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REPRESENTAÇÕES DA MULHER EM TEXTOS DE LIVROS DIDÁTICOS
DE PORTUGUÊS DO BRASIL PARA ESTRANGEILROS
ANA MARIA MASCARENHAS GOMES LEITE DE CARVALHO
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal
Fluminense
Área de concentração: Estudos da Linguagem
Subárea: Lingüística Aplicada ao Ensino/ Aprendizagem
de Língua Estrangeira
Linha de Pesquisa: Lingüística e Ensino de Línguas
Orientadora: Profª Drª Norimar Júdice
NITERÓI
2008
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BANCA EXAMINADORA
_______________________________________________________________
Profª Drª Aparecida Regina Borges Sellan
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Profª Drª Lygia Maria Gonçalves Trouche
Universidade Federal Fluminense
Profª Drª Norimar Júdice Orientadora
Universidade Federal Fluminense
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RESUMO
Este estudo enfoca as representações da mulher em textos de três livros
didáticos de Português para Estrangeiros editados no Brasil nos anos 50, 80 e
90. Considerando o contexto político e social dessas décadas e recorrendo à
Teoria das Representações Sociais, pesquisamos em textos verbais e não
verbais elaborados ou selecionados pelas autoras dos materiais em foco como
a mulher brasileira é configurada pela palavra e pela imagem. Buscando a
ideologia de gênero subjacente a essa construção, depreendemos estereótipos
nas representações da mulher, apresentada preferencialmente nos papéis
sociais de esposa e mãe. Nos textos verbais verificou-se um progressivo
desprendimento do estereótipo de esposa/mãe circunscrita ao espaço da casa
rumo à representação da mulher em contextos de trabalho no espaço da rua.
Nos textos não-verbais, principalmente nos desenhos ilustrativos, observou-se
uma conservação maior dos estereótipos encontrados.
Palavras-chave: Português para Estrangeiros; Materiais Didáticos de Português
para Estrangeiros; Representações da Mulher.
RÉSUMÉ
Cette étude met en relief les représentations de la femme dans des textes de
trois livres didactiques de Portugais pour Étrangers parus au Brésil dans les
années 50, 80 et 90. Prenant en compte le contexte politique et social de ces
cennies et recourant à la Théorie des Représentations Sociales, nous avons
recherché dans des textes verbaux et non verbaux preparés ou choisis par les
auteurs du corpus comment la femme brésilienne est envisagée soit par la
parole, soit par limage. Cherchant l´idéologie du genre à la base de cette
construction, il a été perçu des stéréotypes dans les représentations de la
femme, présentée de préférence dans les rôles sociaux d´épouse et de mère.
Dans les textes verbaux il a été verifié un détachement progressif du stéréotype
épouse/mère limi au foyer vers une représentation de la femme dans le monde
du travail. Dans les textes non verbaux, surtout dans les illustrations, il a été
observé une plus grande conservation des stéréotypes trouvés.
Mots clés: Portugais pour Étrangers ; Livres didactiques de Portugais pour
Étrangers ; Représentations de la femme
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO 1
2. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS 6
2.1.REPRESENTAÇÕES, ESTEREÓTIPOS E IDEOLOGIA 6
2.1.1. Representações 6
2.1.2. Estereótipos 10
2.1.3. Ideologia 13
2.2.MATERIAIS DIDÁTICOS DE LÍNGUA ESTRANGEIRA E
REPRESENTAÇÕES DA CULTURA-ALVO 16
2.3. TEXTO: OS COMPONENTES VERBAL E NÃO-VERBAL 19
3. MATERIAL E MÉTODOS 29
4. CONTEXTUALIZANDO 32
4.1. SÉCULO XX: NOVAS PERSPECTIVAS PARA AS MULHERES 32
4.2. O BRASIL NOS ANOS 50: FLAGRANTES 34
4.3. O BRASIL NOS ANOS 80: FLAGRANTES 38
4.4. O BRASIL NOS ANOS 90: FLAGRANTES 44
5. ANÁLISE E RESULTADOS 50
5.1.REPRESENTAÇÕES DA MULHER NA OBRA PORTUGUÊS PARA
ESTRANGEIROS 50
5.2. REPRESENTAÇÕES DA MULHER NA OBRA TUDO BEM 56
5.3. REPRESENTAÇÕES DA MULHER NA OBRA BEM-VINDO! A 72
LÍNGUA PORTUGUESA NO MUNDO DA COMUNICAÇÃO
5.3.1.Textos não-verbais 73
5.3.2.Textos verbais 80
6.CONCLUSÕES 95
7. REFERÊNCIAS 102
8. ANEXOS 107
1
1.INTRODUÇÃO
Como professora em cursos básicos de Português para Estrangeiros da
Universidade Federal Fluminense, costumo pedir aos alunos recém-chegados ao
país que escrevam, em sua própria língua, sobre as imagens que têm do Brasil.
Tal procedimento tem por finalidade observar as representações de nosso país e
de nossa gente predominantes entre esses estudantes das mais diversas
nacionalidades.
Como esses estrangeiros, no momento em que respondem a essa questão
do questionário de inscrição, não foram iniciados ainda no estudo sistematizado
da cultura e da língua do Brasil e grande parte deles está no país pela primeira
vez, em geral essas representações
1
foram por eles construídas a partir de textos
verbais e não-verbais a que tiveram acesso em diferentes línguas, linguagens e
suportes e possivelmente também com base em relatos pessoais. As
informações recebidas fazem-nos categorizar, em sua maioria, o Brasil como o
país do futebol, do carnaval, e também de mulheres bonitas e sempre
disponíveis. Para esses alunos, a representação da mulher brasileira se reveste,
por exemplo, de algumas influências da cultura carnavalesca, constituindo uma
imagem reduzida e empobrecedora.
Também em minha prática docente, entrei em contato com publicações
sobre o nosso país destinadas a darem “dicas” a visitantes estrangeiros e, dentre
elas, deparei-me com uma publicação escrita por uma americana e ilustrada por
um brasileiro, How to be a Carioca, que pretende ser um guia alternativo para
turistas no Rio. Observei com atenção, nessa obra, o material iconográfico feito
por um nativo, e verifiquei, em todas as ilustrações em que aparecem figuras
femininas, que essas estão quase sempre vestidas com sumários biquínis,
pequenos tops ou inteiramente nuas na cama de alguém. Tal fato pode ser
entendido como uma representação redutora do elemento feminino, por
componente de seu próprio grupo nacional.
1
Segundo Jodelet ( 2001, p. 17) ) as representações circulam nos discursos, trazidas pelas palavras e
veiculadas em mensagens e imagens midiáticas.
2
Esse estereótipo já está tão inserido no imaginário coletivo do brasileiro
que o ilustrador o apresenta como característica positiva em seus desenhos, sem
se preocupar em contribuir para o fortalecimento do estereótipo que define
internacionalmente a mulher brasileira.
Observei que o mesmo acontece nas representações encontradas na
mídia televisiva e nas propagandas, com o uso de farto material em que se reduz
toda a coletividade feminina à imagem de um grupo, que é caracterizado pelo
apelo sexual. Tal imagem é vendida para os veículos de comunicação
estrangeiros e disseminada nos mais diferentes países, o que reforça o
estereótipo da mulher brasileira já existente.
Em face do exposto, julguei que seria relevante pesquisar se os textos dos
livros didáticos de português língua estrangeira contribuem em alguma medida
para a construção dessas representações.
Com o advento das abordagens comunicativas, os livros didáticos de
português para estrangeiros que, anteriormente, eram simples portadores da
gramática da língua-alvo, passaram a trazer para a sala de aula situações
comunicativas, assumindo também funções de porta-vozes da cultura
2
do país.
Esses materiais operam como importantes veiculadores de imagens, que podem
ser tecidas em semioses diferentes, contribuindo para que o aprendiz construa
suas representações acerca da cultura-alvo.
Sabendo que as pesquisas na área de Português do Brasil como língua
estrangeira iniciaram-se recentemente em nosso país, considerei relevante
estudar materiais didáticos, já que sua função se inscreve em um âmbito que
extrapola o puro ensino das estruturas da língua, trabalhando, também, para que
o aprendiz estrangeiro possa estabelecer relações, no mínimo, entre duas
culturas: a de origem e a da língua-alvo .
Ao escolher meu tema, levei em conta que os textos de materiais didáticos
têm a capacidade de refletir o entorno em que se inscrevem em seu tempo, ou
2
Neste estudo, cultura é entendida, com base em Geertz, (1989),como estrutura (transmitida historicamente)
de significações encarnadas em símbolos, sistema de idéias herdadas e expressas sob forma simbólica , por
intermédio das quais os seres humanos comunicam , perpetuam e ampliam seu conhecimento concernente às
atitudes relativas à vida.
3
seja, o contexto social a eles contemporâneo. Nos materiais de Português do
Brasil para estrangeiros, portanto, estão representados, de forma estereotipada
ou não, aspectos de nosso contexto social - de nossa maneira de ser, de viver ou
de ver o mundo em determinado período.
Não só como professora de Português para Estrangeiros, mas também
como mulher nascida na segunda metade do século XX, período em que o
apagamento histórico da mulher e sua subordinação à figura masculina sofreram
importantes alterações em nossa sociedade, pareceume relevante estudar a
configuração, estereotipada ou não, do elemento feminino nos textos de materiais
com que foi e é ensinada a língua e a cultura do país a estrangeiros.
Testemunhei, ao longo de minha vida, a ampliação, lenta porém
progressiva, do espaço e da visibilidade da mulher na sociedade brasileira. Como
exemplo, cito a inserção da mulher em áreas de atividades e de trabalho
3
antes
consideradas exclusivamente masculinas, e a disseminação da presença
feminina em muitos grupos ocupacionais.
Julguei importante observar se as transformações ocorridas a partir da
primeira metade do século XX, e aceleradas com o início dos processos de
regulamentação das leis trabalhistas e inclusão do trabalho feminino em
diferentes setores, com as conseqüências advindas dos movimentos sociais
ocorridos nos anos 60, estão representadas, de alguma forma, nos textos verbais
e não-verbais presentes em materiais didáticos de Português para Estrangeiros.
Se tal material tem se apresentado eloqüente o suficiente para que os alunos
estrangeiros possam traçar um perfil não estereotipado da mulher brasileira, de
sua presença em diversas esferas de atividades e de sua contribuição para o
desenvolvimento do país.
Assim sendo, decidi pesquisar como se deu a representação da mulher em
textos verbais e não-verbais de três materiais didáticos de Português Língua
3
Essas mudanças significativas, concernentes à inserção da mulher no trabalho remunerado, foram
observadas a partir de 1980, quando se começou a falar em feminização do mercado de trabalho
(IBGE,1982).
4
Estrangeira, editados no Brasil todos de autoria feminina. O primeiro, Português
para Estrangeiros, de Mercedes Marchant, publicado em Porto Alegre, na década
de 50 (antes do incremento do movimento feminista da década de 60); o
segundo, Tudo Bem-1, de Raquel Ramalhete, editado no Rio de Janeiro, nos
anos 80 (quando a presença da mulher em esferas de atividades anteriormente
masculinas já se fazia visível); o terceiro, Bem-Vindo! A língua portuguesa no
mundo da comunicação, de Ponce, Burim e Florissi, publicado em São Paulo, em
1999 (quando essa inserção já estava em processo de consolidação).
Optei por uma abordagem qualitativa, bastante comum nos estudos de
gênero, que julguei sintonizada com a proposta da investigação.
Para o desenvolvimento desta pesquisa, recorri à Teoria das Representações
Sociais, tomando por base textos de Jodelet (1984, 2001), entendendo
representação como uma forma de conhecimento elaborada e compartilhada
socialmente, que contribui para a construção de uma realidade comum a um
conjunto social. Recorri também a estudos sobre ideologia, como o de van Dijk,
(2002, 2005), sobre estereótipos, como o de Zarate (1998), sobre materiais
didáticos, como os de Tomlinson (2005), Zarate (1995), Júdice (2004) e Trouche
(2005), e ainda sobre textos verbais, como os de Bronckart (1999) e Koch (2003)
e não-verbais, como os de Kress (1996) e Júdice (2005).
Nesta pesquisa, o objetivo geral foi verificar as representações da mulher
brasileira veiculadas em materiais didáticos para o ensino de português para
estrangeiros publicados no Brasil nas décadas de 50, 80 e 90.
Os objetivos específicos foram:
a) Pesquisar nos textos verbais, autênticos e não autênticos, desses
materiais a caracterização, estereotipada ou não, da mulher brasileira: os papéis
sociais, espaços e esferas de atividades que lhe foram preferencialmente
atribuídos.
b) Pesquisar nos textos não-verbais desses materiais (desenhos,
fotografias, quadrinhos) como se configura essa representação.
Neste texto, a pesquisa desenvolvida será exposta da seguinte forma:
5
No capítulo Pressupostos Teóricos, serão enfocadas as noções de
representações, estereótipos e ideologia, necessárias ao desenvolvimento da
pesquisa; serão feitas considerações sobre materiais didáticos como veiculadores
de representações sociais e será ainda contemplada a questão da tessitura do
texto, com recurso a componentes verbais e não-verbais.
No capítulo Material e Métodos, será exposta a dinâmica utilizada para o
desenvolvimento da pesquisa.
No capítulo Contextualizando, será abordada, de forma sucinta, a
alteração da perspectiva sobre a condição feminina que teve lugar no século XX.
Em seguida, serão apresentados flagrantes do contexto político e social do Brasil
nas décadas de 50,80 e 90, nas quais foram elaborados os materiais didáticos
analisados neste estudo.
No capítulo Análise dos Textos dos Materiais Didáticos, será apresentada
a análise dos textos verbais e não-verbais dos três materiais em foco, fazendo
remissões ao contexto em que foram elaborados.
Após as Conclusões e Referências, foram incluídos Anexos, com o
objetivo de oferecer um suporte para o leitor melhor acompanhar a análise de
alguns aspectos dos textos verbais e não-verbais dos materiais em foco.
6
2. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS
2.1. REPRESENTAÇÕES, ESTEREÓTIPOS E IDEOLOGIAS
Neste capítulo, enfocaremos as noções de representações, estereótipos e
ideologia, fundamentais para o desenvolvimento de nossa pesquisa.
2.1.1. Representações
Foram as representações coletivas de Durkheim, na área das Ciências
Sociais, que serviram como conceito base para que Moscovici (1961) elaborasse
uma teoria no campo de estudos da Psicologia Social, acerca da presença ativa
das representações na vida social e sua influência na formação do conhecimento
do cotidiano.
Encontradas nos discursos, refletidas nas palavras ou materializadas em
atitudes e posturas, as representações tornaram-se, posteriormente, objeto de
pesquisa de outros ramos das Ciências Humanas, já que sua importância não se
mostrava restrita apenas ao campo dos Estudos Sociais.
Embora designadas como um saber prático, orientado para agir e se
relacionar com o mundo, as representações são fenômenos complexos, formas
de conhecer oriundas das sociedades modernas, que precisam processar em um
curto espaço de tempo um grande volume de informações, e por meio das quais
grupos sociais diversos se expressam de maneira também diversa face ao
mesmo objeto. Essa pluralidade de expressões, nas quais é possível identificar
elementos cognitivos, informativos, ideológicos, opiniões, crenças, valores etc,
circula na vida social e organiza-se como um conhecimento do senso comum,
produto da percepção dos indivíduos em seu esforço de compreender e atuar em
uma realidade em constante mutação.
Por ser a representação social uma forma de conhecimento, no processo
de representar encontram-se necessariamente relacionados um sujeito
investigativo e um objeto a ser investigado. Mas, esse fenômeno cognitivo
7
apresenta a peculiaridade de não desvincular o sujeito de seu caráter de agente
social e cultural, pois sendo um conhecimento prático é direcionado para produzir
efeitos sociais. A representação é simultaneamente produto e processo de uma
construção mental. Enquanto produto, organiza-se como um discurso sobre a
realidade; como processo, traduz o movimento feito pelo sujeito para apropriar-se
de um objeto novo, desconhecido, que se encontra fora da sua grade de
conceituação.
Zarate (1995, p.19) define a representação como “operação de
classificação, pertencente a um processo interpretativo”. Ao utilizar o termo
classificação, a autora refere-se, na verdade, a uma categorização,
freqüentemente utilizada pela mente humana na tentativa de simplificar o
processo cognitivo. Torna-se mais fácil o conhecimento de objetos e pessoas
quando os separamos em categorias. As categorias empregadas pelo sujeito ao
representar um objeto são retiradas de uma base cultural comum, e fazem com
que o social esteja presente nas representações. Por isso, a autora assegura que
as representações organizam as condutas e as comunicações sociais, e
“constituem um modo inteiramente à parte de conhecimento da realidade” (op.cit.;
p.29).
Para um melhor entendimento desse fenômeno cognitivo, particularmente
enfocado pela Psicologia Social, baseamo-nos em Jodelet (1984) para explicar os
processos envolvidos em sua formação. A representação depende de dois
processos essenciais que são a objetivação e a ancoragem. A objetivação se
desenvolve em várias fases: seleção, formação do esquema figurativo e
naturalização. Na fase de seleção, o sujeito escolhe os elementos que vai
representar; podendo, então, sofrer pressões e influências do meio social. Feita a
opção, inicia-se a descontextualização de elementos do objeto, ou seja,
enxugamento do excesso de informação, porque é impossível trabalhar com a
totalidade das informações recebidas. Os cortes efetuados se baseiam no
conhecimento prévio de mundo trazido pelo sujeito, e os recortes resultantes
desta operação são, então, alinhavados em um esquema (schema), que se torna
o núcleo figurativo da representação. Trata-se, segundo a autora, de um
8
arcabouço imagético, que reproduz de forma visível uma estrutura conceitual, ou
seja, cria-se uma relação de referência entre a figura e um determinado conceito.
O objeto, após sofrer essas alterações, deixa de ser uma novidade, é
categorizado e visto como algo natural. É a fase chamada de naturalização, que
encerra o processo de objetivação. Segundo as observações feitas por Jodelet, a
construção formal do conhecimento se realiza através do processo de
objetivação. A ancoragem completa esse mecanismo com a volta do
conhecimento adquirido ao espaço social, na medida em que passou a participar
do conjunto de categorias assimiladas pelo sujeito e se integrará à sua grade de
leitura de mundo. A interferência da base social também se faz presente na
utilidade dada àquela representação e a seu objeto (Jodelet, 1984).
A autora ressalta que o conhecimento adquirido se coloca a serviço dos
interesses ou necessidades do coletivo. A finalidade prática aliada ao fato de a
representação ser uma reconstrução do objeto feita pelo sujeito ocasiona uma
defasagem no referente. Jodelet (2001, p.36) explica que essa alteração pode ser
igualmente devida tanto a intervenções ocasionadas pela bagagem do sujeito
(valores, crenças, inclusão em grupos ou movimentos sociais, etc) como àquelas
especificadoras de valores e regras coletivas. As alterações produzem três tipos
de efeitos diferentes nos conteúdos representativos: distorções, suplementações
e subtrações.
Quando há distorções, todos os atributos do objeto representado estão
presentes, mas podem estar atenuados ou acentuados como, por exemplo, no
caso das mulheres quando representadas como uma categoria social dominada,
tomando-se como referência a categoria dominante dos homens. Os dominados
apresentam traços semelhantes aos dos dominantes, mas esses traços podem
ser registrados de duas formas, por meio de mecanismos de redução e
acentuação. Através do mecanismo de redução, as mesmas características estão
presentes, mas são mostradas de forma atenuada. Por exemplo: imagens de
homens e mulheres que participam de uma guerra. A mídia relata que as
mulheres se comportam tão bravamente quanto os homens, mas sua
participação consiste em cuidar dos doentes, não atuando na linha de frente dos
9
combates. Através do mecanismo de acentuação, por exemplo, ao se apresentar
a imagem de mulheres investidas em cargos políticos com atributos morais
inversos àqueles destacados em imagens de homens que ocupam o mesmo
cargo.
Nas suplementações, o sujeito confere ao objeto atributos que não lhe
pertencem, produtos do seu interesse ou do seu imaginário. Por exemplo,
mulheres, com baixa auto-estima, podem projetar um atributo seu, considerado
socialmente desfavorável, em atrizes famosas ou modelos, como forma de
resgatar uma imagem positiva diante de si mesmas.
Já a subtração consiste em subtrair atributos pertencentes ao objeto.
Poderíamos utilizar como exemplo a representação da sexualidade de
adolescentes ou adultos deficientes mentais construída por seus pais. Por ser um
assunto cuja abordagem oferece possibilidades de constrangimento social,
haverá uma tendência por parte dos pais em representá-los como seres
assexuados.
Percebe-se que as representações são produtos práticos, que uma vez
formados “carregam uma leitura dinâmica de um espaço social” (Zarate,1995,
p.30). A adesão a um grupo social evidencia que os elementos do grupo
partilham as mesmas representações. Sendo assim, elas contribuem para
reforçar os vínculos sociais, participando “de um processo de definição de
identidade social” (op.cit.; p.30). Mas, as representações não se restringem
apenas ao conhecimento do espaço onde são construídas. Elas podem ser
aplicadas a comunidades exteriores ao grupo que as produziu, contribuindo para
classificar o estrangeiro de acordo com as referências internas desse grupo.
Incluem-se nesse caso os chamados estereótipos étnicos.
Neste estudo, consideraremos representação, com base em Jodelet (2001,
p. 8) como “forma de conhecimento socialmente elaborada e compartilhada, que
tem um objetivo prático e concorre para a construção de uma realidade comum a
um conjunto social”.
10
2.1. 2. Estereótipos
Segundo Houaiss (2001, p.1252), o registro histórico da palavra
estereótipo deu-se em 1836. No Novo Diccionario Critico e Etymologico da
Lingua Portugueza, de Francisco Solano Constancio, surge como um termo
técnico ligado às artes gráficas: uma chapa ou clichê utilizado em um processo
de reprodução chamado de estereotipia. A invenção da estereotipia permitiu a
utilização simultânea de várias placas, evitando o desgaste rápido dos caracteres
tipográficos. A imagem do padrão fixo, que se reproduzia por um gesto repetitivo,
fez o termo migrar das tipografias para a língua e para o domínio do pensamento.
Os estereótipos podem ser abordados a partir de diferentes perspectivas,
e várias teorias foram propostas para explicar a sua gênese. Algumas se apóiam
sobre uma perspectiva psicanalítica e outras sobre teorias de aprendizagem
social. Essas últimas são de cunho behaviorista e consideram que os
estereótipos são aprendidos durante a fase de socialização da criança, através
da família, da escola, da mídia etc.
Tajfel (1972) acredita que há uma associação entre os processos de
categorização e a gênese dos estereótipos. Esses processos intervêm
poderosamente nas ações dos grupos sociais, pois através deles inserimos
objetos, pessoas, acontecimentos e idéias em uma classe que nos é familiar e
agimos de acordo com essa tipificação. Podemos dizer que a categorização
possibilita que cada conjunto contenha uma quantidade máxima de informações,
facilitando a identificação de qualquer elemento relacionado com ela. Saber que
um indivíduo pertence à determinada categoria, permite induzir que ele possui as
características que são típicas da mesma.
Tajfel (1972) relaciona a categorização com a identidade e com o
mecanismo de comparação social. Ele entende que existe um tipo de atitude
social geral que tende a favorecer o que chama de in-group, ou grupo do “nós”
em relação ao out-group, ou grupo do “eles”, independente de qualquer conflito
de interesses ou hostilidades. O indivíduo afirmaria, então, a sua identidade
através da pertença a um desses grupos. Como sempre buscamos uma
11
identidade positiva, tendemos a valorizar o grupo no qual nos incluímos,
ocorrendo daí as comparações entre grupos e a possível desvalorização do
grupo dos outros.
O termo categorização designa atividades cognitivas diferentes. A
categorização pode ser “dedutiva” ou “indutiva”. Na primeira, os indivíduos são
reagrupados em uma categoria, tomando-se como base certas similaridades. Por
exemplo, um morador de rua, que se desloca carregando seus pertences pode,
pela dedução de um transeunte, ser inserido na categoria de catador de papel. A
segunda consiste em associar determinados conceitos a uma categoria particular.
É o que acontece em relação aos estereótipos.
Zarate (1998, p.19) entende os estereótipos como um caso particular de
representação. Trata-se de uma atividade de seleção e recorte de informações,
com a posterior construção de um modelo estável, contendo generalizações
acerca de grupos ou membros individuais. O estereótipo formado contém um
conhecimento superficial e simplificado, podendo-se dizer que o processo de
estereotipia simplifica, generaliza e esquematiza.
Para Amossy (1991, p.21), a transmissão dos estereótipos se dá através
da cultura. Ela é a base que nos fornece as concepções acerca de nós mesmos e
dos outros. Assim, interpretamos o mundo condicionados pelo que a nossa
cultura avalia como certo: a maneira de vestir, de comer, de se unir ao outro
sexo, por exemplo. Amossy (op.cit.;p.21) considera essas concepções como uma
aquisição de “segunda mão”, pois não são frutos de nossa própria percepção,
mas definições dadas pela tessitura cultural do grupo ao qual pertencemos, que
vai nos moldando para que possamos nos integrar a ele. Transmitimos os
estereótipos sem preocupação com a sua origem, aparecem sempre como algo
já dito ou já pensado por alguém antes de nós: uma repetição pejorativa, que não
tem autor definido.
Os estereótipos influenciam os processos de comunicação de diferentes
maneiras. Amossy (op.cit.;p.26) destaca o seu caráter de “imagem fixa, criada e
partilhada pelo mesmo grupo social para descrever o outro grupo, enfatizando
diferenças e defendendo uma identidade própria. O reforço da identidade e a
12
coesão social poderiam, então, ser avaliados como influências positivas dos
estereótipos. Nem sempre, porém, o reforço da identidade social se dá de forma
pacífica. Pode influenciar comportamentos hostis entre grupos e esses conflitos
resultam da criação da identidade e da afirmação da diferença. É possível
acompanhar a evolução de tais conflitos observando-se a evolução das imagens
que cada grupo constrói de si próprio e do outro.
