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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
Caio Martins
REMANDO CONTRA A CORRENTE:
A RODA-VIVA DO CAPITAL E A EXPERIÊNCIA DO
ASSENTAMENTO COLETIVO DO MST
Dissertação apresentada à banca
examinadora do Programa de Pós-
graduação em Administração da UFSC
para obtenção do título de mestre.
Orientadora: Prof. Dra. Rosimeri F. Carvalho Silva
Co-orientador: Prof. Dr. Carlos Eduardo Montaño
Florianópolis
2010
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2
Catalogação na fonte pela Biblioteca Universitária
da
Universidade Federal de Santa Catarina
M386r Martins, Caio
Remando contra a corrente [dissertação] : a roda-viva do
capital e o assentamento coletivo do MST / Caio Martins ;
orientadora, Rosimeri de Fátima Carvalho da Silva, co-
orientador, Carlos Montaño. - Florianópolis, SC, 2010.
200 p.: il.
Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Santa
Catarina, Centro Sócio-Econômico. Programa de Pós-Graduação
em Administração.
Inclui referências
1. MST - Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra.
2. Administração. 3. Assentamentos humanos. 4. Autogestão.
5. Relações organizacionais e capital. I. Silva, Rosimeri
de Fátima Carvalho da. II. Montaño, Carlos. III.
Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Pós-
Graduação em Administração. IV. Título.
CDU 65
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Caio Martins
REMANDO CONTRA A CORRENTE:
A RODA-VIVA DO CAPITAL E A EXPERIÊNCIA DO
ASSENTAMENTO COLETIVO DO MST
Esta Dissertação de Mestrado foi julgada adequada para a obtenção do
título de Mestre em Administração e aprovada em sua forma final pelo
Programa de Pós-Graduação em Administração da Universidade Federal
de Santa Catarina (CPGA/UFSC).
Florianópolis, 05 de maio de 2010.
______________________________
Prof. Dr. Maurício Serva
Coordenador do Programa de Pós Graduação em Administração
CPGA/UFSC
Banca Examinadora:
______________________________
Profª Rosimeri de Fátima Carvalho Silva (UFRGS - orientadora)
______________________________
Prof. Carlos Eduardo Montaño (UFRJ - co-orientador)
______________________________
Profª Cláudia Mazzei Nogueira (UFSC)
______________________________
Profª Eloise Helena Livramento Dellagnelo (UFSC)
iii
4
Mãos Dadas
Não serei poeta de um mundo caduco.
Também não contarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida
presente.
Carlos Drummond de Andrade
Roda-viva
[...]
A gente vai contra a corrente
Até não poder resistir
Na volta do barco é que sente
O quanto deixou de cumprir
Faz tempo que a gente cultiva
A mais linda roseira que há
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega a roseira pra lá
Roda mundo, roda-gigante
Rodamoinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração
Chico Buarque de Hollanda
iv
5
AGRADECIMENTOS
Na certeza de que uma dissertação de mestrado não é resultado
de um mero esforço individual, registro aqui meus sinceros
agradecimentos àqueles que estiveram envolvidos de uma forma mais
direta com a minha pesquisa.
Em primeiro lugar, aos professores Rosimeri Silva e Carlos
Montaño, que depositaram em mim toda a confiança necessária,
aceitando o desafio de me orientar neste trabalho em um momento em
que me encontrava, por força das circunstâncias, separado deles por
centenas de kilômetros de estrada.
Aos assentados da Conquista na Fronteira, que além de serem
extremamente simpáticos, afetuosos e receptivos, não mediram esforços
para tornar acessíveis a mim as informações de que precisei para a
realização desta pesquisa. Agradeço a todos os assentados e,
especialmente, ao Júlio, Euclides, Valdir, Neiva, Diego, Silvino, Volnei,
Fátima, Marcos, Tatiana e Valmir.
Agradeço também aos meus amigos desde os tempos de
graduação, que, no estudo ou na militância, hoje são também
verdadeiros camaradas.
Aos meus amigos Matheusão e Ana Carolina que, além da
amizade, colaboraram diretamente com este trabalho nas penosas
transcrições das entrevistas.
Ao Henrique Wellen, pelos atenciosos e polêmicos emails que
trocamos desde antes do ingresso ao mestrado a respeito do tema.
Ao Antônio Gabriel, com quem compartilhei as angústias
inerentes ao desafio de realizar uma pesquisa pautada na tradição
marxista dentro do campo das Ciências da Administração. Ademais,
foram inúmeros e enriquecedores os intercâmbios de pareceres sobre
nossos trabalhos.
Finalmente, agradeço à Lilian, minha companheira, que mais
uma vez se dispôs a ler crítica e atenciosamente cada linha deste
trabalho; contribuiu com as intermináveis transcrições de entrevistas;
indicou leituras e alternativas para a pesquisa; além de estimular e
respeitar o tempo e intensidade de estudo que me exigiu a realização
deste trabalho.
v
6
RESUMO
Martins, Caio. Remando Contra a Corrente: a roda-viva do capital e a
experiência do assentamento coletivo do MST. 2010. 200 f. Dissertação
(Mestrado em Administração) - Curso de Pós-Graduação em
Administração, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis,
2010.
Este trabalho tem o objetivo de analisar as relações organizacionais do
assentamento Conquista na Fronteira diante dos imperativos do
movimento da produção social capitalista. Para isso, discute-se no plano
teórico as leis imanentes do modo de produção capitalista e suas
influências sobre as relações organizacionais entre as que intercambeiam
produtos no mercado. Em um segundo momento, discute-se o
desenvolvimento das relações organizacionais e a passagem histórica da
subsunção formal do trabalho ao capital à subsunção real. Tais estudos
preliminares dão as bases teóricas necessárias para a compreensão do
significado das relações organizacionais autogestionárias dentro dos
marcos da produção capitalista, discutidas no capítulo cinco. Em
seguida, contextualiza-se o significado que tem o assentamento coletivo
dentro do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Passa-se,
então, ao estudo específico do assentamento Conquista na Fronteira,
que revela a construção de uma tecnologia de gestão e de relações
organizacionais efetivamente democráticas, mas com fortes limitações
quanto ao controle direto sobre as tecnologias físicas de produção, por
força das leis coercitivas externas. Ademais, evidencia-se que a
cooperativa do MST é articulada com um movimento político de âmbito
nacional e constitui-se antes como um instrumento do movimento do
que como um fim em si mesma. Conclui-se, finalmente, que as
cooperativas do MST diferenciam-se das demais cooperativas por
articularem-se com um movimento político mais amplo que visa a
própria superação do capitalismo, de modo que o MST associe, em sua
luta, um movimento de negação política radical com a construção
positiva de uma alternativa hegemônica.
Palavras-chave: MST, Assentamento Coletivo, Autogestão, Relações
Organizacionais e Capital.
vi
7
ABSTRACT
Martins, Caio. Remando Contra a Corrente: a roda-viva do capital e a
experiência do assentamento coletivo do MST. 2010. 200 f. Dissertação
(Mestrado em Administração) - Curso de Pós-Graduação em
Administração, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis,
2010.
This paper aims to analyze the organizational relations in the settlement
“Conquista na Fronteira” before the imperatives of the movement of
capitalist social production. For this, we discuss in theory the immanent
laws of capitalist mode of production and their influences on
organizational relationships that interchange products on the market. In
a second step, we discuss the development of organizational
relationships and the passage of the historic formal subsumption of labor
to capital to real subsumption. These preliminary studies provide the
theoretical basis necessary to understand the meaning of self-managed
organizational relationships within the frameworks of capitalist
production, discussed in chapter five. Then, contextualizes the meaning
of the collective settlement within the “Movimento dos Trabalhadores
Ruraus Sem Terra”. Passes, then, to the specific study of the settlement
at “Conquista na Fronteira”, showing the construction of a technology
management and organizational relationships that are democratic, but
with strong limitations on the direct control over the physical
technologies of production, under the laws external coercive. Moreover,
it is evident that the MST cooperative's is combined with a nationwide
political movement and it appears rather as an instrument of the
movement than as an end in itself. We conclude, finally, that the MST
cooperatives differ from other cooperatives for articulating with a
broader political move aimed at overcoming capitalism itself, so that the
MST join, in their struggle, a movement of negation radical politics with
a positive construction of an alternative hegemonic.
Keywords: MST, Collective Settlements, Self-Management,
Organizational and Relationship Capital.
vii
8
SUMÁRIO
1.
INTRODUÇÃO .................................................................................. 9
1.1
J
USTIFICATIVA
............................................................................... 14
2
METODOLOGIA ............................................................................ 19
2.1
U
MA
Q
UESTÃO DE
M
ÉTODO
.......................................................... 19
2.2
D
IMENSÕES
A
NALISADAS
............................................................. 22
2.3
P
ROCEDIMENTOS DE
P
ESQUISA
...................................................... 23
2.4
A
NÁLISE
........................................................................................ 26
3
PROCESSOS DE TRABALHO E A RODA-VIVA DO CAPITAL
28
4
MOVIMENTO DAS RELAÇÕES DE TRABALHO NO
CAPITALISMO: DO MESTRE-ARTESÃO À “ACUMULAÇÃO
FLEXÍVEL” .............................................................................................. 43
4.1
N
OTAS
I
NTRODUTÓRIAS
S
OBRE
T
RABALHO E
A
LIENAÇÃO
............ 44
4.2
S
UBSUNÇÃO
F
ORMAL AO
C
APITAL
................................................ 50
4.3
S
UBSUNÇÃO
R
EAL AO
C
APITAL
..................................................... 59
4.4
S
UBSUNÇÃO
R
EAL NA
A
CUMULAÇÃO
F
LEXÍVEL DE
C
APITAL
....... 71
5
COOPERATIVISMO, AUTOGESTÃO E NOVAS FORMAS
ORGANIZACIONAIS .............................................................................. 80
5.1
A
S
C
OOPERATIVAS NA
T
OTALIDADE
S
OCIAL
................................. 80
5.2
R
ELAÇÕES
O
RGANIZACIONAIS E
A
UTOGESTÃO
............................. 96
6
O MST E UMA VELHA QUESTÃO: REFORMA OU
REVOLUÇÃO? ....................................................................................... 106
7
AS COOPERATIVAS DO MST À LUZ DA CONQUISTA NA
FRONTEIRA ........................................................................................... 118
7.1
A
H
ISTÓRIA DA
C
ONQUISTA NA
F
RONTEIRA
................................ 119
7.2
A
S
R
ELAÇÕES DE
P
ODER
............................................................. 127
7.3
O
S
P
ROCESSOS DE
T
RABALHO
:
PRODUÇÃO E REPRODUÇÃO
......... 143
7.4
A
S
M
EDIAÇÕES
............................................................................ 166
8
CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................ 177
REFERÊNCIAS ...................................................................................... 181
9
1. Introdução
É muito comum que a razão de ser de uma pesquisa seja
apresentada em duas dimensões: de um lado, a do interesse do
pesquisador; doutro, sua relevância para a sociedade. No caso de meu
trabalho, talvez nem seja necessária tal dualidade. Explico-me.
O horizonte pelo qual é norteado todo meu esforço como
pesquisador dos estudos organizacionais é a emancipação humana
1
.
Quando se pensa em emancipação, está implícito o fato de que um
sujeito histórico que precisa ser emancipado. É necessário, por isso,
tornar claro desde o sujeito que se quer emancipar: a classe
trabalhadora.
Por outro lado, se falamos em uma possibilidade de
emancipação de um sujeito historicamente determinado, deixamos
implícito também uma relação de dominação presente, com a qual se
defronta politicamente a luta pela emancipação. Essa relação de
dominação se expressa de várias maneiras, mas sua essência está na
alienação, no sentido marxiano do termo, provocada pelo
sociometabolismo do capital, que torna a produção social
completamente alheia às necessidades humanas, inclusive se lhes
opondo, em favor da reprodução ampliada do processo sempre renovado
de valorização do valor.
Penso ser de extrema relevância para a sociedade, como o é para
mim, a transcendência positiva desse estado de coisas que torna
completamente estranha a nós mesmos a produção de nossa vida, que é
subordinada a um mecanismo incontrolável de mediação entre os seres
humanos, mediação esta que, contraditoriamente, reifica e, portanto,
desumaniza. Eis aqui a verdadeira Roda-viva, que aparece na poesia de
1 A emancipação humana, neste trabalho, deve ser entendida como na obra marxiana, que,
desde 1843, n’A Questão Judaica obra que marca, segundo Netto (2009), sua passagem
da democracia radical para o comunismo –, entende que: “Só quando o homem individual
retoma em si o cidadão abstrato e, como homem individual – na sua vida empírica, no seu
trabalho individual, nas suas relações individuais –, se tornou um ser genérico; quando
o homem reconheceu e organizou as suas forces propres [forças próprias] como forças
sociais e, portanto, não separa mais de si a força social na figura da força política – [é]
então [que] está consumada a emancipação humana” (cf. Marx, 2009, p. 71-2). Sobre o
problema da emancipação humana, para a qual a supressão da forma mercadoria, do
capital e do Estado é imprescindível, cf. Iasi (2007) e Mészáros (2006, parte I).
10
Chico Buarque (em epígrafe) como um inimigo invencível e avassalador
– o capital.
Tanto para que tal transcendência seja possível, quanto para que
a prática dos que se identificam com esse projeto político possa
contribuir de maneira mais relevante para esse processo, o estudo crítico
da sociedade do capital e das organizações capitalistas é extremamente
necessário. Diversas questões precisam ser teoricamente respondidas,
para que possam ser praticamente defrontadas, levando-nos novamente
às novas questões e problemas teóricos. Inserido nesse fluxo, este
trabalho pode ser considerado um pequeno tijolo colocado nessa grande
construção, ou, se quiser, uma pequena marretada no imenso obstáculo
que temos de destruir.
O debate daqueles que lutam por uma sociedade emancipada
tem diversos encontros e desencontros, variadas perspectivas
estratégicas e inúmeras compreensões sobre a complexidade das
relações de dominação. Mesmo na tradição marxista, talvez a mais
antiga adversária da ideologia dominante, encontramos pontos de vista
que contrariam uns aos outros nos mais variados temas.
No campo dos estudos organizacionais, os trabalhos em cujo
horizonte está a emancipação humana têm um espaço bastante restrito.
Em nossa área predomina um tecnicismo pragmático que se reduz a
resolver problemas imediatos da administração de um tipo exclusivo de
organização, a empresa.
Por isso, dado o tamanho do desafio (superação da sociedade
capitalista), as variadas perspectivas teóricas que se propõem a superá-lo
e o restrito espaço que em nossa área, ao longo deste trabalho serão
necessárias algumas incursões em territórios cujas ligações com o tema
que me proponho a pesquisar não se imediatamente. Tais incursões
são necessárias por diversas razões. Uma delas é o fato de que, mesmo
na área dos estudos organizacionais, as referências conceituais que
utilizo não são “lugar-comum” e ainda precisam, para muitos, ser
devidamente apresentadas. Há ainda o fato de que a tradição marxista
possui outras interpretações, o que torna o esclarecimento de questões
indiretamente relacionadas com o tema de pesquisa interessante para a
compreensão de meu ponto de vista teórico como um todo.
O caso de que tratarei neste trabalho é o de um assentamento
coletivo do MST situado no extremo oeste do estado de Santa Catarina.
Mas, afinal de contas, o que o estudo de uma organização situada no
11
extremo oeste do estado de Santa Catarina pode trazer de importante
quando se tem como pano de fundo uma discussão sobre emancipação
humana?
O que é preciso deixar claro é que o problema de pesquisa aqui
apresentado é o desdobramento de diversas discussões, conclusões e
questões teóricas anteriores e muitas vezes mais amplas. Dentre os mais
variados temas que percorrem os debates mencionados, estão os ligados
aos processos de trabalho e às relações de dominação nas organizações
capitalistas.
A produção material da vida humana na sociedade capitalista
têm implicações desumanizantes em um duplo sentido: tanto no espaço
da circulação da riqueza socialmente produzida - que corresponde à sua
distribuição e da decisão sobre o quê se quer produzir, da natureza da
produção e do consumo etc. - quanto relações de produção em si que
abrange as técnicas de produção, relações de dominação nas
organizações produtivas (que refletem em outros espaços da vida
social), na divisão hierárquica do trabalho, na sua intensificação e perda
de sentido etc.
Embora ambas as dimensões estejam intimamente relacionadas,
o foco deste trabalho está nas relações de produção dentro de
organizações da sociedade capitalista. Partindo do princípio de que as
técnicas de produção não são socialmente neutras, mas, ao contrário,
traduzem uma relação contraditória de luta política, preocupa-me
analisar as “margens de manobra” de sujeitos que têm, sobretudo,
vontade política de superar as relações especificamente capitalistas de
produção. Por outro lado, por lhes ser impossível se desvencilhar da
totalidade da produção social, capitalisticamente organizada, as
experiências “alternativas” são fortemente constrangidas a adotar as
técnicas e relações organizacionais típicas das empresas convencionais,
e não apenas ideologicamente, mas sobretudo como uma força que
coloca em cheque a própria sobrevivência da organização (ver cap. 3).
Dentro desse quadro, que traz consigo diversos debates
teóricos, este trabalho pretende responder à seguinte questão: diante da
determinação geral do movimento do capital, como o assentamento
coletivo do MST estabelece suas relações organizacionais? Essa
pergunta possui vários pressupostos que serão discutidos ao longo do
trabalho, e por vezes relacionados com outras perspectivas bem como
com outros problemas de nossa área. Para tentar resolver essa questão,
12
analisarei esse caso bastante peculiar de nossa sociedade, mas que
parece ser bastante elucidativo.
Trata-se de uma cooperativa de trabalho, autogerida, que é parte
do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Todas essas
características da organização escolhida têm suas razões. O fato de ser
uma cooperativa de trabalho, e não um outro tipo de organização
qualquer (como partidos, associações etc.) se tanto pela mais clara
mediação com o mercado (lócus privilegiado da intervenção do capital
sobre as relações organizacionais por meio da concorrência), quanto por
tratarmos aí de uma organização cujo fruto da produção está diretamente
ligado à existência humana, ou seja, tratamos efetivamente da
transformação orgânica da natureza para satisfação de necessidades
sociais. Em segundo lugar, por ser autogerida, presume-se que os
trabalhadores têm autonomia política para decidir sobre como devem ser
as relações organizacionais. Logo, uma vez que se trata de uma
organização horizontal e sem a figura de um capitalista, eliminaria aqui
a possibilidade de o mercado ser usado como um argumento para
legitimar certos tipos de relações. Além disso, o fato de ser a
cooperativa ligada ao conhecido MST é importante, pois se trata de uma
organização que, além da autonomia política, tem, sobretudo, vontade
política de produzir relações que dêem autonomia real aos trabalhadores.
Como as organizações não são autômatos que podem ser
teorizadas descoladas de seu contexto sócio-histórico, a primeira parte
de minha dissertação se dedicará à análise da relação entre mercado e as
relações organizacionais. Tratarei histórica e brevemente do
desenvolvimento das relações de trabalho no capitalismo (cooperação
simples, manufatura, maquinaria, taylorismo-fordismo, acumulação
flexível) relacionando com a subsunção
2
formal e real, dentro e fora do
trabalho, e alienação, fetiche e reificação. O objetivo é mostrar a
determinação geral do movimento do capital e da luta política sobre as
relações organizacionais além, é claro, da relação contraditória entre a
2 Usarei ao longo deste trabalho o termo “subsunção” e não “subordinação” porque,
conforme Romero (2005, p. 19-20), “enquanto categoria usada por Marx, subsunção não
deve ser trocada pelo termo subordinação sem uma consideração específica e tampouco
pelo termo submissão, sob o risco de não corresponder a sua real determinação. A
categoria subsunção designa, ao mesmo tempo, uma relação de subordinação e de inclusão
do trabalho ao capital: estas constituem relações de dominação do capital sobre o trabalho
a ponto de este se tornar um elemento que compõe uma dimensão do ser do próprio
capital”.
13
anarquia da divisão social do trabalho e o despotismo que se desenvolve
nas empresas capitalistas. Esta primeira parte pode ser considerada
como o meu pressuposto teórico.
Na segunda parte, discutirei o cooperativismo dentro do
capitalismo. Mostrarei que as cooperativas continuam subsumidas ao
processo geral de acumulação capitalista, embora apresentem, em
alguns ou muitos casos, relações de poder e de trabalho em muito
diferentes das empresas comuns. Mostrarei também um deslocamento da
tensão entre mercado capitalista e processos de trabalho - nas empresas,
a determinação do capital é personificada na administração profissional;
nas cooperativas, ela pode ser problematizada entre os próprios
trabalhadores o que pode significar tanto uma fetichização ainda mais
forte, ou uma desmistificação de que a figura do capitalista, ou a
estrutura burocrática e naturalizada, é a grande responsável pelo
resultado processo produtivo. Esta segunda parte pode ser considerada
como aquela na qual abordo as minhas hipóteses iniciais.
Com o nível de detalhamento que pretendo dar ao assunto,
minha intenção é de que, ao longo de toda a pesquisa, passemos a
entender as organizações mais “avançadas
3
como particularidades de
um todo social, refletindo então sobre as possibilidades de sua
generalização na sociedade, as condições que permitem sua existência e
as que entravam novos “avanços”.
Diante do exposto, estabeleço o seguinte objetivo geral de
minha pesquisa: analisar como o assentamento coletivo do MST
estabelece relações organizacionais diante da determinação geral do
movimento do capital.
Sendo este o ponto de referência, diversos elementos precisam
ser analisados para que se tenha um avanço no seu conhecimento.
Todos, entretanto, realizam o objetivo geral acima exposto:
a) Analisar as relações de poder do assentamento;
b) Analisar a forma de produção;
c) Analisar as mediações do assentamento com a totalidade social.
3 Termo muito utilizado nos movimentos sociais, que significa estar politicamente mais
próximo do desejável para a superação do modo de produção capitalista.
14
1.1 Justificativa
Pretendo assinalar aqui os motivos pelos quais creio que este
trabalho justifique sua razão de ser, situando-o no debate acadêmico no
campo da Administração.
As relações organizacionais, no desenvolvimento histórico das
Ciências da Administração, são predominantemente apreendidas de
modo unilateral, isto é, como se fossem mecanicamente determinadas
por imperativos que, além de não serem politicamente questionados, são
apresentados de uma maneira mistificadora, marcadamente a-histórica.
Tanto a Abordagem Contingencial, como a Abordagem Sócio-Técnica,
as que predominam, hoje, do ponto de vista gerencialista, apresentam o
que Guimarães (1995) e Novaes (2007) chamam de “determinismo
tecnológico”. Nessa perspectiva, todas as dimensões organizacionais são
unilateralmente determinadas pelo desenvolvimento tecnológico, o qual,
por sua vez, se dá impulsionado por um ente transcendental: o mercado
4
.
Por outro lado, os estudos organizacionais críticos,
desenvolvidos à margem da abordagem gerencialista e com um espaço
significativamente restrito, buscam incorporar e dar relevância a outros
elementos na análise - como cultura, conflitos de poder, política,
história, interesses sociais etc. -, com vistas a revelar a natureza política
das próprias práticas administrativas. Contudo, são raras as teorias que
partem das relações reciprocamente determinantes entre as organizações
e a totalidade social na qual estão imersas, ou seja, do modo de produção
capitalista, como base para a compreensão dos fenômenos
organizacionais. A conseqüência é que todos esses elementos que são,
de fato, intimamente relacionados, são apresentados como fatores
superficialmente articulados, pois não levam em conta uma categoria
central para a compreensão histórica das relações organizacionais, qual
seja, a subsunção do trabalho ao capital. Assim, revela-se o papel ativo
dos indivíduos nas relações de dominação presentes na organização, mas
não a limitação de uma postura política individual, organizacional, ou,
até mesmo, regional e nacional
5
.
4 Sobre a antinomia tão presente na Administração: um “ambiente de cada vez mais intensas
mudanças”, de um lado, e a suposta insuperabilidade do mercado, de outro, cf. Lessa
(2005a).
5 É exemplar, nesse sentido, que mesmo um trabalho da envergadura do de Guimarães
(1995, p. 146), de grande densidade teórica e notadamente crítico, possua uma orientação
15
Do ponto de vista das Ciências da Administração, isto é, da sua
abordagem gerencialista, essas questões não são um problema para o seu
desenvolvimento. As práticas capitalistas têm sempre de responder às
questões mais imediatas, da ordem do dia, para que tanto a empresa
particular – forma sensível da “relação capital” – como a dinâmica
capitalista possam se reproduzir. É, pois, ontologicamente necessário o
pragmatismo das Ciências da Administração, que parte de um contexto
específico, considerado como dado, desistoricizado, para a tentativa de
resolução dos problemas que batem à porta da empresa, considerando
tudo que está sob seu poder como meros recursos para a sua resolução,
dentre os quais os “recursos humanos” e os “recursos da natureza”.
Por outro lado, do ponto de vista de uma Ciência efetivamente
humana (MÉSZÁROS, 2006), isto é, que tenha por fim a emancipação,
torna-se premente tanto revelar a natureza política das relações
organizacionais como também as condições que as tornam necessárias e
as possibilidades objetivas de sua superação (e não uma possibilidade
que se abstraia das forças histórico-sociais que disputam entre si os
rumos da história). Se pode a Administração, como pôde a Economia
Política, “tomar como dado aquilo que deveria explicar” (MARX,
2005b), àqueles que almejam uma sociedade emancipada é
imprescindível a captação das formas organizacionais como fenômenos
historicamente determinados e, portanto, da tecnologia e das relações
organizacionais como subsumidas ao capital, por mais diversas e
complexas que sejam as formas através das quais se afirma essa
subsunção
6
.
Se este trabalho pode dar alguma contribuição aos estudos
organizacionais, ela reside precisamente no fato de apreender os
fenômenos organizacionais articulando-os com a totalidade social. Mais
especificamente, tal contribuição se na teorização dos limites e
possibilidades da organização autogerida de trabalhadores nos marcos
da sociedade capitalista, para a qual a categoria da subsunção, até agora
ignorada (mesmo nos estudos apoiados na tradição marxista), é
fundamental.
deliberada de aproximação com uma linha de condução dialética. A mera aproximação a
uma condução dialética a conduz a esvaziar de conteúdo ontológico a sua crítica ao
determinismo tecnológico, que passa a ser tratado como um problema meramente teórico.
6 Segundo Tonet (1995), é justamente o surgimento de uma ampla diversidade do que aqui
chamamos de relações organizacionais que revela a universalidade e a capacidade de
adaptação do capital.
16
Parece-me oportuno, também, expor os motivos pelos quais
considero que meu trabalho deva ser realizado junto ao Observatório da
Realidade Organizacional. Para isso, é necessário destacar duas
características fundamentais sobre o modo pelo qual o Observatório
conduz seus estudos. A primeira delas é o pano de fundo de toda sua
pesquisa e orientação política: uma preocupação marcante nos
estudos Observatório em entender as organizações sob uma perspectiva
crítica, visando sempre à construção de um conhecimento que sirva de
instrumento emancipatório, o que, como afirmado, é o que orienta
todo meu esforço como pesquisador. Por outro lado, uma outra
característica fundamental é justamente a presença de diversas
perspectivas epistemológicas e (portanto) políticas. Ou seja, não se
encontrará necessariamente uma cumulatividade progressiva e linear na
construção desse conhecimento. Ao contrário, um permanente
diálogo que problematiza os diversos temas envolvidos entre os
trabalhos realizados. Na verdade, essa dinâmica se durante o próprio
processo de construção dos trabalhos acadêmicos, envolvendo desde os
professores orientadores até os bolsistas de iniciação científica.
Essas duas características me permitem resgatar autores e
perspectivas que, embora não sejam as predominantes nos estudos
realizados pelo Observatório, podem contribuir no entendimento dos
fenômenos sobre os quais nos atemos.
O Observatório da Realidade Organizacional vem analisando,
nos últimos anos, uma tendência à burocratização e mercantilização que
abrange os mais diversos tipos de organizações. Ao mesmo tempo,
preocupa-se em entender a realidade daquelas que resistem de algum
modo a essa tendência.
Nos estudos organizacionais, como se pôde observar, por
exemplo, no último EnEO
7
, essa preocupação também é evidente. Boa
parte dos trabalhos apresentados naquele evento, sobretudo os
vinculados ao tema de interesse 1 intintulado: “Análise Crítica,
Formas de Gestão e Práticas Transformadoras em Organizações” -,
busca analisar práticas organizativas que possam sinalizar sentidos
emancipatórios, além de análises sobre as metamorfoses dos
mecanismos de dominação. Nesse sentido, os estudos sobre
cooperativismo e formas horizontalizadas de organização, qualquer que
7 Encontro Nacional de Estudos Organizacionais da ANPAD, realizado em Belo Horizonte,
em 2008.
17
seja sua natureza, recebem atenção especial por revelarem relações
organizacionais pouco hierarquizadas. Cumpre destacar também a
numerosa presença de estudos que seguem as teses da assim chamada
Economia Solidária.
Mas não apenas em âmbito nacional essas questões são
debatidas no campo da Adminstração. Na Argentina, por exemplo, por
conta do fenômeno das “fábricas recuperadas”, que, na verdade, pouco
tem de novo
8
, tem sido publicado um grande número de trabalhos a
respeito de organizações autogeridas na sociedade capitalista. Nas
principais revistas internacionais dos estudos organizacionais, por sua
vez, percebe-se um intenso debate entre vertentes teóricas diferentes,
notadamente entre pós-modernos, frankfurteanos e marxistas. É claro
que, por se tratar de uma certa incomensurabilidade epistemológica, esse
debate é transdisciplinar, e por isso se faz presente nas ciências humanas
em geral. Mas, por outro lado, possui suas características específicas no
campo da Administração. É nesse contexto teórico-político que este
trabalho se insere e com os quais se pretende dialogar.
Quanto aos trabalhos que tratam de práticas organizativas
horizontalizadas, é possível notar que se reconhece, na maior parte
desses estudos, a presença de uma força estranha que faz com que os
indivíduos reproduzam determinados tipos de relações organizacionais
sem qualquer questionamento. O mercado, embora nunca analisado
profundamente, é, não raro, apontado como o principal fator que
legitima ou gera as relações de dominação. Entretanto, apesar de haver
esse reconhecimento, o peso real que essa força estranha exerce sobre as
relações organizacionais é ainda bastante obscuro. Em um extremo, o
mercado é apontado como uma justificativa para manutenção de certas
relações de dominação, um discurso que as legitima, naturaliza e
perpetua, desconsiderando seu peso ontológico; noutro, desconsiderando
sua natureza política, como fator condicionante e a-histórico de
determinadas relações necessárias às organizações, que primam pela
eficiência para sobreviver no seu competitivo jogo.
Por conta disso, as questões levantadas e as respostas que trarei
na conclusão do trabalho podem contribuir para a continuidade desse
processo existente hoje no Observatório, contribuição esta que se na
forma de um diálogo crítico, como tem sido toda a produção acadêmica
8 Cf. nota 71, item 5.1.
18
do grupo até então. Tal diálogo, é evidente, não se dará apenas com os
trabalhos realizados pelo Observatório, mas com as principais correntes
que incidem no debate sobre o tema de que trato. Dessa forma, poder-se-
á, quiçá, não apenas enriquecer o debate acadêmico no qual este trabalho
está circunscrito, mas sobretudo auxiliar compreensão crítica de nossa
realidade com a finalidade de sua superação.
19
2 Metodologia
Dividirei esta seção em três partes. Na primeira delas, tratarei
do método em seu sentido mais abstrato, relacionado à perspectiva
epistemológica aqui adotada, à maneira pela qual as categorias utilizadas
neste trabalho relacionam-se entre si e com a realidade. Munido dessa
discussão preliminar, em um segundo momento, exporei as dimensões
organizacionais que serão analisadas, associando-as com os objetivos
dessa pesquisa. Finalmente, a terceira parte é dedicada à exposição dos
procedimentos técnicos de pesquisa para a realização da coleta de dados,
bem como da operacionalização necessária para a apreensão das
informações indispensáveis à consecução dos objetivos aqui propostos.
2.1 Uma Questão de Método
9
Aqui, como para Marx, o conhecimento teórico visa à
reprodução abstrata do movimento concreto da realidade, determinado
por sua finalidade social. Esse processo de abstração implica o
cancelamento de particularidades presentes no processo real, uma vez
que nenhuma teoria é capaz de reproduzir idealmente a articulação das
inúmeras variáveis saturadas em determinado objeto
10
. Por outro lado,
por meio da abstração, somos capazes de transcender a aparência
fenomênica e apreender os elementos constitutivos do ser (que é sempre
um ser em processo, dinamizado pelo sistema de contradições inerentes
a ele), identificando assim sua essência fundamental, que se manifesta
em diferentes formas.
Por isso, as categorias são elevadas ao estatuto de categorias
ontológicas, isto é, referem-se à essência constitutiva de determinada
totalidade. A relação que estabelecem com outras categorias de mesma
9 As afirmações referentes a este tópico são embasadas em anotações de dois cursos que
realizei sobre essa questão, ministrados pelos professores José Paulo Netto (disponível
para baixar em: www.sergiolessa.com) e Mauro Luís Iasi, ambos da UFRJ.
10 “O modo de pensar dialético atento à infinitude do real e à irredutabilidade do real ao
saber implica um esforço constante da consciência no sentido de ela se abrir para o
reconhecimento do novo, do inédito, das contradições que irrompem o campo visual do
sujeito e lhe revelam a existência de problemas que ele não estava enxergando”
(KONDER, 2009, p. 34).
20
natureza tem portanto de reproduzir abstratamente as relações do
processo real, que existe independentemente do que pensamos sobre ele.
A relação dialética é representada teoricamente aqui por existir
também na processualidade do real.
A totalidade é, enquanto categoria teórica, a expressão de um
modo de ser da realidade, é constitutiva do real, não se tratando, pois, de
uma categoria intelectiva. Isso quer dizer que ela existe como tal, sendo
expressão da existência social. “A categoria totalidade, pois, [...] não é
um construto mental, uma categoria puramente lógica, mas uma
categoria, uma característica essencial da própria realidade” (TONET,
1995, p. 4). Por isso, diz-se que a totalidade é a categoria ontológica e
fundamental. Difere-se na essência de categorias de cunho positivista ou
relativista.
O ponto de partida da produção de conhecimento teórico, nessa
perspectiva, é a realidade como tal, o fenômeno desconexo de qualquer
articulação teórica, o modo pelo qual ele aparece na prática sensível e
social, isto é, aquilo que há de mais elementar. A partir da análise de sua
dimensão epidérmica, identificam-se as mediações e determinações
constitutivas do objeto de tal modo que se possa transcender a aparência,
re-significando, dessa forma, o seu sentido original. Transcender o
aparente é portanto fundamental na produção teórica. Como afirmava
Hegel, se em tudo na aparência e essência houvesse coincidência, toda
ciência seria supérflua
11
.
No entanto, toda pesquisa parte também de um acúmulo de
conhecimento, geralmente fruto de uma produção teórica precedente.
Por isso, aqui a dialética se torna premente, uma vez que é através dela
que se pôde reproduzir idealmente as contradições que determinam a
dinâmica da sociedade capitalista. Foi por meio deste método, que é
inerente ao objeto, que Marx e Engels puderam reproduzir teoricamente
as tendências contraditórias da dinâmica estrutural de nossa sociedade
12
.
11 “Convém, porém, enfatizar que, para uma perspectiva ontológica, as aparências não são
meros epifenômenos, coisas sem importância, trivialildades. Elas constituem um momento
do ser social de igual consistência ontológica que a essência. De modo que, ainda que a
redução da atividade científica a este momento tenha um caráter mutilador do conjunto do
processo do conhecimento, não significa desconhecer a possibilidade de contribuições
significativas para o seu conhecimento” (TONET, s.d., p. 5).
12 Para compreender mais profundamente o método de Marx em O Capital, cf. Muller (1982)
e Gerspan (2001).
21
A realidade, na perspectiva marxiana, é um “complexo de
complexos”. A partir da identificação da base ontológica primária
(daquilo que é, daquilo que constitui o ser), pode-se compreender a
relação que se estabelece com as outras determinações que incidem
sobre o objeto. A base ontológica determina, portanto, as “posições
ontológicas secundárias”, para usar uma expressão de Lukács (ad
tempora). De uma determinada “base ontológica”, não é correto dizer
que “derivamaquilo que se encontra em uma posição secundária, mas
sim que esta base põe determinações sobre um elemento parcial dessa
totalidade. A antropologia, por exemplo, não pode desconsiderar que o
ser humano é ontologicamente ligado à natureza
13
, assim como não se
pode esquecer, nos estudos organizacionais, que as cooperativas estão
ontologicamente ligadas à sociabilidade capitalista. Por essa razão, o
método marxiano é também chamado como um método de sucessivas
aproximações do objeto, em que o ponto de chegada é apenas um novo
ponto de partida para uma análise mais complexificada e rica do real,
tanto por ser a realidade uma fonte inesgotável de informações quanto
por esta ser dotada de uma dinâmica processual que a transforma, em
alguma medida, constantemente.
As categorias, nesse sentido, não são conceitos ou definições
formais e abstratas, mas expressam um movimento do real, sendo,
portanto, dinâmicas e dotadas de uma substância ontológica. Não
obstante a isso, não se ignoram os conhecimentos teóricos produzidos a
partir de outros métodos, que atribuem outros significados às categorias
de análise. Todavia, a apropriação de outras perspectivas tem de ser
submetidas a uma incorporação crítica, de modo que a construção
teórica não se torne incoerente em nome de um ecletismo
desarticulado
14
.
É importante ressaltar que esta dissertação antes reproduz
conhecimento confrontando-o com o real, refletindo criticamente sobre
essa confrontação, do que produz algo realmente novo. Uma vez que se
pretende estudar uma organização que está inserida na sociedade do
capital, e que se pretende compreender as relações que são estabelecidas
com a totalidade societal que tornam possível práticas organizacionais
13 Sobre essa questão, cf. Mészáros (2006), especialmente a primeira parte.
14 Para ver mais a respeito das implicações de um “pluralismo metodológico”, cf. Tonet
(1995).
22
diferentes das empresas convencionais, é indispensável que se estude o
objeto em questão à luz do método dialético.
2.2 Dimensões Analisadas
Para a análise do tema em questão, para a qual o assentamento
Conquista na Fronteira nos é a fonte de informação, pode-se dividir
esquematicamente a análise em três principais dimensões que
comportam, naturalmente, suas subdivisões.
A primeira delas relaciona-se com as relações de dominação
que podem ou não ser estabelecidas entre os membros desse tipo de
organização. Nesse sentido, inspirado em Vargas de Faria et. al. (2008),
são considerados : (a) o grau de controle que os trabalhadores exercem
sobre as principais decisões em particular; (b) as questões sobre as quais
esse controle é exercido; (c) os mecanismos de divulgação de
informações para o exercício desse controle; (d) o nível organizacional
em que este controle é exercido.
A segunda dimensão consiste no processo produtivo em si.
Novamente inspirado em Vargas de Faria et. al. (2008), a análise é
focada em três aspectos fundamentais: (a) a concepção da produção, no
que tange às questões que são consideradas no planejamento etc; (b) a
forma de produção, que corresponde à tecnologia empregada e à divisão
do trabalho; e (c) a finalidade da produção (mercado ou subsistência,
considerando também a distribuição dos ganhos na venda de
mercadorias).
Finalmente, a terceira dimensão está relacionada às mediações
que a organização estabelece com a sociedade capitalista. Para a
compreensão de como as cooperativas se inserem no circuito de
produção social, serão analisadas as principais relações que o
assentamento estabelece com o seu ambiente. Isso porque é preciso
posicionar contextualmente a organização, para compreender os
imperativos que condicionam suas práticas organizativas. Nesse sentido,
destacaram-se como aspectos principais: o Estado (seus mais diversos
órgãos, como universidade, Incra, BNDES etc.), para identificar as
facilidades e dificuldades que advém desta relação, contrapondo as
cooperativas do MST às empresas convencionais e às demais
cooperativas; os fornecedores, no que se refere à compra dos meios de
23
produção necessários para a manutenção da atividade produtiva; e os
consumidores, que consistem naqueles que adquirem as mercadorias
produzidas, sejam empresas que terceirizam seus serviços na
cooperativa ou consumidores finais. Quanto aos consumidores e
fornecedores, destaca-se que é a partir desta análise que pudemos
compreender as forças que incidem sobre o preço das mercadorias
produzidas, que podem impor modos específicos de reprodução da
organização (ver item 5.1).
Desnecessário dizer que todas esses aspectos estão intimamente
relacionados. Com uma análise minimamente aprofundada é que foi
possível adentrar no modo pelo qual se efetiva essa dinâmica entre tais
dimensões, sendo então possível identificar em que medida as
cooperativas do MST diferenciam-se das empresas convencionais e das
demais cooperativas. Além disso, todos esses aspectos foram
considerados historicamente, isto é, em sua processualidade, buscando
dinamizar as tendências objetivas apreendidas através do fenômeno em
questão.
2.3 Procedimentos de Pesquisa
Considerando que a realidade efetivamente existente independe
da subjetividade do pesquisador, torna-se necessário o uso de
instrumentos que possibilitem controlá-la, para colocá-la, em uma
relação inversa, a subjetividade sob o controle do objeto que se
investiga. Quando se faz ciência e filosofia, é a objetividade que se
mostra ao pesquisador e não o contrário dentro, é claro, de um quadro
traçado e articulado com os objetivos da pesquisa, que sempre possuem
dimensões valorativas condizentes com pontos de vista socialmente
determinados.
Como afirma Pádua (2008), a questão dos procedimentos é
essencialmente instrumental e se refere à prática de pesquisa. Por essa
razão, tratarei aqui do conjunto de técnicas que utilizei para desenvolvê-
la adequadamente.
Realizei uma pesquisa de campo - uma vez que não envolveu
uma experimentação propriamente dita (PÁDUA, 2008) - em três
etapas. Na primeira delas, no segundo semestre de 2008, dirigi-me a
Cooperoeste, cooperativa de assentados que industrializa o leite de
24
diversos pequenos produtores. Nessa fase ainda exploratória, por assim
dizer, foi que tomei conhecimento da existência da Cooperunião e do
modo peculiar como se organizavam, em conversa com o Sr. Euclides,
um “liberado” da Cooperunião para a militância pelo MST.
Feito tal contato, foi realizada, no mês de outubro de 2009, uma
pesquisa de campo na Conquista na Fronteira. Durante uma semana,
estagiei na cooperativa dos assentados, executando as mais variadas
funções dentro das equipes de trabalho e participando das reuniões de
comissões e equipes que ocorreram ao longo dessa semana. Além disso,
passei um dia de cada semana convivendo com uma família diferente, de
modo que me foi possível conhecer diversas histórias e pontos de vista
sobre variadas questões. Foi realizada, também, uma entrevista em
grupo (entrevista 1) com dois membros do Conselho Social e Político do
Assentamento, que me permitiu registrar a história geral desse coletivo.
Finalmente, realizei uma segunda visita ao assentamento em
dezembro do mesmo ano, quando, em dois dias, foram realizadas as
últimas entrevistas (entrevistas 2, 3, 4 e 5), que já consideraram as
questões que surgiram no tratamento dos primeiros dados coletados. Foi,
portanto, através da ida a campo que foram aplicadas as principais
técnicas de coleta de dados. Nesse sentido, busquei concretizar os
objetivos traçados valendo-me de: entrevistas, análise documental,
pesquisa bibliográfica e observação direta.
A pesquisa bibliográfica foi de suma importância, haja vista que
foi através dela que tive acesso ao conhecimento produzido. No que
tange a este trabalho, a riqueza da teoria sociológica marxista, dos
estudos sobre autogestão e de trabalhos científicos publicados tendo
como objeto de estudo o MST permitiram-me ir a campo munido de um
conhecimento prévio a respeito do problema que pretendia tratar.
Ademais, obtive acesso a duas dissertações cujo objeto de análise era a
Cooperunião, além de trabalhos acadêmicos realizados pelos próprios
assentados (o que pode ser considerado, em alguma medida, como parte
da análise documental). A pesquisa bibliográfica esteve presente em
todas as etapas, não estando ligada exclusivamente a um objetivo
específico, mas sendo a base de todo processo investigativo, permitindo
a incorporação do conhecimento teórico acumulado.
A pesquisa documental permite, por sua vez, segundo Pádua
(2008, p. 68-9), “... descrever/comparar fatos sociais, estabelecendo suas
características ou tendências”, uma vez que se analisam registros
25
formalizados de eventos históricos. Neste trabalho, tanto as fontes
documentais primárias como as secundárias (que são aquelas elaboradas
por outros órgãos de pesquisa) foram utilizadas, mas foram as primárias
que tiveram uma função mais relevante. Através da análise documental
compreendi com mais riqueza de detalhes tanto a história da
organização, como a formalização de relações organizacionais e o modo
pelo qual as informações são disseminadas entre os membros. A análise
documental diminui os vieses relacionados à visão circunstancial a
respeito do passado, sendo uma indispensável fonte para a investigação.
Também através desta técnica foi que as condições econômicas atuais da
cooperativa foram apreendidas, uma vez que obtive livre acesso aos
balanços, demonstrações de resultados e controle de custos do
assentamento entre os anos de 2000 e 2008.
“As entrevistas constituem uma técnica alternativa para coletar
dados não documentados, sobre um determinado tema” (PÁDUA, 2008,
p. 70). Foram realizadas, ao todo, sete entrevistas, sendo que seis
entrevistados eram assentados da Conquista na Fronteira. As duas
primeiras ocorreram ainda no ano de 2008, quando conheci o
funcionamento da Cooperoeste cooperativa do MST que industrializa
o leite de diversos assentamentos, entre os quais o produzido na
Cooperunião e toda a estrutura do MST na região de São Miguel do
Oeste. As demais entrevistas foram realizadas com os assentados
durante a pesquisa de campo.
Quanto aos tipos de entrevistas, foram realizadas: (a) as semi-
estruturadas, que me permitiram organizar os temas que tinham de ser
abordados e, ao mesmo tempo, adentrar em assuntos que surgiam como
desdobramentos do tema principal (ibidem; MARCONI e LAKATOS,
2009); e (b) entrevistas individuais; e (c) em grupo (entrevista 1),
quando foi possível compreender, por meio de uma avaliação mais
global, certas questões (PÁDUA, 2008). A entrevista em grupo foi
realizada na primeira visita ao assentamento, quando foram abordados
aspectos gerais de sua história e organização política e econômica. As
demais, na segunda visita, abordando temas mais específicos. Os
entrevistados foram todos indicados pelo Conselho Social e Político, de
acordo com os temas propostos por mim.
As entrevistas permeiam todos os objetivos da pesquisa e foram
o principal meio de coleta de informações. Entretanto, tiveram um papel
essencial na análise dos aspectos ligados às relações de poder (objetivo
26
“c”) e na compreensão da história da organização, uma vez que são raros
os documentos a esse respeito. Importante ressaltar que os discursos
foram considerados pelo seu conteúdo, pura e simplesmente.
Por fim, a observação direta, realizada através da ida a campo e
da confecção de um diário de pesquisa, cumpriram papel decisivo no
que tange os aspectos relacionados aos processos de trabalho, mas
também foi indispensável para contrapor o discurso dos entrevistados
sobre as relações de poder entre os membros da cooperativa. Além
disso, foi fonte de informações para os demais objetivos deste trabalho,
uma vez que me permitiu uma aproximação insubstituível para a
compreensão do objeto que se pretende estudar. A convivência no dia a
dia, as constantes conversas informais com um grande número de
trabalhadores foram importantes para ratificar ou elaborar o roteiro da
entrevista e temas ambíguos que deveriam ser tratados.
2.4 Análise
Uma vez reunidas todas as fontes após a ida a campo, passei
então à organização e seleção do material coletado, de acordo com as
três dimensões as quais me propus a analisar. Dessa forma, foi possível
descrever as características da organização em cada uma das três
dimensões principais (mediações com o “ambiente”, processos de
trabalho e relações de poder), identificando assim as determinações que
constituem o objeto. Nesse sentido, tanto as entrevistas como a
observação participativa e os documentos foram meios para obter
informações que possibilitem descrever a organização estudada, isto é,
revelar sua “situação fática”. Dito de outra forma, trata-se, primeiro, de
uma descrição, seguida de sua problematização teórica conforme os
objetivos dessa pesquisa.
