que não haveria nenhuma correspondência imediata
entre palavra e coisa. Contemporaneamente, essa postura poderia ser observada
nos principais estudos sobre a linguagem, porquanto definem como arbitrária a
relação entre os termos da dicotomia estabelecida para descrever o funcionamento
do signo lingüístico.
A fim de transpor a semiótica antimágica que a tradição disjuntiva faz
desaguar na compreensão humana sobre a linguagem e, conseqüentemente, sobre
o alcance da palavra poética, o sujeito criador irá fortalecer sua vontade de alçar o
126
CASSIRER, Ernst. Linguagem e mito. São Paulo: Perspectiva, 2003.
127
Id., p. 109.
49
poético a esferas mais elevadas da existência encontrando o que Greene denomina
talismã. Podendo corresponder a um deus, a uma pessoa ou, até mesmo, a um
objeto, o talismã far-se-ia um elemento “investido de um mana verbal” e, por isso,
“fértil em metáforas”
128
. Será, portanto, por erigir um talismã como aspecto central a
que se reportam os recursos figurativos do poema, que, segundo o crítico, a poesia
a partir do Romantismo deslocará o procedimento mágico dos componentes do
signo para as relações de sentido entre os signos.
Para Greene, contudo, o apelo ao talismã o impedirá que o pensamento
disjuntivo possa vir a irromper nas malhas do poema. Como parte dos valores
provenientes da racionalidade que norteia a visão do mundo ocidental, o
pensamento disjuntivo permanecerá, como uma erva daninha, arraigado à
consciência do sujeito criador, reaparecendo por entre as flores plantadas pela
magia. O crítico procurará mostrar a deflagração dessa postura no seio do
procedimento gico mediante a abordagem de poemas que o adotam
deliberadamente. Dos textos comentados, interessam, sobretudo, “Le bateau ivre”,
de Rimbaud, “Le chevelure”, de Baudelaire, e “Le nuphar blanc”, de Mallarmé,
haja vista que, em se tratando de produções elaboradas por expoentes da lírica
moderna, permitem depreender que tipo de tendência estariam legando à
posteridade. Considerado por Greene “um exemplo clássico de poema
talismânico”
129
, “Le bateau ivre” oscilará entre dois pólos contrapontísticos: se, por
um lado, o sujeito procura fazer com que o discurso poético lute por uma função
transcendente, por outro, manifesta a consciência de que seu desejo constitui-se
apenas em presunção, fustigando a si mesmo com o epíteto desdenhoso de
“camponês”.
“Le chevelure” culminaria também em uma tensão dessa natureza. No
poema, o sujeito pretenderia, segundo Greene, criar a ilusão de um sistema de
correspondências capaz de banir as divisões disjuntivas. Para tanto, estabelece uma
série de associações exóticas em face da cabeleira da dama, gerando a impressão
de que proviriam mais de vínculos essenciais, postos a descoberto, do que de
aproximações arbitrárias. De maneira emblemática, mágica, a cabeleira far-se-ia
portadora de um ritmo equivalente ao embalar do oceano, figurando uma
passividade voluptuosa que seria o verdadeiro objeto de desejo do eu lírico. Nesse
128
GREENE, 1989, p. 74.
129
Id., p. 75.
50
sentido, o crítico afirma que, caso haja alguma verdade buscada pelo sujeito, ela
encontrar-se-á justamente nessa fecunda preguiça” e não nos cachos da cabeleira
em si mesmos. Tal “preguiça”, porém, não poderia ultrapassar, em termos de
validade, sua natureza metafórica, o que a faria pressagiar, em última instância, sua
própria contingência.
Dando forma a uma temática que, consoante Greene, poderia ser
considerada uma alegoria do poema talismânico, “Le nénuphar blanc” daria indícios
de um impasse similar. Nesse poema em prosa, a magia do nenúfar relacionar-se-ia
ao fato de ele não encerrar nada. A consciência desse vazio, contudo, ao mesmo
tempo em que se apresenta ao sujeito como a satisfação possível para seu desejo
de alcançar a essência das coisas, leva-o também a cogitar a irrealidade do fim
último que persegue.
Nos textos, portanto, o procedimento mágico que se empreende não
parece ter seus efeitos obtidos de maneira plena. Ao estar sob a mira do
pensamento disjuntivo, a magia poética acabaria sendo atingida, com maior ou
menor dano, pelos projéteis alvejados sobre ela.
A fim de não dar a entender que o impasse observado nesses poemas
poderia ser estendido inteiramente para as produções do século XX, Greene encerra
seu ensaio tecendo algumas considerações sobre os Sonetos a Orfeu, de Rilke,
que afirma serem, possivelmente, “a reflexão mais profunda sobre a magia poética
que o século [...] tenha dado”
130
Nessa coleção, Orfeu aparecerá como arquétipo do
talismã, na medida em que estabelece os liames entre divindade e humanidade,
realidade visível e invisível. O aedo proclamará o encantamento permanente da vida
humana, evidenciando a dependência desta para com o símbolo. Com o auxílio de
Orfeu, compreender-se-ia que o mistério dos símbolos encontra-se intimamente
misturado ao que pode ser percebido na realidade sensível, o que o torna tão
verdadeiro quanto as relações mais evidentes da existência humana.
Em função dessa legitimidade, a magia do simbolismo forneceria um
conhecimento que, sem ela, permaneceria recusado ao homem. Por seu intermédio,
poder-se-ia, inclusive, depreender um significado outro em face de aspectos da
existência considerados negativos. Situação exemplar dessa mudança de sentido
tornar-se-ia patente no próprio desmembramento de Orfeu. Conquanto, à primeira
130
GREENE, 1989, p. 77.