Para analisar as funções dos estereótipos na comunicação entre grupos,
Doise (1983) distingue três tipos de representação: seletiva, justificativa e
antecipatória. A representação seletiva é um reflexo de inter-relações presentes
ou passadas entre os grupos. Por exemplo, os estereótipos criados pelos
brasileiros em relação aos portugueses continuam atuando a despeito das
relações políticas, econômicas e culturais entre os dois países. A representação
justificativa oferece melhores condições para ser observada. Por exemplo, povos
ou grupos dominadores sempre justificam sua postura criando uma imagem
negativa de seus dominados. É o caso dos Estados Unidos em relação ao povo
do Iraque. Na representação antecipatória, os estereótipos agem
antecipadamente no imaginário dos indivíduos, preparando a ação que
determinado grupo pretende empreender. Na Alemanha nazista, por exemplo, os
estereótipos que circulavam a respeito dos judeus serviram de preparação para
que o povo os julgasse como raça inferior e aceitassem o que veio a ocorrer
depois.
Zarate (1998) destaca o caráter negativo e redutor do estereótipo. É
fenômeno que despreza as diferenças e reduz as complexidades de uma
realidade a uma determinada imagem. Convém notar que essa imagem,
geralmente depreciativa, se cristaliza e adquire uma rigidez difícil de ser alterada,
mesmo que as pessoas disponham de um conhecimento posterior que negue o
seu conteúdo. Os estereótipos circulam como fórmulas feitas, geralmente
repetidas, sem preocupação com a sua veracidade.
Os estereótipos de gênero constituem um subtipo dos estereótipos sociais.
Geralmente estão relacionados ou aos papéis sociais de cada gênero dizendo
respeito às crenças associadas a funções e trabalhos típicos do homem e da
13
mulher, ou às características atribuídas a cada sexo. Trata-se, portanto, de
crenças sociais sobre o que o homem e a mulher devem fazer ou ser.
2.1.3. Ideologia
Chauí (1984) lembra que o termo ideologia foi criado pelo filósofo francês
Destutt de Tracy, em 1810, na obra Elements de idéologie. Surge como uma
ciência da gênese das idéias. O termo foi depois empregado por Augusto Comte
e passou a possuir dois significados: por um lado referia-se a uma atividade
científica que estudava a formação das idéias; por outro, ao conjunto de idéias de
uma época.
Marx (1996) retoma o termo e extrapola o estudo das idéias orientando o
foco de observação para as relações de produção e divisão de classes sociais,o
que confere à ideologia um novo enfoque: um sistema de idéias, pura invenção,
que domina o espírito de um homem ou de um grupo social. A ideologia passa a
ser concebida como um instrumento de dominação utilizado pela classe que
detém o poder, que é a intelectual. Para Marx, a ideologia age no sentido de
fazer com que as idéias dessa classe circulem e que os trabalhadores acabem se
apropriando dessas idéias e as tenham como suas, uma vez que esses
indivíduos são considerados como facilmente manipuláveis, pois não têm
condições de fazer uma representação consistente de sua própria realidade
concreta. Nessa concepção, as ideologias ocultariam as divisões sociais e
inverteriam a realidade, mostrando uma situação social falsa à consciência dos
homens.
Por ser uma noção complexa, a ideologia é entendida de forma diversa por
cada disciplina das Ciências Humanas. Esse conceito sofreu muitas influências
da carga semântica negativa advinda do pensamento marxista, mas diversos
pensadores fundamentaram seus conceitos nas teorias de Marx. Althusser, por
exemplo, em seu livro Aparelhos Ideológicos do Estado (1983), ratifica o fato de a
classe dominante executar mecanismos de perpetuação no poder, e políticas de
exploração. Admite que o aparelho de poder do Estado é conquistado e mantido,
14
e que esse poder se torna o objetivo das lutas de classe. Considera que para
manter o poder o Estado se vale de aparelhos repressores (governo,
administração, polícia, forças armadas, prisões, tribunais etc) e ajunta uma outra
instância de dominação: os aparelhos ideológicos do Estado, representados pela
família, escola, cultura, política, religião, que operam como difusores de
ideologias, com o objetivo de forçar a classe dominada a aceitar pacificamente a
exploração. Os aparelhos ideológicos não usam a violência, pois esta é uma
prerrogativa dos aparelhos de repressão. As ideologias utilizam a força da
persuasão. Para Althusser, as ideologias não correspondem à realidade, são
representações de uma relação imaginária dos indivíduos e suas reais condições
de existência. Não há uma correspondência com a realidade porque se
representa o que é imaginado, mas há uma alusão à realidade, na medida em
que existe uma base social real.
A reflexão sobre o fenômeno ideológico também se fez presente nos
estudos da linguagem, pois quando a reflexão se deslocou da langue para o
discurso, este deixa de ser visto apenas como uma forma de comunicação e se
transforma em um espaço efetivo de ação. Inserem-se no discurso as noções de
sujeito, de contexto histórico e social, e de ideologia. Passou-se a observar que a
força persuasiva se encontrava no discurso. Tanto o discurso quanto a ideologia
tornaram-se, então, dois conceitos nucleares, que influenciaram estudos em
várias áreas das Ciências Humanas.
Van Dijk (2003, p. 389) define ideologia como “arcabouço de
representações sociais compartilhadas por grupos sociais” e observa que as
ideologias chegam à sociedade através do discurso, e servem para caracterizar
grupos dentro de coletividades sociais de pessoas. Agem no sentido de moldar
as ações dos membros, ou seja, objetivam que a adesão às idéias defendidas
pelo grupo faça com que seus elementos atuem de forma semelhante,
uniformizando as respostas dadas a problemas sociais fundamentais. As
abordagens feitas por outros grupos podem ser aceitas ou rejeitadas, gerando
conflito entre eles. Constituem exemplos de questões que suscitam a formação
15
de grupos contra ou a favor: aborto, uso de células-tronco, discriminação racial,
aquecimento global, discriminação do trabalho feminino.
Para esse autor (2005, p.54; 2002, p.389), as ideologias podem ser vistas
tanto como sistemas de crenças sociais, já que são compartilhadas por grupos,
quanto como representações mentais. Se esse conhecimento socialmente
compartilhado é também uma forma de representação, então podemos deduzir
que todo o nosso conhecimento esteja marcado ideologicamente , pois, uma
estreita e ainda mal explicada relação entre conhecimento social e ideologia, e a
argüição dessa relação é fato recorrente nos trabalhos que se desenvolvem
modernamente sobre este tema. Van Dijk (2002, p.390) descarta a hipótese de
todo o conhecimento ser ideológico. Para ele, cada cultura tem uma base comum
de conhecimento compartilhado, que não pode ser rotulado de ideológico.
Enquanto o conhecimento se define classicamente como ”crença
verdadeira e justificada, ou seja, cientificamente provada (em oposição aos
conhecimentos que não têm respaldo científico), a ideologia não pode ser
definida por critérios de verdade ou falsidade e muito menos por aqueles que
norteiam a observação científica. O critério de validez ideológica não é a verdade,
mas a eficácia social. As ideologias devem atuar de forma a que seus seguidores
sempre acreditem nelas. A sua força social reside no seu poder de agregação.
As ideologias permeiam as relações de grupo, de identidade, de normas e
de valores coletivos e, muitas vezes, direcionam opiniões, sinalizando o que se
deve ou não fazer, o que se deve ou não aceitar, o que é certo e o que é errado,
o que é bom e o que é ruim. Podem influenciar as crenças individuais dos
membros do grupo, influenciando, assim, a base de seus discursos. Dessa forma,
uma noção macro ideologia grupal, relaciona-se com uma noção micro
discurso de cada indivíduo participante do grupo.
As formas discursivas só se preenchem de sentido quando vinculadas aos
interesses e forças que circulam no tabuleiro social. O discurso é uma atividade
que o homem realiza de forma intencional, portanto, falar, ler e escrever são
habilidades significativas.
16
Os materiais didáticos veiculam discursos que refletem as posições
ideológicas de seus autores. Constituem um espaço onde se revelam as
representações que esses indivíduos constroem de sua própria cultura e de
outras culturas, e que serão interpretadas por seus leitores. Lembra Zarate
(1995,p.111) que “a operação aparentemente simples de seleção de um
documento é em si mesma portadora de sentido”.
2.2. MATERIAIS DIDÁTICOS DE LÍNGUA ESTRANGEIRA E
REPRESENTAÇÕES DA CULTURA-ALVO
Oferecendo textos aos aprendizes estrangeiros, o livro didático de língua
estrangeira, configurado na ótica de seu autor, é representativo de determinado
espaço sócio-cultural e pode auxiliar os estudantes na construção de suas
próprias representações da cultura-alvo e na elaboração de seu próprio discurso.
Para criar um discurso em língua estrangeira, é preciso que o aluno seja
levado a compreender as regras sócio-culturais que legitimam o uso daquele
idioma. Tal fato requer que o livro didático seja o espaço em que transitem, além
de conteúdos lingüísticos, idéias e costumes e que os autores de materiais
didáticos de língua estrangeira apresentem ao aprendiz um determinado recorte
da realidade lingüística e cultural em foco, que pode interferir poderosamente na
construção das próprias representações do estudante acerca dessa realidade.
A escolha dos textos verbais e não-verbais por um autor nativo implica,
segundo Zarate (1995, p.13), um recorte feito em um “conjunto de valores, de
crenças de opiniões e de percepções próprias à sua cultura de origem.
Tanto os mecanismos de produção de um texto quanto os mecanismos de
compreensão assentam-se na interação entre o produtor e leitor. O produtor
oferece informações e conhecimentos selecionados sob determinada ótica para
serem partilhados, e o leitor, a partir dessas informações contextualmente dadas,
recorre a sua própria cultura, conhecimento de mundo, crenças e experiências de
vida para construir uma representação coerente do que lhe foi apresentado. É
nesse sistema de cooperação recíproca que se estabelece entre autor e leitor
17
que os livros didáticos desempenham a importante função de oferecer insumos
para que o aprendiz configure suas próprias representações da cultura-alvo.
reside o valor sociológico do material didático de língua estrangeira: oferecer para
o aluno determinado flagrantes da sociedade enfocada, a partir dos quais o
aprendiz poderá perceber, configuradas na perspectiva do autor, as
características que fazem aquele grupo social ser como é. Como o
processamento do que lhe é apresentado se dá através da comparação com as
particularidades de sua própria cultura, é fortalecendo os princípios de sua
identidade que ele constrói a identidade do Outro, através da representação que
dessa identidade constrói.
Destaca Trouche (2005, p.75) que: a percepção da cultura de um povo
evidencia-se, também, nas formas de criticar, de rir, de ironizar desse povo,
reflexos dos diversos discursos em constante movimento social”.
Para que essa percepção se revista de êxito, a escolha dos documentos
que, incorporados a um livro didático, materializarão, na sala de aula de língua
estrangeira, o quotidiano brasileiro para alunos de outras nacionalidades, deve
ser criteriosa. Tal atividade pode sofrer interferências de muitos fatores: a
representação estereotipada que o autor pode fazer do estrangeiro a quem
pretende ensinar; os interesses de mercado, pois os livros são feitos para serem
vendidos; os estereótipos da cultura-alvo e as ideologias que atravessam os
discursos do autor, e mais do que isso, a ideologia que perpassa sua prática.
Tudo isso vai direcionar o seu discurso, interferindo no que é mostrado e em
como é mostrado.
Júdice (2003, p.46) destaca as dificuldades encontradas pelos autores de
material didático voltado para o ensino da língua e da cultura do Brasil, quando
da seleção de textos que reflitam a “multifacetada realidade brasileira”. Essas
dificuldades não param por aí. Tentando mostrar que um autor de livro didático
não consegue conservar o seu produto imune aos interesses que se escondem
por trás de sua editoração, Zarate (op.cit.;p.45), coloca o seguinte
questionamento: “Um autor de um manual escolar garante a qualidade descritiva
daquilo que produz?” A pergunta evidencia os limites que se impõem à produção
18
do material didático, que precisa estar subordinado às leis de mercado: seu
conteúdo deve ter valor e ser vendável, porque necessita gerar lucros para a
editora que comprou os direitos de sua reprodução industrial. Cabe ao editor
sugerir alterações ao autor com o objetivo de adaptar o livro a certas exigências,
sempre com a finalidade de torná-lo atraente ao consumidor, porque livro que não
vende tem vida curta.
São muitos os profissionais envolvidos na confecção dessa ferramenta de
ensino: pessoal de ilustração, concepção gráfica, marketing, de distribuição e de
tipografia. Apesar das boas intenções pedagógicas do autor, o interesse
econômico da editora pode falar mais alto. Um outro grande problema está
relacionado ao custo devido aos direitos de reprodução de documentos
autênticos verbais ou não-verbais, o que faz com que muitos autores acabem
evitando a utilização do material de sua preferência. Mas, ao assumir a autoria do
livro publicado, o autor reconhece como seu o discurso nele veiculado.
O livro didático de língua estrangeira sofreu uma profunda modificação
com o advento das abordagens comunicativas e a conseqüente introdução de
documentos autênticos nesse material de ensino. Optou-se pela
contemporaneidade dos documentos escolhidos, o que limita, de certa forma, a
duração de vida do manual. É preciso escolher elementos informativos
pertinentes à atualidade, mas que, ao mesmo tempo, tenham uma certa
durabilidade. Tal fato gerou uma tendência a aproximar os livros didáticos dos
modelos jornalísticos, na medida em que a imprensa reflete a vida agitada da
sociedades onde se inscreve, oferecendo informação atualizada e rápida, textos
publicitários de incentivo ao consumo e uma estética ajustada às exigências das
massas.
O livro didático de língua estrangeira teve, então, sua estética alterada.
Ganhou mais colorido, mais vida, com a presença cada vez maior de desenhos
ilustrativos e fotografias, que, associados aos textos verbais, expressam aspectos
variados do país e do povo em foco e funcionam como testemunhos culturais
daquele espaço desconhecido ou parcialmente conhecido para o estudante
estrangeiro.
19
Para entender esse espaço desconhecido, ou parcialmente conhecido,
representado na ótica do autor do livro didático, e compreender melhor sua
dinâmica, o aprendiz estrangeiro necessita captar as categorias próprias da
cultura-alvo. Zarate (1995, p.37) enfatiza a importância do entendimento pelo
estrangeiro das representações que uma cultura oferece de si mesma: (...)
compreender uma realidade estrangeira é explicitar as classificações próprias de
cada grupo e identificar os princípios distintivos de um grupo em relação a outro.
Com o objetivo de auxiliar o aprendiz a construir suas próprias
representações da cultura-alvo, o material didático de língua estrangeira opera
com o essencial, condensando e hierarquizando, de acordo com a percepção de
seu autor e determinadas categorias culturais que ele compartilha com os demais
integrantes do grupo social a que pertence, aspectos de uma dada realidade.
O discurso do autor e suas representações da cultura-alvo podem ser
depreendidos tanto de materiais didáticos de língua estrangeira contemporâneos,
que geralmente declaram seguir uma abordagem mais comunicativa e associar o
ensino da língua à cultura, quanto de materiais didáticos de décadas passadas,
que se diziam destinados exclusivamente ou sobretudo ao ensino da língua.
O pesquisador e/ou o professor, analisando os textos verbais e não-
verbais, elaborados ou não pelo autor, que, entretecidos, compõem um material
didático de qualquer época, podem fazer a prospecção das representações da
cultura-alvo por ele veiculadas (inclusive de seus aspectos estereotipados) que,
oferecidas aos aprendizes estrangeiros, possivelmente, contribuem para a
construção de suas representações da cultura e da língua-alvo.
2.3. TEXTO: OS COMPONENTES VERBAL E NÃO-VERBAL
De acordo com Bronckart (1999, p.69), toda língua natural só pode ser
apreendida através de uma unidade de produção de linguagem, que é o texto. A
partir de Bakhtin (2003) a natureza funcional e dialógica da linguagem passou a
ser observada, adotando-se, então, o pressuposto de que a comunicação verbal
só é possível através de um gênero. Os gêneros se inserem nas diversas
20
situações da vida social e são criados de acordo com as necessidades da
sociedade que lhes deu origem.
Refletindo sobre gêneros textuais e ensino de língua estrangeira, o ideal
seria que os aprendizes de língua estrangeira entrassem em contato com textos
autênticos, verbais ou não-verbais, que lhes permitissem a apreensão do
mosaico cultural relativo à realidade articulada à língua-alvo.
Em relação aos textos verbais autênticos, que mesmo retirados de seu
contexto original não deixam de ser uma amostra da língua em uso, os tópicos
abordados, os espaços em que se situam ações e actantes, os grupos sociais
representados, as vozes neles registradas vão oferecendo ao leitor elementos
para criar e recriar as suas representações dos espaços em que se inscrevem a
língua e a cultura-alvo dos nativos que neles transitam. Estudando, por exemplo,
como o autor de um texto, inserido em material didático elabora sua progressão,
lexicalizando as referências a determinados protagonistas e as ações, processos,
estados a ele atribuídos, pode-se perceber de que forma e em que esferas de
atividade seu papel social é representado. Koch (2003, p.90) destaca que as
formas nominais referenciais “desempenham funções cognitivas de extrema
relevância para o processamento textual”. Essas funções estão relacionadas aos
processos que concorrem para a continuidade do texto, como, por exemplo, a
recuperação de elementos apresentados anteriormente no texto ou sugeridos no
co-texto
4
e que precisam se manter ativos na memória do leitor.
Os textos não-verbais
5
que, na atualidade, são uma constante em nosso
quotidiano, também têm sua presença registrada na sala de aula de língua
estrangeira. Convivemos com uma infinidade de diferentes imagens impressas
em livros, out-doors, propagandas, jornais e revistas; isto sem falar na
multiplicidade de gêneros textuais criados pelo advento de novas tecnologias e
elaborados em outros suportes, como o sonoro e o eletrônico. Todo esse
material, em maior ou menor escala, vem sendo trazido para a sala de aula,
4
Co-texto- O termo co-texto tem o mesmo significado de contexto lingüístico, designando, portanto, o
ambiente lingüístico (interno) de uma unidade qualquer.
5
Neste estudo, consideraremos textos não-verbais os textos construídos exclusivamente com recurso à
imagem (fotografias, desenhos, quadrinhos) e também os textos sincréticos que associam palavras à imagem.
21
corroborando o pressuposto de que os textos visuais, além de serem muito mais
motivadores, são mais fáceis de serem entendidos do que os verbais. Esse
pressuposto baseado na transparência dos textos visuais é contestado por Kress
(1996), que o qualifica como um mito, possivelmente associado ao nosso pouco
conhecimento de outras semioses diferentes da verbal. Para ele, a comunicação
visual é sempre codificada. Todo código é formado de signos. Ao lermos uma
imagem, essa impressão de fácil entendimento, advém do fato de percebemos o
sentido porque já conhecemos o código. Quando olhamos, por exemplo, obras de
arte de culturas que nos são desconhecidas, rotulamo-nas de exóticas, ou
simplesmente de bonitas. Mas, o sentido nos escapa, porque não sabemos
aquele código, e o texto visual, da mesma forma que o escrito, está ligado ao
contexto que o produziu. “A linguagem visual é um produto de ação social e de
uma história social” (Kress, 1996, p.33) e se diferencia de cultura para cultura, de
sociedade para sociedade.
Tomlinson (2005,p.56) ressalta que 65% de nossa comunicação é
transmitida de forma não-verbal, mas nós não temos consciência disso, tamanha
a importância que o verbal adquiriu na nossa formação. Somos constantemente
bombardeados por imagens, sons e cheiros.
Em nosso quotidiano, as imagens transitam, carregadas de informação,
ou, ilustrando um texto escrito, estão abertas ao nosso olhar e estimulam a nossa
percepção.
Podemos observar que mesmo quando as imagens aparecem articuladas
a um texto verbal, elas permanecem como um sistema estruturado e organizado
independentemente. Palavras e imagens fazem parte de dois sistemas
semióticos diferentes, embora não façamos sua dissociação quando os
interpretamos conjuntamente.
A imagem mental criada pelo conteúdo é confundida com a imagem do
que se vê. Esta última é formada por categorias plásticas que são: eidéticas
(forma), cromáticas (cor) e topológicas (distribuição dos elementos
figurativizados) (Pietroforte, 2007, p.39).
22
A identificação da imagem plástica remete aos processos de conceituação
utilizados pela mente humana em seu conhecimento do mundo. Quando vemos o
desenho de um gato e o reconhecemos como tal, a significação não está na
imagem do gato, mas no plano do conteúdo. A imagem apenas nos ajudou mais
rapidamente a inseri-lo no conceito semântico de gato, categoria já presente na
nossa grade de leitura.
As propriedades conceituais presentes nas imagens do conteúdo, quando
se transformam em textos pertencentes à semiótica plástica “passam por um
processo de manifestação em que categorias do conteúdo são traduzidas em
categorias plásticas (op.cit.,p. .34).
A articulação entre um sistema semiótico verbal e um sistema semiótico
plástico corresponde ao que em semiótica é chamado de texto sincrético
(op.cit.;p.49). O acoplamento da imagem à palavra é uma forma de limitar as
possíveis escolhas do leitor. Barthes (1984, p.31-32) destaca duas funções da
palavra em relação à imagem: a de ancoragem e a de etapa. Quando o verbal
explica o que se passa nas imagens, orientando assim a leitura feita, trata-se da
função de ancoragem, que pode ser observada, por exemplo, nas legendas de
fotos jornalísticas. A legenda restringe a polissemia da imagem, na medida em
que destaca uma determinada significação para o leitor. Quando entre o verbal e
a imagem há uma relação complementar, que se resolve na totalidade da
mensagem, o verbal cumpre a função de etapa. Neste caso, uma semiose
complementa a outra, pois o enquadramento feito nas imagens desenhadas vai
desencadeando a narrativa, enquanto o verbal orienta a percepção do significado
para o leitor. Como exemplo mencionamos a história em quadrinhos.
Os textos visuais nem sempre têm o seu valor comunicativo inteiramente
reconhecido, e, algumas vezes, em manuais didáticos, exercem apenas uma
função meramente estética ou de preenchimento de espaço, desvinculados de
um trabalho que explore sua potencialidade de gerar leituras. Podemos citar
como exemplo o texto não-verbal presente no Anexo F.
Para fazer um bom uso desse material, é necessário conhecimento,
sensibilidade e discernimento por parte do professor e do autor de materiais
23
didáticos na hora de fazerem suas escolhas. Devem indagar-se: o tema enfocado
pela imagem pode ser abordado por culturas diferentes, que porventura estejam
representadas em sala de aula? O material provoca o interesse do público-alvo?
Traz informações relevantes? É adequado ao contexto cultural da clientela ou
pode criar mal-entendidos e constrangimentos?
Tomlinson (2005, p.59) adverte, ainda, sobre a necessidade de o professor
conhecer os pontos fortes e os pontos fracos de diferentes tipos de ilustrações, o
que lhes permitirá selecionar material apropriado para seus alunos e para seu
contexto de ensino. Esse autor denomina ilustração todos os tipos de elementos
visuais encontrados em materiais, como desenhos, fotos, etc.
Apesar de vivermos envolvidos em um universo de imagens variadas,
muitas vezes autores de materiais didáticos não têm um letramento visual amplo
que lhes permita selecionar e abordar adequadamente, em função de seus
objetivos e público, as imagens que incluem nos materiais que elaboram. Nos
livros didáticos de Português para estrangeiros, o potencial de gêneros como
fotografias, cartuns, charges, histórias em quadrinhos, para o processo de
ensino-aprendizagem da língua e cultura-alvo, é freqüentemente ignorado.
Passamos a enfocar especificamente as fotografias, os desenhos e os
quadrinhos, refletindo sobre seu uso em livros didáticos de língua estrangeira.
Com a invenção da fotografia, entre 1826 e 1839, o mundo inundou-se de
imagens, e as pessoas finalmente conseguiram fixar momentos importantes, que,
se assim não fosse, não poderiam ser retidos pela memória.
O advento da fotografia se paralelamente à invenção de outros
importantes marcos sociais: as descobertas da máquina a vapor e da
eletricidade, que vão influir poderosamente na mudança das estruturas sociais. A
primeira vai abrir caminho para o aparecimento da indústria, acelerando o
desenvolvimento dos centros urbanos e gerando a massa de trabalhadores.
Todas essas ocorrências produziram uma sociedade urbana acelerada,
barulhenta, onde multidões transitam apressadamente em meio ao tráfego; ávida
por novidades, que rapidamente se tornam obsoletas; bombardeada por
propagandas, que estimulam cada vez mais o consumo das mercadorias
24
despejadas pela indústria. Essa nova sociedade necessita de formas mais
rápidas de conhecimento, e a fotografia, enquanto representação social, aí se
inscreve como o suporte ideal para a produção de imagens que são aproveitadas
não só para o consumo, mas principalmente como uma manifestação dos
costumes e da cultura de diferentes povos, evidenciando tempo e contextos
diferentes.
O surgimento da fotografia inaugurou uma nova forma de significar o
mundo. Se antes o homem se valia da virtuosidade de suas mãos para expressar
o que impressionava seus olhos e sua imaginação, naquele momento, entre ele e
a realidade concreta se interpôs um aparelho fotográfico, que executava em um
click as representações de objetos que pretendia guardar, ou compartilhar com os
seus semelhantes. As mãos deixaram de ter tanto valor, pois, a importância se
deslocou para o olho e para as intenções do fotógrafo, que, para significar e
orientar a leitura do observador enquadra a imagem, realçando alguns objetos,
em detrimento de outros. Para tal, não é necessária uma técnica especializada e
nem um material sofisticado, o que permite que qualquer um possa fotografar as
suas cenas prediletas.
O texto fotográfico experimentou tal aceitação que logo se vislumbraram
as suas potencialidades e sua capacidade de influenciar o outro, e assim sendo,
foi a imprensa quem primeiramente entendeu as possibilidades que poderiam ser
extraídas daquele novo suporte que lhe chegava às mãos.
