Download PDF
ads:
UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E NATURAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL
DAS RELAÇÕES POLÍTICAS
JOSÉ MÁRIO GONÇALVES
RELIGIÃO E VIOLÊNCIA NA ÁFRICA ROMANA:
AGOSTINHO E OS DONATISTAS
VITÓRIA
2009
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
JOSÉ MÁRIO GONÇALVES
RELIGIÃO E VIOLÊNCIA NA ÁFRICA ROMANA:
AGOSTINHO E OS DONATISTAS
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-graduação em História do Centro de
Ciências Humanas e Naturais da
Universidade Federal do Espírito Santo,
como requisito parcial para a obtenção do
grau de Mestre em História, na área de
concentração em História Social das
Relações Políticas, sob orientação do
Professor Doutor Sérgio Alberto Feldman.
VITÓRIA
2009
ads:
JOSÉ MÁRIO GONÇALVES
RELIGIÃO E VIOLÊNCIA NA ÁFRICA ROMANA:
AGOSTINHO E OS DONATISTAS
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em História do Centro de
Ciências Humanas e Naturais da Universidade Federal do Espírito Santo, como
requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em História, na área de
concentração em História Social das Relações Políticas, sob orientação do
Professor Doutor Sérgio Alberto Feldman.
Aprovada em ____ de ___________ de 2009.
COMISSÃO EXAMINADORA
Prof. Dr. Sérgio Alberto Feldman
Universidade Federal do Espírito Santo
Orientador
___________________________________________________
Profa. Dra. Ana Paula Tavares Magalhães
Universidade de São Paulo
Prof. Dr. Michael Alain Soubbotnik
Université Paris-Est Marne La Vallée
Prof. Dr. Gilvan Ventura da Silva
Universidade Federal do Espírito Santo
Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP)
(Biblioteca Central da Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil)
Gonçalves, José Mário, 1971-
G635r Religião e violência na África romana : Agostinho e os
donatistas / José Mário Gonçalves. – 2009.
128 f.
Orientador: Sérgio Alberto Feldman.
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Espírito
Santo, Centro de Ciências Humanas e Naturais.
1. Agostinho, Santo, Bispo de Hipona, 354-430. 2.
Donatistas. 3. Violência. 4. Fanatismo. 5. Cristianismo. 6. Roma.
I. Feldman, Sérgio Alberto. II. Universidade Federal do Espírito
Santo. Centro de Ciências Humanas e Naturais. III. Título.
CDU: 93/99
A Rosimar e a Ana Maria, pelo tempo que
lhes roubei.
Aos meus pais, Gonzaga e Jovelina, por
tudo que me ensinaram.
AGRADECIMENTOS
A Deus, em quem “vivemos, nos movemos e existimos” (Atos 17:28).
Ao professor Dr. Sérgio Alberto Feldman, pela orientação, paciência, amizade e
estímulo.
Aos professores e funcionários do PPGHIS, pela atenção e apoio dispensados.
Aos colegas de graduação e mestrado, pelo companheirismo.
RESUMO
Em 311 d.C., um cisma dividiu a Igreja da África do Norte. Um grupo de bispos da
Numídia não reconheceu a legitimidade da consagração de Ceciliano, novo bispo de
Cartago, alegando que tanto ele quanto os que o ordenaram haviam traído a
durante a Grande Perseguição de Diocleciano (284-305). Consagram o seu próprio
bispo e afirmam ser a verdadeira Igreja cristã, a “Igreja dos mártires”. Os católicos
partidários de Ceciliano os chamarão de donatistas, por causa de um dos seus
líderes, o bispo Donato de Cartago. A interferência do poder imperial na disputa
favoreceu o grupo católico e colocou os donatistas na mira da repressão oficial.
Neste trabalho procuramos analisar os discursos de Agostinho de Hipona (354-430),
nos quais ele procurou legitimar o uso da violência imperial contra os donatistas.
Partimos da hipótese de que, para cumprir tal objetivo, ele procurou construir uma
representação estigmatizante dos seus adversários que permitia justificar as ações
do poder civil contra os mesmos. A metodologia utilizada é a da Análise do Discurso.
ABSTRACT
In 311 AD, a schism split the church of North Africa. A group of bishops of Numídia
didn´t recognize the legitimacy of the consecration of Caecilian, new bishop of
Carthage, alleging that he was consecrated by those that had betrayed the faith
during the Great Persecution of Diocletian (284-305). They consecrate their own
bishops and claim to be the true Christian Church, the “Church of martyrs”. The
Catholics - supporters of Caecilian - call them “Donatists”, because one of his
leaders, the bishop Donatus of Carthage. The interference of imperial power in the
dispute helped the Catholic group and placed the Donatists in the crosshair of official
repression.
In this work we tried to analyze the speeches of Augustine of Hippo (354-430), in
which he sought to legitimize the use of violence against the Donatists. Our
hypothesis is that, to achieve this goal, he sought to build a representation
stigmatizing their opponents who would justify the actions of the civil power against
them. The methodology used is that of Discourse Analysis.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 11
1 DISCURSO RELIGIOSO E LEGITIMAÇÃO POLÍTICA: A CONTRIBUIÇÃO
DE AGOSTINHO............................................................................................ 16
1.1 RELIGIÃO E LEGITIMAÇÃO POLITICA .................................................. 16
1.2 DISCURSO RELIGIOSO, INTOLERÂNCIA E VIOLÊNCIA ..................... 18
1.3 DISCURSO, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO .................................. 24
1.4 AGOSTINHO E A RETÓRICA CRISTÃ ................................................... 28
2 CRISTIANISMO E PODER ............................................................................. 39
2.1 ESTADO E RELIGIÃO EM ROMA .......................................................... 39
2.2 CRISTIANISMO E PODER POLÍTICO NO IMPÉRIO ROMANO ............ 42
2.3 ORTODOXIA, CISMA E HERESIA NO IMPÉRIO CRISTÃO .................. 46
2.4 IMPÉRIO E IGREJA NA ÁFRICA ROMANA ............................................ 54
2.4.1 A África Romana ..................................................................................... 54
2.4.2 O Cristianismo na África Romana .......................................................... 59
2.5 O CISMA DONATISTA ............................................................................. 60
2.5.1 Antecedentes: a questão dos lapsi ........................................................ 60
2.5.2 Um traditor em Cartago .......................................................................... 62
2.5.3 A teologia donatista ............................................................................... 65
3 A LEGITIMAÇÃO DA VIOLÊNCIA NO DISCURSO AGOSTINIANO ........... 67
3.1 AGOSTINHO E OS DONATISTAS ........................................................... 67
3.2 ANÁLISE DO DISCURSO ANTIDONATISTA DE AGOSTINHO ............. 74
3.2.1 Contra Epistulam Parmeniani ................................................................. 74
3.2.2 Sermo ad Caesariensis ecclesiae plebem .............................................. 89
3.2.3 Contra Gaudentium donatistarum episcopum ...................................... 100
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 113
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................... 116
11
INTRODUÇÃO
O objetivo deste trabalho é analisar como Agostinho (354-430), bispo de Hipona, na
África do Norte, procurou legitimar, por meio dos seus discursos, o uso da violência
imperial contra os donatistas. Partimos da hipótese de que, para cumprir tal objetivo,
ele procurou construir uma representação estigmatizante dos seus adversários que
permitia justificar as ações do poder civil contra os mesmos.
A nova relação entre o Cristianismo e o Império Romano, após a adesão do
imperador Constantino à nova religião (313), produziu mudanças significativas no
trato da Igreja com os dissidentes internos (hereges e cismáticos) e externos
(pagãos e judeus). Após um período de violentas perseguições contra os cristãos, a
Igreja passa a gozar de privilégios nunca antes imaginados, ao mesmo tempo em
que sofre interferência direta do poder imperial. Os inimigos da Igreja serão também
os inimigos do Império.
Diante deste novo quadro, a distinção entre o que é cisma, heresia e ortodoxia,
entre a falsa e a verdadeira Igreja de Cristo, ganha uma nova importância política. O
que era antes um problema interno das comunidades cristãs, a ser resolvido por
meio de disputas teológicas e pastorais, torna-se agora uma questão de Estado. Tal
interesse do Império nas querelas teológicas da Igreja tem as suas razões de ser:
em primeiro lugar, o dever dos que governam em garantir a pax deorum por meio do
correto culto aos deuses tradicionais de Roma, transforma-se no dever de prestar
culto e obediência ao único Deus, a fim de garantir o seu favor. Para tanto, era
necessário saber a maneira correta, isto é, ortodoxa, de adorar e servir a Deus. Em
segundo lugar, uma vez que a Igreja deveria gozar das benesses imperiais (o que
incluía privilégios fiscais, econômicos e políticos), a definição de qual grupo
representava a verdadeira Igreja era fundamental para que tais benefícios não
fossem dados aos grupos dissidentes. Por fim, não podemos perder de vista o
interesse dos imperadores na unidade do Império. A unidade da Igreja, em virtude de
12
sua sólida organização hierárquica, era um componente importante na manutenção
da unidade imperial, mas tal unidade era constantemente ameaçada pelos grupos
heréticos e cismáticos em seu meio.
Assim, todos os recursos serão usados no sentido de determinar claramente as
fronteiras da heresia e da ortodoxia. Uma vez que isto seja definido, o Império se
sentirá no direito de fazer uso do seu poder de coerção contra os hereges e
cismáticos. Tal poder se manifestará na promulgação de leis contra os dissidentes e
na aplicação de penas que vão desde multas e confisco de bens, até o exílio e a
pena capital.
Na África do Norte, um cisma
ocorrido no início do século IV abalará a unidade da
Igreja e colocará em cena a dura intervenção imperial. Um grupo de bispos da
Numídia negou-se a reconhecer a legitimidade da consagração do novo bispo de
Cartago, Ceciliano, alegando que tanto ele quanto os que o ordenaram eram
traditores, isto é, haviam, durante o tempo da Grande Perseguição de Diocleciano
(284-305), entregado às autoridades os vasos e os livros sagrados para escapar do
martírio. Os dissidentes elegeram o seu próprio bispo e afirmaram ser a verdadeira
Igreja cristã, a “Igreja dos mártires”, em oposição a “Igreja dos traditores”. Os
católicos
1
isto é, aqueles que permanecem em comunhão com Ceciliano os
chamarão de “donatistas” em virtude do nome de um dos seus líderes, o bispo
Donato, de Cartago. O que estava em jogo aqui era a identidade da Igreja. De um
lado, os donatistas pretendiam preservar a sua própria identidade como Igreja pura
em oposição ao mundo; do outro, os católicos pretendiam fazer o mesmo,
afirmando-se como única e verdadeira Igreja, em oposição a todos os cismas e
heresias.
Após uma série de disputas conciliares e políticas a fim de se determinar qual das
partes era a “verdadeira Igreja”, o grupo de Ceciliano foi reconhecido como tal pelo
Império e os donatistas foram duramente perseguidos pelos agentes de Constantino.
1
Neste trabalho, chamaremos de católico (palavra de origem grega que significa “universal”) o
grupo que permaneceu ligado a Igreja de Roma em oposição aos donatistas. Temos consciência,
porém, que tal denominação é parte da disputa entre os dois grupos, uma vez que os donatistas
se consideravam os verdadeiros católicos. Como veremos, parte da estratégia de Agostinho no
confronto com os donatistas é tentar provar que os donatistas não são verdadeiramente católicos
porque romperam com o restante da Igreja cristã.
13
Após 321, entretanto, a Igreja donatista passa a gozar da tolerância imperial o que
permite que ela cresça e se torne a religião da maior parte dos norte-africanos.
Esse é o quadro que Agostinho encontrou quando, em 391, assumiu o episcopado
da igreja de Hipona e se tornou o principal promotor da causa católica contra o
donatismo. Seu objetivo era promover a unidade entre as duas Igrejas, entendendo
que, para isso, os donatistas deveriam retornar à comunhão com a Igreja católica.
Permanecer no cisma, para Agostinho, era falta de caridade, orgulho e obstinação.
Assim, embora Agostinho não considerasse que os donatistas fossem originalmente
hereges, uma vez que afirmavam essencialmente as mesmas doutrinas dos
católicos, sua persistência no cisma os tornava piores dos que os hereges.
Um elemento complicador nesta questão é exatamente a semelhança entre as duas
Igrejas. Como o próprio Agostinho percebia, era difícil distinguir um donatista de um
católico, pois ambos possuíam um patrimônio teológico e cultural comum, mas o
interpretavam de forma diferente (SILVA, 2004, p. 22). Uma vez que as diferenças
entre as duas comunidades se manifestavam apenas em alguns poucos aspectos,
era necessário reforçar estereótipos e preconceitos a respeito uns dos outros,
fixando rótulos que ajudavam na construção de suas respectivas identidades (SILVA,
2004, p. 24).
A partir do início do século V, em especial após 411, quando o donatismo foi
definitivamente condenado, o catolicismo pôde, com o devido apoio imperial,
assumir a posição dominante no Norte da África. É a partir desse momento que a
violência imperial se fará sentir de maneira mais dura contra os donatistas. A regra
agora era obrigar os donatistas a abandonar a sua Igreja, coagindo-os a abraçar o
catolicismo.
Neste contexto, e antes mesmo da decisão de 411, a tarefa pastoral do bispo de
Hipona foi tentar legitimar teologicamente o uso da coerção, construindo em seus
discursos uma representação do donatismo que justificasse a ação imperial. Para
tanto, foi fundamental o recurso às técnicas de retórica clássica adquiridas por
Agostinho durante os anos de sua formação, aliadas aos novos elementos
característicos da retórica cristã. Conforme Cameron (1991, p. 5), essa nova retórica
14
religiosa estava sempre pronta para absorver de forma oportunista os elementos da
retórica secular que considerasse úteis aos seus objetivos. Isso acontece porque,
longe de representar uma ruptura radical com a cultura pagã, o Cristianismo
combina elementos tanto de ruptura, quanto de continuidade em relação a esta
cultura.
A metodologia que norteará o nosso trabalho é a Análise do Discurso. Neste tipo de
análise, “procura-se compreender a língua fazendo sentido, enquanto trabalho
simbólico, parte do trabalho social geral, constitutivo do homem e da sua história”
(ORLANDI, 2005, p. 15).
O analista do discurso procura relacionar a linguagem à sua exterioridade,
considerando os processos e as condições de produção da linguagem (ORLANDI,
2005, p. 16). A questão não é apenas o que o texto significa, mas como ele significa
(ORLANDI, 2005, p. 17). À Análise de Discurso importam tanto a forma, quanto o
conteúdo, pois a língua é tanto uma estrutura quanto um acontecimento (ORLANDI,
2005, p. 19).
A Análise de Discurso pressupõe que a linguagem não é neutra. As palavras chegam
até nós “carregadas de sentido” (ORLANDI, 2005, p. 20). Por isso, é necessário
procurar compreender como os objetos simbólicos produzem sentido, como eles se
revestem de significado para e pelos sujeitos (ORLANDI, 2005, p. 26).
As fontes analisadas neste trabalho fazem parte dos chamados escritos
antidonatistas de Agostinho, produzidos entre os anos 393 e 420
2
. Eles foram
selecionados levando-se em consideração sua relação com o nosso problema, bem
como as limitações de tempo que impediriam uma análise completa de todo o
corpus antidonatista. Os textos escolhidos, seguidos de suas respectivas datas
aproximadas de composição, foram os seguintes: Contra Epistulam Parmeniani
(400); Sermo ad Caesariensis ecclesiae plebem (418) e Contra Gaudentium
donatistarum episcopum libri duo (420).
2
Este trabalho fará uso da edição bilíngue (espanhol/latim) publicada pela BAC: AGUSTÍN, S.
Obras completas de San Agustín. Escritos antidonatistas. 3v. Madrid : Biblioteca de Autores
Cristianos, 1988-1994.
15
O nosso trabalho está dividido em três capítulos: no primeiro deles procuraremos
discutir as relações entre o discurso cristão e legitimação política no Império
Romano e apontar a contribuição de Agostinho para a consolidação desse discurso.
O segundo capítulo é dedicado a apresentar como se relacionavam religião e poder
político no Império Romano, antes e depois do Cristianismo e a descrever os
acontecimentos que resultaram no cisma donatista no Norte da África.
O último capítulo será dedicado a Agostinho e à análise dos seus discursos, para
verificar como ele procura persuadir os seus interlocutores da legitimidade do uso da
força contra os donatistas.
16
1. DISCURSO RELIGIOSO E LEGITIMAÇÃO POLÍTICA: A
CONTRIBUIÇÃO DE AGOSTINHO
1.1 RELIGIÃO E LEGITIMAÇÃO POLÍTICA
Podemos definir legitimação como “o ‘sabersocialmente objetivado que serve para
explicar e justificar a ordem social” (BERGER, 1985, p. 42).
Para Berger e Luckmann
(1974, p. 128) “a legitimação justifica a ordem institucional dando dignidade
normativa a seus imperativos práticos”.
Estes autores também distinguem entre
quatro níveis diferentes de legitimação: o primeiro nível é o de uma legitimação
incipiente, pré-teórica, presente no próprio vocabulário, que é o “fundamento do
‘conhecimento’ evidente, sobre o qual devem repousar todas as teorias
subsequentes” (BERGER; LUCKMANN, 1974, p. 129); o segundo nível consiste
numa legitimação rudimentar, formada de esquemas explicativos bastante
pragmáticos, que se referem a ações concretas: esse vel é formado de provérbios
e ximas morais, bem como de lendas e histórias populares (BERGER;
LUCKMANN, 1974, p. 129). O terceiro nível é o da legitimação teórica, no qual, por
meio de teorias explícitas, “um setor institucional é legitimado em termos de um
corpo diferenciado de conhecimentos” (BERGER; LUCKMANN, 1974, p. 130). Neste
nível, a tarefa de legitimação é confiada a um corpo de especialistas e começa a
atingir um certo grau de autonomia em relação às instituições legitimadas. O último
nível de legitimação é constituído pelo que os autores denominam universos
simbólicos. Neste nível, a legitimação realiza-se “por meio de totalidades simbólicas
que não podem absolutamente ser experimentadas na vida cotidiana” (BERGER;
LUCKMANN, 1974, p. 131), além de integrar todos os setores da ordem institucional
num quadro global de referência, num universo.
Para que um dado universo simbólico seja mantido, a legitimação precisa ser
constantemente repetida, a fim de se evitar o esquecimento e responder aos que a
17
contestam (BERGER, 1985, p. 44).
Essa necessidade acentua-se quando versões
diferentes de um dado universo precisam ser confrontadas. É o problema típico dos
cismas e heresias. Nestes casos, faz-se uso de diversos procedimentos repressivos
que precisam ser legitimados, “o que implica pôr em ação vários mecanismos
conceituais destinados a manter o universo oficial contra o desafio herético”
(BERGER; LUCKMANN, 1974, p. 145). Assim, a legitimação serve para explicar
porque não se pode tolerar a resistência, bem como para justificar os meios usados
para coibi-la (BERGER, 1985, p. 44).
Historicamente, a religião foi o mais efetivo meio de legitimação, por relacionar com
uma realidade suprema a realidade socialmente construída (BERGER, 1985, p. 45).
Assim, as instituições terrenas têm seu correspondente nas regiões celestiais,
transcendendo a história e alcançando a eternidade: “o poder é sacralizado porque
toda a sociedade afirma a sua vontade de eternidade e receia o retorno ao caos
como realização da sua própria morte” (BALANDIER, 1987, p. 107).
A religião contribui para a legitimação da ordem política ao manter a ordem
simbólica, seja pela “naturalização” das estruturas políticas, seja pelo combate, no
terreno simbólico, às tentativas de subversão dessa ordem (BOURDIEU, 1988, p.
70). Naquelas sociedades onde a religião interpreta a ordem da sociedade como
homóloga à ordem do universo, ir contra a ordem social é colocar em risco a ordem
cósmica, é abrir espaço para o caos, para a anomia (BERGER, 1985, p. 52).
Mas a religião também pode servir para impor limites ou contestar o poder. Isto pode
se dar seja no interior da própria religião dominante, por meios de mecanismos
internos que visam impedir ou contestar o abuso de poder, seja através de
movimentos religiosos concorrentes (BALANDIER, 1987, p. 125).
Quando novos atores religiosos surgem em cena para concorrer com a religião
dominante, esta “tende a impedir de maneira mais ou menos rigorosa a entrada no
mercado de novas empresas de salvação” (BOURDIEU, 1988, p. 58). No conflito
entre católicos e donatistas o que está em jogo é exatamente o monopólio da
salvação por parte daqueles e o combate à concorrência que estes representam.
18
Também está em jogo a legitimação teológica da ordem imperial. Tal legitimação se
constrói pelo reconhecimento da competência do poder político para intervir na
disputa, ao mesmo tempo que se procura delimitar os espaços próprios dos poderes
eclesiástico e imperial.
1.2 DISCURSO RELIGIOSO, INTOLERÂNCIA E VIOLÊNCIA
O esforço inicial do bispo de Hipona foi o de tentar atrair os donatistas ao catolicismo
por meio da argumentação teológica. Originalmente, a sua opinião era de que
ninguém deveria ser coagido a se tornar católico. Entretanto, como veremos,
Agostinho mudou de posição e passou a concordar que o apelo ao braço armado do
Estado era um recurso eficiente e também lícito para forçar os cismáticos a retornar
ao catolicismo (GADDIS, 2005, p. 132). A partir de então, seu discurso será
construído de modo a tentar legitimar, através de uma perspectiva teológica, a
violência imperial contra os dissidentes.
Um discurso “é o ponto de articulação dos processos ideológicos e dos fenômenos
linguísticos” (BRANDÃO, 2002, p. 12). Nenhum discurso é apenas um “mero
discurso”. Não existem discursos neutros. Os sentidos que cada discurso carrega
devem ser interpretados não somente no seu aspecto linguístico, mas também
social e político.
O conceito de discurso procura dar conta desse caráter duplo da linguagem, que é
ao mesmo tempo formal (linguístico) e permeado de elementos subjetivos e sociais
(extralinguístico). Ao se analisar um dado discurso, leva-se em consideração o
quadro institucional no qual tal discurso foi produzido e os embates históricos,
sociais e políticos no qual ele se situa (BRANDÃO, 2002, p. 18).
Para além de uma análise puramente linguística, a análise do discurso deve levar
em consideração outros elementos. Dominique Maingueneau (2004, p. 170-172)
aponta uma série de ideias atreladas ao conceito de discurso dos quais destacamos
19
alguns que consideramos relevantes para esta pesquisa: Em primeiro lugar, o
discurso é uma forma de ação, que visa modificar uma situação e que se relaciona
com outras atividades não-verbais. Em segundo lugar, todo discurso é interativo, é
uma troca, explícita ou implícita, com outros locutores, que supõe sempre a
presença de um outro ao qual se dirige. Em terceiro lugar, todo discurso é
contextualizado, portanto não se pode atribuir um sentido a um enunciado sem levar
em consideração um contexto. O próprio discurso ajuda na definição do seu
contexto, bem como contribui para modificá-lo. Em quarto lugar, todo discurso é
regido por normas, tanto por normas sociais gerais, quanto por normas especificas
próprias de cada discurso. Por fim, é importante considerar que todo discurso é
assumido em um interdiscurso, pois seu sentido é adquirido na relação com outros
discursos.
Um outro aspecto do discurso que importa para essa pesquisa é a sua relação com
o poder. Aqui nos apropriamos do trabalho de Michel Foucault, para quem não se
pode falar em discurso sem relacioná-lo com poder, pois no interior dos discursos
são produzidos o que ele chama de “efeitos de verdade” (FOUCAULT, 1979, p. 7).
Toda sociedade tem seu próprio “regime de verdade”, o que implica dizer que ela
possui seus próprios critérios para acolher determinados discursos e os fazer
funcionar como verdadeiros, bem como para julgar entre o que considera verdadeiro
ou falso. Assim, a verdade está sempre “circularmente ligada a sistemas de poder,
que a produzem e apóiam, e a efeitos de poder que ela induz e que a reproduzem”
(FOUCAULT, 1979, p. 11).
O discurso, no entendimento de Foucault, “não é simplesmente aquilo que traduz as
lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do
qual nos queremos apoderar” (FOUCAULT, 2006, p. 10). Assim, é de esperar que
certos procedimentos de controle e exclusão cerquem os discursos. Primeiramente,
é preciso controlar quem pode falar e o quê. É o procedimento chamado de
interdição. Existem também os procedimentos de separação e rejeição e de
oposição entre o verdadeiro e o falso que ele denomina de “vontade de verdade”
(FOUCAULT, 2006, p. 14). Tais procedimentos apóiam-se sempre sobre um suporte
institucional.
20
Também Pierre Bordieu chama a nossa atenção para o fato de que a eficácia
simbólica dos discursos está na relação entre as propriedades do discurso
propriamente dito, as propriedades daquele que discursa e as propriedades da
instituição que autoriza tais discursos (BOURDIEU, 1996, p. 89). Para que um
discurso exerça seu efeito próprio, ele não precisa ser apenas compreendido, mas
precisa também ser reconhecido como legítimo (BOURDIEU, 1996, 91).
Considerando o tema desse trabalho, é importante ressaltar algumas características
específicas do discurso religioso, conforme descritas por Eni Orlandi. Para esta
autora, o discurso religioso é aquele em que fala a voz de Deus. Há, portanto, um
desnível fundamental entre o locutor (Deus) e o ouvinte (homens). Tal assimetria
aponta para a não-reversibilidade desse tipo de discurso: o homem não pode se
colocar no lugar de Deus e vice-versa, de maneira que a relação de interlocução é
dada de acordo com esta assimetria (ORLANDI, 1996, p. 244).
Aquele que fala em nome de Deus, que é o seu representante, não possui nenhuma
autonomia, não pode modificar a voz de Deus de forma alguma. Existe uma
regulação desse discurso determinada pelos textos sagrados, pelos dogmas, pela
hierarquia, pela liturgia (ORLANDI, 1996, p. 245). Existe sempre uma separação
entre a significação divina e a linguagem humana, mantendo-se assim uma certa
obscuridade nos textos sagrados, que nunca são totalmente compreendidos. Tal
obscuridade possibilita diferentes interpretações destes textos, mas tais
interpretações devem permanecer dentro de certos limites, caso contrário,
constituem-se em transgressões (ORLANDI, 1996, p. 245). Uma vez que a
interpretação da Palavra de Deus é regulada, pode-se afirmar que o discurso
religioso tende a monossemia, isto é, tende a buscar um sentido unívoco, fechado a
outras interpretações (ORLANDI, 1996, p. 246).
Uma outra forma de falar dessa tendência à monossemia, é dizer que o discurso
religioso inclina-se à intolerância. Heritier define a intolerância como “a expressão de
uma vontade de assegurar a coesão daquilo que é considerado como que saído de
si, idêntico a si, que destrói tudo o que se opõe a essa proeminência absoluta”
(HERITIER, 2000, p. 24). Ricoeur afirma que a intolerância origina-se em uma
predisposição universal de todos os seres humanos de impor aos outros as suas
21
próprias crenças, desde que para isso se disponha do poder necessário e de que se
acredite na legitimidade desse poder (RICOEUR, 2000, p. 20). Mereu, por sua vez,
diz que a intolerância tem como base a certeza de se possuir a verdade absoluta e o
dever impô-la pela força (MEREU, 2000, p. 42).
Para alguns autores, a intolerância religiosa estaria inextrincavelmente ligada ao
monoteísmo, em especial ao Cristianismo, enquanto o politeísmo seria sinônimo de
tolerância. Autores do século XVIII, como E. Gibbon, falavam do zelo intolerante do
Cristianismo, enquanto se referia ao Paganismo como uma religião benigna e
tolerante (GIBBON, 2005, p. 236).
Nesse mesmo caminho seguem alguns historiadores contemporâneos: Karen
Armstrong fala da intolerância como “uma característica persistente do monoteísmo”
em contraste com a “essencialmente tolerante do paganismo”. Tal tolerância
estaria caracterizada no fato de que o Paganismo estava sempre aberto a incorporar
novos deuses, desde que não ameaçasse os cultos tradicionais, o que seria
impensável no monoteísmo (ARMSTRONG, 2008, p. 69). Essa também é a razão
aduzida por De Romilly para dizer que o “o politeísmo é certamente a forma de
religião que menos se presta à intolerância” (DE ROMILLY, 2000, p. 31).
Aja Sanchez é outro autor que fala do universo religioso politeísta como
“eminentemente tolerante” e enfatiza a sua multiplicidade, bem como a ausência de
uma ortodoxia, e, consequentemente, de heresia. Mais do que crenças corretas, o
que interessava ao politeísmo antigo era a ação cultual (sacrifícios, rituais, festas,
oferendas, etc.) que deveria ser fiel à tradição ( AJA SANCHEZ, 2007, P. 421). Para
este autor o que caracterizava o Cristianismo era exatamente o oposto: todas as
outras comunidades religiosas, inclusive as formas dissidentes de Cristianismo,
eram inimigos que deveriam ser eliminados (AJA SANCHEZ, 2007, p. 422). Ele
também argumenta, em favor da política religiosa romana pré-cristã, que as
perseguições contra os cristãos ou contra outros cultos locais eram tão somente
consequência da “natural preocupação” da autoridade romana em evitar delitos
políticos e não de algum zelo religioso (AJA SANCHEZ, 2007, p. 422).
Mereu aponta para as relações entre a intolerância e o catolicismo, e lembra que a
22
Igreja católica foi a primeira instituição a definir juridicamente os conceitos de fé, de
ortodoxo, de herético, de pagão, de judeu, de infiel, e a construir uma teoria de
violência justa, cujo mais importante expoente foi exatamente Agostinho (MEREU,
2000, p. 43).
Um outro grupo de autores considera a relação Paganismo/tolerância e Cristianismo/
intolerância de uma maneira diferente. Donini, historiador de orientação marxista,
não hesita em falar do “mito da tolerância religiosa romana” (DONINI, 1988, p.164),
apontando para a perseguição contra os seguidores dos ritos dionísicos, contra os
astrólogos, contra os adeptos ao culto de Ísis, bem como contra os judeus e os
cristãos. Para Donini, tais perseguições tinham acima de tudo uma motivação
político-social: visava conter todos os cultos que estivessem sob a suspeita de
colocar em risco a ordem estabelecida (DONINI, 1988, p. 175).
Por sua vez, Silva afirma ser inapropriado referir-se a uma suposta tendência ao
ecumenismo pagão em contraste com a intolerância do Judaísmo e do Cristianismo.
O que se pode verificar, segundo este autor, é que tanto pagãos, quanto judeus e
cristãos foram hostis com os seus oponentes, de modos distintos e em intensidades
variáveis (SILVA, 2001, p. 98).
A. Armstrong procura matizar as diferenças entre as duas perspectivas religiosas e o
tipo de tolerância e intolerância que ambas geraram. Chama a atenção para o fato
de que a religião romana era uma religião de culto, não de dogma, o que justificaria
diferentes razões para as hostilidades perpetradas por ambos os grupos
(ARMSTRONG, A. 1984, p. 11).
Drake sugere fazer distinção entre “intolerante” e “exclusivo” e entre “intolerância” e
coerção”. É possível falar de uma exclusivista que não seja necessariamente
intolerante, ou seja, que não negue às outras crenças o direito de existir. Mais ainda,
é possível que alguém seja intolerante sem agir de forma coercitiva contra aqueles
com os quais não concorda. Para Drake, não existe uma relação necessária entre
exclusivismo e intolerância e entre intolerância e coerção e, portanto, não se pode
dizer que o Cristianismo é inerentemente intolerante (DRAKE, 1996, p. 9-10).
23
Concordando com Drake, podemos afirmar que a intolerância não é um fenômeno
exclusivamente religioso, e que nem tampouco é a consequência natural do
monoteísmo em geral ou do Cristianismo em particular. Contudo, a medida em que
um discurso religioso tende a afirmar que possui a verdade absoluta e se associa ao
poder político que lhe confere meios para impor essa verdade aos outros, ele torna-
se um lugar privilegiado para o exercício da intolerância.
O tema da intolerância nos remete à questão da violência. O termo violência deriva
do latim violentia, que, por sua vez, relaciona-se com vis, que significa força, mais
especificamente força em ação, que se volta contra alguma coisa ou contra alguém
(MICHAUD, 1989, p. 8). No tocante à violência política, Michaud distingue entre
“violência política difusa”, praticada por grupos, seitas, comunidades e que é pouco
organizada e bastante espontânea; “violência contra o poder”, que é a violência das
insurreições e dos golpes de Estado e a “violência do poder” que é aquela praticada
pelo Estado, que visa estabelecer, manter e fazer funcionar o poder político
(MICHAUD, 1989, p. 22).
Boudon e Bourricaud, por sua vez, distinguem entre “violência-anomia”, que é o
resultado das relações agressivas entre os setores mais desordenados da
sociedade e a “violência estratégica”, um recurso de poder que permite ao detentor
da maior força física jogar com a ameaça do uso da força par e dobrar a resistência
do adversário sem, necessariamente, efetivá-lo (BOUDON; BOURRICAUD, 1993, p.
