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REPRESENTAÇÕES DA MULHER EM OBRAS DE HELENA PARENTE CUNHA,
LYGIA FAGUNDES TELLES E MARINA COLASANTI
Wanessa Zanon de Souza
Dissertação de Mestrado submetida ao
Programa de Pós-Graduação em Letras
Vernáculas da Universidade Federal do Rio
de Janeiro UFRJ, como parte dos requisitos
necessários para a obtenção do tulo de
Mestre em Letras Vernáculas (Literatura
Brasileira).
Orientadora: Profa. Doutora Rosa Gens
Rio de Janeiro
Agosto de 2009
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
REPRESENTAÇÕES DA MULHER EM OBRAS DE HELENA PARENTE CUNHA,
LYGIA FAGUNDES TELLES E MARINA COLASANTI
WANESSA ZANON DE SOUZA
2009
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REPRESENTAÇÕES DA MULHER EM OBRAS DE HELENA PARENTE CUNHA, LYGIA
FAGUNDES TELLES E MARINA COLASANTI
Wanessa Zanon de Souza
Orientadora: Profª. Doutora Rosa Maria de Carvalho Gens
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras
Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, como parte dos requisitos
necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira).
Examinada por:
_________________________________________________
Presidente, Profª. Drª. Rosa Maria de Carvalho Gens UFRJ.
______________________________________________
Profª. Drª. Elódia Xavier UFRJ.
______________________________________________
Profª. Drª. Helena Parente Cunha UFRJ.
______________________________________________
Profª. Drª. Anélia Pietrani UFRJ, Suplente.
______________________________________________
Profª. Drª. Angélica Maria Santos Soares UFRJ, Suplente.
Rio de Janeiro
Agosto de 2009
FICHA CATALOGRÁFICA
Souza, Wanessa Zanon.
Representações da mulher em obras de Helena Parente Cunha, Lygia
Fagundes Telles e Marina Colasanti / Wanessa Zanon de Souza. Rio de
Janeiro: UFRJ/FL, 2009.
ix, 84f.; 31cm.
Orientadora: Rosa Maria de Carvalho Gens
Dissertação (mestrado) –– UFRJ/FL/ Programa de Pós-graduação em Letras
Vernáculas, 2009.
Referências Bibliográficas: f. 94 - 96
1. A disciplina. 2. O casamento. 3. O desejo I. Gens, Rosa Maria de
Carvalho. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Faculdade de Letras,
Programa de Pós-graduação em Letras Vernáculas. III. Representações da
mulher em obras de Helena Parente Cunha, Lygia Fagundes Telles e Marina
Colasanti
A minha mãe pelo apoio incondicional em todos os momentos
AGRADECIMENTOS
Acima de tudo a Deus, por ter me sustentado em todos os momentos, principalmente nos
mais difíceis.
A minha querida orientadora Rosa Gens, pela paciência, dedicação, carinho e por
acreditar em mim.
À Elódia Xavier pelo apoio em minha trajetória acadêmica, desde a Graduação, pelo amor
à literatura e por ser mais que uma professora.
Aos meus professores ao longo da minha existência, pois tiveram participação
fundamental no meu crescimento, especialmente a todos os professores desta casa que me
fizeram ainda mais apaixonada pela literatura.
Aos meus amigos e familiares pela paciência extrema e apoio absoluto.
A CAPES pela bolsa concedida.
REPRESENTAÇÕES DA MULHER EM HELENA PARENTE CUNHA, LYGIA FAGUNDES
TELLES E MARINA COLASANTI
Wanessa Zanon de Souza
Orientadora: Rosa Maria de Carvalho Gens
Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Letras
Vernáculas, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, como parte
dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Literatura Brasileira.
A presente dissertação estuda a personagem feminina em contos de autoria feminina da
Literatura Brasileira Contemporânea, analisados comparativamente. As autoras em foco são
Helena Parente Cunha, Lygia Fagundes Telles e Marina Colasanti. Cada capítulo apresenta
contos selecionados por um eixo temático comum, motivador na construção da personagem:
disciplina (“O pai”, “Venha ver o pôr do sol” e É a alma, não é?”, respectivamente); casamento
(“O triângulo mais que perfeito”; “As pérolas” e “O menino”; “Amor e morte na página
dezessete” e “Um dia, afinal”, respectivamente); desejo (“Festa de casamento”, “O moço do
saxofone”, “O leopardo é um animal delicado”, respectivamente). Paralelamente, apresenta-se,
em cada um dos capítulos, um conto de autoria masculina. Busca-se identificar de que maneira as
personagens femininas são construídas nas narrativas, levando em conta os estudos teóricos de
Simone de Beauvoir, Pierre Bourdieu, Michel Foucault, Elizabeth Badinter como suporte teórico
para este trabalho.
Palavras-chaves: personagem feminina, disciplina, casamento, desejo, representação, relações de
gênero.
Rio de Janeiro
Agosto de 2009
ABSTRACT
REPRESENTATIONS OF WOMEN IN HELENA CUNHA PARENTE, LYGIA FAGUNDES
TELLES AND MARINA COLASANTI
Wanessa Zanon de Souza
Orientadora: Rosa Maria de Carvalho Gens
Abstract da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Letras
Vernáculas, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, como parte
dos requisitos necessários à obtenção do tulo de Mestre em Literatura Brasileira.
This dissertation examines the female characters in stories by female authors of
Contemporary Brazilian literature were compared. The authors are in focus Helena Parente
Cunha, Lygia Fagundes Telles and Marina Colasanti. Each chapter presents stories selected by a
common theme, motivating the construction of character: discipline (“O pai”, “Venha ver o pôr
do sol” e “É a alma, não é?”, respectivamente); marriage (“O triângulo mais que perfeito”; “As
pérolas” e “O menino”; “Amor e morte na página dezessete” e Um dia, afinal”,
respectivamente); desire (“Festa de casamento”, “O moço do saxofone”, “O leopardo é um
animal delicado”, respectivamente). In addition, it presents in each chapter, a tale of male
authorship. Try to identify in what way the female characters in the narratives are constructed,
taking into account the theoretical studies of Simone de Beauvoir, Pierre Bourdieu, Michel
Foucault, Elizabeth Badinter as theoretical support for this work.
Keywords: female character, discipline, marriage, desire, representation, gender relations.
Rio de Janeiro
Agosto de 2009
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO 10
2 A DISICPLINA 16
2.1 SITUAÇÕES DE REPRESSÃO 18
2.2 UM OLHAR MASCULINO 36
3 O CASAMENTO 38
3.1 DESMISTIFICAÇÃO DO CASAMENTO 40
3.2 UM OLHAR MASCULINO 65
4 O DESEJO 70
4.1 DESEJO FEMININO 72
4.2 UM OLHAR MASCULINO 87
5 CONCLUSÃO 90
6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 94
10
1 INTRODUÇÃO
O presente trabalho apresenta um estudo da representação de mulheres em contos de
autoras da Literatura Brasileira contemporânea. O desdobramento possível na construção da
personagem incitou-me a observar alguns aspectos deste elemento fundamental e sedutor da
narrativa.
De acordo com dados publicados em artigo pela pesquisadora Regina Dalcastagnè, a
personagem feminina aparece em menor proporção do que a masculina na literatura brasileira,
1
Segundo pesquisas realizadas na Universidade de Brasília (UnB) que se debruçaram
sobre todos os romances publicados pelas principais editoras brasileiras da área
(Companhia das Letras, Record e Rocco) nos últimos 15 anos as autoras não chegam a
30% do total de escritores editados. O que se reflete também na subrepresentação das
mulheres como personagens em nossa ficção. As mesmas pesquisas mostram que menos
de 40% das personagens são do sexo feminino. Além de serem minoritárias nos
romances, as mulheres também têm menos acesso à “voz”, isto é, à posição de
narradoras, e estão menos presentes como protagonistas das histórias
(DALCASTAGNÈ, 2005, p.2)
O estudo de Regina Dalcastagnè não apenas nos revela que a quantidade de personagens
femininas em nossa literatura ainda é reduzida, mais do que isso, suas pesquisas ressaltam a
restrição da representação destas personagens, que possuem um arquétipo predeterminado, apesar
de considerar que “desde o início do século XX, ela [a personagem] vem se tornando, a um
tempo, mais complexa e mais descarnada.” (DALCASTAGNÈ, 2005, p.2).
De acordo com o resultado da pesquisadora, a maioria das personagens femininas
representadas por autoras são brancas; em variadas idades; possuem como principal característica
a inteligência; são mais independentes, mas grande parte permanece sendo dona-de-casa; o corpo
é descrito com mais detalhes; são saudáveis; e que o número de mães reduz-se, principalmente
quando brancas.
O estudo ainda ressalta que as personagens femininas das autoras retratam a mulher de
forma mais plural, demonstrando a condição complexa observada na realidade, inerentes ao “ser
mulher”. Por isso, dando continuidade ao trabalho iniciado durante a graduação, orientado pela
1
Os dados completos da pesquisa estão publicados em DALCASTAGNÈ, Regina. “A personagem do romance
brasileiro contemporâneo (1990-2004)”. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, 26. Brasília, 2005, pp.
13-71.
11
professora Doutora Elódia Xavier sobre o corpo feminino, esta dissertação estudará a personagem
feminina, ao objetivar agrupar contos em que as personagens sejam protagonistas a fim de
identificar elementos importantes na representação da mulher.
A personagem é um ser fictício concebido por um autor com suas especificidades e
importância para a obra, pois é o agente da narrativa que atribui significação para o evento
narrado. As atribuições dadas à personagem, juntamente com os outros signos criados pelo autor,
proporcionam a sua existência. Segundo Beth Brait, “ao encarar a personagem como ser fictício,
com forma própria de existir, os autores situam a personagem dentro da especificidade do texto,
considerando a sua complexidade e o alcance dos métodos utilizados para apreendê-la” (BRAIT,
2004, p.51). Anatol Rosenfeld também destaca a diferença entre a pessoa e a personagem: “(...) a
personagem de um romance (e ainda mais de um poema ou de uma peça teatral) é sempre uma
configuração esquemática, tanto no sentido físico como psíquico, embora formaliter seja
projetada como um indivíduo “real”, totalmente determinado.” (CANDIDO, 2007, p.33).
Uma narrativa apresenta, na maioria das vezes, mais de uma personagem e a interação
dessas origina o desenvolvimento do enredo. No nosso caso, serão evidenciadas as personagens
femininas que possuem maior relevância nos enredos, desta forma, todos os demais elementos da
narrativa agem em sua dependência.
A importância das personagens principais evidencia-se em sua constituição mais
delineada. A caracterização, seja emocional, física ou social, é elaborada para dar maior riqueza à
narrativa. Cada uma é complexamente construída, como um emaranhado de fios que compõe um
tecido. A coordenação deste elemento com os demais origina o enredo. Segundo Antonio
Candido,
Os três elementos centrais dum desenvolvimento novelístico (o enredo e a personagem,
que representam o seu significado, - e que o o conjunto elaborados pela técnica), estes
três elementos existem intimamente ligados, inseparáveis, nos romances bem
realizados. No meio deles, avulta a personagem, que representa a possibilidade de
adesão afetiva e intelectual do leitor, pelos mecanismos de identificação, projeção,
transferência etc. A personagem vive o enredo e as idéias, e os torna vivos. (CANDIDO,
2007, p.54).
A diversidade de características da personagem, construída na narrativa por meio da
linguagem, está proporcionalmente relacionada à sua importância no enredo, pois através dela os
fatos e as idéias se concretizam. Quanto maior for sua relevância, maior será sua complexidade e,
consequentemente, ocorrerá a centralização dos eventos em suas ações.
12
A personagem feminina confina-se, em parte dos textos da literatura, ao espaço da casa, à
tarefa de mãe e à ocupação da família, seu espaço foi restrito ao particular, ao fechado e ao
limitado. Para ela, foi construído o que Simone de Beauvoir chamou de “destino de mulher”: a
rainha do lar, a mãe, a geradora, a acolhedora, aquela que mantém afetivamente a prole.
Esta dissertação busca demonstrar que este espaço, construído para a mulher, independe
da autoria e que sua influência sobre a personagem tem sido gradativamente diminuída, pois é
possível observar narrativas que rompem com este paradigma. As personagens agora podem
alterar os destinos impostos pela sociedade; apesar de nem sempre o fazerem.
O estudo de ficção impõe-se como uma tarefa complexa, pois vários elementos
constituem sua estrutura, além dos diversos gêneros produzidos. A personagem feminina, assunto
do qual se falará nesta dissertação, será abordada em textos das seguintes autoras
contemporâneas: Helena Parente Cunha, Lygia Fagundes Telles e Marina Colasanti.
As autoras foram selecionadas pelo vigor de suas produções e pela constância na
representação de mulheres. A opção por contos deu-se pela possibilidade de ampliação do corpus
de estudo, que se centrou em três ou quatro contos de cada uma das autoras. O objetivo foi, a
partir da leitura dos textos, investigar situações básicas recorrentes. As obras escolhidas foram:
Os provisórios (1980), de Helena Parente Cunha; Antes do baile verde (1972), de Lygia
Fagundes Telles; e O leopardo é um animal delicado (1998), de Marina Colasanti.
A proposta é fazer uma amostragem das situações consideradas mais recorrentes quando
se trata de representação do feminino. Mais que os traços exteriores, desvendaremos os traços
interiores das personagens.
A dissonância na caracterização da personagem feminina nos remete à flexibilidade da
criação e à influência da realidade, haja vista as obras contextualizarem-se em décadas diferentes,
pois as produções escolhidas foram lançadas nas décadas de 70, 80 e 90. Para um rápido
contraponto, foram utilizados contos dos autores Carlos Drummond de Andrade, Ivan Ângelo e
Rubem Fonseca, publicados em 1951, 1986 e 1989, respectivamente.
As autoras selecionadas possuem visibilidade do grande público, com vasta produção
cultural e carreira consolidada. Enredam o leitor com suas produções, não se preocupam em
facilitar o seu entendimento por meio de uma narrativa simplificada, ao contrário, apresentam
complexidade de linguagem e de estruturação textual.
13
Helena Parente Cunha representa em seu dia-a-dia a versatilidade da mulher, ao ser poeta,
ficcionista, tradutora, professora universitária, pesquisadora, ensaísta e crítica literária. Os contos
que analisaremos, “O triângulo mais que perfeito”, “O pai” e “Festa de casamento” encontram-se
no livro Os Provisórios, cuja publicação data de 1980. Dois dos contos escolhidos para o estudo,
“O pai” e “O triângulo mais que perfeito”, foram premiados no IX Concurso Nacional de Contos
promovido pela Secretaria de Educação do Paraná em 1978
2
. O livro nos apresenta uma série de
textos que apontam para sujeitos que, assim como indica o título, são provisórios nesta sociedade
onde vivemos. São aqueles que estão à margem, não protagonizam a história oficial, que põe em
cena apenas os dominadores. O que faz Helena Parente Cunha, nos contos deste livro, é dar voz a
esses sujeitos, ela os faz falar e nos obriga a ouvi-los. Assim, estão em foco: os mendigos,
protagonistas do conto que nome ao livro, os trabalhadores anônimos e também a mulher,
vertente da obra que interessa ao nosso estudo.
Marina Colasanti apresenta-se, no cenário da cultura brasileira contemporânea, como
personalidade intelectual caracterizada pela diversidade: jornalista, ensaísta, cronista, poeta,
artista plástica, escritora de obras literárias que seduzem tanto o leitor infantil quanto o adulto,
estes são os diversos campos de atuação da escritora. O livro selecionado, O leopardo é um
animal delicado, publicado em 1998, apresenta textos reveladores de sua preocupação com o
universo feminino. Os contos que serão estudados, “É a alma, não é?”, “Um dia, afinal”, “Amor e
morte na gina dezessete” e “O leopardo é um animal delicado” auxiliam-nos a (re) pensar a
condição feminina.
Lygia Fagundes Telles representa com maestria o drama das relações humanas.
Advogada, contista e romancista, acadêmica eleita em 24 de outubro de 1985 para a cadeira
número 16, são algumas das facetas mundialmente conhecidas da escritora. Suas obras mexem
com o imaginário do leitor e possuem vasta temática. Os contos escolhidos apresentam
personagens femininas às voltas com seus relacionamentos. Os textos a serem estudados de Lygia
Fagundes Telles encontram-se na obra Antes do baile verde, publicado em 1972, reunindo contos
escritos entre 1949 e 1969, considerada uma das obras mais marcantes da carreira da autora. Os
contos selecionados: “Venha ver o pôr do sol” (1958), “O menino” (1949), “As pérolas” (1958) e
“O moço do saxofone” (1969).
2
In: LOBO, Luiza: 2006, p.133.
14
Os textos foram agrupados a partir de três situações, que servirão de núcleo aos capítulos:
disciplina, casamento e desejo. O capítulo sobre “disciplina” traz personagens femininas
aprisionadas ao sistema patriarcal a que estão submetidas. A inculcação da obediência revela
personagens femininas espartilhadas pela situação de repressão que vivenciam, seja familiar,
fraterna ou profissional. Os contos selecionados para o estudo foram: “O pai”, de Helena Parente
Cunha; “Venha ver o pôr do sol”, de Lygia Fagundes Telles e “É a alma, não é?”, de Marina
Colasanti. Os suportes teóricos ajudam a compreender a criação das protagonistas dos contos; a
obra A dominação masculina, de Pierre Bourdieu e Vigiar e punir, de Michel Foucault, auxiliam
na reflexão sobre o comportamento das personagens.
O casamento também se impõe como uma situação recorrente e problemática. As
narrativas se desenvolvem sobre o desgaste deste relacionamento, que se baseia no clichê “até
que a morte nos separe”. A felicidade eterna ilusionada pelas personagens é descoberta como
uma fraude ao perceberem os problemas gerados pelo tempo. No segundo capítulo, os contos: “O
triângulo mais que perfeito”, de Helena Parente Cunha; “As pérolas” e “O menino”, de Lygia
Fagundes Telles; “Amor e morte na página dezessete” e “Um dia, afinal”, de Marina Colasanti,
demonstram personagens descontentes em seus casamentos, desmistificando a idealização de ser
um sonho, conceito difundido até nossos dias. Neste momento, Amor Líquido: sobre a
fragilidade dos laços humanos (2004), de Zygmunt Bauman e A transformação da intimidade:
Sexualidade, Amor e Erotismo nas Sociedades Modernas (1993), de Anthony Giddens, trazem à
tona reflexões pertinentes ao tema estudado.
O desejo deixa de ser um sentimento coibido. As personagens passam a ser sujeito de suas
vontades e de seus destinos, os homens, consequentemente, objeto para a satisfação. O enredo
diferencia-se pela abordagem das narrativas, no entanto, todas apresentam o rompimento com a
estrutura patriarcal como inquestionável. No terceiro e último capítulo, os contos: “Festa de
casamento”, de Helena Parente Cunha; “O moço do saxofone”, de Lygia Fagundes Telles e “O
leopardo é um animal delicado”, de Marina Colasanti, evidenciam a temática do desejo através
do qual as personagens rompem com os padrões sociais para sua auto-realização. Todas as
reflexões teóricas anteriores serão utilizadas para a compreensão do eixo temático.
A abordagem do estudo privilegia a personagem feminina criada por autoras com intuito
de observar três contextos específicos. Para dinamizar o estudo, ao final de cada capítulo será
15
feita uma rápida contraposição com o “olhar masculino”, em que se apresentam personagens em
situações similares às de autoria feminina.
Após a leitura e seleção dos contos, surgiram alguns questionamentos que levaram à
reflexão: até que ponto, por exemplo, o contexto temático aproxima as personagens? Elas reagem
da mesma maneira? Haveria nas produções um discurso feminista? Essas e outras questões foram
abordadas ao longo da dissertação, de forma a elucidar que é realmente através do texto que se
constrói a base da comunicação narrador/leitor.
Para estudar os contos sem fazer do texto um assunto secundário, primeiro fez-se uma
análise das concepções teóricas selecionadas para que corroborassem com as produções
selecionadas sem as transformar em uma observação sociológica. As leituras servem de suporte
teórico para o estudo das situações onde as personagens se contextualizam, uma vez que os
capítulos dividem-se por seu eixo temático.
Nem todas as obras selecionadas foram publicadas no século vigente, no entanto, refletem
as questões levantadas. Obras como O Segundo Sexo, da autora Simone de Beauvoir, apresentam
reflexões acerca do comportamento feminino na década de 50, do século passado, que continuam
atuais. O trabalho da socióloga será utilizado por apresentar uma visão crítica sobre a condição da
mulher ainda prostrada pela força do domínio masculino. Assim como Bauman, produzido em
2004, que apesar do distanciamento temporal de obra de Beauvoir e até mesmo de alguns dos
contos selecionados corrobora com a análise dos textos.
Por fim, a conclusão evidenciará que, independente da situação em que estão inseridas,
cada personagem assume uma postura, adensando-se com a composição literária de cada autora/
autor.
As diferenças de comportamento refletem a riqueza das construções das personagens as
quais, por vezes, representam mulheres que seguem seus destinos, e por outras que se aproximam
do ideal da mulher tradicional, ainda seguido em parte das narrativas. Estuda-se aqui, portanto,
representações, que ora refletem, ora subvertem padrões de comportamento da sociedade.
16
2 A DISCIPLINA
A disciplina feminina é uma constante na literatura quando busca retratar mulheres na literatura, isto
ocorre devido à contextualização das narrativas em uma sociedade patriarcal, na qual a visão androcêntrica
predomina, portanto, as mulheres devem ser submissas à vontade masculina.
Nos contos selecionados para compor este capítulo, encontramos personagens vivendo uma situação
dramática semelhante. Os contos O pai, de Helena Parente Cunha; Venha ver o pôr do sol, de Lygia
Fagundes Telles e É a alma, não é?, de Marina Colasanti, apresentam personagens inseridas em uma
disciplina rígida imposta por homens com diferentes vínculos.
As personagens representam a mulher submissa em seu contexto de repressão; a caracterização e
personalidades evidenciam a disciplina dessas mulheres a uma sociedade patriarcal. Interessante observar que
as narrativas não se preocupam em descrever as personagens fisicamente, pois o objetivo é problematizar uma
situação comum ao universo feminino através do olhar das escritoras.
A dominação masculina faz-se presente de forma que as mulheres se veemcondicionadas a seguirem
o padrão comportamental a que foram submetidas durante toda suas vidas. Segundo Bourdieu, dominação é
um esquema inconsciente cujas raízes encontram-se na estruturação histórica, estabelecendo e reafirmando a
ordem masculina como superior, sem necessidade de justificar-se, pois é uma construção social naturalizada. A
ordem social legitima o poder masculino, que o manifesta principalmente no contexto doméstico.
As obras selecionadas enfatizam a hereditariedade desse ensinamento, representando a dominação
masculina. As personagens evidenciam o poder simbólico dos homens sobre as diferentes etapas que
vivenciam e, nos textos literários em questão, observaremos a relação entre pai e filha, entre ex-namorados, e
entre o marido e sua esposa.
A disciplina feminina é interiorizada. O controle pode manifestar-se em uma ação individual, como
dos homens, ou através dos padrões patriarcalistas da sociedade. Foucault defende que o poder disciplinar é
comefeito um poder que, em vez de se apropriar e de retirar, tem como função maior adestrar; ou sem dúvida
adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor.(FOUCAULT, 2008, p.143).
Inseridas na mecânica do poder, as personagens femininas devem ser submissas e dóceis
3
aos
seus dominadores. A domesticidade é um traço incutido na mulher durante sua preparação para a sociedade,
pois as relações de poder baseiam-se na dominação.
3
Nomenclatura utilizada por Foucault na obra Vigiar e Punir, que define corpo dócil como aquele “que pode ser
utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado” (FOUCAULT, 2008, p.118).
17
Requer-se a disciplina em todas as instituições da sociedade: Família, Escola, Igreja. As personagens
submetem-se às figuras masculinas que lhes são superiores em cada organismo social, seja pai, professor,
padre/pastor, e, posteriormente, marido. Durante toda a vida, o corpo feminino condiciona-se a seguir as
posturas adquiridas em cada regime controlador de comportamento.
A relação social de dominação, em todas as narrativas, é legitimada por ser considerada natural. Isto
ocorre porque a ordem masculina sempre se justifica devido às relações do gênero. O homem não precisa
caracterizar seu valor, pois sua supremacia já estava determinada pela sociedade. O pai, o ex-namorado e o
marido, nos contos selecionados, reafirmam a estrutura patriarcal onde a vontade masculina deve prevalecer e a
mulher restringir-se ao seu papel.
O privilégio da dominação, dado pela sociedade, é acompanhado por deveres que avaliam o êxito do
papel de dominador, agenciado pelo masculino, haja vista a necessidade de afirmar sua virilidade. É assim que
no conto O pai, o homem intensifica sua função de poder com a morte de sua esposa, o que lhe impõe um
maior zelo pelo destino de sua filha. A personagem Ricardo, em Venha ver o pôr do sol, necessita vingar a
traição sofrida, o que lhe conferiu a perda do seu poder; já em É a alma, não é?, a personagem masculina
não participa diretamente da dominação, uma vez que Marta demonstra-se imobilizada pela estrutura patriarcal
a que sempre foi submetida.
As mulheres já incutiram em si a inferioridade disseminada desde seus nascimentos, assim como a
aprendizagem de que devem realizar as atividades consideradas inferiores devido à sua natureza; por isso, as
relações sociais ainda são distinguidas através da oposição entre masculino e feminino, através de relações de
superioridade e inferioridade,realidadeestacontextualizada nas narrativas selecionadas.
No conto O pai, de Helena Parente Cunha, observa-se a submissão filial a um pai autoritário. Em
Venha ver o pôr do sol, de Lygia Fagundes Telles, a obediência resignada de Raquel a impede de se voltar
contra a vontade de Ricardo e, por isso, permanece seguindo o ex-namorado, mesmo estando receosa devido
ao ambiente hostil em que se reencontraram. Já em É a alma, não é?, de Marina Colasanti, a submissão à
rotina familiar se mantém mesmo com o desgaste do casamento. A supremacia masculina nas relações de
gênero é determinante em todos os contos, destacando o ambiente repressor em que se encontram as
personagens femininas.
Aos homens são atribuídas as tarefas que demonstram seu vigor físico e importância social, enquanto
as mulherespermanecemsubmissas, resignadas àcondição estabelecida pela sociedade. Todas as personagens
selecionadas mantêm-se seguidoras a estes padrões, até mesmo a personagem do conto O Pai que é
professora e poderia romper com a dependência paterna continua submissa, além de ter um emprego
18
socialmente permitido; Raquel, de Venha ver o pôr do sol, preocupa-se apenas em agradar seu novo
namorado por quem é sustentada; enquanto que a esposa de É a alma, não é?, restringe-se a desempenhar as
tarefasdomésticas intrínsecas a sua função.
As personagens estão submetidas à força simbólica, que, segundo Bourdieu, age através de um
trabalho de inculcação e incorporações, a que tanto os homens quanto as mulheres são submetidos. A
violência simbólica ésuave,insensível einvisível; como nos explicita o autor:
A força simbólica é uma forma de poder que se exerce sobre os corpos, diretamente, e
como que por magia, sem qualquer coação física; mas essa magia só atua com o apoio de
predisposições colocadas, como molas propulsoras, na zona mais profunda dos corpos.
Se ela pode agir como um macaco mecânico, isto é, com um gasto extremamente
pequeno de energia, ela só o consegue porque desencadeia disposições que o trabalho de
inculcação e de incorporação realizou naqueles ou naquelas que, em virtude desse
trabalho se vêem por elas capturados. (BOURDIEU, 2007, p.50).
