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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E NATURAIS
PROGRAMA DE S-GRADUÃO EM HISRIA SOCIAL
DAS RELAÇÕES POLÍTICAS
FABÍOLA MARTINS BASTOS
RELÕES SOCIAIS, CONFLITOS E ESPAÇOS DE
SOCIABILIDADES: FORMAS DE CONVIO NO MUNIPIO DE
VITÓRIA, 1850-1872
VITÓRIA
2009
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FABÍOLA MARTINS BASTOS
RELÕES SOCIAIS, CONFLITOS E ESPAÇOS DE
SOCIABILIDADES: FORMAS DE CONVIO NO MUNIPIO DE
VITÓRIA, 1850-1872
Dissertação apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em História Social
das Relações Políticas do Centro de
Ciências Humanas e Naturais da
Universidade Federal do Espírito Santo
como requisito final para obtenção do
título de Mestre em História.
Orientadora: Profª Dra. Adriana Pereira
Campos.
VITÓRIA
2009
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FICHA CATALOGFICA
4
FABÍOLA MARTINS BASTOS
RELÕES SOCIAIS, CONFLITOS E
ESPAÇOS DE SOCIABILIDADES: FORMAS DE CONVÍVIO NO
MUNICÍPIO DE VITÓRIA, 1850-1872
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social das
Relações Políticas, do Centro de Ciências Humanas e Naturais da Universidade
Federal do Espírito Santo, como requisito final para obtenção do tulo de Mestre em
História.
Aprovada em 9 de julho de 2009.
COMISSÃO EXAMINADORA
_____________________________
Dra. Adriana Pereira Campos
(PPGHIS/UFES)
Orientadora
_____________________________
Dr. Geraldo Antonio Soares
(PPGHIS/UFES)
____________________________
Dr. Francisco Vieira Lima Neto
(PPGDIR/UFES)
_____________________________
Dr. Marco Morel
(PPGHIS/UERJ)
5
À Augusto, razão da minha persistência.
6
AGRADECIMENTOS
A realização da presente dissertação somente tornou-se possível devido ao exercício
continuado de paciência de pessoas queridas que durante dois anos suportaram não
minhas angústias, como também minha ansiedade, insegurança e mau-humor. Em
primeiro lugar, agradeço à Marly Lucas Martins pelas orações e solidariedade,
fundamentais para a manutenção do meu equilíbrio emocional. À Luciana Martins
Bastos, por tolerar minhas noites de estresse e de ânsia insaciável por estudar. À
Thaise Bastos pelo auxílio nos momentos de aperto. À Márcia e Bárbara Ferrari pelo
aconchego e acolhimento em seus corações. Às amigas Ivana Ferreira Lorenzoni e
Kellen Jacobsen Follador, parceiras inseparáveis em minha jornada da graduação até
o mestrado. Aos colegas de iniciação científica Philipe Alves, Leonardo Grão, Rafaela
Lago, Geisa Ribeiro, Ana Paula Cecon, Karulliny e Tácila Mattos pelo carinho e
paciência em ler meus textos. À Rogério Arthmar, por me acolher como filha e me
aconselhar. Aos colegas de mestrado Aloiza Delurde, Mariana Pícoli, Enaile Flauzina,
Bruno Conde e Juliana Sabino Simonato, por estarem sempre à disposição para
discutir minhas dúvidas e sugerir novos caminhos de pesquisa. À Adriana Pereira
Campos, por acreditar que minha insegurança não bloquearia minha trajetória
acadêmica, quando eu mesma indicava o contrário, e por permitir que eu extrapolasse
os limites da relação professora-aluna e construísse um vínculo de afetividade e
amizade. Aos professores do PPGHIS, pelas discussões teóricas e indicações
bibliográficas. Ao Professor Geraldo Antonio Soares, por me iniciar nas leituras de
Gilberto Freyre. Ao Professor Francisco Viera Lima Neto, por aceitar compor minha
banca de qualificação e defesa e pela compreensão com a qual sempre me tratou.
Resta, enfim, agradecer a duas pessoas merecedoras da minha gratidão eterna. À
Kátia Sausen da Motta, pelo amor com que regou nossa amizade durante os últimos
dois anos. Tenho certeza, amiga, que todas as linhas desta dissertação não teriam
sentido sem a sua cumplicidade nos momentos de pesquisa empírica. Afinal, não
poderia haver realizado sozinha a transcrição das fontes. Somente uma amiga que
ama muito suportaria noites sem dormir e ligações fora de hora para me acalmar e
dizer que tudo daria certo. À Augusto Ferrari Santos, por me presentear com sua
companhia cotidiana, pelo apoio irrestrito, pelo amor desmedido dedicado ao nosso
relacionamento e por me criticar sem temer reprimenda. “B”, obrigada por me manter
serena. Kátia e Augusto: a vocês dedico o meu amor mais sincero e esta dissertação!
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“J’ai embelli ma vie de jours
que je n’ai pas vécus.”
Pascal Quignard
8
RESUMO
A dissertação discute as formas de sociabilidades engendradas pela população do
Município de Vitória entre os anos de 1850 e 1872. A escolha da data inicial deveu-se
ao fato de no ano de 1850 terem ocorrido alterações na Província do Espírito Santo
com a expansão da lavoura do café, em conseqüência da ampliação da cultura no
norte fluminense, que alcançou as terras capixabas. O marco final localiza-se no ano
de 1872, pois houve fortes alterações advindas da Lei do Ventre Livre, como o
surgimento de clubes abolicionistas e associações leigas, que refletiram nas formas de
convívio no limiar da década de 1870. Os primeiros anos daquele decênio marcaram a
transição da sociabilidade informal para a formal, caracterizada pelos grêmios,
associações leigas e sociedades. Os encontros destinados ao divertimento e às
conversas despretensiosas do dia-a-dia perderam, gradativamente, espaço para as
reuniões em estabelecimentos particulares específicos para esse fim. Nesta
dissertação, portanto, desenvolveu-se o conceito de sociabilidade baseando-se nas
formulações de Max Weber, Arlette Farge, Maurice Agulhon, e Maria Alexandre
Lousada . Discute-se as relações sociais construídas cotidianamente nas ruas, nos
chafarizes, nas lojas de comércio, nas praças, nos cais e nas estradas. As fontes
desta dissertação consistiram fundamentalmente nos periódicos Correio da Victoria e
Jornal da Victoria e nos processos criminais de injúria e agressão física. Nesses
documentos buscou-se elucidar o código informal de convivência construído e
legitimado cotidianamente pela população capixaba. Buscou-se, igualmente,
determinar os limites desse convívio informalmente normatizado que resultavam em
sociabilidades violentas.
Palavras-chave: Município de Vitória. Sociabilidades. Cotidiano. Espaços de
sociabilidade. Oitocentos.
9
ABSTRACT
The dissertation discuss the ways of established sociability’s through the population of
Vitória County, between the year 1850 and 1872. The initial date was choose by the
alterations that occurred on Espírito Santo territory in 1850 with the expansion of the
coffee’s fieldwork, when the north fluminense’s culture spreaded, reaching out the
capixaba’s soil. The final mark it’s locate in the year of 1872, when strong changes
came from “Ventre Livre Law”, with the arise of legal associations and abolisher’s
clubs, that reflects the ways of living in the beginning of 1870 decade. The first years of
that decade marked the transition of the informal to a formal sociability, characteristic
by lay and societies’ associations, communities. The meetings meant to entertain and
the day by day talk, slowly, lost space to the meeting in privates establishments with
the same purpose. In this dissertation, therefore, it developed the concept of sociability,
based upon the formulations of Max Weber, Arlette Farge, Maurice Agulhon and Maria
Alexandre Lousada. The socials’ relations built daily are discussed in the streets,
waterfronts, parks, stores, quay piers and roads. The sources of this dissertation
consist on “Correio da Victoria” and “Jornal da Victoria” and criminal’s process of insult
and physical aggression. The informal way of daily built and rightful by the “capixaba”
population’s is clear sought in this documents. Equally sought to determined the limits
of this daily living informally created that resulted in sociabilities’ violence.
Keywords: Vitória County. Sociabilities. Daily living. Sociabilities’ space. Nineteenth
Century.
10
LISTA DE FIGURAS
1 Vista da barra da Ilha de Vitória, 1860 34
2 Vista da barra da Ilha de Vitória nos últimos anos do Oitocentos 34
3 Vista da entrada da Baía de Vitória, 1860 35
4 Porto dos Padres e Rua do Comércio, 1910 36
5 Rua do Comércio: primeiras décadas do século XX 36
6 Praia da Pedra D’água: primeira década do século XX 37
7 Chafariz da Capixaba, 2008 39
8 Chafariz de Santa Luzia, 1908-1912 42
9 Convento do Carmo, 1860 45
10 Rua do Chafariz em Vitória, primeira década do século XX 45
11 Procissão marítima se São Benedito, sem data 70
12 Anúncio da festa de Nossa Senhora dos Remédios 83
13 Anúncio da festa de São Benedito do convento franciscano 83
14 Anúncio da festa de Nossa Senhora do Rosário 87
15 Galope Infernal 96
16 Anúncio de Carnaval publicado nos jornais de Vitória 96
11
LISTA DE GRÁFICOS
1 Petições 53
2 Lojas de Comércio 57
3 Profissões ou meios de vida: Agressão Física, Freguesia de Vitória 131
4 Profissões ou meios de vida: Agressão Física, Freguesia de Cariacica 133
5 Profissões ou meios de vida: Agressão Física, Freguesia de Queimado 134
6
Profissões ou meios de vida: Agressão Física, Colônia de Santa
Leopoldina
134
7 Profissões ou meios de vida: Injúria, Freguesia de Vitória 136
8 Profissões ou meios de vida: Injúria, Freguesia de Cariacica 137
9 Profissões ou meios de vida: Injúria, Freguesia de Queimado 138
10 Profissões ou meios de vida: Injúria, Colônia de Santa Leopoldina 138
11 Sentenças: Agressão Física 139
12 Sentenças: Injúria 140
12
LISTA DE TABELAS
1 Importações durante o ano financeiro geral de 1850 a 1851 31
2 Estatísticas populacionais para a Província do ES, 1824 a 1872 32
3 População livre da cidade de Vitória, 1827 a 1872 40
4 População escrava da cidade de Vitória, 1827 a 1872 41
5 Sexo dos réus e vítimas: Injúria 130
6 Sexo dos réus e vítimas: Agressão Física 130
7 Dívida de Luiz Edmond Peyneau 159
13
LISTA DE QUADROS
1 Te Deum Laudamus Anexo F
2 Magnificat Anexo G
3 Distinção entre crimes públicos, particulares e policiais Anexo H
4 Artigos do Código Criminal do Império brasileiro Anexo I
5 Autos criminais, assinatura de Joaquim Ferreira do
Nascimento, 1854
150-151
14
LISTA DE MAPAS E PLANTAS
1 Limites da Província do ES, últimas décadas do século XIX 29
2 Estrada de São Pedro de Alcântara Anexo A
3 Rios da Capitania do Espírito Santo Anexo B
4 Planta geral da cidade de Vitória, 1895 Anexo C
5 Distribuição da população por grau de instrução, 1872 43
6 Planta da Vila da Vitória Anexo D
7 Planta de parte da cidade da Vitória Anexo E
15
SURIO
INTRODUÇÃO.........................................................................................17
1 UMA HISTÓRIA PARA SE CONTAR...................................................28
1.1 ENTRE O MAR E OS RIOS: A PROVÍNCIA DO ESPÍRITO SANTO
..............................................................................................................28
1.2 CAPICHABAS E CAPIXABAS .......................................................33
1. 3 CONCLUSÃO................................................................................47
2. PORTAS ADENTRO: LOJAS DE COMÉRCIO, JORNAIS E LAZER .49
2.1 INTRODUÇÃO ...............................................................................49
2.2 ILUSTRÍSSIMOS SENHORES DA CÂMARA MUNICIPAL ...........52
2.3 IMPRENSA E COTIDIANO NO MUNICÍPIO DE VITÓRIA ............73
2.3.1 VITÓRIA ERA UMA FESTA? .....................................................................79
2.3.2 JOGOS, ESPETÁCULOS E MÚSICA: DIVERTIMENTOS CAPIXABAS ....98
2.3.3 PUBLICAÇÕES A PEDIDO......................................................................106
2.4 CONCLUSÃO...............................................................................113
3 DESORDEM NAS ESQUINAS DOS QUARTEIRÕES.......................116
3.1 OS CAMINHOS DA BULHA.........................................................116
3.2 INJÚRIAS E AGRESSÕES FÍSICAS, 1850-1872........................117
3.2.1 AUTOS CRIMINAIS .................................................................................117
3.2.2 AS AUTORIDADES POLICIAIS E A VIGILÂNCIA DAS RUAS CAPIXABAS
..........................................................................................................................123
3.2.3 AS EVIDÊNCIAS DE UM DELITO............................................................128
3.3 CONCLUSÃO...............................................................................141
16
4 CENAS DE SOCIABILIDADE.............................................................143
4.1 CASOS DE FAMÍLIA....................................................................143
4.2 VIZINHOS E VIGIAS....................................................................151
4.3 SENTINELAS CAPIXABAS: INJÚRIAS IMPRESSAS.................156
4.4 NEGÓCIOS DE ESCRAVOS: DINHEIRO EMPRESTADO,
DINHEIRO COBRADO.......................................................................161
4.5 AS FLORES DA RUA...................................................................166
4.7 A VISIBILIDADE DAS RUAS .......................................................181
4. 8 CONCLUSÃO..............................................................................186
CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................188
REFERÊNCIAS.....................................................................................191
ANEXOS................................................................................................198
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INTRODUÇÃO
O conceito de sociabilidade ganhou projeção na historiografia brasileira das últimas
décadas a partir do estudo das festas promovidas por agremiações religiosas e das
manifestações afro-americanas do período colonial, e, sobretudo, do Brasil Imperial
(BOSCHI, 2004, p. 15-39). Existem ainda, não obstante, muitas lacunas a serem
cobertas, em especial no tocante aos espaços privados e públicos de construção das
relações sociais. Pode-se afirmar, inclusive, encontrar-se em marcha a construção de
uma historiografia das sociabilidades no Brasil. Os empreendedores dessa nova linha
de pesquisa encontram-se representados por historiadores como Marco Morel (2005),
nomeadamente em As transformações dos espaços públicos: imprensa, atores
políticos e sociabilidades na Cidade Imperial (1820-1840), István Jancsó e Iris Kantor
(2001), com a coletânea Festa: cultura e sociabilidade na América Portuguesa, Mariza
Carvalho Soares (2000), em Devotos da cor: identidade étnica, religiosidade e
escravidão no Rio de Janeiro, século XVIII, e Marina de Mello e Souza (2006), com
Reis negros no Brasil escravista: história da festa de coroação de Rei Congo, entre
outras obras do gênero.
Embora a produção acadêmica sobre as sociabilidades em nosso país ainda não
componha um vasto conjunto historiográfico, Maria Alexandre Lousada (1995, p. 8)
afirma que o conceito apareceu pela primeira vez em 1669, na França, para
denominar comportamentos “[...] anteriormente denominados costumes, vida
quotidiana, vida associativa, ou até, [...] a propensão dos indivíduos para a vida em
sociedade”. Em que pese sua longevidade, a noção de sociabilidade ainda se
encontra aberta a novas re-significações e ajustamentos. Nos trabalhos sobre o tema
inclui-se invariavelmente o volume Pénitents et Francs-Maçons de l’ancienne
Provence: essai sur la sociabilité méridionale, de Maurice Agulhon (1984), que ainda
espera por sua edição em língua portuguesa. O próprio Agulhon (1984, p. I) justifica
nos seguintes termos o caráter pioneiro de sua obra: “Para resumir numa palavra,
nosso livro contribuiu mais que qualquer outro para incluir no conjunto dos conceitos e
das categorias históricas, para lançar no vocabulário dos historiadores, a
sociabilidade”. De acordo com o historiador francês, a sociabilidade residiria em certa
atração pelo cotidiano.
1
1
O trecho transcrito é uma tradução livre. No original: “Pour tout dire d‘un mot, notre livre a
contribué plus que tout autre à inclure dans le stock des concepts et des catégories historiques,
à lancer dans le vocabulaire des historiens, la sociabilité.”
18
Maurice Agulhon (1984) analisa as sociabilidades a partir das relações sociais
empreendidas em associações formais, como a maçonaria, por exemplo, tratando,
portanto, da sociabilidade institucionalizada. Nesta dissertação, ao contrário, dá-se
ênfase às sociabilidades informais, ou seja, aquelas que se desenrolaram nas lojas de
comércio, nas praças, nas ruas, nos chafarizes, nas janelas de casa, enfim, nos
espaços abertos e diversificados das cidades. Na perspectiva de Arlette Farge (1997,
p. 114), existem certos lugares, como igrejas, cemitérios, ruas e botequins, que
provocam formas específicas de sociabilidade, de conciliação, de disputa e de conflito,
fornecendo um imaginário onde a opinião popular se constrói, exprimindo a sua
maneira de apreender um real que lhe é também distribuído, lugar a lugar. As
sociabilidades promovidas pelos espetáculos, pelas conversas ao do ouvido ou por
bulhas familiares evocam o modo como as pessoas vêem a si próprias e aos outros,
como julgam os comportamentos alheios e como vivem seus arranjos interativos no
ambiente social (FARGE, 1997, p. 113).
Nas sociabilidades de tipo informal, estudadas no que segue, destacaram-se os
vínculos afetivos familiares e vicinais alimentados pelos indivíduos. Maria Alexandre
Lousada (1995, p. 385), ao estudar os comportamentos sociais dos habitantes de
Lisboa do século Dezoito, interpretou a violência banal que impregnava a vida da
camada popular como fator essencial da sociabilidade dos residentes da cidade.
Incluíam-se nessa forma de violência as pequenas desordens públicas, as ocorrências
de embriaguez, as altercações verbais (injúrias) e as agressões físicas que não
resultavam em ferimentos graves (LOUSADA, 1995, p. 375).
Inspirada em tal abordagem, a presente dissertação analisa os espaços sociais
utilizados pela população do Município de Vitória como locus privilegiado do
estabelecimento de relações sociais. No cerne desses relacionamentos identificam-se,
sem dúvida, os conflitos e as brigas como uma das modalidades de sociabilidade
empreendidas pelos munícipes. A inquirição das sociabilidades capixabas, de suas
engrenagens e dos limites da sua atuação realiza-se por meio da investigação do
cotidiano, no qual é determinante a ação dos indivíduos.
Compreende-se aqui a história do cotidiano como o amálgama do ofício do historiador
com o do etnólogo, pois se trata de um estudo sobre as pessoas em sua vida privada,
envolvendo a constituição de hábitos e das redes de sociabilidades. Ou seja, propõe-
se uma pesquisa exaustiva dos grupos sociais na tentativa de restabelecer a realidade
social do passado, menos como uma abstração e mais como algo forjado, consciente
ou inconscientemente, pelos indivíduos (BURGUIÈRE, 1993, p. 125-152).
19
A propósito da relação entre História e Etnologia, Jacques Le Goff (1989, p. 77) afirma
que a união dessas duas especialidades em torno do cotidiano se realizou graças à
subtração do fascínio do historiador pelos “acontecimentos e [...] datas quase tão fixas
como um calendário”, colocando-se em seu lugar os “códigos alimentares e do
vestuário”, mais “determinantes na vida dos grupos sociais do que as instituições
políticas e as regras jurídicas e administrativas”. Por sua vez, Guy Lardreau e Georges
Duby (1989, p. 92), em seus Diálogos sobre a Nova História, ressaltaram que uma das
contribuições mais expressivas da Etnologia para o estudo da História residiu na
admissão da possibilidade do estranhamento. Um etnólogo, ao realizar seu trabalho
de campo a partir da compreensão de que tudo é produto da cultura, deve atentar para
o locus da diferença, ainda que a cena observada seja a mais familiar possível no
contexto do estudioso. Segundo esses historiadores franceses, “o mais evidente, o
‘óbvio’ como o ar que respiramos, o mais ‘natural’, o mais eterno era lugar de
diferença”.
A história do cotidiano insere-se, portanto, na perspectiva da Antropologia Histórica ou
História Cultural e, como tal, obriga a uma diferenciação do olhar do pesquisador para
com as fontes (BURGUIÈRE, 1993, p. 150). De acordo com Norberto Luiz Guarinello
(2004, p. 20), mesmo no século XXI, quando a História Cultural parece se tornar uma
tendência dominante, não é fácil defini-la sob um prisma único, especialmente pelo
destaque conferido ao caráter simbólico das relações humanas. Guarinello (2004, p.
24-25) questiona, ainda, a dicotomia apresentada por alguns teóricos do século XX
entre cotidiano e história, como se o tempo do cotidiano fosse o do não-
acontecimento. Para ele, deve-se refletir o cotidiano não como uma dimensão
particular, individualizada da vida humana, mas, sim, como algo plenamente histórico,
sendo tanto o tempo do acontecimento (no sentido apregoado pelos historiadores do
século XIX) quanto o do não-acontecimento. O cotidiano engloba, assim, tanto o
instantâneo quanto o duradouro. Dito de outra maneira, o cotidiano apresenta dois
sentidos temporais complementares: o do acontecimento de um dia, num tempo
brevíssimo, e o que acontece todos os dias, num tempo potencialmente longo. No
cerne da história do cotidiano identificam-se, pois, os modos de vida, o dia-a-dia da
existência familiar, as formas de transmissão dos códigos morais da comunidade
(ALENCASTRO, 1997, p. 08). O indivíduo torna-se relevante, sobretudo, enquanto
elemento “[...] dessa atividade intensa e especificamente humana de leitura, de
interpretação e de construção do ‘real’” (GRIBAUDI, 1988, p. 131).
A discussão de uma história do cotidiano do Município de Vitória da segunda metade
do Oitocentos apresenta-se exeqüível na medida em que pode revelar as
20
sociabilidades do lugar. Aqui, as engrenagens do dia-a-dia parecem ter sido regidas,
quem sabe, pela produção e reprodução sociais dos indivíduos por meio do
estabelecimento de suas sociabilidades, incluindo-se aí os conflitos, os laços de
amizade, os casamentos, o trato dos negócios, a participação em formas
institucionalizadas de sociabilidade, entre outras manifestações de interação urbana.
Como será visto, a especificidade das relações sociais dos capixabas pautou-se,
parcialmente, pela indefinição entre a vida privada e pública dos indivíduos. O
processo de privatização do lar e de institucionalização de uma intimidade ligada ao
público, tal como definido por Jürgen Habermas (2003, p. 42-59), não se aplica aos
moradores das freguesias capixabas do século XIX, pois as pessoas ainda viviam
suas vidas deixando-se invadir pela brisa da rua e dos olhares de outros. Não se
reconhecia a necessidade de manter as portas e as janelas fechadas, ao passo que a
rotina familiar doméstica era acompanhada pelos pedestres e pela vizinhança. Essa
indefinição entre público e privado afetava a relação familiar, quase que desprovida de
intimidade. Os problemas vivenciados no lar resolviam-se portas adentro e portas a
fora, tratando-se com paridade parentes e vizinhos: todos davam opinião e se faziam
ouvir. Espaços definidos públicos por Habermas (2003, p. 46-49), como a rua e as
praças, adquiriram conteúdo privado devido ao sentido simbólico que lhes atribuíam os
moradores do Município de Vitória: as casas, com suas portas e janelas abertas para a
rua, pareciam manter com os espaços públicos uma relação interativa (BRANCO,
2008, p. 04). A privatização da vida doméstica somente far-se-ia sentir de fato nas
freguesias do Município em fins do Dezenove e início do século XX.
Se, por um lado, não é possível falar-se em espaços públicos e privados para o
Município de Vitória no Oitocentos, por outro, notam-se já, na cidade de Vitória em
particular, alguns traços daquilo que Norbert Elias (1994, p. 193-210) designou de
processo civilizador. Assim, a discrepância do número de autos criminais de injúrias na
capital em relação às demais freguesias investigadas
2
sugere que o processo de
constrição das emoções e dos impulsos estivesse mais bem desenvolvido em Vitória
do que alhures, provavelmente por se tratar da sede administrativa e judicial da
Província do Espírito Santo, presumivelmente mais vulnerável às iniciativas
governamentais de civilizar a população. À medida que os indivíduos controlassem
seus instintos violentos, as discussões tenderiam a não chegar às vias de fato, isto é,
à agressão física, restringindo-se a trocas de insultos e injúrias. Não se deve imaginar,
contudo, que o exercício do autocontrole fosse costume plenamente instituído na
capital da Província. Os indicadores do crime de agressão física à época demonstram
2
Dos 34 casos de injúria analisados, 29 ocorreram na cidade de Vitória.
21
que pouco mais da metade desses episódios tiveram lugar em Vitória, ou seja, 28
casos num total de 45 ocorrências.
A sociabilidade capixaba fundamentava-se, logo, em normais informais que
regulamentavam o convívio. Quando extrapolado algum limite desse código informal
de convivência, abria-se o espaço para o conflito, pois os moradores preferiam dirimir
suas diferenças utilizando primeiramente a via informal, ou seja, recorrendo a uma
solução pessoal e legitimada em grande medida pela população local: o acerto de
contas face a face.
O conceito de sociabilidade, desse modo, foi empregado nesta dissertação para definir
os contatos humanos que produziram relações sociais. De acordo com Max Weber
(2004, p. 14), não são todos os contatos entre pessoas que tem caráter social, senão
apenas aquele comportamento que, quanto ao sentido, se orienta pelo comportamento
de outra pessoa. Para diferenciar contato e ação social, Max Weber (2004, p. 15)
utiliza um exemplo cuja transcrição faz-se aqui oportuna: “Um choque entre dois
ciclistas é um simples acontecimento do mesmo caráter de um fenômeno natural. Ao
contrário, constituiriam ações sociais as tentativas de desvio de ambos e o
xingamento, a pancadaria ou a discussão pacífica após o choque.”
A ação social constitui-se, necessariamente, ao guiar-se pelo referencial do outro. A
partir do comportamento social alheio, o outro formula o seu próprio modo de agir. As
pessoas produzem-se socialmente no decorrer da composição de suas sociabilidades.
A ação forjada no encontro de dois indivíduos transforma-se, por sua vez, em ação
social. Interpreta-se, por conseguinte, relação social como o comportamento
reciprocamente determinado por uma pluralidade de agentes e que apenas adquire
sentido ao se orientar por essa referência (WEBER, 2004, p. 16). Um mínimo de
relacionamento recíproco entre as partes envolvidas apresenta-se, desse modo, como
a característica conceitual chave. O conteúdo da ação social, todavia, pode ser o mais
diverso: luta, inimizade, amor, amizade, piedade, troca mercantil etc. (SIMMEL, 1983,
p. 170).
Certos tipos de relação social, marcadas pelo caráter pessoal das sociabilidades,
implicam em certa troca de dádivas que, segundo Pierre Bourdieu (1996), é um
mecanismo próprio da economia não econômica, ocorrendo principalmente em
comunidades nas quais os costumes encontram-se ainda enraizados na população.
As pessoas envolvidas nessa alquimia simbólica
3
sabem objetivamente que estão
3
Esta expressão é utilizada por Bourdieu (1996, p. 172) para designar a recusa dos
participantes engajados numa economia simbólica em aceitar que suas ações fossem
transfiguradas em atos estritamente econômicos. “Os agentes engajados em uma economia de
22
firmando laços sociais influenciados pelo interesse. Omitem, contudo, de forma velada
esse aspecto uma vez que nenhuma relação social pode ser apenas objetiva,
possuindo, por outro lado, grande carga simbólica. Assim, por exemplo, quando um
negociante capixaba viajava para a capital do Império (Rio de Janeiro) e tinha o
cuidado de publicar no Correio da Victoria ou no Jornal da Victoria um pedido de
agradecimento pelos votos de boa viagem oferecidos por vizinhos e credores, não
estava apenas mantendo uma relação de interesse com essas pessoas, mas,
igualmente, realimentando os laços de integração com a vizinhança na qual residia.
A sociedade capixaba, como será visto, apresentava-se regulada por normas informais
de convívio advindas do costume local e que se somavam ao espectro de instituições
do Estado Brasileiro. Por costume compreende-se aqui a [...] norma não garantida
externamente e a qual o agente de fato se atém, seja de maneira ‘irrefletida’, seja por
‘comodidade’ e cuja provável observação, pelas mesmas razões, ele pode esperar de
outras pessoas pertencentes ao mesmo círculo” (WEBER, 2004, p. 18). Na vigência
do costume, a reprovação de um comportamento contrário ao estabelecido pelo
código moral da sociedade ocorre a partir de meios de coação individuais e não por
um quadro de pessoas especialmente encarregadas dessa função, como a Polícia ou
a Justiça. Logo, quando uma pessoa envolvida em uma bulha orientava sua ação pelo
código de honra, ou seja, pelo conflito face a face, legitimava e renovava os costumes
do Município de Vitória.
Nos capítulos a seguir analisam-se as formas de convívio e os espaços sociais
compartilhados pelos residentes do Município de Vitória, para os anos de 1850 a 1872.
As sociabilidades contenciosas foram privilegiadas nesta dissertação por se entender
que as mesmas tamm apresentavam uma perspectiva de ajustamento ou de ruptura
das normas informais de convivência. Compartilha-se, com Geraldo Antônio Soares, a
idéia de que o estudo da sociedade por intermédio do filtro dos autos criminais
possibilita a investigação do conflito como forma de pulsação social. Nos termos desse
autor: “O conflito é uma forma reveladora de ritmo ou de dinâmica social e política,
constituindo-se assim objeto por excelência da história, na medida em que essa trata
da mudança” (SOARES, 2004, p. 61). Arlette Farge (1993, p. 285) explica que um dos
aspectos menos explorados da desordem é o do ajustamento das relações sociais.
Impressionou à historiadora francesa a perspicácia com que os habitantes da Paris
trocas simbólicas gastam uma parte considerável de sua energia na elaboração de eufemismos
práticos [...]”. Esses eufemismos seriam os responsáveis pela subjetividade de uma relação
aparentemente objetiva.
23
setecentista se comportavam uns com os outros, usando sua inteligência e
sensibilidade para vivenciar seus desejos de encontro ou de ruptura.
Nesta dissertação, as relações de convivência e os vínculos estabelecidos pelos
residentes do Município de Vitória foram privilegiados nas narrativas das cenas de
sociabilidade inspiradas nos autos criminais. Os conflitos não continham somente um
aspecto de desordem ou de descompasso para com o código informal de convívio do
Município. Eles funcionavam também como elemento regulador da moral, condenando
hábitos e condutas de vida, forjando hierarquias sociais, restabelecendo o equilíbrio
costumeiro entre os habitantes. De acordo com o historiador inglês Edward Palmer
Thompson (2001, p. 235), “um modo de descobrir normas surdas é examinar um
episódio ou uma situação atípicos.” Thompson buscava nos momentos de ruptura da
ordem, como os motins, lançar nova luz sobre os períodos de normalidade, porquanto,
em sua interpretação, “uma repentina quebra de deferência nos permite entender
melhor os hábitos de consideração que foram quebrados” (2001, p. 235).
Sob tal ponto de vista, a análise dos autos criminais mostra-se importante na
discussão das sociabilidades desenvolvidas pelos munícipes de Vitória, vez que os
testemunhos coligidos no decorrer da ação criminal revelam vestígios singulares do
cotidiano dos moradores das freguesias capixabas. A fonte judicial, nesse sentido, foi
lida nas entrelinhas, levando-se em consideração mais os relatos indiretos a respeito
da convivência estabelecida entre vizinhos, parentes e amigos, do que a narrativa do
crime investigado. Como indica Marc Bloch (2002), os testemunhos indiretos, por
vezes, tornam-se mais valiosos do que os diretos no estudo de sociedades passadas.
As cenas delituosas narradas nos autos criminais são interpretadas, pois, como
eventos do cotidiano, previstos nas normas informais de convivência. Os documentos
judiciais fornecem ao historiador pistas sutis acerca da vida ordinária dos moradores
do Município, possibilitando-lhe compreender como as sociabilidades se romperam
pelo uso da violência física ou verbal decorrentes da rejeição das formas pacíficas de
acomodação.
No que segue, investigaram-se as sociabilidades, em primeiro lugar, por meio do
levantamento dos lugares cuja localização os transformava em espaços de
sociabilidades dos habitantes. Em segundo, pelo reconhecimento dos atores
envolvidos em episódios contenciosos narrados nos autos criminais. Em terceiro, pelo
inventário da judicialização de condutas condenadas pela sociedade local. Em quarto,
pelo reconhecimento dos jornais como espaços produtores de uma forma de
sociabilidade específica, a impressa e, finalmente, pela identificação das lojas de
comércio como ambientes de convívio social. O estudo das sociabilidades e dos locais
24
em que elas ocorriam de forma efetiva ou potencial fez-se, assim, pela conjugação das
fontes escolhidas para a investigação. O corpo documental compôs-se dos jornais
Correio da Victoria e Jornal da Victoria, dos autos criminais e das petições enviadas à
Câmara Municipal de Vitória.
O Correio da Victoria foi publicado pela primeira vez em 17 de janeiro de 1849,
impresso pela Tipografia Capitaniense, em papel de linho azulado. Estruturava-se em
quatro páginas, as duas primeiras destinando-se à publicação de notícias oficiais do
Governo Provincial e as restantes à publicação de cartas particulares e anúncios
diversos. Conforme Heráclito Amâncio Pereira (1922, p. 29), o Correio defendia uma
política conservadora e algumas vezes o redator-proprietário do jornal, Pedro Antônio
de Azeredo, entrou em conflito com a Assembléia Provincial do Espírito Santo, pois
não lhe reconheciam o privilégio exclusivo de publicar as notícias do governo,
estabelecido pela Lei Provincial n.6 de 23 de março de 1835.
4
A tiragem do Correio da
Victoria era bissemanal, com edições às quartas-feiras e aos sábados, até 1871. No
ano seguinte, passou-se a publicar três vezes na semana
5
.
O outro periódico analisado nesta dissertação foi o Jornal da Victoria. Se o Correio era
conhecido por se tratar de uma folha noticiosa, literária e política, o Jornal apoiava
abertamente as idéias do partido liberal (PEREIRA, 1922, p. 32). Aliás, o nome da
tipografia que imprimia suas edições era Liberal. O primeiro número dessa folha
alcançou o público em 2 de abril de 1864 e prolongou-se até 1869. Assim como o
Correio, publicava-se às quartas-feiras e aos sábados, sendo composto por quatro
páginas. Em virtude das contendas entre Azeredo e a Assembléia Provincial, durante
alguns anos o Jornal da Victoria encarregou-se de publicar as notas oficiais do
Governo Provincial.
No que concerne aos autos criminais, optou-se pelo estudo dos casos de injúria e de
agressão física que tiveram apreciação judicial na Comarca de Vitória
6
, haja vista
terem sido esses os crimes mais comuns da segunda metade do Oitocentos. O caráter
ordinário de tais delitos pode ser entendido a partir das formas pessoalizadas com que
4
As discussões entre Azeredo e os deputados da Assembléia Provincial decorreram do fato de
haver ele adquirido a Tipografia Capitaniense, até então propriedade da viúva do alferes Ayres
Vieira de Albuquerque Tovar, dono do Estafeta. Em 1840, Tovar firmara contrato com a
Assembléia, assumindo o compromisso de publicar os ofícios da casa legislativa. Logo, ao
comprar a tipografia, em 1848, Azeredo considerou vigente o contrato estabelecido entre o
finado Tovar e a Assembléia (PEREIRA, 1922, p. 29).
5
Informações retiradas das capas do Correio da Victoria.
6
Faziam parte da Comarca de Vitória à época as freguesias de Vitória, Espírito Santo,
Carapina, Cariacica, Queimado, Viana e Santa Leopoldina (cf. Relatório [...] da Assembléia
Legislativa Provincial, [1868] 2008).
25
os indivíduos pretendiam resolver suas contendas. O dia-a-dia das freguesias do
Município caracterizava-se por relações estreitas entre os seus residentes e as
interações daí originadas possibilitavam que as desordens fossem parte constitutiva
das sociabilidades locais. Isso porque os vínculos sociais encontravam-se
mergulhados na pessoalidade dos laços estabelecidos entre os indivíduos. Os
procedimentos adotados nos autos de injúria e de agressão física diferenciavam-se no
que diz respeito à peça denominada corpo de delito. Nos casos de agressão física, a
vítima era submetida à avaliação por peritos dos eventuais ferimentos sofridos. De
acordo com os autos, constata-se que os responsáveis nomeados para a confecção
do laudo do exame de corpo de delito eram conhecedores da matéria, excetuando-se
os casos originados em freguesias distantes da capital. Nessas últimas situações, a
autoridade policial notificava peritos não profissionais. Tratava-se de negociantes
locais, chamados para avaliar o ferimento, e pela descrição do laudo percebe-se que
os avaliadores não utilizavam o vocabulário técnico adequado ao procedimento.
Quando havia a presença de peritos, os mesmos se achavam em número inferior ao
ordenado pelo subdelegado: de cada três nomeados, um era cirurgião. Outra
diferença verificada nos autos escolhidos refere-se ao início da causa na Justiça: nos
casos de injúria, o número de queixas foi superior ao de denúncias e, em relação às
agressões físicas, essa preponderância se revestiu para as ações ex-officio
7
. A queixa
caracterizava-se por uma iniciativa particular, normalmente de autoria da vítima ou de
algum familiar.
As petições enviadas à Câmara Municipal de Vitória versavam sobre pedidos de
licença para abertura de comércio, alvarás para festas e solicitações diversas. De
acordo com as Posturas Municipais de Vitória, publicadas em 1880 pela Assembléia
Provincial do Espírito Santo, em qualquer atividade comercial, fosse para vender
quitanda ou mascatear, deveria o pretendente solicitar à Câmara licença específica
para a atividade, ficando o infrator sujeito à multa de 10$000 réis (dez mil réis).
8
As
petições eram compostas, geralmente, por uma única página, na qual o requerente
detalhava o pedido aos vereadores.
O recorte cronológico da análise circunscreve-se aos anos de 1850 e 1872 devido,
principalmente, às questões de uniformidade do corpo documental e às mudanças
ocorridas na legislação do Império brasileiro durante a segunda metade do Oitocentos.
7
Ex-officio foi a designação utilizada para as ações criminais autuadas pela Justiça Pública por
intermédio do promotor, na ocasião de prisões em flagrante delito.
8
Para a leitura de todo o capítulo das Posturas Municipais, consulte-se: Campos (2003,
anexos).
26
A respeito dos jornais da capital, optou-se por pesquisar o Correio da Victoria e o
Jornal da Victoria por terem sido os primeiros jornais cujas publicações tiveram certa
continuidade no período definido.
A propósito dos autos criminais, buscando-se uniformizar as fontes históricas,
escolheu-se o ano de 1850 como marco inicial de análise uma vez que a partir dessa
data a possibilidade de se pesquisar os autos localizados no Arquivo Público do
Estado do Espírito Santo (APEES). Para o período anterior, existem poucos casos que
vão do ano de 1833 a 1849. Como limite temporal da pesquisa, o ano de 1872
presenciou uma mudança verificada nas formas de sociabilidade dos moradores do
Município de Vitória, provocada pelo surgimento de clubes, associações, grêmios e
sociedades. Verificou-se, a partir daquele momento, gradativa alteração numa
sociedade de natureza mais informal, baseada na convivência de rua, a se converter
numa mais institucionalizada, agora caracterizada por agremiações e sociedades
fechadas. O estudo dos jornais mencionados indicou com clareza essa transição ao
examinarem-se os anúncios ali publicados. Ao longo da década de 1860, os anúncios
sobre novas associações e grêmios instalados na cidade de Vitória se tornaram mais
correntes nas edições e, a partir de 1870, o número dos mesmos aumentou
progressivamente, chegando a tomar grande parte das ginas impressas.
No tocante às petições, o recorte cronológico indicado justifica-se ao se levar em conta
os melhoramentos executados pelo Governo Provincial no Município de Vitória a partir
do decênio de 1850, principalmente na área urbana da capital, localizada na atual
cidade alta, na barra da ilha. Além disso, houve iniciativas contundentes dos governos
municipal e provincial na abertura de caminhos em direção à parte continental da
cidade, bem como na manutenção das estradas já existentes ligando a capital a outras
freguesias. A década de 1870 foi decisiva para a transformação das sociabilidades
locais em função de modificações no sistema de iluminação pública e na instalação de
redes de telégrafo entre as províncias do Império. As obras públicas na zona urbana
da ilha, tais como a criação de chafarizes, reformas de fontes de água, aterros de
brejos e extinção de vielas estreitas provavelmente interferiram na dinâmica das
sociabilidades nas ruas do Município e, conseqüentemente, nas lojas de comércio.
De acordo com Maria Alexandre Lousada (1995, p. 95-120), deve-se considerar a rua
como um espaço privilegiado para a constituição das sociabilidades informais, pois ela
agrega em si todos os tipos de vida: a doméstica, que por vezes se estendia às
calçadas das moradias e às fontes de lavar roupa; a dos negócios, daqueles que
percorriam as ruas durante o dia vendendo avulsos para a noite distraírem-se nas
27
tabernas e, não menos importante, a religiosa, especialmente nos dias de júbilo
quando os fiéis subiam e desciam as ladeiras estreitas do lugarejo.
Em consonância com a proposta investigativa desta dissertação, o trabalho dividiu-se
em quatro capítulos. No primeiro, discute-se a conjuntura histórica da Província do
Espírito Santo na segunda metade do Dezenove, particularmente do Município de
Vitória, tendo-se por base informações coletadas de fontes primárias. O propósito foi
delimitar a região que a dissertação se propôs a analisar ou, mais precisamente, sua
constituição geográfica, econômica e, essencialmente, humana. Foram consultados
neste capítulo os censos populacionais, as informações constantes nos Relatórios de
Presidente de Província acerca da economia municipal e vitoriense e, por fim, os
mapas e imagens da época, alguns aqui reproduzidos no intuito de aproximar o leitor
daquilo que provavelmente tenham sido as freguesias do Município de Vitória no
passado.
No segundo capítulo discutem-se os espaços de sociabilidade a partir do exame dos
jornais e das petições encaminhadas à Câmara Municipal. Objetivou-se com isso
localizarem-se as ocasiões de festa da cidade, bem como os espaços particulares
destinados ao divertimento, como teatros, salões e casas de bebidas. No que diz
respeito aos ambientes de convívio público dos habitantes, pretendeu-se localizar os
chafarizes da capital, as ruas mais concorridas pelos transeuntes e os logradouros
conhecidos pela população como locais privilegiados para o exercício de atividades
determinadas.
O terceiro capítulo destina-se à análise dos autos criminais, considerando as práticas
delituosas como produto do cotidiano capixaba. Tais condutas individuais
apresentavam-se legitimadas pela comunidade devido ao alto número de absolvições
observada nas sentenças.
No quarto capítulo o realce fica a cargo das cenas de sociabilidade inspiradas nas
descrições coletadas dos autos criminais. Nesta seção tornam-se mais vívidos ao
leitor os nculos afetivos estabelecidos entre a população, assim como o rompimento
eventual desses arranjos sociais na ocasião de conflitos.
28
1 UMA HISTÓRIA PARA SE CONTAR
1.1 ENTRE O MAR E OS RIOS: A PROVÍNCIA DO ESPÍRITO SANTO
Dezoito graus de latitude,
Em longa costa de alvacenta área,
De fresca vegetação na juventude,
Ao belo azul do céu ali margeia.
A terra de Coutinho, a quem virtude,
Heróica Portugal tanto alardeia.
E que hoje para acentos de meu canto,
A fé lhe deu nome: – Espírito Santo.
Francisco Antunes de Siqueira
Poemeto descritivo em oito cantos
Tendo boa parte de seu território margeado pelo Oceano Atlântico, a Província do
Espírito Santo apresentava geografia marcada por elevações e regiões de planície. De
acordo com José Marcelino Pereira de Vasconcelos (1858, p. 29), as fronteiras
espírito-santenses foram demarcadas a partir de limites naturais, pelos caminhos de
água. Na época em que José Marcelino escreveu seu ensaio, a Província apresentava
a seguinte extensão: ao sul, seguindo o curso do rio Itabapoana, determinou-se a
fronteira com a Província do Rio de Janeiro, “[...] não porque alguma lei a
determinasse, mas pela invasão que o município de São João da Barra de Campos
9
fez do território que se estende desde a foz do mesmo rio até Santa Catarina das Mós
de légua) que era a primitiva divisão da capitania [do Espírito Santo]”. Ao norte, a
divisão entre as Províncias do Espírito Santo e da Bahia era definida pela Comarca de
Caravelas, posto que a região compreendida por São Mateus pertencia à primeira. Ao
leste, as águas do oceano que quebravam no litoral capixaba figuravam mais como
abertura do que como limite, facultando a navegação e a comunicação do Espírito
Santo com diferentes lugares. Talvez a fronteira mais problemática tenha sido a
estabelecida durante o governo de Antonio Pires da Silva Pontes, quando se
desenharam os limites com a Província de Minas Gerais. A divisão, nesse caso, teve
como marco o Rio Doce.
[...] havendo-se de demarcar os limites das duas capitanias
confinantes, fossem estes pelo espigão que corre do norte ao sul
entre os rios Guandu e Manhuassu, e não pela corrente do rio, por
ser esta de sua natureza tortuosa, e incômoda para a boa guarda, e
que do dito espigão, águas vertentes para Guandu, seja distrito da
capitania, ou nova província do Espírito Santo, e que pela parte do
norte do Rio Doce servisse de demarcação a Serra de Souza, que
tem a sua testa elevada defronte deste quartel, e Porto de Souza, e
9
“As cidades de Campos de Goytacases e São João da Barra, que pertenceram por muito
tempo ao Espírito Santo, foram desanexadas de seu território, e unidas à província do Rio de
Janeiro pela lei de 31 de agosto de 1832, com seus respectivos termos” (VASCONCELOS,
1858, p. 32).
29
dela vai acompanhando o Rio Doce até confrontar com o espigão
acima referido, ou serrote, que separa as vertentes dos dois rios
Manhuassu e Guandu, e que assim ficava já estabelecido neste Porto
de Souza, em que se termina a navegação fácil do oceano, o
destacamento e registro da nova província [...] 06 de novembro de
1800 (VASCONCELOS, 1858, p. 31).
O acordo firmado no início do Oitocentos entre as duas capitanias gerou alarde na
população vitoriense. O descontentamento provocado pelo tratamento dispensado aos
moradores e pelo rumo tomado pelo governo culminou na redação de uma
representação dos habitantes da Capitania contra a administração de Antonio Pires da
Silva Pontes, em junho de 1804, endereçada ao príncipe regente de Portugal.
Mapa 1 – Limites da Província do ES nas últimas décadas do
século XIX
Fonte: Junior (1996, p. 203).
Desde o governo de Silva Pontes até meados do século XIX a administração provincial
debatia um estreitamento das relações do Espírito Santo com o interior do Império,
especificamente com a Província de Minas Gerais. No mandato de Francisco Alberto
Rubim, ainda no período colonial, abriu-se caminho partindo de Vitória até Ouro Preto,
em Minas Gerais. A estrada, anos mais tarde, ficaria conhecida como São Pedro de
Alcântara (VASCONCELOS, 1858, p. 63).
10
10
O mapa 2 no anexo A ilustra o desenho original da passagem, em 1816. Pode ser observado
um ponto de destaque na planta, o Quartel do Príncipe, considerado como limite entre ambas
as províncias, desde a abertura da alameda.
30
A abundância de rios, lagos e braços de mar cortando as terras da Província
(DAEMON, 1879, p. 470, ver mapa 3 no anexo B) favorecia a irrigação dos cultivos e,
por isso, a produção de diversos gêneros agrícolas, tanto para o consumo interno
quanto para a venda em outras praças mercantis brasileiras. Auguste Saint-Hilaire
(1935, p. 136), em sua segunda visita à Província do Espírito Santo, em 1833,
destacou a fertilidade do solo espírito-santense. Parafraseando o viajante francês,
mesmo que as terras da Província não fossem as mais férteis do Império brasileiro,
era indiscutível a fertilidade das mesmas. Produzia-se açúcar, mandioca, algodão,
arroz, milho, café e alguns legumes. “Em 1820 contavam-se em toda a província 60
engenhos de açúcar e 66 destilarias [...]”. Corroborando as informações fornecidas por
Saint-Hilaire, os Relatórios dos Presidentes de Província da segunda metade do XIX
apresentam tabelas indicativas da produção de gêneros e de sua comercialização no
território provincial. De acordo com o Relatório assinado pelo presidente José
Fernandes da Costa Pereira Junior, em 1862, a exportação comercial das estações
compreendia os produtos listados acima, acrescidos de outro item: o couro. Além
disso, nas estações de Vitória, Itapemirim, Barra de São Mateus (Conceição da Barra),
Cidade de São Mateus, Santa Cruz, Guarapari e Benevente (Anchieta), vendia-se
também aguardente e miudezas como peças artesanais e tecidos de algodão. No ano
de 1851, Edward Wilberforce (1989, p. 18), aspirante da marinha inglesa em viagem
pela costa da Província do Espírito Santo, atestou a presença de fábricas de redes de
algodão na região da Vila do Espírito Santo (Vila Velha). O algodão era muito
resistente e as tranças modeladas de forma rudimentar.
Ainda comentando a situação econômica da Província nos Relatórios dos
Presidentes, bem como em suas mensagens oficiais, listas contendo o volume das
importações realizadas pelos homens de negócio do lugar. A cidade de Vitória
centralizava as negociações, com discreto predomínio da aquisição de produtos
oriundos de outras cidades do país, enquanto os artigos estrangeiros figuravam em
segunda posição. O comércio com praças mercantis nacionais era feito principalmente
com as cidades de Campos e Caravelas, no Rio de Janeiro, e de Vila Viçosa, na
Bahia.
31
TABELA 1 - IMPORTÕES DURANTE O ANO FINANCEIRO GERAL DE 1850 A
1851
Portos Gêneros nacionais Gêneros estrangeiros
Artigos
Valores
(em réis)
Artigos
Valores
(em réis)
Itapemirim
Vitória
45
107
21:080$400
112:205$770
67
79
81:998$680
182:483$190
Fonte: Relatório [do] Presidente da Província (1852).
A composição humana da Província do Espírito Santo era variada no que tange à
quantidade de profissionais fixados na região. No ano de 1856, porém, os dados de
um censo coordenado pela Secretaria de Polícia da capital da Província indicavam o
predomínio dos lavradores (9.763) e dos sem ocupação definida (25.349), que
provavelmente viviam de biscates e trabalhos temporários. A seguir vinham os
profissionais de arte mecânica (889), os negociantes (364), os pescadores (230), os
empregados da administração pública (161) e os religiosos (22). O recenseamento da
população em 1856, realizado pelo chefe de polícia Tristão de Alencar Araripe,
apresenta lacunas, visto que a autoridade responsável pela atividade verificou certa
desconfiança por parte dos habitantes em responder questões relativas à sua vida
familiar: evitavam dizer com quem moravam, quantos filhos tinham e se realmente
eram casados. Na leitura desse censo, observa-se uma ascendência do contingente
de pardos livres (13.825) sobre as demais categorias: brancos livres (1.433), índios
livres (6.051) e pretos livres (2.626). Infelizmente, não informações mais precisas
relacionadas à população cativa.
A tabela abaixo explicita a divisão da população da Província entre livres e escravos,
segundo censos elaborados por um Presidente da Província (1824 e 1827), 3 chefes
de polícia (1843, 1856 e 1861) e pela Diretoria Geral de Estatística do Império (1872).
Salvo considerações a respeito do exagero ou da subestimação dos índices
levantados, muitas vezes reclamados pelas autoridades do Espírito Santo, identificam-
se alguns comentários interessantes. De 1824 até 1872, a população da Província
quase triplicou, com discreta ascensão da população livre, que passou de 22.225 para
59.478 habitantes. Os números relativos aos escravos tiveram uma queda contínua
até o ano de 1856, quando houve um aumento de quase 3.000 almas. No início da
32
década de 1870, por seu turno, verificou-se um aumento de quase 10.000 indivíduos
cativos na sociedade provincial.
TABELA 2 - ESTATÍSTICAS POPULACIONAIS DA PROVÍNCIA DO ESPÍRITO
SANTO, 1824 A 1872
População da Província 1824 1827 1843 1856 1872
Livres
Escravos
Total
22.225
13.128
35.353
22.931
12.948
35.879
21.122
10.376
32.720
36.823
12.269
49.092
59.478
22.659
82.137
Fontes: Vasconcellos (1978); Fala [do] Vice-Presidente da Província (1844);
Relatório [do] Presidente da Província (1857); Diretoria Geral de Estatística (1876).
Mesmo com o decréscimo da população escrava, ela se manteve equilibrada durante
os anos dos censos (acima de 10.000 almas), isto é, de 1824 a 1855 não foi
identificada alteração substancial, no sentido de diminuição, no número de escravos
em solo espírito-santense. A mudança decisiva ocorreu no censo de 1872 (organizado
pela Diretoria Geral de Estatística do Império), ao notar que o contingente cativo
praticamente duplicara. Alguns estudiosos, como Vilma Almada Paraíso (1984) e José
Teixeira de Oliveira (1951), sugeriram que as boas perspectivas econômicas da região
ao sul da cidade de Vitória possam ter estimulado o ingresso de escravos em terras da
Província por intermédio do tráfico interno. De acordo com a historiadora Hebe Maria
Mattos de Castro (1995), o fim do tráfico internacional de almas, ocorrido em 1850,
reorganizou a lógica desse comércio em ambiente brasileiro: escravos que já se
encontravam estáveis em escravarias de regiões do Nordeste ou do interior de São
Paulo e do Rio de Janeiro viram-se transferidos para outras fazendas e senzalas, às
vezes distantes da vivência cotidiana construída por eles. Os locais de destino, em
geral, corresponderam às áreas de expansão agrícola da região do Vale do Paraíba,
incluído o sul do Espírito Santo. Somente uma investigação intensa das fontes
relacionadas à população escrava das regiões de Itapemirim e da fronteira com o Rio
de Janeiro, às margens do rio Itabapoana, poderá verificar se as conclusões sugeridas
por Hebe Mattos podem ser estendidas para a Província do Espírito Santo. Figura,
entretanto, a hipótese como uma interpretação plausível se forem consideradas as
estatísticas da tabela anterior.
A paisagem humana da Província do Espírito Santo concentrava-se principalmente em
torno da capital - Vitória e, no limiar da década de 1870, também naquelas regiões
33
onde a produção cafeeira proporcionava desenvolvimento às povoações circundantes.
Segundo levantamento feito em Relatórios dos Presidentes de Província de 1850 a
1872, constatou-se ter a Província 12 municípios em 1868, quais foram: Vitória, Viana,
Espírito Santo, Santa Cruz, Nova Almeida, Linhares, Barra de São Mateus, Cidade de
São Mateus, Guarapari, Benevente, Cachoeiro de Itapemirim e Itapemirim. Essa
divisão administrativa já se mantinha desde o ano de 1843.
Como o recorte espacial da presente pesquisa é direcionado ao Município de Vitória,
em especial à cidade de Vitória, capital da Província, deve-se salientar que o
Município homônimo à capital abrangia outras freguesias, tais como: Queimado,
Cariacica, Carapina e Santa Leopoldina. A propósito da Freguesia de Queimado, a
partir de 13 de julho de 1860, por Decreto n. 6 (380), passou a pertencer ao Município
de Vitória.
1.2 CAPICHABAS E CAPIXABAS
A paisagem geográfica da Província do Espírito Santo, composta pelo encontro
harmonioso dos caminhos de água com o solo firme, parece tão mais nítida quando se
pretende visualizar a cidade de Vitória por meio das cartas topográficas.
Caracterizada por um relevo cingido por rochedos, em parte escarpados, planícies e
diversas ilhas, a capital da Província guardava territórios cheios de mistérios e
ansiosos por ocupação. A planta n. 4, no anexo C, de 1967, mas projetando a cidade
de Vitória de 1895, apresenta um panorama geográfico da cidade e as limitações da
ocupação demográfica dos torrões. A presença de pequenas elevações de terreno
pode ter contribuído para a fixação da população em determinados locais, à beira-mar
e estreitados na barra da ilha, de frente para o morro do Penedo, também conhecido
na época por Morro de Açúcar, inspiração para os poetas locais. Após uma análise
dos mapas e cartas localizados em arquivos da capital e do Rio de Janeiro,
reconhece-se que a ocupação inicial da antiga Vila Nova de Vitória centralizou-se na
Ilha de Vitória, região avistada logo à entrada da Baía de mesmo nome, circundada
por morros e atravessada por braços de mar.
