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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS
Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião
Mestrado em Ciências da Religião
RELIGIÃO E CRENÇA:
Considerações sobre a vontade de verdade em Nietzsche
Roberto Lúcio Diniz Júnior
Belo Horizonte
2010
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Roberto Lúcio Diniz Júnior
RELIGIÃO E CRENÇA:
Considerações sobre a vontade de verdade em Nietzsche
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Ciências da Religião da
Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais, como requisito parcial para a
obtenção do título de Mestre em Ciências
da Religião.
Orientador: Prof. Dr. Flávio Augusto Senra Ribeiro
Belo Horizonte
2010
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Roberto Lúcio Diniz Júnior
RELIGIÃO E CRENÇA:
Considerações sobre a vontade de verdade em Nietzsche
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Ciências da Religião da
Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais, como requisito parcial para a obtenção
do título de Mestre em Ciências da Religião.
_____________________________________________________
Prof. Dr. Flávio Augusto Senra Ribeiro (Orientador) PUC Minas
_____________________________________________________
Prof. Dr. Márcio Antônio de Paiva PUC Minas
_____________________________________________________
Prof. Dr. Flávio Luiz Teixeira de Souza Boaventura IFMG
Belo Horizonte, 26 de março de 2010
Dedico este trabalho à minha filha Letícia Stehling Diniz.
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais e à minha irmã pelo incentivo e imprescindível suporte nesta
árdua jornada.
Ao Prof. Flávio Senra, pela orientação, confiança, estímulo, paciência e
amizade sem os quais eu não alcançaria esse objetivo.
Ao corpo docente do Programa de Pós-Graduação pelos preciosos
ensinamentos.
Aos amigos do curso de Ciências da Religião pela solidariedade e
cumplicidade.
Às secretárias do Programa, Sandra, Carmem, Elisete e Vanessa pela
presteza e apoio.
Aos professores do curso de Filosofia pelo conhecimento compartilhado.
À FAPEMIG pela bolsa de estudo que viabilizou a presente pesquisa.
Ao CNPQ pelos recursos cedidos através do edital MCT/CNPQ 03/2008
aplicados na biblioteca.
À Vanessa, minha esposa, pela primeira revisão ortográfica.
À Luciani Dalmaschio pela revisão técnica.
6
“Acerca do que é a „veracidade‟ ninguém parece ter sido veraz o bastante”.
(NIETZSCHE, 2005a, p. 73)
“[...] a crença forte prova apenas a sua força,
não a verdade daquilo em que se crê”
(NIETZSCHE, 2005c, p. 25).
RESUMO
Esta dissertação de mestrado investiga a relação existente entre a vontade de
verdade e a religião na perspectiva de Nietzsche. A primeira obra publicada por
Nietzsche, O Nascimento da Tragédia, foi escolhida como o ponto de partida, mas
constitui-se, em grande parte, como o referencial teórico principal da presente
pesquisa. A escolha fundamenta-se nas análises que o pprio Nietzsche tece sobre o
livro no período tardio de seu pensamento. Em sua opinião, o livro é problemático e
até mesmo bizarro, mas apresenta duas grandes novidades: a compreensão do
fenômeno dionisíaco nos antigos gregos e a compreensão do socratismo, ou melhor
dito, Sócrates pela primeira vez reconhecido como típico décadent. Toda a reflexão
nietzschiana sobre a verdade e como esta foi transformada no supremo valor da
cultura ocidental remete inexoravelmente a esses dois pontos. Sem uma
compreensão dessa duas questões, corre-se o sério risco de se interpretar mal, e até
equivocadamente, importantes pontos da crítica nietzschiana à religião. Confrontando
as ideias desenvolvidas por Nietzsche em O Nascimento da Tragédia, com alguns de
seus outros escritos, espera-se aqui compreender alguns pontos dessa filosofia, tais
como: a superação do pessimismo elaborada pelos gregos; a sabedoria trágica; a
“morte de Deus, e o último, e talvez mais ambicioso projeto nietzschiano a
transvaloração de todos os valores. A hipótese que se procura demonstrar nesse
trabalho é a de que, com a valorização do modelo de verdade instaurado por
Sócrates, o saber trágico recua. Com efeito, a tragédia perde o que, para Nietzsche,
representaria sua função vital, a saber, a de proteger o homem do pleno
conhecimento da sua terrível condão efêmera e, ao mesmo tempo, restaurar-lhe o
gosto pela vida. O estudo aqui realizado destaca os efeitos de tal perda nas esferas
da ciência, da filosofia e, em especial, da religião. Espera-se assim demonstrar que a
crítica nietzschiana à vontade de verdade não se restringe isoladamente a uma
crítica à razão, à metafísica, à moral ou à religião. Seu pensamento revela-se mais
contundente ao buscar o porquê da necessidade e crião de tais instâncias.
Palavras Chaves: Friedrich Nietzsche, Niilismo, Religião, Tragédia grega, Verdade.
ABSTRACT
This master‟s dissertation aims to investigate the existing relationship between the
want for truth and religion in Nietzsche‟s perspective. Nietzsche‟s first published
work, The Birth of Tragedy, was chosen as a starting point for this paper and
constituted, in great part, the theoretical background of this research. The choice of
The Birth of Tragedy is based in the analysis that Nietzsche himself has made of his
book in his later years. In his opinion, the book is problematic and even bizarre, but it
presents two grand new findings: the understanding of the Dionysian phenomenon in
ancient Greece and the understanding of Socrates‟ philosophy, or on more precise
terms, the understanding of Socrates, for the first time recognized as a typical
décadent. All Nietzsche‟s reflexion on truth and how it (truth) has been transformed in
the supreme value of occidental culture relate unfailingly to these two points. Without
understanding them, one could easily misinterpret important arguments raised by
Nietzsche in his critique of religion. Confronting the ideas developed by Nietzsche in
his The Birth of Tragedy with several of his other works, this paper hopes to research
some of these arguments such as: the overcoming of pessimism elaborated by the
Greek, the tragic wisdom, the “death of God” and lastly what is probably Nietzsche‟s
most ambitious project the transcending of all values. This paper wishes to
demonstrate the hypothesis that, by giving value to Socrates‟ model of truth, the
tragic wisdom refrains. In fact, tragedy then loses what for Nietzsche, would
represent its vital function: that of protecting men from the terrible knowledge of his
ephemerous condition while restoring in him the taste for life. This research will
investigate the effects of such loss in the spheres of science, philosophy and
especially, religion. The aim in doing so is to demonstrate how Nietzsche‟s criticism
of the want for truth is not restricted to a criticism of reason, metaphysics, moral or
religion. Rather, his philosophy is best applied to seeking the reason behind the
necessity for and the creation of such instances.
Keywords: Friedrich Nietzsche, Nihilism, Religion, Greek tragedy, True.
LISTA DE ABREVIATURAS
AC O anticristo (1888*)
AC- Der Antichrist
A Aurora (1882)
M Morgenröte
CI Crepúsculo dos ídolos (1888*)
GD Götzen-Dämmerung
CP Cinco prefácios para cinco livros não escritos (1872*)
CV Fünf Vorreden zu fünf ungeschriebenen Büchern
EH Ecce Homo (1888)
EH- Ecce Homo
FT A filosofia na idade trágica dos gregos (1873*)
PHG Die Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen
GC A gaia ciência (as quarto primeiras partes 1882; a quinta parte 1886)
FW Die fröhliche Wissenschaft
GM Genealogia da Moral (1887)
GM Zur Genealogie der Moral
HH Humano, demasiado humano (1878)
MAM Menschliches, Allzumenschliches
NT O nascimento da tragédia (1872)
GT Die Geburt der Tragödie
VM Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral (1873*)
WL Über Wahreit und Lüge im aussermoralischen Sinne
VP Vontade de poder
Der Wille zur Macht segunda edição com 1067 fragmentos póstumos,
organizada por Ernst e August Horneffer.
ZA Assim falava Zaratustra (primeira e segunda partes 1883; terceira
parte 1884; quarta parte 1885)
Z Also sprach Zarathustra
Os números entre parênteses, após o título das obras, indicam o ano de
publicação. Quando se tratou de obras ou textos publicados postumamente, os
números são acompanhados de um asterisco e indicam o ano em que foram
escritos.
As siglas adotam a convenção estabelecida pelos Cadernos Nietzsche.
Entretanto, quanto à versão portuguesa dos títulos optou-se pela manutenção
daqueles utilizados pelas respectivas editoras das obras indicadas nas
refencias.
SUMÁRIO
1- INTRODUÇÃO .......................................................................................
2- HELENISMO E PESSIMISMO: O MODO GREGO DE SE VALORAR A
EXISTÊNCIA .....................................................................................................
2.1- O nascimento da tragédia: a gênese das ideias de Nietzsche ...........
2.2- O agón de Homero ..............................................................................
2.3- O legado de Homero: homens como folhas ........................................
2.4- A sentença de Sileno e o inexorável destino dos homens ..................
3- O NASCIMENTO DA TRAGÉDIA: A HARMONIA ENTRE APOLO E
DIONÍSIO ...................................................................................................
3.1- Apolo: a imagem divina do principium individuationis .........................
3.2- A embriaguez dionisíaca .....................................................................
3.3- A visão trágica do mundo e a superação do pessimismo ...................
3.4- A morte da tragédia: a sabedoria trágica versus o conhecimento
teórico .........................................................................................................
4- O ÁPICE DO NIILISMO: A VERDADE FRENTE AO ANÚNCIO DA
MORTE DE DEUS
...............................................................................................
4.1- A verdade e a mentira interpretadas no sentido extramoral ........
4.2- A interpretação nietzschiana do cristianismo ...............................
4.3- Da tragédia grega ao método genealógico ...................................
4.4- A verdade na vontade de verdade ......................................................
5- CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................
REFERÊNCIAS ..........................................................................................
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18
18
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52
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64
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77
83
92
96
11
1 INTRODUÇÃO
Miríade de religiões existe ao redor do mundo. A crença em um deus ou
deuses está presente em praticamente todas as culturas humanas. Pode-se
afirmar que tal constatação constitui-se como o marco inicial da presente
pesquisa. A partir dessa observação preliminar, uma série de questões foram
gestadas. Por que tantas religiões e deuses? Existe algo em comum que as
fundamenta? Por que o ser humano crê? O que no homem faz com que ele
recuse a realidade da qual faz parte para buscar algo que não pode ser ou ter?
Por que se toma o incrível como verdadeiro? Ao se investigar tais questões,
outras não menos relevantes, se apresentaram. Por que todas as religiões
buscam ou acreditam possuir a verdade? Quem detém a verdade? A ciência? A
religo? A filosofia? De forma que uma pergunta se sobressai a todas as
demais: o que é a verdade?
Na tentativa de elucidar tais questões é que tomamos a crítica à crença
1
formulada por Friedrich Nietzsche como baliza em nossa empreitada. Segundo
Abel,
no âmbito da queso da verdade, pode-se distinguir três representações
basilares: (i) Verdade como concordância e adequão entre o
pensamento e os objetos; (ii) verdade como automanifestação, ou seja,
como o mostrar-se da natureza pura e essencial das coisas e (iii) verdade
como atividade de tal procedimento. Em todas as três perspectivas é
pressuposto, além disso, que o há muitas, mas „Uma Ùnica Verdade‟. A
crítica dessas conceões e, portanto, do âmago da metafísica ocidental,
radicaliza-se, sobretudo, com Nietzsche. No pensamento de Nietzsche,
o se trata simplesmente de substituir as representões anteriores de
verdade por uma outra. Ao contrário, é a arquitetura do questionamento
mesma, ou seja, do sentido da verdade, que é reinterpretada. (ABEL,
2002, p.16).
É justamente a supracitada reinterpretação para o sentido da verdade,
operada por Nietzsche, que o credencia como o referencial teórico nesse
trabalho. Oportunamente, ressalta-se que as reflexões aqui desenvolvidas não
têm como objetivo apresentar uma exposição nem, menos ainda, encontrar uma
resposta definitiva para a questão. Isso seria o melhor meio de trair o
pensamento nietzschiano. O que aqui se procura é justamente o oposto, ou
1
Destacamos que o termo crença [Glaube] no pensamento nietzscheano não se restringe à crença
religiosa, mas designa também a crença na ciência, na filosofia e em tudo mais que se apresenta
como modelo de veracidade.
12
seja, vislumbrar novas perspectivas, novas interpretações, para essa tão antiga
queso. Antiga, pois não se pode negar que a “verdade ocupou um lugar de
destaque ao longo de toda a tradão filosófica ocidental, forjada,
inexoravelmente, por preceitos metafísicos.
Destarte, as reflees de Nietzsche sobre a temática da verdade-
metafísica mostram-se de extremada relencia uma vez que, segundo
Heidegger, “se o apreendermos a filosofia de Nietzsche, o
compreenderemos nada sobre o culo XX e sobre os culos futuros, assim
como o compreenderemos nada sobre nossa tarefa metafísica (HEIDEGGER,
2007, p.18).
Procurar-se aqui demonstrar que a ctica nietzschiana
2
à crença atinge
diretamente a dimensão religiosa, em particular o cristianismo, visto que
impossibilita toda e qualquer concepção de verdade erigida sob bases
transcendentes, atemporais e permanentes. Ato contínuo, inviabiliza ainda um
de seus postulados essenciais: a exisncia de um mundo metafísico. Não se
pode prescindir do fato de que “„Verdade é a palavra-chave da filosofia
ocidental, que no âmago foi a metafísica. Atingir a verdade é uma meta pela
qualo prometidas elevadas recompensas intelectuais, morais, religiosas e
metafísicas (ABEL, 2002, p,15). Nietzsche coloca-se assim, em uma posição
ímpar no longo cenário de questionamento e crítica da metafísica, ou seja,
como o pensador que quer levar até o fim a crítica da Verdade metafísica
(ARALDI, 2002, p.7). Delineia-se, desse modo, o objetivo central dessa
pesquisa: o de investigar a relação existente entre a vontade de verdade e a
religo na perspectiva de Nietzsche. Destaca-se nesse sentido que,
ao criticar a noção de Verdade da tradição ocidental, Nietzsche procede a
uma nova formulação da questão da verdade. Não se trata mais, nessa
ótica, de uma verdade fixa, atemporal, mas da vontade de verdade”, da
vontade humana de veracidade, ou seja, de tornar fixo, de assegurar, de
conferir estatuto de permanência ao que esem fluxo. (ARALDI, 2002,
p.8).
Na tentativa de se alcançar o objetivo acima descrito toma-se como eixo
primário de investigão a obra O nascimento da tragédia. Com isso, pretende-se
2
Ao longo da presente dissertação opta-se pela grafia nietzschiana utilizada em maior escala pelos
comentadores aqui selecionados, respeitando a grafia nietzscheana quando a mesma aparece dentro
de citações.
13
demonstrar como em NT, Nietzsche desenvolve importantes aspectos de sua
filosofia que o acompanharão ao longo de toda a sua trajeria intelectual. A
escolha da obra é respaldada pela interpretação de Fink (1988) que a considera
como palco de quase todos os elementos da filosofia nietzscheana. Esta obra
desenvolve pela primeira vez, [...] a antítese do dionisíaco e do aponeo, cria a
óptica da arte e, a partir desta, encontra a óptica da vida [...]. (FINK, 1988,
p.22). É nessa obra que Nietzsche elabora uma de suas mais vivas e originais
intuições: a da existência de uma relação de complementaridade entre o par de
conceitos-metafísicos Apolo e Dionísio. Através da harmonia entre esses dois
impulsos, Nietzsche procura resgatar na genialidade da cultura clássica grega o
conceito da tradia. Este, em sua opinião, seria o único capaz de oferecer aos
homens uma experiência ético-religiosa da vida em toda a sua complexidade.
Apolo e Dionísio são, nesse sentido, duas perspectivas para se valorar a
exisncia, duas perspectivas para se contemplar o problema da verdade.
Segundo Giaia Júnior,
nesse par de conceitos-metáforas [Apolo e Dioniso], Nietzsche teria
expressado seu mais profundo discernimento: o da pertença mútua e
inexorável entre vida e morte, agonia e êxtase, sombra e luz, criação e
destruição; o padecimento e a dor como condições da alegria e do
prazer; sem as terríveis dores da parturiente não existe a suprema
felicidade da nova criatura, de modo que, se quiséssemos eliminar o
sofrimento, tamm atentaríamos contra a potência de vida que, em
seu recôndito mais essencial, é precisamente essa totalidade, que é
também tanto integridade quanto crueldade. (GIACÓIA NIOR, 2008,
p.13-14).
A obra revela-se ainda de suma importância ao descrever outros aspectos
da dimensão religiosa em Nietzsche. Por exemplo, como ele fora inicialmente
influenciado pela filosofia de Schopenhauer, concordando com a visão de
mundo deste filósofo em três questões essenciais: a) a inexistência de Deus; b)
a inexistência de alma; c) a falta de sentido da vida, que se constitui de
sofrimento e luta, impelida por um impulso cego, denominado Vontade. Esses
elementos constituem o escopo a partir do qual Nietzsche tecerá sua crítica à
moral e aos valores cristãos. Entretanto, é pertinente destacar que embora
14
tenham pontos em comum, as filosofias de Schopenhauer e Nietzsche resultam
em conclusões opostas
3
.
Schopenhauer considera a Vontade como a essência do mundo e do
homem. Segundo Brum,
nessa visão pessimista, a única consolação é a liberação temporária
pela contemplação estética e sobretudo a libertação definitiva pela
renúncia ao julgo da vontade cega. O pessimismo de Schopenhauer,
descrevendo um mundo absurdo e repetitivo, busca como remédio para
ele uma existência sem dor, sem tempo, sem movimento: a negação
da vontade. (BRUM, 1998, p.115).
Já Nietzsche procura romper com interpretações dicotômicas da
realidade, seja expressa como Vontade e Representação como Schopenhauer
ou, aos moldes kantianos, como fenômeno e coisa em si. Nietzsche postula
que este mundo é a única parte da realidade e que o devemos rejeitá-lo ou
nos afastarmos dele, mas vivenciá-lo em toda a sua plenitude. Ele, assim como
Schopenhauer, também pensa a infelicidade e o sofrimento inerentes à
condição humana, mas oferece outra possibilidade frente ao pessimismo: a de
uma afirmação integral da vida, erigida por um saber trágico que visa reconciliar
o homem com a existência. Nietzsche exalta a alegria de viver no tempo
experimentada pelo indivíduo exposto à dor como sendo a maior força e
sabedoria de um saber trágico da existência”. (BRUM, 1998, p. 115).
O nascimento da tragédia assinala ainda, o percurso no qual Nietzsche
encontra na figura de Sócrates o grande antagonista do pensamento trágico.
Com o filosófo, surge a supervalorização da razão em detrimento dos instintos,
a dicotomia entre realidade e apancia e entre o erro e a verdade. Ao criticar
Sócrates, Nietzsche critica a longa tradição do pensamento ocidental que, por
quase dois mil anos, ergueu-se sob as bases da filosofia socrático-platônica e o
seu modelo de verdade. Para Heidegger, “a indicação de que Nietzsche se
encontra na via de questionamento da filosofia ocidental deve apenas deixar
claro que ele sabia o que é filosofia. Esse saber é raro. Somente grandes
pensadores o possuem (HEIDEGGER, 2007, p.7)
Ao se posicionar contra o modelo de verdade inaugurado por Sócrates,
Nietzsche prepara seu duro ataque aos valores basilares da cultura ocidental, e
3
O termo foi originalmente cunhado por Richard Roos na sua introdução à obra Le monde comme
volonté et comme représentation. Paris: PUF, 1966. O mesmo foi apropriado por Brum (1998) e aqui
novamente empregado.
15
nenhum desses valores será o alvejado pelo filósofo alemão quanto o valor da
verdade. Poder-se-ia afirmar que grande parte do projeto filofico nietzschiano
toma por objetivo destituir a verdade de seu posto de supremo valor, ou melhor
dito, de valor supremo. O prescindir do pensamento trágico realizado, segundo
Nietzsche, por Sócrates, apresenta ao filósofo alemão uma questão ainda mais
radical a qual ele dedicaria boa parte de suas reflexões futuras: qual é o valor
dos valores? Na tentativa de compreender tal questão, Nietzsche lança-se em
um pomico ataque à estrutura responsável pelo valor de todos os valores e
por tudo o que se colocou como verdade ao longo da tradição ocidental: a
moral, sobretudo, a moral cris. Para Nietzsche, quem descobre a moral
descobriu com isso o não-valor dos valores todos nos quais se acredita ou se
acreditou (NIETZSCHE, 1995, p.116). Nesse sentido destaca-se a interpretação
de Heidegger ao afirmar que:
o que se tem em vista nesse contexto por valores até aqui supremos é a
religião, e, com efeito, a religião cris, a moral e a filosofia. O modo de
falar e de escrever de Nietzsche é freqüentemente impreciso e conduz,
muitas vezes, a incompreensões; pois religião, moral e filosofia não são
elas mesmas os valores supremos, mas sim os modos fundamentais de
instauração e de imposição dos valores supremos. Somente por isso elas
podem valer e ser instauradas mediatamente como “valores supremos”.
(HEIDEGGER, 2007, p. 25-26).
Numa consideração mais atenta, a crítica nietzschiana à vontade de
verdade revela como a tradão filosófica desconsidera o que para o filósofo
alemão constitui-se como o aspecto fundamental da efetividade do mundo: o
devir. A vontade de verdade não seria outra coisa, senão
uma estratégia do a-firmar, do tornar fixo, da reinterpretação do fluxo
contínuo das coisas no ente. Ela leva a uma prodão de mundos fictícios,
„verdadeiros‟, „essenciais‟, „incondicionados e que permanecem iguais a
si mesmos‟. Nesse sentido, a verdade não é „dada‟, em si e
preestabelecida; ao contrário, ela é “criada” por meio de processos de
determinação de signos e de interpretações. Aqui „descobrir‟ e „produzir‟
vão de mãos dadas. A verdade‟, segundo Nietzsche, é o nome para a
“vontade de dominação que em si não tem fim. (ABEL, 2002, p.17).
Tal consideração é fundamental para que se compreenda a reflexão
elaborada por Nietzsche (2006b, p.31) em seu Crepúsculo dos Ídolos ao narrar
na história de um erro ou como o mundo verdadeiro tornou-se finalmente uma
“fábula. Ao aniquilar o que existe de mais próprio na efetividade do mundo
16
como, por exemplo, a troca e as transformações contínuas, a multiplicidade e o
caráter processual do que acontece, a vontade de verdade retiraria do mundo
todo o seu sentido. Por isto, a vontade de verdade aparece na vio de
Nietzsche como uma vontade de nada (ABEL, 2002, p.18). A história de um
erro revela deste modo, a força do niilismo ao longo da tradição do pensamento
ocidental. Com isso, Nietzsche diagnostica a completa desvalorização de tudo o
que até então fora tido como valor, resumindo suas reflexões sobre o niilismo
em uma única e poderosa frase: “Deus está morto. Com efeito, constata-se que
a crítica à vontade de verdade possui uma delicada relação com a esfera
religiosa a partir do momento que expõe a vaziedade de nossos valores morais
marcados pelo signo do niilismo. Entende-se assim, porque, para Nietzsche, faz-se
imperativa uma transvaloração de todos os valores.
Com efeito, esta dissertação se compõe de três capítulos.
No primeiro estuda-se a proposta nietzschiana de uma reavaliação do
helenismo e a sua peculiar interpretação do modo grego em valorar a
exisncia. Destaca-se a influência de Schopenhauer, Wagner e Homero no
jovem Nietzsche. Pretende-se mostrar os principais elementos que levaram
Nietzsche a posicionar-se favoravelmente frente ao modelo de veracidade
resultante da metafísica de artista.
No segundo capítulo se analisa como efetivamente os dois instintos
estéticos da natureza o apolíneo e o dionisíaco geraram a tragédia ática.
Procura-se aqui demonstrar em que sentido o racionalismo estético soctico é
o marco que assinala a morte da arte trágica.
Finalmente, no terceiro catulo, rumo à conclusão da pesquisa, estuda-
se o desenrolar da crítica à vontade de verdade em alguns textos posteriores a
O nascimento da tragédia, no intuito de revelar como a verdade relaciona-se
com a moral, em particular, a moral cristã. Pretende-se, desse modo,
compreender porque a genealogia da moral é o fundamento de uma genealogia
da verdade.
Espera-se assim, perquirir a crítica nietzschiana à vontade de verdade
esclarecendo a singular proposta do filósofo alemão em privilegiar a sabedoria
trágica, expressa sobretudo no elemento dionisíaco, como única força capaz de
se opor ao niilismo, à negação da vida em consonância com uma das grandes,
17
se não a maior criação da filosofia de Nietzsche: a transvaloração de todos os
valores.
18
O que fazemos aqui, s, que vamos desaparecer?”
(SENANCOUR apud BRUM, 1998, p.9).
2 HELENISMO E PESSIMISMO: O MODO GREGO DE SE VALORAR A EXISTÊNCIA
Este capítulo gira em torno de O nascimento da tragédia, obra na qual
Nietzsche desenvolve sua ambiciosa proposta de uma reavaliação do
helenismo. Procurar-se-á aqui investigar como, desde os primórdios, o
pensamento de Nietzsche se reconheceu e se definiu a partir de um projeto de
refutação e supressão dos pressupostos que consolidaram durante milênios as
bases da tradição do pensamento ocidental. No âmago desse projeto encontra-
se sua crítica ao valor da verdade. Embora o tema o apareça de forma
explícita em seus primeiros textos, neles já se encontram, mesmo que de forma
embrionária, todos os elementos que futuramente consolidarão a crítica
nietzschiana à verdade
4
considerada como valor supremo. Essa primeira parte
da pesquisa, de caráter introdutório, constitui-se de um breve apanhado de
como foi gestada a obra. Procura-se aqui delimitar as principais ideias
defendidas por Nietzsche e as influências herdadas por ele, principalmente por
parte da filosofia de Schopenhauer, da música de Wagner, bem como a
influência de Homero em suas reflexões. Essa é a razão pela qual, neste
capítulo, a atenção da pesquisa centra-se em torno dessa obra sem, no entanto,
excluir os outros escritos do mesmo período, ou de períodos posteriores, que,
direta ou indiretamente, refletem as ideias de Nietzsche a respeito dos temas
aqui abordados.
2.1 O nascimento da tradia: a gênese das ideias de Nietzsche
4
Doravante, salvo menção em contrário, ao utilizar-se o termo “verdade” restringi-se sua ampla
significação à verdade-socrática.
19
A primeira obra publicada por Nietzsche, O nascimento da tragédia
5
ou
helenismo
6
e pessimismo (1872), figura-se como um misto de filologia e
filosofia. O livro possuía a pretensão de perseguir não uma, mas rias metas
distintas e altamente ambiciosas. Estas, segundo Stern (1978, p.20), o desde
a investigão sobre as origens da tradição maior da literatura ocidental a arte
da tragédia até a proposta de recriar na Alemanha contemporânea, as
condições que possibilitaram o desenvolvimento da rica cultura grega.