51
vista, o fim trágico do aedo assombre a jóia do saber que ele revela, parecendo
figurar uma manifestação do pensamento disjuntivo, seu efeito último acaba sendo
não o da cisão de todas as figurações, mas, contrariamente, o da iniciação. Por meio
do desmembramento, transpor-se-ia, em definitivo, o limiar que separa vida e morte,
homem e mundo.
Expostas as principais idéias que constituem as reflexões de Paz e de Greene
sobre a ligação entre poesia e magia, cumpre, então, estabelecer em que medida
essas abordagens se tornam convergentes e/ou divergentes. De maneira geral,
observa-se uma grande proximidade entre as duas abordagens, relativa, sobretudo,
ao modo similar com que os críticos procuram resolver pontos fundamentais da
problemática. No tocante à lógica da operação gica, quer seja chamada por Paz
de “analogia”, quer seja designada por Greene como “princípio representativo”,
reside, para ambos, em um mesmo aspecto: a identificação entre elementos ligados
por similaridade ou contigüidade. Quanto ao efeito que o procedimento mágico
desencadearia ao ser assimilado à linguagem poética, os críticos parecem
igualmente relacioná-lo a uma espécie de revelação, que desvelaria uma esfera
outra da existência. Se bem que Greene não aborde diretamente esse efeito ao
longo do ensaio, o crítico reporta-se a ele principalmente nos comentários de
poemas, apresentados aqui de maneira sumária. No concernente à forma pela qual
a magia poética compareceria na lírica a partir do Romantismo, Paz e Greene
parecem caracterizá-la a partir de uma tensão equivalente. Ao mesmo tempo em
que erigiria a visão mágico-analógica como modo de ultrapassar a compreensão
ordinária da realidade, o sujeito lírico, pertencendo a um momento histórico em que
a razão crítica (ou o pensamento disjuntivo, nos termos de Greene) faz-se o modo
dominante de organizar o mundo, desconfiaria igualmente dessa solução possível,
gerando, no poema, a coexistência dessa visão com o que Paz denomina “ironia’ e
Greene, “postura antimágica”.
No tocante a divergências, não se torna possível afirmar que as reflexões de
Paz e Greene apresentem posições que se oponham de maneira direta. As
diferenças são suscitadas, quase sempre, pelo que fica sugerido acerca de aspectos
que recebem pouco desenvolvimento nas duas abordagens. Exemplo
paradigamático encontra-se na definição dos componentes do binômio elemento
representante/ elemento representado, que caracteriza o procedimento mágico.
Pelas considerações que tece a propósito da revelação poética, Paz a entender
52
que, no binômio, recursos sonoros e imagéticos ocupariam a posição de elemento
representante, ficando reservado à harmonização dos pólos vida /morte o lugar de
elemento representado e, ao mesmo tempo, de efeito da operação. Ao discorrer
sobre a assimilação do procedimento mágico na poesia a partir do Romantismo,
Greene parece retirar os recursos sonoros da posição de elemento representante,
permitindo supor que apenas os recursos imagéticos conduziriam à revelação. As
potencialidades sonoras de que se serve o poema ficariam, assim, em um nível à
parte, não originando qualquer efeito de sentido relacionado diretamente ao que se
intenta figurar.
Realizado esse excurso à procura de elementos que permitissem pensar em
que medida as peças de Os quatro cantos do tempo atualizariam o aspecto
mágico-poético-musical presente no mito de Orfeu, torna-se possível reter, por sua
funcionalidade para a compreensão da obra, grande parte do que se apresenta nas
reflexões de Paz e de Greene. Em muitos dos poemas que compõem o livro,
observa-se o que Vasco Graça Moura, em ensaio elaborado para posfácio de uma
das antologias da obra poética davidiana, definiu como ”apetência de conhecimento
do indevassável e do indevassado”
131
Essa tentativa de desvelamento do “Mistério”
parece equivaler àquilo que os críticos pouco referidos consideram como um dos
principais “efeitos” almejados com a assimilação do procedimento mágico ao poema:
a revelação.
Para Graça Moura, duas seriam as vias que, conjugadas, reclamariam, na
poesia de David Mourão-Ferreira, o acesso a essa “zona dita do invisível”: o
“habilíssimo jogo de matérias verbais e fônicas”
132
e a eleição de Eros “como a zona
mais íntima e viabilizadora do conhecimento humano a que todas as outras são
tangenciais e por que todas as outras são iluminadas”
133
. Como se pôde observar
quando do comentário geral dos elementos que configuram as peças de Os quatro
cantos do tempo, a exploração das potencialidades sonoras da língua e a figuração
do amor assumem posição privilegiada na obra, o que permitiria considerar o livro
em questão como um dos momentos da poética davidiana em que essa busca,
percebida por Graça Moura em toda a poesia do escritor, faz-se mais evidente.
Reforçaria também essa hipótese o fato de esses mesmos aspectos figurarem nas
131
MOURA, Vasco Graça. David Mourão-Ferreira: do coração ao tempo. In: MOURÃO-FERREIRA,
David. Antologia poética (1948-1983). Lisboa: Dom Quixote, 1983. p. 238.
132
Id., ibid.
133
Id., ibid.
53
reflexões de Paz como pontos fundamentais no estabelecimento da revelação
poética.