34
Figura 1 – Vista da barra da Ilha de Vitória, 1860
Fonte: Tschdi (2004).
Figura 2 – Vista da barra da Ilha de Vitória nos últimos anos do Oitocentos
Fonte: Oliveira (1951).
A Baía de Vitória, a mais citada em textos do século XIX, recebia águas dos rios da
costa e um braço de mar com o nome de Passagem (DAEMON, 1879, p. 474). Eram
afluentes dessa baía os rios Aribiri, Marinho, Cariacica, Santa Maria e outros de curso
menor. Na segunda metade do Dezenove, a baía era navegável por vapores de
35
grande calado até a região do Lameirão
11
e, depois desse ponto, seguiam pequenas
embarcações. Localizada na Baía de Vitória, a ilha homônima tinha diversas opções
de portos e cais, dentre os mais famosos à época, o Porto dos Padres. Conta a
tradição da cidade que a alcunha dada a esse cais derivara do fato de terem ali
aportado os religiosos jesuítas quando chegaram ao Espírito Santo. A foto abaixo
apresenta a entrada da Baía de Vitória e, ao fundo, a cidade.
Figura 3 – Vista da entrada da Baía de Vitória, em 1860
Fonte: Tschudi (2004).
Existiam ainda outros cais que figuravam como espaço de concentração de lanchas e
sumacas provenientes de outras províncias e do interior do Espírito Santo. Próximo ao
cais dos padres localizava-se a Rua do Comércio, importantíssima artéria das
transações de negócio da capital. Espacialmente, tanto o Porto dos Padres quanto a
Rua do Comércio situavam-se na região oeste da ilha, próximos à Santa Casa de
Misericórdia e de frente para a Ilha do Príncipe. O painel abaixo, datado da primeira
década do século XX, retrata a Rua do Comércio ao fundo e, em destaque, o Porto
dos Padres, com pequenas construções. Muito provavelmente tratava-se de um posto
do governo destinado ao registro de entrada e saída de embarcações, conforme
consultado nos Relatórios dos Presidentes de Província.
11
De acordo com o Dicionário Topográfico da Província do Espírito Santo, de Brás da Costa
Rubim (1862, p. 526), o Lameirão compreendia Grande parte do termo da cidade da Vitória
alagado pelas águas do rio de Santa Maria e cortado pelos rios Maruípe e Manhuaçu”.
36
Figura 4 – Porto dos Padres e Rua do Comércio, 1910
Fonte: Carloni (1910).
Na foto seguinte outra perspectiva da Rua do Comércio, vendo-se ao fundo da
figura a Santa Casa de Misericórdia.
Figura 5 – Rua do Comércio: primeiras décadas do século XX
Fonte: IPHAN.
As terras localizadas mais ao leste da ilha, consideradas continentais, compostas
significativamente por mangues e brejos, eram ocupadas por fazendas e sítios. Os
mapas levantados para essa investigação retratam a região urbanizada da capital, não
sendo possível, portanto, fornecer informações mais contundentes acerca da
ocupação das terras a leste do Forte São João, excetuando-se o mapa projetado
durante o governo de Moniz Freire, nos primeiros anos da República.
A comunicação da Ilha de Vitória com o continente dava-se pela estrada de Maruípe.
De acordo com o relatório apresentado na Assembléia Provincial por José Maurício
37
Fernandes Pereira de Barros, em 1856, o trânsito na ponte de Maruípe era acessível
mediante o pagamento de pedágio. A cobrança destinava-se à manutenção da ponte.
A fiscalização do pagamento da tarifa era feita pelos fazendeiros que residiam nas
proximidades. A estrada de Maruípe era considerada pela administração provincial
como a mais importante via da cidade. Para se chegar à Vila do Espírito Santo
passava-se pela Pedra D’água. Por ela transitavam pessoas e animais. O presidente
de Província Eduardo Pindahiba de Mattos acusava, em 1864, o perigo desse trajeto
em função da extensão do braço de mar ali localizado. Abaixo segue uma fotografia do
início do século XX da praia da Pedra D’água.
Figura 6 – Praia da Pedra D’água, primeira década do século XX
Fonte: Estado do Espírito Santo (1912).
A capital da Província do Espírito Santo participava na divisão administrativa do
Município de Vitória, também composto pelas Freguesias de São João de Cariacica,
São João de Carapina, São José de Queimado e Santa Leopoldina. Esses dados
foram retirados de documentos oficiais da segunda metade do Oitocentos, porém, em
ensaio de José Marcelino Pereira de Vasconcelos, uma divisão municipal
divergente. Conforme Vasconcelos (1858, p. 99), o Município de Vitória compreendia
as Freguesias de Viana, Cariacica, Carapina e de Vitória, além dos distritos de paz de
Itapoca e Mangaraí. Preferiu-se adotar a primeira divisão, por se ter encontrado em
mais de dois relatórios de governo tais informações.
O Decreto n. 9 (294) de 1856 determinou os limites do Município de Vitória com a Vila
de Serra no litoral pelo Rio Manguinhos, seguindo depois o Rio Tangui até sua barra
38
no Rio de Santa Maria. Embora prescrita na legislação, a fronteira entre as duas
regiões permaneceu problemática até a década de 1870. Ao sul o Município dividia-se
com a Vila do Espírito Santo pela Baía de Vitória, do Rio Marinho até Caçaroca, e com
a Freguesia de Viana pelo Rio Jucu (Resolução de fevereiro de 1836). Em 1855, a
Lei n. 8 decidiu que o Aldeamento Afonsino marcaria a divisão entre o Município de
Vitória e a Vila de Itapemirim.
A palavra capixaba
12
é comumente utilizada para se referir aos habitantes do
Município de Vitória, relacionando a expressão ao local de nascimento. Ao que tudo
indica, no século XIX houve uma alteração de sentido no vocábulo capichaba. Desde a
ocupação da Ilha de Vitória pelos primeiros grupos indígenas sedentários
remanescentes de goitacases, aymorés, purys, tupiniquins e outras tribos, a produção
literária do período comentava a palavra capichaba. A expressão, escrita com CH e
não com X, relacionava-se a significados um tanto diferentes do atual.
Sabe-se que capichaba refere-se a um vocábulo indígena, específico da Província do
Espírito Santo. Muitos escritores afirmam que o sentido desse termo relaciona-se às
lavouras de milho ou a um pequeno estabelecimento agrícola. Em contraposição,
Antonio Athayde (1935) propõe novas discussões sobre a semântica da palavra. Para
esse autor (1935, p. 9), capichaba não designava uma roça de milho propriamente,
consistindo antes um brado de alegria e de audácia proferido pelos índios, ou uma
exclamação festiva que faziam, ao se defrontar com o milharal maduro, com seu lindo
pendão dourado denunciando, ao longe, espigas maduras, prontas para serem
saboreadas.
A difusão do uso da expressão capichaba, derivada de caá-piim-chaba, iniciou-se na
cidade de Vitória a partir da fixação de índios na parte leste da ilha em 1551. A região
ocupada pelos aborígines começava nas terras em frente ao Morro do Penedo,
abrangendo o caminho de São João das Pedreiras e solos adjacentes, até o Porto das
Lanchas (Largo da Conceição). Para melhor entendimento, na planta n. 4 (anexo C)
pode ser visualizada a região, que se estendia desde o Largo da Conceição, passando
pela Ladeira de Pernambuco, pelas ruas Cristóvão Colombo e Barão de Monjardim até
o Forte São João.
As terras ocupadas pelos nativos eram trabalhadas para receberem a cultura do milho
e o cultivo permanente dessa gramínea culminou no chamamento desse bairro de
12
Para a explicação do sentido do vocábulo capixaba utilizar-se-á a escrita antiga da palavra,
com CH. A escrita desse período acompanhava a redação de caá-piim-chaba, de onde se
originou o termo. Após a discussão desse ponto no capítulo, passar-se-á a redigir de acordo
com as normas da língua portuguesa atual.
39
Capichaba, por ser conhecido o uso dessa expressão indígena pela população local.
Após algum tempo, a designação daquela área da ilha se estendeu aos moradores
nele fixados. Foi construído um chafariz na Ladeira de Pernambuco, em 1828,
denominado Capichaba. Enfim, parecia que a população vitoriense
13
havia se
acostumado a relacionar a fonte de água, o bairro e os indivíduos ali residentes à
palavra capichaba.
Figura 7 – Chafariz da Capixaba, 2008
Fonte: Bastos (2008).
Como proposto por Antonio Athayde (1935, p. 42), especialistas em língua indígena e
na tradição oral de Vitória afirmam que a expressão começou a se expandir ao
conjunto da população da cidade durante o período agitado do processo de
independência da colônia brasileira. Nesse tempo, os vitorienses viam-se como
capichabas, pois se tratava de um momento especial na história da então Capitania do
Espírito Santo. Se as observações de Athayde forem plausíveis, é possível supor que
a apropriação do termo pelos habitantes seguiu o sentido usual dado pelos índios:
falava-se caá-piim-chaba em situações de festa, alegria, ou mesmo de pesar. Durante
o Oitocentos, os moradores paulatinamente começaram a se autodenominar
capichabas, embora não abandonassem a alcunha vitoriense.
13
Os moradores naturais da cidade de Vitória eram chamados de vitorienses antes da
popularização da designação capixaba.
40
A constituição demográfica do Município de Vitória se dividia entre 13.164 habitantes
livres e 3.807 cativos no ano de 1856. no ano de 1872, os números registravam
12.470 livres e 3.687 escravos. A estimativa populacional da cidade de Vitória,
isoladamente, apresentou instabilidade durante o XIX. As tabelas adiante esboçam os
principais resultados dos censos realizados na capital, desde 1827 até 1872.
TABELA 3 - POPULAÇÃO LIVRE DA CIDADE DE VITÓRIA DE 1827 A 1872
População
Livre
1827 1843 1856 1861 1872
Homens
Mulheres
Total
3.872
4.508
8.380
3.440
3.870
7.310
n.d.
n.d.
4.139
n.d.
n.d.
2.822
1.520
1.840
3.360
Fontes: Vasconcellos (1978); Fala [do] Vice-Presidente da Província (1844);
Relatório [do] Presidente da Província (1857); Diretoria Geral de Estatística (1876).
Obs.: n.d.=não disponível.
De acordo com as informações da tabela acima observa-se que a população da
capital, registrou tendência ao declínio até 1850. Para o censo de 1856, não há dados
subdivididos por sexos, somente o valor total de livres, 4.139 habitantes. Utilizando-se
por base as estatísticas de 1843, factível é sugerir que o número de homens tivesse
se mantido equilibrado com o de mulheres em 1856. Neste ano reconheceu-se uma
queda brusca da população livre da capital, que de 7.310 habitantes passou a 4.139
em quase 15 anos. Não se verificaram relatos nas memórias e textos oficiais da época
que indicassem as razões para esse decréscimo populacional. Por outro lado,
registros no Jornal Correio da Victoria, criado em 1849, de que o início da década de
1850 foi marcado por profundas crises epidêmicas em regiões do Município de Vitória.
Houve muitas mortes na cidade e alguns enfermos que sobreviveram publicaram
cartas de agradecimento a amigos e “boas almas” que, em um momento de
desespero, puderam socorrê-los. Mesmo que os surtos de cólera e de câmara de
sangue
14
tenham influenciado na diminuição da população livre da capital, ainda assim
suspeita-se que tenha havido migração da cidade de Vitória para o interior da
Província ou mesmo para fora dela, talvez estimulada pelas novas frentes agrícolas
em expansão ao sul do Espírito Santo, bem como pelo desenvolvimento das colônias
de imigrantes em regiões como Santa Leopoldina, Santa Isabel e o Aldeamento
14
Disenteria hemorrágica.
41
Afonsino. Observa-se que o total da população em 1872 é inferior ao número de
mulheres para o ano de 1843, isto é, 3.870 almas.
TABELA 4 - POPULAÇÃO ESCRAVA DA CIDADE DE VITÓRIA, 1827 A 1872
População
Escrava
1827 1843 1856 1861 1872
Homens
Mulheres
Total
2.164
2.160
4.324
n.d.
n.d.
3.301
n.d.
n.d.
863
n.d.
n.d.
862
450
551
1.001
Fontes: Vasconcellos (1978); Fala [do] Vice-Presidente da Província (1844);
Relatório [do] Presidente da Província (1857); Diretoria Geral de Estatística(1876).
Obs.: n.d.=não disponível.
A propósito da população escrava da capital, apenas os censos de 1827 e de 1872
informam o sexo dos escravos. De qualquer modo, observando-se os registros
pertinentes para os anos de 1827 e 1872, uma equiparação entre o número de
homens e o de mulheres. Quem sabe, esse equilíbrio possa ter se mantido nos anos
em que não dados específicos. Identifica-se que a população cativa caiu
vertiginosamente de 1843 a 1856, passando de 3.301 indivíduos para 863. O mesmo
declínio não é verificado, todavia, nos censos posteriores, embora não seja possível
inferir igualmente qualquer crescimento significativo. De 863 escravos em 1856
passou-se a 1.001 em 1872, isto é, um aumento de 138 indivíduos. Comparando a
população livre com a escrava nota-se que 20 a 30% da população total da cidade de
Vitória compunha-se de cativos entre 1856 e 1872: em 1856, 20%; 1861, 30%; 1872,
29,7%.
O recenseamento geral do Imrio de 1872 fornece, por sua vez, elementos sobre a
cor da população da cidade de Vitória. De um total de 4.361 habitantes, cerca de 60%
figuravam como pardos e pretos no levantamento estatístico. Entre os livres, a
percentagem era de 50% de pardos e pretos. No caso dos escravos, a totalidade
encontrava-se nessa categoria. Vitória era, portanto, uma cidade cujas marcas da
mistura entre negros e brancos podiam ser vistas em larga medida pelas ruas,
tabernas e chafarizes das vizinhanças locais.
42
Figura 8 – Chafariz de Santa Luzia, 1908-1912
Fonte: IPHAN.
A foto acima mostra o chafariz situado no Largo de Santa Luzia, criado em meados do
Oitocentos. Era franqueado aos indivíduos o consumo de água das fontes espalhadas
pelas ruas de Vitória. A projeção da cidade na planta n. 4 (no anexo C desta
dissertação) para o ano de 1895 representa um círculo na região de Santa Luzia, o
que indica a existência do chafariz.
Uma questão omissa nos censos até 1872 é o grau de instrução da população, ou
mesmo se as pessoas sabiam ler e escrever. Consoante o quadro geral da população
livre apresentado pelo censo de 1872, os indivíduos livres (homens e mulheres)
alfabetizados na cidade de Vitória constituíam uma minoria: de 4.361 residentes
capixabas, apenas 644 sabiam ler e escrever. Em relação às crianças em idade
escolar (de 6 a 15 anos), o número geral correspondia a 852 jovens, 301 com
freqüência escolar. Certamente essa situação verificava-se nas demais freguesias do
43
Município de Vitória, configurando um panorama comum a praticamente todas as
províncias brasileiras, conforme ilustrado pelo mapa a seguir.
Mapa 5 – Distribuição da população por grau de instrução, Brasil 1872
Fonte: CEBRAP (2008).
Não obstante os índices de analfabetismo na Província do Espírito Santo, na segunda
metade do século dezenove o Governo Provincial financiou a abertura de escolas e de
uma biblioteca públicas. Na capital, havia duas escolas de primeiras letras para o sexo
masculino e uma para o feminino, além de um colégio de instrução literária intitulado
Liceu (VASCONCELOS, 1858, p. 95). A Biblioteca Provincial, localizada em um salão
do Palácio do Governo foi criada em 1855 pelo presidente Sebastião Machado Nunes
(DAEMON, 1879, p. 347).
Os anos subseqüentes a 1850 foram marcados ainda pela iniciativa de alguns
capixabas nas atividades de imprensa. O primeiro jornal fundado em Vitória, em 1840,
teve vida curta, com apenas uma edição impressa, devido a problemas nas máquinas
tipográficas (DAEMON, 1879, p. 313-314). O nome dele era O Estafeta. Até 1871
foram criadas várias folhas, dentre as quais destacam-se aqui as que tiveram certa
duração: Correio da Victoria, Jornal da Victoria e O Espírito-Santense. Somadas aos
jornais que não conseguiram publicar sequer um exemplar, nota-se que as pessoas
letradas da capital provincial lançavam-se nesse ramo profissional. A sobrevivência
dos jornais publicados na cidade de Vitória deveu-se, em parte, ao famoso “disse me
44
disse” das notícias e anúncios publicados nas folhas, próprio dos ambientes de
negócio, como lojas de secos e molhados, armazéns e botequins.
15
Os jornais tratavam de assuntos diversos, desde política até publicações de poemas
de escritores locais. Na seção de anúncios dos jornais Correio da Victoria e Jornal da
Victoria é possível identificar notícias acerca das atividades econômicas desenvolvidas
na capital. Destacavam-se as lojas de secos e molhados, que vendiam desde farinha
de mandioca até azeite de Lisboa e carne verde importada, e as padarias, que faziam
propaganda de seus pãezinhos vendidos na Rua Porto dos Padres e no Porto das
Lanchas.
A economia capixaba era movimentada pelas transações estabelecidas entre as
praças do Rio de Janeiro e de Vitória, principalmente. Comerciava-se açúcar,
aguardente, algodão em rama e manufaturado, arroz, milho e café (VASCONCELOS,
1858, p. 98) e se comprava, dentre outros produtos, artigos importados.
Concentrava-se em Vitória certo número de negociantes e de pescadores, mas
acompanhando a estatística da Província em 1856, a maioria dos trabalhadores
constituía-se de lavradores. Além disso, a proximidade com o mar e o contato diário
com suas águas fez do pescado alimento muito consumido pelos habitantes.
As atividades comerciais desenvolvidas na cidade ocupavam lugares específicos: em
geral, estendiam-se tendas nas ruas próximas aos cais para vender miudezas. Outros
ambulantes preferiam fixar-se nas praças da cidade, localizadas muitas delas em torno
das igrejas, a saber: Praça da Matriz, Praça da Misericórdia e Praça do Convento do
Carmo. Havia ainda a Praça Velha, sobre a qual não se conhece a localização
geográfica. A foto abaixo mostra o Convento do Carmo e a área frontal à construção,
em 1860.
15
Vale notar que na leitura dos autos criminais evidências que corroboram a interpretação
aqui sugerida de que as lojas de comércio difundiam as publicações dos jornais. Isso pode ser
verificado, por exemplo, na quantidade de negociantes que se apresentaram à Justiça como
testemunhas e eram assinantes de folhas.
45
Figura 9 – Convento do Carmo, 1860
Fonte: Tschudi (2004).
A manutenção das ruas, largos, praças e becos de Vitória apresentava-se como tema
recorrente nos Relatórios dos Presidentes de Província. Reclamava-se do péssimo
estado de conservação das vias, do mato crescente e dos alagadiços ocasionados
pela chuva e pelo mar. Em 1863 contava a capital com 31 ruas, 8 becos, 7 ladeiras, 4
praças e outros tantos largos.
16
A foto abaixo mostra a Rua do Chafariz, em Vitória, sem calçamento e coberta por
mato.
Figura 10 – Rua do Chafariz em Vitória, primeira década do século XX
Fonte: IPHAN.
16
Segundo poema de Francisco Antunes de Siqueira havia em Vitória 5 largos, 20 ruas, 6 cais
e algumas vias menores (SIQUEIRA, 1884, p. 40).
46
A partir do início do século XX, a capital começou a ser chamada de cidade presépio
por muitos estudiosos e jornalistas devido a sua estrutura arquitetônica e à
organização de seus caminhos, com muitas ruas estreitas, ladeiras e becos. No século
XIX alguns viajantes comentaram aspectos da estrutura arquitetônica da capital.
Auguste Saint-Hilaire visitou o Espírito Santo por duas vezes, a primeira em 1818 e a
outra em 1833. Em seu primeiro contato com a Vila de Vitória, Saint-Hilaire (1974, p.
45) observou que as ruas eram estreitas, calçadas precariamente e sem regularidade.
As construções destinadas à moradia, em sua maior parte, possuíam dois andares
(sobrados) e havia fontes que, embora não chegassem a embelezar a vila, forneciam
água aos moradores.
Outro estrangeiro, o Príncipe de Wied-Neuwied Maximiliano (1940, p. 142), em viagem
pela colônia brasileira durante os anos de 1815 e 1817, esteve no Espírito Santo para
pesquisar a flora, a fauna e os indígenas da região. Sobre a Vila de Vitória, o viajante
germânico confessou ter-se admirado com a beleza do território, cuja arquitetura
acompanhava o estilo português colonial de edificação. Por sua vez, o inglês Edward
Wilberforce (1989, p. 19-20), visitante da cidade em 1851, reclamou das ruas imundas
da capital e do mato abundante que cobria a Praça do Palácio (Praça do Rubim).
A planta n. 6 (anexo D), datada de fins do Setecentos, esboça a Vila de Vitória dividida
em quarteirões. A área destacada na planta de 1767 corresponde à parte urbanizada
da Ilha de Vitória na segunda metade do Oitocentos, retratada na planta n. 4 (anexo
C). Não obstante a planta n. 6 ser de um período anterior ao coberto nesta
dissertação, é interessante compará-lo com a planta de 1895, pois se trata da
representação da mesma região da cidade de Vitória. A leitura de relatórios provinciais
permite afirmar que a expansão da área urbanizada capixaba ocorreu no sentido oeste
da ilha, em direção à Santa Casa de Misericórdia e ao Campinho. Somente no início
da República é que se observaram esforços incisivos para a ocupação da área
continental da capital. Nossa interpretação baseia-se sumariamente na conjugação
dos registros encontrados em escritos da época com as plantas e mapas da cidade.
Os caminhos que ligavam os quarteirões capixabas constituíam-se por vezes por
pequenas pontes, como observado na planta n. 4 (anexo C). Nota-se que a Ilha de
Vitória era cortada por braços de mar que percorriam algumas áreas urbanizadas e
também pelo encontro da água doce (proveniente da região da Fonte Grande) com o
mar. Assim, as pontes eram indispensáveis para o trânsito da população, até mesmo
no quarteirão do Campinho, cujo alagadiço só era transposto por uma ponte.
47
Outro ponto destacado nos textos oficiais diz respeito à iluminação da capital da
Província do Espírito Santo. Segundo dados dos relatórios provinciais, até 1860
somente a cidade de Vitória recebia iluminação por lampiões. Na década de 1840, a
cidade contava com um número aproximado de 40 unidades, sendo que em 1841
havia 30 delas dispostas pelas ruas da cidade
17
e 40 lampiões em 1847. Em fins de
1840, Luiz Pedreira do Couto Ferraz, Presidente de Província, falou aos deputados da
Assembléia Provincial que a quantidade de lampiões existentes na cidade era
inapropriada para que os moradores gozassem dos benefícios da iluminação. Além
disso, o número reduzido obrigava-se a colocar os lampiões muito distantes uns dos
outros, o que fazia com que alguns lugares permanecessem nas sombras.
No ano de 1850 aumentou-se o número de lampiões para 70, mas desse total apenas
50 funcionavam. Em 1852, elevou-se para 52, visto que a administração provincial
colocou um na Fonte da Capixaba e outro em frente à cadeia. O azeite utilizado na
iluminação da cidade era o de peixe, que gradativamente foi substituído pelo azeite de
sebo (em 1855). No início de 1864, o serviço de iluminação colocado em arremate foi
contratado com Luiz José da Vitória, morador da cidade. O arrematante era obrigado a
acender os lampiões ¼ de hora antes do anoitecer e conservá-los nas noites de luar
até ¼ de hora depois do aparecimento da Lua. Luiz José da Vitória iluminava as ruas
da capital com 65 lampiões. Para os anos finais da década de 1860, a iluminação a
azeite de sebo foi substituída por querosene e o número de lampiões elevado para
100. Apesar do aumento, a administração considerava a quantidade ainda insuficiente.
1. 3 CONCLUSÃO
Os capixabas se movimentavam pelos caminhos de terras e de águas do Município de
Vitória durante o dia e também após o anoitecer. Desse modo, a precariedade da
iluminação, que provocava acidentes nas ruas, não estorvava o concurso dos
moradores nos diversos lugares das freguesias. Interessante verificar que a despeito
da escassa luminosidade de determinadas áreas de Vitória e de outras freguesias que
compunham o Município, a população ocupava as ruas, as praças e os largos para
comemorações e outros eventos. Da mesma forma, a convivência dos residentes
nesses espaços propiciava a trama de suas sociabilidades.
Quais os segredos que as ruas de Vitória e alhures guardavam? É preciso
acompanhar as pessoas em suas caminhadas despretensiosas pela cidade para
17
Dos 30 lampiões, oito eram colocados na parte externa de diversas repartições do governo.
48
compreender como se amalgamavam os arranjos sociais do lugarejo. Mas isso é
história para o próximo capítulo.
49
2. PORTAS ADENTRO: LOJAS DE COMÉRCIO, JORNAIS E
LAZER
2.1 INTRODUÇÃO
A escolha do corpus documental para análise nesta dissertação derivou de um
exercício analítico prévio, quando da iniciação científica. O manuseio dos microfilmes
de jornais e dos manuscritos dos autos criminais chamava-me a atenção para a
complexidade da vida cotidiana dos moradores de Vitória, especificamente. Neste
capítulo analiso os espaços de comércio dos habitantes do Município, cuja localização
geográfica os transmutava em locus privilegiado de estreitamento de vínculos, de
rompimento de amizades e mesmo de forjamento de relações. Além disso, investigo
os jornais Correio da Victoria e Jornal da Victoria, de maneira que possa ser
evidenciado o seu aspecto socializador, pois compreendo as folhas periódicas da
segunda metade do Oitocentos como espaços singulares para uma forma específica
de sociabilidade, a impressa, na ocasião de, por exemplo, publicação de cartas
particulares, injúrias e reclamações contra alguém. José Murilo de Carvalho (2004, p.
19) e José Teixeira de Oliveira (1951, p. 262) caracterizaram os jornais publicados no
século XIX como espaços sociais, pois davam vazão às aspirações da população e
aos fatos ordinários da vida dos habitantes comuns das províncias brasileiras.
A maioria dos conflitos narrados nos autos criminais de injúria veiculada na imprensa
iniciou-se a partir de contendas entre vizinhos, que passaram das discussões de
varanda e de quintal à exposição de ofensas em jornais da capital e, ulteriormente,
algumas das injúrias impressas tornaram-se objeto de queixa em juízo. Dessa forma,
os periódicos participavam da vida diária dos habitantes do lugarejo, que trocavam as
bulhas face a face por uma de outro tipo: as publicadas em jornais, às vezes
percorrendo as páginas de várias edições consecutivas, para o deleite dos leitores.
A conjugação analítica das petições encaminhadas à Câmara Municipal de Vitória e
dos números dos jornais Correio da Victoria e Jornal da Victoria faz-se possível, uma
vez que os requerimentos encaminhados à Câmara geralmente versavam sobre locais
de afluxo considerável de pessoas e, por que não arriscar, tradicionalmente
percebidos como espaços privilegiados para a socialização pelos próprios atores da
época, como uma das características do modus vivendi informal da sociedade
vitoriense.
As evidências que me conduziram a essa interpretação estão mergulhadas nas
narrativas de delitos a partir dos autos criminais de injúria e agressão física, objeto de
50
estudo do capítulo terceiro e quarto, quando do depoimento das testemunhas e dos
interrogatórios dos réus e rés, trazendo à luz da análise a riqueza do cotidiano dos
capixabas, que moldavam sua rotina a partir do horário de funcionamento das lojas,
das ocasiões de júbilo, do calendário litúrgico cristão e da aguardada chegada de
alguma embarcação nos cais da capital. Dito isso, o nascer e o por do sol seriam
apenas uma das variantes determinantes do hábito ordinário desses indivíduos. Por
outro lado, os donos e os fregueses de lojas de secos, molhados, fazendas, armazéns,
bancas de pescado, tabernas, quitandas e botequins testemunhavam muitas cenas de
sociabilidades em destaque nesta dissertação, e até os estabelecimentos comerciais
foram cenário de outras tantas que acabaram nas barras dos tribunais.
Como se verá nos próximos capítulos, o comércio da cidade de Vitória iniciava suas
atividades por volta das sete horas da manhã e permanecia funcionando até as dez
horas da noite. Naqueles anos, as iniciativas do governo provincial não eram
suficientes para prover adequadamente as ruas, os becos, os largos e as praças da
cidade com lampiões em número e em qualidade de azeite de peixe. A maior parte
das travessias permanecia na escuridão quase total da noite, contando apenas com o
luar, como narrado em alguns autos criminais. Os lojistas se sentavam à porta de seus
negócios e proseavam com os vizinhos, pedestres e clientes por horas e ali
observavam o fluxo da rua, seus habitantes, seus visitantes e os espetáculos da vida
prosaica que corriqueiramente tinham lugar. O horário estendido de funcionamento do
comércio na capital da Província do Espírito Santo e a praxe dos negociantes e da
população em geral de se voltarem para as ruas para conversar indica a quase
indistinção entre a vida dos logradouros e a vida privada, porque a rotina dos
indivíduos participava do dia-a-dia das alamedas e vice-versa. De modo semelhante,
os jornais circulavam no seio da população principalmente por três formas: pelo
comércio ambulante, que transitava por diversas ruas para comercializar os
exemplares, pela venda na própria tipografia e por assinatura.
Em Palavra, imagem e poder, Marco Morel (2003, p. 78) discute a respeito da
construção da sociabilidade literária durante o Dezenove no Rio de Janeiro e indica os
locais onde os jornais eram adquiridos e lidos pelos cariocas. Um dos espaços
destacados pelo historiador foram as tipografias, pois não era raro encontrar anúncios
nos jornais chamando o público para comparecer diretamente ao local da impressão
dos periódicos, onde poderiam contratar assinaturas, comprar edições avulsas ou até
conversar com os redatores e outros leitores sobre as notícias recém-publicadas. As
tipografias se configuravam como uma combinação entre espaços públicos e privados,
dadas as práticas de sociabilidade freqüentes nos locais de venda e impressão,
51
pontos de leitura e reunião (MOREL, 2003, p. 80). Interpretadas dessa forma, as
tipografias transformavam-se em espaços de sociabilidade, pois mesmo aqueles que
não compravam os números das gazetas acabavam lendo-os ou tendo conhecimento
das publicações por outras pessoas (MOREL, 2003, p. 81). Ao analisar os autos
criminais de injúria impressa constatei que boa parte das testemunhas inquiridas pelos
subdelegados de polícia e demais autoridades judiciárias eram negociantes sediados
na capital e em freguesias adjacentes, pois eram eles assinantes dos periódicos. Para
as primeiras décadas da imprensa no Brasil, Marco Morel (2003, p. 35-36) divulgou a
lista dos assinantes da Gazeta do Brasil, publicada no Rio de Janeiro em 1827, que
contava com 693 nomes, sublocados segundo categorias sócio-profissionais. Do total
levantado, 26% correspondiam a comerciantes brasileiros.
Comparando grosso modo com o Município de Vitória na segunda metade do
Oitocentos, tem-se a impressão de que os negociantes da praça capixaba perfaziam
contingente considerável de assinantes dos jornais impressos na capital. Em quase a
totalidade dos diplomas judiciários de injúria impressa coligidos neste trabalho a
declaração de que o Jornal da Victoria e o Correio da Victoria eram distribuídos para
pouco mais de 80 assinantes. Apenas em quatro casos consta que o número de
assinantes fosse superior a 100 pessoas.
A distribuição dos exemplares realizava-se por um entregador, que deixava a
tipografia bem cedo, logo nos primeiros raios de sol, e percorria os caminhos
desnivelados da cidade. Os entregadores chegavam muito rápido a algumas das
casas dos assinantes, de outros, porém, demoravam um pouco mais, devido à
distância entre as freguesias e às condições das passagens de terra. Nesta
dissertação, as ruas, as lojas de negócios e os jornais compõem os espaços de
sociabilidade melhor analisados. Certamente, houve outros espaços de sociabilidade
compartilhados pela sociedade capixaba e procurei destacá-los ao longo desta
dissertação. Essa tríade, porém, influenciava mais fortemente a vida cotidiana da
população e propiciava a constituição de redes de sociabilidades. Nesses ambientes,
observa-se não apenas um intenso relacionamento entre os citadinos, mas também o
transbordamento de suas relações em atos de violência concreta ou simbólica. A
igreja e as repartições públicas constituíam-se em espaços de privilegiadas relações
sociais, mas o caráter cerimonioso desses lugares, provavelmente, tornasse menos
freqüente as sociabilidades violentas. Pode-se objetar que o jornal fosse um espaço
popular, é verdade. No entanto, a publicação a pedido de particulares para denúncia
de comportamentos alheios provocava constrangimentos e ressentimento largamente
debatidos nos autos criminais. É que se procurará demonstrar neste capítulo.
52
2.2 ILUSTRÍSSIMOS SENHORES DA CÂMARA MUNICIPAL
As petições caracterizavam-se por ser requisição particular dirigida aos vereadores da
municipalidade, objetivando o deferimento de algum pedido. Composta por uma única
página, a petição que dava origem à solicitação continha um texto curto com atenção
para certos identificadores: primeiramente, o peticionário deveria escrever a expressão
comum a todas as petições Ilustríssimos senhores da Câmara Municipal seguida
de seu nome e o detalhamento do pedido a ser feito. Finalmente, havia o despacho do
secretário da Câmara, registrado no decorrer das reuniões dos vereadores, acatando
ou não o pedido.
Outras petições apresentavam extensão maior por se tratarem de habilitação para se
lançar nas rendas da municipalidade, isto é, arrematar os dízimos do pescado, da
carne verde, dos licores, etc. Nessas situações, era mister oferecer fiadores para
comprovar a liquidez da proposta e, por isso, a petição inicial era seguida de
despachos, certidões e outros documentos que atestavam a idoneidade dos fiadores.
Quando o assunto envolvia reclamação, não havia limite para os documentos,
levando-se em consideração a narrativa de determinado evento, a listagem de
testemunhas ou um abaixo-assinado, a argumentação das declarações, enfim, uma
gama variada de artifícios utilizados pelos suplicantes a fim de convencer os fiscais da
Câmara e esses últimos, por seu turno, os vereadores.
Para a redação deste capítulo foram lidas e transcritas 221 petições, correspondentes
aos anos de 1850 a 1869 e 1872. Para os anos de 1870 e 1871 não foram
encontrados documentos no Arquivo Municipal de Vitória. A quantidade de registros
levantada em cada maço não é homogênea e, portanto, não foi interpretada como
evidência de uma participação insignificante ou substancial da população nesse tipo
de relação com a Câmara. O gráfico a seguir ilustra o total de petições analisadas
divididas entre as categorias forjadas no decurso do processo analítico.
53
GRÁFICO 1 - PETIÇÕES
Fonte: AMV – Fundo: Petições e Requerimentos, 1850-1872.
Conforme se verifica no gráfico acima, as petições formam um conjunto de 26
categorias. Aquelas cuja incidência ultrapassa a marca de 15 ocorrências referiam-se
respectivamente aos pedidos de pagamento (21), à habilitação para cargo de guarda
(16), à habilitação para se lançar nas rendas da municipalidade (23), aos pedidos de
licença para abrir negócio ou manter portas abertas (25) e a pedidos (26). Os pedidos
de pagamento eram requeridos principalmente por parte de oficiais de justiça,
promotores públicos e escrivães, devido à atuação nos autos criminais e a
conseqüente condenação da municipalidade ao pagamento das custas do processo.
As habilitações para cargo de guarda aludiam aos pretendentes dessa função
remunerada, que apresentavam as qualidades e aptidões desejáveis para execução
54
da tarefa. Os pedidos para se lançar nas rendas da municipalidade, por sua vez,
assinalavam o desejo de comerciantes locais em arrematar os dízimos de
determinados produtos. Os pedidos de licença para abertura e manutenção de
comércio, como a designação induz, versavam sobre atividades comerciais
diversificadas, informando, normalmente, a localização da rua e o tipo de negócio.
Finalmente, as petições agregadas sob o título pedidos formam um conjunto
heterogêneo se observados individualmente, pois as requisições apresentavam
conteúdos diferentes umas das outras. Assim, dentre os pedidos destacam-se os que
reivindicavam a revisão das atas de eleições, aqueles destinados a registrar o sinal
público de escrivão, à inclusão de nomes na lista de votantes, os que pretendiam
sanar dúvidas sobre emprego público, outros solicitavam adiamento de prazo para
quitar vidas com a municipalidade, havendo ainda contestações relativas à cobrança
de multa por parte dos fiscais da Câmara. Na categoria pedidos é possível, inclusive,
verificar quais os assuntos mais recorrentes, como, por exemplo, os peticionários que
requeriam terrenos desapropriados pela municipalidade ou nomeação para administrar
a tarefa de pôr os dísticos e numerar as ruas da capital. Do total de petições
analisadas, cerca de 90% fazia referência a indivíduos, eventos e lugares localizados
na cidade de Vitória. O restante dizia respeito às freguesias de Serra, Espírito Santo,
Viana, Cariacica e Queimado.
Como mencionado, houve algumas reclamações de comerciantes em relação à
atuação dos fiscais da Câmara. De acordo com Ana Pinto da Gama, esposa de José
Manoel Barosila, em dias de novembro de 1865 um fiscal se dirigira a sua loja de
aguardente e licores fortes, uma taberna, e determinou o pagamento da taxa de
licenças e aforamentos de preços para comerciantes estrangeiros. Na petição
encaminhada aos vereadores, a suplicante não via outro motivo senão perseguição do
fiscal para com a família Gama, visto que Ana era brasileira e, logo, se submetia à
taxa de menor valor (10$000 réis). A taberna chefiada por Ana Pinto da Gama
localizava-se no Porto do Engenho, nas imediações de Cariacica. Em outra petição,
Francisco Xavier Coutinho relatou que em 2 de novembro de 1865, estando sua
esposa no balcão da casa de negócio da família, localizada em Cariacica, recebera
uma intimação do fiscal da Câmara referente a uma multa por mascatear peixes. Ora,
Coutinho se recusou a quitar os 100$000 réis (cem mil réis) devidos à municipalidade,
porque justificou que nunca mandara sua esposa vender peixes, embora assumisse
que em certas ocasiões a mulher fizesse banca para vender os peixes da enseada.
Baseado no Código de Posturas Municipais que previa o comércio de carne e peixe
restrito aos mercados, Francisco Coutinho reconhecia o deslize cometido por sua
55
consorte, porém, asseverava a não concordância com a multa, tendo em vista não
haver naquela freguesia praça de mercado designada especificamente pela Câmara
para o comércio de tais gêneros.
Havia outras situações, em paralelo, em que a população solicitava a interferência dos
fiscais para a manutenção de usos costumeiros. Antônio Francisco de Ataíde e José
Francisco Ribeiro foram dois dos moradores de Vitória que peticionaram um pedido à
Câmara para impedir uma obra entre as ruas do Ouvidor e da Alfândega. Em
setembro de 1864 começou-se a construir ali uma latrina, destinada ao depósito de
esgoto e entulhos. Indignados com a obra, Ataíde e Ribeiro informaram que mesmo a
latrina sendo considerada de uso público, era inconcebível naquele local, uma vez que
todos os residentes e transeuntes da capital sabiam que se tratava de um dos espaços
mais concorridos da cidade pela proximidade com os cais, com o mercado de peixes
(ver planta n. 7 em anexo) e pelos passeios diários dos capixabas. Dessa forma, como
se iria construir ali uma vala que findaria com a vida de parte daquela artéria? Munidos
dessa prerrogativa, os peticionários ainda argumentaram sobre o uso diário e
significativo por parte dos moradores das águas que banhavam o mar, como, por
exemplo, os vendedores de peixes, que lavavam e limpavam a mercadoria antes de
negociar com os fregueses. Reproduzindo os termos de Francisco de Ataíde e José
Francisco, “nessas circunstâncias vossas senhorias bem podem calcular a
repugnância de se comprar um peixe que foi lavado nas águas da latrina.” Finalizando
o pedido, os requerentes sugeriram a intervenção do fiscal, pois não acreditavam ser
aquela obra realmente ação da municipalidade, mas sim de particulares.
Os jornais, na segunda metade do Dezenove, também eram utilizados para dar vazão
às irritações da população. Em meados da década de 1860, os vizinhos Francisco de
Amorim Machado, Manoel Pinto Ribeiro Junior, Gonçalo Pinto de Amorim Machado,
Gustavo Pinto do Nascimento, José Francisco Barbosa Pereira Espíndula, José Souza
da Costa, José Gonçalves Espíndula, Vitório Gonçalves de Souza e Joaquim José da
Silva fizeram um abaixo-assinado encaminhado à Câmara Municipal de Vitória para
questionar a obstrução de um caminho que comunicava o lado da cidade região
mais urbanizada da Ilha de Vitória – com a Ilha das Caieiras e solicitavam intervenção
imediata e deliberada do fiscal. A interrupção da passagem de uma área à outra
ocorrera porque alguém havia alterado o percurso da estrada, colocando cancelas em
paradas não apropriadas para a cobrança de pedágios sem a licença devida da
municipalidade. Após tentativas malogradas de instigar o fiscal a visitar a referida
estrada por meio de anúncios nas folhas impressas, recorreram os reclamantes aos
vereadores. Ciosos de uma providência, os subscritores ressaltaram que era chegado
56
o momento de os vereadores retribuírem os votos recebidos durante as eleições,
atendendo as necessidades da população. Assim, aguardavam deferimento.
Infelizmente, os casos narrados não tiveram resposta da Câmara na mesma petição,
não sendo possível, portanto, aferir o seu desfecho. Não obstante, torna-se plausível
discutir a presença cotidiana do fiscal nas freguesias do Município de Vitória, ora em
visita às casas de comércio, ora fiscalizando as construções de particulares e as
denúncias divulgadas nos jornais. Fato é que tais personagens certamente viam-se
inseridos em redes extensas de sociabilidades que percorriam diferentes freguesias do
Município. Por vezes, encontravam-se submersos na tênue distinção existente entre a
função que executavam por serem funcionários da Câmara e suas outras ocupações,
como vizinho, amigo de infância, pois parecia ser difícil conjugar essas diferentes
esferas de uma mesma vida sem esgarçar alguma delas. Tal como os inspetores de
quarteirão ou até mais, os fiscais dividiam-se entre as atribuições do cargo e as
relações estabelecidas com a comunidade. Dona Ana Pinto da Gama acusava o fiscal
que lhe cobrara uma taxa para comerciantes estrangeiros de perseguidor. Não é difícil
imaginar do que lhe acusariam os amigos se o fiscal os multasse por venda ilegal de
carne verde? Traidor? Tais indagações apenas sugerem as implicações a que
estavam sujeitos os indivíduos que aceitavam esse tipo de trabalho, aparentemente
comum, porém amarrado a uma trama social cujos fios de amizade deveriam ser
urdidos de modo cuidadoso devido a sua inerente fragilidade.
Os espaços mais freqüentados pelos fiscais foram certamente as lojas de comércio,
em função da periodicidade com que esses agentes da Câmara tinham de conferir os
pesos e as medidas, os preços e os produtos expostos nos balcões. No conjunto das
petições coligidas quantificaram-se os tipos de negócio com maior incidência na
documentação, como representado no gráfico 2.
57
GRÁFICO 2 - LOJAS DE COMÉRCIO
Fonte: AMV, Fundo: Petições e Requerimentos, 1850-1872.
Conforme pode ser inferido pelo gráfico acima, as quitandas foram os
estabelecimentos com maior destaque, seguidas do comércio de jóias e pedras
preciosas e, após, das tabernas. No seu sentido atual (Houaiss, 2007), quitanda
constitui-se em uma venda que comercializa frutas, verduras, ovos, isto é, mercadorias
provenientes da produção agrícola e da criação de animais. Entretanto, as quitandas,
as tabernas, os armazéns e as lojas de molhados apresentavam uma característica
interessante no Município de Vitória de então: elas vendiam também bebidas
alcoólicas, especialmente a cachaça. Na edição de 27 de abril de 1870 do Correio da
Victoria, encontra-se uma estatística da Tesouraria Provincial informando a quantidade
de casas que vendiam aguardente e de engenhos que a fabricavam. Dentre as
freguesias que compunham o Município de Vitória, constaram apenas Vitória e
Cariacica, mas os números são sugestivos. Na capital da Província havia 5 armazéns,
15 tabernas e 31 quitandas que comerciavam bebidas alcoólicas, enquanto em
Cariacica contabilizaram-se 37 tabernas e nenhuma quitanda ou armazém. No que
concerne à produção de cachaça, em cada uma das freguesias mencionadas havia 21
engenhos especializados na composição da bebida espirituosa. Somando 42 nichos
de produção do vinho da cana, pode-se imaginar que a distribuição da cachaça fosse
largamente difundida na municipalidade devido à quantidade de engenhos
responsáveis pelo fabrico e distribuição da aguardente e por sua popularização junto
às casas de negócio do Município.
O gráfico 2 sugere, inclusive, a existência de outros tipos de negócio na região do
Município, como lojas de secos, molhados, fazendas, carne verde, marcenaria,
58
pescados e atelier de alfaiate. Das 25 lojas de comércio investigadas nesta
dissertação, para apenas 5 não foi possível determinar a localização, pois algumas
atividades tinham lugar nas próprias ruas, de maneira ambulante, como foi o caso em
duas petições de joalherias, cujos proprietários requeriam licença para perambular à
procura de clientes, munidos de mostruário de peças e jóias prontas. Em outra
situação, encontrou-se uma petição que não especificava nem o tipo de comércio,
tampouco a sua localização. Da mesma forma, os donos de uma loja de carne verde
18
,
de uma quitanda e de uma oficina de marcenaria não informaram no pedido de licença
de porta aberta onde se estabeleciam as vendas.
Em contrapartida, no restante das petições sobre licença de negócio foi mencionada a
localização. Das 6 quitandas licenciadas no Município, duas se localizavam em
Cariacica, uma em Serra Grande e outra na região de Duas Bocas. Excepcionalmente,
como destacado no capítulo primeiro, não mapas ou plantas anteriores ao século
XX que auxiliem a desvendar os caminhos de terra das freguesias que, juntamente
com a cabeça administrativa e judicial da Província, Vitória, constituíam a região ora
estudada. Assim, os indícios extraídos do corpo documental servem para vislumbrar
uma aproximação do contexto espacial do Oitocentos. Ainda sobre as quitandas, 4 se
situavam na capital na porção de terra próxima ao Campinho, ao quartel de polícia e à
Santa Casa de Misericórdia, nas ruas Porto dos Padres e da Lapa (ver planta n. 4). As
tabernas, por seu turno, podiam ser encontradas na Rua dos Pescadores, também
conhecida como Rua Cristóvão Colombo, e na Rua da Conceição, contígua ao braço
de mar que inundava a Rua da Várzea (ou Vargem) e o Largo do Oriente (ver planta n.
4). A última taberna localizava-se no porto da Freguesia de São João de Cariacica,
ponto estratégico de recepção dos marítimos que desembarcavam nos cais.
A bebida alcoólica constituiu-se importante fator de sociabilidade no contexto capixaba
devido à abrangência da sua distribuição e consumo nos pontos comerciais do
Município e, ainda, em virtude de sua característica de produto capaz de exacerbar as
relações sociais. Julita Scarano (2001, p. 467-483) esclarece as razões pelas quais a
bebida espirituosa se tornou hábito popular nas regiões mineiras no período colonial.
Em primeiro lugar, Scarano (2001, p. 470) destaca a convicção setecentista de atribuir
ao consumo de álcool um valor positivo, principalmente para os indivíduos que
realizavam trabalhos árduos, como os escravos, e para o tratamento de algumas
enfermidades. Além disso, vale destacar que a produção do vinho de cana foi
18
Por carne verde entende-se a carne de gado vacum fresca, isto é, sem a interferência de
nenhum tipo de resfriamento ou de salmoura, comercializada nas lojas de bairro em pequenas
quantidades, tendo em vista o caráter perecível desse alimento.
59
pensada, inicialmente, para o consumo local e sua distribuição na Capitania de Minas
Gerais foi realizado por mercadores, mas também por negras ambulantes (SCARANO,
2001, p. 473-474). Com o passar dos anos, as autoridades da capitania mineira
começaram a temer as conseqüências do consumo corriqueiro do álcool, pois esse
hábito havia se difundido entre os escravos. As ocasiões em que tinha lugar o
consumo da cachaça eram inúmeras, desde aquelas ansiosamente aguardadas pela
população, tais como as festas religiosas e as comemorações profanas, até os
velórios e procissões. As pessoas, por outro lado, ingeriam a bebida
independentemente de datas comemorativas, dada a popularidade e a tradição do
consumo durante o dia-a-dia dos mineiros. O receio das autoridades em relação ao
álcool derivava das gentes de cor bebendo em festas e celebrações, oportunidade
propícia para promover arruaças extremamente perigosas (SCARANO, 2001, p. 478).
As considerações de Julita Scarano para a Capitania de Minas Gerais em fins do
Setecentos, podem ser transplantadas também para a sociedade capixaba do
Oitocentos, mesmo se tratando de períodos históricos distintos. Atentando-se para a
possibilidade de a produção do álcool e a especialização de determinadas
propriedades em sua destilação terem aumentado durante o limiar do XVIII para o XIX,
torna-se presumível inferir que o consumo da bebida alcoólica tenha se sedimentado
na tradição da sociedade capixaba como um valor transmitido entre as gerações e
compartilhado por grande parcela dos moradores da municipalidade. Assim, explicar-
se-ia a quantidade de engenhos identificada pela Tesouraria Provincial em 1870 e a
variedade de lojas que comercializam a cachaça. Pode-se dizer, portanto, que o álcool
fazia parte do cotidiano dos habitantes de Vitória e de outras freguesias, de modo a
colorir o labor e as atividades rotineiras desses indivíduos.
Encarada como um hábito de conseqüências dúbias para seus praticantes, a bebida
alcoólica potencializava o estreitamento de relações sociais, a consolidação de
vínculos e também os episódios de desordem. De acordo com Julita Scarano (2001, p.
479), o álcool propiciava o convívio entre pessoas de diferentes status sociais, a
alegria e o companheirismo. Certamente, a cachaça agia como agente catalisador das
sociabilidades, pois noutras circunstâncias a convivência entre personagens de
diferentes extratos sociais seria praticamente impossível. Concorda-se aqui com
Scarano (2001, p. 480) em interpretar-se a difusão da bebida alcoólica como um fator
de solidariedade disseminado no seio da sociedade capixaba, pois como entender o
concurso de escravos em tabernas da capital da Província durante as noites de 1865
60
para realizar pagodes com homens livres, encontros regrados a cachaça e petiscos,
senão como cenas de uma sociabilidade própria desses espaços sociais?
19
As sociabilidades poderiam ter lugar em outros estabelecimentos de comércio, como
demonstra o gráfico 2. Havia certa variedade de lojas e de produtos negociados,
nacionais e importados, e os fregueses capixabas davam-se ao luxo de escolher em
qual estabelecimento comprariam os produtos da necessidade familiar. De acordo com
Sophie Chevalier (2007, p. 66), as relações comerciais suscitadas entre clientes e
negociantes geram campos de sentidos sociais que participam da sociabilidade de
determinado bairro. Em investigação sobre as formas de abastecimento doméstico de
famílias francesas e a relação desse consumo com as representações dos quartiers
de moradia dos indivíduos analisados, Chevalier (2007, p. 67) assevera que o ato de
fazer compras em lojas da vizinhança é encarado simbolicamente como uma
integração eventual e espontânea entre os habitantes do bairro, correspondente a uma
relação ao mesmo tempo física (percursos e quarteirões), social (redes de
sociabilidade vicinais) e simbólica (representações do bairro).
Remontando as afirmações de Sophie Chevalier para o estudo das formas de
sociabilidade no Município de Vitória, pode-se sugerir que o estabelecimento de
moradia fixa em quaisquer das freguesias abarcadas pela investigação obedecia a um
conjunto de fatores, quais sejam, a proximidade dos espaços de comércio e as boas
instalações de valas e fontes de água, mas também como os residentes se
relacionavam entre si, promovendo vínculos sociais no bairro. Observa-se, pois, que
aspectos econômicos e sociais encontravam-se imbricados quando da escolha de um
local para morar. Vale ressaltar que a capital da Província se apresentava em situação
mais confortável do que outras freguesias da municipalidade por se tratar de uma
região mais urbanizada e visada no tocante às propostas de reformas e
melhoramentos do Governo Provincial. Além disso, Vitória congregava uma gama
diversificada de estabelecimentos comerciais e detinha excelente localização
geográfica para os tratos marítimos. Dito isso, nos quarteirões da cidade mais
destacada do Município poder-se-ia deslocar-se a para suas compras diárias em
tempo curto, ao mesmo tempo em que se reafirmavam os vínculos de amizade e
fraternidade entre vizinhos. Para Sophie Chevalier (2007, p. 71), o bairro é um
ambiente de inter-conhecimento e cordialidade. Ser cumprimentado como um
habitante do lugar, reconhecido pelos vizinhos e pelos comerciantes como integrante
19
O caso sugerido nessas linhas foi o que deu origem ao auto criminal ex-officio movido contra
dois soldados da polícia, Francisco Pereira da Cruz e Honório Barbosa da Silva, por acusação
de terem espancado Marcolino, escravo de Bernardino Pinto Ribeiro. No capítulo III o episódio
será tratado em detalhe.
61
do bairro, constituem provas sensíveis do seu pertencimento simbólico a determinado
arrabalde. Talvez mais significativo ainda seja o simbolismo conferido à rua por ser o
endereço primário de residência de um indivíduo. Não foi incomum encontrar nos
autos criminais levantados para esta pesquisa a menção do nome da rua como
informação do local de residência de testemunhas, réus e informantes listados nos
delitos. Provavelmente, declarar somente o nome da alameda de residência ou do
ambiente de trabalho já pressupunha outras informações não-ditas, porém,
conhecidas, de pertencimento a um quarteirão específico.
Outrossim, as lojas de comércio representavam um dos recursos simbólicos para se
pensar a vizinhança nas freguesias capixabas, em especial Vitória, na segunda
metade do Oitocentos. A formação de valores de identidade de uma família em um
bairro estava intimamente relacionada aos processos de apropriação social, fossem
eles alegóricos e físicos, cuja decisão pelo local de moradia era apenas o primeiro
passo. Dessa forma, a prática cotidiana de freqüentar o comércio local e realizar
compras apresentava-se como um expediente oportuno para se pensar as
sociabilidades tecidas nas ruas, nos quarteirões e no bairro (CHEVALIER, 2007, p.
71). Para além de produtos alimentares e outras aquisições específicas, as lojas de
negócio propiciavam aos capixabas a tessitura de sociabilidades travadas com
negociantes, caixeiros e outros fregueses freqüentadores desses ambientes
(CHEVALIER, 2007, p. 73), de modo que o ritmo de visitas às vendas não obedecia
tão somente a fatores de necessidade, mas ao estreitamento de relações vicinais que
se transformavam em redes de sociabilidade.
Nota-se, portanto, outra função dos estabelecimentos de negócio que não a de
fornecer produtos a preços módicos: a de local de encontros. Espaços de
sociabilidade compartilhados por personagens de status quo variados
20
, o hábito de
freqüentar as lojas de comerciantes específicos pode ter sido transmitido de pais para
filhos. As mulheres, provavelmente, teriam sido clientes possíveis de se identificar nas
vendas das freguesias capixabas, pois seus esposos certamente trabalhavam durante
o dia, retornando tarde da noite para o lar, ou eram marítimos e passavam vários
meses longe da família, transferindo para as consortes a tarefa do abastecimento
doméstico.
20
Na dissertação intitulada Política e economia mercantil nas terras do Espírito Santo, 1790-
1821, Enaile Flauzina Carvalho (2008) destaca o concurso de escravos e escravas nas lojas de
negócio da Vila de Vitória, durante os anos de 1790 a 1820. Carvalho expõe cadernetas de
comerciantes e entre os nomes dos devedores encontram-se misturados livres e cativos.