607).
Da mesma forma que alguns autores fazer uma relação direta entre monoteísmo e
intolerância, alguns estudiosos defendem uma ligação intrínseca entre o
monoteísmo e a violência. Magalhães sustenta a tese de a violência é um dos
pilares da estrutura simbólica da tradição judaico-cristã (MAGALHÃES, 2007, p. 16).
Para ele, a violência é parte integrante da religião porque é parte integrante da vida
(MAGALHÃES, 2007, p. 17). Ele afirma que a violência, no monoteísmo judaico-
cristão, exerce um fascínio, que inclui uma “estética masoquista”, que se manifesta
no martírio, no Deus que salva o mundo matando seu Filho, na cruz que os crentes
devem carregar, no mundo que deve ser odiado e nos infiéis que devem morrer
(MAGALHÃES, 2007, p. 18).
24
De igual forma, Tessore afirma que a justificação religiosa da violência não é um fato
marginal da história das religiões, especialmente no Cristianismo e no Islamismo,
cujos livros sagrados são a fonte dessa justificação (TESSORE, 2007, p. 18). Para
ele, a legitimação da guerra santa é fruto de uma visão radicalmente espiritual do
mundo, na qual a salvação da alma é mais importante do que a morte do corpo
(TESSORE, 2007, p. 17).
Sem negar a onipresença da violência na Bíblia, Collins observa que existe, no texto
bíblico, uma diversidade de pontos de vista e que o recurso à violência não é o único
modelo de conduta oferecido pelas Escrituras (COLLINS, 2006, p.46). Ele cita o
exemplo da interpretação alegórica de antigos autores cristãos e judeus, que
procuravam interpretar os textos mais violentos de forma não literal (COLLINS,
2006, p. 44). Contudo, como veremos no caso de Agostinho e seus
contemporâneos, o recurso à uma interpretação literal de tais textos tornou-se lugar
comum no contexto do Cristianismo pós-constantiniano.
1.3 DISCURSO, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO SOCIAL
O conceito de representação social possui uma longa e complexa história. De um
modo geral, podemos dizer que ele trata da questão entre a realidade, seu
significado e sua imagem (CHARAUDEAU, 2004, p. 431). As representações sociais
se configuram em discursos que expressam os conhecimentos, as crenças e os
valores que os indivíduos se dotam para julgar a realidade. Tais discursos
desempenham um papel fundamental na construção das identidades coletivas
( CHARAUDEAU, 2004, p. 433).
O conceito remonta ao trabalho de Durkheim que falava de “representação coletiva”.
Para ele, a representação coletiva não era o equivalente à mera soma das
representações individuais de uma dada coletividade, mas um novo conhecimento,
cuja função primordial seria o de repassar a herança coletiva dos antepassados às
novas gerações (ALEXANDRE, 2004, p. 131).
25
Reformulado por Moscovici, o conceito passou a significar, na psicologia social, as
crenças, os conhecimentos e as opiniões que são produzidas e compartilhadas
pelos integrantes de um grupo social a respeito de certos objetos sociais
(CHARAUDEAU, 2004, p. 432). Para Moscovici, ao contrário de Durkheim, através
das representações sociais não se transmite apenas a herança coletiva dos
antepassados, pois o indivíduo tem papel ativo na construção da sociedade.
(ALEXANDRE, 2004, p. 131). As representações sociais possuem um importante
papel na formação de condutas, modelando comportamentos e justificando sua
expressão (ALEXANDRE, 2004, p. 132).
Para Jodelet, as representações são formas de conhecimento socialmente
elaboradas, que contribuem para a construção de uma realidade comum e que se
manifestam na forma de imagens, conceitos, categorias, teorias
3
. São, portanto,
fenômenos sociais que não podem ser entendidos fora do seu contexto de produção
(JODELET, 1984 apud ALEXANDRE, 2004, p. 131).
De acordo com Sandra Jovchelovitch, as representações estão constantemente se
relacionando com outras representações que falam a partir de outros sujeitos e
lugares sociais. Essa relação pode ser ser de conflito e competição, de diálogo ou
de dominação. As representações sociais são também construções simbólicas, pois
“a substância ou o conteúdo do qual as representações são feitas, são símbolos”
(JOVCHELOVITCH, 2002, p. 77).
No campo da História, Roger Chartier trabalha o conceito de representação social a
partir da perspectiva da história cultural, cuja principal tarefa ele define como
“identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada
realidade social é construída, pensada, dada a ler” (CHARTIER, 1990, p. 16). As
representações não são neutras, pois estão determinadas pelos interesses dos
grupos que as produzem e produzem estratégias e práticas que impõem a
autoridade de uns sobre outros, legitimam projetos, escolhas e condutas. Para
Chartier, as lutas de representação têm tanta importância quanto às lutas
3
Concordamos com Silva quando nos adverte que podemos falar de “construção da realidade”
como metáfora, uma vez que a realidade existe independente de a nomearmos ou não (SILVA, 2004,
p. 14).
26
econômicas (CHARTIER, 1990, p. 17). Chartier afirma ainda que as representações
têm por objetivo a construção do mundo social e, como tal, a definição das
identidades (CHARTIER, 1990, p.18).
No conceito de representação relaciona-se uma imagem presente e um objeto
ausente, sendo a imagem tomada pelo objeto, o signo pela coisa significada
(CHARTIER, 1990, p. 21). Corre-se porém o risco de tomar-se o verdadeiro pelo
falso, a realidade pela mera aparência, e a representação transformar-se assim em
“máquina de fabrico de respeito e de submissão” (CHARTIER, 1990, p. 22).
Para Chartier, o conceito de representação permite articular três modalidades de
relação com o mundo social: primeiro, o trabalho de classificação e delimitação pelo
qual a realidade é contraditoriamente construída pelos diferentes grupos sociais;
segundo, as práticas que visam fazer reconhecer uma identidade social e, terceiro,
as formas institucionalizadas por meio das quais os “representantes” tornam visível e
perpetuam a existência do grupo (CHARTIER, 1990, p. 23).
De acordo com Charaudeau as representações sociais se configuram em discursos
que testemunham ora sobre um saber de conhecimento sobre o mundo, ora sobre
um saber de crenças que contêm sistemas de valores que indivíduos usam para
julgar a realidade. Tais discursos desempenham um papel na construção da
identidade de um grupo social (CHARAUDEAU, 2004, p. 433).
No discurso religioso, as representações sociais se configuram de maneira a permitir
aos crentes interpretar e julgar a realidade a partir de seus valores teológicos e
éticos, estabelecendo critérios tanto para se determinar a identidade de quem
pertence ao grupo (os ortodoxos), quanto a alteridade de quem dele se diferencia
(os pagãos, os judeus, os heréticos e os cismáticos).
A repressão aos donatistas coloca Agostinho diante da tarefa de legitimar
teologicamente a violência usada contra os hereges (BROWN, 2005, p. 293). Para
isso ele precisa construir uma representação do donatismo que justifique a ação
violenta como algo necessário e justo. Tratava-se de construir a representação de
um outro, de representar uma alteridade o que implicava, ao mesmo tempo, na
27
construção de sua própria identidade.
A afirmação da identidade de um grupo se dá sempre dentro de um quadro de
alteridade: “o eu não pode tomar consciência do seu ser-eu a não ser porque existe
um não-eu que é outro, que é diferente” (CHARAUDEAU, 2004, p. 35). A imagem
que se faz de si depende da imagem que se faz do outro. Ao se considerar a noção
de identidade é necessário também considerar as noções de sujeito e de alteridade.
A primeira, permite postular a existência daquele que diz “eu”, enquanto a segunda
aponta para a existência de um outro, sem o qual não se pode tomar consciência de
si, pois é a partir da diferença entre “si” e o “outro” que o sujeito é constituído.
(CHARAUDEAU, 2004, p. 266).
A identidade não é um dado natural, mas uma construção, formada a partir da
interação entre o eu e o mundo. Da mesma forma, como diz Jodelet (2002, p. 50), a
alteridade não é um atributo natural do objeto visado, mas uma qualificação que lhe
é dada a partir do exterior. Ainda de acordo com Jodelet (2002, p. 47), a alteridade é
produto de um duplo processo de construção e de exclusão social, ligados de
maneira intrínseca. Assim, a elaboração da diferença segue um duplo movimento:
um é orientado para o interior do grupo, visando proteção; o outro volta-se para o
exterior, visando desvalorizar o diferente (JODELET, 2002, p. 51). De acordo com
Norbert Elias (2004, p. 19), é comum aos grupos mais poderosos se auto-
representarem como superiores em relação aos outros, o que implica numa atitude
de estigmatização dos grupos menos poderosos.
A linguagem é o meio por excelência dos processos de estigmatização. Através da
fixação de rótulos
,
pretende-se fortalecer, de um lado, a visão positiva que se tem
acerca do seu próprio grupo e, por outro, legitimar a exclusão do outro. Silva (2004,
p. 24) fala de dois tipos de rótulos: estereótipos e preconceitos. Estereótipos são
definidos como esquemas mentais que simplificam uma realidade bem mais
complexa, tornando-a mais compreensível ao eleger algumas características que a
identificam externamente. Preconceitos são julgamentos formulados sem um
conhecimento prévio a respeito de um indivíduo ou coletividade. Para Amossy (2004,
p. 216), a estereotipia procura naturalizar o discurso, escondendo o cultural sob o
natural.
28
Mas o sucesso da estigmatização não depende apenas de palavras. Como lembra
Norbert Elias ,“um grupo pode estigmatizar outro com eficácia quando está bem
instalado em posições de poder das quais o grupo estigmatizado é excluído”(ELIAS,
2002, p. 23). A posição politicamente privilegiada do catolicismo em relação ao
donatismo certamente foi fundamental para a construção da sua identidade como a
“verdadeira Igreja” a partir da estigmatização do donatismo como “heresia” e
“cisma”. Elias também afirma que a capacidade de estigmatização de um grupo
diminui, e até se inverte, quando este deixa de ter o monopólio do poder, permitindo
ao grupo anteriormente estigmatizado retaliar por meio de uma contra-
estigmatização (ELIAS, 2002, p. 24).
1.4 AGOSTINHO E A RETÓRICA CRISTÃ
A retórica pode ser compreendida “como o uso da comunicação para definir as
coisas da maneira como desejamos que os outros as vejam” (HALLIDAY, 1990, p. 8).
A retórica presta-se tanto à tentativa de fazer alguém mudar de ideia ou de
comportamento, quanto a reforçar crenças e atitudes já existentes (HALLIDAY, 1990,
p. 36). No discurso retórico, tão importante quanto o que é dito é o como é dito e
qual é o efeito que se produz. Por isso, a necessidade de argumentos, de provas,
perorações, que visam persuadir o interlocutor: “persuadir não é apenas sinônimo de
enganar, mas também o resultado de certa organização do discurso que o constitui
como verdadeiro para o receptor” (CITELLI, 2002, p. 14).
Na retórica, busca-se não somente o convencimento racional, mas também o
emotivo. Não se quer apenas convencer as mentes, almeja-se ganhar os corações
(CITELLI, 2002, p. 19). Para cumprir seus objetivos, a retórica faz uso de muitas
figuras de linguagem que têm por objetivo prender a atenção do receptor: metáforas,
eufemismos, estereótipos, etc.
A arte retórica tem o seu berço na Grécia Antiga, no início do século V antes de
Cristo. As origens precisas são difíceis de se determinar, mas é certo que cabe aos
29
sofistas a construção de “uma certa conjunção de concepções epistemológicas e
éticas extraordinariamente propícias ao seu desenvolvimento” (BARILLI, 1979, p.
14). Na concepção sofística, não existe uma verdade, existem argumentos que
podem ser mais ou menos convincentes, e a tarefa do sofista era exatamente
apresentar tais argumentos da maneira mais persuasiva possível (BARILLI, 1979, p.
15). Para os sofistas, a verdade era individual e temporária, era “simplesmente
aquela de que podia ser persuadido, e era possível persuadir qualquer um de que
preto era branco. Pode haver crença, mas nunca conhecimento” (GUTHRIE, 1995,
p. 52).
No período em que os sofistas viveram florescia nas cidades gregas o ideal do
homem político. Neste contexto, a proposta dos mestres sofistas era a de “equipar o
espírito do cidadão para a carreira de homem do Estado” (MARROU, 1975, p. 83).
O ensino da retórica era parte capital do programa pedagógico dos sofistas, porque
saber fazer uso da palavra para persuadir o auditório e obter a aprovação da maioria
era o caminho do sucesso político (GUTHRIE, 1995, p. 51).
Platão (428-347 a.C.) foi o grande opositor do pensamento sofístico. Afirmando a
verdade sobre a aparência, Platão coloca a episteme (conhecimento) acima da doxa
(opinião) (BARILLI, 1979, p. 17). Ele prefere a dialética, que privilegia o confronto de
ideias breves e diretas, sem o recurso aos subterfúgios linguísticos característicos
da retórica. Para ele, a retórica sofística tem como objetivo a ilusão, enquanto a
dialética buscava a verdade (BARTHES, 1975, p. 153).
Depois de Platão, Aristóteles (384-322 a.C.) tentará uma conciliação entre os
elementos da disputa sofístico-platônica. Ele defenderá que, em torno de certas
matérias para os quais não existe o verdadeiro, é suficiente que se argumente em
favor do verossímil, de modo que o discurso se faça verdadeiro a partir da sua
própria lógica (BARILLI, 1979, p. 23). Diferentemente da dialética, a retórica requer
um tipo de raciocínio simplificado, que tenha por ponto de partida o senso-comum e
que chegue rapidamente à conclusão, sem o rigor do raciocínio dialético. A esse tipo
de silogismo ele denominou entimema (BARTHES, 1975, p. 157).
Aristóteles percebe também o caráter ambíguo do exercício retórico, que oscila entre
30
a forma e o conteúdo, entre a arte e a ciência, entre a teoria e a prática. Assim, o
retórico precisa dominar uma série de conteúdos, ao mesmo tempo que não pode
ser um especialista. Ele precisa saber relacionar entre si as diversas áreas de
conhecimento a fim de desempenhar bem o seu papel (BARILLI, 1979, p. 24).
Coube ainda a Aristóteles observar as fases que estão presentes do discurso
retórico, fases estas que, em grande medida, são ainda seguidas pela retórica
contemporânea: assim, o discurso retórico começa com o exórdio ou introdução, no
qual se indica o assunto a ser tratado e se procura captar a atenção do auditório; a
narração, onde os fatos e eventos são apresentados; a argumentação, na qual são
arroladas as provas daquilo que se está dizendo e a peroração ou epílogo, no qual
se tem a última oportunidade de persuadir os destinatários do discurso (CITELLI,
2002, p. 11-12).
A partir de Alexandre Magno (353-323 a.C.), uma nova perspectiva cultural entra em
cena. Com a expansão do Império Macedônico, o impulso helenizador fez surgir um
novo conceito de formação humana, a paideia:
Paideia (ou paideusis) vem a significar a cultura, entendida não no
sentido ativo, preparatório, de educação, mas no sentido perfectivo
que a palavra tem hoje entre nós: o estado de um espírito plenamente
desenvolvido, tendo desabrochado todas as suas virtualidades, o do
homem tornado verdadeiramente homem; é notável constatar que
quando Varrão e Cícero tiveram de traduzir paideia, preferirão dizer
em latim humanitas (MARROU, 1975, p. 158-159).
A unidade cultural do mundo grego será dada, sobretudo, por esse ideal comum de
humanidade e todos aqueles que a ele aspiram buscarão o mesmo tipo de
educação. Ela será o grande bem a ser buscado, ao qual se atribui uma dignidade
tal que se aproxima da devoção religiosa (MARROU, 1975, p. 163).
Neste contexto, a retórica ocupou lugar proeminente como parte essencial da
paideia. Seu ensino fazia parte dos níveis superiores da educação grega, sendo o
seu objeto mais específico (MARROU, 1975, p. 306). Seu objetivo, entretanto, difere
bastante das suas origens sofísticas. Na nova realidade política, já não se trata mais
de convencer uma assembléia de cidadãos. O homem político eficaz é agora aquele
31
que sabe conquistar a confiança do soberano. Mas o grande orador continuará
tendo prestígio social e político, como símbolo da cultura helenística, da paideia
(MARROU, 1975, 307).
No programa de estudos superiores, a retórica vinha logo depois da gramática.
Compreendia a teoria, o estudo de modelos e os exercícios de aplicação. Na parte
teórica estudava-se todo um vocabulário técnico, bem como os elementos da
construção dos discursos retóricos, seguindo o modelo aristotélico: a invenção, em
que se catalogam os lugares, os temas a serem tratados; a disposição, o plano do
discurso propriamente dito (exórdio, narração, argumentação, peroração); a
elocução, que fornecia regras de estilo, a memorização e finalmente a ação, que
dizia respeito ao corpo, aos gestos, à voz (MARROU, 1975, p. 311-314). Na segunda
parte, estudavam-se os modelos clássicos de discurso e, finalmente, procediam-se
os exercícios de aplicação a partir de temas propostos, todos eles fictícios e sem
aplicação na vida real. Tudo era muito formal e feito com finalidades estéticas.
Em Roma, a primeira escola de retórica foi aberta em 93 a.C. e fechada no ano
seguinte por ter sido considerada uma inovação contrária aos costumes tradicionais
(MARROU, 1975, p. 390). Entretanto, a retórica logo passou a fazer parte da
educação dos filhos das famílias mais abastadas. Ao lado da dialética, da gramática,
da aritmética, da música, da geometria e da astronomia, a retórica será uma das
“artes liberais”. Como na Grécia, a retórica romana é um símbolo de prestígio e
embora tenha sido importante na tribuna e no tribunal da República Romana, “seu
prestígio provinha muito mais do brilho literário que da função cívica” (VEYNE, 1898,
p. 36). O lugar que ocupava no ensino superior e a forma de aprendizado
continuaram idênticos ao modelo grego.
O personagem mais importante da retórica romana foi Cícero (106-43 a.C.), que
consolidou o ensino da retórica em latim. Dentro de sua visão de mundo, na qual a
prática tem ascendência sobre a teoria, a retórica ocupa um papel central e
unificador (BARILLI, 1979, p. 41). Seguindo de perto a tradição aristotélica, ele a
inova ao colocar a retórica acima da dialética (BARILLI, 1979, p. 43). Cícero busca
separar o abismo colocado entre o saber e o dizer, procurando fazer da filosofia uma
aliada da retórica (BARILLI, 1979, p. 45). Cícero é o autor da teoria dos três estilos
32
de retórica; o simples, o sublime e o temperado que serão explorados por Agostinho
em seu livro De doctrina christiana.
O projeto de Cícero era de que o ensino da retórica incluísse o conhecimento da
filosofia, do direito e da história. Entretanto, tal projeto nunca se concretizou e a
retórica romana permaneceu presa ao formalismo estético (MARROU, 1975, p. 438).
Apesar desse caráter formal, as escolas de retórica tornaram-se o celeiro onde o
Império, até o século VI, iria cultivar o pessoal adequado para ocupar os altos cargos
administrativos e governamentais (MARROU, 1975, p. 442).
Isso se explica pelo fato de que entre os romanos permaneceu vivo o ideal de
civilização, de paideia, dos gregos. A paideia era um distintivo social, difícil de se
adquirir e que uma vez adquirida tornava-se um caminho de promoção pessoal. A
retórica era o símbolo identificador desta cultura e um código comum para os
membros da elite (BROWN, 1992, p. 39). Ter passado por uma escola de retórica
significava ser considerado mais inteligente e refinado no falar e no agir (BROWN,
1992, p. 41).
Uma formação retórica dava ao aluno um senso de decoro verbal, educando-o para
usar bem as palavras. O retórico deveria ser capaz de impor respeito pela palavra,
não pela violência (BROWN, 1992, p. 44). Era também uma escola de cortesia, que
ensinava a elite a tratar-se com cordialidade e fraternidade, o que significava que
eram iguais entre si (BROWN, 1992, p. 45). Ensinava também o auto-controle, o
cuidado com as palavras, numa época em que a violência rondava a vida daqueles
que exerciam o poder (BROWN, 1992, p. 51). Todas essas qualidades eram
importantes para aqueles que exerciam o poder em qualquer nível, incluindo o
próprio imperador, que deveria ser um modelo de exercício de poder (BROWN,
1992, p. 58).
No Cristianismo, o discurso possui um lugar central. A sua está centrada no
dogma segundo o qual a própria Palavra de Deus se fez carne na pessoa de Jesus
Cristo. Como uma religião de proposta universalista, interessada em fazer adeptos
de todas as culturas e grupos sociais, o discurso cristão se desenvolveu no Império
Romano apropriando-se tanto de sua herança judaica, quanto de seu ambiente
33
greco-romano, a fim de construir um discurso que tinha elementos tanto de
continuidade, quanto de descontinuidade com os de seus contemporâneos
(CAMERON, 1994, p. 21).
O discurso cristão possui as suas peculiaridades. Em primeiro lugar, é um discurso
essencialmente figurativo: como na arte visual, o discurso cristão antigo apresenta-
se com uma série de figuras carregadas de significados, que apelam à imaginação
(CAMERON, 1994, p. 57). Em segundo lugar, no discurso cristão a narrativa
desempenha um papel fundamental na propagação da sua mensagem, na
inculcação de crenças e na construção de seu universo simbólico (CAMERON,
1994, p. 93). É também a narrativa que permite ao discurso cristão, depois de
Constantino, se apropriar do passado pagão para explicar o presente e o futuro em
seus próprios termos (CAMERON, 1994, p. 122). Em terceiro lugar, o discurso
cristão faz uso do paradoxo, da linguagem do mistério, de grande apelo retórico
(CAMERON, 1994, p. 155).
Alimentado pela na revelação divina, o Cristianismo desconfiará da validade da
retórica e argumentará que a força da verdade revelada torna dispensável o uso dos
recursos retóricos. Trata-se, na verdade, de uma retórica da anti-retórica. Os Pais da
Igreja do segundo culo, por exemplo, vão edificar o seu discurso sobre as bases
de um gênero tipicamente retórico, o judicial, manifesto nos escritos apologéticos
nos quais se procurará defender o Cristianismo das acusações que lhe são feitas
(BARILLI, 1979, p. 58). Da mesma forma, os bispos cristãos do século IV eram eles
próprios educados nos valores da paideia (BROWN, 1992, p. 123). Como vimos,
uma boa formação retórica era o mais notável desses valores.
Agostinho não fugiu à regra. Aurelius Augustinus, nasceu em Tagaste, província
romana da Numídia, em 13 de novembro de 354, filho do pagão Patrício e da cristã
Mônica. Por intermédio dos esforços de Patrício e da ajuda de um amigo e benfeitor
da família, Romaniano, Agostinho pôde estudar e receber a educação nas artes
liberais que podia abrir carreiras no magistério ou na magistratura (MARROU, 1957,
p.14). Assim, dos sete aos dezenove anos, Agostinho estudou em Tagaste, Madaura,
e, finalmente, em Cartago. A educação de Agostinho foi fundamentalmente literária e
latina, e o seu desconhecimento da língua grega é um revelador da distância cada
34
vez mais profunda entre o Oriente e o Ocidente, que já se tornava uma característica
típica de sua época (MARROU, 1957, p. 16).
Ele foi educado para ser um mestre da oratória, alguém capaz de se expressar de
tal maneira que fosse capaz de chorar e de fazer os seus ouvintes chorarem
(BROWN, 2005, p. 43). Foi a nomeação para um importante cargo de professor de
retórica que o levou a Milão em 384 e foi por interesse na arte da oratória que ele
passou a frequentar a igreja do bispo Ambrósio, personagem marcante na sua
conversão ao Cristianismo. De início, seu interesse nos sermões do bispo de Milão é
de natureza técnica, formal:
Acompanhava assiduamente suas conversas com o povo, não com a
intenção que deveria ter, mas para averiguar se sua eloquência
merecia a fama de que gozava, se era superior ou inferior à sua
reputação. Suas palavras me prendiam a atenção. Mas o conteúdo
não me preocupava, até o desprezava. Eu me encantava com a
suavidade de seu modo de discursar; era mais profundo, porém
menos jocoso e agradável que o de Fausto [líder maniqueu] quanto à
forma. (Confissões, 5,13.23)
Após a sua conversão, a avaliação que passa a fazer do seu antigo ofício é bastante
negativa. Eis como ele descreve a sua prática nas Confissões:
Naqueles anos eu ensinava retórica: vencido pelas paixões, eu vendia
tagarelices [loquacitatem] para ensinar a ganhar causas. Todavia,
Senhor, tu bem sabes que eu preferia ter bons discípulos, no
verdadeiro sentido da palavra, e, sem artimanhas, eu lhes ensinava
artifícios úteis, dos quais pudesse um dia usar, não contra a vida de
um inocente, mas, quem sabe, para salvar a vida de um culpado
(Confissões, 4, 2.2).
Numa obra escrita por volta do ano de 405, intitulada De catechizandis rudibus [“A
instrução dos catecúmenos”], Agostinho orienta como devem ser instruídos aqueles
alunos que possuem formação retórica e desejam se tornar cristãos:
[...] devemos dizer-lhes, mais insistentemente que aos iletrados, que
os aconselhamos com empenho a assumir a humildade cristã.
Aprenderão assim a não desprezar aqueles que - eles bem sabem -
evitam mais os vícios dos costumes do que os cios da linguagem e
não se atreverão a comparar com um coração puro a língua cultivada
35
que costumavam preferir (A instrução dos catecúmenos, 9.13).
Neste mesma obra, Agostinho também ensina que o catequista deve falar de tal
maneira que a sua fala se adapte à capacidade dos ouvintes e à diversidade das
situações (12.17; 15.23). Aqui se encontra uma teoria da acomodação, segundo a
qual os mistérios divinos devem ser adaptados, por meio de imagens sensíveis, às
limitações da natureza humana. É um recurso retórico amparado por um conceito
teológico, segundo o qual o próprio Deus se humilhou na encarnação do Verbo a fim
de comunicar a sua salvação aos homens (BOYLE, 1990, p. 118).
A principal fonte para o nosso conhecimento a respeito do que Agostinho pensa
sobre a tradição retórica é a obra De doctrina christiana [“A doutrina cristã”],
concluída por volta de 427. O livro é um manual de exegese, hermenêutica e de
pregação: “a maneira de descobrir o que é para ser entendido e a maneira de expor
com propriedade o que foi entendido” (A doutrina cristã 1, 1.1). Considerando como
o cristão pode se apropriar da cultura geral, ele diz a respeito da eloquência:
Existem também certas normas para um discurso mais desenvolvido,
chamadas eloquência. Apesar de serem normas verdadeiras, elas
podem persuadir coisas falsas. Mas, como graças a essas normas, os
homens podem também expor o que é verdadeiro, a culpa não é da
arte da palavra, mas a perversidade vem dos que dela se servem mal
(A doutrina cristã, 2, 37.54).
Embora constate uma certa neutralidade da eloquência, Agostinho adverte contra o
perigo do orgulho que pode estar associado à aquisição deste tipo de conhecimento:
As regras da retórica podem, é verdade, tornar os espíritos mais
exercitados, a não ser que não os faça mais maldosos e orgulhosos,
isto é, levados a sentir prazer em enganar com perguntas e questões
aparentes, ou a se imaginar possuidores de um bem tão valioso que
os torna superiores aos outros homens, bons e inocentes (A doutrina
cristã, cristã 2, 38.55).
O livro IV desta obra é inteiramente dedicado a oratória. Aqui transparece com
clareza a herança retórica ciceroneana de Agostinho, ao mesmo tempo que surgem
as peculiaridades de sua própria perspectiva cristã. De início, ele faz uma forte
36
defesa do uso dos conhecimentos retóricos pelo pregador cristão:
É um fato, que pela arte da retórica é possível persuadir o que é
verdadeiro como o que é falso. Quem ousará, pois, afirmar que a
verdade deve enfrentar a mentira com defensores desarmados? [...]
Visto que a arte da palavra possui o duplo efeito (o forte poder de
persuadir seja para o mal, seja para o bem), por qual razão as
pessoas honestas não poriam seu zelo a adquiri-la em vista de se
engajar ao serviço da verdade? (A doutrina cristã, 4, 2.3).
Como arte da persuasão, a retórica adequa-se aos objetivos da pregação cristã, que
visa “conquistar o hostil, motivar o indiferente e informar o ignorante”, bem como
“comover os corações” (A doutrina cristã 4,4.6).
Agostinho insiste, contudo, para que o pregador cristão não esqueça que tem o
dever de ser fiel, antes de tudo, às Escrituras Sagradas, o que equivale dizer que ele
deve colocar a sabedoria acima da forma. Contudo, “o orador que deseja falar, não
somente com sabedoria, mas também com eloquência, se mais útil se puder
empregar essas duas coisas” (A doutrina cristã 4,5.8).
Ao comentar a respeito da eloquência presente nas Sagradas Escrituras, Agostinho
adverte os seus leitores sobre a importância da clareza devida ao orador cristão:
“Devem [...] em todos os seus discursos, trabalhar primeiramente, e, sobretudo, para
se tornarem compreensíveis, pelo modo de falar mais claro possível” (A doutrina
cristã 4,8.22). Essa insistência na clareza está plenamente de acordo com a teoria
da acomodação supra citada.
Uma outra preocupação de Agostinho é de que o uso de artifícios retóricos não
comprometa a verdade da mensagem a ser proclamada: “amar nas palavras a
verdade e não as próprias palavras. Para que serve uma chave de ouro, se ela não
pode abrir o que desejamos? No que é prejudicial uma chave de madeira, se ela
pode abrir?” (A doutrina cristã 4,11.26).
Ao analisar os estilos de retórica, Agostinho depende diretamente de Cícero. É dele
que Agostinho faz a citação a respeito dos três objetivos do orador: instruir, agradar
e convencer. O primeiro destes objetivos diz respeito às ideias; os dois últimos a
37
forma como o orador as expõe (A doutrina cristã 4,12.27). Tendo em vista que, para
Agostinho, a verdade é o que deve nortear o orador, a instrução deve ser o seu
primeiro objetivo, mas não é o suficiente. Ele também precisa agradar, para
conquistar a atenção do auditório e, principalmente, convencer se quiser que os
seus ouvintes ajam de acordo com o que ele prega:
É portanto necessário que o orador eclesiástico ao persuadir a
respeito do dever a ser cumprido, não somente ensine para instruir e
agrade para cativar, mas, ainda, convença para vencer. Não lhe resta,
com efeito senão um meio para levar o ouvinte a dar seu
consentimento: o de convencer pelo poder da eloquência, no caso em
que a demonstração da verdade unida ao encanto da expressão não
conseguiu fazê-lo (A doutrina cristã, 4,13.29).
Em seguida, Agostinho recorre mais uma vez a Cícero para falar dos três estilos de
oratória: o simples, o temperado e o sublime: o primeiro é destinado aos assuntos
simples, o segundo aos assuntos médios e o terceiro aos assuntos grandiosos (A
doutrina cristã 4,18.34). Agostinho adianta-se em dizer que o pregador, ao falar das
coisas da salvação eterna dos homens, trata sempre de grandes assuntos (A
doutrina cristã 4, 19.35). Apesar disto, o deve ele sempre utilizar o estilo sublime,
mas saber selecionar o estilo também de acordo com o propósito que se tem em
vista:
Ainda que o nosso orador capacitado tenha sempre questões
importantes a tratar, ele não deve fazê-lo constantemente em estilo
sublime, mas em estilo simples, se estiver a ensinar; e em estilo
temperado, se estiver a censurar ou louvar. Mas quando for preciso
determinar à ação os ouvintes que deveriam agir, mas que resistem,
ele empregará, então, para expor as grandes verdades, o estilo
sublime e os acentos próprios a comover os corações (A doutrina
cristã, 4,20.38)
O estilo sublime é aquele que “mais frequentemente faz cerrar a garganta e leva a
derramar lágrimas” (A doutrina cristã 4,25.53). Agostinho cita um exemplo pessoal:
pregando em Cesaréia da Mauritânia, ele tentava convencer grupos rivais a cessar
as hostilidades entre si e evitar assim um banho de sangue. Após o sermão, o
auditório irrompeu em aclamações e lágrimas: “Suas aclamações indicavam que
38
foram instruídos e comovidos; suasgrimas, que estavam convencidos” (A doutrina
cristã 4,25.53).
Por fim, Agostinho volta a advertir: “o orador não deve ser escravo da expressão,
mas a expressão deve servir ao orador” (A doutrina cristã 4,29.61). Mais importante
do que falar com eloquência é falar com sabedoria e servir à verdade.
Em seus textos, Agostinho faz uso de alguns esquemas retóricos básicos a fim de
produzir o efeito persuasivo necessário. Como veremos ao analisar seus escritos
antidonatistas, é comum o uso de estereótipos, o recurso a eufemismos, a criação
de inimigos, o apelo às fontes de autoridade, a reiteração de ideias (CITELLI, 2002,
p. 47-48). Estes e outros recursos denunciam o caráter eminentemente retórico
desses discursos.