Estando diretamente relacionada à experiência amorosa, pode-se dizer que a
revelação pretendida em Os quatro cantos do tempo encontra-se também atrelada
ao que Greene designa por talismã. Diferentemente dos Sonetos a Orfeu, em que o
crítico considera a figuração do aedo como elemento talismânico presente nas
peças, é Eurídice quem ocupa essa posição nos poemas davidianos. Ainda que,
como um arcano, a amada do sujeito-Orfeu não seja referida nominalmente ao longo
da obra, levaria a supor seu comparecimento a alusão indireta às etapas da
aventura desditosa vivida pelos amantes.
O acidente que perpassa a história de Orfeu e Eurídice - e que corresponde,
em última instância, à contingência que caracteriza a própria natureza humana
tornar-se-á elemento complicador à plenitude possível oriunda da revelação. Por
meio dele, estabelecer-se-á nos (e entre os) poemas uma tensão que pode ser
identificada ao diálogo entre visão mágico-analógica e postura antimágica,
característico da lírica a partir do Romantismo.
Tendo em vista que a maior parte dos aspectos depreendidos das reflexões
de Paz e Greene aponta para elementos diretamente relacionados à aventura de
Orfeu e Eurídice, cerne do segundo momento da discussão sobre as ressonâncias
órficas em Os quatro cantos do tempo, cumpre deter-se aqui em um recurso que,
conforme Graça Moura, torna-se fundamental para o “acesso ao interditoe que não
parece ser devidamente elucidado apenas a partir das considerações dos outros
dois críticos: a tessitura sonora dos versos.
Conquanto o ritmo dos poemas de Os quatro cantos do tempo possa, em
última instância, figurar a idéia de harmonização estabelecida por Paz e a maior
parte das rimas externas pareça corroborar o efeito meramente musical que Greene
atribui aos recursos de ordem fônica, observa-se em grande parte das peças desse
livro outro procedimento que, contradizendo as afirmações de Greene, apela para as
relações entre som e sentido e cuja complexidade, em termos de funcionamento, as
exíguas considerações dos críticos sobre a questão não parecem abranger.
Designado aqui sob o termo genérico de “jogo lingüístico”, esse procedimento
corresponde, na obra, a uma utilização específica de figuras como aliteração,
assonância, paronomásia, anagrama, paramóion, rima encadeada e em eco.
54
Em vista da importância dos recursos sonoros em Os quatro cantos do
tempo, Fernando Martinho
134
comenta alguns casos em que comparecem três das
figuras pouco referidas - a saber, a aliteração, a assonância e a paronomásia -,
vinculando sua leitura aos pressupostos de Roman Jakobson sobre a função poética
da linguagem. Se, em termos gerais, a leitura de Martinho acaba por confirmar a
assertiva tornada ponto pacífico pela maior parte dos estudos sobre poesia - de
que, na linguagem poética, “a equivalência de som, projetada na seqüência como
seu princípio constitutivo, implica inevitavelmente equivalência semântica”
135
, em
sentido estrito, ela não parece se restringir ao modo como Jakobson compreende o
funcionamento dos recursos aqui discutidos.
Em “Lingüística e poética”, o teórico fundamenta sua interpretação para o uso
de figuras de natureza fônica no que denomina como “simbolismo sonoro”, que
corresponde, em síntese, à exploração de atmosferas semânticas que estariam
intimamente relacionadas a determinados fonemas ou cadeias de fonemas. Essa
proposta, contudo, não assume o caráter consensual geralmente reservado à idéia
de projeção do princípio da equivalência na seqüência. Defendida também por
outros estudiosos, dentre os quais encontra-se Maurice Grammont
136
, ela tem sido
ponto de debate entre os que se debruçam sobre a questão, suscitando, inclusive,
objeções. A título de exemplo, pode-se referir aqui o que Alfredo Bosi, em O ser e o
tempo da poesia
137
, postula sobre o assunto. Para o crítico brasileiro, apesar de o
isomorfismo não corresponder a um conceito de todo infundado, ele deveria ser
pensado tendo-se por horizonte que “os sons não aparecem sós, mas estão sempre
integrados em signos de um discurso cujos mecanismos de associação, para cada
sujeito ou grupo, não se podem estabelecer a priori”
138
.
Na abordagem de Martinho, observa-se claramente um afastamento dessa
idéia de simbolismo fônico pelo modo como o crítico compreende o efeito gerado
pelas figuras nos casos que submete à análise. Isso se torna patente, por exemplo,
na leitura que propõe para a aliteração da consoante oclusiva /k/ no poema “Capital”.
Se, à primeira vista, o crítico parece ir ao encontro do referido conceito, uma vez que
relaciona a reiteração da consoante à sensação de dureza, ao vincular esse sentido
134
MARTINHO, 1996, p. 151-152.
135
JAKOBSON, 1990, p. 146-147.
136
Cf. WELLEK, René; WARREN, Austin. Teoria da literatura. Lisboa: Europa-América, [s.d.]., p.
195-197.
137
BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
138
Id., p. 54.
55
possível à significação global do texto, isto é, “a violenta denúncia da acumulação
capitalista na ‘capital’”
139
, dissipa qualquer possibilidade de compreensão intrínseca
para a conotação atrelada a esse fonema.
As análises realizadas a partir de outros casos indiciam efeitos de sentido que
se distanciam ainda mais do dito conceito. A utilização da paronomásia no poema
“Ao inverno” faz-se exemplar nesse sentido. No texto, a proximidade fônica existente
entre os lexemas “Inverno” e “inferno” funciona como uma espécie de análogo da
proximidade semântica que se estabelece entre eles por meio do procedimento
metafórico.
