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dos latifundiários brasileiros; 3. o “seo” Ornelas
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e 4. Ricardão, o jagunço
dominado pela volúpia de poder e dinheiro, homem “[...] rico, dono de fazendas,
somente vivia pensando em lucros, querendo dinheiro e ajuntando. Diadorim, do
Ricardão era que ele gostava menos: – “Ele é bruto comercial...” – disse [Diadorim],
e fechou a boca forte, feito fosse cuspir”
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. 2. Depois tem os catrumanos – os mais
pobres do Pubo e do Sucruiú – figuras da realidade sertaneja em seu estado mais
deprimente e depressivo, os miseráveis, gente pobre e doente:
“Algum dia, depois de hoje, hei de esquecer aquilo. Arruado que
era até bem largo, mas mal se enxergavam aquelas casas. Ao
demais rezando, ao real vendo – eu vim. Casas – coisa humana. Em
frente delas todas, o que estavam era queimando pilhas de bosta
seca de vaca. O que subia, enchia, a fumaça acinzentada e
esverdeada, no vagaroso. E a poeira que demos fez corpo com
aquele fumegar levantante, tanto tapava, nos soturnos. Aí tossi,
cuspi, no entrecho de minhas rezas. Voz nem choro não se ouviu,
nem outro rumor nenhum, feito fosse decreto de todas as pessoas
mortas, e até os cachorros, cada morador. Mas pessoas mor que
houvesse: por trás da poeira, para lá da fumaça verdolenga se
vislumbravam os vultos, e as tristes caras deles, que branqueavam,
tantas máscaras. Aos homens e mulheres, apartados tão estranhos,
caladamente, seriam os que estavam jogando todo o tempo mais
rodelas de bosta seca nas fogueiras – isso que deviam de ter por
todo remédio. Nem davam fé de nossa vinda, de seus lugares não
repente, foram umas nervosias. Ao que, aqueles do Sucruiú, fossem juntas-de-bois em canga, criaturas
de toda proteção apartadas. Mas eu não tinha raiva desse seô Habão, juro ao senhor, que ele não era
antipático. Eu tinha era um começo de certo desgosto, que seria meditável. – “Para o ano, se Deus
quiser, boto grandes roças no Valado e aqui... O feijão, milho, muito arroz...” Ele repisava, que o que
se podia estender em lavoura, lá, era um desadoro. E espiou para mim, com aqueles olhos baçosos – aí
eu entendi a gana dele: que nós, Zé Bebelo, eu, Diadorim, e todos os companheiros, que a gente
pudesse dar os braços, para capinar e roçar, e colher, feito jornaleiros dele. Até enjoei. Os jagunços
destemidos, arriscando a vida, que nós éramos; e aquele seô Habão olhava feito o jacaré no juncal:
cobiçava a gente para escravos! Nem sei se ele sabia que queria. Acho que a idéia dele não arrumava o
assunto assim à certa. Mas a natureza dele queria, precisava de todos como escravos. Ainda confesso
declarado ao senhor: eu não tivesse raiva daquele seô Habão. Porque ele era um homem que estava de
mim em tão grandes distâncias. A raiva não se tem duma jibóia, porque jibóia constraga mas não tem
veneno. E ele cumpria sua sina, de reduzir tudo a conteúdo. Pudesse, economizava até com o sol, com
a chuva. Estava picando fumo no covo da mão, garanto ao senhor que não esperdiçava nem o átomo
dumas felpas. A alegria dele era uma recontada repetição, um condescendido: vinte, trinta carros de
milho, ah, os mil alqueires de arroz... Zé Bebelo, que esses projetos ouvisse, ligeiro logo era capaz de
ficar cheio de influência: exclamar que assim era assim mesmo, para se transformar aquele sertão
inteiro do interior, com benfeitorias, para um bom Governo, para esse ô-Brasil! Em peta, que, um seô
Habão, esse não se entusiasmava. Era só os carros-de-bois carreando a cana. E ele dava ordens.
Ordem que dava, havia de ser costumeira e surda, muito diferente da de jagunço. Cada pessoa, cada
bicho, cada coisa obedecia. Nós íamos virando enxadeiros. Nós? Nunca! João Guimarães ROSA.
Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. pp.431-432.
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“Soubessem que esse seo Ornelas era homem bom descendente, posseiro de sesmaria. Antes, tinha
valido, com muitos passados, por causa de política, e ainda valesse, compadre que era do Coronel
Rotílio Manduca em sua Fazenda Baluarte.” Id. Ibid. p.467.
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Id. Ibid. p.195.