Na primeira dimensão – as relações de poder do assentamento e
como ela foi constituída ao longo da história as entrevistas, a análise
do regimento interno e a bibliografia disponível sobre o MST e o
assentamento foram as principais fontes de informação. Coube-me
descrever as relações de poder da cooperativa e como ela foi constituída
ao longo de seu processo histórico específico. Traçado este caminho, foi
possível compreender sob que condições determinadas tecnologias
tiveram de ser empregadas, tecnologias com as quais estão associadas
27
relações de poder evidentemente democráticas. Por outro lado, foi
possível também apreender os limites das possibilidades políticas desse
tipo de organização, uma vez que se tornaram evidentes as condições
objetivas (no sentido marxiano) com que se defrontam a organização.
Em um segundo momento, foram reunidas as informações
descritivas acerca dos processos de produção, da tecnologia de produção
empregada. Relacionando com os elementos anteriores e com a
identificação dos “porquês” do emprego de certas tecnologias, foi
possível compreender os imperativos da reprodução capitalista sobre as
tecnologias e mesmo sobre a natureza e a finalidade da produção.
Na terceira dimensão, os demonstrativos financeiros e as
narrativas dos entrevistados sinalizaram um movimento, que poderia ser
tanto de acumulação, de uma reprodução simples somada a benefícios
promovidos pelo Estado, ou mesmo um progressivo definhamento
financeiro, entre outras possibilidades. Uma vez que se teve acesso tanto
aos custos de produção, como às informações de natureza
mercadológica, bem como ao caminho tomado pela cooperativa, foi
possível tornar mais claro sob que condições a cooperativa vem atuando,
seu contexto histórico-social etc. É preciso ressaltar, contudo, que a
pressão mercadológica foi estudada e apreendida tanto pela fala dos
entrevistados como pelo dia a dia da vida na cooperativa. Ou seja, não
foi realizada nenhuma análise de mercado de qualquer setor em que a
cooperativa atua.
Em razão disso, tal descrição, problematizada à luz da teoria
exposta até aqui, permitiu a identificação de determinações que
extrapolam o caso em questão. Ao mesmo tempo, por outro lado, foi
possível também identificar singularidades, mas singularidades que
estão inseridas e compõem o universal (MÉSZÁROS, 2004). Por isso, é
importante ressaltar, o conhecimento produzido ou adquirido por meio
dessa pesquisa não se reduz a este caso. Não é um conhecimento que
impede, por sua natureza, generalizações. Na análise do objeto em sua
singularidade, por meio do processo de abstração tal qual descrito até
aqui, foi possível concluir, não apenas sobre, mas também para além da
Cooperunião e do assentamento em questão.
28
3 Processos de Trabalho e a Roda-viva do Capital
Qual a relação existe entre o mercado e as relações
organizacionais?
Para responder a esta pergunta, utilizo como referência principal
a obra de Marx, O Capital. Isso porque, embora tenha sido escrita
mais de um século, ele ainda é - como afirma Braverman (1980, p. 56),
um dos principais teóricos sobre processos de trabalho - a melhor
“análise do processo de acumulação de capital e das leis econômicas que
se impõem aos capitalistas, independente de seus desejos”. Cabe
ressaltar ainda que não é esse o espaço para a discussão da validade
atual de sua teoria econômica, que desde seu nascimento foi amplamente
questionada. A força explicativa da obra de Marx é provada justamente
pela imensa quantidade de adversários que tentam até hoje enterrá-la,
sem sucesso. Mas voltemos à questão inicial.
Vivemos em uma sociedade em que todas (ou quase todas) as
nossas necessidades, do estômago à fantasia, como diria Marx, são
satisfeitas por meio do consumo de mercadorias
15
. Essas mercadorias,
naturalmente, são produzidas por organizações ou indivíduos que as
intercambiam no mercado.
O mercado, como sabemos, corresponde a uma fase específica
da história da humanidade, como bem nos mostraram insistentemente
Marx e Engels ao longo de todas as suas produções intelectuais. Só com
a afirmação do capitalismo que pressupõe não apenas o mercado, mas
também, necessariamente, trabalho assalariado e propriedade privada
dos meios de produção (KATZ, 2008; MARX, 1988) - é que ele se
transformou no principal, se não o único, meio através do qual podemos
satisfazer nossas necessidades, consumindo mercadorias.
Se é a partir da troca de mercadorias que satisfazemos nossas
necessidades, decorre daí que toda mercadoria deve possuir um valor de
uso socialmente determinado. O valor de uso constitui, segundo Marx
(1988), o conteúdo material da riqueza de qualquer forma social. Na
15 Torna-se até difícil lembrar de objetos de fruição que não tenham assumido a (ou não
sejam mediados pela) forma mercadoria. Drummond, contagiado por tal realidade
nauseante, questionou: “Preso à minha classe e a algumas roupas/ vou de branco pela rua
cinzenta./ Melancolias, mercadorias espreitam-me./ Devo seguir até o enjôo?/ Posso, sem
armas, revoltar-me?” (DRUMMOND DE ANDRADE, 2007, p. 27).
29
forma capitalista, entretanto, ele é, ao mesmo tempo, portador material
do valor de troca.
Isso porque a mercadoria tem de ser útil para quem a consome,
ao passo que tem apenas um valor de troca para quem a aliena. Por
outro lado, o “consumidor deve também ter sua mercadoria para
alienar, como valor de troca, em favor da mercadoria que deseja, que lhe
é valor de uso.
Marx (1988) nos mostra que no intercâmbio de mercadorias,
suas características concretas, sua finalidade etc., não determinam seu
valor. Ao serem trocadas, as mercadorias expressam algo igual, uma
identidade. Essa identidade não pode ser seu valor de uso, pois são, em
princípio, trocadas justamente por suas diferenças qualitativas. A
identidade aparece como “forma de manifestação”, de início, no valor de
troca, que é justamente “a proporção em que valores de uso de uma
determinada espécie se trocam contra valores de uso de outra espécie
16
(MARX, 1988, p. 46).
Assim, abstraímos no processo de troca as características
concretas e específicas das mercadorias que têm, todavia, de ser
socialmente úteis. Resta-lhes de comum que são todas frutos de um
dispêndio de trabalho humano. Mas, novamente, as características
concretas do trabalho, os processos do trabalho que lhes deram origem,
têm de ser abstraídos também, pois somente por processos
qualitativamente diferentes podem-se produzir valores de uso distintos.
Tendo desaparecido o caráter útil dos produtos do trabalho,
“desaparece o caráter útil dos trabalhos neles representados e
desaparecem também, portanto, as diferentes formas concretas desses
trabalhos”. Não se diferenciam mais um do outro para serem reduzidos
em sua totalidade a trabalho humano abstrato (MARX, 1988, p. 47).
Consideremos agora o resíduo dos produtos do trabalho. Não
restou deles a não ser a mesma objetividade fantasmagórica, uma
simples gelatina de trabalho humano indiferenciado, isto é, o
dispêndio de força de trabalho humano, sem consideração pela
16 É preciso ressaltar que os conceitos em Marx se enriquecem à medida que se relacionam
uns com os outros; à medida que se eleva do abstrato ao concreto, numa complexidade
crescente que aproxima do movimento da própria realidade. Por isso encontramos antes
dessa definição que “o valor de troca aparece, de início, como a relação quantitativa...”
(ibidem). Mais tarde, o mesmo conceito aparecerá com um conteúdo enriquecido, repleto
de outras determinações.
30
forma como foi dependida. O que essas coisas ainda representam
é apenas que em sua produção foi despendida força de trabalho
humano, foi acumulado trabalho humano. Como cristalizações
dessa substância social comum a todas elas, são elas valores
valores mercantis (MARX, 1988, p. 47).
O que se revela na relação de troca ou no valor de troca das
mercadorias é sua identidade o valor. Ou seja, o valor de troca é a
“forma de manifestação” do valor. Este, por sua vez, é determinado pela
quantidade de trabalho despendido na produção de mercadorias. Mas,
como medir a quantidade de trabalho? Mede-se a quantidade de trabalho
pelo tempo médio socialmente necessário para produzir as
mercadorias
17
.
Como a sociedade de mercado também pressupõe uma anarquia
social na produção, em que diversas organizações empresariais
concorrem entre si disputando espaço para a venda de mercadorias, é
claro que o valor das mercadorias está em incessante mudança, uma vez
que a média do tempo socialmente necessário varia constantemente.
Ainda segundo Marx (1988), o fato de o valor de uma
mercadoria ser determinado pelo tempo socialmente necessário para
produzí-la não significa de modo algum que um trabalhador individual
que leve mais tempo para produzir determinada mercadoria produzirá
uma mercadoria de maior valor
18
. Os valores das mercadorias são
socialmente determinados, de acordo com o grau de desenvolvimento
das forças produtivas e com as circunstâncias históricas dadas.
E o que vale para o trabalhador individual, vale também para as
empresas. Pensemos em uma empresa capitalista produtora de alfinetes,
para não fugir do exemplo clássico. O alfinete tem seu valor
determinado, como vimos, pelo tempo médio socialmente necessário
para produzí-lo.
Se essa empresa leva um tempo maior para produzí-lo do que a
média social, ela terá de vender seus alfinetes, apesar disso, pelo seu
valor social. Se o tempo socialmente necessário para se produzir uma
17 “Tempo de trabalho socialmente necessário é aquele requerido para produzir um valor de
uso qualquer, nas condições dadas de produção socialmente normais, e com o grau social
médio de habilidade e intensidade do trabalho” (MARX, 1988, p. 48).
18 “A vossa hora de trabalho vale a minha? Essa é uma questão que se discute por meio da
concorrência” (MARX, 2001, p. 48).
31
tonelada de alfinetes é, por exemplo, 8 horas, ela terá de trocar uma
tonelada de alfinetes pela quantidade de dinheiro equivalente a 8 horas
de trabalho social, mesmo que sua produção particular leve 16 horas.
Mas, se é o tempo de produção que determina o valor das
mercadorias, como se pode afirmar que o mercado exerce alguma
influência no tempo de produção de uma empresa particular e, portanto,
no seu processo de trabalho? Do ponto de vista social, é sim o tempo de
produção que determina o valor das mercadorias. Entretanto, para uma
empresa particular, o valor da mercadoria tem de aparecer como algo
dado, visto que ele é determinado pela totalidade de empresas que
produzem uma mercadoria de determinada espécie.
Na verdade, como a própria empresa é uma particularidade
dessa totalidade, ela também influencia o valor de uma determinada
mercadoria. Entretanto, sua influência é limitada pela sua
representatividade na produção global. Mais tarde, discutiremos esta
determinação do mercado em tempos de capitalismo monopolista.
O que nos interessa agora é que a empresa opera ciente da
produtividade que o “mercado” demanda. Como o desenvolvimento das
forças produtivas é também social - e como os meios de produção, as
máquinas e a tecnologia tendem a estar disponíveis a todas as empresas
que possam comprá-las, uma vez que também são mercadorias – a
empresa, para tornar-se competitiva, tem poucas alternativas. Ela tem de
se adequar tecnicamente ao contexto social no qual opera e sobre o qual
a lei do valor das mercadorias exerce pressão fundamental.
Não é sem razão que Marx (1988, p. 260) chama atenção para o
seguinte fato:
Que se aplique a uma mercadoria apenas o tempo de trabalho
socialmente necessário à sua produção, aparece na produção
mercantil em geral como compulsão externa da concorrência,
porque, expresso superficialmente, cada produtor individual tem
de vender sua mercadoria pelo seu preço de mercado. O
fornecimento de dado quantum de produtos num tempo de
trabalho determinado torna-se na manufatura lei técnica do
próprio processo de produção” (grifo meu).
Ou seja, em circunstâncias históricas dadas, o tempo
socialmente necessário, o qual é imbricado com o grau de
32
desenvolvimento das forças produtivas e as relações organizacionais
predominantes, aparece no mercado como uma “compulsão externa da
concorrência”, criando, por conseqüência, uma “lei técnica”, isto é, um
modo certo de se produzir.
Mas, o capital em sua totalidade é um incessante movimento e
se atentarmos para a sua forma de reprodução poderemos apreender as
razões de a “lei técnica” estar em constante mutação. Por isso, para
compreender o peso do mercado sobre as relações organizacionais, creio
ser necessário resgatar a análise de Marx sobre o ciclo de reprodução do
capital.
Sabemos que, para Marx, mais-valia corresponde ao trabalho
não pago. Isso porque a força de trabalho é também uma mercadoria na
sociedade capitalista, especial por ser a única capaz de criar valor. Os
trabalhadores alienam sua força de trabalho, que é para eles apenas valor
de troca, para que possam assim adquirir os meios de subsistência, o
conjunto de valores de uso necessários à sua reprodução enquanto
assalariados.
Como a força de trabalho é capaz de produzir mais valor do que
seu próprio valor e como máquinas, ferramentas, terra ou qualquer outra
coisa não produzem valor, todo valor apropriado pelo capital tem de ser
extraído do conjunto da força de trabalho a ele subordinado. O capital
pode comprar determinada quantidade de força de trabalho pelo seu
valor para que produzam mercadorias, que são para ele valor de troca e,
vendendo-as também pelo seu valor, apropriar-se de todo dinheiro
resultado da operação.
Na sociedade capitalista, a produção material da vida humana se
por essa relação, na qual o trabalho assume a forma historicamente
específica de trabalho assalariado subordinado ao capital. A compra de
força de trabalho, seguido da produção de mercadorias e sua venda no
mercado para a realização da mais-valia tem de ser sempre renovada.
Como afirma Marx (1985, p. 153), independente da forma que uma
sociedade assume, seu processo de produção tem de ocorrer
continuamente, sempre de novo, as mesmas fases. Por isso que,
“considerado em sua permanente conexão e constante fluxo de sua
renovação, todo processo social de produção é, portanto, ao mesmo
tempo, processo de reprodução”.
Toda sociedade tem de destinar parte de seus produtos à
renovação dos meios de produção, de modo que o processo anterior
33
possa se reproduzir. Ou seja, considerando inalteradas as demais
circunstâncias, uma forma social de produção só pode subsistir se forem
substituídas as ferramentas, matérias-primas e matérias auxiliares
consumidas por novos exemplares. Essa parte da produção não está
ligada diretamente ao consumo individual, mas à reprodução de uma
forma de produção (MARX, 1985).
Portanto, continua o autor, “as condições de produção são ao
mesmo tempo as condições da reprodução. [...] Se a produção tem forma
capitalista, então a terá a reprodução” (MARX, 1985, p. 153). Como na
sociedade capitalista o trabalho só aparece como meio de valorização do
capital, a reprodução, por sua vez, também aparece como meio de
reproduzir o capital adiantado.
Consideremos que um capitalista adiante um capital de
trezentos mil reais e, ao final de seis meses, este capital produza uma
mais-valia de sessenta mil. Se essa mais-valia é toda destinada ao
consumo individual do capitalista, assumindo a forma de renda, então,
permanecendo inalteradas as demais circunstâncias, trata-se de uma
reprodução simples. “Embora esta seja mera repetição do processo na
mesma escala, essa mera repetição imprime ao processo outras
características novas ou, antes, dissolve as características aparentes que
possui como episódio isolado” (MARX, 1985, p. 154).
O processo de produção capitalista é iniciado com a compra de
força de trabalho por um tempo determinado. Essa relação se renova
constantemente, sempre que vence o prazo contratado. Os trabalhadores,
porém, só recebem a parte que lhes cabe depois de produzidos em
mercadoria tanto o seu próprio valor quanto a mais-valia. Nesse ato de
produção, também consomem produtivamente o valor correspondente ao
capital constante adiantado, que é transferido para as mercadorias
produzidas por meio do trabalho. Logo, é com o resultado do período de
contrato anterior que o período seguinte será pago
19
.
19 “O capital variável [...] é apenas uma forma histórica particular em que aparece o fundo
dos meios de subsistência ou fundo de trabalho, de que o trabalhador necessita para a sua
própria manutenção e reprodução e que em todos os sistemas de produção social ele
mesmo tem de produzir e reproduzir. O fundo de trabalho flui constantemente para ele
sob a forma de meios de pagamento de seu trabalho, porque seu próprio produto afasta-se
constantemente dele sob a forma de capital. Mas essa forma de aparição em nada altera o
fato de que o capitalista adianta ao trabalhador seu próprio trabalho objetivado
(MARX, 1985, p. 154).
34
É claro que o primeiro encontro entre trabalho assalariado e
capital não é, necessariamente, provocado por uma acumulação
capitalista precedente, mas pelo que Marx chama de “acumulação
primitiva”. Entretanto, a “...mera continuação ou a reprodução simples
efetuam [...] outras mudanças notáveis, que atingem não somente o
capital variável, mas também o capital global” (MARX, 1985, p. 155).
Mesmo que toda a mais-valia se converta em renda para o
capitalista, como o é na reprodução simples, a continuidade dessa forma
de produção faz com que em algum momento o capital em movimento
não corresponda em nada o valor originalmente adiantado. Ao longo
de determinado período, serão os mesmos a quantidade de mais-valia
extraída e a quantidade de valor originalmente adiantada como capital.
Esse período corresponde ao tempo de reprodução do capital e acusa que
o capital adiantado foi todo consumido pelo capitalista. Ao longo do
tempo, portanto, o capital é capital acumulado ou mais-valia acumulada,
sem um átomo sequer da “acumulação primitiva” que fora o pontapé
inicial de todo o movimento (MARX, 1985).
São os próprios trabalhadores que produzem, pois, o valor que é
transformado em capital e que se volta contra eles para explorá-los
20
. Do
ponto de vista do capital, é imprescindível que a classe trabalhadora
possa se reproduzir enquanto mercadorias postas a venda no mercado,
portanto capacitadas para sua inserção no processo produtivo. Este
aspecto é essencial para a compreensão da teoria da alienação de Marx.
Não se trata de mero estado de consciência, como é seu significado no
senso comum. A alienação é conseqüência de uma atividade alienada,
que é estranha ao próprio produtor e se volta contra ele como uma força
exteriorizada. Ter consciência disso em nada altera o fato de que essa
força estranha continua atuando como um imperativo, uma força social
individualmente insuperável e ao mesmo tempo constrangedora. Por
isso, a alienação não pode ser superada por meio da consciência.
Voltaremos a essa questão mais tarde.
20 “O processo de produção capitalista, considerado como um todo articulado ou como
processo de reprodução, produz por conseguinte não apenas a mercadoria, não apenas a
mais-valia, mas produz e reproduz a própria relação capital, de um lado o capitalista, do
outro o trabalhador assalariado” (MARX, 1985, p. 161). Tal concepção estava também
presente no “jovem Marx” dos Manuscritos Econômico-filosóficos (MARX, 2005) e é
apenas uma das inúmeras provas contra uma suposta sepração entre o “jovem Marx” e o
“velho Marx”.
35
Até agora, tratamos da reprodução da relação capital como se
toda a mais-valia produzida fosse destinada à composição de renda do
capitalista, que a usariam exclusivamente para a satisfação de suas
necessidades individuais. A isso, Marx chamou, como afirmei
anteriormente, de reprodução simples. Contudo, o movimento do capital
assume a forma histórica de “reprodução ampliada”, em que toda ou
parte da mais-valia é destinada ao incremento de capital, que Marx
(1985) chama de acumulação de capital.
Ao final de cada ciclo, como no seu início, o capitalista tem
uma soma de dinheiro que representa tanto o capital adiantado quanto a
mais-valia extraída, mas que não se diferenciam entre si. Essa soma de
dinheiro pode ser toda retransformada em capital em escala ampliada,
sempre com o objetivo de se obter mais lucro.
Subtraindo a parte da mais-valia que é destinada à renda do
capitalista, o restante será incorporado ao capital. São inúmeras as
possibilidades das empresas quanto ao modo de aplicá-lo para se auto-
expandir. Dependendo das circunstâncias em que se encontra a empresa
e do “ambiente” em que está inserida, seu crescimento tende a modificar
sua composição orgânica
21
. De todo modo, a mais-valia transformada
em capital possibilitará que o capitalista se aproprie, findo o ciclo
subseqüente, de uma quantidade ainda maior de mais-valia, e assim
sucessivamente.
uma estreita relação, conforme Marx (1985), entre a
composição-valor ou composição orgânica do capital e sua composição
técnica (relação entre massa de meios de produção utilizados e massa de
trabalho exigida para utilizá-los).
Não obstante as inúmeras possibilidades de aplicaçãodo capital
acumulado, o movimento geral do capital tende a ampliar sua parte
constante por meio do desenvolvimento tecnológico. (MONTAÑO,
1999
22
). Essa alteração, segundo o autor, implica também uma alteração
na composição técnica do capital. Devemos lembrar que toda a alteração
21 A composição orgânica do capital é a relação entre capital constante (quantum de capital
destinado aos meios de produção) e capital variável (quantum de capital destinado à
compra de força de trabalho) (MARX, 1988).
22 A explicação de Marx, extensa e complexa, da relação entre o movimento da “composição
orgânica do capital” e seus efeitos para a classe trabalhadora encontra-se no capítulo XXIII
do livro primeiro de O Capital. Utilizo como referência a obra de Montaño (1999) por sua
síntese nos ser suficiente para a compreensão de seus principais efeitos para os
processos de trabalho.
36
técnica, toda a alteração nos processos de trabalho em geral, traz
consigo, direta ou indiretamente, mutações nas relações organizacionais.
Por isso a apreensão deste movimento é de suma importância para
entendermos a influência do mercado sobre as relações organizacionais.
Montaño (1999) afirma que o capital tende a se concentrar onde
uma maior composição orgânica, uma vez que sua elevação se
realiza quando amplia, concomitantemente, a quantidade de mais-valia
de tal modo que compense a elevação de sua parte constante.
O incremento tecnológico aumenta a produtividade da empresa
e, por sua vez, reduz o custo unitário das mercadorias. Se uma empresa
o faz sem que esta prática tenha sido generalizada em determinado ramo
de produção, isto é, se uma empresa tem uma composição orgânica mais
elevada do que a média das composições das empresas do mesmo ramo
em geral, sua mais-valia criada é maior. Em um ciclo de reprodução
ampliada, como discutimos anteriormente, isso significa dizer que, por
conta de uma maior quantidade de mais-valia retransformada em capital,
sua acumulação é também maior.
Montaño (1999), discutindo o conceito de grandes e pequenas
empresas na sociedade capitalista, entende que se deve considerar como
“grande empresa” justamente aquelas as quais a composição orgânica
está acima da média do ramo produtivo, prescindindo progressivamente
da parte variável via automação. As pequenas empresas, por outro lado,
têm sua composição abaixo da “composição média” do ramo, com a
parte variável do capital também acima da média.
A conseqüência para a empresa com composição orgânica
abaixo da média do ramo em que atua é que o valor produzido pela força
de trabalho é menor do que nas “grandes empresas” (MONTAÑO,
1999). Para compensar esse prejuízo, a empresa pode intensificar o
trabalho de seus “colaboradores” ou reduzir seus salários, diminuindo ou
mesmo eliminando, assim, a queda dos lucros devido ao “atraso
tecnológico
23
”.
De todo modo, prevalece ainda a tendência de concentração e
centralização de capitais, de incorporação de uma empresa por outra e a
23 “É certo que esse desenvolvimento da força produtiva é, ao mesmo tempo, acompanhado
por uma depreciação parcial de capitais em funcionamento. Na medida em que essa
depreciação se faz sentir agudamente por meio da concorrência, o peso principal recai
sobre o trabalhador, com cuja exploração mais elevada o capitalista procura se indenizar”
(MARX, 1985, p. 182).
37
eliminação das que não tiverem “força competitiva” para se manterem
no mercado. Ao longo do processo histórico, o mercado caminha rumo à
formação de oligopólios e monopólios. O capitalismo concorrencial
produz, assim, a sua própria negação.
É importante acentuar a diferença conceitual presente na obra
de Marx entre concentração e centralização de capitais. Enquanto aquela
significa a concentração crescente dos meios de produção e do comando
do trabalho, esta está ligada à centralização do capital em um número
tendencialmente menor de capitalistas (MARX 1985). Nesse caso, “o
capital se expande aqui numa mão, até atingir grandes massas, porque
acolá ele é perdido por muitas mãos. É a centralização propriamente
dita, distinguindo-se da acumulação e da concentração” (MARX, 1985,
p. 196). Segundo o autor, a concorrência - muito mais intensa nos ramos
em que as mercadorias são produzidas por capitais menores - e o sistema
de crédito são as principais alavancas da centralização do capital.
A concorrência leva ao barateamento das mercadorias por meio
do aumento da produtividade e são os capitais maiores que conseguem
fazê-lo com mais rapidez. Dessa forma, os capitais maiores tendem a
derrotar os menores. Marx (1985) lembra-nos de que junto ao
desenvolvimento do capitalismo cresce também o tamanho mínimo do
capital individual exigido para se empreender em determinado ramo sob
condições normais. Os numerosos capitais menores passam a disputar,
por isso, esferas da produção de que as grandes empresas se apoderaram
apenas parcialmente, o que torna a concorrência nessas áreas muito mais
acirradas. A intensidade da concorrência entre as empresas leva
novamente à concentração de capitais e à destruição das derrotadas.
A centralização é, portanto, uma outra forma (além da
acumulação) de expandir a escala das operações capitalistas de uma
empresa. Complementares, ambas levam a uma expansão que é “o ponto
de partida para uma organização mais abrangente do trabalho coletivo
de muitos, [...] isto é, para conversão progressiva de processos de
produção isolados e rotineiros em processos de produção socialmente
combinados e cientificamente organizados” (MARX, 1985, p. 197).
A expansão de uma empresa pressupõe que ela possa encontrar
no mercado os artefatos necessários para tanto. Pressupõe, pois, uma
produção global também auto-expansiva, tanto em meios de produção
quanto em meios de subsistência, para que ambos possam ser
convertidos em capital (MARX, 1985). “Em uma palavra: a mais-valia
38
é transformada em capital porque o mais-produto, do qual é o valor,
contém os componentes materiais de um novo capital” (ibidem, p.
164).
A proporção em que se divide a mais-valia entre renda para o
capitalista e acumulação é a que determina a grandeza da acumulação
(MARX 1985). Por isso, tanto melhor será o capitalista quanto maior a
parte destinada à acumulação em detrimento de suas necessidades
individuais. Com efeito, o capitalista é, para Marx, apenas a
personificação do capital. Sua posição na produção social não lhe
outra alternativa que não a reprodução ampliada de seu capital.
Apenas na medida em que é capital personificado, tem o
capitalista valor histórico e aquele direito histórico à existência
[...]. Somente nessa medida sua própria necessidade transitória
está embutida na necessidade transitória do modo de produção
capitalista. Mas, nessa medida, também não é o valor de uso a
satisfação, mas o valor de troca e sua multiplicação o móvel de
sua ação. Como fanático da valorização do valor, ele força sem
nenhum escrúpulo a humanidade à produção pela produção [...].
Apenas como personificação do capital, o capitalista é
respeitável. Como tal, ele partilha com o entesourador o instinto
absoluto do enriquecimento. O que neste, porém, aparece como
mania individual, é no capitalista efeito do mecanismo social, do
qual ele é apenas uma engrenagem. Além disso, o
desenvolvimento da produção capitalista faz do contínuo
aumento do capital investido numa empresa industrial uma
necessidade e a concorrência impõe a todo capitalista as leis
imanentes do modo de produção capitalista como leis coercitivas
externas. Obriga-o a ampliar seu capital continuamente para
conservá-lo, e ampliá-lo ele o pode mediante acumulação
progressiva (MARX, 1985, p. 172).
Temos aqui uma característica fundamental do mercado para
compreender sua influência sobre as relações organizacionais. As “leis
coercitivas externas” do capital incidem sobre as empresas como uma
“força estranha” que impele a reprodução ampliada e que influencia,
naturalmente, sua composição técnica (relação entre a massa de meios
de produção e a massa de trabalho necessário para utilizá-los). O
39
capitalista, que comprou a força de trabalho, pode usá-la, de início
24
, do
modo como considerar adequado, como usa todas as demais
mercadorias que comprou no mercado. Deve, portanto, organizar o
trabalho da maneira que lhe for mais conveniente para aumentar seus
ganhos. “Uma pessoa encarna a personagem econômica do
capitalista porque seu dinheiro funciona continuamente como capital”
(ibidem).
Naturalmente, com o crescimento das empresas e seu
conseqüente ganho de complexidade, tanto no fluxo produtivo como nas
relações hierárquicas estabelecidas, essa personificação do capital
ultrapassa o indivíduo capitalista e abrange também parte dos
assalariados que são “integradospela administração para controlar seus
pares em favor do capital.
Isso se torna particularmente importante para os estudos
organizacionais quando a crítica se desloca daquilo que é da natureza da
empresa, da sua “substância ontológica” (MÉSZÁROS, 2006), para os
comportamentos, discursos e racionalidades dos indivíduos que a
administram. Somente por meio de um isolamento da empresa da
totalidade social que acaba por trazer à tona as “leis coercitivas
externas” - é que se pode imaginar que a administração do capital pode
abandonar o cálculo, a racionalidade instrumental etc., em nome de seus
valores éticos, de princípios morais humanitários.
O capital, afirma Mészáros (2004, p. 16):
...é um sistema orgânico de reprodução sociometabólica, dotado
de lógica própria e de um conjunto objetivo de imperativos, que
subordina a si para melhor e para pior, conforme as alterações
das circunstâncias históricas – todas a áreas da atividade humana,
desde os processos econômicos mais básicos até os domínios
intelectuais e culturais mais mediados e sofisticados.
Se acaso se considerar a empresa um autômato, parece
perfeitamente possível que um “outro organizar” seja posto em prática,
sem grandes constrangimentos. Uma vez que o mercado é visto apenas
como “um dos componentes”, o grande problema passa a ser que os
24 Ao longo do processo histórico e do desenvolvimento da luta de classes criaram-se leis que
regulam o uso da força de trabalho pela empresa.
40
managers lhe atribuem um peso exagerado e acabam
unidimensionalizando as relações organizacionais. Seria preciso que os
mesmos gestores do capital constituíssem práticas organizativas mais
próximas de valores éticos do que do cálculo instrumental, considerando
outras dimensões que não apenas a econômica. E por que tais gestores
não põem em prática essas relações substantivadas? Nessa perspectiva
idealista, a resposta tem de ser a afirmação de que a “visão de mundo”
positivista, seu discurso e suas verdades são tão fortes que tornam
impossível, para a maioria, sequer vislumbrar que um outro organizar é
possível
25
.
Outra perspectiva reconhece as relações de poder e de interesse
presentes nas empresas, mas não toma conhecimento das “leis
coercitivas externas”. O resultado é focar a resistência no micro-espaço,
como se as relações organizacionais de determinada empresa fossem
conseqüências exclusivas de relações políticas internas. As teses da
“Economia Solidária” se aproximam muito dessa visão.
Essas teses teriam outras problematizações caso dessem a
devida importância às necessárias mediações de uma organização
particular - não exclusivamente a empresa com a totalidade social.
Afinal, como afirma Konder (1981, p. 36-7), “se não enxergarmos o
todo, podemos atribuir um valor exagerado a uma verdade limitada
(transformando-a em mentira), prejudicando nossa compreensão de uma
verdade mais geral”.
Mas, se por um lado a administração empresarial “têm mandato
estrito de executar os objetivos e imperativos do capital, caso contrário
são ejetados sem cerimônia do processo de reprodução social como
25 Ressalte-se que não se quer dizer aqui que os managers - ou qualquer “personificação do
capital” - não tenham efetivamente uma “visão de mundo positivista” e um discurso que se
apóie no “mercado” para justificar ideologicamente as políticas das empresas, mas sim que
a mera transformação dessa visão de mundo o cria condições, por si só, para se pôr em
prática um outro organizar. Não é por outra razão que a micro-política tem também micro-
consequências. Durante algum tempo foi suficiente aos trabalhadores organizarem-se
regionalmente para intervir no processo de trabalho e na repartição da riqueza produzida.
Hoje, em tempos de “globalização” (do capital), Mészáros (2004) chama a atenção para a
premente necessidade histórica de um movimento internacionalista, que antes surgira no
movimento operário apenas como um apelo moral. O autor chega considerar impotente a
administração de qualquer Estado nacional que se ponha a resolver os problemas da
acumulação capitalista apenas nos limites do território nacional. Se tem razão o filósofo
quanto a governos nacionais, o que dizer da tese de que os administradores de empresas
podem, individualmente, transformar as relações organizacionais de empresas capitalistas?
41
'capitalistas fracassados'(MÉSZÁROS, 2004, p. 19), disso não decorre
que as relações organizacionais são determinadas unilateralmente pelas
“leis coercitivas externas”.
As decisões que têm um nível de abrangência organizacional
não deixam de ter sua natureza política, suas relações de poder
implícitas ou explícitas, sua dimensão hierarquizada ou não, conflitos de
interesses etc., por atuarem sob a força do movimento do capital.
Organizações, quaisquer que sejam suas naturezas, podem tomar rumos
muito diferenciados umas das outras. Entretanto, isso em nada muda o
fato de que a força do capital continua atuando e as constrangendo no
sentido da “integração” das organizações pelo sociometabolismo do
capital. Não muda em nada o fato de que a organização da produção
material da vida é materialmente alienada.
Supondo, então, que determinados administradores de empresa,
os quais têm a incumbência social de reproduzir em escala sempre
crescente o capital que administram, tenham uma visão política que bata
de frente com a força do mercado, com a técnica decorrente da relação
de assalariamento e, portanto, com a ideologia dominante, quais seriam
as conseqüências para a organização? Se uma empresa adotasse relações
organizacionais com princípios e finalidades totalmente diferentes da
“produção pela produção”, qual seria seu destino?
A tendência, pelo que apresentei até aqui, é que essas
organizações fossem “varridas do mapa” pelo metabolismo
incontrolável do capital. Mas, como afirma Mészáros (2004, p. 365), as
leis econômicas não podem ser interpretadas como leis absolutas.
...devemos ter sempre em mente que todas as leis econômicas são
leis tendenciais. Isto é, em sua natureza mais íntima, são
qualitativamente diferentes da lei da gravidade, por exemplo,
pois esta, sendo uma lei material do universo físico, não se
estabelece tendencialmente, mas com uma finalidade e uma
previsibilidade categóricas. Isto também significa que, no
contexto das leis econômicas, estamos falando sobre tendências
específicas e ao menos temporariamente removíveis que na
realidade não podem ser separadas de suas contratendências,
embora no curso da análise teórica seja inevitável tratá-las às
vezes separadamente; ou seja, sempre que a ênfase deva ser posta
sobre um aspecto, em oposição ao outro.
42
Logo, se é verdade que a tendência das organizações capitalistas
é reproduzir não apenas capital, mas também a “lei técnica” que aparece
à administração como um imperativo do mercado, isso não quer dizer
que, como estratégia de luta política, práticas organizativas diferentes
não possam ser experimentadas. Sobre essa questão particular,
importantíssima para a compreensão da particularidade das organizações
do MST e do assentamento Conquista na Fronteira, discutirei mais
aprofundadamente no capítulo quinto. Cumpre agora dar atenção à
relação histórica entre o movimento de acumulação do capital com a
metamorfose dos processos de trabalho, uma vez que o desenvolvimento
do trabalho concreto subsumido ao trabalho abstrato transforma a
própria natureza da subsunção do trabalho ao capital, passando de uma
subsunção meramente formal à subsunção real. Mais ainda, embora o
trabalho concreto possa assumir variadas formas sem por isso romper
com sua subsunção ao trabalho abstrato, as características
predominantes das práticas organizativas em determinado contexto, a
direção que tomam o desenvolvimento tecnológico, são também
elementos essenciais para a compreensão dos limites e possibilidades
das cooperativas. assim será possível compreender se ou não, e
em que medida, possibilidades de um rompimento com a subsunção real
do trabalho ao capital diante de uma organização que tem como
estratégia política a organização coletiva e autogerida do trabalho.
43
4 Movimento das Relações de Trabalho no Capitalismo: do
Mestre-artesão à “Acumulação Flexível”
Até aqui, ocupei-me em evidenciar as “leis econômicas” que
levam o mercado capitalista a incidir como um imperativo determinante
nos processos técnicos de trabalho e nas relações organizacionais.
Vimos que o sociometabolismo capitalista força a administração a
considerar como único critério na organização de todos os seus recursos
comprados no mercado inclusive a força de trabalho as condições
que permitam a reprodução ampliada de seu capital.
Se, por um lado, essa é uma constante em toda a história do
modo de produção capitalista, as condições que permitem a
continuidade dessa reprodução ampliada, por outro, são historicamente
mutáveis, de acordo com as circunstâncias históricas, que resultam da
combinação de diversos fatores que se relacionam entre si (política,
cultura e meio-ambiente, para citar alguns).
Entretanto, não obstante todas as nuances e contingências que
são presentes em qualquer movimento histórico de longa duração,
quando voltamos os olhos para as transformações dos processos de
trabalho ao longo do capitalismo, o que assistimos é, simultaneamente:
(a) um aumento na força produtiva do trabalho por meio dos avanços
tecnológicos e das mudanças nas relações organizacionais no âmbito da
produção e (b) uma intensificação do controle da vida dentro e fora do
trabalho, por parte (da gestão) do capital, sobre os trabalhadores.
Parece-me de fundamental importância, para compreender o
significado das relações organizacionais criadas por uma organização de
resistência
26
, resgatar o desenvolvimento histórico das relações
organizacionais da empresa capitalista. Isso porque não como
compreender historicamente a resistência sem compreender
historicamente a dominação.
Por isso, passarei rapidamente, a seguir, à análise do trabalho e
do trabalho alienado, conceito sem o qual não se pode entender a
essência da subsunção do trabalho ao capital. Em seguida, ao fenômeno
histórico que corresponde à passagem da subsunção formal à subsunção
real do trabalho ao capital - dentro e fora das empresas - conseqüente do
26 Organização de resistência é aqui entendida como aquela que contrapõe politicamente os
imperativos do capital. O limite da resistência é, pois, a própria superação da sociedade
capitalista.
44
desenvolvimento das chamadas “ciências da administração”. Tendo
percorrido este caminho, a compreensão do fenômeno do
cooperativismo e da particularidade das organizações de produção
cooperativa do MST tornar-se possível sob o ponto de vista que
pretendo apresentar aqui, cujo horizonte é o da “transcendência
positiva” das práticas alienadas de organização do trabalho.
4.1 Notas Introdutórias Sobre Trabalho e Alienação
Como afirma Tumolo (2003a), a história da metamorfose dos
processos de trabalho no capitalismo é a história da progressiva
alienação da atividade produtiva. Por isso é necessário compreender o
significado do trabalho humano enquanto elemento ontológico e
fundante do ser social, como também de seu estado alienado no
capitalismo.
A subsunção do trabalho ao capital pressupõe a universalização
da relação assalariada entre os produtores reais e o capital. Como se
sabe, trabalho não é sinônimo de emprego, embora na sociedade
capitalista haja essa identidade em diversos momentos. O trabalho não é,
portanto, necessariamente subordinado ao capital. Apesar disso, quando
pensamos em “trabalho” na administração, logo nos vem à mente a idéia
de “trabalho assalariado” (SOLÈ, 2004).
A história apresenta hoje uma contradição curiosa: por um lado,
mostra-nos que tudo em nossa sociedade é efêmero: “o que ontem era
moderno está hoje ultrapassado; o que era referência segura revela-se,
em pouco tempo, arcaico; as tendências históricas que julgávamos
estabelecidas são rapidamente revertidas e sem qualquer cerimônia para
com nossas expectativas” (LESSA, 2005a, p. 70). Em contrapartida,
mostra-nos também que toda mudança tem de acontecer no e pelo
mercado. O mercado aparece, pois, como transcendental, insuperável.
“A mercadoria assume, na ideologia cotidiana, o estatuto ontológico da
transcendentalidade: como substrato último e imutável, seria o suporte
de toda e qualquer existência concebível” (idem).
Não obstante a isso, a existência da força de trabalho sob a
forma de mercadoria tem seu marco histórico. “Antes de tudo”, afirma
Marx (1988, p. 142), “o trabalho é um processo entre o homem e a
Natureza, um processo em que o homem, por sua própria ação, media,
regula e controla seu metabolismo com a Natureza”. Na verdade, como
45
o próprio homem é parte da Natureza, o trabalho é também a
automediação da Natureza consigo mesma (MÉSZÁROS, 2006). E
podemos mesmo encontrar outras formas de “automediação da Natureza
consigo mesma”, outras formas de trabalho, que não o trabalho humano.
Entretanto, essas outras formas se dão de uma maneira puramente
instintiva, qualitativamente diferente do trabalho humano.“Assim, a
espécie humana partilha com as demais atividades de atuar sobre a
natureza de modo a transformá-la para melhor satisfazer suas
necessidades” (BRAVERMAN,1980, p. 49).
O que se deve ressaltar, entretanto, não são as semelhanças
entre o trabalho humano e o dos outros animais, mas os aspectos que
distinguem um do outro (MARX, 1988; BRAVERMAN, 1980). Essa
distinção aponta para as características que são exclusivamente humanas
e que tornam substancial a diferença entre ambos.
É oportuno resgatar aqui a clássica passagem de Marx (1988, p.
142) sobre essa questão:
Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a
abelha envergonha mais de um arquiteto humano com a
construção dos favos de suas colméias. Mas o que distingue, de
antemão, o pior arquiteto da melhor abelha é que ele construiu o
favo em sua cabeça, antes de construí-lo em cera. No fim do
processo de trabalho obtém-se um resultado que já no início deste
existiu na imaginação do trabalhador, e portanto idealmente. Ele
não apenas efetua uma transformação da forma natural; realiza,
ao mesmo tempo, na matéria natural seu objetivo, que ele sabe
que determina, como lei, a espécie e o modo de sua atividade e ao
qual tem de subordinar sua vontade.
Ou seja, o que é preciso sublinhar é o fato de que o ser humano
antecipa idealmente em sua cabeça seu objetivo e o modo pelo qual irá
realizá-lo para satisfazer suas necessidades. É por isso que o trabalho
possui um caráter eminentemente teleológico (LUKÁCS, s/d.;
ANTUNES, 2003 e 2006). Segundo Lukács (s/d., p. 6), “o trabalho é
formado por posições teleológicas que, em cada oportunidade, põem em
funcionamento séries causais”. Enquanto a causalidade representa a lei
espontânea em que todos os demais movimentos são dela derivados, “a
teleologia é um modo de pôr - posição sempre realizada por uma
46
consciência - que, embora guiando-as em determinada direção, pode
movimentar apenas séries causais” (ibidem).
Isto é, o ser humano projeta idealmente aquilo que pretende
executar com o objetivo de satisfazer suas necessidades
27
, com base em
possibilidades limitadas pelas circunstâncias históricas na qual atua, ou
seja, diante de condições que independem de sua vontade. Por isso
Lukács (s/d., p. 5) caracteriza, “com justa razão”, o “animal tornado
homem pelo trabalho” como um ser que dá respostas.
O trabalho é a mediação necessária entre o homem e a
natureza, independente da forma social. Dizia Gramsci (1976, p. 71) que
“toda a sociedade vive e desenvolve-se, porque se insere numa corrente
de produção historicamente determinada: onde não existe produção,
onde não existe trabalho organizado (mesmo numa forma elementar)
não existe sociedade, não existe vida histórica”. “O processo de
trabalho”, com efeito,
[...] é atividade orientada a um fim para produzir valores de uso,
apropriação do natural para satisfazer a necessidades humanas,
condição universal do metabolismo entre homem e a Natureza,
condição natural eterna da vida humana e, portanto, independente
de qualquer forma dessa vida. Sendo antes igualmente comum a
todas as suas formas sociais (MARX, 1988, p. 146).
O trabalho como atividade proposital, consciente, é o que
permite o surgimento da sociedade humana. O famoso texto de Engels
(2004), Sobre o Papel da Transformação do Macaco em Homem pelo
Trabalho, já explicava, de acordo com os conhecimentos da época,
como o trabalho permitiu o desenvolvimento das primeiras sociedades,
criando a linguagem, sendo a base das relações sociais e permitindo o
desenvolvimento do conhecimento acumulado e da cultura
28
.
27 “No processo de trabalho a atividade do homem efetua, portanto, mediante o meio de
trabalho, uma transformação do objeto de trabalho, pretendida desde o princípio. O
processo extingue-se no produto. Seu produto é um valor de uso; uma matéria natural
adaptada às necessidades humanas mediante transformação da forma. O trabalho se uniu
com o seu objetivo. O trabalho está objetivado e o objeto trabalhado. O que do lado do
trabalhador aparecia na forma de mobilidade aparece agora como propriedade imóvel na
forma de ser, do lado do produto. Ele fiou e o produto é um fio” (MARX, 1988, p. 144).
28 Segundo Braverman (1980), a idéia central de Engels permanece válida até hoje,
respaldada por diversos descobrimentos antropológicos.
47
Nesse sentido, afirma Braverman (1980, p. 53) que “o trabalho
que ultrapassa a mera atividade instintiva é [...] a força que criou a
espécie humana e a força pela qual a humanidade criou o mundo como o
conhecemos”. É também esta característica – concepção em mente antes
de sua objetivação que permite dissolver a unidade entre concepção e
execução nas diversas formas de organização do trabalho, o que seria
impossível caso a atividade produtiva fosse puramente instintiva. Por
isso, nas sociedades humanas, o planejamento pode ser descolado da
produção (idem).
Assim, se por um lado o trabalho é ontológico, constituinte do
ser social, a separação entre concepção e execução e o surgimento da
força de trabalho como mercadoria não o é, tampouco a força de
trabalho como mercadoria comprada e portanto subordinada pelo
capital. Segundo Lessa (2005b), o trabalho tal qual analisamos até aqui,
em que se encontram indivíduo e natureza, sempre imediatamente, é
uma mera abstração, pois é independente de suas formas históricas
29
.
Toda a interação com a natureza é uma interação da sociedade com a
natureza, uma vez que não se pode falar em indivíduo sem sociedade.
Por essa razão, o caráter teleológico do trabalho tem características
específicas nas sociedades de classes, o que significa dizer que os
momentos da concepção e execução são separados de acordo com a
formação de classes. Assim, ao passo que as classes dominantes
exercem a atividade intelectual, as classes subalternas as que
transformam diretamente a natureza - exercem o trabalho manual. Mas
como a atividade intelectual necessita controlar as objetivações que
transformam efetivamente a natureza, o traballho intelectual das classes
dominantes não é outra coisa senão o desenvolvimento e aplicação de
um modo eficiente de controlar as classes subalternas de acordo com
seus intersses de classe. Surgem aqui, em um modo ainda muito
rudimentar, os germes do que mais tarde formarão as chamadas
“Ciências da Administração”. O trabalho manual, por sua vez, não perde
seu momento teleológico, mas passa agora também a considerar sua
29 “Para evitar mal-entendidos, lembremo-nos de que, para Marx, uma abstração teórica não
significa uma falsidade ou apenas uma ‘pulsão’ da subjetividade. Para o pensador alemão,
universalidade e singularidade são distintas esferas de generalização do próprio real e, por
isso, são igualmente reais. [...] o abstrato é o cancelamento, no processo real, de
determinadas particularidades e, no pensamento, as categorias que refletem esse
cancelamento” (LESSA, 2005b, p. 56). Desnecessário dizer que essa observação de Lessa
vale para todas as categorias marxianas.
48
posição de classe no momento de sua prévia-ideação. Ou seja, a
subjetividade do trabalhador manual passa a levar em conta o controle
estranho ao qual está sujeito e não apenas as necessidades as quais
pretende satisfazer. Ambas as atividades a intelectual da classe
dominante e a manual das classes subalternas permanecem
constituídas pelo momento da prévia-ideação seguida da objetivação,
mas agora determinadas por suas posições de classe. As complexidades
específicas que assume essa relação dão forma à relação
ontologicamente estabelecida entre o gênero humano e a natureza ao
longo da história.
“Por isso”, prossegue o autor (idem, p. 55-6), “quando
examinamos o trabalho como manifestação particular de um momento
histórico esta abstração não basta”. Para que se compreenda uma forma
historicamente específica de trabalho, no caso, o da sociedade
capitalista, “... é necessário que se incorpore à análise ‘abstrata’ o exame
das mediações históricas que articulam o trabalho, como categoria
histórico-universal, em sua forma histórico-particular ‘trabalho
abstrato’”.
