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Não te afastes daqui sem primeiro ouvir o que a sabedoria popular dos
gregos tem a contar sobre essa mesma vida que se estende diante de
ti com tão inexplicável serenojovialidade. Reza a antiga lenda que o rei
Midas perseguiu na floresta, durante longo tempo, sem conseguir
capturá-lo, o sábio SILENO, o companheiro de Dionísio. Quando, por
fim, ele veio a cair em suas mãos, perguntou-lhe o rei qual dentre as
coisas era melhor e a mais preferível para o homem. Obstinado e
imóvel, o demônio calava-se; até que, forçado pelo rei, prorrompeu
finalmente, por entre um riso amarelo, nestas palavras: - Estirpe
miserável e efêmera, filhos do acaso e do tormento! Por que me
obrigas a dizer-te o que seria para ti mais salutar não ouvir? O melhor
de tudo é para ti inteiramente inatingível: não ter nascido, não ser,
nada ser. Depois disso, porém, o melhor para ti é logo morrer.
(NIETZSCHE, 1992, p.36).
A sentença de Sileno aclara uma importante teoria do jovem Nietzsche, a
teoria da “serenojovialidade”
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grega (griechische Heiterkeit). Para ele, os
gregos possuíam um modo singular de experimentar o mundo, uma vez que,
segundo Sileno, tudo o que nasce também perece. Vida e morte
complementam-se de forma circular. Sem destruição não poderia haver criação.
Para que o ciclo da vida se perpetue é necessário que mesmo o que existe de
mais grandioso também pereça. Notemos que, em um primeiro momento,
Nietzsche utiliza a sentença de Sileno não para descrever a condição dos
mortais, mas sim o mundo dos deuses olímpicos. “Como se comporta para com
esta sabedoria popular o mundo dos deuses olímpicos?” (NIETZSCHE, 1992,
p.36). Segundo Ricard “esta atinge, de resto, não só todo indivíduo vivo, porém
mais ainda, por assim dizer, todo indivíduo grande” (RICARD, 2009, p.278). Ao
descrever que “o grande Pã está morto
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” (NIETZSCHE, 1992, p.73), Nietzsche
já ensaia uma ideia que somente anos mais tarde, em sua obra A Gaia Ciência,
tomaria forma: a de que “também os deuses apodrecem” (NIETZSCHE, 2001,
p.148). Com efeito, se os deuses também morrem o contrário deve também ser
verdadeiro. Existiria então, uma origem para os deuses. Segundo Nietzsche, “o
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Recorremos aqui à tradução brasileira, feita por Jacó Guinsburg, de O Nascimento da Tragédia,
São Paulo: Companhia das Letras, 1992, nota 2; p.145. Segundo o tradutor, Heiterkeit possui várias
acepções em alemão: clareza, pureza, serenidade, jovialidade, alegria, hilaridade. Deste modo, a
tradução mais freqüente para a expressão griechische Heiterkeit tem sido “serenidade grega”. Em
sua interpretação, tal tradução parece insuficiente e redutora por suprimir as demais remessas do
termo. Por isso, ele opta por um acoplamento de dois sentidos principais, utilizando-se sempre, nesta
transposição do texto de Nietzsche, a forma “serenojovial”, “serenojovialidade”.
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Cf. Lima (2006, p.182) essa alusão à morte do deus Pã Nietzsche retira de Plutarco, de um de
seus Diálogos píticos chamado Sobre o desaparecimento dos oráculos (DEFECTV ORACVLORVM).
Nele, o historiador grego depara-se com uma questão que em seu tempo ainda inquietava o mundo
helênico, a saber: a crença nos deuses. Cumpre destacar que a utilização nietzschiana da sentença
antiga tem nitidamente um significado profundo. Nietzsche destaca com isso a importância acerca da
crença nos deuses, que persistia ainda na era cristã, e o valor que ela poderia ter para a vida.