62
A convivência entre os habitantes das freguesias capixabas e o estreitamento dos
laços de vizinhança tomavam forma também nos espaços de comércio, em torno do
consumo de alimentos, guloseimas, provas de vestidos e paletós e de bebidas
espirituosas. Na freguesia de Nossa Senhora da Vitória, as pessoas podiam se cruzar
no trajeto para a venda de secos e molhados ou até nas tipografias. Consoante os
dados das petições estudadas, havia na Rua Porto dos Padres uma loja de secos,
uma de molhados e uma loja do delegado de polícia da capital, Aureliano Manoel
Nunes Pereira
21
. Na Rua do Piolho, conhecida no século XX como Rua Treze de Maio,
situava-se uma tipografia, responsável pela impressão dos cartazes das festas e dos
bailes, enquanto no Largo da Igrejinha (Igreja Matriz da capital), paralela à Rua do
Piolho, existia uma joalheria
22
. Nos autos criminais, mote do próximo capítulo,
identificou-se um botequim nesse mesmo Largo, área privilegiada para as atividades
comerciais, principalmente nos dias de concurso de fiéis à matriz. Caminhando em
direção à Rua da Praia (Rua Duque de Caxias) os capixabas podiam encomendar
seus trajes no atelier do alfaiate Francisco José da Silva e comprar peixes frescos na
banca localizada nas imediações das ruas da Alfândega e da Mangueira (atual Rua
de Março).
No capítulo primeiro destacaram-se os melhoramentos que a década de 1850 trouxe à
Província do Espírito Santo e à Vitória. As mudanças no contorno e no rebaixamento
de ruas e becos da capital certamente influíram positivamente no estabelecimento de
novos pontos de comércio e na fidelização da clientela. A reforma de algumas fontes,
como a da Capixaba e a Fonte Grande, foi tema recorrente nos relatórios dos
Presidentes de Província durante os anos de 1850 a 1872. As imundícies jogadas nas
ruas e as valas entupidas de lixo contíguas aos braços de mar que percorriam
caminhos da cidade também foram objeto de documentos oficiais e até mesmo de
preocupação de particulares.
Em outubro de 1866, Manoel Joaquim Gomes Ribeiro encaminhou petição à Câmara
Municipal reclamando do uso inadequado que seu vizinho, o major Antonio Ferreira
Rofino, fazia de terras do Pelame. Residente no nº.18, à Rua da Várzea, artéria
conhecida no século XIX pelos constantes alagamentos, Gomes Ribeiro possuía um
quintal cortado por valas para dar saída às águas que desciam do Pelame. Aconteceu
que Antonio Ferreira Rofino apossou-se da Praça do Pelame, reduzindo o local a um
pântano para as épocas de escassez de água. Como conseqüência da obstrução do
fluxo de água para o quintal de Ribeiro, as imundícies que desciam do Pelame para a
21
Na petição de Nunes Pereira não foi mencionada o tipo de comércio a que solicitava licença.
22
Para melhor entendimento da localização dos comércios na capital ver planta n. 4 em anexo.
63
Rua da Várzea, passando pela propriedade do suplicante, ficaram aprisionadas nas
terras de Joaquim Gomes Ribeiro, provocando mau cheiro e contaminando o solo de
seu quintal. O requerente solicitava ao fiscal da Câmara providências quanto ao
fechamento dos caminhos de água pluvial para sua propriedade, tendo em vista o
prejuízo causado nas terras do quintal e as péssimas condições de vida a que se
submetia a vizinhança da Rua da Várzea.
Em uma petição de 1864, um grupo de moradores da freguesia de São José de
Queimado se reuniu para protestar contra Francisco Vieira do Cravo, proprietário de
um sítio no distrito daquela freguesia. O objeto da reclamação era um olho d’água
denominado Mãe Simoa, localizado nos meandros do sítio, cujas águas os
peticionários se serviam antes de proibição para tanto emitida por Cravo. De acordo
com os requerentes
23
, a fonte era de servidão pública desde tempos imemoráveis e
mesmo os antigos possuidores do terreno onde ela se localizava não proibiram a
entrada de pessoas na propriedade para buscar água. O novo proprietário, contudo,
interditou o antigo acesso com cercas e espinhos. Convencidos de se tratar de uma
fonte pública, os peticionários solicitaram à Câmara Municipal de Vitória a intervenção
de um fiscal para retornar a nascente ao seu estado pretérito de servidão pública. Em
sessão de 16 de junho de 1864, foi deferido o pedido dos suplicantes, devendo-se
encaminhar um fiscal para restituir a servidão pública embaraçada pelo proprietário
Cravo.
A questão em torno da fonte Mãe Simoa permanecia incomodando os vereadores da
municipalidade a ponto de terem ordenado ao fiscal Vasco Fernandes Coutinho Junior
que verificasse a situação in loco. Aos onze dias de julho de 1864 o fiscal,
acompanhado do guarda José Cipriano Duarte Carneiro, dirigiu-se à freguesia de
Queimado para verificar se o manancial encontrava-se ou não aberto ao público.
Chegando às terras dotio Novo, de Cravo, o fiscal e o guarda avistaram dois
morros, um com plantação de milho e outro com cultura de mandioca e ali, no meio
deles, um pequeno brejo à beira do qual se situava a dita fonte. Constataram também
ser a área compreendida pelos morros e pela fonte de água dos proprietários meeiros
Francisco Vieira do Cravo e da órfã Maria Francisca Freire, filha de José dos Santos
Machado e Joana Maria Freire. O fiscal Coutinho Junior solicitou que os donos do sítio
apresentassem a escritura do terreno e assim o fez Cravo, ficando cientes da
23
Assinavam o documento André Vieira Coutinho, João Furtado de Santa Ana, Antônio Vieira
Coutinho Neto, Manoel Rodrigues de Santa Ana, Francisco Machado de Assis Feijó, João
Emilio Ribeiro Valdetaro, Manoel Francisco da Vitória, Manoel Correia do Espírito Santo,
Antônio Gomes de Jesus, Claudino Inácio Pinto, João Francisco Teu, Joaquim Pereira da
Encarnação e Gregório Pinto das Neves Heráclito.
64
legalidade do título as autoridades e as testemunhas ali presentes. Da mesma forma,
o advogado da órfã Maria Francisca Freire mostrou o documento. Confirmou o fiscal
que o olho d’água tinha nascente nas terras dos proprietários legais e que não havia
cessão alguma pública em benefício da população da freguesia. Dada a palavra aos
denunciantes contendores para alegar seu direito de uso da fonte de água, afirmaram
terem direito por ser de uso comunitário pelo menos 10 anos, isto é, desde 1854,
no mínimo. O senhor Francisco Vieira do Cravo disse a todos ali presentes que o
possuidor precedente, o alferes Silva, bem podia ignorar a presença inaudita daqueles
indivíduos, mas na ocasião de vender o Sítio Novo para Cravo passou-lhe cópia de
uma licença dada a André Vieira Coutinho, permitindo a passagem desse sujeito por
aquelas terras e mesmo o uso da água do sítio. Como se vê, André Vieira Coutinho,
um dos suplicantes, tinha autorização do antigo proprietário para utilizar a fonte Mãe
Simoa, não o tendo os outros peticionários. A par desses fatos, o fiscal Vasco
Fernandes Coutinho Junior passou a inquirir as testemunhas sobre a servidão pública
daquelas águas, respondendo todos que sempre se tratou de domínio particular. Isso
posto, o fiscal reformou o parecer favorável dos vereadores dado à queixa de André
Vieira Coutinho e outros, atestando o caráter privado da nascente de água situada no
Sítio Novo.
Algumas informações do parecer de Vasco Fernandes Coutinho Junior são pertinentes
no que tange aos espaços de sociabilidade a serem discutidos nesta dissertação. Ao
descrever a vida dos moradores de Queimado, o fiscal enumerou a quantidade e a
localização das fontes de água públicas e particulares utilizadas pela população da
localidade. Assim, havia a Bica, a mais antiga das fontes, considerada pública pelo
Orçamento Municipal, que previa fundos para a construção de um tanque na referida
fonte. Em homenagem à fundação da Igreja Matriz da freguesia foi criada a fonte São
José, instalada na região desde 1845 e apossada pela vizinhança mais de dez
anos sem oposição do proprietário, tratando-se, portanto, de uma fonte particular.
Coutinho Junior parece ter levantado as nascentes de água de Queimado para
averiguar irregularidades do mesmo tipo constatadas no Sítio Novo e finalizou sua
análise informando aos vereadores da municipalidade que o povo daquelas terras não
necessitava de outras profusões de água, exceto se a população crescesse em
dimensões tais que reparos e ampliações das fontes existentes não suprissem as
necessidades do público.
A transição dos anos de 1850 para a década subseqüente acompanhou alterações no
perfil das petições sobre obstrução de caminhos e terrenos. em 1852, Joaquim
Cardoso Rangel, lavrador proprietário de fábrica de açúcar nas terras do sítio
65
denominado Paul, onde era possuidor majoritário reclamou à Municipalidade os
abusos provocados por Inácio Pinto Ribeiro, dono do tio adjacente Vala, que
interrompera o trânsito das picadas próximas. Ambas as propriedades localizavam-se
na região de Cariacica, à margem norte do Rio Marinho. Consta na petição de
Cardoso Rangel a existência de uma estrada que cortava os dois sítios, responsável
pela circulação de mercadorias e trabalhadores até o porto de embarque daquele
mesmo rio, caminho de servidão pública muitos anos. Alegava o requerente o uso
público daquele trajeto, pelo qual conduzia em carros de boi a produção de suas
lavouras sem objeção alguma dos possuidores dos sítios Paul e Vala, que até ali se
desvelavam em manter transitável a trilha. Em 1846, Inácio Pinto Ribeiro comprara o
sítio Vala e terras adjacentes, conservando sempre as estradas e os caminhos que
nesses terrenos encontrara. Em julho de 1852, entretanto, começou a proibir o
suplicante de conduzir os carros de boi por um atalho que cortava as terras dele,
Ribeiro. Não satisfeito em ameaçar com palavras e proibir que o suplicante utilizasse o
atalho, embora permitisse a outros livre trânsito, no dia 9 de julho Inácio P. Ribeiro
consentiu que Joaquim Cardoso Rangel percorresse o atalho e abriu um fosso no
meio da passagem, impossibilitando quase por completo o acesso. No retorno da
viagem, Cardoso Rangel atolou os carros de boi no fosso, mas com uso de toras de
pau conseguiu se livrar do buraco. Na redação do pedido encaminhado aos
vereadores não está evidente o motivo da indisposição entre Inácio e Cardoso, porém,
parece claro que a implicância dirigia-se apenas ao requerente, visto que outras
pessoas daquelas terras de Cariacica permaneciam usando os caminhos de outrora.
De acordo com as petições é possível, ainda, dizer que a desavença havida entre os
proprietários dos sítios Paul e Vala não tenha se resolvido durante o ano de 1852, pois
Joaquim Cardoso Rangel protocolou outros pedidos junto à Câmara com o mesmo
assunto em anos ulteriores.
As contendas sobre uso público de caminhos parecem ter sido freqüentes na freguesia
de São João de Cariacica, ou pelo menos as notícias delas, porque se encontrou outra
petição reclamando a respeito do impedimento de trânsito no lugar denominado
Maricará. A discussão tinha se estabelecido entre Joaquim das Neves Firme e Inácio
Pereira de Barcelos. Esse último era acusado de bloquear com troncos, ramos de
árvores espinhosas e estepes o tráfego de cargas e de moradores, tornando
efetivamente intransitável a picada.
Após estudos quantitativos e qualitativos dos requerimentos endereçados à Câmara
Municipal de Vitória, parece possível diferenciar as petições segundo a origem dos
peticionários, se eram moradores da capital ou de outras freguesias e qual a relação
66
entre o local de moradia e a paisagem urbana dessas regiões. As solicitações de
moradores da capital abordavam, geralmente, questões relativas à zona mais
urbanizada dessa freguesia, isto é, à Ilha de Vitória. As petições provenientes de
Cariacica e Queimado, por seu turno, versavam sobre assuntos ligados às áreas rurais
do Município, provavelmente menos influenciadas pelas novas formas de sociabilidade
proporcionadas pela proximidade com a Corte e com a administração imperial.
24
O último tema a ser discutido nesta seção refere-se às ocasiões de entretenimento
proporcionadas aos habitantes do Município pelas festas e espetáculos teatrais. No
total das petições inventariadas, 7 se referiam a alvarás para a realização de festas.
Mais especificamente, os pedidos suplicavam a permissão dos vereadores para
decorar a capital, a fim de preparar as ruas e praças para o júbilo das procissões e
bailes em homenagem aos oragos católicos.
As irmandades católicas faziam parte do cotidiano da Província do Espírito Santo
desde, pelo menos, meados do século XVII (ELTON, 1987). A profusão de templos
religiosos nas freguesias parece ter contribuído efetivamente para o estabelecimento
dessas associações leigas. Em Vitória, por exemplo, a paisagem arquitetônica
oitocentista era recortada por torres e símbolos cristãos, como cruzes, instaladas no
cume das igrejas. Na planta 6 (anexo D), nota-se a quantidade de santuários
espalhados pela parte alta da capital, concentrando-se na Ilha de Vitória. Havia dois
conventos, o de São Francisco e o dos Carmelitas, e várias igrejas, tais como: Nossa
Senhora da Vitória (matriz), Nossa Senhora da Conceição, São Gonçalo, Nossa
Senhora do Rosário, Santo Antônio, Santa Luzia e Igreja de São Tiago. Nas
perspectivas da barra da Ilha de Vitória projetadas na transição do Dezoito para o
Dezenove são visíveis algumas dessas igrejas, devido a sua localização, pois muitas
foram construídas nas partes mais altas do maciço que corta o relevo da capital.
Plausível é indagar o reflexo que esses templos religiosos tiveram na vida cotidiana
dos habitantes do Município, principalmente nas vizinhanças de Vitória. O número de
igrejas evidencia alguns aspectos da espiritualidade da sociedade local, bem como os
laços que guardava com a fé católica. De acordo com Caio Boschi (2005, p. 62-66), o
cenário de muitas cidades mineiras indica haver incontáveis igrejas, em especial nas
plagas exploradoras de ouro e diamantes, como Vila Rica, Ouro Preto, Diamantina.
Essa paisagem pode induzir à suposição de que durante os séculos da extração
24
indícios nos autos criminais de injúria analisados de que os residentes em Vitória tinham
maiores chances de responder positivamente às noções de civilidade e constrição das
emoções propagandeadas pelo Governo Imperial, por se tratar de um dos pilares da
Modernidade. Para uma discussão sobre a natureza do processo civilizador, conferir a obra
clássica de Norbert Elias (1994).
67
aurífera a presença da Igreja Católica tenha sido inequívoca. Boschi (2005, p. 63)
adverte, contudo, não ter sido bem assim. Na verdade, o exercício da religiosidade na
Capitania das Minas Gerais nos séculos XVII e XVIII precedeu as iniciativas oficiais do
Estado metropolitano e da própria Igreja, institucionalmente. Mesmo na segunda
metade do Setecentos, não se construiu em Minas Gerais conventos e mosteiros. A
presença e a atuação da Igreja Católica mantiveram-se em segundo plano quando
comparadas às ações dos devotos e das instituições leigas (BOSCHI, 2005, p. 63).
Na Capitania do Espírito Santo, os conventos de São Francisco e do Monte de Carmo
foram erigidos ainda durante o período colonial. Isso talvez indique iniciativas
consistentes da Igreja relativamente ao exercício da religião nas regiões litorâneas da
Colônia. Nas vilas mineiras, a carência de ações sistemáticas da instituição católica e
o contato com o divino realizavam-se por meio da devoção, da invocação e da
proximidade entre os fiéis e os oragos: Rosário, Conceição, Carmo, Mercês,
Francisco, Gonçalo, José, Benedito, Elesbão e outros (BOSCHI, 2005, p. 64).
25
A
pessoalidade da relação dos devotos com os santos era o que projetava e
fundamentava a religiosidade dos indivíduos.
Assim, muitas vilas de Minas Gerais foram se configurando e urbanizando em torno
dos adros e das pras estabelecidas contíguas aos templos. Tanto quanto a
urbanização, as atividades comerciais ganharam viço e pujança (BOSCHI, 2005, p.
64) no entorno das igrejinhas. Paralelamente, é possível que as igrejas fundadas na
Vila de Nossa Senhora da Vitória, então sede da Capitania do Espírito Santo, tenham
impulsionado o surgimento das primeiras vizinhanças e de espaços de negócios da
sociedade local. De modo semelhante, as sociabilidades deveriam se exercitar
polarizadas pelas atividades religiosas, quando não se confundiam com o exercício da
religiosidade.
Não se deve esquecer, todavia, as inúmeras capelas e altares construídos em
propriedades rurais, incluindo chácaras, engenhos e sítios, pois a cidade de Vitória,
ainda no Oitocentos, era recortada por áreas rurais e bem se pode identificar nos
autos criminais notícias de chácaras e sítios acima da Fonte Grande e após a ponte de
Maruípe, por exemplo. Nessas zonas em que a devoção tinha lugar principalmente
nas casas de particulares, a religiosidade pode ter assumido características ainda
mais pessoalizadas em relação aos santos protetores.
25
De acordo com Caio Boschi (2005), Nossa Senhora do Rosário foi, de longe, a santidade
mais invocada nas Minas Gerais setencentista.
68
Tal como em Minas Gerais (BOSCHI, 2005), a transição do XVIII para o XIX marcou a
proliferação das associações leigas no Espírito Santo. No Município de Vitória, o
decorrer do Oitocentos indicou, ainda, a diversificação das irmandades, em
decorrência da estratificação social da Província. Dito isso, surgiu a Ordem Terceira do
Monte do Carmo, destinada a uma parcela da população local que ansiava o prestígio
social. Os indivíduos pobres e escravos puderam se reunir nas irmandades
denominadas de homens de cor, e nela forjavam laços de parentesco e afinidade,
muito úteis tanto na vida quanto na morte.
26
Como se verá na próxima seção do capítulo segundo, as festas, fossem elas profanas
ou religiosas, constituíam anúncios certos nas páginas do Correio da Victoria e do
Jornal da Victoria e eram um dos fatores determinantes do ritmo da vida cotidiana dos
capixabas. As celebrações religiosas eram aguardadas durante todo o ano e
configuravam espetáculos públicos concorridos, pois contam os memorialistas
oitocentistas que inúmeras pessoas vinham de freguesias distantes, por canoa ou a
cavalo, para participar desse ato maior de júbilo e sociabilidade (SIQUEIRA, 1999).
Consoante Norberto Luiz Guarinello (2001, p. 970), o conceito de festa deve ser
interpretado pela comunidade acadêmica como parte da estrutura do cotidiano de
todas as sociedades humanas. Nesse prisma, as festas são produtos necessários da
vida social. O historiador afirma (GUARINELLO, 2001, p. 971) que o cotidiano é
pensado não como uma dimensão particular da existência humana, mas como o
tempo concreto de realização das relações sociais. Nos períodos das festas, ocorria
uma interrupção do tempo social, suspensão temporária das atividades ordinárias da
população (GUARINELLO, 2001, p. 971).
Ainda, a propósito das festas, ressaltem-se as conseqüências decorrentes desses
eventos comemorativos, tanto materiais quanto comunicativos ou simbólicos. Para
Norberto Guarinello (2001), o mais importante de tais eventos seria a constituição de
determinada identidade entre os participantes. Segundo o próprio autor, “festa, num
sentido amplo, é produção de memória”. A celebração em si é fruto da realidade
social e, como tal, expressa a complexidade da vida comunitária, enunciando seus
conflitos, suas tensões, suas censuras, ao mesmo tempo em que se sobrepõe a tudo
isso. Guarinello (2001, p. 973) adverte, inclusive, para o equívoco de se pensar as
festas como expressão invertida da realidade social, porque todas elas apresentam
regras, códigos de comportamento, redes de sociabilidade e alegorias às vezes
fortemente ritualizadas.
26
As irmandades religiosas assistiam aos seus membros e familiares para que tivessem uma
vida decente e um sepultamento condigno, não ficando expostos nas ruas da cidade.
69
Nesse sentido, partilha-se aqui da compreensão de Norberto Luiz Guarinello a respeito
das festas como elementos do arranjo das sociabilidades estabelecidas entre os
participantes, os espectadores e a sociedade como um todo, espaços sociais para a
produção, reconstrução e negociação de identidades sociais. A articulação em torno
da construção de caracteres de identidade não implica o esquecimento das diferenças
sociais, e na medida em que as mesmas representem ou gerem conflitos, estabelece-
se uma identidade conflituosa (GUARINELLO, 2001, p. 973).
As comemorações em homenagem aos oragos protetores das associações leigas, as
exéquias, os casamentos, os aniversários de membros da família imperial, tudo isso
pode ser considerado festa, uma vez que não é o tipo de afeto ou emoção
predominante que define a priori o evento como tal. O que para muitos pode significar
alegria e entusiasmo, para outros pode ser revestido de sentimentos de tristeza e
desolação.
Um fator de destaque nas festas capixabas, profanas e religiosas, era o uso
deliberado da bebida alcoólica pelos envolvidos nas festividades. Conforme salientado
anteriormente, o álcool potencializava o exercício das sociabilidades, inclusive as
delituosas, porque atuava na exacerbação dos sentidos e das emoções, tornando tudo
mais intenso. A fidelidade aos santos exteriorizada na decoração e no preparo zeloso
dos detalhes das festividades era compensada pelos pagodes e batuques que tinham
lugar após as solenidades religiosas.
Francisco Antunes de Siqueira (1999, p. 63-107), personagem conhecido da história
do Espírito Santo e memorialista do século XIX, dedicou grande parte de sua vida às
atividades religiosas por ter se formado padre. A relação estreita que guardava com as
festividades religiosas instigaram Siqueira a produzir um texto a respeito dessas
comemorações e dos costumes e valores da sociedade espírito-santense. Em muitos
dos relatos sobre as festas das irmandades, na porção litorânea e norte da Província,
o clérigo destacou o consumo indistinto da cachaça e de outras bebidas alcoólicas
nesses eventos comemorativos. Além disso, ressaltou a ausência de distinção entre
festa religiosa e profana, dada a prática inconveniente de libertinagens e pagodes de
negros (SIQUEIRA, 1999, p. 70). Uma das festas mais perturbadoras da ordem e
moral públicas, porém, ao mesmo tempo, uma das mais concorridas pela população
das freguesias do Município de Vitória era a de São Benedito do Rosário. As
comemorações em homenagem ao santo iniciavam-se ainda no corte do mastro, tora
de peroba ou garabu, a ser conduzido e fincado no adro da capela de Nossa Senhora
do Rosário. A banda de música, os tocadores de samba e as danças persistiam
durante semanas até a retirada do mastro. A festa entrava madrugada adentro, em
70
função das procissões pelas ruas de Vitória, do Te Deum27 e dos bailes dançados na
praça da igrejinha. Abaixo inclui-se uma pintura relacionada à procissão marítima de
São Benedito, sem data.
Figura 11 - Procissão marítima de São Benedito, sem data
Fonte: Bichara (1984, p. 265).
As petições sobre licenças de festas referiam-se às comemorações da Irmandade de
São Benedito, ereta na capela de Nossa Senhora do Rosário, em Vitória. No recorte
cronológico analisado, não encontraram-se solicitações similares relativas a outras
confrarias. De acordo com Juliana Barreto Farias et al (2006, p. 113), os escravos
congregados em irmandades necessitavam de aprovação das câmaras municipais
para a realização de seus festejos. Os escravos, possivelmente, influenciavam no
deferimento de seu pedido por intermédio das sociabilidades amalgamadas com a
população livre e detentora de prestígio social, que podia incluir desde senhores de
escravos a agentes públicos e moradores da vizinhança.
As solicitações para as comemorações de São Benedito foram requeridas junto ao
corpo de vereadores de Vitória nos anos de 1854, 1855, 1859 e 1860. Em todas as
ocorrências, os irmãos da irmandade lograram sucesso, pois lhes foi concedida
licença para a decoração das ruas e largos da cidade de Vitória e também autorizados
a soltar foguetes. Os requerimentos eram encaminhados para a Câmara nos meses
que antecediam os festejos do santo negro, nos meses de agosto e setembro.
27
Hinos de louvor cantados a partir da meia-noite em homenagem ao orago da irmandade.
71
A partir das petições é possível descrever, parcialmente, como se davam as festas em
benefício de São Benedito do Rosário. Era costume antigo, segundo relataram os
peticionários, fincar coqueiros no Cais Grande (Cais do Imperador) e no Largo da
Conceição para embelezar o percurso a ser transitado pelos participantes que
conduziriam o mastro já cortado. Além disso, desde 1º de novembro, portanto mais de
um mês até a data oficial da festa (26 e 27 de dezembro), se faziam ouvir os
foguetes estourando no céu da capital, a fim de saudar toda a população e comunicar
a licença da Câmara de vereadores. As pessoas que saíssem de casa para assistir ao
espetáculo pirotécnico poderiam também se divertir com as canções tocadas e
cantadas pela banda de música da irmandade do Rosário, dançar pelas ruas com os
irmãos da confraria e acompanhar a condução do mastro até o adro da Capela de
Nossa Senhora do Rosário. Se o leitor observar a planta 4 (anexo C), verá que o
trajeto percorrido pelos festeiros atravessava grande parte da porção territorial
urbanizada da capital, caminho provavelmente escolhido de modo a convidar mais
moradores a participar das solenidades e exteriorizar a beleza da festa organizada
pelos irmãos do Rosário.
28
As homenagens a São Benedito se estendiam, pois, de 1º de outubro a 27 de
dezembro de cada ano e eram episódios que alteravam a rotina da vizinhança
capixaba. Isso porque era significativa a quantidade de pessoas que atracavam
canoas nos cais da barra da Ilha para participar dos festejos ou amarravam os cavalos
nas esquinas das ruas da capital, e porque a população local se preparava para
recepcionar os membros da Irmandade do santo preto do Rosário. Siqueira (1999, p.
67) relatou que durante as procissões percorriam-se as ruas de Vitória com a efígie do
santo pintada em uma bandeira e, no caminho, as famílias punham-se nas janelas
para atirar flores e doces secos, os quais faziam a diversão das crianças escravas.
Os pedidos de licença encaminhados pela Irmandade de São Benedito ereta na
capela de Nossa Senhora do Rosário suscitam ao pesquisador a tradição dessas
festividades na sociedade capixaba, tendo em vista a autorização dada pelos
vereadores, não obstante o relato de uma personagem oitocentista, Francisco Antunes
de Siqueira, que afirmava a libertinagem e bebedeira envolvidas em tais
comemorações. Por outro lado, a “puxada” e a “fincada” do mastro nas comemorações
de São Benedito pareciam agradar grande parcela da população da Província,
28
A necessidade de demonstrar suntuosidade e animação nas procissões do santo também se
relacionava com uma desavença tradicional entre a Irmandade de São Benedito do Rosário e a
Irmandade de São Benedito do Convento de São Francisco. O trajeto percorrido pelos irmãos,
assim, era uma manifestação de superioridade e competição com os irmãos de São Francisco.
Para saber mais sobre os motivos dessa competição, ver Walace Bonicenha (2004).
72
considerando as declarações de Siqueira quanto ao número de espectadores e
participantes desses folguedos.
29
As ruas da cidade e o pátio da capela do Rosário
eram enfeitados com bandeirolas, balões e fitas, as varandas das casas e os quintais
recebiam melhor iluminação, tudo para preparar o espírito das pessoas para o que
estava por vir. Ambientes íntimos e públicos se misturavam para dar lugar a um
espaço propício às sociabilidades nessa época do ano, aproximando livres e escravos,
quando se descobriam amores e se estabeleciam relações de amizade.
Uma das atrações das festas religiosas preparadas pelas associações leigas eram os
espetáculos cênicos. Organizadas próximas às igrejas das irmandades, as peças
teatrais agrupavam platéia significativa e eram notícias em jornais, como se verá na
seção seguinte do capítulo. O público se entusiasmava mais quando os atores eram
indivíduos da própria vizinhança, motivo certo para murmurinho nos dias sucessivos.
Nas comemorações das irmandades, a presença de pessoas de diferentes status
sociais na platéia dos espetáculos teatrais poderia ser interpretada como fato comum
dessas ocasiões, pois as peças eram montadas em locais públicos e não se cobrava
ingresso. Sendo assim, nas comemorações de São Benedito, por exemplo, não seria
estranho encontrar sentados lados e lado pessoas livres e não livres. Porém, quando
se tratava de associações dramáticas e teatros particulares, não era possível garantir
o concurso de escravos nesses ambientes. A composição do público dos teatros
particulares certamente era diferente da que tinha lugar nas festas religiosas porque
eram vendidos ingressos e se contratavam artistas profissionais.
Das 221 petições levantadas nesta dissertação, duas se referiam a teatros localizados
na capital da Província do Espírito Santo. Numa petição, Lourenço José de Grimós,
taberneiro estabelecido a Rua da Conceição, próximo à ponte da Rua Pereira Pinto,
requereu à Câmara permissão para instalar um botequim no Teatro Ateneu Dramático
nas noites de espetáculo. Ali pretendia o requerente vender refrescos, licores, cerejas
e doces, além de bebidas espirituosas. Em sessão de 21 de março de 1864, os
vereadores negaram a licença. Em outra solicitação, Antônio José do Nascimento,
proprietário da Companhia Dramática Eurípedes, suplicava à Câmara a absolvição do
pagamento da licença para espetáculos, tendo em vista os prejuízos que tivera nas
últimas exibições.
Combinando a análise dos requerimentos da Câmara Municipal de Vitória com a dos
jornais, nota-se que os espetáculos encenados nos teatros particulares de Vitória eram
um divertimento destinado à parcela específica da população: aquela que tivesse
29
Expressão utilizada em uma das petições dos irmãos de São Benedito do Rosário para
designar os bailes, danças, sambas foguetórios que ocorriam nesse período do ano.
73
condições monetárias para adquirir os ingressos e se vestir conforme a etiqueta
exigida para tais momentos. Ao que parece, os teatros particulares eram espaços de
sociabilidade construídos para determinado extrato social, pois configuravam-se em
locais de efervescência das questões políticas, sociais e até raciais. Analisando as
formas de sociabilidade comuns na cidade imperial entre 1820 e 1840, Marco Morel
(2005, p. 233) afirma que o teatro no Rio de Janeiro era um local onde a política se
teatralizava, dada a carência de lugares específicos para reuniões abertas. A casa de
espetáculos transformava-se em um ambiente de aclamação, diálogo, conflito e
consenso. Nas palavras de Morel (2005, p. 235), o teatro poderia se considerado um
espaço híbrido em vários sentidos: “[...] entre a rua e os recintos fechados, entre as
noções de soberania monárquica e soberania popular, entre o oficial e o
contestatório”. As discussões giravam em torno de assuntos diversos, entre eles as
questões raciais. A presença de um homem negro livre
30
no recinto era acompanhada
por espirros e gritos de “fora carvão”. Quando uma mulher parda aparecia na platéia,
ouviam-se gritos de “fora amendoim torrado” (MOREL, 2005, p. 235). Observa-se que
a palavra livre foi destacada no trecho anterior para ressaltar um indício da ausência
de cativos nesses ambientes.
Interpretando os teatros particulares capixabas a partir das idéias de Marco Morel
(2005), conclui-se que se constituíam espaços de sociabilidade abertos a setores
específicos da sociedade, diferentemente dos teatros erigidos nas praças e adros das
igrejas durantes as festas religiosas. Seriam ambientes permeados de valor simbólico
de diferenciação social, local em que as hierarquias da sociedade capixabas se
tornavam mais evidentes.
Na seção seguinte retoma-se com mais detalhes os temas discutidos nesta seção,
como os teatros e as festas, principalmente devido à profusão de anúncios de
espetáculos veiculados nos jornais publicados na cidade de Vitória, de festas
religiosas e profanas, qual seja, o carnaval.
2.3 IMPRENSA E COTIDIANO NO MUNICÍPIO DE VITÓRIA
O século XIX foi o divisor de águas no que tange à história da imprensa no Brasil. De
acordo com estudos clássicos como o de Nélson Werneck Sodré (1999), o primeiro
jornal impresso no Brasil saiu à luz ainda na primeira década de 1800, quando da
inauguração da Gazeta do Rio de Janeiro. Marco Morel (2003, p. 17), porém, destaca
30
Grifo meu.
74
que desde 1778 os residentes na colônia já tinham acesso a outro jornal, impresso na
Europa, a Gazeta de Lisboa. A partir de então, inúmeros foram os impressos
circulados pelas ruas das capitanias do Rio de Janeiro, da Bahia, de Minas Gerais,
entre outras. De acordo com Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves (2002), somente
após a Revolução do Porto de 1820 os impressos publicados no Brasil divulgaram, de
modo inédito, idéias liberais e constitucionais. Sodré (1999) e Morel (2003)
denominaram os impressos da independência “panfletos incendiários”.
Certamente, após 1822 o número de periódicos publicados em todo o Império
brasileiro cresceu significativamente, permanecendo em ascensão até o final do
Oitocentos. Na Província do Espírito Santo, considera-se a criação da folha Correio da
Victoria (1849) como o despontar da imprensa local
31
. Os anos compreendidos entre
1850 e 1860 foram marcados pela publicação de vários periódicos em terras espírito-
santenses.
32
As tipografias de muitos desses jornais funcionaram o suficiente para
imprimir pouco mais do que duas edições, dada a precariedade de recursos dos
proprietários e o insucesso em atrair o público.
Alguns estudiosos atribuem a uma alteração nos padrões de civilidade da segunda
metade do Dezenove a proliferação de impressos em diversas províncias brasileiras.
Para Tania Bessoni da Cruz Ferreira (2005, p. 01-02), essa constatação pode ser
estendida a diversas regiões do Império, visto que muitos se deram conta de que as
noções de civilidade, envolvendo abrandamento dos costumes, educação dos
espíritos, desenvolvimento da polidez, cultura das artes e das ciências, crescimento do
comércio e da indústria, aquisição das comodidades materiais do luxo etc. “[...] seriam
de muita valia para a sedimentação da cidadania, e poderiam se tornar também um
elemento de fortalecimento da nação brasileira”.
Considerando-se os elevados índices de analfabetismo
33
e os obstáculos advindos
das distâncias geográficas que faziam com que certas províncias permanecessem
desprovidas de bibliotecas e escolas em número satisfatório, a empreitada de fazer
aumentar a circulação dos periódicos e demais veículos da imprensa tornou-se árdua
e onerosa. De 1855 em diante, os residentes no Espírito Santo assistiram à
31
O jornal O Estafeta publicado em 1840 na capital da Província do Espírito Santo não superou
a marca de uma edição.
32
Em 1853 teve início o periódico A Regeneração; em 1857 foi publicado pela primeira vez um
jornal literário de instrução e recreio sob o título O Semanário; em 1859, A Aurora; em 1860, O
Mercantil, A Liga, O Indagador, O Marimbondo, O Provinciano, O Picapau, entre outros
(DAEMON, 1849, segunda parte).
33
“Os índices de analfabetismo no Brasil da segunda metade do século XIX variavam em torno
de 75% a 85%, de acordo com os diferentes levantamentos da época. (FERREIRA, 2005, p.
02).
75
inauguração de várias escolas públicas e Liceus em diversas vilas (DAEMON, 1849,
segunda parte).
Tal como verificado em outras localidades, como na Bahia e em Minas Gerais, os
jornais se destacavam nas conversas do público leitor pelo seu aspecto peculiar:
tratavam basicamente de assuntos do cotidiano. Nos periódicos Jornal da Victoria e
Correio da Victoria, analisados nesta dissertação, impressionante é o número de
notícias referentes a fatos do dia-a-dia dos munícipes, publicações de cunho privado,
enfim, uma gama diversificada e extensa de manchetes capazes de prender a atenção
dos leitores mais dispersos e desatentos. Maria Beatriz Nizza da Silva (2006, p. 156),
ao discutir a Idade d’Ouro do Brasil, impresso publicado na capitania da Bahia na
segunda década do XIX, ressalva que os editores responsáveis pela impressão dos
jornais perceberam que sem os acontecimentos de guerras ou grandes fermentações,
as gazetas tenderiam à esterilidade. Era preciso refletir a respeito do que escrever sob
pena de se tornar um jornal não lido. Assim, Gonçalo Vicente Portela, redator de Idade
d’Ouro do Brasil, percebeu que o cotidiano da cidade da Bahia, as notícias sobre a
movimentação dos portos, a lista de preços dos produtos e as variadas publicações
particulares encaminhadas à tipografia atraíam a população leitora.
Os impressos em estudo nesta dissertação se equiparam à folha publicada nos anos
coloniais na Bahia de Todos os Santos, de modo a sugerir uma atração análoga dos
capixabas por aquilo que se denominava cotidiano. Talvez esse fascínio possa
explicar a difusão de correspondências particulares publicadas nos jornais espírito-
santenses, tal como os anúncios de festas e outras atividades previstas no dia-a-dia
ordinário da população. Dessa forma, as publicações veiculadas no Correio da Victoria
e no Jornal da Victoria atendiam aos anseios do público leitor. Como se observou da
análise dos autos criminais de injúria impressa, os assinantes do Correio da Victoria
não ultrapassaram, geralmente, a marca de 80 indivíduos. Para o jornal Idade d’Ouro,
da Bahia, o número era de 200 assinaturas.
O reduzido número de assinantes do jornal capixaba não deve ser interpretado como
falta de crédito dos impressores, mas sim reflexo da massa de analfabetos existente
no período. Além disso, sabe-se bem que a leitura dos jornais não se restringia aos
assinantes e compradores avulsos, pois as notícias circulavam boca a boca por entre
ruas e estabelecimentos de negócio e nas próprias tipografias espaço ímpar para o
diálogo sobre os jornais (cf. MOREL, 2003).
Os impressos escolhidos para análise foram o Correio da Victoria e o Jornal da
Victoria. O primeiro teve início em meados de janeiro de 1849 e se manteve em
76
circulação até 1872. Caracterizado pela comunidade leitora da época como adepto da
política conservadora, o Correio, como mencionado, mantinha contratos de
exclusividade com o Governo Provincial para a impressão das disposições oficiais e
relatórios do Presidente de Província dirigidos à Assembléia Provincial. Conforme os
demais impressos à venda entre 1850 e 1872 na capital da Província, o jornal de
propriedade de Pedro Antônio de Azevedo, também editor da folha, compunha-se de
quatro páginas, sendo duas delas destinadas às notícias governamentais. A partir de
fins do decênio de 1860 o Correio da Victoria passou à propriedade do bacharel Tito
da Silva Machado, redator, e de Aprígio Guilhermino de Jesus, editor da tipografia.
34
Quem quisesse adquirir de forma avulsa as edições do Correio deveria se dirigir à
Travessa do Ouvidor
35
, esquina com o beco do mercado, no estabelecimento de n. 1
onde se localizava a Tipografia Capitaniense, responsável pela impressão do
periódico. O Correio da Victoria publicava-se inicialmente às quartas-feiras e aos
sábados, de 1849 a 1871. No seu último ano de atividades, em 1872, passou a ser
impresso três vezes por semana, em dias de terças e quintas-feiras e aos sábados.
O Jornal da Victoria, por seu turno, teve seu primeiro número publicado em 1864 e
perdurou até 1869. Em comparação com o Correio da Victoria, o Jornal caracterizava-
se por ser um impresso direcionado para os debates políticos que alimentavam as
disputas entre Caramurus e Peroás (conservadores e liberais). Isso posto, o
contingente de publicações particulares veiculado no Jornal foi menor do que o
publicado no jornal da Tipografia Capitaniense. O Jornal da Victoria também era
impresso em quatro páginas, sendo a primeira, a capa, reservada às notícias do
Governo Provincial, vez que em meados de 1860 Manoel Feliciano Moniz Freire,
proprietário e redator do periódico, obteve os direitos de impressão das leis e dos
relatórios provinciais. O Jornal da Victoria sofreu oscilações no ritmo das tiragens,
variando de dois para três o número de edições semanais. Apesar disso, os dias da
semana com maior freqüência de impressão eram a quarta-feira e o sábado.
Além do obstáculo do analfabetismo, havia ainda a questão do preço dos exemplares.
No início das atividades tipográficas, o preço do Correio da Victoria variava de 8$000
réis (oito mil réis) a 2$000 réis (dois mil réis) para assinaturas. O número adquirido na
venda avulsa custava $80 réis (oitenta réis).
36
Na década de 1860, contudo, os valores
34
Todas as referências à quantidade de ginas, proprietários do jornal, preços de assinaturas
e edições semanais foram extraídas do próprio jornal.
35
Conhecida popularmente ainda pelo nome antigo, a Rua da Alfândega foi criada a partir do
aterro previsto em 1852 pelo Governo Provincial do Espírito Santo (ver planta 7).
36
Valores referentes às vendas na capital da Província do Espírito Santo.
77
sofreram significativo acréscimo: em 1869, as assinaturas anuais na capital custavam
10$000 réis (dez mil réis) e as semestrais 5$000 réis (cinco mil réis), ao ponto que o
exemplar avulso era comercializado a $300 réis (trezentos réis). Os valores do Jornal
da Victoria se equiparavam aos negociados pelos distribuidores do Correio em 1869.
Para contratar um plano de assinatura anual do Jornal da Victoria, o assinante gastava
10$000 réis (dez mil réis) ou 5$000 réis (cinco mil réis) por semestre. A diferença entre
os dois periódicos estava no preço estipulado para a venda ambulante: $300 réis para
o Correio
37
e $200 réis (duzentos réis) para o Jornal.
É possível indagar-se então: teriam sido tais valores demasiadamente elevados para a
população local? Teria o preço funcionado como um obstáculo à difusão da imprensa
na sociedade capixaba? Na tentativa de dirimir tais dúvidas, é válido comparar os
preços estabelecidos na Província do Espírito Santo com os de outras regiões
brasileiras. No capítulo I realizou-se uma breve confrontação preliminar do preço das
assinaturas dos jornais com alguns produtos comercializados em lojas da capital
espírito-santense durante a segunda metade do Oitocentos. Assim, a assinatura anual
de um periódico era equivalente a um paletó de lona vendido a 7$500 réis (sete mil e
quinhentos réis), enquanto a assinatura trimestral equivalia ao preço de um par de
chinelos (1$800 réis) e custava pouco mais do que um vidro de óleo (1$000 réis).
Na Província de Minas Gerais, os jornais impressos entre 1847 e 1875 eram vendidos
da seguinte maneira: a assinatura anual d’O Conciliador em 1851 (Ouro Preto) custava
8$000 réis (oito mil réis), enquanto o número avulso valia $120 réis (cento e vinte réis)
na tipografia do jornal. As assinaturas do Dezesseis de Julho em 1869 (Ouro Preto),
por sua vez, custavam 20$000 réis (vinte mil réis) por ano, 16$000 réis (dezesseis mil
réis) por nove meses, 10$000 réis (dez mil réis) por seis meses e 5$000 réis (cinco mil
réis) por três meses. O jornal O Bom Ladrão, publicado em Mariana, custava 5$000
réis aos assinantes por ano e $160 réis (cento e sessenta réis) o número avulso. Este
era o valor praticado também para a venda ambulante do jornal O Constitucional de
Ouro Preto em 1847, $160 réis, e as assinaturas variavam de 10$000 réis a 5$000 réis
por ano e por semestre, respectivamente.
38
O jornal Idade d’Ouro do Brasil, publicado na Bahia ainda nos anos coloniais, era
vendido a $60 réis no início da década de 1810, passando depois a $80 réis (oitenta
réis) (SILVA, 2006, p. 157). Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves (2002, p. 55) afirma
37
A partir do mês de janeiro de 1872, cada exemplar passou a ser vendido por $200 réis.
38
As informações relativas aos jornais mineiros foram pesquisadas no site do arquivo de Minas
Gerais, que disponibiliza online todo o acervo jornalístico impresso no Estado do século XIX.
Para conferir, acessar <www.siaapm.cultura.ng.gov.br>.
78
que sob a ótica da disponibilidade, os jornais não eram, decerto, inacessíveis a um
público mais vasto devido ao seu custo. Para corroborar a hipótese, a historiadora cita
os preços de vários produtos comercializados nos anos de 1820 a 1830. Por exemplo,
uma empada custava $100 réis; um arrátel de lingüiça, $280 réis, uma garrafa de
aguardente de cana, $80 réis e um sabão inglês, $120 réis a libra. Os periódicos, por
outro lado, variavam entre $80 e $120 réis em 1821 e os panfletos podiam ser
comprados por $80 ou até $320 réis.
Os preços dos jornais não impediam, pois, que pessoas cuja renda anual não era
suficiente para enquadrá-las na situação de votantes adquirissem os impressos. Pode-
se estender essa afirmação aos cativos de ganho, que gozavam de horário de trabalho
flexível e poderiam poupar pecúlio para comprar o que lhes bem interessasse. Os
preços dos jornais, capixabas e mineiros, sugerem que os valores das assinaturas
trabalhados na capital da Província do Espírito Santo apresentavam-se menos
inflacionados do que os mineiros, ao passo que o preço cobrado na venda avulsa
chegava a ser 50% maior na Província do Espírito Santo do que em Minas Gerais.
Além disso, as comparações dos preços de jornais com os de outras mercadorias
comuns das praças de comércio das províncias indicam que os jornais não se
constituíam artigo de luxo, restrito aos extratos de maior prestígio social e financeiro.
Basta lembrar que produtos alimentícios e a cachaça de cana, produtos com
referência recorrente nas memórias oitocentistas, custavam a metade ou a terça parte
do preço de um jornal.
Durante o levantamento dos jornais capixabas foram lidos e transcritos 687
exemplares do Correio da Victoria e 403 do Jornal da Victoria. A disparidade
observada no montante investigado de cada periódico deve-se ao fato de o primeiro
ter iniciado suas atividades em 1849, ao passo que o Jornal foi publicado pela primeira
vez em 1864. Deve-se mencionar, inclusive, que há falhas na transcrição das edições,
porque não foi possível recuperar todo o acervo jornalístico referente às folhas
elencadas. Assim, do Correio foram analisados os anos de 1850, 1854 a 1859 e 1864
a 1872. Em relação ao Jornal foram estudados os números referentes aos anos de
1864 e de 1867 a 1869.
Os impressos escolhidos para investigação, não obstante fizessem referência a
partidos políticos oposicionistas, assemelhavam-se no que tange à divisão interna dos
exemplares. Geralmente, a primeira página destinava-se às notícias do Governo
Provincial e das atividades judiciárias, como seções do Tribunal do Júri, prisões
efetuadas, etc. As próximas duas páginas eram dedicadas às publicações com objetos
diversificados. Talvez, por isso, uma das seções se chamasse “Variedades”. Nesse
79
espaço publicavam-se trechos de jornais de outras províncias, notícias internacionais,
obras da literatura internacional, como de William Shakespeare, contos brasileiros e
músicas. Ainda na terceira página era possível ler as “Correspondências Particulares”
e as cartas infamantes e caluniosas no “A Pedido”. Na última página, finalmente, havia
a seção dos anúncios, que aglomerava tanto publicações de tipo classificado, com
objetivo de venda ou compra de algum produto, imóveis, canoas, entre outros, até
cartas particulares com poucas linhas. Ali também se lia a programação das festas e
outras opções de divertimento local, reclamações contra algum vizinho, autoridades,
etc., a movimentação do porto, com a lista de entrada e saída das embarcações, as
notícias de sepultamento, enfim, tudo que dissesse respeito à vida cotidiana da capital,
em particular, e da Província como um todo.
Diante desse quadro diversificado de publicações, selecionaram-se preferencialmente
as notícias que compunham a quarta página do Jornal da Victoria e do Correio da
Victoria, isto é, as que versavam sobre o cotidiano dos moradores do Município de
Vitória, com ênfase em seus arranjos de sociabilidade. As próximas linhas serão
dedicadas à análise qualitativa das publicações coligidas dos impressos, onde se
demonstrará um processo lento de transição dos jornais capixabas no abandono de
seu aspecto privado para se tornarem majoritariamente um espaço para notícias de
interesse público e anúncios do tipo classificados. A década de 1870 deu início a esse
novo perfil de publicações exibidas nas folhas da capital da Província.
2.3.1 VITÓRIA ERA UMA FESTA?
39
Na análise das petições da Câmara Municipal de Vitória foi possível perceber que o
cotidiano do Município era marcado por eventos bastante aguardados por todos. As
festas religiosas e profanas faziam parte do calendário da população local, da rotina
desses indivíduos, ao ponto de ser cobrada em jornal a organização de determinada
festividade.
No levantamento dos anúncios de festas publicados nos jornais capixabas, um fato
chama a atenção: na cidade de Vitória, na segunda metade do Oitocentos, não houve
um final de semana sequer sem que tivesse havido algum evento religioso ou profano,
tal como vésperas de santos, novenas, feiras para angariar recursos para festas,
39
O título desta subseção homenageia a orientadora deste trabalho dissertativo que durante
uma apresentação de comunicação coordenada sugeriu-me essa questão.
80
procissões pelas ruas da cidade, bailes, pagodes, enfim, episódios que movimentavam
a vida dos capixabas
.40
A influência católica fez-se evidente na Província do Espírito Santo desde os tempos
coloniais, perdurando até os anos do Império. Nesse sentido, as irmandades se
instalaram em solo espírito-santense de modo a alimentar a religiosidade dos
moradores e a criar vínculos de sociabilidades. De acordo com Walace Bonicenha
(2004, p. 121), as irmandades estavam presentes no convívio da sociedade local pelo
menos desde meados do Seiscentos.
41
As irmandades religiosas possibilitavam um
exercício diferente de devoção, aproximando os fiéis dos oragos protetores e
promovendo uma relação verticalizada de reciprocidade e intimidade entre o humano e
o celestial. Gilberto Freyre (2001) afirma que a devoção popular fazia os santos
descerem a terra, enfatizando a aproximação entre os fiéis e os intercessores divinos.
Isso não quer dizer, contudo, que o cristianismo brasileiro fosse desprovido de fé,
embora, nas palavras de Freyre (2001), beirasse a heterodoxia. De maneira
semelhante, João José Reis (1991, p 59) considera que as irmandades foram
verdadeiros veículos de um catolicismo influenciado por práticas pagãs. A esse
cristianismo o historiador baiano denominou catolicismo popular. Reis (1991) assevera
que nas irmandades religiosas os santos muitas vezes ganhavam precedência sobre o
“Deus Todo-Poderoso”, o qual adquiria o status de grande santo. Sabe-se, pois, que o
catolicismo desenvolvido no Brasil não foi aquele propagado a partir do século XVI
pelo Concílio de Trento na Europa. No entendimento de Mariza de Carvalho Soares
(2000, p. 133), a religiosidade católica brasileira dos séculos XVII e XVIII denominava-
se barroca, caracterizada por expressiva participação dos leigos no preparo e na
execução dos cultos realizados em suas casas, nas capelas e nas igrejas por eles
construídas.
Provavelmente, grande parte do legado do catolicismo barroco permaneceu
impregnado na prática devocional de fiéis do Dezenove, dada a morosidade em se
alterar comportamentos humanos e mentalidades. Francisco Antunes de Siqueira
(1999), clérigo e memorialista capixaba do século XIX, repudiava o modo como as
festas religiosas de oragos na cidade de Vitória se traduziam em verdadeiras
40
As publicações relacionavam-se a santos diversos, como Nossa Senhora das Dores, da
Conceição, de Santa Catarina, dos Remédios etc. Foram publicadas, ainda, notícias sobre as
festas do Convento de Nossa Senhora do Monte do Carmo, da Ordem da Penitência (ereta
no convento franciscano), de Santa Luzia, São Gonçalo, São Miguel, o Sebastião, entre
outros.
41
Estima-se que a Confraria da Misericórdia tenha sido criada no Espírito Santo no ano de
1545 (BONICENHA, 2004, p. 121).
81
festividades profanas, com abuso de ingestão de álcool e do pecado da gula, de
danças eróticas e de muitos namoros.
As homenagens aos oragos de confrarias religiosas na capital da Província do Espírito
Santo evidenciam ao pesquisador a pluralidade devocional dos habitantes de Vitória e
arredores. Comemorava-se o dia de inúmeros santos, desde os tradicionalmente
relacionados a uma herança portuguesa
42
até os das irmandades de homens pretos e
pardos.43 A variedade de santos a laurear facilitava a produção semanal de eventos
festivos na cidade, promovendo o concurso de um público vasto e diversificado,
proveniente de freguesias vizinhas e até do interior da Província. Conta Francisco
Antunes de Siqueira (1999, p. 90) que em dias de festa não era possível amarrar os
cavalos ou atracar as canoas nos cais da capital, pois todos os cantos e esquinas da
cidade haviam sido tomados por uma aglomeração de espectadores.
As publicações sobre festas de irmandades nos jornais Correio da Victoria e Jornal da
Victoria não se resumiam ao anúncio da festa, porém, preocupavam-se os irmãos em
destacar a beleza e a suntuosidade da homenagem, que seria “a mais bela já vista
desde então”. Outro dado importante dos anúncios referia-se ao horário das
comemorações. Geralmente, as festas ocorriam de madrugada. Antes do momento
festivo, entretanto, rezava-se o terço e a missa com a presença de párocos
convidados das freguesias vizinhas. Em 12 de janeiro de 1850
44
, publicou-se no
Correio da Victoria um anúncio sobre a festa de Nossa Senhora do Parto, que teria
lugar no domingo, dia 14 do mesmo mês, de madrugada na Igreja de Nossa Senhora
do Rosário dos Pretos. A festa de Nossa Senhora das Dores ereta na capela do
Santíssimo Sacramento, do mesmo modo, foi anunciada no Correio de quarta-feira, 13
de março de 1850: o tesoureiro da irmandade convidou todos os irmãos e os bons
cristãos a comparecerem na igreja matriz de Vitória na madrugada do dia 22 de março
para tornarem mais brilhante esse ato pomposo de religiosidade. Ao que parece, as
irmandades capixabas não se diferenciavam quanto ao horário determinado para as
festas dos oragos protetores. Pelo contrário, é possível que os irmãos de confrarias
diferentes pretendessem realizar suas festividades exatamente no mesmo horário
agendado por outra irmandade. De acordo com João José Reis (1991, p. 68-69), as
confrarias competiam entre si para superar umas às outras na homenagem aos
42
Como, por exemplo, o Divino Espírito Santo e São Sebastião.
43
Nossa Senhora do Rosário, São Benedito e Nossa Senhora da Conceição podem ser citados
como santos da predileção negra e parda.
44
Todos os anúncios e demais publicações citadas dos periódicos analisados podem ser
pesquisados no fundo de Jornais Microfilmados do Arquivo Público do Estado do Espírito Santo
– APEES.
82
santos. O prestígio social dessas associações religiosas, bem como a capacidade de
arregimentar novos irmãos, dependia necessariamente da competência lúdica de cada
uma. Nessa disputa ganhava a irmandade que tivesse sua festa rememorada pelos
moradores da cidade como o maior acontecimento já presenciado. A imprensa, nesses
termos, exercia tarefa importante para a sempiternidade de tais eventos, pois dava
publicidade não aos anúncios de divulgação das festas, como também aos
comentários de indivíduos que assistiram ao majestoso espetáculo.
A partir dos anúncios coletados nos jornais pesquisados e de leituras sobre a vida
cotidiana dos capixabas no século XIX torna-se razoável presumir que algumas das
festas mais esperadas pelos residentes no Município de Vitória fossem as das
irmandades de São Benedito - uma assentada no Convento de São Francisco e outra
na Igreja do Rosário dos Pretos -, a de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, a de
Nossa Senhora da Penha45 e a do Divino Espírito Santo. Os comentários sobre essas
comemorações foram publicados nos jornais e o mais famoso deles, escrito por
Francisco Antunes de Siqueira, foi transformado em livro no século XX. Havia grande
variedade de santos homenageados na capital e a publicação em folha impressa não
era uma regra a ser seguida. Talvez por isso seja possível observar anúncios
referentes a diversos oragos divinos, mas sem qualquer regularidade de publicação no
ano subseqüente. Outro fator que influenciou na percepção das festas acima
mencionadas como as mais aguardadas pela comunidade local relaciona-se ao
formato do anúncio publicado: o tamanho e a decoração das margens do anúncio,
indicando, em primeiro lugar, que a irmandade se esforçava para no mínimo aparentar
ter recursos pecuniários suficientes para a realização da solenidade. Além disso, as
irmandades de São Benedito, do Rosário, da Penha e de São Francisco publicavam
regularmente nos periódicos, ao contrário de outras confrarias menores que não
possuíam recursos para manter um anúncio circulando nas páginas impressas por
mais de duas edições.46 Abaixo seguem dois exemplos de anúncios de festas
publicados um no Jornal da Victoria e o segundo no Correio.