Segundo Tumolo (2003a), Marx traz em O Capital três
categorias distintas e inter-relacionadas para tratar do trabalho na
sociedade capitalista. O trabalho concreto, que é presente em qualquer
sociedade; o trabalho abstrato, que constitui a substância do valor das
mercadorias; e, completando a trilogia, o trabalho produtivo de capital,
comprado por este para seu processo de autovalorização.
Lessa (2005a; 2005b), por sua vez, apresenta em sua análise os
conceitos de trabalho concreto e trabalho abstrato, sendo que este se
divide em trabalho abstrato improdutivo e trabalho abstrato produtivo.
Podemos notar que em ambos os autores, cujas respectivas análises da
sociedade do capital são derivadas do sistema marxiano, um
movimento da categoria trabalho, que representa tanto graus distintos de
generalização, quanto o próprio movimento histórico da realidade. Isso
porque o “trabalho abstrato produtivo” ou “trabalho produtivo de
capital” podem existir tendo como pressuposto o “trabalho abstrato”,
isto é, a produção de mercadorias. A produção de mercadorias (trabalho
abstrato), por sua vez, implica necessariamente a produção da vida
humana trabalho concreto, necessário em qualquer forma social. O
caminho inverso, entretanto, não é verdadeiro.
49
A possibilidade de uma divisão do trabalho com base na
dissolução entre planejamento e execução leva, nas sociedades de
classes, a uma verdadeira oposição entre ambos (LESSA, 2005b) e torna
real a alienação do trabalho. Segundo Mészáros (2006), essa alienação
assume, primeiramente, uma forma política, em que a apropriação do
excedente da produção social e a divisão entre o trabalho espiritual e o
trabalho das mãos têm por base uma relação política direta. A
propriedade privada é identificada com seu possuidor e ideologicamente
justificada
30
. Como se origina esse processo e os mecanismos que
legitimam politicamente esta forma de alienação são questões cujas
respostas são variadas, mas seu estudo não nos interessa aqui.
Entretanto, cabe ressaltar que a alienação política é condição necessária
para a afirmação da alienação econômica, ou universal (idem).
A alienação econômica pressupõe também o fortalecimento do
mercado e do dinheiro. Quanto mais se fortalecem esses elementos,
tanto mais perdem força as relações políticas que asseguravam a forma
de alienação anterior (MÉSZÁROS, 2006). com a generalização da
força de trabalho como mercadoria é que a sociedade capitalista pode se
firmar, pois, como afirma Romero (2005, p. 80), “de nada vale uma
grande massa de dinheiro sem que haja, ao mesmo tempo, outra grande
massa de trabalho disponível”. Como a generalização da produção
capitalista pressupõe a transformação de tudo que lhe for necessário,
inclusive a força de trabalho, em mercadoria, “a premissa de toda a
produção capitalista é, portanto, nivelar, no âmbito da circulação
[mercado], todos sob um mesmo critério: possuidores de mercadoria,
quer sejam dinheiro ou força de trabalho(ROMERO, 2005, p. 81). As
relações pessoais de dominação são assim substituídas por relações
mercantis de dominação.
A origem da subsunção, portanto, representa a emergência de
novas relações de hegemonia e subordinação, caracterizada pela
substituição de relações pessoais de dominação por relações
mercantis de dominação, em que a função/posição social do
indivíduo (capialista, trabalhador ou proprietário de terra) parte
da combinação dos elementos na produção (capital, trabalho e
terra)” (ROMERO, 2005, p. 75).
30 Para um aprofundamento sobre essa forma de dominação diretamente política, cf. Marx
(2005, p. 96-110) e Mészáros (2006).
50
É, então, concomitante à consolidação do mercado a subsunção
formal ao capital, a qual será abordada no tópico seguinte.
4.2 Subsunção Formal ao Capital
O mercado, durante um tempo significativo das sociedades
européias, restringia-se a um espaço pouco relevante em relação à
totalidade da produção social. Eram, inclusive, localizados fisicamente,
geralmente nas entradas das médias e grandes cidades. Os artesãos,
trabalhadores livres e donos dos seus meios de trabalho, produziam suas
mercadorias e as intercambiavam no mercado por outras que lhes
fossem mais úteis (M-M) ou por um equivalente geral, o dinheiro (M-D,
para compra; D-M, para venda).
O surgimento do dinheiro, que nada mais é do que a fixação de
uma mercadoria como o equivalente geral para a troca (MARX, 1988),
criou condições para que comerciantes, com o decorrer do tempo,
acumulassem certa quantidade de valor. A esse fenômeno, descrito
extensa e ricamente no capítulo XXIV de seu livro O Capital, Marx
chamou de acumulação primitiva.
Como se sabe, as primeiras acumulações permitiram o
surgimento de uma classe capitalista que ganhava poder político e
econômico rapidamente, influenciando intensamente também as
manifestações artísticas e culturais. Esse processo culminou nas
revoluções burguesas das sociedades européias. Não me cabe aqui
adentrar nessas questões. O que nos interessa é a transformação das
organizações de produção conseqüentes desse processo.
Segundo Braverman (1980), o problema da gerência aparece
nessa fase (início do capitalismo) apenas de forma rudimentar. Para o
autor, esse período foi marcado por um constante esforço dos
capitalistas em comprar a força de trabalho como uma quantidade
determinada, completa e incorporada no produto. Por isso, a
subcontratação e o trabalho doméstico ocuparam lugar de destaque. Isso
fazia com que os trabalhadores se tornassem seus próprios capatazes.
Esses primeiros sistemas de contratação do trabalho domiciliar
representaram um momento de transição, em que o capitalista ainda não
51
havia assumido a função essencial de direção e controle do processo de
trabalho.
De acordo com Prestes Motta e Vasconcelos (2002), as
primeiras concentrações de capitais permitiram mais tarde a reunião de
um conjunto de força de trabalho assalariada sob o comando de um
único capitalista. Este, de início, passava a controlar uma quantidade de
força de trabalho, mas ainda sem condições de interferir no processo de
produção. Tanto o conhecimento, o ritmo e a intensidade eram
determinados pelos próprios trabalhadores (BRAVERMAN, 1980;
MARX, 1988). Como afirma Marx (1988, p. 191), “ao capital [...] é
indiferente, de início, o caráter técnico do trabalho, do qual se apossa.
No começo, ele toma-o como o encontra”. Por isso, é certo que o
trabalho encontrava-se apenas formalmente subsumido ao capital, que
não tinha o controle pleno para a administração dos processos de
trabalho de acordo com seus interesses.
A primeira forma de organização do conjunto da força de
trabalho sob o comando de uma administração que visava ao lucro foi
apenas a concentração de um número expressivo de trabalhadores diante
de um mesmo conjunto de meios de trabalho, sem qualquer alteração
substancial no caráter técnico do trabalho. “A oficina do mestre-artesão
é apenas ampliada” (MARX, 1988, p. 244). A essa forma de
organização, Marx (1988) chamou de cooperação simples.
A primeira vantagem apontada por Marx (1988) para o
capitalista que emprega um grande número de trabalhadores é que a
valorização do capital empregado depende menos das características e
produtividade do trabalhador individual, visto que os mais e menos
produtivos compensam-se mutuamente. Isso leva a totalidade da força
de trabalho comprada a gravitar em torno da média social. Outro fato
importante destacado pelo o autor é que, “mesmo não se alterando o
modo de trabalho, o emprego simultâneo de um número relativamente
grande de trabalhadores efetua uma revolução nas condições objetivas
do processo de trabalho” (MARX, 1988, p. 245). Os trabalhadores,
quando produzindo coletivamente em mero maior, elevam a
produtividade média da força de trabalho. Nesse sentido, “em
comparação com uma soma igual de jornadas de trabalho isoladas
individuais a jornada de trabalho combinada produz maiores
quantidades de valores de uso, diminuindo por isso o tempo de trabalho
pra produzir determinado efeito útil” (MARX, 1988, p. 249).
52
O capitalista concentra a totalidade da força de trabalho
contratada e organiza a produção em seu conjunto. Como os meios de
produção não pertencem ao trabalhador e não é mais ele quem organiza
seu trabalho, e são agora para ele condições alheias, a força produtiva do
trabalho fruto da cooperação aparece como força produtiva do capital,
embora se origine do trabalho. Ou seja, na medida em que a cooperação
não é conseqüência da interação direta entre os produtores, mas
mediados pelo capital, o acréscimo de produtividade aparece como
externo ao próprio trabalho, como obra da administração capitalista
(MARX, 1988; ROMERO, 2005).
Segundo Romero (2005), a partir da cooperação simples no
capitalismo, estabelece-se, sobre uma mesma base material (técnica),
novas relações de poder e de dominação. A separação dos trabalhadores
dos meios de produção, que dependem agora da alienação de sua força
de trabalho ao capital para a sua própria reprodução remove as
dimensões políticas, patriarcais ou até religiosas das relações de poder.
Com o desenvolvimento desse processo, o capitalista individual
liberta-se do trabalho e desloca-se para função de direção dos
assalariados contratados. Em pouco tempo, o comando do capitalista
sobre o trabalho “converte-se numa exigência para a execução do
próprio processo de trabalho, numa verdadeira condição da produção”
(MARX, 1988, p. 250). Para o autor, todo trabalho executado
harmoniosamente por um conjunto de numerosos trabalhadores requer
em maior ou menor medida uma função de direção, que medeie as
diversas atividades de tal modo que funcionem coordenadamente.
Entretanto, “essa função de dirigir, superintender e mediar torna-se
função do capital, tão logo o trabalho a ele subordinado torna-se
cooperativo. Como função específica do capital, a função de dirigir
assume características específicas” (ibidem).
O capitalista, assumindo a posição de controle frente ao trabalho
assalariado, que representa um custo para cada segundo não dedicado à
produção, e diante da necessidade imperiosa de acumular capital,
desenvolveu uma maneira inteiramente nova de administrar, em relação
às outras formas de “gestão”, se assim podemos chamar, de grandes
massas trabalhadores (Egito Antigo, por exemplo) (BRAVERMAN,
1980).
A forma despótica que assume a gestão empresarial é uma das
características específicas às quais se refere Marx. É também por isso
53
que, como destaca Parker (2002), a etimologia da palavra administração,
cujo termo traduzido para o inglês é manage”, revela três significados:
como um substantivo, significa o grupo que dirige os demais membros
da empresa; como um verbo, significa a ação de controlar pessoas e
coisas; como um campo do conhecimento, destinado a desenvolver
técnicas e teorias que facilite à administração (substantivo) administrar
(verbo). Observe-se que em todos os seus significados a administração
(ou the management) está ligada ao controle, tal qual os que faziam
séculos atrás o manejo e adestramento de animais. “E o controle é, de
fato, conceito fundamental em todos os sistemas gerenciais, como foi
reconhecido implícita ou explicitamente por todos os teóricos da
gerência” (BRAVERMAN, 1980, p. 68).
Entretanto, na medida em que se desenvolvem essas
organizações, na medida em que aumenta o número de trabalhadores
concentrados pelo mesmo capital, cresce também, ao mesmo tempo, a
resistência
31
. Por isso, a administração assume um caráter duplo: de um
lado tem de coordenar a cooperação dos trabalhadores no processo
coletivo de produção; de outro, tem de pressionar de modo a quebrar
essa resistência visando à autovalorização do capital (MARX, 1988).
A organização do trabalho em função da acumulação capitalista
é, segundo Romero (2005), o cerne da subsunção ao capital. O valor de
uso se torna subsumido ao valor de troca e deixa de ser medida do que e
de quanto deve ser produzido. Do mesmo modo, o trabalho concreto se
torna subsumido ao trabalho abstrato. “A produção pela
valorização/acumulação torna-se o único sentido que organiza o trabalho
e o define enquanto social” (idem, p. 81). Por isso, como afirma Motta
31 Há, desde o início da relação capital-trabalho, uma tensão quanto ao preço da mercadoria
negociada – a força de trabalho. No entanto, é somente com o crescimento da empresa que
esta tensão adquire o caráter de uma luta de classes, como bem explica Marx (2001). A
grande indústria aglomera, em um único lugar, uma multidão de pessoas desconhecidas.
De início, essa multidão é dividida entre si pela concorrência. Mas o interesse comum pela
manutenção dos salários a une contra o patrão, em um movimento de resistência – a greve.
Cessa-se, assim, a concorrência direta entre os operários, para que possam fazer uma
concorrência geral contra o capitalista. É também nessa luta que surge o interesse comum
da manutenção da associação entre trabalhadores, de onde têm origem os sindicatos como
um “fato econômico”. “As condições econômicas tinham a princípio transformado a massa
da população do país em trabalhadores. A dominação do capital criou para essa massa uma
situação comum, interesses comuns. Por isso, essa massa é uma classe para o capital,
mas não o é ainda para si mesma. Na luta [...] essa massa reúne-se, constitui-se para si
mesma. Mas a luta de classe com classe é uma luta política” (MARX, 2001, p. 151).
54
(1981, p.13), “no modo de produção capitalista, a cooperação leva a um
poder estranho que se coloca acima do indivíduo e que se concretiza na
extorsão da mais-valia”.
Com o ganho de complexidade, alguns trabalhadores
assalariados são deslocados também para a função de supervisão. Assim,
a administração acaba sendo condicionada por esse antagonismo.
Ao considerar o modo de produção capitalista, ele identifica em
contraposição a função de direção, na medida em que deriva da
natureza do trabalho coletivo, com a mesma função na medida
em que é condicionada pelo caráter capitalista e, por isso,
antagônico, desse processo. O capitalista não é capitalista porque
é dirigente industrial, ele torna-se comandante industrial porque
ele é capitalista. O comando supremo na indústria torna-se
atributo do capital, como no tempo feudal o comando supremo na
guerra e no tribunal era atributo da propriedade fundiária
(MARX, 1988, p. 251).
É necessário frisar que até aqui é o capital que se adapta ao
processo de trabalho sob o modo que o encontra, uma vez que sua
interferência se apenas no campo da circulação, isto é, no mercado
(ROMERO, 2005). “A subsunção do trabalho no capital é apenas formal
porque as próprias relações de produção são apenas formalmente
capitalistas” (idem, p. 84-5). O capitalista tem o direito assegurado
juridicamente de utilizar as mercadorias que comprou para a produção
do modo que entender necessário. Entretanto, o conhecimento técnico é
ainda pertencente aos trabalhadores. Portanto, apenas formalmente
pode-se dizer que o capital se apropria dos meios de produção.
Todo o esforço da nascente administração capitalista, por não
ter ainda condições de influenciar diretamente no processo de trabalho,
consiste em intensificar a produtividade e estender o tempo de produção
sobre a mesma base técnica. É por isso que predomina na subsunção
formal a extração da mais-valia absoluta (TUMOLO, 2003b; MARX,
1988).
Porém, a expansão da quantidade de trabalho expropriada na
forma de mais-valia absoluta apresenta limites insuperáveis, tanto por
meio da extensão da jornada de trabalho quanto por meio da
55
intensificação do ritmo de trabalho
32
(MARX, 1988; ROMERO, 2005;
TUMOLO, 2003b). Além disso, o sucesso da administração nessa
empreitada depende sobretudo da luta política entre capital e trabalho,
que tende a se intensificar tanto quanto mais se busque o aumento dos
lucros por esse meio.
Precisamente por essas razões a administração tem de interferir
ativamente nas condições técnicas de produção.
Enquanto pois na produção da mais-valia, na forma até aqui
considerada [absoluta], o modo de produção é suposto como
dado, não basta de modo algum, para produzir mais-valia
mediante a transformação do trabalho necessário em mais-
trabalho, que o capital se apodere do trabalho em sua forma
historicamente herdada ou já existente, e apenas alongue sua
duração. Tem de revolucionar as condições técnicas e sociais do
processo de trabalho, portanto o próprio modo de produção, a fim
de aumentar a força produtiva do trabalho, mediante o aumento
da força produtiva do trabalho reduzir o valor da força de
trabalho, e assim encurtar parte da jornada de trabalho necessário
para a produção deste valor (MARX, 1988, p. 239).
A forma transitória de organização do trabalho para o
maquinismo é, de acordo com Romero (2005), a divisão manufatureira
do trabalho, fase em que a subsunção real do trabalho ao capital se
concretiza e na qual passa a predominar a mais-valia relativa. Trata-se
de um processo de transição lento e progressivo, que se inicia em
meados do século XVI e perdura até os fins do século XVIII. Esse
movimento é duplo: no interior do processo de trabalho, corresponde à
progressiva divisão de tarefas; no que tange a produção social total,
32 A intensificação do ritmo de trabalho é, dentro do marxismo, interpretada de maneira
diferente por diversos teóricos quanto à forma de extração de mais-valia a que
corresponde. Para alguns, como para o professor Ricardo Antunes, trata-se de aumento da
mais-valia relativa. Segundo essa interpretação, a intensificação do trabalho reduziria o
valor das mercadorias, dentre as quais as que correspondem aos meios de subsistência da
classe trabalhadora, o que, alterando a composição orgânica do capital sem tocar na
extensão da jornada de trabalho, alteraria a taxa de mais-vala. Para outros, como os
professores José Paulo Netto e Paulo Sérgio Tumolo, tratar-se-ia da mais-valia absoluta,
uma vez que não haveria uma alteração na composição técnica do capital, mas apenas uma
ampliação da quantidade de trabalho expropriada por meio da intensificação do ritmo de
produção.
56
amplia-se o mercado, acumulam-se capitais, ocorrem mudanças nas
posições de classe etc. (MARX, 1988; ROMERO, 2005).
Conforme conceitua Braverman (1980), a divisão manufatureira
do trabalho corresponde ao parcelamento do processo de produção em
inúmeras operações, que passam a ser executadas por diferentes
trabalhadores. Este tipo de divisão do trabalho - em que uma
repartição sistemática do trabalho em especialidades, por operações
parciais de todo o processo necessário - generalizou-se apenas na
sociedade capitalista (idem).
É importante ressaltar que nem a divisão manufatureira do
trabalho nem a introdução da maquinaria significam o fim da
cooperação e do que foi afirmado até aqui. Como afirma Marx (1988, p.
253), “a cooperação permanece a forma básica do modo de produção
capitalista, embora sua figura simples mesma apareça como forma
particular ao lado de suas formas mais desenvolvidas”. A porque, a
cooperação simples em estado puro é muito mais uma abstração para a
compreensão do movimento das relações de trabalho no capitalismo do
que um estágio correspondente a uma época particular. “No máximo,
aparece aproximadamente assim nos inícios ainda artesanais da
manufatura e em cada espécie de agricultura em grande escala...
(ibidem).
A divisão manufatureira do trabalho nada mais é do que a
decomposição da atividade artesanal em diferentes operações parciais,
cada qual fixada em diferentes trabalhadores individuais (MARX,
1988). A produção ainda depende, portanto, da habilidade do
trabalhador individual e o ritmo da produção é também ainda controlado
pelos trabalhadores. Contudo, a progressiva pormenorização das tarefas
conduz a um movimento do domínio tecnológico dos trabalhadores para
administração (BRAVERMAN, 1980).
O trabalho deixa de se realizar de modo artesanal por conta da
separação entre concepção e execução. Os trabalhadores perdem o
controle sobre o conjunto da produção, que cabe agora à administração.
Porém, apesar dessa separação, a manufatura não revoluciona a base
técnica do trabalho, razão pela qual o trabalho vivo não se subsume
realmente ao trabalho morto. Pelo contrário, ainda é o capital que se vale
de uma base limitada pela habilidade do trabalhador nas operações
pormenorizadas (ROMERO, 2005).
57
A incessante repetição de uma atividade reduzida faz com que
ocorra um aprendizado natural sobre a maneira mais rápida de executar
essa tarefa. Ocorre, por conta disso, uma elevação na força produtiva do
trabalho, e essas empresas apresentam-se em uma verdadeira oposição
às corporações de trabalho artesanal, que são, ao longo do tempo,
eliminadas pela concorrência intercapitalista. O conhecimento
desenvolvido é socializado na empresa e os “truques técnicos do ofício”
se consolidam, acumulam e transmitem rapidamente (MARX, 1988).
Todavia, nesse momento, o “saber-fazer” ainda pertence ao trabalhador,
mas a um “trabalhador parcial”, que não tem conhecimento e nem
condições de executar todas as etapas da produção. na manufatura,
pela mediação do capital, o trabalhador parcial torna-se o trabalhador
coletivo, ao mesmo tempo, portanto, em que se subordina ao capital.
Segundo Antunes (2006), a decomposição cada vez maior das
atividades de produção elimina as propriedades qualitativas dos
trabalhadores. Opera-se, assim, “uma ruptura entre o elemento que
produz e o produto desse trabalho” (idem, p. 130), que é reduzido a um
nível de especialização que acentua a atividade mecanicamente repetida.
Esvazia-se, por isso, o trabalho de sentido, que tal decomposição
“penetra até a alma do trabalhador”. O resultado é, “... no plano da
consciência, a coisificação, a reificação; o trabalho estranhado converte-
se num forte obstáculo à busca de omnilateralidade e plenitude do ser”
(ibidem).
A autonomização de operações necessárias no fluxo produtivo
permite também uma seleção, classificação e alocação dos trabalhadores
de acordo com as características mais favoráveis para sua execução. A
administração precisa criar uma força produtiva que em uma tarefa
tenha mais força, noutra mais atenção, noutra mais agilidade etc.; mas a
força de trabalho individual não é capaz de desenvolver todas as
características no mesmo grau. Por isso “... só a especialização dos
trabalhadores e sua conexão por meio do trabalhador coletivo podem
satisfazer essa exigência” (ROMERO, 2005, p. 97). Dessa forma, “a
unilateralidade e mesmo a imperfeição do trabalhador tornam-se sua
perfeição como membro do trabalhador coletivo” (MARX, 1988, p.
263). Essa técnica permite que as atividades mais simples sejam
executadas por “trabalhadores não qualificados”, como mulheres e
58
crianças
33
, enquanto a força de trabalho mais cara passa a executar
apenas as atividades que exigem maior preparo físico e técnico. O
resultado é sempre a redução da quantidade de capital variável
necessária a ser empregada para a produção, em relação ao emprego de
forças de trabalho qualificadas para todas as tarefas (BRAVERMAN,
1980).
Surge, por conta disso, uma relação de oposição entre
trabalhadores qualificados e não qualificados, por meio da diferenciação
salarial, de posto e de mando. Dessa base aparentemente técnica, brotam
relações de dominação entre os próprios trabalhadores, das quais o
capital tira proveito (ROMERO, 2005). Assim, a administração cria
funções integradoras para a coordenação do trabalho a ela subordinado.
Essa heteronomia faz-se presente de forma clara na manufatura.
A coordenação, contudo, só se expressa enquanto uma relação de
dominação, na medida em que responde à relação de autoridade e
submissão que permeia a lógica do capital. A coordenação não é
aqui algo que surge da necessidade do trabalho, mas sim algo que
se impõe como necessidade do capital (MOTTA, 1981, p. 14).
As ferramentas que eram antes genéricas, pois serviam para a
execução de diversas etapas do processo de produção pelo mesmo
trabalhador, são também especializadas para uma atividade
pormenorizada. O desenvolvimento desses instrumentos de trabalho
especializado constitui, como veremos mais tarde, a base do
desenvolvimento da maquinaria (MARX, 1988). A divisão
manufatureira do trabalho corresponde, portanto, à transição da
subsunção meramente formal ao capital, em que predomina a extração
da mais-valia absoluta, para sua subsunção real, que se completa pela
introdução nas empresas da maquinaria e da “gerência científica”.
Há, contudo, um longo processo de transformação até que esse
estágio seja alcançado. A separação entre concepção e execução abriu a
possibilidade de tornar produtivo (de mais valia) o trabalho intelectual e,
desse modo, de a ciência interferir diretamente no processo de produção
33 Desnecessário dizer que a consideração das mulheres como forças de trabalho não
qualificadas tem seu marco e razões históricas, muito bem aproveitada pelo capital, diga-se
de passagem.
59
(ROMERO, 2005). Diante da disputa pelo controle do processo de
trabalho entre trabalhadores e capital, a administração passa a criar
condições para que possa, a partir de uma nova base tecnológica,
efetivar uma inversão real entre sujeito-objeto no processo de produção
(idem). É a esse fenômeno que dedicarei a análise no tópico que se
segue.
4.3 Subsunção Real ao Capital
É a introdução da maquinaria no processo de produção que cria
as condições para a subsunção real do trabalho ao capital. Tal introdução
se dá, como afirmei anteriormente, sobre a base da divisão
manufatureira do trabalho. Nessas condições, as ferramentas estão
adaptadas a tarefas especializadas, os trabalhadores não têm mais o
conhecimento sobre o processo de trabalho em geral e o ritmo de
trabalho também deixa de ser plenamente controlado por eles.
Também é com a incorporação da maquinaria no processo de
produção que passa a predominar o aumento da mais-valia relativa como
padrão de acumulação, em detrimento da mais-valia absoluta
(TUMOLO, 2003b). Isso porque o aumento da produtividade por meio
da aquisição de máquinas eleva a parte constante do capital em relação à
sua parte variável, alterando assim a sua composição orgânica. O
aumento da produtividade decorrente da produção da maquinaria reduz
o valor das mercadorias que são os meios de subsistência dos
trabalhadores
34
. A redução do valor da força de trabalho sem alterações
nas mercadorias que o compõe, isto é, sem reduzir necessariamente o
“poder de consumo” em si, aumenta a quantidade de mais-valia extraída.
Além disso, no âmbito da produção social global, torna-se possível que
um mesmo quantum de mercadorias sejam produzidas com uma
quantidade menor de trabalho vivo. Assim, a introdução da maquinaria
também “libera” trabalhadores da produção, aumentando o exército de
34 “Igual a qualquer outro desenvolvimento da força produtiva do trabalho, ela se destina a
baratear mercadorias e a encurtar a parte da jornada de trabalho que o trabalhador precisa
para si mesmo, a fim de encompridar a outra parte da sua jornada que ele de graça ao
capitalista. Ela é meio de produção de mais-valia” (MARX, 1985, p. 7).
60
reserva e acirrando a concorrência entre os trabalhadores
35
, o que
influencia diretamente o preço da força de trabalho. É claro que há
contra-tendências, como o aumento da produção social total, a expansão
do capital, que mesmo precisando de relativamente menos força de
trabalho pode aumentar o número de assalariados em termos absolutos
36
.
No plano das alterações técnicas, a introdução da maquinaria
representa uma ruptura com o padrão de organização do trabalho da
manufatura. Diferentemente do revolucionamento que antecedera, em
que a transição da cooperação simples para a manufatura tinha como
objeto principal a força de trabalho, a metamorfose para a “grande
indústriatem como objeto os instrumentos de trabalho (MARX, 1985;
FRANCA, 2007).
Marx (1985) se ocupa em analisar a maquinaria do ponto de
vista econômico, associado ao elemento histórico. Por isso, Marx chega
à conclusão de que o que diferencia a máquina dos demais instrumentos
de trabalho e permite a revolução industrial não é o desenvolvimento de
uma força motriz diferente da humana (a energia do vapor, elétrica etc.),
como supunham os economistas políticos até então, mas a introdução da
máquina-ferramenta. Forças motrizes aproveitadas de animais, do fluxo
dos rios, do calor, antecedem em muito a revolução industrial. Assim
como os mecanismos de transmissão, servem apenas para despender
energia sobre a máquina-ferramenta. Mas “é dessa parte da maquinaria,
a máquina-ferramenta, que se origina a revolução industrial no final do
século XVIII. Ela constitui ainda todo dia o ponto de partida, sempre
que artesanato ou manufatura passam à produção mecanizada” (MARX,
1985, p. 8).
Por isso, foi imprescindível para a produção mecanizada em
momento ulterior, a organização manufatureira do trabalho que a
precedeu. Analisando a máquina-ferramenta, encontram-se nelas os
instrumentos de trabalho desenvolvidos pelos artesãos e trabalhadores
parciais da manufatura, porém agora em sua forma mecanizada. “A
máquina-ferramenta é, portanto, um mecanismo que, ao ser-lhe
transmitido o movimento correspondente, executa com suas ferramentas
35 “Aqui estamos nós com nossas mãos que o pás / Com os nossos lombos que são carros
de transporte / E queremos vender as mãos e o lombo / E não comprador(BRECHT,
1997, p. 33).
36 Uma das análises de Marx sobre essa questão pode ser encontrada em O Capital, seção
VII, notadamente o capítulo XXIII (1985).
61
as mesmas operações que os trabalhadores executavam antes com
ferramentas semelhantes” (MARX, 1985, p. 9). Se a força motriz se
origina de um homem ou de outro mecanismo, a essência da coisa
permanece inalterada, pois o significado da máquina-ferramenta
corresponde à transferência da ferramenta, do trabalhador para um
mecanismo.
A diferença essencial está em que, enquanto na manufatura o
trabalhador tem de se adaptar ao processo, mesmo que antes disso o
processo se adapte ao trabalhador, a grande indústria cria condições para
que o processo de trabalho seja analisado objetivamente, “em si e por si”
(MARX, 1985). Segundo Marx, o trabalho deixa de ser organizado por
um princípio subjetivo para, ao invés disso, embasar-se em um princípio
objetivo – a maquinaria. Enquanto na manufatura
... a articulação do processo social de trabalho é puramente
subjetiva, combinação de trabalhos parciais; no sistema de
máquinas, a grande indústria tem um organismo de produção
inteiramente objetivo, que o operário já encontra pronto, como
condição de produção material” (idem, p. 19).
É a partir da consolidação da maquinaria que a ciência adquire a
função social de desenvolver as forças produtivas sistematicamente, que
seu desenvolvimento se torna, portanto, subordinado ao movimento do
capital
37
(MARX, 1985; MOTTA, 1981). Andrew Ure e Charles
Babbage, por exemplo, ocuparam-se em desenvolver sistematicamente
técnicas que elevassem a força produtiva do trabalho, sendo
considerados por Braverman (1980) os primeiros “peritos em gerência”.
Ambos foram, aliás, intensamente estudados por Marx para a formação
de sua crítica à grande indústria.
Mas é somente com Winslow Taylor que o movimento da
gerência científica, como ficou conhecido, ganha força. O foco da
gerência científica é o desenvolvimento de métodos e organização do
trabalho (a partir das necessidades do capital), em lugar da tecnologia
empregada, o que permite sua aplicação aos mais variados tipos de
tecnologias de produção (HIRATA, 2002). É claro, por outro lado, que o
37 Sobre o desenvolvimento da ciência subordinado ao movimento do capital, cf. Mészáros
(2004), parte II.
62
desenvolvimento tecnológico da produção capitalista fornece outros
meios para o controle direto do processo de trabalho (BRAVERMAN,
1980).
O ganho de complexidade das empresas, com o surgimento das
primeiras organizações monopólicas, traz como necessidade o
desenvolvimento de formas de controle da força de trabalho que
garantam a produtividade e, ao mesmo tempo, diminua a resistência dos
subordinados. É nesse contexto que a administração passa a ser então
um novo problema para a “ciência”, ou uma área de conhecimento
“autônoma”
38
. A partir da consolidação e expansão da maquinaria,
percebe-se uma tendência, expressa por trabalhos sobre o tema que
precedem as obras de Taylor, de uma, por assim dizer, “gerência
taylorista”. O mérito de Taylor está na síntese de sua obra e na clareza
tanto dos meios quanto dos objetivos a que se propõe. De Taylor a
Drucker, os “teóricos” da administração têm como preocupação primeira
o desenvolvimento de métodos que garantam a eficiência de um tipo
específico de organização, a empresa (SOLÈ, 2004).
Depois de Taylor, o problema do controle da força de trabalho
adquire dimensões sem precedentes, uma vez que se torna uma
necessidade absoluta para a gerência a imposição de um controle
extremamente rigoroso do modo pelo qual o trabalho deve ser executado
(BRAVERMAN, 1980). Esse controle se faz necessário para atingir o
“dia ótimo de trabalho” preconizado por Taylor, impondo assim não
somente uma maneira, mas também uma intensidade “ideal” (para a
administração) de trabalho. Para isso, teria de enfrentar tanto a
“vadiação” natural - “tendência ou instinto nativo de fazer o menor
esforço” (TAYLOR, 1970, p. 36) - quanto a “indolência sistemática” ou
“vadiagem premeditada”, que se traduz pela iniciativa dos trabalhadores
de manter os empregadores ignorantes quanto às possibilidades de uma
execução das operações sob ritmo mais intenso (idem).
A saída é a apropriação do domínio total dos processos de
trabalho por parte da administração e do estabelecimento de padrões
altíssimos de produtividade para os trabalhadores. Por isso é
emblemático na gerência científica o uso do cronômetro e o estudo
minuncioso dos tempos e movimentos do trabalho. Mas, para atingir
este objetivo, foi necessário uma luta política histórica da administração
38 Sobre a fragmentação da ciência em áreas “autônomas” de conhecimento, cf. Mészáros
(2006).
63
contra os operários para que o planejamento pudesse enfim ser quase
totalmente integrado ao capital
39
.
Assim como o desenvolvimento tecnológico cria meios para o
controle sobre o processo de trabalho, a apropriação dos processos de
trabalho por parte da administração eleva também a produtividade da
empresa. O foco de Taylor não era o aumento da produtividade pelo
aprimoramento da técnica, ao contrário, ocupava-se sobretudo dessa
apropriação, da elevação do controle independentemente da natureza da
tarefa a ser executada, atingindo assim diversos níveis hierárquicos
(BRAVERMAN 1980; HIRATA, 2002). Para isso, sua teoria apoiou-se
em três princípios básicos.
O primeiro princípio está relacionado à dissociação dos
processos de trabalho das especialidades dos trabalhadores. A
atividade produtiva deve ser independente dos conhecimentos dos
operários, eliminando a dependência de suas capacidades e, em
contrapartida, tornando-se dependente das políticas gerenciais
(BRAVERMAN, 1980). Assim, a administração transforma o
conhecimento dos processos de trabalho em leis e fórmulas e, a partir de
seu estudo detalhado, impõe os métodos mais rápidos de produção.
Daí decorre o segundo princípio, que corresponde à separação
entre concepção e execução do trabalho. Como demonstrei
anteriormente, as características específicas do trabalho humano
permitem que seus momentos necessários sejam separados em fases
distintas e divididos entre indivíduos diferentes, de acordo com o
contexto histórico, com as relações de classe estabelecidas, com o grau
de desenvolvimento das forças produtivas etc. Assim, a prévia ideação
inerente à atividade produtiva é totalmente separada dos produtores reais
quando posto em prática este princípio de Taylor
40
.
A gerência científica deve tomar conta do desenvolvimento,
também “científico”, dos processos de trabalho. Cada operação é
planejada, programada e controlada antecipadamente pela administração
39 Não me aterei a esta questão particular neste trabalho, cabendo-me apenas indicar a obra
de Braverman (1980), especialmente o capítulo IV (p. 82-111) e capítulo VI (p. 124-134).
40 É importante distinguir a divisão entre trabalho mental e manual da separação entre
concepção e execução, visto que mesmo uma atividade puramente mental pode ser
separada em dois momentos: o de concepção e o de execução (BRAVERMAN, 1980).
Nessa perspectiva, o taylorismo atinge não somente os trabalhadores manuais, mas
também aqueles ligados às atividades mentais, como engenheiros e administradores de
nível intermediário.
64
antes que seja posta em prática. Criam-se departamentos responsáveis
pelo desenvolvimento de métodos de organização e execução do
trabalho hierarquicamente relacionado com o “chão de fábrica”. É dada
assim a cartada final para que o trabalhador perca o controle, não
somente dos meios de produção que lhe são confrontados diretamente,
mas do próprio processo de trabalho (BRAVERMAN, 1980).
O trabalho torna-se assim totalmente alienado, opondo-se
contraditoriamente aos produtores cuja associação se mediante a
subsunção real ao capital. Essa questão (separação entre concepção e
execução) tem importância fundamental para compreendermos em
momento posterior a particularidade de algumas das organizações
produtivas ligadas ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.
O terceiro princípio de Taylor é a utilização do monopólio do
conhecimento para controlar cada fase do processo produtivo e o modo
pelo qual deve ser executado. As atividades são pré-concebidas e pré-
calculadas de sorte que nenhuma decisão sobre a produção precise ser
tomada pelos trabalhadores. Estes recebem as decisões prontas e
acabadas, traduzidas em manuais, simplificadas e pormenorizadas,
retirando assim qualquer conteúdo humano da atividade produtiva
(BRAVERMAN, 1980).
A maioria dos efeitos da gerência científica é apenas a
intensificação do que ocorrera pela introdução da maquinaria. “Seu
papel era tornar consciente e sistemática a tendência antigamente
inconsciente da produção capitalista” (BRAVERMAN, 1980, p. 109) e,
nesse sentido, Taylor cumpriu função fundamental, sendo talvez por isso
conhecido como o “pai da administração”.
São esses três os princípios basilares do taylorismo. Os
subprodutos dele derivados, como as técnicas de controle, a utilização
do cronômetro, o comportamento obsessivo dos engenheiros pela
produtividade, sem utilizar as “relações informais”
41
que também a
influenciam, são apenas a forma pela qual se manifestou a essência da
41 É comum encontrarmos nos atuais manuais de administração críticas a Taylor com base na
tese de que ele teria ignorado as “relações informais” e sua influência direta na
produtividade. Tal crítica é rasa e falaciosa, visto que Taylor (1970) argumenta
insistentemente pela necessidade de a administração científica eliminar o hábito dos
trabalhadores de “fazer cera”, de proteger o conhecimento sobre o processo de trabalho
entre outras coisas, conseqüências de tais relações. Há, em relação à Escola das Relações
Humanas, apenas tratamentos diferenciados às “relações informais”.
65
teoria de Taylor. O próprio Taylor (1970, p. 43) alertava os
administradores da época para essa questão:
a administração científica consiste fundamentalmente em certos
princípios gerais ou numa filosofia, aplicável de muitos modos,
mas a descrição do que algumas pessoas acreditam ser o melhor
meio de implantar esses princípios gerais não deve ser,
absolutamente, confundida com os princípios em si.
Isso leva Braverman (1980) a considerar o taylorismo como a
única forma de administrar dentro do capitalismo, visto que as inovações
que surgem a partir de Taylor não tocaram nos seus princípios
fundamentais. É por essa razão que Braverman é alvo de muitas críticas,
principalmente depois da crise que culminou na reestruturação produtiva
da capital, cujo marco referencial é o ano de 1973. Mas antes de refletir
sobre essa polêmica, é ainda necessário compreender algumas
características do taylorismo.
Primeiro, temos que considerar que a expansão do taylorismo
pelo mundo não se deu e não se de modo uniforme, dependendo
sobretudo da correlação de forças políticas e das características
socioculturais dos países sobre as quais o taylorismo avança. Hirata
(2002, p. 32), por exemplo, afirma que “o taylorismo [...] não teve o
mesmo tipo de difusão nem o mesmo ritmo de assimilação no Brasil, na
França e no Japão, mas, sobretudo, submeteu-se processos de
deformação diferentes...” (grifo da autora).
As importantes modificações e adaptações submetidas [...] pelos
métodos e técnicas tayloristas de acordo com os diferentes
mercados de trabalho, o tipo de intervenção do Estado, as
tradições e organizações do movimento operário, o sistema de
emprego etc. levaram a deformações no sistema taylorista:
“rotinização do trabalho devido à “rotatividade” involuntária,
acelerada no caso brasileiro, distorção progressiva nas práticas
tayloristas pelo estabelecimento de “círculos de controle de
qualidade” no caso japonês... (idem, p. 33-4).
Na divisão do trabalho, prossegue a autora, as técnicas de
controle tayloristas são mais utilizadas quando defrontadas a uma força
66
de trabalho mais dócil, menos autônoma, adequando-se às
peculiaridades de cada país. Por essa mesma razão, conforme Hirata
(2002, p. 29-30), “a política de controle, particularmente, é decidida em
função do sexo do empregado [...]. Assim, não se pode falar de
taylorismo sem falar de divisão sexual do trabalho (grifo da autora)”. O
controle é muito mais intenso sobre a força de trabalho feminina,
assumindo uma forma mais coercitiva e autoritária. As técnicas, longe
de serem neutras, utilizam e, por isso, reforçam tanto a divisão sexual
existente dentro da empresa quanto na sociedade. Os métodos tayloristas
se beneficiam de uma educação das jovens voltadas para o trabalho
doméstico e familiar, que exige a habilidade manual, a meticulosidade, a
diligência, além de valores comportamentais como a docilidade, a
complacência e a obediência. É claro que essas características não são
naturais do sexo feminino, mas historicamente determinadas, sendo
aproveitadas e reproduzidas na divisão hierárquica do trabalho
(HIRATA, 2002).
Embora o taylorismo em sentido strictu sensu sofra
“deformações” por influência dos diferentes contextos nos quais se
impõe, os princípios de Taylor têm ampla capacidade de adaptação,
tendo, por essa razão, se espalhado pelo globo ao longo do século XX.
Mesmo Lênin (1978; 2007), na então nascente URSS, defendia uma
aplicação socialista dos métodos científicos de Taylor
42
, que de fato
aconteceu. Tal aplicação pretendia que, com o aumento da produtividade
decorrente do método taylorista, os operários pudessem assumir
gradualmente também a gestão dos processos de trabalho, possibilitando
assim a progressiva desburocratização do Estado e a participação efetiva
nas atividades administrativas (LINHART, 1983; LÊNIN, 2007). Para
Linhart (1983), Lênin realizou uma crítica limitada da obra de Taylor,
42 “A última palavra do capitalismo neste aspecto, o sistema Taylor tal como todos os
progressos do capitalismo –, reúne em si toda a refinada crueldade da exploração burguesa
e uma série de riquíssimas conquistas científicas no campo de análise dos movimentos
mecânicos do trabalho, a supressão dos movimentos supérfluos e inábeis, a elaboração dos
métodos de trabalho mais concretos, a introdução dos melhores sistemas de registo e
controlo (sic), etc. A República Soviética deve adoptar (sic) a todo o custo as conquistas
mais valiosas da ciência e da técnica neste domínio. A possibilidade de realizar o
socialismo é determinada precisamente pelos nossos êxitos na combinação com os últimos
progressos do capitalismo. Tem de se criar então na Rússia o estudo e o ensino do sistema
Taylor, a sua experimentação e adaptação sistemáticas” (LÊNIN, 1978, p. 574).
67
subestimando os efeitos degradantes deste modo de organizar o
trabalho
43
.
A segunda característica que se faz necessária analisar antes de
dar prosseguimento à polêmica discussão sobre a superação do
taylorismo é o fato de que sua expansão se deu associada ao fordismo e
a um processo de burocratização (inclusive nas sociedades pós-
capitalistas) das empresas, já indicado por Weber (2004) na mesma
época em que Taylor executava suas consultorias
44
.
A associação entre taylorismo e fordismo, um dos meios através
do qual as empresas organizam o trabalho para atingir seus objetivos de
acumulação, predominou durante praticamente todo o século XX,
sobretudo nas grandes indústrias. Enquanto Taylor ocupava-se da
“racionalização” dos processos de trabalho, separando concepção e
execução, Ford, por sua vez, conforme elucida Harvey (1992),
preocupava-se com uma divisão detalhada do trabalho e pôde, ao
posicionar fixamente seus trabalhadores, reduzir os tipos de tarefas por
trabalhador e intensificá-las ainda mais na repetitividade. Este tipo de
divisão de trabalho só foi possível, conforme demonstra Franca (2007, p.
28), com a inovação que a permitiu, a saber: a linha de produção, com a
introdução da esteira de produção.
A “racionalização” do processo de trabalho, tal como é
conhecido esse fenômeno, era uma tendência na indústria da época,
haja vista que “a separação entre gerência, controle e execução (e tudo
isso significava em termos de relações hierárquicas e de desabilitação
dentro do processo de trabalho) também estava bem avançada em
muitas indústrias” (HARVEY, 1992, p. 121). E apenas ganha força com
a concepção destes dois pensadores, Taylor e Ford.
Como mostra-nos Harvey (1992, p. 121):
43 Para uma análise detalhada sobre a relação de Lênin com o operariado russo durante a
Revolução de Outubro, cf. Linhart (1983).
44 Economia e Sociedade, obra em que a Weber se dedica, entre outras coisas, ao estudo da
burocracia, foi publicada em 1922, após a morte de Weber (1920), sendo portanto
contemporânea às obras de Taylor, que viveu entre os anos de 1856 e 1915, embora em
países distintos. Não obstante a isso, a teoria da burocracia recebeu atenção no campo
da administração a partir da década de 40 (MOTTA e VASCONCELOS, 2002), tendo
ainda uma interpretação enviesada pelo ponto de vista dos estudiosos da área a
administração capitalista.
68
O que havia de especial em Ford (e que, em última análise,
distingue o fordismo do taylorismo) era a sua visão, seu
reconhecimento explícito de que a produção em massa
significava consumo de massa, um novo sistema de reprodução
da força de trabalho, uma nova política de controle e gerência do
trabalho, uma nova estética e uma nova psicologia, em suma, um
novo tipo de sociedade democrática, racionalizada, modernista e
populista.
Embora Harvey demonstre a diferença entre fordismo e
taylorismo, o fato é que, com o desenvolvimento do capitalismo no pós-
guerra, foi a combinação destas duas formas de organização dos
processos de trabalho, de seus princípios, que permitiu o amplo
crescimento de produtividade até o início da década de 70. Dito de outra
forma, embora tenham origens distintas em sua concepção, taylorismo e
fordismo caminharam de mãos dadas na história do capitalismo. Como
afirma Franca (2007, p. 24), o ponto de partida do fordismo foi a
combinação de uma divisão taylorista do trabalho com uma inovação
técnica, a linha de montagem. Tal combinação permitiu uma produção
em massa, padronizada e em série. “Com o tempo, a regra produtiva
fordista influiu na regulação das relações de trabalho e de consumo”.
A terceira característica desenvolvida junto ao taylorismo e ao
fordismo é um processo de burocratização progressiva das organizações
empresariais. Esse processo é comumente explicado nos estudos
organizacionais através da demonstração de uma aproximação das
empresas ao tipo ideal de burocracia elaborado por Weber
45
(2004;
1978). Embora em Weber, na sua “sociologia compreensiva”, não haja
vínculos objetivos na explicação das razões de um fenômeno particular,
aproprio-me de sua teoria associando-a a uma dimensão universal: o
trabalho
46
. Entendo a burocracia não por meio de artifícios intelectivos
45 Para a compreensão da teoria da burocracia de Weber faz-se necessário o entendimento de
diversos conceitos seus, como os de: ação social, tipo ideal, os tipos de racionalidade,
racionalização, entre outros, além de suas perspectivas sobre a história, o processo de
racionalização, ética, ciência e política. Uma boa síntese introdutória de sua teoria pode ser
encontrada em COHN (1997). Para uma leitura crítica de sua obra, por outro lado, cf.
Mészáros (2004; 2008, p. 19-26).
46 Weber (1978, p. 24) restringe-se a afirmar que “o ‘servidor’ patrimonial separado dos
meios de execução de suas funções e o proprietário de um exército mercenário com
69
para conhecer a realidade, como o método de tipos ideais, mas como
uma categoria que é expressão ideal de um traço constitutivo da
realidade organizacional. Nesse sentido, a burocracia, enquanto
categoria ontológica, é aqui compreendida como um desenvolvimento
de uma forma de controle das relações organizacionais (em especial nas
empresas e no Estado), funcional e historicamente necessária ao
desenvolvimento da sociedade capitalista.
A burocracia, segundo Weber (2004), é um tipo de dominação
que se baseia no pressuposto de legitimidade da prescrição legal. Para o
autor, a dominação é definida como “a probabilidade de encontrar
obediência para ordens específicas (ou todas) dentro de terminado grupo
de pessoas”. Dessa forma, segundo Weber, não é qualquer meio de
influência ou exercício de poder que pode ser entendida como
dominação, mas somente aqueles casos em que há algum consentimento
por parte de quem obedece. A burocracia corresponde à dominação de
caráter racional, que se baseia “na crença na legitimidade das ordens
estatuídas e do direito de mando daqueles que, em virtude dessas ordens,
estão nomeados para exercer a dominação” (WEBER, 2004, p. 141).