A mulher adere à dominação, oferecendo condições plenas ao homem para dominá-la. Isto ocorre
graças à submissão doméstica recorrente, alémda estruturação da sociedade como um todo:
O poder simbólico não pode se exercer sem a colaboração dos que são subordinados e
que só se subordinam a ele por que o constroem como poder. (...) Assim se percebe que
essa construção prática, longe de ser um ato intelectual consciente, livre, deliberado de
um “sujeito” isolado, é, ela própria, resultante de um poder, inscrito duradouramente no
corpo dos dominados sob a forma de esquemas de percepção e de disposições (a
admirar, respeitar, amar etc) que o tornam sensível a certas manifestações simbólicas do
poder (BOURDIEU, 2007, p.52-3).
O corpo feminino, desde seu nascimento, disciplina-se através dos ensinamentos sociais e culturais
introjetados pela sociedade patriarcal. Como defende Simone de Beauvoir, não se nasce mulher, torna-se
mulher (BEAUVOIR, 1967, p.9). Nos contos, as personagens assimilaram a obediência ao homem e, apesar
de perceberem a anormalidade das situações, não possuem forças para reagir ante as figuras masculinas, que
continuam direcionando seus destinos.
As personagens femininas dos contos selecionados representam mulheressubmissas:
=-
a lógica paradoxal da dominação masculina e da submissão feminina, que se pode dizer
ser, ao mesmo tempo e sem contradição, espontânea e extorquida, só pode ser
compreendida se nos mantivermos atentos aos efeitos duradouros que a ordem social
exerce sobre as mulheres (e os homens), ou seja, às disposições espontaneamente
harmonizadas com esta ordem as impõe. (BOURDIEU, 2007, p.50).
2.1 SITUAÇÕES DE REPRESSÃO
O conto “O pai”, de Helena Parente Cunha, é emblemático ao ser estudada a submissão
feminina. A autora evidencia a temática a partir da organização dos contos na obra, pois no
19
início, meio e fim da organização estabelecida dos contos, observamos narrativas que se
constroem sobre este eixo temático: “O pai”, “A tia” e “O coronel”, apresentam personagens
femininas reprimidas pelos padrões da sociedade patriarcal, ressaltando a superioridade das
figuras masculinas e o zelo extremo em relação as suas filhas. O conto “O paimetaforiza a
singularidade desta figura: pai; o primeiro dominador da mulher, sendo o responsável pela
naturalização das relações de poder na natureza biológica feminina.
No conto “O pai”, evidencia-se a autoridade masculina no relacionamento entre pai e
filha. A nomeação das personagens dá-se pelos títulos de hierarquia familiar, evidenciando assim
a relação de poder manifestada no enredo com a supremacia da vontade do homem. O narrador
não se preocupa em descrever a personagem na totalidade de aspectos, o perfil a que temos
acesso reflete apenas o papel de filha exemplar devido à disciplina absorvida.
Desde o título é ressaltada a importância de tal figura na narrativa: o pai, apenas sendo
adicionado um artigo definido ao substantivo, destacando a sua relevância no conto. Para
Bourdieu,
É principalmente por intermédio daquele que detém o monopólio da violência simbólica
legítima (e não apenas da potência sexual) dentro da família que se exerce a ação
psicossomática que leva à somatização da lei. As proposições paternas têm um efeito
mágico de constituição, de nominação criadora, porque falam diretamente ao corpo (...)
(BOURDIEU, 2007, p.87-86).
A disciplina torna-se uma característica preponderante da personagem feminina; mesmo
tendo quarenta anos permanece inerte, submissa às vontades do pai, que mantém o tratamento
repressor de quando ela era criança. O agente dominador submete a filha a uma violência
simbólica. A oscilação temporal busca demonstrar a imobilidade da personagem que, mesmo
com seu envelhecimento, continua obediente às regras do pai; quando criança, não podia brincar
com os meninos e quando adulta não pode fazer curso de pós-graduação.
No conto “Venha ver o pôr do sol”, Lygia Fagundes Telles explora a temática da
supremacia do homem em relação à mulher, demonstrando como se estruturam as relações de
gênero. O perfil das personagens é definido através da influência do poder patriarcal na
construção dos estereótipos masculino e feminino. A narrativa proporciona gradativamente
elementos que permitem ao leitor o maior conhecimento dos personagens.
Nesse conto, nota-se a personagem masculina como manipuladora da personagem
feminina, estabelecendo-se sujeito da narrativa. O desencontro na relação afetiva coloca-se como
20
consequência tanto do autoritarismo masculino quanto da alienação feminina, e observa-se que a
resignação de Raquel contrapõe-se à astúcia envolvente de Ricardo. A história ressalta o caráter
crédulo da personagem feminina, que aceita todas as ideias da personagem: “− Está bem, mas
agora vamos embora que me diverti muito, faz tempo que não me divirto tanto, mesmo um
cara como você podia me fazer divertir assim.” (p. 127); o narrador deixa-nos claro que a
personagem não desconfia do real propósito do encontro.
A disciplina de Raquel evidencia-se desde o título com a presença de um verbo no
imperativo: “venha”, indicando uma ordem, disfarçada em convite, enunciada por Ricardo. A
personagem não consegue deixar de seguir o ex-namorado no ambiente sombrio no qual se
encontraram e, apesar de não se sentir à vontade com a situação, ela não recusa o “convite”, que
deixa de ser pacífico devido à insistência.
A construção das personagens evidencia a diferença entre os gêneros. Ricardo é ambíguo,
manipulador, perverso e autoritário, pois arquitetara o reencontro para vingar-se daquela a quem
amou, mas o abandonou. Enquanto Raquel, graças a sua obediência e romantismo, permite ser
manipulada facilmente, de tal forma que um livro, por ser romântico, poderia ocasionar alteração
em seu comportamento: “É que você tinha lido A dama das Camélias, ficou assim toda frágil,
toda sentimental. E agora? Que romance está lendo?” (p.127) ou em “Sabe, Ricardo, acho que
você é meio tantã... mas apesar de tudo, tenho às vezes saudade daquele tempo. Que ano aquele.”
(p.126).
A atitude violenta da personagem Ricardo em “Venha ver o pôr do solé gerada pelo
rompimento do relacionamento. O homem, condicionado em sua supremacia, não aceita ser
contrariado. Segundo Bourdieu, “a força masculina se evidencia no fato de que ela dispensa
justificação: a visão androcêntrica impõe-se como neutra e não tem necessidade de se enunciar
em discurso que vise a legitimá-la” (BOURDIEU, 2007, p.18).
O narrador fornece-nos indícios da verdadeira intenção do encontro e da ambiguidade da
personalidade de Ricardo, evidenciada através das alterações na fisionomia e ressaltada no
seguinte diálogo: “– Eu gostei de você, Ricardo. / E eu te amei. E te amo ainda. Percebe agora a
diferença?” (p.128). Mesmo assim, Raquel prossegue acompanhando-o apesar de amedrontada
pela atmosfera mórbida como em: “Um pássaro rompeu o cipreste e soltou um grito. Ela
estremeceu” (p.128). A personagem não consegue contrariar Ricardo e sempre continua seguindo
as instruções de seu ex-namorado para ver o “pôr do sol mais lindo do mundo”.
21
O contexto de repressão feminina difere nos três contos. Em “Venha ver o pôr do sol”, a
personagem masculina, Ricardo, utiliza-se da submissão feminina para executar sua vingança. No
conto “O pai”, a dominação paterna representa a força do patriarcado. Já em “É a alma não é?”, a
imobilidade da personagem em romper com a estrutura patriarcal é mais forte.
O conto “É a alma, não é?”, de Marina Colasanti, retrata uma personagem feminina
Marta − presa em seu casamento baseado no molde patriarcal. A personagem está imobilizada em
seu casamento e não busca mais nada. Similarmente às personagens clariceanas, vivencia o
momento de epifania, reflete sobre a condição de seu relacionamento. A personagem de “É a
alma, não é?” conforma-se com a rotina de seu casamento.
No conto o narrador revela um momento da vida da personagem, mas não se preocupa em
descrevê-la, seja fisicamente ou seu ambiente social. O enredo concentra-se em demonstrar a
reflexão de Marta sobre seu casamento, fato desencadeado a partir do comentário do marido
sobre uma notícia de jornal. O momento de percepção de que seu casamento é um fracasso
assemelha-se à epifania vivenciada pelas personagens de Clarice, pois uma notícia lida pelo
marido arrebata-lhe os alicerces da rotina, e nesse momento, então percebe o casamento como
uma decepção.
Benedito Nunes (1989, p. 84-6) explica o procedimento da epifania na maioria dos contos
de Clarice a partir do que ele chama de tensão conflitiva, que ocorre no núcleo da narrativa e que
resulta no clímax. A tensão conflitiva é, normalmente, provocada por um fato banal, uma cena do
cotidiano, uma pessoa, um lugar, que será um intermediário entre o mundo e a
“incompatibilidade latente” da personagem. Latente, porque essa visão ou concepção de mundo
sempre existira, mas vem à tona em um momento fugidio; a isso, então, ele chama de clímax, ou
seja, o “momento privilegiado”, o confronto da personagem com o mundo.
Em seguida, Benedito Nunes fala de um anticlímax: no qual a situação quase sempre
retorna à sua posição original, isto é, o conflito volta ao estado de latência de onde saíra e a
personagem retoma a rotina de sua vida. Em alguns casos, a crise gerada pela tensão conflitiva
pode prolongar-se dentro do conto; nem sempre ela acaba rapidamente, pode perdurar um certo
tempo. Ou seja, para cada tensão conflitiva, surge um clímax e um anticlímax, sendo que, neste
último, contextualizando no conto de Marina Colasanti, ocorre um retorno à situação de origem,
ou seja, a personagem permanece imobilizada na rotina conhecida.
22
A personagem Marta de “É a alma, não é?” passa por este processo epifânico; afasta-se do
mundo através da introspecção em que o som da televisão é o tênue contato com a realidade, mas
mantém-se alienada em sua rotina. Várias personagens de Clarice Lispector, entre elas as
protagonistas dos contos “Amor”, “A imitação da rosa”, “Os laços de família”, todos do livro
Laços de Família, vivenciam este processo. Nessas narrativas de Clarice, o modelo observado
por Benedito Nunes torna bastante clara a identificação e análise do ocorrido.
Recordando o conto “Amor”, observamos que tanto Ana, do referido conto, quanto Marta,
protagonista do conto de Marina Colasanti, após a epifania, percebem a vida alienada que
possuem, mas, ao fim, mesmo podendo romper com suas realidades habituais, retornam à
normalidade conhecida.
Ana inicia a perigosa reflexão sobre sua vida ao ver um cego mascando chicles e, apesar
da escuridão em que se encontra, a mastigação proporciona a oscilação da expressão de sorriso e
seriedade, o que incomoda a personagem; enquanto Marta intriga-se com a notícia lida pelo
esposo no jornal, na qual uma libélula encontrava-se presa no âmbar.
Ambas as situações adquirem importância na narrativa, pois possibilitam a temível
reflexão feminina sobre o destino dado as suas vidas e, portanto, possibilitam a percepção da
imobilidade que vivenciam por se resignarem aos padrões familiares impostos pela sociedade.
O cego e a libélula, respectivamente, despertam as personagens de seus cotidianos,
levando-as a refletir sobre suas vidas. O retorno dos maridos traz as protagonistas de volta ao
desgastado casamento. Nada muda ao redor das personagens ou nelas, suas posturas permanecem
imutáveis, da mesma forma que seus cotidianos.
No conto “O pai”, de Helena Parente Cunha, o tipo de discurso, que utiliza a técnica do
monólogo interior, permite a exposição e a superposição do passado e presente da personagem.
Este é o elemento estilístico usado pela autora para enfatizar a estagnação das personagens,
principalmente da feminina, pois, independente da idade, esta permanece na mesma postura
passiva que foi ensinada a ter: “Pelo amor de Deus, pai, eu tenho quarenta anos, até quando você
vai pedir satisfações de minha vida? Desculpe papaizinho, eu rasguei meu vestido brincando no
quintal, desculpe. (p. 2). O aparecimento de um pedido de desculpas da infância ressalta a
ineficácia da interrogação anterior, que apesar de ser um rompante de lucidez, é ineficiente para
romper com a estrutura dominadora em que está inserida. A colocação das situações temporais
diversas lado a lado enfatiza a fixidez das ações.
23
Apesar de o conto contemplar toda a vida da personagem, o pai permanece estagnado: “O
pai parado na porta”. O discurso narrativo reforça a função de vigia do destino da filha por meio
da repetição dessa oração, que marca o início da maioria dos parágrafos do conto, destacando o
obstáculo no ir e vir da personagem. O pai está sempre entre a realização ou não dos fatos,
permanece imóvel, é contenção e fechamento ao mundo exterior. Segundo Foucault, “o exercício
da disciplina supõe um dispositivo que obrigue pelo jogo do olhar; um aparelho onde técnicas
que permitem ver induzam a efeitos de poder, e onde, em troca, os meios de coerção tornem
claramente visíveis aqueles sobre quem se aplicam.” (p.143).
A posição em que o pai se coloca na porta é ideal para continuar a função que deve
exercer, de controlador do destino feminino. A autoridade masculina situa-se no entre. De acordo
com a professora Elódia Xavier, “Ele está parado como um obstáculo, idéia que se reforça pelo
uso da preposição; desta forma, a filha está impossibilitada de ir e vir (...). A imobilidade do pai,
sempre parado na porta representa o conjunto das estruturas dominantes, assim naturalizadas.
Não mudam porque são vistas como naturais” (XAVIER, 2007, p.78, 80). E, assim, a filha
também permanece parada, pois está aniquilada em seu desejo.
É válido ressaltar que a posição do pai se altera em determinado momento da narrativa ao
ser utilizado o grau superlativo paradíssimo. O narrador ressalta-nos que o pai permanece
imobilizado por sua função mesmo com a decorrência do tempo: “O pai paradíssimo na porta,
entre um ano e outro” (p.3).
A dominação do pai aumenta com a passagem de tempo, pois o discurso paterno
modifica-se, passando das perguntas para os imperativos, com os quais impõe sua vontade à
rotina da filha, que no início e final do conto reitera o “cansaço de existir”. A personagem
imobiliza-se, seguindo fielmente as diretrizes paternas, segundo a professora Elódia Xavier: “Este
corpo, que perdeu até mesmo suas funções básicas, cujos ossos, músculos, tecido e sangue estão
estagnados, é o produto da ordem social que limita o espaço da mulher, acabando por imobilizá-
la” (XAVIER, 2007, p.81).
Em “Venha ver o pôr do sol”, Ricardo é manipulador e astucioso, pois consegue submeter
Raquel ao seu plano mesmo contra sua vontade. Os vocativos “minha querida” e “meu anjo”
reafirmam seu poder e abrandam a recusa dela ao passeio. Além da posse, a adjetivação “Você
está uma coisa linda” (p.123), sugere uma ideia de reificação da mulher, que em determinadas
estruturas é tida com um objeto pertencente ao homem, fruto de uma sociedade patriarcal.
24
No conto “É a alma, não é?”, a fala emblemática da personagem: “Uma mosca presa no
âmbar, isso é meu casamento” (p.7) sintetiza o sentimento da protagonista, que agora
compreende a situação aprisionante em que se encontra, além de nos revelar o comportamento
imobilizado manifestado por ela.
O primeiro parágrafo do conto leva-nos a uma leitura pessimista do destino desta
personagem. A frase que abre a narrativa - “No âmbar” - metaforiza a instituição do casamento
que impõe rigidez, como a pedra referida, ambos antiquíssimos em nossa sociedade. Assim como
o âmbar é resistente ao tempo, percebemos resquícios da sociedade patriarcal na narrativa, de tal
forma que a personagem sente-se impossibilitada de reagir ao sistema que introjetou nela
determinados padrões de comportamento e pensamento.
O casamento perde a perspectiva positiva para Marta. De tal forma sente-se inferiorizada
que, ao comparar-se com a notícia, não admite ser uma libélula. A simbologia deste inseto
auxilia-nos a compreender a escolha feita pela autora, uma vez que alguns acreditam que a
libélula expressa a essência dos tempos de mudança, das mensagens de iluminação e sabedoria.
A notícia lida possui como base um inseto incrustado em uma pedra que metaforicamente
representa a personagem feminina presa às convenções sociais. A libélula desencadeou o
processo epifânico que poderia alterar a vida de Marta. No entanto, a personagem considera-se
um inseto insignificante, por isso afirma: “Preso no âmbar como uma libélula não exagera,
Marta está bem, não dá mesmo para tanto, preso no âmbar como um inseto. É isso, preso no
âmbar como uma mosca (p.7). A mosca, ao contrário da libélula, traz em si o significado do
comum, por isso a ratificação da personagem em considerar-se uma mosca.
Marta aproxima-se das personagens clariceanas para as quais os momentos de reflexão
são perigosos. A mulher casada deve sempre ter sua rotina preestabelecida, as tarefas
assemelham-se a subterfúgios que a impossibilitavam de pensar. A ociosidade permite o perigo:
“(...) diante da imagem da televisão distante e alheia como uma janela qualquer de um prédio
qualquer, Marta extrai de si o fio maleável dos seus pensamentos.” (p.7).
O desgaste do relacionamento evidencia-se. A notícia desencadeadora da epifania de
Marta origina-se do empecilho concreto presente em todos os cafés da manhã do casal, o jornal.
As notícias externas afastam os cônjuges de suas realidades, mas é uma delas, a da libélula, que
desperta Marta.
25
Apesar do interesse pela mesma reportagem, o foco diferencia-se. O marido, que não é
individualizado por ser construído a partir do arquétipo masculino da sociedade patriarcal,
espanta-se com o cunho extraordinário do fato e de seu possível desfecho; enquanto Marta não se
detém ao conteúdo, pois se identifica com a situação aprisionadora:
havia-se sentido imediatamente presa pelas palavras, aprisionada naquele âmbar que as
palavras colocavam abruptamente entre bules e xícaras fracionando a manhã. Sequer por
um instante havia se preocupado com a libélula em si, com o fato científico (...) como se,
em lugar daquela fotografia quase indecifrável de uma espécie de pedra com uma
mancha dentro, pudesse encontrar sua própria fotografia. (p.7-8).
em “Venha ver o pôr do sol”, de Lygia Fagundes Telles, é ambígua a postura da
personagem Ricardo, que, em alguns momentos, sugere uma postura submissa, carente, evocando
o sentimento materno e complacente de Raquel, que não percebe a manipulação sofrida no
encontro friamente calculado por ele. Ela chega a se emocionar: “Recostando a cabeça no ombro
do homem, ela retardou o passo” (p.126).
A oscilação na fisionomia de Ricardo revela a oposição entre o ser e o parecer da
personagem. A mudança em sua aparência demonstra sua dissimulação:
E, aos poucos, inúmeras rugazinhas foram-se formando em redor dos seus olhos
ligeiramente apertados. Os leques de rugas se aprofundaram numa expressão astuta. Não
era nesse instante tão jovem como aparentava. Mas logo sorria e a rede de rugas
desapareceu sem deixar vestígios. Voltou-lhe novamente o ar inexperiente e meio
desatento. (p.124-5).
O envolvimento da personagem feminina não permite a percepção da situação de risco,
pois Ricardo usufrui da vaidade feminina para dar prosseguimento ao seu plano, diz ela: Me
implora, um último encontro, me atormenta dias seguidos, me faz vir de longe para esta
buraqueira, mais uma vez, mais uma!” (grifo nosso, p.124). Os vocábulos destacados
evidenciam a postura vaidosa da personagem; Ricardo utiliza-se deste conhecimento e se faz
submisso à amada para conseguir desempenhar todo o plano, estrategicamente: “Raquel, minha
querida, não faça assim comigo.” (p.124).
Raquel desde o início demonstra contrariedade em prosseguir, mas a dominação
masculina é mais forte. A interferência de Ricardo se faz necessária para motivar Raquel a
prosseguir no trajeto. O local escolhido, um cemitério abandonado, dá pistas, assim como os
vocábulos, da intenção de Ricardo para o encontro. Nem diante de um local hostil a personagem
26
feminina se manifesta contrária ao reencontro: “− Podia ter escolhido um outro lugar, não?
−Abrandara a voz” (p.124).
Em grande parte das interpelações, a personagem masculina controla seu ímpeto e se
demonstra cortês: “Há séculos ninguém mais é enterrado aqui, acho que nem os ossos sobraram,
que bobagem. Vem comigo, pode me dar o braço, não tenha medo...” (p.125), mas por vezes
deixa a ambiguidade do encontro transparecer, quando demonstra mais claramente a opressão a
que está submetendo Raquel: “Puxou o braço que ele apertava” (p.125).
Os vocábulos de conotação negativa constituem o ambiente soturno e repressor:
O mato rasteiro dominava tudo. E, não satisfeito de ter-se alastrado furioso pelos
canteiros, subira pelas sepulturas, infiltrara-se ávido pelos rachões dos mármores,
invadira as alamedas de pedregulhos esverdinhados, como se quisesse com sua violenta
força de vida cobrir para sempre os últimos vestígios da morte. Foram andando
vagarosamente pela longa alameda banhada de sol. (p.125)
O mato domina como Ricardo, que a cada passo aproxima-se da realização do seu plano,
e Raquel, dominada pela vontade dele, permite ser invadida por seu poder como cada canto do
cemitério era pelo mato. O narrador expõe, claramente, o comportamento infantilizado de
Raquel: “Amuada mas obediente, ela se deixava conduzir como uma criança” (p.126). A imagem
da mulher como uma criança é recorrente no patriarcado, em que a mulher não possui voz ou
vontades, segue o que o homem e a sociedade impõem.
Outras marcas desta infantilização ocorrem em algumas falas, como em: “Raquel, Raquel,
quantas vezes preciso repetir a mesma coisa?!” (p.126) ou “A boa vida te deixou preguiçosa?
Que feio.” (p.127). O comportamento masculino busca reforçar sua imponência ante a mulher.
De acordo com Banditer,
Da criança à mulher há apenas um passo. Ambas são vítimas inocentes e imponentes do
homem agressor e dominador. Imperceptivelmente, acrescentou-se à idéia de que a
vítima tem sempre razão a idéia de que ela encarna o bem, ameaçado pela força do mal.
Essa visão maniqueísta gera dois tipos de conseqüência, ambas as quais recorrem à
convicção da diferença. (BADINTER, 2005, p.55).
No conto de Helena Parente Cunha, o pai percebe o envelhecimento da filha: “já não é
criança, de noite precisa descansar” (p.4), mas a dominação não se detém; a idade não faz
diferença, está sempre vigiando para impor sua vontade, como demonstram os fragmentos:
27
“Quem é aquele menino que estava correndo na rua atrás de você?(p.2) ou em “Quem é aquele
velho sem vergonha que saiu com você da escola?” (p.4).
A dominação do pai determina as atitudes da personagem, reforçando as relações de
gênero: “Você não sabe que é feio menina brincar com menino? E o muro? Você não sabe que
menina não sobe em muro?” (p.2) A diversidade entre os sexos deve ser mantida, por isso o
comportamento feminino é mais contido, segundo Bourdieu “a diferença anatômica entre os
órgãos sexuais, pode assim ser vista como justificativa natural da diferença socialmente
construída entre os gêneros” (BOURDIEU, 2007, p.20).
O pai impõe as limitações, fruto da condição feminina. Apesar das modificações ocorridas
com o tempo, a imposição de horários, vocabulário e comportamentos especificados em sua
criação, não permitem questionamentos e contestações. A filha deve sempre se manter
imobilizada dentro dos padrões impostos.
Em “Venha ver o pôr do sol”, de Lygia Fagundes Telles, o comportamento discreto e fiel
esperado de uma mulher é exposto no fragmento: “eu gostaria era de te levar ao meu apartamento
(...) / E você acha que eu iria? / Não se zangue, sei que não iria você está sendo fidelíssima.
Então pensei, se pudéssemos conversar numa rua mais afastada” (p.124). A postura disciplinada
mantida por Raquel para tentar preservar o novo relacionamento é satirizada por Ricardo ao
empregar o grau superlativo no adjetivo, confirmando seu ódio e desejo de vingança.
Raquel deixa-se conduzir, tanto pelo ex-namorado quanto pelo atual; não tem vontade
própria, ou melhor, não se impõe. É evidente a dominação financeira exercida pelo atual
namorado, através da qual sonha “consertar a vida”.
Percebe-se em Raquel uma atitude disciplinada em seus relacionamentos. Os trajes da
personagem devem refletir a condição do namorado, como o próprio Ricardo observa: “Pensei
que viesse vestida esportivamente e agora me parece nessa elegância... Quando você andava
comigo, usava uns sapatões sete léguas, lembra?” (p.123), “E fuma agora uns cigarrinhos
pilantras, azul e dourado” (p.123).
As modificações ocorrem, pois necessita estar de acordo com os padrões do namorado
rico, adequada a ele. Segundo Beauvoir, seu dever mundano [da mulher], que é representar,
confunde-se com o prazer que sente em se mostrar. (...) A toilette tem um duplo caráter: destina-
se a manifestar a dignidade social da mulher (padrão de vida, fortuna, o meio a que pertence)”
28
(BEAUVOIR, 1967, p.295). Raquel adequa sua vestimenta à classe social do novo namorado,
assim como tenta manter uma postura mais recatada em seu novo relacionamento.
No conto “O pai”, de Helena Parente Cunha, um fato agravante no relacionamento entre
pai e filha é o falecimento da esposa-mãe, intensificador da violência simbólica, pois “Você tem
que tomar conta do seu pai, fazer companhia a ele, seja uma boa filha.(p.2- grifo nosso). O
adjetivo reforça que a qualificação de filha exemplar está diretamente condicionada aos cuidados
destinados ao pai, portanto, ter seu próprio relacionamento tornou-se impossível: “Namorar?
Quem é aquele miserável que quer desgraçar a sua vida?” (p.2).
Os padrões de comportamento ficam ainda mais rígidos. A manipulação ocorrida por
meio da autoridade pode, agora, ser ampliada; sendo adicionada a esta uma chantagem
emocional, como em: “Você não tem pena de seu pai?” (p.2) ou “Filha ingrata, eu faço tudo para
lhe distrair e você fica aí toda emburrada” (p.3).
A autoridade do pai expõe-se como zelo pela filha: “Quem é aquele veado que estava com
você no ponto de ônibus? Ah! É uma amiga, este mundo está perdido e você ainda reclama
porque eu me preocupo com você” (p.3). Na verdade, a citação mostra como dominação é
acirrada e constante, e se disfarça em zelo: Domingo que vem nós vamos passar o dia em
Itaparica na casa de seu padrinho (mas papai) você não pode ir por quê? Você tem que
espairecer.” (p.3).
a personagem Ricardo, de “Venha ver o pôr do sol”, quer manter a “legitimação” da
ordem masculina e leva ao máximo a demonstração de poder: se Raquel não era mais sua,
também não seria de ninguém. O machismo que aliena os homens e reprime as mulheres se
estabelece com força na relação dos dois, pois Ricardo finge aceitar a ruptura e ainda suplica à
ex-namorada um último encontro com o objetivo de executar seu plano, pois, segundo Bourdieu
“O privilégio masculino é também uma cilada e encontra sua contrapartida na tensão e contensão
permanentes, levadas por vezes ao absurdo, que impõe a todo homem o dever de afirmar, em toda
e qualquer circunstância, sua virilidade” (BOURDIEU, 2007, p.64).
Em “É a alma, não é?”, de Marina Colasanti, a epifania da personagem ocorre, pois a
reportagem concretiza a sua realidade. O casamento mantém-se pela acomodação e pela herança
histórico-cultural. A semelhança, vista metaforicamente pela personagem, manifesta-se na
narrativa através das analogias que corrompem a intimidade outrora construída:
29
“É esse meu âmbar − e Marta olhou em volta. Os móveis da sala as paredes os objetos os
quadros da sala, que em geral nem via apenas como uma tranqüilizadora extensão de si
mesma (...). E os objetos, como ela havia podido escolher algum dia aqueles objetos que
agora nada lhe diziam? (p.8).