Ainda que, em ambos os casos, Martinho aborde, de maneira pertinente, os
efeito decorrente da exploração das figuras mencionadas, o crítico, porém, esquece
de marcar as diferenças existentes no modo como, em cada um deles, esse efeito é
obtido. No primeiro caso, a identificação entre som e sentido parece estar sujeita
quase que inteiramente à sensibilidade do crítico, uma vez que a reiteração acaba
sendo associada imediatamente ao sentido último do verso ou, - como no exemplo -
do poema. No segundo caso, a semelhança fônica se entre termos que, em sua
significação, apresentam também algum tipo de proximidade. Daí que o recurso
fônico compareça associado a outro artifício retórico, tal como a metáfora, a
comparação, a sinédoque, a metonímia, a sinonímia, etc., tornando a
correspondência ocorrida entre significantes um redobramento da similaridade
encontrada entre os significados.
Claramente mais complexo que o primeiro, o segundo procedimento
merecerá, portanto, a designação genérica de jogo lingüístico. Fundado numa
espécie de relação diagramática do significante com o significado, ele poderia ser
sintetizado pela seguinte equação, cunhada por Jean Cohen
140
:
(Ste1=Ste2(Sdo1=Sdo2). Tendo em vista a relação de correspondência que se
estabelece entre os elementos nele explorados, torna possível dizer, inclusive, que
corresponde à concreção exemplar da visão mágico-analógica no seio da própria
linguagem poética.
Realizado a partir das figuras enumeradas anteriormente, sua maior
ocorrência encontra-se na paronomásia. Uma vez que, ao se retomar aqui os
139
MARTINHO, 1996, p. 151.
140
COHEN, Jean. A plenitude da linguagem. Coimbra: Almedina, 1987. p. 190. A compreensão do
funcionamento desse tipo de procedimento deve-se, em grande medida, às considerações do crítico
sobre o assunto.
56
comentários de Fernando Martinho, atentou-se justamente para um dos casos em
que comparece tal figura, parece interessante, pelo menos a titulo de exemplo,
apontar como outros recursos atingem um efeito similar. Para tanto, recorre-se aqui
à figura que apresenta menor recorrência nas peças de Os quatro cantos do
tempo: o anagrama. Na obra, dois são os poemas em que o recurso parece ocorrer:
“Espionagem” e “Compasso de espera”. No primeiro, porém, o recurso se
parcialmente, como que preparando sua utilização efetiva no segundo. No tocante
ao procedimento lingüístico, acentua-se a associação de três vocábulos presentes
nos poemas, fazendo parecer que o último se encontrava em latência nos dois
primeiros. Vejam-se os versos de “Compasso de espera”:
Nos agudos cristais do cilício da ausência,
em silêncio rebenta, em silêncio, o teu rosto...
Se a tua voz não vem, Arcanjo ou telefonema,
como hei-de suportar esse silêncio todo? (p. 92)
No fragmento, a disposição dos vocábulos sugere a transposição de
elementos fõnicos dos dois primeiros (“cilício” e “ausência”), veiculados no verso um,
para o último (“silêncio”), no verso dois. Com isso, a similaridade fônica prepara uma
relação de sentido que se torna evidente apenas na última estrofe do poema: a de
que o “cilício da ausência” corresponde ao “silêncio”.
Não sendo o propósito dessa reflexão realizar uma exaustiva lista de
ocorrências de jogos lingüísticos, mas sim compreender como, diferentemente de
outros recursos sonoros, eles estabelecem uma maior espessura para as relações
entre som e sentido, tornando-se mais afins à visão analógica que fundamenta a
operação mágica, cumpre então passar para o momento seguinte da discussão.
Importa, a partir de agora, observar como esses e outros recursos, servindo para
iluminar o talismã erigido pelo sujeito lírico, conduziriam ao efeito último da operação
mágica na lírica: a revelação poética. É chegada a hora, portanto, de acompanhar
Orfeu em sua aventura com (e por) Eurídice.
57
3.2 Orfeu e Eurídice
Ainda que Os quatro cantos do tempo não seja um livro de poemas
narrativos, a alusão às fases da vida humana, figurada pela referência às estações
na abertura de cada canto, não torna descabido pensar a representação, na obra, de
um percurso existencial. Paralelamente ao itinerário geralmente estabelecido pela
crítica, contudo, parece haver outro, cujas etapas respondem a aspectos que
compõem o mito de Orfeu e Eurídice. Indiciará essa assimilação do drama de Orfeu
ao percurso do sujeito o poema de abertura do Canto I, Intitulado “À Primavera”:
Quem de noite soltava essa turva serpente
que os puros calcanhares das Musas perseguia?
Era Abril, era Maio, era o raio de um vento,
filtrado pelo mar, com disfarces de brisa...
Era o grande impostor, o meigo proxeneta
que em cada ano exibe a jovem Primavera:
dos reinos infernais três meses a ausenta,
e a cúpida avidez dos homens a entrega.
Que virás cá fazer, que nos não atormente,
de ramos coroada, ó rameira sagradal!?
Mas quando o Sol te doura ou a Lua te enfeita
(nos cabelos da noite, a madeixa de prata...),
já nem sei se hei-de amar-te ou crivar-te de pragas,
ó verde confusão que os músculos me rasgas! (p. 89)
Em termos de matéria figurada, o poema retoma claramente o mito greco-
latino do surgimento das estações, centrado no rapto de Perséfone por Hades,
senhor dos Infernos. Segundo a história fixada pela tradição, Deméter, mãe de
Perséfone e deusa das colheitas, ao saber do paradeiro da filha e do consentimento
de Zeus para o consórcio sobre o qual não havia sido consultada -, é tomada por
uma cólera que a faz deixar o Olimpo e cobrir a terra de infertilidade. A fim de
aplacar a ira da irmã, Zeus solicita a Hermes, mensageiro dos deuses, que ter
com Hades para convencê-lo a trazer Perséfone de volta ao mundo dos vivos.