Nas suas primeiras aparições na imprensa brasileira, no início do século
XX, a fotografia assume o caráter de documentação, sendo utilizada para afirmar
a autenticidade do fato relatado. Talvez por isso, o caráter de fidedignidade tenha
se decalcado na fotografia, e tenha se tornado uma opinião persistente, na
medida em que o homem comum apresenta dificuldades em perceber a foto
como uma representação subjetiva do seu autor, não repara que o mesmo possui
uma opinião sobre o assunto, e que quando fotografa recorta da realidade
exatamente o que lhe interessa. Está claro, portanto, que as fotos narram os
acontecimentos, mas também manifestam os posicionamentos ideológicos do
fotógrafo. A escolha do tema, o ângulo de registro, o enquadramento feito, são
25
variáveis que constituem a narrativa fotográfica. A imagem é um objeto
construído e como tal guarda uma vinculação com seu contexto de produção,
mas se distanciada desse contexto, a fotografia permite que se lhe dê uma nova
significação, apresentando-se como obra aberta, que possibilita sentidos
diferentes a cada nova leitura.
Na atualidade, programas avançados de computador conseguem alterar o
suporte fotográfico, sem que o observador perceba vestígios dessa ação. Isso
tem evidenciado o lado manipulável da fotografia, embora ainda não esteja muito
claro para as pessoas o lado manipulador.
As imagens que mais circulam na vida das sociedades modernas vêm
através das fotos de jornal, de revistas e da televisão, todas profundamente
marcadas por interesses e ideologias escondidos por trás desses veículos. São
imagens informativas, mas moldadoras dos acontecimentos, pois expressam
sempre a visão de alguém e o que deve ser destacado sobre o acontecimento
relatado.
Cada vez mais as imagens vêm sendo objeto de pesquisas por estudiosos
de várias áreas de conhecimento, que trazem informações novas e valiosas. De
acordo com um ponto de vista sociológico, Bourdieu (2003, p.112), entende que
“a imensa difusão da fotografia se deve a sua função social”, mas sobretudo,
convém destacar o poder de influenciar a opinião do receptor de uma forma mais
direta e mais contundente do que um texto verbal. Uma boa foto é aquela que
transmite uma mensagem, que transcende a imagem em si mesma. Eis aí a sua
função social e educativa. A fotografia é mais do que um veículo de informações
objetivas. Por ser boa ferramenta de trabalho, que pode suscitar leituras variadas,
o material didático que oferecer textos fotográficos autênticos, em uma sala de
aula de língua estrangeira, certamente ajudará o aprendiz a desenvolver uma
opinião crítica sobre o que está sendo enfocado.
As fotografias são textos que, quando bem selecionados, podem funcionar
como testemunhos culturais. Podem constituir um material de excelência para a
veiculação de novos significados em relação ao país e suas diferentes regiões,
26
aos usos e costumes de sua gente, às atividades econômicas e aos papéis
sociais assumidos pelo homem e pela mulher nesse contexto cultural.
A escolha de uma fotografia para um livro didático evidencia o tipo de
representação que o autor do manual tem ou quer oferecer dos aspectos culturais
de seu país. Há, pois, sempre um sentido que subjaz a essa escolha, na medida
em que a atividade fotográfica não só documenta, mas também interpreta.
Segundo Júdice (2005), só nos anos 80, os autores brasileiros de livros
didáticos de português para estrangeiros passam a recorrer à fotografia para
oferecer aos aprendizes recortes de nossa realidade.
Ao enfocar os desenhos que surgem em materiais didáticos, Tomlinson
(2005, p.58) destaca que ilustram ações e interações. O autor ressalta que os
desenhos (o autor usa esse termo em sentido abrangente) são muito mais
flexíveis do que as fotos e podem ser feitos sob encomenda em termos de
especificidade, enfoque, ênfase e nível de detalhes. Por exemplo, uma caricatura
de uma pessoa pode enfatizar a personalidade com muito mais precisão do que
uma foto. Os desenhos podem variar desde ícones simples e genéricos até
pinturas realistas e detalhadas. Porém, o autor adverte que os desenhos podem
dar a impressão de não ter força ou de não refletir a realidade.
Os desenhos incluídos em materiais didáticos de língua estrangeira (em
geral feitos por ilustrador contratado pela editora e aprovado pelo autor) oferecem
insumos relevantes para a construção pelo aprendiz de suas representações da
cultura-alvo. Representando espaços e personagens relativos à cultura
focalizada, tudo aquilo que o traço do desenhista configura, enfatiza, atenua e
apaga nas entidades representadas certamente contribui para a construção do
discurso do material didático sobre a realidade em questão.
Nos primeiros materiais didáticos de Português para estrangeiros editados
no Brasil, entre eles o de Marchant, o qual faz parte de nosso corpus, apenas os
desenhos (em preto e branco) ilustravam as realidades representadas, não se
registrando ainda a presença de outros recursos imagéticos.
No que se refere aos quadrinhos, pode-se dizer que funcionam como uma
narrativa feita através de imagens. Podem ser constituídos de pelo menos dois
27
desenhos, em que o segundo guarda uma relação de continuidade com o
primeiro. Na maior parte das vezes, segundo (Feijó,1997, p.13), trata-se de uma
seqüência de acontecimentos ilustrados, que se apresenta associada ou não ao
texto verbal
A necessidade de passar uma informação através da fixação da imagem
estava presente nas pinturas rupestres. Alguns desses desenhos retratavam
figuras de animais ou de formas humanas, e outros se preocupavam em tentar
narrar alguns eventos através das imagens. O caçador primitivo descobriu a arte
do desenho e uma excelente forma de comunicação.
Com o advento da linguagem escrita, as pessoas acabaram se
distanciando da linguagem do desenho, associando-a primeiramente ao humor e
depois à infância, e terminando por considerá-la como algo de pouca importância.
O preconceito gerou a idéia de que o desenho era uma forma rudimentar de
comunicação, mas que poderia ser muito eficaz para iletrados, o que fez com que
os quadrinhos levassem um longo tempo para terem o seu valor reconhecido, e
serem, finalmente, admitidos como um novo meio de expressão artística.
A união entre literatura e imagem difundiu essa nova forma de
comunicação. Juntou dois códigos distintos com o poder de interferir socialmente,
o que fez com que nos quadrinhos também circulassem as ideologias do autor.
Este, pertencendo a um determinado contexto sócio-cultural, acabava por
transmitir através de sua obra a cultura e os comportamentos característicos dos
habitantes daquele espaço social.
Os quadrinhos só tiveram os seus elementos de linguagem claramente
definidos em meados do século XIX, com o desenvolvimento das técnicas de
reprodução de imagens. As convenções adotadas ainda estão em vigor até os
dias de hoje. Cada imagem passou a ser desenhada dentro de um retângulo. Os
textos escritos então associados à narrativa, foram inseridos em balões,
representando a fala e os pensamentos dos personagens, e as legendas ficaram
para uso exclusivo do narrador da história. Outros códigos foram criados, como
linhas paralelas para indicar movimento, estrelinhas para dor ou atordoamento,
pingos saltando do rosto em caso de medo ou de cansaço, lâmpada acesa
28
simbolizando uma idéia genial etc. Há, pois, um conjunto de convenções
utilizadas, que devem ser dominadas pelos leitores, e que representam
sentimentos, estados de espírito e condições físicas dos personagens. Algumas
convenções são retiradas de expressões populares, como é o caso de certos
desenhos que aparecem em discussões dos personagens, representando o
famoso “dizer cobras e lagartos” A presença de estrelinhas em momentos de dor
ou confusão mental, também está ligada à expressão “ver estrelas”.
Como diversas culturas compartilham muitas dessas convenções, bem
como diversas formas de associação entre imagem e palavra presentes nos
quadrinhos, esse gênero textual é usado com certa freqüência no ensino de
línguas estrangeiras. Judice (2005,p.41) ressalta que, apesar da universalidade
do gênero e da acessibilidade dos textos nele configurados, decorrente da
associação de imagem e palavra”, somente na década de 80 os quadrinhos
começaram a ser utilizados em materiais didáticos de Português do Brasil para
estrangeiros.
29
3. MATERIAL E MÉTODOS
Neste capítulo, abordaremos a dinâmica relacionada ao desenvolvimento
desta pesquisa, que objetivou verificar as representações da mulher brasileira
veiculadas em materiais didáticos para o ensino de português para estrangeiros
publicados no Brasil nas décadas de 50, 80 e 90. Para tal, buscamos, nos textos
verbais, autênticos e não-autênticos, desses materiais a caracterização,
estereotipada ou não, da mulher brasileira; os papéis sociais, espaços e esferas
de atividades que lhe foram preferencialmente atribuídos e, nos textos não-
verbais (desenhos, fotografias, quadrinhos) verificamos como se configura essa
representação.
Utilizamos uma abordagem qualitativa, comum nos estudos de gênero,
considerando-a apropriada para nossa proposta da investigação.
Conforme exposto na Introdução, recorremos à Teoria das
Representações Sociais, baseando-nos em textos de Jodelet (1984, 2001), e
concebendo representação como uma forma de conhecimento elaborada e
compartilhada socialmente, que contribui para a construção de uma realidade
comum a um conjunto social. Também tomamos como base estudos sobre
ideologia, como os de van Dijk, (2002, 2005), sobre estereótipos, como o de
Zarate (1998), sobre materiais didáticos, como os de Tomlinson (2005), Zarate
(1995), Júdice (2004) e Trouche (2005), e ainda sobre textos verbais, como os de
Bronckart (1999) e Koch (2003) e textos não-verbais, como os de Kress (1996) e
Júdice (2005).
Antes de realizar a análise do corpus desta pesquisa, formado por textos
verbais e não-verbais dos livros didáticos Português para Estrangeiros, de
Marchant, Tudo Bem–1, de Ramalhete e Bem-Vindo! A Língua Portuguesa no
Mundo da Comunicação, de Ponce e colaboradoras, buscamos, na literatura,
informações suficientes para traçar, em linhas gerais, o contexto político e social
do Brasil nas décadas de 50, 80 e 90, nas quais foram publicados as obras
analisadas, voltando a atenção especialmente para as questões relacionadas a
gênero.
30
Examinamos cada obra em seu conjunto e observamos também
detidamente os prefácios, apresentações, “orelhas”, contracapas, fichas
catalográficas e créditos de cada um dos três volumes em busca de informações
sobre autores, ilustradores, objetivos da obra declarados pelos autores e local de
publicação.
Para compor nosso corpus, com a finalidade de analisar as
representações da mulher nos textos desses materiais de ensino da língua e da
cultura do Brasil para estrangeiros, observamos primeiramente a obra Português
para Estrangeiros, dos anos 50, fazendo um levantamento dos textos verbais que
continham personagens femininos ou alusões a personagens femininos e textos
não verbais que apresentavam imagens de mulheres isoladas ou interagindo com
outros personagens. Dessa obra, incluímos em nosso corpus os 12 textos verbais
das seções denominadas Leitura e 39 textos não verbais de desenhos (todos em
preto e branco) elaborados pela ilustradora do livro.
Das 12 unidades do livro Tudo Bem-1, dos anos 80, usando os mesmos
procedimentos, incluímos no corpus pesquisado 32 textos verbais, distribuídos
pela subseções Diálogo e Atividades, deixando de lado os textos da subseção
Pingue-Pongue, visto que destinada exclusivamente a sistematizar noções
gramaticais, como pode se observar no exemplo que se segue (op.cit, p.114) :
Imperfeito do Indicativo - Irregular
- Mamãe, você tinha bicicleta quando era pequena?
- Tinha.
- E a titia, também tinha?
- Tinha.
- Vocês tinham muitos amigos?
- Tínhamos
- Seus amigos tinham brinquedos bonitos?
-Tinham.
Nessa obra, examinamos, também, 37 textos não-verbais todos em preto
e branco - de desenhos e quadrinhos feitos pelos ilustradores do material e de
fotografias.
31
Das 20 unidades de Bem-Vindo! A Língua Portuguesa no Mundo da
Comunicação, editado nos anos 90, retiramos, com procedimentos semelhantes,
60 textos verbais e 82 não-verbais de desenhos e fotografias todos coloridos.
Procedemos à análise de cada um dos livros em separado, enfocando as
representações da mulher nos textos verbais e não-verbais no quadro de sua
época. Levando em conta as ideologias de gênero, observamos distorções,
atenuações, acentuações de características dos personagens femininos
construídas pela palavra, pelo traço do ilustrador ou perspectiva do fotógrafo.
Em todos os materiais didáticos examinados, realizamos primeiramente a
análise dos textos não-verbais e, em seguida, aquela dos textos verbais, sempre
seguindo a ordem das seções dos livros, denominadas Leituras na obra da
década de 50, e de Unidades nos livros dos anos 80 e 90.
Os desenhos e quadrinhos que associavam a palavra à imagem,
sobretudo em Tudo Bem- 1, foram incluídos na categoria de textos não-verbais,
observando-se, em sua leitura, a interseção da imagem com a palavra.
32
4.CONTEXTUALIZANDO
Neste capítulo, após traçar um breve quadro das perspectivas que se
abriram para as mulheres no século XX, abordaremos aspectos sociais e políticos
relativos ao Brasil no período em que foram publicados os materiais didáticos de
português para estrangeiros cujos textos foram analisados nesta pesquisa.
4.1.SÉCULO XX: NOVAS PERSPECTIVAS PARA AS MULHERES
No século XX, a questão do gênero, ou seja, das identidades feminina e
masculina, passou a ser reenfocada em seus múltiplos aspectos e vista sob
novos prismas.
Na primeira metade do século, Mead (1971) procurou comprovar que a
identidade do homem e da mulher não derivava de uma essência masculina ou
feminina, e sim de uma construção cultural, elaborada através de um processo de
socialização, no qual influíam os modelos de atitude e de conduta tidos como
adequados para cada sexo por determinada sociedade. Mead (1971, p.26)
destaca que em cada cultura, embora exista uma grande “variedade de modos
pelos quais os papéis dos sexos estão padronizados”, há um modelo a ser
seguido, ou seja, “sempre se encontrava um padrão”.
A partir da década de 60, o movimento feminista ganhou força nos países
industrializados, produzindo nessas sociedades um espaço propício para uma
reflexão sobre os papéis sociais assumidos pelo homem e pela mulher,
permitindo, inclusive, o alargamento do debate e de novas posturas face a
reivindicações mais amplas como o direito à sexualidade e à igualdade de
oportunidades no mercado de trabalho entre homens e mulheres. O termo
“feminismo” surge, de acordo com Braga (1991, p.194), carregado de valores
vinculados a análise, esforço, reivindicação e contestação” assumidos pelas
mulheres ao longo das lutas em prol da legitimação dos seus direitos, solapados
pelo poder exercido pelo “machismo” dominante. Como nada tinha a protestar, o
“machismo” nunca pôde ser chamado de movimento, e sempre se posicionou no
33
sentido de manter os privilégios já adquiridos. Ramirez (1995,p.76), ao observar
as ideologias masculinas, declara que o machismo, abordado desde o início
como uma atitude peculiar do homem sul-americano, associa-se a
“características ou aspectos aos quais se atribuem valoração negativa,
ressaltando-se, entre eles, a dominação, a agressividade, o narcisismo e a
sexualidade sem controle”. O “machismo” evidenciaria, sobretudo, a aceitação de
uma situação de dominação a que a mulher se submetia, subserviente ao poder
de quem se cria mais forte, mais capaz, mais preparado para lidar com as
dificuldades da vida. A consciência dessa disparidade de direitos foi despertada
pelos movimentos feministas que, apesar da depreciação dos homens e da
rejeição de muitas mulheres, continuou ativo.
No Brasil da década de 20, já ocorriam movimentos organizados
reivindicando melhores condições de vida para as mulheres, que viviam atreladas
economicamente aos maridos. A Revista Feminina, em 1920, oferecia um
panorama das mudanças que desgostavam os conservadores da época:
Hoje em dia, preocupada com mil frivolidades mundanas,
passeios, chás, tangos e visitas, a mulher deserta do lar. [...] A
família se dissolve e perde a urdidura firme e ancestral dos seus
liames. Rumo à cozinha! Eis o lema do momento.
6
Essa década ficou marcada como um período de muita criatividade, e
também de insatisfação com os padrões vigentes, o que permitiu que, em 1922,
eclodisse em São Paulo, a Semana de Arte Moderna, na qual se destacou a
pintora Anita Malfatti.
Quando os ecos das vozes feministas foram mais fortes no Brasil, na
década de 60, o país apresentava uma estrutura social marcada pela
desigualdade, diferente daquela apresentada por nações já plenamente
industrializadas. Braga (op.cit.;p.194) destaca as diferenças acentuadas
existentes entre a nossa sociedade e a dos países onde o feminismo
primeiramente surgiu e se expandiu, como a distribuição da riqueza, o acesso a
6
A Revista Feminina, de agosto de 1920, é citada por Manoel Pinto Ribeiro em sua tese de doutorado As
formações discursivas sobre a mulher na música popular brasileira ,baseado em Maluf e Mott (2002, p.
372).
34
recursos facilitadores do trabalho doméstico, as condições materiais de criar e de
educar crianças, o acesso à qualificação profissional e o mercado de trabalho-
todas com possibilidades de interferir na repercussão do movimento em nosso
meio.
Sabendo das grandes alterações ocorridas na segunda metade do século
XX que influenciaram decisivamente os papéis sociais femininos, indagamo-nos
em que medida, as autoras dos materiais didáticos analisados em nossa
pesquisa sendo mulheres brasileiras, escolarizadas, inscritas na classe média,
vivendo em grandes centros urbanos (Porto Alegre, Rio de Janeiro e São Paulo)
e certamente sintonizadas com as informações de seu tempo - estariam incluídas
na parcela de mulheres sensíveis às vozes feministas.
Observando, nos textos que criaram ou incluíram em seus materiais
didáticos, as representações da mulher oferecidas aos aprendizes estrangeiros,
vamos tentar depreender a ideologia de gênero subjacente ao seu trabalho.
Antes de proceder à análise do material, faremos uma breve síntese do
quadro político e social brasileiro nas décadas de 50,80 e 90, nas quais foram
publicados os livros didáticos em foco.
4.2. O BRASIL NOS ANOS 50: FLAGRANTES
Com o fim da Segunda Guerra Mundial, as pessoas aliviadas pensavam
na reconstrução e na vida. A modernidade, o novo e o futuro passaram a fazer
parte dos anseios e das utopias do povo brasileiro. Com isto difundiu-se a idéia
do “Brasil país do futuro”, criando nas pessoas a expectativa de que, finalmente,
dias melhores estavam prestes a chegar.
Uma série de complexas transformações de cunho social, político e
econômico anunciavam a tão propalada modernidade, que não se restringiu ao
Brasil, mas a todo o sistema internacional.
Elaborada por pensadores que participaram da Comissão Econômica para
a América Latina, uma nova classificação foi criada e o Brasil deixou de ser
rotulado de atrasado para ser inserido na categoria de país subdesenvolvido.
35
Uma nova arrancada tecnológica foi propiciada pelo remanejamento das
relações internacionais, que permitiam aos países em desenvolvimento, como o
Brasil, alcançar dentro de certos limites e em determinados setores, um razoável
padrão de desenvolvimento industrial.
A década de 50 foi contemplada com dois governos republicanos. Iniciou-
se com um novo governo de Getúlio Vargas, e prosseguiu com o de Juscelino
Kubitschek.
O fim da Segunda Guerra Mundial colocou no panorama brasileiro duas
circunstâncias novas: a primeira dizia respeito à reconstitucionalização do país
com a eleição de um Presidente da República e de representantes do povo para
a Assembléia Constituinte, mais tarde transformada em Poder Legislativo. A
segunda, referia-se ao acúmulo expressivo de reservas cambiais, obtidas pela
valorização da matéria-prima brasileira durante os anos da guerra, em que o país
atravessou um novo período de substituição de produtos importados.
Nos anos 50 a atividade industrial se consolidou. O Brasil já era
praticamente auto-suficiente em bens perecíveis e semiduráveis: alimentos,
bebidas, fumo, têxteis, vestuário, couro e pele, gráfica e editoração, madeira e
móveis. Faltava adquirir qualidade para impulsionar o passo seguinte, o da
expansão e consolidação da indústria pesada.
Em junho de 1952, foi criado o Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico (BNDE) destinado a movimentar recursos para as atividades da infra-
estrutura: transporte, eletricidade e indústrias de base. Aliás, o transporte foi o
primeiro setor apoiado pelo BNDE, que aprovou um financiamento destinado à
Estrada de Ferro Central do Brasil.
7
Em 1954, inaugurou-se a Companhia Hidrelétrica de São Francisco que
contribuiu decisivamente para a transformação econômica do nordeste brasileiro.
O país foi agitado, de norte a sul, pela campanha do “petróleo é nosso.” O
presidente Vargas não via com bons olhos a presença de capital estrangeiro, e
durante a elaboração do projeto de formação da Petrobrás, a opinião pública
brasileira ficou dividida entre “nacionalistas” (reunidos em torno do presidente
7
História dos anos 50, disponível em<http://www.bndes.gov.br/conhecimento/livro50anos/.
36
Vargas,recusavam o aporte de dinheiro internacional na formação do capital da
nova empresa) e “entreguistas” (que defendiam a ampla e irrestrita abertura do
Brasil ao capital externo, para acelerar o desenvolvimento nacional). Vargas criou
a Petrobras em 1953, e depois, em 1954, a Eletrobrás. Ambas estatais e sem
ajuda do capital estrangeiro.
Getúlio Vargas suicidou-se em 1954 e, em 1956, iniciou-se o governo de
Juscelino Kubitschek, cujo lema era “50 anos em 5”. É nesse período que a
sociedade brasileira adquiriu definitivamente uma feição urbana, resultante da
união da ideologia do desenvolvimento com o capital externo, que propiciou a
instalação de um novo e avançado parque industrial. As massas urbanas
despontaram no cenário político e a cidade se consolidou como centro das
decisões políticas.
As mudanças em nosso arcabouço de produção não se refletiram de modo
uniforme em todas as regiões do país, sendo mais acentuadas na região centro-
sul. Com isso se elevou o padrão de vida de suas populações, principalmente as
que habitavam os centros urbanos. Uma parcela considerável dessa população
passou a desfrutar de comodidades, e sua vivência social se assemelhou cada
vez mais a dos habitantes dos grandes centros urbanos internacionais. Várias
cidades cresceram, e este crescimento econômico produziu uma elite de alto
poder aquisitivo, proporcionando também a ascensão da classe média, o que
alterou os costumes sociais e a vida cultural e artística do país.
Ribeiro e colaboradores (1995, p.157), traçando um panorama político e
social da década de 50, destacam a importância que o rádio detinha na vida dos
brasileiros, com programas de auditório, noticiários, transmissões esportivas e
novelas. Nessa época de progresso, seu alcance se amplia com a chegada dos
transistores. Além disso, a televisão e as eletrolas de “alta fidelidade” chegam aos
lares brasileiros de maior poder aquisitivo. A comunicação se amplia e as
distâncias diminuem com o advento do avião a jato.
O consumo foi estimulado, através das compras a crédito, o que gerou
uma publicidade mais sofisticada, com a utilização de uma linguagem direta e
maior apelo visual. A propaganda anunciava as últimas novidades, como por
37
exemplo, aquelas produzidas pela indústria de eletrodomésticos: enceradeiras,
liquidificadores, batedeiras etc.
Arquitetura, música, literatura, arte, cinema e fotografia sofreram
influências desse espírito de modernidade. O estilo moderno, cuja consagração
viria com a construção de Brasília, estava presente na arquitetura, tendo como
expoentes Lúcio Costa e Oscar Niemeyer. No final da década, surge a Bossa
Nova, mas os anos 50 foram, sobretudo, tempo do rock and roll, Coca-cola e
juventude rebelde modismos que eram exportados dos Estados Unidos para o
resto do mundo. Jovens de calças americanas, mocassins, jaquetas de couro e
óculos Ray-ban montavam em suas lambretas e se desligavam do passado, com
o pensamento no futuro. Destacam Ribeiro e colaboradores (op.cit.;p.172), que
nos filmes, algumas estrelas de Hollywood já simbolizavam um estilo de vida
liberado e independente, mas [aqui] as artistas mais admiradas eram Doris Day e
Grace Kelly, que ainda faziam o gênero “menina-moça”, de “boa família” e
“casadoiras”. Ribeiro e colaboradores (op.cit.;p.173) mencionam publicações que
traziam conselhos de “especialistas em assuntos de mulher”, como a revista “A
Cigarra”, da qual transcreve um trecho em que Tia Marta, em sua coluna,
recomenda aos brotinhos casadoiros (em uma época em que a virgindade ainda
era requisito importante e a pílula anticoncepcional não existia): “Explique a ele
que a sua mamãe desaprova programas noturnos para mocinhas de sua idade”.
Aumentam as possibilidades de aprimoramento educacional e profissional
da população masculina e feminina. Mas, mesmo em uma década na qual, em
âmbito internacional, as preocupações com a igualdade entre os sexos já
atingiam o trabalho
8
, as brasileiras dos anos 50 ainda eram maciçamente
influenciadas para assumir os papéis sociais de esposa e mãe. Bassanezi
(1997,p.625) recortou um texto de uma revista da época, evidenciando os
8
Em 1951, foi aprovada pela Organização Internacional do Trabalho a igualdade de remuneração entre
trabalho masculino e feminino para função igual.
38
preconceitos que cercavam o trabalho feminino, bem como uma ideologia
circulante, a da incompatibilidade entre casamento e atividade profissional.
Preocupação nenhuma, nem trabalho de qualquer espécie
devem obscurecer o que o namorado, o noivo e o marido
procuram fundamentalmente na eleita de seu coração [...] a
mulher, a companheira amorosa que governe sua casa, a mãe de
seus filhos e depois, então, podem vir as demais qualidades.