A obra, segundo Fink, erauma homenagem a Richard Wagner, uma
interpretação dos seus dramas musicais como obras de arte totais que igualam
as tragédias antigas. A concepção nietzschiana da tradia baseia-se numa
vio fundamentalmente nova da Gcia (FINK, 1988, p.17). Tais ideias eram
tão polêmicas que o pprio Wagner sentiu a necessidade de alertar Nietzsche
dos perigos em apresentá-las ao meio acadêmico. Dois anos antes da
publicação da obra, Nietzsche havia proferido duas conferências
7
, voltadas para
o público em geral, nas quais já adiantava grande parte das ideias que seriam
articuladas em NT. Em 4 de fevereiro de 1870, Wagner aconselha Nietzsche:
Eu, de minha parte, senti sobretudo um temor diante da ousadia com a
qual o senhor, de maneira tão breve e categórica, participa a um
público supostamente não destinado à formão acadêmica uma ideia
tão nova, de modo que se tem de contar, para sua absolvição, somente
com a total incompreensão por parte daquele. Mesmo os iniciados em
minhas ideias poderiam por sua vez se assustar, se, com estas
ideias,entrassem em conflito com a sua [a deles] fé emfocles e
mesmo em Ésquilo. Eu - pela minha pessoa - clamo ao senhor: assim
é! O senhor está correto e tocou o ponto próprio da maneira exata e a
mais precisa, de modo que não posso senão, cheio de surpresa,
aguardar o desenvolvimento do senhor, para o convencimento do
preconceito vulgar dogmático. - Todavia, estou preocupado com o
senhor e desejo de todo coração que o senhor não se faça quebrar o
pescoço. Por isso gostaria de aconselhar o senhor a não tratar dessas
opiniões o inacreditáveis em dissertações curtas que têm em vista
efeitos leves por meio de considerações fatais, mas se está tão
profundamente compenetrado delas - como eu reconheço - rna as
suas forças para um trabalho maior e mais abrangente sobre isso.
Então o senhor certamente irá encontrar tamm a palavra justa para
os erros divinos de Sócrates e Platão. (NIETZSCHE, 2005b, p.XI).
5
Este é o título utilizado a partir da segunda edição da obra. Originalmente, Nietzsche a cunhou como
O Nascimento da Tragédia no espírito da música.
6
Helenismo foi a opção encontrada, e aqui respeitada, por J. Guinsburg para a tradução do termo
Griechtum. O autor justifica tal opção pelo fato de que embora “helenismo” traga uma conotação que
vai além da Grécia concretamente, ainda assim, tem a vantagem sobre uma tradução literal
“grecismo”, uma vez que tal termo tem sido aplicado de preferência para designar o idiomatismo
grego. Cf. nota 1, p. 145, de O nascimento da tragédia; Companhia da Letras, 1992.
7
As conferências “O drama musical grego” e “Sócrates e a tragédia” foram proferidas em 18 de
janeiro e em 1º de fevereiro de 1870, respectivamente.
20
Certamente, conforme nos lembra Lefranc (2005, p.26), pensamentos
verdadeiramente novos chocam-se inevitavelmente com as convicções
dominantes à sua época, sobretudo quando se expressam de modo provocante.
A consequência mais comum é a sua incompreensão pelo menos à primeira
vista e muitas vezes não encontram mais do que o sincio. Segundo Colli,
Nenhum outro livro de Nietzsche tem atrás de si uma preparação o
longa e penosa. Durante dez anos, o jovem estudioso vive entre os
seus livros, e das suas palavras não se anuncia qualquer amea para
a ciência. Aceita a tradição da filologia, admoesta os seus amigos a
reprimir a fantasia, a respeitar o método, a controlar as hipóteses.
Depois vem este livro, onde tudo é contradito, onde ninguém, então
reconhece o autor. (COLLI, 2000, p.15).
Mesmo sob o aconselhamento de Wagner, o livro não obteve o
reconhecimento que Nietzsche esperava
8
. Fink argumenta que a rejeição da
obra “assenta-se num mal-entendido provocado pelo próprio Nietzsche, que fez
crer ter querido levantar uma questão de filologia (FINK, 1988, p.22). No
entanto, o texto colocava-se em um terreno distante daquele em que foi
pensado. Esse oscilava entre problemas estéticos, psicológicos e filológicos.
Representava ainda, mesmo que de forma tateante, a primeira tentativa de
Nietzsche em expressar a sua concepção filosófica do mundo.
Com efeito, as ideias defendidas em O nascimento da tradia não
apenas foram alvo de duras cticas por parte da comunidade acadêmica, como
também destruíram permanentemente as credenciais de Nietzsche como
professor universitário”. (STERN, 1978, p.20). O ataque mais violento deve-se
ao doutor em filologia Wilamowitz-Möllendorf (1848-1931) que, baseado em
argumentos puramente científicos, desqualifica o livro por considerá-lo
demasiado literio e imaginativo. A defesa surge por parte de Erwin Rohde e
Richard Wagner. Granier (2009, p.13) aponta que o ataque de Wilamowitz-
8
De fato, a partir do ano de 1883, ninguém parece interessar-se por seus escritos. São praticamente
inexistentes, nas universidades, comentários sobre eles. Do mesmo modo, não são publicados
artigos ou resenhas sobre suas obras em jornais ou revistas. Mesmo sua obra Assim falou Zaratustra
um livro para todos e para ninguém, que futuramente seria considerada sua obra prima, foi
publicada em meio a grandes dificuldades. A primeira parte levou meses para ser publicada. O editor,
frente a um autor malsucedido, cumpria sem pressa o contrato firmado, preferindo imprimir cânticos
religiosos e brochuras antissemitas à segunda e terceira parte da obra. Recusa-se ainda, editar a
quarta parte de modo que, sem alternativa, o próprio Nietzsche custeia uma limitada tiragem de
quarenta exemplares do livro. E, desde então, esse passa a ser um evento comum, passando
Nietzsche a assumir todas as despesas de suas publicações.
21
Möllendorf foi tão implacável que o teve dificuldades para refutar a plica de
Rohde
9
. O que torna a queso relevante a essa pesquisa foi o fato de que
Nietzsche, contrário à interpretação dominante da época, apresentava na obra
uma nova leitura da cultura clássica grega, em especial, da origem da tragédia,
cuja proposta foge radicalmente à cssica interpretação dada por Aristóteles
[...] e pelos teóricos tributários de sua Poética
10
. (SANTOS, 2006, p.46). Com
efeito, na busca de uma foa originária para o renascimento do espírito tgico
na Europa, ele realiza um contra-movimento em matéria, tanto de filosofia,
quanto de cncia, arte e religião. Desse modo,
Nietzsche não só introduz uma nova perspectiva quanto às origens da
tragédia, mas tamm repensa, com intuições verdadeiramente
originais, as relações entre a arte e a ciência, a civilização grega e a
modernidade, a sabedoria trágica e o conhecimento teórico. Assim,
mais do que a origem da tragédia, mais do que a oposição entre Apolo
e Dioniso, o que ele realmente visa é a sabedoria helênica ou, mais
exatamente, a sabedoria trágica enquanto afirmação da vida ou
enquanto sim à vida. (ALMEIDA, 2005, p.24).
Segundo Machado (2005b), o ineditismo de sua proposta consistia em
perceber uma similaridade entre a situação dos antigos gregos e a situão em
que se encontrava a Europa (em especial a Alemanha) no culo dezenove. O
retorno à cultura clássica grega não significava uma mera recuperação de um
passado de glória. O projeto nietzschiano mostrava-se mais refinado e
ambicioso pelo fato de, ao retornar aos gregos, manter em vista o tempo
presente, ou seja, a cultura alemã de seu tempo. Para Nietzsche, tal cultura
nada mais era do que o decadente legado de um modelo cultural nascido na
Grécia pelas mãos, ou melhor, pelo pensamento de Sócrates. Assim como a
filosofia socrática, a cultura alemã contemponea também era essencialmente
lógica e dialética, ainda mantinha a razão como onipotente e reservava à
verdade o status de valor supremo.
Nietzsche não compartilhava da confiança ilimitada na onipotência da
ciência e da racionalidade de seus contemporâneos, tampouco aceitava a tese
de uma bondade essencial, inerente ao ser humano. Nietzsche chegava mesmo
9
Mais detalhes a esse respeito podem ser encontrados em Machado (Org.), Nietzsche e a polêmica
sobre    , no qual se encontram traduzidos para o português os textos de
Rohde, Wagner e Wilamowitz-Möllendorff.
10
Cf. Poética, capítulo 4, 1449ª, p.19-21.
22
a sentir uma repulsa de seus contemporâneos. E, para que não reste dúvida
quanto ao que desprezo, a quem desprezo: é o homem de hoje, o homem do
qual sou fatalmente contemporâneo. (NIETZSCHE, 2007, p.44). Segundo
Giacóia Júnior,
Nietzsche se opunha também a outra tendência de sua época, que
consistia em valorizar uma forma de intelectualidade erudita,
burocrática e estéril que, em nome de uma pretensa neutralidade
científica, se mantinha numa posão de distância em relação aos
interesses concretos de um povo, às necessidades e urncias da vida.
(GIACÓIA JÚNIOR, 2000, p.31).
Giacóia Júnior (2000, p. 28) ainda assinala que a incipiente filosofia de
Nietzsche possuía como questão central o destino da arte e da cultura no
mundo. Interpretação respaldada por Stern (1978) que, ao analisar O
nascimento da tragédia também afirma que
o livro é “uma contribuição para a cncia estética, o primeiro de todos
os esboços e reflexões que, no correr dos dezesseis anos seguintes,
acompanharão o pensamento moral-existencial de Nietzsche, fundindo-
se às vezes com ele, às vezes se colocando em consciente oposição a
ele aspectos do enigma que nunca deixa de fasciná-lo: Qual é a
função da estética do mundo? (STERN, 1978, p.20).
Nesta fase, ainda era grande a influência da metafísica da vontade de
Schopenhauer e da teoria da arte de Richard Wagner sobre o pensamento do
jovem Nietzsche
11
. Ao travar contato com O mundo como vontade e
representação, em 1865, Nietzsche se entusiasma com o pensamento de Arthur
Schopenhauer (1788-1860) no qual, segundo Marton, “nenhuma Providência,
nenhum Deus dirige o universo; todos os fenômenos o passam de aspectos
de uma cega vontade de viver; essa vontade de viver absurda, sem razão ou
11
Doravante devemos ter em mente que ao nos referirmos a Nietzsche, na verdade nos referimos a
vários Nietzsches”. Sua trajetória filosófica é marcada por mudanças significativas, tanto na forma
quanto no conteúdo. Com efeito, ao denominá-lo aqui de “jovem Nietzsche” o fazemos de forma
puramente didática, certos das vantagens, para fins expositivos, dessa periodização. Tal fase
caracteriza-se, sobretudo, pelos escritos produzidos, em grande parte, quando Nietzsche ainda era
docente na Universidade de Basiléia como catedrático de filologia clássica. As obras desse período
são: O nascimento da tragédia (1872), Primeira Consideração Extemporânea: David Strauss, o
Devoto e o Escritor (1873), Da utilidade e desvantagem da história para a vida (1874), Schopenhauer
como educador (1874) e Richard Wagner em Bayreuth (1876). Destacamos, ainda, textos que
permaneceram inéditos durante a vida do autor como: O Drama Musical Grego, Sócrates e a
tragédia, A cosmovisão dionisíaca, O nascimento do pensamento trágico (todos de 1870); Sócrates e
a tragédia grega (1871); Sobre o futuro de nossas instituições de ensino (1872); Cinco prefácios para
livros não escritos (1872); A filosofia na época trágica dos gregos e o Sobre verdade e mentira no
sentido extramoral (ambos de 1873).
23
finalidade, revela-se como essência do mundo. (MARTON, 2006, p.24). Com
efeito, Nietzsche vislumbra atras do pensamento schopenhauriano um mundo
que deixa de ser a expreso do intelecto e da vontade de Deus, bem como
deixa de ser, também, fruto de outra espécie de princípio racional. Para
Schopenhauer, segundo Giacóia nior, “a esncia do universo é um impulso
cego, denominado Vontade, ávida e insaciável, eternamente em busca de
satisfão (GIACÓIANIOR, 2000, p.31). A dor que nasce dessa vontade
constitui a única realidade, e é na música que a vontade de viver se manifesta
de maneira mais intensa.
Já Richard Wagner (1813-1883) surpreende Nietzsche (neste momento já
um grande admirador de sua música) por revelar-se um profundo conhecedor da
filosofia schopenhaueriana. Também influenciado por Schopenhauer, Wagner
acredita que a sica seria a mais adequada forma de manifestação daquela
força criadora do mundo, a Vontade. (GIACÓIA JÚNIOR, 2000, p.31). Assim
como Schopenhauer, Nietzsche vê na música a mais cabal expressão da
tradia da estética. (STERN, 1978, p.21). Foi através desses dois grandes
homens Schopenhauer e Wagner que finalmente Nietzsche encontrou o que
procurava. A arte-música de Wagner era a resposta, a força originária capaz de
restaurar a cultura trágica na Alemanha contemponea, aos moldes em que
esta florescera entre os gregos. Nesse sentido, destaca-se uma carta escrita por
Nietzsche e enderada ao amigo Erwin Rohde
12
na qual ele diz:
A composão do meu livro [O nascimento da tragédia] é mais apertada
que a do de Wagner, que tomamos por modêlo [...]. Além disso, sinto-
me maravilhosamente fortificado nas minhas opiniões musicais e
convencido em absoluto da sua verdade, pelo que, em Mannheim
13
[...]
experimentei junto de Wagner. [...] Em que se comparam tôdas as
nossas recordações e experiências arsticas anteriores com estas
últimas! Achava-me como aquêle que, por fim, vê cumprido um
pressentimento. Isto é música; o resto não! E a isto, e não a outra
coisa, é precisamente ao que aludo com a palavra «música», quando
descrevo o dionisíaco! Quando penso que have homens, no futuro,
embora sejam só uns centos, que obterão desta música o que eu obtive
dela agora, tenho esperanças numa cultura completamente nova.
(NIETZSCHE, 1944, p.149-150).
A obra de Wagner constituía-se a via que tornaria posvel a Nietzsche
unir Grécia e Alemanha, todavia ele julga que sem a fundamentação de Kant e
12
Datada de 20 de dezembro de 1871.
13
Na época, em Mannheim, foi realizada uma série de concertos wagnerianos.
24
de Schopenhauer, as reflexões que permitiriam essa realização não seriam
possíveis”. (LIMA, 2006, p.18). Na esteira desses dois grandes filósofos,
Nietzsche elabora sua ciência estética (aesthetische Wissenschaft) que possuía
como premissa o fato de que
toda a criação e realização artísticas estavam assentadas na existência
de dois impulsos: o dionisíaco e o apolíneo. Essa conclusão é possível
apenas graças ao desvelamento, empreendido antes por Kant e
Schopenhauer, de que o enigma do mundo se revela em um duplo
aspecto: da coisa-em-si e do femeno, para o primeiro, e da vontade
e da representação, para o segundo. Eis aí o modo como se unem em
O nascimento da tragédia a Grécia e a Alemanha. (LIMA, 2006, p.19).
Entretanto, a Grécia, ou melhor, o modelo cultural grego que Nietzsche
pretende resgatar o é, de forma alguma, uma idealização da cultura henica,
conforme se assinalou anteriormente
14
.
Não se trata de uma idealização da Grécia antiga, nem de uma visão
romântica que a enxerga apenas como o berço da civilização e da
sociedade, onde se observam as mais belas obras de arte, a enorme
riqueza das discussões políticas e o início da filosofia. Nietzsche fala
desde uma perspectiva muito diferente, e até inversa, observando uma
verdade cruel que se mostra no princípio das noções modernas,
procurando trazer à tona a origem assustadora do estado, relacionada
à escravidão e ao sofrimento. (SÜSSEKIND, 2007a, p.11-12).
O que interessa ao filósofo é essencialmente a peculiar posição tomada
pelos antigos gregos frente ao sofrimento e consequentemente como esses o
enfrentaram. Os aspectos tradicionalmente consagrados pela tradição histórico-
filofica, como o fato da Grécia ser considerada o beo da filosofia ou ainda o
local onde inigualáveis obras artísticas foram produzidas, recebeu pouca
atenção por parte de Nietzsche. Seu olhar perscrutador se volta aos traços de
crueldade, de selvageria, com os quais os gregos impunham a sua constante
luta pela sobrevincia, conforme se pode aferir em um de seus prefácios
15
intitulado O Estado Grego;
14
Cf, página 21 desta dissertação.
15
No mesmo período de o NT, entre os anos de 1870 e 1872, Nietzsche escreve cinco prefácios para
cinco livros que nunca chegaram a serem escritos. Segundo Süssekind (2007a, p.7-8), a
incompletude dos textos não significa, contudo, que os prefácios devam ser lidos como simples
apontamentos, a que falta um desenvolvimento posterior e necessário. Na verdade, a leitura dos
textos mostra que eles possuem uma certa autonomia. Constituem assim, ao mesmo tempo,
indicadores e como que esboços concentrados das obras que os sucederiam. E se, por um lado,
25
Dessa assustadora luta pela existência só podem emergir os homens
isolados que imediatamente voltam a se ocupar da cultura artística por
meio de nobres quimeras, para que não caiam no pessimismo prático,
esse que a natureza despreza como sendo a verdadeira anti-natureza.
Confrontado com o grego, o mundo moderno cria em geral apenas
aberrações e centauros. (NIETZSCHE, 2007a, p.40).
Tanto em O nascimento da tragédia, quanto em Cinco Prefácios para
cinco livros não escritos
16
, Nietzsche esforça-se para provar que os antigos
gregos possuíam uma consciência iniguavel de sua ppria condão efêmera.
A compreensão do porquê Nietzsche considerava os gregos dotados de tal
singularidade pode ser obtida pelo resgate do conceito grego de disputa
(agón).
2.2 O agón de Homero
Em outro prefácio A disputa de Homero
17
Nietzsche aborda o conceito
de agón tecendo uma intrigante questão: Por que todo o mundo grego se
regozijava com as imagens de combate da Ilíada? (NIETZSCHE, 2007a, p.66).
Para comentar em seguida: Receio que não compreendamos essas coisas de
modo suficientemente „grego, sim: que estremeceríamos, se alguma vez as
entendêssemos de modo grego”. (NIETZSCHE, 2007a, p.66). Por modo grego
devemos compreender aquilo que, para Nietzsche, tornava os gregos os
homens mais humanos dos tempos antigos (NIETZSCHE, 2007a, p.65) a sua
vontade destrutiva (ao modo do tigre), o seu desejo selvagem de destruição, o
traço de crueldade
18
que trazem dentro de si. Longe de exaltar a crueldade ou a
impiedade, o traço que Nietzsche defende na cultura grega é o que ele
falta-lhes o desdobramento em uma argumentação mais longa e a elaboração demorada de suas
questões, eles apontam com essa falta um esforço de pensamento.
16
O título Cinco prefácios para cinco livros o escritos (Fünf Vorreden zu fünf ungeschriebenen
Bücher) foi dado pelo próprio Nietzsche, que reuniu os seus escritos no natal de 1872 e os enviou à
senhora Cosima Wagner, esposa de Richard Wagner. Entretanto, esses cinco textos só seriam
publicados muito mais tarde, junto com outros deixados pelo filósofo, após a sua morte, seja nos
volumes das obras completas ou em coletâneas.
17
Texto publicado postumamente, mas redigido na mesma época de O nascimento da tragédia.
Nietzsche o concluiu em 29 de dezembro de 1872.
18
Outros detalhes podem ser encontrados em Rosset 1989.
26
denomina como “educação agônica (NIETZSCHE, 2007a, p.73). Para ele, os
gregos desde a infância experimentavam um desejo ardente de competição,
fruto da rivalidade entre as cidades-estados gregas. Isso acendia dentro deles o
seu egoísmo, incutindo em cada cidadão grego a ambição de tornar-se um
instrumento para a consagração de sua cidade.
No entanto,
Não se tratava de nenhuma ambição do desmedido e do incalculável,
como a maioria das ambições modernas: ao correr, jogar ou cantar nas
competições, o jovem pensava no bem de sua cidade natal; era a fama
desta que ele queria redobrar na sua própria; consagrava aos deuses
de sua cidade-estado as coroas que o juiz punha honrosamente em
sua cabeça. (NIETZSCHE, 2007a, p.63).
O supracitado trecho revela que, para Nietzsche, a ambição moderna
difere-se radicalmente da grega
19
. De fato, a ideia de agón, no próprio contexto
grego apresenta duas acepções. Isso se dá pelo fato de haver sobre a Terra
duas deusas Eris
20
(NIETZSCHE, 2007a, p.69), sendo esse “um dos mais
notáveis pensamentos henicos, digno de ser gravado no portal de entrada da
ética henica. (NIETZSCHE, 2007a, p.69). Éris
21
é a divindade grega da
discórdia; mas, conforme nos relata Heodo existem dois tipos de discórdia. A
primeira, a cruel, é a filha mais velha de Nix
22
e conduz os mortais à guerra,
levando-os a se matarem incitados pelo ódio. A segunda a boa Éris, foi posta
por Zeus, o regente altivo, junto aos mortais nas raízes da terra. Esta é aquela
que incita os homens a agir, conduzindo a mesmo aqueles sem capacidade
para o trabalho, estimula-os para a disputa, para a inveja. Nietzsche ressalta
que “O grego é invejoso e percebe essa qualidade, o como uma falha, mas
como a atuação de uma divindade benéfica: que abismo existe entre esse
julgamento ético e o nosso! (NIETZSCHE, 2007a, p.70). A inveja é considerada
uma virtude, pois o só estimula a disputa (agón) como também atua como um
regulador para a desmedida (bris). No entanto, quando os homens
19
De fato a crítica nietzschiana às ideias modernas perpassa toda a sua obra. Crítica que assume um
caráter mais acentuado em livros de maturidade com: O Anticristo e Para além do bem e do mal.
20
Citação extraída por Nietzsche de Os trabalhos e os Dias” (Εργα κα μέραι) de Hesíodo.
21
Opta-se aqui pela grafia Éris e não Eris para o nome da deusa grega.
22
Cf. Brandão (2004, p.225), Nix é a deusa da noite, velha divindade, nascida do Caos na primeira
fase do Universo, e que dera à luz Éter e Hemera. Tornou-se extremamente fértil na primeira
progênie divina. Gerou, por partenogênese, as seguintes abstrações: Moro, Tânatos, Hipno, Momo,
Hespérides, Queres, Moiras, Nêmesis, Gueras e Éris.
27
experimentam um excesso de honra, riqueza, brilho e felicidade atraem o olho
invejoso de um deus (NIETZSCHE, 2007a, p.70).
Com efeito, a relação entre os homens e os deuses articula-se frente a
essa constante disputa. Por um lado, os mortais para alcançarem sua glória
precisam realizar feitos dignos de despertar a inveja (boa Éris) divina. Mas, por
outro, precisam fazê-lo com grande prudência e cautela de forma que não caiam
na ousadia de tentar superar os deuses. Pois, caso não ajam dessa maneira
atrairiam sobre si a vingança dos deuses representada pela má Éris. Exemplos
desse tipo não nos faltam na mitologia grega. Nietzsche relembra que na “luta
de Tâmiris com as musas, de Marsias com Apolo, no destino comovente de
Níobe, aparece a oposição terrível das duas forças que nunca podem lutar entre
si, a do homem e a do deus(NIETZSCHE, 2007a, p.70)
23
.
Essa complexa relação entre os homens e os deuses, conforme
assinalamos anteriormente, é estranha e quase incompreensível ao homem
moderno. Só a compreendemos adentrando no âmago da cultura cssica
grega. Ou melhor, naquilo que constitui a base sobre a qual foi erigida tal
cultura os poemas homéricos
24
. Segundo Vidal-Naquet, para o leitor
moderno, nada é mais surpreendente, mais desconcertante, do que a presença
constante de deuses e deusas na Ilíada e na Odisséia. (VIDAL-NAQUET, 2002,
p.63). Veja-se eno, em maior profundidade, a influência dos poemas
homéricos em Nietzsche.
2.3 O legado de Homero: homens como folhas
23
Nietzsche lembra o castigo que receberam Tâmiris, Marsias e Níobe por ousarem disputar com os
Deuses. Cf. Brandrão (2004), Tâmiris foi castigado pelos deuses ficando cego e sem dotes musicais
por tentar superar as musas no toque da lira. O sátiro Marsias, que havia encontrado a flauta de
Atena, foi pendurado em um pinheiro e esfolado por Apolo após perder uma competição musical.
Níobe que pariu catorze filhos (sete homens e sete mulheres) julgou-se superior à deusa Leto, mãe
de apenas dois (Apolo e Ártemis). A pedido de sua mãe, Apolo matou seis dos filhos de Níobe e
Ártemis seis de suas filhas.
24
Lembramos que se os poemas homéricos são a base da cultura grega, esta é a base sobre a qual
se ergueu o pensamento ocidental. Segundo Brandão (1969), mesmo quando o cristianismo começou
a tomar conta do mundo romano, a partir do século III da era cristã, a crença nos deuses gregos já se
encontrava em franco declínio. Entretanto, Homero continuava a ser lido e grande era a influência de
suas ideias, a tal ponto que surgiu o problema de se situar a guerra de Tróia e Homero em relação ao
que relatava a Bíblia. Encontrou-se então uma espécie de compromisso que situou Moisés antes da
guerra de Tróia, mas que não eliminou esta última totalmente da história.
28
O estudo das obras de Homero, sobretudo a Ilíada e a Odisséia, é ponto
obrigario a qualquer estudioso de filologia clássica. Entretanto, a influência do
poeta sobre Nietzsche deu-se em um campo muito mais amplo do que o coberto
pela filologia
25
. Os poemas homéricos ofereceram a Nietzsche um novo viés
para se pensar o pessimismo e o colocaram de encontro com algumas questões
próprias do saber filosófico.
Será o pessimismo necessariamente o signo do decnio, da ruína, do
fracasso, dos instintos cansados e debilitados como ele o foi entre os
indianos, como ele o é, segundo todas as aparências, entre nós,
homens e europeus “modernos? Há um pessimismo da fortitude? Uma
propensão intelectual para o duro, o horrendo, o mal, o problemático da
existência, devido ao bem-estar, a uma transbordante sde, a uma
plenitude da existência? Uma tentadora intrepidez do olhar mais agudo,
que exige o terrível como inimigo, o digno inimigo em que pode pôr à
prova a sua força? Em que deseja aprender o que é temer? O que
significa, justamente entre os gregos da melhor época, da mais forte,
da mais valorosa, o mito trágico? (NIETZSCHE, 1992, p.14).
Essas perguntas sintetizam com propriedade as intuições de Nietzsche.
Para ele, o mito trágico demonstrava o inexorável caráter de transformação
existente no mundo e o constante duelo entre forças antagônicas que existe em
todas as coisas. Os poemas homéricos ofereciam uma nova alternativa,
sobretudo, à primeira das questões levantadas. Esses pareciam dizer a
Nietzsche que, não, o pessimismo não significava necessariamente declínio e
ruína. Atras dessa nova perspectiva, Nietzsche procurava superar o
pessimismo shopenhaueriano que impunha ao homem a resignação moral e a
renúncia ao agir
26
.
Do início ao fim, os poemas homéricos expressam uma concepção
pessimista do homem. A vida humana é marcada pela morte, e, em nítida
oposição à vida feliz dos deuses imortais, arrasta-se entre sofrimentos e dores
sem fim.