Antes, porém, de deixá-la partir, o senhor do Mundo Subterrâneo a obriga a comer
uma semente de romã, ligando-a eternamente a ele pelo rompimento do jejum
obrigatório, estabelecido para os que ali estivessem apenas de passagem. Com
58
isso, Perséfone acaba fadada a passar uma parte do ano com o marido em seu
reino e a outra com a mãe e os outros deuses no Olimpo
141
.
A atualização empreendida, contudo, indícios, inicialmente, de uma
desmitificação. Hades surge figurado por dois epítetos que indiciam uma feição
degradada: “grande impostor” e “meigo proxeneta(v. 5). Perséfone, trazida à cena
também por meio de um epíteto (“jovem Primavera”, v. 6), é, assim, cedida em
meretrício à “cúpida avidez dos homens” (v. 8).
Essa visão pejorativa, entretanto, não perpassa a totalidade do poema. O tom
de vitupério que caracteriza a pergunta retórica presente na terceira estrofe é
dissipado pelo uso da conjunção adversativa “mas” na sentença seguinte, que inicia
no verso onze e tem seu fechamento ao final da segunda estrofe. Nessa sentença,
introduz-se um elemento complicador na representação da divindade feminina,
pressentido no caráter paradoxal do segundo epíteto utilizado para designá-la
(“rameira sagradal”): a manifestação do sagrado no profano. A oração subordinada
adverbial, iniciada pelo vocábulo “quando”, veicula a circunstância que leva à
mudança de postura o sujeito lírico: a “ação” do “Sol” e da “Lua” sobre a figura,
indicada pelos verbos “dourar” e “enfeitar”. A posição desses substantivos como
sujeito dos verbos que os acompanham, somada à capitalização de suas iniciais,
permite supor que os astros comparecem no texto personificados, senão como
divindades, pelo menos como forças primordiais. Quanto à sua carga simbólica,
compreendem, o mais das vezes, princípios contrários: ativo-passivo; macho-
fêmea
142
. Sua presença no verso, contudo, não parece apontar para uma relação
antitética, mas sim para uma idéia de complementaridade.
Duas outras imagens contribuem igualmente para fundamentar essa hipótese,
haja vista estarem, no texto, ligadas às referidas pouco: o ouro e a prata. A
primeira, malgrado não seja representada de maneira concreta em nenhum dos
versos, é sugerida pelo sentido do verbo ligado ao substantivo “Sol”: “dourar” (v. 11).
Símbolo ambivalente, o ouro evocado pelo verbo relaciona-se ao “caráter ígneo,
solar e real”
143
a ele geralmente atribuído, o que alça a divindade a uma esfera
elevada. O mesmo se pode dizer da imagem da prata, apresentada claramente no
verso 12. Pertencente à constelação simbólica da Lua no sistema de
141
Cf. KERÉNYI, Karl. Os deuses gregos. São Paulo: Cultrix, 2000. p. 194-197.
142
Cf. CHEVALIER; Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de janeiro: José
Olympio, 2006, p. 837-838.
143
Idem, p. 669.
59
correspondências entre metais e astros
144
como evidencia o poema mesmo -,
conota, nesse contexto, uma idéia de pureza por sua brancura e luminosidade.
Ainda que normalmente seja considerado elemento oposto ao ouro, sua significação
o parece marcar um antagonismo, mas sim uma conciliação, que conota,
igualmente, um sentido espiritualizante, tornado patente, inclusive, pelo significado
da metáfora por que é veiculado: luz mais intensa em meio à escuridão.
Recupera-se, dessa maneira, o caráter sagrado de que parecia destituída a
divindade. Sob o “disfarce” do mundano, revela-se ao sujeito uma potência que o
ultrapassa, mas que necessita justamente desse “disfarce” para se manifestar. Daí
que nos versos seguintes o sujeito exprima o desconcerto que ela lhe causa (‘já nem
sei se”), marcado pela hesitação entre duas atitudes antitéticas (amar ou crivar de
pragas) - hesitação essa que se intensifica pela presença de rima em eco entre os
termos que marcam essa oposição. Daí, igualmente, que o sujeito sinta-se
dilacerado não só pela incongruência do ser que vislumbra, mas também pelo
desejo que esse mesmo ser nele desperta.
Com vistas nisso, passa a compor o poema e o canto, por conseqüência
um sentido mais profundo que o de metáfora para o despertar do desejo e a
descoberta do amor (paixão), observada por Palma-Ferreira
145
e retomada por Maria
de Fátima Marinho
146
, sem, contudo, descartá-la. Nesse tempo, que é o tempo da
juventude, o feminino fulgura ao sujeito como porta de acesso a uma esfera outra da
existência. Concentra esse aspecto o terceiro epíteto utilizado pelo sujeito para
referir-se à figura mitológica: “verde confusão” (v. 14). Evocada também na imagem
do ornamento de ramos que coroa a divindade (v. 10), a cor verde relaciona-se ao
Segredo, simbolizando “um conhecimento profundo, oculto, das coisas e do
destino”
147
. Sugere também essa ligação da figura representada com o âmbito do
Mistério o fato de os ramos que lhe servem de ornamento serem, na cultura latina,
provenientes da romãzeira, segundo informa Junito de Souza Brandão
148
. Tendo em
vista que, conforme o estudioso, o ramo corresponde a um símbolo da fecundidade,
utilizado por mulheres que haviam contraído matrimônio, a imagem, somada à
epígrafe que se apresenta na abertura do canto – o verso “Tutti li miei pensier parlan
144
Idem, p. 739.