A burocracia cria relações organizacionais essencialmente
impessoais. A relação entre os trabalhadores é prescrita e formalizada,
de modo que as características e valores individuais não tenham
interferência no funcionamento das organizações. Cria-se uma
hierarquia oficial, ou seja, a “... organização de instâncias fixas de
controle e supervisão para cada autoridade, com direito de apelação ou
reclamação das subordinadas às superiores” (WEBER, 2004, p. 143). Na
organização burocrática, os direitos e as obrigações são ligados ao
cargo, e não ao indivíduo (WEBER, 1978).
A burocracia forma um quadro administrativo hierarquicamente
organizado cujo objetivo é a “busca racional” dos interesses
especificados, o que a torna o “o mais racional e conhecido meio de
exercer dominação sobre os seres humanos” (WEBER, 1978, p. 24). Em
se tratando de uma organização capitalista, este objetivo é a máxima
acumulação possível, de modo que a burocracia é utilizada para elevar
sua grandeza. Afinal, como afirma o próprio Weber (1978, p. 22), “...a
‘posição’ do empresário capitalista é, como a de um monarca,
semelhante à de apropriação definitiva. Assim, necessariamente no
finalidades capitalistas foram, juntamente como o empresário capitalista, os precursores na
organização do moderno tipo de burocracia”.
70
ápice da organização burocrática no mínimo um elemento que não é
puramente burocrático”.
Segundo o sociólogo alemão (2004), a burocracia possibilita a
dominação de um grande número de pessoas simultaneamente
47
, uma
vez que a formalização das atividades e a impessoalidade das relações,
“sem ódio ou paixões”, permitem que se tenha o controle de todas as
atividades sem que se leve em conta as características individuais dos
membros da organização.
A burocracia, segundo Maravelias (2007), cinde a vida dos
indivíduos a ela associados. Os trabalhadores têm deveres a que se
submetem ao assumir o cargo que ocupam na organização, mas, por
outro lado, tem sua vida privada inviolada, uma vez que a administração
não tem legitimidade para influenciá-la diretamente. “O administrador
burocrático não tem nenhuma autoridade sobre a vida privada de seu
subordinado e, mesmo dentro da organização, seu poder está definido
pelas funções e as funções do subordinado” (MOTTA e BRESSER
PEREIRA, 1991, p. 30). Entretanto, como o ápice processo de
burocratização coincide com o desenvolvimento da gerência científica e
do fordismo, sendo também correspondente à fase do capital
monopolista, a afirmação desses autores não é de toda correta, uma vez
que, como afirma Harvey (1992) a socialização do trabalhador nesse
contexto requer mecanismos bem mais amplos do que os desenvolvidos
no âmbito das empresas.
Tumolo (2003a, p. 168) afirma que o controle da administração
capitalista sobre os processos de trabalho, “elemento determinante de
materialização da subsunção real do trabalho ao capital”, atingiu seu
ápice no taylorismo/fordismo, ao qual o processo de burocratização se
associa. “Não obstante, nessa fase da acumulação capitalista, o controle
e a racionalização do processo de trabalho passam a demandar o
controle da vida do trabalhador...”, pois a universalização da forma
mercadoria, a produção em massa de mercadorias, implica uma forma
particular de produção da vida humana. A produção em massa de
mercadorias cria a necessidade de uma nova ética, de valorização de um
novo tipo de homem, tanto nas classes dominantes quanto nas
subalternas. O tipo de comportamento desejado de vida social estava
ligado tanto ao padrão de consumo, ao consumismo, quanto à disciplina,
47 “Somente por uma regressão à organização pouco extensa [...] seria possível escapar à sua
[da burocracia] influência” (WEBER, 1978, p. 26).
71
de modo que a vida fora do trabalho influenciasse positivamente a
produtividade. Para Tumolo (2003a), esse período é marcado por uma
subsunção real do trabalho, mas de apenas uma subsunção formal da
vida dos trabalhadores ao capital.
O fordismo/taylorismo, associado à burocracia, permaneceu
hegemônico até o início da década de 70, quando esse padrão de
acumulação começa, em escala mundial, a se tornar insustentável.
Segundo Antunes (2003, p. 29-30), a crise do modelo fordista é marcada
pelos seguintes elementos: acentuação da queda da taxa de lucro dada
pelo aumento dos salários (resultado da intensificação das lutas sociais
no pós-guerra); esgotamento do taylorismo/fordismo como padrão de
acumulação, devido à sua incapacidade de dar respostas à retração no
consumo oriundos do aumento do desemprego estrutural; “hipertrofia
da esfera financeira, que ganhava relativa autonomia frente aos capitais
produtivos”, e que passava a ser campo prioritário para investimentos;
concentração de capital através de fusões, e do aumento de oligopólios e
monopólios; crise dos mecanismos de funcionamento Estado
Keynesiano, que acarretou na “crise fiscal do Estado capitalista e [n]a
necessidade de retração dos gastos públicos e sua transferência para o
capital privado”; início das privatizações, da flexibilização dos mercados
e da força de trabalho.
Nesse contexto de crise, as empresas passam a buscar novas
alternativas para retomar o patamar de acumulação obtido desde o pós-
guerra. Esse movimento ficou conhecido como o processo de
reestruturação produtiva do capital. Diante desse processo, inúmeras
novas questões são levantadas nas mais diversas áreas do conhecimento.
No campo dos estudos organizacionais, até hoje se debate sobre a
natureza das transformações ocorridas nas organizações empresariais.
No tópico a seguir, discutirei essas mudanças e exporei o ponto de vista
do qual partilho na explicação do contexto atual da sociedade capitalista.
4.4 Subsunção Real na Acumulação Flexível de Capital
A crise de acumulação capitalista cujo ápice se deu no início da
década de setenta pôs em debate diversas áreas de conhecimento,
72
inclusive os estudos organizacionais
48
e a sociologia do trabalho. Este
período, festejado na Administração como a “Terceira Revolução
Industrial”, que nos teria aberto as portas apara “Era do Conhecimento”
ou “Era da Informação”, traz consigo a discussão sobre novas formas
organizacionais de produção como também sobre os novos (ou não tão
novos) meios de acumulação de capital.
É verdade que, de lá para cá, seja por conta de um longo
processo de discussão, seja pelo próprio amadurecimento do movimento
real das referidas relações, muito se avançou na tentativa de elucidar
esse processo. Há, contudo, muitas questões que estão longe de uma
aproximação consensual
49
. Nesse sentido, é oportuno dar especial
atenção ao referido tema para contextualizar teórica e historicamente
este trabalho. É claro que tal contextualização será focalizada naquilo
que tem relações mais fortes com minha pesquisa, em detrimento de
exposições mais esclarecedoras sobre determinações de grande
importância para o processo em si
50
.
A superação da crise fordista é dada pelo que ficou conhecido
como processo de reestruturação produtiva do capital, que culmina no
padrão de “acumulação flexível” (HARVEY, 1992). Pode-se explicar
esse processo através da articulação de três frentes: a primeira, a
reorganização dos processos de trabalho, expressado principalmente
pelo toyotismo; a segunda, a ofensiva contra o trabalho, marcada pela
flexibilização das leis de sua proteção; e a terceira, a reforma estatal, que
transforma o papel regulador do Estado (MONTAÑO, 2005). Essa
“divisão em três frentes” representa, na verdade, um movimento de
determinações articuladas, fruto da luta política, que tem permitido, em
suma, a continuidade do processo de valorização do valor, de
acumulação e reprodução ampliada de capital.
No que tange as formas de organização do trabalho (a primeira
das três frentes), o toyotismo, como ficou conhecido, é razão de muitos
debates na academia. O toyotismo é comumente explicado no meio
acadêmico por suas ferramentas de gestão, dentre as quais se destacam
48 Uma breve síntese desse debate nos estudos organizacionais (os principais temas e
perspectivas) pode ser encontrada em Palmer, Benveniste e Dunford (2007).
49 “Alguns concluem que os controles são abrandados e que um aumento da autonomia,
outros indicam um reforço dos controles através da utilização de mecanismos mais sutis”
(SILVA, 2003, p. 798).
50 Não é oportuno, por exemplo, explorar com profundidade as transformações do Estado
associadas a esse processo de reestruturação produtiva do capital.
73
os Programas de Qualidade Total, os Círculos de Controle de Qualidade,
o sistema just in time, kanban, 5S etc
51
. São técnicas qualitativamente
distintas dos métodos tayloristas clássicos de organização do trabalho.
Mas até onde há uma ruptura com o taylorismo?
Uma vez que o binômio taylorismo/fordismo pressupõe o
esvaziamento de qualquer iniciativa intelectual dos trabalhadores, bem
como a pormenorização da divisão do trabalho, alguns teóricos
defendem que nesse processo de reestruturação uma ruptura com as
práticas organizacionais existentes até então
52
.
Outros autores, ainda que dentro de uma mesma perspectiva
teórico-epistemológica, como Dellagnelo (2004), demonstram que tais
organizações não rompem com a racionalidade daquilo que chamam de
“organizações modernas”, a racionalidade instrumental. Ao apresentar o
pensamento destes pesquisadores, os pós-modernos, diante de um
processo geral de reestruturação produtiva, em especial o de Clegg, a
autora questiona se, como anunciavam, pode-se dizer que as formas de
organizações flexíveis implicam uma nova racionalidade organizacional.
Analisando os principais estudos de caso produzidos no campo da
administração sobre o tema no mundo, o que a autora constata é que
pouca novidade em termos da imbricada relação entre pressão
mercadológica, que demanda uma estratégia empresarial para respondê-
la, e relações organizacionais que delineiam um tipo específico de
racionalidade, a instrumental.
Não será diferente enquanto a reprodução societal se der com a
organização do trabalho alienada pelo sociometabolismo do capital
(MÉSZÁROS, 2004). A “racionalidade instrumental” da administração,
isto é, a organização reificada da produção material da vida humana não
é causa, mas sobretudo efeito da produção capitalista. Por isso, é
necessário entender as características do “trabalho concreto” subsumido
51 Uma análise detalhada de cada uma dessas ferramentas do “modelo japonês” e seus efeitos
sobre os trabalhadores podem ser encontrados em Oliveira (2004), inclusive quanto à sua
adoção no Brasil.
52 Clegg (1998), por exemplo, estuda as fábricas japonesas e atribui-lhes o conceito de
“organizações pós-modernas”, que teriam superado a racionalidade moderna na
organização do trabalho. Uma reversão do processo de diferenciação das organizações
capitalistas (a progressiva pormenorização do trabalho) daria lugar a um processo inverso
de “desdiferenciação”. Esse processo culminaria em um novo “modo de racionalidade”.
Clegg enxerga nos círculos de controle de qualidade uma verdadeira democracia, e chega a
cunhar o termo “autogestão” para os grupos de trabalho do toyotismo. Além de Clegg, há
vários outros teóricos que aproximam desse ponto de vista.
74
ao “trabalho abstrato”, o que significa reconhecer a organização do
trabalho como produtora de mais-valia e da relação de dominação que é
o capital (TUMOLO, 2003a).
É necessário ressaltar que o metabolismo do capital vem, desde
a formação da grande indústria, alastrando-se para outras atividades
muito além da fabril, que fora a originária
53
. “Na medida de sua
penetração, em tais atividades econômicas passa a prevalecer a relação
capitalista e, portanto, a produção de mais-valia e, conseqüentemente,
de capital” (TUMOLO, 2003a, p. 173; grifos do autor).
Dominando praticamente todas as atividades humanas,
combinado com o aumento do desemprego, o resultado é o controle do
capital sobre a vida dos trabalhadores. A subsunção real do trabalho e
formal da vida dos trabalhadores metamorfoseiam-se, por conta do
controle do capital sobre todas as “esferas” da vida social, em subsunção
real da vida social ao capital. Dessa maneira, no atual padrão de
“acumulação flexível”, o controle da vida social é o meio de garantir o
controle sobre os processos de trabalho, sendo, portanto, este
subordinado àquele,
... de tal maneira que o capital tende a prescindir de um controle
mais sistemático e hostil sobre os trabalhadores no âmbito dos
processos de trabalho, dispensando, inclusive, os empregados que
desempenham esse tipo de função, tendo em vista o autocontrole
exercido pelos próprios trabalhadores. Tudo isso significa,
portanto, o coroamento da articulação orgânica do “espaço do
trabalho” e do “espaço fora do trabalho” num único e mesmo
“espaço”, o locus do capital (TUMOLO, 2003a, p. 174).
53 É espantoso observar que, em 1847, escrevia Marx (2001, p. 31): “Chegou por fim um
tempo em que tudo o que os homens tinham considerado inalienável se tornou objeto de
troca, de tráfico e se podia alienar. É o tempo em que as mesmas coisas que até então eram
transmitidas mas nunca trocadas; dadas mas nunca vendidas; adquiridas mas nunca
compradas virtude, amor, opinião, ciência, consciência etc. - tudo, enfim, passou ao
comércio. É o tempo da corrupção geral, da venalidade universal, ou, falando em termos
de economia política, o tempo em que qualquer coisa, moral ou física, ao converter-se em
valor venal é levada ao mercado para ser apreciada no seu mais justo valor”. Nos estudos
organizacionais, sobretudo no Observatório da Realidade Organizacional, esse fenômeno é
conhecido como “empresarização”, cuja principal referência é a teoria do pesquisador
Andreu Solè. Cf. Solè (2004).
75
Ainda segundo o autor, o atual padrão de acumulação exige
tanto um novo tipo de Estado (do keynesiano ao neoliberal) como um
novo tipo de sujeito, que seja integrado à lógica societal do modo de
produção capitalista. “Trata-se de um sujeito que não apenas ‘veste a
camisa da empresa’ mas, acima de tudo, um ser humano que, premido
pelas condições materiais, ‘veste a camisa do capital’” (idem, p. 175).
Nesse sentido, no que se refere às novas características da
organização do trabalho, é importante sublinhar aqui um traço comum
que permeia todas as ferramentas do “modelo japonês”, a saber, a
imprescindível participação intelectual dos trabalhadores no processo
produtivo. No entanto, não se trata, de modo algum, de uma participação
autônoma. Ao contrário, a subjetividade do trabalhador tem de se alinhar
aos “planejamentos estratégicos” das empresas. Isto é, trata-se de uma
participação amplamente condicionada pelo processo de reprodução do
capital. O toyotismo cria, na verdade, “um trabalhador pluri-parcelar
engajado e flexível. A fábrica, mediante uma pedagogia participativa,
apropria-se do saber-tácito e da subjetividade humana levando a
intensificação do ritmo de trabalho ao paroxismo...” (NOVAES, 2007, p.
139). E esta é, justamente, sua “face trágica”, como afirma Ribas (1999,
p. 80): “... a de ter triunfado tendo como pressuposto a negação de
toda a capacidade criativa, de todo o espírito, de todo o engenho humano
que não esteja a serviço da produção”.
Para Silva (2003), o controle nessas organizações acirra-se, uma
vez que se passa a utilizar mecanismos normativos. Tais mecanismos,
que são relacionados à cultura e a uma visão de mundo dominante,
interiorizam nos indivíduos convicções que facilitam a manipulação
correspondente aos interesses empresariais hegemônicos. Desse modo, o
“punho de ferro” da dominação burocrática é revestido pela sutileza de
uma “luva de pelica” (idem).
O participacionismo promovido pela administração capitalista
nesse contexto implica, pois: de um lado, uma apropriação do saber-
fazer por parte da administração, naquilo que interessa ao capital; e, de
outro, torna requisito necessário à venda da força de trabalho um
engajamento subjetivo às necessidades da empresa capitalista, um
“perfil” adequado às estratégias etc. (ANTUNES, 2003; OLIVEIRA,
2004).
Mas esse alargamento do domínio do capital não ocorre de
maneira uniforme, sobre uma mesma base técnica. Na verdade, o
76
surgimento do toyotismo se dá com relação orgânica com o método
fordista/taylorista de organização do trabalho. Como afirma Harvey
(1992), cria-se um “fordismo periférico” onde predomina uma força de
trabalho menos protegida, associado a um aumento da mais-valia
absoluta, enquanto, no centro do sistema, em que uma mais elevada
composição orgânica do capital, os métodos toyotistas são associados a
um aumento da mais-valia relativa.
A acumulação flexível caracteriza-se, segundo Harvey (1992),
pela flexibilidade nos fluxos de capitais (permitida também pela
flexibilidade organizacional), por todo o globo terrestre, provocando um
deslocamento do tempo e do espaço. Tanto o retardamento dos
investimentos na esfera da circulação ou a aceleração do tempo de giro
das mercadorias (deslocamento no tempo); quanto a migração para
novos espaços nos quais a produção capitalista possa prosseguir,
permitem a continuidade dos ciclos de valorização controlando os
problemas críticos da “superacumulação”
54
. Em tempos de acumulação
flexível, este controle ganha notoriedade, haja vista que o intenso fluxo
de capitais facilita estes mecanismos. Dessa forma, o capital consegue
combinar as duas formas tradicionais de acumulação, com o aumento da
mais-valia absoluta (extensão da jornada de trabalho), ou, quando for
necessário, com o aumento da mais-valia relativa (aumento da
produtividade e, como conseqüência, redução do valor da força de
trabalho) (HARVEY, 1992).
Por essa razão, uma das formas de dar continuidade ao seu
desenvolvimento, mais ligada à mais-valia absoluta, foi a migração de
setores industriais em que as características de trabalho estão mais
próximas do taylorismo/fordismo para regiões menos desenvolvidas
economicamente, e nas quais a força de trabalho não tem a mesma
proteção do contexto em que o fordismo era acompanhado por um
Estado regulador (HARVEY, 1992).
Em contraponto ao “fordismo periférico”, estão, principalmente
no centro do capitalismo mundializado, as organizações que se utilizam
dos avanços tecnológicos e das mudanças organizacionais para aumentar
seus lucros. Estas estratégias empresariais estão muito mais ligadas ao
aumento da mais-valia relativa. De acordo com Harvey (idem: 175),
apoiar-se nessa estratégia “... enfatiza a importância de forças de
54 Para Harvey (1992) as crises cíclicas do capitalismo são marcadas pela superacumulação e
não por uma superprodução, revelando, assim, a dimensão política das crises.
77
trabalho altamente preparadas, capazes de compreender, implementar e
administrar padrões novos, mas muito mais flexíveis, de inovação
tecnológica e orientação do mercado”. Surge então um segmento
privilegiado da classe trabalhadora e, em certa medida, poderoso, uma
vez que as empresas aumentam a dependência dessas forças de trabalho
intelectualizadas para continuar suas atividades.
Esta nova configuração da classe trabalhadora pressupõe
transformações na própria organização dos processos de produção, o
rearranjo da divisão pormenor do trabalho, que permite a existência de
uma classe fragmentada e heterogênea, tal qual descreve Harvey. O
toyotismo, portanto, embora não seja o único modelo de acumulação
flexível, nem tampouco haja consenso sobre a sua predominância em
relação ao fordismo quando considerada a totalidade do mundo
produtivo, ganhou espaço nas organizações capitalistas que se
reestruturaram e, por isso, seu entendimento é fundamental para a
compreender as metamorfoses ocorridas no mundo do trabalho, uma vez
que dão conta das necessidades de flexibilidade não atingidas pelo
fordismo.
Uma das características do toyotismo é um aumento da
terceirização de atividades. As grandes corporações que adotam um
modelo de produção flexível se utilizam também, geralmente, da
subcontratação de diversos serviços ligados às atividades produtivas. Por
conta disso, a estrutura dessas empresas, em vez de rígidas e
verticalizadas como é a marca do modelo fordista, torna-se mais
horizontal, enxuta e flexível. Cria-se assim uma pirâmide, na qual a
empresa mãe elabora a estratégia e dirige, direta ou indiretamente, todo
o grupo de empresas a ela subordinado, cujas ações pertencem,
comumente, a empresa dirigente. As empresas subordinadas concorrem
entre si pela renovação do contrato com a organização principal,
proporcionando condições para as exigências por parte desta de preços
menores e serviços de maior qualidade (Oliveira, 2004).
Franca (2007, p. 90-1) demonstra como, na GM, o adensamento
dos processos de trabalho, isto é, a sua continuidade, a redução da
porosidade, está diretamente relacionada com a externalização de
atividades produtivas para outros estabelecimentos, sendo isso possível
graças às inovações tecnológicas que transformaram a relação espaço-
tempo. O autor argumenta que, em tempos de fordismo, “... a
cooperação por meio da subcontratação representava uma série de
78
problemas decorrentes da falta de comunicação entre empresa
contratante e os estabelecimentos subcontratados”. Na medida em que a
tecnologia da informação é desenvolvida, a terceirização volta a se
tornar interessante, uma vez que se “... desenvolveu um nível de
racionalização que sustenta a continuidade just in time do fluxo de
trabalho dentro e fora da fábrica”.
Nesse sentido, Oliveira (2004) argumenta que por isso, pela
necessidade de garantir a continuidade dos processos de trabalho, a
forma de produzir (just in time, CCQs, Kanban etc) tende a ser estendida
por toda a pirâmide envolvida nos processos necessários à mercadoria
final. As atividades estratégicas mais importantes, entretanto, continuam
incumbidas à matriz, uma vez que têm importância essencial nas
políticas estratégicas adotadas pelas empresas (Franca, 2007; Oliveira,
2004).
Outro aspecto relevante no que tange à terceirização diz respeito
às épocas de crise, quando “... a estrutura fundada nas subcontratadas
amortece o impacto da taxa de lucro decrescente sobre o construtor
principal, diminuindo primeiro as suas [das subcontratadas] margens de
lucro” (OLIVEIRA, 2004, p. 41). Além disso, a diminuição dos salários,
demissão de trabalhadores (aspecto fundamental do toyotismo para o
aumento da produtividade), e aceleração do ritmo de produção incide
primeiramente nos níveis mais baixos dessa estrutura.
Por todas essas características aqui delineadas da ”acumulação
flexível”, não se pode falar em uma ruptura com o taylorismo/fordismo,
ou de sua “superação” pelos métodos toyotistas de organização do
trabalho. Em primeiro lugar, porque o taylorismo/fordismo continua
sendo amplamente utilizado quando se considera a totalidade do modo
de produção capitalista, elemento totalizante da sociabilidade na
contemporaneidade. No âmbito da divisão internacional do trabalho, a
intensificação da exploração promovida pela transplantação dessas
práticas organizacionais ao longo da história, de que depende a
economia do centro do sistema, é elemento essencial para o atual padrão
de acumulação, como bem nos mostra Mészáros (2004; 2002). Em
segundo lugar, mesmo se considerarmos apenas as organizações de mais
elevada composição orgânica, em que predomina um aumento da mais-
valia relativa, as transformações não rompem com os princípios gerais
dos métodos de Taylor, mas são sobretudo novos meios de pô-los em
prática.
79
Essas considerações são necessárias porque é tendo em mente
esse contexto que se devem analisar as organizações cooperativistas nos
dias atuais. Nesse sentido, partirei da sua inserção no metabolismo do
capital, das mediações que estabelece com a totalidade da produção
social, para que se possa compreender em que condições podem
subsistir práticas organizativas de sentido contra-hegemônico, como
pode ser o caso de muitas cooperativas.
80
5 Cooperativismo, Autogestão e Novas Formas
Organizacionais
Como afirmei anteriormente, não é possível compreender as
organizações cooperativistas como autômatos, isto é, descoladas do
contexto social, cujo elemento totalizante é o capital. Por outro lado,
também não se pode compreendê-las sem se analisar aquilo que as
diferem das empresas comuns, que é seu modo peculiar de organizar o
trabalho, suas relações de poder internas estabelecidas, seus princípios e
objetivos prioritários etc.
Por essa razão, esta seção será dividida em dois tópicos
principais. Na primeira parte, analiso as possibilidades de inserção das
organizações cooperativistas na produção social capitalista no contexto
de acumulação flexível de capital, de onde procuro extrair algumas
hipóteses explicativas das possibilidades destas organizações diante das
condições com que se defrontam. Na segunda parte, o foco são as
relações internas dessas organizações, quando explicarei suas diferenças
em relação às empresas capitalistas tradicionais.
5.1 As Cooperativas na Totalidade Social
Como argumentei anteriormente, as organizações não podem
ser compreendidas descoladas da totalidade social, do contexto sócio-
histórico em que se inserem, da relação dialética que estabelecem com o
modo de produção historicamente determinado. É, por isso, necessário
identificar as mediações e determinações entre uma organização
particular e essa totalidade, que lhe aparece como as condições objetivas
diante da qual ela se defrontará. Nesse sentido, “... as fábricas-
cooperativas não podem ser analisadas isoladamente, mas como um
elemento de uma totalidade, de modo que as mudanças que se
manifestam nelas refletem mudanças no modo de produção e não apenas
nelas” (GERMER, 2007, p. 209).
No modo de produção capitalista, como vimos, a mediação das
organizações produtoras de mercadorias com a totalidade social se
através do mercado, lócus do intercâmbio da riqueza socialmente
produzida pelo trabalho. As cooperativas, como as empresas comuns,
adquirem mercadorias no mercado, transformam-nas através de um
81
fluxo produtivo específico e trocam-nas por certa quantidade de
dinheiro, que expressa monetariamente seu valor social através do preço,
que não tem o mesmo significado que a categoria “valor”. Marx (1988)
expressou este ciclo como D-M-D’, que, complexificado, pode ser
representado por D-Mp e Ft- D’
55
.
Como afirma Engels no prefácio escrito para A Miséria da
Filosofia (2001, p. 18), “... os contínuos desvios dos preços das
mercadorias em relação aos valores das mercadorias são a condição
necessária e a única pela qual o valor das mercadorias pode existir”, uma
vez que o valor se torna social mediante a flutuação da concorrência
intercapitalista
56
. No entanto, suponho, até aqui, que as mercadorias
estão sendo trocadas pelo seu valor social.
O que diferencia, em princípio, as cooperativas das empresas
comuns é que a força de trabalho, no segundo caso, também é adquirida
no mercado, através de uma relação de assalariamento, enquanto que nas
cooperativas, por outro lado, todos os produtores são associadamente
proprietários do capital que é antecipado, donos, portanto, dos meios de
produção (GERMER, 2007). Por conta dessa peculiaridade, o resultado
obtido pela organização (D’) caracteriza ciclos reprodutivos diferentes
dos das empresas comuns quanto à parte que é destinada à composição
de renda. No caso das empresas capitalistas, como vimos, o lucro pode
ser re-investido na empresa, sendo assim transformado em capital
(reprodução ampliada), ou destinado à riqueza individual do(s)
capitalista(s) (reprodução simples). Nas cooperativas, o lucro ou é
repartido entre os trabalhadores, compondo assim suas rendas
(reprodução simples), ou, da mesma forma, investido na cooperativa, o
que caracterizaria o mesmo movimento das empresas (reprodução
ampliada).
55 Os teóricos da “administração da produção”, em geral, reconhecem este ciclo, exceto
quanto àquilo que se refere à apropriação privada da riqueza produzida pelo trabalho, na
forma de mais-valia. Ver, por exemplo, Martins e Laugeni (1998, p. 371).
56 Nesse sentido, afirma Engels (idem, ibidem): “Que a forma de representação de valor, que
o preço tenha, regra geral, um aspecto muito diferente do que manifesta, é um destino que
partilha com a maior parte das relações sociais. A maior parte das vezes, o rei assemelha-
se pouco à monarquia que representa. Numa sociedade de produtores que trocam as suas
mercadorias, querer determinar o valor pelo tempo de trabalho proibindo à concorrência
que estabeleça essa determinação pela única forma por que pode ser feita, influindo nos
preços, é mostrar que, pelo menos neste campo, nos permitimos o desconhecimento
utópico habitual das leis econômicas”.
82
Há, por isso, em cada caso, formas diferentes de personificação
do capital. Nas empresas, os interesses da organização são defendidos
por um corpo administrativo, que se contrapõe politicamente aos
interesses mais imediatos da força de trabalho. Nas cooperativas, tal
personificação é “diluída” entre os cooperados de tal modo que a
contradição entre capital e trabalho apresenta-se como um dilema
insolúvel aos trabalhadores. Essa contradição é resolvida
democraticamente nas cooperativas, uma vez que são autogeridas, ao
passo que nas empresas impõem-se formas de controle que
caracterizam, como afirma Motta (1981), a heterogestão.
Se uma cooperativa transforma todo o lucro de suas operações
em renda para os trabalhadores, configurando uma reprodução simples,
isso significa que, em condições normais, a organização não
transformará os seus processos de trabalho, não aumentará sua
produtividade, não reduzirá os custos de suas operações em relação às
empresas concorrentes, em favor de uma melhora circunstancial da
renda dos trabalhadores. Com o tempo, para competir em condições
iguais com o desenvolvimento das forças produtivas presentes nas outras
empresas, a intensificação do trabalho tem de compensar o “atraso
tecnológico que ocorre naturalmente por conta da omissão quanto ao
movimento de acumulação de capital. Outra saída para essa
“compensação” seria aceitar a diminuição da renda dos trabalhadores.
Ambos os casos representam, pois, um aumento da mais-valia
absoluta
57
. Não se adotando nenhuma das duas alternativas, a tendência
é que a cooperativa caminhe para seu fim, criando, inclusive, conflitos
internos entre os cooperados. Se, de início, a cooperativa permitia que a
alíquota correspondente à mais-valia não fosse apropriada por nenhum
capitalista, mas transformada em riqueza dividida igualmente entre os
trabalhadores, o movimento do capital pressiona a organização
desvalorizando progressivamente a parte da produção correspondente a
essa renda, até o limite de sua viabilidade econômica.
Se a cooperativa destina parte significativa dos lucros de suas
operações para investimento no processo produtivo, ela acompanhará o
desenvolvimento tecnológico e unilateral característico da sociedade
capitalista. Por outro lado, a parte correspondente aos trabalhadores será
tendencialmente próximo ao das empresas comuns. Nesse sentido, a
57
Cf. nota 32, p. 56.
83
cooperativa perderia seu sentido de resistência no que se refere à
elevação do valor da força de trabalho, a não ser que tivesse força
econômica suficiente para influenciar todo um ramo de produção. É
claro também que, por poder estar estruturada com relações
diferenciadas, muitas vezes com uma divisão do trabalho não
hierarquizada, a repartição dos lucros na composição da renda pode
elevar o valor médio de funções específicas em relação ao “mercado de
trabalho”. Embora haja uma forte tendência a ocorrer uma espécie de
reprodução tecnológica também nas cooperativas, podem-se desenvolver
tecnologias diferenciadas, adaptadas aos interesses político-
organizacionais dos trabalhadores. No entanto, qualquer
desenvolvimento nesse sentido não pode romper com a subsunção do
trabalho concreto ao trabalho abstrato. Isso significa dizer que, no
limite, as cooperativas podem desenvolver tecnologias alternativas que
comportem uma divisão de trabalho mais democrática, mas sob a
condição de diminuir o tempo socialmente necessário de produção de
suas mercadorias.
Além disso, é preciso atentar para o modo pelo qual se um
provável aumento no número de trabalhadores associados, no caso de
um constante re-investimento na organização. A cooperativa pode, por
princípio, simplesmente trazer novos associados, sem por isso exigir
nada em troca pelo capital acumulado até então. Pode também vender
uma parte alíquota do capital da organização ou exigir a subscrição de
uma quantia determinada para que novos trabalhadores possam ingressar
na atividade produtiva. Para Storch (1987, p. 82) essa medida é tanto
interessante para garantir um “alto nível de dedicação à firma”, como
uma medida discriminatória, baseada na riqueza individual dos que
pretendem ingressar na organização. Por fim, pode suprir sua carência
de força de trabalho como o fazem as empresas tradicionais, comprando-
as no mercado. “A idéia básica de propriedade dos empregados não
exclui a possibilidade de trabalhadores assalariados que não sejam
sócios da empresa” (STORCH, 1987, p. 83). Mas, para isso, segundo o
autor, seria necessário que essa possibilidade fosse limitada pela
estrutura legal da empresa. De outro modo, criar-se-iam duas classes de
trabalhadores, que poderiam, com o tempo, gerar conflitos internos e, no
limite, transformar a natureza da organização. A questão torna-se ainda
mais complexa quando se leva em conta o fato de que a economia
capitalista não é nada estável, o que exige certa flexibilidade no
84
contingente de força de trabalho. No caso das empresas convencionais,
isso é facilmente resolvido por meio de contratações e demissões. As
cooperativas vêem-se obrigadas a criar medidas paliativas
58
que, se não
bem planejadas, podem transformar, no longo prazo, a natureza da
organização.
Essas são, de início, as possibilidades de inserção das
cooperativas no circuito de reprodução sociometabólica do capital.
Como mostrei até aqui, essas organizações têm caminhos diversos que
podem tomar, que serão frutos sobretudo de mediações de natureza
política, mas não podem se desvencilhar das condições que lhes são
postas por um modo socialmente determinado de produção da vida. Mas
até aqui se supõe que essas organizações têm força suficiente para
concorrer em de igualdade com as empresas capitalistas, e que, além
disso, tem na sua origem uma composição orgânica de capital próxima
da de seus concorrentes, o que lhes criariam condições para vender suas
mercadorias por um preço próximo ao seu valor social. Essas são, de
fato, as cooperativas que mais chamaram a atenção de Marx
(HADDAD, 2006), como veremos mais tarde.
Entretanto, ocorre que a identidade entre preço e valor é apenas
uma lei tendencial
59
. As forças assimétricas de negociação no mercado
fazem o preço oscilar em torno do valor social das mercadorias,
favorecendo um ou outro lado dos pólos contratantes
60
. No contexto do
capitalismo monopolista e da acumulação flexível de capital, as
cooperativas comumente aparecem como empresas subcontratadas,
executando partes do processo produtivo cuja finalidade não é a venda
para satisfação de necessidades diretas dos consumidores, mas para uma
empresa que a adquirirá como insumo produtivo (TAVARES, 2004). “A
flexibilização apenas recriou a terceirização, fazendo renascer a pequena
indústria em bases que se adaptam às exigências atuais da acumulação
capitalista” (TAVARES, 2004, p. 184).
58 Algumas dessas medidas são descritas por Storch (1987, p. 83-86).
59 “Do mesmo modo que a taxa de lucro tem uma forte tendência para se manter no mesmo
nível para todos os capitalistas, também os preços das mercadorias tendem a reduzir-se ao
valor de trabalho, por intermédio da oferta e da procura” (ENGELS, in: MARX, 2001, p.
13)
60 “É que, quando a relação ‘valor-preço’ ou ‘custos-preço’ é controlada por uma das partes
da transação ‘compra/venda’, e não equivalência entre ambos, aparece o mercado
como meio apropriado e privilegiado para a apropriação do valor excedente”
(MONTAÑO, 1999, p. 41).
85
É preciso ressaltar que não foi a acumulação flexível que deu
origem a este tipo de relação. Porém, por conta de seu caráter afim, “...
ela foi expandida e atualizada para atender às demandas do mercado,
que criou possibilidades e fomentou a idéia da vantagem em produções
de pequena série, o que implicou modificações nas relações iniciais”
(TAVARES, 2004, p. 185).
Às pequenas empresas que assumem a condição de
subcontratada de uma empresa matriz, Montaño (1999) atribui-lhes o
nome de “PeMEs” (pequenas e micro-empresas) satélites, haja vista que
gravitam em torno de uma organização central. Diferenciam-se,
portanto, das “PeMEs de produção final”, que são voltadas diretamente
para o consumidor final. Essas últimas, segundo o autor, sobrevivem
sobretudo nos espaços de baixíssima ou mesmo nenhuma taxa de
lucro
61
.
As empresas subcontratadas no contexto de reestruturação
produtiva de capital, processo o qual atravessamos, como afirma
Montaño (1999), são, via de regra, de baixa composição orgânica de
capital. Além disso, Tavares (2004) ressalta que as organizações na
condição de empresas subcontratadas estão fortemente associadas ao
trabalho informal, condição a qual permite a livre negociação entre
trabalho e capital, favorecendo este amplamente. Como visto
anteriormente, a terceirização a pequenas empresas permite maior
flexibilidade para a empresa matriz, que em momentos de crise pode
romper os vínculos com maior facilidade. Ademais, a baixa quantidade
de capital necessária para se assumir a condição de empresa
subcontratada tem como conseqüência uma elevada concorrência entre
pequenas empresas, como demonstrado em momento anterior, além de
um mais baixo custo de produção. Essas pequenas organizações têm
como principal e essencial mercado as empresas matrizes, o que as torna
totalmente dependentes.
Nesse contexto, a aparente igualdade formal entre as partes
contratantes, própria da circulação simples de mercadorias, não se faz
presente por conta de uma brutal desigualdade econômica (TAVARES,
61 É, por isso, segundo o autor, uma mistificação a idéia de “pequenas empresas” presente na
ideologia dominante, que leva a crer que essas organizações terão o crescimento natural,
sendo talvez também um dia grandes empresas. Em nenhum dos dois casos (PeMEs
satélites ou de produção final), enfatiza o autor, pode-se aceitar o crescimento empresarial
como uma tendência imanente.
86
2004). Diante desse quadro, o preço das mercadorias tende a girar muito
próximo de seu custo, que corresponde à renda dos trabalhadores e aos
custos relacionados aos meios de produção.
A pequena empresa subcontratada vende à matriz não a força de
trabalho, mas um trabalho objetivado em mercadorias específicas, a
um preço muito próximo de seu custo. Por essa razão, Montaño (1999,
p. 83) afirma que:
... mesmo se apropriando da mais-valia criada por seus
empregados, isso representa para a maioria das PeMEs um fato
meramente transitório. O empresário da PeME perde esse valor
adicional, ou parte importante dele, no mercado, quando vai, em
franca desvantagem, negociar com as GEMs [grandes empresas]
preços para a compra de insumos ou para a venda de seus
produtos (grifos do autor).
Montaño (1999) entende que a propriedade privada dos meios
de produção na sociedade capitalista não é um fim em si mesmo, mas
sobretudo um meio de produção de lucro e, portanto, de acumulação de
capital. A propriedade privada seria um meio privilegiado, mas não o
único de extração de mais-valia. Nesse sentido, o autor diferencia o
controle dos meios de produção/comercialização da propriedade dos
meios de produção.
Assim, se no capitalismo concorrencial, e no monopolista
clássico, para controlar a produção, devia-se ter,
necessariamente, a propriedade dos meios de produção, na fase
atual do capitalismo monopolista, para se controlar o valor
produzido, pode-se prescindir da propriedade dos meios de
produção não estratégicos na medida em que se possua o controle
do mercado (MONTAÑO, 1999, p. 81).
As cooperativas, na condição de pequenas empresas
subcontratadas, podem, no momento em que transformam as
mercadorias produzidas em dinheiro, isto é, no momento da realização
de sua produção, perder o valor que corresponderia ao lucro. Isso torna a
relação entre a empresa matriz e a organização subcontratada uma
relação tipicamente capitalista, de tal modo que a produção da força de
87
trabalho é organizada com a única finalidade de acumulação da empresa
matriz (TAVARES, 2004).
Uma forma de garantir essa relação de subordinação das
PeMEs, cooperativas ou não, é que o pagamento se por mercadoria
produzida. Esse mecanismo aproxima-se do que Marx (1985) chamara
de salário por peça
62
. O problema de Marx em O Capital consistia em
analisar essa forma de pagamento no caso de trabalhadores que eram
diretamente contratados pelo capital. Não se tratava, com efeito, de uma
subcontratação ou terceirização.
Contudo, como demonstra Montaño (1999), a análise marxiana
é perfeitamente aplicável ao caso em questão. Dados uma produtividade
média de uma força de trabalho em determinado contexto para
determinada tarefa; uma jornada de trabalho média; e um valor da força
de trabalho médio
63
; a administração das empresas capitalistas pode
facilmente calcular valor que corresponde a cada peça produzida para
que, ao final do período de pagamento, cada trabalhador tenha recebido
em média o valor da força de trabalho. O efeito dessa técnica impele os
próprios trabalhadores a elevar a produtividade ao máximo, o que levou
Marx (1985), assim como Taylor (1974)
64
, a identificar essa forma de
assalariamento como a mais vantajosa para os capitalistas. Esse mesmo
procedimento é adotado no contexto atual não em relação aos
trabalhadores individualmente, mas às PeMEs subcontratadas.
Tavares (2004) entende que a mudança na relação entre capital
e trabalho nesse contexto é apenas mistificada. Formalmente, tratar-se-ia
de produções que se confrontariam autonomamente no mercado, em
condições iguais, como no processo de circulação simples. Entretanto, o
conteúdo da relação é capitalista, uma relação de exploração e
dominação do capital sobre o trabalho, em que os próprios trabalhadores
se impõem uma disciplina necessária para a valorização do capital. A
62 Para um aprofundamento da visão de Marx sobre o assunto, cf. o capítulo XIX de O
Capital (1985).
63 Ressalte-se que todos esses elementos são produtos das lutas de classes. Tanto o valor da
força de trabalho, como a extensão da jornada de trabalho e mesmo a intensidade exigida
pelos compradores da mercadoria força de trabalho não são definidos unilateralmente, mas
antes pelo confronto de interesses antagônicos entre capital e trabalho. Isso fica bastante
claro em diversas obras marxianas, notadamente em Salário, Preço e Lucro, na sua
polêmica com Weston sobre as greves operárias. Ver Marx (1978).
64 Taylor (1974), porém, cumprindo sua função de ideólogo, defendia que o pagamento era
também mais vantajoso para os trabalhadores, que teriam seus salários aumentados,
mesmo no longo prazo.
88
posição totalmente desfavorável da cooperativa nessa relação também
faria com que ela se desenvolvesse de modo dependente das políticas
empresariais das grandes empresas ou empresas matrizes. A empresa
matriz, na condição de principal mercado da PeMEs satélites, tem
condições de estabelecer os padrões técnicos não para a mercadoria
de que necessita, como também para o processo de produção em si. A
autonomia político-organizacional dos trabalhadores cooperados que se
encontram nessa condição seria, por isso, muito restrita, quase nula.
Conclusivamente, a autora afirma que “... a cooperativa, a pequena
empresa, as formas que se pretendem ‘livres’ sob a égide do capital,
existem em si, e não para si. O centro é o capital, não havendo
alternativa possível para escapar à sua subordinação” (TAVARES,
2004, p. 194 – grifos da autora).
À luz do arsenal categorial levantado até aqui, parecem ser
essas as possibilidades de inserção das cooperativas na totalidade do
modo de produção capitalista de produção. Vê-se que se trata de um
terreno bastante infértil para a organização de uma produção pautada
seja na qualidade e finalidade do produto final, seja nas características
do trabalho concreto, isto é, da atividade produtiva. A aproximação com
o objeto pesquisado, que apresenta uma riqueza empírica bastante
elucidativa sobre muitos aspectos, revelará outras determinações que são
por ora ignorados nesse processo investigativo. De todo modo,
certamente não significa uma mudança substancial do contexto
analisado até aqui.
O quadro que se segue visa a sintetizar de modo meramente
esquemático a análise delineada para tornar mais claras as possibilidades
de uma organização que vise a se contrapor às práticas organizativas
hegemônicas oriundas da “relação capital”. Ressalte-se que são
observações de naturezas tendenciais, que comportam, portanto, suas
contra-tendências.
89
Quadro 1 – Movimento Tendencial das Organizações Capitalistas
Composiç
ão
Orgânica
de Capital
Condições de
Reprodução
da
Organização
Composição da Renda
dos Trabalhadores das
Cooperativas
Tendência do
movimento
tecnológico
Elevada
Composiçã
o Orgânica
de Capital
Reprodução
Ampliada
Tende a ficar próximo
ao valor da força de
trabalho
Reprodução do
movimento das
grandes empresas
Reprodução
Simples
Tende a um movimento
de renda acima da média
para um decréscimo
gradual até o limite
Estagnação
Baixa
Composiçã
o Orgânica
de Capital
Reprodução
ampliada
Arrocho da renda dos
trabalhadores
Apropriação de
técnicas de baixo
valor
Reprodução
simples
Tende a um movimento
da média salarial para
um decréscimo gradual
até o limite
Estagnação
É por essa razão, pelo fato de a sociedade capitalista impor
fortes constrangimentos às cooperativas, por condicionar o
desenvolvimento das forças produtivas à reprodução ampliada de capital
(MÉSZÁROS, 2004
65
), por impedir a liberação desse desenvolvimento,
que a tradição marxista sempre tratou o tema do cooperativismo com
muita cautela.
Na Mensagem Inaugural da Associação Internacional dos
Trabalhadores, em 1864, Marx (1983a, p. 11) chamava a atenção para o
fato de que
O valor destas grandes experiências sociais não pode ser
exagerado. Mostraram com factos, em vez de argumentos, que a
produção em larga escala e de acordo com os requisitos da
ciência moderna pode ser prosseguida sem a existência de uma
classe de patrões empregando uma classe de braços; que, para dar
fruto, os meios de trabalho não precisam ser monopolizados
como meios de domínio sobre e de extorsão contra o trabalhador;
65 Sobre essa questão, ver especialmente os itens 4.3 (p. 261-273) e o 7.5 (p. 353-4) da
referida obra de Mészáros.
90
e que, tal como o trabalho escravo, tal como o trabalho servo, o
trabalho assalariado não é senão uma forma transitória inferior,
destinada a desaparecer ante o trabalho associado
desempenhando a sua tarefa com uma mão voluntariosa, um
espírito pronto e um coração alegre.
Trata-se de um texto de natureza essencialmente política
66
, mas
que revela o significado das cooperativas na construção teórica
marxiana. Essa passagem revela que “a cooperativa”, como interpreta
Haddad (2006, p. 210), “há de ser tão eficiente quanto a empresa
capitalista. A referência à escala de produção e à utilização da ciência
moderna não deixa dúvidas desse propósito”. Interessava a Marx,
sobretudo, demonstrar que a eficiência produtiva não estava
necessariamente relacionada com a forma despótica que assumia a
divisão do trabalho no interior da grande indústria.
em um dos poucos momentos que se deteve à análise das
cooperativas em O Capital, Marx (1984, p. 334) afirmou que:
As fábricas cooperativas dos próprios trabalhadores são, dentro
da antiga forma, a primeira ruptura da forma antiga, embora
naturalmente, em sua organização real, por toda parte
reproduzam e tenham de reproduzir todos os defeitos do sistema
existente. Mas a antítese entre capital e trabalho dentro das
mesmas está abolida, ainda que inicialmente apenas na forma em
que os trabalhadores, como associação, sejam seus próprios
capitalistas, isto é, apliquem seus meios de produção para
valorizar seu próprio trabalho (grifos meus).
Por um lado, Marx enfatiza que as cooperativas são uma ruptura
com a forma de produção da grande indústria e destaca o fato de que a
produção em larga escala não depende da sua subordinação aos patrões.
Mas, ao mesmo tempo, por estarem inseridas em um modo de produção
capitalista, os trabalhadores têm de ser “seus próprios capitalistas”, ou
seja, se auto-impor as condições de trabalho de tal modo que possam
concorrer de igual para igual com as empresas. E por que razão as
66 “... a correta compreensão do cooperativismo na obra de Marx exige uma incursão nas
searas da política...” (HADDAD, 2006, p. 213).
91
cooperativas são consideradas “dentro da antiga forma, a primeira
ruptura da forma antiga”?
Marx havia descoberto a essa altura uma característica
fundamental da economia capitalista, que é precisamente a anarquia na
divisão social do trabalho que se relaciona contraditoriamente com o
caráter despótico que assume a “divisão manufatureira” do trabalho.
Para Marx (1986, cap. XXIII), um trabalho de coordenação e supervisão
possui uma dupla natureza: é necessário para qualquer grande
organização, como no caso de “um regente de uma orquestra”; é uma
função produtiva necessária. Entretanto, nas sociedades em que se
opõem trabalhadores e os proprietários dos meios de produção, quanto
maior essa oposição, mais importante torna-se o papel dos
administradores. Por isso, “as fábricas cooperativas fornecem a prova de
que o capitalista como funcionário da produção tornou-se tão supérfluo
quanto ele mesmo, no auge do seu desenvolvimento, no auge do seu
desenvolvimento, considera supérfluo o latifundiário” (MARX, 1986,
289).