45
Como a dissertação em tela trata especificamente do Município de Vitória não será analisada
em pormenor a festa de Nossa Senhora da Penha, pois se tratava de evento da Vila do Espírito
Santo, que não fazia parte da municipalidade.
46
Na edição de sábado, 2 de abril de 1864, do Jornal da Victoria cobrava-se $80 réis por linha
escrita para imprimir anúncios e quaisquer outras publicações que contivessem menos de 20
linhas e $60 réis por linha para aquelas que excedessem esse número.
83
Figura 12 - Anúncio da festa de Nossa Senhora dos Remédios
Fonte: APEES – Fundo: Jornais Microfilmados, 1850-1872.
Figura 13 - Anúncio da festa de São Benedito do convento franciscano
Fonte: APEES – Fundo: Jornais Microfilmados, 1850-1872
.
84
Durante a década de 1860 a festa em homenagem a Nossa Senhora da Penha,
localizada no Convento da Penha na Vila do Espírito Santo (atual Vila Velha), não
pôde se realizar de modo freqüente, tendo em vista o péssimo estado físico das
construções do Convento.
As irmandades constituíam-se como espaços de sociabilidade e solidariedade para os
irmãos congregados, tanto em vida quanto na morte, pois cabia à irmandade custear
sepultamento digno aos seus membros e familiares e, em caso de viuvez, prover
auxílio às viúvas que não tivessem meios de sustentar a si e aos filhos (REIS, 1991).
Nesta dissertação, por outro lado, merece destaque um produto das irmandades, as
festas religiosas, que se configuravam como verdadeiros espaços de sociabilidade
franqueados à população em geral, possibilitando o concurso de pessoas de
diferentes origens, afrouxando assim as barreiras existentes ou que se pensavam
existir, entre os vários extratos da hierarquia social. Nas épocas de festas para santos
católicos, a vizinhança se unia para limpar a parte externa das casas e pintar os
muros. As famílias abriam as janelas e prostravam-se nas varandas para aguardar a
procissão passar. Das sacadas, as famílias jogavam flores e guloseimas para os
negros e as negras que acompanhavam o cortejo (SIQUEIRA, 1999, p. 67).
A devoção ao Divino Espírito Santo era praticada nos adros do Convento de São
Francisco, localizado na Ladeira de São Francisco (ver planta 4 em anexo).
47
Era
comum nas igrejas a devoção a vários santos, cujas imagens ficavam expostas nos
altares laterais dos templos, enquanto o altar-mor era reservado para o orago que
dava nome à igreja. De acordo com Francisco Antunes de Siqueira (1999, p. 64), a
festa do Divino era patrocinada pelos patrícios da terra, isto é, os indivíduos com
melhor condição social, numa comemoração aguardada pela população branca da
Província. O mastro era um tradicional símbolo da festividade do Divino Espírito Santo,
tanto quanto o era nas irmandades de pretos e pardos.
48
O corte de uma madeira
grande e imponente apresentava diversos significados para os irmãos da confraria,
tais como o sacrifício de carregar o mastro pelas ruas e ladeiras estreitíssimas da
capital durante as procissões, relacionar o tamanho da madeira com o prestígio da
confraria junto ao público etc.
47
O dia do Divino Espírito Santo é comemorado após 50 dias da páscoa cristã. No Correio da
Victoria de bado, 9 de maio de 1869, publicou-se notícia sobre a festa do Divino marcada
para o dia 16 com véspera no dia 15 no Convento de São Francisco. No Correio de 10 de maio
de 1871 anunciou-se a festa do Divino para o dia 28 de maio.
48
No Correio da Victoria de 21 de setembro de 1850 anunciou-se ao público a festa de São
Miguel marcada para o dia 28 do mesmo mês, em que tinham de conduzir o mastro do Largo
da Conceição (atual Praça Costa Pereira) até a Praça do Colégio (Palácio).
85
A preparação para as festas tinha início semanas antes do dia marcado. Devia-se
escolher a madeira e cortá-la, prepará-la e adorná-la para o dia da procissão. A partir
de relatos oitocentistas sobre essa comemoração, pode-se conjeturar a respeito da
suntuosidade que se pretendia mostrar aos espectadores. Francisco Antunes de
Siqueira (1999, p. 64-66) pareceu não se incomodar em externar sua predileção pela
festa do Divino: seu coração se expandia, sua imaginação se exaltava e até suas
veias se dilatavam para dar franca circulação ao seu próprio sangue (SIQUEIRA,
1999, p. 65). Na véspera da festa do Divino Espírito Santo, o mastro descansava em
lenços de seda e era carregado pelos devotos pelas ruas de Vitória entre aplausos e
fogos de artifício. O trajeto terminava na Ladeira de São Francisco, onde o mastro era
depositado sob arcadas de folhagens entremeadas de odoríferas flores (SIQUEIRA,
1999, p. 65). A calçada e as arcadas do pórtico ficavam iluminadas por luzes
multicores, representando outros tantos espíritos que abrilhantavam o céu do convento
franciscano. Todo o percurso era acompanhado por um público entusiasmado. Nas
palavras de Siqueira (1999, p. 65), ninguém ficava pelas roças. Uma multidão de fiéis
e curiosos vinha ofertar os tributos de sua piedade. O alpendre e os corredores do
convento ficavam atopetados de oferendas.
Nos dias antecedentes à homenagem precediam novenas. A preparação para a festa
incluía a eleição, na véspera, de um imperador e de sua imperatriz dentre os
indivíduos mais destacados da sociedade capixaba. A família imperial contava com um
séquito de serviçais, como mordomos, porta estandarte, entre outros. Na véspera,
junto ao pórtico do convento, levantava-se um trono para o imperador da festa do
Divino Espírito Santo. Adiante do casal real caminhavam em procissão os integrantes
da Irmandade do Divino com tochas acesas símbolo do Espírito Santo descendo a
terra e pessoas de distintas condições sociais. Logo atrás da irmandade vinham
doze foliões, meninos vestidos de branco com chapéus pretos, dispostos em
semicírculo, separados do público por varas encarnadas. Os foliões levavam tambores
e chocalhos para acompanhar as canções (SIQUEIRA, 1999, p. 66).
No dia de Pentecostes (descida do Espírito Santo), horas antes da festa, os irmãos da
confraria seguiam pelas ruas, acompanhados por pretos que carregavam cestos
contendo carne fresca e pães, para distribuírem esmolas pelas casas dos mais
humildes. Dava o imperador um lauto jantar em esplêndida mesa e acompanhava com
seus mordomos e foliões a procissão da festa. Em seguida entoava-se o Te Deum
86
Laudamus
49
. Depois do Te Deum ia o cortejo à moradia do imperador e da imperatriz
eleitos e passavam-se a coroa e os símbolos da realeza à nova família imperial. A
festa do Divino Espírito Santo caracterizava-se pela confluência de elementos
religiosos e mundanos, como a relação estabelecida com a realeza, sendo deveras
apreciada pela vizinhança capixaba devido à profusão de esmolas e à ostentação
observada no conjunto da festividade. Os patrícios da terra pareciam não se importar
em abusar no luxo de suas indumentárias e adornos, ricos em ouro e pedras preciosas
(SIQUEIRA, 1999), pois eram justificados pela causa sagrada: homenagear o Divino.
Além disso, a população pobre e os escravos exerciam papel importante nessa
comemoração, em função da participação nas procissões e por serem alvo da
caridade dos congregados do Divino Espírito Santo.
a festa de Nossa Senhora do Rosário, em contrapartida, tinha lugar nos dias 21 e
22 de outubro na capela de mesmo nome. Autores como Mariza de Carvalho Soares
(2000), Caio Boschi (2005) e João José Reis (1991) atribuem a devoção à Nossa
Senhora do Rosário principalmente aos negros escravos e libertos. Em Vitória, autores
como Elmo Elton (1987) e Walace Bonicenha (2004) corroboram tal interpretação e
esclarecem que as festas promovidas pela Irmandade do Rosário eram programadas
e realizadas sem interferência direta da população, sendo de responsabilidade
exclusiva dos próprios irmãos. No Correio da Victoria de 11 de outubro de 1871
comunicava-se à população a programação das festividades da Santa dos homens
pretos. O anúncio abaixo reproduzido fornece mais informações a respeito do
cronograma da festa.
49
Te Deum Laudamus é uma oração em forma de louvor cantada no momento clímax da festa,
invocando a misericórdia e glória de Deus sobre os devotos. Para ler o Te Deum completo ver
os documentos na seção anexo F desta dissertação.
87
Figura 14 - Anúncio da festa de Nossa Senhora do Rosário
Fonte: APEES – Fundo: Jornais Microfilmados, 1850-1872.
No anúncio acima se informa que a festa de Nossa Senhora do Rosário durará dois
dias, começando às oito horas da noite do dia 21 de outubro. As atividades incluíriam
orações ao evangelho, missa, Te Deum Laudamus, procissão e Magnificat
50
,
embalados pela música do professor Baltasar Antônio dos Reis. Além disso, previa-se
um leilão com as doações ofertadas a Nossa Senhora. Francisco Antunes de Siqueira
(1999, p. 70) indignava-se com a forma como o culto dos santos reduzia-se a
distrações nas festas dos negros. No primeiro domingo de cada mês do ano os
membros da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário saíam em procissão, cantando
o terço, cujos mistérios se contemplavam nas ruas (SIQUEIRA, 1999, p. 101). Ao que
50
Magnificat foi um cântico entoado por Maria (mãe de Jesus) ao visitar Isabel (mãe de João
Batista), quando ambas ainda estavam grávidas. Essa música de Maria, como também é
conhecida, foi descrita no evangelho de Lucas, capítulo 1, versículos 46 a 55. Para conferir
mais informações sobre cânticos acessar <http://www.paroquias.org/capela/>. Para ler o
Magnificat em latim e traduzido para o português ver anexo G desta dissertação.
88
parece, o arcebispo da Província tentou proibir a manifestação em razão de as
andanças prolongaram-se noite adentro, dando lugar a obscenidades nas ruas e
becos próximos à Fonte Grande (SIQUEIRA, 1999, p. 101). Evidentemente, as
considerações de Siqueira refletiam parcialmente a posição por ele ocupada na
sociedade capixaba do período, pois era clérigo e durante muitos anos atuou na
Paróquia de Nossa Senhora da Vitória, isto é, na igreja matriz. Assim, as afirmações
do religioso passavam pelo filtro de sua formação escolar e espiritual, sendo
compreensível, portanto, a motivação que o levava a rechaçar as festividades sacro-
profanas da população de cor do Município de Vitória.
A festa de o Benedito também mereceu longas descrições do memorialista
capixaba, provavelmente por aludir a uma indisposição havida entre conservadores
(caramurus) e liberais (peroás). A devoção a São Benedito estava a cargo das
irmandades de São Francisco e de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos. De acordo
com Walace Bonicenha (2004, p. 144), a primeira irmandade de negros formalmente
constituída em Vitória foi a de São Benedito, com consistório no Convento de São
Francisco. O Santo era comemorado no dia 27 de dezembro por negros livres e
cativos, bem como por brancos pobres. No dia do Santo havia procissão com saída do
convento franciscano, em que os irmãos vestiam manteletes verdes. Inicialmente, os
devotos de São Benedito congregavam-se unicamente no consistório dos
franciscanos, porém, o ano de 1832 marcaria uma cisão entre os fiéis do herói de
Palermo.
51
Às vésperas da festa de 1832, o guardião do Convento de São Francisco, Manuel de
Santa Úrsula, impediu a saída da imagem de São Benedito do altar do convento
devido à chuva torrencial que caía sobre Vitória. Francisco Antunes de Siqueira (1999)
notou que mesmo em ocasiões inapropriadas para festividades, como nos
alagamentos e tempestades, algumas pessoas se reuniam nas ruas e se sujavam de
lama para festejarem um santo. A lama simulava uma mascarada. No caso da festa de
São Benedito de 1832, os festejos ocorreram sem a presença da imagem, dando lugar
a opiniões inflamadas entre os devotos. Após a procissão reuniram-se no Convento de
São Francisco para decidir sobre a atitude do guardião, ao que sucedeu serem os
irmãos de São Benedito expulsos do santuário franciscano (BONICENHA, 2004, p.
147). Esse episódio dividiu a irmandade dos negros: uns pretendiam retirar da
proteção dos franciscanos a imagem de São Benedito e colocá-la na igreja de Nossa
51
Em muitos anúncios encontra-se a expressão herói de Palermo fazendo referência à última
fase da vida de São Benedito que foi vivida em Palermo, na Itália. São Benedito morreu aos 65
anos, no dia 4 de abril de 1589.
89
Senhora do Rosário dos homens pretos e outros defendiam a permanência no
convento franciscano. Diante da possibilidade de retirada da imagem
permanentemente do convento, o guardião retirou a imagem do altar, trancando-a num
cômodo. Em 1833 frei Manuel de Santa Úrsula foi transferido para Rio de Janeiro e
seu sucessor, frei Antônio de São Joaquim, devolveu a imagem ao altar.
Consta nas memórias do Dezenove que, em setembro de 1833, alguns irmãos
retiraram a imagem de São Benedito do Convento de São Francisco (ELTON, 1987, p.
21). O suposto furto da imagem culminou na divisão da Irmandade de São Benedito do
Convento de São Francisco em dois grupos: um com sede no convento e outro na
Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos (BONICENHA, 2004, p. 150). As
comemorações no convento franciscano somente se restabeleceram quando da
doação de uma nova imagem de São Benedito por um capixaba.
Se os irmãos de São Benedito do Convento de São Francisco usavam capas com a
cor verde, os congregados da nova irmandade do santo preto passaram a usar um
mantelete de cor azul (BONICENHA, 2004, p. 151). A essas divisões nas cores
prosseguiu uma distinção de nomes: os irmãos do Rosário chamavam os do convento
de caramurus
52
, por associação da cor da indumentária à cor do peixe de mesmo
nome. Os caramurus, por sua vez, apelidaram os devotos do Rosário de peroás
53
devido à cor azul de seus manteletes.
As duas irmandades passaram, então, a dividir a mesma imagem de São Benedito e
também os meses para comemorarem o orago: de primeiro de janeiro até o dia de
Corpus Christi, a imagem ficava com os caramurus e no dia seguinte até o final do ano
a mesma passava às mãos dos peroás. Assim, os moradores de Vitória e alhures
tinham festejos confirmados durante todo o ano: no primeiro semestre os caramurus
iluminavam a fachada da igreja do convento, promovendo feiras e fogos de artifício.
Os maiores festejos eram realizados no domingo do Divino Espírito Santo e nos dois
dias seguintes, consagrados ao Menino Deus e a São Benedito (BONICENHA, 2004,
p. 151). No segundo semestre, a entrega da imagem significava o direito da irmandade
de Nossa Senhora do Rosário de festejar o orago. Na ocasião da entrega da imagem
realizava-se uma ladainha e a partir daí e nos meses consecutivos havia sempre
motivos para celebrações religiosas ou profanas, como leilões, congadas e bandas de
música. O clérigo Antunes de Siqueira (1999, p. 67) viveu um amor contraditório com
as festas de São Benedito: ao mesmo tempo em que enchia os olhos de lágrimas para
52
Caramuru ou moréia é um peixe de cor verde característico da região da Bahia.
53
Peixe característico do Espírito Santo com cor azul acinzentado e desprezado para o
consumo pela população capixaba do Dezenove.
90
elogiar as duas irmandades, também se apavorava com a profanação da festa
religiosa dos pretos do Rosário. Um dos aspectos que o religioso mais se regozijava
residia no fato de durante todo o ano a capital da Província poder solenizar um
intercessor divino. Era um privilégio das irmandades de São Benedito.
A divisão entre caramurus e peroás terminou por associar-se a disputas políticas. No
cenário político capixaba, os adeptos do partido conservador passaram a ser
conhecidos por caramurus e os do partido liberal por peroás. Não se conhece ao certo
o porquê de tal atribuição. É factível imaginar, contudo, que a mesma tivesse relação
com o posicionamento político das irmandades de São Benedito do Convento de São
Francisco e da Igreja do Rosário. As divisões entre caramurus e peroás estendiam-se
à lha de Vitória: da Rua do Chafariz da Capixaba (Rua Cristóvão Colombo) até o Largo
da Conceição dizia-se ser região de peroás e o entorno do Campinho nas
proximidades do convento franciscano– era considerado área de caramurus
(DESSAUNE, 1981, p. 47-48).
Embora São Benedito fosse homenageado durante todos os meses do ano, algumas
datas eram escolhidas para concentrar os festejos. A Irmandade de São Benedito do
Convento de São Francisco elegia o mês de maio como o de maior festividade para o
Santo. Nos anúncios de 15 de maio de 1869 e de 12 de maio de 1869 do Correio da
Victoria e do Jornal da Victoria, respectivamente, comunicava-se à população que a
festa de São Benedito e do Menino Deus seria nos dias 17 e 18 do mesmo mês,
ininterruptamente. Os festejos começariam na madrugada do dia 17, com missa,
finalizando no dia 18 à noite com o Te Deum Laudamus. As comemorações na
Irmandade do Rosário ocorriam na data tradicional do Santo: dias 26 e 27 de
dezembro, ainda que os festejos mais intensos começassem de fato por volta do dia
18, com a reza das novenas.
Se as confrarias religiosas competiam entre si quando se tratavam de devoções
diferentes, o que acontecia então no caso pitoresco de São Benedito? Francisco
Antunes de Siqueira (1999, p. 67) afirma que no Rosário e em São Francisco as festas
religiosas e profanas eram quase as mesmas, com alterações que serviam apenas
para ressaltar a rivalidade. A iluminação no Rosário era produzida por azeite de peixe
e algodão, colocados em tigelas de barro e algumas vezes em cavidades de mamões.
As lanternas eram produzidas por sarrafos de madeira e material rudimentar. No
convento franciscano, por seu turno, Francisco de Siqueira (1999, p. 71) acreditava
haver mais gosto e limpeza, pois a iluminação era preparada em arcos de madeira,
com copinhos coloridos cheios de azeite doce postos em caixas apropriadas. Outra
característica da festa dos negros do Rosário incomodava Siqueira: o baile das
91
mulheres negras, permeado de profanações e erotismo. Na Irmandade de São
Benedito do Rosário dos Pretos era hábito tocar samba ao término da fincada do
mastro. Os devotos e o público em geral entregavam-se ao ritmo pulsante e dançavam
durante toda a noite e parte do outro dia. Por ocasião da procissão, quando a imagem
de São Benedito era apresentada aos espectadores, ia à frente dela um grupo de
pretos, liderados por um rei acompanhado por ministros e uma rainha, todos pretos,
sob a direção de um estandarte branco. Os negros pintavam-se e marchavam ao som
de instrumentos de percussão. À meia-noite do dia 27 de dezembro, quando soava a
última badalada do relógio público, procediam à retirada do mastro.
O conjunto das comemorações de São Benedito instigava tanto zelo na sociedade
capixaba que não raro o fenômeno tornava-se objeto de publicações particulares nas
folhas impressas da capital. Discutia-se o brilho dos fogos de artifício, a quantidade de
girândolas e de balões exposta nas ruas e no entorno das igrejas, a decoração do
caminho da procissão, as bandas de música, ou seja, tudo que fosse alvo de
comparação entre as irmandades. No Jornal da Victoria de 20 de dezembro de 1869,
na seção “Publicação Pedida”, divulgou-se uma correspondência anônima,
reproduzida a seguir, chamando o público para o espetáculo da festa de São Benedito
do Rosário dos Pretos:
ALERTA AOS DEVOTOS.
Vão ao ar meus foguetes, eu sei que ao meio dia devemos soltar
Em louvor do Herói de Palermo
Bomba ardente quero ouvir estalar.
Que prazer, que delícias, meu Deus!
Sinto o meu coração palpitar!
Nada quero... somente desejo ver imensos foguetes no ar.
Preparai ó devotos, foguetes,
Não deixei de me acompanhar;
O sinal para vós os soltardes
Do Rosário há de o bronze vos dar.
Que censurem os meus pobres versos
E não censurem também que me importa?
Se eu só quero chamar os devotos
Para soltarem foguetes na porta!
Vinte e seis é o dia marcado,
Pois é véspera do Herói sempre invicto
E dizei como eu digo findando:
Viva! Viva! O Herói Benedito
O foco desses versos era convocar a população a participar das solenidades em
homenagem a São Benedito, mas de maneira muito particular: soltando foguetes! Um
dos itens sempre presentes em qualquer festividade religiosa eram os fogos de
artifício. O brilho a fulgir no céu pela queima desse material não emprestava certa
92
mágica ao momento comemorativo como também iluminava boa parte da cidade,
tirando da escuridão rotineira a vizinhança acostumada com a péssima iluminação
produzida pelos lampiões instalados nas ruas. Detinha o evento grande significação
simbólica, vez que a luz era interpretada como o fim da escuridão na vida do fiel
iluminado pela intercessão dos santos católicos.
Em outra carta anônima publicada no Correio da Victoria de 7 de junho de 1871,
fizeram-se diversos elogios aos irmãos de São Benedito do Convento de São
Francisco pelo brilho da festa do Santo preto e pela construção do cemitério, de
grande utilidade para os congregados e também para a população.
Festividades Religiosas.
Não é debalde que os sustentadores do culto externo dizem que ele é
essencial, porque não só encanta a imaginação, como também toca a
alma fazendo do coração do homem uma ara d’onde se elevam
sinceras preces ao Deus – onipotente criador do Universo.
Dentre os cultos pelos quais o homem faz as suas oblações ao seu
criador sobressai o Cristianismo.
[...] A prova da verdade que acima enunciamos acaba de dar-se nas
esplendidas festas feitas ultimamente no Convento dos Religiosos
Franciscanos na semana finda. No dia 28 do mês passado [maio]
celebrou-se a festa do Divino Espírito Santo sendo o orador ao
Evangelho o Reverendo padre Manoel Rodrigues Bermude de
Oliveira. Terminada este na madrugada de 29 houve a festa do
Menino [Deus], sendo orador ao Evangelho o reverendo padre
Antônio Martins de castro. À noite celebraram-se as vésperas solenes
de o Benedito orando nesta ocasião o Reverendo senhor padre
Jacinto Messias Feijó e no dia 30 fez-se com todo o esplendor a festa
de São Benedito sendo o orador ao Evangelho o Reverendo padre
Mestre Francisco Antunes de Siqueira o qual ainda uma vez soubera
enobrecer a tribuna sagrada pronunciando uma oração digna o
da sublimidade da linguagem com que era ornada como também pela
profundidade de conhecimento que o orador nesta ocasião revelou
com maestria.
Antes de começar a festa houve a benção do cemitério.
Não podemos deixar de nesta ocasião consignar um voto de gratidão
à Irmandade e aos devotos do Glorioso São Benedito por ter
construído um cemitério decente e condigno com o respeito que
devemos tributar a aqueles que partem para a misteriosa viagem
d’além túmulo.
Em todos os atos oficiou o Reverendo padre Mestre Frei João do
Amor Divino Costa, muito digno Provincial dos Religiosos
Franciscanos, o qual se prestou como sempre desinteressadamente
em acompanhar e animar os sentimentos religiosos dos inúmeros
devotos do Glorioso Herói de Palermo. A Irmandade não pode deixar
de ser muito grata ao Prelado Franciscano pelos serviços que lhe tem
prestado e proteção que lhe tem liberado.
O brilhantismo das festas, a harmonia e a ordem, que presidiam a
grande concorrência de fiéis, revelaram que se os sentimentos
religiosos do povo são a norma pela qual se possa conhecer a
moralidade da sociedade, é claro que a sociedade espírito-santense
mostrou nesses dias que ela é e será sempre um brilhante fragmento
da grande família brasileira. – Vitória, 6 de junho de 1871.
93
Na publicação acima transcrita nota-se a preocupação em descrever a religiosidade
dos espírito-santenses, principalmente em relação ao Herói de Palermo. De maneira
semelhante, destaca-se a gratidão do subscritor para com a Irmandade de São
Benedito dos franciscanos pela construção do cemitério e por não deixar sucumbir a
tradição das solenidades cristãs. Curiosamente, identifica-se dentre os padres leitores
do evangelho o nome de Francisco Antunes de Siqueira, memorialista aqui citado.
Talvez aí esteja uma pista da predileção do religioso pela Irmandade de São Benedito
do Convento de São Francisco e suas reiteradas reclamações quanto à Irmandade de
São Benedito do Rosário.
Espaço de convergência dos devotos, as irmandades proporcionavam aos indivíduos
a oportunidade de estabelecimento de laços de amizade, estima e companheirismo.
No caso dos anúncios de comemorações de São Benedito e de Nossa Senhora do
Rosário dos Pretos, impressiona o horário de início das comemorações. Numa época
em que predominava o uso de mão-de-obra escrava, a movimentação de cativos por
ruas e becos capixabas durante as festividades religiosas certamente facilitou o
desenvolvimento de sociabilidades entre os participantes-espectadores. Reconhece-
se, pois, as festas religiosas como locus privilegiado para a produção e reprodução
sociais dos indivíduos mediante o contato com o outro. As sociabilidades se
exercitavam, quando não se confundiam, com a religiosidade. Assim, a partir dos
espaços de práticas religiosas o convívio social foi se forjando, os núcleos urbanos se
expandindo e o comércio se configurando (BOSCHI, 2005, p. 62-63).
Tal como as festas religiosas, impregnadas por práticas mundanas, as festividades
profanas mobilizavam a sociedade capixaba durante sua organização. Nesta
dissertação escolheu-se tratar do carnaval, evento tradicionalmente comemorado
pelos brasileiros, por ter sido bastante referido nos jornais pesquisados. Além disso,
outras festas serão mencionadas, dadas as citações em memórias oitocentistas.
Celebrava-se o carnaval nas ruas de Vitória e em salões de bailes mascarados. Os
habitantes da cidade e os convidados de outras freguesias do Município habituavam-
se a usar as máscaras também fora dos salões, nas ruas e nas praças da capital.
Tudo parecia motivo para festejar. Em todos os dias, pela tarde, e muito
especialmente aos domingos, as pessoas colocavam máscaras e saíam pela cidade a
pé. Não se falava em outra coisa (SIQUEIRA, 1999, p. 54).
O comércio da Praça de Vitória deve ter se favorecido pela ocorrência dessas festas
religiosas e profanas, pois vários foram os anúncios comunicando aos clientes a venda
de grande sortimento de máscaras, roupas para bailes, balões, enfeites de rua etc. No
94
anúncio publicado no Correio da Victoria de 2 de fevereiro de 1870, informava o
comerciante João Jacob Tesch que sua loja, Fama da Barateza
54
, recebera lindo e
variado sortimento de máscaras de todas as qualidades para os amantes do carnaval.
Em outra publicação (de 23 de fevereiro de 1870), Tesch detalhou os tipos de fantasia
à venda: máscaras de arame, de seda e de papelão com barbas. Havia também
calças de meia cor de carne com pé. Para a decoração dos salões e das ruas de
Vitória um comerciante da Rua da Mangueira, n. 2, publicou um anúncio em 10 de
junho de 1871 no Correio afirmando ter variedade de “[...] balões, pistolas, jasmins
para salões, girassóis, rodinhas, bichas da China e estalos fulminantes [...]” para
atender às diversas festas do ano, tudo a preços razoáveis
Os foliões temiam que o carnaval caísse no esquecimento e, portanto, não fosse
comemorado. Assim, pagavam pela publicação de um pequeno artigo nos jornais da
capital indagando aos organizadores a respeito da realização da festa. Esse foi o
objeto da correspondência impressa na edição de 11 de janeiro de 1871, assinada por
“Dois amantes do carnaval”. No número de terça-feira, 16 de janeiro de 1872 do
Correio, “alguns amantes do carnaval” indagavam encarecidamente ao encarregado
do baile masquê
55
se naquele ano haveria de fato a comemoração do carnaval. O
organizador dos salões para o baile respondeu ao questionamento na edição seguinte,
de 14 de janeiro de 1871, declarando não desejar que os três dias de carnaval
caíssem no esquecimento. Assegurou-lhes, por sua vez, que brevemente tornaria
público nos jornais locais o programa das festividades.
Nessa ocasião, a organização dos bailes e procissões de carnaval estava sob a
responsabilidade de Manoel José Dias, capixaba residente na Ilha de Vitória e
proprietário de um salão na Rua de São Francisco. Era hábito de Dias publicar a
programação do carnaval no jornal Correio da Victoria. Encarregava-se ele de
organizava os bailes e passeios pelas ruas de modo que houvesse divertimento para
os três dias de carnaval, com intervalos apenas para um descanso breve.
No Correio de 17 de janeiro de 1869, Dias prevenia aos senhores máscaras
56
que no
dia 7 de fevereiro haveria reunião no salão da Rua de São Francisco, esquina com a
Rua do Fogo (Rua Caramuru, planta 4), às quatro horas da tarde. Os participantes
deveriam trajar roupas apropriadas, como fantasias. Nesse horário, os foliões dariam
boas-vindas à banda de música e sairiam em passeio pelas ruas da cidade, liderados
54
O estabelecimento de João Jacob Tesch localizava-se à Rua Porto dos Padres, n. 6.
55
Chamava-se de baile masquê o baile carnavalesco em decorrência do nome desse baile em
francês: bal masqué.
56
Alcunha dada aos indivíduos participantes do carnaval.
95
pela banda até as cinco e meia da tarde. Das vinte horas até a meia noite teria lugar o
baile no salão de Dias. No dia seguinte, 8, não haveria passeio mascarado e o baile
começaria às dezenove horas, prolongando-se até a primeira hora da madrugada. No
terceiro dia, 9, haveria o passeio a no mesmo horário definido para o dia 7 de
fevereiro, recolhendo-se, porém, às dezessete horas no mesmo salão, onde
receberiam o cadáver para o enterro dos ossos do Deus Momo
57
e permaneceriam
recolhidos até às dezenove horas e trinta minutos. Às vinte horas principiaria novo
baile que terminaria às duas horas da madrugada, com o dito “galope infernal”
58
. No
Sábado de Aleluia haveria o baile da comemoração dos ossos
59
, das 7 horas da noite
até a 1 hora da madrugada do domingo da Ressurreição. Na qualidade de mestre dos
bailes ficaria encarregado o senhor João Pereira de Azevedo. Vale destacar que a
entrada nos bailes mascarados não era gratuita, pagando-se o valor de 1$000 réis (um
mil réis) por ingresso. Os passeios acompanhados pela banda de música, em
contrapartida, eram abertos à população em geral, ampliando, assim, o público
participante. De acordo com o Correio de de fevereiro de 1872, o baile do galope
infernal daquele ano durou até o amanhecer do outro dia, parando a banda de música
de tocar às cinco horas da manhã. A bebida e os quitutes dos bailes ficavam a cargo
do botequim da Rua Porto dos Padres, n. 7. Segundo anúncio publicado no Correio de
6 de fevereiro de 1864, transferia-se parte do estoque da loja de bebidas para o salão
de Dias e era possível beber um sortimento variado de refrescos e cervejas. Abaixo
seguem duas imagens relacionadas ao carnaval. A primeira reproduz um baile de
57
A expressão enterro dos ossospode designar duas coisas: (i) uma reunião familiar íntima,
no dia seguinte a uma festa, para se comer as sobras de comida com muita dança e bebida ou
(ii) “[...] um préstito carnavalesco, no primeiro domingo depois do carnaval, em que os clubes e
cordões mais populares saíam, conduzindo cada qual o seu caixão mortuário. Os foliões,
vestindo negro, com a caveira pintada, traziam conjuntos musicais, que executavam músicas
fúnebres. Dentro dos caixões havia o farto recheio de galinhas, perus, churrasco, cabrito,
aguardente [...]” (CASCUDO, 2000, p. 179). Como em alguns anúncios capixabas encontrou-se
a expressão ‘pegar cadáver’ e ‘cada um com seu caixão’, interpreta-se aqui a expressão
‘enterro dos ossos’ a partir da segunda perspectiva.
58
De acordo com Felipe Ferreira (2005), o galope infernal foi uma moda trazida dos bals
musards de Paris. Em 1839, um maestro chamado Philippe Musard iria revolucionar
definitivamente os bailes carnavalescos parisienses. Dotado de um grande senso de
espetáculo, o maestro alternava, em seus bailes, trechos musicais sérios com outros
dançantes, eliminando os bailados. A fórmula agradaria profundamente ao público, que, em
delírio, superlotava o salão. Os bailes promovidos pelo maestro terminavam sempre com um
acontecimento espetacular: Musard subia à cena, acenava para a orquestra e, como sinal para
o grande final, quebrava uma cadeira no palco e começava a reger uma música acelerada, que
logo ficaria conhecida como o galope infernal. O galope infernal caracterizava-se pela correria
no salão” (FERREIRA, 2005, p. 109-121). Os casais se movimentavam juntos em direções
aleatórias, empurrando quem estivesse pela frente.
59
A comemoração dos ossos do Deus Momo indicava o fim do período das constrições,
principalmente penitências relativas aos alimentos durante a Quaresma.
96
galope infernal em Paris, no início do Dezenove, e a segunda foi largamente utilizada
nos anúncios sobre o carnaval impressos nos jornais de Vitória.
Figura 15: Galope Infernal
Fonte: Ferreira (2004, p. 108).
Figura 16: Anúncio de carnaval publicado nos jornais de Vitória
Fonte: APEES – Fundo: Jornais Microfilmados, 1850-1872.
97
A mobilização em torno das festas de carnaval encantava toda a população, ao ponto
de se propor em jornal a criação de uma associação responsável pela elaboração e
execução dos bailes e passeios. No Correio da Victoria de sábado, 20 de fevereiro de
1869, publicou-se uma carta anônima conclamando o público interessado no carnaval
a comparecer à Rua da Misericórdia (da Santa Casa da Misericórdia), n. 1, a fim de se
organizar a Sociedade Carnavalesca.
Ao que parece, os bailes no salão de Manoel José Dias não se restringiam ao período
de carnaval, uma vez que o mesmo publicou no Jornal da Victoria, em anos diferentes,
anúncios convidando o público a comparecer aos bailes da Rua São Francisco. Na
edição de 12 de outubro de 1864 informava-se sobre o baile mascarado marcado para
o dia 15 daquele mês. Observa-se que as máscaras eram usadas independentemente
de ser carnaval, tal era a tradição desses disfarces nas festas capixabas. Os
proprietários de teatros também usavam do recurso para chamar a atenção da
população transeunte a respeito da ocorrência de espetáculos: a propaganda dos
dramas a serem encenados nos teatros da capital era feita por homens mascarados
que percorriam ruas, becos e demais caminhos da cidade.
Siqueira (1999, p. 83) identificou outra festa assaz comum da vida cotidiana de Vitória:
a cavalhada. O local preferido dos admiradores da festividade era a Rua Cristóvão
Colombo (Rua do Chafariz da Capixaba). A cavalhada, ao que parece, consistia numa
comemoração destinada aos rapazes do Município de Vitória, que se aprumavam com
roupas brancas e sapatos de marroquim escarlate para montar em cavalos de folhas
de bananeiras presas por uma alça que atravessava o ombro esquerdo de cada um.
Os meninos armavam-se com lanças e corriam um após o outro para passar por baixo
de uma corda, quando atiravam suas lanças para alcançar os arcos prateados nela
amarrados. O ápice da festa ocorria quando se quebrava o boião ou pote que pendia
da corda, recheado com melaço, rapaduras e doces diversos. Em suas memórias,
Siqueira (1999) satisfez-se em lembrar como os rapazes se acotovelavam para saciar
a gulodice, caindo uns sobre os outros. Não foi mencionada pelo memorialista a data
da cavalhada, mas se sabe tratar-se de acontecimento público e aberto à vizinhança.
As festas durante os anos do Império eram também motivadas por acontecimentos
relativos à família imperial. Em Vitória, o dia 2 de dezembro era comemorado em
grande estilo, envolvendo todas as vizinhanças do Município. Festejava-se nessa data
o nascimento de Dom Pedro II, ocorrido em 2 de dezembro de 1825. De acordo com a
programação dos festejos publicada no Correio da Victoria de de dezembro de
1869, logo ao amanhecer do dia 2 de dezembro de 1869 as bandas de música
orquestradas pelos professores João Pereira de Azevedo, Odorico José Molulo e
98
Manoel João da Boa Morte percorreriam as ruas da capital. Às quatorze horas elas
retornariam ao Cais da Alfândega para dar prosseguimento a uma regata. Nesse
momento, as bandas de música separar-se-iam, dirigindo-se cada uma a um ponto da
regata. Na partida das canoas ficaria a banda dirigida pelo professor Boa Morte,
enquanto a do professor Odorico estaria a bordo do barco Nova Inveja acompanhando
as canoas competidoras, enquanto a do professor Azevedo ficaria em frente ao Cais
da Alfândega. A tripulação da canoa que mais se distinguisse seria premiada. Após a
regata, desembarcariam as bandas de música e os competidores que então, reunidos,
percorreriam as ruas da cidade. Outra data bastante solenizada na capital foi o 45º
aniversário de Independência do Império. No Jornal da Victoria de 7 de setembro de
1867 anunciou-se o dia de gala: pela manhã a música da Sociedade Minerva
percorreria as ruas da cidade, saudando a vizinhança pela data. À tarde estava
marcado o Te Deum na capela do Palácio e depois cortejo à efígie de Sua Majestade,
o Imperador. À noite, no teatro União Capixaba, o público assistiria ao drama “Amor e
Pátria”.
A publicidade nos periódicos da capital da Província do Espírito Santo restringiu-se,
como indicado, às festividades religiosas e profanas da cidade de Vitória. Certamente,
as demais freguesias componentes do Município realizavam suas comemorações, o
obstante não haver nota nos jornais. De acordo com registros de alguns estudiosos
capixabas, como Guilherme dos Santos Neves (2008), as festas religiosas eram
comuns em várias regiões do Espírito Santo ainda no século XIX: em São Mateus
festejava-se São Sebastião, São Benedito e São Pedro; em Viana a procissão de São
Benedito no Baile de Congo era uma das principais atrações da vila no Oitocentos.
60
2.3.2 JOGOS, ESPETÁCULOS E MÚSICA: DIVERTIMENTOS CAPIXABAS
As festas dividiam a atenção da vizinhança de Vitória com outras opções de
entretenimento: os jogos e os espetáculos. A partir da década de 1860, os capixabas
ganharam estabelecimentos especializados em lazer e em bebidas, como os cafés.
Essa data é apenas uma aproximação, pois os jornais pesquisados não apresentaram
anúncios de casas de jogos para os anos anteriores, o que não significa que as
mesma não tenham existido.
Como se leu na primeira seção deste capítulo, as lojas de negócio configuravam-se
em espaços potenciais para o exercício das sociabilidades capixabas. As casas de
60
Ver também Siqueira (1999).
99
jogos, por sua vez, configuravam-se locais de comércio, cujo artigo transacionado era
o divertimento, o lazer. Em muitos desses ambientes de jogos e tabuleiros
consumiam-se bebidas alcoólicas, aperitivos ou petiscos. Os jogos mais divulgados
nos impressos Correio da Victoria e Jornal da Victoria revelaram-se o bilhar, a víspora,
espécie de bingo, e a cosmorama
61
. As casas de víspora se espalharam pela cidade
durante todo o decênio de 1860: na Rua das Flores n. 6 (loja de Antonio Joaquim
Germano, publicado no Jornal da Victoria de 13 de março de 1868), na Ladeira
Municipal n. 4, na Rua do Ouvidor (Rua Duque de Caxias ou Rua da Praia) n. 90 por
anúncio do Jornal de 22 de dezembro de 1869, na Ladeira São Diogo n. 2 (de Inácio
Martins de Jesus Leal), na Rua de São Francisco n. 6, na Rua de Santa Luzia, na Rua
do Convento do Carmo n. 6 (sob direção de Amaro Serafim Dias Rangel). No
estabelecimento de Dias Rangel era possível encontrar, inclusive, mesas de bilhar. Em
anúncio publicado no sábado, 7 maio 1870, no Correio, Amaro Serafim divulgou uma
lista com quatro normas para aqueles que pretendiam distrair-se nesses passatempos.
As condições impostas pelo proprietário da casa de jogos aparentavam restringir o
acesso do público, além de coibir certas atitudes como xingamentos, injúrias e
altercações verbais. Os jogos foram um dos alvos dos inspetores de polícia e demais
autoridades corretivas durante o Império e, talvez por isso, Serafim Dias Rangel
quisesse se resguardar de qualquer incômodo junto à Polícia. Os passatempos, como
a víspora e o bilhar, destinavam-se ao público masculino do Município, sendo vedados
às mulheres. Dias Rangel definiu como princípios para freqüentar sua casa de negócio
as seguintes disposições relativas a seus clientes: 1) viver a expensas de si próprio,
sem sujeição de pai, mãe ou amo; 2) comportamento com boa aceitação nas
sociedades honestas; 3) abstinência absoluta de toda e qualquer altercação, bem
como de palavras imorais (picantes) ou gestos e ações ofensivos aos demais clientes;
4) uso de trajes decentes, ainda que modestos. Finalmente, o proprietário esclarecia
no anúncio que o aquele que porventura deixasse de atender alguma das condições
acima estaria obrigado a se retirar do local. No tocante a esse aspecto, a geógrafa
Maria Alexandre Lousada (1995, p. 216) esclarece que na cidade de Lisboa, a mesma
época, havia uma infinidade de jogos que as autoridades procuravam regular, mas a
fronteira entre o lícito e o ilícito era incerta: se a prática de jogos se concentrasse nos
61
“No Brasil, tanto panorama, quanto cosmorama designavam, na maioria das vezes, uma
caixa ótica simples, que possibilitava a um ou mais espectadores assistirem em seu interior a
paisagens e caricaturas, pintadas em vidros e iluminadas por vela ou gás, e potencializadas
por espelhos. Outro nome pelo qual ficou conhecido esse divertimento na Corte brasileira foi
“marmota”, que os lanternistas do Velho Mundo, além do aparelho ótico, levavam consigo
em suas peregrinações o curioso roedor, só encontrado em regiões frias. No calor dos
trópicos, o animal ficou era uma das imagens pitorescas trazidas com os imigrantes que aqui
chegavam para encantar os brasileiros com luminescências” (SARMIENTO, 2004).
100
extratos de maior prestígio social, contudo, menor a probabilidade de chamar a
atenção das autoridades. Lógica similar pode ser adota na interpretação da prática das
casas de divertimentos em Vitória, o que explicaria em parte as rígidas normas
definidas por Dias Rangel para os freqüentadores de seu estabelecimento.
Outra distração da população masculina do Município era o café de Manoel José Dias
proprietário do salão da Rua de São Francisco n. 6 e organizador do bailes de
carnaval de Vitória. Em anúncio do Correio da Victoria, de 11 de março de 1872,
Manoel Dias divulga seu café e casa de bilhar e víspora, situados na mesma rua de
seu salão, como um ambiente propício para a diversão da mocidade e também de
descanso para os mais maduros. A loja de Dias funcionava durante todo o dia,
inclusive aos domingos, até a meia noite. De acordo com Maria Alexandre Lousada
(1995, p. 203), os cafés possibilitavam uma sociabilidade mais tranqüila, em um
espaço ordenado e mais civilizado do que aquele que os armazéns, as tabernas e os
botequins ofereciam. Além disso, Lousada (1995, p. 222) lembra que o bilhar ocupava
um lugar distinto entre os jogos da aristocracia lisboeta durante o século XVIII. Na
transição do Setecentos para o Oitocentos, contudo, o bilhar tinha saído dos
círculos fechados da corte. Pode-se indagar, portanto, que Manoel José Dias
pretendia atender fregueses específicos, isto é, de extratos sociais mais delimitados,
como, por exemplo, as famílias de comerciantes e proprietários rurais, os funcionários
públicos e os militares.
A casa de cosmorama localizava-se na Rua Primeiro de Março (antiga Rua da
Mangueira) no n. 18. À entrada era cobrada uma prenda de 1$000 réis (mil réis). No
Correio de 6 e 8 de junho de 1872, publicou-se um anúncio detalhando as imagens
expostas no estabelecimento da Rua Primeiro de Março durante os dias 9, 10 e 11 de
junho, a saber: Rio de Janeiro, Lisboa, Cidade do Porto, Canal de Suez, Paris, Niterói,
São Domingos, Petrópolis, Travessa de Cherbourg a Brest, cenas da guerra-franco
prussiana, Cidade de Ruam porto de França, Marselha porto de França, Genebra
Suíça, Viana do Castelo –Portugal, Vila Real de Trás os Montes – Portugal, Funchal
da Madeira porto da África, bombardeamento d’Odessa, panorama de São
Cristóvão.
Uma informação comum a quase todos os artigos publicados nos jornais manuseados
refere-se ao horário de funcionamento das lojas de divertimento: à exceção do
estabelecimento de Manoel Dias, os espaços de passatempos abriam as portas
invariavelmente a partir das dezenove horas. Esperava-se o concurso dos indivíduos
que retornavam do trabalho e procuravam um pouco de divertimento antes de
seguirem para os lares. Comentando os espaços públicos de sociabilidade em
101
Salvador nas primeiras décadas do XIX, Nizza da Silva (2006, p. 174) destaca que a
sociabilidade pública deixou de estar imbricada necessariamente às igrejas e às
praças existentes em Salvador. A instalação das chamadas “casas de pasto” indicava
uma transição nas formas de sociabilidade baianas, ao constituírem ambientes nos
quais os clientes podiam fazer suas refeições ou mesmo se distrair com jogos. Mais
tarde, no limiar da segunda metade do Oitocentos, tais estabelecimentos evoluíram
para as tabernas, os botequins e as hospedarias, diferenciando-se no tipo de
entretenimento e cardápio oferecidos. Comparativamente, as sociabilidades capixabas
configuravam-se a partir da combinação de duas variáveis: os eventos religiosos e os
divertimentos proporcionados pelas casas de negócios do Município de Vitória.
Não parece exato inferir que a segunda metade do século XIX tenha assistido a uma
alteração significativa das sociabilidades projetadas nas festividades religiosas
católicas, haja vista a freqüência dos anúncios desses acontecimentos nos jornais da
capital da Província e mesmo o concurso de um público variado e entusiasmado.
Parece mais acertado ponderar que as sociabilidades, pública e religiosa tal como
afirma Nizza da Silva (2006), se relacionassem no Município capixaba sem tantos
percalços a tal ponto que nos dias santos o lazer não era monopolizado pela iniciativa
das confrarias religiosas. Vendiam-se em Vitória jogos de tabuleiro para se brincar nos
cais, nas praças e em frentes às casas. No Jornal da Victoria de 4 de junho de 1864, o
proprietário da loja situada na Rua da Alfândega, n. 23, senhor Silva Coutinho, vendia
divertimentos para as noites de Santo Antonio, São João, São Pedro e Santa Ana.
Dentre os produtos incluíam-se O fado, livro de sortes engraçadas (piadas), Livro do
Destino (adivinhação da sorte), Oráculo de Delfos, Revelações do Cigano, Pacotilha
Poética, jogo de disparates. No jornal de quinta-feira, 4 de junho de 1868, publicou-se
que na Rua da Alfândega, no n. 2, era comercializado o jogo da conversação
divertimento fácil e curioso de uma centena de perguntas e respostas em cartões – por
2$000 réis (dois mil réis), enquanto a Quiromancia (ou a arte de profetizar pelas linhas
da mão) custava $320 réis (trezentos e vinte réis) o folheto. Observa-se que a
população capixaba tinha variada gama de opções de divertimento, diferenciando-se
entre gratuitos ou não. Ao que tudo indica, mesmo as pessoas mais pobres eram
agraciadas pelas iniciativas de eventos nas ruas, ou as práticas de jogos em locais
públicos, como os cais e as praças. Para as famílias com melhor condição social,
abria-se outro leque de possibilidades de entretenimento, como as casas de jogos e
de bebidas, os salões e anfiteatros. Os espetáculos musicais, dramáticos e circenses,
não eram gratuitos. Exceto nos episódios de festas religiosas, quando as peças
teatrais eram abertas ao público em geral – sem a cobrança de ingressos, as casas de
102
espetáculos e as associações dramáticas organizavam seus eventos para uma platéia
específica: os ingressos variavam de 1$000 (mil réis) a 5$000 (cinco mil réis).
A partir da análise dos impressos Correio da Victoria e Jornal da Victoria observa-se
que havia na cidade de Vitória, entre 1850 e 1872, pelo menos cinco casas de
espetáculos. Não é possível precisar se esse número se referia ao total de teatros
instalados na capital, uma vez que outras associações dramáticas podem ter
dispensado sua divulgação pela imprensa local. Nos anúncios lidos notícias sobre
as casas de espetáculo Atheneu Dramático, União Capixaba, Teatro Mágico, Teatro
São Sebastião e Teatro Vitoriense. A direção do Atheneu Dramático publicou no
Correio da Victoria, em 23 de janeiro de 1864, a programação daquele dia: após a
apresentação da banda de música marcial do senhor Silveira, seria encenado o drama
em três atos denominado “Luiz”, seguindo-se a farsa intitulada “O Romance”. O
espetáculo do dia seria finalizado pela cena cômica “Os efeitos do vinho roxo”. Para
assistir às peças deviam-se adquirir os ingressos à venda no próprio teatro. Adultos
pagavam 1$000 (um mil réis) e crianças menores de 10 anos $500 (quinhentos réis).
As atividades iniciavam regularmente as vinte horas e trinta minutos.
Em outro número do Correio da Victoria, publicado no dia 10 fevereiro de 1864, a
Sociedade Dramática Particular União Capixaba informou aos leitores que no sábado
seguinte, 13 de fevereiro, haveria seção teatral: em cena o drama dividido em três atos
“Purgatório e Paraíso”. Para finalizar, os espectadores se regozijariam com a
representação da farsa “Quem conta um conto acrescenta um ponto”. Aos indivíduos
membros da sociedade dramática não seria cobrado ingresso desde que quitadas as
mensalidades. Ao restante do público cobrar-se-ia o valor de 1$000 (um mil réis) por
pessoa.
No Município de Vitória os espetáculos circenses também entraram no gosto da
população, principalmente os de mágica, contorcionismo e acrobacia. No Correio da
Victoria de 13 de novembro de 1869, Amélio José Favilla, palhaço conhecido na
região, convidava a população para assistir às encenações do Teatro Mágico. Na
seção do dia 13 os números seriam divididos em três partes. Na primeira, os mágicos
do teatro executariam “O confeiteiro mágico (escamoteação)”, “A plantação do jardim
botânico”, “Os ovos cor de fogo (escamoteação)”, “As cartas volantes” e “A numeração
visível invisível”. Na seção seguinte, “A graciosa dança de Lopez”, “As moedas visíveis
para o prestidigitador – e invisíveis para os espectadores”, “A laranja misteriosa
(escamoteação)”, “O novelo roubador, ou a moeda perdida”, “O lavatório mágico, ou o
jardim das flores”. Por fim, o espetáculo encerraria seus trabalhos do dia com a
apresentação de Um galé perpétuo” e “O retratista do universo”. A encenação
103
circense começaria as 08h30min da noite e os ingressos variavam de 1$000 (um mil
réis, preço por adulto) a $500 (quinhentos réis, para infantes com menos de 10 anos).
No Teatro São Sebastião, localizado na Rua Santa Luzia n. 46, a Companhia
Ginástica e Dramática apresentou-se no dia 3 de fevereiro de 1870. Em carta
particular destinada ao editor do Correio do dia 5 do mesmo mês, um leitor comentou
a atuação dos artistas da companhia durante o espetáculo anterior. De acordo com
esse espectador, a companhia de ginástica apresentou-se de forma louvável para o
público capixaba, mesmo para aqueles acostumados a freqüentar os grandes circos
da Corte e de outras cidades. O senhor Paulino, denominado o homem de ferro, foi a
grande atração da noite pelo seu desempenho com os materiais pesados. Colocaram-
se duas cadeiras no palco e Paulino apoiou a cabeça sobre uma e os pés sobre a
outra, permanecendo estirado e fora do chão. Equilibrando-se sobre as cadeiras,
Paulino teve de suportar por longo espaço de tempo uma pedra (que pesava 350
libras) sobre o abdômen. O mesmo artista, em posição semelhante, agüentou sobre o
abdômen uma chapa de ferro. Na noite de 19 de fevereiro de 1870, a Companhia
Ginástica e Dramática apresentaria um variado espetáculo de equilibrismo e saltos
mortais, tudo embalado pela música de uma orquestra. No primeiro ato haveria “O
equilíbrio de cadeiras”, contando com 21 cadeiras ao todo e “O grande salto de leão”
na altura de 6 palmos. No segundo ato, “O trabalho dos anéis” e no terceiro ato “A
corda bamba”. A finalização da apresentação circense ficaria a cargo do “Duplo
trapézio”. As portas do Teatro São Sebastião seriam abertas a partir das vinte e uma
horas ao preço de 1$000 (um mil réis) por pessoa.
A capital da Província do Espírito Santo também sediou algumas temporadas da
Companhia Norte Americana Eqüestre, Ginástica e Acrobática. Em anúncio de 15 de
novembro de 1871 veiculado no Correio da Victoria, o proprietário da companhia,
senhor Aimor, convidava o público para concorrer ao espetáculo. Na mesma
publicação, Aimor declarou que a divulgação das apresentações seria feita também
por membros da companhia vestidos a caráter montados em cavalos (também
enfeitados). Os cavalos percorreriam todas as ruas da cidade anunciando a hora de
início dos trabalhos.
Outro teatro bastante concorrido em Vitória era o antigo Sete de Julho. No Jornal da
Victoria de 21 de dezembro de 1867 anunciou-se um espetáculo rico e dramático
protagonizado pelos artistas Celestino de Carvalho Matta e Dona Maria da Glória. A
encenação seria prestigiada, inclusive, pelo Presidente da Província do Espírito Santo.
A peça estaria estruturada no modo a seguir: na primeira parte, “O defensor da classe
caixeiral(cena cômica); na segunda parte, “Arte não tem país” (cena cômica ornada
104
de música e dançada a caráter espanhol); na terceira parte, “A criada sem cômodo”;
na quarta parte, reprodução de ária da ópera “Troador, Il Balen Del suo Sorriso”
(cantada pelo senhor Celestino); por fim, na quinta parte: “O senhor Domingos fora do
sério”. Nos intervalos de um ato para o outro, a banda marcial executaria algumas
partituras e o senhor Celestino tocaria algumas notas no piano. O espetáculo estava
marcado para as vinte horas com entrada no valor de 1$000 (um mil réis).
O Teatro Vitoriense também foi palco de espetáculos em homenagem a artistas. No
Correio da Victoria de 10 de outubro de 1872 a direção da casa teatral convidou toda a
população para prestigiar as apresentações que teriam lugar no dia 12, sábado. Nessa
ocasião, seria homenageada a família do artista português Macedo. Esse último e sua
família agradariam ao público com a apresentação do drama “A condessa de
Senecey”. Terminaria o espetáculo a comédia “Disparate cômico trágico
dramático acadêmico”, em um ato, e a peça “Morrer para ter dinheiro”. Foi solicitado
aos espectadores que chegassem no horário determinado para o início pois não
haveria atraso na abertura do espetáculo.
O último teatro listado nas páginas dos periódicos capixabas foi o Teatro União
Capixaba. Esse espaço era administrado por uma sociedade dramática homônima e
promovia espetáculos circenses e dramáticos. No Jornal da Victoria de 20 de fevereiro
de 1867 a direção da União Capixaba comunicava aos leitores a ocorrência de um
espetáculo particular agendado para o dia 23 de fevereiro daquele ano. A
apresentação contaria com acrobacias em trapézios executadas pelo diretor da
associação, senhor João Miguel, exercícios de equilíbrio de cadeiras e encenações de
Charles, o palhaço do espetáculo circense. Ao que parece, no Teatro União Capixaba
as mulheres tinham espaço para desenvolverem a arte cênica, pois em 6 de abril de
1864 foi encaminhada à tipografia do Jornal da Victoria uma carta destinada ao editor
com o seguinte conteúdo:
Sr. Editor. Ao ler o jornal Monarchista sob o n. 25, datado de 31 de
março do corrente ano, deparei-me com um pequeno artigo assinado
“O amigo da União” no qual pede à atual diretoria do Teatro União
Capixaba que não conserve como atriz desse teatro a Senhora
Juvita. Pergunto eu a esse “Amigo da União” se as atrizes D..., L...,
R... e as demais que representaram no palco desse teatro não tem as
mesmas qualidades, as mesmas garantias, o mesmo proceder, a
mesma honra que tem a atriz Juvita? Como sócio que tenho prestado
serviço a essa Sociedade, e inteirado dos atos arbitrados que se tem
dado na mesma, peço à ilustrada diretoria que não tome em
consideração o que pede esse tal “Amigo do União”, pois pelo modo
com que se exprime parece ser ele um dos que tem querido
desmoralizar a atual diretoria, procurando sempre frívolos pretextos
para poder desfeiteá-la, como aconteceu por ocasião da reforma dos
respectivos estatutos. Não satisfeito o senhor “amigo da União” com
semelhante procedimento procura ainda com injúrias detratar a pobre
105
atriz para assim arrancá-la do palco do Teatro União Capixaba.
pouco, a atual diretoria não agradava aos senhores sócios (em
minoria) em razão do atual diretor, ancião respeitável, não querendo
se curvar a esses homens que só por meio de intriga e calúnia
querem conseguir seus fins. Eis o “amigo da União” que quer a todo
custo arrancar-nos a atriz Juvita, para ver se assim baqueia a
Sociedade do União Capixaba. Não pretendo me ocupar em discutir
semelhante assunto, porque tenho mais em que me ocupar, por isso
queira desculpar se lhe ofendi com estas minhas linhas. Um sócio.