(Jornal das Moças, 05 de agosto de 1954)
Na classe média, na década de 50, o trabalho feminino fora de casa não
era muito bem visto. Uma profissão feminina bem aceita socialmente era a de
professora primária, e as Escolas Normais, Institutos de Educação e escolas
religiosas difundiam a noção da professora como mãe espiritual, abnegada,
paciente e ciente de sua missão de levar as luzes do conhecimento aos
pequenos brasileiros em formação. Destaque-se que o Curso Normal não dava
acesso direto à Universidade, exceto ás Faculdades de Filosofia, que formavam
professores.
É nesse contexto que, em 1954, em Porto Alegre, Mercedes Marchant
elabora seu livro Português para estrangeiros, um dos materiais didáticos em
cujos textos analisaremos as representações da mulher.
4.3. O BRASIL NOS ANOS 80: FLAGRANTES
Os anos 80 foram ricos em história no Brasil e no mundo. No exterior
aconteceu o fim da Guerra Fria e a queda do Muro de Berlim, no Brasil a década
de 80 foi marcada pelo retorno à democracia. Com a tão sonhada abertura
política, os brasileiros voltaram a eleger seus dirigentes e os exilados políticos
puderam, então, retornar.
Ao apagar das luzes do regime militar foi extinto o bipartidarismo no Brasil,
acabando com os dois partidos gigantes: Arena e MDB. Com isto, novas siglas
puderam aparecer, entre elas, o famoso Partido dos Trabalhadores, o PT, que
nasceu fraco e desvalorizado em São Bernardo do Campo (SP), em 1980. Era o
39
braço ativo do movimento sindical na região do ABC, que já tinha desafiado o
governo militar ao deflagrar as greves gerais de 1978 e 1979. Pregando a ética
na política e uma democracia social, para o PT convergiriam os perseguidos do
regime militar, e descontentes com o status quo em geral. O partido cresceu
visivelmente sob a batuta de seu presidente, Luís Ignácio Lula da Silva, que 30
anos mais tarde se tornaria presidente do Brasil.
Na década de 80, a economia entrou em fase de turbulência, fazendo com
que o país se visse às voltas com uma inflação persistente e descontrolada.
Estava tudo tão complicado, que estes anos ficaram conhecidos como “a década
perdida”, para o Brasil e para a América do Sul.
Em face de uma situação econômica tão delicada, o presidente Figueiredo
resolveu assinar a carta de intenções com o Fundo Monetário Internacional (FMI),
na qual o país se comprometia a seguir todas as metas estabelecidas pela
orientação daquela entidade financeira para as políticas monetária, fiscal, cambial
e tarifária.
Em 1983, há uma queda na taxa de renda per capita brasileira. Aumenta a
taxa de desemprego, sendo a indústria o setor mais atingido. O setor que
apresentava melhores resultados era a agricultura e, com os bons preços
internacionais, a venda do café, do suco de laranja e da soja ajudou a atenuar a
nossa dívida externa.
O país voltou a crescer em 1984, e participou ativamente da campanha
das “Diretas Já”, lançada pelo PT naquele ano. Registraram-se as maiores
manifestações públicas da história do Brasil, pois milhões de pessoas saíram
para assistir aos comícios, demonstrando o repúdio popular ao arbítrio dos
militares. Manifestações pipocavam em várias cidades brasileiras, mas apesar de
toda a mobilização não foi possível modificar a Constituição. Para modificá-la era
preciso obter o voto de dois terços do Congresso, e este era dominado por um
partido ligado ao governo. Ainda não seria daquela vez.
O clamor pelas diretas possibilitou que um novo Brasil mostrasse “a sua
cara”, esculpida pelas novas forças emergentes: multidões participantes, força
sindical organizada e imprensa atuante. Segundo Bueno (2003, p. 398), por ter
40
expressado uma posição independente e apoiado abertamente a campanha, a
Folha de São Paulo tornou-se o jornal mais importante dos anos 80 e 90.
Com muita dificuldade, conseguiu-se um nome que poderia agradar à
oposição e aos militares, e, em 15 de janeiro de 1985, Tancredo Neves foi eleito
por voto indireto. Mas, o presidente eleito morreu em abril, sem ter tido tempo de
tomar posse e, em seu lugar, assumiu o vice, José Sarney, que governou até
março de 1990.
No ano de 86, o Brasil ousou implantar um audacioso plano de combate à
inflação, que já se mostrava então inteiramente descontrolada -o Plano Cruzado.
O enfraquecido cruzeiro, privado de seus três zeros à direita, seria substituído
pelo cruzado. Para tal, houve um congelamento de preços, e com isso a inflação
rapidamente cedeu. A população sentiu o retorno no bolso, com a melhoria real
do poder de compra. O consumo, então, explodiu em supermercados, feiras e
armazéns. Embalado pela retórica do presidente, o povo se engajou na nova luta,
e surgiram os famosos “fiscais do Sarney”, sobretudo mulheres que fiscalizavam
as mercadorias para impedir a remarcação dos preços. De acordo com Bueno
(2003, p. 405),essa foi a primeira manifestação coletiva em defesa do direito do
consumidor e de exercício pleno de cidadania” que os brasileiros confiantes
protagonizaram.
O congelamento de preços deu resultado enquanto durou o estoque de
matérias-primas, mas quando acabou, ele precisou ser suspenso. A inflação
voltou a crescer. Vieram mais dois planos: Cruzado II e Bresser, em 1987. A
população, então, reagiu com descrédito.
A crise econômica tinha afetado a vida familiar e social dos brasileiros,
aprofundando as desigualdades. A renda ficou concentrada nas mãos de uma
pequena parcela da população, que pôde usufruir um padrão de consumo
sofisticado, enquanto a outra parcela sofria com os males advindos de uma
inflação galopante. Sem dinheiro, as empresas começavam a demitir ou a dar
férias coletivas. O desemprego de muitos fez com que se iniciassem diversas
atividades na economia informal, como a de vendedores de sanduíches nas
praias, camelôs, e pequenos negócios que surgiam nos fundos de quintal. Foram
41
tempos difíceis. O governo não conseguia fechar as contas e a inflação já beirava
o patamar de 365% ao ano. Decretou-se a moratória em fins de 87. Em 1988, foi
promulgada uma nova Constituição que ratificava definitivamente o estado de
direito no país, e Sarney acabou se transformando naquilo que todos esperavam
que ele fosse: o último presidente escolhido sem o voto direto do povo. Em 1989,
realiza-se a primeira eleição direta com a vitória de Fernando Collor de Mello.
O povo tentava se refazer dos golpes sofridos, e foi investida em um
espírito pop que a cultura brasileira enfrentou os anos 80. O grupo musical Blitz
cantou a união do chope com a bata frita, e a sua alegria trouxe de volta o rock às
paradas de sucesso. Titãs, Paralamas do Sucesso, Ultraje a Rigor e muitos
outros se valeram da música para traduzir o ideário da época. Grupos como
Legião Urbana e Barão Vermelho, exibiram vocalistas compromissados com a
crítica e com a poesia, como era o caso de Renato Russo e Cazuza. Músicas
como “Que país é esse?” “Brasil mostra a sua cara”, apontavam as mazelas que
teimavam em estar sempre presentes no cenário nacional.
Em 1986, estréia na TV Globo, a apresentadora/cantora de maior carisma
com o público infantil, Xuxa,” a rainha dos baixinhos”, que conseguiu vender mais
discos do que o Rei Roberto Carlos. Mas, no reino dos “altinhos”, quem fazia a
festa era Luiza Brunet, símbolo sexual, considerada como um padrão da beleza
da mulher brasileira.
Tempo de ler As brumas de Avalon, as crônicas de Luís Fernando
Veríssimo e os livros esotéricos de Paulo Coelho, que, apesar de tão criticado,
virou sucesso internacional.
Tempo de mochila e All Star. Mas, na praia de Ipanema, as meninas
preferiam mostrar o corpo, que começava a ser torneado nas academias de
ginástica, em biquínis asa-delta e fio dental. Corpo bonito e saudável virou mania.
O ex-exilado Fernando Gabeira resolveu mostrar o dele e foi à praia com uma
minúscula tanga de tricô. Aliás, a ousadia do rapaz sinalizava que o país já se
encontrava receptivo para a discussão de temas antes considerados supérfluos,
como o direito de ter desejo, o direito da opção sexual, e afins. A sexualidade foi,
pois, o tema fundamental para o feminismo dos anos 80. Mas, era difícil discuti-la
42
sem tocar no problema do aborto, e com ele vieram os debates paralelos sobre
planejamento familiar, sobre o direito de querer ou não querer ter um filho. Falar
de aborto é falar de saúde reprodutiva, e toda essa temática em torno da
sexualidade feminina estimulou a criação de políticas direcionadas
especificamente à saúde da mulher. Em 1983, o Ministério da Saúde cria o
Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher, em resposta às reivindicações
dos movimentos feministas, baseando sua assistência nos princípios da
integralidade do corpo, da mente e da sexualidade de cada mulher.
Mas, ao tentar resgatar o feminino, esbarrou-se em uma outra prática que
até hoje atinge um número alarmante de mulheres: a violência doméstica. A
década de 80 é marcada tanto na esfera nacional quanto na internacional por
vários movimentos visando os direitos e a proteção da mulher.
Ocorre, em 1985, a criação da primeira Delegacia de Atendimento
Especializado à Mulher - DEAM (SP) e muitas são implantadas em outros
estados brasileiros. Ainda naquele ano, com a Nova República, a Câmara dos
Deputados aprova o Projeto de Lei que criou o Conselho Nacional dos Direitos da
Mulher.
De acordo com o IBGE
9
, no âmbito internacional, cria-se, ainda em 1985,
o Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher (Unifem), que
substituiu o antigo Fundo de Contribuições Voluntárias das Nações Unidas para a
Década da Mulher.
No Rio de Janeiro, em 1987, a partir de reivindicações dos movimentos
feministas, dá-se a criação do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher do Rio
de Janeiro - CEDIM/RJ, para assessorar, formular e estimular políticas públicas
para a valorização e a promoção feminina.
Em 1988, através do denominado lobby do batom, liderado por feministas
e pelas 26 deputadas federais constituintes, as mulheres obtêm importantes
9
Fonte: http;/www. Ibge.gov.br/ibgteen/datas/mulher/mulherhistória.html
43
avanços na Constituição Federal, garantindo igualdade de direitos e obrigações
dos dois sexos perante a lei.
Em uma década marcada por tantas mudanças, principalmente as
causadas pelo divórcio, a família brasileira não poderia se conservar imune. As
estruturas patriarcais começaram a ruir, e as mulheres, algumas já com a guarda
de seus filhos, se sentiram estimuladas a participar do mercado de trabalho.
O Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, de
1982, mostrou que as mulheres somavam 28% da população economicamente
ativa, embora ainda se mantivessem nos setores tradicionais de áreas ditas
femininas: prestação de serviços, atividades sociais, bancos, transportes,
administração pública, ensino, saúde, comunicação, atividades industriais e
comércio.
O número de filhos vai ficando cada vez menor. As mulheres, embora
divididas entre o lar e o trabalho, começaram a ter consciência do valor da
atividade profissional, que passou, então, a ser tão importante quanto o cuidar da
casa e dos filhos. Tradicionalmente, havia uma diminuição na população
economicamente ativa feminina a partir dos 25 anos
10
, tempo em que as
mulheres estavam às voltas com filhos pequenos. Os avanços obtidos através da
Constituição de 88, podem ter influenciado, segundo Bruschini (1994,p.78), as
taxas de participação da mulher com filhos no mercado de trabalho. De 1988 para
1989, as taxas de participação de mães trabalhadoras não sofreram alterações:
41,4% delas estavam inseridas no mercado de trabalho paulistano na primeira
data, e 41,9% continuaram a fazê-lo no ano seguinte
11
.
Em face desse outro contexto social, político e cultural, a grade de
reivindicações em relação às mulheres se ampliou. Vislumbrando a possibilidade
de ser dona de si mesma, a mulher dos anos 80 resolveu ir à luta para ter, por
direito, a liberdade de decisão em assuntos referentes ao seu próprio corpo, coisa
que o advento dos contraceptivos já tinha lhe concedido de fato.
10
Informação obtida no site www.fcc.org.br/mulher/series_historicas
11
Pesquisa por Amostra de Domicílio (PNAD) de 1990.
44
Nesse contexto, no Rio de Janeiro, foi publicado, em 1984, o livro Tudo
Bem 1, de Raquel Ramalhete.
4.4. O BRASIL NOS ANOS 90: FLAGRANTES
A consolidação da via democrática se fazia aos poucos, e os problemas
econômicos do país ainda estavam preocupantes no início dos anos 90. Tudo
indicava que esses problemas seriam de difícil solução. Foi quando surgiu, no
cenário nacional, um jovem e desconhecido político vindo de Alagoas, onde tinha
sido governador, desfrutando de grande cobertura na mídia nacional, devido a
uma campanha contra os altos salários de determinados funcionários da
administração pública do estado. Por este motivo, Fernando Collor de Mello
passou a ser conhecido como o “caçador de marajás,” e chegou à Presidência da
República, utilizando-se de um discurso moralizante e liberal.
Assim que assumiu o poder, em março de 1990, um país estarrecido
tomou ciência do Plano Collor de combate à inflação, que consistia, em parte, em
confiscar o dinheiro das cadernetas de poupança, de contas correntes e outras
aplicações financeiras da população. O plano acabou com o cruzado que voltou a
se chamar cruzeiro e o dinheiro do povo ficou bloqueado por dezoito meses.
O programa de governo estabeleceu também a extinção de órgãos
públicos, a demissão e disponibilidade de funcionários públicos federais e a
privatização de empresas públicas. O país estava sendo preparado para se
ajustar a uma nova ordem mundial, que pregava a presença de um “Estado
mínimo”, e por isso mais ágil no cumprimento de suas obrigações.
Em 1991, foi criado o Mercado Comum do Sul, o Mercosul, bloco
econômico formado pelo Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai , com o objetivo de
reduzir ou eliminar impostos,restrições ou proibições entre seus produtos.
O governo resolveu eliminar as tarifas aduaneiras, o que provocou um
aumento nas importações brasileiras, e a inclusão de uma pauta de produtos
supérfluos. Houve queda nas exportações e na produção industrial do país, com
45
o conseqüente aumento da taxa de desemprego. Foi anunciada uma recessão
econômica.
O impacto produzido pelo Plano Collor nos diversos estratos sociais, com
a geração de recessão e desemprego, empurrou a mulher para o trabalho. As
pesquisas
12
constataram o ingresso de um contingente de mulheres na faixa de
40 a 54 anos, com baixa escolaridade e sem profissionalização, que engrossaram
as fileiras das empregadas domésticas. Muitas vezes, o trabalho da mulher era o
único aporte de verba, quando o marido se encontrava desempregado ou quando
era ela a responsável pela família.
Em 1992, desvenda-se um esquema de corrupção envolvendo a figura do
presidente da República. A indignação tomou conta de todos e jovens
estudantes, estimulados pelas ideologias petistas, saem às ruas de preto e “cara
pintada”, exigindo a saída de Collor. Este, sem base parlamentar, se vê isolado e
sofre o primeiro processo de impeachment ocorrido no sistema republicano
brasileiro.
O governo foi assumido pelo vice-presidente Itamar Franco, tendo como
principal objetivo domar a inflação. Após um início titubeante, com algumas
substituições na pasta da Fazenda, Itamar acabou atingindo as suas pretensões
quando lançou, sob a tutela do então Ministro da Fazenda, Fernando Henrique
Cardoso, o mais bem-sucedido plano de combate à inflação o chamado Plano
Real, em 1994.
Itamar, tido como temperamental e ranzinza, não fez um governo marcado
por grandes feitos políticos, mas legou ao país a estabilidade econômica,
deixando o poder em janeiro de 95. O seu sucessor foi Fernando Henrique
Cardoso, o mentor do Plano Real.
Fernando Henrique tomou posse no dia 1º de janeiro de 1995, e seu maior
desafio era manter a moeda estável e promover o crescimento econômico do
país. Por isso, o governo apresentou uma série de medidas que promoveriam
uma mudança nas estruturas do Estado, o Plano Diretor de Reforma do Estado,
12
PNADs de 1992 e !999, cujos dados foram interpretados pela cientista social Adriana S.C.Camargo
Andrade, em Jornal da Unicamp, no site www.unicamp.br/unicamp/unicamp hoje e também estão presentes
no livro “Mulher e trabalho no Brasil dos anos 90,” de autoria da mesma.
46
uma espécie de ruptura com a era Vargas e com o Estado Novo, pois entendia
que a intervenção do Estado na economia tinha se iniciado com Getúlio Vargas e
vinha perdurando até os anos 90.
Foram aprovadas emendas para alterar a Constituição Federal de 88, com
a finalidade de facilitar a entrada de empresas estrangeiras no país, adaptando-o
às novas realidades da economia mundial, ou seja, aos tempos da globalização e
do neoliberalismo. Assim, a reforma administrativa e previdenciária, com a
universalização de critérios de equilíbrio fiscal em contas públicas, o saneamento
de dívidas passadas, o fim do monopólio estatal nas áreas de siderurgia, energia
elétrica e telecomunicações, com a privatização da Companhia Siderúrgica
Nacional, da Embraer, da Telebrás, e da Vale do Rio Doce; fim do monopólio da
Petrobrás sobre a exploração e refino do petróleo e sobre a exploração do gás
natural, foram destaques desse período.
No primeiro mandato foi aprovada também uma emenda constitucional que
criava a reeleição para cargos executivos, o que possibilitou a reeleição de
Fernando Henrique para um segundo mandato.
Na área social, foram criados vários programas destinados à população
de baixa renda como Educação Solidária, Bolsa Escola e outros.
A estabilização dos preços foi também um destaque positivo no governo
FHC, mas alguns desequilíbrios se agravaram, pois, na área de política
econômica, algumas medidas deveriam ter sido tomadas para garantir a
estabilidade do país, fortemente inserido nos mercados financeiros internacionais,
caso houvesse um quadro adverso em outras economias. O Brasil enfrentou
graves crises internacionais como a do México e a da Rússia, com reflexos na
economia do país.
Apesar das críticas e das denúncias de corrupção, Fernando Henrique foi
reeleito para um segundo mandato, que se iniciou em 1999 com uma
desvalorização do real, aumento de exportações e redução da taxa de juros.
Mudanças significativas ocorreram não só no Brasil, mas no cenário
mundial. A Guerra do Golfo foi um fato marcante, assim como a popularização da
internet e o domínio de meios de comunicação cada vez mais sofisticados.
47
Os anos 90 aperfeiçoaram as tecnologias inventadas em 80, como a busca
de conexões mais rápidas para a internet, a popularização do e.mail, que se
tornou um meio prático e rápido de comunicação, a divulgação do Microsoft
Windows. A privatização na área de telefonia permitiu um maior acesso aos
celulares de última geração, e no campo de eletrônicos, a tecnologia do CD foi
aperfeiçoada no DVD.
O mundo passou a ser “uma grande aldeia global” e a cultura jovem da
década de 90 se caracterizou pela luta contra a globalização capitalista.
Acentuou-se também o interesse de muitos pela natureza e sua preservação.
No que se refere ao trabalho feminino, o Censo Demográfico de 2001, do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mediu as mudanças
ocorridas na década de 90, e constatou que as mulheres somavam mais de 40%
da população economicamente ativa, embora essa inserção ainda ocorresse de
forma setorizada. Notou-se que o trabalho da mulher ainda se mantinha
majoritariamente nas mesmas áreas tradicionais, mas já apresentava inserções
evidentes em setores ocupacionais reservados apenas aos homens, como por
exemplo, na Economia, no Direito, na Administração de Empresas etc.
Essa ascendente participação no mercado de trabalho exigiu a expansão
da escolaridade feminina, com o ingresso maciço no ensino universitário, gerando
como conseqüência a expansão da presença feminina em profissões e setores
que requeriam especialidade, como nos diversos ramos da Medicina, nos
diferentes setores de conhecimento da área acadêmica, na direção de teatro e de
cinema e também na política etc.
No quadro internacional, em 1993, tem lugar em Viena, a Conferência
Mundial de Direitos Humanos, na qual os direitos das mulheres e a questão da
violência contra elas recebem destaque e é elaborada a Declaração sobre a
eliminação da violência contra a mulher. No Brasil registra-se também maior
atenção para essa questão.
48
No âmbito da política brasileira, registre-se,
13
que, em 1990, foi eleita a
primeira mulher para o cargo de senadora
14
, e, em 1994, a primeira para o cargo
de governadora
15
. Em 1996, o Congresso Nacional incluiu o sistema de cotas, na
Legislação Eleitoral, obrigando os partidos a inscreverem, no mínimo, 20% de
mulheres nas chapas proporcionais e, em 1997, as mulheres já ocupavam 7%
das cadeiras da Câmara dos Deputados; 7,4% do Senado Federal; 6% das
prefeituras brasileiras. O índice de vereadoras eleitas aumentou de 5,5%, em 92,
para 12%, em 96.
As profundas modificações ocorridas nas forças sociais, políticas e
econômicas do país marcaram as relações que se estabeleceram entre trabalho
e família, homem e mulher. O desemprego e a necessidade econômica
produziram novas formas de trabalho, destacando-se o trabalho informal. O
divórcio propiciou uma multiplicidade de arranjos familiares. Tudo isso gerou a
discussão em torno da legislação e de políticas de eqüidade de gênero, bem
como a redefinição do papel do Estado.
A família continuou sendo uma instituição muito cara aos brasileiros,
apesar das significativas mudanças sociais ocorridas após o advento da Lei do
Divórcio. Nos anos 90, a constituição da família ainda era nuclear (marido,
esposa e filhos), mas vinha perdendo espaço para o esquema mãe/mantenedora,
com a conseqüente diminuição da importância da figura paterna.
Em uma pesquisa da Datafolha, de 1998
16
, constatou-se que para a nova
geração, o casamento despertava pouco interesse, não havendo preocupação
em formalizar as uniões. Como na década anterior o problema da violência
doméstica tinha sido um tema de debate social, o mesmo acontece em relação
ao divórcio, com diferentes enfoques na mídia. Nos anos 90, as jovens preferiam
maridos mais compreensivos e fiéis do que trabalhadores.
13
Fonte:< http:/www. ibge.gov.br/ibgteen/datas/mulher/mulherhistória.html >
14
Júnia Marise, por Minas Gerais
15
Roseana Sarney, no Maranhão
16
Fonte: <http:/datafolha.folha.uol.com.br/pó/dossiê_família>
49
Na ciência, a identificação do DNA tornou-se instrumento eficaz na
identificação de paternidade, o que permitiu que muitas mulheres tivessem o
direito de seus filhos reconhecidos.
Os códigos de conduta, na década de 90, ainda continuavam mais rígidos
para as mulheres do que para os homens. A pesquisa dá como exemplo o fato de
se aceitar melhor o pai trair a mãe do que o contrário.(Datafolha, 1998). Mas, as
regras sociais já estavam mais maleáveis e muitas moças já tinham vida sexual
ativa, sem serem discriminadas por isso. As músicas retratavam essa liberdade,
permitindo que Rita Lee cantasse Meu bem, você me dá água na boca”. O
desejo feminino não precisava mais ser reprimido, era necessário, então, atingir
um outro patamar de liberalização, e as novelas apresentadas na TV começaram
a expor temas antes considerados como tabus, como é o caso do
homossexualismo.
Apesar de todos os avanços e das perspectivas em relação à vida adulta,
para ambos os sexos, estarem direcionadas à participação em uma vida
economicamente ativa, a pesquisa mencionada (Datafolha,1998)
17
detectou que
a grande maioria dos homens brasileiros preferia que, diante de uma situação
financeira favorável, as mulheres permanecessem em casa cuidando do marido e
dos filhos.
Foi nesse contexto que, Ponce e colaboradoras, publicaram, em 1999, em
São Paulo, o livro didático Bem-Vindo! A língua portuguesa no mundo da
comunicação.
17
Não foram apresentadas estatísticas
50
5. ANÁLISE e RESULTADOS
Passamos a analisar as representações da mulher nos textos verbais e
não-verbais dos materiais didáticos Português para Estrangeiros (Marchant,
1954), Tudo Bem (Ramalhete,1984) e Bem-Vindo! A língua portuguesa no mundo
da comunicação (Ponce et al.,1999), levando em conta o contexto social e
político em que se inscreveram.
5.1 REPRESENTAÇÕES DA MULHER NA OBRA PORTUGUÊS PARA
ESTRANGEIROS
O material didático em foco contém 20 textos verbais, destinados à
leitura.
Encontramos no material analisado 39 ilustrações, sendo 20 com
figuras masculinas e 19 com figuras femininas. A autora utiliza também textos
não-verbais, desenhos de traçado simples, em preto e branco, que ilustram os
textos do livro, e foram criados por uma profissional do sexo feminino.
O rol de desenhos começa na primeira lição e é iniciado por figuras
masculinas. As figuras femininas são apresentadas preponderantemente em
interações com figuras do mesmo sexo. Quando as ilustrações mostram
interações entre os dois sexos, reproduzem uma figura feminina contida, e quase
sempre o texto verbal que as acompanha traduz uma situação de formalidade
social, reforçada inclusive pelo vestuário dos protagonistas. Destaque-se nas
representações das figuras femininas, na obra em foco, o realce dado pelo traço
do ilustrador à vestimenta e o conseqüente apagamento das formas do corpo. Os
textos não-verbais e verbais refletem o contexto social urbano do Brasil dos anos
50, em que as moças e mulheres consideradas “de família” eram reservadas,
comportavam-se comedidamente diante da presença masculina, pois a moral
sexual diferenciada permanecia bem marcada em relação aos dois sexos.