145
PALMA-FERREIRA, João, 1974, p. 107.
146
MARINHO, 1989, p. 196.
147
CHEVALIER; GHEERBRANT, 2006, p. 941.
148
BRANDÃO, 2004, p. 304.
60
d’Amore”, de Dante - anteciparia a resolução do sujeito frente ao impasse: a
tentativa de penetração na zona do mistério através da hierogamia, da união com o
ser que permite entrevê-la.
Se, como se observou até o momento, as bases do poema residem em uma
atualização problematizadora da figura de Perséfone, de que maneira ele poderia
estar relacionado, então, ao mito de Orfeu e Eurídice? A primeira estrofe do poema,
propositadamente não analisada até aqui, fornece os subsídios para fundamentar a
hipótese proposta. Correspondendo ao momento mais privilegiado quanto à
utilização de recursos fônicos ao longo de todo o poema, é também que se
observa a referência, apontada por Maria Helena da Rocha Pereira
149
, ao mito de
Orfeu e Eurídice. Nos dois versos iniciais, a imagem de uma “turva serpente” a
perseguir “os puros calcanhares das Musas” alude à cena com que a narração do
drama dos amantes é iniciada nas Geórgicas
150
. Essa ressonância permitiria supor
uma espécie de sobreposição das histórias, não desconhecida pela própria cultura
greco-latina
151
. Assumindo, de maneira velada, a posição de aspecto central desse
poema, Eurídice corresponderá, doravante, ao elemento feminino figurado nas
peças que têm como cerne a temática amorosa. Nesse sentido, o caráter
contraditório atribuído explicitamente à figura de Perséfone será, então, transposto à
figura de Eurídice nas representações que receberá ao longo da obra e que podem
ser sintetizadas de duas formas, basicamente: como presença e como ausência.
São, portanto, dois os momentos em que se divide a aventura de Orfeu. No primeiro,
figura-se o encontro com Eurídice e a tomada de consciência de sua participação no
Mistério. No segundo, toma forma a perda da amada e a necessidade de tentar
recuperá-la por meio de uma viagem a um mundo subterrâneo particular. À
semelhança do que ocorre em “À primavera”, parece, contudo, operar nessas duas
etapas uma tensão entre aquilo que o sujeito constata e a presença paralela de seu
reverso, a indicar a transformação sempre eminente, no universo representado, de
uma coisa em seu contrário.
149
PEREIRA, 1997b, p. 235.
150
VIRGÍLIO. Geórgicas. Eneida. São Paulo: W. M. Jackson Inc., 1970. p. 90-100. O mito encontra-
se desenvolvido no final do Canto IV.
151
Segundo Pierre Brunel, o paralelo é estabelecido nas Metamorfoses, de Ovídio. É o próprio Orfeu
que, a fim de convencer Hades e Perséfone a permitirem o regresso de Eurídice, marca as
semelhanças de sua história com a deles.
61
3.2.1 A amada como talismã
Sempre se lhe afigurou que a mulher participa, muito mais do
que o homem, do que há de cósmico no humano; do que há de
humano no divino[...].
(David Mourão-Ferreira, Jogo de espelhos)
Em face da organização macrotextual do livro, a primeira etapa da aventura
de Orfeu estende-se, basicamente, aos dois primeiros cantos. Nesse sentido, ainda
que os poemas de temática amorosa apresentem algumas diferenças em sua
concreção em cada uma dessas partes, interessa para a leitura aqui pretendida o
fato de que apontam, o mais das vezes, para uma mesma postura de consagração
da amada, indicada pelos constantes elogios feitos ao corpo e pela figuração do
consórcio amoroso. Dois poemas, pertencentes, cada qual, a um dos cantos
mencionados, tornam-se exemplares desses dois modos de representar a referida
apoteose: “Orquestra, flor e corpo” e “Inscrição estival”. Pelas similaridades que
apresentam em termos de organização formal e de unidade temática, ambos
poderiam, inclusive, ser considerados como dois momentos de um mesmo poema.
Em “orquestra, flor e corpo”, opera-se uma espécie de louvação do corpo,
fundada na constatação de que nele se faz presente uma potência primigênia, capaz
de dar forma ao cosmos:
Orquestra, flor e corpo:
Doravante direi
Como do corpo a música se extrai,
Como sem corpo a flor não tem perfume,
Como de corpo a corpo o som se repercute.
Orquestra, sim: orquestra. E flor. E noite.
Doravante dizendo orquídea negra
É logo o violoncelo nomeado;
E logo, logo, os instrumentos de arco
Arremessando vão a flecha ao alvo;
E é logo o alvo peito!
E é logo amor,
E é logo a noite
Murmurando “Até logo!” à outra noite...
De corpo a corpo a noite se transmite.
Orquestra, sim: orquestra. E flor. E vaga.
E a noite é sempre o corpo anoitecido,
E o corpo é sempre a noite que se aguarda.
De corpo a corpo o som se repercute,
de vale em vale,
de monte em monte,
62
de címbalo, de cítara, et coetera,
ao tímpano sensível que o recebe.
Sem concha do ouvido,
o mar não tem rumor.
Sem asa do nariz,
não voa a maresia.
E o mundo só é mundo enquanto houver o corpo,
de música e de flor universal medida. (p. 94)
No poema, estabelece-se uma espessa rede de correspondências nas quais
o corpo assume a função de catalisador. Na primeira estrofe, a identificação se
entre os três elementos referidos pelo título. Ela se estabelece, primeiramente,
através da presença, nos três vocábulos, da combinação dos fonemas /o/ e /r/;
sendo depois sugerida por meio da colocação dos termos música”, “flor” e “corpo”
em posições equivalentes no respeitante à cesura dos versos 3, 4 e 5.