A publicação assinada um sócio indica uma situação que podia ser comum a outras
associações dramáticas: a disputa por cargos na administração dos espetáculos. As
rivalidades no interior da Associação Dramática Particular União Capixaba pareceram
afetar até mesmo o grupo de atores do Teatro União Capixaba. Os desentendimentos
havidos entre a diretoria eleita e os sócios geravam desconfiança por parte de alguns
exaltados, que pretendiam excluir da Associação a atriz Juvita, por suspeita de apoiar
a nova direção do Teatro União Capixaba. Por outro lado, a correspondência acima
transcrita veiculada no Jornal da Victoria sugere ao pesquisador alterações no modo
de vida dos capixabas. Nas últimas décadas do Oitocentos as notícias sobre mulheres
que executavam trabalhos remunerados em áreas anteriormente monopolizadas por
homens não são registros parcos e esparsos nos documentos do período.
As peças de teatro encenadas nos estabelecimentos da capital contavam com a
parceria das bandas de música, responsáveis pelo entretenimento do público nos
intervalos de um ato e outro. Havia em Vitória, porém, espaços destinados para a
audição de músicos e orquestras. A Sociedade Euterpe, atuante nas festas religiosas
e nas comemorações do dia 2 de dezembro, conduzia espetáculos diariamente na
Ladeira da Misericórdia, n. 1, sede de seu salão de música. As cadeiras eram
numeradas e divididas por classe de pagantes. Os bilhetes da primeira classe
custavam 3$000 réis (três mil réis) cada, os da segunda, 2$000 réis e os das cadeiras
gerais – sem localização privilegiada – 1$000 réis.
A pluralidade de notícias anunciadas nos jornais pesquisados indica ao pesquisador o
ritmo da vida cotidiana dos habitantes e visitantes do Município de Vitória. Pensava-se,
na historiografia tradicional sobre o Espírito Santo, que a população da Província
durante o século XIX vivia em condição permanente de pobreza, tanto material quanto
cultural, e que os dias custavam a passar, dada a morosidade da vida ordinária local
(cf. Oliveira, 1951). Os registros primários encontrados nos impressos jornalísticos da
segunda metade do Dezenove demonstram situação totalmente diversa. Os residentes
no Município de Vitória, pelo menos, conviviam com uma gama variada de opções de
lazer, pagas e gratuitas, para os dias de trabalho e também para os finais de semana.
As festas religiosas e profanas agrupavam em um espaço social indivíduos de
106
extratos sociais distintos, aproximando e estreitando laços sociais. Os eventos
particulares, cujos ingressos ultrapassavam os 1$000 réis, eram coadjuvados pelos
jogos brincados nas praças, ruas e largos da capital. Os divertimentos em Vitória
diferenciavam-se pela concorrência do público: o preço definia, a priori, aqueles a
quem se pretendia atingir. Mesmo assim, o cotidiano dos indivíduos pobres, dos
escravos e dos libertos não se fazia de labuta. A magia da rua transformava esse
locus de trabalho em espaço de festas e brincadeiras. As sociabilidades eram
construídas no mesmo cenário: o que mudava era o evento a que as ruas davam
passagem.
2.3.3 PUBLICAÇÕES A PEDIDO
Uma das seções dos jornais mais apreciada pela população do Município de Vitória
era a de publicações particulares, devido ao seu aspecto instigante e de charadas.
Nela fica evidente a percepção do jornal como um espaço de sociabilidade, porque
muitos foram os indivíduos que preferiram resolver suas discórdias e conflitos pelas
páginas impressas ao invés de por meio de uma ação em juízo. Inclusive, observa-se
nas publicações de cobrança de dívidas que os autores utilizar-se-iam da Justiça
Pública como último recurso para reaver seus créditos. Assim, o Correio da Victoria e
o Jornal da Victoria não apenas tornavam pública uma indisposição ou um pedido de
agradecimento, como também atuavam na condição de mediadores de tais situações.
Era no espaço proporcionado pelos periódicos que alguns autos criminais de injúria
impressa foram arquivados em função da desistência do queixoso. A renúncia em
seguir os trâmites judiciais era atribuída ao fato de o acusado ter se redimido
publicando uma carta no jornal.
Geralmente, os subscritores das cartas enviadas às tipografias não assinavam seus
verdadeiros nomes quando se tratava de uma publicação ignominiosa ou de uma
reclamação contra a administração pública do Município ou da Província. Por outro
lado, havia casos em que a assinatura dos anunciantes era reconhecidamente um
aspecto importante da publicação. Nas correspondências particulares cujo objetivo era
agradecer a alguém pelo tratamento de saúde recebido, pela hospitalidade e por um
gesto de amizade tornava-se imprescindível a menção do autor da carta, pois se
tratava de um ato nobre de gratidão. Nas próximas páginas discutir-se-ão as cartas
publicadas nos jornais na seção A Pedido, tanto as injuriosas quanto as de gratidão.
O anonimato era um dispositivo largamente utilizado pelos autores de publicações nos
jornais. Ocultava-se ora o nome do autor da correspondência, ora a quem se dirigia o
107
texto. No primeiro caso, os subscritores assinavam usando pseudônimos, como o
sentinela, o justo, aquele que tudo vê, entre outros bastante comuns das páginas dos
impressos.
A ameaça e publicação dos nomes também era recurso empregado com freqüência
pelos anunciantes dos jornais, principalmente os comerciantes da praça mercantil de
Vitória. Nos 22 anos selecionados para a pesquisa identifica-se a publicação de
cobrança de dívidas como um dos artigos particulares mais recorrentes nas páginas
dos jornais. Pensava-se combater a inadimplência ameaçando publicar a lista
contendo os nomes, os valores do débito e o prazo vencido, a fim de que o vexame
público obrigasse a quitação dos valores. Essa foi a maneira encontra por Manoel
José da Silva Santos para tentar reaver as quantias dos fregueses. Em
correspondência publicada no Correio da Victoria de 9 de novembro de 1850 ele rogou
aos devedores a liquidação das dívidas para evitar a publicação de seus nomes. O
interesse de Manoel Santos era grande, pois havia recebido como pagamento de seu
ordenado os débitos dos clientes da venda em que trabalhava como caixeiro.
Às vezes, os comerciantes anunciavam nos jornais algumas características dos
devedores como um artifício suplementar à ameaça de publicidade dos nomes. No
Correio da Victoria de 11 de abril de 1855, o Canário Conquistador autor de um
anúncio pedia a um senhor cuja letra inicial de um dos nomes era A e morador na
Praça da Conceição que fosse pagar o valor de 2$000 réis relativos à costura de um
colete, pois o débito se prolongava desde o natal de 1854. Do contrário, seu nome
seria revelado.
Certamente, alguns negociantes se cansavam de publicar nos periódicos de Vitória,
uma vez que não obtinham o sucesso desejado nas cobranças. Nessas ocasiões,
apelava-se para a cobrança judicial. Manoel Calmon Lisboa foi um dos proprietários de
venda da capital que, após inúmeras tentativas amigáveis de reaver os débitos de
seus fregueses, cansou-se e decidiu usar os meios judiciais. Em 18 de março de 1857
Calmon informou aos seus devedores pelo Correio da Victoria que já os tendo
chamado várias vezes no jornal e isso não haver adiantado, faria uso a partir de então
da Justiça. Outros negociantes, em paralelo, não desistiam da ameaça de publicação
dos nomes como método infalível para resolução do problema. Miguel Batalha Ribeiro
pagou pela publicação de uma carta na edição do Correio de 13 de fevereiro de 1869,
em que encarecidamente” pedia “aos seus bons amigos” devedores que tivessem “a
bondade” de comparecerem à Rua da Alfândega, n. 18, para honrar os débitos no
prazo de um mês. Terminado o intervalo, Batalha Ribeiro prometia colocar em um
quadro os nomes dos devedores, bem como as quantias e o tempo decorrido, para
108
assim se tornarem mais conhecidos os nomes desses cavalheiros que pouca ou
nenhuma importância davam às necessidades do comerciante”. Nota-se pela
transcrição fiel de alguns trechos da carta de Ribeiro o modo pelo qual ele se dirigia
aos clientes devedores, utilizando-se de escrita respeitosa e tratando-os por amigos.
Afinal, tratava-se certamente de situação delicada para os assinantes das publicações,
pois fossem eles ríspidos e indelicados corriam o risco de não receber amigavelmente
as quantias que lhes eram devidas.
A década de 1860 inaugurou um novo modelo de publicação para o alerta aos
devedores. Nesses anos, passou-se a publicar o nome dos mesmos, mas não se
esclarecia, literalmente, o motivo da convocação para se dirigir a determinado
estabelecimento. No Correio da Victoria de 13 de janeiro de 1864, o proprietário da
loja localizada na Rua Porto dos Padres, n. 22, convidava Vicente Pinto Ribeiro a
comparecer no local a fim de tratar de negócios que não devia ignorar. Adrião Nunes
Pereira
62
também achou interessante esse tipo de artifício, pois se cansara de
cobrar a família Peyneau verbalmente. No número de 20 de abril de 1864 do Jornal da
Victoria o comerciante solicitava a presença de João Eduardo Peyneau na Rua Porto
dos Padres, n. 6, para conversar sobre negócios que não lhe eram estranhos. No ano
de 1867, o sócio de Adrião Nunes Pereira, senhor Ricardo Bittencourt da Cunha,
publicou uma pequena lista de nomes no Jornal da Victoria de 2 de outubro.
Provavelmente, relacionados aos débitos da sua casa de comércio.
São rogados aos senhores Manoel Gonçalves Vitório (de
Guaranema), Manoel Cardoso da Silva, Manoel Pinto de Castro,
Manoel Ferreira França, José Antunes da Vitória, José Gonçalves das
Candeias, José Monteiro de Jesus, Fabiano Filippe de Santa Ana,
Marcelino Pereira da Vitória, Lino Pereira de Alvarenga, Simião
Telesphoro de Amorim, Francisco Ferreira do Rosário, a virem à Rua
Porto dos Padres, n. 6, para tratar de negócios que não ignoram.
Vitória, 1º de outubro de 1867. Ricardo Bittencourt da Cunha.
Interessante é identificar, igualmente, que as publicações sobre dívidas no comércio
não eram assinadas apenas pelos credores. Supostos devedores também iam aos
periódicos tornar público que não deviam ninguém. Em correspondências particulares
publicadas no Correio da Victoria de 20 de janeiro de 1869, 10 de fevereiro de 1869 e
22 de janeiro de 1870, os anunciantes Urbano de Moura, José Francisco Gonçalves
Laranja e Domingos Antônio Lourenço Castelo declararam não dever a qualquer
concidadão da capital, mas se porventura alguém se reconhecesse deles credor,
62
Adrião Nunes Pereira era dono de comércio na Rua da Praia e tinha sociedade com outro
negociante na Rua Porto dos Padres. Seu nome voltará à baila por conta da discussão travada
entre ele e Joanna Peyneau, a ser tratada adiante, no capítulo III desta dissertação.
109
rogavam a apresentação do débito que, caso comprovado legal, seria devidamente
liquidado. Do contrário, não atenderiam a reclamo algum.
As cartas particulares contendo queixas em relação às autoridades locais, ao péssimo
estado das ruas e ao ajuntamento de escravos nas praças de Vitória, por exemplo,
eram normalmente assinadas por pseudônimos. Em nenhuma correspondência
publicada nos jornais analisados foi verificada a assinatura do verdadeiro do autor do
artigo, talvez para evitar represália dos conterrâneos. Em Vitória, durante a década de
1850, três membros de uma família foram ativos publicadores no Correio da Victoria,
reclamando da péssima situação das ruas da capital. Assinavam como Z, Z Junior e o
Pai do Z. No Correio de 27 de março de 1850, Z pedia providências quanto ao asseio
das ruas de Vitória, ao menos daquelas por onde passavam as procissões religiosas.
Em 3 de abril do mesmo ano, Z Junior reclamou da iluminação pública da cidade.
Comparou-a aos meteoros que aparecem e desaparecem no céu. Ao que parece, os
lampiões eram acesos, mas não decorria meia hora e se apagavam, ou
conservavam apenas uma débil chama. Na segunda quinzena de abril de 1850 foi a
vez do Pai de Z fazer publicar sua indignação no Correio da Victoria.
Sr. Redator. poucos dias que meu querido filho Z mandou-me as
gazetas dessa cidade nas quais li a sua correspondência acerca da
limpeza das ruas e a de seu filho, meu neto, que tratava dos lampiões
por se acharem quase sempre apagados, e eu também vou lhe
contar a minha história. Estando eu nessa cidade e indo visitar um
velho camarada, retirei-me de sua casa à noite e passando pela
rua que fica ao lado da cadeia dei algumas quedas e por que Sr.
Redator? Não por ser fraco das pernas, porque graças a Deus ainda
subo um morro, determino aos meus escravos que vejam minhas
capixabas. Porém, cai por causa da escuridão e pelas malditas
pedras negras com que é calçada essa ladeira que (segundo me
dizem) tem nela caído muitos moços bonitos e depois passando pela
rua chamada “Nova” fiquei atolado em um tremedal e quando
pretendia dele livrar-me eis que uma chuva de águas impuras
lançadas de um sobrado vem inundar-me os domingueiros vestidos!
Sr. Redator, nessa ocasião mal disse a hora em que vim à cidade, e
muito mais por ter passado por semelhante lugar: quedas, atoleiros e
ficar com minha roupa perdida quase que desesperei, e quando
cheguei ao canto da rua em frente à casa em que mora o Sr. Luiz
Pinto escapei de morrer sufocado com o maldito cheiro dos
pútridos miasmas que exalavam, cujo lugar bem se pode chamar a
cloaca da cidade, porque nessa ocasião e a minha vista foram
algumas negras fazer despejos de águas impuras, lixo e ... e o nosso
digno fiscal (morando tão perto e tendo dois guardas que o coadjuve)
não olha para tudo isto! Sr. Redator, esses homens não temem a
febre amarela? Não respeitam as ordens do governo que recomenda
a limpeza para o bem da salubridade pública, como foi estampado em
suas folhas? E por isso Sr. Redator eu digo que meu filho e meu neto
tem razão. Publicando estas linhas muito obrigado lhe ficará o Pai do
Z. Typuíra, 10 de abril de 1850.
As reclamações relacionadas à sujeira de ruas, ao asseio dos caminhos e à
manutenção da iluminação em boas condições eram publicadas em maior quantidade
110
nos anos em que a Província do Espírito Santo passava por epidemias. Em 1850, a
febre amarela dizimou muitas famílias e foi assunto da correspondência do Pai do Z.
Em 1856, foi a vez da câmara de sangue, ou disenteria hemorrágica, atacar a
população espírito-santense. Nesse mesmo ano, em 9 de janeiro, o senhor Z publicou
novamente no Correio da Victoria um artigo criticando a ação da Câmara Municipal de
Vitória no que dizia respeito ao acendimento de fogueiras na capital. Alegava Z que os
fiscais da Câmara estavam privilegiando certas regiões da cidade em detrimento de
outras áreas.
Os detritos despejados nos brejos da cidade de Vitória incomodavam bastante as
pessoas da vizinhança. Não à toa, foi objeto da publicação de duas cartas no Correio
da Victoria, uma de 21 de abril de 1858 e outra de 12 de fevereiro de 1859. Pedia-se
aos fiscais da Câmara mais vigilância para com o horário fixado para o lançamento de
imundícies nos tremedais de Vitória, após as nove horas da noite, pois os negros não
respeitavam essa disposição e acumulavam muita sujeira na Rua do Egito (Rua
Francisco Araújo).
De modo geral, a atuação dos fiscais da municipalidade era controlada pelos olhos e
bocas da população, que não perdoavam deslizes. A vizinhança estava atenta aos
privilégios concedidos ilegalmente por fiscais e à negligência quanto às estradas e
caminhos. Em artigo assinado por Duca (pseudômino) no Jornal da Victoria de de
outubro de 1864 cobrava-se maior atuação do fiscal Manoel Pinto Aleixo na Ilha das
Caeiras, solicitando aos moradores daquela região a limpeza da estrada que dava
acesso à Ilha de Vitória, bem como a mudança das cancelas colocadas dentro do
mato para lugar com melhor visibilidade. Ao terminar a carta, Duca adverte o fiscal que
voltaria ao Jornal caso os reparos demandados não fossem providenciados.
Outro tema recorrente nas reclamações relacionava-se aos escravos do Município.
Alguns moradores preocupavam-se com a liberdade dos cativos pelas ruas e praças
da capital. Não se coibia, à época, o tráfego irrestrito desses personagens pelos
ambientes públicos da cidade, principalmente as lojas de comércio e os chafarizes.
Isso, porém, gerava inconvenientes para algumas famílias, irritadas com os pagodes e
as conversas prolongadas de grupos de escravos nas tabernas e nas fontes de água
capixabas. No Correio da Victoria de 3 de dezembro de 1859 chamava-se a atenção
da polícia para uma reunião de negros e negras na taberna do Sr. Bernardino José
Pereira. O encontro ocorria de dia e muitas vezes à noite. Acusava o autor da
mensagem ser a taberna antro de imoralidade. Como se lerá no capítulo III, era
comum os escravos se reunirem nas tabernas e botequins ao cair da noite para
tocarem pagode. No Jornal da Victoria de de agosto de 1868 as bandas de pagode
111
dos escravos capixabas foram alvo de críticas, pois quando os moleques
percussionistas saíam a tocar pelas ruas, os fogueteiros cativos e as pretas lavadeiras
largavam os afazeres para acompanhar o ritmo das músicas. O autor da publicação
anônima esclarecia, inclusive, os horários impróprios dessas comemorações, visto que
ocorriam sem motivo aparente para festejos. Em 16 de março de 1867, o Jornal da
Victoria divulgou a efervescência do Largo de Santa Luzia. Os arredores da igrejinha
ficavam tomados pela população de cor da cidade. Ali se via, a qualquer hora do dia,
negras com barris de carregar água, moleques com tabuleiros de quitanda e negros à
toa. Para o Largo de Santa Luzia se dirigiam os pretos vendedores de pães, que
deixavam de percorrer algumas ruas do seu percurso para ficar conversando com
outros escravos. Retornavam para as padarias com os cestos cheios de pães e
roscas.
Não era unicamente com insatisfações e reclamações que os jornais ocupavam suas
páginas. Os tipógrafos também davam publicidade a cartas emocionadas de gratidão
e respeito. Em algumas delas os autores, com viagem marcada para a Corte,
agradeciam as demonstrações de estima e carinho e pediam desculpas às pessoas de
quem não fora possível despedir-se. Esse foi o caso de Raphael Pereira de Carvalho
que publicou no Correio da Victoria de 30 de março de 1850 agradecimentos aos
capixabas, oferecendo aos nativos de Vitória os serviços de sua casa de negócio
como sinal de boa vontade.
As pessoas também se sentiam obrigadas a tornar pública alguma forma de gratidão
quando se tratava de cura de moléstia. A falta de outros meios capazes de transmitir o
reconhecimento do benefício recebido tornava os periódicos veículo singular para a
quitação de vidas certamente eternas. Miguel Ribeiro Pinto Brandão, morador na
Barra do Jucu (Vila do Espírito Santo), relatou na edição de 2 de janeiro de 1858 do
Correio da Victoria sua agonia diante da enfermidade de um escravo de sua
propriedade chamado Sebastião. Desacreditado na melhora do cativo, Brandão veio à
Vitória tentar um último recurso. Chegando à capital no dia 23 de dezembro de 1857
com Sebastião gravemente enfermo de uma febre perniciosa já havia oito dias,
procurou o doutor Carlos Ferreira de Souza Fernandes para tratar do doente. No
primeiro contato com Sebastião, doutor Fernandes empregou todos os meios ao seu
alcance e logrou debelar a enfermidade. Em meados de janeiro de 1858, o senhor
Brandão retornaria à Barra do Jucu, ocasião em que tornou público o seu desejo de
que as bênçãos do céu caíssem sobre o doutor Souza Fernandes pelo inestimável
serviço prestado.
112
De outra parte, se não fossem os esforços do doutor Firmino de Almeida e Silva, a
filha de Manoel Cardoso da Silva talvez tivesse falecido. No Jornal da Victoria de 30
de outubro de 1867, esse último agradecia ao clínico a diligência que empregara para
salvar da varíola a sua filha querida. O assinante da carta declarava a falta de palavras
que traduzissem o sentimento de gratidão que nutria pelo referido médico. Por isso
solicitava ao editor a publicação da correspondência a fim de que o doutor Almeida e
Silva aceitasse tal demonstração sincera de reconhecimento por sua dedicação e
bondade, pois nada cobrara pelo tratamento.
As publicações particulares anônimas versavam sobre assuntos diversos, como
cobrança de dívidas e reclamações. Havia ainda outro tipo de correspondências,
porém, encaminhadas aos redatores dos periódicos. Essas publicações tinham
destinatário certo e eram pontuadas por palavras ditas injuriosas. No Jornal da Victoria
de 11 de junho de 1864, alguém sob a alcunha de “Um amigo do ofendido” pedia ao
senhor “O chapéu grande”, que publicara um artigo injurioso ao primeiro em outro
jornal da cidade de Vitória, que cuidasse de si e deixasse a vida de certas famílias em
paz, pois ele, o autor do anúncio, informava que não daria motivo nem resposta
capazes de prolongar a desavença. As intrigas comentadas pelas vizinhanças
capixabas eram retrucadas também pelas folhas impressas. Ao que tudo indica, os
habitantes do Município de Vitória não aceitavam com facilidade seus nomes
envolvidos em boatos ou buchichos, e tomavam de empréstimo as páginas dos
periódicos para avisar aos seus detratores que haveria retaliação. No Jornal da
Victoria de 13 de março de 1869 publicou-se uma carta, assinada por tal Um pai”,
dirigida a um determinado oficial da polícia que ameaçara os filhos alheios.
Parece-nos mais acertado que certo pai trate antes de corrigir seu
filho, cuja má índole se vai desenvolvendo perigosamente, do que,
servindo-se de sua autoridade oficial, mandar chamar a sua presença
filhos de outros para descompô-los, prometer-lhes bolos e ameaçar
com a marinha, por brigas que por seu filho têm sido provocadas.
É preciso conter seu filho, senhor..., a sua fofa vaidade em tão tenra
idade, a ponto de julgar que pela posição de seu pai pode
menosprezar o filho do povo, o pode perder: extirpe o mal enquanto
está na superfície, pois, penetrando as raízes no coração endurecido
será difícil senão impossível. Um pai.
A correspondência transcrita sugere que o verdadeiro filho perturbador da ordem
pública e provocador de brigas se achava protegido das penas da lei devido à função
exercida pelo genitor, agente da polícia. Avisou-se ao pai do jovem problemático que
antes de se preocupar em corrigir os filhos de outras famílias, que cuidasse de seus
próprios. Noutra publicação do Jornal da Victoria, de 20 de março de 1869, chamava-
se a atenção de certos senhores que habitualmente se dirigiam à Fonte Grande após
113
as vinte e duas horas para se banhar que não falassem da vida do “Ofendido”, pois
senão ele publicaria seus nomes no jornal.
Alguns artigos impressos, ao invés de injuriar, tratavam de ridicularizar alguém. A
publicação assinada por O freguês” no Jornal da Victoria de 23 de outubro de 1869
fazia troça da atuação do porteiro responsável pelo relógio público da capital.
Pergunta: será verdade que o p... [porteiro] encar... [encarregado] do
rel... [relógio] público conserva o maquinismo do mesmo com gordura
de azeite de peixe? E que não muitos dias que colocou um forte
purgante de olho de rícino, porque estava se atrasando? A ser
verídico o homem sofre do cérebro! O Freguês.
Não satisfeito, no último número do Jornal da Victoria de outubro de 1869, “O freguês”
voltaria a achincalhar o mesmo indivíduo:
Amor! Então é ou não verdade que o relógio público tomou uma forte
dose de óleo de rícino? Coitado do pobre relógio! A diarréia foi tanta
que hoje dorme o sono da eternidade. Choremos a sua perda. O
Freguês.
O ato de tornar pública uma injúria ou intriga provocava indisposição nos indivíduos
que se sentiam atingidos pela publicação. Havia quem se preocupasse com as
conseqüências que uma carta particular publicada nos jornais pudesse gerar. A honra
parecia, antes de tudo, um atributo que ninguém se dispunha a ver maculado. Manoel
Cardoso da Silva, cioso de sua reputação, pediu ao redator do Correio da Victoria de 2
de fevereiro de 1859 que explicasse se o artigo intitulado “A algum porteiro de
repartição” dizia respeito a ele, pois era ele porteiro da delegacia de polícia da capital.
As correspondências particulares tratavam, ademais, de conflitos de toda natureza,
não necessariamente relacionadas às desordens entre vizinhos ou parentes. De todo
modo, as cartas enviadas às tipografias foram escritas com o objetivo de solucionar
uma pendência, fosse ela uma crítica ao trabalho dos fiscais da Câmara Municipal de
Vitória, fosse uma publicação injuriosa contra um desafeto. Mais uma vez, os jornais
eram interpretados como interlocutores da população, mediadores das sociabilidades
e, portanto, constituintes de espaço de sociabilidade. Pois, como afirmada por Nizza
da Silva (2006), o atrativo maior dos periódicos descansava no fato de as folhas
impressas tratarem do cotidiano das pessoas do Dezenove.
2.4 CONCLUSÃO
Se havia preponderância da capital Vitória nas notícias de festas, salões, teatros, entre
outras, publicadas nos jornais pesquisados, a situação se inverte na análise das
petições encaminhadas à Câmara Municipal, quando se verifica a Freguesia de São
114
João de Cariacica listada com maior freqüência nos requerimentos. A ascendência dos
espaços sociais e dos eventos comemorativos da capital sobre as demais freguesias
pode ser explicada pelo fato de ter sido a cabeça administrativa, política e judicial da
Província do Espírito Santo. Por conseguinte, as atividades econômicas
concentravam-se, também, na praça mercantil de Vitória. Isso não quer dizer, todavia,
que as sociabilidades dos capixabas residentes fora da capital se constituíssem
estritamente no interior de Vitória.
Vitória experimentava um fluxo contínuo de pessoas e cargas, num ir e vir incessante
que proporcionava a troca de informações e falatórios, gerando igualmente costumes
peculiares de cada freguesia. Além disso, a rotina movimentada da capital agia como
um catalisador para o estabelecimento das sociabilidades. Não se defende aqui a idéia
de um Município cujos moradores estivessem sempre alegres e dispostos a colocar de
lado suas desavenças para viverem em harmonia plena. O exercício da sociabilidade
inclui, necessariamente, o seu aspecto conflituoso, de ajustamento ou de rompimento
de relações sociais. As lojas de comércio, as festas, os espetáculos quaisquer que
fossem –, as publicações particulares impressas e as reclamações serviam para
moldar diariamente os arranjos sociais desenvolvidos por homens e mulheres, livres e
escravos. Como explicou Max Weber (2004), as relações sociais provocam no
indivíduo a identificação dele mesmo no outro, como em um espelho. A imagem
observada refletiria a composição dos critérios identitários das pessoas, sendo um
deles o sentimento de integração à comunidade.
Francisco Antunes de Siqueira (1999), clérigo repetidamente citado e escritor
importante do século XIX, forneceu pistas fundamentais a respeito da vida nas ruas do
Município. As descrições de Siqueira são recheadas de movimento, de vida e de
agitação, levando a crer que se tratava de um ambiente em perpétua ebulição. O
processo de privatização da vida exposto por Jürgen Habermas (2003, p. 61),
perceptível na Europa da transição do Setecentos para o Oitocentos, não havia ainda
lançado raízes sólidas no Império brasileiro. Por isso, a vida e a convivência familiar
transcorriam em ligação estreita com os vizinhos, os transeuntes e, principalmente, a
rua. Provavelmente, a sobreposição da vida pública e privada contribuiu decisivamente
para a formação de uma nova esfera de sociabilidades: a rua. Esse espaço comum de
existência caracterizava-se por pessoas sempre em movimento, pelas festas e
comemorações levadas a cabo no dia-a-dia dos habitantes da cidade, bem como pela
música a cargo dos escravos locais ou de bandas profissionais. Os moradores da
época assentavam-se nas portas das casas, nas entradas das lojas, nas janelas e nas
varandas para testemunharem de forma privilegiada o desenrolar incessante da vida.
115
Os obstáculos do cotidiano não impediam as ocasiões de júbilo e regozijo. A escuridão
trazida pela falta de iluminação e os lamaçais e brejos formados pelas chuvas e
braços de mar que invadiam a Ilha de Vitória eram contornados pela população de
forma criativa e sem prejuízo das festividades. Quanto mais escuro estivesse, melhor
seriam admirados os fogos de artifício lançados ao céu! Os buracos, a sujeira e o mato
crescido das ruas eram vencidos pela cumplicidade vicinal, que unia esforços para a
limpeza das vias. E a lama? Quando oportuno, lambuzavam-se o corpo e o rosto de
muitos jovens, simulando um baile de máscaras.
No decorrer de 1850 a 1872, identifica-se alteração significativa das formas de
sociabilidade no Município de Vitória. Paulatinamente, avança a transição de um
convívio informal para outro de tipo associativo, baseado em sociedades e clubes
constituídos em Vitória a partir de 1860. Associações de dança, de música, de
assuntos literários, entre outras, multiplicavam-se nos anúncios publicados no Correio
da Victoria e no Jornal da Victoria. Os bailes de rua, os encontros casuais à beira-mar
ou nas praças de Santa Luzia, do Palácio e da Rua Fresca (Rua General Câmara),
começam a ceder espaço para as sociedades fechadas, de particulares e regidas por
um estatuto aceito pelos sócios.
Os jornais, como mediadores das sociabilidades capixabas, também alteram sua
proposta jornalística a partir do decênio de 1860. Assumem uma postura mais
impessoal e progressivamente as cartas particulares deixam de ser impressas. Passa-
se, pois, ao momento das publicações particulares de cunho político, das disputas pela
administração municipal e provincial. A vida ordinária e particular é cada vez menos
assunto alheio. Os classificados preenchem o lugar dos anúncios que antes eram
ocupados por negociantes e cartas de agradecimento. O comércio divulgado nas
folhas impressas relaciona-se de forma progressiva às propagandas de lojas e aos
produtos do Rio de Janeiro, pagas pelos grandes empreendedores de Vitória. O marco
definitivo de mudança nos periódicos da capital ocorrerá somente em meados da
década de 1870, mas já se sentem sinais das novas tendências durante os anos finais
de 1860. Até 1872, entretanto, os jornais continuariam a ser interpretados pela
população local como um espaço singular no desenvolvimento de um tipo de
sociabilidade característico: a impressa. Ali, nos veículos de imprensa, os capixabas
buscavam não só estabelecer amizades como também dirimir conflitos.
116
3 DESORDEM NAS ESQUINAS DOS QUARTEIRÕES
3.1 OS CAMINHOS DA BULHA
A paisagem do município de Vitória na segunda metade do Oitocentos concentrava-se
em parte no território compreendido pela capital da Proncia do Espírito Santo.
Conforme visto na planta 4, as áreas urbanizadas estavam circunscritas à Ilha de
Vitória e começavam a se estender em direção contrária ao continente, pela porção
oeste da ilha, o que, no limiar do século XIX para o XX, ficaria conhecida como Vila
Rubim, Parque Moscoso e outros melhoramentos nessa região. Os terrenos
localizados do outro lado da ponte de Maruípe, que fazia a passagem da ilha para as
partes continentais, consistiam em fazendas, sítios e roças. Os caminhos de chão
recebiam alcunhas dadas pelos transeuntes, mas nenhuma denominação oficial.
O município de Vitória, formado pelas freguesias da capital e de São João de
Cariacica, São João de Carapina, São José de Queimado e Santa Leopoldina,
assemelhava-se a um misto de cenários urbanizados e rurais, de acordo com as
projeções dessas áreas em textos do Governo Provincial e pelas descrições
detalhadas da constituição geográfica das freguesias incluídas nos autos criminais.
Não obstante o município à época ser caracterizado pela predominância de uma vida
rural, excetuando-se Vitória, havia atividades de comércio local, tais como pequenas
vendas de produtos alimentícios e bebidas. Se os moradores de Carapina, Cariacica,
Queimado e Santa Leopoldina viviam sob os ditames de uma vida rural, mas inclusos
na lógica das atividades de negócio tipicamente urbanas, os capixabas de Vitória
também mesclavam os dois estilos de vida: rural e citadino. Pesquisas realizadas em
inventários post-mortem da Vara de Órfãos de Vitória (CARVALHO, 2008; MOTTA,
2008; JESUS, 2007) verificaram que a maioria dos inventariados conjugava em sua
riqueza a propriedade de imóveis urbanos e rurais. Os primeiros destinavam-se à
habitação ou ao comércio enquanto os segundos às atividades de produção de
gêneros agrícolas e à criação de animais. Pode-se acrescentar, inclusive, que a
localização dos imóveis rurais estava mais próxima das áreas continentais da cidade,
tendo em vista as poucas notícias do governo acerca desse tipo de propriedade na
Ilha de Vitória, restringindo-se a pequenas ccaras. A análise dos autos judiciários
permite afirmar, do mesmo modo, que muitos residentes em ruas tradicionais da Ilha
de Vitória possuíam em suas casas pequenas porções de terra destinadas à
plantações e criações de animais como patos, vacas e galinhas.
A configuração urbana da Freguesia de Vitória, provavelmente, contribuiu para que
somente uma área de parte da capital fosse objeto de mapeamento detalhado, visto
117
ter sido reproduzida em materiais cartográficos desde meados do Setecentos e
durante quase todo o Dezenove. Para as demais freguesias não foi encontrado
material desse tipo, existindo apenas a fala das testemunhas nos autos e as notícias
dos jornais do período que sugerem evidências sobre a topografia de tais localidades.
Na intenção de suprir a lacuna cartográfica, utilizaram-se ao máximo as evidências
extraídas dos documentos primários escolhidos para o presente estudo,
especialmente àquela fornecida pelas pessoas listadas nos processos criminais
quando da caracterização do cenário dos conflitos ou das desordens.
3.2 INJÚRIAS E AGRESSÕES FÍSICAS, 1850-1872
3.2.1 AUTOS CRIMINAIS
A escolha do corpo documental desta dissertação apoiou-se, primeiramente, na
compreensão das sociabilidades conflituosas como uma forma de pulsação social.
Adriana Pereira Campos (2003) e Geraldo Antonio Soares (2004, p. 61) concluem que
os conflitos podem apresentar um aspecto de conformação social, isto é, a
propriedade de restabelecer um equilíbrio informal no convívio entre os habitantes do
lugar, construir hierarquias sociais e, porque não, solucionar discrepâncias entre os
indivíduos. A violência retratada nos autos deve ser analisada sob essa perspectiva,
para não incorrermos em estereótipos de entender as partes em litígio como pessoas
violentas por nascimento, ou por herança cultural, o que não parece ser o caso dos
munícipes de Vitória. As discórdias e desordens ligavam-se muito mais a questões
ordinárias do dia-a-dia, que se resolviam por meio das discussões, xingamentos e
pequenas brigas. Essas bulhas, presentes nos autos criminais, sugerem ao
pesquisador a existência de normas de convivência que extrapolavam as normas
legais, tais como as elencadas no Código Criminal do Império do Brasil (TINÔCO,
2003). A população, de modo geral, acreditava serem os conflitos passíveis de
solução informal e pessoalizada, o que, com certa freqüência, resultava em confusões
e brigas que, nalgum casos, envolviam até mesmo contusões e pequenas
escoriações.
Muitos desentendimentos cotidianos dos moradores dessas regiões não foram objeto
de averiguações policiais, tampouco mereceram apreciação dos juízos Policial,
Municipal e de Direito, pela singela razão de não configurarem crime. De acordo com o
caput do artigo do Código Criminal do Império do Brasil (TINÔCO, 2003, p. 9),
118
expressando princípio legal universal, não haveria crime ou delito sem lei anterior que
assim o qualificasse.
63
O Código Criminal diferenciava três tipos de crimes: o público, o policial e o particular.
Os mesmos eram passíveis de procedimento oficial da justiça – ex-officio –, de
denúncia, ou queixa por parte do ofendido ou pessoa legitimada. Seguindo a divisão
do texto do Código, a Parte Segunda versava a respeito dos crimes públicos, a
Terceira dos crimes particulares e a Quarta dos policiais. O quadro 1, em anexo,
mostra a distinção entre crimes público, particular e policial, incluindo os títulos e
capítulos insertos em cada seção.
Os delitos de agressão física e injúria estavam relacionados na Parte Terceira Dos
crimes particulares, no Título II. As penalidades previstas para o crime de “ferimentos
e outras ofensas físicas” variavam conforme a gravidade do dano infligido ao ofendido.
Assim, os peritos responsáveis pelo exame de corpo de delito obrigavam-se a
responder a alguns quesitos para verificar em quais artigos estaria o réu incurso, a
saber: (a) se havia ferimento ou ofensa física (artigo 201); (b) se era mortal; (c) qual o
instrumento que o ocasionou; (d) se houve mutilação ou destruição de algum membro
ou órgão (artigo 202); (e) se podia haver ou resultar mutilação (artigo 202); (f) se podia
haver ou resultar inabilitação do órgão sem que ficasse ele destruído (artigo 203); (g)
se podia resultar alguma deformidade e qual sua natureza (artigo 204); (h) se o mal
resultante do ferimento ou ofensa física produzia grave incômodo de saúde (artigo
205). Além desses artigos, havia ainda o 206 que prescrevia uma pena máxima de
dois anos de prisão simples e multa correspondente à metade do tempo em casos de
“causar a alguém qualquer dor física com o único fim de injuriar” (TINÔCO, 2003, p.
385-386). No julgamento dos crimes de injúria, a sentença condenatória variava se o
fato tivesse lugar em local público, à noite, ou se fosse publicado em meio impresso e
distribuído para mais de quinze pessoas. Nos crimes políticos cometidos por meio
tipográfico ou gravado, a publicidade era um elemento essencial, pois a infração à lei
constava do ato de tornar pública a declaração (TINÔCO, 2003, p. 421-422). Quanto
ao crime de injúria, entretanto, a publicidade não era um fato constitutivo do delito,
mas um agravante circunstancial. Assim, as penas previstas no artigo 237
64
eram mais
duras do que as do artigo 238
65
, máximo de um ano de prisão simples e multa
63
Em latim: Nullum crimen, nulla poena sine praevia lege.
64
Art. 237. O crime de injúria cometido por meio de papéis impressos, litografados ou
gravados, que se distribuírem por mais de quinze pessoas [...]” (TINÔCO, 2003, p. 411).
65
“Art. 238. Quando a injúria for cometida sem ser por algum dos meios mencionados no artigo
[237], será punida com metade das penas estabelecidas [...]” (TINÔCO, 2003, p. 428).
119
correspondente à metade do tempo, e máximo de seis meses de prisão simples e
multa correspondente à metade do tempo, respectivamente.
O início de uma ação criminal poderia ocorrer sob três formas: queixa, denúncia ou
processo ex-officio. Para injúria e agressão física, contudo, o procedimento acusatório
estava condicionado a alguns preceitos legais que legitimavam ou não a atuação da
justiça nesses episódios litigiosos por se tratarem de crimes particulares. O Código do
Processo Criminal (FILGUEIRAS JUNIOR, 1874, p. 53-54) determinava que o
procedimento ex-officio dos juízes formadores da culpa somente seria aceito nos
casos de flagrante delito e nos crimes policiais
66
. Isso posto, nas ocasiões de prisão do
acusado em flagrante delito por um guarda policial, inspetor de quarteirão ou policial
da patrulha, poder-se-ia instaurar um processo ex-officio. Proceder-se-ia, igualmente,
a um procedimento oficial da justiça quando verificadas a adequação dos crimes à Lei
de 26 de outubro de 1831 (VASCONCELOS, 1860). Essa lei determinava, em seu
artigo 5º, que as ofensas físicas leves, as injúrias e calúnias não impressas e as
ameaças reputar-se-iam crimes policiais, “[...] e como tais [seriam] processados.”
Desse modo, às autoridades competentes era permitido oficiar contra os delitos
incluídos no texto desse artigo, pois na forma de processar deveriam ser
compreendidos como crimes policiais e não particulares. Em Observações sobre
vários artigos do Código do Processo Criminal e outros (1852, p. 27-29), o Bacharel
Manoel Mendes da Cunha Azevedo comentou a intenção de alguns juízes de então
em compreender o disposto na Lei de 26 de outubro de 1831 como uma transferência
dos crimes de ofensas físicas leves, injúrias e calúnias para a classe dos crimes
policiais na divisão do Código Criminal. A respeito desse debate, Cunha Azevedo
esclareceu que a expressão “reputar-se-ão” explicitava a natureza particular dos
delitos mencionados no artigo 5º. O legislador teria pretendido, na opinião de Azevedo,
apenas a sujeição dos crimes de injúria e agressão ao mesmo processo ordinário
definido para os crimes policiais, não devendo, portanto, ficarem sujeitos às outras
disposições processuais previstas para os crimes particulares. Em resumo, o autor
indicado alegava o pragmatismo do artigo da sobredita lei, pois a finalidade última
do ali disposto era dar ao promotor público o direito de acusar nessas ocorrências e,
logo, as palavras “e como tais serão processados” aludiam à ordem do processo e
à jurisdição competente para processar. A injúria e a agressão acabavam processadas
tais como os crimes policiais, sem, contudo, perder sua natureza particular.
66
Ver nota de rodapé n. 96 do Código do Processo Criminal editado por Filgueiras Junior
(1874) a respeito do “Título IV Da Queixa e Denúncia”.
120
Mendes Azevedo também fez assertivas sobre o provável fundamento jurídico da lei
de 1831. Para ele, os crimes mencionados no artigo eram os que davam vazão às
paixões mais freqüentes e às situações mais ordinárias da vida humana, dignos, por
seu turno, de serem prevenidos e punidos pelas leis repressivas em toda a extensão
das atribuições policiais que o artigo prescrevia para os crimes. Além disso, era
uma maneira de acautelar a impunidade e a clemência tão comuns nos queixosos,
que poderiam intentar uma queixa e depois desistir dela, como melhor lhes
apresentasse, por indulgência ou por planos de uma vingança particular. No mesmo
sentido, em 6 de março de 1854, José Thomaz Nabuco de Araujo (COLEÇÃO DAS
DECISÕES DO IMPÉRIO DO BRASIL, 1854, p. 69-70) então Presidente de
Província do Rio de Janeiro expediu um Aviso Circular declarando o entendimento
do crime de ferimento leve (artigo 201 do Código Criminal) como incurso nas
disposições do artigo da Lei de 26 de outubro de 1831. Considerava Nabuco de
Araujo, por anuência do imperador do Brasil, argumento implausível diferenciar
ferimento leve de ofensa física leve, uma vez que no título da seção IV da Parte
Terceira, Título II do Código Criminal, estava escrito “ferimentos e outras ofensas
físicas” e por isso deveriam ser encarados como sinônimos. Com efeito, o Aviso de
março de 1854 confirmava a jurisdição da Justiça Pública (a promotoria) como autora
nos processos criminais contra delinqüentes incursos nas penas dos crimes
supracitados.
A partir de 1860 a legislação judiciária acerca dessa questão começou a sofrer
alterações significativas. Pelo Decreto n. 1.090 de de setembro daquele ano
(COLEÇÃO LEIS DO IMPÉRIO DO BRASIL [CLIB], 1860, p. 41), o ministro e
secretário de Estado dos Negócios da Justiça, João Lustosa da Cunha Paranaguá,
legitimou a acusação ex-officio dos crimes de injúrias e calúnias não impressas,
ameaças, ferimentos ou violências qualificadas criminosas por lei apenas quando
perpetradas contra empregados públicos, em atos de exercício de suas funções, tendo
o delinqüente sido preso em flagrante ou não. No artigo do Decreto revogavam-se
as leis de 6 de junho e de 26 de outubro de 1831, e outras disposições em contrário.
Em 1871, a famosa lei da Reforma Judiciária n. 2.033 (CLIB,1871, p. 132),
regulamentou no artigo 15 a exclusividade do processo ex-officio para os crimes
policiais e prisões em flagrante delito. Nesse ponto, é plausível sugerir a continuidade
do uso desse procedimento legal para os crimes particulares trabalhados nesta
dissertação, tendo em vista os episódios em que os indiciados foram presos no ato do
delito.
121
Além do procedimento ex-officio, a abertura de uma ação judicial contra crimes
particulares, tais como agressões físicas e injúrias, poderia ser feita mediante queixa.
Esse dispositivo legal poderia ser utilizado legitimamente pelo ofendido (ou vítima),
seu pai ou mãe, tutor ou curador – nos casos em que o ofendido fosse menor de idade
-, pelo proprietário se o ofendido fosse cativo -, ou mesmo pelo cônjuge.
67
A queixa
também poderia ser impetrada pelo promotor público ou por qualquer um, nos casos
de alegação da condição miserável do ofendido
68
que, por suas circunstâncias
particulares, não reunia condições de denunciar o ofensor. Nesse caso, após iniciado
o processo, o réu poderia contestar a miserabilidade da vítima, utilizando para isso
provas e testemunhas. O Aviso de 21 de janeiro de 1867 (FILGUEIRAS JUNIOR,
1874, p. 97) declarou que o crime particular passava à esfera do crime público na
oportunidade de o ofendido ser pessoa miserável, e nesses termos, não era aceito o
perdão do ofendido, que nos casos de queixa comum levaria à nulidade da causa.
A última forma positivada pela lei criminal do Império para viabilizar uma ação criminal
era a denúncia. O denunciante poderia ser a Justiça Pública, por meio do promotor, ou
qualquer pessoa da população. As situações válidas para o uso desse recurso
compreendiam (para os crimes escolhidos nesta dissertação) a prisão em flagrante
delito, não havendo parte ofendida que requeresse a acusação, ou se o ofendido fosse
pessoa miserável.
O artigo 79 do Código do Processo Criminal asseverava a necessidade de as queixas
e as denúncias serem assinadas e juradas pelo queixoso ou denunciante, e, se eles
não soubessem escrever, deveria assinar, a rogo, uma testemunha digna de crédito. A
queixa e a denúncia deveriam conter informações básicas sobre o delito, como a
narrativa do fato criminoso com todas as circunstâncias, incluindo quando e onde teve
lugar o crime, o valor provável do dano, o nome do delinqüente ou a descrição
fisionômica (caso se tratasse de desconhecido), as razões de convicção ou presunção
e a nomeação de todas as testemunhas ou informantes.
69
Depois de ajuizada a queixa, a denúncia, ou o procedimento ex-officio, as autoridades
competentes juiz de paz, subdelegado e delegado de polícia procediam ao que se
denominava formação da culpa. A formação da culpa constituía um processo sumário
no qual a autoridade procedia a um levantamento das informações relevantes sobre a
existência do delito e a culpabilidade do réu. A primeira parte dessa fase do processo
67
Artigos 72 e 73 do Código do Processo Criminal (FILGUEIRAS JUNIOR, 1874, p. 53).
68
Aviso n. 377 de 30 de agosto de 1865.
69
Ver Código do Processo Criminal, artigo 79, § 1º, § 2º, § 3º, § 4º, § e § (FILGUEIRAS
JUNIOR, 1874, p. 57-58).
122
era formada pelo auto de corpo de delito. A exeqüibilidade desse exame era possível
na ocasião de o delito ter deixado vestígios materiais que pudessem ser fisicamente
examinados. O exame de corpo de delito era realizado por peritos registrados e
profissionais e, na ausência deles, por pessoas de bom senso, nomeadas pelo juiz de
paz e por ele juramentadas (artigo 135 do Código do Processo Criminal).
70
Na falta de
tais evidências, formar-se-ia o auto de corpo de delito com duas testemunhas que
deporiam a respeito da existência do crime e suas circunstâncias. O artigo 47, da Lei
de 3 de dezembro de 1841 (CLIB, 1841, p. 110), determinou a competência da
autoridade em formar processo sumário independente da inquirição de testemunhas
para o auto de corpo de delito.
71
Se o acusado residisse na freguesia em que
tramitava a causa criminal, poderia ser levado à presença do chefe de polícia,
subdelegado ou delegado de polícia para assistir ao depoimento das testemunhas e
as contestar ao término de cada juramento. Na mesma oportunidade proceder-se-ia ao
interrogatório do réu e, ao final dessas atividades, a autoridade policial faria o auto
concluso, julgando a procedência do rito sumário, e despachando-o para o juiz
municipal a fim de que ele se posicionasse sobre a decisão do Juízo de Polícia.
A fase em que a ação criminal era remetida ao Juízo Municipal (artigo 54 da Lei de 3
de dezembro de 1841) denominava-se processo ordinário. O juiz poderia proceder às
diligências que julgasse necessárias para conformação do auto criminal às
especificações da lei para enfim, confirmar, ou não a sentença da autoridade policial.
Em caso de confirmação da pronúncia do réu por parte do juiz municipal, remeter-se-ia
o processo ordinário ao juízo de Direito para apreciação do Júri em seção pública. Ao
final dos debates e das inquirições, ouvidas as partes e os defensores, o Júri se
retirava para responder às perguntas propostas pelo juiz de direito, presidente do
tribunal, relativas à existência do crime, à culpabilidade do réu pronunciado, aos
agravantes do fato criminoso e aos atenuantes em favor do acusado. Num ambiente
isolado, os jurados decidiam sobre os questionamentos, devendo responder sim ou
não a cada uma das perguntas. Quando retornavam da incomunicabilidade da sala de
reunião, o presidente do Júri entregava ao juiz de direito as respostas, com base na
qual esse último pronunciava a sentença do acusado.
70
Nos processos criminais analisados, apenas as regiões mais afastadas da Freguesia de
Vitória realizaram autos de corpo de delitos por pessoas não especialistas em Medicina, como
em alguns casos iniciados em Queimado e Cariacica.
71
As testemunhas seriam inquiridas para a audição sobre informações do delito e também a
respeito do acusado. A autoridade mandava intimar de duas a cinco pessoas. Nos casos de
denúncia, poder-se-ia requerer de cinco a oito testemunhas e, caso houvesse suspeição
acerca do réu, poderia inquirir até outras duas (FILGUEIRAS JUNIOR, 1874, p. 60-63).
123
Em linhas gerais, os crimes selecionados para exame nesta dissertação organizavam-
se da maneira acima descrita, segundo os preceitos legais do Código do Processo
Criminal e demais leis, decretos, avisos, que se destinavam a sanar dúvidas ou
reformar alguns artigos desse mesmo código. Importa destacar, também de forma
geral, que as autoridades encarregadas dos autos analisados na presente pesquisa
obedeciam rigorosamente às prescrições legais.
3.2.2 AS AUTORIDADES POLICIAIS E A VIGILÂNCIA DAS RUAS CAPIXABAS
A polícia no período do Segundo Império dividia-se, grosso modo, em: (a)
administrativa ou preventiva e (b) judiciária. José Antonio Pimenta Bueno (1857, p. 3),
em Apontamentos sobre o Processo Criminal Brasileiro, destacava a manutenção da
ordem e do bem-estar públicos como principal meta da polícia administrativa. Para
alcançá-la era necessário empregar a vigilância a fim de proteger a sociedade e evitar
os delitos. Consoante Pimenta Bueno, os serviços da polícia preventiva estavam mais
voltados para a alçada do Direito Administrativo do que do Criminal.
A propósito das atribuições e competências dos funcionários da polícia administrativa,
é razoável observar a equiparação das funções dos chefes de polícia, delegados e
subdelegados. No conjunto das tarefas a serem empreendidas por tais agentes,
destacavam-se: (i) ter conhecimento das pessoas recém-chegadas ao distrito
(freguesia)
72
e da pretensão das mesmas em nele residir; (ii) conceder passaporte; (iii)
obrigar a assinar termo de bem-viver e de segurança; (iv) julgar as contravenções às
Posturas Municipais; (v) inspecionar teatros e espetáculos públicos; (vi) organizar a
estatística criminal; (vii) organizar, por meio de agentes subordinados, o arrolamento
da população; (viii) colocar os bêbados em custódia e, (ix) evitar rixas e procurar
compor as partes. Os jzes de paz, no que concerne às atribuições administrativas do
cargo, agrupavam algumas das competências descritas como prevenir conflitos,
destruir ajuntamentos de escravos aquilombados e fazer assinar termos de bem-viver
Os inspetores de quarteirão, por sua vez, deveriam ficar atentos a tudo o que pudesse
interessar à prevenção de crimes, e comunicar às autoridades todas as ocorrências
diárias relevantes (BUENO, 1857, p. 20-26).
72
Na Província do Espírito Santo da segunda metade do Oitocentos, sobrepunham-se as
divisões administrativa (distritos) e eclesiástica (freguesias e paróquias). Logo, quando se dizia
Distrito de Vitória, poder-se-ia também compreender Freguesia de Vitória. “Os termos, por sua
vez, eram subdivisões das comarcas e compunham-se de um ou mais municípios [...]. Para
que pudesse haver um termo, era necessário que o município ou os municípios, de que ele se
compunha, apurasse ao menos 50 jurados, [...] isto é, que [tivessem] ao menos um conselho
de jurados” (BUENO, 1857, p. 29).
124
A polícia judiciária, em paralelo, dividia-se em dois tipos: a criminal e a correcional.
Como polícia criminal, restringia-se a auxiliar a ação dos tribunais criminais, visto que
não tinha jurisdição sobre os crimes maiores. Bueno (1857, p. 18) explica, em
Apontamentos ..., a admissão mais ou menos tácita em todas as legislações criminais
de duas classes de crimes: os que apresentavam maior gravidade, sujeitos a
penalidades mais duras, e aqueles menos graves, abarcando as contravenções e
pequenas infrações, cujas penas eram menores. Aos crimes maiores importava a ação
dos tribunais da justiça criminal e aos menores a dos tribunais de polícia. Bueno
informa os benefícios de um processo sumário para os delitos do segundo tipo, pois
demandavam menos garantias, e, logo, poderiam ter julgamento mais célere do que
os casos levados aos juízos da justiça criminal.
Os crimes a que estavam imputadas as ações do Juízo de Polícia incluem-se os que
não tivessem pena maior do que multa de até 100$000 réis (cem mil réis), prisão
simples, degredo ou desterro até 6 meses com multa que não excedesse a metade
desse tempo e 3 meses de casa de correção ou oficinas públicas quando existentes
(BUENO, 1857, p. 18).
73
Verifica-se, portanto, que os crimes de injúria analisados neste capítulo eram da
competência da polícia correcional. Os delitos de agressão física, em contrapartida,
sujeitavam-se à esfera de autoridade dos juízos da justiça criminal. Em se tratando
das competências de julgar crimes da polícia é necessário esclarecer que os juízes de
paz não tinham autoridade para proceder a esses julgamentos.
As sociabilidades delituosas, tema deste capítulo, eram contidas e punidas pelas
autoridades policiais e judiciárias a partir de vigilância prévia da conduta dos
moradores. Nas províncias do Império, a administração judicial nos juízos de
instância dividia-se em termos e comarcas
74
(artigo do Código do Processo
Criminal). Os distritos de paz não faziam parte dessa divisão porque no segundo
quartel do Oitocentos não acumulavam funções de justiça criminal. Para a criação
de um distrito devia-se observar a marca de 75 casas habitadas, no mínimo, decisão
73
Bueno (1857, p. 18) ponderava não ser a natureza do crime em si que determinava a ação
correcional ou criminal da polícia, mas, sim, o grau máximo das penalidades. De qualquer
forma, além dos delitos compreendidos nas condições descritas, considerava-se também da
alçada do Juízo de Polícia os previstos no Código Criminal nos artigos 98, 100, 128, 188, 189,
191, 209, 210, 213, 215, 216, 217, 223, 233, 235, 237, 238, 240, 241, 276, 277, 278, 279, 280,
281, 282, 292, 293, 296, 303, 304 e 307 (para leitura do caput de cada um desses artigos, veja-
se lista em anexo I desta dissertação).