39
2. CRISTIANISMO E PODER
2.1 ESTADO E RELIGIÃO EM ROMA
Havia entre o povo romano a convicção de ser o mais religioso dos povos (ROSA,
2006, p. 137). Os deuses romanos, porém, o são concebidos como
absolutamente transcendentes como acontece com a divindade no Judaísmo e no
Cristianismo. Assemelham-se bastante aos homens, podendo ser melhor descritos
como sobre-humanos, o que significa que estão acima dos homens, mas não são
absolutamente distintos deles (VEYNE, 1989, p. 203). Deuses e homens estavam
sempre interagindo na urbs, presentes nos rituais, nos templos, nos jogos, nos
eventos públicos. Eram, neste sentido, cidadãos que participavam dos triunfos e
derrotas da cidade (ROSA, 2006, p. 141).
Os deuses são, antes de tudo, protetores que se devem agradar devidamente, numa
relação de troca (CORASSIN, 2001, p. 97). A relação dos romanos com seus deuses
assemelha-se à relação que os homens devem manter com os reis ou patronos,
seguindo o modelo das relações políticas e sociais então vigentes (VEYNE, 1989, p.
204).
A religião romana tinha uma face privada e uma outra pública. No âmbito privado,
cada um era livre para escolher suas devoções, desde que não gerasse problemas
para a ordem ou a moralidade públicas (MARCOS, 2004, p. 51). Era comum que em
cada casa romana existisse um altar doméstico, onde se faziam oferendas e
libações. O pai de família era o responsável pela religião doméstica, e deveria
cultuar as divindades que protegiam a casa. No campo, cultuavam-se os deuses
protetores da terra e dos rebanhos (CORASSIM, 2001, p. 97).
A religião pública, ao contrário, era controlada pelo Estado e requeria a adesão de
todos os cidadãos. Independente de se crer ou não nos deuses, era um dever de
40
todo cidadão prestar-lhes a devida veneração. O cumprimento deste dever
caracterizava a piedade (pietas), enquanto que a impiedade podia ser interpretada
como um ato de inconformismo e resistência política (MARCOS, 2004, p. 51).
A religião oficial em Roma era um componente da vida cívica. O culto público,
dirigido pela elite local no espaço urbano, sedimentava os laços de solidariedade da
comunidade. Era uma religião comunitária, que dizia respeito ao indivíduo somente
como membro da comunidade. Era, por isso, uma religião com claras implicações
políticas (BUSTAMANTE, 2006, p. 118).
O conceito central das relações entre religião e política na sociedade romana é o de
pax deorum, que se sustentava sobre a crença de que a paz e a prosperidade de
Roma dependiam da vigilância dos deuses. A negligentia deorum traria derrotas
militares, epidemias ou catástrofes naturais (MARCOS, 2004, p. 52).
O cumprimento dos deveres religiosos se dava por meio de rituais que consistiam
em preces e oferendas, cuja apresentação era rigorosamente detalhada
(CORASSIM, 2001, p. 98). Tais rituais se faziam presentes nos eventos
propriamente religiosos, bem como nas ocasiões políticas, nos jogos, nas
encenações. Tais categorias, aliás, parecem ser indivisas para os romanos (ROSA,
2006, p. 141).
Os prodígios eventos extraordinários, sinais de desequilíbrio na relação entre os
deuses e os homens são fundamentais para compreender a religião romana. Um
prodígio usualmente era interpretado como decorrente de falhas humanas que
deveriam ser reparadas (ROSA, 2006, p. 142).
Festa e religião conviviam juntas. A festa é uma homenagem aos deuses, sendo
tanto um prazer, quanto um dever. Os sacrifícios eram também refeições em que se
comiam a carne dos animais imolados (VEYNE, 1989, p. 191).
Os jogos, apesar de seu caráter lúdico, nunca perderam seu aspecto ritual.
Contavam com a participação dos deuses e com um grupo especializado de
sacerdotes para supervisionar as cerimônias sagradas (ROSA, 2006, p. 142). Havia
também uma relação entre o templo e o teatro, sendo que vários templos tinham
41
teatros a eles relacionados e acreditava-se que os deuses assistiam às
representações (ROSA, 2006, p. 144).
Como a religião era parte da administração pública, o Estado podia e devia legislar a
respeito da religião. Em termos legais, Roma distinguia entre o que era aceitável
(religio) e o que era inaceitável (superstitio). Este último termo teve vários
significados que foram mudando com o tempo. Podia se referir às práticas religiosas
irregulares, que não seguiam os costumes estatais; ou a um compromisso religioso
excessivo; ou ainda às práticas religiosas de determinados povos estrangeiros, um
uso que começa a partir do segundo século d.C. (MARCOS, 2004, p. 54).
O fato de que as elites romanas contavam com a religião como um meio de legitimar
suas reivindicações de autoridade não exclui a existência de um verdadeiro respeito
religioso – tanto por parte do povo, quanto por parte das elites – para com os deuses
e os rituais, pois estes eram os garantidores da ordem romana (ROSA, 2006, p. 145-
6).
Apesar do seu tradicionalismo, a religião romana era, ao mesmo tempo, aberta à
inovações. Essas inovações talvez não fossem percebidas como tais pelos
contemporâneos, uma vez que a assimilação de novos deuses e de novas práticas
se dava por um processo de reinterpretação mediante o qual se identificava o que
era novo a partir de uma referência ao que era antigo e tradicional (ROSA, 2006, p.
146).
Uma importante inovação aconteceu na época de Augusto (27 a.C 14 d.C.),
quando o princeps assumiu o papel de pontifex maximus, o que o tornava líder do
principal colégio sacerdotal e responsável por todas as iniciativas religiosas. A partir
de então, o detentor do poder político era também o detentor do poder religioso, e os
seus sucessores conservaram este tulo até o século IV d.C. (ROSA, 2006, p. 146-
7). Para Augusto e seus contemporâneos, entretanto, o que está em andamento não
é tanto uma inovação, mas uma restauração da religião, que muitos na época
consideravam em declínio. Tal restauração seria necessária para garantir a paz
(ROSA, 2006, p. 149).
42
Uma outra inovação parece ter sido o chamado “culto imperial”. Embora haja
controvérsias quanto ao caráter inovador desta prática, é certo que o culto gerava
tensões: os judeus sacrificavam em prol do imperador, não para o imperador. Os
cristãos se negavam a qualquer sacrifício. Certos membros da elite também tinham
dificuldade em ver o imperador como um deus. Todavia, a maior parte da população
parece não ter compartilhado destas dificuldades (ROSA, 2006, p. 150).
É lugar comum afirmar que os romanos eram tolerantes em matéria de religião, visto
que conviviam e até incorporavam novos cultos ao longo do tempo. Contudo, a
assimilação de crenças e tradições distintas não era isenta de conflitos, uma vez que
a afirmação de uma crença envolvia quase sempre a negação de outras (SILVA,
2001, p. 98). É mais correto dizer que eles toleravam aquilo que não lhes parecia
perigoso, que não representasse, na sua concepção, uma ameaça à ordem (ROSA,
2006, p. 151). Foi assim que em 180 a.C. as autoridades romanas se voltaram
contra o culto a Baco, provavelmente porque viram em sua forma de organização,
que aparentemente valorizava mais as crenças do indivíduo e da comunidade de
crentes do que a religião oficial, uma nova e perigosa forma de poder (ROSA, 2006,
p. 153). Outros casos envolvem a expulsão de Roma de astrólogos e de seguidores
de Ísis, tratados com suspeição possivelmente pelo seu caráter de cultos
estrangeiros, presumidamente anti-romanos (ROSA, 2006, p. 155). Em graus
diferentes, esse tipo de desconfiança se abaterá sobre os chamados “cultos
orientais de mistério”, bem como sobre o Judaísmo e o Cristianismo.
2.2 CRISTIANISMO E PODER POLÍTICO NO IMPÉRIO ROMANO
A primeira fase de expansão do movimento cristão aconteceu ainda na primeira
metade do século I, impulsionada por pregadores itinerantes que levaram a
mensagem da nova por todo o Mediterrâneo, inclusive a Roma (IRVIN;
SUNQUIST, 2004, p. 51).
A princípio, o poder imperial não fez distinção entre judeus e cristãos. As disputas
43
entre estes dois grupos eram consideradas como querelas religiosas internas, sem
maiores implicações políticas (Atos dos Apóstolos, 18:12-16). Os cristãos são
tolerados como uma seita dentro do Judaísmo, que tinha então o estatuto de religio
licita. A situação muda a partir do ano 64, com a perseguição desencadeada pelo
imperador Nero (54-68). É possível que a perseguição tenha sido uma tentativa
desse Imperador de livrar-se da suspeita de ter provocado o grande incêndio de
Roma, acusando os cristãos de serem os verdadeiros incendiários (JEFFERS, 1995,
p. 33). A acusação de superstitio encontrou eco na antipatia nutrida contra os
cristãos por certos setores da população romana, em virtude de sua crítica aos
deuses e do seu proselitismo.
Apesar de não ter se estendido à Itália e às províncias, a perseguição deixou um
considerável saldo de mortos (JEFFERS, 1995, p. 33), além de complicar a situação
legal dos cristãos. Do ponto de vista oficial, cristãos e judeus são agora
considerados grupos religiosos distintos (CHEVITARESE, 2006, p. 167).
Após a morte de Nero, não existe nenhuma evidência de perseguição aos cristãos
por parte do Império e as comunidades cristãs parecem ter continuado a crescer
sem nenhum constrangimento maior neste período (JEFFERS, 1995, p.34).
O ano de 95 marca uma outra mudança nas relações entre Império e Igreja: durante
o governo de Domiciano (81-96) uma nova perseguição é desencadeada contra os
cristãos. Tem-se notícia da presença de cristãos entre os membros da elite romana,
que se recusam a participar dos cultos tradicionais e que teriam sido a causa
principal da perseguição (FREND, 2002, p. 1141). A perseguição, antes restrita
praticamente à cidade de Roma, atinge todo o Império e o Cristianismo é identificado
claramente como superstitio (CHEVITARESE, 2006, p.169). Na correspondência do
imperador Trajano (98-117) com Plínio, seu legado especial na Bitínia, revela-se o
tratamento que deveria ser dado à “questão cristã”: a iniciativa da investigação não
deveria partir do Império; contudo, caso alguém fosse denunciado como cristão,
deveria ser punido, a menos que se retratasse, mediante a adoração aos deuses de
Roma (FREND, 2002, p. 1141).
A segunda metade do século II inicia uma nova fase de perseguições, a partir do
44
governo de Marco Aurélio (161-180). Os cristãos são apontados como os
responsáveis pelos problemas vividos pelo Império (crise econômica, guerra civil,
avanço dos “bárbaros”, catástrofes naturais) por sua recusa em reverenciar os
deuses tradicionais e oferecer sacrifícios ao imperador, além de serem acusados de
incesto, canibalismo e ateísmo (FREND, 2002, p. 1141). Inicialmente, as acusações
são feitas por indivíduos, mas a partir de 177 o Império passa a permitir buscas e
investigações oficiais (CHEVITARESE, 2006, p. 172).
No fim daquele século, o imperador Cômodo (180-192) produziu uma outra mudança
da política em relação aos cristãos, desta vez de tolerância. Agora, embora não
sejam reconhecidos oficialmente, os cristãos podem adquirir legalmente seus
templos e cemitérios e até assumir cargos públicos (CHEVITARESE, 2006, p.173). A
própria casa imperial conta com a presença de cristãos e simpatizantes do
Cristianismo (SILVA, 2006, p. 245).
Apesar das perseguições sob Nero, Domiciano e Marco Aurélio, não se conhece
nenhum edito, nenhuma política geral de perseguições contra os cristãos até o
século III (SILVA, 2006, p. 245). Esse quadro sofre uma drástica mudança a partir
do início da Anarquia Militar (235-284). Trata-se de um período de quase meio
século, no qual os romanos tiveram de enfrentar a instabilidade política e a guerra
civil, além da ameaça externa representada pela Pérsia Sassânida na fronteira
oriental do Império, tendo como consequências, dentre outras, o enfraquecimento da
imagem do imperador e da crença na grandeza de Roma. Foi neste contexto que o
Cristianismo foi acusado de ser o culpado pela indiferença dos deuses em relação à
Roma (SILVA , 2006, p. 246). Embora gozem de relativa paz nos primeiros anos da
Anarquia, uma nova fase de perseguições contra os cristãos se estabelece com a
chegada de Décio (249-251) ao trono imperial. O Cristianismo se torna efetivamente
um problema político e todos os meios oficiais serão utilizados para coibi-lo (SILVA,
2006, p. 247). Um edito imperial, datado de 249 ou 250, determina que todos os
habitantes do Império compareçam diante dos magistrados para oferecer sacrifícios
e libações aos deuses. Aqueles que assim fizessem receberiam um certificado
(libellus) de que tinham cumprido a lei; os demais seriam punidos. O cumprimento
do decreto foi desigual ao longo do território do Império, mas a lei foi rigorosa o
45
suficiente para provocar uma grave crise na Igreja, devido ao grande número de
cristãos que negaram a fé em cumprimento ao edito imperial (SILVA, 2006, p. 248).
Em 257 o imperador Valeriano (253-260) determina por meio de uma epistula que os
lideres da Igreja sacrifiquem aos deuses e proíbe as reuniões públicas dos cristãos.
Em 258 uma nova epistula reafirma estas determinações e torna mais severas as
punições (SILVA, 2006, p. 249). Com a morte de Valeriano, seu filho Galieno (253-
268) suspende a perseguição e inaugura um período que será conhecido como a
“Pequena Paz da Igreja” e que durará até 303. Durante este período, o Cristianismo
gozará de relativa liberdade de culto e de propagação da fé, com um incremento
considerável no número de crentes. Embora não se possa falar do Cristianismo com
religio licita, as relações com o Império ganham um caráter cada vez mais
institucional (SILVA, 2006, p. 250).
É digno de nota que, neste período, os dirigentes da Igreja chegaram a apelar ao
imperador Aureliano (270-275) para que o bispo Paulo de Samósata, condenado por
heresia pelo Sínodo de Antioquia em 268, fosse expulso daquela cidade por meio da
força imperial, no que foram atendidos (FRANGIOTTI, 1995, p. 54).
A ascensão de Diocleciano (284-305) ao trono é o início de uma política de
reafirmação da dignidade imperial. Diocleciano procurou fortalecer o culto imperial
mediante a adoração ao imperador e aos deuses tradicionais, o que, mais uma vez,
conflitava com as crenças cristãs e o levou a retomar as perseguições a partir de
303, agora de uma forma muito mais violenta (SILVA, 2006, p. 251). As igrejas
cristãs foram destruídas, as funções religiosas foram proibidas e as Escrituras
cristãs deveriam ser entregues às autoridades e queimadas. Os cristãos que faziam
parte das camadas superiores deveriam perder seus privilégios (FREND, 2002, p.
1144). A legislação contra os cristãos foi aplicada em todo o Império, embora tenha
sido mais efetiva no Oriente, onde governava Galério, do que no Ocidente. Ali
grande foi o número de mártires, bem como de traditores, isto é, daqueles que
entregaram as Escrituras e os objetos sagrados para a destruição (SILVA, 2006, p.
252).
Acometido por uma doença, o próprio Galério (293-311), sucessor de Diocleciano
46
após a sua abdicação, proclamou um edito de tolerância (311) encerrando a Grande
Perseguição. Antes mesmo deste decreto, Constantino, filho de Constâncio Cloro,
que após a morte do pai é aclamado imperador da Bretanha, das Gálias e da
Espanha (306), decretou em seu território o fim das perseguições e a restituição dos
bens da Igreja. Em 313, Constantino estabeleceu uma série de leis que dispensava
os clérigos de suas obrigações municipais para que se dedicassem exclusivamente
ao serviço religioso. Neste mesmo ano, juntamente com Licínio, imperador do
Oriente, emitiu uma epistula (erroneamente chamada de “Edito de Milão”) na qual
fez do Cristianismo uma religio licita e reconheceu o principio de liberdade de
crença (SILVA, 2006, p. 254). Ao longo do seu governo, o Cristianismo foi
beneficiado com uma série de medidas, entre elas o reconhecimento da autoridade
episcopal, de modo que os bispos passaram a ter certas prerrogativas judiciais e
assistenciais reconhecidas pelo poder imperial (SILVA, 2006, p. 255).
Ao mesmo tempo que no Ocidente os cristãos gozavam de privilégios, no Oriente de
Licínio eles voltavam a sofrer restrições. Os dois imperadores entraram em conflito e
em 324 Constantino derrotou o seu rival tornando-se o único imperador. Ele então
estendeu aos cristãos orientais os privilégios determinados em 313 para o Ocidente
(SILVA, 2006, p. 255).
Constantino é um marco nas relações entre Império e Igreja. O novo imperador de
toda Roma empreende um programa de restauração dos lugares santos na
Palestina e de construção de igrejas, sempre com recursos do Império. Além disso,
a partir de Constantino, as questões da Igreja tanto doutrinárias, quanto
disciplinares – tornam-se também questões do Império (SILVA, 2006, p. 257).
2.3 HERESIA, CISMA E ORTODOXIA NO IMPÉRIO CRISTÃO
Até a ascensão de Constantino ao poder, questões relacionadas à ortodoxia, cismas
e heresias, eram problemas internos da Igreja.
47
Para Walter Bauer, ortodoxia é o nome que se à religião da maioria, enquanto a
heresia se caracteriza pelo fato de ser a crença dos grupos minoritários. Como os
grupos majoritários e minoritários mudam de um lugar para outro e de uma época
para outra, mudam também os conceitos de “ortodoxo” e “herético”. Segundo esta
visão, o Cristianismo primitivo era composto de uma série de grupos divergentes
entre si, cada qual com a sua versão própria e igualmente válida do que seria a
mensagem original e verdadeira de Jesus de Nazaré. Aquilo que mais tarde, viria a
se constituir como ortodoxia era, na verdade, a heresia que conseguiu se impor
sobre as outras (BAUER, 1971, p. 3).
Tais afirmações, entretanto, são vistas como simplificadas demais por autores como
Raymond Brown. Para ele, a distinção entre ensinos heréticos e ortodoxos aparece
bem cedo no Cristianismo, embora a “ortodoxia” nascente comportasse muito mais
elementos de diversidade do que aquela que se cristalizou nos séculos posteriores
( R. BROWN, 1986, p. 19).
A palavra heresia provém do grego hairesis e significa, originalmente “escolha”. No
grego clássico, a palavra indicava uma escolha intelectual, uma opção acerca de
uma doutrina ou escola filosófica. Para os escritores judeus Filo e Josefo, haireses
descreve também os diversos grupos que formavam o Judaísmo antigo. No
Judaísmo rabínico a palavra equivalente é mîn, inicialmente empregada de modo
bem generalizado para denominar as diversas facções dentro do judaísmo, mas que
depois passou a indicar uma seita herética, em sentido pejorativo. Até o final do
século segundo, a palavra é usada entre os judeus para designar os adeptos de
outras religiões que ficavam de fora da comunidade da e da esfera da salvação
(NORDHOLT, 2000, p. 617).
Na Bíblia cristã, a palavra hairesis aparece nove vezes. No livro dos Atos dos
Apóstolos, estão seis dessas ocorrências e o seu uso está de acordo com o uso
grego e judaico, designando “seita”, “facção”, sem conteúdo pejorativo: fala-se da
“seita dos saduceus” (Atos 5:17), da “seita dos fariseus” (Atos 15:5) e da “seita dos
nazarenos” (Atos 24:5), denominação dada pelos demais judeus aos seguidores de
Jesus de Nazaré ( Atos 24:14 e 28:22).
48
O apóstolo Paulo faz uso da palavra duas vezes em seus escritos. Em ambos os
casos, o sentido pejorativo do termo se faz presente, mas não ainda com o sentido
explícito de desvio doutrinário (KOCHAKOWICZ, 1987, p. 301). Em 1 Coríntios 11:19
e em Gálatas 5:20, heresia é sinônimo de divisão (KARRER, 1970, p. 271).
Finalmente, na segunda epístola atribuída ao apóstolo Pedro
4
, a palavra reaparece,
agora explicitamente associada a falsos ensinamentos em oposição a verdadeira fé:
Houve, contudo, também falsos profetas no seio do povo, como
haverá entre vós falsos mestres, os quais trarão heresias perniciosas,
negando o Senhor que os resgatou e trazendo sobre si repentina
destruição (2 Pedro 2:1).
O Novo Testamento utiliza uma única vez o termo “herético” ou “herege” (hairetikos),
na epístola a Tito
5
, cuja autoria paulina é questionada. Neste texto, fala-se de um
procedimento pastoral contra o herético, que deve, após duas repreensões, ser
abandonado à própria sorte. O Novo Testamento desconhece o uso da violência
como instrumento de conversão:
Depois de uma primeira e de uma segunda admoestação, nada mais
tens a fazer com um homem faccioso [hairetikos], pois é sabido que
um homem assim se perverteu e se entregou ao pecado, condenando-
se a si mesmo. (Tito 3:10-11).
A palavra cisma (schisma), cujo sentido literal é “divisão”, aparece na primeira carta
de Paulo aos Coríntios para indicar a formação de grupos dentro da mesma
comunidade (1 Coríntios 1:10-11). Esses grupos se diferenciavam não por motivos
doutrinários, mas por preferências pessoais em torno de um ou outro líder
eclesiástico, o que, para Paulo, colocava em risco a unidade da Igreja (HARRIS,
2000, p. 2337). Desta passagem podemos depreender que, para ele, cisma e
heresia não são sinônimos, estabelecendo o sentido de heresia como uma
discordância dogmática em relação ao que se considera ortodoxo, enquanto o cisma
é considerado uma divisão no seio da Igreja, que pode ocorrer por razões não
doutrinárias (KOCHAKOWICZ, 1987, p. 303). Assim, pode haver heresia sem que
haja cisma, bem como cisma sem heresia.
4
Sobre a questão da autoria de 2 Pedro, v. KÜMMEL, 1982, p. 564-571.
5
Ibidem, p. 480-507.
49
Essa distinção permaneceu nos séculos posteriores ao Novo Testamento, embora as
relações entre ambos fossem apontadas como praticamente inevitáveis (GROSSI,
2002, p. 300). Como será visto adiante,o donatismo foi inicialmente considerado um
cisma, pois não discordava das doutrinas centrais da ortodoxia. Posteriormente, ele
passou a ser tratado também como uma heresia.
Ao contrário de hairesis e schima, não se pode encontrar a palavra ortodoxia
(palavra grega que quer dizer “opinião correta”) no texto do Novo Testamento.
Entretanto, o uso das palavras didache e didaskalia (que podem ser ambas
traduzidas por ensino ou doutrina) parecem apontar para um corpo central de
crenças, que serviam como parâmetro para se diferenciar o que seria falso do que
seria verdadeiro em matéria de fé. Em Atos dos Apóstolos fala-se da “doutrina dos
apóstolos” (Atos 2:42) e da “doutrina do Senhor” (Atos 13:12). Na carta de Paulo aos
Romanos, o apóstolo fala da “doutrina a que fostes entregues” (Romano 6:17) e da
“doutrina que aprendestes” (Romanos 16:17). Na primeira carta de Paulo a Timóteo
temos as expressões “sã doutrina” (1 Timóteo 1,10) e “boa doutrina” (1 Timóteo 4:6).
A segunda carta de João fala da “doutrina de Cristo” (2 João 9). Usando uma outra
expressão, o autor anônimo da epístola aos Hebreus fala do “ensinamento
elementar a respeito de Cristo” (Hebreus 6:1), para indicar o que seria um conjunto
de “crenças básicas” do Cristianismo. Para Wegenast (2000, p. 644), o uso dessas
expressões revelam que, apesar da sua diversidade, a Igreja, numa etapa
relativamente inicial de sua história, possuía um corpo de doutrinas mais ou menos
fixo.
Moule, compartilhando dessa visão, denomina esse corpo de doutrinas de
“confissão cristã normativa”, que permitia estabelecer a distinção entre uma
confissão ortodoxa ou herética. Esse corpo de doutrinas tinha como centro a crença
na existência histórica de Jesus, bem como na sua morte e ressurreição. Entretanto,
este autor observa que, dentro dos limites de tal confissão, “há uma notável
variedade de ênfases” (MOULE, 1979, p. 178).
Na mesma direção segue Theissen (2004, p. 89), para quem os primeiros cristãos
partilhavam de um conteúdo teológico comum e embora existissem diferentes
interpretações a respeito desse conteúdo, estas não impediam a unidade da Igreja.
50
Isso foi possível porque as diversas interpretações eram determinadas por um
número limitado de motivos básicos, que, por sua vez, não estavam formulados
definitivamente, nem constituíam um sistema rigoroso, mas sim “uma estrutura de
regras com entrecruzamentos e contatos, comparável a um móbile, que sempre está
em movimento, mas contém uma estrutura oculta” (THEISSEN, 2004, p. 92).
Nos escritos cristãos posteriores ao Novo Testamento, datados a partir do século II,
os conceitos de heresia e de ortodoxia sofreram algumas importantes mudanças.
Para Inácio, bispo de Antioquia (c.110), a heresia é como uma mistura mortífera de
ensinamentos estranhos com a doutrina de Cristo (Carta aos Tralianos, 6). Ele
adverte os seus leitores acerca das garantias de uma verdadeiramente ortodoxa,
a saber: a união com Jesus Cristo, com o bispo e com a doutrina dos apóstolos
(Carta aos Tralianos, 7). Em comparação ao Novo Testamento, a definição do que
seja heresia ou ortodoxia começa a ser acrescida de um novo elemento: o apelo a
autoridade episcopal. Neste período da história da Igreja, a figura do bispo começa a
emergir como fonte de autoridade e de ortodoxia, símbolo da unidade cristã e
portador da tradição apostólica (HÄGGLUND, 1999, p. 19).
Em “Contra as Heresias”, Irineu, bispo de Lyon (c. 202) um passo adiante ao
estabelecer o papel do episcopado na definição da ortodoxia, argumentando em
favor da “sucessão apostólica”: os bispos são os legítimos sucessores dos apóstolos
e legítimos porta-vozes da doutrina cristã, o que lhes papel preponderante no
estabelecimento da ortodoxa (Contra as Heresias, III, 3,1 apud BETTENSON,
1983, p. 106). Dessa concepção, depreende-se que quem quiser manter-se
ortodoxo deve permanecer fiel aos bispos legitimamente instituídos, isto é, aqueles
que receberam o seu episcopado de acordo com a sucessão apostólica (Contra as
Heresias, IV, 26, 2 apud BETTENSON, 1983, p. 107).
Como foi visto a partir destes exemplos, do segundo para o terceiro século a Igreja
se encontrava num estágio de organização institucional mais complexo, no qual a
definição daquilo que é ou não ortodoxo deve passar pelo crivo daqueles que são
considerados os pilares da instituição: os bispos, considerados sucessores dos
apóstolos e legítimos guardiões de sua tradição.
51
O'Grady sugere que neste período da história do Cristianismo, face às mudanças
rápidas que estavam ocorrendo na sociedade, com um intenso movimento de
pessoas e de ideias que pareciam ameaçar a integridade da cristã, alguma forma
de ortodoxia fosse necessária, com uma maior organização institucional e uma
maior definição dogmática (O'GRADY, 1994, p.12).
A partir do século IV, a interferência direta do Império nos problemas teológicos da
Igreja logo se faz notar. O caso mais notório é a chamada a controvérsia ariana.
Ário, ordenado presbítero da Igreja de Alexandria em 310, afirmava que, sendo uno
e indivisível, Deus não poderia conferir a sua essência a nenhum outro. Portanto,
Cristo não poderia ser Deus no sentido pleno. O próprio Ário, em carta endereçada
ao bispo Eusébio de Nicomédia, no ano de 321, apresenta assim sua doutrina:
Mas antes de ter sido gerado ou criado ou nomeado ou estabelecido,
ele [o Filho] não existia, pois ele não era ingênito. Somos perseguidos
porque afirmamos que o Filho tem um início, enquanto Deus é sem
início. Eis porque somos perseguidos, e também porque afirmamos
que ele é do que não é, justificando essa afirmação porquanto ele não
é parte de Deus nem deriva de substância alguma. Por isso somos
perseguidos. Vós sabeis o resto (Teodoreto de Ciro, História
Eclesiástica I,V apud BETTENSON, 1983, p. 72).
Ário foi excomungado pelo seu bispo, Alexandre, em 320. Mas um sínodo reunido
em Cesaréia no ano seguinte exigiu a sua readmissão, contando com o apoio de
nomes importantes da Igreja, como Eusébio de Nicomédia e Eusébio de Cesaréia. A
disputa chegava com violência às ruas de Alexandria, onde as pessoas comuns
discutiam, apaixonadamente, a “questão ariana” (FRANGIOTTI, 1995, p. 92).
O problema despertou a preocupação de Constantino, que convocou um concílio
que deveria se reunir em Nicéia, no ano de 325, na residência imperial. A presença
do imperador no concílio foi ambígua. Por um lado, viu a si mesmo como hóspede
no concílio (a ponto de pedir licença para se sentar), acomodou-se a uma certa
distância dos bispos e, no seu discurso, não assumiu publicamente nenhuma
posição, apenas pedindo pela paz da Igreja (RUBENSTEIN, 2001, p. 103-104).
Contudo, quando ao final dos debates, coube ao imperador acrescentar ao chamado
“Credo de Nicéia” a palavra homoousios (consubstancial), talvez por sugestão de
52
seu conselheiro, o bispo Ósio de Córdoba, para indicar que o Pai e o Filho
compartilhavam da mesma natureza (RUBENSTEIN, 2001, p. 103-106). Os
integrantes do Concílio que não assinaram o Credo foram excomungados e
exilados. O arianismo, contudo, não arrefeceu, e chegou mesmo a triunfar durante o
governo de Constâncio II (FRANGIOTTI, 1995, p.95).
Além de interferir nas disputas internas do Cristianismo, o Império também dará o
seu braço em apoio à luta da Igreja contra o Paganismo. Durante o governo de
Constantino e de seus dois filhos Constâncio II e Constante, tal apoio será bastante
restrito, de caráter mais exortativo e moralizante. Entretanto, depois da tentativa de
restauração pagã feita por Juliano (361-363), o clero cristão pressionará cada vez
mais os imperadores contra o Paganismo, de modo que à época de Graciano (367-
383) e especialmente, de Teodósio I (378-395), quando o Cristianismo se torna a
religião oficial do Império, os pagãos passam a ser alvo de franca perseguição. Uma
série de medidas legais proíbem o culto aos ídolos, determinam a destruição de
templos e instituem punições que vão da aplicação de multas à execução dos
transgressores (SILVA, 2006, p. 260-262). Numa carta imperial datada de 380, e
recolhida no Codex Theodosianus (XVI,I,2), Teodósio declara:
Queremos que as diversas nações sujeitas à nossa Clemência e
Moderação continuem professando a religião legada aos romanos pelo
apóstolo Pedro, tal como a preservou a tradição fiel e tal como é
presentemente observada pelo pontífice Dâmaso e por Pedro, Bispo
de Alexandria e varão de santidade apostólica. De conformidade com
a doutrina dos apóstolos e o ensino do Evangelho, creiamos pois, na
única divindade do Pai, do Filho e do Espírito Santo em igual
majestade em Trindade Santa. Autorizamos aos seguidores desta lei a
tomarem o título de Cristãos Católicos. Referente aos outros, que
julgamos loucos cheios de tolices, queremos que sejam
estigmatizados com o nome ignominioso de hereges, e que não se
atrevam a dar a seus conventículos o nome de igrejas. Estes sofrerão,
em primeiro lugar, o castigo da divina condenação e, em segundo
lugar, a punição que nossa autoridade, de acordo com a vontade do
céu, decida infligir-lhes. (apud BETTENSON, 1983, p. 52).
Estas novas regras seriam levadas ao extremo no trato com o priscilianismo.
Prisciliano, nascido por volta de 345, era um sacerdote espanhol de origem rica,
educado nas escolas de Bordeaux e que começou a chamar atenção tanto pela sua
53
vida (marcada pelo ascetismo), quanto pelas suas doutrinas (FRANGIOTTI, 1995,
p.107). Eleito bispo de Ávila, começou a difundir os seus ensinamentos, cujo
conteúdo é, ainda hoje, motivo de debate entre os especialistas. Frangiotti (1995, p.