25
Nesse sentido, destacamos que o próprio Richard Wagner, que viria a influenciar Nietzsche,
também inspirou-se em Homero. Wagner mesclou uma canção do século XIII, a Canção dos
Nibelungos, com outros poemas de origem escandinava para escrever e pôr em música O anel dos
Nibelungos, ressuscitando assim o espírito de Homero e o da tragédia grega para fazer com eles uma
epopeia das origens germânicas.
26
Cf. O mundo como Vontade e Representação, § 51. Mais detalhes a este respeito podem ser
encontrados em Dias (2009, p. 12-26).
29
Pobres criaturas! Por que, sendo isentas do Tempo e da Morte, ao
soberano Peleu, que é mortal, tive a ideia de dar-vos? Para que
viésseis, também, a sofrer da miséria dos homens? Tão infeliz quanto
os homens não há de ser algum, por sem dúvida, entre os que vivem
na face da terra e sobre ela se movem. (HOMERO, 19 , p.356-357).
27
O homem homérico é tido como o ser mais misevel que existe sobre a
terra. Esta é a célebre imagem dohomem como folhas que Nietzsche extrai da
Ilíada como se pode inferir pelos trechos que se seguem. “Se o lamento soa
uma vez, ele ressoa por Aquiles, de o curta vida, pelo nero humano que
muda e passa como as folhas, pelo ocaso da idade heróica. (NIETZSCHE,
1992, p.37). As gerações dos mortais assemelham-se às folhas das árvores,
que, umas, os ventos atiram no solo, sem vida; outras, brotam na primavera, de
novo, por toda a floresta viçosa. (HOMERO, 19 , p.143)
28
.
Segundo a epopeia homérica, ao homem é reservado todos os males
físicos como, por exemplo, a fome e a dor, e os espirituais que deles resultam
como a angústia, o medo e outros. Sobretudo no canto final da Ilíada no
embate entre Aquiles e Príamo Homero revela-se como o precursor da
tradia que havia de brotar do próprio solo da Grécia alguns séculos depois.
Tomemos uma citação que acreditamos abonar a afirmação, desfazendo
concomitantemente a ideia romântica de que os gregos antigos tinham uma
concepção muito hílare da existência.
Sempre viver em tristeza, eis a sorte que os deuses eternos de
descuidada existência aos mortais infelizes dotaram. Sobre os umbrais
do palácio de Zeus dois tonéis se acham postos, de suas dádivas; um,
só de males; de bens o outro cheio. Se misturando-as, Zeus grande,
senhor dos trovões, as derrama, quem as recebe ora goza, ora males
por sorte lhe tocam; mas o que dele recolhe somente infortúnios,
escárnio vivo se torna; em extrema miséria, na terra divina é
condenado a vagar, desprezado por homens e deuses. (HOMERO, 19
, p.480-481).
29
Na resposta de Aquiles encontramos a lebre imagem dos dois tonéis do
limiar do Olimpo, de males e de bens, as dádivas de Zeus. Se, ao nascimento,
alguém recebe uma mistura desses dons, atravessa, de acordo, a existência:
ora a sofrer, ora com fases de relativa felicidade. Mas se recebe apenas males,
torna-se desprezado por todos e ludíbrio permanente dos homens e dos deuses.
27
Ilíada, canto XVII, 441-447
28
Ilíada, canto VI, 146-149
29
Ilíada, canto XXIV, 525-6
30
É de notar que Aquiles não menciona uma terceira possibilidade: a de receber
algum mortal, ao nascer, apenas dádivas do tonel de bens, ou seja, revela-se
aqui a percepção grega de que a condição humana é incompatível com a
felicidade plena.
Então, frente a tanto sofrimento não seria preferível ao homem homérico
sucumbir ao desespero e talvez preferir morrer rapidamente? Não, nenhum
homem homérico volta total e deliberadamente as costas à vida. O mundo
homérico é feito naturalmente para os fortes, os argutos e poderosos. Vida e
exisncia o para eles um bem tão certo, a ponto de ser a condão
indispensável para alcançar todo bem individual. Não há perigo de que eles
troquem a vida pela morte, ou por um possível estado que se pode seguir à
vida
30
.
Mas, o que torna o homem homérico tão aferrado à vida, mesmo
considerando-a miserável e portadora de desgraças? Reale (1999, p.93-111)
nos oferece uma resposta plausível à pergunta. Segundo ele, o homem
homérico mantém uma relação constante com os deuses, numa espécie de
com-vivência. No mundo homérico os deuses não só eram capazes de inspirar
as ações do homem, mas eram também autores, ou pelo menos co-autores
delas. Eram em grande medida a causa tanto dos bens, quanto dos males dos
homens. Tanto lhes davam bons entendimentos (phrénes), como os levavam a
erro. Tanto na Ilíada quanto na Odisséia os deuses intervêm constantemente na
narrativa. Em todos os momentos de grandes decisões lá estão os deuses
influenciando as ões dos mortais. Algumas vezes chegam até mesmo a se
disfaarem, no intuito de melhor ludibriar os homens. Atena, por exemplo,
aparece a Ulisses sob o disfarce de um jovem pastor. Poseidon toma a forma do
adivinho Calvas e inúmeros outros.
Com efeito, o existia no homem homérico a autonomia e liberdade no
sentido moderno dessas palavras. No âmbito dessas crenças, as regras sicas
segundo as quais o homem homérico tenta realizar-se plenamente são
substancialmente duas: ouvir a palavra dos deuses, e, aceitar a sorte e o
destino que cabe a cada um, qualquer que ele seja, enquanto é querido pelos
30
Este também figura-se como um aspecto herdado por Nietzsche da epopeia homérica e
posteriormente incorporado em sua crítica ao cristianismo paulino enquanto religião ascética. Cf.
Assim falou Zaratustra Primeira parte “Dos transmundanos” e “Dos desprezadores do corpo”.
31
deuses. A complexidade desse modelo -se pelo fato de que ao mesmo tempo
em que o homem homérico aceita, ou é obrigado a aceitar, o destino (moira)
que lhe foi imposto pelos deuses, ele tenta, sobremaneira, alcançar a glória. O
homem homérico o teme a morte, teme uma vida sem glória ou de morrer
antes de alcançá-la. O sofrimento é tido como uma parte fundamental da vida.
Ele precisa ser enfrentado e superado para que se alcance ao esperada
glória. glória se houver também desafios. O que leva Nietzsche a concluir
que:
a verdadeira dor dos homens homéricos está em separar-se dessa
existência (os deuses), sobretudo em rápida separação, de modo que
agora, invertendo a sabedoria do Sileno, poder-se-ia dizer: A pior
coisa de todas é para eles morrer logo; a segunda pior é simplesmente
morrer um dia. (NIETZSCHE, 1992, p.37).
Destarte, os poemas homéricos forneceram a Nietzsche o aparato para a
compreensão do que ele denominaria como o anseio do feio, a boa e severa
vontade dos antigos helenos para o pessimismo, para o mito trágico, para a
imagem de tudo quanto há de terrível, maligno, enigmático, aniquilador e
fatídico no fundo da existência. (NIETZSCHE, 1992, p.17). Mas, ainda
permanece sem resposta a nossa pergunta de fundo o que tornava os gregos
valorosos o bastante a ponto de suportar o pesado fardo da existência? A
resposta vem a Nietzsche através da sentença de Sileno do espetáculo trágico
Édipo em Colona de Sófocles.
2.4 A sentença de Sileno e o inexorável destino dos homens
Conforme Ricard (2009), a sentença de Sileno exprime “uma consciência
aguda e dolorosa da vida, integralmente identificada com a morte. Exclui
qualquer esperança no am, seja sob a forma de uma vida após a morte, seja
sob a de uma ordem moral do mundo. a morte é certa. (RICARD, 2009,
p.277-278). Vejamos o que essa diz:
32
Não te afastes daqui sem primeiro ouvir o que a sabedoria popular dos
gregos tem a contar sobre essa mesma vida que se estende diante de
ti com o inexplicável serenojovialidade. Reza a antiga lenda que o rei
Midas perseguiu na floresta, durante longo tempo, sem conseguir
capturá-lo, o sábio SILENO, o companheiro de Dionísio. Quando, por
fim, ele veio a cair em suas mãos, perguntou-lhe o rei qual dentre as
coisas era melhor e a mais preferível para o homem. Obstinado e
imóvel, o demônio calava-se; até que, forçado pelo rei, prorrompeu
finalmente, por entre um riso amarelo, nestas palavras: - Estirpe
miserável e efêmera, filhos do acaso e do tormento! Por que me
obrigas a dizer-te o que seria para ti mais salutar não ouvir? O melhor
de tudo é para ti inteiramente inatingível: o ter nascido, não ser,
nada ser. Depois disso, porém, o melhor para ti é logo morrer.
(NIETZSCHE, 1992, p.36).
A sentença de Sileno aclara uma importante teoria do jovem Nietzsche, a
teoria da “serenojovialidade
31
grega (griechische Heiterkeit). Para ele, os
gregos possuíam um modo singular de experimentar o mundo, uma vez que,
segundo Sileno, tudo o que nasce também perece. Vida e morte
complementam-se de forma circular. Sem destruição não poderia haver criação.
Para que o ciclo da vida se perpetue é necessário que mesmo o que existe de
mais grandioso também pereça. Notemos que, em um primeiro momento,
Nietzsche utiliza a sentença de Sileno não para descrever a condição dos
mortais, mas sim o mundo dos deuses ompicos. Como se comporta para com
esta sabedoria popular o mundo dos deuses olímpicos? (NIETZSCHE, 1992,
p.36). Segundo Ricard esta atinge, de resto, não só todo indivíduo vivo, porém
mais ainda, por assim dizer, todo indivíduo grande(RICARD, 2009, p.278). Ao
descrever que o grande Pã está morto
32
(NIETZSCHE, 1992, p.73), Nietzsche
já ensaia uma ideia que somente anos mais tarde, em sua obra A Gaia Ciência,
tomaria forma: a de que também os deuses apodrecem (NIETZSCHE, 2001,
p.148). Com efeito, se os deuses também morrem o contrário deve também ser
verdadeiro. Existiria então, uma origem para os deuses. Segundo Nietzsche, o
31
Recorremos aqui à tradução brasileira, feita por Jacó Guinsburg, de O Nascimento da Tragédia,
São Paulo: Companhia das Letras, 1992, nota 2; p.145. Segundo o tradutor, Heiterkeit possui várias
acepções em alemão: clareza, pureza, serenidade, jovialidade, alegria, hilaridade. Deste modo, a
tradução mais freqüente para a expressão griechische Heiterkeit tem sido “serenidade grega”. Em
sua interpretação, tal tradução parece insuficiente e redutora por suprimir as demais remessas do
termo. Por isso, ele opta por um acoplamento de dois sentidos principais, utilizando-se sempre, nesta
transposição do texto de Nietzsche, a forma “serenojovial”, “serenojovialidade”.
32
Cf. Lima (2006, p.182) essa alusão à morte do deus Nietzsche retira de Plutarco, de um de
seus Diálogos píticos chamado Sobre o desaparecimento dos oráculos (DEFECTV ORACVLORVM).
Nele, o historiador grego depara-se com uma questão que em seu tempo ainda inquietava o mundo
helênico, a saber: a crença nos deuses. Cumpre destacar que a utilização nietzschiana da sentença
antiga tem nitidamente um significado profundo. Nietzsche destaca com isso a importância acerca da
crença nos deuses, que persistia ainda na era cristã, e o valor que ela poderia ter para a vida.
33
grego conheceu e sentiu os temores e os horrores do existir: para que lhe fosse
possível de algum modo viver, teve de colocar ali, entre ele e a vida, a
resplendente criação onírica dos deuses olímpicos”. (NIETZSCHE, 1992, p.36).
Os deuses olímpicos surgem assim da mais profunda necessidade humana em
suportar o sofrimento
33
.
Compreende-se agora a importância da noção de agón resgatada, por
Nietzsche, na epopeia homérica. Segundo Machado (2006, p.204), esta constitui
a resposta épica à questão do sofrimento e só é totalmente compreendida
quando relacionada à noção de indivíduo. Isso se dá pelo fato de agón ser o
combate individual que dá brilho à existência, tornando a vida do
indivíduo digna de ser vivida [...] pela busca do Kleos, da glória. Nas
ações heróicas do indivíduo que conquista a glória, a vida atinge a
perfeição. A arte apolínea é uma justificação do mundo da
individualização. Melhor ainda, a epopéia é um processo de
individualização que cria o indivíduo através da competição pela glória.
(MACHADO, 2006, p.204).
O estágio máximo da disputa (agón) pela glória dá-se quando os homens
buscam obter justamente aquilo que os diferencia dos deuses a imortalidade.
Para atingirem esse estágio, os homens, precisam de ações heróicas, de feitos
tão grandiosos a ponto de serem lembrados por toda a eternidade nas canções
dos aedos e poetas. Esta é a imortalidade de que são capazes os homens a
imortalidade literária. Ou seja, para obter a imortalidade, a glória imorredoura, é
preciso arriscar heroicamente a vida. [...] Ser um indivíduo heico é superar a
morte, proteger-ser contra o monstruoso da morte, tornando-se vivo na memória
dos homens, mesmo que se tenha de morrer em combate”. (MACHADO, 2006,
p.205). Nesse mundo apolíneo, o sofrimento é o que explica a necessidade que
levou à criação dos deuses homéricos. Note-se que os deuses não apaziguam
ou redimem o sofrimento dos homens. Seu papel é o de agirem como um
espelho transfigurador (NIETZSCHE, 1992, p.37) que os gregos colocaram
entre eles e as atrocidades da vida. O fato é que, para Nietzsche:
33
Existe aqui outro importante ponto a se ressaltar sobre o pensamento de Nietzsche. Segundo
Ricard (2009, p.276), “o anúncio da morte de Deus aparece pela primeira vez em A Gaia Ciência. No
entanto, Nietzsche cortejou o problema conjunto da morte de Deus e do niilismo desde sua primeira
obra, O nascimento da tragédia, com diferença, é claro, de que a morte de Deus diz respeito, nesta,
primeiramente aos habitantes do Olimpo”.
34
Nos gregos a vontade queria, na transfiguração do nio e do mundo
artístico, contemplar-se a si mesma: para glorificar-se, suas criaturas
precisavam sentir-se dignas de glorificação, precisavam rever-se numa
esfera superior, sem que esse mundo perfeito da introvisão atuasse
como imperativo ou como censura. Tal é a esfera da beleza, em que
eles viam as suas imagens especulares, os Olímpicos. Com esse
espelhamento da beleza, a vontade helênica lutou contra o talento,
correlato ao artístico, em prol do sofrer e da sabedoria do sofrer: e
como monumento de sua vitória, ergue-se diante de nós Homero, o
artista ingênuo. (NIETZSCHE, 1992, p.38).
Desse modo, segundo Machado:
Se o insuportável do sofrimento exige a proteção da arte como meio de
tornar a vida suportável, a solução homérica é velar, encobrir o
sofrimento criando uma ilusão protetora contra o caótico e o informe.
Essa ilusão é o princípio de individuação. O indivíduo, essa criação
luminosa e aparente de Homero [...] é o modo de aliviar a atmosfera
opressora da existência, o modo de triunfar do sofrimento apagando os
seus traços ou dele se esquecendo. (MACHADO, 2006, p.208).
Percebe-se aqui que Nietzsche encontra-se numa contradição insolúvel
com o cristianismo desde o início da sua carreira filosófica. (FINK, 1988, p.18).
O sofrimento na religiosidade grega era tido como um componente inerente ao
próprio existir. Os deuses gregos davam aos mortais tanto alegrias quanto
tristezas. Ambos os sentimentos encontram-se inscritos em uma relação de
circularidade. Nietzsche a moral cristã e os valores de seu tempo em
completa dissonância com o modo grego de se valorar a vida.
Quem, abrigando outra religião no peito, se acercar desses olímpicos e
procurar neles elevação moral, sim, santidade, quem assim o fizer, terá
logo de lhes dar as costas, desalentado e decepcionado. Aqui nada há
que lembre ascese, espiritualidade e dever, aqui só nos fala uma
opulenta e triunfante existência, onde tudo o que se faz presente é
divinizado, não importando que seja bom ou mau. (NIETZSCHE, 1992,
p.35-36).
Esse é o substrato a partir do qual Nietzsche desenvolve sua ácida
crítica à moral cristã
34
. Para Nietzsche, muito mais rica é a concepção grega
que distingue não apenas duas Éris, mas também duas teogonias. A primeira
geração dos deuses é constituída pelos Titãs que refletiam toda a impiedosa
força da natureza. Esses foram derrotados pelos deuses ompicos em batalhas
ferozes e à custa de muito sofrimento. Se a primeira teogonia é marcada pelos
34
Explorar-seem maiores detalhes, no quarto capítulo, a crítica nietzschiana à moral cristã e a sua
peculiar interpretação do sofrimento.
35
horrores, a segunda a teogonia olímpica é marcada pelo júbilo e banhada
pela glória mais alta. Assim, conclui Nietzsche, os deuses legitimam a vida
humana pelo fato de eles pprios a viverem a teodicéia que sozinha se basta!
A existência de tais deuses sob o radioso clarão do sol é sentida como algo em
si digno de ser desejado [...] (NIETZSCHE, 1992, p.36). Se mesmo os deuses
sofreram para derrotar os Tis e alcançar a sua glória, é justo que os homens
também façam o mesmo.
Almeida (2005) percebe nesse ponto o primeiro passo de Nietzsche rumo
ao seu audacioso projeto de transvaloração de todos os valores.
No Nascimento da tragédia, Nietzsche emprega deliberadamente a
terminologia de que até então se servira a moral cristã para acentuar
ainda mais por contraste a mudança de valores que ele está
operando com relação a esses termos, mesmo se a inversão de todos
os valores só vá se manifestar em plena luz com os escritos do último
período. Assim, já no capítulo 3 do Nascimento da tragédia, ele se
refere à arte como o meio pelo qual os gregos, excepcionalmente aptos
para o sofrimento, criaram o mundo ompico como um espelho onde a
vida podia aparecer transfigurada pela alegria e pelo esmulo a
sobreviver, a afirmar e justificar a vida: única teodicéia satisfatória.
Várias vezes torna ele a enfatizar que o mundo e a existência só se
justificam como fenômeno estético
35
. (ALMEIDA, 2005, p.38).
O sofrimento e o sacrifício eram na cultura grega importantes aspectos
para que se estabelecesse a ligação entre os mortais e os deuses. Segundo
Vidal-Naquet,o modo normal de comunicação entre homens e deuses é o
sacrifício sangrento, desde a modesta oferenda de um carneiro até a hecatombe
na qual perecem cem bois cuja carne é distribuída aos participantes”. (VIDAL-
NAQUET, 2002, p.74). Com isso os gregos foram capazes de algo único e que
se tornaria uma meta constante buscada por Nietzsche em sua filosofia a
possibilidade de se transformar em beleza os temores e os horrores do existir
(NIETZSCHE, 1992, p.36).
Esse pode ser considerado um dos eixos centrais de NT. Segundo Ricard,
o que está em jogo de mais importante nesse ensaio o é de ordem filológica,
nem mesmo artística, no sentido restrito deste termo. É antes de ordem ética
[...] (RICARD, 2009, p.277). Tal interpretação encontra-se pautada na
autoanálise que o pprio Nietzsche publica em Ecce Homo (1888), obra com
35
Cf. em particular NT, 3,5 e 24.
36
ares de autobiografia, na qual ele dirimiria algumas das polêmicas que cercaram
O nascimento da tragédia.
Por rias vezes encontrei o livro citado como O renascimento da
tragédia a partir do espírito da música: só tiveram ouvidos para uma
nova fórmula da arte, do propósito, da tarefa de Wagner por isso não
atentaram para o que no fundo a obra encerrava de valioso.
Helenismo e pessimismo: este teria sido um título menos amguo:
como primeiro esclarecimento sobre como os gregos deram conta do
pessimismo como que o superaram... (NIETZSCHE, 1995, p.61).
Nesta fase, pessimismo pode e deve ser entendido como sinônimo do que
Nietzsche viria a denominar como niilismo. O pessimismo como forma prévia do
niilismo (NIETZSCHE, 2008a, p.30). Com efeito,Nietzsche viu na tragédia
ática a prova de que os gregos conheceram o niilismo. ou o que ele ainda
chamava, na época, de pessimismo, a saber, um questionamento global da
exisncia
36
(RICARD, 2009, p. 277).
Segundo Lima 2006,
O significado maior da poesia homérica é dar acabamento aos mitos
gregos, permitindo ao povo heleno transformar o sentimento de horror
diante da vida numa imensa vontade de viver. Simbolizando a
concepção terrível que jaz na própria natureza, Homero torna
suportável viver em um mundo regido pelo eterno vir a ser, no qual
tudo nasce e perece de forma inexorável. Se a poesia homérica é a
expressão do impulso apolíneo, ela repousa, no entanto, nessa
sabedoria dionisíaca. Somente após demolir o edifício da cultura
apolínea é que se descobre que ele é erguido sobre esse solo
tenebroso que o dionisíaco revela. Por isso, Nietzsche irá contrapor-se
à visão que os modernos têm de Homero, ao acreditarem que sua
poesia reflete uma harmonia entre o ser humano e a natureza. Essa
harmonia, ao contrário, não esteve sempre lá, pois os épicos homéricos
irrompem da necessidade de sobrepujar o que de cruel no mundo
natural; ao invés de celebrar o mundo num canto harmoniosamente,
Homero afirma-o por meio de uma transfiguração. (LIMA, 2006, p.59-
60).
Dispõe-se assim dos principais elementos a partir dos quais Nietzsche
pensou a cultura helênica. Faz-se agora necessário investigar em maior
36
Destacamos que niilismo como equivalente a pessimismo é apenas uma das várias acepções nas
quais Nietzsche emprega o termo. A história do niilismo é narrada por Nietzsche em diversas etapas.
Segundo Granier (2009, p. 35), o niilismo que tem como prelúdio o pessimismo é uma mescla de
“desgoto, nervosismo, nostalgia, onde também assoma o spleen romântico e encontra sua
justificação especulativa na filosofia de Schopenhauer”. Tal pessimismo por não propor um
enfrentamento leal do nada, favorecendo antes a busca de escapatórias, desemboca no “niilismo
incompleto”, o qual “reconhece a queda dos antigos valores, mas se recusa a pôr em dúvida o
fundamento ideal deles. O niilismo incompleto substitui Deus pelo culto dos ídolos”. (GRANIER, 2009,
p.35)
37
profundidade como efetivamente os gregos superaram o pessimismo. Para
tanto, centram-se as atenções para os dois instintos considerados por Nietzsche
como os responsáveis pelo nascimento da tragédia: Apolo e Dionísio.
38
“Quem não só compreende a palavra „dionisíaco‟, mas se
compreende nela, não necessita de refutação de Platão, do
cristianismo ou de Schopenhauer fareja a decomposição...”
(NIETZSCHE, 1995, p.63)
3- O NASCIMENTO DA TRAGÉDIA: A HARMONIA ENTRE APOLO E DIONÍSIO
No presente capítulo procurar-se-á demonstrar como, no embate proposto
pelo filósofo alemão entre Apolo e Dionísio, já subsistem duas grandes
perspectivas para se compreender o problema da verdade, ou ainda, a verdade
como um problema. Essas figuram-se como condição sine qua non para que se
compreenda a relação existente entre a vontade de verdade e a religo na
perspectiva de Nietzsche.
A hitese que se procura demonstrar nesse primeiro capítulo é a de que
com a valorização da verdade científica imposta pela ordem apolínea o
sentimento tgico recua. Para que este sobreviva é necessário um equilíbrio
entre os elementos apolíneo e dionisíaco. Segundo Stern (1978, p.23), uma vez
desfeito o equilíbrio, os velhos mitos deixam de ser experimentados como
partes de um ritual religioso extático (ekstatikós) e tornam-se objetos de mera
análise racional. Com efeito, a tragédia perde a sua função vital: a de proteger o
homem do pleno conhecimento da sua terrível condição efêmera e, ao mesmo
tempo, restaurar-lhe o gosto pela vida. Desse modo, investiga-se também aqui a
dencia da morte da arte trágica perpetrada por Eurípedes/Sócrates através de
uma supervalorização da racionalidade e do elemento apolíneo.
3.1 Apolo: a imagem divina do principium individuationis
O ponto central a partir do qual Nietzsche desenvolve sua teoria sobre o
nascimento da tragédia são os conceitos de apolíneo e dionisíaco. Segundo o
filósofo alemão,
39
teremos ganho muito a favor da ciência estica se chegarmos não
apenas à intelecção lógica mas à certeza imediata da introvisão
[Anschauung] de que o contínuo desenvolvimento da arte está ligado à
duplicidade do apolíneo e do dionisíaco, [...] ambos os impulsos, tão
diversos, caminham lado a lado, na maioria das vezes em discórdia
aberta e incitando-se mutuamente a produções sempre novas, para
perpetuar nelas a luta daquela contraposão sobre a qual a palavra
comum arte lançava apenas aparentemente a ponte; até que por fim,
através de um miraculoso ato metafísico da vontade helênica,
apareceram emparelhados um com o outro, e nesse emparelhamento
tanto a obra de arte dionisíaca quanto a apolínea geraram a tragédia
ática. (NIETZSCHE, 1992, p.27).
O argumento nietzschiano para a origem da tragédia tem suas raízes na
dicotomia do mundo como Vontade e do Mundo como ideia, de Schopenhauer
(STERN, 1978, p.22) que foi transformado na linguagem nietzschiana, em uno
originário e aparência. (MACHADO, 2006, p.216). O Uno-primordial
37
(das Ur-
Eine) tem uma complexa relação com o impulso dioniaco, enquanto a
aparência (Schein) o faz com o apolíneo. Vejamos como se dá essa relação
separadamente, seguindo a proposta de Nietzsche (1992, p.27) de nos
aproximarmos dos supracitados impulsos pensando-os respectivamente como
universos artísticos distintos: o do sonho e o da embriaguez.
Segundo Kossovitch (2004), toda a imporncia da teoria da arte de
Nietzsche encontra-se intrinsecamente ligada à
distinção entre a visão e a embriaguez, entre o estico e o dinâmico,
entre Apolo e Dionísio. Dois princípios: são, ao mesmo tempo, duas
experiências e duas formas de arte. Imagem tranqüila, sonho, o
apolíneo é a figura das artes plásticas. Embriaguez, arte o-figurativa,
o dionisíaco é o princípio musical. (KOSSOVITCH, 2004, p.168).
Dessa forma, investiga-se aqui primeiramente o estado do sonho e nele o
conceito de apolíneo. Este é extraído por Nietzsche naquilo
que Schopenhauer observou a respeito do homem colhido no véu de
Maia, na primeira parte de O mundo como vontade de representação
[...] o homem individual permanece calmamente sentado, apoiado e
confiante no principium individuationis [princípio de individuação].
(NIETZSCHE, 1992, p.30).
Apolo representa, para Nietzsche, a esplêndida imagem divina do
principium individuationis, a partir de cujos gestos e olhares nos falam todo o
prazer e toda a sabedoria da 'aparência', juntamente com a sua beleza”.
37
Diferente de Machado opta-se aqui pela grafia “Uno-primordial” para o termo Ur-Eine.