Para Marx, o trabalho de direção é comum a toda sociedade,
emancipada ou não, desde que minimamente complexa. Nas sociedades
de classes, essa função de direção associa-se à função de exploração
(HADDAD, 2006).
Mas não apenas as cooperativas chamavam a atenção de Marx
pelo fato de os patrões deixarem de exercer uma função produtiva. “As
empresas capitalistas por ações tanto quanto as fábricas cooperativas
devem ser consideradas formas de transição do modo de produção
capitalista para ao modo associado, só que, num caso, a antítese é
abolida negativamente e, no outro, positivamente
67
(MARX, 1986, p.
335). Ou seja, num caso, dá-se a separação completa entre propriedade
dos meios de produção e controle dos meios de produção (superação
negativa), enquanto noutro, ocorre a sua identidade (superação positiva).
A diferença fundamental é que a função de administração das
cooperativas é determinada pelos trabalhadores, isto é, a administração
representa seus interesses. Nas empresas por ações, por outro lado, a
administração representa o capital perante eles. “Mas, até aqui, observa-
se que a cooperativa significa tão-somente a superação de uma das
67 Ressalte-se que “negativo” e “positivo” não tem aqui conotação valorativa, mas de
categorias da dialética.
92
determinações da divisão do trabalho dentro da manufatura”
(HADDAD, 2006, p. 212).
A cooperativa é uma negação insuficientemente negativa para
superar o modo de produção capitalista positivamente. É a negação do
principal fundamento do sistema, a propriedade privada individual, mas
uma negação limitada, já que promovida no interior do regime
capitalista” (HADDAD, 2006, p. 212). Eliminar o caráter despótico da
divisão do trabalho no interior das organizações, ao mesmo tempo em
que permanece a anarquia da divisão social do trabalho faz com que os
trabalhadores funcionem “... como patrões de si mesmos, reproduzindo
inclusive o sistema de exploração do trabalho. O sujeito automático
continua a operar mesmo sem a presença em carne e osso de um de seus
suportes” (HADDAD, 2006, p. 212).
É por essa razão que Rosa Luxemburgo (1999) considerava as
cooperativas um ser híbrido dentro da economia uma pequena
produção socializada imersa em um intercâmbio social capitalista.
...na economia capitalista, a troca domina a produção, fazendo da
exploração impiedosa, isto é, da completa dominação do
processo de produção pelos interesses do Capital, em face da
concorrência, uma condição de existência da empresa.
Praticamente, exprime-se isso pela necessidade de intensificar o
trabalho o mais possível, de reduzir ou prolongar as horas de
trabalho conforme a situação do mercado, de empregar a força de
trabalho conforme as necessidades do mercado ou de atirá-la na
rua, em suma, de praticar todos os métodos conhecidos que
permitem a uma empresa capitalista enfrentar a concorrência das
outras. Resulta daí, por conseguinte, para a cooperativa de
produção, verem-se os operàrios na necessidade contraditória de
governar-se a si mesmos com todo o absolutismo necessário e
desempenhar entre eles mesmos o papel do patrão capitalista
(LUXEMBURGO, 1999, p. 80-1).
Por isso, na Mensagem Inaugural da Associação Internacional
dos Trabalhadores, Marx (1983a, p. 12) conclui que se o
cooperativismo for “... mantido nos estreitos círculos dos esforços
casuais de operários privados, nunca será capaz de parar o crescimento
em progressão geométrica do monopólio, de libertar as massas, nem
sequer de aliviar perceptivelmente a carga de suas misérias”. Mas para
93
que as cooperativas possam ir além “dos estreitos círculos dos esforços
casuais de operários privados”, numa palavra, para que as cooperativas
possam ser base de uma organização societal radicalmente nova que
superem tanto a anarquia da divisão social do trabalho como o caráter
despótico das relações organizacionais, torna-se premente a tomada do
poder político pelos trabalhadores, que só se pode dar pela mediação das
lutas de classes
68
.
O cooperativismo compreendido nessa perspectiva, de base da
produção de uma sociedade inteiramente nova, em uma economia
planejada pelos próprios trabalhadores, é que permitiria a superação
necessária da contradição entre a anarquia social da produção e o
despotismo nas organizações produtivas. Não é por outra razão que
Marx (1983b, p. 244), analisando o levante operário que ficou conhecido
como um “assalto aos céus”, a Comuna de Paris
69
, dizia:
Se não cabe à produção cooperativa permanecer uma fraude e
uma armadilha; se lhe cabe suplantar o sistema capitalista; se
cabe às sociedades cooperativas unidas regular a produção
nacional segundo um plano comum, tomando-a assim sob o seu
próprio controlo (sic) e pondo termo à anarquia constante e às
convulsões periódicas que são a fatalidade da produção
capitalista que seria isto, senhores, senão o comunismo, o
comunismo “possível”?
Mas não apenas Marx, como também diversos pensadores
clássicos da tradição marxista partilham de pontos de vista semelhantes
em relação ao cooperativismo. Gramsci (1976, p. 103) assinalava no
68 São no mínimo curiosas as teses de “Economia Solidária” que pretendem superar o
capitalismo ignorando esta mediação essencial. Para uma compreensão dessas teses à luz
da reflexão marxista, cf. Germer (2007) e Wellen (2008).
69 “A multiplicidade de interpretações a que a Comuna esteve sujeita e a multiplicidade de
interesses que a explicaram em seu favor mostram que ela era uma forma política
inteiramente expansiva, ao passo que todas as formas anteriores de governo têm sido
marcadamente repressivas. Era este o seu verdadeiro segredo: ela era essencialmente um
governo da classe operária, o produto da luta de classe produtora contra a apropriadora, a
forma política, finalmente descoberta, com a qual se realiza a emancipação econômica do
trabalho” (MARX, 1983a, p. 243).
94
jornal Ordine Nuovo
70
que o “conselho operário de fábrica
71
era (ou
deveria ser)
... a primeira célula de um processo histórico que deve culminar
na Internacional Comunista, não enquanto organização política
do proletariado revolucionário mas enquanto organização da
economia mundial, reorganização de toda uma comunidade
humana nacional e mundial.
Na contemporaneidade, o intelectual de maior envergadura da
tradição marxista que teoriza as cooperativas na mesma direção é
Mészáros. Para o autor (2002), o fracasso das sociedades pós-capitalistas
do século XX no desafio de superar o capital ocorreu por conta de uma
limitada transformação, que não conseguiu superar a subordinação
estrutural do trabalho ao capital. Tratou-se de uma superação
essencialmente negativa, que se limitou a negar o modo de produção
existente no plano jurídico, por uma apropriação formal das classes
trabalhadoras dos meios de produção, mantendo as bases da divisão
hierárquica do trabalho e adotando a “linha de menor resistência”. Para
Mészáros,
“Expropriar os expropriadores” e, nesse sentido, alterar a
posição anterior do capital nas relações de propriedade está
muito longe de ser suficiente. Isso porque o capital é
70 Trata-se de um jornal publicado por Gramsci e outros jovens socialistas (como Togliati) da
Itália entre os anos 1919 e 1920, momento de um intenso movimento operário na região,
notadamente em Turim. Ressalte-se que esse é o período de uma virada teórico-política do
pensamento gramsciano, que passa a concentrar seus esforços na tomada do poder político
do Estado pela classe operária. Para uma rápida leitura biográfica de Gramsci, cf.
Buonicore (2007).
71 Na intensa luta de classes da Itália da época, os conselhos de fábrica eram uma
organização que existia dentro das fábricas capitalistas, que influenciavam diretamente a
organização do trabalho. Em alguns momentos dessa luta, os trabalhadores ocuparam
fábricas fechadas e se organizaram conforme funcionavam os conselhos. Configurava-
se, assim, uma autogestão, como atesta a narrativa de Buonicore (2007): “Em Turim mais
de 140 empresas foram ocupadas. Os operários passaram a organizar a produção,
estabelecendo a auto-gestão. O movimento pouco a pouco foi adquirindo um caráter
insurrecional. Mais de 500 mil operários participaram da luta. A classe operária mostrou,
na prática, que a burguesia era uma classe socialmente desnecessária para o
desenvolvimento do processo produtivo. Os próprios trabalhadores poderiam organizar a
produção sem patrões ou capatazes”.
95
essencialmente um modo de controle global da sociedade, e não
um mero direito legalmente codificado. Mesmo que se tome esse
direito de cada capitalista individualmente, aos quais Marx
chamou de “personificação do capital” (que têm mandato estrito
de executar os objetivos e imperativos do capital, caso contrário
são ejetados sem cerimônia do processo de reprodução social
como “capitalistas fracassados”), as questões substantivas do
controle efetivo continuarão não resolvidas. Alterar o direito
legal não resolve, fundamentalmente, a questão do modo real de
existência do capital como a força materialmente, e não apenas
juridicamente, controladora do metabolismo social
(MÉSZÁROS, 2004, p. 19 – grifos do autor).
Se é verdade que a conquista do poder político da sociedade
capitalista, centrada no Estado moderno, é imprescindível à sua
tranformação radical, devemos também salientar que esse poder não é
uma “coisa” que possa ser apropriada, mas uma relação social, da
mesma forma que o capital. A alteração da natureza desse poder “...é,
portanto, um processo político, entendido este como síntese das relações
econômicas, sociais, institucionais, ideológicas e militares” (SADER,
1997, 21). As lutas das classes subalternas devem portanto permear o
Estado de modo que possa negar politicamente o capital, mas sobre
bases reais, sobre relações sociais concretas e não meramente
institucionais que extrapolam os marcos do Estado
72
.
Em sentido muito próximo, Netto (informação verbal)
73
,
comentando as teses do XIV Congresso do PCB, ressalta que “medidas
estatizantes contribuem para a via socialista se forem acompanhadas
72 As proposições de Sader (1997) partem da análise de diversos movimentos socialistas,
derrotas e vitórias, sobretudo do levante popular ocorrido no Chile sob o governo de
Salvador Allende. Segundo o autor, foi uma compreensão reduzida do significado do
poder, entre outras coisas, que levou a revolução chilena à derrota. “A defesa física e
simbólica do Palácio da Moneda por parte de Salvador Allende – que heroicamente resistiu
com um fuzil na mão e um capacete de mineiro na cabeça ao bombardeio levado a cabo
por caminhões e canhões – foi a cena final de uma concepção que levou o governo popular
a ficar cercado dentro do aparelho do Estado, transformado em armadilha: a concepção de
que sua tomada seria o objetivo estratégico central de um novo poder.
73
Palestra ministrada por José Paulo Netto, no Seminário Estratégia e Tática da Revolução
Brasileira, no dia 08 de outubro de 2009. A transcrição encontra-se disponível em:
http://dariodasilva.wordpress.com/2009/10/08/jose-paulo-netto-seminario-estrategia-e-
tatica-da-revolucao-brasileira/.
96
por uma intensa participação autogestora dos trabalhadores”, o que
significa dizer que a estatização, ou a “expropriação dos expropriadores”
não garante por si só a socialização necessária da produção.
Mas o que nas relações organizacionais das cooperativas
que leva intelectuais de tamanha expressão entendê-las como o germe de
uma sociedade emancipada? O que pode ter de diferente nessas
organizações, o que de tão fecundo, que mesmo em circunstâncias
nada propícias para sua existência revelam possibilidades de uma
sociedade fundada em bases radicalmente novas, de uma produção
social não alienada?
5.2 Relações Organizacionais e Autogestão
O termo “cooperativismo” adquire na contemporaneidade um
significado bastante amplo e, ao mesmo tempo, vazio de determinações.
Por cooperativismo, podemos entender as associações empresariais para
fins de comercialização, as associações de crédito, as cooperativas de
consumo, as cooperativas de produção em seus mais variados tipos etc.
E mesmo no meio acadêmico, como nos estudos da “Economia
Solidária” de Paul Singer, torna-se difícil encontrar uma
conceitualização mais precisa (GERMER, 2007)
74
. Por outro lado, pode-
se, por meio de uma análise histórica, mesmo que sumária, estabelecer
diferenças que são de imprescindível importância para a apreensão do
objeto de que tratamos neste trabalho.
O surgimento do cooperativismo se desde cedo na
história do capitalismo. Aparece, de início, tanto na forma de associação
de capitalistas (para a realização de operações complementares à
produção e, portanto, não diretamente ligadas às chamadas “esferas de
produção”), e como forma de reação de trabalhadores assalariados, o
que lhes confere, nesse caso, um nítido caráter militante (GERMER,
2007). Mas ainda a forma de reação dos trabalhadores tem suas
variações.
Há, de um lado, o surgimento de cooperativas de consumo, cuja
finalidade, naturalmente, é beneficiar os cooperados no consumo de
74 Germer (2007, p. 204) levanta a hipótese de que, no caso da “Economia Solidária”, “...
essa omissão conceitual não é casual, mas impõe-se como condição para conferir um
mínimo de plausibilidade àquela concepção”.
97
mercadorias, ou seja, atuando necessária e restritamente na “esfera de
circulação”. Por outro lado, surgem também as “fábricas-cooperativas”,
em que os empregados são os próprios trabalhadores da empresa
(GERMER, 2007). São a essas que dedicarei minha análise
75
, que pouco
ou nada valem, portanto, para os demais “tipos”.
A distinção essencial entre as cooperativas e as empresas
comuns está no fato de que, no primeiro caso, todos os trabalhadores são
conjuntamente proprietários dos meios de produção (GERMER, 2007;
STORCH, 1987). Essa distinção é a base sobre a qual estão sustentadas
as possibilidades de relações organizacionais diversas das empresas
tradicionais. Por outro lado, como ressalta Storch (1987), nem toda
organização cujos meios de produção pertencem aos trabalhadores pode
ser considerada cooperativa. As cooperativas são uma espécie de
organização que podem surgir por conta dessa condição a qual não se
faz presente nas empresas convencionais.
Como demonstrado ao longo deste trabalho, a anarquia da
divisão social do trabalho na sociedade capitalista leva
contraditoriamente ao desenvolvimento de relações organizacionais
verticalizadas, despóticas, de tal forma que a administração empresarial
cria meios para, autocraticamente, fazer valer seus interesses. As
cooperativas, por outro lado, desenvolveram ao longo da história uma
tradição horizontal de organização do trabalho, ligada a valores
democráticos e, muitas vezes, a anarquistas, socialistas e comunistas.
Motta e Bresser Pereira (1991) compreendem que existem
diversas formas de promoção da participação dos trabalhadores na
administração as quais, contudo, não rompem com o caráter autoritário
das empresas convencionais. Mas a transformação da maneira pela qual
o capital materializa sua dominação sobre os trabalhadores, por sua
natureza política, pode consolidá-la ou abrir possibilidades de seu
derrubamento. A hierarquia não é suprimida, mas há diferentes graus de
participação no controle do processo produtivo. As formas citadas pelos
autores dessa promoção da participação seriam: “participação”, “co-
gestão”, “controle operário e “cooperativa”. Esses conceitos são
originais de Guillerm e Bourdet (1976), que, buscando uma
75 Feitas essas considerações, ressalto ao longo deste trabalho o termo “cooperativa” designa
única e exclusivamente as “cooperativas de produção” ou “fábricas-cooperativas”. Afinal,
como afirma Germer (2007, p. 206), “é impossível dissertar sobre o papel histórico do
cooperativismo de produção sem levar essa distinção essencial”.
98
diferenciação da “verdadeira autogestão”, identificaram diferentes
formas e graus de intervenção dos trabalhadores na produção capitalista.
Participar, segundo os autores (1976, p. 20), “... é simplesmente
participar de uma estrutura que existe, que tem sua própria estrutura e
finalidade”. A forma mais difundida é a de participação nos lucros ou
resultados, ou mesmo e distribuição de ações. Esse mecanismo “tem
uma função de integração da classe operária” (idem, p. 22). Por isso, a
“participação” não tem incidência sobre o processo tecnológico em si,
mas apenas na subjetividade do coletivo dos trabalhadores.
A “co-gestão”, por sua vez, não se relaciona exclusivamente
com o interesse. Trata-se de uma concessão que voz aos
trabalhadores tanto no “nível da organização técnica do trabalho” como
no da “política geral da empresa” (idem, p. 23). Aqui, os operários têm
certa margem de manobra para atingir os fins e metas propostos pela
cúpula administrativa, a qual renuncia a prescrição de detalhes, mas não
suas prerrogativas de poder. O “controle operário” tem, em
contrapartida, conotação bastante diferenaciada, uma vez que se trata
necessariamente de uma conquista dos trabalhadores. Enquanto as
formas precedentes pressupunham certo colaboracionismo entre as
classes, aqui o controle operário surge do conflito direto entre elas.
Trata-se, portanto, de uma intervenção conflitual “... que arranca do
patronato concessões das quais resulta uma melhoria das condições de
trabalho, ou, se preferem, uma ligeira atenuação das formas de
exploração” (idem, p. 25). A cooperativa é uma empresa capitalista que
é gerida pelos trabalhadores, os quais têm a posse coletiva dos meios de
produção.
Vê-se que, claramente, a cooperativa diferencia-se das empresas
convencionais pela possibilidade real de uma participação nas decisões.
Nesse sentido, Motta e Bresser Pereira definem a cooperativa como
uma “... sociedade voluntária de pessoas que têm como finalidade
prestar serviços a seus associados” (1991, p. 303). Essa finalidade de
“prestar serviço a seus associados” estaria sendo desvirtuada por conta
de subvenções governamentais que fariam com que se reproduzisse nela
os “defeitos” do sistema capitalista. Na verdade, a reprodução dos
“defeitos” do sistema capitalista não é conseqüência de subvenções
governamentais, mas uma tendência fruto das condições de uma
99
sobrevivência perene no modo de produção capitalista
76
. De todo modo,
encontramos aqui uma determinação fundamental para a compreensão
das cooperativas, que é justamente a possibilidade muito maior de uma
intervenção direta dos trabalhadores nas decisões da organização.
Não é por outra razão que os estudos sobre cooperativas estão
fortemente imbricados com os conceitos de autogestão, bem como com
a análise das relações de poder e dos processos de tomada de decisão.
Embora o conceito de autogestão esteja ligado à participação e ao
controle dos trabalhadores sobre a atividade produtiva, e não à
propriedade (STORCH, 1987), as cooperativas como as organizações
autogeridas “... envolvem uma associação voluntária, livremente
associada com o objetivo da organização, e limitada pela solidariedade
entre companheiros (CARVALHO, 1983, p. 23). Por isso, o
cooperativismo configura-se historicamente como parte das tentativas de
auto-organização dos trabalhadores (MISOCKZY et al., 2008).
Storch (1987) ressalta ainda que, além da tendência de
mecanismos mais democráticos de gestão, uma outra característica está
fortemente associada à forma pela qual se estabelecem as relações
organizacionais internamente, a saber: a distribuição das sobras (análogo
ao lucro) com base no trabalho, e não na proporção correspondente à
quota parte do capital que se detém. Isso não quer dizer que toda a
“sobra” seja distribuída, mas que o critério de distribuição não é a
propriedade, mas o trabalho. Para o autor (1987, p. 66), “o princípio
subjacente é de que nessas empresas o trabalho contrata o capital, ao
contrário do que ocorre nas empresas convencionais...”. Na verdade, o
trabalho não contrata o capital porque este, enquanto determinação
fundamental das relações organizacionais, extrapola os limites da
cooperativa. De todo modo, poder-se-ia dizer que nas cooperativas estão
criadas as condições para conferir aos trabalhadores autonomia política
76 Revela-se aqui uma forte limitação de natureza epistemológica, quando se tenta
compreender as cooperativas por meio de um conceito estanque, que abarcaria todos os
seus tipos. Talvez por isso os próprios autores, na página seguinte, escrevam: “se
retomarmos a ‘definição’ de cooperativa (o que ela deveria ser, se não fosse
desvirtuada)...” (idem, p. 304) colocando-a entre aspas. Ao definir a cooperativa através
de um conceito estático e formal-abstrato baseado na intencionalidade de seus criadores,
na tentativa de abarcar todos os seus tipos, tornam impossível o enriquecimento da análise
de seu objeto. Essa é a razão pela qual se busca neste trabalho a compreensão do mesmo
fenômeno por meio de sucessivas aproximações do objeto, sendo uma definição apenas o
ponto de partida para uma análise mais complexificada do real.
100
para lidar com estes imperativos, fato que inexiste nas empresas
convencionais.
Por isso, analisando o fenômeno das “fábricas recuperadas
77
” na
Argentina, Fajn (2004) afirma que os processos pela tomada das fábricas
pelos trabalhadores estão estreitamente ligados com as formas
autogeridas que cada organização foi construindo, e que se pode
perceber nas práticas que se foram desenvolvendo no interior dessas
organizações: redistribuição igualitária da renda, implementação de
processos decisórios de caráter coletivo, formas de delegação,
representação e controle, dinâmicas assembleárias etc.
As diversas possibilidades de relação entre o trabalhador da
cooperativa e o patrimônio da organização podem influir diretamente na
reprodução da organização. Storch (1987) classifica essa relação em seis
tipos: no primeiro tipo, os membros da cooperativa não têm nenhum
direito sobre o patrimônio da organização, embora tenham poder
considerável sobre as decisões. O autor cita o caso das empresas da
Iugoslávia de décadas atrás, mas também parece ser o de algumas
cooperativas do MST, que adquirem perante o Estado apenas o direito
de usufruto sobre terras improdutivas. O segundo tipo é de um direito
coletivo ao patrimônio, que é considerado indivivel. Aqui, os
trabalhadores nunca podem se apropriar de quotas individuais, tampouco
dispor delas. No terceiro tipo, os direitos patrimoniais são, em parte,
coletivos e noutra individuais. Nessa forma, há uma parte substancial da
empresa na forma de reservas sobre a qual os indivíduos não têm direito
enquanto tal. No quarto caso, os trabalhadores têm direito sobre sua
parte do patrimônio, mas não podem dispor de suas cotas enquanto
trabalham na cooperativa. No quinto, os trabalhadores têm direitos
individuais ao patrimônio, como no caso anterior, mas podem dispor
de suas cotas mediante sua transferência e do emprego a outros
trabalhadores que queiram ingressar na organização. Isso pode se tornar
um problema na medida em que a empresa se capitaliza e valoriza cada
77 Fenômeno conseqüente da crise da Argentina no início do novo milênio, que tornou
desempregados milhões de trabalhadores do país. Na luta pela manutenção de seus
empregos, em uma postura defensiva, muitos trabalhadores tomaram para si as fábricas em
estado falimentar, o que implicou também a transformação das relações internas dessas
organizações (NOVAES, 2007; FAJN. 2004; KATZ, 2008). Katz (2008) ressalta que as
empresas recuperadas atuam em um círculo estreito e que, embora possam ser
democraticamente organizadas, não devem ser consideradas “ilhas libertárias” dentro do
universo capitalista.
101
quota, o que torna mais difícil a substituição dos trabalhadores. O último
caso é o das sociedades anônimas, que nem correspondem mais à
cooperativa.
Storch (1987) afirma que os primeiros casos favorecem pouco a
acumulação de capital, enquanto os últimos dificultam a manutenção da
organização como cooperativa. Para o autor, o terceiro é o caso que
parece apresentar maior equilíbrio estrutural entre a capacidade de
acumulação de capital e a capacidade de sobreviver como empresa de
propriedade dos empregados (sic), justamente por ser uma mescla entre
os dois extremos
78
.
Algumas cooperativas permitem que membros externos à
organização tenham direito a voto, tendo uma renda pré-fixada pela
mera antecipação de capital, enquanto que o restante dos trabalhadores
partilhariam as “sobras”. Esse controle por membros externos por
cotistas de fora possibilita facilmente a transformação da cooperativa em
uma empresa convencional. A maioria das cooperativas cria uma
espécie de salvaguarda, por meio da limitação quantitativa e
proporcional de membros não-trabalhadores (STORCH, 1987).
Analisando diversas organizações com práticas horizontalizadas
nos mais variados contextos históricos, incluindo as cooperativas, mas
não apenas elas, Misockzy et. al. (2008) buscam características
fundamentais da autogestão visando à elaboração de um tipo ideal, como
em Weber. Dentre as práticas observadas, destacam que nas
organizações horizontais impera o princípio da igualdade de
participação ou de poder de decisão no fórum máximo de deliberação,
independentemente da função que exercem os sujeitos. Além disso, a
votação só é realizada depois de um debate, depois da busca pelo
consenso.
Mas não se trata apenas de uma igualdade formal no processo
de tomada de decisão. Para que haja uma igualdade substantiva, é
preciso que o conhecimento sobre o que se quer decidir esteja
amplamente difundido entre os membros da organização. Por isso, as
informações relevantes têm de ser divulgadas com a maior freqüência
78 Agora, por meio da análise das relações internas das cooperativas, chegamos à mesma
contradição exposta no tópico anterior: quanto mais a estrutura patrimonial favorece a
acumulação, menor as possibilidades de sobrevivência da organização como cooperativa;
por outro lado, quanto maior as possibilidades de manutenção da autogestão, menor as
chances de manutenção dos padrões de acumulação exigidos pela sociedade do capital.
102
possível. Isso evitaria o acesso privilegiado a informações e o velamento
de relações de poder ou dominação existentes (MISOCKZY et al.,
2008). Fajn (2004), por exemplo, demonstra que no caso das fábricas
recuperadas na Argentina houve uma readequação das relações
organizacionais, de tal modo que os trabalhadores pudessem se re-
apropriar do “saber-fazer” do trabalho. Essa dinâmica de re-apropriação
envolve não somente conhecimentos de natureza puramente tecnológica,
mas também de gestão, de política, de contabilidade etc. Segundo o
autor (2004, p. 6), “el desarrollo de tales recursos debe ser un
movimiento en permanente ampliación y lo que es fundamental la
reapropiación debe ser de carácter colectivo, evitando la emergencia de
“manchones” burocráticos que se apoderen de tales capacidades”
79
.
Além disso, por princípio, busca-se uma divisão de tarefas com
base no interesse de quem as executa e nas suas habilidades. Perante o
grupo que o elege para o cumprimento de determinada tarefa, o
trabalhador assume um dever, um compromisso frente ao coletivo.
Quando a tarefa exige conhecimentos específicos, as habilidades
correspondentes tornam-se parte do critério de escolha (MISOCKZY et
al., 2008).
A distribuição da autoridade para a coordenação de atividades,
de funções administrativas - que vão, de modo rotineiro, garantir e
regular o cumprimento dos deveres dos membros da organização -, é
realizada também na assembléia geral, de modo que todos possam
participar dessa decisão. Nesse fórum, os limites dessas funções são
definidos e os coordenadores respondem perante o grupo por suas
atribuições. E para que a coordenação das atividades não se torne
prerrogativa de uma relação de dominação, prioriza-se certa rotatividade
entre os membros que cumprem essa função. Qualquer delegação de
tarefas ou funções pode ser revogada a qualquer tempo pela assembléia.
(MISOCKZY et al., 2008).
Misockzy et. al. (2008) observam que é necessário um certo
grau de documentação e formalização dos procedimentos para garantir a
transparência dos processos bem como para que se compreenda os
motivos dos processos da organização.
79 O que pode ser traduzido por: o desenvolvimento de tais recursos deve ser um movimento
de permanente ampliação e o que é fundamental a re-apropriação deve ser de caráter
coletivo, evitando a emergência de “manchas” burocráticas que se apoderem de tais
capacidades.
103
Todas essas características tornam-se possíveis, no caso das
cooperativas, porque todos os trabalhadores são igualmente proprietários
dos meios de produção, pela inexistência de cargos perenes que se
sobreponha à assembléia geral, tendo todos, com efeito, o mesmo peso
nas decisões mais importantes nas organizações. A partir dessa
condição, os trabalhadores criam meios para que possam produzir
orgânica e eficientemente sem que se crie uma sobreposição estrutural-
hierárquica de uns sobre os outros. Estão sintetizadas, assim, as
características que dão significado à autogestão.
Guillerm e Bourdet (1976), contudo, afirmam que a autogestão
pode existir se generalizada socialmente, o que implicaria uma
mudança radical de todas as relações sociais. Nem as cooperativas
inseridas na economia capitalista, nem as inseridas nas sociedades pós-
capitalistas ou no “socialismo real” poderiam ser caracterizadas como
autogestão, uma vez que para os autores “autogestão” tem a mesma
conotação de comunismo no sentido marxiano do termo, discutido no
tópico anterior (p. 66-7). Não é esse o meu entendimento.
A condição alienada da reprodução capitalista não incide apenas
sobre as cooperativas, mas também sobre as empresas convencionais. Já
ressaltei aqui que o corpo administrativo é apenas a personificação do
capital, nas palavras de Marx. Os imperativos do capital constrangem,
pois, tanto as formas mais democráticas de gestão quanto um
administrador autoritário e de bom coração, que se proponha dar
isoladamente melhores condições de trabalho a seus empregados. Dito
de outra forma: tanto a autogestão como a heterogestão são subsumidas
ao capital, e têm de explorar força de trabalho para sobreviver na
sociedade capitalista. Mas o que diferenciaria, então, a autogestão da
heterogestão se admito que aquela pode existir na sociedade capitalista?
Os conceitos são opostos, como acertadamente afirmam
Guillerm e Bourdet (1976). Enquanto a heterogestão em sua essência
significa, nas palavras de Motta (1981, p. 18), “a dualidade entre o que
gere e o que é gerido; entre o que planeja, organiza, comanda, e
controla, e o que executa, sendo portanto planejado, organizado,
comandado e controlado”, separando portanto “dois aspectos
indissoluvelmente ligados do trabalho humano: concepção e execução”;
a autogestão caracteriza-se pela unidade entre concepção e execução,
que, para se efetivar organizacionalmente, implica necessariamente
relações organizacionais horizontalizadas, democráticas etc., práticas as
104
quais têm de ser associadas a meios técnicos, operacionais etc., que as
tornem possíveis. Ou seja, ambos os conceitos tratam da relação
imediata entre indivíduos nas organizações. Hetero e autogestão são
formas de mediações entre indivíduos organizados, relativamente
independentes das condições diante das quais se defrontam. Com efeito,
estão ligadas à forma pela qual os sujeitos se relacionam para atingir a
finalidade da organização, que a partir de condições determinadas
encontram uma alternativa dentre as suas possibilidades objetivas
80
.
Tanto a finalidade da produção como suas condições
encontram-se na sociedade capitalista amplamente alienadas, de sorte
que restam poucas possibilidades para as organizações.
Se não aceitamos a existência da autogestão na sociedade
capitalista porque ela é amplamente condicionada pelos imperativos do
capital, também não poderíamos aceitar a existência da heterogestão, ou
de qualquer gestão, pois estão todas sujeitas à incontrolabilidade e
irracionalidade da produção social capitalista. Assim, se é verdade que a
autogestão não pode existir “livremente” no capitalismo, também o é
quanto à heterogestão. É também por isso inútil todo o discurso que
reivindicam administradores e empresas “éticas”, que ponham “a
sociedade em primeiro lugar”, como sugerem os teóricos da
“Responsabilidade Social Empresarial”.
A autogestão, nos marcos da sociedade capitalista, se limita a
resolver por meio de relações organizacionais horizontais os problemas
postos pelas necessidades da sociedade capitalista, em condições de
produção capitalistas, com possibilidades muito restritas pelo imperativo
de reprodução do capital. Em outra sociedade, em que a mediação entre
o particular e o universal não se efetive por meio de uma alienação
econômica - que implica, como demonstra Mészáros (2006), uma
alienação política, cultural etc. libertar-se-ia o desenvolvimento das
práticas organizacionais de sua subsunção ao trabalho abstrato e ao valor
de troca. Por isso, é preciso deixar claro que a autogestão não pressupõe
emancipação, mas a emancipação implica a autogestão (MÉSZÁROS,
2004) ou, nas palavras de Marx, uma sociedade de produtores
livremente associados – o comunismo.
Essa é a razão pela qual a questão tem de se deslocar da defesa
da inexistência de uma “verdadeira autogestão” para o modo pelo qual
80 Essa questão, o caráter teleológico do trabalho, já foi razoavelmente discutida no item 3.1.
105
uma determinada forma de organizar, determinados princípios políticos
e orientações práticas se sustentam na sociedade capitalista, diante do
constrangimento a que estão sujeitas quaisquer práticas organizacionais.
É nesse sentido que foram compreendidas cooperativas autogeridas, à
luz da experiência prática do assentamento Conquista na Fronteira.
106
6 O MST e uma velha questão: Reforma ou Revolução?
Ao longo deste trabalho, analisei as organizações cooperativas
na sua relação com o circuito de produção capitalista, em que ficou clara
a impossibilidade de apreensão das possíveis relações organizacionais
sem levar em conta a categoria da subsunção do trabalho ao capital. Os
limites e as possibilidades das cooperativas de produção, enquanto
forma organizacional que amplia as possibilidades de conquistas dos
trabalhadores, seja no processo de trabalho, seja nos resultados
econômicos, se tornarão compreensíveis do ponto de vista da
emancipação humana se tivermos como objeto de análise uma
organização cuja orientação política objetive a superação das relações
capitalistas de produção. Por isso, a análise não pode se dar sobre
qualquer cooperativa, especialmente em um momento em que muitas
são meras formas jurídicas mistificadoras de um processo de
flexibilização e terceirização do trabalho (TAVARES, 2004) ou meros
“condomínios de sócios” (SANTOS, 2009), em que o objetivo é apenas
beneficiar-se das leis que regulamentam o cooperativismo. Nesse
sentido, uma breve caracterização do MST e de suas cooperativas em
geral, no contexto da luta pela reforma agrária, torna-se necessária, para
que não reste dúvidas quanto à intencionalidade deste movimento.
O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, nos últimos
anos, tem sido referência aos movimentos sociais de resistência ao
capitalismo. Nasceu em 1980, fruto da insatisfação de camponeses
gaúchos, pequenos produtores, que se encontravam em péssimas
condições financeiras. Em 1984, realizado o Encontro Nacional, o
MST ganha projeção e uma organização nacional, pondo fim à sua
atuação isolada e local (BERTERO, 2006), momento em que instituem o
lema: “Terra para quem nela trabalha” (MARTINS, 2006)
81
. Este é o
marco de fundação para o MST, que celebrou em 2009 seus vinte e
cinco anos de existência (REVISTA SEM TERRA, 2009). O movimento
surge em meio aos escombros da ditadura civil-militar, ocupando uma
espécie de “vácuo político” deixado pela derrota dos partidos
revolucionários de décadas anteriores (idem; MACHADO, 2007). Isto é,
entre as “forças progressistas”, passa a ser o MST a referência da luta
81 Valdir Martins é Sem Terra morador da Conquista na Fronteira e trabalha no setor
administrativo da Cooperunião e também foi entrevistado para esta pesquisa.
107
política extraparlamentar, agora em outros moldes, tornando-se o
principal movimento de embate ao avanço das políticas neoliberais
desde a década de 1990. Como afirma Turcatto (2007, p. 3), “o MST se
materializou ao longo de quase três décadas de história, como referência
nacional e internacional de luta dos trabalhadores e trabalhadoras
expropriados da sua força de trabalho e dos seus meios de produção da
própria existência”.
A razão de ser do MST é a luta pela reforma agrária. Porque a
sociedade brasileira formou-se apoiada nos latifúndios monocultores,
porque a revolução burguesa no Brasil não foi uma revolução “clássica”,
mas uma revolução passiva, “pelo alto”, silenciosa, a divisão da
propriedade rural combinou concentração de propriedade de terras,
baixa produtividade e uma tecnologia significativamente prejudicial à
sustentabilidade da produção agrícola
82
. O MST surge como força
contestadora dessa realidade, no contexto da implantação das reformas
neoliberais na América Latina, aglutinando trabalhadores rurais que,
desprovidos de uma propriedade na qual pudessem produzir para
sobreviver, organizam-se na luta pela redistribuição das terras
cultiváveis. Dessa forma, o MST é um movimento de trabalhadores que
luta antes por meios de produção, sem o qual o trabalho não pode
objetivar-se, do que por melhores condições de trabalho
83
.
Por essa razão, a caracterização do MST como um movimento
anti-sistêmico, ou seja, como um movimento que tenha por finalidade a
superação do capitalismo, é de extrema complexidade e, como não
poderia deixar de ser, polemizada por diferentes perspectivas entre os
intelectuais da esquerda socialista (para não falar em outras forças de
esquerda). Há, aqui, duas questões que precisam ser consideradas:
primeiro, a intencionalidade do próprio movimento, as bandeiras
reivindicadas e o fim a que se propõe; depois, as possibilidades
ontológico-práticas de articular a estratégia e tática de luta do
movimento com uma estratégia politicamente viável de superação do
capitalismo.
Quanto aos objetivos estratégicos do movimento, não é difícil
constatar que, para além da reforma agrária, o MST almeja a
82 Um rico debate sobre a questão agrária no Brasil pode ser encontrado em Stedile (2005a;
2005b).
83 “A luta por recursos (capital) e tecnologia adequada é o importante quanto a luta por
terra” (CONCRAB, 1995, p. 9).
108
“transformação social” e uma sociedade em que não haja exploração de
uns sobre outros. Para Martins (2006, p. 19), “o MST se caracteriza
como um movimento de massa, autônomo, de caráter sindical, popular e
político”. Existem diversos trabalhos que dão conta que se trata de um
movimento em que não só a Reforma Agrária, mas também o socialismo
é um objetivos do movimento
84
. Isso porque, ao longo do seu processo
de construção, o MST adquiriu a visão política segundo a qual o
problema da luta pela terra se resolve através de sua socialização, o
que implica necessariamente a superação da sociedade capitalista. Nesse
sentido, é correto dizer, como atesta a resolução do V Congresso
Nacional do movimento, que o MST luta por uma sociedade sem
explorados e exploradores. Mas é importante ressaltar que, nos seus
principais documentos, sobretudo nas resoluções de seus Congressos
Nacionais, seu caráter anti-capitalista e socialista é expressado por
termos “eufemistas” e abrangentes, tais como: “transformação social”,
“sociedade igualitária”, “supremacia do trabalho sobre o capital”,
“sociedade sem explorados e exploradores”, “projeto popular para o
Brasil”, entre outros
85
.
Para que não reste dúvidas sobre essa questão, demonstrarei
algumas características da Proposta de Reforma Agrária do MST
86
,
especialmente as que se relacionam mais diretamente com as relações
organizacionais dos assentamentos coletivos. O enunciado do objetivo
do documento é elucidativo. Vejamos:
Esta proposta de reforma agrária implica, por si mesma, a
realização de parte dos anseios da classe trabalhadora brasileira
de construir uma nova sociedade: igualitária e socialista. As
medidas necessárias aqui apresentadas compõem um amplo
processo de mudança na sociedade e, fundamentalmente, de
84 Cf. Dalmagro (2002), Debiazi (2008), Machado (2007).
85 Parece-me que uma preocupação do MST em não perder sua força aglutinadora de
diversos movimentos populares em torno da reforma agrária por sua caracterização como
movimento revolucionário. Mais ainda, parece que o movimento busca se afastar do termo
“socialista” por este estar fortemente vinculado ao “socialismo real”, à URSS etc.
Paradoxalmente, o caráter socialista do MST é muito mais ressaltado pela mídia que o
ataca, como expressa na Revista VEJA, edição 1648, de 10/05/2000, cuja capa afirma:
A Tática da Baderna: o MST usa o pretexto da Reforma Agrária para pregar a revolução
socialista”.
86 O documento intitulado: “A Reforma Agrária Necessária: a proposta do MST” pode ser
conferido na íntegra em Morissawa (2001, p. 168-172).
109
alteração da atual estrutura capitalista de organização da
produção (MORISSAWA, 2001, p. 168; grifos meus).
Dentre os objetivos específicos para a realização desse amplo
processo, o MST pretende “difundir a prática de valores humanistas e
socialistas nas relações entre as pessoas, eliminando práticas de
discriminação racial, religiosa e de gênero” (ibidem). Para a construção
dessa nova sociedade, tem como medida necessária desenvolver uma
forma de produção no campo que leve em conta a supremacia do
trabalho sobre o capital (sic), eliminando todas as formas de exploração
e opressão e garantindo trabalho a todos. A proposta considera
necessárias ainda a democratização da terra e dos meios de produção e a
reorganização da produção em formas complementares que contemplem
a realização do objetivo geral acima exposto. Entre essas formas
complementares, afirmam que “os assalariados deverão se organizar
para participar, controlar, autogerir, organizar cooperativas, ou co-
participarem na gestão das empresas onde trabalham(idem, p. 170). O
documento enfatiza também a necessidade de aproximação entre os
meios urbano e rural; de desenvolvimento de um “novo modelo
tecnológico” pautado na valorização das necessidades humanas e dos
recursos naturais; e de um amplo desenvolvimento social, que abrange
educação, democratização dos meios de comunicação, políticas
habitacionais, de saúde, de cultura e lazer. O programa ressalta ainda
que a “... a correlação de forças existentes atualmente em nossa
sociedade não permite sua implementação. As classes dominantes [...]
possuem ainda uma enorme força para manterem por muito tempo a
atual situação”. Para a transformação almejada, seria necessário um
amplo movimento popular que reunisse os milhões de explorados e
capaz de alterar essa correlação de forças. Esse movimento deve, sempre
segundo o documento, fazer com que o Estado seja o instrumento
fundamental de implementação das propostas, mas “seguramente [...]
um Estado diferente do atual, com ampla participação das massas e
buscando sempre o bem comum” (idem, p. 172). Ou seja, embora não
me caiba aqui avaliá-la do ponto de vista estratégico, cabe salientar que
a proposta de Reforma Agrária do MST vai muito além das
redistribuição das terras cultiváveis, articulando-se com um projeto de
superação da sociedade capitalista.
110
Por outro lado, se a direção e a própria organização articulam-se
nesse sentido, isso não quer dizer de modo algum que todos os
militantes Sem Terra defendam uma transição socialista. Porque sua
principal reivindicação é a reforma agrária, não é difícil encontrar nas
fileiras do movimento indivíduos que lutam para tanto, mas não
almejam o socialismo, pelas razões mais variadas. Dessa forma, o MST
converte-se em força aglutinadora dos movimentos de contestação,
abrangendo desde os comunistas mais radicais até a centro-esquerda, a
social-democracia - a qual defende não a supressão da propriedade
privada, mas sua repartição. De todo modo, cumpre ressaltar que a
direção que tem tomado a organização do MST nos últimos anos é
aquela que busca articular estrategicamente as reformas sociais com uma
transição socialista.
Tal articulação entre reforma e revolução – que, antes de ser um
dilema, constitui um elo necessário ao movimento revolucionário, como
defendido brilhantemente por Rosa Luxemburgo (1999) – ganha em
complexidade por conta da base social em que se encontra o movimento,
como também pelo que se propõe a conquistar. Isso nos remete ao
segundo ponto levantado acima, isto é, às possibilidades objetivas de o
MST empreender uma luta de sentido emancipatório. Para isso, que
se considerar a posição em que o movimento se situa na complexa
relação de forças sócio-políticas e econômicas.
Segundo Germer (1994a; 1994b), a principal forma de trabalho
no meio rural é hoje o trabalho assalariado, sejam eles “assalariados
puros” ou híbridos, isto é, o “semiproletariado”, constituído por
pequenos proprietários, arrendatários, que tem na atividade produtiva
em suas terras apenas um complemento à atividade assalariada
87
. Disso
decorre que, também no meio rural, a contradição fundamental se
entre burguesia agrária e os trabalhadores assalariados.
Assim, em uma agricultura capitalista em rápido
desenvolvimento, em que a estrutura de classes cada vez mais
sofre a polarização burguesia-proletariado, deve ser óbvio que a
base social fundamental das lutas dos trabalhadores seja o
87 Germer (1994b), em seu estudo, indica que a estruturação de classe na economia agrária
brasileira é composta de: burguesia (grande e média), camada intermediária (pequena
burguesia e produtores simples de mercadorias), e força de trabalho (semi-assalariados e
assalariados puros).
111
proletariado rural, ao qual deve-se agregar o semiproletariado
(GERMER, 1994b, p. 280).
Mas “o grande bloco da força de trabalho rural constitui um
conjunto heterogêneo, ainda com diferenciações internas significativas e
sem uniformidade política” (GERMER, 1994b, p. 271). No plano
político-organizativo, a base sobre a qual o MST se erigiu é
predominantemente o semiproletariado agrário, ou seja, os pequenos
agricultores semi-autônomos (semi-assalariados). “Este é o segmento
em que as contradições com o desenvolvimento capitalista da agricultura
são mais acentuadas, o que origina uma postura mais contundente de
contestação ao regime estabelecido(idem, p. 276). Paradoxalmente, os
“assalariados puros”, apesar de sua posição estratégica, não constituem a
camada mais combativa, papel o qual vem sendo exercido pelo MST,
cuja principal bandeira é a reforma agrária sob o controle dos
trabalhadores.
Por isso, ainda segundo o autor, a luta dos trabalhadores do
campo deve ser contra a burguesia agrária, o agronegócio, pela
redistribuição das terras cultiváveis, que permitiriam a retomada do
controle da produção pelos trabalhadores. Mas tal luta não pode se
limitar a isso, uma vez que há uma tendência inexorável em nossa
sociedade de concentração de capital, como visto no segundo capítulo,
que no meio rural significa também a concentração de terras. Essa
tendência tem de ser compreendida pelos próprios trabalhadores, para
que da pequena propriedade e da luta pela reforma agrária brote
simultaneamente o interesse pela coletivização dos meios de produção,
articulando assim a reforma agrária com um processo de socialização
dos meios de produção.
Uma vez que os sem-terra não se encontram em confronto
direto com o capital, não constituem o núcleo duro da relação capital-
trabalho que é constituído por trabalhadores rurais semiproletários
ou semi-assalariados -, o movimento pode afetar a produção
capitalista indiretamente, isto é, nos planos político e no núcleo jurídico-
ideológico, quando questionam as formas burguesas de propriedade
(MACHADO, 2007; MACHADO e GONÇALVES, 2007). O
enfrentamento do MST não é um enfrentamento direto ao capital, mas
ao Estado que garante manutenção de seu sociometabolismo. Não é,
112
portanto, um enfrentamento de “assalariados puros” do meio rural por
melhores condições de trabalho, melhores salários etc., mas de “semi-
assalariados”, organizados em torno do MST, pela propriedade de meios
de produção.
Por essa razão, Bertero (2006) considera o MST um movimento
“pequeno-burguês”, uma vez que, ao reivindicarem para si terra e capital
necessário para nela produzir mercadorias, estariam reféns da
produtividade social, isto é, do capital. Por isso, conclui o autor:
Com efeito, o MST nada tem de revolucionário. O socialismo
revolucionário deve abolir a propriedade privada e o modo de
produção capitalista, coisa que ele não apregoa. Ao invés de
abolí-los, nas suas reivindicações, ele os ratifica. Não apenas
isso. Uma vez assentado na terra, o trabalhador deixa de ser
proletário e passa a ser pequeno burguês. Pequeno burguês, sim.
Por mais parcos que sejam os meios de produção com os quais
lavra a terra, mesmo que por analogia ou idealmente, eles são
capitais. E é graças a tais meios e não ao trabalho, notem bem,
que ele pode se apropriar de parte da mais valia, sob as formas de
lucro e renda. Como produtor mercantil, ele é um produtor da
sociedade, na e para a qual produz, o que faz dele refém da
produtividade social, à qual se submete. Se não aufere lucro ou
renda, é porque opera em condições desvantajosas, que o
distanciam da referida produtividade (BERTERO, 2006, p. 166).
Para Machado (2007), as críticas de Bertero, por se voltarem tão
somente à análise do “núcleo duro” das relações de produção, perdem as
dimensões política das lutas do MST, isto é, o questionamento do
regime jurídico, político e ideológico da propriedade privada. Germer
(1994b), por sua vez, compreende que a luta reivindicatória do
sindicalismo rural, posto que importante, não é capaz de reestruturar a
organização social da produção agrária, isto é, não constitui um elo
fundamental entre reforma e revolução, e termina adiando a questão para
um momento indefinido. Por outro lado, para que o movimento pela
reforma agrária tenha efetivamente um caráter revolucionário, é preciso,
de acordo Machado (2007), que a luta ultrapasse os âmbitos da questão
rural, o que torna imprescindível que junto ao MST também o
proletariado urbano e rural travem uma pela superação da sociedade
capitalista. Enquanto restrito à redistribuição de terras cultiváveis, o
113
MST desemboca em dilemas da luta anti-sistêmica inerentes as próprias
condições objetivas com que se defrontam. Vejamos.