A personagem está presa àquele espaço como a libélula está presa no âmbar. A percepção
do desgaste da relação faz com que não se veja mais em tudo o que construiu, sente-se como se
todo seu trabalho tivesse sido perdido. Marta quer a vida do início do casamento.
A enumeração de objetos anteriormente considerados íntimos revela que tudo antes
considerado por ter um laço afetivo assemelha-se a uma algema aprisionadora à relação
fragilizada. Assim como a personagem Ana, do conto “Amor”, Marta amplia a tensão conflitiva
desencadeada pela notícia de jornal a todos os outros objetos que a cercavam. A notícia aflorou
um sentimento que a personagem já possuía.
A associação buscada por Marta entre ela e a libélula permite-a determinar seu âmbar,
pois estava presa no lar que construira:
procurando em vão ao seu redor a luz dourada e fosca do mel, luz que uma libélula
aprisionada veria caso lhe fosse permitido ver através do âmbar e dos séculos. Mas a luz
da sala era metricamente enquadrada pelas fronteiras das paredes. O meu âmbar, pensou
Marta, é de gesso. (p.8)
Marta aproxima-se da libélula e, relembrando todos os comentários do marido, busca
compreender sua realidade, que agora está em conflito:
Acharam no túmulo de um faraó. Um inseto enterrado ali, duas vezes enterrado, uma no
âmbar e outra na tumba, séculos. E agora eles vão, metem o bicho no microscópio,
abrem o âmbar, abrem o bicho, abrem a alma do bicho, o DNA é a alma é ou não é?
Abrem a alma dele, e fazem outro. (p.8).
A personagem reflete-se na libélula e percebe que também morreu duas vezes ao nascer
mulher e ao se casar. A ironia da segunda morte da libélula é verídica para Marta, mas não como
improvável e sim como normalidade. Segundo Simone de Beauvoir,
(...) ao homem, o casamento outorga precisamente a síntese feliz; em seu ofício, em sua
vida política, ele conhece o progresso, a mudança, experimenta dispersão através do
tempo e do universo; e quando se cansa desse vagabundear, funda um lar, fixa-se, ancora
no mundo; à noite, retorna a casa onde a mulher cuida dos móveis e dos filhos, do
passado que ela armazena. Mas esta não tem outra tarefa senão a de manter e sustentar a
vida em sua pura e idêntica generalidade; ela perpetua a espécie imutável, assegura o
ritmo igual dos dias e a permanência do lar cujas portas conserva fechadas; não lhe dão
30
nenhuma possibilidade de influir no futuro nem no universo; ela se ultrapassa para a
coletividade por intermédio do esposo. (BEAUVOIR, 1967, p.169-70)
A frase ntese do conto “É a alma, não é?”, de Marina Colasanti: “Presa no âmbar como
uma libélula” (p.7), metaforiza a situação exposta no fragmento acima. A mulher é uma libélula
que possui asas e condição de ser livre, mas permanece presa em seu rígido âmbar inculcado pela
sociedade, sendo metaforizada pelas figuras masculinas; inicialmente o pai e posteriormente o
marido.
O questionamento presente no título do conto simboliza a dúvida que corrói a
personagem. Assim como pretendem fazer outra libélula com o DNA, sua essência, também se
sente modificada, pois se alterou com a mudança do dominador em sua vida. O que lhe resta
agora “é a alma ou não é?”.
As interferências externas (sociedade e pai/marido) e internas (necessidade de adequação)
modificam-se. A mulher casada, que se tornara, é outra ou a mesma moça solteira? Para Simone
de Beauvoir, Ela (a mulher) se libertará do lar paterno, do domínio materno e abrio futuro
para si, não através de uma conquista ativa e sim entregando-se, passiva e dócil, nas mãos de um
novo senhor.” (BEAUVOIR, 1967, p.67).
A necessidade que se origina de fazer outra libélula poderia ser bem sucedida com a
presença fundamental do arqueólogo. Da mesma forma com a personagem que necessita da
presença do marido para tornar-se esposa, papel designado para a mulher desempenhar.
Marta se questiona sobre a possibilidade de renascer assim como a libélula, haja vista a
possibilidade de revivê-la a partir de “um fragmento que haviam sido as asas, e dele, com todas
as suas características, fazer outra libélula” (p.10). A personagem deseja renascer também sua
união, mas segundo a professora Elódia Xavier,
[a personagem] angustiada, se conta de que nenhum casamento pode ser ressuscitado
com ‘esses restos necrosados’. É interessante notar como a narradora trabalha o paralelo
que se estabelece na mente da protagonista, onde a alienação é de tal ordem ´diante da
imagem da televisão distante e alheia` que a libélula e seu casamento se confundem.
(XAVIER, 2007, p.82-3).
A libélula e sua situação confrontam Marta por estar próxima da realidade vivenciada em
seu casamento, também preso em uma estrutura dura como o âmbar. Semelhança também
observada no conto “O pai”, de Helena Parente Cunha, as duas personagens percebem a realidade
aprisionadora a que estão submetidas, mas permanecem submissas ao que lhes foi ensinado. E
31
também a personagem Raquel de “Venha ver o pôr do Sol”, de Lygia Fagundes Telles, o
consegue romper com a submissão à vontade masculina. As personagens representam mulheres
disciplinadas a seguirem a vontade daquele que se coloca como superior com o aval da
sociedade.
O casamento permanece, pois o marido e a esposa continuam, presencialmente juntos,
em “É a alma, não é?”. A união sacramentada pela cerimônia corroeu-se pelo dia-a-dia, mas os
compromissos ante a lei e a igreja permanecem inalterados: “E vê-se, como se num filme, deitada
na cama ao lado do marido, os dois dormindo alheios um do outro num sonho que podia durar
horas ou anos, dependendo apenas da maneira de contar o tempo.” (p.9).
A libélula e seu âmbar proporcionam uma reflexão crítica de sua realidade. A
dissimulação manifestada por Marta aparece como postura negativa, mas jamais nega a condição
de esposa “presente”, pois ao menos finge manter este relacionamento frio que vivencia: “(...)
não silêncio no âmbar, mas vozes distantes ou que não interessam. Como quando o marido
fala e ela no meio abandona a frase dele, deixa-o falando para o seu olhar falsamente atento,
enquanto vai cuidar dos seus próprios pensamentos.” (p.9).
A libélula aprisionada instiga a personagem a pensar. A consciência da vida alienada que
agora leva ocorre devido à reflexão do incrustamento do inseto. A lembrança de que esse outrora
fora livre a impacta por perceber uma situação similar no início do seu relacionamento com o
marido:
Tínhamos brilho, alguma transparência. Caçadores delicados, assim fomos no princípio.
Chegamos a voar, a voar nos dias, na superfície dos dias feito as libélulas voam sobre a
superfície dos lagos. Como íamos saber que aquilo era apenas o princípio?
percebemos depois que acabou. E aí pareceu tão curto. (p.9).
No conto “O pai”, de Helena Parente Cunha, a disciplina exigida à filha é fruto de uma
estrutura patriarcal onde a mulher não tem direito de questionar a vontade do homem. O pai faz
valer sua autoridade, seguindo os mesmos padrões de tempos passados, citando a educação
recebida pela mãe: “Não tem nada de 15 anos nem nada, sua mãe nunca conversou comigo
sozinha antes do casamento. Mas papai, a gente não mora na roça.(p.2).
No final do fragmento acima, assim como em alguns momentos da narrativa, a
personagem tenta manifestar suas vontades, no entanto, trata-se de falas circunstanciais que não
fundamentam uma alteração na postura, ao contrário, destacam a percepção da personagem de
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sua vida controlada e restrita sem esboçar alguma atitude real para revertê-la. De acordo com
Pierre Bourdieu,
a adesão arbitrária ao que o pai todo-poderoso lhe exige, provando assim sua fragilidade:
fragilidade da cumplicidade resignada, que concorda sem resistência; fragilidade da
complacência que extrai satisfação e vaidade do prazer cruel de desiludir, isto é, de fazer
partilhar de sua própria desilusão, de sua própria resignação, de sua própria derrota
(BOURDIEU, 2007, p. 89).
Assim como a personagem feminina no conto “O pai”, Raquel, em “Venha ver o r do
sol”, segue as diretrizes de seu dominador; sendo um objeto manipulado por Ricardo, que é
sujeito da narrativa. A linguagem enigmática, estruturadora do conto, não nos permite antecipar o
final trágico, mas evidencia a disciplina da personagem que mesmo não desejando, continua
seguindo o ex-namorado.
No conto “O pai”, de Helena Parente Cunha, a filha confirma a submissão ao pai e aceita
ser dominada por ele. Não diálogo na narrativa, pois a estrutura social retratada é a patriarcal,
portanto o homem detém a verdade. Por isso, toda a vida da personagem define-se pela figura
paterna, que tudo decide:
É boa esta novela, eu gosto muito de novela, você precisa ver novela, distrai muito. Sim,
papai, de agora em diante, eu vou ver todas as novelas, a das seis a das sete a das oito a
das dez, tem das onze? Não é bom que tenha porque a gente dorme cedo, você tem que
acordar cedo para ir à aula. Por que você quer fazer curso de pós-graduação? Pra quê?
(p.4)
A personagem tem condões de suplantar a dominação masculina uma vez que independe
economicamente do pai, mas se anula permanecendo obediente às regras ditadas pela estrutura social vigente.
O desprestígio dado às conquistas da personagem destaca-se na aquisição do diploma universitário: A
primeira aluna de toda a faculdade, vejam só, ela estudou na faculdade, pena que a mãe não esteja mais na terra
pra ver, coitada.(p.3). A ausência da mãe valoriza-se mais do que a conquista da filha, pois o enredo do conto
baseia-se na estrutura familiar patriarcal, que, no caso, está incompleta.
Um momentoimportanteda narrativa é a aparição do muro metaforizando a figura do pai. O discurso
masculino de que menina não pode subir ou pular o muro é comum, mas no texto vai além. O pai coloca-se
como um obstáculo para a filha, da mesma forma que o muro havia sido outrora; não lhe permitindo viver a
própria vida com autonomia:Desculpa, papai, eu só queria ver o que havia do outro lado do muro. (p.2). O
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pedido de desculpas da filha enfatiza a formação da menina que não cogita burlar os ensinamentos recebidos,
vendo-se presa às vontades paternas.
A descrição da capelinha onde as personagens penetram em Venha ver o pôr do sol, de Lygia
Fagundes Telles,também nos apresentauma metáfora da situação narrada:
No centro do cubículo, um altar meio desmantelado, coberto por uma toalha que
adquirira a cor do tempo. Dois vasos de desbotada opalina ladeavam um tosco crucifixo
de madeira. Entre os braços da cruz, uma aranha tecera dois triângulos de teias já
rompidas, pendendo como farrapos de um manto que alguém colocara sobre os braços
de Cristo. (p.154)
A figura da aranha que tece seus fios é análoga à atitude desempenhada por Ricardo no decorrer de
toda a narrativa, pois enreda a ex-namorada com lembranças e Raquel, similarmente a Cristo, vai com seus
próprios pés para o local de sua morte.
No contoO pai, de Helena Parente Cunha, a submissão da filha já é tão inerente a sua forma de ser
que, após o falecimento deste, fica: parada na porta, entre ficar e não sair (p.4). Todas as vezes que o entre
aparece na narrativa é para contrastar duas situações. No entanto, com a filha não, pois sua postura não indicia
uma possibilidade de mover-se, uma vez que está imobilizada: Ninguém entra ninguém sai, o teorema de
Pitágoras demonstrando para sempre até as mais densas profundezas do cansaço essencial. (p.4).A disciplina
já faz parte de sua formação e, mesmo com a morte do pai, não consegue transgredir a construção social
assimilada, a sua rotina permanece inalterada, metaforizada na citação pela imutabilidade do teorema de
Pitágoras.
Além de morar em um ambiente disciplinador onde o pai predomina, situa-se em outro que possui
grande significação para a sociedade:A escola, sempre a escola. Professora ou aluna, sempre a escola (p.1).
Também o local de trabalho mantém o sistemapatriarcal, por ser estruturado e constituído de visões de gênero
que reforçam o modelo cultural androcêntrico.
A disciplina inerente a sua formação levaa personagem a optar por uma matéria norteada por regras: a
matemática. As verdades universais contidas nesta ciência são pertinentes à vida da personagem: Em todo o
correr dos anos, tudo se transforma. Pitágoras, não, nem se perde nem se transforma, irredutível na sua exatidão
geométrica, os alunos se transformam (...) (p.3).Por isso, pai e filha permanecemimutáveis:
Os ângulos de um triângulo somam 180°. Por quê? Nunca, mas nunca mesmo poderá
mudar? Esta soma será eternamente a mesma num universo onde nada se perde e tudo se
transforma? Nada se perde nem os dias nem os anos nem as horas, nada se perde, mas
tudo se transforma num monturo de lembranças rançosas de tudo que não pôde ser no
baile de formatura. (p.2-3).
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As verdades universais matemáticas metaforizam a supremacia da vontade paterna na vida da
personagem feminina. Assim como a matemática compõe-se de conceitos imutáveis e inquestionáveis, a
personagem considera a figura do pai. O teorema, utilizado analogicamente no enredo, reitera a estrutura
familiar cuja liderança situa-se na figura masculina que nomeia o conto. O pai necessita direcionar a vida da
filha, esta é sua obrigação seguida à risca.
A imutabilidade das leis matemáticas se refletena personagem, que mesmocom o falecimento de seus
pais,não sofrenenhumaalteração, permanece imobilizada na porta:Cansaço. Cansaçode viver. Elaparadana
porta, entre ficar e não sair, o corpo colado numa gosma nem fria nem quente, um amarrado nos ossos, um
grude se enfiando pelos poros, alguém tocou a campanhia? (grifo nosso, p.4). Os vocábulos grifados
metaforizam a condição inerte da personagem, assim como o cansaço de vivermanifestado no início e no
fim do conto, reiterando a permanência do comportamento passivo da personagem.
A personagem Marta, de É a alma, não é?, de Marina Colasanti, assim como a filha do conto O
pai, não esboça nenhuma reação à situação vivida, já que, mesmo notando o desgaste do seu casamento, não
se posiciona contrária à rotina. A percepção de que a rotina a afastou de seu esposo ressalta-se com a refleo
sobre a reportagem, mas Martanão consegue romper com o relacionamento ou alterá-lo.
Em É a alma não é?, o desejo de reabilitação do casamento manifesta-se na personagem, mesmo
estando desacreditada: os casamentos estão cheios de fragmentos sobre os quais nenhum arqueólogo vem
aliviar o peso da terra, restos necrosados que jamais serão duplicados para a vida. (p.10). Segundo a professora
Elódia Xavier,
Projetando em sua mente a imagem do cientista, sorrindo vitorioso ao depositar o
minúsculo fragmento no pratinho de vidro, Marta percebe que, inconscientemente,
arrancou uma pele seca do seu peito. Mas, angustiada, se conta de que nenhum
casamento pode ser ressuscitado com esses restos necrosados. (XAVIER, 2007, p.82-3).
Marta percebe o desgaste de seu relacionamento, mas permanece presa em seu âmbar de gesso. As
figuras do arqueólogo e do cientista surgem metaforicamente como possíveis agentes externos que, talvez,
poderiam alterar sua situação. No entanto, a constatação dos problemas não é o suficiente para modificá-la. A
personagem permanece imobilizada em sua rotina: A luz dourada se alastra preenchendo todos os espaços. A
chave roda na fechadura. Marta vira a cabeça passando o olhar de relance pelos móveis sem arestas. A porta se
abre. O marido entra. Oi, diz Marta, que tal teu dia? E sem ouvir a resposta volta-se para a televisão. (p.10).
A ação do tempo impõe-se como inimiga na narrativa, pois levou Marta a deixar o tempo de libélula no
passado, prendendo-se em uma rotina familiar sem graça. A personagem permanece na condição feminina a
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que foi imposta desde a infância e posteriormente mantida pelo casamento. Mesmo percebendo falhas na
relação, submetem-se ao seu destino; desejando a realização prometida pela sociedade.
A violência simbólica imposta emVenha ver o pôr do sol, de Lygia Fagundes Telles, por Ricardo é
tão sutil, que Raquelnão percebe, assim como a princípio o leitor que se vê enredado por indíciosveladores da
real intenção dele. Inocentemente, a personagem feminina acredita que pode se desvencilhar do passeio
conforme sua vontade: Está bem, mas agora vamos embora que já me diverti muito, faz tempo que não me
divirto tanto, só mesmo um cara como você podia me fazer divertir assim. Deu-lhe um rápido beijo na face.
(p.153).
Raquel só percebe o final que Ricardo havia planejado para o encontro quando: Um baque metálico
decepou-lhe a palavra pelo meio. Olhou em redor. A peça estava deserta. Voltou a olhar para a escada. No
topo, Ricardo a observava por detrás da portinhola fechada.(p.156). Neste momento,ele assumea posição de
superior que considera ter; a de detentor do destino da mulher a quem diz amar. O som metálico assemelha-se
ao produzido por uma guilhotina, indicando o desfecho dramático da narrativa. No entanto, ela imagina ser
uma brincadeira até a constatação da cruel realidade: Examinou em seguida as grades cobertas por uma crosta
de ferrugem. Imobilizou-se. Foi erguendo o olhar até a chave que ele balançava pela argola, como um pêndulo.
Encarou-o, apertando contra a grade a face sem cor. Esbugalhou os olhos num espasmo e amoleceu o corpo.
Foi escorregando. (p.157-8).
As três personagensrepresentama condição recorrente no universo feminino; e os contos selecionados
comprovam que o ambiente da submissão é amplo e irrestrito. Independente do grau de afinidade, as
personagens masculinas determinam os destinos das personagens, pois a repressão à vontade feminina é
constante, por isso elas não conseguem manifestar seus desejos. Não sabem agir fora da única estrutura social
que conhecem, a de dominação.
Os contos selecionados apresentam a represo feminina em contextos socioeconômicos diferentes.
No conto O pai, a personagem possui o ensino superior completo e independência financeira. Em Venha
ver o pôr do sol, Raquel é leitora, o que demonstra sua instrução e está inserida em um ambiente social mais
elevado devido à condição financeira do novo namorado, que programou uma viagem para o Oriente. Já em
É a alma, não é?, Marta é a clássica dona de casa. Mesmo com tantas diferenças, as personagens são
induzidas a seguir as vontades do outro por repressão da sociedade e, por vezes, estão imobilizadas por não
conseguirem ser independentes, por terem internalizado a dominação.
Os enredos contextualizados em diferentes relações de poder destacam como a imposição do gênero
masculino ocorre nos mais diversos relacionamentos e como a subserviência feminina é latente. Todas as
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personagens focalizadas a filha, Raquel e Marta não conseguem escapar da estrutura a que foram
submetidas durante suas vidas.
2.2 UM OLHAR MASCULINO
Os três contos até aqui analisados retratam a repressão a partir do olhar feminino, a partir
da ótica de escritoras. Passemos, agora, a uma situação dramática semelhante desenvolvida pelo
autor Carlos Drummond de Andrade no conto “Presépio”, do livro Contos de Aprendiz, publicado
em 1951.
O conto baseia-se nos devaneios de uma jovem, enquanto desempenha uma de suas
atividades domésticas. Por ser contextualizado temporalmente na véspera de Natal, a personagem
prepara as figuras do presépio, mas com o pensamento no namorado. Apesar de o título do conto
ser “Presépio, cuja importância é significativa, uma vez que é um contratempo para a realização
do desejo da protagonista, o objeto gerador de angústia e dúvida na protagonista é o relógio: “mas
Dasdores é íntima do relógio grande da sala de jantar, que não perdoa, e mesmo no mais calmo
povoado o tempo dá um salto repentino, desafia ´Agarra-me!`” (p.45).
O narrador onisciente revela aspectos da criação reprimida da personagem que, assim
como as personagens estudadas, deve seguir as determinações dadas por sua família e,
consequentemente pela sociedade. Desde a apresentação da protagonista, fica evidenciado o
tratamento diferenciado dado às mulheres: Dasdores (assim se chamavam as moças daquele
tempo) [...]” (p.45). As mulheres não se individualizam, todas são sofridas.
O drama vivenciado pela jovem, angustiada pela demora na atividade de montar o
presépio e o desejo de encontrar seu namorado, se insere nas atividades domésticas que
incorporou como herança: “Sucede que ninguém mais, salvo esta moça, pode dispor o presépio,
arte comunicada por uma tia morta. (p.46). Apesar de desempenhar com afinco a atividade,
Dasdores funde o plano espiritual com o carnal, ao associar seus devaneios com Abelardo às
peças do presépio, principalmente à do menino Jesus: “no fundo da caminha de palha suas mãos
acariciaram o Menino, mas o que a pele queria sentir sentia, Deus me perdoe era um calor
humano, já sabeis de quem.” (p.48).
Assim como os demais contos analisados, a narrativa em questão constrói-se dentro de um
sistema patriarcal rígido, no qual:
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Dasdores e suas numerosas obrigações: cuidar dos irmãos, velar pelos doces de calda,
pelas conservas, manejar agulha e bilro, escrever as cartas de todos. Os pais exigem-lhe
o máximo, não porque a casa seja pobre, mas porque o primeiro mandamento da
educação feminina é: trabalharás dia e noite. Se o trabalhar sempre, se não ocupar
todos os minutos, quem sabe de que secapaz a mulher? Quem pode vigiar sonhos de
moça? Eles são confusos e perigosos. Portanto, é impedir que se formem. A total
ocupação varre o espírito. (p.45)
A citação do mandamento da educação feminina ressalta a “inculcação” do corpo
defendida por Bourdieu. A personagem assemelha-se a uma empregada devido à quantidade de
atividades que desempenha na casa. A imposição de atividades busca restringir a mulher dentro
do destino de mulher” definido por Simone de Beauvoir, como ser: esposa, mãe e dona de casa.
A quantidade de atividades que Dasdores desempenha ainda solteira busca impossibilitá-la de
romper com os padrões de comportamento que estão lhe sendo imposto, além de prepará-la
adequadamente para o matrimônio.
A protagonista é reprimida como as demais personagens analisadas, mas o conto não
apresenta uma figura masculina opressora, pois se divide entre a obrigação, representada pelo
presépio, e Abelardo, que simboliza o prazer.
O narrador utiliza-se dos parênteses como recurso gráfico para dispor sua opinião sobre
algo narrado, evidenciando a postura tida sobre os eventos com perspicácia e ironia “(Dir-se-ia
que as mulheres foram feitas para o trabalho... Alguma coisa mais do que resignação sustenta as
donas-de-casa.)” (p.46). E eu respondo, a força simbólica imposta pela sociedade coloca-se
como superior a qualquer desejo feminino; sendo resultante da dominação masculina e definida
por Pierre Bourdieu como: “violência simbólica, violência suave, insensível, invisível a suas
próprias vítimas, que se exerce essencialmente pelas vias puramente simbólicas da comunicação
e do conhecimento, ou, mais precisamente, do desconhecimento, do reconhecimento ou, em
última instância, do sentimento”. (BOURDIEU, 2007, p.8).
A personagem também exerce uma dominação ao centralizar a montagem do presépio e
não permitir que ninguém a auxilie: “Todos os irmãos querem colaborar, mas antes atrapalham, e
Dasdores prefere ver-se morta a ceder-lhes a responsabilidade pela da direção.” (p.46)
Segundo Michel Foucault, “A disciplina faz ´funcionar` um poder relacional que se auto-
sustenta por seus próprios mecanismos e substitui o brilho das manifestações pelo jogo
ininterrupto dos olhares calculados”. (FOUCAULT, 2008, p.148). As personagens femininas,
graças às relações de poder, submetem-se ao domínio masculino. As personagens masculinas não
usam como recurso a violência, pois os padrões de comportamento já estão internalizados.
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A narrativa ocorre num tom vibrante, assim como a vida de Dasdores. A angústia de não
ter tempo de encontrar o amado é suplantada pela montagem do presépio, pois não se trata de
uma atividade e sim de uma obrigação: “Dasdores prefere ver-se morta a ceder-lhes a
responsabilidade plena da direção”. (p.46).
Tanto o conto de Drummond quanto os das autoras selecionadas retratam a realidade
disciplinada de personagens femininas, que se submetem passivamente à determinação de seus
destinos. Independente do sexo da autoria, do ano da produção ou do contexto socioeconômico
das personagens, as narrativas evidenciam como a força simbólica da sociedade patriarcal é
intensa.
3 O CASAMENTO
O matrimônio situa-se entre os temas recorrentes na literatura em diversos gêneros, desde
o conto de fadas até a literatura denominada “adulta”. O interessante é observar que o desejo de
casar-se parte, em sua maioria, do imaginário feminino. O presente capítulo une as personagens
femininas através do casamento, ou seja, todas desempenham o papel de esposas. Os contos
selecionados para o estudo foram: “O triângulo mais que perfeito”, de Helena Parente Cunha;
“As pérolas” e “O menino”, de Lygia Fagundes Telles; “Amor e morte na gina dezessete” e
“Um dia, afinal”, de Marina Colasanti.
É válido ressaltar que o casamento alterou-se no decorrer do tempo. Antigamente
concebia-se como um arranjo de duas famílias, que davam demasiada importância às condições
materiais. A decisão de casar devia ser tomada pelos pais e parentes, beneficiando os interesses
econômicos e sociais das famílias.
O “novo casamento” baseia-se na liberdade de escolha dos cônjuges, portanto, o
casamento passa a ser a união de dois seres que se escolheram e se uniram livremente, mas a
durabilidade não é garantida. Passou a ser responsabilidade do casal, e, como podem escolher
com quem gostariam de casar, devem ter condição de se sustentarem e o direito de escolher a
quantidade de filhos que desejam ter.
São muitos os estudos sobre o casamento. Zygmunt Bauman trata do tema em seu livro
Amor líquido, no qual considera o juramento feito ante a autoridade religiosa de difícil
39
manutenção, pois “o compromisso com outra pessoa ou com outras pessoas, em particular o
compromisso incondicional e certamente aquele do tipo ´até que a morte nos separe`, na alegria e
na tristeza, na riqueza ou na pobreza, parece cada vez mais uma armadilha que se deve evitar a
todo custo.” (BAUMAN, 2007, p.111).
Tal armadilha pode ser observada nas narrativas aqui estudadas, que têm como
personagens casais que, devido ao ano da publicação das obras, puderam escolher seus cônjuges,
mas, mesmo assim, deparam-se com o estabelecimento da rotina em seus casamentos.
Apesar da mesma situação que as une, cada personagem emerge do casamento com sua
realidade. A absorção da aprendizagem ocorrida é única. Em todas as narrativas observamos que
“o drama do casamento não está no fato de que não assegura à mulher a felicidade que promete
não seguro de felicidade e sim no fato de que a mutila; obriga a mulher à repetição e à
rotina.” (BEAUVOIR, 1967, p.243).
As personagens femininas dos contos selecionados vivenciam casamentos desgastados,
em uma situação em que os laços estão fragilizados. As personagens demonstram-se insatisfeitas
com seus relacionamentos; assim, o relacionamento extraconjugal torna-se uma possibilidade em
algumas das narrativas, pois os contos apresentam relacionamentos matrimoniais controversos,
usurpadores do happy end dos contos de fadas e verossímeis com a realidade do leitor. Os
casamentos analisados saem da mitificação ilusória da relação a dois, descrevendo os desgastes e
rompimentos.