40
(NIETZSCHE, 1992, p.30). O deus grego representa no pensamento
nietzschiano o processo de criação do indivíduo, a partir da tomada de
consciência de si e da conservação dos limites. Nietzsche denomina esse
processo de apolíneo porque, para ele, Apolo é não só o deus da beleza, mas
também o deus que simboliza a lucidez e a serenidade do conhecimento
ordenador. É aquele que representa o lado luminoso da existência, o impulso
para gerar as formas puras, a precisão das linhas e limites, a nobreza das
figuras. O deus da sobriedade, da temperança e da justa medida.
Apolo é o grande opositor a hýbris
38
, tal como preceituam os
mandamentos délficos do Conhece-ti a ti mesmo () e Nada em
demasia ( ). Como o deus do brilho, da fulguração, da vio e dos
dotes de clarividência, Apolo é a alegoria dos processos oníricos sintetizando a
imagem divina do princípio de individuação
39
.
Apolo [...] nos apresenta como o endeusamento do principium
individuationis [...], como divindade ética, exige dos seus a medida e,
para poder observá-la, o autoconhecimento. E assim corre, ao lado da
necessidade estética da beleza, a exigência do conhece-ti a ti mesmo
e nada em demasia. (NIETZSCHE, 1992, p.40).
Ainda nesse sentido, recorremos a Fink que nos oferece uma valiosa
interpretação afirmando que:
O princípio de individuação é o fundamento da divisão de tudo o que
existe na singularização; as coisas existem no espaço e no tempo; elas
38
Tudo o que ultrapassa a medida, o excesso, a desmedida; em geral indica algo impetuoso,
desenfreado, violento, um ardor excessivo. Nos seres humanos é insolência, orgulho, soberba,
presunção.
39
Nietzsche preserva o sentido que o termo tem na filosofia de Schopenhauer: o poder de
singularizar e multiplicar, através do espaço e do tempo, o Uno essencial e indiviso. Conforme nos
lembra Benchimol, “A noção de principium individuationis surge na filosofia escolástica como forma
de solucionar certos problemas trazidos pela teoria dos universais. Esse princípio deveria explicar
como seres da mesma espécie se diferenciam uns dos outros, de modo a tornarem-se indivíduos
distintos. Schopenhauer reabilita a noção medieval, reinterpretando-a de forma a pensar, por meio
dela, as condições formais do mundo empírico, enquanto objetivação da vontade. O principium
individuationis, será então, para Schopenhauer, o espaço e o tempo, uma vez que apenas por
intermédio destes, “o que é igual e um segundo a essência e o conceito aparece, não obstante, como
desigual, como multiplicidade, simultânea e sucessivamente” (O Mundo como Vontade e
Representação, Livro II, § 23). Não há dúvida de que Nietzsche apoia-se em Schopenhauer ao utilizar
a expressão principium individuationis. Porém empresta-lhe, segundo pensamos, um sentido menos
abstrato e mais adequado à sua própria concepção vitalista do Uno-primordial: o principium
individuationis é, em Nietzsche, aquilo que possibilita que a unidade primordial da vida se manifeste
por meio da multiplicidade dos viventes individuais, sendo, portanto, idêntico ao próprio impulso
apolíneo, compreendido este no registro metafísico no interior do qual por hora nos movemos”.
(BENCHIMOL, 2008, p.58).
41
existem aí reunidas, mas exactamente na medida em que estão
separadas umas das outras: onde uma acaba, começa outra; o espaço
e o tempo unem e separam simultaneamente. Aquilo a que
habitualmente chamamos as coisas ou o existente é uma multiplicidade
interminável da distinção, da separação de tudo aquilo que entretanto
está reunido na unidade do espaço e do tempo. Esta visão do mundo
que pensa a separação do existente, a sua multiplicidade e
fragmentação é, sem o saber conforme considera Nietzsche na
esteira de Schopenhauer , cativa da aparência, e iludida pelo u de
Maia. Esta aparência é o mundo que aparece, que vem ao nosso
encontro nas formas subjectivas do espo e do tempo. O mundo, na
medida em que realmente é, na medida em que é a coisa em si, não se
encontra fragmentado na multiplicidade, é vida o diferenciada, ma
única. A multiplicidade de tudo quanto existe é aparência, é mera
aparição, na verdade tudo é uno. (FINK, 1988, p.24).
A associação de Apolo com a dimensão onírica se dá por duas
propriedades que Nietzsche encontra no referido deus: o brilho e a apancia.
Para ele, Apolo tem como raiz do nome o 'resplendente', a divindade da luz,
reina também sobre a bela apancia do mundo interior da fantasia.
(NIETZSCHE, 1992, p. 29)
40
. O brilho e a resplandecência apolínea exercem
uma importante influência sobre a aparência. Na verdade, para Nietzsche, as
duas propriedades estão conectadas. Pois, como nos indica Machado (2005a),
ao conceber o mundo aponeo como brilhante, Nietzsche lhe atribui uma
importante significação: a de o só criar uma proteção contra o sombrio, o
tenebroso da vida, mas principalmente criar um tipo específico de proteção: a
proteção pela aparência(MACHADO, 2005a, p.7).
A proteção pela aparência é possível porque, conforme nos adverte
Nietzsche, Apolo não é apenas uma divindade individual que se encontra entre
os deuses ompicos. Para ele, o mesmo impulso, que se materializou em
Apolo, engendrou todo o mundo ompico e, nesse sentido, Apolo deve ser
reputado por nós como um pai desse mundo”. (NIETZSCHE, 1992, p.35). Ou
seja, Nietzsche estende a propriedade apolínea do brilho e a sua
resplandecência também aos deuses ompicos em geral. A mesmo os mortais
podem ainda ser banhados pelo brilho da mais alta glória através de feitos
heróicos, uma vez que “a existência de tais deuses sob o radioso clarão do sol é
sentida como algo em si digno de ser desejado. (NIETZSCHE, 1992, p.37).
Segundo Machado (2005a, p.7), os deuses e heróis apolíneos são aparências
40
Esta é outra interpretação de Nietzsche que recebe uma dura crítica de Wilamowitz-Möllendorff.
Segundo este, certamente é uma enorme ousadia fazer de Apolo, que „pela raiz de seu nome é o
brilhante‟, graças a um jogo de palavras, „o deus da aparência‟, isto é a aparência da aparência”. (Cf.
MACHADO, 2005a, p.61).
42
artísticas que tornam a vida desejável, encobrindo o sofrimento pela criação de
uma ilusão. Essa ilusão é o princípio de individuação.
Com a caracterização da ilusão apolínea como aparência da aparência
revela-se na tese de fundo sobre a qual Nietzsche desenvolve sobre impulso
apolíneo: a de que este é como o sonho. A metáfora do sonho, empregada por
ele, revela a principal característica do instinto aponeo, ou seja, a de produzir
uma aparência da realidade, que obviamente não é a ppria realidade. O que
Nietzsche procura apontar é que o sonho constitui para o sonhador uma
realidade tão viva e intensa que o impede de distinguir o que é sonho do que é
realidade. É por isso que “poderia valer em relação a Apolo, em um sentido
excêntrico, aquilo que Schopenhauer observou a respeito do homem colhido no
u de Maia (NIETZSCHE, 1992, p.30). Desse modo, o impulso aponeo é
fundamentalmente o formador de imagens, o delimitador da apancia que é
destruída tão logo se desperta.
Entretanto, esse é apenas um primeiro momento do impulso apolíneo. Em
um segundo momento, Nietzsche procura ir ainda mais fundo na busca do que
significa o impulso aponeo em face da realidade ou daquilo que ele denomina
como o Uno-primordial. Tomando por base essa refleo, Nietzsche propõe:
Se imaginarmos o sonhador quando ele, em meio da ilusão do mundo
onírico e sem perturbá-la, see a clamar:Isto é um sonho, mas
quero continuar sonhando!, se daí tivermos de concluir que há um
profundo prazer interior na contemplação do sonho, se, de outro lado,
para podermos sonhar com esse prazer íntimo diante da visão,
tivermos de esquecer inteiramente o dia e suas terríveis
importunões, poderemos então interpretar todos esses fenômenos,
sob a direção de Apolo oniromante, mais ou menos da seguinte
maneira: Tão certamente quanto das duas metades da vida, a desperta
e a sonhadora, a primeira se nos afigura incomparavelmente mais
preferível, mais importante, mais digna de ser vivida, sim, a única
vivida, do mesmo modo, por mais que para um paradoxo, eu gostaria
de sustentar, em relação àquele fundo misterioso de nosso ser, do qual
nós somos a aparência, precisamente a valoração oposta no tocante ao
sonho. Com efeito, quanto mais percebo na natureza aqueles
onipotentes impulsos artísticos e neles um poderoso anelo pela
aparência [Schein], pela redenção através da aparência, tanto mais me
sinto impelido à suposição metafísica de que o verdadeiramente-
existente [Wahraft-Seiende] e Uno-primordial, enquanto o eterno-
padecente e pleno de contradição necessita, para a sua constante
redenção, tamm da visão extasiante, da aparência prazerosa
aparência esta que nós, inteiramente envolvidos nela e dela
consistentes, somos obrigados a sentir como o verdadeiramente
não existente [Nichtseiende], isto é, como um ininterrupto vir-a-ser no
tempo, espaço e causalidade, em outros termos, como realidade
empírica. Se portanto (sic) nos abstrairmos por um instante de nossa
43
própria “realidade, se concebermos a nossa existência emrica, do
mesmo modo que a do mundo em geral, como uma representão do
Uno-primordial gerada em cada momento, neste caso o sonho deve
agora valer para s como aparência da apancia. (NIETZSCHE,
1992, p.39 grifo nosso).
Nesse trecho tem-se uma referência essencial de Nietzsche a Kant e a
Schopenhauer
41
. A distinção kantiana entre fenômeno e coisa-em-si, repensada
por Schopenhauer como vontade e representação, é aqui transformada por
Nietzsche em Uno-primordial e aparência. Embora seja marcante a influência
dos referidos filósofos, nota-se que Nietzsche começa a elaborar suas
próprias suposições metafísicas
42
.
Assim é que, já para o jovem Nietzsche, a vontade que
Schopenhauer postulava como a essência metafísica do universo, a
coisa em si‟ kantiana, situada para além de toda representação
possível não pode ser pensada como essa unidade ontologicamente
fundamental, mas como a forma mais universal da aparência.
(GIACÓIA JÚNIOR, 2008, p.12).
Nietzsche não deixa de considerar o mundo da aparência como o mundo
dos fenômenos, por isso, a aparência do sonho apolíneo é considerada, por ele,
como uma apancia da aparência. Entretanto, Nietzsche avança em relação a
seus antecessores ao postular o impulso aponeo como aquele que cria em nós
não apenas a ilusão de uma aparente realidade, mas também a ilusão de que
somos indivíduos. Com efeito, Nietzsche procura demonstrar que, “em face do
todo, da realidade, da “coisa em si”, do Uno-primordial, nossa compreensão de
que somos um indivíduo é como um sonho e pertence tão somente ao mundo da
aparência, ou seja, do fenômeno. (RUBIRA, 2009, p.253). Note-se que em
frente do Uno-primordial, o “princípio de individuão revela-se extremamente
quebradiço, podendo ser rompido a qualquer momento, uma vez que a
individuação é como o sonho que encontra seu fim com o despertar.
Para se compreender efetivamente como Nietzsche explica essa
suposição metafísica e como ele a relaciona com a superação grega do
41
Este é um aspecto do qual, anos mais tarde, em sua “Tentativa de Autocrítica”, Nietzsche viria a se
arrepender: “Quanto lamento agora que não tivesse então a coragem (ou a imodéstia?) de permitir-
me, em todos os sentidos, também uma linguagem própria para intuições e atrevimentos tão próprios
que eu tentasse exprimir penosamente, com fórmulas schopenhauerianas e kantianas, estranhas e
novas valorações, que iam desde a base contra o espírito de Kant e Schopenhauer, assim como
contra o seu gosto!” (NIETZSCHE, 1992, p.20)
42
Mais detalhes a este respeito podem ser encontrados em Dias (2009, p.42-49).
44
pessimismo e o nascimento da tragédia, se faz necessário analisar uma
importante questão apresentada por Rubira: Mas se a individuação é um
sonho, o que é a realidade? (RUBIRA, 2009, p.253). Tal queso toca
diretamente naquilo que se procurou destacar na citação nietzscheana transcrita
anteriormente ao descrever aquilo que Nietzsche chamou de o
verdadeiramente-existente [Wahraft-Seiende] e Uno-primordial”. Na busca da
resposta se faz agora necessário investigar o outro impulso descrito por
Nietzsche: o impulso dionisíaco.
3.2 A embriaguez dionisíaca
Se por um lado, Nietzsche desenvolve sua reflexão sobre o impulso
apolíneo pensando-o como o estado de sonho, representado por uma arte
figurativa, escultural, que tem como função atras de uma dimensão ilusória,
onírica e povoada de belas imagens esconder o aspecto sombrio da existência
humana, por outro lado, Nietzsche pensa, concomitantemente, o seu contra-
ponto, o impulso dioniaco. Esse é fruto da interpretação que Nietzsche faz de
Dionísio, o deus do informe, da rebeldia dos sentidos, da exuberância e do
desmesurado(NIETZSCHE, 1992, p.41). Dionísio caracteriza-se pela arte dos
instintos, pela potência emocional, pela arte o figurada ou musical. Em uma
nítida oposição a Apolo, Dionísio não se manifesta por meio do sonho, mas por
outro estado fisiológico, o da embriaguez.
[...] Schopenhauer nos descreveu o imenso terror que se apodera do
ser humano quando, de repente, é transviado pelas formas cognitivas
da aparência fenomenal, na medida em que o princípio da razão, em
algumas de suas configurações, parece sofrer uma excão. Se a esse
terror acrescentarmos o delicioso êxtase que, à ruptura do principium
individuationis, ascende do fundo mais íntimo do homem, sim, da
natureza, ser-nós-á dado lançar um olhar à essência do dionisíaco, que
é trazido a nós, o mais perto possível, pela analogia da embriaguez.
(NIETZSCHE, 1992, p.30).
45
A passagem de Schopenhauer à qual Nietzsche faz alusão
43
descreve o
homem individual tal como um barqueiro sentado num frágil bote em meio ao
mar enfurecido. Com isso, Nietzsche procura sustentar a tese de que a
individuação é tão efêmera como um sonho - conforme descrito na seção
anterior. A embriaguez surge então, como aquilo capaz de romper com o
princípio de individuação, ou seja, desfazer o véu de Maia criado pela ilusão
apolínea. Destarte, para ele, no estado de embriaguez
se rompem todas as rígidas e hostis delimitações que a necessidade, a
arbitrariedade ou a “moda imprudente estabelecem entre os homens.
Agora, graças ao evangelho da harmonia universal, cada qual se sente
não unificado, conciliado, fundido com o seu próximo, mas um só,
como se o véu de Maia tivesse sido rasgado e, reduzido a tiras,
esvoaçasse diante do misterioso Uno-primordial. (NIETZSCHE, 1992,
p.31).
Se o instinto apolíneo era o responsável pela formação do indivíduo, com
o dionisíaco dá-se justamente o contrário. No momento em que é rompido o véu
de Maia tem-se a unificação do homem com o seu próximo e também entre o
homem e a natureza. Tal como afirma Nietzsche, sob a magia do dionisíaco
torna-se a selar-seo apenas o laço de pessoa a pessoa, mas tamm a
natureza alheada, inamistosa ou subjugada volta a celebrar a festa de
reconciliação com seu filho perdido
44
, o homem. (NIETZSCHE, 1992, p.31).
Segundo Rubira,
Com o impulso dionisíaco, o homem é remetido outra vez à natureza, e
prova disto é que os adoradores e seguidores de Dioniso têm no sátiro
a sua figura central. O sátiro, por ser uma mistura de animal e homem,
está em ligação com a própria natureza, e por intermédio de sua voz,
quem fala é a própria natureza - da qual o homem se alheou devido ao
princípio da individuação, em decorrência do impulso apolíneo. Em
suma: o dionisíaco vem romper com as fronteiras do indivíduo, aquelas
tão bem vigiadas durante o estado apolíneo. Ou seja: enquanto o
impulso aponeo preza pela medida, o dionisíaco é a desmedida.
(RUBIRA, 2009, p.253).
43
Este é um dos raros momentos em que Nietzsche indica a fonte a partir da qual extrai suas
citações. Essa, em particular, o filósofo indica como constante na primeira parte de O mundo como
vontade e representação. (NIETZSCHE, 1992, p.30).
44
Cf. a nota 25, p. 147, de O nascimento da tragédia; Companhia da Letras, 1992. Verlorene Sohn,
que em alemão é “filho pródigo”, foi traduzido por filho perdido” na impossibilidade de se obter em
português o jogo da dupla significação presente no original.
46
Para Machado (2006, p.213), através da experiência dionisíaca,
Nietzsche vislumbra a possibilidade de se escapar da divisão, da multiplicidade
individual imposta pela ilusão apolínea e se fundir ao Uno-primordial. Segundo
Boaventura, o espírito dionisíaco representa para Nietzsche a auto-aniquilação
do Ser e, conseqüentemente, a fusão de todas as coisas numa unidade
cósmica. (BOAVENTURA, 2009, p.68). Nota-se que Nietzsche enuncia tal
possibilidade com grande entusiasmo:
Cantando e daando, manifesta-se o homem como membro de uma
comunidade superior: ele desaprendeu a andar e a falar, e está a ponto
de, dançando, sair voando pelos ares. De seus gestos fala o
encantamento. Assim como agora os animais falam e a terra dá leite e
mel, do interior do homem tamm soa algo de sobrenatural: ele se
sente deus, caminha tão extasiado e enlevado como vira em sonho os
deuses caminharem. O homem não é mais artista, tornou-se obra de
arte: a foa arstica de toda a natureza, para a deliciosa satisfão do
Uno-primordial, revela-se aqui sob o frêmito da embriaguez.
(NIETZSCHE, 1992, p.31).
O espírito dionisíaco revela-se, dessa forma, como o opositor-destruidor
do mundo da aparência, levando à ruptura da individualização para desvelar a
essência do mundo. É no estado de embriagues que “cada indivíduo suprime-se
enquanto indivíduo, identificando-se por momentos com a vida em toda a sua
exuberância”. (SILVA, 1998, p. 385). Retoma-se agora a pergunta outrora
formulada. O que significa, para Nietzsche, a realidade? O que devemos
entender com a vida em toda a sua exuberância? Todas essas questões só
podem ser respondidas a partir da tese nietzschiana sobre o Uno-primordial.
Para adentrar-se na teoria nietzschiana do Uno-primordial, toma-se a
importante afirmação, anteriormente destacada
45
, na qual Nietzsche diz que:
o verdadeiramente-existente [Wahraft-Seiende] e Uno-primordial, enquanto
o eterno-padecente e pleno de contradição necessita, para a sua constante
redenção, também da visão extasiante, da aparência prazerosa aparência
esta que nós, inteiramente envolvidos nela e dela consistentes, somos
obrigados a sentir como o verdadeiramente o existente [Nichtseiende].
(NIETZSCHE, 1992, p.39).
Segundo Nietzsche, o Uno-primordial ou o verdadeiramente existente
deve ser entendido “enquanto o eterno-padecente e pleno de contradição. Com
isso, Nietzsche procura separar o Uno-primordial da realidade empírica na qual
45
Veja páginas 42-43 desta dissertação.
47
se vive, uma vez que essa nada mais seria do que um sonho. Destarte, para
ele, o acesso ao Uno-primordial não pode ser feito por um impulso como o
apolíneo, mas sim por intermédio do outro impulso presente na natureza, o
dionisíaco.
Na interpretação de Benchimol, a rejeição da apreensão do
verdadeiramente existente
significa, em Nietzsche, a superação de uma (sic) dos mais antigos
preconceitos filosóficos: o da bipartição metafísica do mundo em um
mundo real e mundo aparente. Ora, Nietzsche tinha clara consciência
que esta superação só podia ter sucesso a partir da eliminação de
outro preconceito ainda mais fundamental, qual seja, a ideia da razão
como princípio constitutivo do Ser, ou se quisermos, da identidade
intrínseca entre racionalidade e realidade. (BENCHIMOL, 2008, p.29).
Delineia-se assim um ponto essencial do pensamento nietzschiano para a
nossa pesquisa. O da existência de duas perspectivas distintas para se
compreender a efetividade do real, sendo uma impostada pelo impulso aponeo
e a outra pelo dionisíaco. Com isso, Nietzsche abdica claramente da posição
apolínea, que ele defende existir ao longo de toda a tradição filosófica ocidental,
em prol do que se poderia definir como uma verdade dionisíaca do mundo. Isso
se evidencia uma vez que,
para Nietzsche, a ideia da unidade primordial da vida es presente nas
mais profundas e antigas raízes da cultura grega. Ela já era anunciada
pela massa entusiástica dos exticos seguidores de Dionísio muito
antes que a tendência apolínea desse à luz a sociedade dos deuses
olímpicos. Nietzsche tende a interpretar o próprio mito do
despedaçamento de Dionísio pelos Titãs como representação simbólica
da fragmentação da unidade primordial da vida em uma multiplicidade
de indivíduos, de forma que o deus grego é descrito em termos que
poderiam perfeitamente valer para o Uno-primordial. (BENCHIMOL,
2008, p.29).
Tal interpretão encontra respaldo ao se considerar as três formas de
Dionísio desenvolvidas, por Nietzsche, no décimo pagrafo de NT, sobretudo
quando o deus é caracterizado como:
[...]o único Dionísio verdadeiramente real aparece numa pluralidade de
configurações, na máscara de um herói lutador e como que enredado
nas malhas da vontade individual. Pela maneira como o deus
aparecente fala e atua, ele se assemelha a um indivíduo que erra,
anela e sofre: e o fato de ele aparecer com tanta precisão e nitidez
épicas é efeito do Apolo oniromante que interpreta para o coro o seu
48
estado dionisíaco, através daquela aparência similiforme. Na verdade,
porém, aquele herói é o Dionísio sofredor, dos mistérios, aquele deus
que experimenta em si os padecimentos da individuação, a cujo
respeito mitos maravilhosos contam que ele, sendo criança, foi
despedaçado pelos Titãs e que agora, nesse estado, é adorado como
Zagreus: com isso se indica que tal despedaçamento, o verdadeiro
sofrimento dionisíaco, é como uma transformação em ar, água, terra e
fogo, que devemos considerar, portanto, o estado da individuação,
enquanto fonte e causa primordial de todo o sofrer, como algo em si
rejeitável. Do sorriso desse Dionísio surgiram os deuses ompicos; de
suas lágrimas os homens. Nessa existência de deus despedaçado tem
Dionísio a dupla natureza de um cruel demônio embrutecido e de um
brando e meigo soberano. A esperança dos epoptas dirigia-se, porém,
para um renascimento de Dionísio, que devemos agora conceber,
apreensivos, como o fim da individuão: em hora desse terceiro
Dionísio vindouro ressoava o bramante hino de júbilo dos epoptas.
(NIETZSCHE, 1992, p.69-70).
De fato, para Benchimol (2008, p.29-50), Nietzsche, aos moldes dos
filósofos pré-socráticos, procurava com a sua ideia do Uno-primordial
compreender a relação entre o Ser e o Devir; ou mais precisamente o
surgimento dos entes individuais a partir da diferenciação de um Ser primordial,
afirmando, ao mesmo tempo, a necessária dissolução destes entes novamente
naquele ser. (2008, p. 36)
46
. Nietzsche conceberia, dessa forma, a filosofia p-
socrática como impregnada da sabedoria dionisíaca. Seguindo essa intuão,
Benchimol (2008, p. 38) crê haver motivos suficientes para supor que Nietzsche
em NT considerou o apenas a filosofia p-socrática, mas também os
avanços da filosofia kantiana e schopenhaueriana, como herdeiras de Dionísio,
conforme a descrição na qual Nietzsche destaca que:
[...] por meio de Kant e Schopenhauer, o espírito da filosofia alemã,
manando de fontes idênticas, viu-se possibilitado a destruir o satisfeito
prazer de existir do socratismo científico, pela demonstrão de seus
limites, e como através dessa demonstrão se introduziu um modo
infinitamente mais profundo e sério de considerar as questões éticas e
a arte, modo que podemos designar francamente como a sabedoria
dionisíaca expressa em conceitos. (NIETZSCHE, 1992, p.119).
E ainda,
A enorme bravura e sabedoria de KANT e SCHOPENHAUER
conquistaram a viria mais difícil, a vitória sobre o otimismo oculto na
essência da lógica, que é por sua vez, o substrato de nossa cultura. Se
esse otimismo, amparado nas aeternae veritatis [verdades eternas],
para eles indiscutíveis, acreditou na cognoscibilidade e na
46
Mais detalhes a este respeito podem ser encontrados em Nietzsche (2002, p.27-43).
49
sondabilidade de todos os enigmas do mundo e tratou o espaço, o
tempo e a causalidade como leis totalmente incondicionais da validade
universalíssima, Kant revelou que elas, propriamente, serviam para
elevar o mero fenômeno, obra de Maia, à realidade única suprema,
bem como para pô-la no lugar da essência mais íntima e verdadeira
das coisas, e para tornar por esse meio impossível o seu efetivo
conhecimento, ou seja, segundo uma expressão de Schopenhauer,
para fazer adormecer ainda mais profundamente o sonhador [...]. Com
esse conhecimento se introduz uma cultura que me atrevo a denominar
trágica: cuja característica mais importante é que, para o lugar da
ciência como alvo supremo, se empurra a sabedoria, a qual, não iludida
pelos sedutores desvios das ciências, volta-se com olhar fixo para a
imagem conjunta do mundo, e com um sentimento simtico de amor
procura apreender nela o eterno sofrimento como sofrimento próprio.
(NIETZSCHE, 1992, p.110-111).
Para Machado (1999, p.29), a valorização da arte e não do
conhecimento como atividade que dá acesso às questões fundamentais da
exisncia é a contra-doutrina, a alternativa proposta por Nietzsche contra a
metafísica cssica criadora da racionalidade. Para o filósofo, essa é uma ideia
que se manteve constante ao longo de toda a trajetória filosófica de Nietzsche,
ou seja, a de que a arte tem um valor mais elevado do que a ciência por ser a
força capaz de proporcionar uma experncia dionisíaca.
O Uno-primordial figura-se, assim, como o limite absoluto de todo o
conhecimento. É o limiar onde a cncia finalmente recua ante o avanço da arte.
Entretanto, Nietzsche o nisso uma necessária oposição entre os instintos
apolíneo e dionisíaco. A relação entre os dois é compreendida, por Nietzsche,
pela arte trágica, recorrendo mais uma vez à noção de agón.
A arte trágica possibilita, portanto, a união entre a aparência e a
essência. Sendo capaz os dois instintos, as duas pulsões artísticas da
natureza, na medida em que transe em imagens os estados
dionisíacos, a tragédiao se limita, como a poesia épica [como a
epopéia homérica], ao nível da aparência, mas possibilita uma
experiência trágica da essência do mundo. Só que essa uno, ela a
estabelece através de um conflito [agón]. A tragédia representa o
conflito entre o aponeo e o dionisíaco, entre o principium
individuationis e o uno originário. (MACHADO, 1999, p.24-25).