Podemos dizer que a luta pela reforma agrária possui dois
momentos distintos: o do enfrentamento ao Estado pelo processo de
redistribuição, que, traduzido na prática do MST, é o momento do
acampamento; e o da manutenção das conquistas realizadas, da defesa
da propriedade conquistada, que constitui o assentamento (MACHADO
e GONÇALVES, 2007). O acampamento é a ocupação de latifúndios ou
terras improdutivas que são reivindicadas para o processo de reforma
agrária. Lá, em meio a uma extrema tensão política, além das
dificuldades econômicas por que passam os militantes, ocorre um
processo político-pedagógico importante que tende fortalecer a
identidade de classe. Nesse embate, põem-se em cheque os valores mais
tradicionais, individualistas, machistas etc., através de um processo de
formação política concomitante à luta pela conquista da terra
88
. É nesse
momento em que o questionamento do caráter de classe do Estado é, de
modo mais evidente, revelado a propriedade latifundiária é
diretamente questionada e desnaturalizada pelo movimento de
contestação.
É claro que o acampamento deve ser compreendido como uma
categoria genérica, que abrange as diversas formas de enfrentamento ao
Estado desenvolvidas pelo MST. Portanto, o acampamento compreende
as ocupações, principal forma de reivindicação
89
; o acampamento
permanente, principal instrumento de resposta às determinações do
Poder Judiciário de reintegração de posse, que exige uma persistente
resistência do movimento (alguns chegam a durar quatro anos); o
acampamento provisório, cujo objetivo é chamar atenção das
88 “Os acampamentos exercem um papel político-pedagógico importante sobre estes homens,
mulheres e crianças que arriscam a própria vida para ter acesso à terra: em geral, as
relações sociais dos acampados sofrem algumas alterações em seus comportamentos
tradicionais homens cozinham e cuidam das crianças enquanto as mulheres fazem a
segurança; todos se inserem em algum setor (segurança, educação, saúde, higiene,
alimentação, almoxarifado etc.) e, portanto, assumem alguma tarefa no acampamento;
todos fazem curso de formação política; e crianças e adultos são alfabetizados,
normalmente pelo ‘método Paulo Freire’. Uma das principais lições é a prática da
solidariedade de classe e a distribuição coletiva do que recebem como doação
(MACHADO, 2007, p. 179).
89 “A ocupação gera o fato político: é um setor organizado da sociedade mobilizado em torno
de sua causa, que, no caso, é a reforma agrária. E isso requer uma resposta política do
governo” (MORISSAWA, 2001, p. 199).
114
autoridades e sociedade e planejar as ações seguintes; as marchas pelas
rodovias, que visa a dar visibilidade ao movimento e aglutinar apoio
popular; jejuns (por tempo determinado) e greves de fome (por tempo
indeterminado), utilizadas como forma de pressão para que a opinião
pública cobre respostas do governo
90
; ocupações de prédios públicos,
que são sempre naqueles os quais são responsáveis por atender à
reivindicação em questão; vigílias, que são manifestações contínuas
permanentes (dia e noite), também massivas, mas programadas por um
período menor; entre outras. O que é importante ressaltar é que todas
essas formas de luta são de enfrentamento direto ao Estado, o
instrumentos para a geração do “fato político” que será resolvido através
do jogo de forças. Todas essas formas estão compreendidas aqui na
categoria acampamento.
O segundo momento é o do assentamento
91
, isto é, o processo
através do qual as falias do acampamento são assentadas nas terras
reivindicadas, o qual pode se dar de duas formas básicas: o
assentamento individual e o assentamento coletivo. Voltaremos a esta
diferenciação mais tarde. O que é importante sublinhar é o fato de que,
se no acampamento afloram-se a pedagogia da luta política, através do
enfrentamento direto das forças do Estado, no assentamento, por outro
lado, todos os esforços são direcionados para a manutenção da
propriedade conquistada (MAHADO, 2007). E, por mais que os
militantes não percam a identidade de Sem Terra, mantendo os vínculos
com os seus pares ainda não assentados, sua atividade prática cotidiana
não é mais de contestação, mas de afirmação da propriedade privada da
terra. Dessa forma, “a prioridade conferida objetivamente à viabilidade
econômica dos assentamentos contribui para que haja um refluxo das
lutas” em favor de objetivos mais imediatos relacionados à manutenção
da propriedade conquistada (MACHADO e GONÇALVES, 2007, p.
16). Por essa razão, os assentamentos acabam se tornando um grande
desafio ao movimento. Nesse sentido, afirma Machado (2007, p. 178):
90 “Uma ação dessa natureza se justifica quando existe um número muito maior de vidas
em risco e nada está sendo feito pelo governo” (MORISSAWA, 2001, p. 201).
91 Segundo o sítio do MST, “o assentamento representa o desfecho de um determinado
processo político-social onde o monopólio da terra e o conflito social são superados e
imediatamente inicia-se um outro: a constituição de uma nova organização econômica,
política, social e ambiental com a posse da terra, por uma heterogeneidade social de
famílias camponesas”.
115
Aquilo que serve como motor de organização do proletariado em
classe o questionamento jurídico-político da concentração da
propriedade privada dos meios de produção em pouquíssimas
mãos -, perde força política quando se torna assentado, pois é
obrigado a produzir para o ‘mercado’ e, além disso, tem que
demonstrar a viabilidade econômica... (MACHADO, 2007, p.
178).
Tal limitação de intervenção política torna-se ainda mais
evidente nos assentamentos individuais. Aqui, aplica-se com clareza a
crítica de Bertero (2006), embora, ainda assim, nem por isso esse tipo de
movimento não possa ser caracterizado, senão como revolucionário,
como “progressista”. Afinal, como argumentava Prado Júnior (2005) na
década de 60 e creio que tal afirmação tenha validade para os dias de
hoje
92
–, a redistribuição da terra tem implicações no próprio conflito de
forças entre os trabalhadores e proprietários rurais. A concentração de
terras põe os trabalhadores do campo em enorme desvantagem na
disputa direta que travam com os senhores. Além disso, grandes
extensões de terras significam, ao menos no Brasil, baixa produtividade,
o que pode travar o desenvolvimento econômico de um modo geral.
Mas, do ponto de vista da luta emancipatória, os assentamentos
individuais apresentam limitações ainda mais fortes do que os
assentamentos coletivos, uma vez que tendem a fortalecer a visão
política característica da pequena-burguesia
93
.
Diante de tal problema, uma questão pertinente é levantada por
Machado (2007, p. 179): “como fazer luta política e, ao mesmo tempo,
lutar pela sobrevivência material? Uma vez assentado, qual o alcance da
luta do movimento como um todo?O autor não apresenta respostas a
tais problemas, mas sugere que nas “invenções democráticas” do MST
92 Disso o decorre que todas as teses do referido autor tenham validade para o contexto
atual, ou mesmo para a sua época. Sabe-se que suas teses foram motivo de significativos
debates, como o protagonizado por Marini (2005).
93 Um exemplo dessa tendência é a forte aproximação que têm setores do MST com o
Movimento de Pequenos Agricultores (MPA). Afinal, uma vez assentados, os pequenos
agricultores, independentemente de suas histórias individuais, tem o mesmo
posicionamento sócio-econômico e, naturalmente, interesses objetivos em comum, dos
quais podemos destacar: associação para venda conjunta de mercadorias; micro-crédito
para incremento da produção; influência política na região em que se encontram; disputa
de preços de venda e compra com grandes empresas, fornecedoras e clientes.
116
possa se encontrar uma espécie de “construção antecipada do
socialismo” em práticas aparentemente cotidianas, mas que sinalizam
mudanças mais profundas. Prossegue o autor (idem: 180):
“evidentemente que tal ‘construção’ deve ser compreendida dentro dos
limites e contradições típicas das lutas que travam com o sistema
capitalista como um todo e, portanto, não está imune às investidas
políticas, ideológicas e econômicas do Estado burguês brasileiro”.
Enfatiza ainda que tal ‘construção’ não elimina de modo algum a
necessidade de ruptura revolucionária do sistema capitalista, mas que
exerce um papel pedagógico importante. Não se trata, portanto, de uma
substituição da luta política por uma luta restrita à esfera de produção,
mas apenas de organizar o trabalho coletivamente de tal forma que essa
organização favoreça a luta política.
Mészáros (2002), referindo-se às cooperativas do MST na
introdução de “Para Além do Capital”, ressalta que esta é uma dimensão
positiva (categoria da dialética) do movimento dos trabalhadores que
cria uma “alternativa hegemônica”, e que deve ser associada a uma
negação política radical da sociedade capitalista, o que escapa do
alcance de qualquer organização particular, “pois somente um
movimento socialista de massas tem condições de enfrentar o grande
desafio histórico que nos espera no século decisivo à nossa frente”
(2002, p.33). O autor sustenta que
é [...] muito significativo que os movimentos sociais radicais
[...]queiram se livrar das limitações organizacionais da esquerda
histórica a fim de conseguirem articular na ação não apenas a
necessária negação do que está, mas também a dimensão
positiva de uma alternativa hegemônica. [...] [O MST] está
abrindo caminhos no campo da produção material, desafiando o
modo de controle sociometabólico do capital por meio da
empresa cooperativa dos sem-terra, e já começando a exercer
influência no processo político brasileiro (ibidem).
Segundo a Concrab (1995, p. 8), a concepção de cooperação do
MST objetiva o desenvolvimento econômico-social e de valores
humanistas e socialistas. A cooperação que buscamos deve estar
vinculada a um projeto estratégico, que vise a [sic] mudança da
sociedade. Para isto [sic] deve organizar os trabalhadores, preparar e
117
liberar quadros, ser massiva, de luta e de resistência ao capitalismo”.
Dessa forma, dentre diversos objetivos imediatos da cooperação no
MST, o assentamento coletivo tem por finalidade o cultivo da política
do movimento e “do homem novo”, portador de valores socialistas. “A
cooperação deve ser vista como um meio. O objetivo final são as
transformações sociais e as melhorias permanentes das condições de
vida” (idem, p. 9).
Ora, nos assentamentos coletivos, de modo diverso dos
assentamentos individuais, a forma de organização do trabalho continua
a contribuir com a formação política necessária à luta contra as formas
especificamente capitalistas de organização do trabalho, a despeito de
suas limitações em relação ao enfrentamento à propriedade privada que,
agora, diferente do acampamento, é quase nula. É nesse sentido que
adentrei na compreensão dos assentamentos coletivos do MST, na
tentativa de compreender suas “invenções democráticas” na sua
“construção antecipada do socialismo”, a partir, como argumentei ao
longo de todo trabalho, de sua inserção no circuito de produção
capitalista e das mediações que estabelecem com a totalidade social,
ressaltando suas possibilidades e constrangimentos objetivos sobre as
relações organizacionais estabelecidas.
118
7 As Cooperativas do MST à Luz da Conquista na
Fronteira
[...]
Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios.
Garanto que uma flor nasceu.
Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.
Sento no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar. Galinhas em
pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o
ódio.
Carlos Drummond de Andrade
O mundo das mercadorias, o mundo nauseabundo que leva o
poeta ao enjôo, foi sinteticamente analisado no início deste trabalho.
Como a cidade cinzenta, o asfalto da poesia de Drummond, o capital
constrange o desenvolvimento de relações de produção humanizadas,
isto é, torna-as reificadas na medida em que impele o tratamento do
trabalho, o componente humano do processo de reprodução social, como
um meio de produção como outro qualquer, do qual tem de ser extraída
maior produtividade ao menor custo possível.
Ainda que desbotadas, ainda que amplamente limitadas por sua
incorporação na lógica sociometabólica do capital, certas organizações
são capazes de furar o asfalto, de, apesar de todo o constrangimento, ao
119
menos indicar a possibilidade de um caminho através do qual o trabalho,
uma vez livre de tais imperativos, possa ser a base de uma sociedade em
que autoconstrução humana se por suas próprias forças como forças
sociais, democraticamente organizadas; na qual os indivíduos
reconheçam-se na sua humanidade, como seres que são senhores de sua
história.
As flores que rompem o asfalto não são por isso organizações
que sobrevivem nos “interstícios” do modo de produção capitalista,
como apregoam as teses da economia solidária, mas organizações que se
articulam diretamente com o elemento totalizante da nossa sociedade, de
tal maneira que se diferenciam qualitativamente das empresas
convencionais por conta de suas relações organizacionais.
Com o objetivo de expor adequadamente os limites e as
possibilidades do esforço de conceber a construção “antecipada do
socialismo” empreendido nas cooperativas do MST, subdividirei este
capítulo em quatro tópicos. No primeiro deles, abordarei a história de
formação do assentamento e da cooperativa. No segundo, analisarei as
relações de poder que foram historicamente estabelecidas na Conquista
na Fronteira. Em um terceiro momento, descreverei o problema
histórico dos processos de trabalho nas atividades produtivas mais
significativas ao assentamento. Finalmente, analisarei as mediações mais
importantes e determinantes com a totalidade social (que não deve ser
compreendida como toda a sociedade, mas como seus elementos
totalizantes).
7.1 A História da Conquista na Fronteira
A história da Conquista na Fronteira completa hoje mais de
vinte e cinco anos, se considerarmos desde o momento em que
começaram as reivindicações pela terra. Abordarei nesse item, sem
riqueza de detalhes, apenas os elementos constitutivos do assentamento,
os processos históricos mais relevantes para a compreensão das relações
organizacionais tais quais são nos dias de hoje. Optei por estruturar a
análise de tal maneira que o método de exposição possa acompanhar o
próprio movimento histórico da organização. Por essa razão, ao tratar da
história da Conquista..., concentrar-me-ei na luta desses Sem Terra para
sua estabilização na sua propriedade, ou seja, até a consolidação do
120
assentamento em sua forma coletiva. Os outros elementos históricos
serão apresentados juntamente com a análise das dimensões
organizacionais de que trato neste trabalho. Neste capítulo, portanto, a
história subsidiará a análise das relações organizacionais do
assentamento.
A população que vive hoje no assentamento Conquista na
Fronteira é oriunda da primeira grande ocupação do MST no estado de
Santa Catarina, realizada em 5 de maio de 1985, em Abelardo Luz, da
qual participaram, aproximadamente, entre mil e seiscentas e duas mil
famílias. Por essa razão, esta é considerada a primeira massificação do
movimento. Após essa grande ocupação, o movimento se ramificou,
dando origem a diversos acampamentos menores que se espalharam pela
região. E foi durante os três anos de acampamento em Itaiópolis, em
uma área arenosa, em que grande parte é até hoje destinada a reserva
ecológica, onde surgiram os primeiros indícios do trabalho coletivo
94
da
Cooperunião. Depois de todo esse período de lona, vivendo em
condições precárias e de difícil produção, foi que o INCRA adquiriu o
terreno no qual estão assentadas as famílias em Dionísio Cerqueira
95
.
Foi um período de muitas mudanças e sofrimento, que possibilitou o
aprofundamento da proposta do trabalho coletivo (DALMAGRO, 2002).
Se no acampamento os germes do trabalho coletivo podiam
ser identificados, foi durante a própria negociação com o INCRA que
esse processo se fortaleceu. A proposta do Instituto era a de distribuir os
assentamentos individualmente e por etapas, segundo o critério de
número de crianças na família.
O INCRA usou uma forma de espalhar as famílias, porque ele
estava vendo que o pessoal.. como que ia se dar os assentamentos
das famílias. E eles começaram por número de filhos que as
pessoas tinham. E que na verdade, como era um grupo do meio-
oeste, a gente começou a estudar e ver que onde ia uma família,
iam todas. Ou o INCRA assentava todas, ou nós ficávamos ali
onde nós estávamos, que era em Itaiópolis. na verdade a
94 O trabalho coletivo não deve ser entendido aqui como no sentido marxiano - abordado no
capítulo 4 deste trabalho em que significa a interdependência dos trabalhadores parciais
ocasionada em decorrência da divisão manufatureira do trabalho; na linguagem do MST,
essa categoria expressa o controle coletivo e autogerido dos processos de trabalho.
95 Todas as informações deste item estão embasadas na fala de dois entrevistados (Diego e
Neiva – entrevista 1), a menos que haja indicação de referência diversa.
121
gente começou a bancar a proposta. Nós vamos a uma área
onde comporte as famílias. Porque daí a gente já começou a
tentar fazer um estudo do coletivo (Neiva – entrevista 1).
Foi, portanto, durante o acampamento que a idéia de
coletivização das terras foi levantada e discutida entre o grupo, mas
nenhuma decisão efetiva foi tomada de imediato, apenas no que se
refere à exigência de garantia de terra a todos. Por outro lado,
independentemente da forma de assentamento que resultaria do processo
de negociação junto ao INCRA, esses sem-terra haviam desenvolvido
fortes laços de solidariedade de classe, uma vez que não aceitavam
qualquer proposta que não contemplasse todas as famílias ali
acampadas. No MST, “... o acampamento permanente se desfaz
quando todos os acampados são assentados. Enquanto ele está em pé, o
MST promove diversas atividades básicas, entre as quais a mais
importante é a educação” (MORISSAWA, 2001, p. 200).
Assim, depois de o INCRA definir a terra que seria destinada
àquelas famílias foi que se tomou a decisão, democraticamente, de
formar um assentamento coletivo, em lugar de diversos individuais. Isso
porque as características geográficas do terreno – de relevo acidentado e
com grandes áreas destinadas à preservação - dificultavam a formação
de propriedades individuais ao passo que favoreciam o trabalho em
grupo
96
.
A propriedade coletiva da terra assume a forma jurídica de uma
concessão - realizada pelo INCRA aos assentados -, cujo direito de
usufruto é condicionado pela produção agrícola. Isto é, enquanto as
famílias cultivarem as terras que tem sob sua posse, permanecerão com
o direito de dela usufruir. A indivisibilidade do território e a
impossibilidade de sua transformação em mercadoria permitiram que,
mesmo quando famílias descontentes deixassem o assentamento, a
propriedade coletiva fosse mantida.
Debiazi (2008) e Dalmagro (2002) chamam a atenção para a
necessidade de se diferenciar a formação do coletivo da formação da
96 Dalmagro (2002, p. 56), por outro lado, narra o mesmo período como se a iniciativa do
assentamento coletivo tivesse partido do próprio INCRA: “Em razão da existência de
coletivos nos acampamentos do Movimento, e como o INCRA se dispôs, na época, a
assentar com prioridade grupos coletivos, define-se que a área em Dionísio Cerqueira não
seria destinada para divisão em lotes individuais”.
122
Cooperunião. Segundo as autoras, o coletivo teve início no
acampamento e deve ser considerado como mais amplo do que a
cooperativa, uma vez que a cooperativa pressupõe sua existência. O
coletivo está ligado, assim, às lutas, às mobilizações, à solidariedade, à
formação política e aos núcleos (os quais serão abordados mais a frente).
A Cooperunião está relacionada às atividades de produção. Ambos
estabelecem uma dinâmica cujos processos necessariamente se
interseccionam e, algumas vezes, segundo Dalmagro (2002), até se
opõem. Voltarei a essa questão mais tarde. Antes, analisaremos a gênese
do assentamento.
Ao avaliar o local disponibilizado pelo INCRA, diagnosticaram
que poderiam viver sessenta famílias, das quais propôs o INCRA e o
movimento aceitou trinta e cinco viriam do acampamento e vinte e
cinco seriam famílias que residiam no município de Dinísio
Cerqueira. Juntaram-se, assim, dois grupos com histórias marcadamente
diferentes, oriundos de realidades que pouco tinham em comum, senão o
fato de serem todos trabalhadores que viviam em condições muito
difíceis. De um lado, os trabalhadores Sem Terra, os quais tinham
alguma experiência com o trabalho coletivo no acampamento, além de
valores e uma cultura política que favorecia essa forma de organização;
de outro, diversas famílias do município que foram selecionadas
segundo critérios socioeconômicos, que visavam a favorecer a
população mais necessitada da região. A síntese desses dois grupos que
formaria mais tarde o assentamento coletivo foi um processo de longa
duração. Muitas famílias do município, como também do próprio MST,
não se adaptaram à forma de organização e às dificuldades que o início
do assentamento traziam e terminaram voltando às suas realidades de
origem.
As pessoas que vieram do município não tinham um movimento
formado. Na verdade, nenhuma ideologia política, nem
conheciam o MST. Elas foram selecionadas por um acordo que
foi feito com o município [...] e como aqui no município tinham
pessoas também descapitalizadas, pessoas de favelas, que não
tinham a identidade dos Sem Terra, eram favelados ou coisa
assim, eles entraram com recurso para que parte dessas famílias
fossem do município. Então, por isso, o inicio, na verdade, foi
dificultoso porque eles tiveram que passar por um processo de
conhecimento do movimento, de ideologia, de trabalho. Então, na
123
verdade, as trinta e cinco famílias ficaram voltadas mais para um
lado da área e as vinte e cinco mais para outro (Diego – entrevista
1).
A divisão entre os grupos não se deu apenas culturalmente, mas
também espacialmente. As terras foram proporcionalmente divididas
entre as famílias do MST e as do município. Mas, ao mesmo tempo, um
processo de discussão, de iniciativa das famílias do MST, dava vida aos
poucos à idéia de um assentamento coletivo formado por ambos os
grupos. Foram muitas reuniões até que esse processo se concluísse e as
famílias locais passassem a compartilhar a visão política trazida pelos
Sem Terra. Dito de outra forma: levou-se tempo até que as famílias do
município se tornassem também militantes do MST e assumissem a
identidade de Sem Terra. De acordo com Dalmagro (2002), o processo
de inserção dos sem-terra do município foi bastante complexo, que
eles nem se conheciam entre si. Eram indicadas as famílias mais pobres,
com muitos filhos, que, segundo os assentados, “perturbavam” a
comunidade. Muitas dessas famílias não se adaptavam à nova realidade
e por isso eram substituídas por outras, também da comunidade e, em
caso de desistência reincidente, por uma do MST. Segundo Debiazi
(2008), a separação entre os dois grupos na produção durou até 1992,
quando iniciou-se um processo efetivo de unificação na produção que
ocorreu primeiro apenas no setor de apicultura. Durante alguns anos, a
Cooperunião, formada apenas em 1990, contou como sócios apenas os
integrantes do MST. no ano de 1994 é que os sem-terra oriundos do
município se tornaram associados da Cooperunião, encerrando, dessa
forma e de uma vez por todas, a divisão entre dois grupos, ao passo que
se tornavam todos Sem Terra.
Vemos aqui que as condições objetivas, como a característica da
terra e a quantidade de capital de que dispunham, foram determinantes
para a formação da Cooperunião. Não é de modo algum casual que
Stédile (1999, p. 101-2), um dos fundadores do movimento e hoje
membro da direção, afirme que o MST aprendeu ao longo de sua
história que as formas de aplicação da cooperação agrícola deveriam ser
flexíveis. Segundo Martins (2006), “não assentamentos iguais, mas
há semelhanças entre os sujeitos que os compõem que [sic] caracterizam
os assentamentos do MST”. As formas que os assentamentos assumem
124
dependem, segundo Stédile (1999), de como os Sem Terra responderão
às condições objetivas.
As condições objetivas são o nível de capital existente, o tipo de
produto que é possível produzir, as condições naturais existentes
no assentamento. [...] Influenciam também nas condições
objetivas o grau de acumulação de capital que as famílias têm,
porque quanto mais pobres as famílias forem menor será o nível
de cooperação agrícola. as famílias com acesso a crédito, ao
Procera, por exemplo, tem um nível de acumulação maior. Se
existe capital social naquela comunidade, sim é possível
implantar formas de cooperação mais complexas para gerir
aquele capital.
De acordo com a Concrab (1995), as condições objetivas que
determinam a possibilidade de se realizar com sucesso formas de
cooperação agrícola estão relacionadas a diversos fatores de produção,
entre os quais: a situação da terra, os meios de produção disponíveis, o
mercado e a situação econômica da região. Além disso, a Concrab
considera fundamental levar em conta a estrutura da propriedade da
terra, que são geralmente determinadas por meio do INCRA, a partir de
módulos rurais voltados para a propriedade familiar. Carece-se, assim,
de “um planejamento da estrutura de propriedades, de módulos ou de
lotes de assentamentos voltados para a implementação de formas de
cooperação agrícola” (idem, p. 5). A confederação destaca ainda o papel
exercido pelo Estado no processo de assentamento e uma vinculação
(desejada) à indústria e ao potencial de mercado da região. Abordarei
esses fatores de modo mais aprofundado no item 7.4.
Mas não apenas as condições objetivas são determinantes na
constituição da cooperativa agrícola. Estas são apenas independentes em
relação a qualquer intencionalidade do movimento, são as condições
com que se defrontam e que existem independentemente da vontade do
grupo, do desejo dos trabalhadores. Por outro lado, na gênese do
coletivo do assentamento, é possível observar que também as condições
subjetivas foram fundamentais para a sua formação. Para Stédile (1999,
p. 102)
125
As condições subjetivas são o grau de consciência política e a
história de participação de uma determinada comunidade
adquiridos na luta para a conquista da terra. [...] Nos
assentamentos, essas condições subjetivas também são
determinadas. Com isso, aprendemos que a forma de cooperação
dos assentamentos não é determinada pelo MST, pela Concrab.
[...] Eles é que tem que discutir que tipo de forma pode ser
assimilada. A partir da forma inicial, pode haver um processo de
evolução ou um processo de desarticulação. Se se desarticular,
significa que aquela forma de cooperação não estava à altura das
condições subjetivas.
A Concrab (1995, p. 6) considera como elementos
fundamentais: “a questão da voluntariedade em participar de formas
cooperativas, o nível de conscientização, a capacidade de organização e
o grau de qualificação enquanto mão-de-obra”. Além disso, aponta a
necessidade de que todos tenham em mente a finalidade da cooperação a
curto, médio e longo prazo. Por fim, destacam que a capacidade de
organização interna, a existência de quadros técnicos, o nível de
qualificação da força de trabalho etc. devem ser analisados sob o prisma
da realidade do sistema atual, de nossa economia e de nossa agricultura,
para que possam, a partir de tal análise, empreender formas
organizacionais mais adequadas aos objetivos estratégicos do
movimento, em função dessa realidade.
Na Conquista na Fronteira, o elemento subjetivo foi de
fundamental importância. Não podemos deixar de levar em conta que
estamos tratando da primeira experiência do MST de assentamento
coletivo. Todos os problemas que surgissem poderiam facilmente gerar
e efetivamente geraram - conflitos entre o grupo e serem
imediatamente relacionados à forma de organização que defendiam.
Como afirma Konder (2009, p. 35), não podemos esquecer que
os indivíduos que negam determinada realidade são eles mesmos
marcados pela realidade que desejam modificar. “Com a divisão social
do trabalho, com a hipercompetitividade estimulada pelo mercado
capitalista, a insegurança se generaliza e atinge todas as pessoas: não
aquelas que temem as mudanças históricas como aquelas que, em
princípio, estão empenhadas em promovê-las”. O elemento subjetivo da
práxis social torna-se assim fundamental para a transformação rebelde
126
da realidade naturalizada e interiorizada pelos próprios sujeitos dessa
transformação. “A insegurança penetra na alma do combatente e o leva a
se apoiar em certezas, a procurar fundamentar suas opções em valores
inquestionáveis” (KONDER, 2009, p. 35), o que constitui,
paradoxalmente, um desafio ao movimento de transformação, que
precisa também, necessariamente, ser combinada à autocrítica de seus
agentes na medida em que põem em movimento a realidade e esta, por
outro lado, lhes impõe novos desafios. Se são os problemas do
movimento ocasionados pela ausência de autocrítica, de pensamento
auto-questionador, ou pela força dos valores conservadores, da
“insegurança penetrada na alma do combatente”, isso é algo que
somente o tempo pode responder. No calor da luta, por outro lado, o
tempo que vale é o tempo presente, o homem presente, a vida presente.
Assim, este paradoxo aparece como incerteza e, por isso, a leitura da
realidade desse mesmo presente pela subjetividade do movimento no
contexto específico da atuação política é decisiva.
Porque o elemento subjetivo é de fundamental importância para
essas experiências e porque o MST também as considera como tal, as
cooperativas de produção não são impostas, mas discutidas, e aderem a
elas tão somente aqueles que a consideram uma alternativa viável e
desejável. O mesmo se pode dizer de todas as lutas do MST, que não é
uma organização fechada como as organizações convencionais. Por isso,
nem todas as famílias ou indivíduos permaneceram no assentamento
como tamm muitas outras passaram a fazer parte mais tarde. Mas, se a
constituição da organização embasada no trabalho coletivo foi
conseqüência de um longo processo de discussão, hoje, por outro lado,
essa forma é inquestionável e aderem ao assentamento aqueles que
estão dispostos a viver na forma historicamente constituída de
assentamento coletivo.
A forma coletiva de organização é a base de sustentação sobre a
qual se pode erguer relações organizacionais não hierarquizadas,
buscando, dessa maneira, eliminar as relações de dominação e
exploração entre os indivíduos do grupo. Analisarei, a seguir, o
desenvolvimento das relações de poder dentro do assentamento.
127
7.2 As Relações de Poder
A intenção de produzir a própria vida no meio rural
conjuntamente e de tal forma que não restassem relações de dominação
e exploração entre os indivíduos do assentamento foi o que marcou a
luta desses Sem Terra desde os tempos de lona, momento em que se
formou, ainda de forma simples, o coletivo. Há uma clara continuidade
entre as forma de organização dos acampamentos do MST e a do
coletivo do assentamento Conquista na Fronteira.
Segundo Morissawa (2001), a primeira medida tomada em um
acampamento é a formação de núcleos, organizados quase sempre de
acordo com o município de onde vieram. Esses núcleos dividem entre si
as principais tarefas. Há, também, um sistema de coordenação geral do
acampamento, “... responsável por dar unidade ao trabalho das várias
equipes, encaminhar lutas, negociar com o governo e relacionar-se com
a sociedade”. Tal coordenação envolve: assembléia geral (órgão
máximo), reunião de líderes dos núcleos (para encaminhamentos do dia-
a-dia e disseminação de informações) e Coordenação do Acampamento,
eleita pelos acampados. No acampamento que precedeu a Conquista na
Fronteira não foi diferente. Os grandes acampamentos eram
organizados em núcleos e assembléias.
[no acampamento] nós comecemos produzir. Começamos a
organização dos núcleos né, dos grupo, coletivo. [...] Ali que nós
começamos. Os grupos pequenos, não grupão que nem a gente
tem hoje, um grupo pequeno, de dez, doze famílias no máximo.
[...] Naquela época era o grupo. Tinha os coordenadores, que
coordenavam o grupo. A gente já até trabalhou, junto, já, lá...
nesse grupo. Plantou, colheu, tudo junto. Mas que não tinha
uma direção. Era um coordenador. Coordenava e: “nós vamos
fazer tal trabalho”. depois que a gente veio aqui que daí, com
um grupão maior, que veio a obrigação de ter uma direção
(Silvino – entrevista 2).
Como se pode observar na fala de Silvino, nesse momento
havia pessoas a quem era incumbida a tarefa de coordenar o núcleo em
suas diversas atividades, de uma forma bastante simples. Os núcleos
eram tanto um espaço de discussão sobre as medidas que tomariam o
128
movimento dali a frente como também se confundia com os próprios
grupos de trabalho. Só com o assentamento é que essa forma simples de
organização foi ganhando em complexidade, na medida em que novas
regras eram implantadas, novos problemas surgiam e novas
necessidades apareciam.
Essa forma simples de organização, baseada no núcleo
(discussão), assembléia (deliberação) e coordenação foi levada ao
assentamento, momento que se funda o coletivo. Nesse contexto, cabe
enfatizar, as famílias recém assentadas tiveram enormes dificuldades
econômicas; isso, no entanto, não os impediu de planejar conjunta e
democraticamente a produção, além de, processualmente, construírem
coletivamente as regras de convivência do grupo. Como narra Diego,
Os primeiros anos de assentamento foram piores do que os de
acampamento porque no acampamento você recebe ajuda de
outras instituições, alimentação, alguma coisa sempre vem. No
assentamento, como tu já, então.. tu ganhou a terra.. “ah, não,
agora tu é um assentado”. que o início da produção sai do
zero. Então foi muito mais dificultoso o início aqui, sofrido, de o
pessoal passar fome e coisa, do que no acampamento.
Trata-se de um momento em que a Cooperunião, tal qual ela se
estrutura hoje, sequer havia se formado. Formalmente, a cooperativa foi
fundada no ano de 1990, sendo composta apenas pelos assentados do
MST. Mas o movimento existia apenas enquanto coletivo, com uma
estrutura muito próxima àquela da época de acampamento. Ressalta-se,
aqui, a diferença entre o coletivo e a Cooperunião. O coletivo tem suas
raízes no acampamento, quando a tensão e formação política dos Sem
Terra são intensificados através do enfrentamento direto do Estado. Sua
estrutura básica é composta pelos núcleos de base, assembléia geral e
uma instância de coordenação que se modifica através do tempo,
correspondendo à complexidade da organização. Cabe ressaltar que a
manutenção dessa forma de organização se tornou possível uma vez
que se tomou a decisão de que a propriedade da terra seria ela também
coletiva. Mas, que dinâmica se estabelece no coletivo?
A idéia do coletivo, como afirmei, tem o objetivo de não
reproduzir relações de dominação e exploração entre os indivíduos do
grupo. O mecanismo que tornou possível a eliminação desse tipo de
129
relação surgiu, como vimos, no acampamento. Duas instâncias foram
fundamentais para que essas relações não se reproduzissem entre os
assentados e foi a partir delas que se desenvolveu toda a complexidade
que comporta a organização do assentamento nos dias de hoje, a saber:
os Núcleos de Base e a Assembléia Geral.
Toda decisão tomada pelo coletivo é discutida previamente nos
Núcleos de Base. Todo núcleo possui um coordenador e uma
coordenadora, um secretário e uma secretária, cuja função é encaminhar
as reuniões e trabalhos. Segundo o Regimento Interno (2006, p. 5) do
assentamento, os Núcleos de Base são constituídos por proximidade de
moradias, somando, no total, seis núcleos. Suas funções, segundo o
documento, são: “discutir e sugerir propostas para assembléia;
desenvolver estudos de formação política; desenvolver trabalhos
práticos: receber caravanas de visitas na comunidade e acolher visitas do
assentamento ou estagiários na família quando necessário”. Essas
funções, é claro, correspondem aos objetivos dos núcleos no contexto
atual. Que estejam mais ligados a funções relacionadas ao presente, em
nada muda seu papel organizacional histórico, o mesmo desde o
acampamento, que é precisamente o de permitir a participação efetiva na
discussão de todos os assuntos pertinente a todo o assentamento, ou,
antes, ao acampamento. Tais discussões, todavia, não possuem caráter
deliberativo, servindo apenas como espaço de esclarecimento,
posicionamento e amadurecimento das propostas. Hoje, cada núcleo é
formado por cerca de dez famílias que discutem as pautas das
assembléias e elaboram propostas de encaminhamento. Outro
importante fato a se destacar é que, embora atualmente o Regimento
Interno ateste que os Núcleos são constituídos por proximidade de
moradias, não se pode esquecer que eles precedem sua existência no
assentamento. Antes, as moradias foram organizadas de acordo com os
núcleos do acampamento, para depois serem os núcleos estabelecidos e
regulamentados de acordo com a dispersão das moradias, possibilitando
a entrada e saída de moradores. Por isso, alguns núcleos são compostos
em boa parte pelas mesmas famílias desde o tempo de luta pela
propriedade da terra.
Se os Núcleos de Base são a instância em que se debate e se
posiciona diante das questões levantadas pelo coletivo, a Assembléia,
por seu turno, é a instância deliberativa máxima. Segundo o documento
130
intitulado “Estrutura Orgânica (anexo I, p. 1), a Assembléia é o
momento em que:
...todos (as) reúnem-se a cada 30 dias para debates, aprovações
ou simplesmente para informes. Também será o momento de
trabalharmos a formação e resgate da mística. Os informes serão
encaminhados aos núcleos juntos com a pauta os mais urgentes
serão encaminhados nas casas [sic].
São essas duas instâncias que, articuladas, dão movimento ao
coletivo. A dinâmica básica das relações organizacionais no
assentamento é a prévia-discussão nos núcleos de base e a decisão na
assembléia, que, se necessário, também comporta a continuidade dos
debates. Todas as regras que foram criadas ao longo da história do
assentamento e todos os planejamentos de ação, sejam diretamente
políticos ou ligados à produção, atravessaram esse processo, garantindo,
dessa forma, a participação efetiva dos Sem Terra. “Essa cartilha [o
regimento] foi sendo criada de acordo com o que ia acontecendo e que a
maioria achava que não era legal ou era legal, e assinada por todos.
Qualquer norma, qualquer regra, possíveis punições, todos são, na
verdade, aprovada por todos” (Diego entrevista 1). A própria criação
da Cooperunião atravessou esse processo. A Cooperunião surge,
portanto, como instrumento do coletivo para a organização do trabalho,
para a organização da produção da vida no assentamento
(DALMAGRO, 2002).
A dinâmica estabelecida entre Núcleos de Base e Assembléia é
essencialmente a mesma até hoje. Dessa forma, nota-se que as instâncias
básicas não modificaram suas funções organizativas essenciais com o
ganho de complexidade das relações entre os indivíduos no
assentamento. Os núcleos de base permanecem como os fóruns “em que
se discute e sugere propostas, desenvolvem estudos de formação
política (Estrutura Orgânica, Anexo I, p. 1) e as assembléias como a
instância de deliberação.
Se é verdade que são essas (núcleos e assembléia) as duas
instâncias fundamentais para que o coletivo se efetive, cabe assinalar
que, para que esse processo tenha se reproduzido indefinidamente,
precisou-se a criação de outras instâncias, o que aos poucos delineou
traços mais complexos à organização. São as comissões e as equipes de
131
trabalho que aumentam a complexidade da organização, exigindo, ao
mesmo tempo, um mecanismo de coordenação que atenda a essa
complexidade. Por essa razão, é possível observar, na história do
assentamento, uma contínua transformação da coordenação, que
expressa também a separação, no âmbito organizacional, entre a
coordenação das atividades políticas da coordenação das atividades
econômicas.
No início era só coordenação. Daí a gente criou, em um ano, mais
ou menos, um conselho além, entre os coordenadores que
coordenavam o trabalho, que daí era bastante gente exigiu mais
gente pra fazer isso. Daí era um Conselho Planejamento. Então
esse pessoal fazia parte... uns faziam parte da coordenação igual,
e uns dos coordenadores que coordenavam o trabalho. Então eles
planejavam: “vamos produzir o que? Vamos produzir erva,
vamos produzir alimentação...” Então era obrigação dessas
pessoas puxar. “Vamos produzir alguma coisa?” Então a gente se
organizava entre esse pessoal e então levava pros núcleos. Os
núcleos diziam sim ou não. depois a assembléia. a
assembléia que definia: sim ou não (Silvino – entrevista 2).
Como se pode constatar na fala de Silvino, entre a instância de
coordenação da época do acampamento a coordenação geral e a sua
separação entre Direção Coletiva e Conselho Social e Político que
descreverei mais tarde, existiu o “Conselho de Planejamento”, que nada
mais era do que parte da coordenação geral destacada para o
planejamento da produção econômica. Este planejamento, entretanto,
seguia seu caminho natural, como qualquer decisão do coletivo, o qual
pressupõe a discussão nos núcleos e a deliberação em assembléia. É esse
Conselho de Planejamento que mais tarde dá corpo à formação da
Direção Coletiva, quando a Cooperunião é institucionalizada. É por essa
razão que Silvino, quando perguntado sobre o impacto da separação
entre a coordenação política e econômica, afirma:
Não mudou praticamente nada porque, automaticamente, era uma
necessidade. Porque tu criar uma cooperativa e ter uma direção
pra isso, é automaticamente tem que ter né. Então como nós
tinha esse Conselho de Planejamento, esse conselho tinha
uma noção do que tinha que ser feito, o que o grupo em si tinha o
132
objetivo de chegar. Aí esse mesmo conselho fez parte da direção,
então foi levando a frente, porque era uma necessidade de existir
essas duas linhas (Silvino – entrevista 2).
A cisão entre uma esfera política e uma esfera econômica
realizou-se no momento da criação da Cooperunião e correspondeu,
organizacionalmente, à transformação da Coordenação Geral (que
continha em si o Conselho de Planejamento) em Conselho Social e
Político (político) e Direção Coletiva (econômico). Assim, com a
criação da Cooperunião, o assentamento passa a ser composto pelo
coletivo, que corresponde à dinâmica exposta até aqui (núcleos de base,
assembléia e comissões) e cooperativa, relacionada à esfera da
produção, de que tratarei mais tarde
97
.
É claro também que o próprio coletivo ganhou em
complexidade. Na medida em que novos problemas aparecem
continuadamente, ganhando relevância e persistindo de tal modo que
exigem um tratamento específico pela organização coletiva, os Sem
Terra criam novos espaços, novos circuitos de relações organizacionais
cuja finalidade é atender adequadamente às novas necessidades do grupo
sem, por isso, criar relações hierárquicas e de dominação. São as
comissões que visam a dar o tratamento permanente a problemas
específicos do grupo.
As comissões têm o objetivo de discutir e encaminhar políticas
internas do assentamento sobre os temas específicos e permanentes de
que tratam. Cabe a elas levar as propostas aos núcleos, para que sejam
discutidas e posteriormente decididas em assembléia geral. Todas as
comissões possuem um coordenador e uma coordenadora, um secretário
e uma secretária, que são eleitos em assembléia a cada três anos.
Na época do acampamento, “só existia a comissão de saúde”
(Silvino entrevista 2). Hoje, na Conquista na Fronteira, existem cinco
comissões, quais sejam: de Saúde, de Educação, de Esporte e Lazer, de
Animação de Visitas e o Grupo de Jovens. O artigo 4º, item 5, do
Regimento Interno (2006, p. 5) estabelece que “serão constituídas novas
97 Embora os assentados não façam qualquer diferenciação entre cooperativa, coletivo e
assentamento, é necessário esclarecer a diferenciação conceitual que adoto neste trabalho
uma vez que esses termos são elevados ao estatuto de categorias as quais devem expressar
movimentos reais que compõem a totalidade da organização.
133
comissões quando forem implantadas novas alternativas de produção ou
novas formas organizativas, mediante discussão nos Núcleos de Base e
aprovação em Assembléia Geral”. Este item apenas confirma o que
expus anteriormente, isto é, que a criação das comissões está ligada ao
surgimento de problemas permanentes do assentamento que aparecem
ao longo da sua história e que passam a necessitar de um trabalho
também permanente e especial. É claro que existiram na história do
assentamento também as comissões cujas finalidades eram tão efêmeras
que sequer chegaram a ser regimentadas. Contudo, estamos tratando
aqui de comissões que se consolidaram como elos de ligação no
cotidiano da organização.
Analisemos a função da Comissão de Educação para, a partir
desse exemplo, tornar mais clara essa dinâmica organizacional. Esta
Comissão tem por finalidade:
a) planejar a educação dentro de uma concepção popular, desde a
Ciranda até a quarta série, considerando a proposta do
assentamento, a realidade em que vivemos e a luta pela reforma
agrária e pela transformação social;
b) elaborar proposta de planejamento pedagógico da Escola
Construindo o Caminho com indicação de tema gerador
98
;
c) acompanhar o andamento da Escola Construindo o Caminho,
Ciranda Infantil, Estudantes gerais da cooperativa dando os
devidos encaminhamentos;
d) manter o vínculo com o setor de educação do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra;
e) elaborar políticas de incentivo a leitura para estudantes e
núcleos, bem como buscar jornais, revistas de modo geral que
venham contribuir no processo de formação interno e
fornecimento de informações coerentes;
f) zelar pelos espaços educativos e recreativos infantis
(Regimento Interno, 2006, p. 3-4).
Assim, esta comissão é responsável, por exemplo, por indicar o
tema gerador e elaborar o projeto pedagógico da Escola Construindo o
98 O MST trabalha a Educação dos Sem Terra inspirando-se no método de Paulo Freire, para
quem a apreensão da realidade deve se dar a partir da própria realidade do sujeito que
aprende. O tema gerador, sempre ligado à realidade desses sujeitos, tem o objetivo de ser o
ponto de partida para a assimilação do conhecimento já desenvolvido.
134
Caminho. O projeto, então, depois de elaborado, é discutido nos Núcleos
de Base, momento em que pode ser questionado através dos processos
de discussão. Cada núcleo, finalmente, leva um posicionamento e
considerações a respeito do assunto para a Assembléia Geral. Se todos
os núcleos tiverem posicionamentos consensuais, a votação da
Assembléia sequer é realizada. Por outro lado, basta que um núcleo leve
um posicionamento diferente para que se prossiga com a discussão e,
permanecendo as divergências, seja encaminhada a votação.
A análise da Comissão de Educação também nos mostra que
essas instâncias são ligadas a atividades específicas que demandam uma
atenção especial e permanente e que se tornariam inviáveis se diluídas
entre todo o coletivo do assentamento. Por isso, ao mesmo tempo em
que temos a Comissão de Educação responsável pelo acompanhamento
constante da Escola e dos estudantes, a Comissão de Saúde é
responsável pelo atendimento diário dos assentados e também por
acompanhar o tratamento com outros profissionais, quando necessário.
Todas as comissões, portanto, têm funções específicas que exigem um
trabalho continuado que se tornaria inviável se realizado por todo o
coletivo. As comissões, que são eleitas, são consequência de um
processo democrático de divisão de tarefas.
O funcionamento concomitante de diversas comissões também
contribuiu para a necessidade de criação de uma instância capaz de
coordenar as diversas atividades como também as relações que são
estabelecidas entre estas, os Núcleos de Base e a Assembléia, de tal
modo que não entrassem em conflito entre si e, mais que isso, pudessem
atuar conjunta e harmonicamente. Na verdade, como mostrei
anteriormente, tal órgão de coordenação existiu desde os tempos de
lona, mas transforma-se continuadamente, acompanhando as
metamorfoses que sofre a totalidade da organização. De uma
coordenação geral cuja base assentava-se nos Núcleos de Base, passa-se
a um mecanismo em que a coordenação é exercida através de duas
instâncias que são criadas para a harmonização das atividades em novo
patamar de complexidade: o Conselho Social e Político e a Direção
Coletiva.
O Conselho Social e Político tem como funções, segundo o
Regimento Interno (2006, p. 2-3):
135
a) dar direção juntamente com a Direção Coletiva, aos rumos da
cooperativa;
b) encaminhar estudos e discussões políticas;
c) contribuir quando necessário nas discussões das equipes de
trabalho, comissões e núcleos;
d) definir vagas e sugerir nomes para cursos de formação política
e encaminhar integrantes ou associados para encontros,
manifestações e etc...[sic];
e) manter a organização interna cumprindo e fazendo cumprir o
Estatuto Social, Regimento Interno e demais decisões
estabelecidas coletivamente;
f) coordenar assembléias ordinárias e extraordinária.
É facilmente observável que nenhuma das atribuições desse
conselho é potencialmente hierarquizante ou que pressuponha uma
relação hierárquica para o seu cumprimento. Se o conselho tem a
responsabilidade de dar a direção aos rumos da cooperativa, ele o faz
de acordo com o planejamento previamente discutido nos núcleos e
aprovado em assembléia. Dessa forma, dar a direção significa efetivar as
decisões tomadas pelo coletivo ou, dito de outro modo, o que Silva
(2008) e Misockzy et. al. (2008) ressaltam como fundamental na
autogestão: mandar obedecendo. Encaminhar estudos e discussões
políticas, significa dar prosseguimento a uma demanda de algum setor
do assentamento, que pode vir de alguma comissão, de algum assentado
ou mesmo da direção do MST em âmbito estadual ou nacional.
Contribuir com as discussões dos núcleos significa subsidiar de
informações e participar ativamente do debate nesses espaços. Além
disso, o conselho tem por objetivo primordial fazer cumprir o
Regimento, que foi construído coletivamente.