Devemos lembrar que, dentro da sociedade patriarcal, predomina a visão androcêntrica do
casamento, que se afirma como a solução/possibilidade de ascensão social e econômica para a
mulher. Nos contos selecionados, as autoras desenvolvem narrativas desmistificando o “felizes
para sempre” que muitas narrativas constroem, pois, segundo nos coloca Alan Macfarlane em sua
obra História do casamento e do amor, “Na maioria das sociedades não essa exclusividade
possessiva. Com a possibilidade da poligamia, do divórcio ou de uma atitude promissiva para
com o adultério e a concubinagem, um erro de julgamento não era fatal.” (MACFARLANE,
1986, p.227).
Ao contrário do que a sociedade espera, são as personagens femininas que rompem com
os padrões de submissão e, em busca de realização, permitem se realizar fora de seus casamentos,
atitude inadmissível a mulheres, pois deveriam sentir-se plenas apenas com o casamento, mesmo
que este tenha sido imposto pela sociedade e a família.
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3.1 DESMISTIFICAÇÃO DO CASAMENTO
O casamento é o ponto unificador das personagens femininas estudadas e as suas posturas
ante este relacionamento serão evidenciadas a fim de se ressaltar como as autoras, a partir de uma
situação atualmente desgastada, oferecem leituras diferentes nas quais a condição de mulher é
cuidadosamente representada.
Nos contos “Um dia, afinal”, de Marina Colasanti, e “As pérolas”, de Lygia Fagundes
Telles, as personagens estão presas na monotonia a que seus casamentos chegaram, enquanto que
em “O triângulo mais que perfeito”, de Helena Parente Cunha; “Amor e morte na página
dezessete”, de Marina Colasanti e “O menino”, de Lygia Fagundes Telles, as personagens
vivenciam um relacionamento extraconjugal que surge como uma possibilidade de sentirem
prazer em uma relação.
As personagens femininas estão inseridas na mesma situação: casamento, portanto o perfil
feminino traçado é o de esposa, sendo que nos contos “O triângulo mais que perfeito”, de Helena
Parente Cunha e “O menino”, de Lygia Fagundes Telles, ainda adiciona-se a função de mãe,
também inerente à condição feminina, haja vista o conceito arcaico de que uma mulher se
tornaria mulher apenas quando fosse capaz de gerar filhos.
O conto “Um dia, afinal”, de Marina Colasanti, retrata uma personagem feminina presa
em seu casamento baseado nos moldes patriarcais. A personagem busca o marido com quem se
casara, pois se mantém contrária às alterações sofridas pelo esposo. Neste conto, desde o título
compreendemos que a narrativa baseia-se em uma revelação. Temos mais uma personagem
feminina que reluta em compreender sua realidade dramática, mas a presença do advérbio
“afinal” marca a impossibilidade de continuar renegando o dilema em que se encontra.
O início da narrativa registra uma alteração na vida da personagem, colocado como um
movimento abrupto, sem planejamento: “(...) e sem que qualquer fato novo tivesse vindo
estabelecer: aqui é o limite! A mulher levantou-se. Passados anos, não podia mais esperar. Iria
em busca do marido desaparecido.” (p.62). A busca pelo marido move a personagem por rias
etapas para saciar sua angústia, levando os leitores a acreditarem que o marido sumira sem deixar
vestígios.
o enredo de “As pérolas”, de Lygia Fagundes Telles, apresenta-nos uma realidade
dissonante dos demais contos selecionados, pois se trata de uma narrativa em que o narrador
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aproxima-se de tal forma da personagem masculina, Tomás, que nos transmite seus pensamentos
e sentimentos. A dramaticidade deste conto estrutura-se no definhamento do marido e seu
vislumbre de um possível novo relacionamento de sua esposa, após seu falecimento. Ao longo de
toda a narrativa, o marido questiona-se se seu sentimento é correspondido, por vezes, chega a se
convencer completamente de que será trocado por outro.
“As pérolas”, título do conto, metaforizam a relação, pois o casamento é visto como um
relacionamento importante e até certo ponto necessário na sociedade, assim como o colar no
vestuário da esposa. No entanto, Tomás revela-nos que as possuídas eram falsas, pois nunca
pode cumprir a promessa de presenteá-la com verdadeiras, o que também ocorre com o
casamento, pois devido à doença do esposo, o desgaste foi inevitável ao ser privilegiada a
preocupação com a saúde dele, contudo, a aparência de normalidade na relação mantém-se.
Assim como o colar é feito por pérolas falsas dando a falsa impressão de valor, o casamento
baseia-se na incerteza dos sentimentos, diferentemente da eternização esperada para a relação.
Em “Um dia, afinal”, de Marina Colasanti, a atitude de localizar o marido rompe com a
passividade da personagem que permanece no lar executando suas tarefas apesar do
descontentamento que sente. Na primeira etapa, procura-o onde se conheceram. O retorno ao
passado é difícil, percebe-se o distanciamento criado entre o casal e a cidade onde cresceram e
apaixonaram-se. A busca pelo esposo dificulta-se, pois os amigos tinham apenas vagas
lembranças daquele que conheceram na juventude. O tempo e o distanciamento dos conhecidos
de outrora se tornaram empecilhos para seu propósito.
Além de destacar a procura do marido, o enredo evidencia a destruição causada pelo
tempo:
Alguns dos que o haviam conhecido, alguns dos que haviam sido seus amigos, não viviam mais
ali. Outros nem viviam. Os poucos que se lembravam guardavam uma visão de um casal jovem,
de um jovem homem magro e nervoso ladeado pela tímida namorada, tão diferente desse senhor
do retrato que agora ela mostrava, tirado de dentro da carteira como um santinho. (p.63).
O tempo modificou as personagens e seus comportamentos. Agora a esposa carrega uma
foto como um mbolo material do vínculo que possuía com o marido, o qual, na verdade,
encontrava-se desgastado pelo tempo.
A esposa de “Um dia, afinal”, ao retornar ao passado, fortalece as lembranças,
distanciando-se ainda mais do presente. A nostalgia impregna a personagem: “ela o via agora
como o havia visto com seus olhos de mulher pela primeira vez, macho da espécie em meio aos
42
outros machos, galhardo, exibindo-se para as fêmeas expectantes que cochichavam disfarçando o
olhar.” (p.63). Mas também recordam o fortalecimento da relação, a corte e o engano:
Ela o via dando a volta na praça, recebia de novo o bilhete de papel pautado, e o sorriso
dele a atropelava cheio de exigências. Que fossem exigências descobriu com o tempo. A
princípio haviam-lhe parecido promessas, é tão difícil interpretar sorrisos. E depois havia sido
aquela coisa, as realizações dela, os seus desejos sempre adaptados às exigências dele,
confundido-se os dois” (p.63).
A busca pelo homem com quem se casara gera lembranças por associação, levando-a a
cidadezinha que foi o ninho do relacionamento, local onde nascera o amor. A personagem passa
por várias etapas em sua peregrinação e, apesar de não querer relembrar, mais do que procurar o
homem com quem se casara nos locais que acabaram por ficar no passado, a busca gera a
recordação de momentos felizes e da relação que também está tentando reencontrar: “aquela
mesma fila lenta em que de mãos dadas ou enlaçados pela cintura haviam tantas vezes
antegozado os beijos que se dariam na cumplicidade da sala escura.” (p.64).
Na primeira etapa, a esposa sente-se só, por isso o rompante em retornar à cidadezinha em
busca do esposo. na segunda, considera ter um fardo em sua vida, mas continua perseguindo
seu objetivo. O conflito interior da personagem, e que também atinge o leitor, resume-se nas
questões levantadas pelo narrador:
Onde teria ido parar seu marido? Que fim tinha levado o homem que lhe havia feito um
filho, aquele que ela havia acreditado conhecer melhor do que ninguém, melhor do que ele
mesmo, e que no entanto, como um desconhecido, havia desaparecido da sua vida deixando-a só,
deixando-a tão só? (p.64)
Segundo Bauman, ao refletir sobre a manutenção de relacionamentos:
As coligações tendem a ser flutuantes, frágeis e flexíveis. As pessoas procuram parceiros e
buscam ‘envolver-se em relacionamentos’ a fim de escapar à aflição da fragilidade, para
descobrir que ela se torna ainda mais afetiva e dolorosa do que antes. O que se
propunha/ansiava/esperava ser um abrigo (talvez o abrigo) contra a fragilidade revelasse sempre
como a sua estufa...(BAUMAN, 2004, p.41).
Não laços que se mantenham definitivamente. Todo o tipo de relacionamento está
fadado a modificações, assim como todo ser transforma-se constantemente, mas a personagem do
43
conto não aceita esta realidade e busca o homem com quem casara e lhe proporcionava o
sentimento de segurança que agora tanto deseja, como ressalta o fragmento reproduzido do conto.
A peregrinação da personagem continua e revela-nos os conflitos e a durabilidade do
relacionamento, haja vista o esposo ter se aposentado. A longa duração do casamento explica
as mudanças do marido e o descontentamento da esposa, que desejava manter o relacionamento
como em seu princípio: “Por que, por que não podia ter sua vida de volta?” (p.65).
No conto “Um dia, afinal”, o esfriamento da relação inclui a vida sexual: “Há quanto
tempo, quanto tempo as coxas do marido, aqueles joelhos que ela escorava às vezes com as
mãos sobre o lençol, não porque ele precisasse de apoio, mas para senti-los, duros contra sua
palma macia.” (p.65)
A personagem demonstra-se presa à estrutura familiar patriarcal e, mesmo
desempenhando suas tarefas femininas, não consegue manter seu casamento devido aos desgastes
ocasionados pelos anos de convívio, pois não aceita as alterações do seu esposo. Contudo, mesmo
insatisfeita, ressalta a utilização dos ensinamentos adquiridos para executar suas obrigações:
“Enquanto havia sido seu marido, enquanto ela havia cuidado dele, com amor a princípio, com
carinho depois, e ainda um tempo por puro hábito, nada lhe havia faltado (...)” (p.65).
A terceira etapa da busca confirma o desgaste do casamento com a existência de uma
amante. Gradativamente a narrativa apresenta fatos que solidificam a imagem de um
relacionamento fragilizado pela rotina e pelo tempo. A incerteza da esposa quanto à quantidade
de traições amplifica o desgaste do relacionamento: “Aquela tinha sido a primeira traição, pelo
menos que ela soubesse. E talvez por isso a mais dolorosa. Houve outras depois. Que ela soube
ou não soube e sempre suspeitou. (...) Mas quais haviam sido essas outras, e onde ficavam suas
casas não sabia mais dizer.” (p.67).
A busca só terminaria com o encontro do marido: “Agora porém via-se forçada a seguir o
fio da sua decisão buscar o marido significava procurá-lo onde fosse possível.” (p.68). Vai aos
locais mais indesejados como a casa da antiga amante, hospitais, IML e cemitérios. A procura
determinada gera no leitor uma leitura convicta do desaparecimento do marido cuja esposa
submete-se a situações dolorosas para reencontrá-lo. No entanto, não encontra ninguém que se
encaixasse em suas recordações:
Ao longo das filas, nas longas esperas, parecia-lhe impossível que seu marido estivesse ali. Não
como se lembrava dele, comendo com gosto, bebendo em goles fartos. Um marido que vai à
44
feira escolher peixes para o almoço dizia-se olhando ao redor com superioridade não acaba
num hospital de repente, não enlouquece de uma hora para a outra. (p.68).
A ausência da figura do marido ativo na rotina familiar afeta a personagem, por isso busca
avidamente este homem que ficou no passado. A plena certeza da execução do seu papel de
mulher conforta-a sobre o futuro:
A princípio, e durante muito tempo depois esperando que ele regressasse, havia acreditado no
poder enlouquecedor da solidão. Mas a espera a ocupava. Ele volta, repetia-se. Ele volta. Assim
como não havia feito nada para ser traída, assim também não tinha dado a ele razão nenhuma
para deixá-la quando acabassem os motivos ou o que quer que o tivesse levado, regressaria
para ela, com quem nada lhe faltava. (p.68-9).
A peregrinação para reencontrar o marido pauta-se no desejo de restabelecer os anos
considerados de ouro na relação, mas quando vai ao IML, o sentimento altera-se: “sentiu
realmente raiva. Chegou a odiá-lo por obrigá-la a mergulhar naquele cheiro de podridão, naquele
cheiro denso e escuro. Tão longe tinha que ir! Descendo ao reino da morte para buscá-lo, desejou
pela primeira vez que sim, que tivesse morrido...” (p.69).
A imagem do homem com quem se casara permanece viva na esposa, por isso a
insatisfação da mudança. A certeza de que ele sumira baseia-se na vontade desenfreada de torná-
la verossímil, pois não admite a perda da postura altiva e dominadora que o marido exercia antes
da aposentadoria. A esposa deseja ter de volta a figura masculina que desempenhava ativamente
o seu papel, impondo sua superioridade, marcando presença onde está, seja pagando contas ou
procurando-a em certas noites.
A eternização do casamento aponta para um relacionamento feliz e não é o que acontece.
Segundo Bauman, “a menos que a escolha seja reafirmada diariamente e novas ações continuem
a ser empreendidas para confirmá-la, a afinidade vai definhando, murchando e se deteriorando até
se desintegrar.” (BAUMAN, 2004, p.46). O drama do conto “Um dia, afinal” situa-se na falta de
comprometimento do marido que se modificou a tal ponto que a esposa não o reconhece mais. O
desgaste no relacionamento deste casal estrutura-se na inadaptação às alterações do tempo, pois o
marido assumiu uma postura de homem aposentado, em todos os sentidos, comportamento
inconcebível para a esposa que deseja um homem ativo, que realmente esteja ao seu lado e não
um corpo irreconhecível que lhe permitia sentir-se só.
Toda a narrativa evidencia o drama da personagem que não quer admitir o fracasso de seu
casamento. A busca desenfreada por seu marido retrata a insatisfação da personagem feminina
que, em última instância, recorre à polícia. Somente neste momento o leitor realmente
45
compreende o que ocorreu com o marido. Não se trata de um desaparecimento do convívio
familiar e sim da alteração física, emocional influenciada pelo tempo, mas inaceitável para a
esposa. Assim como ela resigna-se a manter suas obrigações religiosamente, busca a mesma
postura no esposo, que a decepciona:
Mas aquele homem pesado e sem luz que roncava à noite diante da televisão, aquele
homem que andava lento de um modo a outro sem olhá-la e que mal lhe dirigia a palavra não
era mais, não era o seu marido, não aquele com quem havia se casado, não o das coxas rijas, (...)
embora insistissem abanando papéis diante do seu rosto, este homem de pijama que mal a olhava
do outro lado da mesa não era sequer aquele que havia suspirado com outra atrás de paredes
amarelas, que havia suspirado com tantas e também com ela. (p.71)
A busca da personagem em “Um dia, afinal” mostra como a ação do tempo impõe-se
negativamente. Estranhos lhe impõem a aceitação da realidade: “feriram-na os dois detetives,
querendo obrigá-la a aceitar aquilo que não era para ser aceito, querendo empurrá-la no abismo à
beira do qual ela havia se segurado a custo durante anos sangrando os dedos, sangrando” (p.71).
A fantasia da fuga do marido a mantinha esperançosa de seu retorno, desta forma, o resgate dos
seus ideais ainda poderia ser possível.
O fim do conto reverbera a condição solitária da mulher que, apesar de ter um homem ao
seu lado, não o reconhece mais como no início do relacionamento: “Que sabiam esses jovens
detetives, que sabiam da solidão, da solidão de mulher que ninguém mais beija que ninguém mais
ouve, da sua solidão de mulher entre as paredes da casa? Que sabiam do silêncio para vir ali
dizer-lhe você não está só, você nunca esteve só?” (p. 71).
Em “Um dia, afinal”, a personagem percebe a alteração do esposo, mas não aceita a
mudança, renegando a promessa feita durante a cerimônia do casamento. A personagem do conto
não consegue romper com o relacionamento. A antiguidade do compromisso, assumido outrora
como duradouro, traria ainda mais sofrimento com sua dissolução, por isso a utilização do
subterfúgio da esposa, a crença no desaparecimento do marido, para amenizar as diferenças
indesejadas no convívio. A personagem mantém-se no condicionamento patriarcalista explicitado
por Simone de Beauvoir:
Ela não pode portanto nada se propor, a não ser construir uma vida equilibrada, em que o
presente, prolongando o passado, escape às ameaças do dia seguinte, isto é, precisamente,
edificar uma felicidade. Na falta de amor, ela terá pelo marido um sentimento terno e respeitoso
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chamado amor conjugal; ela encerrará o mundo entre as paredes do lar que será encarregada de
administrar; perpetuará a espécie humana através do futuro.”(BEAUVOIR, 1967, p.149)
O interessante da personagem-esposa de “Um dia, afinal”, de Marina Colasanti, é que esta
segue desempenhando suas tarefas domésticas, apesar de não considerar o homem que lá está seu
esposo. Tal situação reverbera a citação de Simone de Beauvoir, pois o equilíbrio na rotina
familiar mantém-se, destoando do sentimento de solidão que sente. Seu drama volta-se para o
aprisionamento da mulher no destino restrito pela sociedade patriarcal. A personagem aceita ser
traída, continua mantendo a casa, apesar de tudo. A frustração que a domina pode ser contida
por um estratagema, que a mantém na rotina vazia, na espera de algo improvável: “queriam tirar
dela a única coisa que lhe restava, a certeza, sim a certeza apesar de tudo, a certeza de que seu
marido, aquele que cheirava a homem quando a procurava, existia ainda em algum lugar, e que
deste lugar um dia, um dia afinal, voltaria para casa.” (p.72). A esperança de manter seu lar
continua movendo a personagem.
A ação do tempo é inimiga, pois a esposa renega a transformação do marido e, apesar do
contexto de crise conjugal, a personagem permanece firme em suas obrigações, explicitadas por
Pierre Bourdieu:
A lógica, essencialmente social, do que chamamos de ´vocação`, tem por efeito produzir tais
encontros harmoniosos entre as disposições e as posições, encontros que fazem com que as
vítimas da dominação simbólica possam cumprir com felicidade (no duplo sentido) as tarefas
subordinadas ou subalternas que lhes são atribuídas por suas virtudes de submissão, de
gentileza, de docilidade, de devotamento e de abnegação. (BOURDIEU, 2007, p. 73).
A personagem permanece na condição feminina que sempre lhe foi imposta. Mesmo
percebendo falhas na relação, submete-se ao seu destino, teme a solidão; por isso busca a
realização prometida pela sociedade e permanece acreditando no “retorno” do seu marido.
Em “As pérolas”, de Lygia Fagundes Telles, diferentemente das outras narrativas em que
a relação extraconjugal surge como uma realidade para as personagens femininas, é o marido que
se martiriza por um novo relacionamento de sua esposa após sua morte: Pensando em coisas
tristes?/ −Não, até que não... respondeu ele. Seria triste pensar, por exemplo, que enquanto ele
ia apodrecer na terra ela caminharia ao sol de mãos dadas com outro?” (p.142).
O enredo detém-se ao momento em que a personagem se prepara para a festa, não
sabemos o que ocorre nela, pois o conto contextualiza no momento de preparação para este
evento. O narrador evidencia as emoções do esposo, sobre a mulher poucos dados possuímos,
além da certeza de manter-se devotada à relação, apesar da doença do esposo, ainda deseja fazer-
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lhe companhia por amá-lo: “− (...) Queria tanto ficar aqui com você. / Era verdade, ela preferia
ficar, ela ainda o amava. Um amor meio esgarçado, sem alegria. Mas ainda amor.” (p.143).
Nesta narrativa, é o olhar masculino sobre o casamento a que temos acesso, no entanto, o
marido, durante toda a narrativa, questiona-se se seu sentimento é correspondido. A dúvida e
insegurança chegam a permitir a certeza de uma substituição por outro, no caso, pelo amigo
Roberto.
No conto “O triângulo mais que perfeito”, de Helena Parente Cunha, a personagem passa
por diversas etapas: traição, separação, sentimento de solidão e “a volta por cima”. O enredo
aborda a vida de uma personagem, protagonista, que ocupa o lugar de esposa e mãe; o homem,
que representa o marido e o pai; e a criança, que é a filha do casal.
Neste conto, as personagens não são nomeadas e vivenciam a decadência da principal
instituição que regula a nossa sociedade: a família. A distinção baseia-se na nomenclatura
utilizada pela sociedade, sendo também definidora de seus papéis dentro da família. A ausência
de individualização ocorre, pois o conto apresenta uma organização modelar da família na
sociedade patriarcal.
Dentro desta família surge o problema do adultério e, como consequência dele, a
desintegração familiar. No centro deste conflito está a mulher, é através dela que nós, leitores,
vamos conhecer este drama doméstico, é em seu ponto de vista que vamos penetrar, pois, apesar
de o texto ser composto por um narrador em terceira pessoa, que, em alguns momentos narra
imparcial e objetivamente, em determinadas passagens, que são muitas, vai haver uma profunda
junção dele com a protagonista, o que configurará uma dimensão mais psicológica à narrativa,
transmitida pelo monólogo interior da personagem.
Podemos dizer que este texto divide-se em duas partes: num primeiro momento, ficamos
conhecendo o drama familiar, o adultério, a falência do casamento. Como gradativamente, o
casamento desmorona. O segundo momento caracteriza-se pela reviravolta; a protagonista
consegue suplantar os obstáculos, tornando-se senhora de sua sexualidade. Os papéis de esposa e
amante são alterados. O último parágrafo do conto retoma ciclicamente o primeiro, assim a
narrativa começa e termina com o corpo liberado da protagonista.
A personagem, caracterizada como heroína inicialmente, surge no segundo parágrafo
insegura e temerosa pelo definhamento da relação. O início do conto revela-nos que a
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personagem já está liberta das amarras sociais, conseguiu superar os obstáculos. Mas como
ocorreu a ruptura dos laços matrimoniais?
O primeiro parágrafo da narrativa do conto “O triângulo mais que perfeito”, de Helena
Parente Cunha, associado ao título, desnorteia o leitor: “O sorriso de superioridade igual ao de
quem recusa a taça de champanhe, não, obrigado eu não bebo, o gesto lento de quadro
renascentista elitista sim, quanta dignidade além da casta e dos heróis. Herói, heroína ela o era, e
como o sabia” (p.5). A certeza na força de superação da personagem não ocorre ao leitor que, a
partir do segundo parágrafo, depara-se com o enredo de um casamento problemático.
A crise relacional reflete uma tensão feminina: a sexualidade; sendo esta o agente e o
paciente da tensão conjugal, desencadeadora das mudanças fundamentais na vida desta
personagem. A mudança na postura alicerça o conto, que aborda a trajetória de liberação da
personagem.
O conto “O triângulo mais que perfeito” apresenta três figuras femininas esposa, filha e
amante que, no princípio do conto, são definidas de forma que adensem o drama vivido pela
protagonista em vias de ser abandonada. Neste primeiro momento, a cena da partida do marido
evidencia o sentimento de frustração e dor da esposa e da filha: “eu agarrada à menina aos gritos
cravados no escuro sem começo nem fim, não sabendo que ele voltaria, sem coragem de me
deixar de vez, a menina agarrada nos braços dele, ele de cabeça encurvada, esquivando o olhar de
minha expectativa” (p.6). No momento do abandono, mãe e filha aparecem sempre juntas e
chorando a perda da figura masculina do lar. a amante aparece com um perfil antagônico da
(ex) esposa “aquela mulher tão bonita no jeito solto diferente ao meu calado quieto (...)” (p.7),
como justificativa pela troca.
A protagonista do conto inverte a primeira imagem construída, pois supera o “papel de
boba passada pra trás” para a heroína com seu “sorriso de superioridade”. Ela altera o papel de
esposa traída para o de amante. Segundo o estudo de Miriam Goldenberg sobre a amante em seu
livro A Outra, “A esposa é representada como uma mulher com faltas, desvalorizada, principal
responsável pela necessidade de o marido buscar uma Outra. A culpa não é do marido traidor,
mas da esposa traída.” (GOLDENBERG, 1997, p.32). Assim, a personagem feminina do conto
consegue suplantar as carências tidas quando desempenhava a função de esposa, pois como
amante consegue preencher todas as necessidades que o (ex) marido possui.
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A linguagem utilizada no conto marca a importância do tempo no amadurecimento da
personagem, que está “à espera a cada ano, à espera de uma hora que hora? Que dia?” (p.7). A
passagem de tempo é reforçada no enredo para enfatizar a distância ocorrida entre o abandono e o
retorno da relação. A imagem da filha crescendo corrobora para esta idéia, além de marcar o
amadurecimento dela, também deixa de esperar o pai para aguardar o namorado, respectivamente
em: “a menina parada nos olhos pregados na porta que não se abria mais de repente” (p.7) e “a
menina olhando o relógio, o barulho do carro parando embaixo, a menina da janela para porta
para o elevador, o beijo ligeiro da menina no menino, menino?” (p.7).
O conto “Amor e morte na página dezessete”, de Marina Colasanti, reforça a imagem
problemática do casamento estudada nos contos selecionados. Assim como em “O triângulo mais
que perfeito”, de Helena Parente Cunha, demonstra um relacionamento extraconjugal como
alternativa para a realização sentimental e a manutenção do casamento.
As duas narrativas citadas apresentam traições como fatos modificadores da relação. A
fragilidade dos relacionamentos defendida por Zygmunt Bauman em Amor Líquido subsidia a
compreensão da necessidade das personagens romperem com a estrutura social monogâmica a
que estão impostas. O rumo dado ao destino das personagens surpreende por privilegiar a
realização sentimental, o prazer, despreocupando-se com as convenções. Segundo Bauman,
Muito mais tem acontecido no caminho em direção à liquida e individualizada sociedade
moderna para tornar os compromissos de longo prazo pouco numerosos, o engajamento a longo
prazo uma rara expectativa e a obrigação de assistência mútua incondicional uma perspectiva
que nem é realista nem percebida como digna de grandes esforços (BAUMAN, 2007, p.86).
No conto “Amor e morte na página dezessete”, de Marina Colasanti, a personagem Selena
necessita manter uma relação extraconjugal para sentir-se completa. Desta forma, é o centro de
três histórias que se mesclam no enredo: o casamento, o caso e a tragédia do circo. A narrativa
ocorre com oscilação temporal para abordar a reação de todos os personagens envolvidos e
realçar a durabilidade dos relacionamentos simultâneos de Selena.
O conto constrói-se a partir de um fio dramático: a descoberta da traição; o próprio título
evidencia o fato trágico que traz à tona a vida “dupla” levada pela protagonista. No entanto,
somente a partir do final do primeiro parágrafo compreendemos a intensidade da situação, pois a
notícia refere-se ao amante.
Apesar de o conto também retratar um relacionamento fora dos padrões convencionais,
Marina aborda a temática de maneira diferente da de Helena. No conto “O triângulo mais que
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perfeito” é o marido quem trai, tendo este uma espécie de anuência da sociedade uma vez que a
poligamia, apesar de não ser bem vista diante da religião e da lei que outorgam o compromisso, é
admissível ao homem e nunca à mulher, por isso o casamento, segundo Friedrich Engels “baseia-
se na escravidão doméstica, franca ou dissimulada, da mulher” (ENGELS, 1987, p.80).
No conto “As pérolas”, de Lygia Fagundes Telles, a personagem está aquém desta
situação dramática interiorizada por seu esposo, mantendo-se fiel a ele e ao casamento, apesar de
o enredo buscar evidenciar a monotonia e desgaste da relação. Até mesmo a veracidade da
atenção feminina o narrador coloca em xeque:
A ociosidade, a miserável ociosidade daqueles interrogatórios. ‘Você está bem?’ O sorriso
postiço. ‘Estou bem.’ A insistência era necessária. ‘Bem mesmo?’ Oh Deus. ‘Bem mesmo.’ A
pergunta exasperante: Você quer alguma coisa?’ A resposta invariável: ‘Não quero nada’ (p.