Antes, pom, de lançar-se sobre a reflexão de Nietzsche sobre a
tradia, se faz necessário esclarecer um último aspecto sobre o impulso
dionisíaco: A saber, de qual Dionísio exatamente nos fala Nietzsche em O
nascimento da tragédia?
50
A questão sobre o dionisíaco é colocada, duas vezes, pelo pprio
Nietzsche em sua Tentativa de autocrítica „O que é dionisíaco? [...] Sim, o
que é dionisíaco? (NIETZSCHE, 1992, p. 16-17) acompanhada do seguinte
comentário: “Neste livro há uma resposta a essa pergunta um „sabedor fala
aqui, o iniciado e discípulo de seu deus (NIETZSCHE, 1992, p.17). O fato de
Nietzsche colocar-se aqui como um iniciado e discípulo de Dionísio revela quão
importante é o papel do referido deus em sua filosofia.
Segundo Rubira (2009, p.256), embora o termo dionisíaco ou o pprio
nome Dionísio praticamente inexista na obra nietzschiana posterior à publicação
de O nascimento da tragédia e do inédito A visão dionisíaca do mundo (1870)
47
,
a partir de seu Assim falou Zaratustra (1885), o termo lentamente começa a
surgir em seus escritos. Nesse intervalo, Nietzsche elabora uma re-significação
para o termo deixando de tratá-lo como um problema estético para pensá-lo em
uma esfera mais ampla a do problema do valor da existência (Werth des
Daseins). Essa nova significação tornar-se-ia tão cara ao pensamento de
Nietzsche ao ponto dele encerrar seu Ecce Homo (1888) dizendo: Fui
compreendido? Dionísio contra o Crucificado. (NIETZSCHE, 1995, p.117). É
certo que a concepção nietzschiana sobre o dionisíaco sofreu mudanças ao
longo de sua filosofia
48
. Por isso, faz-se necesrio elucidar agora o que então
se deve entender pelo instinto dionisíaco na primeira fase do pensamento de
Nietzsche.
Na interpretação de Fernandes (2003, p.254-255) o que Nietzsche
chama principalmente de dionisíaco em NT já é uma apropriação pela
civilização henica de uma tendência presente em estado da mais pura
natureza em outras civilizações. Conforme Machado (2006, p.211), isso pode
ser entendido como “fundamentalmente, o culto das bacantes. Isto é, o culto
manifestado nos cortejos orgiásticos de mulheres que, em transe coletivo,
cantando e tocando tamborins em honra de Dioniso, invadiram a Gcia vindas
da Ásia. Machado (2006) ainda destaca que
seja ou não correta a ideia de um Dioniso estrangeiro, no sentido de
nascido fora da Grécia, interpretação hoje negada pelos filólogos, o
47
Inclusive nos póstumos datados deste período.
48
Mais detalhes a este respeito podem ser encontrados em Lebrun (1985, p.39-66) e Lima (2006, p.
174-193).
51
importante é que o culto místico a Dioniso, um estrangeiro terrível,
significa, para Nietzsche, a negação dos valores principais da cultura
apolínea. Em vez de um processo de individuação, é uma experiência
de reconciliação entre as pessoas e das pessoas com a natureza, uma
harmonia universal e um sentimento místico de unidade. (MACHADO,
2006, p.212).
Nietzsche distinguia assim duas formas sob as quais o elemento
dionisíaco se manifestava: uma grega e outra bárbara. Na primeira, Dionísio
revelava-se, sobretudo por meio de uma estética, enquanto na segunda, uma
força elementar da natureza na humanidade como, por exemplo, a sexualidade.
Qual dos dois é eno o Dionísio a que Nietzsche alude? Nenhum e ambos,
respectivamente. É preciso levar em conta que para Nietzsche, o único Dionísio
verdadeiramente real aparece numa pluralidade de configurações, na scara
de um hei lutador e como que enredado nas malhas da vontade individual”.
(NIETZSCHE, 1992, 69). O Dioniaco bárbaro por si só é destrutivo e por isso
necessita de um contraponto para não se autodestruir. Este se dá pela sua
vertente grega que lhe confere a força criativa da natureza.
De acordo com Almeida (2005),
se há um problema que obsedou Nietzsche do como ao fim é o
problema das relações de forças e, radicalmente ligado a este, o da
criação e destruição. Mas só se podem conceber a criação e a
destruição na obra nietzschiana a partir e através das relações de
forças. Todavia, como explicar que as forças possam afirmar-se na
diferença quando o que elas afirmam é precisamente essa diferença
ou, no caso do niilismo, quando elas se voltam contra si mesmas?
Nietzsche tenta explicar essa aporia a partir do próprio caráter ambíguo
e paradoxal que marca essencialmente a figura de Dioniso. (ALMEIDA,
2005, p.35).
É justamente graças a essa máscara multiforme de Dionísio que
Nietzsche concebe Apolo e Dionísio em uma relação de complementaridade e
não como antagonistas. E vede! Apolo não podia viver sem Dionísio!
(NIETZSCHE, 1992, p. 41). Do misterioso enlace desses dois deuses tem-se,
para Nietzsche, o nascimento da tragédia. A tragédia representa, portanto,
esse momento no qual a música dionisíaca se une às artes apolíneas”. (LIMA,
2006, p.76).
Passa-se agora a investigar como Nietzsche concebe a reconciliação
desses dois impulsos buscando responder a uma importante questão levantada,
52
a esse respeito, por Machado: Com que finalidade a tragédia apresenta
apolineamente a sabedoria dionisíaca? (MACHADO, 2005b, p.179).
3.3 A visão trágica do mundo e a superação do pessimismo
O nascimento da tragédia é tido, por Nietzsche (1992, p.51), como um
labirinto. O coro tgico é justamente o fio de Ariadne que ele propõe para a
orientação daqueles dispostos a trilharem seus caminhos. “[...] a tragédia surgiu
do coro trágico e que originariamente ela era coro e nada mais que coro
(NIETZSCHE, 1992, p. 52). Destarte, a reconciliação entre os princípios
apolíneo e dionisíaco é engendrada, por Nietzsche, a partir de sua peculiar
interpretação da relação existente entre o culto dionisíaco e a arte tgica.
Segundo Machado (2005a), a hipótese nietzschiana tem como pressuposto que
a tragédia se origina dessa multidão encantada que se sente
transformada em sátiros e silenos, como se vê no culto das bacantes;
ou mais precisamente, de que, no momento em que é apenas coro, a
tragédia imita, simboliza o fenômeno da embriaguez dionisíaca
responsável pelo desaparecimento dos princípios apolíneos criadores
da individuão: a medida e a consciência de si (MACHADO, 2005a,
p.8).
Machado (2005a) ainda salienta que a teoria da tragédia de Nietzsche
pauta-se em dois componentes para que tal hipótese fosse demonstrada. O
primeiro revela a importância da música na origem da arte tgica e o segundo
caracteriza-se pela adição do elemento apolíneo arte figurada da palavra e da
cena à música. A tragédia nasce então, segundo Nietzsche, do espírito da
música, ou seja, a origem da tragédia reside na possessão causada pela
música. Com isso ele reafirma sua interpretação de que Dionísio e música são
sinimos e, portanto, é através da música que se desfazem os frágeis laços da
teia da individualidade.
Mas, se a música é o principal elemento que permite explicar o
nascimento da tragédia, para dar conta totalmente desse fenômeno
artístico Nietzsche acrescenta à música, seu componente dionisíaco,
os componentes apolíneos: a palavra e a cena. O que faz definir a
tragédia como um coro dionisíaco que se descarrega em um mundo
53
apolíneo de imagens. Esse mundo de imagens criado pelo coro é o
mito trágico, que apresenta a sabedoria dionisíaca através do
aniquilamento do indivíduo heróico e de sua união com o ser
primordial, o uno originário [...]. (MACHADO, 2005a, p.9).
Essa foi, para Nietzsche, a solução encontrada pelos gregos para conter
o que havia de bárbaro e selvagem no impulso dionisíaco. Entretanto, não foi
apenas isso que chamou a sua atenção. O que realmente despertou seu
interesse e sua admiração pela arte trágica grega foi o fato de que, com isso, os
gregos souberam reconhecer que nenhum indivíduo, nem mesmo o herói, pode
escapar do inexovel processo de aniquilamento e dissolução representado
pelo próprio deus Dionísio. Todavia, conforme sua lenda originária, Dionísio é
capaz de renascer da destruição e do aniquilamento. É justamente essa
capacidade de renascimento em meio à destruição de Dionísio que os gregos
incorporaram à tragédia. De modo que, segundo Nietzsche, a tragédia oferecia
aos gregos
o consolo metafísico [...] de que a vida, no fundo das coisas, apesar de
toda a mudança das aparências fenomenais, é indestrutivelmente
poderosa e cheia de alegria, esse consolo aparece com nitidez
corpórea como coro satírico, como coro de seres naturais, que vivem,
por assim dizer indestrutíveis, por trás de toda civilização, e que a
despeito de toda mudança de gerões e das vicissitudes da história
dos povos, permanecem perenemente os mesmos. É nesse coro que
se reconforta o heleno com o seu profundo sentido das coisas, tão
singularmente apto ao mais terno e ao mais pesado sofrimento, ele que
mirou com olhar cortante bem no meio da terrível ação destrutiva da
assim chamada história universal, assim como da crueldade da
natureza, e que corre o perigo de ansiar por uma negação budista do
querer. Ele é salvo pela arte, e através da arte salva-se nele a vida.
(NIETZSCHE, 1992, p.55).
Cabe ressaltar que, mais uma vez, Nietzsche enaltece o pensamento
trágico por oferecer o consolo metafísico em plena harmonia com a vida. Em
suas próprias palavras:
Sobre tais fundamentos, a tragédia cresceu muito e, na verdade, por
causa disso, ficou desde o começo desobrigada de efetuar uma penosa
retração servil da realidade. No entanto,o se trata de um mundo
arbitrariamente inserido pela fantasia entre o u e a terra; mas, antes,
de um mundo dotado da mesma realidade e credibilidade que o
Olimpo, com os seus habitantes, possuía para os helenos crentes. O
sátiro, enquanto coreuta dionisíaco, vive numa realidade reconhecida
em termos religiosos e sob a sanção do mito e do culto. Que com ele
comece a tragédia, que de sua boca fale a sabedoria dionisíaca da
tragédia, é para nós um fenômeno tão desconcertante como, em geral,
54
o é a formação da tragédia a partir do coro. (NIETZSCHE, 1992, p.54-
55).
Note-se que essa aqui denominadasabedoria dionisíaca da tragédia
alinha-se perfeitamente com a madura intuão nietzschiana sobre uma
incondicional afirmação da vida colocada na boca de seu Zaratustra.
Eu vos rogo, meus irmãos, permanecei fis à terra e o acrediteis nos
que vos falam de esperanças ultraterrenas! Envenenadores, são eles,
que o sabiam ou não. Desprezadores da vida, são eles, e moribundos,
envenenados por seu próprio veneno, dos quais a terra está cansada;
que desapareçam, pois de uma vez! (NIETZSCHE, 2006a, p.36).
Tem-se agora uma resposta à indagação anteriormente colocada por
Machado. A tradia, tal como interpretada por Nietzsche, constitui-se como o
grande sim à vida. Ela faz com que o espectador aceite o sofrimento como parte
integrante e essencial da vida. “Assim, fundada na música, a tradia,
expressão das pulsões artísticas apolínea e dionisíaca, é a atividade que dá
acesso às questões fundamentais da existência. (MACHADO, 2005b, p.179).
O grande sim à vida nietzschiano marca um importante ponto de
discordância entre o pensador e seu antigo mestre pessimista Schopenhauer.
Para Nietzsche,
julgar o mundo e a existência segundo os fatores da consciência‟,
segundo o prazer e o desprazer é fazer como se a dor inerente à vida
fosse um erro, um equívoco. Uma filosofia que pretende ultrapassar a
filosofia schopenhaueriana deve ir além dessa visão eudemonista
(BRUM, 1998, p.70-71).
Anos mais tarde, em obras como Além do Bem e do Mal, Nietzsche
explicitaria de forma mais acentuada como a sua interpretação do sofrimento já
se encontrava muito distante da interpretação schopenhaueriana conforme
sugere Brum (1998), no supracitado trecho.
Seja hedonismo, seja pessimismo, utilitarismo ou eudemonismo: todos
esses modos de pensar que medem o valor das coisas conforme o
prazer e a dor, isto é, conforme estados concomitantes e dados
secundários, são ingenuidades e filosofias de fachada, que todo aquele
que for cônscio de suas energias criadoras e de uma conscncia de
artista não deixará de olhar com derrisão, e também compaixão. [...] A
nossa compaixão é algo mais longividente e elevado nós vemos
como o ser humano se diminui, como vocês o diminuem! e há
momentos em que observamos justamente a sua compaixão com
55
indescritível temor, em que nos defendemos dessa compaixão em
que achamos a sua seriedade mais perigosa que qualquer leviandade.
Vocês querem, se possível e não há mais louco possível abolir o
sofrimento; e quanto a nós? Parece mesmo que nós o queremos ainda
mais, maior e pior do que jamais foi! (NIETZSCHE, 2005a, p.117).
Embora a interpretação da origem da tradia a partir do coro seja
questiovel do ponto se vista filológico, em pelo menos um importante ponto, o
filósofo-filólogo Nietzsche manteve-se fiel à interpretação da filologia clássica.
Ao postular que a tragédia dá acesso às questões fundamentais da existência,
Nietzsche endossa a ideia de que, na antiga Gcia, religião e teatro formam um
nculo complementar e indissociável. Ao falarmos de um, somos remetidos
inevitavelmente ao outro. “Teria sido, por simples coincidência, diga-se de
passagem, que ator em grego é hypokrités, isto é, etimologicamente, o adivinho,
o profeta, em outras palavras, o que responde, em entusiasmo, e por
conseguinte, possuído de um deus? (BRANDÃO, 1968, p. 48).
Segundo Brandão (1968, p. 47-69), a própria origem da temática da
imortalidade da alma, originalmente, deve ser buscada no teatro e não na
religo como se esperaria supor. A gênese do teatro é marcada não por
objetivos estéticos, mas sim, por uma finalidade puramente litúrgica. Nas suas
próprias palavras:
De fato, somente com o aparecimento na Grécia da religião dionisíaca,
cujo berço deve ter sido a Trácia, é que a imortalidade da alma,
imortalidade até então relativa, porque dependia, em última análise, da
continuidade do culto, se tornou positivamente imortal. (BRANDÃO,
1968, p.47)
Brandão concebe a relação entre o teatro grego e a religo a partir de
dois importantes termos: o ékstasis e o enthusiasmós. Para os gregos a alma só
é imortal devido à sua natureza divina. A prova dessa natureza divina da alma
era revelada aos adeptos do deus Dionísio em um momento supremo ékstasis
provocado pela soma de um conjunto de fatores, a saber: dança, música,
escuridão e, sobretudo, por uma grande excitação por parte desses adoradores.
Nesse ékstasis, nessa loucura sagrada e obsessão havia uma supressão
temporia da vida normal e a alma, então, deixando por instantes o corpo,
unia-se à divindade, no caso Dionísio, ficando o devoto possuído do
enthusiasmós, que comunicava ao eu finito a plenitude de uma vida infinita. No
56
ékstasis, a alma, além de entrar em comunhão com a divindade, experimentava
novas faculdades em virtude de se encontrar liberta das limitações impostas
pela matéria. A conclusão era simples. Se o mergulho no ékstasis era capaz de
provocar a comunhão, o enthusiass, mesmo que temporário, é porque essa
alma tem a mesma essência, ou seja, a mesma imortalidade que os deuses
49
.
Deve-se notar que tal essência pode ser manifestada quando a alma se
liberta dos grilhões da matéria corporal. A interpretação do corpo como cárcere
da alma perpassaria uma longa tradição religiosa: os órficos, os pitagóricos,
passando pela filosofia platônica e mais tarde pelo cristianismo, sempre
considerando o corpo como um empecilho que deve ser negado e vencido.
Em todas essas tradões religiosas o valor da existência figura-se como
tema central e este, segundo Rubira,
é, sem dúvida, o centro em torno do qual sempre orbitou a reflexão
nietzschiana, embora durante muito tempo, e para o próprio Nietzsche,
este não fosse um tema claro. Quando nos detemos, todavia, na
questão da morte de Deus e do niilismo, na concepção do além-do-
homem, e fundamentalmente no pensamento do eterno retorno do
mesmo como uma nova medida de valor, é possível, então, perceber
que todas estas ideias nucleares da reflexão nietzschiana giram em
torno do problema do valor da existência o qual, de certa forma, já
ocupava os escritos juvenis de Nietzsche. (RUBIRA, 2009, p.257).
Na Tentativa de Autocrítica (1886) encontram-se vários aspectos que
respaldam a interpretação de Rubira. Na resposta ao “o que é dionisíaco?,
Nietzsche elabora outras questões que apontam nesse sentido.
Talvez eu falasse agora com mais precaução e com menos eloqüência
acerca de uma questão psicológica tão difícil como é a origem da
tragédia entre os gregos. Uma questão fundamental é a relação dos
gregos com a dor, seu grau de sensibilidade esta relação
permaneceu igual ou se inverteu? [...] de onde deveria então originar-
se a tragédia? [...] Para onde aponta aquela síntese de deus e bode no
sátiro? acrescentemos ainda a sua questão mais difícil! O que
significa, vista sob a óptica da vida a moral?... (NIETZSCHE, 1992,
p.17-18).
49
Destaca-se aqui a semelhança entre o estado de enthusiasmós descrito por Brandão e o estado de
embriaguez dionisíaca narrado por Nietzsche, em que este, ao romper com as amarras do princípio
de individuação, estabelece o retorno do homem com a natureza e com o Uno-primordial.
57
Na articulação que se segue a essas questões, percebe-se que Nietzsche
já se encontrava, neste peodo, insatisfeito com a supracitada interpretação do
corpo como rcere da alma e a consequente negação da vida pela moral cristã.
Talvez onde se possa medir melhor a profundidade desse penhor
antimoral seja no precavido e hostil silêncio com que no livro inteiro se
trata o cristianismo o cristianismo como a mais extravagante
figuração do tema moral que a humanidade chegou até agora a
escutar. Na verdade, o existe contraposição maior à exegese e
justificação puramente estética do mundo, tal como é ensinada neste
livro, do que a doutrina cristã, a qual é e quer ser somente moral, e
com seus pades absolutos, já com sua veracidade de Deus, por
exemplo, desterra a arte, toda arte, ao reino da mentira. [...] pois toda a
vida repousa sobre a aparência, a arte, a ilusão, a óptica, a
necessidade do perspectivístico e do erro. O cristianismo foi desde o
início, essencial e basicamente, asco e fastio da vida na vida, que
apenas se disfarçava, apenas se ocultava, apenas se enfeitava sob a
crença em outra ou melhor vida. [...] .A moral não seria uma
vontade de negação da vida, um instinto secreto de aniquilamento,
difamação, um começo do fim? E em conseqüência, o perigo dos
perigos?... Contra a moral, portanto, voltou-se então, com este livro
problemático, o meu instinto, como um instinto em prol da vida, e
inventou para si, fundamentalmente, uma contradoutrina e uma contra-
valoração da vida, puramente arstica, anticristã. Como denominá-la?
Na qualidade de filólogo e homem das palavras eu a batizei, não sem
alguma liberdade pois quem conheceria o verdadeiro nome do
Anticristo? com o nome de um deus grego: eu a chamei dionisíaca.
(NIETZSCHE, 1992, p.19-20).
Com efeito, para Nietzsche, a tradia era a resposta grega à questão do
pessimismo, sua superação graças a uma afirmação incondicional da vida. Sim,
a tradia precisamente é a prova de que os gregos não foram pessimistas
[...](NIETZSCHE, 1995, p.61).
Entretanto, não foi o pensamento trágico que prevaleceu ao longo da
tradão ocidental. Algo interferiu no fgil equilíbrio, que a tragédia estabelecia
entre os impulsos apolíneo e dionisíaco. Uma vez desfeito esse equilíbrio o
ocaso da tragédia foi inevitável. Nessa perspectiva, Nietzsche vislumbra eno o
grande inimigo e opositor da tradia Sócrates.
3.4 A morte da tragédia: a sabedoria trágica versus o conhecimento teórico
A oposão apresentada, por Nietzsche, entre a razão soctica e a
sabedoria dionisíaca tem como pressuposto a denúncia da morte da arte tgica
58
travada por EURÍPEDES”. (NIETZSCHE, 1992, p.73). Nietzsche atribui uma
particularidade à morte da arte trágica o suicídio. Ao contrio de todas as
outras artes, suas irmãs mais velhas: morreu por suicídio, em conseência de
um conflito insolúvel [...](NIETZSCHE, 1992, p.72). Conflito insolúvel que tem
como principais causas: primeiro, a prevalência de Eurípedes como pensador,
não como poeta (NIETZSCHE, 1992, p.77), e segundo, a tendência socrática
com a qual Eupedes combateu e venceu a tradia esquiliana”. (NIETZSCHE,
1992, p.79).
Segundo Nietzsche,
Dionísio já havia sido afugentado do palco trágico e o fora através de
um poder demoaco que falava pela boca de Eurípedes. Também
Eurípides foi, em certo sentido, apenas máscara: a divindade, que
falava por sua boca, não era Dionísio, tampouco Apolo, porém um
demônio de recentíssimo nascimento, chamado Sócrates. Eis a nova
contradição: o dionisíaco e o socrático, e por causa dela a obra de arte
da tragédia grega foi abaixo. (NIETZSCHE, 1992, p.79)
50
.
Segundo Fink, no entender de Nietzsche, Sócrates marca o fim da idade
trágica e inicia a idade da rao e do homem teórico.
Com isto, [...] verifica-se uma enorme perda para o mundo; a existência
perde como que a abertura para o lado escuro e nocturno da vida,
perde o saber mítico da unidade da vida e da morte, perde a tensão
entre a individuação e o fundo originalmente uno da vida, torna-se
banal, cativa da aparência, torna-se «esclarecida». (Fink, 1988, p.29).
A identificação de crates como homem teórico baliza um importante
traço do pensamento nietzschiano que perdurará ao longo de todas as suas
obras o aspecto psicológico. “[...] basta reconhecer nele [Sócrates] o tipo de
uma forma de existência antes dele inaudita, o tipo do homem teórico, cuja
significação e cuja meta é nosso dever agora chegar a compreender”
(NIETZSCHE, 1992, p. 92). Nietzsche passa assim a direcionar sua crítica não
às pessoas por ele citadas, mas ao tipo por elas representado. Doravante, ao
referir-se a crates deve-se ter em mente que Nietzsche não ataca o filósofo
ateniense, mas o tipo que ele representa o tipo socrático.
50
Eurípedes é, segundo Nietzsche, a primeira causa da morte da tragédia. Embora para a
compreensão do contexto geral de O nascimento da tragédia tal ideia seja importante, esta não será
aqui desenvolvida por o se alinhar diretamente com o objetivo primário desta pesquisa. Para um
maior aprofundamento sugere-se consultar Rodrigues (2003, p.61-75).
59
Essa tipologia, em especial, passa a ser considerada, por Nietzsche,
como o aspecto mais problemático da Antiguidade. No intuito de compreender
mais profundamente o que é o tipo teórico, Nietzsche elabora uma rie de
indagações.
Quem é esse que ousa, ele só, negar o ser grego, que, como Homero,
Píndaro e Ésquilo, Fídias,ricles,tia e Dionísio, como o abismo
mais profundo e a mais alta elevação, está seguro de nossa
assombrada adoração? Que força demoníaca é essa que se atreve a
derramar na poeira a beberagem mágica? Que semideus é esse que o
coro de espíritos dos mais nobres da humanidade precisa invocar: Ai!
Ai! Tu o destruíste, o belo mundo, com um poderoso punho; ele cai, se
desmorona!”? (NIETZSCHE, 1992, p.85).
Todas as indagações têm como alvo Sócrates que rompendo com
aquilo que, para Nietzsche, concernia genuinamente ao espírito dos gregos
instaura a crença na razão e na sua potencialidade de dialeticamente alcançar a
verdade.
Na ótica nietzschiana, crates teria corrompido a tradição grega e,
com as suas teorias, acabou por realçar o lado frouxo do caráter
ateniense, mortificando a potência exuberante da juventude. O caráter
da filosofia passou a ser, então, o de julgar a vida, humanizar a
natureza e iluminar a escuridão do mundo com a luz nue de uma
razão específica. (BOAVENTURA, 2009, p.70-71).
Com efeito, ele passa a ser considerado não como o negador dos
grandes nomes da cultura clássica grega, mas também como, segundo Fink,
o malogro par execellence do espírito grego, como se fosse
determinado por um defeito monstruoso, caracterizado pela total falta
de «sabedoria instintiva». Em Sócrates, afirma Nietzsche, apenas se
formou um só aspecto do esrito, mas de modo excessivo: o aspecto
lógico-racional. [...] Sócrates aparece por conseguinte, sob o aspecto
de um demónio da razão, de um homem em quem todo o desejo e toda
a paixão se transformaram na vontade de estruturar e de dominar
racionalmente o existente. Sócrates seria o inventor do «homem teórico
» (FINK,1988, p.30).
Essa mesma ideia é retomada anos mais tarde em Crepúsculo dos Ídolos
(1888), no qual Sócrates e Platão são tomados como sintomas de declínio,
como instrumentos da dissolução grega, como pseudogregos, antigregos
(NIETZSCHE, 2006b, p.18). Em ambas as obras, o ponto central a partir do qual
é consolidada a tendência socrática (NIETZSCHE, 1992, p.85) ou o
60
socratismo estico é a oposão realizada por crates entre a razão e os
instintos. Com isso ele descobriu uma nova espécie de ágon (NIETZSCHE,
2006b, p.20) na qual
o socratismo condena tanto a arte quanto a ética vigentes; para onde
quer que dirija o seu olhar perscrutador, avista ele a falta de
compreensão e o poder da ilusão; dessa falta, infere a ínfima
insensatez e a detestabilidade do existente. A partir desse único ponto
julgou Sócrates que devia corrigir a existência. (NIETZSCHE, 1992,
p.85).
O grande e único olho ciclópico de Sócrates (NIETZSCHE, 1992, p.87)
havia detectado que a bris dionisíaca espalhava-se por todos os lados. Assim,
ele enxergou por trás de seus nobres atenienses [...] E Sócrates
entendeu que o mundo inteiro dele necessitava de seu remédio [...]
Em toda parte os instintos estavam em anarquia; em toda parte se
estava a poucos passos do excesso (NIETZSCHE, 2006b, p. 21).
Seu diagnóstico era: seos instintos querem fazer o papel de tirano;
deve-se inventar um contratirano que seja mais forte... (NIETZSCHE, 2006b, p.
21). Assim, a razão, o novo tirano, dominaria os instintos.
Em face desse pessimismo prático é crates o protótipo de otimista
teórico que, na já assinalada fé na escrutabilidade da natureza das
coisas, atribui ao saber e ao conhecimento a força de uma medicina
universal e percebe no erro o mal em si mesmo. Penetrar nessas
razões e separar da aparência e do erro o verdadeiro conhecimento,
isso pareceu ser ao homem socrático a mais nobre e mesmo a única
ocupação autenticamente humana. (NIETZSCHE, 1992, p.94-95).