108) apresenta uma lista destas doutrinas, baseada nas condenações do sínodo de
Braga (século VI), segundo a qual Prisciliano negava a eternidade de Cristo e sua
verdadeira humanidade; afirmava que os anjos e as almas humanas emanam da
substância divina; que as almas pecaram no lugar onde habitavam originalmente e
foram, por isso, precipitadas em corpos terrenos; que o Diabo não é uma criação
divina, mas surgiu do caos e das trevas; que os astros influenciam a vida dos
homens; que não haverá ressurreição da carne, pois ela não é criação de Deus, mas
dos anjos maus; e que o matrimônio e a procriação são condenáveis. Desta lista,
pode-se depreender influências do gnosticismo, maniqueísmo e da astrologia, o que
justificaria a acusação de heresia. Outros autores, porém, procuram demonstrar que
o ascetismo de Prisciliano, bem como as suas ideias teológicas, eram
compartilhadas por outros personagens cristãos daquele período e que, apesar
disso, não foram acusados de heresia (BLAZQUÈZ, 1982, p. 48). A grande diferença
do priscilianismo estaria não tanto na doutrina, mas na sua denúncia contra a
corrupção de parte do episcopado e na sua recusa em aceitar um projeto de unidade
da Igreja atrelado ao projeto de unidade do Império (BLAZQUÈZ, 1982, p. 49).
Suas doutrinas foram condenadas primeiramente num sínodo em 380. Depois disso,
Prisciliano procurou apoio nos bispos Ambrósio, de Milão e Dâmaso, de Roma
6
, mas
não foi atendido (FRANGIOTTI, 1995, p.107). Não satisfeitos com a condenação de
suas doutrinas, seus opositores apelaram para Máximo, usurpador da Gália, pedindo
a abertura de um processo criminal contra ele. O imperador, atendendo o pedido dos
bispos, convocou a reunião de um sínodo em Bordeaux (384). Prisciliano, que havia
procurado Máximo para apresentar sua defesa, foi encarcerado e torturado. Apesar
dos apelos do bispo Martinho de Tours, Prisciliano e três dos seus discípulos foram
decapitados em 385: “foi a primeira vez na história do Cristianismo que um herético
foi punido com a pena capital” (FRANGIOTTI, 1995, p.110).
6
Em nosso trabalho, preferimos a expressão “bispo de Roma” à “papa”, uma vez que, no período
histórico em questão, o significado desta última palavra é ainda alvo de muitas controvérsias. Para
uma exposição mais ampla dessa questão, veja-se: STUDER, 2002, p. 1076-1087.
54
As novas relações entre Império e Igreja começaram a produzir novas interpretações
de antigos conceitos. Em primeiro lugar, a ideia de pax deorum foi transformada na
de Pax Dei. Assim como era dever do antigo governo pagão garantir a correta
adoração aos deuses, os novos imperadores cristãos deveriam se empenhar no
estabelecimento da verdadeira religião, a religião cristã (MARCOS, 2004, p. 55). Os
imperadores cristãos continuaram a utilizar otulo de pontifex maximus até o tempo
de Graciano (367-383) e nunca perderam a sua sacralidade. Se o imperador cristão
não poderia mais ser objeto de culto, sua pessoa aparece como a imagem terrestre
da monarquia divina. Chega mesmo a ser visto como tendo uma espécie de poder
episcopal, tomando a iniciativa de convocar concílios e imaginando a si mesmo
como o chefe do povo cristão (DANIELOU & MARROU, 1984, p. 253-254 ).
Em segundo lugar, cabe destacar o papel dos bispos cristãos nesta nova realidade.
Eles foram dotados da possibilidade até então inédita de recorrer ao braço armado
do Império para coibir os opositores (SILVA, 2001, p. 101). Receberam, como vimos
acima, poderes judiciais que deveriam ser reconhecidos pelos juízes seculares
(PIETRI, 1995, p. 213). Responsáveis também pela filantropia e pela defesa contra
os “bárbaros”, os bispos passam a exercer o papel de patronos das comunidades
locais (SILVA, 2006, p. 262). Eles agora têm acesso aos poderosos, embora por
vezes vejam a si mesmos e sejam vistos como estranhos a este novo mundo de
poder, como pôde constatar o próprio Agostinho (BROWN, 1989, p. 237).
2.4 IMPÉRIO E IGREJA NA ÁFRICA ROMANA
2.4.1 A África Romana
Para os romanos, o território africano correspondia à província criada em 146 a.C.,
após a vitória de Roma sobre Cartago na Terceira Guerra Púnica. O termo Africa
passou a ser usado para designar a nova província, que não tardou a receber
55
imigrantes da Itália que fundaram cidades e colônias. Com o tempo, o termo Africa
passou a designar a totalidade das províncias romanas ao sul do Mediterrâneo,
tendo como fronteira (limes) o deserto do Saara (SILVA, 2007, p. 14).
A ocupação da região e sua “pacificação”, porém, não foram facilmente
conseguidas. Roma foi alvo de uma resistência constante, que conjugou aspectos
políticos, étnicos, sociais e religiosos. As populações locais nunca foram totalmente
subjugadas (MAHJOUBI, 1983, p. 473).
A onipresença do exército romano assegurava a proteção dos colonos romanos,
bem como procurava garantir a expansão da presença romana no território africano,
ameaçada pelas tribos berberes (GEORGER, 1993, p. 21).
Em 27 a.C. Augusto dividiu com o Senado a administração das províncias do
Império e a África ficou entre as províncias administradas pelo Senado. Era a Africa
Pronconsularis, que abrangia uma área de cerca quatro mil quilômetros de
comprimento, a partir do atual Marrocos até a Líbia. Essa província incluía o território
único conquistado em 146 a.C. (Africa Vetus) e a região conquistada posteriormente,
a Africa Nova, (MAHJOUBI, 1983, p. 478).
O Senado usava nomear um governador para a África, que recebia o título de
procônsul, residente em Cartago e que concentrava prerrogativas judiciais,
administrativas e financeira. Tinha como assessores dois legados propretores
residentes em Cartago e em Hipona, e por um questor, responsável pela
administração financeira. O procônsul dispunha de uma pequena tropa de cerca de
1600 homens (MAHJOUBI, 1983, p. 478).
O imperador podia intervir na província diretamente ou por meio de um procurador
equestre e seus assessores, que tinha sobre si o encargo da gestão dos domínios
imperiais e da coleta de determinados impostos. Não raro, havia conflito entre estes
representantes imperiais e o procônsul (MAHJOUBI, 1983, p. 478).
Militarmente, a África Proconsular era guarnecida pela III Legião Augusta,
comandadas por um legado imperial subordinado ao procônsul e, portanto, ao
Senado. A partir de Calígula (37-41 d.C.), o comando militar foi separado do governo
56
civil, o que criou, na prática, o território militar da Numídia, transformado em
província por Sétimo Severo no final do século II. A nova província era governada
pelo legado da legião (praeses) e respondia diretamente ao imperador (MAHJOUBI,
1983, p. 479).
Em 42 d.C., Cláudio organizou as duas províncias da Mauritânia: Mauretania
Caesarensis e Mauretania Tingitana, que também ficaram sob a autoridade direta do
imperador e eram governadas por procuradores equestres, que exerciam poderes
civis e militares (MAHJOUBI, 1983, p. 479).
Esse modelo de organização administrativa não sofreu mudanças significativas até o
século III. Contudo, de 238 em diante, a violência tornou-se alarmante. A autoridade
imperial foi minada pela crise social e econômica, bem como pela anarquia militar. A
reação do Império veio por meio de uma série de reformas que aconteceram entre o
reinado de Galieno (253-268) e Constantino, com ênfase para a separação entre os
poderes civis e militares (MAHJOUBI, 1983, p. 480).
No tocante ao poder militar, foi organizado um exercito móvel, formado de
camponeses romanizados, recrutados na região. Além disso, havia os limitanei,
soldados camponeses que recebiam lotes de terras situados no limes e que deviam
proteger as fronteiras (MAHJOUBI, 1983, p. 480).
A organização territorial foi radicalmente reformada, a fim de reduzir o poder do
procônsul e aumentar a autoridade do imperador. A África Proconsular foi dividida
em três províncias autônomas: Zeugitana ou Proconsular propriamente dita,
Bysacena e Tripolitânia (MAHJOUBI, 1983, p. 482). A Numídia, que até 316 era
governada por um praeses, passa a ser governada por senadores que usam o título
de consularis provinciae. A província da Mauritânia Cesariana foi dividida para
formar a Mauritânia Sitifiana e a Mauritânia Tingitana, esta última anexada à diocese
da Espanha (MAHJOUBI, 1983, p. 483).
Uma vez que as províncias se tornaram menores e mais numerosas, Diocleciano
aumentou o mero de altos funcionários que deveriam assumir a função de
vicarius. Cada vicarius encarregava-se de uma diocese, que por sua vez era
57
composta de um certo número de províncias. As províncias da África do Norte
formavam a diocese da África (MAHJOUBI, 1983, p. 484).
A presença romana na África se faz notar principalmente nas cidades. No período
imperial, o estatuto municipal prevê a existência de cidades peregrinas, cujos
habitantes não eram cidadãos romanos; de cidades latinas que haviam recebido
seja o jus latti majoris, que estendia a cidadania romana aos magistrados municipais
e aos decuriões, seja o jus latti minoris, que concedia a cidadania aqueles que
ocupavam um cargo civil; e de coloniae juris Romani, em que todos os habitantes
eram cidadãos romanos, exceto os escravos, os estrangeiros e a população
camponesa autóctone (MAHJOUBI, 1983, p. 486).
As cidades africanas tendiam a imitar o modelo italiano no tocante às suas
instituições. Havia a assembléia popular, mas o poder era efetivamente exercido
pelo senado municipal, formado por aproximadamente cem decuriões, escolhidos
entre os antigos magistrados e entre os cidadãos ricos (MAHJOUBI, 1983, p. 488).
A expressão proverbial dizia que a África era o “celeiro de Roma”. De fato, a África
fornecia o seu trigo à Roma como tributo desde a sua derrota em 146 a.C. De início,
a presença romana na África desestruturou a economia da região, uma vez que o
Império não incentivava a produção de vinho e azeite, para evitar a concorrência
com a Itália. A produção de trigo, embora elevada, era escoada para Roma e o que
restava era insuficiente para alimentar as populações locais (MAHJOUBI, 1983, p.
491). De meados do século II em diante houve uma mudança desta situação, pois
as províncias passaram a ter mais liberdade de iniciativa econômica (MAHJOUBI,
1983, p. 492).
As atividades manufatureiras da África envolviam o processamento de produtos
agrícolas, em especial o azeite. A mesma relação com a agricultura encontramos no
tocante a produção de cerâmica (MAHJOUBI, 1983, p. 495).
O comércio exterior africano passou por um período de revitalização a partir do
século IV e desenvolveu-se uma boa estrutura portuária, que logo passou para o
controle do Império. Também havia o comércio interno, inclusive transaariano
58
(MAHJOUBI, 1983, p. 497).
À época de Augusto e seus sucessores, a população africana era composta de três
grupos: romanos ou italianos imigrantes, cartagineses e líbios sedentários, e os
líbios mades. Com a promulgação da constitutio Antonina em 212, a cidadania
romana foi concedida a todos os habitantes livres do Império, exceto àqueles que
vivessem fora dos centros municipais. Na África, as tribos que viviam nas estepes ou
nas montanhas ficaram à margem da romanidade: eram juridicamente denominados
de dediticii (MAHJOUBI, 1983, p. 500).
Nas grandes cidades as distinções étnicas tendiam a desaparecer, sendo
substituídas pelas distinções sociais. Contudo, nota-se uma renovação da
aristocracia a partir do século III. As velhas famílias vão sendo substituídas, no
senado, por novos membros advindos das províncias, inclusive romano-berberes
(MAHJOUBI, 1983, p. 501).
Durante o Baixo Império a ordo decurionum, tendo que suportar o peso dos altos
impostos e das responsabilidades municipais, empobreceu cada vez mais. Tentando
fugir destes encargos, os mais ricos procuraram ingressar nas ordens privilegiadas,
enquanto outros buscavam o exército, ou mesmo o clero, o que provocou medidas
duras por parte do Império para evitar a deserção (MAHJOUBI, 1983, p. 503).
A partir do final do século IV nota-se a crescente tendência para o esvaziamento das
cidades e para a organização, no campo, de um domínio senhorial da agricultura, no
qual o dominus ocupa cada vez mais as prerrogativas do Estado (MAHJOUBI, 1983,
p. 504). A concentração de terras nas mãos de uns poucos proprietários aumentava
as tensões sociais no campo.
No tocante à religião, os romanos seguiram sua política de tolerância na África. Os
africanos permaneceram cultuando suas divindades tradicionais, muitas vezes
incorporando as divindades greco-romanas aos seus cultos. Ao mesmo tempo, os
cultos oficiais foram implementados e deviam ser rigorosamente seguidos
(BUSTAMANTE, 2006, p. 118). Os cultos orientais também encontraram ali terreno
fértil, incluindo o Judaísmo e o Cristianismo (MAHJOUBI, 1983, p. 506).
59
2.4.2 O Cristianismo na África Romana
O monoteísmo se estabelece na África por meio do Judaísmo, que acompanhou as
rotas comerciais gregas e cartaginesas na região, deitando raízes não no Norte
da África, mas também em regiões mais interioranas. A tradução da Bíblia hebraica
para o grego, a Septuaginta, foi feita em Alexandria, no Egito (SILVA, 2007, p. 36).
O Cristianismo se desenvolveu na África Romana mais cedo do que em outras
províncias ocidentais do Império (MAHJOUBI, 1983, p. 506). Ele pode ter sido
proveniente do Oriente ou da própria Roma. De acordo com Silva, a difusão do
Cristianismo na África aconteceu principalmente por meio das comunidades
camponesas (SILVA, 2007, p. 37).
Foi na Igreja africana onde, pela primeira vez, o latim suplantou o grego como língua
litúrgica e talvez tenha sido africana a primeira tradução latina das Escrituras, além
dos primeiros escritores cristãos latinos, como Tertuliano (160-220) e Cipriano (200-
258). A elite do clero era formada por africanos romanizados, embora a maior parte
da população não falasse o latim, o que se revelou um problema pastoral para a
Igreja (NEILL, 1989, p. 38). Em algumas regiões, conhecer a língua púnica e outros
idiomas locais era fundamental para o exercício do sacerdócio cristão, uma vez que,
embora a liturgia fosse em latim, a pregação (sermo ou homilia) deveria ser
realizada na língua do povo (FRAZÃO, 1976, p. 35).
O conhecimento que temos da história da Igreja africana está diretamente ligado às
perseguições do Império. Ali, o martírio exerceu um importante papel na
autocompreensão cristã e ao que tudo indica foi um fator determinante para o rápido
e considerável crescimento do Cristianismo na região (IRVIN; SUNQUIST, 2004, p.
118). Além disso, o martírio permanecerá como um elemento essencial para
construção da identidade cristã africana e um dos temas centrais da controvérsia
donatista (TILLEY, 1997, p. 20).
Uma das características mais marcantes da Igreja do Norte da África era ser uma
Igreja de bispos. Havia bispos praticamente em cada cidade e em cada aldeia
60
(NEILL, 1989, p. 38). De acordo com Hamman (1989, p. 212), pode-se calcular
cerca de quatrocentos e trinta bispados na África do tempo de Agostinho, em
comparação com os cento e dezesseis bispados da Gália.
No século IV, a Igreja católica africana estava dividida em seis províncias
eclesiásticas, que correspondiam exatamente às seis províncias do Império
(FRAZÃO, 1976, p. 38). Cartago era a mais antiga e a mais importante Igreja da
região e o seu bispo era honrado como o primaz de toda a África (FRAZÃO, 1976, p.
40). Apesar de sua inconteste comunhão com a romana, Cartago sempre foi
zelosa de sua autonomia (HAMMAN, 1989, p. 21).
Uma outra característica do Cristianismo africano era o seu rigor moral, que
transparece nas severas exortações moralistas das obras de Tertuliano e de
Cipriano (IRVIN; SUNQUIST, 2004, p. 118). O cisma donatista relaciona-se
diretamente com este rigorismo.
2.5 O CISMA DONATISTA
2.5.1 Antecedentes: a questão dos lapsi
O cisma donatista eclodiu no Norte da África, e dizia respeito aos traditores, aqueles
cristãos que, por ocasião da Grande Perseguição, tinham entregue aos soldados do
Império os livros e utensílios sagrados (FREND, 2002, p. 427). Com o fim das
perseguições, abriu-se na Igreja uma discussão a respeito de como eles poderiam
ser readmitidos à comunhão. Uma ala da Igreja entendia que a penitência seria
suficiente para readmitir os que caíram, enquanto um grupo mais rigoroso
considerava que os traditores poderiam ser readmitidos pelo rebatismo e, em se
tratando de clérigos, não poderiam mais administrar validamente os sacramentos
(FRANGIOTTI, 1995, p. 64).
61
O tema não era novo.em 251 acontecera em Roma o cisma novaciano, em torno
do problema dos lapsi, isto é, daqueles cristãos que de algum modo negaram a sua
durante o tempo da perseguição de Décio. Na África, Cipriano, bispo de Cartago,
defendia que os lapsi deveriam ser submetidos a uma penitência adequada e fazer
pública confissão de seus pecados, para então serem readmitidos à comunhão da
Igreja. Ele repreendia os presbíteros que readmitiam os caídos sem a aprovação dos
bispos e sem a devida penitência. Essa posição é aprovada por Roma (VOGT, 2002,
p. 809).
Entretanto, um sacerdote romano de nome Novaciano, acusou o bispo de Roma,
Cornélio, de agir de forma errada ao readmitir os lapsi e passou a negar que estes
pudessem ser de alguma maneira perdoados e readmitidos à comunhão. Seus
seguidores o sagraram bispo de Roma, em oposição a Cornélio, e o cisma se
consolidou, difundindo-se por várias regiões da cristandade, tanto no Ocidente
quanto no Oriente, tendo sobrevivido até o século V.
Na África, os novacianos foram combatidos por Cipriano, mas conseguiram se
difundir consideravelmente naquela região, onde praticavam o rebatismo dos
católicos, como fariam os donatistas no início do século seguinte (DE SIMONE,
2002, p. 1013).
Apesar da expansão inicial do cisma, muitos novacianos terminaram por retornar ao
catolicismo, o que gerou um novo problema: aqueles que tinham sido batizados
dentro do cisma, deveriam ser rebatizados ao se tornarem católicos? Enquanto em
Roma o bispo Estêvão, sucessor de Cornélio, aceitava os conversos mediante a
imposição das mãos, Cipriano e o clero africano defendiam o rebatismo dos
hereges, argumentando que não era possível haver batismo válido fora da
verdadeira Igreja católica (IRVIN; SUNQUIST, 2004, p. 182). Houve uma ameaça de
cisma, mas a questão foi suspensa pela morte tanto de Estêvão, quanto de Cipriano,
este último executado durante a Grande Perseguição. Somente em 314, no Sínodo
de Arles, os africanos abonarão a posição de Roma (FRAZÃO, 1976, p. 52), mas os
argumentos de Cipriano serão retomados na questão donatista.
62
2.5.2 Um traditor em Cartago
A violenta perseguição de Diocleciano fez muitos estragos na Igreja africana, tanto
por causa dos mártires, quanto por causa dos muitos traditores que produziu. Dois
episódios relacionados à Grande Perseguição estão na base do cisma donatista que
eclodirá em 311. O primeiro deles se relaciona aos chamados Mártires da Abitínia; o
segundo é conhecido como Concílio de Cirta.
Em 304, na Abitínia, cidade da África Proconsular, um grupo de cristãos é preso,
juntamente com o sacerdote Saturnino, por participarem de um culto, contrariando
assim as ordens imperiais. Eles são levados para Cartago e ali mantidos na prisão.
Como as prisões romanas não providenciam comida, água e outras provisões aos
encarcerados, alguns cristãos procuravam atender tais necessidades. O bispo de
Cartago, Mensúrio, auxiliado por seu diácono, Ceciliano, proibiu terminantemente
que tal fosse feito, usando até mesmo de violência física contra aqueles que
tentavam desobedecer a ordem episcopal.
O episódio não será esquecido, especialmente por que o próprio bispo Mensúrio foi
considerado por algum mais rigoristas como sendo um traditor, uma vez que, para
escapar da prisão, entregou aos soldados alguns livros heréticos ao invés das
Escrituras, subterfúgio condenado por seus opositores mais radicais (FRAZÃO,
1976, p. 58).
O segundo episódio que nos interessa aqui aconteceu em 305 e é conhecido como
Concílio de Cirta, embora tenha reunido apenas uma dúzia de bispos. Sob a
presidência do primaz da Numídia, Segundo de Tigisi, reuniram-se para ordenar o
novo bispo da cidade. Quase todos os bispos presentes eram, de alguma forma,
traditores. Instaurou-se um clima de acusações mútuas e a solução de Segundo,
para evitar um cisma, foi de declarar que cada um deveria prestar contas dos seus
atos diretamente a Deus. Elegeram, assim, o diácono Silvano ele próprio um
traditor o novo bispo de Cirta. O detalhe é que muitos dos que estavam ali
presentes seriam depois cabeças do movimento donatista (MUNIER, 2002, p. 300).
Os defensores do catolicismo não deixariam de recordar estes fatos como parte de
seu arsenal de combate ao donatismo.
63
Em 311, quando morre Mensúrio de Cartago, o diácono Ceciliano é eleito e
ordenado seu sucessor pelas mãos do bispo Félix de Apthungi. Sobre todos os
envolvidos, pesa a acusação de serem traditores
7
. Os bispos da Numídia, que não
estavam presentes à ordenação, não reconhecem a ordenação. Em uma reunião
privada, em 312, os cerca de setenta bispos numídios depõem Ceciliano e elegem
Majorino. Cartago tinha agora dois bispos: era a consumação do cisma (FREND,
2002, p. 427).
Em 313, os cismáticos apelam ao imperador Constantino a fim de que se reconheça
Majorino como o legítimo bispo de Cartago. Constantino, entretanto, toma desde o
início o partido de Ceciliano (LANGA, 1988, p. 12). Neste intervalo se a morte de
Majorino e é eleito em seu lugar o bispo Donato, que assume o movimento e o
fortalece, fazendo-o crescer por todo o Norte da África (daí o nome donatistas).
Constantino entrega o caso ao julgamento de três bispos da Gália e ao bispo de
Roma, Milcíades. Um sínodo é convocado em Roma, em 313. O sínodo, formado
por dezenove bispos, decide-se em favor de Ceciliano (LANGA, 1988, p. 13). Em
314, mais uma vez a pedido dos donatistas, um novo sínodo se reuniu, em Arles.
Outra vez, o grupo de Ceciliano saiu vitorioso (FREND, 2002, p. 427). Os donatistas
fizeram então um apelo direto ao imperador, mas este manteve as decisões
sinodais. Como os donatistas não acataram as decisões, a tensão aumentou nas
igrejas africanas e a reação imperial tornou-se violenta. Um bispo e alguns
donatistas foram assassinados, dando a causa donatista os seus primeiros mártires
(FRANGIOTTI, 1995, p. 68).
Em 321, tendo em vista a falência da política imperial de perseguição, Constantino
decreta o fim das leis contra os donatistas. Na prática, donatistas e católicos o
obrigados a conviver juntos na África. Algumas regiões são primariamente católicas,
enquanto outras são donatistas. Em algumas cidades, ambas as Igrejas convivem
lado a lado, cada qual com o seu próprio templo e os seus próprios sacerdotes e
bispos. A situação se mantem sem a interferência do Império até 346 (TILLEY, 1997,
p. 69). Durante este período, os donatistas experimentam um notável crescimento e
7
Félix foi condenado como traditor pelos donatistas no Concílio de Cartago de 312. A acusação
contra ele foi investigada por ordem do imperador Constantino e ele foi considerado inocente em 314
(FRAZÃO, 1976,p. 99).
64
em 336, chegaram a reunir num concílio em Cartago duzentos e setenta bispos, sob
a liderança de Donato. Nesta ocasião, para facilitar a adesão de católicos ao
movimento, eles surpreendentemente suspenderam a prática do rebatismo
(FRAZÃO, 1976, p. 126). Também se apoderaram de alguns templos católicos e os
grandes proprietários convertidos ao movimento são acusados de forçarem os seus
servos à conversão (FRAZÃO, 1976, p. 128). O donatismo tornara-se a religião
majoritária de toda África cristã (FREND, 2002, p. 427).
Em 347, instigado pelos católicos, o imperador Constante emite um edito que tem
por finalidade forçar a unidade cristã na África sob a liderança da Igreja Católica. As
autoridades civis oferecem incentivos financeiros aos que vierem a se converter.
Diante da recusa dos donatistas, recorre-se à força (TILLEY, 1997, p. 70). Os
emissários imperiais, Paulo e Macário, vão submeter a África ao catolicismo pelo
medo (BROWN, 2005, p. 266) e fornecer mais mártires para a causa dos donatistas,
renovando o seu sectarismo. Estes, por sua vez, doravante vão se referir aos
católicos como “o partido de Macário” (LANGA, 1988, p. 18).
Esta é a primeira vez que os circunceliões entram na história dos donatistas
(WILLIS, 2005, p. 11). Os circunceliões eram grupos nômades que viviam do saque
das propriedades e que se associaram aos donatistas em sua resistência contra
Roma e contra os católicos. Camponeses de origem, os circunceliões falavam a
língua local e, na opinião de Frend (2002, p. 295), formavam um verdadeiro
movimento de protesto social. Tinham uma visão mais radical da e ansiavam
morrer pelo martírio, chegando, de acordo com os seus acusadores, a praticar
suicídio com esse fim (WILLIS, 2005, p. 11). Segundo seus adversários,
representavam o lado violento do donatismo, aterrorizando católicos e pagãos,
saqueando suas propriedades e forçando os católicos ao rebatismo (WILLIS, 2005,
p. 16).
De 347 até 361 os donatistas foram oficialmente proscritos. Mas com a ascensão ao
poder do imperador Juliano (361-363) eles gozaram mais uma vez da tolerância
oficial. Obtiveram do imperador a anistia para os exilados, a retomada das igrejas
confiscadas e a anulação das leis repressivas (LANGA, 1988, p. 20).
65
Em 373, o imperador Valentiniano (364-375) proíbe a prática do rebatismo, o que
parece surtir pouco efeito na África (WILLIS, 2005, p. 17). A situação legal dos
donatistas se agrava ainda mais com Teodósio, a cuja legislação nos referimos
anteriormente, e que condenou veementemente todas as heresias ao tornar oficial o
catolicismo em 380. Os donatistas, contudo, foram poupados da pena capital por
que foram considerados cismáticos, mas não heréticos (LANGA, 1988, p. 21).
Após a morte de Donato, o bispo Parmeniano assumiu a liderança do movimento,
sendo um dos seus teólogos mais destacados. Após a sua morte, por volta de 391,
o donatismo se viu dividido num cisma que opôs o bispo Primiano, de tendências
extremistas, a Maximiano, de posições mais moderadas. O cisma se consumou no
concílio de Bagai, em 394, e os maximianistas passaram a formar um grupo
separado dos donatistas. Apesar disso, pode-se dizer que este foi um período de
grande prosperidade para o movimento (FREND, 2002, p. 427).
O cisma foi oportuno para a propaganda católica. Eles apontavam duas atitudes que
consideravam contraditórias nos seus adversários no tocante ao trato com os
maximianistas: primeiro, porque os donatistas apelaram à lei de Teodósio contra os
hereges para tentar condenar os maximianistas, o que entrava em contradição com
sua recusa em buscar apoio do Império em questões religiosas. Segundo, os
donatistas decidiram que, se algum dos maximianistas voltassem atrás de sua
decisão, deveriam ser readmitidos sem o rebatismo, ao contrário do que exigiam dos
católicos (WILLIS, 2005, p. 35).
2.5.3 A teologia donatista
De um modo geral, o corpo doutrinário do donatismo estava muito próximo da
ortodoxia católica. Do ponto de vista da organização hierárquica e da liturgia as duas
Igrejas eram praticamente idênticas (HAMMAN, 1989, P. 233). O que o distingue do
catolicismo é o seu caráter mais conservador e radical, especialmente no tocante à
natureza da Igreja e suas relações com o mundo e com o Império.
66
No tocante às relações entre a Igreja e o Império, os donatistas “consideravam os
magistrados seculares como irrevogavelmente hostis à Igreja” (FREND, 2002, p.
429) e, portanto, não reconheciam a cristianização do Império como um bem. Os
donatistas viam a si mesmos herdeiros do autêntico Cristianismo, anterior a
Constantino, marcado pela perseguição e pelo martírio.
Também recusavam as inovações litúrgicas do catolicismo e faziam uso apenas da
Bíblia Africana, provavelmente a mais antiga Bíblia em Latim, enquanto os católicos,
a partir da época de Agostinho, utilizavam a Vulgata de São Jerônimo (LANGA,
1998, p. 68). As diferenças estavam não somente na linguagem, mas também no
cânon: em relação ao Novo Testamento, por exemplo, os donatistas não acatavam a
carta aos Hebreus, a segunda carta de Pedro, a segunda e terceira carta de João, a
carta de Tiago e a carta de Judas, incluídas na Vulgata (LANGA, 1988, p. 70).
Para os donatistas, a Igreja se caracteriza por sua santidade, entendida num sentido
muito mais ritual do que moral, não admitindo no seu interior nenhum elemento que
pudesse ser considerado “impuro”. Usavam para si o adjetivo de católica num
sentido diferente do de seus adversários: para os donatistas, “catolicidade” não
queria dizer “universalidade”, mas “totalidade”, em referência à preservação da
totalidade da Lei de Deus que eles acreditavam guardar (BROWN, 2005, p. 268).
Tal pureza deveria se manifestar especialmente nos sacramentos, de modo que os
sacramentos celebrados por um traditor eram considerados inválidos. D a prática
do rebatismo de católicos que se tornavam donatistas ou da reordenação de clérigos
católicos convertidos ao movimento. Da mesma forma, entendiam que a Igreja era
um corpo totalmente separado do mundo, uma sociedade alternativa, um refúgio de
santos em oposição ao mundo dominado por poderes malignos (MARKUS, 2001, p.
444). Os donatistas pretendem ser “a Igreja dos mártires” em oposição à “Igreja dos
traditores”, representada pelos católicos, aliados do poder imperial (FRANGIOTTI,
1995, p. 72).
67
3. LEGITIMAÇÃO DA VIOLÊNCIA NO DISCURSO AGOSTINIANO
3.1 AGOSTINHO E OS DONATISTAS
O ano de 391 marca a entrada de Agostinho no conflito com os donatistas. Neste
ano, ele foi ordenado sacerdote da cidade de Hipona, na Numídia, pelas mãos do
bispo Valério. E se tornou, então, o mais veemente combatente católico contra o
movimento cismático.
Antes porém, de acompanhar sua militância antidonatista, devemos fazer um breve
resumo da caminhada filosófica e espiritual do nosso personagem. O ano de 372
acontece a sua conversão à filosofia, que será determinante para a sua conversão à
cristã. A leitura da obra Hortênsio, de Cícero (106-43 a.C.), o leva a desejar a
verdadeira sabedoria, como ele revela neste trecho de suas Confissões:
O livro é uma exortação à filosofia e chama-se Hortênsio. Devo dizer
que ele mudou os meus sentimentos e o modo de me dirigir a ti; ele
transformou as minhas aspirações e desejos. Repentinamente
pareceram-me desprezíveis todas as vãs esperanças. Eu passei a
aspirar com todas as forças à imortalidade que vem da sabedoria.
Começava a levantar-me para voltar a ti. (Confissões, 3, 4.7)
Para tentar responder às suas novas aspirações filosóficas, Agostinho busca
primeiramente as Escrituras cristãs. Decepcionado com o que considera a pobreza
literária do texto bíblico, adere ao Maniqueísmo, que se apresenta como uma versão
mais espiritualizada e intelectualizada do Cristianismo. Para o jovem Agostinho, o
Maniqueísmo era particularmente interessante por associar Cristo com a Sabedoria
(BROWN, 2005, p. 52).
O Maniqueísmo era uma religião dualista, fundada na Pérsia por Mani (210-276) e
disseminada pelo Império Romano Ocidental. Ele fundiu elementos persas, cristãos
68
e budistas numa nova religião, formando um complexo sistema gnóstico no qual a
Salvação era obtida pelo conhecimento. De acordo com os seus ensinamentos, a
história era divida em três etapas: no início, existiam dois princípios eternos e
independentes, o Pai das Luzes e o Príncipe das Trevas. Num segundo momento,
as Trevas prevaleceram sobre a Luz e aconteceu então a criação do mundo material
e dos corpos dos homens, fazendo da Luz uma prisioneira da matéria. No momento
final, quando ocorrerá a Redenção, acontecerá a separação final, a destruição de
tudo que é material e o triunfo da Luz, puramente espiritual. (HOFFECKER, 1990, p.
471).
Em consonância com esses ensinamentos, os discípulos do Maniqueísmo
praticavam um rígido ascetismo, e, segundo Marrou, foi por isso que Agostinho
nunca passou de um mero ouvinte da seita, condição na qual permaneceu durante
nove anos (MARROU, 1975, p. 29 ).
A grande questão filosófica que atraiu Agostinho para o Maniqueísmo era a resposta
que dava para o problema da origem do Mal: se Deus é bom, de onde provém o
Mal? A resposta maniqueísta inocentava Deus, afirmando que um outro Princípio
que lhe era completamente oposto e independente, ao mesmo tempo que igual em
poder e eternidade havia criado o Mal (BROWN, 2005, p. 58).