141- 2)
O descrédito dado à preocupação feminina não se justifica na postura tida por Lavínia, as
palavras utilizadas não sugerem hábito como se tenta fazer. Em nenhum momento podemos
desfazer a imagem de uma esposa preocupada com a saúde de seu marido. O olhar masculino
despreocupa-se em traçar um perfil da esposa, apenas temos acesso a alguns de seus
posicionamentos, no entanto, através de uma descrição que evidencia a possessividade deste
marido, cuja única (in) certeza é a traição de Lavínia com Roberto.
O enredo demonstra que a esposa está atenta aos movimentos do marido, preocupando-se
com sua fisionomia e bem-estar: “− Tomás, que tal um copo de leite?” (p.146). Mesmo
arrumando-se para a reunião, permanece atenciosa. No entanto, Tomás atenta em salientar o
reencontro com Roberto e a traição como sendo inevitável, pois considera que o amigo possui um
sentimento reprimido por Lavínia.
Tomás relembra o jantar ocorrido “dois dias antes do casamento” para contrapor com a
situação atual, contudo, coloca-a como interrompida, sendo agora a oportunidade para Roberto
continuá-la, uma vez que não se considera mais como um empecilho para o possível casal.
A união de Lavínia e Tomás tem durabilidade − “quase dez anos” − mas a insegurança do
marido cria suspeitas um tanto descabidas, as quais não se solucionam por ausência de
comunicação no relacionamento: “No entanto, se lhe pedisse, ‘Lavínia, não vá.’, se lhe dissesse
isto uma única vez, ‘não vá, fica comigo!’” (p.147). Um ato comum como a decisão de
51
comparecer ou não a um jantar de um amigo e a utilização ou não do colar de pérolas pela esposa
ganham proporções superiores ao fato real, para Tomás concretizam uma traição tida como certa,
vislumbrada com riqueza de detalhes:
A varanda, floreios de Chopin se diluindo no silêncio, vago perfume de folhagens,
vago luar, tudo vago. Nítidos, os dois, tão tidos. Tão exatos. A conversa fragmentada,
mariposa sem alvo deixando aqui e ali o pólen de prata das asas, ‘E aquele jantar, hein,
Lavínia?’ Ah, aquele jantar. ‘Foi mais de dez anos, não foi?’ Ela demoraria responder. No
final, você lembra?, recitei Geraldy. Eu estava meio bêbado, mas disse o poema inteiro, não
encontrei nada melhor para te saudar, lembra?’ Ela ficaria séria. E um tanto perturbada, levaria
a mão ao colar de pérolas, gesto tão seu quando não sabia o que dizer: tomava entre os dedos a
conta maior do fio e ficava a rodá-la devagar. Sim, como não? Lembra-se perfeitamente só que
o verso adquiria agora um novo sentido, não, não era mais o cumprimento para arreliar o noivo.
Era a confissão profunda, grave: ‘Se eu te amasse, se tu me amasses, como nós nos amaríamos!’
(p.146-7)
O ato intempestivo de esconder o colar se devido à possibilidade de gerar
incompletude em relação ao jantar anterior ao casamento, que agora seria prosseguido. O colar é
tido como elemento fundamental, espécie de estopim “Ali estavam as pérolas que tinha atraído a
atenção de Roberto, rosadas e falsas, mas singularmente brilhantes. Voltando ao quarto, ela poria,
distraída, inconsciente ainda de tudo quanto a esperava.” (p.147). Pois, segundo Tomás:
Tudo ia acontecer como ele previra, tudo ia se desenrolar com a naturalidade do
inevitável, mas alguma coisa ia conseguir modificar, alguma coisa ele subtraíra da cena e agora
estava ali na sua mão: um acessório, um mesquinho acessório mas indispensável para
completar o quadro. (grifo nosso, p.149).
O sentimento de impotência, contudo, prevalece ao devolver a esposa a peça que
considerava como fundamental para o cenário da traição: “− Achei seu colar de pérolas. Tome
disse, estendendo o braço. Deixou que o fio lhe escorresse por entre os dedos.” (p.150).
O narrador demonstra como a personagem encontra-se alheia a situação criada pelo
marido, mas este direciona-nos a termos também convicção desta relação extraconjugal
anunciada. O final em aberto gera em nós, leitores, a cruel incerteza do que teria acontecido neste
fatídico encontro, que pode, até mesmo, não ter ocorrido. O recorte temporal não nos permite ter
certeza de nada além da sensação de impotência de Tomás, que considera sua condição de esposo
traído como algo iminente.
No conto “O menino”, de Lygia Fagundes Telles, também observamos uma personagem
feminina representativa em sua condição de casada. A personagem não é nomeada, mas,
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diferentemente dos demais contos, não é a condição de esposa que é ressaltada e sim a de mãe. A
originalidade do conto deve-se ao olhar a que se baseia o narrador, apesar de ser onisciente, a
perspectiva tida é a do filho, que desmistifica a figura materna, por isso podemos considerar que
o enredo divide-se em três momentos: o primeiro, anterior a chegada ao cinema; o segundo,
durante a exibição do filme; e o terceiro, o retorno a casa.
O título do conto é composto por um sintagma revelador da narrativa “O menino”, ao
substantivo apenas adiciona-se um artigo para definir sua condição, além de ressaltar ao leitor a
condição de protagonista que terá esta figura masculina predominante no texto. Interessante
observar que o protagonista não é enunciado como filho e sim como menino, pois a narrativa
acompanha a transformação desse personagem, que antes ostentava como um privilégio ser filho
de sua mãe.
em “Amor e morte na página dezessete”, Marina Colasanti rompe com a monogamia
defendida para as mulheres ao construir uma personagem feminina que vivencia dois
relacionamentos duradouros. Não se trata de um caso, mas de relacionamentos simultâneos que
se complementam.
A personagem Selena vivencia uma situação de igualdade aos homens, necessita do
adultério para ser feliz. Contudo, historicamente, e o conto retrata bem as diferenças, o adultério
feminino possui outras proporções, pois a mulher ainda é mais penalizada pela sociedade.
A diferença apresentada por Engels evidencia a dramaticidade do conto: a descoberta da
traição da personagem é amplificada pela interferência da mídia através da reportagem no jornal
e a exposição na televisão.
Além de abordar a diferença que existe entre os gêneros na referida situação, Marina
revela criticamente a forma como a mídia trata os acontecimentos: “A repórter já estava dentro
empurrando o microfone diante do rosto desfeito de Selena, tentando arrancar-lhe qualquer
coisa que durasse pelo menos dois minutos, qualquer coisa mais que aquele olhar escondido
pelas pálpebras inchadas, que aquele balbuciar quase incoerente” (p.142, grifo nosso) ou em
Não deu pra jogar no horário nobre, à noite tivesse acontecido na seção matinê teria caído
como uma luva, mas as coisas teimam em acontecer depois das vinte horas e no dia seguinte
parecem frias. Essa, porém, ainda estava quente quando foi servida com arroz e o feijão para
todo o bairro de Selena (p.142).
A traição não teve a visibilidade que a mídia gostaria, mas a sua interferência deu ao fato
uma proporção indesejada pelo marido ante o julgamento de conhecidos, divergindo da dimensão
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concedida pelos meios de comunicação: “Selena saiu no jornal, não ganhou foto na primeira
página. Quinze linhas somente, no canto esquerdo. Mas foi lá dentro, na página dezessete, abaixo
do título, que o marido a viu com seu decote, o rosto meio escondido na mão, chorando por outro
homem” (p.140).
A visibilidade que não foi dada pela mídia é concedida pela foto, reveladora da fisionomia
desesperada e do decote sempre indesejado pelo esposo. O tamanho da reportagem e o número da
página não evidenciam o estrago da revelação na vida do marido, que até então estava seguro da
estabilidade de seu relacionamento.
O narrador onisciente aproxima-se da personagem para registrar todos os sentimentos. A
narrativa não faz juízo de valor, mas apresenta uma personagem que se sente fiel aos
relacionamentos: “Grave teria sido magoar qualquer dos dois. Pois se gostava de ambos. Grave
teria sido magoar a si mesma” (p.143).
Em “O triângulo mais que perfeito”, de Helena Parente Cunha, a narração trágica inicia-se
com a constatação do desgaste do relacionamento e uma possível traição; mas o narrador
imprime certeza quanto ao fim do relacionamento, como em: “(...) não sabia quando seria nem se
seria, mas sempre à espera, ano e mais ano, à espera de uma hora, que hora? que dia? como seria?
seria?” (p.5).
A saída gradativa de seu marido, que lhe vai escapando das os, destaca-se pela
metáfora da areia a escorrer entre os dedos, primeiramente narrada em terceira pessoa: “ele
escapando, areia a escorrer de seus dedos que queriam segurar o irrefreável, as mãos frágeis
demais para impedirem o ímpeto, ele indo” (p.5, grifo nosso). O narrador onisciente indica a
incapacidade da personagem em deter o desmoronamento de seu casamento, esta voz exterior à
personagem caracteriza suas mãos como frágeis demais para impedirem a perda do marido. A
protagonista não representa obstáculo algum, pois não consegue oferecer resistência ao fim do
relacionamento. A impossibilidade é destacada pela utilização do adjetivo irrefreável, que denota
a ineficiência que seu ato teria.
A imagem também aparece no discurso da personagem feminina, “ele indo embora, ano
após ano, aos poucos, cada vez um pouco mais, indo, areia escorrendo dos meus dedos, minhas
mãos frágeis demais para deterem a queda.” (p.5, grifos nossos). A protagonista interioriza o
discurso do narrador. Agora se considera incapaz de frear e impedir a queda, a simples mudança
54
do pronome “seus” para “meus” e a inclusão do possessivo “minhas” antes do termo mãos
demonstra esta introjeção de um discurso socialmente construído.
O tempo, característica marcante na obra de Helena Parente Cunha, também o é para a
personagem de “O triângulo mais que perfeito”, pois nos permite acompanhar a drama e a
resolução ocorrida na vida da personagem feminina. O texto constrói-se numa flutuação
temporal, que visita diferentes momentos deste casamento, ilustrando não a queda do modelo
de família e a conquista de uma liberdade sexual por parte da protagonista, mas também o
processo que desencadeou estas transformações. Percebemos o delinear de um percurso de
aprendizagem.
A dramaticidade do enredo enfatiza-se por recursos estilísticos, sugerindo distanciamento
entre o casal “− ele cada vez mais indo não precisa se zangar, eu estava na redação, claro, até
agora, eu lhe disse que tinha que preparar aquela matéria ele indo embora, ano após ano, aos
poucos, cada vez mais, indo...” (p.5) A seleção vocabular revela a dramaticidade vivida pela
personagem através da adjetivação de algumas situações, como em: “segurar o irrefreável” (p.5)
“querendo reter o irreprimível” (p.6), “impedir o irremediável” (p.7).
Em “O triângulo mais que perfeito”, o monólogo interior da personagem evidencia o
temor do rompimento, mas o indica com a certeza de ser “irrefreável”. A impossibilidade de
manter o casamento metaforiza-se pela inaptidão em segurá-lo. Na verdade, o abandono gradual
do marido favorece a potencialização do que o futuro lhe reserva, portanto, utiliza-se dos recursos
que contém “eu agarrada à menina aos gritos cravados no escuro sem começo nem fim, não
sabendo que ele voltaria, sem coragem de me deixar de vez, a menina agarrada nos braços dele,
ele de cabeça encurvada, esquivando o olhar de minha expectativa volto mas não sei se posso
ficar.” (p.6).
Tanto Marina Colasanti quanto Helena Parente Cunha, respectivamente nos contos “Amor
e morte na página dezessete” e “O triângulo mais que perfeito”, desmistificam a idéia de que as
mulheres realizam-se apenas com a “felicidade doméstica.”
4
As protagonistas necessitam mais
do que a segurança de um casamento, buscam o prazer renegado pela execução disciplinada de
suas atribuições femininas no lar. Bauman diz que “o desejo não precisa ser instigado para nada
mais do que a presença da alteridade.” (BAUMAN, 2004, p.23). Bauman ainda reitera: “Separar-
se do ser amado é o maior medo do amante...” (BAUMAN, 2004, p.32), não somente pelo estado
4
Termo utilizado por Friedrich Engels em A origem da família, da propriedade privada e do estado.
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de solidão (no qual ficam as personagens), mas pela situação de não se sentir capaz de ser
desejado pelo outro a ponto de ele ou ela ter tido coragem de abandonar seu parceiro.
No conto “O menino”, de Lygia Fagundes Telles, o enredo organiza-se de forma que se
estabeleça uma gradação das cenas para o clímax. As percepções do menino vão adensando-se. O
narrador introduz a narrativa sob a ótica infantil, enfatizando o olhar do menino e seus
pensamentos e emoções tão entusiasmados: “Sentou-se num tamborete, fincou os cotovelos nos
joelhos, apoiou o queixo nas mãos e ficou olhando para a mãe.” (p.151). O olhar do menino para
a mãe guiará a trama, o narrador aproxima-se de tal forma do protagonista, que lhe permite
alguns monólogos como, por exemplo, “(...) era linda, linda, linda!” (p.151), permitindo-nos
acesso direto às emoções.
A personagem feminina em “O menino”, em contraponto com os demais contos, constrói-
se claramente ao leitor, devido à necessidade de exaltar a figura quase etérea que o menino tinha
da mãe. Cabelos muito louros e curtos, cacheados, cerca de 30-31 anos, “Em todo o bairro não
havia uma moça linda assim.” (p.151).
A representação física e social da personagem feminina se faz necessária, pois o olhar de
encantamento que o filho tem de sua mãe será modificado. Mesmo com o deslumbramento que a
figura materna causa, a narrativa destaca sua autoridade sobre o filho, sem ao menos alterar seu
temperamento plácido: “Inclinando-se até ele, ela falou-lhe baixinho, naquele tom perigoso, meio
entre os dentes e que era usado quando estava no auge, um tom macio que quem a ouvisse
julgaria que ela fazia um elogio. Mas que ele sabia o que havia debaixo daquela maciez.”
(p.155).
O menino sente-se orgulhoso pela mãe que possui, num primeiro momento, considerando-
se superior devido à beleza tida por ela: “Vejam, esta é minha mãe! − teve vontade de gritar-lhes.
Nenhum de vocês tem uma mãe linda assim! E lembrou deliciado que a mãe do Júlio era
grandalhona e sem graça, sempre de chinelo e consertando meia. Júlio devia estar roxo de
inveja.” (p.152). O tom vibrante do discurso ressalta a inteireza dos sentimentos do filho,
enaltecedor deste ser que para ele não possui defeitos, é superior as outras da mesma função:
mãe. A admiração do menino pela mãe estimula-o a colocá-la como padrão para sua futura
esposa “tinha que ser assim como a mãe, igualzinha à mãe” (p.152).
56
No entanto, o discurso altera-se gradativamente. O ato de ir ao cinema, fato anunciado
desde o princípio do conto, sugerido como algo intrínseco à rotina familiar, promove uma ruptura
na imagem que o menino possui da mãe, iniciando o segundo momento da narrativa.
Desde o momento em que chegam ao cinema, o personagem percebe a alteração do
comportamento maternal, intrigando-se: “Lançou à mãe um olhar sombrio. Por que é que não
entravam logo? Tinha corrido feito dois loucos e agora aquela calma, espera. Esperar o que,
pô?!...” (p.153). A própria autora ressalta-nos, através de um recurso gráfico, que a mãe esperava
algo. O itálico reforça o rompimento com uma atividade habitual. O evento não se como
sempre ocorria.
O cinema permite a oposição entre a realidade e a subjetividade para o protagonista.
Durante a exibição do filme, ocorre o momento de desvelamento da imagem materna. O menino
vê o envolvimento da mãe com outro homem. “Então viu: a mão pequena e branca, muito branca,
deslizou pelo braço da poltrona e pousou devagarinho nos joelhos do homem que acabara de
chegar” (p.156). O agravante da situação -se pela iniciativa do contato ter partido da mãe. A
personagem feminina demonstra que o envolvimento extraconjugal possui importância com esta
atitude, pois além de contrariar os ideais sociais, não se preocupa se o filho está observando ou
não. Assim como a personagem Selena de “Amor e morte na página dezessete”, de Marina
Colasanti, aproveita os encontros com o amante sem se preocupar com as consequências. Por
isso, ao final da exibição do filme, percebe-se sua satisfação: “Ela sorria com aquela mesma
expressão que tivera diante do espelho, enquanto se perfumava. Estava corada e brilhante.”
(p.157).
O conflito do protagonista é dinamizado pela complexidade do filme exibido, a ficção
funde-se com a realidade, assim como a aceitação de que seja verídica a situação. As imagens
desordenadas do filme correspondem à desordem interior instaurada no protagonista. Após o
filme, o menino renega aquela que outrora era tão admirada, pois se tornara uma estranha ao
desrespeitar seu pai. Seu comportamento modifica-se prontamente, revelando a indignação, não
querendo mais nenhum tipo de contato: “− Ah, não quer mais andar de mãos dadas comigo? / Ele
inclinara-se, demorando mais do que o necessário para dobrar a barra da calça rancheira.”
(p.158).
Os sentimentos do protagonista alteram-se, o que era sentimento de alegria passa a ser
uma terrível angústia e tristeza; o que era admiração transformara-se em repulsa também visível
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na descrição, a figura feminina deixa de ser exaltada e passa a ser considerada como uma
estranha.
A imagem da mãe de Júlio, desdenhada no princípio do conto, é relembrada pelo
protagonista, que agora a considera como verdadeira imagem de uma mãe, sempre envolta em
suas atividades domésticas, fiel às suas atribuições; contrapondo-se à sua, que havia se revelado
desmerecedora de admiração, o modelo de beleza e graciosidade não é mais os atributos
valorativos que considera importante para uma figura materna. O menino perde o modelo de mãe
e esposa que considerava ter. Devido a esta alteração, a mão de Júlio é digna de ser nomeada, D.
Margarida, além dela somente Júlio, pois vivenciam um relacionamento único que o protagonista
considerava viver, mas que agora percebia ser uma mentira.
Em “O triângulo mais que perfeito”, a confiança, um dos pilares essenciais para uma
relação duradoura, corroera-se devido às constantes desculpas do marido pelos atrasos. A
insegurança passa a ser o sentimento mais presente na protagonista que tenta não acreditar no que
se coloca como inevitável para seu relacionamento: “volto mas não sei se posso ficar eu
perdoando, querendo reter o irreprimível.” (p.6).
A protagonista não se realiza sexualmente em seu casamento e, por vezes, demonstra não
sentir prazer com seu esposo, por isso não podemos culpar somente a amante pela separação do
casal. A própria narrativa nos ressalta que este comportamento distancia o casal: “o esforço que
eu fazia para fingir que eu gostava, às vezes ele percebia e me largava sozinha e então eu presa
num fôlego até ouvir de novo a porta do elevador bater, de manhã, ele zangado não queria
conversa” (p.6). Devemos ter em mente que o homem possui a necessidade de sentir-se viril,
sendo este um dos deveres que a esposa jamais pode desrespeitar. A personagem feminina não
exercia com plenitude seu papel de esposa e o repúdio ao ato sexual incentiva o marido a praticar
sua virilidade com outra. Segundo Bourdieu, “A virilidade, como se vê, é uma noção
eminentemente relacional, construída diante dos outros homens, para os outros homens e contra a
feminilidade, por uma espécie de medo do feminino, e construída, primeiramente, dentro de si
mesmo.” (BOURDIEU, 2007, p. 67).
As diferentes expectativas trazidas por cada cônjuge justificam a dubiedade que surge na
relação sexual. O homem quer demonstrar sua masculinidade satisfazendo-se através do sexo,
enquanto a mulher busca o companheirismo e cumplicidade. Tal distorção evidencia-se na
narrativa de “O triângulo mais que perfeito”, pois a falência familiar baseia-se na sexualidade.
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Primeiro, porque o adultério é o motivo explícito do divórcio e depois, porque, na descrição
progressiva do rompimento, surge um dado fundamental para a compreensão da crise conjugal, a
frigidez sexual da esposa:
minha carne sempre teve medo de acolher o transbordamento quente do esperma venha cá,
você está fugindo de mim eu não podia ficar na cama toda suja daquele jeito, tinha que me
lavar você tem nojo de mim ah, ele não entendia que o meu bom mesmo era o calor do seu
corpo junto ao meu, não em cima do meu, naquele encrespar ofegante. (p.6)
A personagem funciona como um estereótipo da mulher de família, que não consegue
viver o prazer sexual em seu casamento, está presa a uma formação social que durante muito
tempo castrou o prazer feminino. A personagem do conto sofre a opressão familiar para a
anulação do prazer feminino. Ela, não conseguindo transpor esta barreira da educação feminina, é
incapaz de usufruir do prazer conjugal.
Marina Colasanti, a partir da poligamia feminina, em “Amor e morte na página
dezessete”, aborda a postura diferenciada dos dois homens envolvidos. Jonas, o marido, 27 anos
de casado, é descrito como rude, ciumento, meio bruto, mas bom e respeitador. E Daniel, o
amante, 25 anos de relacionamento, é descrito como “alegre, amoroso, sempre inventando moda”
(p.147). Além dos temperamentos, a maneira como levam o relacionamento com Selena se
completa. O marido responsável e o amante impulsivo.
Os relacionamentos mantêm-se por autenticidade dos sentimentos. Selena possui o receio
de ser descoberta, tem a consciência da irregularidade de seus atos, mas segue os seus
sentimentos:
E o medo, medo de ser descoberta, medo ainda maior de ser arrastada por seu desejo em
alguma direção que não pudesse controlar. Mas tão bom ter o amante todo ardências, que logo
qualquer outro sentimento desaparecera. E agora, passados tantos anos, tão assentada ela no
querer dos dois, surpreendia-se quase de que não vivessem todos juntos na mesma casa,
partilhando a mesa da cama. (p.143).
Selena e a esposa do conto “O triângulo mais que perfeito” são personagens que, ao
romperem com as convenções sociais, usufruem do prazer outrora inexistente ou incompleto. As
personagens superam o adestramento de seus corpos e a simbologia de o ato sexual ser um ato de
dominação masculina. Segundo Beauvoir,
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Desde as civilizações primitivas até os nossos dias sempre se admitiu que a cama era para a
mulher um "serviço" que o homem agradece com presentes ou assegurando-lhe a manutenção:
mas servir é ter um senhor; não há nessa relação nenhuma reciprocidade. A estrutura do
casamento como também a existência das prostitutas são provas disso: a mulher dá-se, o
homem a remunera e a possui. (BEAUVOIR, 1967, p. 112)
O casamento e a educação recebida pela família cooperam para a anulação do prazer
feminino; por isso a protagonista do conto de Helena Parente Cunha, antes de sua liberação
sexual, teve que desempenhar sua função de esposa utilizando a dissimulação para manter o
casamento e agradar marido, pois o ego masculino não pode suportar uma ofensa na área sexual:
o esforço que eu fazia para fingir que morria de prazer, quantas vezes ele sem perceber, quantas
vezes ele quis que eu quisesse mais então eu queria mais, na verdade eu não queria, queria
que ele quisesse que eu quisesse, e que me visse cansada − ah, você quer, mas não agüenta − ele
triunfante na macheza, me vendo rendida (p.6)
O marido, personagem do conto, preserva características patriarcais, se lisonjeia da
impotente capacidade física de sua parceira: ela é fraca, menos viril do que seu falo, por isso
“quer, mas não agüenta”. No entanto, ele espera um prazer dela, que ela não foi criada para dar:
ele pensava por causa do orgasmo, era somente do esforço da minha carne fendida, ah, o
esforço para fingir que eu gostava, às vezes ele percebia e me largava sozinha e então eu presa
num fôlego até ouvir de novo a porta do elevador bater, de manhã, ele zangado não queria
conversa ... (p. 6)
Na primeira parte do conto, a mulher está, de certa maneira, “conformada” com seu papel,
vive sua sexualidade de forma esvaziada, não prazerosa, apenas para satisfazer seu marido,
cumprindo sua obrigação marital, ou seja, a protagonista se enquadra de forma perfeita no
modelo de sexualidade criado para a mulher; assim também o homem, como é esperado e
permitido, expande sua sexualidade da casa para rua, através do adultério.
As decepções com a esposa aproximam o marido da amante. A esposa vivencia duas
dores a da traição e da separação. Apesar de uma ser consequência da outra, a consciência de que
não satisfaz seu esposo é devastadora, sendo mais dolorosa do que perdê-lo: “eu sabendo que ele
não seria capaz de viver somente comigo, mas aquela paixão por aquela mulher eu não tinha mais
forças para suportar” (p.6).
A esposa mantém sua postura passiva, mesmo sabendo da traição. Tal comportamento
comprova-se em algumas passagens, como em: “aceitar? A humilhação, todo mundo falava e
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aquela conversa dos outros, eu fazendo papel de boba passada pra trás, como aceitar? Mas que
vontade de aceitar, humilhação ou ciúme?” (p.7, grifo nosso).
Até mesmo o suicídio surge como uma possível arma para forçar o marido a ficar: “não
adiantava deixar os comprimidos de barbitúrico à vista, ele certo de que eu não ousaria aventurar
a dose precisa a fim de não acordar e se achasse que eu não acordaria, seria capaz de ficar?”
(p.7).
Em “Amor e morte na página dezessete”, de Marina Colasanti, apesar do desfecho trágico
do duplo relacionamento de Selena, a narrativa revela desde o início algumas dúvidas da
personagem: “No princípio talvez, um pouco de mágoa a habitava, uma quase dor, por não dizer
ao marido tenho um amor, e partilhar com ele sua emoção, por se sentir obrigada a resistir,
embora pouco, quando tudo o que queria era a entrega.” (p.143).
O tempo que Selena passa na delegacia demonstra a valorização que a personagem atribui
ao seu casamento. Apesar de ter um caso, não desprestigia seu marido e evidencia a importância
deste em sua vida: “Sou uma mulher casada, repetia. Tenho marido. Me deixe ir. Mas não, isso
ela dizia para si mesma, isso ela repetia calada pela angustia, como uma ladainha, em busca do
seu refúgio, tenho marido, tenho.” (p.144).
A fala da personagem lembra-nos a inculcação da dominação masculina defendida por
Pierre Bourdieu, tornando-se mais clara com o surgimento da figura do marido através de uma
descrição fiel aos padrões da estrutura patriarcal: “Atendeu com a voz de dono com que um
homem atende o telefone da própria casa.” (p.144, grifo nosso,).
O marido, Jonas, surge como uma personagem consciente de suas funções, porém
ultrajado em suas convicções. Um telefonema abala todas as suas certezas masculinas, a
possessão da esposa, outrora considerada plena, desmorona-se: “Não era um presságio, era a
realidade do medo que lhe tomava os joelhos, o peito. É à medida que o outro falava, conciso,
indo logo ao essencial, Jonas sentiu que deixava de ser o Jonas que sempre havia acreditado ser,
tornando-se alguém que ainda não conhecia.” (p.144).
A esposa, sempre tida como um objeto possuído, inverte a situação neste conto. Jonas
percebe-se desonrado diante da sociedade: “Já não era o marido respeitado e invejado pela
vizinhança mas alguém de quem se ri pelas costas, não era o macho que sempre havia esgotado
as vontades da sua fêmea mais apenas um homem que gozava.” (p.145).
61
A sociedade, representada pela vizinhança, que o glorificava agora está pronta para o
escárnio. Igualmente com Selena que, sabedora da situação, teme deixar a delegacia e ir para a
casa: “ela tinha dito não, não, para minha casa não, e tinha pedido que a deixassem na casa de
uma amiga, porque não podia chegar no bairro àquela hora, com aquele vestido.” (p.142).