Nietzsche encontra aqui o início do primado da razão, através da morte
de toda a sensualidade e de todo o instinto. Segundo ele, graças a Sócrates, a
racionalidade foi então percebida como salvadora (NIETZSCHE, 2006b, p.21),
o que o leva a concluir que
agora, junto a esse conhecimento isolado ergue-se por certo, com
excesso de honradez, se não de petulância, uma profunda
representação ilusória, que veio ao mundo pela primeira vez na pessoa
de Sócrates aquela inabalável fé de que o pensar, pelo fio condutor
da causalidade, atinge até os abismos mais profundos do ser e que
está em condições, não só de conhecê-lo, mas inclusive de corrigi-lo.
(NIETZSCHE, 1992, p.93).
61
Desse modo, segundo Fink, “com Sócrates teria nascido a quimera de
que o pensamento poderia, seguindo o fio condutor da causalidade, atingir os
mais profundos abismos do ser (FINK, 1988, p. 30). Pois segundo Rorty,
Sócrates foi, aos olhos de Nietzsche, a figura que sobrecarregou nossa
civilização com a ideia de que a finalidade do ser humano era conhecer.
(RORTY, 2006, p.22-23).
Com isso, para Nietzsche, a velha tragédia encontrou o seu ocaso e “o
princípio assassino está no socratismo estético: na medida, porém em que a
luta era dirigida contra o dionisíaco na arte mais antiga, reconhecemos em
Sócrates o adversário de Dionísio [...] (NIETZSCHE, 1992, p.83). Na
interpretação de Machado,
Assim o “socratismo estico”, ou a “tendência socrática, foi, par a
Nietzsche, o principal responsável pela morte da tragédia ou pelo
desaparecimento de seu saber trágico. Pois enquanto a metafísica do
artista trágico, em que a experiência da verdade dionisíaca se faz
indissoluvelmente ligada à bela aparência apolínea, é capaz, com sua
música e seu mito, de justificar a existência dopior dos mundos,
transfigurando-o, a metafísica racional socrática, criadora do espírito
científico, é incapaz de expressar o mundo em sua tragicidade, pela
prevalência que dá à verdade em detrimento da ilusão e pela crea de
que é capaz de curar a ferida da existência. (MACHADO, 2005, p.10).
Devido a sua incapacidade de expressar o mundo em sua tragicidade, a
verdade socrático-científica com a sua “visão teórica do mundo fundamenta-se
num instinto fraco e sem vigor. (FINK, 1988, p.30). Esse é, segundo Machado
(2006, p.210-211), um dos motivos pelos quais Nietzsche nunca se denominou
um fisofo apolíneo. Desde o início, Nietzsche percebera as restrições, os
limites de uma vio apolínea para a compreensão do mundo. Para ele, a
verdade científica
corre, indetenível, até os seus limites, nos quais naufraga seu otimismo
oculto na esncia da lógica. [...] Quando divisa aí, para o seu susto,
como, nesses limites, a gica passa a girar em redor de si mesma e
acaba por morder a própria cauda então irrompe a nova forma de
conhecimento, o conhecimento trágico, que, mesmo para ser apenas
suportado, precisa da arte como meio de proteção e remédio.
(NIETZSCHE, 1992, p.95).
Com tal afirmação, Nietzsche evidencia a superioridade da arte em
relação à ciência. Em sua perspectiva, o papel reservado à arte é superior, uma
vez que
62
só ela tem o poder de transformar aqueles pensamentos enojados
sobre o horror e o absurdo da existência em representações com as
quais é possível viver: são elas o sublime, enquanto domesticação
artística do horrível, e o cômico, enquanto descarga artística da náusea
do absurdo. (NIETZSCHE, 1992, p.56).
Para Fink, “segundo a concepção de Nietzsche, a partir da arte pode-se
compreender a teoria e a cncia, mas o inverso o é possível (FINK, 1988,
p.30). Destarte, em O nascimento da tragédia, Nietzsche toma partido da
metafísica do artista, ou seja, defende abertamente que a arte é a atividade
propriamente metafísica do homem, a concepção de que somente pela arte a
vida pode ser experimentada no fundo das coisas, apesar de toda a mudança
das apancias fenomenais [...], [como] indestrutivelmente poderosa e cheia de
alegria. (NIETZSCHE, 1992, p.55).
Ao investigar a tipologia inaugurada por crates, e, sobretudo no que
Nietzsche denomina de socratismo estético, o filósofo encontra a oposição entre
duas formas distintas de conhecimento. Um marcado pela sabedoria tgica
dionisíaca e outro pelo conhecimento teórico ou apolíneo. O substrato a partir
do qual esses dois tipos de verdade se estruturam representa respectivamente
duas expressões metafísicas: a metafísica de artista e a metafísica tradicional.
Segundo Machado (1999, p.31-32), a relação entre elas vai muito mais longe
do que uma simples questão estética, remetendo em última instância, como
sempre em Nietzsche, ao problema da verdade (MACHADO, 1999, p.31).
Seguindo a intuição de Machado, encontra-se aqui nexo causal que justifica a
presente pesquisa. Uma vez que, segundo ele, Nietzsche ao defender uma
metafísica de artista considera que o saber trágico não foi vencido
propriamente pela verdade, mas por uma crença na verdade, por uma ilusão
metafísica que está intimamente ligada à cncia (MACHADO, 1999, p.31
grifo nosso).
Destarte, Nietzsche teria expressado que no antagonismo entre a arte e a
ciência, entre a experiência tgica e o espírito científico, subjaz a longa
tradão de um erro. O erro de se buscar a verdade a todo custo e afirmá-la
como valor supremo, desclassificando inteiramente a apancia. Delineia-se
assim o pano de fundo que nortea o capítulo seguinte, ou seja, investigar os
63
efeitos de tal erro no âmbito da religião na tentativa de se compreender porquanto,
para Nietzsche, se faz necessária uma transvaloração de todos os valores.
64
Percepção fundamental. Não há harmonia preestabelecida entre o
progresso da verdade e o bem da humanidade. (NIETZSCHE, 2005c, p.
243)
Foram as coisas reais ou as coisas imaginadas que
mais contribuíram para a felicidade humana?
(NIETZSCHE, 2004, p. 16)
4 O ÁPICE DO NIILISMO: A VERDADE FRENTE AO ANÚNCIO DA MORTE
DE DEUS
Neste capítulo procura-se, primeiramente, estudar a ctica nietzschiana
ao instinto ilimitado de conhecimento. Retrata-se aqui a fábula postulada pelo
filósofo alemão para a explicação de sua gênese na qual já se detecta o seu
solo moral e a afirmação de sua relatividade e de sua força de iluo.
Analisa-se, em seguida, como o cristianismo herda a moral socrática e faz
dela sua arma de combate, para depois trazer à luz a maneira pela qual ela se
exaure na modernidade com o anúncio da morte de Deus” na tentativa de,
finalmente, se compreender a relação que Nietzsche estabelece entre a vontade
de verdade e a religião.
4.1 A verdade e a mentira interpretadas no sentido extramoral
Um ano após a publicação de NT
51
, Nietzsche dita ao colega Karl von
Gersdorff um novo texto intitulado Sobre verdade e mentira no sentido extra-
moral. Este registra uma significativa diferença frente aos seus escritos
anteriores. Segundo Vaihinger (1990, p. 9), VM marca um distanciar-se
intelectual de Nietzsche tanto em relação a Wagner quanto a Schopenhauer. O
despertar da tragédia ática deixa de figurar-se como o centro das reflexões do
filósofo alemão que, tomado por novos planos e interesses, volta sua atenção,
51
Em Julho de 1873.
65
conforme Barros (2008, p. 9), sobre as chamadas ciências da natureza
52
.
Nietzsche enamora, nesse peodo, a objetividade contida nos métodos
científicos na tentativa de estabelecer uma nova significação para a verdade.
Janz (1987, p. 180) credita tal mudança ao afloramento do lado cético do
pensamento nietzschiano, sendo provavelmente um efeito proveniente da leitura
da Crítica da Rao Pura de Kant. O texto revela um Nietzsche insatisfeito e até
mesmo incomodado com o modelo de verdade instituído pela tradição filofica
contaminado por preconceitos e intolerâncias metafísicas.
A suspeita sob a qual Nietzsche move suas investigações em VM é
descrita por Barros nos seguintes termos:
Movida pela crença de que a forma fundamental do pensamento é a
mesma de suas manifestações por palavras, desde cedo, a filosofia
não hesitou em identificar discurso e realidade. Concebendo o pensar
como uma inequívoca atividade de simbolização enunciativa, ela
parece ter sempre dado atenção especial à dimensão apofântica da
linguagem, tomando enunciados verbais por verdadeiros ou falsos, em
função de descreverem corretamente ou o o mundo. O que ocorreria,
porém, se a verdade dos enunciados não passasse de um tipo de
engano sem o qual o homem não poderia sobreviver? E se a condição
da verdade fosse a mesma da mentira? Revelar-se-ia, eno, o atávico
caráter dissimulador do intelecto humano e, com ele, a suspeita de que
entre o “refletir e o dizer não vigora nenhuma identidade estrutural. É
justamente a essa conclusão que Nietzsche espera conduzir-nos.
(BARROS, 2008, p. 10).
Nietzsche abre o texto de VM narrando uma pequena fábula na qual, em
um remoto recanto do universo, animais astuciosos inventaram por um breve
momento o conhecimento. Com isto, ele procura assinalar a falta de propósito, a
efemeridade e a insignificância do intelecto humano frente à grandiosidade da
história universal. Em sua perspectiva, o conhecimento humano não passa de
uma invenção que o perfaz mais do que um simples, audacioso e hipócrita
minuto. De forma que:
houve eternidades em que ele não estava presente; quando ele tiver
passado mais uma vez, nada terá ocorrido. Pois, para aquele intelecto,
não há nenhuma missão ulterior que conduzisse para além da vida
humana. Ele é ao contrário, humano, sendo que apenas seu possuidor
e gerador o toma de maneira tão patética, como se os eixos do mundo
girassem nele. (NIETZSCHE, 2008b, p. 25-26).
52
Destaca-se, por exemplo, o interesse de Nietzsche em obras como Philosophiae naturalis theoria
de R. J. Boscovich.
66
Nietzsche destaca que mesmo um conto assim ainda não teria ilustrado
suficientemente bem quão lastimável, quão sombrio e efêmero, quão sem rumo
e sem motivo se destaca o intelecto humano no interior da natureza.
(NIETZSCHE, 2008b, p. 25). Embora em VM a temática da origem da tragédia
não figure mais como eixo central, duas importantes ideias desenvolvidas por
Nietzsche em NT são retomadas. Primeiro, a necessidade humana em criar
formas ilusórias para suportar o sofrimento inerente à sua condição efêmera. E
em segundo, a sua crítica ao modelo de verdade inaugurado por Sócrates.
Mais uma vez os filósofos racionalistas com sua pretensão de desvelar o
ser o postos em questão. Segundo Nietzsche, eles são os tipos mais
orgulhosos dentre os homens, pois acreditam ver por todos os lados os olhos
do universo voltados telescopicamente na direção de seu agir e pensar.
(NIETZSCHE, 2008b, p. 26). O que desperta a curiosidade de Nietzsche e
orienta sua investigação nessa direção é o que ele denomina como o pathos
53
da verdade. Foi justamente esse pathos que conforme Melo Sobrinho,
alimentou especialmente a vaidade e a soberbia do filósofo, foi este
pathos que o afastou do mundo real e do tempo presente, para colocá-
lo no plano da eternidade e da universalidade. Porém, foi também este
pathos que levou finalmente ao desencanto e ao desespero quando ele
adquiriu a consciência da absurdidade e efemeridade da existência e
quando ele descobriu que a verdade, tal como buscada até então pela
tradição filosófica, era simplesmente engano, engodo, armadilha.
(MELO SOBRINHO, 2001, p.5-6).
Se para os filósofos o intelecto constitui-se como o bem mais valioso,
para Nietzsche esse não passa de um órgão dissimulador que mascara a
essência trágica da exisncia. Ele é o responsável por toda a arrogância
humana em considerar-se como o centro de todas as coisas no universo,
precisamente ele, que foi outorgado apenas como instrumento auxiliar aos mais
infelizes, fgeis e evanescentes dos seres, para conservá-los um minuto na
exisncia. (NIETZSCHE, 2008b, p. 26). A ideia da conservação é
especialmente cara a Nietzsche. Para ele, o conhecimento foi forjado pelos
53
Este termo é usado no texto original sem tradução, apenas transliterado. Pathos concentra o
sentido de “experiência”, “sensação”, “disposição”, “estado da alma”, e também evento” ou
“conjuntura”. Em português, dá origem à palavra “paixão”. Portanto, ao se falar do “pathos da
verdade”, está em jogo tanto a procura, o amor pela verdade por parte dos filósofos, quanto um
questionamento da própria verdade em seus fundamentos, ou seja, se o conhecimento considerado
verdadeiro não passa de uma sensação, de uma disposição, de uma aparência.
67
seres humanos com o prosito de satisfazer as suas necessidades imediatas
de sobrevivência. O intelecto não passaria assim de um servo do desejo de
conservação imposto pelos mais fracos por meio de falsificações. Nesse
sentido, -se:
Como um meio para a conservação do indivíduo, o intelecto desenrola
suas principais forças na dissimulão; pois esta constitui o meio pelo
qual os indivíduos mais fracos, menos vigorosos, conservam-se, como
aqueles aos quais é denegado empreender uma luta pela existência
com chifres e presas afiadas. No homem, essa arte da dissimulação
atinge o seu cume: aqui, o engano, o adular, mentir e enganar, o falar
pelas costas, o representar, o viver em esplendor consentido, o
mascaramento [...], numa palavra, o constante saracotear em torno da
chama única da vaidade, constitui a tal ponto a regra e a lei que quase
nada é mais incompreensível do que como pôde vir à luz entre os
homens um legítimo e puro impulso à verdade. (NIETZSCHE, 2008b,
p.27, grifo nosso).
Por ser um órgão dissimulador, o intelecto opera ocultando o fundo
trágico da existência, iludindo e forjando imagens luminosas no intuito de lançar
um véu sobre esse fundo trágico e assim continuar vivendo. Apesar do termo
instinto apolíneo, não estar presente em VM sua principal caractestica a de
ser um espelho transfigurador (NIETZSCHE, 1992, p.37) é aqui retomada,
mas agora como sendo uma característica do intelecto.
Em VM, Nietzsche avança em sua análise ao propor duas novas teses.
Primeiro, a tese da relatividade do conhecimento humano e em decorrência
disso, a tese da indigência da pretensão e da arrogância dos filósofos quando
são movidos pelo pathos da verdade”. (MELO SOBRINHO, 2001, p.6).
O itinerário desenvolvido por Nietzsche para abordar a questão o coloca
frente a uma indagação: eno de onde viria o impulso à verdade [...]? Tanto
em VM quanto em CP
54
, ou ainda, no conjunto de fragmentos intitulados como O
livro do filósofo, a resposta é elaborada de forma semelhante. Entretanto,
adverte Machado,
se a ctica à metafísica persiste nesses escritos, como em toda obra
de Nietzsche, elao mais se faz em nome de uma metafísica de
artista, isto é, de uma dimeno metafísica da arte ou de uma
experiência artística da essência do mundo o elemento da arte é a
ilusão. A crítica à instituição da dicotomia metafísica verdade-aparência
agora é realizada a partir do conceito de instinto de conhecimento ou
instinto de verdade, sem que o elogio da arte explicite uma dualidade
54
No prefácio intitulado “O estado grego”. Cf. Nietzsche (2007a, p. 48-50).
68
de elementos ou de forças, mesmo que seja para afirmar uma síntese,
uma reconciliação ou uma unificação. (MACHADO, 1999, p.35).
O ponto que une as obras elencadas no pagrafo anterior é o fato de
Nietzsche negar-se a separar o homem da natureza. “O que Nietzsche pretende
então é ressaltar que o conhecimento o faz parte da natureza humana, ou
melhor, não está no mesmo nível que os instintos. (MACHADO, 1999, p.35).
Nietzsche, desse modo, se posiciona contra a tese aristotélica na qual os
instintos e o conhecimento estão no mesmo nível conforme o estagirista
apresentou em sua Metafísica. “Todos os homens, por natureza, tendem ao
saber. (Aristóteles, 2002, p. 3). Na interpretação de Nietzsche não há instinto
de conhecimento e da verdade, mas somente um instinto da crença na verdade;
o conhecimento puro é destituído de instinto. (NIETZSCHE, 2007c, p.97).
Para o filósofo alemão, a consciência de si não faria parte, em rigor, da
exisncia do indivíduo enquanto tal. Essa teria sido criada pela inexorável
necessidade de comunicação e sociabilidade do indivíduo que almejava afastar-
se da 
55
e consequentemente também se afastar
da dor. O que leva o filósofo a exclamar:
como a verdade tem importância para os homens! É a vida mais
elevada e mais pura possível a de possuir a verdade na crença. A
crença na verdade é necessária ao homem. A verdade aparece como
uma necessidade social: por uma metástase, ela é em seguida aplicada
a tudo, mesmo onde não é necessária. (NIETZSCHE, 2007c, p.44).
Ainda seguindo essa linha de análise, destaca-se que:
enquanto o indivíduo, num estado natural das coisas, quer preservar-se
contra outros indivíduos, ele geralmente se vale do intelecto apenas
para a dissimulação: mas, porque o homem quer, ao mesmo tempo,
existir socialmente e em rebanho, por necessidade e tédio, ele
necessita de um acordo de paz e empenha-se então para que a mais
cruel bellum omnium contra omnes ao menos desapareça de seu
mundo. Esse acordo de paz traz consigo, porém, algo que parece ser o
primeiro passo rumo à obtenção daquele misterioso impulso à verdade.
(NIETZSCHE, 2008b, p. 29).
É justamente nesse momento que, para Nietzsche, fixa-se aquilo que,
doravante, deve ser verdade‟, quer dizer, descobre-se uma designação
uniformemente válida e impositiva das coisas [...]. (NIETZSCHE, 2008b, p. 29).
55
Guerra de todos contra todos (tradução nossa).
69
Tal refleo se mostra de vital importância, pois aparece, aqui, pela primeira
vez, o contraste entre verdade e mentira. (NIETZSCHE, 2008b, p. 29). Segundo
Fink (1988, p.32-33), verdade e mentira não representam em VM um
comportamento humano consciente e voluntário, pois Nietzscheo as trata
como um problema da moral. “Trata-se do papel do intelecto na totalidade do
mundo. A verdade ou a não verdade moral decide-se no interior da
interpretação do mundo que o intelecto desenvolve. (FINK, 1988, p.33). O
ponto central a partir do qual Nietzsche desenvolve tal reflexão é a linguagem.
Esta não passa de uma convenção que surge quando a guerra natural de todos
contra todos resulta em um acordo de paz. Mas, com isso advém um outro
problema. Se a linguagemo passa de uma convenção humana, “então a
linguagem é a expreso adequada de todas as realidades? (NIETZSCHE,
2008b, p.30). Ou seja, a palavra corresponde à designação da ppria coisa?
Existe aqui uma verdade ou a mesma não passa de uma iluo? Nietzsche
combate veementemente a ideia de que se possa obter, por meio das palavras,
um acesso ao núcleo indivisível e inquestionável do existir. Sua conclusão é a
de que a verdade para a qual as palavras nos remetem não passam de
tautologia. Segundo Nietzsche,
apenas por esquecimento pode o homem alguma vez chegar a imaginar
que detém uma verdade no grau mencionado. Se ele o espera
contentar-se com a verdade sob a forma da tautologia, isto é, com
conchas vazias, então irá permutar eternamente ilusões por verdades. O
que é uma palavra? A reprodução de um estímulo nervoso em sons. Mas
deduzir do estímulo nervoso uma causa fora de nós já é o resultado de
uma aplicação falsa e injustificada do princípio de razão. [...] Dispostas
lado a lado, as diferentes nguas mostram que, nas palavras, o que conta
nunca é a verdade, jamais uma expressão adequada: pois, do contrário,
não haveria tantas línguas. A coisa em si(ela seria precisamente a pura
verdade sem quaisquer conseqüências) também é, para o criador da
linguagem, algo totalmente inapreensível e pelo qual nem de longe vale a
pena esforçar-se. (NIETZSCHE, 2008b, p.30-31).
A verdade então, não passa, para Nietzsche, de
exército móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, numa
palavra, uma soma de relações humanas que foram realçadas poética
e retoricamente, transportadas e adornadas, e que, após uma longa
utilização, parecem a um povo consolidadas, canônicas e obrigatórias:
as verdades são ilusões das quais se esqueceu que elas assim o são.
(NIETZSCHE, 2008b, p. 36-37).
70
Ao considerar as palavras como ilusões, Nietzsche ataca um dos
alicerces mais sólidos sob o qual se ergueu não só a ciência, mas também a
filosofia: a conceituação. “Todo conceito surge pela igualação doo-igual”.
(NIETZSCHE, 2008b, p. 35). Conceitos não passam também de conchas vazias,
de uma metáfora, de uma ilusão que se esqueceu que era apenas uma iluo.
Nietzsche situa o cientista como aquele que se move em um mundo de
conceitos, “sem saber que os conceitos o metáforas esvaziadas e pobres
de sentido (FINK, 1988, p. 35). Novamente, como ocorrera em NT, Nietzsche
contrae o homem científico, ou o tipo científico, ao artista. O primeiro não
mais detecta a mentira dos conceitos, considera-os como a ppria essência
das coisas; o segundo, ao contrário, luta permanentemente contra as
convenções conceituais. Concatenando suas ideias anteriormente expostas em
NT e em CP
56
, Nietzsche reafirma a superioridade do saber artístico em relação
ao saber científico. O que o leva a afirmar, por exemplo, que a arte é mais
poderosa do que o conhecimento, pois é ela que quer a vida, e ele alcança
apenas, como última meta, o aniquilamento. (NIETZSCHE, 2007a, p.30).
Como a arte é somente possível como mentira? [...] A arte dem a
alegria de despertar creas por meio das superfícies: mas o somos
enganados! Senão a arte acabaria. A arte nos faz deslizar numa ilusão
mas não somos enganados? De onde vem a alegria de uma ilusão
procurada, na aparência que é sempre conhecida como aparência? A
arte trata, portanto, a aparência como aparência, não quer, pois,
enganar, é verdadeira. A pura consideração sem desejo só é possível
com a aparência que é reconhecida como aparência, que o quer de
modo algum conduzir à crença e, nessa medida, o incita em absoluto
nossa vontade. Só aquele que pudesse considerar o mundo inteiro
como aparência estaria em condições de considerá-lo sem desejo e
sem instinto: o artista e o fisofo. Aqui o instinto cessa. Enquanto
procurarmos a verdade no mundo, ficamos sob o domínio do instinto:
mas este quer o prazer e não a verdade, quer a crença na verdade, isto
é, os efeitos de prazer dessa crença. (NIETZSCHE, 2007c, p. 98-99).
Nota-se que, novamente, Nietzsche endossa sua tese de que o que move
os homens em direção à verdade é somente os efeitos prazerosos que dessa
advém. O homem quer as conseqüências agraveis da verdade, que
conservam a vida; [...] frente às verdades possivelmente prejudiciais ele se
56
Sobre o pathos da verdade.
71
indispõe com hostilidade, inclusive. (NIETZSCHE, 2008b, p 30). Desse modo,
Nietzsche conclui que
Ainda não sabemos donde provém o impulso à verdade: pois até agora,
ouvimos falar apenas da obrigação de ser veraz, que a sociedade, para
existir, institui, isto é, de utilizar as metáforas habituais; portanto, dito
moralmente; da obrigação de mentir em rebanho num estilo a todos
obrigatório. O homem decerto se esquece que é assim que as coisas
se lhe apresentam; ele mente, pois da maneira indicada,
inconscientemente e conforme hábitos seculares e precisamente por
meio dessa inconsciência, justamente mediante esse esquecer-se,
atinge o sentimento da verdade. (NIETZSCHE, 2008b, p 37).
Torna-se agora mais claro o modo como Nietzsche concebe a oposição
entre a verdade e a mentira. Elas são construções que resultam da vida no
rebanho e da linguagem que lhe corresponde. O homem gregário denomina
assim de verdade aquilo que o conserva no rebanho e chama de mentira aquilo
que o ameaça ou o exclui do rebanho. Com efeito,
a verdade e a mentira são ditas a partir do critério da utilidade ligada à
paz no rebanho. Assim, os gestos, as palavras e os discursos que
manifestem uma experiência individual própria em oposição ao
rebanho, ouo são compreendidos ou trazem mesmo perigo para
aqueles que assim se mostrem. Portanto, em primeiro lugar, a verdade
é verdade do rebanho. (MELO SOBRINHO, 2001, p. 6).
Nota-se, frente a tal constatação, que outro aspecto desperta a atenção
do filósofo alemão: O instinto do conhecimento tem uma fonte moral.
(NIETZSCHE, 2007c, p. 44). A contenda de Nietzsche toma então novos rumos:
seu novo alvo agora é a moral.
4.2 A interpretação nietzschiana do cristianismo
Antes de se adentrar na investigação elaborada por Nietzsche sobre a
moral, faz-se pertinente relembrar que a moral alvo da crítica nietzschiana é
essencialmente a moral cris. Com efeito, julga-se necessário precisar agora a
que Nietzsche se refere ao empregar o termo cristianismo. Segundo a
interpretação do fisofo não é lícito tratar isoladamente o cristianismo. Sua
72
compreensão só pode advir ao considerá-lo conjuntamente à filosofia platônica.
Cristianismo e platonismo o, para o filósofo alemão, duas faces de uma
mesma moeda. Como resultante, estabelece-se no pensamento nietzschiano um
elo indissolúvel entre filosofia, moral, metafísica e religião
57
.
É pertinente relembrar que Nietzsche considera toda a chamada tradição
filofica herdeira do pensamento socrático-planico e este, em sua
interpretação singular, é visto como o declínio, ao invés do apogeu da filosofia
clássica grega. Sobretudo em seus primeiros escritos
58
, Nietzsche não esconde
a sua preferência aos filósofos pré-socráticos, ou o que ele, singularmente,
denomina de pré-platônicos.
Ninguém ficará chocado por eu falar dos filósofos pré-platónicos como
se formassem uma sociedade coerente, e por pensar em dedicar só a
eles este critério. [...] É uma grande desgraça que tenhamos
conservado tão pouco destes primeiros mestres da filosofia e que só
nos tenham chegado fragmentos. Por causa desta perda, aplicamos-
lhes, involuntariamente, medidas erradas e somos injustos para com os
Antigos, em virtude do facto puramente casual de nunca terem faltado
nem admirados nem copiadores a Platão e a Aristóteles. (NIETZSCHE,
2002, p. 23-24).
Deleuze acrescenta uma valiosa contribuição ao assinalar que, para
Nietzsche,
a degenerescência da filosofia aparece claramente com crates. Se
definimos a metafísica pela distinção de dois mundos, pela oposição da
essência e da aparência, do verdadeiro e do falso, do inteligível e do
sensível, é preciso dizer que Sócrates inventou a metafísica: ele faz da
vida qualquer coisa que deve ser julgada, medida, limitada, e do
pensamento, uma medida, um limite, que exerce em nome de valores
superiores o Divino, o Verdadeiro, o Belo, o Bem... Com Sócrates,
aparece o tipo de um filósofo volunria e subtilmente (sic) submisso.