74
“As comarcas são circunscrições de jurisdição criminal, que compreendem um ou mais
termos e cuja administração é residida por um ou mais juízes de direito criminal e corregedores
dela [...]. Elas também têm um ou mais promotores” (BUENO, 1857, p. 29).
125
de responsabilidade das câmaras municipais. Em cada um dos distritos existentes em
uma comarca devia haver um juiz de paz, o qual se responsabilizava por sugerir os
nomes para o cargo de inspetor de quarteirão (FILGUEIRAS JUNIOR, 1874). Bueno
(1857, p. 10), porém, informa um dado diferente acerca da nomeação para esse cargo.
Segundo ele, os inspetores eram agentes da polícia e, por isso, os nomes para
escolha desses funcionários eram indicados pelos subdelegados e nomeados pelos
delegados. Um fato importante a ser destacado é que os inspetores eram escolhidos
dentre as pessoas bem conceituadas do quarteirão em que residiam e deviam ser
maiores de 21 anos de idade. O artigo 65 do Código do Processo Criminal
determinava como função do subdelegado de polícia a criação de quarteirões,
atentando para a obrigatoriedade de 25 casas habitadas, no mínimo, em cada um
deles.
Os quarteirões capixabas caracterizavam-se pela comunicação estreita entre a vida
privada e a pública. Os quintais das propriedades se separavam por cercas baixas de
palha, que não impediam a visão alheia. Arlette Farge (1989-1992) descreveu os
bairros parisienses setecentistas como um habitat que fabricava comportamentos e
identidades que confundiam a vida privada com a vida pública. O cotidiano dos
habitantes de Paris cingiu-se pela falta de individualidade das famílias, personagens
de uma vida humana das ruas. Os cômodos do ambiente doméstico também não
foram planejados para preservar a intimidade da vida privada. Quase tudo se
comunicava: não havia diferença entre porta aberta e porta fechada (FARGE, 1989, p.
224). De maneira análoga, pode-se dizer que os quarteirões do Município de Vitória
ultrapassavam a imagem de um simples ambiente geográfico restrito a certa
quantidade de fogos.
75
Constituíam eles espaços independentes, onde as pessoas
reagiam de acordo com seus próprios valores e regras. Os quarteirões transformavam-
se em lugar onde cada qual vivia vigiado pelos outros e vigiando-se (FARGE, 1989-
1992, p. 588). Diversos atores atuavam como autoridades inspetoras dos quarteirões
do Município capixaba: os inspetores de quarteirão, os chefes de polícia, os delegados
e subdelegados de polícia e seus agentes subordinados. Tais personagens eram os
guardiões da ordem e da moral públicas. Neles, as pessoas procuravam proteção e
justiça, compreensão, disciplina e indulgência.
Farge (1989-1992, p. 592), na obra indicada, caracterizou a injúria entre os parisienses
como uma forma de pulsação social. De acordo com a autora, as sociabilidades nos
bairros da capital de França eram baseadas na ausência de privacidade e na
predominância das variedades orais. Nesse sentido, a palavra assumia posição sine-
75
Denominação própria do século XIX para se referir a casas habitadas.
126
qua-non no seio da sociedade, porque criava o reconhecimento do indivíduo por ele
mesmo, ainda que no espaço coletivo. De modo semelhante, atuava na estruturação
da sociabilidade, reforçando-a até nos episódios em que um dos moradores do bairro
fosse colocado em perigo por ter seu nome na boca do povo.
No cotidiano dos quarteirões do Município de Vitória, a injúria exercitava o
conhecimento dos indivíduos pelos olhos e boca dos outros e emoldurava os
contornos das sociabilidades desenvolvidas pela população, de maneira que a palavra
se tornava “todo poderosa” [sic] (FARGE, 1989-1992, p. 590). Isso porque havia um
contato tão estreito entre as famílias e as ruas, isto é, entre a vida doméstica e a vida
exterior, que se compreendia o olhar onipresente dos entes da comunidade como um
direito de falar do outro. “[Era] preciso controlar a qualquer preço o fluxo do que se
[dizia] e se [via] para o assumir o grave risco de se tornar vítima. Numa sociedade
de ‘iguais’ [era] necessário ter a estima dos outros” (FARGE, 1989-1992, p. 591).
Dos falatórios e injúrias poderiam resultar brigas e bulhas que, ocasionalmente,
culminavam em ferimentos físicos. As autoridades policiais, por sua vez, tentavam se
impor a esse modo informal de convivência promovendo a disciplina nas ruas e
controlando as sociabilidades que se processavam nos espaços comuns. O inspetor
de quarteirão era o agente do corpo policial mais próximo da população, em especial
dos seus próprios vizinhos. Além de conhecido por todas as pessoas das ruas que
estavam sob sua responsabilidade, o inspetor devia ser sempre cauteloso e trabalhar
pela paz em seu quarteirão. Interessante pensar na ocasião de o inspetor ter de
apartar uma desordem na área de sua vigilância, envolvendo seus vizinhos. Episódio
ordinário do dia-a-dia de seu cargo, diriam uns, mas para uma sociedade como a do
Município de Vitória, marcada pela pessoalidade das relações sociais, a prisão ou a
advertência promovidas contra um morador contíguo à casa do inspetor poderia,
certamente, gerar desconforto permanente para ambos. Ao inspetor, pois cabia a ele
muito mais do que promover rondas pelas ruas e zelar pelas fontes e chafarizes das
redondezas. Suas atividades envolviam, acima de tudo, os vínculos constrdos
durante anos de convivência entre sua própria família e os vizinhos, conformando
laços de boa vontade que poderiam ruir, num átimo, por conta de desordens e brigas.
Por outro lado, os vizinhos tinham, para com o inspetor, uma relação pautada pela
subserviência e respeito, o que fazia com que, por vezes, a casa do agente policial
fosse compreendida como um ambiente intrínseco à sua função. Não obstante a
caracterização pública do ofício do inspetor, não seria excessivo dizer que sua
atividade se situava na linha tênue entre a privacidade da vida alheia e a publicidade
127
dos conflitos entre os indivíduos. Desse modo, muitas pessoas dirigiam-se à
residência do mesmo para queixar-se de outros ou proteger-se de eventuais perigos.
Indo além, o personagem do inspetor poderia ser equiparado ao do comissário de
polícia dos bairros parisienses do século XVIII. De acordo com Farge (1989, p. 220), a
casa do comissário tinha localização privilegiada. Conhecida por todos os moradores
do bairro, nas paredes da residência do comissário fixavam-se editais e informações.
Local de encontro, de comentário das novidades e de socorro no caso de conflitos, a
casa dessa autoridade era acessível a todos. Se o comissário de polícia apresentava-
se como um indivíduo bem quisto pela população parisiense, o mesmo não acontecia
com os inspetores e os auxiliares de polícia de Paris. O bairro desconfiava de tais
agentes que se insinuavam no seio da sociedade, em trânsito freqüente, e dispostos e
denunciar quem quer que fosse (FARGE, 1989, p. 221).
Retornando ao Município de Vitória, a figura do inspetor de quarteirão é marcante e
freqüente nos autos criminais de injúria e agressão física. Ao contrário das
desconfianças dos parisienses em relação aos inspetores dos bairros, seus
congêneres capixabas eram personalidades bem relacionadas e mantinham amizades
com os vizinhos. Como em boa parte do dia era preciso manter-se circulando pelas
imediações da sua área de atuação, o inspetor de quarteirão sabia quase tudo o que
ocorria nas ruas e nos locais de comércio daquela circunscrição e, até mesmo, nas
casas e quintais dos habitantes. Observa-se nos processos analisados a existência de
declarações desses oficiais a respeito da conduta de determinado morador das
redondezas, informando se levava ele uma “vida regada a vícios e libidinagem” ou se
era “pessoa honesta e pacata”.
76
O simbolismo associado à residência dos inspetores de quarteirão também alcançava
a moradia dos chefes de polícia, dos delegados e mesmo dos subdelegados. De
acordo com o artigo 11 do Código do Processo Criminal, o expediente ordinário da
polícia realizava-se na casa do chefe de polícia, que destinava um espaço de sua
habitação para o estabelecimento de um escritório, onde funcionava a secretaria de
polícia e a sala de despachos e audiências.
77
Previu-se pelo artigo 58 do citado
Código a construção de edificações públicas para as audiências, mas os autos
criminais lidos sugerem o uso quase exclusivo das casas das autoridades policiais
como local de tais atividades. As audiências deviam ser feitas a portas abertas, sendo
franqueado o acesso de qualquer indivíduo. Nessa ocasião, iam ao encontro do chefe
76
Expressões retiradas das declarações constantes nos autos criminais.
77
Na cidade de Vitória, a secretaria de polícia funcionava na Rua da Mangueira (Rua de
Março).
128
de polícia as testemunhas inquiridas, o réu, a vítima ou ofendido e os advogados ou
procuradores das partes, em seqüência similar às fases do processo sumário.
Além das audiências, os chefes de polícia, os delegados e os subdelegados recebiam
em sua casa quer os peritos para realização do auto de corpo de delito em pessoas
feridas, quer as testemunhas para comprovação da idoneidade do exame
concretizado. Durante o dia, os chefes de polícia eram visitados pelos praças da
Companhia de Pedestres, inspetores de quarteirão e guardas policiais, que
participavam à autoridade qualquer tipo de comoção ou evento anormal ocorrido no
Município de Vitória. Chegavam à residência do chefe de polícia as pessoas que
buscavam auxílio em vista de uma desordem ou proteção de algum inimigo. Em
resumo, a casa do oficial permanecia dia e noite com as portas abertas, sem impedir a
entrada de quem quer que fosse e continuamente à espera de algum vizinho que
viesse à procura de conselho, assistência ou simplesmente de um dedo de prosa.
3.2.3 AS EVIDÊNCIAS DE UM DELITO
Para o desenvolvimento da presente dissertação optou-se por analisar dois tipos de
fontes primárias: uma criminal e outra jornalística. A primeira trata dos autos criminais
compreendidos pela jurisdição da Comarca de Vitória no segundo quartel do
Oitocentos, até 1872; os registros jornalísticos, por sua vez, referem-se aos números
publicados dos jornais Correio da Victoria e Jornal da Victoria durante o mesmo
recorte cronológico. Neste capítulo tratar-se-á dos autos criminais de injúria e
agressão física, cujos delitos foram cometidos em alguma das freguesias do
Município.
Foram lidos e transcritos 79 autos criminais relativos aos anos de 1850 a 1872. Do
total analisado, 34 casos de injúria e 45 de agressão física, destacados por
freguesias. De acordo com os números, a maioria dos conflitos judicializados diz
respeito ao crime de ofensas físicas, talvez pela cifra considerável de autos iniciados
pela justiça, ou seja, ex-officio. Dos 45 casos investigados, 4 tiveram início por
denúncia, 27 por ex-officio e 14 por queixa de particulares. Nota-se que praticamente
uma terça parte das ações criminais de agressão física foi instaurada por iniciativa
privada, enquanto quase sessenta por cento dos processos teve como autora a
Justiça Pública, por procedimento ex-oficio. No que tange ao crime de injúria, a
hegemonia pertence às queixas intentadas pelo próprio ofendido ou por algum familiar
próximo, por exemplo, o cônjuge: em um montante de 34 autos criminais, 28 foram
objeto de julgamento por petição de queixa, perfazendo uma maioria significativa de
129
oitenta e dois por cento do total inquirido. Os autos iniciados pela Justiça Pública
somaram 4 ocorrências e as denúncias 2 casos.
Os autos criminais foram estudados atentando-se para a freguesia em que ocorrera a
desordem. Dessa forma, identificou-se uma predominância da Freguesia da Vitória,
perfazendo um total de 29 ocorrências para o delito de injúria e 28 para o de agressão
física.
78
É bom salientar que os documentos analisados não se referem à totalidade
dos processos criminais instaurados na Comarca de Vitória na segunda metade do
século XIX, mas, sim, aos registros que sobreviveram à força do tempo. Não se pode
afirmar, portanto, a completude do corpo documental, tampouco se realmente
existiram mais casos desses crimes julgados na Comarca. As inferências realizadas
neste trabalho dissertativo correspondem aos dados observáveis nos documentos
pesquisados, configurando-se apenas uma possibilidade interpretativa para uma
realidade mais generalizada como a da vida cotidiana no Município de Vitória do
século dezenove.
A propósito da composição humana dos litígios julgados pelas autoridades judiciais da
Comarca de Vitória, observou-se preponderância de réus sobre rés, tanto para os
casos de injúria quanto para os de agressão física, conforme as tabelas a seguir. A
disparidade observada na quantidade de homens em relação às mulheres como parte
acusada na ação criminal também é averiguada quando se analisa o sexo das vítimas
de injúria. Considerando-se esse aspecto, o número relativo às de agressão física
corresponde ao triplo do valor aferido para a mesma categoria no delito de injúria (4),
isto é, 13 ofendidas. Esses números sugerem a ocorrência de bulhas envolvendo
pessoas de ambos os sexos, não sendo apropriado afirmar que as mulheres
brigassem somente entre si.
78
Em relação ao crime de injúria temos 4 casos ocorridos em Cariacica, 1 em Queimado e 1
em Santa Leopoldina. A divisão dos episódios de agressão física por freguesias apresenta-se
diversificada: 3 casos em Queimado, 12 em Cariacica e 2 em Santa Leopoldina. Conforme o
exposto, não há registro de caso algum para a Freguesia de Carapina.
130
TABELA 5 - SEXO DOS RÉUS E VÍTIMAS: INJÚRIA
Condição legal
Gênero Réus Vítimas
Homens 29 36
Mulheres 6 4
Total 35 40
Fonte: Fundo Polícia (1850-1872).
Obs.: A diferença no total de réus e vítimas deriva-se do fato de haver um
auto criminal com mais de um réu.
Os escravos, por seu turno, compuseram as narrativas dos autos criminais mais como
informantes e divulgadores das desordens para a população do que como réus e
vítimas. Para os 34 casos de injúria estudados identificou-se apenas 1 réu escravo e
nenhuma ré. Por outro lado, os 45 registros de agressão física indicam maior
concorrência dos cativos: 10 indivíduos eram escravos homens, sendo eles 5 réus e 8
vítimas. Percebe-se, aliás, a quase ausência de escravas nas lides judiciais, ao passo
que nas agressões físicas há apenas o caso de Albertina e Gertrudes, ambas cativas.
TABELA 6 - SEXO DOS RÉUS E VÍTIMAS: AGRESSÃO FÍSICA
Condição legal
Gênero Réus Vítimas
Homens 47 32
Mulheres 8 13
Total 55 45
Fonte: Fundo Polícia (1850-1872).
Obs.: A diferença no total de réus e vítimas deriva-se do fato de haver mais
de um réu ou vítima em alguns processos.
Era imprescindível a inquirição de testemunhas para a comprovação da existência do
delito e apuração da culpabilidade do acusado. Separando os autos criminais por
freguesias de origem do delito, compilaram-se as profissões ou meios de vida de cada
um dos indivíduos listados nos documentos, incluindo as partes em litígio e as
131
testemunhas ou informantes. Foram excluídas da caracterização as autoridades
judiciais e os funcionários do corpo policial que, porventura, forneceram explicações
ao juiz sobre alguma parte escusa do processo. O gráfico abaixo, desenvolvido a partir
do conjunto de profissões para cada freguesia do Município de Vitória e segundo os
crimes, indicam uma variedade de ofícios e ocupações diárias, principalmente para os
habitantes da capital da Província do Espírito Santo. As barras a seguir correspondem
aos serviços de 218 indivíduos listados nos autos de agressão física, constando 35
ocorrências de indivíduos que não mencionaram suas ocupações, identificadas no
gráfico como “não consta”.
GRÁFICO 3 - PROFISSÕES OU MEIOS DE VIDA, AGRESSÃO FÍSICA, FREGUESIA DE
VITÓRIA
Fonte: Fundo Polícia (1850-1872).
A figura acima se refere às ocupações descritas nos processos criminais de agressão
física para os indivíduos residentes na Freguesia de Vitória. De acordo com as barras,
podemos observar as atividades de maior incidência como, por exemplo, lavrador
(8,7%), pescador (5,5%), negociante (12,9%), soldado de polícia (12,3%) – incluindo aí
os soldados das 4 companhias -, empregado público (5%), carpinteiro (4%) e
costureira (6,4%). A variedade encontrada para os meios de vida talvez seja
decorrente da constituição mais urbana da cidade de Vitória na segunda metade do
Dezenove, somada ao fato de ser a capital administrativa e judicial da Província
(primeira comarca fundada no Espírito Santo), concentrando as benfeitorias realizadas
132
na Província e os negócios desenvolvidos nos arredores dos diversos cais e portos
disponíveis na barra da Ilha de Vitória.
É interessante mencionar, da mesma forma, a presença de pescadores dentre os
moradores listados no gráfico, tendo em vista a espacialidade da cidade de Vitória,
principalmente da porção territorial abarcada pela ilha que facilitava substancialmente
as atividades pesqueiras. Como se viu no capítulo II, os cais e portos da Rua da Praia,
Rua Porto dos Padres e do Santíssimo pareciam desenvolver algum tipo de atração na
população, que se concentrava nesses lugares simplesmente para conversar, brincar
jogos de tabuleiros e de cartas ou mesmo para admirar o mar. no gráfico duas
ocorrências de aprendiz de ofício, uma referente a um escravo chamado Timóteo, cujo
senhor o tinha designado para aprender as lides de sapateiro, e outra de um livre,
aprendiz de marcenaria.
Parece plausível associar as ocupações mencionadas a vida mais citadina dos
habitantes de Vitória. Contudo, ainda se percebe a afluência de nichos rurais
destinados à produção agrícola dentro dos limites geográficos da parte urbanizada da
cidade, isto é, na ilha, em função do número observado de lavradores (19 em 218
indivíduos). para a Freguesia de Cariacica, o gráfico a seguir mostra-se menos
variável do que o de Vitória no que diz respeito à ocupação mais comum dos
indivíduos inquiridos nas ações criminais, não apresentando variedade quantitativa,
mas qualitativa das ocupações.
133
GRÁFICO 4 - PROFISSÕES OU MEIOS DE VIDA, AGRESSÃO FÍSICA, FREGUESIA DE
CARIACICA
Fonte: Fundo Polícia (1850-1872).
Das 124 pessoas constantes nos autos criminais de agressão física de Cariacica, 76
eram lavradores, correspondendo a 61% do total analisado. Essa evidência ratifica a
preponderância das áreas rurais como cenário das desordens que terminaram em
ferimentos corporais. Do mesmo modo, parece que a Freguesia de Cariacica
constituía-se majoritariamente por caminhos de terra, conhecidos popularmente como
passagens e estradas, bem como por propriedades rurais. Embora se tenha uma
estatística elevada de lavradores, também se verifica a existência de negociantes,
costureiras, alfaiates etc. como moradores dessa freguesia. Na análise qualitativa dos
processos de agressão física da região, identificam-se quitandas, além de outras lojas
especializadas na venda de bebidas alcoólicas.
Para a Freguesia de Queimado, a significativa maioria de lavradores parece confirmar
as mesmas alegações produzidas a respeito da configuração espacial da Freguesia de
Cariacica. De 28 pessoas inquiridas em 3 autos criminais de ofensas físicas, 20
134
indivíduos eram profissionais da lavoura, ou 71,4%. Em número bastante reduzido, 4
ocorrências, vêm os negociantes, perfazendo 14,2% do total.
GRÁFICO 5 - PROFISSÕES OU MEIOS DE VIDA, AGRESSÃO FÍSICA, FREGUESIA
DE QUEIMADO
Fonte: Fundo Polícia (1850-1872).
As inferências gráficas produzidas para os moradores da colônia de Santa Leopoldina
referem-se apenas a 13 indivíduos, relacionados em 2 autos criminais.
GRÁFICO 6 – PROFISSÕES OU MEIOS DE VIDA, AGRESSÃO FÍSICA, COLÔNIA
DE SANTA LEOPOLDINA
Fonte: Fundo Polícia (1850-1872).
O gráfico acima indica que sete moradores da colônia inquiridos pelo subdelegado de
polícia eram lavradores. Esse número, porém, seria possivelmente mais elevado, por
se tratar de um projeto do Governo Provincial, havendo a cessão de lotes para o
135
trabalho agrícola de colonos imigrantes. Havia também um médico na colônia,
responsável pelo tratamento dos estrangeiros recém-chegados ao Espírito Santo.
O espectro de profissões ou meios de vida dos moradores da Freguesia de Vitória
listados nos processos de injúria tende a corroborar as interpretações sugeridas para
os gráficos de agressão física. Impressiona perceber como as atividades voltadas ao
comércio varejista sobressaem na escala das ocupações mais cotadas, como a
sugerir um predomínio da ocorrência de injúrias próximo às lojas de secos e
molhados, às vendas, às casas de tecidos, aos botequins e às padarias. Assim como
no primeiro gráfico relativo às ocupações listadas nos casos de agressão física em
Vitória, há um pequeno contingente de indivíduos lavradores, perfazendo 5,3% do total
(169 indivíduos).
136
GRÁFICO 7 – PROFISSÕES OU MEIOS DE VIDA, INJÚRIA, FREGUESIA DE VITÓRIA
Fonte: Fundo Polícia (1850-1872).
Nesse sentido, as ocupações que tiveram 5 ocorrências ou mais foram os lavradores
(9), os negociantes (41), os empregados de repartições públicas (32), os caixeiros (8),
os pescadores (6), as costureiras (6), os escrivães (5), os soldados de polícia (6), os
pescadores (6) e os tipógrafos (14). Observa-se a presença do público feminino nas
bulhas que ocorriam nos espaços públicos da cidade, tais como as ruas, os chafarizes
e os cais de embarcações, além daqueles espaços com movimentação intensa de
moradores, como o comércio. Categoria surpreendente é a de “mulher dama”,
atribuída a Maria Pinto dos Anjos, uma moradora da Rua das Pedreiras, que se
autodesignou mulher de vida livre, porque mantinha cópulas carnais com homens da
137
vizinhança e não vivia na companhia de seu esposo, embora casada fosse. As
costureiras, por sua vez, aparecem tanto no gráfico de agressão física quanto no de
injúria, sugerindo a presença corrente das mulheres na vida social capixaba, mesmo
naquela submergida nas sociabilidades conflituosas.
No gráfico a seguir temos as informações sobre as ocupações de 27 moradores da
Freguesia de Cariacica.
GRÁFICO 8 – PROFISSÕES OU MEIOS DE VIDA, INJÚRIA, FREGUESIA
DE CARIACICA
Fonte: Fundo Polícia (1850-1872).
Verifica-se, pois, a preeminência dos lavradores (63%) sobre as demais ocupações,
seguida dos comerciantes (11%). Tem-se, igualmente, um indivíduo com ofício de
alfaiate, um empregado público, um tipógrafo e um escrivão. Geralmente, os tipógrafos
eram editores de jornais locais, principalmente do Correio da Victoria e do
Monarchista, e vinham em jzo apresentar o autógrafo (assinatura) da
correspondência particular publicada na folha impressa considerada injuriosa pelo
queixoso ou queixosa.
Para a freguesia de Queimado e a colônia de Santa Leopoldina os gráficos a seguir
mostram pouca diversidade de dados, destacando-se a ocupação de lavrador. De toda
forma, as profissões levantadas revelam uma preponderância das áreas rurais sobre
as urbanizadas nessas regiões, dada a incidência maçante da ocupação de lavoura.
138
GRÁFICO 9 – PROFISSÕES OU MEIOS DE VIDA, INJÚRIA, FREGUESIA
DE QUEIMADO
Fonte: Fundo Polícia (1850-1872).
GRÁFICO 10 – PROFISSÕES OU MEIOS DE VIDA, INJÚRIA, COLÔNIA DE
SANTA LEOPOLDINA
Fonte: Fundo Polícia (1850-1872).
Diante da exposição dos os meios de vida mencionados nos documentos judiciários,
resta informar como as testemunhas, informantes, queixosos e acusados contribuíram
para os desfechos dos autos analisados, isto é, se foi asseverada a culpabilidade do
réu ou não.
139
Os processos de agressão física foram julgados majoritariamente pelo Juízo de
Direito, com 30 casos. O Juízo de Polícia foi responsável pela sentença de 7 autos
criminais e o Municipal por apenas 8. O gráfico abaixo mostra a divisão dos autos
criminais para todas as freguesias já citadas, segundo as sentenças proferidas.
GRÁFICO 11 – SENTENÇAS, AGRESSÃO FÍSICA
Fonte: Fundo Polícia (1850-1872).Fonte: Fundo Polícia, (1850-1872).
A conformação do gráfico indica uma quantidade elevada de absolvições,
configurando 42% das 45 sentenças. As condenações, por outro lado, correspondem à
metade da quantidade de absolvições, isto é, 21% (10) do total. Se as outras
sentenças, improcedente, sem sentença e perempta
79
, forem consideradas como uma
não-condenação do réu e adicionadas às absolvições, ter-se-á um índice estatístico
muito superior ao de condenações: sem sentença (6%), improcedente (13%),
assinatura de termo de Bem-Viver (2%) e perempta (4%). Reunidas todas essas
categorias, chega-se à porcentagem de 67% de não-condenação.
80
Como a maior
parte dos autos de agressão física foram julgados pelo Tribunal do Júri, isto é, na
instância do Juízo de Direito, torna-se verídico propor que o Júri tenha sido o
responsável pela quase totalidade das absolvições, perfazendo um montante de 20
ocorrências. Deve-se questionar o entendimento de justiça para os jurados da época,
pois os réus não foram condenados por ter sido verificada a falta de materialidade do
delito. Isso significa que em muitos casos de agressão física os componentes do Júri
não compreenderam estar diante de um delito, mas sim de uma situação do dia-a-dia.
79
Considerava-se perempta a perda do direito de praticar uma ação pela perda de um prazo
definido e definitivo, portanto, improrrogável.
80
Considera-se não-condenação a sentença que não prescrevia o encarceramento do réu.
140
Para os casos de injúria
81
, a composição percentual das sentenças apresentou-se
também bastante diversificada. Constatou-se que 14 casos foram julgados pelo Juízo
de Direito, 16 pelo de Polícia e 4 pelo Juízo Municipal. O gráfico a seguir informa a
cota de cada sentença.
GRÁFICO 12 – SENTENÇAS, INJÚRIA
Fonte: Fundo Polícia (1850-1872).
Para o total dos processos de injúria houve oito absolvições, configurando 25%. As
desistências
82
e as anulações correspondem a 18% e 15% do total, respectivamente.
Os episódios de perempção (3%) e improcedência (18%) somam 21% e as
condenações perfazem 6%. Agrupando-se os desfechos como no caso anterior, ter-
se-á um montante de 88,2% de não-condenação dos réus acusados de injúria. Tanto
nas sentenças de agressão física, quanto nas de injúria, observa-se um elevado índice
de não-condenação. Essa constatação pode sugerir que tais crimes não fossem
considerados de muita gravidade e, talvez por isso, não se tornassem objeto preciso
81
Tanto para a composição do gráfico de sentença de agressão física quando para o de injúria
consideraram-se todas as freguesias em conjunto.
82
A desistência ocorria quando o queixoso/autor da ação criminal era um particular e decidia
desistir da causa, perdoando o réu.
141
das autoridades correcionais e judiciárias. As agressões e a troca de adjetivos
insultantes provavelmente também não eram compreendidas como delitos de grande
monta, porque os depoimentos das testemunhas e informantes aparecem mais
espontaneamente do que aqueles transcritos nos autos de assassinato, por exemplo.
Era prática comum entre os depoentes inquiridos pelas autoridades processuais fazer
de tudo para não se verem envolvidos com a Justiça. Por outro lado, nos autos
criminais analisados nesta dissertação, nota-se certa criatividade nas narrativas dos
depoimentos, provavelmente pelo menor risco da contenda litigada. Farge (1994, p.
10-31) constatara que na Paris setecentista as palavras emanadas do povo eram
temidas pela monarquia de Luís XIV ao ponto de ser determinada às autoridades
policiais a observação constante da vida das pessoas, em suas atividades mais
comezinhas. Parafraseando a historiadora francesa, o receio das autoridades
parisienses advinha da capacidade instigante da boataria: “[...] words caught in flight”
(FARGE, 1994, p. 33).
Um dos fatores que motivava a não-condenação do acusado era a desistência do
queixoso. Nos crimes de injúria pesquisados não foi incomum not² renúncia da
causa criminal por parte do queixoso, mediante um pedido público de desculpas ou a
reparação do mal causado. Constituindo-se um crime particular, a desistência por
parte do autor gerava, por conseqüência, a extinção do processo, pois a Justiça
Pública não era autorizada a mover uma causa dessa natureza, a não ser nas
ocasiões excepcionais já aferidas.
3.3 CONCLUSÃO
Os autos criminais são permeados de trajetórias individuais de vida que se cruzavam
nas vizinhanças das freguesias capixabas até que certo dia tinha lugar uma desordem,
provocada pela esgarçadura da convivência informal. Nesse instante, nascia uma
nova trajetória, a história das bulhas, que reunia muitos atores sociais, espectadores,
que tentavam decidir em qual narrativa acreditar. Se as diversas versões para tais
episódios contadas pelas testemunhas, timas, réus e informantes são verdadeiras
não se pode afirmar. Cumpre-se aqui apenas um papel mais singelo de lhes emprestar
voz, reconstruindo um enredo para os depoimentos às vezes desconexos e trazendo à
luz da investigação histórica uma urdidura bem amarrada e multicolorida, que
entremeava pessoas de diferentes status sociais e sexos, idades e nacionalidades.
Nota-se, pela análise quantitativa, que a maioria dos conflitos judicializados envolveu
homens, mas a participação feminina, em menor incidência, apresentará – na próxima
142
seção – importância qualitativa. As porcentagens de não condenação parecem sugerir
alguns traços do código informal de convivência desses moradores, preocupando-se
mais com a manutenção do equilíbrio das relações de amizade e afeto do que com a
obediência às leis. Isso fica mais evidente nas bulhas que envolviam autoridades
policiais e inspetores de quarteirão.
A seção adiante será destinada à narrativa desses momentos de vida de indivíduos
muito próximos, familiares, mas geralmente vizinhos e colegas de trabalho que, por
conviverem estreitamente, se renderam à atração das pequenas formas de
desentendimento, como as fofocas, as brigas e desordens.
143
4 CENAS DE SOCIABILIDADE
83
Os episódios narrados a seguir foram selecionados dentre o total de autos criminais
analisados nesta dissertação. Uma estratégia adotada na etapa da investigação foi
subdividir os processos de acordo com o pano de fundo que desencadeou o conflito,
de maneira que foram eleitas algumas situações para facilitar a narrativa, quais foram:
conflitos entre familiares e vizinhos, cobrança de débitos, publicações particulares em
jornal e eleições políticas. Também se extraiu do corpo documental os registros em
que um das partes litigantes, ou ambas, era cativo ou preto e aqueles marcados pela
presença feminina. Por último, reuniu-se um grupo as bulhas ocorridas em ruas e
espaços de convivência da cidade de Vitória.
4.1 CASOS DE FAMÍLIA
Em certo dia de julho de 1855, Severiana Maria Albuquerque e seu filho Gonçalo
Pereira das Neves, ambos residentes na Freguesia de Queimado, travaram razões
com Antônio Faria de Oliveira Coutinho. Casado com uma das filhas de Severiana,
Oliveira Coutinho se indispôs com a sogra por querer reaver uma porção de canga
84
que havia guardado na casa da mesma. Era um dia ensolarado de sábado e, na
residência de Dona Severiana Maria Albuquerque encontravam-se parentes e
vizinhos. Todos se concentravam no terreiro, localizado nos fundos da propriedade e
perto do limoeiro ali plantado. Nesse dia ameno, Oliveira Coutinho pretendia ir ao
sertão a trabalho e mandara uma escrava de sua propriedade, chamada Amelina, até
à casa de Severiana com o objetivo de averiguar sobre a cangalha. De acordo com os
depoimentos das testemunhas, indivíduos próximos da família das vítimas, ao chegar
Amelina à procura das cangas, Dona Severiana desculpou-se dizendo que nada havia
escondido em sua casa. A escrava de Oliveira Coutinho pôs-se a caminhar novamente
pela travessia de terra que dava acesso à propriedade de seu senhor para lhe relatar o
que respondera a sogra.
Ao chegar à casa de Oliveira Coutinho, Amelina contou ao senhor não haver cangalha
alguma na casa de sua sogra. Desconfiado, pois estava certo de haver deixado a
cangalha para carregar um cavalo, decidiu ir ele próprio conversar com Dona
83
As seções seguintes foram inspiradas nos autos criminais do Fundo de Polícia – Série
Inquéritos – do APEES, entre os anos de 1850 e 1872.
84
Material feito de couro animal utilizado para transportar cargas em cavalos, burros ou bois.
144
Severiana. Parece que o trajeto de sua casa à de sua sogra o fez refletir sobre o
paradeiro das cangas, reforçando sua certeza. Não era ainda horário do almoço e
Oliveira Coutinho adentrava o terreiro da casa de Severiana, quando lhe perguntou
onde estava a cangalha. A mulher não gostou da maneira como o genro se comportou
perto dos familiares e amigos e o repreendeu. A partir desse momento, Coutinho ficou
mais intrigado e dirigiu-se à sogra com palavras indecentes e injuriosas, culminando
com uma bofetada no rosto de Severiana. Impactada pelo susto da bordoada que
levara na face, Dona Severiana pegou uma espada guardada na sala de casa para se
defender, mas foi logo surpreendida pelo genro, que lhe tomou a arma, e pegou a
sogra pelos cabelos, arrastando-a até o muro dos fundos da casa, próximo ao
limoeiro. Nessa ocasião, os parentes e agregados, atônitos com a situação,
começaram a gritar por socorro e um deles correu em direção à casa de Gonçalo
Pereira, que distava poucos metros dali. Logo em seguida, Gonçalo apareceu armado
com uma espingarda para defender Dona Severiana. Quando viu o cunhado com a
arma na mão, Antônio voltou-se para Gonçalo e começaram nova desordem. Ao final
da comoção, Antônio tinha marcas de paulada na cabeça e Gonçalo duas facadas no
tórax.
Nas declarações do auto criminal consta que um indivíduo presenciou todo o conflito e
Gonçalo Pereira das Neves tentava chamá-lo a depor, pois, caso ouvido, poderia
esclarecer as dúvidas das autoridades. Tratava-se ele de Manoel, escravo de João
Pinto Ribeiro, vizinho das vítimas e do réu. Além de saber sobre a desordem, parece
que Manoel contou a outras pessoas sobre o litígio da família Albuquerque, porque
duas testemunhas tiveram ciência da bulha familiar por intermédio do cativo. O
escravo Manoel contava esse fato quando se embriagava nas lojas de bebidas da
Freguesia de Queimado. Com bastante dificuldade, Gonçalo Pereira das Neves
conseguiu que Manoel depusesse no caso como informante, que o senhor do
escravo não queria se envolver na vida dos vizinhos. Porém, isso parecia inevitável,
visto que Manoel era conhecido por toda a vizinhança e muito comunicativo, isto é,
falara já a quase todos sobre a briga de Oliveira Coutinho com Dona Severiana e
Gonçalo. Desse modo, ao ser inquirido pelo subdelegado, Manoel informou que
acompanhou toda a desordem e pediu para que Oliveira Coutinho tivesse compostura
e acabasse com aquilo. Não sendo ouvido, todavia, foi embora da casa de Dona
Severiana e ali não voltou. O desenlace do episódio foi que Oliveira Coutinho, após
ferir a sogra e o cunhado, disse a ambos que esquecessem do ocorrido, pois a
amizade continuava.
145
Não obstante a confissão em dois interrogatórios e os depoimentos das testemunhas e
do informante, confirmando as declarações do réu, Oliveira Coutinho foi absolvido pelo
Tribunal do Júri pela alegação de legítima defesa. Não podemos aferir os critérios que
os jurados usaram para responder positivamente à pergunta do juiz de direito: “o réu
cometeu o crime em defesa própria?”, mas é plausível supor que a população local da
Freguesia de Queimado e também de Vitória considerassem esse tipo de bulha
comum naquele período. Talvez a freqüência de conflitos de natureza similar
impedisse que Oliveira Coutinho fosse condenando, mesmo tendo atingido duas
facadas no corpo do cunhado.
O desentendimento entre cunhados também foi causa dos ferimentos perpetrados em
José Pinto Ribeiro por João Pinto Ribeiro. Passados alguns anos, de 1855 a 1864,
João mudara o local de sua residência, indo de Queimado para a Freguesia de
Cariacica. Havia pelo menos cinco anos que João residia no morro de Roda D’água.
Se anteriormente ele procurara subterfúgios para impedir a participação de seu cativo
Manoel no caso de Oliveira Coutinho, em 29 de agosto de 1864 não havia pretextos
que o afastassem das barras dos tribunais.
No auto criminal instaurado ex-officio contra João Pinto Ribeiro pela acusação de
ofender fisicamente José Pinto Ribeiro, cunhado do réu, as primeiras declarações do
ofendido foram dadas em sua própria casa, em função da debilidade de seu estado de
saúde. O exame de corpo de delito e o juramento dos peritos notificados (não
profissionais) e das testemunhas chamadas pelo delegado ocorreram junto ao leito do
enfermo. Nesse instante, soube-se da versão da vítima, que declarou ter sido atacada
violentamente por João em madrugada de sábado para domingo, no morro de Roda
D’água, onde residiam.
De acordo com o depoimento de José Pinto Ribeiro, passava de meia noite e a
escuridão permitia somente que vaga-lumes e outros insetos espreitassem as ladeiras
de Roda D’água. José e sua esposa Maria Pinto da Conceição se encontravam
agasalhados e deitados quando ouviram uma voz gritar por duas vezes: “cunhado,
cunhado!” Reconhecendo ser João a gritar, José indagou-lhe que novidades trazia
debaixo, isto é, da região plana situada abaixo do morro Roda D’água. Levantando-se
da cama, José caminhou até a porta de sua residência, pois seu cunhado queria falar-
lhe. Ao sair de casa, surpreendeu-se com uma facada dada por João e começou a
correr, tentando se afastar do ofensor. A redondeza estava erma e escura, contando
apenas com o brilho do luar para guiar seus passos apressados. Contudo, a poucos
metros do quintal de sua casa, José veio a cair sobre uma pedra e levar outros golpes
de facão, não tendo condições de resistir às investidas de João Pinto Ribeiro.
146
Questionado sobre sua amizade com o agressor, José foi enfático em declarar que
mantinha bom convívio com o cunhado, sendo amigos próximos. O que então
desencadeara a ira de João para atacar José com tanta violência se ambos cultivavam
profunda amizade entre si? Os depoimentos das testemunhas são comuns em
confirmar as alegações do ofendido, pois como o fato criminoso ocorreu quando
muitos se encontravam recolhidos em seus lares, os depoentes repetiram em seus
depoimentos o que lhes contou a vítima. Não neste processo criminal, indivíduo
que tenha presenciado o delito, exceto Maria, companheira de José, Em seu
depoimento, informou ela que após investir contra José, seu cunhado despediu-se da
vítima estendida sobre os pedregulhos com as seguintes palavras: assim que se
ensina homem!” Isoladamente, essa frase insinua algum tipo de lição que João
procurou infligir a José, suspeita alimentada pelas afirmações dadas pelo réu em
interrogatório no Tribunal do Júri. Indagado sobre os ferimentos sofridos pelo ofendido,
João contestou a autoria do crime e alegou em sua defesa que certa noite foram ele e
José à venda de Antônio Pereira, localizada na descida do morro de Roda D’água,
comprar duas garrafas de cachaça. Subindo o morro em direção à casa de residência
de cada um, João alegou ter sido convidado a tocar guitarra na casa de José, o que
aceitou. chegando, começaram a beber cachaça e João pegou a guitarra nos
braços e passou a afinar suas cordas. Após algum tempo e um punhado de músicas,
uma garrafa inteira de cachaça havia se acabado. Nesse ínterim, Maria escondera a
outra garrafa para implicar com os dois bêbados, gerando pequena altercação entre
José e João, pois José acreditou que João tivesse lhe subtraído a garrafa para levá-la
embora consigo. Mesmo após insistir que não escondera a cachaça, José não
acreditou, até que Maria veio da cozinha risonha, com a garrafa na mão, e puseram-se
a dar gargalhadas, José e a esposa. No auge do riso, José deu uma bofetada no rosto
de João. Insatisfeito com a agressão, João se retirou da casa do cunhado, passando
José a ofendê-lo por não aceitar a brincadeira. fora da residência de José, João
continuou a receber insultos e safanões do cunhado, até que decidiu correr para fugir
dos objetos que lhe eram atirados em sua direção. Toda essa bebedeira teve lugar na
casa de José e na rua, já passada a meia noite.
Não obstante o silêncio em torno do dia em que ocorrera o episódio narrado no
interrogatório do acusado, é possível inferir que tivesse acontecido recentemente e
que fosse a causa da cólera de João em relação ao cunhado. Tal opinião é
corroborada por uma das respostas dos jurados quando da seção do Tribunal do Júri.
Ao serem indagados se havia algum atenuante em favor do réu, eles responderam
positivamente, o § do artigo 18 do Código Criminal que diz: “Ter o delinqüente
147
cometido o crime em estado de embriaguez” (TINÔCO, 2003, p. 51). Assim, se o réu
informou oficialmente que estava fora de seu jzo perfeito (bêbado) no dia em que se
diz ter ocorrido o crime, talvez se encontrasse a ligação entre a bulha descrita por
João no interrogatório e as cutiladas dadas na tima. Sentindo-se ofendido pelo modo
como fora tratado em casa do irmão de sua esposa, João decidiu retorquir à
despedida violenta com uma reparação da ofensa moral que sofrera. Além de
desacreditar a pessoa do réu, José Ribeiro, mesmo depois de ver quem havia
escondido a garrafa de cachaça continuou a provocar o cunhado, deixando-o
constrangido. Os sentimentos nutridos nesse dia de farra e alimentados pela
alucinação provocada pelo álcool tornaram-se evidentes na madrugada em que João
retornou à casa de José e lhe descarregou os golpes já mencionados.
Contrariamente à sentença proferida pelo Tribunal do Júri no caso de Oliveira
Coutinho, João Pinto Ribeiro foi condenado como incurso na penalidade máxima do
artigo 201 do Código Criminal, isto é, a um ano de prisão e multa correspondente à
metade do tempo, assim como a pagar as custas processuais. A condenação do
acusado parece ter sido decorrente dos condicionantes do delito impetrado contra
José Pinto Ribeiro, uma vez que o evento delituoso ocorrera de madrugada, com
surpresa e sem condição de defesa para a vítima.
O morro de Roda D’água figurou, da mesma maneira, como cenário da briga havida
entre Joaquim, escravo de Manoel Ferreira de Athaíde, e Dionísio Gonçalves de
Athaíde. Aos 14 dias do mês de outubro de 1854, Joaquim, ainda cativo de Manoel
Ferreira, teve altercações verbais seguidas de agressão com o esposo de sua mãe,
Sebastiana Pinto da Conceição. O processo foi instaurado somente em 2 de janeiro de
1855, provavelmente após Joaquim ser alforriado. As primeiras peças do auto criminal,
quais sejam, os exames de corpo de delito, os autos de perguntas, foram
confeccionadas de outubro a dezembro de 1854, época do delito. Dessa forma, consta
no processo apenas uma vítima, mas cujo status social diferia da data da agressão
física ao tempo do início da causa judicial.
De acordo com a participação, enviada em 19 de outubro de 1854, pelo inspetor do
quarteirão de Cariacica, senhor Joaquim dos Santos Braga e Almeida, havia certa
dúvida na identificação de Joaquim, se era ele filho ou escravo de Manoel Ferreira de
Athaíde. No primeiro exame de corpo de delito feito na pessoa do então escravo
Joaquim, em 20 de outubro de 1854, assinalaram os peritos seis feridas de espada,
sendo uma delas bem profunda, localizada na mão esquerda. Nessa oportunidade,
queixou-se o ofendido de Dionísio Gonçalves de Athaíde. Pedido para relatar como
ocorreram os ferimentos, Joaquim contou ao subdelegado de polícia que sábado, dia
148
14 de outubro do referido ano, no início da tarde, estava ele trabalhando na roça
quando foi noticiado que sua mãe, Sebastiana, houvera sido espancada pelo marido,
padrasto do queixoso. Desejosa de tratar a saúde na casa de sua filha Dulcelinda,
Sebastiana mandou um recado para Joaquim solicitando que providenciasse uma rede
para transportá-la, pois não conseguia andar. Atendendo à requisição da mãe, o
Joaquim chamou em seu auxílio Francisco Bernardino e Benedito, cativo de José
Monteiro de Moraes, para a carregarem até a casa de Dulcelinda. Temendo encontrar-
se com seu padrasto, Joaquim decidiu marcar com Sebastiana e Dulcelinda no quintal
de um vizinho que residia ao do morro de Roda D’água, distante da casa onde
residia a mãe do queixoso. Assim que Sebastiana começou a descer o morro apoiada
nos braços da filha, o escravo Joaquim deu alguns passos para se aproximar.
Suspeitando da rapidez com que a filha de Dionísio e Sebastiana pretendeu retirar a
mãe da casa do pai, Dionísio Gonçalves de Athaíde chegou à porta de saída da
residência e avistou no final da ladeira três homens à espera de Sebastiana,
reconhecendo ser um deles seu enteado, Joaquim. Desistindo da licença que dera
para Sebastiana tratar a saúde, requereu que ela voltasse imediatamente para a casa
do esposo, ao que foi repreendido por Joaquim. Nesse momento, Dionísio armou-se
com uma espada e atacou Joaquim, que se defendeu com um porrete que trazia para
montar a rede.
No mesmo dia da agressão física, o inspetor do quarteirão de Roda D’água, Francisco
Ignácio Rodrigues, fez algumas perguntas à mãe de Joaquim, que se achava em casa
de Antônio Pereira de Queiroz. Instigada a responder se possuía queixas de seu
marido, Sebastiana declarou lamentar de fato “[...] sua pouca sorte e não de seu
marido [...]” e solicitou a Francisco Rodrigues que salvasse seu esposo, pois se ela
estava doente era devido à moléstia que Deus lhe dera. A afirmação de Sebastiana
sobre sua sorte indica sinais da relação que guardava com Dionísio Gonçalves.
Preliminarmente, pode-se divagar a respeito da subserviência da mãe de Joaquim. A
análise da contrariedade do libelo acusatório do réu, porém, indica um itinerário
diferente a seguir. Os dois primeiros itens do libelo de Dionísio Gonçalves de Athaíde
contra seu enteado caracterizavam o matrimônio do réu com Sebastiana. Desse
modo, Sebastiana era escrava, assim como Joaquim, e fora libertada pelo réu para se
casar com ele. A compra da alforria da mãe de Joaquim pressupunha nas
alegações de Dionísio ser evidência suficiente para provar que não agredia sua
esposa, pelo contrário, nutria muito amor e respeito por ela e seu filho. Do casamento
com Sebastiana nasceu a filha chamada Dulcelinda, que também discutia com o pai
acerca do tratamento que dispensava à Sebastiana. O relacionamento com o enteado,
149
tanto nas declarações de Joaquim, quanto nas do acusado, caracterizava-se por
discussões, brigas, e gritos. Dionísio Gonçalves afirmou que, apesar de ser esposo da
mãe de Joaquim, este nunca o respeitou, pelo contrário, insultava-o e provocava-o
publicamente.
Absolvido pelo Tribunal do Júri por considerarem os jurados que o réu apenas
defendeu a honra de sua autoridade como chefe de família, tendo sido previamente
ameaçado pelo autor da queixa. Dionísio e Sebastiana provavelmente continuaram
casados, e Joaquim, liberto desde janeiro de 1855, experimentava as primeiras
sensações de homem liberdade, pois pôde responder individualmente a uma ação
criminal, exclusividade de pessoas livres.
Interessante notar no episódio de Joaquim Ferreira do Nascimento, nome como
passou a ser conhecido o antigo escravo de Manoel Ferreira de Athaíde, que o
queixoso, desde as peças iniciais do auto criminal como no exame de corpo de delito,
assinava ora Joaquim, ora seu nome de liberto. Não é possível aferir se o antigo
cativo aprendera a ler e a escrever, mas sabe-se pelas assinaturas que ele se
esforçou bastante para aperfeiçoar seu autógrafo. Conforme atestado no primeiro
capítulo desta dissertação, o índice de analfabetismo alcançava o percentual de 90%
do total da população no Império. Essa taxa se mantém ao se analisar o
recenseamento da Província do Espírito Santo. Portanto, considero um achado
historiográfico o auto criminal de Joaquim do Nascimento, pois esclarece que, pelo
menos ainda quando escravo, já sabia escrever o próprio nome. As imagens a seguir
são digitalizações do processo em tela e atestam o autógrafo do autor em diferentes
fases da ação judicial.
150
Auto de corpo de delito, assinatura de
Joaquim, 15 de outubro de 1854
Transcrição do trecho: “E por nada mais
ter a responder do que lhe fosse
perguntado mandou o dito subdelegado
fazer este auto em que assinou com os
peritos e o queixoso e as testemunhas
presentes. E eu José Pinto Cardoso
escrivão que o escrevi e assinei”. José
Joaquim Pereira Lima (subdelegado);
Alexandre Pereira Pinto e Ricardo Pinto da
Silva Queiroz (peritos notificados); Manoel
da Costa Sarmento (testemunha).
Assinatura de Joaquim no auto de corpo
de delito em 20 de outubro de 1854
Transcrição do trecho: “E por nada mais
tinha a dizer o dito ferido mandou o dito
subdelegado fazer este auto que assinou
com os peritos e o ferido. Eu Manoel de
Siqueira Coitinho, escrivão que escrevi e
assinei”. Fernando Antonio Ferreira
Castello (subdelegado); Manoel Serafim
Ferreira Rangel e Joaquim dos Santos
Braga e Almeida (peritos notificados);
Joaquim (vítima e queixoso no processo).
Assinatura de Joaquim Ferreira do
Nascimento no interrogatório do réu em 18
de dezembro de 1854
151
Assinatura de Joaquim Ferreira do
Nascimento na petição de queixa, em 12
de janeiro de 1855
Assinatura de Joaquim Ferreira do
Nascimento no termo de juramento do
queixoso, em 7 de fevereiro de 1855
Quadro 5 - Autos criminais, assinatura de Joaquim Ferreira do Nascimento, 1854
Fonte: Fundo Polícia (1850-1872).
4.2 VIZINHOS E VIGIAS
As bulhas entre membros de uma família ocorreram por vezes movidas pelo excesso
de intimidade que regrava as sociabilidades dos indivíduos aparentados. A
exacerbação da pessoalidade no trato cotidiano com outros indivíduos era verificável,
da mesma maneira, nos contatos entre vizinhos. A convivência diária imprimia em
cada pessoa a sensação de ser sua vida particular reconhecida pelo olhar do morador
da casa ao lado e vice-versa, tornando-a passível de atentados violentos, como a
intriga, a exposição pública, a injúria e, no limite, os ataques físicos.
No início de abril de 1861, Francisco Vieira de Farias e Antônio Ribeiro da Silva,
vizinhos em um morro do Distrito de Cariacica, travaram uma contenda por causa de
vários pinhões plantados nas imediações da casa de morada de Farias. Passava das
onze horas da manhã e Francisco V. de Farias se preparava para retornar da lavoura
para o almoço. Próximo do meio-dia avistava ele o telhado de sua residência e a
sensação de fome parecia só aumentar. Quando virou a esquina do muro de sua casa
que dava acesso à porta da entrada, Francisco Vieira de Farias avistou um moleque
denominado Manoel, metade livre, metade escravo
85
, cortando alguns pinhões
plantados à margem da cerca de madeira que circundava o quintal de Farias.
Advertindo-o, Francisco tirou dos braços do meio-cativo os frutos já cortados e os
85
Um indivíduo era considerado metade livre, metade escravo quando o proprietário tivesse
dado a carta de alforria a apenas metade dele, isto é, deixando-o condicionado ao cativeiro até
que se cumprissem algumas exigências, como, por exemplo, permanecer cuidando do senhor
e/ou senhora até a morte dos mesmos. Após o falecimento dos proprietários o escravo seria
totalmente livre.
152
colocou sobre o chão da entrada da casa. Nesse instante veio Emiliano, filho de
Antônio Ribeiro da Silva, a cuja ordem se encontrava o moleque. Armado com uma
faca e uma foice, provavelmente para a extração de pinhões, Emiliano ameaçou
atacar Francisco, que se esquivou com o pau que trazia da roça para se defender de
animais. Temendo por sua vida, Francisco Vieira de Farias clamou por socorro, no que
foi acudido por Antônio, escravo de sua propriedade. Em meio à luta com o escravo
Antônio, Emiliano gritou por seu pai, que veio em seu auxílio com João, escravo de
Francisco de Farias.
Terminada a desordem, encontrava-se Antônio, escravo de Farias, bastante
ensangüentado e prostrado na terra, ferido na cabeça, nos braços e no abdômen. O
senhor de Antônio, por seu turno, escondeu-se em sua casa para não levar mais
golpes de facão e grapuá
86
. O processo instaurado contra Antônio Ribeiro da Silva,
Emiliano e o escravo de Francisco de Farias, João, foi iniciado por queixa dada pelo
próprio Farias, que temia a morte do cativo Antônio, abatido durante os ataques. No
texto da petição de queixa identifica-se um agravante da tensão da convivência entre
as famílias Farias e Silva: a esposa de Francisco Vieira havia deixado o lar para viver
como concubina do réu, Antônio da Silva, e vários escravos do mesmo Farias tamm
tenderam a preferir a vida na companhia dos Silva, em demérito do queixoso. O
escravo João era um exemplo disso.
Diante da declaração oficializada na queixa dada por Francisco, é lícito supor que a
indisposição gerada pelo corte dos pinhões plantados na casa de Farias talvez
tivesse agravado a situação desconfortável vivenciada pelo queixoso, pois além de
perder a esposa, sentia-se lesado materialmente pelos cativos que fugiam para a casa
de Silva. Os pinhões, logo, apenas canalizaram os sentimentos de derrota e desprezo
experimentados por Francisco de Farias, de modo que projetaram a situação perfeita
para o acerto de contas entre ele e Antônio Ribeiro da Silva.
Instabilidade similar provocada pela esgarçadura da sociabilidade vicinal é passível de
observação no dia-a-dia amigável da vizinhança moradora na Rua da Vargem
87
,
86
Espécie de lâmina com cabo, utilizada para cortar plantas.
87
No livro de Elmo Elton (1999, p. 98), Logradouros antigos de Vitória, a Rua da Vargem
recebe a denominação de Rua da Várzea. A planta da cidade de Vitória projetada para o final
do Dezenove, confeccionada por André Carloni, apresenta denominação divergente.
Combinando as informações de Elmo Elton com as descrições dessa rua nos autos criminais
do segundo quartel do século XIX e com a planta n. 4 preferiu-se usar a nomenclatura Rua da
Vargem, em função das inúmeras referências nos diplomas judiciários e de André Carloni,
autor da planta n. 4, ter residido durante quase toda sua vida nessa rua. Atualmente, a Rua da
Vargem é conhecida como Rua Sete de Setembro, tendo recebido esse nome em 1922, devido
ao aniversário da Independência do Brasil.
153
situada na capital da Província do Espírito Santo, em Vitória. De acordo com a Planta
Geral da Cidade de Vitória (ver planta 4 em anexo), datada da segunda metade do
século XX, a Rua da Vargem (ou Várzea) iniciava-se na Prainha, braço de mar que
adentrava a Ilha de Vitória no Largo da Conceição
88
, estendendo-se até o cruzamento
dessa artéria com a Rua Coronel Monjardim
89
. De um lado da rua estava o Pelame
90
,
juntamente com o morro de São Francisco e, de outro, o morro de Bastos. Embora
cortasse a Ilha desde a sua barra até quase à Fonte Grande, apenas a parte mais alta
da rua era habitada, a partir da ponte que ligava essa via de comunicação à Rua do
Rosário. Todo o restante do caminho era tomado pelas águas do mar e da chuva, que
alagavam a rua, transitável apenas pelas pontes.