Era o tipo de
solução que Agostinho considerava racionalmente aceitável e que estava disposto a
abraçar. Além disso, o Maniqueísmo, ao afirmar um dualismo radical entre o bem e
o mal dentro do homem, eliminava, na prática, qualquer sentimento de culpa, uma
vez que o mal era praticado apenas pela parte material do homem, mantendo intacta
a sua alma (BROWN, 2005, p. 61).
Não tardou, contudo, para que Agostinho se decepcionasse com a nova religião. A
expectativa de que ela poderia responder às suas inquietações espirituais e
filosóficas foi frustrada por causa de certas contradições que identificou nos escritos
maniqueus:
Eu que recordava por tê-las lido e estudado as obras de muitos
filósofos, comparava algumas delas às prolixas fantasias dos
maniqueus, e concluía por achar mais verossímeis as teorias daqueles
que possuíram luz suficiente para poder perscrutar a ordem do
mundo[...].(Confissões 5,3.3)
69
Desde 375, Agostinho havia retornado para Tagaste onde trabalhava como
professor. Em 384, foi nomeado para lecionar retórica em Milão. Em Milão,
Agostinho entra em contato com as ideias neoplatônicas. Como o nome indica, os
neoplatônicos produziram uma releitura das ideias de Platão. O principal nome do
neoplatonismo era o de Plotino (205-270), seguido do seu discípulo Porfírio (232-
304). De acordo com o ensino neoplatônico, o Uno é a realidade perfeita e as
demais coisas são emanações desse Uno, que são cada vez mais imperfeitas à
medida que dele se afastam. Embora possuísse a mesma desconfiança em relação
ao mundo material que o maniqueísmo, o pensamento neoplatônico não atribuía a
existência do mundo material a nenhum princípio autônomo do Mal, mas
considerava-o como um distanciamento extremo do Uno Bem (REALE, 1990, p.
345).
Agostinho aproximou-se da versão cristianizada do neoplatonismo, que era
dominante em Milão (BROWN, 2005, p. 111). Ali era possível transitar com certa
naturalidade de Plotino à Bíblia, como testemunha Agostinho:
Tu me proporcionastes, através de um homem inflado de orgulho
imenso, alguns livros dos platônicos, traduzidos do grego para o latim,
onde encontrei escrito, senão com as mesmas palavras, certamente
como o mesmo significado e com muitas provas convincentes o
seguinte: no principio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o
Verbo era Deus .(Confissões 7, 9.13)
Agostinho percebe também que certos elementos do pensamento neoplatônico
entram em choque com algumas doutrinas cristãs, como a doutrina da encarnação,
segundo a qual Deus se fez homem na pessoa de Jesus Cristo (Confissões 7.9,14).
Mas o pensamento agostiniano permanecerá até o fim tendo como background
filosófico as categorias neoplatônicas.
Nesta época Agostinho começa a frequentar a Igreja de Milão, do bispo Ambrósio.
Como vimos, ele começara a ouví-lo, primeiramente, por causa do interesse que
tinha na arte retórica. Depois, foi atraído pela leitura alegórica que Ambrósio fazia
das Escrituras hebraicas, que, na opinião de Agostinho, se “tomadas ao da letra,
pareciam ensinar mal” (Confissões, 6,4,6). As hesitações intelectuais que o faziam
se distanciar da cristã pouco a pouco se dissipavam e a questão que o afligia era
70
agora de ordem prática. Para tornar-se cristão, deveria renunciar aos prazeres e
ambições que lhe eram caros.
Em agosto de 386, aconteceu a sua conversão ao Cristianismo e logo no ano
seguinte foi batizado por Ambrósio. Desejoso de viver a vida monástica, foi morar
com a mãe e alguns familiares e amigos em uma propriedade rural na região de
Cassicíaco, próximo a Milão. Após a morte de Mônica, voltou para Tagaste e em
seguida para Hipona, onde foi ordenado presbítero em 391. Quatro anos mais tarde
foi eleito bispo auxiliar de Valério, ao qual sucedeu, em 396, na cátedra de Hipona.
Ali permaneceu até a sua morte em 430.
Apesar das perseguições e do grande cisma interno, o donatismo que Agostinho irá
enfrentar neste final do século IV encontra-se no auge da sua prosperidade
(FREND, 2002, p. 427). Neste período, mais da metade da população cristã africana
era donatista, com o agravante de que, em quase tudo, as duas Igrejas eram
praticamente idênticas (HAMMAN, 1989, p. 158).
Desde a sua ordenação sacerdotal até o fim do seu ministério, Agostinho tomou
sobre si a tarefa de enfrentar o donatismo em nome da ortodoxia católica. Sua
atuação se deu em três frentes. Primeiramente, ele agiu no campo teológico-
pastoral, visando demover o donatismo do que acreditava ser o seu erro por meio da
argumentação e da exortação. Ao mesmo tempo, agiu dentro na esfera institucional,
na qual procurou, por meio de ações próprias da política eclesiástica, estabelecer o
catolicismo como a única verdadeira Igreja do Norte da África. Para esse fim serão
importantes os muitos concílios eclesiásticos reunidos em sua época, nos quais a
presença de Agostinho é sempre destacada e de onde emanam decisões pastorais
e políticas contra os donatistas. Por fim, Agostinho defenderá o uso da força contra
os cismáticos, apelando ao aparato repressor do Império.
No campo teológico pastoral, Agostinho procurou afirmar a catolicidade da Igreja,
entendida por ele como a sua universalidade. A Igreja de Cristo não poderia, como
queriam os donatistas, se restringir apenas à África e ao grupo de Donato. Ela se
estendia por todo o mundo:
71
Estende tua caridade ao mundo todo, se queres amar a Cristo, porque
os membros de Cristo estão espalhados pelo mundo todo. Se amas só
a uma parte do Corpo, estás cindido, e assim não te encontras no
Corpo. Se não estás no Corpo, não mais estás sob o influxo da
Cabeça.(Comentário da primeira epístola de S. João, 10, 8)
Essa Igreja católica era também Igreja una, longe da qual não é possível a
Salvação. Agostinho era um pensador influenciado pelo neoplatonismo, para quem a
unidade era símbolo de perfeição. Muito mais decisiva, entretanto, foi a sua leitura
dos escritos paulinos, de onde ele deduziu que a unidade da Igreja não é apenas
espiritual, mas visível (CAMPENHAUSEN, 2005, p. 367). Para ele, “não se deve
abandonar a unidade, não é licito dividir a Igreja de Deus” (Comentário aos
Salmos,119.9). Fazê-lo é cometer um sacrilégio, é afastar-se da Salvação
(SEEBERG, 1967, p. 315).
Diante da pretensão de pureza absoluta da Igreja donatista, Agostinho argumentará
que a Igreja é um corpo misto, composto de bons e maus, justos e injustos, joio e
trigo. Essa ideia, ironicamente, ele desenvolveu a partir das concepções do
donatista dissidente Ticônio, que via a solução desse dilema apenas em um futuro
escatológico. Agostinho também abraçará essa tese. Para ele a Igreja o pode
ser uma elite no mundo; ela é necessariamente santa e mundana a um tempo, a
ser purificada somente no fim” (MARKUS, 1997, p. 62).
Essa recusa ao perfeccionismo também se revelará na sua defesa de um único
batismo contra a prática donatista do rebatismo. Para Agostinho, os sacramentos
são dons de Deus e a condição moral do oficiante não pode modificar o valor da
Graça que é conferida. Independente das virtudes do sacerdote, o batismo é
eficiente por si mesmo e não pode nem deve ser repetido. Mesmo que alguém tenha
sido batizado por um herege, tal ato deverá ser validado pela Igreja (SEEBERG,
1967, p. 316).
Podemos dividir a atuação antidonatista de Agostinho em cinco períodos (LANGA,
1988, p. 88). O primeiro deles vai de 391 a 395 e corresponde ao tempo em que
Agostinho era ainda um presbítero em Hipona. Este período se caracteriza por um
esforço pastoral a fim de defender o seu rebanho da heresia (WILLIS, 2005, p. 36).
72
São deste período as obras: Psalmus contra partem Donati (393) e Contra epistulam
Donati haeretici liber (393-394), esta última perdida (LANGA, 1988, p. 89).
O segundo período vai de 396 a 400 e corresponde aos primeiros anos do seu
episcopado. É marcado pela ampliação da atuação pastoral de Agostinho, bem
como pela ampliação de seus esforços em busca de um acordo de unidade com os
donatistas. Neste período escapou de uma emboscada dos circunceliões (LANGA,
1988, p. 90). Deste período são as obras Contra partem Donati libri II (397, perdida);
Contra Epistulam Parmeniani libri III (400); Contra litteras Petiliani libri III (400); De
baptismo contra donatistas libri VII (400) e Contra quod adtulit Centurius a Donatistis
liber (também perdida). Na literatura deste período aparecem as primeiras menções
nas quais ele considera a possibilidade de apelar para o Império a fim de forçar a
unidade da Igreja (WILLIS, 2005, p. 42). É também nesta época que um concílio
reunido em Cartago decide receber, no clero católico, os ministros donatistas
convertidos ao catolicismo (LANGA, 1988, p. 91).
O terceiro período vai de 401 a 405. Desta época é a Epistola ad Catholicos de
secta donatistarum, conhecida como De unitate Eclesiae (401-402). Em 404 um
concílio de Cartago decidiu apelar ao imperador para que se aplicasse contra os
donatistas as leis contra os hereges e os forçassem à unidade com os católicos.
Nesta ocasião a opinião de Agostinho – que foi derrotada no concílio – era de que as
penas fossem aplicadas somente aos donatistas que perturbassem a ordem pública
(LANGA, 1988, p. 95). O apelo ao imperador, somado aos atos de violência dos
donatistas contra o bispo católico Maximiano de Bagai, teve como resposta um duro
edito do imperador Honório, conhecido como Edito da Unidade, de 12 de Fevereiro
de 405. Nele, o cisma é equiparado à heresia, o rebatismo é proibido e os donatistas
são impedidos de receber doações ou legados (WILLIS, 2005, p. 51).
O quarto período vai de 405 a 411. As obras desse período são Contra Cresconium
partis donati libri IV (405-406); Probationum et testemoniorum contra donatistas liber
I (405-406, perdido); Contra donatistam nescio quem liber I (406-407, perdido);
Admonitio donatistarum de maximianistis liber I (407, perdida); De unico baptismo
contra Petilianum liber I (410-411) e De maximianistis contra donatistas liber I (411,
perdida). Diante da persistência do donatismo, o clero católico decide novamente,
73
em 408, apelar ao imperador para que se efetive o cumprimento da lei. A partir desta
época é possível ver, com clareza, que Agostinho defende a posição de que os
hereges devem ser convertidos, se necessário, pela força (WILLIS, 2005, p. 66). Em
junho de 410 o imperador emite um edito de tolerância, mas os apelos do clero
católico o levam a revogá-lo em agosto do mesmo ano (LANGA, 1988, p. 99).
O fim deste período é marcado pelo concílio conjunto, ou collatio, de Cartago (411),
convocado por ordem do imperador Honório. Tratou-se de um debate oficial
instituído para dirimir todas as dúvidas e decidir qual deveria ser considerada a
verdadeira Igreja. A reunião foi conduzida pelo comandante militar imperial Flávio
Marcelino, partidário do catolicismo (BROWN, 2005, p. 413). Estavam presentes 279
bispos católicos e 270 donatistas. Em 9 de junho de 411 o veredicto final foi dado e o
Donatismo foi oficialmente condenado.
A vitória no campo político eclesiástico legitimava agora o uso da força. A partir de
411, “as leis contra os donatistas tornaram-se coercitivas, no verdadeiro sentido da
palavra: puniam os leigos por não se tornarem católicos” (BROWN, 2005, p. 417.
itálico do autor).
O quinto e último período vai de 411 ao fim do episcopado de Agostinho em 430. As
obras desse período são Breviculus collationis cum donatistas libri III (411); Post
collationem contra donatistas liber I (412); Ad Emeritum donatistarum episcopum
post collationem liber I (416); De correptione donatistarum liber I (417); Sermo ad
Caesariensis ecclesiae plebem (418); Gesta cum Emerito donatista liber I (418) e
Contra Gaudentium donatistarum episcopum libri II (420). Neste período, mais do
que nos anteriores, faz-se necessário justificar o uso da força. Agostinho será então
o primeiro teólogo cristão a tentar construir uma justificativa teológica para o uso da
violência contra os dissidentes da ortodoxia, obrigando-os à conversão, procurando
persuadir as vítimas de que elas estão sendo perseguidas para o seu próprio bem,
quer elas saibam disso, quer não (GADDIS, 2005, p. 7). Compelle intrare, “obriga-os
a entrar”.
74
3.2 ANÁLISE DO DISCURSO ANTIDONATISTA DE AGOSTINHO
3.2.1 Contra epistulam Parmeniani
Durante todo o seu ministério em Hipona, Agostinho travou combate contra os
grupos heréticos e cismáticos, fazendo uso da palavra, falada e escrita, como
instrumento de combate. De acordo com Possídio (370-440), seu discípulo e
biógrafo,
Agostinho corajosamente ensinava e pregava, em particular e em
público, em casa e na Igreja, a palavra da salvação, contra as
heresias existentes na África, especialmente contra os donatistas,
maniqueus e pagãos, escrevendo livros e falando de improviso” (Vida
de Santo Agostinho, 7,1).
Em relação aos escritos, Possídio afirma que os próprios hereges ouviam
ardorosamente a leitura dos seus livros e tratados, que podiam ser copiados por
todos que assim desejassem e tivessem condições para isso (Vida de Santo
Agostinho, 7,3). Somos informados também que Agostinho escreveu cartas
particulares a alguns bispos e leigos donatistas, exortando-os “a se corrigirem do
mal ou a menos a aceitarem uma discussão [disputationem]” (Vita de Santo
Agostinho, 9,3). Tais discussões aconteciam em público e eram registradas em atas,
como a que registrou o debate com Emérito, bispo donatista de Cesaréia de
Mauritânia (Vida de Santo Agostinho 14,4).
Este testemunho é suficiente para nos dar uma ideia da intensa atividade anti-
donatista de Agostinho e de como essa atividade fazia uso do discurso como
ferramenta principal. O documento que passamos a examinar é parte de um dos
mais importantes desses discursos: Contra Epistulam Parmeniani libri tres
8
.
A obra remonta ao ano de 400, quando Agostinho leu um exemplar da Epistula ad
Tyconium, escrita pelo bispo donatista Parmeniano, sucessor de Donato na cátedra
8
Nas citações, abreviada como C. Ep. Parm.
75
de Cartago (362-392)
9
. Ticônio, o destinatário original de Parmeniano, era um
teólogo donatista leigo, que causara furor entre os seus correligionários ao afirmar
que a verdadeira Igreja estava difundida pelo mundo inteiro e que os pecados de
alguns cristãos não contaminam a totalidade da Igreja, contrariando assim duas
teses centrais do donatismo (TILLEY, 1999, p. 312)
10
. Quando Agostinho tomou
conhecimento do conteúdo da Epistula, quase duas décadas haviam se passado
desde a sua composição e Parmeniano, seu autor, havia falecido. Mesmo assim,
o bispo de Hipona decidiu partir desta obra para compor uma réplica ao donatismo
de sua própria época, uma vez que era grande a difusão e a influência da Epistula
ad Tyconium, o que preocupava as lideranças católicas. O próprio Agostinho explica,
no início da obra, que seus irmãos na “pediram e até suplicaram, que escrevesse
uma réplica” (C. Ep. Parm., I,1,1).
Contra Epistulam Parmeniani tem como tema fundamental a eclesiologia, isto é, a
doutrina acerca da Igreja, que é um dos pontos centrais do debate entre católicos e
donatistas. Consta de três livros: no primeiro livro, Agostinho conta a história do
donatismo desde o surgimento do cisma até os seus dias, chamando a atenção para
o que considera uma inconsistência dos seus oponentes, a saber, que eles recebem
de volta à comunhão da Igreja os seus próprios cismáticos, enquanto exigiam que os
católicos fossem rebatizados
11
. No segundo livro, Agostinho concentra-se nos temas
da catolicidade e da santidade da Igreja, argumentando que, uma vez que os
donatistas quebraram a comunhão com o restante da Igreja espalhada pelo mundo,
eles não são verdadeiramente católicos e que a santidade da Igreja e dos seus
sacramentos não depende da santidade de seus ministros. Finalmente, no livro
terceiro, ele liga o tema da unidade com o da caridade e procura demonstrar que o
bem e o mal convivem na Igreja até o dia do Julgamento Final (TILLEY, 1999, p.
312).
9
Parmeniano era gaulês ou espanhol e provavelmente aderiu ao donatismo durante o exílio de
Donato, tornando-se depois seu sucessor à frente do movimento. Durante o seu episcopado, o
donatismo viveu um momento de revitalização. Foi responsável pela condenação de Ticônio num
concílio, em 385 (FREND, 2002, p. 1094). A obra citada está perdida, mas é possível reconstituí-la
parcialmente a partir das extensas citações que Agostinho faz da mesma.
10
Ticônio, embora excomungado pelo concílio de 385, não se uniu ao catolicismo.
11
Agostinho se refere ao cisma maximianista que dividiu o donatismo depois da morte de
Parmeniano.
76
A quem se dirigia uma obra como essas? Agostinho denomina esse texto de libri. De
um modo geral, essa denominação era dada a um tipo de composição literária
destinada a um tipo mais erudito de leitor (GREGOIRE, 2002, p. 692). No caso de
Agostinho, esses leitores seriam os membros do clero (católico e donatista), os
monges e também as autoridades imperiais. Esse caráter erudito certamente
limitava a leitura de uma obra como essa, mas não a sua audição, uma vez que eles
também eram lidos em público nas igrejas e atingiam uma audiência bem maior,
tanto de católicos, quanto de donatistas (Vida de Santo Agostinho, 7,3).
Entre os cristãos, os livros eram copiados ou trocados entre os fiéis, e a leitura feita
em suas reuniões comunitárias permitia que o seu conteúdo fosse compartilhado
com um público menos letrado ou mesmo analfabeto (CAVALLO e CHARTIER,
1988, p. 92). Assim, embora não tivesse o aspecto popular de um sermão, por
exemplo, o liber tinha a possibilidade de atingir um grande número de leitores e um
número ainda maior de ouvintes. Além disso, em comparação com os livros de
caráter mais profano, cuja confecção era mais elaborada e mais cara, o livro cristão
era mais simples e circulava em ambientes mais humildes, como os mosteiros e as
igrejas locais (CANART, 2002, p. 852). Neste período, já se tornara popular um novo
formato de livro, que irá paulatinamente substituir o rolo: é o codex, o livro com
páginas, o tipo de livro preferido pelos autores e leitores cristãos, pelo seu baixo
custo e praticidade de manuseio (CAVALLO e CHARTIER, 1988, p. 19)
12
.
Para s, Contra Epistulam Parmeniani reveste-se de especial importância porque
nela Agostinho apresenta uma das suas primeiras defesas da intervenção do poder
do Estado em assuntos eclesiásticos (WILLIS, 2005, p. 43).
É importante assinalar que o livro foi escrito alguns anos antes do edito do
imperador Honório (405), que equipara legalmente cisma e heresia e do Concílio de
Cartago (411), quando o donatismo é definitivamente condenado. Ao contrário do
tempo de Parmeniano, em que o donatismo encontrava-se no auge de sua
expansão, a época da escrita de Agostinho coincide com um período de
enfraquecimento do donatismo e de reação católica, ocorridos no bojo de
12
Com o passar do tempo, a palavra codex se tornará o termo próprio para designar “livro” ( ARNS,
1993, p. 124).
77
importantes fatos políticos na África do Norte.
Quase três décadas antes, em 372, Firmo, um líder local da Mauretania
Caesarensis, insurge-se contra Romano, o representante do poder imperial na
África, responsável por aplicar a rígida a política fiscal do imperador. A rebelião
contou com o apoio dos circunceliões e de lideranças donatistas. Quando a rebelião
foi debelada, em 374 a repressão contra o donatismo aumentou (WILLIS, 2005, p.
22).
A situação legal dos donatistas voltou a se complicar depois de 397, quando Gildo,
irmão de Firmo, que inicialmente permaneceu fiel à Roma contra o próprio irmão,
também se rebelou contra o Império. À semelhança de Firmo, Gildo também
associou-se aos circunceliões e aos donatistas, especialmente ao bispo Optato de
Thamugadi, acusado de incitar a violência dos circunceliões contra os inimigos dos
donatistas. Os insurgentes foram vencidos pelo imperador Honório e a situação dos
donatistas perante a lei piorou consideravelmente (FREND, 2002, p. 623).
É nesse período que Agostinho começa a firmar posição cada vez mais favorável ao
uso da força contra os donatistas, posição que se revela em Contra Epistulam
Parmeniani.
O núcleo dessa defesa encontra-se na segunda parte do Livro I, na qual será
concentrada a nossa análise. Antes, porém, vejamos como Agostinho começa o livro
e de que maneira ele prepara a sua argumentação favorável à atuação coercitiva do
poder civil.
No primeiro parágrafo, Agostinho afirma que resolveu escrever esta réplica
especialmente por que Parmeniano “não interpretou certas passagens da Sagrada
Escritura como se deve” (C. Ep. Parm. I,1,1). Anuncia-se, assim, o objetivo geral da
obra, que é apresentar uma outra interpretação da Bíblia, “como se deve”. O recurso
à Bíblia é sempre um elemento de grande importância num conflito entre grupos
cristãos rivais, porque a Bíblia se constituí para eles numa fonte comum de
autoridade. Apelar para a Bíblia é, portanto, fazer uso de um argumento de
autoridade, cujo uso pressupõe que a autoridade citada seja reconhecida pelas
78
partes envolvidas no conflito (BRETON, 2003, p. 76).
Na disputa em questão, a Bíblia foi usada primeiramente por Ticônio contra
Parmeniano, que responde com a sua própria interpretação dos textos citados.
Agostinho, por sua vez, defende a interpretação de Ticônio e pretende persuadir
seus leitores de que tal interpretação é a única correta, pois é a interpretação da
Igreja católica (LANGA, 1988, p. 119). Aqui temos um outro apelo à autoridade,
desta vez à autoridade do catolicismo, reivindicada pelo bispo de Hipona e negada
pelos donatistas. A intenção de Agostinho, ao discutir o texto bíblico, é justamente
afirmar a legitimidade dessa reivindicação.
As passagens bíblicas disputadas tratam, segundo Agostinho, de confirmar a
universalidade (catolicidade) da Igreja, em detrimento da tese donatista de que a
verdadeira igreja estava restrita aos donatistas e, portanto, à África (C. Ep. Parm.
I,1,1). São citações do livro de Gênesis que falam da promessa de Deus a Abrãao,
Isaque e Jacó, os patriarcas hebreus:
Que se disse a Abraão? “Em tua descendência serão benditas todas
as nações”. Que se disse a Isaque? “Também em tua descendência
serão benditas todas as nações da terra, porque teu pai Abraão deu
atenção à minha voz”. Que se disse a Jacó? “Eu sou o Deus de
Abraão, teu pai, e o Deus de Isaque; não tenhas medo. A terra sobre a
qual estás dormindo eu te darei a ti e a tua descendência. Será a tua
posteridade como o pó da terra, e se estenderá para o ocidente e para
o oriente, para o norte e para o sul. Em ti e em tua posteridade serão
benditas todas as nações da terra”. (C. Ep. Parm. I,2,2).
Agostinho observa que a interpretação cristã dessa passagem, feita pelo apóstolo
Paulo (Gálatas 3:16), aplica à Igreja as promessas feitas ao povo hebreu: por meio
da Jesus Cristo, todos os povos alcançariam a bênção de Deus e não somente os
africanos. A conclusão lógica, segundo Agostinho, é que a verdadeira igreja é a
Igreja católica, porque está em comunhão com as demais igrejas do mundo
13
.
A partir desta interpretação do texto bíblico, Agostinho passa a fazer suas acusações
13
Ao contrário do que Agostinho argumenta, Robert Eno (1972, p. 48) sugere que que os donatistas
não desconsideravam as igrejas espalhadas pelo resto do mundo, posto que sua questão era com
o catolicismo local.
79
contra os donatistas: Uma vez que se negam a interpretar desta forma o texto
bíblico, os donatistas não podem desejar ser chamados de cristãos (C. Ep. Parm.
I,2,2). A negação do status de “cristãos” aos donatistas aparece outra vez no
parágrafo seguinte, associada à mesma razão, a saber, que os donatistas negam
que o Reino de Cristo se estende por toda a terra: “E quem assim crê, com
impudência diz 'somos cristãos', e ainda diz: 'somente nós o somos'” (C. Ep. Parm.
I,2,3). Negar aos donatistas o qualificativo de “cristãos” implica em afirmar que os
católicos são os legítimos portadores desse título, fazendo assim parte do processo
de construção da alteridade e da identidade de um e de outro, respectivamente.
Essa negação tem ainda implicações legais e políticas, uma vez que a lei de
Teodósio, como foi visto, negava aos não-católicos o uso desse título e previa
punições aos infratores. Mais adiante Agostinho relembrará esse detalhe da
legislação (C. Ep. Parm. I,12,19).
A esta primeira acusação seguem-se outras, sempre ancoradas na tese de que os
donatistas romperam com a unidade da Igreja e, consequentemente, com a sua
catolicidade. Assim, chega-se à segunda metade do livro I, na qual Agostinho trata
diretamente da questão da ação imperial contra os donatistas.
Inicialmente, Agostinho rebate a queixa de Parmeniano, que acusa o então
imperador Constantino de ser demasiado severo com os donatistas, condenando-
lhes à morte. Também acusam o bispo católico Ósio de Córdoba, conselheiro do
Imperador, de influenciar na severidade do castigo. Agostinho responde sem
apontar nenhuma evidência concreta que é mais fácil acreditar que Ósio
intercedeu a favor dos donatistas, para que o imperador abrandasse a pena, “apesar
do monstruoso crime que é o cisma sacrílego. (C. Ep. Parm. I,8,13). Aqui vemos
Agostinho novamente fazendo uso de um vocabulário estigmatizante, formado por
rótulos que caracterizam o seu trato com o donatismo em geral. Estes vocábulos são
fundamentais na construção dos argumentos agostinianos em favor da repressão
imperial ao donatismo.
Na sentença citada acima, Agostinho usa quatro palavras que merecem a nossa
atenção. A primeira destas palavras é schisma. Seguindo o uso comum, Agostinho
também distinguia cisma de heresia. O cisma envolve fundamentalmente a
80
separação da comunidade. É um erro contra a catolicidade da Igreja, uma quebra do
vínculo da caridade que mantêm unida a comunidade cristã. A heresia, por sua vez,
é uma ruptura de doutrina. Tal distinção não torna o cisma menos sério,
especialmente se este se torna persistente. Neste caso, ele iguala-se à heresia
(EVANS, 1999, p. 424-425).
Em Contra Epistolam Parmeniani o vocábulo haeresis e seus derivados aparecem
ao todo nove vezes, enquanto schisma e suas derivações aparecem cinquenta e
sete vezes. No contexto da redação de sua obra, a distinção entre “cisma” e
“heresia” também leva em consideração a legislação imperial anterior a 405, que
distinguia ambos os grupos, de modo que a severidade da lei contra os hereges não
se aplicava completamente aos que fossem considerados apenas cismáticos.
As outras três palavras que acompanham schisma o qualificam de modo a ampliar a
sua gravidade. A mais importante e frequente no restante do livro é sacrilegium. As
variações desse vocábulo aparecem quarenta vezes no texto, vinte e duas das quais
associadas a schisma. Sacrilegium era o termo legal usado, desde a época do
imperador Augusto, para descrever o crime de roubar dos templos quaisquer objetos
consagrados aos deuses. Por extensão, passou a significar qualquer uso impróprio
das coisas sagradas (BURRIS, 1929, p. 105). A palavra permanece nas novas leis
do Império cristão, intimamente associada à heresia e cisma (PAÑO, 2006, p. 476).
A palavra para “crime” é sceleris, derivado de scelus, um termo forte, usado para
descrever atos considerados moralmente muito maus. Este vocábulo e seus
derivados aparecem vinte e sete vezes no texto, mas somente em três ocasiões
estão relacionados a schisma. Mas outros termos semelhantes também são
usados, tais como nefario, crimine, erro. Estas palavras também aparecem na
legislação do Baixo Império para qualificar os delitos de natureza religiosa
(MARCOS, 2004, p.55; PAÑO, 2006, p. 476). Tal linguagem estigmatizante é,
portanto, carregada com grande peso legal, a fim de reforçar o argumento de que o
cisma, como crime, deve ser combatido com a força do Estado.
Finalmente a palavra para “monstruoso” é immanissimi, derivado de immanis.
Aparece dez vezes em toda a obra, mas somente duas vezes associada diretamente
81
ao cisma donatista. No Código Teodosiano o herético é representado como um
fenômeno monstruoso, anômalo, estranho e, portanto, maléfico e perigoso (PAÑO,
2006, p. 493-494).
Após ter descrito com tais palavras o donatismo, Agostinho então passa a justificar a
ação do então imperador Constantino contra os mesmos:
Padecem estes a menor injustiça, dado que a sentença provém do
supremo tribunal de Deus, que é quem preside o juízo? O que ele
busca, na realidade, com o castigo dos delitos infligidos pelas
autoridades estabelecidas não é admoestá-los para que evitem o
castigo eterno? (C. Ep. Parm. I, 8, 13)
A punição estabelecida é justa, segundo Agostinho, porque procede do próprio Deus
(ex altissimo Dei) que é quem, de fato, realiza o julgamento através do imperador.
Trata-se da ação do “poder oculto de Deus, através do poder manifesto dos homens”
(C. Ep. Parm. 1,9,15). E o castigo assim imposto pelas autoridades estabelecidas
cumpre o nobre propósito de evitar o castigo eterno (aeternum flagellis). Tais ideias
têm uma longa tradição no Cristianismo e estão relacionadas com a seguinte
passagem da carta do apóstolo Paulo aos Romanos:
Todo homem se submeta às autoridades constituídas, pois não
autoridade que não venha de Deus, e as que existem foram
estabelecidas por Deus. De modo que aquele que se revolta contra a
autoridade, opõe-se à ordem estabelecida por Deus. E os que se
opõem atrairão sobre si condenação. Os que governam incutem medo
quando se pratica o mal, não quando se faz o bem. Queres então não
ter medo da autoridade? Pratica o bem e dela receberás elogios, pois
ela é instrumento de Deus para te conduzir ao bem. Se, porém,
praticares o mal, teme, porque não é à toa que ela traz a espada: ela
é instrumento de Deus para fazer justiça e punir quem pratica o mal
(Romanos 13:1-4).
A interpretação deste texto ganhou um novo fôlego após a cristianização do Império,
considerada por muitos cristãos como um ato da Divina Providência. A partir dessa
crença, toma-se por certo que compete ao Império a proteção da Igreja e a defesa
da ortodoxia (SINISCALCO, 2002, p. 704).
Agostinho, também compartilha dessa visão. Ele cita o texto paulino explicitamente
82
logo a seguir, como arremate para o argumento de que os mártires do donatismo
não são verdadeiros mártires, pois ninguém pode ser considerado mártir se é
culpado de cisma ou heresia. E comenta: “O homem de bem, quando tem que sofrer
algo da parte da autoridade, recebe glória por isso. Em troca, o mau, quando sofre
com o castigo de seu pecado, não deve atribuí-lo à brutalidade da autoridade” (C.
Ep. Parm. I,8,13).
Digno de nota é a referência ao objetivo do castigo, que é evitar o castigo maior, o
aeternum flagellis. Trata-se, na argumentação de Agostinho, de algo benéfico para
as vítimas. Gaddis (2005, p. 7) chama a atenção para esse tipo de linguagem que
envolve preocupação paternal e pedagógica, mas que esconde por trás de si um alto
potencial de violência. A coerção é justificada por meio de um “discurso
disciplinador” (GADDIS, 2005, p. 133), cujo foco é mostrar que o alvo da violência
não é destruir as suas vítimas, mas sim reformar e educar, salvando-as do seu
próprio erro. Em contrapartida, esse tipo de discurso pretende que as vítimas
aceitem passivamente a repressão, como ovelhas dóceis ouvem a voz de seu
pastor. Caso contrário, serão considerados orgulhosos, rebeldes e inimigos da
unidade (GADDIS, 2005, p. 134).
O castigo contra os donatistas é ainda mais justificado quando se considera a maior
gravidade dos seus crimes:
Porque quando sai um pouco de sangue do corpo mortal, todo aquele
que presencia isto sente horror. Em troca, se as almas desgarradas e
separadas da paz de Cristo pelo sacrilégio da heresia ou do cisma,
estão morrendo, como isto não se com os olhos, não lamentamos;
é na verdade a morte mais horrível e lamentável e – eu me atreveria a
dizer a mais verdadeira de todas [...] E se acaso acontece de
sofrerem alguma moléstia passageira por parte das autoridades certa
e legitimamente constituídas, nos chamam de perseguidores do corpo
[...]. A si mesmos não se chamam assassinos de almas [animarum
interfecctores], quando por sua conta nem sequer perdoam os corpos.