(DELEUZE, 1990, p. 19-20).
Sócrates constituiria assim a ppria antítese do que Nietzsche elege
como um filósofo. Para Nietzsche, o filósofo é
um homem que continuamente vê, vive, ouve, suspeita, espera e sonha
coisas extraordinárias; que é colhido por seus próprios pensamentos,
como se eles viessem de fora, de cima e de baixo, constituindo a sua
espécie de acontecimentos e coriscos; que é talvez ele próprio um
temporal. Caminhando prenhe de novos raios; um homem fatal, em
torno do qual há sempre murmúrio, bramido, rompimento, inquietude.
57
Outros detalhes a este respeito podem ser encontrados em Córdon (2001, p.163-199).
58
Em especial, veja-se A filosofia na idade trágica dos gregos.
73
Um filósofo: oh, um ser que tantas vezes foge de si, que muitas vezes
tem medo de si mas é sempre curioso demais para não voltar a si”...
(NIETZSCHE, 2005a, p. 176)
Destaca-se, aqui, um ponto na citação de Deleuze, acima explicitada: o
fato da metafísica socrática transformar a vida em algo que pode ser julgado,
medido e limitado. Ato contínuo tem-se Platão, legatário e propagador da
filosofia soctica, que passa a ser considerado por Nietzsche, o grande, se o
o maior e mais importante opositor da vida e da verdade que existiu. Segundo
Nietzsche, com Platão, começa uma coisa completamente nova”. (NIETZSCHE,
2002, p. 23). Tem-se início a maior, a mais nociva mentira já formulada e
vivenciada ao longo da história. Uma mentira que se tornaria sagrada.
Crítica da mentira sagrada Que a mentira seja autorizada para fins
piedosos, isso pertence à teoria de todo sacerdócio, quanto isso
pertence à sua práxis deve ser o objeto da presente investigação.
Mas também os filósofos, tão logo tencionem, com secretos desígnios
sacerdotais, tomar em mãos a condução dos homens, também
reivindicam para si, de imediato, um direito de mentir: Platão à frente.
(NIETZSCHE, 2008a, p. 99).
Nesse aforismo, Nietzsche evidencia o enlace existente entre platonismo
e cristianismo. Ambos o acometidos pela mentira sagrada. Isso se deve à sua
peculiar interpretação na qual a filosofia platônica se fundamenta em uma
concepção dualista do mundo, estabelecendo uma oposição de valores entre
duas esferas distintas da realidade ou do ser: o mundo das ideias (verdadeiro)
em contraponto ao mundo sensível (aparente). Destarte, de um lado existiria um
domínio ideal, considerado por Platão como o verdadeiro mundo ou a realidade
verdadeira, assim denominado por ser o plano das essências, isto é, aquilo que,
em todo e qualquer fenômeno constitui sua pura forma ou conceito.
Tais formas puras, denominadas ideias por Platão, o inacessíveis aos
nossos óros dos sentidos; e imutáveis, uma vez que não estão submetidas às
leis do espaço e do tempo. Por serem as responsáveis pela realidade de todo o
real, as ideias platônicas foram denominadas pela tradão filosófica como
realidade inteligível, em contraposição a uma segunda ordem de realidade ou
do mundo, a realidade aparente ou sensível, que é aquela de que temos
experiência ordinária.
74
Para Nietzsche, tal dualidade constitui a primeira etapa de uma longa
história de sucessivos erros que revelam como o mundo verdadeirose tornou
finalmente fábula. “O mundo verdadeiro, alcançável para o sábio, o devoto, o
virtuoso ele vive nele, ele é ele. (A mais velha forma da ideia, relativamente
sagaz, simples, convincente. Pafrase da tese: Eu, Plao, sou a verdade.)
(NIETZSCHE, 2006b, p. 31).
A segunda etapa dessa história de um erro é a apropriação, ou segundo
Nietzsche, a popularização da filosofia platônica pelo cristianismo.
O verdadeiro mundo, inalcançável no momento, mas prometido para o
sábio, o devoto, o virtuoso (para o pecador que faz penitência).
(Progresso da ideia: ela se torna mais sutil, mais ardilosa, mais
inapreensível ela se torna mulher. Torna-se cristã...). (NIETZSCHE,
2006b, p. 31).
Nessa perspectiva, para Nietzsche, o cristianismo, tanto como religião
quanto como doutrina moral constitui uma versão vulgarizada do platonismo,
adaptada às necessidades e aos anseios das massas populares, o que ele
chama de “o platonismo para o povo (NIETZSCHE, 2005a, p.8).
A equivalência que Nietzsche estabelece entre o platonismo e o
cristianismo deve-se, sobretudo, ao que fato de que em ambos o mundo supra-
sensível, por ser ideal, se revela inatingível, e essa inacessibilidade constitui-se
como uma força caluniadora do mundo e do homem.
59
Com efeito, o
cristianismo e a sua moral são interpretados no pensamento nietzschiano como
uma realidade que remonta à larga interpretação que reconheceu na decisão
socrático-platônica uma desvaloração do mundo.
60
Uma decisão perigosa. A
decisão cris de achar o mundo feio e ruim tornou o mundo feio e ruim.
(NIETZSCHE, 2001, p. 151).
Segundo Nietzsche, a filosofia platônica estabeleceu a supremacia da
razão em detrimento da sensualidade e dos instintos. Por outro lado, o
cristianismo enfatizou a supremacia do mundo verdade (ideal/transcendente)
em prejuízo ao “mundo sensível (aparente), criando novos sentidos e valores.
Apesar das ressalvadas diferenças entre a concepção platônica e cristã, o valor-
59
Destaca-se que este aspecto é de fundamental importância para se chegar a compreender a crítica
de Nietzsche ao niilismo identificado como moral cristã.
60
Veja-se sobre este aspecto o artigo de Juan Manuel Navarro Cordón, Nietzsche: De la libertad del
mundo.
75
verdade está presente em ambas. Esse valor expressa a pretensão de conhecer
a natureza e o sentido da existência humana em categorias como finalidade,
unidade e verdade. Como consequência, temos que, ao longo da história, a
tradão do pensamento ocidental construiu conceitos e teorias que se
consagraram como verdades, produzindo valores e sentido para os homens,
sobretudo a partir da invenção do conceito de Deus.
A noção de Deus inventada como noção-antítese à vida tudo
nocivo, venenoso, caluniador, toda a inimizade de morte à vida, tudo
enfeixado em uma horrorosa unidade! Inventada a noção de “além,
mundo verdadeiro, para desvalorizar o único mundo que existe para
não deixar à nossa realidade terrena nenhum fim, nenhuma razão,
nenhuma tarefa! (NIETZSCHE, 1995, p. 116).
Revela-se assim, uma, seo a grande, tarefa autoimposta por Nietzsche
à sua filosofia. A de travar um combate, sem precedentes, contra tudo o que se
opõe à vida. Sua tarefa: redimir o mundo; seu alvo: o conceito de Deus e aquilo
que o sustenta a moral cristã. Com efeito,
o conceito de „Deus foi, a agora, a maior objeção à existência... Nós
negamos Deus, nós negamos a responsabilidade em Deus: apenas
assim redimimos o mundo. (NIETZSCHE, 2006b, p. 47).
E ainda,
a moral cristã foi até agora a Circe de todos os pensadores eles
estiveram a seu serviço. Quem, antes de mim, adentrou as cavernas de
onde sobe o venenoso bafo desta espécie de ideal a difamação do
mundo? Quem ousou sequer pressentir que são cavernas? Quem,
entre os filósofos, foi antes de mim psicólogo, e não o seu oposto,
superior embusteiro”, idealista? Antes de mim não havia
absolutamente psicologia. (NIETZSCHE, 1995, p. 114).
De forma que para Nietzsche,
o sentimento de desvaloração foi alcançado quando se compreendeu
que o caráter total da existência não pode ser interpretado nem com o
conceito de fim, nem com o de unidade, nem com o de verdade.
Com isso o se chega a nada e o se obtém coisa alguma; falta a
unidade que tudo abarca na multiplicidade do acontecer: o caráter da
existência não é verdadeiro”, é falso... não se tem, pura e
simplesmente, nenhuma razão mais para iludir-se com um mundo
verdadeiro... (NIETZSCHE, 2008a, p. 32).
76
Nietzsche julga que o
cristianismo é um mal-entendido no fundo, houve apenas um
cristão, e ele morreu na cruz. O evangelho‟ morreu na cruz. O que
desde então se chamou „evangelho já era o oposto daquilo que ele
viveu: uma „má nova, um disangelho
61
. (NIETZSCHE, 2007, p. 45).
Sendo assim, o cristianismo
62
que é alvo da crítica nietzschiana, esta fé
negadora, esta moral reativa e repressora, é identificado por Nietzsche como
cristianismo ascético, em suas múltiplas variações, seja na arte, na filosofia, na
moral, na metafísica ou na religo.
É numa vontade incapacitada para a afirmação da vida e do mundo que o
filósofo identifica o cristianismo como o ideal ascético por excencia. Na
expressão cristianismo, Nietzsche quer referir-se a essas forças reativas e
negativas, que atuam para a conservação de uma vida que degenera. Em suas
próprias palavras:
Nem a moral nem a religião, no cristianismo, têm algum ponto de contato
com a realidade. Nada senão causas imaginárias (“Deus”, “alma”, “Eu”,
“espírito”, “livre-arbítrio” ou também “cativo”); nada senão efeitos
imaginários (“pecado”, “salvação”, “graça”, “castigo”, “perdão dos pecados”).
Um comércio entre seres imaginários (“Deus”, “espíritos”, “almas”); uma
ciência natural imaginária (antropocêntrica; total ausência do conceito de
causas naturais), uma psicologia imaginária (apenas mal-entendidos sobre
si, interpretações de sentimentos gerais agradáveis ou desagradáveis dos
estados do nervus sympathicus, por exemplo com ajuda da linguagem de
sinais da idiossincrasia moral-religiosa “arrependimento”, “remorso”,
“tentação do Demônio”, “presença de Deus”); uma teologia imaginária (“o
reino de Deus”, “o juízo final”, “a vida eterna”). Esse mundo de pura ficção
diferencia-se do mundo sonhado, com enorme desvantagem sua, pelo fato
de esse último refletir a realidade, enquanto ele falseia, desvaloriza e nega
a realidade. Somente depois de inventado o conceito de “natureza”, em
oposição a “Deus”, “natural” teve de ser igual a “reprovável” todo esse
mundo fictício tem raízes no ódio ao natural (-- a realidade! --), é a
expressão de um profundo mal-estar com o real... Mas isso explica tudo.
Quem tem motivos para furtar-se mendazmente à realidade? Quem com ela
sofre. Mas sofrer com a realidade significa ser uma realidade fracassada...
A preponderância dos sentimentos de desprazer sobre os sentimentos de
prazer é a causa dessa moral e dessa religião fictícias: uma tal
preponderância transmite a fórmula da décadence... (NIETZSCHE, 2007,
p.20-21).
63
61
Palavra cunhada, por Nietzsche, como antônimo de “evangelho”- “boa nova” em grego.
62
Destarte, não cabe, nesse sentido, por nenhuma comunidade que viva o seu cristianismo no
autêntico afirmar-se evangelicamente os valores inspirados pela prática cristã. Contudo, ali onde
essas forças se organizaram e se institucionalizaram uma metafísica da negação do mundo e da
liberdade, eis onde se deve encontrar o ponto que o filósofo pretende atingir com sua crítica. Por via
de análise, indica-se a vasta obra do filósofo/teólogo Paul Valadier.
63
Mais detalhes a este respeito podem ser encontrados em CI O erro das causas imaginárias, e em
ZA Os melhoradores da humanidade.
77
Com efeito, todos ostodos utilizados para até então são, segundo
Nietzsche, ineficazes para a elaboração de uma crítica ao cristianismo. O que
leva o filósofo alemão a criar um novo caminho que ele denomina método
genealógico. Penetra-se assim no que, para Valadier, constitui-se uma intenção
declarada de Nietzsche: desenvolver uma «genealogia» do cristianismo”
(VALADIER, 1974, p.15, tradução nossa)
64
. Configurando-se como uma conquista
decisiva da filosofia de Nietzsche, segundo Pimenta (1999, p.32), otodo
genealógico insurge contra os procedimentos consagrados do filosofar, que
exigem pontos fixos como credenciais para a validade e o sentido de qualquer
argumento. Em sua Genealogia da moral, Nietzsche se vale de tal método e
interpreta, de maneira singular, a relação entre a verdade e a moral. “A melhor
maneira de enganar a humanidade é com a moral! afirma Nietzsche (2007b,
p.52).
Procurar-se agora refazer os passos de Nietzsche na tentativa de
compreender por que, para ele, o cristianismo com sua moral é a grande
mentira que perdura dois mil anos.
4.3 Da tragédia grega ao todo genealógico
Em NT, Nietzsche argumenta que:
para os gregos de antes do início da metafísica (para Nietzsche,
Platão) a arte justifica a vida. Doadora das formas por excelência, a
arte salva o homem do abismo que há por trás de cada forma e de
cada figura que constitui o mundo como mundo em que podemos viver.
Por isso a arte tem um estatuto ontológico tão profundo na filosofia
nietzschiana: ela produz as condões em que a humanidade pode
viver. É essa negociação entre o devir e a forma que o filósofo
Sócrates e, depois dele, Platão, recusam. (BEARDWORTH, 2003, p.39-
40).
Anos mais tarde, em sua Genealogia da Moral, o filósofo alemão inicia
uma nova, mas não menos polêmica
65
, empreitada. Pode-se dizer que é em GM
que a complexidade que se encontra ats do pensamento metafísico se
64
Una intención declarada de Nietzsche: desarrollar una «genealogía del cristianismo».
65
“Uma Polêmica” é justamente o subtítulo da obra. Segundo Giacóia Júnior (2001b) com ele,
Nietzsche destaca o traço mais marcante do livro: o aspecto combativo, de confrontação, presente
na origem etimológica do termo (do grego polemikê: combate, disputa, peleja).
78
destaca com maior vigor em Nietzsche. Na referida obra, Nietzsche lança-se à
tarefa de remontar às condições de nossos valores e de suas funções. Se em
NT o modo grego de valorar a existência chamou a atenção de Nietzsche, agora
em GM era o momento de se investigar a gênese desse peculiar modo de
valoração. Em suas três dissertações, o filósofo alemão laa-se ao desafio de
investigar o somente a origem histórica de nossas supremas referências de valor, mas
também de fazer uma nova avalião do valor desses valores.
Ao utilizar o termo valor Nietzsche utiliza-o operando uma dupla
subversão crítica. Em um primeiro movimento, se pergunta sobre o valor dos
valores. Ato contínuo levanta-se a pergunta pela criação desses valores. Para
Nietzsche, ainda não se havia posto em causa o valor dos valores “bem e
mal. Isso porque, segundo ele, se supôs que tais valores existiram desde
sempre; instituídos num além, num transmundo no qual encontravam sua
legitimidade. Dessa forma, Nietzsche postula a necessidade de uma nova
exigência para se analisar a questão dos valores.
Enunciemo-la, esta nova exigência: necessitamos de uma crítica dos
valores morais, o próprio valor desses valores deverá ser colocado em
questão para isto é necessário um conhecimento das condições e
circunstâncias nas quais nasceram, sob as quais se desenvolveram e se
modificaram [...] Tomava-se o valor desses “valores” como dado efetivo,
como além de qualquer questionamento; até hoje não houve dúvida ou
hesitação em atribuir ao “bom” valor mais elevado que ao “mau”, mais
elevado no sentido da promoção, utilidade, influência fecunda para o
homem (não esquecendo o futuro do homem). E se o contrário fosse a
verdade? E se no “bom” houvesse um sintoma regressivo, como um perigo,
uma sedução, um veneno, um narcótico, mediante o qual o presente
vivesse como que às expensas do futuro? (NIETZSCHE, 1998, p. 12-13).
Na tentativa de se elucidar tal questão, faz-se necessário retomar uma
fábula descrita por Nietzsche, em GM, intitulada: Os cordeiros e as aves de
rapina.
Mas voltemos atrás: o problema da outra origem dobom”, do bom
como concebido pelo homem do ressentimento, exige sua conclusão.
Que as ovelhas tenham rancor às grandes aves de rapina não
surpreende: mas o é motivo para censurar às aves de rapina o fato
de pegarem as ovelhinhas. E se as ovelhas dizem entre si: essas aves
de rapina o más; e quem for o menos possível ave de rapina, e sim o
seu oposto, ovelha este não deveria ser bom?”, não há o que objetar
a esse modo de erigir um ideal, exceto talvez que as aves de rapina
assistirão a isso com ar zombeteiro, e dirão para si mesmas: “nós nada
temos contra essas boas ovelhas, pelo contrário, nós as amamos: nada
79
mais delicioso do que uma tenra ovelhinha. (NIETZSCHE, 1998, p.35-
36).
A inversão de perspectiva operada por Nietzsche nesse pequeno trecho
revela um dos mais importantes objetivos de sua empreitada genealógica:
mostrar que antes do valor dos valores serem consagrados pela moral cris
existiam outros valores, outra forma de se valorar o modo nobre ou a moral
aristocrática. Através do procedimento genealógico, Nietzsche procura
demonstrar que os valores não têm valor em si, são frutos de elaborações
culturais. Fortes e fracos, nobres e ressentidos, senhores e escravos o
constituem a priori metafísicos nem essências atemporais; são tipos que
emergem da pesquisa histórica. Desse modo, nada do que é relevante no
mundo da história e da cultura pode ou deve ser tomado independentemente.
Tudo deve ser considerado dentro de uma cadeia contínua de acontecimentos.
Nesse sentido, vejamos ainda outro trecho da obra em questão, de
grande valia, para melhor entendermos porque Nietzsche considera os valores
cristãos des-valores.
A rebelião escrava na moral começa quando o próprio ressentimento se
torna criador e gera valores: o ressentimento dos seres aos quais é
negada a verdadeira reação, a dos atos, e que apenas por uma
vingança imaginária obtêm reparação. Enquanto toda moral nobre
nasce de um triunfante Sim a si mesma, já de início a moral escrava diz
Não a um “fora”, um “outro”, um “não-eu e este Não é seu ato
criador. Esta inversão do olhar que estabelece valores este
necessário dirigir-se para fora, em vez de voltar-se para si é algo
próprio do ressentimento: a moral escrava sempre requer, para nascer,
um mundo oposto e exterior, para poder agir em absoluto sua ação é
no fundo reação. O contrário sucede no modo de valoração nobre: ele
age e cresce espontaneamente, busca seu oposto apenas para dizer
Sim a si mesmo com ainda maior júbilo e gratidão seu conceito
negativo, o baixo, comum”, ruim, é apenas uma imagem de
contraste, pálida e posterior, em relação ao conceito básico, positivo,
inteiramente perpassado de vida e paixão, “nós, os nobres, nós, os
bons, os belos, os felizes!. (NIETZSCHE, 1998, p.28-29).
Conjugando-se as duas passagens postas em cena anteriormente
percebe-se que as ovelhas são, para Nietzsche, a representação do tipo
escravo, ressentido, fraco. É este quem primeiro concebe a ideia de mau, com
que designa o tipo nobre, corajoso, mais forte que ele, ou seja, as aves de
rapina como antese à concepção de “bom”. o forte, por sua vez, concebe
espontaneamente o princípio “bom a partir de si mesmo e depois cria a ideia
80
de ruim como, nos diz Nietzsche, “uma pálida imagem de contraste
(NIETZSCHE, 1998, p.28). Do ponto de vista do forte, ruim é apenas uma
criação secundária, enquanto para o fraco, mau é a criação primeira, segundo
Marton (1993, p. 45), o ato fundador da sua moral.
É, sobretudo na primeira dissertação de sua Genealogia da Moral que
Nietzsche desenvolve tal ideia.
A verdade da primeira dissertação é a psicologia do cristianismo: o
nascimento do cristianismo do esrito do ressentimento, não, como se
crê, do espírito” um antimovimento em sua essência, a grande
revolta contra a dominação dos valores nobres. (NIETZSCHE, 2005, p.
97).
Nela, posicionando-se contra os psicólogos ingleses e sua ciência da
moral, Nietzsche esfoa-se para demonstrar que o conceito bom não deriva
como um predicado atribuído às ações altruístas por parte daqueles que o
beneficiários de seus efeitos. Efeitos esses que seriam extremante úteis e
beficos à comunidade. O caminho proposto por Nietzsche, em sua pesquisa
genealógica, segue uma direção radicalmente oposta. Segundo Giacóia (2001,
p.24), sua intuição segue com a pergunta pelo referente designado pelo
conceito bom em diversas línguas”. Graças a um exame etimogico a respeito
da questão, Nietzsche constata em todos os idiomas examinados por ele
(alemão, latim, grego, etc.), a mesma metamorfose conceitual: o elemento
básico originário para “bom é o conceito “nobre,aristocrático. O sentido
proveria de nobre de alma ou de sentimentos nobres; aristoctico.
A indicação do caminho certo me foi dada pela seguinte questão: que
significam exatamente, do ponto de vista etimológico, as designações
para bomcunhadas pelas diversas línguas? Descobri então que todas
elas remetem à mesma transformação conceitual que, em toda parte,
nobre, aristocrático, no sentido social, é o conceito básico a partir do
qual necessariamente se desenvolveu bom, no sentido de
espiritualmente nobre”, aristocrático, [...] um desenvolvimento que
sempre corre paralelo à aquele outro que faz plebeu, comum,
baixo transmutar-se finalmente em ruim. (NIETZSCHE, 2004. p. 21).
Uma modalidade diversa de valoração é aquela que se exprime no
antagonismo entre bom e mau, neste tem o sentido de malvado (e não de ruim).
Ela tem origem no polo oposto, de onde surge a valoração nobre, ou seja, entre
os dominados. Portanto, esse modo de avaliar tem como pressuposto um tipo
81
humano e social contrário ao tipo do guerreiro aristocrático. Se estes o os
dominadores, os fortes, os senhores, o seu oposto o os dominados, os fracos,
os escravos, ou seja, o cristão para Nietzsche.
Precisamente o oposto do que sucede com o nobre, que primeiro e
espontaneamente, de dentro de si, concebe a noção básica de “bom”, e a
partir dela cria para si uma representação de “ruim”. Este ruim” de origem
nobre e aquele “mau” que vem do caldeirão do ódio insatisfeito o primeiro
uma criação posterior, secundária, [...] o segundo, o original, o começo, o
autêntico feito na concepção de uma moral escrava como são diferentes
as palavras “mau” e “ruim”, ambas aparentemente opostas ao mesmo
sentido de “bom”. (NIETZSCHE, 2004, p. 31-32).
Destarte, para a moral dos escravos, bom significa o contrário de bom na
moral aristocrática, ou seja, o conceito denota todas as qualidades que, do
ponto de vista desta última, identificavam os maus, no sentido de ruins, de baixa
qualidade.
Por outro lado, o termo mau, da perspectiva da moral escrava, recobre o
conjunto das virtudes nobres, particularmente os traços agressivos e
dominadores do guerreiro, sua atividade e sua força. Por essa razão, do ponto
de vista da moral escrava, o significado principal do conceito mau é formado por
malvado, em referência ao tipo ativo que fere, ataca, domina, violenta, subjuga.
Segundo Giaia Júnior,
enquanto a moral aristocrática exalta a atividade, vendo na efetivação
espontânea da poncia o seu valor principal, a moral plebéia é
essencialmente, reativa. Seus valores e conceitos não são produzidos
a partir da auto-afirmação, como fonte de avaliação. O tipo de
moralidade que neles se configura tem necessidade de um estímulo
externo, em oposição ao qual ele se constitui; vale dizer, o elemento de
negatividade constitui sua condição de existência, razão pela qual se
pode afirmar que ela se origina a partir da reação e seu tipo humano
correspondente é classificado, por Nietzsche, como um tipo reativo.
(Giacóia Júnior, 2001b, p.31)
É nessa oposição entre atividade e reação que Nietzsche vislumbra o
cristianismo como uma religião astica, marcada por uma vontade adoecida e
fruto do ressentimento. O homem ressentido é o não-espontâneo por
excelência. Alguém que tem necessidade de algum elemento externo a que
possa se contrapor, ao qual possa reagir. Trata-se de uma modalidade singular
de reação, que tem a natureza da vingança e constitui a marca distintiva da
impotência: quem não tem em si mesmo o princípio de sua ação, aquele que
82
não pode seo reagir, consegue se ressarcir de sua impotência vingando-se
daquele (ou daquilo) contra quem (ou que) reage. Segundo o filósofo,
[...] quanto menos sabe alguém comandar, tanto mais anseia por
alguém que comande, que comande severamente por um deus, um
príncipe, uma classe, um médico, um confessor, um dogma, uma
consciência partidária. De onde se concluiria, talvez, que as duas
religiões mundiais, o budismo e o cristianismo, podem dever sua
origem, e mais ainda a bita propagação, a um enorme adoecimento
da vontade. (NIETZSCHE, 2001, p. 241).
O ressentido é também, basicamente, um sofredor. A causa do sofrimento
reside na impotência para a ação. É nesse sofrimento origirio que a vingança
tem sua raiz psicológica e metafísica: o ressentimento vislumbra naquele a
quem se opõe o culpado por seu sofrimento. Nietzsche analisa que o que mais
incomoda ao crente não é o sofrimento, mas a falta de motivo pelo qual se
sofre. Uma vez justificado, qualquer sofrimento é suportado e até mesmo
desejado. A moral cristã seria então, para Nietzsche, uma elaborada forma de
se justificar o sofrimento.
Os ideais asticos, interpretados na perspectiva da religião cristã por
Nietzsche, expressam a supressão da vontade própria, da renúncia aos
impulsos de conservação e reprodução. Tal postura encontra seu modelo,
segundo Nietzsche, na ptica de vida dos santos, dos místicos, dos membros
de ordens religiosas, especialmente nos votos de obediência, pobreza e
castidade. Para Nietzsche (2005, p.48), “desde o começo a fé cristã é sacrifício:
sacrifício de toda a liberdade, todo orgulho, toda confiança do espírito em si
mesmo”. E ainda, onde quer que a neurose religiosa tenha aparecido na Terra,
nós a encontramos ligada a três prescrições dietéticas perigosas: solidão, jejum
e abstinência sexual (NIETZSCHE, 2005, p.49).
Com efeito, para Nietzsche, os valores cristãos constituem, na verdade,
um des-valor. Pois foram forjados dentro da lógica do ascetismo. São frutos de
uma vontade fraca e decadente. Na valoração da existência pelo ideal ascético,
a vida se volta contra si mesma, nega-se a si mesma, e faz dessa negação o
caminho ascendente para uma outra forma de existência, para o além, o Nada,
o Nirvana, a Vida Eterna. O ascetismo se apresenta, pois, como uma negação
da vontade de viver, uma forma de vida que nega a existência terrena, a única
83
de que dispomos. Para Nietzsche, o ideal ascético é uma perigosa estragia
uma vez que
nasce do instinto de cura e proteção de uma vida que degenera, a qual
busca manter-se por todos os meios, e luta por sua existência; indica
uma parcial inibição e exaustão fisiológica, que os instintos de vida
mais profundos, permanecidos intactos, incessantemente combatem
com novos meios e invenções. O ideal astico é um tal meio: ocorre,
portanto, exatamente o contrário do que acreditam os adoradores
desse ideal a vida luta nele através dele com a morte, contra a morte,
o ideal ascético é um artifício para a preservação da vida.