Os membros do Conselho Social e Político são eleitos a cada
três anos através de votação secreta em Assembléia Geral, totalizando
sete indivíduos. “Para fazer parte do Conselho Social e Político o
companheiro ou companheira deverá demonstrar na prática maior
entendimento e consciência política“ (idem, p. 2). Mesmo que os cargos
não garantam poderes que possam privilegiar individualmente os
membros do conselho, os que o compõem são membros eleitos. Além
disso, as atividades relacionadas a esta instância não contam como horas
trabalhadas para efeitos de remuneração, exceto quando exigem que se
136
ocupe o tempo que seria destinado ao trabalho. Por isso, a atividade de
coordenação dessas instâncias, que é sempre necessária quando as
organizações atingem elevado grau de complexidade, assume uma forma
substancialmente diferentes daquela que se desenvolveu historicamente
nas empresas capitalistas. Nestas, porque a coordenação, como “função
específica do capital
99
”, associa-se também à necessidade de controle da
força de trabalho para utilizá-la adequadamente ao capital, isto é, para
dela extrair a maior produtividade ao menor custo, ela assume um
caráter despótico, de dominação no universo laboral. Aqui,
diferentemente, a complexidade da divisão de tarefas associou-se a
relações horizontalizadas, ainda que também reproduzam capital. A
função do Conselho Social e Político é, pois, garantir a coordenação das
atividades autogeridas.
Para isso, “cada membro [do Conselho Social e Político] terá
vínculo com uma instância” (idem, p. 2). As instâncias a que se refere o
texto do Regimento o as Comissões de Saúde, Educação,
Esporte/Lazer e Animação/Visitas; o Grupo de Jovens, a Direção
Coletiva, o Setor de Produção e a Coordenação Geral do MST. A
presença de membros do conselho em tais instâncias permite que este
seja um elo de articulação entre elas, de tal maneira que as informações
e encaminhamentos possam circular entre os assentados. Os efeitos
desses mecanismos de disseminação da informação são evidentes e,
como pude pessoalmente observar, todos, até mesmo as crianças, são
razoavelmente informados das pautas e encaminhamentos “tirados” por
cada uma das instâncias.
Órgão análogo ao Conselho Social e Político é a Direção
Coletiva, composta por cinco componentes eleitos também a cada três
anos através de votação secreta. As funções da Direção Coletiva são
elencadas no Regimento Interno (2006, p. 2):
a) Administrar coletivamente a cooperativa;
b) Dar direção juntamente com o Conselho Social e Político, aos
rumos da cooperativa;
c) Cumprir e fazer cumprir o Estatuto Social, Regimento Interno
e demais decisões estabelecidas coletivamente;
99 Cf. Item 4.2.
137
d) Elaborar proposta de planejamento da produção bem como das
demais atividades da cooperativa e dar o devido
acompanhamento;
e) Discutir a necessidade e encaminhar a formação técnica das
pessoas nos setores de produção;
f) Pensar e planejar o estratégico da cooperativa;
g) Dar acompanhamentos junto ao setor de produção nos
encaminhamentos da organização do trabalho e na distribuição da
mão de obra.
Assim como o Conselho Social e Político, a Direção Coletiva
também possui uma função de coordenação, mas concentra-se sobretudo
nos aspectos econômicos, isto é, de produção. A Direção Coletiva
surgiu anos depois da fundação do coletivo. Até então, como
demonstrado anteriormente, um único órgão de coordenação parecia-
lhes suficientes para todas as atividades existentes no assentamento.
Silvino, assentado na Conquista na Fronteira desde o seu início,
descreve essa transformação.
É uma necessidade do movimento. Sempre tem que ter o político
e o econômico. Então, praticamente, a direção, ela cuida do
interesse econômico. E a coordenação, o Conselho Social e
Político, chamamos a responsável pela organização orgânica
dentro do assentamento. [...] A partir de que foi fundada a
cooperativa, obrigatoriamente tem que ter uma direção, tem que
ter presidente e aquela burocracia toda. Mas no início era a
coordenação. (Silvino – entrevista 2).
O órgão de coordenação passou por transformações quanto à
forma e composição ao longo da história do assentamento. Com a
formação jurídica da Cooperunião, o assentamento cindiu-se em uma
esfera econômica e uma esfera política, as quais mantiveram, apesar
disso, uma articulação para a coordenação de toda a vida no
assentamento. Hoje, os Sem Terra não fazem qualquer distinção entre
Cooperunião e assentamento, embora considerem que a cooperativa é
um instrumento, um meio para que possam conquistar melhores
condições de vida através da comercialização e industrialização de
produtos no mercado. A Cooperunião é fundada juridicamente por uma
necessidade da produção e transforma-se, em pouco tempo, no centro
gravitacional de toda a vida no assentamento.
138
Justamente a partir que... a produção ela foi desencadeando,
necessitava uma pessoa jurídica tanto pra fazer as compras quanto
a venda da produção, gerenciar isso, toda a parte econômica. E aí,
a partir disso, também, passa pela cooperativa também toda a
parte social, a parte esportiva, cultural, habitacional, toda essa
parte também, então, passa pela cooperativa. Então, isso, aos
poucos a gente foi implementando, buscando consolidar isso. E
hoje, tudo, então, gira em torno da cooperativa. Então a gente fala
hoje: “que o assentamento ou a cooperativa”, pra nós é a mesma
coisa, porque a pessoa jurídica tem essa responsabilidade social
com todas as famílias, com todos os colonos, conversa com as
famílias, por ser uma cooperativa cem por cento coletiva (Valdir
– entrevista 3).
Para que fique mais claro como os assentados estabeleceram sua
estrutura orgânica após a criação da Cooperunião, reproduzirei o
organograma da organização por eles disponibilizado.
Fonte: Estrutura Orgânica – Anexo I.
139
Podemos conceituar a Cooperunião como a organização
relacionada à divisão do trabalho, seja ele de subsistência ou na
produção de mercadorias. A cooperativa dos assentados é, com efeito, o
elo entre as necessidades dos assentados e sua realização através da
produção e comercialização; é, pois, a forma através da qual o trabalho é
organizado na sua mediação com a totalidade social. Sob esse prisma,
mostra-se claramente o papel que assume a Direção Coletiva na
coordenação das atividades a ela relacionadas
100
, que nada mais é do que
o de administrar os recursos da cooperativa de acordo com os
encaminhamentos da Assembléia Geral
101
. As atividades ligadas ao
Conselho Social e Político, por sua vez, não tem ligação direta com as
da produção e podem ser organizadas com uma autonomia muito maior
frente aos imperativos das necessidades imediatas oriundas da
concorrência mercadológica. Cabe ressaltar que os membros do
Conselho Social e e Político não podem ser os mesmos que compõem a
Direção Coletiva.
Por essa razão, as atividades políticas, em regra, não contam
como horas de trabalho, exceto quando exigem que tais atividades sejam
realizadas em horário normal de expediente. A relação entre as duas
esferas, a econômica e a política, pode, por vezes, ser conflitante, mas
ambas estão sujeitas à dinâmica básica do coletivo do MST, qual seja: a
decisão tomada através da discussão nos Núcleos de Base e a
deliberação em Assembléia Geral. Por isso mesmo, quando julgam
necessário, ambas as esferas se reúnem para discutir. “Dentro da
necessidade que precisar. Quando é uma coisa que entra o econômico e
o político ao mesmo tempo, então as duas bases se juntam, pra ver as
melhores condições de levar isso a frente” (Silvino – entrevista 2).
É importante ressaltar que a cooperativa é uma criação do
coletivo, um instrumento através do qual o trabalho pode realizar-se
100 Embora a Ciranda Infantil, a Escola, o Alojamento e o Setor de Saúde não sejam ligados à
produção e estejam associadas à Direção Coletiva, existem comissões específicas do
Conselho Social e Político para cada uma dessas atividades, a saber: de Educação, de
Animação/Visitas e de Saúde. Como pude observaro, a Direção coletiva dá apenas um
suporte administrativo.
101 “Geralmente, tudo que for, que a direção trouxer, é a base que vai dizer sim ou não. Então
se a direção trouxer um plano de aumento.. aumento assim, como se diz? De ampliação da
cooperativa, mercado por exemplo, uma outra espécie de... que venha a trazer algum
outros tipos de recursos, então sempre a assembléia que vai dizer sim ou não. Pode trazer a
proposta, mas se a base disser não, a direção não faz. Não pode fazer porque não tem
autorização pra isso” (Silvino – entrevista 2).
140
organizadamente. A direção coletiva, centrada na esfera da produção,
por essa razão, tem de manter relações com o Conselho Social e Político
para articular a coordenação geral do assentamento. Tal articulação
existe desde a criação da Direção, mas recentemente foi formalizada
na estrutura orgânica do assentamento, sob a alcunha de Direção
Ampliada. Esta instância é composta por dez membros, dentre os quais
dois são representantes do Conselho Diretor, dois do Conselho Social e
Político, dois do Setor de Produção, dois “liberados” e outros dois do
Setor Administrativo.
A função desta instância será pensar estrategicamente a
cooperativa, vão utilizar os dados dos custos, finanças e
comercialização como base para as discussões. Não será uma
instância de decisão, as propostas serão encaminhadas para o
Conselho Diretor e para o Conselho Social e Político. A instância
se reunirá em torno de três vezes ao ano quando necessário
(Estrutura Orgânica, Anexo I, p. 1).
A Direção Ampliada tem a função de dar suporte ao
planejamento da cooperativa, contribuindo com o papel da Direção
Coletiva por meio da participação de outros setores. Por isso, Silvino
afirma que “ela é ampliada... o nome dela é ampliada, mas não muda
nada o sistema inicial. Porque a direção ampliada ela é a própria direção
da cooperativa. [...] Mas não que ela seja.. como se diz? Não que ela
interfira em alguma coisa a mais. Ela é um ajuste, uma ajuda” (Silvino –
entrevista 2).
Direção Ampliada é a junção da Direção Coletiva e do Conselho
Social e Político. São, hoje, seis... com cinco... onze pessoas que
quando precisa de mais atenção pra algum ponto, ele é mais
delicado, precisa de mais... pensar bem o que que vamo fazer, o
que que vamo encaminhar pra assembléia, se junta essas duas
instâncias: a administrativa e a política, pra junto tomar uma
decisão (Diego – entrevista 1).
Mas, se é verdade que a Cooperunião é uma criação do coletivo,
um instrumento deste para a realização democrática do trabalho de
acordo com seus princípios e interesses políticos, o que pude observar e
o que Dalmagro (2002) e Debiazi (2008) constatam é um movimento de
141
inversão desta relação. Isto é, se a cooperativa surgiu como um
instrumento para resolver problemas fundamentais do coletivo, hoje é
ela que predomina na vida dos assentados. As questões econômicas
como custos de produção, capital de giro, possíveis lucros, todas elas,
ainda que voltadas exclusivamente para a melhoria da qualidade de vida
geral dos assentados, tomam a cada dia o tempo que outrora era
destinado às discussões políticas, à conjuntura e à crítica à sociedade
capitalista.
As questões econômicas, da renda, do trabalho, dos
investimentos, do capital de giro, etc., vão se impondo ao
cotidiano do assentamento e desfocando o projeto de vida, o
convívio e a produção que indicam para uma nova forma de vida.
São essas questões que abalam a unidade interna, que originam o
sentimento de ausência do MST e que afastam muitas pessoas.
Nessa correlação de forças, por vezes, o coletivo fica subsumido
no trabalho, as relações mercantis impõem-se às relações
humanas (DALMAGRO, 2002, p. 75).
A organização coletiva da produção foi a forma que o MST
encontrou para dar continuidade às suas lutas dentro do assentamento,
para que ela não se encerrasse no momento da conquista da propriedade
da terra. Afinal, “o coletivo [...] tem sentido à medida que direciona
sua ação educadora para uma sociedade pautada em novas relações. O
coletivo é o instrumento e a matriz de formação do MST no
assentamento” (DALMAGRO, 2008, p. 74). Assim, manter o grupo
organizadamente unido e de tal forma que os laços de solidariedade e de
consciência política adquiridos através da luta pela terra não se
esvanecessem no isolamento da pequena propriedade individual
102
é o
102 “Uma das grandes dificuldades do Movimento se encontra nos assentamentos
individuais. Nesse tipo de organização, mais do que o isolamento geográfico do “lote”, o
isolamento humano. Esse fato impede o contato com outras pessoas e idéias, ficando mais
difícil formar sujeitos que se preocupem com a produção ecológica, que busquem novas
relações de mercado, pessoas empenhadas com o desenvolvimento do assentamento e que
almejem novas relações humanas. “A consciência social como produto do convívio e
participação social, desenvolve-se naturalmente, na medida em que se estimule os aspectos do
convívio e da participação” (MST, Caderno de Cooperação Agrícola n. 10, 2001 :7). Os
coletivos ou agrovilas onde as moradias são próximas, mesmo que o lote seja individual,
possibilitam maior consciência social nos assentados, facilitando a discussão dos mais diversos
temas, como vem atestando o Movimento” (DALMAGRO, 2002, 73-4).
142
motivo para que as relações de poder se desenhem dessa forma. Mas
essa estratégia esbarra em determinações econômicas de que os Sem
Terra têm plena ciência e estão dispostos a enfrentar que conduzem a
dilemas insuperáveis do ponto de vista de uma organização particular.
Não é demais ressaltar que a democratização pouco tem a ver
com uma dinâmica organizacional harmônica, sem conflitos e sem
desvios, como pode aparentar a análise de documentos que formalizam
estas relações. Como qualquer organização, o conflito existe e, no caso
do MST, é tratado como algo natural. A diferença entre o coletivo do
MST na produção de mercadorias e as empresas convencionais não é a
existência ou não de conflitos políticos, mas precisamente o caminho, o
modo, a forma por meio da qual tais conflitos são resolvidos. Se nas
empresas convencionais os conflitos são sanados unilateralmente, em
uma dinâmica segundo a qual os cargos prevalecem uns sobre os outros,
o que torna desnecessário o diálogo e o conhecimento dos “porquês” de
cada decisão, ou seja, se nas empresas convencionais prevalece a
heterogestão; no coletivo do MST, como organização autogerida,
prevalece uma dinâmica segundo a qual todos têm os mesmos direitos e
“pesos” nas múltiplas decisões que têm de tomar ao produzirem suas
vidas socialmente. Como argumentei no item 5.2, a diferença entre auto
e heterogestão não reside no conteúdo das decisões tomadas diante de
um número determinado de possibilidades postas por um contexto
específico, mas no método por meio do qual se chega a essas decisões.
Assim, se o MST foi capaz de construir organizações cujas
relações organizacionais são horizontalizadas e não burocratizadas e, ao
mesmo tempo, permitem tanto uma melhoria das condições econômicas
dos assentados como também uma continuidade da educação e da luta
política, ele não o foi e nem poderia ser, enquanto o controle
democrático da produção for restrito a uma organização e não se
expandir de modo a transformar qualitativamente o modo de produção
social - de modificar significativamente as relações que os
trabalhadores mantêm na sua autoconstrução humana, nas objetivações
que efetivam o processo de reprodução social. Na medida em que
adentramos o universo da produção material do assentamento Conquista
na Fronteira, essas relações tornam-se cada vez mais complexas, como
veremos a seguir.
143
7.3 Os Processos de Trabalho: produção e reprodução
No tópico anterior, descrevi como as relações organizacionais
do coletivo do MST se constituíram processualmente através do tempo,
acompanhando a transformação de suas necessidades e as novas
possibilidades que surgiram e que, por sua vez, demandaram uma
relação mais complexa entre os assentados. O surgimento e
fortalecimento da Cooperunião teve por consequência dois aspectos
fundamentais que caracterizam o assentamento nos dias atuais: a) a
fusão entre os dois antigos grupos: os “assentados do município” e os
“assentados do MST”; e b) a divisão de uma coordenação geral e
Direção Coletiva e Conselho Social Político. Concentrei-me, até agora,
na análise das relações organizacionais e de poder das atividades ligadas
ao Conselho Social e Político, que mantém quase que completamente a
mesma dinâmica desde os tempos de ocupação, tendo apenas se tornado
mais complexa. Neste item, analisarei historicamente os processos de
trabalho do assentamento considerando-o sob três aspectos
fundamentais, associando-os às relações que tais elementos estabelecem
com o coletivo (esfera política): a) a concepção da produção, no que
tange às questões que são consideradas no planejamento; b) a forma de
produção, que corresponde à tecnologia empregada e à divisão do
trabalho; e c) a finalidade da produção (mercado ou subsistência,
considerando também a distribuição dos ganhos na venda de
mercadorias).
Vimos no quarto capítulo que o processo de trabalho pressupõe,
independentemente da formação social em que esteja inserido, o
momento da concepção e o da execução ou, o mesmo que dizer, da
prévia-ideação e da objetivação. Em cada contexto histórico particular, o
processo de trabalho é marcado pelas relações sociais de tal modo que
estes dois momentos complexificam-se, adquirindo traços das relações
políticas de classe em forma de relações de poder no espaço laboral. No
desenvolvimento histórico do capitalismo, esse movimento é também a
passagem da subsunção formal à subsunção real do trabalho ao capital.
O próprio conhecimento tecnológico se desenvolve determinado pela
complexa disputa política a partir da qual os interesses da classe
dominante, posto que não unilateralmente, se impõem.
144
A Cooperunião, como qualquer organização hodierna, lida com
tecnologias que foram desenvolvidas para fins de acumulação de capital,
uma vez que o conhecimento é sempre um conhecimento socialmente
produzido e, portanto, social e historicamente determinado. Por isso, não
é um equívoco salientar que as tecnologias adquiridas por essa
organização pressupõem, no seu desenvolvimento, a subsunção do
trabalho ao capital. Por outro lado, seria insensato afirmar que, porque
as tecnologias pressupõem certas relações de dominação, elas
necessariamente as implicam. Ou seja, porque determinado
conhecimento tecnológico foi desenvolvido para fins de acumulação de
capital, que ele só possa ser utilizado para fins de acumulação de capital.
Valho-me, aqui, da interpretação de Mészáros (2006, p. 226)
que distingue a tecnologia em si de sua aplicação socialmente
determinada. Segundo o filósofo:
Essa determinação [social] [...] não pode significar que a
tecnologia em si seja totalmente neutra, sob esse aspecto, pois
todos os seus determinantes são, também eles, determinados. A
tecnologia é neutra em princípio, mas uma forma dada de
tecnologia, uma vez estabelecida, não o é. Toda forma humana
de tecnologia tem seus limites, não somente na quantidade de
seus produtos mas também – e este é o ponto relevante, aqui – na
qualidade das necessidades humanas que está mais capacitada
para satisfazer. Isso encerra o perigo de uma deformação de toda
a gama das necessidades humanas na direção da “mínima
resistência”, ou da “distribuição ótima de recursos humanos” etc.,
a qual, por sua vez como o consumo influi novamente sobre a
produção pode aprofundar aqueles elementos potenciais da
tecnologia dada que já tendiam a produzir efeitos gravemente
distorcidos (grifos do autor).
Na apropriação tecnológica nas cooperativas do MST que
mantêm relações organizacionais horizontalizadas, a tecnologia
empregada pode ser “deformada” de modo que seja capaz de se adequar
aos interesses políticos do movimento interesses os quais, como
ressaltei anteriormente, esbarram nos imperativos do sociometabolismo
do capital.
A tecnologia é, antes de tudo, uma forma de conhecimento que
advém, direta ou indiretamente, da interação orgânica estabelecida entre
145
homens e mulheres e natureza. O desenvolvimento histórico tornou mais
complexa essa interação, mas não a eliminou. Por isso, para uma
compreensão mais próxima da “deformação” que sofrem estas
tecnologias na sua inserção nas relações organizacionais das
cooperativas autogeridas do MST, parece-me necessário empreender
uma análise aprofundada dessa questão.
Se o desenvolvimento histórico do modo de produção capitalista
separou - e até mesmo opôs - concepção e execução (ver capítulo 4) na
forma correspondente de administração e operacionalização, ele também
criou, ao mesmo tempo, conhecimentos tecnológicos embasados e
direcionados a essa separação. Desse modo, as tecnologias dos
processos de trabalho podem ser divididas em tecnologias de gestão
(concepção) e tecnologias físicas (execução) (FARIA, 1992).
Segundo Faria (1992), a tecnologia de gestão consiste na
aplicação de conhecimentos relacionados às técnicas, instrumentos ou
estratégias utilizadas pelos administradores para controlar o processo de
produção em geral, de tal modo que seja capaz de otimizar os recursos
nele empregados. Dessa forma, as tecnologias de gestão compreendem
tanto elementos de ordem instrumental, como a racionalização e
formalização dos processos de trabalho, como de ordem comportamental
e ideológica, cuja finalidade é introjetar nos indivíduos elementos
subjetivos que favoreçam os interesses da administração.
As tecnologias físicas, por sua vez, estão relacionadas aos
instrumentos de trabalho (máquinas, equipamentos, ferramentas etc.) e
aos métodos de sua utilização (FARIA, 1992). Ambas as categorias são
os elementos constitutivos das tecnologias do processo de trabalho, e por
essa razão mantêm íntima e necessária conexão. Para Faria (1992, p.
32), “...não como separar tecnologia física da de gestão no processo
de acumulação do capital, mesmo porque a utilização da primeira leva,
com maior ou menor grau de intensidade, ao emprego da segunda”. A
gestão da produção, nessa perspectiva, consiste basicamente no controle
desses dois elementos que constituem a tecnologia de processo,
independentemente da forma específica que assuma. “O controle da
tecnologia de processo implica o domínio dos elementos constitutivos da
gestão do processo produtivo” (ibidem).
Feitas essas considerações, analisemos o desenvolvimento do
processo de trabalho na Conquista na Fronteira, que compreendem,
pois, tanto as tecnologias de gestão como as tecnologias físicas.
146
Veremos que o desenvolvimento de sua atividade produtiva é, em escala
muito maior, controlável quando relacionado às tecnologias de gestão do
que quando relacionado às tecnologias físicas.
Sabemos que a vida no assentamento iniciou-se em extrema
pobreza. “As famílias começaram do zero, com uma junta de boi
emprestada de um vizinho para setenta famílias. Os primeiros indícios
de produção pra subsistência foram feitos para setenta famílias com uma
junta de boi
103
(Diego entrevista 1). Os processos de trabalho eram
análogos à atividade artesanal, em que concepção e execução são unidos
na atividade individual. Os simples instrumentos de trabalho tornavam a
conexão necessária entre homens e mulheres e natureza uma relação
direta. Enxadas, ancinhos, foices, martelos, ferramentas simples e mais
uma junta de boi emprestada eram o que dispunham para o trabalho
rural
104
.
Assim, tendo às mãos parcos meios de produção para
lavrarem a terra e carentes das necessidades mais básicas, os assentados
organizaram-se para produzir prioritariamente para a subsistência.
O primeiro objetivo que tinha pra todos era produzir para
subsistência, produzir para comer. Era esse o principal objetivo
naquela hora. Somente isso. Renda, então, nem se fala. Renda
financeira, o pessoal passou um bom tempo sem conhecer a cor
do que era o dinheiro. [...] E até também a questão do
preconceito, que era muito forte. Hoje o Movimento do Sem
Terra, enquanto Movimento dos Sem Terra, sofre muito isso,
porque a mídia passa uma imagem totalmente dos problemas,
onde que tem os problemas totalmente contrários [...]. Então as
pessoas do município, as comunidades vizinhas, todo mundo
103 Na verdade, eram sessenta famílias, como afirmado anteriormente e constatado através da
fala de Diego, Neiva e Valdir.
104 No início, entretanto, nem mesmo dos instrumentos mais simples dispunham os
assentados. “Na época que as famílias chegaram aqui, as sessenta famílias, existia apenas
uma junta de boi e um arado. Então essas eram as ferramentas pra iniciar a agricultura, a
produção de subsistência, enfim, dar o início do assentamento. Por que as famílias que
vieram de acampamento do Movimento dos Sem Terra estavam três anos e não
tinham nem ferramentas de trabalho. Não tinham capitalização nenhuma assim como as
famílias que tavam no município também eram famílias descapitalizadas que trabalhavam
de agregado, arrendatários e meeiros né, nesse sentido” (Valdir assentado). Diego, por
sua vez, cita apenas a “junta de boi emprestada”, sem o arado. De qualquer forma,
independente da presença ou não do arado, ambos os entrevistados consideram que as
famílias encontravam-se totalmente “descapitalizadas”.
147
tratava mal as pessoas do assentamento. [...]. As relações
comerciais também, muito difícil. O pessoal ficava cuidando,
pensando que você ia roubar (Diego – entrevista 1).
A produção para a subsistência levava à consideração do
trabalho como elemento associado às necessidades dos próprios
produtores, necessidades reais dos indivíduos assentados. Isso significa
dizer que, porque não havia uma exigência de produtividade estranha à
organização, os trabalhadores tinham, do ponto de vista subjetivo, o
controle sobre o ritmo, a intensidade, o modo como deveriam realizar
suas tarefas e dominavam todo o conhecimento necessário para esse tipo
de atividade. Entretanto, a situação objetiva em que se encontravam,
dispondo de parcos meios de produção e passando extremas dificuldades
para a satisfação de necessidades meramente biológicas, naturais (como
fome, moradia etc.), levava-os a trabalhar sob um ritmo intenso e com a
única tecnologia que dominavam com tais instrumentos. A baixa
produtividade da tecnologia empregada tornava impossível a produção
de mercadorias naquele contexto, não se tratando, pois, de uma escolha
do movimento. Aqui, é preciso considerar que o MST é formado por
trabalhadores rurais que foram expulsos do campo pela concorrência
capitalista por utilizarem tecnologias atrasadas do ponto de vista do
capital (GERMER, 1994a; 1994b) . Havia, portanto, uma relação
imediata entre o trabalho e as necessidades a que se pretendia satisfazer.
Como a primeira preocupação era garantir o sustento das
famílias, as primeiras atividades eram voltadas para a produção de
alimentos, tais como: leite, arroz, feijão, ovos, hortaliças etc. As culturas
visavam à garantia da alimentação. Quanto à moradia, os Sem Terra
aproveitaram a estrutura já existente da fazenda desapropriada para
improvisar espaços habitacionais, como estábulos e a “casa do capataz”.
Valdir conta como resolveram o problema da moradia:
Então, como a área [do assentamento] ela tava hipotecada no
banco Banerj [antes da desapropriação] e então era a terra e as
benfeitorias que existiam nela, então todas as casas, o galpão que
existia, então ele permaneceu na área. Então essas benfeitorias
tinha. Tinha a casa do capataz, tinha a casa onde ficavam alguns
dos empregados e então tinha galpões: estrebarias que existiam
de vacas, de cavalos. E essas era a estrutura que o pessoal utilizou
148
de moradia no início né. Então tinha uma casa, por exemplo, que
era dos empregados ali, que no início ficou dezessete famílias
dentro de uma casa. Então os galpão era dividido com lona dentro
e o pessoal permanecia ali. E aí outros que fizeram seu barraco de
lona e permaneceram até conseguir as primeiras moradias (Valdir
– entrevista 3).
Na produção de alimentos, o excedente era comercializado e
este era o único modo por meio do qual os assentados adquiriam os
outros meios de subsistência necessários à reprodução de suas vidas.
neste momento, os debates ocorridos na Conquista... e junto ao MST
conduziam o grupo a planejar a produção coletiva expandindo-a de tal
forma que aumentasse significativamente a renda dos trabalhadores do
assentamento. O objetivo final era controlar a produção ligada ao
sustento das famílias e industrializar e comercializar as mercadorias que
pretendiam produzir. Para isso, o assentamento e o MST consideraram
necessárias três etapas. A primeira, era garantir a produção ligada ao
sustento das famílias.
O segundo objetivo era, o excedente, começar a
comercializar. Por exemplo, se produzimos uma
quantidade x que era o necessário para a alimentação e
sobrou um pouco da produção, tratava então de vender pra
nós conseguir tirar uma renda a mais para as coisas mais
essenciais, que a gente não tem condições de produzir
(Diego – entrevista 1).
As vendas só eram realizadas depois de garantida a subsistência
para as famílias. Na mesma medida em que esse segundo objetivo do
grupo vai ganhando em importância, o próprio trabalho passa a interagir
progressiva e intensamente com o mercado, sendo, portanto, também
progressivamente determinado pela concorrência capitalista. Ou seja, o
trabalho continua sendo uma atividade cuja finalidade é a transformação
orgânica da natureza para a produção de meios de subsistência que
satisfaçam às necessidades do grupo, mas agora ele tem de ser realizado
de tal forma que possa fazer frente, ainda que minimamente, aos
concorrentes locais.
149
A divisão do trabalho estabelecia-se espontaneamente como
algo muito próximo à cooperação simples descrita no capítulo 4. A
divisão dos grupos era feita espontaneamente de acordo com a
necessidade da produção. Todos realizavam tarefas semelhantes e de
modo conjunto, divididos em equipes de trabalho. As ferramentas eram
simples e genéricas. Em situações específicas, os assentados alugavam
máquinas de grande porte com cujo custo de aquisição não podiam
arcar
105
. O dinheiro que financiava o aluguel das máquinas era
conseguido através da venda de mercadorias.
[O dinheiro vinha de] vendas anteriores, ou então dinheiro de que
o pessoal saía, trabalhava fora, retornava aqui e fazia isso. Ou
então, algumas vezes, se negociava pra safra né. Então, tipo, bom,
vamos contratar x horas/máquina pra nós fazer a produção de
milho e garante x por cento da produção pra isso né (Valdir
entrevista 3).
Aos poucos, à medida que os assentados aumentavam a
produtividade do trabalho, eram criadas as condições para tornar viável
economicamente a criação de setores de produção voltados
exclusivamente para a produção de mercadorias. Isso porque, na
produção de subsistência, o aumento da produtividade do trabalho
significava uma diminuição do tempo de trabalho necessário ao sustento
das famílias e maior tempo para a produção de excedentes. Em pouco
tempo, o movimento podia vislumbrar a possibilidade de destacar
pessoas cuja tarefa era produzir não mais meios de subsistência ao
assentamento, mas mercadorias que serviriam para a composição da
renda das famílias e re-investimento na cooperativa.
No início era pra subsistência e foi se ampliando, em
primeira mão, a produção pra subsistência. Garantir o sustento
das famílias. Esse era o primeiro passo, que era a produção da
alimentação. O segundo passo então era tu ter uma produção com
105 Tratava-se de uma organização de baixa composição orgânica de capital, mas que
ainda assim acumulava capital, por meio do entesouramento (que significava arroxo das
rendas) e de trabalhos “por fora” realizados pelos assentados. Cf. Quadro 1, no item 4.1. Sobre
os outros meios que permitiram o desenvolvimento dos instrumentos de trabalho no
assentamento, cf. item 7.4.
150
excedente pra tu comercializar. E aí no início entrou a questão do
fumo como alternativa. Então, por exemplo, foi financiado o
galpão e trabalhado com fumo, que pra nós deu prejuízo. O
primeiro e o segundo ano, que nós não tinha o galpão, que foi
utilizando as estruturas existentes, então até que deu uma renda
boa pras famílias, mas depois disso nós financiamos duzentos e
oitenta metros de galpão mas não deu certo. Então tivemos
prejuízo. Tanto é que as últimas prestações foi negociado nós
pagar com um outro tipo de dinheiro e não com a cultura. Então,
no início, foram esses dois passos: primeiro, pra subsistência;
depois, pra comercialização e o terceiro passo pra
industrialização. Esse eram os grandes três eixos que foram
definidos. (Valdir – entrevista 3)
A produção voltada para a subsistência e associada à venda do
excedente permanece até hoje, mas foi exclusiva até o ano de 1996, ano
em que teve início a produção de fumo. Alguns anos antes, contudo, os
assentados chegaram a experimentar a produção de jeans, empreitada
que não deu certo e foi rapidamente abandonada. A produção de fumo
foi, com efeito, a primeira voltada unicamente para o mercado. O
restante das mercadorias nada mais eram do que excedentes de produção
vendidos no mercado local. O empreendimento do fumo não obteve
sucesso e os assentados, com o apoio do MST, passaram a estudar o
contexto em que se encontravam, tanto as características da terra quanto
a aceitação dos possíveis produtos no mercado, para que pudessem
produzir mercadorias que permitissem um aumento expressivo das
rendas das famílias.
Diante das dificuldades na produção e comercialização do
fumo, o assentamento começou a organizar seminários para identificar
as melhores possibilidades de investimento na produção de organização
da vida do coletivo.
Em noventa e seis nós fizemos um grande seminário aonde se
discutia junto com pessoas estudadas quais seriam as estratégias
de produção dentro da nossa área, considerando a geografia, a
questão do clima, a questão da própria condição do solo que
existia dos potenciais que existiam. Então aí que nós definimos os
cinco setores estratégicos, que seria: a produção de aves de corte,
que então seria a produção e a industrialização; a questão do gado
151
leiteiro, pensando na produção a base de pasto; e aí a produção da
lavoura, que seria a de grãos né, cereais, mais especificamente pra
manter os setores internos, não tanto pra comercializar; no início
nós produzia feijão bastante pra comercialização, hoje não se
produz já nessa escala né, somente pra consumo; a erva-mate, que
então tinha bastante erva-mate nativa e depois a gente plantou
bastante erva-mate, então era um setor estratégico; e a questão da
piscicultura. Então esses foram os principais além da
subsistência, que a gente tinha como base (Valdir – entrevista 3).
É a definição dos cinco setores estratégicos que deu a base a
partir da qual se estruturou os processos de trabalho no assentamento até
os dias de hoje. De noventa e seis para cá, pouca coisa se alterou do
ponto de vista da divisão do trabalho. A produção de fumo, é verdade,
perdurou até o ano de 1999, quando finalmente conseguiram honrar
compromissos relacionados ao investimento inicial. Foi no ano de 1997,
precisamente oito anos após a fundação do assentamento, que a
produção de mercadorias se consolidou e o mercado passou a ter um
peso progressivamente decisivo nos debates do coletivo.
Desde então, a Cooperunião, como desdobramento de todo esse
processo, pode ser dividida categoricamente em dois tipos básicos de
produção: o de subsistência e o de produção para industrialização e
comercialização. Contudo, no organograma do assentamento
apresentado no documento “Estrutura Orgânica” (reproduzido no item
precedente, p. 138), são elencados setores sem uma separação rigorosa
entre esses dois tipos, uma vez que no seu processo real, parte de
atividades do Setor de Subsistência e Reflorestamento são destinadas à
comercialização, como também parte da produção dos outros setores é
destinada à subsistência.
Ao setor de Subsistência e Reflorestamento estão relacionadas
as Equipes de Trabalho de Alimentação, Suínos, Aves Postura, Horta,
Apicultura, Lenha, Reflorestamento, Erva-mate e Pomar. Dessas
atividades, são comercializados rotineiramente os excedentes da Erva-
mate, apenas. A erva-mate, inclusive, é considerada um setor
estratégico. Os demais setores relacionados à produção são os de Gado
de Leite, Aves de Corte, Grãos (todos setores considerados estratégicos)
e Administrativo e Social.
152
A Cooperunião organiza o trabalho por meio da divisão por
equipes. A despeito das diferentes tecnologias físicas empregadas em
cada setor algo necessário por serem parte da produção de valores de
uso diferentes entre si e, portanto, exigindo tecnologias também
diferentes entre si -, todos os setores valem-se da mesma tecnologia de
gestão. É nesta forma específica de (auto)gerir o trabalho na cooperativa
que reside a importância da forma de organização do ponto de vista
político.
Como instrumento do coletivo, o MST buscou permear os
processos de trabalho de seus assentamentos com relações efetivamente
democráticas, com ampla participação dos trabalhadores. Por essa razão,
a relação entre concepção e execução e os mecanismos de coordenação
não coincidem com os presentes nas empresas convencionais.
Por esse motivo, além de tentar responder a anseios populares
imediatos como a questão da terra, o MST experiencia também novas
formas organizacionais de produção que são em diversos aspectos e
dentro de suas limitações voltadas para seus trabalhadores.
A organização do coletivo, tanto pelo MST como pelas famílias
assentadas, tem elementos que estão na gênese de todo o
processo, isto é, na centralidade do trabalho político-organizativo
que se materializa através da prática dos princípios de uma
organicidade, dando direção política a todas as frentes do
Movimento: produção, educação, formação, saúde, tecnologia,
etc, enquanto mediação e produção da existência humana
(TURCATTO, 2007, p. 11).
Na Cooperunião, a produção é composta por setores, como
indicado acima, e estes, por sua vez, são compostos por equipes de
trabalho. A divisão do trabalho para a composição de cada equipe é
realizada trienalmente, não havendo distinção formal entre os
trabalhadores por conta do tipo de atividade que exercem. Dessa forma,
um indivíduo que trabalhe no setor de subsistência, na equipe de lenhas,
pode perfeitamente, no triênio seguinte, ser alocado na equipe de
trabalho “frigorífico”, que é responsável pela principal atividade vendida
ao mercado.
As decisões de processos interiores das equipes de trabalho são
tomadas em reunião realizada com todos os membros da equipe, por
153
consenso ou votação realizada após discussão, que precisa atingir
maioria simples. As equipes de trabalho, todas elas, reúnem-se
“mensalmente ou extraordinariamente quando houver necessidade
(Regimento Interno, 2006, p. 16). Existem algumas decisões que não
precisam de respaldo de outras instâncias, quando se trata de questões
exclusivamente internas, como as relacionadas ao processo de produção.
Outras, entretanto, como as que exigem investimento no setor, são
formalizadas como encaminhamento para a Direção Coletiva, para que
seja discutida em todo o assentamento, dependendo do caso
106
.
Todo setor, composto por equipes de trabalho, possui um
coordenador e uma coordenadora, eleitos trienalmente em assembléia
geral. Esses coordenadores compõem o Setor de Produção, que se reúne
mensalmente e conforme a necessidade para organizar a produção geral
do assentamento, principalmente no que se refere a distribuição da força
de trabalho. Embora exista uma divisão de trabalho regulamentada, os
trabalhadores da cooperativa não são presos a cargos, não possuem
competências exclusivas. Trabalham sempre conforme a necessidade, e
os imprevistos são em larga medida resolvidos pela redistribuição da
força de trabalho. Dessa forma, a reunião do setor de produção serve
tanto para organizar a produção em geral como também para que todos
os setores não fiquem isolados uns dos outros.
Duas pessoas da Direção Coletiva fazem parte aqui do Setor de
Produção, acompanham o Setor de Produção. O Setor de
Produção é a reunião dos coordenadores dos setores. Então todos
os setores, o frigorífico, aves, o suíno, o que for, tem dois
coordenadores que mensalmente se reúnem pra ta definindo as
atividades de cada mês. Planejando o mês. Então no gado de
leite precisa dessas atividades pra tal e tal dia, do dia tal ao dia
tal. Tantas pessoas, ou precisa o trator, precisa tal máquina...
vai reunir os coordenadores, anotando. As aves precisa limpar o
aviário, precisa tal de tal a tal dia. Tudo tem a programação, e
sim, precisamos juntar a mão-de-obra de todos os setores pra dois
dias nós limpar o aviário. Final do mês os coordenadores, no
início do vencimento de novo, avaliam o mês que passou, as
atividades que tinham sido programadas. Avaliam se foi feito,
porque que não foi feito, parcial, não conseguimos fazer isso,
106 “As deccisões de investimentos importantes [...] serão aprovados pelos sócios legais,
conforme estatuto (Regimento Interno, 2006, p. 16).
154
porque que não conseguimos e replaneja o próximo mês. Assim
que funciona, pra que todos os setores da cooperativa tenham o
conjunto do que tá acontecendo (Diego, entrevista 1).
A Direção Coletiva, como tratado anteriormente, também é
eleita trienalmente e constitui o órgão máximo da esfera de produção.
Além de administrar o cotidiano do assentamento, resolvendo as
questões de menor importância, a Direção Coletiva é também
responsável por planejar estrategicamente a cooperativa, apoiada pela
Direção Ampliada. Contudo, não tem poderes para deliberar
unilateralmente sobre os rumos da organização. Sua competência é a de
elaborar a proposta de planejamento da produção, que é discutida nos
Núcleos de Base e aprovada em Assembléia Geral. Por essa razão, a
Direção Coletiva é subordinada ao coletivo, que é composto pelos
mesmos indivíduos que são dirigidos.
Nesse sentido, quando observamos o desenvolvimento da
“tecnologia de gestão” da cooperativa, vemos que ela em nada se parece
com as tecnologias das burocracias empresariais, nem mesmo as
emergentes no contexto da acumulação flexível de capital. Ao contrário
das organizações toyotistas, volvistas etc., os trabalhadores da
Cooperunião não participam de um processo decisório, eles
efetivamente decidem. Mas é preciso enfatizar -, decidem imersos em
um complexo alienante que os obriga a tomar como expressão de sua
vontade a vontade da mercadoria. Dessa forma, mesmo desenvolvendo
uma tecnologia de gestão que propicia a ausência de relações de
dominação entre os indivíduos assentados, os critérios de decisão
impostos por este complexo alienante conduzem-nos à reprodução da
tecnologia física e da correspondente intensidade do trabalho.
A análise dos processos de trabalho do frigorífico do
assentamento, que em 2007 foi responsável por aproximadamente 75%
da receita da cooperativa, alcançando cifras de R$ 1.812.915,31 (um
milhão, oitocentos e doze mil, novecentos e quinze reais e trinta e um
centavos), é elucidativa a esse respeito.
A implantação do frigorífico se deu em 1997 e desde então
pouca coisa mudou no que tange os processos de trabalho em seu
155
interior. A base de sua tecnologia física é o taylorismo fordismo
107
, tal
qual descreverei posteriormente. A Cooperunião optou por implantar a
menor estrutura possível de uma unidade de abate de acordo com a
regulamentação sanitária dos órgãos competentes, dado que a produção
de aves de corte do assentamento não seria capaz de abastecer um
frigorífico de maiores dimensões.
Essa indústria aqui [o frigorífico] - na verdade hoje ela não
permite mais né, mas na época permitia – ela é a menor indústria
do Sistema de Inspeção Federal, o SIF né. Esse era o menor
abatedouro que o SIF permitia... Como nós não queria segurar
o nosso produto aqui, nós tinha um pensamento de expandir a
marca, e temos, porque vai a Coritiba, vai a Blumenau, vai... esse
era a menor estrutura que podia construir. Hoje nem pode, hoje
nem aceitam mais. Mas como foi construído antes da legalização,
ela é permitida (Diego - entrevista 1).
Hoje, a produção dos aviários do próprio assentamento é capaz
de alimentar apenas 23% da capacidade do abatedouro. Por isso, é
também correto dizer que a Cooperunião elevou expressivamente seu
capital constante, que agora precisa ser diluído na composição do valor
em um grande número de mercadorias, para que o investimento valha a
pena. Isso eleva a importância dos custos fixos dessa unidade produtiva,
tendo um peso relativamente maior em cada mercadoria produzida à
medida que diminui a utilização da capacidade total de produção.
A razão para que a Cooperunião decidisse pela implantação do
frigorífico, mesmo não tendo capacidade para alimentar plenamente uma
unidade de pequeno porte foi, segundo Diego, de natureza legal,
relacionado a questões sanitárias. A produção artesanal mostrava que o
frango era uma mercadoria viável para a Cooperativa com ampla
aceitação pelo mercado. Mas para a expansão da produção para além do
mercado local, seria necessário legalizar o que até então ocorria a revelia
de qualquer fiscalização por parte do Estado.
107
Como explicado no capítulo 4, o taylorismo pressupõe a separação e a oposição entre
concepção e execução. Contudo, ao utilizar o termo “tecnologia física”, refiro-me aqui a
sua dimensão exclusivamente operacional.
156
Na verdade, o início foi tudo frio. Abatia ali, puxava um biscoito,
tirava a pena com a mão e... Abatia num lugar... tinha uma
estrutura bem menor, uma coisa de madeira... E conforme foi
tendo mercado a gente foi ampliando. que ilegalmente,
entende? No início, não tinha, por exemplo, fiscalização, que tem
que ter, né... E quando a gente realmente focou e disse: “o
setor que nós vamo investir é o frango, leite tal... [...] sim, pra
nós investir nisso aqui, vai ter que ser dessa forma, se não nós
não podemos mais comercializar que se não nós corremo risco,
riscos grandes. Então que foi na verdade feito o projeto desse
frigorífico (Diego, entrevista 1).
Tal decisão tomada pelo coletivo conduziu a cooperativa a um
impasse econômico. A capacidade de industrialização do frigorífico é
muito superior à capacidade de produção dos aviários. Dito de outra
forma, não há frangos suficientes para que o frigorífico funcione a pleno
vapor e, desse modo, propicie um maior retorno financeiro aos
assentados. Ao contrário, é um elevado custo fixo para o abate de
frango, em comparação com o custo fixo da antiga produção artesanal.
Uma possível solução para este problema seria a expansão da
produção nos aviários, pressupondo inalterada a tecnologia física
empregada no setor (composição técnica). Para isso, seria necessário um
novo investimento, um novo aumento do capital constante para
aumentar a quantidade de galpões e instrumentos de trabalho que esta
atividade demanda, bem como um aumento da força de trabalho
disponível para esta produção, isto é, um proporcional aumento do
capital variável.
Ocorre que nenhuma das duas alternativas parecem estar ao
alcance da cooperativa. Se é verdade que hoje a Cooperunião possui
estrutura suficiente para financiar junto aos bancos seus investimentos
na produção, também é que o setor de aves não tem dado retorno
suficiente para que este investimento valha a pena, segundo os
assentados. Além disso, a expansão do capital variável não é uma
questão simples na Conquista... como o é nas empresas convencionais.
O aumento da quantidade de força de trabalho disponível é análogo a
um processo de recrutamento, em que são considerados aspectos
político-ideológicos, entre outros fatores, para a introdução de uma nova
família no convívio entre os assentados. Atualmente, é permitido o
157
ingresso de famílias do MST que tenham passado, pelo menos, por dois
anos de acampamento na luta pela terra. Essa medida pretende tornar
mais fácil o processo de adaptação ao modo peculiar de relacionamento
entre as famílias e reforçar o aspecto político, e não exclusivamente
econômico, do assentamento. Segundo Diego (entrevista 4), é provável
que ocorram mudanças sobre essa questão na próxima revisão do
Regimento (que acontece trienalmente e que ocorrerá em 2010) no
sentido de tornar mais fácil a integração de novos assentados, dado que a
Conquista... tem entre quarenta e cinquenta famílias assentadas, das
sessenta vagas que o assentamento comporta. Além disso, o critério
político de tomar como pré-requisito a vivência por pelo menos dois
anos em acampamentos tem se mostrado insuficiente para assimilar o
complexo subjetivo que envolve o compromisso necessário para a vida
organizada em coletivo. Ademais, hoje, de acordo com o Regimento
Interno (2006), é preciso que um novo associado trabalhe 510
(quinhentas e dez) horas, se homem, e 255 (duzentas e cinquenta e
cinco), se mulher, somado a um valor de salário mínimo, até que então
passe a perceber renda que é distribuída. Durante este período, o
associado recebe apenas a subsistência. O art. do Regimento Interno
(2006) prevê a possibilidade de contratação assalariada, mas essa
medida tem sido preterida por conta de uma decisão política do
movimento
108
. Vê-se, portanto, que o incremento da força de trabalho é
muito mais complexo, no caso da Cooperunião, do que costuma ser nas
empresas convencionais, para quem se trata de apenas mais uma compra
de mercadorias.
A outra alternativa para a expansão da produção nos aviários
seria a mudança na tecnologia física empregada, que alteraria, inclusive,
a composição técnica do setor. Isso tornaria possível que, com a mesma
estrutura e com a mesma quantidade de força de trabalho disponível,
pudesse ser aumentado o número de frangos encaminhados ao
abatedouro. Mas essa mudança na tecnologia implicaria a diminuição no
tempo de abate dos frangos, que hoje é possível por meio do emprego de
uma maior quantidade de hormônios e injeção de água na carne.
108 Nos assentamentos coletivos do MST, existem alguns casos em que ocorre contratação de
força de trabalho por meio do assalariamento. Contudo, como afirma Stédile (1999, p.
110), “Isso não é uma norma nem uma prática geral. Existem porque se trata de produções
mais técnicas em que ainda não entre os assentados ou filhos destes alguém com essa
especialidade. Não é, portanto, uma relação social predominante”.