(C. Ep. Par. I,8,14).
No livro segundo, Agostinho vai dizer algo semelhante, acusando os donatistas de
serem culpados por derramar “sangue espiritual” (C. Ep. Parm. II,3,7). Ora, um crime
tão grande assim, que coloca em risco não somente o corpo, mas a própria alma,
83
não justificaria uma punição severa? Entretanto, argumenta Agostinho, a punição
recebida é bem mais branda do que a que é merecida:
Mas como pela mansidão cristã [mansuetudinem christianam] se
castiga com mais severidade a perda de um olho numa briga, do que
a cegueira de espírito num cisma, palavreiam e nos maldizem, mas
não dialogam conosco (C. Ep. Par. I,8,14).
A “brandura” do castigo, alegada por Agostinho, manifesta-se de acordo com o que
ele denomina de mansuetudinem christianam, expressão que aparece quatro vezes
em Contra Epistolam Parmeniani, para contrastar com a “discórdia diabólica”
(contentione diabolica) dos donatistas (C. Ep. Parm. I,4,8), para indicar a
benevolência do Império no trato com os dissidentes, que faz com que o castigo seja
inferior ao crime (C. Ep. Parm. I,11,18), e para demonstrar que as leis promulgadas
contra os donatistas não se cumpriam com toda severidade (C. Ep. Parm. I,13,20).
A retórica da “mansidão cristã” como uma característica da violência imperial contra
os cismáticos, está associada ao conceito agostiniano de correptio, “correção”. O
vocábulo, e outros assemelhados (arguere, admonere, corrigere, corripere e
reprehendere), procedem de um contexto penitencial, isto é, do exercício da
disciplina eclesiástica (GROSSI, 1999, p. 243). De acordo com esse conceito, o
objetivo do castigo não é principalmente punitivo, mas, antes de tudo, corretivo
(BROWN, 1964, p. 114). Por isso, Agostinho se opunha à pena capital, pois a
mesma colocaria um fim a toda possibilidade de conversão. Os donatistas não
deveriam ser punidos com a morte, mas pressionados de maneira a serem
demovidos do seu erro e a abraçarem a católica (GADDIS, 2005, p. 137). O nível
de “violência aceitável”, nestes casos, era o mesmo que, na sociedade romana, era
esperado daqueles que exerciam autoridade e que deveria incitar os seus
subordinados à disciplina: dos senhores para com seus servos, dos professores
para com os seus alunos, dos pais para com os seus filhos (GADDIS, 2005, p. 141).
Na sua própria experiência de conversão, Agostinho identificava esta “severa
misericórdia”, provinda da parte de Deus para o bem dos seus escolhidos:
Sempre estavas presente em tua severa misericórdia, entremeando
84
de amargos desgostos os meus prazeres ilícitos, a fim de que eu
aprendesse a procurar a alegria sem ofender-te. Se eu tivesse
encontrado, teria encontrado a ti, Senhor, que nos dás a dor como
preceito, que feres para curar e nos tiras a vida para não morrermos
longe de ti. (Confissões, 2,2,4)
O mesmo padrão disciplinar, aplicado nas relações entre Deus e o homem e nas
diversas relações sociais, também deveria ser aplicável no trato da autoridade
imperial contra os dissidentes de qualquer espécie. Era parte do dever das
autoridades, a fim de garantir a paz entre homens, bem como a paz com Deus
(COSTA, 2006, p. 6).
Agostinho não somente estava certo que os imperadores deveriam intervir em
questões religiosas, como pretendia demonstrar que os donatistas também
concordavam com isso, uma vez que eles próprios haviam apelado ao poder civil.
Com esse intuito, ele lança mão da história do cisma, uma de suas estratégias
recorrentes no trato com seus adversários (LANGA, 1988, p. 124). Para Agostinho,
os fatos que deram origem ao donatismo são uma fonte importante de
argumentação, especialmente quando procura neles alguma atitude contraditória
que possa usar contra os seus contedores. Relembrando o início do conflito, quando
os adversários de Ceciliano apelaram para Constantino, ele diz:
Não tem competência o imperador, como juiz, ou seus delegados, em
matéria de religião? Então por que vossos delegados foram os
primeiros a procurar o imperador? Por que o nomearam juiz de seus
cargos, não estando dispostos a cumprir sua sentença? (C. Ep. Parm.
I,9,15).
Além desse apelo à história, Agostinho também argumenta a partir de um outro tema
caro ao donatismo: o martírio. Para os donatistas, ser perseguido pela autoridade
imperial por causa de sua era vivenciar a glória do martírio, reforçando assim a
sua própria identidade como “Igreja dos mártires”, ao mesmo tempo em que
construíam a alteridade católica como a “Igreja dos perseguidores”. A isso Agostinho
argumenta que, sendo assim, todos os hereges e também os pagãos poderão
reivindicar o título de “mártires”, algo, segundo ele, inconcebível para um cristão:
85
Não se faz um mártir pelo simples fato de sofrer um castigo do
imperador por qualquer causa religiosa. Não se dão conta, aqueles
que sustentam tal opinião, que por esse caminho chegam a dar a
possibilidade até mesmo aos demônios de reclamar para si a glória do
martírio, que padecem uma perseguição desse tipo por parte dos
imperadores cristãos [...]. Afirmar isso seria uma extrema loucura. A
verdadeira justiça não é a que nasce do sofrimento; ao contrário,
há glória no sofrimento quando nasce da justiça (C. Ep. Parm. I,9,15).
A lógica do argumento de Agostinho depende de sua convicção de que o cisma,
assim como o Paganismo (representado aqui pela expressão “os demônios”), é um
crime, que deve ser combatido e não louvado, e que portanto é descabido reivindicar
a glória do martírio para aqueles que sofrem o que ele considera a justa punição
pelas suas transgressões. No parágrafo seguinte, ele faz uso, mais uma vez, de
uma passagem bíblica para sustentar o seu argumento. A passagem é da carta do
apóstolo Paulo aos Gálatas e versa sobre as chamadas “obras da carne”, uma lista
de vícios que o cristão deve combater: “fornicação, impureza, libertinagem, idolatria,
feitiçaria, inimizades, litígios, ciúmes, rivalidades, dissensões, heresias, invejas,
embriaguez, orgias e coisas semelhantes a essas” (Gálatas 5:19-21). Após citar o
texto bíblico, Agostinho levanta uma série de perguntas retóricas:
Pois bem, que lhes parece isto? Está o delito de idolatria
justamente castigado pelos imperadores? Por que confessam
que a força da lei está bem empregada contra os réus de
feitiçaria e, em troca, não querem confessar o mesmo em
relação aos hereges ou às ímpias dissensões, quando estão na
mesma lista que os frutos da perversidade enumerados pela
autoridade apostólica? Ou não permitem que as autoridades,
humanamente constituídas, cuidem de matérias semelhantes?
Por que então é portadora da espada o que se diz ministro de
Deus para castigar aos malfeitores? (C. Ep. Parm. I, 10, 16)
A função dessas perguntas não é a de obter as respostas dos donatistas. É induzir o
leitor a seguir a lógica do seu raciocínio, envolvê-los na sua argumentação e
conduzi-los à sua conclusão, a saber: que as heresias e cismas devem ter o mesmo
castigo dos demais crimes, primeiro porque as Escrituras os enumeram lado a lado,
como iguais, e também porque as mesmas Escrituras afirmam que cabe ao poder
civil castigá-los.
86
No capítulo seguinte, Agostinho se volta novamente para história do donatismo. Ele
vai procurar demonstrar que os donatistas, no trato com os seus adversários, foram
tanto ou mais severos do que o Império para com eles. Primeiro, ele recorda como
eles agiram diante dos grupos dissidentes:
Dirão talvez os donatistas que eles hão suportado dos imperadores
católicos agravos maiores do que os que têm infligido, seja aos
rogatistas
14
, valendo-se dos reis bárbaros, seja aos maximianista,
através dos juízes católicos, ou ainda maiores que o dano que eles
ocasionam a todos os que podem, valendo-se do furor dos
circunceliões. Como se a questão fosse de saber se sofrem mais do
que fazem sofrer. Nem isto sequer lhes concederia em absoluto (C.
Ep. Parm. I,11,17).
Apresentar os donatistas como perpetradores de graves violências é uma importante
estratégia estigmatizante de Agostinho e, para isso, associá-lo aos temíveis
circunceliões é fundamental. Ele prossegue:
Muitas são, com efeito, as crueldades impiedosas que se podem
enumerar de sua parte, melhor dizendo, que não se pode enumerar.
Pois bem, ainda supondo que estas atrocidades cometidas com suas
vítimas diminuíram em intensidade, seriam certamente maiores pelo
fato de que não estão mandadas pelas autoridades legais, sendo
cometidas como efeito de uma loucura feroz fora de toda medida
[extraordinariis furoribus] (C. Ep. Parm. I,11,17)
Na passagem citada, podemos perceber a distinção que Agostinho faz entre dois
tipos de violência: aquela ordenada pela autoridade e a outra, cometida “fora de toda
medida”. Essa distinção corresponde ao que Gaddis (2005, p. 5) denomina,
respectivamente de “violência centrista” e “violência extremista”. A primeira é a
violência aplicada pela autoridade estabelecida; a segunda, a violência empregada
em oposição ou resistência à autoridade. Enquanto o primeiro tipo de violência é
usado com o fim de manter a unidade, o segundo é usado para dividir (GADDIS,
2005, p. 8). Devemos estar atentos para o fato de cada um dos grupos que faz uso
de um ou outro tipo de violência a considera legítima, sempre a partir da
14
Os chamados “rogatistas” eram os seguidores do bispo Rogato de Cartena, que em 370, nos
tempos de Parmeniano, separaram-se do donatismo por não concordar com a aliança donatista
com o revoltoso Firmo e com os circunceliões. Foram perseguidos por Firmo (TILLEY, 1997, p.
95).
87
representação que faz de si mesmo e do outro. Para os donatistas, o uso da
violência era legítimo enquanto forma de defesa da verdadeira “Igreja dos mártires”
contra a “Igreja dos traditores” e seus aliados; para Agostinho, a violência do poder
central era justificada como forma de correção em favor de um bem maior: a unidade
da Igreja e o bem estar – tanto social, quanto espiritual – de todos.
Relacionar os donatistas aos circunceliões era relacioná-los com a desordem e o
caos. A expressão traduzida por “loucura feroz e desmedida” é extraordinariis
furoribus. A palavra latina furor é usada dezesseis vezes ao longo de Contra
Epistulam Parmeniani. Ela faz parte do vocabulário médico, usado por Agostinho,
para caracterizar o cisma como enfermidade. Esse vocabulário inclui palavras como
insania (usada nove vezes), dementia (usada cinco vezes), pestilentia (usada uma
vez) e era recorrente no contexto dos escritos polêmicos de Agostinho (RASSINIER,
1991, p. 67). Furor, bem como insania e dementia, se referiam, na linguagem médica
da época, aos males da alma
15
. No caso de furor e de insania, um componente de
violência está sempre associado à sua manifestação (RASSINIER, 1991, p. 71).
Na visão agostiniana do mundo, a enfermidade, num sentido amplo, está associada
ao pecado original (RASSINIER, 1991, p. 75). É porque o ser humano está separado
de Deus que tanto seu espírito, quanto seu corpo, padecem de fraquezas. Para
Agostinho, saúde (sanitas, salus) identifica-se com unidade e, consequentemente, a
doença, física ou espiritual, manifesta-se na divisão (BURT, 1999, p. 417). A coerção
imperial impede que os homens persistam no mal, funcionando como um remédio
para as almas doentes (DRAKE, 1996, p. 12). Ao contrário da violência desordenada
dos circunceliões, a violência do Império contra os cismáticos é medicinal.
Como último recurso à história, Agostinho associa os donatistas ao imperador
Juliano, a quem recorreram, com sucesso, em busca da anulação das leis
repressivas de Constantino:
Não sabemos de alguém que haja promulgado leis a seu favor mais
do que Juliano, o apóstata, a quem desgostava em extremo a unidade
15
Rassinier (1991, p. 68) divide o vocabulário médico presente nos escritos de Agostinho em quatro
grupos: os que se referem aos “males da alma”, tais como furor, insania, dementia; os referentes aos
“males contagiosos”, como pestilentia, os que falam dos venenos e a palavra cancer, cujo significado
nos textos antigos é difícil de se precisar.
88
e a paz cristãs.[...] A ele, por certo, segundo consta nas atas dos juízes
a quem encomendaram o que haviam conseguido, estes donatistas
elevaram uma súplica em tais termos, que alguns de bom grado
prefeririam talvez prestar culto aos ídolos por temor, antes que adulá-
lo, como fizeram estes. Porque lhe disseram que tudo quanto havia na
sua pessoa era justiça? Que outra coisa afirmaram com isto, senão
que a santidade cristã não é justiça, que em sua pessoa não cabia
nada de Cristianismo, ou que se é um ato de justiça honrar os
demônios, de que se ocupava em primeiro lugar sua pessoa? (C. ep.
Parm. I,12,19).
Como o próprio adjetivo “apóstata”
16
indica, a memória do Imperador Juliano entre os
cristãos, nos dias de Agostinho, era alvo de completa depreciação, por abandonar a
cristã e tentar restaurar o Paganismo (SANFILIPPO, 2002, p. 792). Entre os
muitos autores cristãos que se empenharam em construir essa imagem de Juliano
estão Gregório Nazianzeno (329-390), Ambrósio de Milão (340-397) e o próprio
Agostinho (CARVALHO, 2006, p. 268). Logo, associar os donatistas ao imperador
era uma forma clara de estigmatização. Na passagem citada, Agostinho agrava
ainda mais essa associação, lembrando que os donatistas, em sua petição,
elogiaram Juliano ao dizer que “tudo em sua pessoa era justiça”. Tal afirmação,
argumenta Agostinho, implica em dizer que todos os seus atos contra o Cristianismo
e a favor do Paganismo foram justos e que, portanto, o Cristianismo equivale a
injustiça. Dessa maneira, os donatistas são, além de cismáticos, hereges e
criminosos, coniventes com a apostasia.
Agostinho encerra o capítulo lembrando que, ao contrário de Juliano, os demais
imperadores não foram coniventes com a heresia. Entretanto, por causa referida
mansuetudinem christianam, a severidade foi bem menor do que a merecida. E, se
algum excesso de violência foi cometido “isto é causa de desgosto” para todos os
verdadeiros cristãos (C. Ep. Parm. I,13,20). Como foi dito, existia um nível de
“violência aceitável”, além do qual não se deveria ir. Na prática, entretanto, a
definição desse limite era difícil de se precisar e os “excessos” aos quais Agostinho
16
Apóstata vem de apostasia, palavra grega que significa abandono, rebelião. No Novo Testamento é
uma das palavras usadas para denominar o ato de abandonar a fé cristã (BAUDER, 2000, p. 262). Os
cristãos também foram considerados apóstatas, por renegarem a judaica e a religião romana. No
Cristianismo antigo, os lapsi e os traditores eram acusados de apostasia, juntamente com todos os
que abandonassem a fé cristã ou abjurassem publicamente do Cristianismo (GROSSI, 2002, p. 136).
89
se refere eram frequentes (GADDIS, 2005, p. 145). Tais excessos, no entanto,
poderiam ser justificados, uma vez que que os agentes humanos da correção divina
estão sujeitos ao erro, pois são pecadores (GADDIS, 2005, p. 149). Considerando-
se, porém, o bem maior de todos, esses excessos, podiam ser tolerados, ainda que
fossem considerados lamentáveis.
O primeiro livro conclui com uma referência a um dos textos bíblicos mais
recorrentes nos escritos de Agostinho contra os donatistas: a parábola do joio e do
trigo, que se encontra no Evangelho de Mateus (Mateus 13:24-30). A parábola é
citada cinco vezes ao longo de todo o livro e é um texto recorrente na disputa entre
Agostinho e os donatistas. Para Agostinho, assim como para Ticônio, a parábola
aponta para a realidade da Igreja no tempo presente, como um corpo misto, formada
tanto de santos (trigo), quanto de falsos cristãos (joio), sendo impossível separá-los
completamente neste mundo. Somente quando vier o fim dos tempos (a colheita) o
joio e o trigo serão separados. Até lá, os verdadeiros cristãos devem tolerar os maus
cristãos, mantendo a unidade da Igreja.
Agostinho acusa os donatistas de tentar agir por conta própria e antes do tempo,
separando o joio do trigo. E fecha o livro primeiro lançado sobre os donatistas um
última acusação que certamente contribui para a sua estigmatização: eles
demonstram que são o verdadeiro joio (C. Ep. Parm. I,14,21).
3.2.2 Sermo ad Caesariensis ecclesiae plebem
Em maio de 418, Agostinho tomou parte de um concílio em Cartago, cujo principal
tema era a questão pelagiana
17
. Entretanto, a questão donatista também estava em
pauta, especificamente no tocante a reintegração destes ao seio da Igreja católica
17
O pelagianismo refere-se ao ensino do monge Pelágio (354-420?), caracterizado pelo rigor
ascético e pela crença de que uma vida de perfeição, totalmente isenta de pecado não era um
ideal inatingível, mas uma ordem divina que deveria e poderia ser colocada em pratica neste
mundo (BROWN, 2005, p. 427). Em outras palavras, a doutrina pelagiana era um perfeccionismo,
fundamentado por uma visão otimista da natureza humana, contra a qual Agostinho respondeu
com a doutrina do pecado original.
90
(MUNIER, 2002, p. 265). Por ocasião deste concílio, Agostinho toma conhecimento
de sua nomeação como representante do papa Zózimo em Mauritânia Cesariana
(LANGA, 1990, p. 577). Ao chegar em Cesaréia de Mauritânia, em 18 de setembro
daquele mesmo ano, foi informado de que Emérito, bispo donatista, desejava
encontrá-lo.
Emérito, advogado e bispo donatista de Cartago, fora um dos personagens centrais
do concílio donatista de Bagai (394)
18
e da conferência de Cartago de 411, onde foi
um dos porta-vozes do donatismo. Depois da conferência, foi privado de sua sede
episcopal e exilado, mas continuava ativo na região de Cesaréia (FREND, 2002, p.
471).
O encontro entre Emérito e Agostinho aconteceu na praça da cidade e o bispo de
Hipona convidou seu adversário para ir até o templo católico, o que foi prontamente
aceito. O Sermão aos fiéis da Igreja de Cesaréia”
19
é fruto desse encontro
20
.
Possídio descreve assim o acontecimento:
Sucedeu então encontrar-se com Emérito, bispo donatista daquele
lugar, que fora defensor principal de sua seita na conferência que se
realizara. Discutiu com ele publicamente na Igreja, na presença de
gente de várias confissões (Vida de Santo Agostinho, 14,4).
De acordo com o testemunho de Possídio, trata-se de um encontro realizado dentro
da Igreja, tendo como audiência católicos e donatistas, numa situação que Frend
descreve como “tensa (FREND, 2002, 471). As circunstâncias do encontro se
refletem na composição do texto. Na avaliação de Langa (1990, p. 578), o Sermo, é
uma peça oratória improvisada, sem plano discursivo rigoroso, e, por vezes, sem
muita conexão lógica entra as ideias. Tal prática não era, de modo algum, estranha a
Agostinho (REBILLARD, 1999, p. 790).
A denominação “sermão” [sermo] aponta para o gênero literário desse texto. No
latim clássico, sermo designa uma conversa, um dicurso em estilo comum, em
18
Neste concílio os donatistas excomungaram os maximianistas.
19
Nas citações, abreviado como Ad Caes. Eccl.
20
Além do Sermo ad Caesariensis ecclesiae plebem, o encontro de Agostinho com Emérito rendeu
ainda outro escrito, as “Atas do debate com o donatista Emérito” (Gesta cum Emerito donatistarum
episcopo). Como o nome indica, são os registros do debate ocorrido no dia 20 de setembro, dois
dias após o encontro na Igreja (LANGA, 1994, p. 577).
91
contraste com outras formas mais elaboradas de discurso. Em ambiente cristão, à
capacidade de expressar um raciocínio acrescenta-se um sentido religioso, definindo
o sermão como o discurso no qual se anuncia a Palavra de Deus (GREGOIRE,
2002, p. 1273).
Nos tempos de Agostinho, tais sermões deveriam ser breves, pois durante a
alocução, segundo o costume africano, os ouvintes permaneciam de (HAMMAN,
1989, p.179). O sermão era pronunciado num contexto litúrgico, precedido de
leituras bíblicas, oração e cânticos e seguido da celebração da eucaristia
(REBILLARD, 1999, p. 773). A pregação era uma prerrogativa episcopal, norma que
Valente, bispo de Hipona, quebrou ao conceder que o então sacerdote Agostinho
pregasse regularmente em sua igreja (BROWN, 2005, p. 172).
Os sermões de Agostinho eram registrados por um estenógrafo [notarius], à
semelhança do que acontecia com os sermões de Jerônimo (GREGOIRE, 2002, p.
1273; ARNS, 1993, p. 59). Os estenógrafos acompanhavam Agostinho em suas
viagens, sendo, possivelmente, membros do clero. Eles não somente anotavam os
sermões, como também colocavam um título e registravam o lugar e as
circunstâncias em que foi pronunciado. Graças ao trabalho deles, Agostinho pode
manter um arquivo dos seus sermões (REBILLARD, 1999, p. 790).
Quanto daquilo que era pregado se perdia no ato do registro dos sermões?
Sabemos que o usualmente o registro era revisado pelo autor (HAMMAN, 2002, p.
513). É necessário, entretanto, que se tenha em mente a distinção entre a palavra
falada e o texto escrito. A palavra falada é acompanhada de gestos, modulações de
voz, expressões emocionais, dentre outros elementos que a palavra escrita não
consegue captar.
Era no exercício da pregação que toda a arte oratória de Agostinho vinha à tona. A
pregação exige que o orador procure ajustar o seu estilo à situação dos ouvintes.
Para audiências mais cultas, um estilo mais elaborado; para o público menos
letrado, mais simplicidade no falar e uso constante de figuras de linguagens com
imagens vívidas, geralmente tiradas do cotidiano dos seus ouvintes. Agostinho não
hesitava em sacrificar uma linguagem mais culta em favor de uma comunicação
92
mais eficiente (HAMMAN, 1989, p. 182).
A pregação também proporciona uma maior interação entre auditório e orador. Os
ouvintes se manifestam, ora pelo silêncio atento, ora pelo aplauso, costume comum
entre as igrejas do Mediterrâneo (HAMMAN, 1989, p. 185). Também são comuns as
intervenções do público por meio de aclamações e palavras de ordem, como
aparecem no texto em questão (Ad Caes. Eccl., 1).
O “Sermão aos fiéis da Igreja de Cesaréia” tem, como contexto mais amplo, o triunfo
político do catolicismo sobre o donatismo após 411. Como sabemos, após essa data,
os donatistas foram duramente reprimidos, privados de suas igrejas, de seus bispos
e das verbas do Império e coagidos à retornar ao catolicismo (BROWN, 2005, p.
417). Emérito era, a rigor, um fora-da-lei, que se recusava a tornar-se católico.
Tilley descreve o Sermo ad Caesariensis ecclesiae plebem como “irênico”
21
, tendo
em vista que o seu propósito é exortar Emérito à unidade com a Igreja católica
(TILLEY, 1999, p. 381). Elementos que caracterizariam esse irenismo são: a
afirmação da posse, por parte dos donatistas, dos dons de Deus representados pela
fé, batismo, ordenação e liturgia; e o reconhecimento dos donatistas como “irmãos”
que pertencem a mesma “família” e que devem voltar ao seio da madre Igreja.
Entretanto, como veremos, permeando esse aparente propósito conciliador, estão
presente argumentos que justificam a violência usada contra os dissidentes.
Do ponto de vista de sua estrutura, o texto pode ser assim dividido: Na introdução,
Agostinho parte de uma frase ambígua pronunciada por Emérito: “Non possum nolle
quod vultis, sed possum velle quod volo (Ad Caes. Eccl., 1), que pode ser assim
traduzida: “Não posso não querer o que vós quereis, mas posso querer o que eu
quero” para dar início ao seu apelo à unidade. No desenvolvimento do sermão (Ad
Caes. Eccl., 2-8) o bispo de Hipona trata da questão da validade dos sacramentos e
da unidade da Igreja (2-6) e da legitimidade da perseguição aos donatista (7-8). Na
conclusão (Ad Caes. Eccl., 9) Agostinho apela para que Emérito una-se ao
catolicismo, o que não aconteceu. Passemos, então, à análise de cada uma dessas
partes (LANGA, 1999, p. 579-580).
21
“Irênico”, do grego eirenikos, significa pacificador, conciliador.
93
Como dito, o sermão começa fazendo referência a uma frase de Emérito: “Não
posso não querer o que vós quereis, mas posso querer o que eu quero”. Agostinho
analisa a frase de Emérito dizendo, em primeiro lugar, que se Emérito não pode não
querer o que os católicos querem, ele quer o mesmo que Deus quer. E o que Deus
quer é a paz, de acordo com a citação bíblica feita por Agostinho: “Deixo-vos a paz,
a minha paz vos dou” [ João 14:27] (Ad Caes. Eccl., 1). Para Agostinho, “paz” [pax] é
um bem supremo: “E tão nobre bem é a paz, que mesmo entre as coisas terrenas e
mortais nada existe mais grato ao ouvido, nem mais desejável ao desejo, nem
superior em excelência” (A Cidade de Deus, 19,11). A palavra aparece mais de duas
mil e quinhentas vezes no conjunto dos escritos agostinianos e vinte e quatro vezes
no texto em questão.
Para Agostinho, “paz” significa ausência de conflito, harmonia entre o homem e
Deus, entre o homem e o seu semelhante e do homem consigo mesmo. Tal
harmonia relaciona-se à unidade, de modo que a perfeita paz é possível num
mundo de absoluta unidade (BURT, 1999, p. 629). Como tal unidade não pode ser
alcançada neste mundo, a paz é possível de modo parcial. No que diz respeito a
paz entre os homens, que imperar a “concórdia ordenada” [ordenata concordia]
entre os homens, que consiste em “primeiro, não fazer mal a ninguém; segundo,
fazer bem a quem a gente possa” (A Cidade de Deus, 19,14). Além disso, a paz
repousa na “tranquilidade da ordem” [tranquilitas ordinis], onde cada coisa ocupa o
seu lugar, seja na vida individual, seja na vida social, seja na relação com Deus.
Dessa maneira, para que haja paz entre os homens, é necessário que cada qual
desempenhe corretamente o seu papel: alguns mandam, outros obedecem; alguns
governam, outros são governados (A Cidade de Deus, 19,13). Este princípio é parte
fundamental da justificativa de Agostinho em favor do uso da força coercitiva, cujo
propósito seria garantir tal ordem (COSTA, 2006, p. 5).
Assim, afirmar que Deus deseja a paz entre donatistas e católicos significa, primeiro,
que ele deseja que haja unidade entre eles; segundo, que essa unidade deve se
fazer num quadro de ordem, no qual os donatistas devem se submeter à vontade de
Deus, o que equivale a submeter-se ao catolicismo e a lei imperial. Como vimos, o
apelo à Bíblia constitui-se num argumento de autoridade, que visa convencer o
94
adversário de que ele deve obedecer o que lhe está sendo proposto.
Agostinho passa, então, a analisar a segunda parte da frase de Emérito: “Posso
querer o que quero”. Ele nessa afirmação um retardo em fazer a vontade de
Deus. Pois o que ele quer, é o que Deus não quer: “Estar apartado [in dissensione]
da Igreja católica, permanecer ainda na comunhão do partido de Donato,
permanecer ainda no cisma” (Ad Caes. Eccl., 1). Ora, exorta Agostinho, que deixe
logo de querer tal coisa, para unir-se ao catolicismo.
Nesta altura do sermão, Agostinho dirige-se à audiência católica e faz um apelo:
“rogai para que faça o que prometeu, a fim de que não possa não querer o
queremos”. Em resposta, o público responde com uma aclamação: “Que seja aqui
ou em nenhum outro lugar!” [Aut hic, aut nusquam] (Ad Caes. Eccl., 1). Estamos
diante de um apelo patético, que procura promover uma reação emocional no
auditório. Neste caso em particular, Agostinho apela às emoções dos seus ouvintes
ao conclamá-los para que se maifestem e estes, por sua vez, respondem com um
apelo emotivo à Emérito. Agostinho interpreta a aclamação da multidão como uma
demonstração de caridade, ao desejar que a unidade se concretize com Emérito e
os demais donatistas.
A partir de então, entramos na parte do desenvolvimento do sermão. Antes de tudo,
Agostinho esclarece que, ao receber os donatistas na comunhão católica, os
católicos não estão legitimando o cisma. Para que sejam aceitos, devem abandonar
o donatismo: “Não os recebemos como são, Deus nos livre, pois são hereges; os
recebemos como católicos. Mudem e serão recebidos” (Ad Caes. Eccl., 2).
Chama a atenção o fato de Agostinho chamar os donatistas de “irmãos” [fratres]. O
vocábulo e suas derivações aparecem trinta vezes no texto, a maior parte delas
referindo-se aos donatistas. Tal qualificação parece condizer com o referido tom
“irênico” do sermão. Entretanto, é possível perceber também aqui elementos de
estigmatização, posto que o termo aparece, muitas vezes, qualificado de forma
negativa. Assim, os donatistas são chamados de irmãos que odeiam os seus irmãos
católicos (Ad Caes. Eccl., 2); irmãos errantes (Ad Caes. Eccl., 2); irmãos em perigo
de perdição, que precisam de socorro (Ad Caes. Eccl., 3); irmãos perdidos e mortos,
95
que devem ser buscados
22
(Ad Caes. Eccl., 4); irmãos fracos que necessitam de
salvação (Ad. Caes. Eccl., 6).
A razão pela qual Agostinho considera os donatistas como irmãos e, ao mesmo
tempo, declara que eles precisam de salvação, deve-se ao fato de que Agostinho
reconhece que os seus adversários possuem certas marcas que os caracterizam
como cristãos, mas entende que tais marcas são privadas de eficácia porque estão
fora da Igreja católica.
Quanto a tais marcas, Agostinho defende que elas pertencem, de fato, a Deus e a
Igreja católica, e não aos donatistas:
Pois pelo mal que têm não podemos perseguir neles os bens que
conhecemos: o mal da dissensão, do cisma, da heresia, é o mal que
eles têm; em troca, os bens que neles reconhecemos não são seus:
têm bens do nosso Senhor, têm bens da Igreja. O batismo não é
próprio deles, mas de Cristo. A invocação do nome de Deus sobre sua
cabeça, quando são consagrados bispos, é de Deus, não de Donato
(Ad Caes. Eccl., 2).
O fato dos donatistas não pertencerem ao catolicismo não invalida tais marcas, pois
elas são indeléveis. Para explicar isso, Agostinho faz uso de uma metáfora militar:
Quando um soldado vagabundeia ou deserta, possui o crime do
desertor, mas a marca [character] que leva, não é do desertor, mas do
imperador. [...] E eu, se ao chamar à unidade, me deparasse com a
marca do desertor, trataria de suprimi-la, destrui-la, anulá-la, não a
aprovaria, a recusaria, a anatematizaria, a condenaria. Nosso Deus e
Senhor Jesus Cristo busca o desertor, destroi o crime do erro, mas
não suprime a sua própria marca. Assim eu, quando me aproximo de
um irmão e recolho a meu irmão errante, o que tenho presente é a fé
no nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo (Ad Caes. Eccl., 2).
O uso do termo character merece ser considerado com mais atenção, uma vez que
ela é usada doze vezes neste texto, onze das quais neste parágrafo. A metáfora
citada faz alusão à pratica de se marcar os soldados com ferro em brasa, deixando-
lhes no corpo uma marca irremovível (LANGA, 1988, p. 901). Seu uso remete aos
escritos do Novo Testamento, que usa a palavra grega equivalente (sfragis), para
falar do Espírito Santo como o “selo” ou a “marca” de Deus colocado sobre aqueles
22
Numa referência à Lucas 15:32, onde se encontra a parábola do filho pródigo.
96
que lhe pertencem (2 Coríntios 1:21-22; Efésios 1:13; Apocalipse 9:4). Nos escritos
cristãos posteriores, a palavra é usada para designar particularmente o ato do
batismo, que na teologia cristã está relacionado à recepção do Espírito Santo.
23
De igual forma, Agostinho usa o termo principalmente para designar o batismo em
nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, mas também para se referir à ordenação
sacerdotal e episcopal. O bispo de Hipona também faz uso das palavras
sacramentum e signum como equivalentes de character (LANGA, 1988, p. 902).
Estas palavras são usadas respectivamente quinze e onze vezes neste sermão,
também para se referir ao batismo.