A mulher dos anos 50 era representada como elegante, talvez pelo fato de
que, no pós-guerra, apesar das influências americanas, havia também um clima
51
de sofisticação, tanto que a alta-costura atingiu, nesta década, o seu apogeu. Tal
fato pode ser observado nas vestimentas. O design dessa época tenta reproduzir
o movimento e a fluidez, e as figuras, mesmo paradas, devem fazer com que o
observador não tenha a impressão de estaticidade
18
. Apesar de os desenhos
deste livro serem muito simples, formados apenas pela interseção de linhas,
pode-se perceber a competência do ilustrador, que conseguiu passar movimento,
delicadeza e charme às suas figuras femininas, permitindo que se observe o
quanto a cultura e os valores de uma época influenciam o fazer artístico.
Podemos, portanto, constatar a pertinência da observação feita por Kress (1996)
ao afirmar que a linguagem visual “é um produto de uma história social.”
A primeira ilustração em que aparece um protagonista exercendo uma
atividade profissional é de figura masculina. depois encontraremos a
ilustração de uma mulher, exercendo a função de professora, que nessa época,
era uma das atividades femininas consideradas dignas pela camada média da
população, podendo ser exercida pela mulher fora do lar. No livro, aliás, é a única
maneira pela qual a mulher aparece representada em um contexto profissional.
As outras figuras femininas aparecem conversando com mulheres, cercadas de
crianças e, eventualmente, interagindo com figuras masculinas.
As ilustrações refletem o conservadorismo e o ideário da época, que
sinalizavam o lar e a família como o espaço de atuação feminina, e o casamento
como a aspiração máxima da mulher. (Ver ANEXO A)
Dos 20 textos verbais das leituras do livro de Marchant, 18 focalizam
situações características do quotidiano de uma família. Não são textos autênticos
e foram criados pela autora para introduzir noções gramaticais, e oferecer ao
estrangeiro uma amostragem de diversas situações possíveis no dia-a dia das
pessoas que vivem em uma cidade brasileira, apresentando um vocabulário
adaptado às mesmas. Desses 18 textos, apenas 12 foram analisados, porque os
demais textos não apresentavam elementos de interesse para nossa pesquisa: a
Leitura 2 é composta de atividades rotineiras de comunicação, como
cumprimentos, despedidas e apresentações; as Leituras 9, 15 e 17
18
Design dos anos 50. Disponível em <htpp://www.bricabrac.com.br/...>
52
apresentavam personagens masculinos e suas atividades; as Leituras 3, 4, 11 e
20 não ofereciam elementos de interesse para nosso estudo.
A família dos protagonistas é representada por um casal sem filhos, sem
especificação de idade, Afonso Terra, professor, e Amélia Terra, do lar;
exemplificando um modelo de família brasileira daquela década. Embora o mais
freqüente, na época, fosse um casal com filhos. Os personagens fazem parte da
classe média, em ascensão no período, e estão ambientados no espaço físico de
Porto Alegre.
A vida da personagem Dona Amélia é dedicada aos afazeres do lar. Como
o próprio nome indica (o nome Amélia foi consagrado na música popular
brasileira como um símbolo da “mulher de verdade”, construído pela ótica
masculina), tem-se aí o estereótipo da mulher feliz por ser subserviente,
destituída de vaidade e sem aspirações que não coincidissem com as do seu
homem. Essa personagem representa o padrão feminino ideal da época, que é
definido a partir dos papéis sociais assumidos no lar, esposa e mãe, e do
gerenciamento das necessidades da família, ligadas às ocupações domésticas.
Na época, valorização da função de dona de casa influenciou diretamente
o tipo de instrução recebido pelas moças, que se direcionava no sentido de
prepará-las para o exercício dos papéis já mencionados. Com pouca instrução,
excetuando-se as artes domésticas, o casamento se tornou o objetivo maior do
sexo feminino. Através do casamento, a mulher substituía a autoridade do pai
pelo domínio do marido. Estudiosos como D´Avila Neto acreditam que os
mecanismos de dominação do homem sobre a mulher se sedimentaram no
sistema patriarcal, e se conservaram por causa das características peculiares da
sociedade brasileira. A representação da família que circulava na imprensa dos
anos 50 (O Cruzeiro, Querida, Cigarra, Jornal das Moças,etc) era a seguinte: uma
família branca, de classe média, nuclear, hierárquica, com papéis definidos e
regras de comportamento e sexualidade. Tais imagens divulgavam os valores de
classe, raça e gênero, que então, prevaleciam (Bassanezi,1997, p.609). Saffioti
(1992, p.184) discorda de Bassanezi no tocante a uma hierarquia familiar. Para
53
essa autora, o que existia era uma desigualdade de forças, pois os dois pólos da
relação detinham poder, que em doses desiguais.
Os textos verbais que nos apresentam a família Terra começam com a
Leitura 1, na qual encontramos uma referência a um novo personagem. Trata-se
de Elizabeth Smith, representada como americana, solteira, aluna de português
do personagem professor Terra. A aula é particular, pois o texto relata que na
sala de aula encontram-se apenas duas pessoas. Não se sabe se a personagem
feminina é jovem ou não. A situação descrita não parece ser convencional, pois
foge às regras morais de nossa sociedade na época, que não permitiam que uma
moça tivesse aulas particulares, sozinha, com um homem, em espaço diverso do
da escola ou de sua casa. A transgressão foi cometida pela personagem
americana, talvez para sinalizar que mulheres dessa nacionalidade seguiam
outras regras, diferentes dos padrões estabelecidos pela sociedade brasileira de
então.
Na Leitura 5, o personagem professor Terra pede à personagem Dona
Amélia que responda a algumas informações solicitadas pela personagem
Elizabeth. As informações são relativas às salas de estar e de jantar. O professor
acha mais conveniente que a esposa responda a essas perguntas, pois ela é que
“entende desses assuntos”. Ele aproveita para se despedir e sair, evidenciando a
marcada divisão dos universos do homem e da mulher. Tal comportamento
exprime estereótipos que se vinculavam à maneira de conceber os papéis
femininos e masculinos.
A comunicação entre os esposos é restrita e estereotipada e sua relação é
representada no texto como distante e respeitosa, A relação entre as duas
personagens femininas é formal por parte da personagem estrangeira, e educada
e condescendente por parte da brasileira. A personagem Dona Amélia está
representada no papel de esposa, exercendo a função de dona de casa, já a
personagem Elizabeth é representada no papel de aluna. (Ver ANEXO B).
Na Leitura 6, a personagem dona Amélia telefona para Varig, pois quer
saber a hora que o avião de São Paulo chega, trazendo uma amiga. O telefone é
atendido por uma personagem feminina, representada na função de telefonista.
54
Observe-se que cresceu, na década de 50, a participação da mulher no mercado
de trabalho, que era procurado principalmente por jovens solteiras e de poucos
recursos, pois esposas de classe média, geralmente, não trabalhavam fora
(Bassanezi, p.625).
A Leitura 7 mostra Dona Amélia fazendo compras no mercado. O texto
explicita que essa atividade, ligada às suas obrigações de dona de casa, era
desenvolvida três vezes por semana. Nas bancas de frutas, de verduras e no
açougue, Dona Amélia é atendida por homens. A feira é representada como um
espaço de trabalho masculino.
Na Leitura 8, a personagem Dona Amélia vai ao médico, que é
representado por um personagem masculino, e é recebida por uma enfermeira. A
enfermagem era então um trabalho que podia ser desenvolvido por mulheres,
como se viu na Segunda Guerra.
A Leitura 10 apresenta as personagens femininas, Dona Amélia e
Elizabeth, indo de táxi fazer compras no Centro (de Porto Alegre). Trata-se de
uma atividade de lazer, mas certamente ligada às necessidades da casa ou da
família. A relação entre as personagens continua sendo formal por parte da
personagem Elizabeth, pois o tratamento “senhora” é utilizado apenas pela
americana. As personagens estão representadas no papel de companheiras.
A Leitura 12 mostra o personagem Sr. Terra em uma agência de turismo.
Ele vai entrar de férias e tem a intenção de fazer uma viagem para Ouro Preto. O
personagem masculino resolve o dia da viagem, o meio de transporte e o
itinerário, faz as reservas de passagens e de lugares em uma excursão, mas
precisa da opinião da mulher no tocante a escolha do hotel. Neste quesito, Dona
Amélia poderá opinar, pois o hotel é como se fosse uma residência coletiva, com
acomodações, horários, alimentação etc. É, portanto, um substituto da casa por
um determinado período, constituindo-se, por isso, em um assunto de mulher. A
personagem feminina, aludida no texto, está representada no papel social de
esposa.
A Leitura 13 mostra a personagem Elizabeth Smith em um escritório
aduaneiro. O perfil da personagem americana independente difere do da
55
personagem Dona Amélia dependente. A desenvoltura da estrangeira contrasta
com as limitações impostas `a mulher brasileira daquela época e daquele estado
do Sul. O espaço de Elizabeth extrapola os limites do lar: viaja sozinha, apresenta
uma maior aproximação com o sexo oposto, e toma decisões para resolver os
problemas de sua própria vida. Essa diferença pode ser devida à participação da
mulher na Segunda Guerra, o que certamente impulsionou as já existentes
tendências de emancipação da mulher americana.
Na Leitura 14, ambientada em um instituto de beleza, e na Leitura 16, que
tem como cenário uma loja de fazendas, são feitas menções ao trabalho feminino
fora do lar, exercido em serviços de manicura, cabeleireira, balconista de loja de
tecidos, vendedora de roupas femininas. Essas profissões o condizentes com
as atividades então ditas “femininas”, baseadas em servir, e que não exigiam
muita instrução. Grande parte das mulheres que trabalhavam, geralmente dos
setores mais pobres da população, prestavam serviços de caráter pessoal, como
os que surgem nessas lições.
Ainda na Leitura 16, a personagem Dona Amélia vai comprar uma fazenda
para fazer uma saia. Só que a saia será feita por ela mesma, evidenciando uma
mulher “prendada”, ou seja, com o domínio de várias habilidades domésticas que
a capacitavam a fazer de seu marido um homem satisfeito (dentro dos padrões
da época). Para as mulheres da década de 50, “o bem-estar do marido era a
medida da felicidade conjugal” (Del Priore,2006,p.291), e tudo indica que a
felicidade conjugal estava diretamente ligada ao bom desempenho nas tarefas do
lar.
Na Leitura 18, a personagem Dona Amélia vai à casa de calçados. Deseja
comprar sapatos de salto alto, sendo atendida por um personagem masculino.
Na Leitura 19, o casal Terra recebe os amigos Antônio e Alice, que vieram
de Recife para conhecer Porto Alegre. A personagem nordestina, Alice, não tem
um perfil específico traçado, que possa ser contrastado com o da personagem
sulista Dona Amélia. Marchant mostra apenas uma mulher de classe média
acompanhando o marido em uma viagem de turismo. As personagens femininas
estão representadas nos papéis de esposas e amigas.
56
Concluindo, na obra Português para Estrangeiros, as representações da
mulher tecidas pelo discurso de Marchant dão subsídios para que o estrangeiro
construa suas representações da mulher brasileira restritas à brasileira da Região
Sul, de idade indefinida, de classe média urbana, investida na função de dona-
de-casa, e cuja esfera de atividade se limita aos cuidados com o espaço
doméstico, aí incluídos o marido e sua própria pessoa.
5.2 REPRESENTAÇÕES DA MULHER NA OBRA TUDO BEM
O livro Tudo Bem - 1 tem 12 unidades (com atividades relativas ao ensino
de gramática e vocabulário, e a sistematização de noções contidas na fitas
cassetes que acompanham o livro). Os textos nelas incluídos vão do puramente
verbal ao exclusivamente não-verbal, passando por outras modalidades que se
constroem na interseção do verbal com o não-verbal.
Fixando-nos no conjunto das 12 unidades do livro, temos 37 textos
verbais: 24 textos dialogados (não autênticos) e 13 outros de gêneros diferentes,
dos quais 3 são autênticos, 5 são não-autênticos e os 5 outros não podem ser
incluídos com segurança em nenhuma dessas categorias.
Desses 37 textos verbais, 32 foram incluídos em nosso corpus, pelo fato
de serem relevantes para nossa pesquisa por conterem representações da
mulher.
No que diz respeito aos 81 textos não-verbais presentes nas 12 unidades
do livro, foram encontradas 71 ilustrações de página, 5 fotografias(1 seqüência
narrativa muda e 1 instantâneo de rua) e 5 quadrinhos (3 mudos e 2 com apoio
de texto escrito). Desses 81 textos, 37 foram incluídos em nosso corpus.
Todos os textos com recurso à imagem parecem ter sido produzidos
especificamente para ilustrar o material, sendo que os desenhos foram feitos por
profissionais do sexo masculino.
Os desenhos figurativos são bem elaborados e misturam personagens
masculinos e femininos, com preponderância dos masculinos, em número de 58,
enquanto os femininos são em número de 36. uma tendência em mostrar os
57
personagens interagindo em momentos de lazer e a primeira menção a um
contexto de trabalho é feita através de um personagem masculino - um garçom.
O rol de desenhos, todos elaborados por profissionais do sexo masculino,
começa na Unidade 2 e é iniciado mostrando uma interação entre um
personagem masculino e um feminino (Ver ANEXO C) Trata-se de um momento
de puro lazer. Os personagens estão à beira-mar em um dia ensolarado. A figura
que aparece em primeiro plano é a masculina. A figura feminina aparece em
segundo plano. Esta foi desenhada com cabelos lisos e pretos e uma flor nos
cabelos. A flor, certamente, ali está para indicar que a cena se passa em um país
tropical, embora a figura não pareça brasileira e sim uma mulher da Polinésia.
Sentada em um banquinho, ela toca violão e canta uma canção de Dorival
Caymmi, “É doce morrer no mar”, o que pode indicar a Bahia como o espaço
onde ocorre a cena. Não se consegue visualizar o traje da moça, pois o violão
esconde a parte superior do corpo e a rede só permite que se vejam as pernas
desnudas. Pode-se pensar até que esteja nua. Como a discussão sobre a
sexualidade é um assunto em destaque nos anos 80, a ilustração sugere uma
mudança de costumes, evidenciando que na esfera sexual as regras sociais já
permitiam uma maior liberalidade.
Antes da ilustração há um diálogo, cujo tópico é hotel. A ilustração está
colocada no fim do diálogo, podendo estar ou não ligada ao mesmo. Mas, tudo
leva a crer que o desenho foi ali colocado como uma transição entre o diálogo e a
seqüência fotográfica que vem depois.
Na mesma unidade, encontramos o desenho figurativo de um casal
chegando ou saindo provavelmente de um hotel. O personagem masculino
aparece primeiramente, carregando a bagagem. Atrás dele vem o personagem
feminino.
Na Unidade 3, encontramos um desenho figurativo que também retrata
uma interação entre os dois sexos (Ver ANEXO D). Trata-se de uma cena em
que ocorre um jogo de cartas. Em primeiro plano, aparece a ilustração de um
personagem masculino segurando um bule. Perto dele encontra-se uma parte da
letra da música Amélia. Deduz-se que ele vai colocar café para servir os dois
58
personagens de fundo: um homem e uma mulher, que jogam cartas. A leitura do
desenho ilustrativo passa pela interseção entre a figura que representa a mulher
e a letra da canção. É um texto sincrético, no qual a palavra exerce em relação à
imagem a função chamada por Barthes (1984) de ancoragem, pois é por meio
dela que o leitor percebe o sentido da crítica feita pelo desenho. A mulher
“Amélia” é um estereótipo feminino, conforme foi explicitado na análise do livro
de Marchant. Esse estereótipo era atuante principalmente nas classes populares,
que tendiam a ser mais resistentes às mudanças.
O desenho mostra uma mulher vestida de acordo com a moda liberal de
seu tempo: o vestido justo, bastante decotado, deixando a mostra seios
volumosos (uma maneira de marcar o feminino)
19
. Ela está em público usando
bobes nos cabelos (o que era considerado de mau gosto) e sandálias havaianas
(que parecem marcar o nível social da personagem, pois nos anos 80 esse tipo
de calçado ainda não tinha conquistado a notoriedade internacional de agora,
sendo mais usado por pessoas pobres).
Ao mesmo tempo em que a personagem se mostra feminina através da
roupa, apresenta gestual e comportamento masculino, como a forma com que
pega o cigarro e as cartas
20
.
Podemos estar diante de uma crítica à modernidade dos tempos.
Apontando um movimento de alteração na ordem dos costumes, que propiciava
uma tentativa de igualdade dos sexos. Subjaz, ao texto sincrético a presença de
uma ideologia machista, o que nos permite perceber que a noção de poder social,
abordada por Van Dijk(2005) em seus estudos sobre ideologia, realmente
embasa de forma sutil as relações entre grupos sociais. Notamos que ao lado da
modernidade se manifesta o caráter conservador, pois mudanças de costumes
promovendo relações sociais novas, geralmente provocam tensões, fazendo com
que o grupo que se sente ameaçado lute pela sua preservação.
Na Unidade 4, encontramos sete desenhos figurativos de personagens de
ambos os sexos executando ações diversas São duas as personagens femininas
19
Na década de 80, como a ginástica estava em alta,os vestidos eram decotados, justos, tendo como objetivo
a exibição do corpo.
20
O próprio jogo de cartas era uma atividade lúdica mais próxima do universo masculino.
59
retratadas. São em número de cinco os personagens masculinos, e um deles é o
primeiro personagem representado em contexto de trabalho: um garçom.
Na mesma unidade, há duas séries de desenhos para cotejo. Na primeira,
os desenhos representam sombras que sugerem uma mulher empurrando um
carrinho de bebê e dois homens empunhando armas de fogo. Na segunda série,
desenhada em detalhe, descobre-se que o carrinho de bebê era de
supermercado e que as armas empunhadas eram uma flauta e um secador de
cabelos. Percebe-se que nas duas séries a mulher conserva seus papéis
tradicionais de mãe e zeladora do lar, mas que o homem é apresentado sob novo
ângulo, de indivíduo preocupado com a aparência.
Na Unidade 5, encontramos um desenho figurativo de duas personagens
femininas. É uma representação da mulher em dois papéis sociais no âmbito da
família: mãe e filha.
Na mesma unidade há uma outra ilustração de um casal. A figura de
primeiro plano é feminina. Trata-se de uma mulata, por causa dos traços
fisionômicos e do cabelo. Muito bem vestida, de salto alto, vestido justo e sensual
do estilo tomara-que-caia, e acessórios, de acordo com a moda da época - alegre
e versátil, que fazia do corpo uma vitrine. A figura de segundo plano é masculina.
Os bigodes e a vestimenta sugerem que seja um português. Perto dele se pode
ler uma frase de uma música de carnaval que diz “o teu cabelo não nega [mulata,
mulata, eu quero o teu amor].” Todos esses detalhes físicos e mais a fascinação
pelas mulatas manifestam o estereótipo do português construído pelo brasileiro.
Trata-se de uma representação seletiva, destacada por Doise (1983) e que reflete
as interrelações entre grupos, no caso portugueses e brasileiros. A mulata
também está vinculada a um estereótipo certamente criado nos tempos da
escravidão, e.ligado aos prazeres do sexo. É um estereótipo étnico,
possivelmente ligado ao exotismo, que sempre circulou entre os brancos em
relação ao desempenho sexual do negro ( tão antigo, que já estava presente nas
histórias orais que circulavam na Idade Média em países do Oriente, e que foram
posteriormente compiladas, formando o livro das Mil e Uma Noites). A mulata
traria dos genes negros a predisposição para o sexo, sem contar com a beleza da
60
mestiçagem. Por isso, no Brasil colonial, o homem branco se casava com a
mulher branca, cuja obrigação era administrar o serviço doméstico executado
pelos escravos, mas quem administrava o prazer de seu corpo era a negra e
principalmente a mulata, que, com sua sensualidade, despertava os desejos do
senhor. Na análise de Doise sobre as funções dos estereótipos, o da mulata
poderia ser entendido como uma representação justificativa, na medida em que o
senhor branco se desculpa de suas transgressões colocando a responsabilidade
do ato na mulher mestiça, a quem curiosamente atribui encantos especiais,
quase feitiços, todos ligados à esfera sexual. (Ver ANEXO E).
Na Unidade 6, encontramos dois desenhos de personagens femininos: um
deles representa uma jovem, (recém-saída do banho), falando ao telefone. A
imagem está em consonância com o estereótipo da adolescente de classe média,
que passa horas ao telefone.
A Unidade 7 apresenta dois desenhos figurativos: o primeiro guarda uma
relação dialógica com uma aquarela de Debret, “Um funcionário a passeio com
sua família” (Ver ANEXO F), que retratava o passeio de uma família patriarcal da
época (1820/1830). O artista francês assim o descreve:
Nesta aquarela, o chefe da família abre a marcha, sendo seguido
imediatamente por seus filhos, colocados em fila por ordem de
idade, indo o mais moço sempre à frente; vem a seguir a mãe
ainda grávida; atrás dela, sua criada de quarto, escrava mulata,
muito mais apreciada no serviço do que as negras; seguem-se a
ama negra [com um bebê] e a escrava da ama... (Debret,
1989,p.50)
No desenho da família contemporânea representada na Unidade 7 de
Ramalhete, o chefe da família é seguido imediatamente pela mulher, que parece
grávida e carrega um bebê, só depois vêm os seis filhos (de sexos e idades
diferentes) e o cão da família. Ou seja, a mulher é representada como a segunda
na hierarquia familiar, com acentuação de seu papel de gerar filhos e cuidar
deles. A numerosa família representada, por sua vez, destoa do padrão dos anos
80, em que a pílula anticoncepcional já tinha amplo uso em nosso contexto. O
texto visual está colocado abaixo de uma atividade de leitura e seleção de
61
respostas, e não parece ter relação com o assunto tratado na atividade em
questão, que é: Você sabe amar?
Na Unidade 8, encontramos cinco desenhos figurativos, que fazem parte
de uma atividade gramatical. Dois representam casais em situação de lazer. As
personagens femininas aí desenhadas estão assumindo os papéis sociais de
esposa e mãe. Há uma outra personagem feminina representada de bobes nos
cabelos, em casa, ouvindo rádio e encaminhando-se para o telefone. A ilustração
sugere a ociosidade de muitas donas de casa de classe média que não se
ocupam dos afazeres da casa por terem empregadas domésticas. Os outros dois
desenhos foram desprezados, pois não continham representações femininas.
Na Unidade 9, foram desenhadas três representações de fotos de família.
São três casais e filhos. As mulheres nelas representadas surgem no papel social
de esposa, mãe e filha.
Na mesma unidade encontramos mais dois desenhos figurativos. Um
deles mostra personagens masculinos e femininos em interação na praia. As
mulheres estão representadas no papel social de mãe e de namorada. O outro
desenho mostra uma personagem feminina na janela escutando, com um ar
enamorado, uma serenata - um costume que não era mais muito comum na
cada de 80. O personagem masculino está em primeiro plano.
A Unidade 10 mostra o desenho figurativo de um casal, vestido de forma
simples, estando o personagem masculino de havaianas. Ele mostra os bolsos
vazios para a mulher que, representada no papel social de esposa, indaga ao
homem o que fazer. A frase utilizada “E agora José?” mantém uma relação
dialógica com o poema homônimo de Carlos Drummond de Andrade, que versa
sobre as dificuldades de José, e de sua vida sem perspectivas, como a de muitos
brasileiros. Na época em questão, a inflação, segundo Ribeiro e colaboradores
(1995, p.237), chegou a 220%. Destacam esses autores que naquele período “a
panela do pobre continuava vazia e a geladeira da classe média já não estava
tão cheia. O próprio presidente confessou certa vez a um grupo de escolares:
Se ganhasse salário mínimo acho que dava um tiro no coco!”
62
No final do diálogo 1, da Unidade 11, encontra-se o desenho de uma figura
feminina, idosa, tirando roupas de uma gaveta e atirando-as para o alto. Esse
desenho representa o estereótipo da velha, provavelmente insana.
A Unidade 12 oferece quatro desenhos relacionados com atividades
gramaticais. Nesta série aparecem pela primeira vez personagens femininos em
contexto de trabalho: uma empregada doméstica e uma enfermeira. A empregada
doméstica está interagindo com outra figura feminina,no caso, a dona da casa. A
relação apresentada é assimétrica e hierarquizada. O mesmo acontece em
relação à enfermeira, que interage com um médico. A mulher continua sendo
mostrada em um contexto de submissão e em esferas de trabalho
tradicionalmente femininas, como enfermeira e doméstica. Nos outros dois
desenhos, a figura feminina é representada em uma interação com um
personagem masculino e no papel social de mãe.
O livro de Ramalhete oferece, ainda, outros gêneros de documentos
visuais, como, por exemplo, uma seqüência narrativa na Unidade 2, formada por
quatro fotografias, sem apoio de texto verbal. O documento visual ilustra uma
interação de cunho afetivo: um desentendimento entre dois jovens de sexos
diferentes, em um restaurante. O casal é o elemento central da foto, sendo
apresentado, portanto, em primeiro plano. Em segundo plano, podem ser vistos
partes do restaurante e clientes em outra mesa. É a última foto que elucida o
porquê do olhar invasivo do fotógrafo na privacidade do casal. O jovem, um
cabeludo dos anos 80, de calça jeans e camisa pólo, resolve o conflito da forma
mais tradicional - oferecendo flores para a parceira. O sorriso da moça completa
a mensagem desta seqüência. Percebe-se que dar e receber flores não se
prende a nenhuma geração específica.
A Unidade 10 apresenta, ainda, um instantâneo de rua, focalizando dois
personagens de sexos diferentes utilizando um telefone público, popularmente,
conhecido como orelhão. A mulher usa shorts e tem uma postura mais distensa,
e o homem, uma roupa e postura mais convencionais.
Foram também encontrados cinco seqüências de quadrinhos (embora não
autênticos) no livro de Ramalhete. Três deles se apresentam sem apoio de texto
63
verbal. No primeiro, a figura feminina é representada em atividades condizentes
com o papel de mãe. No segundo, na Unidade 8, o personagem principal é do
sexo masculino, mas aparecem personagens femininos em um espaço lúdico
tido, até alguns anos atrás, como predominantemente masculino: um estádio de
futebol. Os últimos quadrinhos relatam uma interação entre uma personagem
feminina e um super-herói, que surge para resolver seus problemas.