Residentes na Rua da Vargem no mínimo dez anos, os capitães Serafim José dos
Anjos Vieira e Emílio João Valdetaro viviam em harmonia desde 1845. Em fins do ano
de 1857, porém, a cordialidade entre os vizinhos começou a fenecer, pois Valdetaro se
envolveu com Florinda de Tal, conhecida na vizinhança do quarteirão como prostituta.
O auto criminal que narra a discórdia entre os capitães remonta a março de 1858, data
do último desentendimento dos vizinhos. Em carta endereçada ao chefe de polícia da
cidade de Vitória, o capitão Emílio João Valdetaro queixava-se de Serafim José dos
Anjos Vieira por tê-lo injuriado, chamando-o de ladrão, bêbado, e prometendo meter o
vergalho no queixoso. Contou mais o autor, que Serafim era conhecido no quarteirão
por seu comportamento ranzinza e difamador. Da janela e da varanda da residência
do réu, ele intrometia-se na vida das pessoas que transitavam pela Rua da Vargem, a
única via de ligação de Serafim com o mundo exterior, pois passava ele boa parte do
tempo em reclusão devido a sua idade avançada, 72 anos.
88
Antes de ter essa denominação, toda a região abarcada pelo Largo da Conceição era
conhecida por Prainha. Os braços de mar que originavam essa praia entravam na Ilha de
Vitória pelas Ruas do Oriente, General Câmara e São Manoel, mantendo o Largo quase
tomado pela água salobra. Desde meados de 1860, havia ali um chafariz com duas torneiras,
próprias para o consumo doméstico. No final do Oitocentos, o Largo da Conceição recebeu os
primeiros aterros, que viabilizaram a construção do Teatro Melpômene (ELTON, 1999, p. 72).
89
No início do Oitocentos, a Rua Coronel Monjardim era conhecida pela população de Vitória
como Rua da Capelinha, porque ali se situava a capela da Ordem Terceira do Carmo. A
extensão da rua ia desde a ladeira do Convento de São Francisco até a Fonte Grande. A
homenagem ao coronel é devido ao fato de nesse caminho ter existido, no final do Setecentos,
um palácio de residência dos capitães-mor, dentre eles, o coronel José Francisco de Andrade e
Almeida Monjardim (ELTON, 1999, p. 91).
90
O nome Pelame relaciona-se a um charco, que funcionava como curtume, localizado entre
as Ruas Dr. Azambuja (antiga Ladeira do Convento do Carmo) e Professor Baltazar (antiga
Ladeira da Rua da Vargem). O melhoramento do curtume foi executado pelo coronel José
Francisco de Andrade e Almeida Monjardim, quando assumiu a presidência da Província em
março de 1858 (ELTON, 1999, p. 77).
154
No dia da primeira audiência da ação criminal foi lida a petição de queixa e dada a
palavra ao réu para se defender. Pelo réu foi contestada a matéria da queixa do autor
e narrados os episódios que marcavam os dissídios entre os ex-amigos.
Sumariamente, Vieira descreveu como era o relacionamento dele com o queixoso
antes do ocorrido em março de 1858. Guardavam ambos cordial amizade e passavam
longas horas a conversar sobre assuntos variados, durante o dia ou mesmo à noite,
que meavam a cerca dos fundos das casas de cada um. Ressalta-se o fato de Serafim
não apreciar sair de sua residência, preferindo o aconchego do lar, e, devido ao
queixoso ser funcionário da alfândega, este se comprometia em ser o “noveleiro” do
réu, contando-lhe as notícias mais recentes da cidade e as novidades trazidas pelas
embarcações que atracavam nos cais da Ilha. Além de dividirem o cercado de madeira
e palha que repartia os quintais das moradias, os capitães também compartilhavam a
criação de marrecos. Uma vez ao mês, os dois se reuniam nos quintais para contar os
ovos e distribuí-los igualmente.
A primeira desavença havida entre Serafim e Emílio decorreu da criação de marrecos
que eles conjugavam. O segundo achava que o segundo lhe surrupiara alguns ovos,
enquanto Serafim respondera que a culpada era uma criada do queixoso, que pegara
os ovos de propósito para aproveitá-los.
Serafim considerava, ainda, que as desconfianças de capitão Emílio eram alimentadas
por uma mulher que residia na companhia do queixoso, a qual esse último chamava
de “Minha Flor”. Os ânimos parecem ter se aguçado no natal de 1857, ocasião em
que um caboclo, residente na casa do queixoso, saiu para brincar com outros rapazes
na Rua da Vargem. Desgostoso com a algazarra dos meninos, Serafim gritou da
varanda de seu quarto para voltarem aos lares, e os adolescentes logo se retiraram.
Aproveitando o ensejo, o réu disse ao caboclo que limpasse o rego, pois para a casa
dele vinham as imundícies da casa do queixoso. Ao entrar na casa de Emílio, o
caboclo contou a “Minha Flor” a conversa que tivera com o vizinho. Irritada com a
intromissão de Serafim, a mulher dirigiu-se aos fundos da casa e começou a gritar ao
caboclo para voltar à rua e brincar com os amigos, ao passo que Serafim devia
arranjar uma ocupação ao invés de se intrometer na vida dos vizinhos. E sobre a
limpeza do rego, ela advertiu ao réu que passaria a mantê-lo sempre bem sujo, dessa
forma quando chovesse todos os dejetos seriam levados pela água da chuva até o
quintal dele. Como resposta a isso, Serafim esclareceu que não dava satisfações a
prostitutas. Ao ouvir o qualificativo a ela dirigido, “Minha Flor” iniciou um atropelo de
injúrias e xingamentos contra o réu e uma filha dele, que “[...] treze anos vivia sob
155
os auspícios da loucura”. Retorquiu Serafim dizendo que à família dele não cabia a
carapuça, mas sim ao queixoso, que no momento estava na alfândega, trabalhando.
Por volta das sete horas da noite, as ruas encontravam-se sombreadas por uma
penumbra que turvava o caminho dos pedestres. Os poucos lampiões distribuídos
pelos edifícios da administração provincial e municipal estorvavam o trânsito tranqüilo
dos transeuntes, temerosos em tropeçar nos pedregulhos que formavam a cobertura
dos caminhos e em cair sobre as enormes poças de água, vestígios das chuvas de
dias anteriores e do mar que atravessava a cidade de Vitória. Para o capitão Emilio
chegar à sua casa havia duas possibilidades: seguir pela Rua da Alfândega até a Rua
da Matriz, subir a Ladeira Dr. Baltazar e atravessar uma pequena ponte que dava
acesso à Rua da Vargem. Alternativamente, ele poderia preferir caminhar por toda a
Rua da Alfândega, atravessar a Rua Pereira Pinto e a ponte que terminava na Rua do
Rosário, para daí em diante subir em direção à parte de relevo mais elevado da Ilha,
onde finalmente atravessaria uma ponte para chegar à rua de sua residência.
Ao chegar em casa, Valdetaro soube da altercação que “Minha Flor” tivera com o
vizinho deles, capitão Serafim. Segundo declaração do réu, o capitão Emílio
aparentava estar tão apaixonado por sua companheira que até se ela o mandasse
pular da janela de casa ele o faria. Irritado com as injúrias proferidas contra “Minha
Flor”, Emilio começou a gritar no quintal, destratando o réu. Se para os envolvidos
parecia não haver como piorar a indisposição promovida pelos vizinhos, foi uma
surpresa quando em de março de 1858 apareceram vários pedaços de madeira do
muro da casa do queixoso com o cipó cortado. Nesse dia “Minha Flor” levantou-se
bem cedo, horário em que apenas se ouvia o barulho do braço de mar bater nas
pedras que bloqueavam o avanço das águas pelas ruas de Vitória, e assim que saiu
para o quintal avistou parte do muro desfeito, como se, de propósito, tivessem-no
destruído. Consoante Serafim, Florinda de Tal (como a vizinhança chamava “Minha
Flor”) e outros homens, “[...] que pela incontinência e imoralidade do queixoso
costumavam freqüentar a casa a qualquer hora do dia e da noite [...]” desconfiados da
autoria do desembaraço dos cipós, dirigiram várias injúrias contra o queixoso, que se
manteve quieto. Finalmente, o conflito objeto da queixa teve lugar em dia de quinta-
feira, 4 de março de 1858. Era um dia claro e quente, tinha-se a impressão de que a
qualquer momento choveria tamanha a sensação de calor. Aproximava-se o horário do
almoço e tanto em casa de Serafim, quanto na de Emilio já era possível sentir o aroma
das panelas no fogo. No quintal de Serafim estava uma criada a vigiar uma porção de
açúcar que secava ao calor, quando subitamente atravessou o jardim um cachorrinho
de propriedade de Florinda de Tal. Segundo as testemunhas de acusação, o capitão
156
Serafim bateu no cão e o animal começou a latir. O capitão aposentado, de sua parte,
afirmou que os latidos se iniciaram porque o cão se assustou com os gritos de sua
criada. De todo modo, fato é que Florinda de Tal, escutando os latidos do cão passou
a dirigir palavras injuriosas ao réu. Em resposta, Serafim veio até à varanda de seu
quarto e pediu que ela se contivesse, visto que passava dos limites.
O enredo narrado propiciou aos litigantes mencionados no auto criminal a
exacerbação das emoções, culminando com a troca de ofensas como xingamentos e
descomposturas. Para compor o rol de testemunhas do caso, foram intimados oito
moradores da Rua da Vargem, sendo dois empregados públicos, um artista, um
músico, um ferreiro, um oficial de justiça e duas costureiras. Importa salientar que
durante a inquirição das testemunhas de acusação, o réu contestou a todas, alegando
ter tido com elas desavenças ou com algum parente delas. Sobre a testemunha
Maria Ferreira da Conceição, Serafim afirmou ser ela mulher de vida pública, além de
amiga de Minha Flor”. Segundo o réu, essas mulheres eram conhecidas como Pães
de Sebo” pelas redondezas da Rua da Vargem, havendo dias em que se ajuntaram
em número de quatro ou cinco para fazer batuques e duetos na casa do queixoso.
Ao término dos procedimentos legais, decidiu o chefe de polícia, Tristão de Alencar
Araripe, pela assinatura de um termo de bem-viver entre o capitão Serafim José dos
Anjos Vieira e Florinda de Tal, por compreender não terem sido dirigidos insultos ao
queixoso, que estava ausente de casa, mas sim à “Minha Flor”. Seguramente, o réu e
Florinda assinaram o termo requerido, embora restem dúvidas quanto ao cumprimento
das cláusulas do acordo, haja vista o temperamento de cada um e o hábito de se
insultarem repetidamente. Assim, parece que o cotidiano da vizinhaa da Rua da
Vargem era constantemente apimentado pelas discussões e intrigas que aconteciam
nos fundos das propriedades dos capitães.
4.3 SENTINELAS CAPIXABAS: INJÚRIAS IMPRESSAS
91
As calúnias e difamações não eram exclusivas das brigas de vizinhos ou de entes
familiares. Comuns a partir de 1850, as cartas particulares eram publicadas nos jornais
locais com o objetivo de ampliar o universo de pessoas conhecedoras de determinado
acontecimento. Conforme discutido no primeiro capítulo, o Município de Vitória
91
O título “Sentinelas capixabas” faz referência aos autores anônimos das cartas publicadas no
jornal Correio da Victoria. Sob o véu do pseudônimo, os indivíduos atribuíam a si a tarefa de
opinar sobre o comportamento alheio, ainda que isso significasse invasão na vida privada
alheia.
157
guardava contornos geográficos bem delimitados e seu núcleo populacional centrava-
se em torno da capital. Nas freguesias mais ruralizadas, o convívio diário era
potencializado pela pessoalidade das relações. Na Freguesia de Nossa Senhora da
Vitória, por sua vez, a perspectiva mais urbana da vida forjava vizinhanças,
agrupamentos abstratos para o pesquisador, mas repletos de vida para os moradores
do lugar.
Na edição de 14 de abril de 1864 do jornal Monarchista, publicado na capital da
Província do Espírito Santo, apareceu um anúncio que reclamava a Luiz Edmond
Peyneau a quantia de 44$940 réis (quarenta e quatro mil e novecentos e quarenta
réis), a ser quitada na Rua da Mangueira, n. 2.
Temendo ser advertido pelos pais Joanna Peyneau e Pedro Estevão Peyneau, Luiz
Edmond decidiu ingressar em juízo contra o editor do jornal para que revelasse o autor
da correspondência. Manoel Antônio de Albuquerque Rosa, editor e proprietário do
jornal, foi à residência do chefe de polícia da cidade de Vitória e apresentou a carta
publicada em seu periódico com a assinatura original do autor, João Jacob Tesch.
Nascido na Alemanha e capixaba por opção, como se definia, Jacob foi citado para
comparecer ao juízo de polícia. chegando, Jacob confirmou ser o autor do anúncio
publicado em 14 de abril de 1864 e declarou que Luiz Edmond era seu devedor por
ter-lhe comprado a crédito diversas fazendas desde julho de 1862 até fevereiro de
1863, cujo montante somava o valor declarado no respectivo anúncio. Completou o
acusado que, com boas intenções, fiou as mercadorias ao queixoso, mas passados
alguns meses, tentou cobrar o débito a Edmond, não tendo obtido sucesso na
empreitada. A recusa do devedor prolongou-se até o ano de 1864, quando em março
Jacob mandou um caixeiro da sua casa de negócio, chamado Francisco, ao encontro
de Luiz Edmond com um crédito assinado pelo negociante a fim de que o devedor
também assinasse, comprometendo-se a pagar a quantia devida.
A nota promissória estendia por mais seis meses o prazo para a quitação dos 44$940
réis (quarenta e nove mil e novecentos e quarenta réis), mas Luiz Edmond recusou-se
a assinar, dizendo a Francisco que não pagaria, nem era tolo como seu irmão
Eduardo, que assinou documento semelhante. Diante dessa resposta, retornou o
caixeiro à loja de fazendas e roupas de seu patrão, localizada à Rua da Mangueira.
Jacob parece ter sido um comerciante conhecido pela população da cidade de Vitória.
Seu estabelecimento localizava-se em uma importante via de acesso às Ruas do
Comércio e Porto dos Padres, a Rua da Mangueira. Na Planta 4 (em anexo), essa rua
pode ser identificada em sua nomenclatura posterior, Rua de Março. Iniciando-se
158
na escadaria do Palácio Provincial, próximo ao chafariz do imperador, prolongava-se
até à Rua Porto dos Padres (atual General Osório). Configurava-se como uma artéria
de importante movimentação comercial, por estar próxima do cais do Imperador, local
de ancoragem de barcos e sumacas. Além disso, a casa de negócio de Jacob era
famosa pelo sortimento de suas mercadorias, que incluíam fazendas, chitas, fios de lã,
brim e chinelos.
Seguindo em direção à Santa Casa de Misericórdia, chegava-se à Rua Porto dos
Padres, local de moradia de Luiz Edmond Peyneau. Contígua à casa de residência da
família Peyneau, imigrante de França, situava-se também a Padaria Peyneau,
chefiada pelos pais de Luiz. De acordo com a lista dos moradores do 19º quarteirão da
cidade de Vitória, composto pela Rua Porto dos Padres, a família Peyneau foi
identificada, apresentando cada um dos indivíduos que residiam na casa dos
franceses. Em primeiro lugar vinha Pedro Estevão Peyneau, chefe da casa, casado,
vivia como proprietário de padaria, com renda de 600$000 réis. Em segundo, Dona
Joanna Peyneau, esposa de Pedro, dedicava-se aos serviços domésticos e auxiliava
na padaria. O casal possuía 3 filhos: o queixoso, João Eduardo e Maria Adelaide,
todos executantes de tarefas domésticas. Dentre os escravos que trabalhavam e
viviam sob as expensas dos Peyneau, havia Edvirges (alugada do Convento de Nossa
Senhora da Penha), Auta (alugada de Ayres Loureiro de Albuquerque Tovar), Isabel,
Paulina e Delfina, todas alugadas. Os outros agregados eram livres e homens, cujos
nomes eram: Miguel, Manoel, Adriano e Elias. Ressalta-se que os agregados cativos
eram do sexo feminino, enquanto os livres eram do sexo masculino. Factível é propor,
pois, a utilização das cativas alugadas para o exercício de atividades no ambiente
interno da padaria, como o preparo das massas e quitutes, a modelagem dos pães e
as fornalhas. Os homens, por seu turno, ficariam responsáveis pelo atendimento ao
público na padaria e pela venda ambulante de pãezinhos.
Uma das formas que Jacob encontrou para comprovar a leviandade de seu devedor
foi requerer ao delegado de polícia, Aureliano Manoel Nunes Pereira, um atestado de
conduta do queixoso e de Pedro Estevão Peyneau, pai de Edmond. Nas declarações
do delegado foi salientada a irregularidade do comportamento do queixoso, que
diversas vezes fora levado à polícia por descomposturas. Quanto ao pai do queixoso,
Aureliano Pereira declarou ser o mesmo mau vizinho e provocador.
Vizinhos de ruas, credor e devedor se encontravam diariamente, o que consternava
ainda mais Jacob por perceber que Luiz Edmond não honraria seus débitos. A única
saída pensada pelo primeiro seria constranger o segundo por intermédio de anúncio
em jornal rogando que pagasse a quantia devida. A lista dos débitos de Luiz Edmond
159
Peyneau relacionava o valor fiado à mercadoria correspondente. A tabela a seguir
indica os produtos adquiridos em venda à crédito pelo queixoso, cujos valores
tentavam ser resgatados pelo credor.
TABELA 7 - DÍVIDA DE LUIZ EDMOND PEYNEAU
Mês/Ano Item
Quantidade Descrição
Valor
(em réis)
Julho/1862 01 o mencionada Diversos objetos 9$000
Agosto/1862 02 14 Covados de chita 3$920
Agosto/1862 03 02 Camisas de meia 2$000
Janeiro/1863 04 01 Paletó de lona 7$500
Janeiro/1863 05 08 Varas de movim 3$200
Janeiro/1863 06 01 Par de chinelas 1$800
Fevereiro/1863
07 03 Covados de belbutina 3$000
Fevereiro/1863
08 04 Varas de ¼ de movim 1$260
Fevereiro/1863
09 01 Par de chinelas 1$800
Fevereiro/1863
10 26 Varas de fita de lã 4$160
Fevereiro/1863
11 01 Vara de brim alvejado $500
Fevereiro/1863
12 19 Varas de fita de vestido 1$140
Fevereiro/1863
13 01 Vara de merim $240
Fevereiro/1863
14 01 Chalé de lã 8$000
Fevereiro/1863
15 14 Covados de chita 13$920
Fevereiro/1863
16 01 Vidro de óleo 1$000
Fevereiro/1863
17 Não mencionada Dinheiro por conta 7$500
Fonte: Fundo Polícia (1850-1872).
160
Os produtos acima listados permitem aferir que as compras de Luiz Edmond
concentravam-se em artigos de vestuário e acessórios, como chinelos e fitas para
vestidos. Não se sabe se a lista está completa, mas como o pai dele era proprietário
de uma padaria, não parece crível que as aquisições de Luiz fossem destinadas ao
suprimento da loja de comércio. Possivelmente, tivessem sido utilizadas para costura
da indumentária da família ou mesmo para revenda. Certo é que Luiz Edmond, além
dos objetos relativos ao vestuário, contraiu empréstimo em dinheiro com Jacob.
Nas alegações de defesa de réu, disse ele ter se surpreendido com seu indiciamento,
pois era prática comum na cidade de Vitória os negociantes chamarem os devedores
pelo jornal para pagamento das dívidas, o que não poderia constituir crime algum.
Perguntado se sabia qual a circulação diária dos números do jornal Monarchista,
Jacob respondeu ser esse periódico distribuído para mais de uma centena de
assinantes, grande comerciantes da região. Parece difícil, portanto, que os pais de
Luiz Edmond não tivessem tido notícia do anúncio publicado contra o filho. A prática
de comprar fiado não se restringia a Edmond. Vimos que Luiz se recusou a assinar a
nota promissória, pois um irmão dele, de nome João Eduardo, assinara papel desse
tipo, tendo que pagar a dívida. Temeroso que a assinatura do documento o
comprometesse a pagar os débitos, Luiz Edmond rechaçou a proposta. Em sentença
proferida pelo Juízo de Polícia, o réu foi absolvido da acusação de injúria e condenado
o autor nas custas processuais. Não fica claro, contudo, se houve acordo para
quitação dos valores contraídos por Edmond a Jacob. De qualquer maneira, sabe-se
que a família Peyneau manteve-se residente à Rua Porto dos Padres, de sorte que
Jacob poderia refletir sobre novos estratagemas para reaver o dinheiro e sobre como
reatar os laços de boa convivência com os vizinhos franceses.
A publicação de cartas particulares nos jornais visava também à condenação pública
do comportamento de determinadas pessoas. Não era incomum encontrarem-se
anúncios cuja matéria relacionava-se ao modo como as autoridades policiais e
judiciais executavam suas atribuições. Esse foi, por exemplo, a motivação da queixa
impetrada por Vicente Ferreira de Amorim contra Manoel Francisco de Amorim.
Moradores na Freguesia de Cariacica, Vicente de Amorim era lavrador, assim como
Manoel Francisco, esse último sendo também 6º suplente do subdelegado de polícia.
O anúncio que levou o queixoso e o acusado às barras do tribunal discutia a postura
de Vicente Ferreira como subdelegado interino do Distrito de Cariacica por realizar
uma audiência na casa de um famoso desertor daquela área. Ao que parece, a
audiência teve lugar em moradia de Antônio, o desertor, porque sua concubina de
nome Alexandra era testemunha em processo contra um tal Inocêncio. Manoel
161
Francisco de Amorim, enquanto caminhava pelas trilhas tomadas pelo mato, escutou o
som da campainha que indicava a abertura de uma seção de audiência. Curioso para
saber de que delito se tratava, aproximou-se da entrada da casa do desertor e ouviu
serem pronunciadas as palavras “[...] quem tiver que requerer na audiência do senhor
subdelegado de polícia chegue que está aberta”. Após repetidas as palavras por três
vezes, Manoel Francisco teve certeza do que se tratava aquela reunião e entrou na
sala da residência. Ao se introduzir no recinto notou que havia número considerável de
espectadores, talvez movidos pela estranheza da conduta do subdelegado. Ao término
do anúncio publicado no Correio da Victoria Manoel Francisco de Amorim salienta que
nenhum morador de Cariacica mantinha relações de amizade ou mesmo de negócio
com Antônio, o desertor. A exceção era Vicente Ferreira de Amorim, que
comercializava com Antônio, freqüentava sua casa e saia para caçar com o mesmo.
Era compartilhada pela população da freguesia a crença de que não se deviam manter
relações sociais com o indivíduo em foco, sendo tampouco recomendável o uso da
residência do mesmo para um evento oficial.
4.4 NEGÓCIOS DE ESCRAVOS: DINHEIRO EMPRESTADO,
DINHEIRO COBRADO
Os cativos configuravam parte importante do cotidiano do município de Vitória.
Elemento de engrenagem das sociabilidades do lugar, esses indivíduos tomavam
ciência sobre os assuntos mais diversos possíveis, principalmente os que se
relacionavam às confusões e conversas vexatórias do dia-a-dia. A presença dos
homens e mulheres de cor era freqüente no município desde a virada do Setecentos
para o Oitocentos, quando a Vila de Vitória concentrou número significativo de
escravos, chegando a ser conhecida como vila negra (MERLO, 2003). O contingente
de almas na cidade tendeu à estabilidade até a década de 1830, quando houve
progressiva diminuição dos habitantes cativos. O fenômeno não parece ter trazido
abalo à estrutura da instituição escravista. Nota-se que no ano de 1856 a população
livre do Município de Vitória perfazia um montante de 9.436 indivíduos, enquanto os
cativos somavam 2.533 pessoas.
92
O índice abarcado estritamente pela capital da
Província correspondia a um terço do total de escravos contabilizados para toda a
municipalidade.
92
Ver capítulo primeiro desta dissertação.
162
Os casos de injúria e agressão física quantificados neste capítulo apresentam
narrativas de um cotidiano abalizado pela convivência irrestrita entre livre e não-livres.
De forma quase unânime, os cativos foram mencionados pela maioria dos depoentes
como os transmissores de novidades e intrigas sobre a vida da vizinhança. Em outras
palavras, para saber se algum murmurinho percorria apressadamente as bocas e os
ouvidos dos moradores dos quarteirões das freguesias capixabas, bastava indagar a
algum negro que estivesse perambulando na área. Para saber detalhes de alguma
desordem, era aconselhável perguntar aos moleques cativos mais jovens, pois eles
pareciam não sossegar as pernas nem ao dia nem à noite.
As sociabilidades proporcionadas por uma vida voltada para as ruas, cais e lojas de
comércio potencializavam o estreitamento de vínculos sociais e econômicos entre
escravos e livres pobres. De acordo com Denise Aparecida S. de Moura (1998), o
período de 1850 a 1888 foi marcado pelo alargamento da população livre pobre.
Independentemente de uma definição hermética desse conceito, os indivíduos
abarcados pela denominação “livre pobre” desenvolviam uma perspectiva diferente do
tempo, principalmente daquele dispensado nas atividades da lide. As relações de
trabalho e os acertos em torno dos contratos de parceria obedeciam a um tempo
diferentemente ritmado, que se adequava às situações extraordinárias e aquelas
previstas na tradição cultural de determinada cidade, como as procissões religiosas,
as festas, a pesca e a caça.
Em Saindo das sombras, Denise Soares de Moura (1998, p. 30) desperta no leitor o
questionamento: quem seriam, afinal, os livres pobres? Ciente da impossibilidade de
uma resposta completa, a estudiosa cita algumas profissões que prescindiam de uma
rotina cronometrada de trabalho. Carpinteiros, doceiras, lavadeiras, camaradas,
sapateiros e lavradores, todos se configuravam como personagens bem conhecidos
dos registros judiciais pesquisados nesta dissertação. A sociedade do Município de
Vitória compunha-se basicamente desses sujeitos investigados por Soares de Moura,
que se misturavam aos escravos da localidade e compunham um grupo fluido e em
contínua diversificação, incluindo diversos níveis de posses. Pobres livres e cativos
conviviam de forma contígua no modelar de sociabilidades ora dissonantes, ora
amigáveis. O estreitamento de nculos vicinais e de extensas redes de sociabilidade
apresentava-se como condição necessária para a sobrevivência nas províncias
(MOURA, 1998, p. 29-30). Nas fontes analisadas identificaram-se duas situações que
chamaram a atenção por envolverem empréstimo de dinheiro: os cativos e os homens
livres pobres e, obviamente, o conflito.
163
Assim, Laurentino, escravo do capitão Manoel Ferreira de Paiva, morava na
propriedade de seu senhor, localizada em Cariacica. O imóvel era conhecido pelos
residentes dos sítios vizinhos como Fazenda Arithoa. Praticamente todos os dias, de
segunda a sexta-feira, Laurentino saia da fazenda em direção à capital da Província
porque parte de seus negócios se concentravam em Vitória. A caminhada era longa e
desgastante e Laurentino gostava de chegar cedo à cidade. Para isso, deixava a
fazenda ainda de madrugada, tendo como companhia apenas a escuridão e a neblina.
Provavelmente, parte do trajeto percorrido por Laurentino era feito por canoa ou outro
tipo de transporte marítimo, pois a comunicação mais comum entre os moradores de
ambas as freguesias se fazia pelo canal localizado entre a Ilha do Príncipe e a Ilha das
Caieiras, até à outra margem, já em terras de Cariacica.
Em 14 de agosto do ano de 1859, Laurentino tinha importante visita a fazer na Rua
Porto dos Padres em Vitória (ver planta 4 no anexo C). Chegando à cidade pelas nove
horas da manhã o escravo preferiu o caminho mais próximo à quebrada das ondas da
maré na barra da Ilha, pois a rua localizada à beira-mar permitia-lhe sentir o odor da
maresia a preencher seus pulmões enquanto o brilho do sol nas águas do oceano
ofuscava-lhe os olhos.
O destino da visita de Laurentino era a casa de Maria Francisca de Jesus, esposa do
capitão José Thomas Villa Nova. As testemunhas juramentadas no caso afirmaram
terem ouvido a discussão havida entre Laurentino e Maria Francisca. O assunto dizia
respeito a certa quantia de dinheiro que um filho de Francisca devia ao escravo.
Pretendendo conversar com seu devedor, Laurentino se aproximou da porta da casa
de Maria Francisca e bateu palmas para ver se alguém respondia. Depois de várias
tentativas saiu à varanda da casa Dona Francisca, que vestia uma indumentária
própria para cuidar dos afazeres domésticos. Perguntado sobre o que fazia à porta de
sua casa, Laurentino informou à mãe de seu devedor que vinha cobrar ao filho de
Francisca a quantia de 12$000 mil réis, sendo que 10$000 mil réis haviam sido
furtados de uma caixinha de pecúlio que guardava o cativo e 2$000 mil réis decorriam
de um empréstimo que seu filho contraíra com Laurentino.
As vendas de óleos, azeites e farinha estavam de portas abertas pelo menos
duas horas e da casa de Maria Francisca era possível sentir o aroma do pão assado
nos fornos dos Peyneau. Várias autoridades também perambulavam pelas esquinas
da Rua Porto dos Padres, pois nela residiam o delegado de polícia Manoel do Coito
Teixeira, o subdelegado e o inspetor daquele quarteirão. A vida da rua já tomava seu
ritmo e de repente toda a atenção se voltava para a conversa estabelecida entre o
escravo e a esposa de Villa Nova. Envergonhada pela cobrança do cativo, Maria
164
Francisca pediu a Laurentino que se retirasse da casa dela, pois nada sabia sobre os
negócios de seus filhos. Além disso, informou que seu filho, cujo nome não foi
mencionado no auto, não se encontrava em casa, no que não acreditou Laurentino. As
respostas de Francisca demonstravam indisposição com o escravo, o qual decidiu por
fim averiguar de fato se o devedor estava ou o em casa. Ao adentrar a residência,
foi contido por Maria Francisca de Jesus que lhe disparou uma saraivada de ofensas.
Dentre os epítetos dirigidos a Laurentino constam aqueles em que se atribui péssimas
qualidades à mãe de outra pessoa e lugares para onde definitivamente não se quer ir.
Da janela de sua casa, João de Almeida Brandão e Sousa avistou a altercação
ocorrida entre o réu (Laurentino) e Francisca (vítima). Seu depoimento corroborou as
informações das demais testemunhas que inocentavam o réu de qualquer tipo de
atitude ofensiva. Por outro lado, averbavam o comportamento instável e agressivo da
mãe do devedor. Outra informação digna de destaque no caso de Laurentino foi a
defesa do curador dele. Atuando em prol da inocência de seu escravo, o capitão
Manoel Ferreira de Paiva contestava as acusações de Maria Francisca de Jesus,
informando que o cativo era conhecido por todos da vizinhança da Rua Porto dos
Padres por suas constantes visitas aos indivíduos com quem conservava relações de
negócio. Além disso, era de índole humilde e incapaz de afrontar qualquer pessoa,
ainda mais uma mulher! Sobre a discussão travada entre Laurentino e Francisca, o
capitão Paiva admitia ter conhecimento da poupança de seu escravo e que o pecúlio
provinha de biscates realizados esporadicamente. O curador do réu também não
admirava a atitude da pretensa insultada, pois assim agiam os maus pagadores,
quando se lhe rogavam aquilo que deviam restituir.
A atuação do senhor de Laurentino como seu curador no auto criminal corrobora a
tese da historiadora Adriana Pereira Campos (2003, p. 207) sobre a influência dos
senhores durante os procedimentos de defesa e acusação do processo. O expediente
mais utilizado pelos proprietários de escravos era a contratação de um bom advogado
ou curador, quando eles mesmos não assumiam essa função. Na ação criminal em
tela, aparecem evidências do cotidiano do réu que incluíam atividades com
remuneração destinadas a uma poupança, na forma de caixinha mencionada
anteriormente.
Curiosamente, no auto criminal em que foi réu Laurentino, a única informação que
possuímos acerca do devedor é que se tratava de um forro. Da mesma maneira, o
devedor era mencionado no texto da ação judicial sempre como filho de Maria
Francisca de Jesus e não como filho de Villa Nova, seu esposo. É lícito concluir,
assim, que Maria Francisca fosse ex-escrava, em razão da condição de
165
hereditariedade da escravidão. Como esclarece Adriana Campos, a designação ”forro”
indicava um escravo alforriado, sendo utilizada como critério de distinção social entre
as pessoas de cor: “Um preto alforriado deixava a posição de escravo e ‘ascendia’ à
posição de ‘forro’. O filho do preto ‘forro’ era agora um preto ou um ‘cabra’(CAMPOS,
2004, 85).
Outro caso envolvendo escravo e homem livre sucedeu em 21 de dezembro do ano de
1862. As discussões entre Claudino dos Santos e o africano Antônio Joaquim
evoluíram para um ataque físico em frente à casa de moradia do primeiro. Claudino
era pedreiro e tinha jornada flexível de trabalho. Quando o serviço agendado
necessitava de ajudantes, ele saia pela Rua do Piolho, local de sua residência, e
procurava por pretos escravos e forros que se dispusessem a labutar sob a orientação
dele. A Rua do Piolho caracterizava-se por ser uma artéria encurralada por um braço
de mar que subia pela Rua de Vargem, de um lado, e pela Igreja Matriz, de outro. Nos
tempos dos donatários, essa rua era tomada pelas águas oceânicas que avançavam
sobre as terras da Ilha. As constantes entradas do mar em direção às fissuras do
relevo da Ilha de Vitória proporcionaram a formação de uma angra, nas proximidades
da qual se erigiu o Forte São Diogo, no Setecentos (ELTON, 1999, p. 21). Nos últimos
anos do século dezenove, a Rua do Piolho passou a ser conhecida pela denominação
Rua 13 de Maio, em homenagem à data de abolição da escravatura no Brasil. Ao que
parece, na Rua do Piolho moraram muitas famílias de cor, razão provável da mudança
de nome da mesma. Na planta 4, a Rua do Piolho distava poucos metros da Rua da
Vargem.
Os vizinhos de Claudino dos Santos contaram ao subdelegado de polícia da capital
que a contenda entre ele e o escravo Antônio Joaquim se deu em conseqüência de
uma dívida contraída pelo primeiro junto ao segundo. E como o africano fora cobrar o
crédito na casa do devedor, certamente não fora bem recebido. Nas peças do
processo não constam as idades dos litigantes, mas se conhece do libelo acusatório
feito pelo promotor público da Comarca de Vitória que Antônio Joaquim era bem mais
velho do que Claudino.
Francisco Félix da Gândia, testemunha no caso, afirmou não ter sido a primeira vez
que o escravo Antônio Joaquim apanhava de Claudino. Toda vez que o africano
tentava receber as quantias que lhe eram devidas, descia correndo da Rua do Piolho
em sentido à Ladeira São Diogo, para fugir dos ataques enfurecidos do réu (Claudino).
Ao que parece, os débitos de Claudino dos Santos (ofensor) relacionavam-se a
biscates executados pelo escravo Antônio a pedido do devedor, além de dinheiro
avulso emprestado pela vítima. A última vez em que Antônio Joaquim apanhou foi em
166
dezembro de 1862, quando Claudino correra atrás dele pelas ruas da cidade até o
Largo da Conceição. A perseguição envolvendo os dois indivíduos certamente deixou
marcas de ferimentos em ambos, pois as ruas e ladeiras pelas quais se espreitaram
eram sinuosas e mal-revestidas. A cobertura das travessias era feita por pedras, com
tamanhos diferentes, que na pressa machucavam os pés de um transeunte distraído.
Comparativamente, as bulhas envolvendo os escravos Laurentino e Antônio Joaquim
indicaram alguns expedientes utilizados pelos moradores do município de Vitória para
reaver dinheiro emprestado, ou fazer um acerto de contas. Tanto no primeiro caso
quanto no segundo, os credores foram ao encontro de seus devedores na esperança
de recuperar o pecúlio cedido, ainda que não tenham lograram êxito. Ao contrário,
foram recebidos de maneira hostil e expulsos da frente da casa de Maria Francisca de
Jesus e de Claudino dos Santos. Salientou-se, desde o primeiro capítulo desta
dissertação, a sociabilidade peculiar que a espacialidade do município de Vitória
proporcionava aos capixabas nativos e adotados, porquanto os núcleos de povoação
centravam-se em determinadas áreas, abrindo fendas de vazios demográficos nos
cantões das terras da municipalidade. As pessoas deviam se conhecer ao menos
fisionomicamente, pois estavam sempre circulando de uma freguesia para outra. Um
acontecimento como o que tivera lugar entre os escravos mencionados era
considerado um verdadeiro prêmio para os vizinhos fofoqueiros. Rapidamente a
notícia se espalhava e incitava especulações em torno do fato. No auto criminal
iniciado por Luiz Edmond Peyneau, a vergonha pública se estabeleceu de outro modo:
pelo jornal. Membro de uma família de negociantes conhecida da população capixaba,
Edmond viu-se sem crédito na praça comercial da cidade, visto que a notícia de ser
mau pagador havia sido distribuída logo ao amanhecer pelos entregadores da folha
Monarchista. Assim, escravos e negociantes, cada um a sua maneira, forjaram formas
específicas de sociabilidades no tratar de assuntos econômicos. Independentemente
de terem recobrado o dinheiro emprestado, a cobrança surtiu efeito, positivo ou
negativo.
4.5 AS FLORES DA RUA
Nas páginas anteriores afirmou-se que os escravos conheciam detalhadamente a
rotina de muitos moradores do Município, principalmente dos indivíduos que residiam
na capital da Província. Impressiona o relato minucioso das bulhas e gritarias feito
pelos cativos, o que falar das mulheres capixabas, que se não trabalhavam fora de
casa, de lá mesmo tratavam de observar o mundo que enchia seus olhos, espreitando
167
da janela ou do sótão? As lavadeiras, engomadeiras e costureiras se misturavam às
outras pessoas no trânsito das ruas e estradas do município, e vislumbravam a Fo
caráter fugaz das sociabilidades desse ambiente, que ora envolvia discórdia, ora
ajustamento. As escravas também conservavam privilégios na convivência com a vida
da rua, tendo em vista as amizades constrdas à beira dos chafarizes e fontes de
Vitória, as relações de compadrio desenvolvidas no decorrer da contratação dos
serviços e os vínculos de dependência gerados a partir da incorporação de mais um
membro à família.
As desavenças escolhidas para a narrativa a seguir caracterizaram-se pelo
envolvimento de mulheres da época. Elas não desprezavam a singularidade das
sociabilidades dos espaços exteriores ao lar, tampouco compreenderam os conflitos
como um rompimento das redes de sociabilidade. Pareciam, com efeito, inseridas nas
engrenagens da trama social entrelaçada pelos atores do cenário maior chamado
Vitória.
O primeiro caso a ser debatido é o das escravas Albertina e Gertrudes. As agressões
físicas ocorreram sobre o chão pedregoso da Rua das Flores, próxima à Ladeira de
Maria Ortiz, antiga Ladeira do Pelourinho.
93
A Rua das Flores era famosa entre os
habitantes da cidade de Vitória, porque nela residira, entre o fim do Setecentos (1790)
e primeiras décadas do Oitocentos (até 1824), João Antônio Pientznauer e suas filhas.
Sabe-se por Elmo Elton (1999, p. 25) que a família de Pientznauer transferiu
residência para Campos dos Goitacazes poucos anos após a Independência por conta
de desavenças políticas em Vitória. Uma representação datada de 1811 fornece
indícios dessa desarmonia. Joaquim José Coutinho, morador da então Vila de Vitória,
empreendeu um abaixo-assinado contra a Pientznauer por o considerá-lo um monstro
sem caráter, responsável pela desonra e desgraça a que foram submetidos os
residentes da Vila.
No texto da representação destinada ao rei de Portugal foram apensados documentos
que pretendiam corroborar as acusações dadas pela “[...] nobreza e maior parte dos
habitantes da Vila”. Entre as informações anexadas consta certidão do vigário da
igreja matriz da Vila de Vitória, alegando que além de não ser homem público decente,
João Antônio Pientznauer era também mau chefe de família. Em dias de missa e
comemorações litúrgicas furtava-se de participar dos eventos e não incentivava esse
93
A mudança do nome da ladeira ocorreu nos últimos anos do Dezenove, em homenagem à
iniciativa de Maria Ortiz em defender a Vila de Vitória contra os piratas holandeses. A
designação Ladeira do Pelourinho derivou-se da construção de um pelourinho no centro dessa
travessia íngreme. Antes disso, porém, a ladeira podia ser chamada de Ladeira da Assembléia,
da Cadeia e do Trapiche (ELTON, 1999, p. 49).
168
hábito na criação de seus filhos. A primeira acusação que se fez contra João Antônio
dizia respeito ao fato de ter sido transferido para Vitória por ocasião de prisão na
Capitania da Bahia. O degredo para a vila vitoriense apresentou-se a saída perfeita
desse infortúnio, uma oportunidade de recomeço.
Ao desembarcar na pequena vila de pescadores e homens de negócio, Pientznauer
estava decidido a passar por homem bom e virtuoso, e não poupou esforços para
tanto. Alegou a todos da Capitania ser pessoa qualificada, mais precisamente,
cirurgião aprovado, e conseguiu assim enganar aos moradores de Vitória. Seus planos
pareciam bem encaminhados, pois até conseguira esposar mulher de família honrosa
da Vila.
94
A estabilidade da rede de sociabilidades forjada pelo degradado rompeu-se,
segundo a representação de Mascarenhas e outros, quando Pientznauer matou a
esposa empurrando-a da janela de casa. Temendo a reação violenta ao assassinato
de tão delicada dama da sociedade vitoriense, João Antônio mudou-se da Vila de
Vitória, mas regressou daí pouco tempo.
Seu retorno marcou uma reviravolta na vida da região, uma vez que os moradores
passaram a recusar a permanência e o convívio com o criminoso. Parece que
Pientznauer também não se esforçou mais em fingir ser outra pessoa, passando a
aterrorizar seus inimigos. Mesmo promovendo a discórdia na Vila, ele conseguiu o
cargo de cirurgião-mor do juízo local, embora desconhecesse por completo a os
fundamentos da Medicina. A ignorância atestada pelos pacientes que freqüentavam a
casa do cirurgião-mor foi o que motivou o abaixo-assinado de 1811, visto ser visível o
uso malévolo que fazia dos remédios e ervas, chegando quase a matar seus clientes.
Não é possível concluir qual resposta régia dirigida aos clementes moradores de
Vitória. Podemos, contudo, suspeitar que a representação endereçada ao rei de
Portugal tenha surtido efeito, pois alguns anos mais tarde a convivência apresentou-se
insustentável para João Antônio Pientznauer, que preferiu mudar para Campos de
Goitacases definitivamente.
A Rua das Flores era assim popularmente conhecida por razões opostas. João
Antônio teve com sua esposa três filhas, Gertrudes, Ana e Joaquina, consideradas
pela vizinhança moças belas, que causavam suspiros nos rapazes ao passearem
pelas ruas da Vila (ELTON, 1999. p. 25). Nessa artéria também residiu Dionísio
94
Na representação não consta o nome da esposa nem o sobrenome da família da dama com
que se casou Pientznauer. Porém, em registro de batismo de 15 de março de 1835 da paróquia
de Vitória informações sobre a família das Flores. Nesse dia foi batizado o neto de João
Antônio Pientznauer e sua esposa Maria Theodora dos Santos Pientznauer, filho de Joaquina
da Silva Pientznauer. As informações foram gentilmente cedidas pela colega de pesquisa
Rafaela Lago.
169
Álvares Rezendo, importante político local. A Rua das Flores localizava-se entre a Rua
da Praia (Rua Duque de Caxias) e a Rua da Matriz (Rua Pedro Palácio). Os
moradores do quarteirão eram visados pela população capixaba pela tradição de ser
uma rua cheia de histórias de se contar. Tudo era observado e comentado, ainda mais
os casos de brigas e safanões.
Era 4 de setembro de 1857, Gertrudes recebera ordem de seu senhor, Joaquim Alves
Pinto, para ir buscar água na Fonte Grande. Saíra ela da Rua da Praia, onde Alves
Pinto era proprietário de comércio, e percorrera as ruas de Vitória, optando sempre
pelo caminho mais moroso para encontrar com outros cativos transeuntes e indivíduos
livres que também estavam a circular. Subindo os caminhos da cidade em direção à
parte alta da ilha, onde se situava a Fonte Grande (ver planta 4 em anexo), decidiu
cortar caminho pela Rua das Flores. Ali passando deparou-se com Albertina, escrava
do capitão Antonio de José Ferreira de Araújo, que estava sentada na janela do sótão
da casa de seu senhor. Este foi o cenário da briga travada entre as duas cativas, que
embora não tenha sido possível averiguar quem iniciou os ataques, identificaram-se
pelo menos os ímpetos que culminaram nos ferimentos infligidos à pessoa de
Gertrudes.
Albertina, na ação criminal instaurada pelo senhor de Gertrudes, tinha ao tempo da
desordem 25 anos, aparentemente. Constava também já ser mãe de família e escrava
de boa reputação na vizinhança da Rua das Flores. Gertrudes, por seu turno, era uma
adolescente com 14 para 15 anos, que adorava perambular pelas ruas da cidade,
principalmente quando se tratava de realizar atividades externas a pedido de Joaquim
Pinto. Ambas escravas de negociantes matriculados na praça de comércio da Câmara
Municipal de Vitória, Albertina e Gertrudes tinham contendas a acertar: a cativa de
Ferreira de Araújo estava bastante irritada com Gertrudes por ter conhecimento que a
adolescente gastava suas horas falando dela ré.
Dos tapas e tropeços havidos entre as duas mulheres, resultou sair Gertrudes com um
ferimento no supercílio e alguns arranhões pelo corpo provocados por uma queda na
Rua das Flores. O evento teve lugar às dez horas da manhã, numa das travessias
mais movimentadas da cidade. A claridade do dia facilitava observar o cotidiano
nublado pelo breu da noite. Não eram necessários lampiões para assistir à altercação
das duas escravas. Público não faltaria, pois a proximidade com a Rua da Praia fazia
da Rua das Flores uma via tangencial ao escoamento do trânsito do comércio da
primeira artéria. Curiosamente, das testemunhas ouvidas no processo criminal,
apenas dois indivíduos do corpo policial e dois escravos confessaram ter presenciado
em parte ou todo o ocorrido. A negativa de haver presenciado a desordem era um
170
artifício usado pelos depoentes para se livrarem de qualquer futura acusação de
perjúrio, ou mesmo de verem a convivência com os vizinhos transtornada por uma
declaração comprometedora.
Joaquim José da Silva, tenente comandante de Pedestres de Vitória, jurou ter visto da
janela de sua moradia, localizada à Rua das Flores, as duas pretas atracadas uma à
outra e gritou para que se apartassem, caso contrário desceria ao encontro das duas
para “meter o chicote”. De acordo com o mesmo Silva, ao ouvir as palavras da
testemunha as cativas se separaram e foram cada uma para um lado da rua, e ele não
as advertiu por ter lhe parecido o caso sem conseqüência maior. Dona Ana Maria das
Chagas, também residente nessa rua, julgou ser uma perda de tempo o queixoso,
senhor de Gertrudes, fazê-la vir ao juízo para falar da briga das escravas. De acordo
com o seu depoimento, afirmou não ter ouvido nada a respeito desse fato por
considerá-lo uma asneira e achar que não teria desdobramentos, inclusive ficando
surpresa quando recebeu a intimação em sua casa para jurar sobre a bulha. Parece
também que Dona Ana ficara incomodada em ter seu nome listado no rol de
testemunhas desse processo. Não é difícil imaginar uma senhora proprietária de
agências de negócio da cidade tendo de se desfazer de seus compromissos para
comparecer à casa do chefe de polícia a fim de lhe informar o que soubesse sobre a
briga das escravas. Percorrer os caminhos de pedra da cidade até o local apresentou-
se constrangedor para Dona Ana. Inclusive, quando do julgamento do caso no
Tribunal do Júri a testemunha em tela se absteve de comparecer, alegando problemas
de saúde e apresentando atestado médico.
O comentário de Dona Ana e de Joaquim José da Silva não ecoaram ao vento, pois ao
término dos debates no Juízo de Direito, o júri determinou pela não condenação da ré,
respondendo negativamente ao primeiro quesito proposto pelo juiz de Direito João dos
Santos Sarahyba: “(1) a Albertina fez em luta com Gertrudes no dia 4 de setembro
de 1857 na Rua das Flores desta cidade as ofensas constantes do corpo de delito [...]
na mesma Gertrudes?” (
INQUÉRITO POLICIAL,1857,
p. 82).
Perante a decisão do júri da cidade de Vitória, o juiz de Direito apelou para o Tribunal
da Relação do Rio de Janeiro, contestando a decisão dos jurados. Na motivação
redigida por Sarahyba, as alegações indicavam a importância mínima conferida ao
crime pelo proprietário da ré e pelos jurados, que “[...] [ouviam] somente a importância
pequena das ofensas recebidas pela ofendida e levado[s] por um espírito de proteção
humanitária mal-entendida [...]” (
INQUÉRITO POLICIAL,1857,
p. 82), mesmo tendo a
confessado em interrogatório na presente instância judicial ter sido autora dos
ferimentos em Gertrudes.
171
Discorda-se aqui do juiz Sarahyba quando se referia ele ao espírito humanitário dos
habitantes capixabas que figuraram no banco do júri. Ao invés disso, parece
justificável a atitude dos jurados como uma conformação aos códigos de convivência
do lugarejo, que franqueavam à população o uso de dispositivos pessoalizados para a
resolução de seus conflitos. Não seria o caso de impunidade, mas sim de confirmação
das práticas costumeiras empregadas pelos indivíduos livres ou não, mulheres e
homens.
Em outra causa judicial, datada em 1855, foi Rozinda Maria da Conceição e autor
João José da Vitória. Disse João José da Vitória ao chefe de polícia que tendo se
ausentado da capital devido ao seu ofício de pescador, deixara em casa sua mulher
“mansa e pacífica”. Vizinhos na Rua da Vargem, a ré e o queixoso guardavam
desavenças, porque não havia bom convívio entre Rozinda e a esposa de João José.
Na ausência de José da Vitória, Rozinda aproveitou para insultar a esposa do autor.
Como habitualmente fazia, a estava sentada à porta de sua residência,
aproveitando a folga nas encomendas de costuras, quando viu passar a esposa do
queixoso. As casas eram dispostas uma de frontal à outra, separadas pela rua. Sem
demora, começou a a proferir palavras injuriosas à família do autor. Dentre os
epítetos utilizados por Rozinda constavam “puta batida de quanto negro há” e outros
destinados ao marido ausente – “que havia de lhe arrancar as partes e com elas bater”
(
INQUÉRITO POLICIAL,1855,
p. 25).
Os vizinhos das duas famílias depoentes no processo como testemunhas de acusação
declararam que a ré era conhecida na vizinhança da parte alta da cidade de Vitória por
mudar com freqüência de moradia. Um motivo mais do que razoável para essa
situação instável de endereço devia-se ao fato de ser a acusada perturbadora do
sossego e ordem públicos, além de apresentar comportamento reprovado pelos
moradores adjacentes. As testemunhas de defesa discordaram da conduta da ré,
mas confirmaram que em menos de nove anos ela havia residido na roça (terras
localizadas além da ponte de Maruípe, isto é, na parte continental da cidade de Vitória)
e em outras ruas da Ilha.
Emereciana Sacramento nos presenteou em seu depoimento com um indício da
fisionomia da ao declarar que certo dia estava a depoente na porta de casa a
conversar com Rozinda, esta última sentada à porta de sua própria moradia.
Perguntando à Rozinda se sempre ia viajar como lhe havia comentado, a
respondeu que somente lhe faltava para realizar a próxima viagem um canudo de
pomada de pairo, muito bom para cabelos de negros. Esse vestígio sugere que
Rozinda podia ser negra, interpretação corroborada pela declaração da ré, quando
172
contestou o depoimento de Emereciana. De acordo com as palavras da acusada, não
acreditava ser procedente a queixa de João José da Vitória, porque sempre tratou
bem todos, inclusive as pessoas brancas. Não se sabe, é certo, se Rozinda era filha
de uma ex-escrava, mas podemos inferir com certa probabilidade que fosse crioula.
Os casos narrados de Albertina contra Gertrudes e dos litigantes João José da Vitória
e Rozinda Maria da Conceição apresentaram um mosaico de sociabilidades violentas.
As personagens fizeram uso de dispositivos informais para resolver uma situação
pendente. No primeiro caso, Albertina quis assustar a adolescente Gertrudes a fim de
interromper as fofocas que fazia envolvendo o nome da ré. No outro, Rozinda
aproveitou a viagem de João José para acertas as contas com a esposa dele, que
havia tempo se recusava a conversar com a vizinha da Rua da Vargem.
As discussões entre vizinhos tendiam a ser mais freqüentes se eles residissem na
mesma propriedade, como ocorreu com Antônio Ferreira das Neves e Francisca
Nunes Ribeiro.
Em 15 de janeiro de 1852, Antônio Ferreira das Neves, cansado da falta de maneiras
de sua meeira decidiu queixar-se novamente ao chefe de polícia da cidade de Vitória.
Neves alegava que Francisca descumpria as disposições do acordo de bem-viver
assinado em 1845. Naquela oportunidade, os dois comprometeram-se a barrar aos
estranhos da fonte de água cristalina que brotava entre as rochas do sítio do Romão,
além de proibir terminantemente a disponibilidade da casa de Francisca para fins de
prostituição. No ano da segunda queixa, 1852, Antônio das Neves afirmou ter
Francisca rompido essas duas cláusulas do termo. Assim, queixava-se da por ela
aceitar mulheres prostitutas, escravos, marinheiros e negociantes nas dependências
do sítio do Romão para fins de libidinagem.
O sítio do Romão, propriedade comum da e do queixoso, localizava-se no
quarteirão do Romão, em Vitória. O acesso a essa região da Ilha de Vitória se fazia
pela Rua Barão de Monjardim, logo após o chafariz da Capixaba (Rua Cristóvão
Colombo). O quarteirão onde residiam Francisca e Antônio configurava-se em um
morro, e de era possível vigiar a chegada de embarcações e a movimentação
humana na barra da Ilha. Na queixa dada por Antônio Ferreira das Neves há o
comentário de que nem a alfândega do porto mais comercial podia disputar a
freqüência ao sítio do Romão, aonde especialmente aos domingos e dias santos iam
homens, livres e escravos, se aconchegar nos braços da ré e de suas filhas. O horário
predileto dos freqüentadores do prostíbulo de Nunes Ribeiro era após as dez horas da
noite, tendo em vista o término da jornada diária de atividades, interregno propício
173
para o divertimento. De acordo com Ferreira das Neves, a escuridão o silêncio das
noites no morro do Romão eram irrompidos pelo tropel dos cavalos, que conduziam os
comerciantes fatigados de mais um dia de trabalho na cidade, vinham àquela hora
descansar nos braços das ninfas. A recepção desses sujeitos era feita com bastante
música e alegria, além de um caprichado cardápio para ser degustado depois de
finalizadas a primeira sessão de cópulas. Houve dias em que as festas de Francisca
duraram três dias!
A distância não pareceu impedir os jovens capixabas de outras freguesias a se
deslocarem para o bordel de Nunes Ribeiro. Se não havia cavalo à disposição para
levá-los ao encontro das mulheres do Romão, a pé mesmo iam à procura das filhas de
Francisca. Quando não recebiam visitas em casa, as mulheres lideradas pela ré não
se faziam rogar. Munidas de guitarra e cachaça, desciam o morro do Romão em
direção ou aos sítios vizinhos ou à parte urbana da cidade de Vitória, à busca de
diversão. Não se excluía ninguém desses bacanais, até soldados da companhia fixa e
de polícia eram prostituídos e todos faziam “porcaria” com a e suas filhas,
confundindo-se livres com escravos. O trânsito de indivíduos era feito sem o menor
respeito ao queixoso e sua família. As declarações da queixa permitem aferir que o
prostíbulo chefiado por Francisca era lugar freqüentado por livres e cativos
indistintamente.