Estamos diante da doutrina agostiniana dos sacramentos como marcas indeléveis
do cristão. Essa doutrina separa o pensamento agostiniano tanto dos donatistas,
quanto do católico Cipriano, bispo de Cartago (200-258), que defendiam o rebatismo
dos hereges. Agostinho observa que o erro de Cipriano consistia em não distinguir
entre o sacramento e o seu efeito. Como o efeito não se achava entre os hereges,
Cipriano concluiu erroneamente, na opinião agostiniana que o sacramento
também não existia entre eles (Tratado sobre o Batismo 6,1,1).
Para Agostinho, os sacramentos são dons de Deus, cuja validade não depende da
dignidade ou indignidade de quem os ministra (SEEBERG, 1967, p. 316). Eles
imprimem no homem uma marca [character] cujo significado permanece durante
toda a vida. Mesmo quando o sacramento era administrado fora da Igreja católica,
não deveria jamais ser repetido.
Entretanto, embora os sacramentos dos donatistas sejam válidos, eles não têm
efeito fora da unidade com a Igreja católica (SEEBERG, 1967, p. 317). Falta-lhes, na
avaliação de Agostinho, a marca mais importante, o amor [caritas] (Ad Caes. Eccl.,
3). Ao recusar a comunhão com todos os cristãos, na unidade da Igreja católica, eles
demonstram um espírito de ódio, absolutamente contrário ao amor cristão
(CAMPENHAUSEN, 2005, p. 367).
23
O pastor de Hermas, obra cristã do segundo século, afirma a respeito do batismo: “O selo é a
água: eles descem à água e daí saem vivos. Também a eles foi anunciado esse selo e eles o
usaram para entrar no Reino de Deus” (Hermas, 93,1).
97
Ao contrário dos donatistas, argumenta Agostinho, o que motiva os católicos na
busca pela unidade é exatamente a caritas: “A caridade é que os busca, a caridade
que procede dos nossos corações” (Ad Caes. Eccl., 3).
O bispo de Hipona tenta ainda demonstrar ao seu auditório de que os donatistas
devem ser trazidos de volta ao rebanho católico porque, possuindo as marcas de
Cristo, eles pertencem a Cristo e à sua Igreja, isto é, à Igreja católica. Tais marcas
são como “tentáculos invisíveis” que ligam os donatistas à Igreja católica (BROWN,
2005, p. 273). Fazendo uso de um recurso retórico, a diatribe, que consiste num
diálogo com um interlocutor imáginário
24
, Agostinho diz:
Me respondes e me dizes: “Mas tenho o sacramento”. O tens, eu
reconheço; por isso precisamente te busco. Acrescentaste um
importante motivo [magnam causam] para buscar-te com maior
diligência. Eras, de fato, uma ovelha do rebanho do meu Senhor; te
desviaste com a marca; por isso te busco com maior empenho, porque
tens a mesma marca. Por que não temos a única Igreja? Temos uma
marca. Por que não estamos no único rebanho? Por isso te busco,
para que este sacramento te sirva de ajuda para salvação, não de
testemunho de perdição. Ignoras que o desertor é condenado
precisamente por sua marca, pela qual se honra ao que presta
serviço? Por isso precisamente te busco, para que não pereças com
tua marca ( Ad Caes. Eccl., 4 ).
A posse dos sacramentos, portanto, pode ter um duplo efeito. Dentro da comunhão
católica, é marca da salvação; fora dessa comunhão, testemunho da perdição.
Revela-se, assim, a intolerância do discurso agostiniano, posto que o outro não pode
ser aceito como tal, devendo, necessariamente, aderir ao grupo daqueles que
pretendem para si o monopólio da salvação.
Esta pretensão aparece com toda clareza no sexto parágrafo do sermão, no qual
Agostinho repete retoricamente
25
o verbo “poder” para concluir com a sua negação,
indicando a ênfase que quer dar a esta última:
Fora da Igreja católica ele pode pode ter tudo, menos a salvação:
24
Na diatribe acentua-se fortemente o “eu” daquele que discursa, que domina sobre um “outro”
imaginário, cujas opiniões, reações e objeções o autor conhece de antemão. O autor coloca-se,
assim, numa posição superior ao do seu interlocutor imaginário (BERGER, 1998, p. 104)
25
Esse tipo de recurso retórico, no qual se repete a mesma idéia, com as mesmas ou com outras
palavras, é comumente denominado de anáfora (BERISTÁIN, 1995, p. 50).
98
pode ter a honra do episcopado, pode ter os sacramentos, pode cantar
o “Aleluia”, pode responder “Amém”, pode ter o Evangelho, pode ter e
pregar a no nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo; mas nunca
poderá encontrar a salvação senão na Igreja católica. (Ad Caes. Eccl.,
6).
A doutrina segundo a qual “fora da Igreja não salvação” [extra Ecclesia nulla
salus] não é uma originalidade de Agostinho. Ele é precedido pelas afirmações de
Tertuliano e de Cipriano de Cartago. De acordo com Langa (1988, p. 855), trata-se
de um esquema de inclusão e exclusão, por sua vez dependente da fórmula “um
Deus, uma Igreja, um batismo”, que impede qualquer meio termo. Embora
reconhecesse a validade dos sacramentos ministrados fora da Igreja, Agostinho
permaneceu fiel a este raciocínio que afirma a absoluta necessidade de se estar
unido à Igreja católica para se obter a salvação.
Partindo desse raciocínio, qualquer pretensão ao martírio, por parte dos donatistas,
é considerada nula (Ad Caes. Eccl., 6). Este argumento, que fora explorado por
Agostinho em Contra Epistulam Parmeniani, é retomado aqui, preparando o terreno
para as suas sua defesa da perseguição aos donatistas.
Uma vez que os donatistas possuem as marcas de Cristo, mas não estão unidos à
sua Igreja, Agostinho acredita ser perfeitamente justificável persegui-los a fim de que
se tornem católicos. Nos três últimos parágrafos do sermão concentra-se toda a
argumentação de Agostinho em favor da perseguição aos donatistas. Aqui se
encontram vinte e sete das vinte e oito vezes em que o verbo persequor e o
substantivo persecutio aparecem no texto.
Antes de tudo, Agostinho procura demonstar que os donatistas são perseguidores
dos católicos. Refere-se, como fez em outros textos, aos acontecimentos que deram
origem ao cisma, falando dos donatistas como perseguidores de Ceciliano, pois o
acusaram perante o imperador. Apoiado nestes fatos, Agostinho constrói um dilema
26
para os donatistas:
Quando o perseguiam, [...] quem era, então, Ceciliano? [...] Era um
26
Um dilema é uma estratégia argumentativa no qual os dois termos propostos pretendem levar
sempre a uma conclusão desfavorável para o adversário (PLANTIN, 2004, p. 168).
99
criminoso. Por conseguinte, os criminosos podem sofrer perseguição
por parte dos homens. Admitamos assim: Ceciliano era um criminoso
que sofria perseguição.[...]. Agora bem: quem eram os que faziam
isto? Se eram uns malfeitores, abandona aos malfeitores e venham
conosco; mas, se eram santos, pode ocorrer que os santos persigam
os injustos. [...] Pode ou não pode suceder? (Ad Caes. Eccl., 7).
Uma vez que a perseguição, por parte dos santos, é considerada uma perseguição
justa, Agostinho prossegue em sua tentativa de legitimar a perseguição católica aos
donatistas, amparando-se na tese de que tal perseguição é feita em nome de uma
causa justa, a causa da unidade da Igreja. Deste tipo de perseguição ele chega a ter
orgulho:
Que perseguição sofre o nosso irmão, que foi trazido perante nós? É
uma perseguição bem gloriosa [persecutio gloriosior]; a respeito dela
proclamo que a faço. Repreenda-me quem quiser: proclamo que faço
semelhante perseguição. Leio no Salmo: “Ao que difama em segredo
seu próximo, eu o perseguirei” [Salmo 100:5]. Se persigo justamente
ao que difama o seu próximo em segredo, não persigo com mais
justiça o que insulta publicamente a Igreja de Deus ao dizer: “Não é
esta”; ao dizer: “a autêntica é a do nosso partido”; ao dizer: “Aquela é
uma prostituta”? Não vou perseguir a quem blasfema contra a Igreja?
Sim, o perseguirei abertamente, porque sou membro da Igreja; o
perseguirei abertamente, porque sou filho da Igreja. Me sirvo da voz
da mesma Igreja, a mesma Igreja diz por mim no salmo: “Perseguirei
aos meus inimigos e lhes alcançarei, e não cessarei até que
desfaleçam” [Salmo 17:38]. Desfaleçam em seu mal, progridam até o
bem (Ad Caes. Eccl., 8)
Em resumo, no Sermo ad Caesariensis ecclesia plebem Agostinho procura legitimar
a violência contra os donatistas partindo, fundamentalmente, do argumento de que
eles são irmãos perdidos, que pertencem a Cristo e à Igreja pelo batismo. Sendo
assim, é justo buscá-los ainda que pela força, posto que ao fazê-lo procura-se
reconduzi-los aos único caminho possível de salvação, a comunhão com Igreja
católica.
Agostinho faz uso aqui de certos mecanismos conceituais com finalidades
terapêuticas, conforme conceituação de Berger e Luckmann. Eles denominam de
terapêutica a aplicação de um mecanismo conceitual que visam assegurar que os
discordantes sejam conservados dentro das definições institucionalizadas da
100
realidade. Neste tipo de aplicação, requer-se uma teoria da dissidência, um aparelho
de diagnóstico e uma conceitualização do processo de cura (BERGER;
LUCKMANN, 1974, p. 153). A partir da teoria de que os sacramentos pertencem à
Cristo e são válidos somente na Igreja católica, ele conclui que os donatistas são
irmãos perdidos, semelhantes a ovelhas desgarradas ou soldados desertores e
aponta a perseguição como instrumento de cura que visa reintegrá-los à única Igreja
verdadeira e ao único caminho da salvação.
Apesar de todos os apelos e argumentos, Emérito não deixou o donatismo. Sua
recusa será repetida, de forma ainda mais dramática, pelo seu colega de
episcopado, Gaudêncio de Thamugadi.
3.2.3 Contra Gaudentium donatistarum episcopum libri duo
No ano 420
27
, Gaudêncio, bispo donatista da cidade Thamugadi, importante sede
donatista na Numídia, isola-se em sua basílica com a sua congregação e ameaça
incendiar-se juntamente com os seus. A atitude extrema foi motivada pelos editos de
um agente imperial determinado a fazer cumprir as leis de 411 e converter os
donatistas à força.
Gaudêncio foi um dos representantes donatistas na conferência de Cartago em 411
(WILLIS, 2005, p. 71). De acordo com Tilley (1997, p. 135), até 412 ele conviveu
amigavelmente com o seu rival católico, Faustino, quando foi deposto do seu
episcopado. Apesar disto, ele permaneceu em atividade, à semelhança de seu
colega, Emérito.
O agente imperial responsável pela aplicação das leis era Dulcitius, um católico
devoto (BROWN, 2005, p. 418). Sua atuação fez os donatistas reviverem o pânico
dos tempos de Macário (LANGA, 1988, p. 18). Em 420, emitiu dois editos nos quais
27
Langa (1994, p. 631) discute as datas propostas para os acontecimentos e para o texto de Contra
Gaudentium e os situa entre 419 e 422. Willis (2005, p. 82) propõe 420, a mesma data
apresentada por Tilley (1997, p. 135) e Gaddis (2005, p. 139).
101
intima os donatistas a se submeterem ao catolicismo, chegando a fazer ameaças de
morte (LANGA, 1994, p. 624). Diante da ameça de suicídio coletivo feita por
Gaudêncio, resolve escrever-lhe uma carta, em tom bem mais moderado do que os
de seus editos, exortando o bispo donatista a desistir de seu intento e a ingressar na
Igreja católica (LANGA, 1994, p. 625).
A recusa do bispo veio na forma de duas cartas, uma breve e uma mais longa,
ambas remetidas pelo agente imperial a Agostinho (WILLIS, 2005, p. 82).
Juntamente com as cartas de Gaudêncio, Dulcitius envia uma carta na qual explica
os acontecimentos, solicitando que Agostinho responda ao donatista e pedindo
conselhos sobre como deve agir (LANGA, 1994, p. 626).
À carta de Dulcitius, Agostinho responde com uma outra carta (Epistola 204), na qual
exorta o representante imperial a cumprir a lei e se compromete em responder às
cartas de Gaudêncio (LANGA, 1994, p. 626). Tal resposta corresponde ao livro
primeiro de Contra Gaudentium, no qual Agostinho refuta as cartas do bispo
donatista ponto por ponto, adverte-o por sua rebelião contra a unidade da Igreja,
defende a legitimidade da coerção em matéria religiosa, critica a prática do suicídio e
exorta Gaudêncio para que se una ao catolicismo (WILLIS, 2005, p. 82).
Gaudêncio responde a Agostinho através de uma carta, o que provoca Agostinho a
escrever uma réplica, que equivale ao livro segundo de Contra Gaudentium. Neste
livro, ele debate com o donatista sobre a doutrina de Cipriano, trata sobre o tema do
batismo e do rebatismo, defende novamente a intervenção imperial em assuntos da
Igreja e outra vez exorta seu adversário a retornar ao catolicismo (LANGA, 1994, p.
627).
Contra Gaudentium
28
é o último livro de Agostinho contra os donatistas (WILLIS,
2005, p. 83). Para Peter Brown, trata-se do mais impiedoso escrito agostiniano em
defesa da eliminação dos donatistas (BROWN, 2005, p. 423). Assim como acontece
com o Contra epistulam Parmeniani, Agostinho denomina a sua obra de libri.
Também como acontece naquela obra, ele constrói o texto retomando palavra por
28
Nas citações, será abreviado como C. Gaud.
102
palavra de Gaudêncio e procurando argumentos para refutá-las
29
. No início do
primeiro livro, depois de descrever brevemente os acontecimentos precedentes e
mencionar as cartas de Gaudêncio, ele afirma que “com a ajuda do Senhor,
determinei refutar esses seus escritos, e de tal maneira que a os menos
inteligentes não abriguem dúvida de que respondi todos os pontos” (C. Gaud., I,1,1).
Mas se Contra epistulam Parmeniani foi escrita para refutar a obra de um autor que
não vivia para contra-argumentar, esta foi composta no calor dos acontecimentos
o que permite que o interlocutor reaja e responda às acusações, provocando uma
nova resposta de Agostinho. Dessa forma, Contra Gaudentium se caracteriza como
uma obra vívida, que sofre a interferência direta dos fatos, bem como interfere sobre
eles.
O processo de estigmatização começa a se revelar logo nas primeiras linhas do livro
primeiro, quando Agostinho denomina Gaudêncio e seus seguidores de perditis,
“perdidos”, o que, no pensamento cristão, deve ser entendido como sinônimo de
perdição eterna, de condenação ao inferno
30
. A estes, o bispo de Hipona contrapõe
Dulcitius, que, segundo ele, tratava “com a conveniente mansidão” aos exaltados (C.
Gaud., I,1,1). Esse tipo de vocabulário, que opõe os defeitos dos donatistas às
virtudes dos católicos, que vimos ser comum aos demais escritos antidonatistas de
Agostinho, vai se reproduzir ao longo do livro.
Depois de descrever brevemente os acontecimentos e relatar como procederia em
sua resposta, o texto prossegue refutando as cartas de Gaudêncio. nos primeiros
parágrafos nos deparamos com a defesa agostiniana da perseguição aos donatistas.
Contra a acusação de Gaudêncio de que os católicos são perseguidores, ele replica:
Não tens, pois, motivo para alegrar-te porque sofres perseguição,
que não podes encontrar como afirmar tua inocência. De modo algum
se deve falar neste caso de perseguição de homens, pois trata-se
muito mais de uma perseguição de vícios para libertar os homens; é o
mesmo que pratica com os enfermos a diligência dos médicos ( C.
Gaud., I,5,6).
29
“O objetivo da refutação, em sua forma radical, é a destruição do discurso atacado” (PLANTIN,
2004, p. 423).
30
Essa é uma das palavras usadas na Bíblia para falar da condenação eterna (Mateus 7:13; João
17:12; 2 Pedro 2:1, etc.).
103
Além de fazer uso do vocabulário médico para qualificar a heresia como uma
enfermidade e a perseguição como um instrumento de cura, Agostinho também
defende que a perseguição não visa as pessoas, mas os seus erros. Trata-se de
uma mudança de orientação argumentativa
31
, que reconhece parcialmente a fala do
adversário, mas altera seu sentido: é, verdadeiramente, uma perseguição, mas não
uma perseguição de homens, e sim “uma perseguição de vícios para libertar os
homens”.
Seguindo essa linha de raciocínio, Agostinho inverte a realidade dos fatos,
transformando os perseguidores em libertadores:
Por isto, tampouco o tribuno, a quem contestas, é vosso perseguidor,
senão perseguidor do vosso perseguidor, isto é, de vosso erro, que os
impulsiona a fazer tais coisas, de sorte que pertenceis àquela classe
de homens dos quais está escrito que foram perseguidos por suas
próprias obras. Por conseguinte, se entendêsseis o que é que
perseguem em vós os que vos amam, fugiríeis sem dúvida de vossas
más obras, que são as que vos perseguem, e vos uniríeis aos que,
para fazê-los livres, perseguem a vossos perseguidores; não
perseguem, com efeito, senão a vossos erros ( C. Gaud., I,19,19).
Um elemento novo na argumentação agostiniana relaciona-se com o tema do livre-
arbítrio (TILLEY, 1999, p. 375). Em sua segunda carta, Gaudêncio afirma que Deus
criou o homem à sua semelhança e lhe deu o livre-arbítrio e que este dom de Deus
não pode ser retirado por um mandato humano (C. Gaud., I,19,20). A isto, Agostinho
responde:
Segundo estes vossos sumamente falazes e vãos raciocínios, se
devem soltar e abandonar as rédeas e deixar impunes todos os
pecados do capricho humano e permitir que o atrevimento e a paixão
desonesta campeie sem limitação alguma das leis: nem o rei em seu
reino, nem o chefe com os seus soldados, nem o juiz em sua
província, nem o senhor com o seu servo, nem o marido com sua
esposa, nem o pai com o seu filho podem reprimir com pena ou
ameaça alguma a liberdade e a brandura do pecado (C. Gaud., I,
19,20).
31
Uma mudança na orientação argumentativa acontece quando se introduz num enunciando
elementos linguísticos que alteram as conclusões às quais se é possível chegar (PLANTIN, 2004,
p. 356).
104
Agostinho tem uma compreensão negativa do livre-arbítrio. Na teologia cristã, a
crença no livre-arbítrio diz respeito, primeiramente, à liberdade do homem de fazer
escolhas morais e espirituais, em oposição à crença na predestinação, segundo a
qual as escolhas dos homens dependem inteiramente da vontade de Deus.
A posição de Agostinho sobre o assunto foi moldada, sobretudo, à luz de sua luta
com o pelagianismo, iniciada por volta de 411 e que se encontrava no seu auge. Ele
sustentava que o homem era inteiramente dependente da Graça e da predestinação
divinas para a sua salvação. Isso não quer dizer, entretanto, que o homem o
tenha nenhum livre-arbítrio, mas sim que esse arbítrio está sempre e
irremediavelmente propenso ao pecado (CAMPENHAUSEN, 2005, p. 390). Dessa
forma, deixar o homem à mercê do seu livre-arbítrio era deixá-lo à mercê do pecado.
Tais convicções chocavam-se com o pensamento donatista, esposado por
Gaudêncio, que assemelhava-se ao pensamento pelagiano. Para ambos, o livre-
arbítrio habilita o homem para escolher o bem ou o mal (SEEBERG, 1967, p. 329).
Agostinho, por seu turno, entendia que o homem possuiu esse tipo de liberdade
antes de ter pecado; depois do pecado, ele já não possui verdadeira liberdade, posto
que a sua vontade, distorcida pela presença do pecado, tornou-se propensa para o
mal. Assim, a liberdade do homem pecador é uma falsa liberdade, que somente
pode se transformar em verdadeira liberdade pela ação da Graça de Deus (DJUTH,
1999, p. 496).
Uma vez que os donatistas eram hereges e, portanto, privados da Graça de Deus e
culpados de um grave crime, sua liberdade de escolha era falsa liberdade e não
havia motivo para respeitá-la. Agostinho considera um grande absurdo pretender
que a liberdade seja exercida para se cometer um sacrilégio e não ser por isso
refreada pela autoridade civil. Esta autoridade age, em verdade, com mais
benignidade do que o próprio Deus:
Se outorgou, é certo, ao homem o livre-arbítrio em sua criação; mas
de tal modo que, se o usava mal, teria que suportar o castigo.
Finalmente, os primeiros homens, depois de seu pecado, foram
condenados e antes de se cumprir neles a pena final da morte do
corpo, foram desterrados do paraíso. Cheio da mansidão cristã, o
imperador vos infligiu penas mais benignas: achou por bem impor-vos
105
o exílio, não a morte (C. Gaud., I, 19,21).
Uma outra forma de refutação consiste em procurar demonstrar que o donatistas
também causaram sofrimento aos católicos. E isso de duas formas: sofrimentos
materiais, causados pela ação dos circunceliões; e sofrimentos espirituais, causados
pela visão da perdição na qual os donatistas se encontravam. Ele junta
retoricamente as duas coisas num único parágrafo:
Se os donatistas não tivessem assaltados as casas dos católicos, se
não tivessem incendiado as igrejas católicas, se não tivessem lançado
ao mesmo fogo os santos livros dos católicos, se não tivessem afligido
com tratos desumanos os corpos dos católicos, se não tivessem
amputado os membros dos católicos e nem lhes arrancado os olhos,
se finalmente não tivessem dado morte cruel aos católicos, então
poderíamos dizer com toda verdade que só teríamos suportado de vós
essa duríssima perseguição: ao vê-los insensatos, desfalecemos; ao
vê-los debilitados, somos presa da debilidade; ao ver que haveis
tropeçado, um fogo nos devora; ao vê-los perdidos, choramos. Estes
males vossos que os conduzem à perdição eterna são uma
perseguição para nós mais amargas que a que nos causais em
nossos corpos, em nossos bens, nas casas e nas basílicas (C. Gaud.,
I, 22,25)
Vimos que, para o donatismo, identificar-se como a “Igreja dos mártires” era parte
fundamental de sua identidade. A retórica da perseguição, usada pelos donatistas,
era uma maneira de reforçar essa representação. Ao apropiar-se dessa retórica,
Agostinho inverte as posições e transforma os perseguidores em perseguidos e vice-
versa. Neste jogo de construção identidade/alteridade o bispo católico busca mais
um argumento para justificar o uso da força contra os donatistas.
Como em outros escritos antidonatistas, Agostinho também apela às Escrituras para
justificar o uso do poder imperial para forçar os dissidentes a retornar ao catolicismo.
Rebatendo Gaudêncio, ele escreve:
No que diz respeito à vossa opinião de que não se deve forçar
ninguém à verdade, errais ignorando as Escrituras e o poder de Deus,
que os obriga a querer quando força a sua vontade. Acaso os ninivitas
fizeram penitência contra sua vontade porque o fizeram forçados por
seu rei? Com efeito, havia anunciado o profeta a ira de Deus sobre
106
a cidade inteira percorrendo-a por três dias
32
. Porque necessitaram do
mandato do rei para que suplicassem com humildade a Deus, que não
atende à boca, mas ao coração, senão porque havia entre eles alguns
que não se preocupavam nem criam nos anúncios divinos, a não ser
atemorizados pelo poder terreno?(C. Gaud. I,25,28).
O uso do Antigo Testamento para justificar a intervenção do poder civil em matéria
de coaduna-se com a visão de Agostinho sobre a relação entre esta parte da
Bíblia e o Novo Testamento. De acordo com Peter Brown, essa relação era pensada
a partir das polaridades severidade/suavidade e medo/amor, representadas,
respectivamente, pelo Antigo e pelo Novo Testamento (BROWN, 1964, p. 113).
Inicialmente, Agostinho pensava em ambos como estágios distintos da evolução
moral da raça humana, à luz da filosofia platônica (CRANZ, 1954, p. 273), sendo que
o primeiro (presente no Antigo Testamento) foi superado pelo segundo (presente no
Novo Testamento). Entretanto, ele abandonou essa concepção posteriormente
(CRANZ, 1954, p. 280). A Lei do Antigo Testamento, com seu considerável grau de
severidade, passou a ser considerada por Agostinho como uma contínua e
necessária complementação da Graça do Novo Testamento, tão atual quanto esta
(BROWN, 1964, p. 114).
Para Agostinho, o exemplo do rei de Nínive, que constrage os seus súditos ao jejum,
ilustra muito bem o papel da Lei que é o de conduzir, pela severidade, ao
arrependimento. Ora, na concepção de Agostinho e dos seus contemporâneos, este
papel corresponde ao do poder civil, posto que, em seus dias, as relações entre
Igreja e Estado eram vistas em termos da relação entre os reis e os profetas nos
tempos bíblicos (BROWN, 1964, p. 114). Ancorado nesta lógica, ele pôde
representar a força coercitiva do Estado como um instrumento de Deus para
conduzir os descrentes ao arrependimento.
Um outro tipo de argumento presente em Contra Gaudentium diz respeito ao tema
do suicídio. Esse era um tema obviamente importante considerando-se não o
32
Jonas 3:1-10. A narrativa bíblica afirma que o profeta Jonas profetizou a destruição da cidade de
Nínive, como punição pelos seus pecados. O rei de Nínive decretou um jejum obrigatório para
todos os habitantes da cidade, como sinal de seu arrependimento. Por causa disso, eles foram
perdoados por Deus e poupados da destruição.
107
contexto imediato, mas também o contexto mais amplo, visto que uma das
acusações que os católicos faziam contra os donatistas, especialmente contra os
circunceliões, era de que estes se entregavam à morte voluntária a fim de fabricar
mártires.
O debate sobre a legitimidade do suicídio em situação de perseguição não era novo
no Cristianismo. Eusébio de Cesaréia cita o exemplo de alguns mártires de Antioquia
que, para livrar-se da crueldade dos seus perseguidores, “precipitavam-se por si
mesmos do alto das casas, julgando que morrer constituía um meio de se furtarem
da crueldade dos ímpios” (História Eclesiástica, VIII,12, 2). Ele também narra a
história de uma mulher que, juntamente com suas duas filhas virgens, jogou-se num
rio para evitar que sofressem abuso sexual por parte dos soldados que as
perseguiam (História Eclesiástica, VIII,12, 3-4). Eusébio não parece ter dúvidas que
tais pessoas morreram como mártires.
Agostinho posiciona-se de forma bem diferente. Em A Cidade de Deus, embora
inicialmente afirme que devemos perdoar as virgens cristãs que preferiram tirar a
própria vida a serem violentadas pelos seus perseguidores (A Cidade de Deus 1,
16), logo no capítulo seguinte ele condena o suicídio afirmando que “toda pessoa
que se mata é homicida” e cita o exemplo bíblico de Judas, aquele que traiu Jesus e
cometeu suicídio sem buscar o arrependimento (A Cidade de Deus 1, 17). Para o
bispo de Hipona, a exceção existe quando alguém, por expressa ordem de Deus,
é instado a tirar a vida de outros ou de si mesmo. O herói bíblico Sansão (Juízes
16:28-30), que provocou a sua morte juntamente com a de seus inimigos, é o grande
exemplo de ambas as situações (A Cidade de Deus 1, 21).
De um modo geral, entretanto, para ele o o suicídio deve ser considerado uma
fraqueza e não uma virtude, como muitas vezes a antiguidade o considerou (A
Cidade de Deus 1, 22). Sua sentença definitiva sobre o assunto é a seguinte:
Este porém é o nosso pensamento, nossa convicção, nossa doutrina:
ninguém deve matar-se, nem para fugir das aflições temporais, para
não cair nos abismos eternos, nem por causa dos pecados alheios,
porquanto a fuga a crime alheio que nos deixa puros vai arrastar-nos a
crime pessoal, nem por causa de pecados antigos, pois a penitência,
ao contrário, tem necessidade de vida para curá-los, nem pelo desejo
108
de vida melhor, cuja esperança está depois do falecimento, porque o
porto de vida melhor no além-túmulo não se abre para os suicidas ( A
Cidade de Deus 1, 26).
Se em A Cidade de Deus a intenção de Agostinho era contrastar a perspectiva cristã
com a pagã a respeito do suicídio, em Contra Gaudentium a questão está
diretamente relacionada ao tema do martírio, tão caro aos donatistas. De acordo
com os seus acusadores, eles procuravam o martírio voluntário de diversas
maneiras: pulando de precipícios; atacando magistrados a fim de provocá-los e,
assim, morrerem por sua espada; jogando-se em fogueiras ou atirando-se na água
(FRAZÃO, 1976, p. 181-182).
Essas práticas não eram novas. Já Clemente de Alexandria, no século II, condenava
a prática do martírio voluntário e o concílio de Elvira, no início do século IV, declarou
que aqueles que destruíam estátuas a fim de provocar o martírio não deveriam ser
honrados como mártires (GADDIS, 2005, p. 39). A existência dessas advertências
vindas da liderança da Igreja evidenciam que a prática existia tanto no Oriente
quanto no Ocidente, não sendo, portanto, exclusividade dos donatistas. Ademais,
elas se adequavam à crescente importância que os mártires e o seu culto adquiriam
no imaginário cristão (BROWN, 1999, p. 46).
Na África, entre católicos e donatistas, o culto aos mártires era particularmente
intenso (HAMMAN, 1989, p. 250) o que fomentava, entre ambos os grupos, as
tentativas de auto-sacrifício. Em 348, um Concílio em Cartago condenou o culto aos
mártires não reconhecidos pela Igreja, em especial aqueles que morreram jogando-
se de precipícios (GADDIS, 2005, p. 111).
Sendo esta uma das questões proeminentes da polêmica contra os donatistas,
Agostinho investe na estigmatização dessa prática, procurando dissociar, por
completo, o auto-sacrifício do verdadeiro martírio. Respondendo a uma passagem
da segunda carta de Gaudêncio, onde o bispo donatista compara os seus
correligionários aos mártires que se encontram debaixo do altar de Cristo, citados no
livro do Apocalipse (Apocalipse 6:9-11), Agostinho replica:
109
Se quisesseis ser mártires sob o altar de Cristo, não ofereceríeis
sacrifício ao diabo [sacrificium diabolo], queimando-vos a vós mesmos.
Quem pode alegrar-se desse vosso furor, senão o diabo, que é quem
vos inspira bem como aos vossos partidários? É o mesmo que lançava
aquele menino, como lemos no Evangelho, umas vezes na água,
outras vezes no fogo [Mateus 17:15]; o mesmo também fez se jogar
nas águas aquela manada de porcos [Mateus 8:32]. Ele é aquele que
sugeriu ao próprio Senhor a tentação tão audaz de precipitar-se do
pináculo do templo [Mateus 4:5-6]. Sem dúvida alguma pertenceis ao
diabo, pois praticais os três gêneros de morte: a água, o fogo, o
precipício (C. Gaud., I, 27,30).
A refutação de Agostinho procura associar a morte voluntária com o próprio diabo.
Para isso, ele recorre a três passagens da Bíblia que correspondem aos “três
gêneros de morte” (tria genera mortis) citados e, em todos eles, o agente é o diabo.
Dessa maneira, ele tenta subverter o sentido que os donatistas dão ao ato
invertendo totalmente o seu sentido, fazendo uso do recurso da demonização. A
associação das crenças discordantes Paganismo, cismas e heresias com o
diabo era um procedimento comum na retórica cristã. Já o apóstolo Paulo escrevia à
comunidade de Corinto advertindo os cristãos contra os falsos apóstolos e os chama
de “ministros de Satanás” (2 Coríntios 11:13-15). De acordo com Pagels, a maioria
dos cristãos considerava especialmente perigosa a ação do diabo entre os “inimigos
mais íntimos de todos, [...] os hereges” (PAGELS, 1996, p. 195). Dessa forma, ao
retomar esta temática, Agostinho procura, mais uma vez, estigmatizar seu oponente
associando-o ao mais vil inimigo dos cristãos.
Para justificar a prática do suicídio, os donatistas também recorriam às Escrituras e
buscavam se espelhar no exemplo bíblico de Razias, um dos anciãos de Jerusalém
do tempo dos Macabeus, que tirou violentamente a própria vida para não cair nas
mãos dos soldados estrangeiros (2 Macabeus 14:37-46). Semelhantemente, afirma
Gaudêncio, os donatistas são rtires que preferem queimar voluntariamente no
fogo a ter que cair nas mãos dos católicos (C. Gaud., I,28,32).