A descoberta do caso revela-nos mais sobre Selena, pois mesmo rompendo com as
convenções por seu prazer, não as repudia; ainda tem seu marido como o salvador que poderia
tirá-la da situação constrangedora em que se encontra na delegacia:
A relação dela com Jonas não estava ali. Não estava do outro lado da linha. Seu marido, o
companheiro seu, a esperava adiante em algum momento, árduo momento em que teriam que se
encontrar. Mas aquela mesma relação que ela projetava para o futuro estava inteira ali, no seu
mudo repetir tenho marido, na vontade de que ele viesse, a levasse para a casa a tirasse daquele
lugar. Jonas! Invocou de novo sufocada em choro, me ajuda. (p.145).
Similarmente, o marido consciente da situação “chorando no escuro” (p.146) por não
poder admitir tal situação, devaneia sobre possíveis desfechos que lhe restaurariam a honra:
E falando com Selena, brigando com Selena, sacudindo-a pelos braços, rasgando-lhe a roupa,
dando-lhe tapas na cara, fodendo-a como se fode uma prostituta, e implorando, perguntando por
que, por que se ele não lhe deixava faltar nada. Chegou a dar tiro, nela, nos dois, a surpreendê-
los na cama, a peitá-los na entrada do motel. Passou a noite culpando-os, culpando-se, ferindo-
se nas palavras. (p.146).
No conto “O triângulo mais que perfeito”, de Helena Parente Cunha, a personagem ocupa
um lugar culturalmente estabelecido para a mulher. Existem índices que demonstram, mesmo
neste momento de crise conjugal, certa insatisfação e expectativa de mudança, visto que o
segundo parágrafo do conto inicia a descrição do momento de decadência do casamento: “A
áspera espera daquela hora que não sabia quando seria nem se seria, mas sempre à espera” (p.5).
Este trecho marca a expectativa e o questionamento psicológico desta personagem. Ela demonstra
a necessidade angustiante de transformação, que se emaranha numa teia de dúvidas e incertezas,
mas que, no entanto, tem como palavras de ordem: ‘a áspera espera’.
A complexidade psicológica da personagem encontra-se dividida e estilhaçada entre a
configuração social, que para ela foi construída, e a sua vontade de rompê-la. Em uma sociedade
monogâmica, o adultério é permitido se envolto em hipocrisia; regularmente, ele é repudiado
pela moral e pela ética social. Mesmo assim, ela vacila em impor a escolha a ele; quer, no fundo
de seu íntimo, onde ela está recriando suas próprias regras, tentando aceitar a bigamia dele, mas a
voz da sociedade fala mais alto.
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Quando [ele] veio eu murmurando, ou eu ou ela, a menina pregada nos seus braços, as lágrimas
descendo pesadas nas rugas que marcavam o bonito do rosto dele por que você não entende?
eu entendia que ele não podia me deixar e não podia viver sem aquela mulher tão bonita no
jeito solto diferente do meu calado quieto, eu entendia mas como eu podia entender? Aceitar? A
humilhação, todo mundo falava e aquela conversa dos outros, eu fazendo papel de boba passada
pra trás, como aceitar. (p.7)
Desde o começo do conto, a personagem caminha para a liberação de seu corpo. O enredo
marca a ultrapassagem de todas as barreiras que a confinam no destino de mulher frígida.
Percebemos um caminhar vagaroso em direção a uma liberdade, que está presente em seu
íntimo.
Os primeiros sinais de liberação são os questionamentos interiores da personagem, que
indicam uma outra possibilidade de postura, diversa daquela instituída como regra. Ela quer
aceitar esta nova condição familiar, cujo centro é o triângulo e ela ocupa o vértice da esposa, no
entanto, ainda não está preparada para quebrar os grilhões de uma sociedade moralista e
patriarcal.
Selena, de “Amor e morte na página dezessete”, de Marina Colasanti, sofre com a pressão
da sociedade, mas ela escolheu manter os dois relacionamentos e Daniel apoiava. O amor e
cumplicidade do amante independiam do seu casamento, pois aceita partilhá-la:
Sem nunca lhe exigir nada, sobretudo não o fim do seu casamento, e não porque a quisesse
casada com outro, ele que solteiro podia acolher uma mulher. Mas porque sabia amá-la como
ela era, com Jonas e o seu jeito de querer Jonas, com uma casa que não podiam partilhar, com
seus horários apertados, sua necessidade de escamotear os presentes, de inventar histórias para
justificar as ausências. (p.147).
Selena desempenha a superioridade outorgada aos homens. É ela quem usufrui de dois
homens para satisfazer seus desejos. A protagonista direciona a vida do marido e do amante.
Jonas sente-se perdido com sua rotina quebrada e sua imagem corrompida. Daniel morre para
provar seu amor: “tinha perguntado se por amor a ela ele seria capaz de também enfrentar feras.”
(p.150).
O relacionamento perfeito para Selena termina de forma trágica. O conto sinaliza para o
fim dos dois relacionamentos. Enquanto no conto “O triângulo mais que perfeito”, de Helena
Parente Cunha, o desfecho evidencia o êxito da protagonista, que faz o caminho inverso da
personagem Selena, pois saiu de sua situação dramática para a plena realização com a descoberta
dos prazeres sexuais desconhecidos em seu matrimônio.
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Em “O triângulo mais que perfeito”, o enredo, em grande parte, detém-se em relatar o
doloroso momento da separação: o ir e voltar do esposo para o finalmente ir e o mais voltar.
Contudo, no início da narrativa, a protagonista aparece como uma heroína e após a separação
definitiva surge a personagem forte, merecedora do adjetivo. Mesmo com a partida do esposo,
não desiste de reavê-lo: “lento mas afinal consumado, tudo desfeito, ele sem vir nunca mais, a
espera dia após dia hora após hora ano e mais não de espera, espera de quê?” (p.7).
A poética de Helena Parente Cunha encaminha-nos sutilmente pelo passar dos anos, seja
nas falas das personagens ou nas sutis sugestões. O envelhecimento das personagens dificulta a
vida da protagonista que começa a vislumbrar o relacionamento da filha, ficando mais solitária:
a menina olhando o relógio, o barulho do carro parando embaixo, a menina da janela para a
porta para o elevador, o beijo ligeiro da menina no menino, menino? Homem que não assusta
nem faz tremer a menina subindo no carro saindo chegando contente, eu contente do contente
dela, eu ficando cada vez mais sozinha (p.7)
A força de superação da protagonista aumenta com o tempo. O novo comportamento do
corpo feminino, que se libera, a permite viver uma sexualidade calcada no gozo e no prazer. A
danosa espera por um dia que ela não sabia se viria termina, e ela se transforma no centro das
atenções; pois a espera traz consigo a recompensa desejada, a aproximação progressiva do (ex)
marido: “ele um dia me olhando de longe na rua, ele um dia na espera da hora de minha hora de
sair, ele um dia telefonando para marcar um encontro comigo, eu ia? não ia? ah, ia indo pra ele
que vinha vindo” (p.7).
Heroína, esposa, amante. A força desta personagem permeia todas estas nomeações que
modifica heroicamente os papéis de esposa frígida e traída para amante fogosa que sente prazer
com seu homem. Acompanhamos o processo de reflexão da personagem: o momento da dúvida e
da incerteza entre aceitar aquela oportunidade de viver a sua hora ou continuar à espera. Assim
como outrora, ela titubeia em aceitar o triângulo, só que desta vez, na posição de amante,
consegue ultrapassar as barreiras: “ah, ia indo pra ele que vinha vindo.” (p.7).
É neste momento que a personagem consegue liberar seu corpo e viver plenamente sua
sexualidade “o calor encrespado do corpo dele em cima do meu corpo que se fazia o abismo sem
começo nem fim do seu perder-se na minha carne ofegante morrendo de prazer, eu rendida
querendo mais, o peso quente me fendia, o bom do esperma dele no meu orgasmo” (p.8). O poder
de superação modifica a personagem que agora goza dos benefícios de ser amante.
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A alteração do papel da personagem de esposa a amante é fundamental na liberação do
corpo feminino. Ela assume o lugar daquela que não tem nenhum compromisso marital. O sexo
passa a ser apenas o encontro de sensações e prazeres, sendo desvinculado de direitos e deveres
subordinados ao casamento tradicional. Mais relevante ainda é o fato de ela ocupar o lugar da
perversão e da transgressão, marcas profundas do erotismo.
A mudança gera o amadurecimento da personagem que se permite extrapolar as regras
culturais para ser feliz. Os limites da casa e da família também sofrem liberação. Ela encontra seu
prazer e sua sexualidade fora de casa, ou seja, ela consegue romper este espaço, que funcionou,
durante muito tempo, como um confinamento da sexualidade feminina.
Ironicamente, a realização manifesta-se fora do casamento e a situação de traição é a saída
para este relacionamento que será bem sucedido com a contravenção dos modelos, sem as
pressões sociais, como o próprio título defende; somente “o triângulo mais que perfeito”
proporciona o prazer buscado pela (ex) esposa e (ex) marido, não encontrado na regularidade do
casamento.
A imagem da protagonista que agora está “acima e além dos mesquinhos escrúpulos da
gente de todo dia ou dos desmesurados assomos dos emancipados de preconceitos” (p.5)
reverbera as duas metáforas que abrem e encerram a narrativa: “o silencioso sorriso de
superioridade”. Superioridade de quem aprendeu a estar acima e além das regras sociais, dos
padrões instituídos, de alguém que re-criou suas próprias verdades e, por isso, consegue estar
além e acima dos preconceitos e até mesmo dos conceitos hipócritas de um patriarcalismo
decadente.
Tanto Selena do conto “Amor e morte na página dezessete”, de Marina Colasanti, quanto
a personagem feminina do conto “O triângulo mais que perfeito”, de Helena Parente Cunha,
realizaram-se no relacionamento extraconjugal. Ambas sentem-se mais libertas por oscilarem da
condição de mulher santa, que necessita tomar conta do lar e do marido para a mulher livre, que
só tem obrigação consigo mesma de sentir prazer.
No conto “O menino”, de Lygia Fagundes Telles, quando o discurso descentraliza-se do
ponto de vista decepcionado do menino, o narrador evidencia um casamento desgastado, assim
como nos contos “Um dia, afinal”, de Marina Colasanti, e “As rolas”, também de Lygia
Fagundes Telles; nos quais a rotina estabeleceu-se devido à durabilidade e imutabilidade do
relacionamento. O automatismo surge devido ao tempo, que petrificou o sentimento, que outrora
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motivou a relação: “o pai estava sentado na cadeira de balanço, lendo o jornal. Como todas as
noites, como todas as noites.” (p.158).
Ao retornar a casa, é destacado pelo narrador o comportamento dissimulado da
personagem feminina, que apesar de voltar do encontro com seu amante, mantém-se atenciosa e
até mesmo amorosa para com o esposo: “− Então, meu amor, lendo o seu jornalzinho?
perguntou ela, beijando o homem na face. Mas a luz não está muito fraca?” (p.159). Assim
como em “Amor e morte na página dezessete”, de Marina Colasanti, a personagem usufrui de um
relacionamento extraconjugal para obter prazer, no entanto, mantém placidamente o casamento,
zelando atenciosamente pela sua manutenção.
As personagens dos seis contos selecionados comprovam em suas narrativas que a
monotonia do casamento pode contribuir para mudanças no comportamento dos cônjuges, pois a
paixão atua como uma força motriz. Aliás, Giddens destaca que “não lugar para paixão nos
ambientes rotinizados que [apenas] nos proporcionam segurança na vida social moderna.”
(GIDDENS, 1993, p. 219). Desta forma, na descrição de Giddens, não é, como o casamento um
dia foi, uma “condição natural” cuja durabilidade possa ser tomada como algo garantido, a não
ser em circunstâncias extremas.
As personagens femininas, em cada um dos casamentos observados, demonstram que o
conceito de “felizes para sempre” está ultrapassado. As narrativas, através de diferentes olhares e
vivências, evidenciam como os relacionamentos devem ser cuidados pelos cônjuges, pois não
existe uma escolha eterna e inabalável. Todas as personagens sentiam-se insatisfeitas ao ficarem
restritas ao padrão relacional estabelecido pelo sistema patriarcal, uma vez que as impossibilitava
de terem prazer; algumas conseguiram sua realização mesmo que para isto tenham rompido com
o sistema patriarcal.
3.2 UM OLHAR MASCULINO
O conto “A face horrível”, do livro (1986) homônimo, de Ivan Ângelo, remonta à
realidade desgastada do casamento. Assim como nos contos estudados de autoria feminina, o
casamento é mantido não por prazer ou amor, mas por comodidade, necessidade de perpetuar
uma rotina conhecida. No entanto, este é um primeiro momento da narrativa, que ao final
aparece superado.
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A abertura do conto revela-nos uma situação possível em relacionamentos: uma mulher
vasculha os pertences do marido em busca de provas de infidelidade. Contudo, mais adiante, a
narrativa esclarece que este é um jogo dos cônjuges para que a relação ganhe novo fôlego. O
enredo divide-se em pequenos fragmentos numerados, sendo que, no primeiro, o narrador
oferece-nos o ponto de vista dos protagonistas, desvela-nos um pouco desta conturbada relação.
O casamento demonstra-se duradouro, assentado no estereótipo da família patriarcal:
marido Henrique, esposa Cacilda, dedicada à família, e filhos. No entanto, o enredo revela-
nos que os problemas conjugais perduram. Sabemos que o marido havia traído uma primeira
vez e que o desgaste havia chegado ao desejo, pois seis anos o casal não se relacionava
sexualmente, por isso as ações estão mecanizadas pela rotina intrínseca em seus corpos.
O título do conto pode metaforizar a face de cada um dos cônjuges ou até mesmo da
própria instituição, pois, assim como os contos anteriormente estudados, o enredo desmistifica o
“felizes para sempre”. A princípio, consideramos o marido como vilão do relacionamento ao trair
sua esposa, mas, no decorrer da leitura, percebemos que não é só este dado o causador do
esfriamento da relação.
O desvelar deste casamento -se com a inserção de outra personagem feminina, Telma,
colega de trabalho de Henrique, outrora ignorada por ele, mas útil aos seus planos, como revela
posteriormente: “Na verdade, eu mal falava com você porque eu sou um cara egoísta que não
tinha nada pra tirar de você e agora falo porque tou precisando, porque isso me ajuda a pensar e
não tenho com quem conversar essas coisas” (p.147). A princípio surge como uma “falsa
amante”, pois apenas escreve os bilhetes amorosos. Henrique deseja a letra dela, mas ganha
importância neste relacionamento que passa a ser a três, uma vez que interfere na vida do casal
diretamente, através dos bilhetes e depois cartas, e indiretamente através das conversas tidas com
os cônjuges. Os personagens descobrem-se durante a narrativa.
O narrador direciona-nos por aproximação e distanciamento das personagens. Em
determinados momentos, oferece-nos os conflitos interiores destes, expondo todas as angústias e
sentimentos reprimidos. Esta é uma narrativa de reconhecimento. O casal está tentando se
reconhecer e entender o que aconteceu com o casamento. Telma é a personagem feminina que se
sente perdida neste caminho de descoberta, e, apesar de auxiliar os cônjuges, acaba se
envolvendo, ao se apaixonar por Henrique.
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Através do diálogo com Telma, Henrique pormenoriza os problemas tidos no casamento
como: a descoberta da verdadeira pessoa com quem se casou, que possui defeitos e qualidades; a
diminuição do desejo sexual; a alteração do vínculo de desejo para necessidade. No fragmento
X, explicita a diferença entre homens e mulheres:
O homem nunca se preocupava com o prazer da mulher. / Nem a mulher. (...) O homem
descarregava na mulher e pronto; a mulher aceitava o que desse e viesse./ (...) se a mulher
procurava outro homem, podia ser punida com morte. Era um direito garantido por lei na
colônia. Sabia? Homem nunca suportou a acusação de incompetência com mulher. Nunca. A
mulher tinha que agir como satisfeita. E o chifre é isso, não é? Demonstração pública de
incompetência do homem. (p.143-4)
O fragmento retoma várias das questões levantadas durante a análise dos contos de autoria
feminina, que o discurso de Henrique busca pormenorizar as alterações dos relacionamentos
através do tempo, tentando compreender o que ocorre com o seu, pois sua esposa é-lhe um
mistério.
O primeiro bilhete ocorre, pois o marido deseja saber a reação que a esposa terá diante da
descoberta da “traição”, mas a ausência de um posicionamento de Cacilda força-lhe a manter a
expectativa surgida, pois agora ambos necessitam dos bilhetes. O mistério aquece a relação, o
marido busca compreender a esposa ao expressar seus desejos nos bilhetes copiados por Telma e
a esposa quer a purgação de atos anteriores para sentir-se livre e poder novamente realizar-se.
A postura de Henrique modifica-se, pois percebe o quanto não conhece sua esposa. O
tentar desvendar a reação, após a descoberta do bilhete, desencadeia, na verdade, o quanto
desconhece os hábitos de Cacilda: “(...) amaldiçoando-se por não ter reparado antes se
ultimamente ela tomava banho quente todas as noites ou.” (p.134). A metaforização da figura da
esposa como uma serpente demonstra sua expectativa por uma reação que não ocorre. A dúvida
impõe-se, pois não temos certeza se a postura da esposa realmente mudou ou se somente agora o
esposo voltou a repará-la.
A personagem feminina deste conto é extremamente rica em sua construção, pois a
passividade inicialmente percebida não se reflete em seus atos. A imagem de esposa dedicada e
realizada pelo desempenho de suas atividades domésticas desfaz-se gradativamente,
surpreendendo o leitor. Cacilda aparece como uma personagem forte, sabedora do “destino de
uma mulher” e das frustrações geradas:
68
A mulher, quando mora com os pais, adia uma porção de coisas pro casamento. Adia a
identidade, a felicidade, a liberdade. Vai acumulando desejos, anotando no caderninho tudo que
não pode fazer. Depois joga tudo no casamento. Aí, quando começa o negócio, enfim sós...
não é o que a gente imaginava. (p.162).
Cacilda expõe a visão feminina do casamento, repleta de ilusões e frustrações devido à
impossibilidade de torná-las reais, como se quisesse nos justificar um ato seu que só será
revelado no final da narrativa. A personagem demonstra ter convicção dos problemas de um
relacionamento duradouro e compartilha com Telma, ao explicar a postura de seu marido no
fragmento XVIII.
A visão apresentada do casamento na narrativa segue o patriarcalismo. Cacilda
supervaloriza a figura masculina “a gente começa a admirar o homem pelo tanto que a vida dele é
importante, e começa a comparar e achar a da gente uma merda.” (p.162).
Assim como as personagens dos contos estudados, valoriza o universo feminino apesar de
não se satisfazer com ele. A narrativa mostra a tentativa de realização com o destino de mulher, o
que se demonstra não ser suficiente:
Eu comecei a fugir cada vez mais pra dentro do mundo feminino. Entrei na gravidez por causa
disso, eu acho. Nas três vezes. É o feminino completo. (...) mas depois passa, e você cai de
novo no mundo masculino, de novo o teu seio é pra ficar guardado e saltar provocante quando
ele quiser. (p.162)
Cacilda revela a Telma a traição que cometera e, diferentemente das demais personagens
estudadas, revela-nos que foi por curiosidade. Interessante observar que a inculcação da
dominação masculina é tão forte que Cacilda o sente prazer no seu relacionamento
extraconjugal; opondo-se as personagens dos contos “O triângulo mais que perfeito”, de Helena
Parente Cunha; “O menino”, de Lygia Fagundes Telles; e “Amor e morte na página dezessete”,
de Marina Colasanti, que sentem prazer, realizam-se com seus amantes. Nos referidos contos, as
personagens sentem-se seguras e bonitas, pois percebem que ainda são sedutoras e que podem
sentir prazer, diferentemente de Cacilda:
Na hora, vinha aquela incerteza de não me sentir tão bonita quanto o homem podia esperar,
tinha as marcas de dois filhos, e eu ficava pensando se era tão bem-feita e tão cheirosa quanto
as mulheres que ele conhecia, duvidava que fosse tão habilidosa e tão sabida quanto ele estaria
esperando, e eu também não sabia se seria atendida nas coisas que gosto, sem ter de pedir,
sabe?, é toda uma situação de insegurança que estraga metade da relação. Pra quem não tem
planos de uma segunda ou terceira vez, não dá certo. (p.163)
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Cacilda é construída presa aos padrões patriarcais, vê-se impossibilitada de usufruir um
ato que rompe com os ensinamentos introjetados, ao tentar, frustra-se por não conseguir se
desvencilhar da necessidade que possui de satisfazer o homem, enquanto seu objetivo deveria ser
a busca da sua própria satisfação. Esta diferença é crucial entre esta personagem e as dos contos
citados no parágrafo anterior. Por isso, vislumbra uma outra forma de sentir prazer: “E eu
comecei a ficar curiosa, fascinada, obcecada pela idéia de ser amada por uma mulher. Não se
assuste não, já te falei que sou muito feminina. E eu sei, não sou burra não, eu sei que eu queria é
ser amada por mim mesma, como eu acho que deve ser.” (p.164)
A narrativa aborda a traição dos dois cônjuges, portanto, “os felizes para sempre” não
ocorre. Ambos estavam insatisfeitos em seu relacionamento e buscaram realizar-se fora dele. No
entanto, a personagem feminina adensa o fato ao o realizar com uma mulher, pois além de
romper com a instituição, rompe com o relacionamento considerado fisiologicamente como
natural. A traição mais amplificada quando relembramos que esta se sente presa ao casamento,
não considerando uma separação. O fio dramático deste conflito feminino demonstra-se na
revelação feita a Telma:
E foi isso que eu fiquei: doida doida. Doida, cheia de culpa e maravilhada quando eu me
encontrei noutra mulher; encontrei minha demora, paciência, encontrei doçura e tirei aquela
dúvida de tantos e tantos anos! Não era uma escolha, eu não queria trocar o Henrique por uma
mulher. Era um problema meu comigo, um mistério meu que eu queira entender. Eu queria
morrer por causa daquilo, Telma, eu queria morrer por ter gostado, por ter traído Henrique tão
completamente que era uma coisa que eu nunca, jamais, diria a ele, jamais. Eu me sentia
completa e indigna. (p. 164-5).
O final do conto é insinuante e surpreendente. Os bilhetes que poderiam ter sido a causa
de um rompimento, na verdade, auxiliaram a aquecer uma relação que estava desgastada pela
rotina e pelo tempo. A própria personagem feminina esclarece-nos: “Esses bilhetes são a forma
que ele encontrou de fazer amor comigo.” (p.166). As relações extraconjugais que surgiram nos
contos “O triângulo mais que perfeito”, de Helena Parente Cunha; “O menino”, de Lygia
Fagundes Telles; e “Amor e morte na página dezessete”, de Marina Colasanti, para dar o prazer
buscado pelas personagens, aqui são o estopim para o prazer no próprio casamento.
Todas as narrativas selecionadas para este capítulo corroboram para a desmistificação dos
“felizes para sempre”, que é possível de se realizar com o empenho dos cônjuges em fazer o
relacionamento dar certo. Além disso, rompem com a castidade e fidelidade conjugal rigorosas,
pois, segundo Engels, em sua obra A origem da família, da propriedade privada e do Estado, “A
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existência da escravidão junto à monogamia, a presença de jovens e belas cativas que pertencem,
de corpo e alma, ao homem, é o que imprime desde a origem um caráter especifico à monogamia
que monogamia só para a mulher, e não para o homem.” (ENGELS, 1987, p.67). As narrativas
evidenciam que não existe uma “fórmula mágica” para os relacionamentos, mas que o prazer
deve ser sempre satisfeito para não dar chances de surgir uma relação extraconjugal e manter
vivo o sentimento que une os cônjuges.
4 O DESEJO
Se fizermos uma brevíssima incursão pela etimologia, veremos que desejo vem do latim
desiderare que, por sua vez, se compõe de um prefixo de, com indicação de afastamento, a que se
agrega siderare: estar sujeito aos astros, com um efeito funesto de imobilidade, de paralisia. A
expressão “estar siderado” é utilizada em relação a alguém que está sem ação. Desejar, pois, é
mover-se, dar sinais de vitalidade, de movimento ainda que não se perceba atividade externa. É
esta a situação das personagens deste capítulo que agem para realizar suas vontades, e, nesse
caminho, conseguem se desapegar dos condicionamentos arbitrários da sociedade.
Palavras como “repressão”, “submissão” e “insatisfação” não são a tônica das
personagens femininas deste capítulo, pois os padrões da sociedade não as coíbem de sentir
desejo e de satisfazê-lo. Elas superam a dominação masculina que, segundo Bourdieu,
(...) constitui as mulheres como objetos simbólicos, cujo ser (esse) é um ser-percebido
(percipi), tem por efeito colocá-las em permanente estado de insegurança corporal, ou
melhor, de dependência simbólica: elas existem primeiro pelo, e para, o olhar dos outros,
ou seja, enquanto objetos receptivos, atraentes, disponíveis. (BOURDIEU, 2007, p.82).
Ao verificarmos essa tendência, a expressão do desejo feminino irrompe como uma força
perigosa para a estabilidade de seus relacionamentos nos contos “O moço do saxofone”, de Lygia
Fagundes Telles e Festa de casamento”, de Helena Parente Cunha. a personagem de “O
leopardo é um animal delicado”, de Marina Colasanti, encontra-se sozinha, o desejo é latente,
mas os padrões da sociedade ainda a reprimem inicialmente. Quando se permite vivenciar o
desejo, busca sua satisfação como as demais personagens.
Todas as personagens rompem com limitações destinadas às mulheres na sociedade
patriarcal, buscam o seu direito de escolher, de ter liberdade e concretização dos seus desejos
71
para realizarem-se. O desejo é mais do que uma opção, é um impulso voraz que motiva as
personagens a burlarem o conhecido em busca de sua satisfação.
Diferentemente de algumas personagens estudadas nesta dissertação, principalmente as
situadas no primeiro capítulo e duas do segundo capítulo –– dos contos “Pérolas”, de Lygia
Fagundes Telles e “Um dia, afinal”, de Marina Colasanti, que se submetiam ao sistema –– as
personagens deste capítulo liberam-se do condicionamento social e das expectativas alheias, pois,
segundo a professora Elódia Xavier é possível encontrarmos “(...) protagonistas mulheres que
passam a ser sujeitos da própria história, conduzindo suas vidas conforme valores descobertos
através de um processo de autoconhecimento” (XAVIER, 2007, p. 169).
As personagens saem da condição de “presas” para a de “caçadoras”, pois, no momento,
elas lutam para satisfazer seus desejos em busca do prazer, e não se submetem apenas ao desejo
masculino. Segundo Simone de Beauvoir, “Não se trata somente, para a maioria das mulheres
como também dos homens de satisfazer seus desejos e sim de manter, em os satisfazendo, sua
dignidade de ser humano.” (BEAUVOIR, 1967, p.456). Não se trata de realização de desejo
sexual e sim de sentir-se completa e realizada. As personagens buscam o sentimento de
completude, de liberdade de ação, querem tomar suas decisões independente dos julgamentos que
possam sofrer.
As autoras retratam nestes contos a possibilidade de as personagens femininas
direcionarem suas vidas, assumirem suas sensualidades e romperem com o poder disciplinar a
que foram submetidas. Nessa trajetória, deixam de ser os “corpos ceis”, assim nomeados por
Foucault em sua obra Vigiar e Punir (2008), pois seguem os impulsos de seus desejos, que antes
eram forçadas a desconsiderar.
Tal comportamento das personagens corresponde à idéia defendida por Elizabeth Badinter
em seu livro Um amor conquistado: “A contradição entre os desejos femininos e os valores
dominantes não pode deixar de engendrar novas condutas, talvez mais perturbadoras para a
sociedade do que qualquer mudança econômica que se produza.” (p.332). As personagens
colocam-se como centro de suas vidas, percebem que também podem usufruir dos prazeres
ansiados.
A motivação que rege suas vidas deixa de ser o consenso e passa a ser individual, pessoal.