Em outros momentos do texto, serão também inseridos nessa malha outros
dois elementos: a noite e a vaga. A similitude entre noite e corpo será indiciada, na
quarta estrofe, por meio do quiasma, que, nesse caso, parece funcionar como um
recurso de aproximação e não de oposição, como é comumente tratado
152
. Quanto à
assimilação da imagem da vaga à do corpo, essa se estabelece por meio de
metáforas em que o termo figurado, que corresponde a uma sinédoque do corpo,
funciona como adjunto adnominal do figurante, que concerne a uma imagem ligada
de algum modo à paisagem marinha.
Em todos os casos, os elementos não são referidos como algo existente em si
mesmo, mas como potencialidades geradas a partir do corpo. Dessa maneira,
caberia observar as conotações simbólicas geralmente relacionadas a eles, para,
assim, depreender o significado atribuído ao corpo. Em relação à sica, Chevalier
e Gheerbrant afirmam que seu simbolismo está geralmente relacionado à idéia de
harmonia. Dos pitagóricos à tradição cristã, o recurso à música, com seus timbres,
suas tonalidades, seus ritmos, seus instrumentos diversos, é um dos meios de se
associar à plenitude da vida cósmica”
153
. Em vista disso, o concerto realizado pela
orquestra do corpo indiciará sua perfeição. A “flor”, ao ser referida de par com a
“orquestra” parece agregar à idéia de perfeição o simbolismo da elevação. Apontaria
para esse sentido possível o simbolismo do elemento que dela provém, o perfume,
152
Cf. LAUSBERG, Heinrich. Elementos de retórica literária. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2004.
153
CHEVALIER; GHEERBRANT, 2006, p. 627.
63
uma vez que, correspondendo à “exalação de substâncias incorruptíveis”
154
, pode
ser relacionado à esfera do espiritual. Símbolo ambivalente, a imagem da noite
parece assumir no poema uma significação positiva, tendo-se em vista os sentidos
que conotam os outros elementos aos quais se agrega. Ela estaria sugerindo
tanto a idéia indistinção primordial quanto a idéia de tempo das gestações. À
imagem vaga, finalmente, é possível estender os sentidos conotados por “orquestra”
e “flor”, que, no poema, é considerada enquanto elemento gerador da maresia e
do rumor, que se tornam homólogos do perfume e da música.
Agregando todos esse sentidos, o corpo torna-se, assim, manifestação do
absoluto. Por meio de uma materialidade que comporta o imaterial, o corpo, então,
pode gerar sensações que o transcendem.
Parece também relevante observar que, algumas vezes, essa capacidade
geradora não provém de um único corpo, mas do contato entre os corpos (“de corpo
a corpo”). Isso se torna patente também no momento em que a imagem da noite
comparece no poema. Assimilada às imagens da orquestra e da flor, estabelece
uma espécie de “transfiguração” sobre elas, fazendo irromper no texto duas outras
que acabam por sugerir os componentes do par amoroso (“orquídea negra”,
“instrumento de arco”), fazendo-as, por fim culminar novamente em si mesmas,
enquanto momento de plenitude em que todas as distinções são abolidas.
Dessa maneira, pode-se dizer que“Orquestra, flor e corpo” antecipa o tipo de
conotação que o consórcio amoroso irá atingir em “Inscrição estival”:
ó grande plenitude!
E a tudo,
a tudo alheio,
saboreio.
Absorto
sorvo
este cacho de curvas
tão maduras...
Este cacho de curvas que é teu corpo! (p. 108)
No poema, o consórcio entre os amantes é figurado a partir de uma metáfora
de caráter trófico, indicada pela referência ao corpo da mulher como “cacho de
154
CHEVALIER; GHEERBRANT, 2006, p. 709.
64
curvas” e pelos verbos “saborear” e “sorver”. A “grande plenitude”, referida no
primeiro verso, remeteria ao estado de êxtase em que se encontra o sujeito -
manifestado pelo desligamento da realidade exterior a ele, como indiciam a
expressão “a tudo alheio” e o adjetivo “Absorto” -, o qual decorre da identidade com
a amada, obtida por meio da absorção da “substância” de que ela é composta.
Se pensada a partir da modulação temática, a tessitura sonora pode ser
considerada também como um elemento que converge para esse sentido. Isso
porque o ritmo sincopado, resultante da não-correspondência entre pausa métrica e
pausa semântica, parece estar diretamente relacionado à sensação orgástica
proveniente da fusão com o elemento feminino.
Essa sensação de plenitude gerada pelo consórcio com Eurídice não estará,
porém, livre do acidente que caracteriza tudo o que pertence à esfera do material, do
humano. Apontará para isso de modo exemplar o poema “Canção primaveril”:
Anda no ar a excitação
de seios súbito exibidos
à torva luz de um alçapão,
por onde os corpos rolarão,
mordidos!
Ou é um deus, ou foi a Morte
quem nos vestiu este torpor;
e a Primavera é um chicote,
abrindo as veias e o decote
ao meu amor!