(NIETZSCHE, 1998, p.109-110).
Destacamos que o tipo de vida preservada pela moral cristã é, para
Nietzsche, um tipo de vida que degenera e que, com todas as suas foas, luta
desesperadamente contra a morte, pela autoconservação. Não nos esqueçamos
que, segundo Nietzsche (1998, p.101), “o ideal ascético é um artifício para a
preservação da vida. Nesse sentido, concordarmos com Pimenta quando ele
nos diz que:
menos iconoclasta e ruidoso que poderia parecer à primeira vista, o
que este Nietzsche genealogista desenvolve, prioritariamente, são as
implicões do exercício de sua própria consciência intelectual: afinal,
não se trata de r o ideal em causa apenas a título de escândalo, mas
sim, de esclarecer sua ação deletéria e de apontar alternativas para
uma vida livre dela. (PIMENTA, 2008, p. 178)
Uma vida livre do ideal astico só pode ser concebida, segundo
Nietzsche, quando o maior de todos os acontecimentos, ou o presente trazido
por Zaratustra
66
, for finalmente compreendido pelos homens: a morte de Deus.
4.4 A verdade na vontade de verdade
Heidegger (2002) destaca que a frase de Nietzsche “Deus morreu o se
reduz a expressar o simples pensamento de ateus, mas materializa o complexo
desenrolar do niilismo na filosofia nietzschiana. A tentativa de comentar o dito
de NietzscheDeus morreu‟ é equivalente à tarefa de interpretar aquilo que
66
Cf. ZA, prólogo, 2.
84
Nietzsche compreende por niilismo (HEIDEGGER, 2002, p.252). Segundo
Heidegger (2002), Deus e o Deus cristão o ambos utilizados, por Nietzsche,
para representar o mundo suprassenvel em geral e as suas diferentes
interpretações, sejam elas ideais, normas, prinpios, regras, fins ou valores
que, desde Sócrates-Platão, estabelecem a compreensão do mundo a partir da
concepção dual caracterizada por um mundo real (verdadeiro) e um mundo
muvel (aparente). Portanto, pensar o fim do platonismo assim compreendido
significa pensar o acontecimento do niilismo em sua radicalidade.
Adentra-se agora em um ponto fundamental da filosofia de Nietzsche: o
niilismo. Se em o NT o pessimismo era seu sinônimo, ou melhor dito, a primeira
forma vislumbrada pelo filósofo alemão do niilismo, em suas obras de
maturidade o termo passa por uma significativa evolução. Segundo Ricard,
quando se publicou A gaia Cncia, Nietzsche perdeu todas as suas
ilusões quanto ao renascimento da tragédia graças à ópera de Wagner,
e depois quanto ao papel cultural da Alemanha na Europa. O problema
do niilismo continua a absorvê-lo, mas duas mudanças importantes
fazem-se sentir. Em primeiro lugar, em vez de deixar apenas para a
arte o papel da salvação, Nietzsche remete-se, desta vez, à filosofia,
interpelada como assunto de espíritos livres. Essa filosofia faz pensar
na fenomenologia, na medida em que parte da experiência vivida e se
confia ao mundo das aparências para penetrar sua verdade. Enfim, em
vez de pensar pela Antiguidade, Nietzsche se finca agora com os dois
pés no presente. Situa bem no centro o problema da morte de Deus.
(RICARD, 2009, p. 281).
Diante desse processo, a filosofia nietzschiana se apresenta como a
completa destruição do “mundo verdadeiro. O mundo suprassensível tornou-se
hipótese supérflua que deve ser abolida. Mas, resta ainda o problema: abolido o
mundo suprassensível, o que fica em seu lugar? E que sentido tem o mundo
sensível depois de abolido o mundo ideal? Em outras palavras, se Deus está
morto, se o ideal, a finalidade, o telos, que por tanto tempo norteou os valores
vigentes no ocidente perdeu seu valor, o que permanece em seu lugar?
Essa pergunta se constitui em um dos maiores problemas para a
humanidade. Na tentativa de entendermos o porquê, é preciso investigar a
essência da vontade de verdade, melhor dito, a sua origem.
Encontram-se em GC importantes considerações que Nietzsche tece
sobre a vontade de verdade. É, sobretudo nessa obra que o filósofo aprofunda a
sua peculiar interpretação da existência de uma relação em comum entre a
85
ciência, a moral e a religião. Para ele, todas essas instâncias o erigidas tendo
como base o mesmo pressuposto: a inexorável exigência de certezas. Nesse
sentido, destaca-se o aforismo intitulado os crentes e a sua necessidade de
crer” onde se lê:
o quanto de alguém necessita para crescer, o quanto de “firme”, que não
quer ver sacudido, pois nele se segura eis uma medida de sua força (ou,
falando mais claramente, de sua fraqueza). Na velha Europa de hoje,
parece-me que a maioria das pessoas ainda necessita do cristianismo: por
isso ele continua a ser alvo de crença. Pois assim é o homem: um artigo de
poderia lhe ser refutado mil vezes desde que tivesse necessidade dele,
sempre voltaria a tê-lo por “verdadeiro”, conforme a célebre “prova de força”
de que fala a Bíblia
67
. Alguns ainda precisam da metafísica; mas também a
impetuosa exigência de certeza que hoje se espalha de modo científico-
positivista por grande número de pessoas, a exigência de querer ter algo
firme (enquanto, no calor desta exigência, a fundamentação da certeza é
tratada com maior ligeireza e descuido): também isso é ainda a exigência
de apoio, de suporte, em suma, o instinto de fraqueza que, é verdade, não
cria religiões metafísicas, convicções de todo tipo mas as conserva.
(Nietzsche, 2001, p. 240).
Dois pontos destacam-se na citação acima. Primeiro, a necessidade
humana de algo firme, seguro em que se apoiar. Com isso, Nietzsche retoma
uma de suas antigas intuições presente em VM.
Se o homem de ão une sua vida à razão e a seus conceitos, para
não ser arrastado e não se perder a si mesmo, o pesquisador, de sua
parte, constrói sua cabana junto à torre da ciência, para que possa
prestar-lhe assistência e encontrar, ele próprio, amparo: pois há forças
terríveis que lhe irrompem constantemente e que opõem às verdades
científicas verdades de um tipo totalmente diferente com as mais
diversas espécies de emblemas. (NIETZSCHE, 2008b, p. 36-37).
O segundo ponto é o fato da crítica nietzschiana à verdade não se
restringir isoladamente a uma crítica à rao, à metafísica, à moral ou à religião,
pois alguns ainda precisam da metafísica; mas também a impetuosa exigência
de certeza que hoje se espalha de modo científico-positivista”, afirma Nietzsche
(2001, p.240). GC marca o desenvolvimento, elaborado por Nietzsche, da
relação intrínseca entre ciência, convicção e verdade.
Na cncia as convicções não m direito de cidadania, é o que se diz
com boas razões: apenas quando elas decidem rebaixar-se à modéstia
67
Alusão a uma passagem da primeira epístola de São Paulo aos coríntios (2,4): “[...] a minha palavra
e a minha pregação não consistiram em discursos persuasivos de sabedoria, mas na demonstração
do Espírito e da força divina”.
86
de uma hipótese, de um ponto de vista experimental e provisório, de
uma ficção reguladora, pode lhes ser concedida a entrada e até mesmo
um certo valor no reino do conhecimento embora ainda com a
restrição de que permaneçam sob vigilância policial, a vigilância da
suspeita. Mas isso não quer dizer, examinando mais precisamente,
que a convicção pode obter admissão na cncia apenas quando deixa
de ser convicção? A disciplina do espírito científico o começa
quando ele não mais se permite convicções?... É assim,
provavelmente; resta apenas perguntar-se, para que possa começar tal
disciplina, não é preciso haver já uma convicção, e aliás o imperiosa
e absoluta, que também a cncia repousa numa crea, que não existe
ciência sem pressupostos. A questão de a verdade ser ou não
necessária tem de ser antes respondida afirmativamente, e a tal ponto
que a resposta exprima a crença, o princípio, a convicção de que nada
é mais necessário do que a verdade, e em relão a ela tudo o mais é
de valor secunrio. (NIETZSCHE, 2001, p. 234-235).
Percebe-se que, para Nietzsche, a vontade de verdade é uma crença
crea na superioridade da verdade e é nela que a ciência se fundamenta.
Não cncia sem o postulado, sem a hipótese metafísica de que o verdadeiro
é superior ao falso, de que a verdade tem mais valor do que a apancia, a
ilusão.
Segundo Machado (1999), a argumentação de Nietzsche atinge o seu
ponto culminante quando a análise da relação intnseca entre ciência e moral
revela a homogeneidade delas como metafísica. Assim como a moral dos
escravos é uma moral metafísica porque julga a vida a partir de valores
superiores” a metafísica é, por natureza, niilista porque julga e desvaloriza a
vida em nome de um mundo suprassensível. Portanto, a condição de
possibilidade da ciência é, em última instância, a fé em um valor metafísico da
verdade.
Mas já terão compreendido onde quero chegar, isto é, que a nossa fé
na ciência repousa ainda numa crença metafísica que também nós,
que hoje buscamos o conhecimento, nós, ateus e antimetafísicos,
ainda tiramos nossa flama daquele fogo que uma fé milenar ascendeu,
aquela crença cristã, que era também de Platão, de que Deus é a
verdade, de que a verdade é divina... Mas como, se precisamente isto
se torna cada vez menos digno de crédito, se nada mais se revela
divino, com a possível exceção do erro, da cegueira, da mentira se o
próprio Deus se revela como a nossa mais longa mentira?
(NIETZSCHE, 2001, p. 236).
O reconhecimento de que a ciência e a religo compartilham da mesma
vontade de verdade ainda não é o suficiente para responder à pergunta a que
87
aqui se propôs: qual a origem da crença? Dois pontos são, para esse fim,
discutidos por Nietzsche.
O primeiro aparece em HH local onde Nietzsche descreve a origem da
crea através do hábito.
Origem da fé. [Herkunft des Glaubens] O espírito cativo o assume
uma posição por esta ou aquela razão, mas por hábito; ele é cristão,
por exemplo, não por ter conhecido as diversas religiões e ter escolhido
entre elas; [...] Habituar-se a prinpios intelectuais sem razões é algo
que chamamos fé. (NIETZSCHE, 2005c, p.144-145).
O segundo diz respeito à necessidade. Para se compreender esse ponto
é fooso retomar a questão do cristianismo enquanto necessidade. Para o
filósofo alemão, o projeto da modernidade, notadamente marcado pelo
desenvolvimento das ciências, parecia ser justamente o remédio capaz de
combater a doença do cristianismo. As ciências se desenvolviam rapidamente, e
o melhor, “sem Deus, sem Além e sem virtudes negadoras (NIETZSCHE, 1998,
p.136). Estaria, portanto, o ideal ascético finalmente destruído pelo ateísmo das
ciências? Ledo engano. O cientista não passa, segundo Nietzsche, de outro
sacerdote ascético. Ele também oferece um sentido à vida, oferece uma
verdade, impõe um valor. “Ambos, ciência e ideal ascético, acham-se no mesmo
terreno [...] na mesma superestimação da verdade (mais exatamente: na mesma
crea na inestimabilidade, incriticabilidade da verdade) [...]. (NIETZSCHE,
1998, p.141). Ambos são sintomas de decadência, ambos insistem em negar a
vida. Duas faces de uma mesma moeda. Tanto o edifício do cristianismo, quanto
o da ciência, ergue-se sob o mesmo alicerce: a convicção. Nietzsche em
Humano, demasiado humano, ao tratar dos inimigos da verdade, conclui que
convicções são inimigos da verdade mais perigosos que as mentiras.
(NIETZSCHE, 2005c, p.239).
Segundo Nietzsche, sabemos que o mundo que habitamos é imoral,
inumano e indivino por muito tempo nós o interpretamos falsa e
mentirosamente, mas conforme o desejo e a vontade de nossa veneração, isto
é, conforme uma . (NIETZSCHE, 2001, p. 239). Portanto, conclui-
se que “desta forma, a crença surge como uma necessidade humana, uma
necessidade de fé, de apoio, amparo (NIETZSCHE, 2001, p. 241). Segundo
Vattimo (1999), o homem, incapaz de lidar com sua condição mortal e com a
diversidade do mundo, entrega-se ao ignoto, ao medo e procura nas categorias
88
fortes do pensamento metafísico e do pensamento religioso um mecanismo
capaz de oferecer um sentido ao sofrimento e de neutralizar a sua finitude. É
justamente essa necessidade de criar estruturas asseguradoras da existência,
capazes de transcender a provisoriedade inerente à condição humana, que
reafirmam uma experiência religiosa ainda marcada pelo signo do niilismo.
A fé, enquanto necessidade, ainda encontra um importante
desdobramento no pensamento nietzschiano. A fé sempre é mais desejada,
mais urgentemente necessitada, quando falta a vontade. (NIETZSCHE, 2001, p.
241). Segundo Nietzsche,
[...] quanto menos sabe alguém comandar, tanto mais anseia por
alguém que comande, que comande severamente por um deus, um
príncipe, uma classe, um médico, um confessor, um dogma, uma
consciência partidária. De onde se concluiria, talvez, que as duas
religiões mundiais, o budismo e o cristianismo, podem dever sua
origem, e mais ainda a bita propagação, a um enorme adoecimento
da vontade. (NIETZSCHE, 2001, p. 241).
O crente é marcado então por uma vontade débil, doente. Segundo
Valadier (1974), a vontade débil é impotente para enfrentar o dinâmico jogo sob
o qual se pauta a verdade. A doença ou a debilidade surge justamente da
necessidade de se encontrar uma verdade a todo o custo, de se encontrar uma
certeza, uma convicção.
O fraco, o cristão, é incapaz, segundo Nietzsche, de compreender a
natureza da verdade. A verdade é vida, é devir. Para o filósofo, a única força de
vontade que os fracos e inseguros podem ser levados a ter é o fanatismo. Com
efeito, Nietzsche afirma, como citamos anteriormente, que para o ser humano:
um artigo de fé poderia lhe ser refutado mil vezes desde que tivesse
necessidade dele, sempre voltaria a tê-lo por verdadeiro
68
. A esta
hipnotização de todo o sistema sensório-intelectual, em prol da abundante
nutrição (hipertrofia) de um único ponto de vista e sentimento, que passa a
predominar o cristão o denomina sua . (NIETZSCHE, 2001, p. 241).
Finalmente, pode-se resumir aqui o essencial da crítica nietzschiana à
vontade de verdade. Não se trata de uma crítica dirigida especificamente à
religo. Ela desdobra-se em outros campos como, por exemplo, na cncia e
também na filosofia. Para Nietzsche, tanto o cientista como o homem religioso,
68
Conforme página 85 desta dissertação.
89
e até mesmo os filósofos, creem possuir a verdade. O intuito de Nietzsche, em
boa parte de suas obras é o de buscar o que se oculta atrás da verdade”. Não
é por acaso que seu método de investigação, por excelência, constitui-se de
uma genealogia.
No aforismo “A refutação histórica como refutação definitiva Nietzsche
nos diz:
Outrora buscava-se demonstrar que não existe Deus hoje mostra-se
como pôde surgir a crença de que existe Deus e de que modo essa
crença adquiriu peso e importância: com isso torna-se supérflua a
contraprova de que não existe Deus. Quando, outrora, eram
refutadas as “provas da existência de Deus apresentadas, sempre
restava a vida de que talvez fossem achadas provas melhores do
que aquelas que vinham de ser refutadas: naquele tempo os ateus não
sabiam limpar completamente a mesa. (NIETZSCHE, 2004, p. 71).
Deve-se ter em mente que para ele não existem fatos, apenas
interpretações, o que leva a sua filosofia a derrubar ídolos ou o que a agora
se denominou verdade. Nesse contexto é que Nietzsche contempla a crença
como uma necessidade humana. O ser humano tem buscado um sentido, uma
certeza ao longo de toda a tradição do pensamento ocidental. Justamente a
busca da verdade a todo custo resultou na construção por demais sólida de
convicções. Toda convicção gera uma crença e aprisiona o homem na verdade,
ou melhor, na sua verdade. Convicções o prisões, nos lembra Nietzsche em
seu O Anticristo
69
. A crença neste ou naquele ideal (científico ou religioso)
revela o que Nietzsche chama de adoecimento da vontade. Somente um ser
inseguro e fraco torna-se crente. Infelizmente, estes o, para Nietzsche, a
maioria dos seres humanos do seu tempo.
O homem de hoje eu sufoco com a sua respiração impura... Em
relação ao passado eu sou, todo o homem do conhecimento, de uma
grande tolerância, isto é, magnânimo auto-controle: com sombria
cautela eu atravesso o mundo-hospício de milênios inteiros, chame-se
ele “cristianismo”, “fé cristã,igreja cristã” evito responsabilizar a
humanidade por suas doeas mentais. Mas meu sentimento se altera,
rompe-se, o logo entro na era moderna, a nossa época. Nossa época
sabe... o que antes era apenas doente agora é indecente é indecente
ser cristão hoje em dia. E aqui começa o meu nojo. Olho ao redor:
não resta uma só palavra do que antes se chamava verdade, já não
agüentamos, se um sacerdote apenas pronuncia a palavra verdade”.
Hoje temos de saber, mesmo com uma exigência ínfima de retidão, que
um tlogo, um sacerdote, um papa, não apenas erra, mas mente a
69
Aforismo 54.
90
cada frase que anuncia que já o é livre para mentir por inocência,
por insistência. (NIETZSCHE, 2007, p. 44).
Por que, então, necessitamos da verdade? Segundo Nietzsche, porque
falta-nos a força para enfrentar o mundo como um lugar de disputas, de
conflitos, de oposição de forças, de devir. Enquanto procurarmos pelo grande
sentido, pela verdade suprema, enquanto tivermos necessidade de sermos
comandados, seremos sempre crentes. O desafio que a filosofia nietzschiana
nos impõe é o de
imaginar um prazer e força na autodeterminação, uma liberdade da
vontade, em que o espírito se desprende de toda crença, todo desejo
de certeza, treinado que é em se equilibrar sobre tênues cordas e
possibilidades e em daar até mesmo à beira de abismos. Um tal
espírito seria o espírito livre por excelência. (NIETZSCHE, 2001, p.
241).
A profundidade da ctica nietzschiana à vontade de verdade atinge ainda
a sua própria filosofia. Em Por que sou um destino
70
ele nos diz:
Conheço a minha sina. Um dia, meu nome será ligado à lembraa de
algo tremendo de uma crise como jamais houve sobre a Terra, da
mais profunda colisão de consciências, de uma decisão conjurada
contra tudo o que a então foi acreditado, santificado, requerido. Eu
não sou um homem, sou dinamite. E com tudo isso nada tenho de
fundador de religião religes são assunto da plebe, eu sinto
necessidade de lavar as mãos após o contato com pessoas religiosas...
Não quero crentes, creio ser demasiado malicioso para crer em mim
mesmo, nunca me dirijo às massas... Tenho um medo pavoroso de que
um dia me declarem santo. (NIETZSCHE, 2005c, p.109).
A vontade de verdade revela-se como uma necessidade humana,
demasiadamente humana, que, frente a toda vida e toda diversidade do
mundo, busca acima dele, ou fora dele, tal como um ideal, realidade inteligível
ou coisa em si, um princípio, uma certeza, uma ou a verdade. O preço que
pagamos pela nossa busca da verdade a todo custo revelou-se caro demais.
Para cada verdade alcançada, para cada crença, para cada convicção um novo
ídolo se consolidava. Elegemos mal nossas convicções. Atribuímos valor ao que
era fraco, doente, decadente. Erguemos toda a nossa cultura sob valores
niilistas. Transformamos o mundo verdadeiro em fábula. Com efeito, a crítica
nietzschiana à crença, em suas mais diversas formas, revela-se uma ferramenta
70
Cf. Ecce Homo: Como alguém se torna o que é.
91
indispensável a todos aqueles que buscam enfrentar, com o mínimo de
honestidade intelectual, toda a riqueza e diversidade do mundo.
92
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A primeira obra publicada por Nietzsche O nascimento da tragédia ou
helenismo e pessimismo foi o marco inicial para a presente pesquisa. A opção
pela obra deve-se ao fato de o texto abrigar, mesmo que de forma incipiente,
os principais elementos do pensamento nietzschiano. Conforme se procurou
demonstrar durante o desenvolvimento desse trabalho, tais elementos foram
retomados e aprofundados pelo filósofo alemão ao longo de toda sua produção
intelectual. Dois desses a) a crítica nietzschiana ao modelo de verdade
estabelecido pela filosofia soctico-platônica e b) a afirmação trágica da
exisncia operada pelos antigos gregos revelaram-se de suma importância
para a consolidação do objetivo central aqui proposto: investigar a relação
existente entre a vontade de verdade e a religião, na perspectiva de Nietzsche.
Nesse sentido, buscou-se explicitar todo o ineditismo da interpretação
nietzschiana da cultura cssica grega que atribuía aos gregos uma
sensibilidade sem par frente ao sofrimento. Essa sensibilidade peculiar seria,
segundo Nietzsche, a resultante dos fortes instintos dos helênicos e que
propiciaram ainda um extraordinário senso artístico a esse povo.
Não só em NT, mas em outros textos redigidos no mesmo período
71
,
Nietzsche revela seu apreço à cultura helênica a ponto de considerá-la superior
à cultura alemã de seu tempo. Para Nietzsche os antigos gregos longe de serem
os homens da moderação ou da medida, seriam as criaturas da desmedida a
hýbris e da luta sem tréguas entre os contrários do agón. Os gregos, antes
de inventarem a filosofia, inventaram o que daria origem a ela: a tragédia. A arte
grega a tragédia ática passa, então, a ocupar o centro das reflees do
filósofo alemão, pois atras dela os gregos teriam vislumbrado a possibilidade
de superar o pessimismo. A tragédia narra a morte e o renascimento do deus
Dionísio e, ao narrá-los, expõe o princípio bárbaro, cruel, desmedido, de
embriaguez e pessimismo, de lutas subterrâneas entre poderes titânicos na
batalha do sofrimento para fazer sair da indiferenciação caótica da maria a
individualização organizada das formas. O princípio que guia a tragédia é a
71
Em especial, A filosofia na idade trágica dos gregos, O nascimento do pensamento trágico e
Sócrates e a tragédia grega.
93
desumanidade e a barbárie que fecundam o espírito grego, dando-lhe seu
momento ou princípio dionisíaco.
Ao lado do princípio dionisíaco, oferecido pela tragédia, os gregos, afirma
Nietzsche, inventam um outro princípio, contrário e oposto ao primeiro,
responvel pelo surgimento do saber lógico. O princípio da luminosidade, da
forma perfeita, da individuação, da medida ou moderação, figurado por Apolo, o
resplandecente, deus da luz e da palavra, patrono da filosofia. Tal princípio é
denominado por Nietzsche de aponeo.
A relação existente entre esses dois princípios governaria o espírito dos
gregos. Somente por terem sido conquistadores cruéis e implacáveis, escreve
Nietzsche, senhores de escravos; dominadores de outros povos; movidos pelo
espírito agonístico da luta, da disputa e do jogo; animados pelo impulso das
desarmonias e da desmedida; divididos em suas cidades estados, permeadas
por dezenas de facções contrárias e sempre em guerra, puderam colocar como
ideal inalcansável o aponeo: a filosofia, sobretudo com crates, exprimiria a
busca desse ideal de luz e serenidade, contrário à realidade brutal e sangrenta
da vida grega.
Com efeito é em O nascimento da tradia que se identificam as
caractesticas da passagem do ideal trágico ao ideal astico, onde Nietzsche
caracteriza o surgimento da filosofia socrática. Com Sócrates a vontade reativa
teria se transformado em pensamento. Sócrates rompendo com aquilo que,
para Nietzsche, concernia genuinamente ao espírito dos gregos instaura a
crea na razão e na sua potencialidade de dialeticamente alcançar a verdade.
Sócrates, o pseudogrego
72
, havia detectado que por toda parte os
instintos estavam em anarquia, em toda parte se estava a poucos passos do
excesso. Contudo, para Nietzsche, seu remédio indicava que se os instintos o
um tirano, deve-se encontrar um contratirano. Assim, a razão, o novo tirano,
dominaria os instintos. Aqui se encontra o início do primado da razão com a
morte de toda a sensualidade e de todo o instinto. Nasce a moral socrática, a
moral que diz não aos sentidos, a moral contrária à vida, matriz do que
Nietzsche, posteriormente, identificará como moral cristã. Nietzsche tem
72
Para Nietzsche, a filosofia de Sócrates é contrária aos valores e ao ideal do homem virtuoso da
cultura grega arcaica. Cf. NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos Ídolos, “O problema de Sócrates”.
94
Sócrates como o grande formador da consciência ocidental, o modelo perfeito
do que em seguida denomina-se como o sacerdote ascético.
Contudo, as raízes desse ideal consagrado na filosofia do ocidente,
podem entrever-se ainda mais distantes. Por isso, também o devemos
compreender o filósofo em si como alvo, mas o sacerdote ascético que se
revela, do oriente ao ocidente, como a matriz a partir da qual o pensamento se
revela serviçal dos instintos dominantes da vontade débil, daquilo em que o
filósofo se transformou como o porta-voz da coisa-em-si, dos transmundanos
ideais.
Em NT, quando o pessimismo de Schopenhauer não havia sido
ultrapassado por Nietzsche, o entendimento desse sobre o cater da vontade
ainda resultava em que a pura vontade era o puro anelo, a pura necessidade, a
pura dor. Por isso, nesta obra, Nietzsche menciona um Uno-originário de pura
dor: que exige a ilusão, a representação, o mundo fenomênico e, sobretudo, a
arte para extravasar-se de sua dor, para exorcizar a pura anstia, o puro anelo
no exteriorizar-se da aparência, do fenômeno. Esse pensamento de Nietzsche já
permitia uma crítica à cncia, uma crítica a toda vontade de verdade: pois a
verdade é aqui o propriamente insuportável: é o núcleo de toda dor da vontade,
que nos faz necessária a ilusão.
A necessidade de uma ilusão confortadora de um ponto fixo em que se
apoiar é, para Nietzsche, a grande responsável pela criação de convicções que
rapidamente se transformaram em prisões. Prisões dos mais variados tipos,
mas fundamentalmente prisões. Elas aparecem encarnando os grandes
domínios humanos, sejam eles: o conhecimento, a lógica, a moral, a teologia
(cristianismo), a potica ou a arte. O resultado foi sempre o mesmo. A
desvalorização do mundo e da vida e a consolidação de ídolos.
Com efeito, o legado que a filosofia nietzschiana impõe é o desafio de se
destituir a verdade de seumodo posto de supremo valor. Somente dessa
maneira, segundo Nietzsche, será possível experimentar-se a vida em toda a
sua plenitude.
Os desdobramentos de tal proposta são quase inimagináveis. Quem
sabe, esse não se figure apenas como o primeiro passo rumo à tão aspirada
ambição de Nietzsche, a de realizar uma transvaloração de todos os valores, e
configure-se, também, como a primeira perspectiva viável para o fim do
95
dogmatismo religioso, possibilitando, enfim, o tão almejado diálogo
interreligioso na contemporaneidade.
96
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