As personagens adquirem autonomia nas escolhas e liberdade, desencadeando atitudes
surpreendentes àqueles que consideram as mulheres incapazes de serem autônomas.
72
4.1 DESEJO FEMININO
O desejo une as personagens femininas dos contos selecionados, mas a maneira como este
se manifesta diferencia-se pelas situações retratadas. Nos contos “O moço do saxofone”, de Lygia
Fagundes Telles, e “O leopardo é um animal delicado”, de Marina Colasanti, é o desejo sexual
feminino que se manifesta, desejo este anteriormente renegado, pois as mulheres eram vistas
como objetos dos desejos masculinos; enquanto que no conto “Festa de casamento”, de Helena
Parente Cunha, a personagem deseja a possibilidade de decidir sua vida por si e não seguir os
planos previamente concebidos pela família, fundamentados nos padrões da sociedade.
Inicialmente, o conto “O moço do saxofone”, de Lygia Fagundes Telles, parece destoar da
proposta deste capítulo, no entanto, o título do conto oculta a dramaticidade do enredo. A
narrativa baseia-se em um casamento mal sucedido, próximo à temática do capítulo anterior.
Contudo, a personagem feminina não se demonstra preocupada com seus atos em momento
algum, apesar de casada. Seu único objetivo é satisfazer seu desejo, independente dos
julgamentos de terceiros, mesmo que em meio ao coro contrário a sua postura esteja a voz de seu
esposo.
Simone de Beauvoir, em seu livro Segundo Sexo (1967), contextualiza este processo de
alteração do comportamento feminino, que nos auxilia a compreender esta personagem. Segundo
ela,
(...) o pleno desabrochar sexual é na mulher bastante tardio; é por volta de 35 anos que
ela atinge eroticamente seu apogeu. Infelizmente, se é casada, o marido já se habituou
demasiado à sua frieza; ela ainda pode seduzir novos amantes, mas começa a fenecer;
seu tempo é escasso. É no momento em que deixam de ser desejáveis que muitas
mulheres resolvem assumir enfim seus desejos. (BEAUVOIR, 1967, p.142).
Comportamento este inverso ao observado na protagonista de “O leopardo é um animal
delicado”, de Marina Colasanti, pois mesmo estando em uma feira erótica, percebemos que se
contém ao projetar o pensamento alheio. A narrativa evidencia-nos a solidão de uma personagem,
de idade provavelmente mediana, que não vivencia o prazer sexual por estar sozinha, uma vez
que admite a necessidade de se apaixonar. Por isso, contrapõe-se à personagem do conto de Lygia
Fagundes Telles, que vivencia arduamente seu desejo, seja por qual homem for. Não existem
pudores ou padrões sociais que a reprimam apesar de ser casada, enquanto que a personagem do
73
conto de Marina Colasanti, mesmo estando em uma feira erótica, tenta conter-se, seja para
experimentar algo novo, ou buscar informações sobre algo:
Não havia fotos, cartazes, chamarizes, nenhuma mulher seminua, nenhum homem
musculoso. As paredes de madeira pintadas de claro estavam limpas. As entradas com
anteparos impediam que se visse o interior. Perguntar aos que saíam pareceu-lhe
inadequado. (p.84).
No entanto, a personagem de “O moço do saxofone”, de Lygia Fagundes Telles, é jovem,
ressaltando a ousadia desta que não deseja resignar-se a uma realidade de insatisfação, busca
realizar-se independente das convenções sociais e dos estigmas inculcados na mulher.
Tal comportamento aproxima-se da jovem noiva do conto “Festa de casamento”, de
Helena Parente Cunha, pois esta ao abandonar a festa de seu casamento demonstra seu anseio por
procurar um espaço de auto-realização, liberta-se do conflito interior que se impunha entre seguir
o destino de mulher, a que foi instruída a exercer, e a sua vocação de ser humano, haja vista ter
ingressado em uma faculdade de engenharia. A fuga rompe com os padrões, pois seu desejo
transcende as convenções estabelecidas previamente. A necessidade de realização sobrepõe-se
aos padrões conhecidos, por isso os rompe.
O narrador-personagem do conto “O moço do saxofone”, de Lygia Fagundes Telles, é o
novo hóspede da pensão onde mora este fatídico casal, a mulher e o saxofonista. A narrativa
transcorre sob um olhar pessoal e crítico deste chofer de caminhão, que busca compreender este
casal, que por motivo desconhecido não se divorcia.
O fato de o narrador ser masculino ressalta ainda mais a postura diferenciada da
personagem feminina a tal ponto que, ao iniciar a narrativa, deixa-nos claro não ter compreendido
como tudo ocorreu, no entanto, marcou-lhe por rememorar toda a situação pormenorizadamente,
haja vista ter um distanciamento temporal: “Eu era chofer de caminhão e ganhava uma nota alta
com um cara que fazia contrabando. Até hoje o entendo direito porque fui parar na pensão de
tal madame...” (p.44).
Novamente deparamo-nos com uma narrativa despreocupada em nomear as personagens,
a única exceção é James, tendo ocorrido por ser-nos necessário destacar esta figura, pois é através
dele que obtemos a primeira imagem desta mulher avessa aos padrões maritais impostos pela
sociedade. A ausência de individualização contribui para uma aproximação com realidade haja
vista ser possível depararmos com uma situação similar em nosso cotidiano. A intimidade do
leitor gera-se pela normalidade e verossimilhança que o fato narrado proporciona.
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A única personagem feminina estudada neste capítulo que é individualizada por um nome
é a noiva do conto “Festa de casamento”, de Helena Parente Cunha, pois a narrativa não nos
contempla com as consequências dos atos ou planos para a realização da fuga, mas destaca a
firmeza da atitude de Maria de tima, que apesar de possuir nomes que recordam entidades
religiosas: Maria mãe de Jesus e Fátima nome de uma santa −, demonstrou que não estava
preparada para abdicar de toda uma vida para satisfazer o desejo de uma sociedade que lhe
impunha uma vida restrita e, por isso, infeliz. O nome da personagem faz um contraponto com
sua postura, haja vista a postura anticonvencional tomada pela personagem que recebeu nome de
exemplos de disciplina e submissão comportamental, sendo modelos de virtude até nossos dias.
Interessante observar o título do conto “O moço do saxofone”, pois este evidencia-nos
dados necessários a nossa leitura, visto que nos destaca uma figura masculina como sendo
essencial para a interpretação; além deste, o narrador é masculino e desempenha uma profissão de
reforçamento da masculinidade chofer de caminhão. O narrador destaca sua incompreensão da
postura feminina por desprezar a superioridade do homem. Os dois personagens masculinos são
diferenciados por suas profissões, enquanto a mulher diferencia-se apenas por sua descrição física
sexualizada. A narrativa valoriza os homens em contraposição à mulher, reforçando a visão
androcêntrica que o narrador-personagem impregna durante toda a narrativa.
A personagem feminina não se importa com o marido, que se demonstra conivente com o
comportamento da esposa, pois se subjuga à vontade dela ao ceder-lhe um quarto independente e
apenas demonstra seu descontentamento de forma pacífica, por meio de sua música, como nos
ressalta o próprio narrador: “Mas aquele saxofone era mesmo de entortar qualquer um. Tocava
bem, não discuto. O que me punha doente era o jeito, um jeito assim triste como o diabo, acho
que nunca mais vou ouvir ninguém tocar saxofone como aquele cara tocava.” (p.44). A melodia
entoada pelo saxofonista expressa seus sentimentos, a contrariedade ao comportamento da esposa
evidencia-se pelas tristes melodias que tocava trancado em seu apartamento.
A música tocada pelo “moço do saxofone” é a trilha musical para as traições da esposa,
parecendo haver uma espécie de tratado, como nos esclarece James: “Quando ela entra no quarto
com um tipo, ele começa a tocar, mas assim que ela aparece, ele ra.” (p.48-9). A narrativa não
nos permite considerar como uma coincidência, pois ao marcar o encontro com o narrador indica
a porta do quarto do marido para que, possivelmente, este soubesse do encontro. Além do mais, a
sincronicidade dos fatos prossegue: “Bati a porta. Então a porta do lado se abriu bem de
75
mansinho, cheguei a ver a mão dela segurando a maçaneta para que o vento não a abrisse
demais.” (p.50). Não parece acaso e sim uma estratégia do casal: o homem usa a música e o
saxofone como fugas e a mulher deseja que o marido saiba de seus casos e que sua música seja a
“trilha sonora” do seu encontro casual, pois o sexo lhe oferece um prazer instantâneo.
A música, para a mulher, serviria como um estopim para seu envolvimento com o
narrador-personagem, enquanto que para ele desencadeia um processo inverso “quando começou
a tocar bem devagarinho a música do saxofone. Fiquei broxa na hora, pomba.” (p.50). Ao menos
esta traição foi impedida pela música, pois se esta é a expressão da alma, a melodia triste e aguda
metaforiza a dor e angústia deste marido traído que se utiliza do seu saxofone para expressar sua
indignação quanto ao comportamento da esposa.
O prazer sexual também é buscado pela protagonista do conto “O leopardo é um animal
delicado”, de Marina Colasanti, no qual a realização se através da dominação do homem por
ela, tornando-o passivo, sujeito aos desejos femininos. O domínio do masculino pela mulher
simbolizou a força dela, subvertendo a ordem, tornando o homem passivo, sujeito aos desejos
femininos. A satisfação tida no Túnel do Amor rompe com a preocupação de seguir as normas,
pois a concretização de desejo da personagem coloca-se como prioridade, e ela rende-se ao
desejo de abraçar e possuir:
Este agora! Rasgou as mãos no peito de pelos, no peito de músculos, sentiu sua própria
roupa empapada encostada na camiseta dele, seu seio quase exposto contra o tecido
macio, (...) Ela meteu-lhe o joelho com força na virilha. Ele soltou os cabelos, dobrou-se
sobre o tapete. Ela caiu por cima, mordeu-lhe a boca, mordeu-lhe a língua, enfiou a mão
na sunga. E o cavalgou, o cavalgou destinada.” (p.88-9)
Tanto a personagem do conto de Lygia quanto a do conto de Helena, aqui abordados, não
se preocupam com os padrões da sociedade e sim com a satisfação do seu desejo sexual, mesmo
que instantâneo.
A personagem feminina de “O moço do saxofone”, de Lygia Fagundes Telles, constrói-se
por meio apenas de uma descrição física e, digamos, comportamental, pois o narrador-
personagem só se preocupa em relatar-nos o desejo que surgiu em ambos e a satisfação sentida ao
marcar o encontro. O primeiro contato entre o narrador-personagem e a mulher nos mostra o
desejo nascido nele, também por saber que não encontraria dificuldade em satisfazê-lo:
Não precisei perguntar para saber que aquela era a mulher do moço do saxofone. Nessa
altura o saxofone já tinha parado. Fiquei olhando. Era magra, sim, mas tinha as ancas
redondas e um andar muito bem bolado. O vestido vermelho não podia ser mais curto.
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Abancou-se sozinha numa mesa e de olhos baixos começou a descascar o pão com a
ponta da unha vermelha. De repente riu e apareceu uma covinha no queixo. Pomba, que
tive vontade de ir lá, agarrar ela pelo queixo e saber por que estava rindo. Fiquei rindo
junto. (p.47).
O comportamento da personagem evidencia sua despreocupação em agir como uma
mulher casada, que deveria ser recatada e até certo ponto invisível aos homens, uma vez que
era comprometida. No entanto, seus trajes, seja no comprimento ou até mesmo na cor,
demonstram o seu desejo de incitar os homens a desejá-la. Ela, independente de ter alguém em
vista, está sempre pronta para o processo de sedução, sendo esta a situação que a estimula a zelar
por sua aparência e a menosprezar a opinião dos outros. Simone de Beauvoir reforça a
preocupação existente com o vestuário feminino, pois este indicia a conduta feminina na
sociedade
Uma mulher que solicita por demais abertamente o desejo do macho é mal vista; mas a
que parece repudiá-lo não é muito mais recomendável: pensam que ela quer
masculinizar-se, que é uma lésbica; ou singularizar-se: é uma excêntrica; recusando seu
papel de objeto, desafia a sociedade: é uma anarquista. Se deseja tão somente não ser
notada, cumpre que conserve sua feminilidade. (BEAUVOIR, 1967, p.298)
A protagonista de “O leopardo é um animal delicado”, de Marina Colasanti, também
demonstra preocupação com seu vestuário. A escolha da roupa antecede a descoberta de qual
seria a atração que estava sendo montada em sua cidade, pois foi a forma encontrada para
preparar-se e manter controlada a ansiedade de usufruir deste evento que lhe quebra a rotina.
Vários momentos da narrativa de “O leopardo é um animal delicado” evidenciam o
rompimento da rotina da personagem e o desejo desta de aproveitar intensamente a novidade que
a surpreenderá. A personagem passa por um processo de aprendizagem, através do qual se
descobre como mulher, deixando aflorar sua sensualidade, e busca seu prazer nos mínimos
detalhes, ressaltado na roupa escolhida para o dia da ida ao novo evento:
E o pensamento deslizou sem ruptura para o armário, escolhendo mentalmente a roupa
que ia usar, o vestido vermelho de bolinhas, porque tinha um jeito de seda e uma saia
godê que lhe acariciaria as coxas quando andasse sobre os saltos altos em meio aos sons
e à gente toda. (p.82)
A personagem de “O moço do saxofone”, de Lygia Fagundes Telles, rompe com o
confinamento simbólico, explicitado Pierre Bourdieu em sua obra A dominação masculina, no
qual a mulher tem padrões para sentar, andar, vestir-se e comportar-se em público. “Essas
maneiras de usar o corpo, profundamente associadas à atitude moral e à contenção que convêm às
77
mulheres, continuam a lhes ser impostas, como que à sua revelia, mesmo quando deixaram de
lhes ser impostas pela roupa” (BOURDIEU, 2007, p.40).
A postura da personagem é conhecida por todos, seja por James, que nos fornece as
informações, ou a própria dona da pensão, que fornece ao narrador-personagem o horário em que
ela apareceria para jantar, pois já conhecia a hóspede e seus métodos de sedução.
A ousadia feminina rompe com a ligação da identidade feminina ao amor, que funcionava
também como forma de dominação. A personagem demonstra estar livre de condicionamentos
sociais, sua preocupação reside apenas em satisfazer seu desejo sexual, por isso a indiferença
quanto à opinião pública e pudores arcaicos.
a personagem de Festa de casamento”, de Helena Parente Cunha, surpreende a todos
com a sua fuga, que pode ser considerada como abrupta pela sociedade. Na verdade, assim como
a personagem de Marina Colasanti, quer romper com os condicionamentos sociais que a
impedem de ser feliz.
A satisfação feminina em “O moço do saxofone”, de Lygia Fagundes Telles, é transitória,
seu desejo irrefreável, sempre está em busca de outro homem, de acordo com o estudo
desenvolvido por Bauman em Amor Líquido, o que a personagem vive não seria realmente desejo
e sim impulso, pois suas relações sexuais são instantâneas, as quais não poderiam desencadear
desejo, haja vista o autor defender que este depende de uma “prolongada criação e maturação”.
(BAUMAN, 2004, p.26). No entanto, a narrativa destaca uma frustração na não concretização do
caso com o novo hóspede, pois apesar de terem combinado, ao conhecer o marido e ter um
insignificante diálogo, o narrador-personagem não consegue prosseguir com o encontro marcado.
A infidelidade da mulher baseia-se em seu desejo de relacionar-se com outros homens,
o marido demonstra sua desaprovação de uma forma: tocando saxofone. Ela não se preocupa
em ocultar seus gestos de sedução dos outros, seu único objetivo é se satisfazer, esta é sua
fraqueza. Ela assume atitudes que desafiam as normas do comportamento adequado, ameaça as
regras sociais e reformula os padrões de conduta, surge na narrativa como uma “mulher fatal”, e
todos os homens que a desejam sucumbem ao seu poder de sedução.
No entanto, apesar de não termos certeza da motivação da personagem em seus
envolvimentos, podemos estar convictos ao considerar que ocorrem na busca pelo prazer, pois
James revela-nos que foi renegado pela personagem, sugerindo a necessidade de atração para que
a traição ocorresse: “Entrei com meu jogo, compreende? Mas já vi que não dou sorte com
78
mulher, torcem logo o nariz quando ficam sabendo que engulo gilete, acho que ficam com medo
de se cortar...” (p.45). A justificativa de James corrobora para a impressão de seleção do homem,
confirmada no encontro com o narrador. Mesmo não gerando dificuldade para este, ocorre
primeiramente gestos de sedução “(...) quando ela apareceu. Veio por detrás, palavra que havia
espaço para passar um batalhão, mas ela deu um jeito de esbarrar em mim.” (p.47).
A narrativa, por ocorrer no ponto de vista de um narrador distanciado da personagem, não
nos permite ter certeza sobre sua motivação de manter relacionamentos variados, remetendo-nos
aos “relacionamentos de bolso” explicitados por Bauman em seu livro Amor líquido (2004), no
qual afirma que as pessoas consideram os relacionamentos como algo descartável. A personagem
feminina apresenta uma postura semelhante porque não demonstra buscar um amor, mas sim a
satisfação de seu desejo sexual. Toda vez que se sente atraída por um homem, passa a seduzi-lo
para saciar sua gana. As relações em questão, portanto, são “líquidas”, uma vez que apenas o
“EU” individual procura satisfazer-se, não se busca uma manutenção de vínculo.
A linguagem clara e concisa contribui para nossa percepção da naturalidade com que o
casal vivencia este casamento desgastado. A personagem é construída pela fala do narrador e de
James, não temos acesso a nenhum de seus pensamentos, a única imagem que possuímos desta
parte do olhar de personagens que consideram sua postura devassa, apesar de tentarem usufruir
da liberdade sexual que a personagem vivencia.
O enredo do conto “O leopardo é um animal delicado”, de Marina Colasanti, revela-se por
uma personagem feminina solitária, que mora sozinha, mas é vaidosa e possui um desejo sexual
latente que, por vezes, mantém-se adormecido devido à condição de ser solteira. Percebe-se o
momento de transformação da personagem que se deixa levar pelo desejo, mesmo sendo
submissa aos padrões sociais que hostilizam a satisfação sexual de uma mulher fora de um
relacionamento estabilizado como consideram o casamento.
A narrativa inicia-se com o rompimento da rotina desta personagem, que não é nomeada,
e da própria cidade, pois chegava alguma atração ainda desconhecida:
Lavava a louça quando os primeiros caminhões entraram na cidade. Viu pelo
basculhante acima da pia. Eu vou, pensou antes mesmo de saber se era circo como
parecia, ou se algum parquinho de diversões. Ela ia, no que fosse. Haveria música. E
gente. E movimento. Isso já lhe bastava. (p.82).
79
A monotonia é rompida e a curiosidade surge como combustível para o desejo, que antes
era contido. A novidade arrebata-lhe os pensamentos e o que mais lhe interessa, a princípio, é
descobrir do que realmente se tratava e, posteriormente, envolve-se na ansiedade de usufruí-la.
A certeza de uma vida monótona confirma-se na grande expectativa criada em torno da
atração, até mesmo especulações formam-se como tentativa de desvelar o desconhecido:
No dia seguinte o circo ou o que fosse ainda não estava montado. Passou por lá para ver.
Martelavam, esticavam, erguiam. Circo não era. E, sem roda gigante, nem parquinho.
Tinha mais jeito de feira, com aquele galpão grande que ia aparecendo, as barraquinhas
prontas, umas estruturas que começavam a ser armadas. Ia demorar mais um dia,
pensou. (p.82)
A chegada da Erotika Tour libera o desejo da personagem, que busca o prazer distanciado
de sua rotina solitária. A expectativa criada chega a ponto de decepcionar-se com a música tocada
na feira: “Esperava um som romântico, qualquer coisa chamativa que a fizesse mover o corpo
dançante, ali mesmo, sozinha no banheiro.” (p.83). A lascívia começa a liberar-se em seu corpo,
o desejo surge latentemente, antes mesmo de chegar à feira.
Antes da inauguração, descobre ser uma Erotika Tour. Extasiada pela novidade, a
personagem planeja sua roupa e questiona-se sobre o quê poderia encontrar, a curiosidade e
ansiedade inquietavam-na. O planejamento de cada detalhe da sua ida reforça a ideia de busca de
um prazer pessoal e sua disponibilidade em se satisfazer independente da sua condição de
solitária. A pormenorização evidencia o envolvimento da personagem ao novo evento, que lhe
desperta sentimentos há tempos adormecidos, graças à vida solitária e monótona que levava.
O desejo acometia a personagem com voracidade, estampada na escolha da sua roupa e no
esmalte vermelho-escuro que passara nas unhas, mesmo assim a personagem deixa-nos claro que
a inquietação despertada abruptamente pela feira é voraz: “O que haveria no Erotika Tour?
perguntou-se num arrepio refreando suas próprias repostas, negando-se a ouvi-las porque
certamente não, não haveria de ser isso, eles não iam, ali na cidade, mas o nome, hoje em dia, a
gente nunca sabe.(p.83). A negação de seu pensamento não é verídica, pois era este o seu
desejo, buscava uma realização sexual que se impunha como difícil por encontrar-se sozinha.
A transformação ocorrida com a personagem durante a visita à feira torna-se clara ao
leitor cada vez mais. O narrador pormenoriza a erotização da personagem durante sua narração,
como explicitado em:
80
Caminhou macia, sem pressa. Homens cruzavam com ela. E a saia godê acariciando. Os
saltos afundavam de leve no saibro, de leve, o suficiente para acolchoar-se os passos,
fazê-la mais ondulante. Ela se apoiava lânguida no movimento dos próprios quadris. Os
cantos dos olhos procuram homens. (p.85).
Não é necessário o contato corpóreo para a personagem gozar dos prazeres das atrações
da feira, pois o evento rompia com sua domesticidade, desencadeando reações até mesmo em
pensamento:
Depois olhou em volta, tentando encobrir debaixo do jeito distraído seus pensamentos
deslizantes em óleos, presos aos dedos ágeis e voluntariosos que trabalhariam na carne,
que espalhariam seu suor. Sentiu o rubor subindo pelo colo. Abaixou o rosto antes que a
denunciasse. (p.85).
O desconhecido desconcerta a personagem. A descrição da narrativa evidencia seu
atordoamento ante uma situação que desejava intimamente, mas jamais poderia concebê-la como
real:
Ultrapassou a roleta da entrada olhando para trás em defesa contra os que a empurravam.
E de repente virou a cabeça, e ali estava, solta no meio de tudo, sem saber exatamente o
que fazer ou escolher. Parou hesitante. Uma praça de mentira, um laguinho forrado de
plástico azul e já manchado de papéis flutuantes, plantas artificiais na beira, alguns
bancos. E ao redor, ao redor da praça, ao redor dela, nas fachadas, nas barracas, aqueles
letreiros: Universo do Prazer, A Cidade das Mulheres, Túnel do Amor, A Massagem do
Desejo, Sacerdotisas do Sexo. (83-4).
A personagem, similarmente a um cientista em campo, investiga as atrações, mas deixa-se
reter, pois não segue de imediato seu desejo, necessita impor-se para que a hesitação e receio
sejam postos de lado:
Passou por uma barraca que vendia símbolos sexuais em prata, seios de mulher e pênis
alados. Desejou comprar um, um pênis de prata para pendurar, pendurar onde?
Perguntou-se sem conseguir imaginar-se com ele pendente da fivela do relógio ou da
pulseirinha do tornozelo. Guardar na gaveta numa gaveta, que desperdício. Ainda assim
continuava querendo-o, volto aqui depois, disse para si mesma para contornar o impasse.
(p.84)
A sensualidade da personagem vai se avolumando assim como seu desejo. Após beber
uma garrafinha da barraca de Filtros do Amor para se apaixonar e experimentar uma comida
afrodisíaca, ainda não se sente pronta e foge do barracão da massagem. A personagem tenta
usufruir dos prazeres que busca, mas ainda -se envolta em temores inúteis, como a facilidade
que teria se estivesse acompanhada. Mesmo tendo tido a ousadia de ir à feira, a preocupação com
o que pode dizer a sociedade sobre seu comportamento lhe incomodava; atitude plenamente
81
superada pela personagem de Helena Parente Cunha, que passa ao largo do julgamento social,
prioriza o seu desejo e foge do casamento imposto por sua família.
O desejo latente que buscava ser reprimido pela personagem de “O leopardo é um animal
delicado”, talvez por pudor, demonstra-se claramente em algumas passagens. A sensualidade e o
desejo começam a libertar o que de selvagem nesta personalidade confinada nos padrões
repressores da sociedade, como visto em:
Sentiu os lábios pegajosos, lambeu com vagar aquele gosto de mel, lambeu demorando-
se nos cantos, depois levou à boca os dedos com que havia segurado o copo, meteu dois
dedos entre os lábios, lambeu-os devagar, contornando cada dedo com a ngua sem
saber ao certo se o gosto de mel era deles ou da boca mas lambendo, lambendo assim
mesmo. Tirou os dedos da boca lentamente e molhados e doces os deixou deslizar sobre
os lábios. (p.86)
A sensualidade começa a se aflorar, rompendo a “falsa calmaque quer demonstrar aos
outros e impor a si. O desejo sobrepõe-se a imagem que ainda reluta para manter. A personagem
deixa de lado a domesticidade habitual para liberar seu lado selvagem, que deseja a concretização
do prazer buscado e que é oferecido em todas as atrações que a Erotika Tour pode lhe
proporcionar.
O desejo que a impulsiona é o de preencher-se, como o narrador esclarece-nos: “Mas
alguma coisa lhe havia sido tomada, alguma coisa que era preciso repor” (p.86). A coisa referida
é a sensação de prazer, a sensação de sentir-se realizada.
A carência afetiva avoluma-se e a busca por satisfazê-la é intensa. Todos os seus sentidos
ficam mais sensíveis: o paladar e o cheiro da comida a incendeiam, o roçar da roupa a excita, a
visão e audição são exploradas no Túnel do Amor, devido a pouca luz e aos sons naturais
reproduzidos.
Toda a repressão que se impôs é rompida no interior do Túnel do Amor. Neste momento,
longe dos olhos julgadores que a continham, permite deixar-se levar, sem limites, pelo desejo que
emergi com uma voluptuosidade incontrolável. Seu corpo clama pelo prazer, estimulado pelas
carícias dos homens fantasiados de feras, comparados por ela a leopardos, em um ambiente
extremamente propício, pois retratavam uma selva: “(...) os sons ali eram outros, sussurrantes, de
águas ou vento, de floresta. Grasnados, pequenos guinchos, um pássaro e, de repente, um rosnado
ou talvez um miado, som que saía de alguma goela escura e deslizava em língua áspera.” (p.86).
A atmosfera enigmática auxilia na incitação sexual de cada um dos homens, que
descontrola a personagem, que não mais quer o controle. O ambiente do Túnel do Amor remonta
82
a uma selva, também promovendo um distanciamento da personagem de sua realidade
domesticada. Nesta atração, a personagem libera-se completamente. O narrador aproxima-se
ainda mais dela para que tenhamos uma imagem nítida do extravasamento deste desejo
reprimido.
O paralelo feito dos homens com um leopardo ocorre pelos trajes vestidos por eles
“camiseta aveludada como couro de onça, couro de fera, leopardo.” (p.87). Assim como este
selvagem animal, considerado como um “grande gato selvagem”, de grande agilidade, os homens
similarmente se esgueiravam e assim que cumpriam seu papel de incitar o desejo nas mulheres
que adentravam o túnel, se retiravam.