Não bastasse o uso livre que Francisca fazia dos cômodos e terras do sítio, a acusada
afrontava a família do queixoso correntemente. As testemunhas juradas no processo
confirmaram as alegações de Neves, informando o trânsito de pessoas livres e cativas
pelas dependências da propriedade e a utilização desregrada da água das duas fontes
do imóvel.
Os depoimentos de João Trancozo Lírio e Diogo de Almeida foram complementares,
ao confirmarem a circulação de mulheres forras e cativas no interior da propriedade do
sítio do Romão com o intuito de lavarem roupas nas fontes durante o dia e de se
prostituírem à noite. A declaração do inspetor do 1º quarteirão do Distrito da cidade de
Vitória, João Trancozo de Lírio, revelou ser a amásia de um escravo do finado
capitão-mor Francisco Pinto Homem de Azevedo e que, por isso, considerava-se
amparada na localidade de residência.
Nos documentos apensados ao auto criminal de 1852, identifica-se que a acusada era
filha natural de uma preta forra chamada Cecília, residente em Araçatiba. Consoante
as declarações anotadas na petição do subdelegado de polícia, em 1845 Cecília viajou
a Vitória para defender a filha de Antônio Ferreira das Neves.
174
O prostíbulo do morro do Romão emergiu da análise dos documentos como um
espaço de sociabilidade freqüentado por moradores de diferentes proveniências da
capital da Província, além de possibilitar o estreitamento das relações entre livres e
não-livres, por ocasião das fontes de água e também do contato sexual. Por outro
lado, a história do cotidiano das famílias moradoras do sítio em foco indica ter sido a
prostituição prática condenada pela população da região, em que pesem os
depoimentos parafraseados em linhas anteriores. O expurgo da má conduta de
Francisca e suas filhas era tentado desde meados da década de 1840, sem êxito.
Mesmo diante das declarações do inspetor do quarteirão do Romão, dos vizinhos do
sítio e de ser fato público em Vitória, a ré foi absolvida ao final da ação criminal. A
manutenção do bordel de Francisca sugere a existência de público que apoiava esse
espaço de uma vida sem pudores, caso contrário teria se extinguido. Ademais,
interessa observar a conduta dessas mulheres barulhentas, festivas e desprendidas
dos estereótipos femininos multiplicados no interior dos lares. Francisca e companhia
gostavam da vida que levavam e não parece absurdo sugerir que tivessem certo
status em Vitória pelo modo independente de se conduzir. Francisca, individualmente,
tinha prestígio maior na região próxima ao morro do Romão, pelo seu contato íntimo
com o escravo do finado Francisco Pinto Homem de Azevedo, homem memorável da
área das fazendas de Jucutuquara.
As bulhas entre mulheres ocorriam por motivos os mais diversos, compreendendo
desde discussões sobre baldes de água até desavenças familiares. A ira estabelecida
entre Cristina Maria da Silva Ribeiro e Sofia Batalha Ribeiro, por exemplo, relacionou-
se a discussões entre parentes. De acordo com a petição de queixa de Sofia Batalha,
a desordem iniciou-se a noite de 20 de maio de 1870, quando a queixosa se dirigiu à
casa de Dona Maria Bermude, mãe de Cristina Maria, com a finalidade de
conversarem sobre as discussões travadas entre Sofia e o marido de Cristina, João
Batalha Ribeiro. Sofia e João Ribeiro eram irmãos e viviam em atrito por causa de
dinheiro que ela deveria receber de seu irmão.
Ao chegar à residência de Dona Maria, Sofia foi bem recebida pela anfitriã, que largou
a massa de pão na cozinha para receber a visita na sala do sobrado. Sentadas na sala
principal da propriedade de Maria Bermude, ambas conversavam calmamente quando
chegou apressadamente Cristina Maria Ribeiro gritando: “minha mãe, pois a senhora
consente que esta desgraçada sente-se nas suas cadeiras?” (
INQUÉRITO
POLICIAL,1870,
p. 12). Da troca de insultos passaram as cunhadas a se esbofetearem
pelo chão da sala. Na queixa, Sofia alegou ter recebido ferimentos no corpo, o vestido
rasgado e os brincos arrancados das orelhas. Afirmou, inclusive, que não pôde se
175
defender da acusada por ter sido impedida pela mãe da ré, Dona Maria Bermude,
abraçando-a pelas costas e tapando a boca para não gritar.
As testemunhas juradas no processo não confirmaram os ferimentos alegados pela
queixosa, mas confirmaram tê-la visto com os cabelos desgrenhados. Além disso, os
depoentes souberam da desordem na casa de Maria Bermude por “ouvir dizer”, isto é,
pelos comentários dos transeuntes que viram Sofia Ribeiro sair nervosa da residência
de Dona Maria. Ao que parece, as cunhadas Sofia e Cristina não nutriam amizade
uma pela outra, tendo em vista os testemunhos do processo. Pode-se sugerir, ainda,
que o conflito entre as duas decorresse de desentendimentos havidos entre Sofia e
João Batalha Ribeiro. No interrogatório, Cristina contou a motivação da sua
agressividade para com Sofia: a cunhada falava mal do esposo para a mãe da
acusada. Dona Maria Bermude tamm foi ouvida pelo chefe de polícia e disse que a
filha era uma sem-vergonha por conversar com Sofia Ribeiro, pois a queixosa estava
indiferente à família há mais de cinco anos.
Ao que parece, as desordens não eram situação incomum na casa. Luís Alberto dos
Santos Vitória, uma das testemunhas do ocorrido, informou não prestar atenção nos
vozerios provenientes da residência de Maria Bermude, porque era usual brigas
envolvendo escravos. Assim, supôs ele que o barulho fosse algum castigo dado em
uma das escravas de Bermude. Se Luís Alberto não se preocupou com os gritos
provenientes da propriedade dos Ribeiro, Serafina, escrava de José Marcelino Pereira
de Vasconcelos, em passeio pelas ruas da parte alta da Ilha de Vitória resolveu
averiguar o que se passava. Ao ouvir a comoção de dentro da casa de Dona Maria
Bermude, Serafina subiu as escadas do sobrado e resolveu adentrar a residência da
amiga. Ao ingressar no recinto, Serafina deparou-se com Dona Maria e Sofia no
corredor. Ao ver a escrava, Maria Bermude pediu-lhe para buscar um copo de água
para dar a Sofia. A escrava não adicionou informações diferentes das narrativas das
demais testemunhas. O modo pessoalizado com o qual a escrava se dirigiu à
propriedade dos Ribeiro, porém, indica traços da rede de sociabilidade estabelecida
entre as famílias Vasconcelos e Ribeiro, incluindo, até mesmo, os escravos.
Considerando a amizade desde muito tempo” entre Maria Bermude e José Marcelino
Pereira, Serafina achou-se no direito de entrar sem ser convidada na casa de
Bermude para ver o que acontecia. Se por um lado Maria Bermude era famosa na
cidade de Vitória pelos castigos violentos que dava as suas escravas, por outro, não
destratou Serafina na ocasião da visita inesperada.
O cotidiano da cidade de Vitória era alimentado por pequenas desordens e
altercações. A intriga era um dos ingredientes no equilíbrio das sociabilidades da
176
capital, pois os indivíduos pretendiam se comportar de modo que não fossem vítimas
dos falarios públicos. O hábito de conversar sobre a vida alheia era compartilhado pela
maioria dos habitantes de Vitória, principalmente quando havia pendência pecuniária a
ser sanada. Como visto, Luiz Edmond Peyneau foi alvo de uma publicação no jornal
Monarchista, porque devia dinheiro na praça comercial de Vitória. Reconhece-se que
essa situação não era restrita a Edmond, pois um irmão dele também teve prejzos
por não quitar débitos. Um auto criminal de 1864 é alusivo em cotejar as dívidas como
algo comum na vida da família Peyneau.
Em 7 de janeiro de 1864 houve uma troca de ofensas verbais entre Joanna Peynau,
mãe de Edmond e Eduardo, e Adrião Nunes Pereira, por causa de um débito atrasado
de Pedro Estevão Peyneau. Disse Adrião Nunes Pereira que às vinte e uma horas do
dia mencionado estava ele a conversar em frente à Padaria Peyneau com Aniceto
Joaquim Barbosa quando foi atacado com injúrias proferidas por Joanna. No calor da
raiva, a mulher teria qualificado Adrião como um canalha, ordinário, sem-vergonha e
escandaloso. O processo instaurado contra madame Peyneau detalhes sobre a
conjuntura que levou ao desentendimento entre os vizinhos. Adrião Nunes Pereira era
comerciante na Rua da Praia, artéria que concentrava o maior número de lojas de
Vitória. Na planta 4 (anexo C) essa rua tem o nome de Rua Duque de Caxias. O nome
Rua da Praia não era oficial. Conheceu-se essa passagem como Rua do Ouvidor.
Somente no início do decênio de 1870 foi alterada a designação em homenagem ao
fim da guerra do Paraguai. A planta 7 (anexo E) mostra a Rua da Praia no ano de
1853 e logo abaixo dela, em linhas pontilhadas, a projeção de aterro para alargamento
da barra da Ilha de Vitória. Antes do aterro que deu origem à Rua da Alfândega e ao
Cais do Santíssimo (ver planta 4), as casas da Rua da Praia eram construídas com as
portas voltadas para a igreja matriz, isto é, sentido Rua das Flores. O hábito de
chamar a Rua do Ouvidor de Rua da Praia desenvolveu-se em função da
espacialidade das habitações eretas nessa artéria. Os quintais das propriedades
estendiam-se até a barra da Ilha e, por isso, passou a ser conhecida por Rua da Praia.
No dia 7 de janeiro mencionado, Adrião Nunes Pereira decidiu fechar as portas de sua
loja mais cedo, às vinte horas. Certo de que seus vizinhos comerciantes ainda
estavam trabalhando, resolveu passear pelas ruas da cidade em direção à Santa Casa
de Misericórdia. Mal conseguia reconhecer as pessoas que o cumprimentavam pelo
caminho, tamanha a escuridão daquela noite. O óleo dos lampiões não era suficiente
para iluminar trajetos longos, como o da Rua Porto dos Padres. Chegando a essa rua
encontrou-se com Aniceto Joaquim Barbosa e começaram a conversar. Aniceto era
caixeiro de uma casa inglesa de comércio que vendia uma variedade de produtos
177
importados do reino da Inglaterra, especialmente tecidos finos. Nesse instante, se
aproximou deles Francisco da Rocha Tagarro, perguntando como solucionara o débito
de Pedro Estevão Peyneau. A indagação ressoou na cabeça de Nunes Pereira, que
preferia não se lembrar desse infortúnio. Como resposta, Adrião disse que fora
flauteado pelo proprietário da Padaria Peyneau, porque até aquele dia não havia
recebido a quantia relativa à dívida. Continuando a conversa a três, Adrião desabafou
que se os Peyneau continuassem a dever-lhe daquela maneira, abriria falência
brevemente.
Joanna Peyneau, sentada à porta da padaria com uma escrava chamada Auta, ouvia
atentamente as declarações de Adrião e se irritava com os comentários sobre o seu
marido na frente de outros negociantes da Rua Porto dos Padres. Enraivecida, a
acusada pôs-se a gritar insultos no meio da rua, sem dirigi-los diretamente a alguém,
embora se soubesse serem eles endereçados a Adrião Nunes Pereira. A distância
entre o local onde estavam Aniceto, Francisco e Adrião e a porta da padaria era de
aproximadamente vinte passos, segundo depoimento de Aniceto ao subdelegado de
polícia. Após esbravejar por três ou quatro vezes as palavras porco, sem-vergonha,
escandaloso e canalha, Joanna fechou a porta do comércio com força quando
atravessava a rua o queixoso. Nesse momento, retrucou Nunes Pereira: “bate, que
bate com meu dinheiro”.
As injúrias dirigidas ao autor do processo foram ouvidas por número considerável de
moradores, pois não obstante o horário tardio, era costume as lojas de comércio
finalizarem o expediente de trabalho às vinte e duas horas. Logo, os vizinhos puderam
observar o descontrole de Joanna.
Após a inquirição das testemunhas, Adrião Nunes Pereira protocolou na secretaria de
polícia um termo de desistência da ação, alegando solidariedade ao estado de Joanna
e para mostrar não estar a perseguir a família da ré. Surpreende a desistência do caso
quando os depoimentos foram unânimes em corroborar os xingamentos proferidos por
Joanna. Ao que tudo indica, a família de Pedro Estevão Peyneau passava por uma
fase de tormenta financeira, se lembrarmos os casos comentados a respeito das
dívidas de dois de seus filhos e dele próprio. É possível conceber, portanto, que Adrião
Nunes tenha desistido da queixa por reconhecer sinceridade nas palavras do chefe da
família Peyneau de não ter condições, naquele momento, de quitar o saldo negativo
com o comerciante.
178
4
.6 CABALANDO NAS ELEIÇÕES
As eleições constituíam-se em uma das épocas mais agitadas da Província do Espírito
Santo.
95
Durante os dias reservados à votação, os ânimos exaltados dos moradores
desencadeavam variadas desordens. Os jornais e autos estudados registram mais
tensões na cidade de Vitória. Em geral, a cabala motivava grande parte das bulhas.
Antes do ato de votação, muitas pessoas recebiam a instrução de escolher
determinados eleitores. Ao cabalista “cabia garantir a inclusão do maior número
possível de partidários de seu chefe na lista de votantes” (CARVALHO, 2004, p. 33).
Os simpatizantes dos partidos iam às ruas conversar com os votantes tendo em mãos
uma listinha com os nomes dos moradores que deveriam ser votados. As brigas
destacadas nesta seção refletem as contendas entre liberais e conservadores em
Vitória.
Nas eleições de 1861, as urnas foram postas no interior da igreja matriz de Vitória,
local de confluência de várias artérias, como as Ruas do Sacramento, José
Marcelino
96
, 2 de Dezembro, Pedro Palácio, Ladeira da Matriz e Ladeira Dr. Baltazar.
A votação estava agendada para as onze horas da manhã, mas antes disso se
assistia ao movimento dos cabaladores. Era quase como um dia festa e a população
saía às ruas para participar do evento.
José da Silva Cabral, português residente em Vitória há mais de 10 anos, saiu de casa
por volta das oito horas em direção à Rua da Matriz. Encontrara com poucos vizinhos,
porque eles ainda estavam em casa se preparando para o momento das eleições. De
acordo com sua petição de queixa, ele deslocara-se da sua casa simplesmente pela
curiosidade que nutria acerca desses atos de reunião popular. Aproximando-se do
horário da votação, a população já se encontrava distribuída pela Rua da Matriz, como
se fosse uma ocasião festiva religiosa. Os moradores que preferiram aguardar o início
dos trabalhos na entrada da igreja puderam visualizar dali quase toda a agitação
configurada abaixo da escada da matriz. A discórdia ocorreu entre José da Silva
Cabral e Francisco José Pereira antes de as portas do templo religioso serem abertas
para o início da eleição. Na versão de Cabral, o queixoso conversava com várias
95
A respeito do assunto ver CARVALHO, 2004.
96
De acordo com Elmo Elton (1999, p. 84), a Rua Grande foi uma das primeiras a ser
construída em Vitória e era considerada a de maior importância da cidade. Na Planta n. 4 (ver
anexo C) é possível visualizar essa rua com seu nome posterior: Rua José Marcelino. O
patrono da artéria foi homem ilustre da Província do Espírito Santo. Nascido em Vitória no ano
de 1821, ocupou cargos na política e na instrução pública. Em 1853 transferiu-se para a Corte
e publicou vários trabalhos literários e jurídicos. Membro da Academia Espírito-Santense de
Letras, José Marcelino Pereira de Vasconcelos faleceu em 1874 na cidade imperial.
179
pessoas pacificamente quando Pereira o puxou pelo pescoço para o meio da rua em
direção à multidão e agredindo-o em meio ao público. O queixoso afirmou ainda que
as ofensas não se restringiram aos ataques físicos, mas atingiram também a honra de
Cabral. Francisco Antônio José Pereira parece ter chamado o autor de “galego”,
alcunha depreciativa dada aos portugueses.
Os vizinhos que depuseram no processo contra Francisco Pereira como testemunhas
de acusação não nutriam simpatia pelo réu, devido a discussões políticas com ele.
Indagadas sobre a origem dos ferimentos verificados pelo exame de corpo de delito,
as testemunhas afirmaram não saber exatamente como foram produzidos, pois a
aglomeração de pessoas em volta de Cabral e Pereira impediu-os de assistirem o
cometimento do crime. Os depoentes declararam ter ouvido dizer que a zanga do réu
era conseqüência da intromissão do queixoso nas eleições. Acusado de cabalar votos,
José da Silva Cabral não era autorizado a participar das eleições, pois sua possuía
nacionalidade estrangeira. Não obstante, as declarações dos moradores não
chegaram a confirmar ter o queixoso realmente cabalado nas eleições de dezembro
de 1860. Pelo menos os indivíduos ouvidos alegaram não ter visto nenhuma lista de
nomes nas mãos.
Antônio Francisco de Athaíde, 45 anos, morador na capital, testemunha da bulha,
declarou ser voz pública na cidade que o réu não aceitava a ingerência do queixoso
nas eleições em favor do partido conservador. Francisco Antônio José Pereira,
morador antigo da Rua da Praia, conhecia quase toda a vizinhança da cidade. Sobre a
briga travada entre ele e o autor da ação judicial, ele respondeu que se tratava de uma
trama política do partido da oposição, no caso o conservador, com o único fim de
ofendê-lo e tirar-lhe sua força física e moral. Para nossa surpresa, os litigantes não
eram inimigos. A discordância entre os dois iniciou-se quinze ou vinte dias antes das
eleições. Naquela oportunidade, Francisco Pereira dirigiu-se até à casa do queixoso
para pedir que Cabral interrompesse sua cabala naquelas eleições. Em resposta,
Cabral explicou que não praticara a cabala, mas apenas solicitara o voto de dois
compadres para o partido de sua simpatia, e o fez a pedido do amigo Gama Rosa,
conservador, e também por não gostar do partido político de Monjardim, liberal. O
queixoso afirmou ter acertado as pendências com o português ao final dessa
conversa.
No dia 30 de dezembro de 1860, Francisco Antônio José Pereira estava tranqüilo de
que o partido liberal venceria as eleições, porém, ao perceber a movimentação de
José da Silva Cabral na porta das lojas de comércio da Rua Grande ficou ressabiado e
temeroso do resultado dos votos. Francisco Pereira declarou ter se dirigido até Cabral,
180
na Rua da Matriz, com o único fim de lhe lembrar do acordo que fizeram dias antes.
Ao se aproximar do queixoso, entretanto, uma multidão gritava: “briga! Briga!” Dessa
confusão afirmou o réu terem ambos saídos feridos.
Não informações no auto criminal sobre qual partido com maior número de votos
para aquela eleição, mas se sabe que o queixoso desistiu da ação judicial. É plausível
supor que a renúncia significasse a calma e a tranquilidade retornando às ruas da
cidade após eleição. As eleições constituíam-se em momentos de delicado equilíbrio
das sociabilidades capixabas, pois davam oportunidade ao estremecimento de antigos
de duradouros vínculos entre os residentes.
A conversa sobre votos tematizou uma discussão entre João Coelho Martins de Aguiar
e Antônio Pinto Homem de Azevedo, importante senhor da elite capixaba, que resultou
em uma queixa do primeiro contra o segundo. Em 15 de julho de 1864, espalhara-se a
notícia de que o vapor Doligarte aportaria em Vitória a qualquer instante. Reunidos no
Cais Municipal da capital, Antônio Pinto Homem, João Coelho, Ignácio Maciel da Silva,
Joaquim Pereira Pinto de Moraes, José Alves da Motta e João Vieira da Silva
conversavam sobre assuntos eleitorais enquanto aguardavam a chegada do vapor. A
troca de opiniões entre os amigos, que aguardavam o Doligarte, a respeito da última
votação indignou João Coelho Martins de Aguiar dados os votos recebidos pelo
partido liberal e não no partido conservador, de Dionísio Álvaro Rezendo. Martins de
Aguiar considerou um absurdo e uma traição um fulano, empregado da tesouraria
Geral da província, votar contra o partido conservador, liderado por seu benfeitor, Dr.
Dionísio. Pinto Homem de Azevedo sentiu-se ofendido com os comentários de Martins
de Aguiar e retorquiu afirmando não constituir traição votar no partido liberal. Justificou
ainda que não quis ficar desempregado, pois o chefe da alfândega ameaçou demiti-lo
caso votasse no partido conservador. Os ânimos elevaram-se e iniciou-se uma troca
de insultos entre ambos. João Coelho Martins de Aguiar declarou que os corajosos
eram queridos no Rio Grande do Sul, por ocasião da conjuntura da Guerra do
Paraguai. Antônio Pinto Homem de Azevedo, por outro lado, qualificou o queixoso
como adulador, por defender Dr. Dionísio.
Uma testemunha do processo, Ignácio Maciel da Silva, complementou que Dr.
Dionísio havia tirado o pão de uns em benefício de outros e, contraditoriamente, os
beneficiados votaram contra ele. Pinto Homem, no exercício do contraditório como réu,
replicou que não pretendia malandrar como outros do partido de Dr. Dionísio.
Ademais, as quatro testemunhas ouvidas corroboraram que os protegidos de Dr.
Dionísio não se obrigavam a trabalhar, podendo dar-se ao luxo de ter todos os dias
livres. Como explica Carvalho (2004, p. 35), “o votante não agia como parte de uma
181
sociedade política, de um partido político, mas como dependente de um chefe local, ao
qual obedecia com maior ou menor fidelidade”.
Em Vitória, as eleições realizavam-se no interior da igreja matriz. De acordo com
Karulliny Siqueira (2008), após a seção de votação geralmente se seguia um culto
religioso. Siqueira (2008, Mimeo) relata ainda que nas eleições verificavam-se
diversos episódios de violência, e, mesmo ocorrendo nas igrejas, nada impedia de os
santos se transformarem em projéteis.
Carvalho (2004, p. 33) esclarece que o governo tentava evitar tais tumultos, mas
provoca a ira dos liberais, como declarou o Deputado Clímaco Barbosa, na sessão de
12 de Novembro de 1868:
Será liberdade de voto, quando em Benevente um indivíduo suplente de eleitor,
sargento da Guarda Nacional, é arrastado pelas ruas públicas, algemado e dado à
contemplação de seus adversários? A Liberdade de voto que tem o cidadão prudente
de não se apresentar na ponta das baionetas da polícia para não tingi-las de seu
sangue? Liberdade de voto é por certo uma coisa mais nobre, mais sagrada, e não
essa tragédia infernal, essa comédia desgraçada que acabamos de presenciar.
A democracia eleitoral brasileira, recém fundada, ainda representava uma novidade
nem sempre ordeira nas cidades do Império. Como salientado no processo criminal de
injúria envolvendo Antônio Pinto Homem de Azevedo e João Coelho Martins de
Aguiar, a coação em torno dos votantes se fazia com ameaças de demissão, ou, quem
sabe, promessas de trabalho. Siqueira (2008) esclarece que as turbulências das
votações em Vitória extrapolavam o dia da eleição, prolongando-se em demissões e
remoções de funcionários para freguesias distantes da capital, em decorrência da
mudança do partido político no governo provincial. O aprendizado democrático, porém,
precisava se realizar por esses caminhos nem sempre nobres, nem sempre retos, mas
sem dúvida, a caminho da cidadania em um longo percurso (CARVALHO, 2004, p. 43-
44).
4.7 A VISIBILIDADE DAS RUAS
As ruas alimentavam as sociabilidades dos moradores de Vitória, principalmente das
regiões tradicionais da cidade, como a Rua da Capixaba. Uma das primeiras áreas da
colonização da Capitania do Espírito Santo, a rua, antes conhecida como o caminho
da Capixaba, não tinha uma localização fixa. Sabe-se que se estendia do Largo da
Conceição até o Forte São João, mas centrava-se ao redor da Fonte da Capixaba (ver
182
planta 4 no anexo C). Os moradores da vizinhança da Rua da Capixaba eram,
geralmente, os mais antigos da Freguesia de Vitória, e entre eles havia Dona Delmira
Maria de Oliveira.
Dona Delmira foi testemunha no auto criminal instaurado contra Francisco Vicente de
Arruda pela acusação de ter batido em um negrinho vendedor de pão da padaria do
Porto das Lanchas. No primeiro dia do ano de 1859, das oito para as nove horas,
Delmira Maria encontrava-se sentada na entrada de sua casa à espera do vendedor
ambulante de pão. Passaram os escravos das padarias Peyneau e Delphon com os
cestos de pão, oferecendo de porta em porta as opções de roscas do dia. Ao se
aproximarem da vizinhança de Dona Delmira, na Rua da Capixaba, os dois moleques
correram para disputar a cliente. O negrinho da Padaria Peyneau tentava persuadir a
cliente, dizendo que os pães da Padaria Delphon tinham cabelo na massa e por isso
não deviam ser consumidos, ao passo que os do seu cesto eram muito gostosos e
bem fresquinhos. O vendedor da Padaria Delphon (do Porto das Lanchas) retrucou as
acusações do outro ambulante, dizendo que não vendia pão com cabelo. Para
comprovar mostrava seu cesto, vazio pois vendera toda sua preciosa mercadoria.
Para evitar maior discussão entre os meninos, Dona Delmira preferiu comprar um pão
de cada um. Depois de efetuada a venda, os moleques seguiram rumo à Rua da Praia
em constante altercação. Ao se aproximarem da Rua Primeiro de Março, eles
começaram uma briga, jogando um no outro os cestos de pão. Nesse momento,
passavao o caixeiro da Padaria Peyneau que resolveu intervir na briga. Ele, em ajuda
ao escravo dos Peyneau, pediu ao negrinho que retornasse à loja imediatamente, pois
cuidaria do caso. O caixeiro resolveu a polêmica desferindo umas chibatadas no
escravo de aluguel da padaria Delphon. Contam algumas testemunhas moradoras na
Rua Presidente Pedreira
97
que Francisco Vicente chicoteava o escravo, enquanto ele
exigia o fim daqueles atos, pois já tinha senhor, que não era o caixeiro. A autoridade
policial local, provavelmente o inspetor de quarteirão, julgou os atos do caixeiro
abusivos e instaurou um auto de perguntas, de onde se pode apurar um pouco da
configuração espacial das sociabilidades de Vitória.
Nos depoimentos, verifica-se na voz das testemunhas certa diferenciação entre as
áreas mais e menos urbanizadas da capital. Os depoentes descreviam a região que
iniciava na Rua Porto dos Padres até a localidade onde se situava a Santa Casa de
Misericórdia e o Campinho como uma parte fora da cidade. A partir do Porto dos
Padres seguindo em direção à Rua da Praia (Rua Duque de Caxias) e ao Largo da
97
O nome da rua faz referência ao Presidente de Província Luiz Pedreira do Couto Ferraz, cujo
governo se estendeu de 1846 a abril de 1848 (ELTON, 1999, p. 34).
183
Conceição, situava-se o que os depoentes consideravam como a cidade de Vitória. As
outras áreas eram consideradas partes exteriores à cidade.
A Padaria Delphon situava-se no Porto das Lanchas, ao lado do cais do Santíssimo.
Na planta 4 (ver anexo C), a localização aproximada do Porto das Lanchas está entre
as Ruas General Câmara e São Manoel. A venda de pães realizava-se na loja das
padarias e também pelos ambulantes, que disputavam cliente por cliente. Os
moradores das Ruas Presidente Pedreira e da Capixaba, depoentes no processo,
preferiam aguardar pelos negros vendedores de pães sentados à porta de suas casas.
Ficavam por lá das sete às nove horas, de acordo com a descrição constante no auto.
O hábito de se conservar sentado à porta de casa era comum tanto de dia quanto à
noite, principalmente em dias festivos. Na noite de Nossa Senhora da Conceição, dia 8
de dezembro de 1858, Turíbio José de Sousa Adão encontrava-se sentado na porta
de seu comércio, assistindo às comemorações noturnas da padroeira da igreja matriz.
Embora fosse dia importante da tradição capixaba, não foram instalados
provisoriamente lampiões para melhorar a iluminação das ruas da Matriz, do Rosário e
do Largo da Conceição. Por isso, Turíbio não conseguia ver nitidamente os passos da
Procissão. Perto da meia noite, Turíbio escutou um murmúrio estranho na Rua do
Rosário, onde residia e era dono de comércio. Atento para distinguir os sons
provenientes do lado do Rosário, percebeu que se tratava da patrulha de pedestres e
outros praças conduzindo a presa Floriana Maria do Rosário, famosa louca da
vizinhança.
Preocupado com os maus-tratos perpetrados contra Floriana do Rosário, Turíbio
implorou aos praças que interrompessem aquele tipo de tratamento, visto não ser
necessário dado o estado de embriaguez da presa. De acordo com a queixa dada por
Turíbio, a patrulha indignou-se com sua interferência e resolveram prendê-lo. Turíbio
não aceitou ser preso, relutando várias vezes contra a ordem de encarceramento. A
acusação dada contra os praças da patrulha versava a respeito das chibatadas
desferidas no queixoso. Do depoimento de João Pinto da Rocha, morador na Rua São
Diogo, no Campinho, a escuridão das ruas não facilitava enxergar o ocorrido, era
possível ouvir o som das chibatadas e os gritos de socorro de um homem, que
suspeitava serem do Turíbio. Dirigindo-se a testemunha para o botequim da Rua do
Rosário, viu passar a patrulha conduzindo o queixoso que se agarrava em desespero
nos coqueiros plantados no Largo da Conceição. Turíbio tentava se desvencilhar dos
praças, correndo em direção à Rua do Piolho, se escondendo por entre os matos e
atrás das pedras e agarrando-se em árvores. Os moradores da redondeza não
184
conseguiam distinguir de quem se tratava, mas viam um homem fugindo dos policiais,
tropeçando nas pedras e deixando pelo caminho pedaços de roupa rasgada.
A condução de Turíbio até a cadeia pública sugere o caráter habitual de
procedimentos como os adotados neste caso, principalmente em noites de festa,
quando os ânimos dos participantes tendiam a se exacerbar devido ao consumo de
bebidas destiladas e das músicas. Nem sempre as prisões desdobravam-se em ações
judiciais, como ocorreu na condução de Turíbio à delegacia, entretanto, as
autoridades, ao que tudo indica, pretendiam acalmar os espíritos exaltados dos
moradores em comemoração.
Nas proximidades das igrejas, apesar do caráter sagrado desses recintos, ocorriam
desordens, conforme se verifica em outro auto, em que certa discussão teve lugar nos
arredores do convento de São Francisco. Manoel Gonçalves de Araújo, escrivão da
subdelegacia de polícia, retornava da igreja acompanhado da esposa e filha. Ao
passar próximo do tenente João Fernandes Lopes, Manoel ouviu comentários a
respeito da beleza de sua filha. Imediatamente, o pai repreendeu o tenente pelo
comportamento inoportuno. Após o incidente, Manuel continuou a caminho de sua
casa. João Fernandes Lopes, irritado com a repreensão, decidiu ir atrás de Manoel
para se vingar.
Passando pela esquina da capela de Santa Luzia, igreja localizada no largo de mesmo
nome e próximo ao Pelame, o tenente Lopes avistou dois guardas policiais e
combinou com eles que seguissem em seu auxílio quando escutassem o som do
apito. Quando Lopes alcançou Manoel Gonçalves Araújo, deu-lhe voz de prisão e,
imediatamente, assoprou o apito. Ouvido o som, os guardas correram para atender ao
tenente Lopes e de seguiram para a casa do delegado levando Manoel à força.
Indagando sobre o motivo de sua prisão, Manoel obteve como resposta apenas um
“não quero saber de nada”. Para o espanto de um leitor do futuro, a sentença final do
processo resultou na condenação do escrivão Manoel Gonçalves de Araújo. As
testemunhas inquiridas confirmaram a atitude do tenente de desrespeito com a filha do
réu e nada mais foi dito pelas testemunhas que indicassem uma agressão além da
repreensão de um pai zeloso diante de uma abordagem maliciosa à filha. Ao que
parece, a condenação de Manoel deveu-se mais à influência do tenente Lopes do que
cometimento de um delito qualificado criminalmente. José Pinto da Tessa, testemunha
no auto, retornava das comemorações de São Francisco junto com a família de
Manoel Gonçalves de Araújo e percebeu os olhares indiscretos do tenente para a filha
do escrivão, como se quisesse dizer algo. Depois da censura de Manoel, afirmou a
testemunha que o Tenente Lopes se alterou e proferiu as seguintes ameaças: deixe
185
estar aquele patife, pois eu ainda tenho uma espada que a nação me concede”. De
fato, a motivação da prisão em flagrante de Manoel Gonçalves de Araújo proveio de
uma insatisfação de Lopes por ter sido repreendido em público.
Além das ruas, outro espaço em bastante evidência no Município de Vitória eram as
tabernas e botequins. Lugar de ajuntamento de pessoas de diferentes status sociais,
as tabernas davam lugar a patrulhas constantes por parte dos guardas policiais
capixabas. Em 1864, por exemplo, a taberna de Manoel da Penha Braga foi alvo de
investidas da patrulha policial por permitir pagodes de escravos durante as noites da
semana. Em uma ação ex-officio, Francisco Pereira da Cruz e Honório Barbosa da
Silva, soldados da polícia, foram presos pela acusação de agredirem com baioneta o
preto Marcolino, escravo de Bernardino Pinto Ribeiro. A taberna de Manoel Braga
localizava-se no entorno do Porto das Lanchas, região próxima à prainha da Rua da
Várzea. Em 26 de outubro de 1864, os policiais patrulhavam as ruas do Porto das
Lanchas quando avistaram Marcolino encostado no balcão da taberna de Braga. Ao se
aproximarem do escravo Marcolino, Francisco Pereira da Cruz e Honório da Silva
perceberam que o cativo não comprava nada e mandaram, pois, que, não desejando
adquirir produto algum, se retirasse. Marcolino respondeu à patrulha que ia beber um
pouco antes de ir embora.
Marcolino, escravo com ofício de sapateiro, era natural da cidade de Vitória e tinha 32
anos. Certamente, Marcolino conhecia bastante as vizinhanças capixabas,
principalmente os indivíduos com hábito de passear pelas ruas à noite. Marcolino
freqüentava com assiduidade a taberna de Manoel da Penha Braga e alegou ao
subdelegado de polícia ir lá comprar materiais para seu senhor, Bernardino Pinto
Ribeiro. A prisão e o espancamento do escravo foram acompanhados pelos
comerciantes da Rua do Santíssimo e do Porto das Lanchas e pela clientela da
padaria de Cândido Maria da Silveira. Unanimemente, as testemunhas do episódio
afirmaram às autoridades do processo criminal que Marcolino não ofereceu resistência
à ordem de prisão dada pela patrulha, cuja agressão física lhes pareceu
desnecessária. Se o escravo foi conduzido sem resistência à cadeia da capital,
interessante é questionar o porquê dos golpes de baioneta infligidos contra Marcolino.
No auto criminal, encontram-se justificativas para as pancadas: Marcolino era figura
conhecida das tabernas locais por realizar pagodes com outros pretos. Da mesma
maneira, o escravo sabia da proibição de freqüentar as tabernas e botequins durante à
noite por parte do chefe de polícia da cidade. Em um dos interrogatórios, Honório , um
dos réus, informou ao subdelegado de polícia que recebera ordem do chefe de polícia
186
para “não consentir pagodes de escravos nas vendas” e, por isso, retiraram Marcolino
da taberna de Braga.
Observa-se nesse conflito entre a patrulha policial e Marcolino traços importantes da
sociabilidade engendrada entre livres e cativos. Marcolino visitava todas as noites a
loja de bebidas espirituosas de Manoel da Penha Braga com o consentimento de seu
senhor e também do proprietário do comércio. Outrossim, não informações ou
evidências da inconveniência da presença do escravo na taberna de Braga. De modo
análogo, os clientes da venda de Manoel da Penha Braga pareceram apreciar o
pagode de Marcolino, de modo a testemunharem favoravelmente ao escravo nas
barras do tribunal. Conforme discutido no capítulo II, a energia proporcionada pelas
lojas de bebidas alcoólicas favorecia o intercurso social entre as pessoas
freqüentadoras, de maneira que não se excluíam os cativos desses ambientes. Os
escravos músicos e agitadores de pagodes eram a grande atração desses
estabelecimentos e a sociabilidade daí conseqüente extrapolava os limites aceitáveis
pela autoridade policial da capital. A história de Marcolino bem demonstra que as
sociabilidades não dividiam claramente livres de cativos, mas sim autoridades públicas
das pessoas privadas, cujos interesses não se comprometiam com a ordem. Os
arranjos sociais forjados no momento dos delírios alcoólicos talvez não perdurassem
no dia seguinte, mas provavelmente seriam reconstituídos no próximo pagode.
4. 8 CONCLUSÃO
As ruas da cidade de Vitória guardavam segredos a serem desvendados. Ao contrário
de inibir o contato social nesse ambiente externo ao lar, as ruelas capixabas
revelavam características próprias de uma vida pública. Não se sabia ao certo onde
começava e terminava a vida nas ruas. Havia dificuldade também em diferenciar
quando tratar um vizinho como inspetor de quarteirão, ou quando considerá-lo
simplesmente o morador da casa ao lado. As ruas promoviam a integração dos
habitantes de Vitória, a promoção de vínculos e afetos. As sociabilidades desses
espaços obedeciam a regras muito sutis, mas passíveis de observação. Os moradores
enxergavam as ruas como uma extensão das janelas de casa, atribuindo-as um
conteúdo. De acordo com Maria Alexandre Lousada (1995, p. 394), as primeiras
décadas do Oitocentos em Lisboa marcaram uma transformação nas formas de
sociabilidade dos habitantes da capital de Portugal. Verificou, segundo a geógrafa, a
disseminação da cultura das Luzes, materializada pela criação das primeiras lojas
maçônicas, da vida de salão e da emergência de cafés, como espaços de discussão
187
literária e política, remodelando as ruas e os largos da cidade como espaços apenas
de trânsito efêmero, retirando-lhes a humanidade.
Da análise dos autos criminais, depreende-se que as ruas se apresentaram como
parte indissociável dos conflitos narrados. De maneira semelhante, os caminhos de
terra batida guardavam histórias dos antigos moradores e dos hábitos da vizinhança
que seriam transmitidos aos futuros vizinhos. Recebiam nomes de igrejas, de
personalidades locais, mas poderiam ser simplesmente chamadas de ruas do mar, em
função da ligação estabelecida entre o oceano, que se infiltrava nas terras da Ilha de
Vitória, e os capixabas. Tornavam-se quase agentes de sociabilidades, caso não
fossem coisas... Ganhavam personalidade, como nome, endereço e memórias.
O registro nas ações judiciais das desordens nesses espaços possibilitou o
mapeamento dos conflitos do Município de Vitória, ainda que em menor proporção
para as freguesias de São João de Cariacica, São José de Queimado, São João de
Carapina e Santa Leopoldina. Indicaram os caminhos nos quais as pessoas se
encontravam, por onde preferiam transitar, onde moravam. O registro dos nomes das
artérias nos diplomas judiciários permitiu, inclusive, identificar as características de
cada rua, onde se desenvolvia o comércio local, onde eram as igrejas e quais eram as
vizinhanças mais desordeiras.
188
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo geral desta dissertação caracterizou-se pelo mapeamento das formas de
convivência dos moradores das freguesias de Vitória, Cariacica, Carapina, Queimado
e Santa Leopoldina. O modus vivendi da sociedade capixaba deveria ser apreendido e
compreendido a partir das narrativas expostas nas fontes judiciárias, relacionando-as
com as notícias dos jornais e com as petições. As sociabilidades investigadas
constituíram-se, obrigatoriamente, por relações sociais baseadas na linguagem e no
sentimento. As relações sociais tinham uma peculiaridade: o aspecto desconcertante
do conflito, da bulha. A troca de insultos e as agressões físicas (sem ferimentos
graves) eram situações comuns no cotidiano do Município de Vitória e a ocorrência
dessas desordens não indicou o rompimento de vínculos. Algumas vezes, as brigas e
as injúrias serviram para reequilibrar as sociabilidades das vizinhanças. Nesta
pesquisa, as injúrias palavras perseguidas pelos inspetores de quarteirão e chefes
de polícia nos autos criminais e nos jornais da capital transformaram-se em objeto
de desejo do historiador. De acordo com Arlette Farge (1995, p. VII-IX), a leitura das
fontes primárias permite ao historiador identificar os documentos que revelam traços
importantes do cotidiano e, assim, “as palavras que têm significado”. O historiador das
sociabilidades conflituosas, desse modo, persegue as palavras que foram alvo de
repressão no passado, restituindo-lhes a liberdade no tempo presente que as
autoridades correcionais e judiciárias pretenderam tirar no passado (FARGE, 1995, p.
VII).
A incidência da sociabilidade conflituosa provavelmente foi instigada pela proximidade
dos contatos humanos engendrados pela população do Município. Conforme
indicaram os mapas e as plantas cartográficas utilizados nesta dissertação, a
constituição geográfica da capital da Província do Espírito Santo encurralou os
moradores na parte baixa da Ilha de Vitória, potencializando o intercurso das
sociabilidades. A população das demais freguesias percorria os caminhos de terra
batida, de mata fechada e de rios em direção à cidade de Vitória para participar de
seus divertimentos, das festas que tinham lugar todos os dias nas ruas e nas casas
especializadas, ou mesmo, simplesmente, para freqüentar o comércio de Vitória.
A capital polarizou, sobremaneira, as sociabilidades estabelecidas na região,
aproximando indivíduos de freguesias vizinhas e aceitando novos moradores em seus
quarteirões. De igual modo, a Freguesia de São João de Cariacica destacou-se pelo
vertiginoso índice de casos delituosos, indicando um modo próprio dos moradores de
dissolver suas indisposições.
189
Os capixabas do Município se movimentavam dia e noite pelas ruas e por picadas
abertas nas matas. A péssima qualidade da iluminação por lampiões, alvo de
reclamações por parte das pessoas da cidade, não impediu que os moradores
ocupassem, à noite, os espaços públicos ruas, praças e cais na rotina ordinária
dos afazeres profissionais e de lazer. A convivência nesses espaços propiciava a
trama de suas sociabilidades.
No primeiro capítulo indaguei a respeito dos segredos guardados pelas ruas de Vitória.
Qual foi a singularidade desses ambientes? A vida dos indivíduos e a trama de seus
arranjos sociais construíam-se em intimidade com os vizinhos, os transeuntes e,
principalmente, com a rua. A indistinção entre vida pública e vida privada contribuiu
decisivamente para a formação de uma nova esfera da vida: a das ruas. A vida das
ruas guardava um segredo: o movimento. As ruas da capital, em especial,
apresentavam-se às vizinhanças locais com uma rotina própria e o dia-a-dia desse
espaço social agrupava tanto atividades de trabalho, quanto momentos de regozijo.
Nesse ambiente, os moradores observavam o fluxo da vida das ruas e de suas casas
e lojas de negócio assistiam ao espetáculo das redes de sociabilidade se constituindo
e se esgarçando cotidianamente.
De 1850 a 1872 foi possível identificar uma gradativa alteração das formas de
convivência no Município de Vitória, que passaram dos encontros informais nas ruas,
praças, chafarizes e lojas para as reuniões semanais em clubes e agremiações
fechadas. As publicações dos jornais também indicaram mudanças no modo como os
indivíduos se relacionavam entre si e também com a imprensa. Os periódicos
paulatinamente perderam seu aspecto socializante, concentrando suas atividades na
publicidade de notícias de interesse mais geral e menos ligadas à vida alheia. As
cartas particulares deixaram lentamente as páginas do Correio da Victoria e do Jornal
da Victoria, dando lugar aos anúncios comerciais de lojas da cidade imperial e de
grandes estabelecimentos da capital da Província do Espírito Santo.
Nos documentos analisados ficou patente a pujança das ruas na vida ordinária dos
moradores, pois grande parte do dia-a-dia era vivida nesse espaço externo ao lar, mas
absorvido pelas famílias. As ruas eram uma extensão da casa e por isso as pessoas
tratavam de assuntos os mais diversos nos caminhos de pedra e de terra do
Município. No decorrer da pesquisa empírica, reconheceram-se as ruas e outros
espaços públicos como parte das sociabilidades municipais. Sediavam as cenas os
relacionamentos, por vezes, formatando-os por sua ausência de luz, seus buracos,
sua proximidade do mar. Acabavam integrando as pessoas envolvidas por suas
complexas redes sociais.
190
A pesquisa pautou-se na análise dos conflitos e de notícias do dia-a-dia das freguesias
do Município de Vitória, porém, é evidente a preeminência das freguesias de Vitória e
de Cariacica nos documentos empíricos. Isso não significa dizer que nas vizinhanças
de Carapina, Queimado e Santa Leopoldina não houvesse também casos
semelhantes aos das brigas estudadas nesta dissertação, ou que o cotidiano dessas
freguesias fosse monótono e moroso. Pode-se sugerir que, nas freguesias menos
listadas nos documentos investigados, as sociabilidades conflituosas fossem
restabelecidas sem intermédio do aparato legal, isto é, Polícia e Justiça.
Provavelmente, os moradores de Carapina, Queimado e Santa Leopoldina preferiram
resolver suas admoestações e altercações pela via violenta, face a face, mas não
chegaram a ser objeto de apreciação judicial, talvez por desinteresse das vítimas e
também de inspetores de quarteirão, subdelegados e chefes de polícia, que não
denunciaram esses conflitos. De toda forma, nota-se que em determinadas freguesias
o aparato coercitivo do Estado brasileiro tentava se impor, civilizando os hábitos e os
comportamentos dos residentes. A Polícia e a Justiça trabalhavam para expurgar os
ímpetos violentos de seus cidadãos na resolução dos conflitos, tornando-os mais
disciplinados pelas normas legais.
Não se objetivou nesta dissertação esgotar os estudos sobre as práticas de
sociabilidade do Município de Vitória, tão pouco descobrir todas as festas e
divertimentos que faziam parte do cotidiano das freguesias. A inspiração para esta
investigação originou-se, certamente, das leituras a respeito das sociabilidades
parisienses estudadas por Arlette Farge. A antiga dinâmica de Vitória no Oitocentos
transformou-se no presente em uma área menos humanizada, quase sem memória de
suas festas. Tentou-se, neste trabalho, vislumbrar a dinâmica dos encontros humanos
ocorridos nas ruas e becos e dos caminhos de terra e de mato. Os mapas utilizados
serviram não para auxiliar na localização espacial de lojas de comércio, das bulhas
e dos momentos de lazer da população, mas para aproximar o leitor da vida pulsante
desses espaços sociais.
191
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198
ANEXO F
Quadro 1 – Te Deum Laudamus
Nós vos louvamos, ó Deus,
nós vos bendizemos, Senhor.
Toda a terra vos adora,
Pai eterno e onipotente.
Os Anjos, os Céus e todas as Potestades,
os Querubins e os Serafins vos aclamam sem cessar:
Santo, Santo, Santo, Senhor Deus do Universo,
o céu e a terra proclamam a vossa glória.
O coro glorioso dos Apóstolos,
a falange venerável dos Profetas,
o exército resplandecente dos Mártires
cantam os vossos louvores.
A santa Igreja anuncia por toda a terra
a glória do vosso nome:
Deus de infinita majestade,
Pai, Filho e Espírito Santo.
Senhor Jesus Cristo, Rei da Glória,
Filho do Eterno Pai,
para salvar o homem, tomastes a condição humana
no seio da Virgem Maria.
Vós despedaçastes as cadeias da morte
e abristes as portas do Céu.
Vós estais sentado à direita de Deus, na glória do Pai,
e de novo haveis de vir para julgar os vivos e os mortos.
Socorrei os vossos servos, Senhor,
que remistes com o vosso Sangue precioso;
199
e recebei-os na luz da glória,
na assembléia dos vossos Santos.
Salvai o vosso povo, Senhor,
e abençoai a vossa herança;
sede o seu pastor e guia através dos tempos
e conduzi-os às fontes da vida eterna.
Nós vos bendiremos todos os dias da nossa vida
e louvaremos para sempre o vosso nome.
Dignai-vos, Senhor, neste dia, livrar-nos do pecado.
Tende piedade de nós, Senhor, tende piedade de nós.
Desça sobre nós a vossa misericórdia,
porque em vós esperamos.
Em vós espero, meu Deus,
não serei confundido eternamente.
200
ANEXO G
Quadro 2 – Magnificat
A minha alma glorifica o Senhor
E o meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador.
Porque pôs os olhos na humildade da sua Serva:
De hoje em diante me chamarão bem aventurada todas as gerações.
O Todo-Poderoso fez em mim maravilhas:
Santo é o seu nome.
A sua misericórdia se estende de geração em geração
Sobre aqueles que o temem.
Manifestou o poder do seu braço
E dispersou os soberbos.
Derrubou os poderosos de seus tronos
E exaltou os humildes.
Aos famintos encheu de bens
E aos ricos despediu de mãos vazias.
Acolheu a Israel, seu servo,
Lembrado da sua misericórdia,
Como tinha prometido a nossos pais,
A Abraão e à sua descendência para sempre
Glória ao Pai e ao Filho
E ao Espírito Santo,
Como era no princípio,
Agora e sempre. Amém.
201
ANEXO H
Quadro 3 – Distinção entre crimes públicos, particular e policiais
Título I - Dos crimes contra a existência do Império Artigos 68 a 90
Título II - Dos crimes contra o livre exercício dos poderes
públicos
Artigos 91 a 99
Título III - Dos crimes contra o livre gozo e exercício dos
direitos políticos dos cidadãos
Artigos 100 a 106
Título IV - Dos crimes contra a segurança do Império e pública
tranqüilidade
Artigos 107 a 128
Título V - Dos crimes contra a boa ordem e administração
pública
Artigos 129 a 169
CRIMES PÚBLICOS
Título VI - Dos crimes contra o tesouro público e propriedade Artigos 170 a 178
Título I – Dos crimes contra a liberdade individual Artigos 178 a 191
Título II – Dos crimes contra a segurança individual Artigos 192 a 256
Título III – Dos crimes contra a propriedade Artigos 257 a 268
CRIMES
PARTICULARES
Título IV – Dos crimes conta as pessoas e contra a propriedade
Artigos 269 a 275
Capítulo I – Ofensa da religião, da moral e dos bons costumes Artigos 276 a 281
Capítulo II – Sociedades Secretas Artigos 282 a 284
Capítulo III – Ajuntamentos ilícitos Artigos 285 a 294
Capítulo IV – Vadios e mendigos Artigos 295 e 296
Capítulo V – Uso de armas defesas Artigos 297 a 299
Capítulo VI – Fabrico e uso de instrumentos para roubar Artigo 300
Capítulo VII – Uso de nomes supostos e títulos indevidos Artigos 301 e 302
CRIMES
POLICIAIS*
Capítulo VIII – Uso indevido da imprensa Artigos 303 a 307
* A Parte Quarta destinada aos crimes policiais são compostas por capítulos e não títulos.
202
ANEXO I
Quadro 4 – Artigos do Código Criminal do Império brasileiro
Artigo 98 - “Levantar motim ou excitar desordem durante a seção de um tribunal de
justiça ou audiência d qualquer juiz, de maneira que se impeça ou perturbe o ato”.
Artigo 100 - “Impedir ou obsta de qualquer maneira que votem nas eleições primárias
ou secundárias os cidadãos ativos e os leitores que estiverem nas circunstâncias de
poder e dever votar”.
Artigo 128 - “Desobedecer ao empregado público em ato de exercício de suas funções
ou não cumprir suas ordens legais”.
Artigo 188 - “Recusar-se qualquer cidadão de mais de dezoito anos e menos de 50,
sem justo motivo, a prestar auxílio ao oficial encarregado de uma ordem legítima de
habeas corpus, sendo para isso devidamente intimado”.
Artigo 189 - “Prender alguém em cárcere privado, ainda que haja autoridade ou ordem
competente para se ordenar ou executar a prisão”.
Artigo 191 - “Perseguir por motivo de religião ao que respeitar a do Estado e não
ofender a moral pública”.
Artigo 209 - “Entrar em casa alheia à noite, sem consentimento de quem nela morar”.
Artigo 210 - “Entrar na casa de dia, fora dos casos permitidos e sem as formalidades
legais”.
Artigo 213 - “O oficial de justiça encarregado da diligência executá-la-á com toda a
atenção para com os moradores da casa, respeitando a modéstia e o decoro da
família. De tudo se lavrará auto assinado pelo oficial e pelas testemunhas”.
Artigo 215 - “Tirar maliciosamente do correio cartas que lhe não pertencerem sem
autorização da pessoa a quem vierem dirigidas”.
Artigo 216 - “Tirar ou haver cartas da mão ou do poder de algum portador particular,
por qualquer maneira que seja”.
Artigo 217 - “As penas dos artigos antecedentes serão dobradas no caso de se
descobrir a outro o que nas cartas se contiver, em todo ou em parte”.
Artigo 223 - “Quando houver simples ofensa pessoal para fim libidinoso, causando dor
ou algum mal corpóreo a alguma mulher, sem que se verifique a cópula carnal”.
203
Artigo 233 - “Quando a calúnia for cometida sem ser por algum dos meios
mencionados no artigo 230 [meios impressos], será punida com metade das penas
estabelecidas”.
Artigo 235 - “A acusação proposta em juízo provando-se ser caluniosa e intentada de
má fé será punida com a pena do crime imputado no grau máximo”.
Artigo 240 - “Quando a calúnia ou injúria forem equívocas, poderá o ofendido pedir
explicações em juízo ou fora dele”.
Artigo 241 - “O juiz que encontrar calúnias ou injúrias escritas em alegações ou cotas
de autos públicos, as mandará riscar a requerimento da parte ofendida e poderá
condenar o seu autor, sendo advogado ou procurador, em suspensão do ofício por oito
a trinta dias, e em multa de 4 a 40$000”.
Artigo 276 - “Celebrar em casa ou edifício que tenha alguma forma exterior de templos
ou publicamente em qualquer lugar, o culto de outra religião que não seja a do
Estado”.
Artigo 277 - “Abusar ou zombar de qualquer culto estabelecido no Império, por meio de
papéis impressos, litografados ou gravados, que se distribuírem por mais de quinze
pessoas, ou por meio de discursos proferidos em públicas reuniões, ou na ocasião e
lugar em que o culto se prestar”.
Artigo 278 - “Propagar por meio de papéis impressos litografados ou gravados que se
distribuírem por mais de quinze pessoas, ou por discursos proferidos em públicas
reuniões, doutrinas que diretamente destruam as verdades fundamentais da existência
de Deus e da imoralidade da alma”.
Artigo 279 - “Ofender evidentemente a moral pública em papéis impressos,
litografados ou gravados, ou em estampas e pinturas que se distribuírem por mais de
quinze pessoas, e bem assim a respeito destas que estejam expostas publicamente à
venda”.
Artigo 280 - Praticar qualquer ação que na opinião pública seja considerada como
evidentemente ofensiva da moral e bons costumes, sendo em local público”.
Artigo 281 - “Ter casa pública de tabolagem para jogos que forem proibidos pelas
Posturas das Câmaras Municipais”.
Artigo 282 - “A reunião de mais de dez pessoas em uma casa em certos e
determinados dias somente se julgará criminosa quando for para fim de que se exija
204
segredo dos associados, e quando neste último caso não se comunicar em forma legal
ao juiz de paz do distrito em que se fizer a reunião”.
Artigo 292 - “Os homens livres de mais de dezoito anos e menos de 50 que sendo
convocados pelo juiz de paz ou de ordem sua [...] recusarem ou deixarem de obedecer
sem motivo justo”.
Artigo 293 - “Aqueles que fazendo parte do ajuntamento ilícito, se não tiverem retirado
do lugar ¼ de hora depois da admoestação do juiz de paz ou que depois de
desfeito o ajuntamento se tornarem a reunir”.
Artigo 296 - “Andar mendigando [...]”.
Artigo 303 - “Estabelecer oficina de impressão litografia ou gravura, sem declarar
perante a câmara da cidade ou vila seu nome, lugar, rua e casa em que pretende
estabelecer, para ser escrito em livro próprio que para esse efeito terão as câmaras, e
deixar de participar a mudança da casa, sempre que ela aconteça”.
Artigo 304 - “Imprimir, litografar ou gravar qualquer escrito ou estampa sem nele
declarar o nome do impressor ou gravador, a terra em que está a oficina em que for
impresso, litografado, ou gravado, faltando-se a todas ou a cada uma destas
declarações”.
Artigo 307 - “Deixar de remeter ao promotor um exemplar do escrito ou obra impressa,
no dia de sua publicação e distribuição”.
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