Esqueço que os dedos têm ossos:
é só de sangue esta carícia;
apenas nervos os pescoços...
mas nos teus olhos, nos meus olhos,
a luz da morte brilha. (p. 93)
No poema, a intensidade da experiência amorosa é sugerida pelo acúmulo de
expressões que conotam certa agressividade, tais como ”corpos [...] / mordidos”,
“chicote”, remetendo assim, a um desejo de supressão da descontinuidade do ser. O
limiar dessa experiência parece ser representado na estrofe final do poema, em que
figuram elementos que sugerem o alcance da própria substância do ser, tais como
“sangue” e “nervos”. Contudo, a presença da conjunção “mas”, no penúltimo verso,
converte a união física não em uma experiência de plenitude, homóloga à que fica
sugerida nos poemas vistos anteriormente, e sim de inquietação, pela consciência
da finitude iminente.
65
3.2.2 Presença da ausente e catábase à memória
Desço aos infernos, a descer em mim.
(Miguel Torga, “Descida aos infernos”)
Na segunda etapa da aventura de Orfeu, que se realiza nos Cantos III e IV, a
ausência da amada, assim como no mito de Orfeu e Eurídice, torna-se elemento que
adquire estatuto de presença, na medida em que esta permanece, como uma
fantasmagoria. Aponta para isso o poema “Agonia”, presente no Canto II:
“Recordas de repente a praia onde morreu
a que nunca morreu. Estremeces. A teu lado
quem foi que se deitou? Que luz se entreabriu?
E zumbem, na janela, as asas de um moscardo.
Mas vais à beira-mar, no comboio do vento,
sorvendo a solidão das dunas amarelas.
Onde viste esse quadro? O Museu do Segredo
vai ser inaugurado, além, entre a floresta.
A festa recomeça, à noite, na varanda:
festeja-se talvez uma convalescença.
A que nunca morreu vem vestida de branco
e traz, no diadema, as tuas confidências.
Acordas, a suar. Injectaram-te soro.
E sobe-te à garganta o mar da juventude:
mas o mar abstracto, incolor, inodoro,
que dá náuseas de tão quimicamente puro.
Que interesse tem o mar, se não trouxer ciúme?
Chegaste a desejar que ela morresse ali.
Estremeces outra vez. Recobre-se de espuma
a que nunca morreu por ter depois morrido.
O moscardo. O Museu. O camboio do vento.
A que nunca morreu. A penumbra que avança.
Festeja-se, ao luar, uma convalescença...
E vestida de branco! É noite na varanda.” (p. 125-126)
Neste poema, perpassado por uma atmosfera que se encontra entre o sono e
a vigília, a amada, referida pela expressão “a que nunca morreu”, assume aí a feição
de presença fantasmática. Indicada pelo verso 20 (“a que nunca morreu por ter
depois morrido”), a nova condição em que se apresenta a figura é também sugerida
66
pela cor de sua indumentária. Isso porque, segundo Chevalier e Gheerbrant
155
, o
branco, ao corresponder a uma cor de passagem, simbolizará a entrada no invisível.
Essa presença, ainda que transborde de potencialidades pertencentes à esfera do
indiviso, não parece, contudo, trazer ao sujeito nenhuma sensação de plenitude. A
pureza de que se torna constituída, metaforizada pela expressão “mar abstracto”, faz
dela elemento impossível de ser novamente materializado no plano em que se
encontra o sujeito, preconizando, assim, a constatação que irá fazer quando da
descida ao seu próprio Mundo Inferior: a memória.
Essa viagem se representada pelo poema “Ladainha horizontal”,
pertencente ao canto IV do livro. O poema figura como uma espécie de anamnese,
em que os momentos retidos pela memória são figurados na imagem da cama em
suas diferentes funções ao longo da existência. No “mar da memória”, essas camas
tornam-se “jangadas desmanteladas”, o que permite depreender uma visão negativa
do sujeito em relação às experiências figuradas por meio dessas imagens. Em meio
a essas “jangadas desmanteladas” que desvanecem nas águas da Memória, um
único leito que se mantém em sua solidez e inteireza: o leito do amor
E o amor? Tálamo, templo
conjugação conjugal...
O amor: tálamo, templo
- ilha num mar tropical.
Mas ao redor, insistentes,
bramam as ondas do mar,
do mar da memória ardente,
eternamente a bramar... (p. 137-138)
No fragmento, o amor, figurado pela assimilação de duas imagens,
aproximadas inclusive pela aliteração da consoante /t/, corresponde ao único
elemento de valor positivo apresentado no poema, que se torna uma espécie de
eixo do mundo, lugar de onde emana toda a força do Ser. Esse valor simbólico é
ainda reforçado pela referência à imagem da ilha, que simboliza igualmente um
centro primordial. Figurando no texto pela referência direta ao sentimento e não pelo
ser que o gera, o amor não se apresenta aí ligado ao corpo feminino, isto é, à
esfera do material, como nos poemas dos dois primeiros cantos do livro.
Fixado definitivamente no mar da Memória, não pode mais, como outrora, se
materializar no espaço exterior, da realidade representada. Isso talvez justifique a
155
CHEVALIER; GHEERBRANT, 2006, p. 141-142
67
visão pessimista que esse espaço paulatinamente irá adquirindo ao longo dos
cantos, e que culmina com o desejo de suspensão total da existência em “Canto
secular”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tendo em vista a presença constante de elementos da tradição greco-latina
na poesia de David Mourão-Ferreira, o presente trabalhou buscou apontar em que
medida o mito de Orfeu compareceria em Os quatro cantos do tempo. Realizado
um percurso que tornou possível pensar de que maneira os dois principais
elementos que caracterizam o mito a magia do canto e a busca por Eurídice -
poderiam ser retomados a partir dos preceitos estético-culturais da rica ocidental,
observa-se que a atualização dos elementos comportará a presença dos princípios
inconciliáveis que passam a caracterizar a poesia a partir do Romantismo: a
analogia e a ironia.
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