158
A questão da quantidade de dias de abate também, que a empresa
[multinacional] abate, acho que com vinte e oito dias, a gente
abate com quarenta e cinco, no mínimo, né. E injetam dezesseis
por cento de água, nós não temos injeção de água, nós não temos.
Então o nosso produto ele é um produto mais consistente, mais
saudável, mas que na hora do preço, bate de frente com eles.
Então, você me vende água e eu to te vendendo carne pelo
mesmo preço. Então, mas não tem como hoje, nós não
conseguimos ainda, conseguir diferenciar esse produto ainda.
Fazer com que o consumidor... o consumidor sabe! Mas só que tu
não consegue modificar o preço desse produto ai. tu bate de
frente com as grandes empresas multinacionais. E é essa a
dificuldade que nós temos né, da concorrência ser igualitária.
Eles batem com um produto bem inferior, mas que com o mesmo
valor (Diego – entrevista 1).
Sobre essa questão, ainda não resolvida na cooperativa,
encontrei dois pontos de vista contraditórios. Para Diego, o não emprego
dessas técnicas tem razões essencialmente ideológicas. A Cooperunião
não reduziria o tempo de abate porque considera que é seu dever
produzir uma carne saudável para quem consome, além de aspectos
relacionados ao sofrimento do animal. Nesse sentido, argumenta Diego:
No máximo [sic] de 43 (quarenta e três) a 45 (quarenta e cinco)
que é o limite que a gente tem por uma questão ideológica até do
consumidor e tudo. Claro que você pode bombar, jogar uma
nutrição bem avançada e ele vai responder como é, o frango é
uma máquina de carne. Mas pela questão ideológica e pelo o que
a gente construiu esses anos, de mercado, de qualidade, de não
diferenciar. (Diego – entrevista 4).
Outra saída para esta questão é completar a produção com
frangos produzidos fora do assentamento. Essa posição é defendida por
Sillvino, que entende que o principal objetivo da cooperativa é melhorar
continuadamente a renda dos trabalhadores e preservar o nome da
cooperativa por questões políticas, razão pela qual afirma que não
haveria nenhum problema em não produzir mais aves de corte e prestar
159
serviços para grandes empresas. Defende, portanto, que se desconsidere
essas dimensões políticas da produção na resolução desse problema.
É uma discussão que ainda não veio, mas que a gente vai ter que
discutir uma saída, porque a produção, se tu analisar bem uma
empresa tipo Sadia, ela leva o pintainho pra reproduzir e a
ração, mas tu põe a mão de obra, põe o equipamento, o aviário e
tudo, pra produzir. Tá, digamos que ela leva dez dias o pintainho
lá. Ela não interessa se vai vir dez mil ou menos. Ela interessa
que venha frango. Se ela levou dez e veio nove, tu tens que dar
conta dos outros mil que tu perdeu. Você que assume. E nós aqui
não, nós pegamo o pintainho, nós põe a mão de obra e tudo e se
morrer mil, nós vamos ficar com nove. Esses mil que morreu nós
vamos ter que pagar mesma coisa. Então isso é um prejuízo que a
outra não teria, ela ganharia com isso. E mesmo hoje a gente vê,
faz varias contas porque queira ou não queria, num lote morre
trezentos, a média de dois quilos, são seiscentos, a dois reais o
quilo são mil e duzentos. Isso é prejuízo. Isso não volta nunca
mais. Então, se tiver dez lotes num mês, então doze mil reais tu
perde. Então é um prejuízo. Então pra tu manter isso, é só por um
capricho. Não deveria manter (Silvino – entrevista 2).
A despeito desses pontos de vista contraditórios, fato é que o
problema será resolvido por meio da decisão no coletivo. Qualquer que
seja a decisão adotada para a cooperativa, apenas a tecnologia física
deverá sofrer significativas alterações (pelo menos em princípio). Mais
tarde, essas escolhas poderão até refletir na tecnologia de gestão
desenvolvida pelo assentamento, mas esse reflexo não está diretamente
associado, nem é mecanicamente determinado pela tecnologia física
empregada.
Até agora, para resolver o problema do frigorífico, a
Cooperunião tem optado pela prestação de serviços a outra empresa, a
Carminati. Com essa medida, podem manter o frigorífico em
funcionamento por mais tempo, diminuindo o peso de seu investimento
sobre as mercadorias produzidas.
A Carminati é a mesma empresa que fornece os “pintainhos”
para os aviários da Cooperunião. Por isso, as aves da Carminati que vão
para o abatedouro do assentamento não são aves produzidas para este
160
fim, mas aves de postura para a produção de “pintaínhos” que, atingida
certa idade, são abatidas para a comercialização pela empresa. O
problema do tempo do abate e da tecnologia empregada na produção das
aves, portanto, não é um empecilho ideológico para os assentados, pois
não se trata de “aves de corte”.
Por outro lado, a prestação de serviços a esta empresa tem se
mostrado mais rentável do que o abate das próprias aves da
Cooperunião. Hoje, pessoas que defendem a ampliação da prestação
de serviços para grandes empresas, indiscriminadamente (como Silvino),
e outras que defendem a permanência e fortalecimento da produção nos
aviários (como Diego). Vê-se claramente que se trata de escolhas que o
coletivo tem de fazer diante da dinâmica do capital, que não se restringe
ao processo singular de acumulação da cooperativa. A ampliação da
prestação de serviços pode reduzir o assentamento a uma empresa
terceirizada, a uma facção (ver item 5.1), ou mesmo ampliar
significativamente a renda dos trabalhadores ou o nível de acumulação
da cooperativa. A insistência em uma produção de mercadorias mais
saudáveis pode, por outro lado, ser mais importante do ponto de vista
político, seja para o MST, seja para os próprios assentados; mas pode
também tornar inviável economicamente o setor que é hoje responsável
pela maior parte da renda das famílias.
As escolhas das medidas que serão tomadas dentro desse
contexto serão realizadas pelo coletivo dentro das relações de poder
descritas no item anterior. Mas o sucesso ou insucessos de tais medidas
são determinados pela dinâmica da produção social, portanto, do capital.
Assim, as escolhas do coletivo podem alterar a qualidade das mediações
que a cooperativa estabelece com a totalidade social, podendo inclusive
transformar a própria natureza da organização, ou mesmo eliminá-la.
Essas medidas, por sua vez, criarão, novas necessidades e novas
possibilidades.
Hoje, a tenologia física empregada no frigorífico pode ser
caracterizada como taylorista/fordista. O ritmo de trabalho é
determinado por uma espécie de esteira de produção, em que são
pendurados os frangos do início ao fim do processo. duas “esteiras”,
programadas em velocidades diferentes, de acordo com a natureza da
tarefa empregada em cada etapa.
Na primeira “esteira”, o frango é pendurado vivo e conduzido
por um caminho em que será transformado por uma sequencia de tarefas
161
parciais, executadas por trabalhadores também parciais. Em alguns
casos, os trabalhadores agem diretamente sobre o frango; noutros, são
apenas responsáveis por manter as máquinas em perfeito funcionamento.
Todos os trabalhadores executam tarefas extremamente simples. No
processo de embalagem, por exemplo, executado todo por mulheres
(muitas adolescentes), a responsável por retirar o frango da esteira e
colocá-lo no balcão; a responsável por colocar o coração e a moela (em
pacotes) dentro do frango; a responsável por colocar o frango na
embalagem; a responsável por ajeitar o frango na embalagem; a
responsável por grampear a embalagem; a responsável por ajeitar as
embalagens em grupos de oito por caixa. Cada atividade não dura mais
que três segundos, e os abates costumam durar quatro horas, em média,
para uma quantidade de três mil e quinhentos frangos.
Figura 1 – Linha de produção: abate
Fonte: Dados Primários (2009)
162
Figura 2 - Processo de Embalagem no Frigorífico
Fonte: dados primários (2009).
As diferentes atividades não são todas de mesma intensidade.
Umas exigem mais delicadeza, outras mais força, outras mais atenção
etc. Com efeito, o frigorífico emprega uma tecnologia que os transforma
em trabalhadores parciais subsumidos ao ritmo intenso da maquinaria.
Para amenizar os efeitos dessa parcialização – e porque as atividades são
extremamente simples alguns trabalhadores revezam-se em algumas
funções. Mas isso torna apenas em parte as atividades menos maçantes.
Não há, quanto à tecnologia física empregada, nenhuma
diferenciação significativa entre a atividade produtiva do assentamento
em relação às indústrias convencionais. Existem, inclusive, cargos que
se ocupam de supervisão, coordenação e controle da produção,
detectando problemas e resolvendo-os, gozando de posição hierárquica
superior. Por isso, Ivone, coordenadora do Frigorífico, afirma:
...eu como a coordenadora tenho a responsabilidade de que se
tem alguem fazendo errado, eu vou lá e chamo a atenção, né? Ele
goste ou não, eu tenho que ir pelo certo. Então a gente procura
fazer com que ele faça certo. Claro, eles dão a opinião deles. Se é
boa, a gente acata. E a maioria das vezes a gente tem que às
vezes impor alguns limites porque nem sempre todos pensam
igual (Ivone – entrevista 5)
109
.
109
Ivone afirma ainda que é difícil encontrar alguém que aceite ocupar a posição de
coordenador. Segundo a entrevistada: “Pelo contrário. Porque é complicado né? Ninguém
163
A diferença reside no fato de que o frigorífico é um instrumento
do coletivo. Se nas atividades de supervisão ocorrer um conflito de
maior relevância, ele será tratado pelo coletivo e, no limite, votado em
assembléia. Além disso, os coordenadores das equipes de trabalho são
eleitos por votação secreta e percebem exatamente a mesma
remuneração que os supervisionados.
Dessa forma, é correto afirmar que, no que se refere a divisão
do trabalho, as cooperativas do MST apropriam-se de tecnologias físicas
capitalistas, mas que são controladas pelo coletivo. Nesse sentido,
afirma Stédile (1999, p. 108) que:
A divisão do trabalho é uma questão objetiva, não é resultante de
uma discussão nem depende da boa ou vontade das pessoas.
O trabalho, para o seu êxito, exige a especialização das pessoas.
Para que isso ocorra cada vez melhor e com rapidez cada vez
maior, é preciso dividir tarefas. É claro que uma variação do
grau de complexidade dessa divisão do trabalho. Isso depende do
estágio em que se encontra essa divisão do trabalho.
A chave, na divisão do trabalho, é que o resultado desse esforço
comum também é dividido. Aquele valor a mais que o laticínio
agrega para o assentamento não fica para os caras que
trabalham lá na usina de leite. É dividido com todo mundo. É por
isso que a agroindústria ajuda.
Para o líder do MST, a grande diferença das cooperativas do
movimento está no fato de o produto da divisão do trabalho ser do
coletivo, organizando a distribuição de modo autogerido pelo coletivo.
“O que assimilamos do capitalismo é a divisão do trabalho, não com
objetivos capitalistas. O capitalismo se utiliza da divisão do trabalho
para explorar as pessoas. A divisão do trabalho foi nascendo com o
quer ficar né. Sei lá, eu nunca gostei de mandar em ninguém. Então às vezes a gente se
obrigada mesmo a chamar a atenção dos outros, mas a gente é obrigada a fazer isso. Então
tem muita gente que às vezes não quer ou... né. Então a gente tem que ir. Alguém tem que
assumir” (Ivone entrevista 5). Lembre-se de que não compensação financeira pela
função de coordenação, e de que tal função não implica menos intensidade de trabalho
nem qualquer tipo de regalias.
164
próprio processo de desenvolvimento das forças produtivas” (idem, p.
109-110).
No próximo item, veremos em que medida os objetivos do
assentamento deixam de ser capitalistas. Agora, cumpre ressaltar que a
parte do lucro (ou “sobras”) que é destinada a composição da renda das
famílias assentadas obedece a critérios igualitários, independentemente
da função exercida pelo trabalhador.
A parte das sobras que é destinada à composição de renda é
igualmente dividida, de acordo com a quantidade de horas trabalhadas.
Tal divisão ocorre mensalmente. Além disso, a cada semestre, uma
quantidade maior é dividida, que corresponde ao lucro acumulado no
perído que não será investido. Em conversas informais, foi-me revelado
que cada trabalhador (dos adultos que trabalham oito horas por dia)
recebem, em média, duzentos reais em dinheiro, mais uma quantia
semestral de aproximadamente seiscentos reais. A essa quantia, acresce-
se parte da produção de subsistência. O controle sobre a divisão entre o
que é recebido em dinheiro e o que é recebido em produtos para
subsistência é explicado por Valdir (entrevista 3):
Então a distribuição de renda a gente faz em torno de R$50.000 a
R$60.000 a cada seis meses. Então digamos que a distribuição
vai ser de R$60.000. Então nós pegamos o que a gente consumiu
nesses seis meses de alimentação, se coloca o custo que a gente
teve pra produzir isso ai. Somente o custo. Então digamos que o
custo pra gente produzir a carne, o ovo, a banha, a batata,
feijão, o arroz e assim por diante foi um custo de R$20.000.
Então esses vinte mil reais, claro que vai ter o custo individual de
cada produto. Então tu vais saber qual é o custo de cada produto,
relacionado à quantidade que tu pegou e então tu vais saber
quanto de alimentação teve de custo pra você. Então digamos
que o total de alimentação em seis meses, o total de todas as
famílias foi de vinte mil reais, então a gente acrescenta no acerto.
Então era sessenta em dinheiro, mais vinte mil que teoricamente
seria da alimentação. Então nós anotamos R$80.000 e dividimos
R$80.000 e nós descontamos a subsistência que cada um
pegou na alimentação. Então digamos, é como se tu tivesse
pagando a tua alimentação. Então se tu consumiu menos de
alimentação, vai te sobrar mais dinheiro, entende, é essa relação.
Não é que tu paga a alimentação. Nós jogamos isso além, pra nós
165
fazer um equilíbrio. Então quem pegou menos alimentação vai
pegar um pouco mais de dinheiro.
Desse modo, a distribuição dos resultados do trabalho, seja ele
voltado para a subsistência ou para o mercado, permite que os
assentados percebam remuneração proporcionalmente igual. A hora
trabalhada tem o mesmo valor entre os cooperados para qualquer que
seja a atividade exercida
110
.
Há, contudo, uma forte limitação quanto às relações de gênero
que precisa ser ressaltada. O coletivo, para que as mulheres possam se
ocupar do trabalho doméstico, de acordo com o Regimento Interno
(2006), dispensa-as de meio expediente da jornadas de trabalho, se
assim desejarem. Assim, enquanto a jornada de trabalho masculina é de
no mínimo quarenta horas semanais, às mulhres cabem vinte horas.
Contudo, as vinte horas dispensadas são dedicadas a afazeres
domésticos para toda a família. Dessa forma, na grande maioria das
famílias, quando se considera o tempo de trabalho doméstico como parte
da jornada de trabalho das mulheres, percebe-se que elas acabam por
trabalhar mais do que os homens (uma vez que o trabalho doméstico não
tem hora para cessar), embora recebam apenas o correspondente ao
trabalho junto à cooperativa
111
.
Dessa forma, apesar de, no que diz respeito à tecnologia física
empregada no assentamento, a cooperativa em nada se diferenciar de
uma empresa convencional, no que tange a tecnologia de gestão e a
divisão dos resultados do trabalho encontramos um modo
qualitativamente diferente de organizar o trabalho. É por isso que Stédile
(1999, p. 110) considera essa “...proposta de divisão do trabalho superior
porque, do ponto de vista econômico, a renda da produção é dividida
entre todos. está a garantia de que todos vão se beneficiar com o
avanço técnico que houver naquela unidade produtiva”.
110 A exceção são os jovens, que recebem apenas um percentual da renda de um trabalhador
adulto, que aumenta progressivamente até que se atinja a idade adulta. Como atesta o Art. 14
do Regimento Interno (2006, p. 12):”...12 (doze) anos, 50% (cinquenta por cento); 13 (treze) e
14 (catorze) anos, 60% (sessenta por cento); 15 (quinze) e 16 (dezesseis) anos 80% (oitenta por
cento) a partir de 17 (dezessete) anos 100% (cem por cento)”.
111
Essa questão pode variar de família para família, mas tanto na divisão dos resultados do
trabalho quanto nas relações de poder dentro das famílias predomina o patriarcado. Tais
relações, por sua complexidade e mudanças históricas, contudo, mereceriam um estudo
específico que foge ao escopo dessa pesquisa.
166
Combinando a tecnologia física desenvolvida sob a economia
capitalista com a tecnologia de gestão desenvolvida pelo MST (e pela
tradição dos movimento cooperativistas), o assentamento propicia
condições de vida superiores à média dos trabalhadores rurais da região.
Ao longo desses vinte e um anos, as famílias conquistaram suas
moradias, sua escola primária própria, uma creche, além da estruturação
de uma agrovila que garante espaços de lazer e confraternização. Se
terra e força de trabalho eram o que dispunham os assentados quando
conquistada sua propriedade, em 2007 a Cooperunião registrava um
ativo em seu balanço que atingia a cifra de aproximadamente 3 (três)
milhões de reais. Como se deu este processo de enriquecimento que
permite tais condições a estas famílias? Qual a natureza do movimento o
qual impulsionou esta organização? Como os assentados organizaram-se
e como se articularam para que pudessem atingir tal expressividade
econômica?
7.4 As Mediações
Analisei até aqui as relações organizacionais e dos processos de
trabalho quase que exclusivamente entre os indivíduos do assentamento.
Pode-se dizer que foram apresentadas as mediações, mas apenas
aquelas que correspondem às relações entre indivíduos do coletivo. São
essas mediações entre os indivíduos que dão forma a uma totalidade
objetiva que é a organização. Os elementos externos à organização, por
sua vez, apareceram apenas superficialmente. Neste item, portanto, o
foco será as mediações que a organização estabelece com a totalidade
social, de modo que se torne possível compreender como as
cooperativas do MST se inserem como uma particularidade na sociedade
capitalista, e como são, dessa forma, determinadas também
historicamente pelo capital. Para isso, três elementos serão essenciais
para a análise, a saber: o mercado, o Estado e o MST. Como nos tópicos
precedentes, a exposição buscará acompanhar o movimento histórico do
assentamento.
A própria formação do assentamento já é mediada por esses três
elementos. Primeiro, o movimento surge como uma resposta dos
trabalhadores do campo à sua expulsão das terras por conta da
concorrência intercapitalista no mercado; passa, então, a reivindicar a
167
reforma agrária junto ao Estado. Essas relações já foram suficientemente
abordadas no capítulo 6. Concentrar-me-ei, portanto, na análise dessas
mediações após a efetivação do assentamento.
Como já ressaltei, a vida no início do assentamento foi de
extrema dificuldade. Para que fossem dados os primeiros passos no
processo de acumulação, foi preciso que os trabalhadores convivessem
com um longo período de intenso trabalho e muita privação das
necessidades mais elementares.
Privando-se da satisfação de necessidades, pelo não consumo de
mercadorias que compunham o valor da força de trabalho nesse contexto
histórico específico, os assentados puderam permanecer na terra.
Tratava-se, efetivamente, de uma luta pela continuidade na propriedade
conquistada. Educaram-se, assim, para viver com muito pouco e
solidariamente, para que pudessem investir nos meios de trabalho
necessários para a venda de mercadorias. Esses anos difíceis da vida no
coletivo serviram-lhes para fortalecer os laços de solidariedade e
contribuíram, depois de sofisticada a produção, para que a renda
adquirida fosse destinada à capitalização.
A intensidade do trabalho compensava de alguma forma o
atraso tecnológico, o baixo nível das forças produtivas empregadas na
Conquista.... Além disso, muitos trabalhadores continuaram vivendo
como meeiros, vendendo sua força de trabalho para trazer renda ao
assentamento, que era utilizada na compra de meios de produção e de
meios de subsistência necessários. Os instrumentos de trabalho mais
sofisticados, como tratores e máquinas, eram alugados.
O pessoal trabalhava fora pra poder comprar comida pra se
manter. Então até que começamos a contratar horas-máquinas e
os tratores, para conseguir, então, mexer, começar a fazer as
lavouras. E o inicio do assentamento, a produção de subsistência,
começou na área dobrada, onde se roçava, se fazia o processo de
queimada na época né, queimava e aí depois fazia a plantação, de
milho, feijão e assim por diante, pra conseguir as primeiras
safras. Até conseguir então fazer uma roça e começar a
atividade econômica, a parte do leite, a parte da própria
agricultura. Então no inicio foi muito precário essa questão e
não tinha acesso a crédito, no comércio havia um preconceito
muito grande, tu não podia comprar cinqüenta reais a crédito, não
tinha acesso a nada no comércio local. Hoje devemos duzentos,
168
trezentos mil e a gente vai negociando. Então isso mudou
totalmente né (Valdir – entrevista 3).
Como atesta a fala de Valdir, tratava-se de uma organização
capitalista de baixa composição orgânica de capital, que se reproduzia
ampliadamente associando baixa renda para os cooperados e uma
apropriação de técnicas de produção de baixo valor (cf. Quadro 1,
apresentado no item 5.1). A produção para a subsistência garantia
condições mínimas de vida às famílias enquanto o excedente,
especialmente do milho e do feijão, traziam dinheiro para que fossem
incrementadas as ferramentas de trabalho.
Mas essa dinâmica, por si só, não seria suficiente para que o
coletivo conseguisse construir uma cooperativa do porte da Cooperunião
dos dias de hoje. Era necessário, também o uso de crédito para
financiamento de investimentos, que foi possível mais tarde. Desse
modo, o início do processo de acumulação, a “acumulação primitiva” da
cooperativa, se deu também por créditos conquistados pelo MST junto
ao Estado. O Programa de Crédito Especial para a Reforma Agrária
(PROCERA), criado pelo Conselho Monetário Nacional em 1985
(REZENDE, 1999), foi a principal linha de crédito para os primeiros
investimentos. Esse programa permitiu que as famílias
“descapitalizadas” pudessem investir na aquisição dos meios de
produção necessários à produção de mercadorias. O fornecimento de
crédito financeiro por parte do Estado constitui, por isso, uma bandeira
do MST. Como afirma Stédile (1999, p. 97):
... a primeira luta do MST ligada à produção nasceu em 1986 [...]
por uma linha de crédito subsidiado. Em outras palavras, um
crédito especial para a reforma agrária. Nessa luta toda, o
movimento foi amadurecendo. De 1986 até 1990, as articulações
e os debates eram em torno do Programa de Crédito Especial da
Reforma Agrária (Procera), tanto por parte da gente quanto por
parte do próprio pessoal do Procera e do BNDES.
A luta do MST ante o Estado, pautado pelas necessidades dos
Sem Terra, não depende especificamente de nenhuma de suas
cooperativas ou assentamentos. Contudo, seu sucesso ou insucesso em
169
tal empreitada incide diretamente em seus rumos. Assim, uma vez que o
“Estado Moderno” tende a defender prioritariamente os interesses da
classe dominante, que no âmbito rural se expressa pelos latifundiários e
pela famigerada UDR (União Democrática Ruralista), é também ele um
limitador da emancipação dos trabalhadores. Ao mesmo tempo em que
faz concessões, como o PROCERA, repreende as manifestações em prol
da reforma agrária. Tanto que, mesmo nos tempos de ditadura no Brasil,
esta política foi utilizada: como afirma Stédile (1999, p. 97) “o crédito
subsidiário foi a base de sustentação da ditadura militar na pequena
agricultura”. E nem mesmo com a chegada do Partido dos
Trabalhadores, com cuja bandeira o MST se identifica fortemente, ao
poder do Executivo, esse quadro mudou. Ao contrário, o número de
assentamentos diminuiu em relação ao governo anterior e a repressão às
reivindicações aumentou significativamente (REVISTA SEM TERRA,
2009).
São os programas especiais de crédito, portanto, que puseram os
assentados em relativa vantagem, quanto ao financiamento, quando
comparados às outras empresas no processo de acumulação. O
PROCERA tinha o objetivo de “... aumentar a produção e a
produtividade agrícolas dos assentados da reforma agrária, com sua
plena inserção no mercado, e, assim, permitir a sua 'emancipação', ou
seja, independência da tutela do governo, com titulação definitiva”
(REZENDE, 1999, p. 1)
112
. Esse programa era uma reivindicação do
MST, que passou a exigir do governo Sarney financiamento com
condições diferenciadas dos demais agricultores. Foi organizado em
1986 (STÉDILE, 1999). Trata-se de uma linha que liberava recursos às
famílias (não à cooperativa) assentadas pela reforma agrária a juros
muito aquém do prevalecente no mercado, com dois anos de carência.
Além disso, o programa ainda propiciava um sistema de subsídio:
cobrava-se apenas 50% da correção monetária; ou seja, quanto maior a
inflação, menor a quantia a ser paga pelos tomadores de empréstimos
113
.
112 Note-se que a emancipação pretendida pelo Estado não tem nada que ver com a
conceituada neste trabalho a partir da base teórica e projeto político marxianos. Trata-se,
restritamente, de fazer com que as famílias não dependam mais de intervenções diretas do
Estado para produzirem suas vidas.
113 “No quadro de alta inflação antes do Plano Real, a cobrança de apenas 50% da
correção monetária, em empréstimos de prazo de sete anos e dois de carência, como era regra
no PROCERA, fazia com o que o valor efetivamente pago, no final do empréstimo, fosse muito
170
Dessa forma, até a implantação do Plano Real, as famílias assentadas
pela Reforma Agrária tomavam empréstimos que eram pagos com muito
pouco esforço. “Antes, a inflação sozinha derrubava a dívida, bastando
que o agricultor esperasse o tempo passar” (REZENDE, 1999, p. 6).
Depois da implantação do Plano Real, as dívidas dos assentados
começaram a acumular (REZENDE, 1999). Como medida
compensatória, visando à manutenção do subsídio, o governo da época
passou então a conceder um “rebate” de 50% sobre as amortizações da
dívida principal e do juros, mas apropriado pelo agricultor contra a
liquidação de parcelas. Dessa forma, enquanto o PROCERA existiu,
mesmo depois do Plano Real, foi possível que os assentados
incrementassem a produção rural sem ter de pagar todo o investimento,
tendo ainda longos prazos para a negociação das dívidas. Das facilidades
proporcionadas pelo Programa surgiu a expressão corrente no meio rural
de que “o PROCERA se pagava com a venda de uma galinha” (idem).
O que a gente tinha na época era o PROCERA, que era um mini-
crédito especial para a reforma agrária do Governo Federal.
Então nós acessamos esse recurso né, pra investimento nos
setores. Então isso foi, por alguns anos, uma grande ajuda. A
partir de 1997, deixou de existir esse crédito, e nós passamos a ir
pelas vias normais do PRONAF, então nós se agarramos pra
fazer tanto custeio de lavoura quanto pra investimentos
(Valdir – entrevista 3).
Dessa forma, algumas famílias que possuíam tal benefício
puderam contribuir para o processo de acumulação da cooperativa. A
partir de 1997, com a impossibilidade da utilização do PROCERA, a
Cooperunião passa a financiar seus projetos via PRONAF, o qual é
destinado não apenas às pequenas propriedades que resultam da
Reforma Agrária, mas a qualquer pequena propriedade. Passados alguns
anos, o MST conseguiu desenvolver também suas próprias fontes de
crédito, na forma de cooperativa. Tais cooperativas atenuam o impacto
da impossibilidade de uso do PROCERA.
pequeno” (REZENDE, 1999, p. 6). Para uma abordagem detalhada do PROCERA, cf. Rezende
(1999).
171
Existem ainda, mas em escala muito menor, projetos do
assentamento que foram financiados pelo Estado com o chamado “fundo
perdido”. O dinheiro que advém de tal fundo não precisa ser pago ao
Estado e visa apenas à melhoria da vida das famílias assentadas. Embora
não seja este o principal meio de financiamento das atividades do
assentamento, é, no entanto, uma alternativa representativa, pois revela o
quão importante tem sido a articulação política do MST em âmbito
nacional.
Mas apenas o crédito não seria suficiente para aprimorar
tecnicamente a produção. O MST foi também fundamental para a
transformação da tecnologia de processo empregada tradicionalmente
pelas famílias, agora assentadas. Stédile (1999, p. 95) conta que entre os
anos de 1979 e 1985 predominava um certo romantismo entre os
militantes do MST. “Isso porque a memória histórica dos camponeses
que conquistavam a terra estava ainda na etapa anterior à modernização
da agricultura. A família foi expulsa pela máquina, mas o seu memorial
técnico era do boi e da enxada”. Aos camponeses, parecia que a mera
reconquista da propriedade da terra seria-lhes suficientes para garantir o
sustento das famílias, como fizera a geração anterior. Dessa forma,
faltavam muitos elementos necessários à transformação da tenologia
empregada na produção.
A articulação do MST em âmbito nacional com órgãos do
Estado e com a base do movimento também foi imprescindível para
dotar as cooperativas de uma produtividade indispensável para a
manutenção dos trabalhadores nos assentamentos, de modo que eles não
fossem expulsos novamente de suas terras pela máquina.
Começamos a ter técnicos vinculados à nossa ideologia, como é o
caso de Lino de David [...] que mais tarde organizou o Centro de
Técnicas Agropecoárias Alternativas. [...] Esses técnicos, com
nossa ideologia, começaram a assessorar o movimento e
iniciaram um debate mais sistematizado sobre a necessidade de
cooperação agrícola (STÉDILE, 1999, p. 97).
Foi com os técnicos articulados com o MST que os assentados
da Conquista... passaram a discutir os setores estratégicos descritos
anteriormente e a forma que organizariam sua produção. Com a ajuda de
tais técnicos, aliado aos investimentos possíveis por meio da
172
acumulação da cooperativa e dos financiamentos proporcionados pelo
Estado, foi que a Cooperunião pôde aperfeiçoar sua produção para ter
condições de vender suas mercadorias com lucro significativo. Hoje a
Cooperunião tem seus próprios técnicos, formados por Universidades ou
através de cursos fomentados em parcerias com o MST. Eles o
fundamentais não apenas para alterar a técnica de produção empregada,
senão também para controlar os resultados da produção.
O aprimoramento da técnica foi essencial para a inserção das
mercadorias da cooperativa na esfera da circulação. A despeito da
influência ideológica, ainda que relativamente pequena, sobre as
técnicas de produção do assentamento (como em relação ao tempo de
abate, ao não uso de sementes transgênicas etc.), nunca houve por parte
do coletivo restrições com relação aos consumidores e/ou fornecedores
por motivos fundamentalmente políticos. Dessa forma, os critérios de
negociação foram sempre baseados puramente no valor de troca das
mercadorias. Contudo, ainda que lhes faltem uma predisposição em
busca de relações mercantis baseadas em outros critérios que não o valor
de troca, é evidente que, antes mesmo de qualquer predisposição, não há
condições para que isso seja possível.
A impossibilidade de manter uma cooperativa com critérios não
mercantis ao mesmo tempo em que concorre com empresas capitalistas
é uma questão social, que ultrapassa a vontade do coletivo da
Conquista.... O MST e suas cooperativas apenas apreenderam essas
determinações sociais, que se impõem sobre qualquer organização
114
.
A capacidade competitiva desses empreendimentos econômicos
não é determinada a partir de valores solidários, mas tem a
mesma fonte de valor que qualquer outra mercadoria: a
quantidade de trabalho socialmente necessário para a sua
produção. Na competição mercantil, torna-se indiferente a
existência ou não de um ambiente pautado por relações solidárias
entre os produtores, pois, como o resultado desse trabalho precisa
114 É ilustrativo, a esse respeito, que o assentado Valdir, em seu trabalho de conclusão de
curso sobre a cooperativa, afirme que na Cooperunião: “compreende-se o processo
produtivo ou industrial como um momento e que deve estar voltado para o mercado. Ou
seja, o planejamento de uma empresa ou de uma propriedade deve ser orientado ao
mercado, buscando-se condições para obtenção de relações comerciais rentáveis, através
da satisfação das necessidades dos clientes/consumidores. No atual modelo de sociedade
marcada pela competitividade, deve-se buscar eficiência na comercialização de produtos,
além de garantir o mínimo de custos no processo produtivo” (MARTINS, 2006, p. 36).
173
ser vendido no mercado, a agregação de valor por meio de
elementos subjetivos não passa de uma mistificação. Para
sobreviver dentro do mercado é preciso seguir alguns
imperativos e, dentre esses, o que determina o valor das
mercadorias serve tanto para empresas capitalistas, como para
empreendimentos solidários (WELLEN, 2009, p. 146)
Assim, enquanto a capacidade produtiva da Cooperunião era
relativamente baixa, as vendas restringiam-se ao mercado local, não se
afastando das cidades mais próximas. Hoje, quando a empresa obtém
uma receita anual de aproximadamente R$ 3 milhões, boa parte da
região sul e sudeste do país é abastecida. Essa expansão também
obrigou a adoção de padrões técnicos de produção (como visto no tópico
anterior), especialmente quanto às questões sanitárias.
Diante da análise realizada até aqui, é possível afirmar que o
caminho percorrido pela Cooperunião no circuito de produção
capitalista desloca-a de uma organização de baixa composição orgânica
e técnica, que combinou arroxo da renda dos trabalhadores e crédito
subsidiado para reproduzir-se ampliadamente, para uma organização
capaz de manter o processo de acumulação sem, por isso, valer-se da
precarização do trabalho abaixo da média da região. Dessa forma, o
processo de produção do assentamento é, objetivamente, um processo
capitalista de produção, posto que autogerido. Se, portanto,
identificarmos no processo de produção as razões para caracterizar o
coletivo como uma organização que trava uma luta anti-sistêmica, por
mais democrático que seja esse processo, incorreremos nos mesmos
erros das teses da chamada Economia Solidária
115
.
O aspecto que permite caracterizar os assentamentos coletivos
do MST como organizações articuladas com uma luta geral anti-
capitalista são as mediações de natureza política, e não a forma
organizacional do assentamento em si mesma. Estas, com efeito, podem
apenas favorecer a educação política necessária para a luta geral do
movimento. Na Conquista na Fronteira, por exemplo, a forma
autogerida do coletivo, que permitiu pôr em debate a antiga divisão
entre as “famílias do movimento” e as “famílias do município”, foi o
meio pelo qual estas transformaram sua visão política, passando a lutar,
115 Cf. Wellen (2009, especialmente capítulos I e II).
174
agora como parte do MST, pela transformação social almejada pelo
movimento. Isso porque a dinâmica do coletivo propicia a constante
problematização dos temas que tocam a vida dos assentados e termina
por fortalecer os laços de solidariedade. É evidente, porém, que essa
forma não teria qualquer efeito sem o conteúdo político das ações das
“famílias do movimento”
116
.
É correto dizer, portanto, que:
A capacidade [do coletivo] de educar/formar pessoas em rumos
que se opõem ao capital se expressa nas pessoas que foram
assentadas sem terem passado por um período de acampamento,
como o caso das famílias “do município”. Essas pessoas
identificam-se com o Movimento, assumem a identidade Sem
Terra, o que revela a presença do MST no assentamento,
indicando o potencial educativo do Movimento e do coletivo que
o representa (DALMAGRO, 2002, p. 74).
A vida da luta política dos assentamentos coletivos do MST é
ainda bastante significativa. Na Cooperunião, muitos dos assentados são
liberados para ocupar funções importantes para a direção do MST, sem
por isso deixar de ganhar a renda da produção da cooperativa. Além
disso, muitos outros contribuem ativamente nas ocupações do
movimento.
A nossa contribuição, na verdade, hoje, enquanto movimento, é a
massificação, na hora que precisou, né. Na verdade, nós não
participamos como mais um . As pessoas que saem daqui são
responsáveis de estar organizando, de estar puxando, de estar “oh
vamos, precisa fazer isso...”. Pela experiência que você tem.
Porque muitas pessoas que vão, por exemplo, pra uma ocupação,
nunca ouviram falar, não tem conhecimento de estar
contribuindo. Também financeiramente a gente contribui com o
movimento. Politicamente, nem se fala, então. A gente sempre
diz: nossas principais lideranças aqui dentro, tão lá fora. Faz uma
falta grande aqui dentro, mas que nós entendemos que faz mais
falta fora. Então, estão rodando e estão recebendo como se
estivessem aqui trabalhando aqui normal. Mas que tão
116
Para ver mais a respeito do potencial educativo do coletivo da Conquista na Fronteira, cf.
Dalmagro (2002).
175
contribuindo fora, organizando a nível nacional, a Via
Campesina, que é a nível internacional, então as pessoas que
fazem essa ponte e que pertencem a aqui (Diego – entrevista 1).
Aqui, na atuação política do coletivo, que articula suas ações
com um movimento de amplitude nacional e contestador é que reside a
diferença qualitativa entre as cooperativas do MST e as demais
cooperativas. Assim, se é verdade que as cooperativas são
qualitativamente diferentes das empresas convencionais por conta das
relações de poder e do modo pelo qual partilham os lucros, também é
que as cooperativas do MST diferenciam-se das demais cooperativas por
articularem-se e serem instrumento de um movimento político de
contestação particular, não se limitando a produzir com relações
organizacionais diferenciadas.
E é nesse sentido que as cooperativas do MST são condicionadas
em sua função social: não apenas como um agrupamento de
produtores autônomos que querem sobreviver no mercado
capitalista, mas como um instrumento a serviço desse
movimento social na sua luta contra os imperativos do capital
(WELLEN, 2009, p. 152).
É verdade também que, no caso específico da Cooperunião, as
questões relacionadas à gestão do capital da organização tem tomado
lugar do intenso debate político de anos anteriores
117
. Contudo, os
assentados permanecem como militantes ativos do MST, e nada parece
indicar que o fato de já terem conquistado sua propriedade de terra, além
de estarem assentados e progredindo em termos de renda familiar, faça
117 “Os assentados lembram que em tempos atrás havia mais festas, surpresas de aniversário,
serenatas, reuniões de núcleo para estudo, discussões, avaliações. Hoje isso vem sendo
deixado um pouco de lado por diversos motivos, como excesso de trabalho, cansaço,
desânimo, rotina, entre outros. “As vezes a gente se apega muito no serviço e deixa de
conviver, visitar as pessoas aqui dentro” (Eli - assentada). No início do assentamento a
união entre as pessoas era maior, segundo diversos assentados. Quando as necessidades
eram mais prementes estavam mais unidos, agora que já possuem bens materiais e a
condição econômica é mais estável, “parece que a unidade não é tão -necessária”, indicam
as lideranças (DALMAGRO, 2002, p. 75-6).
176
com que esses trabalhadores afastem-se da luta que marcaram suas
vidas.
O Sem Terra, na verdade, é... A bandeira do Movimento Sem
Terra, não é uma questão da terra, até quando você ter terra, até
quando você ser sem terra você com a bandeira, assentou tira a
bandeira... É uma identidade nossa, uma identidade como de
carteira de identidade, que nós vamos carregar pra vida toda,
independente de onde nós chegar... E outra, nós não somos
fechados, s jamais paramos de lutar enquanto tiver outras
pessoas passando fome, que precisam ser assentadas, no país,
aonde for, com certeza nós vamos ajudando, independente se a
gente assentado vinte anos... Aonde tiver manifestações,
tiver ocupações, tiver organizações vindas do movimento, com
certeza vai ter pessoas nossas apoiando, contribuindo (Diego
entrevista 1).
As cooperativas do MST são, portanto, um instrumento
importante para a manutenção da força do movimento político, do
mesmo modo que a Cooperunião é também um instrumento do coletivo
da Conquista na Fronteira. As cooperativas, uma vez que viabilizam a
existência da organização autogerida também economicamente,
permitem que, mesmo depois de assentados, a vida coletiva dos tempos
de acampamento se estenda ao assentamento. Tornam mais vivos e
presentes os debates políticos e mostram que a alta produtividade não
necessita de uma relação autoritária na esfera da produção. Nos termos
de Mészáros (2002), as cooperativas autogeridas do MST demonstram
sua força política enquanto alternativa hegemônica a uma
transcendência positiva do modo de produção capitalista, que se associa
à negação política radical dessa sociedade por meio do embate
contestador do movimento em âmbito nacional.
177
8 Considerações Finais
O objetivo traçado para esta pesquisa foi o de compreender as
relações organizacionais do assentamento coletivo do MST diante dos
imperativos do capital. A partir da análise do assentamento, uma
organização que tem interesses reconhecidamente antagônicos aos do
capital, é possível revelar os limites e as potencialidades da organização
autogerida da produção no MST.
Considerei, para a consecução de tal análise, três dimensões, a
saber: as relações de poder, os processos de trabalho e as mediações com
a totalidade social.
A análise das relações de poder revelou a possibilidade, mesmo
dentro do modo de produção capitalista, de estabelecer relações
organizacionais efetivamente democráticas no âmbito da produção. O
coletivo do MST desenvolveu circuitos de decisão que criam condições
para a ampla participação dos trabalhadores, eliminando oposições
estruturais e hierárquicas das relações organizacionais. Trata-se de uma
construção histórica que remonta aos tempos de acampamento na luta
pela terra. Os núcleos de base e a assembléia geral dão forma à dinâmica
básica que constitui o assentamento coletivo como uma organização
autogerida.
Quanto aos processos de trabalho, por outro lado, constatei que
a tecnologia empregada transformou-se ao longo da história do
assentamento. Os processos artesanais foram progressivamente
substituídos à medida que a cooperativa acumulava capital e ampliava a
importância da venda de mercadorias no sustento das famílias
assentadas. Além disso, a alteração da composição orgânica de capital
foi acompanhada por uma correspondente modificação da composição
técnica. A tecnologia física empregada no principal setor da cooperativa
pouco se diferencia das empresas convencionais, sendo o ritmo e
intensidade ditados pela máquina, estruturada nos moldes típicos da
operacionalização do taylorismo-fordismo, esvaziando de qualquer
sentido a atividade produtiva. Considerando que a tecnologia do
processo de trabalho corresponde à adoção, associadamente, de uma
tecnologia de gestão e de uma tecnologia física, foi possível observar
que aquelas são mais suscetível à adequação aos princípios políticos do
MST. As tecnologias físicas, a despeito inovações do ponto de vista
ambiental e na qualidade das mercadorias produzidas, mostraram-se
178
quase idênticas às empresas convencionais, derivada de critérios de
produção especificamente capitalistas e estão sempre condicionadas
pelas exigências de maiores lucros.
Há, aparentemente, uma contradição ao constatar que a
autogestão dos trabalhadores leva-os a decidir pelo emprego de técnicas
e objetivos que contrariam seus próprios interesses históricos. Tal
contradição explica-se, contudo, pela mediação que qualquer
organização tem de estabelecer, na produção de mercadorias, com o
elemento totalizante de nossa sociedade, qual seja, o capital. O tempo
médio socialmente necessário leva-os não somente ao emprego das
técnicas de produção mais avançadas do ponto de vista capitalista, como
também a um processo constante de acumulação (reprodução ampliada),
de modo que a organização possa fazer frente permanentemente à
concorrência. A alienação capitalista não se resolve, pois, enquanto a
autogestão for restrita aos estreitos marcos de uma cooperativa ou
assentamento.
O taylorismo aparece na história do capitalismo como a
consolidação da separação e oposição consciente entre concepção
(gestão) e execução (operários) dos processos de trabalho, modo por
meio do qual o capital cria condições para intensificar o ritmo da
atividade laboral. A sua superação parcial (restrita a uma organização),
retoma a unidade do processo, mas sob condições que tornam
impossível aos trabalhadores a determinação autônoma dos processos de
trabalho.
Contudo, o próprio título desta dissertação remete-nos à idéia de
que o assentamento coletivo do MST é uma organização que rema
contra a corrente, isto é, que orienta seus esforços em um sentido
antagônico ao da maré capitalista, ao da roda-viva que é o capital.
Caberia perguntar, pois, qual a razão de tal caracterização, uma vez que
sob muitos pontos de vista a Cooperunião, como instrumento do
coletivo, reforça o metabolismo social de produção capitalista.
A Cooperunião é uma organização que reproduz tecnologias
especificamente capitalistas, que reproduz capital ampliadamente, que
possui objetivos estratégicos tipicamente empresariais. Pensa a si mesma
sob critérios predominantemente mercadológicos; age como se fosse
vontade sua a vontade da mercadoria. Explora aqueles que nela
trabalham tanto quanto se houvesse de corpo presente um aparato
administrativo típico das empresas convencionais. Exige alta
179
produtividade, cobra resultados e especula preços baseada sempre no
valor de troca de seus produtos.
Seria de alguma forma sensato, pelas razões supracitadas,
afirmar que, do ponto de vista da luta pela emancipação humana, se trata
de uma empresa como outra qualquer? Somente se estivéssemos
comparando-a a uma organização ideal, elaborada a partir de princípios
abstratos e descolados de seu terreno sócio-histórico concreto; somente
se desconsiderássemos a totalidade social na qual está imersa qualquer
organização; se estabelecêssemos regras morais absolutas e a-temporais;
somente assim é que poderíamos julgar inadequados ao atual contexto
os esforços desses trabalhadores para a construção da emancipação
humana.
Como o trabalho concreto é, no capitalismo, subsumido ao
trabalho abstrato (discutido no capítulo 3), toda prática organizacional é
limitada pelo movimento ontologicamente incontrolável do capital. Por
isso, as leis coercitivas externas às organizações obrigam-nas a
reproduzir, em larga medida, práticas organizacionais capitalistas. Isso
se tanto pela exigência de produtividade para o enfrentamento na
concorrência pela venda de mercadorias como pelo fato de que a
tecnologia é socialmente desenvolvida, relacionado-se sempre com o
movimento e os interesses objetivos do capital.
Mas, como disse Rosa Luxemburgo certa vez, “quem não se
movimenta, não sente as correntes que o prendem”. São os esforços dos
Sem Terra em transformar a natureza da produção que lhes permitem
revelar a força coercitiva do próprio capital. Isso é possível na
Conquista na Fronteira porque organizam-se nos moldes do coletivo.
A dinâmica do coletivo permite que todo o constrangimento do
modo de produção capitalista seja problematizado entre os
trabalhadores. As razões da necessidade de uma intensificação no ritmo
de trabalho, da priorização do acúmulo em detrimento do aumento da
composição da renda, a concorrência com outras empresas, as leis que
regulamentam o crédito e a própria produção, numa palavra, o
movimento do capital, tudo é problematizado diretamente pelo coletivo,
sem a mediação do patrão como personificação do capital.
Mesmo nos estreitos limites do trabalho abstrato, o coletivo foi
capaz de desenvolver práticas concretas mais “avançadas” do ponto de
vista da emancipação humana. A ausência de oposição hierárquica, a
presença de mulheres em todos os níveis de coordenação (ainda que sem
180
superar o patriarcado como estrutura familiar predominante), o modo de
repartição dos lucros, a preocupação com o desenvolvimento de
tecnologias que não degradem o meio ambiente e que resultem em
produtos de maior qualidade para o consumo humano, a participação de
todos na normatização e em todas as decisões de significativa
relevância; tudo isso credita o coletivo como uma alternativa
hegemônica ao regime burguês. Mostra-nos com fatos, em vez de
palavras, que as relações de produção podem ser baseadas em uma
igualdade efetiva, e não meramente formal como na sociedade
capitalista. Revela, ao mesmo tempo, o potencial do futuro e os limites
do presente.
No assentamento coletivo do MST, as necessidades do mercado
ou da cooperativa não são naturalizadas; ao contrário, são interpretadas
como necessidades da sociedade capitalista. Assim, diferentemente de
outras cooperativas, o MST não cessa sua luta na esfera da produção.
Não se trata, portanto, do velho movimento economicista tão criticado
por Lenin, com justa razão. Qualquer forma organizacional que se
proponha enfrentar a roda-viva do capital dentro das leis que o
constituem terá como adversário um inimigo invencível - “até não poder
resistir”, como na música de Chico Buarque.
Os assentamentos do MST, por outro lado, continuam
articulados com o movimento em âmbito nacional e não perdem de vista
seu horizonte político estratégico. Têm ciência de que a luta pela
democratização da produção social depende de um movimento político
que supere a sociedade capitalista, primeiramente negando-a. Não
esperam que o seu modo qualitativamente diferente de organizar o
trabalho espalhe-se pela sociedade até que transforme, repentinamente, a
natureza da sociedade capitalista. Ao contrário, buscam articular-se com
a classe trabalhadora para romper com o modo de produção capitalista.
Trata-se, por essas razões, sem dúvida, de um movimento contra
a corrente, ainda que não a rompa.
181
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