Na parte de atividades da Unidade 7, foram encontradas duas histórias em
quadrinhos com apoio de texto verbal. A primeira focaliza as desavenças de um
casal em um restaurante. Sabemos que estão discutindo, na primeira tira, pelas
cobras, lagartos e outros ícones que aparecem no balãozinho unindo os
personagens masculino e feminino, e pela agressividade refletida em seus gestos
e faces. A segunda tira mostra o garçom à mesa com um papel escrito “conta.
Um balão com um grande ponto de interrogação indica ao leitor que o
personagem está intrigado com a mesa vazia, onde se encontram apenas as
sobras da refeição. Na terceira tira, o garçom vai atrás deles para lhes mostrar a
conta. No último, o homem muito sem graça (o que é indicado por um outro
ícone: bolinhas perto do rosto, marcando a confusão mental do personagem),
desempenha o papel que dele é esperado: paga a conta, dando a entender que
tinha havido um esquecimento. O quadrinho não tem autoria assinada e
representa a mulher no papel de uma pessoa desonesta, e dependente
financeira.
O segundo quadrinho aponta o mesmo tema,”desonestidade”, só que com
uma outra abordagem. Trata-se de uma personagem feminina em ambiente de
trabalho. É uma agência de Correios e a personagem exerce a função de
vendedora de selos. Um personagem masculino, que representa um senhor bem
idoso, precisa assinar um papel. Não tendo caneta, pede a da vendedora. A
última tirinha mostra o personagem andando de bengala na rua com a caneta no
bolso. O quadrinho não tem autoria assinada.
Os quadrinhos descritos estão fazendo uma incursão na área de
costumes, apontando de forma bem-humorada dois tipos de desonestidade, ou
seja, as duas faces de uma mesma moeda: o calote que o casal planejava dar no
64
restaurante, e o esquecimento do velhinho, que ficou com a caneta da
vendedora. As duas narrativas mostram o ideário e postura do seu autor (ou
autores), face às situações que ocorrem no contexto sócio-cultural ao qual
pertence(m).
No que se refere aos textos verbais, o primeiro dos 24 textos dialogados
surge no Diálogo 1, da Unidade 2, que se realiza em um hotel, possivelmente em
um espaço urbano. Os personagens são a recepcionista do hotel, Sr. João e D.
Anita. É o personagem masculino que se dirige à recepcionista. Dona Anita fala
apenas uma vez, mas prevalece a escolha dela.
Encontramos, então, duas personagens femininas, sendo que uma delas,
a recepcionista, está representada em seu ambiente de trabalho. A recepcionista
sugere que somente o Sr. João preencha a ficha do hotel (“Faça o favor de
preencher a ficha. A senhora não precisa.”), evidenciando a posição superior da
figura masculina em nossa sociedade.
O Diálogo 2, da mesma unidade, tem como personagens o Sr. Maurício,
D.Regina e garçons. O espaço onde ocorre o diálogo é um restaurante,
provavelmente em contexto urbano. É o personagem masculino que interage com
os garçons, mas as escolhas de D.Regina são aceitas. Essas escolhas dizem
respeito à localização da mesa e ao prato a ser pedido. A relação entre o casal é
simétrica, evidenciando a modernidade das relações, e apresentando a mulher
bebendo caipirinha e cerveja.
O Diálogo da Unidade 3 tem como personagens masculinos o Sr. Rui e
Paulinho. Os femininos são D.Maria e D.Amélia. A interação entre os
personagens ocorre em um apartamento para alugar no Rio de Janeiro. São
feitas alusões a outras regiões do Brasil: norte (cidade de Manaus, no
Amazonas), Nordeste (cidade de Recife, em Pernambuco).
A proprietária do apartamento é D.Amélia, representada no papel de viúva
e mãe. A personagem faz menção a um filho adulto, mas ela mora sozinha e tem
a liberdade de dirigir a sua própria vida. Talvez a liberdade chegue com a idade. e
com a viuvez. D. Maria não tem profissão definida e está representada no papel
de esposa e mãe. O personagem masculino, o Sr.Rui é o chefe da família e é ele
65
quem toma as decisões. A figura do homem continua relacionada ao papel de
mantenedor e todas as decisões realmente importantes são tomadas por ele.
O diálogo evidencia a má educação dada à criança e um preconceito
contra a velhice, claramente presente nas falas dos personagens D.Maria e
Paulinho :
Paulinho: - Que velha chata!
D.Maria: - Ela fala demais [...].
A Unidade 4 tem dois diálogos. O Diálogo 1 se passa em uma rua de um
subúrbio do Rio de Janeiro. A personagem feminina é Rita, e faz apenas uma
pergunta pedindo informação sobre a localização de uma rua. Os outros são
masculinos: Paulo, Márcio, Paulinho e o jornaleiro.
No Diálogo 2, a personagem feminina é D.Anita e os masculinos são o
Sr.Luís e o motorista. O Sr.Luís vai viajar, provavelmente, a trabalho, Não há
indicações sobre isso e nem sobre profissão. D. Anita parece ser dona de casa.
O espaço, provavelmente, é urbano, sem indicações de cidade. O casal é de
classe média e o personagem feminino é representado no papel de esposa.
Na Unidade 5, o Diálogo 1, apresenta como personagens D.Lúcia e o Sr.
Haroldo. O espaço onde se realiza o diálogo deve ser a residência do casal,
embora não haja informações sobre isso. O personagem masculino chega do
trabalho e diz que seu dia foi muito cansativo”, a mulher responde que o dela foi
“como sempre-a rotina do trabalho doméstico. D.Lúcia é representada no papel
social de esposa e mãe. São mencionadas atividades ligadas às funções
exercidas pela mulher no lar: fazer feira e comprar roupas para as crianças e para
o marido.
No Diálogo 2, da mesma unidade, as personagens femininas são a
empregada e a patroa. A relação entre os papéis de empregada e patroa é
assimétrica, o que pode ser verificado no tratamento dado a cada uma
(senhora/você) e no diálogo sob forma de interrogatório, no qual a patroa procura
verificar o cumprimento das tarefas domésticas pela serviçal.
Desde o período colonial o trabalho de domésticos está presente na casa
de um grande número de famílias brasileiras. O trabalho desenvolvido no interior
66
das casas sempre foi essencialmente feminino, e quando deixou de ser escravo e
passou a ser remunerado assumiu um papel importante na absorção de mulheres
com pouca ou nenhuma escolaridade, sem experiência profissional e com
grandes dificuldades de ingressarem no mercado de trabalho. Em 1985, havia no
Brasil cerca de 3,5 milhões de mulheres ocupando a função de empregadas
domésticas (IBGE-PNAD-1985).
No Diálogo 3, da mesma unidade encontramos dois personagens
femininos- Áurea e Beatriz. Trata-se de uma conversa entre amigas, na qual
foram destacadas atividades pertinentes a pessoas jovens e solteiras: namoro,
praia, fim de semana em Búzios, noitada etc. O espaço representado é o urbano
e a relação entre as amigas é simétrica.
Não são feitas referências a contextos profissionais, só a atividades de
lazer.
O Diálogo 1, da Unidade 6, apresenta como personagem feminina D.Alzira
e masculinos, o Sr. Antonio (Tonho) e Gustavo (Guto). O espaço representado é
uma rodoviária, em contexto urbano. D.Alzira está representada no papel de
esposa e mãe e não foram feitas referências a contextos profissionais.
O Diálogo 2, da Unidade 6, tem como personagem feminina Luzia, e o
masculino é Arnaldo. O espaço onde se realiza o diálogo parece ser um
aeroporto. Luzia vai viajar sozinha para a Europa. Não foram feitas alusões ao
motivo da viagem e nem a possíveis atividades profissionais da personagem. Ela
está sendo representada no papel de esposa, com alguma autonomia.
No Diálogo 3 encontramos uma única personagem feminina, D.Marisa e o
personagem masculino é o funcionário da seção de achados e perdidos. O
espaço onde se realiza o diálogo é uma estação de trem, e D. Marisa está sendo
representada no papel de mãe.
O Diálogo 1, da Unidade 7, tem apenas personagens masculinos, Aderbal
e Nestor, mas são feitas referências a uma personagem feminina, Jandira. O
personagem Nestor relata para o outro personagem a sua tristeza com uma briga
que teve com Jandira, sua namorada, as atitudes dela depois de receber um
67
presente e as suspeitas de que ela tenha outra paixão. É aconselhado pelo
amigo a reconquistá-la com uma carta de amor e a marcação de um encontro.
O Diálogo 2, da mesma unidade, apresenta duas personagens femininas:
Jandira e Aparecida. A personagem Jandira é a mesma que foi citada por Nestor
no diálogo anterior, e já aparece reconciliada com o namorado e de casamento
marcado. Formou-se uma seqüência narrativa dos acontecimentos, com ligação
direta dos dois diálogos aos textos do gênero carta, apresentados na seção de
atividades da mesma unidade.
Trata-se de uma conversa entre amigas, na qual Jandira relata estar
“ocupadíssima” com os preparativos para o casamento com Nestor. A ocupação
destacada está relacionada a fazer “compras sem parar” e “gastar um dinheirão”.
O cruzamento dos dados oferecidos pela leitura das cartas escritas pelo
personagem Nestor e as falas da personagem Jandira neste diálogo, permitem
que se deduza que as atitudes de Jandira tinham como objetivo forçar Nestor a
decidir-se pelo casamento. De acordo com esses textos, o casamento ainda
continuava sendo o anseio maior das mulheres.
Percebe-se a presença de um estereótipo de gênero, relacionado a
atitudes femininas: toda mulher é perdulária. É um estereótipo antigo que pode
ser observado até nas histórias de cordel do início do século
21
. Como a mulher
foi, por muito tempo, economicamente dependente do marido, o dinheiro gasto no
supérfluo era o produto do trabalho dele.
O texto faz também alusões a compras feitas através do sistema de
crédito, pois o “dinheiro não dá”. O país, nos anos 80, estava passando por uma
grave crise econômica, com uma inflação descontrolada, o que diminuía o poder
de compra do consumidor.
O diálogo faz também referência ao trabalho feminino, mas sem
especificações, pois o personagem Aparecida diz que está tudo na mesma e cita
sua rotina: “tem trabalhado” e saído com o namorado.
21
Ver obra de Leandro Gomes de Barros (1868/1918)
68
No Diálogo 1, da Unidade 8, as personagens femininas são rotuladas
como “mulheres” e os masculinos são o entregador da tinturaria, “homens” e um
bêbado.
O espaço representado é possivelmente urbano e as mulheres são
representadas como palpiteiras em conversas de rua.
O Diálogo 2, da mesma unidade, só apresenta personagens masculinos,
Afonso, Ricardo e Joaquim. O diálogo se realiza em espaço possivelmente
urbano. São feitas referências a uma personagem feminina, Ângela, que vai
oferecer uma festa.
Trata-se de uma conversa entre amigos, estando um deles chateado
porque o Flamengo perdeu o jogo. Os amigos o convidam para ir à festa da
Ângela, onde encontrarão música, bebida e garotas bonitas. “Vão se divertir à
beça”. A mulher está sendo representada como uma das diversões masculinas.
Estereótipo de gênero novamente.
O Diálogo 1, da Unidade 9, apresenta duas personagens femininas, Márcia
e Alice. O espaço representado é urbano. O texto destaca as atividades sociais
praticadas por algumas mulheres jovens e solteiras da época: sair com
freqüência à noite, freqüentar restaurantes e boates, dançar a noite inteira. A
personagem Alice deixou de praticá-las após o casamento, mas o impedimento
não se encontra no casamento propriamente dito, mas na ocorrência de uma
gravidez. Não são feitas alusões a um contexto de trabalho.
O Diálogo 2, Unidade 9, apresenta a personagem Gabriela e os
personagens José Macedo e Renato Alencar. A personagem feminina aparece
apenas como incentivadora de um dos personagens masculinos, para que se
candidate a uma vaga de ator.
O Diálogo 3, da mesma unidade, apresenta dois personagens:um
masculino; e outro, um repórter, sem sexo definido. Trata-se de uma entrevista
para a rádio Pindorama, e o personagem Haroldo faz alusão à ausência de sua
“querida mãezinha”. A figura feminina, sempre muito presente, no papel social de
mãe, tem sua importância destacada pelo texto. A mãe é também um dos
estereótipos construídos acerca da mulher. É a dona de todas as virtudes e,
69
portanto, assexuada. Sendo o Brasil um país de tradição católica, o culto à figura
da Virgem Maria impregnou a representação da mulher mãe.
O Diálogo 2, da Unidade 11, apresenta duas personagens
femininas,Adriana e Daniela. O espaço representado é urbano e a classe social
dos personagens é a média.
O texto apresenta alusões ao contexto de trabalho de uma das
personagens, a Petrobras, bem como a uma boa remuneração salarial. A outra
personagem é estudante e se prepara para fazer o vestibular de Medicina ou
Odontologia, atestando que a mulher já ingressava, normalmente, em carreiras
de nível superior consideradas, anteriormente, como masculinas.
Na Unidade 12, o Diálogo 1, apresenta como personagens femininos,
Alice, sua mãe e uma amiga. Como personagens masculinos encontramos, o
narrador, Alberto e seu pai.
A personagem Alice já apareceu no Diálogo 1, da Unidade 9,no qual
também é feita uma alusão ao Alberto, seu marido. Estabelece-se uma seqüência
narrativa, ligando esses dois diálogos e o de número 3, Unidade 12.
Trata-se de uma conversa, provavelmente no espaço da rua, entre os
personagens sobre o bebê esperado por Alice.Com exceção de Alice, de sua
mãe e do narrador, os outros personagens torcem para que seja um menino.
Destaque para a frase dita por Alberto, “Espero que seja um garoto. Claro, tem
que ser um homem”, que evidencia a discriminação sofrida pela mulher desde o
berço. Os homens sempre desejaram filhos homens por motivos históricos que
não vem ao caso explicar, mas o interessante é que tal postura ainda perdurasse
em 1984. Destaca-se a inferioridade do sexo feminino, e a ideologia da
supremacia do sexo masculino. A mulher, neste diálogo, é representada no papel
de mãe e esposa.
No Diálogo 2, da mesma unidade, encontramos como personagem
feminino Alice e como personagens masculinos, Alberto, o carregador e o
técnico. Os personagens são os mesmos do diálogo anterior, só que
representados no espaço da casa.
70
A personagem feminina é retratada no papel de esposa e de dona de
casa, enfatizando, que a figura da mulher ainda se mantinha colada às funções
exercidas no lar e aos papéis sociais assumidos no âmbito da família. Dois
papéis estereotipados: o de esposa e o de dona de casa.
Quanto aos textos verbais não-dialogados, analisamos as cartas de Nestor
para Jandira, que podem ser encontradas na seção de atividades da Unidade 7.
São três, as versões escritas por Nestor. Na primeira versão, além das
juras de amor, o personagem utiliza uma argumentação semanticamente
ambígua ao escrever “Tudo o que é meu pertence a você, pois eu sou todo seu”,
não se sabe o que pode significar o “tudo” em matéria de bens, mas dependendo
da situação e da pessoa a quem é endereçada, pode se tornar uma sutileza
bastante convincente.
Posteriormente, ele fala em ”um presente lindo e precioso“, que tinha
comprado para ela, o que constitui troca de bens materiais por afeto. Circula
também a ideologia de que mulher se compra articulada com o estereótipo da
mulher interesseira.
Na segunda versão da carta, Jandira é considerada uma mulher sem
coração.
Na terceira versão, que depois constataremos ter sido a escolhida, Nestor
capitula e resolve casar, e continua a oferecer presentes, no caso oferece “todas
as frigideiras do mundo”. O personagem continua a utilizar seu poder de compra
como argumento de conquista, que ao mesmo tempo evita o risco da perda. O
ideário masculino freqüentemente associa sexo a dinheiro, pagar é uma forma de
acesso ao seu objeto de desejo. Há uma música de Geraldo Pereira, intitulada
Bolinha de Papel, que exemplifica de forma clara essa postura masculina: “adoro
a Julieta /mas só não quero que me faça de bolinha de papel/ tiro você do
emprego/ dou-lhe amor e sossego/ vou ao banco e tiro tudo pra você gastar”.
Na seção de atividades da Unidade 9, encontramos um texto não-
autêntico, do gênero Crítica de Cinema, impresso no, também, não-autêntico
Jornal da Tarde, de 21 de setembro de 1984. O texto elogia um determinado
filme, que se propõe a ser fiel aos fatos históricos, refere-se aos protagonistas
71
dizendo que os índios andam nus e são muito feios, “principalmente as
mulheres”. Não é possível saber se a feiúra dos índios é um preconceito étnico
ou se está ligada apenas à má escolha dos figurantes.
Na seção de Atividades da Unidade 11, foi encontrado um texto não-
autêntico do gênero classificados. Trata-se de anúncios de emprego. Em dois
deles aparecem alusões ao trabalho feminino. São direcionados a moças que
saibam lidar com o público ou fazer contatos (esse é para jovens de ambos os
sexos).
Na mesma seção, encontramos um texto de apresentação de um livro
chamado Em toda parte a amargura, escrito por Francisca Silva.
Trata-se da apresentação do livro da personagem Francisca. A inserção
desse texto foi interessante, porque mostrou outra opção de trabalho feminino. O
aprendiz estrangeiro pode perceber que a atividade da mulher não está restrita
aos afazeres domésticos, e nem tampouco aos setores de trabalho
convencionais.
Nos textos não-verbais de Tudo bem 1, a mulher é representada de
forma diversificada e polarizada:
a)- A mulher sensual, representada com acentuação de traços que
exacerbam os contornos do corpo e pouca roupa, e a esposa/mãe, representada
com apagamento desses traços e com vestimentas comportadas.
b)- A mulher de classe média (em casa, de bobes nos cabelos, ouvindo
rádio e falando ao telefone, no supermercado, na praia,no estádio esportivo) e a
mulher de classe alta (a empregada doméstica com expressão humilde diante da
patroa e a mulher que,diante do bolso vazio do marido,indaga “E agora José?”).
c)- A mulher trabalhadora em funções subalternas ou secundárias
(empregada doméstica, enfermeira, funcionária dos Correios) e a mulher
financeiramente dependente do homem (nos quadrinhos do restaurante e
naquele em que diz “E agora José?”).
72
Nos textos verbais de Tudo Bem 1, temos representações da mulher no
quadro tradicional de esposa, mãe e namorada - dependentes do homem - mas
também de jovens vestibulandas, funcionárias de empresas públicas,escritoras
ativas, atuantes e independentes.
Concluindo, na obra Tudo Bem 1, as representações da mulher tecidas
pelo discurso de Ramalhete oferecem insumo para que o estrangeiro construa
suas próprias representações da mulher brasileira, tendo como referência a
mulher carioca, cujos costumes sempre foram considerados mais liberados e
avançados do que os das mulheres de outras cidades, localizadas nas demais
regiões do Brasil. A mulher brasileira é apresentada em faixas etárias diferentes,
sem idade definida, e inscrita sobretudo na classe média e no espaço urbano. As
casadas são representadas preponderantemente nos papéis sociais de esposa e
mãe, cuja esfera de atividade se resume às ocupações com a casa e com a
família. As solteiras são apresentadas como liberadas, com acesso ao estudo
superior, a formas de lazer antes exclusivas dos homens e ao mercado de
trabalho. Freqüentemente temos a representação da mulher brasileira
estereotipada, em consonância com a ideologia vigente na época, e
eventualmente configurada como interesseira, palpiteira, gastadora e chata.
5.3 REPRESENTAÇÕES DA MULHER NA OBRA BEM-VINDO! A LÍNGUA
PORTUGUESA NO MUNDO DA COMUNICAÇÃO
O livro Bem-vindo! A língua portuguesa no mundo da comunicação tem 20
unidades. Em cada unidade é desenvolvido um tópico, sempre relacionado com
situações do cotidiano, que serve de referência para o ensino de um vocabulário
pertinente ao tema desenvolvido, de noções gramaticais e comunicativas e para o
desenvolvimento de atividades de sistematização das noções oferecidas.
No conjunto dessas 20 unidades, encontramos 186 textos verbais. Desses
186 textos verbais, 60 foram incluídos em nosso corpus por conterem
representações da mulher.
73
Em relação aos textos não-verbais, foram encontradas 431 ilustrações
coloridas e 52 fotografias, das quais 66 ilustrações e 16 fotografias foram
incluídas em nosso corpus.
5.3.1. Textos não-verbais
5.3.1.1. Desenhos
Os desenhos figurativos são bem elaborados, coloridos, permitindo que o
material apresente um atraente aspecto visual. Ressalte-se que alguns são
minúsculos. Misturam personagens masculinos e femininos, com preponderância
dos masculinos que são em número de 217, e os femininos, de 92. Há uma certa
tendência, encontrada nas ilustrações, em apresentar os personagens
masculinos inseridos em contexto de trabalho. Já em relação às personagens
femininas, no que se refere às ilustrações, a primeira relação estabelecida entre
uma delas e o trabalho foi feita, indiretamente, com o apoio do texto verbal.
O rol dos desenhos começa na Unidade 1, na qual preponderam os
desenhos de personagens masculinos, as únicas personagens femininas
encontradas estão representadas nos papéis sociais de avó, mãe e filha, ou seja,
no âmbito familiar.
Na Unidade 2, podemos encontrar personagens femininos interagindo com
personagens masculinos. A primeira personagem feminina desenhada nessa
unidade aparece andando apressada, e pode ser em uma rua ou em uma sala de
escritório. Dois personagens masculinos parecem conversar e um deles aponta
para ela dizendo “Lá vem ela! Ela é pontual!”, sugerindo que se trata de um
contexto de trabalho.
Encontramos também um conjunto de cinco desenhos ilustrativos de
personagens masculinos e femininos. As personagens femininas são
representadas executando atividades diversas como pentear-se, sentar-se, beijar
e abraçar personagens masculinos.
74
Há, na mesma unidade, um outro conjunto de desenhos nos quais a única
personagem feminina está representada em um papel social indefinido, que tanto
pode ser de esposa como de namorada ou amiga. Para finalizar aparece mais um
conjunto de três ilustrações com apoio de texto verbal, sendo que a personagem
feminina é loura, com pose de modelo, aparece de vestido tomara-que-caia-,
curto, tirando uma foto em uma praça. O retratista é o que se chamava de
“lambe-lambe”. Nessa imagem a mulher está representada de forma
estereotipada, como a loura atraente.
Na Unidade 3 há a representação em desenhos de personagens femininas
nos papéis de esposa, mãe e filha; no de dona de casa, às voltas com fogão e
panelas; e no de uma jovem loura, com um vestido curto, tomara-que-caia e
sapatos de salto, perto de um carro. O texto verbal explica que antes ela tinha
um carro velho e feio. Agora ela trabalhou e ganhou muito dinheiro e depois
comprou um belo carro novo. Quando as personagens femininas são jovens e
solteiras, elas são representadas com um quê de sensualidade nas roupas e nos
gestos, que evoca uma certa liberalidade, não apresentada nas figuras investidas
nos papéis de mãe, esposa ou dona de casa. Pode-se observar a presença do
estereótipo ligado à maternidade, e que se estende às figuras femininas
relacionadas com o lar, que foram mitificadas, e acabam sendo representadas
como se fossem assexuadas. A mulher está representada, nesta unidade, em
três papéis estereotipados: mãe, dona de casa e loura fatal.
Na Unidade 4, estão desenhadas quatro personagens femininas. Uma está
de maiô, na praia; a outra é uma cigana. As duas personagens restantes são uma
cabeleireira profissional e sua cliente. Esta é a primeira personagem feminina que
aparece, realmente, desenvolvendo uma atividade profissional. O desenho da
cigana representa a personagem de forma estereotipada, vestida com um certo
espalhafato e observando uma bola de cristal.
Os desenhos que iniciam a Unidade 5 mostram personagens femininas
investidas no papel de dona de casa, fazendo compras no supermercado e na
feira. Um outro desenho figurativo oferece a mesma representação: a da mulher
como dona de casa, embora revestida de um visual bem moderno-calça jeans,
75
tênis e camiseta. A personagem empurra um carrinho com compras de
supermercado.
Na Unidade 6, grande parte dos desenhos representa a mulher nos papéis
tradicionais de esposa, mãe e dona de casa. Aparece representada também no
papel de namorada. Curiosamente, encontramos o desenho ilustrativo de uma
personagem idosa, sentada com as pernas esticadas em uma poltrona,
escutando música em um fone de ouvido. Ao lado, garrafas, taças, e pode-se
ver, ainda, encostada na poltrona a capa de um LP, onde está escrito Rock
n´Roll. Como os LPS já estavam obsoletos em 98, quando o livro foi editado
(usava-se o CD), parece tratar-se de alguém que conserva hábitos e lembranças
de coisas já vividas. Pode-se perceber a presença do estereótipo do velho, que é
visto como uma pessoa que tem a mente presa ao passado.
A Unidade 7 apresenta quatro ilustrações de figuras femininas. A primeira
é representada em seu ambiente de trabalho. Trata-se de um setor de trabalho
tido como feminino, que é o balcão de informações de um aeroporto. Nos anos
90, as mulheres representavam mais de 40% da PEA, mas ainda se mantinham
nas mesmas áreas tradicionais de trabalho. A segunda figura feminina aparece
toda elegante, e as outras duas estão vestidas esportivamente, de jeans, mochila,
com um figurino típico de estudantes universitárias.
Duas personagens femininas desenhadas na Unidade 8 estão em uma
festa. Interagem com figuras masculinas e são jovens, pela forma com que estão
vestidas. Uma se apresenta com um vestido comprido e a outra, loura, com um
vestido muito curto e justo. Elas estão bebendo e sendo observadas pelos
personagens masculinos. O que confere à cena um ar de licenciosidade é a
expressão colocada pelo ilustrador nos olhos e na face das figuras masculinas.
Há uma ideologia machista que perpassa a cena, pois é um grupo de homens
observando duas mulheres. É como se o desenho quisesse mostrar que aquele
não era um local propício para mulheres sérias, e as que ali se estavam
despertavam outro tipo de interesse. A mulher jovem, liberada, está representada
de forma estereotipada, como objeto de desejo sexual masculino, assim como a
loura continua sendo a mulher fatal.
76
Na Unidade 8, há ainda o desenho de uma menina acompanhado da frase:
Que menininha chata!” essa caracterização já surgiu em Ramalhete, só que
referida a uma mulher idosa.
A Unidade 9 apresenta inicialmente um conjunto de seis desenhos
ilustrativos nos quais personagens femininas interagem com personagens
masculinos, aqueles que consertam tudo, ou seja, quebram todos os galhos de
consertos domésticos. A mulher é representada como dona de casa. A outra
personagem feminina é representada exercendo a função de repórter, ou seja,
em contexto profissional. Essa ilustração já mostra a inserção da mulher em
áreas antes restritas ao trabalho masculino., também, na mesma unidade, o
desenho de uma mulher negra, jovem, bem-vestida e, acompanhada de um
homem branco.
Na Unidade 10, as personagens femininas são representadas como
estudantes (possivelmente universitárias), como funcionária de um escritório,
mãe e namorada (esses papéis sociais são explicitados pelo texto verbal que
acompanha as ilustrações).
A figura feminina representada por desenho na Unidade 11 remete aos
papéis sociais de esposa e mãe.
Na Unidade 12, três personagens femininas aparecem em contexto de
trabalho: uma enfermeira, setor tradicional de trabalho feminino, uma funcionária
de escritório e uma médica, o que mostra a inserção da mulher em carreira de
nível superior, antes considerada masculina. A outra personagem aparece
cozinhando podendo ser simplesmente dona de casa ou cozinheira, e neste caso
estaria desempenhando uma atividade de trabalho. Ressalte-se que a médica é
representada com a saia bem curta, desenhada com sapatos de salto alto e com
aparência de pin-up (Ver ANEXO G).
A Unidade 13 apresenta cinco personagens femininas, representadas
como: secretária, funcionária de escritório, mãe e esposa/namorada.
Na Unidade 14, as duas personagens femininas desenhadas estão
representadas em ambiente de trabalho. Uma delas trabalha até tarde, tem
aparência cansada e uma pilha de papéis para ser analisada. A outra se
77
apresenta vestida elegantemente, e representa (explicitado pelo texto verbal) a
mulher que atingiu um cargo de diretoria. Em nossa sociedade, ao longo da
década de 90, a mulher além dos cursos de graduação investiu nos de pós-
graduação, como o MBA, ou o mestrado e doutorado, atingindo o topo de sua
carreira e ocupando cargos de diretoria em empresas. Exemplificamos com o
caso da Vale do Rio Doce e da Shell. Na Companhia Siderúrgica Nacional uma
mulher ocupou a presidência da empresa. Observa-se a presença da imagem da
mulher profissional.
A mulher é representada por desenhos na Unidade 15 na função de
secretária e nos papéis sociais de sogra, esposa e mãe.
A Unidade 17 apresenta, mais uma vez, uma personagem feminina
exercendo a função de dona de casa.
Na Unidade 18 surgem desenhos relativos a três personagens femininas.
A primeira não tem papel social definido, foi representada em um momento de
lazer, mais precisamente pescando, atividade mais próxima do universo
masculino. As outras duas estão representadas nos papéis de esposa e mãe e de
filha.
Na Unidade 19, a mulher é representada exercendo atividades esportivas,
que podem ter cunho profissional ou não. As personagens ilustradas são uma
tenista, uma nadadora e uma praticante de corrida com obstáculos. O Brasil é um
país que sempre se interessou pelo futebol, um esporte até há pouco tempo
exclusivamente masculino, e foi dos anos 90 para cá que outras modalidades
esportivas foram ganhando visibilidade pelo esforço de seus praticantes, como foi
o caso do tênis, da ginástica olímpica, do vôlei, e do basquete.
A Unidade 20 apresenta apenas dois desenhos ilustrativos com figuras
femininas e elas estão representadas como participantes das danças folclóricas
brasileiras, manifestações populares de nossa cultura.
5.3.1.2. Fotografias
78
Focalizando o conjunto das fotografias, destacamos que esses textos não
verbais não estão presentes em todas as unidades. Encontramos na Unidade 1
quatro pequenos instantâneos. Apenas o personagem central é enquadrado pelo
fotógrafo. Nota-se, perfeitamente, que “o que o observador da fotografia irá captar
não são indivíduos, mas papéis sociais” (Bourdieu,2003,p.62). Assim
encontramos o presidente Fernando Henrique, o jogador Pelé, o músico Milton
Nascimento e a apresentadora Xuxa. A personagem feminina que integra o rol
dessas celebridades se destaca por suas atividades profissionais
apresentadora,atriz e cantora de maior sucesso da televisão brasileira de então, e
bastante conhecida nos países do Mercosul.
A Unidade 1 ainda apresenta uma montagem feita com três pequenas
fotos, que acompanham um exercício intitulado “Vamos conhecer Benedita
Costa”. As personagens que aparecem no material fotográfico estão em
desacordo com o que diz o texto verbal que ilustram. São duas as personagens
femininas. Uma é apresentada no texto verbal como solteira, está destacada das
outras pelo tamanho da foto e por estar colocada em primeiro plano. Deduz-se
que é Benedita da Costa. A outra é representada no papel de mãe e carrega nas
mãos braçadas de flores de lavanda, planta típica do sul da França, da região da
Provença e não do Ceará, que o texto verbal diz ser o lugar de origem das
personagens. O filho está preso a suas costas em um porta-bebê de pouco ou
nenhum uso aqui no Brasil. Nenhuma das duas personagens que aparecem na
fotografia guarda alguma similaridade física e nem de indumentária com a mulher
do nordeste brasileiro, não podendo, portanto, servir de referência para as
representações do aprendiz estrangeiro sobre o tipo étnico da mulher daquela
região. A última fotografia desta unidade foi desprezada por não trazer nenhuma
representação da mulher.
A próxima fotografia que se encontra na Unidade 2 é o instantâneo de um
casal que passeia de mãos dadas. Em primeiro plano está o casal e no plano de
fundo podem-se ver mastros de embarcações de luxo. A foto está colocada ao
lado de um texto verbal, mas parece não ter ligação direta com ele. O ambiente
79
físico retratado pela foto não parece ser brasileiro, e a personagem feminina está
sendo representada no papel de namorada ou esposa.
A Unidade 3 tem uma foto incluída em nosso corpus: a de uma jovem
deitada na rede lendo um livro. A imagem em si mesma nada relata, é o texto
verbal que orienta a leitura. Por ele, sabemos que a moça da foto está
representada no papel de irmã. As demais fotografias foram desprezadas por não
conterem personagens femininos.
Na Unidade 7, encontramos um pequeno instantâneo tirado a bordo de um
avião. Representa um passageiro sendo servido por uma aeromoça. A
personagem feminina está representada em seu contexto de trabalho. A figura da
aeromoça em nossa cultura também está associada a um estereótipo, de mulher
bonita e fácil.
A próxima fotografia de nosso corpus a ser analisada está na Unidade 8, e
tem como figura central um personagem masculino em seu ambiente de trabalho
- um garçom, ladeado por figuras masculinas e femininas, representadas como
participantes de um almoço ou jantar. As figuras femininas estão na área menos
iluminada da foto e a que está em primeiro plano encontra-se parcialmente
enquadrada.
A Unidade 9 apresenta a fotografia de um casal de personagens
conversando com um personagem masculino. A personagem feminina está
representada como esposa. O ambiente físico não lembra o brasileiro e o que se
destaca da foto parece ser a casa (cuja arquitetura difere daquela encontrada no
Brasil), e não os três personagens.
Na Unidade 13, encontramos uma fotografia que retrata um momento em
família. A mãe está no telefone, e procura atentamente alguma coisa no jornal,
enquanto a filha se alimenta. As personagens femininas são negras e estão
representadas no papel social de mãe e filha. A foto está ilustrando um texto
verbal que discorre sobre pessoas que optaram por trabalhar em casa. Pode-se
deduzir, pela orientação do texto verbal, que a personagem feminina da foto é
uma das que decidiram transformar sua sala de jantar em home office.
80
Na Unidade 14, destacamos duas fotos e nelas a mulher é representada
em situações de trabalho em escritório e de trabalho externo. Na primeira foto a
personagem é jovem e na segunda é uma mulher de meia idade. A pesquisa do
Dieese de 97 acusa, em São Paulo, uma maior inserção de mulheres de mais de
40 anos no mercado de trabalho, com expansão de 16,5% em relação ao início
dos anos 90.
A última fotografia analisada foi localizada na Unidade 16. Trata-se de uma
personagem jovem que aparece do lado de uma menina. O enquadramento da
foto permitiu que apenas as duas fossem recortadas e aparecessem em primeiro
plano, pois o fundo está desfocado. As mulheres estão representadas no papel
de mãe e filha, o que é corroborado pelo texto verbal ilustrado pela fotografia.
5.3.2. Textos verbais
No que se refere aos textos verbais os 24 textos dialogados, analisados
em nosso corpus, não se distribuem por todas as unidades. Começam na
Unidade 1, com o texto Vamos conhecer Benedita Costa. A personagem
feminina é Benedita e ela dialoga com um(a) repórter. São feitas referências à
cidade de Fortaleza na região Nordeste, a São Paulo no Sudeste e a um país
estrangeiro, França. Benedita é empresária (antes era atleta profissional) e sua
irmã é psicóloga. Ambas moram e trabalham em São Paulo. A personagem diz
que tanto ela quanto a irmã trabalham muito, e à noite sempre estão muito
cansadas. O texto explicita uma tendência do nordestino de migrar para São
Paulo em busca de melhores condições de trabalho. As personagens femininas
são representadas nos papéis sociais de mãe, irmã e filhas, além de inseridas em
atividades profissionais remuneradas. A classe social retratada é a média e o
espaço físico onde se processa o diálogo é urbano.
O diálogo da Unidade 3 tem como personagem feminina Paula, e
masculinos Jorge e Bernardo. Jorge e Paula estão fora do país participando de
uma conferência. Não são feitas referências ao tipo de trabalho desenvolvido
pelos personagens e nem ao espaço físico para onde foram, apenas sabe-se que
81
lá as pessoas falam inglês. O diálogo representa a personagem feminina
desempenhando a função de profissional.
O diálogo que se segue está na Unidade 4, e se realiza em contexto
urbano. Tem como personagem feminina Mitie e os personagens masculinos são
José e João. São feitas referências às cidades do Rio de Janeiro e São Paulo. Os
personagens masculinos se dizem graduados em Engenharia Química. Nada é
dito sobre a formação profissional de Mitie. O diálogo enfatiza a grande
importância que São Paulo detinha na década de 90 como espaço gerador de
emprego, principalmente em áreas de trabalho ligadas à indústria. O nome da
personagem feminina evidencia a sua ascendência japonesa, e parece ser uma
forma de destacar a presença do imigrante japonês e seus descendentes na
formação do povo da cidade de São Paulo e na economia do estado, que abriga
70% da colônia nipônica residente no Brasil
22
. A personagem feminina é
representada no papel da amiga e faz a apresentação entre os dois personagens
masculinos.
No diálogo da Unidade 5, encontramos uma personagem, no
supermercado, fazendo compras na seção de frios. Ela está sendo atendida por
um personagem masculino, aliás, em nosso contexto, o trabalho no
supermercado é geralmente dividido e mulheres não trabalham em determinados
setores, como o açougue, a seção de frios e outros. O trabalho feminino é mais
encontrado nas caixas e na parte administrativa. Há um outro personagem
masculino esperando a vez de ser atendido, o que demonstra que as mudanças
de costumes fizeram do supermercado um espaço de interesse para os dois
sexos. Os outros dois diálogos acontecem na feira. Uma personagem feminina
compra verduras em uma barraca e é atendida por um personagem masculino. O
espaço da feira era predominantemente de trabalho masculino e é também muito
popular, o que pode ser percebido na forma de tratamento dada ao personagem
feminino-“freguesa.” Na barraca das frutas, a personagem feminina é tratada por
“dona”. A mulher está representada no papel de dona de casa.
22
Informação obtida no site www.novaescola.abril.com.br
82
Na Unidade 7, encontramos três diálogos. O primeiro é intitulado “ No
Correio e ocorre entre dois personagens chamados de “A” e “B”,sendo A,
atendente,de sexo indefinido e B, a personagem feminina. São feitas referências
a países estrangeiros, México e Japão, e a personagem B é representada como
cidadã comum, que desenvolvendo as atividades do seu dia-a-dia, vai ao Correio
para enviar uma carta e uma encomenda para o exterior.
O segundo é ambientado no aeroporto, e é o desenho ilustrativo que
explicita o texto verbal. Deduzimos pelo desenho que a atendente, que no texto
verbal é chamada de “A”, é a personagem feminina, e “B” é o personagem
masculino que solicita algumas informações. A personagem feminina está
representada em contexto de trabalho.
O terceiro diálogo é denominado “Pedindo informações pelo telefone. Não
apresenta personagens femininas, mas faz referência a elas. Trata-se de um
personagem masculino, da Universidade de Brasília, pedindo informações a um
personagem “A”, de sexo não definido, sobre um seminário prestes a acontecer.
As personagens femininas representam mulheres inseridas na vida acadêmica.
Pesquisas realizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística em 2001
mostraram que, na década de 90, a ascendente participação feminina no
mercado de trabalho ocasionou um ingresso maciço na universidade, bem como
a expansão de seu trabalho em meios acadêmicos. O texto não especifica a área
do seminário e nem o espaço onde deveria ocorrer.
Na Unidade 8, analisamos o diálogo chamado “No restaurante”, que tem
como personagens masculinos o garçom e “A”. O personagem feminino é “B”,
cujo nome o texto verbal diz ser Laura. Nesse diálogo, a personagem feminina é
representada em um papel social indefinido, que pode ser o de esposa,
namorada ou amiga. A relação entre os personagens masculino e feminino é
simétrica, sinal dos tempos modernos. Não se observa a preponderância da
opinião feminina na escolha dos pratos a serem consumidos pelo casal. Até há
alguns anos trás, esse era um tema tido como peculiar à esfera de domínio
feminino,e o homem, geralmente, acatava as sugestões de sua companheira,
mas o diálogo mostra os personagens com escolhas definidas. Na época a
83
divisão tradicional do trabalho já estava sendo alterada (nas camadas média e
acima da média) e já havia mais eqüidade de nos papéis masculino e feminino
em relação à esfera do lar.
Na Unidade 9, encontramos o diálogo intitulado “Num stand de vendas. A
personagem feminina é Márcia, e os personagens masculinos são o corretor e
Guilherme. Guilherme e Márcia desejam comprar um apartamento e foram até a
corretora para dar uma olhadinha nas ofertas e nos preços. Os dois personagens
fazem perguntas ao corretor, mas a decisão final é do personagem masculino. A
personagem feminina é representada no papel de esposa e dona de casa. e em
todos os demais diálogos dessa unidade as personagens femininas foram
representadas nos papéis de esposa e dona de casa.
Ainda nessa unidade destacamos mais quatro diálogos. Em todos eles,
personagens femininas diferentes, conversam com o mesmo personagem
masculino, o sr. João. Ele é uma espécie de “quebra galho” e faz vários
concertos, provavelmente em um edifício. Na casa de Fernanda ele consertou o
cano, na de Cláudia a instalação elétrica, na de Claudete, a máquina de lavar e
na de Daniela, que trancou a porta do apartamento e está sem a chave, ele vai
tentar abrir a porta. Em todas essas situações, as personagens femininas são
representadas no papel de dona de casa.
Na Unidade 10, selecionamos para o nosso corpus dois diálogos, No
primeiro encontramos duas personagens femininas: Marisa e Andréa. Trata-se de
uma conversa entre colegas de escola. Andréa convida a amiga para assistir uma
peça de teatro na sexta à noite. As personagens femininas estão representadas
como amigas. O diálogo deixa evidente a liberdade que as moças já tinham
conquistado na década de 90, que lhes possibilitava sair à noite sozinhas, sem
precisar de acompanhamento masculino.
O outro diálogo apresenta dois personagens, sendo “A”, mulher e
“B”,homem. “A” liga para o Supermercado Souza e deseja falar com o gerente,
que está em reunião. Trata-se de assunto relativo ao lançamento de um novo
produto no mercado. A personagem feminina está sendo representada no papel
84
de funcionária de uma empresa, destacando a presença da mulher em setores
diferentes de trabalho, o que em nosso contexto se iniciou nos anos 90.
A Unidade 11 oferece aos leitores um diálogo pertinente ao tema de nossa
pesquisa. Analisaremos o diálogo chamado “Fazendo uma matrícula”, que
apresenta dois personagens “A” e”B”. O primeiro não tem sexo definido e o
segundo é do sexo masculino. Trata-se de um pai que foi fazer a matrícula de
sua filha em uma escola. O diálogo evidencia uma maior participação masculina
na criação dos filhos, que veio se consolidando a partir da Lei do Divórcio.
Na Unidade 12, foram encontrados três diálogos. O primeiro, denominado “
No Posto de Saúde” tem duas personagens: “A” e “B”. “A” é atendente, sem sexo
definido, e. “B” é mãe de um bebê que foi tomar vacina. Geralmente, na área de
saúde as atendentes são do sexo feminino, mas tal fato não foi explicitado. A
personagem feminina é representada no papel de mãe.
O segundo diálogo chama-se “Num hospital particular” e tem dois
personagens “A” e “B”. “A” é atendente, sem sexo definido e “B” é uma cliente
que quer fazer uma consulta. São feitas referências ao médico, que é do sexo
masculino, embora na década de 90 as mulheres estivessem começando a
entrar em áreas de trabalho que exigiam escolaridade superior e que eram
restritas ao homem. O diálogo ainda mostra uma situação tradicional de trabalho:
o médico, do sexo masculino e a enfermeira, do sexo feminino, pois a
enfermagem era uma profissão permitida para as mulheres, na medida em que
se baseava em servir, coisa que a mulher fazia o tempo todo em sua própria
casa.
O terceiro diálogo é intitulado de “Num Spa”, e tem como personagens “A,
Ricardo, do sexo masculino e “B,” de sexo não definido. Ricardo procurou um spa
para emagrecer e parar de fumar. Apesar dos spas serem centros de saúde
modernos
23
, o diálogo ainda traz a figura do médico e da enfermeira.
Na Unidade 14, analisamos o diálogo chamado “Uma entrevista”, que tem
como personagens Vilma e Carlos. Trata-se de uma entrevista de emprego. O
23
O primeiro spa paulista foi inaugurado em 1994. Informação obtida no site
http://www.spasorocaba.com.br.
85
personagem Carlos mandou um currículo para uma vaga de engenheiro, e tem
uma entrevista marcada com Vilma. A personagem feminina deve trabalhar no
setor de Recursos Humanos da empresa, e está sendo representada em seu
contexto de trabalho, destacando os vários setores de trabalho que a mulher já
ocupava no final da década de 90.
Na Unidade 15, encontramos um diálogo entre a personagem Karen e o
personagem, Sr. Gomes. Karen está sendo representada no papel de secretária
do Sr. Gomes.
Da Unidade 16 selecionamos o diálogo Entrevista com Priniven, da África
do Sul”, segue um roteiro de perguntas. Ele fala de expectativas, do choque com
a realidade, e de sua vida, que considera satisfatória devido a uma namorada
brasileira, e aos amigos. Destaca-se a importância da mulher na vida do homem,
principalmente como um estímulo no processo de adaptação do homem
estrangeiro. A personagem feminina citada está representando a mulher no papel
de namorada.
O rol dos 34 textos verbais não-dialogados incluídos em nosso corpus
contempla gêneros diversos e começa na Unidade 2 com o texto Meu Passado,
Meu Presente. Trata-se de lembranças do passado e atividades do presente de
um personagem masculino. O passado do personagem transcorreu no campo,
em uma cidade do interior brasileiro (o texto não especifica qual e nem em que
região do Brasil), e faz referência a uma atividade econômica, a agricultura,
realizada pelos pais do personagem. A atividade da personagem feminina citada
como irmã visa à formação profissional: estudante de Economia. O texto remete à
inserção da mulher em setores de trabalho, tidos anteriormente em nossa
sociedade como exclusivamente masculinos, como é o caso da Economia. As
personagens femininas citadas pelo texto são representadas nos papéis sociais
de avó, mãe, irmã e estudante universitária.
Foi analisado na Unidade 3 o texto denominado “Petrolina”, que é uma
continuação do texto da Unidade anterior, e que focaliza mais explicitamente as
lembranças do personagem masculino. É feita menção à cidade de Petrolina, no
estado de Pernambuco, Região Nordeste do Brasil. Lá o personagem e sua
86
família viveram durante 10 anos. As personagens femininas que aparecem no
texto estão representadas nos papéis de irmã e de mãe (que cozinhava muito
bem).
A Unidade 4 apresenta um texto sobre um personagem masculino,
provavelmente um adolescente rebelde. Ele está repensando a sua vida. Os
personagens femininos citados estão representados nos papéis de mãe e irmã.
Na Unidade 5, encontramos um texto chamado “Na sala de aula”. Nele, um
personagem de sexo não definido representa o professor, e há dois personagens
masculinos, que representam alunos estrangeiros. Eles ainda não estão no
Brasil, e o professor pede que cada um escreva a imagem que tem do país, ou
seja, as representações do Brasil e de sua gente, elaboradas, no caso deles, a
partir de narrações feitas por outras pessoas que por aqui estiveram. É feita
menção à cidade do Rio de Janeiro, que é relacionado ao carnaval e às mulatas
bonitas. Evidencia-se uma visão estereotipada da cidade e das mulatas, ligadas
unicamente ao contexto do carnaval carioca.
Na mesma unidade, há um outro texto que também descreve as
expectativas de um estrangeiro antes de chegar ao Brasil. Trata-se de um
personagem do sexo masculino e solteiro. Entre as coisas que ele espera fazer
está arranjar uma namorada. A mulher é representada como estímulo afetivo, que
pode tornar a adaptação menos penosa e a estadia mais agradável.
A Unidade 6 apresenta um texto no qual uma personagem do sexo
feminino narra um sonho sobre uma lâmpada mágica e a realização de três
pedidos. A personagem sonha com dinheiro, viagens pelo mundo (com
aprendizado de línguas diversas), e finalmente, com um noivo. O texto traz uma
representação tradicional da mulher, mostrando que,l apesar dos tempos de
liberdade, o casamento ainda é uma aspiração feminina que sobrepuja todas as
outras.
O outro texto da mesma unidade é uma continuação da narrativa da
Unidade 5, que enfoca um estrangeiro em seus preparativos para vir ao Brasil. O
diálogo faz referência à cidade de Manaus, no Amazonas, região Norte do Brasil,
e a personagem feminina é representada no papel de amiga.
87
Encontramos na Unidade 6 quatro textos do gênero cartão-postal. No
primeiro, a personagem Lúcia envia uma mensagem para a personagem Lílian.
Lúcia está viajando pelo Pantanal com sua família e o texto faz referência ao
trabalho da personagem. Ela está sendo representada no papel de colega (o
texto não especifica se de trabalho ou de faculdade). O segundo cartão-postal foi
enviado pela personagem Gina para a personagem Lílian. Gina explica que não
pôde viajar porque ficou doente. Faz menção ao trabalho que está dando à mãe.
As mulheres que aparecem no texto estão representadas no papel de mãe, filha e
colega de faculdade. O terceiro cartão foi enviado por um personagem masculino,
Mauro, para a personagem Lílian, que está representada em um papel não
definido, provavelmente, ligado à família. O último cartão foi escrito pela
personagem Margarete para a personagem Lílian. Margarete é escritora e foi
conhecer o rio Nilo para poder terminar uma novela, para a qual faltavam
informações sobre o citado rio. O texto mostra uma representação da mulher em
seu contexto de trabalho, destacando uma das diversas possibilidades que se
abrem para as mulheres em novas áreas de atividades profissionais. A
personagem feminina está representada no papel social de escritora, de amiga e
vizinha.
Na Unidade 8, encontra-se o texto chamado “O país e seu idioma”, que
descreve os países limítrofes com o Brasil, e as cinco regiões do país, citando
uma peculiaridade de algum estado ou cidade pertencente a uma delas. Na
região Sudeste foi destacado o espaço do Rio de Janeiro com menção ao Cristo
Redentor e às mulheres bonitas. De novo uma visão estereotipada das mulheres
cariocas.
A Unidade 9 apresenta um texto comentando os problemas enfrentados
pelos casais que trabalham fora em relação aos cuidados com os filhos pequenos
e a contratação de empregadas domésticas e babás. Observa que, em nosso
contexto, essas mulheres, muitas vezes, começam a trabalhar ainda bem jovens,
sem nenhuma preparação adicional que não seja a sua própria experiência de
vida. Destaca que elas têm a responsabilidade de cuidar das casas e muitas
vezes até da educação dos filhos dos patrões. O texto focaliza o tema do trabalho
88
das mulheres de baixa renda e baixa escolaridade não absorvidas pelo mercado
formal de trabalho.
A pesquisa do IBGE-PNAD de 1999 comprovou que 22% da população
brasileira economicamente ativa, estava inserida nos serviços domésticos, pois
houve um aumento da taxa de oferta de emprego por parte de famílias com
crianças pequenas, cujas mães trabalhavam fora. Para a mulher poder se
ausentar de casa era necessário contar com o trabalho de outra mulher, paga
para substituí-la nas atividades do lar. A inclusão no livro dessas representações
da mulher brasileira como babá e doméstica é relevante, pois muitos
estrangeiros, em seu países de origem, estão acostumados a recorrer a outro tipo
de serviço (como creches e escolas em tempo integral) para cuidar de seus
filhos.
Na Unidade 10, encontra-se um texto do gênero lista, no qual Dona Zilda
relaciona algumas recomendações para os filhos seguirem nos dias em que
estiver viajando. É feita menção a personagens femininas nos papéis de filha,
mãe e avó (como substituta de mãe).
Na Unidade 11, tivemos um texto narrado por um personagem masculino
que discorreu sobre contratempos sofridos por ele e por uma personagem
feminina chamada Dilene, quando da ida dos dois para o trabalho. A personagem
citada é representada como uma mulher que exerce uma atividade profissional,
como amiga e possível namorada.
Analisamos na Unidade 12 o texto intitulado “Volkswagen reduz custos em
55%”, que aborda as reduções de despesas médicas feitas pela empresa a partir
da implantação do “Home Care” e do “BabyCare”, programas que ajudam a mãe
nos primeiros quinze dias de vida do bebê. O texto é autêntico, retirado do jornal
Gazeta Mercantil de 19-06-98, e mostra a presença ativa da mulher em variados
setores de trabalho e ainda a preocupação da empresa em estar presente no
período da vida feminina em que a mulher precisa cuidar do seu bebê e sua
atividade econômica declina sensivelmente.
Da Unidade 13 selecionamos para o nosso corpus dois textos do gênero
correspondência, duas formas de comunicação através do uso da tecnologia
89
moderna: computador e fax. A primeira é a transcrição impressa de um e-mail.
Foi enviado da Universo Online para a Cia de Desenho, é um texto digitado em
computador, explicando ao usuário como proceder para cancelar uma assinatura.
O texto está assinado por Ana Paula, representando, portanto, a mulher em
contexto de trabalho. A outra correspondência é a transcrição de um fax de Rita
Torres para Patrícia Medrado comunicando o encerramento de um contrato de
locação. As personagens femininas estão também representadas no exercício de
atividades profissionais.
Na Unidade 14, foi encontrado o texto intitulado “É só chamar que eu vou
trabalhar” (Ver ANEXO H). Trata-se de pessoas que não se incomodam de
trabalhar em feriados prolongados ou finais de semana, visando a uma melhoria
salarial. O exemplo dado foi o de Rosana P. dos Santos, de 32 anos,
representante de atendimento. Ela está no mercado de trabalho há 15 anos e se
puder escolher, não tem dia de folga. Rosana diz trabalhar mais do que o marido,
mas que tal fato não interfere no relacionamento do casal. O depoimento de
Rosana neutraliza a ideologia que apontava incompatibilidades entre trabalho
feminino e casamento, abrindo espaço para que se perceba que a sociedade
conjugal, como qualquer outra, também pode ter as suas regras adaptadas aos
interesses de seus elementos. O texto é autêntico, retirado do jornal Folha de
São Paulo, de 25 de janeiro de 1998. Nele está representada a mulher brasileira
que trabalha sem folga, por motivos diversos, entre eles o aumento da renda
familiar.
No período que vai de 1994 a 1998 houve uma estabilização dos preços, o
que ocasionou um maior poder de compra. Fatores como o acesso aos bens e
serviços de consumo, a complexidade da vida em um grande centro urbano,
endividamento, elevaram o nível de necessidades das pessoas, fazendo com que
buscassem melhorias salariais.
Ainda analisamos nessa unidade dois textos do gênero classificados e um
do gênero correspondência. Os classificados são textos autênticos retirados da
Folha de São Paulo, de 25 de janeiro de 1998. Um deles procura jovens
universitários, de ambos os sexos, para trabalharem como garçom e garçonete
90
em casa noturna. O outro quer uma sacoleira para vender camisas finas. Ambos
representam trabalhos temporários que começaram a proliferar com a
estagnação econômica causada pelo Plano Collor, e o conseqüente aumento da
taxa de desemprego. A década de 90 assistiu ao crescimento de novos acordos
de trabalho, com vínculos vulneráveis e salários oscilantes. Quanto ao texto de
correspondência, trata-se de uma carta, digitada em computador, do setor de
Marketing, da empresa Duratex, e enviada como resposta a uma solicitação de
informação. Está assinada por uma mulher, representada como gerente de
Marketing da empresa.
Na Unidade 15, foi encontrado o texto chamado “Palestra”, a escrita de um
texto a ser pronunciado por um palestrante sobre o tema Globalização para
uma audiência de empresários brasileiros, homens e mulheres. Trata-se de um
texto criado pelas autoras, refletindo uma tendência que vinha se consolidando
no mercado de trabalho ao longo dos anos 90, a presença feminina na direção de
empresas.
A mesma unidade ainda oferece uma carta pessoal, uma crônica de Luís
Fernando Veríssimo e três documentos diversos. A carta é da personagem Sílvia
para a personagem Eliza, sua amiga de trabalho. Sílvia conta a sua viagem de
férias para os Estados Unidos e México. Ela confessa que não está sentindo falta
do trabalho, apesar de gostar de trabalhar e que se arrepende de ter “vendido”
uma parte das férias. O “vender” as férias é uma opção do trabalhador brasileiro,
caso queira aumentar o seu salário e continuar trabalhando. As personagens
femininas estão representadas nos papéis sociais de mulheres economicamente
ativas e de amigas.
A crônica de Veríssimo chama-se “Autônomos”, e foi retirada da Revista
Business, de janeiro de 1998. O texto foi publicado em uma época (anos 90) na
qual o número de trabalhadores autônomos começou a crescer devido ao
desemprego. Como as eleições estavam próximas, os candidatos à presidência
falavam em apoiar as microempresas. O texto aborda, de forma cômica e
recorrendo fortemente a estereótipos, como funcionaria uma pequena empresa
familiar brasileira, de aviação comercial. Marido, esposa, sogra e filhos
91
participariam do negócio. A personagem da esposa é construída de acordo com o
estereótipo de esposa, e a da sogra também se apresenta estereotipada. E o
brasileiro é representado como aquele que recorre ao improviso, ao jeitinho. (Ver
ANEXO I)
Da Unidade 16 selecionamos para análise um pequeno texto intitulado
“Franquias de refeições rápidas”. É um texto de apresentação da Atta
Alimentação, empresa especializada em refeições coletivas, que deseja expandir
seu negócio. A única personagem feminina do texto está representada no papel
de sócia-diretora, o que vem mais uma vez enfatizar a presença de mulheres
como donas de empresas e em cargos de diretoria.
Na mesma unidade, encontramos um texto chamado “Armadilhas da
Qualidade”. O tema abordado é a adoção pelas empresas brasileiras de
programas de qualidade e produtividade. A personagem feminina aparece
representada no texto como consultora em qualidade da Fundação Christiano
Ottoni. Mais uma vez a imagem da mulher é associada a tarefas que exigem
especialização.
Ainda consta dessa unidade uma notificação de multa de veículo. O
documento parece autêntico e a multa está no nome de uma das autoras do
manual. O texto sugere a independência que o trabalho remunerado trouxe para
a vida da mulher brasileira.
Na Unidade 17, encontra-se um texto intitulado “Padre escreve saudades
de migrantes”. É um texto autêntico retirado do jornal Folha de São Paulo de
1995, no qual um padre alagoano relata a sua atividade de escrever cartas para
migrantes analfabetos. A autora do texto (Lúcia Martins) faz uma comparação
entre o padre “escrevedor” e a personagem de Fernanda Montenegro no filme
“Central do Brasil, que também escrevia cartas para analfabetos. A outra
personagem feminina citada é uma moça que veio para São Paulo para trabalhar
como doméstica e lá chegando descobriu que era para trabalhar como prostituta.
O padre decidiu ajudá-la. O texto deixa entrever a face escura do aliciamento de
mulheres jovens, pobres e analfabetas, que saem do Nordeste, enganadas, em
busca de melhores oportunidades de trabalho em grandes centros urbanos. Sem
92
referências, sem dinheiro e sem instrução, essas moças dificilmente conseguem
se libertar da armação em que caíram. As representações da mulher, no texto em
foco, referem-se aos papéis de atriz e prostituta.
A Unidade 18 apresenta um texto intitulado “Explosão Divertida”, sua fonte
é a revista Veja, de abril de 1996, e conta como os brasileiros se divertem em um
país sem inflação. Registra a fase de crescimento da indústria do entretenimento.
A figura feminina citada pelo texto é a professora Kátia Passos que coordena o
Curso de Lazer da Universidade de Brasília. Embora a profissão de professora
sempre tenha sido uma área tradicional de trabalho feminino no Brasil, o estudo
superior e a vida acadêmica faziam parte do universo masculino, e foi o aumento
do grau de escolaridade da mulher que lhe permitiu penetrar em setores que
exigiam especialização, como é o caso do ensino universitário.
Ainda na mesma unidade há um texto sobre a mulher na pesca, que foi
retirado da revista “Pesca e Companhia”. A personagem feminina relata a sua
emoção ao fisgar um peixinho e sua inserção em um universo tradicionalmente
masculino.
A Unidade 19 apresenta um texto sobre a Literatura Brasileira. Trata-se de
um texto autêntico, cuja fonte foi o Almanaque Abril de 1998, que destaca os
principais movimentos, autores e obras que formaram a história da nossa
literatura. Algumas figuras femininas foram destacadas, como foi o caso de
Rachel de Queiroz, Lygia Fagundes Telles, Adélia Prado e Nelida Piñon que foi a
primeira mulher a ocupar a Presidência da Academia Brasileira de Letras. Todas
representadas no papel de escritoras, em diferentes períodos da história da
Literatura Brasileira.
A mesma unidade oferece um texto do gênero reportagem, feito com a
mãe do piloto de Fórmula 1, Rubinho Barrichello. A fonte foi a revista Good for
You News , de maio de 1998, e o tema abordado é se as mães devem lutar contra
as escolhas profissionais dos filhos quando elas implicam perigo. A figura
feminina está representada no papel social de mãe e estereotipada.
Na Unidade 20, um texto aborda o tema “Música Popular”. Trata-se de
texto autêntico, retirado do Almanaque Abril, de 1998, que faz uma síntese da
93
história da música popular brasileira, com seus diferentes ritmos, desde o século
XVIII até o ano de 98. As figuras femininas citadas são Emilinha Borba, Marlene,
Elizeth Cardoso, Alcione, Zizi Possi, Elba Ramalho Marisa Monte, Cássia Eller,
entre outras.
A mesma unidade apresenta um texto intitulado Folclore.Trata-se um
texto autêntico, retirado da revista Kalunga, de agosto de 98, e nele podemos
encontrar as figuras que fazem parte da crendice popular brasileira: saci-pererê,
mula-sem-cabeça, Iara e outros. O texto faz menção à obra de Monteiro Lobato,
o Sítio do Pica-Pau Amarelo, onde personagens como dona Benta, Pedrinho,
Narizinho e Tia Nastácia vivem às voltas com esses seres maravilhosos e suas
reinações. Dona Benta é a personagem que representa a avó, ou seja, é um
estereótipo da avó, que mora no campo e tem um incrível repertório de histórias
para entreter os netos. Narizinho é a personagem que representa a neta e Tia
Anastácia é a personagem que representa a empregada doméstica, mãe preta,
figura estereotipada de mulher negra, que representa o amor desinteressado,
cuja dedicação se faz presente tanto no atendimento aos filhos brancos, de quem
foi ama de leite, quanto aos seus próprios filhos.
A unidade termina com um texto sobre uma das maiores manifestações de
cultura popular do Brasil, o Carnaval. Elucida a origem pagã do carnaval, seus
desdobramentos na Idade Média e no Renascimento, e sua chegada ao Brasil,
no século XVII, trazido pelos portugueses. A figura feminina destacada é
Chiquinha Gonzaga, mulher com idéias à frente de seu tempo,representada no
papel de compositora - a pioneira em produzir marchas para o carnaval.
Concluindo, na obra Bem-Vindo! A língua portuguesa no mundo da
comunicação, as representações da mulher tecidas pelo discurso de Ponce,
Burim e Florissi dão subsídios para que o estrangeiro construa suas próprias
representações da mulher brasileira tendo por base aquelas que habitam a
Região Metropolitana de São Paulo. Essas representações, todavia, não se
restringem à mulher paulista, abarcando também mulheres de outras regiões do
Brasil, principalmente as nordestinas, que se deslocam para esse grande centro
urbano em busca de trabalho. Os textos verbais mostram mulheres de diversas
94
faixas etárias, raças, níveis de escolaridade e classes sociais, inseridas no
contexto urbano e no mercado de trabalho em áreas diversificadas, não mais se
limitando às atividades relativas ao lar. Os textos não verbais, mais
especificamente os desenhos e fotografias, representam preponderantemente as
mulheres associadas às atividades tradicionais de trabalho, mas neles as
mulheres também surgem em atividades de lazer. Nos textos de Bem-Vindo! A
Língua Portuguesa no Mundo da Comunicação, de uma forma geral, a mulher
brasileira ainda aparece representada de forma estereotipada, mas já se tornam
evidentes, no conjunto da obra, as mudanças na ideologia de gênero
anteriormente dominante.
95
6.CONCLUSÕES
Com a realização desta pesquisa, que enfocou três materiais didáticos de
Português do Brasil para Estrangeiros editados no Brasil - Português para
Estrangeiros (Marchant, 1954), Tudo Bem-1 (Ramalhete, 1984) e Bem-Vindo! A
Língua Portuguesa no Mundo da Comunicação (Ponce et al. 1999) - buscamos,
nos discursos de suas autoras, as ideologias e os estereótipos relativos ao
universo feminino, bem como os perfis, espaços e atividades das mulheres
brasileiras preferencialmente representadas nos textos verbais e não-verbais
dessas obras destinadas ao ensino da língua e da cultura do Brasil a
estrangeiros.
Em relação às questões levantadas, a análise do corpus nos possibilitou
afirmar o seguinte:
Constatamos a presença de uma ideologia de gênero, bem marcada,
preponderantemente nos textos verbais e não-verbais do livro Português para
Estrangeiros, de Marchant, editado em 1954. Essa ideologia perpassa as
relações sociais entre os sexos e a divisão sexual do trabalho, configuradas nos
textos da obra.
Em relação às atividades femininas representadas, os textos verbais
contidos neste material nos permitem perceber que espaços socialmente bem
delimitados para a atuação de cada sexo, levando-se em consideração não só o
gênero, mas também a classe social. Assim, cabe à mulher casada da classe
média o espaço do lar, e o desempenho de atividades vinculadas ao seu bom
funcionamento. Às mulheres solteiras e às de classes menos favorecidas cabem
os trabalhos considerados, na década de 50, como femininos. Nos textos verbais
da obra em questão, encontramos personagens femininas representadas em
contextos de trabalho como enfermeira, atendente, balconista, cabeleireira etc
(todas voltadas para cuidar e servir). Em apenas um texto não-verbal (desenho)
encontramos uma personagem feminina representada no papel de professora.
96
Notamos que a ideologia de gênero dominante ainda se mantém presente
nos textos verbais e não verbais do livro Tudo Bem-1, editado em 1984, mas
apresentando tendências à modificação.
No que se refere à representação da divisão do trabalho por sexo, não
foram observadas muitas mudanças. As mulheres casadas continuam sendo
representadas, nos textos verbais, no espaço do lar, e tendo como atividades as
tarefas domésticas, e os cuidados com a família. As mulheres solteiras continuam
a trabalhar. As tendências de modificação na divisão do trabalho relativas a
gênero podem ser sentidas nas representações de mulheres solteiras,
relacionando-se mais com a escolaridade dessas mulheres, do que com o seu
efetivo ingresso em setores diversificados de trabalho. Mas, os textos verbais de
Tudo Bem-1 já atestam como natural o acesso da mulher aos graus de
escolaridade superior em carreiras antes consideradas masculinas, como a
Medicina e a Odontologia.
Constatamos que a tradicional divisão de trabalho relativa a gênero não é
mais tão marcada no conjunto dos textos verbais e não-verbais do livro Bem-
Vindo! A língua portuguesa no mundo da comunicação, editado em 1999. Os
textos verbais dessa obra evidenciam a presença de personagens femininas em
diversos setores de trabalho não-tradicionais, e nela encontramos representações
de mulheres em cargos de diretoria de empresas e também como
administradoras de seus próprios negócios.
Os temas relacionados à progressão da escolaridade feminina, bem como
o ingresso da mulher em setores de atividades consideradas como masculinas,
abordados nos textos do livro Tudo Bem, reaparecem em Bem-Vindo!, deixando
entrever a consolidação dessas conquistas por parte das mulheres das décadas
de 80 e 90.
Observamos, também, em texto verbal dessa obra, a retomada e a
elaboração da representação da mulher como empregada doméstica, papel
social já registrado, de forma rápida e superficial, em uma ilustração do livro Tudo
Bem-1, sem aprofundamento da questão.
97
No tocante ás representações da mulher em contextos de trabalho, a
diferença do livro Bem-Vindo! A Língua Portuguesa no Mundo da Comunicação
em relação a Tudo Bem-1 e a Português para Estrangeiros reside sobretudo no
fato de que, nos textos verbais de Bem-Vindo!, as mulheres estão representadas,
preponderantemente, vinculadas a atividades profissionais diversas, embora em
algumas ilustrações elas estejam também representadas executando atividades
relativas ao lar, já que o trabalho remunerado, em nossa sociedade, não exclui
as mulheres das atividades domésticas, dos cuidados com a família e com os
filhos. Um dos textos verbais autênticos de Bem-vindo! A Língua Portuguesa no
Mundo da Comunicação relata o posicionamento da empresa face à questão
da maternidade de mulheres trabalhadoras, pois em se tratando do trabalho
feminino há que se levar em conta a função reprodutora da mulher.
No que se refere às relações sociais entre os sexos, constatamos nos
textos verbais e não-verbais do livro Português para Estrangeiros, editado na
década de 50, a presença de uma ideologia de gênero que pode ser observada
no papel que as mulheres representadas assumem na família.
Pudemos perceber a importância da instituição do casamento para as
mulheres do período focalizado pelo manual. Nos textos verbais da obra em foco,
a figura feminina é representada no papel de esposa, em detrimento dos outros
papéis sociais que a mulher incorpora no âmbito da família. A família é
apresentada como nuclear, sendo o marido a autoridade dominante, fazendo com
que as relações se realizem de forma assimétrica. O poder da mulher
representada nos textos da obra de 1954 é mínimo, pois se exerce dentro do
espaço da casa, no interior da família e não ultrapassa esses limites, não
arranhando, portanto, a autoridade do homem, que detém um poder maior.
No livro Tudo Bem-1, editado na década de 80, constatamos, através dos
textos verbais, que a ideologia de gênero dominante na primeira metade do
século XX, já teria sofrido modificações no que se refere aos papéis sociais da
mulher, tanto casada quanto solteira. Isso pode ser um produto das mudanças
advindas do uso de contraceptivos, dos questionamentos feitos pelos
movimentos feministas a partir da década de 60, e das pressões econômicas
98
sofridas pelo país, no período em foco, que começaram a solapar as tradicionais
estruturas da família e empurrar a mulher para fora do espaço do lar.
Nos textos verbais de Tudo Bem - 1 registra-se uma comunicação mais
aberta entre os membros da família, e uma educação liberal das crianças. A
família é ainda representada como nuclear, mas sem a preponderância da
autoridade masculina, o que permite às mulheres participarem das decisões
familiares. Observamos, portanto, uma relação menos assimétrica entre os
cônjuges, embora um dos textos verbais do livro evidencie que, na sociedade
conjugal, no período em foco, o homem ainda era considerado legalmente “o
cabeça” do casal.
Na maioria dos textos verbais de Tudo Bem-1 a mulher casada
representada desfruta de lazer fora de casa, mas, em tais situações, as
personagens aparecem, geralmente, acompanhadas pelo marido. Em apenas um
texto, a personagem feminina viaja sozinha para fora do país, sem alusões a
trabalho, o que demonstra que a mulher casada já tinha adquirido uma maior
liberdade e sua esfera de ação extrapolava os limites da casa, o que contrasta
com a realidade dos anos 50, mostrada no livro Português para Estrangeiros.
No que se refere às mulheres solteiras, observamos nas personagens
representadas em Tudo bem -1 modificações nos costumes, que indicam regras
sociais menos rígidas, e a desconstrução do estereótipo da mulher virgem, que
balizou a vida sexual das jovens, sobretudo de classe média, até a segunda
metade do século XX. Os textos verbais e não-verbais desse material
representam as mulheres solteiras como sexualmente mais liberadas, com
possibilidades de atividades mais diversificadas, inclusive no que diz respeito ao
lazer.
A atitude conservadora do homem, bem como a ideologia que norteia o
seu comportamento diante da liberdade conquistada pelas mulheres, pode ser
sentida em um texto não verbal de Tudo Bem -1, que se apóia na letra da música
Amélia, funcionando como uma crítica às mudanças sociais da época.
Verificamos nos textos verbais e não-verbais do livro Bem-Vindo! A Língua
Portuguesa no Mundo da Comunicação, que as relações sociais entre os sexos
99
aparecem representadas de outra forma. O livro editado na década de 90, já
reflete uma série de mudanças que afetaram o papel da mulher na sociedade e
no âmbito familiar.
Nessa obra, os textos verbais e não-verbais também atestam uma maior
aproximação entre moças e rapazes, bem como a liberdade das moças saírem à
noite desacompanhadas e viajarem a trabalho com colegas do sexo masculino.
No material didático em foco, nos textos não verbais (ilustrações), foi
possível observar um maior número de personagens femininos em atividades de
lazer, pois poucos são os textos verbais focados no tema. As ilustrações de
figuras femininas representam mulheres namorando, na praia, com amigos,
dançando, em restaurantes etc.
Em relação às representações em Bem-Vindo! do papel da mulher no
âmbito da família, percebemos que a comunicação se faz de igual para igual,
tendo a mulher participação na resolução dos problemas familiares. A família
ainda é mostrada como nuclear, e ocupando um papel importante na vida dos
personagens jovens e adultos.
Notamos nesse material da década de 90, a inclusão da representação da
mulher brasileira também como prostituta. O tema foi abordado por um texto
autêntico, e reflete uma consciência de não-exclusão social.
Nos livros analisados, a ideologia de gênero também se manifestou na
forma de estereótipos diversos, que discriminam a mulher e se relacionam aos
papéis determinados em nossa sociedade para cada sexo.
No livro Português para Estrangeiros, eles podem ser encontrados nos
textos verbais e não-verbais. Nos textos verbais, destacamos os seguintes
estereótipos:a dona de casa eficiente e a esposa dedicada”, fixando a mulher
no espaço do lar, onde exercia algum poder.
É interessante destacar que os estereótipos que circulam nessa obra
constituem representações de caráter “justificativo”. A representação da mulher
como a dona de casa eficiente e esposa dedicada é uma forma de o homem
justificar sua pouca ou nenhuma participação nos trabalhos domésticos e nos
cuidados com os filhos.
100
Observamos na obra Tudo Bem-1, nos textos verbais e não verbais, a
presença dos seguintes estereótipos:
°a mulher velha e chata”, a dona de casa eficiente,a esposa dedicada”,
a “mulata sensual”, a mulher interesseira”, “a mulher gastadora” e a “mulher
palpiteira”.
Encontramos, nos textos verbais e não verbais do livro Bem-Vindo! A
Língua Portuguesa no Mundo da Comunicação, os seguintes estereótipos:
“a executiva”, a mãe”, “a esposa”, “a dona-de-casa”, “a loura atraente”, a
sogra”, “ a avó” e “a mãe preta”.
A análise do corpus evidenciou, no discurso de Marchant, autora do
manual Português para Estrangeiros, editado em 1954, em Porto Alegre, a
presença de uma ideologia de gênero, definindo de forma evidente os espaços
de atuação de cada sexo, e as atividades que lhe são atribuídas, o que permitiu a
manifestação de estereótipos femininos, ligados ao espaço de atuação
considerado então como o “reino da mulher, o lar.
A ideologia de gênero se manifesta, já modificada, no discurso de
Ramalhete, autora de Tudo Bem-1, editado em 1984, no Rio de Janeiro, em que
os espaços da mulher vão se revelando alargados, e as atividades não são mais
marcadas em relação ao sexo. O mesmo se pode dizer em relação ao discurso
de Ponce,Burim e Florissi, autoras de Bem-Vindo! A Língua Portuguesa no
Mundo da Comunicação, editado em 1999, em São Paulo, no qual as
representações da mulher, freqüentemente trazidas por textos autênticos,
remetem a uma maior flexibilidade da divisão do trabalho masculino e feminino,
dos papéis sociais do homem e da mulher.
Nos três manuais, porém, as representações da mulher, sobretudo quando
recorrem a estereótipos, mais visíveis nos textos não verbais, revelam a marca
de uma ideologia de gênero na qual o homem ainda detém o maior poder e a
mulher ocupa um espaço secundário.
Percebemos também ao desenvolver nossa pesquisa, forte ligação do
texto não verbal com o contexto em que se inscreve, evidenciando sua
101
capacidade de relatar a história social de seu tempo, e de sutilmente refletir o
ideário de seu autor.
A análise do corpus revelou ainda uma peculiaridade ligada aos
estereótipos relativos ao espírito das cidades de origem das autoras das três
obras. No discurso de Marchant, mulher que vivia no Rio Grande do Sul, a figura
feminina está vinculada à tradição. No discurso de Ramalhete, mulher que vivia
no Rio de Janeiro, a figura feminina aparece mais livre e em situações de lazer.
No discurso de Ponce, Burim e Florissi a figura feminina está profundamente
vinculada ao ambiente de trabalho, que caracteriza a cidade de São Paulo.
Concluímos que cada manual didático analisado representou a figura
feminina adaptada aos costumes vigentes no contexto social contemporâneo às
suas autoras, o que reforça o pensamento de Zarate (1995), que considera o
manual didático como um “produto cultural”, que “reflete sempre o conjunto de
valores, crenças, opiniões e percepções próprias à cultura de origem de seu
autor”.
102
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Anexos
108
ANEXO A
109
ANEXO B
110
ANEXO C
111
ANEXO D
112
ANEXO E
113
ANEXO F
114
ANEXO G
115
ANEXO H
116
ANEXO I