Para a autora, o leopardo não é um animal delicado e em momento algum no conto tem
esta conotação, tão pouco a delicadeza é a tônica deste conto ou do livro. A delicadeza está na
forma, no cuidado com a escrita e com a delineação dos personagens. E o leopardo pode até ser
um animal delicado, quando comparado à ferocidade humana, pois é através da referência
daquilo que cerca o homem que é possível referi-lo e então defini-lo. A delicadeza do leopardo só
pode ser relacionada quando comparamos ao comportamento feminino, que se impõe com a
voracidade que costuma ser designada ao animal indicado no título da narrativa. Na verdade, o
título anuncia a submissão do homem assim trajado pela protagonista do livro em sua ânsia em
possuí-lo.
A narrativa evidencia a transformação física pela qual os personagens passam, pois os
homens que estão vestidos de leopardos, sofreram uma zoomorfização ao serem caracterizados
como animais predadores que possuem aspectos sexuais e simbolizam conflitos eróticos; a fera é
símbolo de altivez, ser noturno, força, sensualidade. Contudo é a personagem que mais
latentemente passa por este processo ao se deixar levar pelo desejo de possuir o homem,
permitindo a emersão do seu “lado animal”.
O comportamento selvagem é manifestado pela personagem ao encontrar-se com o último
homem. As carícias e a sensualidade recebidas fazem o desejo tornar-se incontrolável e apesar de
saber da impetuosidade e condição inadequada de seus atos, a personagem quer realizar seu
desejo que emerge como uma represa que rompe as barragens.
O conto “Festa de casamento”, de Helena Parente Cunha, inicialmente nos proporciona
uma narrativa que reflete apenas o que seu próprio título anuncia, mas, ao decorrer da leitura,
informações importantes são desveladas.
83
O evento, a festa de casamento, foi organizado por pais representantes dos valores da
sociedade patriarcal e de uma noiva contrariada, que demonstra aos seus convidados o
desprestígio dado ao momento que deveria ser o mais importante de sua vida. Tais revelações já
os anunciam um desequilíbrio nos desejos originados neste seio familiar, pois dentro de uma
família patriarcal os pais sentem-se honrados em escolher o marido ideal para a filha e -la
contraindo um bom casamento. No entanto, a narrativa revela-nos sutilmente que a filha não
compactua como este sonho.
O conto possui uma polifonia de vozes. Diferentemente das demais narrativas, não temos
a figura de um narrador para direcionar nosso olhar. No início, deparamo-nos com os
cumprimentos formais direcionados aos pais e noivos, além dos comentários maliciosos dos
convidados.
Usufruindo da ruidosa comunicação que ocorre na festa, a narrativa evidencia este aspecto
com as falas entrecortadas ora destacando as personalidades da festa − noivos ou familiares − ora
surgem com comentários sobre o evento.
A noiva será a personagem feminina destacada pela análise. Esta surge sem voz na
narrativa, sem descrição ou presença. Apenas temos referências dela pela fala de sua mãe, que
igualmente não é nomeada. O discurso materno, desvelador da filha, é impregnado de conceitos
patriarcalistas, possibilitando-nos compreender o final surpreendente dado ao conto. A mãe
revela-nos que seu nome é Maria de Fátima, apelidada de Fafá, ex-estudante de engenharia.
Diferentemente das demais narrativas, não sabemos como pensa a personagem, mas
conseguimos perceber a repressão que sofria, haja vista ter sido obrigada a abandonar seus
estudos: “Ela vai continuar a estudar?/ Não, deixou, você sabe, nós nunca quisemos que Fafá
estudasse engenharia. O pai tanto insistiu, que ela acabou desistindo. O pai e o noivo. Nós somos
da opinião que a mulher é para o lar.” (grifo nosso, p.95). O discurso patriarcalista impõe-se
na narrativa demonstrando as arbitrariedades a que a personagem se submete, a princípio parece-
nos que passivamente. O desejo dos pais e da sociedade é impor-lhe o destino de mulher, sendo
totalmente domesticada a estrutura social que a cerceia.
O discurso materno enaltece o evento como sendo “o dia mais importante de minha vida
(p.94), pois se trata de uma grande realização para a mãe. Segundo Simone de Beauvoir, a
mulher encontra no casamento a força de viver e ao mesmo tempo o sentido de sua vida.”
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(BEAUVOIR, 1967, p.195). Para a mãe, é a concretização de um sonho ver sua filha casada;
para a filha é perda total de liberdade e vontade própria.
o discurso paterno ressalta a criação patriarcal dada à filha, sendo a estimuladora deste
grande evento descrito:
Excelentíssimo senhoras e senhores. Sinto-me lisonjeado e, por que não dizer,
envaidecido, com a nobre presença das respeitáveis famílias nesta hora memorável, em
que se unem pelos sagrados laços do matrimônio a minha dileta filha e seu digníssimo
noivo. A mulher, como a rainha do lar (...) (grifo nosso, p.96)
Segundo Bourdieu,
As injunções continuadas, silenciosas e invisíveis, que o mundo sexualmente
hierarquizado no qual elas são lançadas lhes dirige, preparam as mulheres, ao menos
tanto quanto os explícitos apelos à ordem, a aceitar como evidentes, naturais e
inquestionáveis prescrições e proscrições arbitrárias que, inscritas na ordem das coisas,
imprimem-se insensivelmente na ordem dos corpos. (p.71)
As falas dos pais reafirmam as diretrizes educacionais dadas à filha e explicam o motivo
pelo qual a personagem, mesmo contrariada, se submeteu ao casamento. No entanto,
diferentemente das personagens do primeiro capítulo, que se submeteram passivamente aos
ensinamentos inculcados durante suas infâncias, a personagem de Festa de casamento” não se
demonstra presa ou submissa a esses padrões de comportamento introjetados. As falas de seus
convidados revelam-nos o seu descontentamento, o que nos sugere que possa ver o casamento
como um fardo imposto pelos seus pais, por considerarem o noivo um homem que prosseguirá
com a disseminação dos valores ensinados durante sua criação.
A fisionomia da noiva desnuda seu interior, pois externa a contrariedade de sua vontade:
“A cara dela é que não está boa / Ela é muito antipática / Não é isso, ela parece esquisita, Não
fala, não ri / está agitada, não é? / Nervoso / Frescura” (p. 95). O julgamento do comportamento
da noiva evidencia-nos o que Bauman salienta em sua obra Amor líquido, sobre o desejo
Desejo é vontade de consumir. Absorver, devorar, ingerir, e digerir - aniquilar. O desejo
não precisa ser instigado por nada mais do que a presença da alteridade. Essa presença é
desde sempre uma afronta a humilhação. O desejo é o ímpeto de vingar a afronta e evitar
a humilhação. É uma compulsão a preencher a lacuna que separa a alteridade, na medida
que esta acena e repele, em que seduz com a promessa do inexplorado e irrita por sua
obstinada e evasiva diferença. (BAUMAN, 2004, p.23).
A personagem “amadurece” seu desejo até que fosse inevitável contê-lo. A narrativa não
nos deixa claro se este processo iniciou-se apenas na festa, mas a fala dos convidados destaca a
85
inquietação da noiva, em um dos momentos que lhe deveria ser mais feliz, como o era para a
mãe. Segundo Simone de Beauvoir,
Esse é o traço que caracteriza a jovem e nos dá a chave da maior parte de suas condutas;
não aceita o destino que a Natureza e a sociedade lhe designam; e no entanto não o
repudia positivamente: acha-se interiormente dividida para entrar em luta com o mundo;
limita-se a fugir da realidade ou a contestá-la simbolicamente. Cada desejo seu comporta
uma angústia: está ávida por entrar na posse de seu futuro mas teme romper com o
passado; almeja "ter" um homem, repugna-lhe ser sua presa. E atrás de cada temor
dissimula-se um desejo (...). (BEAUVOIR, 1967, p.90).
Os pais e o noivo não demonstram perceber este comportamento da noiva e seu
desaparecimento repentino. Surpreendentemente, contrariando o desfecho considerado
apropriado para uma narrativa em que a família prende-se aos valores patriarcais, uma noiva
recém-casada foge de sua festa de casamento antes de partir o bolo e, obviamente, antes de
consumar o matrimônio: “Cadê a noiva? / Ninguém viu a noiva? / O noivo continua ali, parado,
no mesmo lugar” (p.96).
A imobilidade do noivo de Maria de Fátima recorda a postura passiva do esposo de “O
moço do saxofone”, de Lygia Fagundes Telles, ambos permanecem estagnados apesar dos
comportamentos inadequados de suas esposas. O primeiro permanece parado, perplexo com a
atitude da recém esposa e não consegue agir para modificar a situação, enquanto que o segundo
apega-se a sua música para superar as traições sofridas. Nenhum deles toma uma atitude prática
para modificar a realidade ocorrida, pois a música tocada pelo saxofonista não impede a esposa,
só impele os casos que conhecem sua motivação, como o do narrador-personagem do conto.
A personagem feminina em “Festa de casamento”, de Helena Parente Cunha, deixa-se
levar pelo seu desejo de liberdade e rompe com os desígnios da sociedade e de sua família,
buscando sua felicidade e realização. Novamente é a fala dos convidados que nos transmite a
convicção de seus atos ao descrever fatos da fuga: “A grinalda está no chão perto do toalete? / O
véu rasgado na cadeira? / O vestido jogado na privada? Dentro do vaso? / Os sapatos na pia? / O
noivo não sabe onde está a noiva” (p.96).
Maria de Fátima desconstrói a imagem disciplinada, pura e feliz habitualmente observável
em uma noiva, pois se apresenta avessa a todos os ideais do matrimônio. A atitude da noiva não
destrói apenas um casamento recém realizado, mas também arruína a vida dos pais que em
primeiro momento sentem-se realizados, honrados, pelo cumprimento de suas obrigações
paternas ao conseguirem arranjar um bom casamento para a filha, no entanto, chegam ao fim da
86
narrativa desonrados pelo comportamento inesperado da filha que agora lhes impõe o desgosto de
não terem conseguido dar continuidade a família e aos valores patriarcais através do casamento.
O próprio pai destaca esta tristeza na narrativa, pois a noiva segue seu desejo de libertar-se,
esquecendo a família que necessita modificar seu discurso devido ao ato considerado repulsivo da
filha, sendo resumido pela fala paterna: “Desculpem, cavalheiros, estou desonrado” (p.96).
Inversamente às outras duas personagens deste capítulo, a noiva não necessita de um
homem para satisfazê-la, pois abandona o noivo. Os comentários confirmam-nos a sua fuga
independente: “Meu Deus. O que foi isso? Céus. Hein? O quê? O que foi que houve? Quem
disse? Como? Onde? Foi embora? Sozinha? Puxa vida, ela foi embora e deixou o noivo. Por
quê?” (p.96).
O desejo manifesta-se diferentemente nas narrativas de Marina Colasanti e Lygia
Fagundes Telles, pois revelam o desejo do corpo, desejo de saciar uma necessidade física
feminina que rompe com a limitação da sexualidade imposta às mulheres. As personagens
permitem-se sentir prazer em situações avessas aos padrões sociais, elas passam a ser sujeito do
desejo sexual e não objeto como comumente observa-se nas narrativas. As personagens iniciam o
processo de conquista e fazem com que os homens se submetam as suas vontades, a iniciativa dos
relacionamentos surge delas.
Enquanto que em Helena Parente Cunha, não são o desejo sexual que ocorre e sim o de
liberdade. A personagem rompe com os ideais da estrutura familiar, ao fugir da festa de
casamento renega o novo relacionamento, que teria como continuidade a repressão de
comportamento feminino. O desejo de liberdade, de tomar suas decisões, a impulsiona a também
romper com os padrões impostos em prol de sua satisfação.
Todas as personagens evidenciam o processo descrito por Bauman de maturação do
desejo, pois buscam sua realização independente do julgamento dos outros; privilegiando a
satisfação própria em detrimento da opinião pública. Como o desejo é inesgotável e impulsiona
as personagens, as narrativas deixam em aberto o desfecho do destino dessas mulheres que pode
ser ainda mais surpreendente.
87
4.2 OLHAR MASCULINO
No conto “74 degraus”, do livro Feliz Ano Novo (1989) de Rubem Fonseca, a narração é
conduzida por quatro narradores que se alternam no relato dos fatos narrados de acordo com as
perspectivas específicas, podendo ser: Elisa, Tereza, Pedro ou Daniel, ou seja, todas as
personagens ativas da narrativa. O conto é baseado na imprevisibilidade dos fatos.
O enredo estrutura-se por partes numeradas e espaçadas, sendo nomeadas por degraus
referidos desde o título, no entanto, a numeração não é índice de uma linearidade na narração
uma vez que os discursos são entrecortados, fazendo sentido quando são unidos na interpretação.
Cada degrau revela-nos uma informação, como uma peça de um jogo de xadrez que deve ser
adicionada aos dados obtidos para ter atribuição de sentido à narrativa. A fragmentação se
ressalta especialmente pela ausência da figura de um único narrador.
A violência surge nas personagens como a forma de livrar-se dos obstáculos que os
homens estavam se tornando para o relacionamento lésbico que mantinham, por isso a violência
física fez-se necessária.
As personagens femininas do conto, assim como as personagens estudadas no capítulo,
rompem com os valores socioculturais da sociedade vigente, são regidas pelo desejo impregnado
em seus corpos, rompendo com as expectativas habituais quanto ao pensamento e
comportamento femininos. A sociedade não as manipula, pois desejam a satisfação pessoal.
A primeira personagem feminina destacada é Tereza, mulher da alta-sociedade, que se
prepara para receber o cavaleiro Pedro em casa, sendo viúva de Alfredo, também cavaleiro
campeão brasileiro e olímpico em sua modalidade. A narrativa contextualiza o reaparecimento de
Elisa, amiga com a qual manteve uma relação afetiva, no passado. No entanto Tereza demonstra
sentir-se desnorteada com a presença de Elisa. O desejo de restabelecer o relacionamento
manifesta-se nas personagens:
8. Eu vim aqui hoje pensando que tudo poderia ser como antigamente... [fala de Elisa] /
(...) Elisa estava desapontada. Ela queria as coisas como antigamente, mas a culpa tinha
sido unicamente dela, se as coisas entre nós não estavam mais como antes. [fala de
Tereza] (p.146).
No degrau número dois, temos acesso à interpretação de Elisa a respeito da reação
causada por sua chegada, sem avisar, na casa da amiga Tereza:
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2. Tereza abre a porta e me olha surpresa. [fala de Elisa]. / Era Elisa carregando um
enorme embrulho. Fiquei por um momento abalada, sem saber o que dizer, ou melhor,
disse, você?, apenas isso. Por instantes senti-me confusa, um sentimento desagradável.
Sempre quis Elisa perto de mim, mas não naquele dia, ela não devia me visitar naquele
dia. [fala de Tereza] (p.145).
Tereza, antes de entregar-se ao desejo de retomar seu relacionamento com Elisa, planeja
um encontro com Pedro, o qual seria o primeiro envolvimento sexual após a morte de seu esposo.
A seleção de Pedro ocorre apenas pela paixão por cavalos que este tinha, assim com seu esposo.
No entanto frustra-se ao perceber que ele apenas desejava os cavalos de herança:
50. Ele queria os cavalos, não queria nada comigo, os cavalos precisavam de um pai que
era ele, Pedro. E disse que, por mim, os cavalos podiam morrer, que ia vender todos para
a fábrica de salsichas. [fala de Tereza] / Ela ri como louca e ameaça matar os cavalos e
me chama de impotente. [fala de Pedro] (p.155).
O discurso predominante é o monólogo interior com a utilização da primeira pessoa para
enfatizar a dramaticidade do enredo, a narrativa detém-se ao fluxo de consciência dos
personagens e não em suas ações. A narrativa utiliza-se do tempo psicológico, não se segue a
sequência cronológica. Cada degrau expõe o fluxo de consciência de um narrador.
A ausência de linearidade força ao leitor organizar a narrativa, que revela-nos vários
desejos, sendo o das personagens femininas ao que nos detemos. A dúvida de retorno ao
relacionamento manifestado por Elisa e Tereza, suplanta-se após a tentativa de estrangulamento
que esta sofre por Pedro.
Os homens são eliminados por serem obstáculos ao relacionamento das personagens; o
ato violento surge abruptamente, pois Tereza ao recobrar a consciência, após o ataque sofrido, vê
Pedro pedindo para que Elisa suba em cima dele e cavalgue para que ela sinta que o cavalo é
melhor que ele, aflorando o ódio de Tereza:
63. Agarrei a estatueta que estava na saleta perto do piano. Os dois estavam na sala,
Elisa trepada nas costas dele. Fiquei com tanto ódio que senti um gosto ruim na boca.
[fala de Tereza] / Tereza surge seminua, desgrenhada, me xingando de vagabunda./ A
mulher está viva! Ela grita, bate com a estatueta na minha cabeça. [fala de Pedro]
(p.157).
Impulsionada por Tereza, Elisa termina de matar Pedro. Com a reconciliação entre as
duas, matam também Daniel, marido de Elisa, com a mesma estátua. A frieza com que combinam
este ação é atordoadora, mas tudo objetiva a realização do desejo que se impunha, a liberdade
para viver este sentimento:
89
70. Digo a Daniel que dentro da mala tem o corpo de um homem. Tereza dá uma
gargalhada. Nós estamos muito nervosas. [fala de Elisa]. / Sou paciente com a tolice das
mulheres. Dentro da mala não cabe o corpo de um homem. [fala de Daniel]. / Cabem até
dois corpos, Daniel, e quando disse isso meus olhos se encontraram com os de Elisa e
tudo foi combinado num segundo, sem uma palavra [fala de Tereza]. (p.158).
A postura de Elisa e Tereza confirma o posicionamento de Elizabeth Badinter em Rumo
equivocado: “Entretanto, para tentar lutar melhor contra nossas fraquezas, tanto naturais quanto
educativas, é preciso renunciar a uma visão angelical das mulheres, que serve de justificativa para
a demonização dos homens.” (BANDITER, 2005, p.92).
O desejo feminino rompeu com os princípios da sociedade, com os conceitos de
moralidade e valorização da vida para a satisfação de um desejo pessoal. Apesar de ser um conto
de autoria masculina percebemos o mesmo processo das personagens na busca de concretização
de seu desejo, no entanto em uma vertente mais violenta.
Nenhuma das personagens femininas destacadas submeteu sua vontade em prol da
obediência aos valores morais e éticos impostos pela sociedade, tanto Elisa quanto Tereza
privilegia suas emoções e a satisfação de seus anseios, o que lhes importa é o bem-estar pessoal e
não a imagem que a sociedade fará delas, pois o objetivo primordial buscado pelas personagens é
a realização de seus desejos.
90
5 CONCLUSÃO
Ao longo deste trabalho, pudemos observar que as personagens femininas estão
ampliando seu âmbito de recorrência. Apesar de ainda estarem contextualizadas, muitas vezes,
em ambientes femininos e repressores, reafirmando os dados da pesquisa de Regina Dalcastagnè,
é perceptível a superação deste padrão.
As indagações que surgiram ao longo da pesquisa foram respondidas durante o estudo de
cada personagem, pois percebemos as diferenças, apesar de vivenciarem situações com o mesmo
eixo temático. Da mesma forma, foi possível identificar que as autoras não utilizam um discurso
feminista, mas algumas das personagens já buscam a emancipação de alguns dogmas propostos
por este movimento, como a liberdade sexual da mulher e a possibilidade de terem uma vida fora
do ambiente familiar, como a personagem do conto “Festa de casamento”, de Helena Parente
Cunha.
No entanto, dados da pesquisa de Regina Dalcastagnè quanto à caracterização das
personagens não foram observados durante o estudo, pois os contos selecionados pouco nos
ofereceram descrição das roupas ou do corpo da mulher. Assim, não obtemos traços
estereotipados das personagens evidenciados em sua pesquisa como, por exemplo, serem
predominantes as brancas.Tal ausência de dados na representação da personagem foi anunciada
pela pesquisadora como sendo recorrente nas obras consideradas contemporâneas, acrescentando
que a considera como “um objeto bastante escorregadio. Desde o início do século XX, ela [a
personagem feminina] vem se tornando, a um só tempo, mais complexa e mais descarnada.”
(DALCASTAGNÈ, 2005, p. 2). O que nos remete a conclusão de que nas obras estudadas não
foram evidenciados os traços físicos, pois as autoras e autores preocuparam-se em destacar o
comportamento das personagens femininas.
Todas as personagens estudadas, inicialmente, estão submetidas à força simbólica descrita
por Bourdieu, que em ambientes repressores diferentes: família, sociedade, casamento ou
namoro. A pressão da sociedade e dos ensinamentos adquiridos sobre as personagens é constante,
de tal forma que estão atreladas a ela sem ao mesmo saberem como agir. Elas percebem sua
condição de submissão, porém não conseguem reagir aos padrões inculcados durante a criação.
De todas, ou seja, das nove personagens estudadas, cinco, Selena de “Amor e morte na página
dezessete”, a mãe de “O menino”, a esposa de “O triângulo mais que perfeito”, Maria de Fátima
91
de “Festa de casamento”, a esposa de “O moço do saxofone” conseguem romper com a pressão
externa e alcançam a realização.
O estudo acaba por confirmar os resultados da pesquisa de Regina Dalcastagnè, pois ainda
encontramos personagens femininas que permanecem seguindo os padrões de comportamento de
outrora. A submissão e retidão continuam sendo características marcantes na maioria das
personagens, assim como predomina a função de dona-de-casa. No entanto, a ruptura com o
habitual já é notada, talvez de maneira um pouco tímida, porém está sendo representada.
Durante as análises das personagens do primeiro capítulo, foi possível perceber que todas
as personagens estão impregnadas na visão androcêntrica imposta, de tal forma que não
conseguem romper com a dominação. As personagens do capítulo deixam-se guiar pela figura
masculina, que determina o destino feminino. As mulheres dependem deste direcionamento e
veem-se perdidas quando este foge um pouco da rotina estabelecida, como ocorre no conto “O
pai”.
No segundo capítulo, a disciplina não deixa de ser apontada, mas o eixo dominante foi o
casamento. Este surge como uma armadilha ao prometer felicidade, mas frustra as mulheres, pois,
com o passar do tempo, percebem que a falsa liberdade sonhada, que teriam ao saírem da casa de
seus pais, foi substituída por um relacionamento em que permanecem subjugadas e infelizes. Não
existe a descrição de um relacionamento duradouro exemplo do mito dos “felizes para sempre”,
ao contrário, as personagens estão inseridas em uma sociedade patriarcal, a submissão e o apego
ao marido são identificados nas narrativas, no entanto, ocorre uma alteração do comportamento
feminino, pois nos deparamos com a traição das mulheres, percebida nos contos “O menino” e
“Amor e morte na página dezessete”. Além disso, os contos evidenciam o posicionamento da
esposa em relação à traição em “O triângulo mais que perfeito” e “A face horrível” e o desgaste
do casamento em “As pérolas” e “Um dia, afinal”, contudo não são desfeitos.
Os contos do segundo capítulo evidenciaram personagens que constituíram suas
famílias, mas por motivos diferenciados ainda não se sentem realizadas, apesar das diretrizes da
sociedade apontarem o casamento como o evento gerador da felicidade feminina, que pode
desempenhar as atividades que lhe cabem: serem mães, esposas e donas de casa. As personagens
demonstram insatisfação com a “promessa” não cumprida e buscam alternativas para se
satisfazerem, por isso rompem de alguma maneira com a sociedade. É claro que nos contos “As
pérolas” e “Um dia, afinal” a imobilidade das personagens faz com que permaneçam resignadas
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aos seus casamentos. Estes contos nos demonstram o desgaste dos relacionamentos devido ao
tempo e a sua manutenção devido ao companheirismo e desejo de conservar a rotina conhecida.
A organização dos capítulos promove uma evolução gradativa das personagens em busca
de realização. Por isso, no terceiro capítulo, as personagens femininas estão mais liberadas dos
condicionamentos sociais e conseguem realizar seus desejos mesmo que de forma efêmera. Todas
elas, em determinado momento, rompem com o regime social para satisfazerem suas vontades.
Nenhuma personagem demonstra ruptura total com a visão androcêntrica da sociedade,
mesmo as que rompem com o sistema seguem-no de alguma maneira. Nos contos “Amor e morte
na gina dezessete”, “O menino”, “O moço do saxofone”, as personagens permanecem casadas
mesmo com os casos extraconjugais, o que sugere apego ao convencionalismo da sociedade,
claramente exposto nos dois primeiros contos citados. Enquanto que os contos Festa de
casamento e “O triângulo mais que perfeito” apresentam personagens que apenas iniciam as
narrativas em condição submissa, pois posteriormente modificam esta situação repressora.
Situação similar observa-se em “O leopardo é um animal delicado”, que evidencia a inculcação
dos padrões sociais, mesmo o havendo um impositor direto do padrão comportamental
seguido.
As personagens masculinas surgem nas narrativas, mas não apresentam grande
significação ao enredo, pois sua função restringe-se a construir o ambiente familiar em que as
personagens estão inseridas. É válido destacar que, na maioria das narrativas, as personagens
femininas são elementos fundamentais no seio familiar, excluindo-se apenas o conto “Venha ver
o pôr do sol”, “O moço do saxofone” e “O leopardo é um animal delicado”, nos quais a família
em momento algum é referida. Assim, a ambientação espacial predomina na casa, local onde
desempenham suas tarefas, em apenas dois contos: “O paie Festa de casamento”, ambos de
Helena Parente Cunha, observamos a referência de atividades exteriores ao lar. A primeira é
professora e a última estudante de engenharia.
Além disso, assim como Regina Dalcastagnè conclui em sua pesquisa, dos catorze contos
analisados, incluindo os de autoria masculina, observamos narradoras em três narrativas onde
também são personagens, sendo dois de autoria de Marina Colasanti, “É a alma, não é?” e “Um
dia, afinal”, e um de Rubem Fonseca, “74 degraus”, no qual as duas personagens femininas
dividem a narração com os outros personagens masculinos, no entanto, é a personagem Elisa que
predomina na narração.
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O discurso das autoras selecionadas não se confunde como um discurso feminista, em que
se discute o papel feminino, mas traz no seu bojo a consciência da situação social da mulher ao
questionar os papéis sociais em que ela se apresenta dividida, adotando uma linguagem que
subverte os padrões normais. Tal fato é confirmado através da contraposição com obras de
autoria masculina, pois estas apresentam situações próximas, desconstroem os perfis românticos
das personagens femininas.
Assim, as personagens femininas da produção brasileira aqui abordada, em obras
publicadas nos anos compreendidos entre 1972 e 1990, representam variantes da mulher que
afrontam o regime social patriarcal, que apesar de arcaico, ainda é percebido em alguns
momentos. As personagens do segundo e terceiro capítulos, exceto o conto “As pérolas”,
demonstram em suas relações o desejo de romper com os padrões androcêntricos, por isso o
desajuste em sua rotina e com a sociedade, gerando um conflito existencial, que suscita desejos
incompatíveis com a visão patriarcal. As narrativas evidenciam um comportamento mais
decidido das personagens, que optam por seus destinos.
Em momento algum o distanciamento temporal e o nero da autoria das obras
favoreceram uma dissonância no estudo das personagens, pois independente das características
literárias e da cronologia dos autores, foi possível identificar e unir as personagens em um eixo
temático comum em suas representações. Tal fato destoa dos dados da pesquisa de Regina
Dalcastagnè, que ressalta uma diferença na construção da personagem feminina em obras de
autoria masculina ou feminina, no entanto, nosso objetivo o foi destacar semelhanças e
diferenças e sim aproximar narrativas com o mesmo eixo temático. Contudo, este é um ponto de
abordagem amplo que possibilita uma continuidade de estudo.
Independente do gênero de autoria da obra, a versatilidade da personagem dependerá da
construção do autor ou da autora, que com sua linguagem característica, evidenciará enredos
múltiplos apresentando facetas diferenciadas de personagens femininas, sejam elas: disciplinadas,
casadas, sonhadoras, abandonadas, afinal, complexas.
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