O recurso donatista à Bíblia revela-se embaraçoso para Agostinho. Como não pode
desprezar o relato bíblico, a resposta de Agostinho procura negar o valor moral do
exemplo de Razias, pois este “ofereceu um exemplo bem claro, não de sabedoria,
mas de insensatez; de imitação não para os mártires de Cristo, senão para os
110
circunceliões de Donato” (C. Gaud. I,31,36). Segundo Agostinho, Razias é elogiado
pelas Escrituras pelo amor que tem pela cidade de Jerusalém, um amor carnal,
posto que a verdadeira Jesusalém, para os cristãos, está nos céus (C. Gaud. I,
31,37). Agostinho também argumenta que, para certas passagens das Escrituras, é
necessário usar de discernimento e não imitar todos os feitos de seus personagens,
pois muitos deles, como Davi, Salomão e o próprio apóstolo Pedro, fizeram coisas
que não foram dignas de louvor (C. Gaud., I, 31,38). Ao fazer a sua própria
interpretação do texto bíblico, Agostinho mais uma vez muda a orientação
argumentativa, procurando eliminar toda tentativa de legitimidade que os donatistas
tentam dar ao martírio voluntário.
A partir desta inversão, Agostinho pode agora defender o uso da força como um
meio de conduzir os donatistas à vida introduzindo-os na Igeja católica e
livrando-os de morte no cisma:
Pois bem, sabeis quanto desejamos que vivais; por isso quereis
aterrar-nos com vossas mortes. Agora bem, se dizes que nenhum dos
vossos que caiu em nossas mãos puderam fugir da nossa comunhão,
tomara que seja verdade o que dizes! Que felicidade não poder fugir
da comunhão [communionem] que oferecem os católicos, para fugirem
da condenação [damnationem] que se prepara aos hereges (C. Gaud.,
I, 32, 41)
Fazendo referência a alguns donatistas convertidos ao catolicismo, ele comenta: “o
que vós chamais de perseguição, eles consideraram uma oportunidade de correção”
(C. Gaud., I, 33,43). Dessa forma, a causa pela qual o agente imperial milita, embora
seja “uma decepção [deceptio] para alguns”, é também “a salvação [salvatio] para
muitos que hão de se corrigir” (C. Gaud., I, 33,43).
Ao fazer uso dessas antíteses (comunhão/condenação, perseguição/correção,
decepção/salvação), Agostinho reforça retoricamente a ideia de que o uso da força
ocorre para o bem daqueles que são perseguidos. É esta convicção que vai permitir
a Agostinho afirmar a legitimidade da coerção como uma obra de amor. Ele fala
desse amor em termos de desejo apaixonado [cupiditas] e joga com a comparação
entre o fogo com o qual Gaudêncio ameaça tirar a vida e o fogo desse desejo que
busca trazê-lo à Igreja católica:
111
Mas temos que confessá-lo: nosso desejo se chama caridade
[cupiditas nostra caritas vocatur]; esta é quem os busca entre nós,
esta deseja encontrá-los, corrigi-los e associá-los à unidade de Cristo.
Se tememos que vos queimeis [ardere] em vossas fogueiras, é porque
fervemos [fervemus] neste fogo; esta caridade nos faz arder [accendit].
(C. Gaud., I, 37,50).
Tal caridade não aceita um não como resposta. Se necessário, ela obriga a entrar:
[..] Reconhece-o, vem, e não pereçais; Se te envergonhas em vir
espontaneamente, ajudaremos em vossa fraqueza [infirmitati] a fim de
que a caridade não perca nada. Eis que desejamos tê-los: porque
tendes pressa de queimar? Vos temos para a vida, vos temos para a
salvação, vos temos para a unidade, a verdade, a suavidade de Cristo;
e se não quereis vir espontaneamente, vos compelimos a entrar
[intrare compellimus] na ceia de tão grande pai de família
33
(C. Gaud.,
I, 37,50).
Do livro segundo de Contra Gaudentium, é relevante destacar o debate em torno
das palavras religio e superstitio, que dará ensejo para o bispo de Hipona justificar a
ação da força civil.
Gaudêncio procura se valer da carta do tribuno Dulcitius que se refere ao donatismo
como uma “religião” (religio). O bispo donatista argumenta, a seu favor, que dessa
forma, a autoridade reconhece a legitimidade do seu grupo (C. Gaud., II, 11, 12).
Para Agostinho, o tribuno, que era um militar e não um homem de Igreja, cometeu
um erro ao usar tal palavra “[...] quando a heresia não é religião, senão superstição
[non religio, sed superstitio], e a religião se define em sentido próprio com referência
à verdade, não à falsidade”.
A importância dessas palavras extrapola o seu sentido teológico e alcança também
uma conotação legal. Lembremos que o Império Romano distinguia legalmente
religio de superstitio em sua legislação, sendo a segundo considerada inaceitável
33
Cf. Lucas 14:15-23. Na parábola de Jesus, o Reino de Deus é comparado a um homem que
organizou uma grande ceia e ordenou aos seus servos que às praças e ruas da cidade,
convidando os pobres para a sua festa. O servo volta e informa que fez o que foi mandado, mas
que ainda sobravam lugares. O senhor então ordena ao servo que aos caminhos e trilhas e
obrigue as pessoas a entrar, até que a casa fique cheia. Agostinho interpreta a expressão “obriga-
os a entrar” [compelle intrare] do v. 23 de forma literal e a usa para legitimar o recurso à força
contra pagãos, hereges e cismáticos (LOETSCHER, 1935, p. 39).
112
(MARCOS, 2004, p. 54). Dessa forma, Agostinho procura lembrar a Gaudêncio a
condição ilegal de sua Igreja, uma vez que ela foi condenada pelas leis do Império.
Sendo assim, era de esperar que o mesmo Império procurasse fazer cumprir a lei e
combater a superstição (C. Gaud., II, 12, 13).
A história não nos diz qual foi o fim de Gaudêncio e de seu rebanho (LANGA, 1994,
p. 618). O que sabemos de concreto é que a política de intolerância com a qual ele
se chocou permaneceu e que atravessou os séculos.
113
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Analisamos em nosso trabalho alguns discursos de Agostinho, nos quais ele
procurou legitimar o uso da força Imperial para coagir os donatistas a retornar ao
catolicismo. Nestes discursos, o bispo de Hipona procurou representar os seus
opositores de modo estigmatizante, de maneira que a identidade católica fosse
construída de maneira positiva em oposição ao donatismo, o “outro” que deveria ser
eliminado.
Na retórica agostiniana, a coerção justifica-se por um conjunto de razões: em
primeiro lugar, por causa da condição espiritual dos donatistas, representados
inicialmente como cismáticos e, posteriormente, como hereges. Nesta condição, eles
são considerados espiritualmente doentes, portadores de uma enfermidade muito
mais séria do que as enfermidades do corpo, posto que estão sujeitos à morte
espiritual e eterna.
Além de enfermos, os donatistas também são tidos por criminosos, cujo crime é
contra Deus e contra a unidade da verdadeira Igreja de Deus, a católica. Eles são
verdadeiros assassinos das almas, o que os torna ainda mais culpados do que os
assassinos comuns. Tal crime é agravado pela associação com os terríveis
circunceliões e pela prática do suicídio. Dessa forma, eleso perigosos até para si
mesmos.
Como possuem os sacramentos, os dissidentes são considerados por Agostinho
como soldados desertores, que abandonaram as fileiras do exército de Cristo.
Pertencem a ele, mas estão longe dele. Dessa forma, a posse dos sacramentos, que
poderia ser um sinal honroso, torna-se uma evidência de sua condição de trânsfugas
e apóstatas.
Em antítese à essa representação, os católicos são apresentados como a
verdadeira Igreja de Cristo, por que estão em comunhão com o restante da Igreja.
114
Somente eles são verdadeiramente “cristãos” e somente a Igreja católica pode ser
chamada de religio, tanto por razões teológicas, quanto por razões legais, uma vez
que a legislação Imperial demarcava oficialmente as fronteiras entre a heresia e a
ortodoxia, e os católicos eram os únicos que se enquadravam nesta última.
No tocante à perseguição aos donatistas, a representação estigmatizante feita por
Agostinho permitia justificar a coerção em diversos termos. A metáfora médica é
bastante conveniente para apresentar a ação imperial como um ato de cura, que
visa o bem dos perseguidos. Os perseguidores, dessa maneira, são apresentados
como aqueles que buscam o bem dos que são perseguidos, pois o que se persegue,
insiste Agostinho, são os erros, os crimes, as heresias.
Na representação de Agostinho, longe de serem mártires que sofrem perseguição,
os donatistas são rebeldes que precisam de correção. Em sua concepção, para que
haja paz é necessário que haja ordem. E assim como o pai de família deve impor tal
ordem à sua casa e o bispo à sua Igreja, também o poder civil deve fazê-lo em seus
domínios. Se os dissidentes o forem corrigidos, a ordem fica comprometida e,
conseqüentemente, a paz torna-se impossível.
Mas, segundo o argumento agostiniano, ao contrário dos separatistas que são
movidos pela discórdia, a disciplina aplicada pelo Império cristão é movida pelo
amor. No dizer de Agostinho, o amor, que move o coração dos católicos, os faz
sofrer profundamente com a perdição dos donatistas. É esse amor, insiste ele, que
os motiva a buscar a unidade da Igreja, ainda que pela força.
A concepção agostiniana de amor inclui a ideia de severidade. Em sua leitura da
Bíblia, Agostinho deparava-se com a imagem de Deus como o Pai ou o Senhor que,
por amor aos que lhe pertencem, faz uso da severidade da Lei para corrigi-los e
conduzi-los ao caminho da verdade. Lei e Graça não se opõem antes, se
complementam.
Como fazia no Antigo Testamento, acreditava Agostinho, Deus também conta com o
braço armado dos imperadores cristãos para executar a sua justiça no mundo. Não
escreveu o apóstolo Paulo, no célebre capítulo 13 de sua carta aos Romanos, que a
115
autoridade constituída “é instrumento de Deus para fazer justiça e punir quem
pratica o mal (Romanos 13:4)? Sendo assim, para o Hiponense, nada seria mais
lógico do que aceitar que os imperadores cristãos tinham não o direito, mas o
dever de intervir em defesa da fé, a causa mais justa e importante de todas. A
severidade do Estado, nestas questões, não é diferente da severidade de Deus.
A época de Agostinho foi uma época de crise. O Império vivia uma grave crise que
envolvia um complexo de fatores políticos, econômicos e sociais. Neste cenário,
interessava ao Império investir numa política de força e de centralização. A busca
pela unidade da Igreja não deixava de se relacionar com a busca da unidade do
Império, ameaçada pelas disputas políticas, pela crise econômica, pelas revoltas
sociais e pelas invasões “bárbaras”.
Épocas de crise são também ocasiões onde aflora a necessidade de afirmar a
própria identidade. Num cenário onde a existência de um grupo era ameaçado por
estar do “lado errado” da História, tanto católicos, quanto donatistas, buscavam
construir a sua identidade de modo a justificar a sua própria existência e eliminar os
dissidentes. Nesse processo, como vimos, o discurso tem um papel fundamental
como instrumento de estigmatização do outro e de afirmação da identidade do seu
próprio grupo.
Todavia, não podemos nos esquecer que a eficácia dos discursos de Agostinho
contra os donatistas dependia da sua relação com o poder estabelecido. Não conta
apenas o discurso, mas também quem discursa e quais as instituições que apóiam
esse discurso. O enfraquecimento do donatismo na África do Norte, depois de ter
sido, por muito tempo, a Igreja dominante naquela região não aconteceu apenas por
causa do poder das palavras. Como o próprio Agostinho admitiu, a coerção foi um
instrumento eficiente para fortalecer as fileiras do catolicismo e minar as bases do
donatismo.
Isto não significa que os discursos são insignificantes. As justificativas que Agostinho
construiu para legitimar a perseguição aos donatistas atravessaram os séculos e
foram incorporadas à teologia política ocidental
116
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. Fontes primárias
1.1 Obras de Agostinho
AGOSTINHO, S. Confissões. São Paulo: Paulinas, 1984.
______. Comentário da primeira epístola de São João. São Paulo: Paulinas, 1989
______. A cidade de Deus. 2v. Petrópolis: Vozes, 1990.
______. Comentário aos Salmos. v. 3. São Paulo: Paulus, 1998.
______. A doutrina cristã. São Paulo: Paulus, 2002.
______. A instrução dos catecúmenos. Petrópolis: Vozes, 2005.
AGUSTÍN, S. Replica a la carta de Parmeniano. In: Obras completas de San
Agustín. Escritos antidonatistas. v. 1 Madrid : Biblioteca de Autores Cristianos,
1988, p. 195-377.
______. Tratado sobre o batismo. In: Obras completas de San Agustín. Escritos
antidonatistas. v. 1 Madrid : Biblioteca de Autores Cristianos, 1988, p. 381-727.
______. Sermon a los fieles de la iglesia de Cesarea. In: Obras completas de San
Agustín. Escritos antidonatistas. v. 2. Madrid : Biblioteca de Autores Cristianos,
1990, p. 577-601.
______. Replica a Gaudencio, obispo donatista. In: Obras completas de San
Agustín. Escritos antidonatistas. v. 3. Madrid : Biblioteca de Autores Cristianos,
1994, p. 617-763.
117
1.2 Outros autores
BIBLIA. Português. A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulinas, 1986.
EUSÉBIO DE CESARÉIA. História Eclesiástica. São Paulo: Paulus, 2000.
INÁCIO DE ANTIOQUIA, Carta aos Tralianos. In: FRANGIOTTI, R. (org.). Padres
Apostólicos. São Paulo: Paulus, 1995.
O PASTOR DE HERMAS. In: FRANGIOTTI, R. (org.). Padres Apostólicos. São
Paulo: Paulus, 1995.
POSSÍDIO. Vida de Santo Agostinho. São Paulo: Paulus, 1997.
2. Obras gerais
AJA SANCHEZ, J. R. Tolerancia religiosa romana e intolerancia cristiana em los
templos del Alto-Egipto: Raíces Y huellas. Gerión, Madrid, v. 25, n. 1, p. 417-470,
2007.
ALEXANDRE, M. Representação social: uma genealogia do conceito. Comum, Rio
de Janeiro, v.10 - nº 23 - p. 122 a 138 - julho / dezembro 2004.
AMOSSY, R. Estereótipo. In: CHARAUDEAU, P.; MAINGUENAU, D. Dicionário de
análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2004, p. 213-216.
ARMSTRONG, A. H. The way and the ways: religious tolerance and intolerance in
the fourth century A.D. Vigiliae Christianae, New York, v. 38, n. 1, p. 1-17, mar.
1984.
ARMSTRONG, K. Uma história de Deus. São Paulo: Cia. das Letras, 2008.
ARNS, P. A técnica do livro segundo São Jerônimo. Rio de Janeiro: Imago, 1993.
118
BALANDIER, G. Antropologia política. Lisboa: Presença, 1987.
BARILLI, R. Retórica. Lisboa: Presença, 1979.
BARTHES, R. A retórica antiga. In: COHEN, J. (org.). Pesquisas de retórica.
Petrópolis: Vozes, 1975, p. 147-227.
BAUDER, W. Cair, apostatar. In: BROWN, C.; LOTTAR, C. (org.). Dicionário
internacional de teologia do Novo Testamento. v.1. São Paulo: Vida Nova, 2000,
p. 260-265.
BAUER, W. Orthodoxy and heresy in earliest christianity. Philadelphia: Fortress
Press, 1971.
BERGER, P. O dossel sagrado. São Paulo: Paulinas, 1985.
BERGER, P. & LUCKMANN, T. A construção social da realidade. Petrópolis:
Vozes, 1974.
BERGER, K. As formas literárias do Novo Testamento. São Paulo: Loyola, 1998.
BERISTÁIN, H. Diccionário de retórica y poética. México: Editoral Porrúa, 1995.
BETTENSON, H. P. Documentos da Igreja Cristã. São Paulo: ASTE, 1983.
BLAZQUÈZ, J. M. Prisciliano: estado de la cuestión. Monografias de los
Cuadernos do Norte. Oviedo, p. 47-52, 1982.
BOUDON, R; BOURRICAUD, F. Dicionário crítico de sociologia. São Paulo: Ática,
1993.
BOURDIEU, P. A economia das trocas linguísticas. São Paulo: EDUSP, 1996.
______ . A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1998.
BOYLE, M. O. Augustine in the garden of Zeus: lust, love, and language. The
Harvard Theological Review, Cambridge, v. 83, n. 2. , p. 117-139, apr. 1990.
BRANDÃO, Helena H. N. Introdução à análise do discurso. Campinas: UNICAMP,
119
2002.
BRETON, P. A argumentação na comunicação. Bauru: EDUSC, 2003.
______. Antiguidade Tardia. In: VEYNE, P. (org.). História da vida privada. v. 1. São
Paulo: Cia. das Letras, 1989, p. 225-300.
______ Power and persuasion in Late Antiquity. Madison: UWP, 1992.
______. Santo Agostinho. Rio de Janeiro: Record, 2005.
______. St. Augustine´s attitude to religious coercion. The Journal of Romans
Studies, v. 54, p. 107-116, 1964.
______. A ascensção do Cristianismo no Ocidente. Lisboa: Presença, 1999.
BROWN, R.E. As Igrejas dos apóstolos. São Paulo: Paulinas, 1986.
BURRISS, E.E. The Misuse of Sacred Things at Rome. The Classical Weekly, v. 22,
n. 14, p. 105-110, jan. 1929.
BURT, D.X. Health, Sickness. In: FITZGERALD, A. Augustine through the ages.
Michigan: Eerdmans, 1999, p. 416-419.
______. Peace. In: FITZGERALD, A. Augustine through the ages. Michigan:
Eerdmans, 1999, p. 629-632.
BUSTAMANTE, R. M. da C. Práticas culturais no Império Romano: entre a unidade e
a diversidade. In: SILVA, G. V. e MENDES, N.M. (org.). Repensando o Império
Romano. Vitória: EDUFES, 2006, p. 109-136.
CAMERON, A. Christianity and the rhetoric of empire. Berkeley: UCP, 1991.
CAMPENHAUSEN, H. Os pais da Igreja. Rio de Janeiro: CPAD, 2005.
CANART, P. Livro. In: BERARDINO, A. Dicionário patrístico e de antiguidades
cristãs. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 851-852.
CAVALLO, G.; CHARTIER, R. História da leitura no mundo ocidental. v. 1. São
120
Paulo: Ática, 1988.
CARVALHO, M.M. Gregório de Nazianzo e a polêmica em torno da restauração
pagã de Juliano. In: n: SILVA, G.V.; MENDES, N.M. Repensando o Império
Romano. Vitória: EDUFES, 2006, p. 267-284.
CHARAUDEAU, P. Alteridade. In: CHARAUDEAU, P.; MAINGUENAU, D. Dicionário
de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2004, p. 34-35.
______. Identidade. In: CHARAUDEAU, P.; MAINGUENAU, D. Dicionário de
análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2004, p. 266-267.
______. Representação social. In: CHARAUDEAU, P. ; MAINGUENAU, D.
Dicionário de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2004, p. 431-433.
CHARTIER, Roger. A História Cultural entre práticas e representações. Lisboa:
DIFEL, 1990.
CHEVITARESE, A.L. Cristianismo e Império Romano. In: SILVA, G.V.; MENDES,
N.M. Repensando o Império Romano. Vitória: EDUFES, 2006, p. 161-173.
CITELLI, A. Linguagem e persuasão. São Paulo: Ática, 2002.
COLLINS, J. J. A Bíblia justifica a violência? São Paulo: Paulinas, 2006.
CORASSIM, M.L. Sociedade e política na Roma Antiga. São Paulo: Atual, 2001.
COSTA, M.R. A força coercitiva: um instrumento a serviço da pax temporalis na
civitas, segundo Santo Agostinho. Veritas, Porto Alegre, v. 51, n. 3, p. 5-14, set.
2006.
CRANZ, F. E. The development of Augustine's ideas on society before the donatist
controversy. The Harvard Theological Review, Cambridge, v. 47, n. 4, p. 255-316,
oct. 1954.
DANIELOU, J. e MARROU, H. Nova História da Igreja. v. 1. Petrópolis: Vozes,
1984.
121
DE ROMILLY, J. A Grécia Antiga contra a intolerância. In: BARRET-DUCROCQ, F. A
intolerância. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000, p. 31-33.
DE SIMONE, R.J. Novacianos. In: BERARDINO, A. Dicionário patrístico e de
antiguidades cristãs. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 1013.
DJUTH, M. Liberty. In: FITZGERALD, A. Augustine through the ages. Michigan:
Eerdmans, 1999, p. 495-498.
DONINI, A. História do Cristianismo. Lisboa: Edições 70, 1988.
DRAKE, H.A. Lamb to lions: explaining early christian intolerance. Past and
Present, New York, n. 153, p. 3-36, nov. 1996.
ELIAS, N. ; SCOTSON, J.L. Os estabelecidos e os outsiders. Rio de Janeiro:
Zahar, 2000.
ENO, R. Some nuances in the ecclesiology of the donatists. Revue des Etudes
Augustiniennes, Paris, v. 18, n. 1-2, p. 46-50, 1972.
EVANS, G. Heresy, schism. In: FITZGERALD, A. Augustine through the ages.
Michigan: Eerdmans, 1999, p. 424-426.
FOUCAULT, M. A Ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 2006.
______. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
FRANGIOTTI, R. História das heresias. São Paulo: Paulus, 1995.
FRAZÃO, E. R. de A. O donatismo e os circunceliões na obra de Santo
Agostinho. São Paulo:FFLCH/USP, 1976.
FREND, W.H.C. Circunceliões. In: BERARDINO, A. Dicionário patrístico e de
antiguidades cristãs. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 294-295.
______. Parmeniano. In: BERARDINO, A. Dicionário patrístico e de antiguidades
cristãs. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 1094.
122
______. Donatismo. In: BERARDINO, A. Dicionário patrístico e de antiguidades
cristãs. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 426-431.
______. Perseguições. In: BERARDINO, A. Dicionário patrístico e de
antiguidades cristãs. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 1140-1145.
______. Gildo. In: BERARDINO, A. Dicionário patrístico e de antiguidades
cristãs. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 623-624.
______. Emérito. In: BERARDINO, A. Dicionário patrístico e de antiguidades
cristãs. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 471.
______. Cisma, cismático. In: BERARDINO, A. Dicionário patrístico e de
antiguidades cristãs. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 300.
GEORGER, A. La antigua iglesia del África del Norte. In: TEISSIER, H; DIAZ, R.
(coord.) El Cristianismo en el Norte de África. Madrid: MAPFRE, 1993.
GREGOIRE, R. Homilia. In: BERARDINO, A. Dicionário patrístico e de
antiguidades cristãs. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 692-694.
______. Sermo. In: BERARDINO, A. Dicionário patrístico e de antiguidades
cristãs. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 1273-1275.
GROSSI, V. Apostasia, apóstatas. In: BERARDINO, A. Dicionário patrístico e de
antiguidades cristãs. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 136-137.
______. Correction. In: FITZGERALD, A. Augustine through the ages. Michigan:
Eerdmans, 1999, p. 241-242.
GADDIS, M. There is no crime for those who have Christ. Berkley: UCP, 2005.
GIBBON, E. Declínio e queda do Império Romano. São Paulo: Cia. das Letras,
2005.
GUTHRIE, W.K.C. Os sofistas. São Paulo: Paulus, 1995.
HÄGGLUND, B. História da Teologia. Porto Alegre: Concórdia, 1999.
123
HALLIDAY, T.L. O que é retórica. São Paulo: Brasiliense, 1990.
HOFFECKER, W.A. Maniqueísmo. In: ELWELL, W.A. (ed.) Enciclopédia histórico-
teológica da Igreja Cristã. v. 2. São Paulo: Vida Nova, 1990, p. 471-472.
HAMMAN, A. Santo Agostinho e seu tempo. São Paulo: Paulinas, 1989.
______. Estenografia. In: In: BERARDINO, A. Dicionário patrístico e de
antiguidades cristãs. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 513.
HARRIS, M. Separar, dividir. In: BROWN, C. e LOTTAR, C. (org.). Dicionário
internacional de teologia do Novo Testamento. v.II. São Paulo: Vida Nova, 2000,
p. 2327-2337.
HERITIER, F. O Eu, o Outro e a intolerância. In: BARRET-DUCROCQ, F. A
intolerância. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000, p. 24-27.
IRVIN, D.T.; SUNQUIST, S.W. História do movimento cristão mundial. v. 1. São
Paulo: Paulus, 2004.
JEFFERS, J. S. Conflito em Roma. São Paulo: Loyola, 1995.
JODELET, D. A alteridade como produto e processo psicossocial. In: ARRUDA, A.
(org.). Representando a alteridade. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 47-67.
JOVCHELOVITCH, S. Re(des)cobrindo o outro. In. ARRUDA, A. (org.).
Representando a alteridade. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 69-82.
KÜMMEL, W. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1982
KARRER, O. Heresia. In: FRIES, H.(ed.). Dicionário de Teologia. São Paulo:
Loyola,1970, p. 271-272.
KOCHAKOWICZ, L. Heresia. In: ROMANO, R. (org.). Enciclopédia Einaudi. v. 12.
Lisboa: Imprensa Nacional, 1987, p. 301-325.
LANGA, P. Introducción general. In: Obras completas de San Agustin XXII -
Escritos antidonatistas. v. 1. Madrid: BAC, 1988, p. 5-155.
124
______. La teologia agostiniana del carácter sacramental. In: Obras completas de
San Agustin XXII - Escritos antidonatistas. v. 1. Madrid: BAC, 1988, p. 901-.903.
______. Extra Ecclesiam nulla salus”. In: Obras completas de San Agustin XXII -
Escritos antidonatistas. v. 1. Madrid: BAC, 1988, p. 854-856.
______. Introducción. In: Obras completas de San Agustin XXIII - Escritos
antidonatistas. v. 2. Madrid: BAC, 1990, p. 576-581.
______. Introducción. In: Obras completas de San Agustin XXIV - Escritos
antidonatistas. v. 3. Madrid: BAC, 1994, p. 571-580.
LOETSCHER, F. W. St. Augustine's conception of the state. Church History,
Tallahassee, v. 4, n. 1, p. 16-42, mar. 1935.
MAGALHÃES, Antônio C. M. Violência símbolo e religião. Relação entre monoteísmo
e violência. Estudos da religião. São Paulo n. 32, p. 12-21, jan./jun. 2007.
MAHJOUBI, A. O período romano e pós-romano na África do Norte. In: MOKHTAR,
G. (org.) História geral da África. v. 2. São Paulo: Ática, 1983, p. 473-509.
MAINGUENEAU, D. Discurso. In: CHARAUDEAU, P. & MAINGUENEAU, D. (org.)
Dicionário de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2004.
MARCOS, M. Ley y religión en el Imperio Cristiano (s. IV y V). Ilu Revista de
Ciências de las Religiones, Madrid, Anejos XI, p. 51-68, 2004.
MARKUS, R. O fim do Cristianismo antigo. São Paulo: Paulus, 1997.
______. Donato, Donatismo. In: FITZGERALD, A. (ed.) Diccionario de San
Augustín. Burgos: Monte Carmelo, 2001, p. 440-445.
MARROU, H. História da educação na antiguidade. São Paulo: EPU, 1975.
______. Santo Agostinho e o agostinismo. Rio de Janeiro: Agir, 1957.
MENDES, N. M. Sistema Político do Império Romano do Ocidente: um modelo
de colapso. Rio de Janeiro: DPPA, 2002.
125
MEREU, I. A intolerância institucional: origem e instauração de um sistema sempre
dissimulado .In: BARRET-DUCROCQ, F. A intolerância. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 2000, p. 42-45.
MICHAUD, Y. A violência. São Paulo: Ática, 1989.
MOULE, C.F.D. As origens do Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1979.
MUNIER, C. Cirta, concílio de. In: BERARDINO, A. Dicionário patrístico e de
antiguidades cristãs. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 300.
______. Cartago, concílios. In: BERARDINO, A. Dicionário patrístico e de
antiguidades cristãs. Petrópolis: Vozes, 2002, p.261-266.
NEILL, S. História das Missões. São Paulo: Vida Nova, 1989.
NORDHOLT, G. Eleger, escolher. In: BROWN, C. e LOTTAR, C. (org.). Dicionário
internacional de teologia do Novo Testamento. v. I. São Paulo: Vida Nova, 2000,
p. 617-619.
O’GRADY, J. Heresia. São Paulo: Mercuryo, 1994.
ORLANDI, E. P. Análise de discurso. Campinas: Pontes, 2005.
______. A linguagem e seu funcionamento. Campinas: Pontes, 1996.
PAGELS, E. As origens de Satanás. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996.
PAÑO, Maria V.E, La imagen del herético en la Constitutio XVI,5,6 (381) del Codex
Theodosianus. Antiguedad y Cristianismo., Murcia, n. 23, 2006, p. 475-498.
PLANTIN, C. Dilema. In: CHARAUDEAU, P. & MAINGUENEAU, D. (org.) Dicionário
de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2004, p. 168.
PLANTIN, C. Refutação. In: CHARAUDEAU, P. & MAINGUENEAU, D. (org.)
Dicionário de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2004, p. 422-424.
______. Orientação argumentativa. In: CHARAUDEAU, P. & MAINGUENEAU, D.
126
(org.) Dicionário de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2004, p. 355-356.
PIETRI, C. La conversion: propagande et réalités de la loi et de l’évergétisme. In:
MAYEUR, J-M. Et alli. (org.). Histoire du Christianisme. t. 2. Paris: Desclée, 1995,
p. 189-226.
RASSINIER, J-P. L'hérésie comme maladie dans l'oeuvre de Saint Augustin. Mots,
v. 26, n.1,1991, p. 65-83.
REALE, G. História da filosofia, v. I. São Paulo: Paulus, 1990.
RICOEUR, P. Etapa atual do pensamento sobre a intolerância. In: BARRET-
DUCROCQ, F. A intolerância. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000, p. 15-19.
ROSA, C.B. A religião na urbs. In: SILVA, G. V. e MENDES, N.M. (org.) Repensando
o Império Romano. Vitória: EDUFES, 2006, p.137-159.
RUBENSTEIN, R.E. Quando Jesus se tornou Deus. Rio de Janeiro: Fisus, 2001.
REBILLARD, E. Sermones. In: In: FITZGERALD, A. Augustine through the ages.
Michigan: Eerdmans, 1999, p. 773-792.
SANFILIPPO, M.L. Juliano, o Apóstata. In: BERARDINO, A. Dicionário patrístico e
de antiguidades cristãs. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 791-792.
SEEBERG, R. Manual de historia de las doctrinas. t. 1. Buenos Aires: Casa
Bautista de Publicaciones, 1967.
SILVA, G.V. A relação Estado/Igreja no Império Romano (séculos III e IV). In: SILVA,
G. V.; MENDES, N.M. (org.) Repensando o Império Romano. Vitória: EDUFES,
2006, p.241-266.
______. Intolerância e conflito religioso no Baixo Império Romano: Constâncio II e a
perseguição aos nicenos em Alexandria. Boletim do CPA. Campinas, n. 11, p. 97-
120, jan./jun. 2001.
______. Representação social, identidade e estigmatização. In: FRANCO, S. (org.)
127
Exclusão social, violência e identidade. Vitória: Flor e Cultura, 2004, p.13-30.
______. A África na Antiguidade. In: CAMPOS, A.; SILVA, G. (org.) Da África ao
Brasil. Vitória: Flor e Cultura, 2007, p.11-41.
SINISCALCO, P. Igreja e Império. In: BERARDINO, A. Dicionário patrístico e de
antiguidades cristãs. Petrópolis: Vozes, 2002, p.703-704.
STUDER, B. Papado. in: BERARDINO, A. Dicionário patrístico e de antiguidades
cristãs. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 1076-1087.
TESSORE, D. A mística da guerra. São Paulo: Nova Alexandria, 2007.
THEISSEN, G. A unidade da Igreja: coerência e diferença no protocristianismo.
Estudos Teológicos, São Leopoldo, v. 44, n. 1, p. 85-104, 2004.
TILLEY,M. The Bible in Christian North África. Minneapolis: Fortress,1997.
______. Contra Epistulam Parmeniani. In: FITZGERALD, A. Augustine through the
ages. Michigan: Eerdmans, 1999, p. 312.
______. Gesta cum Emerito. In: FITZGERALD, A. Augustine through the ages.
Michigan: Eerdmans, 1999, p. 381-382.
______. Contra Gaudentium. In: FITZGERALD, A. Augustine through the ages.
Michigan: Eerdmans, 1999, p. 375-376.
VEYNE, P. O Império Romano. In: VEYNE, P. (org.). História da vida privada. v. 1.
São Paulo: Cia. das Letras, 1989, p. 19-223.
VOGT, H. J. Lapsi, a questão dos. In: BERARDINO, A. Dicionário patrístico e de
antiguidades cristãs. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 809.
WEGENAST, K. Ensinar. In: BROWN, C. e LOTTAR, C. (org.). Dicionário
internacional de teologia do Novo Testamento. v. I. São Paulo: Vida Nova, 2000,
p. 633-649.
WILLIS, G.G. Saint Augustine and the donatist controversy. Eugene: Wipf and
128
Stock, 2005.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo